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Manejo e interpretação: um caso clínico que ilustra as ... - GPWinnicott

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<strong>Manejo</strong> e <strong>interpretação</strong>: <strong>um</strong> <strong>c<strong>as</strong>o</strong> <strong>clínico</strong> <strong>que</strong> <strong>ilustra</strong> <strong>as</strong> modificações propost<strong>as</strong> por<br />

Winnicott ao método de tratamento psicanalítico<br />

Marília Marchese Cesarino e Leopoldo Fulgencio- PUC-Campin<strong>as</strong><br />

Res<strong>um</strong>o: Em <strong>um</strong> fragmento de <strong>um</strong> <strong>c<strong>as</strong>o</strong> <strong>clínico</strong> descrito por Winnicott no texto Dependência<br />

no cuidado do lactente, no cuidado da criança e na situação psicanalítica, de 1963, aparecem<br />

apontamentos significativos d<strong>as</strong> mudanç<strong>as</strong> propost<strong>as</strong> por Winnicott ao método de tratamento<br />

psicanalítico tradicional. A partir da compreensão do <strong>c<strong>as</strong>o</strong> <strong>clínico</strong> como <strong>um</strong> exemplar, no<br />

sentido proposto por Kuhn, cuja função se define por ensinar e transmitir o modo de<br />

formulação e de resolução de problem<strong>as</strong> no interior de <strong>um</strong>a disciplina, pretendemos, neste<br />

trabalho, analisar o método de tratamento winnicottiano, colocando em evidência <strong>as</strong><br />

modificações técnic<strong>as</strong> <strong>que</strong> decorrem da compreensão do <strong>c<strong>as</strong>o</strong> a luz de sua teoria do<br />

amadurecimento pessoal. Neste contexto, pretendemos também caracterizar e apontar a noção<br />

de manejo como <strong>um</strong> dos elementos centrais da clínica winnicottiana, bem como mostrar o uso<br />

específico <strong>que</strong> Winnicott faz da <strong>interpretação</strong> neste <strong>c<strong>as</strong>o</strong>, a saber, como <strong>um</strong> modo de<br />

adaptação às necessidades da paciente.<br />

Palavr<strong>as</strong>-chave: Winnicott, <strong>c<strong>as</strong>o</strong> <strong>clínico</strong>, método de tratamento, <strong>interpretação</strong>, manejo<br />

N<strong>um</strong> artigo de 1963, Winnicott (1963a {1962}) escreve <strong>um</strong>a p<strong>as</strong>sagem de <strong>um</strong> <strong>c<strong>as</strong>o</strong>, a<br />

partir do qual são explicitados alguns dos principais <strong>as</strong>pectos presentes no tratamento d<strong>as</strong><br />

regressões. Trata-se de <strong>um</strong>a jovem paciente <strong>que</strong> já havia tido <strong>um</strong>a experiência longa de<br />

análise <strong>que</strong>, seguindo o modelo tradicional, desencorajava qual<strong>que</strong>r movimento no sentido da<br />

regressão. Esta paciente apresentava-se extremamente independente, chegava a tornar-se<br />

“durona” e possuía <strong>um</strong>a capacidade intelectual b<strong>as</strong>tante expressiva. Contudo, segundo o relato<br />

de Winnicott, <strong>um</strong> sentimento de irrealidade e futilidade se fez presente logo no início da<br />

análise, <strong>as</strong>sim como o fato de <strong>que</strong>, com excessiva facilidade, algo central em sua<br />

personalidade apresentava-se sob ameaça de aniquilamento.


A paciente teve de esperar alguns meses antes <strong>que</strong> Winnicott pudesse vê-la, a princípio,<br />

somente <strong>um</strong>a vez por semana. Posteriormente, lhe foi possibilitado sessões diári<strong>as</strong>, no<br />

entanto, exatamente quando Winnicott tinha marcada de antemão <strong>um</strong>a viagem de <strong>um</strong> mês<br />

para o exterior.<br />

A dinâmica d<strong>as</strong> sessões ocorria da seguinte maneira: a paciente chegava como se viesse<br />

a <strong>um</strong>a visita social, relatava <strong>as</strong> percepções intelectuais de si mesma e do ambiente de modo<br />

b<strong>as</strong>tante claro, havia muito silêncio e, próximo do fim da sessão, ela se lembrava de <strong>um</strong><br />

sonho, nos quais ela sempre vinha representada como criatur<strong>as</strong> frágeis e muit<strong>as</strong> vezes<br />

mutilad<strong>as</strong> (maimed) 1 .<br />

O movimento no sentido da regressão à dependência logo se apresentou, especialmente<br />

a partir de <strong>um</strong> de seus sonhos <strong>que</strong>, embora de modo obscuro, revelaria <strong>um</strong>a reação ao<br />

af<strong>as</strong>tamento de Winnicott na oc<strong>as</strong>ião. Neste sonho, a paciente possuía <strong>um</strong>a tartaruga, cuja<br />

c<strong>as</strong>ca era mole, de modo <strong>que</strong> se encontrava desprotegida e poderia sofrer. No sonho, ela<br />

matava a tartaruga para salvá-la do sofrimento intolerável <strong>que</strong> poderia vir a ter. A partir disto,<br />

Winnicott compreende <strong>que</strong> a “(...) tartaruga era ela mesma e indicava <strong>um</strong>a tendência ao<br />

suicídio. Era para curar essa tendência <strong>que</strong> ela havia vindo se tratar” (Winnicott, 1963a<br />

{1962}, p. 225). Considerando tratar-se de <strong>um</strong> sofrimento em torno da problemática da<br />

dependência, o af<strong>as</strong>tamento de Winnicott e a interrupção do tratamento, neste momento<br />

impróprio do processo da paciente, “(...) reconstituiu <strong>um</strong> episódio tra<strong>um</strong>ático ou <strong>um</strong>a série de<br />

episódios de seu próprio tempo de lactente” (Id. Ibid.). Como reação, a paciente desenvolveu<br />

<strong>um</strong>a doença física, <strong>que</strong> apresentava sua tendência ao suicídio localizada, neste <strong>c<strong>as</strong>o</strong>, n<strong>um</strong><br />

órgão do corpo. A este respeito, Winnicott afirma:<br />

Era, por <strong>as</strong>sim dizer, como se eu a tivesse sustendo e então fic<strong>as</strong>se preocupado com<br />

alg<strong>um</strong> outro <strong>as</strong>sunto, de modo <strong>que</strong> ela se sentiu aniquilada. Esta foi sua palavra<br />

para aquilo. Ao se matar ela conseguiria controle sobre ser aniquilada no momento<br />

de ser dependente e vulnerável. (Winnicott, 1963a {1962}, p. 226)<br />

Neste ponto, cabe esclarecer <strong>as</strong> concepções de Winnicott no <strong>que</strong> tange à necessidade de<br />

1 Na edição em português maimed vem traduzido por “mimada”, enquanto <strong>que</strong> a tradução correta é<br />

“mutilada”, “desfigurada”, “deformada”.


egressão à dependência, reconhecida clinicamente nesta paciente. Segundo o autor, nestes<br />

<strong>c<strong>as</strong>o</strong>s, houve <strong>um</strong>a interrupção do amadurecimento nos seus estágios iniciais devido a falh<strong>as</strong> na<br />

adaptação ambiental, falh<strong>as</strong> est<strong>as</strong> <strong>que</strong> lançam o bebê à vivência de agoni<strong>as</strong> impensáveis, cuja<br />

característica é de se imporem como inv<strong>as</strong>ões, incapazes de serem abarcad<strong>as</strong> pela zona de<br />

experiência do bebê. Tal situação apresenta como única alternativa a organização de<br />

estratégi<strong>as</strong> defensiv<strong>as</strong> visando à proteção contra nov<strong>as</strong> possíveis falh<strong>as</strong>, o <strong>que</strong> ocorre à custa<br />

da interrupção da continuidade de ser de modo pessoal ou, em outr<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, do<br />

congelamento do processo de amadurecimento. Este congelamento, conforme Winnicott<br />

apresenta em seu artigo “O medo do colapso” (1974) define-se pela coexistência de <strong>um</strong> estado<br />

defensivo contra a vivência de nov<strong>as</strong> agoni<strong>as</strong> e da necessidade premente de chegar à situação<br />

da agonia, de forma a poder experienciá-la, agora com <strong>um</strong>a nova provisão ambiental.<br />

No <strong>c<strong>as</strong>o</strong> desta paciente, a aparente independência e a bem desenvolvida capacidade<br />

intelectual funcionavam como defesa, <strong>as</strong>sim como a tendência ao suicídio apresentava a<br />

necessidade de se defender de nov<strong>as</strong> possíveis falh<strong>as</strong> ambientais, de forma <strong>que</strong> o<br />

aniquilamento fosse produzido ativamente e não por <strong>um</strong>a inv<strong>as</strong>ão ambiental. Também o<br />

adoecimento físico se desenvolvera defensivamente, comportando, por <strong>um</strong> lado, a expressão<br />

de sua tendência ao suicídio localizada n<strong>um</strong> órgão do corpo, de sua tendência a realizar de<br />

modo ativo aquilo <strong>que</strong> temia <strong>que</strong> lhe acontecesse n<strong>um</strong>a situação de dependência e, por outro<br />

lado, a própria necessidade de viver a dependência de modo satisfatório, considerando <strong>que</strong>,<br />

n<strong>um</strong>a situação de doença, o ambiente, em geral, se organiza em função do cuidado.<br />

Entretanto, como salienta Winnicott, suc<strong>um</strong>bir a <strong>um</strong>a doença psicossomática “(...) traria o tão<br />

necessitado cuidado, m<strong>as</strong> não o insight ou o cuidado mental <strong>que</strong> pode realmente fazer a<br />

diferença” (Winnicott, 1963a {1962}, pp. 228-229).<br />

De <strong>que</strong> se trata, pois, este cuidado mental <strong>que</strong> faria a diferença?<br />

Na oc<strong>as</strong>ião, Winnicott esclarece <strong>que</strong> havia <strong>um</strong>a grande quantidade de material em<br />

termos de sadismo oral, ou seja, do amor reforçado pela raiva, <strong>que</strong> poderiam ser utilizados<br />

para interpretar a relação da paciente com ele e com todos os outros <strong>que</strong> a haviam<br />

abandonado, inclusive sua mãe na oc<strong>as</strong>ião do desmame. M<strong>as</strong>, levando em conta a natureza do<br />

material <strong>que</strong> havia sido apresentado, Winnicott considera <strong>que</strong>, se tivesse seguido este<br />

caminho, “(...) então teria sido <strong>um</strong> mau analista fazendo bo<strong>as</strong> interpretações” (Winnicott,


1963a {1962}, p. 228). Em diversos momentos de sua obra 2 , Winnicott afirma <strong>que</strong> em <strong>c<strong>as</strong>o</strong>s<br />

de regressão, cuja problemática central é relativa à dependência, o trabalho interpretativo<br />

tradicional deve ser suspenso e o analista deve ser capaz de, por identificação, adaptar-se às<br />

necessidades do paciente, provendo e sustentando <strong>um</strong> ambiente suficientemente bom.<br />

Esta outra orientação leva-me à compreensão <strong>que</strong> temos em nós mesmos e <strong>que</strong> nos<br />

faz saber <strong>que</strong> devemos evitar viajar logo após iniciar <strong>um</strong>a análise. É a percepção da<br />

vulnerabilidade do paciente, o oposto à força do ego. Satisfazemos <strong>as</strong> necessidades<br />

dos pacientes de inúmer<strong>as</strong> maneir<strong>as</strong>, por<strong>que</strong> sabemos mais ou menos como o<br />

paciente está se sentindo, e podemos encontrar o equivalente do paciente em nós<br />

mesmos. Isso tudo é feito silenciosamente, e o paciente habitualmente permanece<br />

inconsciente do <strong>que</strong> fazemos bem, m<strong>as</strong> se torna consciente do papel <strong>que</strong><br />

desempenhamos quando <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> vão mal. É então, quando falhamos a este<br />

respeito, <strong>que</strong> o paciente reage ao imprevisível e sofre <strong>um</strong>a <strong>que</strong>bra da continuidade<br />

de sua existência. (Winnicott, 1963a {1962}, p. 226)<br />

Esta orientação <strong>que</strong> diz respeito ao fornecimento de <strong>um</strong> ambiente adaptado às<br />

necessidades do paciente e <strong>que</strong> implica na suspensão, ainda <strong>que</strong> temporária, do uso da<br />

<strong>interpretação</strong> no tratamento, embora não esteja <strong>as</strong>sim formulada no texto em <strong>que</strong>stão, é<br />

denominada por Winnicott, em distintos momentos de sua obra, como manejo (management).<br />

N<strong>um</strong> trabalho de 1955, Winnicott afirma <strong>que</strong>, na clínica dos estados regredidos, “a ênf<strong>as</strong>e<br />

recai mais freqüentemente sobre o manejo, e por vezes p<strong>as</strong>sam-se longos períodos em <strong>que</strong> o<br />

trabalho analítico normal deve ser deixado de lado, o manejo ocupando a totalidade do<br />

espaço” (Winnicott, 1955d, p. 375). Em 1956, voltando a falar sobre o trabalho analítico com<br />

a regressão, ele afirma <strong>que</strong>, nestes <strong>c<strong>as</strong>o</strong>s, “(...) o contexto torna-se mais importante <strong>que</strong> a<br />

<strong>interpretação</strong>”, salientando <strong>que</strong> o contexto aqui se define como “(...) o somatório de todos os<br />

detalhes relativos ao manejo” (Winnicott, 1956a, p. 395).<br />

Ainda refletindo sobre os possíveis efeitos de <strong>um</strong>a <strong>interpretação</strong> tradicional no <strong>c<strong>as</strong>o</strong>,<br />

Winnicott afirma esta levaria a produzir, n<strong>um</strong>a personalidade mais amadurecida, raiva ou<br />

excitação, e ess<strong>as</strong> emoções ainda não eram possíveis de serem vivid<strong>as</strong> como experiência<br />

2 C.f. Winnicott, 1955d, 1956a, 1965vd.


pessoal por esta paciente, de modo <strong>que</strong> el<strong>as</strong> apareciam como doenç<strong>as</strong> físic<strong>as</strong>, como <strong>um</strong> fator<br />

externo a ela, <strong>um</strong> elemento inv<strong>as</strong>ivo <strong>que</strong> contribuía para sua tendência suicida:<br />

(...) seu ego era incapaz de acomodar qual<strong>que</strong>r emoção forte. Ódio, excitação,<br />

medo – cada qual se separava como <strong>um</strong> corpo estranho, e se tornava com excessiva<br />

facilidade localizado em <strong>um</strong> órgão do corpo <strong>que</strong> entrava em esp<strong>as</strong>mo e tendia a se<br />

destruir (...). (Winnicott, 1963a {1962}, p. 228)<br />

A consideração do manejo como <strong>um</strong> elemento central da clínica dos estados regredidos<br />

se apóia, portanto, na aceitação da idéia de dependência <strong>que</strong> leva, por sua vez, ao exame do<br />

comportamento e do modo de ser do ambiente, neste <strong>c<strong>as</strong>o</strong>, do analista. Winnicott esclarece<br />

<strong>que</strong>, além do fornecimento de sessões diári<strong>as</strong>, o fato de <strong>um</strong> movimento de regressão haver se<br />

iniciado nesta análise estava relacionado com a verificação, por parte da paciente, de <strong>que</strong> o<br />

material não era utilizado de modo brusco para ser interpretado. “A paciente me disse <strong>que</strong> o<br />

motivo principal <strong>que</strong> a levara a este envolvimento na dependência, tão rápido e involuntário,<br />

era o fato de eu permitir <strong>que</strong> <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> acontecessem e <strong>que</strong>rer saber o <strong>que</strong> cada sessão traria”<br />

(Winnicott, 1963a {1962}, p. 229). Sua história de vida junto com a experiência de longos<br />

anos de análise tradicional já a haviam deixado habituada a se defender da dependência, por<br />

meio da organização de <strong>um</strong>a vida independente e da utilização de sua capacidade intelectual.<br />

O estado de regressão <strong>que</strong> se desenvolvera nesta análise fora, portanto, resultante do adequado<br />

manejo e da confiabilidade estabelecida por este modo silencioso de comunicação, tema <strong>que</strong>,<br />

em outro momento, Winnicott formulou da seguinte maneira:<br />

O comportamento do analista, representado pelo <strong>que</strong> chamei de contexto, por ser<br />

suficientemente bom em matéria de adaptação à necessidade, é gradualmente<br />

percebido pelo paciente como algo <strong>que</strong> suscita a esperança de <strong>que</strong> o verdadeiro eu<br />

poderá finalmente correr os riscos implícitos em começar a experimentar a viver.<br />

(Winnicott, 1956a, p. 395)<br />

É importante notar <strong>que</strong>, com pacientes em estado de regressão, “o analista encontra-se,


<strong>as</strong>sim, confrontado com o processo primário do paciente na situação em <strong>que</strong> este processo<br />

tinha seu valor original (Winnicott, 1956a, p. 396). Por isto mesmo, “(...) a manutenção de<br />

<strong>um</strong>a situação adaptativa ao ego é essencial. A consistência da situação é <strong>um</strong>a experiência<br />

primária e não algo a ser recordado e revivido na técnica do analista” (Winnicott, 1965vd<br />

{1963}, p. 216). Desta maneira, o estado regressivo desta paciente a deixava altamente<br />

sensível a qual<strong>que</strong>r comportamento de Winnicott <strong>que</strong> não estivesse de acordo com às su<strong>as</strong><br />

necessidades. Esta é a razão pela qual sentiu-se aniquilada com o anúncio da viagem de<br />

Winnicott. Tratava-se de <strong>um</strong>a falha pré-matura, não da<strong>que</strong>la, diz Winnicott, “(...) <strong>que</strong> ela me<br />

fará falhar de maneira determinada por sua própria história” (Winnicott, 1963a {1962}, p.<br />

233).<br />

Neste ponto, Winnicott, reconhecendo <strong>que</strong> em função da natureza da problemática, sua<br />

viagem consistia n<strong>um</strong>a falha ambiental, lança mão de <strong>um</strong>a <strong>interpretação</strong> <strong>que</strong>, segundo ele,<br />

permitiu com <strong>que</strong> a paciente se sentisse aliviada e se torn<strong>as</strong>se capaz de aceitar sua viagem.<br />

Isto também coincide com <strong>um</strong>a melhora do quadro <strong>clínico</strong>, também parcialmente, comenta<br />

Winnicott, por<strong>que</strong> ela vinha recebendo cuidados médicos adequados.<br />

Ao <strong>que</strong> consta, a <strong>interpretação</strong> fornecida seguia os seguintes termos:<br />

No decurso de <strong>um</strong>a conversa em <strong>que</strong> fizemos planos para o futuro e discutimos a<br />

natureza de sua moléstia e os riscos inerentes à continuação do tratamento, eu<br />

disse: “Pois eis você doente, e podemos observar <strong>que</strong> a doença física oculta <strong>um</strong>a<br />

reação extrema à minha partida, embora você não seja capaz de atingir <strong>um</strong>a<br />

percepção direta pelo sentimento da mesma. De modo <strong>que</strong> você poderia dizer <strong>que</strong><br />

eu lhe causei a doença como outros a fizeram ficar doente quando você era <strong>um</strong><br />

bebê, e poderia ficar braba”. Ela respondeu: “M<strong>as</strong> não estou”. (Na verdade ela me<br />

mantém n<strong>um</strong>a posição idealizada e tende a achar <strong>que</strong> médicos do corpo são<br />

perseguidores.) Então repli<strong>que</strong>i: “O caminho é este, amplamente aberto para o seu<br />

ressentimento e raiva m<strong>as</strong> esta se recusa a trilhar esse caminho”. (Winnicott, 1963a<br />

{1962}, p. 229)<br />

Ainda <strong>que</strong> utilize a compreensão intelectual da paciente para tratar do <strong>as</strong>sunto em


<strong>que</strong>stão, e <strong>que</strong> o faça em termos de comunicação verbal 3 , Winnicott apresenta o material de<br />

modo a reconhecer plenamente a falha pré-matura, em contraposição à análise tradicional em<br />

termos de reações a perda. Aí está contido <strong>um</strong> outro <strong>as</strong>pecto da comunicação, de natureza<br />

silenciosa, <strong>que</strong> reconhece tacitamente e legitima sua necessidade de regressão e sua maneira<br />

de reagir à falha. Nos parece <strong>que</strong> este foi o <strong>as</strong>pecto essencial da comunicação, <strong>que</strong> pode ser<br />

recebido pela paciente como <strong>um</strong>a forma de adaptação:<br />

O surpreendente é <strong>que</strong> <strong>um</strong>a <strong>interpretação</strong> pode levar a <strong>um</strong>a mudança e pode-se<br />

apen<strong>as</strong> pres<strong>um</strong>ir <strong>que</strong> a compreensão em nível profundo e no momento exato são<br />

form<strong>as</strong> consistentes de adaptação. Neste <strong>c<strong>as</strong>o</strong>, por exemplo, a paciente se tornou<br />

capaz de enfrentar minha ausência por<strong>que</strong> sentiu (em <strong>um</strong> nível) <strong>que</strong> agora ela não<br />

estava sendo aniquilada, m<strong>as</strong>, de modo positivo, estava sendo mantida em<br />

existência por ter <strong>um</strong>a realidade como objeto de minha preocupação. (Winnicott,<br />

1963a {1962}, p. 226)<br />

Assim, Winnicott faz atentar para o fato de <strong>que</strong> a comunicação <strong>que</strong> efetivamente<br />

imprimiu <strong>um</strong> efeito na situação era de natureza silenciosa, a<strong>que</strong>la <strong>que</strong> diz respeito ao fato de<br />

<strong>que</strong> ele realmente encontrava-se preocupado com a paciente, <strong>um</strong>a vez <strong>que</strong>, reconhecendo sua<br />

necessidade de regressão, reconhecia também o momento impróprio de sua partida. O<br />

conteúdo verbalizado por ele não era tão importante quanto o fato de <strong>que</strong> a <strong>interpretação</strong><br />

estava de acordo com a natureza do material apresentado, demonstrando a possibilidade de<br />

compreensão do analista com relação à problemática enfrentada pela paciente. Em outro<br />

momento, referindo-se a outro material de <strong>c<strong>as</strong>o</strong> <strong>clínico</strong>, Winnicott diz a este respeito:<br />

Não é bem <strong>um</strong>a <strong>que</strong>stão de <strong>interpretação</strong> verbal. O analista sente <strong>que</strong> no<br />

material <strong>que</strong> lhe é apresentado pelo paciente há <strong>um</strong>a tendência <strong>que</strong> pede<br />

<strong>um</strong>a verbalização. Muita coisa depende da maneira como o analista usa <strong>as</strong><br />

3 No relato de sua comunicação (<strong>interpretação</strong>) à paciente, Winnicott faz a seguinte observação em nota<br />

de rodapé: “Eu estava claramente influenciado pelo nível intelectual de seu método de apresentar o<br />

material” (Winnicott, 1963a, p. 229). Esta observação nos faz pensar <strong>que</strong>, o modo de apresentar a<br />

comunicação estava relacionado com <strong>um</strong> padrão específico desta paciente (intelectual), parecendo estar<br />

adequado a ela, m<strong>as</strong> não necessariamente a outros <strong>c<strong>as</strong>o</strong>s, <strong>um</strong>a vez <strong>que</strong> envolve e mobiliza <strong>um</strong> alto grau de<br />

compreensão intelectual.


palavr<strong>as</strong>, e, portanto, da atitude <strong>que</strong> se oculta por trás da <strong>interpretação</strong>. Uma<br />

paciente cravou su<strong>as</strong> unh<strong>as</strong> em minha mão n<strong>um</strong> momento em <strong>que</strong> seus<br />

sentimentos eram intensos, e minha <strong>interpretação</strong> foi: “Uau!” Isto<br />

praticamente não envolveu o uso de meu aparato intelectual, e foi b<strong>as</strong>tante<br />

útil, <strong>um</strong>a vez <strong>que</strong> surgiu imediatamente (e não em seguida a <strong>um</strong>a pausa ou<br />

inflexões), fazendo minha paciente ver <strong>que</strong> minha mão estava viva, <strong>que</strong><br />

fazia parte de mim e <strong>que</strong> eu ali me encontrava para ser usado. Ou, como<br />

talvez eu pudesse dizer, posso ser utilizado desde <strong>que</strong> sobreviva. (Winnicott,<br />

1968d, p. 85)<br />

É neste sentido <strong>que</strong> a <strong>interpretação</strong> pode se configurar como <strong>um</strong>a forma de adaptação,<br />

como parte da provisão ambiental e, segundo temos compreendido, como <strong>um</strong> <strong>as</strong>pecto do<br />

manejo <strong>clínico</strong>, se este for considerado no seu sentido mais amplo.<br />

Para finalizar, é importante ainda marcar <strong>que</strong>, conforme esclarece Winnicott, o manejo<br />

da situação foi possível, em parte, por<strong>que</strong> a paciente ainda não havia atingido <strong>um</strong> estado de<br />

regressão completo. Winnicott afirma: “Um pouco mais tarde, em <strong>um</strong>a dependência mais<br />

completa, a <strong>interpretação</strong> verbal não seria suficiente, ou poderia ser dispensada” (Winnicott,<br />

1963a {1962}, p. 226). Este estado parcial de regressão ainda permitia <strong>um</strong>a comunicação no<br />

nível intelectual, <strong>as</strong>sim como a própria forma da paciente de apresentar o material 4 .<br />

Entretanto, o fator essencial <strong>que</strong> permitiu com <strong>que</strong> a paciente pudesse ser mantida em<br />

existência durante a interrupção da análise, aguardando o momento em <strong>que</strong> a regressão à<br />

dependência pudesse atingir seu estado completo, se relaciona com a compreensão e a atitude<br />

do analista <strong>que</strong> se ocultam por trás da <strong>interpretação</strong>.<br />

Referênci<strong>as</strong> Bibliográfic<strong>as</strong><br />

Winnicott, D. W. (1955d). Aspectos Clínicos e Metapsicológicos da Regressão no Contexto<br />

Psicanalítico Da Pediatria à Psicanálise: Obr<strong>as</strong> Escolhid<strong>as</strong>. Rio de Janeiro: Imago Ed.,<br />

4 Ver nota de rodapé 3.


2000.<br />

Winnicott, D. W. (1956a). Form<strong>as</strong> Clínic<strong>as</strong> da Transferência Da Pediatria à Psicanálise: Obr<strong>as</strong><br />

Escolhid<strong>as</strong>. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000.<br />

Winnicott, D. W. (1963a {1962}). Dependência no cuidado do lactente, no cuidado da criança e<br />

na situação psicalítica O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artmed,<br />

1983.<br />

Winnicott, D. W. (1965vd {1963}). Distúrbios psiquiátricos e processos de maturação infantil O<br />

Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983.<br />

Winnicott, D. W. (1968d). A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê:<br />

convergênci<strong>as</strong> e divergênci<strong>as</strong> Os bebês e su<strong>as</strong> mães. São Paulo: Martins Fontes,1994.<br />

Winnicott, D. W. (1974). O Medo do Colapso Explorações Psicanalític<strong>as</strong>: D. W. Winnicott.<br />

Porto Alegre: Artes Médic<strong>as</strong>, 1994.

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