ELE É FEITA PRA APANHAR/ ELA É BOM DE CUSPIR/ MALDITO ...
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REVISTA CIENTÍFICA <strong>ELE</strong>CTRÓNICA <strong>DE</strong> PSICOLOGÍA<br />
ICSa-UAEH<br />
No.10 ISSN 1870-5812<br />
<strong>ELE</strong> <strong>É</strong> <strong>FEITA</strong> <strong>PRA</strong> <strong>APANHAR</strong>/ <strong>ELA</strong> <strong>É</strong> <strong>BOM</strong> <strong>DE</strong> <strong>CUSPIR</strong>/ <strong>MALDITO</strong><br />
GENI: ESPECULAÇÕES SOBRE A CONDIÇÃO <strong>DE</strong> ABJETOS<br />
VIVIDA POR TRAVESTIS 4 .<br />
Fernando Luiz Salgado da Silva 5 , Maria Juracy Figueiras Toneli 6 ,<br />
Simone Becker 7 .<br />
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil<br />
RESUMO: O presente artigo procura suscitar a discussão envolvendo a<br />
condição de inumanidade e/ou da abjeção desfrutada pelas travestis. Com base<br />
em determinados discursos advindos ora da mídia impressa, ora do judiciário,<br />
busca-se refletir a respeito do reconhecimento destes sujeitos tidos como<br />
marginais, sobretudo, no que se refere ao acesso a direitos mais basilares. Assim,<br />
das contribuições de Michel Foucault e Judith Butler, o artigo estabelece de<br />
maneira ensaística o diálogo com produções alocadas no campo da antropologia,<br />
seja com as noções clássicas de liminaridade produzidas por Mary Douglas, seja<br />
com aquelas que marcam as especificidades brasileiras produzidas por Roberto<br />
DaMatta.<br />
Palavras-chave: Travestis; Abjeção; Liminaridade.<br />
4 Com algumas mudanças este artigo foi apresentado no IV Congresso da Associação Brasileira de<br />
Estudos Homoeróticos (ABEH), ocorrido em 2008 na Universidade de São Paulo.<br />
5 Graduando de Psicologia da Universidade Federal de Psicologia e membro do Núcleo de Pesquisa<br />
MARGENS - Modos de Vida, Família e Relações de Gênero do Departamento de Psicologia da UFSC.<br />
6 Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1979), mestrado em<br />
Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (1988), doutorado em Psicologia Escolar e do<br />
Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (1997), pós-doutorado pela Psicologia Social na<br />
UFMG (2009) e na Universidade do Minho/Portugal (2009-2010). Professora do Departamento de Psicologia<br />
e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.<br />
7 Coordenadora do curso de Direito e docente com Dedicação Exclusiva da Faculdade de Direito na<br />
Universidade Federal da Grande Dourados/MS. Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal<br />
de Santa Catarina (UFSC), mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e<br />
graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Pesquisadora dos grupos de<br />
pesquisa NEXUM/UFGD, Margens/UFSC e Nur/UFSC.<br />
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Resumen<br />
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El presente artículo busca promover discusión abarcando la condición inhumana<br />
y/o de rechazo vivenciada por las travestis. Con base en determinados discursos<br />
advindos ora de la prensa ora de informes judiciales, se busca la reflexión a<br />
respecto del reconocimento de estos indivíduos tenidos como marginales, sobre<br />
todo, en lo que se refiere al acceso a los derechos más fundamentales. Así, a<br />
partir de las contribuciones de Michel Foucault y Judith Butler, el artículo sitúa a<br />
manera de ensayo un diálogo con producciones pertenecientes al campo de la<br />
antropologia; como las nociones clásicas de LIMINARIDA<strong>DE</strong> producidas por Mary<br />
Douglas, así como aquellas que marcan especificidades brasileras producidas por<br />
Roberto DaMatta.<br />
Palabras clave: Travestis; rechazo; liminaridad.<br />
Travesti morto encontrado em contentor de lixo. Travesti morto à<br />
pancada por miúdos e atirado para dentro do fosso. Travesti Clô morre no hospital,<br />
após ser brutalmente espancado por policiais. Travesti morto por 14 jovens.<br />
Motoqueiros matam travesti e cliente. Travesti é morto por R$9,00. Estas são<br />
algumas das inúmeras manchetes que evidenciam um quadro de violência física<br />
contra as travestis.<br />
Assim, se por meio das transcritas manchetes impressas, observa-se<br />
também a perpetuação das “violências simbólicas” (BOURDIEU, 1999)<br />
cotidianamente praticadas contra tais “sujeitos” 8 , no contexto judiciário o décor não<br />
é diferente. Senão, vejamos, com os trechos de um dos julgamentos produzido<br />
8 Aspeamos o termo sujeitos, pois como veremos ao longo deste artigo, as travestis gozam de<br />
inumanidade não apenas para a maioria dos discursos jurídicos e legais brasileiros.<br />
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pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) 9 , constante nos autos do<br />
processo de n° 2008.015632-5 (DA SILVA, 2009, p.01-02) 10 :<br />
No dia 12 de maio de 2002, por volta das 23 h e 30min, o denunciado, a<br />
fim de satisfazer sua lascívia, dirigiu-se até o Trevo da Jucasa, naquela<br />
comarca, local popularmente conhecido como ponto de travestis.<br />
Assim é que, chegando ao local, abordou Alessandro Falcheti, conhecido<br />
como "Michele", propondo encontro sexual, o que não ocorreu em face<br />
do desacordo sobre o preço a ser pago.<br />
Insaciável em seu desejo de relacionar-se sexualmente com um travesti,<br />
o denunciado, mais adiante, abordou a vítima Marcelo Anderson Paim,<br />
conhecido por "Valéria", tendo ambos deixado o local no veículo<br />
GM/Corsa, ST/CAR/Camionete, placas MBI-7876, de propriedade do<br />
denunciado.<br />
Terminado o encontro amoroso, algum tempo depois, o veículo retornou<br />
ao local (Trevo da Jucasa), tendo o denunciado o estacionado sob umas<br />
árvores ali existentes, ocasião em que ele, acusado, recusou-se a pagar<br />
o preço pelo programa sexual realizado, iniciando-se, assim, discussão<br />
entre ele e a vítima Marcelo que, visando a satisfazer sua pretensão,<br />
apossou-se dos óculos do denunciado, dizendo que só devolveria se<br />
recebesse o seu dinheiro (fl. 4).<br />
Contudo, o denunciado passou a lutar com a vítima, que, então, amassou<br />
o instrumento ótico e o devolveu ao denunciado.<br />
Irresignado ante o comportamento da vítima, com evidente "animus<br />
necandi", o denunciado muniu-se de um canivete (fl. 9) e partiu ao<br />
encontro de Marcelo, que se pôs a correr e caiu ao solo, quando foi<br />
mortalmente golpeado no peito e no braço direito (Auto de Exame<br />
Cadavérico de fl. 32).<br />
Com base nestas re-presentações (BOURDIEU, 1998), nota-se que: se<br />
por um lado, a correlação com a condição de “seres humanos” que das<br />
9<br />
O foco no TJSC se deu pelo fato de uma das autoras ter desenvolvido seu doutoramento analisando<br />
acórdãos deste contexto jurídico.<br />
10<br />
Nesta busca no site do TJSC através da palavra chave “travestis” foram encontrados dez processos.<br />
Todos dizem respeito a demandas criminais, em meio às quais as travestis aparecem ora como vítimas, ora<br />
como réus, ora como parte integrante do cenário de prostituição onde ocorreram os crimes.<br />
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reportagens pode advir, emerge quando a morte social 11 abre espaço à morte<br />
literal, por outro lado, a visibilidade de suas identidades na seara jurídica restringese<br />
ao status de “réus” ou partes de um cenário urbano da prostituição.<br />
Assim, das duas uma: no caso da morte social que coincide com a<br />
literal parece que outra opção não há para as travestis. Para tanto, antes mesmo<br />
de adentrarmos no detalhamento de certos nortes teóricos que clareiam tais<br />
vivências ou inexistências, ilustramos a morte literal à luz das citações de Michel<br />
Foucault nas memórias de Alexina também conhecida como Herculine Barbin.<br />
As memórias de sua vida, Alexina escreveu quando já havia sido<br />
descoberta e estabelecida sua nova identidade. Sua “verdadeira” e<br />
“definitiva” identidade. Mas é óbvio que não é o ponto de vista desse<br />
sexo enfim encontrado ou reencontrado que ela as escreve. Não é o<br />
homem que fala, tentando relembrar as sensações e a vida de quando<br />
não era ainda “ele-mesmo”. Quando Alexina redige suas memórias, não<br />
está longe do seu suicídio; ela tem sempre para ela mesma um sexo<br />
incerto; mas é privada das delícias que experimentava em não ter esse<br />
sexo, ou em não ter totalmente o mesmo sexo que tinham aquelas com<br />
as quais vivia. Amava e desejava tanto. E o que ela evoca do seu<br />
passado é o limbo feliz de uma não-identidade, que protegia<br />
paradoxalmente a vida dentro daquelas sociedades fechadas, estreitas e<br />
calorosas, onde se tem a estranha felicidade, ao mesmo tempo<br />
obrigatória e interdita, de conhecer apenas um único sexo. (Grifos<br />
nossos). (FOUCAULT, 1982, p. 06-07).<br />
Sob este viés, observa-se que é a ambigüidade e não o ser uma coisa<br />
ou outra que nos desordena, e que de certa forma é esse último modelo que<br />
justifica os discursos médicos e jurídicos - baseados na produção da existência de<br />
um sujeito através de seu sexo verdadeiro. Isto é, aquela existência baseada nos<br />
binarismos que rondam nossas elaborações mentais que o estruturalismo<br />
levistraussiano afirma ser universal no e do ser humano. Portanto, não seriam<br />
11 Tomamos a morte social na correlação de ausência de reconhecimento na esfera jurídica e legal.<br />
Para maiores esclarecimentos sobre a inumanidade e ausência de reconhecimento ver Butler (2005).<br />
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apenas as travestis que gozariam desta condição, mas, também, por exemplo, os<br />
bissexuais e os intersexos.<br />
Para finalizar esta introdução, falta apontar a outra opção desfrutada<br />
pelas travestis na ausência da morte literal, qual seja, a do limbo, tal como<br />
expusemos com os trechos do acórdão produzido pelo TJSC acima destacados.<br />
Em síntese, trata-se do que o antropólogo João de Pina Cabral, em palestra<br />
proferida no dia 28 de junho de 2005 na Universidade Federal de Santa Catarina<br />
(UFSC), denominou de “hiato ontológico”. A citada categoria foi por ele sugerida<br />
após pesquisa feita em Unidades de Terapia Intensiva (UTI’s) de hospitais<br />
brasileiros, voltadas aos nascituros prematuros. Segundo seus dados empíricos,<br />
os recém-nascidos que são considerados prematuros não existem tanto para os<br />
funcionários quanto para o hospital. Todos eles são identificados como “NR +<br />
sobrenome ou patronímico materno”, seja nas etiquetas dos medicamentos a eles<br />
ministrados, seja nos prontuários. Pina Cabral denomina esse momento de “hiato<br />
ontológico”, que somente é ultrapassado nas UTI´s neo-natais após os bebês<br />
alcançarem dois quilos de peso. Sinal de que vingarão e viverão. Pós-aquisição do<br />
mencionado peso, nas etiquetas passarão a constar seus nomes completos, por<br />
mais que antes do próprio nascimento eles já existissem para seus pais, avós<br />
(etc.) e inexistissem para o discurso médico e jurídico.<br />
Além da correlação estabelecida com o “hiato ontológico”, na seqüência<br />
aprofundaremos outras possibilidades de vínculos teóricos que a existência das<br />
travestis inspira. São eles: com o conceito de abjeção e com o caráter negativo e<br />
positivo da liminaridade.<br />
II. Gênero, sexualidade, identidade de gênero,<br />
heteronormatividade, abjeção... Um percurso conceitual<br />
O conceito proposto pela historiadora e teórica feminista Joan Scott<br />
(1995), por mais referenciado e por vezes banalizado que seja, apresenta um<br />
elemento constitutivo carente de maiores explorações. Trata-se daquela<br />
característica tomada de empréstimo da gramática (e das línguas indo européias),<br />
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cujo sentido nos aponta para um gênero que não apenas se articula com a<br />
partícula “o” ou com a partícula “a”, ambas definidoras das produções culturais do<br />
masculino e do feminino. Não, este elemento ao qual nos remetemos diz mais. Ele<br />
aponta para todas aquelas palavras que denotam o masculino e o feminino ao<br />
mesmo tempo, ou simplesmente para o sexo neutro ou indefinido. Eis o mero<br />
detalhe que faz a grande diferença, em especial, para que a existência de<br />
“sujeitos” alocados nas ditas zonas abjetas e marginais se torne legítima. Em<br />
outros dizeres: para que estes sujeitos deixem de ser caracterizados e<br />
reconhecidos por aspectos negativos, estigmatizantes e/ou pejorativos.<br />
Judith Butler é uma das teóricas que trabalha com esta noção de<br />
abjeção ligada à perspectiva de gênero pautada nesta existência ambígua. Para a<br />
referida, a abjeção reflete aquelas zonas inóspitas e inabitáveis da vida social, que<br />
são, não obstante densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de<br />
sujeito […]. Este, então, é constituído através das forças de exclusão e de abjeção<br />
(Butler, 2001). Os corpos e as indentidades das travestis são atravessados por<br />
uma construção discursiva fora de uma suposta zona de inteligibilidade social e de<br />
uma ilegitimidade de suas existências. A inteligibilidade não deve ser tomada,<br />
aqui, como um campo fechado ou um sistema com fronteiras finitas. <strong>É</strong> um campo<br />
aberto. A prática social seria constituída por atos repetidos que se instituem como<br />
normatividades hegemônicas quando encobrem seus efeitos. Sendo um campo<br />
em aberto, nas margens se encontram os “sujeitos” excluídos. Este conceito<br />
relaciona-se com todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas ‘vidas’ e<br />
cuja materialidade é entendida como ‘não importante’ ou inumana. Explicável em<br />
grande medida pela desordem que tais existências causam às nossas<br />
elaborações discursivas no tocante à sexualidade, que, por exemplo, nos<br />
adequam à fórmula do “ser masculino” ou “ser feminino”, e nunca na existência<br />
conjunta ou co-existência “do ser masculino” e “do ser feminino”.<br />
Neste sentido, o “ser humano” se esgotaria na própria<br />
heteronormatividade que se baseia nos mencionados binarismos (excludentes) do<br />
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gênero, do sexo e da sexualidade 12 , e que se perfaz na oposição à<br />
homossexualidade. Como bem coloca Elisabeth Zambrano, nos dizeres<br />
remissivos constantes na decisão judicial produzida pelo magistrado federal Roger<br />
Raupp Rios (2008, s/p), por meio da qual as transexuais alcançaram o direito de<br />
realizar pelo Sistema Único de Saúde (SUS) a cirurgia de transgenitalização:<br />
(...)<br />
Já homens que fazem uso de roupas e modificações corporais para se<br />
parecer com uma mulher, sem buscar uma troca de sexo cirúrgica são<br />
considerados travestis. Travestis, aceitando seu corpo biológico de<br />
homem (embora modificado, às vezes, pelo uso de hormônios femininos<br />
e/ou implantes de silicone) e se percebendo como mulheres, reivindicam<br />
a manutenção dessa ambigüidade corporal, considerando-se,<br />
simultaneamente, homens e mulheres; ou se vêem 'entre os dois sexos'<br />
nem homens, nem mulheres. Todos, porém, se percebem como tendo<br />
uma identidade de gênero feminina.<br />
Outra combinação possível diz respeito aos transexuais, pessoas que<br />
afirmam ser de um sexo diferente do seu sexo corporal e fazem<br />
demanda de 'mudança de sexo' dirigida ao sistema médico e judiciário.<br />
<strong>É</strong> muito comum homossexuais, travestis e transexuais serem<br />
percebidos como fazendo parte de um mesmo grupo, numa<br />
confusão entre a orientação sexual (homossexualidade,<br />
heterossexualidade, bissexualidade) e as 'identidades de gênero'<br />
(homens masculinos, mulheres femininas, travestis, transexuais<br />
femininos e masculinos, entre outras). (Negritos nossos).<br />
À luz do conceito de abjeção veiculado nos escritos de Butler, algumas<br />
contradições ou confusões devem ser esclarecidas, ao menos sob o ponto de<br />
vista de Baukje Prins e Irene Costera Meijer. Ambas entrevistaram Butler e em<br />
meio à conversa expuseram-lhe as seguintes inquietações a respeito do<br />
entendimento de abjeção.<br />
12 Judith Butler (2003) em outra de suas produções nos alertará que o uso restrito ou binário do<br />
conceito de gênero torna-se uma armadilha, e, então, pensamos que tal como os discursos jurídicos e médicos<br />
reitera ou reproduz violências simbólicas.<br />
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O trocadilho de seu título é muito feliz: “bodies that matter” ao mesmo<br />
tempo se materializam, adquirem significado e obtêm legitimidade.<br />
Corpos que não importam são corpos ‘abjetos’. Tais corpos não são<br />
inteligíveis (um argumento epistemológico) e não têm uma existência<br />
legítima (um argumento político ou normativo). Daí, não conseguem se<br />
materializar. Entretanto, você argumenta que os corpos abjetos também<br />
‘existem’, isto é, como um poder excluído, disruptivo. A essa altura,<br />
ficamos um tanto confusas: corpos que não conseguem se materializar<br />
podem mesmo assim ‘ser’ corpos? Se você quer que o conceito de<br />
‘abjeto’ se refira a corpos que ‘existem’, não seria mais adequado dizer<br />
que, embora corpos abjetos sejam construídos, tenham se materializado<br />
e adquirido inteligibilidade, ainda assim não conseguem ser qualificados<br />
como totalmente humanos? Em outras palavras, não seria o caso dizer<br />
que corpos abjetos importam ontológica e epistemologicamente, mas<br />
ainda não são considerados num sentido político-normativo? (BUTLER<br />
et al , 2002, p.160).<br />
Judith Butler responde à questão mostrando as diferentes abordagens<br />
teóricas que incidem sobre os fenômenos sociais passíveis de correlações com o<br />
ser abjeto. A seu ver, tais abordagens oscilarão, no campo filosófico, entre a<br />
conivência de uma reivindicação ontológica ou não. Assim sendo, a filósofa<br />
questiona: “como é que o domínio da ontologia, ele próprio, está delimitado pelo<br />
poder? Como é que alguns tipos de sujeitos reivindicam ontologia, como é que<br />
eles contam ou se qualificam como reais?”(idem, p.160). Sob esta perspectiva a<br />
própria atribuição de origem verdadeira a um dado objeto, levará o analista a<br />
observar que “o domínio da ontologia é um território regulamentado: o que se<br />
produz dentro dele e o que é dele excluído para que o domínio se constitua como<br />
tal, é um efeito do poder” (ibidem, p.160). Portanto, o olhar deve ser deslocado<br />
não para o questionamento sobre a existência ontológica de algo, mas para o<br />
poder que este discurso normativo apresenta na produção da existência ou da<br />
inexistência de algo.<br />
Desta forma, ao enaltecermos o caráter nocivo da heteronormatividade<br />
e da produção de corpos abjetos a ela atrelados, vê-se que a travesti põe em<br />
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xeque, de maneira peculiar as estruturas binárias de gênero. As pessoas que se<br />
constituem como travestis não intentam ser reconhecidas enquanto homens ou<br />
mulheres – elas desejam, apenas, ser travestis. Neste ponto, as travestis, para<br />
além de um corpo determinado anatomicamente, revelam-se num corpo<br />
transformado, fabricado, que aparece e se afirma como corpo fabricado, não um<br />
corpo substantivo, objetificado, mas corporalidade, veículo e sentido da<br />
experiência (MALUF, 2002). Ainda que as travestis reproduzam algumas matrizes<br />
heterossexistas, é suficientemente subversivo modificar o corpo e construir<br />
estratégias de enfrentamento. Há, então, que se considerar, em certo ponto, o<br />
caráter subversivo da travesti. Ato contínuo, o caráter positivo da própria<br />
liminaridade, nos moldes propostos pelo antropólogo Roberto da Matta.<br />
de ser desviante<br />
III. Liminaridade e positividade: explorando outros modos<br />
Em artigo intitulado: Individualidade e Liminaridade: considerações<br />
sobre os ritos de passagem e a modernidade, Da Matta (2000) enfatiza que a<br />
condição vivida em meio aos rituais de passagem, mais especificamente na fase<br />
“liminar”, não deve ser lida apenas e tão-somente como negativa, tal como a<br />
tradição antropológica inglesa e norte-americana a analisa.<br />
Dentre os exemplos destas visões, a título de ilustração, destacamos<br />
como os neófitos entre os Leles – estudos por Mary Douglas, tão logo imergem na<br />
fase marginal se tornam algo amorfo e desordeiro, face ao fato de deixarem uma<br />
dada condição de sujeito social e ainda não terem alcançado o status de outra<br />
condição, uma vez que o ritual ainda não terminou. Destacaremos também toda a<br />
conotação de poluição e de impureza que os acometem.<br />
Primeiramente, considerem-se as crenças sobre pessoas em situação<br />
marginal. Estas são pessoas que estão de algum modo excluídas do<br />
padrão social, que estão deslocadas. Podem não estar fazendo nada de<br />
moralmente errado, mas seu status é indefinível. Tomemos, por<br />
exemplo, um feto. Sua presente posição é ambígua, igualmente seu<br />
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futuro. Pois ninguém pode dizer de que sexo ele será ou se sobreviverá<br />
aos riscos da infância. Ele é freqüentemente tratado como vulnerável e<br />
perigoso. Os Leles encaram o feto e sua mãe como em constante<br />
perigo, mas também creditam ao feto uma má vontade caprichosa que o<br />
torna um perigo para os outros. Quando grávida, uma mulher lele tenta<br />
não se aproximar de pessoas doentes para que a proximidade da<br />
criança em seu ventre não piore a tosse ou febre. (DOUGLAS, 1976,<br />
p.119).<br />
Deste trecho duas ponderações devem ser esmiuçadas. A primeira<br />
reside na positividade proposta por Da Matta em contraposição à negatividade<br />
advinda da ambigüidade assinalada pela antropóloga. A segunda refere-se ao<br />
poder que coexiste com o perigo que emerge das pessoas em situação marginal.<br />
Comecemos pelo princípio, ou seja, pela positividade que acomete os sujeitos<br />
liminares.<br />
Em seu clássico trabalho teórico voltado à compreensão do ritual<br />
brasileiro de carnaval, Da Matta busca no antes citado artigo, defender o<br />
argumento de que nesta fase liminar os sujeitos que dela participam não deixam<br />
de desfrutar da condição de sujeitos, por mais ambíguos que sejam ou estejam.<br />
Ou ainda: por mais temporária que seja tal condição marginal, o que dela pode ser<br />
depreendido é que esta vivência liminar do carnaval significa a sociedade<br />
brasileira pós Carnaval. Vejamos.<br />
O Carnaval é uma festa que, entre outras coisas, estimula a disputa,<br />
mas domestica, aristocratiza e hierarquiza a competitividade, fazendo<br />
com que ganhadores e perdedores se liguem entre si como grupos e<br />
entidades especiais. Festa, ademais, na qual se adotam tecnologias<br />
burguesas de criação identitária, mas se produz um sistema ideológico<br />
antiburguês e antipuritano, como a glorificação do feminino, do<br />
hedonismo, da sensualidade, do erotismo aberto e público, do sexo sem<br />
reprodução (na exaltação da analidade e do homossexualismo). Festa,<br />
enfim, que abre, em uma sociedade obcecada em tomar o chamado<br />
trem da modernidade e do capitalismo, uma brecha que rejeita agendas<br />
e controles, pois o Carnaval, como revelou Mikhail Bakhtin (1989),<br />
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constrói-se pela suspensão temporária do senso burguês, sendo afim da<br />
loucura, do descontrole, do exagero, da caricatura, do grotesco, do<br />
desequilíbrio e da gastança. Festa, finalmente, que faculta “entrar” em<br />
um bloco, escola ou cordão para relativizar velhas e rotineiras relações e<br />
viver novas identidades que possibilitam leituras inovadoras do mundo.<br />
O que permite adquirir — tal como acontece com os sábios, anacoretas,<br />
xamãs, feiticeiros e renunciadores tradicionais — um conhecimento novo<br />
e diferenciado da sociedade e de si próprio. (DA MATTA, 2000, p.14).<br />
Sob este viés, a positividade advinda das travestis dependeria, por<br />
exemplo, da ressignificação de nossas próprias matrizes discursivas, ora pautadas<br />
nos acima mencionados binarismos de gênero, ora na heternormatividade. Tarefa<br />
árdua. Sem dúvida, mas neste sentido há que se sublinhar também a importância<br />
das atuações dos movimentos sociais LGBTT. Antes, porém, destaca-se que o<br />
perigo da ambiguidade cotidianamente e corporalmente vivida pelas travestis,<br />
pode ser lido não somente como uma afronta à nossa lógica binária, mas também<br />
como o poder de optar em viver de maneira pós Carnaval, uma condição permitida<br />
e legitimada apenas durante sete dias no calendário anual brasileiro.<br />
Assim, é a partir desta correlação entre margem/liminaridade e<br />
positividade que a remissão a Roberto da Matta se faz necessária, bem como à<br />
sua clássica pesquisa relacionada ao Carnaval, pois, do contrário, restaríamos por<br />
não enxergar uma forma ambígua que está inscrita nos corpos das travestis que<br />
trazem consigo algo para além da ojeriza e da negatividade 13 . Aliás, parece que<br />
sao apenas estas as perspectivas que nos saltam aos olhos e aos ouvidos<br />
cotidianamente.<br />
Finalmente, quanto aos movimentos sociais salientamentos que ele tem<br />
como um de seus posicionamentos políticos, a defesa da travestilidade como<br />
identidade de gênero e não como orientação sexual – identidade de gênero esta<br />
reiteradamente afirmada como feminina. A subjetivação da feminilidade, por sua<br />
vez, é atravessada por estruturas regulatórias de gênero. Então, ainda que<br />
13 Além desta perspectiva à la Roberto da Matta, assinalamos anteriormente que a própria concepção<br />
ou entendimento da categoria analítica do gênero como centrada nos não binarismos torna-se imprescindível.<br />
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discriminadas pela sua construção de gênero fora da norma, são também<br />
normatizáveis na medida que repetem atos performativos construídos<br />
historicamente como femininos, e normatizadoras na medida em que, entre seus<br />
pares, regulam as construções identitárias de seu próprio grupo, produzindo<br />
subjetividades uniformizadas. Todavia, há que se enfatizar de que para além deste<br />
espaço normatizado, existe aquele que deve ser reconhecido à luz do próprio<br />
conceito de gênero não reduzido aos binarismos do ser masculino ou do ser<br />
feminino. Como bem coloca Rios:<br />
Para os direitos das travestis, o reforço do binarismo de gênero é ainda<br />
mais violento. As travestis, encarnando quiçá a experiência mais radical<br />
da autonomia individual diante das convenções sociais sobre o que é<br />
padronizado como "natural" quanto ao sexo e sobre o que é tolerável<br />
pelos padrões tradicionais e dominantes de convívio entre homens e<br />
mulheres, ousam inventar um novo modo de ser em termos de gênero,<br />
transitando verdadeiramente nas "fronteiras do gênero" (para usar a<br />
expressão de Maria Luiza Heilborn, 'Gênero e Sexo dos Travestis',<br />
Sexualidade, Gênero e Sociedade, Rio de Janeiro: IMS-UERJ, nº 7-8).<br />
Trata-se de uma construção de si peculiar e original, onde, do ponto de<br />
vista do gênero, os indivíduos travestis se constroem pelo feminino. Nas<br />
palavras de Marcos Benedetti, "o feminino travesti", onde, "ao mesmo<br />
tempo em que produzem meticulosamente traços e formas femininas no<br />
corpo, estão construindo e recriando seus valores de gênero, tanto no<br />
que concerne ao feminino como ao masculino. A ingestão de hormônios,<br />
as aplicações de silicone, as roupas e os acessórios, o acuendar a<br />
neca 14 , as depilações são momentos de um processo que é maior e que<br />
tem por resultado a própria travesti e o universo que ela cria e habita."<br />
(Toda Feita - o corpo e o gênero das travestis, Rio de Janeiro: Garamond,<br />
2005, p. 131). Como alertei logo acima, o reforço do binarismo de gênero<br />
em face das travestis incentiva todo o tipo de violência contra estes<br />
indivíduos: desde a desqualificação moral mais intensa até o freqüente<br />
assassinato, as travestis são vítimas número um da violência<br />
discriminatória. (RIOS, 2008, s/p).<br />
14 Acuendar a neca: Esconder o pênis por entre o períneo.<br />
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REVISTA CIENTÍFICA <strong>ELE</strong>CTRÓNICA <strong>DE</strong> PSICOLOGÍA<br />
ICSa-UAEH<br />
No.10 ISSN 1870-5812<br />
Desta forma, mesmo que não tenhamos nos aprofundado nestas<br />
contradições das construções identitárias das travestis, é importante enfatizar que<br />
a análise da construção de gênero delas não pretende encaixá-las enquanto<br />
homens ou mulheres. Antes, o objetivo aqui foi, por meio do exemplo da travesti,<br />
colocar em análise o quanto certas dicotomias não fazem sentido diante da<br />
diversidade das produções de subjetivação de gênero. Portanto, os desafios dos<br />
Movimentos Sociais e do lócus educacional dos discursos acadêmicos tornam-se<br />
também o de pensar a travesti para desestabilizarmos a lógica binária de gênero e<br />
seus controladores, entendendo que essa lógica produz exclusão, hierarquia,<br />
classificação, dominação e segregação.<br />
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