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5. Realismo - Letras Libras

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Na segunda metade do século XIX algumas influências vieram alterar a visão-de-mundo<br />

vinculada ao Romantismo, sobretudo o pensamento científico vinculado ao Positivismo<br />

e a preocupação com os problemas sociais. No caso do Brasil, que é o que<br />

particularmente nos interessa, tivemos a importação de padrões culturais europeus, não<br />

só portugueses, mas notadamente franceses.<br />

O autor que se dizia realista queria fazer uma literatura mais próxima da realidade. Ele<br />

apresentava uma preocupação quase documental com os personagens, os eventos e os<br />

ambientes, usando um recurso literário que a Teoria da Literatura chama de<br />

verossimilhança. Com isso, procurava trazer para o conhecimento do leitor um mundo<br />

mais imediato e contemporâneo, mais próximo da realidade em que então se vivia.<br />

João Maciel da Mata Gadelha, conhecido em Fortaleza por João<br />

da Mata, habitava, há anos, no Trilho, uma casinhola de porta e<br />

janela, cor de açafrão, com a frente encardida pela fuligem das<br />

locomotivas que diariamente cruzavam defronte, e de onde se<br />

avistava a Estação da linha férrea de Baturité. Era amanuense,<br />

amigado, e gostava de jogar víspora em família aos domingos.<br />

Nessa noite estavam reunidas as pessoas do costume. Ao centro<br />

da sala, em torno de uma mesa coberta com um pano xadrez, à<br />

luz parca de um candeeiro de louça esfumado, em forma de<br />

abajur, corriam os olhos sobre as velhas coleções desbotadas,<br />

enquanto uma voz fina de mulher flauteava arrastando as<br />

sílabas numa cadência morosa: — Vin...te e quatro! Sessen...ta<br />

e nove!... Cinqüen...ta e seis!...<br />

Havia um silêncio morno e concentrado em que destacava o<br />

rolar abafado das pedras no saquinho da baeta verde.<br />

A sala era estreita, sem teto, chão de tijolo, com duas portas<br />

para o interior da casa, paredes escorridas pedindo uma caiação<br />

geral. À direita, defronte da janela, dormia um velho piano de<br />

aspecto pobre, encimado por um espelho não menos gasto. O<br />

resto da mobília compunha-se de algumas cadeiras, um sofá<br />

entre as duas portas do fundo, a mesa do centro, e uma espécie<br />

de console, colocada à esquerda, onde pousavam dois jarros<br />

com flores artificiais.<br />

De onde em onde zunia o falsete do amanuense:<br />

— Quadra! Ou caçoava: — Os anos de Cristo!... Os óculos do<br />

Padre Eterno!<br />

Risadinhas explodiam a espaços, gostosas, indiscretas — uma<br />

pilhéria ricocheteava nos quatro ângulos da mesa.


— É boa! É boa! fazia João da Mata erguendo a cabeça,<br />

mostrando a dentuça.<br />

Depois voltava o silêncio, e a voz fina de mulher continuava a<br />

cantar os números solenemente.<br />

.........................................................................................<br />

A Normalista, de Adolfo Caminha. Texto eletrônico:<br />

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-00728.html. Acessado em<br />

26/04/2006, às 11h.<br />

Lembra que, quando estudamos a literatura romântica, dissemos que ela era centrada na<br />

primeira pessoa, no “eu”? Pois agora, na literatura realista, vai ser diferente. Os poetas e<br />

os escritores vão ter uma atitude mais objetiva, mais distanciada de seu intimismo, da<br />

sua subjetividade. Eles vão ter que mostrar menos proximidade com a emoção do que<br />

descrevem. O escritor realista, pretensamente, deve parecer um fotógrafo, sem emitir<br />

suas próprias opiniões ao retratar uma certa realidade.<br />

Soneto Decadente<br />

Medeiros e Albuquerque<br />

Morria rubro o sol e mansa, mansamente...<br />

sombras baixando em flocos, lentas, pelo espaço...<br />

Um morrer pungitivo e calmo de inocente:<br />

doces, as ilusões fanadas no regaço.<br />

Passa um cicio leve e suave... Num traço,<br />

ave rápida passa súbita e tremente...<br />

A tristeza, que vem, cinge como um baraço<br />

a garganta: o soluço estaca ali fremente...<br />

Lembranças de pesar... Navio que na curva<br />

do mar, de água pesada e funda e escura e turva,<br />

some-se de vagar das ondas ao rumor...<br />

Ó crepúsculos sós! os exilados sentem<br />

a angústia sem igual de amantes que pressentem<br />

o derradeiro adeus do derradeiro amor!<br />

Texto eletrônico: http://www.secrel.com.br/jpoesia/mea01.html. Acessado em<br />

26/04/2006, às 11h.


Uma outra característica é a preocupação em dar detalhes. Nesse sentido, eles<br />

queriam se aproximar da ciência, que se detém na minúcia, nas descrições, na análise<br />

das partes, nas informações.<br />

..............................................................................................<br />

Estava esta a meia encosta de um outeiro a cuja balda corria um<br />

ribeirão. Em frente estendia-se o grande pasto. A monotonia de<br />

verdura clara era quebrada aqui e ali pelo sombrio da folhagem basta<br />

de alguns paus-d'alho, deixados propositadamente para sombra, e pelo<br />

amarelo sujo das reboleiras de sapé. Ao fundo, de um lado, em corte<br />

brusco, a mata virgem, escura, acentuada, maciça quase, confundindo<br />

em um só tom mil cores diversíssimas; de outro em colinas suaves, o<br />

verde-claro alegre e uniforme dos canaviais agitados sempre pelo<br />

vento; mais além, os cafezais alinhados, regulares, contínuos, como<br />

um tapete crespo, verde-negro, estendido pelo dorso da morraria. Em<br />

um ou outro ponto, a terra roxa de pedra de ferro, desnudada, punha<br />

uma nota estrídula de vermelho-escuro, de sangue coagulado.<br />

E sobre tudo isso, azul, diáfano, puro, cetinoso, recurvava-se o céu em<br />

uma festa de luz branca, vivificante, mordente...<br />

Quando se embruscava o tempo a paisagem mudava: o céu<br />

pardacento, carregado de nuvens plúmbeas, como que se<br />

abaixava, como que queria afogar a terra. O revestimento verde<br />

perdia o brilho, empanava-se, amortecia em um desfalecimento<br />

úmido.<br />

.........................................................................................<br />

A Carne, de Júlio Ribeiro. Texto eletrônico:<br />

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0006-00722.html. Acessado em<br />

26/04/2006, às 11h.<br />

O objetivo final dos escritores, poetas e romancistas, que escreveram durante o<br />

<strong>Realismo</strong> era, assim, realizar uma profunda análise crítica da sociedade da segunda<br />

metade do século XIX. Para isso, faziam tanto uma análise psicológica dos<br />

personagens, quanto uma análise sociológica do ambiente em que viviam.<br />

.........................................................................................<br />

A casa de Luís Campos era na Rua Direita. Um desses casarões do<br />

tempo antigo, quadrados e sem gosto, cujo o ar severo e recolhido<br />

está a dizer no seu silêncio os rigores do velho comércio português.<br />

Compunha-se do vasto armazém ao rés-do-chão, e mais dois<br />

andares; no primeiro dos quais estava o escritório e à noite


aboletavam-se os caixeiros, e no segundo morava o negociante com<br />

a mulher — D. Maria Hortênsia, e uma cunhada — D. Carlotinha.<br />

A mesa era no andar de cima. Faziam-se duas: uma para o dono da<br />

casa, a família, o guarda-livros e hóspedes, se os havia, o que era<br />

freqüente; e a outra só para os caixeiros, que subiam ao número de<br />

cinco ou seis.<br />

Apesar de inteligente e de brasileiro, Campos nunca logrou<br />

espantar de sua casa o ar triste que a ensombrecia. À mesa,<br />

quando raramente se palestrava, era sempre com muita reserva;<br />

não havia risadas expansivas, nem livres exclamações de alegria.<br />

Os hóspedes, pobre gente de província, faziam uma cerimônia<br />

espessa; o guarda-livros poucas vezes arriscava a sua anedota e só<br />

se determinava a isso tendo de antemão escolhido um assunto<br />

discreto e conveniente.<br />

Campos não apertava a bolsa em questões de comida; queria mesa<br />

farta: quatro pratos ao almoço, café e leite à discrição; ao jantar<br />

seis, sopa e vinho. Os caixeiros falavam com orgulho dessa<br />

generosidade e faziam em geral boa ausência do patrão, que,<br />

entretanto, fora sempre de uma sobriedade rara: comia pouco,<br />

bebia ainda menos e não conhecia os vícios senão de nome.<br />

Aos domingos, às vezes mesmo em dia de semana, aparecia para o<br />

jantar um ou outro estudante comprovinciano dos Campos ou<br />

algum freguês do interior, que estivesse de passagem na Corte e a<br />

quem lhe convinha agradar.<br />

Luís Campos era homem ativo, caprichoso no serviço de que se<br />

encarregava e extremamente suscetível em pontos de honra; quer<br />

se tratasse de sua individualidade privada, quer de sua<br />

responsabilidade comercial.<br />

Não descia nunca ao armazém, ou simplesmente ao escritório, sem<br />

estar bem limpo e preparado. Caprichava no asseio do corpo: as<br />

unhas, os cabelos e dentes mereciam-lhe bons desvelos e atenções.<br />

Entre os companheiros, passava por homem de vistas largas e<br />

espírito adiantado; nos dias de descanso dava-se todo ao Figuier,<br />

ao Flammarion e ao Júlio Verne; outras vezes, poucas, atirava-se à<br />

literatura; mas os verdadeiros mestres aborreciam-no e<br />

entreturbavam-no com os rigorismos da forma.<br />

— É um bom tipo! diziam os estudantes à volta do jantar, e no<br />

seguinte domingo lá estavam de novo. O “bom tipo” tratava-o<br />

muito bem, levava-os com a família para a sala, oferecia-lhes<br />

charutos, cerveja, e nunca exigia que lhe restituíssem os livros que<br />

lhes emprestava.<br />

.........................................................................................


Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo. Texto eletrônico:<br />

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-00742.html. Acessado em<br />

26/04/2006, às 11h.<br />

Você conseguiu entender as atitudes assumidas pela literatura realista? Vamos<br />

sintetizar agora para você.<br />

Atitude documental<br />

Atitude objetiva<br />

Atitude distanciadas das paixões e das emoções<br />

Atitude crítica da realidade<br />

Linguagem clara e objetiva<br />

Temas do mundo contemporâneo<br />

Observação da raça, do meio e do momento em que os personagens vivem<br />

Antes de você conhecer o escritor brasileiro mais representativo da literatura realista,<br />

vamos conhecer alguns fragmentos e poemas realistas e naturalistas.<br />

No trem de ferro<br />

Lúcio de Mendonça<br />

Vinha sentado gravemente, mudo,<br />

D'olhos baixos, obeso e venerando,<br />

Mãos cruzadas no ventre, ruminando<br />

Velhas rezas ou santo e duro estudo.<br />

Ergue tímido o olhar, triste; contudo,<br />

É paternal e bom; de quando em quando<br />

Ao céu o volve, ao céu que vai passando<br />

Pelas vidraças, empoeirado. Tudo<br />

Nele respira a fé e cheira a igreja.<br />

Por todos os seus poros Deus poreja.<br />

Do seu breviário agora passa as folhas.<br />

Pio varão! para este já começa


O reino do Senhor!... mas sai à pressa<br />

E cai-lhe da batina — um saca-rolhas!<br />

Texto eletrônico: http://www.releituras.com/lmendonca_menu.asp. Acessado em<br />

26/04/2006, às 11h.<br />

Dizia o coração: "Eternamente,<br />

eternamente há de reinar agora<br />

esta dos sonhos teus nova senhora,<br />

senhora de tu'alma impenitente."<br />

Cérebro e coração<br />

Medeiros e Albuquerque<br />

E o cérebro, zombando: "Brevemente,<br />

como as outras se foram, mar em fora,<br />

ela se há de sumir, e há de ir embora,<br />

esquecida também, também ausente."<br />

De novo o coração: "Desce! Vem vê-la!<br />

Dize, já viste tão divina estrela<br />

no firmamento de tu'alma escura?"<br />

E o cérebro por fim: - "Todas o eram...<br />

Todas... e um dia sem amor morreram,<br />

como morre, afinal, toda ventura!"<br />

Texto eletrônico: http://www.casadobruxo.com.br/poesia/m/medeiros04.htm. Acessado<br />

em 26/04/2006, às 11h.<br />

Estátua<br />

Medeiros e Albuquerque<br />

Eu tenho muita vez a estranha pretensão<br />

de me fundir em bronze e aparecer nas praças<br />

para poder ouvir da voz das populaças<br />

a sincera explosão;<br />

senti-la, quando, em festa, as grandes multidões<br />

aclamam doidamente os fortes vencedores,<br />

e febris, pelo ar, espalham-se os clamores<br />

das nobres ovações;<br />

senti-la, quando o sopro aspérrimo da dor


nubla de escuro crepe o lúgubre horizonte<br />

e curva para o chão a entristecida fronte<br />

do povo sofredor;<br />

poder sempre pairar solenemente em pé,<br />

sobre as mágoas cruéis do miserando povo,<br />

e ter sempre no rosto, eternamente novo,<br />

uma expressão de fé.<br />

E, quando enfim cair do altivo pedestal,<br />

à sacrílega mão do bárbaro estrangeiro,<br />

meu braço descrever no gesto derradeiro<br />

a maldição final.<br />

Texto eletrônico: http://www.casadobruxo.com.br/poesia/m/medeiros01.htm. Acessado<br />

em 26/04/2006, às 11h.<br />

.........................................................................................<br />

As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo<br />

pago adiantado. O preço de cada tina, metendo a água,<br />

quinhentos réis; sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham<br />

preferência e não pagavam nada para lavar.<br />

Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma<br />

outra parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no<br />

cortiço para estender a roupa, a concorrência às tinas não se<br />

fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade,<br />

entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma<br />

das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um<br />

colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los.<br />

E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e<br />

barulhenta, com as suas cercas de varas, as suas hortaliças<br />

verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos, que<br />

apareciam como manchas alegres por entre a negrura das<br />

limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras barracas<br />

de algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E<br />

os gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao<br />

sol, que nem lagos de metal branco.<br />

E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade<br />

quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer,<br />

um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar<br />

espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como<br />

larvas no esterco.<br />

II


Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia,<br />

ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda<br />

assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal de vida,<br />

aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia<br />

junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e<br />

mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte,<br />

ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e<br />

abalando tudo.<br />

Posto que lá na Rua do Hospício os seus negócios não<br />

corressem mal, custava-lhe a sofrer a escandalosa fortuna do<br />

vendeiro "aquele tipo! um miserável, um sujo, que não pusera<br />

nunca um paletó, e que vivia de cama e mesa com uma negra!"<br />

À noite e aos domingos ainda mais recrudescia o seu azedume,<br />

quando ele, recolhendo-se fatigado do serviço, deixava-se ficar<br />

estendido numa preguiçosa, junto à mesa da sala de jantar, e<br />

ouvia, a contragosto, o grosseiro rumor que vinha da<br />

estalagem numa exalação forte de animais cansados. Não podia<br />

chegar à janela sem receber no rosto aquele bafo, quente e<br />

sensual, que o embebedava com o seu fartum de bestas no<br />

coito.<br />

E depois, fechado no quarto de dormir, indiferente e habituado<br />

às torpezas carnais da mulher, isento já dos primitivos<br />

sobressaltos que lhe faziam, a ele, ferver o sangue e perder a<br />

tramontana, era ainda a prosperidade do vizinho o que lhe<br />

obsedava o espírito, enegrecendo-lhe a alma com um feio<br />

ressentimento de despeito.<br />

Tinha inveja do outro, daquele outro português que fizera<br />

fortuna, sem precisar roer nenhum chifre; daquele outro que,<br />

para ser mais rico três vezes do que ele, não teve de casar com<br />

a filha do patrão ou com a bastarda de algum fazendeiro<br />

freguês da casa!<br />

Mas então, ele Miranda, que se supunha a última expressão da<br />

ladinagem e da esperteza; ele, que, logo depois do seu<br />

casamento, respondendo para Portugal a um ex-colega que o<br />

felicitava, dissera que o Brasil era uma cavalgadura carregada<br />

de dinheiro, cujas rédeas um homem fino empolgava<br />

facilmente; ele, que se tinha na conta de invencível matreiro,<br />

não passava afinal de um pedaço de asno comparado com o<br />

seu vizinho! Pensara fazer-se senhor do Brasil e fizera-se<br />

escravo de uma brasileira mal-educada e sem escrúpulos de<br />

virtude! Imaginara-se talhado para grandes conquistas, e não<br />

passava de uma vitima ridícula e sofredora!... Sim! no fim de<br />

contas qual fora a sua África?... Enriquecera um pouco, é<br />

verdade, mas como? a que preço? hipotecando-se a um diabo,<br />

que lhe trouxera oitenta contos de réis, mas incalculáveis<br />

milhões de desgostos e vergonhas! Arranjara a vida, sim, mas<br />

teve de aturar eternamente uma mulher que ele odiava! E do<br />

que afinal lhe aproveitar tudo isso? Qual era afinal a sua<br />

grande existência? Do inferno da casa para o purgatório do<br />

trabalho e vice-versa! Invejável sorte, não havia dúvida!


Na dolorosa incerteza de que Zulmira fosse sua filha, o<br />

desgraçado nem sequer gozava o prazer de ser pai. Se ela, em<br />

vez de nascer de Estela, fora uma enjeitadinha recolhida por<br />

ele, é natural que a amasse e então a vida lhe correria de outro<br />

modo; mas naquelas condições, a pobre criança nada mais<br />

representava que o documento vivo do ludibrio materno, e o<br />

Miranda estendia até à inocentezinha o ódio que sustentava<br />

contra a esposa.<br />

Uma espiga a tal da sua vida!<br />

— Fui uma besta! resumiu ele, em voz alta, apeando-se da<br />

cama, onde se havia recolhido inutilmente.<br />

.........................................................................................<br />

O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Texto eletrônico:<br />

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0006-01122.html. Acessado em<br />

26/04/2006, às 11h.<br />

Agora você vai conhecer um dos escritores mais representativos da Literatura Brasileira.<br />

Seu nome é Joaquim Maria MACHADO DE ASSIS. Na internete, há inúmeras<br />

informações sobre ele, mas o endereço mais confiável é o de um projeto que conta<br />

com a participação da Academia Brasileira de <strong>Letras</strong>:<br />

http://www.machadodeassis.org.br/.<br />

http://www.unesp.br/destaques/imagens/machado_de_assis.jpg


http://www.ddooss.org/cuatro/Machado_de_Assis.gif<br />

http://www.senado.gov.br/sf/biblioteca/LViana/IMAGES/MANU.JPG


http://www.storm-magazine.com/red/images/articles/Machado-de-assis.jpg<br />

http://www.ccqhumor.com.br/noticias/imagens/machado72.GIF


http://www2.uerj.br/~edai/sueni/nabuco%20e%20assis.jpg<br />

http://www.bairrodocatete.com.br/ministeriobuarque.jpg


http://www.vidaslusofonas.pt/machad6.jpg<br />

Embora tenha se destacado amplamente na prosa, Machado de Assis escreveu em todos<br />

os gêneros literários: conto, romance, poesia, teatro, crônica, crítica literária,<br />

epistolografia. No início da sua carreira de escritor, seus romances estavam mais<br />

próximos da literatura romântica. Todavia, se eram histórias em que se contavam casos<br />

de amor, não deixava de incluir a crítica dos casamentos motivados pelo desejo de<br />

ascensão social, assunto pouco explorado pelos românticos e que seria, mais tarde,<br />

matéria importante nas mãos dos realistas. Você pode encontrar na Biblioteca da sua<br />

cidade ou da sua Universidade, esses romances: Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena<br />

e Iaiá Garcia.<br />

Veja um fragmento do que escreveu Machado de Assis em duas destas narrativas.<br />

................................................................................................................<br />

CAPÍTULO XXII<br />

Não era preciso grande esforço para adivinhar a dona das mãos.<br />

Estácio, com as suas, afastou as mãos de Helena, segurando-lhe os<br />

pulsos de modo que lhe arrancou um leve gemido. Voltando-se, deu<br />

com os olhos na irmã, que lhe disse em tom de gracioso reproche:<br />

— Você é muito mau! Pagou-me a carícia com um apertão. Deixe<br />

estar que nunca mais cairei em outra. Vim vê-lo, porque você hoje<br />

não se lembrou ainda de dar à gente um ar de sua graça... Doeu-me!


continuou ela olhando para os pulsos. Mas... tenho os dedos<br />

molhados; seria...você estaria...que é? que foi?<br />

Estácio, que ouviu o discurso da irmã, com o rosto desfeito e o olhar<br />

ansioso, não lhe respondeu às últimas interrogações, e continuou a<br />

olhar para ela, como a querer ler na fisionomia da moça a explicação<br />

do enigma que o atordoava. Helena ainda insistiu, aterrada e aflita.<br />

Indo pegar-lhe nas mãos, Estácio desviou o corpo, dirigiu-se à<br />

parede, despendurou o desenho que Helena lhe dera no dia de seus<br />

anos, e aproximou-se da moça.<br />

— Que é? repetiu esta admirada.<br />

A única resposta de Estácio foi estender o dedo sobre a misteriosa<br />

casa reproduzida na paisagem. Helena olhou alternadamente para o<br />

desenho e para o irmão. A expressão interrogativa e imperiosa deste<br />

fê-la atenta no ponto indicado. Súbito empalideceu; os lábios<br />

tremeram-lhe como a murmurar alguma coisa, mas a alma falou tão<br />

baixo que a palavra não chegou à boca. Durou aquilo poucos<br />

instantes. A angústia lia-se no rosto dos dois; a moça, para ocultar a<br />

sua, cobriu os olhos com as mãos. O gesto era eloqüente; Estácio<br />

lançou para longe de si o quadro, com um movimento de cólera.<br />

Helena atirou-se para o corredor.<br />

D. Úrsula aguardava os sobrinhos para jantar. Demorando-se estes,<br />

dirigiu-se ela própria ao gabinete de Estácio. A porta estava aberta;<br />

D. Úrsula entrou e deu com ele, sentado numa poltrona, com o lenço<br />

na cara, como a soluçar. A tia correu com a velocidade que lhe<br />

permitiam os anos. Estácio não a ouviu entrar; só deu por ela quando<br />

as mãos da boa senhora lhe arrancaram as suas dos olhos, O<br />

assombro de D. Úrsula foi indescritível, sobretudo quando Estácio,<br />

erguendo-se, atirou-se-lhe aos braços, exclamando:<br />

— Que fatalidade!<br />

— Mas. .. que é?. . . explica-te.<br />

Estácio enxugou as faces molhadas do longo e silencioso pranto, com<br />

o gesto decidido de um homem que se envergonha de um ato de<br />

debilidade. A explosão desabafara-lhe o espírito; podia enfim ser<br />

homem, e era preciso que o fosse. D. Úrsula pediu e ordenou que lhe<br />

confiasse a causa da inexplicável aflição em que viera achá-lo.<br />

Estácio recusou dizê-la.<br />

— Saberá tudo amanhã ou logo. Agora só poderia dar-lhe um<br />

enigma, e eu sei o que ele me há custado. Algumas horas mais, e<br />

precisarei de seu conselho e apoio.<br />

D. Úrsula resignou-se à demora. Quando chegou à sala de jantar,<br />

achou um recado de Helena; mandava-lhe dizer que se sentira


epentinamente incomodada e que a dispensasse naquela tarde e<br />

noite. Dona Úrsula suspeitou logo que o recado de Helena tivesse<br />

relação com a aflição de Estácio, e correu ao quarto da sobrinha.<br />

Achou-a meio inclinada sobre a cama, com o rosto na almofada, e o<br />

corpo tranqüilo e como morto. Ao sentir os passos de D. Úrsula,<br />

ergueu a cabeça. A palidez era grande e profundo o abatimento; mas<br />

não houvera lágrimas. A dor, se a houve, e houve, parecia ter-se<br />

petrificado. O que restava ainda vivo na figura da moça, eram os<br />

olhos, que não perderam o fulgor natural. Ela ergueu-os a medo, e<br />

abraçou a tia com um olhar de súplica e de amor. D. Úrsula travoulhe<br />

das mãos, encarou-a silenciosamente, e murmurou:<br />

— Conta-me tudo.<br />

— Saberá depois! suspirou a moça.<br />

— Não tens confiança em tua tia?<br />

Helena ergueu-se e lançou-se-lhe nos braços; duas lágrimas<br />

rebentaram-lhe dos olhos, e foram as primeiras que eles verteram<br />

naquela meia hora. Depois beijou-lhe as mãos com ternura:<br />

— Pode receber estes beijos, disse ela, os anjos não os têm mais<br />

puros.<br />

Foram as últimas palavras que D. Úrsula pôde arrancar-lhe; a moça<br />

recolheu-se ao silêncio em que ela a encontrou. D. Úrsula saiu; e foi<br />

dali ter com Estácio. O sobrinho encaminhava-se para a sala de<br />

jantar.<br />

— Vamos para a mesa, disse ele, não convém que os escravos saibam<br />

de tais crises.<br />

D. Úrsula referiu o estado em que achara Helena e as palavras que<br />

trocara com ela. Estácio ouviu-a sem nenhuma expressão de<br />

simpatia. O jantar foi um simulacro; era um meio de iludir a<br />

perspicácia dos escravos, que aliás não caíram naquele embuste. Eles<br />

conheceram perfeitamente que algum acontecimento oculto trazia<br />

suspensos e concentrados os espíritos. As iguarias voltavam quase<br />

intactas; as palavras eram trocadas com esforço entre a sinhá velha e<br />

o senhor moço. A causa daquilo era, com certeza, nhanhã Helena.<br />

Estácio deu ordem para que a todas as pessoas estranhas se<br />

declarasse estar ausente a família. A única exceção era o Padre<br />

Melchior. A esse escreveu pedindo-lhe que os fosse ver.<br />

— Não posso esperar até amanhã, disse D. Úrsula; se tens de revelar<br />

alguma coisa a um estranho, por que o não fazes a mim primeiro?<br />

Dize-me o que há. Não posso ver padecer Helena; quero consolá-la e<br />

animá-la.


— O que tenho para dizer é longo e triste, retorquiu Estácio; mas, se<br />

deseja sabê-lo desde já, peço-lhe ao menos que espere a presença do<br />

Padre Melchior. Eu não poderia dizer duas vezes as mesmas coisas;<br />

seria revolver o punhal na ferida.<br />

A curiosidade de D. Úrsula cresceu com estas meias palavras do<br />

sobrinho; mas era forçoso esperar, e esperou. Foi dali ao quarto de<br />

Helena. Como a porta estivesse fechada, espreitou pela fechadura.<br />

Helena escrevia. Esta nova circunstância veio complicar as<br />

impressões de D. Úrsula.<br />

— Helena está encerrada no quarto, e escreve, disse ela ao sobrinho.<br />

— Naturalmente, respondeu este, com sequidão.<br />

O Padre Melchior não se demorou em acudir ao chamado de Estácio.<br />

O bilhete era instante e a letra febril. Algum acontecimento grave<br />

devia ter-se dado. A reflexão do padre era justa, como sabemos; ele o<br />

reconheceu desde logo, não só no aspecto lúgubre da família, como<br />

na ânsia com que era esperado. Os três recolheram-se a uma das<br />

salas interiores.<br />

— Helena? perguntou Melchior.<br />

— Vamos tratar dela, respondeu Estácio.<br />

Referir o que se passara naquela fatal manhã era mais fácil de<br />

planear que de executar. No momento de expor a situação e as<br />

circunstâncias dela, Estácio sentiu que a língua rebelde não obedecia<br />

à intenção. Achava-se num tribunal doméstico, e o que até então fora<br />

conflito interior entre a afeição e a dignidade, cumpria agora reduzilo<br />

às proporções de um libelo claro, seco e decidido. Inocente ou<br />

culpada, Helena aparecia-lhe naquele momento como uma<br />

recordação das horas felizes, — doce recordação que os sucessos<br />

presentes ou futuros podiam somente tornar mais saudosa, mas não<br />

destruiriam nunca, porque é esse o misterioso privilégio do passado.<br />

Reagiu, entretanto, sobre si mesmo; e, ainda que a custo, referiu<br />

minuciosa e sinceramente o que se passara desde aquela manhã.<br />

Não fora talhado para tão melindrosas revelações o coração de D.<br />

Úrsula. Desde o princípio da conversação sentiu o atordoamento que<br />

dão os grandes golpes. Esperava, decerto, um grande infortúnio de<br />

Helena, um episódio da família anterior, alguma coisa que desafiasse<br />

a compaixão, sem diminuir o sentimento da estima. Acontecia<br />

justamente o contrário; a estima era impossível e a compaixão<br />

tornava-se apenas provável.<br />

— Mas não! é impossível! exclamou ela daí a pouco, logo que a<br />

razão, obscurecida pelo abalo, pôde readquirir alguma luz... não! eu


a vi há pouco; senti-lhe as lágrimas na minha face, ouvi-lhe palavras<br />

que só a inocência pode proferir. E, além disso, seu procedimento<br />

irrepreensível, um ano quase de convivência sem mácula, a elevação<br />

de seus sentimentos... não posso crer que tudo isso... Não! pobre<br />

Helena! Vamos chamá-la, ela explicará tudo. Interroguemos o<br />

Vicente.<br />

Um gesto dos dois homens mostrou que nenhum deles julgava digno<br />

este último recurso para conhecer a verdade.<br />

D. Úrsula caíra em prostração, recordava suas apreensões do<br />

primeiro dia, e recuava com horror à idéia de ter acertado. Defronte<br />

dela, Estácio ocupava uma poltrona rasa, em cujos braços fincava os<br />

cotovelos, apoiando nas mãos a cabeça ardente e abatida. A alma<br />

ruminava a dor.<br />

Um só dos três vingava a dignidade da situação. O Padre Melchior<br />

não sentira menor assombro que os dois parentes de Helena, nem<br />

padeceu menos profundo golpe; mas reergueu-se de um e outro; pôde<br />

vencer-se e conservar a razão clara, fria e penetrante. Entre os dois<br />

corações ulcerados e sem força, compreendeu Melchior que lhe cabia<br />

a principal ação, e não recuou ante a responsabilidade que daí<br />

poderia deduzir. Viu de um lance a extensão possível do mal, a<br />

desunião da família, os desesperos da ocasião, os ódios do dia<br />

seguinte, as amarguras indeléveis, e, talvez, as indeléveis saudades;<br />

mas nem este quadro o aterrou, nem ele o aceitou sem exame.<br />

Melchior não condenava nem absolvia; esperava. Ele pertencia ao<br />

número dessas virtudes singelas para as quais o vício é uma rara<br />

exceção; natureza sincera e franca, era-lhe difícil crer na hipocrisia.<br />

Enquanto Estácio prosseguia calado e pensativo, e D. Úrsula, ora<br />

sentada, ora de pé, intercalava o silêncio com exclamações de dor,<br />

Melchior observava-os e refletia também consigo. Enfim, proferiu<br />

estas palavras de animação:<br />

— Sossegue, D. Úrsula; a verdade há de aparecer, e não estamos<br />

certos de que seja o que nos parece. Em todo o caso, não antecipemos<br />

a aflição. Seria padecer duas vezes. Há tempo de chorar à larga.<br />

Melchior levantou-se:<br />

— Convém sacudir o abatimento, continuou, dirigindo-se a Estácio; é<br />

a hora da ação e do vigor. Sobretudo, é necessário não boquejar de<br />

semelhante assunto por agora; daria azo às vozes estranhas e seus<br />

naturais comentários. Eu tomarei nesta colisão o lugar que me<br />

compete, se mo não contestam...<br />

— Oh! exclamou Estácio.


— ...Mas, desejo que desde já se compenetrem bem de que, se a<br />

dignidade pede uma coisa, a caridade pede outra, e que o dever<br />

estrito é conciliá-las. Nada de ódios; perdão ou esquecimento.<br />

— Mas, padre-mestre, que lhe parece? perguntou D. Úrsula com<br />

ansiedade.<br />

— D. Úrsula, disse o padre, é preciso agora que a razão fale e<br />

trabalhe; o sentimento deve retrair-se e esperar. Examinarei o caso, e<br />

aconselharei o necessário remédio. Talvez estejamos a debater-nos<br />

no vácuo; quem sabe? trata-se de um equívoco, de uma aparência.<br />

— Oh! ela confessou tudo! interrompeu Estácio. Vi-lhe a expressão<br />

da culpa nos olhos. Mas, enfim, estou pronto para tudo, continuou ele<br />

erguendo-se. Não foi o senhor um dos melhores amigos de meu pai?<br />

Não o é ainda nosso? Ajude-nos, aconselhe-nos; faremos o que lhe<br />

parecer melhor. Na situação em que nos achamos, nenhum de nós tem<br />

o espírito bastante senhor de si para colher os elementos da verdade,<br />

apurá-la e resolver. Esse papel é seu.<br />

Vieram trazer a Estácio uma carta. Era do Dr. Camargo,<br />

anunciando-lhe que a madrinha de Eugênia falecera, e que ele no<br />

prazo de alguns dias estaria na Corte. Era o pior momento para<br />

semelhante vinda; Estácio não pôde reprimir um gesto de desgosto. O<br />

padre, dizendo-lhe o mancebo de que tratava a carta, observou que<br />

nenhum inconveniente podia haver no regresso de Camargo, uma vez<br />

que, sem demora, ficasse liquidado o assunto que os afligia.<br />

— D. Úrsula, continuou ele, deixe-nos agora sós alguns instantes; vá<br />

tranqüila, confie em Deus, e não faça suspeitar a ninguém o que se<br />

passa nesta casa.<br />

D. Úrsula obedeceu. Logo que ela saiu, Melchior fechou a porta.<br />

Estácio sentou-se de novo, disposto a ouvir o capelão. Este deu<br />

alguns passos entre a porta e uma das janelas. Ia anoitecendo;<br />

Estácio acendeu um candelabro. Melchior sentou-se ao pé dele, sem<br />

lhe falar nem lhe voltar sequer os olhos. Meditava ou lutava consigo<br />

mesmo; a fronte pesada e merencória traduzia a agitação interior. Já<br />

não era a inalterável placidez, reflexo de uma consciência religiosa e<br />

pura. Se a consciência era a mesma, não o era o coração, a braços<br />

com uma crise nova. Após dez minutos de profundo silêncio entre<br />

ambos, o padre falou.<br />

................................................................................................................<br />

Helena, de Machado de Assis. Texto eletrônico:<br />

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-00989.html. Acessado em<br />

26/04/2006, às 11h.


...........................................................................................<br />

A carta de Iaiá fora escrita naquela manhã, depois de uma noite<br />

de agitação e luta. Nem foi a única. Iaiá escrevera outra, menos<br />

lacônica, a Procópio Dias. Morto o pai, esse homem fora ali três<br />

vezes, sem trocar com a moça uma só palavra relativa à<br />

estranha confidência que lhe fizera antes. Eram visitas de meia<br />

hora, não mais; durante esse curto lapso de tempo, Procópio<br />

Dias não discrepava um instante da gravidade um pouco triste<br />

que adotara. Não era o folgazão primitivo, mas também não era<br />

um poeta desesperado e pálido; ficava a igual distância de um e<br />

outro modelo. Os acontecimentos pareciam aconselhar-lhe uma<br />

discreta ausência; mas, além de não ter melindres nem<br />

escrúpulos, floria-lhe no peito a esperança, a esperança tenaz<br />

dos cobiçosos. Não a sussurrava ao ouvido da moça, nem a<br />

ostentava nos olhos, na compostura, nos meneios, todos eles<br />

impregnados da submissão de uma alma desenganada e passiva.<br />

Iaiá tratava-o com bondade, já agora mais constante; posto não<br />

lhe passasse pela cabeça a idéia de vir a desposá-lo, não lhe<br />

destoava o aspecto dessa paixão resignada e muda.<br />

Depois de soltar a palavra decisiva, Iaiá entendeu que lhe devia<br />

dar a forma última, desligando-se da solene promessa. Não o fez<br />

sem muita lágrima solitária. A pobre criança amava o filho de<br />

Valéria com a singeleza de um coração quase adolescente; e só<br />

então mediu todo o império que ele adquirira sobre ela. Mas duas<br />

circunstâncias a induziam ao desfecho; era a primeira a<br />

revelação de Procópio Dias, confirmação de suas suspeitas; a<br />

segunda foi o espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos, naquela<br />

noite, logo depois de se despedir do noivo. Sabendo que a<br />

madrasta estava no gabinete do pai, ali foi ter e espreitou pela<br />

fechadura; viu-a sentada com a cabeça inclinada no chão,<br />

desfeito o penteado, mas desfeito violentamente, como se lhe<br />

metera as mãos em um momento de desespero, e caindo-lhe o<br />

cabelo em ondas amplas sobre a espádua, com a desordem da<br />

pecadora evangélica. Iaiá não a viu sem que os olhos se<br />

umedecessem, o ódio complicou-se de piedade.<br />

— Que se casem! Disse a moça resolutamente.<br />

Desligando-se da promessa feita, Iaiá refletiu que ia ficar só, e<br />

que precisava forçosamente de um amparo; foi então que lhe<br />

lembrou Procópio Dias. Não encarou a idéia sem repugnância;<br />

aceitável na palestra, Procópio Dias era-lhe antipático para a<br />

convivência conjugal. Não o podia amar, e, uma vez resoluta a<br />

aceitá-lo, começou logo de o aborrecer. Que muito? Era um<br />

marido; não exigia outro mérito. A carta que lhe escreveu não<br />

saiu de um jato, foi trabalhada e repisada; o texto definitivo dizia<br />

que fosse ali sem demora para lhe falar de objeto que<br />

interessava à felicidade de ambos. Isto, e nada mais que uma


lágrima, que lhe resvalou dos cílios no papel como um protesto<br />

contra o que ia nele escrito.<br />

Raimundo, chamado para levar essa carta, recebeu-a depois de<br />

alguma hesitação. Olhou para o papel e para a sinhá-moça.<br />

Depois sacudiu a cabeça com um ar de dúvida. Iaiá simulou não<br />

ver nada, mas o gesto do preto impressionou-a. Ia afastar-se,<br />

Raimundo reteve-a dizendo:<br />

— Iaiá me desculpe... esta carta... Raimundo não gosta de falar<br />

àquele homem.<br />

— Não lhe fales; basta deixar a carta em casa dele.<br />

Raimundo não insistiu; acompanhou com os olhos a filha de seu<br />

antigo senhor, abanando a cabeça com o mesmo ar de alguns<br />

momentos antes. Depois olhou para a carta, como se quisesse<br />

adivinhar o que ia dentro. Não era só pressentimento, mas<br />

também dedução do que ele via naquelas últimas semanas.<br />

Tinham-lhe dado notícia do casamento; falara-se nisso todos os<br />

dias antes da morte de Luís Garcia. Morto este, cessou toda a<br />

alusão ao projeto, que parecia dever executar-se dentro de<br />

pouco tempo. O coração do preto dizia que aquela carta era<br />

alguma cousa mais do que um recado sem conseqüência. Quis<br />

levá-la a Estela; mas rejeitou o expediente, por lhe parecer<br />

infidelidade. Dez minutos depois saiu em direção à casa de<br />

Procópio Dias.<br />

Entretanto, chegavam às mãos de Estela o bilhete de Jorge e o<br />

de Iaiá. A viúva não podia crer o que lera. A carta da enteada era<br />

um ato de insubordinação, inexplicável na essência e na forma; e<br />

se essa carta a fez pasmar, a de Jorge fê-la gemer. O noivo<br />

desenganado recorria à intervenção de Estela. A primeira amada<br />

desse homem era agora a sua confidente, a quem ele escrevia<br />

sem saudade, sem remorso, talvez sem hesitação.<br />

— Sogra! concluiu Estela com amargura; e erguendo os olhos do<br />

papel para o espelho, que pendia da parede fronteira,<br />

contemplou caladamente as suas graças ainda em flor. Iaiá<br />

entrou nessa ocasião. A madrasta chamou-a ao pé de si; e<br />

mostrando-lhe o bilhete que escrevera ao noivo, perguntou-lhe o<br />

que queria dizer aquilo. A enteada ficou silenciosa durante alguns<br />

segundos; mas a resolução deu-lhe força e tranqüilidade.<br />

— Quer dizer o que aí está escrito, respondeu ela; não posso<br />

casar com o Dr. Jorge.<br />

— Por quê?<br />

— Não posso.


— Por quê? repetiu Estela com autoridade.<br />

— Amo a outra pessoa.<br />

— Não creio; tem decerto outro motivo.<br />

— Que motivo?<br />

— Nenhum que seja sensato, acudiu a madrasta, mas algum há<br />

de haver, que não seja esse. O passo que deu é grave; não é<br />

próprio de uma moça obediente; chega a ser contrário à cortesia.<br />

Não importa; tudo se pode explicar; explique-me esta carta.<br />

Iaiá não obedeceu à intimação da madrasta; e para tirar à recusa<br />

qualquer aparência ofensiva, conservou um ar de modéstia e<br />

resignação. Estela não se deu por vencida; demonstrou-lhe que<br />

só um motivo grave podia justificar semelhante procedimento, e<br />

que era forçoso dizê-lo ao noivo; lembrou-lhe finalmente a<br />

estima que sempre houve entre Jorge e o pai. Neste ponto Iaiá<br />

estremeceu e fitou na madrasta uns olhos que não eram os de<br />

pouco antes. Parecia-lhe sacrilégio evocar o nome do pai. Não se<br />

pôde ter; deu um passo e interrompeu-a com sequidão:<br />

— Não posso casar, porque a senhora o ama.<br />

Estela, que já então estava sentada, ergueu-se de golpe ao ouvir<br />

esta súbita e inesperada explicação. Sua face pálida, que o traje<br />

de viúva ainda mais empalidecia, tingiu-se de uns longes de<br />

vermelho. Podia ser confusão ou indignação. Durante uma pausa<br />

relativamente longa, Iaiá não tirou os olhos da madrasta. Essas<br />

duas lâmpadas buscavam examinar-lhe, no momento supremo,<br />

todos os recantos da consciência e todos os atalhos do passado.<br />

Não disse nada, para melhor gozar do abalo que acabava de<br />

produzir em Estela; era o juro do sacrifício. Mas Estela sentou-se<br />

daí a pouco, e foi a primeira que rompeu o silêncio.<br />

— Tu estás louca, disse ela tranqüilamente. Quem te meteu<br />

semelhante idéia na cabeça?<br />

— Não examinemos agora quem foi ou o que foi que me fez<br />

adivinhar a verdade, respondeu Iaiá; basta saber que decidi<br />

romper o casamento, que o mandei dizer ao Dr. Jorge, e que<br />

talvez dentro de poucos dias outra pessoa lhe pedirá minha mão.<br />

Estas palavras transtornaram de todo a viúva, que atônita e<br />

irritada deu alguns passos na sala, buscando conter a explosão<br />

de seus sentimentos. Iaiá foi ter com ela, falou-lhe com brandura<br />

e submissão.


— Não se zangue, mamãezinha, se lhe não disse antes o que fiz<br />

agora mesmo; estava certa de que aprovaria, ou me perdoaria,<br />

quando menos. O homem de que lhe falo ama-me; e a senhora<br />

mesma não rejeitou a idéia de me ver casada com ele.<br />

— Não tens culpa da imprudência que cometeste, disse Estela;<br />

porque antes disso tinhas perdido a razão. Vem cá; disseste-me<br />

aí uma palavra absurda, e é preciso que me digas outra com que<br />

expliques a primeira. Por que eu o amo? Continuou depois de<br />

alguns instantes. Que quer dizer com isso?<br />

Iaiá curvou a cabeça.<br />

— Fala!<br />

— Não direi nada; essa palavra explica tudo. Se o ama, como eu<br />

creio, é a sua felicidade que lhe trago, não digo a troco da<br />

minha, porque seria lançar-lhe em rosto o sacrifício, mas a troco<br />

de uma ilusão, e nada mais. Não pense que lhe quero mal; não<br />

posso querer mal a quem me tem ou teve alguma afeição e<br />

substituiu dignamente minha mãe. Se lhe quisesse mal, é<br />

provável que não fizesse o que fiz.<br />

Enquanto falava a enteada, Estela tinha a fronte inclinada e<br />

pensativa; atitude em que se conservou ainda durante algum<br />

tempo.<br />

— Bem vê que o ama, disse Iaiá; seu silêncio confirma a minha<br />

suposição.<br />

— Eu! exclamou Estela estremecendo. E lançando-lhe um dos<br />

olhares de gelo, que eram o reflexo do seu orgulho: — Tu não<br />

entendes nada dos sentimentos, não conheces o coração. Eu<br />

amá-lo? eu? Não! não é possível!<br />

— Talvez não, mas o que está feito, está feito.<br />

A madrasta quis retê-la, mas não pôde; Iaiá saiu sem dizer nada.<br />

Estela ficou atordoada, confusa e até medrosa; reboavam-lhe<br />

aos ouvidos as palavras de Iaiá, não como um som exterior, mas<br />

como o brado da própria consciência. Venceu o abatimento,<br />

reagiu depressa como lho pediam as circunstâncias e a própria<br />

necessidade de sua natureza. Não teve tempo de cogitar no<br />

modo por que a enteada chegara a suspeitar um sentimento que<br />

ela recalcara no coração. Urgia reparar o mal feito pela<br />

imprudência da moça. Estela dispôs-se a responder desde logo à<br />

carta de Jorge, e não sabia ainda claramente o que havia de<br />

dizer. Tratou primeiro de chamar Raimundo, e vendo que ele não<br />

acudia foi ter com Iaiá.


— Raimundo foi levar uma carta minha ao Procópio Dias,<br />

respondeu esta.<br />

Estela caiu numa cadeira. Pela primeira vez, alumiou-lhe o<br />

espírito uma idéia cruel: a idéia de que a suspeita de Iaiá fosse<br />

mais do que uma simples e inocente conjectura, fosse um<br />

ultraje. Os olhos que lançou à moça ardiam de indignação.<br />

Cobriu-os depressa, não para chorar, mas para fugir aos da<br />

outra. O olhar de Estela fez vacilar por um instante a convicção<br />

da enteada; a cólera pareceu-lhe sincera e até excessiva; mas o<br />

gesto que se lhe seguiu atenuou e desvaneceu a primeira<br />

impressão. Iaiá supôs ver na atitude da madrasta uma confissão<br />

involuntária, uma expressão de abatimento e desespero, como<br />

de pessoa que entrevê a felicidade própria e julga dever<br />

sacrificá-la à de outrem. Era generosa. Caminhou para ela,<br />

dobrou as curvas, pousou-lhe no regaço os braços, trêmulos de<br />

comoção; com as mãos desviou as de Estela e fitou-lhe os olhos,<br />

que estavam sombrios.<br />

— Fui estouvada, confesso, disse ela; devia tê-la consultado<br />

antes de fazer o que fiz. Mas eu temia a sua oposição; e não<br />

queria torná-la desgraçada. Sou mais moça que a senhora; se<br />

tivesse de consolar-me, consolava-me depressa. Mas não tenho;<br />

não amava; cedi a um capricho, e não sinto a menor dor ao<br />

despedir-me dele. Ande, perdoe-me; e esteja certa de que não a<br />

amarei menos do que até agora.<br />

Ergueu-se e procurou beijá-la. A madrasta recuou<br />

instintivamente a cabeça; era um resto de repugnância, que a<br />

fisionomia ingênua e pura de Iaiá para logo dissipou. Em tão<br />

verdes anos, sem nenhum trato social, era lícito supor na menina<br />

tamanha dissimulação? Estela concluiu que a ação da enteada<br />

vinha, não de uma suposição ultrajante, mas de um impulso<br />

desinteressado. Qualquer que fosse o fundamento da suspeita, o<br />

procedimento da enteada trazia o cunho da candura e da boa fé;<br />

assim pensando, Estela sentiu desoprimir-se-lhe a alma. Não era<br />

generosa, — ou tinha somente a generosidade fria e altiva, que<br />

nasce da soberba. Mas não era insensível; e o desinteresse da<br />

menina tocou-lhe profundamente o coração. Inclinou-se para ela,<br />

tomou-lhe a cabeça entre as mãos e fitou-a, com um olhar<br />

severo e maternal ao mesmo tempo.<br />

— Perdôo-te, disse finalmente, porque não sabes o que fizeste. A<br />

intenção é que te salva do meu ódio; digo mal, do meu desprezo.<br />

Se queres medir bem a profundidade do abismo que acabas de<br />

cavar, fica sabendo que me injuriaste, pensando servir-me, e<br />

que o resultado do teu erro pode talvez arrancar-te lágrimas<br />

amargas e inúteis. Teu castigo será que só eu as enxugarei; —<br />

ouves bem? só eu.


Dizendo isto, soltou a cabeça da enteada com um gesto ríspido,<br />

em que havia ainda um pouco de irritação. Iaiá estava pálida.<br />

Sentiu na palavra seca e fria da madrasta um alento de<br />

indignação sincera; e a alma caiu-lhe prostrada, mais ainda do<br />

que o corpo, que não podendo suster-se, procurou amparar-se<br />

no móvel que achou mais próximo. A dúvida, que já antes<br />

atravessara o espírito da moça, começou a invadi-lo. Iaiá fitou<br />

Estela com o mais agudo de seus olhares, acompanhou-a de um<br />

lado para outro, porque a madrasta, logo depois das palavras<br />

que lhe disse, entrara a andar e refletir. Se a viúva era sincera,<br />

Iaiá acabava de fazer gratuitamente a sua própria desgraça; foi o<br />

que a moça pensou, e esse pensamento justificou-a como um<br />

latejo. No atordoamento moral em que esta hipótese a lançou,<br />

Iaiá achou-se entre dous desejos, mal definidos, mas<br />

inteiramente opostos um ao outro. Quisera e não quisera ter-se<br />

enganado; aspirava a conciliar o coração e a consciência. Seu<br />

espírito evocou a hora inicial da suspeita, — aquela funesta<br />

manhã, em que a carta de Jorge foi lida por Estela; recordou o<br />

gesto da madrasta, o tremor, a lividez, os vivos sintomas da<br />

consternação, do medo ou do remorso. Seria engano aquilo? não<br />

era evidente que eles se haviam amado, que se amavam ainda<br />

naquela ocasião; e, dada a afirmativa, era acaso impossível que<br />

Estela, ao menos, o amasse ainda hoje?<br />

Iaiá ateve-se a esta conclusão, embora confirmasse a ruína de<br />

suas esperanças; a conclusão, porém, contrastava com a<br />

impassibilidade da madrasta. Já então perdera Estela o alvoroço<br />

do primeiro momento. Depois de alguns minutos de reflexão,<br />

parara em frente da enteada. Era difícil ver na atitude quieta, no<br />

aspecto de matrona severa e digna, alguma cousa que se<br />

parecesse com as ânsias, o triunfo ou o abatimento de uma rival.<br />

Iaiá deixou-se estar diante dela, a fitá-la e a revolvê-la. A porção<br />

da alma que transparecia do rosto da viúva era tão fria, tão<br />

indiferente, que mal se podia combinar com o sentimento que<br />

Iaiá lhe atribuía. Foi o que esta pensou ver com seus olhos<br />

finamente sagazes; e no meio desse contraste entre o aspecto<br />

presente e a revelação passada, Iaiá acabou por não saber<br />

definitivamente onde ficava a verdade, e esteve a ponto de lha<br />

pedir de joelhos.<br />

Achavam-se então no gabinete de Luís Garcia, defronte da<br />

secretária, onde o finado encontrara, com outros papéis, a carta<br />

que dera lugar às conjecturas de Iaiá. Não havia mudança nem<br />

no número nem na disposição dos móveis. Só a luz era diferente,<br />

porque a daquele dia era viva e clara, coada através de uma<br />

atmosfera serena, como a vida anterior dessa família, ao passo<br />

que a de hoje vinha turva e meio apagada pelas nuvens de um<br />

céu chuvoso e triste. Na longa pausa que houve entre a<br />

madrasta e a enteada, os únicos sons que se ouviam eram o


ufar da chuva na folhagem do jardim e o tic-tac de um relógio<br />

de parede.<br />

— Vou fazer-te o maior mal que é possível receber na tua idade,<br />

disse finalmente Estela. Mas assim o quer; e se alguma razão<br />

tens para crer que amo esse homem, é necessário mostrar-te a<br />

realidade das cousas.<br />

Estela abriu duas ou três gavetinhas da secretária, e depois de<br />

alguma busca entre os maços de cartas que aí encontrou, tirou<br />

uma, abriu-a e deu-a à enteada. Iaiá recebeu-a com as mãos<br />

trêmulas de curiosidade; leu-a toda; devia ser a mesma que o<br />

pai mostrara à madrasta.<br />

— Essa moça era a senhora? murmurou ela como se ainda<br />

esperasse resposta negativa.<br />

— Era eu.<br />

Iaiá deixou-se cair numa cadeira rasa, a mesma em que Estela<br />

estivera sentada, quando ouviu a confidência do marido.<br />

— Vês? disse Estela; foi por mim que ele fez o sacrifício de ir<br />

para a guerra, sem esperança de ser retribuído nem de contar<br />

um dia com a minha gratidão. Foi para a guerra, lutou, padeceu,<br />

fiel ao sentimento que o tinha levado, até o ponto de o crer<br />

eterno. Eterno! Sabes quanto durou essa eternidade de alguns<br />

anos. É duro de ouvir, minha filha, mas não há nada eterno<br />

neste mundo; nada, nada. As mais profundas paixões morrem<br />

com o tempo. Um homem sacrifica o repouso, arrisca a vida,<br />

afronta a vontade de sua mãe, rebela-se, e pede a morte; e essa<br />

paixão violenta e extraordinária acaba às portas de um simples<br />

namoro, entre duas xícaras de chá...<br />

— A senhora não o amou nunca? interrompeu Iaiá, ao sentir o<br />

tremor e o despeito com que a madrasta proferira as últimas<br />

palavras.<br />

— Havia entre nós um fosso largo, muito largo, disse Estela. Eu<br />

era humilde e obscura, ele distinto e considerado; diferença que<br />

podia desaparecer, se a natureza me houvesse dado outro<br />

coração. Medi toda a distância que nos separava e tratei<br />

simplesmente de evitá-lo. Foi então que ele embarcou;<br />

interiormente aprovei-o. Talvez lhe não neguei um pouco de<br />

compaixão silenciosa, mas nada mais. Casamento entre nós, era<br />

impossível, ainda que todos trabalhassem para ele; era<br />

impossível, sim, porque o consideraria uma espécie de favor, e<br />

eu tenho em grande respeito a minha própria condição. Meu pai<br />

já me achava, em pequena, uns arremessos de orgulho. Como<br />

querias tu que, com tal sentimento, pudesse desposar um


homem, socialmente superior a mim? Era preciso dar-me outra<br />

índole. Todas as felicidades do casamento achei-as ao pé de teu<br />

pai. Não nos casamos por amor; foi escolha da razão, e por isso<br />

acertada. Não tínhamos ilusões; pudemos ser felizes sem<br />

desencanto. Teu pai não tinha os mesmos sentimentos que eu;<br />

era mais tímido que orgulhoso. Qualquer que fosse a razão do<br />

seu desapego ao mundo, bastava que o tivesse, para me fazer<br />

feliz; vivemos assim alguns anos de inteiro isolamento, sem<br />

conhecer o amargor, que é o que fica no fundo da vida, sem<br />

necessidade de dissimulação... Minto; tive necessidade de fingir,<br />

desde que aquele homem aqui apareceu; era necessário. Um dia<br />

teu pai mostrou-me essa carta e referiu-me a paixão encoberta<br />

que aí se conta; podes imaginar se ouvi tranqüila. Mas fora desse<br />

acontecimento, que outro podia perturbar minha alma? Não vi<br />

nenhuma porta abrir-se-me por obséquio, nenhuma mão apertou<br />

a minha por simples condescendência. Não conheci a polidez<br />

humilhante, nem a afabilidade sem calor. Meu nome não serviu<br />

de pasto à natural curiosidade dos amigos de meu marido. Quem<br />

é ela? donde veio? Ninguém me perguntou donde vinha, não é<br />

verdade? Perguntaste-me quem era eu? Não; amaste-me como<br />

tinhas amado tua mãe, e eu amei-te, como se foras minha filha.<br />

E para isso bastou-nos estender os braços; não foi preciso descer<br />

nem subir.<br />

— Não foi, bradou Iaiá comovida, apertando-lhe as mãos.<br />

— Já vês quem eu era e sou; uma espécie de animal feroz, que<br />

prefere a charneca ao jardim. Não me senti lisonjeada com a<br />

paixão que inspirei; rejeitei, talvez, um marido digno das<br />

ambições de qualquer mulher. Era isto o que querias saber? Pois<br />

aí tens a minha história, a história dessa carta, que já agora<br />

podemos rasgar...<br />

Estela pegou na carta e rasgou-a lentamente, em pedaços<br />

miúdos, enquanto a enteada refletia nas revelações que acabava<br />

de ouvir. A madrasta deitou os fragmentos do papel à cesta.<br />

Talvez a mão lhe tremia um pouco; o rosto, porém, era de<br />

granito.<br />

— Resta concertar a imprudência e casar, disse Estela dando à<br />

palavra um tom galhofeiro.<br />

— Não sei! murmurou Iaiá. O que a senhora me disse é grave;<br />

não há sentimentos eternos. Parece que depois de tamanha<br />

paixão qualquer outro afeto não terá longa vida.<br />

— Por que não? Não hás de querer agora uma paixão que o leve<br />

à guerra; seria um desastre. Mas está nas tuas mãos fazer que<br />

ele te ame sempre e muito.


Iaiá refletiu um instante.<br />

— Jure-me que o não ama!<br />

Estela franziu o sobrolho; depois mostrou-lhe o bilhete que Jorge<br />

lhe escrevera poucos antes, e cuja redação dissiparia à moça<br />

qualquer dúvida em relação ao noivo. Era uma evasiva para lhe<br />

não confessar nem mentir. A primeira vez que lhe negara o<br />

amor, foi antes um grito do coração que queria enganar-se a si<br />

próprio; agora preferia calar-se. Iaiá caiu no laço. O coração<br />

humano é tão egoísta! A certeza da isenção de Jorge importava<br />

muito mais que a de Estela; a alma da moça no primeiro<br />

instante, respirou à larga. O respeito que tinha à madrasta, e um<br />

pouco de ciúme retrospectivo que a mordia, ao pensar naquela<br />

paixão tão violenta e tão desenganada, empeciam à moça<br />

qualquer outra manifestação. Quando se achou a sós consigo,<br />

levava o espírito arejado da suspeita que o oprimira durante<br />

largos meses; mas o vento que o lavou das sombras, lá lhe<br />

queimou algumas das flores desabotoadas ao calor do primeiro<br />

sol. A felicidade tinha um travo de desgosto e humilhação; o<br />

coração tremia de medo.<br />

Quando mais absorta estava nesse contraste de sensações, viu<br />

Raimundo transpor a porta do jardim.<br />

........................................................................................<br />

Iaiá Garcia, de Machado de Assis. Texto eletrônico:<br />

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-00990.html. Acessado em<br />

26/04/2006, às 11h.<br />

Mas são seus romances da segunda fase como escritor, já mais amadurecido, na idade e<br />

intelectualmente, que vão representar um grande momento literário da história da<br />

Literatura Brasileira: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom<br />

Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Vamos conhecer algumas passagens<br />

desses romances, em que Machado de Assis explora temas como:<br />

Abordagem psicológica refinada dos personagens<br />

Análise crítica profunda da sociedade brasileira do século XIX<br />

Ironia na descrição e na análise do comportamento do homem e da sociedade brasileira<br />

Conversas com o leitor durante a narrativa<br />

Romances escritos em capítulos curtos


Vamos conhecer passagens destes romances para você entender as características<br />

apontadas acima.<br />

CAPÍTULO II<br />

Do Livro<br />

Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso,<br />

porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.<br />

Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la<br />

construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me<br />

vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me<br />

reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua<br />

de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela<br />

outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as<br />

indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três<br />

janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na<br />

principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos<br />

igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as<br />

tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as<br />

figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de<br />

César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não<br />

alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de<br />

Matacavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio<br />

anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e<br />

figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo<br />

e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um<br />

poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora,<br />

como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é<br />

pacata, com a exterior, que é ruidosa.<br />

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na<br />

velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que<br />

foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é<br />

diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se<br />

mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta<br />

lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à<br />

pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva<br />

o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta<br />

tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia<br />

enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a<br />

mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os<br />

antigos foram estudar a geologia dos campos santos. Quanto às<br />

amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase<br />

todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos<br />

outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os<br />

dicionários, e tal freqüência é cansativa.


Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa.<br />

A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de<br />

muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu<br />

muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma<br />

recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos<br />

falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar,<br />

jardinar e ler; como bem e não durmo mal.<br />

Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me<br />

também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro.<br />

Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me<br />

acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma<br />

História dos Subúrbios, menos seca que as memórias do Padre<br />

Luís Gonçalves dos Santos, relativas à cidade; era obra modesta,<br />

mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido e<br />

longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a<br />

falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me<br />

os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns.<br />

Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem<br />

perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do<br />

Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras...?<br />

Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena<br />

na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que<br />

me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e<br />

vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste<br />

modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de<br />

maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de<br />

novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e<br />

piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais<br />

entender, lendo.<br />

CAPÍTULO IV<br />

Um Dever Amaríssimo!<br />

José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição<br />

monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as<br />

frases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior<br />

da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas calças<br />

brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos<br />

últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste<br />

mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem<br />

esticadas. A gravata de cetim preto, com um aro de aço por dentro,<br />

imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita,<br />

veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era<br />

magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus<br />

cinqüenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do<br />

costume, não aquele vagar arrastado dos preguiçosos, mas um<br />

vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa


antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um<br />

dever amaríssimo!<br />

Dom Casmurro, de Machado de Assis. Texto eletrônico:<br />

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-01149.html. Acessado em<br />

26/04/2006, às 11h.<br />

CAPÍTULO 68<br />

O vergalho<br />

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo<br />

fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um<br />

ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro<br />

não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: —<br />

“Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro<br />

não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada<br />

nova.<br />

— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!<br />

— Meu senhor! gemia o outro.<br />

— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.<br />

Parei, olhei... justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada<br />

menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara<br />

alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a<br />

bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.<br />

— É, sim nhonhô.<br />

— Fez-te alguma coisa?<br />

— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na<br />

quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a<br />

quitanda para ir na venda beber.<br />

— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.<br />

— Pois não, nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!<br />

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas<br />

conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões,<br />

que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um<br />

bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o<br />

meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só<br />

exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio


achei-lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o<br />

Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas,<br />

transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um<br />

freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria.<br />

Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das<br />

pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga<br />

condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ialhe<br />

pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam<br />

as sutilezas do maroto!<br />

CAPÍTULO 32<br />

Coxa de nascença<br />

Fui dali acabar os preparativos da viagem. Já agora não me<br />

demoro mais. Desço imediatamente; desço, ainda que algum leitor<br />

circunspecto me detenha para perguntar se o capítulo passado é<br />

apenas uma sensaboria ou se chega a empulhação... Ai, não contava<br />

com Dona Eusébia. Estava pronto, quando me entrou por casa.<br />

Vinha convidar-me para transferir a descida, e ir lá jantar nesse<br />

dia. Cheguei a recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, que não pude<br />

deixar de aceitar; demais, era-lhe devida aquela compensação; fui.<br />

Eugênia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por<br />

minha causa, — se é que não andava muita vez assim. Nem as<br />

bichas de ouro, que trazia na véspera, lhe pendiam agora das<br />

orelhas, duas orelhas finamente recortadas numa cabeça de ninfa.<br />

Um simples vestido branco, de cassa,sem enfeites, tendo ao colo, em<br />

vez de broche, um botão de madrepérola, e outro botão nos punhos,<br />

fechando as mangas, e nem sombra de pulseira.<br />

Era isso no corpo; não era outra coisa no espírito. Idéias claras,<br />

maneiras chãs, certa graça natural, um ar de senhora, e não sei se<br />

alguma outra coisa; sim, a boca, exatamente a boca da mãe, a qual<br />

me lembrava o episódio de 1814, e então dava-me ímpetos de glosar<br />

o mesmo mote à filha...<br />

— Agora vou mostrar-lhe a chácara, disse a mãe, logo que<br />

esgotamos o último gole de café.<br />

Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma<br />

circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu<br />

cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha<br />

respondeu sem titubear:<br />

— Não, senhor, sou coxa de nascença.<br />

Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseirão.<br />

Com efeito, a simples possibilidade de ser coxa era bastante para<br />

lhe não perguntar nada. Então lembrou-me que da primeira vez que


a vi — na véspera — a moça chegara-se lentamente à cadeira da<br />

mãe, e que naquele dia, já a achei à mesa de jantar. Talvez fosse<br />

para encobrir o defeito; mas porque razão o confessava agora?<br />

Olhei para ela e reparei que ia triste.<br />

Tratei de apagar os vestígios de meu desazo; — não me foi difícil,<br />

porque a mãe era, segundo confessara, uma velha patusca, e<br />

prontamente travou de conversa comigo. Vimos toda a chácara,<br />

árvores, flores, tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de<br />

coisas, que ela me ia mostrando, e comentando, ao passo que eu, de<br />

soslaio, perscrutava os olhos de Eugênia...<br />

Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito,<br />

perfeitamente são; vinha de uns olhos pretos e tranqüilos. Creio que<br />

duas ou três vezes baixaram, um pouco turvados; mas duas ou três<br />

vezes somente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem<br />

temeridade, nem biocos.<br />

CAPÍTULO 33<br />

Bem-aventurados os que não descem<br />

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca,<br />

uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar<br />

que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se<br />

coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha<br />

fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com<br />

a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um<br />

enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de<br />

uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no<br />

cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta<br />

do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e ai fiquei eu a<br />

noite toda a cavar o mistério, sem explicá-lo.<br />

Amanheceu chovendo, transferi a descida; mas no outro dia, a<br />

manhã era límpida e azul, e apesar disso deixei-me ficar, não menos<br />

que no terceiro dia, e no quarto, até o fim da semana. Manhãs<br />

bonitas, frescas, convidativas; lá embaixo a família a chamar-me, e<br />

a noiva, e o arlamento, e eu sem acudir a coisa nenhuma, enlevado<br />

ao pé da minha Vênus Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o<br />

estilo; não havia enlevo, mas gosto, uma certa satisfação física e<br />

moral.Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha<br />

espúria e coxa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentia-me bem,<br />

e ela creio que ainda se sentia melhor, ao pé de mim. E isto na<br />

Tijuca. Uma simples égloga. Dona Eusébia vigiava-nos, mas pouco;<br />

temperava a necessidade com a conveniência. A filha, nessa<br />

primeira explosão da natureza, entregava-me a alma em flor.


— O senhor desce amanhã? Disse-me ela no sábado.<br />

— Pretendo.<br />

— Não desça.<br />

Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: — Bemaventurados<br />

os que não descem, porque deles é o primeiro beijo das<br />

moças. Com efeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugênia,<br />

— o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não<br />

furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um<br />

devedor honesto paga uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses<br />

que idéias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu,<br />

trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar<br />

em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na<br />

moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue,<br />

à tua origem...<br />

D. Eusébia entrou inesperadamente, mas não tão súbita, que nos<br />

apanhasse ao pé um do outro. Eu fui até a janela. Eugênia sentou-se<br />

a consertar uma das tranças. Que dissimulação graciosa! que arte<br />

infinita e delicada! que tartufice profunda! e tudo isso natural, vivo,<br />

não estudado, natural como o apetite, natural como o sono. Tanto<br />

melhor! Dona Eusébia não suspeitou nada.<br />

CAPÍTULO 34<br />

A uma alma sensível<br />

Há aí, entre as cinco ou dez pessoas que me lêem, há aí uma alma<br />

sensível, que está decerto um tanto agastada com o capítulo<br />

anterior, começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez..., sim,<br />

talvez, lá no fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico, alma<br />

sensível? Pela coxa de Diana! Esta injúria merecia ser lavada com<br />

sangue, se o sangue lavasse alguma coisa nesse mundo. Não, alma<br />

sensível, eu não sou cínico, eu fui homem; meu cérebro foi um<br />

tablado em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o<br />

austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos,<br />

as bufonerias, um pandemônio, alma sensível, uma barafunda de<br />

coisas e pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de Smirna<br />

até a arruda do teu quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até<br />

o recanto da praia em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se<br />

nele pensamentos de vária casta e feição. Não havia ali a atmosfera<br />

somente da águia e do beija-flor; havia também a da lesma e do<br />

sapo. Retira, pois, a expressão, alma sensível, castiga os nervos,<br />

limpa os óculos, — que isso às vezes é dos óculos, — e acabemos de<br />

uma vez com esta flor da moita.


Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Texto eletrônico:<br />

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0052-01754.html. Acessado em<br />

26/04/2006, às 11h.<br />

Também no conto se afirma a maestria de escritor de Machado de Assis. Ele vai ser o<br />

nosso primeiro grande contista. Vamos interromper agora um pouco o nosso<br />

conhecimento da história da literatura brasileira para pensarmos um pouco sobre um<br />

esse gênero literário.<br />

Você sabe o que é o conto?<br />

O conto é uma narrativa de menor extensão do que o romance. Ele se originou nos<br />

mitos, nos contos infantis, nas histórias do folclore, nos contos falados. Todavia, o<br />

conto literário é escrito e elaborado segundo características estéticas, que dizem respeito<br />

à arte literária. É importante também dizer que o contista não se preocupa com a<br />

totalidade de uma grande história; ele enfatiza um lampejo, uma minúcia, um pequeno<br />

detalhe, ele contar um fato, um episódio interessante, a partir do que se vislumbrar<br />

talvez a totalidade. Sem chegar a repetir a frase de Mário de Andrade, para quem “conto<br />

é o que o autor diz que é conto”, poderíamos talvez saber o que um importante contista<br />

disse. Para Eça de Queirós, “No conto tudo precisa de ser apontado num risco leve e<br />

sóbrio: das figuras deve-se ver apenas a linha flagrante e definidora que revela e fixa<br />

uma personalidade; dos sentimentos apenas o que caiba num olhar ou numa dessas<br />

palavras que escapa dos lábios e traz todo o ser; da paisagem somente os longes, numa<br />

cor unida” (Prefácio” a Azulejos, volume de contos publicado pelo Conde de Arnoso).<br />

.<br />

Para você entender vamos colocar aqui um conto de um escritor russo, que está<br />

traduzido para a língua portuguesa. Veja o que ele fez e como ele contou a história de<br />

uma forma bem sintética, sem perder a qualidade da história. O conto elimina as<br />

análises minuciosas e as complicações do enredo e delimita fortemente o tempo e o<br />

espaço.<br />

A CARTA EXTRAVIADA<br />

Nicolai Gogol<br />

Um dia, o serenissimo hetmã lembou-se de mandar uma carta para a czarina. O<br />

escriba do regimento (que o diabo o carregue), esqueci como se chamava! Era<br />

Viskriak ou não? Motuzotchka ou não? Goloputsek ou não?... Como quer que seja,<br />

o que sei é que seu nome era dificilimo. Enfim, o escriba do regimento chamou meu<br />

avô e disse-lhe que o hetmã o encarregara de levar uma carta para a czarina.<br />

Meu avô não gostava de fazer preparativos demorados. Coseu a carta em seu


gorro, arreou o cavalo, beijou a mulher e os dois (como ele os chamava)<br />

porquinhos, um dos quais era meu pai, e partiu levantando após si tanta poeira<br />

quanta teriam levantado quinze malandros que estivessem jogando barra no meio<br />

da rua.<br />

No dia seguinte pela manhã, ainda não cantara o galo pela quarta vez e meu avô já<br />

estava em Konotop. Realizava-se aí, então, uma feira: tão grande era a multidão<br />

que entulhava as ruas, mas como ainda era muito cedo, todas as pessoas dormiam<br />

deitadas no chão. Junto a uma vaca, estava deitado um "parabok" gozador, de<br />

nariz vermelho como um pisco; mais adiante roncava, sentada junto a suas coisas,<br />

uma vendedora de pederneiras, de anil, de chumbo para fuzil e de "bubliki".<br />

Debaixo de uma carriola, estava deitado um cigano; sobre outra carriola carregada<br />

de peixe estava estendido o carroceiro; e, na estrada real, de pernas abertas,<br />

permanecia deitado o moscovita barbudo com um carregamento de cinto e de<br />

luvas... numa palavra, havia toda a especie de pessoas que é costume encontrar<br />

nas feiras.<br />

Meu avô parou para olhar ao derredor. As tendas começavam gradativamente a se<br />

animar: as judias arrumavam seus frascos, a fumaça subia em espirais aqui e ali e<br />

o odor das iguarias aquecidas espalhava-se por todo o acampamento.<br />

Meu avô lembrou-se de que estava sem fumo e sem estopa, e começou a procurálos<br />

na feira. Mal dera vinte passos, encontrou um "zaporoga" um verdadeiro<br />

gozador; bastava olhá-lo para verificar-se isso.<br />

Calções vermelhos como fogo, um "caftã" azul; um cinturão escarlate, e sobre à<br />

cintura, um cachimbo de canudo curto com uma correntinha de cobre que ia até os<br />

pés, numa palavra, um verdadeiro "zaporoga"Ah! que rapagões! como eles param,<br />

como se espreguiçam ao passar a mão pelos valentes bigodes, como fazem tinir as<br />

esporas e começam a dançar: suas pernas giram com a velocidade de uma roca em<br />

mãos femininas! Fazem ressoar e depois, com as mãos nas cadeiras, atiram-se em<br />

"prissiadka" e entoam uma canção arrebatadora!... Não! passou-se o tempo. Não<br />

se verão mais "zaporogas"!<br />

Então, meu avô encontrou um desses "zaporogas". Palavra puxa palavra, não lhes<br />

foi preciso muito tempo para se tornarem amigos. Começaram a tagarelar, a<br />

tagarelar a tal ponto que meu avô esqueceu inteiramente sua viagem. Beberam<br />

tanto quanto num festim antes da quaresma.<br />

Finalmente, cansaram-se de quebrar jarros e de espargir dinheiro pela multidão;<br />

aliás, a propria feira não podia durar eternamente; os dois novos amigos<br />

combinaram então não se separarem e prosseguirem juntos.<br />

A tarde já ia adiantada quando eles se encontravam em pleno campo. O sol partiu<br />

para o descanso, só deixando aqui e ali, após si, algumas faixas avermelhadas. A<br />

campina, com seus prados multicores, lembrava os trajes festivos das raparigas de<br />

negras sobrancelhas. Uma tagarelice terrivel dominou nosso "zaporoga"; meu avô,<br />

com outro gozador que se reunira a eles, já estava pensando que um diabo<br />

penetrara certamente nele. Onde ia o homem buscar historias e contos tão<br />

engraçados que meu avô segurava as ilhargas e quase passou mal da barriga? Mas<br />

quanto mais caminhavam, mais aumentava a escuridão, e concomitantemente as<br />

narrativas do rapaz perdiam sua jovialidade. Afinal o contador calou-se<br />

inteiramente, e começou a estremecer ao menor ruido.<br />

- Eh! eh! patricio. Vejo que estas seriamente entretido a contar as corujas. Já<br />

pensar em correr o mais depressas possivel para casa e sentar-te de novo sobre a<br />

tua estufa!


- Pois bem! Não quero ocultar-lhes a coisa - disse de subito o "zaporoga" -<br />

voltando-se para os companheiros e olhando-os fixamente. - Saibam que há muito<br />

tempo vendi minha alma ao maligno.<br />

- E que importancia tem isso? Quem, em sua vida, não teve algum negocio a<br />

resolver com os impuros? Esse é exatamente o caso em que é necessario, como se<br />

diz, folgar desabridamente.<br />

- Eh! companheiros, bem que eu folgaria; mas acontece que o prazo expira<br />

justamente esta noite. Eh! irmãos - disse ele batendo-lhes nas mãos - ajudem-me,<br />

não durmam esta noite, jamais esquecerei, enquanto viver, esse favor.<br />

Como não auxiliar um homem às voltas com tão grande desgraça! Meu avô<br />

declarou imediatamente que preferia que lhe cortassem a propria nuca a deixar o<br />

diabo farejar com seu focinho canino uma alma cristã.<br />

Nossos cossacos talvez houvessem prosseguido o caminho, se a treva não<br />

envolvesse todo o céu como num manto negro e a treva não fosse tão densa nos<br />

campos quanto debaixo de um capote de pelo de carneiro. Na distancia brilhava<br />

apenas uma debil luz e os cavalos, sentindo proxima a estrabaria, aceleravam a<br />

andadura, com as orelhas erguidas e varando com os olhos a escuridão. A luzinha<br />

parecia caminhar ao encontro deles, em frente aos cossacos, surgiu uma pequena<br />

taverna, inclinada para o lado, como uma mulher ao voltar de um alegre batismo.<br />

Nessa epoca, as tavernas não eram o que são hoje. Um homem de bem não<br />

encontrava ai somente lugar para se pôr à vontade e dançar o "hopak", mas<br />

tambem para se deitar quando o vinho lhe pesasse na cabeça e suas pernas<br />

começassem a fazer ziguezagues.<br />

O patio todo estava cheio de carriola de "tchumaks". Nos galpões nas cavalariças,<br />

no vestibulo, todos ressonavam como gatos uns encolhidos, outros arreganhados.<br />

O taverneiro estava sozinho em frente ao lampião fazendo entalhes num bastão<br />

para marcar quantas medidas as cabeças de "tchumaks" haviam esvaziado.<br />

Meu avô, após pedir o terço de um cantaro de aguardente para três, dirigiu-se para<br />

o galpão, onde ele e os companheiros se estiraram lado a lado. Ainda não tivera<br />

tempo para se voltar quando verificou que os companheiros já estavam dormindo a<br />

sono solto. Acordando o terceiro cossaco que se reunira a eles, durante o trajeto,<br />

meu avô lembrou-lhe a promessa feita ao companheiro. O homem levantou-se,<br />

esfregou os olhos e adormeceu novamente. Que fazer, a não ser resignar-se a<br />

montar guarda sozinho?<br />

Para afugentar o sono, meu pai foi examinar todas as carriolas e certificar-se do<br />

que os cavalos estavam fazendo; depois acendeu o cachimbo voltou e sentou-se<br />

outra vez junto aos companheiros.<br />

Tudo estava tão calmo que se poderia ouvir uma mosca voar. Eis que de repente<br />

ele vê qualquer coisa cinzenta mostrar uns chifres por cima de uma carriola que<br />

estava perto; ao mesmo tempo seus olhos começaram a fechar-se, de sorte que ele<br />

se pós a esfregá-los continuamente com os punhos e lavá-los com a aguardente<br />

que restava; mal seus olhos ficavam desanuviados, tudo desaparecia, mas pouco<br />

depois o monstro se apresentava novamente atrás da carriola.<br />

Meu avô arregalou os olhos o mais que pode, mas o maldito sono tudo baralhava<br />

em sua frente. Seus braços ficaram pesados, sua cabeça inclinou-se e dominou-o<br />

tão profundo sono que ele caiu que nem morto.


O avô dormiu por longo tempo; só quando o sol já havia aquecido muito sua<br />

tonsura é que ele se levantou rapidamente. Após se haver espreguiçado duas vezes<br />

e coçado as costas, reparou que há havia menos carriolas que na vespera.<br />

Provavelmente os "tchumaks"haviam partido ao amanhecer. Olhou para onde<br />

estavam os companheiros: o cossaco lá estava e ainda dormina, mas o "zaporoga"<br />

desaparecera. Começou a interrogar as pessoas, mas ninguem sabia de cois<br />

alguma. Somente a "sivitk"do "zaporoga" ficara no lugar onde ele estivera deitado.<br />

Apavorado, meu avô refletiu um instante. Foi ver os cavalos, mas não encontrou<br />

nem o seu, nem o do "zaporoga". "Que significaria isso? Admitamos que a força<br />

maligna se houvesse apoderado do "zaporoga"; mas quem levou os cavalos?"<br />

Depois de refletir muito tempo, o avô concluiu que o diabo viera e, como era longe<br />

o caminho para voltar ao inferno, furtara-lhe o cavalo. Ele estava muito pesaroso<br />

por não haver cumprido a sua palavra de cossaco.<br />

"Nesse caso - pensou - nada há que fazer! Irei a pé! Talvez encontre na estrada<br />

algum almocreve de volta da feira que me queira vender um cavalo."<br />

Quis botar o gorro, mas o proprio gorro desaparecera. Meu finado avô juntou as<br />

mãos de desespero ao se lembrar de que na vespera o trocara pelo do "zaporoga".<br />

E então o impuro tambem o roubara! Não adiantava agora ele procurar em todos os<br />

bolsos. O hetmã havia mesmo de lhe dar presentes!... Ei-lo bem arranjado para<br />

levar a carta à czarina! E meu avô pôs-se então a deblaterar contra o diabo, a tal<br />

ponto que as orelhas lhe deviam ter ficado a arder no recesso do inferno.<br />

Mas as palavras não resolvem os impasses; não adiantou a meu avô coçar a nuca,<br />

não lhe acudiu coisa alguma. Que fazer? Ele recorreu então à inteligencia dos<br />

outros. Reuniu todas as boas criaturas que estavam na taverna, "tchumaks" e<br />

outros viandantes, e contou-lhes sua desdita. Os "tchumaks" ficaram muito tempo<br />

a refletir, com o queixo apoiado no cabo do chicote, depois baixaram a cabeça e<br />

acabaram dizendo que nunca tinham ouvido falar, em todo o mundo cristão, em<br />

alguma carta de hetmã roubada pelo diabo; outros acrescentaram que nada havia a<br />

esperar, quando um diabo ou um moscovita roubava alguma coisa. Só o taverneiro<br />

permanecia quieto em seu canto. O avô dirigiu-se a ele: "Quando um homem<br />

permanece calado é que tem muito engenho." Somente o taverneiro não era muito<br />

prodigo em palavras; e se meu avô não houvesse puxado do bolso cinco escudos,<br />

não lhe arrancaria uma única palavra.<br />

- Vou ensinar-te a maneira pela qual poderás recuperar tua carta - disse o homem<br />

afastando-se um pouco com meu avô.<br />

Foi como se tirasse um peso de cima de meu avô.<br />

- Já vejo em teus olhos que és um cossaco e não uma mulher. Pois bem! ouve:<br />

Pertinho daqui há um caminho que dobra à direita e entra na floresta. Logo que a<br />

noite descer sobre os campos, prepara-te para partir. Na floresta existem ciganas<br />

que somente saem de seus esconderijos para forjar o ferro nas horas da noite em<br />

que somente as feiticeiras passeiam montandas em seus atiçadores. Qual é, de<br />

fato, sua verdadeira profissão? Isso não é contigo. Haverá muita bulha na floresta;<br />

apenas, não te dirijas para o lado onde a ouvires. Chegarás em frente a uma<br />

veredazinha que passa junto a uma arvore queimada pelo raio; segue essa trilha, e<br />

caminha, caminha, caminha... As moitas espinhosas hão de te esfolar; densos<br />

matagais de aveleiras hão de barrar-te o caminho - mas continua a caminhar e<br />

quando chegares junto a um regato, só então é que poderás parar, e verás o que<br />

desejas. Tambem não te esqueças de botar nos bolsos a coisa para qual eles são


feitos... Compreendes, diabo ou homem, todos gostam dele...<br />

Depois de assim falar, o taverneiro retirou-se para seu quarto e não quis dizer mais<br />

uma palavra.<br />

Meu finado avô não era um poltrão. Quando lhe acontecia encontrar um lobo<br />

agarrava-lhe pela cauda; quando abria caminho entre os cossacos, com seus<br />

punhos, todos caiam à sua volta como peras. Contudo, um arrepio percorreu-lhe a<br />

espinha quando entrou na floresta naquela noite escura. Nem uma estrela no céu.<br />

Estava tão escuro e deserto como num subterraneo. Só se ouvia lá em cima, muito<br />

acima da cabeça, o vento frio que passeava pelas copas das arvores, e estas, como<br />

outras tantas cabeças de cossacos bebados, cambaleavam, como se fossem<br />

calaceiros, murmurando com suas folhagens arengas desconexas. Foi quando ele<br />

sentiu o frio aumentar e lamentou não ter trazido o seu capote de pelo de carneiro<br />

que , subitamente, a floresta ficou iluminada como pela aurora, e ao mesmo tempo<br />

um fragor semelhante ao de cem martelos retumbou em seus ouvidos com tanta<br />

força que a cabeça lhe parecia estalar.<br />

Meu avô depressa viu em sua frente uma vereda que serpenteava entre as moitas;<br />

a arvore consumida pelo raio tambem apareceu, bem como os arbustos espinhosos.<br />

Tudo era exatamente como lhe haviam dito. Não! O taverneiro não mentira. Mas<br />

não era nada facil, nem divertido, abrir o caminho através das sarças. Aos poucos<br />

foi saindo desse lugar e chegou a local mais desolado onde, tudo quanto pôde<br />

notar, as arvores tornavam-se mais raras, mas ao mesmo tempo tão grandes que<br />

ele nunca encontrara iguais, nem mesmo do outro lado da Polonia.<br />

Subitamente, entre as arvores, deparou-se-lhe um regato que brilhava com<br />

reflexos de aço, de um negrume azulado. O avô ficou muito tempo na margem,<br />

olhando para todos os lados. No lado oposto resplandecia um fogo que ora<br />

reavivar-se, refletindo sua chama ao regato que estremecia sob ela como um<br />

polonês subjugado por um cossaco.<br />

Afinal, surgiu a pontezinha, Ah tem graça! Poderia acaso atravesá-la alguma coisa<br />

que não fosse a carruagem do diabo?<br />

Não obstante, meu avô pisou na ponte animosamente e em menos tempo do que<br />

um tomador de rapé precisa para retirar uma pitada de tabaco e levá-la ao nariz, já<br />

se encontrava do outro lado. Só então foi que ele pôde verificar que ao redor do<br />

fogo havia homens de caratonhas tão atraentes, que em qualquer outra ocasião ele<br />

daria sabe Deus o que para evitar encontrá-los. Mas a situação não comportava<br />

recuos e era preciso entabular conversação.<br />

Meu avô inclinou-se até quase a cintura e disse:<br />

- Deus seja convosco, boa gente!<br />

Ninguém respondeu sequer com um aceno de cabeça. Conservando o mesmo<br />

mutismo, derramaram qualquer coisa no fogo. Ao reparar que a havia um lugar<br />

vago, meu avô ocupou-o sem maior cerimonia. Ficaram muito tempo assim sem<br />

trocar palavra. Meu avô já estava começando a se entediar. Remexeu no bolso,<br />

tirou o cachimbo e tranquilamente, examinou as fisionomias dos companheiros.<br />

Ninguem lhe prestou atenção.<br />

- Poderiam ter a bondade?... Como direi... de... (meu avô era educado e sabia<br />

como dizer as coisas; perante o proprio czar não teria ficado embaraçado) de... de<br />

permetir que eu esteja à vontade sem ofendê-los com isso? Tenho muito fumo, um<br />

cachimbo, mas nada para acendê-lo.


Seu discurso ainda não obteve a menor resposta. Apenas uma caratonha adiantoulhe<br />

um tição até o rosto, de maneira tal que, se meu avô não afastasse a cabeça,<br />

teria podido despedir-se para sempre de um olho.<br />

Vendo, afinal, que estava perdendo inutimente seu tempo, decidiu-se ele -<br />

escutasse ou não aquela gente impura - a contar seu caso. As caratonhas<br />

aguçaram então os ouvidos e adiantaram as garras. Meu avô compreendeu-as:<br />

reunindo num só punhado todo o dinheiro que trouxera, atirou-o ao centro, num<br />

movimento circular, como se eles fossem cães. Mal atirou o dinheiro, tudo<br />

turbilhonou à sua frente; a terra tremeu, e como aconteceu isso? Nunca ele pode<br />

explicá-lo, mas desceu até o inferno.<br />

- Oh! lá! lá! paizinho - exclamou olhando para todos os lados.<br />

Que monstros viu então! eram só as caratonhas e mais caratonhas, como se diz.<br />

Havia lá feiticeiras em quantidade não inferior à da neve que cai pelo Natal, todas<br />

enfeitadas, pintadas; pareciam raparigas na feira; e todas, todas que haviam,<br />

dançavam como embriagadas, uma sarabanda qualquer do diabo! E que poeira<br />

levantavam! Um cristão tremeria só ao ver os saltos que eles davam.<br />

Meu avô, apesar de todo o seu pavor, não pode deixar de rir, ao ver que de que<br />

maneira os diabos com seus focinhos de cão e sua compridas pernas de alemães,<br />

sacudindo o rabo, viravam ao redor das feiticeiras como rapazes junto às moças,<br />

enquanto os músicos, batendo nas bochechas com os punhos como se fossem<br />

pandeiros, faziam seus narizes assobiarem como flautas.<br />

Mal avistaram eles meu avô, precipitaram-se todos em bando ao seu encontro.<br />

Focinhos de porco, de cão, de bode, de betarda, de cavalo, todos estendiam o<br />

pescoço e procuravam beijá-lo. Meu avô sentiu-se tão repugnado que cuspiu;<br />

afinal, agarraram-no e o fizeram sentar em frente a uma mesa tão comprida que<br />

iria perfeitamente de Konotop a Baturin.<br />

"Muito bem! Ainda podia ser pior!" pensou o avô ao avistar em cima da mesa carne<br />

de porco, salsichão, cebola e repolho misturados, e muitas outras iguarias.<br />

"Bem se vê que esse crapula de Diabo não observa o jejum da quaresma"<br />

Preciso dizer-lhe que meu avô nunca perdia a oportunidade, quando possivel, de<br />

mastigar qualquer coisa; o finado tinha bom apetite; por isso, sem perder tempo,<br />

puxou para si o prato onde estavam o toucinho e o presunto, apanhou um garfo<br />

quase tão grande quanto o forcado com que os mujiques espetam o feno, fisgou o<br />

pedaço maior, fixou com a mão uma codea de pão debaixo do queixo e, no instante<br />

em que se dispunha a engolir o bocado, mandou-o, involuntariamente, para outra<br />

boca, e junto a seus ouvidos ouviu uma caratonha mastigar com um ruido de<br />

queixo que chegava às duas pontas da mesa.<br />

Meu avô não disse palavra; espetou outro pedaço; já estava com ele entre os<br />

lábios, mas novamente a garfada foi para outra boca. O mesmo acontece na<br />

terceira vez. A colera dominou meu avô; esquecendo o medo e as garras entre as<br />

quais se encontrava, avançou ameaçador para as feiticeiras.<br />

- Mas como! raça de Herodes! estão pensando que vão continuar zombando de<br />

mim? Que eu me torne católico se não lhes virar pelo avesso as carrancas, caso<br />

não resistituam imediatamente meu gorro de cossaco!<br />

Mal acabou de proferir essas palavras, todos os monstros mostraram os dentes e


desandaram numa tal gargalhada que o coração de meu avô se gelou.<br />

-Está combinado - miou uma das feiticeiras que meu avô julgou ser a presidente,<br />

porque sua caratonha ainda era mais feia que a das outras: - Nós te restiruiremos<br />

o gorro... sob condição de jogares conosco três partidas seguidas de "durak".<br />

- Que fazer! Um cossaco jogar "durak" com mulheres! Meu avô a principio<br />

protestou, mas teve que ceder. Trouxeram cartas tão sebentas quanto aquelas com<br />

as quais a filha de um pope procura adivinhar qual será o noivo.<br />

- Mas ouve - ladrou pela segunda vez a feiticeira - se ganhares, uma vez que seja,<br />

terás o gorro, porem se ficares "durak" todas as três vezes, não te deves queixar,<br />

nunca mais verá teu gorro, nem talvez o mundo!<br />

- Dá mesmo assim as cartas, feiticeira, aconteça o que acontecer.<br />

As cartas foram dadas; meu avô apanhou seu jogo - nem valia a pena olhar; pois<br />

se não recebera, por pilheria que fosse, um trunfo sequer! Entre os outros naipes, a<br />

carta mais forte era um dez; nenhuma figura, enquanto a feiticeira jogava sempre<br />

as cartas altas. Meu avô teve que ficar "durak", e mal terminara a primeira partida,<br />

de todos os lados as caratonhas começaram a ladrar, a rinchar, a grunhir: "Durak",<br />

"durak", "durak!"<br />

- Que a pele de vocês arrebente, raça do diabo - exclamou meu avô tapando os<br />

ouvidos.<br />

"Vamos, pensou ele, a feiticeira trapaceou ao embaralhar as cartas; agora é minha<br />

vez de dar."<br />

Deu, voltou a carta do trunfo, olhou seu jogo que era bom; tambem tinha trunfos;<br />

sem mais refletir, bateu com esse trunfos nos bigodes dos reis.<br />

- Eh! eh! não está jogando como cossaco? Com que estás cobrindo minhas cartas,<br />

camarada?<br />

- Como, com que? com trunfos.<br />

- Talvez em tua terra isso seja trunfo, mas aqui não.<br />

Meu avô olhou as cartas e, de fato, eram de naipe comum.<br />

Que velhacaria! - teve de ficar "durak" pela segunda vez e a impuras puseram-se<br />

novamente a gritar ensurdecedoramente: "Durak"!, "durak"!, "durak"!<br />

A mesa tremia e cartas pulavam.<br />

Meu avô cada vez mais se exaltava. Deu para a terceira partida. Como na anterior,<br />

as coisas começaram muito bem. A feiticeira exibiu cinco cartas.<br />

Meu avô cobriu-as e apanhou, no baralho, toda uma mão de trunfos.<br />

- Trunfo! - exclamou ele, batendo com a carta na mesa a ponto de voltá-la. A<br />

feiticeira, sem dizer palavra, cobriu-a com um simples oito.<br />

- E com que estas cobrindo, velha diaba?<br />

A feiticeira levantou a carta e meu avô viu que a dele não passava de um simples


seis.<br />

- Estão vendo essa trapaça infernal? - disse meu avô ; e, despeitado, deu um soco<br />

fortissimo na mesa.<br />

Felizmente a feiticeira só tinha cartas desirmanadas, enquanto que meu avô tinha<br />

cartas que faziam par. Mostrou-as e, de novo, apanhou as cartas no baralho; mas<br />

todas eram tão ruins que lhe cairam os braços, e aquelas eram as ultimas. Com um<br />

gesto de indiferença, deixou cair sobre a mesa um simples seis. A feiticeira<br />

apanhou-o.<br />

- Ah! Tem graça, que significa isso! Alguma coisa está sendo tramada.<br />

Meu avô pôs então disfarçadmente as cartas em cima da mesa e marcou-as com o<br />

sinal da cruz. E de repente em suas mãos os ás, o valete de trunfo; o que ele<br />

pensara ser um seis, era a dama do trunfo.<br />

- Ah! Que imbecil fui eu! Queres o rei do trunfo? Ah, ah! ah! estás apanhando-o.<br />

Ah! sua gata! e o ás, tambem o queres? ás! valete!<br />

A trovoada ribombou pelo inferno. A feiticeira debatia-se numa convulsão, e não se<br />

sabe de onde, bum! o gorro caiu na cara de meu avô.<br />

- Não, isso ainda não me basta - bradou meu avô que recuperara a coragem e<br />

punha o gorro na cabeça - se, imediatamente, meu valente cavalo não se<br />

apresentar aqui em minha frente, seja eu estendido morto pelo raio, neste lugar<br />

impuro, caso não os esbofeteie a todos com a cruz.<br />

Já erguia o braço, quando de repente estalou diante dele o esqueleto de seu cavalo.<br />

- Eis teu cavalo.<br />

O pobre homem chorou como uma criança ao olhar o esqueleto. Sentia falta de seu<br />

velho companheiro.<br />

- Forneça-me então qualquer outro cavalo para sair de seu antro.<br />

O diabo fez estalar o chicote: um cavalo de fogo surgiu debaixo de meu avô e<br />

levou-o como um passaro para as nuvens. Entretanto, dominou-o o medo no meio<br />

do trajeto quando o cavalo, não atendendo a seus gritos, não obedecendo às<br />

redeas, voou sobre os abismos e pantanais. Que sitios não viu ele? Tremia-se só de<br />

ouvi-lo contar. Quando ele se lembrava de olhar para baixo, avistava um abismo a<br />

pique, e aquele animal de Satanaz, sem se inquietar, marchava diretamente sobre<br />

ele.<br />

Meu avô fazia todos os esforços para se sustentar, mas uma vez não conseguiu. Foi<br />

atirado num precipicio e seu corpo bateu com tanta força no chão que ele já<br />

pensava estar morrendo, ou pelo menos, para falar a verdade, perdeu a noção do<br />

que estava passando; quando recuperou os sentidos e olhou em torno, já era dia e<br />

ele reconheceu os sitios que lhe eram familiares: estava estendido no telhado da<br />

sua propria "kata".<br />

Desceu e persignou-se.<br />

- Que feitiçaria! que coisas estranhas podem acontecer aos homens!<br />

Olhou para as mãos, estavam ensanguetadas. Mirou-se no tonel cheio de agua e<br />

viu seu rosto também estava ensanguentado.


Depois de se lavar muito bem para não assustar os seus, entrou mansamente na<br />

"kata", e viu seus filhos andando de costas e mostrando-lhe com o dedo a mãe<br />

deles, dizendo:<br />

- Olha, olha, a mãe está saltando como uma louca.<br />

De fato, sua mulher estava sentada, adormecida em frente a seu torno de fiar, com<br />

a roca na mão e, em seu torno, estremecia sob o banco.<br />

Meu avô tomou-lhe docemente a mão e acordou-a.<br />

- Bom dia, mulher! Estás passando bem?<br />

Ela, com os olhos arregalados, olhou-o longamente, e por fim, reconhecendo o<br />

marido, contou-lhe que, em sonhos, vira a estufa andar pela "kata" afugentando<br />

com a pá as caçarolas, as tinas e o diabo sabe mais o quê.<br />

- Vamos - disse meu avô - tu só viste as diabruras em sono e eu acabo de vê-las<br />

realmente. Muito convicto estou de que será preciso mandar exorcizar nossa<br />

"kata". Quanto a mim, não tenho mais um minuto a perder.<br />

Depois de rapido repouso, meu avô apanhou um cavalo e, desta vez, sem parar dia<br />

e noite, chegou a seu destino e entregou a carta à czarina.<br />

Em Petersburgo meu avô viu tantas maravilhas que durante muito tempo não lhe<br />

faltou o que contar: como o conduziram a um palacio tão alto que nem dez "katas"<br />

colocadas umas sobre as outras o alcançariam; como atravessou um quarto sem<br />

encontrar ninguém, outro, ninguém, um terceiro ainda sem ninguém, ninguém<br />

ainda no quarto e somente no quinto é que olhou e viu a pessoa sentada com uma<br />

coroa de ouro, com sua "svitk" cinzenta, nova, de botas vermelhas a comer<br />

"galucki" de ouro; como a czarina mandou que enchessem de cedulas azuis o gorro<br />

de meu avô; como... Mas seria um nunca mais acabar!<br />

Quantos às suas rixas com o diabo, meu avô esqueceu-se mesmo de pensar nelas,<br />

e se acontecia alguem lembrá-las, meu avô conservava-se calado como se o caso<br />

não fosse com ele.<br />

Para castigá-lo, provavelmente, por não haver, como dissera, feito exorcizar sua<br />

"kata", todos os anos, exatamente no aniversario da aventura, acontecia à sua<br />

mulher o fato extraordinario de dançar involuntariamente. Não havia meio de ela<br />

evitá-lo. Estivesse cuidando do que fosse, suas pernas começavam a se mover e,<br />

Deus que me perdoe, acabavam executando as mais extravagantes cabriolas.<br />

Texto eletrônico: http://almanaque.folha.uol.com.br/leituras_12ago00.htm. Acessado<br />

em 26/04/2006, às 11h.<br />

Vamos conhecer igualmente um conto de uma escritora brasileira chamada Clarice<br />

Lispector, que mais tarde você vai conhecer melhor. O conto chama Uma galinha.<br />

Uma Galinha


Clarice Lispector<br />

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da<br />

manhã.<br />

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para<br />

ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua<br />

intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se<br />

adivinharia nela um anseio.<br />

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e,<br />

em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou —<br />

o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de<br />

onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno<br />

deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e<br />

consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da<br />

dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu<br />

radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos<br />

cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com<br />

urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado<br />

foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais<br />

selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar,<br />

sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E<br />

por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.<br />

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às<br />

vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava<br />

outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia<br />

tão livre.<br />

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que<br />

havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que<br />

não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o<br />

galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que<br />

morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.<br />

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a.<br />

Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa<br />

através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta,<br />

sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu.<br />

De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse<br />

prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma<br />

velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando<br />

e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e<br />

abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a<br />

menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu<br />

desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:<br />

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso<br />

bem!<br />

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente.<br />

Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste,<br />

não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O<br />

pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um<br />

pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai


afinal decidiu-se com certa brusquidão:<br />

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!<br />

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.<br />

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a<br />

família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a<br />

corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a<br />

obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos,<br />

menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando<br />

suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.<br />

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se<br />

de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o<br />

corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena<br />

cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já<br />

mecanizado.<br />

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se<br />

recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos<br />

enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar,<br />

ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a<br />

expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à<br />

luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada<br />

no começo dos séculos.<br />

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.<br />

Texto extraído do livro “Laços de Família”, Editora Rocco — Rio de Janeiro, 1998,<br />

pág. 30. Selecionado por Ítalo Moriconi, figura na publicação “Os Cem Melhores<br />

Contos Brasileiros do Século”.<br />

Texto eletrônico: http://www.releituras.com/clispector_galinha.asp. Acessado em<br />

26/04/2006, às 11h.<br />

O que você encontrou neste conto chamada Uma galinha?<br />

Uma estrutura concentrada<br />

Ações externas<br />

A fuga da galinha como se ela tivesse desejo<br />

A superioridade do ser humano sobre os animais<br />

A maternidade como valor (o ovo)


A galinha como animal de estimação<br />

A humanização da galinha<br />

O destino final de todas as galinhas<br />

Era um tema do cotidiano. Mas a escritora Clarice Lispector deu um caráter poético a<br />

um simples fato cotidiano.<br />

Acho que agora estamos prontos para retomar Machado de Assis e conhecer dois contos<br />

dele. Um deles é muito interessante, porque ele transforma uma agulha e uma linha em<br />

personagens para fazer uma crítica ao século XIX.<br />

Um apólogo<br />

Um Apólogo, de Machado de Assis<br />

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:<br />

— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada,<br />

para fingir que vale alguma coisa neste mundo?<br />

— Deixe-me, senhora.<br />

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está<br />

com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me<br />

der na cabeça.<br />

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha.<br />

Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual<br />

tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a<br />

dos outros.<br />

— Mas você é orgulhosa.<br />

— Decerto que sou.<br />

— Mas por quê?<br />

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama,<br />

quem é que os cose, senão eu?<br />

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora<br />

que quem os cose sou eu, e muito eu?<br />

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um<br />

pedaço ao outro, dou feição aos babados...


— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante,<br />

puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e<br />

mando...<br />

— Também os batedores vão adiante do imperador.<br />

— Você imperador?<br />

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel<br />

subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai<br />

fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo,<br />

ajunto...<br />

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa.<br />

Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa,<br />

que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela.<br />

Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da<br />

linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam<br />

andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das<br />

sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de<br />

Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:<br />

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não<br />

repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é<br />

que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo<br />

e acima...<br />

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela<br />

agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem<br />

sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha,<br />

vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi<br />

andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia<br />

mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a<br />

costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda<br />

nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou<br />

esperando o baile.<br />

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a<br />

ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para<br />

dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da<br />

bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou<br />

dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da<br />

agulha, perguntou-lhe:<br />

— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da<br />

baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que<br />

vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para<br />

a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?<br />

Vamos, diga lá.<br />

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça<br />

grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: —<br />

Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é<br />

que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura.<br />

Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me<br />

espetam, fico.


Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse,<br />

abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a<br />

muita linha ordinária!<br />

Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0037-01629.html.<br />

Acessado em 27/04/2006, às 11h.<br />

Se fosse fazer uma crítica ao Brasil do século XXI que personagens inanimados<br />

você escolheria? Poderia ser, por exemplo, uma máquina de escrever, um<br />

computador...<br />

Vamos ler agora um conto memorialístico de Machado de Assis. Chama-se Missa do<br />

Galo. É um conto muito interessante, pois trabalha com as memórias de um velho e de<br />

uma lembrança dele, quando ainda era jovem, e sua relação com uma mulher mais<br />

velha. Machado de Assis coloca nesse conto o que também elemento importante em<br />

seus romances: a ambigüidade feminina. É como se ele estivesse sempre perguntando: o<br />

que pensam e o que desejam as mulheres?<br />

Missa do Galo, de Machado de Assis<br />

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora,<br />

há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de<br />

Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo,<br />

preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.<br />

A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses,<br />

que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas<br />

primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheramme<br />

bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro,<br />

meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela<br />

casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas<br />

relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a<br />

mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas<br />

da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa<br />

dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo<br />

dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse<br />

consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas<br />

riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na<br />

manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um


eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora,<br />

separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana.<br />

Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça;<br />

mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que<br />

era muito direito.<br />

Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão<br />

facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade,<br />

era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes<br />

lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para<br />

maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus<br />

me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O<br />

próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que<br />

chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém,<br />

perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse<br />

amar.<br />

Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de<br />

1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas<br />

fiquei até o Natal para ver “a missa do galo na corte”. A família<br />

recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente,<br />

vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia<br />

sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava<br />

com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.<br />

— Mas, sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? —<br />

perguntou-me a mãe de Conceição.<br />

— Leio, D. Inácia.<br />

Tinha comigo um romance, os Três mosqueteiros, velha tradução<br />

creio do Jornal do Commercio. Sentei-me à mesa que havia no<br />

centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a<br />

casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de<br />

D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava<br />

completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário<br />

do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze<br />

horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um<br />

pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram<br />

uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar;<br />

levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto<br />

de Conceição.<br />

— Ainda não foi? perguntou ela.<br />

— Não fui, parece que ainda não é meia-noite.<br />

— Que paciência!<br />

Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova.<br />

Vestia um roupão branco, mal-apanhado na cintura. Sendo<br />

magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o<br />

meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira<br />

que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe<br />

perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho,<br />

respondeu com presteza:


— Não! qual! Acordei por acordar.<br />

Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de<br />

pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado<br />

no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em<br />

outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não<br />

dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não<br />

afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.<br />

— Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.<br />

— Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho<br />

dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro<br />

mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.<br />

— Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu<br />

logo.<br />

— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos<br />

Mosqueteiros.<br />

— Justamente: é muito bonito.<br />

— Gosta de romances?<br />

— Gosto.<br />

— Já leu a Moreninha?<br />

— Do dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.<br />

— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de<br />

tempo. Que romances é que você tem lido?<br />

Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me<br />

com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre<br />

as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em<br />

quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando<br />

acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns<br />

segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e<br />

sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da<br />

cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.<br />

— Talvez esteja aborrecida, pensei eu.<br />

E logo alto:<br />

— D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...<br />

— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e<br />

meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir<br />

de dia?<br />

— Já tenho feito isso.


— Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não<br />

posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas<br />

também estou ficando velha.<br />

— Que velha o quê, D. Conceição?<br />

Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha<br />

os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém,<br />

ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu<br />

alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do<br />

marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma<br />

impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no<br />

andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me<br />

pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes,<br />

examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de<br />

algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a<br />

mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao<br />

espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela<br />

sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na corte, e não<br />

queria perdê-la.<br />

— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.<br />

— Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente<br />

também. Olhe, a semana santa na corte é mais bonita que na<br />

roça. S. João não digo, nem Santo Antônio...<br />

Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no<br />

mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas.<br />

Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu<br />

vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que<br />

se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto<br />

também não fosse comum; naquele momento, porém, a<br />

impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que<br />

apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A<br />

presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro.<br />

Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e<br />

de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os<br />

assuntos, sem saber por quê, variando deles ou tornando aos<br />

primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que<br />

luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram<br />

bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho<br />

curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava<br />

um pouco a voz, ela reprimia-me:<br />

— Mais baixo! mamãe pode acordar.<br />

E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto<br />

ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto<br />

para ser ouvido: cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque<br />

falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa<br />

um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar.<br />

Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé.<br />

Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o<br />

tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e<br />

cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse<br />

baixinho:


— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse<br />

agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.<br />

— Eu também sou assim.<br />

— O quê? perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor.<br />

Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a<br />

palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve;<br />

éramos três sonos leves.<br />

— Há ocasiões em que sou como mamãe; acordando, custa-me<br />

dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela,<br />

passeio, torno a deitar-me, e nada.<br />

— Foi o que lhe aconteceu hoje.<br />

— Não, não, atalhou ela.<br />

Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a<br />

entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os<br />

joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as<br />

pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que<br />

só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A<br />

conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu<br />

desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma<br />

narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou<br />

outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em<br />

quando, reprimia-me:<br />

— Mais baixo, mais baixo...<br />

Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que<br />

a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se<br />

logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para<br />

ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido<br />

na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se<br />

apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me<br />

aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me.<br />

Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela,<br />

que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de<br />

pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me;<br />

não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a<br />

estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu,<br />

como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentarse<br />

na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo<br />

espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras<br />

que pendiam da parede.<br />

— Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para<br />

comprar outros.<br />

Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio<br />

deste homem. Um representava “ Cleópatra”; não me recordo o<br />

assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele<br />

tempo não me pareciam feios.


— São bonitos, disse eu.<br />

— Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu<br />

preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para<br />

sala de rapaz ou de barbeiro.<br />

— De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.<br />

— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de<br />

moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista<br />

deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho<br />

próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim<br />

esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma<br />

Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas<br />

é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no<br />

meu oratório.<br />

A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia<br />

ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas<br />

logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com<br />

graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia<br />

esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina<br />

e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de<br />

passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem<br />

interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos<br />

negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser<br />

muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas<br />

eu sabia que casara aos vinte e sete anos.<br />

Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não<br />

saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e<br />

entrou a olhar à toa para as paredes.<br />

— Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se<br />

falasse consigo.<br />

Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono<br />

magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os<br />

sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço<br />

para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de<br />

respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando<br />

não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A<br />

conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.<br />

Chegamos a ficar por algum tempo — não posso dizer quanto —<br />

inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de<br />

camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de<br />

sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição<br />

parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na<br />

janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: “Missa do galo!<br />

missa do galo!”<br />

— Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça;<br />

você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá,<br />

que hão de ser horas; adeus.


— Já serão horas? perguntei.<br />

— Naturalmente.<br />

— Missa do galo! repetiram de fora, batendo.<br />

— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até<br />

amanhã.<br />

E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor<br />

dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que<br />

esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura<br />

de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre;<br />

fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte,<br />

ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja<br />

sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a<br />

como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a<br />

conversação da véspera. Pelo ano-bom fui para Mangaratiba.<br />

Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha<br />

morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas<br />

nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o<br />

escrevente juramentado do marido.<br />

Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0037-01650.html.<br />

Acessado em 27/04/2006, às 11h.<br />

Você sabia que pode ler o mais famoso conto de Machado de Assis, O Alienista, em<br />

<strong>Libras</strong>?<br />

Machado também escreveu poemas. Vamos conhecer dois deles: “Círculo Vicioso” e<br />

“À Carolina” (este último escrito para sua esposa, quando já falecida).<br />

A CAROLINA<br />

Machado de Assis<br />

QUERIDA, ao pé do leito derradeiro<br />

Em que descansas dessa longa vida,<br />

Aqui venho e virei, pobre querida,<br />

Trazer-te o coração do companheiro.<br />

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro<br />

Que, a despeito de toda a humana lida,<br />

Fez a nossa existência apetecida<br />

E num recanto pôs um mundo inteiro.


Trago-te flores, - restos arrancados<br />

Da terra que nos viu passar unidos<br />

E ora mortos nos deixa e separados.<br />

Que eu, se tenho nos olhos malferidos<br />

Pensamentos de vida formulados,<br />

São pensamentos idos e vividos.<br />

Poesias dispersas de Machado de Assis. Texto eletrônico:<br />

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0043-01801.html. Acessado em<br />

27/04/2006, às 11h.<br />

CÍRCULO VICIOSO<br />

Machado de Assis<br />

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:<br />

"Quem me dera que fosse aquela loura estrela,<br />

Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"<br />

Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:<br />

"Pudesse eu copiar o transparente lume,<br />

Que, da grega coluna à gótica janela,<br />

Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela"<br />

Mas a lua, fitando o sol, com azedume:<br />

"Mísera! tivesse eu aquela enorme, àquela<br />

Claridade imortal, que toda a luz resume!"<br />

Mas o sol, inclinando a rútila capela:<br />

"Pesa-me esta brilhante auréola de nume...<br />

Enfara-me esta azul e desmedida umbela...<br />

Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"<br />

Machado de Assis também escreveu crônicas. Uma delas é muito interessante, porque<br />

ele fez umas normas para as pessoas que andavam de bonde, um dos meios de<br />

transportes mais modernos no final de século XIX. Veja a contemporaneidade dela.<br />

Hoje ela poderia se chamar Como andar de ônibus.<br />

OCORREU-ME compor umas certas regras para uso dos que<br />

freqüentam bonds. O desenvolvimento que tem sido entre nós esse<br />

meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não<br />

seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui<br />

mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem<br />

nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.


ART. I — Dos encatarroados<br />

Os encatarroados podem entrar nos bonds com a condição de não<br />

tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro,<br />

quatro.<br />

Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os<br />

encatarroados têm dois alvitres: — ou irem a pé, que é bom exercício,<br />

ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os<br />

carregue.<br />

Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem<br />

escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bond,<br />

salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc.,<br />

etc.<br />

ART .II — Da posição das pernas<br />

As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os<br />

passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas<br />

abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los<br />

ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma<br />

pequena gratificação.<br />

ART. III — Da leitura dos jornais<br />

Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o<br />

cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os<br />

chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.<br />

ART. IV — Dos quebra-queixos<br />

É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: — a<br />

primeira quando não for ninguém no bond, e a segunda ao descer.<br />

ART. V — Dos amoladores<br />

Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios<br />

íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do<br />

passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e<br />

resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a<br />

narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele<br />

prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No<br />

caso aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira<br />

a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando<br />

muito nas circunstancias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e<br />

repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não<br />

cair em outra.<br />

ART. VI — Dos perdigotos<br />

Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo<br />

nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco.<br />

Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao<br />

pé do condutor, e a cara para a rua.


ART. VII — Das conversas<br />

Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma<br />

coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte<br />

palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se<br />

houver senhoras.<br />

ART. VIII — Das pessoas com morrinha<br />

As pessoas que tiverem morrinha, podem participar dos bonds<br />

indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para<br />

outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque<br />

então podem vê-los mesmo da janela.<br />

ART. IX — Da passagem às senhoras<br />

Quando alguma senhora entrar o passageiro da ponta deve levantarse<br />

e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado<br />

, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.<br />

ART.X — Do pagamento<br />

Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o<br />

condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o<br />

dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar<br />

por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro<br />

mais depressa.<br />

Balas de Estado, de Machado de Assis. Texto eletrônico:<br />

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-01160.html. Acessado em<br />

27/04/2006, às 11h.<br />

Depois de conhecer fragmentos dos vários gêneros literários por que o nosso<br />

principal escritor incursionou, podemos pensar um pouco sobre a poesia do final<br />

do século XIX.

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