Marion e outros - PePSIC
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O CLUBE DA LUTA: NARCISISMO, IDENTIFICAÇÃO<br />
E PSICOLOGIA DAS MASSAS 1<br />
<strong>Marion</strong> Minerbo * & Carmen Soto de Bakker Silveira, Claudia Cristina<br />
Pereira Gomes Antila, Eloisa Helena Rubello Valler Celeri, Ethel Penna,<br />
Fábia Badotti Garcia Herrera, Maria Regina Viegas de Almeida, Remo<br />
Rotella Junior<br />
1 Este texto é produto do seminário<br />
“Narcisismo e Identificação”, que aconteceu<br />
no Instituto da SBPSP no segundo<br />
semestre de 2005. Trata-se de uma síntese<br />
do debate sobre o filme O Clube da<br />
Luta, com o qual encerramos o seminário.<br />
A proposta foi interpretá-lo à luz<br />
dos textos estudados durante o curso.<br />
Devo a Luís Claudio Figueiredo a sugestão<br />
deste filme. Agradeço também por<br />
sua leitura dedicada e comentários preciosos.<br />
* Membro Efetivo e Analista Didata da<br />
SBPSP. Todos os co-autores são analistas<br />
em formação no Instituto de Psicanálise<br />
da SBPSP.<br />
RESUMO<br />
Discute-se inicialmente a diferença entre interpretação psicanalítica e exercício<br />
de psicanálise aplicada. Este texto é um exemplo de psicanálise aplicada, pois<br />
utilizamos o filme O Clube da Luta para ilustrar os conceitos freudianos de identificação<br />
e narcisismo e fenômenos de massa estudados durante um seminário no Instituto. O<br />
objetivo do exercício é reconhecê-los em sua forma viva e encarnada no “material clínico”<br />
do filme, e ao mesmo tempo usá-los na compreensão do filme. Na primeira parte, o filme<br />
narra a psicotização do personagem, enquanto a segunda mostra os caminhos de sua<br />
lenta recuperação, isto é, da possibilidade de efetuar a discriminação e o luto pela perda<br />
da fusão com o ego ideal.<br />
Palavras-chave: Narcisismo. Identificação. Fenômenos de massa. Psicanálise aplicada.<br />
Introdução<br />
É importante, para o que se segue, distinguir<br />
entre um exercício de psicanálise aplicada e<br />
uma interpretação psicanalítica. Cada um tem a<br />
sua hora e o seu lugar.<br />
Este é um texto de psicanálise aplicada.<br />
Isto significa que um filme foi usado, durante o<br />
seminário, para ilustrar, com um bom exemplo, a<br />
teoria; para praticar e firmar a compreensão dos<br />
conceitos estudados — como se fosse um novo<br />
conceito de português, ou de matemática; para<br />
reconhecê-los em sua forma viva e encarnada<br />
no “material clínico” do filme. A teoria nos é dada<br />
a priori; pode, então, ser aplicada ao filme. E<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006. 149
<strong>Marion</strong> Minerbo & Carmen S. de B. Silveira, Claudia Cristina P. G. Antila, Eloisa Helena R. V. Celeri,<br />
Ethel Penna, Fábia B. G. Herrera, Maria Regina V. de Almeida, Remo Rotella Junior<br />
isto em dois sentidos: como bússola, orientando<br />
nosso olhar e escuta, sensibilizando-os<br />
para determinados aspectos, antes<br />
invisíveis, ou sem sentido, do que<br />
estamos vendo e ouvindo. E como uma<br />
espécie de “dicionário” que nos permite<br />
fazer uma aproximação, ou uma versão,<br />
da linguagem cinematográfica em linguagem<br />
psicanalítica. O importante é que a<br />
teoria entra e sai intacta (ou quase intacta,<br />
pois alguma transformação sempre é inevitável<br />
quando algo é usado) deste exercício.<br />
Se o exercício for bem feito, o filme<br />
pode se tornar bem interessante graças a<br />
este recurso. E a teoria se mostra absolutamente<br />
viva. No caso, a teoria sobre o<br />
narcisismo, sobre a identificação, e sobre<br />
os fenômenos de massa. Diante de um<br />
paciente espera-se que um psicanalista<br />
não faça qualquer aplicação da teoria,<br />
mas sim uma interpretação. A teoria será<br />
usada para orientar sua escuta, e também<br />
brotará, redescoberta, da interpretação.<br />
Já uma interpretação (de um filme,<br />
do discurso do paciente) é outra coisa.<br />
Não partimos de uma teoria pronta. Munidos<br />
de um certo olhar, de uma certa<br />
escuta, ou, mais precisamente, adotando<br />
uma certa postura diante do objeto, procuraremos<br />
criar-achar uma “teoria do<br />
filme”. Não procuramos a tese central,<br />
manifesta, do filme (o filme é sobre x).<br />
Ao contrário, prestamos atenção a cenas<br />
que nos parecem destoar, de alguma<br />
maneira, do senso comum, que não parecem<br />
se encaixar em teses fáceis, ou em<br />
teorias já prontas. O resultado é algo que<br />
nos surpreende, já que não estava dado<br />
150<br />
anteriormente em lugar algum. Exige trabalho,<br />
um trabalho de imaginação e de<br />
criação, e não de tradução/ aplicação.<br />
Vejamos. Em certo momento do<br />
filme funda-se o Clube da Luta, em que o<br />
objetivo dos sócios não é bater e vencer a<br />
luta. É apanhar e perder. O exercício<br />
parte de uma teoria pronta, que podemos<br />
facilmente reconhecer: a dor física é uma<br />
defesa, serve para estancar outra dor<br />
pior, a dor psíquica. Não estranhamos<br />
mais a cena do filme. Ela foi encaixada no<br />
já sabido. Entendemos.<br />
Já a postura interpretativa, ao contrário,<br />
toma em consideração, potencializa<br />
a sensação de total estranheza que experimentamos<br />
diante da cena. Além disso,<br />
apanhar nos repugna, e nos repugna porque<br />
não faz sentido em nossa cultura —<br />
embora seja natural para os personagens.<br />
Nossa estranheza e repugnância são um<br />
ponto de partida possível para a interpretação.<br />
E então imaginamos que os personagens<br />
têm razão: apanhar pode ser a<br />
única maneira, no mundo contemporâneo,<br />
de não ser cooptado pelo sistema, de<br />
manter um mínimo de autonomia com<br />
relação ao objeto primário. Mas, ao mesmo<br />
tempo, cria-se um sistema de franquias<br />
mediante o qual o Clube da Luta passa<br />
a ser aberto por todo o país. O movimento<br />
de autonomia foi cooptado pelo sistema<br />
capitalista. Enfim, esta compreensão, que<br />
fica em aberto, já nos exige e sugere um<br />
movimento interpretativo que vai além de<br />
qualquer teoria já dada.<br />
Feita essa distinção, passemos à<br />
exposição de nosso exercício. Antes, po-<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006.
ém, uma palavra sobre o processo de<br />
produção deste texto. No início do curso,<br />
antes da leitura dos textos de Freud e<br />
comentadores, foi proposto aos alunos<br />
que assistissem ao filme, e que, ao final do<br />
seminário, o vissem novamente para o<br />
debate na última aula. Segundo os alunos,<br />
a diferença entre o antes e o depois do<br />
curso foi notória. Antes, era um “filme<br />
muito violento”, que repugnou especialmente<br />
às mulheres. Depois, passou a ser<br />
um filme instigante para todos. Este texto<br />
é a elaboração, feita pela coordenadora, a<br />
partir do debate final. A co-autoria foi<br />
dada apenas aos colegas que apresentaram<br />
suas idéias por escrito.<br />
O filme abre com uma viagem por<br />
algo que vai parecendo uma trama de<br />
neurônios com um caráter um tanto surrealista,<br />
os quais parecem, finalmente,<br />
transformar-se em pele. De certa forma<br />
é a sinopse do filme, antecipando que<br />
viajaremos pelo interior de um espaço<br />
mental, e que testemunharemos a tentativa<br />
de construção de uma pele psíquica. A<br />
atmosfera surreal da cena sugere que o<br />
filme pode ser entendido como um sonho,<br />
ou melhor, como um pesadelo, em que<br />
situações e personagens carregam significados<br />
cambiantes de acordo com o<br />
momento em que surgem.<br />
A primeira cena já é violenta e<br />
bastante enigmática. Vemos um homem<br />
(o ator Edward Norton) sendo interroga-<br />
O Clube da Luta: narcisismo, identificação e psicologia das massas<br />
do, sob a mira de um revólver, por outro<br />
cujo rosto não vemos. Este pergunta algo<br />
como 2 : “Conhece Tyler Durden? Sabia<br />
de seus planos para explodir os edifícios?”.<br />
A resposta, “eu sei porque ele<br />
sabe”, lança-nos de chofre no campo do<br />
duplo: eu e ele somos o mesmo no que diz<br />
respeito a esse saber. Ficamos curiosos<br />
para descobrir qual a relação entre esse<br />
sujeito e Tyler Durden (Brad Pitt). O<br />
filme todo é o flashback que nos permitirá<br />
responder a essa questão.<br />
Somos apresentados ao protagonista,<br />
personagem torturada pela insônia<br />
crônica. Adentramos esse universo marcado<br />
por um retraimento de tipo esquizóide.<br />
O mundo, as pessoas, as coisas, estão a<br />
uma enorme distância deste homem que<br />
não consegue repouso — no duplo sentido<br />
de dormir e de encontrar alguma paz<br />
interior. Percebemos seu doloroso isolamento<br />
afetivo, o que o mantém num estado<br />
de angústia crônica, causa da insônia.<br />
“Que tipo de porcelana me define<br />
como pessoa?” é uma de suas falas no<br />
início do filme. O vazio existencial é tão<br />
intolerável que desejaria morrer. Este<br />
homem — qual é mesmo o seu nome? —<br />
não chega a ser um cidadão do mundo,<br />
apesar de viajar muito para a companhia<br />
de seguros da qual é um medíocre funcionário.<br />
Cidadão dos aeroportos e aviões,<br />
esses não-lugares em que se criam vínculos<br />
fugazes e descartáveis, tenta preencher<br />
o vazio existencial com objetos-<br />
2 Tal como na apresentação de material clínico, não é a fidedignidade objetiva dos diálogos do filme que<br />
nos interessa, mas a fidelidade ao sentido que captamos.<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006. 151
<strong>Marion</strong> Minerbo & Carmen S. de B. Silveira, Claudia Cristina P. G. Antila, Eloisa Helena R. V. Celeri,<br />
Ethel Penna, Fábia B. G. Herrera, Maria Regina V. de Almeida, Remo Rotella Junior<br />
fetiches. Sua compulsão a consumir coisas<br />
caras, de griffe, tem a função de<br />
garantir minimamente a sustentação de<br />
seu narcisismo precário. “Compro, logo<br />
sou.” Ao longo do filme, veremos entrar<br />
em cena uma ideologia anti-consumista<br />
com função libertária: a personagem gostaria<br />
de romper com o sistema que o<br />
aprisiona a essa rotina ininterrupta e absurda<br />
de trabalhar para consumir. No<br />
trabalho, nosso homem tem uma relação<br />
de submissão rancorosa ao chefe, que,<br />
tanto quanto ele, é um rato preso na<br />
ratoeira da falta de sentido da vida.<br />
Afinal, o protagonista tinha ou não<br />
um nome? Durante o debate, tomamos<br />
nossa dúvida como indício contratransferencial<br />
da problemática narcísica tratada<br />
no filme. Por outro lado, vários colegas se<br />
lembravam dos nomes fictícios que assumia<br />
nos grupos de auto-ajuda que passou<br />
a freqüentar, o que nos fez pensar em<br />
falso self. Enfim, seu nome era Jack. Um<br />
nome tão comum quanto sem graça e,<br />
principalmente, sem sobrenome, identifica<br />
à maravilha esse sujeito que se sente<br />
um nada, um ninguém, anônimo entre<br />
tantos <strong>outros</strong> Jacks que existem por aí.<br />
Certamente não tinha a força e a sonoridade<br />
de Tyler Durden, nome da personagem<br />
marcante que entrará em cena adiante,<br />
e de que tivemos notícia na primeira<br />
cena do filme.<br />
A tentativa desesperada para sair<br />
do anonimato, para dar um sentido à sua<br />
existência, e para escapar da ratoeira do<br />
consumo como modo de vida, pode ser<br />
considerada o eixo do filme. A saída<br />
152<br />
encontrada por Jack é uma solução psicótica.<br />
O filme narra a história de seu<br />
adoecimento e de sua cura, mas o interesse<br />
maior reside no fato de colocar em<br />
evidência a produção de um fenômeno de<br />
massa a partir de um sintoma individual.<br />
Entretanto, Jack vai pedir ajuda<br />
para o sofrimento causado por sua insônia<br />
a um médico. “Quer saber o que é sofrimento?”,<br />
diz ele. “Freqüente o grupo de<br />
auto-ajuda de homens com câncer de<br />
testículo. Aquilo sim é que é dor.” A<br />
posteriori entendemos que sua insensibilidade<br />
reedita a falta de continência do<br />
objeto primário. Em seguida temos a primeira<br />
aparição de Tyler, imagem quase<br />
imperceptível, pois dura uma fração de<br />
segundo. A seqüência temporal entre a<br />
falta de acolhimento do médico e a imagem<br />
fugaz de Tyler sugere que o precário<br />
equilíbrio mental de Jack começa a ruir<br />
quando o sujeito desespera de encontrar<br />
seu objeto. Essa imagem já faz parte do<br />
pródromo do surto psicótico que o acometerá.<br />
Aceitando a sugestão do médico,<br />
Jack começa a freqüentar o grupo de<br />
auto-ajuda, embora seja perfeitamente<br />
saudável. A dor desses pacientes terminais<br />
é “de verdade”, em contraste com a<br />
irrealidade de seu cotidiano. Por identificação,<br />
ele encontra uma forma de entrar<br />
em contato com suas próprias dores,<br />
mesmo sendo incapaz de dizê-las. Começa<br />
a sentir-se “re-humanizado” graças à<br />
continência do grupo e, principalmente,<br />
de Bob, personagem que terá um papel<br />
bastante significativo. Devido ao câncer,<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006.
este precisou submeter-se a uma<br />
orquitectomia, isto é, à castração. O tratamento<br />
à base de hormônios femininos<br />
tem como seqüela uma gigantesca<br />
ginecomastia. O resultado é uma figura<br />
grotesca, embora bastante afetuosa, e<br />
que nos sugere o par combinado pênis/<br />
seio. Acompanhamos passo a passo sua<br />
identificação com a dor física e moral,<br />
com o sofrimento, a humilhação, a impotência,<br />
destes homens que precisaram<br />
extrair o testículo, órgão-símbolo da potência,<br />
da virilidade, da afirmação narcísica<br />
do homem. Percebemos claramente a<br />
importância da continência do grupo.<br />
Neste, os participantes usam nomes falsos<br />
e relatam suas experiências. Depois,<br />
em duplas, eles se abraçam, conversam,<br />
choram. Primeiro é a vez de Bob, que<br />
abraça Jack e chora. Em seguida Bob lhe<br />
diz: “Agora é sua vez, pode chorar”. E<br />
Jack chora, mergulhado nos seios acolhedores<br />
de Bob, entregando-se — ao que<br />
parece pela primeira vez na vida — a essa<br />
experiência que poderia nos parecer ridícula<br />
ou piegas, mas é comovente. No seio<br />
do grupo e de Bob, Jack experimenta o<br />
alívio da regressão através do contato<br />
corporal com o outro. Em seguida vai<br />
para casa e dorme como um bebê, depois<br />
de meses de insônia. Em off, ele conta<br />
que ali, nos grupos de auto-ajuda, “as<br />
pessoas escutam de verdade, não estão<br />
esperando a vez para falar; encontrei a<br />
liberdade na perda da esperança”. Encontra<br />
vida psíquica lá onde a vida biológica<br />
se esvai, obrigando os sujeitos a um<br />
enorme trabalho mental.<br />
O Clube da Luta: narcisismo, identificação e psicologia das massas<br />
Jack torna-se dependente dos grupos<br />
de auto-ajuda, das mais variadas e<br />
terríveis doenças. Ali, todos falam de<br />
suas dores num enquadre em que o máximo<br />
de anonimato permite o máximo de<br />
intimidade. Fala-se da doença, do medo<br />
da morte, da solidão, do fracasso das<br />
relações familiares. O enquadre desses<br />
grupos lembra bastante o enquadre analítico.<br />
Ao contrário do mundo, em que as<br />
feridas narcísicas devem ser cuidadosamente<br />
escondidas para que todos pareçam<br />
vencedores, na intimidade do grupo<br />
ou da sala de análise elas podem ser<br />
reveladas e cuidadas. Enfim, Jack encontra<br />
a possibilidade de uma relação de<br />
objeto significativa em que não é preciso<br />
defender-se, e em que é possível estabelecer<br />
uma relação de dependência com<br />
um objeto relativamente confiável. Em<br />
suma, o grupo funciona como uma família,<br />
lugar de trocas afetivas, de pertencimento e<br />
aceitação, o que vai dando algum lastro<br />
afetivo e contornos psíquicos a Jack.<br />
Nessa peregrinação bizarra conhece<br />
Marla (Helena Bonham Carter), uma<br />
garota igualmente saudável, igualmente<br />
perdida na vida, igualmente dependente<br />
desses grupos. Marla representa também<br />
uma parte mórbida de si mesmo que, em<br />
lugar do consumo desbragado, usa o sexo<br />
e as drogas para preencher seu vazio e<br />
sentir-se viva. A ilusão de bemaventurança<br />
é ameaçada quando ela aparece<br />
nos grupos, denunciando a falsidade<br />
da solução encontrada por Jack: não é<br />
possível manter o equilíbrio emocional<br />
indefinidamente às custas desses grupos.<br />
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<strong>Marion</strong> Minerbo & Carmen S. de B. Silveira, Claudia Cristina P. G. Antila, Eloisa Helena R. V. Celeri,<br />
Ethel Penna, Fábia B. G. Herrera, Maria Regina V. de Almeida, Remo Rotella Junior<br />
“A mentira dela refletia a minha”, diz<br />
Jack. A garota funcionará, ao longo do<br />
filme, como objeto externo, real, altamente<br />
investido, e terá a função de resgatá-lo<br />
da loucura.<br />
Em uma viagem de avião conhece<br />
Tyler. A afinidade entre ambos é instantânea<br />
e maciça, o que caracteriza as<br />
relações de objeto narcísicas. Chama a<br />
atenção o fato de que ambos estão com a<br />
mesma maleta executiva, o que nos remete<br />
novamente à questão do duplo,<br />
anunciada na abertura do filme. O duplo,<br />
por sua vez, vai-nos introduzindo aos poucos<br />
no campo da psicose. Parte da conversa<br />
entre os dois é sobre bombas, isto é,<br />
entra em cena a violência. Tyler tem uma<br />
vida bastante não-convencional: vive de<br />
fabricar em casa sabão artesanal, o qual,<br />
como ficamos sabendo mais adiante, é<br />
feito com gordura humana de lipoaspirações.<br />
Como veremos, a gordura como<br />
excedente é uma metáfora do consumo<br />
do supérfluo do supérfluo, ardorosamente<br />
combatido por ele.<br />
Voltando dessa viagem, Jack descobre<br />
que seu apartamento explodiu e<br />
está em chamas. É uma bela imagem da<br />
entrada no surto. A polícia investiga o que<br />
aconteceu. Os restos mortais de seus<br />
caros e preciosos bens de consumo jazem<br />
pelas ruas, imagem do psiquismo fragmentado.<br />
Não tendo para onde ir, telefona<br />
para Tyler, que se dispõe a ajudá-lo.<br />
Leva-o para sua casa, que é, em tudo, o<br />
exato oposto do apartamento bonitinho de<br />
Jack. É uma casa abandonada, caindo<br />
aos pedaços, sem qualquer conforto.<br />
154<br />
Agora ele habita a psicose franca. A casa<br />
retrata bem essa atmosfera afetiva: é um<br />
lugar lúgubre em que tudo está em ruínas,<br />
um lugar sufocante, reflexo do que Jack<br />
vive interiormente.<br />
É de maneira bastante gradual que,<br />
ao longo do filme, vamos percebendo que<br />
Tyler é Jack. O espectador é compensado<br />
pela espera, e pelo ritmo algo desconexo<br />
que deve tolerar até certo ponto do<br />
filme. Esse suspense inteligente é a surpresa<br />
e a grande sacada do filme —<br />
suspense que, infelizmente, se perde numa<br />
narração que já traz embutida uma certa<br />
interpretação do filme, como essa que<br />
estamos apresentando ao leitor. No filme,<br />
vamos percebendo aos poucos que Tyler<br />
é, em tudo, o oposto de Jack. Forte e<br />
corajoso, tem idéias próprias e é<br />
carismático. É uma pessoa segura de si e<br />
viril: é ele quem conquista a bela, sensual,<br />
Marla. Não se submete a nada, não depende<br />
de nada e de ninguém. Tem espírito<br />
de liderança, todos o admiram, torna-se<br />
uma celebridade. Enfim, parece ter conseguido<br />
ser sujeito de seu próprio desejo,<br />
conduzindo sua vida como bem lhe parece.<br />
Em certo momento fica claro que se<br />
trata de uma construção delirante de Jack<br />
e representa seu duplo. Em nossa interpretação,<br />
Tyler representa o ideal de ego<br />
de Jack, com o qual se funde na psicose,<br />
tornando-se seu próprio ideal. Esses aspectos<br />
de Jack estarão ora mais confundidos<br />
(Jack-Tyler) ora mais discriminados<br />
(Jack e Tyler) ao longo do filme.<br />
Na noite após a entrada no surto<br />
seu “novo amigo” lhe pede: “Bata-me<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006.
com toda sua força”. Seu lado Tyler o<br />
autoriza a viver e expressar sua violência<br />
e Jack vivencia seu potencial destrutivo,<br />
que, agora já desconfiamos, está na origem<br />
do surto. O que se vê, depois dessa<br />
primeira luta, surpreende o espectador:<br />
depois de apanhar bastante, Jack-Tyler<br />
está feliz, satisfeito, sente-se bem, como<br />
que saído de uma experiência revigorante.<br />
Sente-se vivo. A dor física parece tornear<br />
os limites da própria existência, formando<br />
um eu coeso no lugar da experiência<br />
anterior de fragmentação. No registro da<br />
dor e dos hematomas dá-se a passagem<br />
do eu corporal para sua dimensão psíquica.<br />
Encontramos na internet 3 uma interpretação<br />
bastante interessante do efeito<br />
revitalizante de “apanhar” que tanto nos<br />
intriga no filme. Segundo Marco Antonio<br />
Dassori, o filme “subverte a lógica do<br />
sistema ao afirmar que o importante não<br />
é bater, mas sim apanhar. Ao “baixar a<br />
guarda”, abrindo mão do conforto e da<br />
segurança, o indivíduo encontraria a verdadeira<br />
“liberdade”. Ou seja, se o sistema<br />
é vivido como uma mãe engolfante, de<br />
cujas injunções não é possível escapar, a<br />
única maneira de recuperar um mínimo<br />
de autonomia com relação ao desejo do<br />
objeto primário é abrir mão do desejo de<br />
“vencer”. Desejar “apanhar” é, paradoxalmente,<br />
a única maneira de buscar o<br />
próprio desejo.<br />
A luta não se inscreve no campo do<br />
prazer erótico, mas no do alívio da dor<br />
psíquica. A dor física está sendo usada<br />
O Clube da Luta: narcisismo, identificação e psicologia das massas<br />
para estancar a dor psíquica, como ocorre<br />
com certos pacientes que se cortam para<br />
aplacar sua angústia. No texto Além do<br />
princípio do prazer Freud (1920/1976b)<br />
nota que pacientes que passaram pelos<br />
traumas de guerra não desenvolvem uma<br />
neurose traumática caso tenham tido, ao<br />
mesmo tempo, um grave ferimento corporal.<br />
O aporte de libido necessário para<br />
refazer a integridade corporal funciona<br />
como um escudo, que protege o sujeito do<br />
trauma psíquico. No filme, quanto mais<br />
sangrenta a luta, quanto maior a dor física,<br />
mais o sujeito se sente vivo psiquicamente.<br />
É outra leitura do que acontecia nos<br />
grupos de auto-ajuda, em que a dor também<br />
tinha uma função estruturante do<br />
psiquismo.<br />
Enfim, essa primeira briga funda o<br />
que virá a ser o Clube da Luta. A solução<br />
sintomática de Jack-Tyler irá, aos poucos,<br />
se transformando em um fenômeno<br />
de massa. Em pouco tempo, muitos <strong>outros</strong><br />
homens aderem de maneira entusiasmada<br />
a essa atividade altamente estimulante,<br />
depois de uma jornada de trabalho<br />
totalmente desvitalizado e desinvestido.<br />
De acordo com as regras, os membros do<br />
grupo podem lutar dois a dois, um contra<br />
o outro, em dias da semana prefixados,<br />
dentro de um código de ética que deve ser<br />
respeitado. Se o grupo de auto-ajuda funcionava<br />
como uma família, continente das<br />
angústias dos seus membros, o Clube da<br />
Luta se mantém e se reproduz apoiado<br />
sobre outras funções psíquicas que reali-<br />
3 Site http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/clube-da-luta/critica22.html.<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006. 155
<strong>Marion</strong> Minerbo & Carmen S. de B. Silveira, Claudia Cristina P. G. Antila, Eloisa Helena R. V. Celeri,<br />
Ethel Penna, Fábia B. G. Herrera, Maria Regina V. de Almeida, Remo Rotella Junior<br />
za para seus membros. Do ponto de vista<br />
econômico representa um aporte de libido<br />
narcísica que falta a esses sujeitos<br />
desvitalizados. Do ponto de vista dinâmico,<br />
sua ideologia representa a possibilidade<br />
de recuperação do narcisismo perdido.<br />
Opondo-se ao consumismo sentem-se livres.<br />
Em outras palavras, o grupo oferece<br />
representações valorizadas que sustentam<br />
a identidade do sujeito.<br />
A depressão narcísica que está na<br />
base do surto de Jack cede quando a libido<br />
volta a circular e a investir novos objetos:<br />
o líder, mas também o eu-amado-pelolíder.<br />
O grupo funciona como um<br />
exoesqueleto que sustenta, de fora para<br />
dentro, as frágeis fronteiras egóicas dos<br />
sócios do clube. O grupo de auto-ajuda<br />
era composto por sujeitos castrados,<br />
perdedores, em plena posição depressiva.<br />
Aqui, pelo contrário, o ego se percebe<br />
coincidindo com o ideal do ego, o que cria<br />
um estado hipomaníaco em que tudo é<br />
possível. O ideal narcísico de tolerar a dor<br />
física, em lugar de fugir dela como os<br />
comuns mortais, é essencial para que o<br />
ego se perceba como sendo, novamente,<br />
seu próprio ideal. Isto, aliás, é ilustrado<br />
pela cena em que Tyler queima a mão de<br />
Jack com um ácido que produz uma dor<br />
excruciante — e Jack deve ser capaz de<br />
ser homem o suficiente para suportar a<br />
dor.<br />
A ideologia anticonsumista confere<br />
um novo sentido à existência. Tyler<br />
sustenta que, se as pessoas não sentissem<br />
a necessidade de consumir bens absolutamente<br />
supérfluos (como Jack fazia em<br />
156<br />
sua outra vida — que, por sinal, é a<br />
nossa!), não precisariam trabalhar em<br />
serviços de que não gostam, apenas para<br />
ganhar mais dinheiro. Poderiam dedicarse<br />
àquilo que realmente lhes dá prazer.<br />
Há uma cena violentíssima na qual um<br />
oriental é ameaçado de morte, para ser<br />
libertado com a condição de voltar a<br />
estudar veterinária, sua paixão antes de<br />
ser um funcionário de uma loja de conveniência.<br />
Os membros do grupo são obrigados<br />
a ter, na ponta da língua, um<br />
pseudoprojeto pessoal ou um hobby que<br />
lhes daria prazer. Obviamente, como “ter<br />
um projeto ou um hobby” é uma imposição<br />
do líder, não tem nada a ver com<br />
prazer ou realização pessoal. Ao contrário,<br />
a adesão sem crítica é tão alienante<br />
quanto o consumismo que combatem.<br />
Enfim, é tão contraditório quanto pretender<br />
levar um país à democracia na marra,<br />
custe o que custar.<br />
Com tal ideologia libertária, os sócios<br />
do clube veneram Jack-Tyler como a<br />
um salvador — ele os salvou da existência<br />
medíocre e desvitalizada da escravidão<br />
consumista. Por outro lado, Tyler<br />
exige obediência cega. Aos poucos, a<br />
coisa vai crescendo e se organizando, até<br />
se transformar em um exército paralelo<br />
que visa combater, com ações terroristas,<br />
as instituições que fomentam o consumo.<br />
O narcisismo dos membros do grupo se<br />
sustenta totalmente no fato de pertencerem<br />
ao Clube da Luta, o que os torna, a<br />
seus próprios olhos, superiores aos <strong>outros</strong>.<br />
Em termos freudianos, estão muito próximos<br />
do ideal do ego proposto pelo líder.<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006.
O Clube da Luta abre franquias<br />
pelo país. Nos termos de hoje, Tyler<br />
torna-se uma celebridade. Em termos<br />
freudianos, ele se transforma no “pai da<br />
horda primeva”. Ou, segundo Janine<br />
Chasseguet-Smirgel (1992), ele se apresenta<br />
como uma mãe narcísica idealizada<br />
que permite realizar, através de si, os<br />
desejos mais regressivos de seus membros.<br />
O líder, longe de ser um pai, é aquele<br />
que sustenta a ilusão de fusão regressiva<br />
com o objeto primário idealizado.<br />
A figura paterna é de fato expulsa,<br />
excluída do grupo, como o Superego. Tudo<br />
se passa como se a formação coletiva em<br />
si constituísse a realização alucinatória da<br />
posse da mãe pela irmandade, de um modo<br />
muito regressivo, o da fusão primária.<br />
Entretanto, o chefe pode existir (basta<br />
pensar nas massas nazistas). A meu ver,<br />
ele não saberia confundir-se com o pai: o<br />
chefe é aquele que ativa o antigo desejo de<br />
união do Ego e do Ideal. Ele é o promotor<br />
da Ilusão (1992, p. 73).<br />
A primeira parte do filme narra a<br />
psicotização de Jack, o processo de confusão<br />
entre Jack e Tyler, enquanto a<br />
segunda mostra os caminhos de sua lenta<br />
recuperação, isto é, da possibilidade de<br />
efetuar a discriminação e o luto pela<br />
perda da fusão com o ideal narcísico. A<br />
relação com a realidade começa lentamente<br />
a se recompor quando seu velho e<br />
querido amigo Bob morre em uma missão<br />
do Projeto Caos — uma das atividades<br />
colaterais do Clube da Luta a serviço da<br />
ideologia anticonsumista. Ainda segundo<br />
O Clube da Luta: narcisismo, identificação e psicologia das massas<br />
Marco Antonio Dassori (no site já citado),<br />
o objetivo do Projeto Caos era<br />
(...) minar a sociedade de consumo por<br />
meio de ações terroristas, tendo por alvo<br />
organizações emblemáticas, como as empresas<br />
de cartão de crédito. Se no começo<br />
a empreitada parece obter sucesso, irmanando<br />
os personagens, a implementação<br />
do referido projeto resulta no nascimento<br />
de uma organização de cunho nitidamente<br />
fascista, militarizada e despersonalizante<br />
que, ao negar o consumismo, também rejeita<br />
o humanismo.<br />
Ao perder Bob, Jack não mergulha<br />
numa depressão narcísica. Ao contrário,<br />
recupera seu lado mais humano e esta é<br />
a ocasião para que se dê o reconhecimento<br />
da alteridade do objeto. O filme mostra<br />
que Bob é a primeira pessoa no grupo que<br />
pode ser chamado pelo nome e sobrenome,<br />
e que merece um enterro digno.<br />
Em seu processo de refazer contato<br />
com a realidade, começa a se interessar<br />
por Marla, e preocupa-se em protegêla<br />
dele-Tyler. E começa a ser crítico,<br />
tanto com relação às ações predadoras<br />
do Clube, quanto com relação às franquias.<br />
Já não está fundido com a ideologia do<br />
grupo. Agora fica horrorizado com o ideal<br />
que criou. Combatê-lo passa a ser seu<br />
novo ideal.<br />
Já fora do surto, percebe que ele-<br />
Tyler havia criado um plano para destruir<br />
certos edifícios, símbolos do capitalismo e<br />
do consumismo. Vai à polícia e entregase.<br />
Quer reparar os estragos. Mas a<br />
própria polícia pertence ao Clube da Luta,<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006. 157
<strong>Marion</strong> Minerbo & Carmen S. de B. Silveira, Claudia Cristina P. G. Antila, Eloisa Helena R. V. Celeri,<br />
Ethel Penna, Fábia B. G. Herrera, Maria Regina V. de Almeida, Remo Rotella Junior<br />
e não aceita opiniões divergentes, nem do<br />
próprio Tyler. “Você nos avisou que diria<br />
isto, e não era para aceitar.” Aqui vemos<br />
como o psiquismo se torna refém de seus<br />
objetos internos. Não é simples livrar-se<br />
deles. É então que começa a entender<br />
que está sendo ameaçado por uma parte<br />
de si mesmo que já não lhe serve.<br />
Agora, no caminho da cura, o conflito<br />
se desloca e a luta passa a ser<br />
totalmente interna: Jack de um lado, e<br />
Jack-Tyler de outro. A cena final, em que<br />
Jack dá um tiro em si mesmo, mostra a<br />
morte simbólica de seus aspectos denegridos,<br />
desvalidos, desvitalizados, que tornaram<br />
o surto psicótico, e especialmente<br />
o sintoma — a criação de Tyler —, tão<br />
necessário à sua sobrevivência psíquica.<br />
Ou, em outra interpretação, morre a ilusão<br />
psicótica de ser o ego ideal e tudo<br />
poder... Faz-se o luto pelo narcisismo<br />
perdido. Em seu lugar, um ideal do ego<br />
mais evoluído pode surgir.<br />
Um fator decisivo em sua recuperação<br />
foi perceber que, apesar de todas<br />
as suas “fraquezas”, Marla gostava dele-<br />
Jack. Ela obviamente não conhecia Tyler,<br />
isto é, não percebeu que Jack estava em<br />
surto. Achava-o apenas um tanto instável,<br />
complicado. Marla faz as vezes de<br />
objeto primário no processo de fundação,<br />
ou melhor, de instauração mínima de um<br />
narcisismo de vida. Aos poucos ele vai<br />
ocupando um novo lugar subjetivo, diferente<br />
da auto-representação do “corretor<br />
de seguros medíocre”. Na cena final,<br />
ambos assistem à implosão dos edifícios<br />
imponentes, simbolizando o desmorona-<br />
158<br />
mento de um modo de vida fundado na<br />
necessidade narcísica de adesão acrítica<br />
aos signos de prestígio criados pela sociedade<br />
de consumo.<br />
Em nossa interpretação, o filme<br />
mostra como a solução sintomática de um<br />
indivíduo pode se transformar num fenômeno<br />
de massa. O fenômeno se alastra,<br />
inclusive para fora das telas. Mateus da<br />
Costa Meira, estudante de medicina da<br />
Faculdade de Ciências Médicas da Santa<br />
Casa de São Paulo, em 5 de novembro de<br />
1999 atirou sobre a platéia que assistia a<br />
Clube da Luta no Shopping Morumbi. O<br />
rapaz de vinte e quatro anos matou três<br />
pessoas e feriu seis. Antes disso atirara<br />
no espelho do banheiro. Disse ter problemas<br />
psíquicos e já ter sido internado. E<br />
ainda: “Sei que prejudiquei várias pessoas,<br />
mas era uma coisa que precisava ser<br />
feita”.<br />
O delírio individual se transforma<br />
num fenômeno de massa porque encontra<br />
eco em muitas pessoas que se identificam<br />
com Jack. Os sócios do Clube da<br />
Luta coincidem no fato de precisarem de<br />
Tyler para dar algum sentido às suas<br />
existências. Como diria Freud, em Psicologia<br />
de grupo e análise do ego, Tyler<br />
é o “ponto de coincidência entre seus<br />
egos”. Podemos imaginar que Mateus se<br />
considerava mais um sócio do Clube da<br />
Luta, engajado num atentado terrorista a<br />
um dos templos do consumo em São<br />
Paulo. No filme, após o enterro de Bob,<br />
alguém diz: “Na morte, um membro do<br />
Projeto Caos tem um nome”. Na vida real<br />
do mundo contemporâneo o sujeito só tem<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006.
um nome se, e quando, consegue sair do<br />
anonimato deixando de ser um Jack. E, de<br />
fato, Mateus se transforma em Mateus-<br />
Tyler ganhando visibilidade na mídia com<br />
o seu ato.<br />
Inversamente, o fenômeno de massa<br />
encobre delírios individuais. Para<br />
Mateus, ele não está louco: apenas é mais<br />
um sócio do Clube da Luta. O problema é<br />
que, no caso de Mateus, ele não fazia<br />
parte da massa. Afinal, o Clube da Luta é<br />
uma ficção. Há um erro de cálculo: ele<br />
atira sozinho e é preso. Há outro engano:<br />
no filme, os membros do Clube da Luta<br />
não chegam a atentar contra a vida de<br />
terceiros. Seu alvo é o sistema, ou então,<br />
lutam uns contra os <strong>outros</strong>, mostrando<br />
que se trata muito mais de uma luta<br />
interna — relativa ao mundo interno —<br />
do que externa. E, mesmo quando lutam<br />
contra terceiros, o objetivo, como vimos<br />
acima, é apanhar, e não bater. Há uma<br />
cena em que cada um dos sócios deve<br />
provocar os transeuntes na rua até que<br />
um deles perca a paciência e o espanque.<br />
Mas esse objetivo nem sempre é fácil de<br />
se atingir. Por fim, no filme todo ninguém<br />
morre, exceto Bob.<br />
A luta é também uma metáfora do<br />
conflito psíquico. Há duas cenas bastante<br />
engraçadas que expressam a intensidade<br />
e concretude desse conflito. No escritório,<br />
certo dia Jack enfrenta seu chefe e<br />
tem início uma luta. Entretanto, o alvo de<br />
Jack não é o chefe odiado, mas ele mesmo.<br />
Vemos Jack socando a si mesmo até<br />
cair, bastante ferido. A outra cena se<br />
passa numa garagem, em que Jack deci-<br />
O Clube da Luta: narcisismo, identificação e psicologia das massas<br />
de enfrentar Tyler. O espectador vê os<br />
dois se engalfinhando, mas o sistema de<br />
segurança do prédio grava em vídeo uma<br />
cena em que Jack luta com ninguém,<br />
dando socos no ar. Nesse momento fica<br />
claríssimo que Tyler é um objeto interno.<br />
O mesmo objeto que fora idealizado tornou-se<br />
persecutório e deve ser destruído.<br />
Mateus não captou essa sutileza,<br />
provavelmente porque no surto psicótico<br />
o conflito precisa ser totalmente projetado<br />
para fora do espaço psíquico: os inimigos<br />
realmente estavam nas poltronas do<br />
cinema. A incapacidade de simbolizar<br />
impede que se distinga ficção de realidade.<br />
O que não invalida a idéia de que todos<br />
nós podemos, em algum momento, precisar<br />
de algum tipo de Tyler para constituir<br />
nossa identidade e dar sentido às nossas<br />
vidas.<br />
REFERÊNCIAS<br />
Chasseguet-Smirgel, J. (1992). O ideal do<br />
ego e o grupo. In J. Chasseguet-<br />
Smirgel, O ideal do ego (pp. 69-81).<br />
Porto Alegre: Artes Médicas.<br />
Dassori, M. A. Nota 10. Recuperado em<br />
17 abr. 2006 no site http://<br />
adorocinema.cidadeinternet.com.br/<br />
filmes/clube-da-luta/critica22.html.<br />
Freud, S. (1974a). Sobre o narcisismo:<br />
Uma introdução. In S. Freud. Edição<br />
standard brasileira das obras<br />
psicológicas completas de Sigmund<br />
Freud (J. Salomão, trad., Vol.<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006. 159
<strong>Marion</strong> Minerbo & Carmen S. de B. Silveira, Claudia Cristina P. G. Antila, Eloisa Helena R. V. Celeri,<br />
Ethel Penna, Fábia B. G. Herrera, Maria Regina V. de Almeida, Remo Rotella Junior<br />
160<br />
14, pp. 89-119). Rio de Janeiro: Imago.<br />
(Trabalho original publicado em<br />
1914.)<br />
Freud, S. (1974b). Luto e melancolia. In<br />
S. Freud. Edição standard brasileira<br />
das obras psicológicas completas<br />
de Sigmund Freud (J. Salomão,<br />
trad., Vol. 14, pp. 275-291). Rio<br />
de Janeiro: Imago. (Trabalho original<br />
publicado em 1917.)<br />
Freud, S. (1976a). Psicologia de grupo e<br />
análise do ego. In S. Freud. Edição<br />
standard brasileira das obras psicológicas<br />
completas de Sigmund<br />
Freud (J. Salomão, trad., Vol. 18,<br />
pp. 91-179). Rio de Janeiro: Imago.<br />
(Trabalho original publicado em 1921.)<br />
Freud, S. (1976b). Além do princípio de<br />
prazer. In S. Freud. Edição standard<br />
brasileira das obras psicológicas<br />
completas de Sigmund<br />
Freud (J. Salomão, trad., Vol. 18,<br />
pp. 17-85). Rio de Janeiro: Imago.<br />
(Trabalho original publicado em<br />
1920.)<br />
Korman, V. (1977). Teoría de la<br />
identificación y psicosis. Buenos<br />
Aires: Nueva Visión.<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006.
O Clube da Luta: narcisismo, identificação e psicologia das massas<br />
SUMMARY<br />
Fight Club: narcissism, identification and group psychology<br />
The difference between a psychoanalytic interpretation and the exercise of<br />
applied psychoanalysis is initially discussed. This text is an exercise of applied<br />
psychoanalysis, using the film Fight Club to illustrate the concepts of identification,<br />
narcissism and group psychology. The idea was to recognize them in the film’s “clinical<br />
material” and also to use them to better understand the film. The process of becoming<br />
psychotic is shown by the character, and then his slow recuperation. This passes by the<br />
recognition of the object as a separate being and a process of mourning a state of fusion<br />
with the ideal ego.<br />
Key words: Narcissism. Identification. Group psychology. Applied psychoanalysis.<br />
RESUMEN<br />
Club de la Lucha: narcisismo, identificación y psicología de masas<br />
Se discute, inicialmente, la diferencia entre interpretación psicoanalítica y<br />
ejercicio del psicoanálisis aplicado. Este texto es un ejemplo de psicoanálisis aplicado,<br />
pues utilizamos la película Club de la Lucha para ilustrar los conceptos freudianos de<br />
identificación, narcisismo y fenómenos de masas estudiados durante un seminario en<br />
el Instituto. El objetivo del ejercicio es reconocerlos en su forma viva y encarnada en el<br />
“material clínico” de la película y, al mismo tiempo, usarlos para la comprensión de la<br />
misma. En la primera parte, la película narra la psicotización del personaje, mientras<br />
la segunda muestra los caminos de su lenta recuperación, es decir, de la posibilidad<br />
de efectuar la discriminación y la lucha por la pérdida de la fusión con el yo ideal.<br />
Palabras-llave: Narcisismo. Identificación. Fenómenos de masas. Psicoanálisis<br />
aplicado.<br />
<strong>Marion</strong> Minerbo<br />
R. João Moura, 647/152 — Pinheiros.<br />
05413-100 São Paulo, SP<br />
Fone: 3898-0074<br />
E-mail: marion.minerbo@terra.com.br<br />
Recebido em: 20/04/06<br />
Aceito em: 25/05/06<br />
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 149-161, jun. 2006. 161