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Juan Rulfo – Pedro Páramo

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<strong>Juan</strong> <strong>Rulfo</strong><br />

PEDRO PÁRAMO<br />

Vim a Comala porque me disseram que aquí vivia meu pai, um tal <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>. Minha mãe mo<br />

disse. E eu lhe prometi que viria vê-lo quando ela morresse. Apertei suas mãos em sinal de que o faria;<br />

pois ela estava para morrer e eu em estado de tudo prometer-lhe. “Não deixe de ir visitá-lo - me<br />

recomendou. Chama-se deste modo e deste outro. Estou certa de que lhe dará gosto conhecer você.”<br />

Então não pude fazer outra coisa senão dizer-lhe que assim o faria, e de tanto dizer-lhe continuei a<br />

dizê-lo ainda depois de que a minhas mãos lhes custou trabalho safar-se de suas mãos mortas.<br />

Ainda antes me havia dito:<br />

-Não vá pedir-lhe nada. Exija-lhe o nosso. O que esteve obrigado a dar-me e nunca me deu… O<br />

esquecimento em que nos teve, meu filho, cobre caro.<br />

-Assim farei, mãe.<br />

Entretanto não pensei em cumprir minha promessa. Até que agora mesmo comecei a encher-me<br />

de sonhos, a dar vôo às ilusões. E deste modo se me foi formando um mundo ao redor da esperança<br />

que era aquele senhor chamado <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>, o marido de minha mãe. Por isso vim a Comala.<br />

Era esse tempo de calor, quando o ar de agosto sopra quente, envenenado pelo cheiro podre das<br />

saponárias.<br />

O caminho subia e baixava: “Sobe ou baixa segundo se vai ou vem. Para o que vai, sobe; para o<br />

que bem, baixa.”<br />

-Como o senhor disse que se chama o povoado que se vê lá embaixo?<br />

-Comala, senhor.<br />

-Está certo de que já é Comala?<br />

-Certo, senhor.<br />

-E por que se vê isto tão triste?<br />

-São os tempos, senhor.<br />

Eu imaginava ver aquilo através das recordações de minha mãe; de sua nostalgia, entre<br />

fragmentos de suspiros. Sempre viveu ela suspirando por Comala, pelo retorno; mas jamais voltou.<br />

Agora eu venho em seu lugar. Trago os olhos com que ela viu estas coisas, porque me deu seus olhos<br />

para ver: “Há ali, passando o porto dos Colimotes, a vista muito formosa de uma planície verde, algo<br />

amarela pelo milho maduro. Desse lugar se vê Comala, branqueando a terra, iluminando-a durante a<br />

noite.” E sua voz era cava, quase apagada, como se falasse consigo mesma… Minha mãe.<br />

-E a que vai o senhor a Comala, se se pode saber? -ouvi que me perguntavam.<br />

-Vou ver meu pai -respondi.<br />

-Ah! -disse ele.<br />

E voltamos ao silêncio.<br />

Caminhávamos encosta abaixo, ouvindo o trote desencontrado dos burros. Os olhos arrebentados<br />

pelo sopor do sono, na canícula de agosto.<br />

-Bonita festa vai-lhe fazer -tornei a ouvir a voz do que ia ali ao meu lado-. Ficará feliz de ver<br />

alguém depois de tantos anos que ninguém vem por aquí.<br />

Logo acrescentou:<br />

-Seja o senhor quem seja, se alegrará em vê-lo.


Na reverberação do sol, a planície parecia uma lagoa transparente, desfeita em vapores por onde<br />

transluzia um horizonte cinzento. E mais longe, uma linha de montanhas. E ainda mais longe, a mais<br />

remota distância.<br />

-E que modos tem seu pai, se se pode saber?<br />

-Não o conheço -disse-lhe-. Só sei que se chama <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>.<br />

-Ah!, vá.<br />

-Sim, assim me disseram que se chamava.<br />

Ouvi outra vez o “ah!” do tropeiro.<br />

Havia topado com ele em Los Encuentros, onde se cruzavam vários caminhos. Estive ali<br />

esperando, até que por fim apareceu este homem.<br />

-Para onde o senhor vai? -perguntei-lhe.<br />

-Vou para baixo, senhor.<br />

-Conhece um lugar chamado Comala?<br />

-Para lá mesmo vou.<br />

E o segui. Fui atrás dele tratando de emparelhar-me a seu passo, até que pareceu dar-se conta de<br />

que o seguia e diminuiu a pressa de sua carreira. Depois os dois íamos tão próximos que quase nos<br />

tocávamos os ombros.<br />

-Eu também sou filho de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> -disse-me.<br />

Um bando de corvos passou cruzando o céu vazio, fazendo cuar, cuar, cuar.<br />

Depois de ultrapassar as colinas, baixamos cada vez mais. Havíamos deixado o ar quente lá em<br />

cima e nos íamos fundindo no puro calor sem ar. Tudo parecia estar como à espera de algo.<br />

- Faz calor aquí -disse.<br />

-Sim, e isto não é nada -respondeu-me o outro-. Acalme-se. Já o sentirá mais forte quando<br />

chegarmos a Comala. Aquilo está sobre as brasas da terra, na própria boca do inferno. É como dizer<br />

que muitos dos que ali morrem, ao chegar ao inferno regressam em busca de seu cobertor.<br />

-O senhor conhece <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>? -perguntei-lhe.<br />

Atrevi-me a fazê-lo porque vi em seus olhos uma gota de confiança.<br />

-Quem é? -tornei a perguntar.<br />

-Um rancor vivo -respondeu-me ele.<br />

E deu um golpe na direção dos burros, sem necessidade, já que os burros iam muito mais adiante<br />

de nós, enfileirados pela baixada.<br />

Senti o retrato de minha mãe guardado no bolso da camisa, aquecendo-me o coração, como se<br />

ela também suasse. Era um retrato velho, carcomido nas bordas; mas foi o único que conheci dela.<br />

Havia-o encontrado no armário da cozinha, dentro de uma panela cheia de ervas: folhas de toronja,<br />

flores de Castela, ramos de arruda. Desde então o guardei. Era o único. Minha mãe sempre foi inimiga<br />

de retratar-se. Dizia que os retratos eram coisa de bruxaria. E assim parecia ser; porque o seu estava<br />

cheio de buracos como de agulha, e em direção do coração tinha um muito grande, onde bem podia<br />

caber o dedo médio.<br />

É o mesmo que trago aqui, pensando que poderia dar bom resultado para que meu pai me<br />

reconhecesse.<br />

-Veja o senhor -disse-me o tropeiro, detendo-se- Vê aquela colina que parece bexiga de porcos?<br />

Pois bem, detrás dela está a Media Luna. Agora volte-se para lá. Vê o cimo daquele monte? Veja-o. E


agora volte-se para este outro rumo. Vê o outro cimo que quase não se vê de tão longe que está? Bem,<br />

pois isso é a Media Luna de ponta a cabo. O caso é que nossas mães nos pariram numa trouxa ainda<br />

que fôssemos filhos de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>. E o mais engraçado é que ele nos levou a batizar. Com o<br />

senhor deve haver se passado o mesmo, não?<br />

-Não me lembro.<br />

-Vá-se ao caralho!<br />

-O que disse?<br />

-Que já estamos chegando, senhor.<br />

-Sim, já vejo. O que aconteceu por aquí?<br />

-Um corre-caminhos, senhor. Assim são chamados esses pássaros.<br />

-Não, perguntava pelo povoado, que se vê tão só, como se estivesse abandonado. Parece que<br />

ninguém o habita.<br />

-Não é que pareça. É assim. Aquí não vive ninguém.<br />

-E <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>?<br />

-<strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> morreu faz muitos anos.<br />

Era a hora em que os meninos brincam nas ruas de todos os povoados, enchendo com seus<br />

gritos a tarde. Quando ainda as paredes negras refletem a luz amarela do sol.<br />

Ao menos isso havia visto em Sayula, ainda ontem, a esta mesma hora. E havia visto também o<br />

vôo das pombas rompendo o ar quieto, sacudindo suas asas como se se desprendessem do dia.<br />

Voavam e caíam sobre os telhados, enquanto os gritos dos meninos revoluteavam e pareciam tingir-se<br />

de azul no céu do entardecer.<br />

Agora estava aqui, neste povoado sem ruídos. Ouvia caírem meus passos sobre as pedras<br />

redondas com que estavam calçadas as ruas. Meus passos ocos, repetindo seu som no eco das<br />

pareces tingidas pelo sol do entardecer.<br />

Fui andando pela rua principal nessa hora. Fitei as casas vazias; as portas desbeiçadas, invadidas<br />

de erva. Como me disse aquele fulano que se chamava esta erva? “A capitana, senhor. Uma praga que<br />

nem bem espera que se vá a gente para invadir as casas. Assim o senhor as verá.”<br />

Ao cruzar uma travessa vi uma senhora envolta em seu rebuço que desapareceu como se não<br />

existisse. Depois meus passos voltaram a mover-se e meus olhos continuaram a olhar o buraco das<br />

portas. Até que novamente a mulher do rebuço apareceu frente a mim.<br />

-Boa-noite! -disse-me.<br />

Segui-a com o olhar. Gritei-lhe:<br />

-Onde vive dona Eduviges?<br />

E ela assinalou com o dedo:<br />

-Lá. A casa que está junto à ponte.<br />

Me dei conta de que sua voz era feita de fibras humanas, que sua boca tinha dentes e uma língua<br />

que se travava e destravava ao falar, e que seus olhos eram como todos os olhos da gente que vive<br />

sobre a terra.<br />

Havia escurecido.


Voltou a dar-me as boas-noites. E ainda que não houvesse meninos jogando, nem pombas, nem<br />

telhados azuis, senti que o povoado vivia. E que se eu escutava somente o silêncio, era porque ainda<br />

não estava acostumado ao silêncio; talvez porque minha cabeça vinha cheia de ruídos e de vozes.<br />

De vozes, sim. E aqui, onde o ar era escasso, ouviam-se melhor. Caíam dentro de nós, pesadas.<br />

Recordei-me do que me havia dito minha mãe: “Lá me ouvirá melhor. Estarei mais perto de você.<br />

Achará mais próxima a voz de minhas recordações que a da minha morte, se é que alguma vez a morte<br />

tenha tido alguma voz.” Minha mãe… a viva.<br />

Houvera querido dizer-lhe: “Você se equivocou de domicílio. Deu-me um endereço errado.<br />

Mandou-me ao „onde é isto e onde é aquilo?‟ A um povoado solitário. Buscando alguém que não<br />

existe.”<br />

Cheguei à casa da ponte orientando-me pelo som do rio. Toquei na porta; mas em falso. Minha<br />

mão sacudiu no ar como se o ar a houvesse aberto. Uma mulher estava ali. Disse-me:<br />

-Passe. -E entrei.<br />

Permanecera em Comala. O tropeiro, que prosseguiu seu caminho, informou-me entretanto antes<br />

de despedir-se:<br />

-Vou mais além, onde se vê a união dos montes. Lá tenho minha casa. Se o senhor quer vir, será<br />

bem-vindo. Agora, se quer ficar aqui, faça-o assim; embora não fosse demais dar uma olhada no<br />

povoado, talvez encontre algum vizinho vivente.<br />

E fiquei. Por isso vinha.<br />

-Onde poderei encontrar alojamento? -perguntei-lhe quase aos gritos.<br />

-Procure a dona Eduviges, se é que ainda vive. Diga-lhe que vai de minha parte.<br />

-E como se chama o senhor?<br />

-Abundio -respondeu-me. Mas não cheguei a ouvir o sobrenome.<br />

-Sou Eduviges Dyada. Entre.<br />

Parecia que havia estado me esperando. Tinha tudo disposto, segundo me disse, fazendo com<br />

que a seguisse por uma larga série de quartos escuros, ao que parece desolados. Mas não; porque, ao<br />

me acostumar à escuridão e ao delgado fio de luz que nos seguia, vi crescer sombras em ambos os<br />

lados e senti que íamos caminhando através de um estreito corredor aberto entre vultos.<br />

-Que é que há aqui? -perguntei.<br />

-Bugigangas -disse-me ela-. Tenho a casa toda cheia delas. Escolheram-na para guardar seus<br />

móveis os que se foram, e ninguém voltou por eles. Mas o quarto que lhe reservei está no fundo.<br />

Tenho-o sempre desentulhado para se alguém vier. De modo que o senhor é filho dela?<br />

-De quem? <strong>–</strong>respondi.<br />

-De Doloritas.<br />

-Sim, mas como sabe?<br />

-Ela me avisou que o senhor viria. E hoje precisamente. Que chegaria hoje.<br />

-Quem? Minha mãe?<br />

-Sim. Ela.<br />

Eu não soube o que pensar. Nem ela me deixou em que pensar:<br />

-Este é seu quarto -me disse.


Não tinha portas, somente aquela por onde havíamos entrado. Acendeu a vela e o vi vazio.<br />

-Aqui não há onde deitar-se -disse-lhe.<br />

- Não se preocupe por isso. O senhor há de vir cansado e o sono é muito bom colchão para o<br />

cansaço. Já amanhã prepararei sua cama. Como o senhor sabe, não é fácil arranjar as coisas em um<br />

dois por três. Para isso há que estar prevenido, e a sua mãe não me avisou senão agora há pouco.<br />

-Minha mãe -disse-, minha mãe já morreu.<br />

-Então essa foi a causa por que sua voz se ouvia tão fraca, como se houvesse tido que atravessar<br />

uma distância muito grande para chegar até aqui. Agora entendo. E quanto faz que morreu?<br />

-Faz já sete dias.<br />

-Pobre dela. Há de se haver sentido abandonada. Fizemo-nos a promessa de morrer juntas. De ir<br />

as duas para dar-nos ânimo uma à outra na outra viagem, para se se necessitasse, se por acaso<br />

encontrássemos alguma dificuldade. Éramos muito amigas. Nunca lhe falou de mim?<br />

-Não, nunca.<br />

-Parece-me esquisito. Claro que então éramos umas mocinhas. E ela estava apenas recémcasada.<br />

Mas nos queríamos muito. Sua mãe era tão bonita, tão, digamos, tão terna, que era bom gostar<br />

dela. De modo que me leva vantagem, não? Mas esteja seguro de que a alcançarei. Só eu entendo o<br />

distante que está o céu de nós; mas sei como encurtar os caminhos. Tudo consiste em morrer, diante<br />

de Deus, quando se queira e não quando Ele o disponha. Ou, se você quer, forçá-lo a dispor de tempo<br />

antes. Perdoe-me que o chame de você; faço-o porque o considero como meu filho. Sim, muitas vezes<br />

disse: “O filho de Dolores devia ter sido meu.” Depois lhe direi por quê. Só o que quero dizer-lhe agora<br />

é que alcançarei sua mãe em algum dos caminhos da eternidade.<br />

Eu achava que aquela mulher estava louca. Logo já não achei nada. Senti-me num mundo<br />

distante e me deixei arrastar. Meu corpo, que parecia afrouxar, dobrava-se ante tudo, soltara suas<br />

amarras e qualquer um poderia brincar com ele como se fosse de trapo.<br />

-Estou cansado -disse-lhe.<br />

-Venha comer antes alguma coisa. Algo de algo. Qualquer coisa.<br />

-Irei. Irei depois.<br />

A água que gotejava das telhas fazia um buraco na areia do pátio. Soava: plas, plas, e logo outra<br />

vez plas, na metade de uma folha de loureiro que dava voltas e ricochetes metida na fenda dos tijolos.<br />

Já se havia ido a tormenta. Agora de vez em quando a brisa sacudia os ramos da romãzeira fazendo-os<br />

jorrar uma chuva espessa, estampando a terra com gotas brilhantes que logo esmaeciam. As galinhas,<br />

encolhidas, como se dormissem, sacudiam prontamente suas asas e saíam ao pátio, bicando depressa,<br />

capturando as minhocas desenterradas pela chuva. Ao sair das nuvens, o sol lançava luz nas pedras,<br />

irisava tudo de cores, bebia a água da terra, brincava com o vento dando brilho às folhas com que o<br />

vento brincava.<br />

-Que tanto faz no banheiro, menino?<br />

-Nada, mamãe.<br />

-Se continua aí, vai sair uma cobra e vai mordê-lo.<br />

-Sim, mamãe.<br />

“Pensava em você, Susana. Nas colinas verdes. Quando soltávamos pipas na época do vento.<br />

Ouvíamos lá embaixo o rumor vivente do povoado enquanto estávamos acima dele, em cima da colina,<br />

enquanto nos ia o fio de cânhamo arrastado pelo vento. „Ajude-me, Susana‟. E u‟as mãos suaves<br />

apertavam nossas mãos. „Solte mais linha‟.


“O ar nos fazia rir, juntava o olhar de nossos olhos, enquanto a linha corria entre os dedos atrás do<br />

vento, até que se rompia com um leve rangido como se houvesse sido cortada pelas asas de algum<br />

pássaro. E lá em cima, o pássaro de papel caía em volteios, arrastando seu rabo de fiapos, perdendose<br />

no verdor da terra.<br />

“Seus lábios estavam molhados como se os houvesse beijado o orvalho.”<br />

-Disse para sair do banheiro, menino.<br />

-Sim, mamãe. Já vou.<br />

“De você me recordava. Quando estava ali olhando-me com seus olhos de água-marinha.”<br />

Levantou a vista e olhou para sua mãe na porta.<br />

-Porque demora tanto a sair? Que faz aqui?<br />

-Estou pensando.<br />

-E não pode fazer isso em outro lugar? Faz mal ficar muito tempo no banheiro. Além disso, devia<br />

se ocupar com alguma coisa. Por que não vai com sua avó debulhar milho?<br />

-Já vou, mamãe. Já vou.<br />

-Vovó, venho ajudá-la a debulhar milho.<br />

-Já terminamos; mas vamos fazer chocolate. Onde se meteu? Todo o tempo que durou a tormenta<br />

o andamos procurando.<br />

-Estava no outro pátio.<br />

-E o que estava fazendo? Rezando?<br />

-Não, vovó, só estava vendo chover.<br />

A avó o olhou com aqueles olhos cinzentos, meio amarelos, que ela tinha e que pareciam<br />

adivinhar o que havia dentro de uma pessoa.<br />

-Vá, então, limpar o moinho.<br />

“A centenas de metros, acima de todas as nuvens, mais, muito mais além de tudo, está escondida<br />

você, Susana. Escondida na imensidão de Deus, atrás de sua Divina Providência, onde eu não posso<br />

alcançá-la nem vê-la e onde não chegam minhas palavras.”<br />

-Vovó, o moinho não serve, tem a moenda quebrada.<br />

-Essa Micaela há de ter moído molcates (N.T.: grãos de cereal mais duro que o milho) nele. Não<br />

deixa esse mau costume. Mas, enfim, não há remédio.<br />

-Por que não compramos outro? Este já de tão velho nem servia.<br />

-Diz bem. Embora que com os gastos que fizemos para enterrar seu avô e os dízimos que<br />

pagamos à Igreja tenhamos ficado sem um centavo. Entretanto, faremos um sacrifício e compraremos<br />

outro. Seria bom se fosse ver dona Inês Villalpando e lhe pedisse que no-lo fiasse para outubro. Nós o<br />

pagaremos nas colheitas.<br />

-Sim, vovó.<br />

-E aproveitando, para que faça o serviço completo, diga-lhe que nos empreste uma peneira e uma<br />

podadeira; com o crescidos que estão os matos já simplesmente nos batem na bunda. Se eu tivesse<br />

minha casa grande, com aqueles grandes currais que tinha, não me estaria queixando. Mas seu avô<br />

errou em vir para cá. Tudo seja por Deus: nunca hão de sair as coisas como se quer. Diz a dona Inês<br />

que lhe pagaremos nas colheitas tudo que lhe devemos.<br />

-Sim, vovó.


-Havia beija-flores. Era a época. Ouvia-se o zumbido de suas asas entre as flores do jasmineiro,<br />

que se inclinava com as flores.<br />

Deu um volta pela prateleira do Sagrado Coração e encontrou vinte e quatro centavos. Deixou os<br />

quatro centavos e pegou os vinte.<br />

Antes de sair, sua mãe o deteve:<br />

-Onde vai?<br />

-A dona Inês Villalpando por um moinho novo. O que tínhamos se quebrou.<br />

-Diga-lhe que lhe dê um metro de tafetá negro, como este -e lhe deu a amostra-. Que o coloque<br />

em nossa conta.<br />

-Muito bem, mamãe.<br />

-Na volta compre-me umas cafiaspirinas. No vaso do do corredor encontrará dinheiro.<br />

Encontrou um peso. Deixou o vinte e agarrou o peso.<br />

“Agora me sobrará dinheiro para o que se ofereça”, pensou.<br />

-<strong>Pedro</strong>! -gritaram-lhe-. <strong>Pedro</strong>!<br />

Mas ele já não ouviu. Ia muito longe.<br />

À noite voltou a chover. Esteve ouvindo o borbotar da água durante muito tempo: logo há de ter<br />

dormido, porque quando despertou só se ouvia uma chuvinha calada. Os vidros da janela estavam<br />

opacos, e do outro lado as gotas resvalavam em fios grossos como de lágrimas. “Olhava cair as gotas<br />

iluminadas pelos relâmpagos, e cada vez que respirava suspirava, e cada vez que pensava, pensava<br />

em você, Susana.”<br />

A chuva se convertia em brisa. Ouviu: “O perdão dos pecados e a ressurreição da carne. Amém.”<br />

Isso era aqui dentro, onde umas mulheres rezavam o final do rosário. Levantavam-se; recolhiam os<br />

pássaros; trancavam a porta; apagavam a luz.<br />

Só ficava a luz da noite, o ciciar da chuva como um murmúrio de grilos…<br />

-Por que não foi rezar o rosário? Estamos na novena do seu avô.<br />

Ali estava sua mãe no umbral da porta, com uma vela na mão. Sua sombra estendida até o teto,<br />

grande, desdobrada. E as vigas do teto a devolviam em pedaços, despedaçada.<br />

-Sinto-me triste -disse.<br />

Então ela deu a volta. Apagou a chama da vela. Fechou a porta e abriu seus soluços, que se<br />

continuaram ouvindo confundidos com a chuva.<br />

O relógio da igreja deu as horas, uma atrás da outra, uma atrá da outra, como se houvesse<br />

encolhido o tempo.<br />

-Pois sim, estive a ponto de ser sua mãe. Nunca lhe falou nada disto?<br />

-Não, só me contava coisas boas. Da senhora vim a saber pelo tropeiro que me trouxe até aqui,<br />

um tal Abundio.<br />

-O bom do Abundio. Quer dizer que ainda lembra de mim? Eu lhe dava propinas a cada<br />

passageiro que encaminhava a minha casa. E aos dois nos ia bem. Agora, desventuradamente, os<br />

tempos mudaram, pois desde que isto está empobrecido, já ninguém se comunica conosco. De modo<br />

que ele lhe recomendou que viesse ver-me?<br />

-Encarregou-me de que a buscasse.


-Não posso menos que agradecer-lhe. Foi bom homem e muito bem-educado. Era quem nos<br />

trazia o correio, e o continuou fazendo ainda depois que ficou surdo. Lembro-me do desventurado dia<br />

em que lhe sucedeu sua desgraça. Todos nos comovemos, porque todos gostávamos dele. Levava-nos<br />

e trazia cartas. Contava-nos como andavam as coisas lá do outro lado do mundo, e seguramente a eles<br />

nos contava como passávamos. Era um grande conversador. Depois já não. Deixou de falar. Dizia que<br />

não tinha sentido pôr-se a dizer coisas que ele não ouvia, que não soavam a nada, em que não<br />

encontrava nenhum sabor. Tudo lhe sucedeu pelo fato de que lhe explodiu muito perto da cabeça um<br />

desses foguetões que usamos aqui para espantar as cobras d‟água. Desde então emudeceu, ainda que<br />

não fosse mudo; mas, isso sim, não deixou de ser boa gente.<br />

-Este de que lhe falo ouvia bem.<br />

-Não debe ser ele. Ademais, Abundio já morreu. Deve ter morrido certamente. Você se dá conta?<br />

Assim que não pode ser ele.<br />

-Estou de acordo com a senhora.<br />

-Bem, voltando a sua mãe, ia lhe dizendo…<br />

Sem deixar de ouvi-la, pus-me a olhar a mulher que tinha frente a mim. Pensei que devia haver<br />

passado por anos difíceis. Seu rosto ficava transparente como se não tivesse sangue, e suas mãos<br />

eram murchas; murchas e apertadas de rugas. Não se lhe viam os olhos. Usava um vestido branco<br />

muito antigo, carregado de enfeites, e do colo, enfiada em um cordão, pendia-lhe uma Maria Santíssima<br />

do Refúgio com um letreiro que dizia: “Refúgio de pecadores.”<br />

-…Esse sujeito de que lhe estou falando trabalhava como “amansador” na Media Luna; dizia<br />

chamar-se Inocencio Osorio. Embora todos o conhecêssemos pelo mau nome de Salta-perigo por ser<br />

muito leve e ágil para os saltos. Meu compadre <strong>Pedro</strong> dizia que tinha nascido para amansar potros;<br />

mas o certo é que tinha outro ofício: o de “provocador”. Era provocador de sonhos. Isso é o que era<br />

verdadeiramente. E a sua mãe enredou-a como fazia com muitas. Entre outras, comigo. Uma vez que<br />

me senti doente se apresentou e me disse: “Venho massageá-la para que se alivie.” E tudo aquilo<br />

consistia em que se punha a amassar alguém, primeiro nas gemas dos dedos, logo esfregando as<br />

mãos, depois os braços, e acabava metendo-se com as suas pernas, friamente, assim que aquilo, após<br />

algum tempo, produzia calor. E, enquanto manobrava, falava-lhe de seu futuro. Punha-se em transe,<br />

revirava os olhos invocando e maldizendo; enchendo-a de cusparadas como fazem os ciganos. Às<br />

vezes ficava em pêlo porque dizia que esse era nosso desejo. E às vezes acertava; beliscava por<br />

tantos lados que em algum tinha de dar.<br />

“A coisa é que o tal Osorio prognosticou à sua mãe, quando foi vê-lo, que „essa noite não devia<br />

pegar-se a nenhum homem porque a lua estava brava‟.<br />

“Dolores foi dizer-me toda aflita que não podia. Que simplesmente era-lhe impossível deitar-se<br />

essa noite com <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>. Era sua noite de núpcias. E aí você tem a mim tratando de convencê-la<br />

de que não acreditasse no Osório, que de outra parte era um tapeador embusteiro.<br />

“Não posso <strong>–</strong>me disse-. Vá você por mim. Não o notará.<br />

“Claro que eu era muito mais jovem que ela. E um pouco menos morena; mas isto não se nota no<br />

escuro.<br />

“Não pode ser. Dolores, tem que ir você.<br />

“Faça-me esse favor. Pagar-lhe-ei com outros.<br />

“Sua mãe nesse tempo era u‟a mocinha de olhos humildes. Se algo tinha bonito sua mãe, eram os<br />

olhos. E sabiam convencer.<br />

“-Vá você em meu lugar -me dizia.<br />

“E fui.


“Vali-me da escuridão e de outra coisa que ela não sabia: e é que eu também gostava de <strong>Pedro</strong><br />

<strong>Páramo</strong>.<br />

“Deitei-me com ele, com gosto, com gana. Agarrei-me a seu corpo; mas a fuzarca do dia anterior o<br />

havia deixado rendido, de modo que passou a noite roncando. Tudo o que fez foi enroscar suas pernas<br />

nas minhas.<br />

“Antes que amanhecesse levantei-me e fui ver Dolores. Disse-lhe:<br />

“-Agora vá você. Este já é outro dia.<br />

“-O que lhe fez? -perguntou-me.<br />

“-Ainda não sei <strong>–</strong>respondi-lhe.<br />

“No ano seguinte você nasceu; mas não de mim, ainda que estivesse por um fio que assim fosse.<br />

“Talvez sua mãe não lhe contou isto por vergonha.<br />

“…Planícies verdes. Ver subir e baixar o horizonte com o vento que move as espigas, o encrespar<br />

da tarde com uma chuva de cachos triplos. A cor da terra, o cheiro da alfafa e do pão. Um povoado que<br />

cheira a mel derramado…”<br />

“Ela sempre odiou <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>. „Doloritas! Já mandou que me preparem o desjejum?‟ E sua<br />

mãe se levantava antes do amanhecer. Prendia o caldeirão. Os gatos despertavam com o cheiro do<br />

fogo. E ela ia daqui para lá, seguida pelo batalhão de gatos. „Dona Doloritas!‟<br />

“Quantas vezes ouviu sua mãe aquele chamado? „Dona Doloritas‟, isto está frio. Isto não serve.<br />

Quantas vezes? E embora estivesse acostumada a passar pelo pior, seus olhos humildes se<br />

endureceram.<br />

“…Não sentir outro sabor senão o da flor das laranjeiras na tibieza do tempo.”<br />

“Então começou a suspirar.<br />

“-Por que suspira, Doloritas?<br />

“Eu os havia acompanhado essa tarde. Estávamos na metade do campo olhando passar os<br />

bandos de tordos. Um urubu solitário se mexia no céu.<br />

“-Por que suspira, Doloritas?<br />

“Quisera ser urubu para voar até onde vive minha irmã.<br />

“Não faltava mais nada, dona Doloritas. Agora mesmo irá a senhora ver sua irmã. Regressemos.<br />

Que lhe preparem suas malas. Não faltava mais nada.<br />

“E sua mãe se foi:<br />

“-Até logo, dom <strong>Pedro</strong>.<br />

“-Adeus!, Doloritas.<br />

“Foi-se da Media Luna para sempre.<br />

“Perguntei muitos meses depois a <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> sobre ela.<br />

“Queria mais a sua irmã que a mim. Lá deve estar a seu gosto. Ademais já me tinha enfadado.<br />

Não penso em ir buscá-la, se é isso que preocupa você.<br />

“-Mas de que viverão?<br />

“-Que Deus os assista.<br />

“…O abandono em que nos teve, meu filho, cobre caro.”<br />

“E assim até agora que ela me avisou que você veria ver-me, não voltamos a saber mais dela.”


-As coisas que passaram -disse-lhe. Vivíamos em Colima sustentados pela tia Gertrudis, que nos<br />

jogava na cara nosso peso. “-Por que não volta a seu marido?”, dizia a minha mãe.<br />

“Acaso ele procurou por mim? Não vou se ele não me chama. Vim porque queria vè-la. Porque a<br />

amava, por isso vim.<br />

“-Compreendo. Mas vai sendo hora de que se vá.<br />

“-Se dependesse de mim.”<br />

Pensei que aquela mulher me estava ouvindo; mas notei que tinha inclinada a cabeça como se<br />

escutasse algum rumor longínguo. Logo disse:<br />

-Quando descansará?<br />

“O dia em que você se foi entendi que não voltaria a vê-la. Ia tingida de vermelho ao sol da tarde,<br />

no crepúsculo ensangüentado do céu. Sorria. Deixava atrás um povoado de que muitas vezes me<br />

disse: „Amo-o por você; mas o odeio por tudo o mais, até por haver nascido nele‟. Pensei: „Não<br />

regressará jamais; não voltará nunca.‟”<br />

-Que faz aqui a estas horas? Não está trabalhando?<br />

-Não, vovó. Rogelio quer que eu cuide do menino. Fico passeando com ele. Custa trabalho<br />

atender às duas coisas: ao menino e ao telégrafo, enquanto ele vive tomando cervejas no bilhar. Além<br />

disso não me paga nada.<br />

-Não está ali para ganhar dinheiro, senão para aprender; quando já souber algo, então poderá ser<br />

exigente. Por agora é apenas um aprendiz; talvez amanhã ou depois chegue a ser você o chefe. Mas<br />

para isso precisa-se de paciência e, mais que tudo, humildade. Se o põem a passear com o menino,<br />

faça-o, pelo amor de Deus. É necessário que se resigne.<br />

-Que se resignem outros, vovó, eu não estou para resignações.<br />

-Você e suas esquisitices! Sinto que vai se dar mal, <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>.<br />

-O que há, dona Eduviges?<br />

Ela sacudiu a cabeça como se despertasse de um sonho.<br />

-É o cavalo de Miguel <strong>Páramo</strong>, que galopa pelo caminho da Media Luna.<br />

-Então vive alguém na Media Luna?<br />

-Não, ali não vive ninguém.<br />

-Então?<br />

-Somente é o cavalo que vai e vem. Eles eram inseparáveis. Corre por todas as partes<br />

procurando-o e sempre regressa a estas horas. Talvez o pobre não possa com seu sofrimento. Como<br />

até os animais se dão conta de quando cometem um crime, não?<br />

-Não entendo. Nem ouvi nenhum ruído de nenhum cavalo.<br />

-Não?<br />

-Não.<br />

-Então é coisa de meu sexto sentido. Um dom que Deus me deu; ou talvez seja uma maldição. Só<br />

eu sei o que sofri por causa disto.<br />

Guardou silêncio por um momento e logo acrescentou:


-Tudo começou com Miguel <strong>Páramo</strong>. Só eu soube o que se passou na noite em que morreu. Eu<br />

estava deitada quando ouvi regressar seu cavalo rumo à Media Luna. Estranhei porque nunca voltava a<br />

essas horas. Sempre o fazia entrada a madrugada. Ia conversar com sua noiva num povoado chamado<br />

Contla, algo distante daqui. Saía cedo e demorava a voltar. Mas essa noite não regressou… Ouve<br />

agora? Está claro que ouve. Vem de regresso.<br />

-Não ouço nada.<br />

-Então é coisa minha. Bom, como lhe estava dizendo, isso de que não regressou é puro modo de<br />

dizer. Não havia acabado de passar seu cavalo quando senti que batiam em minha janela. Saiba se foi<br />

ilusão minha. O certo é que algo me obrigou a ir ver quem era. E era ele, Miguel <strong>Páramo</strong>. Não estranhei<br />

vê-lo, pois houve um tempo que passava as noites em minha casa dormindo comigo, até que encontrou<br />

essa garota que lhe acabou com o juízo.<br />

“-Que foi? -disse a Miguel <strong>Páramo</strong>-. Deram-lhe o fora?”<br />

“-Não. Ela continua amando-me -disse-me. O que acontece é que não pude encontrá-la. Perdi o<br />

povoado. Havia muita neblina ou fumaça ou não sei quê: mas sei sim que Contla não existe. Fui mais<br />

além segundo meus cálculos, e não encontrei nada. Venho contar a você, porque sempre me<br />

compreende. Se eu o dissesse aos outros de Comala diriam que estou louco, como sempre dizem que<br />

estou.”<br />

“-Não. Louco não, Miguel. Deve estar morto. Recorde que lhe disseram que esse cavalo ia matá-lo<br />

um dia. Recorde, Miguel <strong>Páramo</strong>. Talvez se pôs a fazer loucuras e isso já é outra coisa.<br />

-Só saltei o muro de pedra que ultimamente mandou colocar meu pai. Fiz com que o Colorado o<br />

saltasse para não dar essa volta tão grande que há que se fazer agora para encontrar o caminho. Sei<br />

que o saltei e depois continuei correndo; mas, como lhe digo, não havia mais que fumaça e fumaça e<br />

fumaça.”<br />

“-Amanhã seu pai se torcerá de dor -disse-lhe-. Sinto por ele. Agora vá e descanse em paz,<br />

Miguel. Agradeço que tenha vindo se despedir de mim.<br />

“E fechei a janela. Antes de amanhecer um empregado da Media Luna veio dizer: -O patrão dom<br />

<strong>Pedro</strong> lhe suplica. O menino Miguel morreu. Suplica-lhe sua companhia.<br />

“-Já sei -disse-lhe. Pediram a você que chorasse?<br />

“-Sim, dom Fulgor me disse que eu o dissesse chorando.<br />

“-Está bem. Diga a dom <strong>Pedro</strong> que irei lá. Faz muito que o trouxeram?<br />

“Não faz nem meia hora. Se fosse antes, talvez se houvesse salvo. Embora, segundo o doutor<br />

que o apalpou, já estivesse frio há algum tempo. Soubemos porque o Colorado voltou sozinho e se pôs<br />

tão inquieto que não deixou ninguém dormir. A senhora sabe como se queriam ele e o cavalo, e até<br />

estou para crer que o animal sofre mais que dom <strong>Pedro</strong>. Não comeu nem dormiu e não pára de apenas<br />

perambular. Como que sabe, sabe a senhora? Como que se sente despedaçado e carcomido por<br />

dentro.<br />

“Não se esqueça de fechar a porta quando se for.<br />

“E o empregado da Media Luna se foi.”<br />

-Ouviu alguma vez o queixume de um morto? -perguntou-me.<br />

-Não, dona Eduviges.<br />

-Bom para você.


No hidrante as gotas caem uma atrás da outra. Ouve-se, saída da pedra, a água clara cair sobre o<br />

cântaro. Ouve-se. Ouvem-se rumores; pés que raspam o chão, que caminham, que vão e vêm. As<br />

gotas continuam caindo sem cessar. O cântaro transborda fazendo rolar a água sobre um chão<br />

molhado.<br />

“Desperte!”, dizem-lhe.<br />

Reconhece o som da voz. Trata de adivinhar quem é; mas o corpo se afrouxa e cai adormecido,<br />

esmagado pelo peso do sono. Mãos esticam as cobertas prendendo-se nelas, e debaixo de seu calor o<br />

corpo se esconde buscando a paz.<br />

“Desperte!”, voltam a dizer.<br />

A voz sacode os ombros. Faz endireitar o corpo. Entreabre os olhos. Ouvem-se as gotas de água<br />

que caem do hidrante sobre o cântaro raso. Ouvem-se passos que se arrastam… E o pranto.<br />

Então ouviu o pranto. Isso o despertou: um pranto suave, baixo, que talvez por ser baixo pôde<br />

atravessar o emaranhado do sono, chegando até o lugar onde se aninham os sobressaltos.<br />

Levantou-se devagar e viu o rosto de uma mulher encostada no batente da porta, obscurecida<br />

ainda pela noite, soluçando.<br />

-Por que chora, mamãe? -perguntou, pois quando pôs os pés no chão reconheceu o rosto de sua<br />

mãe.<br />

-Seu pai morreu -disse-lhe.<br />

E logo, como se lhe houvessem soltado as molas de seu sofrimento, deu volta sobre si mesma<br />

uma e outra vez, uma e outra vez, até que mãos chegaram até seus ombros e conseguiram deter o<br />

agitar de seu corpo.<br />

Pela porta se via o amanhecer no céu. Não havia estrelas. Só um céu brumado, cinzento, ainda<br />

não clareado pela luminosidade do sol. Uma luz parda, não como se fora começar o dia, mas como se<br />

apenas estivesse chegando o princípio da noite.<br />

Fora, no pátio, os passos, como de gente que ronda. Ruídos calados. E aqui, aquela mulher, de<br />

pé no umbral; seu corpo impedindo a chegada do dia; deixando aparecer, através de seus braços,<br />

retalhos de céu, e debaixo de seus pés regos de luz. E depois o soluço. Outra vez o pranto suave mas<br />

agudo, e o sofrimento fazendo retorcer seu corpo.<br />

-Mataram seu pai.<br />

-E quem matou você, mãe?<br />

“Há ar e sol, há nuvens. Lá em cima um céu azul e atrás dele talvez haja canções; talvez melhores<br />

vozes… Há esperança, em suma. Há esperança para nós, apesar de nós.<br />

“Mas não para você, Miguel <strong>Páramo</strong>, que morreu sem perdão e não alcançará nenhuma graça.”<br />

O padre Rentería voltou o corpo e entregou a missa ao passado. Apressou-se por terminar logo e<br />

saiu sem dar a bênção final àquela gente que enchia a igreja.<br />

-Padre, queremos que nos abençoe!<br />

-Não! <strong>–</strong>disse movendo negativamente a cabeça. Não o farei. Foi um mau homem e não entrará no<br />

Reino dos Céus. Deus me levará a mal se interceder por ele.<br />

Dizia-o, enquanto tratava de conter suas mãos para que não percebessem seu tremor. Mas foi.<br />

Aquele cadáver pesava muito no ânimo de todos. Estava sobre um estrado, no meio da igreja,<br />

rodeado de círios novos, de flores, de um padre que estava detrás dele, só, esperando que terminasse<br />

o velório.


O padre Rentería passou junto a <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> procurando não roçar-lhe os ombros. Levantou o<br />

hissope com gestos suaves e aspergiu a água benta de cima a baixo, enquanto saía de sua boca um<br />

murmúrio, que podia ser de orações. Depois se ajoelhou e todo mundo se ajoelhou com ele:<br />

-Tenha piedade de seu servo, Senhor.<br />

-Que descanse em paz, amém -responderam as vozes.<br />

E quando começava a encher-se novamente de cólera, viu que todos abandonavam a igreja<br />

levando o cadáver de Miguel <strong>Páramo</strong>.<br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> aproximou-se, ajoelhando-se a seu lado:<br />

-Eu sei que o senhor o odiava, padre. E com razão. O assassinato de seu irmão, que segundo<br />

rumores foi cometido por meu filho, o caso de sua sobrinha Ana, violada por ele segundo o seu juízo; as<br />

ofensas e falta de respeito que ele teve em certas ocasiões, são motivos que qualquer um pode admitir.<br />

Mas esqueça-se agora, padre. Considere-o e perdoe como talvez Deus o haja perdoado.<br />

Pôs sobre o genuflexório um punhado de moedas de ouro e se levantou:<br />

-Receba isso como uma esmola para sua igreja.<br />

A igreja estava já vazia. Dois homens esperavam à porta por <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>, que se juntou a eles,<br />

e juntos seguiram o féretro que aguardava descansando sobre os ombros de quatro boiadeiros da<br />

Media Luna. O padre Renteria recolheu as moedas uma a uma e aproximou-se do altar.<br />

-São suas -disse-. Ele pode comprar a salvação. Você sabe se este é o preço. Quanto a mim,<br />

Senhor, ponho-me ante seus pés para pedir-lhe o justo ou o injusto, que tudo isto nos é dado pedir…<br />

Por mim condene-o, Senhor.<br />

E fechou o sacrário.<br />

Entrou na sacristia, jogou-se em um canto, e ali chorou de pena e de tristeza até esgotar suas<br />

lágrimas.<br />

-Está bem, Senhor, você ganha -disse depois.<br />

Durante o jantar tomou seu chocolate como todas as noites. Sentia-se tranqüilo.<br />

-Ouça, Anita. Sabe a quem enterraram hoje?<br />

-Não, tio.<br />

-Lembra de Miguel <strong>Páramo</strong>?<br />

-Sim, tio.<br />

-Pois a ele.<br />

Ana abaixou a cabeça.<br />

-Está certa de que foi ele, verdade?<br />

-Certa não, tio. Não lhe vi o rosto. Agarrou-me de noite e no escuro.<br />

-Então como soube que era Miguel <strong>Páramo</strong>?<br />

-Porque ele me disse: “Sou Miguel <strong>Páramo</strong>, Ana. Não se assuste.” Isso ele me disse.<br />

-Mas sabia que era ele o autor da morte de seu pai, não?<br />

-Sim, tio.<br />

-Então o que fez para afastá-lo?<br />

-Não fiz nada.


Os dois fizeram silêncio por um tempo. Ouvia-se o ar tíbio entre as folhas de murta.<br />

-Disse-me que precisamente por isso vinha: para pedir-me desculpas e que eu lhe perdoasse.<br />

Sem mover-me da cama avisei-lhe: “A janela está aberta.” E ele entrou. Chegou abraçando-me, como<br />

se essa fosse a forma de desculpar-se do que havia feito. E eu lhe sorri. Pensei no que o senhor havia<br />

me ensinado: que nunca há que se odiar ninguém. Sorri-lhe para dizê-lo; mas depois pensei que ele<br />

não pôde ver meu sorriso, porque eu não o via, pelo escura que estava a noite. Somente o senti em<br />

cima de mim e que começava a fazer coisas más comigo.<br />

“Achei que ia matar-me. Isso foi o que achei, tio. E até deixei de pensar para morrer antes que ele<br />

me matasse. Mas certamente não se atreveu a fazê-lo.<br />

“Soube-o quando abri os olhos e vi a luz da manhã que entrava pela janela aberta. Antes dessa<br />

hora, senti que havia deixado de existir.”<br />

-Mas deve ter alguma certeza. A voz. Não o conheceu por sua voz?<br />

-Não o conhecia por nada. Só sabia que havia matado meu pai. Nunca o havia visto e depois não<br />

o cheguei a ver. Não teria podido, tio.<br />

-Mas sabia quem era.<br />

-Sim. E que coisa era. Sei que agora deve estar no próprio fundo do inferno; porque assim eu pedi<br />

a todos os santos com todo meu fervor.<br />

-Não esteja tão convencida disso, filha. Quem sabe quantos estão rezando agora por ele! Você<br />

está só. Um rogo contra milhares de rogos. E entre eles, alguns muito mais profundos que o seu, como<br />

é o do pai dele.<br />

Ia dizer-lhe: “Além disso, eu lhe dei o perdão.” Mas só o pensou. Não quis maltratar a alma meio<br />

quebrada daquela menina. Antes, pelo contrário, tomou-a pelo braço e lhe disse:<br />

-Demos graças a Deus Nosso Senhor porque o levou desta terra onde causou tanto mal, não<br />

importa que agora o tenha em seu céu.<br />

Um cavalo passou a galope onde se cruza a rua principal ao caminho de Contla. Ninguém o viu.<br />

Entretanto, uma mulher que esperava nas imediações do povoado contou que havia visto o cavalo<br />

correndo com as pernas dobradas como se estivesse indo de bruços. Reconheceu o alazão de Miguel<br />

<strong>Páramo</strong>. E até pensou: “Esse animal vai quebrar a cabeça.” Logo viu quando endireitou o corpo e, sem<br />

afrouxar a carreira, caminhava com o pescoço virado para trás como se viesse assustado por algo que<br />

havia deixado lá atrás.<br />

Esses mexericos chegaram à Media Luna na noite do enterro, enquanto os homens descansavam<br />

da grande caminhada que haviam feito até o jazigo. Conversavam, como se conversa em todos os<br />

lugares, antes de ir dormir.<br />

-A mim me doeu muito este morto -disse Terencio Lubianes-. Ainda trago doloridos os ombros.<br />

-Também a mim -disse seu irmão Ubillado-. Até aumentaram meus joanetes. Com isso de que o<br />

patrão quis que todos fôssemos de sapatos. Como se houvesse sido dia de festa, verdade, Toribio?<br />

-Eu, que querem que lhes diga? Penso que morreu já era sem tempo.<br />

Nesse tempo chegaram mais mexericos de Conta. Trouxe-os o último carro.<br />

-Dizem que por lá anda a alma. Viram-na batendo na janela de fulaninha. Igualzinho a ele. De<br />

gibão e tudo.<br />

-E o senhor crê que dom <strong>Pedro</strong> com o gênio que tem ia permitir que seu filho siga assediando<br />

mulheres? Já o imagino se soubesse: “Bom -lhe diria-. Você já está morto. Fique quieto em sua<br />

sepultura. Deixa o negócio para nós.” E ao vê-lo por aí, quase aposto que o mandaria de novo para o<br />

campo santo.


-Tem razão, Isaías. Esse velho não permite certas coisas.<br />

O carreteiro seguiu seu caminho: “Como o soube, endosso-o.”<br />

Havia estrela fugazes. Caíam como se o céu estivesse chuviscando fogo.<br />

-Olhem só -disse Terencio- o escândalo que se faz lá em cima.<br />

-É que estão celebrando a festa de Miguelzinho <strong>–</strong>conviu Jesus.<br />

-Não será mau sinal?<br />

-Para quem?<br />

-Talvez sua irmã esteja saudosa por seu regresso.<br />

-A quem fala?<br />

-A você.<br />

-Melhor irmos, rapazes. Cavaqueamos muito e amanhã há que madrugar.<br />

E se dissolveram como sombras.<br />

Havia estrelas fugazes. As luzes em Comala se apagaram.<br />

Então o céu se apossou da noite.<br />

O padre Rentería revirava na cama sem poder dormir:<br />

“Tudo isto que acontece é por minha culpa -se disse-. O temor de ofender àqueles que me<br />

sustêm. Porque esta é a verdade; eles me dão meu mantimento. Dos pobres não consigo nada; as<br />

orações não enchem o estômago. Assim tem sido até agora. E estas são as conseqüências. Minha<br />

culpa. Traí aqueles que me querem e que me deram sua fé e me procuram para que eu interceda por<br />

eles com Deus. Mas o que conseguiram com sua fé? A obtenção do céu? Ou a purificação de suas<br />

almas? E para quê purificam sua alma, se no último momento… Ainda tenho frente a meus olhos o<br />

olhar de María Dyada, que veio pedir-me que salvasse sua irmã Eduviges:<br />

“-Ela serviu sempre a seus semelhantes. Deu-lhes tudo o que teve. Até lhes deu um filho, a todos.<br />

E pôs-se a sua frente para que alguém o reconhecesse como seu; mas ninguém quis fazê-lo. Então<br />

lhes disse: Nesse caso eu sou também seu pai, ainda que por casualidade tenha sido sua mãe.<br />

Abusaram de sua hospitalidade por essa bondade de não querer ofendê-los nem de ficar mal com<br />

nenhum.<br />

“-Mas ela suicidou-se. Agiu contra a mão de Deus.<br />

“-Não lhe restava outro caminho. Resolveu-se a isso também por bondade.<br />

“-Falhou na última hora -isso é o que lhe disse-. No último momento. Tantos bens acumulados<br />

para sua salvação, e perdê-los assim de uma vez!<br />

“-Mas não, não os perdeu. Morreu com muitas dores. E a dor… O senhor nos disse algo sobre a<br />

dor que já não recordo. Ela se foi por essa dor. Morreu retorcida pelo sangue que a afogava. Ainda vejo<br />

seus esgares, e seus esgares eram os mais tristes gestos que fez um ser humano.<br />

“-Talvez rezando muito.<br />

“Vamos rezando muito, padre.<br />

“-Digo talvez, se acaso, com as missas gregorianas, mas para isso necessitamos pedir ajuda,<br />

mandar trazer sacerdotes. E isso custa dinheiro.<br />

“Ali estava frente a meus olhos o olhar de María Dyada, uma pobre mulher cheia de filhos.<br />

“-Não tenho dinheiro. Isso o senhor sabe, padre.


“-Deixemos as coisas como estão. Esperemos em Deus.<br />

“-Sim, padre.”<br />

Por que aquele olhar se voltava valente contra a resignação? Que lhe custava a ele perdoar,<br />

quando era tão fácil dizer uma palavra ou duas, ou cem palavras se estas fossem necessárias para<br />

salvar a alma. Que sabia ele do céu e do inferno? E sem dúvida ele, perdido em um povoado sem<br />

nome, sabia os que haviam merecido o céu. Havia um catálogo. Começou a percorrer os santos do<br />

panteão católico começando pelos do dia: “Santa Nunilona, virgem e mártir; Anercio, bispo; santas<br />

Salomé, viúva, Alodia ou Elodia e Nulina, virgens; Córdula e Donato.” E continuou. Já ia sendo<br />

dominado pelo sono quando se sentou na cama. “Estou repassando uma fileira de santos como se<br />

estivesse vendo saltar cabras.”<br />

Saiu lá fora e olhou o céu. Choviam estrelas. Lamentou aquilo porque quisera ver um céu quieto.<br />

Ouviu o canto dos galos. Sentiu o envolver da noite cobrindo a terra. A terra, “esta vale de lágrimas”.<br />

-Bom para você, filho. Bom para você -disse-me Eduviges Dyada.<br />

Já ia alta a noite. A chama que ardia num canto começou a enfraquecer; logo piscou e acabou<br />

apagando.<br />

Senti que a mulher se levantava e pensei que iria por uma nova luz. Ouvi seus passos cada vez<br />

mais distantes. Fiquei esperando.<br />

Passado um tempo e ao ver que não voltava, me levantei também. Fui caminhando a passos<br />

curtos, tateando na escuridão, até que cheguei a meu quarto. Ali me sentei no chão a esperar o sono.<br />

Dormi por pausas.<br />

Em uma dessas pausas foi quando ouvi o grito. Era um grito arrastado, como o alarido de algum<br />

bêbado: “-Ai vida, você não me merece!”<br />

Endireitei-me depressa porque quase o ouvi junto a meus ouvidos; pode ter sido na rua; mas eu o<br />

ouvi junto às parentes de meu quarto. Ao despertar, tudo estava em silêncio; só o cair da traça e o<br />

rumor do silêncio.<br />

Não, não era possível calcular a fundura do silêncio que produziu aquele grito. Como se a terra se<br />

houvesse esvaziado de seu ar. Nenhum som; nem o do arquejo, nem o do pulsar do coração; como se<br />

se detivesse o próprio ruído da consciência. E quando terminou a pausa e tornei a tranqüilizar-me,<br />

voltou o grito e se continuou ouvindo por um largo tempo: “Deixem-me ainda que seja o direito de<br />

esperneio que têm os enforcados”!<br />

Então abriram de par em par a porta.<br />

-É a senhora, dona Eduviges? -perguntei-. O que está acontecendo? A senhora teve medo?<br />

-Não me chamo Eduviges. Sou Damiana. Soube que estava aqui e vim vê-lo. Quero convidá-lo a<br />

dormir em minha casa. Ali terá onde descansar.<br />

-Damiana Cisneros? Não é a senhora das que viveram na Media Luna?<br />

- Lá eu vivo. Por isso demorei a vir.<br />

-Minha mãe me falou de uma tal Damiana que cuidava de mim quando nasci. De modo que a<br />

senhora…?<br />

-Sim, sou. Conheço você desde que abriu os olhos.<br />

-Irei com a senhora. Aqui não me deixaram em paz os gritos. Não ouviu o que se estava<br />

passando? Como se estivessem assassinando alguém. Não acaba a senhora de ouvir?


- Talvez seja algum eco que está aqui trancado. Neste quarto enforcaram Toribio Aldrete faz muito<br />

tempo. Logo lacraram a porta, até que ele secasse; para que seu corpo não encontrasse repouso. Não<br />

sei como você pôde entrar, já que não existe chave para abrir esta porta.<br />

Foi dona Eduviges quem abriu. Disse-me que era o único quarto que tinha disponível.<br />

-Eduviges Dyada?<br />

-Ela.<br />

-Pobre Eduviges. Deve andar penando ainda.<br />

“Fulgor Sedano, homem de 54 anos, solteiro, de ofício administrador, apto para iniciar e seguir<br />

pleitos, por poder e por meu próprio direito, reclamo e alego o seguinte…”<br />

Isso havia dito quando levantou a ata contra atos de Toribio Aldrete. E terminou: “Que conste<br />

minha acusação por usufruto.”<br />

-Ao senhor não há quem tire a razão, dom Fulgor. Sei que o senhor tem força para isso. E não<br />

pelo poder que tem por trás, mas pelo senhor mesmo.<br />

Recordava-se. Foi a primeira coisa que lhe disse o Aldrete, depois que haviam estado se<br />

embebedando juntos, diz que para celebrar a ata:<br />

-Com esse papel vamo-nos limpar o senhor e eu, dom Fulgor, porque não vai servir para outra<br />

coisa. E isso o senhor sabe. Enfim, pelo que respeita ao senhor, já cumpriu com o que lhe mandaram, e<br />

a mim me livrou de apurações; porque o senhor me tinha preocupado, pelo que seja de cada um. Agora<br />

sei de que se trata e me dá riso. Diz que “usufruto”. Vergonha devia dar a seu patrão ser tão ignorante.<br />

Recordava-se. Estavam na hospedaria de Eduviges. E até ele lhe havia perguntado:<br />

-Ouça, Viges. Pode me emprestar o quarto do canto?<br />

-Os que o senhor queira, dom Fulgor; se quiser, ocupem-nos todos. Vão ficar para dormir aqui<br />

seus homens?<br />

-Não, apenas um. Despreocupe-se de nós e vai dormir. Apenas deixe-nos a chave.<br />

-Pois já lhe digo, dom Fulgor -disse-lhe Toribio Aldrete-. Ao senhor não há quem menoscaiba o<br />

homem que é; mas não suporto esse filho da puta de seu patrão.<br />

Recordava-se. Foi a última coisa que o ouviu dizer ainda em seus cinco sentidos. Depois se havia<br />

comportado como um covarde, dando gritos. “Diz que a força que eu tinha por trás. Vá!”<br />

Bateu com o cabo do chicote na porta da casa de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>. Pensou na primeira vez que o<br />

havia feito, duas semanas atrás. Esperou um bom tempo do mesmo modo que teve de esperar aquela<br />

vez. Olhou também, como fez da outra vez, o coque negro de fitas que pendia do marco da porta. Mas<br />

não comentou consigo mesmo: “Vá! Colocaram mais. A primeira já está descolorida, a último reluz<br />

como se fosse de seda; ainda que não seja mais que um trapo tingido.”.<br />

Na primeira vez esteve esperando até chegar à conclusão de que talvez a casa estivesse<br />

desabitada. E já se ia quando apareceu a figura de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>.<br />

-Entre, Fulgor.<br />

Era a segunda ocasião que se viam. Na primeira, apenas ele o viu; porque o Pedrito era recémnascido.<br />

E esta. Quase se podia dizer que era a primeira vez. E aconteceu que lhe falava como a um<br />

igual. Vá! Seguiu-o com passadas largas, chicoteando-se as pernas: “Saberá logo que eu sou o que<br />

sabe. Saberá. E a que venho.”<br />

-Sente-se, Fulgor. Aqui falaremos com mais calma.


Estavam no curral. <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> escarrapachou-se numa manjedoura e esperou:<br />

- Por que não se senta?<br />

-Prefiro estar de pé, <strong>Pedro</strong>.<br />

-Como queira. Mas não esqueça o “dom”.<br />

Quem era aquele menino para falar-lhe assim? Nem seu pai, dom Lucas <strong>Páramo</strong>, se havia<br />

atrevido a fazê-lo. E logo este, que jamais havia parado na Media Luna, nem conhecia de ouvido o<br />

trabalho, lhe falava como a um colono. Vá, pois!<br />

-Como está aquilo?<br />

Sentiu que chegava sua oportunidade. “Agora é comigo”, pensou.<br />

-Mal. Não resta nada. Vendemos o último gado.<br />

Começou a tirar os papéis para informar-lhe a quanto subia ainda a dívida. E já ia dizendo;<br />

“Devemos tanto”, quando ouviu:<br />

-A quem devemos? Não me importa quanto, mas a quem.<br />

Repassou-lhe uma lista de nomes. E terminou:<br />

-Não há de onde tirar para pagar. Esse é o assunto.<br />

-E por quê?<br />

-Porque a família do senhor gastou tudo. Pediam e pediam, sem devolver nada. Isso se paga<br />

caro. Eu já dizia: “À larga acabarão com tudo.” Bom, pois acabaram. Embora haja por aí quem se<br />

interesse em comprar os terrenos. E pagam bem. Poder-se-iam cobrir as letras pendentes e ainda<br />

sobraria algo; ainda que, isso sim, algo reduzido.<br />

-Não será você?<br />

-Como crê que eu!<br />

-Eu creio até no bendito. Amanhã começaremos a arranjar nossos assuntos. Começaremos pelas<br />

Preciados. Diz que a elas devemos mais?<br />

-Sim. E a que temos pago menos. O pai do senhor sempre as deixou para o fim. Tenho ouvido<br />

que uma delas, Matilde, foi viver na cidade. Não sei se em Guadalajara ou Colima. E a Lola, quero<br />

dizer, dona Dolores, ficou como dona de tudo. O senhor sabe: o rancho de Enmedio. E é a ela que<br />

temos de pagar.<br />

-Amanhã vai pedir a mão de Lola.<br />

-Mas como quer o senhor que me queira, se já estou velho.<br />

-Pedir-lhe-á para mim. Além do mais tem alguma graça. Dir-lhe-á que estou muito enamorado<br />

dela. E que a tenho em boa conta. De passagem, diga ao padre Rentería que nos oficie o combinado.<br />

Com quanto dinheiro conta?<br />

-Com nenhum, dom <strong>Pedro</strong>.<br />

-Pois prometa-lhe. Diga-lhe que em se tendo se o pagará. Quase estou seguro de que não porá<br />

dificuldade. Faz isso amanhã mesmo.<br />

-E o do Aldrete?<br />

-O que tem o Aldrete? Você me mencionou as Preciados e os Fregosos e os Guzmanes. Como<br />

que sai agora com o Aldrete?<br />

-Questão de limites. Ele já mandou cercar e agora pede que façamos o muro que falta para fazer<br />

a divisão.


-Isso deixa para depois. Não lhe preocupem os muros. Não haverá muros. A terra não tem<br />

divisões. Pense-o, Fulgor, ainda que não o dê a entender. Arranja de imediato o da Lola. Não quer<br />

sentar-se?<br />

-Sentar-me-ei, dom <strong>Pedro</strong>. Palavra que estou gostando de tratar com o senhor.<br />

-Dirá a Lola isto e aquilo e que a amo. Isso é importante. Por certo, Sedano, amo-a. Por seus<br />

olhos, sabe? Isso fará amanhã cedinho. Reduzo sua tarefa de administrador. Esqueça-se da Media<br />

Luna.<br />

“De onde diabos tirou essas manhas o rapaz? -pensou Fulgor Sedano enquanto regressava à<br />

Media Luna-. Eu não esperava dele nada. „É um inútil‟, dizia dele meu defunto patrão dom Lucas. Um<br />

frouxo de marca. Eu lhe dava razão. „Quando eu morrer busque outro trabalho, Fulgor‟. „Sim, dom<br />

Lucas‟. „Digo, Fulgor, que intentei mandá-lo ao seminário para ver se ao menos isso lhe dá de comer e<br />

manter sua mãe quando eu lhes falte; mas nem a isso se decide‟. „O senhor não merece isso, dom<br />

Lucas.‟ „Não se conta com ele para nada, nem para que me sirva de bordão servirá quando eu estiver<br />

velho. Foi um malogro, que quer o senhor, Fulgor‟. „É uma verdadeira lástima, dom Lucas.‟”<br />

E agora isto. Por não ter sido porque estava tão afeiçoado à Media Luna, nem o tinha vindo ver.<br />

Teria ido embora sem avisar-lhe. Mas tinha apreço àquela terra; a essas colinas raspadas tão<br />

trabalhadas e que ainda continuavam agüentando o sulco, dando cada vez mais de si… A querida<br />

Media Luna… E seus agregados: “Vem para cá terrinha de Enmedio.” Via-a vir. Como se aqui já<br />

estivesse. O que significa uma mulher depois de tudo. “Vá que sim!” eu disse. E chicoteou suas pernas<br />

ao transpor a porta grande da fazenda.<br />

Foi muito fácil convencer Dolores. Se até lhe brilharam os olhos e se lhe descompôs o rosto.<br />

-Perdoe-me que me ponha vermelha, dom Fulgor. Não pensei que dom <strong>Pedro</strong> se fixasse em mim.<br />

-Não dorme, pensando na senhora.<br />

-Mas se ele tem onde escolher. Abundam tantas garotas bonitas em Comala. Que dirão elas<br />

quando o saibam?<br />

-Ele só pensa na senhora, Dolores. Daí em diante, em ninguém.<br />

-O senhor faz que me dêem calafrios, dom Fulgor. Nem sequer o imaginava.<br />

-É que é um homem tão reservado. Dom Lucas <strong>Páramo</strong>, que em paz descanse, chegou a dizerlhe<br />

que a senhora não era digna dele. E calou a boca por pura obediência. Agora que ele já não existe,<br />

não há nenhum impedimento. Foi sua primeira decisão, ainda que eu houvesse demorado em cumpri-la<br />

devido a meus muitos afazeres. Marquemos a data da boda para depois de amanhã. Que opina a<br />

senhora?<br />

-Não é muito rápido? Não tenho nada preparado. Necessito preparar o enxoval. Escreverei a<br />

minha irmã. Ou não, melhor, vou mandar-lhe um mensageiro, mas de qualquer maneira não estarei<br />

pronta antes do oito de abril. Hoje estamos a um. Sim, apenas para o oito. Diga-lhe que espere uns<br />

diazinhos.<br />

-Ele queria que fosse agora mesmo. Se é pelo enxoval, nós o proporcionamos. A defunta mãe de<br />

dom <strong>Pedro</strong> espera que a senhora vista suas roupas. Na família existe esse costume.<br />

-Mas além disso há algo para estes dias. Coisas de mulheres, o senhor sabe. Oh!, quanta<br />

vergonha me dá dizer-lhe isso, dom Fulgor. O senhor faz com que me sumam as cores. Toca-me a lua,<br />

oh!, que vergonha.<br />

-Mas quê? Casamento não é assunto para se há ou não lua. É coisa de amarr-se. E, havendo<br />

isso, tudo o demais fica sobrando.


--Mas é que o senhor não me entende, dom Fulgor.<br />

-Entendo. A boda será depois de amanhã.<br />

E a deixou com os braços estendidos pedindo oito dias, nada mais que oito dias.<br />

“Que eu não esqueça de dizer a dom <strong>Pedro</strong> <strong>–</strong>vá que rapaz apressado esse <strong>Pedro</strong>!- dizer-lhe que<br />

não se esqueça de dizer ao juiz que os bens são em comunhão. „Lembre-se, Fulgor, de dizer-lhe<br />

amanhã mesmo.‟”<br />

Dolores, em troca, correu à cozinha com um bule para pôr água quente. “Vou fazer com que isso<br />

baixe mais rápido. Que baixe esta mesma noite. Mas de todas as maneiras me durará meus três dias.<br />

Não haverá remédio. Que felicidade! Oh, que felicidade! Graças, Deus meu, por dar-me dom <strong>Pedro</strong>.” E<br />

acrescentou: “Ainda que depois me aborreça.”<br />

-Já está pedida e muito de acordo. O padre quer sessenta pesos para passar por alto pelos<br />

proclamas. Disse-lhe que se os dariam a seu devido tempo. Ele disse que lhe faz falta compor o altar e<br />

que a mesa de sua sala de jantar está toda estropiada. Prometi-lhe que lhe mandaríamos uma mesa<br />

nova. Disse que o senhor nunca vai à missa. Prometi-lhe que iria. E que desde que morreu sua avó não<br />

lhe deram os dízimos. Disse-lhe que não se preocupasse. Está conforme.<br />

-Não pediu algo adiantado a Dolores?<br />

-Não, patrão. Não me atrevi. Essa é a verdade. Estava tão contente que não quis estragar seu<br />

entusiasmo.<br />

-Você é uma criança.<br />

“Vá! Eu uma criança. Com 55 anos em cima. Ele apenas começando a viver e eu a poucos passos<br />

da morte.”<br />

-Não quis quebrar-lhe o contentamento.<br />

-Apesar de tudo, você é uma criança.<br />

-Está bem, patrão.<br />

-Semana que entra irá ao Aldrete. E lhe diz que retire o muro. Invadiu terras da Media Luna.<br />

-Ele fez bem suas medições. A mim me consta.<br />

-Pois diga-lhe que se equivocou. Que foi mal calculado. Derrube os muros se for preciso.<br />

-E as leis?<br />

-Que leis, Fulgor? A lei de agora em diante vamos fazê-la nós. Você tem trabalhando na Media<br />

Luna algum bandido?<br />

-Sim, há um ou outro.<br />

-Pois mande-os em comissão ao Aldrete. Levanta-lhe uma ata acusando-o de “usufruto” ou o que<br />

lhe ocorra. E recorde-lhe que Lucas <strong>Páramo</strong> já morreu. Que comigo há que se fazer novos tratos.<br />

O céu ainda estava azul. Havia poucas nuvens. O ar soprava lá em cima, embora aqui em baixo<br />

se convertesse em calor.<br />

Bateu novamente com o cabo do chicote, apenas para insistir, já que sabia que não abririam até<br />

que fosse vontade de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>. Disse olhando para o marco da porta: “São bonitos esses coques<br />

negros, a quem interessem.”<br />

Nesse momento abriram e ele entrou.<br />

-Entre, Fulgor. Está acertado o assunto de Toribio Aldrete?


-Está liquidado, patrão.<br />

-Falta-nos a questão dos Fregosos. Deixe isso pendente. Agorinha estou muito ocupado com<br />

minha “lua-de-mel”.<br />

-Este povoado está cheio de ecos. Parece que estiveram presos no oco das paredes ou debaixo<br />

das pedras. Quando você caminha, sente que lhe vão pisando os passos. Ouve rangidos. Risos. Uns<br />

risos já muito velhos, como cansados de rir. E vozes já desgastadas pelo uso. Tudo isso você ouve.<br />

Penso que chegará o dia em que estes sons se apaguem.<br />

Isso me vinha dizendo Damiana Cisneros enquanto cruzávamos o povoado.<br />

-Houve um tempo em que estive ouvindo durante muitas noites o rumor de uma festa. Chegavam<br />

os ruídos até a Media Luna. Acerquei-me para ver a festança e vi isto: o que estamos vendo agora.<br />

Nada. Ninguém. As ruas tão sós como agora.<br />

Logo deixei de ouvi-la. É que a alegria cansa. Por isso não estranhei que aquilo terminasse.<br />

“Sim -tornou a dizer Damiana Cisneros-. Este povoado está cheio de ecos. Eu já não me espanto.<br />

Ouço o latido dos cachorros e deixo que latam. E nos dias de vento se o vê arrastando folhas de<br />

árvores, quando aqui, como vê, não há árvores. Houve-as em algum tempo, porque se não, de onde<br />

sairiam essas folhas?”<br />

“E o pior de tudo é quando você ouve conversar a gente, como se as vozes saíssem de alguma<br />

fenda e, no entanto, tão claras que você as reconhece. Sem mais nem menos, agora que vinha,<br />

encontrei um velório. Detive-me a rezar um pai-nosso. Nisso estava, quando uma mulher separou-se<br />

das demais e veio dizer-me:<br />

“-Damiana! Roga a Deus por mim, Damiana!<br />

“Soltou o rebuço e reconheci o rosto de minha irmã Sixtina.<br />

“-Que está fazendo aqui? -perguntei-lhe.<br />

“Então ela correu a esconder-se entre as outras mulheres.<br />

“Minha irmã Sixtina, se não sabe, morreu quando eu tinha doze anos. Era a mais velha. E em<br />

minha casa fomos dezesseis pessoas, assim que faça o cálculo do tempo que está morta. E veja-a<br />

agora, ainda vagando por este mundo. Assim, não se assuste se ouve ecos mais recentes, João<br />

Preciado”.<br />

-Também à senhora minha mãe avisou que eu viria? -perguntei-lhe.<br />

-Não. E a propósito, o que é de sua mãe?<br />

-Morreu -disse.<br />

-Já morreu? E de quê?<br />

-Não soube de quê. Talvez de tristeza. Suspirava muito.<br />

-Esse é o mal. Cada suspiro é como um gole de vida de que alguém se desfaz. De modo que<br />

morreu?<br />

-Sim. Talvez a senhora devia sabê-lo.<br />

-E por que ia sabê-lo? Há muitos anos que não sei nada.<br />

-Então, como é que a senhora me encontrou?<br />

-…<br />

-A senhora está viva, Damiana? Diga-me, Damiana!


E logo me encontrei sozinho naquelas ruas vazias. As janelas das casas abertas ao céu, deixando<br />

aparecer as varas flexíveis da erva. Paredes descascadas que mostravam seus adobes estragados.<br />

-Damiana! -gritei-. Damiana Cisneros!<br />

Respondeu-me o eco: “…ana …neros! …ana …neros!”<br />

Ouvi que os cachorros ladravam, como se eu os houvesse despertado.<br />

Vi um homem cruzar a rua:<br />

-Ei, você! -chamei.<br />

-Ei, você! -respondeu-me minha própria voz.<br />

E como se estivessem na virada da esquina, pude ouvir umas mulheres que conversavam.<br />

-Olha quem vem ali. Não é Filoteo Aréchiga?<br />

-É ele. Faça cara de dissimulação.<br />

-Melhor irmos. Se vem atrás de nós é que de verdade quer a uma das duas. A quem crê que<br />

segue?<br />

-Certamente a você.<br />

-A mim se me afigura que a você.<br />

-Parou de correr. Ficou parado naquela esquina.<br />

-Então a uma das duas, já vê?<br />

-Mas que tal se desse certo a você ou a mim. Que tal?<br />

-Não tenha ilusões.<br />

-Depois de tudo esteve até melhor. Dizem por aí os rumores que é ele quem se encarrega de<br />

arranjar garotas para dom <strong>Pedro</strong>. Do que nos escapamos.<br />

-Ah sim? Com esse velho não quero ter nada a ver.<br />

-Melhor irmos.<br />

-Diz bem. Vamos daqui.<br />

A noite. Muito mais além da meia-noite. E as vozes:<br />

-…Digo-lhe que se o milho deste ano der bem, terei com que pagar-lhe. Agora se me põe a<br />

perder, conforme-se.<br />

-Não lhe exijo. Já sabe que tenho sido conseqüente com você. Mas a terra não é sua. Colocou-se<br />

a trabalhar em terreno alheio. De onde vai conseguir para pagar-me?<br />

-E quem diz que a terra não é minha?<br />

-Afirma-se que a vendeu a <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>.<br />

-Eu não me aproximei desse senhor. A terra continua sendo minha.<br />

-Isso você diz. Mas por aí dizem que tudo é dele.<br />

-Que não me venham dizer a mim.<br />

-Olha, Galileo, eu a você, aqui em confiança, aprecio-o. Afinal é o marido de minha irmã. E de que<br />

a trata bem, não há quem duvide. Mas a mim não me vá negar que vendeu as terras.<br />

-Digo a você que a ninguém as vendi.


-Pois são de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>. Seguramente ele assim o dispôs. Não veio vê-lo dom Fulgor?<br />

-Não.<br />

-Certamente amanhã o verá vir. E se não amanhã, qualquer outro dia.<br />

-Pois me mata ou morre; mas não sairá com o seu.<br />

-Requiescat em paz, amém, cunhado. Por via das dúvidas.<br />

-Voltará a me ver, já o verá. Por mim não tenha cuidado. Por certo minha mãe me curtiu bem a<br />

pele para que ficasse dura.<br />

-Então até amanhã. Diga a Felícitas que esta noite não vou jantar. Não gostaria de contar depois:<br />

“Estive com ele na véspera.”<br />

-Guardar-lhe-emos algo se se animar na última hora.<br />

Ouviu-se a pancada dos passos que se iam entre um ruído de esporas.<br />

-…Amanhã, amanhecendo, irá comigo, Chona. Já tenho arriadas as bestas.<br />

-E se meu pai morre de raiva? Com o velho que está… Nunca me perdoaria se por minha causa<br />

lhe acontecesse algo. Sou a única pessoa que tem para fazê-lo fazer suas necessidades. E não há<br />

ninguém mais. Com que pressa corre para roubar-me? Agüente um pouquinho. Ele não demorará a<br />

morrer.<br />

-O mesmo me disse há um ano. E até me jogou na cara minha falta de ímpeto, já que você estava,<br />

segundo isso, farta de tudo. Aprontei as mulas e estão espertas. Vai comigo?<br />

-Deixe-me pensar.<br />

-Chona! Não sabe quanto gosto de você. Não posso agüentar a vontade, Chona. Ou vai comigo<br />

ou vai comigo.<br />

-Deixe-me pensar. Entenda. Temos de esperar que ele morra. Falta pouquinho. Então irei com<br />

você e não necessitará roubar-me.<br />

-Isso também me disse há uma ano.<br />

-E daí?<br />

-Pois tive de alugar as mulas. E tenho-as. Só estão esperando-a. Deixa que ele se ajeite sozinho!<br />

Você é bonita. É jovem. Não faltará alguma velha que venha cuidar dele. Aqui sobram almas caritativas.<br />

-Não posso.<br />

-Pode, sim.<br />

-Não posso. Dá-me pena, sabe? Afinal é meu pai.<br />

-Então nem falar. Irei ver Juliana, que desvive por mim.<br />

-Está bem. Não lhe digo nada.<br />

-Não quer me ver amanhã?<br />

-Não. Não quero vê-lo mais.<br />

Ruídos. Vozes. Rumores. Canções distantes:<br />

Minha noiva me deu um lenço<br />

com orlas de chorar…<br />

Em falsete. Como se fossem mulheres que as cantassem.


Vi passar os carros. Os bois movendo-se devagar. O rangido das pedras embaixo das rodas. Os<br />

homens como se viessem adormecidos.<br />

“…Todas as madrugadas o povoado treme com o passo das carretas. Chegam de todas as<br />

partes, carregadas de salitre, espigas, capim-do-pará. Rangem suas rodas fazendo vibrar as janelas,<br />

despertando as pessoas. É a mesma hora em que se abrem os fornos e cheira a pão recém-assado. E<br />

logo pode troar o céu. Cair a chuva. Pode vir a primavera. Lá se acostumará aos „de repentes‟, meu<br />

filho.”<br />

Carretas vazias destruindo o silêncio das ruas. Perdendo-se no escuro a caminho da noite. E as<br />

sombras. O eco das sombras.<br />

Pensei em voltar. Senti lá em cima o rastro por onde tinha vindo, como uma ferida aberta entre a<br />

negrura dos morros.<br />

Então alguém me tocou os ombros.<br />

-Que faz o senhor aqui?<br />

-Vim procurar… -e já ia dizendo a quem, quando me detive-: vim procurar meu pai.<br />

-E por que não entra?<br />

Entrei. Era uma casa com a metade do teto caída. As telhas no chão. O teto no chão. E na outra<br />

metade um homem e uma mulher.<br />

-Os senhores não estão mortos? -perguntei-lhes.<br />

E a mulher sorriu. O homem me olhou seriamente.<br />

-Está bêbado -disse o homem.<br />

-Só está assustado -disse a mulher.<br />

Havia uma lamparina. Havia uma cama de palha, e uma cadeira em que estavam as roupas dela.<br />

Porque ela estava em pêlo, como Deus a pôs no mundo. E ele também.<br />

-Ouvimos que alguém se queixava e dava cabeçadas em nossa porta. E ali estava o senhor. O<br />

que lhe aconteceu?<br />

-Aconteceram-me tantas coisas, que mais queria dormir.<br />

-Nós já estávamos adormecidos.<br />

-Durmamos, pois.<br />

A madrugada foi apagando minhas lembranças.<br />

Ouvia de vez em quando o som das palavras, e notava a diferença. Porque as palavras que ouvira<br />

até então, até então o soube, não tinham nenhum som, não soavam; sentiam-se; mas sem som, como<br />

as que se ouvem durante os sonhos.<br />

-Quem será? -perguntava a mulher.<br />

-Quem sabe -respondia o homem.<br />

-Como teria vindo parar aqui?<br />

-Quem sabe.<br />

-Como que lhe ouvi dizer algo de seu pai.<br />

-Eu também o ouvi dizer isso.


-Não estará perdido? Lembre-se de quando caíram por aqui aqueles que disseram estar perdidos.<br />

Procuravam um lugar chamado Los Confines e você lhe disse que não sabia onde ficava isso.<br />

-Sim, lembro-me; mas deixe-me dormir. Ainda não amanhece.<br />

-Falta pouco. Se acaso estou lhe falando é para que desperte. Recomendou-me que o acordasse<br />

antes do amanhecer. Por isso o faço. Levante-se!<br />

-E para que quer me levante?<br />

-Não sei para quê. Disse-me à noite que o despertasse. Não me esclareceu para quê.<br />

-Nesse caso, deixe-me dormir. Não ouviu o que disse esse quando chegou? Que o deixássemos<br />

dormir. Foi a única coisa que disse.<br />

Como que se vão as vozes. Como que se perde seu ruído. Como que se afogam. Já ninguém diz<br />

nada. É o sono.<br />

E um momento depois outra vez:<br />

-Acaba de mover-se. Pode ser que já vá despertar. E se nos olha aqui nos perguntará coisas.<br />

-Que perguntas pode fazer-nos?<br />

-Bom. Algo terá a dizer, não?<br />

-Deixe-o. Deve estar muito cansado.<br />

-Você crê?<br />

-Cale-se, mulher.<br />

-Olhe, move-se. Vê como se revira? Como se o sacudissem por dentro. Sei-o porque a mim<br />

aconteceu.<br />

-O que aconteceu a você?<br />

-Aquilo.<br />

-Não sei do que fala.<br />

-Não falaria se não me recordasse ao ver a esse, remexendo-se, do que me sucedeu a mim na<br />

primeira vez que você o fez. E de como me doeu e do muito que me arrependi disso.<br />

-De qual isso?<br />

-De como me sentia apenas você me fez aquilo, que embora você não queira eu soube que<br />

estava mal feito.<br />

-E até agora vem com essa história? Por que não dorme e me deixa dormir?<br />

-Pediu-me que lhe recordasse. Isso estou fazendo. Por Deus que estou fazendo o que me pediu<br />

que fizesse. Ande! Já vai sendo hora de que se levante.<br />

-Deixe-me em paz, mulher.<br />

O homem pareceu dormir. A mulher continuou resmungando; mas com voz muito baixa:<br />

-Já deve ter amanhecido, porque há luz. Posso ver esse homem daqui, e se o vejo é porque há<br />

luz bastante para vê-lo. Não tardará a sair o sol. Claro, isso não se pergunta. Pode ser que o tal seja<br />

algum malvado. E lhe demos refúgio. Mas foi só por esta noite; mas o escondemos. E isso nos trará<br />

mal bastante… Olhe como se move, como que não se põe a cômodo. Pode ser que já não possa com<br />

sua alma.<br />

Clareava o dia. O dia desbarata as sombras. Desfá-las. O quarto onde estava se sentia quente<br />

com o calor dos corpos adormecidos. Através das pálpebras me chegava o albor do amanhecer. Sentia<br />

a luz. Ouvia:


-Agita-se sobre si mesmo como um condenado. E tem todos os modos de um mau homem.<br />

Levante-se, Donis! Olhe-o. Esfrega-se no chão, retorcendo-se. Baba. Há de ser alguém que deve<br />

muitas mortes. E você nem o reconheceu.<br />

-Deve ser um pobre homem. Durma e deixe-nos dormir!<br />

-E por que vou dormir, se não tenho sono?<br />

-Levante-se e fique onde nos deixe em paz!<br />

-Isso farei. Irei fazer o fogo. E de passagem direi a esse fulano que venha deitar-se aqui com<br />

você, no lugar que vou deixar-lhe.<br />

-Diga-lhe.<br />

-Não poderei. Dar-me-á medo.<br />

-Então vá fazer seu dever e deixe-nos em paz.<br />

-Isso farei.<br />

-E o que espera?<br />

-Já vou.<br />

Senti que a mulher descia da cama. Seus pés descalços sapateavam o chão e passavam por<br />

cima de minha cabeça. Abri e fechei os olhos.<br />

Quando despertei, havia um sol de meio-dia. Junto a mim, um jarro de café. Tentei beber aquilo.<br />

Dei uns goles.<br />

-Não temos mais. Perdoe o pouco. Estamos tão escassos de tudo, tão escassos…<br />

Era uma voz de mulher.<br />

-Não se preocupe por mim -disse-lhe. Por mim não se preocupe. Estou acostumado. Como<br />

alguém se vai daqui?<br />

-Para onde?<br />

-Para onde seja.<br />

-Há muitos caminhos. Há um que vai para Contla; outro que vem de lá. Outro mais que conduz<br />

direto à serra. Esse que se vê daqui, que não sei para onde irá <strong>–</strong>e me assinalou com os dedos o oco do<br />

telhado, ali onde o teto esta roto-. Este outro por aqui, que passa pela Media Luna. E há outro mais, que<br />

atravessa toda a terra e é o que vai mais longe.<br />

-Talvez esse foi por onde vim.<br />

-Para onde vai?<br />

-Vai para Sayula.<br />

-Imagine. Eu acreditava que Sayula ficava deste lado. Sempre tive ilusão de conhecê-lo. Dizem<br />

que por lá há muita gente, não?<br />

-A que há em todas as partes.<br />

-Veja. E nós aqui tão sós. Desvivendo-nos por conhecer ainda que seja um tantinho a vida.<br />

-Aonde foi seu marido?<br />

-Não é meu marido. É meu irmão; embora ele não queira que se saiba. Aonde foi? Certamente<br />

procurar um bezerro bravo que está por aí extraviado. Ao menos isso me disse.<br />

-Quanto faz que vocês estão aqui?<br />

-Desde sempre. Aqui nascemos.


-Deveram conhecer Dolores Preciado.<br />

-Talvez ele, Donis. Eu sei tão pouco das pessoas. Nunca saio. Aqui onde me vê, aqui tenho<br />

estado sempiternamente… Bom, nem tão sempre. Só desde que ele me fez mulher. Desde então fico<br />

fechada, porque tenho medo de que me vejam. Ele não quer crê-lo, mas, verdade que estou de dar<br />

medo? <strong>–</strong>e se aproximou de onde tinha sol-. Olhe-me o rosto!<br />

Era um rosto comum e corrente.<br />

-Que quer que eu veja?<br />

-Não vê o pecado? Não vê essas manchas roxas como de inflamação que me tomam de cima a<br />

baixo? E isso é só por fora; por dentro estou feita um mar de lodo.<br />

-E quem a pode ver se aqui não há ninguém? Percorri o povoado e não vi ninguém.<br />

-Isso o senhor crê: mas ainda há alguns. Diga-me se Filomeno não vive, se Dorotea, se<br />

Melquiades, se Prudencio, o velho, se Sóstenes e todos esses não vivem? O que acontece é que ficam<br />

trancados. De dia não sei o que farão; mas as noites, passam-nas em seu encerramento. Aqui essas<br />

horas estão cheias de espantos. Se o senhor visse a multidão de almas que estão soltas pela rua.<br />

Quando escurece começam a sair. E ninguém gosta de vê-las. São tantas, e nós tão pouquinhos, que<br />

já nem nos esforçamos para rezar para que saiam de suas penas. Não chegariam nossas orações para<br />

todos. Talvez lhes tocasse um pedaço de pai-nosso. E isso não lhes pode servir de nada. Logo estão<br />

nossos pecados no meio. Nenhum dos que ainda vivemos está na graça de Deus. Ninguém poderá<br />

alçar seus olhos ao céu sem senti-los cheios de vergonha. E a vergonha não cura. Ao menos isso me<br />

disse o bispo que passou por aqui faz algum tempo fazendo batizados. Eu me pus frente a ele e lhe<br />

confessei tudo:<br />

“-Isso não se perdoa -disse-me.<br />

“-Estou envergonhada.<br />

“-Não é remédio.<br />

“-Case-nos o senhor!<br />

“-Separem-se!<br />

“-Eu lhe quis dizer que a vida nos havia juntado, encurralando-nos e posto um junto ao outro.<br />

Estávamos tão sós aqui, que os únicos éramos nós. E de algum modo havia que povoar o povoado.<br />

Talvez tenha a quem batizar quando regresse.”<br />

“-Separem-se. Isso é tudo o que se pode fazer.<br />

“-Mas como viveremos?<br />

“-Como vivem os homens.”<br />

“E se foi, montado em seu macho, a cara dura, sem olhar para trás, como se houvesse deixado<br />

aqui a imagem da perdição. Nunca voltou. E essa é razão porque isto está cheio de almas; um puro<br />

vagabundear de gente que morreu sem perdão e que não o conseguirá de nenhum modo, muito menos<br />

valendo-se de nós. Já vem. O senhor ouve?<br />

-Sim, ouço.<br />

-É ele.<br />

Abriu-se a porta.<br />

-Que aconteceu com o bezerro? -perguntou ela.<br />

-Ocorreu de ele não vir agora; mas fui seguindo seu rastro e quase estou para saber onde fica.<br />

Hoje à noite o agarrarei.<br />

-Vai me deixar sozinha à noite?


-Pode ser que sim.<br />

-Não poderei suportá-lo. Necessito tê-lo comigo. É a única hora em que me sinto tranqüila. A hora<br />

da noite.<br />

-Esta noite irei atrás do bezerro.<br />

-Acabo de saber -intervim eu- que vocês são irmãos.<br />

-Acaba de saber? Eu o sei muito antes do senhor. Então é melhor que não intervenha. Não<br />

gostamos que se fale de nós.<br />

-Eu o dizia num plano de entendimento. Não por outra coisa.<br />

-Que entende o senhor?<br />

Ela se pôs a seu lado, apoiando-se em seus ombros e dizendo também:<br />

-Que entende o senhor?<br />

-Nada -disse-. Cada vez entendo menos -e acrescentei-: -Queria voltar ao lugar de onde vim.<br />

Aproveitarei a pouco luz que resta do dia.<br />

-É melhor que espere -disse-me ele-. Aguarde até amanhã. Não tarda a escurecer e todos os<br />

caminhos estão emaranhados de brenhas. O senhor pode perder-se. Amanhã eu o encaminharei.<br />

-Está bem.<br />

Pelo teto aberto ao céu vi passar revoadas de tordos, esses pássaros que voam ao entardecer<br />

antes que a escuridão lhes feche os caminhos. Logo, umas quantas nuvens já despedaçadas pelo<br />

vento que vem levar o dia.<br />

Depois saiu a estrela da tarde, e mais tarde a lua.<br />

O homem e a mulher não estavam comigo. Saíram pela porta que dava para o pátio e quando<br />

regressaram já era noite. Então não souberam o que havia acontecido enquanto estavam fora.<br />

E isto foi o que sucedeu:<br />

Vindo da rua, entrou uma mulher no quarto. Era velha de muitos anos, fraca como se lhe tivessem<br />

diminuído o corpo. Entrou e passeou seus olhos redondos pelo quarto. Talvez até me viu. Talvez<br />

acreditou que eu dormia. Foi direto onde estava a cama e tirou de debaixo dela uma arca. Examinou-a.<br />

Pôs uns lençóis embaixo do braço e foi andando nas pontas dos pés como para não despertar-me.<br />

Fiquei imóvel, segurando a respiração, tentando olhar para outro lado. Até que finalmente<br />

consegui torcer a cabeça e ver até lá onde a estrela da tarde se havia juntado à lua.<br />

-Tome isto! -ouvi.<br />

Não me atrevia a virar a cabeça.<br />

-Tome! Far-lhe-á bem. É água de flor de laranjeira. Sei que está assustado porque treme. Com<br />

isto lhe diminuirá o medo.<br />

Reconheci aquelas mãos e ao levantar os olhos reconheci o rosto. O homem, que estava atrás<br />

dela, perguntou:<br />

-O senhor se sente enfermo?<br />

-Não sei. Vejo coisas e pessoas onde talvez vocês não vejam nada. Acaba de estar aqui uma<br />

senhora. Vocês devem tê-la visto sair.<br />

-Venha -disse ele à mulher. Deixe-o sozinho. Deve ser um místico.<br />

-Devemos deitá-lo na cama. Veja como treme, certamente tem febre.


-Não faça caso. Estes sujeitos se põem nesse estado para chamar a atenção. Conheci um na<br />

Media Luna que se dizia adivinho. O que nunca adivinhou foi que ia morrer quando o patrão o adivinhou<br />

descuidado. Há de ser um místico desses. Passam a vida percorrendo os povoados “a ver o que a<br />

Providência queira dar-lhes”; mas aqui não vai encontrar nem quem lhe tire a fome. Vê como já deixou<br />

de tremer? É que nos está ouvindo.<br />

Como se o tempo houvesse retrocedido. Voltei a ver a estrela junto à lua. As nuvens desfazendose.<br />

As revoadas dos tordos. E em seguida a tarde ainda cheia de luz.<br />

As paredes refletindo o sol da tarde. Meus passos ricocheteando contra as pedras. O tropeiro que<br />

me dizia: “Procure dona Eduviges, se ainda vive!”<br />

Logo um quarto às escuras. Uma mulher roncando a meu lado. Notei que sua respiração era<br />

díspar como se estivesse entre sonhos, mais como se não dormisse e só imitasse os ruídos que produz<br />

o sono. A cama era de palha coberta com sacos que fediam a urina, como se nunca os houvessem<br />

arejado ao sol; e o travesseiro era uma baeta que envolvia algodão ou uma lã tão dura ou tão suada<br />

que se havia endurecido como madeira.<br />

Junto a meus joelhos senti as pernas desnudas da mulher, e junto a meu rosto sua respiração.<br />

Sentei-me na cama apoiando-me naquele como adobe do travesseiro.<br />

-O senhor não dorme? -perguntou-me ela.<br />

-Não tenho sono. Dormi o dia todo. Onde está seu irmão?<br />

-Foi-se por esses rumos.O senhor ouviu onde tinha de ir. Talvez não venha esta noite.<br />

-De maneira que sempre se foi? Apesar da senhora?<br />

-Sim. E talvez não regresse. Assim começaram todos. Que vou aqui, que vou mais além. Até que<br />

se foram distanciando tanto que não voltaram. Ele sempre tratou de ir, e creio que agora chegou sua<br />

vez. Talvez sem eu saber, deixou-me com o senhor para que me cuidasse. Viu sua oportunidade. Isso<br />

do bezerro bravo foi só um pretexto. Verá o senhor que não volta.<br />

-Quis dizer-lhe: “Vou sair a buscar um pouco de ar, porque sinto náuseas”; mas disse:<br />

-Não se preocupe. Voltará.<br />

Quando me levantei, disse-me:<br />

-Deixei na cozinha algo sobre as brasas. É muito pouco; mas é algo que pode acalmar-lhe a fome.<br />

Encontrei um pedaço de carne-de-sol e em cima das brasas umas tortilhas.<br />

-São coisas que pude conseguir -ouvi que me dizia de lá-. Troquei-as com minha irmã por dois<br />

lençóis limpos que eu tinha guardados desde o tempo de minha mãe. Ela há de ter vindo recolhê-los.<br />

Não quis dizê-lo diante de Donis; mas ela foi a mulher que o senhor viu e que o assustou tanto.<br />

Um céu negro, cheio de estrelas. E junto à lua a estrela maior de todas.<br />

-Não me ouve? -perguntei em voz baixa.<br />

E sua voz me respondeu: -Onde está?<br />

-Estou aqui, no seu povoado. Junto a sua gente. Não me vê?<br />

-Não, filho, não o vejo.<br />

Sua voz parecia abarcar tudo. Perdia-se mais além da terra.<br />

-Não o vejo.


Voltei ao meio-teto onde dormia aquela mulher e lhe disse:<br />

-Ficarei aqui, no meu próprio canto. Ao fim e ao cabo a cama está tão dura quanto o chão. Se<br />

acontecer alguma coisa, avise-me.<br />

Ela me disse:<br />

-Donis não voltará. Notei em seus olhos. Estava esperando que alguém viesse para ir-se. Agora<br />

você se encarregará de cuidar de mim. Ou não quer cuidar de mim? Venha dormir aqui comigo.<br />

-Aqui estou bem.<br />

-É melhor que suba na cama. Aí o comerão os percevejos.<br />

Então fui e me deitei com ela.<br />

O calor me fez despertar perto da meia-noite. E o suor. O corpo daquela mulher feito de terra,<br />

envolto em crostas de terra, desbaratava-se como se estivesse derretendo-se num charco de lodo. Eu<br />

me sentia nadar entre o suor que escorria dela e me faltou o ar que se necessita para respirar. Então<br />

me levantei. A mulher dormia. De sua boca borbotava um ruído de borbulhas muito parecido ao do<br />

estertor.<br />

Saí à rua para buscar o ar; mas o calor que me perseguia não se despegava de mim.<br />

É que não havia ar; só a noite entorpecida e quieta, acalorada pela canícula de agosto.<br />

Não havia ar. Tive de sorver o mesmo ar que caía de minha boca, detendo-o com as mãos antes<br />

que se fosse. Sentia-o ir e vir, cada vez menos; até que se fez tão delgado que se filtrou entre meus<br />

dedos para sempre.<br />

Digo para sempre.<br />

Tenho a lembrança de haver visto algo assim como nuvens espumosas fazendo remoinhos sobre<br />

minha cabeça e logo enxaguar-me com aquela espuma e perder-me em sua nublação. Foi a última<br />

coisa que vi.<br />

-Quer me fazer crer que o matou o abafamento, <strong>Juan</strong> Preciado? Encontrei-o na praça, muito longe<br />

da casa de Donis, e junto a mim também estava ele, dizendo que você estava se fazendo de morto.<br />

Nós dois o arrastamos para a sombra do portal, já bem esticado, acaimbrado, como morrem os que<br />

morrem mortos de medo. Por não ter havido ar para respirar essa noite de que fala, haver-nos-iam<br />

faltado as forças para levá-lo e quanto mais para enterrá-lo. E já vê, enterramo-lo.<br />

-Tem razão, Doroteo. Diz que se chama Doroteo?<br />

-Dá no mesmo. Embora meu nome seja Dorotea. Mas dá no mesmo.<br />

-É certo, Dorotea. Mataram-me os murmúrios.<br />

“Lá achará minha querência. O lugar que eu quis. Onde os sonhos me enfraqueceram. Meu<br />

povoado, levantado sobre a planície. Cheio de árvores e de folhas, como um cofrinho onde guardamos<br />

nossas recordações. Sentirá que ali alguém quisesse viver pela eternidade. O amanhecer; a manhã; o<br />

meio-dia e a noite, sempre os mesmos; mas com a diferença do ar. Ali onde o ar muda a cor das<br />

coisas; onde se ventila a vida como se fosse um murmúrio; como se fosse um puro murmúrio da vida…”<br />

-Sim, Dorotea. Mataram-me os murmúrios. Embora já trouxesse o medo acumulado. Havia vindo<br />

juntando-se até que já não pude suportá-lo. E quando me encontrei com os murmúrios rebentaram-me<br />

as cordas.<br />

“Cheguei à praça, você tem razão. Levou-me até ali o bulício das pessoas e acreditei que de<br />

verdade a havia. Eu já havia perdido o juiízo, lembro-me de que me vim apoiando nas paredes como se<br />

caminhasse com as mãos. E as paredes pareciam destilar os murmúrios como se se filtrassem de entre


as gretas e ranhuras. Eu os ouvia. Eram vozes de pessoas; mas não vozes claras, senão secretas,<br />

como se murmurassem algo ao passar, ou como se zumbissem contra meus ouvidos. Separei-me das<br />

paredes e continuei pelo meio da rua; mas ouvia-as igualmente, como se viessem comigo, adiante ou<br />

detrás de mim. Não sentia calor, como lhe disse antes; antes pelo contrário, sentia frio. Desde que saí<br />

da casa daquela mulher que me emprestou sua cama e que, como lhe dizia, vi-a desfazer-se na água<br />

de seu suor, desde então me penetrou o frio. E conforme eu andava, o frio aumentava mais e mais, até<br />

me tomar todo. Quis retroceder porque pensei que regressando podia encontrar o calor que acabava de<br />

deixar; mas me dei conta depois de pouco andar que o frio saía de mim, de meu próprio sangue. Então<br />

reconheci que estava assustado. Ouvi o alvoroço maior na praça. De modo que Donis voltou? A mulher<br />

estava certa de que jamais a voltaria a ver”.<br />

-Foi já de manhã quando encontramos você. Ele vinha de não sei onde. Não lhe perguntei.<br />

-Bom, pois cheguei à praça. Apoiei-me num pilar dos portais. Vi que não havia ninguém, embora<br />

seguisse ouvindo o murmúrio como de muita gente em dia de mercado. Um rumor igual, sem tom nem<br />

som, parecido ao que faz o vento contra os ramos de uma árvore na noite, quando não se vêem nem a<br />

árvore nem os ramos, mas se ouve o murmurar. Assim. Não dei mais nenhum passo. Comecei a sentir<br />

que se me aproximava e dava voltas ao meu redor aquele cochicho forte como um enxame, até que<br />

consegui distinguir umas palavras quase vazias de ruído: “Roga a Deus por nós.” Isso ouvi que me<br />

diziam. Então gelou-se-me a alma. Por isso é que vocês me encontraram morto.<br />

-Melhor não houvesse saído de sua terra. Que veio fazer aqui?<br />

-Já lhe disse no começo. Vim procurar <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>, que segundo parece foi meu pai. Trouxeme<br />

a ilusão.<br />

-A ilusão? Isso custa caro. A mim me custou viver mais do que o devido. Paguei com isso a dívida<br />

de encontrar meu filho, que não foi, por assim dizer, senão mais uma ilusão; porque nunca tive nenhum<br />

filho. Agora que estou morta dei-me tempo para pensar e inteirar-me de tudo. Nem sequer o ninho para<br />

guardá-lo Deus me deu. Só essa longa vida arrastada que tive, levando daqui para lá meus olhos tristes<br />

que sempre olharam com dissimulação, como que procurando por trás das pessoas, suspeitando que<br />

alguém houvesse escondido meu menino. E tudo foi culpa de um maldito sonho. Tive dois: a um deles<br />

chamo o “bendito” e ao outro o “maldito”. O primeiro foi o que me fez sonhar que havia tido um filho. E<br />

enquanto vivi, nunca deixei de crer que fosse certo; porque o senti entre meus braços, tenrinho, cheio<br />

de boca e de olhos e de mãos; durante muito tempo conservei em meus dedos a impressão de seus<br />

olhos adormecidos e o palpitar de seu coração. Como não ia pensar que aquilo fosse verdade? Levavao<br />

comigo onde quer que fosse, envolto em meu manto, e logo o perdi. No céu disseram-me que se<br />

haviam equivocado comigo. Que me haviam dado um coração de mãe, mas um seio de outra qualquer.<br />

Esse foi o outro sonho que tive. Cheguei ao céu e comecei a ver se entre os anjos reconhecia o rosto<br />

de meu filho. E nada. Todos os rostos eram iguais, feitos com o mesmo molde. Então perguntei. Um<br />

daqueles santos se aproximou e, sem dizer-me nada, afundou uma de suas mãos em meu estômago<br />

como se a houvesse afundado num montão de cera. Ao tirá-la me mostrou algo assim como uma casca<br />

de noz: “Isto prova o que se demonstra.”<br />

“Você sabe como falam pouco lá em cima mas se os entende. Quis-lhes dizer que aquilo era só<br />

meu estômago diminuído pelas fomes e pelo pouco comer; mas outro daqueles santos me puxou pelos<br />

ombros e me mostrou a porta da saída: “Vá descansar um pouco mais na terra, filha, e procura ser boa<br />

para que seu purgatório seja menos grande.<br />

“Esse foi o sonho „maldito‟ que tive e do qual tirei o esclarecimento de que nunca havia tido<br />

nenhum filho. Soube-o já muito tarde, quando o corpo se havia atarracado, quando o espinhaço saltou<br />

em cima da cabeça, quando já não podia caminhar. E por fim, o povoado foi ficando sozinho; todos se<br />

encaminharam para outros rumos e com eles se foi também a caridade da qual vivia. Sentei-me a<br />

esperar a morte. Depois que encontramos você, resolveram-se meus ossos a ficar quietos. „Ninguém<br />

me fará caso‟, pensei. Sou algo que não estorva a ninguém. Já vê, nem sequer lhe roubei espaço na<br />

terra. Enterraram-me na sua própria sepultura e eu coube muito bem no oco de seus braços. Aqui


nesse canto em que me tem agora. Só ocorre de ser eu a que se abraçou a você. Ouve? Lá fora está<br />

chovendo. Não sente o golpear da chuva?”<br />

-Sinto como se alguém caminhasse sobre nós.<br />

-Deixe-se de medos. Ninguém pode dar-lhe mais medo. Faz por pensar em coisas agradáveis<br />

porque vamos estar muito tempo enterrados.<br />

Ao amanhecer, grossas gotas de chuva caíram sobre a terra. Soavam ocas ao arremessar-se<br />

sobre o pó suave e solto dos sulcos. Um pássaro zombeteiro cruzou ao rés do chão e gemeu imitando<br />

o queixume de uma criança; mais além se o ouviu dar um gemido como de cansaço, e ainda mais<br />

distante, por onde começava a abrir-se o horizonte, soltou um soluço e logo uma gargalhada, para<br />

voltar a gemer depois.<br />

Fulgor Sedano sentiu o cheiro da terra e se pôs a ver como a chuva desfazia os sulcos. Seus<br />

olhos pequenos se alegraram. Deu três tragadas daquele sabor e sorriu até mostrar os dentes.<br />

“Vá! -disse-. Outro bom ano nos chega.” E acrescentou: “Vem, agüinha, vem. Deixe-se cair até<br />

que se canse! Depois corre para lá, lembre-se de que trabalhamos toda a terra, apenas para dar-lhe<br />

gosto.”<br />

E soltou o riso. O pássaro zombeteiro que regressava de correr os campos passou quase frente a<br />

ele e gemeu com um gemido desgarrado.<br />

A água apertou sua chuva até que lá, onde começava a amanhecer, fechou-se o céu e pareceu<br />

que a escuridão, que já se ia, regressava. A porta grande da Media Luna rangeu ao abrir-se, molhada<br />

pela brisa. Foram saindo primeiro dois, logo outros dois, depois outros dois e assim até duzentos<br />

homens a cavalo que se esparramaram pelos campos chuvosos.<br />

-Há que espalhar o gado de Enmedio mais além do que foi Estagua, e o de Estagua levem-no<br />

para os cerros de Vilmayo -ia-lhes ordenando Fulgor Sedano conforme saíam-. E apressem-se, que nos<br />

vêm em cima as águas!<br />

Disse-o tantas vezes, que já os últimos só ouviram: “Daqui para lá e de lá para mais além.” Todos<br />

e cada um levavam a mão ao chapéu para dar-lhe a entender que já haviam entendido.<br />

E apenas havia acabado de sair o último homem, quando entrou a todo galope Miguel <strong>Páramo</strong><br />

que, sem deter sua carreira, apeou-se do cavalo quase no nariz de Fulgor, deixando que o cavalo<br />

buscasse sozinho sua manjedoura.<br />

-De onde vem a estas horas, garoto?<br />

<strong>–</strong>Venho de ordenhar.<br />

-A quem?<br />

-Não adivinha?<br />

-Há de ser Dorotea, a Coxa. é a única que gosta de bebês.<br />

-É um imbecil, Fulgor; mas não tem culpa.<br />

E se foi, sem tirar as esporas, a que lhe dessem de almoçar.<br />

Na cozinha, Damiana Cisneros também lhe fez a mesma pergunta:<br />

-Mas de onde chega, Miguel?<br />

-Por aí, de visitar freiras.<br />

-Não quero que se aborreça. Desculpe. Como se lhe fazem os ovos?


-Como você goste.<br />

-Estou falando a você com bons modos, Miguel.<br />

-Entendo, Damiana. Não se preocupe. Ouça, conhece uma tal Dorotea, apelidada a Coxa?<br />

-Sim. E se a quer ver, está bem ali fora.<br />

-Sempre madruga para vir aqui por seu desjejum. É uma que traz uma trouxa em seu manto e a<br />

acalenta dizendo que é sua cria. Parece que lhe aconteceu alguma desgraça lá em seus tempos; mas,<br />

como nunca fala, ninguém sabe o que se passou. Vive de esmola.<br />

-Maldito velho! Vou-lhe aprontar uma que seus olhos ficarão arregalados.<br />

Depois ficou pensando se aquela mulher não serviria para algo. E sem duvidar mais foi até a porta<br />

traseira da cozinha e chamou Dorotea:<br />

-Vem aqui, vou propor-lhe um trato -disse-lhe.<br />

E quem sabe que tipo de proposições lhe faria, o certo é que quando entrou de novo esfregava as<br />

mãos:<br />

-Venham esses ovos! <strong>–</strong>gritou a Damiana. E agregou: -De hoje em diante você dará de comer a<br />

essa mulher o mesmo que a mim, não importa que lhe dêem bolhas no cotovelo.<br />

Enquanto isso, Fulgor Sedano foi até o celeiro para revisar a altura do milho. Preocupava-lhe a<br />

redução porque ainda tardaria a colheita. Para dizer a verdade, apenas se havia semeado. ”Quero ver<br />

se nos alcança.” Logo acrescentou: “Esse garoto! igualzinho ao pai; mas começou muito cedo. Nesse<br />

passo não creio que se dê bem. Esqueci de mencionar-lhe que ontem vieram com a acusação de que<br />

havia matado um. Se continua assim…”<br />

Suspirou e tratou de imaginar em que lugar iriam já os vaqueiros. Mas distraiu-o o potrinho alazão<br />

de Miguel <strong>Páramo</strong>, que raspava o focinho na cerca. “Nem sequer o desencilhou”, pensou. “Nem o fará.<br />

Ao menos dom <strong>Pedro</strong> é mais conseqüente com as pessoas e tem seus momentos de calma. Embora<br />

consinta muito ao Miguel. Ontem comuniquei-lhe o que seu filho havia feito e me respondeu: „Ponha na<br />

cabeça que fui eu, Fulgor; ele é incapaz de fazer isso: não tem ainda força para matar ninguém. Para<br />

isso precisa-se ter os culhões deste tamanho.‟ Pôs suas mãos assim, como se medisse uma cabaça. “A<br />

culpa de tudo que ela faça ponha-a em mim.‟”<br />

-Miguel lhe dará muitas dores de cabeça, dom <strong>Pedro</strong>. Gosta de pendências.<br />

-Deixe-o mover-se. É apenas uma criança. Quantos anos completou? Terá dezessete. Não,<br />

Fulgor?<br />

-Talvez sim. Lembro-me de que o trouxeram há pouco, apenas ontem; mas é tão violento e vive<br />

tão depressa que às vezes me parece que vai apostando corrida com o tempo. Acabará por perder, o<br />

senhor verá.<br />

-Ainda é uma criança, Fulgor.<br />

-Será o que o senhor diga, dom <strong>Pedro</strong>; mas essa mulher que veio ontem chorar aqui alegando<br />

que o filho do senhor lhe havia matado o marido, estava muito desconsolada. Sei medir o desconsolo,<br />

dom <strong>Pedro</strong>. E essa mulher o carregava aos quilos. Ofereci-lhe cinqüenta hectolitros de milho para que<br />

se esquecesse do assunto; mas não os quis. Então lhe prometi que corrigiríamos o dano de algum<br />

modo. Não se conformou.<br />

-De quem se tratava?<br />

-É gente que não conheço.<br />

-Não tem pois por que preocupar-se, Fulgor. Essa gente não existe.


Chegou ao celeiro e sentiu o calor do milho. Tomou nas mãos um punhado para ver se não o<br />

havia atingido o gorgulho. Mediu a altura: “Renderá -disse-. Enquanto cresce o pasto não vamos<br />

precisar dar milho ao gado. Há de sobra.”<br />

Na volta olhou o céu cheio de nuvens. “Teremos água para um bom tempo.” E esqueceu-se de<br />

tudo o mais.<br />

-Lá fora deve estar mudando o tempo. Minha mãe me dizia que, quando começava a chover, tudo<br />

se enchia de luzes e do cheiro verde dos brotos. Contava-me como chegava a maré das nuvens, como<br />

se esparramavam sobre a terra e a descompunham mudando-lhe as cores… Minha mãe, que viveu sua<br />

infância e seus melhores anos neste povoado e que nem sequer pôde vir morrer aqui. Até para isso me<br />

mandou em seu lugar. É curioso, Dorotea, como nem consegui ver o céu. Ao menos, talvez, deve ser o<br />

mesmo que ela conheceu.<br />

-Não sei, João Preciado. Há tantos anos que não levantava o rosto, que me esqueci do céu. E<br />

ainda que o houvesse feito, que haveria ganho? O céu está tão alto, e meus olhos tão sem vista, que<br />

vivia contente em saber onde ficava a terra. Além disso, perdi todo meu interesse desde que o padre<br />

Rentería me assegurou que jamais conheceria a glória. Que nem sequer de longe a veria… Foi coisa<br />

de meus pecados; mas ele não me devia tê-lo dito. Já por si a vida se leva com trabalhos. A única coisa<br />

que faz a a uma pessoa mover os pés é a esperança de que ao morrer a levem de um lugar a outro;<br />

mas quando lhe fecham uma porta e a que fica aberta é só a do inferno, mais vale não haver nascido…<br />

O céu para mim, João Preciado, está aqui onde estou agora.<br />

-E sua alma? Onde crê que tenha ido?<br />

-Deve andar vagando pela terra como tantas outras; buscando vivos que rezem por ela. Talvez me<br />

odeie pelo mau trato que lhe dei; mas isso já não me preocupa. Descansei do vício de seus<br />

remordimentos. Amargava-me até o pouco que comia, e me fazia insuportáveis as noites enchendo-as<br />

de pensamentos intranqüilos com figura de condenados e coisas dessas. Quando me sentei para<br />

morrer, ela me rogou que me levantasse e que seguisse arrastando a vida, como se esperasse ainda<br />

algum milagre que me limpasse de culpas. Nem sequer fiz o intento: “Aqui se acaba o caminho <strong>–</strong>disselhe-.<br />

Já não me restam forças para mais.” E abri a boca para que se fosse. E se foi. Senti quando caiu<br />

em minhas mãos o fiozinho de sangue com que estava amarrada a meu coração.<br />

Chamaram à sua porta; mas ele não respondeu. Ouviu que continuaram batendo em todas as<br />

portas, despertando as pessoas. A carreira que levava Fulgor -conheceu-o por seus passos- até a porta<br />

grande se deteve um momento, como se tivesse intenções de voltar a chamar. Depois continuou<br />

correndo.<br />

Rumor de vozes. Arrastar de pisadas vagarosas como se carregassem algo pesado.<br />

Ruídos vagos.<br />

Veio até sua memória a morte de seu pai, também em um amanhecer como este; embora então a<br />

porta estivesse aberta e transluzia a cor apagada de um céu feito de cinza, triste, como foi então. E a<br />

uma mulher contendo o pranto, recostada contra a porta. Uma mãe da qual já se havia esquecido e<br />

esquecido muitas vezes dizendo-lhe: “Mataram seu pai!” Com aquela voz quebrada, desfeita, só unida<br />

pelo fio do soluço.<br />

Nunca quis reviver essa lembrança porque trazia-lhe outras, como se rompesse uma saca repleta<br />

e logo quisesse conter o grão. A morte de seu pai que arrastou outras mortes e em cada uma delas<br />

estava sempre a imagem da cara despedaçada; roto um olho, olhando vingativo o outro. E outro e outro<br />

mais, até que a havia apagado da lembrança quando já não teve ninguém que a recordasse.<br />

-Descanse-o aqui! Não, assim não. Há que colocá-lo com a cabeça para trás. Você! O que<br />

espera?


Tudo em voz baixa.<br />

-E ele?<br />

-Ele dorme. Não o acordem. Não façam ruído.<br />

Ali estava ele, enorme, olhando a manobra de meter um vulto envolto em sacos velhos, amarrado<br />

com pedaços de correia como se o houvessem amortalhado.<br />

-Quem é? perguntou.<br />

Fulgor Sedano se aproximou dele e lhe disse:<br />

-É Miguel, dom <strong>Pedro</strong>.<br />

-Que lhe fizeram? -gritou.<br />

Esperava ouvir: “Mataram-no.” E já estava preparando sua fúria, fazendo bolas duras de rancor<br />

mas ouviu as palavras suaves de Fulgor Sedano que lhe diziam:<br />

-Ninguém lhe fez nada. Ele só encontrou a morte.<br />

Havia candeeiros de óleo clareando a noite.<br />

-… Matou-o o cavalo -prestou-se alguém a dizer.<br />

Estenderam-no em sua cama, pondo abaixo o colchão, deixando as puras tábuas, onde<br />

acomodaram o corpo já desprendido das tiras com que haviam vindo trazendo-o. Colocaram-lhe as<br />

mãos sobre o peito e taparam seu rosto com um trapo negro. “Parece maior do que era”, disse baixo<br />

Fulgor Sedano.<br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> havia ficado sem expressão nenhuma, como doido. Por cima dele seus<br />

pensamentos seguiam-se uns aos outros sem dar alcance nem juntar-se. Por fim disse:<br />

-Estou começando a pagar. Mais vale começar cedo, para terminar logo.<br />

Não sentiu dor.<br />

Quando falou à gente reunida no pátio para agradecer sua companhia, abrindo passo a sua voz<br />

por entre o choramingar das mulheres, não cortou nem o arquejo nem suas palavras. Depois só se<br />

ouviu naquela noite o tropel do potrinho alazão de Miguel <strong>Páramo</strong>.<br />

-Amanhã manda matar esse animal para que não continue sofrendo -ordenou a Fulgor Sedano.<br />

-Está bem, dom <strong>Pedro</strong>. Entendo. O pobre há de sentir-se desolado.<br />

-Também o entendo assim, Fulgor. E diz de passagem a essas mulheres que não armem tanto<br />

escândalo, é muito alvoroço por meu morto. Se fosse delas, não chorariam com tanta gana.<br />

O padre Rentería se lembraria muito anos depois da noite em que a dureza de sua cama o<br />

manteve desperto e depois o obrigou a sair. Foi a noite em que morreu Miguel <strong>Páramo</strong>.<br />

Percorreu as ruas solitárias de Comala, espantando com seus passos os cachorros que fuçavam o<br />

lixo. Chegou até o rio e ali se entreteve olhando nos remansos o reflexo das estrelas que estavam<br />

caindo do céu. Ficou várias horas lutando com seus pensamentos, atirando-os à água negra do rio.<br />

“O assunto começou -pensou- quando <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>, de coisa baixa que era, alçou-se ao<br />

máximo. Foi crescendo como uma erva daninha. O mau disto é que tudo obteve de mim: „Acuso-me,<br />

padre, de que ontem dormi com <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>.‟ „Acuso-me, padre, de que tive um filho de <strong>Pedro</strong><br />

<strong>Páramo</strong>.‟ „De que emprestei minha filha a <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>.‟ Sempre esperei que ele viesse acusar-se de<br />

algo; mas nunca o fez. E depois estirou os braços de sua maldade com esse filho que teve. A que ele<br />

reconheceu, só Deus sabe por quê. O que sei é que pus em suas mãos esse instrumento.”<br />

Tinha muito presente o dia em que o havia levado, apenas nascido.


Havia-lhe dito:<br />

-Dom <strong>Pedro</strong>, a mãe morreu ao dá-lo à luz. Disse que era do senhor. Aqui o tem.<br />

E ele não duvidou, somente disse:<br />

-Por que não fica com ele, padre? Faça-o cura.<br />

-Com o sangue que leva dentro não quero ter essa responsabilidade.<br />

-De verdade crê o senhor que tenho mau sangue?<br />

-Realmente sim, dom <strong>Pedro</strong>.<br />

-Provar-lhe-ei que não é certo. Deixe-mo aqui. Sobra quem se encarregue de cuidar dele.<br />

-Nisso pensei, precisamente. Ao menos com o senhor não lhe faltará o sustento.<br />

O menininho se retorcia, pequeno como era, como uma víbora.<br />

-Damiana! Encarregue-se dessa coisa. É meu filho.<br />

Depois havia aberto a garrafa:<br />

-Pela defunta e pelo senhor beberei este trago.<br />

-E por ele?<br />

-Por ele também, por que não?<br />

Encheu outro copo e os dois beberam pelo futuro daquela criatura.<br />

Assim foi.<br />

Começaram a passar os carros rumo à Media Luna. Ele se agachou, escondendo-se no tapume<br />

que margeia o rio. “De quem se esconde?”, perguntou-se a si mesmo.<br />

-Adeus, padre! -ouviu que lhe diziam.<br />

Levantou-se da terra e respondeu:<br />

-Adeus! Que o Senhor o bendiga.<br />

Estavam se apagando as luzes do povoado. O rio encheu sua água de cores luminosas.<br />

-Padre, já alvoreceu? -perguntou outro dos carreiros.<br />

-Deve ser muito depois do alvorecer -ele respondeu. E caminhou em sentido contrário deles, com<br />

intenções de não deter-se.<br />

-Onde tão cedo, padre?<br />

-Onde está o moribundo, padre?<br />

-Morreu alguém em Contla, padre?<br />

Quisera responder-lhes: “Eu. Eu sou o morto.” Mas conformou-se em sorrir.<br />

Ao sair do povoado precipitou os passos.<br />

Regressou entrada a manhã.<br />

-Onde esteve o senhor, tio? -perguntou-lhe Ana, sua sobrinha-. Vieram muitas mulheres buscá-lo.<br />

Queriam confessar-se por ser amanhã a primeira sexta-feira.<br />

-Que regressem à noite.<br />

Ficou um tempo quieto, sentado em um banco do corredor, cheio de fadiga.<br />

-Que fresco está o ar, não, Ana?<br />

-Faz calor, tio.


-Não o sinto.<br />

Não queria pensar de nenhum modo que havia estado em Contla, onde fez confissão geral com o<br />

senhor cura, e que este, apesar de seus rogos, lhe havia negado a absolvição:<br />

-Esse homem de quem não quer mencionar o nome despedaçou sua Igreja e você o consentiu. O<br />

que se pode esperar de você, padre? Que fez da força de Deus? Quero convencer-me de que é bom e<br />

de que ali recebe a estima de todos; mas não basta ser bom. O pecado não é bom. E para acabar com<br />

ele, há que ser duro e desapiedado. Quero crer que todos continuam sendo crentes; mas não é você<br />

quem mantém sua fé; fazem-no por superstição e por medo. Quero ainda mais estar com você na<br />

pobreza em que vive e no trabalho e cuidados que tem todos os dias em seu cumprimento. Sei o difícil<br />

que é nossa tarefa nestes pobres povoados onde nos têm relegados; mas isso mesmo me dá direito a<br />

dizer-lhe que não há que entregar nosso serviço a uns quantos, que lhe darão um pouco em troca de<br />

sua alma, e com sua alma nas mãos deles, que poderá fazer para ser melhor que aqueles que são<br />

melhores que você? Não, padre, minhas mãos não são suficientemente limpas para dar-lhe a<br />

absolvição. Terá que buscá-la em outro lugar.<br />

-Quer dizer o senhor, senhor cura, que tenho de ir buscar a confissão em outra parte?<br />

-Tem de ir. Não pode continuar consagrando aos demais se você mesmo está em pecado.<br />

-E se suspendem meus ministérios?<br />

-Não creio que o façam, embora talvez o mereça. Ficará a juízo deles.<br />

-Não poderia o senhor…? Provisoriamente, digamos… Necessito dar os santos óleos… a<br />

comunhão. Morrem tantos em meu povoado, senhor cura.<br />

-Padre, deixe que aos mortos os julgue Deus.<br />

-Então, não?<br />

E o senhor cura de Contla havia dito que não.<br />

Depois passearam os dois pelos corredores do curato, sombreados de azaléias. Sentaram-se<br />

debaixo de uma ramada onde maduravam as uvas.<br />

-São ácidas, padre -adiantou-se o senhor cura à pergunta que lhe ia fazer-. Vivemos em uma terra<br />

em que tudo dá, graças à Providência, mas tudo dá com acidez. Estamos condenados a isso.<br />

-O senhor tem razão, senhor cura. Lá em Comala tentei semear uvas. Não dão. Só crescem<br />

murtas e laranjeiras; laranjeiras azedas e murtas azedas. Esqueci o sabor das coisas doces. O senhor<br />

se lembra das goiabas da China que tínhamos no seminário? Os pêssegos, as tangerinas, aquelas que<br />

com só apertá-las soltavam a casca. Trouxe aqui algumas sementes. Poucas; apenas uma bolsinha…<br />

depois pensei que houvera sido melhor deixá-las lá onde madurassem, já que aqui as trouxe para<br />

morrer.<br />

-Apesar disso, padre, dizem que as terras de Comala são boas. É lástima que estejam nas mão de<br />

um só homem. É <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> ainda o dono, não?<br />

-Assim é a vontade de Deus.<br />

-Não creio que neste caso intervenha a vontade de Deus. Não crê você assim, padre?<br />

-Às vezes duvidei; mas ali o reconhecem.<br />

-E entre esses está você?<br />

-Eu sou um pobre homem disposto a humilhar-se, enquanto sente o impulso de fazê-lo.<br />

Logo se haviam despedido. Ele, tomando-lhe as mãos e beijando-as. Contudo, agora aqui, de<br />

volta à realidade, não queria voltar a pensar mais nessa manhã de Contla.<br />

Levantou-se e foi até a porta.


-Onde o senhor vai, tio?<br />

Sua sobrinha Ana, sempre presente, sempre junto a ele, como se buscasse sua sombra para<br />

defender-se da vida.<br />

-Vou caminhar um pouco, Ana. Para ver se me refresco.<br />

-Sente-se mal?<br />

-Mal não, Ana. Mau. Um homem mau. Isso sinto que sou.<br />

Foi até a Media Luna e deu os pêsames a <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>. Voltou a ouvir as desculpas pelas<br />

inculpações que haviam feito a seu filho. Deixou-o falar. Ao fim já nada tinha importância. Em troca,<br />

recusou o convite para comer com ele:<br />

-Não posso, dom <strong>Pedro</strong>, tenho que estar cedo na igreja porque me espera um montão de<br />

mulheres junto ao confessionário. Outra vez será.<br />

Veio devagar, e quando entardecia entrou diretamente na igreja, tal como ia, cheio de pó e de<br />

miséria. Sentou-se a confessar.<br />

A primeira que se aproximou foi a velha Dorotea, que sempre estava ali esperando que se<br />

abrissem as portas da igreja.<br />

Sentiu que fedia a álcool.<br />

-O quê, embebeda-se? Desde quando?<br />

-É que estive no velório de Miguelito, padre. E me serviram vinho de canela. Deram-me de beber<br />

tanto, que até virei palhaça.<br />

-Nunca foi outra coisa, Dorotea.<br />

-Mas agora trago pecados, padre. E de sobra.<br />

Em várias ocasiões ele lhe havia dito: “Não se confesse, Dorotea, vem apenas gastar-me o tempo.<br />

Você já não pode cometer nenhum pecado, ainda que se proponha. Deixe o campo aos demais.”<br />

-Agora sim, padre. É de verdade.<br />

-Diga.<br />

-Já que não lhe posso causar nenhum prejuízo, dir-lhe-ei que era eu quem conseguia garotas ao<br />

defunto Miguelito <strong>Páramo</strong>.<br />

O padre Rentería, que pensava dar-se tempo para pensar, pareceu sair de seus sonhos e<br />

perguntou quase por costume:<br />

-Desde quando?<br />

-Desde que ele ficou homenzinho. Desde que o agarrou o sarampo.<br />

-Volte a repetir o que disse, Dorotea.<br />

-Pois que eu era a que conchavava as garotas para Miguelito.<br />

-Levava-as?<br />

-Algumas vezes, sim. Em outras apenas as apalavrava. E com outras apenas lhe dava o norte. O<br />

senhor sabe: a hora em que estavam sós e em que ele podia agarrá-las descuidadas.<br />

-Foram muitas?<br />

Não queria dizer isso; mas lhe saiu a pergunta por costume.<br />

-Até perdi a conta. Foram muitíssimas.<br />

-Que quer que faça com você, Dorotea? Julgue você mesma Veja se você pode perdoar-se.


-Eu não, padre. Mas o senhor pode. Por isso venho vê-lo.<br />

-Quantas vezes veio aqui pedir-me que lhe mandasse ao céu quando morresse? Queria ver se lá<br />

encontrava seu filho, não, Dorotea? Pois bem, não poderá mais ir ao céu. Mas que Deus lhe perdoe.<br />

-Obrigada, padre.<br />

-Sim. Eu também a perdôo em nome dele. Pode ir.<br />

- Não me deixa nenhuma penitência?<br />

-Não precisa dela, Dorotea.<br />

-Obrigada, padre.<br />

-Vá com Deus.<br />

Bateu com os nós dos dedos na janelinha do confessionário para chamar outra daquelas<br />

mulheres. E enquanto ouvia o Eu pecador sua cabeça dobrou-se como se não pudesse suster-se no<br />

alto. Logo viu aquele enjôo, aquela confusão, o ir-se diluindo como em água espessa, e o girar de<br />

luzes; a luz inteira do dia que se desbaratava fazendo-se cacos; e esse sabor de sangue na língua. O<br />

Eu pecador se ouvia mais forte, repetido, e depois terminava: “pelos séculos dos séculos, amém”,<br />

“pelos séculos…”<br />

-Cale-se -disse-. Quanto faz que não se confessa?<br />

-Dois dias, padre.<br />

Ali estava outra vez. Como se o rodeasse a desventura. “Que faz aqui? -pensou-. Descansa. Vá<br />

descansar. Está muito cansado.”<br />

Levantou-se do confessionário e foi direto à sacristia. Sem voltar a cabeça disse àquela gente que<br />

o estava esperando:<br />

-Todos os que se sintam sem pecado podem comungar amanhã.<br />

Detrás dele, só se ouviu um murmúrio.<br />

Estou deitada na mesma cama onde morreu minha mãe faz já muitos anos; sobre o mesmo<br />

colchão; embaixo da mesma coberta de lã negra com a qual nos envolvíamos as duas para dormir.<br />

Então eu dormia a seu lado, num lugarzinho que ela me fazia debaixo de seus braços.<br />

Creio sentir ainda o golpe pausado de sua respiração; as palpitações e suspiros com que ela<br />

acalentava meu sono… Creio sentir pena de sua morte… Mas isto é falso.<br />

Estou aqui, de boca para cima, pensando naquele tempo para esquecer minha solidão. Porque<br />

não estou deitada só por um tempo. E nem na cama de minha mãe, senão dentro de um caixão negro<br />

como o que se usa para enterrar os mortos. Porque estou morta.<br />

Sinto o lugar em que estou e penso…<br />

Penso quando amadureciam os limões. No vento de fevereiro que rompia os talos das<br />

samambaias, antes de que o abandono os secasse; os limões maduros que enchiam com seu cheiro o<br />

velho pátio.<br />

O vento baixava das montanhas nas manhãs de fevereiro. E as nuvens ficavam lá em cima à<br />

espera de que o tempo bom as fizesse baixar ao vale; enquanto isso deixavam vazio o céu azul,<br />

deixavam que a luz caísse na brincadeira do vento fazendo círculos sobre a terra, removendo o pó e<br />

batendo os ramos das laranjeiras.<br />

E os pardais riam; bicavam as folhas que o ar fazia cair, e riam; deixavam suas penas entre os<br />

espinhos dos ramos e perseguiam as mariposas e riam. Era essa época.


Em fevereiro, quando as manhãs estavam cheias de vento, de pardais e de luz azul. Lembro-me.<br />

Minha mãe morreu então.<br />

Que eu devia ter gritado: que minhas mãos tinham que ter-se feito em pedaços esmagando seu<br />

desespero. Assim você haveria querido que fosse. Mas acaso não era alegre aquela manhã? Pela porta<br />

aberta entrava o ar, quebrando os talos da hera. Em minhas pernas começava a crescer o pêlo entre as<br />

veias, e minhas mãos tremiam tíbias ao tocar meus seios. Os pardais brincavam. Nas colinas se<br />

balançavam as espigas. Deu-me lástima que ela não voltasse a ver a brincadeira do vento entre os<br />

jasmins; que cerrasse os olhos à luz dos dias. Mas por que ia chorar?<br />

Lembra, Justina? Você acomodou as cadeiras ao longo do corredor para que as pessoas que<br />

viessem vê-la esperassem seu turno. Estiveram vazias. E minha mãe sozinha, no meio dos círios; seu<br />

rosto pálido e seus dentes brancos pouco se mostrando entre seus lábios roxos, endurecidos pela<br />

arroxeada morte. Suas pestanas já quietas; quieto já seu coração. Você e eu ali, rezando rezas<br />

intermináveis, sem que ela ouvisse nada, sem que você e eu ouvíssemos nada, tudo perdido na<br />

sonoridade do vento debaixo da noite. Você passou seu vestido negro, engomando o colarinho e o<br />

punho de suas mangas para que suas mãos se vissem novas, cruzadas sobre seu peito morto, seu<br />

velho peito amoroso sobre o qual dormi em um tempo e que me deu de comer e que palpitou para<br />

acalentar meus sonhos.<br />

Ninguém veio vê-la. Assim foi melhor.A morte não se reparte como se fosse um bem. Ninguém<br />

anda em busca de tristezas.<br />

Tocaram a aldrava. Você saiu.<br />

-Vai você -disse-lhe-. Eu vejo borrado o rosto das pessoas. E faça que se vão. Vêm pelo dinheiro<br />

das missas gregorianas? Ela não deixou nenhum dinheiro. Diga a eles, Justina. Não sairá do purgatório<br />

se não lhe rezam essas missas? Quem são eles para fazer justiça, Justina? Você diz que estou louca?<br />

Está bem.<br />

E as suas cadeiras ficaram vazias até que fomos enterrá-la com aqueles homens alugados,<br />

suando por um peso alheio, estranhos a qualquer pena. Fecharam a sepultura com areia molhada;<br />

baixaram o caixão devagar, com a paciência de seu ofício, debaixo do ar que lhes refrescava o esforço.<br />

Seus olhos frios, indiferentes. Disseram: “É tanto.” E você os pagou, como quem compra uma coisa<br />

desatando seu lenço úmido de lágrimas, espremido e tornado a espremer e agora guardando o dinheiro<br />

dos funerais…<br />

E quando eles se foram, ajoelhou-se no lugar onde havia ficado seu rosto e beijou a terra e podia<br />

ter aberto um buraco, se não lhe tivesse dito: “Vamos, Justina, ela está em outra parte, aqui não há<br />

mais que uma coisa morta.”<br />

-Foi você quem disse tudo isso, Dorotea?<br />

-Quem, eu? Fiquei adormecida um tempo. Continuam assustando-o?<br />

-Ouvi alguém que falava. Uma voz de mulher. Pensei que era você.<br />

-Voz de mulher? Pensou que era eu? Há de ser a que fala sozinha. A da sepultura grande. Dona<br />

Susanita. Está aqui enterrada a nosso lado. Há de lhe haver chegado a umidade e estará revolvendo-se<br />

entre o sono.<br />

-E quem é ela?<br />

-A última esposa de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>. Uns dizem que estava louca. Outros, que não A verdade é<br />

que já falava sozinha desde em vida.<br />

-Deve ter morrido faz muito.<br />

-Uh, sim! Faz muito. Que lhe ouviu dizer?


-Algo acerca de sua mãe.<br />

-Mas se ela nem mãe teve…<br />

-Pois disso falava.<br />

-…Ou, ao menos, não a trouxe quando veio. Mas espere. Agora lembro de que ela nasceu aqui, e<br />

que logo desapareceram. E sim, sua mãe morreu de tuberculose. Era uma senhora muito esquisita que<br />

sempre estava doente e não visitava ninguém.<br />

-Isso ela disse. Que ninguém havia ido ver sua mãe quando morreu.<br />

-Mas de que tempos falará? Claro que ninguém parava em sua casa pelo puro medo de pegar<br />

tuberculose. Lembrará disso a indigna?<br />

-Disso falava.<br />

-Quando tornar a ouvi-la avise-me, gostaria de saber o que diz.<br />

-Ouve? Parece que vai dizer algo. Ouve-se um murmúrio.<br />

-Não, não é ela. Isso vem de mais longe, por este outro rumo. E é voz de homem. O que acontece<br />

com estes mortos velhos é que quando lhes chega a umidade começam a revolver-se. E despertam.<br />

“O céu é grande. Deus esteve comigo esta noite. A não ser assim quem sabe o que haveria<br />

acontecido. Porque era já de noite quando revivi…”<br />

-Ouve mais claro?<br />

-Sim.<br />

“…Tinha sangue por todas as partes. E ao endireitar-me chapinhei com minhas mãos o sangue<br />

regado nas pedras. E era meu. Montões de sangue. Mas não estava morto. Dei-me conta. Soube que<br />

dom <strong>Pedro</strong> não tinha intenções de matar-me. Só de me dar um susto. Queria averiguar se eu havia<br />

estado em Vilmayo dois meses antes. O dia de São Cristóvão. Na boda. Em qual boda? Em qual São<br />

Cristóvão? Eu chapinhava no meu sangue e lhe perguntava: „Em qual boda, dom <strong>Pedro</strong>? Não, não,<br />

dom <strong>Pedro</strong>, eu não estive. Por acaso, passei por ali. Mas foi por casualidade…‟ Ele não teve intenções<br />

de matar-me. Deixou-me coxo, como os senhores vêem, e manco se os senhores querem. Mas não me<br />

matou. Dissem que se me torceu um olho desde então, da má impressão. O certo é que me tornei mais<br />

homem. O céu é grande. Não há quem duvide.”<br />

-Quem será?<br />

-Você vai saber. Algum de tantos. <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> causou tal mortandade depois que lhe mataram<br />

seu pai, que se diz que quase acabou com os assistentes da boda na qual dom Lucas <strong>Páramo</strong> ia servir<br />

de padrinho. E isso que a dom Lucas apenas tocou por tabela, porque parece que a coisa era contra o<br />

noivo. E como nunca se soube de onde havia saído a bala que o pegou, <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> arrasou com<br />

tudo. Isso foi lá no cerro de Vilmayo, onde estavam uns ranchos dos que já não fica nem o rasto…<br />

Olha, agora parece ser ela. Você que tem os ouvidos moços, ponha atenção. Contar-me-á o que diga.<br />

-Não se entende. Parece que não fala, só se queixa.<br />

-E de que se queixa?<br />

-Pois quem sabe.<br />

-Deve ser por algo. Ninguém se queixa de nada. Apure bem o ouvido.<br />

-Queixa-se e nada mais. Talvez <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> a fez sofrer.<br />

-Não creia. Ele a amava. Estou por dizer que nunca amou nenhuma mulher como a essa.<br />

Entregaram-na sofrida e talvez louca. Tanto a quis, que passou o resto de seus anos esborrachado<br />

numa cadeira, olhando o caminho por onde a haviam levado ao campo-santo. Perdeu o interesse em<br />

tudo. Abandonou suas terras e mandou queimar os utensílios. Uns dizem que porque já estava


cansado, outros que porque agarrou-lhe a desilusão; o certo é que pôs as pessoas para fora e se<br />

sentou em sua cadeira, rosto voltado para o caminho.<br />

“Desde então a terra ficou baldia e como em ruínas. Dava pena vê-la enchendo-se de mazelas<br />

com tanta praga que a invadiu quanto a deixaram sozinha. De lá para cá se consumiram as pessoas;<br />

debandaram os homens em busca de outros bebedouros. Lembro de dias em que Comala se encheu<br />

de adeuses e até nos parecia coisa alegre ir despedir-se dos que se iam. É que se iam com intenções<br />

de voltar. Deixavam-nos encarregadas de suas coisas e sua família. Logo alguns mandavam buscar<br />

suas famílias embora não suas coisas, e depois pareceram esquecer-se do povoado e de nós, e até de<br />

suas coisas. Eu fiquei porque não tinha onde ir. Outros ficaram esperando que <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong><br />

morresse, pois segundo diziam havia prometido dar-lhes seus bens por herança, e com essa esperança<br />

viveram ainda alguns. Mas passaram-se anos e anos e ele continuava vivo, sempre ali, como um<br />

espantalho frente às terras da Media Luna.”<br />

“E quando faltava pouco para morrer vieram as guerras, essas dos cristeros (N.T.: soldados da<br />

Cristiada, movimento cristão armado), e a tropa ficou encurralada com os poucos homens que ficaram.<br />

Foi quando comecei a morrer de fome e desde então nunca voltei a estar bem.<br />

“E tudo pelas idéias de dom <strong>Pedro</strong>, por seus pleitos da alma. Nada mais porque se lhe morreu a<br />

mulher, a tal Susanita. Já há você de imaginar se a amava.”<br />

Foi Fulgor Sedano que lhe disse:<br />

-Patrão, sabe quem anda por aqui?<br />

-Quem?<br />

-Bartolomé San <strong>Juan</strong>.<br />

-E daí?<br />

-Isso é o que me pergunto. Que virá fazer?<br />

-Não investigou?<br />

-Não. Vale dizer. É que não procurou casa. Chegou diretamente à antiga casa do senhor. Ali<br />

desmontou e desceu suas malas, como se o senhor de antemão a houvesse alugado. Ao menos lhe vi<br />

essa segurança.<br />

-E o que faz, Fulgor, que não averigua o que acontece? Não está para isso?<br />

-Desorientei-me um pouco pelo que lhe disse. Mas amanhã esclarecerei as coisas se o senhor<br />

acha necessário.<br />

-O de amanhã deixe-o a mim. Encarrego-me deles. Vieram os dois?<br />

-Sim, ele e sua mulher. Mas como sabe?<br />

-Não será sua filha?<br />

-Pois pelo modo como a trata mais parece sua mulher.<br />

-Vá dormir, Fulgor.<br />

-Se o senhor permite.<br />

“Esperei trinta anos para que regressasse, Susana. Esperei para ter tudo. Não só algo, mas tudo o<br />

que pudesse conseguir de modo que não nos ficasse nenhum desejo, só o seu, o desejo de você.<br />

Quantas vezes convidei seu pai que viesse viver aqui novamente, dizendo-lhe que eu o precisava? Fi-lo<br />

até com enganos.”


“Ofereci-lhe nomeá-lo administrador, com o objetivo de tornar a vê-la. E o que me respondeu?<br />

„Não há resposta -dizia-me sempre o mensageiro-. O senhor dom Bartolomé rasga suas cartas quando<br />

eu as entrego‟. Mas pelo garoto soube que havia se casado e logo me inteirei de que havia ficado viúva<br />

e fazia outra vez companhia a seu pai.”<br />

Logo o silêncio.<br />

“-O mensageiro ia e vinha e sempre regressava dizendo-me:<br />

“-Não os encontro, dom <strong>Pedro</strong>. Dizem-me que saíram de Mascota. E uns me dizem que para cá e<br />

outros para lá.<br />

“-E eu:<br />

“-Não repare em gastos, procure-os. Nem que os haja tragado a terra.<br />

“-Até que um dia veio e me disse:<br />

“Repassei toda a serra indagando o canto onde se esconde dom Bartolomé San <strong>Juan</strong>, até que dei<br />

com ele, lá, perdido num buraco dos montes, vivendo em uma covinha feita de troncos, no mesmo lugar<br />

onde estão as minas abandonadas de La Andrómeda.<br />

“Sopravam então ventos raros. Dizia-se que havia gente levantada em armas. Chegavam-nos<br />

rumores. Isso foi o que empurrou seu pai para cá. Não por ele, segundo me disse em sua carta, mas<br />

por sua segurança, queria trazê-la a algum lugar vivente.<br />

“Senti que se abria o céu. Tive ânimo de correr até você. De rodeá-la de alegria. De chorar. E<br />

chorei, Susana, quando soube que finalmente regressaria.”<br />

-Há povoados que sabem a desdita. Conhecem-se ao sorver um pouco de seu ar velho e<br />

entorpecido, pobre e fraco como todo velho. Este é um desses povoados, Susana.<br />

“Lá, de onde viemos agora, ao menos você se entretinha olhando o nascimento das coisas:<br />

nuvens e pássaros, o musgo, lembra? Aqui em troca não sentirá senão esse cheiro amarelo e azedo<br />

que parece destilar por todos os lados. É que este é um povoado desditado; untado todo de desdita.<br />

“Ele nos pediu que voltássemos. Emprestou-nos sua casa. Deu-nos tudo o que podemos<br />

necessitar. Mas não devemos estar-lhe agradecidos. Somos infortunados por estar aqui, porque aqui<br />

não teremos salvação nenhuma. Pressinto-o.<br />

“Sabe o que me pediu <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>? Já imaginava que isto que nos dava não era gratuito. E<br />

estava disposto a cobrar com meu trabalho, já que tínhamos de pagar de algum modo. Detalhei-lhe<br />

tudo a respeito de La Andrómeda e lhe fiz ver que aquilo tinha possibilidades, trabalhando-a com<br />

método. E sabe o que me respondeu? „Não me interessa sua mina, Bartolomé San <strong>Juan</strong>. A única coisa<br />

que quero do senhor é sua filha. Este foi seu melhor trabalho.‟<br />

“Assim que quer a você, Susana. Dizem que brincava com ele quando eram crianças. Que já a<br />

conhece. Que chegaram a banhar-se juntos no rio quando eram crianças. Não o soube; sabendo-o,<br />

matá-la-ia a cintadas.”<br />

-Não duvido.<br />

-Foi você que disse: não duvido?<br />

-Eu disse.<br />

-De maneira que está disposta a deitar-se com ele?<br />

-Sim, Bartolomé.<br />

-Não sabe que é casado e que teve infinidade de mulheres?<br />

-Sim, Bartolomé.


-Não diga Bartolomé. Sou seu pai!<br />

Bartolomé San <strong>Juan</strong>, um mineiro morto. Susana San <strong>Juan</strong>, filha de um mineiro morto nas minas de<br />

La Andrómeda. Via claro. “Terei que ir lá para morrer”, pensou. Logo disse:<br />

-Disse-lhe que você, ainda que viúva, continua vivendo com seu marido, ou ao menos assim se<br />

comporta; tratei de dissuadi-lo, mas se lhe faz turvo o olhar quando lhe falo, e quando sai a reluzir seu<br />

nome, fecha os olhos. É, segundo sei, a pura maldade. Isso é <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>.<br />

-E eu quem sou?<br />

-Você é minha filha. Minha. Filha de Bartolomé San <strong>Juan</strong>.<br />

Na mente de Susana San <strong>Juan</strong> começaram a caminhar as idéias, primeiro lentamente, logo se<br />

detiveram, para depois se pôr a correr de tal modo que não conseguiu senão dizer:<br />

-Não é certo. Não é certo.<br />

-Este mundo que aperta uma pessoa por todos os lados, que vai esvaziando punhados de nosso<br />

pó aqui e ali, desfazendo-nos em pedaços como se borrifasse a terra com nosso sangue. Que fizemos?<br />

Por que nos apodreceu a alma? Sua mãe dizia que ao menos nos fica a caridade de Deus. E você a<br />

nega, Susana. Por que nega a mim como seu pai? Está louca?<br />

-Não sabia?<br />

-Está louca?<br />

-Claro que sim, Bartolomé. Não sabia?<br />

-Sabia, Fulgor, que essa é a mulher mais formosa que surgiu sobre a terra? Cheguei a crer que a<br />

havia perdido para sempre. Mas agora não tenho vontade de voltar a perdê-la. Você me entende,<br />

Fulgor? Diz a seu pai que continue explorando suas minas. E lá… imagino que será fácil desaparecer o<br />

velho naquelas regiões onde ninguém vai nunca… Não acha?<br />

-Pode ser.<br />

-Precisamos que seja. Ela tem que ficar órfã. Estamos obrigados a amparar alguém. Não acha?<br />

-Não o vejo difícil.<br />

-Então andando Fulgor, andando.<br />

-E se ela chega a sabê-lo?<br />

-Quem lhe dirá? Veja, diga-me, aqui entre nós dois, quem lhe dirá?<br />

-Estou certo de que ninguém.<br />

-Deixe o “estou certo de que”. Deixe-o agorinha e verá como tudo sai bem. Lembra do trabalho<br />

que deu dar com La Andrómeda. Mande-o para lá para continuar trabalhando. Que vá e volte. Nada<br />

que lhe ocorra fugir com a filha. Desta aqui cuidamos. Lá estará seu trabalho e aqui sua casa onde<br />

venha reconhecer. Diga-lhe assim, Fulgor.<br />

-Volto a gostar de como age o senhor, patrão, como se lhe estão rejuvenescendo os ânimos.<br />

Sobre os campos do vale de Comala está caindo a chuva. Uma chuva miúda, estranha para estas<br />

terras que só conhecem aguaceiros. É domingo. De Apango desceram os índios com seus rosários de<br />

camomilas, seu alecrim, seus maços de tomilho. Não trouxeram pinha porque a pinha está molhada, e<br />

nem terra de azinheira porque também está molhada pelo muito chover. Estendem suas ervas no chão,<br />

embaixo dos arcos do portal, e esperam.<br />

A chuva continua caindo sobre o charcos.


Entre sulcos, onde está nascendo o milho, corre a água em rios. Os homens não vieram hoje ao<br />

mercado, ocupados em romper seus sulcos para que a água busque novos leitos e não arraste o<br />

milharal tenro. Andam em grupos, navegando na terra alagada, embaixo da chuva, quebrando com<br />

suas pás os moles torrões, ligando com suas mãos o milharal e tratando de protegê-lo para que cresça<br />

sem trabalho.<br />

Os índios esperam. Sentem que é um mau dia. Talvez por isso tremam debaixo de seus molhados<br />

capotes de palha; não de frio, senão de temor. E olham a chuva esmigalhada e para o céu, que não<br />

solta suas nuvens.<br />

Ninguém vem. O povoado parece estar sozinho. A mulher lhes encomendou um fio de remendo e<br />

algo de açúcar, e a ser possível e a haver, uma peneira para coar o atole (N.T.: bebida feita de farinha<br />

de milho). O capote se lhes faz pesado de umidade conforme se aproxima o meio-dia. Conversam,<br />

contam piadas e soltam o riso. As camomilas brilham salpicadas pelo orvalho. Pensam: “Se ao menos<br />

houvéssemos trazido um tantinho de pulque (N.T.: bebida alcoólica mexicana, feita de pita), não<br />

importaria; mas o miolo das pitas está feito um mar de água. Enfim, o que se há de fazer?<br />

Justina Díaz, coberta por guarda-chuva, vinha pela rua direita que vem da Media Luna, rodeando<br />

os jorros que borbotavam sobre os bancos. Fez o sinal da cruz e se persignou ao passar pela porta da<br />

igreja maior. Entrou no portal. Os índios se viraram para vê-la. Viu o olhar de todos como se a<br />

esquadrinhassem. Deteve-se no primeiro posto, comprou dez centavos de alecrim, e regressou,<br />

seguida pelos olhares em fileira daquele montão de índios.<br />

“O caro que está tudo neste tempo -disse, ao tomar de novo o caminho até a Media Luna-. Este<br />

triste raminho de alecrim por dez centavos. Não conseguirá nem sequer dar aroma”.<br />

Os índios levantaram seus postos ao escurecer. Entraram na chuva com seus pesados terços nas<br />

costas; passaram pela igreja para rezar à Virgem, deixando-lhe um punhado de tomilho de esmola.<br />

Logo se encaminharam para Apango, de onde haviam vindo. “Aí será outro dia”, disseram. E pelo<br />

caminho iam contando piadas e soltando o riso.<br />

Justina Díaz entrou no dormitório de Susana San <strong>Juan</strong> e pôs o alecrim sobre a prateleira. As<br />

cortinas fechadas impediam a passagem da luz, então naquela escuridão só via as sombras, só<br />

adivinhava. Supôs que Susana San <strong>Juan</strong> estaria adormecida; ela desejava que sempre estivesse<br />

adormecida. Sentiu-a assim e se alegrou. Mas então ouviu um suspiro distante, como saído de algum<br />

canto daquela peça escura.<br />

-Justina! -disseram-lhe.<br />

Ela voltou a cabeça. Não viu ninguém; mas sentiu u‟a mão sobre o ombro e a respiração em seus<br />

ouvidos. A voz baixa: “Vá daqui, Justina. Arrume seus pertences e vá. Não mais precisamos de você.”<br />

-Ela precisa de mim -disse, endireitando o corpo-. Está doente e precisa de mim.<br />

-Não mais, Justina. Ficarei aqui para cuidar dela.<br />

-É o senhor, dom Bartolomé? -e não esperou a resposta. Lançou aquele grito que desceu até os<br />

homens e mulheres que regressavam dos campos e que lhes fez dizer: “Parece ser um latido humano;<br />

mas não parece ser de nenhum ser humano.”<br />

A chuva amortece os ruídos. Continua-se ouvindo ainda depois de tudo, saraivando suas gotas,<br />

alinhavando o fio da vida.<br />

-O que acontece, Justina? Por que grita? -perguntou Susana San <strong>Juan</strong>.<br />

-Não gritei, Susana. Deve ter estado sonhando.<br />

-Já lhe disse que não sonho nunca. Não tem consideração por mim. Estou muito desperta. À noite<br />

não colocou o gato para fora e não me deixou dormir.<br />

-Dormiu comigo, entre minhas pernas. Estava ensopado e por lástima deixei-o ficar em minha<br />

cama; mas não fez ruído.


-Não, ruído não fez. Só ficou fazendo circo, brincando de meus pés a minha cabeça, e miando<br />

baixinho como se tivesse fome.<br />

-Dei-lhe de comer e não se despegou de mim toda a noite. Está outra vez sonhando mentiras,<br />

Susana.<br />

-Digo-lhe que passou a noite assustando-me com suas brincadeiras. E embora seja muito<br />

carinhoso seu gato, não o quero quando estou adormecida.<br />

-Vê visões, Susana. Isso é o que acontece. Quando <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> vier dir-lhe-ei que já não a<br />

agüento. Dir-lhe-ei que me vou. Não faltará gente boa que me dê trabalho. Nem todos são maníacos<br />

como você, nem vivem mortificando a alguém como você. Amanhã me irei e levarei o gato e você ficará<br />

tranqüila.<br />

-Não irá daqui, maldita e condenada Justina. Não irá a nenhuma parte porque nunca encontrará<br />

quem a queira como eu.<br />

-Não, não irei, Susana. Não irei. Bem sabe que estou aqui para cuidar-lhe. Não importa que me<br />

faça renegar, cuidar-lhe-ei sempre.<br />

Havia cuidado dela desde que nasceu. Havia-a tido entre os braços. Havia-a ensinado a andar. A<br />

dar esses passos que a ela pareciam eternos. Havia visto crescer sua boca e seus olhos “como de<br />

doce”. “O doce de menta é azul. Amarelo e azul. Verde e azul. Misturado com menta e hortelã.” Mordialhe<br />

as pernas. Entretinha-a dando-lhe de mamar os seios, que não tinham nada, que eram como de<br />

brinquedo. “Brinque -dizia-lhe-, brinque com este seu brinquedinho.” Havê-la-ia esmagado e feito em<br />

pedaços.<br />

Lá fora se ouvia o cair da chuva sobre as folhas das bananeiras, sentia-se como se a água<br />

fervesse sobre a água estancada na terra.<br />

Os lençóis estavam frios de umidade. Os canos borbotavam, faziam espuma, cansados de<br />

trabalhar durante o dia, durante a noite, durante o dia. A água continuava correndo, diluviando em<br />

incessantes borbulhas.<br />

Era meia-noite e lá fora o ruído da água apagava todos os sons.<br />

Susana San <strong>Juan</strong> levantou-se devagar. Endireitou o corpo lentamente e saiu da cama. Ali estava<br />

outra vez o peso, em seus pés, caminhando pela orla de seu corpo; tratando de encontrar-lhe o rosto:<br />

-É você, Bartolomé? -perguntou.<br />

Pareceu-lhe ouvir ranger a porta, como quando alguém entrava ou saía. E depois só a chuva,<br />

intermitente, fria, rolando sobre as folhas das bananeiras, fervendo em seu próprio fervor.<br />

Dormiu e não despertou até que a luz iluminou os tijolos vermelhos, aspergidos de orvalho entre a<br />

cinzenta manhã de um novo dia. Gritou:<br />

-Justina!<br />

E ela apareceu em seguida, como se já houvesse estado ali, envolvendo seu corpo em uma<br />

manta.<br />

-Que quer, Susana?<br />

-O gato. Veio outra vez.<br />

-Pobrezinha de você, Susana.<br />

Recostou-se sobre seu peito, abraçando-a, até que ela conseguiu levantar aquela cabeça e lhe<br />

perguntou:<br />

-Por que chora? Direi a <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> que é boa comigo. Não contarei nada dos sustos que me<br />

dá seu gato. Não fique assim, Justina.


-Seu pai morreu, Susana. Morreu ontem à noite, e hoje vieram dizer que nada se pode fazer; que<br />

já o enterraram; que não o puderam trazer aqui porque o caminho era muito longo. Você ficou sozinha,<br />

Susana.<br />

-Então era ele -e sorriu-. Você veio despedir-se de mim -disse, e sorriu.<br />

Muitos anos antes, quando ela era uma criança, ele lhe havia dito:<br />

-Baixe, Susana, e diga-me o que vê.<br />

Estava presa àquela corda que lhe machucava a cintura, que lhe sangrava as mãos; mas que não<br />

queria soltar: era como o único fio que a segurava ao mundo de fora.<br />

-Não vejo nada, papai.<br />

-Procure bem, Susana. Tente encontrar algo.<br />

E a iluminou com seu lampião.<br />

-Não vejo nada, papai.<br />

-Baixá-la-ei mais. Avise-me quando estiver no chão.<br />

Havia entrado por um pequeno buraco aberto entre as tábuas. Havia caminhado sobre tábuas<br />

grandes apodrecidas, velhas, estilhaçadas e cheias de terra pegajosa:<br />

-Baixe mais, Susana, e encontrará o que lhe digo.<br />

E ela baixou e baixou balançando, mexendo-se na profundidade, com seus pés bamboleando “no<br />

não encontro onde pôr os pés”.<br />

-Mais abaixo, Susana. Mais abaixo. Diga-me se vê algo.<br />

E quando encontrou apoio ali permaneceu, calada, porque emudeceu de medo. O lampião<br />

circulava e a luz passava ao largo junto a ela. E o grito de lá em cima a estremecia:<br />

-Dê-me o que está aí, Susana!<br />

E ela agarrou a caveira entre as mãos e quando a luz a pegou em cheio soltou-a.<br />

-É uma caveira de morto- disse.<br />

-Deve encontrar algo mais junto a ela. Dê-me tudo o que encontre.<br />

O cadáver se desfez em canudos; a queixada desprendeu-se como se fosse de açúcar. Foi-lhe<br />

dando pedaço a pedaço até que chegou aos dedos dos pés e lhe entregou articulação por articulação.<br />

E a caveira primeiro; aquela bola redonda que se desfez entre suas mãos.<br />

-Procure algo mais, Susana. Dinheiro. Rodas redondas de ouro. Procure-as, Susana.<br />

Então ela não soube dela, senão muitos dias depois entre o gelo, entre os olhares cheios de gelo<br />

de seu pai.<br />

Por isso ria agora.<br />

-Soube que era você, Bartolomé.<br />

E a pobre da Justina, que chorava sobre seu coração, teve que levantar-se ao ver que ela ria e<br />

que seu riso se convertia em gargalhada.<br />

Lá fora continuava chovendo. Os índios se haviam ido. Era segunda-feira e o vale de Comala<br />

continuava alagando-se em chuva.<br />

Os ventos continuaram soprando todos esses dias. Esses ventos que haviam trazido as chuvas. A<br />

chuva se havia ido; mas o vento ficou. Lá nos campos o milharal refrescou suas folhas e se deitou


sobre os sulcos para defender-se do vento. De dia era tolerável; retorcia as heras e fazia ranger as<br />

telhas nos telhados; mas à noite gemia, gemia longamente. Pavilhões de nuvens passavam em silêncio<br />

pelo céu como se caminhassem roçando a terra.<br />

Susana San <strong>Juan</strong> ouve o golpe do vento contra a janela fechada. Está deitada com os braços<br />

detrás da cabeça pensando, ouvindo os ruídos da noite; como a noite vai e vem arrastada pelo sopro<br />

do vento sem quietude. Logo o seco deter-se.<br />

Abriram a porta. Uma rajada de ar apaga o candeeiro. Vê a escuridão e então deixa de pensar.<br />

Sente pequenos sussurros. Em seguida ouve o percutir de seu coração em palpitações desiguais.<br />

Através de suas pálpebras fechadas entrevê a chama da luz.<br />

Não abre os olhos. O cabelo está derramado sobre seu rosto. A luz acende gotas de suor em seus<br />

lábios. Pergunta:<br />

-É você, pai?<br />

-Sou seu pai, filha minha.<br />

Entreabre os olhos. Olha como se cruzasse seus cabelos uma sombra sobre o teto, com a cabeça<br />

em cima de seu rosto. E a figura borrada de alguém aqui na frente, detrás da chuva de suas pestanas.<br />

Uma luz difusa; uma luz no lugar do coração, em forma de coração pequeno que palpita como chama<br />

oscilante. “Está morrendo de pena seu coração -pensa-. Já sei que vem contar-me que morreu<br />

Florêncio; mas isso já sei. Não se aflija demais; não se preocupe comigo. Tenho guardada minha dor<br />

em um lugar seguro. Não deixe que se apague seu coração.”<br />

Endireitou o corpo e o arrastou até onde estava o padre Rentería.<br />

-Deixe-me consolá-la com meu desconsolo! -disse, protegendo a chama da vela com suas mãos.<br />

O padre Rentería a deixou aproximar-se dele; olhou-a cercar com as mãos a vela acesa e logo<br />

juntar seu rosto ao pavio inflamado, até que o cheiro de carne chamuscada o obrigou a sacudi-la,<br />

apagando-a com um sopro.<br />

Então voltou a escuridão e ela correu a refugiar-se debaixo de seus lençóis.<br />

O padre Rentería lhe disse:<br />

-Vim confortá-la, filha.<br />

-Então adeus, padre -respondeu ela-. Não volte Não preciso de você.<br />

E ouviu quando se distanciavam os passos que sempre deixavam uma sensação de frio, de<br />

tremor e medo.<br />

-Para que vem ver-me, se está morto?<br />

O padre Rentería fechou a porta e saiu para o ar da noite.<br />

O vento continuava soprando.<br />

Um homem a quem chamavam o Gago chegou à Meia Lua e perguntou por <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>.<br />

-Para quê o solicita?<br />

-Quero falar cocom ele.<br />

-Não está.<br />

-Diga-lhe, ququando regresse, que venho de paparte de dom Fulgor.<br />

-Irei buscá-lo; mas espere umas quantas horas.<br />

-Diga-lhe que é cocoisa de urgência.


-Dir-lhe-ei.<br />

O homem a quem chamavam o Gago aguardou em cima do cavalo. Passado um tempo, <strong>Pedro</strong><br />

<strong>Páramo</strong>, que nunca havia visto, se lhe pôs em frente:<br />

-Que acontece?<br />

-Preciso falar diretamente cocom o patrão.<br />

-Sou eu. Que quer?<br />

-Pois, nanada mais que isto. Mataram dom Fulgor Sesedano. Eu lhe fazia companhia. Havíamos<br />

ido pelo rurumo dos vertedouros para averiguar porque se estava escasseando a água. e nisso<br />

andávamos ququando vimos uma manada de homens que nos saíram ao encontro. E de entre aquela<br />

mumultidão brotou uma voz que disse: “Esse eu coconheço. É o administrador da Memedia Luna.”<br />

“A mim não me tomaram em conta. Mas a dom Fulgor lhe mandaram soltar a montaria. Disseramlhe<br />

que eram revolucionários. Que vinham pelas terras do senhor. „Cocorra! <strong>–</strong>disseram a dom Fulgor-.<br />

Vá e diga a seu patrão que lá nos veremos!‟ E ele saiu na cacarreira, espavorido. Não muito depressa,<br />

pelo pesado que era; mas correu. Mataram-no, cocorrendo. Morreu com um pé em cima e outro<br />

embaixo.”<br />

“Então não me momovi. Esperei que fosse de noite e aqui estou para anunciar-lhe o que<br />

acoconteceu.”<br />

-E o que espera? Por que não se move? Anda e diga a esses que aqui estou para o que se lhes<br />

ofereça. Que venham tratar comigo. Mas antes passe em La Consagración. Conhece o Tilcuate? Aí<br />

estará. Diga-lhe que preciso vê-lo. E a esses fulanos avise que os espero quando tenham um tempo<br />

disponível. Que espécie de revolucionários são?<br />

-Não sei. Eles assim se nonomeiam.<br />

-Diga ao Tilcuate que preciso dele mais que depressa.<br />

-Assim farei, papatrão.<br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> voltou a fechar-se em seu escritório. Sentia-se velho e esmagado. Não o<br />

preocupava Fulgor, que ao fim e ao cabo já estava “mais para a outra que para esta”. Havia dado de si<br />

tudo o que tinha de dar; ainda que foi muito serviçal, o que seja a cada um. “De todos os modos, os<br />

„tilcuataços‟ que se entendam com esses loucos”, pensou.<br />

Pensava mais em Susana San <strong>Juan</strong>, metida sempre em seu quarto, dormindo, e quando não,<br />

como se dormisse. A noite anterior havia-a passado de pé, encostado á parede, observando através da<br />

pálida luz do castiçal o corpo em movimento de Susana; o rosto suarento, as mãos agitando os lençóis,<br />

esmagando o travesseiro até o esmorecimento.<br />

Desde que a havia trazido para viver aqui não sabia de outras noites passadas a seu lado, senão<br />

destas noites doloridas, de interminável inquietude. E se perguntava quando terminaria aquilo.<br />

Esperava que alguma vez. Nada pode durar tanto, não existe nenhuma lembrança por intensa que<br />

seja que não se apague.<br />

Se ao menos houvesse sabido o que era aquilo que a maltratava por dentro, que a fazia revolverse<br />

na insônia, como se a despedaçassem até inutilizá-la.<br />

Ele acreditava conhecê-la. “E ainda que não houvesse sido assim, acaso não era suficiente saber<br />

que era a criatura mais querida por ele sobre a terra? E que além disso, e isto era o mais importante,<br />

servir-lhe-ia para ir-se da vida iluminando-se com aquela imagem que borraria todas as outras<br />

recordações.<br />

Mas qual era o mundo de Susana San <strong>Juan</strong>? Essa foi uma das coisas que <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> nunca<br />

chegou a saber.


“Meu corpo se sentia a gosto sobre o calor da areia. Tinha os olhos fechados, os braços abertos,<br />

desdobradas as pernas à brisa do mar. E o mar ali em frente, distante, deixando apenas restos de<br />

espuma em meus pés ao subir de sua maré…”<br />

-Agora sim é ela quem fala, João Preciado. Não se esqueça de dizer-me o que diz.<br />

“…Era cedo. O mar corria e baixava em ondas. Desprendia-se de sua espuma e se ia, limpo, com<br />

sua água verde, em ondas caladas.<br />

“-No mar só sei banhar-me nua -disse-lhe. E ele me seguiu o primeiro dia, nu também,<br />

fosforecente ao sair do mar. Não havia gaivotas; só esses pássaros que são chamados „bicos feios‟,<br />

que grunhem como se roncassem e depois que sai o sol desaparecem. Ele me seguiu o primeiro dia e<br />

sentiu-se só, apesar de eu estar aí.”<br />

“-Você é como se fosse um „bico feio‟, um mais entre todos <strong>–</strong>disse-me-. Gosto mais de você nas<br />

noites, quando estamos os dois no mesmo travesseiro, debaixo dos lençóis, na escuridão.<br />

“E se foi.”<br />

“Voltei. Voltaria sempre. O mar molha meus tornozelos e se vai; molha meus joelhos, minhas<br />

coxas; rodeia minha cintura com seu braço suave, dá volta sobre meus seios; abraça-se a meu<br />

pescoço; aperta meus ombros. Então me fundo com ele, inteira. Entrego-me a ele em seu forte bater,<br />

em seu suave possuir, sem deixar pedaço.”<br />

“-Gosto de me banhar no mar” -disse-lhe.<br />

“Mas ele não compreende.<br />

“E no outro dia estava outra vez no mar, purificando-me. Entregando-me a suas ondas.”<br />

Ao entardecer, apareceram os homens. Vinham armados de carabinas e terçados de cartucheiras.<br />

Eram cerca de vinte. <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> os convidou a jantar à mesa e esperaram calados. Só se os ouviu<br />

sorver o chocolate quando lhes trouxeram o chocolate, e mastigar tortilha após tortilha quando lhes<br />

aproximaram os feijões.<br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> os olhava. Não lhe pareciam rostos conhecidos. Bem detrás dele, na sombra,<br />

aguardava o Tilcuate.<br />

-Patrões <strong>–</strong>disse-lhes quando viu que acabavam de comer-, em que mais posso servi-los?<br />

-O senhor é o dono disto? -perguntou um abanando a mão.<br />

Mas outro o interrompeu dizendo:<br />

-Aqui sou eu quem fala!<br />

-Bem. De que precisam? -voltou a perguntar <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>.<br />

-Como o senhor vê, levantamo-nos em armas.<br />

-E?<br />

-Pois isso é tudo. Parece-lhe pouco?<br />

-Mas por que o fizeram?<br />

-Pois porque outros o fizeram também. Não sabe o senhor? Aguarde-nos um tantinho que nos<br />

cheguem instruções e então averiguaremos a causa. Para o que for, já estamos aqui.<br />

-Eu sei a causa -disse outro-. E se quiser informo. Rebelamo-nos contra o governo e contra vocês<br />

porque já estamos cansados de suportá-los. Ao governo por rasteiro e a vocês porque não são mais<br />

que bandidos desprezíveis e ladrões sebentos. E do senhor governo não digo nada porque lhe vamos<br />

dizer com balaços o que queremos dizer-lhe.


los.<br />

-De quanto precisam para fazer sua revolução? -perguntou <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>. -Talvez possa ajudá-<br />

-Diz bem aqui o senhor, Perseverancio. Você não devia ter a língua solta. Precisamos arrumar um<br />

rico que nos aparelhe, e quem melhor que o senhor aqui presente? Diga você, Casildo, quanto nos<br />

falta?<br />

-Que nos dê o que sua boa intenção queira dar-nos.<br />

-Este “não daria água nem ao galo da paixão”. Aproveitemos que estamos aqui para tirar-lhe de<br />

uma vez até o milho que tem entupido no seu bucho porco.<br />

-Acalme-se, Perseverancio. Pelo bem se conseguem melhor as coisas. Vamos pôr-nos de acordo.<br />

Fale você, Casildo.<br />

-Pois eu aí de cabeça diria que uns vinte mil pesos não estariam mal para o começo. Que lhes<br />

parece? Quem sabe se a este senhor lhe seja pouco, emm vista de que tem vontade de sobra de<br />

ajudar-nos. Ponhamos então cinqüenta mil. De acordo?<br />

-Vou dar-lhes cem mil pesos <strong>–</strong>disse-lhes <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>. Quantos são vocês?<br />

-Somos trezentos.<br />

-Bom. Vou emprestar-lhes outros trezentos homens para que aumentem seu contingente. Dentro<br />

de uma semana terão a sua disposição tanto os homens quanto o dinheiro. O dinheiro lhes dou, os<br />

homens apenas empresto. Quando os desocupem mandem-nos para cá. Está bem assim?<br />

-Mas como não?<br />

-Então até dentro de oito dias, senhores. Tive muito gosto em conhecê-los.<br />

-Sim -disse o último a sair. Lembre-se de que, se não cumpre, ouvirá falar de Perseverancio, que<br />

assim é meu nome.<br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> despediu-se dele dando-lhe a mão.<br />

-Quem você acredita que seja o chefe destes? <strong>–</strong>perguntou mais tarde ao Tilcuate.<br />

-Pois a mim se me afigura que é o barrigudo, esse que estava no meio e que nem levantou os<br />

olhos. Acho que é ele… Erro poucas vezes, dom <strong>Pedro</strong>.<br />

-Não, Damasio, o chefe é você. O quê, não quer ir à revolta?<br />

-Mas até já demora. Gosto do bulício.<br />

-Já viu pois de que se trata, assim não necessita de meus conselhos. Junta trezentos rapazes de<br />

sua confiança e engaje-se com esses levantados. Diga-lhes que lhes leva as pessoas que lhes prometi.<br />

O demais saberá como manejá-lo.<br />

-E do dinheiro que lhes digo? Também lhes entrego?<br />

-Vou dar-lhe dez pesos para cada um. Aí apenas para seus gastos mais urgentes. Diz-lhes que o<br />

resto está aqui guardado e a sua disposição. Não é conveniente levar tanto dinheiro andando nesses<br />

movimentos. Entre parênteses. Você gostaria do ranchinho da Puerta de Piedra? Bom, pois é seu<br />

desde agora mesmo. Vai levar um recado ao licenciado Gerardo Trujillo, de Comala, e ali mesmo porá<br />

em seu nome a propriedade. O que diz, Damasio?<br />

-Isso nem se pergunta, patrão. Ainda que com isso ou sem isso eu o faria por puro gosto. Como<br />

se o senhor não me conhecesse. De qualquer modo, agradeço-lhe. A velha terá ao menos com que<br />

entreter-se enquanto caio no mundo.<br />

-E olhe, de passagem apanhe umas quantas vacas. A esse rancho o que falta é movimento.<br />

-Não importa que sejam zebus?


-Escolha as que queira, e as de que possa cuidar sua mulher. E voltando a nosso assunto,<br />

procure não afastar-se muito de minhas terras, para que se vierem outros vejam o campo já ocupado. E<br />

venha ver-me sempre que possa ou tenha alguma novidade.<br />

-Ver-nos-emos, patrão.<br />

-O que é que diz, João Preciado?<br />

-Diz que ela escondia seus pés entre as pernas dele. Seus pés gelados como pedras frias e que<br />

ali se esquentavam como em um forno onde se doura o pão. Diz que ele lhe mordia os pés dizendo-lhe<br />

que eram como pão dourado no forno. Que dormia encolhida, metendo-se dentro dele, perdida no nada<br />

ao sentir que se quebrava sua carne, que se abria como um sulco aberto por um prego ardente, logo<br />

tíbio, logo doce, dando golpes duros contra sua carne branda; sumindo-se, sumindo-se mais, até o<br />

gemido. Mas que lhe havia doído mais sua morte. Isso diz.<br />

-A quem se refere?<br />

-A alguém que morreu antes dela, certamente.<br />

-Mas quem podia ser?<br />

-Não sei. Diz que na noite na qual tardou a vir sentiu que havia regressado já noite alta, talvez de<br />

madrugada. Notou apenas porque seus pés, que haviam estado sós e frios, pareceram envolver-se em<br />

algo; que alguém os envolvia em algo e lhes dava calor. Quando despertou encontrou-os enrolados em<br />

um jornal que ela havia estado lendo enquanto o esperava e que havia deixado cair no chão quando já<br />

não pôde suportar o sono. E que ali estavam seus pés envoltos em jornal, quando vieram dizer-lhe que<br />

ele havia morrido.<br />

-Há de se haver partido o caixão onde a enterraram, porque se ouve como um ranger de tábuas.<br />

-Sim, eu também ouço.<br />

Essa noite voltaram a suceder-se os sonhos. Por que esse recordar intenso de tantas coisas? Por<br />

que não simplesmente a morte e não essa música terna do passado?<br />

-Florencio morreu, senhora.<br />

-Que grande era aquele homem! Que alto! E sua voz era dura. Seca como a terra mais seca. E<br />

sua figura era borrada. Ou se fez borrada depois?, como se entre ela e ele se interpusesse a chuva.<br />

“Que havia dito? Florencio? De qual Florencio falava? do meu? Oh! por que não chorei e me alaguei em<br />

lágrimas para enxaguar minha angústia? Senhor, você não existe! Pedi sua proteção para ele. Que<br />

cuidasse dele para mim. Isso lhe pedi. Mas você se ocupa nada mais que com as almas. E eu o que<br />

quero dele é seu corpo. Nu e quente de amor; fervendo de desejos; esmagando o tremor de meus seios<br />

e de meus braços. Meu corpo transparente suspenso do seu. Meu corpo leve sustido e solto sob suas<br />

forças. Que farei de meus doloridos lábios?”<br />

Enquanto Susana San <strong>Juan</strong> se revolvia inquieta, de pé, junto à porta, <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> a olhava e<br />

contava os segundos daquele novo sonho que já durava muito. O azeite do candeeiro crepitava e a<br />

chama fazia cada vez mais débil seu piscar. Logo se apagaria.<br />

Se ao menos fosse dor o que ela sentia, e não esses sonhos sem sossego, esses intermináveis e<br />

esgotantes sonhos, ele poderia buscar-lhe algum consolo. Assim pensava <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>, fixa a vista<br />

em Susana San <strong>Juan</strong>, seguindo cada um de seus movimentos. O que aconteceria se ela também se<br />

apagasse quando se apagasse a chama daquela débil luz com que ele a via?<br />

Depois saiu fechando a porta sem fazer ruído. Lá fora o ar limpo despegou de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> a<br />

imagem de Susana San <strong>Juan</strong>.


Ela despertou um pouco antes do amanhecer. Suarenta atirou ao chão as pesadas cobertas e se<br />

desfez até do calor dos lençóis. Então seu corpo ficou nu, refrescado pelo vento da madrugada.<br />

Suspirou e logo voltou a ficar adormecida.<br />

Assim foi como a encontrou horas depois o padre Rentería; nua e adormecida.<br />

-Sabe, dom <strong>Pedro</strong>, que derrotaram o Tilcuate?<br />

-Sei que houve algum tiroteio à noite, porque se esteve ouvindo o alvoroço, mas daí em diante<br />

não sei nada. Quem lhe contou isso, Gerardo?<br />

-Chegaram uns feridos a Comala. Minha mulher ajudou nisso dos curativos. Disseram que eram<br />

da gente de Damasio e que haviam tido muitos mortos. Parece que se encontraram com uns que se<br />

dizem villistas.<br />

-Que caralho, Gerardo! Estou vendo chegar tempos maus. E você, que pensa fazer?<br />

-Vou embora, dom <strong>Pedro</strong>. Para Sayula. Lá voltarei a estabelecer-me.<br />

-Vocês advogados têm essa vantagem; podem levar seu patrimônio para todo lado, enquanto não<br />

lhes quebram o focinho.<br />

-Não creia, dom <strong>Pedro</strong>; sempre andamos criando-nos problemas. Ademais dói deixar pessoas<br />

como o senhor, e as deferências tidas conosco fazem falta. Vivemos rompendo nosso mundo a cada<br />

passo, se é válido dizê-lo. Onde quer que deixe os papéis?<br />

-Não os deixe. Leve-os. Ou não pode continuar encarregado de meus assuntos lá para onde vai?<br />

-Agradeço sua confiança, dom <strong>Pedro</strong>. Agradeço sinceramente. Embora tenha certeza de que me<br />

será impossível. Certas irregularidades… Digamos… Testemunhos que ninguém senão o senhor deve<br />

conhecer. Podem prestar-se a maus manejos em caso de chegar a cair em outras mãos. O mais seguro<br />

é que fiquem com o senhor.<br />

-Diz bem, Gerardo. Deixe-os aqui. Queimá-los-ei. Com papéis ou sem eles, quem pode discutir a<br />

propriedade do que tenho?<br />

-Indubitavelmene ninguém, dom <strong>Pedro</strong>. Ninguém. Com sua permissão.<br />

-Vá com Deus, Gerardo.<br />

-O que o senhor disse?<br />

-Digo que Deus o acompanhe.<br />

O licenciado Gerardo Trujillo saiu devagar. Estava já velho; mas não para dar esses passos tão<br />

curtos, tão sem vontade. A verdade é que esperava uma recompensa. Havia servido a dom Lucas, que<br />

em paz descanse, pai de dom <strong>Pedro</strong>; depois a dom <strong>Pedro</strong>. A verdade é que esperava uma<br />

compensação. Uma retribuição grande e valiosa. Havia dito a sua mulher:<br />

-Vou despedir-me de dom <strong>Pedro</strong>. Sei que me gratificará. Estou para dizer que com o dinheiro que<br />

ele me dê nos estabeleceremos bem em Sayula e viveremos folgadamente o resto de nossos dias.<br />

Mas por que as mulheres sempre têm uma dúvida? Recebem avisos do céu, ou o quê? Ela não<br />

estava certa de que conseguisse algo:<br />

-Terá que trabalhar muito duro lá para levantar a cabeça. Daqui não tirará nada.<br />

-Por que diz isso?<br />

-Eu sei.<br />

Continuou andando até a porta, atento a qualquer chamado: “Ei, Gerardo! Preocupado como<br />

estou não me permitiu pensar em você. Mas eu lhe devo favores que não se pagam com dinheiro.<br />

Receba isto: um presente insignificante.”


Mas o chamado não veio. Cruzou a porta e desatou o cabresto com que seu cavalo estava<br />

amarrado no mourão. Subiu à sela e, a passo, tratando de não distanciar-se muito para ouvir se o<br />

chamavam, caminhou até Comala sem desviar-se do caminho. Quando viu que a Media Luna se perdia<br />

atrás dele, pensou: “Seria muito rebaixar-me se lhe pedisse um empréstimo.”<br />

-Dom <strong>Pedro</strong>, voltei, pois não estou satisfeito comigo mesmo. Com gosto continuarei levando seus<br />

assuntos.<br />

Disse-o sentado novamente no escritório de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>, onde havia estado não fazia nem<br />

meia hora.<br />

-Está bem, Gerardo. Aí estão os papéis, onde você os deixou.<br />

-Desejaria também… Os gastos… O traslado… Um mínimo adiantamento de honorários… Algo<br />

extra, se o senhor houver por bem.<br />

-Quinhentos?<br />

-Não poderia ser um pouco, digamos, um pouquinho mais?<br />

-Conforma-se com mil?<br />

-E se fossem cinco?<br />

-Cinco o quê? Cinco mil pesos? Não os tenho. Sabe bem que tudo está aplicado. Terras, animais.<br />

Você sabe. Leve mil. Não creio que precise de mais.<br />

Ficou meditando. A cabeça caída. Ouvia o tilintar dos pesos sobre a escrivaninha onde <strong>Pedro</strong><br />

<strong>Páramo</strong> contava o dinheiro. Recordava-se de dom Lucas, que sempre lhe ficou devendo os honorários.<br />

De dom <strong>Pedro</strong>, que fez conta nova. De Miguel seu filho: quantos sufocos lhe havia dado este garoto!<br />

Livrou-o do cárcere ao menos umas quinze vezes, se não foram mais. E o assassinato que<br />

cometeu àquele homem, como se chamava? Rentería, é isso. O morto chamado Renterií, ao que lhe<br />

puseram uma pistola na mão. O assustado que estava o Miguelito, ainda que depois risse. Pelo menos,<br />

quanto haveria custado a dom <strong>Pedro</strong> se as coisas houvessem ido até lá, até o legal? E as violações, o<br />

quê? Quantas vezes ele teve de tirar de seu próprio bolso o dinheiro para que elas jogassem terra<br />

sobre o assunto: “Ache bom que vai ter um filho ruivo!”, dizia-lhes.<br />

-Aqui tem, Gerardo. Cuide bem deles, porque não revivem.<br />

E ele que ainda estava em suas cavilações, respondeu:<br />

-Sim, tampouco os mortos revivem -e acrescentou-: Desgraçadamente.<br />

Faltava muito para o amanhecer. O céu estava cheio de estrelas, gordas, inchadas de tanta noite.<br />

A lua havia saído um instante e logo se havia ido. Era uma dessas luas tristes que ninguém vê, aquelas<br />

de que ninguém faz caso. Esteve um instante ali desfigurada, sem dar nenhuma luz, e depois foi<br />

esconder-se dentro dos cerros.<br />

Longe, perdido na escuridão, ouvia-se o bramido dos touros.<br />

“Esses animais nunca dormem -disse Damiana Cisneros-. Nunca dormem. São como o diabo,<br />

que sempre anda buscando almas para levá-las ao inferno.”<br />

Deu volta na cama, aproximando o rosto da parece. Então ouviu os golpes.<br />

Deteve a respiração e abriu os olhos. Voltou a ouvir três golpes secos, como se alguém batesse<br />

com os nós dos dedos na parede. Não aqui, junto a ela, senão mais longe; mas na mesma parede.<br />

“Valha-me! Se não serão os três toques de São Pascoal Bailão, que vem avisar a algum devoto<br />

seu que chegou a hora de sua morte.”


E como ela havia perdido a novena há tempos, por causa de seus reumatismos, não se<br />

preocupou; mas teve medo e, mais que medo, curiosidade.<br />

Levantou-se do catre sem fazer ruído e foi à janela.<br />

Os campos estavam negros. Apesar disso, conhecia-o tão bem, que viu quando o corpo enorme<br />

de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> se balançava sobre a janela da criada Margarida.<br />

-Ah, que dom <strong>Pedro</strong>! <strong>–</strong>disse Damiana-. Não deixa de ser malandro. O que não entendo é porque<br />

gosta de fazer as coisas tão às escondidas; se me houvesse avisado, eu haveria dito a Margarida que o<br />

patrão precisa dela para esta noite, e ele não haveria tido nem o incômodo de levantar de sua cama.<br />

Fechou a janela ao ouvir o bramido dos touros. Deitou-se no catre cobrindo-se até as orelhas, e<br />

logo se pôs a pensar no que estaria acontecendo à criada Margarida.<br />

Mais tarde teve que tirar a camisola porque a noite começou a pôr-se quente…<br />

-Damiana! <strong>–</strong>ouviu.<br />

Então ela era garota.<br />

-Abra a porta, Damiana!<br />

Tremia-lhe o coração como se fosse um sapo brincando entre suas costelas.<br />

-Mas para quê, patrão?<br />

-Abra, Damiana!<br />

-Mas se já estou adormecida, patrão.<br />

Depois sentiu que dom <strong>Pedro</strong> se ia pelos grandes corredores, dando aquelas sapatadas que sabia<br />

dar quando estava raivoso.<br />

Na noite seguinte, ela, para evitar o desgosto, deixou a porta encostada e até se desnudou para<br />

que ele não encontrasse dificuldades. Mas <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> jamais voltou a ela.<br />

Por isso agora, quando era a capataz de todas as serviçais da Meia Lua, por haver-se dado a<br />

respeitar, agora, que estava já velha, ainda pensava naquela noite quando o patrão lhe disse: “Abra a<br />

porta, Damiana!”<br />

E deitou-se pensando no feliz que seria a estas horas a criada Margarida.<br />

Depois voltou a ouvir outros golpes; mas contra a porta grande, como se a estivessem<br />

esmurrando a coronhadas.<br />

Outra vez abriu a janela e se mostrou à noite. Não via nada; ainda que lhe pareceu que a terra<br />

estava cheia de fervores, como quando choveu e se cobre de insetos. Sentia que se levantava algo<br />

assim como o calor de muitos homens. Ouviu o coaxar das rãs; os grilos; a noite quieta do tempo das<br />

águas. Logo voltou a ouvir as coronhadas golpeando a porta.<br />

Uma lâmpada jorrou sua luz sobre o rosto de alguns homens. Depois se apagou.<br />

“São coisas que a mim não interessam”, disse Damiana Cisneros, e fechou a janela.<br />

-Soube que o haviam derrotado, Damasio. Por que deixa fazer isso?<br />

-Informaram-no mal, patrão. A mim não aconteceu nada. Tenho minha gente inteirinha. Aí trago<br />

setecentos homens e outros quantos aderidos. O que se passou é que uns poucos dos homens,<br />

entediados de estar ociosos, puseram-se a disparar contra um pelotão de carecas, que resultou ser<br />

todo um exército. Villistas, sabe o senhor?<br />

-E de onde saíram estes?


-Vêm do Norte, destruindo igualmente tudo que encontram. Parece, segundo se vê, que andam<br />

percorrendo a terra, averiguando todos os terrenos. São poderosos. Isso não há quem lhes tire.<br />

-E por que não se junta a eles? Já lhe disse que há que estar com aquele que está ganhando.<br />

-Já estou com eles.<br />

-Então para que vem ver-me?<br />

-Precisamos de dinheiro, patrão. Já estamos cansados de comer carne. Nem queremos mais. E<br />

ninguém nos quer fiar. Por isso viemos, para que o senhor nos proveja e não nos vejamos obrigados a<br />

roubar ninguém. Se fôssemos distanciados não nos importaria dar um “pega” nos vizinhos; mas aqui<br />

todos somos aparentados e nos remorde roubar. Ao cabo, é dinheiro o que necessitamos para comprar<br />

ainda que seja uma tortilha. Estamos fartos de comer carne.<br />

-Agora vai-se pôr exigente, Damasio?<br />

-De nenhum modo, patrão. Estou advogando pelos rapazes, por mim não me preocupo.<br />

-Está bem que sirva a sua gente; mas surrupie de outros o que necessita. Eu já lhe dei. Conformese<br />

com o que lhe dei. E este não é um conselho nem muito menos, mas não lhe ocorreu assaltar<br />

Contla? Para que acredita que está na revolução? Se vai pedir esmola está atrasado. Valia mais que<br />

fosse com sua mulher cuidar das galinhas. Atire-se contra algum povoado! Se está arriscando o pêlo,<br />

por que diabos vão pôr outros alguma coisa de sua parte? Contla está que ferve de ricos. Tire-lhes um<br />

tantinho do que têm. Ou por acaso crêem que você é sua ama-de-leite e que está para cuidar de seus<br />

interesses? Não, Damasio. Faça-lhes ver que não está brincando nem divertindo-se. Dê-lhes um pega<br />

e já verá como sai com centavos dessa festança.<br />

-Que seja, patrão. Do senhor sempre tiro algo de proveito.<br />

-Pois que lhe aproveite.<br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> viu como os homens se iam. Sentiu desfilar frente a ele o trote de cavalos escuros<br />

confundidos com a noite. O suor e o pó; o tremor da terra. Quando viu os vagalumes cruzando outra<br />

vez suas luzes, deu-se conta de que todos os homens se haviam ido. Ficou ele, só, como um tronco<br />

duro começando a desgalhar-se por dentro.<br />

Pensou em Susana San <strong>Juan</strong>. Pensou na garota com que acabara de dormir apenas um instante.<br />

Aquele pequeno corpo assustado e trêmulo que parecia que ia pôr o coração pela boca. “Punhadinho<br />

de carne”, disse-lhe. E se havia abraçado a ela tratando de convertê-la na carne de Susana San <strong>Juan</strong>.<br />

“Uma mulher que não era deste mundo.”<br />

No começo do amanhecer, o dia vai dando voltas, com pausas; quase se ouvem as dobradiças da<br />

terra que giram mofadas; a vibração desta terra velha que derrama sua escuridão.<br />

-Verdade que a noite está cheia de pecados, Justina?<br />

-Sim, Susana.<br />

-E é verdade?<br />

-Deve ser, Susana.<br />

-E o que acha que seja a vida, Justina, senão um pecado? Não ouve? Não ouve como range a<br />

terra?<br />

-Não, Susana, não consigo ouvir nada. Minha sorte não é tão grande como a sua.<br />

-Assombrar-se-ia. Digo que se assombraria de ouvir o que ouço.<br />

Justina continuou pondo ordem no quarto. Repassou uma e outra vez o pano sobre os tabuões<br />

úmidos do piso. Limpou a água da floreira partida. Recolheu as flores. Pôs os vidros no balde cheio de<br />

água.


-Quantos pássaros você matou na vida, Justina?<br />

-Muitos, Susana.<br />

-E não sentiu tristeza?<br />

-Sim, Susana.<br />

-Então, que espera para morrer?<br />

-A morte, Susana.<br />

-Se não é nada mais que isso, já virá. Não se preocupe.<br />

Susana San <strong>Juan</strong> estava recostada sobre seus travesseiros. Os olhos inquietos, olhando para<br />

todos os lados. As mãos sobre o ventre, presas ao ventre como uma concha protetora. Havia ligeiros<br />

zumbidos que cruzavam como asas por cima de sua cabeça. E o ruído das roldanas no engenho. O<br />

rumor que fazem as pessoas ao despertar.<br />

-Acredita no inferno, Justina?<br />

-Sim, Susana. E também no céu.<br />

-Eu só acredito no inferno <strong>–</strong>disse. E fechou os olhos.<br />

Quando Justina saiu do quarto, Susana San <strong>Juan</strong> estava novamente adormecida e lá fora<br />

crepitava o sol. Encontrou-se com <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> no caminho.<br />

-Como está a senhora?<br />

-Mal -disse-lhe, abaixando a cabeça.<br />

-Queixa-se?<br />

-Não, senhor, não se queixa de nada; mas dizem que os mortos já não se queixam. A senhora<br />

está perdida para todos.<br />

-O padre Rentería não veio vê-la?<br />

-À noite veio e confessou-a. Hoje devia ter comungado, mas não deve estar em graça porque o<br />

padre Rentería não trouxe a comunhão. Disse que o faria cedinho, e já vê o senhor, o sol já está aqui e<br />

não veio. Não deve estar em graça.<br />

-Em graça de quem?<br />

-De Deus, senhor.<br />

-Não seja tonta, Justina.<br />

-Como diga, senhor.<br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> abriu a porta e ficou junto a ela, deixando que um raio de luz caísse sobre Susana<br />

San <strong>Juan</strong>. Viu seus olhos apertados como quando se sente uma dor interna; a boca umedecida,<br />

entreaberta e os lençóis sendo percorridos por mãos inconscientes até mostrar a nudez de seu corpo,<br />

que começou a retorcer-se em convulsões.<br />

Percorreu o pequeno espaço que o separava da cama e cobriu o corpo nu, que continuou<br />

debatendo-se como um verme em espasmos cada vez mais violentos. Aproximou-se de seu ouvido e<br />

lhe falou: “Susana!”. E voltou a repetir: “Susana!”<br />

Abriu-se a porta e entrou o padre Rentería em silêncio, movendo brevemente os lábios:<br />

-Vou lhe dar a comunhão, filha minha.<br />

Esperou que <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> a levantasse recostando-a no respaldo da cama. Susana San <strong>Juan</strong><br />

semi-adormecida estirou a língua e engoliu a hóstia. Depois disse: “Passamos um tempo muito feliz,<br />

Florencio.” E voltou a afundar entre a sepultura de seus lençóis.


-Vê a senhora aquela janela, dona Fausta, lá na Media Luna, onde sempre esteve acesa a luz?<br />

-Não, Ángeles. Não vejo nenhuma janela.<br />

-É que agorinha ficou às escuras. Não estará acontecendo algo mau na Media Luna? Faz mais de<br />

três anos que está iluminada esta janela, noite após noite. Dizem os que têm estado lá que é o quarto<br />

onde habita a mulher de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>, uma pobrezinha louca que tem medo da escuridão. E olhe:<br />

agora mesmo se apagou a luz. Não será um mau sucesso?<br />

-Talvez tenha morrido. Estava muito doente. Dizem que já não conhecia as pessoas, e que falava<br />

sozinha. Bom castigo há de haver suportado <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> casando-se com essa mulher.<br />

-Pobre do senhor dom <strong>Pedro</strong>.<br />

-Não, Fausta. Ele merece. Isso e mais.<br />

-Olhe, a janela continua às escuras.<br />

-Deixe esta janela quieta e vamos dormir, que é muito tarde para que este par de velhas andemos<br />

soltas pela rua.<br />

E as duas mulheres, que saíam da igreja muito perto das onze da noite, perderam-se debaixo dos<br />

arcos do portal, olhando como a sombra de um homem cruzava a praça em direção da Media Luna.<br />

-Ouça, dona Fausta, não lhe parece que o senhor que vai lá é o doutor Valencia?<br />

-Assim parece, embora eu esteja tão ceguinha que não o poderia reconhecer.<br />

-Lembre-se de que sempre veste calças brancas e paletó preto. Aposto que está acontecendo<br />

algo mau na Media Luna. E veja o rápido que vai, como se o esporeasse a pressa.<br />

-Tomara que não seja de verdade uma coisa grave. Dá-me vontade de voltar e dizer ao padre<br />

Rentería que dê uma passada lá, não vá resultar que essa infeliz morra sem confissão.<br />

-Nem pense nisso, Ángeles. Não queira Deus. Depois de tudo que sofreu neste mundo, ninguém<br />

desejaria que se fosse sem os auxílios espirituais, e que continuasse penando na outra vida. Embora os<br />

videntes digam que aos loucos não lhes vale a confissão, e ainda quando tenham a alma impura são<br />

inocentes. Isso só Deus sabe… Olhe a senhora, já se voltou a acender a luz na janela. Oxalá tudo saia<br />

bem. Imagine em que daria o trabalho que tomamos todos estes dias para arranjar a igreja e que brilhe<br />

bonita agora para a Natividade, se alguém morre nessa casa. Com o poder que tem dom <strong>Pedro</strong>,<br />

estragar-nos-ia a festa num estalo.<br />

-À senhora sempre lhe ocorre o pior, dona Fausta. Melhor fazer como eu: encomendo tudo à<br />

Divina Providência. Reze uma Ave Maria à Virgem e estou certa de que nada vai acontecer de hoje<br />

para amanhã. Já depois, que se faça a vontade de Deus; ao fim e ao cabo, ela não deve estar contente<br />

nesta vida.<br />

-Creia-me, Ángeles, que a senhora sempre me repõe o ânimo. Vou dormir levando ao sono estes<br />

pensamentos. Dizem que os pensamentos dos sonhos vão direto ao céu. Oxalá que os meus alcancem<br />

essa altura. Ver-nos-emos amanhã.<br />

-Até amanhã, Fausta.<br />

As duas velhas, portas vizinhas, meteram-se em suas casas. O silêncio voltou a fechar a noite<br />

sobre o povoado.<br />

-Tenho a boca cheia de terra.<br />

-Sim, padre.<br />

-Não diga: “Sim padre”. Repita comigo o que eu vá dizendo.


-O que vai o senhor dizer-me? Vai confessar-me outra vez? Por que outra vez?<br />

-Esta não será uma confissão, Susana. Só vim conversar com você. Prepará-la para a morte.<br />

-Já vou morrer?<br />

-Sim, filha.<br />

-Por que então não me deixa em paz? Tenho vontade de descansar. Hão de tê-lo encarregado de<br />

que viesse tirar-me o sono. Que estivesse aqui comigo até que se me fosse o sono. O que farei depois<br />

para encontrá-lo? Nada, padre. Por que antes não se vai e me deixa tranqüila?<br />

-Deixá-la-ei em paz, Susana. Conforme vai repetindo as palavras que eu diga, irá ficando<br />

adormecida. Sentirá como se você mesma se acalentasse. E assim que dormir ninguém a despertará…<br />

Nunca voltará a despertar.<br />

-Está bem, padre. Farei o que o senhor diga.<br />

O padre Rentería, sentado na borda da cama, postas as mãos sobre os ombros de Susana San<br />

<strong>Juan</strong>, com sua boca quase grudada à orelha dela para não falar alto, encaixava baixinho cada uma de<br />

suas palavras: “Tenho a boca cheia de terra”. Logo se deteve. Tratou de ver se os lábios dela se<br />

moviam. E viu-os balbuciar, ainda que sem deixar sair nenhum som.<br />

“Tenho a boca cheia de você, de sua boca. Teus lábios apertados, duros como se mordessem<br />

oprimindo meus lábios…”<br />

Deteve-se também. Olhou de esguelha o padre Rentería e o viu distante, como se estivesse<br />

detrás de um vidro embaçado. Logo voltou a ouvir a voz esquentando seu ouvido:<br />

-Engoliu saliva espumosa; mastigou terrões infestados de vermes que me dão nós na garganta e<br />

raspam a parede do palato… Minha boca se afunda, retorcendo-se em caretas, perfurada pelos dentes<br />

que a ferem e devoram. O nariz amolece. A gelatina dos olhos derrete-se. Os cabelos ardem numa só<br />

labareda…<br />

Estranhava a quietude de Susana San <strong>Juan</strong>. Haveria querido adivinhar seus pensamentos e ver a<br />

batalha daquele coração por rechaçar as imagens que ele estava semeando dentro dela. Olhou-lhe os<br />

olhos e ela devolveu-lhe o olhar. E lhe pareceu ver como se seus lábios forçassem um sorriso.<br />

-Ainda falta mais. A visão de Deus. A luz suave de seu céu infinito. O gozo dos querubins e o<br />

canto dos serafins. A alegria dos olhos de Deus, última e fugaz visão dos condenados à pena eterna. E<br />

não só isso, senão tudo conjugado com uma dor terrena. O tutano de nossos ossos convertido em luz e<br />

as veias de nosso sangue em fios de fogo, fazendo-nos ter sofrimentos de incrível dor; nunca<br />

minguada; sempre atiçadada pela ira do Senhor.<br />

“Ele me cobria entre seus braços. Dava-me amor.”<br />

O padre Rentería repassou com a vista as figuras que estavam ao redor dele, esperando o último<br />

momento. Perto da porta, <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> aguardava com os braços cruzados; em seguida, o doutor<br />

Valencia, e junto a eles outros senhores. Mais além, nas sombras, um punhado de mulheres a quem se<br />

fazia tarde para começar a rezar a oração de defuntos.<br />

Teve intenções de levantar-se. Dar os santos óleos à enferma e dizer: “Terminei.” Mas não, não<br />

havia terminado ainda. Não podia entregar os sacramentos a uma mulher sem conhecer a medida de<br />

seu arrependimento.<br />

Entraram-lhe dúvidas. Talvez ela não tinha nada de que arrepender-se. Talvez ele não tivesse<br />

nada a perdoar-lhe. Inclinou-se novamente sobre ela e, sacudindo-lhe os ombros, disse-lhe em voz<br />

baixa:<br />

-Vai à presença de Deus. E seu juízo é desumano para os pecadores.<br />

Logo se aproximou outra vez de seu ouvido; mas ela sacudiu a cabeça:<br />

-Vá, padre! Não se mortifique por mim. Estou tranqüila e tenho muito sono.


Ouviu-se o soluço de uma das mulheres escondidas na sombra.<br />

Então Susana San <strong>Juan</strong> pareceu recobrar vida. Levantou-se na cama e disse:<br />

-Justina, faça-me o favor de ir chorar em outra parte!<br />

Depois sentiu que a cabeça se lhe cravava no ventre. Tratou de separar o ventre de sua cabeça;<br />

de pôr para o lado aquele ventre que lhe apertava os olhos e lhe cortava a respiração; mas cada vez<br />

pendia mais como se afundasse na noite.<br />

-Eu. Eu vi dona Susanita morrer.<br />

-Que diz, Dorotea?<br />

-O que acabo de dizer.<br />

Ao alvorecer, as pessoas foram despertadas pelo repique dos sinos. Era a manhã de dezembro.<br />

Uma manhã cinzenta. Não fria; mas cinzenta. O repique começou com o sino maior. Seguiram-no os<br />

demais. Alguns acreditaram que chamavam para a missa grande e começaram a abri-se as portas: as<br />

pobres, só aquelas onde vivia gente madrugadora que esperava desperta que o toque da alva os<br />

avisasse que já havia terminado a noite. Mas o repique durou mais que o devido. Já não tocavam só os<br />

sinos da igreja maior, senão também os do Santuário. Chegou o meio-dia e não cessava o repique.<br />

Chegou a noite. E de dia e de noite os sinos continuaram tocando, todos por igual, cada vez com mais<br />

força, até que aquilo se converteu num lamento rumoroso de sons. Os homens gritavam para ouvir o<br />

que queriam dizer: “Que aconteceu?”, perguntavam-se.<br />

Depois de três dias todos estavam surdos. Fazia-se impossível falar com aquele zumbido de que<br />

estava cheio o ar. Mas os sinos continuavam, continuavam, alguns já quebrados, com um soar oco,<br />

como de cântaro.<br />

-Morreu dona Susana.<br />

-Morreu? Quem?<br />

-A senhora.<br />

-A sua?<br />

-A de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>.<br />

Começou a chegar gente de outros rumos, atraída pelo constante repique. De Contla vinham<br />

como em peregrinação. E ainda de mais longe. Quem sabe de onde, mas chegou um circo, com<br />

bandeirolas e cadeiras voadoras. Músicos. Aproximavam-se primeiro como se fossem abelhudos, e<br />

com o tempo já se haviam avizinhado, de maneira que até houve serenatas. E assim pouco a pouco a<br />

coisa se converteu em festa. Comala formigou de gente, de bagunça e de ruídos, como nos dias de<br />

função, em que dava trabalho dar um passo pelo povoado.<br />

Os sinos deixaram de tocar; mas a festa seguiu. Não houve modo de fazer-lhes compreender que<br />

se tratava de dor, de dias de dor. Não houve modo de fazer que se fossem; antes, pelo contrário,<br />

continuaram chegando mais.<br />

A Media Luna estava só, em silêncio. Caminhava-se com os pés descalços; falava-se em voz<br />

baixa. Enterraram Susana San <strong>Juan</strong> e poucos em Comala se inteiraram. Lá havia feira. Jogava-se nos<br />

galos, ouvia-se música; os gritos dos bêbados e de loterias. Até aqui chegava a luz do povoado, que<br />

parecia uma auréola sobre o céu cinzento. Porque foram dias cinzentos, tristes para a Media Luna.<br />

Dom <strong>Pedro</strong> não falava. Não saía de seu quarto. Jurou vingar-se de Comala.<br />

-Cruzarei os braços e Comala morrerá de fome.


E assim fez.<br />

O Tilcuate continuou vindo:<br />

-Agora somos carranzistas.<br />

-Está bem.<br />

-Estamos com meu general Obregón.<br />

-Está bem.<br />

-Lá se fez a paz. Estamos soltos.<br />

-Espere. Não desarme sua gente. Isto não pode durar muito.<br />

-Levantou-se em armas o padre Rentería. Vamos com ele, ou contra ele?<br />

-Isso nem se discute. Ponha-se ao lado do governo.<br />

-Mas se somos irregulares. Consideram-nos rebeldes.<br />

-Então vá descansar.<br />

-Com a importância que tenho?<br />

-Faça o que queira, então.<br />

-Reforçarei o padrezinho. Gosto de como gritam. Ademais ganha-se a salvação.<br />

-Faça o que queira.<br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> estava sentado numa velha cadeira, junto à porta grande da Media Luna, pouco<br />

antes de que se fosse a última sombra da noite. Estava sozinho, talvez desde há três horas. Não<br />

dormia. Havia-se esquecido do sono e do tempo: “Os velhos dormimos pouco, quase nunca. Às vezes<br />

apenas dormitamos; mas sem deixar de pensar. Essa é a única coisa que me resta a fazer.” Depois<br />

acrescentou em voz alta: “Já não tarda. Não tarda.”<br />

E continuou: “Faz muito tempo que se foi, Susana. A luz era a mesma então que agora, não tão<br />

vermelha; mas era a mesma pobre luz sem lume, envolta no pano branco da neblina que há agora. Era<br />

o mesmo momento. Eu aqui, junto à porta olhando o amanhecer e olhando quando você se ia, seguindo<br />

o caminho do céu; por onde o céu começava a abrir-se em luzes, afastando-a, cada vez mais<br />

desbotada entre as sombras da terra.<br />

“Foi a última vez que a vi. Passou roçando com seu corpo as ramas do paraíso que está na<br />

vereda e levou com seu ar suas últimas folhas. Logo desapareceu. Disse-lhe: -Volte, Susana!”<br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> continuou movendo os lábios, sussurrando palavras. Depois fechou a boca e<br />

entreabriu os olhos, nos quais se refletiu a débil claridade do amanhecer.<br />

Amanhecia.<br />

A essa mesma hora, a mãe de Gamaliel Villalpando, dona Inés, varria a rua frente à tenda de seu<br />

filho, quando chegou e, pela porta encostada, meteu-se Abundio Martínez. Encontrou Gamaliel<br />

adormecido em cima do balcão com o chapéu cobrindo-lhe o rosto para que não o molestassem as<br />

moscas. Teve que esperar um bom tempo que despertasse. Teve de esperar que dona Inés terminasse<br />

a faina de varrer a rua e viesse cutucar as costelas de seu filho com o cabo da vassoura e lhe dissesse:<br />

-Aqui tem você um cliente! Levante-se!


Gamaliel se endireitou com mau humor, dando grunhidos. Tinha os olhos avermelhados de tanto<br />

ficar acordado e de tanto acompanhar os bêbados, embebedando-se com eles. Já sentado sobre o<br />

balcão, maldisse a sua mãe, maldisse-se a si mesmo e maldisse infinidade de vezes a vida, “que valia<br />

um puro caralho.” Logo voltou a acomodar-se com as mãos entre as pernas e voltou a dormir ainda<br />

gaguejando maldições:<br />

-Eu não tenho culpa de que a estas horas andem soltos os bêbados.<br />

-O pobre de meu filho. Desculpe-o, Abundio. O pobre passou a noite atendendo uns viajantes que<br />

exageraram nos copos. O que o traz aqui tão de manhã?<br />

Disse-lhe aos gritos, porque Abúndio era surdo.<br />

-Pois nada mais que um quartilho de álcool, de que estou necessitado.<br />

-Voltou a desmaiar a Refugio?<br />

-Morreu já, mãe Villa. À noite mesminha, muito perto das onze. Com o que até vendi meus burros.<br />

Até isso vendi para que me aliviasse.<br />

-Não ouço o que está dizendo! Ou não está dizendo nada? O que diz?<br />

-Que passei a noite velando a morta, a Refugio. Deixou de respirar à noite.<br />

-Com razão me cheirou a morto. Veja que até disse a Gamaliel: “Cheira-me que alguém morreu no<br />

povoado.” Mas nem caso me fez; com isso de que teve que confraternizar com os viajantes, o pobre se<br />

embebedou. E você sabe que quando está nesse estado, tudo lhe dá riso e nem faz caso a alguém.<br />

Mas que me diz? E tem convidados para o velório?<br />

-Nenhum, mãe Villa. Para isso quero o álcool para curar-me o sofrimento.<br />

-Quer puro?<br />

-Sim, mãe Villa. Para embebedar-me mais depressa. E dê-me rápido porque tenho pressa.<br />

-Dar-lhe-ei dois decilitros pelo mesmo preço e por ser para você. Vá dizendo entretanto à<br />

defuntinha que eu sempre a apreciei e que me tome em conta quando chegue à glória.<br />

-Sim, mãe Villa.<br />

-Diga-lhe antes que acabe de esfriar.<br />

-Dir-lhe-ei. Eu sei que ela também conta com a senhora para que ofereça suas orações. Digo que<br />

morreu compungida porque não teve nem quem a auxiliasse.<br />

-O quê, não foi ver o padre Rentería?<br />

-Fui. Mas me informaram que estava no cerro.<br />

-Em qual cerro?<br />

-Pois por estes ermos. A senhora sabe que estão na revolta.<br />

-De modo que também ele? Pobres de nós, Abundio.<br />

-A nós que importa isso, mãe Villa. Nem nos vai nem vem. Sirva-me outra. Assim como quem faz<br />

de conta, ao fim e ao cabo Gamaliel está adormecido.<br />

-Mas não se esqueça de pedir a Refúgio que rogue a Deus por mim, que tanto o necessito.<br />

-Não se mortifique. Dir-lhe-ei em chegando. E até lhe tirarei a promessa da palavra, se é<br />

necessário e para que a senhora deixe de apurações.<br />

-Isso, isso mesmo deve fazer. Porque você sabe como são as mulheres. Então há que exigir-lhes<br />

o cumprimento de imediato.<br />

Abundio Martínez deixou outros vinte centavos sobre o balcão.


-Dê-me outro quartilho, mãe Villa. E se quer me dar de sobra aí é coisa da senhora. A única coisa<br />

que lhe prometo é que este irei beber junto à defuntinha; junto a minha Cuca.<br />

-Vá, pois, antes que meu filho acorde. Azeda-lhe muito o humor quando amanhece depois de uma<br />

bebedeira. Vá voando e não se esqueça de dar meu encargo a sua mulher.<br />

Saiu da tenda dando espirros. Aquilo era puro fogo; mas como lhe haviam dito que assim subia<br />

mais rápido, sorveu um trago após outro, jogando ar na boca com a fralda da camisa. Logo tratou de ir<br />

direto a sua casa, onde o esperava a Refugio; mas torceu o caminho e se pôs a andar rua acima,<br />

saindo do povoado por onde o levou a vereda.<br />

-Damiana! <strong>–</strong>chamou <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>-. Vem ver o que quer esse homem que vem pelo caminho.<br />

Abundio continuou avançando, dando tropeções, abaixando a cabeça e às vezes caminhando em<br />

quatro patas. Sentia que a terra se retorcia, dava voltas e logo o soltava; ele corria para agarrá-la e<br />

quando a tinha em suas mãos voltava a ir; até que chegou frente à figura de um senhor sentado junto a<br />

uma porta. Então se deteve:<br />

-Dê-me uma caridade para enterrar minha mulher <strong>–</strong>disse.<br />

Damiana Cisneros rezava: “Das trapaças do inimigo mau, livre-nos, Senhor.” E o apontava com as<br />

mãos fazendo o sinal da cruz.<br />

Abundio Martínez viu a mulher dos olhos assustados, pondo-se a cruz em frente, e estremeceu.<br />

Pensou que talvez o demônio o havia seguido até ali, e deu a volta, esperando encontrar alguma má<br />

figura. Ao não ver ninguém repetiu:<br />

-Venho por uma ajudinha para enterrar minha morta.<br />

O sol lhe chegava pelas costas. Esse sol recém-saído, quase frio, desfigurado pelo pó da terra.<br />

A cara de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> se escondeu debaixo das cobertas como se se escondesse da luz,<br />

enquanto que os gritos de Damiana se ouviam sair mais repetidos, atravessando os campos: “Estão<br />

matando dom <strong>Pedro</strong>!”<br />

Abundio Martínez ouvia que aquela mulher gritava. Não sabia o que fazer para acabar com esses<br />

gritos. Não encontrava a ponta de seus pensamentos. Sentia que os gritos da velha deviam estar<br />

sendo ouvidos muito longe. Talvez até sua mulher os estivesse ouvindo, porque a ele lhe perfuravam as<br />

orelhas, ainda que não entendesse o que dizia. Pensou em sua mulher, que estava estendida no catre,<br />

sozinha, lá no pátio de sua casa, para onde ele a havia trazido para que serenasse e não empesteasse<br />

logo. A Cuca, que ainda ontem se deitava com ele, bem viva, saltando como uma potranca, e que lhe<br />

mordia e lhe raspava o nariz com seu nariz. A que lhe deu aquele filhinho que morreu apenas nascido,<br />

diz que porque ela estava incapacitada: o mal de olho e os frios e a queimadeira e não sei quantos<br />

males tinha sua mulher, segundo lhe disse o doutor que foi vê-la já na última hora, quando teve de<br />

vender seus burros para trazê-lo até aqui, pelo preço tão alto que lhe pediu. E de nada havia servido…<br />

A Cuca, que agora estava lá agüentando o relento, com os olhos fechados, já sem poder ver<br />

amanhecer, nem este sol nem nenhum outro.<br />

-Ajudem-me! <strong>–</strong>disse-. Dêem-me algo.<br />

Mas nem sequer ele se ouviu. Os gritos daquela mulher o deixavam surdo.<br />

Pelo caminho de Comala se moveram uns pontinhos negros. Logo os pontinhos se converteram<br />

em homens e logo estiveram aqui, perto dele. Damiana Cisneros deixou de gritar. Desfez sua cruz.<br />

Agora havia caído e abria a boca como se bocejasse.<br />

Os homens que haviam vindo levantaram-na do chão e a levaram ao interior da casa.<br />

-Não aconteceu nada ao senhor, patrão? <strong>–</strong>perguntaram.<br />

Apareceu o rosto de <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>, que só moveu a cabeça.<br />

Desarmaram Abundio, que ainda tinha a faca cheia de sangue na mão:


-Venha conosco <strong>–</strong>disseram-lhe-. Em boa confusão se meteu.<br />

E ele os seguiu.<br />

Antes de entrar no povoado pediu-lhes permissão. Pôs-se a um lado e ali vomitou uma coisa<br />

amarela como bílis. Jorros e jorros, como se houvesse tomado dez litros de água. Então começou a<br />

arder-lhe a cabeça e sentiu a língua travada.<br />

-Estou bêbado <strong>–</strong>disse.<br />

Regressou para onde o estavam esperando. Apoiou-se no ombro deles, que o levaram arrastado,<br />

abrindo um sulco na terra com a ponta dos pés.<br />

Lá atrás, <strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong>, sentado em sua cadeira, olhou o cortejo que se ia para o povoado.<br />

Sentiu que sua mão esquerda, ao querer levantar-se, caía morta sobre seus joelhos; mas não fez caso<br />

disso. Estava acostumado a ver morrer cada dia algum de seus pedaços. Viu como se sacudia o<br />

paraíso deixando cair suas folhas. “Todos escolhem o mesmo caminho. Todos se vão.” Depois voltou<br />

ao lugar onde havia deixado seus pensamentos.<br />

-Susana -disse. Logo fechou os olhos-. Eu lhe pedi que regressasse…<br />

“…Havia uma lua grande no meio do mundo. Perdiam-me os olhos mirando você. Os raios da lua<br />

filtrando-se sobre seu rosto. Não me cansava de ver essa aparição que era você. Suave, esfregada<br />

pela lua; sua boca enrugada, umedecida, irisada de estrelas; seu corpo ficando transparente na água<br />

da noite. Susana, Susana San <strong>Juan</strong>.”<br />

Quis levantar sua mão para aclarar a imagem; mas suas pernas a retiveram como se fosse de<br />

pedra. Quis levantar a outra mão e foi caindo devagar, de lado, até ficar apoiada no chão como uma<br />

muleta detendo seu ombro desossado.<br />

-Esta é minha morte <strong>–</strong>disse.<br />

O sol se foi volteando sobre as coisas e lhes devolveu sua forma. A terra em ruínas estava frente<br />

a ele, vazia. O calor esquentava seu corpo. Seus olhos apenas se moviam; saltavam de uma lembrança<br />

a outra, esfumando o presente. Logo seu coração se detinha e parecia como se também se detivessem<br />

o tempo e o ar da vida.<br />

“Que não seja uma nova noite”, pensava ele.<br />

Porque tinha medo das noites que se enchiam de fantasmas. Disso tinha medo.<br />

“Sei que dentro de poucas horas virá Abundio com suas mãos ensangüentadas a pedir-me a<br />

ajuda que lhe neguei. E não terei mãos para tapar os olhos e não vê-lo. Terei de ouvi-lo; até que sua<br />

voz se apague com o dia, até que morra sua voz.”<br />

Sentiu que umas mãos lhe tocavam os ombros e endireitou o corpo, endurecendo-o.<br />

-Sou eu, dom <strong>Pedro</strong> <strong>–</strong>disse Damiana-. Não quer que lhe traga o almoço?<br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Páramo</strong> respondeu:<br />

-Vou para lá. Já vou.<br />

Apoiou-se nos braços de Damiana Cisneros e fez o intento de caminhar. Depois de uns quantos<br />

passos caiu, suplicando por dentro; mas sem dizer uma só palavra. Deu um golpe seco contra a terra e<br />

foi desmoronando como se fosse um montão de pedras.

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