CRUZ E SOUSA OBRA COMPLETA VOL 2_PROSA_FINAL_JULHO ...
CRUZ E SOUSA OBRA COMPLETA VOL 2_PROSA_FINAL_JULHO ...
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Cruz Cruz e e Sousa<br />
Sousa<br />
Obra Obra Completa<br />
Completa<br />
Volume Volume 2<br />
2<br />
<strong>PROSA</strong><br />
<strong>PROSA</strong>
Cruz Cruz e e Sousa<br />
Sousa<br />
Obra Obra Completa<br />
Completa<br />
Volume Volume 2<br />
2<br />
<strong>PROSA</strong><br />
<strong>PROSA</strong><br />
Pesquisa e Organização<br />
Lauro Junkes<br />
Presidente da Academia Catarinense de Letras
© © Copyright<br />
Copyright<br />
2008 Avenida Gráfica e Editora Ltda.<br />
Projeto Projeto Gráfico, Gráfico, Editoração Editoração e e Capa<br />
Capa<br />
ESPAÇO CRIAÇÃO ARQUITETURA DESIGN E COMPUTAÇÃO GRÁFICA LTDA.<br />
www.espacoecriacao.com.br<br />
Fone/Fax: (48) 3028.7799<br />
Revisão Revisão Lingüístico-Ortográfica<br />
Lingüístico-Ortográfica<br />
PROFª Drª TEREZINHA KUHN JUNKES<br />
PROF. Dr. LAURO JUNKES<br />
Impressão Impressão e e Acabamento<br />
Acabamento<br />
AVENIDA GRÁFICA E EDITORA LTDA.<br />
Formato<br />
Formato<br />
14 x 21cm<br />
FICHA CATALOGRÁFICA<br />
Catalogação na fonte por M. Margarete Elbert - CRB14/167<br />
S725o Sousa, Cruz e, 1861-1898<br />
Obra completa : prosa / João da Cruz e Sousa ; organização<br />
e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008.<br />
v. 2 (657 p.)<br />
Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do<br />
traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.<br />
1. Sousa, Cruz e, 1861-1898. 2. Poesia catarinense. I.<br />
Junkes, Lauro. II. Titulo.<br />
CDU: 869.0(816.4)-1
11 Critérios Para Esta Edição<br />
13 Tropos e Fantasias<br />
14 Casos e Cousas<br />
15 Allegros e Surdinas<br />
17 Piano e Coração<br />
19 A Bolsa da Concubina<br />
26 O Padre<br />
31 Pontos e Vírgulas<br />
34 Sabiá-Rei<br />
37 Dispersos<br />
38 Da Bahia<br />
40 Interjeições da Lágrima<br />
42 Victor Hugo<br />
43 Perfis a Vapor<br />
45 Victor Hugo<br />
47 Major Camilo<br />
49 O Espectro do Rei<br />
62 Perfis a Vapor<br />
64 Virgílio Várzea e Cruz e Sousa<br />
67 Abolicionismo<br />
70 Biologia e Sociologia do Casamento<br />
74 Um Novo Livro<br />
85 Emile Zola<br />
91 Guilherme I<br />
92 O “El-Dorado”<br />
93 Carta a Gonzaga Duque<br />
95 Horácio de Carvalho<br />
98 O Pequeno Boldrini<br />
101 Signos<br />
121 A Virgílio Várzea<br />
SUMÁRIO<br />
SUMÁRIO
123 Histórias Simples<br />
125 I. À Iaiá<br />
126 II. À Sinhá<br />
128 III. À Nicota<br />
130 IV. À Bilu<br />
133 V. À Santa<br />
136 VI. À Bibi<br />
138 VII. À Neném<br />
143 VIII. À Zezé<br />
147 Outras Evocações<br />
148 Elizirna<br />
150 Consciência Tranqüila<br />
161 O Estilo<br />
164 Je Dis Non<br />
170 Écloga<br />
173 Impressões<br />
176 Croqui dum Excêntrico<br />
179 A Casa<br />
183 O Senhor Presidente<br />
188 O Senhor Secretário<br />
191 Nicho de Virgem<br />
193 Aroma<br />
195 A Milionária<br />
198 De Volta aos Prados<br />
201 Investigação<br />
206 Psicose<br />
208 Luz e Treva<br />
210 Volúpia...<br />
213 A Carne<br />
215 Os Felizes<br />
218 Natal<br />
221 Em Julho<br />
222 Símbolo<br />
225 O Batizado<br />
228 Doença Psíquica<br />
230 Policromia
233 Flor Sentimental<br />
235 Velho<br />
240 Decaído<br />
243 Fugitivo Sonho<br />
245 Formas e Coloridos<br />
246 A Abelha<br />
248 Obsessão da Noite<br />
250 Hora Certa<br />
252 Rosicler<br />
254 Beijos Mortos<br />
255 Últimas Evocações<br />
256 Margarida<br />
260 Comemoração do Sexagésimo Primeiro Aniversário<br />
Natalício de Joaquim Gomes de Oliveira e Paiva<br />
263 Julieta dos Santos<br />
265 A Musa Moderna<br />
271 Manhã no Campo<br />
273 Uma Lenda<br />
274 A Romaria da Trindade<br />
276 O Abolicionismo<br />
279 Gema Cuniberti<br />
280 A Noite de São João<br />
283 Entre Ciprestes<br />
285 A Vida nas Praias<br />
289 Missal<br />
290 Oração ao Sol<br />
292 Dolências...<br />
294 Ocaso no Mar<br />
295 Sob as Naves<br />
297 Paisagem<br />
300 Astro Frio<br />
301 Bêbado<br />
304 Sabor
306 Lenda dos Campos<br />
307 Noctambulismo<br />
308 Navios<br />
309 Emoção<br />
312 Os Cânticos<br />
313 Fulgores da Noite<br />
314 Psicologia do Feio<br />
317 Vitalização<br />
318 Gloria in Excelsis<br />
320 Página Flagrante<br />
324 Tintas Marinhas<br />
326 Esmeralda<br />
327 Fidalgo<br />
329 Angelus<br />
330 Núbia<br />
333 Som<br />
336 Gata<br />
338 Dias Tristes<br />
341 Paisagem de Luar<br />
343 Artista Sacro<br />
347 Visões<br />
348 A Janela<br />
352 Umbra<br />
353 Modos de Ser<br />
356 No Faeton<br />
357 Ritos<br />
358 Mulheres<br />
364 Perspectivas<br />
366 Campagnarde<br />
368 Ritmos da Noite...<br />
371 Sugestão<br />
374 Sofia<br />
375 Manhã d’Estio<br />
378 Aparição da Noite<br />
381 Estesia Eslava<br />
382 Tísica<br />
385 Oração ao Mar
387 Evocações<br />
388 Iniciado<br />
396 Seráfica<br />
398 Mater<br />
407 Capro<br />
417 A Noite<br />
422 Melancolia<br />
424 Condenado à Morte<br />
429 Anho Branco<br />
434 O Sono<br />
437 Triste<br />
443 Adeus!<br />
447 Tenebrosa<br />
451 Região Azul...<br />
452 Sonambulismos<br />
458 Dor Negra<br />
460 Sensibilidade<br />
468 Asas...<br />
470 Espiritualizada<br />
472 Asco e Dor<br />
478 Intuições<br />
506 Morto<br />
510 Vulda<br />
512 Anjos Rebelados<br />
521 Um Homem Dormindo...<br />
526 No Inferno<br />
532 A Nódoa<br />
539 Talvez a Morte?!...<br />
542 Ídolo Mau<br />
546 Balada de Loucos<br />
551 Espelho contra Espelho<br />
557 Abrindo Féretros<br />
558 Primeiro Féretro – Ana<br />
561 Segundo Féretro – Antônia<br />
563 Terceiro Féretro – Carolina<br />
564 Quarto Féretro – Guilherme<br />
568 O Sonho do Idiota<br />
581 A Sombra
591 Nirvanismos<br />
606 Extrema Carícia...<br />
609 Emparedado<br />
633 Correspondência<br />
634 À Comissão Organizadora do Clube dos Jornalistas<br />
634 À Sociedade Carnavalesca Diabo a Quatro<br />
635 A Gavita<br />
636 A Gavita<br />
638 A Gavita<br />
639 A Gavita<br />
640 A Germano Wendhausen<br />
641 A Germano Wendhausen<br />
642 A Virgílio Várzea<br />
644 A Araújo Figueiredo<br />
646 A Luiz Delfino<br />
646 A Gonzaga Duque<br />
648 A Nestor Vítor<br />
648 A Nestor Vítor<br />
649 A Alberto Costa<br />
649 A Nestor Vítor<br />
650 A Araújo Figueiredo<br />
650 A Nestor Vítor<br />
651 A Nestor Vítor<br />
652 A Araújo Figueiredo<br />
652 A Nestor Vítor<br />
653 A Nestor Vítor<br />
653 A Nestor Vítor<br />
654 A Araújo Figueiredo<br />
654 A Nestor Vítor<br />
654 A Nestor Vítor<br />
655 Dedicatórias em Missal<br />
655 A Araújo Figueiredo<br />
656 A Tibúrcio de Freitas<br />
656 Dedicatórias em Retratos<br />
656 A Gonzaga Duque<br />
657 Ao Pai
CRITÉRIOS CRITÉRIOS P PPARA<br />
P ARA EST ESTA EST A EDIÇÃO EDIÇÃO<br />
EDIÇÃO<br />
Como ocorreu no volume da Poesia destas Obras<br />
Completas de João da Cruz e Sousa, também a ordenação<br />
dos textos neste volume de Prosa se diferencia das<br />
edições anteriores. Alguns textos recentemente<br />
descobertos e identificados por Iaponan Soares/Zilma<br />
Gesser Nunes – as “Últimas Evocações”, publicadas no<br />
livro Cruz e Sousa, Dispersos. São Paulo: Fundação<br />
Editora da UNESP: Giordano, 1998 – foram incorporados<br />
à Obra Completa, organizada por Andrade Muricy e<br />
atualizada por Alexei Bueno.<br />
Outrossim, sempre com o desejo de lograr maior<br />
aproximação ao evoluir literário do autor de Evocações,<br />
alteramos a disposição dos textos no volume. Como Missal<br />
e Evocações foram os dois únicos conjuntos organizados<br />
pelo autor, deverão representar a maturidade do prosador<br />
Cruz e Sousa, a seleção mais perfeita por ele mesmo<br />
feita em relação aos seus escritos em prosa. Embora<br />
alguns textos dispersos tenham sido escritos na última<br />
fase da sua vida, a grande maioria constitui produção<br />
anterior até mesmo à sua adesão à estética simbolista.<br />
Por essa razão, englobamos todos eles no início do volume,<br />
na fase de formação do escritor. Apenas a<br />
Correspondência, que abrange diversas épocas, ocupa a<br />
parte final do volume.<br />
Para estabelecer o texto, também houve cotejo de<br />
diversas edições. A Tese de Doutoramento de Rosane<br />
Cordeiro da Silva, defendida na UFSC em 2006 e<br />
intitulada Entre missais e evocações: a prosa desterrada de<br />
Cruz e Sousa, cotejando 18 manuscritos autógrafos,<br />
permitiu, através da crítica textual, aproximar-nos mais<br />
da vontade do autor e retificar aspectos substanciais<br />
dos textos. O respeito à redação e à intenção do autor<br />
constituiu orientação imprescindível. Na decisão sobre<br />
as variantes, a opção buscou elucidar o binômio forma e
conteúdo. A pontuação, sobretudo a vírgula, foi alterada<br />
em casos de incorreções, sendo eliminada quando<br />
separava o sujeito do predicado. Objetivou-se contribuir<br />
para tornar mais claro o pensamento do autor, sem<br />
introduzir maiores modificações. A atualização ortográfica<br />
obedece à grafia atual. Permaneceram intocadas as<br />
colocações pronominais e as concordâncias utilizadas<br />
pelo autor, mesmo que firam a norma culta. Nos textos<br />
autógrafos, o autor assinava Souza com “z”; porém está<br />
consagrada a substituição por “s”: Sousa.
Tropos Tropos e e Fantasias<br />
Fantasias
14 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
CASOS E COUSAS<br />
As Ilusões são como as cerejas.<br />
Se estas se desprendem uma a uma, quando as<br />
tentamos apanhar juntas, também aquelas.<br />
Tropos e Fantasias sintetizam um punhado de<br />
ilusões... avigoradas no idealismo, emigrando, leves,<br />
leves, para os espíritos asseados e limpos, na higiene e<br />
na salutariedade essencial da luz.<br />
E foi nestes casos que publicamos estas cousas.<br />
VIRGILIO VÁRZEA E <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong>
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 15<br />
ALLEGROS E SURDINAS<br />
A B. Lopes<br />
Foi pela primavera.<br />
A natureza fecunda e prodigiosa extasiava o<br />
raciocínio com as pompas exuberantes, com a fertilização<br />
da verdura.<br />
As flores abriam-se, como os risos alegres e<br />
vibrantes da terra.<br />
Havia nos espaços, profundamente calmos, a<br />
expansibilidade suavíssima das cousas.<br />
Pairava em tudo como que o amor espiritualizado.<br />
Foi pela primavera.<br />
* * * * * * * * * *<br />
A falange gloriosa dos canários, dos coleiros, dos<br />
gaturamos, dos sabiás rasgava o horizonte, aqui e ali,<br />
de risadas apopléticas, que chocalhavam como guizos,<br />
que tiniam, que bimbalhavam como campanários de<br />
aldeia.<br />
Toda a floresta tomava a proporção de um<br />
deslumbramento equatorial.<br />
As fontes, as cascatas, os ribeiros, sonoros,<br />
harmônicos, musicais, faziam coro na grande ópera da<br />
Criação.<br />
A vitalidade, a seiva tinha erupções vulcânicas,<br />
desde os troncos mais hartos, até as mais frágeis raízes.<br />
Cintilava, cantava o verde florido dos prados e o<br />
azul refrigerante dos céus.<br />
Almas e almas vagavam, como silfos, como asas,<br />
como nuvens e nuvens, pelas zonas consoladoras e<br />
luminosas do idealismo.<br />
Trinos e trenos, por tudo.<br />
A falange gloriosa dos canários, dos coleiros, dos<br />
gaturamos, dos sabiás rasgava o horizonte, aqui e ali,<br />
de risadas apopléticas, que chocalhavam como guizos,<br />
que tiniam, que bimbalhavam como campanários de<br />
aldeia.<br />
* * * * * * * * * *
16 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Uma simpatia boa acariciava, por fora, a casinha<br />
alva, muito alva, encarapitada do cimo da colina.<br />
Dentro, morrera o Gigi, uma criança, um beijo<br />
cristalizado, um sonho dos colibris; e as esperanças dos<br />
pais imergiam, pela sombra melancólica das mágoas,<br />
como pombas, tristes, tristes...<br />
Morrera o Gigi; a primavera da vida, na primavera<br />
da natureza.<br />
E as névoas crepusculares que invadiam a tarde<br />
penumbravam o aposento inteiro...<br />
Nos objetos parecia haver também a reticência da<br />
dor.<br />
E quando o foram conduzir para o túmulo, as<br />
estradas arenosas tinham aquela gravidade séria dos<br />
corações desamparados de crenças.<br />
As lavadeiras, atravessando o caminho, em curvas,<br />
cantarolando, com as brancuras honestas de roupas à<br />
cabeça, punham tons de uma afabilidade rara no fúnebre<br />
trajeto.<br />
Os ciprestes, silenciosos, acompanhavam aquela<br />
angústia, chorando as suas compridas lágrimas de<br />
orvalho.<br />
Perfumes agrestes espiralavam-se das matas<br />
verdes, fartas de florações viçosas e castas.<br />
Estendiam-se, para além, nas serras oblongas,<br />
alguns mugidos vagos de bois satisfeitos, que pastavam<br />
deleitosamente.<br />
E na extremidade curvilínea das praias, as ondas<br />
claras, espumantes refletiam os coloridos silforamáticos<br />
que o sol produzia, frechando as colinas pedregosas e<br />
altanadas, parecendo, à movimentação do globo, resvalar<br />
pelo seu ocaso eterno e supremo, numa auréola de fogo.<br />
Uma simpatia boa acariciava, por fora, a casinha<br />
alva, muito alva, encarapitada no cimo da colina.<br />
Dentro, morrera o Gigi, uma criança, um beijo<br />
cristalizado, um sonho dos colibris; e as esperanças dos<br />
pais imergiam, pela sombra melancólica das mágoas,<br />
como pombas, pombas tristes, tristes...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 17<br />
PIANO E CORAÇÃO<br />
A Isidoro Martins Júnior<br />
O piano, o piano e o coração.<br />
Ó melodias do coração, ó harmonias do piano.<br />
Chopin, Gounod, Metra, Strauss, Beethoven,<br />
Gottschalk, constelação gloriosa de boêmios de ouro!...<br />
Quando o piano musicaliza, caracteriza,<br />
espiritualiza as longas escalas cromáticas, os adoráveis<br />
allegros, os interessantes pizzicatos, quem fala primeiro<br />
que os cérebros artísticos é o coração.<br />
Ele canta mais alto que todos os órgãos humanos.<br />
O coração é o pulso do cérebro artístico.<br />
Pela temperatura e o grau de sentimento de um,<br />
o músico estabelece a proporção do outro.<br />
Um dirige, outro executa.<br />
Um tem a fórmula, outro funciona.<br />
Um é o oxigênio, outro o carvão.<br />
Um faz o relâmpago, outro produz o raio.<br />
Coração e cérebro aliam-se, homogeneízam-se.<br />
Assim o piano, eternamente assim.<br />
O coração é a luta, as grandes tempestades<br />
desoladoras, varadas de cóleras surdas de vendavais<br />
gargalhantes e intérminos, de frios que estortegam,<br />
enregelando as noites soturnas das trevas compridas e<br />
absolutas; o coração é a maciosidade dos linhos, a<br />
candidez consoladora dos luares estrelados, a fluidez<br />
elétrica dos perfumes excitantes, as expansivíssimas<br />
alegrias, castamente sonoras e sonoramente castas.<br />
O coração ruge e vibra.<br />
Assim o piano.<br />
Cada palpitação do piano é uma fibra do coração,<br />
que bate.<br />
Tem os mesmos triunfos, os mesmos humorismos<br />
fúnebres, as mesmas imponências e coruscações, o<br />
piano.<br />
Chora e canta, ri e soluça.
18 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Quanta vez o artista não canta, não ri e chora e<br />
soluça com o piano.<br />
Dizei à sensibilidade que emudeça.<br />
À sombra que se subdivida, partícula por partícula,<br />
pela própria sombra.<br />
O piano, como o coração, representa um ser<br />
complexo, com os elementos necessários, com os nervos,<br />
com os músculos de vitalidade dispostos, preparados,<br />
desenvolvidos, de forma a infiltrar nos demais seres a<br />
seiva psíquica, a sangüinidade simpática da arte.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 19<br />
A BOLSA DA CONCUBINA<br />
A Horácio de Carvalho<br />
O amor é uma escada que tem uma extremidade<br />
na glória e outra no abismo – disse-o Matias de Carvalho.<br />
Vezes há que essa escada, devendo resvalar na<br />
glória, resvala abruptamente no abismo.<br />
E ai daqueles que se têm librado a ela.<br />
O amor é uma torrente de circunstâncias<br />
anormais.<br />
Quanto maior é o amor, maior deve ser o sacrifício.<br />
O amor faz gigantes e faz anões, ilumina e<br />
entenebrece os espíritos nervosos e doentios.<br />
É como o cáustico; cura mas deixa os sinais<br />
evidentes.<br />
Daí as incompatibilidades, as duras idiossincrasias<br />
do amor.<br />
Daí as monstruosidades e os abortos morais, os<br />
perigos e as aberrações sociais.<br />
O amor, o amor que se consubstancia no dever,<br />
na harmonia, no bem-estar, no sossego de espírito, na<br />
probidade e na lisura, é o maior elemento higiênico da<br />
moral da família.<br />
Para a felicidade doméstica, o agente que mais<br />
influi é o amor, mas não esse amor gasto que anda a<br />
suspirar pelos madrigais, pelas belas noutes de luar,<br />
pelos suntuosos saraus de onde se sai com o estômago<br />
encharcado de maus vinhos e a consciência<br />
cambaleando, pelo efeito das luzes, das flores, das<br />
músicas e das pompas.<br />
Não! Não!...<br />
Mas o amor sadio, limpo, asseado, o amor que sabe<br />
ter energias e sabe ter heroísmos, o amor que ri com a<br />
esposa e soluça com o filho, o amor que mostra a camisa<br />
rota do operário, o arado do aldeão, mas que à noite,<br />
nas suavíssimas meias sombras do lar, lembra-se que<br />
tem de almoçar no dia seguinte e que a mulher já lhe
20 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
disse, abraçando-o expansivamente, entre as harmonias<br />
alegres e francas de um sorriso, que não há lenha em<br />
casa.<br />
É esse o amor.<br />
O amor que faz bem, que corporifica os sentimentos<br />
da alma, que se multiplica de vitalidade pelos sentidos,<br />
pelos olhos, pelos ouvidos, pelos gestos, por todos os atos<br />
e complementos psicológicos e fisiológicos.<br />
O amor que é a filosofia dos seres bons, honestos,<br />
o amor que é o oxigênio da temperatura do afeto humano.<br />
Assim como o ar atmosférico tem influência sobre<br />
os pulmões, o amor tem influência sobre o trabalho, sobre<br />
o dever, sobre a virtude.<br />
Da temperatura do amor depende a temperatura<br />
da felicidade conjugal.<br />
Há desgraçados que deveriam ser felizes, assim<br />
como há felizes que deveriam ser desgraçados.<br />
Os primeiros porque trabalharam para ser felizes;<br />
os últimos porque nada fizeram para isso, não deixando,<br />
porém, de ter a consideração de zelosos de seu bemestar<br />
e trabalhadores do seu futuro.<br />
O verdadeiro amor, aquele que é para as crianças<br />
o imaculado tesouro, o verdadeiro amor, aquele que é<br />
para os cegos a benéfica luz, aquele que é para os mortos<br />
o miraculoso surge et ambula, esse, esse amor, supremo<br />
como as supremas harpas do infinito, claro, magnífico<br />
como as vestiduras brancas dos justos, imponente como<br />
a memória de Camões cortando a monotonia de gelo de<br />
trezentos anos, esse amor é a afinação das almas pela<br />
música da natureza criadora.<br />
Fora preciso que a humanidade não cuidasse tanto<br />
das funções peristálticas do estômago, para abrir o<br />
grande livro da virilidade universal:<br />
O amor.<br />
Fora preciso que as consciências expelissem de<br />
si todos os fetos e aleijões que elas produzem e que,<br />
tomando uma nova seiva, uma porção de sangue, uma
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 21<br />
boa parcela de massa encefálica, uma intuição muito<br />
direita, muito outra, dos admiráveis problemas que a<br />
filosofia derrama na flor, na árvore, no infinito, em toda<br />
a criação, em toda a natureza, sintetizassem no amor a<br />
concretização de todos os fenômenos e acontecimentos<br />
animais.<br />
– O amor, tem razão o poeta, é uma escada que<br />
tem uma extremidade na glória e outra no abismo.<br />
* * * * * * * * * *<br />
Casaram-se.<br />
Ela muito limpa sempre, muito asseada, sabendo<br />
ler bem, costurando à noite, na máquina, paletós, calças,<br />
coletes, sacos de aniagem; fazendo à mão toalhas de<br />
rosto, bordando, toda alegre, com os seus pospontos<br />
muito bem acabados, delicadamente feitos; indo ao<br />
quintal de manhã cedo, aos raios mais firmes do dia,<br />
ver a alacridade doce de suas plantas, de suas flores,<br />
de sua horta muito galante, dando de comer milho moído<br />
aos pintos, que vinham, vinham, vinham, em pequeninos<br />
gritos, em expansões castas, abrindo o bico, ruflando as<br />
asas tenras, roçando as penas pela macia plumagem<br />
das mães, umas galinhas gordas, satisfeitas, parecendo<br />
donas de casa, amarelas, rajadas de branco e preto,<br />
levando os grãozitos de milho ao bico e dando aos pintos<br />
todos contentes de sua vida.<br />
Uma alegria das pobres aves.<br />
Ele um pintor boêmio, sem apreço à honra; casarase<br />
por amor, mas depois uns amigos maus, hipócritas,<br />
transformaram-no inteiramente.<br />
Mesmo dizia-se que nunca tivera juízo.<br />
Mas, como quem vê cara não vê coração, a pobre<br />
da moça amou-o muito, com toda a força de sua crença<br />
e casaram-se.<br />
Depois ele tinha um vício.
22 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Era pobre, pobre e amasiara-se com uma mulher<br />
com a qual banqueteava-se.<br />
Às vezes, ia para a casa com o sorriso alvar de<br />
animalidade alcoolizada.<br />
Não era barulhento, não era de instintos ferozes,<br />
mas bestializava o seu proceder.<br />
A honesta mulher sabia de tudo, mas ah! grande<br />
luz do seu imenso coração, envergonhava-se, não queria<br />
escândalos, chorava no escuro, baixinho, toda pesarosa,<br />
toda magoada; lembrava-se do filho que tinham, sabia<br />
que era ele o pai e que se esse pai os abandonasse,<br />
seria desairoso para ela e então suportava tudo.<br />
Pois se ela era tão honesta!<br />
Ah! o seu filho, o seu querido filho tão bonito como<br />
ela o chamava.<br />
O seu querido filho tão bonito!<br />
Oh! as mães, as mães!<br />
E no entanto a criança era raquítica, não parecia<br />
ter seis meses; o crânio muito comprido e achatado, o<br />
frontal muito largo, de uma saliência enorme, abaulado,<br />
deixando aparecer muito no fundo, dous olhos sem<br />
expressão, quase sem movimento, dava-lhe o aspecto de<br />
uma caveira; o corpo mal desenvolvido, o rosto amarelado<br />
e de uma pele seca, as pernas em arco, magras, tudo<br />
emprestava àquilo que ela chamava o seu querido filho<br />
tão bonito uma aparência sinistra e má.<br />
Não obstante ela o adorava!...<br />
Oh! as mães, as mães!...<br />
Que sacrifício profundo e sacrossanto é maior que<br />
o coração das mães?!<br />
– O espetáculo estupendo do sol, faiscando pelos<br />
espaços intérminos, como um colosso de fogo, iluminando<br />
as esferas, dando umas tonalidades claras ao espírito<br />
das cousas, abrindo e fecundando as grandes almas de<br />
tudo, não é mais deslumbrante de eloqüência que o amor<br />
das mães!...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 23<br />
Elas se imortalizam na memória dos filhos, quando<br />
eles se chamam Dante, Shakespeare, Vítor Hugo e Zola.<br />
As mães são o compêndio infinito de todas as<br />
ciências, a irradiação maravilhosa de toda a luz filosófica.<br />
Por isso ela estremecia muito o seu querido filho<br />
tão bonito.<br />
E ele, o marido, andava fora, ou no trabalho ou<br />
em casa dela.<br />
E ela, a mulher, essa outra – ela – tão modesta,<br />
tão santa, tão trabalhadora, ainda nova, na manhã<br />
transparente dos seus vinte e dous anos, sentia<br />
necessidade, umas abundâncias de extremos, de umas<br />
exuberâncias de afeições puras, revolvia-se toda, às<br />
vezes, como uma freira na sua cela, ficava nuns letargos<br />
mornos, sensuais, num sonambulismo etéreo, fechando<br />
os olhos numa dormência calada, como se cedesse ao<br />
poder de um magnetismo soberano.<br />
Tinha necessidade de adulterar, mais o seu<br />
querido filho e tão bonito ali estava, fisicamente feio,<br />
como a atalaia da sua honra, como a porta de bronze a<br />
lhe interceptar a entrada no palácio silforamático da<br />
prostituição.<br />
E então ela erguia-se em toda a majestade do<br />
seu dever e abraçava e beijava o filho, numa aluvião<br />
delirante de carinhos enternecedores.<br />
Aquele filho livrava-a de ter uma Waterloo na<br />
batalha renhida da sua existência.<br />
E então trabalhava, trabalhava muito.<br />
Ele já pouco ia ver a mulher e o filho.<br />
O pão, no entanto, escasseava, o fogão estava negro<br />
e calado.<br />
O proprietário da casa onde moravam já lhes falara<br />
uma vez, duas, três vezes.<br />
Tinham-se atrasado um tanto... uns cinco meses.<br />
O fornecedor o vira entrar em casa diversas noites,<br />
cambaleando, e mastigando frases desencontradas.
24 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Dissera que não fiava a bêbados, desconfiava que<br />
não seria pago e depois atirava os seus dichotes canalhas<br />
à sua freguesa e desejava-a, mas o único meio de a<br />
obter, pensava ele, era tornando-se desapiedado e<br />
negando-lhe o alimento, porquanto ela assim cederia,<br />
já que o marido pouco parava em casa.<br />
No entanto, a vida dela caía, caía como as pétalas<br />
de uma rosa ao chegar o inverno desabrido e úmido.<br />
As papoulas de sua face desbotavam dia-a-dia.<br />
Ele já não trabalhava quase, desmoralizara-se de<br />
todo e negavam-lhe trabalho.<br />
Deixava, dez, quinze dias de ir ver a família.<br />
Uma ocasião foram dizer-lhe, um pequeno<br />
aprendiz seu, que o filho fora atacado de varíola.<br />
Achava-se ele em casa da concubina.<br />
Ela, ao ouvir o recado do pequeno, sorriu-se com<br />
um sorriso de vingança, pois dizia – que ele lhe prometera<br />
casamento, que a enganara, mas que ela se vingaria; e,<br />
terminantemente, ordenou-lhe que não aparecesse em<br />
casa, que não fosse ver o filho, que ela faria as despesas<br />
da moléstia e do enterro, caso a criança morresse.<br />
E pegando da pena escreveu, imitando o quanto<br />
possível a letra do amante: – “Minha querida – sinto<br />
extremamente o estado do nosso filho, mas como não<br />
encontro trabalho na cidade e é absolutamente preciso<br />
que eu parta hoje para a vila de..., a um magnífico negócio<br />
onde poderei ter mais prontos resultados de dinheiro,<br />
desculpa a precipitação com que te escrevo e olha bem<br />
por nosso filho. – Tu és boa, perdoa-me, pois, os dias que<br />
não tenho ido à casa.<br />
– Para que nada falte ao pequeno, aí te envio uma<br />
sofrível importância; a sua doença não há de ser nada;<br />
daqui a pouco te mandarei lá o médico. – Teu marido A.”<br />
Meteu o bilhete num envelope, puxou de uma<br />
bolsa, colocou dentro umas cinco notas de mil-réis e<br />
deu ao pequeno que saiu.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 25<br />
Ele, bestializado com tudo aquilo, meio parvo,<br />
fechava de vez em quando os olhos, como que para não<br />
ver ou não desvendar a profundidade do seu abismo.<br />
No entanto ela ria canibalescamente e redobrava<br />
de afagos para com o seu louro – como lhe chamava.<br />
Era viúva, herdara alguma cousa para a sua<br />
subsistência e sabia atrair os ladinos e triunfar dos seus<br />
caprichos, como fazia com ele.<br />
E enquanto a viúva pantera explosia as suas<br />
paixões venenosas, a honesta mulher, só em casa,<br />
desamparada como uma criança nua numa estrada, por<br />
uma noite negra, muito negra, aos uivos de um temporal<br />
cruel, sentindo ao longe, lá ao longe o monótono grasnar<br />
das aves agoureiras, via que o médico não chegava, que<br />
seu filho se sumia, se sumia, como a asa de uma<br />
andorinha na última extrema do horizonte.<br />
Parecia que um prédio tinha desabado sobre ela.<br />
Estava abatida, desconsolada, desfalecida.<br />
Não ia ao quintal para não ver as suas aves, não<br />
ia à janela para não ver o sol percorrer satisfeito as<br />
amplidões serenas da serena luz.<br />
Não ia porque, nas aves e no sol, ela via seu filho<br />
contente adormecido aos seus beijos.<br />
E o aprendiz, pinoteador, travesso, acriançado, não<br />
fora lá, logo no mesmo dia.<br />
Mas no dia seguinte, de tarde, quando no éter<br />
calmo se esbatiam as tintas crepusculares, e que a<br />
sinfonia da natureza, os límpidos turíbulos das florestas,<br />
derramando perfumes suaves, convidavam o raciocínio<br />
a um recolhimento poético, morria-lhe nos braços o filho,<br />
como um Cristo menino nos braços de Maria.<br />
E então, ela, numa angústia despedaçadora de<br />
mãe dolorosa, lembrando-se daquele corpo, daqueles<br />
olhos, daqueles lábios que iam talvez rebentar numa<br />
explosão de boninas, de cravos e de violetas, viu abrirse<br />
a porta e entrar o aprendiz com um objeto que lhe<br />
entregou.<br />
Era a bolsa da concubina!!
26 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
O PADRE<br />
A João Lopes<br />
Um padre escravocrata!... Horror!<br />
Um padre, o apóstolo da Igreja, que deveria ser o<br />
arrimo dos que sofrem, o sacrário da bondade, o amparo<br />
da inocência, o atleta civilizador da cruz, a cornucópia<br />
do amor, das bênçãos imaculadas, o reflexo do Cristo...<br />
Um padre que comunga, que bate nos peitos,<br />
religiosamente, automaticamente, que se confessa, que<br />
jejua, que reza o – Orate fratres, que prega os preceitos<br />
evangélicos, bradando aos que caem surge et ambula.<br />
Um escravocrata de... batina e breviário... horror!...<br />
Fazer da Igreja uma senzala, dos dogmas sacros<br />
leis de impiedade, da estola um vergalho, do missal um<br />
prostíbulo...<br />
Um padre, amancebado com a treva, de espingarda<br />
a tiracolo como um pirata negreiro, de navalha em punho,<br />
como um garoto, para assassinar a consciência.<br />
Um canibal que pega nos instintos e atira-os à<br />
vala comum da noite da matéria onde se revolvem as<br />
larvas esverdeadas e vítreas da podridão moral.<br />
Um padre que benze-se e reza, instante a instante,<br />
que gagueja à frente do cadáver o aforismo de Horácio –<br />
Hodie mihi cras tibi.<br />
Um padre, que deixando explosir todas as<br />
interjeições da ira, estigmatiza a abolição.<br />
Ela há de fazer-se, malgrado os exorcismos crus<br />
dos padres escravocratas; depende de um esforço moral<br />
e os esforços morais são, quase sempre, para a alta<br />
filosofia – mais do que os esforços físicos – o fio condutor<br />
da restauração política de um país!...<br />
O interesse egoístico de um indivíduo não pode<br />
prevalecer sobre o interesse coletivo de uma nação, disseo<br />
um moço de alevantado talento, Artur Rocha.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 27<br />
Não é com a ênfase dogmática do didatismo ou<br />
com a fraseologia tecnológica dos cinzelados folhetins<br />
de Teófilo Gautier que o trabalho da abolição se fará.<br />
Mas com a palavra educada, vibrante – essa<br />
palavra que fulmina – profunda, nova, salutar como as<br />
teorias de Darwin.<br />
Com a palavra inflamável, com a palavra que é o<br />
raio e dinamite, como o era na boca de Gambetta, a<br />
maior concretização do estupendo – depois do sol.<br />
A palavra que ri... de indignação; um riso<br />
convulso... de réprobo, funambulesco... de jogral.<br />
Um riso que atravessa séculos como o de Voltaire.<br />
Um riso aberto, franco, eloqüentemente sinistro.<br />
O riso das trevas, na noite do calvário.<br />
O riso de um inferno... dantesco.<br />
Ouves, padre?...<br />
Compreendes, sacerdote?...<br />
Entendes, apóstolo?...<br />
Então para que empunhas o chicote e vais<br />
vibrando, vibrando, sem compaixão, sem amor, sem te<br />
lembrares daquele olhar doce e aflitivo que tinha sobre<br />
a cruz o filho de Maria?...<br />
O filho de Maria, sabes?!...<br />
Aquele revolucionário do bem e aquele cordeiro<br />
manso, manso como um ósculo da alvorada nas grimpas<br />
da montanha, como o luar a se esbater num lago<br />
diamantino...<br />
Lembras-te?!...<br />
Era tão triste aquilo...<br />
Não era padre, ó padre?!...<br />
Não havia naquela suprema angústia, naquela dor<br />
cruciante, naquela agonia espedaçadora, as mesmas<br />
contorções de uma cólica nefrética, os mesmos arrancos<br />
informes de um escravo?...<br />
Não compreendes que se açoitares um mísero que<br />
for pai, uma desgraçada que for mãe, as bocas dos<br />
filhinhos, daquelas criancinhas negras, sintetizando o
28 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
remorso, o aguilhão da tua consciência se abrirão nuns<br />
gritos desoladores que, como uns bisturis envenenados,<br />
trespassar-te-ão as carnes?...<br />
Não compreendes que de seus olhos, acostumados<br />
a paralisarem-se ante o terror, irromperão as lágrimas,<br />
esse líquido precioso das alminhas inocentes?!!...<br />
Pois tu, nunca choraste?!...<br />
Nunca sentiste os engasgos de um soluço<br />
saltarem-te pela garganta, quando te lembras de trocar<br />
as tuas magníficas conquistas, os teus manjares<br />
especiais, os teus licores dulçorosíssimos pela noite<br />
escura, muito escura, onde grasnam surdamente as aves<br />
da treva, onde Dante se acentua no Lasciate ogni speranza,<br />
onde os espíritos vis desaparecem e os Homeros e<br />
Camões e Virgílios surgem e se levantam pelo braço<br />
hercúleo da posteridade, pelo fôlego intérmino e secular<br />
da História?<br />
Nunca?!...<br />
Sim, tu estás comigo, padre!...<br />
Estás!...<br />
És bondoso, eu sei, tens a alma tão serena e tão<br />
lúcida como uma imagem de N.S. da Conceição.<br />
Eu sei disso!...<br />
Olha, quando morreres – se é que morres – irás<br />
de palmito e capela, na mudez dos justos e as virgens<br />
tímidas e cloróticas, entoando grave De profundis,<br />
murmurarão lacrimosas:<br />
– Coitado, foi o pai carinhoso das donzelas...<br />
Requiescat in pace!...<br />
Que bonito será, não!...<br />
E depois o céu!<br />
Sim, porque tu irás para o céu!<br />
Não crês no céu, padre?<br />
Pois crê, esses filólogos mentem, têm princípios<br />
errôneos e tu, padre, és um sábio...<br />
Tu és bom...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 29<br />
Porém... por Deus, como é que vendes a Cristo<br />
como um quilo de carne verde no mercado?!...<br />
Ah! É verdade, és muito pobre, andas com os<br />
sapatos rotos, não tens que comer e... és muito caridoso...<br />
Mas, escuta, vem cá: –<br />
Eu tenho também minhas fantasias; gosto de<br />
sonhar às vezes com o azul.<br />
O Azul!...<br />
Deslumbro-me quando o sol se atufa no oceano,<br />
espadanando os raios purpureados, como flechas de fogo,<br />
pela enormidade côncava do espaço; inebrio-me quando<br />
a natureza, com seu tropicalismo, ergue-se do banho de<br />
alvoradas, jorrando nos organismos de ouro o licor<br />
olímpico e santo do ideal, as músicas maviosíssimas e<br />
puras da inspiração, nos crânios estrelejados!...<br />
Pois façamos uma cousa: –<br />
Eu escrevo um livro de versos que intitularei:<br />
O ABUTRE DE BATINA<br />
puros alexandrinos, todos iguais, corretos, com<br />
os acentos indispensáveis, com aquele tic da sexta – tipo<br />
elzevir, papel melado – e ofereço-to, dou-to.<br />
Prescindo dos meus direitos de autor e tu o<br />
assinas!...<br />
Com os diabos, hás de ter influência no teu círculo.<br />
Imprimes um milhão de exemplares, vende-os e<br />
assim terás das loiras para a tua subsistência, porque<br />
tu és paupérrimo, padre, e necessitas mesmo de<br />
dinheiro, porque tens família, muitos afilhados que te<br />
pedem a bênção e precisas dar-lhes no dia de teu santo<br />
nome um mimo qualquer.<br />
Faz isso, mas... não te metas com o abolicionismo;<br />
é a idéia que se avigora.<br />
Talvez digas, mastigando o teu latim: – Primo vivere<br />
deinde philosophare.
30 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Mas é porque tu és míope e os míopes não podem<br />
encarar o sol... Mas eu dou-te uns óculos, uns óculos<br />
feitos da mais fina pele dos negros que tu azorragas...<br />
Pode ser que a influência animal da matéria excite<br />
o espírito e que tu... vejas.<br />
Pode ser...<br />
Há cegos de nascença que vêem... pelos olhos da<br />
alma.<br />
E se tu és padre e se tu és metafísico... deves ter<br />
alma...<br />
Compreendes?...<br />
Faz-se preciso que desapareçam os Torquemadas,<br />
os Arbues, maceradores da carne, como tu, padre.<br />
Em vez de prédicas beatíficas, em vez de<br />
reverências hipócritas, proclama antes a insurreição...<br />
Tens dentro de ti, bate-te no peito, nas palpitações<br />
da seiva, um coração que eu penso não ser um músculo<br />
oco.<br />
Vibra-o pois, fibra por fibra, se não queres que os<br />
meus ditirambos e sarcasmos, quentes, inflamados,<br />
como brasas, persigam-te eternamente, por toda a parte,<br />
no fundo de tua consciência, como uns outros medonhos<br />
Camilos de Zola; vibra-o se não queres que eu te estoure<br />
na cabeça um conto sinistro, negro, a Edgar Poe.<br />
É tempo de zurzirmos os escravocratas no tronco<br />
do direito, a vergastadas de luz...<br />
Sejam-te as virtudes teologais, padre, – a<br />
liberdade, a igualdade e a fraternidade – maravilhosa<br />
trilogia do amor.<br />
Unge-te nas claridões modernas e expansivas<br />
dessas três veias artérias da verdadeira Filosofia<br />
Universal.
PONTOS E VÍRGULAS<br />
A Artur Rocha<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 31<br />
As estradas são longas e é curta a piedade dos<br />
homens, escreveu no – “Outro amável milagre” – contido<br />
no “Feixe de Penas” o primorosíssimo, o delicioso, o<br />
onipotentíssimo psicólogo Eça de Queirós.<br />
São longas as estradas.<br />
É curta a piedade dos homens.<br />
* * * * * * * * * *<br />
Quer isto dizer que se acha na capital de Santa<br />
Catarina o notável glosista Margarida, esse analfabeto,<br />
esse doudo da luz, arremessado nas trevas, esse bom<br />
velho rude e chão, que, se não é, na frase original e<br />
observada do esplêndido fantasista, Virgílio Várzea – um<br />
sofrimento que vive a rir – é um humorismo fúnebre,<br />
dentro de uma alma cristalina de poeta.<br />
São longas as estradas.<br />
E ele veio de muito longe, do país das lágrimas e<br />
das saudades, dos enevoamentos do luto, porque perdeu<br />
sua esposa, o mote supremo de todas as suas glosas.<br />
Vem em busca de um filho, que supôs morto<br />
também, morto, na impassibilidade da pedra, na rigidez<br />
do granito.<br />
Vem procurá-lo, vem vê-lo ainda, embora, do fundo<br />
pesado da sua existência, alguma cousa lhe murmure<br />
aos ouvidos:<br />
São longas as estradas.<br />
É curta a piedade dos homens.<br />
E ele, quase absolutamente, que precisa dessa<br />
piedade, ó filhos de Cristo.<br />
Uma piedade justa, que não desdoura, que não<br />
humilha; honesta como a intenção destes pontos e<br />
vírgulas, franca como a expansibilidade do aroma.<br />
Ele quer essa piedade.
32 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Mães, esposas e filhas, operárias do bem<br />
doméstico, colunas direitas dos brios sociais, bíblias<br />
inesgotabilíssimas do conforto, das consolações e... da<br />
piedade, arremessai um ceitil da vossa fartura aos<br />
peregrinos que passam, abri o escrínio da vossa abastança<br />
aos que imploram, dignamente, em pé, de rosto limpo<br />
mas... desfigurado; deixai as vossas aristocracias de<br />
princesas bourbônicas, as vossas reverências e cortesias<br />
fidalgas, desapertai o colete do estilo, quebrai a linha<br />
da hereditariedade titular, saí, por um momento, dos<br />
arminhos flácidos das nossas alcovas elegantes e<br />
confortáveis, arquiteturadas, cinzeluradas de azul,<br />
brosladas de prata, cheias de caprichos arabescados de<br />
arte.<br />
Sede democratas, uma vez.<br />
Com a democracia dos sentimentos, preclaros,<br />
decentes, bonitos, galgareis o corrimão feito de rosas e<br />
madressilvas e jasmins, da escadaria rutilíssima,<br />
madreperolizada, da aristocracia da virtude.<br />
Formai das glosas, dos versos, das rimas do poeta,<br />
uma nuvem de ouro, com cintilações purpúreas, para<br />
subirdes, envoltas nela, aos intermúndios da crença,<br />
de onde o adorável, o cândido Jesus das cândidas<br />
bênçãos entornará nos vossos lábios os aprazíveis licores<br />
da ventura infinita, e, vamos, provai, livres da vossa<br />
irritabilidade nervosa, do vosso temperamento sanguíneo,<br />
que aqui, nesta terra de Oliveira Paiva, o apóstolo sincero<br />
da bondade extrema, deixa de existir a sentença do<br />
mestre:<br />
É curta a piedade dos homens.<br />
O poeta vos pede pouco, muito pouco.<br />
Atirai em leilão os livros que ele traz, arremataios<br />
todos, ponde em quermesse os vossos corações, enchei<br />
aquelas mãos calosas e dignas, dos mais simpáticos e<br />
sonoros níqueis e tudo será feito.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 33<br />
Deixai um momento o sarcasmo, a sátira e o<br />
egoísmo; lembrai-vos que a humanidade está sujeita às<br />
mesmas leis eternas e imutáveis.<br />
Amanhã, será por vós, talvez, que passará a<br />
desolação da vida. Amanhã, talvez, os caminhos do vosso<br />
bem-estar, tilintantes de alegria, inundados de sol,<br />
relampagueados de júbilos, estejam tristes, bem tristes..,<br />
duma tristeza funda e pungitiva.<br />
Deveis pesar os clarões da vossa felicidade, pelas<br />
sombras das mágoas alheias.<br />
O poeta vos pede pouco, muito pouco.
34 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
SABIÁ-REI<br />
A César Muniz<br />
O sabiá ruflava as asas pardas e amplas, sempre<br />
que fazia explosir, como uma girândola no ar inefável e<br />
translúcido, a sua escala cromática, de gorjeios claros<br />
e espontâneos, pela saleta de uns tons violáceos, com<br />
filetes e cinzeladuras doiradas.<br />
Quando o sol, gloriosamente tranqüilo, numa<br />
fartura de luz benéfica, numa refrangibilidade prismática,<br />
atirava os venábulos cintilantes pela janela da luxuosa<br />
saleta, fazia bem ouvir-se, consorciados à coloração<br />
vermelha, rubra, os artísticos concertos do incomparável<br />
maestro das sinfonias selvagens, do empório largo da<br />
natureza criadora.<br />
Era o deslumbramento da harmonia e da luz.<br />
E quanto mais o sol fulgia, coruscando do alto, em<br />
rutilante cascata, mais o sabiá cantava, cantava, cantava<br />
sempre.<br />
Parecia que nos raios do grande Filósofo da<br />
evolução natural, vinha presa, fundida, corporificada toda<br />
aquela música sonorosa e adoravelmente casta que lhe<br />
saía do laringe metálico.<br />
Sentia-se como que o irromper imponentíssimo<br />
de heróis, de espíritos saudáveis, em marchas triunfais,<br />
em pompas, pela curvidão marmórea do Azul, ao escutarse<br />
o primoroso tenor das selvas.<br />
Como cantava bem; como os trinados cheios, como<br />
os vocábulos musicalizados se derramavam todos, com<br />
orgulho, inflados de brio, recortados de uma bravura<br />
nervosa, sobre os objetos silenciosos – os ricos móveis<br />
facetados de madrepérola, os divãs de custo superior,<br />
os contadores róseos, as chaises-longues, o piano, sobre<br />
o qual dormiam algumas rêveries de Schubert, as cômodas<br />
poltronas austeras, os cristais finíssimos, as estatuetas<br />
representando amores pagãos, os reposteiros suntuosos,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 35<br />
cor marron, as múltiplas fanfreluches chinesas, as<br />
esquisitas ânforas gregas – tudo na imobilidade da treva.<br />
Um dia, deixaram a porta da gaiola aberta e o<br />
sabiá, lembrando-se que tinha talvez um lar mais livre<br />
na amplitude livre da floresta, um ninho mais amigo,<br />
mais carinhoso, na doçura consoladora da paina e do<br />
musgo, bateu, abriu as asas de gênio inspirado, num<br />
último acorde de músico e vibrante e... fugiu, rasgando<br />
a transparência das esferas alegres e infinitas.<br />
Mas um caçador ingrato que rodeava aquelas<br />
paragens, vendo o esvoaçar vitorioso do pássaro<br />
cantarolador, disparou um tiro valente e o sabiá caiu...<br />
Nos seus olhos havia ainda os derradeiros lampejos<br />
do tropicalismo da raça.<br />
E o sangue a rebentar-lhe da ferida aberta, como<br />
que parecia também salmodiar a nênia sombria da<br />
ingratidão dos homens pelas Aves da Luz.
Dispersos<br />
Dispersos
38 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
DA BAHIA<br />
SOBRE OS POETAS CATARINENSES SANTOS<br />
LOSTADA E VIRGÍLIO VÁRZEA<br />
Acabo de receber jornais com o espírito hors ligne<br />
de ambos. Maravilhoso! Único!<br />
Li, reli, treli os versos e “quinquili” o folhetim.<br />
Admirável! O Lostada, com a sua palavra toda<br />
irisada de florões levantinos, arquitetando uma<br />
fraseologia própria, original, levada nas claridões<br />
aurorais, cinzelando um pedaço de marfim, cheio de<br />
salpicações multicores de azul, rouge, e ouro, traçou um<br />
dos folhetins mais cheios de verve que eu tenho lido.<br />
Brilhante de concepção, intuitivo, vibrante como<br />
um tímpano de metal ou um anafim mourisco.<br />
Parece uma filigrana de Alencar, uma página da<br />
Dama das Camélias de Dumas Filho, ou uma frase<br />
perfumada, de luva gris-pèrle de Théophile Gautier, o<br />
delicado inspirador de Mademoiselle de Maupin.<br />
É um belo trabalho, e, direi mesmo, un chefd’oeuvre.<br />
Completo, artístico, palpitar de almas, cânticos<br />
à liberdade...<br />
É galantemente espirituoso e espirituosamente<br />
galante, Lostada, o teu folhetim pschutt; é vivo como uma<br />
alvorada ou uma orquestração de aves que rouxinolizam<br />
através das fulgurações ensangüentadas de sol no seu<br />
plaustro iluminado e triunfante, quando sobe a escadaria<br />
longa e suntuosa do Levante!<br />
Ainda bem! Principiam eles a ter as imponências<br />
de águia condoreira, nessa infeliz terra que eu tanto<br />
amo, que defendo sempre que o senso mo manda fazer,<br />
e que lhes tem sido ingrata!<br />
Oxalá saibam os catarinenses, como os dous<br />
bandeirantes, compreender o evolucionismo do século e<br />
agitar o cérebro pensante do Desterro.<br />
Eu cá estou de longe para guardar, no sacrário de<br />
minha admiração convicta e séria, as pérolas e as flores
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 39<br />
de luz e ouro, do ideal desses combatentes moços que<br />
se chamam Virgílio Várzea e Santos Lostada e que, como<br />
uns intrépidos soldados da Idade Média, sabem na luta<br />
do talento, na batalha do livro e do estudo, atirar o seu<br />
cartel, a sua luva de desafio à ignorância e à insensatez<br />
que não ousa dar um passo na vanguarda do Belo<br />
filosófico, do Belo estético de que fala Eugène Véron no<br />
admirável livro L’Esthétique.<br />
Não posso ir mais além.<br />
Estou ainda sob a impressão daquelas linhas,<br />
cheias de rendilhados, belas, luzidias. Abraço-os, num<br />
fervor explosivo de entusiasmo e brado-lhes da sombra<br />
onde estou, intimamente saudoso, por não os ver: –<br />
Avante, amigos!<br />
Na grande cruzada da luz são os heróis, aqueles<br />
que se erguem da treva, do obscurantismo, da<br />
democracia, e de luta em luta, de lágrima em lágrima,<br />
de fel em fel, de desespero em desespero. São aqueles<br />
que riem... quando choram e que choram... quando riem.<br />
São esses que de Tântalo passam a ser glorificados<br />
como Voltaire ou Dumas. Salve!<br />
E como paráfrase àqueles versos do másculo cantor<br />
da Abolição, Castro Alves, quando diz – “Bravo quem salva<br />
o futuro fecundando a multidão” – eu, em completa<br />
síntese de aplausos, dir-lhes-ei: – A perfectibilidade<br />
moral e intelectual de um povo depende da mocidade,<br />
essa vigorosa e audaz fundidora do porvir. Salve!<br />
Que a minha alma adeje nas asas policromas da<br />
inspiração, para saudar os dois talentos mais amplos e<br />
os dois poetas mais perfeitos da nova idade literária<br />
catarinense.
40 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
INTERJEIÇÕES DA LÁGRIMA<br />
(ARTUR ROCHA)<br />
Ainda funâmbulo do ideal, Moleque, vamos,<br />
reticência de soluços os períodos de tuas colunas, vírgula<br />
de lágrimas essenciais e austeras a tua fraseologia,<br />
corta, rasga, espedaça, destrói a tua vestidura multicor,<br />
alegre como os guizos sonoros, vibrados à música da<br />
pandeireta; para as tuas cambalhotas atrevidas, no<br />
trapézio da crítica, apostrofa a gargalhada vermelha do<br />
ditirambo cortante como a navalha, sacode os teus<br />
nervos, acorda a tua animalidade, o teu humor que ri e<br />
que chora – e, vamos, Moleque – fazendo explosir os gritos<br />
da matéria, as impetuosidades pantéricas da carne, afoga<br />
o teu organismo, mergulha-o na sombra do não ser, do<br />
eterno problema trágico de Shakespeare.<br />
Morreu Artur Rocha.<br />
O que quer dizer isto?!<br />
O que se deduz destas três frases, ali acima desta<br />
preposição, enfileiradas, alinhadas, perfiladas, na<br />
solenidade fúnebre dos ciprestes inteligentes, graves,<br />
circunspetos?<br />
O que significa aquela afirmativa, que tem a<br />
tristeza, a unção religiosa dos soluços indefiníveis do<br />
órgão, espalhando-se, derramando-se pelas abóbadas de<br />
um templo enorme e majestosíssimo?<br />
O que quer dizer isto?!<br />
Quer dizer que desapareceu na noite metafísica<br />
um dos mais valorosos espíritos da geração deste país.<br />
Quer dizer que entregou-se ao conúbio do verme,<br />
no conceito de um talento forte, uma das mais radiantes,<br />
uma das mais ousadas e selvagens imaginações que<br />
conheço.<br />
Artur Rocha tinha um magnífico cabedal literário,<br />
o seu espírito compreendia a força intuitiva das cousas<br />
e às vezes, varado por uma loucura que se poderia<br />
qualificar de genial, a sua pena coruscava, relampejava,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 41<br />
fuzilava na escrita, com as nuances sulfúreas dos<br />
fenômenos que se observam nas marés.<br />
Sua inteligência fina, penetrante e superior, dum<br />
atilamento de filósofo, alargava-se pelos mundos da<br />
ciência, a fora, como uma águia gloriosa e imponente<br />
na fartura das penas e na rijeza das asas.<br />
O estilo saía-lhe terso e animado por uma chama<br />
sempre nova, viva e ardente.<br />
Parece que ele bebia, pelos órgãos visuais e pelos<br />
órgãos auditivos, toda a seiva, toda a fecundidade natural,<br />
porque os seus artigos tinham raízes boas, alcances<br />
magníficos, fundos didáticos e evolucionistas.<br />
Não se compreendia o Artur Rocha, sem o seu<br />
lenço ao pescoço, nem o Rio Grande, sem o senso<br />
jornalístico de Artur Rocha.<br />
Se Artur de Oliveira era um desespero de talento,<br />
doido e tresloucado, que enveredou no antro surdo da<br />
dúvida, Artur Rocha era um cérebro sadio – cuja natureza<br />
urgia, com a sua preponderância animal e inevitável,<br />
mais horizontes para viver, mais céus estrelados de sóis<br />
para alargar e fortalecer o sangue vital das células<br />
intelectivas.<br />
Vamos, Moleque, retesa os músculos e, embora<br />
pareça que ris sempre como o Ghwinplaine sombrio, nas<br />
eternas cabriolas da dor, no sarcasmo epilético da<br />
agonia, pontua isto, com a lágrima franca e sincera, em<br />
consideração ao talento que cai.
42 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
VICTOR HUGO<br />
– La gloire t’a donné la jeunesse immortelle.<br />
Isto escreveram-te no teu octogésimo terceiro<br />
aniversário natalício. Hoje, depois do teu eclipse no<br />
mundo animal, mas da tua transformação, da tua<br />
entrada majestática pelos sóis das idéias, pelos corações<br />
valentes das gênesis dos povos – eu, mandando a palavra<br />
musculizada, enfibrada, palpitar como um organismo,<br />
sintetizando as tuas obras, arremesso, pelo teu túmulo<br />
a dentro, isto:<br />
Morreste em todas aquelas mortes.<br />
Viveste em todas aquelas vidas.<br />
* * * * * * * * * *<br />
O poeta d’Os Miseráveis, aquele que tinha uma<br />
consolação imaculada e profunda para todos os<br />
miseráveis; o poeta da PIEDADE SUPREMA, aquele que<br />
tinha uma suprema piedade por todos os desgraçados<br />
desabou como um sol triunfante e glorioso e, agora, como<br />
numas pequeninas visões de oftalmia, causadas pela<br />
luz excessiva, todas as raças hão de sentir os olhares<br />
ofuscados nos clarões estupendos que o Cristo da<br />
Liberdade universal espalhou pelos séculos afora; esse<br />
Cristo extraordinário, esse poeta do HOMEM QUE RI,<br />
que ria dos nababos da treva e chorava pelos mendigos<br />
da lama numa loucura genial, esse poeta de l’ombre et<br />
de l’abîme.<br />
E agora, a sombra e o abismo riem-se por lhe<br />
sorverem a matéria, mas a luz folga, acariciando a<br />
substância espiritual do vulto.
PERFIS A VAPOR<br />
CARLOS SCHIMIDT<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 43<br />
O Carlos, o Schimidt!...<br />
O Schimidt, o Carlos!...<br />
Duas pessoas, distintas e... uma só<br />
individualidade verdadeira.<br />
Magnífico, o Carlos Schimidt!...<br />
Quem o não conhece; aquele invólucro simpático,<br />
guardando um coração valentemente democrata e digno,<br />
como o cálice de uma flor delicada guarda o perfume,<br />
que é o espírito da natureza vegetal; como o crânio guarda<br />
o espírito, que é o perfume da natureza animal.<br />
Quem enfrentou ainda com esse caráter em linha<br />
reta pelos escombros e anfratuosidades da vida, que não<br />
sentisse vibrar dele a nota da adorabilidade e da<br />
magnitude?...<br />
Carlos Schimidt faz da honradez uma couraça<br />
temível contra as marteladas e os golpes adestrados da<br />
luta sociocrática.<br />
Podem atirá-lo aos empurrões, aos solavancos, aos<br />
embates fortes por despenhadeiros compactos de treva,<br />
esses numes invisíveis que formam os destinos do ser,<br />
que o bom do homem, o esplêndido coração, cairá<br />
sempre, mas sempre em terreno plano, luminoso, suave.<br />
Talvez desarranje um músculo, mas o caráter,<br />
olhem bem para ele e... vê-lo-ão em todo o vigor, com<br />
toda a correção do estado primitivo...<br />
Faz bem, no meio de um materialismo que cega,<br />
duma indiferença que regela, dum egoísmo e mesquinhez<br />
de sentimentos, sentir palpitar ainda, surgir do caos da<br />
podridão moral, almas decentes e profundamente boas<br />
e úteis, com verdadeiro direito à vida, como a deste<br />
adorável catarinense.<br />
Não conheço ninguém mais atilado para as<br />
ocasiões do trabalho, com mais competência de senso<br />
para o encargo superior de pai de família.
44 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Carlos Schimidt conhece as meias-tintas do lar,<br />
sabe esbater na tela doméstica as cores das<br />
circunstâncias da existência, distribui com arte o colorido<br />
da felicidade de suas filhas e... encara, rindo, a gradação<br />
das sombras do pesar.<br />
Pode-se dizer que no centro harmonioso da família<br />
e da sociedade ele é, como diz Guerra Junqueiro – Um<br />
gigante nu contra um gigante d’aço.<br />
A atividade do Schimidt espelha-se partícula por<br />
partícula, em todas as coisas, como o orvalho gota a gota<br />
em cada pistilo das magnólias.<br />
Na arte plástica, nas ligeiras cinzeluras<br />
arquitetônicas do desenho, por intuição, por gosto, por<br />
estética, nos fanfreluches do espírito fino, carnavalesco,<br />
no humor caricatural, pronto, claro, preciso, espontâneo<br />
– observa-se no Carlos uma adivinhação de tudo o que é<br />
belo, grande, primoroso.<br />
Possui uma perfeita organização de artista, onde<br />
há muita seiva, muita coragem bonita, muita<br />
compreensão do difícil e do bom, mas pouco, muito pouco<br />
horizonte, muito estreito campo, acanhados limites...<br />
Ele é como os objetos em cujas facetas a luz<br />
reflete-se em prismas.<br />
Apresente, por isso, e só por isso, o excelente<br />
Schimidt que é, dentre as personalidades que apodrecem<br />
no vulgo – como que um grito alegre da terra – no tropo<br />
de Ramalho Ortigão.<br />
Gosto do Carlos, porque ele afinal de contas... é<br />
mesmo assim...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 45<br />
VICTOR HUGO<br />
Ne dites pas mourir; dites vivre, croyez.<br />
É o apotegma glorioso do mestre, que sintetiza<br />
toda a valentia, toda a força superior do seu atilamento<br />
espiritual.<br />
Nunca morrem os homens de cérebro, aqueles que<br />
têm a penetração filosófica das grandes causas, que<br />
sobem, pela idéia, às maiores alturas, de onde, se caem,<br />
é pela vertigem que lhes causa a luz, a zona infinita do<br />
éter.<br />
Quem viveu como Victor Hugo, dentro destes três<br />
preceitos grandiosíssimos da mais simpática e<br />
revolucionária figura da História, o Cristo, o filósofo<br />
supremo, esses preceitos racionais da Liberdade,<br />
Igualdade e Fraternidade – há de cair humanizado na<br />
dúvida sinistra do túmulo, mas há de entrar em essência,<br />
em vigor intelectual pelos corações de todos os povos.<br />
Pensar, educar e combater.<br />
Ele o fez.<br />
Ninguém mais franca e lealmente se colocou do<br />
lado dos pequenos da sombra para ferir os miseráveis<br />
da luz, ninguém tanto abençoou os pequenos da luz para<br />
estigmatizar os miseráveis da sombra.<br />
Victor Hugo foi mais do que um revolucionário, foi<br />
uma revolução.<br />
A indomabilidade selvagem do seu organismo, os<br />
seus elementos de combate, a sua argúcia pronta e<br />
assombrosa no desenvolvimento das evoluções morais e<br />
sociais deram um cunho fantástico na escala<br />
extraordinária dos seus assuntos verbalizados ou<br />
expostos em caracteres.<br />
Esse operário do bem, esse bem do operário ou<br />
antes: esse próprio bem que existiu pela sua animalidade<br />
quase um século, concluiu as obras monumentais de<br />
cem séculos.
46 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Representou em oitenta e três anos uma porção<br />
de paixões, uma porção de lutas, um milhão de<br />
sentimentos.<br />
Viveu a fase do homem e a fase do leão.<br />
Bebeu inspirações maravilhosas, mergulhando a<br />
cabeça no infinito e trazendo-a ensopada em luz.<br />
Viu quedas de reis e de estados, de usos, de<br />
costumes, atravessou os mares de todas as tempestades,<br />
viu morrer Gambetta, viu morrer Littré e Girardin, sentiu<br />
as maiores vibrações e estremecimentos de triunfo, viu,<br />
em pé, no trono de seus livros, aureolado pelo arco-íris<br />
da sua palavra doida, nervosa, desesperada, passar toda<br />
a enorme imponência que pode admitir o pensamento e<br />
o olhar: Viu Paris, fartamente alegre e alegremente farta<br />
de glórias, ajoelhar-se, beijar, vitoriar num<br />
bombardeamento pelos sóis das intelectualidades<br />
universais.
MAJOR CAMILO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 47<br />
É uma gargalhada de sessenta e tantos anos,<br />
sempre cristalina e vibrante.<br />
É o homem que ri... Não “o homem que ri” do Pater<br />
oceanus na frase de Théophile Gautier, mas o homem<br />
que ri, de Santa Catarina.<br />
É um patusco, a gente diz ao enfrentar com o<br />
Camilo.<br />
É um caráter limpo e honesto, a gente diz ao<br />
enfrentar com o Major.<br />
E Camilo e Major e Major e Camilo formam um<br />
Major Camilo muito direito, muito reto, muito respeitável.<br />
Dentro do seu organismo, chocalham, tilintam<br />
todos os guizos do prazer e da alegria franca.<br />
O seu espírito não se preocupa com os<br />
enevoamentos do ser.<br />
Sabe o que são lutas porque tem vivido o tempo<br />
preciso para elas, mas, ao contrário dos espelhos, não<br />
reproduz, não reflete sempre as sombras melancólicas<br />
que por acaso cruzam-se dentro de si.<br />
Tem a preocupação da arte, a inteligência, a<br />
finura.<br />
É um magnífico conquereur do ideal, metido na<br />
tebaida da indiferença.<br />
Nos teatros, pelo carnaval, com a hábil direção do<br />
seu pincel, tem pintado o sete, a manta... e... não sei<br />
se, sobretudo, algum xale... ou sobretudo...<br />
Pinta também... o diabo na “Diabo a quatro” sem<br />
mesmo pintar nenhum diabo.<br />
E é um diabo dos diabos.<br />
Quando ele está entre os seus amigos e que, de<br />
repente, explodem em risadas todos eles, não há que<br />
ver – Estourou por ali a bomba de alguma anedota do<br />
Major.<br />
Todos cercam o precioso cidadão de afabilidades<br />
e gabos, porque ele, no sacrário da família, guarda,
48 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
acaricia e afaga a hóstia de luz, a lembrança do amor<br />
imaculado e supremo de sua mãe que vivia para estenderlhe,<br />
sobre a cabeça, como um manto estrelado de<br />
consolações e de bondades, o seu olhar piedoso e santo.<br />
O Major Camilo representa, na atividade humana,<br />
o humorismo alegre de Júlio César Machado.<br />
Ri, ri nervosamente, funambulescamente, talvez<br />
para tapar, com risos, os escombros, os vácuos da sua<br />
felicidade.<br />
Ri, talvez, para dar mais claros aos escuros da<br />
sua existência.<br />
Ri, porque é uma necessidade dos seus músculos,<br />
dos seus órgãos vitais...<br />
O seu coração expande-se pelas cousas dignas,<br />
bate ainda com força, nas palpitações fortes da mocidade,<br />
porque o Major recorda o seu tempo, o seu bem-estar de<br />
moço, pelo país dos sonhos a dentro, vendo o cosmorama<br />
simpático da sua ventura de rapaz, sentindo cantar-lhe<br />
no peito os gloriosos vôos em busca das aprazíveis esferas<br />
infinitas da infinita luz.<br />
E ele ri, ri, como um doido do prazer; porque assim<br />
como a atmosfera, por um princípio fisiológico, influi no<br />
sangue, o riso influi no temperamento do Major.<br />
E, nos momentos dos entusiasmos justos, toda a<br />
aurora eterna da sua alma sobe, aflui-lhe ao rosto, como<br />
o colorido rubro da virtude e da dignidade.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 49<br />
O ESPECTRO DO REI<br />
VERSOS DE MOREIRA DE VASCONCELOS<br />
(Maranhão, 1884)<br />
“Quem diz poesia, diz Emoção, quem diz Emoção<br />
subentende sinceridade”, escreveu Oliveira Martins,<br />
perlongando as Odes e Canções, de Luís de Magalhães.<br />
O trabalho de que nos vamos ocupar um tanto<br />
detalhadamente merece esse apotegma do ilustre<br />
escritor português.<br />
Há duas cousas no Brasil que são como que<br />
homogêneas: a política e a poesia, por não serem tomadas<br />
convenientemente a sério, por serem entregues a muitos<br />
espíritos pueris, duma penetração frívola e vulgar.<br />
Falar em poesia é, neste país, para a compreensão<br />
fácil e leviana de indivíduos inconscientes da verdade<br />
filosófica das grandes coisas tangíveis, uma imbecilidade,<br />
um entretenimento inútil, uma aspiração vazia de senso<br />
e de critério.<br />
Mas não se pense assim; não.<br />
Se a poesia é uma banalidade, uma questão de<br />
rimas e de amores romanescos, de tolices doiradas,<br />
rasguem-se para sempre, lancem-se ao fogo Os Lusíadas,<br />
a Divina Comédia, o Fausto, as tragédias de Shakespeare,<br />
o D. Juan, de Byron, a Jerusalém libertada, de Tasso, e<br />
tantas revelações geniais que não só levantaram homens<br />
na grandiosa comunhão das idéias, mas que<br />
celebrizaram nações imortalmente.<br />
A poesia é uma arte poderosa e positivamente<br />
séria; tais sejam a força intuitiva dos poetas e a sua<br />
unção religiosamente estética e afetiva.<br />
Todos os assuntos são valorosos e grandes, uma<br />
vez que sejam descritos e tratados com observação<br />
analítica.<br />
Se em todos os países civilizados a poesia segue<br />
na vanguarda de todas as altas criações do espírito<br />
humano, por que não há de ser assim no Brasil?
50 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Independência e idéias, consciência ao largo deixemos<br />
estrugir lá fora, na sociedade que arrota o seu bom vinho<br />
ao almoço, que vai pelos clubes passear a sua dispepsia,<br />
deixemos estrugir, sim, os ditirambos crus, e as ironias<br />
entrecortadas de risadinhas vaidosas, insufladas de<br />
pedanteria e bílis.<br />
Agitar a alma a todas as sensações capazes de<br />
robustecer o espírito, ter a penetração do “Grande Meio”<br />
na frase de Comte, ser grande com os grandes, e pequeno<br />
com os pequenos, trazer sempre no organismo a<br />
harmonia vital do exuberante empório das maravilhas,<br />
a natureza criadora, adivinhar todos os fenômenos, ser<br />
artista, valentemente artista, inspiradamente<br />
cinzelador, conhecer as meias-tintas e os claros-escuros,<br />
as meias-sombras da vida, soluçar de pé como um<br />
colosso, rir como um desvairado de luz, compreender as<br />
largas mutações cósmicas, os nimbos crespusculares das<br />
amplitudes do éter, rasgadas em coloridos undiflavados,<br />
em tonalidades supremas de melancolias suaves e<br />
cândidas – sentir, ver tudo isto com o eloqüente olhar<br />
do raciocínio, com a indomabilidade selvagem da crença<br />
animal – eis o que é ser poeta.<br />
Poesia quer dizer emoção, quer dizer sinceridade,<br />
quer dizer alma e consciência. Todos os dias criam-se<br />
trovadores mas não se criam poetas; criam-se máquinas<br />
mas não se criam corações.<br />
Da fecundidade espontânea e livremente franca<br />
do espírito, do estudo superior e particular de todas as<br />
coisas da existência, das frases pequeninas, das<br />
minuciosidades notáveis do ser, dos compridos vôos de<br />
aspiração, firmados em claros alicerces de verdade, deve<br />
nascer o poeta, boêmio eterno das incomensuráveis<br />
estâncias do Ideal.<br />
O Evolucionismo, que tende a aperfeiçoar,<br />
completar, dar razoabilidade a tudo, exige da poesia uma<br />
transfiguração natural da forma, uma regularidade
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 51<br />
matemática no metro e uma selva brilhante de<br />
concepções elevadas e límpidas.<br />
Pela forma, ser nítida, clara como os cristais a<br />
cintilarem batidos pelas arestas do gás; pelo metro, ser<br />
correto como Ângelo Buonarotti na admirável arte da<br />
escultura; pela concepção, ser elevada, grande como a<br />
frase de Girardin, delicada como o espírito das flores – o<br />
perfume.<br />
Se tivéssemos de caracterizar uma poesia<br />
brasileira, genuinamente nossa, seria a lírica, porque é<br />
essa a nossa índole e afeição poética, porque os nossos<br />
primeiros cantores foram líricos, porque a mor parte de<br />
todos os elementos e princípios de vitalidade intelectual<br />
dão em resultado a poesia lírica.<br />
No meu modo de pensar, calmo e refletido, acho<br />
que a transformação absoluta e normal que alguns sérios<br />
poetas brasileiros têm dado à poesia, é indiscutivelmente<br />
superior e de resultados mais seguros e mais dignos.<br />
* * * * * * * * * *<br />
Para mim cousa alguma deve estacionar; fazer<br />
poesia relativamente às necessidades congênitas da<br />
nossa natureza letárgica e mole parece-me de mau gosto<br />
e não condigno das proporções, que, à luz dos<br />
conhecimentos do século, tem tomado a inteligência<br />
humana.<br />
Essas vantagens de transformação universal nas<br />
artes, nas ciências, nas letras e que a crítica sensata<br />
estuda e compara com a máxima argúcia são o triunfo<br />
verdadeiro dos direitos de vida que o homem deve ter<br />
sobre a terra.<br />
Com a acentuação do estudo e do progresso, a<br />
inteligência cria frutos mais sazonados e bons.<br />
Incontestavelmente a literatura moderna é mais<br />
revolucionária, mais conscienciosa, mais firme e mais<br />
inspirada do que a antiga.
52 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
O romance positivamente sem força experimental<br />
era escrito de um fôlego, sobre a perna, sem uma única<br />
preocupação estética, sem um cuidado de forma, todo<br />
ele cheio de situações de cordel, falso, imprestável,<br />
inútil.<br />
Hoje é um corpo sólido, sentindo todos os<br />
agitamentos, todas as palpitações dos nervos; hoje o<br />
romance é um pedaço tirado à vida social, analiticamente<br />
psicológico e fisiológico; contendo a seriedade lógica dos<br />
fatos, a irrepreensível escola da verdade; doutrinando,<br />
argumentando, influindo nos costumes e nos vícios, como<br />
a atmosfera influi no sangue.<br />
Hoje a forma amplia-se à largueza dos<br />
sentimentos, a largueza dos sentimentos à força da<br />
imaginação, a força da imaginação aos materiais do bom<br />
senso, cujos produtos são perfeitamente distintos dos<br />
produtos banais e estéreis.<br />
Antigamente parecia um pieguismo indecifrável<br />
ver-se um homem educado, convenientemente instruído,<br />
a ler um romance; hoje é fato que honra e distingue,<br />
quando esse romance tem na sua lombada os nomes<br />
aureolados de Zola, Flaubert, Daudet, Manzoni, Eça de<br />
Queirós e Teixeira de Queirós (Bento Moreno).<br />
A poesia, como o romance, é fora de dúvida que<br />
tem a seguir o mesmo caminho, colocar-se na mesma<br />
esfera, isto é, dizer alguma coisa de novo sem<br />
incompatibilizar-se com o sentimento expansivo da<br />
inspiração e da verdade.<br />
– O verso deverá ser fluente, o metro inteiro, a<br />
rima perfeita.<br />
“Um verso frouxo ou manco e uma rima equívoca<br />
ou violenta hão de ser perpetuamente defeitos.<br />
Quem disser o contrário – ou é tolo ou tem ouvidos<br />
de cortiça.”<br />
Afirma o sr. Alexandre da Conceição.<br />
* * * * * * * * * *
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 53<br />
No Brasil ninguém lê versos ou se alguém os lê é<br />
por distração, por hábito, para fazer disposição a alguma<br />
cena postiçamente dramática com a sua loira ou a sua<br />
morena, para acender a pólvora da paixão que há de<br />
explodir aos pés de uma “ela”.<br />
Quem lê versos na acepção mais inteira e clara<br />
da frase é quem faz versos; é o poeta, e até aí se acentua<br />
a máxima de – poetas por poetas sejam lidos.<br />
Este meu – ler versos – não quer dizer recitá-los,<br />
repeti-los automaticamente, decorá-los; quer dizer, sentilos,<br />
pensar neles com madureza, compreender-lhes a<br />
origem, o gérmen que os fecunda, a grandeza que os<br />
inspira e anima.<br />
Sem dúvida, a tarefa de sentir propriamente, cada<br />
um por si, não é tão difícil nem tão religiosamente<br />
fenomenal, como a de compreender e sentir, por assim<br />
dizer, o sentimento alheio.<br />
Nas diversas fases de sensações, aquelas que<br />
damos a outrem pelos produtos artísticos, pelas criações<br />
do gênio, pelo esforço da inteligência e da razão, são<br />
mais admiráveis e grandes do que aquelas que<br />
recebemos!...<br />
Isto é uma questão toda intuitiva, natural, uma<br />
questão de mais ou menos sangue nos glóbulos cerebrais;<br />
não se argumenta, afirma-se; não se debate, raciocinase;<br />
não se exemplifica, pesa-se no senso.<br />
Toda a fonte de vida e de reflexão que rebenta de<br />
um bom verso ou mesmo de um bom livro de verso,<br />
necessita outras dezenas de fontes de sentimento, de<br />
critério artístico – grande segredo racional – para que<br />
esse ou esses versos possam ser julgados<br />
competentemente, com a maior fartura de sagacidade e<br />
atilamento.<br />
Muita gente há que ouve estas coisas mas teima<br />
em não querer compreender, em ficar numa ignorância<br />
por hábito, por uma falta de importância dada a si<br />
mesma, por um ódio surdo e inabalável ao seu
54 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
semelhante. E essa gente envelhece sob as mesmas<br />
impressões, olha para os mesmos horizontes, pensa as<br />
mesmas idéias, chora as mesmas lágrimas e ri os<br />
mesmos risos, sem ver que tudo isso acontece porque<br />
essa gente vive dentro do seu eu, e só para ele.<br />
Eterna preponderância, a majestade eterna da<br />
miséria no instinto do homem.<br />
– E daí, dessa rebeldia moral, o aplauso por cálculo,<br />
por convenção; e daí, desse fato que é uma anomalia<br />
monstruosa, perante o século, a indiferença de gelo por<br />
sucessos literários reais, o desconceito pelo estudo e<br />
pelo trabalho das nossas mais belas individualidades<br />
literárias, o desleixo mais cabal pelos elementos de luz<br />
que nos pertencem.<br />
Não comparam, não analisam, não anatomizam o<br />
nosso centro de letras, não estabelecem exemplos<br />
comparativos, de épocas, de meio, de índoles, de<br />
adiantamento; não entram com interesse, compaixão<br />
sincera de quem luta desenvolto, franco, livre, num<br />
exame de consciência, pela porta do dever e da verdade,<br />
apoteosando o mérito, não; mas quando se fala da nossa<br />
ainda nova literatura brasileira, perguntam o que é,<br />
parvamente, com um gestozinho de deboche de mulheres<br />
avinhadas, cofiando a barba, com a importância imbecil<br />
de um fiscal de teatro de feira.<br />
Mas entretanto, se se falar na literatura de um<br />
outro país, acham afirmativamente Victor Hugo o maior<br />
sábio deste mundo e do outro.<br />
São esses os críticos, são esses os entendidos,<br />
são esses os capazes, os didáticos; se nos atrevemos a<br />
dizer verdades como estas, somos parlapatões, ridículos,<br />
esmagam-nos com epigramas e piparotes de diabretes.<br />
* * * * * * * * * *<br />
Não obstante não querem enxergar nunca o direito,<br />
muito embora esteja ele de pé, à vista de todos; não
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 55<br />
podem fitar nunca o sol da justiça porque são míopes<br />
de... raciocínio; vegeta nesses cérebros a dúvida do ser<br />
ou não ser – do príncipe da Dinamarca; isto é, não tendo<br />
confiança no valor da sua existência, não compreendem<br />
como podem acreditar que os outros existam para a<br />
vitalidade da matéria, fracos eles, para a vitalidade do<br />
espírito.<br />
E no meio da espontaneidade, da lisura com que<br />
dizem analisar os produtos racionais, sempre surge o<br />
despeito, lá cresce ele, – cresce, avoluma-se, toma corpo,<br />
enfibra-se, muscula-se e faz sombra à sinceridade e aos<br />
bons sentimentos da crítica imparcial e reta.<br />
A força consciente cede lugar à pequenez de uma<br />
paixão animal qualquer e aquele que se critica, que se<br />
observa, tendo as dificuldades, plenas e essenciais para<br />
ser colocado em superiores vantagens literárias, ferido<br />
na sua consciência, aviltado na sua justa proporção<br />
intelectual, amaldiçoa o trabalho e atira para a rua como<br />
uns objetos imprestáveis, o livro e a pena, causas<br />
primordiais da desorganização de seu futuro triunfante<br />
e de aspirações honestas.<br />
Caem então sobre o inspirado da luz, sobre o herói<br />
da idéia, mais tarde, quando o seu talento mergulhou<br />
de todo no profundo túmulo do esquecimento, quando o<br />
seu gênio deixou de bater as asas como um pássaro<br />
vitorioso e alegre, pelas distâncias intermináveis do Azul<br />
amplíssimo e doce; caem sobre ele, sim, as interjeições<br />
extravagantes e sombriamente irônicas da própria crítica<br />
que diz: – Fulano era um jovem esperançoso; por que<br />
não trabalha, não produz, não cria? Por Deus, como<br />
aquele talento, com aquela hilaridade!... Que bonito<br />
futuro lhe estava aberto!... Ah! esta mocidade é indolente,<br />
não é enérgica, não é vigorosa; tem as armas na mão e<br />
lança-as fora sem nada haver produzido. Lamentamos<br />
que Fulano desaparecesse da arena da inteligência. É<br />
uma perda notável para o seu país.
56 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Entretanto essa crítica não se lembra que ela foi<br />
quem o esmagou com a sua indiferença, quem o<br />
desanimou com a sua presunção, quem o estigmatizou<br />
com o seu despeito.<br />
Quando o pensamento humano fundir-se no crisol<br />
da verdade e da justiça, nesta bela terra brasileira verse-á<br />
que tais coisas, ditas aqui com a dignidade da<br />
retidão e da lhaneza, não são simplesmente para fazer<br />
esticar os nervos dos mal-intencionados, dos prevenidos<br />
como se diz, nem para levantar rigorosidades de estilo<br />
inflamado, mas sim para este reotipar, clara e<br />
concisamente, o modo de ver dos que pesam o juízo<br />
coletivo de uma literatura!<br />
* * * * * * * * * *<br />
Ocupemos-nos mais de perto do nosso assunto<br />
geral: O Espectro do Rei, síntese político-sociocrática, por<br />
Moreira de Vasconcelos.<br />
Esse livro vigoroso e robusto, por si só bastaria<br />
para formar uma reputação superior; revolucionar<br />
mesmo.<br />
Moreira de Vasconcelos escreveu-o de um fôlego,<br />
sem pausa, quase, diremos, sem refletir pesadamente,<br />
no acanhado espaço de dois meses em que nós que lhe<br />
sentimos a vertigem do cérebro, a pulsação das veias, o<br />
glorificávamos satisfeito, à vista de tanta pujança de<br />
talento, de tanta facilidade de concepção, de tão<br />
extraordinária abastança de idéias e assuntos originais.<br />
É preciso que se diga alto e altivamente estas<br />
verdades de bronze:<br />
– Poucos têm a felicidade de, reunindo a forma à<br />
arte, a rima ao metro, o fino e delicado espírito à sátira<br />
valente e mordaz, acumulando fato sobre fato,<br />
originalidade sobre originalidade, passagens históricas,<br />
variando de ritmo, de tons, de propriedade de ação, de<br />
propriedade de estilo, ampliando figuras nítidas e
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 57<br />
completas, imagens claras e soberbas, harmonia superior<br />
e rimas não vulgares, algumas, muitas, únicas e<br />
brilhantíssimas, poucos têm a felicidade de preparar,<br />
em dois únicos meses de um trabalho nervoso, um livro<br />
de versos tão magnífico, tão bem acabado, o mais<br />
exigentemente possível, para quem quer enxergar as<br />
coisas direitas.<br />
Não têm aparecido a meu ver, no Brasil, muitos<br />
livros de versos superiores ao Espectro do Rei;<br />
consultemos o nosso tesouro poético, estabeleçamos<br />
paralelos entre os livros da moderna geração e esse de<br />
que trato.<br />
Moreira de Vasconcelos é um talento perfeito,<br />
audacioso, revolucionário e que, abominando as<br />
velharias, burila no seu gabinete de trabalho, com a<br />
paciência de um artista de raça, com a coragem forte de<br />
uma organização na qual o sentimento estético se<br />
difunde, as mais belas estrofes selvagens e inspiradas,<br />
grandes e imponentes como as eternas estrofes da<br />
criação.<br />
A gente lê todos os versos desse livro encantador<br />
sob uma impressão estranha e agradável.<br />
Parecem-se a uma quantidade ilimitada de pedras<br />
preciosas, de berilos, de topázios, de esmeraldas, de<br />
ônixes, de diamantes, de prásios, de pérolas, de corais,<br />
de safiras, de brilhantes, de turquesas – tudo isso<br />
rutilando, fulgindo, brilhando muito, aceso numa<br />
claridade espontânea e límpida, pelas línguas de fogo<br />
de um sol cintilador e rubro.<br />
O poeta apanhou na sua síntese toda a gestão do<br />
rei, a figura legendária a quem todos os fatores do<br />
movimento político superior exprobram e invectivam.<br />
Como no fenômeno da Luz, os raios refratores do<br />
talento do poeta iluminam todas as fases da história<br />
político-social da Nação.<br />
* * * * * * * * * *
58 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
É preciso ler-se o livro e acompanhar com o gosto<br />
e com a observação as particularidades do sentimento e<br />
do estudo.<br />
Moreira de Vasconcelos, com o seu engenho<br />
esplêndido, com as suas convicções literárias e<br />
profundas, com os seus ideais novos, com a sua filosofia<br />
grandiosa, fez revolução com O Espectro do Rei, como o<br />
prodigioso e inimitável maior poeta português Guerra<br />
Junqueiro, com o seu estupendo e divino D. João.<br />
No D. João há prodigalidade de idéias,<br />
esbanjamento de imagens infinitas; n’O Espectro do Rei,<br />
de Moreira de Vasconcelos, há a impetuosidade<br />
nevrálgica de poesia vibrante, a seiva de uma mocidade<br />
musculosa e rija de saúde.<br />
Por vezes parece que sente a gente aquelas<br />
estrofes boas, de um cheiro ativo de sangue de um corpo<br />
de artista, de um rapaz de alma simpática e adorável.<br />
A segunda parte, a “Visão de César”, que é o<br />
desfilar solene e majestático dos titãs da Liberdade e<br />
do Direito, em versos gloriosamente heróicos e<br />
fluentíssimos; a terceira, que é o “Tribunal supremo”<br />
onde imperam juízes soberanos; a quarta, que é o “Orfeão<br />
terrestre”, umas preciosas quadras corretas, das quais<br />
ressumbra ovante a lei do transformismo; a quinta, a<br />
“Agonia nacional”, onde a sátira, o ridículo e o espírito<br />
genuinamente notável e elegante se consorciam; a sexta,<br />
o “Drama psíquico”, onde a História, a grande mãe da<br />
humanidade exerce o seu poder inabalável, traçando na<br />
fronte do Réprobo o estigma da ignomínia; a sétima, o<br />
“Espectro do Rei”; a nona “Fases diversas”; a décima,<br />
“Dissolução moral” e a décima primeira, o “Sonho<br />
doloroso”, – formam em torno da inspiradora cabeça do<br />
poeta moderno uma sinfonia wagneriana de gritos, de<br />
soluços, de risos, de beijos, de explosões de dignidade,<br />
de epopéia de sentimentos e de luz.<br />
“O Fundibulário d’O Espectro do Rei”, para estar<br />
com a frase sisuda e larga do autor das Visões de hoje,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 59<br />
da Poesia científica e dos Retalhos, o conceituado dr.<br />
Martins Júnior; o Fundibulário d’O Espectro do Rei,<br />
repetimos, não necessita dos encômios nem dos elogios<br />
ad hoc preparados para alarmar uns reclames falsos e<br />
bombásticos.<br />
O que ele é, o que ele vale, o que ele estuda, o<br />
que ele inova e aperfeiçoa aí está para os que lêem, aí<br />
fica provado para os que criticam sem paixões, para os<br />
que aplaudem sem ficelles.<br />
É natural que no valor vivíssimo da inspiração o<br />
sal da arte não convergisse todos os seus venábulos para<br />
um ou outro verso, mas isso será uma circunstância,<br />
uma falha tão diminuta como uma mancha no sol físico.<br />
Para um nababo, que gasta, a mãos-cheias, os<br />
tesouros de sua bonita intelectualidade, que esperdiça<br />
com profusão, com exuberância, como um perdulário, as<br />
moedas fortes do seu talento sadio, isso não pode ser<br />
defeito, não é, nunca o será.<br />
Demais, até hoje não se tem dado à luz da<br />
publicidade um livro de versos modernos com tanta<br />
originalidade de forma, com tanta beleza de rima e de<br />
imagens, tão completo e tão opulento.<br />
* * * * * * * * * *<br />
A crítica que o desminta, a crítica que o prove,<br />
pronunciando a última palavra do senso e da verdade.<br />
E depois, Moreira de Vasconcelos conhece a<br />
construção do verso e tem sobrevantagem sobre todos<br />
os poetas brasileiros e portugueses: os acentos tônicos,<br />
a partir do princípio de todos os versos, o que observou<br />
muito em algumas partes do seu livro, na maior porção<br />
de estrofes.<br />
Isto, que desde O Espectro do Rei ele pode constituir<br />
uma regra no Brasil, especialmente sua, pelo menos<br />
ante os processos dos versos publicados em volume, e<br />
que ele os analisa, – ficará perfeita e claramente
60 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
assentado nas Manhãs sonoras, produto da escola líricoparnasiana<br />
e que se deverá seguir à aparição d’O Espectro<br />
do Rei.<br />
O que sai da pena assim, vertiginosamente, é tudo<br />
quanto me merece a importância artística do autor; são<br />
os sufrágios da minha admiração convicta e francamente<br />
livre, por um talento nosso, original, despido das crenças<br />
caducas e aparelhado para o augusto congresso das<br />
idéias e reformas literárias.<br />
O que é O Espectro do Rei sente-se em cada página<br />
que se lê, em cada rima que se nota, em cada figura<br />
que se observa.<br />
Desta allure febricitante do livro, desta maneira<br />
de vibrar os seus sentimentos, deste jeito todo particular,<br />
das múltiplas faces da expressão, – o poeta abre com a<br />
sua síntese político-sociocrática uma exceção de valor,<br />
entre os mais seletos cultores da poesia nacional.<br />
A sua observância, a sua experiência natural, a<br />
sua prática absoluta de todas as coisas e fatos da vida,<br />
reunindo tudo isso à fecundidade do seu pensar,<br />
colocam-no em lugar especial e distinto no nosso pequeno<br />
mundo de letras.<br />
Moreira de Vasconcelos não esperdiça a sua<br />
atividade, não faz parar as funções ordinárias do seu<br />
cérebro, e cede ao impulso vigoroso duma vontade<br />
enérgica, ao movimento propulsor das suas ativas<br />
disposições mentais.<br />
Enquanto faz sair dos prelos O Espectro do Rei,<br />
constrói um outro belo edifício poético – as Manhãs<br />
sonoras; escreve crônicas artístico-literárias, conclui<br />
uma comédia original – O pato, revê provas da Luz da<br />
pampa, novo trabalho da escola sensualista, e prepara<br />
os instrumentos de combate para a síntese religiosa A<br />
família.<br />
Dessa efervescência de luta apresenta-se a crítica,<br />
com as suas convicções, com os seus exemplos num livro
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 61<br />
republicano de idéias resolutas e firmes, moldando o<br />
seu ideal pelos seus confrontos.<br />
Seja teimosia, seja extravagância no gosto, o que<br />
é certo é que O Espectro do Rei, de Moreira de<br />
Vasconcelos, é um livro decente e adiantado, novo e<br />
original, e que, se não interessa, se não impressiona<br />
agradavelmente, de uma forma elevada e boa, as<br />
divindades literárias de lhama e papelão, do grande<br />
templo mitológico do júri artístico brasileiro, tem para<br />
mim o valor intrínseco de uma obra escrita<br />
inspiradamente, baseada em fatos históricos da maior<br />
gravidade social.<br />
É um perfeito poeta que vibra a teoria gigantesca<br />
dos assuntos necessários, coletivos, no presente, para<br />
fazer acordar o brio, a dignidade nacional no futuro; com<br />
a coragem cívica de Gambetta e a verve incomparável<br />
de Voltaire.<br />
Merece muito da justiça, da imparcialidade da<br />
crítica e esta que o considere, que o receba como é do<br />
seu dever restrito fazê-lo, não por ostentação banal, por<br />
uma vaidade imbecil, mas pela força consciente dos<br />
espíritos varonis e sensatos que são obrigados a fitar a<br />
luz em todas as suas mais amplas manifestações e em<br />
qualquer círculo que ela abranja.
62 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
PERFIS A VAPOR<br />
ELE<br />
Uma atividade!<br />
Uma locomotiva, deitando nove milhas por hora e<br />
ainda puxada por doze touros briosos e corpudos...<br />
É a síntese d’Ele...<br />
Sempre o vi andar e rir...<br />
Nunca parar, nem chorar...<br />
O quanto anda, ri, e gargalha...<br />
Lembra um vapor... às risadas...<br />
Parece que direito ao seu fim, pela estrada tortuosa<br />
da vida, calcando os enrugamentos do chão, quando há<br />
sol causticante e nervoso, quando a chuva abre,<br />
fundamente, estrelas na face polida do mar, nunca dão<br />
encontrões na desgraça; ao menos se ela o viu, passou<br />
de largo, num marche-marche acelerado, batida pelo<br />
olhar d’Ele, olhar de baioneta calada...<br />
Pode ser talvez que se esqueça, um dia, de rir e<br />
chorar por engano, para experimentar, de brincadeira,<br />
como diz a rapaziada juvenilizante, leve, nas travessuras<br />
douradas do jogo da bola...<br />
Mas isso, tão rápido, tão ligeiramente acontecerá,<br />
que nem mesmo Ele há de observar a transformação...<br />
De resto, tem uma cabeça curada para receber o<br />
eletrismo psíquico, as células desenvolvidas de modo a<br />
fazer o que não supõe ou imagina.<br />
Mergulhador perfeito das dificuldades que<br />
desolam, não precisa descer ao mar profundo de todas<br />
elas, na altitude fantástica, involucrado como os<br />
mergulhadores dos mares do Norte; leva consigo,<br />
unicamente, o grande facho da coragem que o ilumina e<br />
transparentiza todo, deixando-lhe a descoberto a sua<br />
alma forte e a sua pujança viril...<br />
Sabe ler o D. João, do Guerra Junqueiro, esses<br />
versos que parecem milhões de espadas luzidias, cada
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 63<br />
uma com um sol espetado na ponta, entrando pela<br />
Imortalidade a dentro, e já me disse que sentia um<br />
bombardeio de assombros lendo Zola, o mestre dos<br />
mestres supremos...<br />
É um enveredador do futuro, absorvido, engolido<br />
pelo esôfago de um meio ignorante, onde influenciam<br />
mal os elementos climatológicos e etnográficos...
64 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
VIRGÍLIO VÁRZEA E <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong><br />
Temos a elevada honra de transladar para as<br />
nossas colunas um notabilíssimo e superior artigo crítico<br />
sobre os Tropos e Fantasias daqueles nossos amigos,<br />
insertos na Semana, da Corte, – a primeira revista crítica,<br />
científica e literária do país.<br />
O artigo é escrito, ou antes, admiravelmente<br />
burilado por Araripe Júnior, o profundo espírito literário,<br />
o conceituado crítico do Germinal, de Zola, e<br />
incontestavelmente um dos mais fortes talentos de<br />
combate.<br />
É isso um sério triunfo para os nossos amigos e<br />
uma esporada, um vibrante coup de balai na obtusidade<br />
córnea dos invejosos que queiram ou não queiram, gostem<br />
ou não gostem, apreciem-nos ou deixem de os apreciar,<br />
nunca conseguirão enfraquecer ou desvirtuar o seu<br />
inabalável merecimento.<br />
Morda-se, pois, toda a cáfila dos invejosos:<br />
“Os Nossos LIVROS – TROPOS E FANTASIAS”<br />
É o título de um pequeno livro escrito com estilo<br />
em Santa Catarina, por dois moços que nunca de lá<br />
saíram: Virgílio Várzea e Cruz e Sousa.<br />
Nesse fato está o seu maior elogio. Em verdade,<br />
publicar um trabalho literário em uma terra, onde a<br />
imprensa mal serve para o escoamento do expediente<br />
das repartições públicas e da intriga, já significa alguma<br />
coisa, muito mais ainda se esse trabalho tem colorido e<br />
recomenda-se por uma forma até certo ponto nova,<br />
cuidadosamente rebuscada.<br />
Os srs. Virgílio Várzea e Cruz e Sousa deram,<br />
pois, uma prova de vitalidade não sucumbindo à ação de<br />
um meio tão ingrato como é aquele dentro do qual achamse<br />
mergulhados; mostram talento pondo-se, através de<br />
tantas dificuldades físicas e morais, em contacto ou em
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 65<br />
relações de simpatia com os espíritos que dominam o<br />
nosso século literário.<br />
Os Tropos e Fantasias, quando outra qualidade não<br />
tivessem, seriam objeto de curiosidade pela audácia que<br />
revelam. Seus autores, filiando-se à escola naturalista,<br />
atiram-se às formas literárias cultivadas por E. Zola e<br />
Eça de Queirós, com um entusiasmo frenético só<br />
comparável à ansiedade e aos deslumbramentos do<br />
pioneer que pela primeira vez penetra em uma jazida<br />
aurífera.<br />
Daí uma conseqüência. O estilo ressente-se das<br />
irregularidades e incongruências que se encontram na<br />
primeira fase de todo o desenvolvimento orgânico.<br />
Atrofias e hipertrofias, que só virão a desaparecer com a<br />
integração final.<br />
Completamente despreocupados das radicais do<br />
pensamento, os srs. Várzea e Cruz e Sousa fazem com a<br />
frase, com o período o mesmo que os miniaturistas com<br />
os seus artefatos. Pouco se importam que a lâmina da<br />
espada brilhe ou corte, contanto que os copos ofereçam<br />
aos olhos de quem a empunha uma obra de buril cheia<br />
de mágicos rendilhados.<br />
As páginas, os pequenos contos do livrinho que<br />
tenho em cima da pasta, não passam, portanto, de<br />
fragmentos de talentos que ainda não tiveram tempo de<br />
compor-se. A palavra, o período está completo,<br />
perfeitamente afinado pelo diapasão da escola; mas<br />
sente-se que no meio de todo aquele jogo de expressões,<br />
de imagens, de idéias esfuziadas, falta alguma coisa<br />
essencial.<br />
Essa coisa é o complemento da vida na frase; é a<br />
certeza ou o isocronismo da função resultante do perfeito<br />
acordo entre o pensamento e a palavra, de modo que<br />
esta não seja mais intensa do que aquele, e vice-versa.<br />
O tempo se encarregará de corrigir esse defeito.<br />
Quando amadurecido o espírito dos autores pelo exercício
66 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
e pela observação dos fatos exteriores, não lhes custará<br />
substituir a ênfase pela expressão exata e profunda.<br />
Há uma verdadeira e real classificação para o<br />
estilo desses moços: um ensaio de coloridos, de tintas<br />
acres, em uma palheta empunhada por mão nervosa.<br />
Percebe-se, à primeira vista, que os dois pintores<br />
ainda não dispõem do segredo da união dos grupos ou<br />
partes diversas que compõem a paisagem.<br />
Araripe Junior<br />
Depois disto, após esse juízo espontâneo e<br />
observador, após esta vergalhada mestra, todos os<br />
imbecis que morram na noite da sua vulgaridade,<br />
embrulhados nos farrapos das suas idéias, ficando<br />
sabendo que, quer leiam os escritos dos nossos amigos,<br />
quer não leiam, eles com isso nada têm a perder, nem a<br />
ganhar, porque esses imbecis não formam tribunal<br />
julgador, por não terem competência intelectual, nem<br />
nome que lhes faculte o direito para isso.<br />
É verdade que os imbecis encontram sempre<br />
outros imbecis que os aplaudam – mas isso é natural<br />
porque, quando não entendem uma cousa, dizem que<br />
não presta, unicamente por não terem a coragem precisa<br />
de dizer frase de mais senso.<br />
São assim todas as nulidades cínicas.<br />
O brilhantíssimo escrito de Araripe Júnior chamase<br />
a justiça, o dever da crítica literária não se chama<br />
egoísmo, não se chama ignorância.
ABOLICIONISMO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 67<br />
A escravatura – escrevia o Correio Brasiliense em<br />
Londres – é um mal para o indivíduo que a sofre e para o<br />
estado onde ela se admite, lemos no “O Brasil e a<br />
Inglaterra ou o tráfico dos africanos”.<br />
No intuito de esboroar, derruir a montanha negra<br />
da escravidão no Brasil, ergueram-se em toda a parte<br />
apóstolos decididos, patriotas sinceros que pregam o<br />
avançamento da luz redentora, isto é, a abolição<br />
completa.<br />
O Ceará, que foi o berço da literatura que deu<br />
Alencar, quis também ser a cabeça libertadora da raça<br />
escrava deste país e, a golpes de direito e a vergastadas<br />
de clarões, conseguiu este Aleluia supremo:<br />
Não há mais escravo no Ceará!<br />
Não obstante o desenvolvimento gradual, acessivo<br />
da grande idéia da democracia sociocrática que prepara<br />
os homens, fá-los cidadãos para o trabalho moderno,<br />
educado por uma filosofia mais spenceriana, mais na<br />
razão do século evolucionador, aparece a lei do sr.<br />
Saraiva, desmentindo todo o brio patriótico, toda a<br />
dignidade cívica da nação do sr. Pedro Segundo.<br />
Uma lei de fancaria, essa; uma lei que escraviza<br />
os escravos e documenta, com a morte, a liberdade dos<br />
mais velhos.<br />
Uma lei que faria rir o próprio Voltaire, numa<br />
daquelas suas explosões tremendas de ironia fantástica<br />
e diabólica.<br />
Entretanto, para organizar, por assim dizer, mais<br />
exata e mais verdadeira a idéia abolicionista nesta terra<br />
de Oliveira Paiva, O Moleque, que sempre alargou todos<br />
os seus sentimentos altruístas pela causa da<br />
humanidade servil, que é a causa do futuro, começa a<br />
publicar hoje alguns fragmentos de uma brilhante<br />
conferência abolicionista do seu pujantíssimo redator,
68 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
sobre esse assunto, feita na sala da redação da Gazeta<br />
da Tarde da Bahia.<br />
Concluída que seja esta, publicará um discurso<br />
do mesmo, pronunciado no Teatro S. João, por ocasião<br />
da libertação total do luminoso Ceará, e assim,<br />
sucessivamente, O Moleque prestará o seu humanitário<br />
auxílio para movimentar, de certa forma mais inteira,<br />
mais entusiasta, a abolição entre nós:<br />
“Estamos em face de um acontecimento<br />
estupendo, cidadãos:<br />
A abolição da escravatura no Brasil.<br />
Neste momento, do alto desta tribuna, onde se<br />
tem derramado, em ondas de inspiração, o verbo vigoroso<br />
e másculo de diversos outros oradores, eu vou tentar<br />
vibrar nas vossas almas, cidadãos, no fundo de vossos<br />
corações irmanados na Abolição; eu vou apelar para<br />
vossas mães, para vossos filhos, para vossas esposas.<br />
A Abolição, a grande obra do progresso, é uma<br />
torrente que se despenca; não há mais pôr-lhe<br />
embaraços à sua carreira vertiginosa.<br />
As consciências compenetram-se dos seus altos<br />
deveres e caminham pela vereda da luz, pela vereda da<br />
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, essa trilogia<br />
enorme, pregada pelo filósofo do Cristianismo e ampliada<br />
pelo autor dos – Châtiments – o velho Hugo.<br />
Já é tempo, cidadãos, de empunharmos o archote<br />
incendiário das revoluções da idéia, e lançarmos a luz<br />
onde houver treva, o riso onde houver pranto, e<br />
abundância onde houver fome.<br />
Basta de gargalhadas!<br />
Este século, se tem rido muito, e se o riso é um<br />
cáustico para a dor física, é um veneno para a dor moral,<br />
e o século ri-se à porta da dor, ri-se como um Voltaire,<br />
ri-se como Polichinelo.<br />
O riso, cidadãos, torna-se a síntese de todos os<br />
tempos.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 69<br />
Mas, há ocasiões, em que se observam as palavras<br />
da Escritura: “Quem com ferro fere, com ferro será<br />
ferido”.<br />
E então, o riso, esse riso secular, que zombou da<br />
lágrima, levanta-se a favor dela e a seu turno convence,<br />
vinga-se também.<br />
É aí que desaparecem, na noite da história, os<br />
Carlos I e Luís XVI, as Maria Antonieta e Rainha Isabel,<br />
é aí que desaparece o cetro, para dar lugar à República,<br />
a única forma de governo compatível com a dignidade<br />
humana, na frase de Assis Brasil, no seu belo livro<br />
República Federal.<br />
[continua]
70 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
BIOLOGIA E SOCIOLOGIA DO CASAMENTO<br />
(PELO DR. GAMA ROSA)<br />
Entre as obras de Herbert Spencer e as produções<br />
do ilustre sr. dr. Gama Rosa encontramos o mesmo tom<br />
de conjunto, os mesmos traços gerais, os mesmos golpes<br />
de observação e de crítica científica, a mesma serenidade<br />
idealizadora.<br />
Na verdade, ter calma filosófica num país<br />
equatorial e inter-tropical de um sol cáustico é uma<br />
qualidade verdadeiramente e seriamente admirável,<br />
tanto mais se essa calma, se essa tranqüilidade de<br />
análise, se esse esforço mental paciente são completados<br />
por uma notável orientação e abstração de cérebro,<br />
fazendo lembrar o caráter pacificamente frio e pensador<br />
da raça anglo-saxônica.<br />
O dr. Gama Rosa identificou-se, compenetrou-se<br />
profundamente das teorias, dos princípios de doutrina<br />
do sábio bretão. Discute e amplia de frente os assuntos.<br />
Essa sua nova obra, Biologia e Sociologia do Casamento,<br />
exata nos processos críticos e filosóficos como está,<br />
parece-nos uma grande obra extraordinária que há de<br />
ficar viva e triunfante para a sociologia brasileira.*<br />
A complexidade de espírito, a forte chama<br />
imaterial de talento e o elevado poder técnico do filósofo<br />
brasileiro, solidificados por um largo critério indestrutível<br />
e por um vastíssimo cabedal de conhecimentos teóricos<br />
das questões e problemas que esclarece com a sua<br />
ininterruptível onda psíquica de saber e de luz, não estão<br />
em nível das capacidades inferiores, nem podem ser<br />
medidos pelas conformações débeis, que não pairam como<br />
os pensadores, como os filósofos nos altos ares soberanos<br />
da crítica científica.<br />
____________________________________________________________________<br />
* Foi traduzida para o francês e publicado na França, por Max Nordau
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 71<br />
Os documentos, os dados, e todo o material ativo<br />
e regularizado da sua obra, a ferramenta de que ele se<br />
serve para poli-la, para dar-lhe convicção, sinceridade e<br />
verdade, estabelecem um ponto de partida geral,<br />
utilitário, dominante e prático. Daí partem, então, as<br />
poderosas razões, caras, iluminadas e puras, deduzidas<br />
das diferentes fórmulas de casamento, como a<br />
monogamia, a poligamia, etc., em uso nas diversas tribos<br />
de raças indo-européias.<br />
O casamento civil com divórcio está biologicamente,<br />
sociologicamente demonstrado na obra de que<br />
tratamos, é uma necessidade coletiva da família<br />
brasileira. No estado de evolução e ampliação de<br />
raciocinamentos práticos e positivos, lógicos e humanos<br />
a que as gerações chegaram, retardar ou embaraçar o<br />
desenvolvimento completo da família é atrasar, é puxar<br />
para trás a humanidade.<br />
A família deve ser não uma parte dependente dos<br />
fatores sociais, mas sim um corpo unitário, complexo<br />
como um organismo, entrando, como agente principal,<br />
em toda a orientação da vida moderna. Da família sairão,<br />
pela sangüinidade, pelos meios, pelos temperamentos,<br />
pelas influências e relações sexuais, pelo cruzamento<br />
de elementos de raças melhores, as bases de uma<br />
sociedade nova que há de garantir e aperfeiçoar a<br />
atividade material e intelectual futuras, definindo e<br />
acentuando a estética do tipo. E, para chegarmos a esse<br />
complemento radical, integral dos direitos da felicidade<br />
humana, é o casamento civil, com divórcio, a única força<br />
preparadora e naturalmente estabelecida no nosso<br />
centro, mesclado de tipos desencontrados e opostos ao<br />
progredimento deste ramo sul da raça latina.<br />
Entre nós, brasileiros, há uma defectiva tendência<br />
etnológica, sobre todos os outros povos, como um brunet<br />
especial, para a exterioridade nas aspirações. Não se vê<br />
o caráter nacional de investigação e generalização no
72 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
desdobrar dos fenômenos que os próprios fatos biológicos<br />
nos apresentam.<br />
O caráter exterior, tão pujantemente explicado e<br />
tão sabiamente desenvolvido por Spencer na Educação<br />
Intelectual, Moral e Física, documentado pelo testemunho<br />
de Humboldt, nos índios orenoques, tem servido até hoje<br />
de embaraço às faculdades criadoras de longa reforma<br />
social do individualismo da nação.<br />
Por ora, no Brasil, toda a integração de crítica,<br />
toda a aplicação sintética de filosofia é flutuante e vaga<br />
como as névoas que nascem dos lagos silenciosos,<br />
adormecidos na nitidez e na transparente brancura das<br />
manhãs.<br />
O dr. Gama Rosa, portanto, trazendo à luz da<br />
ciência as causas que a matrimonialidade católica<br />
obrigatória produz, não concorrendo para a seleção<br />
natural, não protegendo nem dignificando os destinos<br />
nem os misteres para que a humanidade se propõe –<br />
para engrandecer-se – presta um distintíssimo e o mais<br />
real e franco serviço à sociologia, honrando-a com a<br />
amplidão do seu espírito superiormente alimentado de<br />
idéias evolutivas.<br />
Para explanamento da cor dos princípios da obra<br />
Biologia e Sociologia do Casamento, basta-nos tirar à página<br />
169 o seguinte:<br />
O progresso, que é uma conquista sobre o<br />
indeterminado e o incerto, tende justamente a<br />
instituir a previsão, a exatidão, eliminando o<br />
acaso nas condições da vida; mas<br />
presentemente o arbitrário e o fortuito encerram<br />
ainda importância capital.<br />
Ninguém ignora que as mais brilhantes<br />
situações sociais são perfeitamente compatíveis<br />
com a capacidade. As condições dessa seleção<br />
artificial encontram-se mais comumente no<br />
privilégio por direito de nascimento, na<br />
postergação da justiça, no favoritismo, na
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 73<br />
amplitude, deixada ao azar no curso da vida<br />
humana e leis econômicas do mundo.<br />
Vê-se, deste corolário de argumentos<br />
práticos, que o livro em questão não implica<br />
conseqüências graves para o país, mas sim<br />
traz desenvolvimentos mais necessários e<br />
inclinadas incontroversas mais latas.<br />
São circunstâncias, ainda mais, são leis<br />
extremamente variadas, essenciais,<br />
incontroversas e permanentes, tiradas dos<br />
próprios casos biológicos e sociológicos<br />
tendentes à personalização e assimilação<br />
de uma raça.
74 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
UM NOVO LIVRO<br />
(Desterro, abr., 1887)<br />
Ao Eminente Filósofo Dr. Gama Rosa<br />
Da evolução, da luta, da tenacidade, da força e da<br />
vontade foi que se fez o homem moderno. É isto que está<br />
ampla e indiscutivelmente comprovado pelas vastas<br />
teorias do século.<br />
Oliveira Martins, o poderoso filósofo da Biblioteca<br />
das Ciências Sociais, e, ao que nos parece a maior força<br />
pensante de Portugal, um homem cujo espírito<br />
extraordinário, investigador, paciente e infatigável,<br />
coloca-o no mesmo paralelo de Spencer e Haeckel, diz<br />
na sua criteriosa e exatíssima História da República<br />
Romana: “A antiguidade clássica foi equilibrada e por<br />
isso feliz, mas por falta de filosofia, caiu de um lado na<br />
depravação abjeta, do outro no naturalismo desenfreado;<br />
e, gregos e latinos, sepultados na cova cristã, deram de<br />
si o homem moderno – mais fraco, mais atormentado,<br />
acaso porém maior, por isso mesmo que sofreu mais”.<br />
Mais fraco, mais atormentado exclama o filósofo.<br />
Mais fraco sim, porque a luta tem sido desfibradora, os<br />
meios terríveis e arestosos, e o organismo cada vez mais<br />
perfeito.<br />
E o homem quanto mais se afasta das formas<br />
rudimentares, primitivas da natureza, mais frágil, menos<br />
resistente vai ficando sempre, além de que a falta de<br />
crenças e a perda constante de forças morais o<br />
depauperam e atrasam. Mais atormentado porque a<br />
verdade adquirida pelo conhecimento dos fatos positivos<br />
o torna cada vez mais responsável; porque a sua<br />
individualidade está sempre no embate de todas as<br />
hostilidades, de todas as contestações; porque precisa<br />
ter cotovelos de bronze para rasgar a crosta do anônimo,<br />
como bem pensa o ilustre literato italiano, o sr. Edmundo<br />
de Amicis; porque, finalmente traz a sua cabeça alta,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 75<br />
acima daqueles que são ainda retardatários, e que a<br />
não podem trazer erguida na esfera azul das idéias.<br />
O homem moderno não é o homem superficial, o<br />
homem visionário, o homem triste. A tristeza é uma<br />
condição de moléstia, está no organismo como a filoxera<br />
nas vinhas; e o homem moderno tem de ser alegre,<br />
porque tem de ser higiênico e não há melhor higiene do<br />
que a da alegria. É da saúde que vem a força e a força é<br />
a luz, a vitalidade, a cor, o tom e a juventude eterna da<br />
natureza. Devemos cuidar, por isso, em sermos<br />
saudáveis, fortes e higiênicos.<br />
Tem-se falado, dito e escrito tanto sobre a direção<br />
que os espíritos têm tomado nestes últimos tempos, que<br />
parecerá ocioso e fútil demorarmo-nos no assunto.<br />
Mas há verdades que precisam ser bem elucidadas,<br />
bem combatidas, bem esclarecidas, gritadas a largos<br />
pulmões de touro, ao ouvido de muita gente atrapalhada,<br />
pessimista e fóssil, que ainda nos pequeninos centros<br />
ri, cancaneia arruaçante, com chufas e pedradas<br />
anônimas de garoto, das teorias resplandecentes e<br />
triunfantes, dos homens da Ciência. E o nosso caso não<br />
é outro senão o de fazer desfraldar, bem claro nos ares,<br />
o branco estandarte dessas teorias que são verdadeiras<br />
descobertas, irrefutáveis verdades, incontraditáveis<br />
fatos.<br />
As correntes influenciadoras que definiram e<br />
acertaram o pensamento novo são mais proveitosas, mais<br />
positivas, mais práticas. Podemos recebê-las como leis,<br />
não como gosto, nem como imitação ou moda. Nem o<br />
verdadeiro espírito de hoje tem moda ou imitação.<br />
O que ele tem unicamente é ação, é vontade, é<br />
força.<br />
Ele está dentro de uma evolução, se quiserem, do<br />
seu momento, do seu estado de laboração psíquica, e<br />
daí é que sai, inteiro, fiel e nítido, para o jornal ou para<br />
o livro, o seu esforço mental, como um produto fotográfico<br />
das cousas. Não tem mais o pedantismo acadêmico, nem
76 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
a retórica nem a gramática da convenção. Só admitiremos<br />
que ele receba idéias da realidade dos acontecimentos,<br />
das impressões poéticas e fecundíssimas da Natureza.<br />
A sua disciplina de homem, os seus modos de<br />
observar, o seu jeito de ter a dedução e a indução dos<br />
fatos são aprendidos, naturalmente, por meio de<br />
reiterados estudos e observações no mundo social.<br />
Homem moderno não quer dizer homem da moda.<br />
Modernismo de desenvolvimento, aperfeiçoamento,<br />
convicção, verdade, natureza, processos de exatidão num<br />
dado assunto crítico, literário, artístico ou científico.<br />
Modernismo é aproveitamento, utilidade, vantagem<br />
de uma época sociológica sobre outra, etc., etc..<br />
Emile Zola é um sociologista. E o que é o Germinal<br />
senão o clamor, o clarim atroante de uma grande crise<br />
social, que o notável psicólogo descreve admiravelmente,<br />
pedindo a justificação, a solidariedade e a<br />
consubtanciação dos princípios liberais e humanos dos<br />
indivíduos das classes inferiores e ignorados?<br />
O que é Estêvão Lantier? O que é Suvarine?<br />
O “romance” Germinal, diz toda a gente!<br />
Mas nós não entendemos os livros literários<br />
especiais, de observação e de análise sob esse título.<br />
Ficou, desde Balzac, desde os Goncourt, sem<br />
propriedade, sem significação.<br />
O público os lê como se viessem da fábrica cerebral<br />
de Montepin, ou de qualquer outro. Não se importa, não<br />
lhe dá que fazer o estudo, a faturação, o estilo.<br />
Um livro literariamente escrito com a mesma<br />
proficiência científica e com a mesma certeza de técnica<br />
com que Oliveira Martins trata das ciências sociais, não<br />
deveria ter na sua lombada o título, já hoje gasto e<br />
romântico, de romance.<br />
É por demais escuro e insignificante para exprimir<br />
todas as colorações, todo o límpido cristal do espírito<br />
contemporâneo.<br />
É a nossa opinião.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 77<br />
Depois desta rápida exposição da doutrina<br />
filosófica e literária de hoje, ou como pensem, vamos<br />
tratar de apreciar, ligeiramente, os fundos traços cavados<br />
de sinceridade, de lealdade e de justiça, como os traços<br />
de um colorido rubro e acre de Rubens, o caráter literário<br />
do belo provinciano que tanto nos impressiona e<br />
preocupa.<br />
É uma banalidade e uma falta de senso prático,<br />
uma inaptidão mesmo para adiantar outra coisa, dizerse<br />
que há elogio mútuo, superficial, quando um amigo<br />
trata dos merecimentos intelectuais de um outro amigo.<br />
É infundado e mesquinho tal modo de pensar.<br />
Neste século de luta em que cada hora passa como um<br />
raio, em que o homem não tem quase tempo de lançar<br />
os olhos sobre os acontecimentos da véspera, mais<br />
detidamente, com mais pausa, com mais vagar, porque<br />
tem de ocupar-se com o que vem adiante, enflorescendo<br />
e estrelando mais e mais o firmamento das idéias, não<br />
quer dizer nada, nem importa que um amigo escreva<br />
sobre um outro amigo.<br />
E isto pela razão única, intuitiva e lógica de que é<br />
esse amigo, por todos os sentidos, por todos os modos, o<br />
mais competente para fazer crítica sobre o outro, por<br />
estar em contacto com a sua personalidade, o seu<br />
temperamento, os seus tics, as suas emoções, a sua<br />
impressionabilidade, a sua feição particular de escritor.<br />
Pela crítica, pela justiça que lhe faz é que o público lê os<br />
seus artigos, compra os seus livros e aceita os seus<br />
preceitos. Nem pode ser de outro modo. Victor Hugo, no<br />
exemplo, documenta e comprova o que pensamos.<br />
Ele teve Lamartine, teve Sainte-Beuve, teve<br />
Théophile Gautier, etc., etc., que o elogiaram quando<br />
despontou na literatura. E esses indivíduos, esses<br />
escritores, eram os afeiçoados de Hugo. E se assim não<br />
for, como qualquer talento superior, entalado no círculo<br />
estreito da sua terra natal, onde não há aspirações
78 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
nobres e os espíritos apenas têm vôos galináceos, há de<br />
ficar no domínio dos homens que sabem?<br />
Pois se ele não tem quem o encorage, quem o<br />
estimule senão os seus amigos, uma vez que o egoísmo,<br />
a inveja, a indiferença e outros sentimentos tristemente<br />
hipócritas tentam combatê-lo, consterná-lo, dizei-nos,<br />
dizei-nos de que forma há de ele dar vazão ao seu talento,<br />
às nevroses mordentes que lhe queimam o cérebro, às<br />
idéias, senão permitindo que algum amigo os apregoe e<br />
os faça vibrar ao longe e ao largo dos Congressos das<br />
inteligências mais imperantes e mais disciplinadas –<br />
por um ato de fineza e, principalmente por um ato de<br />
justiça.<br />
Digamos, pois, o que se deve dizer, tranqüilos e<br />
seguros de nosso feito, com a retidão e a verdade, que é<br />
a filosofia de todas as eras.<br />
O que nos sugeriu as idéias acima e as que se vão<br />
seguir foi o ter sido enviado, há dias, para Portugal, a<br />
fim de ser publicado ali pela notável casa editora do<br />
Porto, de Eduardo da Costa dos Santos, o livro das<br />
Miudezas.<br />
Virgílio Várzea é um provinciano e um meridional.<br />
Nasceu sob a impressão simpática e colorida da paisagem,<br />
na atmosfera clara e vibrante deste pedaço da Sul-<br />
América – em Canavieiras, um sítio de província,<br />
sossegado, discreto e verdejante, cheio de floridas<br />
várzeas, risonho e casto, onde a vida calma, singela e<br />
simples, saturada do bom ar sadio e fresco dos vegetais,<br />
corre livre, virtuosa, independente e não tem os<br />
aparatosos realces das lindas cidades elegantes, onde<br />
as donairosas mulheres amorenadas usam na tournure<br />
os mais exagerados tics, e os flaneurs vão, de rosa jalde<br />
na Capela, fazer estoirar o líquido opalino do Champagne<br />
Cliquot, rotulado a prata e a ouro em garrafas galantes,<br />
dentro de taças que tinem à noite, pelos cafés<br />
relampejantes e ruidosos.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 79<br />
É uma natureza, esse moço; e daí o tom acentuado<br />
e muito colorido do aspecto das suas paisagens, dos seus<br />
contos. O seu temperamento tem várias modalidades.<br />
Porém, como os raios refratores de uma luz, essas<br />
modalidades, podendo multiplicarem-se, espalharem-se<br />
em estrias na verificação dos objetos e das cousas,<br />
reúnem-se, coligam-se, justapõem-se e formam um só<br />
foco luminoso e forte a que chamamos ordem.<br />
Virgílio Várzea tem ordem, tem exercício e<br />
disciplina literária. A sua educação de Artista fez-se<br />
naturalmente, sob a influência dos bons mestres, tendo<br />
o preciso critério de conhecê-los bem e muito, de<br />
compará-los, de não se munir de Larousses postiçamente<br />
sábios, que são como que Cartilhas de algibeiras, de<br />
onde sai logo uma legião de ilustrações feitas com muita<br />
manuseação e com muita consulta do conhecido<br />
dicionário francês, verdadeira biblioteca dos que gastam<br />
literatura por manha de didatismo ou de ecletismo<br />
artificial e fácil. Talento de assimilação, sabendo<br />
apropriar-se e compenetrar-se dos assuntos, com a<br />
percepção viva, do semblante animado, das coisas,<br />
Virgílio Várzea não é um principiante ou um medíocre<br />
que não mereça a análise franca da crítica.<br />
É mais do que uma esperança da pátria, e menos<br />
do que um jovem hábil, porque é mais do que essas duas<br />
comparativas. Discípulo digno e direito de uma Escola<br />
hoje completamente predominante – o Naturalismo – que<br />
chega a exigir que editores ofereçam 28 contos fortes à<br />
Daudet, por uma obra, ele tem todos esses detalhes,<br />
todas essas circunstâncias, todas essas finas e<br />
delicadíssimas originalidades que a compõem, ou então<br />
muito de inteira correlação com os talentos espontâneos,<br />
sinceros e firmes.<br />
Não é tudo quanto dizemos sobre esse moço<br />
catarinense, nenhum entusiasmo pueril.<br />
Nem nós temos aqui à mão uma pilha Volta que<br />
nos comunique e que nos empreste eletrismo de
80 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
entusiasmo e de aplausos fáceis. Se há pilha, é das<br />
nossas convicções, da nossa alma franca, serena e justa<br />
de combatente.<br />
Os que conhecerem Virgílio Várzea e lerem os<br />
trabalhos de que nos ocupamos aqui adiante acharão,<br />
por certo, que ele é um talento firme, original,<br />
trabalhador, afinado pelos maiores espíritos do seu tempo;<br />
mas nós que o conhecemos pessoalmente, momento por<br />
momento, instante por instante, dia por dia, que<br />
assistimos muitas vezes à confecção dos seus contos e<br />
que sabemos onde ele se adiantou, como lutou, como<br />
conheceu os golpes do estilo e a maneira de ver, como<br />
produziu sem elementos influentes para isso, como se<br />
destacou dos outros, como se especializou, afirmamos<br />
que ele é extraordinário.<br />
Nem esta escrita quer dizer nada diante da<br />
aprovação ou desaprovação da crítica sobre o livro do<br />
nosso constituinte. Porque também Emile Zola, quando<br />
começou a publicar o Mon salon, no Figaro, foi apedrejado<br />
pela pulha literária e sevandija dos cafés cantantes.<br />
Também os Goncourt foram contestados e só se ergueram<br />
em toda a culminância gloriosa dos seus espíritos depois,<br />
muito mais tarde, e isto em Paris, em Paris! a grande<br />
apoteosadora dos espíritos. Quanto mais numa cidade<br />
onde não se cuida de literatura, onde os velhos letrados,<br />
dos antigos periódicos obscuros, não deram mais um<br />
passo além do latim, e onde os novos, os moços que surgem<br />
agora, continuam na lição dos provectos mestres, como<br />
eles os chamam, sempre discípulos, sempre escolares,<br />
de braço dado com a rotina, caducos já na mocidade,<br />
como os velhos letrados de que ali acima falamos, sem<br />
tomarem um caráter mais saliente e mais elevado na<br />
Arte, na Política e na Literatura.<br />
Poderão dizer-nos que Virgílio Várzea não é<br />
nenhum Zola nem nenhum Goncourt. De acordo. Mas<br />
nós também poderemos objetar, muito logicamente,<br />
muito racionalmente, que o Brasil não é a França e que
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 81<br />
não conhecemos, por ora, prosador literário mais original,<br />
mais imaginoso e mais objetivista, do que Virgílio Várzea.<br />
Quando dizemos imaginoso, não dizemos retórico,<br />
palavroso. A imaginação, principalmente num escrito<br />
moderno, participa da verdade e da observação.<br />
Imaginação como o nosso Ideal a representar num<br />
pressuposto fenômeno. Imaginação relativa à aquilo e<br />
àquele indivíduo ou àquele fato social que, como se mete<br />
em pauta qualquer loucura genial de Wagner ou qualquer<br />
admirável sinfonia de Beethoven, a gente mete em estilo,<br />
em vocábulos brilhantes ou ásperos, secos ou úmidos,<br />
conforme a precisão onomatopaica e o efeito de<br />
impressionismo que passou pela retina do escritor, do<br />
artista e do estilista.<br />
Neste ruído de teorias e de idéias gerais<br />
naturalistas que ainda não se firmaram totalmente neste<br />
País, aparece o vigoroso provinciano com as Miudezas.<br />
Não se escreveu ainda, pensamos, nem mesmo em língua<br />
portuguesa, um livro de contos tão pitoresco, tão<br />
“pintado”, tão musical e tão cantante.<br />
E nós dizemos um livro de contos, sem indagarmos<br />
se ele tem o todo necessário, o plano que constitui o<br />
caráter de um livro, isto é, a síntese de um estudo social,<br />
artístico, político ou religioso. Mas se formos a demorar<br />
bem o olhar no merecimento das Miudezas, ver-se-á que<br />
são muitos livros dentro de um só livro, porque cada<br />
conto representa uma fisionomia particular, destacada<br />
e distinta. Assim, o “Albino”, o “Morfético”, “Romance de<br />
um rapaz”, o “Manuel basta”, “A enjeitadinha”, etc. são<br />
contos profundamente humanos, paisagistas,<br />
parnasianos, cheios de um humor notável, vibrados a<br />
rijos golpes de verdade, naturais, onde se observam<br />
estudos de psicologia, um conhecimento exato do estilo<br />
moderno, uma penetrabilidade de escritor consciencioso,<br />
fiel na execução de seus personagens, dos seus moldes<br />
de comunicabilidade afetiva.
82 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Os outros, a “Cabra cega”, “Enterro no sítio”, “A<br />
travessia”, “O Sândalo”, “Passeio no campo”, etc., etc.<br />
exprimem os seus coloridos, os seus sons quentes e<br />
radiosos, as suas vibrações, os seus toques de pintura<br />
cromática de água-forte.<br />
H. Taine, o soberano crítico francês, diz, na sua<br />
Philosophie de l’Art, o que damos aqui, textual e autêntico,<br />
no próprio idioma, que “Chaque artiste a son style, un style<br />
qui se retrouve dans toutes ses oeuvres. Si c’est un peintre, il<br />
a son coloris, riche ou terne, ses types préférés, nobles ou<br />
vulgaires, ses attitudes, sa façon de composer, même ses<br />
procedés d’éxecution, ses empâtements, son modèle, ses<br />
couleurs, son faire. Si c’est un écrivain, il a ses personages,<br />
violents ou paisibles, ses intrigues compliquées ou simples,<br />
ses dénouements, tragiques ou comiques, ses effets de style,<br />
ses périodes et jusqu’a son vocabulaire.”<br />
Seus efeitos de estilo, seus períodos e até seu<br />
vocabulário, conclui o grande crítico. E é o que tem o<br />
nosso valente escritor jovem: seus efeitos de estilo, seus<br />
períodos e seu vocabulário, que alguns chamam<br />
neologismos e outros, menos incompetentes e mais<br />
ousados, termos empolados ou pedantes; questão esta<br />
que ele resolve e explica distinguidamente e cabalmente<br />
no prólogo da sua obra.<br />
Neste ou em qualquer caso, as Miudezas são um<br />
livro superior, adorável, primoroso e extasiante,<br />
constelado de surpresas de imaginação, matinal e festivo<br />
como se uma eterna aurora iluminada e perfumosa<br />
cantasse e risse pelas páginas a fora. As palavras, a<br />
verve, a graça, a elegância, a gentileza e a delicadeza<br />
das imagens lembram um rio de ouro fluido, sutil e<br />
límpido, que se desenrola pelos meandros do livro em<br />
ondulações suaves; rio, em cuja face sonora um sol de<br />
vitória derrama rubis, topázios, esmeraldas e berilos da<br />
refrangibilidade dos seus venábulos cintilantes.<br />
Uma pessoa recorda-se, pela imaginação acesa<br />
desses escritos, dos suntuosos palácios do Alcorão, e
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 83<br />
vê-se numa sala oriental, toda de espelhos e púrpuras e<br />
cristais, ao lado de alguma divindade majestática,<br />
coroada de estrelas, de túnica de rosas e de lírios, tendo<br />
aos pés, num morno êxtase sensual e amoroso, qualquer<br />
Paxá asiático, extravagante e faiscante de pedrarias,<br />
com as suas pantufas verdes marchetadas de pérolas e<br />
diamantes. Nas Miudezas há o goût de terroir de que falam<br />
os franceses, e sente-se o vigor, o enseivamento de uma<br />
natureza literária muito sistematizada, decidida e<br />
pertinaz no trabalho. Ninguém, com mais propriedade e<br />
unidade de ação tomou a si e desenvolveu aqueles<br />
assuntos que, pela simplicidade ingênua, pelo saudoso<br />
e grato sabor de infância que conservam, pela intimidade<br />
e pureza de que são revestidos, parecem a muitos<br />
vulgares e banais. Referimo-nos a “Cabra cega”, para<br />
não citar mais, onde Virgílio Várzea pôs, tão maviosa e<br />
tão doce, uma nesga de luz da sua infância, fazendo<br />
ressuscitar aquele passado morto, tomar vida, mover-se<br />
e caminhar do fundo da tela das descrições, a mais<br />
expressiva e a mais verdadeira, com um milagre do seu<br />
talento indiscutível, pronto, decisivo na ação como um<br />
belo aparelho rotativo.<br />
É preciso ter-se um merecimento bem vasto e bem<br />
real para se saber dar valor e tratar assuntos tocantes<br />
que quaisquer outros, mesmo de certa nomeada,<br />
repeliriam por supô-los indignos e sem significação<br />
alguma de toda a forma que fossem encarados.<br />
Realmente, o talento é uma coisa imperceptível, um<br />
delicadíssimo filtro de luar que poucos percebem. Uma<br />
espécie desses corpos microscópicos que estão n’água,<br />
a mais cristalina, a mais clara e a mais etérea, sem<br />
serem vistos senão através de lentes graduadas e<br />
próprias. Nesta hora em que a preguiça mental tornouse<br />
quase geralmente uma [ilegível] é bom, é consolador<br />
ler-se um livro sincero, novo, escorrendo psiquismo, cheio<br />
de alma; faz-nos bem, tonifica-nos completamente a vida.<br />
E, deitando um olhar até a última linha extrema do
84 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
horizonte, por sobre o dorso esverdinhado e nevrótico do<br />
mar, onde a luz da lua, a clorótica Ônfale do infinito, cai<br />
como um dolente beijo de amor, lembremo-nos lá, além,<br />
longe, do outro lado da montanha, e do lado ainda de<br />
um outro mar, a seara dos espíritos cada vez mais<br />
enlourece e se enflora; e, deixando os que ficam atrás<br />
de nós, caminhemos sempre para legar aos de amanhã<br />
a bênção de nossas palmas e dos nossos triunfos.<br />
As Miudezas não são tudo quanto se tem de esperar<br />
do magnífico e encantador talento de Virgílio Várzea.<br />
Aguardemos os acontecimentos, deixemos que a<br />
evolução se faça, e em seguida aos frutos da alvorada,<br />
aos saborosíssimos contos, morangos que ele colheu nas<br />
alamedas do parque aristocrático e azul do Ideal, hão de<br />
surgir mais idéias, tão bonitas, tão cristalinas e tão<br />
nobres como estas, armadas de dignidade e de força,<br />
como um exército de cossacos, cujos sabres e cujos<br />
capacetes, à mordedura nervosa da luz, faíscam de<br />
reflexos de aço pelos relvosos campos de batalha.
EMILE ZOLA<br />
(1887)<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 85<br />
Em torno da Academia Francesa tem esvoaçado,<br />
ultimamente, num luminoso eletrismo, como um grande<br />
pássaro de ouro, o nome de Emile Zola.<br />
Discussões sobre discussões acumularam-se de<br />
intensidade com relação à entrada do prodigioso artista<br />
na Academia, e mais especialmente depois que Pierre<br />
Loti para lá entrou agora.<br />
Essas discussões e opiniões que se cruzam<br />
parecem, de certo modo, estranhar a entrada de Zola<br />
na casa dos imortais, e isso unicamente por que ele em<br />
tempos foi o maior combatente contra aquela casa.<br />
Mas, por isso mesmo, a entrada de Emile Zola na<br />
Academia Francesa sugere-me, entre as diferentes<br />
opiniões que se deblateraram, uma ordem de idéias que<br />
tentarei expor, usando o mais livre exame, que é um<br />
dos acentuados característicos do mestre.<br />
A princípio, sem uma investigação demorada e<br />
refletida, diante de um espírito tão intransigente, tão<br />
demolidor, completado por moldes tão críticos, tão<br />
profundos de analista, chefe de um sistema literário,<br />
avant-coureur de um movimento novo na Arte, como é<br />
Emile Zola, a idéia que acode a quase todos é de uma<br />
transigência de doutrinas, quando, para o caso do<br />
infatigável operário, esse vivo desejo, convertido já em<br />
resolução definitiva, constitui a força natural que faz<br />
com que os heróis se recolham triunfalmente, depois de<br />
imensas batalhas ganhas, à sombra dos seus louros<br />
flamantes, à maneira do sol que se oculta no seio dos<br />
ocasos em sangue.<br />
Porém, quanto a mim, isso não empalidece a glória<br />
do poderoso escritor.<br />
Desde o “Mon Salon”, no Figaro, que Zola estendeu<br />
pelo mundo, com o seu nome, um rastro de estrelas,<br />
uma via-láctea tão estranhamente luminosa e vinculada
86 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
aos corações como as intensas raízes de uma robusta<br />
árvore monumental.<br />
Ele conhecia bem a força da sua estatura, media<br />
bem a vibração do seu pulso.<br />
De um vigor mental extraordinário, trazendo para<br />
a escrita a corrente das teorias positivas que se firmavam<br />
no mundo culto e delas adquirindo mais essencialmente<br />
a ciência fisiológica, como base de todo o pensamento<br />
moderno, Emile Zola, com a possança dos seus músculos,<br />
cabal, necessária, equilibrada, sabendo girar com todos<br />
os elementos de que carecia, meteu-se supremamente<br />
à forja e, com um valor gigantesco, foi acumulando na<br />
sociedade, no tempo, livros que outra cousa não<br />
representavam senão fatos, documentos da verdade, sob<br />
o mais rigoroso experimentalismo e uma forma<br />
naturalistamente definitiva na relatividade dos seus<br />
processos e que lhe parecia ficar como uma alta<br />
significação ou afirmação da natureza.<br />
O egrégio observador, num impulso d’águia,<br />
conhecia, decerto, a obra que levantava, o movimento<br />
de luz que distribuía em torno do seu nome, pelo aplauso,<br />
pela admiração das nações, e, pesando o alcance de sua<br />
envergadura, estabeleceu fisiologicamente uma série de<br />
teses, isto é, de assuntos que ele os desenvolveria<br />
evolutivamente, na proporção das funções de um<br />
organismo animado.<br />
Daí essa engrenagem de obras, todas elas<br />
obedecendo a um princípio assente, marcando uma fase,<br />
determinando uma época ou estudando um<br />
temperamento.<br />
Numa elevada pressão de idéias ele se tinha<br />
imposto à lei de marchar direito ao seu fim, sereno<br />
sempre, na convicção dos seus admiráveis planos.<br />
Fazia vagamente lembrar o Dr. Fausto, idealizado<br />
com a sua ciência, surdo às contestações do mundo, na<br />
análise crua dos homens e das coisas, atraído pelas
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 87<br />
profundas investigações do saber e esquecido, alheio às<br />
solicitações da carne.<br />
O colossal edifício que Zola tem erguido firme na<br />
terra é um trabalho ainda para mais ser abrangido no<br />
futuro, quando outras gerações mais pensantes do que<br />
a nossa o sentirem de mais perto.<br />
O incomparável artista de Germinal lembra um<br />
gerador, um enseivador de progresso, determinando, de<br />
modo singular e concreto, abrangente do que nos cerca,<br />
pela retina e por todas as expressões dos sentidos, a<br />
vida dos seres orgânicos e inorgânicos como ela se<br />
desenrola, pronunciando-se como a manifestação do ar<br />
e da luz.<br />
Só a perfectibilidade cerebral mais delicada, mais<br />
dúctil, com mais vibração sensacional, poderá finamente<br />
perceber, em todos os minuciosos detalhes, esse<br />
excêntrico e assombroso vulto que enche a França e o<br />
mundo, embora o mundo inteiro seja ainda um<br />
academismo, esteja preso ainda, se bem que não<br />
manifestamente, à casuística da metafísica; embora por<br />
aí andem, mal percebidos e assinalados, os livros<br />
fundamentais que poderiam fazer do mundo, das<br />
sociedades, dos homens, um fio só de pensamento,<br />
dando-lhes o poder de abstração e síntese que só se<br />
adquire em virtude de condições muito probantes, e de<br />
faculdades superiores e radicais de raça.<br />
O certo é que Zola nunca foi compreendido,<br />
genericamente, na sua alta manière, na sua prodigiosa<br />
estrutura de analista.<br />
O que mais se percebe dele são as chamadas<br />
imoralidades, produtos do meio social, correspondendo<br />
à flor dos pântanos e terrenos charcosos que, nem por<br />
isso, deixa de viçar para os astros.<br />
A sociedade, na sua maior parte, é obtusa e não<br />
pode penetrar, como uma luz não penetra uma parede,<br />
em sentimentos muito leves, muito fluidos, que só um
88 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
vasto cultivo e aperfeiçoamento estético consegue<br />
apreender.<br />
No Brasil, por exemplo, a seleção dos espíritos<br />
não se fez ainda totalmente porque é necessário,<br />
primeiro, para isso, que concorram elementos,<br />
principalmente étnicos, para depois se formar o tipo da<br />
nossa mentalidade. E numa raça de atributos diversos,<br />
heterogêneos, sem condensamento, dificilmente se pode<br />
determinar o objetivo psíquico. Porque, se é certo que<br />
no Brasil há um grupo ilustre de escritores com a<br />
plasticidade necessária para a adaptação de idéias gerais,<br />
uns temperamentos mais requintados, mais exóticos,<br />
mais artísticos, com penetração mais aguda, é certo,<br />
também, que estão fora da sua época, relativamente,<br />
porquanto o meio não comporta ainda todas as suas<br />
excentricidades, nervosismos e pontos de vista novos, o<br />
que os faz prevalecer pouco ou vagamente, sem tomarem<br />
a posição que lhes compete.<br />
Nem quase se pode responsabilizar ninguém por<br />
esse fato, que depende de razões muito fundamentais.<br />
Seria como quem quisesse responsabilizar a raça<br />
negra pela diferença do pigmento, que apenas obedece<br />
a um simples fenômeno de química biológica.<br />
A opinião muito generalizada e superficial, que se<br />
tem de Emile Zola, é que ele é um rude e brutal trapeiro<br />
que anda remexendo os monturos só para tirar de lá os<br />
sujos e esfrangalhados farrapos, o osso descarnado e<br />
frio.<br />
Mas esse brutal trapeiro, por entre esses sujos<br />
farrapos que sentis pelo olfato, ó eunucos, bonzos do<br />
entendimento!, muitas vezes esconde turbilhões e<br />
turbilhões de brilhantes, turbilhões e turbilhões de<br />
cristais, de fino ouro, de radiantes pedrarias,<br />
constelações deslumbrantes, enfim, que o vosso duro<br />
olhar não vê, que o vosso espesso cérebro, nem os vossos<br />
rombos ouvidos percebem a harmonia sonora.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 89<br />
Com a provável entrada para o oficialismo da<br />
Academia Francesa, o cérebro de Zola não perde a sua<br />
organização vital, a sua disciplina, a sua função. Isso<br />
não passa de uma preocupação natural do Mestre, se<br />
atendermos à sua idade, pela aclamação do alto.<br />
Tendo já o aplauso reverente e franco da multidão,<br />
ele quer agora o do mundo oficial: da aristocracia e da<br />
burguesia, para a completa coroação da sua obra.<br />
Mas fica sendo o mesmo aparelho reprodutor, a<br />
mesma câmara fotográfica para receber, em clichés<br />
instantâneos, toda a movimentação da vida.<br />
No pórtico da Academia o seu espírito será como<br />
um astro de fulgor e grandeza raros, o centro de um<br />
mundo, o sol a jorrar luz para todas as direções da terra.<br />
Não pode aquela natureza, subordinada ao<br />
sistema, à orientação artística, ao soberano<br />
regulamentarismo de preceitos de crítica, afastar-se<br />
uma só linha da rota seguida. Pode, entretanto, terminar<br />
a sua fase guerreira, a grandiosa fase, mas não pode<br />
terminar a sua vitória, que é imortal.<br />
Velho agora, ele se recolherá ao descanso para<br />
dar lugar a novos combatentes.<br />
Esse batismo, que se efetuará futuramente,<br />
decerto, ou essa fé intelectual de seita, se assim se<br />
pode dizer de uma célebre individualidade que foi<br />
sempre eminentemente pagã nos princípios, não tem,<br />
contudo, a significação baroque e arcaica que se supõe.<br />
Antes, pode-se afirmar que será a apoteose feita<br />
a uma cerebração genial, a suprema aclamação, a<br />
consagração do triunfo que, em toda a parte, se votou ao<br />
vencedor.<br />
São as festas do leão que, com o salto das garras,<br />
conquistadoramente abateu os fósseis nas cavernas.<br />
Ele é que jamais ficará fóssil! porque o sentimento<br />
naturalista das suas obras se perpetuará, evidenciando<br />
a tirânica força sugestiva das suas concepções literárias,
90 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
como uma bandeira desfraldada, na eminência de um<br />
forte evidência, a grandeza e a heroicidade de uma pátria.<br />
Podem passar, desdobrar-se, desfilar diante dele<br />
as escolas! – o bronze inteiriço das suas criações ficará<br />
inalterável, eterno, de pé, no Tempo e no Espaço – pela<br />
verdade, pela ação, pela luz, pela cor, pela voz e pela<br />
majestade, por tudo isso que dá às suas estupendas,<br />
maravilhosas páginas uma segunda natureza original e<br />
palpitante, que é a natureza peculiar a cada objeto e a<br />
cada ser.
GUILHERME I<br />
(1888)<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 91<br />
O imperador Guilherme morreu, morreu o<br />
Imperador Guilherme!<br />
Sobre o saxão estandarte negro, branco e<br />
vermelho, esvoaça agora uma grande e dominadora águia<br />
sinistra, a mesma que nos campos de batalha pairara<br />
sobre os corpos rígidos e frios...<br />
Ressoam orquestrações militares, clarins atroam<br />
o ar clamorosamente, passam a mil e mil os estandartes<br />
de todas as nações do mundo, passam e tornam a passar<br />
os séquitos guerreiros, os colossais esquadrões,<br />
reverentes, na pompa das tristezas solenes, d’armas em<br />
funeral, para as exéquias do Imperador, fazendo tilintar<br />
e fulgir os estrepitosos metais das espadas e dos sabres.<br />
No céu, calado, imóvel, o sol, como um ofuscante<br />
capacete bávaro, rutila com a alva luz prateada das pontas<br />
das baionetas.<br />
Mas, que é esse sol, deus dos poetas?<br />
E os espíritos célebres de Goethe, Heine e Uhland,<br />
esse que cantara outrora a batalha de Leipzig, pasmam<br />
e silênciam no ar parado que a neve cobriu de um vasto<br />
e fulgente sendal branco.<br />
Quem é, então, esse sol frio?<br />
E dos lados da Alsácia e da Lorena levanta-se um<br />
murmúrio, como que um trêmulo rio de vozes, surdo,<br />
abafado numa noite profunda, através das altas, rochosas<br />
montanhas alpestres, onde os graves castelos feudais<br />
geram as lendas e os sonhos.<br />
E o rio das vozes, crescendo, subindo, enchendo a<br />
imensidade, assim sombriamente murmura:<br />
Esse sol é Bismarck, que ficará, pelos tempos,<br />
como o Alerta avançado das glórias militares, das<br />
supremas conquistas da guerra, atroando o espaço de<br />
ecos metálicos de fanfarras, avassalando as forças
92 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
estranhas com a técnica belicosa do transcendentalismo<br />
alemão, como o mar avassala o mundo...<br />
E os sonhadores da jovem Germânia, os utopistas<br />
revolucionários, Laube, Gutskow, Wienberg, Mundt,<br />
palpitariam de emoção nas sepulturas se ainda<br />
pudessem ficar agindo no mecanismo da velha e austera<br />
Alemanha, nevoenta e sonora da alma de Schiller, que<br />
é a alma da balada, o prepotente chanceler de ferro.<br />
E de lá do fundo glacial das sepulturas, todos eles<br />
dirão, sorrindo, na cortante, na ácida ironia teutônica,<br />
que a Rússia armipotente gelará vencida, na Sibéria, o<br />
fogo dos seus canhões soberanos, que aterram...<br />
Mas, o imperador Guilherme morreu, morreu o<br />
imperador Guilherme!<br />
E, na serena mudez das catedrais e, no luto do<br />
Império saxônio, o Protestantismo livre e de pedra aponta<br />
filosoficamente para o sol, nas flechas pontiagudas das<br />
torres góticas, como uma interjeição!<br />
O “EL-DORADO”<br />
Esse então é um nunca acabar de apoteoses, de<br />
glórias.<br />
Mal a gente sai encantada de lá uma noite e já<br />
outras noites se sucedem, num esplendor de sóis,<br />
cantantes, alegres, radiosos.<br />
Quem uma vez entra ali sai curado de males e<br />
lavado de dúvidas.<br />
As águas lustrais do prazer lá estão.<br />
Na boca rósea de todas aquelas mulheres ferve o<br />
champagne do amor.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 93<br />
CARTA A GONZAGA DUQUE<br />
Rio, 11 de abril de 1894.<br />
Na impossibilidade de falar-te calmamente,<br />
escrevo-te uma ligeira exposição sobre a Revista dos<br />
Novos.<br />
Penso que o grupo que deve constituir os<br />
combatentes da Revista dos Novos tem de ser composto<br />
da tua individualidade, Emiliano Perneta, Oscar Rosas,<br />
Artur de Miranda, Nestor Vítor, B. Lopes, Emílio de<br />
Meneses, Lima Campos, Araújo Figueiredo, Virgílio<br />
Várzea, Santa Rita, Maurício Jubim, Cruz e Sousa e<br />
Gustavo Lacerda, simplesmente, sendo que este último<br />
deverá dar escritos sintéticos, muito generalizados, sem<br />
personalismos, sobre política socialista. Penso assim<br />
porque esses foram sempre, mais ou menos, de vários<br />
modos intelectuais, e em tese, os nossos companheiros,<br />
tendo cada um deles, na proporção da sua aptidão na<br />
esfera da sua perfectibilidade, um sentimento<br />
homogêneo do nosso sentimento comum na Arte do<br />
Pensamento escrito. Penso também que o único homem<br />
fora da nossa linha artística de seleção relativa possível,<br />
que deve ser simpaticamente admitido para críticas<br />
científicas, para artigos de caráter positivo e moderno,<br />
é o Gama Rosa, que podemos considerar, à parte toda a<br />
nossa independência e rebelião, como um austero e<br />
curioso Patriarca do Pensamento novo.<br />
Os mais, seja quem for, que venham de fora, isto<br />
é, que se apresentem com trabalhos estéticos de tal<br />
natureza alevantados e sérios que possam ser admitidos<br />
nas colunas nobres da grande Revista, para o que basta<br />
uma análise severa, rigorosa, desses trabalhos.<br />
Enfim, apenas esse deve ser o grupo fundador por<br />
excelência, deve constituir o corpo uno das Idéias da<br />
Revista nos seus elevados fundamentos gerais, à parte<br />
os detalhes da compreensão de cada um em particular.<br />
Entre esses fundamentos gerais acho que deve ser um
94 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
dos principais, o maior e o mais firme radicalismo sobre<br />
teatro, não permitir seções, notícias, folhetins ou coisa<br />
que diga respeito a teatro, que, por princípio e integração<br />
de Idéias, não deve existir para a nossa orientação d’Arte<br />
na Revista dos Novos.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 95<br />
HORÁCIO DE CARVALHO<br />
Diante deste nome, desenrolado como uma<br />
tapeçaria de Beauvais à frente dos nossos olhos,<br />
lembramos o Oriente, a Turquia, a Arábia, a Pérsia, todos<br />
os povos muçulmanos, que têm a frouxidão dos nervos, a<br />
elasticidade de membros de raças decadentes em todas<br />
as suas funções fisiológicas e psíquicas. Principalmente<br />
a Pérsia lembra-nos a indolência, a languidez orgânica<br />
de Horácio de Carvalho, indolência de fantasista, de<br />
sonhador e artista intertropical, que não constitui<br />
propriamente, porém, um senão físico, uma falha ou<br />
ausência de qualidades originais de espírito; mas que<br />
antes representa uma “maneira de ser” na vida – muda<br />
abstração, na qual o pensamento é, sem dúvida, um<br />
doirado pássaro, viajando pelas mais altas regiões<br />
etéreas, inacessíveis à vontade da matéria.<br />
Com o seu ar fidalgo, que lhe dá através dos vidros<br />
do pince-nez as linhas nítidas, a distinção e o ar douto<br />
de um sadio e forte estudante da Universidade de Bonn<br />
ou de Oxford, Horácio de Carvalho parece viver apenas<br />
numa flirtation com as idéias, numa despreocupação de<br />
touriste e num diletantismo d’Arte, a que as asperezas e<br />
arestosidades do meio emprestaram já as cores tristes<br />
e carregadas de um pessimismo pungente que se<br />
originara primeiro nas leituras intensas desse intenso<br />
e artístico Schopenhauer, conquanto, na transparência<br />
dessa despreocupação aparente, ele analise, perceba e<br />
sinta passar, como entre a difusa e doce luz do<br />
crepúsculo matinal os primeiros aspectos do dia que sobe,<br />
as for mas vivas e as manifestações dos fenômenos<br />
naturais.<br />
Na verdade, esse amargo pessimismo que os<br />
pensadores e artistas germanos, anglo-saxônios e<br />
eslavos, beberam nas obras profundas do grande filósofo<br />
de Dantzig, como numa enorme ânfora de ouro cinzelada<br />
onde houvessem purificado num vinho negro o sentir e
96 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
o dolorido pensar de muitas gerações; esse pessimismo<br />
agro-doce, divino e ao mesmo passo torturante d’O Mundo<br />
como vontade e representação, dos Aforismos sobre a<br />
sabedoria da vida e das Páginas fundamentais da ética, bem<br />
como desse outro genial Eduardo de Hartmann,<br />
especialmente nessa transcendente Filosofia do<br />
Inconsciente, parece amarrar ainda mais Horácio de<br />
Carvalho ao poste do ceticismo de Murger, de Nerval e<br />
de outros tantos artistas queimados pela chama interna<br />
de grandes Sonhos e Desejos nunca corporificados ou<br />
materializados numa floração ou frutificação natural ou<br />
real...<br />
Mas esse pessimismo, feito de névoas germanas<br />
ou eslavas, tênue, sutil, que insensivelmente inebria e<br />
transporta ao seio paradisíaco da Espiritualidade e da<br />
Ilusão, como esse venenoso e verde absinto dos Franceses<br />
e esse flamante e nevado kümmel dos russos, esse<br />
pessimismo, se Horácio de Carvalho o tem enraizado<br />
até à medula, não lhe enevoa e nem ensombra,<br />
entretanto, a garrida e fulva verve do espírito, de vôo<br />
amplo e alígero, la grâce qui ouvre les ailes, colorida como<br />
asas de borboletas e dançante ao vento como galhardetes<br />
de navios festivos.<br />
É que ele, por entre a variabilidade das<br />
circunstâncias e do tempo, não perde a “linha” luminosa<br />
e serena das atitudes mentais, acordando dessa morna<br />
indolência turca ou persa para pôr ditos d’arte faiscantes<br />
nas abstratas e transcendentes palestras literárias,<br />
porque é especialmente um causeur, sóbrio e fúlgido,<br />
que atrai e fascina sempre com o seu verbo brilhante e<br />
límpido, embora escasso e tardo, mas de uma ironia que<br />
lampeja e tine aqui e ali na frase, como os guizos de<br />
Colombina e Arlequim deslocando-se em pinchos loucos<br />
e febris, ao tam-tam-tam carnavalesco e burlesco na<br />
Alegria e da Folia.<br />
É um temperamento singular, esquisito, que tem<br />
nesses próprios qualificativos o documento positivo e<br />
autêntico da sua inteligência, da sua estesia artística.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 97<br />
Vivendo na província, num centro antagônico ao<br />
desenvolvimento e fulgor do seu talento; na aridez das<br />
estafadas idéias em circulação, entre muros fechados<br />
de assuntos banais, numa atmosfera onde a hematose<br />
quase não se faz, onde o sangue não circula bem, nem<br />
os nervos se tonificam convenientemente, Horácio de<br />
Carvalho lembra um cáctus ou uma flor boreal, nascida<br />
sobre a rocha ou sobre o gelo, vermelha ou alva, perdida<br />
tristemente na esterilidade, queimada por um sol de<br />
brasas ou na desolação da frigidez imensa...<br />
O seu estado de languidez, de inércia mental na<br />
escrita se parece com certos dias pardacentos,<br />
nebulosos, sombrios, cobertos de nuvens, por detrás dos<br />
quais, entretanto, o sol brilha a pleno esplendor, e, em<br />
certos momentos admiravelmente se mostra por uma<br />
nesga aberta no Azul, iluminando por instantes um<br />
recanto do Espaço e da Terra, para logo atrás se obumbrar<br />
sob cúmulos, voltando então todo o céu ao seu primitivo<br />
estado de névoa.<br />
Assim é Horácio de Carvalho, cérebro nevoento<br />
como esses céus da Germânia e da Rússia, ao Centro<br />
do qual, porém, rebrilha o sol do pensamento sobre a<br />
amplidão azul da inteligência, que estranhos cúmulos e<br />
nimbos encobrem perenemente, permitindo apenas<br />
raras, raríssimas vezes, revelar-se por pequenas nesgas<br />
de luz que aparecem instantaneamente, lançando frases,<br />
ditos, conceitos e observações delicados sobre todos os<br />
assuntos – modo de ser fisiológico e neuro-psíquico<br />
singular e inexplicável, sob o qual arde e flameja a brasa<br />
radiante de um grande e ansioso anelar de espírito,<br />
feição quase enigmática e fenomenal de uma bela<br />
organização humana, cuja psicologia o entendimento<br />
comum dos homens não apreenderá jamais, mas que os<br />
pensadores e os artistas sentem e compreendem nas<br />
suas manifestações superiores e efêmeras, sem lhe<br />
pretenderem sondar os motivos e as origens.
98 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
O PEQUENO BOLDRINI<br />
Uma jóia o pequeno Boldrini.<br />
Não era exatamente bem pequeno, porque fizera<br />
quinze anos já.<br />
Linda, bem linda cabeça tinha ele, redonda, leve<br />
e macia, como cabeça de ave.<br />
Ah! Havia de encerrar lá dentro muito sonho<br />
dourado a cabeça do pequeno Boldrini.<br />
O seu nome musical, miúdo e tímido, dizia de que<br />
pátria ele viera: do Mediterrâneo, sob um céu largo e<br />
azul sempre, sentado à Porta do Sol, em Roma, quem<br />
sabe! fazendo gemer demoradamente no ar claro do dia<br />
as notas trêmulas da sua rabeca.<br />
Porque o pequeno Boldrini tinha a sua rabeca<br />
amiga, afetuosíssima e boa, que chorava com ele pelas<br />
praças e ruas.<br />
E que dueto de lágrimas faziam ambos: o fanciulleto<br />
e o instrumento! Era adorável de ver o pequeno Boldrini:<br />
rosado, de uma bela cabeleira crespa caída em anéis<br />
castanhos sobre a testa morena.<br />
Muito bom, realmente, encantadoramente bom,<br />
deliciosamente bom aquele tic nervoso das suas arcadas.<br />
Ora o arco, vibrando rijo nas cordas, duro e<br />
retesado como um músculo distendido, tirava sons<br />
soturnos, cavernosos como regougos de condenados ao<br />
fundo de subterrâneos. Parecia então haver uma<br />
tempestade de lutas na alma do pequeno Boldrini; aquilo<br />
tinha um jeito de Wagner, e dava a toda gente que o<br />
ouvia um ar vago e dúbio de sonâmbulo.<br />
Ora as arcadas eram solenes, majestosas, falavam<br />
de coisas transcendentais, de soberanias místicas, dando<br />
uma exaltação à idéia: era como que um desfilar heróico<br />
de procissões de rajás, de altas imponências egipcíacas,<br />
extravagantes de luz e de pompa na resplandecência<br />
viva do sol da manhã atravessando galerias e largos pátios<br />
suntuosos lajeados de mármore branco.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 99<br />
Ora a rabeca tinha romanzas de beijos, barcarolas<br />
saudosas, idílios de balcões em flor, cantava todo o louro<br />
viver lascivo e madrigalesco de Veneza, dizia as canções<br />
do Tirol, doces e castas, prateadas como o luar, abrindo<br />
o peito às lufadas frescas das perfumosas aragens que<br />
vêm dos laranjais floridos do amor.<br />
E, às vezes, notas mais brandas, ciciadas como<br />
brisas, desfolhavam-se no ar, semelhantes a pétalas de<br />
rosas, como se fossem os íntimos segredos imaculados<br />
dessa almazinha de artista das ruas, alma que se abria,<br />
cheia de fantasias e de quimeras, como um livro cheio<br />
de letras douradas, diante da presença de todos.<br />
E o pequeno Vítor Boldrini, com quinze anos, que<br />
eram talvez quinze ilusões da sua existência, metido no<br />
seu jaleco de veludo preto, todo moreno e crespo, olhos<br />
repassados de doçura de mar sereno, atravessados de<br />
luz como cristal, lá ia vivendo como uma delicada flor de<br />
estufa, meridional e azul, ou como uma flor de parque<br />
aristocrático, no terreno palustre e neutral de uma<br />
cidade populosa e inclemente da América do Sul, vendo<br />
a sua Itália amada pelo cosmorama do seu coração de<br />
bambino ou nas vistas coloridas e fulgurantes dos realejos<br />
dos seus patrícios.<br />
Então, o pequeno Boldrini, à noite, sonhava<br />
histórias interessantes: via-se no Coliseu, grande na<br />
presença dos homens, tocado duma chama divina e<br />
regendo com o arco, não aquele arco velho e vulgar, mas<br />
um outro arco novo, encrustado de ouro, uma vasta<br />
orquestra real de músicos dolentes e romantizados,<br />
falando de gôndolas sobre golfos iluminados de redondos<br />
giornos de luz verde, rubra e amarelada, pondo<br />
esmeraldas, rubis e topázios nas frias águas dormentes.<br />
E o piccolo maestro abria muito os olhos como<br />
costumamos fazer diante de uma coisa que deslumbra,<br />
vendo através do espelho do seu sonho desenhado tudo<br />
aquilo que ele cismara acordado, crente no futuro, mas<br />
que lhe parecia, quando se levantava de dormir, ao outro
100 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
dia, fugir para sempre; porque as aspirações que ele<br />
tinha, longe de horizontes italianos e sem esperanças<br />
de voltar para lá, nada mais eram do que uma sombra<br />
que se deveria esvair mais tarde, a exemplo da sombra<br />
que acompanha na frente o corpo até ao meio-dia e que<br />
depois fica para trás, como uma dúvida que nos tortura<br />
e persegue eternamente.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 101<br />
SIGNOS<br />
(NESTOR VITOR)<br />
A missão dos medíocres célebres, que em<br />
batalhões cerrados enchem os milhões de andares da<br />
Babilônia típica da história, a missão do cretinismo,<br />
notório é já nascer morta, ironicamente no ventre dos<br />
Destinos, qualquer cousa que deveriam trazer de<br />
assinalado e luminoso.<br />
A missão dos Espíritos, dignos desse nome, entre<br />
a mascarada das classificações, é trazer uma vida dupla,<br />
é viver, em dualidade e densamente, uma vida perpétua<br />
no Espaço, fora do estreito veredictum dos homens e das<br />
suas ostentações.<br />
Claramente que a caraça de papelão dos parvos<br />
há de opor obstáculos, com o seu sorrisozinho inócuo de<br />
“havemos de ver isso”. Mas o espírito que traz força oculta,<br />
que traz em cada mão, agitada no ar, o gládio pujante<br />
da sua fé serena de conquistador; o espírito firme e<br />
temerário, que assistiu, sorrindo, a todas as hecatombes,<br />
a todas as misérias e a todas as glórias que fazem a<br />
auréola triste do mundo, esse resiste no seu pólo<br />
invulnerável, esse está afeito aos tufões, experimentou<br />
bem de perto, nos ouvidos, o estrondo, o rouco estridor<br />
das tormentas, sentiu rolarem-lhe aos pés os raios<br />
inclementes e fulminadores, conserva os olhos perfeitos<br />
e serenados na confusão babélica das coisas, é bem livre<br />
e bem alta, a cabeça, para que ao menos as estrelas a<br />
vejam.<br />
Nada pode fazer vacilar ou perder sua intensidade<br />
maior ou diminuir seu impulso mais amplo nessas<br />
naturezas, ou antes nessas afirmações fenomenais do<br />
Espírito, que quanto mais sentem a dura mossa que lhes<br />
faz a Terra, mais almejam o céu; que quanto mais<br />
sentem o vácuo que lhes querem dar por morada, mais<br />
o procuram encher das constelações e magnificências<br />
do sonho.<br />
Nestor Vítor é o novo missionário do Espírito.
102 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
É a natureza para os largos horizontes, é a alma<br />
para as grandes e emocionantes comunhões.<br />
Ele sente a sede inflamada e bendita de rasgar<br />
novas esferas ao pensamento, de fazê-lo girar<br />
imprevistamente nas zonas da eterna luz, de criar e<br />
fecundar prodigiosos estados sensíveis para a alma,<br />
nessa esquisita e infinita percussão de todos os sentidos<br />
refinados.<br />
O surpreendente e curiosíssimo artista dos Signos,<br />
que agora tão soberbamente se manifesta nas páginas<br />
deste livro de uma alta significação estética, tão<br />
anunciante de segredos, tão revelador de mistérios e<br />
tão sugestivo de majestade, é um dos raros poderosos<br />
que tem o dom magnífico e mágico de violentamente<br />
arrebatar a nossa alma, de a fazer tremer e soluçar de<br />
comoção diante da sua, de a fazer dignamente humilharse,<br />
na curva doce, aristocrática, nobre, das profundas<br />
admirações diante da sua, de enfim despir-se, na nudez<br />
mais pura e mais franca dos sentimentos, diante da<br />
su’alma. Porque a su’alma é como um destes exóticos e<br />
deslumbrantes instrumentos que acordam toda uma<br />
série delicada e nervosa de sons que só ouvidos eleitos<br />
escutam e reconhecem. Um desses instrumentos<br />
saudosamente e egregiamente velhos que algum erradio<br />
menestrel do Oriente vibrou acaso por algum poente<br />
triste, no fundo de alguma era remota...<br />
Só este grande amor que nos fecunda, só esta<br />
abundante seiva de Idealismo, só esta potente fé<br />
transfigurada que nos alimenta e ilumina pode<br />
responder, como a clarividente voz do Desconhecido,<br />
porque são as campanhas formidáveis em que nos<br />
empenhamos, porque são os arrebatamentos loucos em<br />
que vivemos, porque são as contemplações em que<br />
mergulhamos, porque é, enfim, toda esta poesia tocante<br />
e trágica que nos tonifica e convulsiona.<br />
O artista dos Signos pertence à aristocracia<br />
mental dos Poetas. Na sua sensibilidade existe o cunho<br />
original da mais delicada e penetrante poesia, que não
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 103<br />
será fácil de ser sentida pelas velhas carcaças das<br />
Letras.<br />
Porque isso de Letras não é mais do que a falsa<br />
exposição de tipos, cada qual com uma teoriazinha<br />
serôdia atrás da orelha, estafados de serem inócuos e<br />
inodoros, aparecendo aqui e ali pelos alçapões teatrais<br />
da opinião como verdadeiros marionetes de feira.<br />
Nestor Vítor é uma alma intimorata de poeta; traz<br />
o seu ser banhado dos eflúvios raros da mais<br />
incomparável poesia. Mas dessa poesia nobilitante e<br />
purificadora que tem asas para o Infinito, ansiedades<br />
para as Esferas.<br />
Os Signos, apesar de serem trabalhados em prosa,<br />
evidenciam extasiantes modos de ser de um curioso<br />
poeta, dão a medida de uma alma bastante elevada para<br />
não ser apenas terrestre, bastante impoluta e requintada<br />
para não deixar de embalsamar-se nas ondas<br />
fascinadoras de uma emovente poesia, que é a linguagem<br />
interpretativa do Sonho.<br />
A maneira, os processos de Nestor Vítor, ao menos<br />
nesta obra, são simples, mas dessa simplicidade que<br />
implica complexidade, como toda a simplicidade que<br />
nasce de fundamentos superiores.<br />
A sua estética possui a severidade de um dogma<br />
e a precisão, a eloqüência de uma vontade manifesta.<br />
O que se lê neste livro sente-se que é sentido,<br />
que é vivido, que é filtrado puro da imaginação do autor,<br />
tão claro, tão lúcido, tão percuciente e tão flagrante como<br />
se o Sentimento se movesse em torno de nós e falasse e<br />
dissesse e vivesse a sua psicose e a sua nevrose.<br />
O seu estilo, a sua forma, ele a faz com verdadeira<br />
pompa de um desdém fidalgo. Isto é, não se preocupa de<br />
modo fatigante e rebuscado, e deixa que a forma surja,<br />
original e fascinadora no entanto, porque vem vestindo<br />
um pensamento original e fascinador. E como cada<br />
pensamento já sai naturalmente revestido da solenidade<br />
da forma, o artista deixa simplesmente que esse<br />
pensamento se manifeste, ficando então, desdenhoso,
104 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
tranqüilo, a sorrir da forma que tenha de vir, porque já<br />
sabe que essa forma há de ser, sem esforço, superior,<br />
desde que é uma correspondente direta de um<br />
pensamento do mesmo modo superior.<br />
Nesse ponto Nestor Vítor recorda um pouco Villiers<br />
de L’Isle-Adam, cuja sobriedade e simplicidade de forma<br />
repousa, no entanto, num processo complexo, excelso e<br />
raro, que é o segredo de certos estilos surpreendentes,<br />
inefáveis, que de tão requintadamente simples não<br />
parecem estilos. Esses podem ser classificados os estilos<br />
brancos ou os estilos leves e finamente estrelados, que<br />
decorrem do pensamento de um cérebro superior, com o<br />
alto desdém aristocrático de quem sente que é Eleito<br />
entre os Eleitos, e não desce a prestar obediência dos<br />
seus espirituais brasões honoríficos à plebe ignara e<br />
sacrílega, que quer à força reconhecer a legitimidade<br />
da hierarquia, das linhas nobres e puras da raça ideal<br />
de onde esse Eleito procede.<br />
A maior ambição que Nestor Vítor põe na forma é<br />
a de conduzir a sua idéia para o rumo onde ele a queira<br />
levar. É de fazer com que essa idéia, deixando o nebuloso<br />
caos da sua origem, encontre livre, espontânea, franca<br />
e ampla, a forma, para, como asas, alar a idéia para as<br />
alturas, arrebatá-la na luz, fasciná-la nos astros e<br />
deslumbrá-la nos céus.<br />
O estilo de Nestor Vítor, forte, solene, é a evidente<br />
característica, o desdobramento especial e genuíno da<br />
sua feição grave e séria na Arte; representa bem o cunho<br />
austero e eminentemente determinado, significativo, da<br />
sua Estética elevada e nobre, rude às vezes, violenta,<br />
libérrima e sobretudo desdenhosa em certos pontos de<br />
vista.<br />
Ele sente essa angústia, essa sede do Exprimir,<br />
do Dizer, mas do Dizer denso, intenso e legitimamente<br />
original.<br />
Quer que o seu vocábulo sangre a vida, que o seu<br />
verbo cave fundo na natureza do seu pensamento, que<br />
imprima um movimento de convulsão e de sensação às
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 105<br />
cabeças, nos quatro pontos cardeais da Terra; quer que<br />
o seu verbo opere a luz e ilumine de uma cintilação<br />
muito clara, eletrize, faça acordar, agitar-se, palpitar,<br />
estremecer o sentimento ocioso e covarde que dormita<br />
dentro das almas.<br />
Um espírito assim, uma eloqüência assim, de tanta<br />
penetração e de tanta concentração, tem de ser uma<br />
grande tuba nervosa desconhecida, um clamor mais<br />
ardente e mais virgem, uma voz de uma vibração e de<br />
um impulso maior que projeta mais alto e mais longe o<br />
pensamento que ela enuncia e proclama.<br />
Essa covardia e essa inépcia para afirmar os que<br />
pairam nas Transcendências da Arte e no Imprevisto do<br />
Gênio, esse eterno e capcioso Não-Sentir e esse eterno<br />
e capcioso Não-Ver dos que vivem se equilibrando em<br />
mútuas muletas de Fama; essa tendência criminosa e<br />
fatal que têm muitas vezes as almas mais bem dotadas<br />
para se deflorarem e envenenarem nos sinistros tédios<br />
culpados; todos esses esguios e escuros corredores onde<br />
se esguelham e encolhem as lesmas sutis de vagos<br />
movimentos caolhos e hipócritas da psicologia de certas<br />
naturezas; todas essas escápulas cômodas para o Silêncio<br />
e para a Sombra, essas cumplicidades mudas com a<br />
própria Consciência, essas cópulas ilícitas e sacrílegas<br />
com a Treva, este Verbo em febre do espírito dos Signos<br />
condena do alto do seu dogma dantesco e santo, fustiga<br />
com as suas ironias e a sua verve comburente, queima<br />
e fulmina com os seus jorros de raios flamejantes.<br />
Nos Signos há um sentimento delicado de velha<br />
fidalguia estética; dessa delicadeza que é uma<br />
florescência nobre e egrégia da estesia, dessa delicadeza<br />
que é o refinamento dos nervos e do psiquismo e não<br />
dessa outra toda exterior e aparente que parece feita<br />
de óleo de oriza, de chic, de boninas do prado, de brisa e<br />
dos suspiros das onze mil virgens.<br />
Quanto à observação de Nestor Vítor, esta ele a<br />
possui poderosa, pronta, fácil, livre e simples, quer dizer,<br />
espontânea e natural. A sua imaginação toda particular
106 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
fornece-lhe um imenso cabedal para isso. Mas Nestor<br />
Vítor considera a observação, como realmente o é, um<br />
ponto de partida e não o fator máximo da sua obra.<br />
Superiormente dotado, ele sabe que essa<br />
observação, tão aclamada pelos medíocres e pelos<br />
estacionários em Estética, não constitui a fonte, ou<br />
antes, a causa primordial da elevação maior ou menor<br />
de um espírito.<br />
É lógico que quem tem ao seu dispor qualidades<br />
estéticas singulares, elementos seguros e radiantes<br />
para as interpretações mais belas da Arte, vê na<br />
observação uma preliminar, uma força elementar dessa<br />
Arte, mas nunca a sua melhor ou maior expressão.<br />
Ter simplesmente observação, por mais vasta e<br />
completa que ela seja, é, na Região do Pensamento, estar<br />
apto para fazer alguma coisa ainda, mas não considerar<br />
já essa coisa feita pelo único fato de possuir observação.<br />
Assim, a observação não é mais do que uma<br />
acidental nos grandes planos do Pensamento,<br />
subordinada, dependendo de outras forças muito mais<br />
complexas e abstratas.<br />
Um livro do qual só se pode dizer – tem muita<br />
observação, mesmo muita, e exata – é, quando menos,<br />
um livro que olha e perscruta, com toda a correção,<br />
embora tenha certos lados inferiores, cheira e palpa<br />
muito as cousas, mas que não se eleva nem se projeta,<br />
profunda e emocionalmente, em esferas superiores.<br />
Celebração séria e serena, na mais absoluta<br />
expansão da Arte, perscrutador penetrante do coração<br />
humano, psicólogo de novas faces e de novos mundos<br />
humanos, vendo quase tudo por uma visão de hora de<br />
ocaso de outono, com certas linhas langues, mornas e<br />
mórbidas, mas desse mórbido psíquico que é soluço e<br />
que é dor na atmosfera mental, o glorioso artista dos<br />
Signos conseguiu enfeixar na sua obra os símbolos mais<br />
expressivos e belos, alguns de um fundo bem cruel e<br />
bem funesto, mas onde ressaltam, vivas e dominantes,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 107<br />
as sensações e as idéias que uma rara fé desperta nos<br />
espíritos definitivos.<br />
Do centro, porém, dos Signos destacam-se<br />
iluminantemente quatro singulares trabalhos que<br />
formam como que o eixo fundamental em torno ao qual<br />
se movem todos os outros.<br />
Embora prenda admirativamente a nossa atenção,<br />
“Alegria fúnebre”, onde Nestor Vítor atesta toda a sua<br />
larga observação generalizada, sintética, que ele tem<br />
das cousas, todo o conhecimento perfeito da espécie<br />
humana, desenvolvendo com emoção e pujança<br />
extraordinárias a vida de dois seres miseráveis e<br />
shakespeareanos na sua desgraça; embora nos seduza<br />
e encante a psicologia ingrata, de uma sensação travosa<br />
de desespero sem remédio, mas firme, completa, desse<br />
outro lindíssimo trabalho “A Vitória”, e ainda o bizarrismo<br />
precioso, a fina e desdenhadora fidalguia, o soberano<br />
sarcasmo, intenso e cortante como lâminas aceradas,<br />
como peste de fogo, desse “Olivério”; embora sintamos<br />
esse esplendor de charge, impiedosa humour, caricatura<br />
de uma face inédita, descarnando muito a fundo ridículas<br />
usanças típicas, costumes incaracterísticos,<br />
macaqueados, postiços, carregando a zarcão os<br />
medalhões de uma sociedade falsa, que se julga<br />
equilibrada e correta, embora compreendamos essa<br />
excentricidade, essa firmeza perceptiva, essa segurança<br />
de observação mundana, esse mal-entendu das relações,<br />
de pessoas que se encontram num dado meio, pelas<br />
correntes do acaso e que mutuamente se impressionam<br />
e mistificam, sem, no fundo, se conhecerem com nitidez<br />
e exatidão, como no “O Máscara”; muito embora mesmo<br />
ainda vejamos a risada bárbara, selvagem, de “Hirânio<br />
e Garba”, páginas tão irônicas e tão verdes na exótica<br />
expressão, rindo, sob a égide do símbolo, de um mundo<br />
que até para o amor tem fórmula e convenção; de “Hirânio<br />
e Garba”, cujo pitoresco da forma revela preciosamente<br />
o picaresco do fundo, que a ela com uma perfeita<br />
curiosidade se adapta, o que parecerá talvez arcaico,
108 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
esteticamente antipático e desgracioso aos<br />
entendimentos superficiais e frívolos que acreditam que<br />
a Arte é a elegância e o bom gosto dos assuntos; embora,<br />
enfim, tudo isso, há neste livro quatro trabalhos<br />
culminantes que são as colunatas de ouro maciço que<br />
sustentam toda a cúpula ideal dos Signos.<br />
“Fatalidade”, símbolo amargo do Amor, o primeiro<br />
casal enleado nas ilusões do amor, casal idílico, ingênuo,<br />
querendo fugir, furtar-se loucamente e em vão ao seu<br />
destino e ao seu fim na Espécie, querendo fazer do amor<br />
um platonismo inefável, um eterno, imperecível laço sem<br />
o cumprimento das leis fatais da Natureza, até que<br />
ambos, ele e ela, rolam crua e animadamente no<br />
Irremediável do gozo carnal que é a enganadora sedução<br />
com que o amor ironicamente se oculta e tenta.<br />
Porque mesmo, no fundo da grande Causa, todos<br />
os encantos, todas as graças e atrativos de que se reveste<br />
um casal que mutuamente se impressiona na vida, são<br />
simples e instintivamente para o efeito da função<br />
fisiológica, são seduções apenas para encobrir de vagos<br />
véus aparentes e sugestivos o sentimento sexual da<br />
procriação da espécie – triste sonho genésico que<br />
alimenta e embala, consolando, a cismadora e aflita raça<br />
humana.<br />
“Agonias” – miserere solene, majestoso, de uma fé<br />
que morre, sintetizada num fiel e num justo. Soluço<br />
generalizado do Requiescat in pace dos grandes esforços<br />
vãos, das lutas e dos sacrifícios seculares, das humildes<br />
propagandas, das obscuras mas veementes doutrinas,<br />
dos sublimes Vencidos ainda crentes e consolados até<br />
mesmo às portas da morte; tristes lágrimas e<br />
lancinamentos derradeiros de simpáticos e eloqüentes<br />
apóstolos perdidos ao longe na poeira do infinito Saara<br />
da Ilusão e da Fé, e que apenas têm como prêmio o<br />
ponto final da cova.<br />
“Gavita” – o encanto culpado, esse estado de<br />
volubilidade inquieta, aparente ou latente, que reside<br />
na mulher em flor.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 109<br />
Qualquer cousa de volúpia do luar e da delícia do<br />
néctar e das rosas. Curvas leves, aéreas de um sonho<br />
corporificado, alvorando em esquivas surpresas, cantando<br />
frescura e música, sorrindo e viçando graça.<br />
Íris de virgindade, no céu azul constelado de uma<br />
beleza de melindrosos atrativos e seduções pecadoras,<br />
fazendo irradiar de si todo o delicioso cromatismo da<br />
feminilidade borboleteante, fugitiva.<br />
Desabrochar de alvorada de frutos de ouro, que<br />
uma névoa deslumbrante de mistério envolve ainda de<br />
translucidez, de magia e de meigas suavidades aladas.<br />
Gavita é uma dessas criaturas meio imaginadas<br />
e meio reais que formam no comovido coração de quem<br />
as ama um doce oásis consolador.<br />
Poucos sentirão a diafaneidade daquelas linhas,<br />
os lascivos quebrantamentos daquele ser vaporoso,<br />
metade sílfide e metade áspide, graça delicada e branca<br />
de vôo de anjo, mas inevitável e demoníaco travor de<br />
perfídia nos movimentos inconscientes e cúmplices do<br />
seu fenômeno de mulher e de virgem.<br />
“Sapo” – um desespero de condenado mordendo<br />
os pulsos, terrível galé da Sibéria dos Destinos, sentindo<br />
que o mundo está para ele do avesso, que as perspectivas<br />
gangrenam, que os aspectos gangrenam, que os homens<br />
gangrenam.<br />
Ruge e troveja nessa criação densa e monstruosa<br />
uma dor tão intensa, tão abismante, tão absurda como<br />
se o oceano crescendo e inchando para o firmamento<br />
rebentasse numa explosão de uivos pantéricos<br />
atroadores.<br />
O “Sapo” é uma destas concepções que parecem<br />
fundidas em bronze por artistas revéis e alucinados. Por<br />
todas aquelas páginas percorre um frio soluçante e<br />
nirvânico. A vida ali ganha uma inconcebível densidade<br />
e crueza, uma irradiação, mórbida, de eclipse de morte.<br />
Secretos, os instintos da destruição moral, do<br />
aniquilamento de tudo, fazem a sua catequese feroz e<br />
sombria na já devastada alma do Bruce. E o Bruce, nesse
110 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
terror de alma sangrada na mais indefinível angústia,<br />
clama e chora despedaçadamente, já até com o pânico<br />
de si mesmo, como que sentindo o próprio solo, na<br />
formidável catástrofe do mundo, recuar-lhe dos pés. A<br />
dor, então, atinge até a um grau de transcendência e<br />
de furor que parece epilético.<br />
Nestor Vítor descobre, revela, rasga, ali, com<br />
profundidade, o infinito de uma dor pateticamente<br />
humana e misteriosa.<br />
A vida contrai, aperta cada vez mais os seus<br />
círculos. Um estreito Teorismo pretende tomar de assalto<br />
o mundo. O mundo parece chegar à vacuidade do nada.<br />
Tudo se desloca dos eixos, se desagrega do conjunto.<br />
Como que o ritmo das cousas cessa e vai se estabelecer<br />
a confusão geral. Daí, sujeitas a esse anárquico<br />
sentimento universal, na harmonia negra desse estado<br />
social e moral, sob a lei fatal desse Momento histórico,<br />
geram-se naturezas como a do Bruce, de um fundo, no<br />
entanto, dignamente intelectual e límpido, mas que<br />
vendo para sempre partido, quebrado o maior fio de uma<br />
afetividade qualquer que as equilibra na Terra, e já<br />
trazendo mesmo, no seu íntimo, certas qualidades<br />
ingênitas de desorganização, desorientam-se de todo,<br />
desmoronam por completo, e tomam, no físico e na alma,<br />
a gravidade triste, desesperadora, de flores tóxicas de<br />
doenças patológicas.<br />
A conclusão a que se chega no “Sapo” é cruel,<br />
desoladora, mas eloqüentemente verdadeira.<br />
A convulsão e vulcanização psíquica desta<br />
admirável concepção, o símbolo tremendo que ela<br />
representa, a mordacidade de caveira que ri<br />
cabalisticamente da Vida e que é a própria mordacidade<br />
glacial de Nestor Vítor, o fatalismo horrível que a<br />
nirvaniza e que lhe sopra tufões inquisitoriais, tudo isso<br />
enchendo malditamente aquelas páginas de belezas<br />
austeras e tristes, de luzes roxas e amargas, como que<br />
nos torna acerba e antipática a alma, tira-lhe toda a<br />
piedade e toda a misericórdia, todas as auréolas brancas
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 111<br />
da compaixão e do carinho, fazendo-a desvairada, louca,<br />
maligna, perdida por dédalos sinistros de crimes, sem<br />
fé e sem rumo, desvirginada nas suas nobres e delicadas<br />
raízes.<br />
A grandeza perigosa e envenenada desse trabalho<br />
é de tal forma, a vastidão suprema do tema abala de tal<br />
modo a nossa Consciência, fá-la de tal modo descer, fála<br />
de tal modo subir, acende uma luz tão clara e tão<br />
grande, mas ao mesmo tempo tão impiedosa, tão dura,<br />
tão castigadora, que perguntamos aterrorizados a nós<br />
mesmos por que é que se foi revolver tanto sentimento<br />
estranho, por que é que se foi arrancar ao Incognoscível<br />
tanto mundo tenebroso, por que é que se foi descobrir,<br />
com tanta paixão e tanta febre, tamanha região de<br />
lancinamentos e de culpas!<br />
Depois, essa esquisita silhouette do Pai do Bruce,<br />
assim como Nestor Vítor a sentiu, dando-lhe toda a<br />
impressionabilidade da sua natureza, traz-nos uma<br />
sugestão de diabólico, de fantástico pavor.<br />
Esse velhinho de olhos piscos, andar apressado e<br />
miudinho – sombra, espectro na vida, sombra, espectro<br />
na morte – porque o glorioso artista dos Signos faz dele<br />
um perfil indeciso, nebuloso, do qual não se pode precisar<br />
bem as linhas e as qualidades integrais; esse velhinho<br />
ideal, lugubremente grotesco, meio sinistro, meio<br />
feiticeiro e meio profeta como surgindo do fundo<br />
cabalístico de um além-túmulo macabro; esse ignoto<br />
velhinho, sonâmbulo das Cinzas, tão sombra espectral<br />
na morte como foi sombra espectral na vida, é de um<br />
raro exotismo e de um maravilhoso segredo de<br />
imaginação genuinamente infernal!...<br />
O próprio Ernesto é um perfil cativante, amorável.<br />
Dessas organizações lânguidas, cuja juvenilidade<br />
solitária, desabrochada na amargura e no abandono,<br />
parece provocar sempre uma simpatia imediata, um<br />
movimento de amparo e uma irresistível atração. É quase<br />
uma natureza feminina, nervosamente histérica, de um<br />
fundo tocantemente romântico, de onde mórbidas e
112 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
mornas vicejam flores pálidas e lascivas de timidez, de<br />
frouxidão.<br />
O Ernesto é o lírio magoado e doce, é a sombra<br />
acariciadora e terna daquele Vale de lágrimas, que é o<br />
Bruce; é o canto matinal e lírico daquela epopéia<br />
humana, é a água dessedentadora, ainda que nublada,<br />
daquele deserto horrível.<br />
Lembra um ser esquecido em si mesmo,<br />
adormecendo, do fundo da sua castidade meiga e da<br />
sua melancolia, num desejo impreciso, vago de que ele<br />
mesmo não sabe explicar nem acompanhar as<br />
ondulações e as curvas.<br />
Só quem subterraneamente e chamejantemente<br />
viver nos infernos de agonias semelhantes ou idênticas<br />
pode estremecer e chorar diante dessa concepção<br />
formidanda, na qual o trágico e estranho perfil do Bruce<br />
louco fica como um farol negro e de pedra, alto e imóvel,<br />
na solidão carregada e bárbara de uma ilha longínqua<br />
desconhecida do mundo onde um vento noturno e<br />
gemebundo glacialmente sopra e sibila.<br />
É preciso, na verdade, ter a cabeça<br />
melancolicamente voltada para certas teses, para certos<br />
problemas da psicologia humana; vir de muito longe na<br />
peregrinação do Pensamento; trazer em si uma força<br />
majestática, uma clarividência suprema e, além de tudo,<br />
um desprendimento completo, absoluto, das frívolas<br />
vaidades mundanas, para arrancar de tão fundo essas<br />
raízes sangrentas de vida, para clamar de tão alto<br />
verdades tão augustas, tão independentes e perigosas,<br />
para rasgar, enfim, com tão violentos movimentos de<br />
ação e sensação, os longos sudários que pesadamente<br />
encobrem essas mórbidas auroras pressagas do<br />
Sentimento.<br />
O tipo do Bruce é um dos mais intensos e<br />
profundos entre as Criações universais. Sente-se que<br />
ele desloca as correntes do ar, move-se, respira, vive,<br />
agita convulsamente os braços no Infinito.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 113<br />
É um louco formidável que se fez homem; um<br />
soluço que enche as Esferas com a ansiedade e a nevrose<br />
subterrânea da alma delicada, com passiva, comovida e<br />
angustiada de um russo.<br />
Todos os desclassificados do destino, todos os<br />
vacilantes, todos os sem rumo, todos os sem objetivo<br />
certo, todos os silenciosos do orgulho nobre, todos os<br />
corações amargos e fracos, todos os dolentes e desolados<br />
do espírito, todas as vidas de meia luz e de meia sombra,<br />
todos os vencidos da Glória, todos os inacabados, todos<br />
os incompletos que aspiram um Ser, todos os que ondulam<br />
entre a Fé e a Dúvida, todos os incompreendidos, todos<br />
os irresolutos ou covardes morais encontrarão no<br />
poderoso e sintético tipo do Bruce afinidades, diretas<br />
correspondências, secretas confissões e apelos, ritmos<br />
harmônicos e sugestivos, pontos especialíssimos e<br />
tocantes de contato, hão de senti-lo e amá-lo.<br />
De todas essas linhas vagas que formam tantas<br />
almas indecisas, sôfregas, ansiosas e sofredoras que<br />
por aí andam, de uma fronteira a outra da Terra,<br />
esbatidas em nuances de melancolia e tédio, de<br />
desespero e de agonia; de todas essas queixas confusas<br />
e desencontradas dos Desgraçados, dos Solitários e dos<br />
Contemplativos de todo esse sensível, denso e imenso<br />
crespúsculo geral de gemidos, que é o fundo sublime e<br />
misterioso da alma humana, foi que se gerou a natureza<br />
do Bruce, foram esses os germens que constituíram tão<br />
extraordinário tipo e que assim lhe dão, por isso, clara e<br />
perfeitamente, a característica de simbólico.<br />
Há no “Sapo” um niilismo agudo; tremendo, quase<br />
sinistro, mas ao mesmo tempo justo e consolador, porque<br />
vem para purificar e punir...<br />
Esses quatro trabalhos formam com efeito o centro<br />
do poderoso e admirável espírito de Nestor Vítor. Neles<br />
acha-se condensada a maior massa de idéias. Sentetizase<br />
aí a psicologia curiosa de um ser que voa no sonho<br />
das águias; sente-se aí a nervosidade mais coleante,
114 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
mais voluptuosa, mais sedutora; palpita aí a gênese mais<br />
imprevista, mais original, a estesia mais delicada, a<br />
sensibilidade mais dúctil, a profundidade mais<br />
misteriosa. Por esses quatro trabalhos tem-se a medida<br />
exata da sua celebração, toma-se a altura do seu vôo,<br />
vê-se o infinito Intangível do seu espírito.<br />
Do fundo de cada um desses Signos ou desses<br />
temas psíquicos raia uma forte, clara luz soberana de<br />
Arte.<br />
Cada conjunto daqueles tem uma irradiação<br />
central: são focos estéticos representando o máximo da<br />
luz de uma singular natureza.<br />
Cada um por si vive as suas linhas, traz a sua<br />
sensação especial, o seu ritmo langoroso, a sua música<br />
amarga, a sua tempestade trágica ou a sua nudez cruel.<br />
Cada um de per si acende as suas estrelas de<br />
melancolia e de cismada dolência, as suas violáceas<br />
luas de morte ou os seus comburentes e chagados sóis<br />
de vida.<br />
O grau supremo a que pode atingir um espírito,<br />
através de Abstrações e de Sínteses refinando-se,<br />
apurando-se, na maior contensão da alma, tocando com<br />
a alma o pólo astral das Quintessências do Sonho fazendo<br />
da alma a nova Estrela-d’alva nas Matinas da nova Fé;<br />
esse ansiar virgem, branco, nobre, claro, que é como se<br />
andássemos pelas divinas eiras celestes, sequiosos por<br />
devorar o trigo de ouro dos astros; essas asas do Inaudito,<br />
que não são asas para a Terra e que palpitam e roçam<br />
pelo peregrino fogo sagrado e sidéreo da Arte, tudo, como<br />
estranhas relíquias de um outro encantado mundo, como<br />
talismãs eternos que miraculosamente dão a vida e dão<br />
a morte, esse pálido Sonhador dos Signos traz consigo<br />
das estradas de onde vem, fazendo de algum modo<br />
emudecer, e cismar, é a palidez dolente do seu<br />
semblante, o altivo traço de austeridade, de força, da<br />
sua cabeça eleita e a magnificência, a claridade sã,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 115<br />
acolhedora, de deus jovem, mas serenamente severo,<br />
dos seus olhos inquietadores e profundos.<br />
Não são, essas criações dos Signos, produtos de<br />
um realista, de um observador seco, mirrado, ou de um<br />
analista de minúcias banais. Não é um fútil teorismo<br />
ronchante e metafísico querendo empolgar o mundo com<br />
as suas tentaculosas sistematizações, os seus caducos<br />
julgamentos a sua miopia e estreiteza de microcéfalo.<br />
Não é um frívolo bater de bigorna nos estafados e<br />
relaxados assuntos que são a eterna tela dos seculares<br />
torneiros de todas as literaturas do mundo.<br />
O horizonte que aqui se alarga, os planos gerais<br />
que aqui se estabelecem são outros.<br />
Trata-se de uma natureza verdadeiramente,<br />
legitimamente natureza, cuja complexidade e<br />
fundamentos são extraordinários e assinalados.<br />
É um grande ser, bem irmão dos grandes seres,<br />
que desperta, pálido e grave, com o seu Verbo, para dizer<br />
à Terra a grandeza do profundo Sentimento que trouxe<br />
consigo.<br />
A Terra poderá não o ouvir, não o entender, não o<br />
escutar, não o amar; mas a sinfonia majestosa da sua<br />
alma continuará, se desdobrará pelos dias, passará os<br />
anos, encherá a atmosfera dos séculos, e, como um<br />
soluço feito de beijos, feito de músicas, feito de lágrimas<br />
e ansiedades, irá rolar, rolar, rolar, rolar na Eternidade<br />
abismante um pouco da sua sensibilidade para torná-la<br />
mais doce, um pouco da sua luz para torná-la menos<br />
abismante, um pouco do seu amor para torná-la menos<br />
tediosamente Eternidade.<br />
Nestor Vítor traz no seu temperamento as mais<br />
radicais qualidades; ele vem para o apostolado da sua<br />
Obra, para determinar com elevação e pujança o<br />
caprichoso e extravagante fenômeno de seu ser.<br />
Ele vem para o apostolado da sua Obra, e uma<br />
Obra é a evidência integral de uma Consciência, a cabal
116 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
afirmação de um pensamento, a radical expansão de<br />
um sentimento.<br />
Trazer uma Obra é ser capaz de todas as altas e<br />
gerais responsabilidades, de todos os ódios e antipatias,<br />
ineptos e injustos, que uma verdadeira obra provoca.<br />
É arrostar, sem temor e sem alucinações, com as<br />
zumbaias fúteis ou com zombarias atroadoras.<br />
Certamente que uma coleção de livros, por<br />
brilhantes e mesmo notáveis que eles sejam, não chega<br />
a constituir o que na realidade se pode chamar uma<br />
obra, desde que esses livros não tragam o cunho quase<br />
imperceptível, o selo particular que caracteriza uma obra<br />
e que forma o fundo da sua irradiação e da sua amplidão<br />
no tempo e no espaço.<br />
A obra de um artista vem inteira e completa nos<br />
seus nervos, no seu sangue, na sua aspiração, na sua<br />
virtude, na sua moral, na sua alma, realizando o que de<br />
fato se pode chamar a natureza de um Complexo estético,<br />
um mundo novo de Intelectualismo requintado.<br />
A obra de um artista é feita na segregação de<br />
elementos corruptores, fora das atmosferas viciadas,<br />
infectas do mundanismo, das perspectivas rasas, no<br />
isolamento do meio social banal, como uma gestação<br />
nas purificadas esferas celestes.<br />
A obra de um artista é feita de todos os fluidos e<br />
forças da concentração, da intensidade, da fé abstrata,<br />
do amor e da mais perfeita seriedade mental.<br />
É a ação freqüente e conseqüente de um estado<br />
legítimo da alma, o latente e intenso palpitar de uma<br />
aspiração para o Sonho, a expressão generalizada,<br />
sintética de uma Vida, o sistema arterial de uma<br />
simples, pura e profunda Convicção.<br />
Com todos estes atributos essenciais, com todos<br />
estes predicados rigorosos aparece agora Nestor Vítor,<br />
radiando de si uma obra, isto é, constituindo-se ele o<br />
vivo órgão, o invólucro da matéria palpitante que vem<br />
comportando a Emoção e a Sensação de uma obra.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 117<br />
Os movimentos do seu espírito têm qualquer coisa<br />
de avalanches que, quando passam, vão arrastando<br />
consigo tudo. Ele é a avalanche mental, arrasa tudo,<br />
devasta tudo, desola tudo com a sua fatal visão acerba e<br />
sombria de Fulminador do Espírito. Parece que uma<br />
aluvião má de demônios atravessa, por vezes, na câmara<br />
escura dos seus pensamentos e nela tragicamente<br />
proclama, escreve o Nihil, a vermelho.<br />
No seu riso, ora de um desdém galvânico, de um<br />
sarcasmo oblíquo, ora de uma desfaçatez de belo rebelde,<br />
de divino celerado da Arte, cascalha a risada da morte.<br />
E não estamos apenas rendilhando estilo,<br />
floriturando frases, imaginando tropos: – o Poeta dos<br />
Signos, insistimos, tem essas soberbas e raras<br />
singularidades fatais consigo, o que o faz semelhar, de<br />
certo modo e certas faces, a um desses esquisitos e<br />
flagelados Sonhadores eslavos.<br />
Mas, entretanto, o fundo melancolicamente<br />
doentio e letal da sua natureza artística esbate-se, diluise<br />
logo na candidez abençoada da sua alma, na<br />
transcendentalizada bondade de todo o seu ser de<br />
demônio que se fez anjo, e anjo para punir as antigas<br />
culpas do demônio.<br />
Como, pelos requintes a que sobe, pelos raios de<br />
luz em que paira, pela perfectibilidade a que chega, o<br />
artista é o ciliciador de si próprio, o purificador de si<br />
mesmo, que anda recebendo os santos-óleos, a extrema<br />
unção dos extremos perdões, Nestor Vítor poderá ter do<br />
demônio apenas a velha nostalgia, a triste visão do Letes;<br />
mas tem, porque com ela para sempre ficou na esfera<br />
tranqüila da sua alma, no mudo mistério casto da sua<br />
alma, toda a glória e toda a celeste resplandecência dos<br />
anjos.<br />
Mas ainda mesmo sendo anjo, tomando do anjo o<br />
resplendor e as asas vitoriosas, a olímpica divindade<br />
desse anjo foi como que aos poucos desaparecendo, se<br />
transformando; e onde era uma excelsa brancura de
118 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
anjo ficou uma lividez de monge, e onde eram as níveas<br />
asas triunfais de um anjo, ficaram as vestes de um<br />
monge, e onde eram o deslumbramento e o ruído<br />
apoteósico de um anjo, ficaram o silêncio e a sombra de<br />
um monge.<br />
Ele é, na sua gênese, na sublime essência do seu<br />
ser, um perfeito demônio que se fez monge, que foi<br />
cristalizando e transfigurando a alma através dessa<br />
longa vida que não é só vivida nos anos, que não é apenas<br />
escoada no tempo, mas através da vida vivida nas idéias,<br />
na intensidade e na chama das idéias, da vida que faz<br />
dos pensamentos velhos monges solitários a desfiarem<br />
o interminável rosário das sensações do mundo, quando<br />
se adquire, através de lentas e recônditas transformações,<br />
essa grave expressão refinada de<br />
espiritualidade, de dolência e melancolia antiga.<br />
Quem nunca trouxe a cabeça docemente e<br />
pungentemente pendida para certos lados secretos do<br />
Pensamento e do Sentimento nunca poderá entrever<br />
esses céus claros, céus e céus que se desdobram na<br />
Imensidade peregrina da alma. E elevar a alma até essas<br />
essências ignotas da Luz e fazê-la pairar, bendita e<br />
branca, na paz infinita do Éter espiritual, é sagradamente<br />
mostrar ao mundo que a alma não deve ser apenas um<br />
miserável frangalho imundo, abjeto, nos círculos<br />
nervosos da Vida. Que ela, a alma, quando sabe sentir e<br />
sonhar, encantando tudo, maravilhando tudo,<br />
transfigurando tudo, pondo claros céus novos em tudo,<br />
é porque traz em si um toque desconhecido de graça e<br />
grandeza, qualquer cousa de tabernáculo inviolável, de<br />
venerado e abstrato que os contatos terrestres não<br />
conseguem jamais poluir.<br />
Os Signos são a extraordinária sinfonia de abertura<br />
de obras formidáveis que aí vêm vindo e nas quais o<br />
grande espírito de Nestor Vítor há de soberanamente e<br />
fatalmente assinalar cada vez mais a sua superioridade<br />
artística entre as intelectualidades do mundo.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 119<br />
Ele vem para o alto objetivismo. Mas sabe, no<br />
entanto, que não há puro e perfeito objetivismo sem puro<br />
e perfeito subjetivismo, porquanto o objetivo não pode<br />
deixar de depender do subjetivo, isto é, porquanto o<br />
mundo interior do eu não se pode desprender do mundo<br />
exterior que a visão abrange ou, mais claramente,<br />
porquanto o temperamento não se pode separar do<br />
documento do real e nem o fato prescindir da alma, a<br />
fim de persistirem as essenciais concordâncias, baseadas<br />
na Sinceridade do ser, que formam o fundo das legítimas<br />
naturezas artísticas.<br />
Cabeça de larga generalização, alto desdenhador<br />
de todas as fórmulas sociais e de todos os estilos<br />
literários, mesmo os mais aclamados, a completa<br />
individualidade de Nestor Vítor tem sérias afinidades<br />
com Balzac na análise, com Goethe na complexidade e<br />
na síntese, com Ibsen no sereno poder pensador e<br />
filosófico e na alma vasta, perfectibilizada e cismadora,<br />
e com Villiers de L’Isle Adam no estilo, no pinturesco<br />
sarcástico lúgubre, macabro, e mesmo no lado emocional<br />
sutil e penetrante de certos assuntos.<br />
Mas, além de todas as qualidades que<br />
representam o conjunto harmônico desta natureza, há<br />
nela a faculdade maravilhosa, quase sobre-humana e<br />
quase divina, de arrancar das almas todas as mais<br />
secretas e fugitivas verdades, como que vendo e sentindolhes<br />
as transparências íntimas do Invisível,<br />
surpreendendo-lhes o pensamento incógnito e todas as<br />
suas curiosidades e latitudes.<br />
Nestor Vítor é um dos raros que trazem a fé viva e<br />
superior do Pensamento, o seu Intelectualismo é uma<br />
alvorada que rebenta cheia dos mais majestosos<br />
prenúncios.<br />
Nele não há a fé pretensa do simples métier, a<br />
atitude falsa de parecer um açodamento momentâneo,<br />
o interesse medíocre pela contemporaneidade, o que
120 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
caracteriza especialmente os continuativos e os<br />
oportunistas da Arte.<br />
Do íntimo de su’alma, de algum modo<br />
soluçantemente ritmada por nonchalances, dolências e<br />
aristocráticas melancolias hamléticas, nasce-lhe uma<br />
fé poderosa e consoladora, como uma flor mística cujo<br />
aroma purificador indefinivelmente o enleva.<br />
Por isso, apesar de todo o seu vulcanismo<br />
revolucionário, de todas as suas faces significativas de<br />
Revelador de novos hemisférios da Emoção, a obra de<br />
Nestor Vítor é edificante, de uma grande luz simpática,<br />
levanta as almas e as impele a marchar por um cuidado<br />
claro e seguro, que é o simples, livre e sensibilizante<br />
caminho da Perfectibilidade ante as manifestações<br />
fenomenais da Natureza.<br />
Os Signos, da forma por que estão elaborados,<br />
trazem essa propriedade secreta e característica que<br />
têm os Eleitos de confundir e mistificar o<br />
convencionalismo oficial da Opinião.<br />
Nestor Vítor vem com a compreensão nítida e<br />
absoluta da missão livre da Arte, do ser por ser, de<br />
logicamente produzir por logicamente sentir.<br />
Ele vem com este arrebatamento emocional, esta<br />
doce volúpia de amor de sentir uma alma, mas uma<br />
verdadeira alma, e ir espontaneamente ao encontro dela.<br />
Com esta ansiedade nervosa e transcendente, com este<br />
grande soluço para alargar, dar mais amplidão e mais<br />
ar às esferas da Vida, a fim de ficar mais sereno e mais<br />
puro diante da transformação da Morte!<br />
Nesta hora violácea de ocaso, em que o Egoísmo<br />
tomou conta da Terra; nestas confusões, neste caos dos<br />
Espíritos e do Tempo, fazem-se mister largas<br />
investigações mortais, mergulhamentos, fundas e<br />
profundas sondagens luminosas, para achar e ter a nobre<br />
coragem de levantar, clara e pura no Espaço, a Radical<br />
de um Espírito.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 121<br />
A VIRGÍLIO VÁRZEA<br />
Evocando com emoção, com a mais intensa<br />
sensibilidade, a época floreal, combatente, bizarra, da<br />
saudosíssima Tribuna Popular, obscura ermida metida por<br />
entre as sombras da vegetação primitiva de uma província<br />
simples e onde uma campanha viva, chamejante, abria<br />
em messes de ouro.<br />
À camaradagem, à febre, ao entusiasmo, ao amor<br />
daqueles intrépidos e inolvidáveis tempos, sans peur et<br />
sans reproche, tempos de gládio e facho, sob as<br />
impressionativas emulações dos belos companheiros, hoje<br />
desgarrados: Araújo Figueredo, Carlos de Faria, Horácio<br />
de Carvalho, e sob a repercutidora saudade de Santos<br />
Lostada.<br />
A esse tocante en arrière, que neste momento me<br />
faz profundamente e recordativamente viver...
Histórias Histórias Simples<br />
Simples
124 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Para solenizar gentilmente, com todas as<br />
delicadezas do espírito, a fulgurantíssima idéia de libertar<br />
escravos nesta aprazível terra, vamos contar aos<br />
amabilíssimos senhores e particularmente às Exmas.<br />
senhoras, umas “histórias simples”, interessantes e<br />
leves e fáceis e claras, uma espécie de croquis ligeiro<br />
do escravo no lar e na sociedade, com a mesma luz geral<br />
do método racionalista, intuitivo e prático do grande<br />
alemão Froebel, um belo homem que à luz do Jardim da<br />
Infância estabeleceu a fisionomia lógica do ensino primário<br />
nas sociedades infantis do mundo, com a sua ciência<br />
liberal e fecunda de transcendentalismo pedagógico.<br />
As “histórias simples” desfilarão por estas colunas<br />
como um cortejo de bênçãos e de ironias, picantes e<br />
dóceis, como um perfume de coreopsis ou como um<br />
perfume de violeta.<br />
Serão trabalhadas de estilo, brandamente<br />
esmaltadas de idéias como um céu esmaltado de<br />
estrelas.<br />
Baterão no assunto pelo que ele tiver de mais<br />
verdade, de mais penetrabilidade, de mais objetivismo,<br />
de mais caráter. Descerão do trono de papelão o ridículo<br />
manequim do preconceito oficial e improgressivo, numa<br />
grande risada salutar e vitoriosa, bem da alma, bem de<br />
crítica e de análise.<br />
Eis, pois, as
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 125<br />
I<br />
À IAIÁ<br />
HISTÓRIAS SIMPLES<br />
Vós sabeis, Iaiá, como o mar é indomável e mau.<br />
O vosso admirável paisinho, uma gentil pessoinha<br />
fraca de nervos, impressionada e enjoada pelos grandes<br />
e fortes balanços do navio no mar alto, o vosso pai,<br />
quando volta de viagem, vos tem de certo contado as<br />
inclemências do oceano, as suas lutas, os seus uivos<br />
despedaçando-se e abrindo-se em diamantes de espuma<br />
no costado das embarcações. E ele tem um riso de alma<br />
contente para vós, unicamente porque se lembra do que<br />
haveríeis de sentir, do quanto o vosso histerismo se<br />
abalaria se o acompanhásseis, a ele já velho e doente,<br />
na costumada peregrinação sobre as águas que gemem<br />
saudades. Pois, ouvi-me, Iaiá: um belo dia, pacífico e<br />
doce, cheio talvez da doçura infinita do vosso olhar, pela<br />
hora calma e solene do meio-dia, um grupo de homens,<br />
pescadores, marinheiros, operários, trabalhadores de<br />
toda a casta, lutadores de toda a vida, fisionomias rudes<br />
e chãs, agrestes como as altas árvores selvagens, se<br />
ocupavam à beira de uma praia em observar qualquer<br />
coisa estranha e inexplicável.<br />
O sol direito jorrando do alto como que apagava,<br />
pela força da luz, os traços ou as sombras carregadas e<br />
duras dos seus rostos. Mas, queridíssima Iaiá, um<br />
agrupamento, de indivíduos em certos lugares e em<br />
certas ocasiões, influi, pelas circunstâncias de mistério<br />
de que se cerca, nas nossas naturezas ocidentais e<br />
brasileiras, ávidas de surpresa, de acontecimentos, de<br />
fantasmagoria. A indecisão de conhecer a verdade<br />
arrasta-nos e nós lá vamos, sôfregos, ofegantes,<br />
impacientes, saber do ocorrido que tem para nós uma<br />
ardente e atormentadora tentação de pecado.
126 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
O caso era o seguinte:<br />
Tinha dado a uma outra praia deserta e longínqua<br />
e fora transportado para aquela, até ser entregue à<br />
família que quem sabe se ele a teria, ou simplesmente<br />
atirado à implacável e fria indiferença da terra, o cadáver<br />
de um homem, velho e negro, envolto numa noite física<br />
que parecia rir muito, com um riso aflitivo e trêmulo,<br />
em toda a extensão da pele do seu corpo. Era<br />
tragicamente lindo de ver-se, Iaiá, o seu cadáver sinistro<br />
mas calmo, mas sereno, como um deus terrível dos<br />
destinos, em cujos olhos vidrados e mudos o sol punha<br />
vivos reflexos luzidios.<br />
.................................................................<br />
Depois, interessante e amável e bela Iaiá, os<br />
boatos correram no cruzamento e, na acumulação dos<br />
tempos, e a história verdadeira dos fatos que abre luz<br />
nos assuntos da treva, veio dizer-nos que aquele<br />
desgraçado não era nada mais nada menos do que... um<br />
escravo que procurava na desventura da vida, a liberdade<br />
da morte, no mar, no mesmo mar indomável e mal aberto<br />
à existência quase marítima do vosso pai.<br />
A Regeneração, Desterro, 23 de junho de 1887.<br />
II<br />
À SINHÁ<br />
Foi pelo inverno que se deu esta cena triste e<br />
lúgubre, Sinhá.<br />
Tinha eu ido passar a invernada de Junho, num<br />
dos nossos sítios tranqüilos e modestos, cheios da<br />
placidez melancólica da vida humilde e serena, duma<br />
paz virginal, lá onde o verde da paisagem não é mais
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 127<br />
casto nem mais doce que as naturezas francas dos<br />
matutos.<br />
No dia em que se deu o fato que vou relatar,<br />
chovera.<br />
Miudinhas cintilações de diamantes, de prata,<br />
como vidro liquefeito, tremeluziam vivamente nos troncos<br />
e nos galhos das árvores. Havia então um ar de frescura,<br />
de purificação, de nitidez em toda a atmosfera e escala<br />
ascendente do verde, desde o verde-paris, claro e forte,<br />
até ao verde-mar, ao verde-bronze, mais cerrado e<br />
compacto.<br />
Não sei se, naquele sítio de um aspecto pueril e<br />
dócil, poderia haver a invasão da maldade e do egoísmo<br />
do homem, Sinhá; mas sei entretanto que os meus olhos<br />
e que o meu coração, doídos e magoados, tiveram de<br />
presenciar isto: Um homem rude, de fisionomia cruel e<br />
trágica, apresentando todo o irracionalismo e<br />
temperamento animal explosivo, vergastava a duros<br />
golpes de relho, de pé atrás para retesar e dar toda a<br />
elasticidade e esgrima melhor ao músculo do braço, uma<br />
frágil mulher, escrava indefesa que não sei se ria ou<br />
chorava, se blasfemava ou suplicava, tanta era a descarga<br />
de impropérios que o terrível homem lhe rebentava as<br />
faces, como o estado de brusca excitação nervosa em<br />
que os meus sentimentos se achavam diante da mais<br />
ignóbil das cenas.<br />
Oh! era brutal, não, Sinhá?<br />
A Sinhá é casada ou é solteira ou é viúva. Tem de<br />
cuidar do seu maridinho querido ou do seu vestido creme<br />
com rendas da Inglaterra para o baile do primo João que<br />
é seu noivo, ou tem de cuidar de chorar elegantemente<br />
o passado através do véu negro, rodeada talvez de filhitos<br />
louros que o defunto deixou; tem de pensar nestas<br />
feminilidades, nestas miudezas, nestes chics de mulher,<br />
nestes nadinhas bonitos e encantadores mas sempre<br />
criancis, mas sempre ingênuos; não tem a preocupação<br />
crua e material do outro sexo, os negócios, a vida prática,
128 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
a responsabilidade da inteligência mais culta para dirigir<br />
nações, para fazer livros, para fazer leis. A sinhá não<br />
tem, por isso, a rija couraça de aço da luta que põe na<br />
consciência de certos homens um terror obtuso e bronco<br />
pela moral, pelo caráter, pelo amor. E o amor é para a<br />
Sinhá, eu sei, o primeiro princípio da sabedoria feminina.<br />
E mal sabe agora a Sinhá o que me ocorreu à<br />
idéia quando vi o caso que lhe contei: É que aquele<br />
desgraçado ente era uma mulher e vivia sob a pressão<br />
do chicote, num sítio afastado e pobre; e a Sinhá é uma<br />
mulher também e vive na cidade dos ricos, das luzes e<br />
dos rumores, sob a música e harmoniosíssima influência<br />
de um piano de Erard que geme scherzos dolentes<br />
atravessados de um luar de amor ou de uma balada<br />
meiga e saudosa cantada por nereidas de voz de prata e<br />
lábios de aurora, numa barca, à flor de espuma do mar<br />
azul.<br />
A Regeneração (o recorte não traz indicação de<br />
data).<br />
III<br />
À NICOTA<br />
Loura Nicota, venta muito lá fora. O leste frenético<br />
e convulsivo arrepia e desgrenha as árvores, fazendo<br />
hieróglifos de rugas trêmulas nas águas turvas dos rios.<br />
Não chove. Mas esse leste que zune, efusiva e zarguncha<br />
num desespero nevrótico de doido, zangaleando as<br />
vidraças, esse leste, loura Nicota, devasta tanto como<br />
as grandes chuvas copiosas que caem dos torvos ares<br />
elétricos. É noite, escura e erma; e alguns vultos que<br />
passam nela, encolhidos, esguios, a largos passos para<br />
casa, semelham duendes, antigos fantasmas das belas
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 129<br />
histórias patuscas contadas por nossas avós junto à<br />
fogueira crepitante e alegre das noites de São João.<br />
Loura Nicota, venta muito lá fora; e tu estarás<br />
talvez dormindo e tu não sentirás o zum-rum do leste;<br />
dormirás no teu leito de alvas cobertas de renda, num<br />
quarto arejado, de papel escarlate com estrelinhas<br />
douradas, janelas para o nascente, sonhando, quem<br />
sabe, este sonho que tem o mesmo ar vago, inconsciente<br />
e o mesmo tom indeciso do vento. Sonhavas que eras<br />
escrava, pobre loura Nicota, que ias vendida para longe,<br />
para além, para onde tu não sabias. Haviam te amarrado<br />
os pés para não fugires. Tinhas no rosto um rasgão de<br />
sangue; e a tua fina pele delicada e cetinosa doía-se<br />
toda naquela crueldade imprudente. E tu gemias e tu<br />
choravas e tu suplicavas. Em vão tudo. Iam te levar para<br />
lá. Tu não sabias bem onde era lá, mas ias. O teu filho,<br />
porque tu tinhas um filho, gritava por ti, soluçava e tinha<br />
quase uns magoados e surdos ganidos de cãozinho amado<br />
e mimoso que o pé brutal de um estranho fere de rijo na<br />
pequenina pata dianteira.<br />
E tu eras mãe, tinhas um filho, querias ficar ou<br />
levá-lo; mas lá estava o olhar imperioso de um sujeito<br />
de cara de pedra impassível e tredo, que te ordenava<br />
que seguisses sem ele. Era daí a instantes. Tinhas que<br />
embarcar. Lá estava o mar brasileiro, o mar latino a te<br />
chamar na coma espumada das suas ondas onde o sol<br />
abria coruscações. Lá estavam as velas enfunadas dos<br />
barcos que se meneavam, as saliências rubras das bóias,<br />
a nuvem branca e macia de algum cano de vapor a sair,<br />
os botes com a mastreação armada, de remos nas<br />
toleteiras, toda a paisagem marítima, fresca e saudável,<br />
desenrolada como um cosmorama diante dos teus olhos<br />
pisados do choro.<br />
E tu embarcaste.<br />
Nisto as névoas do teu sonho se desfizeram como<br />
se desfazem as neblinas da manhã destacando o dorso<br />
azulado das montanhas, e tu, impressionada, levemente
130 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
comovida, fizeste-te a honra de chorar uma lagrimazinha,<br />
um diamante redondo que te tremia na asa rosada do<br />
nariz, como se tu foras a desventurada que, não em<br />
sonhos, mas em realidades, alguém houvesse escravizado<br />
e enviado a senhor estranho, da outra banda do mar,<br />
loura Nicota, fora da terra em que nasceste e na qual<br />
tivesses deixado um filho!<br />
A Regeneração, n° 141, domingo, de julho de 1887.<br />
IV<br />
À BILU<br />
Vamos no trem, Bilu. A locomotiva corta as<br />
distâncias, de um fôlego, atravessando o ar cálido dos<br />
túneis, subindo e descendo montanhas, na grande<br />
coragem de ferro do seu ventre, pelo trilho em fora, aos<br />
guinchos da máquina que apita e expele ondas de fumaça<br />
adiante.<br />
No carro em que eu vou, ao meu lado direito, um<br />
francezito de cabeça pelintra, louro e moço passeia o<br />
seu olhar viajado e latino pela fremente natureza que<br />
acordara com o dia.<br />
As janelas do wagon estão abertas. Vêem-se<br />
extensões de terreno agricultado, terras aradeadas e<br />
lavradas, pastagens, gado que muge, pinheirais imensos,<br />
um mar tremulante e verde de canas, despenhadeiros,<br />
grotas onde a água cai cascateando branca e cristalina,<br />
cumes de serras altas onde os ventos aflam, povoados,<br />
casarias brancas alinhando ao alto das encostas, rindo<br />
na luz clara da manhã, um idílio fresco de mulheres, de<br />
raparigas novas que levam cabras ao monte, cantando,<br />
todo um bucolismo e um lirismo campestre que o largo<br />
concerto wagneriano da floresta enche dos pomposos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 131<br />
sons metálicos das aves, que estridulam notas no espaço,<br />
voando.<br />
O francezito louro, duma aparência fina de duque,<br />
com toilette leve de verão, assesta repetidas vezes o seu<br />
lorgnon para fora, para as amplidões de verdura e<br />
particularmente para mim.<br />
Eu indago de mim mesmo o que será. Ele retorna<br />
a acertar-me o vidro redondo, sem aro, apenas com uma<br />
pequenina argola de metal de onde pende uma delgada<br />
fita preta. Há uma atmosfera de curiosidade. Os viajantes<br />
interrogam-se com o olhar despindo os guarda-pós pela<br />
razão da calma que já vai no dia, um forte dia de verão.<br />
Mas o francezito não se pode conter e olha desta vez<br />
para mim num seigneur de admiração e de surpresa.<br />
Eu não dou cavaco e faço não entender. Ele então<br />
levanta-se do seu posto, vem a mim e pergunta-me baixo,<br />
mas em louvável português, apontando para um vasto<br />
terreno onde uns homens negros, mais de cem,<br />
trabalhavam sob a ardente chama do faiscante sol<br />
abrasador: O que é aquilo, homens negros, trabalhando<br />
assim, ao sol, quase nus! Oh! São escravos brasileiros,<br />
respondi-lhe eu no mesmo tom. Então os brasileiros são<br />
escravos!... Eu disse que sim. Falei-lhe da França,<br />
mostrei-lhe os seus homens, Thiers, Gambetta, Michelet,<br />
os grandes patriotas, os belos corações do amor da<br />
igualitaridade humana. Toquei-lhe em Girardin. Teve<br />
uma comoçãozita nervosa. Riu-se. Disse mesmo, Girardin<br />
é o Jornal, é o princípio, é a doutrina. Falei-lhe de Zola,<br />
de Goncourt, de Daudet, de Maupassant, de Mendés, de<br />
Richepin, de Rollinat.<br />
Falei-lhe da Inglaterra. Olhando-me e disse: da<br />
Inglaterra só o sport man e o punch, não o jornal,<br />
acrescentou com espírito, mas o punch feito com rum e<br />
conhaque, chamejante, de vivas chamas azuis e<br />
amarelas.<br />
Compreendi. Mas ele voltou-me aos homens<br />
negros que trabalhavam.
132 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Eu então expliquei-lhe que eram escravos no eito,<br />
trabalhando sem cessar, desde o romper da aurora até<br />
a noite, quase nus, vivendo em senzalas, buracos escuros<br />
e subterrâneos onde não há ar e onde uma eterna<br />
umidade de terrenos palustres põe nos pulmões a<br />
mordente tarântula da tísica. Expliquei-lhe mais que<br />
não havia nas fazendas, como se chamavam os centros<br />
em que residem escravos, ordem de doenças, de agonias,<br />
de prazeres, de entusiasmos. Aqueles indivíduos cor de<br />
treva eram maquinados, dizia eu; tinham um cordel nos<br />
olhos, outro na boca, outro na cabeça, outro nas pernas,<br />
outro nas mãos. Quando o feitor queria que eles rissem<br />
puxava um cordel, quando queria que chorassem puxava<br />
outro, quando queria que pensassem puxava outro,<br />
quando queria que andassem puxava outro, quando<br />
queria que falassem puxava outro.<br />
O francezito ria devagar e entredentes.<br />
Depois, senhor, explicava-lhe ainda eu, não têm<br />
vontade própria para coisa alguma, comem os restos mal<br />
cheirosos de comidas de muitos dias, são separados<br />
brutalmente, os filhos de suas mães, as mães de seus<br />
filhos, e quando alguém intercede piedosamente por eles,<br />
há um personagem notável, Sua Majestade o feitor, que<br />
os amarra a troncos de árvores e lhes abre as carnes, a<br />
chicote, em fundas chagas de sangue.<br />
E o francezito ria. E perguntava, de olhar aceso e<br />
indagador, com um sarcasmo agudo na ponta do nariz<br />
de celta: E a polícia?! Eu ria-me também, dizendo-lhe:<br />
Mas isso é lei, é muito legal tudo quanto explico ao<br />
senhor; pois se os donos de escravos têm até direito de<br />
propriedade! Eles compraram a mercadoria, compraram<br />
a carne, podem fazê-la apodrecer nas senzalas.<br />
Nisto anuncia-se a estação a que eu me destinava<br />
e tive de separar-me do amável francês que ficou no<br />
trem; ia desembarcar mais adiante.<br />
Porém ainda hoje, prezada Bilu, parece-me ver o<br />
francezito de cabeça pelintra, louro e moço, o francezito
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 133<br />
chamado Ideal pátrio, rir muito, rir ironicamente do país<br />
da luzida pessoa do D. Pedro II, assestando o seu pedaço<br />
de vidro redondo, na noite, numa careta diabólica, para<br />
os homens negros escravizados à vergonha da História.<br />
A Regeneração, n° 144, Desterro, quinta-feira, 7<br />
de julho de 1887.<br />
V<br />
À SANTA<br />
Nós, adorada santa, tu e eu somos livres,<br />
escravizados apenas pelo amor. Bom é agora, neste caso,<br />
que eu te conte umas coisas bonitas sobre liberdade e<br />
sobre escravidão. Escuta.<br />
* * * * * * * * * *<br />
O nazareno Jesus, de maneiras singelas e<br />
cândidas, de voz persuasiva e penetrante, de palavra<br />
fácil e clara como a luz, representa o poderoso e grande<br />
princípio da moral dos povos. A sua vida, uma vida de<br />
piedade, de simplicidade e de amor, será, pelos tempos<br />
em fora, a filosofia abençoada da humanidade. Ele veio<br />
da Galiléia, veio do povo hebreu, cheio de mistérios<br />
sagrados. O divino operário, o filho humilíssimo e calmo<br />
do carpinteiro José, tinha ao redor de si uma atmosfera<br />
de honestidade e de paz.<br />
Os fracos, os pequenos, os tristes, os sofredores,<br />
os lacrimosos, todos ele cobria e aquecia do frio da<br />
desolação com o seu olhar bom como a sua doutrina,<br />
doce como o seu rosto e como os seus cabelos<br />
encrespados e lindos.<br />
Deixai vir a mim os pequeninos, dizia ele. E as<br />
crianças dóceis e pobres aproximavam-se risonhas desse
134 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Cristo que era a esperança, que era a caridade, que era<br />
a crença e que era a fé.<br />
Nunca fora sonhado outro céu mais largo e mais<br />
puro do que a alma cristã do Messias cuja vinda a<br />
profecia anunciara, pela voz dos sábios do Oriente, em<br />
letras de verdade e de luz.<br />
Desde a Caldéia até a Síria a sua fama e o ar<br />
brando e simpático do seu tipo ressoavam, casta e<br />
sonorosamente, como uma música vinda dos astros;<br />
alastravam-se nos corações como eternos rosais que o<br />
sol fecunda e faz vigorizar. Cristo! Cristo! Cristo! Jesus!<br />
Jesus! Jesus! Assim iam de boca em boca estas sílabas,<br />
como preces, como ladainhas católico-romanas.<br />
Quando ele aparecia era como uma aurora<br />
iluminando tudo. Abriam-se os casais e as almas para<br />
recebê-lo como para receber o dia. Paravam as gentes<br />
nas estradas, os betânios, os de Jaffa, para vê-lo de<br />
perto e para ouvi-lo falar; ou sentavam-se junto às<br />
piscinas, ou debaixo dos sicômoros, ou à sombra das<br />
palmeiras, deliciados pela sua frase nua e tosca onde<br />
havia unção do bem, tanta humanidade, tanta<br />
fraternidade e grandeza.<br />
E o Cristo tinha sempre diante de si, dos seus<br />
olhos meigos e ternos que sabiam ver longe e fundo, a<br />
humanidade triste e paciente que sofria e chorava na<br />
obscuridade da noite, lá, quem sabe onde, muito além,<br />
na pátria da miséria, longe da vida e bem perto da morte.<br />
E ninguém diga que ele foi um revolucionário.<br />
Ele foi um revolucionário se acaso o sol com a sua<br />
viva claridade pode fazer revolução nos vegetais. Não!<br />
Ele não foi petroleiro, não foi incendiário; transformava<br />
mas não revoltava. Como pensador, pensava; como pastor<br />
de almas, apascentava o seu rebanho.<br />
Jesus era escravo do seu ideal, era escravo da<br />
sua religião, da sua igreja, do seu apostolado, da<br />
humanidade enfim; mas Jesus amava e queria, pelo<br />
amor, a liberdade dessa própria humanidade.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 135<br />
Uma bela mulher morena e pecadora lhe acendera<br />
uma chama tão veemente e tão nobre que Jesus se<br />
considerava um Deus, tanta era a altura do afeto que o<br />
santificava todo.<br />
Jesus, escravo, queria ser livre também para o<br />
amor como a outra gente; queria amar muito, amar<br />
sempre, amar na eternidade; porque Jesus, como Deus,<br />
tinha essas consoladoras palavras, falava em eternidade,<br />
falava em céu. Queria a vida eterna e a alma imortal.<br />
Madalena, que outra não era a sua amada, tinha<br />
pelo nazareno muito respeito e muita adoração. O amor<br />
entre eles dois era a liberdade. Mas a Judéia era a<br />
escravidão, a escravidão do princípio, de doutrina, de<br />
uma certa ordem de idéias práticas e puras da vida e<br />
que Jesus apregoava, esclarecia e exemplificava com as<br />
suas parábolas e com as suas prédicas.<br />
Por isso a Judéia crucificou Jesus e por isso Jesus<br />
não fecundou o ser de Madalena; de sorte que não ficou<br />
sobre a terra homem nenhum profundamente e tão<br />
santamente imaculado e sereno como ele.<br />
E essa mesma lenda da ressurreição que a Bíblia<br />
conta e que só poderia ser feita por filósofos evangelistas<br />
embriagados pelos eflúvios transcendentais do<br />
cristianismo, tal é o seu alcance, a sua natureza<br />
racional, nada mais que dizer senão que aquele que<br />
adora, protege e combate a liberdade, triunfa e ressuscita<br />
até da morte que é a única escravidão eterna, onde<br />
habita o verme; porque, se não ressuscita em matéria,<br />
ressuscita em espírito no coração de todas as eras.<br />
* * * * * * * * * *<br />
Eis pois, aí tens, Santa, oh doce filha do meu amor,<br />
o que é liberdade e o que é escravidão!<br />
A Regeneração, n° 146, Desterro, sábado, 9 de julho<br />
de 1887.
136 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
VI<br />
À BIBI<br />
A Bibi foi criada desde pequenina com a sua<br />
escrava Maria. Maria é uma crioula muito viva, de olhos<br />
rasgados, raiados de sangue, acusando temperamento<br />
ardente e tresloucado. Nunca Bibi deixara Maria. Eram<br />
os “irmãos siameses”, costumava a afirmar com<br />
autoridade o senhor, o Castro, advogado, quando voltava<br />
dos clientes para a família.<br />
Bibi era uma raparigota faísca, barulhenta,<br />
mexendo em tudo, algazarrenta, trepando aos etagères<br />
para brincar com os copos limpos e arrumados ali,<br />
derrubando de sobre o gueridon o elegante álbum de couro<br />
da Rússia com fecho de metal branco, alvoroçando as<br />
aves domésticas no quintal, amarrotando e quizilando<br />
as visitas com implicâncias, com ditos, com esquisitas<br />
comparações desastrosas. Porque afinal os pais faziamlhe<br />
a vontade, deixavam-lhe o gênio à rédea solta, não<br />
lhe ralhavam, não viam aquilo. Demais, Bibi era o mimo<br />
da casa, a filha única, não queriam contrariá-la,<br />
coitadinha; também, era uma criança, diziam, tinha<br />
tanta graça.<br />
E Maria e Bibi completavam-se. Nunca se via uma<br />
sem a outra.<br />
Influenciada por Maria, Bibi fazia tudo. Maria<br />
mandava-a tirar às escondidas da sinhá velha um torrão<br />
de açúcar, Bibi tirava; Maria mandava tirar uma ave<br />
qualquer do quintal para fazer com as meninas da<br />
vizinhança um festejo de bonecas, Bibi tirava; Maria<br />
mandava tirar um vintém ou dois ou três ou quatro ou<br />
cinco, do resto das compras do dia, de sobre a mesa da<br />
sala de jantar, Bibi tirava. Ambas inclinadas ao mal<br />
desenvolviam-se no mesmo meio como uma planta<br />
enxertada na outra. E Bibi tornava-se imprudente, de
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 137<br />
maus costumes, mentirosa e vingativa. Maria era a<br />
causa, Bibi o efeito.<br />
Bibi ia fazer quinze anos. Tinha todos os predicados<br />
complementares da feminilidade verde: a excessiva<br />
vaidade, o amor pelos galanteios, o romantismo dos<br />
recitativos langorosos e sem metro acompanhados ao<br />
piano numa melopéia monótona e esfalfada, os passeios<br />
ao luar calmo e voluptuoso de tranças soltas pelas<br />
espáduas; os espetáculos de dramas sinistros,<br />
impossíveis, os bailes, os romances manhosos e<br />
desenxabidos de causar nevroses, vertigens, febres, um<br />
poucochinho de spleen pela virtude e de nostalgia pelo<br />
vício.<br />
Pelas quinze primaveras de Bibi, dançara-se muito,<br />
fizera-se estilo palaciano nas salas do Castro. Ele e a<br />
mulher tinham o coração transbordando de entusiasmos<br />
paternos pela filha, como os convivas tinham as taças<br />
transbordando de champagne rosé e de chambertin, nos<br />
hips e nos hurrahs.<br />
E as luzes das serpentinas crivando prismas<br />
faiscantes nos pingentes que tilintavam com o ruído das<br />
valsas dulçorosas que faziam palpitar os seios e gemer<br />
as sedas, descreviam hieróglifos de sonhos confusos,<br />
cheios de névoas, como castelos no ar, nas imaginações<br />
picadas de vinho e atordoadas naquela quente<br />
temperatura coreográfica.<br />
Um dia Bibi teve um namorado. Soube-se que era<br />
pobre, os pais não queriam. A gente de Bibi também não<br />
era rica; mas afetava de modo luzente e discreto. Pobre<br />
de Bibi.<br />
Que de choros, de agoniazinhas, de raivas naquela<br />
natureza fremente e desregrada... Que bater de pé!<br />
Mas Bibi não perdera todos os recursos, tinha a<br />
sua íntima, a sua Maria.<br />
Foi a ela, aconselhou-se com ela, abriu-se, disselhe<br />
tudo. Maria ouvia Bibi, reluzindo toda no ônix de sua<br />
cor.
138 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Deu-lhe planos, conselhos, ensinou-a em coisas<br />
que sabia, de muito efeito.<br />
Disse-lhe que escrevesse que ela levaria a carta<br />
e traria alguma que ele tivesse. Ficaram nisto.<br />
Passados tempos soube-se que Bibi fugira com um<br />
palhaço e que Maria dissera ao vê-la partir:<br />
– Tenho saudades dela mas não perdi o negócio.<br />
O meu plano valeu-me cinco notas de dez tostões,<br />
novinhas em folha. Muito bom aquele seu Chico palhaço!<br />
Este interessante caso da outra Bibi de teu nome<br />
fez-me despertar no cérebro a idéia de que todas as<br />
Bibis como tu, criadas desde a infância com alguma<br />
escrava Maria, recebem os costumes e os instintos maus<br />
dessa própria Maria; porque o elemento escravo,<br />
pernicioso e fatal como é, contagia de vícios a família<br />
brasileira da qual tu, meiguíssima, boa e excepcional<br />
Bibi, puramente descendes.<br />
A Regeneração, n° 150, Desterro, quinta-feira, 14<br />
de julho de 1887.<br />
VII<br />
À NENÉM<br />
Hoje é domingo, Neném. Celebra-se a Semana<br />
Santa.<br />
Estamos na Ressurreição.<br />
São cinco horas da manhã.<br />
Na rua, há ainda um ar vago de alvorada que põe<br />
uma guipure de névoa nos aspectos variados da natureza.<br />
Entremos na igreja.<br />
Na igreja, há também o mesmo ar vago trazido<br />
pela larga e polida vidraçaria do templo que se conserva<br />
aberta; ar com tudo menos vago talvez pela razão dos<br />
lustres acesos e da gala sagrada que enche de
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 139<br />
resplandecimento e solenidades toda a extensa nave<br />
onde os fiéis rumorejam num crescendo de mar<br />
tormentoso e cavado.<br />
O altar-mor está vistosamente ornado, rutilante,<br />
cheio de flores colocadas em jarros dourados, rodeado<br />
de grandes tocheiros que faíscam e reluzem com as suas<br />
chamas ensangüentadas e amarelas.<br />
Lá em cima, até onde os olhos sobem mais, num<br />
trono de luzes, entre uma pesada cortina escarlate caída<br />
em pregas longas e fundas, vê-se o Cristo, ressuscitado<br />
e chagado, tendo numa das mãos um ramo verde.<br />
Nos altares laterais, os santos parecem ainda<br />
possuir a auréola triunfal de aleluia de ontem e sorriem<br />
seraficamente, meigos, tanto os mártires como os<br />
gloriosos.<br />
Pelo teto abobadado, como convém às construções<br />
de certos edifícios em conseqüência da acústica, da<br />
repercusão dos sons entre as harmonias melífluas,<br />
sentimentosas, ternas e docemente melancólicas dos<br />
violoncelos e das rabecas, das flautas e do harmonicorde<br />
que chora, pianíssimo, na majestade sagrada das suas<br />
notas, ecoam sonoramente as vozes que vêm do coro,<br />
beatíficas e sérias, entoando o Kirie eleison, num<br />
misticismo de bandolins empíricos cujas cordas flébeis<br />
os ventos celestes vêm gemer e soluçar tremulamente.<br />
Os sacerdotes festivamente paramentados, com<br />
as suas capas lustrosas e relampejantes, verdes,<br />
encarnadas, brancas e roxas, bordadas a flores de ouro,<br />
de estolas pendidas no braço, ou com as suas sobrepelizes<br />
alvas e rendadas destacando forte na batina preta,<br />
curvam-se em genuflexões religiosas diante do altarmor<br />
e, levantando-se depois com mesuras graves e<br />
medidas, lê um deles a “sacra”, em voz pouco alta: In<br />
principio erat verbum et verbum, etc., enquanto os acólitos,<br />
em linha e reverentes, agitam, fazem balançar<br />
cadenciada e ritmadamente os lavrados turíbulos de<br />
prata, donde partem brancas e leves espirais de incenso.
140 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
E o cerimonial prossegue com toda a minudência<br />
escrupulosa do rito romano.<br />
Mas a minha atenção prende-se agora a um vulto<br />
feminino ajoelhado para lá do cruzeiro.<br />
Olha, não estás vendo, Neném, aquela senhora<br />
idosa, de cabelo repartido em bandós, de vestido preto e<br />
de amplo mantelete de vidrilhos, ali, perto da capela do<br />
santíssimo?<br />
Bem que tu conheces!<br />
Repara bem como ela reza com devoção.<br />
O longo rosário de padre-nossos e de ave-marias<br />
pende-lhe das mãos engelhadas e trêmulas que o<br />
reviram sempre de um lado para outro, enquanto os seus<br />
lábios frouxos e desmaiados balbuciam com furor<br />
histérico intermináveis orações que falam do amor<br />
divino, da tentação da carne, do inferno e da glória<br />
eterna.<br />
Em cada ruga profunda do seu rosto há um<br />
mistério, talvez um remorso, um crime talvez.<br />
Ela mal pode ter-se de joelhos, as pernas<br />
fraqueiam-se-lhe, o seu tronco curva-se e curva-se mais<br />
como se se quisesse dobrar e partir; e no entanto essa<br />
senhora reza sempre, sem levantar os olhos para<br />
ninguém, nem para os santos, preocupada no seu mister<br />
beato e salvador, apenas olhando obliquamente, de<br />
soslaio, como uma pessoa vesga, de modo invejoso e<br />
cruel, para algum chapéu Pierrete, de rosas e clematites,<br />
colocado vitoriosamente, com um atrevimento e uma<br />
brejeirice e petulância chic, na cabeça grácil de alguma<br />
mulher bela e nova.<br />
Oh! essa velha tem uma história lúgubre, Neném.<br />
Ali onde a vês está sem dúvida com cinco<br />
comunhões e seis confissões.<br />
Vem todos os dias à igreja, muito cedo; às vezes<br />
ainda há crepúsculo matutino, confessar-se pelos seus<br />
grandes pecados e obter a absolvição e as indulgências<br />
do senhor padre.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 141<br />
Ah! ele que a confessa não tem culpa, não.<br />
Não tem porque conhece certamente, embora o<br />
fumo espesso da teologia lhe tirasse ao espírito certa<br />
lucidez filosófica mais necessária, ele conhece como é<br />
feita toda essa manobra da religião, não a religião alegre,<br />
piedosa e consoladora do Cristo que eu e tu adoramos,<br />
Neném, mas a triste e pervertente religião hipócrita dos<br />
homens.<br />
Neném, tu és uma moça de espírito, tocas muito<br />
bem Schubert e Verdi, tens uma paixão artística pelo<br />
“sento una forza indomita” do Guarani e pelos musicais<br />
esplendores gregos da Aída; teu pai, um capitalista grave<br />
e lord, de cheques ao portador, parecido com um certo<br />
nobre de teatro, educou-te muitíssimo bem, com capricho<br />
e dedicação mesmo; fez-te aprender o francês, o inglês,<br />
pôs às tuas ordens um magnífico professor de música<br />
vocal, mandou-te ensinar um pouco de geografia física,<br />
de geografia matemática, de geografia política e de<br />
história e creio mesmo que até chegou a conseguir que<br />
tu folheasses com atenção, por muitas vezes, um tratado<br />
de fisiologia e de patologia, porque o teu belo pai tinha<br />
um orgulho e um desejo extravagante e clássico de te<br />
fazer médica.<br />
Até mesmo me afirmaram que certos folhetins que<br />
os periódicos literários publicam são escritos por ti, como<br />
“As borboletas”, “Os ninhos de colibris”, “Os querubins<br />
do lar”, etc. com a maneira gentil de Valentina de<br />
Lucena, de Guiomar Torresão, de Júlia da Costa e sob o<br />
pseudônimo esbelto e aristocrático de – Rosalina do Val.<br />
Portanto, educada assim como és, inteligente e<br />
ponderosa, hás de saber por certo o que é um caso<br />
patológico.<br />
Sabes, não é?<br />
Pois essa velha é isso, é um caso patológico<br />
terrível que ainda o mais sábio homem de ciência não<br />
poderá estudar facilmente.<br />
Essa velha tem a nevrose da maldade.
142 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Ela é devota assim como tu vês, não é verdade?...<br />
Mas se tu a visses em casa!<br />
Em casa ela muda de figura, transforma-se, não<br />
é aquela que lá está, não é a mesma.<br />
Todo aquele aparato de beatice some-se como<br />
numa mágica, pelo alçapão do cálculo e do interesse<br />
egoísta e fica só em cena, no tablado da sala, da varanda<br />
ou da cozinha, uma mulherzinha pantérica, sinistra e<br />
fatal que não é mais trêmula como a outra nem mais<br />
curvada também; mas uma mulher que se impertiga,<br />
que anda rápida e desembaraçada, falando forte, de<br />
relâmpagos na voz e com um olhar onde há o sangue<br />
dessorado e venenoso de muita raiva concentrada e de<br />
muita inveja dos outros.<br />
Essa velha possui escravos que castiga atrozmente,<br />
de uma maneira desumana e brutal.<br />
E quando volta da igreja, com o ar ressabiado e<br />
hostil por ter ouvido repreensões ásperas do confessor<br />
que a conhece e que não lhe permite fazer todas as<br />
maldades e barbaridades que ela quer, a velha,<br />
despeitada por ele não estar sempre do seu lado, a seu<br />
favor naquele modo de vida, de mulher irascível e má,<br />
chama uma pobre escrava, doente e encanecida pela<br />
idade e pelos sofrimentos, e dá-lhe pela cara com um<br />
vergalho de couro molhado e passado em areia ou chegalhe<br />
aos seios e às pernas um pedaço de lenha ardente<br />
em brasa, dizendo-lhe entre um riso satânico e feroz:<br />
Anda, negrinha, pula agora aí e lembra-te do pai Antônio<br />
que não te quis; também o padre não me quer mais a<br />
mim.<br />
A Regeneração, n° 162, Desterro, quinta-feira, 28<br />
de julho de 1887.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 143<br />
VIII<br />
À ZEZÉ<br />
Neste momento, Zezé, tenho sobre a mesa de<br />
escrita, diante dos olhos, um pequeno folheto cuja capa<br />
da frente forma o desenho sereno de uma nuvem<br />
prateada, no meio da qual um bando alegre de serafins<br />
celestes, de crianças louras e rechonchudas voa com as<br />
suas asas rosadas, suspendendo no ar uma fita azulclaro<br />
que diz – Lisboa-Creche.<br />
Lisboa-Creche é um jornal-miniatura, galantezinho,<br />
leve e acariciador como um ninho de ave, onde uma<br />
turba luminosa de indivíduos que escrevem deixou toda<br />
a cintilação do seu espírito doce e cantante como uma<br />
revoada zumbente de abelhas douradas.<br />
Esmaltam a Creche, além dos escritos mignons,<br />
graciosíssimas aquarelazitas, espécie de cromos<br />
encantadores, das quais ressalta a Tarantella,<br />
interessante dança de costumes napolitanos, meridional<br />
e vibrante, ruidosa de primor e de graça, pintada com<br />
muito chic pelo pincel elegante e radioso de Bordallo<br />
Pinheiro, cheia de um sol de talento artístico como de<br />
um sol dos trópicos.<br />
E para que se fez esse jornal miniatura?<br />
Eu te digo.<br />
Um dia, em Portugal, lá onde canta a cotovia “tão<br />
límpido, tão alto que parece que é a estrela no céu que<br />
está cantando” uma rainha amável e pia como o seu<br />
nome deu-se ao bom humor, lembrou-se de descer<br />
simpaticamente até ao povo e abriu os seus braços<br />
fidalgos às crianças sem asilo e sem pão.<br />
Porém, tantas e tão pobres eram elas que não<br />
bastariam por certo o socorro e o amparo de uma rainha,<br />
conquanto benévola e poderosa fosse, porque essa rainha<br />
não sustentaria, ela só, nos seus ombros débeis e
144 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
delicados, o peso de tanta desventura e tanta<br />
necessidade juntas.<br />
Então agruparam-se em redor dela os artistas, os<br />
escritores, os poetas – todos eles floridos e frementes<br />
de idéias – contentes e gloriosos como se fossem<br />
desenterrar de cova do passado, com a enxada da<br />
fantasia, todas as lembranças queridas e saudosas da<br />
sua infância.<br />
E daí nasceu, como homenagem à idéia da rainha,<br />
o Lisboa-Creche.<br />
Bem vês, Zezé, que a intenção, que a razão<br />
principal desse jornalzinho não pode ser mais pura; é<br />
tão pura, tão casta e tão cândida mesmo como uma<br />
magnólia aberta, orvalhada ao luar.<br />
Ocorre-me isto à memória, apraz-me narrar-te,<br />
conversar amigavelmente e fraternalmente contigo estas<br />
coisas, porque sei que também tens um coração generoso<br />
como a rainha.<br />
Tens sim.<br />
E para prova disso, basta olhar para as lindas<br />
chinelas de lã, bordadas a missanga, que tu trabalhas<br />
com tanto gosto e orgulho.<br />
As tuas mãos giram e tornam a girar o tapete de<br />
um para outro lado, esse tapete por hora tosco e simples,<br />
mas que há de ficar estrelado daqui a pouco dos<br />
fulguramentos da tua habilidade.<br />
Os fios de lã caem de entre os teus dedos,<br />
flexivelmente, como fios de luz, enquanto o retrós colorido<br />
e fino, com tons de íris etéreo, confunde-se em meadas,<br />
cujo segredo da ponta só tu conheces, dentro da tua<br />
cesta de vime.<br />
E para que fazes isso, Zezé?<br />
Tu mesma nada me dirás, nada me responderás,<br />
nada me contará a tua boca, porque desejas conservar<br />
mistério nessas chinelas até um certo tempo, até ao dia<br />
em que elas tiverem de levar o destino que tu imaginas<br />
e queres; mas, não obstante essa tua persistência em
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 145<br />
nada me revelares, eu sei de boa fonte, de fonte bem<br />
cristalina, sei do teu próprio coração que não mente<br />
nunca nem engana a ninguém, que tu caprichas nesse<br />
objeto porque tencionas dá-lo ao bazar dos escravos e lá<br />
deve haver com certeza ricos objetos aprimorados, muito<br />
preciosos e muito lindos com os quais esse não poderia<br />
naturalmente competir jamais, se não fosse, como está<br />
sendo, trabalhado caprichosamente.<br />
A Regeneração, n° 193, Desterro, sábado, de<br />
setembro de 1887.
Outras Outras Evocações<br />
Evocações
148 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ELIZIRNA<br />
Elizirna! Elizirna!<br />
Como faz a gente pensar nos mundos de além,<br />
emigrar, boemizar, para a gare azul dos sonhos estrelados<br />
de auroras, o teu perfil correto, linha direita de<br />
imperatriz da Rússia.<br />
Como essa cintura, mais delicada e galante do<br />
que a pétala branca, de leite, da deliciosa magnólia,<br />
quando a gente te vê elegantemente espartilhada,<br />
jubilosa, parecendo uma alegria do céu, tantaliza e<br />
arrebata os bravios leões do desejo.<br />
Elizirna! Elizirna!<br />
E a tua epiderme, macia, jambosa, com a penugem<br />
veludínea do pêssego, molar com a suavidade doce do<br />
creme, e o frescor perfumoso da malva-maçã; de um<br />
róseo queimado, a tua epiderme, flor azul dos luares<br />
brancos, impressiona o nervosismo, dá irritabilidades<br />
espasmódicas.<br />
E a música do teu laringe, o gargantear<br />
cantarolante do cristal, semelhante ao tinido miúdo,<br />
claro, sonoro de uma campainha elétrica, vibrada num<br />
palácio de vidro, como prostra a alma num êxtase, num<br />
êxtase...<br />
Elizirna! Elizirna!<br />
E a curva do teu colo, a abençoada curva do teu<br />
colo!<br />
Quantos ideais meus, quantas cismas<br />
encharcadas no licor saborosíssimo da ventura que<br />
palpita, que ferve, que escalda e esbraseia, não foram<br />
flutuar, boiar no maciosíssimo topázio rico do teu colo<br />
moreno, como um batalhão triunfal de pássaros<br />
vermelhos, nos fluidos da enorme concha de alabastro<br />
do firmamento.<br />
Elizirna! Elizirna!...<br />
Pomba doce dos países de ouro.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 149<br />
E a tua boca, cor de pitanga madura, levemente<br />
roxa, esse escrínio rútilo dos meus beijos, esse fruto<br />
ruborizado, polposo, sempre aromático, infiltrado do<br />
sândalo agradável da mocidade, do gosto saudável da<br />
beleza pura, castíssima, frescurizada, vegetabilizante,<br />
como é consoladora e boa.<br />
Elizirna! Elizirna!<br />
E a tempestade negra dos teus cabelos, cortada<br />
pelos fuzis dos meus olhares, por onde o vento absurdo,<br />
desabrido, das minhas desgraças, faz ziguezagues e<br />
esfuziotes continuados; o mar profundo e vão dessas<br />
tranças, por onde o meu destino naufraga<br />
desoladoramente, como eu acho terrivelmente<br />
deslumbrante, esmagadoramente belo...<br />
Elizirna! Elizirna!...<br />
E os teus olhos, filha, abundantes de cousas<br />
celestiais, fartos das bênçãos do gozo, inundados dos<br />
equatorianos rosicleres primaverinos, cheios dos<br />
pizzicatos, dos acceleratos das paixões, como iluminam e<br />
cantam...<br />
Elizirna! Elizirna!...<br />
Parecem dois sóis esplendorosíssimos, os teus<br />
olhos, cada qual com um sabiá dentro, abrindo,<br />
cristalinizadoramente, em trilhos gorjeadores, a<br />
bravuresca garganta lírica...
150 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
CONSCIÊNCIA TRANQÜILA<br />
O ilustre, o douto homem rico, o abastado senhor<br />
de escravos está já, segundo a previsão do seu médico,<br />
quase às portas da morte.<br />
Sobre o luxuoso leito largo, na alvura fria dos<br />
linhos, entre os gélidos silêncios das paredes altas, ele<br />
está mudo, semimorto, dormindo, como que se<br />
predispondo para o sono eterno.<br />
No confortável aposento onde ele aguarda afinal o<br />
último suspiro, vai e vem, abafando os passos, toda uma<br />
sociedade de honrados bajuladores, de calculistas<br />
espertos e frios, de interessados argutos, de herdeiros<br />
capciosos, de tipos bisonhos e suspeitos, almas<br />
simplesmente consagradas ao instinto de conservação<br />
da vida no que ela tem de mais caviloso e oblíquo.<br />
Graves e grandes, como bocejos lassos, como tédios<br />
esquecidos, os momentos do moribundo se prolongam e<br />
os comentários esfuziam e ferem, à surdina, o ar doentio,<br />
pesado...<br />
– Não há dúvida que vamos perder um homem<br />
útil, prestimoso, eminente, carregado de saber e<br />
virtudes, bom e piedoso, ah! sobretudo bom e piedoso.<br />
Que coração de anjo para os humildes, para os tristes,<br />
para os fracos, para os desamparados. A sua bolsa,<br />
sempre inesgotável, dividia-se com todos. Verdadeiro<br />
apóstolo da caridade, da religião e da ciência, era um<br />
justo na acepção da palavra, de uma moral elevada até<br />
à santidade. Nunca me há de esquecer de como ele foi<br />
sempre generoso para essas raparigas miseráveis, gente<br />
baixa, que nem ao menos tem a vala comum para cair<br />
morta e que ele afinal protegia com a sua bolsa e<br />
arranjava-lhes noivos entre pobres-diabos da plebe,<br />
quando por acaso elas deixavam de ser virgens com ele...<br />
De muitas, de muitas sei eu que ele tornou felizes com<br />
o seu prestígio, dando-lhes casamento e dinheiro. Sim!<br />
porque outro fosse ele, como esses bandidos que por aí
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 151<br />
andam, que deixariam as pobrezinhas ao desamparo e<br />
com filhos. Ele, não; casava-as logo e assim trazia<br />
felicidade aos casais que constituía. Muito, muito justo,<br />
sempre foi muito justo em tudo! Homem distinto! Homem<br />
distinto! Este é dos poucos que podem morrer com a sua<br />
consciência tranqüila, perfeitamente tranqüila!<br />
Quem assim falava com esta ingênua malignidade,<br />
com esta nova, inédita inocência, com esta terrível e<br />
eloqüente ironia, por si próprio, no entanto,<br />
desconhecida, era um homem de olhos ladinos e gestos<br />
sacudidos, próspero, rubicundo, expressão loquaz de ave<br />
rapace, nariz altivo, espécie de sagaz furão de negócios,<br />
parecendo estar sempre ocupado em absorver e conhecer<br />
pela atilada pituitária o ar das cousas e dos interesses<br />
imediatos.<br />
Num dos dedos da sua mão ágil, pronta, precisa<br />
para o assalto à vida, com a medida exata dos grandes<br />
golpes ocultos, reluzia a clara gota d’água iriada de um<br />
rijo brilhante.<br />
Mas, o troféu de glórias deste curioso exemplar<br />
humano era o famoso e filaucioso cavaignac, meio<br />
diabólico, meio cínico, que ele afagava com gravidade e<br />
volúpia, abrindo em leque, num gozo particular, como se<br />
o cavaignac fosse o seu inspirador e o seu oráculo naquela<br />
eloqüência.<br />
Como todo o bandido bem acabado, perfeito, como<br />
todo o Tartufo casuístico, tinha o seu séquito, os seus<br />
satélites, que instintiva ou calculadamente ouviam e<br />
aprovavam sempre em silêncio servil tudo quanto ele<br />
dizia e lhe forneciam a manhosa e morna atmosfera,<br />
feita de rastejantes e vermiculares sentimentos na qual<br />
ele vivia à farta, num transbordamento de tecidos<br />
adiposos, cevando-se nas lesmentas vaidades e caprichos<br />
mesquinhos dos outros, lisonjeando-lhes as pretensões,<br />
alimentando-lhes os vícios, devorando-lhes o ar, numa<br />
verdadeira existência parasitária.
152 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Mas, agora, todas as atenções se voltavam,<br />
alvoroçadas, ansiosas, para o velho moribundo, que<br />
acordara afinal em sobressaltos, o olhar desvairadamente<br />
pairado num ponto, como se por um esquisito fenômeno<br />
tivesse ressurgido do terror do sono eterno e viesse ainda<br />
perseguido por glaciais fantasmas que o arrastavam pelos<br />
cabelos e pelas vestes, através de uma treva duramente<br />
muda e aflitiva...<br />
E, ou fosse remorso ou fosse álgido medo da hora<br />
extrema ou fosse mesmo agudo e histérico delírio<br />
imaginativo de senil e tábido celerado que vai morrer, o<br />
certo é que todos, no auge do espanto, no mais esmagador<br />
dos assombros, sem poder conter a súbita e estupenda<br />
torrente que lhe foi espumando e jorrando da boca<br />
bamba, ouviram este cruel e amorfo monólogo, feito de<br />
lama e podridão, de estanho inflamado, de ferro e fogo,<br />
de acres e apunhalantes sarcasmos, de ódio e visco, de<br />
mordentes perversidades, de chagas nuas, de lacerações<br />
de carnes gangrenadas, de soluços e estupros, de ais e<br />
risadas, de suspiros e concupiscências baixas, de beijos<br />
e venenos, de estertores e lágrimas, tudo rodando,<br />
rodando através do pesadelo da Morte.<br />
Como que a seu pesar, um fenômeno desconhecido<br />
o transfigurava, punha-lhe na boca a eloqüência viva de<br />
chamas devoradoras. Ele era, naquele momento, a presa<br />
formidanda das correntes da matéria, que os mais<br />
curiosos e estupendos sentimentos abalavam: como que<br />
uma outra natureza, sem ser propriamente,<br />
legitimamente a sua, a natureza dos mistérios, que paira<br />
acima de tudo o que nos é terrenamente acessível, a<br />
natureza do Incognoscível das Esferas, dos maravilhosos<br />
Ritmos, o inspirava, falava pela voz dele, enchia-o de<br />
fluidos prodigiosos, arrebatava-o para um meio sonho e<br />
para um meio delírio, onde, contudo, transpareciam faces<br />
verdadeiras das cousas, já galvanizadas pelo passado.<br />
Aquilo era como que o exemplo vivo, iniludível e<br />
supremo dessa vaga névoa, dessa bruma de Abstrato,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 153<br />
que há em todo o Tangível, do Sobrenatural que há em<br />
todo o Verdadeiro.<br />
– Ah! lá se vão elas, vejam, lá se vão elas! Quantas!<br />
Quantas! Eram todas minhas! Vinham entregar-se ao<br />
meu ouro que tinia, tilintava, tinia com a sua luz sonora.<br />
Olhem, lá vão elas! Todos aqueles corpos eu beijei, eu<br />
gozei, eu depravei, eu saciei! Todos aqueles belos corpos<br />
brancos se adelgaçaram, se quebraram, vergaram, em<br />
curvas voluptuosas de abóbada estrelada, às minhas<br />
furiosas luxúrias. Parecia que corcéis de fogo disparavam<br />
no meu sangue, corriam a toda brida nos meus nervos,<br />
tanto a sensualidade me agitava, me vertiginava,<br />
aguilhoava-me com os seus aguilhões acerados. E eram<br />
todas virgens, que eu desviei, estrábico de gozo, nas<br />
formidáveis alucinações da carne. Pois se eu tinha o<br />
meu ouro, o meu ouro que agisse sem demora e mas<br />
trouxesse vencidas; pois se eu tinha o meu ouro, o meu<br />
ouro que as escravizasse à minha lascívia, o meu ouro<br />
que as fascinasse, o meu ouro que as atraísse, o meu<br />
ouro que as magnetizasse, o meu ouro que as cegasse, o<br />
meu ouro que as perdesse, o meu ouro que as aviltasse!<br />
Pois se eu tinha o meu ouro, que mal então que eu<br />
comprasse formas de argila, com o meu ouro de forma<br />
de sol! Pois se eu tinha o meu ouro! Pois se eu tinha o<br />
meu ouro! Pois se eu tinha o meu ouro!<br />
Por entre os linhos alvos do leito, naquelas<br />
brancuras preciosas, como que um rio de ouro, um<br />
cascatear de ouro, uma música de ouro vinham então<br />
finamente e fluidamente rolando, distendendo pelo leito<br />
os seus harmoniosos e claros veios de ouro, numa feeria<br />
de som, de alvura e de ouro.<br />
E o senil e tábido milionário estava ali como um<br />
célebre mago dominado pelo ritmo alucinante, pela vara<br />
magnética desse êxtase de visionário moribundo, pela<br />
doentia e sonâmbula superexcitação nervosa, por toda<br />
essa vertigem, por todo esse deslumbramento hipnótico,<br />
fatal, enlouquecedor, do ouro. E ele ria alvarmente uma
154 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
risada entre amarela e negra, que fazia lembrar o<br />
fúnebre caixão que o esperava...<br />
Todos, estupefatos, suspensos, diante daquele<br />
delirante e sensacional espetáculo que não podiam<br />
encobrir nem conter, tinham a respiração sufocada, os<br />
semblantes transtornados, lívidos, tão lívidos que<br />
pareciam outros tantos moribundos que ouviam, imóveis,<br />
num espasmo de angustioso terror, esse outro sinistro<br />
moribundo falando.<br />
Agora, porta mais negra e mais ensangüentada<br />
se abrira escancaradamente, num rápido rasgão de raio<br />
que fende as nuvens, ao delírio do cérebro demente do<br />
quase morto: era como se nenhum escrúpulo delicado,<br />
sutil o prendesse mais à terra e aos homens; se todos<br />
os fios e laços das suscetibilidades da alma se houvessem<br />
partido, despedaçado e ele ficasse só nos instintos, à<br />
vontade, besta desenfreada, livre de todas as correntes<br />
do Sensível, sob o impulso primitivo, selvagem,<br />
desorientado, animal, deserto, da simples matéria e da<br />
simples carnalidade:<br />
– Ah! Ah! pois não era o meu ouro, só o meu ouro,<br />
sempre o meu ouro que comprava tanta carne humana,<br />
desprezível, que eu via entrar nas senzalas, de volta do<br />
eito?! Negros trêmulos, velhos e tristes, com o dorso<br />
curvado por uma remota subserviência ancestral, atávica,<br />
fantasmas de pedra, mudos e cegos na sua dor absurda...<br />
Às vezes era pelos amargos desfalecimentos da<br />
tarde; e, no fundo denso da noite algumas estrelas<br />
espiavam como sentinelas, de olhos acesos e vigilantes,<br />
aquela torva massa trôpega e tarda que caminhava como<br />
do fundo de um tempestuoso e formidável sonho: os<br />
crânios desconformemente alongados, os perfis com<br />
deformações hediondas, talhados à bruta por mãos de<br />
gênios rebeldes, infernais e os olhos envenenados pela<br />
mais atroz, bárbara e mórbida melancolia das<br />
melancolias. Como que vinham, num turvo e amorfo<br />
desfilar do centro misterioso da terra, com a cor da terra,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 155<br />
com a cor das trevas primitivas, esqueléticos,<br />
cadavéricos, héticos, na assombrosa condensação de<br />
todas as criações shakespeareanas, arrastando os<br />
miseráveis e ensangüentados farrapos das almas.<br />
Parecia-me que se cavava de repente, por toda a<br />
extensão do eito, imensa, profunda cova; que essa cova<br />
era como velha chaga secular formidavelmente grande,<br />
sinistramente sangrenta, a devorar, a devorar, a devorar<br />
carne humana, legiões e legiões de míseros, um fabuloso<br />
mar negro e selvagem de corpos e almas amaldiçoadas...<br />
E essa chaga tremenda, avassaladora, fatal, ia então<br />
alastrando, não já sangrenta, mas verde, podre,<br />
gangrenada, aberta a monstruosa e purulenta boca verde.<br />
Não sei para que sobre-humano horror eu recuava,<br />
para que noite caótica de horror animal eu mergulhava<br />
a tremer, a tremer, a tremer...<br />
Ficava então de repente com a imaginação<br />
dominada por cruéis sobressaltos, com ansiedades,<br />
delírios a se vulcanizarem no cérebro... Subiam-me ao<br />
cérebro obsessões de loucura, como que os meus<br />
pensamentos se agachavam, se encolhiam aterrorizados<br />
a um canto do cérebro... Um medo agudo, invencível,<br />
me amarrava os nervos... Todo eu gelava, suava medo...<br />
E aquela bamba, trôpega e tarda massa torva, fenomenal,<br />
numerosa, estranha, tão estranha aos meus sentidos<br />
apavorados, dava-me a impressão fantástica de abismos<br />
que caminhavam, de tenebrosas florestas de corpos<br />
cheias de rugidos de feras, de garras, de dentes<br />
devoradores, que eu via de repente atirarem-se,<br />
arrojarem-se sobre mim, bramindo vingança, e<br />
despedaçarem-me, estrangularem-me todo.<br />
Ao meu espírito aterrado, ao mundo virgem e<br />
nunca visto de visões que se me desenvolviam no<br />
deslumbrado raio visual, era como se todos aqueles<br />
esqueletos negros se reproduzissem, surgissem por toda<br />
a parte turbilhões e turbilhões, tumultos e tumultos,<br />
matas serradas, compactas, selvas bravias de esqueletos
156 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
negros, toda a África colossal ululando e soluçando num<br />
ululo e num soluço milenário... E, por sobre todos esses<br />
milhões de cabeças tenebrosas, pairava no ar,<br />
solenemente, prognosticadamente, sugestionadoramente,<br />
como o satânico e sinistro Anjo da Guarda da<br />
negra raça dos desertos, lassa e descomunal, lânguida<br />
e letárgica serpente, talvez dormindo e sonhando novos<br />
e mais maravilhosos venenos, com as grandes asas<br />
abertas... Ah! eram sobrenaturais esses sofrimentos que<br />
assim me remordiam tanto com tamanhos dentes e com<br />
tamanhas garras!<br />
Deus, a essas horas tão tremendas para a minha<br />
consciência, ali tão humilhada, batida, cobarde de terror<br />
diante daqueles negros espectros, onde estava Deus,<br />
para trazer-me um alívio, um consolo para ter piedade<br />
de mim, para dar-me de beber da fonte clara, fresca e<br />
suave da tranqüilidade, para saciar a sede de humildade,<br />
de pobreza, de simplicidade, a sede devoradora que me<br />
incendiava, a mim, a gula viva do ouro, a mim, a gula<br />
viva da sensualidade, a mim, a gula viva do crime!<br />
No entanto, ah!, que risadas satânicas, diabólicas,<br />
que satisfação perversa me assaltava quando o feitor,<br />
bizarro, mefistofélico, de chicote em punho, lanhava,<br />
lanhava, lanhava os miseráveis e lindos corpos de certas<br />
escravas que não queriam vir comigo! Oh! lembra-me<br />
bem de uma que mandei lanhar sem piedade. A cada<br />
grito que ela soltava eu gritava também ao feitor: – Lanha<br />
mais, lanha mais! E o bizarro feitor lanhava! O sangue,<br />
grosso e lento, como uma baba espessa, ia formando no<br />
chão um pântano onde os porcos vinham fuçar<br />
regaladamente! Com que febre, com que alucinação<br />
inquisitorial eu gozava essas torturas! Até mesmo, às<br />
vezes, via-me possuído de um extravagante desejo<br />
animal, de um desejo monstro de beber, como os porcos,<br />
todo aquele sangue. Lembro-me também de outra,<br />
bestialmente grávida, prestes a ser mãe, a quem eu,<br />
para saciar a minha sede feroz de ciúme, a minha sede
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 157<br />
de raiva, a minha sede de concupiscência suína, mandei<br />
aplicar quinhentas chicotadas, enquanto os meus dentes<br />
rangiam na volúpia do ódio saciado. Desta foi tamanha<br />
e tão atroz a dor, tão horríveis as contorções, enroscandose<br />
como serpente dentro de chamas crepitantes, que<br />
esvaiu-se toda em sangue, abortou de repente e ali<br />
mesmo morreu logo, felizmente lembro-me bem, com a<br />
boca retorcida numa tromba mole, espumando roxo e<br />
duas grossas lágrimas profundas a escorrerem-lhe no<br />
canto dos olhos vidrados...<br />
E de outra ainda lembro-me também, porque eu a<br />
mandei afogar no rio das Sete Chagas, junto à figueirado-inferno,<br />
com o filho, que era execravelmente meu,<br />
dentro das entranhas... Mandei afogar tarde, a horas<br />
mortas, depois que certo sino cavo soluçou as doze<br />
badaladas lentas e sonolentas no amortalhado luar... E<br />
devo ter algum remorso disso? Remorso? De quê? Por<br />
quê? Por quem? Meu filho? Como? Feito por um civilizado<br />
num bárbaro, num selvagem? Remorso por tão pouco?<br />
Por lama vil que se joga fora, por barro ignóbil que para<br />
nada presta?! Remorso por fezes, resíduos exíguos de<br />
elementos inservíveis, bílis negra, composto de produtos<br />
podres, gases deletérios e inúteis, pus fétido – pois por<br />
essa asquerosa e horrenda cousa que se formou e<br />
ondulou misteriosamente sonâmbula nas entranhas<br />
pantéricas de uma negra hei de ter, então, remorso,<br />
hei de ter, então, remorso?!<br />
E os quatro enforcados da encruzilhada do<br />
engenho, com as hirtas línguas de fora, por uma noite<br />
de trovões e relâmpagos, oscilando dos galhos das árvores<br />
como pêndulo da morte! E os que morreram no tronco,<br />
com a espinha dorsal quase vergada ao meio! E aqueles<br />
que de desespero e de aflição sem remédio se rasgaram<br />
os ventres enterrando-lhes fundo facas agudas! Os que<br />
estalaram tostados, queimados nos fornos em brasa! Os<br />
que foram arrastados pelos campos a fora, a galope,<br />
atados a caudas de cavalo! Os que tiveram os ventres
158 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
atravessados pelas aspas dos bois bravios! Os que se<br />
envenenaram com venenos mais mortais que o das<br />
serpentes! Os que se degolaram na mais desesperada<br />
das agonias!<br />
E aquela negra terrível que morreu louca,<br />
abraçada ao filho pequeno, dando-lhe alucinadamente<br />
de mamar, nua, toda nua, com o seio a escorrer leite e<br />
ao mesmo tempo a escorrer sangue pelas feridas de<br />
trezentas e setenta e tantas chicotadas, com os olhos<br />
esbugalhados, a olhar-me muito, a olhar-me sempre,<br />
parece que ainda horrivelmente a olhar-me agora, a<br />
perseguir-me, a cortar-me de pavor como uma lâmina<br />
gelada e penetrante.<br />
Ah! e aquele negro de cem anos, morfético,<br />
inchado como um sapo enorme, manipanço senil, a quem<br />
eu arranquei os dois olhos com a ponta de uma verruma,<br />
enquanto ele urrava e escabujava de dor como um tigre<br />
apunhalado! E isto em pleno eito, num meio-dia de ferro<br />
e fogo, que cortava e queimava, por um sol dilacerante,<br />
devorador como feras esfaimadas, sangüinolentas! E eu<br />
arranquei-lhe os olhos, enterrando-lhe fundo a verruma<br />
sem piedade, depois de já lhe haver aplicado por todo o<br />
corpo, apodrecido e chagado pela morféia, seiscentas<br />
vergalhadas, de pulso musculoso e rijo e de relho forte<br />
aberto em trinta pernas terminando em agudos pregos<br />
nas pontas. Ah! como o velho manipanço se retorcia,<br />
espumava, gania, mordia a língua, soltava pinchos por<br />
entre os torvelinhos, os círculos vertiginosos,<br />
desvairados, das trinta pontas aguçadas das pernas<br />
rígidas do relho!<br />
E ainda aquele outro negro decrépito, de uma<br />
boçalidade caduca, cego, mudo e idiota, completamente<br />
cego e mudo, que foi encontrado morto no curral dos<br />
porcos, a cabeça fora do tronco, inteiramente decepada<br />
a machado, os órgãos genitais dilacerados!<br />
Remorsos, eu, então, de toda essa treva trágica,<br />
de toda essa lama de crimes apodrecida?! Como,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 159<br />
remorso? Pois não era do trono do meu ouro que eu<br />
estava rei soberano, assim, com o cetro do chicote em<br />
punho, coroado de ouro, arrastando um manto de púrpura<br />
feito de muito sangue derramado?! Remorso? De quê?<br />
Se o meu ouro tudo lavava, vencia, subjugava a todos e a<br />
tudo, emudecia a justiça, tornava completamente servis<br />
e de pedra os homens, fazendo de cada sentimento um<br />
eunuco?!<br />
A estas palavras como que pareceu haver um certo<br />
movimento de protesto, de altivez revoltada, na pasmada<br />
assembléia que o ouvia: quase que um vago vento de<br />
indignação passou... Mas, como entre os males da vida<br />
“o mal de muitos consolo é”, e quase todos que ali estavam<br />
eram parentes do moribundo, aguardavam uma parte do<br />
seu grande ouro; e como também nos seus cerebrozinhos<br />
empíricos lhes passasse de repente a idéia de que talvez<br />
por um milagre da riqueza, por um extraordinário valor<br />
e soberania do potentado, ele muito bem podia levantarse<br />
do leito ainda e expulsá-los a chicote daquele recinto,<br />
todos se entreolharam manhosamente e fizeram<br />
depressa espinha mais flexível, fingiram-se mortos o<br />
melhor que puderam – vivos, mais mortos que o<br />
semimorto.<br />
Toda essa delirante epopéia de lama, treva e<br />
sangue, era por ele murmurada lentamente, com voz<br />
cava, soturna, como através das paredes de um lôbrego<br />
subterrâneo ou nas sombrias, solitárias arcadas de um<br />
convento os crepusculamentos de um Requiem...<br />
Impelido por uma força nervosa erguera-se um<br />
pouco no leito, talvez ainda mais envelhecido agora,<br />
trêmulo, transfigurado, o olhar sempre fixo num ponto,<br />
olhar de cego que olha em vão tudo, que como que só vê<br />
para dentro de si mesmo...<br />
Mas de repente o moribundo teve uma risada alvar,<br />
lugubremente idiota, entre amarelada e negra, que fazia<br />
fatalmente lembrar o fúnebre caixão que o esperava...<br />
E, arremessando convulsamente as frases como lançadas
160 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
no ar, na violência do esforço derradeiro, tremendo, como<br />
quem chama a si as últimas energias da matéria que<br />
desfalece, a língua já presa, já acorrentada pelos pesados<br />
grilhões da morte que vinha vindo, pendeu a encanecida<br />
cabeça de celerado senil, exausto de forças, os braços<br />
molemente caídos ao longo do leito, os olhos e a boca<br />
desmesuradamente abertos, a respiração siflante, num<br />
espasmo sinistro...<br />
No ambiente ansioso, inquietante, do aposento,<br />
pairou uma comoção mortal...<br />
Dos lençóis alvos e frios do leito, bruscamente<br />
revoltos na alucinadora aflição daquele velho corpo<br />
martirizado, como que transpareciam, se levantavam<br />
brancas visões de sepulcro...<br />
Nos circunstantes, à maneira de velhos<br />
instrumentos de cordas usadas, que vibram<br />
insolitamente, percorreu logo um pavoroso<br />
estremecimento. Todos se acercaram do leito, os rostos<br />
transfigurados, na agitação convulsa do grande final –<br />
míseras, tristes sombras que num movimento arrastado,<br />
impelidas por sensações secretas, se acercavam de uma<br />
sombra mais mísera, mais triste...<br />
E, ó ironia da Culpa original!, numa leve contração<br />
da boca, ainda com um voluptuoso e luminoso alento de<br />
vida a esvoarçar-lhe nos olhos, sem longos e torturantes<br />
estertores, deixando apenas escapar um fugitivo, breve<br />
gemido de lá bem do fundo vago, quase apagado,<br />
longínquo, do seu Crime, na atitude de um justo, o ilustre<br />
homem rico, o abastado e poderoso senhor de escravos<br />
expirou – dir-se-ia mesmo com a sua consciência<br />
tranqüila, completamente tranqüila...
O ESTILO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 161<br />
O estilo é o sol da escrita. Dá-lhe eterna<br />
palpitação, eterna vida. Cada palavra é como que um<br />
tecido do organismo do período. No estilo há todas as<br />
gradações da luz, toda a escala dos sons.<br />
O escritor é psicólogo, é miniaturista, é pintor –<br />
gradua a luz, tonaliza, esbate e esfuminha os longes da<br />
paisagem.<br />
O princípio fundamental da Arte vem da Natureza,<br />
porque um artista faz-se da Natureza.<br />
Toda a força e toda a profundidade do estilo está<br />
em saber apertar a frase no pulso, domá-la, não a deixar<br />
disparar pelos meandros da escrita.<br />
O vocábulo pode ser música ou pode ser trovão,<br />
conforme o caso.<br />
A palavra tem a sua anatomia; e é preciso uma<br />
rara percepção estética, uma nitidez visual, olfativa,<br />
palatal e acústica, apuradíssima, para a exatidão da cor,<br />
da forma e para a sensação do som e do sabor da palavra.<br />
Um, porém, pode desvirtuar toda a ação e vitalidade<br />
do estilo, como pode também segurá-lo e afiná-lo. Os<br />
utensílios da escrita são extraordinários, o jogo da frase<br />
é poderoso.<br />
Os livros de Zola, para dar aqui o exemplo de uma<br />
das organizações chefes do nosso tempo, aí estão –<br />
candentes, gerados numa atmosfera de fornalha,<br />
transbordando de surpresas de observação e análise.<br />
Nos livros de Zola, porém, sente-se o efeito de<br />
uma monstruosa trombeta de bronze soprada por um<br />
Hércules gigantesco, formidável – tal é o largo tufão que<br />
dá rumor e faz pulsar todas as páginas.<br />
São naturais, humanos, plenos de natureza esses<br />
livros. Apresentam as faces mais lógicas da existência.<br />
Tais livros palpitam em cada um de nós, saíram de nós,<br />
dos nossos pensamentos, dos nossos usos, das nossas<br />
paixões; falam da direção do nosso espírito, da nossa
162 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
idiossincrasia – segundo o nosso temperamento, o nosso<br />
meio, os elementos climatológicos e etnográficos, a<br />
perspectiva das paisagens, tristes ou doentes, alegres<br />
ou saudáveis, e todos os princípios gerais estabelecidos<br />
e acentuados pela ciência e que influenciam direta e<br />
racionalmente em toda educação física e intelectual.<br />
O escritor nada se tem que importar que os fatos<br />
ou os assuntos lhe sejam simpáticos ou não.<br />
Não há mais, nas evoluções das idéias,<br />
exterioridades, púrpuras de palavra vestindo um assunto<br />
de pau tosco. Pelo contrário! as vestes, as púrpuras da<br />
palavra são de conformidade com os assuntos. E é isso<br />
que faz a inteireza do caráter da escrita...<br />
É preciso que haja um forte tom interior para<br />
haver unidade de ação, de verdade no que se analisa,<br />
no que se observa.<br />
E é por isso, por uma infinidade de qualidades de<br />
análises variadas e radicais, que constituem uma ordem<br />
de fenômenos, que o Estilo há de acentuar-se,<br />
condensar-se, intensificar-se mais entre nós à medida<br />
que se for fazendo a evolução da nossa literatura, quando<br />
a corrente da Arte estiver em íntimas relações<br />
simpáticas com a nossa produtividade mental,<br />
estabelecendo nela a complexidade de um todo uniforme,<br />
depois que nos houvermos libertado dos hibridismos<br />
étnicos que tiram a linha de segurança, de firmeza<br />
intelectual das raças que estão em via de constituir-se.<br />
Entretanto, quando leio um livro, uma frase, cheios<br />
de todas as audácias do talento, vibrantes de energia<br />
espiritual e examino os documentos inteligentes que<br />
estão atestando uma orientação mais completa, um golpe<br />
mais fundo e amplo na luz, mais certeza de “visão”, mais<br />
força e vigor celular, mais profusão de glóbulos rubros,<br />
alvoroço-me, deslumbro-me e eletrizo-me, porque estou<br />
vendo diante de mim, em toda a largueza da minha<br />
rotina, com toda a sinceridade emotiva da minha<br />
convicção e do meu elevado Amor pela arte, espíritos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 163<br />
mais livres e lúcidos que abrem e batem asas, como<br />
pássaros vermelhos na glória do sol, para além, para<br />
longe da retórica e da metafísica, afastando-se dos<br />
princípios de todos os dias, rubricados pelo fastio da<br />
chapa, amarrados pelos barbantes de uma gramática<br />
oficial e convencionada que obriga a idéia a fazer cabriolas<br />
e os esfuziotes do raio, sem regimentá-lo no alto dever<br />
da luta, sem defini-la, sem engrandecê-la, sem dar-lhe<br />
um intenso valor, uma pobre tranqüilidade consciente,<br />
uma fisionomia particular e superior.
164 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
JE DIS NON<br />
A Virgílio Várzea<br />
Subindo uma vez com um amigo, sob a luz<br />
esfuziante e alegre de rubro sol de verão, uma rua ruidosa<br />
e fremente de vasta cidade da América do Sul, paramos<br />
a olhar detidamente a larga vitrina de vistosa livraria<br />
no plano direito de quem sobe a rua, vindo da direção do<br />
mar.<br />
Por muito tempo estivemos ali parados, viajando o<br />
olhar que pousava, como borboleta inquieta neste e<br />
naquele livro, sobre este e aquele título de obras, como<br />
se o nosso espírito quisesse, à maneira dos insetos nas<br />
flores, absorver, compenetrar-se pelos títulos, numa<br />
síntese radical de observação, dos princípios e idéias<br />
contidos em cada livro.<br />
Súbito a nossa atenção parou, descansou sobre a<br />
capa de um volume, vermelha, e onde se lia em grandes<br />
letras negras: – Je dis non.<br />
Parou a nossa atenção nesse volume de capa<br />
vermelha, como se descobríssemos nele, mais do que<br />
em todos, alguma coisa de original, de singular, de<br />
excêntrico – algum sangrento episódio de psicologia que<br />
lá estava a despertar a nossa análise, dentro da vitrina,<br />
longe de o podermos observar, sentir de perto, e por isso<br />
mesmo tentava mais.<br />
Fidalgo de pensamento, experimentalista, o meu<br />
companheiro era um analista rude, d’ar petit marquis,<br />
duma contensão filosófica muito possante, iluminada<br />
figura transfigurada e mística às vezes, espécie de Fausto<br />
de Goethe, numa perene jovialidade e jovialismo amoroso,<br />
imprevisto e radiante pela verve e sugestões críticas –<br />
um desses cérebros poderosos que definitivamente<br />
marcam época, um desses claros soberanos<br />
entendimentos, penetrantes como o ar na vida animal<br />
orgânica, muito inauditos na Abstração e no Gênio, e<br />
para os quais Taine, o supremo chefe da Crítica, teria
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 165<br />
de estabelecer uma nova e derivativa linha determinante<br />
de sua estesia.<br />
Conceituoso, com o pensamento direto ferindo,<br />
atacando muito certo, em flecha, os assuntos, como quem<br />
derruba águias do elevado pendor duma montanha, ele,<br />
sabendo armar e dirigir o aparelho receptor do seu<br />
cérebro à adaptação e generalização das idéias, ainda<br />
as mais delicadas, sutis, fluidas quase – começou,<br />
primeiramente, a tomar a obra em bloco, a uniformizála,<br />
a compô-la, como um organismo, tecido por tecido,<br />
célula por célula, molécula por molécula, dando-lhe corpo,<br />
consubstanciando-a, alargando-a – até que ela pareceu<br />
crescer, crescer, subir, ganhar um vulto estranho<br />
através da vitrina, como se a enchesse toda: – uma<br />
grande tela vermelha com letras negras ao centro – Je<br />
dis non; e como se, por um inconcebível, misterioso<br />
processo, ali estivesse ardendo uma chama, mas que<br />
não alastrasse em línguas de fogo, unida, compacta,<br />
igual, à maneira duma prodigiosa matéria inflamável<br />
que não excedesse ou sobrepujasse aquela transparente<br />
circunferência de vidro.<br />
Depois, então, o luminoso originalista, o<br />
evolucionista spenceriano continuou humoradamente a<br />
bordar folhetins sobre a obra, como ele próprio dizia, a<br />
desmanchá-la, a tirar-lhe a consistente verdade, a<br />
preparar-lhe os planos, a determinar-lhe os detalhes, a<br />
sua latente psicologia, a sua tangibilidade de ser, a<br />
tecelagem de ouro da sua forma, a discernir-lhe a<br />
linguagem, a penetrar na nevrose do temperamento que<br />
a confeccionara, que fabricara em estilo a sua contextura,<br />
apanhando-a, dissecando-a, já em mil voltas, já em mil<br />
giros, já em mil efeitos de espírito, sob os mais novos<br />
aspectos, dando do assunto inteiramente tudo que o<br />
assunto poderia dar e penetrando segura e<br />
esmerilhadamente nos entranhados filões recônditos que<br />
lhe constituíam toda a potente força criadora de obra<br />
afirmativa da Natureza.
166 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
E, nesse profundo trabalho de composição e<br />
decomposição mental, ia-se uma incomparável, infinita<br />
porção de glóbulos rubros, à qual a mais requintada<br />
estesia d’Arte se integrava completamente.<br />
Eu, absorto, perplexo, calado pela atenção aguda,<br />
acompanhava sorrindo, numa alegria que me sacudia<br />
os membros eletrizados, os condoreiros vôos do mestre,<br />
que subiam regiões para o alto, além, até aos astros, na<br />
rija envergadura das flavas asas à luz em jorro, que<br />
depois abundantemente fulgurava, resplandecia na obra,<br />
a iluminava por dentro dum clarão, numa transcendente<br />
visão espiritual arrebatadora.<br />
E o filósofo, o Schopenhauer moderno, nessas<br />
sortidas intelectuais que me enlevavam, projetando as<br />
idéias mais admiráveis e fecundas, dizia-me então, na<br />
serenidade correta dos seus gestos de disciplinado, de<br />
frio saxônio:<br />
– Pois, é isso, vê? Je dis non! Imagine uma dessas<br />
paixões que tudo consigo arrastam para sempre, que<br />
desmoronam a vida de um artista contemplativo, vivendo<br />
das impressões da Natureza, sob o grito, os vibrantes<br />
clarins da carne e a alucinante, inquietadora vertigem<br />
dos ideais insonhados! Imagine um instante<br />
quintessenciado no absoluto das coisas, amando dum<br />
amor imaculado, virginal, sidéreo, já pouco da Terra,<br />
desde longo tempo, uma dessas vigorosas mulheres de<br />
Tom de luxo, de idade outonal de fruta, que tanto<br />
entontecem, perturbam como uma ampla absorção de<br />
ar, de luz e de aroma no altanado cume das serras,<br />
quando se tem saído da densa e lôbrega treva dum<br />
calabouço. Louras Ceres maduras, um tipo, enfim, forte<br />
de primitiva beleza, opulenta e formosa deusa da Hélade,<br />
uma dessas maravilhosas criaturas, assim humanas e<br />
assim etéreas, que eternamente conservam na carne a<br />
centelha da mocidade, na epiderme o doce aroma das<br />
violetas, a frescura das magnólias, o diáfano cor-de-rosa<br />
das auroras de sangue e que através dos seus nervos,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 167<br />
do ímpeto da sua seiva ainda palpitante e viçosa, sabem,<br />
como animal que esconde as garras, pôr apenas em<br />
evidência, diante de uns olhos apaixonados que as<br />
desejam, não o afeto que igualmente as emociona e torna<br />
convulsas, mas toda a febricitante graça borboleteadora,<br />
alada, dos seus encantos, todo o atraente enlevo das<br />
suas sedições – radiantes asas satânicas com que a<br />
Natureza as dotou e com as quais elas voam<br />
desassombradas para o coração do homem, como para<br />
uma chama, vencendo-o, subjugando-o, empolgando-o,<br />
sem, contudo, porém, muitas vezes, nem de leve<br />
crestarem as rutilantes plumagens.<br />
Imagine isso, uma dessas paixões, trágicas,<br />
apunhalantes, que queimam, incendeiam, devoram tudo<br />
– bárbara paixão selvagem de Otelo por uma Desdêmona<br />
fria, de luar gelado, mas formosa; indiferente mas<br />
altivamente olímpica, onipotente no esplendor cinzelado,<br />
como os mármores coríntios ou os bronzes celinescos,<br />
do alabastro do corpo.<br />
Uma dessas paixões tumultuosas em onda, em<br />
que os amantes estão por vezes separados só pela<br />
distância de um beijo e de um abraço, e que quando ele,<br />
sonhando a hora feliz e ao mesmo tempo fatal entre<br />
todas, que lhe parecesse a mais serena às exigências<br />
dela, o doce momento aflitivo no qual ele com veemência<br />
pensasse que ela nada lhe negaria, depois de tanto<br />
esperar, depois de tanto ansiar – nem a flor dos seus<br />
beijos nem a flor dos seus carinhos nem a flor da sua<br />
carne – nesse supremo instante enfim em que ele<br />
supusesse que do encontro, do atrito amoroso das suas<br />
almas tão longamente afastadas, entre si irradiasse e<br />
nascesse o sol do mais imperecível amor – ela, com os<br />
olhos fagulhantes cheios de expressão e sagacidade<br />
feminina, fria por cálculo, indiferente por sistema,<br />
acostumados já aos lancinantes envenenamentos<br />
dolorosos que trazem as desesperadas e fundas loucuras,
168 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
lhe dissesse, pondo nas suas palavras todo o torturante<br />
fel do desprezo:<br />
– Jes dis non.<br />
Suponha, pense tudo isso e veja a brusca e abrupta<br />
alucinação dele, o seu desvairamento ao ouvi-la condenar<br />
o seu amor.<br />
No entanto esse errante das ilusões teria quase<br />
toda a certeza que ela o atenderia, lá o esperava com<br />
beijos ardentes esvoaçando já nos lábios como abelhas.<br />
Observando, sabendo todas as modalidades da<br />
alma, conhecendo todas as manifestações da Natureza,<br />
o artista não havia, entretanto, compreendido essa, não<br />
pôde abrangê-la nunca no que ela tem de mais<br />
imperceptível, de mais vago, surpreendente, aéreo.<br />
Não pôde abrangê-la e ei-lo agora aí desmoronado,<br />
esmagado, como se todo o império romano do seu afeto<br />
de repente perdesse a pompa gloriosa e se fizesse em<br />
ruínas.<br />
Palácios mouriscos, torreões e minaretes árabes,<br />
mesquitas persas, coruscantes pagodes incrustados de<br />
madrepérola e pedrarias preciosas, suntuosas e góticas<br />
catedrais, um luxo de damascos esmirnos, todo o famoso<br />
deslumbramento dos seus sonhos de um místico<br />
templário do amor, feito subitamente em cinzas com<br />
aquelas pungitivas palavras dilacerantes.<br />
Aí tem, pois, o que é Je dis non.<br />
Assustador, angustioso, estranho na sua gênese,<br />
mas é Jes dis non. Di-lo a epígrafe, em letras negras, dilo<br />
a capa vermelha, que é o pronunciamento psicológico<br />
de uma tormenta de sensibilidade, de nevropatia que<br />
agitou a existência de alguém.<br />
Mas, não o leiamos nunca: deixemo-lo estar assim,<br />
o excêntrico volume, lá ao fundo, através da vitrina,<br />
saciando a nossa sede de Ideal, absorvendo os nossos<br />
sentidos na emoção íntima de um gozo intelectual muito<br />
mais intenso e raro que a realidade.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 169<br />
A realidade pode não ser isso que sugeri, pode<br />
ser banal, qualquer caso de deformação da vida, qualquer<br />
fenômeno teratológico da moral, que abata e deprima as<br />
iluminuras e ilusionismos da frase, os caprichosos<br />
floreios estéticos que agora faço.<br />
Deixemo-lo estar nessa impressionante mudez de<br />
Esfinge. De tal forma valerá mais para a nossa análise,<br />
para o consolo do rebuscamento de singularidade que<br />
perscrutamos em redor do mundo, que se lhe<br />
penetrarmos na verdade fundamental da concepção e<br />
do estilo.<br />
Assim, essa Esfinge vale astros e flores.<br />
Rasgando o mistério que para nós ambos, num<br />
momento dado da investigação, a celebrizou, talvez<br />
apenas valesse areia ou lama.<br />
Vivamos, pois, na excepcionalidade virginal,<br />
etereal do espírito. Não desçamos à bruta crueza<br />
flagrante da matéria...
170 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ÉCLOGA<br />
À hora do sol, por estes tranqüilos sítios afastados,<br />
goza-se os montes vestidos de um polvilhamento de ouro;<br />
as perspectivas deliciosas na matinal e ruidosa expansão<br />
da luz; estes luxos bizarros e tons quentes de estio,<br />
onde parece que Sátiros lascivos vão trepando e saltando<br />
pelas escarpas calcárias e pelos socalcos pedregosos,<br />
entre o verde lustroso e denso da folhagem da mata e os<br />
encachoeirados, tormentosos rios.<br />
Galharda natureza esta, de manhã, cheirosa e<br />
sadia, em que o jorro da vida vertiginosamente entra e<br />
circula pelos pulmões em ar e aroma, dando uma<br />
fremente e forte sonoridade aos órgãos humanos, como<br />
vibrante clarim de batalha que nos soprasse<br />
metalicamente ao peito, enchendo-o de ecos, de alvoroço,<br />
de música e rumores.<br />
Por aqui estende-se, amplia-se, alarga-se por aqui<br />
o céu verde das copadas ramagens das árvores — e nada<br />
mais idílico e bucólico, nada mais virgiliano e pastoril<br />
do que estes aspectos sagrados, quase bíblicos, onde a<br />
écloga rebenta de cada tufo perfumoso de rosas, de cada<br />
serpente elétrica de hera, de cada pâmpano báquico de<br />
vinha, de cada ramo salitroso de murta e de cada concha<br />
rosada e branca nas finas e claras praias, além, onde o<br />
mar espumeja doce, parecendo trazer, no fluxo e refluxo<br />
das suas ondas cantantes, a olímpica e serena<br />
recordação da mocidade e da formosura da Grécia,<br />
ritmada em flóreas canções de Afroditas engrinalda das<br />
de algas...<br />
Montes e vales, vales e montes, faz bem percorrer<br />
aqui estes religiosos recantos, estes saudosos retiros<br />
onde parece que o passado, que tudo o que está longe,<br />
que tudo o que está remoto, ilusões e eras, tudo aí se<br />
veio refugiar e vive um momento agora da nossa<br />
presença, da nossa alacridade, do nosso humor, que nós<br />
nababescamente derramamos por todas as paisagens,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 171<br />
entre estes pássaros que cantam e voam, purificandose<br />
no Azul, como os palpitantes pássaros alados do<br />
inquieto, do vertiginoso Espírito.<br />
Encantaria ser pastor, para galgar esses penhascos<br />
solenes, para subir essas alcantiladas serras e ver<br />
borbotar delas a água fresca em finos e prateados fofos<br />
vaporosos de espuma, abundante, em turbilhões<br />
impulsivos porejando virgem das origens recônditas, como<br />
grande força represa, insubmissa e elementar da<br />
Natureza, rebentando e surgindo das profundas<br />
entranhas rijas da terra e dominando, enchendo,<br />
avassalando a amplidão do ar.<br />
Encantaria ser pastor, para ir, cedo, na luz, campo<br />
em fora, peludo e florestal como Pã, no vigoroso esplendor<br />
de sangue da força de um touro novo, por entre a<br />
exuberante luxúria vegetal, apascentar os mansos<br />
rebanhos alvos de arminho das nostálgicas ovelhas, que<br />
balassem desoladamente, numa compunção evangélica;<br />
e conduzi-las após ao redil, já tarde, na roxa melancolia<br />
das tintas da noite – enquanto a lua, fluida e fria,<br />
nevasse as tenras culturas e subisse então infinitamente<br />
ao céu – e enquanto, à distância, longe, no ermo, uma<br />
leve e flutuante fita de voz se desenrolasse, esvoaçasse<br />
e perdesse ao longo e ao largo pelas quebradas, na mais<br />
harmoniosa e apaixonada cantiga!<br />
Ah! Roma antiga! Ah! Grécia! Ah! Paganismo!<br />
Quanto melhor não fora pecar na primitividade dos<br />
instintos e dos impulsos, alma espiritualizada no ideal<br />
abstrato, existência votada aos cultos soberanos da<br />
matéria e tendo para equilíbrio no requinte da calcinação<br />
do entendimento, o requinte da elaboração do sentir e<br />
do gozar – aberto em chamas no sangue, aberto em<br />
chamas nos nervos, aberto em chamas na carne – até<br />
ao supremo aniquilamento final, no qual a morte era<br />
como uma nova espécie transcendental de<br />
concupiscência e lascívia mais requintada ainda, por
172 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
isso que era original, desconhecida inteiramente para<br />
esses que a experimentavam.<br />
Antes nascer e morrer num leito de rosas, amando<br />
e gozando rosas, coroado de rosas, como um romano ou<br />
como um grego, no mais virtual e mítico paganismo, do<br />
que ter-te a ti, vida consciente e disciplinar, como a<br />
tremenda esfinge de pedra, colossal e terrível, sufocando,<br />
esmagando a seiva, o ímpeto, uma corrente de<br />
desregramento animal que há no fundo de todo o<br />
organismo, no fundo de todo o temperamento.<br />
E é por isso que dá um instintivo desejo de<br />
pastorear e que se sente uma emoção do mesmo modo<br />
instintiva quando essas imaculadas existências<br />
campestres, rudes mas angélicas e sãs na sua casta<br />
nudez de sentimentos, nos sulcam a alma como um<br />
clarão, a iluminam e a cobrem de esplendor,<br />
desdobrando-nos ante os olhos estupefatos, como<br />
opulentas, riquíssimas lhamas rutilosas de diamantes,<br />
as magnificências reais do mais profundo e germinal<br />
Amor!
IMPRESSÕES<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 173<br />
Através das verdejantes colinas do sul, a noite de<br />
São João tem a graça pitoresca de uma animada pintura,<br />
tornando vivo o clarão de amor das cousas adormecidas<br />
ou mortas nas recordações passadas.<br />
Ora é numa beira de praia, ora é num trecho de<br />
rua que se passam essas cenas de costumes, esses<br />
episódios característicos, cheios de um encanto virgem,<br />
que afagam a nossa memória.<br />
Desceu a noite já!<br />
E num luar de junho.<br />
As verduras, pulverizadas de luz, escorrendo prata<br />
líquida, numa crua irradiação branca, reluzem com a<br />
nitidez e brilho dos alvos flocos de neve.<br />
Para lá da terra firme, além de uma curta divisa<br />
de mar manso, navegável em canoas, num ponto em<br />
que os olhos distinguem claramente bem uma aragem<br />
fresca, leve, como um sopro musical de flauta campestre,<br />
afla nos canaviais viçosos que se agitam suavemente.<br />
Porém, na rua, umas vozes cantantes, cheias de<br />
mocidade e frescura, gritam alto, sonoras:<br />
– Olá, João, anda cá! Hoje é teu dia. Viva S. João!<br />
Viva S. João!<br />
E o João, um rapaz que passara assobiando, jovial,<br />
franco, na alegria da sua alma chã, entra numa venda,<br />
paga vinho – um vinho cor de topázio bebido entre a<br />
algazarra dos companheiros e os bruscos entusiasmos<br />
do taverneiro, que faz tinir as moedas, todo risonho, na<br />
gaveta do balcão.<br />
– E as canas, João, e as canas! – repetem as vozes.<br />
E o João paga de novo e de novo a algazarra cresce,<br />
os vivas, as aclamações, os prazeres acesos nas almas<br />
desses bons rapazes, como as bichas e os buscapés que<br />
eles soltam nos largos, por troça, em meio de muita<br />
gente reunida, dispersando e alvoroçando tudo, entre<br />
galhofas e risadas.
174 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Mas a noite de S. João dobra de encantos e de<br />
enlevos.<br />
Agora, fogueiras crepitantes estendem a sua<br />
ardente chama, loura e alegre, na frente das casas,<br />
dourando-as. Agora, a rapaziada, crianças saltam as<br />
fogueiras; velhos de cócoras ou sentados em redor<br />
contam uns aos outros histórias cabalísticas de bruxas<br />
e almas do outro mundo, e, aquecendo-se do frio da<br />
noite, esfregam confortavelmente as mãos, fazendo às<br />
vezes ressoar no claro ar sereno a nota cristalina de<br />
uma cantiga de ritmo simples, como motivo da festa,<br />
tremida e repinicada na voz, misteriosa e cheia de<br />
saudades amadas.<br />
Agora são as novenas nos lares – as velhas novenas<br />
que de tão longe vêm na religião, como ainda um doloroso<br />
soluço atormentado dessa fanática e sonâmbula Idade<br />
Média...<br />
Numa sala, ao centro de um altar armado em<br />
dossel, resplandecente de luzes, de alfaias, de jarras<br />
azuis e de flores, S. João Batista, com o seu rosto roliço<br />
e doce, destaca, sorrindo, de um quadro de moldura<br />
dourada, em estampa, do fundo de um nimbo cinzento,<br />
cabeleira crespa, faces coloridas, abraçado ao cordeiro<br />
manso, que olha para a gente com os seus olhos<br />
pequeninos, plenos de docilidade e de paz.<br />
E, depois da novena cantarolada numa lúgubre<br />
melopéia, a rapaziada cai na arrastação dos pés, e dança,<br />
gingando, com os voluptuosos requebros e bamboleios<br />
quentes da raça.<br />
No intervalo das danças, bebe-se Carlsberg e<br />
comem-se belos bom-bocados saborosos que cocegam<br />
aperitivamente o céu da boca, e as brancas ou rosadas<br />
cocadas, em forma de estrela, que lembram a Bahia, tal<br />
é o paladar do coco de que elas são feitas.<br />
No meio disso tira-se a sorte, numa espécie de<br />
consulta ao destino: para saber se morrerá cedo ou tarde,<br />
se casará, se terá este ou aquele desejo. Passatempo
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 175<br />
esse que dá às pessoas que nele tomam parte um<br />
contentamento e uma felicidade que iluminam as<br />
fisionomias, remoçando e fortalecendo a velhice e<br />
consolando de esperança a todos.<br />
No fim desse contratempo e das últimas<br />
contradanças de grandes e frenéticos galopes, todo o<br />
mundo volta para casa, tarde bastante, no frio silêncio<br />
hibernal da longa noite já sem lua, mas estrelada, de<br />
um amarelado tom esmaecido de madrugada cor de<br />
limão.<br />
Nem mais um só ruído notável do prazer se escuta<br />
na rua.<br />
Apenas, a essa alta hora, um ou outro foguete<br />
tardio, ao longe, aqui e ali, como esquecido elemento da<br />
festa ou indiferente conviva que chega tarde, estala e<br />
brilha no ar saudosamente.
176 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
CROQUI DUM EXCÊNTRICO<br />
Diante do nome deste Excêntrico, dum brilho<br />
feérico de fantasia, desenrolado aos meus olhos como<br />
tapeçaria de Beauvais, lembro nitidamente o remoto<br />
Oriente: a Turquia, a Arábia, a Pérsia – todos os povos<br />
muçulmanos, que têm a frouxidão dos nervos, a<br />
elasticidade de membros de raças decadentes, em todas<br />
as suas especiais funções fisiológicas e manifestações<br />
psíquicas.<br />
Principalmente a Pérsia lembra-me a indolência,<br />
a morbidez orgânica deste Excêntrico – a indolência que<br />
não constitui, no entanto, defeito fundamental, ausência<br />
de qualidades singulares de espírito, mas que antes<br />
representa uma maneira de ser na vida – muda abstração<br />
na qual o pensamento é um grande pássaro alado<br />
viajando nas mais altas regiões, inacessíveis à vontade<br />
da matéria.<br />
Com o seu ar fidalgo, que lhe dá, através dos finos<br />
vidros claros do pince-nez, as linhas e a distinção correta<br />
e douta de um sadio e forte estudante da Universidade<br />
de Bonn ou de Oxford, o Excêntrico parece viver apenas<br />
numa flirtation de idéias, numa despreocupação de touriste<br />
e num diletantismo fatigado de artista boulevardier, a<br />
quem as asperezas e arestosidades do meio<br />
emprestaram já as findas cores carregadas e pungentes<br />
do pessimismo – conquanto na transparência dessa<br />
despreocupação aparente, ele analise, perceba e sinta<br />
passar, como entre uma luz difusa, o corpo vivo dos<br />
positivos fenômenos naturais.<br />
Na verdade, esse amargo pessimismo que os<br />
artistas anglo-saxônios e eslavos beberam, como numa<br />
dorna onde se houvesse purificado num vinho negro o<br />
sentir e o dolorido pensar de várias gerações; esse<br />
pessimismo torturante por vezes nos livros de<br />
Schopenhauer e Hartmann, especialmente nessa<br />
transcendente Filosofia do Inconsciente, parece prendê-
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 177<br />
lo também ao ceticismo mórbido de Murger, de Nerval e<br />
Chatterton e de tantos outros artistas queimados pela<br />
flamejante chama interna de um desejo nunca realizado.<br />
Mas esse pessimismo, feito de germanismo e<br />
eslavismo, tênue, fluido, sutil, que entontece<br />
capciosamente, insensivelmente, como os glóbulos<br />
microscópicos do álcool que fica no fundo do copo de um<br />
russo envenenado pelo niilismo e pelo rum, esse<br />
pessimismo, se o Excêntrico o possui, não lhe tira, de<br />
resto, a bizarra, a garrida forma do espírito leve, fino, a<br />
iriante graça de abelha.<br />
É que ele, contudo, por entre a variabilidade do<br />
tempo, não perde as latentes atitudes nervosas do seu<br />
temperamento, acordando dessa persa indolência para<br />
gozar a Arte, para sentir e para amar a Arte.<br />
Num centro antagônico do desenvolvimento e<br />
fulgor do seu espírito estético, na aridez dos fatos, numa<br />
atmosfera onde um ar livre de ideal não circula no<br />
sangue, um sangue fremente, rico, não gorgoleja nas<br />
veias e as turgesce, o Excêntrico lembra um cáctus,<br />
uma rara flor nascida no gelo, alva na vastidão das<br />
fulgurantes neves, dando, entretanto, uma encantadora<br />
poesia serena de pitoresco e originalidade a toda a<br />
amplidão do terreno.<br />
Ou, então, para abrasileirar mais o símile<br />
comparativo, lembra também uma dessas simples<br />
parasitas brancas, flores pensativas e melancólicas que<br />
rebentam dentre pedras, florindo virginalmente para o<br />
azul, indiferentes à rigidez do granito...<br />
O seu estado de morbidez intelectual, que parece,<br />
por humorismo sombrio talvez, corresponder a um estado<br />
comatoso, é como a aparência de certos céus turvos,<br />
nebulosos, não obstante carregados do ouro flamante do<br />
sol e do intenso azul, que de repente aparece em nesgas,<br />
como um prenúncio de aurora, através de fuscos,<br />
floreosos pedaços de nuvens que se vão, lenta,<br />
demoradamente esgarçando... Depois, outras nuvens,
178 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
mais pesadas, mais densas, correm, como cortina de<br />
brumas, sobre esse ouro de sol e esse azul, voltando<br />
então tudo às primitivas névoas eternas.<br />
Alma êxul do Espaço, triste às vezes, decerto, mas<br />
dessa alta e excelsa tristeza e magoada nonchalance de<br />
velha águia real de cabeça pendida e parado vôo, como<br />
que adormecida, sonhando dolentemente a melancolia<br />
do Azul...<br />
Assim é, assim será para sempre esse meditativo<br />
Excêntrico!<br />
Névoa de emoções, debaixo da qual estão o sol e o<br />
azul de uma idéia, que se descobrem, bem poucas vezes,<br />
para determinadas observações delicadas sentirem;<br />
cinza fria de afetos debaixo da qual arde a radiante,<br />
rubra constelação de um anelar do espírito, cuja<br />
complexidade o entendimento comum dos homens não<br />
apreende nem percebe.<br />
Natureza calma, contemplativa, que a placidez das<br />
montanhas e os aspectos quietos, remansosos do campo<br />
pacificaram, ele se apura e delicia na nobre convivência,<br />
na grandeza mental dos livros, onde a espiritualidade e<br />
o esmalte da forma pedem a atenção dos sentidos<br />
civilizados.
A CASA<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 179<br />
Perto do mar, junto às velhas e carcomidas<br />
muralhas musgosas de uma antiga fortaleza, em redor<br />
da qual cresce a erva como a hera que alastra os pórticos<br />
de um solar em ruínas, há uma tosca vivenda dentro de<br />
um pequeno cercado de espinheiros e miúdas e coloridas<br />
rosas agrestes.<br />
Aí arborizações luxuriosamente sobem para o alto,<br />
numa alacridade de vivos tons de folhagem.<br />
Na rusticidade dessa vivenda, todas as tardes,<br />
numa ilha verde do Atlântico, eu vou gozar o incoercível<br />
sentimento humano do amor, olhando o mar sulcado de<br />
embarcações, calmo, brando de leite, como um luxuoso<br />
e pesado damasco azul, e olhando os ocasos<br />
incomparáveis do sol solene que mergulha num ouro<br />
infinito, através das montanhas.<br />
Para ali vou gozar o sentimento incoercível do<br />
amor, que emociona e exalta, faz nascerem e viverem<br />
em mim, desprenderem para longe o vôo, indefiníveis<br />
águias do pensamento.<br />
E eu não sei que fluidos serenos se exalam dos<br />
nossos corações e se encontram; que há em nós a mais<br />
harmoniosa simpatia congênere de sentimentos.<br />
A doçura lirial da palma de sua mão, quando eu a<br />
aperto nas minhas, passa-me inteiramente a sua alma<br />
em eflúvios, inteiramente, com a recôndita emoção<br />
afetiva de todo o seu ser e –, nesses instantes, seria<br />
pequeno o mar, tão grande, que lá está fulgurando e<br />
cantando diante dos nossos olhos, e o céu, lá em cima,<br />
amplo e azul, para conter tão intensa e consoladora<br />
ventura.<br />
Então, assim, só com ela, eu desejara bem<br />
estabelecer lar, fundar casa – não sobre alicerces de<br />
pedra e areia, mas sobre o alicerce profundo das nossas<br />
almas. Fazer da casa uma canção eterna, uma simples<br />
tenda de irmãos, arejada pela comunicativa e mútua
180 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
afinidade suave do afeto dos dois, e que cada um, na<br />
preciosa singeleza do gosto, firmasse a lei do viver, a lei<br />
de amar, a lei de ser feliz, deixando fluir, fortalecente e<br />
livre, o amor – como um fio d’água subindo e descendo<br />
montes, descendo e subindo vales, regando ervagens,<br />
fartando a sede à terra e fartando a sede aos que erram,<br />
sob sóis ardentes.<br />
No íntimo desse conforto, no supremo egoísmo<br />
desse sentimento, da vida exterior apenas eu gozaria as<br />
aves meigas e afagadoras, que voassem, d’asas abertas<br />
e ruflantes, espalmadas no espaço, arrulhando sobre o<br />
nosso amor; os navios que passassem, eretos, na ideal e<br />
fugidia correção dos mastros, velas brancas tufadas,<br />
quando o mar está rosetado das arestas do sol, picado<br />
de agulhetas de raios, como uma fulgurante tapeçaria<br />
chamalotada; o crescente da lua, frescura salutar,<br />
subindo, meigo, numa ternura de poma cheia e afagadora<br />
que aleita os eternos peregrinos e os sequiosos eternos,<br />
fria, silenciosa, na soturna paz da noite; as ridentes<br />
veigas que se estendem para os lados, além, verdes, em<br />
raros veludos, na planície infinita...<br />
Depois a morte aí me viria colher, aí seria para<br />
mim como uma leve mudança fácil de sonhos, a viagem<br />
para o abstrato ideal, transformação passageira, enfim,<br />
ascensão de vôo perdido no éter transluzente...<br />
Mas, acima dessa perspectiva que eu gozasse e<br />
sentisse em torno da existência, que o seu olhar sobre<br />
mim radiasse, fulgisse, resplandecesse, protetor e<br />
angélico, com o misticismo, a suavidade dos astros...<br />
Para isso, porém, bastaria, bastaria para isso, que<br />
essa recíproca afeição tivesse sempre o encanto, a<br />
limpidez e a graça original, a vegetal candidez de flores<br />
que se leva por uma doirada manhã de presente a<br />
alguém. Bastaria que uma música só fizesse o acordo<br />
de dois corações, como muitos aromas reunidos dão ao<br />
olfato uma só sensação. Não bastaria, certamente, sentir<br />
dentro de nós uma igual similitude de enlevos e de
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 181<br />
cuidados: seria preciso que ambos se percebessem, se<br />
completassem, se identificassem nessa similitude, como<br />
edificação moral em que cada um trabalhasse, conjunta<br />
e compreensivamente, para o outro. Seria mister viver<br />
numa absoluta homogeneidade de entendimentos e<br />
afetos – como as aves que pousam nas romãzeiras e nos<br />
pessegueiros em flor, têm, cada uma, todos os dias, a<br />
mesma homogeneidade inefável nas gorjeações e no<br />
vôo...<br />
Assim, a casa, dessa forma, bem fundada e perfeita<br />
ficaria; e, sol, harmonia e perfume, canções de amor e<br />
de mocidade subiriam alto no tempo, adoçando todas as<br />
coisas, pacificando a existência dos dois, como uma<br />
grande bênção e um grande perdão podem trazer messes<br />
de felicidade e misericórdia à consciência de muitos.<br />
Ao contrário disso, tudo terminaria enfim para<br />
ambos.<br />
A vegetação que ao redor daquelas regiões, fora<br />
das proximidades da vivenda, viça em arbustos rentes<br />
como em terras da Palestina, pareceria murchar,<br />
definhar, secar e acabar para sempre; e os ramos<br />
d’árvores, pela manhã enxameada de pássaros,<br />
perderiam toda a sonoridade dos trinados; e o mar,<br />
bucólico e épico, que tem às vezes o seu som profundo,<br />
as graves e harmoniosas imponências catedralescas de<br />
órgão, circunvolvendo em ondas toda essa habitação de<br />
amor, como uma ronda poderosa que guardasse raro e<br />
fabuloso tesouro escondido – o mar ficaria então<br />
semelhante a um surdo e cego a quem são indiferentes<br />
belezas virgens de paisagens, enroseirados trechos de<br />
colinas, madrugadas, auroras e noites estreladas,<br />
peregrinos cantos melodiosos de pássaros e trinados<br />
cantos matinais de raparigas do campo indo à fonte<br />
encher os cântaros d’água.<br />
Sem poder jamais fundar a casa, dirigir a casa,<br />
dar-lhe o claro, gradual desenvolvimento de um livro,<br />
tudo, afinal, em mim, esperanças e sonhos, de repente
182 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
se esvairia, como esses opulentos ocasos undiflavados,<br />
tintos de prata e sangue, que na turva neblina<br />
crepuscular das tardes esmaecem e morrem... E a alma<br />
alegre do meu ser, como uma fresca e fina flor de neve,<br />
definharia no Esquecimento e na Sombra; e na minha<br />
boca, como na boca dessa criatura amada, os sorrisos e<br />
os beijos morreriam logo, como plantas estioladas a que<br />
os fortes verões abrasadores crestaram fundo as<br />
entranhadas, enraizadas origens...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 183<br />
O SENHOR PRESIDENTE<br />
(Desterro)<br />
O senhor presidente vai chegar, vai chegar o<br />
senhor presidente.<br />
Por toda a parte da terra pacata e simples os<br />
senhores burocratas, os senhores políticos de ambas as<br />
parcialidades, e o povo murmuram: O senhor presidente<br />
vai chegar, vai chegar o senhor presidente.<br />
Boatos locais correm parelhas, vitoriam e<br />
martirizam, conforme o caso, desprestigiosos ou<br />
honrosos, a pessoa ignota do senhor presidente.<br />
Homens e mulheres, à maneira de necromantes,<br />
deitam pareceres, opiniões, como numa mesa de jogo se<br />
deitam cartas ao azar: será alto, gordo, baixo, magro;<br />
usará cavaignac, será louro, terá suíças, será moreno,<br />
ou usará simplesmente bigode, ou não terá barba<br />
nenhuma?<br />
Os provincianos não sabem. Calculam,<br />
estabelecem semelhanças, fazem paralelos, comparam<br />
o presidente fulano, o presidente sicrano, etc., e o nome<br />
do senhor presidente, que deve chegar no paquete do<br />
dia, desenrola-se de todas as bocas, flexivelmente,<br />
invariavelmente, dando impaciências e febrilidades à<br />
massa anônima que o quer ver já ao pé de si, saber-lhe<br />
os tics, como veste, se é bonito ou se é feio.<br />
Mas lá no fundo do horizonte plúmbeo destaca-se<br />
um vultinho, por ora sem forma, vago, indeciso e<br />
nebuloso, como uma bola negra.<br />
Porém, à proporção que os horizontes se<br />
desfumaçam e as montanhas somam saliências azuladas<br />
e contornadas, transparentizando-se então os variados<br />
aspectos das cousas em conseqüência da onda de luz<br />
matinal que agora ilumina e faz viver tudo, a bola negra<br />
avulta gradualmente, veste as conformações que lhe dá<br />
a luz da manhã caindo eterificada, diluída em prata no<br />
mar, destaca-se, afirma-se e, todos, algumas senhoras
184 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
e cavalheiros que assestam o binóculo para lá, e o povo,<br />
apinhado no cais, curioso e alvoroçado, exclamam: É o<br />
vapor, é o vapor; aí vêm o presidente, aí vêm o presidente.<br />
Que tal será, seu Barbosa, perguntam uns<br />
indivíduos, você que entende isso de política?!<br />
E o seu Barbosa, homenzinho hirto, franzino e<br />
magro, conhecido por muito engraçado, de boas chalaças<br />
e que estava placidamente a olhar o mar, volta os olhos<br />
para estes indivíduos, endireitando e puxando para cima,<br />
desafogando do pescoço o alto colarinho brilhante como<br />
não cabendo na honra e no orgulho da consulta que lhe<br />
fazem e da competência que lhe dão em assunto tão<br />
palpitante e melindroso, dizendo com importância:<br />
Homem, isto de presidentes médicos não é lá para que<br />
digamos. Todo o mundo bem sabe que ele é médico; ora,<br />
é muito capaz o nosso cidadão de quando a província<br />
precisar leis fazer-lhe receitas. Não aprovo um facultativo<br />
no governo da província.<br />
E o seu Barbosa, rindo, gingando com garbo e<br />
discretamente, para não perder a sua linha de sensatez,<br />
foi indo para outras rodas, inchado de bazófia, supondose<br />
imortalizado pela sua opinião.<br />
Então os tais indivíduos insuflados por aqueles<br />
argumentos, banais e atrabiliários, sem cor e sem<br />
retidão, deram-se mutuamente os pêsames de não<br />
haverem tido há mais tempo a idéia tão original e exata<br />
sobre o senhor presidente. Mas um som rasgado e<br />
metálico de cornetas ouve-se ao longe: é a guarda que<br />
vem fazer honras do estilo ao senhor presidente.<br />
Chega-se ao cais, ao mando do superior e aguarda<br />
as ordens, formada, porque o paquete aproxima-se já,<br />
entra no porto, fundeia entre baforadas alvas de fumo,<br />
apitando.<br />
E, do lado da capitania, do lado da polícia, da<br />
alfândega e do trapiche geral parte uma fila vileira e<br />
alegre de botes, de escaleres, repletos de gente, leves e<br />
alígeros como golfinhos, os escaleres com os seus toldos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 185<br />
brancos debruados de vermelho, os botes com as suas<br />
velas em verga, enfumadas, de bandeirolas e galhardetes<br />
no topo do mastro, aproando ao paquete, na alegria e no<br />
colorido brunido da manhã, às frescas aragens salutares<br />
que aflam do norte. Após a visita de bordo, o senhor<br />
presidente aparece no tombadilho, na doçura e na nitidez<br />
da paisagem marinha, novo como uma surpresa, de<br />
estatura regular e curta barba redonda e preta,<br />
parecendo feita a riscos de fusain, e pince-nez nos olhos<br />
profundos e graves. É abraçado e saudado no meio de<br />
muita palavra balofa com falta de S, S, cheia de<br />
perdigotos, de alguns senhores funcionários públicos que<br />
se atrapalham e coram. O senhor presidente toma então<br />
o escaler que lhe é destinado e embarca com os<br />
correligionários e algumas autoridades da terra.<br />
Logo que o senhor presidente se aproxima do<br />
trapiche, o povo murmurinha, sussurra, gesticula e olha<br />
vagamente, com uma interjeição pregada à cara: Qual<br />
daqueles será, vêm outros estranhos no escaler da<br />
polícia.<br />
Efetivamente com o senhor presidente vêm outras<br />
pessoas. Passageiros, amigos do senhor presidente<br />
talvez. Mas o povo está frenético; sentem a prurigem da<br />
ansiedade. Ah! dizem uns, há de ser aquele ali, à direi<br />
ta daquele sujeito baixo de pince-nez – aquele alto e louro,<br />
de chapéu de castor branco, fino sobretudo claro no braço.<br />
Sim! Sim! É esse naturalmente, é aquele mesmo,<br />
confirmam outros, logo se vê pela figura importante e<br />
pelos trajes.<br />
Mas o senhor presidente chegara ao cais, saltara<br />
já com os seus companheiros. E a curiosidade crescia,<br />
crescia como uma onda muito alta que avassala e alastra<br />
tudo.<br />
Porém a multidão se desiludira afinal a respeito<br />
do seu modo de ver sobre o qual era o senhor presidente;<br />
porque agora o senhor presidente é cumprimentado,<br />
apertando-lhe a mão, dizem-lhe coisas sepulcrais, tristes
186 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
de espírito: Cumprimentamos a V. Exª., felicitamos a<br />
província, etc..<br />
E o povo vê então que o sujeito de pince-nez e sem<br />
mais elegantes maneiras de toillette é que é o senhor<br />
presidente.<br />
Já daí nasce uma dúvida sobre o governamento<br />
que ele poderia dar à província.<br />
No entanto o senhor presidente com o seu amplo<br />
olhar de médico conhece de um só golpe de vista qual a<br />
doença étnica desse povo e qual o diagnóstico a fazerse.<br />
Os soldados que aguardam a presença do senhor<br />
presidente fazem sentido, braço armas, apresentar<br />
armas, enquanto o senhor presidente passa, baixo e<br />
moreno, enxergando através do seu pince-nez de vidro<br />
claro, como de uma larga vitrina aberta ao sol, todas as<br />
aspirações e necessidades da terra.<br />
O senhor presidente é transcendentalista. O seu<br />
espírito latino, incomensural e vasto como o mar donde<br />
acaba de vir, tem a larga solenidade austera das<br />
catedrais babilônicas do mundo. No cérebro do senhor<br />
presidente cabem todas as grandezas e todas as elevadas<br />
nobrezas mentais. Nunca a terra tivera um homem na<br />
gerência dos seus negócios tão transcendentalmente<br />
ilustre e preclaro.<br />
O franco ar iluminado que vinha de sua erudição,<br />
da sua serenidade anglo-saxônia, fazia impressão rude<br />
e brusca nos patriotas, nos dissidentes de pequena<br />
política, a ponto de tomarem o senhor presidente por<br />
selvagem.<br />
A imaginação popular pensou jamais poder<br />
compreender o senhor presidente; se atordoava e<br />
entontecia como sujeito que leva à noite numa esquina<br />
forte pedrada na cabeça sem saber de que lado partiu.<br />
E o senhor presidente vivia num modesto luxo<br />
burguês e clássico de palácio de província, numa vida<br />
de fábula como um deus fantástico cuja ausência
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 187<br />
provocava ateísmos e anátemas, exorcismos puros, mas<br />
cuja presença acabrunhava e desarmava a todos, tal<br />
era o respeito que lhe vinha debaixo do pince-nez dos<br />
seus tranqüilos olhos de filósofo, como um poderoso e<br />
desconhecido fluido do magnetismo animal que, sem<br />
saber como, tendo sobre o povo as mais inabaláveis e<br />
prontas influências, imobilizava-o, transformava-o em<br />
mudo e automático eunuco.
188 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
O SENHOR SECRETÁRIO<br />
O senhor secretário está sentado à mesa do<br />
trabalho e faz os papéis do seu mister oficial com uma<br />
letra espichada e magra, como pernas de inseto.<br />
O senhor secretário também é magro, de uma<br />
magreza natural e estética, tendo o rosto, como um<br />
pergaminho, estrelado de miudinhos sinais de sarda.<br />
O senhor secretário veste com certa elegância<br />
que, num golpe de vista rápido, não parece de todo<br />
provinciana.<br />
Há mesmo um discreto tic de parisianismo na forma<br />
do seu chapéu em forro, verde-garrafão, um tanto<br />
afunilado, armado em cone, de abas quase direitas,<br />
colocado em cima de uma estante em que há jornais<br />
velhos.<br />
O senhor secretário está na sua juventude valente<br />
e florida e tem um enamorado jeitinho patrício; diz-se<br />
até que ele vive na flirtation das belas jovens de cuja<br />
sociedade faz parte; e, como na sua linda cabeça<br />
meridional há uma provável calvície e o senhor secretário<br />
quer parecer sempre bem às mulheres, deixa cair para<br />
a testa, desde a nuca, uma grande pasta castanha<br />
perfumada a Orisa e a Ilan-Ilang.<br />
Traz ao pescoço, à maneira dos rio-grandenses,<br />
um fourlard a listas estreitas e de cores variadas que<br />
parecem significar os tons cambiantes do ideal que o<br />
senhor secretário abraça.<br />
De vez em quando pára de escrever, e abre, com<br />
uma espátula de marfim, as folhas de um livro de tipo<br />
elzeviriano, impresso em papel melado, com filetes e<br />
delicadas bordaduras na fina capa de granito e apenas<br />
com dois frisos dourados na lombada.<br />
São versos.<br />
Depois abre a gaveta de verniz rosé da sua<br />
secretária e tira de lá um outro livro, volumoso, mas<br />
não de tão elegante luxo de arte como o primeiro. Folheia-
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 189<br />
o. Lê uma passagem, alto, para uma pessoa que está à<br />
sua direita.<br />
É O Primo Basílio.<br />
Oh! o senhor secretário é literato?! Parece que<br />
sim...<br />
Ele tem um precioso paladar estético, muito celta,<br />
e goza então a delícia de ler o Eça.<br />
Esse artista incomparável tem para o senhor<br />
secretário a alta importância, quase cultual, de uma<br />
adoração.<br />
O severo estilo impecável do Primo Basílio dá ao<br />
senhor secretário uma grande vitalidade mental, ampla,<br />
larga, que o inunda de sol.<br />
Nunca esse livro admirável sai das burocráticas<br />
mãos do senhor secretário, tão amado e contemplado é<br />
ele.<br />
Os trechos mais delicados, os tipos mais<br />
característicos, as descrições mais fotográficas, de mais<br />
pompa e esplendoroso vigor de estilo passam e tornam a<br />
passar na retina psíquica do senhor secretário,<br />
intermitentemente, como vistas vivas e brilhantes de<br />
um gigantesco Caleidoscópio.<br />
A paisagem da Escócia, vivendo fundo no livro; o<br />
Visconde Reinaldo, esquelético e finamente elegante e<br />
crevé, murmuram e vivem nas idéias do senhor secretário<br />
numa forte chama sideral de astro.<br />
Ah! que suntuoso e que nobre, ser-se o senhor<br />
secretário.<br />
Na verdade há um límpido ar de conforto na<br />
repartição em que ele está! Um ar fresco e lavado de<br />
marinha, de capitania do porto.<br />
Deve bem ser agradável, sem dúvida, fruir ali,<br />
desde as 10 horas, o expediente encerrado às 3.<br />
Que o mesmo senhor secretário, na atmosfera<br />
clara da arejada sala verde, rodeado de cartas<br />
geográficas, de tabelas de sinais, fazendo a escrita com<br />
uma bela tinta azul muito fluida, sobre o vistoso e polido
190 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
papel oficial com os troféus de armas da Nação, como<br />
um brasão nobiliário, e tendo a alegria touriste de viajar<br />
os olhos pelo mar que freme perto, o senhor secretário<br />
parece gozar um céu exclusivo, ter um paradisíaco Te<br />
Deum de felicidades.<br />
Quem o vê fazer soar cristalinamente o tímpano a<br />
fim de que se dê cumprimento a qualquer ordem superior,<br />
de que se expeça qualquer papel, tem-no por um pequeno<br />
príncipe gentil (porque o senhor secretário é de pequena<br />
estatura) coberto de opulência e cuja hierarquia o mundo<br />
constela de glórias supremas.<br />
Feliz, no entanto, sem essas apoteoses, o senhor<br />
secretário vive cantando e sorrindo à limpidez do seu<br />
espírito desabrochado e reflorido com a virgindade das<br />
rosas que abrem à beira-mar...
NICHO DE VIRGEM<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 191<br />
Loura, numa frescura de prados atravessados de<br />
luar, de madressilvais floridos ou, morena, tostada a<br />
pele virginal de fino fruto aromado, assim é que eu te<br />
vejo dentro do nicho da tua alcova, quando, no alto do<br />
teu claro palácio, uma janela me aparece iluminada na<br />
noite.<br />
Bem por vezes o firmamento suntuoso d’estrelas<br />
espalha no silêncio da natureza uma irradiação<br />
eucarística de sacrário e no meu ser viva chama de<br />
sideral emoção.<br />
E, bem por outras vezes, uma estrela só surge<br />
com um brilho aceso, coruscante, pelo firmamento<br />
tranqüilo, quando eu, amorosa e instintivamente, olho<br />
a janela do santuário em que tu às vezes na noite<br />
apareces como se olhasse a estrela em cima.<br />
E fico a meditar, languidamente, nos linhos, nas<br />
bretanhas e cambraias finas dessa alcova, nas painas<br />
alvas do teu leito, onde a tua vida de astro resplende na<br />
nudez da carne.<br />
Fico a meditar nessa serena beleza que brilha e<br />
canta na capela mística do Amor, num nicho de prata e<br />
esmeralda, com o esplendor das Virgens por entre ritmos<br />
e timbres diamantinos e verdes.<br />
Idealizo logo majestosos salões iluminados,<br />
ondulosas, vaporosas nuvens de valsas, amantes<br />
entrelaçados, num noivado de aves, por entre exalações<br />
de aromas voluptuosos, inebriando-te, fascinando-te em<br />
sonhos o cérebro delicado.<br />
Um véu tenuíssimo, como que tecido de névoas,<br />
pende-te candidamente da cabeça enflorada e radiante;<br />
tens suntuosidades e linhas harmoniosas de harpas e<br />
elances augustos, etéreos, idealidades soberbas e<br />
sonhadoras, de arcanjo, cujas níveas e transluzentes<br />
asas vão desprender vôos inefáveis, celestes; os teus<br />
olhos fulguram com tão incomparável fulgor e toda a tua
192 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
formosura desfere uma luz tão original, tão imaculada,<br />
tão nobre, que parece que as graças, os infinitos<br />
encantos, as eternas mocidades, só de dentro de ti, da<br />
tua carne, auroram.<br />
E, na penumbra fidalga do nicho onde repousas,<br />
entre lustres e candelabros, esse vulto valquiriano, essa<br />
sombra doce de balada, formada das espirais d’incenso<br />
do teu próprio sonho, se esvairá, se apagará, por fim,<br />
como o último cintilar da luz no cristal dos lustres e<br />
candelabros.<br />
E aí ficarás, só e dolente, fechada na treva da tua<br />
alcova, no cárcere de chumbo do sono, com as curiosas<br />
seduções e os eletrismos atraentes de veludosa serpente<br />
de volúpia, à espera que o sol, esmaltando a alta e branca<br />
janela do teu palácio, venha pela manhã abrir-te os olhos<br />
no nicho das cambraias e das bretanhas; à espera que o<br />
sol, fabuloso dragão de asas consteladas, desprenda os<br />
seus vôos majestosos e rufle sonora e fulgentemente as<br />
asas sobre o teu corpo, surpreendendo-te a luxuosa<br />
florescência carnal e deixando escorrer das asas, sobre<br />
ela, como finos vinhos de ouro, cálidos e palpitantes,<br />
das estreladas Vindimas, o pólen claro e virgem das<br />
supremas fecundações – ó formosa e frívola Divindade<br />
que com os tentáculos magnéticos e fascinantes da Carne<br />
estrangulas o mundo...
AROMA<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 193<br />
Manhã clara, cristais de luz, que parecem ter<br />
finas vibrações de sonorosos clarins no ar...<br />
Uma dessas manhãs líricas, aromadas, de um azul<br />
apaixonado...<br />
Alta, loura, esguia, o perfil nervoso, destacado ao<br />
sol com a nitidez, a correção de gravura em aço, vêm<br />
subindo a areada alameda das violetas e jasmins, dos<br />
resedás e lilases de antigo parque famoso, na toilette<br />
fofa e fresca dos climas quentes, meio-dia em dezembro,<br />
à fulva irradiação do calor.<br />
De toda a sua estatura nova, lirial, exala-se<br />
brandamente um peregrino perfume, um aroma delicioso<br />
de campo enroseirado, quando o luar acorda as culturas.<br />
As madeixas caprichosas, lânguidas serpentes do<br />
sol, preguiçosamente se lhe abandonam, em carícias<br />
luminosas, sobre as aladas formas arcangélicas das<br />
espáduas de ouro, de marfim e rosa: o colo claro esplende<br />
na brancura macia de penugentos veludos,<br />
fascinantemente desnudado para o tépido enlaçamento<br />
dos braços, para o chamejante estrelejamento dos beijos.<br />
Toda a linha suave do seu perfil encanta, atrai os<br />
sentidos; enquanto o olfato penetrante, delicado, sutil,<br />
talvez por um requinte artístico de sensualidade, buscaa,<br />
procura-a, percorre-lhe o corpo todo, a rósea, áurea<br />
carne cheirosa, como infinidade de irrequietos e<br />
sequiosos faunos.<br />
E tudo o que dela vem, a emanação virginal dos<br />
seus seios e da sua boca, parece fecundar a luz de<br />
frescuras imaculadas, purificar o aroma das Cousas,<br />
inebriar o som.<br />
Como que o ar onde cintila a auréola resplandecente<br />
da sua formosura recende embalsamado do feno<br />
fresco dos prados, fica banhado em ambrosias, em nardos,<br />
mirras e sândalos orientais.
194 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Experimenta-se rara sensação esquisita, que<br />
dilata, tensibiliza os nervos, dá agudas vibratilidades,<br />
intensos espasmos de luxúria, quando o olfato mais a<br />
sente, mais se aproxima dela, tateando-a, tocando-a,<br />
absorvendo-a, como se o olfato só para ela palpitasse...<br />
Há um deslumbramento de gozo, quando a flor do<br />
decote lácteo do seio, entre os cetinosos rendados e os<br />
folhos luxuosos do corpete, um aroma impoluto de<br />
aristocráticas magnólias trescala, adocicado e morno.<br />
E há também o mesmo, ou maior deslumbramento<br />
ainda, quando, numa graça de ave, ela abre, rindo, a<br />
boca.<br />
Então, não só da boca, não só do seio, como de<br />
toda a aveludada alvura daquele ser, evola-se um eflúvio<br />
de forças virgens, a suprema beleza em auroras flavas<br />
aflora.<br />
Delgada, ágil, com histerismos de mulher felina,<br />
faz idealmente lembrar cinzelada ânfora d’incenso,<br />
marchetado turíbulo de prata, de onde, para o alto, alamse<br />
claros, alvos fumos puríssimos e sacros...<br />
E, sempre que o olfato iluminado, atilado sente,<br />
longe ou perto, o aroma casto, inalterável, da loura<br />
resplandecente, é como se ela, então, de repente<br />
vicejasse, florescesse na frescura cheirosa de suntuoso<br />
pomar de frutos e alvorecesse em rosas ou em flores<br />
níveas e afrodisíacas de Noivado, majestosamente nua,<br />
de dentro de um tálamo branco...
A MILIONÁRIA<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 195<br />
Todos os que te vêem passar, ou passeando o olhar<br />
através dos brancos luares tranqüilos, ou, pelas tardes<br />
de março, indo às pitorescas digressões costumadas e<br />
elegantes, a algum pic-nic de rapazes do tom no teu coupé<br />
ou na tua victoria puxada por vistosos e lindos cavalos do<br />
Cabo – os que te vêem passar exclamam a meia voz e<br />
com respeito, com solenidade:<br />
– Oh! como esta senhora é milionária!<br />
Na verdade, essas pessoas não mentem.<br />
O irradioso luxo das tuas toilettes de verão e de<br />
inverno, de um alto ar nobre e aristocrático, enchendo<br />
as ruas por onde passas de uma majestade principesca,<br />
lembra as fulgurantíssimas pompas orientais, perto das<br />
quais o sol parece triste e desmaiado, tal é a prodigiosa<br />
onda de luz, de perfume e encantamento que nelas faz<br />
explosão e ruído...<br />
E o teu formoso chalet, de altas janelas para os<br />
ares frescos, engrinaldado de rosas, de heras e<br />
madressilvas, com incrustações de marfim como os<br />
chalets chineses, cantante e alegre ao sol, como é<br />
artístico e raro!<br />
E o teu parque, o teu parque, largo e doce, de<br />
tanques cheios de pequenos peixes de prata e vermelhos,<br />
que pulam n’água estrelando-a de irradiações sulfúreas,<br />
de esquisitas aves de toda a parte do mundo, desde o<br />
pavão, que vêm da Ásia, colorido e ovante, até ao melro<br />
e o rouxinol da Europa e até aos sabiás da América do<br />
Sul, que cantam nas palmeiras; de árvores grandes e<br />
graves, viço que murmuram luxuriosos salmos de amor<br />
na sua folhagem rica e farta de seiva – o teu parque,<br />
milionária senhora, tem a placidez, a vasta serenidade<br />
do conforto das riquezas.<br />
Realmente, tu és milionária. Tem razão o povo.<br />
No entanto, entre essas qualidades possuis uma<br />
outra, que parece destoar do caráter geral da tua pompa.
196 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
És caridosa, muito caridosa, tão caridosa mesmo<br />
quanto és rica.<br />
Muitas vezes os teus sentimentos de mulher<br />
ilustre, preclara têm sido cantados em prosa e verso,<br />
em prosa seca e desalinhada e em verso ainda pior do<br />
que a prosa. E tu, sentindo no ouvido o velho tom clássico<br />
daquela frase banal que diz “Valha o desejo se não vale<br />
o canto”, lês os jornais, orgulhada e embevecida dos<br />
dizeres chics, encomiásticos, sentada na tua chaise-longue<br />
ou na tua conversadeira, na sala amarela de reposteiros<br />
também amarelos, cheia de bijouteries, de estatuetas de<br />
Saxe, de cristais de Sèvres, lembrando todo esse requinte<br />
e galanteria da arte de Luís XV e da Pompadour.<br />
E ficas vivamente enlevada, tocada de um eflúvio<br />
de grandeza e opulência bizarra, abandonada a mão<br />
fidalga e polposa, de transparentes unhas rosadas, sobre<br />
o regaço que treme debaixo do roupão claro e em tufos<br />
na frente, entremeados de fitas azuis e rendas.<br />
Não obstante, apesar do rumor e da luz que sai do<br />
teu ouro, me parece a mim, rica senhora, que tu não és<br />
caridosa. Pelo menos ia eu jurá-lo.<br />
E senão, vejamos. Prodigamente ofertas quantias<br />
aos clubes de dança, aos jockey-clubs, aos clubes de<br />
regatas, ao lírico, aos concertos, aos jornais de modas,<br />
a todo o mundanismo elegante das belas cidades de estilo<br />
e de elite. Mas tudo isso que fazes é com rubros cartazes<br />
de ostentação, é propalado com reclamos espetaculosos,<br />
a mise-en-scène mágica da tua vaidade.<br />
Mesmo os hospitais, as sociedades de utilidade<br />
pública que socorres com a tua bolsa, inesgotável e<br />
poderosa, não é por um simples impulso emocional,<br />
simpático, de uma risonha compreensividade, mas sim<br />
por um chiquismo, um certo aplomb oficial das naturezas<br />
criadas, desenvolvidas na atmosfera fácil da riqueza.<br />
Depois tu serias profunda e evangelicamente<br />
caridosa se eu próprio nada soubesse das tuas<br />
magnanimidades. E eu não tive ainda a suprema delícia
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 197<br />
de sonhar, ao menos acordado, que entras obscuramente<br />
numa casa onde há crianças famintas e maltrapilhas e<br />
aí deixas uma bolsa cheia de ouro, sem um sinal<br />
qualquer, sem os teus brasões, sem o traço azul da tua<br />
filiação genealógica de sangue, se é que és baronesa ou<br />
condessa.<br />
Porque tu só praticas a caridade pela apoteose<br />
gloriosa, triunfante do teu nome.<br />
E tanto é assim que, no dia seguinte a uma<br />
magnanimidade tua, toda a gente te vê nas ruas e nos<br />
bairros mais populosos da terra a mostrares a tua pessoa,<br />
moça e formosa, como uma vitrina se mostra, aos olhos<br />
ávidos e espantados do transeunte inexperiente das<br />
maravilhas do mundo, um originalíssimo brilhante negro.<br />
A caridade tem para ti a influência de um perfume<br />
raro e forte que, aspirado persistentemente, perturba e<br />
excita os nervos.<br />
É uma espécie de ópio ou de haschih árabe que te<br />
permite ter alucinações, deliciosas visões fantásticas e<br />
sonhar com cousas paradisíacas, com galgos e<br />
genuflexões de indivíduos de curvatura flexível e leve.<br />
E o que tu pareces sonhar vê-lo realizado pelos<br />
jornais, por pessoas que falam em ti com adoração, com<br />
respeito, quase com medo; pelos srs. deputados,<br />
ministros, conselheiros e toda uma ala luzida de<br />
titulares, que te tiram o chapéu a grandes e amplas<br />
barretadas adulatórias, todos eles refulgentes de triunfo,<br />
por terem ocasião de te saudar sempre e por serem os<br />
primeiros que aparecem nos teus chás cavalheirescos,<br />
pondo-te açúcar na preciosa xícara dourada aberta em<br />
preciosos lavores.
198 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
DE <strong>VOL</strong>TA AOS PRADOS<br />
Venho da paisagem.<br />
Acaba de me entrar um largo jorro de vida pelos<br />
pulmões.<br />
De andar todo o dia através searas e prados, entre<br />
giestas em flor, finas, frescas e fofas papoulas rubras,<br />
campos verdes e floridos de rosais, trago o aspecto um<br />
tanto rude e campônio, tenho a linha pitoresca e viril de<br />
um rural boy.<br />
A fim de me arejar do pó da cidade levei para a<br />
natureza virgem dos campos, de onde volto agora, um<br />
livro espiritualizante.<br />
E nada mais encantador e sereno do que esse picnic<br />
de bom humor e de verve que eu acabo de fazer, sob<br />
as árvores, como um druida, debaixo de tetos verdes<br />
onde as aves cantam, sentindo, na frescura da seiva, os<br />
vegetais virem à carícia morna do sol.<br />
Nada mais de sentimentos nostálgicos, de vagos<br />
nevoeiros de spleen. O ar salubérrimo da paisagem,<br />
pondo-me nas carnes a elétrica sensação do sangue<br />
alvoroçado, despertou-me a intensa, a profunda, a<br />
complexa fibra sonora da Arte.<br />
Porque eu não sei de cascatas de ouro de lei, de<br />
portentosas riquezas nabábicas, de luxos asiáticos, os<br />
mais extravagantes e majestosos, que possam apagar<br />
na imaginação dos verdadeiros artistas as impressões<br />
que se recebe de uma bela prosa estilada, certa, onde a<br />
palavra esboça, desenha e cobre todos os variados e<br />
complicados assuntos da vida, como que fotografando a<br />
luz, o perfume, o movimento, a cor.<br />
Na natureza de cada objeto, na essência de cada<br />
ser há, nos livros que se propõem a mais alguma cousa<br />
do que divertir, e a agradar, mas a convencer, a<br />
impressionar, a comover pela psicologia e a análise, uma<br />
resplandecente verdade que ilumina de um largo clarão<br />
de filosofia a consciência do escritor.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 199<br />
Com nuances diversas, como fitas de fuzis, os<br />
livros acusam sempre a maneira literária, sugestiva de<br />
um temperamento, pondo-lhe à luz a excitabilidade<br />
nervosa das personalidades desenvolvidas num dado<br />
meio, amorosas, apaixonadas, tendo, para cada expansão<br />
da vida, além de um espírito seguro, impulsivo, uma<br />
qualidade de sentir, de ver, de assimilar, de discernir e<br />
de crer, a mais estética e delicada.<br />
Nós, que estamos cá para a América do Sul, pareceme<br />
que ainda não nos podemos compenetrar bem, com<br />
toda a profundidade e largueza, desses grandes<br />
sentimentos afetivos que, filtrados do cristal da alma,<br />
passam, na mais graciosa e límpida forma literária, para<br />
umas tantas páginas de livro.<br />
Porque é preciso fazer transplantar para a escrita<br />
aquilo que sentimos, com toda a expressão do colorido,<br />
com toda a gradação de tons, com toda a crua exposição<br />
do real – do mesmo modo e com a mesma intensidade<br />
com que o ar nos tonifica o sangue e nos dá movimento,<br />
ação, a todas as funções do organismo.<br />
Agora, porém, é que vem rompendo uma floração<br />
de talentos, artistas do Atlântico, mais complexos, mais<br />
dúcteis, com toda a delicadeza da expressão e o colorido<br />
de cinzelada forma – artistas preocupados da correção<br />
suprema, que num trecho de prosa fazem vibrar os seus<br />
nervos, palpitar a vigorosa força dos seus músculos,<br />
resplandecer a flamante aurora vertiginosa do seu<br />
sangue.<br />
Esses são os impressionistas, os coloristas, os<br />
estilistas, dando à escrita a intensa vibração dos órgãos<br />
humanos, fazendo da linguagem o mais prodigioso<br />
aparelho que, como um estranho instrumento de ouro,<br />
brilha nos nossos olhos, canta nos nossos ouvidos,<br />
impressiona e sensibiliza a nossa alma.<br />
Todo o processo literário depende, primeiro que<br />
tudo, das tendências, do caráter objetivo do escritor.
200 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
E, quem conseguir ter idéias gerais das cousas e<br />
souber dispor de elementos de observação e análise,<br />
será necessariamente um escritor, dentro dos limites<br />
do seu alto dever artístico, pintando a natureza como a<br />
natureza se apresenta, e dando a cada assunto, a cada<br />
particularidade a cor e o estilo que cada assunto e que<br />
cada particularidade pedir.<br />
Assim far-se-ão escritores e não máquinas<br />
reprodutivas de toda uma natureza morta, de todo um<br />
cliché de idéias por bitola, e isso para o bem, para a<br />
inteira perfeição da Arte.
INVESTIGAÇÃO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 201<br />
O que ela pensa de ti não é nada gentil e não é<br />
nada amável. Tu fazes versos. Ninguém sabe se os teus<br />
madrigais, se os teus idílios rimados nadam diluídos no<br />
éter ou servem de harmonia à garganta de algum<br />
pássaro. Ninguém sabe disso. Mas o certo é que tu fazes<br />
versos, lindos versos, sonoros versos musicais e<br />
frementes, que dizem toda a história do coração, todos<br />
os episódios da alma humana.<br />
O teu modo de vibrar as estrofes é natural e<br />
fluente, e exprime bem o estado do teu ser, penetra nos<br />
organismos, tem toda a comunicabilidade sutil e delicada<br />
como um excitante perfume.<br />
Incontestavelmente possuis algum oculto veio de<br />
sol no cérebro! Porque, na verdade, tudo isso, florescente<br />
e radiando, que te surge assim do pensamento, não pode<br />
vir apenas do sangue. É necessário um outro elemento<br />
mais poderoso e intenso para te inflamar, exaltar assim<br />
de poesia e esse elemento é, sem dúvida alguma, o sol...<br />
Contudo, isso, assim como num enxurro que as<br />
chuvas carregam para os rios vai muita coisa inútil e<br />
pode ir também muito brilhante e muita pérola, no jorro<br />
de luz da tua imaginação vem às vezes, como ironia<br />
aguda, muito morto elemento de verso fútil, que passa e<br />
que vai embora, ao mesmo tempo que se sucedem os<br />
mais heróicos e bravios leões da idéia...<br />
E é de forma tal o teu espírito, que o teu nome<br />
poderia constelar de glória qualquer página de história<br />
sem o mais tênue ridículo.<br />
No entanto, são bastantes todas essas qualidades<br />
para ela te aborrecer e preferir a ti o mais banal e ínfimo<br />
dos homens.<br />
É certo, porém, que tens obtido dela firmes provas<br />
de afeição: os anéis de cabelo, os mais sedosos e belos;<br />
os olhares, os mais apaixonados e ardentes; as frases,<br />
as mais convencedoras e amantes.
202 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Mas tu esqueceste que o coração ilude quase<br />
sempre, esqueceste o coração dela, não lhe perguntaste<br />
nada, não o dissecaste como a um querido cadáver,<br />
porque ai! o coração das nossas amadas é quase sempre<br />
um indiferente cadáver gelado.<br />
Nada indagando, enfim, do coração da tua morena<br />
ou da tua loura, deixaste-te ir boiando na embaladora<br />
onda dos seus beijos e das suas carícias, dormiste sobre<br />
essa onda, a sonhar, e acordaste nas aflições e nos<br />
desesperos do naufrágio...<br />
Oh! oh! dirás, este senhor escritor entra-me pela<br />
alma a dentro como se entrasse por uma sala deserta...<br />
É exato que ela me tem iludido algumas vezes, mas tão<br />
poucas vezes mesmo que até nem me dei ao trabalho de<br />
contar, nem valeria a pena fazê-lo...<br />
E esse senhor escritor te responderá: Não, não<br />
acertaste por esse lado. Se ela te tem enganado tão<br />
poucas vezes, que não te deste ao trabalho de contar,<br />
oh! dói-te de ti mesmo, errante louco do amor! porque<br />
se não consegues te enumerar todas as vezes que ela te<br />
iludiu, é que tantas, tantas foram elas, que o teu brio<br />
aparenta ou a tua consciência de forte se envergonha<br />
de o confessar...<br />
Esta é que parece ser a verdade tremenda,<br />
esmagadora, que te comprime e achata o cérebro. E se<br />
não crês, vejamos.<br />
Ontem ela viu-te passar, a “tua eternamente”,<br />
como ela mesmo te diz nas suas cartas. Tu não a viste.<br />
Ela estava à janela e, assim que te aproximaste, ocultouse.<br />
E por quê? Não te adora ela tanto?<br />
Mas é que tu te não lembras que vinhas com<br />
companheiros, amigos, rapazes como tu, e, entre eles<br />
todos, eras, não o mais feio, mais o mais pobre de toilette.<br />
As tuas botas tortas e rotas faziam-te escorregar<br />
na calçada, dando-te a aparência dúbia de bêbado. Tu<br />
não pisavas firme, não tinhas elegância como os outros,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 203<br />
e isso oh! perdoa, mas a tua amada não podia suportar<br />
nem desculpar sequer. Ah!<br />
Ah! doía-lhe mais isso na vaidade, certamente,<br />
do que se soubesse, nesse mesmo instante, que tinhas<br />
acabado de morrer.<br />
Parece-te demais isto, não? Pois escuta ainda.<br />
Hoje há um grande baile de luxo num clube da<br />
capital. Foram expedidos convites a toda a gente fina e<br />
ilustre. A ti ninguém julga ilustre; e se alguém te julga<br />
fino é apenas na magreza da luta pela vida que te enruga<br />
o semblante num brusco movimento de dor, quase numa<br />
picaresca momice. Mas, como tu andas pelos jornais,<br />
em espírito, e os senhores sócios do clube, supondo-te<br />
um imbecil, “contam com uma notícia floreada sobre a<br />
festa”, como eles dizem, tu alcanças o teu convite, bem<br />
certo de que ela irá, e simplesmente por causa dela.<br />
Para isso vais consultá-la. Ela diz-te que irá com<br />
certeza, sem se esquecer de te fazer sentir que vai por<br />
teu respeito, por valsar contigo, para estar perto de ti.<br />
E, não obstante os seus olhos dizerem o contrário, não<br />
obstante afirmarem que vai para ver os outros, para<br />
divertir-se, tu, com todo o teu poder de espírito e verve,<br />
ficas preso nas capciosas malhas dessa fidelidade de<br />
momento, mas em que tu absolutamente crês, e vais ao<br />
clube, alegre e triunfante, como os vencedores.<br />
Lá, ninguém sabe que tamanha nevrose<br />
experimentas, que ficas excitado, bebes demais, começas<br />
a tontear no solo das contradanças, não por causa das<br />
botas tortas, porque nesse dia tiveste o cuidado gentil<br />
de calçar um Milliés elegante, mas pelo álcool que te<br />
sobe então à cabeça em espessas e atordoantes névoas<br />
de vapor...<br />
De repente perdes o equilíbrio num galope e cais<br />
bruscamente no assoalho. Todos te cercam e dão-te<br />
socorros que o acidente requer; mas a “a tua amada<br />
para sempre”, essa, deixa-se ficar a um canto, no vão da<br />
sacada, pelo braço do cavalheiro, pálida e trêmula, é
204 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
verdade, mas do susto apenas, tendo logo o cuidado de<br />
dizer: – Que inconveniente! Quem o convidaria? Eu nem<br />
o conheço, é a primeira vez que o vejo.<br />
E tu, desfigurado, abatido depois de mais calmo o<br />
teu estado fatal, voltas para casa com uma agonia de<br />
despeito e de vergonha que te insufla de soturnos soluços<br />
abafados toda a concavidade do peito.<br />
E se isto não basta ainda, se te não convence, ora<br />
ouve lá então...<br />
No dia seguinte, tu, com o corpo mole e quebrado<br />
como se te houvessem esbordoado com chibatadas de<br />
junco, com o paladar azedo para tudo, deixaste-te ficar<br />
em casa e, incendiado por um ciúme que aplica tenazes<br />
em brasa nas carnes – profundo ciúme despedaçador<br />
nascido do ridículo que pusera em ti aquele fato, e dos<br />
indivíduos que ficaram ainda no clube a gozar a beleza<br />
da tua amada, tu lhe escreves umas linhas emocionadas,<br />
quentes, cheias de febre da paixão, desculpando-te o<br />
mais hábil e convencedoramente possível daquele<br />
incidente involuntário, dado apenas pela vertigem de<br />
adoração que ela te inspirou no clube.<br />
Porém ela, recebendo a carta, impassível e fria,<br />
não a abrirá, não a lerá, rasgando-a.<br />
E o portador, já teu conhecido, que leva a resposta<br />
e que viu, de olhos arregalados de espanto, a tua amada<br />
rasgar a carta na sua presença, tendo dó de ti, porque<br />
sabe o tormentoso amor que tu votas a ela, te há de<br />
dizer que ela leu a carta com desvanecimento, com<br />
interesse, à sua vista; e que acrescentou mais até que<br />
não escrevia já naquele momento por estar muito nervosa<br />
em conseqüência de um pobre, esfrangalhado e sujo,<br />
que lhe foi pedir esmola logo pela manhã, atrever-se a<br />
apertar, beijando-a, a sua mão delicada.<br />
Tu, então, vendo nisso a graciosa maneira de<br />
reatar uma afeição que parecia perdida, acreditarás no<br />
portador; e apesar de todos os teus grandes sentimentos,<br />
por ti mesmo apregoados, maldirás no íntimo esse
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 205<br />
miserável pobre que te impediu de receberes logo a<br />
desejada, a querida resposta da tua carta.<br />
E, assim, andarás, dessa amada para outra, ontem,<br />
hoje, amanhã, como em três pesadelos da vida, jogado<br />
para lá, para cá, como um corpo morto, no mar, ao embate<br />
das ondas entre recifes – sem quereres admitir que o<br />
que ela pensa de ti não é nada gentil e nem é nada<br />
amável; sem acreditares que tu és para ela nada mais<br />
nada menos que um pequeno cão bravio, que late e se<br />
arrepela às vezes, mas que serena, amansa logo, desde<br />
que o tacão ou a ponta de uma bota se levanta no ar<br />
ameaçadoramente.
206 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
PSICOSE<br />
Ritmos de cristais aristocráticos; harmonias<br />
veludosas de órgão; nostálgicos, neblinosos violinos;<br />
maravilhosas sonatas tudescas de um sonâmbulo luar;<br />
sons dispersos, inexpremíveis da Noite! está diante de<br />
vós o cruciante fantasma da minha Dor!<br />
Ele persegue-me eternamente, como um vigia que<br />
eu tivesse dentro de mim! E eu o sinto horrivelmente<br />
escancarar a boca, e rir, e rir, numa risada pungente,<br />
dilacerante, como a das figuras dantescas que o<br />
funambulesco Doré criou.<br />
É a comédia negra, a comédia das torturas<br />
psíquicas, que ri, porque a sua faculdade de chorar é<br />
rindo, nuns esgares bufos, numa ironia musical de<br />
Offenbach.<br />
Ah! são precisas lâmpadas de entendimento para<br />
descer aos ergástulos sombrios, lôbregos de certas almas,<br />
para ver-lhe o fundo tenebroso onde a Dor sempre cavou<br />
a fonte das lágrimas.<br />
Tudo o que essas almas manifestam para fora de<br />
si, são apenas efeitos, esmaltes de sol, que se apagam<br />
logo que a luz na altura se apaga.<br />
O que realmente existe lá dentro é uma densa<br />
poeira triste de desertos caminhados em desolação, onde<br />
a figura torva do tédio fica ao alto, num relevo de bronze,<br />
na eterna gravura do humorismo.<br />
Flor de luxo das civilizações requintadas, flor<br />
doente, o tédio espiritualiza-se, recebe a contextura da<br />
prosa, entra na concepção e no estilo.<br />
É como o personagem ideal, alegre e doloroso ao<br />
mesmo tempo, o personagem vermelho e negro, o<br />
Mefistófeles fantasioso que, sob as estrelas, sabe<br />
peregrinamente cantar, para que algumas almas<br />
solucem.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 207<br />
Olhando para dentro de certas naturezas nem<br />
sempre tudo é claro, de uma luz larga, ampla e vivamente<br />
palpitante como o mar ao sol.<br />
Há pontos obscuros, turvos, nebulosos, espécie de<br />
mundos de idéias ainda em gênese, em formação e que<br />
às vezes não chegam nunca a desenvolver-se.<br />
Aspectos vagos de chuva e sol, quando, entre a<br />
leve cintilação da luz, caem as neblinas, os nevoeiros, a<br />
chuva, apresentando à visão um brando tom<br />
impressionista de clarão e de sombra.<br />
Assim és tu, nobre natureza das idéias que eu<br />
amo!<br />
Tu te fortaleceste nos combates, te avigoraste e<br />
reuniste em ti a força, a alegria nova dos campos<br />
lavrados, quando os primeiros rebentos começam<br />
virginalmente a florir numa intensidade de verdura.<br />
Em ti natureza das idéias deu-se o mesmo que<br />
nos campos: a charrua era forte, o aço era fino e<br />
lampejante e poderia bem lavrar terras abundantes para<br />
que o veio original do espírito surgisse, viesse, raiasse a<br />
flor.<br />
Mas, ante essa força e alegria nova de campos,<br />
raramente deixa de perseguir-te, de avassalar-te, nobre<br />
natureza das idéias que eu amo! – esse duro tédio que,<br />
como a invasão de um budismo nirvanamente religioso,<br />
lança-me venenos letais nas veias.<br />
Em vão, em vão às vezes o meu sangue flameja,<br />
como uma aurora boreal de reação contra essa noite<br />
fria, glacial, apagada d’estrelas e rijamente cortada de<br />
uivos convulsivos de ventos epiléticos...
208 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
LUZ E TREVA<br />
Não sei que luz estranha ilumina os espíritos<br />
superiores; eles refletem cousas extraordinárias que os<br />
seres vulgares nem sequer percebem, cambiantes de<br />
mágico brilho, fulgurações de astros incendidos no céu<br />
através a bruma transparente distendida no espaço.<br />
Nessas imaginações esplêndidas, que parecem<br />
continuamente mergulhadas numa fosforescência<br />
translúcida, há incêndios de sóis, rendilhados jasperinos<br />
de espumas, colorações de astros e flores, diafaneidades<br />
de gozos indescritíveis; há risos de auroras, prantos de<br />
orvalho, rios de lágrimas, céus de alegrias, noites de<br />
tristezas, oceanos estrelados de amor, tempestades de<br />
ódio, eternidades de agonia; há envergaduras de heróis,<br />
reflexos de mulheres divinas, corpos aéreos de criaturas<br />
sobre humanas!...<br />
Há um mundo, uma natureza além das cousas<br />
terrestres superior a todas as cousas, em que vivem<br />
deuses fabulosos, arcanjos e sombras, que a vulgaridade<br />
não conhece.<br />
É a grande visão do imenso olhar do talento, que<br />
se debruça para dentro do próprio cérebro, que reverbera<br />
como um grande foco elétrico, deslumbrado, refletindo<br />
visões que pairam no pensamento, aureoladas e fúlgidas,<br />
como as cousas sublimes que o escritor transporta à<br />
tela incomparável dos seus quadros fantásticos,<br />
luminosos...<br />
Só os cérebros apagados não sabem ver assim; só<br />
os que não possuem o reflexo da luz suavíssima e<br />
aurifulgente das auroras do pensamento, só eles não<br />
podem ver, na cinza escura da sua esterilidade, as<br />
grandes telas esbatidas e enfeixadas de raios, estrelas,<br />
e sóis dentro de infinitos azulados e tranqüilos; é que<br />
na escuridão vazia e tenebrosa que eles têm em si, nada<br />
distinguem, nada compreendem, porque não lhes<br />
chameja a imaginação, essa peregrina centelha
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 209<br />
acendida no cérebro como um grande farol na<br />
imensidade, essa luz fertilizante que vê as cousas<br />
inauditas que nos deslumbram; é que eles têm dentro<br />
do crânio a maldição da treva a esterilizar-lhes a mente,<br />
a mergulhá-los na sombra implacável do vácuo e do nada!
210 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
<strong>VOL</strong>ÚPIA...<br />
A chuva cai lá fora, ininterrupta, em torrente fria...<br />
Uma tinta escura entenebrece o ar. Não se vê<br />
mais o sol. O grande sol flavo, original Fecundador, não<br />
surgiu hoje das nuvens, não raiou, com a sua prodigiosa<br />
luz.<br />
E a chuva, assim torrencial nesta manhã de<br />
outubro, dá-me um afrouxamento aos nervos, uma infinita<br />
lassidão, um torpor que voluptuosamente sensibiliza...<br />
Que continue a cair lá fora a chuva, morosa e<br />
nostálgica, nessa viuvez triste de melancolia, numa<br />
cadência, num lânguido ritmo.<br />
Não sei por que vaga, abstrata expressão dos<br />
horizontes, ao longe, das horas dormentes deste dia, eu<br />
amo fidalgamente a chuva que cai dos altos espaços.<br />
Quisera estar agora, na indolente filosofia de um<br />
faquir, com a luxúria e o luxo de um mandarim, numa<br />
larga sala de mármores brancos, ouvindo a sonoridade<br />
da água que desce das brumas e ouvindo músicas<br />
aristocráticas, sonatas convulsivas e dolentes e místicas<br />
de Beethoven, que me enlevassem, a pensar, a pensar,<br />
organizando com delicadeza e curiosidade idéias<br />
imaculadas.<br />
E que a chuva, fora, caísse, jorrasse, cantasse<br />
em amplos, largos, claros, frescos pátios sonoros<br />
ladrilhados de verdes mosaicos.<br />
Ou, então, quisera bem, numa igreja silenciosa,<br />
ouvir ao confessionário, como os sacerdotes católicos,<br />
as femininas almas amarguradas e virgens, que me<br />
dissessem, numa pureza de veio original, na linguagem<br />
de luz que só os astros devem cristalinamente possuir,<br />
os secretos dilaceramentos e ansiedades, as obscuras e<br />
inquietantes paixões que como áspides ardentes e<br />
caprichosas alvoroçam e mordem de nervosidades, de<br />
êxtases, nos paroxismos do delírio genital, as alvoradas<br />
brancas das Noivas adolescentes.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 211<br />
E, contemplativo, absorto, desejara, do meio de<br />
velhos e austeros palácios renanos, ouvir, sublimemente,<br />
comentar Schopenhauer, dentre um fundo meditativo<br />
de bruma germânica, sob retalhante, fuzilante humor a<br />
Heine; ou, senão, num evocativo transporte, ver passar,<br />
desfilar diante dos meus olhos, fagulhante e em pompa,<br />
empoada, numa esfuziante coquetterie e ostentação<br />
fabulosa, a brava Corte fascinante e faustosa de Luís<br />
Quinze, na linha dos ritmos donairosos, dentre os<br />
meneios fidalgos do minuete – cintilante colméia de sol,<br />
de onde se filtrou outrora o divino mel da graça e onde<br />
essa voluptuosa e luxuosa Pompadour tentadoramente<br />
reinou, esvoaçando, ágil, trêfega, com a sua volubilidade<br />
e favoritos encantos de grande e deslumbrante Abelha<br />
funesta e cor-de-rosa.<br />
Desse modo, então, tudo na minha imaginação<br />
ficaria deliciado, pelo esplendor e bizarra galanteria<br />
nobre das mulheres, como por esquisita essência<br />
finíssima de ambrosia, de formosura e sol.<br />
Assim concentrado, alheado de tudo, como que<br />
vagamente entontecido pelos vapores quiméricos do vinho<br />
alvo de um luar de Idealismos, ansiara infinitamente<br />
gozar todos os Grandes Amados, os curiosos<br />
sensibilizados do Pensamento e da Forma.<br />
Gozá-los nas suas vivas páginas evocativas,<br />
sagradamente, com emoção e paixão, incendiando-me<br />
nas suas chamas, perdendo-me nas suas lânguidas e<br />
extravagantes Arábias de Sonhos, subindo aos seus<br />
crepitantes delírios, às suas alucinações e crises<br />
nervosas que a mentalidade gera, mergulhando com<br />
intensidade, com profundidade, nas suas poderosas<br />
sensações.<br />
Assim, penetrado de emoções tocantes e<br />
luminosas, eu vivamente sentiria a alegria espiritual,<br />
voluptuosa, de viver e todo o meu ser viçaria logo numa<br />
triunfal beleza radiante de grandes rosas escarlates.
212 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Poderia a chuva insistentemente cair! Eu<br />
experimentaria, no religioso e cativante silêncio da<br />
minha reclusão mental, uma sensação íntima, preciosa,<br />
original, que me vibrasse, despertando a mais delicada<br />
sensibilidade nervosa, o frêmito, o alvoroço d’asas, os<br />
caprichos d’arrebatamento de vôo de pássaro selvagem,<br />
ao sol do mar largo, e o ressurgir inefável de certas<br />
sentimentalidades passadas...
A CARNE<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 213<br />
Para nós, que estamos sentindo, como numa<br />
grande calamidade de legenda, a carestia da carne, a<br />
sua fabulosa inópia, a visão da felicidade toma aspecto<br />
de bife de grelha, sangrento, alapardado numa porcelana<br />
de frisos doirados, entre as franjas louras das alfaces<br />
lavadas, macias, frescas, deliciosas...<br />
Adormece-se ao entorpecimento de um dia mal<br />
alimentado; tem-se sonhos terríveis de voracidades<br />
espantosas, entrevendo através de mil estiletes agudos<br />
de uma barreira de dificuldades, as pomposas polpas de<br />
carne rubra, fascinante como um sorriso de madona,<br />
sob a roupagem amarela e tênue da gordura fresca,<br />
oleosa...<br />
Mais além, na planície verdurosa e banhada de<br />
córregos múrmuros, a boiada ofegante, coleando na<br />
pastagem rica, mastigando e mugindo, como numa<br />
antecâmara de guilhotina, à espera da hora em que terá<br />
de entrar para o talho...<br />
São as visões cruciantes do caminheiro<br />
abandonado num deserto de areias, ressequido e estéril,<br />
a ver, na vigília causticante, no sono, as límpidas<br />
cascatas em borbotões espumarados, jorrando as massas<br />
líquidas, irisadas, de um pedregal entre selvas,<br />
marulhado de ondas e bafejado de coruscantes brisas,<br />
por uma fresca e iluminada manhã outonal, do sul.<br />
Mas como num acordar de sonho, alquebrados,<br />
famintos e triturantes, ao volver os olhos à realidade,<br />
eis-nos deparados com a lamentável e furibunda inópia:<br />
a dessa farta iguaria que os deuses chamariam o seu<br />
manjar, em terras da América, mais ricas do que os<br />
campos da Austrália. E uma grande tristeza, alastrada<br />
de lágrimas, em nossos olhos rasos se desenha, como<br />
numa noite de inverno, ao viandante friorento, em torno<br />
de uma fogueira apagada!
214 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
O que estamos sofrendo todos, na sequidão<br />
devorante dos apetites dilacerados pela ignomínia da<br />
carestia que nos tortura, é uma cousa inaudita,<br />
semelhante àquelas antigas calamidades bíblicas, dos<br />
tempos dos Faraós, pela penúria dos trigos.<br />
Pode-se dizer que o bife está transformando o<br />
caráter nacional. Já não se encontra quem tenha no<br />
rosto a expressão da alegria sã, com um sinal evidente<br />
de um povo repleto e farto; toda a gente nesta terra<br />
parece triste, por essa espécie de alta inopinada da carne<br />
que, mais avara de si mesma que a libra esterlina, ou<br />
não vêm aos mercados ou apodrece à porta dos açougues,<br />
mas não se deixa ir para a mesa de qualquer, se não a<br />
peso de ouro e destemperado como um acepipe alemão.<br />
O horror da fome já nos apunhala a alma; porque<br />
tudo que em nós não é fome é mágoa pela escassez do<br />
bife, pelo adelgaçamento da pança, pelas torturas das<br />
vísceras, que pedem beef!<br />
Daqui a mais alguns dias, se não abranda a<br />
carestia, seremos apenas isto – a fome!
OS FELIZES<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 215<br />
No bairro aristocrático duma aprazível cidade do<br />
sul da América, quem mora lá ou quem viaja para lá há<br />
de ver uma elegante habitação pitoresca, ao rés-do-chão,<br />
graciosa na rua arejada e larga, entrançada de heras e<br />
de roseiras que alastram pelas vidraças e pelos telhados,<br />
transformando-a num nicho de viçosa e tufada verdura.<br />
Nos lados que deitam saudavelmente para o mar<br />
erguem-se pombais, onde pombos alvadios, de peito<br />
oválico, entram e saem, numa revoada alegre, ruflando<br />
a branca plumagem das asas e ternamente arrulhando,<br />
como num tom de soluços, amorosas baladas que só eles<br />
conhecem.<br />
Uma habitação colocada num trecho fremente e<br />
confortador de paisagem, recebendo a frescura marinha<br />
das praias, o bom cheiro acre da maresia, bem certo é<br />
que parece um castelo feudal medievo, na Alemanha,<br />
entre árvores velhas e enevoadas. Só lhe falta a<br />
montanha alpestre e o rio azul fluindo e gorgolejando<br />
nas penedias.<br />
Mas, à falta do rio azul, tem a caprichosa morada<br />
um pequeno ribeiro que vai, a uns tantos passos de<br />
distância, em estrias de prata, gemente nas suas águas<br />
tranqüilas.<br />
Ah! aí nessa vivenda deve existir a felicidade!<br />
O casal que lá mora não pode ter mais conforto,<br />
mais bem-estar, melhor graça na vida.<br />
A mulher, ménagère alemã, ativa e prática no<br />
mister do seu ménage, virtuosa, fiel como poucas – um<br />
belo tipo de nobreza grega, esbelto, de uma plástica doce,<br />
linha direita de imperatriz da Áustria, formosa como se<br />
se tivesse gerado da luz.<br />
O marido, quase um lorde, satisfeito nas toilettes<br />
finas, muito sports-man, sempre num belo cavalo fogoso<br />
e claro d’espuma, de crinas cetinosas que o vento agita
216 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
e faz tremular nos galopes, ao sol, como delicadíssimos<br />
filamentos de astros.<br />
À noite, quer haja luar, quer não; quer a lua surja,<br />
redonda e glacial, quer haja apenas estrelas, a música<br />
consoladora soa ali, através dos stores verdes, em<br />
partituras alemãs, em scherzos e melancólicas sonatas.<br />
A orquestra que se escuta dentro é executada por um<br />
curioso terceto de instrumentos: é o piano, o violino e o<br />
violoncelo – almas apaixonadas que murmuram<br />
sonoramente todas as alegrias e amarguras das notas.<br />
Mas, ah! egoístas da felicidade!<br />
Esses pequenos concertos a négligé, feitos entre o<br />
chá da noite, sem diletantismo, são ocultos e<br />
misteriosos.<br />
O gentil casal fecha discretamente todas as portas<br />
da sua linda casa e encerra-se com a sua música dentro<br />
de uma sala, como Luís da Baviera e Wagner, sozinhos,<br />
dentro de suntuosos palácios reais.<br />
E, olhando de fora, através dos stores verdes,<br />
descidos nas janelas entre a luz também verde, coada<br />
da sala para a rua, os olhos e a alma, embevecidos,<br />
enlevados, extasiam-se diante daquela atmosfera de paz<br />
e de afetos, perfumosa e confortável, onde as harmonias,<br />
como uma água fresca muito fina que flui ou como<br />
prantos arrancados de cítaras saudosas, se evolam,<br />
sobem alto, muito alto, até onde a nossa fantasia não<br />
poderá voar jamais.<br />
Dá veementes desejos de amar, de abrir os braços,<br />
num êxtase, a um ideal qualquer, tal é o inefável ritmo<br />
penetrante de suavidade que sobe desse retiro sereno,<br />
banhado de um misticismo casto de sacrário, onde parece<br />
que devem viver e cantar as lendas nevoentas dos<br />
Niebelungen todas as almas virgens dos seres<br />
apaixonados, contemplativos e comovidos, sonhando<br />
quimeras no alvo regaço das suas valquírias de neve.<br />
Então, assim como essas provas irrefutáveis que<br />
a gente sente em redor de si, como que se afirma logo
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 217<br />
que há nesse casal uma duradoura felicidade de céu<br />
claro, firme, perfeita e eterna como a morte.<br />
Mas, entretanto, não vos assombreis, não duvideis<br />
um instante, ó iludidos felizes do mundo! se alguém vos<br />
for dizer que esse casal divorciou-se porque o alemão,<br />
num doloroso momento, encontrou a altiva ménagère<br />
entregue à pecadora lascívia de outro – daquele, talvez,<br />
que ele acreditara incapaz de inspirar afeto a quem quer<br />
que fosse, e de quem, por julgá-lo tão ignóbil e fútil, não<br />
se daria a honra de ter, ao menos, nem piedade, nem<br />
ódio, nem compaixão sequer.
218 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
NATAL<br />
À hora matinal das borboletas brancas e do lirial<br />
desabrochamento das rosas, cedo na luz, quando havia<br />
ainda uma espécie de oscilante névoa luminosa nos<br />
ares, dando uma translucidez aos aspectos e<br />
espiritualizando os longes – good morning! – salta fora do<br />
leito! Adeus atarracadas casarias tumulares da cidade,<br />
adeus ruas estreitas, encaminhadas e lôbregas como<br />
corredores de convento, adeus por um dia e vamos para<br />
o campo.<br />
A luz, duma finíssima e branca fulguração, dava<br />
vivas tonalidades de prata às perspectivas.<br />
Rios de prata sonora; verdes de paisagem com<br />
suavíssimas nuances de prata; curtos e coleados riachos<br />
de prata; colinas e montes polvilhados de uma leve<br />
rutilância de prata; e ao fundo, destacando na linha<br />
geral do campo, o mar, fúlgido, calmo, cinzelado num<br />
esmalte d’águas, como vasta e polida baixela de prata<br />
para dar de comer às nereidas e às náiades.<br />
Dentro e fora, na cidade, ficará em brilho o Natal.<br />
E as casas, numa radiante alacridade de<br />
primavera, como se o sol, à maneira de uma champagne<br />
de ouro, as tivesse alvoroçado e por elas se derramado<br />
em cascata; na garridice de presepes, de bibelots, de<br />
árvores luminosas e coloridas, garrulavam de risos, de<br />
alegria, de flores e vaporosos riachos espumantes à mesa<br />
do almoço e do jantar, nas comunicativas horas<br />
simpáticas do lar, quando em torno à querida mamã,<br />
morenas e louras crianças cor-de-rosa, de cheirosa<br />
carne macia, meigas e delicadas, para o fino pincel<br />
maneiroso de Lobrichon ou Geoffroy, são os mais<br />
encantadores frutos e as mais risonhas festas do Natal.<br />
E eu tive como presentes e festas a vastidão do<br />
campo, entre a natureza solene e as grandes árvores<br />
revestidas de folhagens como de ilusões, mais vigorosas<br />
e verdadeiras do que as simbólicas árvores do Natal,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 219<br />
porque naquelas corre a livre seiva impetuosa da força<br />
vegetativa que maravilhosamente desenvolve os troncos,<br />
faz infinitamente brotar a folha e o fruto.<br />
Indo para o campo, como um pagão, farto da<br />
materialidade da forma prática da vida em cidade –<br />
cidade fusca, pesada, cor de terra da Arábia – eu simples,<br />
banalmente não fui contemplar, mudo, num êxtase<br />
muçulmano de derviche, a natureza verde, rindo em<br />
tudo a luz, surpreendendo em tudo o aroma e cantando<br />
em tudo o colorido.<br />
Não fui para consultar os sombrios monges dos<br />
troncos, para que eles me revelassem toda a evolução<br />
do mundo, que é, nativamente, em essência, a genuína,<br />
a clara evolução do amor.<br />
Fui para que em todos os ninhos das árvores desse<br />
campo, tão conhecido e por mim gozado na infância, os<br />
mesmos bicos de aves implumes eu visse, como outrora,<br />
abertos e trêmulos de ansiedade à aproximação maternal<br />
dos alimentos, pipilando, balbuciando as notas que mais<br />
tarde haveriam de encher o espaço de harmoniosos sons<br />
alados.<br />
Fui para que esses ninhos, vazios agora de<br />
pássaros, eu os encontrasse, como corações<br />
desabrochando em sonhos, derramados na tenra verdura<br />
campestre das ramagens.<br />
As árvores, umas, figueiras e nogueiras,<br />
laranjeiras a que eu tanta vez subira e vira crivadas de<br />
gaturamos furta-cores, que ao sol tinham fugidios tons<br />
de arco-íris, são as mesmas de há bem vinte anos; e<br />
outras, viçosas e reluzentes de folhagem, numa<br />
exuberância de força, são desconhecidas para mim,<br />
novas e virginais habitantes que eu estranho ao<br />
enfrentar com elas, mas que entretanto adoro também<br />
porque continuam a viver na mesma amplidão fecunda<br />
do terreno onde a minha infância floriu, resplandeceu e<br />
cantou...
220 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Assim um coração que ama na vida uma só<br />
mulher, não é de todo indiferente às outras mulheres<br />
virgens e formosas, que desconhece, mas que no entanto<br />
o perfumam com a esvoaçante graça de um sorriso e o<br />
fascinante enlevo de uma sedução passageira.<br />
Os ninhos caíram dessas árvores amadas, se<br />
desfizeram, findaram. Emigraram já para longe os<br />
pássaros: chegou um dia a neve do tempo e enregeloulhes<br />
as asas.<br />
Morreram. Tal e qual o passado em mim, para<br />
sempre morreram.<br />
Apenas resta, em meio à nostalgia e desolação<br />
que me invadem, aquele imenso campo que me ensinou<br />
a sonhar e algumas árvores, já velhas, onde os ventos<br />
tantas canções e baladas desferiram.<br />
Contudo, a esses que pelo Natal recebem ricas e<br />
suntuosas festas em deliciosos presentes, e parecem<br />
ficar profundamente satisfeitos e gloriosos, a esses nem<br />
mesmo eu de leve me posso comparar agora – porque<br />
tenho nesta perfumosa e idolatrada recordação o mais<br />
carinhoso, o mais casto e consolador presente de festas<br />
que o Natal me poderia trazer à comovida e espiritual<br />
alegria.
EM <strong>JULHO</strong><br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 221<br />
Cantante ao sol e cantante azul impregnado de<br />
frescura, de aroma dos campos, sonoro de alegria e<br />
trinados de ave!<br />
Cantante sol e cantante azul de julho! Há agora<br />
na natureza um terrestre noivado de rosas brancas, nas<br />
manhãs frias, e um celeste noivado de estrelas brancas,<br />
pelas noites claras!<br />
A natureza flori agora em rosas; é tudo um vasto,<br />
opulento rosa!, como os rosais de Jerusalém, os rosais<br />
de Sião, numa pompa de rosas.<br />
Ritmos de amor afinam as almas numa só<br />
esperança e num só desejo e as almas buscam o tépido,<br />
carinhoso aconchego dos ninhos.<br />
Ardam, ardam, no grande esplendor das paixões<br />
fecundantes, os corações que se amam; palpitem,<br />
sensibilizadas, as fibras que se desejam, as carnes que<br />
se procuram, os organismos sãos, felizes e virgens que<br />
se completam.<br />
Julho aí está, doirado e frio, luminoso, para<br />
fecundar a aurora desses sangues frementes, desses<br />
sangues vivazes.<br />
Desflorem-se alvas grinaldas, esgarcem-se véus<br />
castos e, sob a púrpura ardente, sob a chama inflamada<br />
do luxurioso desejo, brote, surja mais tarde um<br />
demoninho louro ou moreno, que encha de encanto tudo,<br />
bulhento, garrulador de alacridante vivacidade de<br />
pássaro, vindo em festa, como este próprio julho.<br />
E que tu, belo astro nobre das salas, divinizado na<br />
formosura, alta e irradial, guardes ainda para mim, por<br />
este e por outros julhos, a mirra pura e real dos teus<br />
beijos, dentre a melancolia monástica, a dolência meiga<br />
dos teus olhos de monja.<br />
Guarda para mim, sempre, como infinita, indelével<br />
primavera, esses beijos imaculados, e eu, gloriosamente,<br />
das profundas catedrais iluminadas onde celebro o culto<br />
deste Ideal, farei brilhar, faiscar ao sol, sobre os polidos<br />
zimbórios elevados, a bandeira vermelha e a negra cruz<br />
do Amor!
222 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
SÍMBOLO<br />
Em norte américa, contam as crônicas, um terrível<br />
desastre ocorreu outrora nas costas da Virgínia.<br />
Sobrevindo ali tremenda e trovejante borrasca,<br />
como as que tragicamente abalam aquelas costas, deuse,<br />
além de imensos naufrágios no mar, da inundação<br />
da cidade de Norfolk, um dos mais destruidores e<br />
surpreendentes incêndios.<br />
No momento em que um trem expresso, repleto<br />
de viajantes, entrava nos campos de Dakota, uma faísca<br />
elétrica caiu sobre os campos, inflamando-os, acendendo<br />
neles um estranho, infernal esplendor dantesco.<br />
Era mister atravessar a zona incendiada; porém<br />
a zona era muito mais extensa do que na realidade se<br />
julgava.<br />
O trem, então, teve de parar, decidindo-se,<br />
fatalmente, que recuaria.<br />
Mas era muito tarde já.<br />
Para trás o incêndio ganhara os trilhos; para<br />
diante alastrava cada vez mais, devastador, horrível, em<br />
tentáculos de fogo.<br />
A morte, morte aflitiva, angustiosa, tornara-se,<br />
decerto, inevitável.<br />
Os viajantes, batidos, acossados de pânico, lívidos,<br />
ansiosos, como se acabassem de ser desenterrados vivos,<br />
apearam-se, como visões espectrais, na mudez sinistra<br />
dos pavores absolutos, tentando salvar-se, alcançar o<br />
ar, a frescura, a livre expansão dos pulmões quase<br />
asfixiados.<br />
Em vão! em vão!<br />
Todos os passageiros tiveram de voltar ao trem,<br />
queimados, com as roupas em desordem, numa confusão<br />
de derrota.<br />
Então, aí, o terror tornou-se indescritível.<br />
Homens e mulheres, num desespero, num<br />
dilaceramento profundo, atravessavam desgrenhados,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 223<br />
com aspecto selvagem, por entre o fumo que subia em<br />
grossos rolos, em novelos densos, empastados, como<br />
longas e largas, espessas telas negras suspensas no<br />
ar...<br />
Aquilo lembrava avalanche humana, delirante e<br />
enorme, quase louca, através de campos incendiados.<br />
Modelada em bronze, numa ampla gravura, essa<br />
palpitante tragédia daria ao genial Doré uma vasta página<br />
assombrosa, como aquelas em que ele pinta, a sangue,<br />
a treva e a sol, exércitos armipotentes, d’armas duras<br />
de aço, e báratros avérnicos, formidandos, onde arrojamse<br />
capros, peludos, cornóides e corpulentos satanases.<br />
Naquela assoberbante catástrofe de chamas<br />
tornava-se impossível respirar.<br />
Dentro, no trem, na vasta galeria dos vagões,<br />
silhouettes confusas de cabeças e braços moviam-se,<br />
agitavam-se agora, numa ânsia suprema na cruciante<br />
expressão dos enforcados.<br />
Um esforço de maravilhosa coragem, um<br />
verdadeiro prodígio de resolução, imediatamente, e talvez<br />
ficassem salvos!<br />
Essa coragem, essa resolução surgiu enfim,<br />
triunfal, na alegre, na rumorosa esperança, no poderoso<br />
sentimento instintivo da conservação da vida, como um<br />
fio d’água brotando, fluindo de repente da avidez de uma<br />
rocha e dessedentando bocas ardentes e ressequidas<br />
que andassem se quiosas, sob sóis tórridos, por torvos e<br />
escalvados desertos.<br />
Era forçoso caminhar adiante. Então, o maquinista<br />
deu todo o vapor à máquina.<br />
E durante alguns segundos o trem, colossal, como<br />
um formidável animal pré-histórico, atravessou, numa<br />
velocidade vertiginosa, elétrica, os campos de Dakota.<br />
Afinal, decorridos esses pungentes, torturantes<br />
segundos, o trem franqueou o círculo de fogo, ganhando<br />
o terreno livre até onde o incêndio não alastrara.
224 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Já era tempo, porque os vagões começavam a arder<br />
e os viajantes estavam desfalecidos de asfixia...<br />
* * * * * * * * * *<br />
Ó nervosa mulher glacial e satânica, Lésbia pálida<br />
e sarcástica, por quem, no entanto, clamo e procuro nas<br />
horas da concentração do silêncio!<br />
Como esse aterrador incêndio nos campos de<br />
Dakota, também um outro incêndio, mais funesto, mais<br />
impetuoso e mortal, absorveu-me, extinguiu-me<br />
dolorosamente o coração.<br />
Como um glorioso viajante, um deus original<br />
coroado de pâmpanos, ele embarcara um dia numa<br />
locomotiva iluminada, florida de rosas e doirada como<br />
as galeras de Cleópatra.<br />
Partira alegre e feliz, a rir e a cantar, na carreira<br />
vertiginosa da vida, às conquistas triunfais do Amor, indo<br />
afinal morrer por entre as chamas altas e deslumbrantes<br />
do Sonho.
O BATIZADO<br />
(Desterro)<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 225<br />
Ao fulgurante talento de Horácio de Carvalho<br />
2 a dedicatória: a Gonzaga Duque-Estrada<br />
Por uma manhã de aromas, cheia de rosas e ouro,<br />
em que voavam pombos em vôos triangulares ao alto dos<br />
beirais das casas, e os pássaros trinavam festivalmente<br />
nos arvoredos ramosos, um rancho alegre de lavradores<br />
descia, em caminho da igreja do sítio e no ruído vivaz de<br />
coloridas conversas risonhas e cantadas, a íngreme<br />
ladeira barrenta daqueles terrenos agrestes, mais para<br />
o lado em que o mar freme e se encrespa à chicotada<br />
brusca dos ventos, nas brancas praias caladas.<br />
Era um rancho em descanso e em festa, um tanto<br />
livre dos amanhos das terras e do longo mourejar dos<br />
dias passados, que levava a batizar um filho do seu amor,<br />
o gorducho pimpolho rosado das lavouras do seu coração,<br />
e que lá ia, sorrindo na ternura das delicadas carnes<br />
infantis, cheiroso, perfumado de trevo, contente e fresco<br />
como um rosal, de linda touca de fitas escarlates<br />
esvoaçantes na aragem, envolto numa toalha de<br />
trabalhadas rendas vistosas, sobre os orgulhosos braços<br />
polpudos da madrinha, rica rapariga de sol, radiante<br />
como um altar em Maio, florente como trigais.<br />
O dulçuroso encanto desta abençoada gente,<br />
passando ali, sob o raro calmo damasco do Azul, através<br />
de campos, dava à paisagem uma leve graça pitoresca<br />
de pintura aldeã pastoril, ou lembrava essa tão séria<br />
vida holandesa disciplinar e feliz de outrora, em que as<br />
pessoas, só com terem um fértil pedaço de pasto vivo e o<br />
bucolismo e o idílio de alguns bois amenizadamente a<br />
gozarem, ou a viçosa horta dentro da simpleza campestre<br />
de cerca dos verdes, eram, para todo o sempre,<br />
consoladamente ditosas e cristãs!
226 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Na margem dos caminhos alvoroçados do rumor e<br />
da alacridade vibrante da luz, em murmurosas fontes<br />
cristalinas, cujos finos veios de prata corriam<br />
nitidamente esfiados, rudes mulheres lavadeiras<br />
tagarelavam, batendo a roupa na pedra, com um estalo<br />
seco, à proporção que interminamente desenrolavam os<br />
picantes episódios de amor e as fundas desgraças negras<br />
daquele sítio, que se desfolhavam e sumiam na<br />
correnteza espumante e túrgida das águas.<br />
O rancho dos lavradores tomava agora por um<br />
comprido atalho, fazendo curva, coleando, até chegar a<br />
uma ampla várzea, onde, no tom alvo de uma visão de<br />
balada, ficava a igrejinha, muda e clara no dia, como<br />
um símbolo sereno de religião e de fé na crença e na<br />
primitiva paz vegetal da natureza.<br />
Subiam já, sorrindo e palrando, o curto adro da<br />
igreja e entravam na alegria comunicativa do ato que<br />
iam realizar – pura e cândida alegria essa! tão pura e<br />
tão cândida mesmo como a infância que forja no colo da<br />
madrinha, quase mais batizada também pela luz que a<br />
acariciava e doirava então do que pelas católicas águas<br />
lustrais que lhe deveriam apostolicamente banhar a<br />
virginal cabeça pequenina.<br />
À volta, após o batizado, na humildade rústica do<br />
lar, os chorados repinicados da viola, entre cantigas<br />
esfuziadas no rosto meigo da criança, aos padrinhos,<br />
aos pais, num tropear jubiloso e fremente, e num<br />
alentado e aberto gozo tranqüilo de felicidade obtida sem<br />
queixas, sem invejas, sem cuidados e sem remorsos, na<br />
pobreza casta e sagrada das suas almas chãs, ante a<br />
lembrança do Senhor do Bonfim e da cera que a Maricas<br />
prometera o ano passado para que aquele bem tão<br />
querido, agora alvorecido no mundo, nascesse e se<br />
batizasse e crescesse sem males, sem dores, são,<br />
saudável como os Campos que se andavam sachando e<br />
mondando por tantos verões amados.<br />
Não há nem doces nem vinho.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 227<br />
Tão somente, mais quase à noite, no meio dos<br />
sonoros guizos dos grilos melancolicamente nas folhagens<br />
mudas de sombra, os ocasos em chama, tão vermelhos<br />
como se houvessem passado nas nuvens uma enorme<br />
esponja grossa embebida e encharcada em sangue, são<br />
a acesa púrpura do vinho com que estas serenas gentes<br />
dos sítios apenas se confortam e aquecem, nas suas<br />
festas, dos frios invernos da vida.
228 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
DOENÇA PSÍQUICA<br />
Que mal vos fez a vida, ó serenos filósofos, para a<br />
encherdes do mais negro Pessimismo, como de uma<br />
treva soturna e dolorosa e de um rio de sangue<br />
eternamente caudaloso?!<br />
Para ti, Schopenhauer, a existência é a<br />
materialidade; o alimento, para ti, é apenas a<br />
necessidade de prevalecer na luta, a força para a função<br />
dos órgãos nervosos, a bem de que se propague a espécie;<br />
– enquanto que para outros, ó sombrios monges do<br />
Pensamento, o alimento é a lascívia, a luxúria da carne,<br />
que fazia, desde os romanos, a Carne viçosa e rica.<br />
Basta, para ti, que o estômago metodicamente<br />
funcione, na normalidade cronométrica de um relógio,<br />
a fim de que tenhas a positiva segurança de que subsiste<br />
aos vermes e à seca dissecação dos fenômenos da<br />
natureza.<br />
No entanto, para outros, o sentimento palatal<br />
educado, gozando o requinte das iguanas faustosas, de<br />
incomparáveis gourmandises, as vaporosas luminosidades<br />
de dourados vinhos, apenas, bastam para que<br />
os sonhos sejam felizes e o sorriso seja alegre.<br />
Para esses, os alimentos, como no Oriente o fumo,<br />
têm insubstituíveis encantos, voluptuosas graças de<br />
viver, que atilam, acendem a imaginação, fazem abrir e<br />
flamejar por todos os pontos do mundo, infinitamente,<br />
os mais inauditos sóis do espírito.<br />
Neles, a vida é um fluido, um alado perfume de<br />
úmidas bocas purpúreas de rosa, de níveos colos cor de<br />
camélia, de veludosos seios, macios como a alva<br />
plumagem fresca de um pássaro real; um amoroso ansiar<br />
de etéreos olhos de estrelas, atravessando em visão,<br />
claros e pesados de luz, com o brilho aceso e ardente de<br />
preciosas e raras pedrarias, a quase extinta noite remota<br />
das recordações.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 229<br />
Para ti, Schopenhauer, os seres orgânicos não têm<br />
senão o caráter essencial da concorrência vital e<br />
representam no mundo, funcionalmente, o mesmo valor<br />
dos elementos inorgânicos, químicos e físicos da terra.<br />
Assim, a pedra, o fogo, o ar, a água são tantas<br />
forças complexas da vida como o homem – ou labore pelo<br />
psiquismo, num século de livros, sob o complicado<br />
aparelho da ciência ou, simplesmente, ame, seja fator<br />
da evolução humana, dando a forma do Amor ao princípio<br />
genesíaco da sexualidade.<br />
Por isso, ó egrégio, magnificente filósofo alemão,<br />
eu, que no entanto sinto e percebo a tua radiante e<br />
clara verdade, que brilha e fere como as arestas agudas<br />
de um cristal – verdade aceita pelos homens sob a<br />
nebulosa denominação de Pessimismo – eu tenho tédio,<br />
profundo, supremo, e inesgotável tédio, vendo que a vida<br />
orgânica é toda ela adstrita à matéria, e que apenas,<br />
para ser feliz, nada mais é preciso do que ter a estrutura<br />
de um forte e belo animal, premunido de garras para o<br />
assalto, de dentes para devorar e com a regular<br />
circulação do sangue para o equilíbrio do coração e do<br />
cérebro.
230 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
POLICROMIA<br />
A Maurício Jubim<br />
Pintar a cor sangrenta da vida, a cor gelada da<br />
morte; dizer a dor dos tons, todo o cromatismo das tintas<br />
interpretar, à maneira nova, fresca, original, palpitante,<br />
de forma que os pincéis comuniquem com veemência<br />
uma alma à tela, que os coloridos vivam e cantem na<br />
trinalagem vibrante de pássaros matutinos.<br />
Exprimir as tonalidades quentes e possantes, os<br />
rubores humanos, o purpurejamento dos sangues, com<br />
tintas acres e com tintas delicadas, numa expressão<br />
forte de luxúria ou numa branda nuance de carne<br />
virginal e saudável, onde a aurora das seivas puras<br />
resplende.<br />
Pintar toda a pungência latente de uma Cabeça<br />
triunfante de vida, perfumada de graça, idealizada por<br />
algum sonho enevoado; dar-lhe, à feição da tua<br />
sensibilidade artística, linhas vagas, fugidias, linhas<br />
angélicas e pulcras, firme e fundo cavando-lhe a negro<br />
ou a louro a onda torrencial dos cabelos, dando-lhe luz<br />
estrelar aos olhos, sangrando-lhe álacre a massa tenra<br />
dos lábios, traçando-lhe a meia lua dos seios lácteos –<br />
gerando-a, enfim, com tintas dúcteis, de modo que a<br />
cabeça surja maravilhosamente da tela, te fascine, te<br />
deslumbre e tu a ames, como se ela possuísse o recôndito<br />
sentimento chamejante da Vida.<br />
E, assim, boca, olhos, cabelos, nariz, seios e faces<br />
pintar a claro, na limpidez d’ouro da luz, banhando a<br />
tela de luz, inundando-a de luz, descrevendo as curvas<br />
da primorosa cabeça com o pincel encharcado em sol,<br />
no clarão sideral de uma luz ampla, larga, alastrante...<br />
Com esse fulgor de execução, sem os empirismos<br />
clássicos, com toda a expansão da liberdade de sentir e<br />
de ver, de traçar, de apanhar os efeitos, de aparelhar as<br />
tintas, é que te fora prodigioso pintar, dum golpe altivo<br />
de concepção, fora da tacanhez dos moldes, já célebres
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 231<br />
embora, já afamados e já universais, mas por isso mesmo<br />
acadêmicos, arcaicos, sem o grito rubro das grandes<br />
revoltas, o clamor agudo das naturezas inquietas que<br />
lutam para significarem, à parte das confusões e leis<br />
preestabelecidas, a seleção das faculdades estéticas.<br />
Recluso do ideal, enclausurado, sombrio e mudo,<br />
alvoroça-te o desejo vertiginoso de pintar intenso, de<br />
pintar singular, numa virgindade de cores, com toda a<br />
escala do íris, com a gama variada do alvorecer e a<br />
indizível cor abstrata de tudo aquilo que te sensibiliza.<br />
Tons violáceos e espiritualizados de crepúsculos<br />
ou tons brancos de manhãs diáfanas, com sonoridade<br />
de trompa de caça, branca e fresca também na claridade<br />
matinal; sensações rasadas de carnes impolutas,<br />
cheirosas a flor de laranjeira e a leite, excitam-te a<br />
pintar miraculosamente, a distribuir na palheta tintas<br />
inexploradas e imortais e passá-las e filtrá-las para a<br />
tela, na execução da misteriosa Cabeça, a tua simbólica<br />
ansiedade mais viva, mais vibrante, através dessa<br />
fecunda e fremente paixão da Arte – sempre flamante,<br />
em labareda febril e alta, aberta na tua alma brava e<br />
branca como uma sagrada umbela rutilante e vermelha.<br />
Um movimento nervoso, um impulso decisivo e<br />
vitorioso do teu pincel imaginativo, donde as cores jorram<br />
como um turbilhonante enxame de colibris e de<br />
borboletas iriadas voejando e a Cabeça, em que meditas<br />
e te alagas sonhadoramente em contemplações,<br />
emergirá da tela, lavada em tons puros, nascida do cristal<br />
virgem da Originalidade, sem mácula e sem defeito,<br />
numa harmonia de toques deliciosos, imprevistos,<br />
vivendo nas tintas castas, viçosas e cintilantes que<br />
lembrem a irradiação do teu sangue primaveril, forte,<br />
sadio, latejando nas veias de ricos rubis de glóbulos<br />
abundantes.<br />
Fantasias finas, como silfos aéreos, te fecundarão<br />
a palheta com polens radiantes; e em torno a esse<br />
símbolo das tuas emoções, com que andas ainda
232 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
alimentando a imaginação, como um produto de<br />
idealizados requintes, visões em variadas formas de<br />
cabeças liriais circularão anelantes e vaporosas, leves<br />
nas infinitas brancuras do colorido inefável, floridas de<br />
peregrino encanto, consteladas por esse Amor dominante<br />
da Arte que tudo diviniza e transfigura, cada uma delas<br />
mais nobre, mais bela e mais maravilhosa, rindo, como<br />
ninfas na frescura açucenal de vergéis, dentre a<br />
vitalidade, a força juvenil, a impulsiva espontaneidade<br />
nervosa da coloração.<br />
Tintas alvas de lírios e de espumas para os cetins<br />
e veludos da epiderme; tintas fluidas e secretas para<br />
dar o deslumbramento aos olhos; tintas voluptuosas,<br />
purpurinadas, para a expressão fascinante da boca, para<br />
o inaudito e cristalino borbulhar do riso; tintas sutis,<br />
flexíveis, etéreas, para as curvas arredondadas da face,<br />
para as linhas cinzeladas do busto a Cabeça que idealizas<br />
tanto raiará, alvorecerá da tela – tão viva e virginal como<br />
a sensibilidade do teu temperamento inquieto, do teu<br />
ser errante de beduíno que vaga e cisma na planície<br />
oriental infinita.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 233<br />
FLOR SENTIMENTAL<br />
Prodigioso Sancta Sanctorum vedado aos Infiéis, ó<br />
mistério sutil da Sensibilidade, envolve-me nos<br />
delicados azuis, nas diluências de magnólias<br />
maceradas dos teus diáfanos luares, vibra-me os vagos<br />
e finos scherzos dos teus stradivarius amargurados...<br />
Ó flor sentimental, que te despojaste, na Morte,<br />
da carne maravilhosa, perfumadamente tecida de<br />
jasmins e lírios.<br />
Ó Flor sentimental, que os grandes e fervorosos<br />
beijos de uma paixão sacramentada, ungida nas<br />
profundas lágrimas, purificaram para sempre!<br />
Ó Flor sentimental que as imensas caudais de<br />
sangue das chagas do sofrimento, da dilaceração, da<br />
angústia martirizante, outrora tanto e tão intensamente<br />
orvalharam!<br />
Se é que te podes recompor ainda, ao menos uma<br />
vez em sonhos, das essências imaculadas do teu ser<br />
delicado, angélico, surge, aparece e vem trazer a esta<br />
existência que se debate, que anseia nos círculos<br />
titânicos das inquisitoriais inclemências, o segredo da<br />
crença, que tu levaste.<br />
Dos cibórios d’ouro dos Astros, vem, sidéreo, Sirius<br />
sagrado, Vésper clara, clara Vésper diamantina e<br />
matutina e traz-me essa hóstia magnolial e rara, lá dos<br />
altos cibórios d’ouro dos Astros...<br />
Se é verdade que agora reinas triunfalmente, por<br />
entre chamas de luz azul, nas serenas Espiritualidades<br />
celestes; se bem certo é, sidério Sirius Sagrado, clara,<br />
cândida Vésper diamantina e matutina, que te exilaste<br />
lá, cismativa, solitária, ó fria e fina Flor sentimental!,<br />
dentre as pálidas, lânguidas, mortas auréolas de luar<br />
da Eternidade, ressurge, vêm, flameja por esses níveos<br />
caminhos constelados, na tua meiga, terna harmonia
234 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
de claridade e saudade e nesse breve encanto alado do<br />
teu perfil de forma hasteal de letra siríaca.<br />
Traz contigo velhas recordações impalpáveis, doces<br />
e tépidos abraços da adolescência – a alegria aleluial de<br />
cânticos na frescura nova das primaveras louras, a flórea<br />
suavidade do oásis virgem e cor-de-rosa da Infância, todo<br />
esse incomparável Amor que tu levaste para além contigo.<br />
Ah! como eu vos recordo, Sombras, como eu vos<br />
lembro, Fantasmas, como eu vos evoco, Espectros, como<br />
eu me revolvo em ânsias, em palpitações, em êxatase,<br />
no infindável deserto das Noites sensibilizantes dessas<br />
agora tão longínquas e enregeladas reminiscências...<br />
Como eu me despenho, choroso, taciturno, só,<br />
absurdamente só, no silêncio e no esquecimento, negras,<br />
lôbregas e abismadoras galerias que vão dar aos<br />
subterrâneos da loucura, foragido dos flagelados<br />
clamores humanos, na desolação e empoeirado desalinho<br />
de derrotado ovante guerreiro de cem batalhas heróicas,<br />
pela primeira vez ferido e insolitamente vencido ou na<br />
melancolia decadente do ideólogo, imaginoso demônio<br />
inclementemente apedrejado de Anátemas!<br />
Ó tristeza dos momentos lívidos! Vácuos amargos<br />
desses longos, lentos poentes nublados, ciliciados de<br />
ansiedade, de aflitivas visões de dúvida, e onde o Espírito<br />
erra, ondula, flutua por entre névoas e surdinas...<br />
Sentimento indefinido, inquieto, insatisfeito, que<br />
turvas e agitas e convulsionas de tumultos a alma, num<br />
torvo, vendavalesco rodomoinho de ardente e atordoante<br />
simum!...<br />
Ó algidez fulminante, aterradora, mortal, de tudo<br />
o que finda, leve, vaporoso, vago, nas linhas sutis,<br />
fugidias, da infinita lembrança!<br />
Ó antiga velhice das Mágoas! Ó dor de esquecer!<br />
Ó dor de desesperar e descrer! Como toda essa música<br />
negra, toda essa mórbida sinfonia nervosa<br />
voluptuosamente me punge...
VELHO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 235<br />
Pelas infinitas estradas do tempo, a fora, ao sol,<br />
segue, mudo, soturnamente silencioso, esse frio deserto<br />
ambulante, a que alguns chamam Velho e outros<br />
chamam apenas Desilusão.<br />
Hirto, engelhado, com o seu alforje de peregrino,<br />
a sua rude veste de estamenha, o seu bordão de jornada,<br />
e os seus pés nus, caminha, o deserto frio – tão vago,<br />
tão tateante, tão verdadeiramente sombra, que dir-seia<br />
que é o vácuo, o intangível que caminha...<br />
Longas, profundas barbas brancas alvejam-lhe no<br />
rosto, dando-lhe um ar de austeridade profética,<br />
evocando as severas e legendárias figuras dos<br />
Patriarcados bíblicos.<br />
Na sua fronte vasta, sulcos imensos formam como<br />
que vias dolorosas por onde pensamentos amargos<br />
percorrem, lembranças angustiantes peregrinando<br />
passam...<br />
Certo, esse Velho, assim sugestivo e belo, viera<br />
dos Mitos, do fundo das odisséias gregas e ouvira d’alto<br />
cantar nos finos céus d’ouro da Hélade a alma augusta<br />
e mediterrânea de Homero, sentira as linhas doces da<br />
graça antiga e mergulhara sereno no seio branco e de<br />
rosas do Olimpo dos deuses priscos.<br />
Nenhum manto real o cobria, nenhum laurel o<br />
coroava – nada parecia revelar, tangivelmente, os seus<br />
troféus de onipotência.<br />
No entanto, pelos vestígios supremos, deixados não<br />
só nas rugas da sua face, não só na tristeza e<br />
contemplatividade ascética dos seus olhos e até nos<br />
caracteres abstratos da Angústia que lhe singularizava<br />
o aspecto, como também em todo o seu vulto fascinante,<br />
dominativo e grave, percebia-se o poder e a clarividência<br />
transcendental de um Predestinado, de um Inspirado,<br />
de um Deus, perfeito e sagrado Deus concebido da Dor,<br />
alimentado e envelhecido na Dor.
236 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Certo, era ele, o Poderoso da Dor, aquele a quem<br />
a Dor avassalara mas não vencera, a quem a Dor ungira<br />
mas não execrara nem banalizara.<br />
Maior, talvez um século maior com o contacto<br />
espiritualizante dos Sofrimentos, era efetivamente agora<br />
que ele existia, como a própria consubstanciação da Dor.<br />
Mas, nos abismos fundos dos seus olhos velados,<br />
amortalhados de saudade, vivos e vendo e parecendo,<br />
no entanto, cegos, um sonho impenetrável esvoaça muito<br />
de leve, e de muito leve surge, sai, em forma de silfo, de<br />
dentro dos olhos amortalhados do Velho e põe-se então<br />
a rondar, a rondar em torno dele, numa fascinação, com<br />
as suas asas diáfanas e fosforescentes de tentador<br />
demônio...<br />
E o Velho, subitamente deslumbrado pela<br />
fosforescência das asas, das asas diáfanas de silfo, tem<br />
estremecimentos convulsivos; e a sua face, então, toma<br />
a expressão singularíssima, de tal modo fica nesse<br />
momento transfigurada, que até como que se lhe<br />
aprofundam, que se lhe cavam mais as rugas...<br />
Também logo, com a rapidez própria dos sonhos, a<br />
fosforescente Visão desaparece... E o Velho, taciturno e<br />
trágico, parecendo concentrar em si toda a eloqüência<br />
simbólica do Eclesiastes, como que lança na terra a<br />
condenação suprema do Juízo Final, tendo, porém, na<br />
face agora imensamente lívida, duro ríctus sarcástico<br />
de ceticismo voltaireano...<br />
Mas, ah! quem poderia penetrar nos labirintos<br />
daquela existência; quem poderia saber os vergéis,<br />
campos, vales cheirosos, enflorados de Ilusão, onde essa<br />
alma viveu, floresceu e gozou; os pântanos esverdeados,<br />
de concupiscência animal ou de tédio desesperado, onde<br />
ela mergulhou vencida; as alvejantes e ermas<br />
encruzilhadas de caminhos onde a Imagem desolada dos<br />
seus Destinos errou, vagueou e gemeu exausta, fatigada,<br />
batida ao largo dos temporais atroantes e tremendos da<br />
Vida!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 237<br />
Todos que o viam passar, que lhe admiravam a<br />
enfibratura óssea, os filamentos nervosos das grandes<br />
rugas; que experimentavam a sensação quase de um<br />
pavor abstrato de respeito divino que a sua patriarca<br />
figura inspirava, pareciam inquiri-lo, fazer-lhe mil<br />
curiosas e significativas perguntas: – Se tinha já cem<br />
anos, que saudades, que recordações trouxera na alma,<br />
que pão fresco no alforje; que jornadas fizera, e se<br />
cansara muito, nas longas e pedregosas estradas áridas;<br />
se tivera fome através os pomposos banquetes à Luculo<br />
das altas cidades; se tivera frio sob as cruas neves<br />
inclementes e fulgurantes; se sentira sede d’água, mas<br />
só sede d’água!, por tórridos e languescentes calores,<br />
ou se sentira sede insaciável de desejos ante o pecado<br />
de uns olhos...<br />
Solenemente grande pela Dor, fazia lembrar, como<br />
sentimento de religiosidade que dele vinha, todas as<br />
magnificências do Elevado e do Sagrado.<br />
Parecia, então, que aquela incomparável amargura<br />
de Doloroso ganhava proporções de matéria inerte, se<br />
condensava, concretizava em blocos de granito e<br />
mármore; que aquela sublimidade de mistérios de<br />
secular Velhice tomava formas estáveis, solidificadas<br />
com raízes infinitas na Terra, de arquiteturas prodigiosas<br />
de catedrais, de igrejas góticas, de basílicas, de templos<br />
vetustos.<br />
E, pelo sentimento de divinização que ele<br />
inspirava, os olhos absortos, extasiados imaginosamente,<br />
viam que essa Dor ia se transmutando e avultando<br />
colossalmente como organismo físico, alargando,<br />
alargando, alargando para o espaço, na vastidão de um<br />
bojo enorme, arredondando pomposamente em cúpulas<br />
estreladas, em zimbórios de bronze, em torres<br />
formidáveis, crescendo, crescendo, ficando então<br />
monstruosamente de pé na amplidão alta, a majestade<br />
eterna da Basílica da Dor – ao mesmo tempo de<br />
venerações e sacrilégios, igualmente divina e profanada!
238 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Passados ermos, remotas antiguidades, eram<br />
extintas, recordando lentos, longos desânimos;<br />
ansiedades, desesperos, impaciências e saudades, eram<br />
como que a melancólica penumbra da imensa nave dessa<br />
Basílica.<br />
E as paixões atormentadas, os ímpetos lascivos,<br />
os desejos delirantes e em grita, as deprecações e<br />
blasfêmias, as raivas rugidoras, os ódios tempestuosos,<br />
eram então as vozes clamantes e plangentes dos<br />
violoncelos, no coro, e os profundos graves chorosos, de<br />
soluços pungentes e atormentados, dos órgãos e<br />
cantochão.<br />
Alvoroços másculos e sãos de juventude,<br />
heroísmos alegres e alados de esperança, bondade<br />
bizarra e florescente, galhardias, lhanezas afetivas,<br />
pensamentos límpidos, castos, de brancuras virgens,<br />
ternuras angelicais de sonho, eram, enfim, símbolos<br />
eucarísticos, pão e vinho claros de comunhões puras.<br />
Todo o espírito do Velho se afinava por esse acorde,<br />
a harmonia das grandes Intuições e Criações evangélicas<br />
o consagrava e santificava Deus – harmonia que se<br />
elevava para ele numa auréola de bênção elísia...<br />
* * * * * * * * * *<br />
A natureza, em redor, calma, repousada,<br />
tranqüila, penetrada dos sentimentos imponderáveis do<br />
Absoluto, ampliava-se numa expansibiidade de<br />
vegetações que pareciam quiméricas, numa concentrativa<br />
mudez de forças originais.<br />
Para os largos e longes do vasto e verde mar<br />
melancólico, alguns barcos singravam, dentre os<br />
espreguiçamentos voluptuosos da luz, no leve ritmo da<br />
graça banzeira de bamboleantes bailadeiras bailando...<br />
E a figura profética do Velho, com a alva cabeça<br />
nua, as longas barbas brancas ondulando aos ventos<br />
gementes, ia vivamente desenhada no fundo vago da
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 239<br />
luz, como a concepção extravagantemente soberana,<br />
grandiosa dos egrégios Desígnios, a caminho das<br />
jornadas eternas, pelas peregrinações perpétuas, pelas<br />
estradas sem termo, pelos indefiníveis desertos sem<br />
fim...<br />
* * * * * * * * * *<br />
Vai, Velho! Clarão frio, clarão morto! Tu que trazes<br />
contigo Agonias e Recordações seculares, sobe, sobe<br />
solitário, só, sinistramente só, a escalvada montanha<br />
erriçada de agudos cardos bravos, de ásperas ríspidas<br />
silvas, dos Fatalismos tremendos, eloqüentes, épicos,<br />
rasgando, ferindo, chagando, ensangüentando<br />
mortalmente os pés.<br />
Vai para o Esquecimento e para o Nada, calado,<br />
mudo, fechado no sepulcro do teu segredo místico, com<br />
os extremos e expressivos silêncios da clausura da<br />
tu’alma, levando sob a umbela dos Astros o Sacramento<br />
eucarístico da tua Dor.<br />
Vai! Vai! Some-te, perde-te, mergulha soturnamente,<br />
aprofundadamente, nas estranhas sombras,<br />
nas estranhas sombras, nas estranhas sombras...
240 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
DECAÍDO<br />
Arrebatado num violento rodomoinho, num<br />
verdadeiro ciclone de paixões, o que esperas, Tu, Sátiro<br />
tricórnio e bufo, que resfolegas e inchas de<br />
pantagruelismo e luxúria – tricórnio como trifloro – com<br />
três hirtos cardos agudos?!<br />
O gozo das mórbidas concupiscências tomou, para<br />
a tua idiossincrasia afetada do Infinito, aspectos soturnos<br />
e miríficos, efeitos mais do que genuinamente capros,<br />
mais do que virtual e genitalmente eróticos, duma<br />
insânia ingênita e transcendental de lascívia; e isso de<br />
tal forma supersexual intensa, que és apenas um simples<br />
Sátiro tricórnio e bufo e não és mais Diabo mago e<br />
sulfúreo, nem radiante belo e horrível Arcanjo de<br />
maravilhosas asas colossais e flamipotentes de fundas<br />
envergaduras a ouro fosco e bronze, mas um Satanás<br />
suíno e gongórico, um Sileno senil tatuado das equimoses<br />
do Vício, tremendamente decaído nos abismos torvos...<br />
Êxtases, indefinidos espasmos estéticos, que<br />
espiritualizavam outrora em eras primitivas os teus<br />
estranhos olhos d’águia, cheios de um fulgor de epopéias,<br />
operaram nesse maquiavélico, complicado organismo,<br />
evoluções, metamorfoses, profundas transfigurações; e<br />
a tua cabeça titânica, satânica, cortada, detalhada fundo<br />
nas auréolas negras das supremas Blasfêmias e dos<br />
Anátemas, cantou e radiou vitória, triunfou<br />
milenariamente das outras frívolas, desfantasiadas<br />
cabeças.<br />
Era a conquista real do Sonho, em que a tua cauda<br />
espiralante e magnética ia traçando caracteres<br />
simbólicos e feiticeiros e em que os teus cornos tetros e<br />
sibilinos, expressivamente assinalados como a coroa<br />
genial e hostil da Rebelião, davam o ritmo, com a cauda<br />
espiralante e magnética, das divinas sinfonias da<br />
Imaginação.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 241<br />
Porque, Tu, criador legendário das Ideogenias!<br />
velho Ideólogo imortal!, desde logo foste o Deus uno e<br />
trino, o Todo-Poderoso do Sonho, fascinando almas e<br />
almas, almas e almas e arrastando-as frementes aos<br />
teus lagos noturnos e chamejados, originalmente<br />
brotando da condensação de bilhões de noites sem<br />
estrelas, porque já eram abstratamente, esses<br />
chamejados lagos noturnos, estrelados de Ideal.<br />
E os teus cornos tetros e sibilinos, dominando<br />
amplidões, esgarçavam, rasgavam, defloravam os diáfanos<br />
véus nevoentos das Nuvens onde o segredo dos viços e<br />
germens ocultos, das virgindades brancas, das<br />
castidades tenras, das originalidades puras, dormia,<br />
mumiamente, sonos seculares e ignaros.<br />
E esse segredo e mistério que dormiam perpétuos<br />
sonos, num dormir infinito de fenômenos, Tu, com a<br />
significativa mágica do Ideal, fizeste para sempre acordar<br />
e circular e morrer e febricitar de vertigens e<br />
alucinações a Terra.<br />
E esse abençoado e prodigioso bem fecundou<br />
admiravelmente a terra, semeou constelações nos mares,<br />
tocou de auroras os temperamentos, floresceu de rosas,<br />
de madressilvas e lírios, as leves, as sutis<br />
espiritualidades humanas.<br />
Uma seiva do Desconhecido errou e cintilou por<br />
toda a parte, inundou tudo; as púrpuras palpitantes de<br />
um novo Idealismo se desdobraram como firmamentos<br />
ou majestosos mediterrâneos.<br />
Mas hoje, que o teu mundanal e soberano domínio<br />
é bem raro já, que todo o esplendor das tuas flavas,<br />
flamejantes glórias é já remotamente e olvidadamente<br />
passado, não és mais o excelso, o preclaro Sátiro fino, o<br />
Diabo prófugo e ágil, aventureiro e sábio, que notivagou<br />
em gôndolas por Veneza, nos estrelados idílios; que<br />
cantou outrora baladas aos astros aristocráticos, com o<br />
seu bandolim de luar e o seu perfil mais aristocrático<br />
ainda; que apaixonou e languesceu as monjas com suas
242 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
curiosas lendas enevoadas e rendilhadas; que foi o<br />
Gentil-Homem da Aventura e da Graça nas Cortes de<br />
Luís Quinze; que dourou e enflorou toda a Grécia e<br />
fecundou de Poesia e Arte o antigo Inferno mítico.<br />
Arrebatado num violento rodomoinho, num<br />
verdadeiro ciclone de paixões, és agora o Sátiro tricórnio<br />
e bufo, o membralhudo e velho histrião devasso, que<br />
resfolegas e inchas de pantagruelismo e luxúria.<br />
Não és mais o delicado deus artista, que eu muitas<br />
vezes vi, através das brumas azuladas da fantasia, pelos<br />
contemplativos crepúsculos da Alemanha, cismando,<br />
envolto num resplendor de imponderáveis saudades e<br />
nostalgias, tocado dos supremos desdéns, sentado junto<br />
aos pórticos medievais com as alongadas, esguias pernas<br />
mefistofélicas fidalgamente cruzadas em x.<br />
E tu perpetuas agora, através da universal<br />
harmonia, no equilíbrio sempiterno, Belzebu obeso e<br />
bonzo, inchado de concupiscência e tédio, ignobilmente<br />
obsceno, grotesco e esfingético, sonâmbulo de<br />
melancolias, tragicamente triste, atirado para um canto<br />
obscuro das Idades, como a truanesca e monstruosa<br />
figura orgíaca, báquica e pantagruélica do Vício!
FUGITIVO SONHO<br />
Pouco sentiria eu que o teu olhar fulgisse e a tua<br />
voz vibrasse, se tu não fosses a loura e sugestiva Imagem<br />
que vi em sonhos e ainda hoje entre os nimbos da<br />
memória me aparece, terna como as baladas antigas.<br />
Eu não digo que seja o luzido e bizarro cavaleiro<br />
medieval de nobre coturno e cinzelada espada d’aço<br />
polido, retinindo e fulgindo, que te aguarde na<br />
rendilhada sala gótica, ou nos pátios de mármore, ou<br />
nos balcões em flor, para fugirmos, alucinados e errantes,<br />
por alguma escada de seda, nalgum nitrente corcel.<br />
Tu és bem loura e bem fria para os medievos<br />
arrojos, para esses aventurosos jogos florais, e eu sou,<br />
talvez, em demasia tímido para arriscar-me a tais<br />
assaltos, que romanticamente e naturalmente teriam<br />
de ser ao luar, na vaporosa e velada voluptuosidade da<br />
lua, como nesses lascivos jardins do Capuleto aquela<br />
sonhadora Julieta e aquele pálido Romeu arrulhando<br />
em abraços e beijos.<br />
Mas tu cantaste. Cantaste, e o que eu tinha já<br />
morto nas recordações ressurgiu, enfim, nesse canto.<br />
Tu cantaste e eu, enfim, revivi e resplandeci para o Amor.<br />
A tua garganta, fina, aristocrática, fazia voar, como<br />
um pássaro branco, uma voz alada, cuja harmoniosa<br />
sonoridade penetrava, escorria pelo meu ser como um<br />
raro líquido untuoso...<br />
E eu parecia diluir-me em essência, em leves<br />
eflúvios, nos gorjeios. Os límpidos trinados, nos<br />
apaixonados, impetuosos vôos altos da tua voz – pura,<br />
clara, clara fresca e aberta no ar – amplo firmamento<br />
estrelado desenrolado por sobre mim odorante dilúvio<br />
de luar, ou como um pássaro branco e estranho que por<br />
ali surgisse, abrisse, ruflasse, batesse fremente as asas<br />
para além dos etéreos seios virgens das empíreas<br />
regiões...
244 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Tu cantaste, trinaste, desfolhaste em rosas, fizeste<br />
esvoaçar em abelhas e borboletas radiantes todas as<br />
músicas, todas as emotivas canções, todas as barcarolas<br />
e baladas em que há névoas de lágrimas e essas lágrimas<br />
– tanta era a melodiosa tonalidade da tua voz – quase<br />
que as sentia eu passar, nítidas, cristalinas, através da<br />
transparência do canto que constelava sonoramente o<br />
ar como um luminoso tecido de finos fios melodiosos.<br />
E, enquanto, dessa forma, em requinte, funcionava<br />
em mim o extasia do sentimento, o teu olhar fulgia e a<br />
tua voz vibrava, vibrava, vibrava infinitamente, num<br />
esplendor harmonioso e claro, fazendo evocar a expressão<br />
feérica de uma lua muito branca, do alto cantando<br />
sonoridades de prata, subindo céus acima, astros acima,<br />
por legiões luminosas e gloriosas de águias, cantando...
Formas Formas e e Coloridos<br />
Coloridos
246 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
A ABELHA<br />
Naquele dia a industriosa abelha iriada, como<br />
surgisse a manhã num fulgurante pó branco de neblinas<br />
e ela fosse desferir o vôo até à colméia onde trabalhava,<br />
nos quentes verões, com outras companheiras; perdeuse<br />
em caminho, entre o nevoeiro, como se a cegasse de<br />
repente ali aquela alva irradiação matinal.<br />
Contudo, animada por uma chama intensa e viva,<br />
e que outra cousa não era mais do que o amor à<br />
carinhosa colméia, tentava sempre romper o nevoeiro,<br />
ir através da bruma espessa, penetrar nela num arrojo<br />
mais de vôo, fazendo um pequenino orifício por onde<br />
pudesse atravessar, feliz e gloriosamente, o seu gentil<br />
organismo diminuto e alado.<br />
Mas em vão! A cada esforço empregado em<br />
distender para frente as asas débeis, a cada ímpeto<br />
resoluto, a cada impulso tenaz, parecia que a neblina se<br />
obstinava em condensar-se, em intensificar-se mais; e<br />
estava esta lua já assim há tempo continuada resultando<br />
talvez num triste perigo para o volatilizado ser<br />
microscópico e sonoro, quando, finalmente, num golpe<br />
de luz – o sol irrompeu; surgiu, subiu festivo e triunfoso<br />
para o alto, como um redondo cano de ouro cheio de<br />
molhos inflamados de loiras espigas ardendo.<br />
Perante o brusco emergir flamejante do sol a<br />
rápida (...) abelha mais ainda se entonteceu e<br />
deslumbrou então; e tanto se deslumbrou e entonteceu<br />
que jamais conseguiu vencer a fina gaze diáfana, que<br />
agora, com o súbito clarão já se ia esvaindo no ar...<br />
E era inefável, deliciava entretanto ver a abelha<br />
presa no éter, sem poder caminhar, sem poder voar,<br />
suspensa no azul e doirada pelo sol, como uma leve gota<br />
que o sol deixasse pender no espaço, caída das suas<br />
rutilantes pedrarias de raios e librada apenas nos<br />
imperceptíveis fios sutis do fluido luminoso.<br />
Ah! se a abelha pudesse enviar recado à colméia,<br />
às companheiras, que a viessem tirar bem depressa dali!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 247<br />
Mas quem sabia onde era a colméia?<br />
Os reis, que habitam lá acima os claros palácios<br />
do luxo, entre soberanos confortos sedosos? Os ministros<br />
que passam lá embaixo no culto rumor da cidade,<br />
fechados no seu coupé, lendo jornais, como dentro de<br />
um rodante e tépido gabinete de estudo?<br />
A rapariga do campo, que através da frescura dos<br />
fenos, leva o gado a pastar na grama vasta e viçosa que<br />
cintila e fuma pelas manhãs?<br />
Quem sabia onde era a colméia?!<br />
Ninguém o saberia decerto! E essa tênue e<br />
voejante abelha, embora solta da trama da luz e não<br />
obstante claramente saber para que lados ficava a<br />
colméia, erraria em vão pelos vales cheirosos, perdida<br />
para todos os pontos, daquelas vargens, castos vergéis –<br />
porque esse tempo gasto a vaguear e a vacilar na neblina<br />
a cobriria de receio em comparecer, mais uma vez só<br />
que fosse, à presença das outras, sem que sentisse nos<br />
seus dormentes e enxameados zumbidos a mais<br />
acusadora censura e a queixa mais penetrante às horas<br />
que, no exigente pensar egoísta e caprichoso das<br />
companheiras, ela andara à toa no campo em flor amando<br />
e sugando alguma pétala, em vez de ir, por essa radiosa<br />
manhã, para o trabalho, abrir, no favo de mel, as<br />
curiosidades artísticas e os arabescos filigranados da<br />
efervescente colméia.<br />
* * * * * * * * * *<br />
Também, ó imaginária criatura amada! a peregrina<br />
abelha de meu sonho, voando um dia para a vida, foi<br />
logo em viagem surpreendida pelas profundas névoas<br />
impenetráveis das desilusões, e, sem poder nem<br />
prosseguir nem recuar, vencida pela distância e pela<br />
altura vertiginosa do ideal, perdeu para sempre, para<br />
nunca mais encontrar o desejado rumo, o caminho fluido,<br />
luminoso e gorjeante, que vai dar ao teu coração.
248 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
OBSESSÃO DA NOITE<br />
Vem, tartufo, rir ao pé de mim a tua risada de fel.<br />
O sol, em cima, ri a sua risada de aurora, que<br />
tudo aclara e resplende.<br />
Mas é em vão para essa risada de luz, que jorra<br />
d’alto sobre tudo, que tudo ilumina e claresce.<br />
Quero-te a ti, risada de fel, Tartufo! Quero-te a<br />
ti, risada do crime, risada da noite, risada da treva.<br />
Apavora-me esse sol eterno, a flamejar, incendiado<br />
na altura, porque ele todas as coisas põe em relevo.<br />
Eu não quero essa aflitiva evidência da luz – que<br />
ri das nossas chagas, ironiza o nosso amor e avulta o<br />
nosso remorso.<br />
Quero a sombra que esbate os claros aspectos,<br />
que esfuminha os longes, que enevoa e quebra a linha<br />
dos corpos.<br />
A sombra que desce, que se desdobra em noites,<br />
em trevas amargas.<br />
Esse luto etéreo que tudo esconde e faz repousar<br />
no mesmo vasto silêncio.<br />
O luto que esconde o crime e esconde a dor, que<br />
confunde a máscara hedionda de Gwymplaine com a<br />
máscara loura de Vênus.<br />
Esse luto, essa noite, essa treva é que eu desejo.<br />
Treva deliciosa que me anule entre a degenerescência<br />
dos sentimentos humanos. Treva que me disperse no<br />
caos, que me eterifique, que me dissolva no vácuo, como<br />
um som noturno e místico de floresta, como um vôo de<br />
pássaro errante.<br />
Treva sem fim, que seja o meu manto sem estrelas<br />
que eu arraste indiferente e obscuro pelo mundo a fora,<br />
arredado dos homens e das cousas, confundido no<br />
supremo movimento da natureza, como um ignorado<br />
braço de rio, que através de profundas selvas escuras<br />
vai sombria e misteriosamente morrer no mar...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 249<br />
Nela é que eu quero afundar-me, na noite que me<br />
defende da lesma humana que babuja ao sol, à grandeza<br />
da luz.<br />
Nela é que eu quero viver, na treva que me despe<br />
da realidade da vida, que me sepulta e piedosamente<br />
consola.<br />
Ela tem a majestade para me apagar da vista esses<br />
mil animais sinistros e terríveis que, em múltiplas<br />
formas diversas, mordem sempre, caminhando para mim<br />
ao clarão do dia em truculenta marcha cerrada de<br />
massas pesadas e formidáveis.<br />
Quero, ó noite niveladora, fria águia negra das<br />
solidões infinitas, ir preso nas tuas asas e perder-me,<br />
insensivelmente vagar átomo desconhecido, talvez a<br />
gerar longe o mundo estranho de uma nova Dor!
250 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
HORA CERTA<br />
Inexoravelmente, imperturbavelmente, na<br />
inevitabilidade de um pêndulo estranho, o último suspiro<br />
há de soar, na hora atroz, que reboará soturna como por<br />
cavernas e subterrâneos.<br />
Com a alma supliciada de nevroses, assediada por<br />
ciúmes inquisidores, através de trêmulos angustiantes<br />
de violinos, o Agonizante elevará os olhos claros, cheios<br />
já da transfulgência de outras esferas e aspirará, ainda,<br />
gemente, Águia triste de solenes asas despedaçadas,<br />
os desejos esparsos, perdidos, que para além ficaram no<br />
clamor atordoante da Vida.<br />
Como por um mapa fabuloso, viajará ainda a<br />
imaginação desfalecida pelas regiões de outrora, onde<br />
se agitaram, vivas e palpitantes, todas as grandes forças<br />
do seu sentir.<br />
E, diante dos olhos adivinhadores de belezas<br />
secretas; dos olhos penetrantes e gozadores que<br />
pousavam inteligentemente nas cousas com finas asas<br />
ideais, amando-as, envolvendo-as numa chama de<br />
sentimento, nobres olhos de emoção e profundidade; dos<br />
olhos, cujo entendimento cintilava quando olhavam<br />
curiosamente tudo; diante dos olhos do Agonizante<br />
desfilará então a Visão do seu Ideal – Beleza tão<br />
radiante, tão doce, que lhe lembrará ao mesmo tempo a<br />
frescura iluminada de um vale e a profunda pompa<br />
noturna das estrelas.<br />
O muito que odiou e o muito que amou, os traços<br />
reveladores do seu espírito, formas de enunciação<br />
características de sentimento, ondulações voluptuosas<br />
de som, tudo, como um fumo, lhe tecerá brumas na<br />
retina; e certas recordações, já nebulosas na memória,<br />
certas tempestades d’alma, já entrecruzadas, difundidas<br />
e repercutidas na tempestade das Esferas, tudo, como<br />
um fumo, lhe tecerá brumas na retina.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 251<br />
Soberbos oceanos de imaginação onde mergulhou<br />
seguro o desenterramento da sua Obra, do Escuro para<br />
a Luz, ressuscitando-a das sepulturas do Nada e fazendoa<br />
logo abrir clarões e asas no Espaço, tudo, tudo há de<br />
ecoar, em extremo, nos desvãos do seu cérebro a fenecer,<br />
como a vibração esmorecidamente saudosa de rouca<br />
fanfarra longínqua no fim crepuscular de triste e ovante<br />
vitória assinalada por aclamações e festões de louros,<br />
regada abundantemente pelo vinho quente e humano<br />
do sangue.<br />
E, relembrando cousas, revendo todas as veredas<br />
passadas, como quem revolve poeira, se o Agonizante<br />
achar então que afinal lhe doeu muito a Vida, consolado<br />
morrerá de que sofrendo por todos teve assim a mais<br />
bela e nobre purificação e consagração dessa Dor.<br />
E, de reminiscência em reminiscência,<br />
consultando no largo, no amplo, no formidável mostrador<br />
do Tempo as horas certas do Mundo – a hora certa para<br />
o Amor, a hora certa para o Ouro, a hora certa para o<br />
Ódio, sentirá, então, claro, nítido, evidente na eloqüência<br />
fatal do último suspiro – concentração tremenda de todos<br />
os círculos tremendos do Ser – sentirá então que a única<br />
hora certa, ó Vida!, é a hora da Morte, quando o último<br />
suspiro soa, trêmulo, marcando o inevitável rumo, como<br />
um pêndulo estranho que marca horas imponderáveis<br />
caindo inexoravelmente, imperturbavelmente...
252 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ROSICLER<br />
Imaginar agora, saudosa Rosicler, que essa boca<br />
virginal, onde têm vivido, esvoaçado e cantado os ardentes<br />
pássaros dos beijos, fica gelada e muda, negra, como a<br />
boca de uma cova; que o colorido alvoral da tua carne<br />
esmaece, morre; que os fluidos Danúbios claros e azuis<br />
dos teus olhos somem-se na névoa da morte; que tu<br />
toda esfrias horrivelmente nas minhas mãos, num<br />
pavoroso contacto de neves álgidas – hirta, inteiriçada,<br />
glacial – como pesado e rígido bloco maciço de mármore<br />
branco!<br />
E imaginar, também, que a tua infância de flor,<br />
de alva magnólia cheirosa cor de luar, na seda fina da<br />
pele nívea, foi passada entre os meus braços: todo o<br />
delicioso encanto louro dos teus cabelos, a delicada polpa<br />
rosada dos teus lábios e as límpidas marchetarias dos<br />
teus dentes na láctea candidez do rosto a que os fluidos<br />
Danúbios claros e azuis dos teus olhos de ninfa davam<br />
frescuras bucólicas de mirtais e de mares meigos da<br />
Grécia.<br />
E imaginar, também, celeste Rosicler, que tu, já<br />
na pubescência, com as nobrezas régias de dama<br />
medieval, planta inglesa e forte desabrochada na<br />
atmosfera de uma estufa de Lorde, na luxuosa irradiação<br />
da formosura, vais, através do aristocrático rumor de<br />
cidades, alta e loura, como soberba Águia fidalga que<br />
para sempre houvesse abandonado algum antigo, grande<br />
palácio renano!<br />
Outros chamem-te Aurora! Hoje que já tens a<br />
esveltez palmeiral, o viçoso verdor primaveril e que na<br />
transparência d’ouro da epiderme dos seios cantam-te<br />
inefavelmente os desejos...<br />
Outros chamem-te Aurora! Hoje que já o travo<br />
picante da perfídia feminina dá um encanto fatal e acídulo<br />
à tua cabeça funesta e trêfega e dá volúpias secretas e
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 253<br />
tentadoras às tuas garridas formas de louro demônio, a<br />
essa sedução prófuga e prônuba, entre sílfide e áspide...<br />
Outros chamem-te Aurora!<br />
Uma vez que ainda diante dos olhos vejo a rosada<br />
e consoladora luz difusa da tua Infância; que ainda sinto<br />
os leves e perfumados eflúvios da tua voz; o cristalinar<br />
do teu riso nos lábios frescos de vida e de leite; os fios<br />
sonoros do teu cabelo de sol na primorosa, suave,<br />
resplandecente cabeça; agora que tudo isso, enfim,<br />
acorda ainda no meu ser a balada longínqua das<br />
Recordações, não te chamarei jamais Aurora, mas<br />
Rosicler! que lembra os tons alvorais incomparáveis da<br />
tua vaporosa existência de aroma, quando eu tinha nos<br />
braços, envolta em neblinas paradisíacas do sonho, a<br />
tua formosa, suave, resplandecente cabeça, da excelsa<br />
idealização de cabeças de Anjos, revivescentemente<br />
cinzeladas em astro...
254 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
BEIJOS MORTOS<br />
Para o frio silêncio do firmamento, para a alta<br />
sideração das estrelas, os beijos de chama que me deste<br />
outrora subiram mortos, frígidos, glaciais, sem aquele<br />
quente, inflamado clarão que os tornava apaixonados.<br />
Foram-se os beijos e tu te foste também com eles,<br />
Alma sonora, Carne de perfume e de luz, cujos olhos, de<br />
tanto incomparável amor carinhosamente me falavam.<br />
A minha boca, sequiosa e saudosa agora desses<br />
beijos que a constelaram, mal pode sonorizar as sílabas<br />
de sol – Amor – que tão inefavelmente sonorizava.<br />
Foram-se os teus beijos, sumiram-se aqueles<br />
astros, que ardiam, e, agora, ei-los, já frios, lá, acima,<br />
no esplendor, esparsos no arqueado Azul infinito...<br />
Que brilhem, lá, gélidos, esses beijos mortos, como<br />
a serena e sagrada Via-Láctea da Paixão!<br />
Para mim, cá da terra, embaixo, eu os verei e os<br />
sentirei ainda palpitar para sempre sobre a minha alma,<br />
purificando-a e iluminando-a, miraculosamente, contra<br />
o frio veneno negro da Dor, derramada fundo no meu<br />
peito por fulvos e inquisitoriais demônios,<br />
atropeladamente arremessados à escalada vertiginosa<br />
do Mundo!
Últimas Últimas Evocações<br />
Evocações<br />
Resgatadas Resgatadas por por Iaponan Iaponan Soares Soares e<br />
e<br />
Zilma Zilma Gesser Gesser Nunes<br />
Nunes<br />
Dispersos Dispersos – Poesia Poesia e e Prosa<br />
Prosa
256 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
MARGARIDA<br />
Sorrisos e lágrimas de Margarida<br />
O que procuraria nele?!...<br />
Talvez quisesse descobrir nesse imenso véu onde<br />
estariam embuçados seus pais, talvez, fitando esse<br />
horizonte rosicler, seu pensamento voasse a se encontrar<br />
com os deles!<br />
Não, não era isso!<br />
Ela volvia o olhar a Deus para pedir-lhe sempre a<br />
mesma paz de espírito, a mesma bonança em sua vida e<br />
que o sorriso lhe brincasse eterno nos lábios purpurinos!<br />
Quanto era misterioso esse seu pensar!<br />
Brilhante e preclaríssima existência!!!...<br />
De manhã, antes que a luz do sol principiasse a<br />
irradiar nos azulados píncaros dos montes, ela, essa<br />
virgem meiga, erguia-se de seu leito e ia tratar do<br />
rebanhozinho!<br />
Que quadro admirador, o ver-se a gentil pastora<br />
acariciando suas ovelhas...<br />
Umas deitavam-se em seu lindo colo, outras<br />
osculavam-lhe as alvinitentes mãos, os cetinosos e louros<br />
cabelos; outras, saltando em torno dela, pareciam dizerlhe:<br />
Olha, nós te adoramos, só tu és a nossa querida<br />
mãe.<br />
E ela, como que adivinhando-lhes o pensamento,<br />
tornava a afagá-las ainda com mais ardor, com mais<br />
doçura, como se fora uma própria mãe.<br />
E passava horas e horas esquecidas afagando-as,<br />
acariciando-as, conchegando-as a seu palpitante seio<br />
num anelo suave, numa louca vertigem, enfim numa<br />
languidez febril.<br />
E assim corriam os anos, os meses, os dias, as<br />
horas, os minutos, os segundos, para ela sempre de gozo,<br />
de sorrisos lúcidos, de manhã de flores, de prazer infinito.<br />
Depois desses puros estremecimentos, dessa<br />
expansão de sua alma, começava a correr, a saltar como<br />
a borboleta febril, por moitas, por vales, por lagozinhos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 257<br />
de prata, em busca de saudades e lírios, flores de sua<br />
afeição.<br />
E lá ia veloce, célere como as setas!<br />
Como encantava vê-la assim.<br />
Vestida de uma linda saia curta que deixava ver o<br />
bem torneado de uma linda perna, com duas louras<br />
tranças presas nas pontas por laços azuis que se<br />
deslizavam por suas bem contornadas espáduas, dir-seia<br />
uma divindade.<br />
E corria sempre com o sorriso doirando-lhe os<br />
lábios.<br />
Nunca lágrimas, nem uma só!...<br />
E era assim sua vida!...<br />
..........................................................<br />
Um dia, ao cair da tarde, quando estava embebida<br />
em ver, em admirar os aurifulgentes arrebóis de que se<br />
orna a sidérea cúpula, foi surpreendida por um leve rumor<br />
próximo à choupana; voltou-se e verificou que tivera<br />
motivo essa surpresa.<br />
Era um caçador que indo divertir-se por aqueles<br />
lados e como chegasse a noite desejava ali, se acaso o<br />
consentisse Margarida, descansar um tanto, para depois<br />
continuar seu caminho, pois morava um pouco retirado.<br />
Ambos saudaram-se...<br />
Depois ele, com certa entonação de voz, dirigiulhe<br />
a palavra:<br />
– Minha linda pastora, dá-me por alguns minutos<br />
um agasalho em sua modesta choupana?...<br />
Margarida, tremendo toda como um arbusto<br />
agitado pelo vento e baixando os olhos, respondeu-lhe:<br />
– Mas, sr., eu não o conheço, não sei quem é...<br />
e... além disso eu...<br />
Suspendeu-se.<br />
– Mas, tornou-lhe o jovem, asseguro-lhe que nada<br />
tem a temer; é que venho muito cansado e almejo mais
258 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
que tudo uma hora de repouso, para então continuar o<br />
meu caminho.<br />
– Pois bem, senhor, eu estou segura da sua<br />
probidade. O senhor parece-me um belo moço; entremos.<br />
Mesmo apesar deste elogio quem olhasse para as<br />
faces de Margarida, vê-las-ia tornarem-se rubras e<br />
morder de leve o lábio inferior.<br />
Contudo, conteve-se e tímida, acanhada, levantou<br />
o trinco da porta e abriu-a.<br />
Entraram...<br />
Margarida, aquela virgem infante sentou-se a um<br />
canto trêmula.<br />
Não sabia o que dizer.<br />
O caçador também, por mando de Margarida,<br />
descansara sua espingarda a um canto e sentara-se.<br />
A pastora, conservando sempre os olhos baixos,<br />
não se atrevia a erguê-los para se não encontrarem com<br />
os do caçador que a fitava com ternura.<br />
Depois de alguns instantes, este rompeu o<br />
silêncio.<br />
– Então, minha linda pastora, habita aqui, sozinha,<br />
não tem receio de algum maldoso?<br />
Ela estremeceu com esta idéia e com um leve<br />
movimento de cabeça, respondeu:<br />
– Não...<br />
– Oh! Então é por que está bem guardada?<br />
Margarida não respondeu, mas levantando-se abriu uma<br />
portinhola e mostrou-lhe dois grandes cães que dormiam.<br />
– Oh! belo! São guardas de respeito! Como se<br />
chamam?<br />
– Um chama-se Cérbero e outro Leão. E cerrou a<br />
porta.<br />
– Ora até que enfim falou... Vamos, diga-me quem<br />
são seus pais?<br />
– Não os tenho, respondeu-lhe comovida a pastora.<br />
E aquela que vimos há pouco sorrindo e saltando<br />
levou a mão a seu avental para enxugar uma lágrima.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 259<br />
– É bem infeliz, tornou-lhe o caçador... diga, esta<br />
é a sua verdadeira pátria?<br />
– Não, respondeu-lhe Margarida, com a sua voz<br />
meiga, o senhor é bom, é; parece-me que estou vendo<br />
transparecer em sua alma a meiguice, a bondade! Oh! o<br />
senhor é bom!<br />
– Diga-me uma coisa, formosa pastora, gosta desta<br />
vida que passa, nunca pensou em estreitar os laços do<br />
himeneu, nunca pensou em casar-se?<br />
Dois olhares e ao mesmo tempo dois sorrisos<br />
encontraram-se.<br />
Depois profundo silêncio...<br />
– Então, não responde?<br />
– Senhor... disse enleada, corando a pastora.<br />
– E... nunca amou... nunca conheceu o amor?<br />
Outra vez dois olhares trocados, mas mais<br />
ardentes, mais vivos, mais vertiginosos.<br />
– Então, minha encantadora pastora, nunca amou,<br />
insistiu o caçador.<br />
– Nunca! gemeu a pastora.<br />
E o jovem não podendo conter mais a sua louca<br />
paixão e o pulsar inquieto de seu coração, lançou-se-lhe<br />
aos pés exclamando:<br />
– Pois bem eu serei quem te ame, dar-te-ei meu<br />
coração, consagrar-te-ei mil afetos; tu chamar-me-ás<br />
Jorge eu direi...<br />
– Margarida, concluiu a pastora, sorrindo-se entre<br />
lágrimas e com uma suavidade na voz que encantava!<br />
E depois, de repente, estacando, parando de<br />
comoção e dizendo entre Si:<br />
– Oh! meu Deus, e meu Futuro com ele, quem<br />
sabe o que será!<br />
E pendendo o rosto na mão ficou pensativa.<br />
– Então, linda Margarida, o que tens?!<br />
Ainda há pouco tão expansiva e agora...<br />
Colombo. Folhetim. Desterro, 14 e 21 maio, 1881.
260 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
COMEMORAÇÃO DO SEXAGÉSIMO PRIMEIRO<br />
ANIVERSÁRIO NATALÍCIO DE JOAQUIM GOMES DE<br />
OLIVEIRA E PAIVA<br />
É hoje o dia 12 de Julho, data do nascimento do<br />
grande orador Joaquim Gomes de Oliveira e Paiva.<br />
É preciso que o povo catarinense, animado pelo<br />
sublime amor patriótico, revista-se de entusiasmo como<br />
de uma inconcussa clâmide romana, em honra daquele<br />
que tanto o engrandeceu.<br />
É preciso que o povo catarinense erguendo-se do<br />
fatal marasmo, são, lépido como o Lázaro da Escritura,<br />
fazendo um esforço hercúleo, estranho, quebre os<br />
ferruginosos grilhões que o entorpecem, exulte iluminado<br />
pelos raios abrasadores de seu mais soberbo revérbero:<br />
– o nome de – Oliveira e Paiva.<br />
Já é tempo de ao menos por um dia, por uma hora,<br />
por um segundo, deitarmos por terra o fundo<br />
materialismo, de não cuidarmos única e precisamente<br />
do nosso eu.<br />
Já é tempo de não nos deixarmos embrutecer na<br />
parva admiração de uma gorda parcela monetária, para<br />
subirmos à luz da história, à luz dos conhecimentos<br />
humanos, intelectuais.<br />
Toda a moral, toda a estética, toda a pura filosofia,<br />
deve abraçar por certo os princípios que vimos de<br />
descrever.<br />
Não é absorvendo o tempo em coisas fúteis<br />
comezinhas, materiais, quando não estólidas, ridículas;<br />
não é enervando, calcinando a alma nos desregrados<br />
orcos terrenos dos gozos fáceis, hebetisinando a razão,<br />
que nos fazemos homem, que nos fazemos povo.<br />
Por Deus!... nem tanta filáucia, nem tanto<br />
egoísmo!...<br />
É próprio isso dos tempos antediluvianos!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 261<br />
Não é, repetimos, deixando passar desapercebido<br />
o que é grande, o que é louvável, o que é justo, que<br />
podemos dizer temos civilização.<br />
Quem sabe se muitos julgam que a verdadeira<br />
acepção dessa palavra está apenas nos cumprimentos<br />
familiares, nas atenções para com as senhores, no<br />
respeito à honra e em muito mais que nos seria fastidioso<br />
relatar?!...<br />
Não, mil vezes não!<br />
Olhai a Europa; fitai o mundo exterior ou quando<br />
não seja assim, sondai bem vossa razão que encontrareis<br />
lá bem nas profundidades dela o completo qualificativo<br />
de civilização.<br />
Quem não conheceu Oliveira e Paiva, aquela<br />
cabeça leonina onde irradiavam mil constelações de<br />
pensamentos?!...<br />
Quem não lhe apreciou a palavra eloqüente que<br />
brotava de seus lábios em enormes catadupas, em<br />
repetidos borbotões de rasgos oratórios?!...<br />
Quem não admirou aquele todo simpático e<br />
preclaro de uma polidez sutil a toda prova?!<br />
Quem, por último, não conviveu com esse irmão<br />
de Mont’Alverne, Vieira, Anchieta, Souza Caldas, Patrício<br />
Moniz e tantos outros?...<br />
Não há negar pois, que o povo Catarinense seria<br />
por demais ingrato, se envolvesse no espesso manto do<br />
olvido esse dia tão faustoso que trouxe ao mundo o grande,<br />
o Messias querido que gravou seu nome, com letras<br />
indeléveis, eternas, nos corações verdadeiramente<br />
patrióticos.<br />
Para nós que, se revolvemos o humilde e pequeno<br />
cinerário da história, não encontramos muitos vultos<br />
tão ilustres como o do exímio pregador Oliveira e Paiva;<br />
não é mistério, é prova mesmo de adiantamento, de<br />
progresso, fazer uma homenagem como a que se acaba<br />
de preparar.
262 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Portanto deve a elite literária da sociedade<br />
Catarinense apresentar-se garbosa, preparar seus<br />
brilhantes discursos, suas éclogas, seus sonetos, para o<br />
maior realce e solenidade dessa festa.<br />
Deixamos que o Zoilo ignaro, escancarando a boca<br />
com a gargalhada mordaz, estendendo a ponta aguçada<br />
do estilete do sarcasmo, dos vis esgares, como um truão<br />
imbecil, como um palhaço mazorral das praças públicas<br />
esbraveje, raive, zurre furiosamente.<br />
Deixemos que soltem o agourento grasno esses<br />
esquálidos, negros e esfaimados abutres.<br />
Deixamos que se anteponham a nossos passos<br />
esses semicadáveres!<br />
Para as consciências inteiramente de lama, talvez<br />
sejam os nossos festejos encarados pelo lado do ridículo;<br />
para os hodiernos realistas talvez pratiquemos uma<br />
fanfarronada, é a frase admissível; mas para as<br />
consciências imparciais, sensatas, claras, teremos feito,<br />
se bem que em parte, o que o nosso herói merece e<br />
lançado aos fundos alicerces de seu Panteão de glória,<br />
uma pedrinha de bastante valor.<br />
..................................................<br />
Se viveras ainda, ó excelso Paiva, iríamos<br />
pressurosos a teu gabinete de trabalho ofertar-te, hoje,<br />
data do teu grande nascimento, mil coroas de lírios e<br />
açucenas, vivas imagens da inocência; porém como<br />
morreste, ou antes tropeçaste tão somente na campa,<br />
ressurgindo à imortalidade, ousamos dedicar à tua<br />
memória estas toscas, rudes, mas sinceras palavras.<br />
Jornal do Comércio, Desterro, 12 jul., 1882.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 263<br />
JULIETA DOS SANTOS<br />
Julieta dos Santos estreou segunda-feira, 25, no<br />
drama Georgeta, a cega. Eu achava-me lá no teatro, nessa<br />
grande escola, maquinalmente sentado, com a cheia de<br />
esperanças e a alma a transbordar de desejos febris,<br />
vagos, loucos, vorazes, aguardando a ocasião de ver surgir<br />
do palco essa embrionária terrível.<br />
A seu tempo ergueu-se o pano e dali a instantes<br />
apareceu em cena, dentre os bastidores, como as<br />
sombras evocadas pelo poeta nas noites do mistério, no<br />
céu ideal, o evoluciozinho de uma borboleta delicada,<br />
vaporosa, sutil.<br />
Eu acotovelei o companheiro que se achava junto<br />
a mim e disse-lhe – emudece.<br />
Ela começou a falar.<br />
Sua voz levemente embaraçada, insinuante, tinha<br />
de quando em vez umas vibrações cristalinas; seus<br />
alvinitentes bracinhos estendidos ao longo buscavam os<br />
tropeços que por acaso houvessem em sua passagem.<br />
Eu, boquiaberto, estático, vezes colado à cadeira,<br />
sentia a algidez de uma estátua de aço, às vezes como<br />
impelido por uma mola secreta, estranha, erguia-me<br />
insensivelmente sentindo percorrer nas fibras d’alma<br />
uns fluidos magnéticos.<br />
E as cenas sucediam-se cada vez mais brilhantes,<br />
mais belas, mais expressivas.<br />
E eu acotovelava o meu companheiro fazendo-lhe<br />
notar ora um gesto, ora uma inflexão, ora um jogo<br />
fisionômico dessa Favart, dessa Raquel, dessa Téssera<br />
do futuro.<br />
Terminou o primeiro ato sempre esplendente,<br />
sempre ameno, sempre divino da parte da pequena<br />
atrizinha e também de seus colegas que secundaram<br />
mui devidamente.
264 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Passaram-se alguns momentos. A orquestra<br />
dirigida pelo Sr. Brasilício executou uma melopéia suave.<br />
E eu, impaciente, esperava o 2° ato.<br />
Subiu o pano afinal!... Apareceu Georgeta sempre<br />
cega, sempre simpática, já eletrizando-me nuns lirismos<br />
vagos e encantadores, já sensibilizando-me nuns lances<br />
ternos, numas queixas repassadas de langor, nuns quês<br />
finalmente impassíveis e solenes.<br />
Oh! mas quando ela recupera a luz, quando se<br />
abisma na contemplação dos objetos, das flores, quando<br />
se aproxima do espelho e tem ante ele aquela cena<br />
inimitável, aquela luta gigante como a da treva com o<br />
clarão, como a do possível com o impossível, como a da<br />
matéria com o espírito eu, por Deus, senti em meu<br />
cérebro uma revolução como que um cataclismo moral.<br />
Terminou o drama e eu maravilhado, emudecido,<br />
sentia-me preso à cadeira por uma atração irresistível.<br />
Oh! quanto prende, quanto arrasta essa criação<br />
fenomenal!... Gênio, eu te saúdo, porque tu tens o dom<br />
de animar as almas de gelo, as organizações de pedra,<br />
como Fídias as suas criações esculturais, como Rafael<br />
a sua Fornarina.<br />
Tu inspiras, tu suplantas, tu avassalas.<br />
Trabalhastes na – Georgeta, a cega – e no entretanto<br />
encheste de luz!!...<br />
O Caixeiro, Desterro, 31 dez., 1992.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 265<br />
A MUSA MODERNA<br />
(Versos de Damasceno Vieira)<br />
O sr. Damasceno Vieira, no pródromo sintético<br />
da sua obra, fundamenta umas teorias didáticas que<br />
não acentua bem, de modo claro e filosófico.<br />
Desde o batismo do seu trabalho Musa Moderna<br />
encontra-se analiticamente, observadamente uma falta<br />
de coerência, de concatenação lógica com as idéias<br />
expendidas na substância do livro.<br />
S.S. mesmo diz:<br />
“Para dar a medida exata de seu tempo –<br />
preocupação de todo artista superior – cumpre ao poeta<br />
identificar-se com as aspirações do século nas suas idéias<br />
filosóficas, nos seus gigantescos impulsos de progresso,<br />
na sua veemente paixão pela liberdade.”<br />
Ora, S.S. admira Guerra Junqueiro e quase não<br />
admite Jean Richepin, quando, segundo a minha opinião,<br />
foi na Chanson des Gueux que aquele poeta bebeu a maior<br />
luz da inspiração para o seu último poema.<br />
A fim de atestar, ampliar mais sensatamente o<br />
seu modo de ver as coisas, S.S. cita algumas palavras<br />
de Ramalho Ortigão, desse escritor tão reputado e tão<br />
querido, mas que embora a sua nomeada, a sua<br />
consideração européia, não suponho, estudadamente<br />
visto, digno de uma crítica séria sobre poesia.<br />
Não devemos receber a luz porque ela venha dc<br />
alto, do mais alto píncaro das serras elevadas.<br />
Não!...<br />
Irrompa ela da sombra, mas seja uma luz clara,<br />
franca, espontânea.<br />
Venha ela das anfractuosidades das minas, das<br />
gargantas das fornalhas, dos brasidos do carvão – mas<br />
seja luz.<br />
Para se compreender as vantagens da nova<br />
literatura, em todas as fases, é preciso ter as bossas
266 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
intelectivas desenvolvidas na altura dessas mesmas<br />
vantagens.<br />
O poeta de hoje é o reformador, o inspirado, o<br />
revolucionário.<br />
São os três elementos constitutivos do poeta.<br />
Dizendo-se revolucionário, compreende-se que<br />
poeta seja artista inteiro, completo.<br />
Se a arte caminha ao lado das revoluções do<br />
espírito, não se admitirá por certo revolução sem arte.<br />
Ora, o sr. Damasceno que bate os linfáticos da<br />
Musa, aqueles que não têm pulmões nem sangue para<br />
os entusiasmos decentes, para as concepções grandes<br />
e fortes, abre o seu livro ainda com versos sem rima,<br />
solto como se diz, quando a rima, natural, precisa,<br />
verossímil é a cintilação prismática, a eufonia<br />
dulçorosíssirna do verso; quando os melhores poetas da<br />
península e mesmo os novos brasileiros têm essa<br />
preocupação que é também um dos esmaltes mais<br />
delicados e bonitos da forma.<br />
Daí, S.S. continua no emprego estafado das<br />
décimas e oitavas francesas, pesadas, retumbantes pela<br />
sua factura pelo seu modo arrogante de exprimir o<br />
pensamento.<br />
Os poetas devem conhecer, para o complemento<br />
da arte, a maneira de distribuir os tons a fim de que as<br />
consoantes aglomeradas, empacadas não esporeiem o<br />
ouvido do leitor; colocar esteticamente os agudos, os<br />
graves e esdrúxulos – dispor muito concisamente o<br />
colorido da inspiração vibrante, altívola, sangüínea.<br />
Os poetas – essa boemia de ouro, essa borboleta<br />
azul que muitas vezes se queima na sua própria luz,<br />
quanto a mim devem arrojar-se mais e mais nas asas<br />
da fantasia a águia do infinito das idéias – devem ter os<br />
vôos desesperados, as cóleras supremas, o humorismo<br />
doido, as gargalhadas estrepitosas do mar, rugir como o<br />
leão e arrulhar como a pomba, ter a fulguração<br />
escaldante do sol e a sua suavidade consoladora do luar.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 267<br />
Não há poesia onde não houver fôlego, sentimento,<br />
paixão pela natureza sempre farta de assuntos para os<br />
espíritos empreendedores.<br />
Não há poesia onde houver convenção, onde a<br />
espontaneidade e a fé individual do cantor não se revelem<br />
com força.<br />
O sr. Damasceno bem sabe quais são as armas<br />
combate, mas não usa delas, talvez por uma religiosidade<br />
pacata aos seus escrúpulos literários.<br />
O sr. Damasceno Vieira é por vezes fraco nos seus<br />
ideais, nas suas imagens e comparações.<br />
O seu espírito não conserva na Musa Moderna a<br />
nota nervosa do sentimento, os rasgos apaixonados da<br />
razão.<br />
Não há na sua poesia uma fluência agradável que<br />
force a ler-se o livro até o fim, na melhor disposição de<br />
gosto; vai-se tropeçando a cada passo com versos soltos,<br />
com uns nomes próprios, de uns heróis da guerra, como<br />
espantalhos da civilização, introduzidos nas estrofes,<br />
dando-lhes uma gravidade pesada, pouco artística e<br />
poética.<br />
E além disso a originalidade, a primeira qualidade<br />
do homem moderno, não é com certeza a lei do<br />
distinguido escritor.<br />
S.S. canta a escola, as oficinas, o trabalho, o<br />
progresso com tintas nada originais e boas.<br />
A verdadeira centelha da arte, o fogo, a robustez,<br />
o pulso, como disse Edmundo de Amicis, tratando de<br />
Zola, não são circunstâncias às quais o sr. Damasceno<br />
ligue muito séria importância.<br />
Achará que isto são tropos de estilo, são<br />
esmiuçamentos de crítica.<br />
Mas nem nos propusemos a escrever uma crítica<br />
sobre o seu livro; unicamente como S.S. não é<br />
positivamente um calouro da literatura, mas uma<br />
inteligência que tem produzido diferentes frutos, nos<br />
certames da idéia, é preciso, que pelo menos os que
268 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
cuidam de letras, autopsiem franca e lealmente, com a<br />
dignidade superior de confrades, os trabalhos que vão à<br />
luz da publicidade.<br />
E demais S.S. teve a delicadeza de remeter, com<br />
dedicatória especial e bastante lisonjeira, a Virgílio<br />
Várzea, Santos Lostada e à minha humílima<br />
individualidade, a sua Musa Moderna.<br />
Nasce, portanto, desse atestado despretensioso<br />
de simpatia – esta ligeira análise da obra.<br />
Não diria coisa alguma sobre ela, se a achasse<br />
fora dos trâmites da crítica e dos limites do senso.<br />
Há nela, em todo o caso, cunho de talento, mas<br />
não rijeza firme de idéias.<br />
Não existe homogeneidade na sua observação,<br />
complexidade no seu raciocínio.<br />
O seu espírito não tem nem aquela facilidade<br />
dúctil, nem aqueles atrevimentos razoáveis e admissíveis<br />
do poeta.<br />
É possível que se encontre sinceridade nas suas<br />
doutrinas mas para os outros, porque S.S. não professa<br />
as doutrinas que expõe.<br />
Fala de progresso, de arte, de evolução, apresentanos<br />
os seus dados filosóficos e – apoteosifica, endeusa<br />
as guerras, porque endeusa os seus heróis.<br />
Quando hoje, na vanguarda triunfante do<br />
evolucionismo, não pode, não deve seguir a guerra, senão<br />
como um escarro de sangue atirado à face da luz.<br />
Porque é preciso não confundir evolucionismo com<br />
moda.<br />
Há espíritos alheios de intuição, da percepção clara<br />
das coisas, que, dizendo-se modernos, evolucionistas,<br />
adiantados – não estudam profundamente a organização<br />
desse vocábulo.<br />
E Evolucionismo é a direção racional que tomam<br />
todos os cérebros, ante os fenômenos patológicos,<br />
psicológicos e fisiológicos é a fonte elementar onde se<br />
bebem todos os princípios da verdade, toda a sua saúde
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 269<br />
do pensamento; o Evolucionismo é que nos apresenta as<br />
causas primordiais do existir, as transformações da<br />
matéria, os necessários terremotos do Cosmos universal.<br />
É pelo Evolucionismo que o homem compreende,<br />
vê, sabe, conhece os poderes que tem para olhar, para<br />
ouvir, para pensar.<br />
Com o Evolucionismo é que o homem se apodera<br />
dos direitos da sua animalidade – alargando, estendendo<br />
os conhecimentos diversos.<br />
É no Evolucionismo que pairam todas as crenças<br />
robustas desta humanidade pensadora, que trabalha<br />
para a educação de todas as consciências que ainda<br />
não entenderam o seu lugar sobre a terra.<br />
Dentro pois do Evolucionismo, em toda a sua<br />
acepção, deve girar a esperança do poeta, como um<br />
pêndulo enorme, oscilando de entre a curvidade azulada<br />
dos espaços amplíssimos.<br />
Nestas horas em que a civilização vai rasgando<br />
todos os horizontes compactos de treva, não há meios<br />
termos, ou o escritor se adapta à sua época ou morre –<br />
ou tem músculos para galgar a montanha de verdade<br />
filosófica ou estaciona pelas estradas das quimeras e<br />
das dúvidas que não guiam, mas adoecem profundamente<br />
os crânios.<br />
Para se rasgar a crosta do anônimo, é preciso<br />
cotovelos de bronze, escreveu alguém, isso.<br />
E o sr. Damasceno Vieira, já não está do lado do<br />
anônimo...<br />
Mais um esforço sobre si mesmo e estará do lado<br />
justo da verdade.<br />
O seu livro não é um – Grito de Guerra.<br />
É um clamor que não se sabe bem de que trombeta<br />
foi saído.<br />
Não se pode analisar, de boa atitude, a escala e<br />
os sons.<br />
A Musa Moderna – segundo a sua estrutura, a sua<br />
essência, não é um livro que possa atravessar futuros e
270 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
entrar no conclave dos poetas da musa incontestavelmente<br />
moderna.<br />
O sr. Damasceno Vieira que encaminhe o seu<br />
espírito por outras veredas, que atravessa a floresta da<br />
existência... intelectual, como um leão e que sinta em<br />
si o bronze inabalável da coragem, na frase de Guerra<br />
Junqueiro, a encouraçar-lhe o peito das suas convicções.<br />
Regeneração, Desterro, 9, 10 e 11 jun., 1885.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 271<br />
MANHÃ NO CAMPO<br />
A Eliseu Guilherme<br />
Quase manhã.<br />
Vagos bocejos de vida, ainda, nas compriduras<br />
verdes dos campos.<br />
A natureza estremunha.<br />
Uma pessoa como que tem ímpetos de sorver o ar<br />
fresco que paira sobre as coisas, de infiltrar nos pulmões<br />
largas baforadas de oxigênio.<br />
Bebe-se o leite quente das cabras monteses e<br />
peraltas, que andam a saltar as cercas tufadas de<br />
jasmins e rosas agrestes, para as várzeas distantes.<br />
Os bois saem das manjedouras na silenciosidade<br />
dos túmulos.<br />
Mugem, mais além, desconsoladoramente.<br />
É que vão para a cidade.<br />
As fontes estão como se alguém se lembrasse de<br />
espalhar um punhado de sombras, por elas.<br />
Sente-se apenas a cristalinidade, o som metálico<br />
de seus veios fartos.<br />
O lavrador acorda para o plantio, revolvendo,<br />
aradeando a terra, como quem prepara um ventre para<br />
a fecundação animal.<br />
Rompem do chão a vitalidade saudável e o frescor<br />
que a seiva introduz nos vegetais.<br />
Para longe, nos sítios afastados, os galos, como<br />
sentinelas, dialogam monótonos alertas, cantaroladoramente.<br />
Nos firmamentos altos e longos, baralha-se uma<br />
confusão de cores.<br />
Ora um amarelo-gema de ovo, claro, vai morrer<br />
num sulfurino vivo; uns chamalotes de prata, muito alva<br />
e nítida, perdem-se num roxo-violeta; cintilações<br />
rosadas unificam-se a escumilhas com tonalidades de<br />
chumbo; um azul-ferrete limpo, amalgama-se ao<br />
escarlate vibrante, que parece cantar.
272 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Como que se sente o cheiro ativo e o gosto dos<br />
coloridos.<br />
E o sol, como uma cobiça de ouro, como o fruto do<br />
Bem procriador, lá vem vindo, na vermelhidão do fogo<br />
das coivaras, atrás dos reposteiros pardos da montanha,<br />
que agora rasgam-se...<br />
Regeneração, 12 jul., 1885.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 273<br />
UMA LENDA<br />
Ao sr. M. das Oliveiras Margarida<br />
É uma lenda fantástica, a vida dos imigrantes da<br />
luz.<br />
Eu conheço uma dessas compleições, batida pelos<br />
ventos desordenados de um milhão de desgraças,<br />
estrangulada pelo guante fatal de indiferenças atrozes<br />
e que, como todo o boêmio do Ideal dourado, sente cantar<br />
dentro de si a balada saudosa, estribilhada de esperanças<br />
e de crenças, metido numa tebaida de asceta, tendo,<br />
talvez, uma gargalhada de Polichinelo, para a sociedade<br />
que passa, tilintando os guizos da loucura e do prazer.<br />
E, pela calada harmônica da tarde, quando o céu<br />
profundamente azulado parece uma turquesa enorme;<br />
quando a natureza veste a escumilha finíssima do<br />
crepúsculo, cortado pelas badaladas melancólicas da Ave-<br />
Maria, ele passa, com o seu tronco curvado, barba de<br />
profeta antigo, as mãos fartas de rosas, caminho direito<br />
ao cemitério, na atitude calma e triste de quem se quer<br />
remontar pelo pensamento, a algum passado mavioso e<br />
bom, fico cismando porque é que a terra criadora não<br />
lhe introduziu, não lhe infiltrou nos poros, toda aquela<br />
mocidade castíssima e doce das filhas, cuja campa ele<br />
vai sempre cobrir de flores e de lágrimas?!<br />
Por que a seiva exuberante, do que é novo e forte,<br />
não pode emprestar vida aos organismos velhos e<br />
magoados?!<br />
Por que todo o sangue fecundo dos corpos há de<br />
apenas fortalecer os nervos e os músculos das plantas,<br />
dar o grão germinativo à saúde dos vegetais?!...<br />
Ah! Daudet, Daudet!...<br />
Tens razão em deplorar a morte das fadas!...<br />
Se existissem fadas, eu lhes pediria um palácio<br />
de ouro, com escadarias de marfim, portas de esmeraldas<br />
e safiras, iluminado por cem sóis representando lustres,<br />
guardado por mil fortalezas de bronze, onde habitasse,<br />
numa irradiação de estrelas, essa outra fada olímpica –<br />
a mocidade.<br />
O Moleque, Desterro, 2 ago., 1885.
274 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
A ROMARIA DA TRINDADE<br />
Tradicionalismo é a filosofia do povo e faz acordar<br />
em nossas almas, como o eco de uma balada longínqua<br />
e saudosa, perdida na distância azul dos montes cobertos<br />
de neblina, tudo o que viveu de esperanças, tudo o que<br />
viveu de sonhos e felicidades.<br />
Esta romaria que se faz à Trindade é tradicional<br />
e festiva.<br />
A certa hora do dia, começa a afluir gente:<br />
carroças de molas perras e gastas, enfeitadas de<br />
fazendas de cores vibrantes e fortes onde sobressai o<br />
escarlate, com grandes penachos coloridos de flores e<br />
fitas, radiantes de bandeirolas, conduzindo dentro toda<br />
uma rapaziada ávida de troça, de pândega, gargalhando<br />
alto no ar calmo e iluminado o seu bom humor de<br />
romaristas, cascaquinando ditos, numa algazarra franca<br />
de consciências despreocupadas e jovens, aos estridentes<br />
sons metálicos da banda fanfarrona que atira os seus<br />
agudos de requinta e os seus abertos e rasgados de<br />
trombone pela estrada adiante.<br />
Simpáticas amazonas nos seus cavalos mansos e<br />
dóceis, como convém ao sexo, deixando ondular aos<br />
ventos o véu azul e roxo e branco e verde dos seus<br />
chapelitos altos, cartolados, pretos, dando-lhes,<br />
colocados na cabeça gentil e estética, uma aparência<br />
de cavaleiras fantásticas do ideal indo à romaria da moda<br />
e da elegância.<br />
Depois, já na Trindade, uma aglomeração ruidosa<br />
do povo, de todo o colorido e de toda a casta, como uma<br />
aquarela imensurável feita a largos traços quentes de<br />
verde-paris, de amarelo e de uma grande porção de<br />
borrões estirados e grossos de tinta encarnada. Ao ar<br />
livre, ou debaixo das laranjeiras cobertas de fruto que<br />
os raios do sol um tanto já perpendiculares mais<br />
enlourecem e douram, ou nas barracas de lona e de<br />
aniagem, nas velhas barracas tradicionais, come-se à
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 275<br />
fartela, numa deglutição furiosa, bebendo-lhe em cima<br />
um péssimo vinho picante temperado a pão campeche e<br />
a cana miúda, o belo farnel querido que se leva em<br />
cabazes ou acondicionado nas maxam-bombas ou no charà-bancs:<br />
o farnel crônico e frugal da galinha assada, da<br />
mortadela, da sardinha e do aperitivo lombo de porco,<br />
tostado e porejando gordura.<br />
A seu tempo, os sinos bimbalhantes vibram no ar,<br />
abrindo naquela atmosfera de festa e de rumor, um vivo<br />
clarão de alegria, e os foguetes estourantes e<br />
estrepitosos, com a marcha brava e pomposa da música,<br />
põem em tudo aquilo espalhafatosos e murmúrios, como<br />
o eterno zumbir de cem colméias trabalhadoras e amigas.<br />
Então, numa gala de púrpura e de arminho, saem<br />
da igreja, S.M. infantis e ingênuas, num sorriso feliz de<br />
crianças festejadas, comendo as balas ou as massas,<br />
em forma de boizinhos e bonecas, que a boa mamãe ou o<br />
festeiro lhes trouxera todo expansivo e contente. Dá-se<br />
por concluída a festa da igreja e, no mesmo instante,<br />
vêem-se grupos que altercam, indivíduos e avinhados e<br />
congestos que questionam, que gritam, fazendo estourar<br />
murros sobre as pequenas mesas toscas das barracas,<br />
alvoroçando a polícia que apita e chega sempre tarde e<br />
as cavalgaduras que rincham e dão pinotes correndo<br />
algumas à rédea solta pela planura relvosa do adro.<br />
Mais tarde, ao descambamento lento do dia, o<br />
regresso à cidade, em grupos, aos pares, trôpegos,<br />
cansados e frouxos como quem vem em debandada,<br />
carregados, mulheres e homens, de laranjas, de canas,<br />
de flores, de preguiça, e de tédio da viagem que deixa<br />
de ter agora toda a satisfação e todo o prazer, por se ter<br />
já acabado toda a graça e todo o contentamento que a<br />
gente sente ver acabar no domingo pachorrento e<br />
tranqüilo como um domingo de Páscoa.<br />
Regeneração, 5 jun., 1887.
276 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
O ABOLICIONISMO<br />
A ação que o Abolicionismo tem tomado nesta<br />
capital é profundamente significativa. Nem podia ser<br />
menos franca e menos sincera a adesão de todos a esta<br />
idéia soberana, à vista dos protestos da razão humana,<br />
do patriotismo e do caráter nacional ante tão bárbara e<br />
absurda instituição – a do escravismo.<br />
A onda negra dos escravocratas tem de ceder lugar<br />
à onda branca, à onda de luz que vem descendo,<br />
descendo, como catadupa de sol, dos altos cumes da<br />
idéia, preparando a pátria para uma organização futura<br />
mais real e menos vergonhosa. Porque é preciso saberse,<br />
em antes de se ter uma razão errada das coisas,<br />
que o Abolicionismo não discute pessoas, não discute<br />
indivíduos nem interesses; discute princípios, discute<br />
coletividade, discute fins gerais.<br />
Não vai unicamente pôr-se a favor do escravo pela<br />
sua posição tristemente humilde e acobardada pelos<br />
grandes e pelos maus, mas também pelas causas morais<br />
que o seu individualismo traz à sociedade brasileira,<br />
atrasando-a e conspurcando-a.<br />
Não se liberta o escravo por pose, por chiquismo,<br />
para que pareça a gente brasileira elegante e graciosa<br />
ante as nações disciplinadas e cultas. Não se<br />
compreendendo, nem se adaptando ao meio humanista<br />
a palavra escravo, não se adapta nem se compreende da<br />
mesma forma a palavra senhor.<br />
Tanto tem esta de absurda, de inconveniente, de<br />
criminosa, como aquela.<br />
Se a humanidade do passado por uma falsa com<br />
preensão dos direitos lógicos e naturais, considerou que<br />
podia apoderar-se de um indivíduo qualquer e escravizálo,<br />
compete-nos a nós, a nós que somos um povo em via<br />
de formação, sem orientação e sem caráter particular<br />
de ordem social, compete-nos a nós, dizíamos, fazer<br />
desaparecer esse erro, esse absurdo, esse crime.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 277<br />
Não se pense que com a libertação do escravo,<br />
virá o estado de desorganização, de desmembramento<br />
no corpo ainda não unitário do país.<br />
Em toda a revolução, ou preparação de terreno<br />
para um progredimento seguro, em todo o<br />
desenvolvimento regulado de um sistema filosófico ou<br />
político tem de haver certamente, razoáveis choques,<br />
necessários desequilíbrios, do mesmo modo que pelas<br />
constantes revoluções do solo, pelos cataclismos pelos<br />
fenômenos meteorológicos, descobrem-se terrenos<br />
desconhecidos, minerais preciosos, astros e constelações<br />
novas. O desequilíbrio ou o choque que houver não pode<br />
ser provadamente sensível, fatal para a nação. Às forças<br />
governistas compete firmar a existência do trabalho do<br />
homem tornado repentinamente livre, criando métodos<br />
intuitivos e práticos de ensino primário, colônias rurais,<br />
estabelecimentos fabris, etc..<br />
A Escravidão recua, o Abolicionismo avança, mas<br />
avança seguro, convicto, como uma idéia, como um<br />
princípio, como uma utilidade. Até agora o maior poder<br />
do Brasil tem sido o braço escravo: dele é que partem a<br />
manutenção e a sustentação dos indivíduos de pais<br />
dinheirosos; com o suor escravo é que se fazem<br />
deputados, conselheiros, ministros, chefes de Estado.<br />
Por isso no país não há indústria, não há índole de vida<br />
prática social, não há artes.<br />
Os senhores filhos de fazendeiros não querem ser<br />
lavradores, nem artífices, nem operários, nem músicos,<br />
nem pintores, nem escultores, nem botânicos, nem<br />
floricultores, nem desenhistas, nem arquitetos, nem<br />
construtores, porque estão na vida farta e fácil,<br />
sustentada e amparada pelo escravo dos pais, que lhes<br />
enche a bolsa, que os manda para as escolas e para as<br />
academias.<br />
De sorte que, se muitas vezes esses filhos têm<br />
vocação para uma arte que lhes seja nobre, que os<br />
engrandeça mais do que um diploma oficial, são obrigados
278 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
a doutorarem-se porque se lhes diz que isso não custa e<br />
que poderão, tendo o título, ganhar mais facilmente e<br />
até sem merecimento, posições muito elevadas; e mesmo<br />
porque, ser artista, ser arquiteto, ser industrial, etc., é<br />
uma coisa que, no pensar acanhado dos escravocratas,<br />
dos retrógrados e dos egoístas, não fica bem a um nhonhô<br />
nascido e criado no conforto, no bem-estar no gozo<br />
material da moeda dada pelo braço escravo.<br />
Regeneração, Desterro, 22 jun., 1887.
GEMA CUNIBERTI<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 279<br />
Esta grande atrizinha, que por toda a parte foi<br />
muito admirada, deixou o teatro e reside em Turim, onde<br />
seus pais a fazem estudar literatura.<br />
A inteligente menina tem surpreendido os seus<br />
mestres com os progressos que vai fazendo, revelandose<br />
já uma poetisa de estro elevado.<br />
A princípio custou-lhe a abandonar a cena, mas<br />
hoje raras vezes vai a espetáculos e dedica-se aos estudos<br />
com tanto aproveitamento, que tornam-se<br />
extraordinárias a sua intuição e o seu talento precoce.<br />
Regeneração, Desterro, 20 jul., 1887.
280 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
A NOITE DE SÃO JOÃO<br />
Nunca o meu provinciano peito de artista vibrou<br />
mais forte, mais rijo e mais fremente do que vibra nessas<br />
deliciosas festas populares onde a minha infância acorda,<br />
canta e sonha feliz.<br />
Tão belos, tão expressivos e harmoniosos são esses<br />
festejos, que o cérebro se incendeia dos lumes navios<br />
da imaginação para desenhá-los, para pintá-los a largos<br />
traços comovidos, sinceros e quentes como o vivo clarão<br />
de amor que eles trazem às coisas adormecidas e mortas<br />
nas recordações passadas.<br />
Oh! que painel aí se desenrola, na frente dos<br />
nossos olhos, cheio de meiga ternura do tempo que<br />
passou que não volta mais!<br />
É num terraço, numa praia ou num pedaço de rua<br />
que se passam estas cenas de costumes, estes episódios<br />
característicos que afagam a nossa memória.<br />
Desceu a noite já. Faz um luar que dá gosto. Oh!<br />
como a lua é lírica no Azul!<br />
As verduras pulverizadas de luz, escorrendo prata<br />
líquida, numa crua irradiação branca, reluzem com a<br />
nitidez e o brilho dos alvos blocos de mármore.<br />
Para lá da terra firme, além de uma curta divisa<br />
de mar manso navegável em canoas, num ponto que os<br />
olhos distinguem claramente bem, uma aragem fresca,<br />
leve, como um sopro musical de flauta campestre, afia<br />
nos canaviais viçosos que se agitam branda e<br />
suavemente.<br />
Porém na rua umas vozes contentes e sonoras<br />
gritam cheias de mocidade e frescura: Olá! João, anda<br />
cá; vamos às canas. Pague! Pague! Hoje é o seu dia.<br />
Viva S. João! Viva S. João.<br />
E o João, um rapaz que passara ali assobiando,<br />
jovial e franco, ria alegria da sua alma chã, entra numa<br />
venda, paga vinho, um rico vinho cor de topázio bebido<br />
entre a algazarra dos companheiros e os entusiasmos<br />
bruscos e metálicos do homem da onda que faz tinir os<br />
cobres, todo risonho, na gaveta do balcão.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 281<br />
E as canas, João, e as canas, repetem as vozes.<br />
E o João paga de novo, e de novo a algazarra cresce,<br />
os vivas, as aclamações, os prazeres que estouram nas<br />
almas desses bons rapazes, como as bichas e os buscapés<br />
ziguezagueantes que eles soltam em pândega, nos<br />
largos, no meio de muita gente reunida, dispersando<br />
tudo, entre galhofas e risadas.<br />
Mas a noite de S. João dobra de encantos e de<br />
enlevos.<br />
Agora as rubras fogueiras crepitantes estendem<br />
a sua ardente chama loura e alegre na frente das casas;<br />
agora a rapaziada – crianças saltam as fogueiras, velhos<br />
sentados ao redor delas contam uns aos outros<br />
interessantes histórias de bruxa e de alma do outro<br />
mundo, aquecendo-se do frio da noite e fazendo às vezes<br />
ressoar no claro ar sereno a nota cristalina de uma<br />
cantiga de ritmo ameníssimo e simples, com o motivo da<br />
festa, tremida e repenicada na voz misteriosa e cheia<br />
de saudades amadas.<br />
Então! olha essas batatas que saiam – gritam cá<br />
de fora para o interior da casa. O fogo está bom. Venha<br />
isso. Maria traz as batatas e as canas, traz também o<br />
aipim. Vamos assar. Êta diabo! O fogo está mesmo bom,<br />
está pedindo coisa. Então. Venha isso!<br />
De repente alguém exclama: Vamos ao terço do<br />
seu João da passagem; principia às oito, são sete. Hoje<br />
há lá forrobodó, há comes e bebes, vai orquestra. Vamos!<br />
E vão-se todos ao terço do seu João da passagem.<br />
Aí há muita gente, a sala parece um ovo, diz uma<br />
rapariga; e, no centro de um altar armado em dossel,<br />
esplandecente de luzes, de alfaias, de jarras azuis e de<br />
flores, o S. João Batista todo imaculado e tranqüilo,<br />
satisfeito e sorridente, com o seu rosto roliço e doce,<br />
gordo e macio, destaca de um quadro em moldura<br />
dourada, em estampa, do fundo de um nimbo cinzento,<br />
muito colorido e crespo, com uma tanga escarlate,<br />
abraçado com o cordeiro divino que olha para a gente<br />
com os seus olhos irracionais e pequeninos pleno de<br />
docilidade, de mansidão e de paz.
282 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Então a dona da casa, a sinha Jacinta que vem lá<br />
de dentro toda redonda, como uma roda de fogo, de saias<br />
engomadas, de babados e de tufos, diz que o terço vai<br />
começar.<br />
Aí um capelão prosa e pernóstico põe todo o seu<br />
saber sacerdotal à vista dos devotos e ingresa um latino<br />
onde há muito orum, retumbado, cantarolado e<br />
pavonesco, numa melopéia fúnebre.<br />
Depois a rapaziada cai na patusca arrastação de<br />
pés, e dança, gingada e requebrada, ao som da orquestra<br />
que fere as polcas do Calado e as quadrilhas do Mesquita,<br />
de uma melodia delicada, original e vibrante, cheia de<br />
guizos, como uma partitura de Offenbach ou de Souppé.<br />
No intervalo das contradanças bebe-se Carlsberg<br />
e comem-se os belos bombocados saborosos que cocegam<br />
aperitivamente o céu da boca, e as brancas e rosadas<br />
cocadas em forma de estrela que lembram a Bahia tal é<br />
o paladar do coco de que elas são feitas.<br />
No meio disso, tiram-se sortes; uma espécie de<br />
consulta ao destino: para a gente saber se morrerá cedo<br />
ou tarde, se casará, terá este ou aquele desejo, etc..<br />
Divertimento esse que dá às pessoas que nele tomam<br />
parte um contentamento e uma felicidade luminosa que<br />
escorrem nas fisionomias como um óleo celeste de<br />
esperança e de fé remoçando e fortalecendo a velhice e<br />
consolando e abençoando a todos.<br />
No fim desse passatempo agradável e das últimas<br />
contradanças de grandes e frenéticos galopes<br />
entusiásticos, todo o mundo volta para as suas casas,<br />
bastante tarde, no silêncio da noite já sem lua, mas<br />
estrelada e bonita, de um amarelado tom de madrugada<br />
cor de limão sem mais ruído notável de prazer; apenas<br />
animada por um ou outro foguete tardio, que, ao longe,<br />
aqui e ali, como esquecido elemento da festa, ou como<br />
um indiferente conviva que chega tarde, estala, e brilha<br />
no ar saudosamente.<br />
Regeneração, 18 set., 1887.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 283<br />
ENTRE CIPRESTES<br />
(No dia de finados)<br />
Viva a morte! Aqui estão sob estes ciprestes, nas<br />
geladas criptas sombrias dos vermes, as mulheres louras,<br />
esses pálidos luares de neve que deliciam; as mulheres<br />
morenas esses ardentes sóis tropicais que matam. Aqui<br />
estão. Quanta vez, nas lagoas brancas da alma delas a<br />
alva-garça do sonho não vagueou e rufou as asas. Quanta<br />
vez, as vermelhas rosas da quimera, como flores de<br />
aurora, não perfumaram a religiosa eucaristia mística<br />
do seu coração? Quanta vez? E agora? Agora aquelas<br />
esperanças não florescem nem abrem mais os lírios<br />
puríssimos daqueles olhos não recenderão mais de<br />
aromas imaculados e doces, não estrelarão mais de<br />
afetos o céu agora vazio da existência de muitos homens.<br />
Tudo acabou, tudo gelou desapiedadamente nesta crua<br />
treva da terra, aqui, lá embaixo, no profundo Nirvana<br />
para onde se desce hirto, de dentes cerrados, num<br />
resfriamento material que dói.<br />
Foi-se tudo nestas paragens da eterna noite<br />
incoercível, entre estes ciprestes que grasnam o pulvis<br />
est no tremendo repouso lúgubre dos mochos: Viva a<br />
Morte! Viva a Morte! e que vai ecoando funebremente.<br />
E além, sob os chorões desgrenhados como<br />
imensas cabeleiras verdes, estende-se a galeria dos<br />
mortos de luxo, belos mortos aristocratas cheios de anéis<br />
nos dedos e reluzentes crachás no peito: príncipes,<br />
cavalheiros da legião de honra, e duques, que ostentam<br />
os seus pomposos exílios mortuários onde se exilaram<br />
para sempre vindos do país da vida, entre lágrimas<br />
ignorados desmentidos em jornais comunistas e<br />
demagógicos, desses que gritam contra o conforto e a<br />
suprema felicidade dos reis que as mais das vezes andam<br />
errantes e loucos de tédio e de dor nas imponências da<br />
corte enquanto lá fora, nas praças, o populacho se
284 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
alvoroça e exalta fazendo ressoar nas pedras de pátios<br />
de palácios os seus grossos sapatos revolucionários.<br />
E os mochos repetem: Viva a morte! Viva a morte!<br />
E a galeria dos mortos continua: Cá estão as mães<br />
sofredoras, as mães que choraram, que gemeram, que<br />
soluçaram, que endoideceram de amor de pesar na<br />
existência dos filhos; e cá estão também os filhos homens<br />
uns, já responsáveis da vida; com a idade da luta,<br />
esboroados de sofrimentos, martirizados até o desespero;<br />
crianças outros, como botões de rosas em antes de abrir,<br />
como beijos que petrificaram tão cedo, tão de madrugada,<br />
tão nos translucidamente e na inefável paz da quermesse<br />
da vida infantil na qual os sorrisos são as jóias<br />
preciosíssimas, as delicadas prendas adoráveis e<br />
estremecidas.<br />
Mas, viva Deus! a este soturno e convulso chorar<br />
de mágoas e de saudades dos ciprestes esguios<br />
respondem ainda assim, vitoriosamente, como um clarim<br />
de batalha, as rosas que rebentam como corações<br />
perfumados pelos aromas do céu, as vermelhas rosas<br />
que ao menos cantam nestas regiões tristes a canção<br />
alegre do sangue que lembra a vida, a vida escorrendo<br />
em grandes borbotões do fogo enorme do sol e da seiva<br />
profunda das árvores. Viva Deus!<br />
Regeneração, Desterro, 19 nov., 1887.
A VIDA NAS PRAIAS<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 285<br />
Ah! a vida nas praias! a vida nas praias!<br />
Pela manhã a claridade esterificada e igual que<br />
aveludece as perspectivas convida-nos aos belos passeios<br />
pitorescos sobre a areia clara das praias – passeios que<br />
têm tanto de artístico como de científico. Artístico porque<br />
nos dão a firmeza da linha estética na imaginação que<br />
recorda viagens sobre os mares calmos, horizontes novos;<br />
largos jorros de vida saudável e de frescura matinal nas<br />
toldas de navios transatlânticos, quando em antes do<br />
almoço de bordo se estuda e se observa a binóculo os<br />
pontos afastados da natureza que se iluminam pouco a<br />
pouco com o dia. Científico porque se estuda também<br />
um modo prático, intuitivo e gracioso de insuflar azoto<br />
no sangue, de tornar temperada a extravagante<br />
temperatura do corpo, de oxigenar o cérebro cujo fósforo<br />
se acende de aticismo e de bom humor.<br />
A vida nas praias é uma espécie de educação física<br />
dos nervos que ginasticam e ficam preparados para todas<br />
as evoluções musculares que dão à rijeza das formas<br />
essa aparência da fortaleza seivosa dos troncos das<br />
árvores. E as ondas do mar esfarelando-se numa<br />
espumarada branca de champagne ao longo das praias,<br />
têm o ingênuo ar de candidez do desenho d’A Natividade,<br />
de Wagrez, sob uma nítida gravura de Baude. E os<br />
temperamentos ásperos e montanhos como que se<br />
docilizam, como que se amaciam, recebendo as<br />
emanações de saúde e força vital que as marés lhes<br />
infiltram, enquanto que as epidermes anêmicas,<br />
mordidas pela clorose enervante das grandes paixões<br />
que gelaram, tornam-se sangüíneas, tomam cor, da<br />
mesma forma que o fruto amadurece e se ruboriza aos<br />
ardentes clarões solares.<br />
O sentimento vegetal que vem da existência<br />
passada em prados, entre searas e campos agrícolas,
286 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
tem um quê de correlativo e harmônico com a vida nas<br />
praias.<br />
Há em ambas as vidas uma completa afinação de<br />
detalhes, o mesmo tom geral quase.<br />
A vida nas praias é a vida na natureza livre, no<br />
vastíssimo lar de todos nós, cujo teto azul, lá no alto, se<br />
arredonda côncavo sobre as nossas cabeças. A vida<br />
vegetal, a vida dos prados, das searas e dos campos<br />
agrícolas, é a vida primitiva, a vida livre também, a vida<br />
pagã, a vida das vinhas carregadas de uvas maduras e<br />
saborosas, como de ametistas, a vida dos primeiros<br />
israelitas que iam ao morrer abrir e armar as tendas<br />
floridas das suas almas nuas e chãs no dourado território<br />
da glória eterna onde uma aluvião de pombinhos alvos,<br />
emissários do Espírito Santo, os havia de receber e<br />
arrulhar em redor das suas frontes venerandas coroadas<br />
e sagradas pelo resplendor dos cabelos brancos.<br />
E, por um desses dias que amanhecem enevoados,<br />
cerrados dos reposteiros das neblinas, e que depois<br />
surgem resplandecentes, vertiginosos de sol, com um<br />
azul muito intenso brunido no céu; num desses dias<br />
que parecem emergidos de um banho de ouro fluido, dá<br />
um consolo e uma satisfação tamanha passear à beira<br />
das praias, com os altos sossegos da voz, contemplando<br />
o efeito ridente e sereno da marinha quando na láctea<br />
transparência casta do ar voam as aves em circumevoluções<br />
pela paisagem toda e que a gente as segue<br />
demoradamente com a vista; lembrando-se de viajar<br />
assim com elas, de prender nas suas asas a alma com a<br />
fita verde da esperança uma vez que não pode prender o<br />
corpo pesado de chumbo que mais tarde a terra há de<br />
achar tão leve como uma pena destruindo-o sem esforços<br />
nem piedade.<br />
E o nosso espírito artístico, batido pelas<br />
impetuosidades higiênicas das aragens frescas do mar,<br />
sente-se rejuvenescido, vitalizado, num renascimento<br />
e numa eflorescência de rosas brancas, como um viajante
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 287<br />
eletrizado no forte ambiente de luz de uma purpureada<br />
aurora dos trópicos.<br />
Pela exuberância da cor e pela placidez da hora<br />
matinal a vida nas praias identifica-se com o sistema<br />
nervoso, aplica às espontâneas e disciplinadas<br />
organizações literárias uma ducha salutar de verve e<br />
de crítica – dessa crítica e dessa verve que nasce da<br />
tenra retina e da idéia muito passeada pelo grandioso<br />
panorama da natureza, sob uma rigorosa lente de<br />
observação e de análise em ordem.<br />
E, quando chegam as ameníssimas tardes<br />
enriquecidas pelas acesas e flamejantes pedrarias do<br />
ocaso, e que o tênue filó das nuvens leves e volantes se<br />
rarefaz e se adelgaça, é agradável, à viva percepção dos<br />
sentidos, é doce à delicadeza material do olfato e dos<br />
olhos ver passar para o banho as mulheres cor de jambo<br />
e cor de pérola, cujos perfis, movendo-se em flexões<br />
suaves e balanceadas, lá se vão mergulhar na onda clara,<br />
surgindo delas frescos, palpitantes e macios como a<br />
carne polposa, rosada e tenra das crianças cheirosas de<br />
vida e babadas do leite suspensas ao colo protetor e tépido<br />
das mães.<br />
Regeneração, 20 nov., 1887.
Missal<br />
Missal
290 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ORAÇÃO AO SOL<br />
Sol, rei astral, deus dos sidéreos Azuis, que fazes<br />
cantar de luz os prados verdes, cantar as águas! Sol<br />
imortal, pagão, que simbolizas a Vida, a Fecundidade!<br />
Luminoso sangue original que alimentas o pulmão da<br />
Terra, o seio virgem da Natureza! Lá do alto zimbório<br />
catedralesco de onde refulges e triunfas, ouve esta<br />
Oração que te consagro neste branco Missal da excelsa<br />
Religião da Arte, esmaltado no marfim ebúrneo das<br />
iluminuras do Pensamento.<br />
Permite que um instante repouse na calma das<br />
Idéias, concentre cultualmente o Espírito, como no<br />
recolhido silêncio de igrejas góticas, e deixe lá fora, no<br />
rumor do mundo, o tropel infernal dos homens<br />
ferozmente rugindo e bramando sob a cerrada metralha<br />
acesa das formidandas paixões sangrentas.<br />
Concede, Sol, que os manipanços não possam,<br />
grotescamente, chatos e rombos, com grimaces e gestos<br />
ignóbeis, imperar sobre mim; e que nem mesmo os Papas,<br />
que têm à cabeça as veneráveis orelhas e os chavelhos<br />
da Infalibilidade, para aqui não venham, com solene<br />
aspecto abençoador, babar sobre estas páginas os<br />
clássicos latins pulverulentos, as teorias abstrusas, as<br />
regras fósseis, os princípios batráquios, as leis de Crítica<br />
megatério.<br />
E faz igualmente, Sultão dos espaços, com que os<br />
argumentos duros, broncos, tortos não sejam<br />
arremessados à larga contra o meu cérebro como<br />
incisivas pedradas fortes.<br />
Livra-me tu, Luz eternal, desses argumentos<br />
coléricos, atrabiliários, como que feitos à maneira de<br />
armas bárbaras, terríveis, para matar javalis e leões<br />
nas selvas africanas.<br />
Dá que eu não ouça jamais, nunca mais! a<br />
miraculosa caixa de música dos discursos formidáveis!<br />
E que eu ria, ria – ria simbolicamente, infinitamente,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 291<br />
até o riso alastrar, derramar-se, dispersar-se enfim pelo<br />
Universo e subir, nos fluidos do ar, para lá no foco<br />
enorme onde vives, Astro, onde ardes, Sol, dando então<br />
assim mais brilho à tua chama, mais intensidade ao<br />
teu clarão.<br />
Pelo cintilar dos teus raios, pelas ondas fulvas,<br />
flavas, ó Espírito da Irradiação! pelos empurpuramentos<br />
das auroras, pela clorose virgem das estepes da Lua,<br />
pela clara serenidade das Estrelas, brancas e castas<br />
noviças geradas do teu fulgor, faculta-me a Graça real,<br />
o magnificente poder de rir – rir e amar, perpetuamente<br />
rir, perpetuamente amar...<br />
Ó radiante orientalista do firmamento! Supremo<br />
artista grego das formas indeléveis e prefulgentes da<br />
Luz! pelo exotismo asiático desses deslumbramentos,<br />
pelos majestosos cerimoniais da basílica celeste a que<br />
tu presides, que esta Oração vá, suba e penetre os<br />
etéreos paços esplendorosos e lá para sempre vibre, se<br />
eternize através das forças firmes, num som álacre,<br />
cantante, de clarim proclamador e guerreiro.
292 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
DOLÊNCIAS...<br />
Tu, na emoção desse encanto doloroso e acerbo<br />
da Arte, te sentirás, um dia, velho, fatigado, como um<br />
peregrino que percorreu ansiosamente todas as viassacras<br />
torturantes e perigosas.<br />
Essa maravilhosa seiva de pensamentos, toda essa<br />
púrpura espiritual, as vivas forças impetuosas do teu<br />
sangue, agindo poderosamente no cérebro, irão aos<br />
poucos, momento a momento, desaparecendo, num brilho<br />
esmaecido, vago, o brilho branco e virgem das estrelas<br />
glaciais.<br />
A tua alma será condenada à solidão e silêncio,<br />
como certas formosuras claustrais de monjas que<br />
brumalmente aparecem por entre as celas, deixando no<br />
espírito de quem as vê, quase que o mistério de um<br />
religioso esplendor...<br />
E, já assim emudecido e gelado para as nobres<br />
sensações do Amor, ficarás então como se estivesses<br />
morto – sem cabelos, sem dentes, sem nariz, sem olhos<br />
– sem nenhuma dessas expressões físicas que tornam<br />
os seres humanos harmoniosamente perfeitos.<br />
Em vão te recordarás da doçura de mãos<br />
aveludadas e brancas, da amorosa diafaneidade de uns<br />
olhos claros...<br />
As tuas Iedos, as tuas Lésbias e as tuas Aldas<br />
fluidamente te passarão na memória, alvas e frias...<br />
Por infinitamente tratar de idéias como de astros<br />
prodigiosos, sonhas-te com os opulentos, doirados<br />
prestígios da Glória; pensaste na Elevação como na<br />
solenidade augusta das montanhas.<br />
Mas, velho já, lembrarás um sol apagado, cuja<br />
forma material poderá persistir talvez ainda e cuja chama<br />
fecundadora e ardente se extinguirá para sempre...<br />
Não crer em nada, não sentir nada, não pensar<br />
nada, será a tua filosofia da senilidade. E, neste estado<br />
do ser, mais cruel que o Budismo, deixarás, como disse
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 293<br />
Heine, que a morte vá enfim tapar-te a boca com um<br />
punhado de terra...<br />
No entanto, pela tua retina cansada, desfilará tudo<br />
o que tu outrora amaste com intensidade: os ocasos<br />
afogueados, de verberações de metal sobre o mar e sobre<br />
o rio. Os finos frios radiantes, de azul resplandecente.<br />
A Lua, como estranha rosa branca, perfumando o ar,<br />
derramando lactescências luminosas nos campos<br />
alfombrosos. Os navios, as escunas e os iates, todas as<br />
embarcações admiráveis, que fazem sonhar, balouçando<br />
nas ondas, em relevos nítidos, em gravuras esmaltadas<br />
ao fundo dos horizontes.<br />
Tudo o que pensaste, o que trabalhaste pela Forma,<br />
com nervos e com sangue; tudo o que te deixou<br />
despedaçado, na amargura das lutas com o estilo e com<br />
a frase, cantará saudosamente no teu peito, cantará<br />
grandioso, solene, como os Salmos de Salomão.<br />
Com essa natureza mística, quase religiosa, que<br />
possuis, o Mundo te parecerá uma catedral vastíssima,<br />
colossal, de bilhões e bilhões de torres de cristal, de<br />
safira, de rubi, de ametista, de ônix, de topázio e<br />
d’esmeralda.<br />
E, à hora longínqua de profundo luar glacial e<br />
imóvel, de cada uma dessas torres surgirá um espectro<br />
branco dos teus sonhos, como uma ronda fantástica, e<br />
os sinos plangentemente vibrarão ao mesmo tempo, com<br />
tristezas noturnas e lancinantes, por todo o<br />
sepulcramento dos teus Ideais.<br />
E tu, velho, embora, na torre verde d’esmeralda,<br />
ficarás egrégio, vencedor, imortal, eterno, só e sereno,<br />
ao alto, sob as estrelas eternas...
294 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
OCASO NO MAR<br />
Num fulgor d’ouro velho o sol tranqüilamente<br />
desce para o ocaso, no limite extremo do mar, d’águas<br />
calmas, serenas, dum espesso verde pesado, glauco, num<br />
tom de bronze.<br />
No céu, de um desmaiado azul, ainda claro, há<br />
uma doce suavidade astral e religiosa.<br />
Às derradeiras cintilações doiradas do nobre Astro<br />
do dia, os navios, com o maravilhoso aspecto das<br />
mastreações, na quietação das ondas, parecem estar<br />
em êxtase na tarde.<br />
Num esmalte de gravura, os mastros, com as<br />
vergas altas, lembrando, na distância, esguios caracteres<br />
de música, pautam o fundo do horizonte límpido.<br />
Os navios, assim armados, com a mastreação, as<br />
vergas dispostas por essa forma, estão como que a fazerse<br />
de vela, prontos a arrancar do porto.<br />
Um ritmo indefinível, como a errante, etereal<br />
expressão das forças originais e virgens, inefavelmente<br />
desce, na tarde que finda, por entre a nitidez já indecisa<br />
dos mastros...<br />
Em pouco as sombras densas envolvem<br />
gradativamente o horizonte em torno, a vastidão das<br />
vagas.<br />
Começa, então, no alto e profundo firmamento<br />
silencioso, o brilho frio e fino, aristocrático das estrelas.<br />
Surgindo através de tufos escuros de folhagem,<br />
além, nos cimos montanhosos, uma lua amarela, de face<br />
chata de chim, verte um óleo luminoso e dormente em<br />
toda a amplidão da paisagem.
SOB AS NAVES<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 295<br />
Àquela hora, meio tarde no dia, não sei que<br />
compunção evangélica me assaltou, me invadiu a alma,<br />
que eu penetrei no templo iluminado.<br />
Altas naves sombrias pela névoa crespuscular da<br />
tarde, já em tons violáceos, abriam-se aos meus olhos,<br />
numa solene paz mística.<br />
Do alto do altar-mor vinha uma austera eloqüência<br />
de Religião, de Fé Católica, de Rito Romano.<br />
Velas amareladas e frias, de chama nobre e<br />
ardente, elevavam-se em tocheiros cinzelados, numa luz<br />
oscilante, trêmula às vezes por alguma momentânea<br />
aragem, como almas na indecisão do viver.<br />
Na capela do Santíssimo, rutilante de caros<br />
brocados e douraduras custosas, de fulgentes pratarias,<br />
de tons azulados e brancos de jarras esbeltas, uma<br />
lâmpada fulgurava, toda em esmaltes de prata, por entre<br />
a meia-tinta aveludada da hora, através do silêncio<br />
eucarístico, monástico da capela.<br />
Uma serenidade de força divinal, de majestade<br />
tranqüila, enchia o templo de um grande ar panteísta.<br />
Nos altares laterais, os santos, histerismos<br />
mumificados, no imortal resplendor das cousas abstratas,<br />
dos impulsos misteriosos que alucinam e por vezes fazem<br />
vacilar a matéria, tinham dolorosas e fortes expressões<br />
de luxúria.<br />
Eu sentia, sob aquelas rígidas carnes mortificadas,<br />
frêmitos vivos do sangue envenenado e demoníaco do<br />
pecado.<br />
E, de repente, não sei por que profana, tentadora<br />
sugestão, vi nitidamente Nossa Senhora descer aos<br />
poucos do altar, branca e muda, arrastando um manto<br />
estrelado, e, vindo anelante para mim, de braços abertos,<br />
dar-me, com os olhos claros de azul, profundos e celtas,<br />
infinitas, inefáveis promessas...
296 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Ah! naturalmente eu sonhara acordado, porque<br />
Tu, durante este meu sonambulismo de sátiro lascivo,<br />
subitamente entraste, trêfega, com vivacidades de<br />
pássaro, no templo iluminado; e eu então logo senti que<br />
os lindos olhos claros de azul que virginalmente se<br />
encaminharam para os meus, na ardência de um desejo,<br />
eram, por certo, os teus olhos, sempre meigos, sempre<br />
amorosos, ó luz, ó sol, ó esplendor dos meus olhos!
PAISAGEM<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 297<br />
Na colina da vila trepada no alto agrupam-se as<br />
casarias. Há sol. E na frente das casas caiadas de branco<br />
a luz vibra nervosamente, fazendo tremer a vista sob a<br />
crua irradiação da soalheira, como sob os flamantes bicos<br />
vertiginosos do gás da ribalta; enquanto que nas casas<br />
pintadas de amarelo e de vermelho quebra-se a forte<br />
intensidade da luz.<br />
Nestas ubérrimas regiões agricultáveis, de louras<br />
messes de produto, amanha-se a terra para a plantação<br />
da cana, da mandioca e do milho – do milho que nasce e<br />
cresce com as suas folhas compridas, flexíveis e largas<br />
como lustrosas, acetinadas fitas verdes.<br />
E vê-se agora, na grande extensão do campo, entre<br />
a verdura fremente de sol, a gente da lavoura, aplicada<br />
ao arado, ao alvião e à enxada – homens, mulheres e<br />
crianças, com os trajes da labuta, trabalhando e cantando<br />
queixas passadas que ecoam no ar tranqüilo,<br />
emprestando a essas paragens o pitoresco tom de vida<br />
de um desenho quente e colorido de leque chinês.<br />
Mais abaixo da roça, além de uma estreita ponte<br />
de pau-a-pique, que se atravessa a um de fundo, está o<br />
mar, fulgurante, profundamente calmo e liso, espelhando<br />
o céu, e cortado, às vezes docemente, por canoas à vela<br />
e a remo de voga que seguem para o mar grosso, ou por<br />
canoas a remo de pá que vão e voltam da pesca, cheias<br />
de peixe fresco que salta dentro, prateado e luzente,<br />
ainda vivo, com olhos vidrados de madrepérola, as<br />
guelras rubras e as barbatanas membranosas palpitando,<br />
no último anseio vão de se moverem na água.<br />
Ao lado direito da lavoura estão os engenhos de<br />
açúcar, de farinha e de arroz, com seu ar rústico,<br />
emadeirados de novo, no aspecto simples dessa vida rude<br />
do trabalho nos campos.<br />
Ao lado esquerdo há uma vasta eira de sólida<br />
argamassa de cimento romano, mandada fazer pelo
298 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
proprietário desses terrenos campestres e férteis, na<br />
qual se põem a secar, se debulham e limpam os cereais,<br />
pelo tempo das eiras, no outono, e onde os pequenos<br />
lavradores daqueles arredores brincam o Tempo-será, de<br />
cabeça nua ao fresco dos luares serenos que espalham<br />
grandes silêncios soturnos e misteriosos nas brancas<br />
estradas dos sítios.<br />
Quem anda por ali, nas estações primaveris, goza<br />
do panorama ridente da vila, refrescado de auras leves<br />
e puras, que vêm do mar; da resina que exalam as árvores<br />
à noite, salubrizando a atmosfera e dando às verdejantes<br />
campinas a frescura e a nitidez de uma gouache<br />
encantadora.<br />
E, quem for artista, e quiser percorrer ao longo da<br />
costa, até a uma gruta de pedras brancas, que ali há,<br />
formando um vulto agachado, ou ao longo da paisagem<br />
toda, nos descampados; ou ao comprido dos atalhos<br />
marginados de ervas agrestes e tufos de espinheiros<br />
abrindo em flor, ou ao direito do chão claro, arenoso e<br />
úmido das praias, há de sentir as mais pitorescas e<br />
vivas comoções da Natureza.<br />
De manhã, o gado que desce os vales, lento e<br />
dócil, aspirando a temperatura azotada, seguido pelo<br />
tropeiro que canta alegre no seu cavalo; os leiteiros,<br />
que vêm de longe, que passam para a cidade com o leite<br />
dentro de latas bojudas colocadas em paus que eles<br />
atravessam no ombro direito; as graciosas raparigas da<br />
roça, que levam a apascentar o rebanho das cabras<br />
monteses que saltam barrancos e carcavões, alígeras,<br />
lépidas, com os seus pequenos chifres pontudos, a<br />
Mefistófeles; os carros de boi, que chiam devagar,<br />
morosamente, na poesia do seu campestre ritmo<br />
simpático, atulhados de lenha e de cana rosa e guiados<br />
pelo campônio que vai na frente, munido de varapau,<br />
rosto grave e sóbrio, governando os benignos animais<br />
com a velha técnica arrastada e tremida na aspereza da<br />
voz – abençoada técnica que já vem de lá dos seus
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 299<br />
antepassados e que os seus queridos filhos e netos,<br />
depois, mais tarde, quando ele fechar os olhos, terão de<br />
a receber também, intacta, sempre a mesma, saturada<br />
do íntimo perfume intenso do passado, como uma<br />
herança eterna.<br />
À tarde, o gado que volta de abeberar-se, de arejar<br />
no campo, ao suave ocaso do dia, quando tintas multicores<br />
se esbatem no fundo dos espaços côncavos; os leiteiros<br />
que voltam com a féria arranjada, pitando, ou de cigarro<br />
atrás da orelha, assobiando meigas cantigas que<br />
aprenderam na infância e que se fundem à melancolia,<br />
à dolência da loira luz que morre – quando, no cimo da<br />
encosta, após a última badalada saudosa do Angelus,<br />
apagam-se os esboços e os contornos dos horizontes,<br />
caindo então sobre a terra a neblina cinzenta do<br />
crepúsculo...
300 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ASTRO FRIO<br />
Por entre celas místicas, silenciosas, lá te foste<br />
emudecer, para sempre, ó harmonioso e célebre pássaro<br />
do canto, nos pesados claustros.<br />
Cor de rosa e de ouro na iluminada sala dos<br />
teatros, trinavas para o alto inefavelmente, e, agora,<br />
não sei por que tormentosa paixão que te desolou um<br />
dia, ficaste infinitamente reclusa, sob os fuscos tetos<br />
de um convento, como uma rara rosa opulenta numa<br />
estufa triste, fugindo ao sol dos prados.<br />
Fria e muda, estarás, talvez, a estas horas,<br />
ajoelhada na capela de um Cristo glacial de marfim<br />
sagrado – branca, mais glacial e de mais branco marfim<br />
do que esse Cristo, com as níveas mãos de cera e a face<br />
também de cera macerada pelos jejuns e pelos cilícios,<br />
dentro de sombrias vestes talares.<br />
E, assim muda e assim fria, perpassarás como a<br />
sombra de um vivo afeto ou de um profundo sentimento<br />
artístico, ao frouxo clarão de âmbar das lâmpadas<br />
lavoradas.<br />
O teu alado perfil, as tuas linhas suaves, serão,<br />
no religioso crepúsculo da capela, como que a recordação<br />
do aroma, da luz, do som que tu para a Arte foste.<br />
Nos olhos, apenas uma centelha, uma leve faísca<br />
evidenciará o passado esplendor, o encanto que eles<br />
tiveram, quando amaram, cá fora no mundo, com as<br />
violências do desejo, com os ímpetos frenéticos,<br />
vertiginosos da carne.<br />
E os corações que te adoraram, que te ouviram<br />
outrora os incomparáveis gorjeios da garganta, que te<br />
sentiram a carnação formosa palpitando sob a vitória<br />
dos aplausos, ficarão saudosos e perplexos, ao ver-te<br />
agora assim para sempre enclausurada, para sempre<br />
gelada aos fulgores e sensações do mundo, mergulhada,<br />
enfim, na necrópole de um convento, como um astro<br />
através de frígidas e espessas camadas de neve...
BÊBADO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 301<br />
Torvo, trêmulo e triste na noite, esse bêbado que<br />
eu via constantemente à porta dos cafés e dos teatros,<br />
parara em frente do cais deserto, na alta, profunda hora<br />
solitária.<br />
Espadaúdo, de grande estatura, ombros fortes,<br />
como um cossaco, costumava sempre bater a cidade em<br />
marchas vertiginosas, na andadura bamba dos ébrios,<br />
indo pernoitar depois ali, perto das vagas, amigas eternas<br />
da sua nevrose.<br />
Um luar baço, enevoado, de quando em quando<br />
brilhava, abria, rasgando as nuvens, num clarão que<br />
iluminava amplas faixas de céu de um tom esverdeado,<br />
como folhagens tenras e frescas lavadas pela chuva.<br />
O Mar tinha uma estranha solenidade, imóvel nas<br />
suas águas, com uma larga refulgência metálica sobre<br />
o dorso.<br />
Da paz branca e luminosa da lua caía, na vastidão<br />
infinita das ondas, um silêncio impenetrável.<br />
E tudo, em torno, naquela imensidade de céu e<br />
mar, era a mudez, a solidão da lua...<br />
Junto ao cais, olhando as vagas repousadas, a<br />
taciturna figura do bêbado destacava em silhouette<br />
sombria.<br />
E ele gesticulava e falava, movia os braços,<br />
proferia palavras ásperas e confusas, como os<br />
tartamudos.<br />
Eu via-lhe as mãos, todo o corpo invadido por um<br />
convulsivo tremor, que não era, decerto, a desoladora e<br />
enregelada doença da senilidade.<br />
O seu aspecto, ao mesmo tempo piedoso e feroz,<br />
traduzia a expressão terrível que deixa o bronze<br />
inflamado da Dor calcinando naturezas nervosas e<br />
violentas, Trôpego, espectral, fazia pensar, pela<br />
corpulência, na massa formidanda de um desses ursos
302 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
melancólicos, caminhando aos boléus, como que numa<br />
bruma de pesadelo...<br />
Os seus grandes olhos d’árabe, muito perturbados<br />
pelo álcool, tinham o brilho amargo de um rio de águas<br />
turvas e tristes.<br />
Era talvez um desses seres nebulosos, gerados do<br />
sangue aventureiro e venenoso de uma bailarina e de<br />
um judeu, sem episódios pitorescos, frescos e picantes<br />
de alegria e saúde.<br />
Um desses seres tenebrosos, quase sinistros, a<br />
quem faltou um pouco de graça, um pouco de ironia e<br />
riso para florir e iluminar a vida.<br />
Alma sem humor – essa força fina e fria, radiante,<br />
que deu a Henri Heine tanta majestade.<br />
No entanto, quanto mais eu observava esse<br />
fascinado alcoólico, pasmando instintivamente, na<br />
confusão neblinosa da embriaguez, para as ondas<br />
adormecidas na noite, mais meditava e sentia as<br />
profundas visões de sonâmbulo que lhe vagavam no<br />
cérebro, as saudades e as nostalgias.<br />
Porque o álcool, pondo uma névoa no entendimento,<br />
apaga, desfaz a ação presente das idéias e fá-las recuar<br />
ao passado, levantando e fazendo viver, trazendo à flor<br />
do espírito, indecisamente, embora, as perspectivas, as<br />
impressões e sensações do passado.<br />
Nos límpidos espaços nem um movimento, um<br />
frêmito leve de aragem perturbava a harmoniosa<br />
tranqüilidade da noite clara, por entre os finos<br />
rendilhamentos prateados das estrelas.<br />
Mais amplo, mais vasto e sereno ainda, o silêncio<br />
descia, pesava na natureza, sobre os telhados, que<br />
pareciam, agrupados, aglomerados nos infindáveis<br />
renques de casas, enormes dorsos escuros de<br />
montanhas, de elefantes e dromedários.<br />
Sobrepujando, avassalando tudo, com expressões<br />
misteriosas da Idade Média, as elevadas torres das<br />
igrejas, como vigias colossais de granito, eretas para o
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 303<br />
firmamento na luminosa sonoridade do luar, tinham a<br />
nitidez dos desenhos.<br />
E a luz do astro noturno e branco, da Verônica do<br />
Azul, fria, congelada de mágoas, envolvia a face<br />
atormentada do bêbado como num longo sudário de<br />
piedades eternas...
304 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
SABOR<br />
Os ingleses, fidalgo entendimento de artista, para<br />
significar – o melhor – dizem na sua nobre língua de<br />
prata: the best.<br />
O que os ingleses chamam the best é finamente o<br />
que eu quero exprimir com a palavra – sabor – que, para<br />
a requintada espiritualidade, marca alto na Arte –<br />
filtrada, purificada pela exigência, pelo excentrismo da<br />
Arte.<br />
Após a delícia frugal de um lunch de frutas<br />
silvestres e claros vinhos, numa colina engrinaldada de<br />
rosas, quando o sol sob nuvens aparece e desaparece,<br />
numa confortante meia-sombra de luz, não é apenas o<br />
gozo das frutas e dos vinhos que te fica saboreando no<br />
paladar.<br />
O asseado aspecto do dia levemente frio,<br />
agulhante nas carnes, o ouro novo do sol em cima, a cor<br />
bizarra, correta do verde luxuoso, o gelo fresco e<br />
cristalino nas taças sonoras espumantes de líquidos<br />
vaporosos, e o viçoso encanto de formosas mulheres,<br />
rindo em bocas de aurora e dentes de neve – toda essa<br />
impressionante, alegre palheta de pintura à água, aflora<br />
num esplendor de gozo a que tu bem podes chamar o<br />
raro sabor das cousas.<br />
A clarividência na atitude dos perfis que a essa<br />
hora pintalgam a paisagem de colorido variado, o aroma<br />
que de tudo vem e que de tudo sobe para a serenidade<br />
azul, o ritmo simpático do momento, a lassitude branda<br />
de nervos, que engolfa as idéias numa larga felicidade<br />
amável – como em amplos coxins de arminho – todas<br />
essas preciosas maneiras e pitorescos estilos que dão<br />
linha, grande tom ao viver, fazem, enfim, que de tudo se<br />
experimente um radiante, aguçado sabor.<br />
Não basta, pois, o paladar. Esse, apenas,<br />
materializa. Não é, portanto, suficiente, que se sinta o<br />
sabor na boca, que se o examine, que se o depure, que
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 305<br />
se o saiba distinguir com acuidade, com atilamento. É<br />
necessário, indispensável que, por um natural<br />
desenvolvimento estético, se intelectualize o sabor, se<br />
perceba que ele se manifesta na abstração do<br />
pensamento.<br />
Para mim, as palavras, como têm colorido e som,<br />
têm, do mesmo modo, sabor.<br />
O cinzelador mental, que lavora períodos, faceta,<br />
diamantiza a frase; a mão orgulhosa e polida que, na<br />
escrita, burila astros, fidalgo entendimento de artista,<br />
deve ter um fino deleite, um sabor educado, quando, na<br />
riqueza da concepção e da Forma, a palavra brota, floresce<br />
da origem mais virginal e resplende, canta, sonoriza em<br />
cristais a prosa.<br />
Para a profundidade, a singularidade de todo o<br />
complexo da Natureza, o artista que sente claro entende<br />
claro, pensa claro, saboreia claro.
306 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
LENDA DOS CAMPOS<br />
Por uma doirada tarde azul, em que os rios, após<br />
as chuvas torrenciais, sonorizavam cristalinamente os<br />
bosques, os camponeses de uma vila risonha, numa<br />
unção bíblica, conduziam ao tranqüilo cemitério florido<br />
o loiro cadáver branco de uma virgem noiva, morta de<br />
amor, tão bela e tão nova, emudecida no féretro, como<br />
se tivesse acabado de nascer da rosada luz da manhã.<br />
Infantil ainda, viera outrora da Alemanha, através<br />
de castelos feudais, de montanhas alpestres, de árvores<br />
velhas e enevoadas...<br />
E, então, desde o dia da sua morte, uma lenda<br />
espalhou-se, como a dos Niebelungen, em todas aquelas<br />
cabeças ingênuas, rudes e humildes.<br />
Ela era a deusa fantástica, a visão encantada dos<br />
antigos palácios medievais de vidraçaria gótica, onde as<br />
rainhas mortas apareciam, brancas ao luar, à flor dos<br />
lagos e rios, suspirando toda a tragédia histérica dos<br />
convulsivos amores passados, que os ventos de hoje como<br />
que ainda melancolicamente repetem...<br />
Era a monja das ameias dos castelos feudais,<br />
graves e solenes, cheios de névoas alemãs, atravessados<br />
de fantasmas que fazem mover alvas e longas clâmides<br />
de linho no ar neutralizado da meia-noite...<br />
E, por altas horas, em certos dias, ao luar, a<br />
imaginação apreensiva dos homens e mulheres do campo,<br />
via uma virgem loira, de ignoto aspecto de ondina mágica,<br />
surgir do solo entre exalações fosforescentes, o coração<br />
traspassado de flechas inflamadas, arrastando<br />
soturnamente pela areia luminosa uma vasta túnica<br />
branca, os cabelos de sol soltos para trás, candidamente<br />
pálida, cantando a canção sonâmbula do túmulo e<br />
desfolhando grandes grinaldas de flores de laranjeira,<br />
cujas frescas e níveas pétalas cheirosas redemoinhavam,<br />
agitadas por um vento frio – pelo vento gelado e soluçante<br />
da Morte...
NOCTAMBULISMO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 307<br />
Enquanto, fora, na noite, gralha, grasna e grulha<br />
o Carnaval em fúria, vai, Mergulhador, rindo para o<br />
espaço a tua aguda risada acerba.<br />
Os luminosos lírios das estrelas desabrocharam<br />
já nos faustosos brocados do Firmamento, como que para<br />
ritmar em claras árias de luz a tua torva risada triste.<br />
Apavora-te o Sol flamejante, eterno, na altura<br />
infinita. Não queres a aflitiva evidência do sol, que tudo<br />
põe num relevo brusco, que pinta as chagas de vermelho,<br />
faz sangrar as dores, perpetuar em bronze o remorso.<br />
Amas a sombra, que esbate os aspectos claros,<br />
esfuminha os longes, turva e quebra a linha dos corpos.<br />
Queres a noite, longas trevas amargas que<br />
confundam máscaras hediondas de Gwimplaines com<br />
faces louras de deusas.<br />
Noite igualmente deliciosa e dilacerante que te<br />
anule para os sentimentos humanos, que te disperse no<br />
vácuo, dissolva imortalmente o espírito num som, num<br />
aroma, num brilho.<br />
Noite, enfim, que seja o vasto manto sem astros<br />
que tu arrastes pelo mundo a fora, perdido no movimento<br />
supremo da Natureza, como um misterioso braço de rio<br />
que, através fundas selvas escuras, vai, por estranhas<br />
regiões, sombriamente morrer no Mar...<br />
A noite tem, para a tua delicada sensibilidade, o<br />
majestoso poder de apagar-te dos olhos esses sinistros<br />
animais terríveis que babujam ao sol e desfilam, diante<br />
de ti, na truculenta marcha cerrada de pesadas massas<br />
formidandas.<br />
Enquanto, pois, lá fora, o Carnaval em fúria gralha,<br />
grasna e grulha, num repique macabro de guizos<br />
jogralescos, uivando uma língua convulsiva e exótica de<br />
duendes e noctâmbulas bruxas walpurgianas, prendete,<br />
ó deus do Tédio, Mergulhador dos Mediterrâneos da<br />
Arte! às imensas asas da fria águia negra das amplidões<br />
– a Noite – e ri, ri! sob as claras árias de luz das Estrelas,<br />
a tua venenosa risada em fel e em sangue...
308 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
NAVIOS<br />
Praia clara, em faixa espelhada ao sol, de fina<br />
areia úmida e miúda de cômoro.<br />
Brancuras de luz da manhã prateiam as águas<br />
quietas, e, à tarde, coloridos vivos de ocaso as matizam<br />
de tintas rútilas, fiavas, como uma palheta de íris.<br />
Navios balanceados num ritmo leve flutuam nas<br />
vítreas ondas virgens, com o inefável aspecto das longas<br />
viagens, dos climas consoladores e meigos, sob a<br />
candente chama dos trópicos ou sob a fulguração das<br />
neves do Pólo.<br />
Alguns deles, na alegre perspectiva marinha,<br />
rizam matinalmente as velas e partem – mares a fora –<br />
visões aquáticas de panos, mastros e vergas, sobre o<br />
líquido trilho esmaltado das espumas, em busca, longe,<br />
dos ignotos destinos...<br />
À tarde, no poente vermelho, flamante, dum rubro<br />
clarão de incêndio, os navios ganham suntuosas<br />
decorações sobre as vagas.<br />
O brilho sangrento do ocaso, reverberando na<br />
água, dá-lhes uma refulgência de fornalha acesa, de<br />
bronze inflamado, dentre cintilações de aço polido.<br />
Os navios como que vivem, se espiritualizam nessa<br />
auréola, nesse esplendor feérico de sangue luminoso<br />
que o ocaso derrama.<br />
E mais decorativos são esses aspectos, mais novos<br />
e fantasiosos efeitos recebem as afinadas mastreações<br />
dos navios, donde parece subir para o alto uma fluida e<br />
fina harmonia, quando, após o esmaecer da luz, a Via-<br />
Láctea resplende como um solto colar de diamantes e a<br />
Lua surge opaca, embaciada, num tom de marfim velho.
EMOÇÃO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 309<br />
Não sei que estranho frisson nervoso percorre-me<br />
às vezes a espinha, me eletriza e sensibiliza todo como<br />
se o meu corpo fosse um harmonioso teclado de cristal<br />
vibrando as sonoridades mais delicadas.<br />
Um ombro aveludado e trescalante a frescuras<br />
aromáticas, que pelo meu ombro levemente roce na rua,<br />
num encontro fortuito, produz-me um estado tal de<br />
volúpia, dá-me tão longa, larga volúpia, que me vejo por<br />
entre incensos, festivamente paramentado como o<br />
sacerdote que ergue o cálix acima da cabeça, ao alto do<br />
Altar-Mor dos templos doirados, sentindo que uma<br />
aluvião de almas crentes o adora de joelhos.<br />
A mão fina, ideal, calçada em luva clara, de<br />
formosa mulher que por entre a multidão aparece e<br />
desaparece, como uma estrela por entre nuvens, bem<br />
vezes, também, me alvoroça e agita o sangue.<br />
E sigo, radiante, triunfal, rei, essa nobre mão<br />
enluvada, à qual eu em vão pediria o ouro, a riqueza<br />
afetuosa de um gesto carinhoso – a essa delicada mão<br />
avara e milionária que, para mais avara tornar-se ainda,<br />
se fora esconder na maciez elegante da luva fresca,<br />
vivendo dentro dela afagada, confortada, palpitando talvez<br />
por encontrar a mão feliz que vibrará de amor ao seu<br />
contacto.<br />
Então, assim, a emoção que desperta todos os<br />
meus sentidos, no curioso giro que faço com o<br />
pensamento acompanhando a feminina mão fidalga, não<br />
é uma emoção de indiferença, por certo, mas uma<br />
emoção de despeito.<br />
Estranhamente, como uma força hercúlea que me<br />
prendesse à terra, chamando-me à iniludível Realidade,<br />
desço das inauditas, siderais regiões a que subira.<br />
Vejo-me logo, então, profundamente vencido no<br />
tempo, e, no meu rosto, à maneira dos fundos sulcos<br />
que as charruas abrem nos campos, imprevistas rugas
310 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
se evidenciam, como se eu tivesse de repente<br />
envelhecido um ano.<br />
Da Dor, bem poucas vezes sinto só o que ela tem<br />
de selvagem, de rugidora.<br />
Emoções delicadas, sutis, que me doem também<br />
fundo na alma porque me melancolizam, deixam-me um<br />
ritmo de música, uma afinada dolência de suavíssimos<br />
violinos, e que por fim delicia.<br />
É como se alguém vibrasse de brando as cordas<br />
dum instrumento e ele, trêmula, amorosamente, ficasse<br />
a gemer no mais meigo, no mais doce dos dedilhados<br />
acordes...<br />
A emoção é que me faz amar os eucaliptos, altos,<br />
afilados, contorcidos convulsamente, como a dor dum<br />
gigante.<br />
É ainda essa mesma emoção que me faz perceber<br />
e ouvir o misterioso som dos metais: o claro riso<br />
diamantino da Prata e o trovejante rumor do Bronze.<br />
O que o mundo chama fatalidades, negras e<br />
assoberbantes catástrofes, como um incêndio, não posso<br />
bem com nitidez dizer que emoção me causa.<br />
Realmente, num incêndio, todas aquelas chamas<br />
são maravilhosas!<br />
Não sei que raro, que estupendo Rembrandt veio<br />
de surpresa encharcar de um rubro violento,<br />
sanguinolento e flamejante, todo aquele belo edifício que,<br />
há pouco, era um rendilhado palácio ou uma igreja gótica,<br />
um Louvre em pompas ou um faiscante chalet d’esmalte.<br />
E não sei até como todas essas chamas, formando<br />
miríades de fantasmagorias, ilusionismos, entre os quais<br />
às vezes perpassa a deliciosa cor azulada, aveludada,<br />
de poncheiras colossais, não devoraram logo tudo a um<br />
tempo!<br />
Têm sido, talvez, benévolas, piedosas demais as<br />
chamas, porque há já bastantes horas que o fogo alastrou,<br />
minou, rastejou como um verme de incêndio, pelos<br />
alicerces do edifício e só agora é que os travejamentos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 311<br />
desabam, as paredes caem, como se fossem de cera,<br />
milhares de fogozinhos correm eletricamente como<br />
microscópicos insetos luminosos pelo luxuoso papel das<br />
paredes, enquanto todo o resto da madeira estala e<br />
range, num craque-craque seco, caindo desmantelada<br />
como os mastros e vergas de um navio que se afunda na<br />
fúria dos oceanos, sob o rijo estourar das tormentas.<br />
Alucinamento, nevropatia, embora, eu não sei<br />
bem, na verdade, se um incêndio me apavora ou me<br />
delicia – o que sei é que intimamente me sobreexcita.<br />
Também o Mar, a emoção que experimento ao vêlo,<br />
verde, amplo, espelhado, dá-me uma saúde virgem,<br />
uma força virgem.<br />
Sinto o gozo repousante de sondá-lo, de descer à<br />
imensa e profunda necrópole gelada onde uma<br />
florescência de algas vegeta; e, ao mesmo tempo, diante<br />
do Mar, sinto o peito alanceado da incomparável saudade<br />
de países vistos através do caleidoscópio da imaginação,<br />
dos sonhos fantasiosos – países lindos e felizes, floridos<br />
trechos de terra, ilhas tranqüilas, províncias loiras,<br />
simples, de caça e pesca, onde a sombra amorosa da paz<br />
benfazeja fosse como uma sombra doce, protetora, de<br />
árvore velha, e onde, enfim, a Lua tudo imaculasse numa<br />
frescura salutar de pão alvo...<br />
A emoção, a sensibilidade em mim, quase sempre<br />
desperta uma meditativa amargura, uma grande e<br />
mística dolência do passado, que enevoa tudo – como o<br />
indefinido mistério perfumado dessas soberbas mulheres<br />
de Versailles, carnações fidalgas e perfeitas que<br />
estremeceram de luxúria e apaixonadamente amaram<br />
pelos velhos parques abandonados, rojando sobre a areia<br />
sonora das alamedas a cauda astral das vestes de<br />
Deusas.
312 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
OS CÂNTICOS<br />
No templo branco, que os mármores augustos e<br />
as cinzeluras douradas esmaltam e solenizam com<br />
resplandecência, dentre a profusão suntuosa das luzes,<br />
suavíssimas vozes cantam.<br />
Coros edênicos inefavelmente desprendem-se de<br />
gargantas límpidas, em finas pratas de som, que parecem<br />
dar ainda mais brancura e sonoridade à vastidão do<br />
templo sonoro.<br />
E as vozes sobem claras, cantantes, luminosas<br />
como astros.<br />
Cristos aristocráticos de marfim lavrado, como<br />
fidalgos e desfalecidos príncipes medievos apaixonados,<br />
emudecem diante dos Cânticos, da grande exaltação de<br />
amor que se desprende das vozes em fios sutilíssimos<br />
de voluptuosa harmonia.<br />
O seu sangue delicado, ricamente trabalhado em<br />
rubim, mais vivo, mais luminoso e vermelho fulge ao<br />
clarão das velas.<br />
Dir-se-ia que esse rubim de sangue palpita, aceso<br />
mais intensamente no colorido rubro pela luxúria dos<br />
Cânticos, que despertam, ciliciando, todas as virgindades<br />
da Carne.<br />
Fortes, violentas rajadas de sons perpassam<br />
convulsamente nos violoncelos, enquanto que as vozes<br />
se elevam, sobem, num veemente desejo, quase impuras,<br />
maculadas quase, numa intenção de nudez.<br />
E, através da volúpia das sedas e damascos<br />
pesados que ornamentam o templo, das luzes<br />
adormentadoras, dos perturbadores incensos, da<br />
opulência festiva dos paramentos dos altares e dos<br />
sacerdotes, das egrégias músicas sacras, sente-se<br />
impressionativamente pairar em tudo a volúpia maior –<br />
a volúpia branca dos Cânticos.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 313<br />
FULGORES DA NOITE<br />
Desce um desses crepúsculos violáceos em que<br />
parece errar no espaço a enevoada música das<br />
casuarinas...<br />
Envolvem gradativamente a imensidade os veludos<br />
negros da Noite.<br />
Num céu frio d’inverno, que umas mais frias<br />
estrelas esmaltam pouco a pouco, começa<br />
prodigiosamente a surgir a Lua, alta e misteriosa,<br />
lembrando baladas.<br />
Dias d’ouro, ricos e raros, resplandeceram já com<br />
o Sol na luxúria verde da folhagem.<br />
E agora, o luar, que veste as noites de noivas,<br />
desdobra suntuosamente as suas tules delicadas e os<br />
seus luxuosos cetins brancos, imaculados.<br />
Fecundam-se os grandes campos, quietos na nívea<br />
luz da Lua, no clarão que dela jorra, dormente e doce.<br />
E os animais, que repousavam na amplidão dos<br />
viçosos gramados, gozam tranqüilos um sono brando,<br />
acariciador, como que produzido pela amorfinada<br />
claridade da Lua límpida e profunda.<br />
As águas, as frescas águas das fontes e rios, as<br />
largas águas dos mares serenamente adormecem, num<br />
esplendor cristalino.<br />
Apenas uma surdina leve que sai delas, como um<br />
leve ressonar, lhes denuncia, no silêncio claro da noite,<br />
a natureza sonora.<br />
E enquanto a rumorosa paisagem, todos os<br />
frementes impulsos do dia calam-se, em redor, na noite,<br />
a lua e as estrelas amorosas acordam e brilham, num<br />
recolhimento de Santuário, todas de branco, como virgens<br />
para a primeira comunhão.
314 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
PSICOLOGIA DO FEIO<br />
Peters, esse humorismo ao mesmo tempo<br />
alucinante e alado; o pessimismo paradoxal de Alphonse<br />
Karr e Gustavo Droz, tão semelhantes nas linhas gerais;<br />
todo aquele pungente, doloroso, estranho Livro de Lázaro,<br />
de Henri Heine, tudo isso, fundido numa cristalização<br />
de lágrimas e sangue, como a flamejante e<br />
espiritualizada epopéia do Amor, exprimiria bem, talvez,<br />
a noite da tua psicologia negra, ó soturno, ó triste, ó<br />
desolado Feio!<br />
Tu vens exata e diretamente do Darwin, da forma<br />
ancestral comum dos seres organizados: eu te vejo bem<br />
as saliências cranianas do Orango, o gesto lascivo, o ar<br />
animal e rapace do símio.<br />
As tuas feições, duras, secas, quase imobilizadas<br />
em pedra, puxadas, arrepanhadas num momo, como a<br />
confluência interior dos desesperos e das torturas,<br />
abrem-se rebeladamente num sarcasmo, ao qual às vezes<br />
uma gesticulação epiléptica, nevrótica, clownesca, faz<br />
impetuosa brotar a gargalhada das turbas, enquanto a<br />
tua voz coaxa e grasna, numa deprecação de morte, com<br />
ásperas e surdas variabilidades ventríloquas de tons.<br />
O teu horror não é deplorável só, não causa só<br />
piedade – mas é um obsceno horror – e as abas compridas<br />
e esfrangalhadas duma veste que te fica em rugas, em<br />
pregas encolhidas de largura nesse teu corpo esquelético,<br />
e que parece a mortalha dalgum hirto cadáver que<br />
houvessem desenterrado – as esquisitas abas dessa<br />
veste, sob o chicote elétrico do vento, alçam-se em vôo,<br />
deblateram por trás de ti, ansiosas, aflitas, puxando-te,<br />
num arrebatamento histérico, como se fossem fúrias<br />
tremendas que te quisessem arrojar pelos ares, num<br />
delírio de darem-te a morte.<br />
Outras vezes, porém, lembram as asas de um<br />
grande morcego monstro, imensas e membranosas,<br />
causando asco nauseante e enchendo tudo duma
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 315<br />
sinistra treva lugubremente cortada de arrepios e<br />
esvoaçamentos medonhos.<br />
Árvores frondentes e undiflavadas de sol, onde os<br />
pássaros cantem; rios gorgolejantes de cristais sonoros;<br />
vivos e iluminados vergéis em flor; campos verdes,<br />
afogados na verdura tenra, como estofos de veludos e<br />
sedas rutilosas e orientais, não são já para a tua alegria,<br />
recuada agora no fundo das nostálgicas neblinas da<br />
torturante desilusão de seres Feio.<br />
Os perpétuos gelos do Volga e do Neva para sempre<br />
rolam, em densas camadas, sobre o teu coração; e, aí,<br />
tudo o que dele se aproxima, outros corações que te<br />
buscam, outros afetos que te procuram, perdem todo o<br />
calor, resfriam logo, inteiramente ficam gelados já diante<br />
da tangibilidade gwimplainesca da tua fealdade.<br />
Só eu, numa suprema hora de spleen, de<br />
esgotamento de forças psíquicas, em que me falte<br />
extensamente o humor – essa radiosa bondade hilariante<br />
do Espírito – te idolatro e procuro, ó lascivo Feio! que na<br />
luxúria pantagruélica dos vermes devoras na treva os<br />
sonhos – porque não os podes alimentar, nem ver florir,<br />
nem crescer! sem que a diabólica verdade flagrante<br />
esteja a rir do teu amor e a pintar picarescamente<br />
caricaturas na quase apagada perspectiva da tua<br />
existência.<br />
Só as artísticas sensibilidades nervosas, vibráteis,<br />
quase feminis podem amar-te; enquanto que as<br />
individualidades ocas, estéreis, áridas, duras, sem<br />
vibração sensacional, sem cor, sem luz, sem som e sem<br />
aroma, fugirão para sempre de ti como à repelência<br />
asquerosa de um putrefato.<br />
Entretanto, eu gosto de ti, ó Feio! porque és a<br />
escalpelante ironia da Formosura, a sombra da aurora<br />
da Carne, o luto da matéria doirada ao sol, a cal<br />
fulgurante da sátira sobre a ostentosa podridão da beleza<br />
pintada. Gosto de ti porque negas a infalível, a absoluta<br />
correção das Formas perfeitas e consagradas, conquanto
316 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
tenhas também, na tua hediondez, toda a correção<br />
perfeita – como o sapo, coaxando cá embaixo na lodosa<br />
argila, tem, no entanto, a repelente correção própria de<br />
sapo; – como a estrela, fulgindo, lá, em cima, no precioso<br />
Azul, tem a serena e sidérea correção própria d’estrela.<br />
Por uma espécie apenas de schopenhauerismo é<br />
que eu adoro-te, ó Feio! e quereria bem rolar contigo<br />
nesse Nirvana de dúvida até à suprema aniquilação da<br />
Morte, vendo surgir, como de lagos de quimeras, em<br />
estalagmites de neve, diante de mim, sombrios e álgidos<br />
pesadelos de mulheres amadas: pálidas Ofélias,<br />
Margaridas louras, Julietas atormentadas, visões, enfim,<br />
como nas tragédias de Macbeth ou a nevoenta Visão<br />
germânica do Graal.<br />
Numa seda negra d’Arte, vestidos de negro, à<br />
semelhança desse trágico Hamlet da Dinamarca, iríamos<br />
os dois, através dos largos e profundos cemitérios<br />
silenciosos, consultar as rígidas caveiras das virginais<br />
Ilusões que se foram, e que, à nossa aproximação,<br />
sorririam, talvez, felizes, como se lhes levássemos a<br />
palpitante matéria animada dos nossos corpos para cobrir,<br />
fazer viver as suas galvanizadas carcaças frias.<br />
Mas ah! eu quisera bem, por vezes, também, ter o<br />
rude materialismo analítico de Büchner, que,<br />
certamente, não sentiria por ti, ó Feio! esta extravagante,<br />
excêntrica, singular influência mórbida que nas funções<br />
de meu cérebro vem, contudo, como doença amarga, um<br />
tédio amarelo e pesado de chim que o ópio estuporou e<br />
enervou.<br />
Não houvesse dentro em mim, através das Ilíadas<br />
do Amor, das Bacanais do Sonho, um sentimento<br />
melancólico ao qual o pensamento dá uma expressão de<br />
enfermidade psicológica, e eu não arrastaria a tua<br />
sombra, não andaria preso ao teu esqueleto, ó soturno,<br />
ó triste, ó desolado Feio!
VITALIZAÇÃO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 317<br />
Há uma irradiação larga e opulentíssima nos ares.<br />
O esbraseamento do sol do fim da tarde dá fortes<br />
verberações quentes à paisagem, que resplandece, e de<br />
cuja vegetação estuante de calor parecem rebentar as<br />
raízes túmidas de seiva como veias imensas latejando<br />
de sangue oxigenado e vivo.<br />
Nessa elaboração enorme da Terra que procria e<br />
fecunda, na gestação desses mundos que, como astros,<br />
gravitam talvez em cada grão de areia, pululando e<br />
vibrando, a Natureza é como uma grande força animada<br />
e palpitante dando entendimento e sentimento à Matéria<br />
e fazendo estacar a vida no profundo ocaso da Morte.<br />
E daí a pouco, a Lua, através das matas do vale,<br />
anelante e álgida, surgirá, rasgará d’alto as nuvens no<br />
céu, acordando os aromas adormecidos, cristalizada,<br />
vagarosa e tristemente, como uma dor que gelou...
318 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
GLORIA IN EXCELSIS<br />
Num recolhimento sugestivo, como se o meu<br />
espírito estivesse longinquamente a orar nalguma velha<br />
abadia, penetrei na catedral em festa.<br />
Não sei quê de nevoento, vago, dolente e nostálgico<br />
me invadira de repente e por tal forma que eu fui como<br />
que sonambulamente à solenidade.<br />
Todo o templo, ornamentado, resplandecia, numa<br />
imponência, numa augusta suntuosidade, a que o grande<br />
esplendor das luzes dava majestades romanas.<br />
A onda humana, compacta, densa, mumurejava,<br />
numa compunção.<br />
Alvuras de incenso envolviam como que em brumas<br />
imaculadas, em flocos matinais de neblinas, o vasto<br />
recinto da igreja.<br />
Lustres imensos pendiam pomposamente da<br />
abóbada branca, numa infinidade de pingentes que<br />
tiniam e cintilavam como polidas, facetadas lâminas<br />
metálicas, num brilho molhado.<br />
Do coro, para o alto, os instrumentos de corda<br />
choravam, salmodiavam, num crescendo de notas,<br />
através dos vivos metais sonoros.<br />
Eram excelsos, eram egrégios aqueles sons sacros,<br />
religiosos, que subiam para as naves à maneira que os<br />
incensos subiam.<br />
No peito, como numa urna de cristal, o coração<br />
batia-me, pulsava-me, anelante, na ânsia, na vertigem<br />
de vê-la por entre todo aquele confuso e amplo borboletear<br />
de cabeças.<br />
E, quando houve um alegre e diamantino tilintar<br />
de campas e o sacerdote elevou no cálix o Vinho Sagrado,<br />
o coração, como estranho pássaro de sol, fugiu-me do<br />
peito, num alvoroço, arrebatado, maravilhado na grande<br />
luz do templo, em busca dos olhos dela, que de repente<br />
me fitaram, longos, negros e veludosos, quando, por entre<br />
níveas névoas d’incenso, o Gloria in Excelsis, exalçando
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 319<br />
os Evangelhos, triunfava nas vozes e levantava um festivo<br />
rumor no templo.<br />
E foi, para o meu coração lancinado de amor, como<br />
se Ela, naquele instante, me trouxesse toda essa Glória<br />
luminosa nos olhos...
320 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
PÁGINA FLAGRANTE<br />
Inflamados de sol, como pássaros no esplendor da<br />
aurora, partiam ambos a digressões singulares, por<br />
manhãs alegres, da alegria impulsiva e bizarra dos Halalis<br />
de caça.<br />
Uma virginal exalação de leite, um aroma finíssimo<br />
de lilás e rosa errava pelos prados sãos e férteis, na<br />
grande luz alastrante e germinadora da primavera.<br />
Na franqueza heróica da força que a expansão<br />
vigorescente da Natureza lhes infiltrava, experimentavam<br />
ambos uma sensação aguda de<br />
espiritualidade, um eletrismo de idéias, que os agitava,<br />
dava-lhes intensa vibratilidade, uma embriaguez<br />
fascinante de acre aticismo mental, por entre os<br />
radiantes orientalismos da luz.<br />
E eles partiam nervosamente, alvoroçados, finos,<br />
fulgurantes, como sob a impressão da alta e<br />
convulsionante música wagneriana.<br />
De uma abundante e luxuriosa vegetação psíquica,<br />
enclausurados na Arte como numa cela, lá iam sempre<br />
nessas continuadas batidas, nesses verdadeiros assaltos<br />
ao Ideal, num fausto de Império Romano, arrebatados<br />
pela grande borboleta iriante, fugidia e fascinadora da<br />
Arte.<br />
Vinham então os livres exames, os amplos golpes<br />
de Crítica, ao fundo e ao largo, através dos turbilhões<br />
luminosos do sol.<br />
Quase feroz, cheio de bárbaros venenos e ao<br />
mesmo tempo untuoso como os inquisidores, um deles<br />
fazia vagamente lembrar a urze das montanhas áridas,<br />
sobre a qual, entretanto, o Azul canta de dia os hinos<br />
claros do sol e à noite a amorosa barcarola da lua e das<br />
estrelas.<br />
O outro recordava também, pela sua exótica<br />
natureza perpetuamente envolta numa bruma de<br />
mistério, um Cristo célebre de Gabriel Marx, corpulento,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 321<br />
viril, de aspecto igualmente aterrador e piedoso, que vi<br />
uma vez numa galeria...<br />
Organizações dúbias, obscuras, de acridão agreste,<br />
que representam, na ordem animal, o que representa,<br />
para as camélias e para as rosas, o cróton.<br />
E aquelas duas almas, intelectualmente<br />
impulsionadas, abriam-se em chamas altas, aos<br />
deslumbramentos da sua estesia.<br />
As idéias fulgiam, cabriolavam, penetravam todo<br />
o arcabouço do assunto, tomavam formas, aspectos<br />
estranhos, macabros; e era tal a intensidade, a<br />
veemência com que brotavam do cérebro, que pareciam<br />
viver, radiar, ter cor, vibrar.<br />
A verve esfuziava, mentalizada pela Análise, pela<br />
Abstração e pela Síntese; sátiras frias, cortantes como<br />
rijos e aguçados cutelos, espetavam capras a carne tenra,<br />
viçosa, próspera, de S. Majestade Imbecil; e, para<br />
supremamente assinalar todas as surpresas e elevação<br />
do Entendimento, uma psicologia rubra, flamante,<br />
sangrava, sangrava em jorro, torrencialmente sangrava.<br />
E eram boutades maravilhosas, a charge leve,<br />
pitoresca, ferretoando, zumbindo sobre os homens<br />
circunspectos, que passavam, o andar solene, ritmado,<br />
em cadência, como na marcha das procissões.<br />
E Ambos riam, riam, numa risada sonora e forte,<br />
como se festins cintilantes, bacanais, triclínios, todas<br />
as vermelhas orgias do Espírito, lhes cantassem<br />
cristalinamente no riso.<br />
De repente, como uma pausa repousadora nesse<br />
crepitante incêndio de verve, penetravam sutilmente,<br />
com delicadezas extremas, nos pensamentos mais<br />
curiosos, mais sugestivos, nos amargos dolorimentos e<br />
pungências latentes da Arte.<br />
Diziam cousas aladas, quase fluidas, que<br />
determinavam a abstração do ser que os animava e floria;<br />
tinham essa percepção, esse entendimento profundo,<br />
tanto luar como sol, que explica, mais ainda do que o
322 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
que se perpetua em flagrância num livro, a poderosa<br />
força criadora, a ductilidade, a emoção e a contensão<br />
nervosa de raras naturezas artísticas.<br />
Refletiam que certo modo de colocar, de pôr as<br />
mãos, de certas mulheres, lhes fazia longamente<br />
considerar, meditar nas monjas...<br />
Pensavam que no mundo há naturezas tão<br />
excêntricas e nebulosas que, pelas condições complexas<br />
em que se encontram na vida, precisariam de uma<br />
filosofia nova, original, para determiná-las. Eram como<br />
que existências eriçadas de abetos alpestres, carnes<br />
que se rasgavam, se despedaçavam...<br />
As rosas pareciam-lhes belezas opulentas,<br />
pomposas, da Inglaterra...<br />
E todo o universo estava agora tão atrozmente<br />
perseguido por tédios mortais, que os homens já<br />
naturalmente falavam em morrer como quem fala em<br />
viajar ou em rir...<br />
Quanto à Arte queriam que a expressão, que a<br />
frase vivesse, brilhasse, sonora e colorida, como um órgão<br />
perfeito. Que tudo o que dissessem ficasse imperecível,<br />
eterno, perpetuado no Espaço e no Tempo, com os sons<br />
que os circundavam, a cor, a luz, o aroma que os atraía.<br />
As palavras deveriam ser, para se eternizarem,<br />
cravadas no ar límpido, como num forte cristal de rocha.<br />
Era a ânsia dos requintes supremos, a exigência<br />
das formas castas, que os fascinava, que os seduzia,<br />
tentava como nudez formosa de mulher virginal. Tudo,<br />
enfim, na Arte, deveria ficar luminoso e harmonioso,<br />
como um cantar d’astros.<br />
E lá caminhavam, inquietos, vertiginosos, no<br />
esplendor matinal, que os alagava e fecundava, como<br />
um prodigioso rio de ouro e diamantes, terras<br />
maravilhosas e produtivas.<br />
Iam à conquista das Origens verdes, das puras<br />
águas brancas da Originalidade, dentre o vibrante
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 323<br />
alarido de cristal dos seus temperamentos austrais,<br />
ardentes e sangrentos.<br />
Como orquestrações largas, sinfonias vivas de<br />
emoção e idéias, rompiam dia a dia nessas batidas<br />
frementes, numa transcendência de princípios e<br />
sentimentalidades – talvez no íntimo dolorosos,<br />
lancinados pelo Miserere das Ilusões elevadas.<br />
E, muitas vezes, já alta madrugada, sob o sereno<br />
e suave adormecer das estrelas alvorais, não era sem<br />
uma derradeira Apóstrofe à soberana Chatice que essas<br />
duas existências chamejantes se separavam, num<br />
grande clarão espiritual de afetos.<br />
Então, um deles, numa aclamação, num gesto<br />
singular e profético, arrojava, além, para os séculos, esta<br />
charge infernal, suprema:<br />
– A divina Estupidez, a onipresente Imbecilidade<br />
ficaria eterna, ao alto, junto às nuvens, sobre uma<br />
estranha Babel de milhões de degraus de bronze, como<br />
num trono colossal, bufando e roncando, a dominar as<br />
imensidades, fantasticamente, onipotentemente<br />
guardada por cem mil esquadrões ferozes, monstruosos<br />
e formidáveis, de hipopótamos e búfalos!...
324 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
TINTAS MARINHAS<br />
Mar manso, pelo fim da tarde.<br />
O ouro fulvo dos horizontes no ocaso a pouco e<br />
pouco esmaece.<br />
Pela manhã chovera; mas em antes do pôr-do-sol<br />
o dia levantara e as perspectivas úmidas e frescas<br />
embebem-se agora no eflúvio salutar das marés.<br />
No espaço há uma grande acumulação de nuvens<br />
áureas e róseas, dum forte colorido de silforama.<br />
Para além, da outra banda do mar, a faixa larga e<br />
prateada da praia, em curvas, coleando, está de uma<br />
extrema doçura e nitidez inefável. A retina mal pode<br />
apanhá-la.<br />
Os olhos pestanejam, nas infinitas vertigens e nos<br />
prismas visuais sutis e cambiantes de míope, diante do<br />
encanto dos tons da luz leve, rarefeita, espiritualizante<br />
e fina como um tecido tenuíssimo.<br />
Há em toda a marinha um aspecto amável, uma<br />
suavidade de aquarela d’après nature, quase êxtase...<br />
Dá um esplêndido efeito à visão óptica e um<br />
revigoramento humorado às faculdades artísticas, este<br />
belo trecho sadio e agradável de vagas, em cuja superfície<br />
a luz frouxa da tarde se encarrega, com as suas<br />
pinceladas de fantasista, de fazer as mais extravagantes<br />
e rendilhadas decorações.<br />
O mar, aquietado, sereno, está de um verde glauco<br />
ativo e salgado, convidando a viajar, e, sobre ele, navios<br />
balouçantes, embarcações, soltas como aves, de<br />
delicadas formas artísticas, com afinidades abstratas<br />
de certas linhas fugidias de um perfil de mulher,<br />
conservam então, como lenços de adeuses, as suas velas<br />
brancas estendidas, os seus panos a secar da chuva da<br />
manhã.<br />
Balançam-se um pouco, numa cadência<br />
harmônica, num ritmo musical, com os altos mastros<br />
erguidos para o céu em posição de vigia.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 325<br />
E, assim, com os mastros e as velas, na<br />
aglomeração das adriças e dos cabos, os navios fazem<br />
vagamente lembrar, na calma da tarde, enormes e<br />
estranhas plantas de ornamentação.<br />
Ao fundo, na recortada e esfuminhada linha das<br />
montanhas, uma queimada faz evolar para os ares o seu<br />
azulado penacho de fumo.<br />
E, no meio da pitoresca delícia da marinha alegre<br />
e lavada, de um acre sabor de azote, uma ou outra<br />
gaivota esvoaça, além, num vôo incisivo, rápido, ou pousa<br />
junto aos líquens ou junto às algas, mergulhando e<br />
roçando na vítrea vaga a nevada plumagem de arminho.<br />
Então, de toda a paisagem, larga, aberta,<br />
revigorativa e cheia de um grande ar primitivo de<br />
virilidade, vem um sopro intenso, confortador e pagão<br />
de Heroísmo e de Mocidade, fazendo inflar o peito, e um<br />
sentimento anelante e virgem de pesca, no bravo Mar<br />
Alto, entre tropicalismos primaverais de sóis sangrentos<br />
e de dias azuis, sobre as rasgadas ondas murmurejosas.
326 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ESMERALDA<br />
No fundo verde da tela avulta em claro uma Cabeça<br />
macilenta, dolorosa, como que envolta num albornoz<br />
branco.<br />
Toques da mesma cor garça põem-lhe leves<br />
nuances nos cabelos, nos olhos cismativos, anelantes,<br />
que têm a expressão de um desejo nômade...<br />
Desse cromatismo de tons verdes idealizou o<br />
artista o nome da sua viva cabeça imaginária — que<br />
parece uma dessas fisionomias raras que só naturezas<br />
especiais sabem distinguir e amar, uma dessas cabeças<br />
de mulheres singulares que a dolência da paixão<br />
enervante calcinou e turvou de dores.<br />
Do golpe rubro da boca escapa-lhe um sentimento<br />
de amargor, que a travoriza e acidula, como se um acre<br />
veneno ardente lhe estivesse sangrando os lábios.<br />
E essa boca, assim em golpe rubro, purpurejada<br />
por um vinho secreto de ilusão antiga, destacando álacre<br />
no palor do rosto frio, como que excita aos beijos,<br />
turbilhões de beijos como de chamas...<br />
E descendo da boca aos seios alvos de lua, a<br />
imaginação vai fantasiosamente compondo todo o corpo<br />
de Esmeralda e despindo-o à proporção que o vai<br />
compondo, despindo-o e gozando a carne cor de papoula.<br />
E, as tintas, na tela, vivendo da<br />
impressionabilidade artística que um pincel de mão<br />
original e nervosa lhes infiltrou, como que exprimem,<br />
no colorido e no ideal da contemplativa Cabeça, a emoção<br />
vaga, aérea, de alguma formosa e amada Esmeralda<br />
virgem, perdida e morta dentre as verdes pedrarias do<br />
Mar solene...
FIDALGO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 327<br />
Pé esguio, fino, leve, a Mefistófeles, para galgar,<br />
não já a Roma pomposa e purpúrea, enflorada em glórias;<br />
nem mesmo já até a Grécia estóica, de ouro e de<br />
mármore; mas para supremamente galgar as regiões<br />
infinitas e virgens da deslumbrante Originalidade.<br />
Colorido de graça, madrigalesco e maravilhoso, a<br />
luva negra vestindo a mão real de loiro e fantasioso<br />
Excentrista, a face meditadora e branca voltada para as<br />
Estrelas, donde surgiriam as leis transcendentes da<br />
Arte, penetrarias os pórticos suntuosos de palácios<br />
d’esmeralda e safira, subindo por escadarias de prata e<br />
pérola.<br />
E, prodigiosamente, em sedas e ouros de luz, aí<br />
te perpetuarias nos Azuis imortais da Eternidade, onde<br />
o Espírito deve ter, não a claridade coruscante e<br />
clarinante do Sol mas o brilho de paz, de incomparável<br />
repouso são da Lua sonele e sonolenta.<br />
A tua Obra, vasta e fecundadora, seria então<br />
singularmente traçada em panos mais largos que os de<br />
tendas de desertos e mais alvos ainda do que as neves<br />
imaculadas.<br />
Com um fio d’astro cinzelarias, darias esmaltes<br />
indeléveis e marchetarias idéias, como um tecido<br />
d’estrelas, liriais e siderais.<br />
E para que a correção inteira, a harmonia perfeita<br />
irradiasse na Obra, em luz mais clara, um pássaro<br />
estranho, verde, cor de brasa, branco, azul, conforme o<br />
tom do teu Ideal, cantaria, gorjearia em ruflagens d’asa<br />
ao alto da tua nobre cabeça fidalga, como que para te<br />
ritmar as idéias.<br />
E tu, como um deus mítico, afinarias pelo ritmo<br />
inefável do canto os pensamentos delicados da grande<br />
Obra, até produzires nela a harmonia, a cor, o aroma.<br />
Músicas excelsas e tristes, como uma combinação<br />
de roxo e azul profundo, dariam frêmitos, vibrações às
328 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
tuas páginas, que ficariam vivendo como o Som,<br />
perpetuamente.<br />
Bonzos, Manitus, não gralhariam e grasnariam<br />
jamais em torno do teu ser abstrato e tranqüilo, feito<br />
para florir, cantar e resplandecer.<br />
Como as pérolas guardadas em cofre do Oriente,<br />
envoltas em areia do Mar Vermelho, para não perderem<br />
o raro esplendor, a tua Obra, coroada pelas rosas<br />
triunfais da Originalidade, ficaria afinal, ó Fidalgo da<br />
Arte! envolta nos mistérios do Sol, egregiamente<br />
cantando e chamejando, na helênica resplandecência<br />
da Forma.
ANGELUS<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 329<br />
Um sol em sangue alastra, mancha<br />
prodigiosamente o luxuoso e largo damasco do<br />
Firmamento.<br />
Opulentos, riquíssimos esplendores de púrpuras<br />
luminosas dão uma glória sideral à tarde.<br />
E, pela sugestão cultual, quase religiosa da hora,<br />
os deslumbrantes efeitos escarlates do grande astro que<br />
desce, d’envolta com douramentos faustosos, fazem<br />
lembrar a magnificência romana, a ritual majestade dos<br />
Papas, um festivo desfilar católico de bispos e cardeais,<br />
através dos resplandecentes vitrais do Vaticano, com os<br />
báculos e as mitras altas, sob os pálios aurilavrados.<br />
Embalsamam a tarde aromas frescos, sãos,<br />
purificadores, como que emanados da saúde, das<br />
virgindades eternas.<br />
Um ar olímpico, talvez o sopro vital de mares verdes<br />
e gregos, eterifica harmoniosamente a curva das<br />
montanhas, ao longe, contorna-as, recorta-as, dá-lhes<br />
a nitidez, o esmalte do aço.<br />
Como que a Natureza, nesse esmaecer do dia,<br />
tem mocidades imortais e como que as forças, as origens<br />
fecundas da terra, desabrocham em rosas.<br />
O rubente esplendor solar gradativamente smorza<br />
num cor-de-rosa leve, de veludosa suavidade.<br />
Serenamente, lentamente, uma pulverização<br />
neblinosa desce das amplidões infinitas...<br />
Névoas crepusculares envolvem afinal a<br />
imensidade, no recolhimento, na paz dos ascetérios.<br />
Os campos, as terras da lavoura, a vegetação dos<br />
vales e das colinas adormecem além, repousam num<br />
fluido noctambulismo...<br />
Por estradas agrestes pacificadas na bruma, uma<br />
voz de mulher, dispersa no silêncio, clara e sonora, canta<br />
amorosamente para as estrelas que afloram rútilas e<br />
mudas.<br />
Canta para as estrelas! e parece que a sua voz,<br />
errante na vastidão infinita, vai inundada do mesmo<br />
perfume original que a alma viçosa e branda dos vegetais<br />
exala na Noite...
330 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
NÚBIA<br />
Amar essa núbia – vê-la entre véus translúcidos<br />
e florentes grinaldas, Noiva hesitante, ansiosa, trêmula,<br />
tê-la nos braços como num tálamo puro, por entre<br />
epitalâmios; sentir-lhe a chama dos beijos, boca contra<br />
boca, nervosamente – certo que é, para um sentimento<br />
d’Arte, amar espiritualmente e carnalmente amar.<br />
Beleza prodigiosa de olhos como pérolas negras<br />
refulgindo no tenebroso cetim do rosto fino; lábios<br />
mádidos, tintos a sulferino; dentes de esmalte claro;<br />
busto delicado, airoso, talhado em relevo de bronze<br />
florentino, a Núbia lembra, esquisita e rara, esse lindo<br />
âmbar negro, azeviche da Islândia.<br />
O seu sangue quente, aceso em púrpuras de<br />
luxúria, através da pele sombria e veludosa, recorda<br />
avermelhamentos de aurora dentre uma penumbra de<br />
noite, como o deslumbramento boreal das regiões<br />
polares...<br />
No entanto, amar essa carne deliciosa de Núbia,<br />
ansiar por possuí-la, não constitui jamais sensação<br />
exótica, excentricidade, fetichismo, aspiração de um<br />
ideal abstruso e triste, gozo efêmero, afinal, de naturezas<br />
amorfas e doentias.<br />
Senti-la como um desejo que domina e arrasta,<br />
querê-la no afeto, para fecundá-lo e flori-lo, como uma<br />
semente d’ouro germinando em terreno fértil, é querer<br />
possuí-la para a Arte, tê-la como uma página viva,<br />
veemente, da paixão humana, vibrando e cantando o<br />
amor impulsivo e franco, natural, espontâneo, como a<br />
obra d’arte deve vibrar e cantar espontaneamente.<br />
Crescida, desenvolta aos poucos no meio culto,<br />
entre relações de simpatia inteligente e harmônica, sob<br />
um sol saudável de cuidados, de apuro de tratos e de<br />
maneiras, que tornou mais leve e penetrante,<br />
iluminando, o seu cérebro simples, de ignorância<br />
ingênua, a Núbia abriu em flor de carícia, alvorou com a
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 331<br />
doce meiguice dos tipos galantes e preclaros de mulher<br />
e recebeu também, em linhas de conjunto, do mesmo<br />
meio onde desabrochou, essa suavidade e graça núbil<br />
que é todo o encanto vaporoso, aéreo, do ser feminino.<br />
No seu rosto oval, de uma penugem sedosa de<br />
fruto sazonado, há, por vezes, certa expressão de<br />
melancolia, de cisma dolorosa, que punge e contrista; o<br />
tênue, já quase apagado raio errante de uma lembrança<br />
vaga – como se Ela de repente parasse na existência e<br />
se sentisse no vácuo, perdida e só nos caminhos<br />
desolados, desertos, de onde veio outrora, sem leito e<br />
em lágrimas, a caravana gemente da sua raça...<br />
Então, nesses momentos em que um dolorimento<br />
secreto, misterioso, a conturba e magoa, Ela parece<br />
serena divindade aureolada de martírios, macerada de<br />
prantos; e é talvez bem pequeno, bem frágil todo o amor<br />
do mundo para proteger, para amparar, como que numa<br />
redoma sagrada de Misericórdia, essa humilde criatura<br />
que o fatalismo das forças fenomenais da Natureza<br />
condenou à indiferença gelada e à desdenhosa ironia<br />
das castas poderosas e cultas.<br />
Assim, adorá-la em compunção afetiva, trazê-la<br />
no coração como relíquia rara num relicário estranho,<br />
claro é que não significa banal emoção transitória, que<br />
o rude desdém da análise fria pode, apenas com um<br />
golpe brusco, extinguir para sempre.<br />
Essa emoção, esse amor, cada vez mais profundo<br />
e espiritualizante, penetra impetuoso no sangue como a<br />
luz e o ar, deliciando e ao mesmo tempo afligindo como<br />
a Idéia e a Forma igualmente deliciam e afligem...<br />
E, nem mesmo, no fundo íntimo de qualquer ser<br />
tocado de uma intuição maravilhosa da origem terrestre<br />
da felicidade podem resplandecer, mais do que a Núbia,<br />
as belezas de neve da Escócia e da Irlanda ou as<br />
formosuras originais e flagrantes da Armênia e da<br />
Circássia.
332 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Tudo ela possui de luminoso e perfeito, como a<br />
noite possui as Estrelas e a Lua, visto e sentido tudo<br />
através da harmonia espiritual, da alta compreensão<br />
requintada e subjetiva de quem a ama e deseja.<br />
A sua alma, de forma singela e branca de hóstia,<br />
tem ritmos de bondade infinita, meigas claridades<br />
brandas e consoladoras de piedade e enternecimento, e<br />
a sua voz sonorizada, com a vivacidade nervosa e o alado<br />
timbre argentino, claro e fresco, de um gorjeante cristal<br />
de pássaro, derrama por toda a parte a música<br />
emocionante, sugestiva e curiosa, de violino afinado...<br />
E nenhum peito dedicado de nobre dama medieval<br />
nobiliárquica será mais gentil e dedicado que o seu peito,<br />
donde jorra, com firmeza e força, em onda original, talvez<br />
manado dessa simpleza de obscuridade, um inefável<br />
sentimento verdadeiro e virgem como o tenro broto verde<br />
dos arbustos.<br />
Ela é a Núbia-Noiva, singular e formosa, amada<br />
com religioso fervor artístico, com a fé suprema, a unção<br />
ritual dos evangeliários do Pensamento; e todo esse<br />
feminino ser precioso brota agora em exuberâncias de<br />
afeto, em pompa germinal de extremos lascivos, floresce<br />
em rosas juvenis e polínicas de puberdade, abertas<br />
sexualmente nos seios pundonorosos e pulcros...
SOM<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 333<br />
Trago todas as vibrações da rua, por um dia de<br />
sol, quando uma elétrica corrente de movimento circula<br />
no ar...<br />
Mas, de todas as vibrações recolhidas, só me ficou,<br />
vivendo a música do som no ouvido deliciado, a canção<br />
da tua voz, que eu no ouvido guardo, para sempre<br />
conservo, como um diamante dentro de um relicário de<br />
ouro.<br />
Cá está, cá a sinto harmonizar, alastrar em som<br />
o meu corpo todo, como flexuosa serpente ideal, a tua<br />
clara voz de filtro luminoso, magnética, dormente como<br />
um ópio...<br />
Muitas vezes, por noite em que as estrelas<br />
marchetam o céu, tenho pulsado à sensação de notas<br />
errantes, de vagos sons que as aragens trazem.<br />
As fundas melancolias que as estrelas e a noite<br />
fazem descer pelo meu ser, da amplidão silenciosa do<br />
firmamento, dão-me à alma abstratas suavidades,<br />
vaporosos fluidos, sinfonias solenes, misticismos, ondas<br />
imensas de inaudita sonoridade.<br />
E, calado, na majestade sombria da Natureza, como<br />
num religioso recolhimento de cela, vou ouvindo,<br />
esparsos na vastidão, smorzando nos longes, entre<br />
redondos tufos escuros de folhagem, onde se oculta<br />
alguma luxuosa existência de mulher, inebriantes sons<br />
de peregrinas vozes ou de invisíveis instrumentos.<br />
E os sons chegam, vêm até mim, na estrelada<br />
tranqüilidade da noite, frescos e finos, como através de<br />
rios claros que nevassem ou de vagas embaladoras que<br />
o frio luar prateasse.<br />
E eu penso, então, nessas simpáticas, corretas<br />
atitudes e expressões da música.<br />
Vejo, na nitidez de cristal do pensamento, a harpa,<br />
sonora asa de ouro, com as cordas tensas, dedilhada<br />
por brancas mãos aristocráticas que arrancam dela
334 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
frêmitos, soluçantes dolências, plangências<br />
incomparáveis.<br />
Escuto a pompa, a imponência sonorizante de um<br />
órgão de catedral, quando, pelas altas naves, sobem rolos<br />
alvos de incenso, e, o sol, fora, com as flechas dos raios,<br />
constela de astros microscópicos as polidas e góticas<br />
vidraçarias.<br />
Ou, pressinto ainda, num fidalgo salão do tom,<br />
onde os perfis ostentam valorosidades de linhas ducais<br />
e a luva impera galantemente, a assinalada elegância<br />
dos concertos da graça, quando os violinos, zurzinando<br />
notas que esvoaçam do arco resinado às cordas<br />
retesadas, zumbindo e ruflantemente, prendem-se à voz<br />
que resplende, triunfa na sala, sonorizando-a e<br />
iluminando-a mais que os fúlgidos lustres e os<br />
candelabros facetados, como se, da garganta de quem<br />
cantasse, a aurora alvorecesse e vibrasse.<br />
E cuido logo ver uma mulher – alta, beleza grega,<br />
formas esculturais primorosamente cinzeladas.<br />
A cabeça, de uma discreta severidade de deusa,<br />
pousa-lhe no rico, abundante torso inteiriço do corpo<br />
forte.<br />
Há uns meigos tons louros no aveludado cabelo<br />
que, por entre a luz, mais louro e aveludado brilha.<br />
De pé, ereta, o perfil nitidamente marcado, no<br />
meio da cauda astral da veste de seda rara, ela<br />
desprende, evola a voz da garganta de aço novo e essa<br />
espiral de voz revoluteia no salão, fica algum tempo<br />
aquecendo e sonorizando o ar...<br />
Como um astro, essa voz flameja, palpita e gira<br />
na iluminada órbita da sala cheia da multidão que a<br />
escuta, e, como um astro, cai, fulgurando, semelhante<br />
a exalações meteóricas, no fundo do meu ser como num<br />
golfo...<br />
Nobremente, pela cadência do canto, o corpo da<br />
imaginária mulher tem certas flexões delicadas e
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 335<br />
eletrismos de gata voluptuosa, e o seio, fremente da<br />
melodia que o emociona, se afervora e pulsa.<br />
E a voz ala-se, ala-se, gorjeada, arrulhante,<br />
trinada, ave de luz harmoniosa que ela enfim solta do<br />
aviário do peito.<br />
Todos esses dulçurosíssimos efeitos musicais me<br />
impressionam singularmente, distribuindo por mim a<br />
mais aguda vitalidade mental, que me sensibiliza os<br />
nervos da atenção, como se todo eu me achasse sob<br />
uma atmosfera salutar e tonificante.<br />
Ou, então, cobrem-me também de opulências, de<br />
gloriosas soberanias, as vivas forças orquestrais, onde<br />
perpassam ruídos largos de floresta, clarins, inefáveis,<br />
misteriosas melodias de pássaros.<br />
Mas, do som, da música, não me exalça, não me<br />
enleva só o ritmo leve, educado, que deixa uma suavidade<br />
acariciando, bafejando o ouvido como um perfume bafeja,<br />
acaricia o olfato.<br />
Ficam-me nos sentidos, nos nervos, calafrios sutis,<br />
ligeiros narcotismos, pequeninas vibrações que, não sei<br />
de que rútila chama, parecem faiscar...<br />
E começo, após um engolfamento de sons<br />
profundos, a ter penetrabilidades intensas, estranhas<br />
emoções que me despertam infinita série de fatos já<br />
gelados no tempo, como passadas fases de lua.<br />
Evidenciam-se-me idéias, impressões, sugestões<br />
curiosas, certos obscuros estados mórbidos da alma, que<br />
em vão a espiritualidade humana tenta transplantar para<br />
os livros, mas que só o ritmo aviventa, levanta aos poucos<br />
da nebulosa das existências, como um sol sempre amado,<br />
mas já antigo, já velho, remotamente apagado nos<br />
sentimentos...
336 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
GATA<br />
De neve, de uma maciez de arminho e<br />
lactescência de neve, de uma nervosidade frenética, era<br />
luxuosa, principesca, decerto, essa orgulhosa gata.<br />
As esmeraldas dos seus olhos claros fosforeavam<br />
sensualmente, eletricamente, quando alguém, no<br />
conforto da casa, lhe acarinhava de manso o dorso, o<br />
focinho tenro, polposo, espiguilhado de prateados fios<br />
sutis; e, no seu lindo pêlo cetinoso e alvo, como numa<br />
fresca e virginal epiderme de mulher aristocrata,<br />
perpassava um frisson de ternura, um estremecimento,<br />
como se em toda ela vibrasse alguma fibra de espiritual<br />
e amoroso.<br />
E era então fidalga nas sensações, no ronronar<br />
apaixonado, ao luar, sob o cintilante cristal das estrelas,<br />
pelas caladas vastidões da noite, ou, nas horas de sesta,<br />
nos quentes, enlanguescedores mormaços, preguiçosa<br />
e fatigada, anelando o repouso, numa onda de gozo e<br />
volúpia, enroscada, serpenteada, torcicolosa e convulsa,<br />
como um organismo suave e débil que um vivo azougue<br />
eletriza e agita.<br />
Talvez fosse a alma de alguma vaporosa rainha<br />
que ali vivesse nesse precioso animal, alguma misteriosa<br />
visão polar dentro daquele feltro branco, daquela pelúcia<br />
rica, daqueles flocos eslavos; algum sonho, enfim,<br />
errante, vago, perdido nesse nobre exemplar felino de<br />
formas lascivas, flexuosas e delicadas.<br />
Às vezes, mesmo, ela errava, como a nômade que<br />
perde a rota da caravana pelos desertos escaldados de<br />
sol, em busca de alimento; e os seus olhos, penetrantes<br />
no verde úmido e agudo das luminosas pupilas, mais<br />
até fantasiosa a tornavam e mais nevoeiro davam à sua<br />
lenda de fadas.<br />
E assim, arminho girante, que as quatro veludosas<br />
patas faziam fidalgamente caminhar, miando histérica,<br />
era como uma sonâmbula idealizada e amante que
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 337<br />
soluçava e gemia implorativamente a sua dor, através<br />
de aposentos, na indiferença de quase todos.<br />
Um dia, porém, uma doce mão feminina e<br />
perfumada quis tê-la junto de si e levou-a consigo para<br />
a tepidez e a pompa das alcovas cheirosas, vivendo com<br />
ela ao colo, passando-lhe os íntimos alvoroços do seu<br />
sangue de Virgem – como se a gata fosse um profundo<br />
seio de afagos a que ela confiasse todos os seus mistérios<br />
e segredos de Noiva ainda presa no claustro cerrado,<br />
como as monjas normandas, da carne inquietante e<br />
alucinadora.<br />
Agora, com a formosa seda do pêlo vibrando à<br />
carícia, alta e feliz a cabeça artística, vive nesse colo<br />
impoluto, em sonhos deliciosos e gozos infinitos de<br />
orientalista, o belo exemplar felino, branco, voluptuoso<br />
e dolente como a luz embalada e cismando,<br />
imaculadamente, no seio azul das Esferas.
338 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
DIAS TRISTES<br />
Apesar do sol, que imensa tristeza para certos<br />
seres, que dias tristes, esses, de uma melancolia e<br />
dolorosa névoa...<br />
Os ruídos todos, o esplendor da luz, convergindo<br />
em foco para o coração, deslumbram, fascinam de modo<br />
tal e tão profundamente, que o abatem, infiltrando-lhe<br />
essa tristeza infinita que se não define e que está, como<br />
um fundo de morbidez, nas almas contemplativas e<br />
nômades, que vão armar a sua tenda nas desconhecidas<br />
e longínquas paragens abstratas do Pensamento.<br />
Dias tristes, muita vez, os dias de sol.<br />
Mergulhado o espírito na onda profunda de desejos<br />
irresistíveis, como numa intensa e luxuriosa paixão, os<br />
aspectos que se lhe manifestam na Natureza são<br />
amargos, atravessados dessa pungência aflitiva, dessa<br />
magoante desolação e atormentadora ironia que há na<br />
essência de todas as cousas e idéias.<br />
E, como o pensar dá uma grande tristeza, põe no<br />
cérebro uma incomparável tortura, o Pensamento, à<br />
evidência da luz, na alegria do sol, deixa-se possuir de<br />
um nervosismo triste, de um meio luar turvo e trágico<br />
de impressões agudas, dilacerantes.<br />
Os dias tristes, para raras naturezas intelectuais,<br />
são quase sempre os dias triunfantemente alegres,<br />
sonorizados de pássaros, quando há uma alta irradiação<br />
no ar, um repouso, uma paz feliz em toda a vegetação e<br />
que o sol, numa vitória astral, vai, como um deus pagão,<br />
em festins de luz...<br />
Como que filtros de dolorimento partem de todas<br />
essas luminosidades, todo esse fulgor solar verte uma<br />
nostalgia cruciante, que fere e fende o peito,<br />
incisivamente, como as flechas letalmente envenenadas<br />
dos hindus.<br />
Quanto a mim, amargamente sinto esses dias<br />
tristes.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 339<br />
À larga luz de um templo vasto, na suntuosidade<br />
de uma festa católica, quando pela infinidade de<br />
rutilantes lustres acesos há facetas de estrelas, íris<br />
fulgurantes e pelos douramentos dos altares<br />
borboleteiam faíscas, acendem-se chamas nas velas<br />
amareladas, e vozes flébeis, numa compunção religiosa,<br />
sobem para as naves com a vaporosidade dos brancos<br />
incensos, dentre mósicas festivas – um angustioso anseio<br />
me insufla, me enche infinitamente o peito.<br />
E, batido de uma pungência, vibrado de uma<br />
recordação, alanceado por uma idéia, subitamente, para<br />
logo, toda a aparente radiação de alegria foge e eu me<br />
vejo então dentro dos meus dias tristes e que alguém,<br />
dos longes do Passado, acena-me, ou com um lenço<br />
amoroso, para as recônditas e virgens emoções do<br />
coração, ou com uma bandeira de combate, para as<br />
impulsivas faculdades do cérebro.<br />
Se um riso me aflora aos lábios, nervosamente;<br />
se uma verve satânica os inflama; se uma esfuziante<br />
sátira os eletriza, é ainda assim uma maneira de ser<br />
triste, apunhalante sarcasmo às tempestades mentais<br />
que se dão por dentro – humorismo doente, que para se<br />
convencer de que é alegre e de que é são, flori em rosas<br />
de riso, abre em Via-Láctea de riso.<br />
O esplendor das salas iluminadas, na abundância<br />
de cristais e flores, entre auroras de mulheres e<br />
luxuosas roupagens, dá-me também, a pouco e pouco,<br />
um abatimento, um afrouxamento aos nervos e daí nasceme<br />
logo, como uma tentaculosa planta negra e de morte,<br />
essa indescritível tristeza, que é a feição ingênita de<br />
tudo, que cobre tudo como que de uma neblina<br />
crespuscular sensibilizante...<br />
Assim, também, ao almoço, pelas claras manhãs,<br />
quando a toalha branca da mesa, as flores das jarras, o<br />
pão, o vinho, a atitude correta das pessoas, a limpidez<br />
simpática da hora, fazem lembrar resplandecências,<br />
alvuras castas, paramentações de altar para a evangélica
340 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
celebração da Missa, um sentimento de inexplicável<br />
tristeza me invade, nascido de toda essa disposição<br />
harmoniosa de objetos e de pessoas. E, abstratamente,<br />
como num nebuloso sonho, durante toda a alimentação<br />
desenrola-se lenta, vagarosa e fluida no meu ser, uma<br />
surdina oceânica que parece estar, na plangência de<br />
sons abafados, lembrando todas as abundantes fontes<br />
de afeto que para mim já para sempre secaram, todos os<br />
astros prodigiosos de enternecedor carinho que para mim<br />
já eternamente se apagaram.<br />
Mas, esses dias tristes, as horas, os momentos<br />
desses nevoeiros d’alma, tão densos, tão cerrados,<br />
nascem apenas de uma Visão que se adora, que nos<br />
abre inefavelmente os braços, que o espírito ama no seu<br />
recolhimento, na sua cela sombria e muda! essa Visão<br />
seráfica, nervosa, histérica, ideal – a Santa Teresa<br />
mística da Arte.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 341<br />
PAISAGEM DE LUAR<br />
Na nitidez do ar frio, de finas vibrações de cristal,<br />
as estrelas crepitam... Há um rendilhamento, uma<br />
lavoragem de pedrarias claras, em fios sutis de<br />
cintilações palpitantes, na alva estrada esmaltada da<br />
Via-Láctea. Uma serenidade de maio adormecido entre<br />
frouxéis de verdura cai do veludo do firmamento, torna<br />
a noite mais solitária e profunda.<br />
O Mar, pontilhado dos astros, faísca, fosforesce e<br />
rutila, agitando o dorso glauco.<br />
E, de leve, de manso, um clarão branco, lânguido,<br />
lívido, vem subindo dos montes, escorrendo fluido nas<br />
folhagens, que prateiam-se logo, como se fabuloso artista<br />
invisível as prateasse e as polisse.<br />
A lua cheia transborda em rio de neve na<br />
paisagem, e, no mar, há pouco apenas fagulhante da<br />
inação das estrelas, a lua jorra do alto.<br />
Por ele a fora, pelo vasto mar espelhado, pequenas<br />
embarcações se destacam agora, alígeras, lépidas, à<br />
pesca da noite, velas brancas serenas, sob a constelação<br />
dos espaços.<br />
A água repercute, na amorosa solidão do luar, a<br />
barcalora sonora dos pescadores, que, de entre a glacial<br />
amplidão da água, mais fresca e sonora, vibra.<br />
Um aspecto de natureza verde, virgem, que<br />
repousa, estende-se nos longes, desce aos prados, sobe<br />
às montanhas e infinitamente espalha-se nas mudas<br />
praias alvejantes.<br />
E, à proporção que a lua mais vai subindo o páramo,<br />
à proporção que ela mais galga a altura, mais as<br />
pequenas embarcações de pesca avançam nas vagas<br />
resplandecentes, com as asas das velas abertas à<br />
salitrosa emanação marinha.<br />
Com o brilho fúlgido, aceso, d’esmeralda facetada,<br />
uma estrela parece peregrinamente acompanhar de<br />
perto a lua, num ritmo harmonioso...
342 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Perfumes salutares, tonificantes eflúvios exalamse<br />
da frescura nova, imaculada dos campos, como dum<br />
viçoso e casto florir de magnólias, na volúpia da natureza<br />
adormecida numa alvura de linhos, dentre opulências<br />
de Noivados.
ARTISTA SACRO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 343<br />
Na catedral, com toda a pompa da liturgia, celebrase<br />
a Semana Santa.<br />
Pela Ressurreição, às quatro horas da manhã, há<br />
na igreja um ar vago de alvorada, em amarelo cidrento,<br />
trazido da rua pela larga e polida vidraçaria que se<br />
conserva aberta – ar menos vago, contudo, do que a névoa<br />
que turva fora os aspectos, em virtude dos lustres acesos,<br />
da variada profusão de luzes e da gala sagrada que enche<br />
de resplandecências e solenidades toda a extensa Nave<br />
onde os devotados católicos murmurejam num crescendo<br />
de mar tormentoso e cavado...<br />
O Altar-Mor está vistosamente ornado,<br />
deslumbrante, viçando de flores colocadas em jarras<br />
azuis e douradas, numa frescura e colorido cromático<br />
de jardim, rodeado de grandes tocheiros arabescados<br />
que faíscam, flamejam com chamas ensangüentadas e<br />
amarelas.<br />
Em cima, até onde os olhos sobem mais, num trono<br />
de luzes, entre uma pesada cortina de damasco<br />
vermelho, de tons profundos, caída para os lados em<br />
pregas longas e largas, vê-se o Cristo, na alegoria de<br />
Redivivo, com a chaga simbólica no flanco direito, tendo<br />
numa das mãos um ramo verde.<br />
Nos altares laterais os Santos como que ainda<br />
mostram possuir a auréola triunfal da Aleluia, sorrindo<br />
seraficamente, quer os mártires, quer os gloriosos.<br />
Pelo teto abobadado, dentre as melífluas<br />
harmonias, as melancólicas sonoridades dos violinos,<br />
das flautas, dos violoncelos e do órgão pianíssimo, ecoam<br />
majestosas as vozes que irrompem do coro, beatíficas,<br />
no Kirie Eleison.<br />
Os sacerdotes, festivamente paramentados, com<br />
as suas casulas custosas, relampejantes, bordadas a<br />
flores de ouro, em alto-relevo; de estolas rutilantes e<br />
franjadas pendidas no braço ou com as sobrepelizes alvas
344 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
e rendadas destacando forte na batina preta, curvamse<br />
genuflexos diante do Altar-Mor, erguendo-se após com<br />
mesuras graves e medidas, enquanto os acólitos, ao<br />
fundo, em linha e reverentes, fazem balançar,<br />
cadenciada e ritmadamente, turíbulos lavorados, de onde<br />
se exalam espiralados incensos...<br />
E o Cerimonial prossegue, na minudência exata,<br />
escrupulosa do Rito romano.<br />
Mas, nas suntuosidades da festa, ressalta de<br />
magnificências, esmaltadamente, um esbelto sacerdote<br />
novo e formoso, talhado em estátua branca, e que ergue<br />
no meio das outras vozes, a sua clara voz sonora, cheia<br />
de unção religiosa como de um sentimento amoroso e<br />
carnal.<br />
Chegado há pouco de Roma é essa a primeira<br />
cerimônia de mais estilo em que toma parte com o seu<br />
tipo amável, doce e misericordioso, amantíssimo, de São<br />
Luís Gonzaga.<br />
A sua linda cabeça suave, direita, correta, através<br />
da vaporosidade incensal, domina pela saúde e pela<br />
mocidade, que resplende no rosto liso, escanhoado, onde<br />
os olhos brilham com raios místicos...<br />
O seu porte ornamental, que parece afirmar o<br />
poder de uma força divina, conserva-se aprumado, ereto;<br />
e, quando a voz se lhe desprende untuosa dos lábios,<br />
como que ele paira num resplendor espiritual, vaga num<br />
nimbo etéreo, cercado por alas de querubins inefáveis e<br />
de arcanjos de asas fulgentes...<br />
De toda essa pessoa clerical como que vêm fluidos<br />
magnéticos, que fascinam e prendem certo olhares<br />
juvenis femininos, que a seguem, que a buscam em todas<br />
as direções, em todos os movimentos, sofregamente,<br />
deliciados da sua prodigiosa figura que ali naquele<br />
recinto sagrado tão imperiosamente e tão alto se destaca,<br />
como que revestida de poderes celestes.<br />
E o sacerdote instintivamente percebe os êxtases,<br />
os enlevos que despertam nas mulheres belas, porque
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 345<br />
dá então mais nitidez às mesuras, requinta nas<br />
curvaturas solenes, fica mais excelso e egrégio ainda,<br />
deixando escapar com brandura um sorriso paradisíaco,<br />
que é talvez a promessa sacrossanta dos dons<br />
maravilhosos, das graças, do Perdão infinito que a sua<br />
onipotência consegue.<br />
Nas suas mãos aristocráticas, delicadas e níveas<br />
como hóstia, sente-se, quando ele as eleva no ritmo do<br />
Cerimonial, um ligeiro estremecimento amoroso, que o<br />
embaraça, fazendo com que logo, para apagar essa<br />
impressão pecadora, exagere o Rito, afetadamente.<br />
Os olhares femininos, deslumbrados pelo êxito<br />
daquelas maneiras evangélicas, não deixam jamais de<br />
seguir o airoso sacerdote, as linhas harmoniosas da sua<br />
figura, o seu másculo vigor de deus viril e vitorioso, como<br />
seguem, no circo, os movimentos ágeis, dúcteis, e a<br />
plástica, firme e forte, dos corpos cinzelados de acrobatas<br />
célebres e atraentes...<br />
Realmente, na sua carne, que os incensos<br />
perfumam, circula o sangue em labareda de instintos<br />
sexuais e a sua cabeça primaveril, que a Arte da Religião<br />
abençoou em Roma, tem o encanto, a fascinação<br />
diabólica, satânica, da venenosa cabeça da Serpe bíblica.<br />
Mas, o decorativo apóstolo, resplandecendo nas<br />
vestes talares, imponente, magistral, faz simbolicamente<br />
lembrar, assim venerado pelas mulheres, com fervor<br />
beatífico, um Sultão em palácios, no Bósforo, como Abdul-<br />
Azid, amado por odaliscas e sultanas.<br />
De vez em quando, no templo, passam fios etéreos<br />
de harmonias de instrumentos e cânticos, que ondulam,<br />
que flutuam no ar...<br />
E o Eclesiástico, numa volúpia sacra, com toda<br />
essa Arte ritual de símbolos, de missais, de eucaristias,<br />
de pálios, de pedras de ara, de corporais, de âmbulas,<br />
de santos óleos, de chamalotes, lavrados e damascos,<br />
íris, lhamas de prata e ouro, recebe a opulência, o brilho<br />
feérico, o luminoso esplendor de um astro.
346 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
De lá, do seu sólio real de aparatosos efeitos, entre<br />
sedas, chamas e pedrarias, ele rege, com renomes<br />
episcopais, solene e sereno, a sinfonia das eternas<br />
Dulias.<br />
É o ateniense das formas católico-romanas,<br />
triunfando no idealismo de um gótico, de um medieval,<br />
através de cinzeluras de templos, com refulgências<br />
siderais de constelado...<br />
Casto cenobita, recluso nas celas do Cristianismo,<br />
ficará, talvez, para sempre, com elanguescimentos<br />
histéricos, na muda contemplação das cismadoras<br />
Imagens liriais dos hagiológios.<br />
Ou, batido das realidades carnais, sentindo a<br />
avidez das paixões terrestres, verá passar, ante os olhos<br />
mortificados na marmórea veneração de Jesus, à luz de<br />
círios ou de lâmpadas, violentamente, a visão cor-derosa<br />
das virgens vitais – fina, transparente epiderme da<br />
gaze auroral das papoulas.<br />
Então, dirá decerto ao mundo, extasiado por essas<br />
vivas expressões carnais que o transfiguram e<br />
humanizam, todos os mistérios, todos os inauditos<br />
clarões da Eternidade, que Ele, Artista Sacro,<br />
transcendentalmente conhece, lendo sempre, para dar<br />
mais abstração ao Miraculoso, os arcaicos latins<br />
apocalípticos e antifônicos...
VISÕES<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 347<br />
Num brilho cintilante de tiara persa a Via-Láctea<br />
encurva-se do alto por sobre mim, nas alvas flores<br />
cristalinas das suas estrelas.<br />
Encurva-se por sobre mim a pompa negra da noite<br />
densa, vagamente lembrando o luminoso esplendor de<br />
uns olhos dentre a pompa negra de aromados cabelos.<br />
Como em arejados pátios claros de castelos<br />
renanos desfilassem visões germânicas, willis<br />
enamoradas e vaporosas, sílfides serenas e<br />
encantadoras, ao luar das baladas, de cada estrela<br />
frígida, branca, desfila, vai desfilando nas rutilantes<br />
esferas uma Ilusão e um Sonho e cada Sonho e cada<br />
Ilusão se corporifica, toma consistência de nervos e<br />
cinzelada escultura de linhas, e eis então aí<br />
fascinadoras, deslumbrantes mulheres avassalando o<br />
firmamento, como ampla Via-Láctea de corpos<br />
ondulantes e níveos...<br />
* * * * * * * * * *<br />
Ah! mulher que eu procuro e desejo da tenda<br />
nômade da Arte, peregrina e fugidia sereia! que as<br />
harmonias deliciosas da tua carne não sejam como são,<br />
misteriosas para mim como a Via-Láctea, a cujas<br />
estrelas, que representam cada uma, uma Ilusão e um<br />
Sonho, está infinitamente presa, num amoroso eletrismo,<br />
esta alma ardente, alanceada e nervosa...
348 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
A JANELA<br />
Dava para o mar a larga janela verde, em frente<br />
às águas também verdes e turbilhonantes às vezes,<br />
outras limpidamente quietas, num remanso de golfo<br />
sereno.<br />
Velas saudosas de navios, enfunadas ao impulso<br />
das correntes aéreas; mastreações caprichosas e<br />
confusas, misteriosamente interrogando o céu; os<br />
montes, ao fundo, formando panoramas álacres com os<br />
seus cabeços azulados e colossais, e a grandeza olímpica<br />
das ondas fechadas pela natureza numa extensa área<br />
de terreno, tudo gozava e sentia além viver a janela; e,<br />
ao longe, na indefinida barra dos horizontes<br />
esfuminhados, a linha vaga, melancolizada, das imensas<br />
distâncias intermináveis...<br />
Dum lado e doutro da janela, subindo-a, galgandoa<br />
festivamente em caracóis negligentes, a expansão, a<br />
nevrose vegetal da folhagem trepadeirante que busca<br />
em ânsias o ar...<br />
Rosas vermelhas e rosas jaldes alastravam numa<br />
primaveral e casta alegria radiosa de Via-Láctea, o<br />
quadrado verde da janela, enquanto amorosamente um<br />
jasmineiro florido, entrelaçado às rosas, com flores alvas<br />
e cheirosas desabrochadas em forma de pequeninas<br />
estrelas, punha um encanto romântico e noival de janela<br />
de Julieta na larga janela verde que dava para o mar.<br />
E as embarcações, os iates, os navios, os paquetes<br />
paravam no mar dormente e do mar dormente partiam,<br />
lá iam todos a fora – ambulância marinha, dorso de tritões<br />
ferozes e soturnos, vogando na superfície das ondas...<br />
Iam talvez perto: a países meridionais, sob céus<br />
elegantes e azuis, ou – mundo a dentro – às eternas<br />
neves glaciais das geleiras do Pólo: às regiões<br />
setentrionais das flamejantes auroras boreais: a<br />
Islândia, a Lapônia, a Noruega, por entre as frias e<br />
brancas estalactites fulgurantes da lua...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 349<br />
Em frente à janela eram terrenos desapropriados<br />
e planos, que um rente folhedo luxuriosamente cobria.<br />
Depois era o mar, sempre o mar, todos os dias, a<br />
toda hora, a todo o instante, cortando, no entanto, com<br />
a monotonia do seu aspecto, a agreste monotonia<br />
daqueles sítios suaves.<br />
Mas, contudo isso, o mar nenhuma monotonia<br />
parecia inspirar, porque dava à janela, àquele original<br />
recanto, àquele desconhecido retiro isolado, aberto na<br />
parede como o nicho de uma Santa, a recordação de<br />
todo o vasto ruído atordoante e culto da vida de longe: os<br />
rumorosos cais frementes, as movimentosas cidades<br />
alegres, os grandes portos febris de efervescente efusão<br />
cosmopolita de mil exemplares de povos.<br />
Pela manhã, aparecia à janela, como um lindo sol<br />
feminino, uma bela mulher, forte, alta, loura, de flavos<br />
cabelos, talhada dum golpe numa quente e perfumosa<br />
massa de luz e de sangue, clara da epiderme macia e<br />
clara dos rendados vestidos em fofos e folhos que lhe<br />
afogavam soberbamente a garganta bourbônica,<br />
arrematados por fitas de azul leve e doce graciosamente<br />
enlaçarotadas sobre o sedoso colo oválico.<br />
E logo os seus olhos azuis como as fitas, da mesma<br />
meiga frescura e candidez de hóstia transparente,<br />
pareciam adejar, voar, como dois pássaros inquietos e<br />
deslumbrados, pela amplidão das vagas verdes e vivas,<br />
como se ambos quisessem nelas colher alguma certeza<br />
ou derramar alguma esperança.<br />
E o seu perfil, sob o sol, alvorecido na janela,<br />
lavado nas frescas essências salitrosas que emanavam<br />
do mar, tinha florescimentos, resplandecências, um vivo<br />
fulgor de ouro novo, derramando no ambiente eflúvios<br />
de magnólia.<br />
Às vezes ela deixava-se ficar por mais tempo à<br />
janela – e era então ali uma deliciosa e cristalina ária<br />
de trinados, de matutinos gorjeios de pequenas aves<br />
que por entre a viçosa verdura da janela esvoaçavam
350 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
em ruflos e contentamentos d’asa, em palpitações<br />
elétricas de plumagem, cantando para o espaço todo esse<br />
sonoro amor infinito dos pássaros que o seu estreito<br />
laringe metálico tão maravilhosamente sabe desfolhar<br />
em notas, como se essa mulher loura fosse a<br />
corporificação da própria aurora que raiasse doirada no<br />
acanhado horizonte enquadrado na florida janela verde.<br />
E ficava ali constantemente a olhar, a ver o mar,<br />
talvez na esperança de algum sonho de afeto que de<br />
repente lhe surgisse e cuja enamorada lembrança lhe<br />
vibrava o coração anelante, fazendo dolentemente o seu<br />
colo arfar, agitar-se, numa onda nervosa de convulsão e<br />
alvoroço, inflado desse tormentoso e vago desejo<br />
irresistível do amor, que um dia vertiginou o mundo, e<br />
que, quanto mais afastado se está de quem se adora,<br />
mais fundo, mais entranhado fere e martiriza.<br />
Pelas noites, quando o hostiário das estrelas abria<br />
a sua rendilhada cintilação de prata nos sidéreos<br />
espaços calmos, ou as finíssimas gazes lácteas da lua<br />
flutuavam, velando tudo, ela, virgem noiva, branca e<br />
muda como a lua, por lá ficava ainda a viajar na gôndola<br />
da imaginação e fantasiosa saudade que a emocionava,<br />
através do mar, ao encontro sonhado do seu afeto querido.<br />
E, tonta, magnetizada, narcotizada na emoliente<br />
volúpia da lua, na quente exalação dos aspectos, lá<br />
adormecidamente ficava a amar, presa na fluida teia<br />
luminosa das estrelas e da lua...<br />
* * * * * * * * * *<br />
Agora um muro enrijecido e alto, que o musgo e o<br />
limo maciamente vestem de um veludoso verde escuro<br />
de tapeçaria, veio para sempre obstar a ampla vista<br />
azotada e alegre do edificante panorama do Mar.<br />
Para além, como um gigantesco protesto que a<br />
pedra opusesse às jubilosas, triunfantes águas marinhas,<br />
o muro vai, longo e impenetrável, estendido em pano
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 351<br />
ríspido de parede socavada e cerrada, que tudo do mar<br />
avaramente encobre – levantado da terra como um brusco<br />
e bronco biombo de treva à livre expansão da luz.<br />
Austeros homens egoístas, no intuito de edificar,<br />
apropriaram-se dos terrenos e para ali ergueram,<br />
dividindo-os, semelhante à rija muralha d’imperecível<br />
fortaleza, esse imenso muro empedernido, rochoso, como<br />
que feito de um só bloco inteiriço de calcária matéria<br />
rude.<br />
Então, sem a perspectiva da alacridade vitoriosa<br />
e bizarra das ondas, sem aquela vastidão consoladora,<br />
salutar, das águas salgadas, e sem a visão branca dessa<br />
mulher, vive agora quase sempre fechada, triste e fria,<br />
a reluzente vidraça clara eternamente descida, na meia<br />
sombra crepuscular da persiana, a idealizada janela<br />
verde – a florejante janela que abria, como um desejo<br />
vago, para o Mar infinito...
352 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
UMBRA<br />
Volto da rua.<br />
Noite glacial e melancólica.<br />
Não há nem a mais leve nitidez de aspectos, porque<br />
nem a lua, nem as estrelas, ao menos, fulgem no<br />
firmamento.<br />
Há apenas uma noite escura, cerrada, que lembra<br />
o mistério.<br />
Faz frio...<br />
Cai uma chuva miúda e persistente, como fina<br />
prata fosca moída e esfarelada do alto...<br />
À turva luz oscilante dos lampiões de petróleo,<br />
em linha, dando à noite lúgubres pavores de enterros,<br />
vêem-se fundas e extensas valas cavadas de fresco, onde<br />
alguns homens ásperos, rudes, com o tom soturno dos<br />
mineiros, andam colocando largos tubos de barro para o<br />
encanamento das águas da cidade.<br />
A terra, em torno dos formidáveis ventres abertos,<br />
revolta e calcária, com imensa quantidade de pedras<br />
brutas sobrepostas, dá idéia da derrocada de terrenos<br />
abalados por bruscas convulsões subterrâneas.<br />
Instintivamente, diante dessas enormes bocas<br />
escancaradas na treva, ali, na rigidez do solo, sentindo<br />
na espinha dorsal, como numa tecla elétrica onde se<br />
calca de repente a mão, um desconhecido tremor nervoso,<br />
que impressiona e gela, pensa-se fatalmente na Morte...
MODOS DE SER<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 353<br />
Com uma nobre emoção da Arte dizia Balzac que<br />
faltariam sempre cordas à lira de uma alma que nunca<br />
tivesse visto o Mar.<br />
Na verdade, sem o Mar, sem esse organismo vivo,<br />
movimentado, vibrante, as perspectivas como que são<br />
indecisas, vagas, a retina pouco se desenvolve e educa<br />
sem essa larga vastidão das ondas, de onde parece subir,<br />
nascer para o alto, como uma luz original, todo o<br />
sentimento indutivo das cousas.<br />
Diante do mar, à sua influência vital, que é a<br />
influência da força, do vigor do pensamento, as<br />
faculdades de cada um recebem impressões estéticas<br />
muito consideráveis, ampliando o seu modo de ser,<br />
dando-lhe a sugestão das latitudes geográficas,<br />
correspondentes também, para um espírito de indução<br />
e dedução fina e atilada, à amplidão das idéias.<br />
Gozar o Mar é viver, sentir a eflorescência da<br />
carne, crer nalgum poder forte e épico que nos encoraje,<br />
dê ao pulso e ao cérebro essa poderosa segurança de<br />
existir que levanta sobre rijos alicerces os princípios e<br />
crenças de cada homem.<br />
Do Mar vem essa emanação virginal, salutar, que<br />
traz o impulso às ações, o vigor nobre à vontade, dando a<br />
todo o organismo uma função especial, uma atividade<br />
própria, uma determinação expressivista da Natureza.<br />
Os efeitos maravilhosos que a visão recebe do Mar,<br />
como uma máquina fotográfica recebe nitidamente as<br />
fisionomias, desenvolvem-se nos temperamentos<br />
artísticos em impressões, em nuances, em colorações,<br />
em estilos, em linhas, em sutilezas de percepção, em<br />
ductilidades, em fiorituras de imagens, em abundantes<br />
floras de imaginação, tão múltiplas e luminosas quantas<br />
são as infinidades de ilhas verdes de algas e de sargaço<br />
que o Mar contém no seu seio.
354 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Ele infiltra nos órgãos emocionais e pensantes<br />
todo um exuberante eletrismo nervoso, todo um fluido<br />
de luz e originalidade, uma essência, um gérmen rico e<br />
novo de graça e fantasia alada.<br />
Fica-se numa saudável impressão e frescura<br />
radiante de caça e pesca, numa alegria de sol<br />
undiflavando rouparias brancas e finas.<br />
* * * * * * * * * *<br />
Serenidade de Campo e Mar é esta em que estou<br />
agora.<br />
Campo fértil, verde, como se agora mesmo<br />
brotasse, em flor, da terra.<br />
Nas manhãs claras, de grande majestade de sol,<br />
pelos domingos, a missa da capela branca convida a<br />
digressar entre árvores, sob o festivo e claro repique do<br />
sino.<br />
E, por estar no campo, numa extensão de relva,<br />
de verdurosas alfombras, lembro-me vivamente do campo<br />
das paradas, ao sol, num espelhar faiscante de baionetas,<br />
rutilar de fardas e triunfal desfraldamento de bandeiras,<br />
quando, imensas, pesadas massas marciais, na evolução<br />
de um corpo disciplinar, agitam-se, num tinir e cintilar<br />
de metais, como enorme serpente de coruscantes<br />
escamas.<br />
Com o espírito livre, em asa aberta, eu procuro<br />
arrancar das vozes mudas, inexprimíveis da Natureza,<br />
significações.<br />
Campo e Mar estendem-se até longe, ao infinito<br />
horizonte, fulgurando às luxuosíssimas sedas do sol.<br />
Elevados cômoros de areias alvas, ao longo das<br />
praias, conservam a aparência de grandes dorsos de<br />
elefantes brancos deitados.<br />
Então, um ritmo me sobe da alma ao cérebro para<br />
me afinar os pensamentos em aspectos felizes,<br />
luminosos, como quando os alemães, fumando cachimbo
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 355<br />
e bebendo cerveja, por entre uma leve névoa ideal de<br />
fumo e álcool, mentalmente produzem filosofias...<br />
Como essas raças finas e louras a que nada mareia<br />
a pureza clara da carne civilizada, a idéia da Arte surgeme,<br />
alvorece-me no espírito, diante das ondas, sideral,<br />
imaculada, como uma doce monja vestida de linho branco<br />
e virgem.<br />
Estranhos, misteriosos, na magia dos feiticeiros<br />
caldeus, com o pensamento cristalizado na Forma, sinto<br />
que me ferem o cérebro, pesando fundo sobre ele, os<br />
nevropatas de agudeza psíquica, mórbida, doentia, os<br />
psicólogos tenebrosos que, como Huysmans, vibram num<br />
eletrismo histérico, numa dança macabra, satânica, num<br />
deliriutm tremens de sensações.<br />
Ninfomaníacos mentais, como que sob a impressão<br />
de um sono de morfina ou de ópio, numa alucinação ou<br />
fascinação de hipnotizados, a alma deles flutua, desce<br />
sombriamente lá abaixo, ao antro negro da Terra, ou<br />
sobe lá acima, à infinita mudez do céu, como que em<br />
busca, sinistros e luminosos, revoltados Moisés de uma<br />
Bíblia nova, em busca de saber qual a doença que dá a<br />
Morte...<br />
Sente-se-lhes isso na tortura da prosa, no<br />
funambulesco cabriolar do estilo, na acre violência das<br />
palavras, abertas umas em chagas e escorrendo sangue,<br />
outras brancas como Noivas amadas derramando<br />
lágrimas astrais...<br />
E, dentre esse exalar de vida espiritual dolorosa,<br />
rompem coros de catedrais entoados por veladas, místicas<br />
vozes freiráticas; ouvem-se Missas negras e abrem-se,<br />
num ritual cristão, para a contemplação dos áugures e<br />
dos símbolos, os medievos Hagiológios.
356 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
NO FAETON<br />
Na manhã fria, fresca de maio, por uma rua areada,<br />
um nobre esplendor de mulher iluminou-me e<br />
surpreendeu-me os olhos.<br />
Numa elegância de pelúcias claras, o seu perfil<br />
delicado, um biscuit d’arte, surgia em flor no faeton, alta<br />
a estatura, sobre as moles almofadas, a cabeça serena,<br />
com a graça educada de amazona espiègle.<br />
Nos amplos largos de aspecto arejado de gare, sob<br />
o espaço vibrante, sonoro como uma grande cúpula de<br />
cristal, o faeton girava, de manso, na doce flexão das<br />
rodas leves, como se girasse sobre macias relvas de<br />
veludo.<br />
Os cavalos normandos, lustrosos no cetim do pêlo,<br />
davam a correção, o tom das carruagens de molas<br />
flexíveis, suaves, das envernizadas caleches<br />
aristocráticas de luxo, cujos claros e polidos metais dos<br />
eixos cinti1am.<br />
Com uma linha fidalga ela manobrava as rédeas,<br />
nuns volteios audazes e galantes, a mão fremente,<br />
agitada, convulsa pelo ferir matinal do frio no sangue<br />
novo de gazela, com a orgulhosa atitude das ecuyères.<br />
Algumas atenções paravam diante desse feminil<br />
deslumbramento desabrochado ao sol em aromas e<br />
formosura.<br />
No ar nítido, azul, fino do dia, duma limpidez<br />
deliciosa, o seu esbelto porte nervoso vinha ereto, num<br />
alto-relevo, destacando forte no fundo luminoso,<br />
transparente da manhã, como que cortado, talhado numa<br />
lâmina de vidro.
RITOS<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 357<br />
À luz lirial da Lua abre a tu’alma, artista, como<br />
um solar antigo.<br />
Sob a névoa luminosa do grande astro noctâmbulo,<br />
as visões que um dia amaste aparecerão agora.<br />
Ah! a tu’alma é um antigo solar, onde mulheres<br />
prodigiosas, enfioradas de beleza, peles finas,<br />
transparentes, de delicadezas de porcelana, passaram.<br />
És um solar antigo...<br />
Tens o ar enevoado do crepúsculo de melancolia<br />
que há nos velhos solares.<br />
Alguma coisa de nostálgico, de evocativo, como<br />
vagos sons plangentes, à noite, ou à hora do Angelus, na<br />
solidão dos campos, levanta e acorda a tu’alma.<br />
Teu coração é o Sagrado Viático, mais puro e<br />
branco que as claras hóstias.<br />
De que fundo de civilização, de que ramo de raça,<br />
de que regiões vieste assim, numa original sensação de<br />
nervos, palpitante, convulso como o mar e como o mar<br />
sereno e também como o mar profundo e grande?!<br />
Pelas tuas idéias, pelos teus olhos fatigados de<br />
ver e perceber de perto o incoercível mundo, passam as<br />
alegrias, as lágrimas, o intenso viver de muitas gerações.<br />
E tu representas bem todas elas, és a essência<br />
espiritual de infinitas camadas humanas, o luminoso<br />
requinte dessas gerações que findaram e que não foram<br />
mais do que simples moléculas para formar o teu<br />
estranho, poderoso organismo de artista.<br />
Sofreram, gozaram e pensaram – para que tu sobre<br />
elas fizesses nascer, surgir o mundo virgem das tuas<br />
impressões e idéias.<br />
E é por isso, artista, que abres a tu’alma, como<br />
um solar antigo, à luz lirial da Lua – apaixonada sultana<br />
que vaga à noite, que vigia e vela pelas Religiões<br />
incomparáveis do Pensamento, seguida do fulgurante<br />
cortejo das estrelas odaliscas...
358 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
MULHERES<br />
Magnólias de aroma tépido, finos astros, que elas<br />
sejam, olhos fascinantes, como águas dormentes de<br />
delicioso Danúbio que a luz sonoriza e doura, humildes<br />
e imperiosas, ninguém jamais saberá o mistério que as<br />
envolve...<br />
Amar e gozar as nebulosas mulheres, mergulhar,<br />
engolfar a alma infinitamente, inefavelmente, em<br />
repouso, como num harmonioso luar, sem sobressaltos<br />
e ansiedades, na alma enevoada que elas ocultam<br />
sempre, só é dado às naturezas vulgares, que amam<br />
com a carne, que amam com o sangue apenas, no ímpeto<br />
brutal de todos os instintos, com a luxúria viva da carne,<br />
que fazia, desde os romanos, a carne viçosa e rica.<br />
Os que as amam e gozam sensualmente, à lei da<br />
sexualidade, não lhes ouvem a vaporosa música<br />
embriagante do vinho dos encantos da voz e do sorriso;<br />
não lhes sentem o perfume delicado de úmidas bocas,<br />
purpúreas, de níveos colos cor de camélia, de veludosos<br />
seios macios como a alva plumagem fresca de um pássaro<br />
real; não lhes percebem o amoroso ansiar de etérea<br />
cintilação de estrela nos olhos indagadores, que<br />
atravessam, costumam passar em visão, pesados de luz,<br />
com o brilho aceso e fagulhante de preciosas e raras<br />
pedrarias, as geladas noites brumosas do Ciúme...<br />
Para esses, que só as possuem sexualmente, elas<br />
trazem um deleite, um atrativo, como no Oriente o fumo,<br />
que dá prazeres insubstituíveis, voluptuosas graças de<br />
viver, atila e acende a imaginação, faz abrir e flamejar,<br />
incomparavelmente, para todos os pontos do mundo, os<br />
mais inauditos sóis do Espírito...<br />
Esses, ainda outros ou todos, poderão decerto<br />
inundar-se no esplendor da beleza das mulheres, fruir<br />
delas toda a fremente carícia, possuí-las, dominá-las<br />
sem hesitações e embaraços estranhos.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 359<br />
Para todos elas não terão sombrias torcicolosidades<br />
de serpente, anseios, anelos indecifráveis, enigmas<br />
tremendos, que nos deixam deslumbrados, extáticos, na<br />
mais intrincada rede de perplexidades.<br />
Elas serão para todos o eterno feminino, leve,<br />
simples, fácil na conquista, fácil na vitória, tendo para<br />
os homens os arrastamentos prontos de um animal que<br />
se abandona à lubricidade.<br />
Ninguém saberá ver nas mulheres esse complicado<br />
segredo de nervos, que ora se patenteia claro e penetrável<br />
e que ora mais se condensa, se intensifica de<br />
obscuridade, torturando, afligindo, vago, abstrato como<br />
a dor e por isso ainda mais terrível, mais esmagador e<br />
frio...<br />
Só um ser, consubstanciação de todas as<br />
angústias, de todas as incertezas e dilaceramentos do<br />
espírito, um ser contemplativo, amargurado pelas<br />
análises, ferido sempre pela observação, pelas idéias<br />
que sangram e vivem perpetuamente a martirizá-lo, para<br />
o seu gozo excêntrico e único, só esse ser as<br />
compreenderá, mudo e solene, encerrado na solidão dos<br />
seus pensamentos, como um missionário, alheio às<br />
exterioridades dos corpos delas, às linhas, ou só as<br />
amando por sentimento estético e analisando<br />
continuamente, sondando, perscrutando o feminino<br />
organismo dúbio.<br />
Só a psicologia desse ser, que é o artista, saberá<br />
ver fundo o delicado ser das mulheres e penetrar nas<br />
sutilezas, nas direções variadíssimas e múltiplas que<br />
toma o seu espírito, à maneira das aves que voam alto,<br />
sem rumo, além, indefinidas na distância...<br />
Esse poderá querê-las muito, adorá-las com outra<br />
chama sagrada; mas nunca as poderá amar carnalmente,<br />
friamente com os nervos – porque aparecerá sempre o<br />
analista sufocando o afeto espontâneo que não se<br />
delimita nem regulariza, o entendimento artístico, que
360 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ama a Forma, destruindo o fator humano que fecunda a<br />
Carne, que perpetua a Espécie.<br />
Quanto mais elas forem complexas, segredantes,<br />
misteriosas, tanto mais a análise se manifestará mais<br />
arguta, mais penetrante, de um modo experimental, nu,<br />
amplo; e as mulheres, afinal, ficarão diante do artista<br />
como documentos palpitantes de uma dada natureza,<br />
provas flagrantes de paixões veementes, de desejos, de<br />
vontades, de uma infinidade de atributos e qualidades<br />
radicalizadas na alma feminina e que o pensamento do<br />
artista investiga, conhece, põe para fora, a toda a luz,<br />
como se expusesse, na presença do mundo, explicando<br />
a função de cada um, os milhares de glóbulos de sangue<br />
que circulam no organismo humano.<br />
A dor de tudo isso, porém, a pungitiva dor de tudo,<br />
é que o artista não pode, assim como todos<br />
espontaneamente amar.<br />
Ele ama um golpe de luz, um olhar, a fascinação<br />
de uns cabelos quentes, a polpa virgem de uns seios, a<br />
graça idealizante e alada de um sorriso, o talho vermelho<br />
de uns lábios frescos, o tom das elegâncias fidalgas<br />
dessas Flores escarlates das Babéis do ouro, que passam<br />
na corrente das civilizações e na febre, no delírio dos<br />
luxos fortes.<br />
Vendo para dentro de si, como para o fundo de<br />
um mar prodigioso, ele domina com o olhar perscrutante,<br />
inquieto, que apanha de pronto as situações, a<br />
maravilhosa ductilidade das mulheres, vendo também<br />
perfeita e singularmente o que se dá dentro delas, as<br />
suas inquietitudes, as suas impaciências, os seus<br />
receios, os seus caprichos inesperados, as suas<br />
volubilidades doentes e curiosas, as suas resoluções<br />
bruscas, os seus ímpetos de leoa, os seus<br />
enternecimentos ingênuos e monocordes, os seus<br />
momentos horríveis de crise hiper-histérica, sem causa<br />
determinada, sem assinalamentos de origem, mas<br />
assoberbantes, convulsos e que de repente cessam como
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 361<br />
vieram, para tornarem ainda, mais desabridos e<br />
persistentes.<br />
As mulheres, para o artista, para a estesia<br />
exigente, requintada, são apenas um elemento de<br />
sugestão estética amoldável às necessidades artísticas<br />
do sugestionado. Elas falam, abrem-se mesmo ao amor<br />
em rosas fecundas de sinceridade, dizem os ardores<br />
apaixonados, as recônditas sensações, a vida íntima do<br />
seu afeto; mas o artista as ouvirá, como artista que é, a<br />
frio, simulando interesse, formando já, mentalmente,<br />
com as palavras delas, com essa confissão franca, pura<br />
e sentida, embora, verdadeiras páginas de emoção e<br />
estilo.<br />
E, no entanto, ele as quererá amar muito,<br />
eternamente e sem reserva, abrir-lhes os braços ao<br />
amor, com todas as forças másculas, vigorosas e livres<br />
de homem, com a firmeza mais casta dos carinhos e das<br />
ternuras, estremecendo-as, idolatrando-as.<br />
Mas, um ligeiro contacto apenas, um leve roçar<br />
de lábios, um abraço desfalecido, murcho, algumas<br />
frases balbuciadas materialmente, ao acaso – e aí estará<br />
de novo o mentalizado, o espiritual, descendo a<br />
investigações, medindo cada gesto e cada olhar, inquieto,<br />
aflito com a expressão de um toque de luz numa trança<br />
de cabelos, que ele quer levar para a sua Obra ou<br />
preocupado com o fino Sèvres que fulgurou uma noite<br />
em certo boudoir, faiscando centelhas de astro.<br />
Contudo, quando esse luminoso torturado as vê<br />
descendo ou subindo os átrios claros de palácios festivos,<br />
altas Valquírias de neve nas pompas orgulhosas das<br />
sedas que roçagam, como que fica preso, magnetizado<br />
por aqueles aromas fluidos, vivendo na auréola majestosa<br />
do clarão que elas de si desprendem; e então como que<br />
na cauda constelada e rojante os fulgores sedosos levam<br />
aspirações, sonhos que ficam errantes e que quereriam<br />
talvez subir ou descer, opulentamente, com as deusas
362 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
resplandecentes, os mesmos festivos palácios de átrios<br />
claros.<br />
Entretanto, não é aí o amor o sentimento que se<br />
manifesta ainda na alma artística, não é uma expansão<br />
afetiva – mas uma verdadeira expressão d’arte, um<br />
desejo de posse, que logo invade as naturezas<br />
dominadoras, altivas, onde as idéias predominam,<br />
atuando, fatais e intensas, nos fenômenos da Vida os<br />
mais elementares ainda.<br />
O que excita o artista, seja nos átrios claros de<br />
palácios ou em toda a parte, é simplesmente a Forma, é<br />
toda essa roupagem deslumbrante que faz as mulheres<br />
parecerem auroras boreais; o que lhe incita a pensar<br />
nelas, a desejá-las, é a plástica olímpica, o onipotente<br />
esplendor das curvas cinzeladas, os mármores coríntios,<br />
o alabastro dos corpos flóreos. O que o surpreende, deixa<br />
atraído e fascinado, é o luar gelado da carne alva das<br />
louras, que deliciam, o ardente sol tropical da carne<br />
tentadora das morenas, que cheiram a sândalo e matam.<br />
Amar as mulheres, profundamente, com<br />
simplicidade, com singeleza, sem cuidados latentes de<br />
observá-las a toda hora, com os mínimos detalhes, linha<br />
por linha, traço por traço, sem essa preocupação doente<br />
que as exigências do Pensamento provocam, não é para<br />
a concentração, para a contensão nervosa dos<br />
falangiários da Arte, que, de todas as coisas, querem<br />
arrancar o gérmen que necessitam, o pólen que lhes é<br />
mister para a fecundação da sua Obra.<br />
A linguagem feminina, algumas fiorituras de<br />
frases passageiras constituem, de certo modo, um tecido<br />
primoroso, os fios delicadíssimos com que a Arte<br />
contextura, urde a tecelagem da Forma.<br />
Mas o desolado psicologista do Pensamento não<br />
as pode amar com intensidade e desprendimentos<br />
espirituais, sem as querer observar sempre, desataviálas<br />
das plumagens garridas e ver-lhes, à luz, o que elas<br />
sentem e pensam de nebuloso...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 363<br />
Por isso é que muito naturalmente, por intuição<br />
própria, elas percebem que não poderão jamais amar os<br />
artistas, tendo até para eles uma repulsão como que<br />
instintiva e sendo mesmo indiferentes às suas<br />
solicitações mais veementes e calorosas.<br />
Vendo-se a cada instante o objeto das<br />
interpretações deles, reveladas através dos seus<br />
pensamentos tão recatados como os seus seios, os<br />
pudores dos seus corpos angélicos, em tantas páginas<br />
dilacerantes e impiedosas, as mulheres não buscam<br />
sistematicamente os artistas para amar, feridas nos seus<br />
orgulhos melindrosos, nas suas vaidades excessivas e<br />
principescas, nas suas finas suscetibilidades de formosos<br />
seres triunfantes e inacessíveis.<br />
Só raramente, por singularidade, uma ou outra<br />
mulher ama o artista, quando já acaso também existe<br />
nela qualquer corrente de simpatia mental, qualquer<br />
relação de afinidade que estabeleça entre ambos uma<br />
claridade e harmonia de sentimentos mais ou menos<br />
congêneres, equilibrados.
364 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
PERSPECTIVAS<br />
Naquela alvejante planura de areias salitrosas,<br />
onde o mar espumeja; naquela fulgurante extensão de<br />
praias brancas, indizíveis de pitoresco, felizes os olhos<br />
que se demoram, com o carinho, o afeto das coisas, a<br />
gozar as riquezas, o encanto, a imponência imortal dos<br />
aspectos.<br />
Mas manhãs, céus louçãos, de um leve ar azul,<br />
azotado, fresco, pacificam o porto, adoçam os horizontes,<br />
inefavelmente.<br />
Ocasos opulentos, feéricos, imprimem às tardes<br />
a mais suntuosa e serena majestade.<br />
No mar, ao largo, entram e saem navios de alto<br />
bordo, numa infinita beleza de excêntricas formas<br />
requintadas, em caprichosos estilos diversos,<br />
mastreações aparatosas, parecendo enormes aparelhos<br />
estranhos para maravilhosamente arrancarem do fundo<br />
das ondas o misterioso deus das algas, da lenda secular<br />
e virgem dos hirsutos tritões verdes.<br />
Marinheiros terrosos e fuscos, como que sujos a<br />
betume; outros louros, flamejantes do sol, do ouro<br />
cantante da pele, dão à paisagem sã, revigoradora e<br />
larga, tons álacres e acres.<br />
Das vagas, como exóticos monstros marinhos, as<br />
rubras e arredondadas cabeças das bóias, aqui e além,<br />
emergem.<br />
Os mastros avultam, enchem prodigiosamente o<br />
mar supremo, sob a flava cintilação do dia; e, assim<br />
firmes, aprumados ao alto, ao firmamento, parecem<br />
tochas imensas para a celebração do Te Deum sideral<br />
dos astros, nos templos pagãos dos navios.<br />
À noite, peregrinadoras estrelas, em claras<br />
chamas sagradas, nos espaços ardem.<br />
Uma lua virginal, aureolada de branco, irrompe,<br />
fria e magoada, com um ar antigo e desolante de
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 365<br />
histerismo atormentado, como as freiras que envelhecem<br />
nos claustros.<br />
Hálitos, vivos estremecimentos elétricos, passam,<br />
perpassam no dorso glauco das ondas que o luar então<br />
alastra...<br />
Mas, o que mais enternecidamente enleva e<br />
perturba até as lágrimas, num sentimento intenso, de<br />
recôndita vibração, é um simples lenço, um adeus febril,<br />
vertiginoso, em ânsia, que ali fica às vezes a palpitar ao<br />
sol, infinitamente, na emoção de uma alma, para a vela<br />
que vai já além confusa na distância, desaparecendo,<br />
perdida nos longes esfuminhados, infinitamente,<br />
infinitamente...
366 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
CAMPAGNARDE<br />
O dia abriu numa explosão d’oiro, dum oiro<br />
inflamado de forja, trescalando perfumes, cheirando<br />
acremente à terra.<br />
Tu, gárrula vivandeira dos prados, que ao primeiro<br />
rumor sonoro do teu coração amoroso, como ao alegre<br />
rufo bizarro de um tambor de guerra ou à esfuziante<br />
vibração matinal de uma trompa de caça, toda<br />
estremeces e fremes, voltas agora púrpura dos campos<br />
onde te fecundaste, desabrochaste e floriste logo em<br />
papoula.<br />
E voltas mais púbere, mais virtual, mais mulher,<br />
porque sorveste o leite virginal e sadio aos abundantes<br />
seios da Natureza.<br />
Quando para lá foste, o teu corpo frágil, tênue,<br />
traspassado do azulado enraizamento arterial das veias,<br />
era quase diáfano, transparente, vitrescível quase,<br />
através do qual bem facilmente a aurora coaria os seus<br />
flavos raios rútilos, como através de um delicado e<br />
aromático filó finíssimo, cor-de-rosa e translúcido.<br />
Além disso, quando para lá foste, eras infantil<br />
ainda, ainda a ave implume, e entrarias daí por diante,<br />
como por uma zona de sol, nesse luxurioso período<br />
genesíaco da mulher, quando as suas formas se ampliam,<br />
se completam e perdem essa volatilidade aérea, o<br />
borboletismo, essa tonalidade vaporosa da primitiva<br />
graça, para irem aos poucos adquirindo opulências,<br />
exuberante vigor germinativo no sangue que as alimenta,<br />
enlabareda e fecunda, arredonda e turgesce triunfais e<br />
alucinantes no colo as duas polposas saliências carnudas,<br />
das quais, em busca da instintiva subsistência, pende,<br />
mais tarde, como astros no firmamento, o encanto virgem<br />
dos filhos.<br />
Mas, agora que de lá chegas, vens florescente<br />
como a vinha verde, dum sabor de uva branca, inundada
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 367<br />
do palpitante pólen dourado da antera dos vegetais, das<br />
emanações revigorativas da planturosa paisagem.<br />
Trazes a carne amadurecida, sazonada em fruto,<br />
exalando essências de campos, sutilíssimos eflúvios de<br />
vergéis, alastrada de brilhos quentes, de elétricas faíscas<br />
narcotizantes, como se o teu imaculado torso inteiriço<br />
irrompesse, brotasse do noivado da Natureza no mesmo<br />
veemente e original impulso das árvores e rios.<br />
Perfeito, soberbamente rico e raro, Campagnarde!<br />
esse humor campestre, esse alagamento e deslumbramento<br />
de luz com que regressas da Vida, do seio<br />
livre da grande amplidão da saúde, onde tudo, afinal,<br />
são concentradas forças, pujanças novas para o sangue,<br />
renascimento para a carne.<br />
Ninguém, por certo, calcula, a ninguém sugere,<br />
por certo, a alta realidade do quanto é salutar e é nobre<br />
o supremo bem que lá se goza nos campos e como ao<br />
corpo abalado pelos inevitáveis golpes da matéria falível,<br />
resiste o espírito, o fluido nervoso, dando à existência o<br />
equilíbrio sereno.<br />
Nenhum pincel colorista, nenhuma entranhada<br />
emoção ou visão impressionista d’arte, nenhuma<br />
perceptibilidade acústica de músico poderá bem com<br />
exatidão apanhar a cor, o sentimento, a errante, dispersa<br />
harmonia que se eterifica na liberdade dos campos e<br />
que assim te penetrou pelo coração e pelos olhos,<br />
primorosamente enflorescendo e viçando no teu corpo<br />
de garça, lirial e formoso.<br />
Abres a veludosa e cerejada boca e os teus<br />
esmaltados dentes rutilam – lisos e claros – enrijados<br />
nos ares puros, nas frescas águas correntes, nos frutos<br />
castos e doces. Falas, e a tua voz, em músicas, desfolha<br />
notas da canção feliz da tu’alma; e a tua voz pelo espaço<br />
voa, voa, voa de eco em eco, infinitamente,<br />
inefavelmente, parecendo então reproduzir o teu próprio<br />
nome, Campagnarde! Campagnarde! e eternamente<br />
desdobrá-lo, arremessá-lo ao longe, por colinas e vales<br />
derramá-lo, Campagnarde! Campagnarde!
368 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
RITMOS DA NOITE...<br />
Lá fora a noite é estrelada e quente.<br />
Chego da rua. A vida ferve ainda nos cafés, com<br />
intensidade. No Londres, uns imbecis doirados de<br />
popularidade fácil, saudaram-me, e, nessa saudação,<br />
senti o ar episcopal das proteções baratas que os<br />
conselheiros costumam dar aos jovens esperançosos.<br />
Eu percebi o conselheirismo e tive uma careta,<br />
uma grimace diabólica de ironia...<br />
Oh! oh! infinitamente incomparáveis os caríssimos<br />
imbecis doirados de popularidade fácil!...<br />
* * * * * * * * * *<br />
No meu quarto, entro, enfim, agitado, da rua, com<br />
mil idéias, com mil impressões e dúvidas e fundamente<br />
considero, tenho tão estranhos monólogos mentais, que<br />
quase que me alucinam.<br />
A luz da vela, em torno à sombra do quarto, põe<br />
uma claridade velada, penumbrada, quase morta.<br />
Um retrato de Daudet, pendurado à parede,<br />
parece ter para mim piedade no seu fino perfil de Cristo<br />
alemão.<br />
Ah! por que será que na hora dos estrangulamentos<br />
supremos, quando a Dor nos alanceia e torna<br />
velhos, os objetos têm todos, para nós, uma feição<br />
singularmente diversa da que têm sempre – ou sinistra,<br />
ou agressiva, ou piedosa?<br />
Por que será que nas longas noites de desolação,<br />
quando uma ventania de desesperos sopra por trompas<br />
de bronze do nosso peito, todas as cousas desfalecem<br />
aos nossos olhos, as perspectivas se anulam, os astros<br />
loiros se apagam e a própria luz de uma lamparina ou de<br />
uma vela projeta claridade dúbia, que antes punge, que<br />
antes apunhala e dói do que ilumina!?
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 369<br />
O coração cerra-se-nos de uma névoa triste, e,<br />
como um solitário monge, põe-se a balbuciar, não sei<br />
para que mundos distantes, orações indefinidas, kyries<br />
eternos e nostálgicos, de um nebuloso sentimentalismo,<br />
que estão no fundo de todos os seres espirituais.<br />
São fluidos íntimos, virginais, da alma, que sobem<br />
para o desconhecido; são incensos inefáveis de que está<br />
cheio o turíbulo do nosso amor e que, nos lancinantes<br />
momentos em que se desmorona para nós alguma força<br />
nobre, alguma força edificante, partem candidamente<br />
para as regiões do Ideal, país jamais descoberto e que<br />
só o Pensamento logrou conhecer...<br />
Vão lá saber qual é a tecla sombria que vibra no<br />
nosso organismo em certas horas, qual é a corda que<br />
pulsa, quais os nervos que se agitam!<br />
Por uma impressionabilidade indizível, por um<br />
toque no orgulho, por uma mancha no cetim branco da<br />
Arte, lá fica uma nobre cabeça doente, sob a febre das<br />
nevroses, sentindo ebulir o sangue em chama e sentindo<br />
até que o cronômetro regular do pulso alterou a marcha<br />
das vibrações...<br />
Tudo o que nos vem às idéias são princípios de<br />
demolição, de destruição, armados das rijas couraças e<br />
das agudas lanças da sua inevitabilidade.<br />
O mundo surge-nos logo como uma formidável<br />
floresta dos tempos primitivos e só tremendos animais<br />
de uma colossal corpulência urram e bufam<br />
sanguinolentos.<br />
E a Noite, que verte fel no espírito, arrebatando-o<br />
não sei para que inferno de agitações, não sei para que<br />
tercetos do Dante, ainda mais pesadas barras de chumbo<br />
arroja sobre o florido arbusto da Crença, cujas flores<br />
luminosas já a indiferença humana calcou a pés, ou a<br />
ruidosa, jogralesca multidão dos cafés desdenhosamente<br />
cuspiu em cima.<br />
E, nessas batalhas, batalhas vivas, acres, onde o<br />
coração está eternamente a sangrar, a sangrar; nesses
370 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
rudes combates, ao mesmo tempo tão puros e fidalgos, a<br />
carne é o menos que fica ferido, os músculos são o menos<br />
que se perde, os nervos, o menos que se atrofia.<br />
O que se perde de todo é a alta penetração da<br />
Vida, do Mundo e dos Homens, para terrivelmente se<br />
adquirir uma doença amarga, aguda e dilacerante que<br />
se constitui das frias e torturosas análises e que se<br />
chama – Psicologia.
SUGESTÃO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 371<br />
Tu, quem quer que sejas, obscuro para muitos,<br />
embora, tens um grande espírito sugestivo.<br />
Os jornais andam cantando a tua verve flamante,<br />
pertences a uma seita de princípios transcendentais.<br />
Na tua terra os cretinos gritam, vociferam.<br />
Não sabem o que tu escreves. Não entendem<br />
aquilo... Palavras, palavras, dizem.<br />
Tu tens, porém, uma tal orientação, uma tão<br />
profunda firmeza artística, que não te abalas com a<br />
vozeria que se levanta. Pelo contrário! À bateria de frases<br />
ríspidas, que te assestam, rompe do teu cérebro a bateria<br />
viva das idéias. Não recuas, escreves.<br />
Tudo quanto a imaginação pode criar de imprevisto,<br />
original, surpreendente, vais arrancar à nevrose da<br />
composição, incrustar, como pedrarias, na escrita<br />
cinzelada, cujo estilo apuras e aprimoras com verdadeiro<br />
êxtase de uma devotada seita religiosa. E, apesar das<br />
frases que te dirigem, cercam-te apoteoses. E isso,<br />
conquanto simules o contrário, sempre te desvanece.<br />
Então, para que o teu esplendor seja maior e mais<br />
completo, andas a preparar um livro de estilo nobre e<br />
que, segundo pensas nas horas de nervosismo psíquico,<br />
há de fazer sucumbir no lodo da banalidade a turba<br />
triunfante dos imbecis.<br />
E assim, com a tua elevação mental e disciplina,<br />
julgas-te profundamente feliz. Não trocarias o teu espírito<br />
pela ostentação e pompas do mundo. Ah! se tu tens a<br />
pompa das idéias!<br />
O cocheiro mais agaloado e galante, guiando o<br />
mais elegante coupé tirado por éguas de raça, de amplas<br />
ancas carnudas e luzidias, cheias de nervosidades, de<br />
altivezes bourbônicas, com um fino sentimento mulheril<br />
nas linhas, tudo isso, Artista, não vale a página mais<br />
simples, mais frouxa, sem mesmo maior ornamentação<br />
de estilo, que tu, por acaso, escrevas.
372 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Nem tu trocarias todo o veio virgem do ouro do<br />
mundo pelo livro que daí a meses deve entrar para o<br />
prelo.<br />
Os reclamos soam pelos jornais, como clarins.<br />
Andam já longe. Caminham. Chega já ao domínio de<br />
todos a notícia. Há ansiedade. Espera-se a obra. Vai<br />
aparecer, brevemente, cintilando, a duas cores, em tipos<br />
Elzevires, vistosos e claros, com o teu retrato, papel satin,<br />
nas lustrosas vitrinas, acendendo um clarão em torno<br />
do teu nome, como um facho de fama.<br />
Mas, um dia, vais ao teatro, um acaso, por exemplo.<br />
Sentas-te na tua poltrona junto à orquestra. Num<br />
intervalo suas demasiadamente. Estás abafado do calor<br />
da noite tórrida. Precisas de ar, de refrigerantes. Um<br />
sorvete, um gelado.<br />
E, seguro do teu vigor de mocidade, da tua saúde<br />
e do radiante rubor do teu rosto, que é admirado na<br />
rumorosa cidade onde habitas, tomas, sem o menor<br />
receio, o gelado que te trazem.<br />
Daí sentes-te logo como que atordoado.<br />
Não estás bem. Calafrios agudos percorrem-te a<br />
espinha. Vertigens cálidas fisgam-te a cabeça. Ardemte<br />
os olhos e se umedecem sob a luz flagrante e crua da<br />
ribalta; mesmo o gás te dá mais febre; parece que te<br />
estalam as fontes, latejando fortemente – e tu não podes<br />
mais ficar, nem um instante sequer, na vasta sala<br />
iluminada e cheia da multidão matizada que formiga e<br />
aplaude.<br />
Então, um dos teus amigos te conduz à casa, já<br />
abatido e quase sem voz; e, mais tarde, passados dias,<br />
corre a dolorosa notícia – ó amargurado Espírito moderno!<br />
– de que morreste de uma pneumonia aguda...<br />
E após a tua morte ainda se haveria de contestar<br />
o teu merecimento. Muitos diriam:<br />
– Também não deixou um livro que significasse a<br />
sua individualidade.<br />
A que outros responderiam:
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 373<br />
– Mas deixou escritos em jornais.<br />
– Ora, jornais! jornais são papéis avulsos, vivem o<br />
curto espaço de um minuto ou de um segundo, e, muitas<br />
vezes, até sem os lermos, com os mais resplandecentes<br />
pensamentos contidos em suas colunas, os deitamos pela<br />
janela fora... Um livro sintetiza qualquer individualidade.<br />
Não se pode acreditar, portanto, não há documentos que<br />
atestem, criticamente, o valor intelectual desse escritor<br />
que morreu.<br />
Daí então, só o preciso decurso de tempo para o<br />
teu cadáver apodrecer na soberana indiferença da terra,<br />
aparece o teu livro, aquele mesmo onde tanto<br />
trabalhaste, que fecundaste de idéias, onde tanto<br />
derramaste o vivo poder do teu cérebro, onde consumiste<br />
uma porção de sangue e de nervos, assinado, e com<br />
outro título, por uma vulgaridade batráquia, na qual toda<br />
a gente acredita, e, oh! comparando-a contigo, acha-a<br />
mais superior, extraordinária, sem igual até.<br />
E tu, lá embaixo, ficarás, na frialdade da terra,<br />
sem nunca teres vencido! com a ironia dessa glória de<br />
néscio a rir de ti, perpetuamente, à chuva, aos vendavais<br />
e ao sol, do alto da tua cova!
374 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
SOFIA<br />
Foi na sala branca, de leves listrões d’ouro, que<br />
eu a vi interpretar um dia ao piano Mendelsohn,<br />
Schumann, as fugas de Bach, as sinfonias de Beethoven.<br />
Tinha um nome bíblico, lembrando palmeiras e<br />
cisternas: chamava-se Sofia.<br />
Era alta, de uma brancura de hóstia, como certas<br />
aves esguias que os aviários conservam e que aí vivem<br />
num grande ar dolente de nostalgia de selvas, de matas<br />
cerradas, de sombrios bosques.<br />
Nervosa, de um desdém fidalgo de fria flor dos<br />
gelos polares, e triste, traía a Arte aquele altivo aspecto,<br />
a orgulhosa cabeça ereta em frente das partituras, que<br />
os seus olhos garços liam e que os seus dedos rosados e<br />
aristocráticos executavam com perfeição, com claro<br />
entendimento nas teclas.<br />
E de todo esse nobre ser delicado, de todo esse<br />
perfil de imagem de jaspe, irradiava uma harmonia vaga,<br />
melancólica, uma auréola de pungitiva amargura, mais<br />
desolada que as sinfonias de Beethoven, como se todas<br />
aquelas músicas excelsas tivessem sido inspiradas nela.<br />
* * * * * * * * * *<br />
Ó aromas, sutilíssimas essências dos finos frascos<br />
facetados do luxuoso boudoir dessa musical Magnólia;<br />
aromas vaporosos, maravilhosos perfumes que incensais,<br />
à noite, de volúpia, a sua alcova, como as purpurinas<br />
bocas das rosas, falai a linguagem alada que as vozes<br />
humanas não podem falar e dizei os murmúrios<br />
estranhos dos sentimentos imperceptíveis, imaculados,<br />
que alvoroçam a alma ansiosa dessa sonhadora Sofia.<br />
Só os aromas, só as essências terão os eflúvios<br />
castos, os fluidos luares de expressão, o ritmo inefável<br />
para contar que latentes palpitações traz Ela no sangue,<br />
que chama d’astro lhe inflama o peito, quando volta triste<br />
dos concertos egrégios e vai enclausurar-se na alcova –<br />
muda, muda, talvez sob a névoa das lágrimas, na<br />
emovente concentração dos que morrem amando...
MANHÃ d’ESTIO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 375<br />
O azul hoje amanheceu numa melodiosa canção,<br />
duma consoladora carícia veludosa de arminho, duma<br />
doce e suavíssima frescura de maçã rosada — brunido,<br />
reluzente, como um raro bronze florentino finíssimo,<br />
vivamente cheirando a violetas, a jasmins e a rosas<br />
machucadas.<br />
Na cristalina sonoridade do côncavo páramo aberto<br />
há uma etérea música que passa em fios sutilíssimos<br />
de luz e de aroma pela sua transparência diamantina e<br />
velada, como um líquido radioso e fragrante através duma<br />
primorosa safira.<br />
E o canto de um pássaro, que além atravessa o<br />
céu, é mais brando, é mais terno, então, mais<br />
harmonioso e sereno, prende, emociona e arrebata mais<br />
porque vai cheio desta ambiente fluidez matinal, desta<br />
vaporosa e delicada tonalidade aérea, deste fino<br />
sentimento amoroso do impoluto noivado dos elementos<br />
naturais animados, destes, enfim, deliciosos tons alegres<br />
que dão um rico sabor à terra, uma vibração luminosa<br />
aos aspectos e um mais meigo encanto imaculado aos<br />
frutos que pendem das árvores e às flores que cobram,<br />
dulcificam tudo com a graça, a inefável candidez de<br />
sorrisos.<br />
Os arvoredos recortam nitidamente no ar as suas<br />
ramagens intensas, cujo verde orvalhado cintila, e as<br />
palmeiras, que mais de perto avisto, altas, sobrepujando<br />
os outros arvoredos, como a afirmação soberana do poder<br />
germinativo, aprumam-se, firmes, desdobrando no alto<br />
as suas verdejantes plumas que tremeluzem nas aflantes<br />
aragens.<br />
Na pradaria florida os gorjeios crescem, trinados<br />
festivalmente cortam o espaço, vôos, rumores d’asas,<br />
claros e argentinos ruídos frescos de rios, chiantes carros<br />
dormentes de lavouras tomando o vermelho e risonho<br />
atalho murmuroso dos campos relvosos, entre a
376 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
implorativa plangência mugidora dos tardos bois<br />
melancólicos; movimentos agrícolas de enxadas, de<br />
sachos e arados, todos os instrumentos e aparelhos<br />
rurais, cavando, mondando, preparando a terra para as<br />
culturas, avigorando-a e adubando-a, dando-lhe a larga<br />
força nutriente aos germens para que ela opere e<br />
produza, farte infinitamente a todos de sazonadas<br />
colheitas.<br />
E toda essa orquestração da Natureza e do<br />
trabalho, todas essas impetuosas, palpitantes correntes<br />
da Vida, enchem o ar de alvoroço, de alarido, duma<br />
religiosa bênção panteísta e dum cântico enlevador que<br />
desce consolativamente sobre as cousas – como se toda<br />
a seiva, vegetal e humana, estivesse na gestação<br />
poderosa, na fecunda elaboração de mundos virgens e<br />
novos.<br />
Nós, Artistas, que dissipamos toda a nossa mais<br />
bela e opulenta porção de glóbulos rubros para arrancar<br />
à Natureza a sua latente verdade; que nos embevecemos<br />
na contemplação, no misticismo do céu; que de tudo<br />
ansiamos pelas recônditas, encantadas origens; que<br />
tanta vez nos mergulhamos no azedume e na inclemente<br />
maresia do tédio, achando a vida gasta, acabada, falazes<br />
e mentidos os seus lentejoulados, fascinantes enlevos,<br />
trememos de comoção, ficamos extasiados quando essas<br />
perspectivas se nos antolham assim d’esplendor, trazendo<br />
ainda à nossa desvirilizada e já quase decadente<br />
estrutura moral um pouco de alento, heroísmo e força,<br />
de sagrada virtude de pensamento e gloriosa envergadura<br />
espiritual para a luta, hauridos a plenos sorvos nos<br />
abundantes mananciais da luz, na soberba caudal<br />
imensa da Natureza fecunda e generosa.<br />
Porque só a Natureza, germinalmente só ela, nos<br />
sabe dar à alma e ao corpo esta nobre saúde, estas<br />
estóicas atitudes épicas; porque só ela nos comunica os<br />
seus emotivos impressionismos, nos penetra os seus<br />
evangélicos, pensativos silêncios e recolhimentos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 377<br />
alpestres, tão empiricamente transvasados do neblinoso<br />
luar dos Sonhos e tão relicariamente votados ao culto<br />
como os santuários; só é dela que vem a crença robusta<br />
que nos põe no peito como que afiadas lâminas de espada<br />
para destruirmos bizarros as mil venenosas cabeças da<br />
formidável serpente da Dúvida; só ela nos veste dessa<br />
flamante irradiação de aurora da qual emergimos<br />
vitoriosos, no fluido ouro resplandecente da apoteose da<br />
Vida; e só ela, enfim, nos lava do Mal, nos purifica como<br />
a salitrosa salsugem do Mar glauco nas salutares e<br />
matinais travessias d’alacridade picante, quando se volta<br />
das ondas numa eflorescência pagã de Tritão marinho,<br />
no luminoso frescor primaveril e sonoro dum viçoso ramo<br />
silvestre ruflante de revoadas de coleiros e gaturamos<br />
cantando.<br />
Um clarim, uma trompa de caça que por aqui<br />
vibrasse, como numa pastoral da Idade Média, nesta<br />
formosa manhã perfumada, apanharia, tomaria destes<br />
murmúrios todos, pelo fenômeno acústico da recepção e<br />
transladação dos sons, como em placas fonográficas,<br />
todos os profundos e vagos ecos e os levaria então para<br />
longe – derramando-os, espalhando-os em cada placidez<br />
sedentária de sítio, em cada remanso bonançoso de<br />
campo, fazendo renascer a brava cultura ingênita das<br />
terras, palpitar o rijo pulmão d’aço do movimento<br />
incessante, pulsar, latejar vinculativamente as artérias<br />
da fecundidade e circular em tudo o sangue oxigenado,<br />
ardoroso e produtivo que gera e fortalece tudo e que não<br />
é mais do que o Sol eletricamente entranhado nas mais<br />
profundas raízes de tudo.
378 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
APARIÇÃO DA NOITE<br />
Fria aparição da meia-noite, o Luar seja contigo!<br />
Tu vens da neve, das algidezes cruas da neve; e<br />
eu não sei bem se é a neve que te faz fria ou se és tu<br />
que fazes fria a neve.<br />
Há, contudo, em ti, algum calor, que não é<br />
inteiramente a vida, mas que suaviza os apunhalantes<br />
regelos da neve; que não é o sol da tua carne, a chama<br />
do teu corpo, mas um quente raio d’estrela, a estrela do<br />
teu olhar aceso como velas místicas no recolhido e<br />
sagrado santuário de uma Capela.<br />
O luar seja contigo, seja contigo o luar emoliente<br />
e lascivo, este luar equatorial que não é dia nem noite,<br />
mas uma doce penumbra velada do sol do teu sorriso –<br />
como se sobre o sol do teu sorriso, para dulcificar a<br />
intensidade do foco da sua luz, quando tu eras astro<br />
inflamado, que ardias, força latente, matéria animada<br />
e pulsante, se houvesse colocado um transparente abatjour<br />
verde, branco, azulado e amarelado, conforme é, às<br />
vezes, a refração luminosa da Lua.<br />
Mas tu deveras aparecer-me, fria Visão da meianoite,<br />
dentro de uma redoma de cristal, por entre um<br />
resplendor de lágrimas, para eu então poder assim crer<br />
no teu encanto, no teu mistério de meia-noite.<br />
No entanto, aqui me apareces, metida em peles<br />
de Astrakan, melancólica, pálida, vaporosa, livorescida<br />
quase, como aquelas belezas apagadas e tristes que vêm<br />
dos frígidos ares desolados do Norte.<br />
Porque tu acabas de vir da Rússia agora, das<br />
fulgurantes estepes, da ostentação militar do Tzar de<br />
ferro, ouvindo os clamores da dinamite.<br />
Vens das hirtas margens do Neva para os<br />
coruscantes fogos tropicais das terras da América. E<br />
chegas ainda virginal e pubescente para a irradiação<br />
angélica do Véu, para o simbolismo cândido da Grinalda
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 379<br />
de flores de laranjeira, para a bênção serena e perfumosa<br />
do Noivado.<br />
Chegas a tempo...<br />
E se queres um noivo, se andas em busca de um<br />
noivo, aí tens, pois, o Luar, frio como essa natureza fria,<br />
e alvo, lirialmente alvo, como tu.<br />
Aí tens o Luar...<br />
Envolve-te na sua clâmide de linho, mergulha-te<br />
nos seus flocos de prata, ó meiga Eslava triste, meu<br />
desmaiado amor e heliotropo branco dos sonhos, que<br />
aqui vieste findar eternamente a vida nessa nostálgica<br />
doença nervosa de melancolia que trouxeste do teu país<br />
polar, muito longe nos gelos, e que até te dá já a névoa<br />
densa, a espessa nuvem dolorosa das ilusões que se<br />
transformam em nuvens.<br />
Vens para sempre extinguir-te sob estes tórridos<br />
mormaços, nessa doença histérica de que ninguém na<br />
tua pátria pôde decerto determinar a pungentíssima<br />
origem, e que não é mais, nada mais é, talvez, do que a<br />
doença do clima, do spleen das tardes, das exaustas<br />
paisagens sem seiva; as displicências amargas à hora<br />
dos longos ocasos taciturnos, quando adormecidamente<br />
as campinas e as planícies incultas nevam e o horizonte<br />
é de uma trespassante angústia crepuscular que desola...<br />
Aí tens o luar...<br />
Cobre-te nessa musselina fúlgida, veste essa<br />
finíssima gaze diáfana...<br />
Abre os primorosos olhos de Madona, castíssimos,<br />
chorosos e macerados, e absorve pelos cílios todo este<br />
nosso fluido e luxuoso azul; e fecha depois esses teus<br />
primorosos olhos também azuis...<br />
Sorri ainda uma vez, como num supremo frêmito<br />
final de ave ferida no peito; agita amorosamente,<br />
languescidamente, numa poeirada d’ouro, como na<br />
última noite de beijos da remota paixão que se foi, a<br />
loira e divina cabeça astral, leonina e doirada; tem um<br />
derradeiro estremecimento convulsivo e sonoro de cordas
380 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
d’harpa em todo o níveo corpo; cerra à música celeste,<br />
eucarística da voz para sempre os lábios, e, assim, nesse<br />
lácteo nimbo seráfico da Lua, fica em êxtase, na doce,<br />
na infinita quimera misteriosa da Morte, numa leve graça<br />
idealizante e alada de vôo etéreo de Querubins, como<br />
quem está dormindo ou como um sol que empederniu e<br />
gelou...<br />
Fria Aparição da meia-noite, o Luar seja contigo!
ESTESIA ESLAVA<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 381<br />
Como os embriagados de cava da Polinésia vou<br />
tartamudeando e soluçando sob as paixões, ó águia,<br />
Águia Germânica, imperiosa e doirada!<br />
Uma estranha harmonia de “Dança Macabra” de<br />
Saint-Saens me entorpece e invade em lágrimas negras<br />
de notas.<br />
Todo o meu pensar e sentir estacou de súbito<br />
agora, como um nervoso cavalo da Arábia a que se refreia<br />
o bridão, diante da tua plumagem d’oiro, da tua rija<br />
envergadura d’asa valente – ó águia! doirada Águia<br />
humana e Germânica, que tudo de mim para sempre<br />
levas, Esperanças e Sonhos, impetuosamente arrebatado<br />
no alto, ao impulso fremente das tuas garras alpinas.<br />
E eu fico em ânsias no vácuo, num vago anelar<br />
indefinido, como a aspiração do perfume que quer ser<br />
luz...<br />
Mas, um pedaço de horizonte ao longe marcando<br />
as infinitas distâncias e uma língua de terra aprumada<br />
em monte, tornam-me tangível o sentimento da<br />
realidade; e, então, claramente vejo e sinto, desiludido<br />
das Cousas, dos Homens e do Mundo, que o que eu<br />
supunha embriagamento, arrebatamento de amor nas<br />
tuas asas, ó loira Águia Germânica! nada mais foi que o<br />
sonambulismo dum sonho à beira de rios marginados de<br />
resinosos aloendros em flor, na dolência da Lua nebulosa<br />
e fria, à alta paz do Azul, sob as pestanejantes estrelas<br />
rutilantemente acesas...
382 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
TÍSICA<br />
Lângüida e loura, tinha, na verdade, um ruidoso<br />
e festivo acordar de canários.<br />
Quando o dia vem triunfalmente cantando por<br />
todas as gargantas de oiro dos pássaros, perfumado por<br />
todos os prados de rosas, rumorejando por todos os<br />
sonoros veios cristalinos de fontes, Ela erguia-se também<br />
do leito, cantando, numa alegria comunicativa que<br />
iluminava tudo e ia para o piano soluçar ao teclado lindas<br />
barcarolas de valsas.<br />
Quanta vez a ouvi, e quantas outras a vi no résdo-chão<br />
que enfrentava a minha morada, sempre com<br />
um vermelho esmaecido, manchado, em ambas as faces.<br />
Como era feliz, e que ruidoso e festivo acordar de<br />
canários tinha Ela!<br />
* * * * * * * * * *<br />
Chegou, afinal, o Inverno.<br />
A emigração das andorinhas começa em vôos<br />
incisivos, que frisam os espaços translúcidos de ruflagens<br />
d’asa...<br />
Os grandes frios pedem as grandes capas de lã<br />
para as mulheres, os confortáveis regalos de pelúcia, as<br />
luvas, que agasalham, que protegem as mãos, os pardessus<br />
e os largos fichus para a cabeça.<br />
Desprendem-se já do éter as fortes lestadas de<br />
vento e chuva, destruidoras e rijas, arrepiando e<br />
convulsivamente contorcendo os galhos das árvores, que<br />
amarelecem.<br />
Amanhece-se tiritando sob o fulgurante ar frígido<br />
das geadas, que nevam os plácidos campos.<br />
E, lá, acima das serras altas, nas desprotegidas<br />
cabanas onde a miséria habita, tiritam também de frio<br />
e desamparadamente morrem, com uma chama azul no<br />
olhar vítreo, as louras e morenas virgens tísicas que na
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 383<br />
estação passada levaram a trabalhar nos rudes amanhos<br />
da lavoura e a mourejar nas longas vigílias amargurosas<br />
da agulha.<br />
* * * * * * * * * *<br />
A tísica! A tísica! Essa doença simbolicamente<br />
dolorosa e triste, que devasta os lares como os cortantes<br />
invernos devastam a searas! Doença artística e desolada,<br />
que dá um aspecto eminentemente romântico a todas<br />
as mulheres, como àquela violeta de Parma, flor dolente<br />
e venenosa do Amor, essa Margarida Gautier, roxo lírio<br />
inefável de melancolia plantado à margem de lagos<br />
furtacores de quimeras e que a mais abrasadora paixão,<br />
a febre mais intensa, o tufão ardente de um fundo e<br />
desvairado sentimento para sempre emurcheceu e<br />
desfolhou!<br />
Doença amarga! que soturnamente devorando os<br />
pulmões, põe em redor de quem a sofre um magoado<br />
impressionismo de saudade e uma névoa gelada de<br />
sepulcro...<br />
E as virgens, que morrem dessa doença tão<br />
atormentadora e serena ao mesmo tempo, levam para o<br />
túmulo, na crispação dos lábios entreabertos e violáceos,<br />
como derradeira e a mais pungente ironia da Dor, o<br />
desmaiado sorriso da última esperança, do último sonho,<br />
da última ilusão que tiveram sobre a Terra.<br />
me.<br />
* * * * * * * * * *<br />
Há muitos dias já que não a vejo, a lângüida Loura.<br />
Não sei por quê, mas a sua ausência inquieta-<br />
Eu quisera sempre vê-la, como dantes, pálida,<br />
lângüida e loura, com um vermelho esmaecido,<br />
manchado, em ambas as faces.<br />
Porém ela não aparece, não vai, como então,<br />
sentar-se ao piano, no luminoso purpurear das manhãs,
384 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
fazendo soluçar no teclado lindas barcarolas de valsas.<br />
E isso punge-me n’alma de tal modo que eu procuro saber<br />
o que é feito dela e dizem-me que adoeceu.<br />
– Adoeceu! E de quê?<br />
– Está tísica. O médico diz que não durará muito.<br />
– Tísica! Tão moça e tão bela! E que ar festivo<br />
tinha ela. Como cantava! Que sonoridade de voz! E tudo<br />
isso agora acabar, morrer...<br />
* * * * * * * * * *<br />
É certo, aflitivamente certo o que me disseram.<br />
Ela vai morrer!<br />
Vejo-a continuamente de uma palidez clorótica,<br />
os olhos de um brilho cru, agudo, que faz febre; as orelhas<br />
diáfanas, muito despegadas do crânio; o nariz cada vez<br />
mais afilado e desfalecido; toda ela de uma amarelada<br />
transparência de morte, duma magreza hirta, como essas<br />
santas mártires do cilício que vivem nos claustros<br />
fechados e austeros de pedra, olhando entre grades para<br />
céus fuscos, com olhos cheios dos fluidos místicos do<br />
Panteísmo, e que parecem subir, através de nimbos, além,<br />
às empíreas regiões dos excelsos arcanjos alvos de luz...<br />
Vejo-a, constantemente, através de vidraças, sem<br />
brilho de vida quase, como um astro vesperal prestes a<br />
apagar para sempre todo o seu clarão diamantino e<br />
virgem.<br />
E, no entanto, nos intervalos lúcidos da doença,<br />
que lhe abrem no peito, às Esperanças, como um<br />
esplendor de força nova, de vigorosa saúde, o piano vibra<br />
de quando em quando, sob as suas mãos febris, trêmulas,<br />
nervosas e cadavéricas, alguma melodia triste de<br />
casuarinas gementes, um desvairamento histérico de<br />
lágrimas, a fina música nostálgica do fim de tudo – talvez<br />
essa suspirante serenata de Schubert, cujo ritmo<br />
saudoso tão fundamente nos invade a alma e a entristece<br />
e no qual parece haver gritos e soluços de amor<br />
entrecortados pela agonia torturante da Morte...
ORAÇÃO AO MAR<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 385<br />
Ó mar! Estranho Leviatã verde! Formidável pássaro<br />
selvagem, que levas nas tuas asas imensas, através do<br />
mundo, turbilhões de pérolas e turbilhões de músicas!<br />
Órgão maravilhoso de todos os nostalgismos, de<br />
todas as plangências e dolências...<br />
Mar! Mar azul! Mar de ouro! Mar glacial!<br />
Mar das luas trágicas e das luas serenas, meigas,<br />
como castas adolescentes! Mar dos sóis purpurais,<br />
sangrentos, dos nababescos ocasos rubros! No teu seio<br />
virgem, de onde derivam as correntes cristalinas da<br />
Originalidade, de onde procedem os rios largos e claros<br />
do supremo vigor, eu quero guardar, vivos, palpitantes,<br />
estes Pensamentos, como tu guardas os corais e as algas.<br />
Nessa frescura iodada, nesse acre e ácido salitre<br />
vivificante, Eles se perpetuarão, sem mácula, à saúde<br />
das tuas águas mucilaginosas onde geram-se prodígios<br />
como de uma luz imortal fecundadora.<br />
Nos mistérios verdes das tuas ondas, dentre os<br />
profundos e amargos Salmos luteranos que elas cantam<br />
eternamente, estes Pensamentos acerbos viverão para<br />
sempre, à augusta solenidade dos astros resplandecentes<br />
e mudos.<br />
Rogo-te, ó Mar suntuoso e supremo! para que<br />
conserves no íntimo da tu’alma heróica e ateniense toda<br />
esta dolorosa Via-Láctea de sensações e idéias, estas<br />
emoções e formas evangélicas, religiosas, estas rosas<br />
exóticas, de aromas tristes, colhidas com enternecido<br />
afeto nas infinitas aléias do Ideal, para perfumar e florir,<br />
num abril e maio perpétuos, as aras imaculadas da Arte.<br />
Em nenhuma outra região, Mar triunfal! ficarão<br />
estes Pensamentos melhor guardados do que no fundo<br />
das tuas vagas cheias de primorosas relíquias de<br />
corações gelados, de noivas pulcras, angélicas, mortas<br />
no derradeiro espasmo frio das paixões enervantes...
386 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Lá, nessas ignotas e argentadas areias, estas<br />
páginas se eternizarão, sempre puras, sempre brancas,<br />
sempre inacessíveis a mãos brutais e poluídas, que as<br />
manchem, a olhos sem entendimento, indiferentes e<br />
desdenhosos, que as vejam, a espíritos sem harmonia e<br />
claridade, que as leiam...<br />
Pelas tuas alegrias radiantes e garças; pelas<br />
alacridades salgadas, picantes, primaveris e elétricas<br />
que os matinais esplendores derramam, alastram sobre<br />
o teu dorso, em pompas; pelas convulsas e mefistofélicas<br />
orquestrações das borrascas; pelo epiléptico chicotear,<br />
pelas vergastantes nevroses dos ventos colossais que te<br />
revolvem; pelas nostálgicas sinfonias que violinam e<br />
choram nas harpas da cordoalha dos Navios, ó Mar!<br />
guarda nos recônditos Sacrários d’esmeralda as Idéias<br />
que este Missal encerra, dá-o, pelas noites, a ler às<br />
meditadoras Estrelas, à emoção dos Angelus<br />
espiritualizados e, majestosamente, envolve-o, deixa que<br />
Ele repouse, calmo, sereno, por entre as raras púrpuras<br />
olímpicas dos teus ocasos...
Evocações<br />
Evocações
388 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Les seuls vivants méritant le nom d’Artistes<br />
sont les créateurs, ceux qui éveillent des impressions<br />
intenses, inconnues et sublimes.<br />
VILLIERS DE L’ISLE ADAM, L’Ève Future<br />
INICIADO<br />
Desolado alquimista da Dor, Artista, tu a depuras,<br />
a fluidificas, a espiritualizas, e ela fica para<br />
sempre, imaculada essência, sacramentando<br />
divinamente a tua Obra.<br />
Pedrarias rubentes dos ocasos; Angelus piedosos<br />
e concentrativos, a Millet; Te Deum glorioso das<br />
madrugadas fulvas, através do deslumbramento<br />
paradisíaco, rumoroso e largo das florestas, quando a<br />
luz abre imaculadamente num som claro e metálico de<br />
trompa campestre – claro e fresco, por bizarra e medieval<br />
caçada de esveltos fidalgos; a verde, viva e viçosa<br />
vegetação dos vergéis virgens; os opalescentes luares<br />
encantados nas matas; o cristalino cachoeirar dos rios;<br />
as colinas emotivas e saudosas – todo aquele esplendor<br />
de colorida paisagem, todo aquele encanto de<br />
exuberância de prados, aqueles aspectos selvagens e<br />
majestosos e ingênuos, quase bíblicos, da terra<br />
acolhedora e generosa onde nasceste – deixaste, afinal,<br />
um dia, e vieste peregrinar inquieto pelas inóspitas,<br />
bárbaras terras do Desconhecido...<br />
Vieste da tua paragem feliz e meiga – amplidão<br />
de bondade patriarcal, primitiva – mergulhar na onda<br />
nervosa do Sonho, que já de longe, dos ermos rudes do<br />
teu lar, fascinava de magnéticos fluidos, de<br />
imponderados mistérios, o teu belo ser contemplativo e<br />
sensibilizado.<br />
Chegas para a Via-Sacra da Arte a esta avalanche<br />
imensa de sensações e paixões uivantes, roçando esta
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 389<br />
multidão insidiosa, confusa, dúbia, que de rastos, de<br />
rojo, burburinha, farejando ansiosamente o Vício.<br />
Vens ainda com todo o sol fremente do teu solitário<br />
firmamento provinciano na carnação vigorosa de forte,<br />
de virilizado naqueles ares; trazes ainda no sangue aceso<br />
a impetuosidade dos lutadores alegres e heróicos e ainda<br />
todo esse organismo desenvolvido livremente nos campos<br />
respira a saúde brava daquela atmosfera casta e verde,<br />
dos amplos céus úmidos da tinta fresca das manhãs,<br />
aguarelados delicadamente de claro azul.<br />
Mas, daí a pouco, uma vez imerso completamente<br />
na Arte, uma vez concentrado definitivamente nela, todo<br />
esse brilho e viço vitoriosos, por uma surpreendente<br />
transfiguração, desaparecerão para sempre, e então, tu,<br />
lívido, trêmulo, espectral, fantástico, terás o<br />
impressionante aspecto angustioso e fatal do lúgubre<br />
aparato de um guilhotinado...<br />
A Arte dominou-te, venceu-te e tu por ela deixaste<br />
tudo: a viva, a penetrante, a tocante afeição materna,<br />
de um humano enternecimento até as lágrimas, até a<br />
morte, até o sacrifício do sangue. Por ela deixaste esse<br />
afeto extremo, louco, quase absurdo, de tua mãe – cabeça<br />
branca estrelada de amarguras, Espírito celestial do<br />
Amor, aquela que, nas miragens infinitas e nas<br />
curiosidades enigmáticas da Infância, santificou, ungiu<br />
o teu corpo com o óleo sacrossanto dos beijos.<br />
Tudo esqueceste, para vir fecundar o teu ser nos<br />
seios germinadores da Arte. E, quando alimentado,<br />
quando conquistado e vencido por ela, quiseres voltar<br />
depois aos braços acariciantes de tua mãe, num risonho<br />
movimento de afetiva alegria, clara, fresca, espontânea,<br />
sadia e simples como a de outrora, esse movimento lhe<br />
parecerá funesto e acerbo, como o ríctus de uma caveira,<br />
sem jamais o antigo encanto e frescura.<br />
E tu, então, surgirás para ela como a sombra, o<br />
fantasma do que foste, um desvairado, perdido, errante<br />
na Dor – tais e tantas serão em ti as duras rugas,
390 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
imprevistas e prematuras, para sempre pungitivamente<br />
produzidas pelo dilaceramento da Paixão estética.<br />
Mas tua mãe te falará das bizarras correrias da<br />
tua mocidade, mais florida e mais virgem do que um<br />
campo de rosas brancas nas agrestes regiões onde<br />
nasceste.<br />
E a alma da tua mocidade, a tua jovem bravura de<br />
mocidade, andará, vagará já, errando, errando,<br />
esquecida do mundo, como um solitário monge, através<br />
dos longos e sombrios claustros da Saudade.<br />
E, não só tua mãe, mas teus irmãos, teu pai, todos<br />
os teus te olharão depois, secretamente abalados, como<br />
a um desconhecido, sentindo, por vago instinto, que os<br />
caracteres ignotos e supremos do teu ser não são apenas,<br />
elementarmente, os mesmos caracteres da simples e<br />
natural consagüinidade; que tu, por mais unido que<br />
estejas a eles por laços inevitáveis, fatais, estás longe,<br />
afastado deles a teu pesar, sem malícia, de alma<br />
desprevenida e sã, como as estrelas nas soberanias<br />
transcendentes da sua luz estão para sempre afastadas<br />
da obscura Terra. E tudo isso por andares atraído por<br />
forças redentoras, perdido nos centros fascinantes do<br />
absoluto sentir e do absoluto sonhar!<br />
Agora, ainda trazes a alma como a mais excêntrica<br />
flor do Sol, com todas as febrilidades e deslumbramentos<br />
do Sol – flor da força, da impetuosidade das seivas, aberta,<br />
rasgada em rubro, viva e violenta a vermelho, cantando<br />
sangue...<br />
Porém, se és vitalmente um homem, e trazes o<br />
cunho prodigioso da Arte, vem para a Dor, vive na chama<br />
da Dor, vencedor por senti-la, glorioso por conhecê-la e<br />
nobilitá-la. Tira da Dor a profunda e radiante serenidade<br />
e a solene harmonia profunda. Faze da Dor a bandeira<br />
real, orgulhosa, constelada dos brasões soberanos da<br />
poderosa Águia Negra do Gênio e do Dragão cabalístico<br />
das Nevroses, para envolver-te grandiosamente na Vida<br />
e amortalhar-te na Morte!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 391<br />
Vem para esta ensangüentada batalha, para esta<br />
guerra surda, absurda, selvagem, subterrânea e soturna<br />
da Dor dos Loucos Iluminados, dos Videntes Ideais que<br />
arrastam, além, pelos tempos, para os infinitos do<br />
incognoscível futuro, as púrpuras fascinadoras das suas<br />
glórias trágicas.<br />
Se não tens Dor, vaga pelos desertos, corre pelos<br />
areais da Ilusão e pede às vermelhas campanhas abertas<br />
da Vida e clama e grita: quem me dá uma Dor, uma Dor<br />
para me iluminar! Que eu seja o transcendentalizado<br />
da Dor!<br />
Vem para a Dor, que tu a elevas e purificas, porque<br />
tu não és mais que a corporificação do próprio Sonho,<br />
que vagueia, que oscila na luxúria da luz, através da<br />
Esperança e da Saudade – grandes lâmpadas de luas de<br />
unção piedosa, cuja velada claridade tranqüila dá ao<br />
teu semblante a expressão imaterial, incoercível, etérea,<br />
da Imortalidade...<br />
E essa Imortalidade em que meditas é a das Idéias,<br />
da Forma, das Sensações, da Paixão, cristalizadas<br />
maravilhosamente num corpo vivo, quente, palpitante,<br />
que sintas mover, que sintas estremecer, agitar-se numa<br />
onda de sensibilidade, fremer, vibrar nas efervescências<br />
da luz...<br />
Condensa, apura, perfectibiliza, pois, o teu Sonho<br />
– Sol estranho, em torno ao qual voam condores e águias<br />
vitoriosas de garras e asas conquistadoras...<br />
Para a gênese desse Sonho, para a gênese dessa<br />
Arte, é necessário o Otimismo da Fé, poderosa e<br />
religiosamente sentida; é necessário que a tua alma,<br />
forte, avigorada para a grande Esfera, tenha a Crença<br />
edificante e paire presa às correntes invisíveis, ignotas,<br />
de um sentimento espiritualizado e sereno.<br />
Ao Pessimismo de Schopenhauer, que tu, pelo<br />
fundo de crítica psicológica e de alada e fagulhante ironia<br />
adoras, como Satã, por diabólica fantasia, adora os<br />
abstrusos venenos do Mal; a esse Pessimismo seco, duro,
392 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ditador e esterilizante, prefere antes o Otimismo<br />
religioso de Renan, que não abate nem envilece as<br />
almas, mas antes as alevanta e ilumina, sem lhes tirar<br />
a retidão austera da Verdade, as linhas justas e solenes<br />
da alta compreensão da Vida.<br />
Do pessimismo e do otimismo, do conjunto dessas<br />
duas forças, tira a linha geral do teu ser, para que a<br />
visão da tua alma fique perfeita e profunda e não ganhe<br />
nem hipertrofias nem vícios de percepção nem graves e<br />
antipáticos desequilíbrios de sensibilidade, na frescura<br />
abençoada e nos rejuvenescimentos e reflorescências<br />
da Fé.<br />
Assim, concordará a ação com a sensação, estarás<br />
em imediata e clara harmonia com a tua extrema<br />
natureza, estudados os fundamentos que intimamente<br />
a constituem: a bondade, o afeto, o enternecimento, a<br />
delicadeza, a resignação, a brandura, a abnegação, o<br />
sacrifício e a calma, latentes qualidades essas todas<br />
puramente de um Otimismo religioso, porque são essas<br />
qualidades que representam o fundo sincero e sério das<br />
faculdades estéticas, presas sempre a um Ideal abstrato,<br />
que é, na sua essência, o Ideal do Infinito, da<br />
Imortalidade, da Religião, da Fé.<br />
Se tens Fé, se vens inflamado veemente e<br />
intensamente para o sentimento original da Concepção<br />
e da Forma; se te devora a ansiedade lancinante de<br />
uma Aspiração que arrebata em asas, que desprende<br />
vôos brancos e largos para regiões muito além da Morte;<br />
se percorrem os teus nervos, em prodígios de harmonia,<br />
músicas estranhas e coloridas como paixões e sensações;<br />
se dentro de todo o teu ser há o Inferno dantesco,<br />
tumultuoso de Visões, épico de majestade mental, a<br />
crescer, a crescer, a subir mediterraneamente em ondas<br />
cerradas, compactas de sonambulismos estéticos; se<br />
sentes a atraente vertigem da palpitação dos astros, a<br />
dolência pungente das melancolias enevoadas e doentes<br />
que insensivelmente umedecem os olhos; se na luz, se
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 393<br />
no ar, se na cor, se no som, se no aroma tens a fina, a<br />
delicada, a sutil percepção da Arte; se sabes ser, ter na<br />
Arte uma existência una, indivisível, és o Eleito dela, o<br />
Impressionado, o Iniciado.<br />
Não tens mais do que agir fatalmente pelo teu<br />
temperamento, numa função original, numa castidade<br />
ingênita de emoções, na espontaneidade do teu sangue<br />
novo e dos teus nervos aristocráticos, tensibilizados pela<br />
estesia.<br />
Mas, para livremente chegares a esse resultado<br />
artístico, é mister que preceda a tudo isso um sistema<br />
de princípios integrais, fecundos e profundos na tua<br />
natureza, dando-te, por esse modo, uma firmeza e<br />
serenidade emotiva.<br />
Não é, apenas, querer, não é poder, apenas – é<br />
Ser! – E se tu sabes ser, se tu és, numa legitimidade<br />
flagrante, num enraizamento muito intenso de todo o<br />
teu organismo, vivendo a Arte e não a Arte vivendo em<br />
ti; se assim tu és, na profundidade real desse esquisito<br />
e maravilhoso estado, meio-inconsciência, meio-névoa,<br />
que te impulsiona para a Concepção; se assim tu és, por<br />
germens inevitáveis, fatais, a tua Obra, ainda em<br />
gestação, atestará eloqüentemente, mais tarde, as<br />
inauditas manifestações do temperamento.<br />
Tudo está em seres a tua Dor, em seres o teu<br />
Gozo, homogeneamente; em saíres, por movimentos<br />
espontâneos, livres e simples, representativos de um<br />
vivo e afirmativo Fenômeno, da Esfera do mero Instinto<br />
para a Esfera reabilitadora, pura e radiante do<br />
Pensamento.<br />
Se é certo que trazes em ti a principal essência,<br />
as expressivas raízes, a flama eterna, o nebuloso segredo<br />
dos Assinalados, um poder mágico, irresistível, a que<br />
não poderás fugir jamais, te arrastará, te arrojará, como<br />
Visão legendária, profética, numa grande convulsão e<br />
estremecimento, para fora das humanas frivolidades<br />
terrestres, para fora das impressões exteriores do
394 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Mundo, mergulhando-te soberanamente, para sempre!,<br />
no fundo apocalíptico, solene, das Abstrações e do<br />
Isolamento...<br />
Se trazes essa verdadeira, perfeita aristocracia<br />
genésica do Sentimento; se sentes que toda a límpida e<br />
nobre grandeza está apenas na simplicidade com que te<br />
despires dos vãos ouropéis mundanos, para entrar larga<br />
e fraternalmente na Contemplação da Natureza; se vens<br />
para dizer a tua grave, funda Nevrose, que nada mais é<br />
do que a eloqüente significação da Nevrose do Infinito,<br />
que tu buscas abranger e registrar; se tens essa missão<br />
singular, quase divina, vai sereno, o peito estrelado pelas<br />
constelações da Fé, impassível ao apedrejamento dos<br />
Impotentes, firme, seguro, equilibrado por essa força<br />
oculta, misteriosa e suprema que ilumina<br />
milagrosamente os artistas calmos e poderosos na<br />
obscuridade do meio ambiente, quando floresce e<br />
alvorece nas suas almas a rara flor da Perfeição.<br />
Que importam a excomunhão e os desprezos<br />
mordazes sobre a tua cabeça?! Que importam os<br />
arremessados lançaços d’aço e de ferro contra o broquel<br />
do teu peito e contra o vigor de tronco em rebentos verdes<br />
do teu flanco?! Os ímpios não pairam nestas órbitas,<br />
não giram nestas chamejantes Esferas, não se<br />
incendeiam e não morrem nestes augustos e inéditos<br />
Infernos.<br />
Segue, pois, os que seguem contritos, sob um arcoíris<br />
celestial de esperanças vagas, a alma como uma<br />
flor exótica dos trópicos ceruleamente aberta às messes<br />
de ouro do sol, e a boca, no entanto, secamente,<br />
asperamente amordaçada sem piedade pelas sedes<br />
tenazes e amargas dos mais inquietantes desejos...<br />
E vai sereno, como os Eleitos da Arte, extremados<br />
e apaixonados na chama do seu Segredo, da sua excelsa<br />
Vontade – levitas extraordinários, martirizados nas<br />
inquisições truculentas da Carne, mas benditos,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 395<br />
purificados, sem culpa de pecado mundano, na recôndita<br />
manifestação das Emoções e do Entendimento.<br />
Segue resoluto, impávido, para a Arte branca e<br />
sem mancha, sem mácula, virginal e sagrada,<br />
desprendido de todos os elos que entibiem, de todas as<br />
convenções que enfraqueçam e banalizem, sem as<br />
explorações desonestas, os extremos de dedicação falsa,<br />
as fingidas interpretações dos cínicos apóstatas, mas<br />
com toda a forte, a profunda, a sacrificante sinceridade,<br />
da tua grande alma, conservando sempre intacta,<br />
sempre, a flor espontânea e casta da tua sensibilidade.<br />
Para resistir aos perturbadores ululos do mundo<br />
fecha-te à chave astral com a alma, essa esfera celeste,<br />
dentro das muralhas de ouro do Castelo do Sonho, lá<br />
muito em cima, lá muito em cima, lá no alto da torre<br />
azul mais alta dentre as altas torres coroadas d’estrelas.<br />
Vai sereno, belo Iniciado! Vai sereno para esta<br />
prodigiosa complexidade de Sentimentos, agora que<br />
abandonaste a franqueza rude das montanhas, além,<br />
longe, na solidão concentrativa, no silêncio banhado de<br />
impressionante, comunicativa e augusta poesia, da tua<br />
terra de selvas e bosques bíblicos!<br />
Vai sereno! a cabeça elevada na luz, vitalizada e<br />
resplandecida na nevrosidade mordente da luz e os<br />
fatigados olhos sonhadores, graves, ascéticos, atraídos<br />
pelo mistério da Vida, magnetizados pelo mistério da<br />
Morte...
396 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
SERÁFICA<br />
Como as iluminuras dos Missais, que ressaltam<br />
de marfins ebúrneos, era infinitamente seráfica, da<br />
beatitude angélica dos querubins, aquela pálida mulher<br />
juncal, de um moreno triste e contemplativo de magnólia<br />
crestada.<br />
Seus grandes olhos negros, profundos e veludosos,<br />
de finíssimos cílios rendilhados, raiados de uma<br />
expressão judaica, tornavam ainda maior o relevo do<br />
palor esmaiado do rosto melancólico, que a singular<br />
formosura brandamente iluminava de claridade velada...<br />
As linhas harmoniosas do seu busto sereno,<br />
perfeito, davam-lhe encanto vago, aéreo, siderações<br />
egrégias, prefulgências de Arcanjo.<br />
Pairavam nessa mulher jalde-esmaiado, que na<br />
luz loura do sol tinha toques d’ouro, suavidades de<br />
cânticos sacros, carícias de aves, e ritmos preciosos de<br />
cítaras e harpas finamente vibradas través a sonoridade<br />
clara das lânguidas águas do Mar.<br />
Altiva e alta, com o sentimento frio do mármore<br />
das Imagens amarguradas, fluíam-lhe da voz, quando<br />
raramente falava, cismativas dolências, fundas<br />
nostalgias enevoadas...<br />
Mas, muda, na mudez das religiosas claustrais,<br />
ficava então de uma beleza divinal e secreta, da excelsa<br />
resplandecência sagrada dos Hostiários.<br />
E, quando erguia os cílios densos e cetinosos e o<br />
clarão dos olhos brilhava, como que se evaporizavam deles<br />
chamas e músicas paradisíacas, uma espiritualização a<br />
glorificava, eflúvios de aroma, a leve irisação da graça.<br />
Dominadora, triunfal, na auréola do esplendor que<br />
a circundava, parecia reinar num altar etéreo, por entre<br />
os finos astros imortais.<br />
Fazia crer que todos os sentimentos afetivos<br />
purificados, que todas as emanações originais da terra<br />
correriam, perpetuamente, em cortejos reverentes, a
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 397<br />
vê-la passar, a beijá-la na epiderme de cera, a venerála,<br />
enfim, com esse amor ideal, indelével, eterno, da<br />
natureza abstrata...<br />
O perfume e a radiação da sua cabeça majestosa,<br />
astral não fascinavam, não atraíam apenas, mas<br />
idealizavam sempre – como se a Seráfica fosse a Aparição<br />
simbólica, surgindo de um fundo lívido de lua, uma Santa<br />
Teresa, bela e ascética nos cilícios da religião do Amor,<br />
amortalhada na castidade das açucenas e lírios...<br />
A alma dos Estéticos, dos curiosos Emocionados<br />
se deslumbrava em êxtases de ocasos ao ver-lhe a<br />
aristocrática esveltez monjal, os grandes olhos negros e<br />
magoados, de beleza deífica, os ondeados cabelos<br />
tenebrosos e a boca purpurejante, anelante, letárgica,<br />
ligeiramente golpeada de um travor enervante de volúpia<br />
dolorosa...<br />
Os seios deliciosos e tépidos, origem branca e bela<br />
da graça e do desejo, eram duas raras rosas intemeratas,<br />
cujo aroma esquisito e vivo meigamente deixava um fino<br />
encanto e uma suave fascinação no ar...<br />
Virgem ainda, com todo o impoluto verdor do seu<br />
corpo misterioso, fechada nos recatos ingênitos do pudor,<br />
a Morte, afinal, veio entoar o Canto Nupcial de Seráfica,<br />
o seu Epitalâmio...<br />
E ela, no tálamo da Morte, nessa mística<br />
melancolia de outrora, que a velava, e naquele esmaiado<br />
palor, lembrava, aos entendimentos delicados, aos<br />
solenes e reclusos profetas da Grande Arte, ter<br />
emudecido glacialmente para sempre, sem os<br />
impundonorosos, profanadores contatos, de uma exótica<br />
e asiática doença...
398 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
MATER<br />
Naquela hora tremenda, grande hora solene na<br />
qual se ia inicar outra nova vida, foi para mim uma<br />
sensibilidade original, um sofrimento nunca sentido, que<br />
me desprendia da terra, que me exilava do mundo, tal<br />
era o choque violento dos meus nervos nesse momento,<br />
tal a delicada e curiosa impressão de minh’alma nesse<br />
transe supremo.<br />
Ela, abalada por gemidos, na dor que a dilacerava,<br />
quase desfalecia, com a mais rara expressão misteriosa<br />
nos grandes olhos, os lábios lívidos, o semblante de uma<br />
contemplatividade de martírio, transfigurada já pela<br />
angústia sagrada daquela hora, no instante augusto da<br />
Maternidade.<br />
Todo o meu ser, arrebatado por essa imensa<br />
tragédia de sacrifícios, de abnegação cristã, de<br />
heroísmos incomparáveis, sofria com o estranho ser da<br />
Mater toda a amargura infinita do majestoso aparato da<br />
Vida prestes a surgir do caos, da chama palpitante,<br />
prestes a irromper da treva...<br />
Como que outra natureza, uma paixão viva e forte,<br />
um carinho maior me inundava, subia vertiginosamente<br />
pelo meu ser, me incendiava numa onda flamante de<br />
luz virginal, de claridade vibrante, que me trazia ao<br />
organismo alvoroçado rejuvenescimentos inauditos,<br />
mocidade viril, poderosa, alastrando em seiva fremente<br />
de sensações, nervosamente, nervosamente<br />
impulsionando o sangue.<br />
Às vezes ficava como que num vácuo, só, numa<br />
sinistra amplidão vazia de afetos, sob o eletrismo de<br />
correntes invisíveis que me prendiam, me arrastavam<br />
ao pensamento da Morte, ao auge do dilaceramento, da<br />
aflição, do delírio despedaçador da lembrança de vê-la<br />
morta, sem estremecimentos de vitalidade; sem que as<br />
suas mãos cheias de afago, as suas mãos dementes,<br />
bem-aventuradas, misericordiosas, perdoadoras,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 399<br />
sagradas, relicariamente sagradas, me acariciassem<br />
mais; sem que os seus braços longos, lentos, lânguidos,<br />
me acorrentassem de tépidos abraços; sem que o contacto<br />
dos meus beijos apaixonadamente profundos a acordasse,<br />
– fria, insensível, horrível, gelada ao meu clamor de<br />
adeus, ao meu grito tenebroso, tremendo, de leão<br />
despedaçado, ferido pela flecha envenenada de uma dor<br />
onipotente, rojado de bruços, baqueando em soluços sobre<br />
a terra maldita e bárbara!<br />
De súbito, porém, as lancinantes incertezas, as<br />
brumosas noites pesadas de tanta agonia, de tanto pavor<br />
de morte, desfaziam-se, desapareciam completamente<br />
como os tênues vapores de um letargo...<br />
E uma claridade inefável de madrugadas de ouro,<br />
alvorecida das aves brancas de um país sideral, apagava<br />
em mim a dor fria, exacerbante, desses pensamentos<br />
impacientes e torvos; dava-me o vigoroso alento, a grande<br />
esperança de que ela sobreviveria, de que ela sentiria,<br />
com Orgulho sagrado, nesse primeiro movimento da<br />
Maternidade, correr nas veias todo o impulso delicioso e<br />
nobre, toda a delicada aptidão ingênita, poderosa,<br />
profunda, para amamentar, fazer florir e cantar no<br />
hostiário sacrossanto dos seus seios, aquela doce e<br />
vicejante existência que na sua atribulada existência<br />
se gerara.<br />
E toda a antiga e virtual castidade, a adolescência<br />
promissora, prenuncial, o mago segredo púbere da sua<br />
passada virgindade se transfigurariam na opulência, no<br />
fausto de sensibilidade, de nervosidade, da complexa<br />
paixão materna.<br />
Mas o momento da angústia suprema se<br />
aproximava, fazia-se uma pausa religiosa nesse monólogo<br />
mental que me agitava em febre, na concentração aflitiva<br />
dos meus pensamentos – agora mudos, no reverente<br />
silêncio, na ansiedade calada de quem espera...<br />
Era chegado o momento, grande, grave e belo<br />
momento entre todos, em que a mulher, perdendo a
400 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
volubilidade, a gracilidade diáfana e o alado encanto de<br />
virgem, se transfigura e recebe uma auréola, um sério<br />
resplendor de nobre martírio, de simpático consolo,<br />
envolve-se numa sombra e num silêncio de piedade e<br />
de sacrifício, num Angelus abençoado de amor.<br />
Era chegado o momento em que aquelas formas<br />
se espiritualizavam, se eterizavam, tomavam asas de<br />
sonho, inflamadas por um novo e alto sentimento, tão<br />
tocante e tão augusto, que parecia afinado e fecundado<br />
nos céus pela graça divina e peregrina dos anjos. Ê<br />
quando a mulher parece desprender-se, libertar-se suave<br />
e secretamente da argila que a gerou e criar para si,<br />
solenemente, uma esfera perfeita e eleita de abnegação<br />
infinita e de resignação sublime. Quando os seus seios<br />
magnificentes, nos renascimentos da Beleza, símbolos<br />
delicados da maternal Ternura, florescem à vida dos<br />
pequenos seres que nascem, numa alvorada carinhosa<br />
e tépida de agasalho, amamentando-os com o néctar<br />
delicioso do leite.<br />
Nessa hora extrema em que parece desprenderem-se<br />
da mulher, desatarem-se, evaporarem-se véus<br />
translúcidos de virgindade, para surgir, como de um<br />
caule misterioso, a meiga e mágica flor da Maternidade.<br />
Todo aquele organismo fecundado estremecia,<br />
estremecia, nesse inicial e materno estremecimento<br />
virgem, vagamente lembrando as fugitivas vibrações<br />
nervosas de sonora harpa nova, de ouro puro, original e<br />
intacta, pela primeira vez vibrada com excepcional emoção<br />
por dedos inviolados e ágeis...<br />
E, em pouco, então, como num suntuoso levante<br />
de púrpuras, através de gemidos pungentes, de gritos e<br />
ânsias delirantes, a cabeça docemente pendida numa<br />
contemplativa amargura, os olhos adormentados pelas<br />
brumas crepusculares e lacrimosas de um pressentimento<br />
vago, magoado e esmaecida toda a suave graça<br />
feminina, na extrema convulsão do corpo dela, todo<br />
aquele surpreendente fenômeno foi como que acordando,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 401<br />
alvorecendo, surgindo das névoas mádidas e sonolentas,<br />
letárgicas, de pesadelo... E a flor maravilhosa e rubra<br />
da matéria, gerada na imensa dor, abriu, enfim, em<br />
prodígios, pomposamente.<br />
Numa apoteose de sangue, respirando o sangue<br />
impetuoso, abundante, que jorrava em auroras, em<br />
primaveras vermelhas de viço germinal, raiara como<br />
clarão aceso de Vida, num grito íntimo, latente, do seu<br />
tenro organismo elementar ainda – um grito talvez<br />
selvagem, um grito talvez bárbaro, um grito talvez<br />
absurdo, arremessado para além, ao Desconhecido do<br />
mundo em cujos dédalos intrincados esse delicado ser<br />
acabara de penetrar agora por entre ensangüentamentos.<br />
Parecia que de uma zona fantástica, dessa Índia<br />
ouro e verde, opulenta, feérica, como caprichoso tesouro<br />
de Lendas e de Baladas, alvorara o Encanto, criara asas<br />
e viera, com o pólen radiante da fecundação, insuflar a<br />
vertigem, dar o fremente sopro criador à cabeça, aos<br />
olhos, à boca, aos braços, ao tronco, a todo o corpo num<br />
movimento quebrado, voluptuoso, lânguido, de germens<br />
que se concretizam, que se condensam e vão adquirindo<br />
aos poucos, com infinitas delicadezas e inefabilidades,<br />
todas as formas perfeitas, todas as linha dúcteis, todas<br />
as curvas e flexibilidades sensíveis, todas as fugitivas<br />
expressões corretas e harmoniosas.<br />
Ali estava aquele vivo e eloqüente rebento,<br />
iluminado pelos idealismos da minh’alma, vivendo dos<br />
florescimentos olímpicos, da alacridade cantante, do<br />
ruído em festa, da imaculada frescura da minha livre e<br />
forte alegria antiga de adolescente.<br />
Ali estava, para o meu amor sereno, para o consolo<br />
meditativo das minhas grandes horas de anseio, para o<br />
recolhimento ascetérico da minha fé estesíaca, a Imagem<br />
palpitante, gárrula, trêfega, da Infância já passada.<br />
Ali estava agora a vida desabrochante, o encanto<br />
alegre, aflorado, ridente – hino viçoso e verde e virgem e
402 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
evocativo e sugestivo de uma ventura morta, saudade<br />
intensa, chamejante, como que espiritualizada no Filho,<br />
rememorando, evocando, numa expressão elegíaca, todos<br />
esses longínquos, remotos e significativos deslumbramentos,<br />
cânticos, miragens, sóis e estrelas da<br />
primeira idade tão enternecivelmente assinalada.<br />
Era como que a retrospectividade luminosa de um<br />
tempo, que subia, em incensos, de um fundo enevoado:<br />
terra sagrada e extinta, saudosa e verdejante Palestina<br />
que eu entrevia longe, nas brumas vagas da memória,<br />
dentre hosanas e sicômoros; – página recordativa que<br />
as estrelas e os aromas docemente fecundaram de amor<br />
e de sonhos.<br />
E eu ficava por muito tempo a olhá-lo, a olhá-lo, a<br />
rever-me na frescura cândida daquela carne, a aspirar<br />
com avidez o perfume violento daquela flor viva,<br />
considerando, meditando sobre todos os seus traços,<br />
sobre a expressão curiosa, de pequenina múmia, do seu<br />
corpo veludoso, como que embalsamado no óleo virtuoso<br />
de preciosas ervas verdes e virgens.<br />
Ali estava, enfim, quem me tornava de ora em<br />
diante soturno, calado, no êxtase mudo da contemplação,<br />
como sob o impressionante poder cabalístico, sob a<br />
eloqüência vidente de hieróglifos mágicos...<br />
E, assim mentalmente considerando, eu sentia o<br />
mais reverente, o mais profundo, o mais concentrado<br />
respeito, o afeto mais vibrantemente tocante, aureolado<br />
de lágrimas, pelo templo majestoso e santo daquele belo<br />
ventre, onde enfim se oficiara a primeira Missa de<br />
Propagação perpétua.<br />
Todas as perfeições espirituais do ser que se<br />
liberta da materialidade vil, todos os anseios supremos<br />
pelas formas intangíveis das transcendentes<br />
sensibilidades, me transfiguravam, contemplando em<br />
silêncio aquele ventre precioso e bom, onde tomara corpo,<br />
se consolidara em organismo o gérmen quente e intenso<br />
da Paixão.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 403<br />
Contemplando em silêncio aquele ventre<br />
venerando e divino – Vas honorabile! – de onde o<br />
sentimento épico e místico das sempiternas Abnegações<br />
ondulou como aroma eterno e celeste; ventre gerador e<br />
poderoso que se purificara e sagrara triunfalmente com<br />
os sacrificantes milagres da Fecundação; Olimpo glorioso<br />
que abrira os pórticos fabulosos à dominativa emoção, à<br />
fantasia heróica, à graça d’asas seráficas, do Gênio<br />
consolador, estóico e elíseo das amparadoras,<br />
misericordiosas Mães!<br />
Ó Ventre obscuro e carinhoso, soberbo e nobre<br />
pela egrégia função de gerar! Ventre de afetivas<br />
sublimidades, donde cantou e floresceu à luz a dolente<br />
vitória de uma existência, a encarnação soberana, a<br />
fugitiva tulipa negra para idealizar singularmente os<br />
Infinitos nostálgicos da minha Crença! Ó Ventre amado.<br />
Como foram extremamente puros e penetrantes e<br />
frementes os beijos de apaixonada volúpia e reverência<br />
sacrossanta que eu depus sobre o teu ébano!<br />
Em torno, no ambiente carregado da intensidade<br />
de toda essa maravilhosa sensação, errava o segredo<br />
ritmal de Litanias, de preces que Visões rezavam baixo,<br />
por Céus inefáveis, num abrir e fechar d’asas<br />
arcangélicas, d’asas límpidas, d’asas e asas<br />
rumorejantes, aflantes, cujo suave e ciciante ruído eu<br />
na Imaginação escutava enlevado...<br />
E a doce Mater, mais calma, numa unção de bemaventurança,<br />
numa auréola deífica, serenada já da dor<br />
profunda da Maternidade, parecia penetrada de um<br />
sentimento celeste, de fluidos virtuais do grande Amor,<br />
de resignada piedade – água lustral, da maternal paixão,<br />
que a lavava do mal do torturante pecado, purificando a<br />
sua alma simples, iluminando-a toda com o altivo<br />
esplendor de uma força heróica.<br />
Lembrava uma dessas excelsas Divindades<br />
espirituais, a Entidade das Abstrações dos reclusos<br />
místicos, Aparição imortal, cuja face, no resplendor
404 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
translúcido daquele sofrimento regenerante, tinha para<br />
mim o encanto mais alto, a ternura mais bela, a<br />
abnegação mais serena.<br />
Sentia-me diante de completa Religião nova que<br />
evangelizava a Crença naquela Mãe e naquele Filho –<br />
inteira Religião nova, cujos rituais e cultos eternos eram<br />
para mim agora esses dois seres extremadamente<br />
amados, cujo sangue irradiava no meu sangue, cuja vida<br />
penetrava na minha vida, inoculando-a de um júbilo e<br />
de uma graça profética – graça de Anjos e Astros em<br />
claridades, músicas e cânticos, por fios sutis de múltiplas<br />
cordas d’harpas, d’harpas e harpas, dentre os Azuis e as<br />
Constelações...<br />
Ao mesmo tempo sentia então que profundos e<br />
penetrantes frêmitos me abalavam, me convulsionavam<br />
todo, como se se operassem no meu organismo<br />
transformações recônditas, gerando uma outra alma,<br />
trazendo-me sede insaciável da Vida, o ressurgimento<br />
de estesia particular e rara.<br />
Força estranha, que eu até aí não conhecia,<br />
circulava com veemência nos meus nervos, dava-lhes<br />
tensibilidade e vibratilidade mais leves, mais finas; e,<br />
grandes asas diáfanas de Aspiração e Sonho, alavamme<br />
às supremas serenidades da Piedade e do Amor.<br />
O desejo que me clamava dentro do peito, em<br />
claras trompas guerreiras, numa onda sonora e<br />
impetuosa, era o de ir além, fora, longe do tédio das<br />
cidades murmurejantes, longe das curiosidades<br />
indiscretas, dos indiferentes e frívolos, das<br />
sentimentalidades aparatosas, dos enternecimentos<br />
calculados, decorativos e clássicos, das expansões<br />
d’estilo, ornamentais como corpos em tatuagem, de tudo<br />
o que grulha e reina na boçalidade majestática da<br />
espécie humana.<br />
O meu desejo indômito era de ir além, fora das<br />
brutas portas de pedra da Região dos Egoísmos, gritar,<br />
gritar, clamar, livremente, à natureza virgem, aos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 405<br />
campos, às florestas, aos mares, às ululantes<br />
tempestades, aos sóis em febre, às noites triunfais,<br />
coroadas d’estrelas, aos ventos coroados de pesadelos,<br />
que esse Filho extravagantemente amado nascera, que<br />
surgira enfim do mistério sonâmbulo da Maternidade...<br />
A ansiedade que me agitava, levantando dentro<br />
de mim o desconhecido, convulsionando este organismo<br />
num incêndio de sensação, era de deprecar ao Indefinido<br />
das Cousas, ao Abstrato das Formas, ao Intangível do<br />
Espírito, à Eloqüência dos Presságios, para que me<br />
dissessem o que ia ser desse frágil obscuro, dessa tímida<br />
flor da Desgraça, o que ia ser daqueles membros tenros,<br />
débeis; que estupendos augúrios dormiriam no brilho<br />
fugitivo daqueles olhos inconscientes, perdidos no vago<br />
de um fluido sentimento, sob o fundo fatal das impurezas<br />
da Carne, das inquietações do Pecado – germens latentes<br />
ainda, apesar do desdobramento milenário das eras, da<br />
absoluta e primitiva Culpa humana.<br />
Ansiava que me dissessem que mágicos filtros de<br />
gnomos da Noite o predestinariam; que frêmitos de<br />
desejo convulsionariam essa boca ainda tão impoluta,<br />
sã, ainda sem laivos visguentos; que luxúria intensa e<br />
nova inflamaria, acenderia centelhas nessa boca úmida,<br />
fresca, viçosa, apenas entreaberta já num indefinido<br />
anelo, sedenta, inquieta, impaciente, ávida já da<br />
instintiva volúpia do leite...<br />
Todo o evocativo estremecimento das saudades,<br />
das esperanças, das alegrias, das lágrimas me invadia<br />
a alma num sonho esquisito, exótico, oriental, por entre<br />
os nardos quentes, perturbadores e magnéticos, da<br />
Abissínia e da Arábia Ideal de todos os meus<br />
pensamentos fugidios, circulando, girando,<br />
torvelinhando, como silfos procriadores, em torno àquela<br />
meiga e venerada cabeça.<br />
Eu ficava absorto, contemplativo ante as sugestões<br />
delicadas que o supremo fenômeno trazia, nessa<br />
manifestação singular de curiosidades de preciosas
406 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
revelações ingênitas e caprichos ignotos da Natureza,<br />
sentindo que o Filho poderosamente me fascinava, que<br />
a mais irresistível atração me chamava para ele, atração<br />
vital, imediata, eterna, do sangue comunicativo e fraterno<br />
que clama pelo sangue fraterno.<br />
Ela, afetiva Sacrificada, Mater, dolorosamente aí<br />
ficaria na terra, gravitando nos centros nervosos da Vida,<br />
– Sombra divina e errante! – para o futuro, para a<br />
obscuridade, para a velhice, para o silêncio e<br />
esquecimento dos tempos...<br />
Ele, Filho, surgindo das nebulosidades da Matéria,<br />
caminhando, caminhando à Via-Sacra das horas e dos<br />
dias pelas ermas e infinitas encruzilhadas dos Destinos,<br />
iria então, resignado ou desesperado, para o Vilipêndio<br />
ou para as medíocres conquistas do Mundo, através dos<br />
conclamadores Anátemas, através dos lancinamentos<br />
inconcebíveis, através das taciturnidades melancólicas,<br />
através de tudo, tudo, tudo o que chora d’alto, profunda<br />
e apocalipticamente, o Requiem solene, a soberana<br />
majestade, tremenda, trágica, da imponderável Dor!...
CAPRO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 407<br />
Dentro daquele organismo em seiva fumente de<br />
novilho espojando se na amplidão os campos relvosos,<br />
trinavam, cantavam pássaros, vibravam fanfarras<br />
marciais.<br />
Temperamento de guerra, ostentoso como um<br />
carro de triunfo, outrora, nas hostes helênicas, era a<br />
volúpia que lhe ritmava as idéias, que lhe dava diapasão<br />
ao entendimento.<br />
Virginal, como a alva constelação dos astros, a<br />
sua Arte abria-se numa florescência vigorosa, dimanando<br />
o aroma natural, puro, criador e intenso, de terras<br />
lavradas e germinais, revolvidas de fresco, a doçura verde<br />
das tenras e viçosas folhagens, entre as quais brilha ao<br />
sol a loura abundância sazonada dos frutos.<br />
A sua natureza deveria ser estudada sem<br />
roupagens, sem atavios, livremente, a golpes crus e<br />
acres, a tons violentos e rubros, profundos e flagrantes,<br />
na plenitude de toda a extravagância e de toda a<br />
idiossincrasia que o singularizava.<br />
A afloração da sua força psíquica fazia lembrar<br />
uma fantástica floresta vermelha por efeito de um<br />
incêndio colossal: – largas e longas manchas de sangue<br />
alastrando tudo, clarinando tudo de gritos, de brados,<br />
de púrpuras de indignação, de ódios artísticos, de<br />
despeitos, de tédios mortais, de spleens enevoados.<br />
A cor, a luz, o perfume, para a sua esquisita e<br />
caprichosa sensibilidade, sangravam, vertiam sangue<br />
sinistro de dolorosa volúpia; e, todos os aspectos, todas<br />
as perspectivas, pareciam-lhe à retina requintada e<br />
misteriosa outras tantas manchas de sangue, que a sua<br />
estesia doente mais vivas, mais flagrantes via por toda<br />
a parte.<br />
E nessa tendência espiritual orgânica para os<br />
efeitos sangrentos, preferia à clorose das magnólias e
408 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
lírios brancos a rubente coloração das rosas e cravos<br />
bizarros.<br />
Superexcitado pelas nevroses ardentes do<br />
Pensamento, desde as liturgias simbólicas de Verlaine<br />
até aos satanismos de Huysmans, exigindo as linhas<br />
em alto requinte da Arte, toda a sua estética se<br />
manifestava então por uma corrente impetuosa de<br />
luxúria, de caprismo, de lubricidade pagã de sátiro, de<br />
fauno mítico, estirado ao sol, como certos animais no<br />
período da incubação, gozando, sibaritamente, a morna<br />
carícia do eterno clarão fecundante.<br />
Diante da retina coruscavam-lhe deslumbramentos<br />
de idéias, com claras, cantantes cores.<br />
Feriam-lhe agudamente a retina, impressionandoa,<br />
hipnotizando aquela idiossincrasia fatal, o<br />
ensangüentamento dos ocasos, os vermelhos clarinantes<br />
dos clarões de fogo, os rubros candentes, inflamados,<br />
das forjas, os escarlates violentos das púrpuras, os<br />
álacres rubis de certas tropicais florações e folhagens,<br />
os rubores quentes de certos sumarentos e selvagens<br />
frutos, a sulferina coloração delicada de vinhos tépidos,<br />
todos os rubros majestosos, potentes, embriagantes, toda<br />
a clamante alucinação dos vermelhos crepitando em<br />
sensações de chama, todas as atroantes fanfarras e<br />
gamas infinitas e finíssimas das cores como que<br />
aperitivas, palatais, genealógicas do Sangue.<br />
Os livros carnalíssimos, que porejam luxúria,<br />
acendiam-lhe, mais flamejantes, os instintos sensuais;<br />
e ficava então puro maometano, revestido em sedas e<br />
pedrarias prodigiosas de gozo, nesse lasso luxo oriental<br />
em que a Ásia se perpetua como o lânguido sol decadente<br />
das exóticas sensualidades.<br />
Nos seus nervos, nas suas veias circulavam flamas<br />
geradoras dessa Originalidade trucidante que naturezas<br />
febris ansiosamente procuram, como buscariam o<br />
recôndito veio profundo da água nas camadas mais<br />
obscuras da terra.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 409<br />
Olfato delicado, claro, que tudo sentia, que tudo<br />
respirava, ainda por extremo requinte de volúpia, era<br />
extraordinária, maravilhosa a sensibilidade aguda da<br />
sua membrana pituitária, fariscando ativamente, em<br />
cios.<br />
Mas, os cheiros mais prediletos, mais sugestivos<br />
para ele, que lhe penetravam e cocegavam mais a<br />
mucosa nasal, numa atuação de esfregamento, como<br />
que no atrito agradável provocado na pele para a cessação<br />
de irritante prurigem, eram os cheiros acres de matérias<br />
resinosas, as emanações de folhas silvestres<br />
machucadas, a exalação úbere dos estábulos, o aroma<br />
estonteador e verde das maresias, o odor do sedimento<br />
de certos líquidos, o fartum que diversos animais<br />
segregam, o hircismo quente dos bodes, o estimulante<br />
de fermentação da cevada nas cervejarias, o sumo<br />
travoroso e ativo dos limões verdoengos, quase que<br />
tocados de um sentido penetrante, claro, inteligente e<br />
todos os amargos sabores das frutas ácidas e cálidas<br />
que como que lhe feriam, abriam numa chaga, em<br />
apetites aguçados e picantes, o grosso lábio enervado<br />
pela volúpia letárgica.<br />
E como ele se empurpurasse, se enlabaredasse<br />
no esplendor triunfal da Arte, esses odores todos o<br />
penetravam, o fascinavam, alertando-o, transfigurandoo<br />
para a Escrita, para a Forma.<br />
Era como se saísse de andar em volta de vasta<br />
coivara a arder e viesse dela aquecido, com o sangue<br />
esporeado, as veias latejando em febre, numa sensação<br />
intensa de produtividade.<br />
Mas, uma vez caído em frente ao papel branco,<br />
que tinha de receber o exuberante pólen do seu espírito,<br />
todos esses ímpetos, esses fervores esmoreciam, o calor<br />
dessa temperatura artística baixava logo e ei-lo então<br />
novamente vencido, numa espécie de coma, no<br />
adormecimento que lhe tolhia sempre o próprio esforço<br />
da vontade.
410 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
E, súbito, naquela espiritual ansiedade de natureza<br />
impotente, como que a dolorosa e enervante crise olfativa<br />
continuava, mais violenta, dava- se o mesmo fenomenal<br />
período de volúpia capra, nervosa, mental, no qual o<br />
sentimento pituitário dominava, impunha-se, avassalava<br />
as outras funções de modo verdadeiramente estranho.<br />
E o seu olfato desejava, ansiava sentir o talho<br />
sangrento nos açougues, as carnes rasgadas nos<br />
anfiteatros anatômicos, as feridas abertas nos hospitais<br />
de sangue, dentre os aços frios e cortantes dos<br />
instrumentos, como indiferentes, desdenhosos<br />
aparelhos, rindo, em rijas cutiladas sonoras, cantando<br />
o hino dos metais fulgentes ante as torturas humanas<br />
da matéria dilacerada.<br />
No entanto, outrora, esse lascivo, natureza<br />
dispersa, sem unidade de conjunto, produzira já algumas<br />
belas páginas cantantes, estilos com flamejamentos de<br />
espadas, vibrações candentes de bigorna, cintilantes<br />
como os polidos, espelhados broquéis antigos.<br />
Fora isso na adolescência, quando a sua natureza<br />
não se achava absorvida pela pestilência do meio ou<br />
mesmo quase constituindo, como agora, as próprias<br />
células dele. Eram primícias, prodigalidades do seu<br />
cérebro ainda não sazonado completamente; a<br />
abundância espontânea, mas não produzida por seleção,<br />
de um temperamento fecundo, farto de idealização e de<br />
força, mas sem a intensidade essencial que nasce da<br />
condensação e da síntese. Aquelas páginas eram<br />
verdadeiros viços, opulências de rebentos, florescências<br />
inéditas e castas que lhe brotavam do ser com o mesmo<br />
ímpeto de germinação dos vegetais rasgando a terra.<br />
Mas, desde que o seu temperamento chegara ao<br />
mais cabal desenvolvimento, que atingira à Elevação,<br />
subindo a extremos requintes, ele sentira essas páginas<br />
descoloridas, ocas, vazias, sem mergulharem no mar<br />
convulsivo, vulcânico da sua Imaginação, sem dizerem,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 411<br />
sem falarem, sem reproduzirem todo o sol e toda a treva<br />
da sua recôndita Nevrose.<br />
Armado de coruscante cota de malha de espírito,<br />
tecida de diamantes, ele agora quereria para a Estética<br />
um majestoso damasco de Inauditismo, a psicologia<br />
imprevista que os organismos virgens e novos provocam<br />
na sua evolução lenta e curiosa.<br />
Impotente, no entanto, para revelar, sob uma forma<br />
gráfica, os segredos espirituais que o dominavam, incapaz<br />
de concentração, de isolamento para agrupar e dar corpo<br />
às visões que ondulavam em torno do seu centro ardente<br />
de ação mental, o pólo das emoções do Capro, talvez por<br />
um doentio e instintivo despeito dessa Impotência, era<br />
a sensualidade, e era gozar, através das puras<br />
manifestações da Carne, sem a dolorosa expressão<br />
escrita, a volúpia secreta de um anseio transcendental,<br />
de um Ideal rebuscado e uno, olfatando tudo, tocando<br />
mentalmente tudo, para ver se encontraria nas cousas<br />
o odor do Desconhecido, a essência singular, a emanação<br />
casta e original que tanto o inquietava e atraía.<br />
A idéia da Morte, com os seus terrores ocultos,<br />
obscuros e surdos, imponderados, com os seus<br />
enregelamentos supremos, lançava-lhe sempre à<br />
espinha um frio de angústia, soprava-lhe no cérebro tredo<br />
tufão tenebroso, esmagando-o e deleitando-o ao mesmo<br />
tempo, num deleite luxurioso e fatal, que o envenenava<br />
como de ódio terrível, sanguinolento.<br />
Vinha de um fundo misterioso, de recônditas<br />
raízes de sofrimento, de ânsias e desesperos<br />
concentrados, esse vendaval ululante de sensações<br />
imprevistas que o abalavam até ao íntimo do seu ser,<br />
perante a idéia vulcanizadora da Morte, da lívida, da<br />
rígida, da impenetrável Morte...<br />
Era o estremecimento latente, lancinante, de um<br />
terror absurdo, que o esmagava, que o dilacerava, como<br />
se já andasse de rastros, agrilhoada às sombras e à<br />
gelidez tumulares, toda a sua convulsa existência de
412 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
extasiado olímpico, de absorto egrégio nas luminosas<br />
volúpias da Arte.<br />
E quando lhe soava nos nervos a hora alta da febre<br />
da grande alucinação para a perpetuidade do nome no<br />
espírito das Gerações que surgissem; quando se<br />
surpreendia absorto, na contemplatividade muda desse<br />
inquietante e vago Aspirar que fecunda as almas<br />
anelantes de Indefinível; nesses impressionativos<br />
momentos em que ele, transfigurado, empalidecia, os<br />
que mais e melhor sentiam todos os íntimos segredos,<br />
todos os voluptuosos encantos da sua mentalidade, lhe<br />
perguntavam pela obra que deixaria, lhe diziam:<br />
– Então! nada tens feito que revele a tua estesia,<br />
que determine as tuas sensações, a tua sensibilidade<br />
extrema. Vives preguiçando, dormindo lassos, longos<br />
sonos de luxúria... Olha que a morte aí vêm, aí vêm já,<br />
irremovível e oblíqua, sôfrega, sequiosa da tua carne e<br />
te vai surpreender inútil, mudo, sem nada dizeres ao<br />
mundo, cérebro budicamente indiferente, boca fechada<br />
numa contração torturante de impotência doentia<br />
rodando na mesma poeira vertiginosa, no mesmo torvo e<br />
banal rodomoinho dos homens e das cousas, sem nunca<br />
revelares todo esse estranho Infinito que trazes na alma.<br />
Sentes o mundo vão, estreito, de dolorosa dureza<br />
e no entanto não queres ou não sabes fugir dele pela<br />
única larga porta estrelada que se te oferece ao teu<br />
espírito, esse vasto campo ideal onde livremente colhes<br />
a cada passo tanta admirável flor de pensamento! Olha<br />
a morte, olha a morte!... Aí vêm ela, irremovível e<br />
oblíqua... Olha o tempo, olha as horas fatais que te caem<br />
na cabeça, negras e surdas, fulminando-te, com a<br />
inevitabilidade inquisitorial do lento suplício do pingo<br />
d’água.<br />
Ele ficava, ante estas abaladoras palavras, em<br />
sobressaltos assustadores, aterrado, azoinado e vencido,<br />
quase cambaleando, como um homem que leva de<br />
repente em cheio uma forte pedrada em pleno peito.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 413<br />
Abria-se então na alma inquieta do Capro um<br />
rasgão de mar e estrelas, dava-se no seu temperamento<br />
fugitivo um tocsin de alarma, um bimbalhar de carrilhões<br />
ruidosos, um estrugir de músicas marciais em marcha,<br />
clarões que rompiam névoas de vacilação, de timidez<br />
psíquica, um flavo e transfigurado acordar de alvoradas,<br />
todo um sol de alvoroço e triunfo que o iluminava,<br />
impelindo-o ao trabalho tenazmente, insistentemente,<br />
mergulhando-o na chama das concepções, dos estilos<br />
virgens, das formas não sonhadas ainda — órbitas<br />
estreladas e azuis onde a sua astral natureza com tanta<br />
ansiedade girava.<br />
Mas desde que essas transfigurações o<br />
impulsionavam ao trabalho, desde que ele procurava<br />
traduzir, por formas caprichosamente sensacionais e<br />
singulares, as impressões que o abalavam, que viviam<br />
nele vida curiosa e intensa, todo esse poderoso esforço<br />
tornava-se vão, o pulso, de repente, gelava-se-lhe, a mão<br />
não agia com eficácia, e os pensamentos, confusos,<br />
embaralhados, emaranhados, num tropel, fugiam,<br />
recuavam como paisagens encantadas, feéricas, como<br />
ondulantes zonas de luz que desaparecessem da retina<br />
deslumbrada de um opiado visionário.<br />
Um vácuo tenebroso, um vazio sepulcral, horrível<br />
fazia-se logo no seu cérebro, como se uma onda pestífera,<br />
violenta e glacial, lhe varresse os pensamentos<br />
desoladoramente.<br />
Ficava então sufocado, em ânsias, respirando mal:<br />
parece que lhe faltava ar, sol, céu. Erguia-se da mesa<br />
do trabalho, inquieto, lívido; sentava-se de novo; erguiase<br />
outra vez; saía, corria, desorientado, desesperado, a<br />
vagar nalgum cais, onde o mar parecia estar de grandes<br />
braços abertos para recebê-lo, para dar-lhe<br />
generosamente toda a seiva dos seus abismos glaucos;<br />
ou então buscava com ansiedade a paz bucólica de algum<br />
campo próximo, respirando assim com avidez e consolo o<br />
hálito virgem, as sadias emanações fortalecentes da
414 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
vegetação e das ondas salgadas, como se procurasse<br />
haurir nelas todo o poder secreto que não possuía, toda<br />
a força de concentração, de generalização e de síntese<br />
que no momento fatal da Concepção tão capciosa se lhe<br />
mostrava e tão impiedosamente lhe fugia.<br />
Era como se ele fosse um condenado a quem<br />
estivessem para sempre interditas as portas livres e<br />
luminosas da salvação. Natureza que a intemperante<br />
sensualidade, já pela sua expressão alcoólica, já pela<br />
sua expressão carnal, já pela sua expressão de preguiça<br />
inerte e até mesmo, por fim, de gula, ia aos poucos<br />
devorando funestamente. Dir-se-ia que procurava nos<br />
inebriamentos, vertigens, delírios e perturbações da<br />
Carne como que o veículo mais pronto, mais fácil, embora<br />
inferior, para nele fazer mover e canalizar<br />
alucinadamente a Sensação que trazia.<br />
As qualidades que lhe tinham de vir unas,<br />
homogêneas, condensadas para o espírito, dispersavamse<br />
na sensualidade, transformavam-se em instintos<br />
puramente sensuais, como que para mais e melhor<br />
justificar, agravando, a sua impotência conceptiva.<br />
Nas claras e fundas horas abstratas de julgamento<br />
próprio que cada um tem no seu Íntimo, seja o mais<br />
puro ou o mais perverso dos homens, o mais superior ou<br />
inferior, ele reconhecia toda a sua Impotência, via-se<br />
flagrante no espelho cruel e nu do seu Nada.<br />
Assim como há certos intelectuais que na<br />
superioridade dos grandes meios ficam radicalmente<br />
esmagados, enquanto outros ganham o mais<br />
extraordinário esplendor e vigor, como que absorvem o<br />
céu e a terra, os continentes, são infinitos que se<br />
desdobram no Infinito; há também, especialmente nas<br />
regiões da Arte, seres que trazendo consigo a alta<br />
responsabilidade do Espírito, pelo verbo falado, não a<br />
podem registrar, entretanto, pelo verbo escrito.<br />
Como que se dá com eles o mesmo fenômeno<br />
curioso e aflitivo de um cego que sente tactilmente as
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 415<br />
cousas, mas que não as pode ver; de um mudo, que<br />
possui o órgão vocal, mas que não pode falar...<br />
Nesses momentos acerbos de irrequietabilidade<br />
mórbida, doentia, quando lhe fugiam todos os raios de<br />
unidade amorável e harmoniosa do seu ser e que alguém<br />
lhe surpreendia o flagrante do sentimento, o íntimo do<br />
íntimo da alma, certas negruras venenosas, o Capro<br />
perdia-se na floresta de brumas, afundava-se nos<br />
atoleiros lúbricos do álcool, como numa capciosa desculpa<br />
de vício, de miséria e de tristeza, para que não lhe<br />
sentissem os gritos surdos e o ranger de dentes daquela<br />
Impotência.<br />
Parece que se dava nele um transbordamento<br />
esquisito de natureza, uma anomalia da visão e da<br />
imaginação, de modo a não se poderem ligar entre si os<br />
fios sutis e harmônicos do entendimento e do sentimento,<br />
a não terem correspondência direta e rítmica as<br />
correntes psíquicas do seu cérebro e da su’alma. Parece<br />
que falta a esses seres mais um grão de visão para<br />
abrangerem o complexo todo psíquico ou que algumas<br />
das suas células não têm a intensidade una, a energia<br />
pronta, a espontaneidade essencial e igual para<br />
manifestar por completo as sensações que<br />
experimentam...<br />
E o Capro perdia-se, mergulhava no centro<br />
devorador do seu nirvana de impotência; sucumbia sob<br />
as garras ferozes e os despedaçadores tentáculos do seu<br />
Irremediável!<br />
Ah! era o eterno, o tremendo e incognoscível sofrer<br />
da dor das Idéias, implacavelmente, no tormento profundo<br />
das mais acerbas agonias.<br />
Mas essa insaciabilidade, essa aguda inquietação<br />
indomável, tensibilizando-lhe cada vez mais os nervos,<br />
requintando-lhe os sentidos, galvazinando-lhe o rosto<br />
num espasmo lívido, ia no entanto cavando d’enxadadas<br />
brutais e inevitáveis a sua própria cova.
416 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Toda a desarmonia geral, todo o desequilíbrio do<br />
seu esforço ingênito de mentalizado, toda a ação<br />
desvirtualizada dos seus pensamentos, que era já o<br />
desmoronamento final provocado pela hipertrofia, ou<br />
anulação de uma função do seu cérebro, todo o<br />
desmembramento intelectual do Capro, resultante do<br />
seu subjetivismo facilmente transbordante, sem centros<br />
de intensidade, de condensação, tudo isso apressava já<br />
os seus passos impacientes, ávidos nas batidas da Vida,<br />
para a sepultura, dando- lhe à fisionomia gasta e dolente<br />
um lúgubre macabrismo de esqueleto...<br />
E, quando afinal o vi na Morte, pairando-lhe na<br />
face fria o êxtase ignoto da indefinida, incoercível visão<br />
do Sonho, não sei por que vaga sugestão daquela<br />
improdutiva concupiscência psíquica, daquele lascivo e<br />
psicológico sentir e pensar desordenado, os seus pés,<br />
hirtos, enregelados no féretro, pareciam ter também,<br />
sinistra e ironicamente, estranha evidência capra, como<br />
se toda aquela espiritualidade que transbordara em<br />
luxúria, como se todo aquele vão e dilacerado esforço<br />
houvesse, por agudos fenômenos de sensibilidade<br />
nervosa, por cristalização de angústias lancinantes,<br />
desesperadas, supremas, transformado fantástica e<br />
exoticamente o seu ser naquela expressão animal<br />
reveladora do seu espírito, por um espectral e derradeiro<br />
desdém da Natureza...
A NOITE<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 417<br />
Ó doce abismo estrelado, nirvana sonâmbulo, taça<br />
negra de aromas quentes, onde eu bebo o elixir do<br />
esquecimento e do sonho! Como eu amo todas as tuas<br />
majestades, todas as tuas estrelas, todos os teus ventos,<br />
todas as tuas tempestades, todas as tuas formas e forças!<br />
Como eu sinto os perfumes que vêm das grandes rosas<br />
místicas dos teus maios; os eflúvios vibrantes, cândidos<br />
e finos dos teus junhos; o grasnar dos teus abutres e o<br />
claro bater das asas dos teus anjos! Como eu aspiro<br />
sedento todos esses cheiros salgados do mar dominador,<br />
essa vida aromal das folhagens, das selvas reverdecidas<br />
com os teus orvalhos revigoradores, com a tua esquiva<br />
castidade misteriosa!<br />
Ah! como eu te amo, Noite! Como a tua eloqüência<br />
muda me fala, me impressiona e me chama, Aparição<br />
seráfica, fabulosa irmã do Caos e das Legendas!<br />
O peito cheio de vibrações ansiosas, a alma em<br />
cânticos de amor, os olhos iluminados por esplendores<br />
secretos, como é maravilhoso vagar no solene<br />
tabernáculo dos teus silêncios, no in pace do teu Sonho!<br />
Como faz bem e tonifica mergulhar profundamente<br />
a cabeça nos teus mistérios que deslumbram, adormecer<br />
com eles, deixar que a alma se embale neles, vaguear<br />
pelo Infinito, tendo todos esses mistérios imaculados<br />
como o vasto manto consolador da Piedade e do Descanso!<br />
A tua docilidade e frescura, o teu carinho, os teus<br />
afagos, a tua música selvagem, as tuas solenidades<br />
augustas, o teu antediluviano encanto bíblico, as<br />
monstruosas risadas mefistofélicas dos teus fantasmas<br />
tenebrosos são como seres singulares, verdadeiros<br />
irmãos da minh’alma.<br />
Mordido de nervosidade aguda, perdido no teu<br />
solitário regaço maternal, ó estranha Noite, eu sinto<br />
que o cavalo de asas da minha consciência galopa, voa<br />
longe, livre, sumindo-se na infinita poeira de ouro dos
418 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
astros; que os movimentos dos meus braços ficam<br />
também livres, para abraçar as Quimeras; que os meus<br />
olhos, alegremente felizes, se libertam do carnívoro<br />
animal humano, para só fitarem sombras; que a minha<br />
boca aspira o Vácuo estrelado, para saciar-se dele, para<br />
beber todo o seu luminoso vinho noturno; que os meus<br />
pés erram melhor, oscilantes e vagos embora na<br />
embriaguez e na cegueira da treva, para melhor se<br />
desiludirem de que se arrastam na terra; que as minhas<br />
mãos se estendem e se movem largamente, como asas<br />
de espontâneo vôo bizarro, para dizerem triunfante adeus<br />
por algumas horas às terríveis contingências da Vida!<br />
Perdido nas solidões da tua treva vibram-me as<br />
tuas harpas, seduzem-me os teus êxtases, arrebatamme<br />
os teus misticismos.<br />
Com os olhos radiantemente abertos, como se<br />
fossem duas curiosas flores de raios celestes, eu<br />
nôctambulo em silêncio, na concentração de um<br />
missionário contemplativo vagando num imenso templo<br />
deserto e cheio de sagradas sombras...<br />
Em cima, sobre a cabeça, sinto cantar-me, doce e<br />
terna, a fina luz das meigas estrelas, e essa luz arde,<br />
chameja melancolicamente como uma alma que aspira...<br />
Dentro de mim uma sensibilidade incomparável<br />
vibra e vive como essas estrelas delicadas e meigas.<br />
Todos os quebrantos da noite fascinam-me,<br />
enlevam-me e eu me surpreendo arrebatado por uma<br />
transfiguração que não sei de onde parte, que não sei<br />
de onde vem, mas que me enche a alma como de uma<br />
crença maior, como de um revigoramento de marés<br />
picantes, como de um largo e belo sopro natal de<br />
revivescências juvenis!<br />
E quando levanto acaso religiosamente os meus<br />
olhos, no meio da candidez da solidão noturna, para o<br />
azulado e magoado estrelejamento do céu e vejo o céu<br />
suntuoso e mudo com os seus astros, os meus olhos,<br />
felizes e gloriosos por te olharem, Noite, exilam-se cada
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 419<br />
vez mais na tua mudez, vivem cada vez mais do teu<br />
deslumbramento e do teu gozo, inteiramente órfãos de<br />
todas as outras perspectivas, como dois príncipes<br />
hamléticos exilados para sempre numa sombria, mas<br />
inefavelmente amorável região de luto.<br />
Quando um pesadelo sinistro cavalga o meu dorso,<br />
me oprime o peito e os rins, tira-me a respiração –<br />
pesadelo gerado do Nada que nos envolve a todos – a tua<br />
fascinação astral é para mim um alívio supremo, a tua<br />
liberdade ampla é para mim larga emanação vital.<br />
As tuas sutilezas me acordam, os teus Stradivarius<br />
me espiritualizam, os teus preciosos ritmos me afinam...<br />
Ó Noite! inimiga irreconciliável dos que não te<br />
sabem engrinaldar com os lírios das suas saudades,<br />
encher com os seus soluços, estrelar com as suas<br />
lágrimas! Hóstia negra dos Sonhos brancos que eu<br />
eternamente comungo! Tu que és misericordiosa e que<br />
és boa, que és o Perdão estrelado suspenso sobre as<br />
nossas desgraçadas cabeças, tu que és o seio espiritual<br />
dos miseráveis seres, embalsama-me com os teus ósculos<br />
perfumados, com o eflúvio da infância primitiva dos teus<br />
idílios, abençoa-me com o teu Isolamento, cobre-me com<br />
os longos mantos de veludo e pedrarias das tuas volúpias,<br />
purifica-me com a graça dos teus Sacramentos.<br />
Fantasista do soturno, do galvânico, do lívido;<br />
Colorista do shakespeareano e do dantesco; Mater dos<br />
meios tons e das meias sombras, das silhouettes e das<br />
nuances; trombeta de Josafá, que fazes caminhar todos<br />
os espectros, ressuscitar todos os mortos, máscara<br />
irônica de todas as chagas; confessionário de todos os<br />
pecados; liberdade de todos os cativos: como eu recordo<br />
a galeria subterrânea dos teus mórbidos bêbados, dos<br />
teus ladrões cavilosos, das tuas lassas meretrizes, dos<br />
teus cegos sublimes e formidáveis, dos teus morféticos<br />
obumbrados e monstruosos, dos teus mendigos<br />
teratológicos, de aspecto feroz e perigoso de tigres e ursos<br />
enjaulados, acorrentados na sua miséria, dos teus
420 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
errantes e desolados Cains sem esperança e sem perdão,<br />
toda a negra boêmia cruel e tormentosa, ultra-romântica<br />
e ultra-trágica, dos vadios, dos doentes, dos<br />
degenerados, dos viciosos e dos vencidos!<br />
E a peregrina boêmia dos teus cães uivantes e<br />
contemplativos no amoroso espasmo do luar, dos teus<br />
gatos sonhadores, exilados e raros estetas felinos<br />
deslizando sutis pelos muros, histéricos da lua, os olhos<br />
fosforescentes como a luz de estranhos santelmos!<br />
Noite que abres teus circos funambulescos, cheios<br />
de palhaços rubicundos, tatuados de mil cores, de<br />
acrobatas de formas e movimentos aligeros e elásticos<br />
como serpentes; que expões todo o arco-íris inflamado<br />
dos teus bazares, a vertigem de zumbir de abelhas dos<br />
teus fagulhantes cafés-cantantes, o olho ignívomo e<br />
solitário dos faróis no mar alto e toda essa ondulação de<br />
aspectos e sonhos fugitivos, essa nebulosa do rumor e<br />
da emoção, que é o teu véu de noiva, que é o teu manto<br />
real!<br />
Tu apagas a mancha sangrenta da minha vida,<br />
fazes adormecer as minhas ânsias, és a boca que sopras<br />
a chama do meu desespero, és a escada de astros que<br />
me conduzes à minha torre de sonho, és a lâmpada que<br />
desces aos carcavões da minh’alma e fazes desencantar,<br />
caminhar e falar os meus Segredos...<br />
Tens uma expressão milenária de Epopéias, um<br />
curioso e extravagante sentimento druídico, e como que<br />
toda melancolia arcaica da Decadência latina.<br />
No fundo velho e pitoresco do teu Oriente, ó Noite,<br />
meu caprichoso e exótico Crisântemo; nos longes dos<br />
teus grandes e famosos Frescos ondulam em curvas<br />
lascivas e donairosas as românticas e visionárias virgens,<br />
os pálidos poetas meditativos, os ascetas lívidos que<br />
velam à claridade magoada dos círios, os fascinantes e<br />
capciosos Fra-Diavolos, os galhardos, zumbentes e<br />
coruscantes carnavais de Veneza da tua prodigiosa<br />
Fantasia e as quermesses louras e cor-de-rosa dos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 421<br />
querubins da Infância, que dormem sonhando, lírios de<br />
comovida ternura, meigamente seduzidos e embriagados<br />
no delicado e casto regaço do mistério dos sexos.<br />
O bendita Noite! dá-me a morte na irradiação dos<br />
teus raios, para que eu rompa o selo cabalístico dos teus<br />
segredos; dá-me a morte na cristalização dos teus astros,<br />
nas auréolas das tuas nuvens, no pesado luxo das tuas<br />
constelações, no vaporoso de tuas visões de lagos, na<br />
solenidade bíblica das tuas montanhas enevoadas, nas<br />
cerradas cegueiras apocalípticas das tuas maravilhosas<br />
florestas virgens, quando lentas luas langues<br />
florescerem nos céus como grandes beijos congelados<br />
de brancas noivas gigantes encantadas e mortas...
422 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
MELANCOLIA<br />
Falo ainda e sempre a ti, branco Lusbel das<br />
espirituais clarividências! A ti, cuja ironia é ferro e é<br />
fogo! Cuja eloqüência grave e vasta faz lembrar, como a<br />
de Bossuet, longas alamedas de verdes e frondejantes,<br />
altos plátanos chorosos. A ti, que amargurado deploras<br />
toda esta decadência dos seres; a ti, que te voltas<br />
desolado e saudoso para os tempos augustos que se foram,<br />
quando a Honra vã de hoje, era, como um poderoso e<br />
altivo brasão de águias negras atravessado de uma<br />
espada no centro!<br />
Sim! branco Lusbel, nós caminhamos para o<br />
irreparável empedernimento; desde o solo até aos astros,<br />
homens e cousas, tudo vai quedar de pedra. Será um<br />
sono universal de uma universal esfinge. Tudo, na pedra,<br />
dormirá um sono de pedra. A pedra respirará pedra. A<br />
pedra sentirá pedra. A pedra almejará pedra. E esta<br />
tremenda aspiração de pedra profundamente simbolizará<br />
os sentimentos de pedra dos homens de hoje. E, então,<br />
branco e iluminado Lusbel, mais claro do que nunca,<br />
verás que os olhos dos homens só luzem diante do<br />
dinheiro! Que pelo Amor nenhum se sente com ânimo<br />
de brandir um facho, de agitar um gládio ou desfraldar<br />
uma bandeira! Que pelo Sacrifício nenhum se arrojará<br />
nos Nirvanas transcendentes, porque dói muito<br />
abandonar o Conforto! Que pela Abnegação nenhum se<br />
colocará na vanguarda, porque custa muito aniquilar o<br />
Interesse.<br />
Bem sei que tu, ainda com uns restos de<br />
demência, não sei se diabólica, não sei se divina, acharás<br />
paradoxal esta intuitiva profecia; mas, para te fazer<br />
apagar de uma vez as últimas claridades de crença<br />
inexperiente que ainda conservas na alma, vou<br />
ministrar-te um rápido e curioso exemplo – síntese<br />
preciosa de que o Sentimento está metalizado em ouro,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 423<br />
de que a alma anda em cheques universais, no câmbio<br />
feroz do egoísmo humano:<br />
– Meu filho, ouvi perguntar um dia a uma criança<br />
de sete para oito anos que chegara desse rude e corrupto<br />
mundo europeu a tentar fortuna nestas novas terras<br />
azuis – meu filho, você, com certeza, deixou lá fora<br />
família, sua mãe, seu pai, não?!<br />
– Deixei, respondeu ele.<br />
– E não tem vontade de voltar, não tem saudade<br />
deles?<br />
– Eu! saudades, replicou a inocente criança de<br />
sete para oito anos; eu não vim cá para ter saudades,<br />
vim para ganhar dinheiro!<br />
Aí tens tu, branco e iluminado Lusbel, a boca dessa<br />
esquisita criança, na qual deveria desabrochar a flor<br />
tépida de um afeto cândido, instintivamente gangrenada<br />
já por tamanhas abjeções de palavras duras!<br />
Nesse ingênuo bandidozinho aí tens tu a imagem<br />
simbólica, a mais que exata medida da alma humana<br />
universal que tu desoladamente observas com tão<br />
desesperada melancolia, cuja psicologia secreta tu<br />
penetras tanto nos requintes de toda a tua inquieta<br />
Indignação!
424 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
CONDENADO À MORTE<br />
Soyez victorieux de la terre.<br />
BALZAC, Seraphita.<br />
Desde que ele, o doloroso Estético, penetrou<br />
naquele Noviciado divino, que se sentiu para sempre<br />
condenado à Morte!...<br />
Bem o pressentiu logo, bem o compreendeu, assim<br />
que em torno à sua cabeça melancólica e triunfante um<br />
clangor de guerra ecoou, vitoriando-o, e cem mil<br />
estandartes gloriosos dos falangiários do Ideal se<br />
desfraldaram e abateram ante seus pés, numa solene<br />
homenagem de conquista.<br />
A Vida terrena do Tangível que flamejasse lá fora,<br />
nos turbilhões cruentos dos dias, no dilaceramento das<br />
horas; os homens que se atropelassem e gemessem e<br />
rojassem sob a mole formidanda das paixões; o gozo, a<br />
ebriedade do gozo, o prazer picante e álacre, fútil, leve,<br />
fácil, que cantasse sobre a terra, que agitasse todos os<br />
seus guizos jogralescos, rufasse todos os seus tambores<br />
festivos, fizesse ressoar todos os seus clarins ovantes...<br />
Ele, o Estético doloroso, não! Dentro desse<br />
Noviciado divino estaria perpetuamente condenado à<br />
Morte – visão, fantasma, sombra do Imponderável,<br />
arrebatado não sei por que estranho Mistério, não sei<br />
por que esquisita impressão abstrata, não sei por que<br />
fluido maravilhoso, para a Morte, antes mesmo da<br />
consumação da matéria, por condenar as vãs alegrias<br />
que arrastam tantas almas, as venturas banais que<br />
fascinam e embriagam tão loucamente os homens.<br />
Outros que se alassem às correrias preciosas da<br />
Mocidade, às opulências, ao fausto, ao esplendor das<br />
pompas exteriores, ao estridente rumor das festas,<br />
perdidos pelas estradas intermináveis, longínquas,<br />
ermas, dos Destinos desencontrados.<br />
Ele, o Estético doloroso, não! Naquela intuição<br />
tocante de Iluminado, ficaria no Desconhecido, para a
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 425<br />
consagração do Espírito, olhando, numa indizível tristeza<br />
de mar noturno, as gerações que se aglomeram e<br />
mutuamente devoram nos pórticos desolados do Universo,<br />
pela batalha bárbara do Existir...<br />
Ele estivera já em contactos com o Mundo,<br />
sentindo-o, respirando o mesmo ar, chocando-se com os<br />
sentimentos mais abstrusos e soturnos, com as paixões<br />
mais vorazes, com os corações mais gelados, roídos pelo<br />
cancro alastrante de um tédio doentio, de um nirvanismo<br />
agudo, de um nihil eslavo...<br />
Sentira todas essas psicoses sangrentas, todas<br />
essas manifestações exóticas de uma espécie de absurda<br />
teratologia mental; todas essas complexidades d’alma<br />
de um fundo caótico, esmagador, aniquilante, de onde a<br />
Fé fugiu desolando e enrijecendo tudo, ficando apenas<br />
o granito de umas naturezas hirtas, impassíveis,<br />
estratificadas no egoísmo e na indiferença das cousas,<br />
vendo a perfeição, a beleza serena das abstrações ideais,<br />
das formas onipotentes e singulares, com os vesgos olhos<br />
da lascívia, da impotência ou da inveja reptilosa e<br />
lesmenta.<br />
Ele viu atritarem-se convulsamente os leprosos,<br />
os aleijados, os epilépticos, os morféticos, os tísicos, os<br />
cegos, enroscados todos na sua negra mortalha de<br />
suicidas, cambaleantes, ébrios de dor, de desespero, na<br />
agonia da carne que se dilacera, que se rasga, que se<br />
despedaça – enquanto o soberbo sol, dos Altos, como um<br />
pagão, bizarro, cantava sobre todas essas chagas abertas,<br />
sarcasticamente, diabolicamente, indiferentemente, a<br />
música offenbachiana, do seu clarão comunicativo e<br />
cortante...<br />
Ele viu, como um largo mediterrâneo, todo o<br />
assombro das lágrimas recalcadas, toda a epopéia<br />
sinistra, toda a majestade dolorosa da alma humana,<br />
torcida num espasmo de angústia lancinada,<br />
amargamente lancinada numa aflitiva treva de<br />
dilaceramentos.
426 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Ele observara tudo, descera a esses subterrâneos<br />
fatais, a essas criptas letíficas de nevroses e<br />
spleenéticas doenças, onde parece errarem duendes<br />
infernais e onde como que uma lua lívida, espectral,<br />
d’além túmulo, trêmula e triste, derrama sonolenta e<br />
esverdeada claridade de augúrios medonhos e<br />
indefiníveis...<br />
Vira tudo isso, mas vira igualmente todas as<br />
graças e aromas da terra na fascinação satânica da<br />
mulher, no encanto virginal da sua carne, na tantálica<br />
tentação dos seus braços tentaculosos.<br />
Mas, tendo desde logo entrado na posse secreta<br />
de si mesmo, o doloroso Estético só sentira mais a mulher<br />
nas linhas e aspectos da visão, desprezara a carne,<br />
idealizara, espiritualizara a mulher.<br />
Ele vira os fatigantes prazeres, as bizarras e<br />
galhardas alacridades do Vinho – quando a mocidade<br />
ruidosa, num alvoroço, arrebatada nos fantasiosos<br />
corcéis alados da alegria, por ser futilmente, mas<br />
intensamente amada, abre os braços nervosos à loucura,<br />
com todo aquele sangue exuberante, claro, vigoroso, de<br />
leão dominador, que mais tarde a boca visguenta da cova<br />
há de beber, sugar então fartamente para sempre.<br />
Tudo, absolutamente tudo, ele vira; tudo o que é<br />
ventura breve, mas tangível, mas real, tudo o que se<br />
goza pelo olfato, pelos olhos, pelo paladar e pelo tato;<br />
tudo o que constitui o epicurismo grego e o que constitui<br />
o júbilo mundano, a felicidade clássica, oficial,<br />
convencionada, das sociedades cansadas, decadentes,<br />
esgotadas pela degenerescência do sangue, pela<br />
intensidade da Análise, torporizadas e entorpecidas no<br />
amolecimento e no postiço das fórmulas, sem ter<br />
enfibratura para a Grande Vida, em regiões estreladas,<br />
ao de leve, sutil e delicadamente, noutra chama, noutra<br />
esfera mais fina, mais pura...<br />
Completamente tudo, afinal, ele vira e sentira com<br />
profundidade, enclausurado naquele Noviciado divino,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 427<br />
pelo qual, como de dentro da terrível, solene e hieroglífica<br />
porta do INFERNO, deixara lá fora no Mundo toda a<br />
esperança de gozos efêmeros, de ambições medíocres,<br />
de aclamações decretadas, de acolhimentos e apoteoses<br />
mundanas, de séquitos reverentes e cortesãos<br />
arrastando a pompa impura, enxovalhada, rota, ridícula,<br />
da larga púrpura de ovações cediças e seculares.<br />
Se ainda lhe fosse permitido ouvir o eco<br />
adormecido, distante, vago, das Ilusões, das Alegrias<br />
livres, dos Sonhos de há vinte anos, das Esperanças<br />
imensas, das Saudades intraduzíveis da sua<br />
adolescência, para lá destas eras rudes e austeras do<br />
Pensamento e do Sentimento, outra cousa não<br />
repetiriam, não clamariam todas essas sacrossantas<br />
Imagens, todas essas inefáveis Visões, senão que o<br />
doloroso Estético é agora um perfeito condenado à Morte<br />
– sereno e grande condenado que ufanamente esqueceu<br />
e desprezou, para trás, para os tempos de outrora, tanta<br />
luz de tranqüilidade, de paz ingênua, para vir então<br />
espontaneamente entregar-se aos martirizantes cilícios<br />
das Idéias.<br />
As sensações que poderia experimentar com<br />
simplicidade, como natureza elementar, sem febre, sem<br />
delírio de impressões, sem agudezas de nervosismos;<br />
essas sensações comuns de sentir, físicas, flagrantes<br />
como ferro em brasa chiando em cheio nas carnes, o<br />
doloroso Estético deixou intensamente de experimentar,<br />
para mais intensas sentir as outras sensações que tocam<br />
por toda a escala dos nervos, por todo o enraizamento<br />
das fibras, por toda a delicadeza etérea, aeriforme, da<br />
ductilidade e da vibração.<br />
Impassível diante de tudo que não seja a expressão<br />
de uma Estética, a afirmação de uma estesia rara, a<br />
latente, profunda originalidade sensacional e vivendo<br />
por entre o ruído, a confusão, a vertigem da multidão<br />
que ri, que goza com distinções boçais, com a sua<br />
celulazinha empírica – Ele não vive a vida externa dos
428 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
homens, não participa, de fato, do meio ambiente — antes<br />
o seu estado vital é a morte, por uma condenação<br />
perpétua e lógica de todos os vários elementos da Matéria<br />
contra ele conclamados...<br />
Isolado do Mundo, no exílio da Concentração,<br />
solitário, na tristeza majestosa de um belo deus<br />
esquecido, as outras forças múltiplas que agem na Terra,<br />
na luta desenfreada de cada dia, que equilibram as<br />
sociedades, que regem a massa vã dos princípios, que<br />
dão ritmo à onda eterna do movimento e entram na vasta<br />
elaboração da cultura das raças, sentiram-se<br />
hostilizados diante da sua intuitiva percuciência de<br />
vidente, da sua ironia gelada de asceta, do seu desdém<br />
soberano de apóstolo, da sua Fé indestrutível, serena<br />
de missionário, de extraordinário levita sombrio de um<br />
culto estranho, que leva aos lábios, em extremo, o Cálix<br />
místico da comunhão suprema da Espiritualidade e da<br />
Forma.<br />
E então, o doloroso Estético, soberbo e sublime na<br />
sua solidão e no seu silêncio, vagueou – afastado do foco<br />
real, positivo da Vida – sem existir de fato, como um<br />
simples condenado à Morte, errante fantasma na sombra<br />
de sepulcros, misteriosamente vibrado por grande Sonho<br />
doloroso ritmado nas longas, monótonas e amargurantes<br />
melancolias do Mar, para sempre gemendo e sonhando,<br />
noturnamente, velhas lendas bárbaras.<br />
É que o Estético viera da caudal misteriosa dos<br />
que acharam clarividentemente o inédito das suas<br />
almas, que se sentiram seres, que se salvaram do Caos<br />
universal com a evidência simples e clara de uma<br />
natureza afirmativa.<br />
Mas, afinal, assim mesmo condenado à Morte, sob<br />
os filtros negros da Morte, ele, purificado do Espírito,<br />
perfectibilizado da Alma, remido e libertado da Matéria,<br />
ficou simbolizando, no entanto, o único ser<br />
verdadeiramente livre e legitimamente ser, o mais belo,<br />
o maior, o mais alto ser, ainda que desolado e sombrio,<br />
vitorioso da Terra!
ANHO BRANCO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 429<br />
Lembrava frescura de úmidas rosas<br />
desabrochadas, eflorescência de magnólias e a candidez<br />
de alma de pastores aquela carnação opulentamente<br />
branca.<br />
Existência singela, segetal, um tanto primitiva,<br />
de serranias alpestres, o espírito a imaginava surgindo<br />
dentre vergéis de lírios e açucenas, numa clara<br />
fulguração de brancuras, como se as constelações a<br />
houvessem fecundado.<br />
Uma luz desconhecida parecia rodeá-la de<br />
auréolas arcangélicas, celestiais...<br />
No entanto, a sua carne viva, virgem,<br />
radiantemente alva, da translucidez requintada da lua,<br />
determinava bem a sua terrestre descendência.<br />
Pelos campos, pelos prados, ela surgia com o sol,<br />
ela noctivagava com as estrelas, branca e de fino ouro<br />
flavo nos cabelos.<br />
Surgia com o sol, na lactescência imaculada do<br />
seu corpo de flexibilidades e delicadezas de linho;<br />
noctivagava com as estrelas, na chama doirada dos seus<br />
cariciosos, suaves cabelos.<br />
Na alvorada púbere desse sangue majestoso de<br />
Virgem, inefável Infinidade de sereias de volúpia cantava.<br />
Relâmpagos vagos de desejos quiméricos cruzavam,<br />
abriam claridades iriadas nesse sangue triunfal<br />
impoluto, tão puro e verde nas exuberâncias como as<br />
verdes e tropicais vegetações dos campos claros que a<br />
geraram.<br />
A alma adormecia no azul doce, langue,<br />
balouçante, dos seus olhos radiantes, festivos, inundados<br />
de uma frescura silvestre de náiade onde, por vezes, a<br />
dolente melancolia de amargas águas de mar em repouso<br />
vagava.<br />
Carne casta e branca, tenra e veludosa, epiderme<br />
de leve luz rosada, cujas transparências sutis
430 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
extasiavam, tinha, no entanto, uma fascinação animal,<br />
um quebranto delicioso de pecado, uma provocante<br />
flexura nervosa nos quadris afelinados, qualquer cousa<br />
de inebriante segredo selvagem no extravagante conjunto<br />
da linhas dúcteis da alva e flavescente figura.<br />
Certos caprichos que a dominavam, certos arrojos<br />
e aventuras, traziam-lhe mesmo afinidades selvagens:<br />
– em saltar aos vales, logo pela manhã, aos primeiros e<br />
luxuosos coloridos; em coroar-se de rosas agrestes, pelos<br />
prados, gárrula, trêfega, no aspecto bizarro, no<br />
movimento fugidio e arisco de pássaro airoso; na ousada<br />
graça montanhesa de subir a árvores frondejantes e<br />
dormir depois à sombra delas, livre, descuidadosa, na<br />
expansão vegetal dos campos, identificando-se larga e<br />
singularmente com todos os aromas e mistérios da<br />
Natureza.<br />
E era surpreendente vê-la assim, transfiguradamente<br />
formosa, errando pelos vergéis, pelas campinas e<br />
vales, voando quase, na febre da luz e da paisagem verde<br />
que a impressionava, que a eletrizava, como se ocultas<br />
asas a levassem, a levassem, para sempre confundida e<br />
mergulhada nas eflorescências abundantes das louras,<br />
sazonadas searas.<br />
E, por entre os giestais engrinaldados de flores<br />
amarelas, por entre a rubente coloração das papoulas, a<br />
espessura densa das folhagens glaucas, a gradação<br />
pinturesca da verdura e pela margem das lagoas e lagos<br />
prateados e sonolentos, à beira dos brejos e alagados,<br />
das fontes, cachoeiras e rios e ainda sob a tenda<br />
abrigadora dos tamarineiros e jambeiros perfumados, e<br />
ainda por entre as galhardas alacridades dos cravos,<br />
por entre os amargosos e acres rosmaninhos, era o<br />
encanto picante, o supremo êxtase ver como essa Ninfa<br />
branca das selvas corria, corria, toda resplandecida de<br />
sol, arrebatada através das seivas impetuosas, dos<br />
travorosos odores, dos bálsamos, das resinas, das<br />
cheirosas e vertiginosas emanações de todas as ervagens
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 431<br />
e plantas exuberadas, na fascinante volubilidade alígera<br />
de movimentos imprevistos de gamo, acusando ainda<br />
mais, fazendo ainda mais viver e cintilar, em luminosos<br />
relevos, no desalinho soberbo da corrida, a glória da<br />
carne branca, a pubescência maravilhosa das formas.<br />
E essas seduções prófugas, essa timidez e<br />
melindre gracioso, junto às audácias e vivacidades<br />
másculas, às surpresas e revelações do seu borboletismo<br />
irrequieto, faziam meditar, em silêncio e melancolia,<br />
nos sigilos assinaladores, nos recônditos, secretos<br />
pudores, na recatada e ingênita malícia de alguma<br />
curiosa filha de lendário e poderoso gigante, viçada<br />
branca, sob o inflamado e fecundativo pólen do sol, na<br />
luxúria animal e verde das florestas.<br />
E ela corria, corria, galgava as ribanceiras,<br />
transpunha pomares em fruto, sebes de madressilvas e<br />
acácias, e perdia-se, perdia-se fantasiosamente pelos<br />
infinitos estrelados de flores e de brilhos de todas aquelas<br />
amplas, sonoras, e prodigiosas regiões de virgindades<br />
campestres.<br />
Errava um primitivo e saudoso sentimento de<br />
Criação paradisíaca sempre que ela irrompia através da<br />
vaga esmeralda das vinhas, do purpurejamento palpitante<br />
das rosas, entre as aves que abriam e batiam asas<br />
cantando em torno à sua esvelta e fascinadora cabeça<br />
d’ouro virgem.<br />
Na solenidade épica dos vales, dos bosques, das<br />
colinas e campos, onde bois resignados e majestosos<br />
tocante e melancolicamente mugiam com os grandes<br />
olhos de um sentimento bíblico, espiritualizados por um<br />
suavíssimo luar de lágrimas de evangélica bondade, esse<br />
corpo branco de brancura olímpica de deusa – ode das<br />
odes vivas, Cântico dos Cânticos, Via-Láctea<br />
transfundida em carne – parecia ter a influência<br />
misteriosa de um silfo alado, parecia derramar, por<br />
aqueles horizontes augustos, o luar de imensos e
432 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
voluptuosos pesadelos dos fenômenos infinitos da<br />
Germinação...<br />
Era a estranha Visão florestal que, quando<br />
aparecia, como que tornava brancos todos os aspectos,<br />
fazendo a retina sentir, por efeito dos deslumbramentos<br />
e ampliações visuais, vastas miragens brancas, vertigens<br />
de cores brancas, perspectivas brancas, nuances<br />
brancas, tudo nevadamente aceso em fulguramentos e<br />
cambiantes brancos.<br />
Nem o sol, com a sua clarinante chama fiava,<br />
conseguira jamais empalidecer, dar tons de razão a essa<br />
brancura intacta, da inviolabilidade de tabernáculos, que<br />
parecia sempre repurificada nas origens das extremas<br />
lactescências, das neves inacessíveis, dos indeléveis<br />
florescimentos.<br />
E essa incomparável brancura magnetizava os<br />
sentidos como eflúvios de óleos exóticos e místicos<br />
vaporosamente queimados...<br />
Mas, as curvas esquisitas do seu perfil ágil, lépido,<br />
tentadoramente assinalado por fugitivos meneios<br />
animais e curiosos; o coleante movimento dos braços de<br />
lânguidas nervosidades de áspide; a dilatação sedenta<br />
das narinas acendidas numa aspiração de sorver os<br />
cheiros vitais das terras fundamente revolvidas e das<br />
ervas sumarentas e quentes; a gula farta da boca úmida<br />
num viço rubro, exalando lilás e trevo; as mornas e magas<br />
magnólias embriagantes dos seios; as finas e elíseas<br />
claridades azuis dos olhos, e, enfim, a candidez e<br />
brancura suave das pompas da carne virgem,<br />
despertariam nos temperamentos violentos, selvagens,<br />
anseios intensos, acordariam o gozo idiossincrático, não<br />
de desvirginá-la, de violá-la, na brutalidade feroz dos<br />
instintos, mas de a morder, de fazer sangrar à faca,<br />
com volúpia, com febricitante paixão, carne tão odorante,<br />
tão balsâmica, tão lirial e nevada, engolfando<br />
saciadoramente nela o aço fólgido e rijo, rasgando-a com<br />
a lâmina acerada e aguda em talhos veementes, vivos,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 433<br />
gritantes de sangue fresco e fumegante, escorrendo,<br />
gotejando rubinosos vinhos de aurora, toda ela<br />
flagrantemente aberta numa esdrúxula floração boreal.<br />
E, então, toda, toda essa sexual magnificência,<br />
toda essa casta beleza, fazia extravagantemente<br />
despertar a lembrança, dava a impressão sugestiva, ao<br />
mesmo tempo profana e sagrada, da unção angélica, da<br />
encarnação humanada e miraculosa do alvo, tenro e<br />
meigo cordeiro imaculado, do lhano, doce e delicioso<br />
Anho branco original dos Ermos, para a efusiva Páscoa<br />
nova das transcendentes luxúrias...
434 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
O SONO<br />
Ceux qui rêvent éveillés ont connaissance de mille<br />
choses qui échappent à ceux qui ne rêvent<br />
qu’endormis. Dans leurs brumeuses visions, ils<br />
attrapent des échapées de l’éternité et frissonent,<br />
en se réveillant, de voir qu’ils ont été un<br />
instant sur le bord du grand secret.<br />
EDGARD POE, Eleonora.<br />
A tua voz! a tua voz! Clamo em vão pela tua voz,<br />
procuro-a como por uma ave maravilhosa e a tua voz<br />
está estranhamente adormecida no sono...<br />
Está adormecida no sono, muda, calada de gorjear,<br />
de cantar na tua garganta e na tua boca, aquela voz que<br />
eu sonhara filtrada dos raios do sol, tecida dos raios do<br />
sol, de uma prodigiosa essência etérea na qual radiasse<br />
o sol, todo o esplendor do sol.<br />
Tu estás nostalgicamente dormindo, e esse sono<br />
em tão profundo e misterioso Além te imergiu, que<br />
pareces de mármore. E é, assim, em vão que clamo,<br />
trêmulo e desvairado, pelo brilho quente dos teus olhos,<br />
pela vida da tua voz, que me sacia de vida, que me afoga,<br />
que me embriaga de vida.<br />
Acorda! acorda! acorda! acorda os olhos e a voz, e<br />
mergulha-me na vida que se derrama deles: quero sentir<br />
os teus olhos olharem, a tua boca palpitar de voz, como<br />
um rio transbordante, perenal, que chamejasse,<br />
ondulando em gorgolões e vertigens.<br />
Esse sono frio, hirto, que me aflige, que me<br />
dilacera, lembra uma esperança que dorme<br />
perpetuamente, um desejo, uma alegria que não acorda<br />
mais e dorme, dorme para sempre nos gelos infinitos.<br />
Os meus ciúmes, bravos leões acordados, instigamse,<br />
açulam com a tua mudez, feridos de penetrante<br />
susceptibilidade por não sentirem os frêmitos, o alvoroço<br />
nervoso da tua voz.<br />
Eu quero toda a fremência, toda a palpitação da<br />
tua voz, acordada em músicas, em sinfonias de beijos,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 435<br />
atordoando a dor da minh’alma, como harmonioso e<br />
estonteante carinho, como extasiante licor renano,<br />
vivendo na intensidade, nos turbilhões do movimento,<br />
do ar...<br />
Quero a sensibilidade, a flexibilidade voluptuosa<br />
da tua voz alvorecida do sono como de uma noite polar,<br />
ressurgida, lavada do caos, clara, imaculada de som.<br />
Quero a tua voz, ágil, dúctil, aflante como asas e<br />
como asas abrindo e fechando em tépidos e alvoroçados<br />
véus...<br />
Acorda! fala! fala! No teu sono pairam neblinas<br />
glaciais, as primeiras névoas do esquecimento... As<br />
auréolas místicas, os nimbos cintilantes do Sonho, as<br />
miragens e os íris, circulam a tua bela e imaginativa<br />
cabeça; e hordas invisíveis de resplandecentes arcanjos,<br />
vibrando cítaras, alaúdes, harpas e violinos, numa<br />
inefável surdina, guardam, velam de ritmos vaporosos o<br />
teu sono seráfico...<br />
Eu não sei que sentimentos estão agora em curiosa<br />
gênese dentro de mim, que na minha alucinação e<br />
superexcitação nervosa apalpo ansioso o vácuo, que o<br />
sono em que mergulhas encheu de segredos cabalísticos,<br />
e procuro, procuro em vão as formas, as formas, as<br />
fugitivas formas intangíveis, extremas, ondeantes, sutis,<br />
as formas de perfume, as formas de luz e as formas de<br />
som da tua voz, que o emoliente sono levou não sei para<br />
que necrópoles vazias, não sei para que geladas estepes<br />
de egoísticas e mortais indiferenças.<br />
Ver-te assim, dormindo, esmaiada, branca e<br />
lânguida, nesse abandono de delíquio, num aspecto e<br />
espasmo sonhador de lua morta, faz-me experimentar a<br />
mais dolorosa ansiedade, como que a sensação<br />
flagelante de esquecer-te, uma angústia, uma agonia<br />
de sensibilidade tal, que os meus nervos quase se<br />
despedaçam, tão grande, tão profunda é a tensibilidade<br />
deles quando te apercebem dormindo, e que os teus<br />
olhos, fechados por longas e pesadas trevas, não deixam<br />
ver os recônditos deslumbramentos; e que a tua boca,<br />
muda, calada, encerrando em cárcere misterioso a tua
436 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
voz virginal, não deixa sentir a alada harmonia das<br />
formas e dos aromas!<br />
Oh! acorda! fala! fala!<br />
Vivamente acordada, que sejas, em flama ardente<br />
de vida, nesse hosana triunfante da imortal beleza, eu<br />
agito-me, estremeço, vibro e desvairo, para beber<br />
insaciavelmente todos os encantos delicados e ignotos<br />
da tua voz, todas as ciciantes carícias e luxúrias.<br />
E só com a martirizante lembrança de que talvez<br />
esse sono seja eterno e eu não ouça, não sinta jamais,<br />
nunca mais! as vibrações e as chamas da tua voz,<br />
percorrem-me o corpo todo estranhos calafrios, letais<br />
pesadelos alucinadores me sufocam...<br />
E eu clamo, clamo, num tremor convulso, pela<br />
tua voz: procuro-a transfigurado, pergunto inquietamente<br />
ao Vago em que mistério a escondeu, em que abismo<br />
infernal de trevoso horror rolou, voou e extinguiu-se,<br />
apagou-se, desapareceu, como a alma original dos ventos<br />
e da luz, a tua colorida e chamejante voz!<br />
Invade-me a ânsia de te sentir a voz fluir, borbotar<br />
dos lábios, acesa na paixão de existir, de viver, de<br />
sensacionalmente viver.<br />
A ânsia, o desejo sedento de ver a tua boca<br />
febrilmente, frementemente palpitar com o meu nome,<br />
dizê-lo, repeti-lo, repeti-lo sempre, sempre, ungi-lo e<br />
acariciá-lo na voz, perpetuá-lo com amor, com compaixão,<br />
com misericórdia, com volúpia, com febre, com essa<br />
emoção e agitação de sentimento que impele, arrebata<br />
a alma aos êxtases da Eternidade!<br />
Dormindo, no nebuloso e mago sono, onde a<br />
mórbida flor das melancolias e desdéns amargos murcha<br />
e outonalmente desfolha, e onde esvoaçam em<br />
torvelinhos magnéticos as borboletas translúcidas e<br />
multicoloridas da Quimera, o carinho e a piedade maior,<br />
mais intensa, mais viva, dos teus olhos e da tua voz,<br />
deixam-me desamparado, só, num deserto de silêncio e<br />
de frio, tiritando de pavor e desespero, envelhecendo<br />
cego, tateando de abandono, de desolamento...
TRISTE<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 437<br />
Je devorais mes pensées comme d’íautres<br />
dévorent leurs humiliations.<br />
BALZAC, Histoire Intellectuelle de Louis<br />
Lambert.<br />
Absorto, perplexo na noite, diante da rarefeita e<br />
meiga claridade das estrelas eucarísticas, como diante<br />
de altares sidéreos para comunhões supremas, o grande<br />
Triste mergulhou taciturno nas suas profundas e<br />
constantes cogitações.<br />
Sentado sobre uma pedra do caminho, imoto<br />
rochedo da solidão – ele, monge ou ermitão, anjo ou<br />
demônio, santo ou cético, nababo ou miserável, ia<br />
percorrendo a escala das suas sensações, acordando da<br />
memória as fabulosas campanhas do dia, as incertezas,<br />
as vacilações, as desesperanças; inventariando com rara<br />
meticulosidade e um rigor de detalhes verdadeiramente<br />
miraculoso todos os fatos curiosos, coincidências e<br />
controvérsias engenhosas que se haviam dado durante<br />
o dia, como um gênero insólito e singular de tortura<br />
nova.<br />
As estrelas resplandeciam com a sua doce e úmida<br />
claridade terna, lembrando espíritos fugitivos perdidos<br />
nos espaços para, compassivamente, entre soluços,<br />
conversar com as almas...<br />
E o grande Triste, então, prosseguia no seu<br />
monólogo esquisito, mentalmente pensado e sentido e<br />
que de tão violento que era nos fundos conceitos,<br />
naturalmente até os mais revolucionários e<br />
independentes do espírito achariam, por certo, ser um<br />
monólogo injusto, pessimista, cruel:<br />
– E assim vai tudo no grande, no numeroso, no<br />
universal partido da Mediocridade, da soberana Chatez<br />
absoluta!
438 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
O caso está em ser ou parecer surdo e cego, em<br />
tudo e por tudo, conforme as conveniências o exigem.<br />
Pôr a mão, de dedos abertos, sobre o rosto e<br />
parecer, fingir não ver e passar adiante, porque as<br />
conveniências o exigem.<br />
Essa é que é afinal a teoria cômoda dos tempos e<br />
que os tempos seguem à risca, a todo transe, ferozmente,<br />
selvagemente, com o queixo inabalável, duro, inacessível<br />
ao célebre e pitoresco freio da Civilização, protegendose<br />
contra o perigoso assalto da Lucidez.<br />
– Apaguem o sol, apaguem o sol, pelo amor de<br />
Deus; fechem esse incomodativo gasômetro celeste,<br />
extingam a luz dessa supérflua lamparina de ouro, que<br />
nos ofusca e irrita; matem esse moscardo monótono e<br />
monstruoso que nos morde, é o que clamam os tempos.<br />
Deixem-nos gozar a bela expressão – locomotiva do<br />
progresso – tão suficiente e verdadeira e que cabe tanto<br />
na agradável e estreita órbita em que giramos e não nos<br />
aflijam e escandalizem com os tais pensamentos, com<br />
as tais espiritualidades, com a tal arte legítima e outros<br />
paradoxos de loucura. Deixem-nos pantagruelicamente<br />
patinhar, suinar aqui no nosso lodoso e vasto buraco<br />
chamado mundo, anediando pacatamente os ventres<br />
velhos e sagrados, eis o que dizem os tempos. Que<br />
excelente, que admirável regalo se a humanidade se<br />
tornasse toda ela numa máquina de boas válvulas de<br />
pressão, um simples aparelho útil e econômico, do mais<br />
irrefutável interesse – sem saudade, sem paixão, sem<br />
amor, sem sacrifício, sem abnegação, sem Sentimento,<br />
enfim! Que admirável regalo!<br />
Inútil, pois, continua a sonhar o Triste, todo o<br />
estrelado valor e bizarro esforço novo das minhas asas,<br />
todo o egrégio sonho, orgulho e dor, sombrias majestades<br />
que me coroam – monge ou ermitão, anjo ou demônio,<br />
santo ou cético, nababo ou miserável, que eu sou – inútil<br />
tudo...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 439<br />
Por mais desprezível que fosse esta procedência,<br />
ainda que eu viesse da salsugem do mar das raças, não<br />
seria tanta nem tamanha a minha atroz fatalidade do<br />
que tendo nascido dotado com os peregrinos dons<br />
intelectuais.<br />
Assim, dada a situação confusa, esquerda,<br />
tumultuária, do centro onde vou agindo, estas nobres<br />
mãos, feitas para a colheita dos astros, têm de andar a<br />
remexer estrume, imundície, detritos humanos.<br />
Adaptações, pastiches, intelectualismos, espécie<br />
de verdadeiros enxertos da Inteligência, esses florescem<br />
fáceis logo, porque bem difícil e raro é determinar a<br />
pureza infinitamente delicada, sentir onde reside o fio<br />
profundo, a linha sutil divisória que separa, como por<br />
maravilhoso traço de fogo, os Dotados, dos Feitos ou<br />
Transplantados.<br />
E, pois, com a alma tocada de uma transcendente<br />
sensibilidade e o corpo preso ao grosso e pesado cárcere<br />
da matéria, irei tragando todas as ofensas, todas as<br />
humilhações, todos os aviltamentos, todas as decepções,<br />
todas as deprimências, todos os ludíbrios, todas as<br />
injúrias, tudo, tudo tragando como brasas e ainda<br />
cumprimentos para cá, cumprimentos para lá, para não<br />
suscetibilizar as vaidades e presunções ambientes.<br />
Como flechas envenenadas tenho de suportar sem<br />
remédio as piedades aviltantes, as compaixões<br />
amesquinhadoras, todas as ironiazinhas anônimas, todos<br />
os azedumes perversos e tediosos da Impotência ferida.<br />
Tenho que tragar tudo e ainda curvar a fronte e<br />
ainda mostrar-me bem inócuo, bem oco, bem<br />
energúmeno, bem mentecapto, bem olhos arregalados e<br />
bem boca escancaradamente aberta ante a convencional<br />
banalidade. Sim! suportar tudo e cair admirativamente<br />
de joelhos, batendo o peito, babando e beijando o chão e<br />
arrependendo-me do irremediável pecado ou do crime<br />
sinistro de ver, sonhar, pensar e sentir um pouco...<br />
Suportar tudo e obscurecer-me, ocultar-me, para não
440 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
sofrer as visagens humanas. Encolher-me, enroscar-me<br />
todo como o caracol, emudecer, apagar-me, numa<br />
modéstia quase ignóbil e obscena, quase servil e quase<br />
cobarde, para que não sintam as ansiedades e rebeliões<br />
que trago, os Idealismos que carrego, as Constelações a<br />
que aspiro... Recolher-me bem para a sombra da minha<br />
existência, como se já estivesse na cova, a minha boca<br />
contra a boca fria da terra, no grande beijo espasmódico<br />
e eterno, entregue às devoradoras nevroses macabras,<br />
inquisitoriais, do verme, para que assim nem ao menos<br />
a respiração do meu corpo possa magoar de leve a<br />
pretensão humana.<br />
E, sobretudo, nem afirmar nem negar: – ficar num<br />
meio termo cômodo, aprazivelmente neutral.<br />
Que até nem mesmo eu possa, na melancolia<br />
crepuscular dos tempos, dar com unção emotiva e com<br />
cordialidade o braço a certos profundos e obscuros<br />
Segredos íntimos e, levemente irônico e pungido de<br />
dolência, errar e conversar com eles através das<br />
avenidas sombrias de minh’alma.<br />
Nada de pairar acima de tudo isto que nos cerca,<br />
dos turbilhões ignaros do rumor humano, deste estrondo<br />
atroador de rugidos, desta ondulante matéria, desta<br />
convulsão de lama, acima mesmo destas Esferas que<br />
cantam a luz pela boca dos astros.<br />
E que o mundo veja e sinta que eu o conheço e<br />
compreendo, e que apesar da obscuridade com que me<br />
atrito comumente com ele, apesar dos contactos<br />
execrandos na rodante contingência da Vida, tenho-o<br />
como que fechado nesta pequena e frágil mão mortal.<br />
Dizendo tudo ao mundo, originalmente tudo, com<br />
o verbo inflamado em vertigens e chamas da mais alta<br />
eloqüência, que só um complexo e singular sentimento<br />
produz, o mundo, espantado da minha ingenuidade,<br />
fugirá instintivamente de mim, mais do que de um<br />
leproso.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 441<br />
E até mesmo lá numa certa e feia hora em que se<br />
abre na alma de certos homens uma torporizada flor<br />
tóxica de perversidade, lá muito no íntimo, lá bem no<br />
recesso das suas consciências, nuns vagos instantes<br />
vesgos e oblíquos, quantos dos mais generosos amigos<br />
não acharão, embora falando baixo, muito baixo, como<br />
que num piscar de olhos ao próprio eu, mais ridículo<br />
que doloroso o meu interminável Sofrimento!<br />
Mas, por mais que me humilhe, abaixe resignado<br />
a desolada cabeça, me faça bastante eunuco, não<br />
murmure uma sílaba, não adiante um gesto, ande em<br />
pontas de pés como em câmaras de morte, sufoque a<br />
respiração, não ouse levantar com audácia os olhos para<br />
os graves e grandes senhores do saber; por mais que eu<br />
lhes repita que não me orgulho do que sei, mas sim do<br />
que sinto, porque quanto ao saber eles podem ficar com<br />
tudo; por mais que lhes diga que eu não sou deste mundo,<br />
que eu sou do Sonho; por mais que eu faça tudo isto,<br />
nunca eles se convencerão que me devem deixar livre,<br />
à lei da Natureza, contemplando, mudo e isolado, a<br />
eloqüente Natureza.<br />
E, então, assim, infinitamente triste, réprobo,<br />
maldito, secular Ahasverus do Sentimento, de martírio<br />
em martírio, de perseguição em perseguição, de sombra<br />
em sombra, de silêncio em silêncio, de desilusão em<br />
desilusão, irei como que lentamente subindo por sete<br />
mil gigantescas escadas em confusas espirais babélicas<br />
e labirínticas, como que feitas de sonhos. E essas sete<br />
mil escadas babilônicas irão dar a sete mil portas<br />
formidáveis, essas sete mil portas e essas sete mil<br />
escadas correspondendo, como por provação das minhas<br />
culpas, aos sete pecados mortais.<br />
E eu baterei, por tardos luares mortos, baterei,<br />
baterei sem cessar, cheio de uma convulsa, aflitiva<br />
ansiedade, a essas sete mil portas – portas de mármore,<br />
portas de bronze, portas de pedra, portas de chumbo,<br />
portas de aço, portas de ferro, portas de chama e portas
442 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
de agonia – e as sete mil portas sete mil vezes<br />
tremendamente fechadas a sete mil profundas chaves,<br />
seguras, nunca se abrirão, e as sete mil misteriosas<br />
portas mudas não cederão nunca, nunca, nunca!...<br />
Num movimento nervoso, entre desolado e altivo,<br />
da excelsa cabeça, como esse augusto agitar de jubas<br />
ou esse nebuloso estremecimento convulso de<br />
sonâmbulos que acordam, o grande Triste levantara-se,<br />
já, de certo, por instantes emudecida a pungente voz<br />
interior que lhe clamava no espírito.<br />
De pé agora, em toda a altura do seu vulto<br />
agigantado, arrancado talvez a flancos poderosos de Titãs<br />
e fundido originalmente nas forjas do sol, o grande Triste<br />
parecia maior ainda, sob os constelados diademas<br />
noturnos.<br />
As estrelas, na sua doce e delicada castidade,<br />
tinham agora um sentimento de adormecimento vago,<br />
quase um velado e comovente carinho, lembrando<br />
espíritos fugitivos perdidos nos espaços para,<br />
compassivamente, entre soluços, conversar com as<br />
almas...<br />
E, na angelitude das estrelas contemplativas, na<br />
paz suave, alta e protetora da noite, o grande Triste<br />
desapareceu – lá se foi aquele errante e perpétuo<br />
Sofrimento, lá se foi aquela presa dolorosa dos ritmos<br />
sombrios do Infinito, tristemente, tristemente,<br />
tristemente...
ADEUS!<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 443<br />
Zulma, adeus! adeus, Zulma! O derradeiro abraço,<br />
o derradeiro beijo, e adeus!<br />
Os primeiros esmorecimentos do dia descem e<br />
um crepúsculo de cismas, de brumas misteriosas, turva<br />
as claridades bizarras e palpitantes de há pouco.<br />
É o crepúsculo da noite – velha saudade dos<br />
tempos, recordação fugidia das eras primitivas, spleen<br />
das almas – acendendo no alto das colinas remotas e<br />
enternecedoras do Passado todos os faróis apagados das<br />
reminiscências, fazendo cintilar claros todos os<br />
pressagos santelmos das Navegações velejantes, outrora,<br />
pelos países da Ilusão!<br />
Adeus, Zulma! O derradeiro abraço, o derradeiro<br />
beijo, e adeus!<br />
As inclementes amarguras do Mundo vieram já<br />
gralhar agoirentamente dentro da necrópole sombria<br />
deste coração... E tu foste a maior dessas amarguras,<br />
que em forma de ave sinistra gralhaste os teus dolorosos<br />
agoiros.<br />
Através dos dilaceramentos da Vida, das<br />
tortuosidades do Desejo, das inquietações do Espírito,<br />
uma tarde – bela e majestosa tarde foi essa! – cheia de<br />
silêncios e sombras, vi pela primeira vez o teu perfil<br />
fascinativo, que o ritmo nobre de uma estranha música<br />
de perfeições e graça sonorizava serenamente.<br />
Pareceu-me que desconhecida Divindade inspirava<br />
e iluminava a tua beleza, envolvendo num sacrário de<br />
estrelas a tua castidade branca.<br />
Uma auréola de exclamações cercava-te,<br />
vibrantemente, em assombros admirativos, em hinos e<br />
aleluias aclamatórias.<br />
Coleantes, sutis, de rastros, iam as minhas<br />
impaciências, os meus frêmitos, o meu anseio profundo,<br />
formando ígneo terreno vulcânico, um chão de chamas,
444 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
por onde tu passavas indiferentemente, alta no esplendor<br />
translúcido da beleza.<br />
Era, para mim, surpreendente revelação, o tipo<br />
extravagante, irreal, da tua não sonhada formosura –<br />
tipo de pureza e pompa brava, evocando, trazendo consigo<br />
os segredos grandes dos Vedas.<br />
Qualquer coisa de prodigioso fazia flamejar os teus<br />
olhos negros, negros, negros até a fadiga, até o pesadelo,<br />
até a saciedade, negros, intensamente negros até o<br />
tenebroso requinte da cor negra, até os profundos tons<br />
exagerados, até a uma nova e inédita interpretação visual<br />
da cor negra.<br />
E os meus sentidos sentiam, por atração<br />
irresistível, os atritos, os contactos da tua pele<br />
embalsamada de ambrosia, quentemente impressionante;<br />
corria pelos meus nervos uma volúpia doce e<br />
morna, que no entanto me fazia estremecer e tiritar de<br />
inexplicável gozo, como por calafrio de imenso medo...<br />
Mas, ah! que tentadora beleza, abençoada ou<br />
maldita, eras, então, tu, Zulma, que assim me deixavas<br />
extático, dominado, vencido, sem quase ação no<br />
pensamento e só ação e chama e febre e transfiguração<br />
no gozo? Onde era o teu Céu, onde era o teu Mar, onde<br />
era a tua Terra ou o teu Inferno – deusa dos Astros,<br />
deusa das Ondas, deusa dos Bosques, deusa infernal?!<br />
Onde era?! Não sei! Só o que sei é que a fascinação<br />
produzida pela tua boca acesa em lavas de desejo, pelo<br />
negror de caos bíblico dos teus olhos, pela cisterna farta<br />
de leite dos seios verdemente virgens e pulcros, pela<br />
cristalização de todas as tuas formas, fez florescer em<br />
mim a Vinha exuberante e ardente da Paixão, cujos<br />
frutos, afinal, me embriagaram de tal modo, tão<br />
violentamente me arrebataram, de tais travores tóxicos<br />
me angustiaram e acidularam a alma, de tão finos<br />
dolorimentos e agoniados transes a laceraram, que eu<br />
parto hoje para sempre de ti desiludido, deixo, abandono,<br />
para nunca mais! a amplidão larga, tépida e magnética
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 445<br />
dos teus braços, a cuja sombra mancenilhosa adormeci<br />
descuidoso, sonhei e acordei agora fundamente<br />
envenenado por letais narcotismos...<br />
Fugi de ti, desiludido, fatigado de percorrer as<br />
estepes da tua alma, cansado de girar absorto em torno<br />
dos enigmáticos caracteres egipcíacos dos teus caprichos<br />
indomáveis, do sepulcro tremendo onde jaz a múmia<br />
fria do teu Afeto.<br />
Não posso mais entregar-me ao cilício martirizante<br />
de tua insana volubilidade, aos calvários tantálicos da<br />
tua sede egoística e vingativa de gélidos e apunhalantes<br />
desdéns, aos teus sorrisos negros, aos teus beijos negros,<br />
ao teu coração sombriamente morto como um relógio<br />
parado numa casa deserta, aos teus encantos sinistros,<br />
a todos os teus feminis e sedutores encantos sinistros...<br />
Parto, sigo, vou-me para sempre embora!<br />
A tua voracidade de Águia famulenta fez-me<br />
delirar de incertezas, de dúvidas e blasfemar dessa<br />
beleza augusta, do bronze majestoso onde por certo algum<br />
demônio inquisitorial e régio modelou satanicamente a<br />
encarnação soberana dessas formas.<br />
Adeus, Zulma! Levo no coração a vertigem<br />
sanguinolenta daqueles desesperos alucinantes do<br />
ciúme; e no lábio ansioso, anelante, a palpitação inquieta<br />
deste adeus supremo, torturado, aflitivo; deste adeus<br />
soluçado num crepúsculo amargo; deste adeus de vôos<br />
solitários, cujas asas, como as de um pássaro torvo de<br />
erradias e taciturnas tristezas, voam longe, para além<br />
das lembranças, para além das saudades, para além<br />
das recordações e reminiscências antigas...<br />
Adeus! Adeus! Adeus!<br />
Fujo arrebatadamente de ti, levando para desertos<br />
áridos, sáfaros, longínquos, às regiões do Esquecimento,<br />
lá, muito para lá da monstruosa Terra, o único talismã<br />
precioso que me deste – a Dor!<br />
E, como para perpetuar a comoção crepuscular<br />
deste adeus, destas transfiguradas lágrimas de adeus,
446 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
todo o infinito nirvânico deste adeus, nesta hora poente<br />
em que os Céus começam a revestir-se dos soturnos e<br />
solenes ensombramentos da Noite, eu irei erigindo,<br />
levantando com essa Dor, com os seus despedaçamentos,<br />
dilaceramentos e gritos, as torres de Mistério e<br />
Melancolia dos negros castelos maravilhosos da Paixão,<br />
em cujos soberbos, longos e silenciosos paços constelados<br />
as nossas duas almas erraram letárgicas, sonâmbulas,<br />
acorrentadas pelos Estigmas imponderáveis dos<br />
Sentimentos humanos e em cujos terraços altos e<br />
desolados tanta vez me debrucei aterrado e vencido, nas<br />
fundas horas da fadiga, da saciedade e das alucinações<br />
do Tédio, sentindo em torno rugir, bramar temporais,<br />
trovões, fora, surda e confusamente na Natureza, os<br />
desgrenhados invernos lívidos...
TENEBROSA<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 447<br />
Alta, alta e negra, de uma quase gigantesca altura,<br />
torso direito e forte, retesada na espinha dorsal como<br />
rígido sabre de guerra; colo erguido de ave pernalta,<br />
aprumado, gargalado e toroso; longos braços roliços,<br />
vigorosos, caídos, como extensas garras de falcão, ao<br />
amplo dos quadris abundantes e de linhas serenas,<br />
esculturais, de soberana estátua de mármore – semelhas<br />
bem uma noturna e carnívora planta bárbara, ardente e<br />
venenosa da Núbia.<br />
Olhos grandes, largos, profundos, cheios de<br />
tropical sensualismo africano e abertos como estrelas<br />
no céu da refulgente noite escura de ébano polido do<br />
rosto redondo – alta, alta e negra, de uma quase<br />
gigantesca altura – lembras também o astro nublado,<br />
caliginoso da Paixão, girando na órbita eterna da<br />
humanizada dolência da Carne, como mancha na luz,<br />
ou soturna mulher da Abissínia, cujos luxuriosos<br />
sentimentos panterizados sinistramente gelaram e<br />
petrificaram na muda esfinge dos secos areais tostados.<br />
E eu quisera possuir o teu amor – o teu amor, que<br />
deve ser como frondejante árvore de sangue dando frutos<br />
tenebrosos. O teu amor de ímpetos de fera nas brenhas<br />
e nas selvas, sobre os broncos, graníticos penhascos, na<br />
cáustica solar de exóticos climas quentes de raças<br />
tropicalizadas na emoção, porque tu és feita do sol em<br />
chamas e das fuscas Areias, da terra cálida dos desertos<br />
ermos...<br />
Quisera possuí-lo – inteiro, estranho, eterno, esse<br />
amor! E que me parecesse, se o possuísse e o gozasse,<br />
possuir e gozar o Mar, ter dentro de mim o oceano<br />
coalhado – como a minh’alma está coalhada de sonhos –<br />
de navios, de iates, de escunas, de lugares, galeões,<br />
naus e galeras, por uma tormenta avassaladora em que<br />
trovões formidáveis e cabriolas elétricas de raios<br />
fosforescentes, brechando o firmamento, sacudissem,
448 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
num brusco arrepio proceloso, o túmido colo crespo e<br />
ululante das Vagas.<br />
Quisera amar-te assim! E que nesse Mar<br />
tormentoso, sob a angustiosa pressão dos elementos, a<br />
um cabalístico sinal meu, como se absoluto poder me<br />
houvesse constituído o Deus terrível e supremo da Terra<br />
– iates, navios, lugares, escunas, naus e galeras,<br />
conduzindo toda a humanidade a várias regiões do<br />
monstruoso mundo, de repente soçobrassem juntos,<br />
subitamente se afundassem nas goelas hiantes do Mar<br />
escancarado, abismante, tremendo...<br />
Nós dois, então, fulminados pelo mesmo raio,<br />
batidos, esporeados pelo mesmo estertoroso trovão,<br />
seríamos arremessados ao seio glauco do oceano,<br />
abraçados na extrema contração espasmódica do gozo,<br />
indo dar às ilimitadas praias do Ideal os nossos<br />
cadáveres, ainda fortemente, desesperadamente unidos,<br />
enlaçados, presos, como se a derradeira agonia cruciante<br />
da sensualidade e da dor houvesse justaposto os nossos<br />
corpos na fremência carnal dos alucinados sentidos!<br />
Alguma coisa de aventuroso – fantástico, como o<br />
espírito de Byron, aceso pela caricatura viva de uma<br />
deformação física; alguma coisa de estranho e satânico<br />
como Poe, tantalizado também pelas agruras da<br />
ironizante matéria, e por isso mesmo ainda mais<br />
esfuziante e flamejante; alguma coisa, enfim, de infernal,<br />
de diabólico, de luminoso e tétrico, ficaria então para<br />
sempre esvoaçando e pairando em torno da nossa<br />
memória, sobre o Nihil das nossas vidas, como sinistra<br />
ave desgarrada de outras ignotas regiões inacessíveis e<br />
cujo canto soturno e maravilhoso reproduzisse a magoada<br />
plangência da harpa misteriosa dos nossos sentimentos,<br />
infinitamente vibrando e soluçando através do lento<br />
desenrolar das longas eras que passam.<br />
Quisera amar-te assim! Vibrado ao sol do teu<br />
sangue, incendiado na tua pele flamante, cujos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 449<br />
penetrantíssimos aromas selvagens me alvoroçam,<br />
entontecem e narcotizam.<br />
Assim amar-te e assim querer-te – nua, lúbrica,<br />
nevrótica, como a magnética serpente de cem cabeças<br />
da luxúria – os olhos livorescidos, como prata embaciada;<br />
a fila rútila dos rijos dentes claros cerrada no<br />
deslumbramento, no esplendor animal do coito; os nervos<br />
e músculos contraídos e os formosos seios de cetinoso<br />
tecido elevados como dois pequenos cômoros negros,<br />
cheios de narcotismos letais, impundonorosamente nus<br />
– nus como todo o corpo! – excitantes, impetuosos,<br />
tensibilizados e turgescidos, na materna afirmação<br />
sexual do leite virgem da procriação da Espécie! E que a<br />
tua vulva veludosa, afinal! vermelha, acesa e fuzilante<br />
como forja em brasa, santuário sombrio das<br />
transfigurações, câmara mágica das metamorfoses, crisol<br />
original das genitais impurezas, fonte tenebrosa dos<br />
êxtases, dos tristes, espasmódicos suspiros e do<br />
Tormento delirante da Vida; que a tua vulva, afinal,<br />
vibrasse vitoriosamente o ar com as trompas marciais e<br />
triunfantes da apoteose soberana da Carne!<br />
Assim, arrebatado no teu impulso fremente de<br />
águia famulenta de alcantiladas montanhas alpestres,<br />
eu teria sobre ti o poderoso domínio do leão de majestosa<br />
juba revolta, amando-te de um amor imaterial, sob a<br />
impressão miraculosa de transcendente sensação, muito<br />
alta e muito pura, que se dilatasse e ficasse eternamente<br />
intangível sobre todas as vivas forças transitórias da<br />
terra.<br />
Então, na cela mística do meu peito, como num<br />
sacrário, eu sentiria passar em vôos brancos esse grande<br />
Amor espiritualizado, estrela diluída em lágrimas,<br />
lágrimas convertidas em sangue, como a expressão de<br />
um sonho, ao mesmo tempo carnal e etéreo, humano e<br />
divino, que palpitasse, vivesse no meu ser e me trouxesse<br />
o travo, o sabor picante e amarguroso da Dor, que é a<br />
consagração, a perfeita essência do Amor.
450 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Seria esse um requintado gozo pagão, cujo aroma<br />
enervante e capro, como o aroma selvático que vem do<br />
bafo morno e do cio dos animais das africanas florestas<br />
virgens, embriagasse o meu viver, desse ao meu espírito<br />
a alada forma de pássaro e desse à Arte que<br />
cultualmente venero, a pompa larga e bravia desse teu<br />
bufalesco temperamento e o resistente bronze inteiriço<br />
e emocional do teu nobre corpo de bizarro corcel guerreiro<br />
ó alta, alta e maciça torre de treva, de cuja agulha<br />
elevada, esguia, aguda e expirante no Azul, o condor do<br />
meu Desejo vertiginosamente trêmula e vai as asas<br />
ruflando em torno...
REGIÃO AZUL...<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 451<br />
As águias e os astros abrem aqui, nesta doce,<br />
meiga e miraculosa claridade azul, um raro rumor d’asas<br />
e uma rara resplandecência solenemente imortais.<br />
As águias e os astros amam esta região azul, vivem<br />
nesta região azul, palpitam nesta região azul. E o azul, o<br />
azul virginal onde as águias e os astros gozam, tornouse<br />
o azul espiritualizado, a quintessência do azul que os<br />
estrelejamentos do Sonho coroam...<br />
Músicas passam, perpassam, finas, diluídas, finas,<br />
diluídas, e delas, como se a cor ganhasse ritmos<br />
preciosos, parece se desprender, se difundir uma<br />
harmonia azul, azul, de tal inalterável azul, que é ao<br />
mesmo tempo colorida e sonora, ao mesmo tempo cor e<br />
ao mesmo tempo som...<br />
E som e cor e cor e som, na mesma ondulação<br />
ritmal, na mesma eterificação de formas e volúpias,<br />
conjuntam-se, compõem-se, fundem-se nos corpos<br />
alados, integram-se numa só onda de orquestrações e<br />
de cores, que vão assim tecendo as auréolas eternais<br />
das Esferas...<br />
E dessa música e dessa cor, dessa harmonia e<br />
desse virginal azul vem então alvorando, através da<br />
penetrante, da sutil influência dos rubros Cânticos altos<br />
do sol e das soluçadas lágrimas noturnas da lua, a grande<br />
Flor original, maravilhosa e sensibilizada da Alma, mais<br />
azul que toda a irradiação azul e em torno à qual as<br />
águias e os astros, nas majestades e delicadezas das<br />
asas e das chamas, descrevem claros, largos giros<br />
ondeantes e sempiternos...
452 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
SONAMBULISMOS<br />
Foi pelas horas concentrativas de uma noite<br />
tropical de verão, numa dessas noites em que o espírito<br />
se debate e anseia na infinita vertigem das profundas e<br />
sombrias cogitações, alanceado por amarguras<br />
incomparáveis; numa noite em que desfalecimentos<br />
supremos me assediavam, que a minha visão ficou<br />
sonambulamente deslumbrada por este espantoso e<br />
imaginoso espetáculo da Lua.<br />
Todo o azulado espaço estrelara já, fina e<br />
aristocraticamente.<br />
Na floreada constelação da Via-Láctea, na vasta,<br />
solene e celeste, alta Nave dos Astros, alvas cintilações<br />
pompeavam, rútilos fagulhamentos, faustosas chamas<br />
claras sideralmente acesas, palpitação de harmonias,<br />
de formas, de brancuras imaculadas.<br />
Como que diamantinas cordas tensibilizadas de<br />
harpas miraculosas afinavam sonoramente de ritmos<br />
inefáveis a solidão sagrada, eucarística, da noite; e como<br />
que também vinham desfilando, descendo lentas e<br />
letárgicas pelos fios etéreos das estrelas, alas e alas<br />
fulgentes de querubins e arcanjos revestidos das<br />
pratarias, da translucidez, da névoa vaporosa da Via-<br />
Láctea.<br />
E eu sentia leves, doces rumorejos de asas que<br />
afiavam, girando num torvelinho, num redemoinho<br />
branco de plumagens suaves...<br />
Mas, nas sutis vibrações ignotas do Éter, errava<br />
certa sensibilidade, o dolorimento secreto de<br />
imperceptíveis nervos delicados de freira histérica,<br />
dilacerada nos infinitos êxtases do misticismo alucinado,<br />
dos intensos refinamentos, dos requintes esquisitos das<br />
macerações.<br />
Parecia que nas esparsas correntes do ar a dor<br />
circulava, cristalizada, filtrada na tenuidade vaga da luz...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 453<br />
As transparências luminosas da noite tinham altos<br />
silêncios augustos de sacrários, fazendo meditar e<br />
sonhar...<br />
E toda a amplidão das Estrelas era de uma<br />
solenidade e majestade muda. Através de brumas<br />
diáfanas, como através de uma paisagem de nevoeiros<br />
polares, vinha lentamente vogando, vogando, lassa, leve,<br />
como numa atmosfera aquosa, a angustiada aparição da<br />
estupenda lua, imensa, mole e mórbida, untuosa,<br />
magnetizadora Flor de filtros letais, Odalisca Fabulosa<br />
do opulento Mar-Sultão, derramando uma paz branca,<br />
morna, claridade viscosa nas vastidões em torno.<br />
Do modo por que eu a via, por que eu a estava<br />
sentindo na imaginação e na visão, a lua parecia crescer,<br />
crescer, ir avolumando cada vez mais e, à proporção que<br />
avolumava, ir adelgaçando, adelgaçando, frouxa e<br />
oleosamente, numa forma glutinosa e elástica de<br />
estranho Verme sulfúreo rastejando em preguiçosas,<br />
felinas ondulações e enchendo, avassalando todo o espaço<br />
com a sua redonda auréola luminosa e langue...<br />
E então todo o firmamento ficava invadido por essa<br />
maravilhosa face da lua, que velava completamente as<br />
estrelas.<br />
E era só uma ampla lua que formava o espaço<br />
inteiro, era só aquela face fria, branca, que dominava<br />
de fosforescência toda a vastidão do horizonte.<br />
Mas essa mesma face fria como que depois se<br />
transfigurava ainda; certos aspectos, os caracteres, as<br />
linhas, o contorno breve que lhe dá a semelhança de<br />
uma máscara de múmia, as manchas e sombras que por<br />
vezes turvam a ebúrnea candidez do seu palejante clarão,<br />
subitamente desapareciam, se desfaziam; e ela, a lua<br />
espectral, a lua frígida, cadavérica, começava a<br />
experimentar a sensação de um ser, a viver a vida de<br />
uma alma...<br />
Pouco e pouco se acentuavam linhas, traços,<br />
aspectos, iam aparecendo novas formas intensas, que
454 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
acusavam já a contornação de um vulto destacado nos<br />
amplos céus, gerado da face lívida da lua.<br />
Imensa dolência e imensa tristeza, transfundidas<br />
na asiática beleza judaica de Rabino erradio e<br />
sacrossanto, como que envolviam numa bruma ideal de<br />
paixão essa magoada e cismadora figura.<br />
E era, afinal, agora, pela metamorfose da luz, todo<br />
o busto sereno, a face dolorosa do Cristo, como que<br />
surgindo num grande e profundo soluço mudo.<br />
Era a face do Cristo, aparecendo nos sudários do<br />
Infinito, ciliciada no meio de esplendores sidéreos, com<br />
a imaginativa cabeça enxameada de curiosos e<br />
fascinadores apólogos, coroada de epodos, inflamada dos<br />
segredos ardentes e voluptuosos do Cristianismo!<br />
E essa cabeça legendária, de triste e de patética<br />
doçura, de emotiva palidez romântica, avultava, avultava<br />
mais, num relevo fundo, como se se quisesse corporificar<br />
e mover, abrindo desmesuradamente os olhos cheios de<br />
mistérios incomparáveis e fazendo ondular no ar a<br />
espessa cabeleira enovelada, derramada em longos<br />
caracóis flavescentes pelas espáduas divinas...<br />
E eu olhava, absorto, para o surpreendente<br />
espetáculo da lua, assim sagradamente transfigurada!!<br />
Ah! e como a branda face de Jesus sorria agora<br />
para mim com magoa do sorriso de piedade; como esse<br />
sorriso me acarinhava, derramava perdões e clemências,<br />
do alto, sobre a minh’alma terrena! Um sorriso da mais<br />
bem-aventurada bondade, da ternura mais celeste, um<br />
sorriso infinito que abrangia toda a amplidão e se<br />
confundia com a claridade dormente da noite.<br />
E era bem para mim esse sorriso, porque ele me<br />
atraía, me magnetizava com o seu vaporoso fluido,<br />
radiando como esmaecida, lívida madrugada, na boca<br />
sensual e roxa pelo fel da agonia, boca contorcida no<br />
derradeiro espasmo, do Cristo peregrino, no Cristo<br />
errante lacerado de chagas...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 455<br />
Com esse enternecido e perdoador sorriso eu me<br />
sentia lavado de todos os soturnos e rudes males, viame<br />
purificado de tudo, vivendo nas primitivas essências<br />
imaculadas do Bem.<br />
Ao mesmo tempo parecia que aquele prodigioso<br />
sorriso se transformava num gesto de mão poderosa,<br />
onipotente, mas, contudo, mansa, que me afagava<br />
meigamente a vertiginada cabeça, com doçura, com<br />
ternura, com amor, acordando em mim indefinidos<br />
estados d’alma, células que adormeciam há muito os<br />
seus desencontrados pensamentos e arrebatando<br />
alucinadamente todo o meu ser não sei para que<br />
estranhos mistérios e fenômenos da sensação...<br />
E eu, abstraído, enlevado, gozava com volúpia, sob<br />
aquela mão divinal e terna que me acarinhava, que me<br />
mergulhava, quase adormecido, em branduras inefáveis<br />
de tufos de sedas alvas, de linhos repousantes, de<br />
veludosidades, de arminhos consoladores.<br />
E dizia comigo, mentalmente:<br />
– Sim! Tu és, afinal, o meu Deus, bom e justo,<br />
Todo poderoso, o Unigênito, que te sorris para mim<br />
abençoando-me e protegendo-me contra o Mal com o teu<br />
sempiterno perdão! Eu me humilho à tua Onisciência e<br />
à tua Graça, porque eu pensava sempre que te haveria<br />
de encontrar um dia, uma hora, um momento, bom e<br />
justo, dando-me o alívio extremo! Oh! és tu! és tu! que<br />
eu reconheço bem! És tu o louro Deus profético e<br />
apaixonado das saudosas terras da Ásia!<br />
Oh! és tu! és tu! Bem te reconheço, pela majestade<br />
das transcendentes misericórdias que semeias e pelas<br />
ciliciantes grinaldas de sonhos que te circundam a<br />
aflitiva, desolada cabeça...<br />
Tanto clamei, tanto bradei por ti nas solidões, que<br />
tu afinal apareceste para me salvar do fundo desta geena<br />
onde em vão me debato e rojo. Do fundo desta geena<br />
que me devora, apertando-me nos seus cem mil círculos<br />
de ferro.
456 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Sim! vens consolar-me de tudo na atroz geena do<br />
Mundo, vens suavizar-me estes áridos dias de pedra em<br />
que até mesmo o sol é para mim a pedra mais indiferente<br />
de todas as pedras.<br />
Vens trazer-me justiça, Deus sempiterno – justiça,<br />
a quem vive sequioso por ela; justiça, a quem vive de<br />
agonias por ela; justiça, a quem combate e depreca no<br />
mundo por causa dela.<br />
Se eu aqui me desalento e desolo perante a tua<br />
Imagem não é que eu duvide da tua suprema clemência<br />
nem da tua suprema justiça! Não é porque eu julgue a<br />
justiça uma palavra inútil, convencional, vã, perfeito<br />
engodo doirado para iludir as almas crédulas, para<br />
favorecer os potentados e punir os humildes! Não é! Não!<br />
Mas, um dia, já um visionário do Infinito, um<br />
desses errantes do Ideal, com uns olhos espiritualizados<br />
de tísico, contou-me que lá no seu país bárbaro, uma<br />
vez que ele quis justiça, que ele clamou por justiça,<br />
responderam-lhe com esta espada fria de sarcasmo:<br />
– Ah! tu queres justiça, vais ter justiça. Metam<br />
este diabo numa jaula, derretam-lhe os pés em azeite a<br />
ferver, arranquem-lhe a pele a ferro em brasa e<br />
arranquem-lhe a língua pelas costas, se é que ele, na<br />
verdade, quer justiça, da pura e boa justiça, da imparcial,<br />
da generosa justiça!<br />
Tu, Deus excelso, sim, tu não iludes ninguém, tu<br />
vens trazer-me justiça, eu bem creio, eu creio muito,<br />
porque o sorriso inefável que abre essa original aurora<br />
nos teus lábios não pode iludir nunca, não pode enganar<br />
jamais.<br />
E mesmo os mais descrentes, os mais céticos e<br />
pessimistas acreditariam, se vissem! como eu agora vejo<br />
nesse teu piedoso sorriso tão carinhosamente iluminado<br />
da mais incomparável irradiação de justiça...<br />
Sim! vens trazer-me justiça! vens trazer-me<br />
justiça!<br />
Parecia mesmo, então, que para como que afirmar<br />
ainda mais os meus amargurados pensamentos, um
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 457<br />
pranto imenso, diluvial, me inundava, caindo do alto;<br />
que o Cristo chorava, chorava, num monótono choro<br />
soluçante que eu escutava pungido e enternecidamente<br />
agradecido a Ele por tanto e tanto compreender e sentir<br />
assim a minha Dor e assim chorar por mim...<br />
Mas, de repente, como por uma transmutação de<br />
mágica, tive um fundo sobressalto; do meio daquela<br />
espécie de torpor fui violentamente sacudido por uma<br />
impressão de deslumbramento, e, então, vi! estupefato,<br />
que aqueles divinos lábios lívidos a pouco e pouco se<br />
satanizavam e enrubesciam, passava sobre eles um<br />
relâmpago de fogo; aquela boca martirizada afinal abriase<br />
estranhamente rubra, estranhamente rubra! — e<br />
desvairadas gargalhadas vermelhas estalaram e rolaram<br />
retumbantemente pelo espaço a fora como atroantes<br />
excomunhões...<br />
E as estrepitosas risadas rolaram ríspidas,<br />
cortadas sangrentamente de sarcasmos e ensangüentando<br />
e abalando todo o espaço, como risadas de um<br />
novo Cristo satânico, despenhado e rebelde na eterna<br />
confusão dos séculos...<br />
Toda aquela face de celeste ternura desaparecera,<br />
a doce expressão piedosa daqueles olhos se exilara para<br />
longe e apenas então ficara o mais duro e feroz<br />
semblante, com a apocalíptica expressão sagrada e<br />
selvagem do Arcanjo titânico dos Extermínios agitando<br />
no ar o gládio fulminante.<br />
E a boca rubra dessa face tremenda ria, bruta,<br />
grosseiramente como os Getas da Trácia, bárbaras,<br />
empedernidas risadas d’escárnio que rolavam, rolavam<br />
pela noite a dentro, de eco em eco, com o clangor<br />
monstruoso de turbilhões, de cerradas massas de sons<br />
de trombetas conclamantes ou formidáveis e pesados<br />
carros de batalha, fantástica e atropeladamente<br />
arremessados através dos bíblicos, profundos e<br />
tenebrosos despenhadeiros de Josafá!
458 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
DOR NEGRA<br />
E como os Areais eternos sentissem fome e sentissem<br />
sede de flagelar, devorando com as suas mil bocas<br />
tórridas todas as rosas da Maldição e do Esquecimento<br />
infinito, lembraram-se, então, simbolicamente da<br />
África!<br />
Sanguinolento e negro, de lavas e de trevas, de<br />
torturas e de lágrimas, como o estandarte mítico do<br />
Inferno, de signo de brasão de fogo e de signo de abutre<br />
de ferro, que existir é esse, que as pedras rejeitam, e<br />
pelo qual até mesmo as próprias estrelas choram em<br />
vão milenariamente?!<br />
Que as estrelas e as pedras, horrivelmente mudas,<br />
impassíveis, já sem dúvida que por milênios se<br />
sensibilizaram diante da tua Dor inconcebível, Dor que<br />
de tanto ser Dor perdeu já a visão, o entendimento de o<br />
ser, tomou decerto outra ignota sensação da Dor, como<br />
um cego ingênito que de tanto e tanto abismo ter de<br />
cego sente e vê na Dor uma outra compreensão da Dor<br />
e olha e palpa, tateia um outro mundo de outra mais<br />
original, mais nova Dor.<br />
O que canta Requiem eterno e soluça e ulula, grita<br />
e ri risadas bufas e mortais no teu sangue, cálix sinistro<br />
dos calvários do teu corpo, é a Miséria humana,<br />
acorrentando-te a grilhões e metendo-te ferros em brasa<br />
pelo ventre, esmagando-te com o duro coturno egoístico<br />
das Civilizações, em nome, no nome falso e mascarado<br />
de uma ridícula e rota liberdade, e metendo-te ferros<br />
em brasa pela boca e metendo-te ferros em brasa pelos<br />
olhos e dançando e saltando macabramente sobre o lodo<br />
argiloso dos cemitérios do teu Sonho.<br />
Três vezes sepultada, enterrada três vezes: na<br />
espécie, na barbaria e no deserto, devorada pelo incêndio<br />
solar como por ardente lepra sidérea, és a alma negra<br />
dos supremos gemidos, o nirvana negro, o rio grosso e
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 459<br />
torvo de todos os desesperados suspiros, o fantasma<br />
gigantesco e noturno da Desolação, a cordilheira<br />
monstruosa dos ais, múmia das múmias mortas,<br />
cristalização d’esfinges, agrilhetada na Raça e no Mundo<br />
para sofrer sem piedade a agonia de uma Dor sobrehumana,<br />
tão venenosa e formidável, que só ela bastaria<br />
para fazer enegrecer o sol, fundido convulsamente e<br />
espasmodicamente à lua na cópula tremenda dos<br />
eclipses da Morte, à hora em que os estranhos corcéis<br />
colossais da Destruição, da Devastação, pelo Infinito<br />
galopam, galopam, colossais, colossais, colossais...
460 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
SENSIBILIDADE<br />
Com os seus lindos bandos brancos e o seu<br />
rendado mantelete de vidrilhos, aquela doce velhice<br />
tinha, apesar de enrugada e trêmula, um certo encanto<br />
nobre.<br />
Fazia lembrar uma gravura antiga e grave, dessas,<br />
solenes e vagas, que pousam tristes, quase apagadas de<br />
traço, esmaecidas na tela, mas saudosas, ao fundo de<br />
algumas salas severas.<br />
O seu nome carinhoso e parnasiano, recordava à<br />
primeira vista, pelo esmalte claro das sílabas, a forma<br />
de delicada porcelana, um fino e precioso mosaico ou os<br />
embutidos luxuosos dos charões.<br />
E esse nome, aveludadamente azul – Lúcia –<br />
cantava-me ao ouvido com a doçura, a terna suavidade<br />
da mais íntima, penetrante carícia.<br />
Rara e obscura existência, cabeça embranquecida<br />
nos gelos das sombrias dores ignoradas e apunhalantes,<br />
Lúcia, no entanto, andava dentre auréolas invisíveis de<br />
bem-aventurança, dentre etéreas redomas de clemência<br />
divina, como se nunca roçasse as diáfanas e níveas asas<br />
sutis das suas ilusões e reminiscências no lutulento,<br />
letífico charco da terra...<br />
Era assim uma alma ainda não esgotada, ainda<br />
intacta, inédita, purificada nos rios claros e evangélicos<br />
das esperanças, atravessando o mundo sem ruído, oculta,<br />
calada, vivendo baixo, devagar, nos sugestivos silêncios,<br />
como numa eterna pausa de todos os rumores, pedindo<br />
aos recônditos dilaceramentos do coração que<br />
emudecessem, ou magoassem e afligissem, mas em<br />
segredo, para que lá fora o faustoso clamor da Vida,<br />
desdenhoso e vão, não se importunasse e humilhasse.<br />
Era uma dessas assinaladas e tocantes velhinhas<br />
que impressionam e das quais, muita vez, a tremenda<br />
complexidade da Dor fica como que encerrada aos olhos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 461<br />
insensíveis da formidanda massa do Mundo, através das<br />
brumas do egoísmo.<br />
E ela mesma como que faz pensar em todas essas<br />
brumas, porque o seu perfil é brumoso, são brumosos os<br />
seus belos cabelos, é brumosa toda a sua contemplativa<br />
figura, que as brumas, as neblinas, os nevoeiros de fundo<br />
mistério envolvem de um luar solitário...<br />
Outrora toda a sua bondade espiritualizava-se,<br />
subia à serenidade dos Astros, quando, pelas manhãs<br />
d’ouro e linho virgem, frescas de sol, eu a via, junto ao<br />
mar melancólico, gozando a saudade das vagas.<br />
Por ali, perto das vagas, erguia-se um muro austero<br />
e alto, donde bucolicamente pendiam imensas e<br />
exuberantes latadas, verdes tentáculos de folhagem<br />
estrelados de rosas jaldes, de rosas brancas e de rosas<br />
rubras. Através de um gradil aberto viam-se louçanias<br />
de jardins, preciosidades de plantas, uma alegria<br />
pinturesca de vergéis e um repouso secreto e claro de<br />
Recolhimento, quebrado em dadas horas pelo quente<br />
esplendor bizarro de risadas.<br />
Era uma página de comunicativa emoção, de<br />
emoção sempre crescente, sentir, no ouro e na prata<br />
fluido-vagante das manhãs, o pequenino perfil da Lúcia,<br />
vago e triste, tão humanizado naqueles momentos, tão<br />
existente, tão ser, tão vivo na irradiação alegre, clarinal<br />
do dia, olhando ao mesmo tempo, com igual<br />
enternecimento, o mar e os jardins próximos ruidosos<br />
em certas horas.<br />
O peito desoprimia-se, respirava ao largo amplos<br />
e sadios haustos de mar diante dessa velhinha meiga,<br />
tão infinitamente sensível, tocada de uma graça de amor<br />
supremo, talvez pouco da terra já mas que parecia ser o<br />
símbolo sagrado das resignadas, abnegadas mães.<br />
Toda aquela vida era, entretanto, assediada de<br />
agitações constantes, com todos os fenômenos do<br />
Desconhecido, fenômenos profundos, com origens e<br />
raízes longínquas e em cujo centro ciclônico, terrível,
462 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ela girava amargamente, confusamente, arrebatada na<br />
vertigem do Mundo.<br />
E tudo, em redor, como que a torturava em<br />
fogueiras acesas de inquisições, fazendo-a delirar de<br />
angústia, dessa lancinante impaciência, dessa<br />
inquietude que alvoroça os corações velhos que não têm<br />
a esperar mais nada.<br />
E quantas, quantas vezes eu a vi, perdida nos<br />
tumultos, circulando por entre as multidões cerradas e<br />
atordoantes – erma, isolada, trêmula e triste, como se<br />
levasse toda a fatigada velhice lutadora de rastros ao<br />
sacrifício dos desdéns eternos, à indiferença de ferro<br />
das bárbaras hordas humanas.<br />
E tão só, tão só caminhava, talvez sem objetivo,<br />
talvez sem rumo, que a minh’alma compadecida a<br />
acompanhava de longe, numa grande e genuflexa<br />
piedade muda de companheira misteriosa e solitária.<br />
Mas com que dolorosa agonia, com que tormento,<br />
quase voluptuoso, ela circulava através multidões, errava<br />
através do ruído, através do alarido das ruas, das praças,<br />
através dos burburinhantes enxames de uma população<br />
variada, diversa de atitudes, de sensações, brutal de<br />
instintos, impetuosa de gestos, frívola, fútil, mexendose<br />
em ondulações de estupendos bichos vorazes,<br />
venenosamente serpenteando...<br />
Muitas vezes era pelos dias de abrasante sol e<br />
poeira, quando os mormaçosos estios relampejam e<br />
torram as vegetações recentes e o ar pesa elétrico,<br />
túmido de trovões e raios.<br />
As correntes intensas e luminosas do calor, as<br />
atmosféricas fulgurações zumbentes e escaldantes,<br />
atravessadas da poeirada fatigante, punham no ambiente<br />
lassa preguiça tropical, dando uma forte exaustão de<br />
nervos, que pedia longas, demoradas sestas...<br />
Era por esses dias febrilmente calmosos, em que<br />
o espaço, hirto, rígido, parece feito de metais<br />
incandescentes e de vidro.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 463<br />
Candente dureza estéril, surda, sufoca, numa<br />
asfixia mortal.<br />
Paira em tudo a prostração, a combustão de um<br />
incêndio prodigioso em longas extensões de florestas,<br />
de selvas intermináveis, de matas escuras e virgens; a<br />
tontura morna e enervante da chamejação poderosa,<br />
luxuosa, rica, de grossas e resinosas cordoalhas<br />
alcatroadas ou das línguas flamívomas e fantásticas de<br />
enormes aglomerações de carvão de pedra ardendo com<br />
feéricas e estrepitosas labaredas.<br />
Como que chiantes e algazarrantes crepitações<br />
de cigarras, riscam, retalham e cortam nervosas, com a<br />
vibrátil tensibilidade das asas, as fremências ríspidas<br />
do sol aberto, aceso estranhamente nos altos.<br />
E o sol, devorando ferozmente as seivas, numa<br />
insaciabilidade animal de tigres e panteras esfaimadas,<br />
faz lembrar horrível, tremendo e torturante carrasco<br />
levantando no Infinito guilhotinas atrozes, cujos<br />
formidáveis e ígneos cutelos invisíveis fulminam<br />
medonhamente os corpos...<br />
E a retina fatigada, cansada de fitar os aspectos<br />
quentes, as paisagens abrasadas, ofuscada pelos<br />
deslumbrantes estrelejamentos que a constelaram,<br />
descai langue, frouxa, perdendo já a percepção clara<br />
das linhas.<br />
Lúcia, entretanto, nômade eterna, errava entre<br />
essa atmosfera de sol e poeira, como nas tórridas, áridas<br />
vastidões de um deserto. E o seu humilde perfil de<br />
peregrina, martirizado pela inclemente ação cáustica<br />
da luz, parecia convulsionar-se, contrair-se, contorcerse<br />
espiralmente em eletrismos ardentes de serpes ébrias<br />
de cio, encolher-se, murchar como planta esquisita e<br />
melindrosa que a chama cresta, devora...<br />
Era de uma sensibilidade que magoava até às<br />
profundezas da alma ver girar sob o sol em fogo, na<br />
amolentadora dormência da poeira turva, o vulto triste<br />
dessa velhinha – alquebrada, aturdida, sonolenta nos
464 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
entontecedores espasmos, nas radiantes nevroses do<br />
sol...<br />
Parecia que todo o fino tecido, todas as fibrilhas e<br />
filamentos da claridade fulva, vibrante, a magnetizavam,<br />
a prendiam como que em redes cintilantes de raios, de<br />
brilhos, de centelhas, de siderações, de flamas, de<br />
ardências solares, de coruscantes crepitações.<br />
Parecia que as chamejativas e agulhantes áspides<br />
mordentes e circundantes do sol a apertavam, a<br />
comprimiam, a enlaçavam, roçando, babando, lambendo<br />
sedentas, sedentas, a epiderme engelhada da suplicia<br />
da velhinha, embebedando-a de sensações infinitamente<br />
complexas e esdrúxulas com as atritantes e cocegantes<br />
flexibilidades circulatórias dos seus filiformes e moles<br />
organismos...<br />
Deveria, ao certo, embalá-la, adormecê-la, fazêla<br />
sonhar um pouco, ao certo, toda aquela luminosidade<br />
letárgica, ansiante, flagelativa, que morbidamente a<br />
atravessava, a inoculava de tóxicos e alcoolizadores<br />
amavios de feitiços narcotizantes, de venenosos e<br />
deliciosos ópios, de sutilezas, de delicadezas<br />
nervosíssimas de uma sensibilidade quase lasciva, de<br />
tão martirizante, dolorosa e penetrante que era através<br />
dos espessos, densos nevoeiros da poeira e do sol...<br />
Fazia pensar que uma desconhecida voz, que ela<br />
não sabia de onde vinha, chamava com carinho por ela,<br />
a abençoava na sua aflição, no seu dilaceramento,<br />
suavizando-a na dor, protegendo-a na torturante<br />
peregrinação, compadecendo-se dela, bradando,<br />
clamando, como através do nebuloso pesadelo de um<br />
sono ou de brumas de luar, o seu nome meio velado,<br />
meio sonhado e soluçante: Lúcia, Lúcia, Lúcia – como o<br />
consolo da Sombra, como a piedade do Mistério, como a<br />
demência do Vago: Lúcia, Lúcia, Lúcia!<br />
O seu coração agoniado vibrava com mais<br />
veemência, com mais ímpeto, com febre, num profundo<br />
êxtase de sofrimento; e os seus amortecidos olhos,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 465<br />
turvados pela névoa das lágrimas, espiritualizavam-se,<br />
languesciam, como num torpor comatoso, e ela então<br />
voltava, voltava, tornava a circular, ali, além, lá, por entre<br />
a multidão tenebrosa, como ainda na última esperança<br />
de alcançar o que buscava, o que em vão procurava no<br />
torvelinhoso caos da existência – velhinha, trêmula,<br />
triste, frágil, a cabeça agitada numa convulsão, no<br />
lancinamento angustioso de todo o seu ser fatigado, sob<br />
o flagelo inflamado das cortantes refrações luminosas,<br />
das faíscas e fuzis cambiantes e circunvolventes e da<br />
inquietante poeirada turva que subia em turbilhões no<br />
ar...<br />
Parecia que aquele coração sofredor, arrancado<br />
violentamente do peito, eu sentia e via palpitar,<br />
sangrando ainda, suspenso, solto, alado, magnetizado,<br />
atraído pela intensa e estonteante vibratibilidade aérea,<br />
ao alto do Éter vertiginoso, com todos os seus gemidos,<br />
com todos os seus soluços, com todos os seus ais, com<br />
todos os seus gritos, com todos os seus gritos, com todos<br />
os seus gritos!<br />
Penetrado de uma curiosidade doentia, desse<br />
indefinido desejo de mergulhar no absoluto das cousas,<br />
o espírito a acompanhava, sem se aperceber quase, por<br />
um movimento instintivo e simpático de atração pelo<br />
que é obscuro, isolado, só, como acompanha as emoções<br />
e sensações que abrem asas à noite, fugindo ao<br />
esmagamento do dia.<br />
Não era apenas uma velhinha, trêmula,<br />
engelhada, que vagava todas as manhãs, desamparadamente:<br />
– era a Dor, a Dor cruel e ignota, que<br />
ninguém sentia, ninguém via, mas que vinha sempre<br />
sombriamente viver junto à estranha vida que no mar<br />
palpitava.<br />
E, quem olhasse bem para ela, com afeto piedoso,<br />
com todo o concentrado sentimento, e demorasse num<br />
exame lento, silencioso, detalhado, de todas as suas<br />
feições, de todas as suas rugas, veria então como a Lúcia
466 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
se transfigurava sempre que ouvia a matinal correria<br />
nos jardins do Recolhimento, sempre que encarava por<br />
muito tempo o mar, fitando-o como horrível inimigo que<br />
se não pode jamais destruir, mas apenas odiar em vão.<br />
Um amargor, um fel, uma ansiedade, ansiedade<br />
de tudo, ansiedade mortal a crucificava, e ela então<br />
começava a percorrer novamente ao longo das praias,<br />
mas tão febril, tão inquieta, tão vertiginada a nobre e<br />
doce cabeça branca, que se temeria que ela fosse<br />
enlouquecer ou morrer ali de desespero.<br />
Fazia mesmo lembrar um louco, igualmente cego<br />
e mudo, encarcerado e tateando na sua desgraça,<br />
debatendo-se para espedaçar as perpétuas grades do<br />
cárcere tenebroso da loucura, da cegueira e da mudez,<br />
ensangüentando inutilmente as mãos nos grilhões<br />
imaginários, com o delírio supremo, a aflição tremenda<br />
de uma alma que não sabe, que não pode dizer quanto<br />
sofre e sofre ainda mais por isso e sufoca e soluça e<br />
convulsiona e rebenta de sofrimento.<br />
Era uma dor que tinha a sensibilidade curiosa de<br />
um violino miraculoso, vibrando freneticamente, com<br />
requintada nevrose, através de nevoeiros frios, nalgum<br />
país polar, e cujo som, partindo em arestas finíssimas e<br />
inflamáveis, em vez de deliciar de harmonia, ferisse,<br />
cortasse e queimasse as carnes.<br />
A princípio aquela Dor subia como leve, melodiosa<br />
balada fria e triste, por turvo luar, sobre lagos calados,<br />
entre paisagens de lenda.<br />
Subia suspirantemente, na mágoa dilacerante dos<br />
adeuses derradeiros, aflitiva lancinância das preces...<br />
Depois, transfigurada por invisível vendaval sinistro, era<br />
uma Dor que avassalava todo o seu organismo como um<br />
espasmo de alucinação, rugindo em bramidos de mar<br />
alto nos bravios costões desertos, nas abruptas penedias,<br />
nas brenhas brancas, sob as trevas soturnas e avérnicas<br />
das tempestades, cruzadas pelos Signos diabólicos e<br />
fosforescentes dos relâmpagos...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 467<br />
Ah! como eu a amava, como eu me apiedava dela<br />
assim, como me identificava com o seu sentir, como<br />
penetrava nos crepúsculos estrelados da minh’alma,<br />
assim dolente, assim fatalizada, essa extraordinária<br />
Criação dos dolorimentos, das incoercíveis angústias<br />
imponderáveis!<br />
Vencida pela saudade e sugestão evocativa das<br />
ondas, ela vagava sempre, sem que ninguém soubesse<br />
qual era o seu objetivo secreto... E essa maravilhosa dor<br />
como que se ampliava, se derramava, enchia as vastidões<br />
do Mar imaginativo, cortado de lubricidade e tédio,<br />
enevoado de spleen, embriagado de um vinho sombrio e<br />
glauco, fascinador, inebriante, atordoativo, de<br />
sonambulismos esparsos, sedento da monstruosa, da<br />
satânica paixão dos naufrágios, soturnamente cantando,<br />
com triunfos d’inquisidor, as elegias das noivas – mais<br />
formidável que a Morte!<br />
E enchia, enchia, enchia profundamente o Mar a<br />
grande Dor, filtrava-se pelos raios fluidos da luz, diluíase<br />
no cheiro azotado e virginal das marés, eterificavase,<br />
era essência, era eflúvio de emoção, era gérmen de<br />
sonho, perdido no ambiente picante, acre e ácido, das<br />
largas, amargas águas marinhas; era sensibilidade<br />
humana depurada, cristalizada, vivida na sensibilidade<br />
voluptuosa das ondas, partindo, vagando, errando como<br />
aroma e brilho flavo de sol nos turbilhões fugitivos das<br />
velas nômades, também infladas, palpitantes também<br />
de flutuante, balouçante volúpia e da mais alanceada e<br />
nostálgica sensibilidade do Infinito...
468 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ASAS...<br />
Abertas em iris, pelos espaços intérminos,<br />
esvoaçam as Asas, voam a regiões antigas enevoadas de<br />
dolência e de lenda, às velhas maravilhas do mundo:<br />
pelos Jardins da Babilônia, pelas Pirâmides do Egito.<br />
Vão à Pérsia, palpitar no fulgor de alcatifas e tapeçarias;<br />
vão à Arábia, voar entre os incensos orientais e,<br />
condorizadas, sempre pelas fulvas, fagulhantes<br />
opulências do Oriente em fora, ruflar e subir, perder-se<br />
além das esguias agulhas alanceoladas das mesquitas,<br />
que arrojam para o firmamento as liturgias<br />
maometanas...<br />
E as Asas flavescem, doiram-se ao sol prisco dos<br />
tempos, à chama acesa da Imortalidade – porque as Asas<br />
são o Desejo, o Sonho, o Pensamento, a Glória – que<br />
tomam assim sempre essa forma, mil vezes, alada,<br />
peregrina, errante, das asas.<br />
Porque a Forma, a Forma é esse ansiar para o<br />
alto, esse fremente rufiar e abrir largo d’asas<br />
impulsionadas na Luz, na refulgência das Estrelas, de<br />
onde, a música, a harmonia pura da Arte, serena e<br />
ritmalmente canta...<br />
Mas, essa Forma que abre, cinzelada em astro<br />
flamejante, essa mesma Forma sai pontuada de<br />
lágrimas, como um relicário onde eternamente ficassem<br />
guardadas as hóstias impoluídas de um amor sideral<br />
infinito.<br />
E essas mesmas lágrimas são asas – asas<br />
espirituais, partindo da fremência de um sentimento<br />
doloroso, pungente, que nos alanceia, impacienta e agita<br />
em febre – sentimento fundamental do Profundo, do Vago,<br />
do Indefinido...<br />
Turbilhões d’asas, turbilhões d’asas, turbilhões<br />
d’asas – asas, asas e asas imensas, amplas, largas,<br />
infinitamente rufladoras, infinitamente, infinitamente,<br />
cruzando-se e acumulando-se nos tempos, nas orgias
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 469<br />
báquicas do Sol, nas deblaterantes e atroantes nevroses<br />
das tormentas, no rouco e surdo regougar de epilepsias<br />
satânicas dos ventos.<br />
Asas leves, finas, borboleteantes, falenosas, dos<br />
magnificentes, dos radiantes, dos delicados, dos febris,<br />
dos imaginosos, dos vibráteis, dos penetrantes, dos<br />
emotivos, dos sutis, curiosas abelhas d’ouro, insetos<br />
flavos do sol, esmeraldas e meteoros voejantes e asas<br />
gigantescas, condoreiramente titânicas, dos hercúleos<br />
Proteus do Sentimento e da Forma.<br />
Tudo recebe singularidades, impressionantes<br />
transfigurações de asas – asas que abrem e tumultuam<br />
com vertiginoso e confuso tropel nos Céus, que da Terra<br />
vibrando partem, asas, asas e asas, em enigmas<br />
esfíngicos, num anseio, num frêmito, num delírio de<br />
alcançar, subir além, maravilhosamente subir, com<br />
pujanças repurificadoras e a majestade melancólica das<br />
águias, à Aspiração Suprema!
470 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ESPIRITUALIZADA<br />
Agora fechando de leve os olhos, fechando-os,<br />
como para adormecimentos vagos, vejo-te, no entanto,<br />
melhor, sinto-te eterizada, de uma essência finíssima<br />
onde há diluidamente talvez muito do sol e muito da<br />
lua...<br />
Assim, mudo e só, neste obscuro aposento, onde<br />
apenas uma janela alta dá para o claro dia, como um<br />
coração que abre e pulsa para a vida, gozo a divina graça<br />
de ficar isolado, intacto, neste momento, ao menos, dos<br />
atritos nauseantes da laureada banalidade, de certo<br />
fundo chato de plebeísmo intelectual de sentir.<br />
Nos seis ou sete palmos deste aposento, que ainda<br />
não são, contudo, os sete palmos da cova, eu vejo-te das<br />
prefulgentes transcendências da minha Piedade, e,<br />
aristocratizando a alma, como um céu se requinta<br />
aristocraticamente d’estrelas, sinto que me apareces<br />
espiritualizada pelo grande Afeto que te fecundou e sinto<br />
que há de ti para mim uma tal influência estésica, uma<br />
identidade tamanha, uma tão intensa irradiação, que<br />
as nossas naturezas fundem-se num mesmo êxtase,<br />
num mesmo espasmo emotivo e numa mesma<br />
chamejação de beijos...<br />
E, assim, ainda assim, nobre Palmeira de sagrada<br />
sombra que me abrigas o coração errante; e, ainda assim,<br />
pelas virtudes sublimes do teu ser, canta-me na alma o<br />
Cântico claro de que não me separarei jamais de ti, que<br />
me acompanharás, boa, crente, do castelo branco das<br />
tuas altas virtudes, pelas jornadas eternais da Morte,<br />
saciando-me a sede ansiosa, inquieta, de Infinito, com<br />
as cisternas puras e transbordantes da tua eterizada<br />
Bondade.<br />
E como o nosso pequenino filho preso à tua carne<br />
pelo cordão umbilical, eu ficarei para sempre preso aos<br />
teus graciosos cuidados e fugitivos enlevos, girando em<br />
torno à tua ternura – vibrante abóbada de músicas e de<br />
luzes – como um velho pássaro fatigado abrindo e
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 471<br />
fechando lenta e amorosamente as asas sem no entanto<br />
desprender o vôo através do atordoamento e rumor das<br />
Esferas...<br />
Crê, tem fé profunda na profunda chama que por<br />
ti me eleva.<br />
Fechando de leve os olhos, como para<br />
adormecimentos vagos, mais eu vejo a curiosa beleza<br />
negra dos teus olhos transfigurados por olhares pouco<br />
terrestres e olhares de tão cintilantes fluidos, de raios<br />
tão penetrantes, de tão afagadoras, consoladoras<br />
baladas, que só olhares de olhos resignados,<br />
perfectibilizados por egrégio Sofrimento, podem por tal<br />
forma exprimir a impressionante transfiguração dos teus<br />
olhos.<br />
Crê, pois, que eu te amo, crê que eu te amo com a<br />
majestade serena de um apóstolo e a meiguice trêmula<br />
de uma criança. Crê que eu te amo com a alma simples,<br />
com o coração inundado de frescura, iluminado de<br />
bondade. Crê que eu te amo, sacrossantamente te amo<br />
de um afeto indissolúvel, indelével, indefinível, que se<br />
perpetuará além da minha morte, sobreviverá aos meus<br />
suspiros, aos meus amargos gemidos, abraçar-te-á com<br />
abraços muito longos, beijar-te-á com beijos ainda mais<br />
longos que esses abraços, numa carícia lenta, muda e<br />
aflita, sob o repouso branco das estrelas, na imensa<br />
mágoa, no desolado enviuvamento das noites...<br />
Assim, maternizada, ó boa e generosa terra de<br />
sangue de onde brotou a flor nervosa e lânguida do filho;<br />
assim, transfigurado pelo sentimento purificante da<br />
Maternidade, ó ser docemente, arcangelicamente<br />
formoso, dessa formosura triste, mas nobre, mas excelsa,<br />
mas imaculada, das almas que se sensibilizam e vibram;<br />
assim, nessa expressão tocante, fina, sutil, do teu<br />
semblante que a dolência pungente da Maternidade<br />
enluarou de harmonia, fluidificou de delicadezas,<br />
angustiou de mistério, és, afinal, a Eleita peregrina do<br />
meu Sonho, coroada de um diadema de lágrimas...
472 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ASCO E DOR<br />
Últimos risos palermas, últimos escancaramentos<br />
de bocas parvas nos fins destroçados de um carnaval,<br />
por tarde ardente e nevoenta. Massas de nuvens torvas<br />
tumultuam no firmamento, sob múltiplas conformações<br />
fabulosas. Raios derradeiros de sol em poente<br />
languescem do alto, mornamente crepusculares.<br />
Um tédio enorme espreguiça, estremunha no ar,<br />
lânguido, letárgico, invencível, indefinível...<br />
Por uma rua estreita, sombria e lôbrega como um<br />
prolongado corredor de convento ou uma infecta galeria<br />
subterrânea, vem desfilando, aos pinchos, saracoteando<br />
toda, desconjuntando-se toda, uma turba miserável de<br />
carnavalescos, impondo aos últimos raios tristes do sol<br />
as suas carantonhas mais horrivelmente tristes ainda,<br />
as suas vestimentas funambulescas, fazendo lembrar<br />
diferentes aspectos de loucura, graus de imbecil<br />
demência, angulosidades de crime, estados primitivos<br />
de ignorância amassados numa embriaguez mórbida,<br />
selvagem e sinistra.<br />
Os pinchos, os saracoteios, os ziguezagues dos<br />
quadris elásticos das mulheres, com os moles seios<br />
bambos e as nádegas proeminentes, num deboche nu<br />
de Inferno relaxado onde vinhos alucinantes entrassem<br />
como oceano canalizado para as bocas; os perfis ósseos,<br />
anfratuosos dos homens, mascarados de sapo, de gorila,<br />
de serpente, de crocodilo, de dragão de cornos, de<br />
morcego, de monstro bifronte, de urso, de elefante e de<br />
mentecapto, dão à turba carnavalesca a sensação<br />
formidável do descaro final, do pandemonium derradeiro,<br />
da nudez lúbrica, desbragada, bestial, da cega hediondez<br />
dos instintos soltos na hora eclíptica do aniquilamento<br />
do mundo!<br />
Mas, eis que do centro do desprezível bando,<br />
vestida em farrapos, boçal, congestionada de<br />
bestialidade, urrante de chascos, destaca-se uma
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 473<br />
terrível figura mais grotesca do que as outras, trazendo<br />
na cabeça, em forma de troféu, uma trunfa alta, feita<br />
de cobras emaranhadas, com as caudás em pé,<br />
semelhando uma coroa de vícios em convulsão. E no<br />
meio do círculo que as outras formam e ao som de palmas<br />
cadenciadas e batuques selvagens, através de risadas<br />
aparvalhadas do público, fica então a dançar<br />
alucinadamente. Nas suas pernas magras, espectrais,<br />
de esqueleto ironicamente esquecido pela cova, dir-seá<br />
que lhe puseram azougue e lhe puseram também<br />
rodízios nos pés.<br />
E ela fica então a rodar, a rodar, macabra, doida,<br />
numa febre, num delírio, como se fosse esse todo o<br />
extremo esforço das suas faculdades de dançarina. E<br />
ela roda, roda, vai rodando, em vertigens e vertigens,<br />
em giros esquisitos, fazendo flutuar os dourados farrapos<br />
da veste, dentre uma saraivada grossa de risos e<br />
aclamações, gozando triunfos na miséria daquilo tudo,<br />
como a rainha da lama humana. E a grotesca figura<br />
roda, mascarada de múmia verde – alucinação que<br />
ondula, desvairamento que serpenteia – a exemplo de<br />
uma cousa amorfa, de um bicho inconcebivelmente<br />
estranho que se tivesse ao mesmo tempo absurdamente<br />
tomado de uma epilepsia nervosa e da dança de São-<br />
Guido...<br />
De vez em quando piparoteiam-lhe a pança, as<br />
nádegas moles e ela então, ignóbil animal aguilhoado<br />
por essa baixa carícia, saracoteia mais, espaneja-se toda<br />
no seu lodo como num leito de volúpia.<br />
Ah! daquela momice cínica, daquela desordenada<br />
bebedeira d’instintos erguiam-se, hórridos fantasmas de<br />
sangue, de lama e lágrimas, o Asco e a Dor!<br />
Eu para ali me arrastara, no amargo tédio da tarde,<br />
na ânsia crepuscular do sol, que lembrava um palhaço<br />
senil e lúgubre, sem mais alegria, vestido de ouro e<br />
morrendo, só, desamparado até mesmo das ovações ou
474 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
dos apupos da rota garotagem, no fundo de um beco<br />
imundo...<br />
Levaram-me para ali não sei que desencontrados<br />
sentimentos, que emoções opostas, que vagos<br />
pressentimentos... A verdade é que eu para ali fora, talvez<br />
fascinado por certo encanto misterioso dessa miséria<br />
cega: para embriagar-me de asco, para envenenar-me<br />
de asco e tédio e desse tédio e desse asco talvez arrancar<br />
os astros e ferir as harpas de alguma curiosa sensação.<br />
A verdade é que eu para ali fora, quase hipnotizado, de<br />
certo modo mesmo impelido pela extravagante turba<br />
carnavalesca, pela sua monstruosa miséria.<br />
Mas, agora, todo esse misto de animalidade, de<br />
suinice, esse hibridismo mascarado, de paixões<br />
rastejantes, vermiculares, essas formas humanas que<br />
atrozmente se convulsionavam como feras devorando,<br />
todo esse ambulante sabbatt foi então desfilando por<br />
outras ruas, seguindo o seu rumo de calcetas do ridículo,<br />
bambamente, aos boléus sob o fim torvo da tarde que<br />
parecia, também mascarada de feiticeira, rindo uma<br />
risada de augúrio feral aos últimos bamboleios<br />
carnavalescos que se afastavam, finalizando como a tarde<br />
finalizava, dispersando-se, desaparecendo pelos oblíquos<br />
becos tortos num tropel de manadas de gado estropiado<br />
que uma peste assolou...<br />
E enquanto a multidão, vesga, atordoada, tonta,<br />
azoinada de calor, de rumor, de carnaval e de poeira,<br />
aplaudia com gritos e zumbaias delirantes,<br />
ensurdecedoras, aquela turba vil, incaracterística, a<br />
minh’alma sentia-se como que pendida de um cadafalso<br />
que a estrangulava, acorrentada a um asco mortal, a<br />
uma dor tremenda que não tinha linhas de unidade, de<br />
conjunto e de entendimento com as outras dores; dor<br />
ingenitamente original, que não participava, em<br />
nenhuma das suas fibras, em nenhuma das suas<br />
interpretações sensacionais, das outras dores do mundo!<br />
Dor legitimamente outra, que não tinha limites no limite
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 475<br />
da dor comum; dor que me parecia cobrir o céu de luto,<br />
enegrecer tudo, aumentando-me o asco de tal sorte que<br />
o ar, os horizontes enublados, as árvores, as pedras da<br />
rua, as paredes dos edifícios, a multidão que<br />
burburinhava, tudo me parecia estar possuído do mesmo<br />
asco e da mesma dor. Dor sem raízes conhecidas, sem<br />
ritmos definidos, sem origens encontradas nem na vida,<br />
nem na morte, fora das correntes eternas, das<br />
correlações das esferas, das circunvoluções do<br />
pensamento! Dor inaudita, cujas partículas sagradas<br />
eram formadas da flamejante constelação de um anseio<br />
transcendental, da luz misteriosa das espiritualizações<br />
supremas, de sentimentos fugidios, sutis, de sensações<br />
que volteavam e ondulavam em torno da minha cabeça,<br />
como auréolas psíquico-estesíacas, por paragens<br />
ultraterrestres.<br />
Asco que era para mim como se eu me sentisse<br />
coberto de lesmas, lesmas fazendo pasto no meu corpo,<br />
lesmas entrando-me pelos ouvidos, lesmas entrandome<br />
pelos olhos, lesmas entrando-me pelas narinas, pela<br />
boca asquerosamente entrando-me lesmas. Um asco feito<br />
de sangue, lama e lágrimas, composto horrível de um<br />
sentimento inexplicável, hediondo, donde brotava a flor<br />
de fogo e veneno de uma dor sem termo.<br />
Asco daquelas postas de carne que além<br />
obscenamente se rebolavam numa mascarada infernal,<br />
bêbadas, bambas, fora da razão humana, a toda a brida<br />
no Infinito do deboche, sem fé e sem freios, na confusão<br />
dos instintos como na confusão do caos.<br />
Dor e asco dessa salsugem de raça entre as<br />
salsugens das outras raças.<br />
Dor e asco dessa raça da noite, noturnamente<br />
amortalhada, donde eu vim através do mistério da célula,<br />
longinquamente, jogado para a vida na inconsciência<br />
geradora do óvulo, como um segredo ou uma relíquia de<br />
bárbaros escondida numa furna ou num subterrâneo,<br />
entre florestas virgens, nas margens de um rio funesto...
476 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Dor e asco desse apodrecido e letal paul de raça<br />
que deu-me este luxurioso órgão nasal que respira com<br />
ansiedade todos os aromas profundos e secretos para<br />
perpetuá-los através da mucosa; estes olhos<br />
penetradores e lânguidos que com tanta volúpia e mágoa<br />
olham e assinalam as amarguras do mundo; estas mãos<br />
longas que mourejam tanto e tão rudemente; este órgão<br />
vocal através do qual sonâmbula e nebulosamente<br />
gemem e tremem veladas saudades e aspirações já<br />
mortas, soluçantes emoções e reminiscências maternas;<br />
este coração e este cérebro, duas serpentes convulsas<br />
e insaciáveis que me mordem, que me devoram com os<br />
seus tantalismos.<br />
Dor e asco dessa esdrúxula, absurda turba bruta<br />
que além, sob a tarde, uivava, desprezivelmente ridícula,<br />
na infrene mascarada, com os seus ínfimos vultos<br />
sinistros transfigurados em crocodilos, em serpentes,<br />
em sapos, em morcegos, em monstros bifrontes, todos,<br />
todos da mesma origem tenebrosa de onde eu vim,<br />
negros, sob a lua selvagem e sonolenta dos desertos, no<br />
seio torcido das areias desoladas...<br />
Asco e dor dessa ironia que para mim vinha, que<br />
para mim era, que só eu estava compreendendo e<br />
sentindo assim particular e exótica – ironia gerada nos<br />
lagos langues do Letes, fundida nas perpétuas chamas<br />
do Abstrato das Esferas, ironia para mim só, só para<br />
mim descoberta nas camadas infinitas da Vida; ironia<br />
só para o meu Orgulho mortal, só para a minha Ilusão<br />
humana, só para o meu insatisfeito Ideal, ironia! ironia!<br />
ironia rindo às gargalhadas no fim da tarde pelas<br />
máscaras obtusas e pela boca parva da multidão que<br />
aplaudia truanescamente como o supremo truão eterno.<br />
E, ó Dor maior! Asco mais estranho ainda!<br />
Daqueles círculos mômicos, daqueles círculos de<br />
chacota e de zumbaias, daqueles requebros de quadris<br />
obscenos, daquelas vertigens mórbidas e redomoinhos<br />
de corpos lassos, entorpecidos, suarentos, empoeirados,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 477<br />
esfalfados; daquelas caras bestiamente cínicas, ignaras<br />
e negras, sem máscaras algumas, pintalgadas a cores<br />
vivas, a tatouages grosseiras; daqueles langores mornos<br />
e doentios de olhos suínos, de todos esses grilhões<br />
medonhos, de todo esse lodoso cárcere fatal eu ficava<br />
como uma sombra irremediavelmente presa dentro de<br />
outra sombra, querendo fugir dali por esforços inauditos<br />
e vãos, debatendo-me no vácuo contra esse golfo sem<br />
fundo, contra esses vórtices tremendos da matéria, de<br />
onde, no entanto, a minh’alma viera, cristalizada em<br />
essência, requintada numa imaculabilidade d’estrelas<br />
purificadas nos cadinhos celestes.<br />
E a minh’alma circunvagava, ia e vinha alucinada,<br />
através de adormecidas zonas de sonho, oscilante como<br />
um pêndulo de pesadelos, numa aflita ondulação de<br />
nevroses, meio dividida entre a bárbara turba mascarada<br />
e meio dividida entre a natureza, circundante, cá e lá,<br />
guilhotinada misteriosamente pela mesma dor e pelo<br />
mesmo asco, cá e lá misturada, amalgamada e perdida<br />
em iguais misérias de sangue, lama e lágrimas, ainda e<br />
para sempre com o mesmo asco e com a mesma dor...
478 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
INTUIÇÕES<br />
– Mas, afinal, por que és triste?!<br />
– Sou triste, porque o fundo de toda a Natureza é<br />
triste. Triste, por que a tristeza é Deusa, Deusa severa<br />
e soberana, com a sua larga, longa clâmide majestosa<br />
sombriamente pendida em graves, grandes rugas,<br />
envolvendo para sempre os Desolados... A tristeza<br />
medita... E é poderosa e sagrada, porque simboliza a<br />
profundidade dos Fenômenos que nos rodeiam. Olha tu<br />
para tudo. Ergue d’alto a visão do pensamento por essa<br />
inclemência dolorosa da Vida e vê lá, se, no íntimo, no<br />
recôndito das origens eternas, não está a tristeza<br />
irreparável de tudo?! Ouve os teus tumultos interiores!<br />
Busca as correntes da Vida e as correntes da Morte.<br />
Procura as tuas aspirações supremas e vê lá se não é<br />
pela estrada infinita, mas excelsa, da tristeza, que elas<br />
seguem. Amo a tristeza, porque ela fecunda a todos os<br />
sentimentos de uma nobre paixão abstrata. E é doce,<br />
suavizador e piedoso para mim quando às vezes encontro,<br />
pelos caminhos que trilho, tão augusta Deusa<br />
transfigurando os celerados, purificando os bandidos,<br />
dando paz e morte serena aos corações dos cínicos.<br />
Ser fundamentalmente triste não exclui, no<br />
entanto, a alegria, a alegria sã – essa alegria mesma<br />
que é mais sincera e séria porque foi fecundada na<br />
sinceridade e seriedade da própria tristeza.<br />
Não essa alegria romba, a alegria dos adolescentes<br />
espirituosos, que é a forma mais expressiva da<br />
imbecilidade distinta.<br />
Não a alegria dos que não são vitalmente alegres,<br />
dos que riem, pelo estilo, pelo tom de rir, por ser oficial<br />
o riso, por estar, d’alto abaixo, decretado, na grande<br />
causerie famosa do Mundo, que se deve rir, porque o riso<br />
dá maneira, porque o riso dá egrégias virtudes, porque o<br />
riso dá beleza, e não se pode, nos centros da fina gente,<br />
deixar, enfim, de proclamar o riso!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 479<br />
Não é essa alegria fácil, fútil, essa que chega a<br />
celebrizar-se, a formar tipo, que constitui o singular<br />
encanto sereno de certo modo de ser e sentir...<br />
Mas, bem diferentes, outros aspectos e linhas da<br />
alegria, bem variados e nobres.<br />
A alegria de um lindo rosto louro de Ruth angélica<br />
e segetal; uma serenidade cor-de-rosa de face de Cibele<br />
branca surgindo dentre lírios; a alegria verde da<br />
originalidade dos viços virgens, dos imaculados renovos;<br />
a alegria nova dos vergéis em maio, sob o Te Deum do<br />
sol.<br />
A alegria fantasiosa de um Baco empurpurado de<br />
vinho; a alegria pagã de um grego engrinaldado de<br />
acanto; a alegria ideal do Diabo coroado de cornos; a<br />
alegria obscura e ascética do Isolamento; a alegria<br />
clemente, justa, do orgulho natural e simples; a alegria<br />
modesta e sóbria da fé convicta e messiânica; a alegria<br />
tranqüila e fria do desdém calado e secreto; a alegria<br />
da bondade simples e radiante, a alegria enfim,<br />
fecundadora e sã dos que se sentem fortes porque se<br />
sentem dignos!<br />
A solenidade dessas alegrias todas vem das linhas,<br />
da harmonia, da austeridade pura da tristeza – noite<br />
miraculosa que gera sóis.<br />
A alma anseia ficar intacta das argilas lodosas, o<br />
espírito aspira envelhecer casto, na velhice milenária<br />
da Dor, mas elevando bem alto o sacrocibório das<br />
comunhões intelectuais.<br />
E, assim, essa tristeza é o tabernáculo severo e<br />
sombrio donde o espírito ergue-se calmo e mudo, intenso<br />
e seguro nas múltiplas faces da Vida, conhecendo e<br />
sentindo com eloqüência os homens e tirando desse<br />
conhecimento e desse sentimento as forças altas e os<br />
nobilitantes vigores para a profética, fecunda clemência.<br />
Pois no fundo dessa tristeza resultante das fadigas<br />
e tédios que deixa o insano ardor por se haver dado o<br />
balanço final aos Homens e às Cousas, existe a felicidade
480 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
forte, de robustez de fundamentos, uma espécie de<br />
Otimismo desdenhoso, que é a única e compensadora<br />
alegria mais elevada e pura das almas.<br />
Sou triste, sem ser cético; sou triste, porque creio<br />
ainda, vendo já, no entanto, tudo a esfacelar-se em<br />
ruínas...<br />
Por isso, por essas causas absolutas, sou triste.<br />
Eram dois vultos que caminhavam estrada a fora,<br />
através de paisagens, mergulhados numa intensa<br />
palestra d’idéias, por clara tarde maravilhosa de luz.<br />
Um deles, adolescente, imberbe, conservava a<br />
aparência reservada e sisuda de um monástico,<br />
acusando mesmo, pelo seu rosto um tanto alongado e o<br />
seu perfil bisonho, soturno, haver pertencido a um desses<br />
antigos seminários de província, reclusos dentre muros<br />
contemplativos e brancos e rodeados das sombras<br />
silenciosas de altas e recordativas árvores frondejantes.<br />
Visto um pouco ligeiramente parecia ter na face<br />
uma expressão dura, rígida, uma tonalidade seca e<br />
cética, à Voltaire.<br />
Mas, bem reparado de frente, os seus doces olhos<br />
grandes, tenebrosos e raiados levemente de vermelho,<br />
quebravam essa impressão voltaireana.<br />
Tudo, de expressivo e oculto, que ele tinha, estava<br />
nos olhos. Uma onda de seivas virgens parecia fluir<br />
milagrosamente deles. Dormiam talvez ainda, lá, como<br />
princesas encantadas em bosques fabulosos, as<br />
misteriosas Paixões do Pensamento e da Forma.<br />
Olhos reveladores, de uma expressão inédita de<br />
sentimento, dizendo límpido na sua transparente<br />
claridade úmida todos os segredos e sonhos que andem<br />
sonambulamente romeirando nas almas.<br />
Desses olhos para cujo centro profundo e luminoso<br />
parece afluir toda a essência pura, todo o idealismo claro<br />
e são, todo o alto requinte de Sensibilidade de uma<br />
geração mais elevada, mais bela, prestes a surgir!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 481<br />
O outro, mais severo, mais perseguido de perto<br />
pelas desilusões, com o ar fatigado de quem vem de<br />
muito longe – olhos de uma penetração aguda de brilho<br />
fundo, um tanto adormentados por uma melancolia<br />
nômade; boca de mordacidade viva, de onde as palavras<br />
deveriam irromper incisivas como dardos ou sugestivas<br />
como parábolas.<br />
Sentia-se logo que era doutras Regiões,<br />
transfigurado dos Rumos espiritualizantes, dos<br />
Fatalismos sombrios, reivindicador solitário do peso negro<br />
e venenoso das grandes culpas e por isso, agora, calmo,<br />
seguro, como os que trazem consigo, sem até mesmo<br />
pressentirem, o cunho singular das Predestinações<br />
imprescritíveis, a sede e a febre de um saber intuitivo,<br />
contemplativo.<br />
De vez em quando, no diálogo que ia estabelecendo<br />
com o outro, a sua boca sorria, num sorriso de resignada<br />
esperança, de muda contemplação, ou, ferida por um<br />
sarcasmo tão puramente justo que a idealizava, ria claro,<br />
ria, mas um riso leal, bom e regenerante, fresco,<br />
balsâmico, capaz de inundar e imacular de bens as<br />
milenárias e maléficas impurezas do Mundo decaído.<br />
E a tarde, numa paz luminosa, em auréolas de<br />
ouro, os envolvia beatificamente.<br />
As duas figuras, unificadas naquele instante por<br />
um idêntico e chamejante pensamento, caminhavam<br />
devagar na tarde, sob a efusão simpática da suave<br />
claridade da tarde.<br />
Entretanto, o diálogo continuara.<br />
– Sim, sou alegre como Deus, entediado, invejando<br />
o Inferno; sou triste como o Diabo, arrependido e<br />
sonhando, querendo voltar para o Céu!<br />
Sinto esta tristeza impaciente do Irreparável, do<br />
Irremediável, do Perdido... E a febre que me devora, a<br />
vertigem que me alvoroça, é por não poder fundir as<br />
almas sob novas formas, dar-lhes intuições novas,<br />
entendimentos inauditos, encarnar-lhes o sentimento
482 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
noutros moldes mais belos, fazê-las, enfim, mais flexíveis,<br />
mais dúcteis, torná-las mais espirituais e vibráteis para<br />
as grandes comoções do Imprevisto.<br />
A paixão da minha tristeza é por não poder<br />
fecundar de novo essas almas, não lhes poder dar as<br />
maleabilidades sensíveis, inocular-lhes o fluido estranho<br />
de uma vida aperfeiçoada, quintessenciada numa chama<br />
eterna.<br />
A doença espiritual da minha tristeza é por não<br />
poder impoluir, virginar jamais as consciências já<br />
violadas; por não poder fazer brotar nelas a flor<br />
melindrosa e boa da timidez simples, que o pecado brutal<br />
das luxúrias imponderadas e das intemperanças ferozes<br />
fez para sempre murchar.<br />
A nevrose da minha tristeza é por não me ser<br />
dada a graça magna, o dom soberano e assinalado de<br />
vazar, nos cadinhos de ouro da fecundação perpétua, só<br />
seivas prodigiosas, ineditamente belas, só germens sãos<br />
e perfeitos, só sementes preciosas e raras, para que,<br />
talvez, assim então se gerassem as Formas impecáveis,<br />
as Correções extremas, as Perfectibi1idades imperecíveis.<br />
Aos que, como tu, se fundam nos mistérios da sua<br />
própria natureza; para os que surgem das obscuras<br />
gêneses, no movimento de espontaneidade das Origens<br />
vivas, das afirmações eloqüentes e cujo espírito vai, no<br />
tempo e no espaço, se organizando por células,<br />
fecundando por sonhos, completando por vibrações de<br />
nervos, por germens de paixão, por glóbulos de Vida,<br />
aguardando, calmos e resolutos, sentindo a intuição de<br />
esperar o instante original para irromper da Sombra –<br />
para esses, deve significativamente impressionar toda<br />
a fundamental tristeza destas Manifestações supremas.<br />
O certo é que a humanidade erra pelo fantástico,<br />
que a natureza está toda sobrecarregada de fantástico.<br />
E nem mesmo há homem que não tenha o seu lado<br />
extravagantemente ideal, fantasioso; que não percorra,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 483<br />
nas vagas horas da Desolação, as galerias sinistras dos<br />
fantasmas, ou que não vá em busca do Sonho, que existe<br />
na Realidade, como os fenômenos físicos existem<br />
esparsos no organismo concreto do Universo. O ideal é<br />
real, desde que radia no mundo criado à parte, na<br />
circunvolução cerebral de cada ser. Tudo está em saber<br />
acordar, com estilo e emoção, esse sonho, onde ele<br />
exista, ou na alma do selvagem ou na alma do culto.<br />
Para isso os Artistas de todos os tempos produzem as<br />
suas Obras que nascem sempre por um movimento de<br />
meia inconsciência conceptiva, para serem assim mais<br />
fortemente vivas e mais transcendentemente<br />
sensacionais.<br />
Porque o real é cheio de brumas de sobrenatural,<br />
o verdadeiro é cheio de brumas de fantástico e no fundo<br />
original da grande Causa está o Sonho.<br />
– Ah! Sim! Sim! Clamou o outro, num grito de<br />
alvoroçado assentimento: – o natural na Arte é o alto<br />
Absurdo, é o Absurdo, o Fantástico, Intangível! Se eu<br />
dissesse, em páginas, mais tarde, os êxtases volúpicos<br />
que me dominavam no silêncio discreto do Seminário,<br />
diante da Imaculada Conceição, doce e cândida no seu<br />
rosto de porcelana fina, com aqueles olhos paradisíacos<br />
que tanto me aproximavam da serena e celeste luz! Se<br />
eu dissesse quanta nevrose, quanto delírio sexual<br />
percorreu a minha carne naquele solitário noviciado;<br />
quanto misticismo mórbido me ciliciou a alma; quanto<br />
espasmo lânguido me dominou o corpo, certo me<br />
julgariam louco... E depois, quando deixei a paz austera<br />
do Seminário, a sua clausura mestra, os seus hábitos<br />
duros; quando deixei toda aquela vasta, longa melancolia<br />
que dentro dele reinava como nevoenta Visão de<br />
meditações e recolhimentos; quando despedi-me das<br />
suas paredes brancas, das suas torres simbólicas, das<br />
suas árvores evangélicas, da sua fachada ampla e<br />
adormecida olhando para a alegria verde do Mar – e caí<br />
então na plebéia profanação da Existência – ah! que
484 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
complicadas sensações de prazer, de recordação, de<br />
mundanismo, de misticismo, de liberdade, de saudade,<br />
de inexprimível angústia, promiscuamente vivendo<br />
dentro de mim e viçando os mais tenebrosos, os mais<br />
negros e já agora irremediáveis tédios!<br />
No entanto, se eu descrever um dia com flagrância<br />
de tintas, com violências e cruezas, todo este trecho<br />
passado da minha vida; se eu lhe der todo o<br />
impressionismo abstrato, todo o requinte de sensibilidade<br />
e mesmo até de impressões fantásticas, dirão que eu<br />
não tenho a mínima observação do Natural, que não<br />
observo a verdade inteira, e sou, em tudo, absurdo.<br />
– Belas palavras, essas, a verdade, a observação!<br />
Tanto é verdade aquela que determinadas<br />
individualidades apenas vêem com os olhos, apalpam<br />
com o tato das mãos, ouvem com os ouvidos,<br />
experimentam pelo paladar, aspiram pelo olfato,<br />
apreendem com a atenção, lembram com a memória,<br />
percebem, enfim, com todos os sentidos inferiores, como<br />
é verdade a verdade que a Imaginação vê, que a<br />
Concepção cria, que o Ideal fecunda, que o Sonho<br />
transmite, desde que não haja, no modo de reproduzir<br />
essa verdade vista pela Imaginação, uma completa<br />
hipertrofia sensacional e sim, de certa forma, um fundo<br />
lógico, rítmico, harmonioso e equilibrado, até mesmo no<br />
próprio Absurdo.<br />
Tanto é verdade todo esse mecanismo, todo esse<br />
aparelho montado, toda essa fotografia exata, de exatidão<br />
até à futilidade e banalidade, como é verdade, tanto<br />
mais verdade ainda, tudo que os Estesíacos sentem<br />
através dos seus entontecedores desvairamentos,<br />
através dos seus espiritualizantes espasmos, dos seus<br />
êxtases emocionais e profundos.<br />
A verdade na Arte existe em cada temperamento<br />
sincero que se manifesta, em cada singular sentimento<br />
que se revela, em cada alma original que vem dizer o<br />
seu segredo à Vida!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 485<br />
Porque a perfeita verdade da Vida na sua alta e<br />
pura essência, não é tangível – é intangível. Para apanhála<br />
não se faz mister uma visão direta, uma observação<br />
imediata, muito perto dos fatos, muito em cima dos tipos,<br />
nem um psicologismo científico sistemático, à outrance.<br />
A frase do egrégio Balzac – o artista adivinha o<br />
verdadeiro – é de uma eloqüência profunda e<br />
transcendental neste assunto.<br />
A vida é real e é ideal, é ideal e é real. As<br />
inverossimilhanças, as coincidências, os acasos, os<br />
pressentimentos, a fatalidade dos seres, os absurdos,<br />
as exceções dos fenômenos gerais, as correntes de<br />
atração simpática ou antipática, as impressões<br />
desconhecidas, os espasmos ou estados patéticos, o<br />
contato, o choque, o encontro magnético e curioso das<br />
almas, o Indefinido das cousas, como que constituem o<br />
secreto lado ideal, fantástico, de sonho, da Vida.<br />
A alta verdade da Vida está em Hamlet – pêndulo<br />
miraculoso e eterno que marca as oscilações da Alma.<br />
Hamlet surge-nos de um fundo diluído e tocante<br />
de lágrimas e lírios, da evocação simpática e doce do<br />
Angelus das almas, num crepúsculo abençoado de infinita<br />
dolência, espiritualizado como um círio divino<br />
bruxuleando na câmara mortuária das almas numa luz<br />
final consoladora.<br />
Hamlet é o céu melancólico das almas, cujas<br />
estrelas tristes, contemplativas, deslumbram-nos de um<br />
gozo quintessenciado e nos tornam cegos e perplexos de<br />
Indefinível...<br />
Hamlet é a grande ansiedade do Sonho, é o Sonho<br />
se dilatando, se dilatando, como celeste, sideral<br />
serpente, na esfera da Dor, tomando nessas<br />
transfigurações, esses velados, sombrios silêncios e essas<br />
nevrorias mentais da Dúvida.<br />
Hamlet é o violino imortal e secreto do Pensamento<br />
humano que as torturantes noites nebulosas da<br />
Consciência ferem de sons desolados.
486 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Hamlet é o Arcanjo supremo das nostalgias, branco<br />
e belo, meigo, arrebatador e convulsivo, cujo gládio em<br />
chama fosforescente flameja num fundo de sombra de<br />
exótico e fulminante desdém e cujo grave gênio pálido,<br />
de uma alta e velha aristocracia de Sensibilidade,<br />
requintada e esquecida para além nos limbos da Saudade,<br />
se debruça, desespera e chora delirantemente sobre o<br />
ideal firmamento de astros mortos do seu amor...<br />
Hamlet não é louco, não é doente, não é epiléptico,<br />
conforme o veredictum, as investigações e cogitações dos<br />
críticos, dos fisiologistas e psicólogos de todos os tempos.<br />
Hamlet é o zênite da alma humana, nos seus<br />
momentos augustos e tremendos, nos seus estados<br />
soberbos e soberanos de laceração. É o espasmo do<br />
desdém e do orgulho transcendentalizados, acima das<br />
camadas da Terra, girando no Absoluto. É o Abstrato<br />
que odeia e que ama, que perdoa e que castiga. É a<br />
Matéria que tem sede de ser Sombra, para esvair-se,<br />
para apagar-se, para desaparecer da Matéria que a<br />
encarcera, e que a tortura. É a vibrante chama sensível<br />
da Aspiração insaciável que sonha ser o pó do Nada,<br />
para que o invólucro físico e efêmero que a contém possa<br />
acabar de aspirar e de sofrer. É o sentimento da volúpia<br />
radiante, redentora e purificadora da Morte na Vida,<br />
secretamente embalsamando de um aroma letal<br />
estonteador, como um longo e lento beijo imortal de alémtúmulo,<br />
os infinitos da Eternidade.<br />
Cada homem, quando se escuta a si mesmo,<br />
quando se olha a si mesmo, quando se palpa a si mesmo,<br />
quando desce em silêncio à funda cisterna imensa de si<br />
mesmo, há de sentir um pouco de si mesmo no Hamlet,<br />
daquelas irrequietabilidades, daqueles surdos, soturnos<br />
e subterrâneos desesperos, daqueles preguiçamentos<br />
edênicos, daquela alma não alma, daquele ser não ser,<br />
daqueles sublimes vácuos candidamente e<br />
misteriosamente cheios ainda de tépidas e quiméricas<br />
irradiações de estrelas apagadas.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 487<br />
Os tipos de Shakespeare não são absurdos<br />
propriamente ditos, nem são fantásticos; todos, mais ou<br />
menos, existem nos fenômenos livres e simples,<br />
espontâneos, ainda que muito pouco visíveis ou<br />
perceptíveis, da Natureza; isto é, cada um no seu<br />
conjunto, no seu todo, tem as particularidades secretas<br />
peculiares a cada ser. São tipos que rigorosamente não<br />
existem no seu modo complexo. Mas cada sentimento<br />
obscuro, esquisito, raro, subterrâneo, misterioso, de cada<br />
ser em particular, representa uma célula do organismo<br />
de cada tipo de Shakespeare, uma qualidade formadora<br />
daquelas concepções. Esses sentimentos todos, na suma<br />
unidade geral, na mais alta condensação, é que<br />
concorrem para a formação capital das sínteses<br />
maravilhosas de Shakespeare.<br />
Porque nele os tipos vinham por blocos inteiriços,<br />
por avalanches de paixões, por complexidades sugestivas,<br />
o que por isso lhes dá a significava toda especial de<br />
Criações.<br />
Entretanto essas Criações não entram em<br />
absoluto nas regiões do incognoscível absurdo nem do<br />
incompreensível; são, pelo contrário, possíveis e<br />
verossímeis no Tempo e no Espaço, no infinito dos<br />
sentimentos humanos, porque definem esses próprios<br />
sentimentos em teses formidáveis, embora não sejam<br />
tangíveis os objetivos que tais Criações genericamente<br />
representam e simbolizam.<br />
Mas, justamente porque a natureza sutil de certos<br />
fenômenos da alma e da consciência nos tipos de<br />
Shakespeare se encontra harmonicamente num dado<br />
momento com a natureza sutil dos fenômenos da alma<br />
e da consciência humana, num choque emocional<br />
profundo de forças e de elementos que se reconhecem e<br />
equilibram, é que as obras sintéticas de Shakespeare<br />
serão eternamente aclamadas, ainda que só<br />
intimamente e mais profundamente admiradas e<br />
sobretudo mais sentidas por capacidades artísticas, por
488 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
intensidades mentais nervosas cujos fenômenos girem,<br />
mais ou menos, pelos mesmos pólos por onde gira a<br />
genialidade assombrosa de Shakespeare.<br />
Para isso é preciso subir toda a escala misteriosa<br />
da Intuição e chegar a certos altos espasmos psíquicos<br />
da alma.<br />
Esses que dizem perceber Shakespeare, admirar<br />
Shakespeare, sentir Shakespeare, para o fazerem vestem<br />
casacas de erudição por dentro, concentram-se<br />
oficialmente, ficam graves e sérios, tornam-se os difíceis<br />
e os inacessíveis da Sabedoria, porque, no entender<br />
deles, é necessário toda essa compostura solene, todo<br />
esse aparato clássico de maneiras e atitudes, quando,<br />
no entanto, para ver Shakespeare basta penetração clara,<br />
pureza e nitidez de ser, porque ele é uma expressão da<br />
Natureza, por certo a maior, a mais intensa, a mais<br />
condensada, a mais transcendente, mas uma expressão,<br />
uma força fenomenal dela deslocada, como se deslocam<br />
os corpos meteorológicos e cósmicos. Sendo um foco<br />
central Shakespeare é, no entanto, uma expansão<br />
natural dos elementos vivos e superiores da matéria<br />
organizada, é uma voz de todas as vozes, uma hora de<br />
todas as horas, um tempo de todos os tempos, uma<br />
atmosfera de todas as atmosferas, um ser de todos os<br />
seres, uma alma de todas as almas.<br />
Se Shakespeare não tivesse atrás de si séculos,<br />
nem as gravidades dos doutos juízos dogmáticos, nem<br />
as fundamentações de teses críticas, nem os<br />
rebuscamentos fundos de análises psicológicas, de<br />
agudos comentários, nem as réplicas e tréplicas famosas<br />
das argumentações cerradas e fecundas como as<br />
camadas da Terra, Shakespeare não seria visto com essa<br />
encenação prodigiosa nem com esses estilos oficiais,<br />
nem com esse fundo sonhado que lhe dá a distância do<br />
tempo. Quase que já se aliena do cérebro a idéia de que<br />
Shakespeare fosse matéria animada, estivesse sujeito<br />
às leis fisiológicas dos outros homens. Hoje o seu Gênio
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 489<br />
perde-se no Espaço, é como o fio do infinito do Espírito<br />
unindo-se etereamente ao fio do infinito da Matéria e<br />
formando um só corpo abstrato.<br />
Para entender, para amar, para sentir<br />
Shakespeare é apenas preciso vê-lo sem convenções nem<br />
preconceitos obscuros de consciência, na mais fácil,<br />
franca e vital nudez do Sentimento, na espontaneidade<br />
do ser, em toda a largueza genésica das suas obras, em<br />
toda a sua amplidão de Liberdade, em todos os seus<br />
gritos de Justiça, em todos os seus brados de<br />
Misericórdia, em todos os seus ais de Piedade, em todo<br />
o seu clamor de Desespero, em todo o seu soluço<br />
universal, em toda a sua dor augusta, suprema, em todo<br />
o seu amor integral e germinal da Natureza.<br />
Shakespeare é uma dessas cristalizações puras e<br />
excepcionais das Paixões, o seu consumado e colossal<br />
gladiador.<br />
Shakespeare, assim como Dante, pelo maravilhoso<br />
das chamejantes esferas psíquicas onde os seus espíritos<br />
rodavam estranhamente, singularmente, pela<br />
grandiosidade patética dos seus aspectos sublimes, pela<br />
resplandecente flagrância, pelo caráter genuinamente<br />
livre, altivo e soberano da sua Imaginação, pelas<br />
iconoclastias à fórmula da Compreensão secular estreita,<br />
pelas irreverências ao Método e ao Dogma, deduzidas<br />
fatalmente e logicamente dos grandes traços gerais e<br />
dos profundos golpes de vista das suas obras, dos seus<br />
temas fundamentais e revolucionários em absoluto, por<br />
conseguinte contra a Convenção moral e espiritual do<br />
Mundo; Shakespeare e Dante, fora do oficialismo e do<br />
classismo dos seus renomes imortais, mas vistos em<br />
toda a larga e luminosa amplidão da Natureza, como<br />
devem ser vistos os grandes Espíritos, são os trágicos e<br />
majestosos faróis magnos de todas as épocas, os órgãos<br />
poderosos e mágicos da Sensibilidade humana.<br />
Shakespeare nos evoca as correntes vulcânicas,<br />
largos e fundos abalos atmosféricos, rara e curiosa
490 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
elaboração de um novo sistema planetário, vales de rosas<br />
e de lágrimas, eclipses de sol e de lua, o Caos tomando<br />
forma e tomando corpo, a luz, por fim, se projetando e<br />
iluminando a Imensidade.<br />
Shakespeare é a Vida por camadas densas,<br />
chamejando e clamando, polarizada no abismante infinito<br />
do Sonho.<br />
Shakespeare é o Grandioso do Belo-Horrível, do<br />
Trágico-Sublime e do Trágico-Grotesco, do Riso-Lúgubre,<br />
do Sarcasmo de lama, estrelas e ais – é o Deus infernal<br />
e o Diabo divino.<br />
Shakespeare é a Flora absurdamente gigantesca,<br />
esquisita e ensangüentada do estranho e morno mar<br />
marulhoso e maravilhoso dos gemidos, dos soluços, das<br />
lágrimas.<br />
Quanto à observação, essa é o fatigado, o gasto<br />
lugar-comum dos que muito pouco ou mesmo nada<br />
possuem além dela. É evidente que um artista, desde<br />
que chegou a requintes superiores, desde que a sua<br />
concepção e forma atingiram graus elevados, se<br />
espiritualizaram, se eterificaram em abstrações, a<br />
origem dessas perfectibilidades, o crisol onde esse artista<br />
se apurou foi no da observação, no da análise. A<br />
observação parece a força mais poderosa, a qualidade<br />
mais particular para os realistas da última hora, porque<br />
no Realismo a observação é flagrante pelo documento<br />
humano, é flagrante nos objetos, nos aspectos, nas<br />
atitudes, nos tipos. Ligeiramente visto, parece, com<br />
efeito, ser a mais radical qualidade, por ficar mais em<br />
evidência, mais no primeiro plano, fazendo como que<br />
um grande relevo no Realismo e sendo assim, por isso,<br />
mais acessível às faculdades inferiores da atenção, da<br />
visualidade e da memória. Mas, o que é certo, é que em<br />
todos os tempos, para dizer um aspeto de céu, de<br />
paisagem, para traçar um fato ou um tipo, nas<br />
narrativas, novelas e romances antigos, houve sempre<br />
a observação, senão com a perfeição e apreensão
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 491<br />
modernas, ao menos com os elementos que as épocas<br />
forneciam. E mesmo nunca se poderia prescindir dessa<br />
observação na ocasião de puras descrições e desenhos<br />
de lugares, de horas, de acontecimentos, de paisagens.<br />
Por isso não me parece que seja a observação faculdade<br />
suprema. Acho-a muito evidencial, muito física, muito<br />
de nota e informação subsidiária, participando muito da<br />
natureza dos trabalhos de investigação material, de<br />
detalhes, de minudências, para poder constituir e<br />
representar a força magna do Pensamento humano. É<br />
até às vezes faculdade elementar, conseguida mais pela<br />
tenacidade de organismos por algum modo oficiais,<br />
inferiores, pela pesquisa paciente, de visão<br />
perscrutadora, do que pelas linhas profundas que formam<br />
a estesia eleita de um artista.<br />
A observação constitui a força básica do artista,<br />
dela é que ele parte para as mais altas abstrações<br />
estéticas, como os Decadentes, os Simbolistas, os<br />
Místicos partem das cruezas brutais do Materialismo,<br />
da tangibilidade do Realismo e do agudo e livre exame<br />
das Idéias positivas, além de outras absolutas origens<br />
idealistas nevro-psíquicas, num movimento natural,<br />
simples e até nobre e claramente evolutivo, de requintes<br />
da alma.<br />
Se dado artista chegou logicamente a um apuro<br />
maior de emoções e só as determina de um modo<br />
abstrato, vago, fluido, não quer isso dizer que ele não<br />
tenha observação, pois essa se enuncia e consubstancia<br />
muitas vezes apenas num vocábulo exato, determinante<br />
próprio e profundo do sentimento, essa ficou, como os<br />
resíduos de um corpo líquido que se filtra, no fundo<br />
daquelas mesmas emoções mais requintadas. E, como a<br />
natureza não dá saltos, uma fisionomia legítima de<br />
artista, desde que se perfectibilizou no pensar e no<br />
sentir, passou primeiro pelos processos, embora obscuros,<br />
desconhecidos, meramente mentais, da mais pura<br />
observação, deixando simplesmente dela, para trás, tudo
492 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
quanto ela tem de mais presente, seco e documental. É<br />
precisamente um trabalho delicado de alquimia da<br />
Emoção, para dar cristalinidade astral ao Espírito e à<br />
Forma, que no organismo artístico intuitivamente e<br />
invisivelmente se opera.<br />
De outro modo, não se daria então o caso dos<br />
artistas que não são realistas se compenetrarem, com<br />
inteira compreensão e unção, do sentimento de<br />
observação e análise de todas as obras verdadeiramente<br />
notáveis, singularmente belas do Realismo.<br />
Aqui mesmo, agora, no que vamos naturalmente<br />
dizendo, com este ar de livre e leve bom humor, estamos<br />
exercendo a observação, mais do que a observação a<br />
análise, mais do que a análise, a direta, a penetrante<br />
psicologia das Cousas.<br />
A observação, a análise, a psicologia, depuradas,<br />
filtradas pela Sensibilidade, produzem, em essência, a<br />
Abstração.<br />
E, já que abordamos estes pontos curiosos,<br />
atraentes, ouve ainda o que penso: Quanto à prosa, para<br />
ligar um fio de palestra que já há dias tivemos e que<br />
agora correlaciona-se a estes assuntos, dir-te-ei que a<br />
prosa não é qualidade excepcional dos prosadores<br />
exclusivos. Para um espírito complexo de Arte, para o<br />
verdadeiro Clarividente, para o Poeta, na grande acepção<br />
de sensibilidade desse vocábulo, prosa e verso são teclas,<br />
órgãos diferentes onde ele fere as suas Idéias e Sonhos.<br />
Prosa e verso são simples instrumentos de transmissão<br />
do Pensamento. E, quanto a mim, se me fosse dado<br />
organizar, criar uma nova forma para essa transmissão,<br />
certo que o teria feito, a fim de dar ainda mais<br />
ductilidade e amplidão ao meu Sonho. Nem prosa nem<br />
verso! Outra manifestação, se possível fosse. Uma Força,<br />
um Poder, uma Luz, outro Aroma, outra Magia, outro<br />
Movimento capaz de veicular e fazer viver e sentir e<br />
chorar e rir e cantar e eternizar tudo o que ondeia e
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 493<br />
turbilhona em vertigens na alma de um artista definitivo,<br />
absoluto.<br />
A prosa não pode ser sempre de caráter imutável,<br />
impassível diante da flexibilidade nervosa, da aspiração<br />
ascendente, da volubilidade irrequieta do Sentimento<br />
humano. Não há hoje, nesta Hora alta e suprema dos<br />
tempos, fórmulas preestabelecidas e constituídas em<br />
códigos para a estrutura da prosa, principalmente quando<br />
ela é feita por uma sensibilidade doentia e extrema. Há<br />
tantas maneiras de fazer cantar a prosa, de a fazer viver,<br />
radiar, florir e sangrar, quantas sejam as diversidades<br />
dos temperamentos reais e eleitos.<br />
E um caquetismo intelectual ou cavilosidade dos<br />
que só produzem verso e dos que só produzem prosa,<br />
não perceberem que determinado artista se manifesta<br />
igualmente no verso e na prosa, especialmente quando<br />
nessa prosa ele consegue traduzir, comunicar com<br />
clareza, com profundidade, a sua estesia, a sua<br />
idiossincrasia, os seus êxtases, as suas ansiedades<br />
íntimas. Pouco importa que essa prosa não guarde<br />
regularidades de preceitos, de dogmas, de convenções,<br />
que embora partindo às vezes de cérebros até certo ponto<br />
livres, são ainda, de certo modo, por certas causas,<br />
convenções puras. O que importa é que o artista consiga<br />
dizer imperturbavelmente, com a sinceridade dos seus<br />
nervos e da sua visão, o que de mais delicado e elevado<br />
experimenta.<br />
Desde que ele tenha conseguido com lealdade<br />
estética essa profunda manifestação do seu<br />
temperamento, tem funcionado na prosa como num<br />
legítimo e perfeito órgão da sua Arte, com toda a virginal<br />
originalidade das formas inquietas, dos estilos que não<br />
são apenas literariamente feitos, que não são apenas<br />
literariamente burilados, intelectualmente brunidos,<br />
mas das formas sentidas, vividas, mas dos estilos<br />
arrancados, sangrados, vibra dos eloqüentemente da<br />
Alma.
494 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Se essa determinada prosa dá sugestões, desperta<br />
curiosidades, faz acordar a imaginação e consegue trazer<br />
no estilo modalidades perfeitamente originais,<br />
correspondentes à originalidade do temperamento do<br />
artista, como, pois, que o que ele produz, não é prosa,<br />
não se deverá chamar prosa?<br />
Por um lado até mesmo parece que não deveria<br />
ser esse o seu nome; não por não abranger o pretendido<br />
sentimento e forma especiais, particulares, da prosa,<br />
mas por ultrapassar, por superiorizar-se, por tomar outra<br />
elasticidade, outras vibrações, outras modalidades que<br />
a prosa convencional e feita sob moldes estabelecidos<br />
jamais comporta.<br />
Demais, prosa e verso, numa dada natureza, são<br />
cordas vibráteis, manifestações integrais e simples de<br />
uma Estética pura e à parte.<br />
E, dessas cordas vibráteis, se muitos possuem<br />
apenas uma, com delicadeza, intensidade e correção<br />
superior, não quer isso dizer que outros não possam, por<br />
excepcionalidade, possuir duas, com igual ou maior<br />
correção ainda, o que simplesmente indica complexidade<br />
e força.<br />
Um ser artístico assim é como uma harpa exótica<br />
de duas cordas: – uma corda para a prosa, outra corda<br />
para o verso, formando os sons de ambas essas cordas<br />
uma igual harmonia.<br />
Há horas em que o espírito, por infinitas dolências,<br />
pela volúpia do Vago, pelo desejo consolador de elevar<br />
cânticos às Esferas, de compor músicas leves, sutis,<br />
ritmos langues, finas baladas, peregrinas barcarolas, de<br />
murmurar, enfim, queixas veladas, cinzela estrofes, vaga<br />
pelas gôndolas siderais da Poesia...<br />
Mas, há também outras horas, em que o espírito,<br />
revestido de severas vestes talares, é arrastado por<br />
sugestões desconhecidas de uma eloqüência magna,<br />
mais indutiva, comunicativa e direta e fala então<br />
clarividentemente pelo Salmo austero da prosa.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 495<br />
Da prosa que nos faz viver com as suas vidências<br />
sugestivas, que cria para nós novos mundos imaginativos,<br />
que nos revela tesouros virgens, intactos de pensamento<br />
e que nos abre de par em par as portas de uma outra<br />
Vida.<br />
Da prosa clarividente e percuciente – alvorada de<br />
fanfarras de ouro e diamantes, que acorda, chamando<br />
alvoroçadamente e nervosamente a postos, os belos e<br />
bravos legionários da Reivindicação do Espírito!<br />
Do verso que nos desperta, que nos chama com<br />
seu amor, que nos procura, que vem a nós<br />
generosamente, que nos conquista e que nos bate<br />
heroicamente ao peito com suas asas de águia.<br />
Do verso que renasce, que ressuscita na glória da<br />
Forma e que semeia d’estrelas e de lágrimas o seio<br />
branco, cândido e fecundo da Alma.<br />
E a Originalidade alacridade nervosa, vinho<br />
acídulo e delicioso da sensação, extravagante humor corde-rosa<br />
– timbra claro e quente, com os afidalgamentos<br />
do Estilo, a emotiva e esdrúxula linguagem do<br />
atormentado Sentimento.<br />
Depois, há naturezas que são como cristais de<br />
múltiplas facetas; têm diversas irradiações, brilhos<br />
imprevistos, que são fugidios, escapam a muitas<br />
percepções.<br />
Depois, certas percuciências, certos atilamentos,<br />
certos golpes acres e fundos, embora por síntese, em<br />
tudo quanto é meandro e capciosidade do medalhismo,<br />
certos sentidos, exotismos de forma, dão, para certa<br />
classe incolor e inodora de inteligências, um efeito<br />
d’escândalo obsceno. Como que perfeitamente causam,<br />
sempre, em todas as épocas, em todas as fases, a<br />
sensação brusca, violenta, de um homem flagrantemente<br />
nu entre outros homens inteiramente vestidos e muito<br />
apertados numa espécie de espartilho de convenção<br />
intelectual.
496 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
– É como a velha questão das escolas, dos grupos,<br />
que desorienta e confunde a tantos.<br />
– É verdade, as escolas, as escolas! As escolas só<br />
ficam com os principais, com os chefes ou fundadores.<br />
Só os que conseguem marcar fundo a expressão de um<br />
sentimento e de uma forma, os que têm os<br />
arrebatamentos e alucinações do Sonho e que pairam<br />
fora das órbitas geralmente traçadas. Os mais são<br />
apenas satélites, reflexos pálidos, metidos numa<br />
compreensão restrita como em escuros, lôbregos e<br />
estreitos corredores. Essas filiações, pois, desde que não<br />
há grandes asas desvairadas para plainar no alto, só<br />
amesquinham e vão aos poucos inoculando o espírito<br />
frívolo de moda nos que não possuem temperamento<br />
ingênito nem essa força de isolamento mental para criar<br />
sem sugestões diretas, imediatas. Quanto aos grupos,<br />
tanto quanto é mister a organizações sociais, não há<br />
grupos constituídos, como a Sociedade Amor às Letras,<br />
a Palestra Amena, a Brisa e o Grêmio do Momento<br />
Solene. Os grupos, como se compreende, são os que se<br />
podem dizer criados por abstrações, isto é,<br />
individualidades que já existindo, aqui, além, lá, em todo<br />
o tempo, vêm a se ligar mais tarde, no mesmo meio ou<br />
fora dele, por grandes linhas gerais, por correntes de<br />
simpatia intelectual, por inteiras relações de afinidade<br />
estética, por harmonia de requintes até certo modo unos,<br />
embora cada uma dessas individualidades tenha a sua<br />
enfibratura especial correspondente a um dado requinte.<br />
Os grupos, quanto a mim, só se estabelecem assim,<br />
independente da vontade própria de cada um, mas por<br />
um impulso desconhecido, por um instintivo apuramento,<br />
por uma seleção natural que foge a todas as regras<br />
preestabelecidas.<br />
Assim, meu caro e saudoso seminarista de<br />
outrora, de que servem argumentos de ferro, de que<br />
valem confusões e atropelos, se tudo, na Arte, vai se<br />
aclarando numa luz meiga, inefável, serena como a desta
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 497<br />
tarde que nos envolve, se tudo são embaraços que<br />
desaparecem uma vez que se adquire a força altiva,<br />
embora obscura e humildemente desenvolvida, de uma<br />
convicção e fé verdadeiras?!<br />
Em Arte é escusado negar quem for um ser<br />
definitivo, supremo, como também é escusado afirmar<br />
quem o não for. Não é a opinião deste nem daquele,<br />
nem mesmo do mundo inteiro que afirma ou que nega;<br />
mas sim única e simplesmente a Natureza nas<br />
espontâneas, flagrantes Revelações, no poder misterioso,<br />
na inevitabilidade dos seus fenômenos profundos.<br />
Depois, quando se chega a certas claras alturas;<br />
quando, transfigurados, nos encontramos frente a frente,<br />
e de olhos leais e límpidos, com a verdadeira magia do<br />
Belo; quando, afinal, sentimos dentro em nós viver o<br />
Absoluto, ficamos vagamente sorrindo, serenos e<br />
silenciosos, a cabeça um tanto inclinada numa atitude<br />
beatífica, como, na eloqüente mudez das Esferas, sob a<br />
augusta solidão das estrelas, a atitude patética e meio<br />
sonâmbula de um demônio divino.<br />
De que servem, pois, mofas, de que valem, pois<br />
apupos?<br />
É de ti, deste, daquele, que falam, que vociferam?<br />
Pois as bocas, que eles trazem, para que foram feitas?<br />
Para falar, não é assim? Pois que falem, as bocas... Pois<br />
que unjam de fel o teu nome, as bocas... Pois que se<br />
saciem de ti, as bocas... Pois que lubricamente te<br />
devorem, as bocas...<br />
Que te neguem, por pregões ridículos, por decretos<br />
grotescos, que façam, em torno do teu nome, a campanha<br />
cavilosa do silêncio ou das perfídias e caluniazinhas da<br />
mediocridade e nulidade triunfante – que importa isso?!<br />
– se tu, na serena força da tua Fé, vais calmo, vais<br />
tranqüilo, no radiante humor, despreocupado, simples,<br />
dos que caminham, dos que seguem desdenhando<br />
sempre?!
498 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Riem de ti, acaso?! Pois, então, ri-te, tu, do riso...<br />
A tudo isso, a tudo isso, ri-te, ri-te... Por mais venenos,<br />
por mais perversidades, por mais volúpia maligna, por<br />
mais crime, por mais vício psíquico que essas risadas<br />
possam ter, fica simples e alto, intacto, imperturbável<br />
diante de tudo isso e ri-te, – risadas, risadas, grandes<br />
risadas vibradas d’alto e ao largo a tudo isso – grandes<br />
risadas, grandes risadas!<br />
E, um dia, pelas razões ingênitas da tua<br />
organização, se tiveres uma natureza genuinamente<br />
eleita, tocando alto no Sentimento; um dia que a<br />
manifestares toda inteira, amplamente, tal como se foi<br />
ela de grau em grau fecundando, verás o abalo, os<br />
turbilhões de ar que irás aos poucos deslocando em torno<br />
de ti.<br />
A princípio, os mais fátuos, que te julgarem<br />
conhecer melhor, só sentirão e conhecerão de ti os lados<br />
visíveis, os pontos de perfeita tangibilidade.<br />
Mas, quando a obra que estiver chamejando dentro<br />
de ti for tomando complexidades, absurdos novos,<br />
exotismos, eloqüências esquisitas e por isso<br />
inocentemente agressivas, atacantes e demolidoras nas<br />
suas linhas gerais, sem parti-pris, sem pose, mas por<br />
fundamentações e interações, tudo se bandeará do teu<br />
lado, os de mais lisura ou mais afeta dos apenas de<br />
intelectualidade recuarão de ti como se tivesses lepra<br />
ou trouxesses estigmas infamantes, labéus ignóbeis, e,<br />
desde logo, a cisão fatal se dará então subitamente,<br />
pejando o ar de dissabores amargos de veementes<br />
dissensões...<br />
É como se tu fosses por um livre caminho a fora<br />
com diferentes companheiros e de repente o caminho<br />
se bifurcasse: – várias encruzilhadas, uma direita, clara,<br />
extensa, as outras curtas e tortuosas, se te apresentas<br />
sem diante dos olhos.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 499<br />
Tu seguirias pela mais longa, pela mais ampla,<br />
pela mais larga. Poucos te acompanhariam. A maior parte<br />
tomaria as fáceis encruzilhadas curtas, mas tortuosas...<br />
E, se um dia, chegado primeiro que eles ao termo<br />
da viagem, em virtude da mais pronta acessibilidade do<br />
caminho largo, franco, direito, tivesses de os encontrar<br />
mais tarde, poderias, não há dúvida, apertar-lhes<br />
lealmente as mãos, falar-lhes com simplicidade e afeto,<br />
abrir-lhes cordialmente os braços, mas terias ficado,<br />
pelas dispersadoras fatalidades do tempo, já muito<br />
afastado, muito longe deles.<br />
É que as almas, quando chega a hora alta e grave<br />
dos supremos julgamentos, das seleções supremas,<br />
separam-se inevitavelmente, sem remédio, irreconciliáveis<br />
e tristes, só ficando juntas sempre aquelas que<br />
marcham para o centro inflamado do mesmo Objetivo.<br />
Depois, mesmo, neste deserto de pedra das almas,<br />
as almas brancas, essas que trazem a Grandeza e a<br />
Espiritualidade consigo, essas, em virtude das Dúvidas,<br />
das Oscilações ambientes, têm que soluçar até à morte!<br />
Enquanto passares por certa fase de incipiência;<br />
enquanto deres a esperança de ser uma eterna<br />
esperança; enquanto te julgarem o perpétuo acólito<br />
reverenciador e discreto, a fácil muleta de apoio às suas<br />
vaidades e pretensões, todos te bafejarão como um<br />
recém-nascido beijocado de mimos, amamentado com<br />
carinhos babosos, cercado de cuidados infinitos, de<br />
enleios afagadores. A Hidra das Literaturas, supondo-te<br />
tímido e nulo, te embalará em seu seio, iludida contigo,<br />
dizendo soturnamente: – este é dos nossos! este é dos<br />
nossos!<br />
Mas, assim que levantares resoluta e<br />
inabalavelmente a fronte, assim que começares a<br />
manifestar mais a recôndita sensibilidade dos teus<br />
nervos, a insatisfação da tua estesia, assim que o teu<br />
espírito for se difundindo no espaço, enchendo as
500 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Esferas, a boa Hidra-Mãe te será carrasco, forjando para<br />
a tua cabeça, subterraneamente, a guilhotina feroz!<br />
Vendavais de antipatias, de ódios, de despeitos,<br />
de retorcidas e esverdeadas invejas soprarão<br />
desencadeados sobre os teus ombros atléticos e firmes...<br />
Enfim, carregar cruzes, arrastar calvários, irás<br />
pelo mundo, irás pelo mundo!<br />
Se trazes com efeito contigo uma feição nova da<br />
Arte, trazes contigo uma Dor nova...<br />
Se trazes com efeito contigo a inflamada matériaprima<br />
para fundir os Ideais mais nobres e belos, agora é<br />
só comunicar-lhes vida, intensos sopros de vida, te<br />
concentrares neles, e resplandecer, e alar...<br />
Nessas romarias e escaladas obscuras em que por<br />
ora vais, pelo Espírito, não sejas dos oportunistas da<br />
Arte.<br />
Acompanhe-te, ilumine-te sempre esse profundo<br />
sentimento artístico de abnegação cultual, de<br />
resignação, ou antes de conciliação na Dor, de<br />
desprendimento completo das Ambições e Ostentações,<br />
do Grande-Lânguido Verlaine, alma de meigo lirismo,<br />
essa frescura e velhice cândida de emoção, Fauno-<br />
Sacerdote a oficiar nos Missais hieroglíficos da suprema<br />
volúpia da Forma ou desse outro ducal, aureoladamente<br />
flordelisado e excelso Villiers de L’Isle Adam, sublime e<br />
celeste Artista, que tem para mim um encanto misterioso<br />
de cintilação planetária e uma solenidade sagrada de<br />
tabernáculos intactos.<br />
Que a tua forma seja floresta, seja mar ou seja<br />
céu!<br />
Segue, com unção e contrição, essa espécie dolente<br />
de martirizados Santos sem nichos – Santos temerários<br />
que afrontam com impassibilidade os incêndios<br />
devoradores das paixões do mundo; que, como Santo<br />
Estêvão, se deixam brusca e impetuosamente apedrejar<br />
na concavidade do peito, tendo a douta, a erudita<br />
clemência apostólica de Santo Agostinho.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 501<br />
Segue esses Santos tristes meio obscuros e<br />
poderosos, meio humildes e rebelados, meio ironistas e<br />
sarcásticos. Seres mórbida e voluptuosamente<br />
estesíacos, eles como que trazem um curioso desvio do<br />
sexo, fazendo evocar Santa Teresa de Jesus, cuja<br />
requintada mortificação no recolhimento da cela parecia<br />
significar a tortura máscula, viril, do sentimento de um<br />
eleito da Grande Arte, que se tivesse ido<br />
fenomenalmente asilar, por sutil, imperceptível erro<br />
genésico, num delicado e nervoso temperamento<br />
feminino...<br />
Falo-te assim, venho formando diante da tua<br />
imaginação prenuncial de noviço esta atmosfera de<br />
Evangelho e Religião, não por abusados e calculados<br />
misticismos, mas porque falo a quem, pelo menos, sentiu<br />
já, nas reclusões aquietadoras do Seminário, os grandes<br />
e graves Ensinamentos e Eloqüências e Intuições da<br />
Religião, na sua essência livre, na sua estética original<br />
e na sua harmonia.<br />
Segue, pois, com todos os teus exageros de<br />
natureza, com todos os teus grandes defeitos aclamados,<br />
que a Chatez gloriosa há de esmiuçar e descobrir mais<br />
tarde, para não se sentir muito pequena, diminuída na<br />
tua presença; defeitos só correspondentes a grandes<br />
qualidades, e que constituiriam, só por si, de tão<br />
eloqüentes e francamente excepcionais que são, as obras<br />
mais espontâneas e impressionantes dos que não trazem<br />
nem mesmo esses grandes defeitos, dos que são apenas<br />
individualidades feitas, intelectualizadas, mas não<br />
originadas de fatais e enraizados fundamentos artísticos.<br />
Ah! esta sufocação de ar, esta asfixia, estes<br />
escrúpulos, esta suscetibilidade por ver-se a gente livre<br />
de todos os incipientes, de todos os noviços, que são<br />
eternamente incipientes, eternamente noviços, “porque<br />
não têm horas vagas para obrazinha, porque isso de<br />
Literaturas não dá pão para a boca”, e outras capciosas<br />
razões de impotência que eles entre si discutem.
502 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Sim! porque quanto a mim o Artista é um<br />
predestinado!<br />
Quanto a mim ele é como uma ave estranha que<br />
já nascesse com as suas asas poderosas e gigantescas,<br />
ainda retraídas embora por algum tempo, mas que depois<br />
as fosse abrindo aos poucos, abrindo, abrindo, até que<br />
se distendessem de todo pelos espaços fora, projetando<br />
então a sua grande e consoladora sombra de Amor sobre<br />
o velho mundo fatigado.<br />
Ah! esta ansiedade de segregar-se a gente desses<br />
liliputianos prolíferos, que se reproduzem mais<br />
indefinidamente que os bichos-da-seda; que nos agarram<br />
pelo braço, que nos entram pelos ouvidos, pelos olhos,<br />
que nos atordoam com prosas e versos, sempre muito<br />
superiores e requintados!<br />
Dessas individualidades grotescas, que querem<br />
tomar a Arte de assalto e à bruta, sem nunca<br />
compreenderem profundamente as cousas, por mais que<br />
falem, por mais que gesticulem; verdadeiros animais de<br />
corrida que pensam que a Arte é uma questão de aposta<br />
para ver quem chega primeiro e mais garboso ao final.<br />
Iconoclastazinhos, sem essa veneração nobre, sem<br />
esse recato elevado, esse melindre das naturezas<br />
concentradas, cujo acatamento e cujo fundo de timidez<br />
característica são o toque mais belo e mais digno dos<br />
que reconhecem justa e eloqüentemente a superioridade<br />
dos outros, exprimindo e demonstrando também assim,<br />
por essa forma simples e simpática, uma das faces da<br />
sua própria superioridade.<br />
Oh! insaciável, ardente aspiração de árvore antiga,<br />
legendária, que quisesse ficar completamente liberta<br />
de todas as parasitas, de todas as ervas, de todas as<br />
lianas, de todos os musgos, de todas as trepadeiras e<br />
baraços e nervosidades e vertigens de folhagens que a<br />
abraçassem, que subissem por ela acima, que a<br />
povoassem de verdura alheia – deixando-a só, só, simples
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 503<br />
e cheia de sombra, vivendo serena e silenciosa, ou<br />
gorjeada da Aleluia dos pássaros, para a Amplidão azul!...<br />
Não, não será por um estreito pessoalismo<br />
egoístico, por uma compreensão acanhada, por uma<br />
presunção individual que tu te manifestarás com<br />
excepcionalidade de sentir, de ver, de pensar.<br />
Mas o teu lábio arderá de tanta inquietude,<br />
palpitará de tanta febre, sangrará tanto que tu exprimirás<br />
então por Sínteses tudo o que constitui a essência do<br />
teu ser e passarás assim por iconoclasta e pessimista à<br />
outrance, apregoador de falsos paradoxos, demolidor sem<br />
o fundo de um objetivo honesto, fútil, folgazão, mundano<br />
que afinal até inveja as glórias mais decantadas que<br />
cem mil trombetas proclamam das velhas muralhas de<br />
Jericó da Opinião!<br />
Mas tu, como um inquisidor original e santo,<br />
purificarás com o fogo benéfico do teu Espírito essas<br />
chagadas consciências humanas debatendo-se,<br />
desoladas numa impotência que escondem sempre bem<br />
fundo como certos tísicos escondem, negando, o grau<br />
agudo da doença corrosiva e lenta que os dilacera.<br />
Nós outros, que por aí dolorosamente andamos<br />
desbravando as florestas virgens da língua, deflorando<br />
os viços púberes do vocábulo, procurando dizer claro,<br />
claro como trompas sonoras estrugindo no mar sargaçoso<br />
e resplandecente, numa rosada manhã de pesca, claro<br />
como se o sol falasse, os nossos estados d’alma, os nossos<br />
êxtases, as nossas idiossincrasias e inquietudes, de<br />
abelhas nos caprichos curiosos da colméia, somos como<br />
fantasmas múmicos, por desertos, batemos de cheio em<br />
paredes de bronze, rebentamos horrivelmente a cabeça<br />
contra tenebrosas masmorras de granito...<br />
E vê, vê tu lá que não é isso uma visão do avesso,<br />
um modo rude, violentamente carregado, de sentir; –<br />
mas, tu que sonhas, que ambicionas já ser limpo nas<br />
tuas Enunciações, trazer o sinal característico, o cunho<br />
imaculado, a prata e a bronze, a ouro e a aço, a sol e a
504 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
sangue, de uma evidência firme, vê lá bem se não é<br />
assim tudo, se tudo não é corja, corja, corja que rasteja,<br />
corja que raiva, corja que ruge, hordas brutas que<br />
bramem, bárbaras, hórridas hordas...<br />
Através da névoa delicada das cismas que te tecem<br />
brando e emovente crepúsculo nos olhos, eu vagamente<br />
pressinto radiantes lineamentos, revelações curiosas do<br />
teu Oriente espiritual futuro, como das neblinas<br />
tranqüilas e luminosas desta carinhosa tarde que finda<br />
antevejo a aurora flavescente de amanhã...<br />
Sugestivamente, agora, cheia de concentrações e<br />
de vago, a tarde descia, mística, suave e sagrada,<br />
evangélica, para a Religão solene do Silêncio...<br />
Derradeiras harmonias veladas, de sol e sombra,<br />
erram indefinidamente nos espaços...<br />
E, sombra e sol, na transição dessa hora<br />
meditativa, como que parecem sensibilizados, tocados<br />
de emoção humana, de músicas enevoadas, misteriosas,<br />
sonorizando os afetivos acordes de almas virgens, mortas,<br />
felizes e firmes, com alvuras meigas de Castidade, na<br />
solidão da Fé cristã.<br />
Dorsos de colinas, ao fundo do mar calmo,<br />
recortam-se nitidamente no horizonte, já mais vago,<br />
esfuminhando o doce tom de verdura que ao longo e ao<br />
largo aveludesce.<br />
Um barco, lentamente, fere as águas melancólicas<br />
do verde e vasto mar amargo.<br />
A embaladora dormência dos aspectos dá um<br />
repouso pacificante...<br />
E, dentre a crepuscular serenidade, mais densa<br />
aos poucos, voa, vai e vem e volta através da espuma<br />
branca das ondas, pelos aloendros floridos e salitrosos,<br />
uma ave alvinitente, de incomparável suavidade, que<br />
não canta, mas que dá saudosamente à tarde a mais<br />
tocante espiritualidade só com o encanto aéreo dos vôos,<br />
só com o ritmo leve, fino, das asas simples e venturosas...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 505<br />
O sol, nos opulentos damascos do Poente imergira<br />
já de todo, profundamente: – Nero lascivo, em tédios<br />
augustos, no gozo mórbido das chamas rubras do<br />
incêndio de Roma; Rei guerreiro, por entre as púrpuras<br />
sanguinolentas de acres batalhas.<br />
As sombras, vagarosas, no delíquio final do dia,<br />
descem, descem...<br />
Estrelas, num esmalte finíssimo de cristais e<br />
pratas, começam a florescer, a marchetar o firmamento,<br />
em faiscantes e trêmulas claridades de Relíquias<br />
miraculosas.<br />
Soberba, imensa, prodigiosamente branca,<br />
misteriosa, como eterna paixão estranha, uma lua<br />
brumosa, feiticeira e lendária, surge, trazendo vivamente<br />
um desejo na face triste, atormentada, arrastando<br />
pesadelos sinistros de assinaladores presságios de<br />
vingança...<br />
A paisagem amplia-se num adormecimento<br />
luminoso e velado, toda ela recendendo aromáticos<br />
eflúvios, como se névoas delicadas de perfumes<br />
luxuriosos, queimados em ânforas invisíveis, ondulassem<br />
vaporosamente...<br />
E, sob a noite, que pompeava profunda, aureolada<br />
da resplandecência maravilhosa das Estrelas e da Lua,<br />
os dois vultos, como missionários graves dos sombrios e<br />
supremos Sacrifícios, seguiram mudos, calados, a cabeça<br />
descoberta ao sabor carinhoso da aragem perfumada.<br />
Assim graves e abstratos caminhando<br />
atravessavam agora as abóbadas cheias de segredos<br />
noturnos das grandes árvores frondosas de um vasto<br />
parque, parecendo, então, pela austeridade religiosa que<br />
os exaltava nesse momento, penetrarem, reverentes e<br />
calmos, paramentados solenemente, no majestoso<br />
Vaticano da Arte.
506 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
MORTO<br />
No féretro negro, por entre os círios langues, o<br />
grande, o doloroso Errante está serenamente morto.<br />
Está morto, no féretro negro, para nunca mais<br />
ressurgir! aquele espírito doentio e torturado, aquele<br />
organismo triste, tenebroso, que trágicos pessimismos<br />
humanos fecundaram do ódio mais canceroso,<br />
gangrenado.<br />
Ali está, gélido, rígido, alto, esquelético, com o<br />
fino aspecto delicado e singular de um magno aristocrata<br />
martirizado, inquisitoriado, a cujo fugitivo semblante<br />
duros cilícios deram a expressão lancinante de sacrifício<br />
ascético.<br />
Não sei sob que sugestão de pesadelo ou de letargo<br />
fica o pensamento diante desse mortuário aparato, que<br />
o morto parece avultar aos meus olhos, ter a enformatura<br />
titânica, a grande e extraordinária corpulência de gigante<br />
rojado por terra, subjugado, vencido pela majestade<br />
suprema de uma dor avassaladora, imensa...<br />
Do tom negro do féretro destacam, brusca e<br />
pavorosamente, os tons brancos, álgidos, crus, irritantes,<br />
dos gelos da Morte...<br />
O corpo, hirto, tensibilizados os nervos na extrema<br />
convulsão do tremendo e derradeiro momento, tressua<br />
um frio horrível, lesmento, que parece, tal a agudeza da<br />
impressão mortal que se experimenta, tocar,<br />
envenenando, por filtros letais, o pensamento...<br />
No silêncio aflitivo e torvo do ambiente como que<br />
vagam, num refrain lúgubre, numa sinistra litania,<br />
errantes, incoercíveis vozes de além-túmulo, crocitando:<br />
morto, morto, morto!<br />
E a impiedosa palavra, amargamente desdobrada<br />
em angústias, ecoa, ecoa, perde-se no silêncio aflitivo e<br />
torvo do ambiente, como um dobre agudo, cortante,<br />
arrepiando e pungindo: – morto, morto, morto!...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 507<br />
No entanto, esse aristocrático cadáver, que agora<br />
tudo aterroriza e lesma, edificou outrora na Imaginação<br />
palácios encantados de índias opulentas, bebeu o vinho<br />
perturbador da Vida até à saciedade, sentiu com<br />
intensidade a paixão das cousas como chamas eternas<br />
que o devorassem e, como por um lodo verde e putrefato,<br />
foi vorazmente invadido pela febre pestilenta do Mal...<br />
Goza-se agora uma sensação esquisita, mas<br />
eloqüentemente bela, em evocá-lo em Vida: quando ele<br />
voltava da vertigem, da alucinação das turbas; quando<br />
ele errava exilado, perdido, lívido, soturno, silhuético<br />
na sombra da multidão desdenhosa, arrastado pelo<br />
turbilhão devorador dos fatos, sem hora e sem rumo,<br />
como fora de todo o tempo e de todo o espaço – fantasma<br />
do Vácuo, impelido pela avalanche sangrenta dos<br />
sentimentos atrozes que o apunhalavam, que o<br />
retalhavam...<br />
Evocá-lo em Vida, desde a profunda cabeça que<br />
um nirvanismo búdico assinalava, cabeça venenosa de<br />
serpente que em vão a si própria morde, cabeça donde<br />
voejaram idéias sinistras como famulentas aves de<br />
rapina.<br />
A face, branca e lânguida, de um estremecimento<br />
precocemente senil, que os livores de intensa mágoa<br />
tornavam ainda mais branca, mais esmaecida e<br />
transfigurada... Face trêmula e fria, como velho e<br />
maravilhoso mármore móvel, acusando todos os<br />
nervosismos interiores, todas as vibrações recônditas,<br />
todos os tédios desesperados e infinitos.<br />
Os olhos lúridos, desse lúrido sombrio que dá a<br />
biliosa expansão dos ódios, olhos turbados pelos nevoeiros<br />
da amargura, pela melancolia da meditação, ou<br />
estranhamente iluminados pelos incêndios do delírio e<br />
onde a feérica fantasia rutilara e cantara outrora; esses<br />
olhos fatigados que tanto se queimaram de curiosidades<br />
exóticas, de visualidades fantásticas, de miragens<br />
excêntricas, que tanto se embriagaram na orgia da luz
508 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
e do sangue, que tanto viram, gozaram, se extasiaram e<br />
esgotaram na paixão de olhar, que tantas vezes sentiram,<br />
atônitos, estupefatos, a Visão do Ignoto persegui-los,<br />
afligi-los, agoniá-los...<br />
A boca, a boca mordaz de outrora, acre, violenta,<br />
remordida asperamente de um sarcasmo satânico,<br />
ansiada de apetites, aberta na febre voluptuosa de devorar<br />
os frutos atraentes do pecado, e rubra, rubra, acesa num<br />
colorido vermelho de guerra, gritando e cantando guerra,<br />
gritando e cantando guerra, gritando e cantando guerra,<br />
guerra, guerra, guerra, por toda a parte, por toda a parte,<br />
por toda a parte...<br />
Evocá-lo nas mãos, luxuosas mãos de príncipe<br />
esvelto, esgalgado, nas mãos de falanges longas, e<br />
rememorar que gestos curiosos, magos, que hieróglifos<br />
demoníacos, que símbolos miraculosos aquelas mãos não<br />
traçariam finamente no ar!? Quanto poder dominativo,<br />
real, que solenes predomínios, que majestade suprema,<br />
só com um sinal rítmico dessas mãos inteiriçadas agora!<br />
Quanto ideal e quanta glória impulsionados no gesto<br />
simples, sóbrio, das mãos que tão veementemente<br />
palpitaram, que tanto estremeceram e pulsaram vivas<br />
como dois estranhos corações que vibrassem juntos! Que<br />
fugidias expressões nas linhas, nas curvas e que fluido<br />
de mistério, que segredo nos atritos, no contacto quente<br />
dessas mãos que foram já os seres caprichosos, flexíveis,<br />
dúcteis, das delicadezas da forma. Dessas mãos<br />
batalhadoras, combatentes, tenazes, onde uma vitalidade<br />
excepcional de atividades circulava; mãos intrépidas,<br />
vitoriosas, cheias de emoção, de sensibilidade, de alma,<br />
penetradas de uma bravura indômita de aplicação, de<br />
altivez e sereno orgulho; mãos donde parecia alarem-se<br />
leves asas diáfanas e triunfais de um sonho e cuja<br />
ramificação das veias, em múltiplos raios estriados,<br />
parecia também acusar uma eflorescência perpétua de<br />
qualidades, de aptidões, de sentimentos, de gostos, de<br />
secretas e particulares predileções do tato...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 509<br />
Para onde foi, já, todo esse surpreendente encanto<br />
das mãos, toda essa maravilha de sutilezas de pássaro,<br />
de névoa, de nuvem, que as duas mãos enigmáticas desse<br />
enregelado e esgalgado cadáver por tanto tempo<br />
prodigiosamente contiveram?! Onde, já, a beleza artística<br />
do seu gesto, a graça da sua ductilidade, a eloqüência<br />
do seu movimento?...<br />
E os pés, – ah – e os pés?! Por onde ficou perdido<br />
todo aquele alvoroço e ardor de caminhar, toda aquela<br />
sede insaciável, toda aquela angústia de percorrer<br />
caminhos, de demandar estradas, de conquistar<br />
distâncias, de romper nervosamente, infatigavelmente,<br />
o rumo de um Destino desconhecido?! Onde essa febre,<br />
essa febre de caminhar, de vagar sonâmbulo, pelas<br />
noites, pelos dias, taciturnamente? Onde? Onde essa<br />
nervosidade, esse calor latente para errar, para<br />
noctambular só, por entre os rudes aspectos hostis da<br />
Natureza fechada em trevas, mudo e só nas noites, sem<br />
estrelas e sem rumo!<br />
Onde a ansiedade vertiginosa, delirante, desses<br />
pés agora frígidos, parados no espasmo terrível, no<br />
doloroso enregelamento, petrificados na amargurante<br />
saudade de rasgar caminhos ermos e infinitos?! Pés<br />
inquietos, impacientes, atormentados pela desolação dos<br />
desertos, queimados pelas tórridas areias saarianas, e<br />
agora – ah! – para sempre álgidos, hirtos e horríveis,<br />
rígidos no féretro, para jamais caminharem, para jamais<br />
errarem, como que numa glacial ironia de mudez e<br />
terror...
510 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
VULDA<br />
Os veludos e aromas noturnos do teu próprio nome,<br />
Vulda, têm o estranho encanto dessa indiana majestade<br />
bramânica e ao mesmo tempo uma volúpia morna de<br />
luar de Verão, derramado lânguido, lento, molemente,<br />
pelas longas e caladas praias claras...<br />
Desperta-me o desejo do longe, do ignoto, do<br />
remoto, do ermo, do indefinido, na nonchalance, na<br />
displicência e preguiça aristocrática de um príncipe êxul,<br />
que erra e sonha, contemplativo e solitário, nas arcarias<br />
góticas dos nobres pórticos onde viera vê-lo, outrora, a<br />
Amada peregrina.<br />
Sempre que o pronuncio, sempre que ele me aflora<br />
aos lábios, Vulda, experimento a sensação esquisita do<br />
sabor de um fruto delicioso, de maravilhosa tonalidade,<br />
sazonado num clima d’ouro e d’azul, por sóis germinais<br />
e terras virgens.<br />
Sempre que o pronuncio, como que sinto o lábio<br />
sangrar, sangrar, pelo gozo vivo, intenso, de o pronunciar,<br />
como se a minha boca mordesse com avidez, com gula, a<br />
polpa deslumbrante de áurea carne viçosa, pubescente,<br />
fina.<br />
Fico num êxtase de o murmurar baixo,<br />
mansamente, e o ficar gozando, gozando, quase<br />
palatalmente, no requinte voluptuoso de todos os<br />
sentidos apurados.<br />
Evapora-se dele o eflúvio emoliente, langue, da<br />
penugem sedosa das gatas a coleante e hipnótica<br />
nervosidade das serpentes, tentando, fascinando,<br />
tentando, magneticamente fascinando pelo brilho agudo,<br />
aterrorizante e elétrico, dos sinistros olhos letíficos...<br />
Como que escorre do teu nome um óleo doce que<br />
tudo fluidifica, dilui...<br />
E faz pensar num vasto mar desolado, deserto,<br />
em regiões longínquas, onde, d’alto, d’asa espalmada e<br />
ufana, pássaros tardos voam...<br />
Nome excêntrico, lembrando o tropicalismo de uma<br />
vegetação exuberada, exultante de seivas, que dir-se-ia
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 511<br />
profundamente vibrada de sensação psíquica, vivendo a<br />
nevrose estética de sentimentos delicados.<br />
Ele evoca-me o colorido extravagante, exótico, de<br />
uma Flor selvagem e rara destas prodigiosas florestas<br />
da ampla e verdejante América – Flor aberta através as<br />
vertigens e as pompas de folhagens seculares e através<br />
as plantas gigantescas e esdrúxulas, de uma<br />
complexidade original de germens, de fibras, de infinitas<br />
raízes, de cheiros acres, mornos e intensos, de nuanças<br />
e formas múltiplas, como de desejos e aspirações vivas.<br />
Teu nome sugestivo, conceptivo, constela-me a<br />
Imaginação de bizarras e preciosas fantasias.<br />
E só de o lembrar, só de o recordar e acender nos<br />
lábios, uma grande Saudade fere-me pungitivamente a<br />
alma, que agitada estremece, e tu, então, surges, Vulda,<br />
surges do meio de um clarão esmaecido – não sei se<br />
viva, não sei se morta!...<br />
Não sei se viva, com a boca alvorada num beijo em<br />
febre, os olhos crepitando na chama de uma luxuriosa<br />
ansiedade, e vagos, vagos na perdida dolência infinita<br />
das cismas e melancolias.<br />
Não sei se morta, álgida, mumificada, os impolutos<br />
braços e seios florescentes outrora, agora lívidos, rígidos,<br />
desvirginados pela peçonha lesmenta, larvosa, da Morte...<br />
E há também o langor d’onda quebrada,<br />
adormentada, Vulda, no teu nome nostálgico e evocativo<br />
de extasiantes ocasos – nome harmonioso, ritmal, de<br />
voluptuosa graça d’ave, voando, Vulda; nome sonâmbulo<br />
de mistério, Vulda; nome impressionante, velado,<br />
solitário e dolente, de monja, Vulda; nome de Visão<br />
alanceada, martirizada, em cilícios e sonhos circulando,<br />
volteando, Vulda; nome, enfim, de trágica, de bárbara e<br />
bela, sanguinolenta Rainha de aventuras e apaixonada,<br />
apunhalando, em gôndolas, sobre golfos, nos<br />
alucinamentos do ciúme, pelas maravilhosas noites<br />
prateadamente estreladas do Adriático, num delírio<br />
romântico, os patéticos Manfredos espiritualizados e<br />
pálidos...
512 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ANJOS REBELADOS<br />
Trindade de tristes e de trêmulos, sombrio terceto<br />
do Dante, todas as tardes, pela violácea bruma poente,<br />
aquelas velhas obscuras apareciam, solitárias, soturnas,<br />
e tomavam diretamente o nebuloso caminho do Campo<br />
Santo.<br />
As suas três altas e graves figuras de impressão<br />
violenta, talhadas em relevo forte, evocavam mesmo,<br />
juntas, um titânico terceto dantesco, pela expressão<br />
funda e singular, pela majestade sagrada que ressaltava<br />
dos seus semblantes pálidos e macerados.<br />
Mas, quem olhasse bem para elas, quem lhes<br />
penetrasse as psicologias profundas, sentiria que através<br />
de toda essa austera e estranha fisionomia pairava uma<br />
candura diáfana, a meiga e terna suavidade de Grandes<br />
Anjos brancos e piedosos.<br />
O encanto de um sonho, o sentimento de uma<br />
infinita nostalgia, dessa nostalgia de seres emigrados<br />
de regiões longínquas e misteriosas nimbavam os seus<br />
perfis assinalados de uma unção celeste.<br />
Era como se elas tivessem realmente descido dos<br />
céus, brancas e arcangélicas, as grandes asas excelsas<br />
palpitando, o grande resplendor das Onipotências e das<br />
Graças nas frontes intemeratas, para purificar e tornar<br />
perfeitas as pobres almas na Terra.<br />
Toda a intensa e nobre vida afetiva, toda a<br />
resignação, todos os abnegados sacrifícios, todo o imenso<br />
martirológio humano cantavam elegias, melancólicas<br />
sonatas nos seus olhos misteriosamente nublados pela<br />
névoa das desesperanças...<br />
Percebia-se que eram Mães, pelo acentuado das<br />
solenes figuras, pela linha das cabeças sublimadas,<br />
grandíloquas, que uma larga auréola de estoicismo<br />
circundava, santificando.<br />
Mas, porque a Dor transforma as almas mais<br />
belas, faz blasfemar as consciências mais firmes e
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 513<br />
crentes, faz poluir de deprecações e anátemas as bocas<br />
mais castas, mais impolutas e santas, as três Dolorosas<br />
se transfiguravam, os seus corações traspassados das<br />
espadas dilacerantes da agonia infinita, enchiam-se de<br />
um torturante fel, de um mal secreto, de uma terrível<br />
cólera sacrílega contra o Vago, o Desconhecido, o Incerto.<br />
E, então, os Grandes Anjos brancos e piedosos<br />
eram agora os Anjos Rebelados, iluminados pela luz das<br />
Vinganças absolutas, de joelhos junto aos túmulos<br />
amados dos filhos, com os braços abertos em êxtase, na<br />
ansiedade e palpitação de asas que desejam abrir vôo<br />
para além, para além das recordações.<br />
A angústia que lhes agitava os espíritos, a<br />
atmosfera circundante: – campas, contemplativos<br />
ciprestes, chorões suspirantes, eucaliptus nervosos e<br />
contorcidos, a doentia vegetação de todo o Campo Santo,<br />
aquele ambiente carregado de impressionismos lúgubres,<br />
de silêncios penetrantes, de solenidades panteístas,<br />
davam às três velhas e aflitivas figuras uma eloqüência<br />
suprema de Videntes.<br />
A rudeza, as asperezas, os volteios chãos e simples<br />
da sua linguagem, vestiam-se, pelo efeito mágico das<br />
intuitivas inspirações, de suntuosos veludos; pompas<br />
augustas de frase davam deslumbramentos inauditos<br />
às suas queixas, iluminavam as suas blasfêmias,<br />
imponderalizavam os seus sacrilégios, que vinham mais<br />
radicais, mais irrefutáveis que Dogmas!<br />
E as imprecações lhes jorravam vivas e violentas<br />
das fundas bocas amargas e murchas...<br />
Uma lividez de desesperos contidos, mais forte,<br />
lhes avivava a máscara trágica dos rostos engelhados,<br />
cujas peles ressequidas tinham, por vezes, com a febre<br />
interior do sangue, leve brilho fugace.<br />
Ventos desencontrados e duros, soprando rijos no<br />
crepusculamento da tarde, agitavam como frouxas e<br />
flébeis cordas de harpa os fios sonoros e cetinosos dos
514 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
seus cabelos alvos, através dos quais passava uma ligeira<br />
música convulsiva, que os desgrenhava...<br />
Eram três pesadelos deblaterantes, hirtos –<br />
cabeças brancas elevadas ao céu, braços espectrais<br />
abertos, abertos, abertos na ânsia das inconsoláveis<br />
saudades, abertos em busca dos bens amados que lhes<br />
fugiram, como vazias cruzes de estradas ermas<br />
esperando em vão os Cristos místicos e ensangüentados<br />
que imprevistamente as desampararam levados por<br />
transluzentes Arcanjos invisíveis.<br />
E, das suas fundas bocas amargas e murchas, a<br />
linguagem blasfematória, assim épica e transcendentemente,<br />
em monólogos, clamava:<br />
– Aqui estou, meu Deus, Senhor! nesta penitência<br />
de angústia, batendo o peito, junto à sepultura querida<br />
do meu filho, murmurando as rezas, as orações da minha<br />
Fé.<br />
Tanto que te pedi, tanto que te supliquei que me<br />
deixasses morrer primeiro que o meu Luís, ou que me<br />
deixasses acabar ao menos perto dele, para que pudesse<br />
cobrir de ardentes beijos os seus olhos azuis que eu<br />
adorava, as suas mãos que batalharam por mim, sentir<br />
o último clarão da sua doce inteligência e alma pura<br />
que só, só para mim viviam, só por mim eram felizes e<br />
carinhosas! O meu primeiro filho, que tanta luta me<br />
custou, tantos perigos, tantos e tão grandes me fez sofrer!<br />
O que eu te pedia, só, Senhor! é que me deixasses meu<br />
filho, tão rico de mocidade, tão rico de esperança, tão<br />
protegido do meu amor e que lá se foi morrer longe de<br />
mim, náufrago, nessa cova medonha do Mar, por uma<br />
noite de tempestade, talvez já sem velas o barco e sem<br />
ao menos, ah!, quem sabe!, sem ao menos estrelas no<br />
céu, Senhor, sem estrelas no céu, Senhor!<br />
Apenas um consolo tive e esse bem amargo, bem<br />
amargo consolo foi.<br />
Quando encontraram o seu cadáver e que mo<br />
vieram piedosamente trazer para que eu o enterrasse,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 515<br />
para que eu sentisse a comoção derradeira de vê-lo e<br />
enfim dar-lhe a sepultura, a última despedida do meu<br />
olhar, o desesperado adeus final; quando mo vieram<br />
trazer, quando vi aquele cadáver amado perto de mim,<br />
ah! como estremeci de horror e de agonia... Como estava<br />
tão mudado, tão desfigurado, tão monstruosamente feio,<br />
de tal modo inchado e esverdeado pela asfixia do Mar,<br />
que não parecia mais ser ele, o meu filho, o meu Luís<br />
adorado que eu trouxera outrora com extremos tamanhos<br />
dentro de meu ventre.<br />
Tu, Senhor, apesar de estares em toda a parte,<br />
de tudo saberes e adivinhares, nunca soubeste o que<br />
era o meu filho, coração simples, religioso e suave como<br />
as humildes ermidas brancas, bondade mansa,<br />
evangélica como a dos bois que ele pastoreava alegre,<br />
cantando...<br />
E como eu me orgulhava quando o via, forte,<br />
generoso, franco, leal como a árvore que dá sombra, como<br />
a fonte clara e fresca que mata a sede, como o céu<br />
estrelado que dá encanto aos olhos. Oh! como ele<br />
percorria aqueles campos íntimos da sua mocidade, onde<br />
a sua infância desabrochou como as rosas, onde a sua<br />
adolescência viu e sentiu ir embranquecendo os meus<br />
cabelos, aprofundando a melancolia das minhas rugas.<br />
Vê tu, pois, que viuvez agora no meu peito, que<br />
desconforto na minha alma, que vazio imenso em torno<br />
a mim sem o amparo, a bondade do meu filho, esse<br />
bordão seguro a que eu me arrimava na cegueira da<br />
minha velhice, o meu filho, a única, a melhor e maior<br />
claridade que iluminou sempre a minha pobre cabeça<br />
branca.<br />
Ó Deus sem piedade, ó Deus sem religião e<br />
compaixão, maldito sejas! Que Satanás, o Vencido por<br />
ti, vingue todas as Mães, vencendo-te, conquistando todo<br />
o teu poder, triunfando eternamente de ti nas<br />
masmorras negras do Inferno!
516 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
E a outra boca, amarga e murcha, blasfemou<br />
então:<br />
– Jesus dos Amargurados, Jesus dos Tristes, Jesus<br />
dos Desamparados! A mim roubaste a filha, a minha<br />
idolatrada filha; e, tão sem piedade o fizeste, que não<br />
foi até mesmo um castigo que mandaste pelos meus<br />
pecados, foi um crime que cometeste. E tão sem<br />
misericórdia, com tamanha crueldade, que tu não<br />
pareces, Jesus, filho dessa angélica Maria que alucinada<br />
gemeu e se desolou por teus martírios!<br />
Roubaste a minha filha quando ela era noiva,<br />
quando estava a cingir a grinalda branca e virgem, quando<br />
estava a galgar, tímida, com os pudores da puberdade, o<br />
altar sagrado, sob o véu resplandecente como um pedaço<br />
de nuvem do teu céu estrelado!<br />
Como hei de viver sem o seu encanto, sem a<br />
candidez da sua alma, como me hei de tranqüilizar neste<br />
deserto onde vivo sem ela, onde existo, solitária, sozinha<br />
por este Mundo, inteiramente sozinha, como perdida<br />
numa escura floresta, num lodaçal sinistro, ouvindo<br />
uivar lobos?<br />
Pois não te bastava tanta vida que ceifas dia a<br />
dia, tanta lágrima que fazes correr em silêncio? Não te<br />
saciaram já tantas e tão preciosas existências que<br />
levaste, era preciso ainda roubares minha filha, formosa<br />
e já noiva, radiante da alegria de ser depois também<br />
mãe como eu?<br />
Ah! se tu soubesses, quando ela adoeceu, que<br />
cuidados, que sacrifícios, que vigílias, quanto doloroso<br />
esforço para dar-lhe logo a saúde!<br />
Eu te pedi tanto, te supliquei tantas vezes de<br />
joelhos, roguei tanto à tua Onipotência, tanto que afligi<br />
e cansei pedindo o teu socorro para ela e, no entanto,<br />
foi tudo inútil, o teu desdém me feriu, o teu desprezo<br />
me apunhalou e tu de repente a levaste, ela, afinal,<br />
morreu...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 517<br />
Depois, quando a vi completamente morta nos<br />
meus braços, como sofri, quantos padecimentos<br />
horríveis, que choro perdido e convulso me sufocou a<br />
garganta, que delírio me acometeu!<br />
Ah! foram estas mãos magras, esqueléticas, estes<br />
dedos ressequidos que lhe colocaram, trêmulos de<br />
comoção, dolorosamente enternecidos, a grinalda e o<br />
véu de noiva de que ela foi vestida. Foram estas mãos<br />
cadavéricas que ornaram aquela cabeça loura, linda;<br />
que ajeitaram com delicadeza entre aqueles admiráveis<br />
cabelos os níveos botões das flores de laranjeira; que<br />
colocaram entre aquelas mãos gentis e enregeladas o<br />
ramo branco simbólico, o crucifixo de marfim e o pequeno<br />
missal azul de fechos de prata.<br />
Depois, depois, já deitada no caixão, num sono<br />
sereno de Querubim, quando uns homens vestidos de<br />
negro, indiferentes, decerto, estranhos à minha dor,<br />
vieram arrancá-la, arrebatá-la de junto a mim, estremeci<br />
tanto, tantos abalos me atravessaram, tantos e tamanhos<br />
horrores, tal luz alucinante me cegou os olhos, que eu<br />
pensei enlouquecer de tormentos, caída de bruços,<br />
soluçando, chorando, gemendo sobre o caixão<br />
medonhamente fechado que para sempre a levava...<br />
Ah! nunca pensei que aquele corpo adorado que vi<br />
crescer e florescer aos poucos, ganhando graça e beleza,<br />
descesse tão cedo ao irremediável apodrecimento; que<br />
o branco enxoval perfumado, feito com carinho, com<br />
alegria feliz, com todo o enternecimento, servisse apenas<br />
para tão depressa amortalhá-la!...<br />
Jesus das supremas bênçãos, dos infinitos<br />
perdões, dos infinitos consolos, das infinitas<br />
misericórdias! Do fundo do meu coração despedaçado<br />
de saudades, de desesperanças, de aflições, eu te lanço<br />
todas as blasfêmias, todos os anátemas, todo o fel à tua<br />
Inclemência!<br />
E a última, amarga e murcha boca, ainda deprecou<br />
assim, mais convulsa e violentamente que as outras:
518 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
– Ó Santa Virgem das Dores, Mãe de todos os<br />
desamparados, de todos os sós, de todos os famintos, de<br />
todos os cegos, de todos os nus, de todos os Jós, de<br />
todos os desiludidos! Como tu foste desnaturada para<br />
mim! Que angústias me reservaste! Que tormentos! Que<br />
dilacerações! Que prantos! Que dores! Ó Santa Virgem<br />
dos Martírios! Mãe vã, que concebeste por obra e graça<br />
do Espírito Santo! Mãe sem Maternidade verdadeira, sem<br />
o parto brutal e ensangüentado do teu Filho, sem os<br />
olhos desvairados no humano transe de dar à luz, sem<br />
as entranhas rasgadas, despedaçadas, sem os gritos<br />
horríveis, sem os espasmos catalépticos, sem os letargos<br />
febris! Ó Mãe sem nervos e sem sangue, sem<br />
estremecimentos, sem sensibilidades, sem êxtases, sem<br />
frêmitos, sem convulsões da carne na hora augusta de<br />
gerar, ah! como tu dilaceraste entre os teus dedos<br />
sagrados, como entre garras ferozes, o meu humilde e<br />
frágil coração materno! Num só dia, por um seco simoun<br />
de peste, levaste todos os meus três filhos, negros e<br />
apodrecidos ainda quentes pelo atroz fantasma da morte.<br />
Pequeninos, anjos que eram, dizem, talvez para<br />
me consolar agora, que eles foram para o Céu. Mas, no<br />
Céu, no Mar, na Terra, mortos como estão, tudo são<br />
covas, Virgem das Dores, tudo são covas e eu bem sei<br />
que eles jazem enterrados, medonhamente enterrados!<br />
No entanto, quando as chuvas são torrenciais, à<br />
noite, e o vento ruge com violência, arrepiando as árvores,<br />
vento gemente e gelado de tempestade, ah! como parece<br />
à minha pobre cabeça dolorida e tresloucada de Mãe<br />
sem consolo, tristemente horrível o frio que eles hão de<br />
sentir lá, lá embaixo desses buracos negros! Como parece<br />
aos meus extremos alucinados, à minha aflição de<br />
demente que eles hão de tiritar sem remédio dentro<br />
dessas covas, sozinhos, lá, tão fundo, tão fundo nas<br />
sepulturas!<br />
Eu bem sei e bem sinto ainda agora com os meus<br />
brancos cabelos arrepiados de pavor até à raiz, que
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 519<br />
línguas e dentes glaciais de vermes os devorarão sem<br />
se saciarem; que nunca mais os beijarei como outrora;<br />
que não terei, palpitando mais, aquecendo-se ao meu<br />
seio protetor, aqueles corpos tenros, delicados; que tudo,<br />
afinal, acabou, Santa Virgem das Dores, Maria! Mãe!<br />
Mãe desnaturada que eu daqui amaldiçôo, numa<br />
imprecação selvagem, atirando pragas profundas, como<br />
facadas contra a sementeira improdutiva da tu’alma...<br />
Não é só em nosso nome mas em nome de todas<br />
as mães que te falamos nós três, que pela grandeza do<br />
Amor que nos liga e sublimiza descendemos diretamente<br />
do Cristianismo e somos três apenas, representando<br />
juntas o sentimento uno da Maternidade.<br />
É em nome de todas as mães que vêm sofrendo<br />
desde o princípio do mundo que nos dirigimos a ti: das<br />
mães que viram seus filhos morrer na guilhotina; que<br />
os perderam nas guerras, rasgados os ventres por<br />
baionetas e por metralhas; que os viram devorados pelos<br />
incêndios; que os souberam naufragados, na agonia<br />
horrível das ondas, ou mortos nas minas, operários<br />
míseros, ou loucos, andando como fantasmas, ou cegos,<br />
caminhando como sombras.<br />
Ah! é por tudo isso, por todo esse infinito de dores<br />
que eu me rebelo contra ti, que eu te amaldiçôo, que eu<br />
te amaldiçôo, que eu te amaldiçôo! Três vezes! Em nome<br />
do Diabo Todo-Poderoso, Criador do Inferno e do Mal! Eu<br />
te amaldiçôo! Eu te amaldiçôo! Eu te amaldiçôo! Que tu<br />
te transformes na serpente negra que tens aos pés sobre<br />
a esfera estrelada e azul e que uma peste bárbara,<br />
infernal, peste de fome e fogo, de sole, extermine esse<br />
teu Céu fatal, gangrene esse teu Paraíso falso, cujas<br />
bem-aventuranças são mentiras, cuja piedade e<br />
consolação só trazem cruéis e aterradoras torturas!<br />
E, a cada monólogo, os braços esqueléticos dessas<br />
três piedosas figuras, assim tão profundamente<br />
transfiguradas pela Dor, agitavam-se, debatiam-se no
520 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ar aflitivamente, aflitivamente, abertos às inexprimíveis<br />
majestades da solidão do Campo Santo.<br />
Os eucaliptos, ciprestes e chorões, como que<br />
impressionados, tocados da emoção que se derramava<br />
em fluidos magnéticos desse tremendo terceto dantesco,<br />
espiritualizavam-se de segredos sonâmbulos, gemendo<br />
baixo nas nervosidades e retorcidos movimentos<br />
convulsos, epilépticos, das melancólicas ramagens.<br />
Mas, de repente, nas copas mais densas e altas<br />
das grandes árvores corpulentas, os ventos, como titãs<br />
despenhados, sopraram torvos, atroantes trovejamentos;<br />
enquanto grasnos corvejantes de bruxas iam<br />
sarcasticamente crocitando ríspidas, rápidas risadas,<br />
através das finas e sensibilizadas casuarinas siflantes<br />
e dos ciprestes vetustos...<br />
A noite, desabrochada na amplidão com estranho<br />
esplendor tenebroso, florira de estrelas claras ao alto.<br />
Em torno, dentre os montes longínquos, uma<br />
cintilante neblina fria vinha então harmonicamente<br />
emergindo, emergindo, e, súbito, o plenilúnio cidrento,<br />
de marfinal claridade mortificada, ondulou e fulgiu<br />
sereno sobre a paisagem da Morte.<br />
E as trêmulas Velhas simbólicas, arrebatadas<br />
numa mesma febre, levadas por igual alucinação de dor,<br />
já de pé sobre a terra úmida e revolta das últimas covas,<br />
clamavam ainda em coro:<br />
– Maldição! Maldição! Maldição! desaparecendo<br />
depois silenciosas, como almas esquecidas num<br />
abandono de ruínas antigas, por entre as sombras<br />
esparsas – Grandes Anjos Rebelados, de asas<br />
impotentes, vencidas, com os dolorosos vultos funestos<br />
agora parecendo mais altos, quase gigantescos, mais<br />
velhos, mais brancos, mais misteriosamente alvejados<br />
e findos sob a volúpia triste, a mágoa muda do luar<br />
elegíaco e macerado...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 521<br />
UM HOMEM DORMINDO...<br />
Les hommes endormis et les hommes morts ne<br />
sont que de vaines peintures.<br />
SHAKESPEARE, Macbeth<br />
Ei-lo, na noite, após as inclementes fadigas do<br />
dia, corpo estirado sobre o leito, gozando o repouso de<br />
algumas horas, mudo e imóvel dormindo...<br />
O descanso, como um bem misericordioso, como<br />
um óleo consolador, unge-o voluptuosamente, enquanto<br />
a grande asa crepuscular da ave taciturna da Cisma<br />
faz-lhe uma sombra piedosa, grave e doce como uma<br />
bênção paterna, em torno do corpo cansado.<br />
Na indiferença quase da morte, que o envolve todo<br />
de um vago esquecimento das cousas, deitado sobre o<br />
leito, como estirado sobre a terra, com a face mergulhada<br />
num meio luar galvânico de lividez, esse homem de<br />
ombros vigorosos e largos, de tórax poderoso, de estatura<br />
gigantesca, hércules fatigado e melancólico da Natureza,<br />
talvez o vencedor de batalhas formidáveis, parece, agora,<br />
tão pequeno, deitado!<br />
De pé, há pouco no dia, caminhando, andando,<br />
girando no absurdo Contingente, sob as guerras armadas<br />
da Vida, como esse homem se projetava verdadeiramente<br />
grande, se compenetrava do valor do aço do seu peito,<br />
se iludia a si mesmo com os seus invejáveis músculos,<br />
com a sua forte andadura de animal de campanha –<br />
lesto, tenaz, reto, preciso e forte nas distâncias e nas<br />
culminâncias a galgar!<br />
Mas, agora, deitado no leito, como esse homem<br />
forte parece fraco, como toda a sua força hercúlea se<br />
evaporou à toa pelos interstícios da prisão brumal do<br />
sono e, como simplesmente, mas fatalmente ele recorda,<br />
exprime bem a rastejante atitude de um verme!<br />
Há nele a expressão do mais completo aniquilamento,<br />
da mais funda inanição; ele sente-se sufocado
522 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
pelos espectros sub-reptícios do Nada que vertiginam e<br />
rodam em torno ao eterno absoluto.<br />
Deitado, dormindo, ele não é mais o homem, mas<br />
o silêncio, o vácuo, o além, o esquecimento. Dormindo,<br />
ele conserva essa aparência, essa abstração aflitiva, essa<br />
espasmada alucinação de um ser que já foi ser, de uma<br />
voz que se tornou mudez, de um movimento que se fez<br />
impassibilidade.<br />
Não importa mesmo que todos os seus órgãos não<br />
estejam totalmente paralisados, sob camadas letais de<br />
gelo. Mas a expressão do sono é por tal forma aureolada<br />
de mistérios, tais segredos escapam dessa indiferença,<br />
que o homem que dorme estirado no leito fica nesse<br />
momento mais indefeso, mais frágil e mais inócuo do<br />
que uma criança, que na sua vibrante garrulice cor-derosa<br />
e cristalina impõe mais ação, mais vida, desprende<br />
mais ritmos e acordes do sangue, projeta mais ondas<br />
sonoras e nervosas de movimento.<br />
Pelo estado inerme desse homem que está<br />
dormindo parece que uma força oculta, uma catástrofe<br />
inesperada, invisivelmente suspensa há muito sobre a<br />
sua existência, vai, afinal, certeira e rápida,<br />
desapiedadamente esmagar-lhe, caindo dos altos<br />
Destinos, a atormentada e vaidosa cabeça com a mais<br />
natural facilidade. Pois não é tão fácil, sem dúvida,<br />
destruir um obscuro reptil que se arrasta na terra?!<br />
Toda a sua coragem louca de guerreador da<br />
Existência, toda a aspiração alucinada, todo o sonho de<br />
Infinito que lhe povoa a alma, sem mesmo ele se<br />
aperceber disso, e que às vezes, por acaso, escapa,<br />
traindo-se pelo brilho misterioso dos olhos e por vagos,<br />
perdidos suspiros desolados que ele desprende à toa,<br />
sem mesmo saber por que, na inconsciência dos<br />
fenômenos ingênitos do seu ser; tudo isso está por algum<br />
tempo desvanecido, apagado, sumido já nessa<br />
amesquinhada posição de homem deitado, a quem só
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 523<br />
falta, cerradas como estão as pálpebras, cruzar sobre o<br />
ventre as mãos e unir os pés para semelhar um morto.<br />
Entretanto, no silêncio e na sombra desse sono<br />
como que se está gerando secretamente, sutilmente e<br />
profundamente, átomo a átomo, um mundo de<br />
fenômenos, uma tragédia muda de fenômenos.<br />
Entretanto, assim parecendo despreocupado dos<br />
segredos e signos da Vida, renunciando a tudo, agora,<br />
nesse aspecto de aparente tranqüilidade simples do<br />
sono, ele está ali curiosamente, em fundas brumas,<br />
vivendo uma alta e íntima vida psíquica muito mais<br />
intensa, muito mais complexa e preocupada do que a<br />
outra.<br />
Porque ninguém sabe que, a seu pesar, ele, por<br />
mil sutis combinações transcendentes e engenhosas do<br />
querer latente do seu organismo anelante deseja atingir,<br />
tocar e radiar entre as esferas siderais do majestoso<br />
Espírito.<br />
Porque mesmo não há alma nenhuma, por mais<br />
vã, por mais humilde, por mais obscura que seja que<br />
não aspire subir, por secretos movimentos instintivos e<br />
intuitivos, que são as transfulgentes escadas do Abstrato,<br />
às transfiguradoras montanhas do Sonho, ao<br />
desenvolvimento melhor, à pura perfectibilidade;<br />
penetrar, consolada, alheando-se de tudo, nas<br />
transcendentalizantes auroras boreais do Sentimento,<br />
satisfazendo assim, embora inconscientemente, a<br />
ansiedade de Infinito que cada alma traz mais ou menos<br />
em si, por maior ou menor que seja a esfera de ação<br />
onde ela gravite.<br />
No sono como que esses fenômenos tomam vulto,<br />
começam a girar, a girar, a girar, em íris de sensibilidade,<br />
em halos de lua, na Imaginativa do homem<br />
dormindo, cujo fundo vago carregado de narcotismos e<br />
de ópios secretos e fascinantes fica como uma rara<br />
região, rara e polar, gerando flores exóticas de<br />
quintessência.
524 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
E nas volúpias e melancolias do sono a alma paira<br />
absorta, perplexa, tateando em brumas maravilhosas,<br />
como celeste cega de sede da Imortalidade, nos círculos<br />
convulsos das lágrimas.<br />
Véus diáfanos adelgaçam-se para além da visão<br />
terrena! Véus de fimbrias de luar! Véus de centelhas<br />
de luar! Véus de fogos-fátuos de luar!<br />
E o ser, mudo, solitário, solene, pálido,<br />
indiferente, misterioso, fugitivo, trágico, belo, horrível,<br />
no espasmo elixírico do sono, dormindo, dormindo aspira,<br />
dormindo, dormindo anseia, dormindo, dormindo goza e<br />
sofre e geme e soluça e suspira e chora para além da<br />
outra vida dos sentidos encarcerados no sono e na outra<br />
vida do sono sonha com a Morte libertadora, engrinaldada<br />
de virgem, esqueleto extravagante de nervosismos e<br />
histerismos terríveis e curiosos de Eternidade – noiva<br />
do Soluço, branca, friamente bela e branca, de um terror<br />
que vence, que atrai, que esmaga, e que faz delirar de<br />
sinistra majestade e de sinistra beleza.<br />
É que o ser bebeu, esgotou até às fezes o licor<br />
sombrio, taciturno e estranho do sono pelo cálice amargo<br />
da Fadiga e ficou embriagado de sombra, vencido de<br />
sombra, desceu ao poço cheio de cismas e pesadelos do<br />
Nada para no Nada dormir ansiando, para no Nada viver<br />
dormindo, para no Nada dormir sonhando...<br />
O sono em que ele está embalsamado põe-lhe em<br />
torno à fronte fatigada uma auréola de martírio, mas de<br />
um martírio tão singular e tão abstrato que parece como<br />
que glorificá-lo, imortalizá-lo, dando-lhe a aparência<br />
secreta de estar gozando um gozo muito belo e muito<br />
triste, vagamente empoeirado de Esquecimento...<br />
Nessa hora de descanso transitório, a mágoa, os<br />
dissabores, os infortúnios inclementes, as desgraças sem<br />
remédio, as paixões desmanteladas e sem termo, as<br />
aflições, os desesperos, os sentimentos obscuros que<br />
revestem uma expressão magicamente cabalística, toda<br />
essa horrível escala humana de desventuras e misérias,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 525<br />
tudo está, por um pouco, sem movimento, inerte, como<br />
animais de emboscada, à socapa, eternamente de<br />
espreita na vida desse homem, esperando que ele de<br />
novo acorde para de novo assaltá-lo e para de novo vencêlo.<br />
E ah! como a esse homem que dorme estirado no<br />
leito da sua noite de mísero e efêmero repouso, quase<br />
mergulhado na calma negra da morte, há de talvez<br />
parecer sempre essa noite pútrida, esverdeada e<br />
formidável vala comum onde podem perpetuamente caber<br />
bilhões e bilhões de corpos humanos!
526 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
NO INFERNO<br />
Mergulhando a imaginação nos vermelhos Remos<br />
feéricos e cabalísticos de Satã, lá onde Voltaire faz sem<br />
dúvida acender a sua ironia rubra como tropical e<br />
sangüíneo cáctus aberto, encontrei um dia Baudelaire,<br />
profundo e lívido, de clara e deslumbradora beleza,<br />
deixando flutuar sobre os ombros nobres a onda pomposa<br />
da cabeleira ardentemente negra, onde dir-se-ia viver e<br />
chamejar uma paixão.<br />
A cabeça triunfante, majestosa, vertiginada por<br />
caprichos d’onipotência, circulada de uma auréola de<br />
espiritualização e erguida numa atitude de vôo para as<br />
incoercíveis regiões do Desconhecido, apresentava, no<br />
entanto, imenso desolamento, aparências pungentes de<br />
angústia psíquica, fazendo evocar os vagos infinitos<br />
místicos, as supremas tristezas decadentes dos<br />
opulentos e contemplativos ocasos...<br />
Como que a celeste imaculabilidade, a candidez<br />
elísea de um Santo e a extravagante, absurda e<br />
inquisidora intuição de um Demônio dormiam longa e<br />
promiscuamente sonos magos naquela ideal e assinalada<br />
cabeça.<br />
A face, branca e lânguida, escanhoada como a de<br />
um grego, destacava calma, num vivo relevo, dentre a<br />
voluptuosa noite de azeviche molhado, poderosa e tépida,<br />
da ampla cabeleira.<br />
Nos olhos dominadores e interrogativos, cheios de<br />
tenebroso esplendor magnético, pairava a ansiedade,<br />
uma expressão miraculosa, um sentimento inquietador<br />
e eterno do Nomadismo...<br />
A boca, lasciva e violenta, rebelde, entreaberta<br />
num espasmo sonhador e alucinado, tinha brusca e<br />
revoltada expressão dantesca e simbolizava aspirar,<br />
sofregamente, anelantemente, intensos desejos<br />
dispersos e insaciáveis.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 527<br />
Parecia-me surpreender nele grandes garras<br />
avassaladoras e grandes asas geniais arcangélicas que<br />
o envolviam todo, condoreiramente, num vasto manto<br />
soberano.<br />
Era no esdrúxulo, luxuoso e luxurioso parque de<br />
Sombras do Inferno.<br />
Em todo o ar, d’envolta com um cheiro resinoso e<br />
acre de enxofre, evaporizava-se uma azulada tenuidade<br />
brumosa, fazendo fugitivamente pensar no primitivo Caos<br />
donde lenta e gradativamente se geraram as cores e as<br />
formas...<br />
Como que diluente, fina harmonia de violinos vagos<br />
abstrusamente errava em ritmos diabólicos...<br />
Árvores esguias e compridíssimas, em alamedas<br />
intermináveis e sombrias, lembrando necrópoles,<br />
apresentavam troncos estranhos que tinham aspectos<br />
curiosos, conformações inimagináveis de enormes<br />
tóraxes humanos, fazendo pender fantásticas ramagens<br />
de cabelos revoltos, desgrenhados, como por estertorosa<br />
agonia e convulsão.<br />
Pelas longas alamedas exóticas do fabuloso<br />
parque, deuses hirsutos, de patas caprinas e peluda testa<br />
cornóide, riam com um riso áspero de gonzo, numa dança<br />
macabra de gnomos, cabriolando bizarros.<br />
De vez em quando, as suas asas fulgurantes, furtacores<br />
e fortes, rufiavam e relampejavam...<br />
Baudelaire, no entanto, suntuoso e constelado<br />
firmamento de alma refletindo em lagos esverdeados e<br />
mornos, donde fecundas e esquisitas vegetações como<br />
que sonâmbula e nebulosamente emergem, estava mudo,<br />
imóvel, com o seu perfil suavemente cinzelado e fino,<br />
fazendo lembrar a figura austera e altiva, a alada graça<br />
perfeita de um deus de cristal e bronze – tranqüilamente<br />
de pé, como num sólio real, na posição altanada de quem<br />
vai prosseguir nos excelsos caminhos dos inauditos<br />
Desígnios...
528 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Por conhecer-lhe os ímpetos, as alucinações da<br />
audácia, as indomabilidades estesíacas, os alvoroços<br />
idiossincráticos da Fantasia, eu imaginava encontrá-lo,<br />
vê-lo revoltamente arrebatado para os convulsos Infinitos<br />
da Arte por potentes, negros e rebelados corcéis de<br />
guerra.<br />
Mas, a sua atitude serena, concentrada, isolada<br />
de tudo, traía a meditação absorvente, fundamental, que<br />
o encerrava transcendentemente no Mistério.<br />
E eu, então, murmurei-lhe, quase em segredo:<br />
– Charles, meu belo Charles voluptuoso e<br />
melancólico, meu Charles nonchalant, nevoento aquário<br />
de spleen, profeta muçulmano do Tédio, ó Baudelaire<br />
desolado, nostálgico e delicado! Onde está aquela rara,<br />
escrupulosa psicose de som, de cor, de aroma, de<br />
sensibilidade; a febre selvagem daqueles bravios e<br />
demoníacos cataclismos mentais; aquela infinita e<br />
arrebatadora Nevrose, aquela espiritual doença que te<br />
enervava e dilacerava? Onde está ela? Os tesouros d’ouro<br />
e diamante, as pedrarias e marchetarias do Ganges, as<br />
púrpuras e estrelas dos firmamentos indianos, que tu<br />
nababescamente possuíste, onde estão agora?<br />
Ah! se tu soubesses com que encanto ao mesmo<br />
tempo delicioso e terrível, inefável, eu gozo todas as tuas<br />
complexas, indefiníveis músicas; os teus asiáticos e<br />
letíficos aromas de ópios e de nardos; toda a mirra<br />
arábica, todo o incenso litúrgico e estonteante, todo o<br />
ouro régio tesourial dos teus Sonhos Magos,<br />
magnificentes e insatisfeitos; toda a tua frouxa morbidez,<br />
as doces preguiças aristocráticas e edênicas de decaído<br />
Arcanjo enrugado pelas Antigüidades da Dor, mas<br />
inacessível e poderoso, mergulhado no caos fundo das<br />
Cismas e de cuja Onisciência e Onipotência divinas<br />
partem ainda, excelsamente, todos os Dogmas, todos os<br />
Castigos e Perdões!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 529<br />
Oh! que demorados e travorosos sabores<br />
experimento com o quebranto feminil das tuas<br />
volubilidades mentais de bandoleiro...<br />
Essa alma de funestos Signos, como que gerada<br />
dentro de atordoante e feiticeiro sol africano, com todas<br />
as evaporações flamívomas, com todas as barbarias das<br />
florestas, com todo o vácuo inquietante, desolador,<br />
inenarrável, dos desertos, flexibiliza-se, vibratiliza-se,<br />
adquire suavidades paradisíacas de açucenais sidéreos,<br />
do céu espiritualizado pelos mortuários círios roxos dos<br />
ocasos...<br />
Açula-me a desvairadora sede, espicaça-me a<br />
ansiedade indomável de beber, de devorar, sorvo a sorvo,<br />
sofregamente, o extravagante Vinho turvo, de lágrimas<br />
e sangue, que orvalha, como um suor de agonias, todas<br />
essas olímpicas e monstruosas florações do teu Orgulho.<br />
Ah! se tu soubesses como eu intensamente sinto<br />
e intensamente percebo todos os teus alanceados,<br />
lacerados anseios, todas as suas absolutas tristezas<br />
dormentes e majestosas, o grande e longo chorar, o<br />
desmantelamento vertiginoso das tuas noites soturnas,<br />
as fascinadoras ondas febris e ambrosíacas da tua insana<br />
volúpia, as bizarrarias e milagrosos aspectos da tua<br />
Rebelião sagrada; a fulminativa ironia dolorida e<br />
gemente, que evoca melancolias de dobres pungentes<br />
de Requiem aeternam rolando através de um dia de sol e<br />
azul, vibrados numa torre branca junto ao Mar!... Como<br />
eu ouço religiosamente, com unção profunda, as tuas<br />
Preces soluçantes, as tuas convulsas orações do Amor!<br />
Como são fascinativos, tentadores e embriagantes os<br />
perfumosos falernos da tua sensação, os esquecidos<br />
Reinados enevoados e exóticos onde a tua clamante e<br />
evocativa Saudade implorativa e contemplativa canta,<br />
ondula e freme com lascívia e nonchalance! A tua inviolável<br />
e milenária Saudade, velha e antiga Rainha destronada,<br />
aventurosa e famosa, que erra nos brumosos e vagos<br />
infinitos do Passado, como através das luas amarguradas
530 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
e taciturnas do tempo. A tua lancinante Saudade de<br />
beduíno, perdida, peregrinante por países já adormecidos<br />
nas eras, remotos, longe, nos neblinamentos da<br />
Quimera, onde os teus desejos agitados e melancólicos<br />
tumultuam numa febre de mundos multiformes de<br />
germens, em estremecimentos sempiternos; onde as<br />
tuas carícias nervosas e felinas sibaritamente dormem<br />
ao sol e espojam-se com sensualidade, num excitamento<br />
vital frenético de se perpetuarem com os aromas cálidos,<br />
com os cheiros fortes que impressionativos e afrodisíacos<br />
provocam, atacam, cocegam e ferem de extrema<br />
sensibilidade as tuas aflantes e capras narinas!<br />
Ah! como eu supremamente vejo e sinto todo esse<br />
esplendor funambulesco e todas essas magnificências<br />
sinistras do teu Pandemonium e do teu Te Deum!<br />
Ó Baudelaire! Ó Baudelaire! Ó Baudelaire!<br />
Augusto e tenebroso Vencido! Inolvidável Fidalgo de<br />
sonhos de imperecíveis elixires! Soberano Exilado do<br />
Oriente e do Letes! Três vezes com dolência clamado<br />
pelas fanfarras plangentes e saudosas da minha<br />
Evocação! Agora que estás livre, purificado pela Morte,<br />
das argilas pecadoras, eu vejo sempre o teu Espírito<br />
errar, como veemente sensação luminosa, na Aleluia<br />
fúlgida dos Astros, nas pompas e chamas do Setentrião,<br />
talvez ainda sonhando, nos êxtases apaixonados do<br />
Sonho...<br />
E a singular figura de Baudelaire, alta, branca,<br />
fecundada nas virgens florescências da Originalidade,<br />
continuava em silêncio, impassível, dolorosamente<br />
perdida e eternizada nas Abstrações supremas...<br />
E, enquanto ele assim imergia no Intangível azul,<br />
velhos deuses capros, teratológicos Diabos lúbricos e<br />
tábidos, desaparecidos desse egrégio vulto satânico,<br />
cismativo e sombrio, dançavam, saltavam, infernalmente<br />
gralhando e formando no ar quente, em vertigens de<br />
diabolismos, os mais curiosos e simbólicos hieróglifos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 531<br />
com a flexibilidade e deslocamento acrobático e mágico<br />
dos hirsutos corpos peludos e elásticos...<br />
Mas, em meio do misterioso parque, elevava-se<br />
uma árvore estranha, mais alta e prodigiosa que as<br />
outras, cujos frutos eram astros e cujas grandes e<br />
solitárias flores de sangue, grandes flores acerbas e<br />
temerosas, flores do Mal, ébrias de aromas mornos e<br />
amargos, de dolências tristes e búdicas, de<br />
inebriamentos, de segredos perigosos, de emanações<br />
fatais e fugitivas, de fluidos de venenosas mancenilhas,<br />
deixavam languidamente escorrer das pétalas um óleo<br />
flamejante.<br />
E esse óleo luminoso e secreto, escorrendo com<br />
abundância pelo maravilhoso parque do Inferno, formava<br />
então os rios fosforescentes da Imaginação, onde as<br />
almas dos Meditativos e Sonhadores, tantalizadas de<br />
tédio, ondulavam e vagavam insaciavelmente...
532 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
A NÓDOA<br />
Naquela hora de superexcitação nervosa, tarde<br />
na noite nevoenta em que os ventos lugubremente<br />
grasnavam, rondando, rondando, Maurício entrou agitado<br />
da rua...<br />
Via-se bem, pela lividez espectral do seu rosto, os<br />
tumultos sinistros que trazia consigo.<br />
Com o cérebro escaldando, numa temperatura<br />
mental inconcebível, parecia que alguma cousa dentro<br />
do seu ser estava sendo guilhotinada e que grandes,<br />
caudalosas torrentes de sangue vivo, quente, o alagavam<br />
interiormente, deixando-o exangue, desfalecido...<br />
Era, na verdade, um aspecto extravagante o desse<br />
cardíaco lascivo, desse neurastênico que o álcool andava<br />
aos poucos devastando e povoando já das suas visões<br />
trementes e delirantes, lá do fundo absíntico das<br />
impenitentes boêmias; desse sombrio e ferrenho<br />
misantropo fechado ao alto da sua velha torre torva de<br />
melancolia, sentindo em torno o mundo, grosso mar<br />
vasto, ululando deprecações...<br />
Cabelos em desalinho, olhos estupefatos, boca<br />
num espasmo de angústia, mãos convulsas e<br />
avelhantadas, braços tateando o ar como garras, pernas<br />
trêmulas, tudo naquela desgraçada matéria determinava<br />
uma vulcanização muito íntima, um desespero muito<br />
particular, talvez o desmoronamento absoluto.<br />
Era o lance cruel de uma dessas vidas<br />
despedaçadas, dilaceradas, sem centros harmônicos de<br />
um objetivo ideal, sem pontos de apoio, girando fora das<br />
órbitas da unidade dos sentidos e que vagam, de um a<br />
outro extremo da alma, de um ao outro pólo do ser, sem<br />
uma luzerna, sem um santelmo, sem Refúgios interiores,<br />
quase o vácuo de si próprias, batidas por um frio sinistro<br />
de desolação, sob a lei inexorável, horrível, dos<br />
desequilíbrios e degenerescências. Demônios mórbidos,<br />
fatais, arremessados à terra para cobri-la, como de um
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 533<br />
luto de peste, do sentimento negro, perverso, infernal,<br />
do aniquilamento e das culpas.<br />
Qualquer cousa de curioso, de secreto, dava-se,<br />
sem dúvida, no fundo dessa excepcional natureza que a<br />
noite tanto e tão intensamente carregara dos seus<br />
esparsos fluidos misteriosos.<br />
Apenas mergulhado no aposento, triste tugúrio<br />
abandonado e frio, acendeu logo, com a mão febril,<br />
nervosamente, a pequena lâmpada que pousava sobre<br />
um velho móvel querido que ali jazia como a recordação<br />
de vagos e inolvidáveis tempos...<br />
Assim que a luz coou em torno a sua tíbia<br />
claridade amarelenta, Maurício aproximou-se da luz,<br />
sôfrego, a fronte em suor, numa ansiedade muda.<br />
Em sobressaltos, inquieto, palpitando, nervoso,<br />
cada vez mais nervoso, uma agitação contínua na pupila,<br />
quase num delírio, arrastado por curiosidade torturante<br />
e ao mesmo tempo por medo avassalador, chegou uma<br />
das mãos à luz, aproximou-a da luz, aproximou-a mais<br />
da luz, quase a fazendo arder, crepitar, estalar na chama<br />
da luz, inquiriu mentalmente toda a palma da mão, o<br />
cabalístico M letal, as unhas, uma por uma as falanges,<br />
novamente a palma da mão, examinou-a, palpou-a,<br />
analisou-a longamente, demoradamente, com<br />
movimentos singulares de sonâmbulo e de mago,<br />
conservando no rosto tal expressão horrível, tal expressão<br />
transfigurada que não era mais deste mundo...<br />
E ele olhava e tornava a olhar para a mão, a<br />
perscrutá-la bem, detendo-se em cada linha, em cada<br />
traço da mão, como sob impressão magnética.<br />
– Mas, não, não! dizia, arrepiando o lábio num<br />
velado sorriso contrafeito, macabro. Não! Eu vi! Eu vi!<br />
Eu bem lhe fui acompanhando a gradação, o vulto que<br />
fazia aqui em toda a mão; a princípio tênue, leve,<br />
pequena; depois grande, densa e negra, enchendo a mão<br />
toda pavorosamente, reptilmente rastejando, pondo-me<br />
calafrios tremendos na espinha. Sim! Eu bem a vi, aqui,
534 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
aqui, persistente, entranhada, a horrível nódoa negra,<br />
manchando-me a mão toda, não sei como, não sei donde<br />
mandada.<br />
E os outros que lá estavam também como eu no<br />
cabaré, na sua hora d’álcool, sentiram-me a obsessão e<br />
riram e perguntaram se eu não estaria louco, se não<br />
era de fato um demente.<br />
Mas eu ouvi e nada lhes disse, nada lhes respondi<br />
porque eu bem via, bem estava vendo a nódoa tomar-me<br />
pouco a pouco conta de toda a mão, alastrar-se por ela,<br />
negra, em breves momentos. Eu bem a vi! E o que<br />
importava o desdém ou a indiferença dos outros, o<br />
ridículo que os outros me lançassem, se só eu a via, só<br />
eu! unicamente eu percebia que ela cá estava, funda,<br />
intensa, sem que eu a pudesse extinguir, fazê-la<br />
desaparecer para sempre. Sim! Ela cá estava! Senti então<br />
de repente um pavor maior lembrando-me se ela me<br />
tomasse o corpo todo, me subisse pelo tronco, me<br />
manchasse o rosto, envolvendo-me tenebrosamente na<br />
sua oleosa baba negra. E assim pensando parecia-me<br />
estar já avassalado por ela, que me cobria como de um<br />
manto fúnebre.<br />
E nesta sugestão doentia, numa extraordinária<br />
vibração de nervos, que titilavam de horror, voei pelas<br />
ruas em busca de repouso em meu triste aposento, pois<br />
era tão forte a obsessão, tão violenta, punha-me em tal<br />
estado, que até julguei, com essa infantilidade ingênua<br />
que nos transfigura nas íntimas e esmagadoras aflições,<br />
que desapareceria aquela nódoa lúgubre logo que eu<br />
estivesse tranqüilamente repousado.<br />
Sim! este meu triste, generoso e leal aposento<br />
que com tanto e tanto carinho me acolhe sempre na<br />
hora do meu grande abandono, dos meus extremos<br />
desfalecimentos, saberia condensar todas as suas<br />
diluentas amarguras, todas as suas queixas secretas,<br />
todas as suas mágoas esparsas, dar-lhes corpo, dar-lhes
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 535<br />
vida e alma para, consolando-me, trazer calma piedosa<br />
a esta minha agitação profunda.<br />
Com efeito, agora, olho e torno a olhar, para a<br />
mão e nada encontro nela, nada do que eu vi, porque eu<br />
vi! Não encontro mais a nódoa, não está cá. Olho e torno<br />
a olhar, reparo, observo bem tudo e não encontro, não<br />
vejo mais a nódoa...<br />
E não a vejo, mesmo, por mais que examine, em<br />
nenhuma das mãos! Ah! respiro! Não a vejo em nenhuma<br />
das mãos! Respiro, enfim! Que alívio! Que alívio<br />
supremo!<br />
Foi, sem dúvida, foi loucura minha, neblinoso<br />
torpor de embriaguez, visão, sombra, pesadelo de<br />
momentos. Tinham razão os outros em rir... Foi simples<br />
loucura minha, simples loucura minha, simples loucura<br />
minha!<br />
Entretanto, como se uma diabólica força oculta<br />
no seu pobre cérebro demente insistisse, agisse dentro<br />
dele com perversa e feroz tenacidade calculada,<br />
fisgando-lhe as arestas cruas e agudas de cerrada<br />
argumentação casuística, mas em certos planos, de certo<br />
modo, irrefutável, Maurício colocou-se diante de um<br />
espelho oval que havia no aposento, e mirou-se bem nele,<br />
com atenção, com minúcia.<br />
Como que queria reconhecer-se, como que<br />
acreditava ter perdido a legitimidade do seu ser, terem<br />
reaparecido, por um desses incompreensíveis fenômenos<br />
nervosos, a perfeita identidade das suas feições, as<br />
linhas do seu semblante, da sua natureza, e com elas a<br />
sua própria sensibilidade.<br />
Mas, não! Ele ali estava, vendo-se apenas tão<br />
desfigurado, tão abatido, com esse aspecto vago, ignoto,<br />
retrospectivamente antigo, de quem já além viveu...<br />
Quase se desconhecia! Não era mais o intrépido, o afouto<br />
Maurício de outrora, que a bravura de sentimentos<br />
bizarros iluminava de esplendor e força. Não era mais o<br />
adolescente, amado desse amor frívolo da mundanal
536 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
mocidade, e cuja alma engrinaldava-se de rosas,<br />
esmaltava-se d’estrelas, vibrava de canções e cânticos,<br />
na frescura e no azul matinal de um idílio que lhe parecia<br />
eterno. Não era mais esse Maurício que através dos<br />
longos rumos do tempo se perdera e desaparecera...<br />
Era agora um outro Maurício, todo vivamente<br />
abalado, é certo, por inquietos sonhos de indefinível<br />
ansiedade, mas por isso mesmo acabando, findando já<br />
para tudo.<br />
Na encruzilhada dos caminhos que percorrera, ele,<br />
embevecido, perplexo, como que divulgava, pela curiosa,<br />
desoladora e irônica sugestão do espelho, duas nobres<br />
figuras de inefável expressão contemplativa que se<br />
enlaçavam num amplexo enlevativo e saudoso de<br />
idolatrados sentimentos velhos, surgindo das brumas<br />
álgidas do Esquecimento.<br />
Uma dessas figuras o olhava, atenta, nova e<br />
cariciosamente risonha, na meiguice mais cândida, a<br />
cabeça loira pendida numa atitude de enternecimento<br />
supremo.<br />
Igualmente o olhava a outra, subjugada pela febre<br />
devoradora do desespero, curvada de anos, por entre<br />
rugas e soluços... E ambas essas figuras evocativas se<br />
enlaçavam, emocionalmente se enlaçavam, do fundo<br />
sombrio e longínquo daquele espelho, no abraço extremo,<br />
profundo, infinito, como que fundidas na mesma<br />
apaixonada e embriagada convulsão da Vida...<br />
E, então, por uma esquisita afinidade de<br />
pensamento, como se por acaso mais essa outra obsessão<br />
da identidade perdida desnaturasse o rumo lógico do<br />
seu raciocínio, esclarecendo, mesmo por esse fato e com<br />
igual irrefutabilidade, o fenômeno da nódoa que o<br />
perseguia, Maurício espalmou diante do espelho ambas<br />
as mãos, certificando-se de tudo, pois até quase lhe<br />
parecera, na agonia cruciante daquelas implacáveis<br />
conjeturas psíquicas e por lenta compreensibilidade<br />
nebulosa, labiríntica do cérebro, mesmo por certa
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 537<br />
infantilidade demente, que o espelho, refletindo assim<br />
sobre o seu busto, desnevoaria, arrancaria mais depressa<br />
toda a fatal verdade sobre a nódoa do que apenas a<br />
simples chama dúbia e amarelenta da doce luz da<br />
lâmpada.<br />
E o espelho, no seu fundo glacial de boca turva,<br />
crespusculada, de poço; cova de névoas e treva de onde<br />
naquela hora se desenterravam todos os seus Afetos;<br />
alma de cristal onde um delicado sentimento de<br />
esquecimento e de saudade parecia estar diluído; o<br />
espelho, naquela alta hora noturna dormente e<br />
sonolentamente mergulhado na doce luz amarelentada,<br />
da lâmpada, lembrava brumoso vale de lágrimas<br />
aureolado de luar...<br />
E Maurício revia-se no espelho, consultava-o,<br />
analisava, comentava, analisava os próprios reflexos e<br />
mutismo do espelho; feria a fina corda vibrátil dos seus<br />
nervos, dos seus sentidos de desequilibrado, de<br />
impotente, monologava com eles, e esse exame tão<br />
detalhado, tão minudente, tão penetrante, dava-lhe certa<br />
atração doentia, certa volúpia martirizante, certa lascívia<br />
de angústia.<br />
Mas, nada. Mesmo ante o espelho ele não<br />
distinguia nada nas mãos, nem no rosto, nem em parte<br />
alguma do corpo. Estava salvo, efetivamente estava salvo<br />
do caprichoso e funesto abalo que o sacudira e gelara!<br />
Estava salvo! Estava salvo!<br />
Nisto, de repente, como se com aquelas argüições<br />
e investigações mentais tivesse despertado, provocado<br />
violentamente o Mistério, rasgado os profundos véus<br />
translúcidos e transcendentes do Mistério, ei-lo que<br />
agora fixa demoradamente os olhos na mão esquerda e,<br />
recuando como um fantasma até à outra extremidade<br />
do aposento, solta este grito surdo.<br />
– Ah! a nódoa!<br />
Então, a visão que ele teve nesse momento foi<br />
tremenda. Recuado até ao fundo da parede, o tronco
538 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
vergado, a cabeça vencida, na expressão dos supremos<br />
aniquilamentos, os braços desalentados, os olhos acesos<br />
numa fosforescência e parados numa imobilidade<br />
persistente de olho de ciclope, a boca escumando todo o<br />
horror até ali concentrado, dolorosamente vivido naquele<br />
organismo, encolhido como um fardo humano, na atitude<br />
de um animal acuado, Maurício estava medonho.<br />
Sentia que a nódoa da mão já lhe tomava um braço<br />
todo, depois outro, que lhe envolvia o peito e o ventre,<br />
que lhe descia às pernas e aos pés e que subia fatalmente,<br />
numa inexorabilidade terrível, numa avassalação<br />
desolante de peste, pelo rosto, como langue lesma negra,<br />
viscosa e envenenada lagarta de pauis apodrecidos,<br />
nódoa que até lhe amortalhava os olhos, que o tornava<br />
irremediavelmente cego. E por todo ele era só aquela<br />
nódoa, aquela nódoa, aquela flageladora nódoa a crescer<br />
implacavelmente. Nódoa que mesmo lhe sufocava a<br />
garganta para os gemidos e para os gritos, lhe tirava o<br />
olfato, lhe roubava os movimentos, o paralisava e gelava<br />
todo e o arremessava agora ali, mudo, para um canto,<br />
como uma cousa inútil, num semi-idiotismo esquisito,<br />
numa lividez mortal, rangendo os dentes e olhando o<br />
vácuo, pasmosamente olhando o vácuo...<br />
E, assim encolhido, atirado a um canto, as feições<br />
já invadidas de súbita e precoce senilidade, dentes<br />
rigidamente cerrados, olhos muito abertos vidrados do<br />
espanto, do terror singular concentrado no fundo<br />
devastado das órbitas, Maurício foi encontrado morto,<br />
devorado pela sensacional obsessão delirante daquela<br />
estranha nódoa que, no entanto, sem que ele soubesse<br />
ou pudesse determinar nitidamente no cérebro<br />
alucinado, era a profunda, a incoercível, a grande nódoa<br />
negra simbólica da sua própria vida.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 539<br />
TALVEZ A MORTE?!...<br />
Sob a florescência casta e voluptuosa da lua, numa<br />
noite em que eu ia embebido num desses sonhos que<br />
nos transportam ainda mesmo acordados, deparei com<br />
um vulto de mulher, alta, esgalgada e lívida, vestida de<br />
negro e velada pela redoma vaporosa da bruma da lua...<br />
Parecia trazer, como auréola extravagante, a<br />
nostalgia de ecos e rumores extintos...<br />
O seu rosto branco, lactescente, na majestade do<br />
negror das vestes, tinha uma beleza augusta.<br />
A fronte era como um céu pálido e sereno para<br />
constelar de beijos soluçados de imprevista e suprema<br />
paixão.<br />
Os cabelos, iriados d’orvalho luminoso, como que<br />
desprendiam certa fosforescência leve... Não eram<br />
louros, eram negros e de um oleoso quente,<br />
impressionante, fascinativo.<br />
Os olhos chamejantes lembravam dois astros<br />
ardendo numa treva densa e ondulante, coruscando no<br />
abismo das duas órbitas fundas, fatidicamente<br />
embaladores como berceuses de um doce e delicioso<br />
Nirvana...<br />
O nariz, ainda que belo e de uma aristocracia<br />
incriada, tinha uma expressão de ansiosas luxúrias de<br />
além-túmulo, um sentimento de austera firmeza e<br />
inexorabilidade de causar mistério e pavor...<br />
A boca, de um langor quebrado e letal, de uma<br />
expansão meio morta, fazia recordar os alucinamentos<br />
e o gozo de uma flor de melancólico desejo alvorecida<br />
nos frios terrores de uma cova.<br />
O andar, lento e grave, de um gracioso e nervoso<br />
balanceado de sonambulismo, maravilhava todo o seu<br />
vulto esquisito de um encanto desconhecido, como se<br />
ela, na verdade, caminhasse sob a magia de um sonho.
540 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Vagamente, o espírito ficava arrebatado a cismar<br />
num grande lírio tenebroso de perfume adormecedor e<br />
fatal!<br />
De longe, olhando-a entre o enevoamento do luar,<br />
ela passava-me na retina ferida de deslumbramento<br />
fantasioso, com cintilações de uma estranha serpente<br />
branca e negra, os movimentos coleantes e ondulosos<br />
do andar lento e grave de curiosidades e de ritmos<br />
imaginários.<br />
Dir-se-ia a visão das tormentosas nevroses, a<br />
deusa cândida das singularidades emotivas, embriagada<br />
por vinhos sombrios e sutis de soberanos requintes.<br />
Eu experimentava ao vê-la um estremecimento<br />
de fascinação e uma tontura de abismo, como se ela<br />
própria fosse um abismo que a pesar meu, bela e<br />
tremenda, me viesse estrangular com os seus abraços<br />
não sei de que sensação e nem de que delírio, num<br />
amor venenoso e luminoso ao mesmo tempo...<br />
Não se sentia nela o contato carnal, o travo<br />
miserando, a garra cruel da matéria. Não era a lama vil<br />
que tomava aqueles inauditos aspectos. Certo não a carne<br />
venal mundanizada!<br />
Uma força secreta fazia com que ela vagasse,<br />
caminhasse... Uma espiritualização nobre a revestiu de<br />
vida miraculosa – filtro das Esferas, ansiedade palpitante<br />
do Infinito, magno amor dos Espaços, imortalidade<br />
invisível das Cousas, quintessência da dor do Nada!<br />
Como que da su’alma de pinturesco de vitrais,<br />
sobre um fundo de madrugadas violáceas, deveriam<br />
irradiar aleluias lúgubres...<br />
Mas, pela obsessão de olhá-la, parecia-me agora<br />
que ela não se movia mais, que quedara num ponto,<br />
imperturbavelmente olhando os longes indistintos, alta<br />
e branca, afilada como uma torre perdida nos<br />
descampados do céu, sob a lua em silêncio<br />
supersticioso...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 541<br />
Doze badaladas sombrias, mensageiras funestas<br />
do Sortilégio, ressoaram, soluçaram, cavas no ar, lentas,<br />
compassadas, monótonas...<br />
Inquieto, febril como nunca, cravei o olhar agitado,<br />
sofregamente, no ponto onde devia estar a visão; porém<br />
ela havia desaparecido, se desfeito, quem sabe!<br />
reentrado nos seus mundos, ante as badaladas choradas<br />
e cabalísticas da Meia-Noite!<br />
Ah! quem era, afinal, essa Visão, essa ave de luto<br />
e melancolia celeste?! Talvez a Arte?! Talvez a Morte?!
542 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ÍDOLO MAU<br />
...voici que, tout à coup, ces élus de l’Esprit sentent<br />
effluer d’eux-mêmes où leur provenir, de toutes<br />
parts, dons la vastitude, mille et mille invisibles<br />
fils vibrants en lesquels court leur Volonté sur<br />
les événements du monde, sur les phases des<br />
destins, des empires, sur l’influente lueur des<br />
astres, sur les forces déchainées des éléments.<br />
VILLIERS DE L’ISLE ADAM, Axël<br />
De descaro em descaro, de deboche em deboche,<br />
as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos,<br />
empolgaram-te.<br />
Estás agora preso à calceta de sentimentos negros<br />
e, obscenamente, te arrastas, lesmado e vil, preso à<br />
calceta de sentimentos negros.<br />
Na tua alma iníqua, pestilenta e vencida, nada<br />
mais arde, nada mais flameja, nada mais canta.<br />
Como a ave noturna e luciferina do – Nunca mais!<br />
– desse peregrino e arcangélico Poe – como essa ave<br />
noturna, pairou sobre ti a desilusão de todas as cousas.<br />
E tu, agora, só ouves os misteriosos carrilhões da<br />
noite, da grande noite do Nada, convulsamente<br />
soluçarem e só vês errar os espectros lívidos da Saudade<br />
arrastando as longas túnicas inconsúteis e brancas.<br />
De descaro em descaro, de deboche em deboche,<br />
as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos,<br />
empolgaram-te.<br />
De tal sorte te afundaste, te abismaste no caos<br />
infernal da malignidade, de tal sorte o crime absurdo,<br />
feio, torto, te avassalou supremamente, que a própria<br />
origem de lama, de onde surgiste, nega-te, rejeita-te,<br />
repele-te.<br />
Tu não morrerás mais!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 543<br />
Ficarás na terra – imenso Purgatório –<br />
regenerando, purificando, cristalizando a tu’alma dessa<br />
mancha sinistra e lutulenta, que a envolve toda.<br />
Não morrerás mais! Te perpetuarás, para te<br />
remires do teu enorme Pecado, cuja sombra orbicular<br />
põe nódoas fundas no sol, doentias penumbras no luar,<br />
turva, entenebrece a fina pedraria branca das estrelas.<br />
Entretanto, legiões e legiões de homens deixamse<br />
fascinar por ti; tu os atrais insensivelmente ou<br />
calculadamente, os sugestionas, os arrastas, e,<br />
fetichistas tristes, bufos lúgubres, eles vivem de sugar<br />
o veneno hediondo das tuas palavras e das tuas obras,<br />
com a alma e a consciência de rastos a teus pés, na<br />
covardia langue, lassa, dos que dão toda a veneração<br />
vilã aos ídolos malignos.<br />
Nem o retalhante knut siberiano, nem os suplícios<br />
fabulosos do Tântalo, nem os horríveis martírios de<br />
Ugolino são suficientes dilícios para remir e imacular o<br />
teu ser da mácula de lodo e sangue que tanto o está<br />
manchando cada vez mais intensamente.<br />
Tal é a malignidade, o descarnado cinismo em<br />
que reinas, bandido e bonzo, que pareces o porta-bandeira<br />
funesto das fantásticas legiões armadas do<br />
Aniquilamento supremo, trazendo como divisa fatal esta<br />
inscrição formidável: – Fome! Peste! Guerra!<br />
És, pois, o proclamador da Fome, da Peste, da<br />
Guerra. Vieste sob a claridade assinaladora de um íris<br />
prenuncial, sob os eclipses pressagos, sob os sóis<br />
reveladores, sangrando em chaga, dentre círculos de<br />
fogo, sob as luas augurais, mórbidas e sonolentas, de<br />
amarelidão defunta.<br />
Entretanto, se não fora a preguiça mental, um<br />
verdadeiro servilismo, uma covardia crassa que tolhe-te<br />
completamente os nervos do Pensamento, poderias<br />
salvar-te ainda.<br />
Porque tudo está na espiritualidade, na alma. Tudo<br />
está em fazer da alma nova hóstia, um sol incomparável,
544 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
a quintessência do Sentimento, para que a alma seja<br />
mais eterna que a luz, mais forte que os bronzes, mais<br />
etereal do que os astros.<br />
Alma, alma, mais alma, mais alma, muita alma,<br />
muita alma, toda, toda a alma, toda a infinita alma!<br />
É mister que pouco a pouco te devore uma doce<br />
ansiedade secreta e nobre; que uma suavidade celestial<br />
desça por sobre ti; que um encanto maravilhoso te<br />
engrandeça, te levante e faça sonhar; que aspires às<br />
sublimes purificações, às emocionais magnitudes, às<br />
surpreendentes transformações, às grandes eloqüências<br />
da Sensação que perpetuamente constelam as naturezas<br />
assinaladas.<br />
É mister que a serena e imaculada Sideralidade<br />
dê-te o poder das Reivindicações; que de ignóbil e rojado<br />
aos mais terrestres vilipêndios, surjas, como de um<br />
Batismo novo e original, Arcanjo das Transfigurações,<br />
alto e calmo dominando, vencendo os Vândalos em torno.<br />
E que uma rara fé, mais forte que toda a fé cristã,<br />
mais ardente, mais viva, te inflame e ilumine com as<br />
suas chamas prodigiosas.<br />
É de lágrimas, é de desejos, é de gemidos, é de<br />
aspirações e agonias que se fecunda a imortalidade.<br />
Se tu tornares bem intensos os teus pensamentos,<br />
bem chamejantes, bem profundos, arrancados do mais<br />
íntimo do teu ser com todas as estranhas raízes da tua<br />
sensação, tu te salvarás ainda, te remirás do teu crime<br />
nefando, do teu cinismo bandido, do teu escarnecedor<br />
deboche de celerado.<br />
Se souberes manifestar toda a expansão do<br />
temperamento, com os segredos da Intuição; se<br />
desabrochares como força própria, entranhadamente<br />
própria e poderosa, sem veres apenas o que te for tangível<br />
aos olhos, sem imaginares o que já foi imaginado, sem<br />
sentires o que já foi sentido, sem te nivelares com a<br />
materialidade da massa humana, serás uma afirmação,<br />
um estado de existir, de impressionar. E, enfim, se
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 545<br />
ficares livre, inteiramente livre de todas as peias<br />
obscenas da miséria coletiva e da convenção dourada,<br />
serás verdadeiramente um espírito, originalmente um<br />
homem, matrimoniando-te com o sentimento, como o<br />
sol nos frementes e lúbricos esponsais com a terra.<br />
Basta, apenas, para te purificares de todo e com<br />
solenidade desse descaro e desse deboche, que te<br />
possuas de ti próprio, que comungues os Sacramentos<br />
abstratos, que te unjas de dons incomparavelmente<br />
preciosos e belos, despindo-te primeiro de todas as<br />
necessidades, de todas as vanglórias, para que, enfim,<br />
vivas, excepcionalmente vivas; para que sintas, intuitiva,<br />
eloqüente, a póstuma volúpia espiritual de te perpetuar<br />
de te difundir no Azul, de ainda, através dos tempos,<br />
viver...<br />
Basta, para isso, que renasças de ti mesmo, com<br />
entusiasmos bizarros, revitalizados pelo fluido de ouro,<br />
rico e fecundo, dos Idealismos, olhando as cousas com<br />
olhos sonoros, harmoniosos; que ascendas à<br />
Perfectibilidade e surjas, simples e sereno, da lama<br />
esverdeada onde coaxas de descaro em descaro, de<br />
deboche em deboche – sapo asqueroso de sensualidades<br />
tristes – Astro imortal do Sonho, assim singularmente,<br />
curiosamente remido e perdoado para sempre de tudo,<br />
na palpitação extática das Luzes, das Formas, das<br />
Transcendências!...
546 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
BALADA DE LOUCOS<br />
Oui, nulle souffrance ne se perd, toute<br />
douleurfructifie, il en reste un arome subtil qui<br />
se répand indefiniment dans le monde!<br />
M. DE VOGUÉ<br />
Mudos atalhos afora, na soturnidade de alta noite,<br />
eu e ela, caminhávamos.<br />
Eu, no calabouço sinistro de uma dor absurda,<br />
como de feras devorando entranhas, sentindo uma<br />
sensibilidade atroz morder-me, dilacerar-me.<br />
Ela, transfigurada por tremenda alienação, louca,<br />
rezando e soluçando baixinho rezas bárbaras.<br />
Eu e ela, ela e eu! – ambos alucinados, loucos, na<br />
sensação inédita de uma dor jamais experimentada.<br />
A pouco e pouco – dois exilados personagens do<br />
Nada – parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo,<br />
como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas<br />
rítmicas do esquife...<br />
Eram em torno paisagens tristes, torvas, árvores<br />
esgalhadas nervosamente, epilepticamente – espectros<br />
de esquecimento e de tédio, braços múltiplos e vãos sem<br />
apertar nunca outros braços amados!<br />
Em cima, na eloqüência lacrimal do céu, uma lua<br />
de últimos suspiros, morta, agoniadamente morta,<br />
sonhadora e niilista cabeça de Cristo de cabelos<br />
empastados nos lívidos suores e no sangue negro e<br />
esverdeado das letais gangrenas.<br />
Eu e ela caminhávamos nos despedaçamentos da<br />
Angústia, sem que o mundo nos visse e se apiedasse,<br />
como duas Chagas obscuras mascaradas na Noite.<br />
Longe, sob a galvanização espectral do luar, corria<br />
uma língua verde de oceano, como a orla de um eclipse...<br />
O luar plangia, plangia, como as delicadas violetas<br />
doentes e os círios acesos das suas melancolias, as<br />
fantasias românticas de sonhador espasmado.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 547<br />
Parecia o foco descomunal de tocheiros ardendo<br />
mortuariamente.<br />
A pouco e pouco – dois exilados personagens do<br />
Nada – parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo,<br />
como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas<br />
rítmicas do esquife...<br />
Beijos congelados, as estrelas violinavam a sua<br />
luz de eternidade e saudade.<br />
E a louca lúgubres litanias rezava sempre, soluços<br />
sem o limitado do descritível dor primeira do primeiro<br />
ser desconhecido, originalidade inconsciente de um<br />
dilaceramento infinitamente infinito.<br />
Eu sentia, nos lancinantes nirvanescimentos<br />
daquela dor louca, arrepios nervosos de transcendentalismos<br />
imortais!<br />
O luar dava-me a impressão difusa e dormente<br />
um estagnado lago sulfurescente, onde eu e ela,<br />
abraçados na suprema loucura, ela na loucura do Real,<br />
eu na loucura do Sonho, que a Dor quintessenciava mais,<br />
fôssemos boiando, boiando, sem rumos imaginados,<br />
interminamente, sem jamais a prisão do esqueleto<br />
humano dos organismos – almas unidas, juntas, só almas<br />
vogando, almas, só almas gemendo, almas, só almas<br />
sentindo, desmolecularizadamente...<br />
E a louca rezava e soluçava baixinho rezas<br />
bárbaras.<br />
Um vento erradio, nostálgico, como primitivos<br />
sentimentos que se foram, soprava calafrios nas suas<br />
velhas guslas.<br />
De vez em quando, sobre a lua, passava uma nuvem<br />
densa, como a agitação de um sudário, a sombra da asa<br />
de uma águia guerreira, o luto das gerações.<br />
De vez em quando, na concentração esfingética<br />
de todos os meus sofrimentos, eu fechava muito os olhos,<br />
como que para olhar para o outro espetáculo mais<br />
fabuloso e tremendo que acordava tumulto dentro de<br />
mim.
548 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
De vez em quando um soluço da louca, vulcanizada<br />
balada negra, despertava-me do torpor doloroso e eu abria<br />
de novo os olhos.<br />
E outro soluço, outro soluço para encher o cálix<br />
daquele Horto, outro soluço, outro soluço.<br />
E todos esses soluços parecia-me subirem para a<br />
lua, substituindo miraculosamente as estrelas, que<br />
rolavam, caíam do Firmamento, secas, ocas, negras,<br />
apagadas, como carvões frios, porque sentiam, talvez!<br />
que só aqueles obscuros soluços mereciam estar lá no<br />
alto, cristalizados em estrelas, lá no Perdão do Céu, lá<br />
na Consolação azul, resplandecendo e chamejando<br />
imortalmente em lugar dos astros.<br />
A pouco e pouco – dois exilados personagens do<br />
Nada – parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo,<br />
como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas<br />
rítmicas do esquife...<br />
O vento, queixa vaga dos túmulos, esperança<br />
amarga do passado, surdinava lento.<br />
De instante a instante eu sentia a cabeça da louca<br />
pousada no meu ombro, como um pássaro mórbido, meiga<br />
e sinistra, de uma doçura e arcangelismo selvagem e<br />
medroso, de uma perversa e febril fantasia nirvanizada<br />
e de um sacrílego erotismo de cadáveres. Ficava tocada<br />
de um pavor tenebroso e sacro, uma coisa como que a<br />
Imaginativa exaltada por cabalísticos aparatos<br />
inquisitoriais, como se do seu corpo se desprendessem,<br />
enlaçando-me, tentáculos letárgicos, veludosos e doces<br />
e fascinativos de um animal imaginário, que me<br />
deliciassem, aterrando...<br />
Eu a olhava bem na pupila dos grandes olhos<br />
negros, que, pela contínua mobilidade e pela beleza<br />
quente, davam a sugestão de dois maravilhosos astros,<br />
raros e puros, abrindo e fechando as chamas no fundo<br />
mágico, feérico da noite.<br />
Naquela paisagem extravagante parecia passar o<br />
calafrio aterrador, a glacial sensação de um hino negro
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 549<br />
cantado e dançado agoureiramente por velhas e<br />
espectrais feiticeiras nas trevas...<br />
A lua, a grande mágoa requintada, a velha lua<br />
das lágrimas plangia, plangia, como que na expressão<br />
angustiosa, na sede mais cega, na mais latente<br />
ansiedade de dizer um segredo do mundo...<br />
E eu então nunca mais, nunca mais me esquecerei<br />
daqueles ais terríveis e evocativos, daquelas indefiníveis<br />
dolências, daquela convulsiva desolação, que sempre<br />
pungentemente badalará, badalará, badalará na<br />
minh’alma dobres agudos e lutuosos de uma Ave-Maria<br />
maldita de agonias, como se todos os bons Anjos da<br />
Mansão se rebelassem um dia contra mim, cantando<br />
em coro reboantes, conclamantes hosanas de perseguição<br />
e de fel!<br />
Nunca! nunca mais se me apagará do espírito essa<br />
paisagem rude, bravia, envenenada e maligna, todo<br />
aquele avérnico e irônico Pitoresco lúgubre, por entre o<br />
qual silhueticamente desfilamos, eu, alucinado num<br />
sonho mudo, ela, alienada, louca – simples, frágil,<br />
pequenina e peregrina criatura de Deus, abrigada nos<br />
caminhos infinitos deste tumultuoso coração.<br />
Só quem sabe, calmo e profundo adormecer um<br />
pouco com os seus desdéns serenos e sagrados pelo<br />
mundo e escutar já, de manso, através das celas<br />
celestes do mistério das almas, uma dor que não fala,<br />
poderá exprimir a sensação aflitíssima que me<br />
alanceava...<br />
Ah! eu compreendia assim os absolutos Sacrifícios<br />
que redimem, as provações e resignações que<br />
transfiguram e renovam o nosso ser! Ah! eu compreendia<br />
que um Sofrimento assim é um talismã divino concedido<br />
a certas almas para elas adivinharem com ele o segredo<br />
sublime dos Tesouros imortais.<br />
Um Sofrimento assim despertava em mim outras<br />
cordas, fazia soar outra obscura música. Ah! eu me sentia<br />
viver desprendido das cadeias banais da Terra e pairando
550 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
augustamente naquela Angústia, tremenda, que me<br />
espiritualizava e disseminava nas Forças repurificantes<br />
da Eternidade!<br />
E como dentro de mim estava aberto para ela o<br />
suntuoso altar da Piedade e da Ternura, eu, com<br />
supremos estremecimentos, acariciava essa alucinada<br />
cabeça, eu a levantava sobre o altar, acendia todas as<br />
prodigiosas e irisantes luzes a esse fantasma santo, que<br />
ondulava a meu lado, no soturno e solene silêncio de<br />
fim daquela sonâmbula peregrinação, como se ambos os<br />
nossos seres formassem então o centro genésico do novo<br />
Infinito da Dor!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 551<br />
ESPELHO CONTRA ESPELHO<br />
Tu, alma eleita, que trazes essa sede de Espaço,<br />
essa ansiedade de Infinito, essa doença do Desconhecido<br />
que te fascina os nervos, que vieste ao mundo para falar<br />
pelas outras bocas, para ser a voz viva de todas as vozes<br />
mortas; tu, que andas em busca de uma dor que venha<br />
ao encontro da tua; tu, que interpretas tanta queixa,<br />
tanta queixa, tanta queixa dos Corações, tanta queixa<br />
dos Espíritos, tanta queixa das Almas, tudo porque não<br />
há resposta a esta pergunta horrível: por que nos deram<br />
a Vida?! Tu, que legaste toda a delicadeza virginal do<br />
Sentimento a este Apostolado doce e amargo da Arte,<br />
bela e triste; tu, que sentes chamejar e cantar a inefável<br />
poesia que te alimenta como o óleo alimenta as lâmpadas;<br />
tu, cujo espírito é uma fonte de dons maravilhosos onde<br />
os sedentos se debruçam e bebem à farta a água mais<br />
cristalina, mais clara; tu, que tão sagradamente te<br />
revoltas, na majestade ideal das águias e dos leões, e<br />
que, na candidez, na ingenuidade casta e santa da tua<br />
alta nobreza de Arte, atinges com a ponta das asas<br />
espirituais a ponta das asas dos Anjos! Tu, ó alma<br />
aureolada de deslumbramentos brancos, Lírio estético<br />
que um luar de sonhos sensibilizou, ouve este verbo<br />
veemente, vivo, de quem procura sentir os altos segredos<br />
da Existência, perscrutar-lhe as íntimas origens fugidias.<br />
Ouve este verbo vulcanizado, convulso, cheio das<br />
grandes tempestades ideais que abalam o Sentimento<br />
do mundo. Ouve este verbo aceso, inflamado na chama<br />
do Absoluto, para ele subindo e para ele palpitando<br />
sempre. Ouve este verbo indomável vento que sopra pelas<br />
trompas do mar e que soluça pelas harpas do céu toda a<br />
grandeza de uma Ilusão, toda a majestade de uma Fé.<br />
Eu falo a ti, Alma eleita e desolada nos crepúsculos<br />
da Cisma; não falo às almas antipáticas, cruamente<br />
ardentes, acres, como terrenos crestados, muito<br />
flagrantes de sol, sem sombras consoladoras... Falo a ti,
552 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
que sentes e sabes o frio que vai pelo mundo, como as<br />
almas tiritam sem agasalho, desabrigadas, como as<br />
consciências enregelam sem amor e sem bondade na<br />
ferocidade dos brutos instintos, como a doce e nobre<br />
Humildade se encolhe e protege nos obscuros vãos de<br />
uma porta para não morrer esmagada pelo bárbaro tacão<br />
da Prepotência, como a filáucia triunfa e como a Grande<br />
Virtude de todos os tempos está cega e pede esmola<br />
envolta em duros frangalhos! Tu, Genial, que tens<br />
suspiros, que tens ânsias, que tens lágrimas para esta<br />
Comédia fúnebre, mas dolorosa, em que vai o mundo;<br />
tu, singular e lívido demônio que te fizeste monge, que<br />
tens a tua ironia santa que diviniza e nirvaniza, o teu<br />
rebelado sarcasmo em brasas, toda tua mordacidade<br />
inclemente para essas tristes cousas terrenas, não podes<br />
ver sem abalo, sem comoção profunda, almas de mocidade<br />
já sem dedicação intensa, sem energias claras, sem<br />
entusiasmo absoluto. Não desse entusiasmo oficial,<br />
coletivo, das massas – mas esse entusiasmo propulsor<br />
das células, esse entusiasmo dúctil, voluptuoso, nervoso,<br />
que vem da extrema sensibilidade; esse entusiasmo que<br />
é tônico, que é éter puro, que é oxigênio matinal, que é<br />
essência criadora, que é chama fecunda e asa branca<br />
no genuíno espírito; esse entusiasmo que é força altiva,<br />
que é dignidade serena, que é emoção original e casta,<br />
que infiltra azul e sol nas veias, acende aurora e vibra<br />
cânticos no sangue.<br />
Há de doer-te fundo esse desolamento, essa morte<br />
das almas, essa aridez, essa petrificação de sentimentos<br />
em tudo. Há de doer-te muito que os impotentes se liguem<br />
aos impotentes, os nulos aos nulos, os frouxos aos frouxos,<br />
os esgotados aos esgotados. Que nada os separe, nada<br />
os afaste. Que quanto mais se reconheçam tartufos mais<br />
se unam no intuito e no instinto de se conservarem<br />
inatacáveis, embora, mesmo, no fundo, e fatalmente, se<br />
destruam, se odeiem, achando um incômodo a existência<br />
dos outros. Há de doer-te muito que uma envenenada
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 553<br />
relação secreta os una, os congregue, os irmane, para<br />
juntos darem batalha subterrânea, cavilosa e vilã, aos<br />
que trazem a clara força tranqüila de um alto Desígnio,<br />
como armadura de astros, no peito.<br />
Há de afligir-te muito que na hora da mais<br />
profunda, da infinita Desolação, até os mais íntimos te<br />
abandonem, desapareçam, como que tocados pela idéia<br />
de que os teus extremos fatalismos são inconvenientes<br />
e contagiosos!<br />
Há de fazer brotar em ti a luminosa flor da ironia,<br />
o aspecto ousado do Asinino, que quer a todo o transe<br />
medir-se contigo, pôr-se no mesmo paralelo, porque vê<br />
tanto como tu, sente tanto como tu, sonha e é tão legítimo<br />
ser como tu!! Se tu lhe dizes versos, ele diz-te versos;<br />
se tu lhe dizes prosa, ele diz-te prosa, opondo a natureza<br />
dele a tudo, atropelando as cousas, atrabiliariamente,<br />
acertando, às vezes, por acaso, por assimilação fácil,<br />
por percepção de simples arguto, mas não trazendo os<br />
fundamentos de sangue e de sonho, esse longínquo<br />
infinito de origem, essa harmonia interior e essa beleza<br />
heróica tão pouco perceptível e penetrável.<br />
Sentirás no Asinino a pressa de comunicar<br />
primeiro que ninguém idéias que já Alguém pôs em<br />
circulação no tempo, nas correntes do ar; idéias que já<br />
foram acariciadas por outro com delicadeza mais<br />
particular, com veemência mais extrema, com intuição<br />
mais clara, com amor mais eloqüente, com entendimento<br />
mais recôndito. Sentirás no Asinino a natureza<br />
essencialmente auditiva, que ouve e torna-se o eco fácil,<br />
ingênuo, irresponsável, mas errado, mas corrompido,<br />
impuro já, da Grande Voz poderosa, honesta e pura que<br />
ouviu, porém que ouviu mal, sem a plasticidade<br />
necessária para receber, no seu primitivo apuramento<br />
imaculado, todas as complexas e infinitas vibrações,<br />
nuances e modalidades dessa Grande Voz.<br />
Sentirás no Asinino a intenção capciosa de ser o<br />
teu refletor, de cruzar nos teus os seus raios, de produzir
554 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
os mesmos reflexos, de apresentar as mesmas faces<br />
iluminantes, as mesmas irradiações e golpes de luz, as<br />
facetas do mesmo cristal e o fundo do mesmo aço.<br />
Sentirás no Asinino a revelação da tua revelação,<br />
o despertar do teu despertar, a sugestão da tua sugestão<br />
– mas isso truncado, hipertrofiado, inteiramente desviado<br />
dos eixos centrais do teu Objetivo, sem a unidade inicial<br />
dos órgãos ingênitos que propulsionaram e deram a<br />
integração final às linhas gerais da sensibilidade do teu<br />
ser, à zona compacta e luminosa do foco supremo das<br />
tuas Intuições.<br />
Sentirás no Asinino a imitação do teu Silêncio, a<br />
imitação da tua Sombra – sombra e silêncio d’espelho,<br />
sombra e silêncio refletidos do teu silêncio e da tua<br />
sombra, sombra e silêncio reproduzidos d’espelho contra<br />
espelho.<br />
Não poderás projetar o teu vulto num lago que o<br />
Asinino não projete também o seu vulto no mesmo lago;<br />
não poderás aquarelar o teu perfil num luar que o Asinino<br />
não aquarele também o seu perfil no mesmo luar.<br />
Se a tua Imaginação é virgem, reverdece agora<br />
nos luminosos pomares da Fantasia, a Imaginação do<br />
Asinino também é virgem e reverdece agora nos mesmos<br />
luminosos pomares. Não podes vir da raiz viva e violenta<br />
de uma sensação, da agudeza de uma Causa, da livre<br />
enunciação de um fenômeno, porque o Asinino também<br />
vem de lá, também de lá procede, também de lá se<br />
origina. Não há originalidades subjetivas, clama o Asinino,<br />
não há o puro sentir, o novo sentir, o excepcional sentir!<br />
Tudo já passou depurado pelo meu organismo, que é o<br />
crisol das purificações, clama o Asinino.<br />
Vida do eu visual, do eu olfativo, do eu mental, do<br />
eu sensível, faz vida original, faz vida de temperamento,<br />
portanto, vida ingenitamente particular e nova, dirás tu<br />
na perfectibilidade da tua visão.<br />
Mas o Asinino, que é a Rotina secular, que é a<br />
Regra universal, argumenta com pedras em vez de
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 555<br />
argumentar com sentimentos, com emotividades, com<br />
dutilidades e mistérios de alma.<br />
Nuances novas de alma, caminhos não explorados<br />
no mundo do Pensamento, certos segredos e<br />
transfigurações, rumos inéditos, paragens de uma<br />
inaudita melancolia, tudo é paralelamente julgado pelo<br />
Asinino, que logo estabelece para as relações de cada<br />
caso especial a mesma esfera de ação de múltiplos casos<br />
diversos.<br />
Sempre sol contra sol, sempre sombra contra<br />
sombra, sempre espelho contra espelho.<br />
Sempre este espelho – Homero, contra este<br />
espelho – Virgílio. Sempre este espelho – Shakespeare,<br />
contra este espelho – Balzac, ou contra este espelho –<br />
Dante, ou contra este espelho – Hugo. Sempre este<br />
espelho – Flaubert, contra este espelho – Zola, ou contra<br />
este espelho – Goncourt. Sempre este espelho –<br />
Baudelaire, contra este espelho – Poe, contra este<br />
espelho – Villiers e contra este espelho – Verlaine.<br />
Sempre este espelho – Ibsen, contra este espelho –<br />
Maeterlinck.<br />
Sempre, eternamente estes espelhos impolutos e<br />
astrais que reproduzem a perfectibilidade de sentimentos<br />
nas gerações, paralelamente igualados, medidos e<br />
pesados pelo Asinino, que os equipara, confundindo- lhes<br />
a delicadeza e fulguração dos cristais.<br />
Sempre um Sentimento contra outro Sentimento,<br />
como se pudesse haver uma alma com a cor e a<br />
sonoridade de outra alma!<br />
E tu, na impaciência, na inquietação do teu vôo<br />
astral para as serenas Esferas, buscarás libertar-te,<br />
desacorrentar-te dos grilhões a que essa Rotina te<br />
prendeu, a que ela te sujeitou com a responsabilidade<br />
das primitivas camadas da Inteligência, para poderes<br />
afirmar que, como os Eleitos guiados a sós pelo seu<br />
Destino, tu também vieste só, representando um<br />
fenômeno desprendido no Espaço, sem leis de correlação
556 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
no sentimento da tua Dor – uno e indivisível fenômeno<br />
no obscuro e perpétuo germinal da Natureza.<br />
Na solidão do teu Ideal ficarás como um astro<br />
singular vivendo na luz nostálgica de uma órbita<br />
imaginária, sem que a confusão dos tempos possa jamais<br />
quebrar a intensidade do teu brilho e a serenidade da<br />
tua força.<br />
O Asinino continuará lá embaixo, na turba, na<br />
multidão, no rodar das épocas, estreitamente e<br />
empiricamente a comparar, a comparar, a medir o teu<br />
Infinito pelo infinito da sua miopia secular, lá embaixo,<br />
na turba, na multidão. Tu, além, lá em cima, superpondote<br />
aos mundos, rolarás, transbordarás, na augusta<br />
perpetuidade do Sentimento.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 557<br />
ABRINDO FÉRETROS<br />
Agora, que deixei para lá, na plebéia rua, a filáucia<br />
e a mordacidadezinha do inqualificável cretino; agora,<br />
que consigo sacudir-me à vontade da poeira da frivolidade<br />
dos caminhos; que já estou, afinal, longe dos<br />
perturbadores, vampíricos contactos execrandos, posso,<br />
talvez, fechando-me nos meus secretos isolamentos, nas<br />
minhas solenes abstrações, concentrando-me, afinal,<br />
penetrar serenamente no Além, debruçar-me<br />
transfigurado no Mistério.<br />
Sinto mesmo que o Mistério chama-me, ele<br />
chama-me, atravessa-me com os seus sutis e poderosos<br />
filtros.<br />
Dilui-se na atmosfera do meu ser uma luz doce,<br />
dolente, meiga tristeza de leves nuanças violáceas que<br />
deve ser melancolia...<br />
Acendem-se e ficam crepitando, ardendo, todos<br />
os altos círios sagrados da velada capela da minh’alma,<br />
onde o meu passado e morto Amor, como o Santíssimo<br />
Sacramento, está exposto.<br />
Lâmpada por lâmpada vai também se acendendo<br />
o langue, untuoso luar das lâmpadas, como nas azuladas<br />
e cintilantes arcarias da Via-Láctea estrela por estrela.<br />
E, neste tom do Angelus da minh’alma, nesta<br />
surdina vesperal, começam as litanias vagas, as preces<br />
desoladas por Aparições que só a vara mágica da contrita<br />
saudade e da espiritualidade pura sabe fazer<br />
desencantar e ressurgir, nimbadas de transfulgentes<br />
lágrimas e luzes...<br />
Sinto-me afinado por uma música de luar e lírios,<br />
por uma eterificação de beijos celestes.<br />
E, a meu pesar, sai da minha boca, como de uma<br />
cova do esquecimento, este doloroso, ansioso clamor:<br />
– Ó mármore impenetrável do Sepulcro! palpita!<br />
canta! abre-te em veias! E que por essas veias corra e<br />
estue a caudal infinita do sangue leonino e virgem das
558 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
grandes forças criadoras da Beleza! Ó mármore<br />
misérrimo! ó matéria missérrima! Escuta-me, ouve-me,<br />
sente-me! Sensibiliza-te, espiritualiza-te, vibratibilizate...<br />
PRIMEIRO FÉRETRO – ANA<br />
Alma de colegial que se fizesse, de repente, irmã<br />
de caridade. Ah! essa era, com efeito, irmã da minha<br />
vida e tinha caridade de mim. Fazia meditar num destes<br />
seres obscuros que morrem sem nunca ninguém lhes<br />
penetrar o segredo.<br />
Ela mesmo morreu como uma tarde elísea<br />
vagueada de pássaros: – no outono da castidade, intacta<br />
natureza que o Nada devorou sem piedade, reclusa e<br />
triste, só, no ascetério da sua fé, penitente da carne,<br />
monja sem mancha.<br />
Parece-me ainda vê-la no féretro, a fronte lívida,<br />
que os longos e meigos, fagueiros cabelos aureolavam.<br />
Era como se um cortejo de águias, em alas, a levasse<br />
pelo Azul, enquanto o seu alvo corpo em flor e gelado ia<br />
virginalmente, para sempre, dormindo...<br />
Parece-me ver no seu olhar se refletir ainda,<br />
talvez do fundo claro da Eternidade, este pensamento<br />
cândido; ó inocente alegria da Infância, graça cor-derosa<br />
e ingênua dos tempos, para onde te exilaste? Eram<br />
olhos, os seus, onde vagava a harmonia cantante dos<br />
claros rios, e a frescura dessa ingênita bondade que<br />
floresce instintivamente e espontaneamente nas almas,<br />
como as estrelas no céu, apesar das tentações malignas,<br />
das apostasias do Bem, dos sacrilégios do Amor. Olhos<br />
onde havia bizarro e cintilante alvoroço alegre de<br />
mocidade, qualquer cousa de farfalhante ruflar d’asas<br />
por entre festões de flores, sonoridades de cristais e<br />
luzes.<br />
Como, pois, aquela forma de tanta suavidade e de<br />
tanto encanto evaporou-se logo?! Como, pois, aquele ser,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 559<br />
tão oculto da terra, tão obscuro, tão humilde, zero inútil<br />
no grande algarismo do Mundo, mas tão simples e tão<br />
bom, assim desapareceu um dia, arrebatado num vento<br />
macabro, convulsivo, de morte?! Como as essências<br />
desconhecidas, os filtros esquisitos daquela triste dor<br />
nunca foram descobertos? Como os abafados soluços<br />
daquela pobre Mágoa nunca foram ouvidos?!<br />
Pois que Deus é esse que faz vigorar nos centros<br />
do rumor e da luz, como amplas e verdejantes árvores<br />
célebres, existências medíocres que pompeiam e fazem<br />
ressoar com vaidoso estrondo a sua prepotência vazia,<br />
enquanto aniquila, abate existências onde há um sonho<br />
bom de amor e de carinho! Pois que Deus é esse! Que<br />
divina misericórdia e que clemência iguais ele, cego,<br />
tão cego, semeia na terra, que todos, bons ou maus,<br />
colhem o mesmo imutável quinhão?!<br />
Que celeste ironia, acaso, dá-lhe asas satânicas,<br />
dá-lhe asas ferozes de fogo, que ele, cego, tão cego, tudo<br />
por igual incendeia e em toda a parte cospe lesto a<br />
peste?!<br />
Quando Ana morreu eu senti, tal foi o impressionativo<br />
abalo, como que uma espada varar-me, lado a<br />
lado, o coração.<br />
Eu estava num desses períodos que as<br />
reminiscências para sempre conservam, que se não<br />
apagam nunca mais no íntimo sadio das nossas fibras,<br />
das partículas mínimas do nosso sangue, da espontânea<br />
florescência casta do nosso ser. Eu estava na mocidade,<br />
na plena e na fortalecente mocidade. Desabrochavam<br />
em mim perigosas e viçosas flores de delírio juvenil. Eu<br />
aspirava o Vago, o Turbilhão das Quimeras. Palácios de<br />
fadas eram as minhas noites. Palácios de fadas eram os<br />
meus dias. Uma saúde vital dava-me aços de intrepidez,<br />
envergaduras ousadas, fantasia e força e frescura<br />
matinal de montanhês que vai galgando montanhas por<br />
alvoradas de ouro e aves.
560 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Na paisagem da minha Imaginação só havia<br />
cânticos e uma brancura purificadora envolvia as cousas<br />
na calma de leve e ingênua felicidade ridente.<br />
Ana foi para mim como uma harpa que deixou, de<br />
repente, de soar...<br />
Ela era, com efeito, a harpa delicada onde eu,<br />
adolescente e sem saber como, tirava as harmonias, os<br />
sentimentos rítmicos que guardei comigo e que agora<br />
aqui vou aos poucos difundindo.<br />
Ela era a harpa em cujas cordas sensibilizadas<br />
eu sempre adivinhei os acordes místicos e fugitivos de<br />
um segredo amargo.<br />
Aquela candidez de virgem tinha luto, aquela<br />
madrugada de mulher tinha insônias.<br />
Um meio-dia de sol, onde, por um etéreo capricho<br />
fenomenal dos astros, se entrecruzasse, transfiguradamente,<br />
o crepúsculo.<br />
Desde que Ana morreu começou a cair na<br />
minh’alma uma cinza fria de desolação, uma sombra<br />
dolente.<br />
Ela foi quem primeiro me ergueu a fronte e as<br />
mãos para os sublimes Sacrifícios. Foi ela quem primeiro<br />
me ungiu com os seus cuidados cordiais. Foi ela quem<br />
me deu a comungar a hóstia da Vida com as suas mãos<br />
de amor. Ela arejou a minh’alma, deu sol ao meu<br />
Desconhecido, deu luar de paz ao meu Sonho.<br />
Vibrações virgens de harpa inviolada para o<br />
mundo, as emoções da alma de Ana faziam meditar no<br />
mesmo vago e no mesmo encanto longínquo de regiões<br />
ainda não descobertas. Nela dir-se-ia dormir uma vida<br />
nova, que, ai! nunca despertou e afinal envelheceu no<br />
mistério daquele organismo.<br />
Delicadezas de sensibilidade que nunca<br />
transbordam no mundo, tímidas lágrimas reconcentradas<br />
que nunca enchem os oceanos!<br />
Com a morte de Ana foi se diluindo a minha<br />
sensibilidade, começou de leve, lento, a harmonia velada
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 561<br />
do meu ser, veio vindo, se difundindo e definindo a<br />
Dolência.<br />
Era um fio imperceptível da minha vida, ligado à<br />
vida dela, que se partira e que só se tornaria a reunir,<br />
talvez, mais tarde, nos reinos encantados e noturnos da<br />
Saudade, perto dos rios roxos do Esquecimento, às<br />
margens amargas da Ilusão.<br />
Ana fora uma espécie dessas crepusculares,<br />
outoniças flores nostálgicas, de desconsoladas perpétuas<br />
do celibato que as insônias aquebrantadoras e perigosas<br />
definham e crestam como mormaços venenosos.<br />
Fazia lembrar uma dessas donzelas de honor,<br />
insontes e peregrinas; seres para os quais a Dor tornase<br />
de alguma sorte um vinho selvagem e alucinante que<br />
embriaga, iluminando de certa forma, e cujas religiosas<br />
surpresas e revelações da alma estão para sempre<br />
veladas e veladas a muitas almas profanas.<br />
E lá, nos reinos encantados e noturnos da<br />
Saudade, essa, para mim veneranda e magnânima<br />
Criatura – coração, sem dúvida, inquieto, mas parecendo<br />
alheio às seduções do mundo e que, quem sabe!, falhou<br />
ao seu Destino, lá estará nos parques solitários da<br />
Melancolia, no renunciamento de tudo e na indiferença<br />
augusta e clássica, nessa doce expressão de beleza de<br />
certas estátuas antigas, envelhecidas pelo tempo e<br />
tristes, que se vêem através de grandes jardins<br />
enevoados...<br />
SEGUNDO FÉRETRO – ANTÔNIA<br />
Sombra de luto, de viuvez e de velhice. Angelus<br />
sem plangências consoladoras de campanário, sem ecos<br />
saudosos, sem elos de afeto, só, na solidão árida, no<br />
abandono sem limites de uma voz que chamasse por ela<br />
– já apagada a última luz dos faróis interiores, escura já<br />
toda aquela vasta região de velhice.
562 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Era a harpa soturna, surda, sem cordas, como as<br />
que ficam ao acaso, para ali a um canto no leilão dos<br />
tempos, sem que uma vibração ambiente as faça gemer,<br />
sem que um vento dormente as faça cantar. Vida já de<br />
vacilações e de ânsias baixinho, de certos nirvanismos<br />
curiosos e mudos – alma sem impulso, sem hora, sem<br />
desejo, apenas vácuo e vácuo infernalmente circulado<br />
de símbolos desesperadores. Sentimentos anônimos, sem<br />
consolo, mas de profunda significação genésica, e que o<br />
mundo vãmente arrasta nos seus turbilhões medonhos,<br />
no seu pó secular, no tumulto das suas venenosas<br />
seduções. Tipo que vaga, tipo que ondeia, tipo que gira<br />
sem órbitas definidas, ao acaso dos Desígnios,<br />
confundidos, amalgamado no supremo Comum, mas<br />
Existente original no fundo abismal do seu ser.<br />
Para os que sofrem a Dor do Infinito e mergulham<br />
nas profundas, longas e complexas galerias dos<br />
subterrâneos das almas, na claridade saudosa dos olhos<br />
de Antônia parecia haver a transfiguração de uma<br />
cegueira singular da alma, que andava, como as fugidias,<br />
capciosas mãos sem visão de um cego, tateando por<br />
penumbras de bruma.<br />
Naquela ignorada alucinação da vida, que círculos,<br />
quantas correntes tão opostas se cruzariam!<br />
E a efêmera velhinha, sempre obscura, verdadeira<br />
nebulosa de gemidos, despertava curiosidades histéricas,<br />
emotivas, como os signos assinaladores do arco de<br />
aliança – todas as cores, todo o cromatismo esquisito do<br />
sofrimento de um ser que vive isolado na ermida da<br />
alma, sobre os penhascos, os ásperos outeiros do mundo.<br />
Alma apoiada ao bordão da velhice, tiritando e se<br />
arrastando sob as lâminas cruas das espadas glaciais<br />
da Desolação, caminhando sem tréguas por entre ruas<br />
soturnas e confusas, ao longo de imensos muros, vestidos<br />
de limo, sob o soluçante e lacrimoso brumar eterno de<br />
uma chuva fina, muito lenta, triste, monotonamente<br />
triste...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 563<br />
Eu a via, naquela paz lutuosa dos anos, nas<br />
ingênuas manifestações da su’alma como se ela andasse,<br />
sob as provações terrestres, a purificar-se por crisóis<br />
imortalizadores, além pelos sete céus cristalinos e<br />
astrais.<br />
TERCEIRO FÉRETRO – CAROLINA<br />
Esta, Carolina, uma flor infernal de sangue e treva<br />
que a Angústia fecundou.<br />
Esta, a harpa maior, a harpa da Dor, cujas cordas<br />
são mais puras, mais admiráveis e onde mais alto e<br />
majestoso chora todo o incomparável Intangível da minha<br />
Saudade.<br />
Este féretro é um oceano rasgado de tempestades,<br />
de ventos imprecativos, anatematizadores e negros.<br />
Fluidifica-se deste féretro uma música bárbara<br />
de sensibilidade, de martírio.<br />
Aberto diante de mim, assim como eu o estou<br />
vendo aqui, que sugestões singulares me traz, que<br />
despedaçamentos me recorda, que sombrios idílios e<br />
delírios!<br />
Ah! na vida avara, como os sentimentos são avaros,<br />
como o pensamento humano é avaro para perscrutar<br />
uma existência assim!<br />
Onde estão os ascetas que se martirizaram, onde<br />
estão os apóstolos que creram, onde estão os santos que<br />
ciliciaram e que escutaram de perto, mudos, o eloqüente<br />
silêncio da Dor, para virem agora, aqui, comigo, aqui,<br />
com a minh’alma, traduzir os recônditos segredos que<br />
aí estão nesse féretro, penetrar nos ergástulos sem nome<br />
que aqui estão, nessa alma.<br />
Que purificações e que sugestivas grandezas<br />
parabólicas, que transcendentalismos das palavras de<br />
Cristo no Sermão da Montanha, ecoando impressionativo<br />
e a medo como o ulular primicial e majestoso de<br />
imaginários mundos em gestação, poderão, acaso,
564 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
interpretar esta vida deserta que subiu às mais<br />
longínquas e altas cordilheiras da Dor, exprimir os ais<br />
que a violinaram, os soluços que a transportaram ao<br />
céu, os desencontrados combates que a despedaçaram!<br />
Sim! Vazio é tudo no mundo! Os olhos acordam<br />
nesta ânsia viva de chorar e de amar! As ansiedades<br />
que em vão se escondem plangem à flor dos sentidos,<br />
diluem-se, fluidificam-se e, vagamente, aí vêm então<br />
jorrando, vêm vindo as lágrimas...<br />
Sim! Criatura dos Anjos que, no entanto, o Inferno<br />
possuiu e por fim acabou por estrangular! Coração<br />
sangrante! Ser do meu ser! Os outros seres vãos que<br />
babujam a terra com a argilosa Infâmia de que são feitos<br />
nunca poderão, nunca saberão, melancolicamente não,<br />
nunca, que hóstia sanguinolenta e travorosa deram-te<br />
a comungar na Vida, que pão tenebroso de Páscoa de<br />
lágrimas deram-te a devorar, que cálix de vinho letal,<br />
alucinante, sugado ao fel das chagas e das gangrenas<br />
propinaram-te à boca verminada pelo primeiro beijo de<br />
amor, quando tu tinhas as fomes e as sedes vorazes,<br />
cegas, desesperadas do Não-Ser, quando aspiravas às<br />
formas celestes, quando sentias, apesar da tua<br />
inocuidade de poeira mas, talvez!, poeira de algum divino<br />
astro diluído, o insaciável desejo de abranger Infinitos.<br />
QUARTO FÉRETRO – GUILHERME<br />
O que importa a Vida e o que importa a Morte,<br />
obscuro velhinho que te foste, operário humilde da terra,<br />
que levantaste as torres das igrejas e os tetos das casas,<br />
que fundaste os alicerces delas sobre pedra e areia como<br />
os teus únicos Sonhos.<br />
Deixa sinfonicamente cantar sobre ti a<br />
sacrossanta alegria branca e forte do profundo<br />
Reconhecimento que te votei na existência! Deixa correr<br />
sobre o teu virtuoso flanco de lutador, sobre as tuas<br />
mãos rudes e abençoadas, sobre os teus olhos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 565<br />
hipocondríacos de senil desterrado de Reinos ignotos,<br />
sobre o teu coração suave de cordeiro imaculado, as<br />
grandes e maravilhosas lágrimas repurificantes que<br />
nesta hora sublimizam o meu ser de uma divinização<br />
incomparável! Velho tronco robusto de onde seivas<br />
prodigiosas de Afeição porejaram sempre! A tua alma,<br />
blindada de uma honra ingênua, antiga e clássica,<br />
parecia-se reveladoramente com a natureza – alma<br />
franca e virgem, espontânea nos seus fenômenos, puro<br />
bloco inteiriço de Sentimento, de onde os cinzelários do<br />
Sonho cinzelariam com a sua estética soberana as<br />
criações imortais.<br />
A claridade e a harmonia de uma bondade<br />
primitiva davam à tua alma, não a consagração<br />
espartana unicamente, mas uma simpleza e propriedade<br />
genésica de selvas que geram o Desconhecido e o Vago<br />
da Pureza, sem contactos egoísticos do mundo. Através<br />
da tu’alma eu lia, em caracteres indeléveis, a significação<br />
eloqüente do teu fenômeno triste, do teu simpático e<br />
lhano irradiamento na Existência!<br />
Para os que têm a boa sombra, o Angelus meigo do<br />
Amor, para os que sabem venerar e perdoar do fundo<br />
dos grandes Silêncios da alma, a flor genuína da tua<br />
sensibilidade tinha esse aroma oculto e amargo que se<br />
não define – esse aroma acerbo que vem das naturezas<br />
chãs mas sempre castas, inevitavelmente sepultadas<br />
no obscuro centro fatal do seu Destino.<br />
Se aflito, se desolado, se doloroso tu foste, como<br />
que esse sentimento era alado, era etéreo, isolado como<br />
tu andavas das causas originais de tudo, no relevo de<br />
rocha viva da tua Ignorância pura, mergulhado até ao<br />
fundo no mar augusto, formidável e sem raias da crença<br />
em Deus!<br />
A tua figura paternal, que a condição ínfima das<br />
frívolas categorias sociais obumbrava profundamente na<br />
terra, tinha para mim o encanto mítico de vetusto deus<br />
dalguma ilha abandonada em regiões, longe, vivendo
566 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
resignado, paciente, sem queixas, na iluminação teatral,<br />
flagrante e acabrunhadora de modernas e autoritárias<br />
Civilizações, como o legítimo representante dos seres<br />
humanos.<br />
Minh’alma, ao cuidar em ti, a considerar nos teus<br />
dias, a interpretar a tua mudez, a ver as curiosidades e<br />
instintivos caprichos dos teus movimentos de ser,<br />
quedava-se numa espécie dessa melancolia, dessa<br />
nuance aquebrantadora, desse emovente langor de um<br />
verso verlainiano que melancoliza tanto.<br />
Eu, longe que andava, ausente do teto onde<br />
exalaste o derradeiro gemido, não te pude ver no teu<br />
belo e grave desdém tranqüilo de morto. Não pude<br />
meditar nas ironias secretas e significativas da morte<br />
às vaidades da vida. Não te fui fechar os olhos,<br />
compungidamente, com a delicadeza amorável das<br />
minhas mãos trêmulas, nem passar para eles, em fluidos<br />
ardentes, o magoado adeus dos meus olhos.<br />
Não te pude dizer, de manso, bem junto aos teus<br />
olhos e coração moribundos, com toda a volúpia da minha<br />
dor, as untuosas e extremas palavras da separação, as<br />
cousas inefáveis e gementes no dilacerante momento<br />
em que os nossos braços abandonam, para nunca mais<br />
apertar, os amados braços que já estão vencidos,<br />
entregues ao renunciamento de tudo e que nós tanto e<br />
tão acariciadamente apertamos.<br />
Mas, nada importa a Vida e nada importa a Morte!<br />
O encanto do teu ser foi obscuro; a graça do teu<br />
Bem foi toda fugitiva. Porém do seio imenso da minh’alma,<br />
do fundo oceânico de soluços de que ela é feita, tu<br />
emerges e emergirás sempre, proba e doce figura,<br />
caridoso fanal do meu passado, que enfim me iluminaste<br />
com o clarão da Bondade e me trouxeste com a tua<br />
bênção paternal de grande Humilde a Fé sacrificante e<br />
salvadora das Resignações para atingir as Esferas<br />
supremas do Absoluto.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 567<br />
Lá, no Inexorável, na perpétua Dispersão, não<br />
sentirás mais o grosso rugir da miséria humana, a mão<br />
de ferro da prepotência esmagando tua subjetividade<br />
modesta.<br />
Todas as ferocidades, todas as durezas, enfim,<br />
cessaram no fundo Silêncio negro.<br />
Rebrilharam e ressurgiram as Solenidades<br />
transfiguradoras da Saudade! Enfim, és morto, agora!<br />
Posso evocar-te de lá das sombrias e glaciais<br />
imensidades! Posso sentir-te através do enevoamento<br />
de distâncias infinitas estreladas de lágrimas! Posso<br />
rasgar pelo Azul portas de Devotamento celestial à<br />
procura da tua Imagem. Iluminar a tua funda noite de<br />
morte com a triste luz saudosa da minha vida. Tu,<br />
eternamente, participarás das formas incoercíveis...<br />
E eu irei, por este lutulento mundo, com a cabeça<br />
um tanto pendida de dolência, como que vagamente<br />
aplicando o ouvido a um ponto distante, escutando,<br />
enlevado, em arroubos íntimos, secreta música difusa e<br />
longínqua de Além, que parece chamar-me para esse<br />
rítmico Indefinido onde afinal te dispersaste e sumiste.<br />
E essa música, de atrativos sutis, letíficas seduções, de<br />
místicos e transcendentalizadores acordes, fluindo aos<br />
meus ouvidos, continuará a chamar-me, a chamar-me,<br />
misteriosamente a chamar-me...
568 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
O SONHO DO IDIOTA<br />
Je suis inconsolable de t’avoir vue. Hélas!<br />
tu es la bien-aimée! J’ai la mélancolie de<br />
toi. Je n’ai de force que vers toi.<br />
VILLIERS DE L’ISLE ADAM, Axél.<br />
Revelações de Gênesis que acorda, talvez, no<br />
cérebro daquele idiota. Revelações de gênio incubado,<br />
que o segredo de um pensamento isolou e emudeceu...<br />
Mas, contudo, o certo era que no cérebro daquele idiota<br />
rasgavam-se esferas curiosas de sensação, radiavam<br />
chamas fenomenais, línguas malditas falavam as<br />
linguagens cabalísticas, misteriosas, das paixões<br />
humanas, das complexidades psíquicas.<br />
Espécie de formidável olho de ciclope, esse cérebro<br />
deformado via em visão múltipla, de sorte que, ainda<br />
mesmo na realidade, parecia sempre estar sonhando,<br />
ainda mesmo acordado, era um sonho vivo que<br />
perambulava...<br />
Belo idiota, triste idiota, soturnizado idiota, este,<br />
em verdade, atado de pés e mãos ao cepo da sua própria<br />
existência, como anfratuoso e feroz orango preso em jaula<br />
de ferro!<br />
De que rumos obscuros e tortuosos viera ele,<br />
girando no centro infernal das agonias desconhecidas;<br />
espécie dessas almas soluçantes na Dor e das quais a<br />
Natureza, por duras e rudes experiências, faz os eternos<br />
mármores e bronzes resistentes onde afia desassombrada<br />
e confiantemente as suas espadas e as suas lanças!<br />
Quem sabe se ali não dormiria, nesse ser<br />
hediondo, a fina intuição arcangélica de um missionário<br />
celeste, para sempre irremediavelmente perdido no<br />
fundo dos grandes tédios e das grandes saudades?!<br />
* * * * * * * * * *
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 569<br />
Uma vez que ermo e hirsuto como um dromedário<br />
sonolento errava pelas ruas escuras de certa cidade<br />
sombria, o pobre idiota foi corrido por apupos, pela chacota<br />
irreverente e apedrejada e penetrou, acolhendo-se, –<br />
massa mórbida, riso amolentado, aparência monstruosa<br />
de hidrocéfalo – a larga porta aberta de um templo<br />
iluminado.<br />
Diante da multidão que murmurinhava dentro,<br />
ele estacou deslumbrado, como se de repente lhe parasse<br />
a circulação da vida, numa expressão animal tão<br />
veemente que os que o viram entrar olharam para ele<br />
surpresos, com movimentos instintivos de defesa, como<br />
diante de um perigo iminente.<br />
Ele, mudo, no entanto, mas parecendo falar consigo<br />
mesmo qualquer cousa inteligível, exprimir qualquer<br />
cousa entre grunhido e voz humana, não se apercebera<br />
desses movimentos e continuava ali, parado, a atitude<br />
dura e hostil de uma pedra humanizada, em forma de<br />
ser existente, mas sem a completação fisiológica de todos<br />
os sentidos normalizados.<br />
Um perfume celeste errava, vivo e intenso, no ar,<br />
evaporava-se lânguido das névoas brancas dos incensos...<br />
O órgão nebuloso e sensibilizante, despertando<br />
na imaginação a lembrança de uma sombria clausura<br />
de almas suspirando e gemendo em sonhos tocantes e<br />
solitárias harmonias e magoados queixumes, e ao mesmo<br />
tempo longínquo, largo, lento e velado vento onduloso e<br />
dormente graduado em sons, expirava com<br />
enternecimentos melódicos, com taciturnas lágrimas<br />
sonâmbulas, deixando no ar a pungente melancolia<br />
fugitiva de um esquecimento amargo...<br />
No recinto, agora, bizarros alvoroços passavam...<br />
Um zunzunear de turba que ondeia e que murmura. Era<br />
o vago adeus de final da festa. Abriam-se vastos e nítidos<br />
claros na multidão espessa, que se afastava, que saía...<br />
Uma agitação subia, uma pressa e confusão de retirada,<br />
como se o sopro rápido e fatal da desolação das cousas
570 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
tivesse vindo inexoravelmente apagar a chama daquela<br />
fé que ali há instantes se acendera.<br />
E aquela ondulação de corpos ia e vinha, circulava,<br />
para a direita, para a esquerda, subia e descia, para<br />
baixo, para cima, estuando, com a respiração de desabafo<br />
de um grande monstro saciado, já decrescendo,<br />
diminuindo, com oscilações fugitivas de torrente que<br />
escapa, que cede nos turbilhonamentos do curso...<br />
Arrastado pelo povo, atirado aqui e ali pela onda<br />
que decrescia cada vez mais, o idiota tinha desaparecido<br />
de repente, semelhante a um mergulhador exótico que<br />
desce aos incoercíveis abismos do mar para surpreenderlhe<br />
os segredos.<br />
Mas, daí a pouco, como a última onda da multidão<br />
se aproximasse da nave central, voltando do altar-mor<br />
onde genuflexara ante a imagem lívida e melancólica<br />
de Jesus, o idiota então novamente apareceu.<br />
Agora, porém, o seu rosto de uma dureza e aridez<br />
de deserto, parecia estar transfigurado por um<br />
sentimento de infinita doçura, que o tornava quase belo.<br />
Uma irradiação dava-lhe asas... As linhas do seu perfil<br />
tortuoso ameigavam-se, suavizavam-se, e, nos olhos<br />
sempre opacos e indiferentes, fluía um brilho inefável,<br />
uma indizível emoção, tão intensa, tão viva, que dir-seia<br />
que os olhos tinham voz, que essa voz falava, que essa<br />
fala vinha pungida de lágrimas e acariciada de beijos...<br />
Olhos cheios das úmidas fulgurações de ouro líquido<br />
dos grandes e comoventes alucinamentos, parecendo<br />
terem atravessado a luz virgem de outros mundos<br />
intactos, invioláveis a olhos profanos; olhos que<br />
continham em si as febris alegrias de gozos<br />
inimagináveis.<br />
Ele sentira, na verdade, qualquer cousa que o<br />
abalara, que o metamorfoseara assim por instantes desse<br />
modo.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 571<br />
Desvendara algum mistério, achara alguma<br />
constelação na terra, algum anjo entre os homens,<br />
alguma visão entre as mulheres! Sim!<br />
Ele a tinha visto, na sua beleza mais do céu do<br />
que da terra, loura, os cabelos finíssimos, os olhos azuis<br />
peregrinos de frescura suave, a boca deliciosa e doce,<br />
na expressão cândida, infinitamente delicada, da carícia<br />
sutil de beijos alados.<br />
Ele a tinha visto, espiritualizada por nimbos de<br />
angelitude – flor de graça e de glória, misto de<br />
madressilvas e luar, madona de seu viver mumificado,<br />
santa de lirial candidez entre todas as santas dos altares<br />
que ele estava vendo, mais bela do que todas, bendita e<br />
branca, inundada do cintilante pólen fecundativo da<br />
puberdade, vestida para o seu amor das alvas<br />
resplandecências sidéreas, pomba pulcra que não se<br />
dignava abrir e pousar as finas asas níveas e virginais<br />
sobre a necrópole vazia do seu coração de Idiota. Sim!<br />
ele agora era como um firmamento pomposo de astros: a<br />
beleza dela, que sorrira, passara e desaparecera na<br />
multidão, o tinha estrelado celestemente. Vergava, pois,<br />
ao peso de tanta e luminosa ventura, da ventura única<br />
de vê-la, de olhá-la sem pecado e sem crime nesse olhar,<br />
de senti-la de longe sem que o seu sentir a lesmasse, a<br />
manchasse com a lepra da sua miséria. Não! Ela fora<br />
embora, mas tão imaculada ou mais ainda do que nunca<br />
por aquele olhar-bênção, por aquele olhar-perdão, por<br />
aquele olhar-amor que ele lhe havia vibrado ocultamente,<br />
de longe. Nenhuma das partículas da sua<br />
desgraça sem limites a maculara, ele bem o sabia.<br />
Ela era a flor, ao mesmo tempo carnal e mística,<br />
onde dormiam sonos mornos e magnéticos os insetos<br />
miraculosos de uma volúpia secreta. E ele, ao vê-la, para<br />
ali ficara absorto, contemplativo, no êxtase misterioso<br />
de uma Sombra sonhando...<br />
Naquele instante divino todo o seu mísero ser<br />
estava também divino. Um prodígio de sensibilidade, de
572 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
um sentimento melhor, que não é deste mundo, o<br />
iluminava e bendizia.<br />
E esse sentimento que o transformava e que ele<br />
próprio desconhecia assim tão intenso e curioso na sua<br />
alma, transcendentalizava-o e dava-lhe ao obtuso<br />
idiotismo uma como que supervisão, certa regularização<br />
lúcida e nobre, fazia-o por instantes viver, reflexamente,<br />
na origem ignota de uma especial percepção mental e<br />
de uma extravagante emoção.<br />
Podiam ligar-se, pois, ele e ela, no mesmo fundo<br />
de abstratas purezas, prender-se pelas mesmas<br />
espirituais correntes, fundir-se nos mesmos emotivos<br />
espasmos... Não! ele não violaria os melindres, os<br />
escrúpulos arcangélicos daquela natureza delicada, não<br />
iria empanar os cristais impolutos das esferas azuis onde<br />
ela triunfava. Podia, pois, reentrar, pura, inviolada, nos<br />
seus sacrários de ouro, nas suas preciosas redomas,<br />
nos seus majestosos domínios e reinados de formosura,<br />
incensar-se com o seu perfume de sempre, porque nada<br />
inteiramente nela nem de leve experimentara o contacto<br />
sutil das secretas e torturantes emoções dele.<br />
Naquele grande momento a sua alma de olvidado<br />
tinha altares iluminados como esse templo, onde ele<br />
hóstias de sentimento comungava. Sim! ela se fora, ela<br />
passara, rápida e descuidada dele, mas deixando-lhe<br />
nesse curto espaço de tempo, que sintetizava toda a sua<br />
vida, mais funda e mais em chama que um abismo de<br />
sóis vulcanizados, a sangrante e convulsiva paixão que<br />
faz a febre, o delírio mortal do mundo.<br />
Entretanto, parecia-lhe que já a havia encontrado<br />
outrora, noutros orientes longínquos, noutra região de<br />
sol e de néctar, d’estrelas e açucenas, sob outra forma<br />
divina. Parecia-lhe que no país vago, azuladamente<br />
nevoento e remoto das suas reminiscências ela passara<br />
um dia, sob um fundo curioso de dolências, na delícia<br />
suprema e nunca mais gozada de sensações inolvidáveis<br />
que ele então experimentara.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 573<br />
Mas onde, já, o contacto das suas duas almas,<br />
sublimadas no Afeto, se dera na Terra? Onde se<br />
assinalara o encontro dos seus seres opostos? Que<br />
ritmos simpáticos os tocaram sensibilizantemente?<br />
Ah! que vãs Interrogações ao mesmo tempo tão<br />
inefáveis e tão terríveis!<br />
Sim! não era ela nada mais do que a encarnação<br />
palpitante da sua visão, a cristalização das suas fugitivas<br />
saudades e ilusões, que por aquela embaladora e fugitiva<br />
forma vinha dizer-lhe o melancólico, o aflitivo, o<br />
desesperado adeus para sempre. Esse ressurgimento<br />
assim inaudito se lhe afigurava ser um fio tenuíssimo,<br />
disperso, de esquecida melodia, pelo qual se vai<br />
lentamente compondo e definindo aos poucos toda uma<br />
abandonada música sugestiva... Criação imprecisa,<br />
indecisa, indecisa, e que ele como que sentia ondular,<br />
através do espírito, na beleza e na tristeza fatal da lua<br />
melancolicamente exilada no exílio dos céus!<br />
Ele radiava como uma transfigurada águia de<br />
envergaduras maravilhosas por entre um arco-íris<br />
sensacional de mistérios solenes – ele, miseranda lesma,<br />
que queria atingir, com as suas viscosas babas, o sol,<br />
purificar-se, perfectibilizar-se no sol!<br />
A sua alma de noite paludosa, de caverna sem<br />
eco de vida afetiva, parecia agora feita de um azul meigo<br />
e crepuscular de firmamento osculado de luar,<br />
acordando numa opulenta e prodigiosa floração de pomos<br />
pomposos, de pasmos sensibilizantes...<br />
Aquele organismo feio, nauseante, asqueroso,<br />
requintara nessa hora imprevista de deslumbramento,<br />
numa afinação rítmica de beleza estésica singularíssima,<br />
evidenciando ainda mais uma vez, assim desse<br />
modo, quanto as chamas da transcendência moral<br />
clarividenciam e transfiguram os seres, quintessenciando-lhes<br />
a forma do Sonho; que só a alma que sobe,<br />
sobe, sobe, que atinge ao céu astral de um purificado e<br />
abstrato Amor é bela...
574 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Naquela hora todo o seu ser aspirava às<br />
intangibilidades supremas.<br />
Vôos e vôos de veementes anelos secretos<br />
cruzavam-se no seu ser. Aqueles momentos incoercíveis,<br />
etéreos, refinados num gozo original, subiam, do pólo<br />
negativo da sua humilhada matéria, ao pólo augusto das<br />
imortalidades do Espírito. Sim! Ficariam intactamente<br />
imortais esses surpreendentes e transfiguradores<br />
momentos de sensibilidade sem igual! Uma luz indelével<br />
de ilusão e de sonho fazia alvorecer e vibrar para sempre<br />
as recônditas e curiosas sensações, as ocultas e raras<br />
harmonias de tão fenomenal natureza.<br />
Mas, como estivesse nestas profundas e<br />
extraordinárias conjeturas e agitações, revolto e<br />
incendido, a exemplo de um terreno onde há matérias<br />
inflamáveis, o idiota não havia reparado que a igreja<br />
estava quase vazia e que era ele uma das últimas<br />
sombras que ainda por ali se arrastavam na<br />
inconsciência dos pesadelos.<br />
Nos altares já se haviam apagado todas as velas.<br />
Apenas, num dos altares laterais, dois círios acesos,<br />
mas quase extintos, ardiam, agonizando em fogachos<br />
fumosos e sangrentos, últimos soluços da luz, como<br />
almas abandonadas que ainda penassem no final de uma<br />
dor... Em cima, no seu nicho aberto em arabescos<br />
dourados, em ornamentações caprichosas, confusas e<br />
complicadas como sonhos, uma Santa loura, linda, o<br />
manto azul constelado de estrelas de prata, coroada de<br />
um diadema de cintilantes pedrarias, imobilizava-se<br />
indiferentemente como se por acaso a visão amada do<br />
idiota se tivesse ido ali corporificar nesse mármore de<br />
Santa.<br />
Na sua pequena mão graciosa abria-se um lírio<br />
branco – florescência simbólica das castidades místicas,<br />
forma cândida e aromal de volúpias sagradas e noviças...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 575<br />
O templo, como as portas misteriosas de um<br />
desses antigos subterrâneos suntuosos de riquezas,<br />
fechara-se afinal quase que por encanto...<br />
Uma vida fantástica, místico-psíquica, ia sem<br />
dúvida se desenvolver agora na sombra, no silêncio frio,<br />
na solenidade morta, na solidão sagrada, através das<br />
vestiduras dos Santos, das luzes d’ocaso das lâmpadas,<br />
dos paramentos chamalotados, dos vitrais multicores,<br />
surgir, enfim, do enevoado esquecimento dos Ritos, como<br />
se o templo, significando e concentrando simbolicamente<br />
toda a histérica unção devota da Idade Média, naquele<br />
instante representasse o seu curioso cérebro<br />
hipercatólico, maquiavélico e fabuloso.<br />
E, ou fosse porque não o tivessem visto ou porque<br />
o julgassem inócuo dentro do templo ou por qualquer<br />
outra capciosa razão, que escapara à penetração<br />
fiscalizadora dos acólitos, o certo é que ninguém deu<br />
pela presença do idiota sob aquelas abóbadas, só,<br />
silencioso e sombrio, após estarem seguramente fechadas<br />
todas as altas, largas e pesadas portas chapeadas de<br />
ferro.<br />
Um profundo mutismo amortalhava o vasto recinto,<br />
dando à impassibilidade marmórea dos Santos uma<br />
expressão assustadora.<br />
Parecia que todos eles dormiam sonos seculares<br />
e que por milagre inconcebível iam afinal acordar<br />
coincidentemente naquele momento, mover-se nos seus<br />
nichos, descer pé ante pé dos altares e, um a um<br />
desfilando, avultando, crescendo em número, enchendo<br />
toda a amplidão do templo, surpreender o idiota e punilo<br />
para sempre da culpa de tão insólita profanação.<br />
Ele, porém, naquela solidão majestosa de onde se<br />
levantava o pavor, ia e vinha absorto num sentir<br />
extravagante, fechado no segredo tremendo da sua<br />
esquisita sensação de idiota, perdido o olhar<br />
atentamente nas Imagens mudas, a boca meio aberta,<br />
as narinas dilatadas num gozo mórbido de volúpias
576 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
histéricas, como que na absorção das últimas névoas<br />
entontecedoras dos incensórios, percorrendo altar por<br />
altar, na perambulação hipnótica de fantasma do próprio<br />
fantasma do seu Desejo, de sombra da própria sombra<br />
do seu Afeto.<br />
As altas, caladas e côncavas abóbadas, das quais<br />
parecia-lhe aos seus ouvidos alucinados do Desconhecido<br />
ouvir o profundo coro apocalíptico, reboando, ecoando de<br />
abóbada em abóbada; as grandes lâmpadas, à semelhança<br />
vaga de luas marchetadas ou de estranhas lágrimas<br />
estratificadas; todas essas magnificências de rituais que<br />
emudecem, de culto que dorme no granito e nos<br />
mármores dos seus santuários e Imagens, nas suas<br />
pratas e nos seus ouros lavrados, o magno e solene sono<br />
austero das Religiões, tudo isso incutia na<br />
impressionabilidade doentia do idiota emoções esparsas<br />
e amorfas, que não eram propriamente nem<br />
ingenitamente oriundas das idéias, mas curiosos estados<br />
de ser, enigmáticos monólogos, fenômenos nebulosos,<br />
talvez recuados ao antropomorfismo das células, à noite<br />
caótica, primitiva, da sensibilidade humana.<br />
Mas, assim perambulando de altar em altar, de<br />
nicho em nicho, o triste idiota estacou diante daquela<br />
Santa loura, linda, o manto azul constelado d’estrelas,<br />
coroada de um diadema de cintilantes pedrarias, tendo<br />
na mão um lírio branco.<br />
Estacou diante dela como que impelido por íntimo<br />
sobressalto, batido dalguma recordação impulsiva que o<br />
tornava mais estranho que nunca. Levantou bem para<br />
ela os olhos em bugalhos de delírio, de aflição sem<br />
remédio e, caindo de joelhos, prosternado, os braços<br />
invocativamente abertos, num espasmo terrível, rolou<br />
para ali todo o seu tormento medonho, toda a sua dor<br />
amordaçada, toda a sua miséria secreta, numa linguagem<br />
obtusa e confusa de demência.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 577<br />
A alma do Idiota alvorava numa aurora negra de<br />
lágrimas, abria numa grande flor glacial e lacerante de<br />
soluços.<br />
Eram soluços e grunhidos, verdadeiramente<br />
grunhidos animais e soluços humanos, que abalariam<br />
as pedras, se as pedras não fossem mortas, que abalariam<br />
os Santos, se os Santos não fossem pedra.<br />
Caído de bruços, babando, como mordido por<br />
serpentes, na impotência da Dor que encarcera e<br />
despedaça a alma, o Idiota tinha viva, de pé, em flor e<br />
em beleza diante da sua angústia, como um tentador<br />
espectro divino, a florescente aparição que ele vira ali<br />
mesmo no templo.<br />
Passava-lhe agora pela mente todo esse clarão<br />
mortificante de gozo, todo esse tantalismo de mulher<br />
que sorri uma vez, brilha e para sempre desaparece. E<br />
ele nunca mais a veria, nunca mais, nunca mais, nunca<br />
mais!<br />
Ah! que inferno nunca sonhado tinha posto ante<br />
os seus olhos inúteis e desprezados essa luz consoladora,<br />
essa luz que ele jamais sentira, tão bela e tão funesta,<br />
aparecendo na serenidade dessa manhã dentro do templo<br />
iluminado? Que força desconhecida arrancara dos limbos<br />
do mistério aquela formosura ondulante como um verme,<br />
perigosa como um veneno, para deixá-lo prostrado assim,<br />
assim de bruços rojado, impotente e impenitente,<br />
babando a baba do ciúme, talvez a baba verde da Inveja?!<br />
Sim! ciúme desesperado por vê-la de outro, por<br />
senti-la nos braços de outro, exalando a frescura matinal<br />
da sua mocidade inteira nos braços de outro, abrindo e<br />
desfolhando todas as rosas e magnólias olentes e virgens<br />
dos seus encantos para o gozo de outro! Sim! Ciúme<br />
feroz e inveja ainda mais feroz por ver-se idiota, inerme<br />
e inútil para florescer, para brilhar ao lado de outro<br />
homem são e forte que a desejasse, que a possuísse!<br />
Ah! ele tinha uma inveja sinistra de toda essa<br />
humanidade que passava equilibrada, direita, sempre
578 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
com os mesmos e retos raciocínios, pela sua presença.<br />
Em cada homem ele via um rival desapiedado,<br />
indiferente, que lhe roubaria, não somente essa aparição<br />
alvoral, mas todas as outras femininas belezas que<br />
serpenteiam no mundo.<br />
Só o silêncio, só a solidão o consolava e por isso<br />
ali estava sob a vastidão daquelas abóbadas, mísero, de<br />
rastros, suplicando, como o mais estranho e ignóbil dos<br />
mendigos, a esmola santa da morte. Só na morte ele<br />
podia libertar-se desta inveja que o acorrentava, que<br />
lhe porejava do sangue, que lhe vertia um fel verde à<br />
boca – inveja verde, nauseabundo réptil verde<br />
enroscando-se-lhe nas carnes, medonho réptil verde<br />
saindo- lhe dos olhos, asqueroso réptil verde saindo-lhe<br />
das narinas, todo o seu miserável corpo invadido por<br />
hediondos réptis verdes.<br />
E como se essa sugestão doentia e diabólica da<br />
inveja lhe tomasse logo todo o cérebro e pasmosamente<br />
lhe gerasse absurdas visões na retina, jungido à mais<br />
perseguidora e atroz obsessão, o idiota, como um<br />
monstruoso réptil verde, sentiu-se subdividido,<br />
multiplicado infinitamente em milhões e bilhões de réptis<br />
verdes de todos os aspectos e formas, longos, lentos,<br />
elásticos, subindo pelos altares, descendo pelos<br />
paramentos, viscando as vestes dos Santos, se arrastando<br />
pelas asas, pelos frisos das colunatas, pelo arco cruzeiro,<br />
tatuando de verde a pratadas lâmpadas e subindo,<br />
sempre triunfais, avassaladoras, sufocantes, numa peste<br />
verde, numa alucinação verde, até o altar-mor, sobre o<br />
cibório de ouro, sobre o cálix de ouro, sobre a cruz do<br />
Cristo de ouro, esmeraldeando maravilhosamente com<br />
bizarrismos bizantinos de formas as requintadas<br />
cinzeluras refulgentes, de níveas claridades puras e<br />
brumosas de Via-Láctea, da velada e suntuosa Capela<br />
de reverências, tabernaculal, do Santíssimo Sacramento.<br />
Era uma fantástica vegetação de réptis que tomara<br />
todo o templo, ondas e ondas de réptis que se acumulavam
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 579<br />
convulsamente, num surdo murmurinhar e sibilos de<br />
esmeraldas ondulantes. Uns, de tamanho desconforme,<br />
verdadeiras serpentes formidáveis que com as cabeças<br />
e as caudas agitadas galgavam as grandes colunas do<br />
coro, os suportes dos púlpitos, enlaçando-se-lhes no bojo,<br />
em convulsões delirantes, como se os quisessem pôr por<br />
terra. Outros, de conformações exóticas, esguios,<br />
fugidios, lânguidos, esgueirando-se como crimes,<br />
encaracolavam-se nos colos brancos das Santas à<br />
maneira de colares. Por toda a parte a invasão sinistra<br />
dos réptis verdes da inveja lesmando tudo. Por toda a<br />
parte esse pesadelo verde, brilhos, reflexos, refrações<br />
esverdeadas por toda a parte, como se aquela vastidão<br />
sagrada se abrisse toda numa floresta de lúgubres<br />
assombros.<br />
Batido, esporeado por um terror supremo,<br />
agrilhoado por todos esses réptis verdes, com os olhos<br />
transparentes do verde deslumbrados de pânico, no meio<br />
de todo aquele mar verde que o afogava, perdida quase a<br />
noção de que era humano, o idiota foi se arrastando, se<br />
arrastando até ao centro da igreja, como um sapo no<br />
fundo de um subterrâneo, agora ironicamente constelado<br />
em cheio pelo largo clarão matinal que osculava os vitrais<br />
ao alto.<br />
A sua figura vil, miseranda, parecia torcida,<br />
crispada toda em garras, se arrastando sempre, sempre,<br />
a monstruosa cabeça bamboleando – crânio de<br />
mentecapto girando dentro do templo como dentro de<br />
outro misterioso crânio. Tentou gritar. Mas os gritos,<br />
nesse horror de túmulo, morriam-lhe na garganta,<br />
sufocavam-no, como se grossas cordas o enforcassem.<br />
Apenas podia se arrastar assim, mudo, sem um só<br />
gemido! – massa inútil rojada por terra, dor humana<br />
mordendo-se, devorando-se, despedaçando-se...<br />
E ele se arrastava, se arrastava, em direção às<br />
portas, para sair, para correr, fugindo aterrorizado
580 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
daquela colossal avalanche de réptis verdes, que por<br />
toda a parte, como ele, se arrastava.<br />
Queria fugir como um homem alucinado que foge<br />
absurdamente da sua sombra num louco desespero; na<br />
agonia tremenda de um cego de nascença que se sentisse<br />
de repente preso pelas chamas de um incêndio, sozinho<br />
a tatear, a tatear num aposento fechado, aflito, gemente,<br />
terrível, sinistramente doloroso, a tatear, a tatear,<br />
sozinho, rasgando as roupas, rasgando as carnes, sem<br />
nunca conseguir libertar-se das chamas que cada vez<br />
mais o fossem devorando verminalmente.<br />
E o Idiota se arrastava, se arrastava, se<br />
arrastava... Até que, exausto, banhado em suor, batendo<br />
os dentes de frio e de febre, grunhindo de horror, numa<br />
indefinível sensação, aos arrancos, aos solavancos,<br />
chegou afinal à grande e chapeada porta central do<br />
templo, que logo, como por encanto, abriu-se às amplas<br />
cintilações do sol do meio-dia – alta e larga – de par em<br />
par...<br />
E só então foi que ele, acordando entre soluços,<br />
justamente e coincidentemente num meio-dia de sol,<br />
se apercebeu, perplexo, que tinha estado a sonhar, preso<br />
às inconseqüências reveladoras do seu Sonho de Idiota,<br />
que mesmo assim acordado, continuaria eternamente e<br />
amargamente a sonhar...
A SOMBRA<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 581<br />
Ó Dor das Origens milenárias! Divina Consagração das<br />
Lágrimas! Seio profundo e misterioso das Apoteoses<br />
negras do Gemido e do Soluço! Dor das supremas<br />
Dores! Dor da imponderável Saudade! Que tu sejas<br />
neste momento comigo e me unjas com a tua<br />
espiritualizante graça...<br />
Sim! Devia ser em sonhos, num fundo de<br />
fosforescências e neblinas, que eu vi a tua sombra, o<br />
teu vulto – certo a tua carne, o teu corpo, palpitando<br />
vida, caminhando para mim, espectral e ao mesmo tempo<br />
vivo, dessa vida que respira, que fala, que olha, que<br />
olfata, que gesticula e ondula...<br />
Sim! foi em sonhos!<br />
Não sei que estado eu experimentava em certa<br />
hora, que estado de nervos, de sensibilidade, de vibração;<br />
não sei que música dolente de melancolia, nem que<br />
amargurantes tristezas patéticas de saudade me<br />
invadiam em certa hora, que distintamente, nitidamente<br />
vi! – vi e senti que estava perto de mim aquela Sombra<br />
santa e amada que eu perdera um dia no Letes do<br />
esquecimento que a Morte cava...<br />
Não era alucinação nem pesadelo – não era<br />
alucinação: eu estava sentindo diante de mim, como se<br />
surgisse do caos da Existência, aquela Sombra muda,<br />
mas viva, que caminhava para mim resolutamente, na<br />
afirmação vital do Ser.<br />
Percorria-me um frio álgido o corpo todo, um frio<br />
de pavor, pavor de vê-la, medo de olhá-la assim, naquela<br />
imprevista ressurreição.<br />
Ah! eu a amara muito, muito, com a eloqüência<br />
profunda de um sentimento que não era talvez bem amor,<br />
mas sagração, adoração, fé religiosa, veneração e<br />
compaixão. Um sentimento que subia como incensos da<br />
minh’alma, que se exalavam ante a sua Imagem, como
582 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
num altar sagrado. Sentimento épico, quase clássico,<br />
como por mármores augustos, por antigos templos<br />
cristãos. Um sentimento de carinhosa piedade patriarca!<br />
pelos seus sacrifícios, pela sua abnegação, pelos seus<br />
afetos extremos e dedicações sem limites, pela sua<br />
lhaneza estóica, pela sua caridosa ingenuidade humana,<br />
pela sua celeste ternura e misericórdia.<br />
Mas a Sombra avultava, crescia, avultava mais,<br />
destacava da treva donde surgira, da treva do Além, das<br />
geladas névoas do sepulcral Silêncio... E das névoas,<br />
das névoas sepulcrais dos crepúsculos lôbregos, das<br />
tenebrosas argilas, vinha ela, numa transfiguração,<br />
surgindo viva: – vivas as carnes palpitantes, vivos os olhos<br />
amargurados, vivas as mãos batalhadoras, vivo e vibrante<br />
o coração majestoso de infinita bondade.<br />
Eu a vira, a princípio em linhas indecisas, vagas,<br />
o contorno apagado, esboçado apenas num meio-tom de<br />
luz esmaecida como numa pálida claridade de lua d’alta<br />
noite, quando já os aspectos fulgurantes vão esmaiando,<br />
esvaindo lentos e perdendo a graça vaporosa e velada<br />
com as primeiras cores de rosa, os primeiros diluimentos<br />
e tenuidades da madrugada...<br />
Depois, todo aquele fantasma tomava miraculosa<br />
feição singular, pouco a pouco; compunha-se todo aquele<br />
sistema de nervos, ampliavam-se aquelas formas,<br />
ganhavam as essenciais correções, a estrutura de um<br />
corpo vitalizado que age, que move-se, que sente.<br />
E a Sombra buscava-me, caminhava para mim<br />
resolutamente.<br />
Como círculos concêntricos de uma luz palejante,<br />
iam-se formando em torno dela auréolas, etéreos<br />
resplendores, nimbos diáfanos, refulgências de meteoros,<br />
vaga tonalidade violácea e amarelada, cintilas de<br />
ardentia, como que as dormentes refrações ouro-açoazuladas<br />
de um sol de eclipse...<br />
Parecia-me que ela vinha transfiguradamente<br />
irrompendo por entre discos, discos, discos e discos
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 583<br />
luminosos que se multiplicavam, que se acumulavam,<br />
num movimento de rodomoinho de sílfides aéreas<br />
vaporosamente circulando, girando em volta de lácteo<br />
clarão de leve luz nevoenta e gelada de uma lua polar...<br />
Tais cambiantes, tais miríades de cintilações<br />
iriadas afetavam-me de tal modo a retina absorta, que<br />
nova e original comoção, nova sensibilidade a tocava,<br />
como de um ritmo fino...<br />
Misticismos de êxtases, delicadezas de sensação,<br />
espasmos de ascetas enclausurados, de mártires lívidos<br />
nos cilícios da penitência, serenos na suprema Dor –<br />
circunvolviam-me de uma ideal beatitude de atenção<br />
resignada, para vê-la, para olhá-la, para reparar, trêmulo,<br />
no seu aspecto de Passado, de Esquecimento, de Túmulo,<br />
percorrendo com magoada ternura nos olhos todas as<br />
meigas curvas de sua face que eu beijara, como se o<br />
meu olhar deslumbrado tivesse tato, a apalpasse;<br />
evocando com lancinante saudade toda a angústia da<br />
sua velha e fatigada cabeça que eu tanto amara.<br />
Doía-me aquela Aparição, afligia-me aquele<br />
Ressurgimento, tão vivo na minha presença, tão tangível<br />
ali, tão flagrantemente, que eu não sei de abnegações<br />
nem de resignações humanas, só celestes, só divinas!<br />
capazes de sofrer, sem estranha convulsão d’espanto,<br />
essa realidade móvel que vinha do Desconhecido...<br />
E a Sombra buscava-me, caminhava para mim<br />
resolutamente!<br />
Uma onda forte de emoções me inebriava, me<br />
atordoava como uma dor física, fazia-me pairar num<br />
círculo dantesco de fenômenos, paralisando-me a voz, o<br />
gesto, o andar, mumificando-me à Terra.<br />
Só, dentro do meu cérebro, o pensamento girava,<br />
funcionava como em brumas muito altas, num<br />
revolvimento de germens recônditos; formavam-se<br />
mudamente idéias que não achavam a expressão<br />
eloqüente da linguagem, tão confusas e atropeladas de<br />
terror sagrado vinham elas...
584 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Mas um mistério maior desolava-me de morte,<br />
torturava-me, dava-me o suplício gelado de achar-me<br />
vivo numa sepultura: – o mistério da semelhança!<br />
Ela parecer-se comigo, ter os mesmos traços,<br />
certos estremecimentos da face, o mesmo olhar, o mesmo<br />
espesso lábio sensual, a mesma expressão nostálgica<br />
de beduíno no semblante, a mesma fugitiva melancolia<br />
– tudo, tudo isso me flagelava, eram tormentos insanos<br />
que eu sofria calado, parecendo que ela trazia em si,<br />
em impressionismos abstratos, desfeita, desaparecida,<br />
muita sensação que já fora minha, muita esperança,<br />
metade da minh’alma já morta, partículas originais de<br />
afeto, de cuidados, segredos e curiosidades íntimas,<br />
perdões e clemências que tinham ido embora para<br />
sempre com ela.<br />
Uma infinidade de sentimentos obscuros,<br />
secretos, eu via passar, ondulando, através daquela<br />
Sombra, como através de um espelho fantástico que ali<br />
estivesse milagrosamente refletindo paixões...<br />
Eu existia naquela semelhança perseguidora,<br />
naquela semelhança que parecia reproduzir imensa<br />
aluvião de fenômenos da alma que já dormiam<br />
eternamente no meu ser...<br />
Eram períodos gradativos e curiosos, a evolução<br />
lenta de organismo novo que procura adaptar-se à Vida,<br />
a intuição eloqüente dos Destinos, formando grandes e<br />
enevoadas colunas de mistério, como as hebraicas<br />
colunas de fogo...<br />
Então, eu via-me ali quase que vivendo em parte,<br />
tendo bem pouco do que tinha quando ela, de fato, vivia<br />
– via-me em parte, porque se ela na existência trouxera<br />
o meu sangue e esse sangue gelara, deixara de circular<br />
nas suas veias, certo era que bem pouco desse sangue<br />
eu trazia também agora a circular nas minhas.<br />
E sentia diante de tão flagelante semelhança uma<br />
dualidade de natureza operando em mim mesmo: – a<br />
que partia, fremente, do meu ser, que existia no meu
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 585<br />
eu e a que partia, estranha, daquela Sombra móvel... E<br />
no espírito crescia-me a obsessão de que ambas essas<br />
naturezas, pertencendo-me, se desequilibravam no<br />
entanto no plano geral de existirem unas e indivisíveis.<br />
Uma era a natureza real, a propriamente minha; outra<br />
era a natureza da Sombra, estranha. E eu debatia-me,<br />
debatia-me com ânsia para libertar-me da segunda e<br />
envolver-me todo, isolar-me, concentrar-me e subjetivarme,<br />
profunda, fundamentalmente na primeira...<br />
E eu lutava, bracejava doloridamente, bracejava,<br />
tateando numa dúvida cruciante, para sair fora daquele<br />
cárcere de angústia, para desprender-me daquela<br />
tumular Visão, para fugir daquele mirrado esqueleto a<br />
que eu estava agrilhetado e cujo impressionismo de pavor<br />
me dilacerava e queimava as carnes, me devorava como<br />
uma chaga, rasgava-me a punhaladas o coração,<br />
hipertrofiava-me, despedaçava-me os nervos...<br />
E eu abria muito os olhos, assombrado, num<br />
espanto mudo... E um silêncio negro e gelado e espessas<br />
névoas de sono pesavam no ambiente... E nos olhos<br />
passavam-me deslumbramentos cegantes, visões<br />
pulverulentas de além-sepulcro... E eu abria cada vez<br />
mais os olhos, assombrado, num espanto mudo... E eu<br />
abria cada vez mais os olhos, cada vez mais, cada vez<br />
mais... E os olhos, espasmados de terror, aflitos,<br />
perseguidos pela Sombra, parecia-me senti-los crescer,<br />
dilatarem-se, grandemente, longamente, rasgadamente<br />
abertos e fascinados pelos magnetismos letais da<br />
Sombra...<br />
Invadia-me um desejo angustioso, soluçante, um<br />
delírio mortal de gritar, de gritar alto, atroadoramente,<br />
de encher todo aquele ambiente com os meus gritos<br />
desesperados; mas, apenas meus lábios se moviam para<br />
gritar, um soluço estrangulador guilhotinava-me a voz,<br />
desarticulava-me a língua, e apenas rouco, surdo,<br />
absurdo som ininteligível, como o grunhido animal de
586 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
um mudo, rolava, arrastava, rangia áspera,<br />
pedregosamente na garganta o seu torvo tartamudismo.<br />
Parecia-me que se eu gritasse, se abalasse a<br />
atmosfera com grandes e longos brados, talvez que o<br />
Fantasma, assim arrebatado, assim repeli do, assim<br />
violentamente sacudido pelos gritos, se aterrorizasse e<br />
desaparecesse...<br />
Parecia-me que esses gritos de terror<br />
sobrepujariam, venceriam afinal o alucinante fantasma,<br />
que era o próprio terror...<br />
Mas ao mesmo tempo, temia que esses gritos, como<br />
um vento sinistro que levanta, torna mais intensas as<br />
chamas de um incêndio, despertassem, acordassem de<br />
repente com impetuosidade, com estranha veemência,<br />
a vida insana, estupenda, que eu imaginava estar<br />
nebulosamente dormindo lá dentro, lá bem no fundo<br />
misterioso desse Fantasma.<br />
E a Sombra buscava-me, caminhava para mim<br />
resolutamente!<br />
Por um fenômeno singular de visão, que os nervos<br />
superestesiavam, eu a via, ora perto, ora longe, mais<br />
longe, muito longe, quase já sumida, já apagada no fundo<br />
das cinzas da distância, vindo e se afastando, se<br />
afastando e vindo para mim...<br />
Mas que germens ocultos fecundaram de novo<br />
aquela vida, que seivas inauditas a geraram de novo,<br />
que filtros mágicos, maravilhosos, a ressuscitaram, que<br />
ela me aparece de tal forma agora, muda, muda,<br />
caminhando serenamente para mim, solene e augusta<br />
na divinal atitude, sublime, egrégia, como se fosse<br />
soberanamente julgar as almas no supremo Juízo Final!<br />
E como eu a reconhecia então – ela – a mesma<br />
que a Imaginação sonhara – Mãe! Mãe! Mãe! – três vezes<br />
bendita entre as mulheres, três vezes crucificada de<br />
Agonia!<br />
E toda a longínqua e azulada colina de um passado<br />
foi se desnevoando, desnevoando, aparecendo aos meus
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 587<br />
olhos, bíblica, povoada dos brancos e mansos rebanhos<br />
da paz, da alegria, da suavidade infantil, da adolescência<br />
ingênua, guardados pelo amor daquela Sombra – cândido<br />
pastor, simples e tranqüilo, vestido de linho alvo, guiado<br />
pela estrela simbólica, sob a demência dos Céus...<br />
E por que me viera assim surpreender essa<br />
heróica e transcendente Aparição? O que vinha ela saber<br />
de mim? O que quereria nesse extremo momento? O<br />
que buscava? A minh’alma, o meu pecado, o meu crime<br />
em viver ainda e abandoná-la no Além, só e fria,<br />
enterrada tantos torvos palmos, tão profundamente<br />
enterrada na terra lutulenta e enregelada? O que<br />
buscava ela? O que procurava em mim assim surgindo,<br />
andando sonâmbula, vagando sem rumo e rumor como<br />
sobre onda, nuvem, espuma?<br />
Mas por que me aparecia ela agora? Seria para<br />
exprobrar-me o passado? Seria, por acaso, porque não<br />
pude envolver na vida em mais delicados cuidados e<br />
recônditas carícias as suas longas dores angustiadas?!<br />
Ah! porém ela agora está morta, ela agora está morta!<br />
Se estivesse viva sentiria então que devotamentos, que<br />
consagrações, que inabaláveis, que terríveis dedicações<br />
a cercariam, defendendo-a, como couraças e lanças<br />
gloriosas de um soberbo e insólito heroísmo; como eu a<br />
estremeceria de um amor infinito, como eu lhe votaria<br />
afetos supremos, entranhados, profundos!<br />
Que segredos tremendos me vinham agora fazer<br />
essa Sombra viva, que eu sentia, que eu via, olhandome<br />
muito, em silêncio, mergulhando os seus olhos<br />
cavados nos meus olhos, estendendo – ah! horrível! – os<br />
braços longos, para mim, como para abraçar-me num<br />
abraço, por certo, gélido, num abraço, por certo,<br />
esquelético e terrível!<br />
Oh! como era lancinante, que aflição de afogado<br />
ante essa Visão que me chumbava os pés, que me punha<br />
um peso imenso de pavor na língua, um suor letal na<br />
fronte e como que lúgubres cadeias de ferro nos pulsos!
588 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Como era dolorosamente, lugubremente medonho<br />
o seu caminhar tateante, oscilante, mas que seguia<br />
resoluto para mim, perseguindo-me, atraindo-me como<br />
um demônio, fascinando-me como um filtro pecaminoso,<br />
como um vício secreto, como um mal doentio, como uma<br />
serpente magnética, como uma nevrose fatal!<br />
E a Sombra caminhava, caminhava para mim<br />
resolutamente, resolutamente, agora com o passo mais<br />
largo, alongando mais para mim o vulto hediondo...<br />
Caminhava, caminhava... E eu, pregado, estatelado ao<br />
chão, jazia inerte, hirto, petrificado, sem ação para<br />
libertar-me daquele horror... E ela perseguia-me,<br />
perseguia-me, inexorável Remorso! com o passo cada<br />
vez mais largo, alongando cada vez mais para mim o<br />
vulto hediondo, quase já ó Trevas eternas! – tocando as<br />
minhas vestes, quase, quase... Quando, eu, quebrando,<br />
partindo, despedaçando todos os ferros de algemas das<br />
tormentosas masmorras do meu Sonho, num grande<br />
grito, afinal, portanto e tão longo tempo angustiadamente<br />
sufocado, acordei de repente, esvaindo-se então a<br />
Sombra, de um sopro, retomando as letíficas, glaciais<br />
estradas do Além, de onde por instantes surgira...<br />
Apenas o meu cérebro, atordoado ainda,<br />
adormentado, abatido, ficara, como dentre restos de<br />
fumo denso, de vapores espessos do fogo de sanguinolenta<br />
batalha, turbado pela pesada bruma letárgica do pesadelo<br />
que o invadira, subjetivamente chamando este monólogo<br />
amargo:<br />
– Ah! Sim! Sim! Que estranho pavor! Que estranho<br />
pavor ter-te bem junto a mim, num contacto álgido – Tu!<br />
– que eu na Grande Hora da Vida amei já, lá para o<br />
passado dos anos! Tu, a quem eu consagrei Evangelhos<br />
de Adoração, altas venerações, sentimentos excelsos,<br />
solenes como elevadas torres de cristal tocando<br />
sideralmente as Estrelas...<br />
Tu! que produziste a dolente, a magoada Obra de<br />
sangue da minha existência e a quem eu dediquei alma,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 589<br />
afetos, ternuras, suavidades do coração, sinfonias<br />
beethovínicas do Amor, Tu! – misericordiosa! – Tu! –<br />
clemente para mim como nem os Céus o são!, Tu! – dáme<br />
o teu perdão, o teu perdão, porque eu não poderia<br />
mais receber os teus abraços, os teus beijos, o teu olhar<br />
de sepulcro, teria de repelir-te e – ó! desespero dos<br />
Esquecimentos eternos! – de repudiar até a tua Sombra,<br />
tão grande e tão fundo seria em mim o terror de sentirte<br />
perto!<br />
Não que eu desdenhasse da tua Entidade<br />
amargurada, aflitiva, tristíssima, dolorosíssima; da tua<br />
bondade suprema, compassiva e comovente; não que eu<br />
crivasse de pungentes ironias a tua obscura alma presa,<br />
arrastada pelos ergástulos das lágrimas, abalada<br />
tragicamente por soluços...<br />
Mas tu me aparecerias tão mudada, tão<br />
transfigurada por fluidos, trazendo tão prodigiosos<br />
eflúvios de outros mundos, tantos raios doutras esferas,<br />
tantas fantásticas expressões e singularidades absolutas<br />
da treva de atros, tetros báratros, que eu, frágil, que eu,<br />
matéria humana, que eu, tecido tênue de nervos, me<br />
aterrorizaria e sucumbiria de pasmo...<br />
No entanto experimento ainda uma esquisita<br />
sensação de dor de lembrança, de saudade, se te evoco,<br />
se recordo os bens assinalados que me fizeste, a Criatura<br />
ideal que foste, tão meiga de bondade, que toda a carícia<br />
da terra é hoje para mim desprezível e vã diante do mar<br />
soberano da tua espiritual Afeição.<br />
E, é só espiritualmente, só pela eterificação do<br />
Pensamento, que sinto que ardes ainda, em chama<br />
perpétua, nas majestosas lâmpadas evocativas dos<br />
sacrossantos ocasos das Recordações.<br />
Mas, se por um absurdo da Natureza me<br />
aparecesses flagrantemente, tangivelmente viva, não<br />
mais esqueleto, não mais cadáver inteiriçado – seria<br />
tamanho o abalo, a convulsão do meu ser, tão intensos<br />
delírios e vertigens, tantas ondas de estremecimento
590 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
me agitariam, tão latentes se riam as transfigurações,<br />
as metamorfoses dos meus sentidos, repudiando-te<br />
aterrorizado nesse momento – que até tu mesma, que<br />
foste Mãe piedosa, Mãe clemente, Mãe misericordiosa,<br />
desconhecerias teu filho e talvez então o amaldiçoasses,<br />
blasfemando; talvez lhe arremessasses à face Anátemas<br />
como pedras, desoladamente chorando e soluçando para<br />
sempre por tanto e tão doloroso desamparo e<br />
esquecimento eterno!...
NIRVANISMOS<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 591<br />
Há loucuras que, como as noites polares, se<br />
transformam em verdadeiras auroras boreais<br />
reveladoras da mais perfeita lucidez e são a ponte<br />
mágica de cristal e azul sobre a qual emigramos do<br />
gólfão infernal da Terra para as alvoradas de ouro de<br />
um Ideal.<br />
Madrugada verde, madrugada de esmeraldas<br />
liquefeitas que cintilavam na folhagem tenra, foi essa<br />
em que Araldo se fez de marcha, florestas densas a<br />
dentro, através da frescura e da virgindade lirial da luz<br />
que ondulava...<br />
Já todo o extremo limite do mar, no horizonte<br />
longe, acendia, rebrilhava, num polimento de cristal<br />
sonoro e a última estrela tardia, terna e doce, vagava,<br />
peregrinalmente vagava na Boêmia celeste, extinta já<br />
no esplendor verde da madrugada subindo, a intensidade<br />
viva da sua chama branca das cândidas vigílias<br />
esponsalícias dos astros.<br />
Pairava no ar um anseio voluptuoso de despertar,<br />
um espreguiçamento, de braços lânguidos, uma revelação<br />
genésica, o nebuloso sentimento da renascença da terra,<br />
sempre casta e fecundadora, sonhando e gerando as<br />
perpetuidades da Vida.<br />
A hora da transição, da ansiedade do claro-escuro<br />
surdinava no ar, bandolinava no céu as derradeiras e<br />
saudosas serenatas...<br />
Um calafrio luminoso alvoroçava tudo. Começavam<br />
delicadamente, harmoniosamente a vibrar leves baladas<br />
de auras que vinham picadas do sargaçoso mar salgado,<br />
dos bafejos aromados das plantas e das resinas.<br />
Pelo horizonte subia o êxtase claro da luz difundida<br />
aos poucos e gorjeios e cânticos e rumores e alacridades<br />
e murmúrios de águas que acordavam cantando, e<br />
alaridos e zumbir de insetos, e estrépitos e palpitações,
592 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
e vozes estranhas e vôos e cicios e ecos e clamores<br />
longínquos, e frêmitos e beijos e risos e canções e formas<br />
confusas, e vertigens e movimentos, tudo acordava em<br />
ondas, burburinhantemente, turbilhonantemente.<br />
Clareava, clareava; e a claridade meiga, suave,<br />
que aveludava tudo, parecia cheirar a magnólias<br />
desabrochadas ao luar.<br />
Através das florestas, por onde Araldo errava<br />
foragido, a alma jungida aos remorsos, fugindo à<br />
condenação dos homens, levantavam-se, tremendas e<br />
tumultuosas, grandes árvores seculares, sombras e<br />
espectros verdes ramalhando as largas copas agitadas<br />
de sonhos.<br />
Eram florestas imensas, desconhecidas e<br />
imensas, por onde nunca o olhar humano vagara,<br />
inacessíveis a outros seres, mas onde Araldo sonhou,<br />
ansioso, achar de repente um abrigo eterno, profundo,<br />
que ninguém poderia devassar jamais!<br />
E tinham suntuosidades e orquestrações de órgãos<br />
monstruosos de catedrais festivas, gemendo e<br />
murmurando, plangendo, suspirando graves litanias,<br />
cânticos aclamatórios de grande unção coral<br />
magnificente, suprema.<br />
Troncos senis e formidandos, como Prometeus<br />
petrificados, expunham as suas corpulências primitivas,<br />
lembrando aspirações antigas, velhos desejos fatigados<br />
que ali houvessem para sempre tomado a compostura<br />
indiferente das múmias.<br />
Quem teria guiado Araldo por esses ínvios<br />
caminhos? Quem lhe teria, Desespero, Tédio ou<br />
Saudade, ensinado o abrigo, a solidão, o obscuro repouso<br />
dessas florestas invioladas?!<br />
Ele queria fugir à Vida, fugir, fugir sempre,<br />
esconder-se da face do mundo, habitar numa furna como<br />
selvagem, viver nas florestas como os lobos, errar nos<br />
desertos como os párias.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 593<br />
Fugir para longe dos execrandos contactos dos<br />
homens, da medonha estagnação dos seus sentimentos,<br />
da descarnada nudez dos seus egoísmos ferozes.<br />
Errar sozinho, sozinho, sombrio visionário<br />
peregrino de suprema Aspiração nova, vulto messiânico,<br />
talvez um desses graves missionários cujas vidas<br />
sacrificadas por uma idéia rasgam-se nos espinhos dos<br />
ermos, despedaçam-se nas hostilidades ambientes,<br />
martirizam-se crucificadas nas monstruosas cruzes<br />
negras dos calvários tantálicos do Tédio...<br />
Ah! a solidão, o deserto, o deserto!<br />
Que belo e que majestoso o deserto, frio e só, só<br />
com a lua, só com o sol, só com as estrelas, caminhando<br />
sobre as infinitas areias desoladoras, sentindo chorar<br />
no peito, como negra água presa e triste,<br />
melancolicamente cismadora, a que despedaçaram as<br />
asas sem piedade, o grande sentimento de uma<br />
esperança para sempre extinta.<br />
Esconder, esconder a chaga da Vida para bem<br />
longe, fugir para além deste mundo, para o imponderável<br />
Ideal, errar nos sonambulismos da treva e nos<br />
sonambulismos da luz – sombra informe batida das<br />
rebeliões da terra, arrastada pelas tebaidas de uma<br />
enorme saudade e enchendo dela todo o tempo, todo o<br />
vácuo desse existir peregrino, desse existir lacerado de<br />
impaciências, de febres, de ansiedades, de desejos<br />
embrionários cuja primeira flor vermelha e de ouro outras<br />
mãos sacrilegamente colheram.<br />
Invadido pela força poderosa de uma paixão<br />
aterradora, talvez de uma sensibilidade extra-humana,<br />
Araldo queria esconder em seios inteiramente intactos<br />
de florestas desconhecidas, em regiões nunca vistas, o<br />
horror da sua culpa em muito ter amado e em muito ter<br />
iludido o coração e os olhos. Verdadeiramente açoitado<br />
pela peste, pela lepra sinistra do ódio e do desprezo<br />
humano, como um animal acuado, ele espiritualizara<br />
mais e mais a sua natureza, requintara o seu sentir,
594 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
quintessenciara os seus nervos e, no sensibilizante<br />
misticismo de um Santo, mergulhou no mistério, pairou<br />
no maravilhoso, vagueou no Sonho, eterificando-se,<br />
diluindo-se em lágrimas, em gemidos abafados, quase<br />
perdendo todas as qualidades ingênitas que o prendiam<br />
fatalmente à Matéria.<br />
E Araldo é agora o Espectro, a Sombra, o Fantasma<br />
de si mesmo, que vê rodar, eternamente rodar diante<br />
dos olhos, num espasmo de alucinado, o tropel de Visões<br />
da alma gemente, das suas desesperadas Saudades. Vê<br />
rodar, eternamente rodar os inquisidores círculos<br />
múltiplos, trágicos, onde as suas excelsas Esperanças<br />
lentamente, monotonamente nasceram e morreram.<br />
Já, clara e quente nos horizontes, a luz subira de<br />
todo, intensa, larga – mar de ouro, mar de ouro e<br />
pedrarias prodigiosas, auréolas de íris, sangue, azul e<br />
leite derramado abundantemente, vinhos preciosos de<br />
astros escorrendo das domas celestes.<br />
E Araldo, na sua peregrinação constante pelas<br />
florestas, caminhava...<br />
Lívido, a cabeça num bamboleio de fadiga, com os<br />
cabelos em patético desalinho, como a cabeça de um<br />
enforcado, os olhos transpassados de um tormento mudo,<br />
a boca seca, áspera, retorcida por um momo lúgubre, o<br />
seu perfil dolorosamente esquecido tinha uma doçura<br />
triste, uma carícia dolente, uma taciturnidade tão funda,<br />
uma angústia tão cruel, uma aflição tão desamparada,<br />
que parecia álgido cadáver que procurava para único<br />
descanso o túmulo que até mesmo na morte lhe era<br />
vedado; ou então um louco que por alguma sugestão<br />
hipnótica, por algum pressentimento estranho que os<br />
altos Signos assinalam, corresse a ver, despenhado e<br />
incerto, os funerais de sua mãe...<br />
E Araldo, nessa peregrinação pelas florestas,<br />
caminhava, caminhava.<br />
O sol leonino e guerreiro fazia fuzilar d’alto as<br />
suas couraças d’aço, de cristal e prata e desses
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 595<br />
coruscantes troféus d’armas facetadas viva marchetaria<br />
de raios e de centelhas cravejava as florestas por onde<br />
Araldo seguia vestido do manto miraculoso das pompas<br />
consteladas.<br />
Ah! que transitório, que efêmero nababo ia ele, e<br />
que mendigo, que miserando eterno!<br />
Mas, que florestas eram essas que Araldo rompia<br />
sempre e a quanto tempo ele as rompia?<br />
Moço, forte, a cabeça ainda chamejante das<br />
Quimeras, todos, com pasmo, o viram partir um dia,<br />
desaparecer bruscamente de todos, ocultar-se num<br />
esquisito Segredo de viver, cujos fabulosos perigos e<br />
originais deslumbramentos ninguém perscrutou jamais!<br />
* * * * * * * * * *<br />
Ele era da eterna Raça maldita dos gloriosos<br />
Tristes, dos gloriosos Grandes e vinha de um fundo muito<br />
carregado de Meditações e de Cismas, de sede de Sonho,<br />
como do centro misterioso e flamejante de um Sistema<br />
planetário.<br />
A terra parecera-lhe sempre um formidável buraco<br />
onde os homens se arrastavam com as cabeças vazias,<br />
mas com os ventres cheios.<br />
A mulher parecera-lhe sempre a perfídia, a traição<br />
mordente, verminal de lago, com negras asas sutis de<br />
tentação fatal e com carícias de fel.<br />
Assim, sem objetivo entre os homens, sem laços<br />
terrestres e sem amor, como que ia deixando finar-se,<br />
apodrecer a matéria, para só ressurgir e vitalizar a flor<br />
melindrosa e virgem das quintessências da<br />
Espiritualidade.<br />
Lembrava um ser que quisesse absurdamente<br />
transpor as barreiras inevitáveis da Vida sem estar sob<br />
as diretas influências e as correntes impulsionantes e<br />
fatais da matéria.
596 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Perdido, emaranhado por obscuras e confusas<br />
psicologias, de síntese em síntese, de generalização em<br />
generalização, operando-se em todas as suas faculdades<br />
criadoras, imaginativas, em todas as complexidades do<br />
seu ser mental, uma profunda, radical Transformação,<br />
como esses abaladores terremotos que agitam e<br />
convulsionam o frágil organismo do mundo, Araldo foi<br />
pouco a pouco rasgando horizontes desconhecidos,<br />
atingindo pólos raros e mágicos, subindo a<br />
Transcendentalismos invisíveis, imperceptíveis,<br />
desprendendo-se cada vez mais da velha Causa tangível,<br />
despindo-se do Real, fugindo do seu raio biológico de<br />
ação comum, entregando-se completamente ao<br />
Isolamento, à Abstração absoluta, até que afinal, um<br />
dia, em virtude das próprias Regiões quase extrahumanas<br />
a que ascendera, penetrou, transfigurado, em<br />
outras delirantes e nebulosas Regiões!<br />
* * * * * * * * * *<br />
Tempos passaram, muito anos, talvez um século<br />
e ei-lo que aí segue ainda, velho já, as pernas bambas,<br />
bambas, trôpego velhinho que o Silêncio e o Passado<br />
santificam e envolvem com o seus longos véus noturnos...<br />
Que florestas eram essas, com animais piores que<br />
os lobos, piores que os tigres, piores que as serpentes,<br />
piores que os homens? Não eram, de certo, em região<br />
nenhuma da terra, nem do céu, nem do inferno. Onde<br />
eram, então, essas florestas? Onde eram?<br />
Mas Araldo, na sua peregrinação constante,<br />
caminhava, caminhava, caminhava, como que arrebatado<br />
por um vento acre de Imaginação.<br />
O sol, que se tornara intenso, flamejava cada vez<br />
mais, ardia-lhe cruamente na face em chicotadas de<br />
fogo, fervia, chiava-lhe na pele, abria-lhe a pele em<br />
equimoses vermelhas, chagava-o com as suas tenazes<br />
em brasa e ele rasgava-o com os pés nos cardos bravos,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 597<br />
ensangüentava nos tentáculos hostis das ramagens<br />
intrincadas, da multiplicidade maravilhosa de vegetações<br />
extravagantes, multiformes, confusas, de exuberâncias<br />
fenomenais de folhagens inauditas, dentre as apoteoses<br />
viridentes de todas aquelas seivas, das possanças de<br />
todos aqueles germens, das impolutas manifestações de<br />
todas aquelas vidas vegetativas, sentindo uivar, bramir,<br />
rugir feras terríveis que lhe parecia virem de dentro de<br />
si próprio, sempre caminhando, caminhando pelas<br />
florestas como um deus singular ou um índio<br />
magnetizador e feiticeiro que, sob a ação de filtros<br />
mágicos, anulasse todo o poder dos animais selvagens,<br />
que se abatiam tímidos ante o horror doloroso do seu<br />
Espectro peregrinante e como que sobre-humano.<br />
E as florestas se reproduziam infindavelmente,<br />
cheias de um pavor majestoso, de fenômenos que as<br />
fecundavam e circulavam por todas elas como estupendas<br />
criações feéricas.<br />
E ele rompia florestas, florestas, florestas,<br />
caminhando como um pesadelo, numa onda surda de<br />
ansiedades que não lhe arrancavam, no entanto, nem<br />
um grito, nem um ai agoniado, nem um soluço abafado –<br />
mas que o transfiguravam, que o tornavam lívido, mais<br />
lívido, muito lívido e as pernas mais bambas e os braços<br />
mais desolados e o olhar mais perdido, mais errante,<br />
mais perdido...<br />
E a hora desse dia era infinita, uma hora que não<br />
acabava mais, por um sol que abrasava cada vez mais,<br />
incendiava as florestas e parecia não findar nunca! Um<br />
dia cruel, interminável, de um sol duro e bruto, pregado<br />
impassível no firmamento, que parecia não ter jamais o<br />
oásis repousante de um ocaso. Um dia de hora acesa no<br />
espaço, como num relógio imutável. Um dia de século,<br />
um dia que ele sentia penetrar, abranger a eternidade,<br />
à proporção que ia envelhecendo mais, que lhe cresciam<br />
barbas mais longas, rugas mais imponderáveis, tremuras
598 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
mais senis, mais pavorosos arrepios, apesar da cáustica<br />
flamejação do sol.<br />
Envelhecia mais, gradualmente, com as árvores,<br />
com as florestas, que se cobriam também<br />
surpreendentemente de um nevoeiro branco como de<br />
cabeleiras de velhice...<br />
Envelhecia, envelhecia e as florestas envelheciam<br />
juntas com ele, numa fraternidade piedosa de<br />
acompanhá-lo na mesma suprema e insana desolação,<br />
na mesma alucinação da Vida.<br />
E ele caminhava, caminhava, tão velho como as<br />
Idades, no seu constante peregrinar....<br />
Para que novo e intacto Inferno caminhava então<br />
ele assim?!<br />
Mas, de repente, eis que as florestas recuam, se<br />
apagam, vão desaparecendo aos poucos como por<br />
encanto; o assombroso esplendor verde das árvores<br />
some-se no longínquo horizonte, como névoas que se<br />
desfazem, começam, então, de repente, a surgir areais,<br />
areais de desertos inóspitos, areais infindáveis, areais<br />
que sucessivamente se reproduzem, longos, muito longos<br />
e alvejantes, lá, para além das distâncias que a retina<br />
não pode abranger nem descortinar...<br />
E Araldo começa de novo a mergulhar noutra<br />
ansiedade, a engolfar os pés nos fofos areais fugidios<br />
que como que recuam a cada passo que ele vai dando.<br />
E os areais se prolongam, numa intraduzível<br />
tristeza de vastidão, surdos e estéreis, com as suas ondas<br />
brancas de pó acumuladas solitariamente.<br />
Vencido pelo tempo, vilipendiado, Araldo vai<br />
mergulhando nas surdas areias torvas. Mas, a cada passo<br />
que ele dá para adiante, a onda de areia, fofa, frouxa, o<br />
arrasta mais para trás; cada investida que ele dá para a<br />
frente parece uma investida falsa, vã, inútil, porque os<br />
seus pés, pesados e adormentados pela marcha perpétua<br />
paralisam completamente quando em mais fofa, mole<br />
vaga de areia ansiosamente mergulham.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 599<br />
Em certas zonas, em certas regiões, a vastidão<br />
plana dos areais se modifica, dá-se uma transmutação<br />
súbita; e elevações de colinas, cômoros altos, de<br />
protuberâncias piramidais de catafalcos ostentam-se<br />
ameaçadores diante do escarnecido pária, que galga por<br />
eles acima, vai subindo, subindo, lá enterrando<br />
inquietamente os pés nos lassos areais, descendo após<br />
às ampliações planas, galgando novamente os catafalcos<br />
de pó, subindo, descendo, descendo, subindo, às vezes<br />
abalado pela impressão de ir suspenso no ar, com as<br />
mãos, trêmulas e tísicas, lesmadas por um frio tumular<br />
de medo, tateando, oscilando no espaço como duas asas<br />
hirtas e a envelhecida e espectral cabeça<br />
martirizantemente nimbada pelo sol.<br />
E, à proporção que ele caminha mais para a frente,<br />
os horizontes se ampliam e afastam para longe como se<br />
obedecessem a um movimento gradual e curioso da<br />
elasticidade nos corpos...<br />
E Araldo segue, assombroso, sinistro, através da<br />
amplidão e da solidão dos areais mortos, como a Epopéia<br />
simbólica das sensações!<br />
Súbito uma legião de fantásticas aves colossais,<br />
formidáveis, de corpulência humana abateu-se sobre ele,<br />
precipitou-se, num vôo incisivo, como se acaso ali mesmo<br />
o fossem devorar inclementemente.<br />
Mas, talvez por tê-lo reconhecido, por senti-lo irmão<br />
naquelas agonias supremas, como eram também elas,<br />
aves simbolizantes do Sentimento e do Vago, da Piedade<br />
e do Consolo, deslizaram suavemente sobre Araldo em<br />
carícias de asas, em grasnos compassivos, quase<br />
gemidos, cobrindo-o, envolvendo-o com as suas<br />
plumagens errantes do Azul e da Treva, na infinita<br />
misericórdia das Esferas!<br />
E Araldo assim ficou por alguns momentos,<br />
subjugado por esse terror sagrado e ao mesmo tempo<br />
pacificante, de olhos fechados aos vultos negros e<br />
sepulcrais das aves, atordoado, sonâmbulo, dir-se-ia
600 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
gozando morbidamente, inconscientemente, o espanto<br />
dessas incognoscíveis e emplumadas Aparições.<br />
Depois, quando abriu lentamente os olhos, tinham<br />
desaparecido todas as aves, reentrado no Mistério,<br />
remergulhado no Vácuo, levando na fimbria das asas<br />
olvidadas e poderosas os últimos raios ouro-violáceos do<br />
crepúsculo que essas aves ignotas pareciam ter trazido<br />
nas imensas sombras das asas e que descera então afinal<br />
sobre aquele pasmoso e interminável dia tão duramente<br />
impassível como as pedras.<br />
As sombras, amplas, largas, pesadas,<br />
circunvolveram logo os sáfaros areais desertos.<br />
Por entre brumas espessas, vagorosa e taciturna,<br />
na lenta gênese da sua luz, apareceu a lua, vagamente<br />
lembrando a nebulosa de um Espírito...<br />
Uma claridade diluída, fina, frouxa, ia ungindo<br />
tudo...<br />
Ondas e ondas nervosas de brancuras lívidas se<br />
derramavam como resinas iluminantes; evaporações<br />
subiam, se exalavam como de ânforas ardentes,<br />
envolvendo a vastidão entre diáfanas auréolas<br />
fantasiosas.<br />
Certas tonalidades azuladas, roxas, sulfúreas,<br />
languesciam, quebravam-se...<br />
E aqueles aspectos deslumbradores, magos, dos<br />
desertos que se repetiam e que o luar martirizava de<br />
uma grande mágoa muda, pareciam os aspectos quietos,<br />
calados, lacerantemente, silenciosamente dolorosos, das<br />
paragens mortas do Esquecimento...<br />
E agora, no luar, outra original ansiedade se<br />
difundia – profunda, mais profunda do que nunca, para<br />
o Desventurado eterno.<br />
Harmonias violinadas e doloridas alanceavam-lhe<br />
os nervos; finas e sutilíssimas melodias afinadas pela<br />
mais intraduzível amargura fluíam dos raios do luar,<br />
das neblinas, dos Angelus do luar...
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 601<br />
E jamais, jamais Araldo parecera tanto um<br />
Espectro como agora, com o selo impenetrável das<br />
Desilusões augustas, os olhos, a boca, o peito e os pés já<br />
letárgica, sonolentamente tocados por fluidos gélidos e<br />
magnéticos de morte, como que revestido do sambenito<br />
para os Autos-de-fé, caminhando dentro do Sonho, do<br />
espasmo branco do luar soturno e cirial...<br />
E todos os sentidos de Araldo se requintavam,<br />
atilados na sonoridade acústica da alva claridade<br />
noturna; uma percuciência maior, mais intensa, os<br />
vibrava; ele sentia a acuidade penetrante de tal modo<br />
expressiva e flagrante como se o seu ser fosse parte<br />
esparsa, diluída no grande todo que a lua liriava, agindo<br />
com o agir dos inorgânicos, do alado, do evaporável, na<br />
mesma sensibilidade intangível da natureza circundante.<br />
Ele sentia difundir-se-lhe diante dos olhos esse<br />
indefinido perpetuar de visões e sensações, essas<br />
ondulações de mundos fascinadores e novos, o flutuante,<br />
o vaporoso estado principal de orbes, de esferas flamantes<br />
em condensação; sentia a sugestão original de gênesis<br />
que se revelam, e todo esse torpor, esse adormecido<br />
quebranto de corpos que se fecundam e geram, todo o<br />
caprichoso caos germinativo e alucinante que deve<br />
singularmente afetar, com o mais intenso e profundo<br />
nevropsiquismo, impressionar curiosamente a retina<br />
interior dos cegos no seu sonambulismo tátil.<br />
Fogos-Fátuos, prismas cambiantes, eclípticos,<br />
giravam-lhe, fosforeavam-lhe dormentemente diante dos<br />
olhos, no enebriamento entorpecedor do luar...<br />
Os ouvidos, a cada instante mais dúcteis, mais<br />
rítmicos, mais afinados, tinham a pouco e pouco mais<br />
aguda suscetibilidade.<br />
O terror do deserto, o sigilo amedrontador do luar,<br />
a amplidão, o vago, o incoercível da Noite, punha-lhe em<br />
todo o organismo essa excessiva vibração, essa extrema<br />
sensibilidade, essa extraordinária superestesia nervosa.
602 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Então, através dos finos cristais musicais do luar,<br />
com o ouvido de uma delicadeza quase mórbida de<br />
percepção, que atuava no seu sistema nervoso pela<br />
ansiedade flagelante, pelo excesso atordoador do<br />
sofrimento, pelo refinamento da angústia, parecia a<br />
Araldo escutar, vibrado longe na limpidez glacial da lua,<br />
o seu nome desventurado: Araldo! Araldo! Araldo!<br />
E essa voz compungida, num brado claro, como<br />
timbrada em aço, chamava alto: – Araldo! Araldo! Onde<br />
estás? Onde estás, Araldo?! E como que essa voz se<br />
reproduzia, se multiplicava, cada vez se aproximando<br />
mais dele – era um marulhar de vozes que estalavam,<br />
cantavam de todos os lados, subiam dos areais mortos,<br />
desciam dos infinitos céus, do esplendor fabuloso da lua,<br />
bradando: Araldo! Araldo! – vibração deslocada na<br />
cristalização luminosa; Araldo! Araldo!; osculando os<br />
areais desertos, Araldo! Araldo!; vozes castas,<br />
carinhosas, abençoadoras e ternas, aladas<br />
fantasticamente através do luar tão cheio de miragens,<br />
de ilusionismos, tão velado de sugestões e germens<br />
miraculosos.<br />
De toda a parte ele ouvia o mesmo clamor,<br />
chamando-o, procurando-o, buscando-o por toda a parte.<br />
E todo esse clamor formava como que um Requiem triste<br />
de impaciência, de inquietudes, de ansiedades,<br />
crescendo em mar atroante de vozes, sombriamente:<br />
Araldo! Araldo! Araldo!<br />
A sua velha e atormentada cabeça como que<br />
acordava então daquela peregrinante alucinação, agitada<br />
pelas saudades que essas erradias vozes lhe traziam,<br />
saudades que se transfiguraram outrora nas lendas do<br />
luar, saudades que foram para sempre se asilar nos<br />
estrelados santuários da Via-Láctea e que vagueavam<br />
por lá, sonhando, Virgens e Santas de regiões<br />
inacessíveis vestidas do linho imaculado tecido nas<br />
refulgências e lactescências dos astros, alanceadas por<br />
todas as grandes dores do Mundo, aureoladas de
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 603<br />
cintilantes diademas feitos de todas as puras lágrimas<br />
transfundidas, serenas na graça langue dos seus corpos<br />
venusinos e com os seios intactos dos beijos tentadores<br />
sagradamente nus, aflorados da pubescência inicial.<br />
Agora, as vozes vinham-lhe em gradações de<br />
sonoridade – vozes graves, soturnizadas e proféticas de<br />
cantochão e vozes angélicas e frescas de corais gloriosos<br />
nas Dulias matutinas e floreadas de maio.<br />
Eram os seus bizarros instintos de Mocidade que<br />
acordavam gritando; os aviários de ouro das suas alegrias<br />
magoadamente irônicas, que gorjeavam; os seus desejos<br />
adormecidos, procurando-o, seduzindo-o, tentando-o; as<br />
vibrantes fanfarras, já emudecidas, dos seus vagos<br />
triunfos, atordoando-o de ecos dolentes; todo o seu gozo<br />
chamejante de outrora e as suas amarguras, desalentos,<br />
desesperanças, que o buscavam enternecidamente, com<br />
carinho, com profundos estremecimentos.<br />
A requintada magia, as deliqüescências do luar,<br />
davam velada, quase apagada reminiscência de um luar<br />
muito vago, muito remoto, muito triste, já visto, já<br />
sentido e já contemplado outrora nalgum país tumular<br />
d’além dos tempos, um luar velho, em diluências de<br />
giestas amarelas, de margaridas roxas, de pálidos<br />
monsenhores...<br />
Longo, largo disco azulado circundava<br />
prognosticamente agora a face imóvel da lua, que parecia<br />
penetrada de um letargo morno... Imensas, imensas e<br />
incomparáveis tristezas se difundiam no mistério<br />
daqueles desertos infinitos, cujo sentimento tremendo<br />
da desolação e do nada dilacerava.<br />
Toda a vastidão era como um solitário sarcófago<br />
monstruoso, onde – visão dos imprescritíveis Destinos –<br />
errasse, cego e só, esse ser desconhecido, única<br />
palpitação, única chama nervosa, única alma em ânsias,<br />
único suspiro vivo desprendido na mudez absoluta do<br />
mágico luar...
604 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Dentre o peso aflitivo da grande noite ritmada de<br />
magoadas surdina o céu, o impassível céu estava agora<br />
brumosamente velado de um fino nevoeiro d’estrelas,<br />
como uns olhos de lágrimas...<br />
E Araldo seguia, esquecido Arcanjo primitivo,<br />
levado pelas asas sulfúreas dos corcéis árdegos daquele<br />
fantástico sonambulismo, tatuado pelos gilvazes do luar;<br />
lá ia aquela tormenta viva de nervos, aquela alta psicose,<br />
nas transfigurações e nas auréolas da Dor; lá ia o<br />
nirvanismo do nirvanismo, o infinito do infinito...<br />
Súbito, porém, um vendaval terrível, o atordoante<br />
simoun convulsivo, epiléptico, abrasador e medonho, tão<br />
espesso, tão denso que encobriu totalmente o luar,<br />
bramiu em rodomoinhos, em vórtices tenebrosos,<br />
revolvendo, levantando em montanhas no espaço toda a<br />
torva poeira das areais.<br />
Um simoun estranho, mais horrível que nos<br />
desertos da Núbia, enovelado, torcicoloso, em grossas<br />
espirais de serpentes gigantescas, ciclópicas, com as<br />
caudas e as cabeças titânicas vertiginosamente<br />
alvoroçadas nos delírios sanguissedentos dos letíficos e<br />
monstruosos venenos.<br />
Nas cordas tempestuosas desse vento tremendo<br />
choravam por vezes sinfonias tannhäuserianas, loucuras<br />
reileareanas. Era como se turbilhões de demônios soltos,<br />
arrancando os cabelos com desespero, bufassem e<br />
ululassem. Um pavor trágico enchia o deserto,<br />
assombrava o deserto. Indefinidas angústias gemiam, e<br />
soluçavam no vento velhas queixas encantadas, velhas<br />
tristezas milenárias e fundas; primitivas línguas<br />
bárbaras violenta e confusamente se dilaceravam, se<br />
atropelavam; uivos felinos, ganidos, urros formidáveis<br />
de monstros cruzavam-se no ar...<br />
A brancura tenra, de anho branco, de cordeiro<br />
imaculado, da lua, aparecia, por vezes, de uma tonalidade<br />
sombria, apagada, de um eterismo mórbido de eclipse,<br />
dando um diluente sentimento de remotividade amarga,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 605<br />
como se a lua assim desse modo vista trouxesse a<br />
impressão longínqua de ser ela própria a saudade da<br />
lua...<br />
No meio desse tétrico deserto nunca imaginado,<br />
desse luar inquisitorial, mortal, esse vento sinistro tinha<br />
uma ressonância subterrânea, funesta e cruel de clamor<br />
niilista, evocava as florescências e as quintessências<br />
doentias das sensibilidades do Budismo.<br />
E Araldo, cada vez mais Espectro em meio à<br />
Natureza toda, cada vez mais silhuético, mais perdido,<br />
mais apagado, mais vago no vácuo tremendo daquelas<br />
vastidões dolorosas, o vulto cada vez mais diminuído,<br />
sumindo-se, sumindo-se, sumindo-se na distância, na<br />
absorção da Imensidade circunvolvente, absurda e<br />
insensivelmente mergulhou nos turbilhões do vendaval<br />
terrível, foi arrebatado nas malhas atrozes e negras do<br />
simoun, envolto na lúgubre mortalha dos areais — louco,<br />
no auge da sua loucura, na crise formidável dos acordados<br />
e alucinados pesadelos que lhe abalavam assim, sempre,<br />
fundamente, o cérebro e eram, no entanto, através da<br />
grande alucinação da Vida, do abismo eterno da Vida,<br />
as únicas horas mais felizes e puras em que ele se<br />
enclausurava nos tabernáculos fechados da sua Paixão,<br />
os únicos instantes sagrados, os únicos momentos<br />
lúcidos para os sóis febricitantes, esquisitos e majestosos<br />
da sua fabulosa e sobre-humana Imaginação de louco...
606 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
EXTREMA CARÍCIA...<br />
O que ele, apenas, em realidade sentia naquela<br />
hora velada, além de uma esparsa e acerba saudade de<br />
tudo, era uma carícia infinita, verdadeiramente<br />
inexplicável, invadi-lo todo, difundir-se pelo seu ser como<br />
que em músicas e mornos tóxicos luminosos. Era uma<br />
dormência vaga, uma leve quebreira e letargia que o<br />
mergulhava num sono nebuloso, por entre irisações de<br />
brancura, num apaziguamento suave, como se ele<br />
estivesse acaso adormecido em cisternas de leite,<br />
ouvindo pássaros invisíveis cantar e sons sutilíssimos<br />
de harpas docemente, finamente fluindo...<br />
Era um luar espasmódico, em delíquios, que<br />
nervosamente o aureolava, que lhe caía em neblinas de<br />
lírios mádidos nas origens mais recônditas da alma. Era<br />
um óleo paradisíaco que manso e manso o acalmava, o<br />
anestesiava. Uma extrema carícia, que fazia dilataremse-lhe<br />
todas as fibras, percorrendo-lhe pelo organismo,<br />
extasiantemente, numa onda de fluidos maravilhosos,<br />
de longos langores, de demorados gozos, de supremas<br />
quintessências de sensibilidade.<br />
O sentido palatal, o sentido olfativo e o sentido<br />
visual, profundas manifestações da vida molecularizada,<br />
ele os sentia agora de uma aguda penetração<br />
superorgânica, prodigiosamente penetrados da extrema<br />
carícia, dos fenômenos desconhecidos que o invadiam.<br />
Um nimbo azul, ouro, azul, ouro, azul, eterizavao,<br />
como se ele, por abstratas formas estranhas, girasse<br />
nas constelações, nas curiosidades prismáticas,<br />
cambiantes dos eclipses...<br />
Parecia que áspides delicadas, de uma volúpia<br />
ultraceleste, enroscavam-se nele, enlaçavam-lhe o corpo<br />
todo, sugando-lhe com insaciável frenesi a força vital<br />
das vértebras e dando-lhe uma nova vida ainda não vivida<br />
pelos seus nervos, ainda não experimentada pelo seu<br />
sangue, ainda não sofrida pelos seus sentidos — vida de
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 607<br />
outras origens, de outras sensações fugitivas, de outras<br />
complexidades múltiplas, de outras nevroses absurdas,<br />
de outras estesias cândidas, de outros sóis e de outras<br />
noites, de outras recordações e de outros<br />
esquecimentos... Uma vida sem os contactos<br />
epidérmicos, sem os quebrantos doentes da carne, sem<br />
os delírios da matéria – inteiramente livre de todos os<br />
grilhões do organismo humano. Vida desmolecularizada<br />
nas esferas, plainando no absoluto – luz de harmonia,<br />
harmonia de luz evaporada, diluída na grande luz astral,<br />
subindo camadas, camadas, mais camadas de luz, mais<br />
camadas de harmonia, quintessenciadamente subindo<br />
sempre, subindo, impessoalizando-se e sideralizandose<br />
através dos corpos em gestação, nas partículas<br />
mínimas, infinitesimais do Ser, no branco infinito do<br />
Sonho...<br />
E aquela extrema carícia, sempre a inocular-lhe<br />
nas veias um frio e divino vinho voluptuoso de graça<br />
langue, de graça mórbida, de graça sonâmbula. Sempre<br />
aquela carícia adormentadora miraculosamente<br />
adormentadora.<br />
Sempre aquele ópio fascinante que o sonolentava,<br />
pouco a pouco mais intenso, mais profundo... E névoas,<br />
névoas de uma deliciosa e pacificadora noite aveludada,<br />
sem uma só estrela! o iam envolvendo de forma capciosa<br />
e lenta. Aos poucos se extinguia, num final de<br />
crespúsculo, a vida chamejativa e original de seus olhos,<br />
a ânsia derradeira, o alento último de sua boca já<br />
apagada, já muda. No cérebro ia-se-lhe vagamente<br />
distendendo, tentacularizando a sensação secreta de<br />
um negro, sinistro silêncio... As reminiscências<br />
recuavam, sumiam-se nos indefiníveis mistérios...<br />
Mesmo, agora, finas mãos glaciais, esqueléticas e<br />
invisíveis, de longos e esguios dedos trêmulos, andavamlhe<br />
demoradamente a palpar o corpo todo, de baixo acima,<br />
tateando pelo seu rosto, devagar, pousando sobre os seus<br />
olhos, sobre as pálpebras, a cerrá-las, a fechá-las com
608 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
cuidado, devagar na delicadeza e na extrema carícia<br />
dos longos e esguios dedos trêmulos... Até que, na<br />
convulsa vibração das íntimas cordas sensibilizadas de<br />
todo o seu ser, ele sentiu então, compreendeu então<br />
irremediavelmente já, do mais horrível modo tenebroso<br />
e gelado, pela primeira e única vez! todos esses sutis e<br />
esquisitos efeitos letais daquela extrema carícia...
EMPAREDADO<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 609<br />
Ah! Noite! feiticeira Noite! ó Noite<br />
misericordiosa, coroada no trono das<br />
Constelações pela tiara de prata e diamantes<br />
do Luar, Tu, que ressuscitas dos sepulcros<br />
solenes do Passado tantas Esperanças, tantas<br />
Ilusões, tantas e tamanhas Saudades, ó Noite!<br />
Melancólica! Soturna! Voz triste, recordativamente<br />
triste, de tudo o que está morto,<br />
acabado, perdido nas correntes eternas dos<br />
abismos bramantes do Nada, ó Noite meditativa!<br />
fecunda-me, penetra-me dos fluidos magnéticos<br />
do grande Sonho das tuas Solidões<br />
panteístas e assinaladas, dá-me as tuas brumas<br />
paradisíacas, dá-me os teus cismares de Monja,<br />
dá-me as tuas asas reveladoras, dá-me as tuas<br />
auréolas tenebrosas, a eloqüência de ouro das<br />
tuas Estrelas, a profundidade misteriosa dos<br />
teus sugestionadores fantasmas, todos os<br />
surdos soluços que rugem e rasgam o majestoso<br />
Mediterrâneo dos teus evocativos e<br />
pacificadores Silêncios!
610 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Uma tristeza fina e incoercível errava nos tons<br />
violáceos vivos daquele fim suntuoso de tarde aceso<br />
ainda nos vermelhos sanguíneos, cuja cor cantava-me<br />
nos olhos, quente, inflamada, na linha longe dos<br />
horizontes em largas faixas rutilantes.<br />
O fulvo e voluptuoso Rajá celeste derramara além<br />
os fugitivos esplendores da sua magnificência astral e<br />
rendilhara d’alto e de leve as nuvens da delicadeza<br />
arquitetural, decorativa, dos estilos manuelinos.<br />
Mas as ardentes formas da luz pouco a pouco<br />
quebravam-se, velavam-se e os tons violáceos vivos,<br />
destacados mais agora flagrantemente crepusculavam<br />
a tarde, que expirava anelante, num anseio indefinido,<br />
vago, dolorido, de inquieta aspiração e de inquieto<br />
sonho...<br />
E, descidas, afinal, as névoas, as sombras<br />
claustrais da noite, tímidas e vagarosas Estrelas<br />
começavam a desabrochar florescentemente, numa<br />
tonalidade peregrina e nebulosa de brancas e erradias<br />
fadas de Lendas...<br />
Era aquela, assim religiosa e enevoada, a hora<br />
eterna, a hora infinita da Esperança...<br />
Eu ficara a contemplar, como que sonambulizado,<br />
como o espírito indeciso e febricitante dos que esperam,<br />
a avalanche de impressões e de sentimentos que se<br />
acumulavam em mim à proporção que a noite chegava<br />
com o séquito radiante e real das fabulosas Estrelas.<br />
Recordações, desejos, sensações, alegrias,<br />
saudades, triunfos passavam-me na Imaginação como<br />
relâmpagos sagrados e cintilantes do esplendor litúrgico<br />
de pálios e viáticos, de casulas e dalmáticas fulgurantes,<br />
de tochas acesas e fumosas, de turíbulos cinzelados,<br />
numa procissão lenta, pomposa, em aparatos cerimoniais,<br />
de Corpus Christi, ao fundo longínquo de uma província<br />
sugestiva e serena, pitorescamente aureolada por mares<br />
cantantes. Vinha-me à flor melindrosa dos sentidos a<br />
melopéia, o ritmo fugidio de momentos, horas, instantes,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 611<br />
tempos deixados para trás na arrebatada confusão do<br />
mundo.<br />
Certos lados curiosos, expressivos e tocantes do<br />
Sentimento, que a lembrança venera e santifica; lados<br />
virgens, de majestade significativa, parecia-me surgirem<br />
do suntuoso fundo estrelado daquela noite larga, da<br />
amplidão saudosa daqueles céus...<br />
Desdobrava-se o vasto silforama opulento de uma<br />
vida inteira, circulada de acidentes, de longos lances<br />
tempestuosos, de desolamentos, de palpitações<br />
ignoradas, como do rumor, das aclamações e dos fogos<br />
de cem cidades tenebrosas de tumulto e de pasmo...<br />
Era como que todo o branco idílio místico da<br />
adolescência, que de um tufo claro de nuvens, em<br />
Imagens e Visões do Desconhecido, caminhava para<br />
mim, leve, etéreo, através das imutáveis formas.<br />
Ou, então, massas cerradas, compactas de<br />
harmonias wagnerianas, que cresciam, cresciam, subiam<br />
em gritos, em convulsões, em alaridos nervosos, em<br />
estrépitos nervosos, em sonoridades nervosas, em<br />
dilaceramentos nervosos, em catadupas vertiginosas de<br />
vibrações, ecoando longe e alastrando tudo, por entre a<br />
delicada alma sutil dos ritmos religiosos, alados,<br />
procurando a serenidade dos Astros...<br />
As Estrelas, d’alto, claras, pareciam cautelosamente<br />
escutar e sentir, com os caprichos de relicários<br />
inviolados da sua luz, o desenvolvimento mudo, mas<br />
intenso, a abstrata função mental que estava naquela<br />
hora se operando dentro de mim, como um fenômeno de<br />
aurora boreal que se revelasse no cérebro, acordando<br />
chamas mortas, fazendo viver ilusões e cadáveres.<br />
Ah! aquela hora era bem a hora infinita da<br />
Esperança!<br />
De que subterrâneos viera eu já, de que torvos<br />
caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes,<br />
com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e<br />
majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado,
612 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
ouvindo sempre por toda a parte exclamarem as vãs e<br />
vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar!<br />
Por que estradas caminhei, monge hirto das<br />
desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da<br />
Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta<br />
e chora Requiens nas árvores, nos mares, nos ventos,<br />
nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar!<br />
Esperar! Esperar!<br />
Por isso é que essa hora sugestiva era para mim<br />
então a hora da Esperança, que evocava tudo quanto eu<br />
sonhara e se desfizera e vagara e mergulhara no Vácuo...<br />
Tudo quanto eu mais eloqüentemente amara com o delírio<br />
e a fé suprema de solenes assinalamentos e vitórias.<br />
Mas as grandes ironias trágicas germinadas do<br />
Absoluto, conclamadas, em anátemas e deprecações<br />
inquisitoriais cruzadas no ar violentamente em línguas<br />
de fogo, caíram martirizantes sobre a minha cabeça,<br />
implacáveis como a peste.<br />
Então, à beira de caóticos, sinistros<br />
despenhadeiros, como outrora o doce e arcangélico Deus<br />
Negro, o trimegisto, de cornos agrogalhardos, de<br />
fagulhantes, estriadas asas enigmáticas, idealmente<br />
meditando a Culpa imeditável; então, perdido,<br />
arrebatado dentre essas mágicas e poderosas correntes<br />
de elementos antipáticos que a Natureza regulariza, e<br />
sob a influência de desconhecidos e venenosos filtros, a<br />
minha vida ficou como a longa, muito longa véspera de<br />
um dia desejado, anelado, ansiosamente, inquietamente<br />
desejado, procurado através do deserto dos tempos, com<br />
angústia, com agonia, com esquisita e doentia nevrose,<br />
mas que não chega nunca, nunca!!<br />
Fiquei como a alma velada de um cego onde os<br />
tormentos e os flagelos amargamente vegetam como<br />
cardos hirtos. De um cego onde parece que<br />
vaporosamente dormem certos sentimentos que só com<br />
a palpitante vertigem, só com a febre matinal da luz<br />
clara dos olhos acordariam; sentimentos que dormem
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 613<br />
ou que não chegaram jamais a nascer, porque a densa e<br />
amortalhante cegueira como que apagou para sempre<br />
toda a claridade serena, toda a chama original que os<br />
poderia fecundar e fazer florir na alma...<br />
Elevando o Espírito a amplidões inacessíveis,<br />
quase que não vi esses lados comuns da Vida humana,<br />
e, igual ao cego, fui sombra, fui sombra!<br />
Como os martirizados de outros Gólgotas mais<br />
amargos, mais tristes, fui subindo a escalvada montanha,<br />
através de urzes eriçadas, e de brenhas, como os<br />
martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais<br />
tristes.<br />
De outros Gólgotas mais amargos subindo a<br />
montanha imensa – vulto sombrio, tetro, extra-humano!<br />
– a face escorrendo sangue, a boca escorrendo sangue,<br />
o peito escorrendo sangue, as mãos escorrendo sangue,<br />
o flanco escorrendo sangue, os pés escorrendo sangue,<br />
sangue, sangue, sangue, caminhando para tão longe,<br />
para muito longe, ao rumo infinito das regiões<br />
melancólicas da Desilusão e da Saudade, transfiguradamente<br />
iluminado pelo sol augural dos Destinos!...<br />
E, abrindo e erguendo em vão os braços<br />
desesperados em busca de outros braços que me<br />
abrigassem; e abrindo e erguendo em vão os braços<br />
desesperados que já nem mesmo a milenária cruz do<br />
Sonhador da Judéia encontravam para repousarem<br />
pregados e dilacerados, fui caminhando, caminhando,<br />
sempre com um nome estranho convulsamente<br />
murmurado nos lábios, um nome augusto que eu<br />
encontrara não sei em que Mistério, não sei em que<br />
prodígios de Investigação e de Pensamento profundo: – o<br />
sagrado nome da Arte, virginal e circundada de loureirais<br />
e mirtos e palmas verdes e hosanas, por entre<br />
constelações.<br />
Mas, foi apenas bastante todo esse movimento<br />
interior que pouco a pouco me abalava, foi apenas<br />
bastante que eu consagrasse a vida mais fecundada,
614 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
mais ensangüentada que tenho, que desse todos os meus<br />
mais íntimos, mais recônditos carinhos, todo o meu amor<br />
ingênito, toda a legitimidade do meu sentir a essa<br />
translúcida Monja de luar e sol, a essa incoercível<br />
Aparição, bastou tão pouco para que logo se levantassem<br />
todas as paixões da terra, tumultuosas como florestas<br />
cerradas, proclamando por brutas, titânicas trombetas<br />
de bronze o meu nefando Crime.<br />
Foi bastante pairar mais alto, na obscuridade<br />
tranqüila, na consoladora e doce paragem das Idéias,<br />
acima das graves letras maiúsculas da Convenção, para<br />
alvoroçarem-se os Preceitos, irritarem-se as Regras, as<br />
Doutrinas, as Teorias, os Esquemas, os Dogmas, armados<br />
e ferozes, de cataduras hostis e severas.<br />
Eu trazia, como cadáveres que me andassem<br />
funambulescamente amarrados às costas, num<br />
inquietante e interminável apodrecimento, todos os<br />
empirismos preconceituosos e não sei quanta camada<br />
morta, quanta raça d’África curiosa e desolada que a<br />
Fisiologia nulificara para sempre com o riso haeckeliano<br />
e papai!<br />
Surgido de bárbaros, tinha de domar outros mais<br />
bárbaros ainda, cujas plumagens de aborígine<br />
alacremente flutuavam através dos estilos.<br />
Era mister romper o Espaço toldado de brumas,<br />
rasgar as espessuras, as densas argumentações e<br />
saberes, desdenhar os juízos altos, por decreto e por lei,<br />
e, enfim, surgir...<br />
Era mister rir com serenidade e afinal com tédio<br />
dessa celulazinha bitolar que irrompe por toda a parte,<br />
salta, fecunda, alastra, explode, transborda e se propaga.<br />
Era mister respirar a grandes haustos na<br />
Natureza, desafogar o peito das opressões ambientes,<br />
agitar desassombradamente a cabeça diante da liberdade<br />
absoluta e profunda do Infinito.<br />
Era mister que me deixassem ao menos ser livre<br />
no Silêncio e na Solidão. Que não me negassem a
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 615<br />
necessidade fatal, imperiosa, ingênita de sacudir com<br />
liberdade e com volúpia os nervos e desprender com<br />
largueza e com audácia o meu verbo soluçante, na força<br />
impetuosa e indomável da Vontade.<br />
O temperamento que rugia, bramava dentro de<br />
mim, esse, que se operasse: precisava, pois, tratados,<br />
largos in-fólios, toda a biblioteca da famosa Alexandria,<br />
uma Babel e Babilônia de aplicações científicas e de<br />
textos latinos para sarar...<br />
Tornava-se forçoso impor-lhe um compêndio<br />
admirável, cheio de sensações imprevistas, de<br />
curiosidades estéticas muito lindas e muito finas – um<br />
compêndio de geometria!<br />
O temperamento entortava muito para o lado da<br />
África: – era necessário fazê-lo endireitar inteiramente<br />
para o lado Regra, até que o temperamento regulasse<br />
certo como um termômetro!<br />
Ah! incomparável espírito das estreitezas<br />
humanas, como és secularmente divino!<br />
As civilizações, as raças, os povos digladiam-se e<br />
morrem minados pela fatal degenerescência do sangue,<br />
despedaçados, aniquilados no pavoroso túnel da Vida,<br />
sentindo o horror sufocante das supremas asfixias.<br />
Um veneno corrosivo atravessa, circula<br />
vertiginosamente os poros dessa deblaterante<br />
humanidade que se veste e triunfa com as púrpuras<br />
quentes e funestas da guerra!<br />
Povos e povos, no mesmo fatal e instintivo<br />
movimento da conservação e propagação da espécie,<br />
frivolamente lutam e proliferam diante da Morte, no ardor<br />
dos conúbios secretos e das batalhas obscuras, do frenesi<br />
genital, animal, de perpetuarem as seivas, de<br />
eternizarem os germens.<br />
Mas, por sobre toda essa vertigem humana, sobre<br />
tanta monstruosa miséria, rodando, rodomoinhando, lá<br />
e além, na vastidão funda do Mundo, alguma cousa da<br />
essência maravilhosa da Luz paira e se perpetua,
616 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
fecundando e inflamando os séculos com o amor indelével<br />
da Forma.<br />
É do sabor prodigioso dessa essência, vinda de<br />
bem remotas origens, que raros Assinalados<br />
experimentam, envoltos numa atmosfera de<br />
eterificações, de visualidades inauditas, de<br />
surpreendentes abstrações e brilhos, radiando nas<br />
correntes e forças da Natureza, vivendo nos fenômenos<br />
vagos de que a Natureza se compõe, nos fantasmas<br />
dispersos que circulam e erram nos seus esplendores e<br />
nas suas trevas, conciliados supremamente com a<br />
Natureza.<br />
E, então, os temperamentos que surgissem, que<br />
viessem, limpos de mancha, de mácula, puramente<br />
lavados para as extremas perfectibilidades, virgens, sãos<br />
e impetuosos para as extremas fecundações, com a<br />
virtude eloqüente de trazerem, ainda sangradas, frescas,<br />
úmidas das terras germinais do Idealismo, as raízes vivas<br />
e profundas, os germens legítimos, ingênitos, do<br />
Sentimento.<br />
Os temperamentos que surgissem: – podiam ser<br />
simples, mas que essa simplicidade acusasse também<br />
complexidade, como as claras Ilíadas que os rios cantam.<br />
Mas igualmente podiam ser complexos, trazendo as<br />
inéditas manifestações do Indefinido, e intensos,<br />
intensos sempre, sintéticos e abstratos, tendo esses<br />
inexprimíveis segredos que vagam na luz, no ar, no som,<br />
no aroma, na cor e que só a visão delicada de um espírito<br />
artístico assinala.<br />
Poderiam também parecer obscuros por serem<br />
complexos, mas ao mesmo tempo serem claros nessa<br />
obscuridade por serem lógicos, naturais, fáceis, de uma<br />
espontaneidade sincera, verdadeira e livre na enunciação<br />
de sentimentos e pensamentos, da concepção e da forma,<br />
obedecendo tudo a uma grande harmonia essencial de<br />
linhas sempre determinativas da índole, da feição geral<br />
de cada organização.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 617<br />
Os lados mais carregados, mais fundamente<br />
cavados dos temperamentos sangrentos, fecundados em<br />
origens novas de excepcionalidades, não seriam para<br />
complicar e enturvecer mais as respectivas psicologias;<br />
mas apenas para torná-las claras, claras, para dar,<br />
simplesmente, com a máxima eloqüência, dessas<br />
próprias psicologias, toda a evidência, toda a intensidade,<br />
todo o absurdo e nebuloso Sonho...<br />
Dominariam assim, venceriam assim, esses<br />
Sonhadores, os reservados, eleitos e melancólicos<br />
Reinados do Ideal, apenas, unicamente por fatalidades<br />
impalpáveis, imprescritíveis, secretas, e não por<br />
justaposições mecânicas de teorias e didatismos<br />
obsoletos.<br />
Os caracteres nervosos mais sutis, mais finos, mais<br />
vaporosos, de cada temperamento, perder-se-iam,<br />
embora, na vaga truculenta, pesada, da multidão<br />
inexpressiva, confusa, que burburinha com o seu lento<br />
ar parado e vazio, conduzindo em seu bojo a<br />
concupiscência bestial enroscada como um sátiro, com<br />
a alma gasta, olhando molemente para tudo com os seus<br />
dois pequeninos olhos gulosos de símio.<br />
Mas, a paixão inflamada do Ignoto subiria e<br />
devoraria reconditamente todos esses Imaginativos<br />
dolentes, como se eles fossem abençoada zona ideal,<br />
preciosa, guardando em sua profundidade o orientalismo<br />
de um tesouro curioso, o relicário mágico do Imprevisto<br />
– abençoada zona saudosa, plaga d’ouro sagrada, para<br />
sempre sepulcralmente fechada ao sentimento herético,<br />
à bárbara profanação dos sacrílegos.<br />
Assim é que eu sonhara surgirem todas essas<br />
aptidões, todas essas feições singulares, dolorosas,<br />
irrompendo de um alto princípio fundamental distinto<br />
em certos traços breves, mas igual, uno, perfeito e<br />
harmonioso nas grandes linhas gerais.<br />
Essa é que fora a lei secreta, que escapara à<br />
percepção de filósofos e doutos, do verdadeiro
618 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
temperamento, alheio às orquestrações e aos incensos<br />
aclamatórios da turba profana, porém alheio por causa,<br />
por sinceridade de penetração, por subjetivismo mental<br />
sentido à parte, vivido à parte, – simples, obscuro, natural<br />
– como se a humanidade não existisse em torno e os<br />
nervos, a sensação, o pensamento tivessem latente<br />
necessidade de gritar alto, de expandir e transfundir no<br />
espaço, vivamente, a sua psicose atormentada.<br />
Assim é que eu via a Arte, abrangendo todas as<br />
faculdades, absorvendo todos os sentidos, vencendo-os,<br />
subjugando-os amplamente.<br />
Era uma força oculta, impulsiva, que ganhara já a<br />
agudeza picante, acre, de um apetite estonteante e a<br />
fascinação infernal, tóxica, de um fugitivo e deslumbrador<br />
pecado...<br />
Assim é que eu a compreendia em toda a<br />
intimidade do meu ser, que eu sentia em toda a minha<br />
emoção, em toda a genuína expressão do meu<br />
Entendimento – e não uma espécie de iguaria agradável,<br />
saborosa, que se devesse dar ao público em doses e no<br />
grau e qualidade que ele exigisse, fosse esse público<br />
simplesmente um símbolo, um bonzo antigo, taciturno e<br />
cor de oca, uma expressão serôdia, o público A+B, cujo<br />
consenso a Convenção em letras maiúsculas decretara.<br />
Afinal, em tese, todas as idéias em Arte poderiam<br />
ser antipáticas, sem preconcebimentos a agradar, o que<br />
não quereria dizer que fossem más.<br />
No entanto, para que a Arte se revelasse própria,<br />
era essencial que o temperamento se desprendesse de<br />
tudo, abrisse vôos, não ficasse nem continuativo nem<br />
restrito, dentro de vários moldes consagrados que<br />
tomaram já a significação representativa de clichés<br />
oficiais e antiquados.<br />
Quanto a mim, originalmente foi crescendo,<br />
alastrando o meu organismo, numa veemência e num<br />
ímpeto de vontade que se manifesta, num dilúvio de<br />
emoção, esse fenômeno de temperamento que com
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 619<br />
sutilezas e delicadezas de névoas alvorais vem surgindo<br />
e formando em nós os maravilhosos Encantamentos da<br />
Concepção.<br />
O Desconhecido me arrebatara e surpreendera e<br />
eu fui para ele instintiva e intuitivamente arrastado,<br />
insensível então aos atritos da frivolidade, indiferente,<br />
entediado por índole diante da filáucia letrada, que não<br />
trazia a expressão viva, palpitante, da chama de uma<br />
fisionomia, de um tipo afirmativamente eleito.<br />
Muitos diziam-se rebelados, intransigentes – mas<br />
eu via claro as ficelles dessa rebeldia e dessa<br />
instransigência. Rebelados, porque tiveram fome uma<br />
hora apenas, as botas rotas um dia. Intransigentes, por<br />
despeito, porque não conseguiam galgar as fúteis, para<br />
eles gloriosas posições que os outros galgavam...<br />
Era uma politicazinha engenhosa de medíocres,<br />
de estreitos, de tacanhos, de perfeitos imbecilizados ou<br />
cínicos, que faziam da Arte um jogo capcioso, maneiroso,<br />
para arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a<br />
não ofender, a não fazer corar o diletantismo das suas<br />
idéias. Rebeldias e instransigências em casa, sob o teto<br />
protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico,<br />
muito demolidor e feroz, com ladainhas e amuletos em<br />
certa hora para livrar da trovoada e dos celestes castigos<br />
imponderáveis!<br />
Mas, uma vez cá fora à luz crua da Vida e do Mundo,<br />
perante o ferro em brasa da livre análise, mostrando<br />
logo as curvaturas mais respeitosas, mais gramaticais,<br />
mais clássicas, à decrépita Convenção com letras<br />
maiúsculas.<br />
Um ou outro, pairando, no entanto, mais alto no<br />
meio, tinha manhas de raposa fina, argúcia, vivacidades<br />
satânicas, no fundo, frívolas, e que a maior parte,<br />
inteiramente oca, sem penetração, não sentia. Fechava<br />
sistematicamente os olhos para fingir não ver, para não<br />
sair dos seus cômodos pacatos de aclamado banal,<br />
fazendo esforço supremo de conservar a confusão e a
620 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
complicação no meio, transtornar e estontear aquelas<br />
raras e adolescentes cabeças que por acaso aparecessem<br />
já com algum nebuloso segredo.<br />
Um ou outro tinha a habilidade quase mecânica<br />
de apanhar, de recolher do tempo e do espaço as idéias<br />
e os sentimentos que, estando dispersos, formavam a<br />
temperatura burguesa do meio, portanto corrente já, e<br />
trabalhar algumas páginas, alguns livros, que, por<br />
trazerem idéias e sentimentos homogêneos dos<br />
sentimentos e idéias burguesas, aqueciam, alvoroçavam,<br />
atordoavam o ar de aplausos...<br />
Outros, ainda, adaptados às épocas, aclimados ao<br />
modo de sentir exterior; ou, ainda por mal compreendido<br />
ajeitamento, fazendo absoluta apostasia do seu sentir<br />
íntimo, próprio, iludidos em parte; ou, talvez,<br />
evidenciando com flagrância, traindo assim o fundo fútil,<br />
sem vivas, entranhadas raízes de sensibilidade estética,<br />
sem a ideal radicalização de sonhos ingenitamente<br />
fecundados e quintessenciados na alma, das suas<br />
naturezas passageiras, desapercebidas de certos<br />
movimentos inevitáveis da estesia, que imprimem, por<br />
fórmulas fatais, que arrancam das origens profundas,<br />
com toda a sanguinolenta verdade e por causas fugidias<br />
a toda e qualquer análise, tudo o quanto se sente e<br />
pensa de mais ou menos elevado e completo.<br />
Mistificadores afetados de canaillerie por tom, por<br />
modernismos falhos apanhados entre os absolutamente<br />
fracos, os pusilânimes de têmpera no fundo, e que, no<br />
entanto, tanto aparentam correção e serena força<br />
própria.<br />
Naturezas vacilantes e mórbidas, sem a integração<br />
final, sem mesmo o equilíbrio fundamental do próprio<br />
desequilíbrio e, ainda mais do que tudo, sem esse poder<br />
quase sobrenatural, sem esses atributos excepcionais<br />
que gravam, que assinalam de modo estranho, às<br />
chamejantes e intrínsecas obras d’Arte, o caráter<br />
imprevisto, extra-humano, do Sonho.
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 621<br />
Hábeis viveurs, jeitosos, sagazes, acomodatícios,<br />
afetando pessimismos mais por desequilíbrio que por<br />
fundamento, sentindo, alguns, até à saciedade, a<br />
atropelação do meio, fingindo desprezá-lo, aborrecê-lo,<br />
odiá-lo, mas mergulhando nele com frenesi, quase com<br />
delírio, mesmo com certa volúpia maligna de frouxos e<br />
de nulos que trazem num grau muito apurado a faculdade<br />
animal do instinto de conservação, a habilidade de<br />
nadadores destros e intrépidos nas ondas turvas dos<br />
cálculos e efeitos convencionais.<br />
Tal, desse modo, um prestidigitador ágil e atilado<br />
colhe e prende, com as miragens e truques da<br />
nigromancia, a frívola atenção passiva de um público<br />
dócil e embasbacado.<br />
Insipientes, uns, obscenamente cretinos, outros,<br />
devorados pela desoladora impotência que os torna lívidos<br />
e lhes dilacera os fígados, eu bem lhes percebo as<br />
psicologias subterrâneas, bem os vejo passar, todos,<br />
todos, todos, d’olhos oblíquos, numa expressão<br />
fisionômica azeda e vesga de despeito, como errantes<br />
duendes da Meia-Noite, verdes, escarlates, amarelos e<br />
azuis, em vão grazinando e chocalhando na treva os<br />
guizos das sarcásticas risadas...<br />
Almas tristes, afinal, que se diluem, que se<br />
acabam, num silêncio amargo, numa dolorosa desolação,<br />
murchas e doentias, na febre fatal das desorganizações,<br />
melancolicamente, melancolicamente, como a<br />
decomposição de tecidos que gangrenaram, de corpos<br />
que apodreceram de um modo irremediável e não podem<br />
mais viçar e florir sob as refulgências e sonoridades dos<br />
finíssimos ouros e cristais e safiras e rubis incendiados<br />
do Sol...<br />
Almas lassas, debochadamente relaxadas,<br />
verdadeiras casernas onde a mais rasgada libertinagem<br />
não encontra fundo; almas que vão cultivando com<br />
cuidado delicadas infamiazinhas como áspides galantes
622 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
e curiosas e que de tão baixas, de tão rasas que são<br />
nem merecem a magnificência, a majestade do Inferno!<br />
Almas, afinal, sem as chamas misteriosas, sem<br />
as névoas, sem as sombras, sem os largos e irisados<br />
resplendores do Sonho – supremo Redentor eterno!<br />
Tudo um ambiente dilacerante, uma atmosfera<br />
que sufoca, um ar que aflige e dói nos olhos e asfixia a<br />
garganta como uma poeira triste, muito densa, muito<br />
turva, sob um meio-dia ardente, no atalho ermo de vila<br />
pobre por onde vai taciturnamente seguindo algum<br />
obscuro enterro de desgraçado...<br />
Eles riem, eles riem e eu caminho e sonho<br />
tranqüilo! pedindo a algum belo Deus d’Estrelas e d’Azul,<br />
que vive em tédios aristocráticos na Nuvem, que me deixe<br />
serenamente e humildemente acabar esta Obra extrema<br />
de Fé e de Vida!<br />
Se alguma nova ventura conheço é a ventura<br />
intensa de sentir um temperamento, tão raro me é dado<br />
sentir essa ventura. Se alguma cousa me torna justo é<br />
a chama fecundadora, o eflúvio fascinador e penetrante<br />
que se exala de um verso admirável, de uma página de<br />
evocações, legítima e sugestiva.<br />
O que eu quero, o que eu aspiro, tudo por quanto<br />
anseio, obedecendo ao sistema arterial das minhas<br />
Intuições, é a Amplidão livre e luminosa, todo o Infinito,<br />
para cantar o meu Sonho, para sonhar, para sentir, para<br />
sofrer, para vagar, para dormir, para morrer, agitando<br />
ao alto a cabeça anatematizada, como Otelo nos delírios<br />
sangrentos do Ciúme...<br />
Agitando ainda a cabeça num derradeiro<br />
movimento de desdém augusto, como nos cismativos<br />
ocasos os desdéns soberanos do sol que ufanamente<br />
abandona a terra, para ir talvez fecundar outros mais<br />
nobres e ignorados hemisférios...<br />
Pensam, sentem, estes, aqueles. Mas a<br />
característica que denota a seleção de uma curiosa<br />
natureza, de um ser d’arte absoluto, essa, não a sinto,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 623<br />
não a vejo, com os delicados escrúpulos e<br />
suscetibilidades de uma flagrante e real originalidade<br />
sem escolas, sem regulamentações e métodos, sem<br />
cotterie e anais de crítica, mas com a força germinal<br />
poderosa de virginal afirmação viva.<br />
D’alto a baixo, rasgam-se os organismos, os<br />
instrumentos da autópsia psicológica penetram por tudo,<br />
sondam, perscrutam todas as células, analisam as<br />
funções mentais de todas as civilizações e raças; mas<br />
só escapam à penetração, à investigação desses positivos<br />
exames a tendência, a índole, o temperamento artístico,<br />
fugidios sempre e sempre imprevistos, porque são casos<br />
particulares de seleção na massa imensa dos casos<br />
gerais que regem e equilibram secularmente o mundo.<br />
Desde que o Artista é um isolado, um esporádico,<br />
não adaptado ao meio, mas em completa, lógica e<br />
inevitável revolta contra ele, num conflito perpétuo entre<br />
a sua natureza complexa e a natureza oposta do meio, a<br />
sensação, a emoção que experimenta é de ordem tal<br />
que foge a todas as classificações e casuísticas, a todas<br />
as argumentações que, parecendo as mais puras e as<br />
mais exaustivas do assunto, são, no entanto, sempre<br />
deficientes e falsas.<br />
Ele é o supercivilizado dos sentidos, mas como<br />
que um supercivilizado ingênito, transbordado do meio,<br />
mesmo em virtude da sua percuciente agudeza de visão,<br />
da sua absoluta clarividência, da sua inata<br />
perfectibilidade celular, que é o gérmen fundamental<br />
de um temperamento profundo.<br />
Certos espíritos d’Arte assinalaram-se no tempo<br />
veiculado pela hegemonia das raças, pela preponderância<br />
das civilizações, tendo, porém, em toda a parte, um valor<br />
que era universalmente conhecido e celebrizado, porque,<br />
para chegar a esse grau de notoriedade, penetrou<br />
primeiro nos domínios do oficialismo e da cotterie.<br />
Os de Estética emovente e exótica, os gueux, os<br />
requintados, os sublimes iluminados por um clarão
624 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
fantástico, como Baudelaire, como Poe, os<br />
surpreendentes da Alma, os imprevistos missionários<br />
supremos, os inflamados, devorados pelo Sonho, os<br />
clarividentes e evocativos, que emocionalmente<br />
sugestionam e acordam luas adormecidas de<br />
Recordações e de Saudades, esses ficam imortalmente<br />
cá fora, dentre as augustas vozes apocalípticas da<br />
Natureza, chorados e cantados pelas Estrelas e pelos<br />
Ventos!<br />
Ah! benditos os Reveladores da Dor infinita! Ah!<br />
soberanos e invulneráveis aqueles que, na Arte, nesse<br />
extremo requinte de volúpia, sabem transcendentalizar<br />
a Dor, tirar da Dor a grande Significação eloqüente e<br />
não amesquinhá-la e desvirginá-la!<br />
A verdadeira, a suprema força d’Arte está em<br />
caminhar firme, resoluto, inabalável, sereno através de<br />
toda a perturbação e confusão ambiente, isolado no<br />
mundo mental criado, assinalando com intensidade e<br />
eloqüência o mistério, a predestinação do temperamento.<br />
É preciso fechar com indiferença os ouvidos aos<br />
rumores confusos e atropelantes e engolfar a alma, com<br />
ardente paixão e fé concentrada, em tudo o que se sente<br />
e pensa com sinceridade, por mais violenta, obscura ou<br />
escandalosa que essa sinceridade à primeira vista<br />
pareça, por mais longe das normas prestabelecidas que<br />
a julguem – para então assim mais elevadamente<br />
estrelar os Infinitos da grande Arte, da grande Arte que<br />
é só, solitária, desacompanhada das turbas que<br />
chasqueiam, da matéria humana doente que convulsiona<br />
dentro das estreitezas asfixiantes do seu torvo caracol.<br />
Até mesmo, certos livros, por mais exóticos,<br />
atraentes, abstrusos, que sejam, por mais aclamados<br />
pela trompa do momento, nada podem influir, nenhuma<br />
alteração podem trazer ao sentimento geral de idéias<br />
que se constituíram sistema e que afirmam, de modo<br />
radical, mas simples, natural, por mais exagerado que<br />
se suponha, a calma justa das convicções integrais,
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 625<br />
absolutas, dos que seguem impavidamente a sua linha,<br />
dos que, trazendo consigo imaginativo espírito de<br />
Concepção, caminham sempre com tenacidade,<br />
serenamente, impertubáveis aos apupos inofensivos, sem<br />
tonturas de fascinação efêmera, sentindo e conhecendo<br />
tudo, com os olhos claros levantados e sonhadores cheios<br />
de uma radiante ironia mais feita de demência, de<br />
bondade do que de ódio.<br />
O Artista é que fica muitas vezes sob o signo fatal<br />
ou sob a auréola funesta do ódio, quando no entanto o<br />
seu coração vem transbordando de Piedade, vem<br />
soluçando de ternura, de compaixão, de misericórdia,<br />
quando ele só parece mau porque tem cóleras soberbas,<br />
tremendas indignações, ironias divinas que causam<br />
escândalos ferozes, que passam por blasfêmias negras,<br />
contra a Infâmia oficial do Mundo, contra o vicio hipócrita,<br />
perverso, contra o postiço sentimento universal<br />
mascarado de Liberdade e de Justiça.<br />
Nos países novos, nas terras ainda sem tipo étnico<br />
absolutamente definido, onde o sentimento d’Arte é<br />
silvícola, local, banalizado, deve ser espantoso, estupendo<br />
o esforço, a batalha formidável de um temperamento<br />
fatalizado pelo sangue e que traz consigo, além da<br />
condição inviável do meio, a qualidade fisiológica de<br />
pertencer, de proceder de uma raça que a ditadora<br />
ciência d’hipóteses negou em absoluto para as funções<br />
do Entendimento e, principalmente, do entendimento<br />
artístico da palavra escrita.<br />
Deus meu! por uma questão banal da química<br />
biológica do pigmento ficam alguns mais rebeldes e<br />
curiosos fósseis preocupados, a ruminar primitivas<br />
erudições, perdidos e atropelados pelas longas galerias<br />
submarinas de uma sabedoria infinita, esmagadora,<br />
irrevogável!<br />
Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor da<br />
minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade
626 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos<br />
e gritos? Qual a dos meus desejos e febre?<br />
Ah! esta minúscula humanidade, torcida,<br />
enroscada, assaltando as almas com a ferocidade de<br />
animais bravios, de garras aguçadas e dentes rijos de<br />
carnívoro, é que não pode compreender-me.<br />
Sim! tu é que não podes entender-me, não podes<br />
irradiar, convulsionar-te nestes efeitos com os arcaísmos<br />
duros da tua compreensão, com a carcaça paleontológica<br />
do Bom Senso.<br />
Tu é que não podes ver-me, atentar-me, sentirme,<br />
dos limites da tua toca de primitivo, armada do bordão<br />
simbólico das convicções pré-históricas, patinhando a<br />
lama das teorias, a lama das conveniências<br />
equilibrantes, a lama sinistra, estagnada, das tuas<br />
insaciáveis luxúrias.<br />
Tu não podes sensibilizar-te diante destes<br />
extasiantes estados d’alma, diante destes<br />
deslumbramentos estesíacos, sagrados, diante das<br />
eucarísticas espiritualizações que me arrebatam.<br />
O que tu podes, só, é agarrar com frenesi ou com<br />
ódio a minha Obra dolorosa e solitária e lê-la e detestála<br />
e revirar-lhe as folhas, truncar-lhe as páginas,<br />
enodoar-lhe a castidade branca dos períodos, profanarlhe<br />
o tabernáculo da linguagem, riscar, traçar, assinalar,<br />
cortar com dísticos estigmatizantes, com labéus<br />
obscenos, com golpes fundos de blasfêmia as violências<br />
da intensidade, dilacerar, enfim, toda a Obra, num ímpeto<br />
covarde de impotência ou de angústia.<br />
Mas, para chegares a esse movimento apaixonado,<br />
dolorido, já eu antes terei, por certo – eu o sinto, eu o<br />
vejo! – te arremessado profundamente, abismantemente<br />
pelos cabelos a minha Obra e obrigado a tua atenção<br />
comatosa a acordar, a acender, a olfatar, a cheirar com<br />
febre, com delírio, com cio, cada adjetivo, cada verbo<br />
que eu faça chiar como um ferro em brasa sobre o<br />
organismo da Idéia, cada vocábulo que eu tenha pensado
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 627<br />
e sentido com todas as fibras, que tenha vivido com os<br />
meus carinhos, dormido com os meus desejos, sonhado<br />
com os meus sonhos, representativos, integrais, únicos,<br />
completos, perfeitos, de uma convulsão e aspiração<br />
supremas.<br />
Não conseguindo impressionar-te, afetar-te a bossa<br />
intelectiva, quero ao menos sensacionar-te a pele,<br />
ciliciar-te, crucificar-te ao meu estilo, desnudando ao<br />
sol, pondo abertas e francas todas as expressões,<br />
nuances e expansibilidades deste amargurado ser, tal<br />
como sou e sinto.<br />
Os que vivem num completo assédio no mundo,<br />
pela condenação do Pensamento, dentro de um báratro<br />
monstruoso de leis e preceitos obsoletos, de convenções<br />
radicadas, de casuísticas, trazem a necessidade inquieta<br />
e profunda de como que traduzir, por traços<br />
fundamentais, as suas faces, os seus aspectos, as suas<br />
impressionabilidades e, sobretudo, as suas causas<br />
originais, vindas fatalmente da liberdade fenomenal da<br />
Natureza.<br />
Ah! Destino grave, de certo modo funesto, dos que<br />
vieram ao mundo para, com as correntes secretas dos<br />
seus pensamentos e sentimentos, provocar convulsões<br />
subterrâneas, levantar ventos opostos de opiniões,<br />
mistificar a insipiência dos adolescentes intelectuais, a<br />
ingenuidade de certas cabeças, o bom senso dos cretinos,<br />
deixar a oscilação da fé, sobre a missão que trazem, no<br />
espírito fraco, sem consistência de crítica própria, sem<br />
impulsão original para afirmar os Obscuros que não<br />
contemporizam, os Negados que não reconhecem a<br />
Sanção oficial, que repelem toda a sorte de conchavos,<br />
de compadrismos interesseiros, de aplausos forjicados,<br />
por limpidez e decência e não por frivolidades de orgulhos<br />
humanos ou de despeitos tristes.<br />
Ah! Destino grave dos que vieram ao mundo para<br />
ousadamente deflorar as púberes e cobardes<br />
inteligências com o órgão másculo, poderoso da Síntese,
628 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
para inocular nas estreitezas mentais o sentimento<br />
vigoroso das Generalizações, para revelar uma obra bem<br />
fecundada de sangue, bem constelada de lágrimas, para,<br />
afinal, estabelecer o choque violento das almas,<br />
arremessar umas contra as outras, na sagrada, na<br />
bendita impiedade de quem traz consigo os vulcanizadores<br />
Anátemas que redimem.<br />
O que em nós outros Errantes do Sentimento<br />
flameja, arde e palpita é esta ânsia infinita, esta sede<br />
santa e inquieta, que não cessa, de encontrarmos um<br />
dia uma alma que nos veja com simplicidade e clareza,<br />
que nos compreenda, que nos ame, que nos sinta.<br />
E de encontrar essa alma assinalada pela qual<br />
viemos vindo de tão longe sonhando e andamos esperando<br />
há tanto tempo, procurando-a no Silêncio do mundo,<br />
cheios de febre e de cismas, para no seio dela cairmos<br />
frementes, alvoroçados, entusiastas, como no eterno seio<br />
da Luz imensa e boa que nos acolhe.<br />
É esta bendita loucura de encontrar essa alma<br />
para desabafar ao largo da Vida com ela, para respirar<br />
livre e fortemente, de pulmões satisfeitos e límpidos,<br />
toda a onda viva de vibrações e de chamas do Sentimento<br />
que contivemos por tanto e tão longo tempo guardada na<br />
nossa alma, sem acharmos uma outra alma irmã à qual<br />
pudéssemos comunicar absolutamente tudo.<br />
E quando a flor dessa alma se abre encantadora<br />
para nós, quando ela se nos revela com todos os seus<br />
sedutores e recônditos aromas, quando afinal a<br />
descobrimos um dia, não sentimos mais o peito opresso,<br />
esmagado: – uma nova torrente espiritual deriva do nosso<br />
ser e ficamos então desafogados, coração e cérebro<br />
inundados da graça de um divino amor, bem pagos de<br />
tudo, suficientemente recompensados de todo o<br />
transcendente Sacrifício que a Natureza heroicamente<br />
impôs aos nossos ombros mortais, para ver se<br />
conseguimos, aqui embaixo na Terra, encher, cobrir este<br />
abismo do Tédio com abismos da Luz!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 629<br />
O mundo, chato e medíocre nos seus<br />
fundamentos, na sua essência, é uma dura fórmula<br />
geométrica. Todo aquele que lhe procura quebrar as<br />
hirtas e caturras linhas retas com o poder de um simples<br />
Sentimento desloca de tal modo elementos de ordem<br />
tão particular, de natureza tão profunda e tão séria que<br />
tudo se turba e convulsiona; e o temerário que ousou<br />
tocar na velha fórmula experimenta toda a Dor<br />
imponderável que esse simples Sentimento<br />
responsabiliza e provoca.<br />
Eu não pertenço à velha árvore genealógica das<br />
intelectualidades medidas, dos produtos anêmicos dos<br />
meios lutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas<br />
girafas verdes e spleenéticas de algum maravilhoso e<br />
babilônico jardim de lendas...<br />
Num impulso sonâmbulo para fora do círculo<br />
sistemático das Fórmulas preestabelecidas, deixei-me<br />
pairar, em espiritual essência, em brilhos intangíveis,<br />
através dos nevados, gelados e peregrinos caminhos da<br />
Via-Láctea...<br />
E é por isso que eu ouço, no adormecimento de<br />
certas horas, nas moles quebreiras de vagos torpores<br />
enervantes, na bruma crepuscular de certas melancolias,<br />
na contemplatividade mental de certos poentes<br />
agonizantes, uma voz ignota, que parece vir do fundo da<br />
Imaginação ou do fundo mucilaginoso do Mar ou dos<br />
mistérios da Noite – talvez acordes da grande Lira<br />
noturna do Inferno e das harpas remotas de velhos céus<br />
esquecidos, murmurar-me:<br />
– “Tu és dos de Cam, maldito, réprobo,<br />
anatematizado! Falas em Abstrações, em Formas, em<br />
Espiritualidades, em Requintes, em Sonhos! Como se<br />
tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos<br />
arianos, depurado por todas as civilizações, célula por<br />
célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num<br />
verdadeiro cadinho de idéias, de sentimentos – direito,<br />
perfeito, das perfeições oficiais dos meios
630 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente,<br />
rei!, em galeras, dentre opulências, ou tivesses a<br />
aventura magna de ficar perdido em Tebas,<br />
desoladamente cismando através de ruínas; ou a iriada,<br />
peregrina e fidalga fantasia dos Medievos, ou a lenda<br />
colorida e bizarra por haveres adormecido e sonhado,<br />
sob o ritmo claro dos Astros, junto às priscas margens<br />
venerandas do Mar Vermelho!<br />
Artista! pode lá isso ser se tu és d’África, tórrida<br />
e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto,<br />
tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no<br />
lodo das Civilizações despóticas, torvamente<br />
amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia!<br />
A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das<br />
Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas,<br />
gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido das<br />
profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração<br />
humana! A África laocoôntica, alma de trevas e de<br />
chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente<br />
tempestuosa como a alma espiritualizada e tantálica da<br />
Rússia, gerada no Degredo e na Neve – pólo branco e<br />
pólo negro da Dor!<br />
Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu<br />
vens dessa longínqua região desolada, lá no fundo exótico<br />
dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e<br />
sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada<br />
África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa<br />
de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal;<br />
dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada<br />
pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal<br />
e tenebrosa das maldições eternas!<br />
A África virgem, inviolada no Sentimento,<br />
avalanche humana amassada com argilas funestas e<br />
secretas para fundir a Epopéia suprema da Dor do Futuro,<br />
para fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de<br />
algum novo e majestoso Dante negro!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 631<br />
Dessa África que parece gerada para os divinos<br />
cinzéis das colossais e prodigiosas esculturas, para as<br />
largas e fantásticas Inspirações convulsas de Doré –<br />
Inspirações inflamadas, soberbas, choradas, soluçadas,<br />
bebidas nos Infernos e nos Céus profundos do Sentimento<br />
humano.<br />
Dessa África cheia de solidões maravilhosas, de<br />
virgindades animais instintivas, de curiosos fenômenos<br />
de esquisita Originalidade, de espasmos de Desespero,<br />
gigantescamente medonha, absurdamente ululante –<br />
pesadelo de sombras macabras – visão valpurgiana de<br />
terríveis e convulsos soluços noturnos circulando na<br />
Terra e formando, com as seculares, despedaçadas<br />
agonias da sua alma renegada, uma auréola sinistra,<br />
de lágrimas e sangue, toda em torno da Terra...<br />
Não! Não! Não! Não transporás os pórticos<br />
milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás<br />
de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram<br />
acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre<br />
pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado<br />
de uma raça.<br />
Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás,<br />
ansioso, aflito, numa parede horrendamente<br />
incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se<br />
caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências<br />
e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará<br />
profundamente no espanto! Se caminhares para a frente,<br />
ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências,<br />
tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto!<br />
Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma<br />
derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo –<br />
horrível! – parede de Imbecilidade e Ignorância, te<br />
deixará num frio espasmo de terror absoluto...<br />
E mais pedras, mais pedras se sobreporão às<br />
pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras...<br />
Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações<br />
e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas<br />
paredes hão de subir – longas, negras, terríficas! Hão
632 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até as Estrelas,<br />
deixando-te para sempre perdidamente alucinado e<br />
emparedado dentro do teu Sonho...”
Correspondência<br />
Correspondência
634 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
1. À COMISSÃO ORGANIZADORA DO CLUBE<br />
DOS JORNALISTAS<br />
[Bahia, l o semestre de 1885].<br />
Como representante da Gazeta da Tarde, da Bahia,<br />
congratulo-me com o Clube dos Jornalistas, aplaudindo,<br />
no maior grau das minhas convicções sociais, essa<br />
brilhante idéia regeneradora. Assim como a biblioteca é<br />
o restaurante do espírito, a imprensa é o grande sol da<br />
consciência coletiva. Abraço por isso o jornalismo<br />
fluminense, que deve ser a consubstanciação da<br />
democracia moderna.<br />
Cruz e Sousa<br />
2. À SOCIEDADE CARNAVALESCA DIABO A<br />
QUATRO<br />
Desterro, 31 de maio de 1887.<br />
Ilmos. Srs.<br />
Cumpre-me responder ao ofício de Vv. Ss. que me<br />
foi dirigido em data de 20 deste mês. Agradecendo,<br />
sumamente penhorado, as amabilidades cavalheirosas<br />
e distinções que no aludido ofício me fazem, cabe-me a<br />
ocasião de cumprimentar, de saudar altamente, com<br />
um largo sopro de retumbante clarim de aplauso, a digna<br />
e prestimosíssima Sociedade Carnavalesca Diabo a<br />
Quatro, à qual Vv. Ss. estão agremiados, pela idéia<br />
grandiosa e simpática de promover a libertação dos<br />
cativos desta capital. A Sociedade Diabo a Quatro, que<br />
ri, que solta a gargalhada do bom humor que abre nos<br />
corações de todos, ao sol da idéia, a luminosa e<br />
resplandecente febre da alegria, nos curtos dias do seu<br />
curto mas pitoresco reina do de galhofa e de crítica – os<br />
dias de carnaval – definiu e ampliou ainda mais a alma
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 635<br />
franca e forte que costuma ter nas festas de Momo, dando<br />
a essa alma toda a amplidão serena da liberdade.<br />
Eu faço significar, com toda a lealdade, o meu<br />
aplauso a essa estimável corporação, e ponho ao dispor<br />
da bela causa dos tristes, não só a minha insignificante<br />
e deslustrada pena, não só o meu pequenino préstimo<br />
intelectivo, mas todo o meu coração de patrício, que é,<br />
para estes casos, o fator absoluto, aberto como um<br />
estandarte de paz e democracia. A Sociedade Diabo a<br />
Quatro que tenha sempre como divisa de luta este<br />
princípio filosófico e político de um economista inglês:<br />
“Destruir para organizar”. Deus guarde a Vv. Ss.<br />
Cruz e Sousa<br />
3. A GAVITA<br />
Rio, 31 de março de 1892.<br />
Minha adorada Gavita<br />
Estou cheio de saudades por ti. Não podes<br />
imaginar, filhinha do meu coração, como acho grandes<br />
as horas, os dias, a semana toda. O sábado, esse sábado<br />
que eu tanto amo, como custa tanto a vir. Ah! como se<br />
demora o sábado. E tu, minha boa flor da minh’alma,<br />
que és o meu cuidado, a minha felicidade, o meu orgulho,<br />
a minha vida, não sabes como eu penso em ti, como eu<br />
te quero bem e te desejo feliz. Tu, Gavita, não me<br />
conheces ainda bem, não sabes que amor eterno eu<br />
tenho no coração por ti, como eu adoro os teus olhos que<br />
me dão alegria, as tuas graças de mulher nova, de moça<br />
carinhosa e amiga de sua boa mãe.<br />
Quanto mais te vejo mais te desejo ver, olhar<br />
muito, reparar bem no teu rosto, nos teus modos, nos<br />
teus movimentos, nas tuas palavras, nos teus olhos e<br />
na tua voz, para sentir bem se tu és firme, fiel, se me
636 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
tens verdadeira estima, verdadeira amizade bem do fundo<br />
do teu coração virgem, bem do fundo do teu sangue.<br />
Por minha parte sempre te quererei muito bem e<br />
nada haverá no mundo que me separe de ti, minha<br />
filhinha adorada.<br />
Se o juramento que me fizeste dentro da igreja é<br />
sagrado e se pensas nele com amor, eu creio em ti para<br />
sempre, em ti que és hoje a maior alegria da minha<br />
vida, a única felicidade que me consola e que me abre<br />
os braços com carinho.<br />
Estar junto de ti, eu, que nunca dei o meu coração<br />
assim a ninguém, tão apaixonadamente, como te dei a<br />
ti, é para mim ser muito feliz. Quando estou a teu lado,<br />
Gavita, esqueço-me de tudo, das ingratidões, das<br />
maldades e só sinto que os teus olhos me fazem morrer<br />
de prazer. Adeus! Aceita um beijo muito grande na boca<br />
e vem que eu espero por ti no sábado, como um louco.<br />
Teu<br />
Cruz<br />
4. A GAVITA<br />
Noite de terça-feira, 20 de setembro, às 7 horas.<br />
Minha adorada Noiva<br />
Saudades, saudades, muitas saudades é o que<br />
eu sinto por ti.<br />
Escrevo-te triste por não te ver e tenho, na hora<br />
em que te escrevo, o teu querido retrato diante de mim,<br />
entre os meus livros, companheiros dos meus<br />
sofrimentos.<br />
Minha Vivi estremecida, nunca me esquecerei do<br />
dia 18 de setembro, aniversário do dia em que tive o<br />
prazer de ver-te pela primeira vez, de admirar os teus<br />
lindos olhos, a graça de todo o teu corpo, toda a tua<br />
pessoa amável que me prendeu para sempre com os laços
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 637<br />
do mais profundo e sincero amor. Acredita, minha filha<br />
adorada do coração, que eu te tenho como o consolo<br />
maior da minha vida, a luz do meu coração, a esperança<br />
feliz da minha alma. Por minha honra te juro que, sempre<br />
serei teu, que podes viver descansada, sem desconfiança,<br />
porque o teu Cruz nunca será de outra e só à Vivi fará<br />
carinhos, dedicará extremos, amizade eterna.<br />
Pela minha honra e pelo dia em que nos vimos<br />
pela primeira vez, juro-te que só quero a tua felicidade,<br />
só desejo dar-te prazer e tratar-te com os mimos e<br />
delicadezas, de que tenho dado provas, bastante.<br />
A todas as horas o meu pensamento voa para onde<br />
tu estás, vejo-te sempre, sempre e nunca me esqueço<br />
de ti em toda a parte onde estou. És a minha preocupação<br />
constante, o meu desejo mais forte, a minha alegria<br />
mais do coração. Amo-te, amo-te muito, com todo o meu<br />
sangue e com todo o meu orgulho e o meu desejo poderoso<br />
é unir-me a ti, viver nos teus braços, protegido pela tua<br />
bondade pura, pelas tuas graças que eu adoro, pelos<br />
teus olhos que eu beijo. No momento em que te escrevo<br />
sinto uma grande falta de ti. Só, no meu quarto, eu só<br />
possuo, para consolar-me o teu retrato. Mas é muito<br />
pouco. Eu te queria a ti, em pessoa, para te apertar de<br />
abraços, pedindo a Deus para abençoar o nosso amor.<br />
Esta carta é como mais um juramento feito a ti pelo dia<br />
18 de setembro, em que te vi pela primeira vez apanhando<br />
flores, tu, que és a flor dos meus sonhos.<br />
Espero-te sábado, com aquele penteado de<br />
domingo, que te fazia muito bonita. Adeus! Beijo-te muito<br />
os olhos, a boca e as mãos e dou-te abraços muito<br />
apertados, bem junto ao meu coração, que palpita de<br />
saudades por ti.<br />
Teu<br />
Cruz e Sousa
638 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
5. A GAVITA<br />
Quinta-feira, 17 de novembro, à 1 hora da tarde.<br />
Minha doce e muito estremecida Vivi<br />
Sinto as maiores saudades de ti, que és a alegria<br />
do meu coração, o consolo da minha vida.<br />
Desde a última noite que te deixei tenho me<br />
lembrado sempre de ti e o teu nome adorável não me<br />
sai da boca a toda a hora: Estimo de toda a minh’alma<br />
que estejas passando bem de saúde. Eu vou bem, apenas<br />
com a tristeza de não estar sempre a teu lado, junto de<br />
ti, que és hoje para mim no mundo o maior prazer, a<br />
maior satisfação.<br />
Sou teu como tu és minha, sem me importar com<br />
ninguém. Só me lembro que tu vives e que eu te quero<br />
extremosamente, com toda a delicadeza e carinhos do<br />
meu amor. Tu é que me fazes feliz, orgulhoso, rei do<br />
mundo, porque de tuas qualidades, a tua bondade, o teu<br />
sorriso, os teus olhos me fazem o homem mais contente,<br />
mais alegre do mundo, minha pomba querida, luz da<br />
minha vida inteira, Noiva adorada e santa.<br />
Como sempre, estou ansioso que chegue sábado,<br />
morrendo de saudades por ti, flor da minh’alma, que<br />
tanta coragem me dás para a vida e tanta esperança. O<br />
teu bom coração pode descansar em mim, porque eu<br />
sou teu como se já fosse casado, vivendo na mesma casa<br />
contigo, gozando, os teus carinhos. Ah! Gavita, o céu te<br />
abençoe, Deus te proteja e te acompanhe sempre para<br />
que tu saibas ver o amor eterno que eu te tenho e que<br />
está firme no meu coração.<br />
Adeus! Recebe o meu sangue, as minhas lágrimas,<br />
os meus beijos, os meus abraços.<br />
Teu<br />
Cruz e Sousa
6. A GAVITA<br />
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 639<br />
Rio de Janeiro, quarta-feira, 14 de dezembro de 1892,<br />
7 horas da noite.<br />
Minha estremecida Vivi<br />
A hora em que te escrevo tenho diante de mim o<br />
teu retrato, que trago sempre comigo, que é o meu<br />
melhor companheiro e amigo.<br />
Adorada do meu coração, não calculas a saudade<br />
que sinto de ti, como eu desejava agora estar ao pé de<br />
ti, na alegria e na felicidade da tua presença querida,<br />
flor da minha vida, consolo do meu coração.<br />
Desejo que tenhas passado bem esses dias e que<br />
só tenhas como sofrimento, como pesar o não nos vermos,<br />
o estares longe de mim, porque isso é o que mais me faz<br />
infeliz e triste.<br />
Sabes quanto eu te amo, quanto eu te quero do<br />
fundo do meu sangue sobre todas as mulheres do mundo.<br />
Fico sempre alegre, contente, cheio de orgulho, quando<br />
te posso dizer que sou e serei sempre teu, que hei de<br />
amar-te até a morte, enchendo-te dos carinhos, das<br />
amabilidades, dos extremos, das distinções que só a ti<br />
eu quero dar, idolatrada Gavita, adorável criatura dos<br />
meus sonhos, dos meus cuidados e, pensamentos.<br />
Só tu, és a Rainha do meu amor, só tu mereces<br />
os meus beijos e os meus abraços, a honra do meu nome,<br />
a distinção da minha Inteligência, os segredos da<br />
minh’alma.<br />
Só tu és merecedora de que eu te ame muito,<br />
como te amo, muito, muito, muito, e cada vez mais, com<br />
mais firmeza, sempre fiel, sempre teu escravo bom e<br />
agradecido, fazendo de ti, minha estrela, a esposa santa,<br />
a adorada companheira dos meus dias. Vê lá que orgulho<br />
tu não deves ter! Adeus! Adeus! Estou morto para que<br />
chegue sábado e ter o prazer, maior de todos os prazeres,<br />
de estar contigo.<br />
Aceita beijos e abraços do teu<br />
Cruz e Sousa
640 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
7. A GERMANO WENDHAUSEN<br />
Desterro, 2 de abril de 1888.<br />
Caríssimo e nobre amigo<br />
Germano Wendhausen<br />
Venho, mais uma vez, valer-me da sua proteção,<br />
da generosidade dos seus sentimentos, pedindo-lhe que<br />
me faça a gentileza de me ouvir. Ilustre amigo, não sei<br />
se sabe ou não a situação difícil da minha vida nem o<br />
estado de fatalidade em que me acho; no entretanto,<br />
acreditando-me um individuo sério e leal, dará a atenção<br />
devida às minhas palavras.<br />
Acontece que, por largo espaço de tempo, me tenho<br />
visto embaraçado, muito afogado de lutas, achando<br />
sempre contrariedades em tudo que proponho fazer para<br />
melhorar de estado, para trabalhar, ter um futuro mais<br />
garantido e seguro, não encontrando nunca o auxílio de<br />
ninguém. Como deve saber, na Tribuna Popular, onde<br />
escrevo, nada me dão, nem eu o exijo porque não o podem<br />
fazer, e eu estou ali, apenas, para ajudar o Lopes, porque<br />
o faço generosamente, de coração aberto, com dedicação<br />
e simpatia, e mesmo, pela grande causa abolicionista<br />
que nós todos defendemos com desinteresse e honra.<br />
Já vê o meu nobre amigo que, nas dificuldades em que<br />
estou, tenho absoluta necessidade de procurar destino.<br />
Assim, tendo já deliberado a minha viagem para a Corte,<br />
venho valer-me do seu prestígio e da sua generosidade<br />
jamais desmentidos pedindo-lhe encarecidamente para<br />
influir com o seu amigo e correligionário Virgílio Villela<br />
sobre uma passagem, ou, no caso de ser isso<br />
absolutamente impossível, embora o meu excelente<br />
amigo envide os seus esforços, fazer-me o supremo<br />
obséquio de me emprestar 50$000 réis para eu poder<br />
transportar-me, pois, fica na honestidade do meu caráter
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 641<br />
e do meu brio satisfazer-lhe essa importância desde que<br />
o trabalho me garanta mais poderes para isso.<br />
Bem sei que já o ocupei e que me serviu tão<br />
bondosamente, com tanta consideração e apreço, mas,<br />
no estado em que vivo não vejo a quem recorrer senão à<br />
sua prestimosa individualidade.<br />
Sabe Deus quanto me custa e quanto a minha<br />
dignidade se vê abatida por me ver obrigado a fazer-lhe<br />
tal pedido! Mas, acredite o sr. Germano Wendbausen<br />
que em mim terá sempre um rapaz sincero, franco e<br />
leal, daqueles que não abusam e que sabem ser gratos.<br />
Só a sua pessoa me pode valer, e eu a ela me dirijo com<br />
confiança, em nome de sua veneranda mãe.<br />
Disponha sempre de um amigo firme, que fará<br />
mais e mais por se tornar digno da sua estima e<br />
consideração que tanto distinguem as pessoas que têm<br />
a felicidade de as possuir.<br />
Cruz e Sousa<br />
8. A GERMANO WENDHAUSEN<br />
Corte, junho de 1888.<br />
Caro amigo Germano Wendhausen<br />
Cá estou nesta grande capital que cada vez mais<br />
se distingue pelo movimento e atividade mercantil de<br />
que dispõe em alto grau. Isto importa dizer que continuo<br />
a ser amigo e apreciador sincero e firme das pessoas<br />
que, como o meu belo e generoso amigo, tanto me<br />
desvaneceram e honraram com a sua consideração e<br />
simpatia. Um dever de cavalheirismo, pois reconheço a<br />
franqueza, modéstia e o desprendimento do meu<br />
excelente e digno patrício, me faz deixar de falar nas<br />
gentilezas incomparáveis que me fez, que eu não<br />
esquecerei nunca e que em tempo saberei retribuir como<br />
precisa ser.
642 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
O senador Taunay recebeu a minha carta, isto é<br />
– a carta que os adoráveis e distintos amigos aí me deram<br />
para ele; porém nem ao menos me mandou entrar,<br />
procedimento esse que me autorizou a não voltar mais à<br />
casa de tal senhor. Embora eu precise fazer carreira,<br />
não necessito, porém, ser maltratado; e, desde que o<br />
sou, pratico conforme a norma do meu caráter. –<br />
Deixemos o sr. Taunay que não passa de um parlapatão<br />
em tudo por tudo.<br />
Aqui, em alguns arrabaldes, também continuam,<br />
com bastante brilho, diferentes festejos em homenagem<br />
à libertação do país. Até 15 ainda assisti algumas<br />
manifestações de regozijo ao triunfante e heróico<br />
acontecimento que ainda me faz pulsar de alegria o<br />
coração e o cérebro.<br />
A imprensa tem me recebido bem, tenho sido<br />
apresentado a todos os escritores da corte, alguns dos<br />
quais conhecem-me. – Queira dar-me a honra de<br />
escrever e recomendar-me à Exma. família, a Manuel<br />
Bithen court, Margarida, Schmidt, dr. Paiva, Manuel João<br />
e a toda a leal e gloriosa falange do Diabo a Quatro. –<br />
Sou, com consideração e sinceridade, amigo e criado<br />
agradecido.<br />
Cruz e Sousa<br />
9. A VIRGILIO VÁRZEA<br />
Corte, 8 de janeiro de 1889.<br />
Adorado Virgílio<br />
Estou em maré de enjôo físico e mentalmente<br />
fatigado. Fatigado de tudo: de ver e ouvir tanto burro, de<br />
escutar tanta sandice e bestialidade e de esperar sem<br />
fim por acessos na vida, que nunca chegam. Estou<br />
fatalmente condenado à vida de miséria e sordidez,<br />
passando-a numa indolência persa, bastante prejudicial
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 643<br />
à atividade do meu espírito e ao próprio organismo que<br />
fica depois amarrado para o trabalho.<br />
Não sei onde vai parar esta coisa. Estou<br />
profundamente mal, e só tenho a minha família, só te<br />
tenho a ti, a tua belíssima família, o Horácio e todos os<br />
outros nobres e bons amigos, que poucos são. Só dessa<br />
linda falange de afeições me aflige estar longe e morro,<br />
sim de saudades. Não imaginas o que se tem passado<br />
por meu ser, vendo a dificuldade tremendíssima,<br />
formidável em que está a vida no Rio de Janeiro. Perdese<br />
em vão tempo e nada se consegue. Tudo está furado,<br />
de um furo monstro. Não há por onde seguir. Todas as<br />
portas e atalhos fechados ao caminho da vida, e, para<br />
mim, pobre artista ariano, ariano sim porque adquiri,<br />
por adoção sistemática, as qualidades altas dessa grande<br />
raça, para mim que sonho com a torre de luar da graça<br />
e da ilusão, tudo vi escarnecedoramente, diabolicamente,<br />
num tom grotesco de ópera bufa.<br />
Quem me mandou vir cá abaixo à terra arrastar a<br />
calceta da vida! Procurar ser elemento entre o espírito<br />
humano?! Para quê? Um triste negro, odiado pelas castas<br />
cultas, batido das sociedades, mas sempre batido,<br />
escorraçado de todo o leito, cuspido de todo o lar como<br />
um leproso sinistro! Pois como! Ser artista com esta cor!<br />
Vir pela hierarquia de Eça, ou de Zola, generalizar<br />
Spencer ou Gama Rosa, ter estesia artística e verve,<br />
com esta cor? Horrível!<br />
És um coração partido, acabo de saber pela tua<br />
chorosa carta.<br />
Broken heart! Broken heart!<br />
A tua Lilly emigrou, doce pássaro d’amor, para<br />
esta tumultuosa cidade.<br />
Hoje vou vê-la e à mãe e as flores que elas<br />
espalharam pela tua lembrança e pelo teu coração, eu<br />
farei com que cheguem ainda vivas e cheirosas junto de<br />
ti. Quero ver como essa avezinha escocesa trina de amor<br />
e saudade...
644 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Adeus! Saudades infinitas à tua encantadora<br />
família, e que eu lhe desejo bons anos de ouro e de<br />
festas alegríssimas no meio da mais soberana das<br />
satisfações.<br />
Abraços no celestial Horácio, no Araújo, no Jansen<br />
e no digno Lopes da nossa Tribuna e no excelente e<br />
adorabilíssimo Bithencourt.<br />
Veste o croisé e vai, por minha parte, apresentar<br />
pêsames sinceros e honestos às tuas Exmas. primas,<br />
pela morte do cavalheiro, do limpo homem de distinção<br />
José Feliciano Alves de Brito. Não te esqueças. Honrame<br />
por esse modo delicado e gentil. Abraça-te<br />
terrivelmente saudoso.<br />
Cruz e Sousa<br />
10. A ARAÚJO FIGUEIREDO<br />
Ondina, abril, de tarde, 2, de 90.<br />
Meu querido poeta<br />
Não! Nem canalha, nem mulato, nem ingrato! Não<br />
julgues, meu madrigalesco sonhador, que eu sou o vidro<br />
de cheiro, na frase do Várzea, do Rodolfinho Oliveira;<br />
ele, sim, palito humano, como é, é quem deve ter raivas<br />
fáceis e banais ao não receber cartas tuas. E até tu<br />
dando-me zangas e canseiras caixeirais pelas demoras<br />
de notícias tuas em cartas tuas, igualas-me, comparasme,<br />
muito naturalmente e muito logicamente como o<br />
vidrinho de cheiro. Mas, vade retro, Araújo! como o outro<br />
que dizia – Vade retro, Fradique. Jamais me parecerei<br />
com o Rodolfinho: nem nas unhas.<br />
Eu, claramente sei o que são atropelos de chegada<br />
e depois gozos e gostos de provinciano largamente<br />
impulsionados e vibrados numa grande capital como esta<br />
em que agora vives lordificado e regalado... Assim,<br />
claramente sei também, e vivamente sinto também, que
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 645<br />
em tais cidades, o rumor, sol alto dos assuntos mais<br />
inauditos, inflamam, queimam, incendeiam qualquer<br />
provinciano, tanto mais quando o provinciano, como tu,<br />
tem qualidades e sentimentos de arte.<br />
Portanto, sabendo tudo meu espírito, da visão que<br />
tenho das coisas, fútil, grandemente fútil foi começares<br />
os teus linguaços de correspondência, em data de 15 do<br />
que acabou, com aquela suposição de lamuriosas queixas.<br />
No mais, não: a tua carta vem arejada, com ar de<br />
outros ares, como se o teu viver fosse de dentro de uma<br />
toca transportado a um alto castelo situado no mar...<br />
Sim senhor! Adoro-lhe as atitudes, a maneira livre,<br />
a nota que tem tomado no Rio. – Belo Rio esse, que tão<br />
cristalinas águas saudáveis possui para duchar os poetas!<br />
Quanto ao perguntar se podes mandar<br />
correspondência para a Tribuna achas outra pergunta<br />
de muletas. Para que interrogações? Corrija-se disso.<br />
Manda, manda tudo! Manda a cabeça do Castro<br />
Lopes com arroz; do Melo Moraes, com batatas; do Gastão<br />
Bousquet, com abóboras; do Soares de Sousa Júnior,<br />
com quiabos; do Gregório de Almeida, com lingüiça; do<br />
Barão de Paranapiacaba, com pepinos; do Taunay, com<br />
cenouras; do Rangel Sampaío, com feijões; manda,<br />
manda todos esses caracteres verdes, manda tudo, que<br />
quero empanturrar, fazer rebentar de comedorias a<br />
terra.<br />
Isto, em blague; agora sem blague:<br />
Saberás ou já sabes? que por Maio sigo para aí e<br />
conto morar contigo. Nada digas ainda sobre essa<br />
resolução ao Oscar. Depois ele o saberá. Convém-me<br />
mais morar contigo enquanto não tiver ocupação segura.<br />
Por isso apronta-te para receber-me que no<br />
princípio d’aquele mês, ou por meados dele, lá estarei,<br />
num impulso de verve, a chicotear esses literatos de<br />
sapatos, que aí também os há, e a abraçar-te fortemente,<br />
amorosamente, num longo abraço espiritual, a ti e ao<br />
Oscar.
646 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Adeus! Florzinha! Só me punge agora a dor de<br />
não ter uns beijuzitos da titia para mandar-te como<br />
recuerdo...<br />
Manda a correspondência, mas coisa com jeito, e<br />
escreve-me, como na cantiga, ao menos uma vez na vida.<br />
Até a volta.<br />
Teu<br />
Cruz e Sousa<br />
11. A LUIZ DELFINO<br />
Capital Federal, 19 de novembro de 1893.<br />
Ilustre Poeta Amigo<br />
Com os cumprimentos de estima e consideração<br />
que lhe apresento, tomo novamente a liberdade de<br />
importuná-lo com relação ao pedido que tive necessidade<br />
de fazer-lhe por carta.<br />
Uma vez que se não dignou responder-me, peçolhe<br />
ainda, apelando para os seus generosos sentimentos<br />
de homem, que me sirva, já não direi com a quantia de<br />
300$000 réis, como lhe pedi, mas ao menos com a metade<br />
ou mesmo com 100$000 réis, pois é bem dolorosa a minha<br />
situação neste momento.<br />
Peço-lhe, que mesmo em sentido negativo, resolva<br />
com urgência este bastante difícil pedido.<br />
Seu admirador e am°<br />
Cruz e Sousa.<br />
12. A GONZAGA DUQUE<br />
Rio, 11 de abril de 1894.<br />
Na impossibilidade de falar-te calmamente,<br />
escrevo-te uma ligeira exposição sobre a Revista dos<br />
Novos.<br />
Penso que o grupo que deve naturalmente<br />
constituir os combatentes da Revista dos Novos tem de
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 647<br />
ser composto da tua individualidade, Emiliano Perneta,<br />
Oscar Rosas, Arthur de Miranda, Nestor Victor, B. Lopes,<br />
Emilio de Menezes, Lima Campos, Araújo Figueiredo,<br />
Virgílio Várzea, Santa Rita, Maurício Jubim, Cruz e<br />
Sousa e Gustavo Lacerda, simplesmente sendo que este<br />
último deverá dar escritos sintéticos, muito<br />
generalizados, sem personalismo, sobre política<br />
socialista. Penso assim por que esses foram sempre,<br />
mais ou menos de vários modos intelectuais, e em tese,<br />
os nossos companheiros, tendo cada um deles, na<br />
proporção de sua aptidão, na esfera de sua<br />
perfectibilidade, um sentimento homogêneo do<br />
sentimento comum na Arte do Pensamento escrito. Penso<br />
também que o único homem fora da nossa linha artística<br />
de seleção relativa possível, que deve ser simpaticamente<br />
admitido, para críticas científicas para artigos de caráter<br />
positivo moderno, é o dr. Gama Rosa, que podemos<br />
considerar, à parte toda a nossa independência e rebelião<br />
como um austero e curioso Patriarca do Pensamento<br />
novo.<br />
Os mais, seja quem for, que venham de fora, isto<br />
é, que se apresentem com trabalhos estéticos e de tal<br />
natureza alevantados e sérios que possam ser admitidos<br />
nas colunas nobres da grande “Revista”, para o que basta<br />
apenas uma análise severa, rigorosa, desses trabalhos.<br />
Enfim, apenas esse deve de ser o grupo fundador<br />
por excelência, deve constituir o corpo uno das Idéias<br />
da Revista nos seus elevados fundamentos gerais, à parte<br />
dos detalhes da compreensão de cada um em particular.<br />
Entre esses fundamentos gerais acho que deve ser um<br />
dos principais, o maior e mais firme radicalismo sobre<br />
teatro, não permitir seções, notícias, folhetins ou coisa<br />
que diga respeito a teatro que, por princípio e integração<br />
de Idéias, não deve existir para a nossa orientação d’Arte<br />
na Revista dos Novos.<br />
Teu<br />
Cruz e Sousa
648 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
13. A NESTOR VITOR<br />
Rio, 16, dezembro de 1894.<br />
Meu caro Nestor<br />
Sobre a minha pretensão tenho a dizer-te que um<br />
dos lugares que me serve é o de amanuense, que tem<br />
um vencimento maior do que o lugar que exerço<br />
atualmente.<br />
O dr. Piragiba que aluda a isso ao marechal Jardim,<br />
pois o meu amigo Ricardo de Albuquerque também se<br />
interessa com grande e decidido esforço. Também não<br />
deixo de aceitar o teu empenho, conforme falaste para o<br />
d. Antonio Olyntho a quem sou bastante simpático,<br />
segundo estou informado.<br />
O momento é de decisão e eficácia. Já longo e<br />
doloroso tempo tenho aguardado uma melhora na vida.<br />
Teu<br />
Cruz e Sousa<br />
14. A NESTOR VÍTOR<br />
Rio, 18 de março de 1896.<br />
Meu Grande Amigo<br />
Peço-te que venhas com a máxima urgência a<br />
minha casa, pois minha mulher está acometida de uma<br />
exaltação nervosa, devido ao seu cérebro fraco que,<br />
apesar das minhas palavras enérgicas em sentido<br />
contrário e da minha atitude de franqueza em tais casos,<br />
acredita em malefícios e perseguições de toda a espécie.<br />
Cá te direi tudo. A tua presença me aclarará o alvitre<br />
que devo tomar.<br />
Escrevo-te dolorosamente aflito.<br />
Teu<br />
Cruz e Sousa
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 649<br />
15. A ALBERTO COSTA<br />
Rio, 8 de maio de 1896.<br />
Meu caro Amigo<br />
Abraço-o com afeto e recomendo-me a Exma.<br />
família.<br />
Ouso insistir no pedido que lhe fiz por carta, pois<br />
acho-me na maior angústia e não tenho outro recurso<br />
senão importuná-lo ainda uma vez. Peço-lhe<br />
encarecidamente que me sirva, se não em toda ao menos<br />
na metade da importância que eu lhe solicitei. As minhas<br />
contrariedades e aflições avolumam-se cada vez mais.<br />
O amigo não pode calcular certamente nem a<br />
metade da situação por que estou passando.<br />
Pode confiar na pessoa que lhe entregar esta carta.<br />
Sempre ao seu dispor, com simpatia e<br />
reconhecimento.<br />
Am o Obmo<br />
Cruz e Sousa<br />
16. A NESTOR VITOR<br />
Rio, 2, junho, 96.<br />
Nestor<br />
Desejo muito que me faças um sacrifício de amigo,<br />
ao menos com a quantia de vinte mil réis.<br />
Tenho tido grandes saudades da nossa convivência,<br />
tão consoladora e tão nobre.<br />
Aparece que tenho uns trabalhos para mostrarte.<br />
Teu profundo amigo.<br />
Cruz e Sousa
650 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
17. A ARAÚJO FIGUEIREDO<br />
Rio, 8 de janeiro de 1897.<br />
Caríssimo Araújo<br />
Saudades e abraços. – Esta carta tem por fim<br />
somente convidar-te para uma Revista de Arte que o<br />
Nestor Vítor, eu e outros vamos fundar. Será uma<br />
publicação vigorosa e alta nos seus fundamentos,<br />
trazendo o cunho superior de uma força espontânea e<br />
nobre. Deves mandar teus originais o mais breve possível,<br />
com a contribuição de 5$000 réis, que é quanto nós<br />
arbitramos a cada membro da Revista, mensalmente e<br />
durante um ano. Depois disso os membros ficarão<br />
considerados remidos. Espero que recebas este convite<br />
com vivo entusiasmo, mandando já a tua correspondência<br />
e a contribuição mensal para a Rua do Ouvidor n° 74,<br />
Papelaria Leandro.<br />
Teu<br />
Cruz e Sousa<br />
18. A NESTOR VÍTOR<br />
Rio, 27 de dezembro de 1897.<br />
Meu Nestor<br />
Não sei se estará chegando realmente o meu fim;<br />
– mas hoje pela manhã tive uma síncope tão longa que<br />
supus ser a morte. No entanto, ainda não perdi nem<br />
perco de todo a coragem. Há 15 dias tenho tido uma<br />
febre doida, devido, certamente, ao desarranjo intestinal<br />
em que ando.<br />
Mas o pior, meu velho, é que estou numa<br />
indigência horrível, sem vintém para remédios, para leite,<br />
para nada, para nada! Um horror!
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 651<br />
Minha mulher diz que eu sou um fantasma, que<br />
anda pela casa!<br />
Se pudesses vir hoje até cá, não só para me<br />
confortares com a tua presença, mas também para me<br />
orientares n’algum ponto desta terrível moléstia, será<br />
uma alegria para o meu espírito e uma paz para o meu<br />
coração.<br />
Teu<br />
Cruz e Sousa<br />
19. A NESTOR VÍTOR<br />
Rio, 7 de janeiro de 1898.<br />
Nestor<br />
Peço-te para ires ao Escritório da Linha, em S.<br />
Diogo, entregar o meu requerimento pedindo licença,<br />
por que os dias estão passando e eles já reclamaram<br />
esse papel. Qualquer demora me pode prejudicar muito.<br />
Se já entregaste noutro lugar que não no Escritório de<br />
S. Diogo então está tudo atrapalhado e o requerimento<br />
perdido.<br />
É necessário entregar em mãos do Chefe do<br />
Escritório Jacutinga.<br />
Peço-te para liquidar isso, pois vivo muito<br />
aborrecido porque quase todo o dia vem aqui em casa<br />
um empregado do Escritório dizer-me que ainda não<br />
receberam o requerimento e que essa demora me pode<br />
ser prejudicial.<br />
Teu<br />
Cruz e Sousa
652 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
20. A ARAÚJO FIGUEIREDO<br />
Rio, janeiro de 1898.<br />
Meu Araújo<br />
Que os meus braços amigos te apertem bem de<br />
encontro ao meu coração, no momento em que receberes<br />
estas linhas saudosas. Mas escrevo-tas, meu querido<br />
irmão, com a alma dilacerada de angústias, porque me<br />
vejo a morrer aos poucos, e quisera, pelo menos passar<br />
alguns dias contigo, antes que isso sucedesse, pois vejo<br />
em ti um grande e afetuoso amparo aos meus últimos<br />
desejos. Fala com teu amigo José Fernandes Martins, e<br />
arranja com ele uma condução no paquete Industrial,<br />
para mim, para a Gavita e para os meus quatro filhos.<br />
Se escapar da morte que, no entanto, julgo próxima,<br />
ajudar-te-ei no teu colégio, ouviste? Saudades.<br />
O teu pelo coração e pela arte,<br />
Cruz e Sousa<br />
21. A NESTOR VÍTOR<br />
Rio, 18 de janeiro de 1898.<br />
Meu caro Nestor<br />
Cumprimentos a Exma. Senhora e beijos nas<br />
meninas.<br />
Preciso muito que dês um pulo até nossa casa,<br />
porque apareceu uma dificuldade com relação a minha<br />
licença e é necessário desfazer o mais breve possível<br />
essa dificuldade.<br />
Eu logo vi que por força havia de aparecer uma<br />
porcaria destas para incomodar-me. Vem que eu de viva<br />
voz te direi tudo e veremos se amenizamos este inferno<br />
que em tudo me persegue.<br />
Teu profundo amigo<br />
Cruz
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 653<br />
22. A NESTOR VITOR<br />
Rio, 27 de janeiro de 1898.<br />
Meu belo Nestor<br />
A tua carta de 24 foi um clarim de anjo trazendome<br />
belas novas, animação e coragem.<br />
Sim! Nenhuma dúvida deve ter de que eu não<br />
esteja absolutamente resolvido a partir. Mas antes disso<br />
há muitas cousas sérias a tratar: – principalmente uma<br />
procuração ou cousa que o valha para poderes todos os<br />
meses receber os meus pingues ordenados; como<br />
também deixar feito por antecedência o novo<br />
requerimento pedindo prorrogação da minha licença, o<br />
que é inteiramente indispensável. Essas cousas devem<br />
merecer a nossa maior atenção, porque as datas da<br />
licença podem estar extintas e haver demora prejudicial<br />
com a entrega tardia do outro requerimento de<br />
prorrogação.<br />
Enfim penso que tudo se acordará de modo a não<br />
haver atropelo e a não suceder que eu seja forçado a<br />
deixar o lugar.<br />
Teu<br />
Cruz e Sousa<br />
23. A NESTOR VÍTOR<br />
Nestor<br />
A luta das casas continua horrível. Não imaginas<br />
que verdadeiro desespero. Todos querem fiador – e é<br />
para ali, de punhos cerrados, de dentes cerrados. Já<br />
não temos quase recursos nem para os trens nem para<br />
os bondes. Estas cousinhas é que ninguém parece<br />
lembrar-se delas.
654 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
Não sabemos mais do que havemos de lançar mão<br />
para conseguir uma casa ou um cômodo qualquer. Tudo<br />
é um despropósito de dinheiro.<br />
Amanhã, 28, Gavita vai novamente sair à luta das<br />
casas. Não sei se conseguirá a casinha, mas enfim lutará<br />
até a última. O furor maior nisso tudo é o da finança,<br />
que é uma cousa terrível de se conseguir.<br />
Teu<br />
Cruz<br />
24. A ARAÚJO FIGUEIREDO<br />
Meu Araújo.<br />
Esqueci-me de dizer-te, na carta que escrevi há<br />
dias, que moramos à Rua Malvino n° 50, no Encantado.<br />
O teu<br />
Cruz e Sousa<br />
25. A NESTOR VITOR<br />
Rio, 3 de fevereiro de 1898.<br />
Meu caro Nestor<br />
Mudo-me hoje para a rua Malvino Reis — 50.<br />
Vem mais<br />
Teu<br />
Cruz<br />
26. A NESTOR VÍTOR<br />
17 de março de 1898.<br />
Meu caro Nestor<br />
Cheguei sem novidade a 16 deste por 7 horas e<br />
meia da manhã desse dia. Fiquei cansadíssimo da
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 655<br />
viagem. Nada tenho de importante mais a dizer- te. Os<br />
remédios tomo-os regularmente. Preciso com muita<br />
urgência de dinheiro. Isto aqui é muito agradável. Depois<br />
mandarei dizer tudo. Não te esqueças do dinheiro.<br />
Lembranças de Gavita.<br />
Teu<br />
Cruz e Sousa<br />
Como vão os meus filhos que aí ficaram? Fico no<br />
hotel Amadeu. Sobrado. Diária 6$000. No correr da<br />
Estação.<br />
Abraço todos os amigos<br />
Cruz<br />
DEDICATÓRIAS EM MISSAL:<br />
A ARAÚJO FIGUEIREDO:<br />
Araújo Figueiredo<br />
Na serenidade desta página clara, quero<br />
perpetuar, como na corrente do Tempo, a Amizade, o<br />
Culto Intelectual, o alto Amor estético que te consagro/<br />
ouros, mirras e incensos do meu ser devotado. A ti,<br />
Coração nobre; a ti, luminosa Cabeça; a ti, delicioso poeta<br />
dos Campos, dos Mares, das Rosas, dos Astros; a ti,<br />
amigo-irmão, casta e branca natureza de Sonhador<br />
olímpico, Israelita da Arte, que tens a virgindade emotiva<br />
das Forças novas, originais/este Missal de Abstração,<br />
de Espiritualidade, de Forma.<br />
Cruz e Sousa.<br />
Rio de Janeiro, 13 de março de 1893.
656 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />
A TIBÚRCIO DE FREITAS:<br />
Meu adorável Tibúrcio<br />
À tua penetrante compreensão de Arte, à tua<br />
delicadeza de sentir/flores raras e luminosas deste<br />
meio/ofereço este exemplar do Missal, para que, lendoo<br />
muitas vezes, em repouso, possas avaliar da<br />
espontânea, viva e comovida simpatia intelectual que<br />
me ligou a ti serenamente, num movimento estranho,<br />
misterioso e íntimo de almas que se amam e percebem.<br />
Assim, belo Tibúrcio, aqui me tens encerrado em<br />
essência abstrata de Pensamento/palpitando junto ao<br />
teu coração bom e franco, nobre e valoroso, que tão<br />
afetivamente me acolhe.<br />
Cruz e Sousa<br />
Rio, 5, abril de 1893.<br />
DEDICATÓRIAS EM RETRATOS:<br />
A GONZAGA DUQUE:<br />
Meu ilustre e querido Duque Estrada.<br />
No fundo desta fotografia eu quisera trazer-te um<br />
página de prosa, colorida, sonora, e esmaltada de estilo,<br />
mas despretenciosa, mas simples, mas meiga, que me<br />
corresse livre, neste cartão, como a expressão franca,<br />
profunda e original da minh’alma quando me encontro<br />
contigo e te falo de Arte.<br />
Porém, não me restando campo, aqui, para eu<br />
lavorar, com os instrumentos da forma, uma página<br />
d’idéias, que palpitasse e fulgisse junto ao teu belo ser,<br />
como um pássaro ao sol, para aí fica, muda,<br />
significativamente muda, a minha fisionomia que, para
<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 657<br />
o teu fino sentimento artístico, que eu tanto sei querer<br />
e considerar; para o teu delicado espírito, que eu<br />
vivamente acaricio entre as raras flores claras da minha<br />
Crítica, para o teu nobilíssimo coração de camarada<br />
firme, leal nas crenças, admirações e afetos, deve<br />
exprimir o mais íntimo e comovido apreço da Inteligência<br />
e da Amizade de<br />
Cruz e Sousa.<br />
Rio de Janeiro, 3, setembro, 1891.<br />
AO PAI:<br />
Ao meu bom e extremoso pai que eu estimo e<br />
considero de todo o meu coração. Ao respeitável homem,<br />
honrado pela velhice, pela bondade e pelo trabalho, que<br />
viu junto a si morrer a minha querida mãe, de quem<br />
nunca mais hei de esquecer enquanto for vivo.<br />
Lembrança de um filho reconhecido.<br />
Cruz e Sousa<br />
Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1891.