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CRUZ E SOUSA OBRA COMPLETA VOL 2_PROSA_FINAL_JULHO ...

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Cruz Cruz e e Sousa<br />

Sousa<br />

Obra Obra Completa<br />

Completa<br />

Volume Volume 2<br />

2<br />

<strong>PROSA</strong><br />

<strong>PROSA</strong>


Cruz Cruz e e Sousa<br />

Sousa<br />

Obra Obra Completa<br />

Completa<br />

Volume Volume 2<br />

2<br />

<strong>PROSA</strong><br />

<strong>PROSA</strong><br />

Pesquisa e Organização<br />

Lauro Junkes<br />

Presidente da Academia Catarinense de Letras


© © Copyright<br />

Copyright<br />

2008 Avenida Gráfica e Editora Ltda.<br />

Projeto Projeto Gráfico, Gráfico, Editoração Editoração e e Capa<br />

Capa<br />

ESPAÇO CRIAÇÃO ARQUITETURA DESIGN E COMPUTAÇÃO GRÁFICA LTDA.<br />

www.espacoecriacao.com.br<br />

Fone/Fax: (48) 3028.7799<br />

Revisão Revisão Lingüístico-Ortográfica<br />

Lingüístico-Ortográfica<br />

PROFª Drª TEREZINHA KUHN JUNKES<br />

PROF. Dr. LAURO JUNKES<br />

Impressão Impressão e e Acabamento<br />

Acabamento<br />

AVENIDA GRÁFICA E EDITORA LTDA.<br />

Formato<br />

Formato<br />

14 x 21cm<br />

FICHA CATALOGRÁFICA<br />

Catalogação na fonte por M. Margarete Elbert - CRB14/167<br />

S725o Sousa, Cruz e, 1861-1898<br />

Obra completa : prosa / João da Cruz e Sousa ; organização<br />

e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008.<br />

v. 2 (657 p.)<br />

Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do<br />

traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.<br />

1. Sousa, Cruz e, 1861-1898. 2. Poesia catarinense. I.<br />

Junkes, Lauro. II. Titulo.<br />

CDU: 869.0(816.4)-1


11 Critérios Para Esta Edição<br />

13 Tropos e Fantasias<br />

14 Casos e Cousas<br />

15 Allegros e Surdinas<br />

17 Piano e Coração<br />

19 A Bolsa da Concubina<br />

26 O Padre<br />

31 Pontos e Vírgulas<br />

34 Sabiá-Rei<br />

37 Dispersos<br />

38 Da Bahia<br />

40 Interjeições da Lágrima<br />

42 Victor Hugo<br />

43 Perfis a Vapor<br />

45 Victor Hugo<br />

47 Major Camilo<br />

49 O Espectro do Rei<br />

62 Perfis a Vapor<br />

64 Virgílio Várzea e Cruz e Sousa<br />

67 Abolicionismo<br />

70 Biologia e Sociologia do Casamento<br />

74 Um Novo Livro<br />

85 Emile Zola<br />

91 Guilherme I<br />

92 O “El-Dorado”<br />

93 Carta a Gonzaga Duque<br />

95 Horácio de Carvalho<br />

98 O Pequeno Boldrini<br />

101 Signos<br />

121 A Virgílio Várzea<br />

SUMÁRIO<br />

SUMÁRIO


123 Histórias Simples<br />

125 I. À Iaiá<br />

126 II. À Sinhá<br />

128 III. À Nicota<br />

130 IV. À Bilu<br />

133 V. À Santa<br />

136 VI. À Bibi<br />

138 VII. À Neném<br />

143 VIII. À Zezé<br />

147 Outras Evocações<br />

148 Elizirna<br />

150 Consciência Tranqüila<br />

161 O Estilo<br />

164 Je Dis Non<br />

170 Écloga<br />

173 Impressões<br />

176 Croqui dum Excêntrico<br />

179 A Casa<br />

183 O Senhor Presidente<br />

188 O Senhor Secretário<br />

191 Nicho de Virgem<br />

193 Aroma<br />

195 A Milionária<br />

198 De Volta aos Prados<br />

201 Investigação<br />

206 Psicose<br />

208 Luz e Treva<br />

210 Volúpia...<br />

213 A Carne<br />

215 Os Felizes<br />

218 Natal<br />

221 Em Julho<br />

222 Símbolo<br />

225 O Batizado<br />

228 Doença Psíquica<br />

230 Policromia


233 Flor Sentimental<br />

235 Velho<br />

240 Decaído<br />

243 Fugitivo Sonho<br />

245 Formas e Coloridos<br />

246 A Abelha<br />

248 Obsessão da Noite<br />

250 Hora Certa<br />

252 Rosicler<br />

254 Beijos Mortos<br />

255 Últimas Evocações<br />

256 Margarida<br />

260 Comemoração do Sexagésimo Primeiro Aniversário<br />

Natalício de Joaquim Gomes de Oliveira e Paiva<br />

263 Julieta dos Santos<br />

265 A Musa Moderna<br />

271 Manhã no Campo<br />

273 Uma Lenda<br />

274 A Romaria da Trindade<br />

276 O Abolicionismo<br />

279 Gema Cuniberti<br />

280 A Noite de São João<br />

283 Entre Ciprestes<br />

285 A Vida nas Praias<br />

289 Missal<br />

290 Oração ao Sol<br />

292 Dolências...<br />

294 Ocaso no Mar<br />

295 Sob as Naves<br />

297 Paisagem<br />

300 Astro Frio<br />

301 Bêbado<br />

304 Sabor


306 Lenda dos Campos<br />

307 Noctambulismo<br />

308 Navios<br />

309 Emoção<br />

312 Os Cânticos<br />

313 Fulgores da Noite<br />

314 Psicologia do Feio<br />

317 Vitalização<br />

318 Gloria in Excelsis<br />

320 Página Flagrante<br />

324 Tintas Marinhas<br />

326 Esmeralda<br />

327 Fidalgo<br />

329 Angelus<br />

330 Núbia<br />

333 Som<br />

336 Gata<br />

338 Dias Tristes<br />

341 Paisagem de Luar<br />

343 Artista Sacro<br />

347 Visões<br />

348 A Janela<br />

352 Umbra<br />

353 Modos de Ser<br />

356 No Faeton<br />

357 Ritos<br />

358 Mulheres<br />

364 Perspectivas<br />

366 Campagnarde<br />

368 Ritmos da Noite...<br />

371 Sugestão<br />

374 Sofia<br />

375 Manhã d’Estio<br />

378 Aparição da Noite<br />

381 Estesia Eslava<br />

382 Tísica<br />

385 Oração ao Mar


387 Evocações<br />

388 Iniciado<br />

396 Seráfica<br />

398 Mater<br />

407 Capro<br />

417 A Noite<br />

422 Melancolia<br />

424 Condenado à Morte<br />

429 Anho Branco<br />

434 O Sono<br />

437 Triste<br />

443 Adeus!<br />

447 Tenebrosa<br />

451 Região Azul...<br />

452 Sonambulismos<br />

458 Dor Negra<br />

460 Sensibilidade<br />

468 Asas...<br />

470 Espiritualizada<br />

472 Asco e Dor<br />

478 Intuições<br />

506 Morto<br />

510 Vulda<br />

512 Anjos Rebelados<br />

521 Um Homem Dormindo...<br />

526 No Inferno<br />

532 A Nódoa<br />

539 Talvez a Morte?!...<br />

542 Ídolo Mau<br />

546 Balada de Loucos<br />

551 Espelho contra Espelho<br />

557 Abrindo Féretros<br />

558 Primeiro Féretro – Ana<br />

561 Segundo Féretro – Antônia<br />

563 Terceiro Féretro – Carolina<br />

564 Quarto Féretro – Guilherme<br />

568 O Sonho do Idiota<br />

581 A Sombra


591 Nirvanismos<br />

606 Extrema Carícia...<br />

609 Emparedado<br />

633 Correspondência<br />

634 À Comissão Organizadora do Clube dos Jornalistas<br />

634 À Sociedade Carnavalesca Diabo a Quatro<br />

635 A Gavita<br />

636 A Gavita<br />

638 A Gavita<br />

639 A Gavita<br />

640 A Germano Wendhausen<br />

641 A Germano Wendhausen<br />

642 A Virgílio Várzea<br />

644 A Araújo Figueiredo<br />

646 A Luiz Delfino<br />

646 A Gonzaga Duque<br />

648 A Nestor Vítor<br />

648 A Nestor Vítor<br />

649 A Alberto Costa<br />

649 A Nestor Vítor<br />

650 A Araújo Figueiredo<br />

650 A Nestor Vítor<br />

651 A Nestor Vítor<br />

652 A Araújo Figueiredo<br />

652 A Nestor Vítor<br />

653 A Nestor Vítor<br />

653 A Nestor Vítor<br />

654 A Araújo Figueiredo<br />

654 A Nestor Vítor<br />

654 A Nestor Vítor<br />

655 Dedicatórias em Missal<br />

655 A Araújo Figueiredo<br />

656 A Tibúrcio de Freitas<br />

656 Dedicatórias em Retratos<br />

656 A Gonzaga Duque<br />

657 Ao Pai


CRITÉRIOS CRITÉRIOS P PPARA<br />

P ARA EST ESTA EST A EDIÇÃO EDIÇÃO<br />

EDIÇÃO<br />

Como ocorreu no volume da Poesia destas Obras<br />

Completas de João da Cruz e Sousa, também a ordenação<br />

dos textos neste volume de Prosa se diferencia das<br />

edições anteriores. Alguns textos recentemente<br />

descobertos e identificados por Iaponan Soares/Zilma<br />

Gesser Nunes – as “Últimas Evocações”, publicadas no<br />

livro Cruz e Sousa, Dispersos. São Paulo: Fundação<br />

Editora da UNESP: Giordano, 1998 – foram incorporados<br />

à Obra Completa, organizada por Andrade Muricy e<br />

atualizada por Alexei Bueno.<br />

Outrossim, sempre com o desejo de lograr maior<br />

aproximação ao evoluir literário do autor de Evocações,<br />

alteramos a disposição dos textos no volume. Como Missal<br />

e Evocações foram os dois únicos conjuntos organizados<br />

pelo autor, deverão representar a maturidade do prosador<br />

Cruz e Sousa, a seleção mais perfeita por ele mesmo<br />

feita em relação aos seus escritos em prosa. Embora<br />

alguns textos dispersos tenham sido escritos na última<br />

fase da sua vida, a grande maioria constitui produção<br />

anterior até mesmo à sua adesão à estética simbolista.<br />

Por essa razão, englobamos todos eles no início do volume,<br />

na fase de formação do escritor. Apenas a<br />

Correspondência, que abrange diversas épocas, ocupa a<br />

parte final do volume.<br />

Para estabelecer o texto, também houve cotejo de<br />

diversas edições. A Tese de Doutoramento de Rosane<br />

Cordeiro da Silva, defendida na UFSC em 2006 e<br />

intitulada Entre missais e evocações: a prosa desterrada de<br />

Cruz e Sousa, cotejando 18 manuscritos autógrafos,<br />

permitiu, através da crítica textual, aproximar-nos mais<br />

da vontade do autor e retificar aspectos substanciais<br />

dos textos. O respeito à redação e à intenção do autor<br />

constituiu orientação imprescindível. Na decisão sobre<br />

as variantes, a opção buscou elucidar o binômio forma e


conteúdo. A pontuação, sobretudo a vírgula, foi alterada<br />

em casos de incorreções, sendo eliminada quando<br />

separava o sujeito do predicado. Objetivou-se contribuir<br />

para tornar mais claro o pensamento do autor, sem<br />

introduzir maiores modificações. A atualização ortográfica<br />

obedece à grafia atual. Permaneceram intocadas as<br />

colocações pronominais e as concordâncias utilizadas<br />

pelo autor, mesmo que firam a norma culta. Nos textos<br />

autógrafos, o autor assinava Souza com “z”; porém está<br />

consagrada a substituição por “s”: Sousa.


Tropos Tropos e e Fantasias<br />

Fantasias


14 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

CASOS E COUSAS<br />

As Ilusões são como as cerejas.<br />

Se estas se desprendem uma a uma, quando as<br />

tentamos apanhar juntas, também aquelas.<br />

Tropos e Fantasias sintetizam um punhado de<br />

ilusões... avigoradas no idealismo, emigrando, leves,<br />

leves, para os espíritos asseados e limpos, na higiene e<br />

na salutariedade essencial da luz.<br />

E foi nestes casos que publicamos estas cousas.<br />

VIRGILIO VÁRZEA E <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong>


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 15<br />

ALLEGROS E SURDINAS<br />

A B. Lopes<br />

Foi pela primavera.<br />

A natureza fecunda e prodigiosa extasiava o<br />

raciocínio com as pompas exuberantes, com a fertilização<br />

da verdura.<br />

As flores abriam-se, como os risos alegres e<br />

vibrantes da terra.<br />

Havia nos espaços, profundamente calmos, a<br />

expansibilidade suavíssima das cousas.<br />

Pairava em tudo como que o amor espiritualizado.<br />

Foi pela primavera.<br />

* * * * * * * * * *<br />

A falange gloriosa dos canários, dos coleiros, dos<br />

gaturamos, dos sabiás rasgava o horizonte, aqui e ali,<br />

de risadas apopléticas, que chocalhavam como guizos,<br />

que tiniam, que bimbalhavam como campanários de<br />

aldeia.<br />

Toda a floresta tomava a proporção de um<br />

deslumbramento equatorial.<br />

As fontes, as cascatas, os ribeiros, sonoros,<br />

harmônicos, musicais, faziam coro na grande ópera da<br />

Criação.<br />

A vitalidade, a seiva tinha erupções vulcânicas,<br />

desde os troncos mais hartos, até as mais frágeis raízes.<br />

Cintilava, cantava o verde florido dos prados e o<br />

azul refrigerante dos céus.<br />

Almas e almas vagavam, como silfos, como asas,<br />

como nuvens e nuvens, pelas zonas consoladoras e<br />

luminosas do idealismo.<br />

Trinos e trenos, por tudo.<br />

A falange gloriosa dos canários, dos coleiros, dos<br />

gaturamos, dos sabiás rasgava o horizonte, aqui e ali,<br />

de risadas apopléticas, que chocalhavam como guizos,<br />

que tiniam, que bimbalhavam como campanários de<br />

aldeia.<br />

* * * * * * * * * *


16 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Uma simpatia boa acariciava, por fora, a casinha<br />

alva, muito alva, encarapitada do cimo da colina.<br />

Dentro, morrera o Gigi, uma criança, um beijo<br />

cristalizado, um sonho dos colibris; e as esperanças dos<br />

pais imergiam, pela sombra melancólica das mágoas,<br />

como pombas, tristes, tristes...<br />

Morrera o Gigi; a primavera da vida, na primavera<br />

da natureza.<br />

E as névoas crepusculares que invadiam a tarde<br />

penumbravam o aposento inteiro...<br />

Nos objetos parecia haver também a reticência da<br />

dor.<br />

E quando o foram conduzir para o túmulo, as<br />

estradas arenosas tinham aquela gravidade séria dos<br />

corações desamparados de crenças.<br />

As lavadeiras, atravessando o caminho, em curvas,<br />

cantarolando, com as brancuras honestas de roupas à<br />

cabeça, punham tons de uma afabilidade rara no fúnebre<br />

trajeto.<br />

Os ciprestes, silenciosos, acompanhavam aquela<br />

angústia, chorando as suas compridas lágrimas de<br />

orvalho.<br />

Perfumes agrestes espiralavam-se das matas<br />

verdes, fartas de florações viçosas e castas.<br />

Estendiam-se, para além, nas serras oblongas,<br />

alguns mugidos vagos de bois satisfeitos, que pastavam<br />

deleitosamente.<br />

E na extremidade curvilínea das praias, as ondas<br />

claras, espumantes refletiam os coloridos silforamáticos<br />

que o sol produzia, frechando as colinas pedregosas e<br />

altanadas, parecendo, à movimentação do globo, resvalar<br />

pelo seu ocaso eterno e supremo, numa auréola de fogo.<br />

Uma simpatia boa acariciava, por fora, a casinha<br />

alva, muito alva, encarapitada no cimo da colina.<br />

Dentro, morrera o Gigi, uma criança, um beijo<br />

cristalizado, um sonho dos colibris; e as esperanças dos<br />

pais imergiam, pela sombra melancólica das mágoas,<br />

como pombas, pombas tristes, tristes...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 17<br />

PIANO E CORAÇÃO<br />

A Isidoro Martins Júnior<br />

O piano, o piano e o coração.<br />

Ó melodias do coração, ó harmonias do piano.<br />

Chopin, Gounod, Metra, Strauss, Beethoven,<br />

Gottschalk, constelação gloriosa de boêmios de ouro!...<br />

Quando o piano musicaliza, caracteriza,<br />

espiritualiza as longas escalas cromáticas, os adoráveis<br />

allegros, os interessantes pizzicatos, quem fala primeiro<br />

que os cérebros artísticos é o coração.<br />

Ele canta mais alto que todos os órgãos humanos.<br />

O coração é o pulso do cérebro artístico.<br />

Pela temperatura e o grau de sentimento de um,<br />

o músico estabelece a proporção do outro.<br />

Um dirige, outro executa.<br />

Um tem a fórmula, outro funciona.<br />

Um é o oxigênio, outro o carvão.<br />

Um faz o relâmpago, outro produz o raio.<br />

Coração e cérebro aliam-se, homogeneízam-se.<br />

Assim o piano, eternamente assim.<br />

O coração é a luta, as grandes tempestades<br />

desoladoras, varadas de cóleras surdas de vendavais<br />

gargalhantes e intérminos, de frios que estortegam,<br />

enregelando as noites soturnas das trevas compridas e<br />

absolutas; o coração é a maciosidade dos linhos, a<br />

candidez consoladora dos luares estrelados, a fluidez<br />

elétrica dos perfumes excitantes, as expansivíssimas<br />

alegrias, castamente sonoras e sonoramente castas.<br />

O coração ruge e vibra.<br />

Assim o piano.<br />

Cada palpitação do piano é uma fibra do coração,<br />

que bate.<br />

Tem os mesmos triunfos, os mesmos humorismos<br />

fúnebres, as mesmas imponências e coruscações, o<br />

piano.<br />

Chora e canta, ri e soluça.


18 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Quanta vez o artista não canta, não ri e chora e<br />

soluça com o piano.<br />

Dizei à sensibilidade que emudeça.<br />

À sombra que se subdivida, partícula por partícula,<br />

pela própria sombra.<br />

O piano, como o coração, representa um ser<br />

complexo, com os elementos necessários, com os nervos,<br />

com os músculos de vitalidade dispostos, preparados,<br />

desenvolvidos, de forma a infiltrar nos demais seres a<br />

seiva psíquica, a sangüinidade simpática da arte.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 19<br />

A BOLSA DA CONCUBINA<br />

A Horácio de Carvalho<br />

O amor é uma escada que tem uma extremidade<br />

na glória e outra no abismo – disse-o Matias de Carvalho.<br />

Vezes há que essa escada, devendo resvalar na<br />

glória, resvala abruptamente no abismo.<br />

E ai daqueles que se têm librado a ela.<br />

O amor é uma torrente de circunstâncias<br />

anormais.<br />

Quanto maior é o amor, maior deve ser o sacrifício.<br />

O amor faz gigantes e faz anões, ilumina e<br />

entenebrece os espíritos nervosos e doentios.<br />

É como o cáustico; cura mas deixa os sinais<br />

evidentes.<br />

Daí as incompatibilidades, as duras idiossincrasias<br />

do amor.<br />

Daí as monstruosidades e os abortos morais, os<br />

perigos e as aberrações sociais.<br />

O amor, o amor que se consubstancia no dever,<br />

na harmonia, no bem-estar, no sossego de espírito, na<br />

probidade e na lisura, é o maior elemento higiênico da<br />

moral da família.<br />

Para a felicidade doméstica, o agente que mais<br />

influi é o amor, mas não esse amor gasto que anda a<br />

suspirar pelos madrigais, pelas belas noutes de luar,<br />

pelos suntuosos saraus de onde se sai com o estômago<br />

encharcado de maus vinhos e a consciência<br />

cambaleando, pelo efeito das luzes, das flores, das<br />

músicas e das pompas.<br />

Não! Não!...<br />

Mas o amor sadio, limpo, asseado, o amor que sabe<br />

ter energias e sabe ter heroísmos, o amor que ri com a<br />

esposa e soluça com o filho, o amor que mostra a camisa<br />

rota do operário, o arado do aldeão, mas que à noite,<br />

nas suavíssimas meias sombras do lar, lembra-se que<br />

tem de almoçar no dia seguinte e que a mulher já lhe


20 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

disse, abraçando-o expansivamente, entre as harmonias<br />

alegres e francas de um sorriso, que não há lenha em<br />

casa.<br />

É esse o amor.<br />

O amor que faz bem, que corporifica os sentimentos<br />

da alma, que se multiplica de vitalidade pelos sentidos,<br />

pelos olhos, pelos ouvidos, pelos gestos, por todos os atos<br />

e complementos psicológicos e fisiológicos.<br />

O amor que é a filosofia dos seres bons, honestos,<br />

o amor que é o oxigênio da temperatura do afeto humano.<br />

Assim como o ar atmosférico tem influência sobre<br />

os pulmões, o amor tem influência sobre o trabalho, sobre<br />

o dever, sobre a virtude.<br />

Da temperatura do amor depende a temperatura<br />

da felicidade conjugal.<br />

Há desgraçados que deveriam ser felizes, assim<br />

como há felizes que deveriam ser desgraçados.<br />

Os primeiros porque trabalharam para ser felizes;<br />

os últimos porque nada fizeram para isso, não deixando,<br />

porém, de ter a consideração de zelosos de seu bemestar<br />

e trabalhadores do seu futuro.<br />

O verdadeiro amor, aquele que é para as crianças<br />

o imaculado tesouro, o verdadeiro amor, aquele que é<br />

para os cegos a benéfica luz, aquele que é para os mortos<br />

o miraculoso surge et ambula, esse, esse amor, supremo<br />

como as supremas harpas do infinito, claro, magnífico<br />

como as vestiduras brancas dos justos, imponente como<br />

a memória de Camões cortando a monotonia de gelo de<br />

trezentos anos, esse amor é a afinação das almas pela<br />

música da natureza criadora.<br />

Fora preciso que a humanidade não cuidasse tanto<br />

das funções peristálticas do estômago, para abrir o<br />

grande livro da virilidade universal:<br />

O amor.<br />

Fora preciso que as consciências expelissem de<br />

si todos os fetos e aleijões que elas produzem e que,<br />

tomando uma nova seiva, uma porção de sangue, uma


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 21<br />

boa parcela de massa encefálica, uma intuição muito<br />

direita, muito outra, dos admiráveis problemas que a<br />

filosofia derrama na flor, na árvore, no infinito, em toda<br />

a criação, em toda a natureza, sintetizassem no amor a<br />

concretização de todos os fenômenos e acontecimentos<br />

animais.<br />

– O amor, tem razão o poeta, é uma escada que<br />

tem uma extremidade na glória e outra no abismo.<br />

* * * * * * * * * *<br />

Casaram-se.<br />

Ela muito limpa sempre, muito asseada, sabendo<br />

ler bem, costurando à noite, na máquina, paletós, calças,<br />

coletes, sacos de aniagem; fazendo à mão toalhas de<br />

rosto, bordando, toda alegre, com os seus pospontos<br />

muito bem acabados, delicadamente feitos; indo ao<br />

quintal de manhã cedo, aos raios mais firmes do dia,<br />

ver a alacridade doce de suas plantas, de suas flores,<br />

de sua horta muito galante, dando de comer milho moído<br />

aos pintos, que vinham, vinham, vinham, em pequeninos<br />

gritos, em expansões castas, abrindo o bico, ruflando as<br />

asas tenras, roçando as penas pela macia plumagem<br />

das mães, umas galinhas gordas, satisfeitas, parecendo<br />

donas de casa, amarelas, rajadas de branco e preto,<br />

levando os grãozitos de milho ao bico e dando aos pintos<br />

todos contentes de sua vida.<br />

Uma alegria das pobres aves.<br />

Ele um pintor boêmio, sem apreço à honra; casarase<br />

por amor, mas depois uns amigos maus, hipócritas,<br />

transformaram-no inteiramente.<br />

Mesmo dizia-se que nunca tivera juízo.<br />

Mas, como quem vê cara não vê coração, a pobre<br />

da moça amou-o muito, com toda a força de sua crença<br />

e casaram-se.<br />

Depois ele tinha um vício.


22 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Era pobre, pobre e amasiara-se com uma mulher<br />

com a qual banqueteava-se.<br />

Às vezes, ia para a casa com o sorriso alvar de<br />

animalidade alcoolizada.<br />

Não era barulhento, não era de instintos ferozes,<br />

mas bestializava o seu proceder.<br />

A honesta mulher sabia de tudo, mas ah! grande<br />

luz do seu imenso coração, envergonhava-se, não queria<br />

escândalos, chorava no escuro, baixinho, toda pesarosa,<br />

toda magoada; lembrava-se do filho que tinham, sabia<br />

que era ele o pai e que se esse pai os abandonasse,<br />

seria desairoso para ela e então suportava tudo.<br />

Pois se ela era tão honesta!<br />

Ah! o seu filho, o seu querido filho tão bonito como<br />

ela o chamava.<br />

O seu querido filho tão bonito!<br />

Oh! as mães, as mães!<br />

E no entanto a criança era raquítica, não parecia<br />

ter seis meses; o crânio muito comprido e achatado, o<br />

frontal muito largo, de uma saliência enorme, abaulado,<br />

deixando aparecer muito no fundo, dous olhos sem<br />

expressão, quase sem movimento, dava-lhe o aspecto de<br />

uma caveira; o corpo mal desenvolvido, o rosto amarelado<br />

e de uma pele seca, as pernas em arco, magras, tudo<br />

emprestava àquilo que ela chamava o seu querido filho<br />

tão bonito uma aparência sinistra e má.<br />

Não obstante ela o adorava!...<br />

Oh! as mães, as mães!...<br />

Que sacrifício profundo e sacrossanto é maior que<br />

o coração das mães?!<br />

– O espetáculo estupendo do sol, faiscando pelos<br />

espaços intérminos, como um colosso de fogo, iluminando<br />

as esferas, dando umas tonalidades claras ao espírito<br />

das cousas, abrindo e fecundando as grandes almas de<br />

tudo, não é mais deslumbrante de eloqüência que o amor<br />

das mães!...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 23<br />

Elas se imortalizam na memória dos filhos, quando<br />

eles se chamam Dante, Shakespeare, Vítor Hugo e Zola.<br />

As mães são o compêndio infinito de todas as<br />

ciências, a irradiação maravilhosa de toda a luz filosófica.<br />

Por isso ela estremecia muito o seu querido filho<br />

tão bonito.<br />

E ele, o marido, andava fora, ou no trabalho ou<br />

em casa dela.<br />

E ela, a mulher, essa outra – ela – tão modesta,<br />

tão santa, tão trabalhadora, ainda nova, na manhã<br />

transparente dos seus vinte e dous anos, sentia<br />

necessidade, umas abundâncias de extremos, de umas<br />

exuberâncias de afeições puras, revolvia-se toda, às<br />

vezes, como uma freira na sua cela, ficava nuns letargos<br />

mornos, sensuais, num sonambulismo etéreo, fechando<br />

os olhos numa dormência calada, como se cedesse ao<br />

poder de um magnetismo soberano.<br />

Tinha necessidade de adulterar, mais o seu<br />

querido filho e tão bonito ali estava, fisicamente feio,<br />

como a atalaia da sua honra, como a porta de bronze a<br />

lhe interceptar a entrada no palácio silforamático da<br />

prostituição.<br />

E então ela erguia-se em toda a majestade do<br />

seu dever e abraçava e beijava o filho, numa aluvião<br />

delirante de carinhos enternecedores.<br />

Aquele filho livrava-a de ter uma Waterloo na<br />

batalha renhida da sua existência.<br />

E então trabalhava, trabalhava muito.<br />

Ele já pouco ia ver a mulher e o filho.<br />

O pão, no entanto, escasseava, o fogão estava negro<br />

e calado.<br />

O proprietário da casa onde moravam já lhes falara<br />

uma vez, duas, três vezes.<br />

Tinham-se atrasado um tanto... uns cinco meses.<br />

O fornecedor o vira entrar em casa diversas noites,<br />

cambaleando, e mastigando frases desencontradas.


24 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Dissera que não fiava a bêbados, desconfiava que<br />

não seria pago e depois atirava os seus dichotes canalhas<br />

à sua freguesa e desejava-a, mas o único meio de a<br />

obter, pensava ele, era tornando-se desapiedado e<br />

negando-lhe o alimento, porquanto ela assim cederia,<br />

já que o marido pouco parava em casa.<br />

No entanto, a vida dela caía, caía como as pétalas<br />

de uma rosa ao chegar o inverno desabrido e úmido.<br />

As papoulas de sua face desbotavam dia-a-dia.<br />

Ele já não trabalhava quase, desmoralizara-se de<br />

todo e negavam-lhe trabalho.<br />

Deixava, dez, quinze dias de ir ver a família.<br />

Uma ocasião foram dizer-lhe, um pequeno<br />

aprendiz seu, que o filho fora atacado de varíola.<br />

Achava-se ele em casa da concubina.<br />

Ela, ao ouvir o recado do pequeno, sorriu-se com<br />

um sorriso de vingança, pois dizia – que ele lhe prometera<br />

casamento, que a enganara, mas que ela se vingaria; e,<br />

terminantemente, ordenou-lhe que não aparecesse em<br />

casa, que não fosse ver o filho, que ela faria as despesas<br />

da moléstia e do enterro, caso a criança morresse.<br />

E pegando da pena escreveu, imitando o quanto<br />

possível a letra do amante: – “Minha querida – sinto<br />

extremamente o estado do nosso filho, mas como não<br />

encontro trabalho na cidade e é absolutamente preciso<br />

que eu parta hoje para a vila de..., a um magnífico negócio<br />

onde poderei ter mais prontos resultados de dinheiro,<br />

desculpa a precipitação com que te escrevo e olha bem<br />

por nosso filho. – Tu és boa, perdoa-me, pois, os dias que<br />

não tenho ido à casa.<br />

– Para que nada falte ao pequeno, aí te envio uma<br />

sofrível importância; a sua doença não há de ser nada;<br />

daqui a pouco te mandarei lá o médico. – Teu marido A.”<br />

Meteu o bilhete num envelope, puxou de uma<br />

bolsa, colocou dentro umas cinco notas de mil-réis e<br />

deu ao pequeno que saiu.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 25<br />

Ele, bestializado com tudo aquilo, meio parvo,<br />

fechava de vez em quando os olhos, como que para não<br />

ver ou não desvendar a profundidade do seu abismo.<br />

No entanto ela ria canibalescamente e redobrava<br />

de afagos para com o seu louro – como lhe chamava.<br />

Era viúva, herdara alguma cousa para a sua<br />

subsistência e sabia atrair os ladinos e triunfar dos seus<br />

caprichos, como fazia com ele.<br />

E enquanto a viúva pantera explosia as suas<br />

paixões venenosas, a honesta mulher, só em casa,<br />

desamparada como uma criança nua numa estrada, por<br />

uma noite negra, muito negra, aos uivos de um temporal<br />

cruel, sentindo ao longe, lá ao longe o monótono grasnar<br />

das aves agoureiras, via que o médico não chegava, que<br />

seu filho se sumia, se sumia, como a asa de uma<br />

andorinha na última extrema do horizonte.<br />

Parecia que um prédio tinha desabado sobre ela.<br />

Estava abatida, desconsolada, desfalecida.<br />

Não ia ao quintal para não ver as suas aves, não<br />

ia à janela para não ver o sol percorrer satisfeito as<br />

amplidões serenas da serena luz.<br />

Não ia porque, nas aves e no sol, ela via seu filho<br />

contente adormecido aos seus beijos.<br />

E o aprendiz, pinoteador, travesso, acriançado, não<br />

fora lá, logo no mesmo dia.<br />

Mas no dia seguinte, de tarde, quando no éter<br />

calmo se esbatiam as tintas crepusculares, e que a<br />

sinfonia da natureza, os límpidos turíbulos das florestas,<br />

derramando perfumes suaves, convidavam o raciocínio<br />

a um recolhimento poético, morria-lhe nos braços o filho,<br />

como um Cristo menino nos braços de Maria.<br />

E então, ela, numa angústia despedaçadora de<br />

mãe dolorosa, lembrando-se daquele corpo, daqueles<br />

olhos, daqueles lábios que iam talvez rebentar numa<br />

explosão de boninas, de cravos e de violetas, viu abrirse<br />

a porta e entrar o aprendiz com um objeto que lhe<br />

entregou.<br />

Era a bolsa da concubina!!


26 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

O PADRE<br />

A João Lopes<br />

Um padre escravocrata!... Horror!<br />

Um padre, o apóstolo da Igreja, que deveria ser o<br />

arrimo dos que sofrem, o sacrário da bondade, o amparo<br />

da inocência, o atleta civilizador da cruz, a cornucópia<br />

do amor, das bênçãos imaculadas, o reflexo do Cristo...<br />

Um padre que comunga, que bate nos peitos,<br />

religiosamente, automaticamente, que se confessa, que<br />

jejua, que reza o – Orate fratres, que prega os preceitos<br />

evangélicos, bradando aos que caem surge et ambula.<br />

Um escravocrata de... batina e breviário... horror!...<br />

Fazer da Igreja uma senzala, dos dogmas sacros<br />

leis de impiedade, da estola um vergalho, do missal um<br />

prostíbulo...<br />

Um padre, amancebado com a treva, de espingarda<br />

a tiracolo como um pirata negreiro, de navalha em punho,<br />

como um garoto, para assassinar a consciência.<br />

Um canibal que pega nos instintos e atira-os à<br />

vala comum da noite da matéria onde se revolvem as<br />

larvas esverdeadas e vítreas da podridão moral.<br />

Um padre que benze-se e reza, instante a instante,<br />

que gagueja à frente do cadáver o aforismo de Horácio –<br />

Hodie mihi cras tibi.<br />

Um padre, que deixando explosir todas as<br />

interjeições da ira, estigmatiza a abolição.<br />

Ela há de fazer-se, malgrado os exorcismos crus<br />

dos padres escravocratas; depende de um esforço moral<br />

e os esforços morais são, quase sempre, para a alta<br />

filosofia – mais do que os esforços físicos – o fio condutor<br />

da restauração política de um país!...<br />

O interesse egoístico de um indivíduo não pode<br />

prevalecer sobre o interesse coletivo de uma nação, disseo<br />

um moço de alevantado talento, Artur Rocha.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 27<br />

Não é com a ênfase dogmática do didatismo ou<br />

com a fraseologia tecnológica dos cinzelados folhetins<br />

de Teófilo Gautier que o trabalho da abolição se fará.<br />

Mas com a palavra educada, vibrante – essa<br />

palavra que fulmina – profunda, nova, salutar como as<br />

teorias de Darwin.<br />

Com a palavra inflamável, com a palavra que é o<br />

raio e dinamite, como o era na boca de Gambetta, a<br />

maior concretização do estupendo – depois do sol.<br />

A palavra que ri... de indignação; um riso<br />

convulso... de réprobo, funambulesco... de jogral.<br />

Um riso que atravessa séculos como o de Voltaire.<br />

Um riso aberto, franco, eloqüentemente sinistro.<br />

O riso das trevas, na noite do calvário.<br />

O riso de um inferno... dantesco.<br />

Ouves, padre?...<br />

Compreendes, sacerdote?...<br />

Entendes, apóstolo?...<br />

Então para que empunhas o chicote e vais<br />

vibrando, vibrando, sem compaixão, sem amor, sem te<br />

lembrares daquele olhar doce e aflitivo que tinha sobre<br />

a cruz o filho de Maria?...<br />

O filho de Maria, sabes?!...<br />

Aquele revolucionário do bem e aquele cordeiro<br />

manso, manso como um ósculo da alvorada nas grimpas<br />

da montanha, como o luar a se esbater num lago<br />

diamantino...<br />

Lembras-te?!...<br />

Era tão triste aquilo...<br />

Não era padre, ó padre?!...<br />

Não havia naquela suprema angústia, naquela dor<br />

cruciante, naquela agonia espedaçadora, as mesmas<br />

contorções de uma cólica nefrética, os mesmos arrancos<br />

informes de um escravo?...<br />

Não compreendes que se açoitares um mísero que<br />

for pai, uma desgraçada que for mãe, as bocas dos<br />

filhinhos, daquelas criancinhas negras, sintetizando o


28 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

remorso, o aguilhão da tua consciência se abrirão nuns<br />

gritos desoladores que, como uns bisturis envenenados,<br />

trespassar-te-ão as carnes?...<br />

Não compreendes que de seus olhos, acostumados<br />

a paralisarem-se ante o terror, irromperão as lágrimas,<br />

esse líquido precioso das alminhas inocentes?!!...<br />

Pois tu, nunca choraste?!...<br />

Nunca sentiste os engasgos de um soluço<br />

saltarem-te pela garganta, quando te lembras de trocar<br />

as tuas magníficas conquistas, os teus manjares<br />

especiais, os teus licores dulçorosíssimos pela noite<br />

escura, muito escura, onde grasnam surdamente as aves<br />

da treva, onde Dante se acentua no Lasciate ogni speranza,<br />

onde os espíritos vis desaparecem e os Homeros e<br />

Camões e Virgílios surgem e se levantam pelo braço<br />

hercúleo da posteridade, pelo fôlego intérmino e secular<br />

da História?<br />

Nunca?!...<br />

Sim, tu estás comigo, padre!...<br />

Estás!...<br />

És bondoso, eu sei, tens a alma tão serena e tão<br />

lúcida como uma imagem de N.S. da Conceição.<br />

Eu sei disso!...<br />

Olha, quando morreres – se é que morres – irás<br />

de palmito e capela, na mudez dos justos e as virgens<br />

tímidas e cloróticas, entoando grave De profundis,<br />

murmurarão lacrimosas:<br />

– Coitado, foi o pai carinhoso das donzelas...<br />

Requiescat in pace!...<br />

Que bonito será, não!...<br />

E depois o céu!<br />

Sim, porque tu irás para o céu!<br />

Não crês no céu, padre?<br />

Pois crê, esses filólogos mentem, têm princípios<br />

errôneos e tu, padre, és um sábio...<br />

Tu és bom...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 29<br />

Porém... por Deus, como é que vendes a Cristo<br />

como um quilo de carne verde no mercado?!...<br />

Ah! É verdade, és muito pobre, andas com os<br />

sapatos rotos, não tens que comer e... és muito caridoso...<br />

Mas, escuta, vem cá: –<br />

Eu tenho também minhas fantasias; gosto de<br />

sonhar às vezes com o azul.<br />

O Azul!...<br />

Deslumbro-me quando o sol se atufa no oceano,<br />

espadanando os raios purpureados, como flechas de fogo,<br />

pela enormidade côncava do espaço; inebrio-me quando<br />

a natureza, com seu tropicalismo, ergue-se do banho de<br />

alvoradas, jorrando nos organismos de ouro o licor<br />

olímpico e santo do ideal, as músicas maviosíssimas e<br />

puras da inspiração, nos crânios estrelejados!...<br />

Pois façamos uma cousa: –<br />

Eu escrevo um livro de versos que intitularei:<br />

O ABUTRE DE BATINA<br />

puros alexandrinos, todos iguais, corretos, com<br />

os acentos indispensáveis, com aquele tic da sexta – tipo<br />

elzevir, papel melado – e ofereço-to, dou-to.<br />

Prescindo dos meus direitos de autor e tu o<br />

assinas!...<br />

Com os diabos, hás de ter influência no teu círculo.<br />

Imprimes um milhão de exemplares, vende-os e<br />

assim terás das loiras para a tua subsistência, porque<br />

tu és paupérrimo, padre, e necessitas mesmo de<br />

dinheiro, porque tens família, muitos afilhados que te<br />

pedem a bênção e precisas dar-lhes no dia de teu santo<br />

nome um mimo qualquer.<br />

Faz isso, mas... não te metas com o abolicionismo;<br />

é a idéia que se avigora.<br />

Talvez digas, mastigando o teu latim: – Primo vivere<br />

deinde philosophare.


30 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Mas é porque tu és míope e os míopes não podem<br />

encarar o sol... Mas eu dou-te uns óculos, uns óculos<br />

feitos da mais fina pele dos negros que tu azorragas...<br />

Pode ser que a influência animal da matéria excite<br />

o espírito e que tu... vejas.<br />

Pode ser...<br />

Há cegos de nascença que vêem... pelos olhos da<br />

alma.<br />

E se tu és padre e se tu és metafísico... deves ter<br />

alma...<br />

Compreendes?...<br />

Faz-se preciso que desapareçam os Torquemadas,<br />

os Arbues, maceradores da carne, como tu, padre.<br />

Em vez de prédicas beatíficas, em vez de<br />

reverências hipócritas, proclama antes a insurreição...<br />

Tens dentro de ti, bate-te no peito, nas palpitações<br />

da seiva, um coração que eu penso não ser um músculo<br />

oco.<br />

Vibra-o pois, fibra por fibra, se não queres que os<br />

meus ditirambos e sarcasmos, quentes, inflamados,<br />

como brasas, persigam-te eternamente, por toda a parte,<br />

no fundo de tua consciência, como uns outros medonhos<br />

Camilos de Zola; vibra-o se não queres que eu te estoure<br />

na cabeça um conto sinistro, negro, a Edgar Poe.<br />

É tempo de zurzirmos os escravocratas no tronco<br />

do direito, a vergastadas de luz...<br />

Sejam-te as virtudes teologais, padre, – a<br />

liberdade, a igualdade e a fraternidade – maravilhosa<br />

trilogia do amor.<br />

Unge-te nas claridões modernas e expansivas<br />

dessas três veias artérias da verdadeira Filosofia<br />

Universal.


PONTOS E VÍRGULAS<br />

A Artur Rocha<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 31<br />

As estradas são longas e é curta a piedade dos<br />

homens, escreveu no – “Outro amável milagre” – contido<br />

no “Feixe de Penas” o primorosíssimo, o delicioso, o<br />

onipotentíssimo psicólogo Eça de Queirós.<br />

São longas as estradas.<br />

É curta a piedade dos homens.<br />

* * * * * * * * * *<br />

Quer isto dizer que se acha na capital de Santa<br />

Catarina o notável glosista Margarida, esse analfabeto,<br />

esse doudo da luz, arremessado nas trevas, esse bom<br />

velho rude e chão, que, se não é, na frase original e<br />

observada do esplêndido fantasista, Virgílio Várzea – um<br />

sofrimento que vive a rir – é um humorismo fúnebre,<br />

dentro de uma alma cristalina de poeta.<br />

São longas as estradas.<br />

E ele veio de muito longe, do país das lágrimas e<br />

das saudades, dos enevoamentos do luto, porque perdeu<br />

sua esposa, o mote supremo de todas as suas glosas.<br />

Vem em busca de um filho, que supôs morto<br />

também, morto, na impassibilidade da pedra, na rigidez<br />

do granito.<br />

Vem procurá-lo, vem vê-lo ainda, embora, do fundo<br />

pesado da sua existência, alguma cousa lhe murmure<br />

aos ouvidos:<br />

São longas as estradas.<br />

É curta a piedade dos homens.<br />

E ele, quase absolutamente, que precisa dessa<br />

piedade, ó filhos de Cristo.<br />

Uma piedade justa, que não desdoura, que não<br />

humilha; honesta como a intenção destes pontos e<br />

vírgulas, franca como a expansibilidade do aroma.<br />

Ele quer essa piedade.


32 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Mães, esposas e filhas, operárias do bem<br />

doméstico, colunas direitas dos brios sociais, bíblias<br />

inesgotabilíssimas do conforto, das consolações e... da<br />

piedade, arremessai um ceitil da vossa fartura aos<br />

peregrinos que passam, abri o escrínio da vossa abastança<br />

aos que imploram, dignamente, em pé, de rosto limpo<br />

mas... desfigurado; deixai as vossas aristocracias de<br />

princesas bourbônicas, as vossas reverências e cortesias<br />

fidalgas, desapertai o colete do estilo, quebrai a linha<br />

da hereditariedade titular, saí, por um momento, dos<br />

arminhos flácidos das nossas alcovas elegantes e<br />

confortáveis, arquiteturadas, cinzeluradas de azul,<br />

brosladas de prata, cheias de caprichos arabescados de<br />

arte.<br />

Sede democratas, uma vez.<br />

Com a democracia dos sentimentos, preclaros,<br />

decentes, bonitos, galgareis o corrimão feito de rosas e<br />

madressilvas e jasmins, da escadaria rutilíssima,<br />

madreperolizada, da aristocracia da virtude.<br />

Formai das glosas, dos versos, das rimas do poeta,<br />

uma nuvem de ouro, com cintilações purpúreas, para<br />

subirdes, envoltas nela, aos intermúndios da crença,<br />

de onde o adorável, o cândido Jesus das cândidas<br />

bênçãos entornará nos vossos lábios os aprazíveis licores<br />

da ventura infinita, e, vamos, provai, livres da vossa<br />

irritabilidade nervosa, do vosso temperamento sanguíneo,<br />

que aqui, nesta terra de Oliveira Paiva, o apóstolo sincero<br />

da bondade extrema, deixa de existir a sentença do<br />

mestre:<br />

É curta a piedade dos homens.<br />

O poeta vos pede pouco, muito pouco.<br />

Atirai em leilão os livros que ele traz, arremataios<br />

todos, ponde em quermesse os vossos corações, enchei<br />

aquelas mãos calosas e dignas, dos mais simpáticos e<br />

sonoros níqueis e tudo será feito.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 33<br />

Deixai um momento o sarcasmo, a sátira e o<br />

egoísmo; lembrai-vos que a humanidade está sujeita às<br />

mesmas leis eternas e imutáveis.<br />

Amanhã, será por vós, talvez, que passará a<br />

desolação da vida. Amanhã, talvez, os caminhos do vosso<br />

bem-estar, tilintantes de alegria, inundados de sol,<br />

relampagueados de júbilos, estejam tristes, bem tristes..,<br />

duma tristeza funda e pungitiva.<br />

Deveis pesar os clarões da vossa felicidade, pelas<br />

sombras das mágoas alheias.<br />

O poeta vos pede pouco, muito pouco.


34 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

SABIÁ-REI<br />

A César Muniz<br />

O sabiá ruflava as asas pardas e amplas, sempre<br />

que fazia explosir, como uma girândola no ar inefável e<br />

translúcido, a sua escala cromática, de gorjeios claros<br />

e espontâneos, pela saleta de uns tons violáceos, com<br />

filetes e cinzeladuras doiradas.<br />

Quando o sol, gloriosamente tranqüilo, numa<br />

fartura de luz benéfica, numa refrangibilidade prismática,<br />

atirava os venábulos cintilantes pela janela da luxuosa<br />

saleta, fazia bem ouvir-se, consorciados à coloração<br />

vermelha, rubra, os artísticos concertos do incomparável<br />

maestro das sinfonias selvagens, do empório largo da<br />

natureza criadora.<br />

Era o deslumbramento da harmonia e da luz.<br />

E quanto mais o sol fulgia, coruscando do alto, em<br />

rutilante cascata, mais o sabiá cantava, cantava, cantava<br />

sempre.<br />

Parecia que nos raios do grande Filósofo da<br />

evolução natural, vinha presa, fundida, corporificada toda<br />

aquela música sonorosa e adoravelmente casta que lhe<br />

saía do laringe metálico.<br />

Sentia-se como que o irromper imponentíssimo<br />

de heróis, de espíritos saudáveis, em marchas triunfais,<br />

em pompas, pela curvidão marmórea do Azul, ao escutarse<br />

o primoroso tenor das selvas.<br />

Como cantava bem; como os trinados cheios, como<br />

os vocábulos musicalizados se derramavam todos, com<br />

orgulho, inflados de brio, recortados de uma bravura<br />

nervosa, sobre os objetos silenciosos – os ricos móveis<br />

facetados de madrepérola, os divãs de custo superior,<br />

os contadores róseos, as chaises-longues, o piano, sobre<br />

o qual dormiam algumas rêveries de Schubert, as cômodas<br />

poltronas austeras, os cristais finíssimos, as estatuetas<br />

representando amores pagãos, os reposteiros suntuosos,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 35<br />

cor marron, as múltiplas fanfreluches chinesas, as<br />

esquisitas ânforas gregas – tudo na imobilidade da treva.<br />

Um dia, deixaram a porta da gaiola aberta e o<br />

sabiá, lembrando-se que tinha talvez um lar mais livre<br />

na amplitude livre da floresta, um ninho mais amigo,<br />

mais carinhoso, na doçura consoladora da paina e do<br />

musgo, bateu, abriu as asas de gênio inspirado, num<br />

último acorde de músico e vibrante e... fugiu, rasgando<br />

a transparência das esferas alegres e infinitas.<br />

Mas um caçador ingrato que rodeava aquelas<br />

paragens, vendo o esvoaçar vitorioso do pássaro<br />

cantarolador, disparou um tiro valente e o sabiá caiu...<br />

Nos seus olhos havia ainda os derradeiros lampejos<br />

do tropicalismo da raça.<br />

E o sangue a rebentar-lhe da ferida aberta, como<br />

que parecia também salmodiar a nênia sombria da<br />

ingratidão dos homens pelas Aves da Luz.


Dispersos<br />

Dispersos


38 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

DA BAHIA<br />

SOBRE OS POETAS CATARINENSES SANTOS<br />

LOSTADA E VIRGÍLIO VÁRZEA<br />

Acabo de receber jornais com o espírito hors ligne<br />

de ambos. Maravilhoso! Único!<br />

Li, reli, treli os versos e “quinquili” o folhetim.<br />

Admirável! O Lostada, com a sua palavra toda<br />

irisada de florões levantinos, arquitetando uma<br />

fraseologia própria, original, levada nas claridões<br />

aurorais, cinzelando um pedaço de marfim, cheio de<br />

salpicações multicores de azul, rouge, e ouro, traçou um<br />

dos folhetins mais cheios de verve que eu tenho lido.<br />

Brilhante de concepção, intuitivo, vibrante como<br />

um tímpano de metal ou um anafim mourisco.<br />

Parece uma filigrana de Alencar, uma página da<br />

Dama das Camélias de Dumas Filho, ou uma frase<br />

perfumada, de luva gris-pèrle de Théophile Gautier, o<br />

delicado inspirador de Mademoiselle de Maupin.<br />

É um belo trabalho, e, direi mesmo, un chefd’oeuvre.<br />

Completo, artístico, palpitar de almas, cânticos<br />

à liberdade...<br />

É galantemente espirituoso e espirituosamente<br />

galante, Lostada, o teu folhetim pschutt; é vivo como uma<br />

alvorada ou uma orquestração de aves que rouxinolizam<br />

através das fulgurações ensangüentadas de sol no seu<br />

plaustro iluminado e triunfante, quando sobe a escadaria<br />

longa e suntuosa do Levante!<br />

Ainda bem! Principiam eles a ter as imponências<br />

de águia condoreira, nessa infeliz terra que eu tanto<br />

amo, que defendo sempre que o senso mo manda fazer,<br />

e que lhes tem sido ingrata!<br />

Oxalá saibam os catarinenses, como os dous<br />

bandeirantes, compreender o evolucionismo do século e<br />

agitar o cérebro pensante do Desterro.<br />

Eu cá estou de longe para guardar, no sacrário de<br />

minha admiração convicta e séria, as pérolas e as flores


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 39<br />

de luz e ouro, do ideal desses combatentes moços que<br />

se chamam Virgílio Várzea e Santos Lostada e que, como<br />

uns intrépidos soldados da Idade Média, sabem na luta<br />

do talento, na batalha do livro e do estudo, atirar o seu<br />

cartel, a sua luva de desafio à ignorância e à insensatez<br />

que não ousa dar um passo na vanguarda do Belo<br />

filosófico, do Belo estético de que fala Eugène Véron no<br />

admirável livro L’Esthétique.<br />

Não posso ir mais além.<br />

Estou ainda sob a impressão daquelas linhas,<br />

cheias de rendilhados, belas, luzidias. Abraço-os, num<br />

fervor explosivo de entusiasmo e brado-lhes da sombra<br />

onde estou, intimamente saudoso, por não os ver: –<br />

Avante, amigos!<br />

Na grande cruzada da luz são os heróis, aqueles<br />

que se erguem da treva, do obscurantismo, da<br />

democracia, e de luta em luta, de lágrima em lágrima,<br />

de fel em fel, de desespero em desespero. São aqueles<br />

que riem... quando choram e que choram... quando riem.<br />

São esses que de Tântalo passam a ser glorificados<br />

como Voltaire ou Dumas. Salve!<br />

E como paráfrase àqueles versos do másculo cantor<br />

da Abolição, Castro Alves, quando diz – “Bravo quem salva<br />

o futuro fecundando a multidão” – eu, em completa<br />

síntese de aplausos, dir-lhes-ei: – A perfectibilidade<br />

moral e intelectual de um povo depende da mocidade,<br />

essa vigorosa e audaz fundidora do porvir. Salve!<br />

Que a minha alma adeje nas asas policromas da<br />

inspiração, para saudar os dois talentos mais amplos e<br />

os dois poetas mais perfeitos da nova idade literária<br />

catarinense.


40 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

INTERJEIÇÕES DA LÁGRIMA<br />

(ARTUR ROCHA)<br />

Ainda funâmbulo do ideal, Moleque, vamos,<br />

reticência de soluços os períodos de tuas colunas, vírgula<br />

de lágrimas essenciais e austeras a tua fraseologia,<br />

corta, rasga, espedaça, destrói a tua vestidura multicor,<br />

alegre como os guizos sonoros, vibrados à música da<br />

pandeireta; para as tuas cambalhotas atrevidas, no<br />

trapézio da crítica, apostrofa a gargalhada vermelha do<br />

ditirambo cortante como a navalha, sacode os teus<br />

nervos, acorda a tua animalidade, o teu humor que ri e<br />

que chora – e, vamos, Moleque – fazendo explosir os gritos<br />

da matéria, as impetuosidades pantéricas da carne, afoga<br />

o teu organismo, mergulha-o na sombra do não ser, do<br />

eterno problema trágico de Shakespeare.<br />

Morreu Artur Rocha.<br />

O que quer dizer isto?!<br />

O que se deduz destas três frases, ali acima desta<br />

preposição, enfileiradas, alinhadas, perfiladas, na<br />

solenidade fúnebre dos ciprestes inteligentes, graves,<br />

circunspetos?<br />

O que significa aquela afirmativa, que tem a<br />

tristeza, a unção religiosa dos soluços indefiníveis do<br />

órgão, espalhando-se, derramando-se pelas abóbadas de<br />

um templo enorme e majestosíssimo?<br />

O que quer dizer isto?!<br />

Quer dizer que desapareceu na noite metafísica<br />

um dos mais valorosos espíritos da geração deste país.<br />

Quer dizer que entregou-se ao conúbio do verme,<br />

no conceito de um talento forte, uma das mais radiantes,<br />

uma das mais ousadas e selvagens imaginações que<br />

conheço.<br />

Artur Rocha tinha um magnífico cabedal literário,<br />

o seu espírito compreendia a força intuitiva das cousas<br />

e às vezes, varado por uma loucura que se poderia<br />

qualificar de genial, a sua pena coruscava, relampejava,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 41<br />

fuzilava na escrita, com as nuances sulfúreas dos<br />

fenômenos que se observam nas marés.<br />

Sua inteligência fina, penetrante e superior, dum<br />

atilamento de filósofo, alargava-se pelos mundos da<br />

ciência, a fora, como uma águia gloriosa e imponente<br />

na fartura das penas e na rijeza das asas.<br />

O estilo saía-lhe terso e animado por uma chama<br />

sempre nova, viva e ardente.<br />

Parece que ele bebia, pelos órgãos visuais e pelos<br />

órgãos auditivos, toda a seiva, toda a fecundidade natural,<br />

porque os seus artigos tinham raízes boas, alcances<br />

magníficos, fundos didáticos e evolucionistas.<br />

Não se compreendia o Artur Rocha, sem o seu<br />

lenço ao pescoço, nem o Rio Grande, sem o senso<br />

jornalístico de Artur Rocha.<br />

Se Artur de Oliveira era um desespero de talento,<br />

doido e tresloucado, que enveredou no antro surdo da<br />

dúvida, Artur Rocha era um cérebro sadio – cuja natureza<br />

urgia, com a sua preponderância animal e inevitável,<br />

mais horizontes para viver, mais céus estrelados de sóis<br />

para alargar e fortalecer o sangue vital das células<br />

intelectivas.<br />

Vamos, Moleque, retesa os músculos e, embora<br />

pareça que ris sempre como o Ghwinplaine sombrio, nas<br />

eternas cabriolas da dor, no sarcasmo epilético da<br />

agonia, pontua isto, com a lágrima franca e sincera, em<br />

consideração ao talento que cai.


42 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

VICTOR HUGO<br />

– La gloire t’a donné la jeunesse immortelle.<br />

Isto escreveram-te no teu octogésimo terceiro<br />

aniversário natalício. Hoje, depois do teu eclipse no<br />

mundo animal, mas da tua transformação, da tua<br />

entrada majestática pelos sóis das idéias, pelos corações<br />

valentes das gênesis dos povos – eu, mandando a palavra<br />

musculizada, enfibrada, palpitar como um organismo,<br />

sintetizando as tuas obras, arremesso, pelo teu túmulo<br />

a dentro, isto:<br />

Morreste em todas aquelas mortes.<br />

Viveste em todas aquelas vidas.<br />

* * * * * * * * * *<br />

O poeta d’Os Miseráveis, aquele que tinha uma<br />

consolação imaculada e profunda para todos os<br />

miseráveis; o poeta da PIEDADE SUPREMA, aquele que<br />

tinha uma suprema piedade por todos os desgraçados<br />

desabou como um sol triunfante e glorioso e, agora, como<br />

numas pequeninas visões de oftalmia, causadas pela<br />

luz excessiva, todas as raças hão de sentir os olhares<br />

ofuscados nos clarões estupendos que o Cristo da<br />

Liberdade universal espalhou pelos séculos afora; esse<br />

Cristo extraordinário, esse poeta do HOMEM QUE RI,<br />

que ria dos nababos da treva e chorava pelos mendigos<br />

da lama numa loucura genial, esse poeta de l’ombre et<br />

de l’abîme.<br />

E agora, a sombra e o abismo riem-se por lhe<br />

sorverem a matéria, mas a luz folga, acariciando a<br />

substância espiritual do vulto.


PERFIS A VAPOR<br />

CARLOS SCHIMIDT<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 43<br />

O Carlos, o Schimidt!...<br />

O Schimidt, o Carlos!...<br />

Duas pessoas, distintas e... uma só<br />

individualidade verdadeira.<br />

Magnífico, o Carlos Schimidt!...<br />

Quem o não conhece; aquele invólucro simpático,<br />

guardando um coração valentemente democrata e digno,<br />

como o cálice de uma flor delicada guarda o perfume,<br />

que é o espírito da natureza vegetal; como o crânio guarda<br />

o espírito, que é o perfume da natureza animal.<br />

Quem enfrentou ainda com esse caráter em linha<br />

reta pelos escombros e anfratuosidades da vida, que não<br />

sentisse vibrar dele a nota da adorabilidade e da<br />

magnitude?...<br />

Carlos Schimidt faz da honradez uma couraça<br />

temível contra as marteladas e os golpes adestrados da<br />

luta sociocrática.<br />

Podem atirá-lo aos empurrões, aos solavancos, aos<br />

embates fortes por despenhadeiros compactos de treva,<br />

esses numes invisíveis que formam os destinos do ser,<br />

que o bom do homem, o esplêndido coração, cairá<br />

sempre, mas sempre em terreno plano, luminoso, suave.<br />

Talvez desarranje um músculo, mas o caráter,<br />

olhem bem para ele e... vê-lo-ão em todo o vigor, com<br />

toda a correção do estado primitivo...<br />

Faz bem, no meio de um materialismo que cega,<br />

duma indiferença que regela, dum egoísmo e mesquinhez<br />

de sentimentos, sentir palpitar ainda, surgir do caos da<br />

podridão moral, almas decentes e profundamente boas<br />

e úteis, com verdadeiro direito à vida, como a deste<br />

adorável catarinense.<br />

Não conheço ninguém mais atilado para as<br />

ocasiões do trabalho, com mais competência de senso<br />

para o encargo superior de pai de família.


44 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Carlos Schimidt conhece as meias-tintas do lar,<br />

sabe esbater na tela doméstica as cores das<br />

circunstâncias da existência, distribui com arte o colorido<br />

da felicidade de suas filhas e... encara, rindo, a gradação<br />

das sombras do pesar.<br />

Pode-se dizer que no centro harmonioso da família<br />

e da sociedade ele é, como diz Guerra Junqueiro – Um<br />

gigante nu contra um gigante d’aço.<br />

A atividade do Schimidt espelha-se partícula por<br />

partícula, em todas as coisas, como o orvalho gota a gota<br />

em cada pistilo das magnólias.<br />

Na arte plástica, nas ligeiras cinzeluras<br />

arquitetônicas do desenho, por intuição, por gosto, por<br />

estética, nos fanfreluches do espírito fino, carnavalesco,<br />

no humor caricatural, pronto, claro, preciso, espontâneo<br />

– observa-se no Carlos uma adivinhação de tudo o que é<br />

belo, grande, primoroso.<br />

Possui uma perfeita organização de artista, onde<br />

há muita seiva, muita coragem bonita, muita<br />

compreensão do difícil e do bom, mas pouco, muito pouco<br />

horizonte, muito estreito campo, acanhados limites...<br />

Ele é como os objetos em cujas facetas a luz<br />

reflete-se em prismas.<br />

Apresente, por isso, e só por isso, o excelente<br />

Schimidt que é, dentre as personalidades que apodrecem<br />

no vulgo – como que um grito alegre da terra – no tropo<br />

de Ramalho Ortigão.<br />

Gosto do Carlos, porque ele afinal de contas... é<br />

mesmo assim...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 45<br />

VICTOR HUGO<br />

Ne dites pas mourir; dites vivre, croyez.<br />

É o apotegma glorioso do mestre, que sintetiza<br />

toda a valentia, toda a força superior do seu atilamento<br />

espiritual.<br />

Nunca morrem os homens de cérebro, aqueles que<br />

têm a penetração filosófica das grandes causas, que<br />

sobem, pela idéia, às maiores alturas, de onde, se caem,<br />

é pela vertigem que lhes causa a luz, a zona infinita do<br />

éter.<br />

Quem viveu como Victor Hugo, dentro destes três<br />

preceitos grandiosíssimos da mais simpática e<br />

revolucionária figura da História, o Cristo, o filósofo<br />

supremo, esses preceitos racionais da Liberdade,<br />

Igualdade e Fraternidade – há de cair humanizado na<br />

dúvida sinistra do túmulo, mas há de entrar em essência,<br />

em vigor intelectual pelos corações de todos os povos.<br />

Pensar, educar e combater.<br />

Ele o fez.<br />

Ninguém mais franca e lealmente se colocou do<br />

lado dos pequenos da sombra para ferir os miseráveis<br />

da luz, ninguém tanto abençoou os pequenos da luz para<br />

estigmatizar os miseráveis da sombra.<br />

Victor Hugo foi mais do que um revolucionário, foi<br />

uma revolução.<br />

A indomabilidade selvagem do seu organismo, os<br />

seus elementos de combate, a sua argúcia pronta e<br />

assombrosa no desenvolvimento das evoluções morais e<br />

sociais deram um cunho fantástico na escala<br />

extraordinária dos seus assuntos verbalizados ou<br />

expostos em caracteres.<br />

Esse operário do bem, esse bem do operário ou<br />

antes: esse próprio bem que existiu pela sua animalidade<br />

quase um século, concluiu as obras monumentais de<br />

cem séculos.


46 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Representou em oitenta e três anos uma porção<br />

de paixões, uma porção de lutas, um milhão de<br />

sentimentos.<br />

Viveu a fase do homem e a fase do leão.<br />

Bebeu inspirações maravilhosas, mergulhando a<br />

cabeça no infinito e trazendo-a ensopada em luz.<br />

Viu quedas de reis e de estados, de usos, de<br />

costumes, atravessou os mares de todas as tempestades,<br />

viu morrer Gambetta, viu morrer Littré e Girardin, sentiu<br />

as maiores vibrações e estremecimentos de triunfo, viu,<br />

em pé, no trono de seus livros, aureolado pelo arco-íris<br />

da sua palavra doida, nervosa, desesperada, passar toda<br />

a enorme imponência que pode admitir o pensamento e<br />

o olhar: Viu Paris, fartamente alegre e alegremente farta<br />

de glórias, ajoelhar-se, beijar, vitoriar num<br />

bombardeamento pelos sóis das intelectualidades<br />

universais.


MAJOR CAMILO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 47<br />

É uma gargalhada de sessenta e tantos anos,<br />

sempre cristalina e vibrante.<br />

É o homem que ri... Não “o homem que ri” do Pater<br />

oceanus na frase de Théophile Gautier, mas o homem<br />

que ri, de Santa Catarina.<br />

É um patusco, a gente diz ao enfrentar com o<br />

Camilo.<br />

É um caráter limpo e honesto, a gente diz ao<br />

enfrentar com o Major.<br />

E Camilo e Major e Major e Camilo formam um<br />

Major Camilo muito direito, muito reto, muito respeitável.<br />

Dentro do seu organismo, chocalham, tilintam<br />

todos os guizos do prazer e da alegria franca.<br />

O seu espírito não se preocupa com os<br />

enevoamentos do ser.<br />

Sabe o que são lutas porque tem vivido o tempo<br />

preciso para elas, mas, ao contrário dos espelhos, não<br />

reproduz, não reflete sempre as sombras melancólicas<br />

que por acaso cruzam-se dentro de si.<br />

Tem a preocupação da arte, a inteligência, a<br />

finura.<br />

É um magnífico conquereur do ideal, metido na<br />

tebaida da indiferença.<br />

Nos teatros, pelo carnaval, com a hábil direção do<br />

seu pincel, tem pintado o sete, a manta... e... não sei<br />

se, sobretudo, algum xale... ou sobretudo...<br />

Pinta também... o diabo na “Diabo a quatro” sem<br />

mesmo pintar nenhum diabo.<br />

E é um diabo dos diabos.<br />

Quando ele está entre os seus amigos e que, de<br />

repente, explodem em risadas todos eles, não há que<br />

ver – Estourou por ali a bomba de alguma anedota do<br />

Major.<br />

Todos cercam o precioso cidadão de afabilidades<br />

e gabos, porque ele, no sacrário da família, guarda,


48 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

acaricia e afaga a hóstia de luz, a lembrança do amor<br />

imaculado e supremo de sua mãe que vivia para estenderlhe,<br />

sobre a cabeça, como um manto estrelado de<br />

consolações e de bondades, o seu olhar piedoso e santo.<br />

O Major Camilo representa, na atividade humana,<br />

o humorismo alegre de Júlio César Machado.<br />

Ri, ri nervosamente, funambulescamente, talvez<br />

para tapar, com risos, os escombros, os vácuos da sua<br />

felicidade.<br />

Ri, talvez, para dar mais claros aos escuros da<br />

sua existência.<br />

Ri, porque é uma necessidade dos seus músculos,<br />

dos seus órgãos vitais...<br />

O seu coração expande-se pelas cousas dignas,<br />

bate ainda com força, nas palpitações fortes da mocidade,<br />

porque o Major recorda o seu tempo, o seu bem-estar de<br />

moço, pelo país dos sonhos a dentro, vendo o cosmorama<br />

simpático da sua ventura de rapaz, sentindo cantar-lhe<br />

no peito os gloriosos vôos em busca das aprazíveis esferas<br />

infinitas da infinita luz.<br />

E ele ri, ri, como um doido do prazer; porque assim<br />

como a atmosfera, por um princípio fisiológico, influi no<br />

sangue, o riso influi no temperamento do Major.<br />

E, nos momentos dos entusiasmos justos, toda a<br />

aurora eterna da sua alma sobe, aflui-lhe ao rosto, como<br />

o colorido rubro da virtude e da dignidade.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 49<br />

O ESPECTRO DO REI<br />

VERSOS DE MOREIRA DE VASCONCELOS<br />

(Maranhão, 1884)<br />

“Quem diz poesia, diz Emoção, quem diz Emoção<br />

subentende sinceridade”, escreveu Oliveira Martins,<br />

perlongando as Odes e Canções, de Luís de Magalhães.<br />

O trabalho de que nos vamos ocupar um tanto<br />

detalhadamente merece esse apotegma do ilustre<br />

escritor português.<br />

Há duas cousas no Brasil que são como que<br />

homogêneas: a política e a poesia, por não serem tomadas<br />

convenientemente a sério, por serem entregues a muitos<br />

espíritos pueris, duma penetração frívola e vulgar.<br />

Falar em poesia é, neste país, para a compreensão<br />

fácil e leviana de indivíduos inconscientes da verdade<br />

filosófica das grandes coisas tangíveis, uma imbecilidade,<br />

um entretenimento inútil, uma aspiração vazia de senso<br />

e de critério.<br />

Mas não se pense assim; não.<br />

Se a poesia é uma banalidade, uma questão de<br />

rimas e de amores romanescos, de tolices doiradas,<br />

rasguem-se para sempre, lancem-se ao fogo Os Lusíadas,<br />

a Divina Comédia, o Fausto, as tragédias de Shakespeare,<br />

o D. Juan, de Byron, a Jerusalém libertada, de Tasso, e<br />

tantas revelações geniais que não só levantaram homens<br />

na grandiosa comunhão das idéias, mas que<br />

celebrizaram nações imortalmente.<br />

A poesia é uma arte poderosa e positivamente<br />

séria; tais sejam a força intuitiva dos poetas e a sua<br />

unção religiosamente estética e afetiva.<br />

Todos os assuntos são valorosos e grandes, uma<br />

vez que sejam descritos e tratados com observação<br />

analítica.<br />

Se em todos os países civilizados a poesia segue<br />

na vanguarda de todas as altas criações do espírito<br />

humano, por que não há de ser assim no Brasil?


50 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Independência e idéias, consciência ao largo deixemos<br />

estrugir lá fora, na sociedade que arrota o seu bom vinho<br />

ao almoço, que vai pelos clubes passear a sua dispepsia,<br />

deixemos estrugir, sim, os ditirambos crus, e as ironias<br />

entrecortadas de risadinhas vaidosas, insufladas de<br />

pedanteria e bílis.<br />

Agitar a alma a todas as sensações capazes de<br />

robustecer o espírito, ter a penetração do “Grande Meio”<br />

na frase de Comte, ser grande com os grandes, e pequeno<br />

com os pequenos, trazer sempre no organismo a<br />

harmonia vital do exuberante empório das maravilhas,<br />

a natureza criadora, adivinhar todos os fenômenos, ser<br />

artista, valentemente artista, inspiradamente<br />

cinzelador, conhecer as meias-tintas e os claros-escuros,<br />

as meias-sombras da vida, soluçar de pé como um<br />

colosso, rir como um desvairado de luz, compreender as<br />

largas mutações cósmicas, os nimbos crespusculares das<br />

amplitudes do éter, rasgadas em coloridos undiflavados,<br />

em tonalidades supremas de melancolias suaves e<br />

cândidas – sentir, ver tudo isto com o eloqüente olhar<br />

do raciocínio, com a indomabilidade selvagem da crença<br />

animal – eis o que é ser poeta.<br />

Poesia quer dizer emoção, quer dizer sinceridade,<br />

quer dizer alma e consciência. Todos os dias criam-se<br />

trovadores mas não se criam poetas; criam-se máquinas<br />

mas não se criam corações.<br />

Da fecundidade espontânea e livremente franca<br />

do espírito, do estudo superior e particular de todas as<br />

coisas da existência, das frases pequeninas, das<br />

minuciosidades notáveis do ser, dos compridos vôos de<br />

aspiração, firmados em claros alicerces de verdade, deve<br />

nascer o poeta, boêmio eterno das incomensuráveis<br />

estâncias do Ideal.<br />

O Evolucionismo, que tende a aperfeiçoar,<br />

completar, dar razoabilidade a tudo, exige da poesia uma<br />

transfiguração natural da forma, uma regularidade


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 51<br />

matemática no metro e uma selva brilhante de<br />

concepções elevadas e límpidas.<br />

Pela forma, ser nítida, clara como os cristais a<br />

cintilarem batidos pelas arestas do gás; pelo metro, ser<br />

correto como Ângelo Buonarotti na admirável arte da<br />

escultura; pela concepção, ser elevada, grande como a<br />

frase de Girardin, delicada como o espírito das flores – o<br />

perfume.<br />

Se tivéssemos de caracterizar uma poesia<br />

brasileira, genuinamente nossa, seria a lírica, porque é<br />

essa a nossa índole e afeição poética, porque os nossos<br />

primeiros cantores foram líricos, porque a mor parte de<br />

todos os elementos e princípios de vitalidade intelectual<br />

dão em resultado a poesia lírica.<br />

No meu modo de pensar, calmo e refletido, acho<br />

que a transformação absoluta e normal que alguns sérios<br />

poetas brasileiros têm dado à poesia, é indiscutivelmente<br />

superior e de resultados mais seguros e mais dignos.<br />

* * * * * * * * * *<br />

Para mim cousa alguma deve estacionar; fazer<br />

poesia relativamente às necessidades congênitas da<br />

nossa natureza letárgica e mole parece-me de mau gosto<br />

e não condigno das proporções, que, à luz dos<br />

conhecimentos do século, tem tomado a inteligência<br />

humana.<br />

Essas vantagens de transformação universal nas<br />

artes, nas ciências, nas letras e que a crítica sensata<br />

estuda e compara com a máxima argúcia são o triunfo<br />

verdadeiro dos direitos de vida que o homem deve ter<br />

sobre a terra.<br />

Com a acentuação do estudo e do progresso, a<br />

inteligência cria frutos mais sazonados e bons.<br />

Incontestavelmente a literatura moderna é mais<br />

revolucionária, mais conscienciosa, mais firme e mais<br />

inspirada do que a antiga.


52 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

O romance positivamente sem força experimental<br />

era escrito de um fôlego, sobre a perna, sem uma única<br />

preocupação estética, sem um cuidado de forma, todo<br />

ele cheio de situações de cordel, falso, imprestável,<br />

inútil.<br />

Hoje é um corpo sólido, sentindo todos os<br />

agitamentos, todas as palpitações dos nervos; hoje o<br />

romance é um pedaço tirado à vida social, analiticamente<br />

psicológico e fisiológico; contendo a seriedade lógica dos<br />

fatos, a irrepreensível escola da verdade; doutrinando,<br />

argumentando, influindo nos costumes e nos vícios, como<br />

a atmosfera influi no sangue.<br />

Hoje a forma amplia-se à largueza dos<br />

sentimentos, a largueza dos sentimentos à força da<br />

imaginação, a força da imaginação aos materiais do bom<br />

senso, cujos produtos são perfeitamente distintos dos<br />

produtos banais e estéreis.<br />

Antigamente parecia um pieguismo indecifrável<br />

ver-se um homem educado, convenientemente instruído,<br />

a ler um romance; hoje é fato que honra e distingue,<br />

quando esse romance tem na sua lombada os nomes<br />

aureolados de Zola, Flaubert, Daudet, Manzoni, Eça de<br />

Queirós e Teixeira de Queirós (Bento Moreno).<br />

A poesia, como o romance, é fora de dúvida que<br />

tem a seguir o mesmo caminho, colocar-se na mesma<br />

esfera, isto é, dizer alguma coisa de novo sem<br />

incompatibilizar-se com o sentimento expansivo da<br />

inspiração e da verdade.<br />

– O verso deverá ser fluente, o metro inteiro, a<br />

rima perfeita.<br />

“Um verso frouxo ou manco e uma rima equívoca<br />

ou violenta hão de ser perpetuamente defeitos.<br />

Quem disser o contrário – ou é tolo ou tem ouvidos<br />

de cortiça.”<br />

Afirma o sr. Alexandre da Conceição.<br />

* * * * * * * * * *


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 53<br />

No Brasil ninguém lê versos ou se alguém os lê é<br />

por distração, por hábito, para fazer disposição a alguma<br />

cena postiçamente dramática com a sua loira ou a sua<br />

morena, para acender a pólvora da paixão que há de<br />

explodir aos pés de uma “ela”.<br />

Quem lê versos na acepção mais inteira e clara<br />

da frase é quem faz versos; é o poeta, e até aí se acentua<br />

a máxima de – poetas por poetas sejam lidos.<br />

Este meu – ler versos – não quer dizer recitá-los,<br />

repeti-los automaticamente, decorá-los; quer dizer, sentilos,<br />

pensar neles com madureza, compreender-lhes a<br />

origem, o gérmen que os fecunda, a grandeza que os<br />

inspira e anima.<br />

Sem dúvida, a tarefa de sentir propriamente, cada<br />

um por si, não é tão difícil nem tão religiosamente<br />

fenomenal, como a de compreender e sentir, por assim<br />

dizer, o sentimento alheio.<br />

Nas diversas fases de sensações, aquelas que<br />

damos a outrem pelos produtos artísticos, pelas criações<br />

do gênio, pelo esforço da inteligência e da razão, são<br />

mais admiráveis e grandes do que aquelas que<br />

recebemos!...<br />

Isto é uma questão toda intuitiva, natural, uma<br />

questão de mais ou menos sangue nos glóbulos cerebrais;<br />

não se argumenta, afirma-se; não se debate, raciocinase;<br />

não se exemplifica, pesa-se no senso.<br />

Toda a fonte de vida e de reflexão que rebenta de<br />

um bom verso ou mesmo de um bom livro de verso,<br />

necessita outras dezenas de fontes de sentimento, de<br />

critério artístico – grande segredo racional – para que<br />

esse ou esses versos possam ser julgados<br />

competentemente, com a maior fartura de sagacidade e<br />

atilamento.<br />

Muita gente há que ouve estas coisas mas teima<br />

em não querer compreender, em ficar numa ignorância<br />

por hábito, por uma falta de importância dada a si<br />

mesma, por um ódio surdo e inabalável ao seu


54 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

semelhante. E essa gente envelhece sob as mesmas<br />

impressões, olha para os mesmos horizontes, pensa as<br />

mesmas idéias, chora as mesmas lágrimas e ri os<br />

mesmos risos, sem ver que tudo isso acontece porque<br />

essa gente vive dentro do seu eu, e só para ele.<br />

Eterna preponderância, a majestade eterna da<br />

miséria no instinto do homem.<br />

– E daí, dessa rebeldia moral, o aplauso por cálculo,<br />

por convenção; e daí, desse fato que é uma anomalia<br />

monstruosa, perante o século, a indiferença de gelo por<br />

sucessos literários reais, o desconceito pelo estudo e<br />

pelo trabalho das nossas mais belas individualidades<br />

literárias, o desleixo mais cabal pelos elementos de luz<br />

que nos pertencem.<br />

Não comparam, não analisam, não anatomizam o<br />

nosso centro de letras, não estabelecem exemplos<br />

comparativos, de épocas, de meio, de índoles, de<br />

adiantamento; não entram com interesse, compaixão<br />

sincera de quem luta desenvolto, franco, livre, num<br />

exame de consciência, pela porta do dever e da verdade,<br />

apoteosando o mérito, não; mas quando se fala da nossa<br />

ainda nova literatura brasileira, perguntam o que é,<br />

parvamente, com um gestozinho de deboche de mulheres<br />

avinhadas, cofiando a barba, com a importância imbecil<br />

de um fiscal de teatro de feira.<br />

Mas entretanto, se se falar na literatura de um<br />

outro país, acham afirmativamente Victor Hugo o maior<br />

sábio deste mundo e do outro.<br />

São esses os críticos, são esses os entendidos,<br />

são esses os capazes, os didáticos; se nos atrevemos a<br />

dizer verdades como estas, somos parlapatões, ridículos,<br />

esmagam-nos com epigramas e piparotes de diabretes.<br />

* * * * * * * * * *<br />

Não obstante não querem enxergar nunca o direito,<br />

muito embora esteja ele de pé, à vista de todos; não


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 55<br />

podem fitar nunca o sol da justiça porque são míopes<br />

de... raciocínio; vegeta nesses cérebros a dúvida do ser<br />

ou não ser – do príncipe da Dinamarca; isto é, não tendo<br />

confiança no valor da sua existência, não compreendem<br />

como podem acreditar que os outros existam para a<br />

vitalidade da matéria, fracos eles, para a vitalidade do<br />

espírito.<br />

E no meio da espontaneidade, da lisura com que<br />

dizem analisar os produtos racionais, sempre surge o<br />

despeito, lá cresce ele, – cresce, avoluma-se, toma corpo,<br />

enfibra-se, muscula-se e faz sombra à sinceridade e aos<br />

bons sentimentos da crítica imparcial e reta.<br />

A força consciente cede lugar à pequenez de uma<br />

paixão animal qualquer e aquele que se critica, que se<br />

observa, tendo as dificuldades, plenas e essenciais para<br />

ser colocado em superiores vantagens literárias, ferido<br />

na sua consciência, aviltado na sua justa proporção<br />

intelectual, amaldiçoa o trabalho e atira para a rua como<br />

uns objetos imprestáveis, o livro e a pena, causas<br />

primordiais da desorganização de seu futuro triunfante<br />

e de aspirações honestas.<br />

Caem então sobre o inspirado da luz, sobre o herói<br />

da idéia, mais tarde, quando o seu talento mergulhou<br />

de todo no profundo túmulo do esquecimento, quando o<br />

seu gênio deixou de bater as asas como um pássaro<br />

vitorioso e alegre, pelas distâncias intermináveis do Azul<br />

amplíssimo e doce; caem sobre ele, sim, as interjeições<br />

extravagantes e sombriamente irônicas da própria crítica<br />

que diz: – Fulano era um jovem esperançoso; por que<br />

não trabalha, não produz, não cria? Por Deus, como<br />

aquele talento, com aquela hilaridade!... Que bonito<br />

futuro lhe estava aberto!... Ah! esta mocidade é indolente,<br />

não é enérgica, não é vigorosa; tem as armas na mão e<br />

lança-as fora sem nada haver produzido. Lamentamos<br />

que Fulano desaparecesse da arena da inteligência. É<br />

uma perda notável para o seu país.


56 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Entretanto essa crítica não se lembra que ela foi<br />

quem o esmagou com a sua indiferença, quem o<br />

desanimou com a sua presunção, quem o estigmatizou<br />

com o seu despeito.<br />

Quando o pensamento humano fundir-se no crisol<br />

da verdade e da justiça, nesta bela terra brasileira verse-á<br />

que tais coisas, ditas aqui com a dignidade da<br />

retidão e da lhaneza, não são simplesmente para fazer<br />

esticar os nervos dos mal-intencionados, dos prevenidos<br />

como se diz, nem para levantar rigorosidades de estilo<br />

inflamado, mas sim para este reotipar, clara e<br />

concisamente, o modo de ver dos que pesam o juízo<br />

coletivo de uma literatura!<br />

* * * * * * * * * *<br />

Ocupemos-nos mais de perto do nosso assunto<br />

geral: O Espectro do Rei, síntese político-sociocrática, por<br />

Moreira de Vasconcelos.<br />

Esse livro vigoroso e robusto, por si só bastaria<br />

para formar uma reputação superior; revolucionar<br />

mesmo.<br />

Moreira de Vasconcelos escreveu-o de um fôlego,<br />

sem pausa, quase, diremos, sem refletir pesadamente,<br />

no acanhado espaço de dois meses em que nós que lhe<br />

sentimos a vertigem do cérebro, a pulsação das veias, o<br />

glorificávamos satisfeito, à vista de tanta pujança de<br />

talento, de tanta facilidade de concepção, de tão<br />

extraordinária abastança de idéias e assuntos originais.<br />

É preciso que se diga alto e altivamente estas<br />

verdades de bronze:<br />

– Poucos têm a felicidade de, reunindo a forma à<br />

arte, a rima ao metro, o fino e delicado espírito à sátira<br />

valente e mordaz, acumulando fato sobre fato,<br />

originalidade sobre originalidade, passagens históricas,<br />

variando de ritmo, de tons, de propriedade de ação, de<br />

propriedade de estilo, ampliando figuras nítidas e


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 57<br />

completas, imagens claras e soberbas, harmonia superior<br />

e rimas não vulgares, algumas, muitas, únicas e<br />

brilhantíssimas, poucos têm a felicidade de preparar,<br />

em dois únicos meses de um trabalho nervoso, um livro<br />

de versos tão magnífico, tão bem acabado, o mais<br />

exigentemente possível, para quem quer enxergar as<br />

coisas direitas.<br />

Não têm aparecido a meu ver, no Brasil, muitos<br />

livros de versos superiores ao Espectro do Rei;<br />

consultemos o nosso tesouro poético, estabeleçamos<br />

paralelos entre os livros da moderna geração e esse de<br />

que trato.<br />

Moreira de Vasconcelos é um talento perfeito,<br />

audacioso, revolucionário e que, abominando as<br />

velharias, burila no seu gabinete de trabalho, com a<br />

paciência de um artista de raça, com a coragem forte de<br />

uma organização na qual o sentimento estético se<br />

difunde, as mais belas estrofes selvagens e inspiradas,<br />

grandes e imponentes como as eternas estrofes da<br />

criação.<br />

A gente lê todos os versos desse livro encantador<br />

sob uma impressão estranha e agradável.<br />

Parecem-se a uma quantidade ilimitada de pedras<br />

preciosas, de berilos, de topázios, de esmeraldas, de<br />

ônixes, de diamantes, de prásios, de pérolas, de corais,<br />

de safiras, de brilhantes, de turquesas – tudo isso<br />

rutilando, fulgindo, brilhando muito, aceso numa<br />

claridade espontânea e límpida, pelas línguas de fogo<br />

de um sol cintilador e rubro.<br />

O poeta apanhou na sua síntese toda a gestão do<br />

rei, a figura legendária a quem todos os fatores do<br />

movimento político superior exprobram e invectivam.<br />

Como no fenômeno da Luz, os raios refratores do<br />

talento do poeta iluminam todas as fases da história<br />

político-social da Nação.<br />

* * * * * * * * * *


58 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

É preciso ler-se o livro e acompanhar com o gosto<br />

e com a observação as particularidades do sentimento e<br />

do estudo.<br />

Moreira de Vasconcelos, com o seu engenho<br />

esplêndido, com as suas convicções literárias e<br />

profundas, com os seus ideais novos, com a sua filosofia<br />

grandiosa, fez revolução com O Espectro do Rei, como o<br />

prodigioso e inimitável maior poeta português Guerra<br />

Junqueiro, com o seu estupendo e divino D. João.<br />

No D. João há prodigalidade de idéias,<br />

esbanjamento de imagens infinitas; n’O Espectro do Rei,<br />

de Moreira de Vasconcelos, há a impetuosidade<br />

nevrálgica de poesia vibrante, a seiva de uma mocidade<br />

musculosa e rija de saúde.<br />

Por vezes parece que sente a gente aquelas<br />

estrofes boas, de um cheiro ativo de sangue de um corpo<br />

de artista, de um rapaz de alma simpática e adorável.<br />

A segunda parte, a “Visão de César”, que é o<br />

desfilar solene e majestático dos titãs da Liberdade e<br />

do Direito, em versos gloriosamente heróicos e<br />

fluentíssimos; a terceira, que é o “Tribunal supremo”<br />

onde imperam juízes soberanos; a quarta, que é o “Orfeão<br />

terrestre”, umas preciosas quadras corretas, das quais<br />

ressumbra ovante a lei do transformismo; a quinta, a<br />

“Agonia nacional”, onde a sátira, o ridículo e o espírito<br />

genuinamente notável e elegante se consorciam; a sexta,<br />

o “Drama psíquico”, onde a História, a grande mãe da<br />

humanidade exerce o seu poder inabalável, traçando na<br />

fronte do Réprobo o estigma da ignomínia; a sétima, o<br />

“Espectro do Rei”; a nona “Fases diversas”; a décima,<br />

“Dissolução moral” e a décima primeira, o “Sonho<br />

doloroso”, – formam em torno da inspiradora cabeça do<br />

poeta moderno uma sinfonia wagneriana de gritos, de<br />

soluços, de risos, de beijos, de explosões de dignidade,<br />

de epopéia de sentimentos e de luz.<br />

“O Fundibulário d’O Espectro do Rei”, para estar<br />

com a frase sisuda e larga do autor das Visões de hoje,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 59<br />

da Poesia científica e dos Retalhos, o conceituado dr.<br />

Martins Júnior; o Fundibulário d’O Espectro do Rei,<br />

repetimos, não necessita dos encômios nem dos elogios<br />

ad hoc preparados para alarmar uns reclames falsos e<br />

bombásticos.<br />

O que ele é, o que ele vale, o que ele estuda, o<br />

que ele inova e aperfeiçoa aí está para os que lêem, aí<br />

fica provado para os que criticam sem paixões, para os<br />

que aplaudem sem ficelles.<br />

É natural que no valor vivíssimo da inspiração o<br />

sal da arte não convergisse todos os seus venábulos para<br />

um ou outro verso, mas isso será uma circunstância,<br />

uma falha tão diminuta como uma mancha no sol físico.<br />

Para um nababo, que gasta, a mãos-cheias, os<br />

tesouros de sua bonita intelectualidade, que esperdiça<br />

com profusão, com exuberância, como um perdulário, as<br />

moedas fortes do seu talento sadio, isso não pode ser<br />

defeito, não é, nunca o será.<br />

Demais, até hoje não se tem dado à luz da<br />

publicidade um livro de versos modernos com tanta<br />

originalidade de forma, com tanta beleza de rima e de<br />

imagens, tão completo e tão opulento.<br />

* * * * * * * * * *<br />

A crítica que o desminta, a crítica que o prove,<br />

pronunciando a última palavra do senso e da verdade.<br />

E depois, Moreira de Vasconcelos conhece a<br />

construção do verso e tem sobrevantagem sobre todos<br />

os poetas brasileiros e portugueses: os acentos tônicos,<br />

a partir do princípio de todos os versos, o que observou<br />

muito em algumas partes do seu livro, na maior porção<br />

de estrofes.<br />

Isto, que desde O Espectro do Rei ele pode constituir<br />

uma regra no Brasil, especialmente sua, pelo menos<br />

ante os processos dos versos publicados em volume, e<br />

que ele os analisa, – ficará perfeita e claramente


60 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

assentado nas Manhãs sonoras, produto da escola líricoparnasiana<br />

e que se deverá seguir à aparição d’O Espectro<br />

do Rei.<br />

O que sai da pena assim, vertiginosamente, é tudo<br />

quanto me merece a importância artística do autor; são<br />

os sufrágios da minha admiração convicta e francamente<br />

livre, por um talento nosso, original, despido das crenças<br />

caducas e aparelhado para o augusto congresso das<br />

idéias e reformas literárias.<br />

O que é O Espectro do Rei sente-se em cada página<br />

que se lê, em cada rima que se nota, em cada figura<br />

que se observa.<br />

Desta allure febricitante do livro, desta maneira<br />

de vibrar os seus sentimentos, deste jeito todo particular,<br />

das múltiplas faces da expressão, – o poeta abre com a<br />

sua síntese político-sociocrática uma exceção de valor,<br />

entre os mais seletos cultores da poesia nacional.<br />

A sua observância, a sua experiência natural, a<br />

sua prática absoluta de todas as coisas e fatos da vida,<br />

reunindo tudo isso à fecundidade do seu pensar,<br />

colocam-no em lugar especial e distinto no nosso pequeno<br />

mundo de letras.<br />

Moreira de Vasconcelos não esperdiça a sua<br />

atividade, não faz parar as funções ordinárias do seu<br />

cérebro, e cede ao impulso vigoroso duma vontade<br />

enérgica, ao movimento propulsor das suas ativas<br />

disposições mentais.<br />

Enquanto faz sair dos prelos O Espectro do Rei,<br />

constrói um outro belo edifício poético – as Manhãs<br />

sonoras; escreve crônicas artístico-literárias, conclui<br />

uma comédia original – O pato, revê provas da Luz da<br />

pampa, novo trabalho da escola sensualista, e prepara<br />

os instrumentos de combate para a síntese religiosa A<br />

família.<br />

Dessa efervescência de luta apresenta-se a crítica,<br />

com as suas convicções, com os seus exemplos num livro


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 61<br />

republicano de idéias resolutas e firmes, moldando o<br />

seu ideal pelos seus confrontos.<br />

Seja teimosia, seja extravagância no gosto, o que<br />

é certo é que O Espectro do Rei, de Moreira de<br />

Vasconcelos, é um livro decente e adiantado, novo e<br />

original, e que, se não interessa, se não impressiona<br />

agradavelmente, de uma forma elevada e boa, as<br />

divindades literárias de lhama e papelão, do grande<br />

templo mitológico do júri artístico brasileiro, tem para<br />

mim o valor intrínseco de uma obra escrita<br />

inspiradamente, baseada em fatos históricos da maior<br />

gravidade social.<br />

É um perfeito poeta que vibra a teoria gigantesca<br />

dos assuntos necessários, coletivos, no presente, para<br />

fazer acordar o brio, a dignidade nacional no futuro; com<br />

a coragem cívica de Gambetta e a verve incomparável<br />

de Voltaire.<br />

Merece muito da justiça, da imparcialidade da<br />

crítica e esta que o considere, que o receba como é do<br />

seu dever restrito fazê-lo, não por ostentação banal, por<br />

uma vaidade imbecil, mas pela força consciente dos<br />

espíritos varonis e sensatos que são obrigados a fitar a<br />

luz em todas as suas mais amplas manifestações e em<br />

qualquer círculo que ela abranja.


62 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

PERFIS A VAPOR<br />

ELE<br />

Uma atividade!<br />

Uma locomotiva, deitando nove milhas por hora e<br />

ainda puxada por doze touros briosos e corpudos...<br />

É a síntese d’Ele...<br />

Sempre o vi andar e rir...<br />

Nunca parar, nem chorar...<br />

O quanto anda, ri, e gargalha...<br />

Lembra um vapor... às risadas...<br />

Parece que direito ao seu fim, pela estrada tortuosa<br />

da vida, calcando os enrugamentos do chão, quando há<br />

sol causticante e nervoso, quando a chuva abre,<br />

fundamente, estrelas na face polida do mar, nunca dão<br />

encontrões na desgraça; ao menos se ela o viu, passou<br />

de largo, num marche-marche acelerado, batida pelo<br />

olhar d’Ele, olhar de baioneta calada...<br />

Pode ser talvez que se esqueça, um dia, de rir e<br />

chorar por engano, para experimentar, de brincadeira,<br />

como diz a rapaziada juvenilizante, leve, nas travessuras<br />

douradas do jogo da bola...<br />

Mas isso, tão rápido, tão ligeiramente acontecerá,<br />

que nem mesmo Ele há de observar a transformação...<br />

De resto, tem uma cabeça curada para receber o<br />

eletrismo psíquico, as células desenvolvidas de modo a<br />

fazer o que não supõe ou imagina.<br />

Mergulhador perfeito das dificuldades que<br />

desolam, não precisa descer ao mar profundo de todas<br />

elas, na altitude fantástica, involucrado como os<br />

mergulhadores dos mares do Norte; leva consigo,<br />

unicamente, o grande facho da coragem que o ilumina e<br />

transparentiza todo, deixando-lhe a descoberto a sua<br />

alma forte e a sua pujança viril...<br />

Sabe ler o D. João, do Guerra Junqueiro, esses<br />

versos que parecem milhões de espadas luzidias, cada


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 63<br />

uma com um sol espetado na ponta, entrando pela<br />

Imortalidade a dentro, e já me disse que sentia um<br />

bombardeio de assombros lendo Zola, o mestre dos<br />

mestres supremos...<br />

É um enveredador do futuro, absorvido, engolido<br />

pelo esôfago de um meio ignorante, onde influenciam<br />

mal os elementos climatológicos e etnográficos...


64 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

VIRGÍLIO VÁRZEA E <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong><br />

Temos a elevada honra de transladar para as<br />

nossas colunas um notabilíssimo e superior artigo crítico<br />

sobre os Tropos e Fantasias daqueles nossos amigos,<br />

insertos na Semana, da Corte, – a primeira revista crítica,<br />

científica e literária do país.<br />

O artigo é escrito, ou antes, admiravelmente<br />

burilado por Araripe Júnior, o profundo espírito literário,<br />

o conceituado crítico do Germinal, de Zola, e<br />

incontestavelmente um dos mais fortes talentos de<br />

combate.<br />

É isso um sério triunfo para os nossos amigos e<br />

uma esporada, um vibrante coup de balai na obtusidade<br />

córnea dos invejosos que queiram ou não queiram, gostem<br />

ou não gostem, apreciem-nos ou deixem de os apreciar,<br />

nunca conseguirão enfraquecer ou desvirtuar o seu<br />

inabalável merecimento.<br />

Morda-se, pois, toda a cáfila dos invejosos:<br />

“Os Nossos LIVROS – TROPOS E FANTASIAS”<br />

É o título de um pequeno livro escrito com estilo<br />

em Santa Catarina, por dois moços que nunca de lá<br />

saíram: Virgílio Várzea e Cruz e Sousa.<br />

Nesse fato está o seu maior elogio. Em verdade,<br />

publicar um trabalho literário em uma terra, onde a<br />

imprensa mal serve para o escoamento do expediente<br />

das repartições públicas e da intriga, já significa alguma<br />

coisa, muito mais ainda se esse trabalho tem colorido e<br />

recomenda-se por uma forma até certo ponto nova,<br />

cuidadosamente rebuscada.<br />

Os srs. Virgílio Várzea e Cruz e Sousa deram,<br />

pois, uma prova de vitalidade não sucumbindo à ação de<br />

um meio tão ingrato como é aquele dentro do qual achamse<br />

mergulhados; mostram talento pondo-se, através de<br />

tantas dificuldades físicas e morais, em contacto ou em


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 65<br />

relações de simpatia com os espíritos que dominam o<br />

nosso século literário.<br />

Os Tropos e Fantasias, quando outra qualidade não<br />

tivessem, seriam objeto de curiosidade pela audácia que<br />

revelam. Seus autores, filiando-se à escola naturalista,<br />

atiram-se às formas literárias cultivadas por E. Zola e<br />

Eça de Queirós, com um entusiasmo frenético só<br />

comparável à ansiedade e aos deslumbramentos do<br />

pioneer que pela primeira vez penetra em uma jazida<br />

aurífera.<br />

Daí uma conseqüência. O estilo ressente-se das<br />

irregularidades e incongruências que se encontram na<br />

primeira fase de todo o desenvolvimento orgânico.<br />

Atrofias e hipertrofias, que só virão a desaparecer com a<br />

integração final.<br />

Completamente despreocupados das radicais do<br />

pensamento, os srs. Várzea e Cruz e Sousa fazem com a<br />

frase, com o período o mesmo que os miniaturistas com<br />

os seus artefatos. Pouco se importam que a lâmina da<br />

espada brilhe ou corte, contanto que os copos ofereçam<br />

aos olhos de quem a empunha uma obra de buril cheia<br />

de mágicos rendilhados.<br />

As páginas, os pequenos contos do livrinho que<br />

tenho em cima da pasta, não passam, portanto, de<br />

fragmentos de talentos que ainda não tiveram tempo de<br />

compor-se. A palavra, o período está completo,<br />

perfeitamente afinado pelo diapasão da escola; mas<br />

sente-se que no meio de todo aquele jogo de expressões,<br />

de imagens, de idéias esfuziadas, falta alguma coisa<br />

essencial.<br />

Essa coisa é o complemento da vida na frase; é a<br />

certeza ou o isocronismo da função resultante do perfeito<br />

acordo entre o pensamento e a palavra, de modo que<br />

esta não seja mais intensa do que aquele, e vice-versa.<br />

O tempo se encarregará de corrigir esse defeito.<br />

Quando amadurecido o espírito dos autores pelo exercício


66 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

e pela observação dos fatos exteriores, não lhes custará<br />

substituir a ênfase pela expressão exata e profunda.<br />

Há uma verdadeira e real classificação para o<br />

estilo desses moços: um ensaio de coloridos, de tintas<br />

acres, em uma palheta empunhada por mão nervosa.<br />

Percebe-se, à primeira vista, que os dois pintores<br />

ainda não dispõem do segredo da união dos grupos ou<br />

partes diversas que compõem a paisagem.<br />

Araripe Junior<br />

Depois disto, após esse juízo espontâneo e<br />

observador, após esta vergalhada mestra, todos os<br />

imbecis que morram na noite da sua vulgaridade,<br />

embrulhados nos farrapos das suas idéias, ficando<br />

sabendo que, quer leiam os escritos dos nossos amigos,<br />

quer não leiam, eles com isso nada têm a perder, nem a<br />

ganhar, porque esses imbecis não formam tribunal<br />

julgador, por não terem competência intelectual, nem<br />

nome que lhes faculte o direito para isso.<br />

É verdade que os imbecis encontram sempre<br />

outros imbecis que os aplaudam – mas isso é natural<br />

porque, quando não entendem uma cousa, dizem que<br />

não presta, unicamente por não terem a coragem precisa<br />

de dizer frase de mais senso.<br />

São assim todas as nulidades cínicas.<br />

O brilhantíssimo escrito de Araripe Júnior chamase<br />

a justiça, o dever da crítica literária não se chama<br />

egoísmo, não se chama ignorância.


ABOLICIONISMO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 67<br />

A escravatura – escrevia o Correio Brasiliense em<br />

Londres – é um mal para o indivíduo que a sofre e para o<br />

estado onde ela se admite, lemos no “O Brasil e a<br />

Inglaterra ou o tráfico dos africanos”.<br />

No intuito de esboroar, derruir a montanha negra<br />

da escravidão no Brasil, ergueram-se em toda a parte<br />

apóstolos decididos, patriotas sinceros que pregam o<br />

avançamento da luz redentora, isto é, a abolição<br />

completa.<br />

O Ceará, que foi o berço da literatura que deu<br />

Alencar, quis também ser a cabeça libertadora da raça<br />

escrava deste país e, a golpes de direito e a vergastadas<br />

de clarões, conseguiu este Aleluia supremo:<br />

Não há mais escravo no Ceará!<br />

Não obstante o desenvolvimento gradual, acessivo<br />

da grande idéia da democracia sociocrática que prepara<br />

os homens, fá-los cidadãos para o trabalho moderno,<br />

educado por uma filosofia mais spenceriana, mais na<br />

razão do século evolucionador, aparece a lei do sr.<br />

Saraiva, desmentindo todo o brio patriótico, toda a<br />

dignidade cívica da nação do sr. Pedro Segundo.<br />

Uma lei de fancaria, essa; uma lei que escraviza<br />

os escravos e documenta, com a morte, a liberdade dos<br />

mais velhos.<br />

Uma lei que faria rir o próprio Voltaire, numa<br />

daquelas suas explosões tremendas de ironia fantástica<br />

e diabólica.<br />

Entretanto, para organizar, por assim dizer, mais<br />

exata e mais verdadeira a idéia abolicionista nesta terra<br />

de Oliveira Paiva, O Moleque, que sempre alargou todos<br />

os seus sentimentos altruístas pela causa da<br />

humanidade servil, que é a causa do futuro, começa a<br />

publicar hoje alguns fragmentos de uma brilhante<br />

conferência abolicionista do seu pujantíssimo redator,


68 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

sobre esse assunto, feita na sala da redação da Gazeta<br />

da Tarde da Bahia.<br />

Concluída que seja esta, publicará um discurso<br />

do mesmo, pronunciado no Teatro S. João, por ocasião<br />

da libertação total do luminoso Ceará, e assim,<br />

sucessivamente, O Moleque prestará o seu humanitário<br />

auxílio para movimentar, de certa forma mais inteira,<br />

mais entusiasta, a abolição entre nós:<br />

“Estamos em face de um acontecimento<br />

estupendo, cidadãos:<br />

A abolição da escravatura no Brasil.<br />

Neste momento, do alto desta tribuna, onde se<br />

tem derramado, em ondas de inspiração, o verbo vigoroso<br />

e másculo de diversos outros oradores, eu vou tentar<br />

vibrar nas vossas almas, cidadãos, no fundo de vossos<br />

corações irmanados na Abolição; eu vou apelar para<br />

vossas mães, para vossos filhos, para vossas esposas.<br />

A Abolição, a grande obra do progresso, é uma<br />

torrente que se despenca; não há mais pôr-lhe<br />

embaraços à sua carreira vertiginosa.<br />

As consciências compenetram-se dos seus altos<br />

deveres e caminham pela vereda da luz, pela vereda da<br />

Liberdade, Igualdade e Fraternidade, essa trilogia<br />

enorme, pregada pelo filósofo do Cristianismo e ampliada<br />

pelo autor dos – Châtiments – o velho Hugo.<br />

Já é tempo, cidadãos, de empunharmos o archote<br />

incendiário das revoluções da idéia, e lançarmos a luz<br />

onde houver treva, o riso onde houver pranto, e<br />

abundância onde houver fome.<br />

Basta de gargalhadas!<br />

Este século, se tem rido muito, e se o riso é um<br />

cáustico para a dor física, é um veneno para a dor moral,<br />

e o século ri-se à porta da dor, ri-se como um Voltaire,<br />

ri-se como Polichinelo.<br />

O riso, cidadãos, torna-se a síntese de todos os<br />

tempos.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 69<br />

Mas, há ocasiões, em que se observam as palavras<br />

da Escritura: “Quem com ferro fere, com ferro será<br />

ferido”.<br />

E então, o riso, esse riso secular, que zombou da<br />

lágrima, levanta-se a favor dela e a seu turno convence,<br />

vinga-se também.<br />

É aí que desaparecem, na noite da história, os<br />

Carlos I e Luís XVI, as Maria Antonieta e Rainha Isabel,<br />

é aí que desaparece o cetro, para dar lugar à República,<br />

a única forma de governo compatível com a dignidade<br />

humana, na frase de Assis Brasil, no seu belo livro<br />

República Federal.<br />

[continua]


70 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

BIOLOGIA E SOCIOLOGIA DO CASAMENTO<br />

(PELO DR. GAMA ROSA)<br />

Entre as obras de Herbert Spencer e as produções<br />

do ilustre sr. dr. Gama Rosa encontramos o mesmo tom<br />

de conjunto, os mesmos traços gerais, os mesmos golpes<br />

de observação e de crítica científica, a mesma serenidade<br />

idealizadora.<br />

Na verdade, ter calma filosófica num país<br />

equatorial e inter-tropical de um sol cáustico é uma<br />

qualidade verdadeiramente e seriamente admirável,<br />

tanto mais se essa calma, se essa tranqüilidade de<br />

análise, se esse esforço mental paciente são completados<br />

por uma notável orientação e abstração de cérebro,<br />

fazendo lembrar o caráter pacificamente frio e pensador<br />

da raça anglo-saxônica.<br />

O dr. Gama Rosa identificou-se, compenetrou-se<br />

profundamente das teorias, dos princípios de doutrina<br />

do sábio bretão. Discute e amplia de frente os assuntos.<br />

Essa sua nova obra, Biologia e Sociologia do Casamento,<br />

exata nos processos críticos e filosóficos como está,<br />

parece-nos uma grande obra extraordinária que há de<br />

ficar viva e triunfante para a sociologia brasileira.*<br />

A complexidade de espírito, a forte chama<br />

imaterial de talento e o elevado poder técnico do filósofo<br />

brasileiro, solidificados por um largo critério indestrutível<br />

e por um vastíssimo cabedal de conhecimentos teóricos<br />

das questões e problemas que esclarece com a sua<br />

ininterruptível onda psíquica de saber e de luz, não estão<br />

em nível das capacidades inferiores, nem podem ser<br />

medidos pelas conformações débeis, que não pairam como<br />

os pensadores, como os filósofos nos altos ares soberanos<br />

da crítica científica.<br />

____________________________________________________________________<br />

* Foi traduzida para o francês e publicado na França, por Max Nordau


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 71<br />

Os documentos, os dados, e todo o material ativo<br />

e regularizado da sua obra, a ferramenta de que ele se<br />

serve para poli-la, para dar-lhe convicção, sinceridade e<br />

verdade, estabelecem um ponto de partida geral,<br />

utilitário, dominante e prático. Daí partem, então, as<br />

poderosas razões, caras, iluminadas e puras, deduzidas<br />

das diferentes fórmulas de casamento, como a<br />

monogamia, a poligamia, etc., em uso nas diversas tribos<br />

de raças indo-européias.<br />

O casamento civil com divórcio está biologicamente,<br />

sociologicamente demonstrado na obra de que<br />

tratamos, é uma necessidade coletiva da família<br />

brasileira. No estado de evolução e ampliação de<br />

raciocinamentos práticos e positivos, lógicos e humanos<br />

a que as gerações chegaram, retardar ou embaraçar o<br />

desenvolvimento completo da família é atrasar, é puxar<br />

para trás a humanidade.<br />

A família deve ser não uma parte dependente dos<br />

fatores sociais, mas sim um corpo unitário, complexo<br />

como um organismo, entrando, como agente principal,<br />

em toda a orientação da vida moderna. Da família sairão,<br />

pela sangüinidade, pelos meios, pelos temperamentos,<br />

pelas influências e relações sexuais, pelo cruzamento<br />

de elementos de raças melhores, as bases de uma<br />

sociedade nova que há de garantir e aperfeiçoar a<br />

atividade material e intelectual futuras, definindo e<br />

acentuando a estética do tipo. E, para chegarmos a esse<br />

complemento radical, integral dos direitos da felicidade<br />

humana, é o casamento civil, com divórcio, a única força<br />

preparadora e naturalmente estabelecida no nosso<br />

centro, mesclado de tipos desencontrados e opostos ao<br />

progredimento deste ramo sul da raça latina.<br />

Entre nós, brasileiros, há uma defectiva tendência<br />

etnológica, sobre todos os outros povos, como um brunet<br />

especial, para a exterioridade nas aspirações. Não se vê<br />

o caráter nacional de investigação e generalização no


72 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

desdobrar dos fenômenos que os próprios fatos biológicos<br />

nos apresentam.<br />

O caráter exterior, tão pujantemente explicado e<br />

tão sabiamente desenvolvido por Spencer na Educação<br />

Intelectual, Moral e Física, documentado pelo testemunho<br />

de Humboldt, nos índios orenoques, tem servido até hoje<br />

de embaraço às faculdades criadoras de longa reforma<br />

social do individualismo da nação.<br />

Por ora, no Brasil, toda a integração de crítica,<br />

toda a aplicação sintética de filosofia é flutuante e vaga<br />

como as névoas que nascem dos lagos silenciosos,<br />

adormecidos na nitidez e na transparente brancura das<br />

manhãs.<br />

O dr. Gama Rosa, portanto, trazendo à luz da<br />

ciência as causas que a matrimonialidade católica<br />

obrigatória produz, não concorrendo para a seleção<br />

natural, não protegendo nem dignificando os destinos<br />

nem os misteres para que a humanidade se propõe –<br />

para engrandecer-se – presta um distintíssimo e o mais<br />

real e franco serviço à sociologia, honrando-a com a<br />

amplidão do seu espírito superiormente alimentado de<br />

idéias evolutivas.<br />

Para explanamento da cor dos princípios da obra<br />

Biologia e Sociologia do Casamento, basta-nos tirar à página<br />

169 o seguinte:<br />

O progresso, que é uma conquista sobre o<br />

indeterminado e o incerto, tende justamente a<br />

instituir a previsão, a exatidão, eliminando o<br />

acaso nas condições da vida; mas<br />

presentemente o arbitrário e o fortuito encerram<br />

ainda importância capital.<br />

Ninguém ignora que as mais brilhantes<br />

situações sociais são perfeitamente compatíveis<br />

com a capacidade. As condições dessa seleção<br />

artificial encontram-se mais comumente no<br />

privilégio por direito de nascimento, na<br />

postergação da justiça, no favoritismo, na


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 73<br />

amplitude, deixada ao azar no curso da vida<br />

humana e leis econômicas do mundo.<br />

Vê-se, deste corolário de argumentos<br />

práticos, que o livro em questão não implica<br />

conseqüências graves para o país, mas sim<br />

traz desenvolvimentos mais necessários e<br />

inclinadas incontroversas mais latas.<br />

São circunstâncias, ainda mais, são leis<br />

extremamente variadas, essenciais,<br />

incontroversas e permanentes, tiradas dos<br />

próprios casos biológicos e sociológicos<br />

tendentes à personalização e assimilação<br />

de uma raça.


74 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

UM NOVO LIVRO<br />

(Desterro, abr., 1887)<br />

Ao Eminente Filósofo Dr. Gama Rosa<br />

Da evolução, da luta, da tenacidade, da força e da<br />

vontade foi que se fez o homem moderno. É isto que está<br />

ampla e indiscutivelmente comprovado pelas vastas<br />

teorias do século.<br />

Oliveira Martins, o poderoso filósofo da Biblioteca<br />

das Ciências Sociais, e, ao que nos parece a maior força<br />

pensante de Portugal, um homem cujo espírito<br />

extraordinário, investigador, paciente e infatigável,<br />

coloca-o no mesmo paralelo de Spencer e Haeckel, diz<br />

na sua criteriosa e exatíssima História da República<br />

Romana: “A antiguidade clássica foi equilibrada e por<br />

isso feliz, mas por falta de filosofia, caiu de um lado na<br />

depravação abjeta, do outro no naturalismo desenfreado;<br />

e, gregos e latinos, sepultados na cova cristã, deram de<br />

si o homem moderno – mais fraco, mais atormentado,<br />

acaso porém maior, por isso mesmo que sofreu mais”.<br />

Mais fraco, mais atormentado exclama o filósofo.<br />

Mais fraco sim, porque a luta tem sido desfibradora, os<br />

meios terríveis e arestosos, e o organismo cada vez mais<br />

perfeito.<br />

E o homem quanto mais se afasta das formas<br />

rudimentares, primitivas da natureza, mais frágil, menos<br />

resistente vai ficando sempre, além de que a falta de<br />

crenças e a perda constante de forças morais o<br />

depauperam e atrasam. Mais atormentado porque a<br />

verdade adquirida pelo conhecimento dos fatos positivos<br />

o torna cada vez mais responsável; porque a sua<br />

individualidade está sempre no embate de todas as<br />

hostilidades, de todas as contestações; porque precisa<br />

ter cotovelos de bronze para rasgar a crosta do anônimo,<br />

como bem pensa o ilustre literato italiano, o sr. Edmundo<br />

de Amicis; porque, finalmente traz a sua cabeça alta,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 75<br />

acima daqueles que são ainda retardatários, e que a<br />

não podem trazer erguida na esfera azul das idéias.<br />

O homem moderno não é o homem superficial, o<br />

homem visionário, o homem triste. A tristeza é uma<br />

condição de moléstia, está no organismo como a filoxera<br />

nas vinhas; e o homem moderno tem de ser alegre,<br />

porque tem de ser higiênico e não há melhor higiene do<br />

que a da alegria. É da saúde que vem a força e a força é<br />

a luz, a vitalidade, a cor, o tom e a juventude eterna da<br />

natureza. Devemos cuidar, por isso, em sermos<br />

saudáveis, fortes e higiênicos.<br />

Tem-se falado, dito e escrito tanto sobre a direção<br />

que os espíritos têm tomado nestes últimos tempos, que<br />

parecerá ocioso e fútil demorarmo-nos no assunto.<br />

Mas há verdades que precisam ser bem elucidadas,<br />

bem combatidas, bem esclarecidas, gritadas a largos<br />

pulmões de touro, ao ouvido de muita gente atrapalhada,<br />

pessimista e fóssil, que ainda nos pequeninos centros<br />

ri, cancaneia arruaçante, com chufas e pedradas<br />

anônimas de garoto, das teorias resplandecentes e<br />

triunfantes, dos homens da Ciência. E o nosso caso não<br />

é outro senão o de fazer desfraldar, bem claro nos ares,<br />

o branco estandarte dessas teorias que são verdadeiras<br />

descobertas, irrefutáveis verdades, incontraditáveis<br />

fatos.<br />

As correntes influenciadoras que definiram e<br />

acertaram o pensamento novo são mais proveitosas, mais<br />

positivas, mais práticas. Podemos recebê-las como leis,<br />

não como gosto, nem como imitação ou moda. Nem o<br />

verdadeiro espírito de hoje tem moda ou imitação.<br />

O que ele tem unicamente é ação, é vontade, é<br />

força.<br />

Ele está dentro de uma evolução, se quiserem, do<br />

seu momento, do seu estado de laboração psíquica, e<br />

daí é que sai, inteiro, fiel e nítido, para o jornal ou para<br />

o livro, o seu esforço mental, como um produto fotográfico<br />

das cousas. Não tem mais o pedantismo acadêmico, nem


76 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

a retórica nem a gramática da convenção. Só admitiremos<br />

que ele receba idéias da realidade dos acontecimentos,<br />

das impressões poéticas e fecundíssimas da Natureza.<br />

A sua disciplina de homem, os seus modos de<br />

observar, o seu jeito de ter a dedução e a indução dos<br />

fatos são aprendidos, naturalmente, por meio de<br />

reiterados estudos e observações no mundo social.<br />

Homem moderno não quer dizer homem da moda.<br />

Modernismo de desenvolvimento, aperfeiçoamento,<br />

convicção, verdade, natureza, processos de exatidão num<br />

dado assunto crítico, literário, artístico ou científico.<br />

Modernismo é aproveitamento, utilidade, vantagem<br />

de uma época sociológica sobre outra, etc., etc..<br />

Emile Zola é um sociologista. E o que é o Germinal<br />

senão o clamor, o clarim atroante de uma grande crise<br />

social, que o notável psicólogo descreve admiravelmente,<br />

pedindo a justificação, a solidariedade e a<br />

consubtanciação dos princípios liberais e humanos dos<br />

indivíduos das classes inferiores e ignorados?<br />

O que é Estêvão Lantier? O que é Suvarine?<br />

O “romance” Germinal, diz toda a gente!<br />

Mas nós não entendemos os livros literários<br />

especiais, de observação e de análise sob esse título.<br />

Ficou, desde Balzac, desde os Goncourt, sem<br />

propriedade, sem significação.<br />

O público os lê como se viessem da fábrica cerebral<br />

de Montepin, ou de qualquer outro. Não se importa, não<br />

lhe dá que fazer o estudo, a faturação, o estilo.<br />

Um livro literariamente escrito com a mesma<br />

proficiência científica e com a mesma certeza de técnica<br />

com que Oliveira Martins trata das ciências sociais, não<br />

deveria ter na sua lombada o título, já hoje gasto e<br />

romântico, de romance.<br />

É por demais escuro e insignificante para exprimir<br />

todas as colorações, todo o límpido cristal do espírito<br />

contemporâneo.<br />

É a nossa opinião.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 77<br />

Depois desta rápida exposição da doutrina<br />

filosófica e literária de hoje, ou como pensem, vamos<br />

tratar de apreciar, ligeiramente, os fundos traços cavados<br />

de sinceridade, de lealdade e de justiça, como os traços<br />

de um colorido rubro e acre de Rubens, o caráter literário<br />

do belo provinciano que tanto nos impressiona e<br />

preocupa.<br />

É uma banalidade e uma falta de senso prático,<br />

uma inaptidão mesmo para adiantar outra coisa, dizerse<br />

que há elogio mútuo, superficial, quando um amigo<br />

trata dos merecimentos intelectuais de um outro amigo.<br />

É infundado e mesquinho tal modo de pensar.<br />

Neste século de luta em que cada hora passa como um<br />

raio, em que o homem não tem quase tempo de lançar<br />

os olhos sobre os acontecimentos da véspera, mais<br />

detidamente, com mais pausa, com mais vagar, porque<br />

tem de ocupar-se com o que vem adiante, enflorescendo<br />

e estrelando mais e mais o firmamento das idéias, não<br />

quer dizer nada, nem importa que um amigo escreva<br />

sobre um outro amigo.<br />

E isto pela razão única, intuitiva e lógica de que é<br />

esse amigo, por todos os sentidos, por todos os modos, o<br />

mais competente para fazer crítica sobre o outro, por<br />

estar em contacto com a sua personalidade, o seu<br />

temperamento, os seus tics, as suas emoções, a sua<br />

impressionabilidade, a sua feição particular de escritor.<br />

Pela crítica, pela justiça que lhe faz é que o público lê os<br />

seus artigos, compra os seus livros e aceita os seus<br />

preceitos. Nem pode ser de outro modo. Victor Hugo, no<br />

exemplo, documenta e comprova o que pensamos.<br />

Ele teve Lamartine, teve Sainte-Beuve, teve<br />

Théophile Gautier, etc., etc., que o elogiaram quando<br />

despontou na literatura. E esses indivíduos, esses<br />

escritores, eram os afeiçoados de Hugo. E se assim não<br />

for, como qualquer talento superior, entalado no círculo<br />

estreito da sua terra natal, onde não há aspirações


78 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

nobres e os espíritos apenas têm vôos galináceos, há de<br />

ficar no domínio dos homens que sabem?<br />

Pois se ele não tem quem o encorage, quem o<br />

estimule senão os seus amigos, uma vez que o egoísmo,<br />

a inveja, a indiferença e outros sentimentos tristemente<br />

hipócritas tentam combatê-lo, consterná-lo, dizei-nos,<br />

dizei-nos de que forma há de ele dar vazão ao seu talento,<br />

às nevroses mordentes que lhe queimam o cérebro, às<br />

idéias, senão permitindo que algum amigo os apregoe e<br />

os faça vibrar ao longe e ao largo dos Congressos das<br />

inteligências mais imperantes e mais disciplinadas –<br />

por um ato de fineza e, principalmente por um ato de<br />

justiça.<br />

Digamos, pois, o que se deve dizer, tranqüilos e<br />

seguros de nosso feito, com a retidão e a verdade, que é<br />

a filosofia de todas as eras.<br />

O que nos sugeriu as idéias acima e as que se vão<br />

seguir foi o ter sido enviado, há dias, para Portugal, a<br />

fim de ser publicado ali pela notável casa editora do<br />

Porto, de Eduardo da Costa dos Santos, o livro das<br />

Miudezas.<br />

Virgílio Várzea é um provinciano e um meridional.<br />

Nasceu sob a impressão simpática e colorida da paisagem,<br />

na atmosfera clara e vibrante deste pedaço da Sul-<br />

América – em Canavieiras, um sítio de província,<br />

sossegado, discreto e verdejante, cheio de floridas<br />

várzeas, risonho e casto, onde a vida calma, singela e<br />

simples, saturada do bom ar sadio e fresco dos vegetais,<br />

corre livre, virtuosa, independente e não tem os<br />

aparatosos realces das lindas cidades elegantes, onde<br />

as donairosas mulheres amorenadas usam na tournure<br />

os mais exagerados tics, e os flaneurs vão, de rosa jalde<br />

na Capela, fazer estoirar o líquido opalino do Champagne<br />

Cliquot, rotulado a prata e a ouro em garrafas galantes,<br />

dentro de taças que tinem à noite, pelos cafés<br />

relampejantes e ruidosos.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 79<br />

É uma natureza, esse moço; e daí o tom acentuado<br />

e muito colorido do aspecto das suas paisagens, dos seus<br />

contos. O seu temperamento tem várias modalidades.<br />

Porém, como os raios refratores de uma luz, essas<br />

modalidades, podendo multiplicarem-se, espalharem-se<br />

em estrias na verificação dos objetos e das cousas,<br />

reúnem-se, coligam-se, justapõem-se e formam um só<br />

foco luminoso e forte a que chamamos ordem.<br />

Virgílio Várzea tem ordem, tem exercício e<br />

disciplina literária. A sua educação de Artista fez-se<br />

naturalmente, sob a influência dos bons mestres, tendo<br />

o preciso critério de conhecê-los bem e muito, de<br />

compará-los, de não se munir de Larousses postiçamente<br />

sábios, que são como que Cartilhas de algibeiras, de<br />

onde sai logo uma legião de ilustrações feitas com muita<br />

manuseação e com muita consulta do conhecido<br />

dicionário francês, verdadeira biblioteca dos que gastam<br />

literatura por manha de didatismo ou de ecletismo<br />

artificial e fácil. Talento de assimilação, sabendo<br />

apropriar-se e compenetrar-se dos assuntos, com a<br />

percepção viva, do semblante animado, das coisas,<br />

Virgílio Várzea não é um principiante ou um medíocre<br />

que não mereça a análise franca da crítica.<br />

É mais do que uma esperança da pátria, e menos<br />

do que um jovem hábil, porque é mais do que essas duas<br />

comparativas. Discípulo digno e direito de uma Escola<br />

hoje completamente predominante – o Naturalismo – que<br />

chega a exigir que editores ofereçam 28 contos fortes à<br />

Daudet, por uma obra, ele tem todos esses detalhes,<br />

todas essas circunstâncias, todas essas finas e<br />

delicadíssimas originalidades que a compõem, ou então<br />

muito de inteira correlação com os talentos espontâneos,<br />

sinceros e firmes.<br />

Não é tudo quanto dizemos sobre esse moço<br />

catarinense, nenhum entusiasmo pueril.<br />

Nem nós temos aqui à mão uma pilha Volta que<br />

nos comunique e que nos empreste eletrismo de


80 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

entusiasmo e de aplausos fáceis. Se há pilha, é das<br />

nossas convicções, da nossa alma franca, serena e justa<br />

de combatente.<br />

Os que conhecerem Virgílio Várzea e lerem os<br />

trabalhos de que nos ocupamos aqui adiante acharão,<br />

por certo, que ele é um talento firme, original,<br />

trabalhador, afinado pelos maiores espíritos do seu tempo;<br />

mas nós que o conhecemos pessoalmente, momento por<br />

momento, instante por instante, dia por dia, que<br />

assistimos muitas vezes à confecção dos seus contos e<br />

que sabemos onde ele se adiantou, como lutou, como<br />

conheceu os golpes do estilo e a maneira de ver, como<br />

produziu sem elementos influentes para isso, como se<br />

destacou dos outros, como se especializou, afirmamos<br />

que ele é extraordinário.<br />

Nem esta escrita quer dizer nada diante da<br />

aprovação ou desaprovação da crítica sobre o livro do<br />

nosso constituinte. Porque também Emile Zola, quando<br />

começou a publicar o Mon salon, no Figaro, foi apedrejado<br />

pela pulha literária e sevandija dos cafés cantantes.<br />

Também os Goncourt foram contestados e só se ergueram<br />

em toda a culminância gloriosa dos seus espíritos depois,<br />

muito mais tarde, e isto em Paris, em Paris! a grande<br />

apoteosadora dos espíritos. Quanto mais numa cidade<br />

onde não se cuida de literatura, onde os velhos letrados,<br />

dos antigos periódicos obscuros, não deram mais um<br />

passo além do latim, e onde os novos, os moços que surgem<br />

agora, continuam na lição dos provectos mestres, como<br />

eles os chamam, sempre discípulos, sempre escolares,<br />

de braço dado com a rotina, caducos já na mocidade,<br />

como os velhos letrados de que ali acima falamos, sem<br />

tomarem um caráter mais saliente e mais elevado na<br />

Arte, na Política e na Literatura.<br />

Poderão dizer-nos que Virgílio Várzea não é<br />

nenhum Zola nem nenhum Goncourt. De acordo. Mas<br />

nós também poderemos objetar, muito logicamente,<br />

muito racionalmente, que o Brasil não é a França e que


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 81<br />

não conhecemos, por ora, prosador literário mais original,<br />

mais imaginoso e mais objetivista, do que Virgílio Várzea.<br />

Quando dizemos imaginoso, não dizemos retórico,<br />

palavroso. A imaginação, principalmente num escrito<br />

moderno, participa da verdade e da observação.<br />

Imaginação como o nosso Ideal a representar num<br />

pressuposto fenômeno. Imaginação relativa à aquilo e<br />

àquele indivíduo ou àquele fato social que, como se mete<br />

em pauta qualquer loucura genial de Wagner ou qualquer<br />

admirável sinfonia de Beethoven, a gente mete em estilo,<br />

em vocábulos brilhantes ou ásperos, secos ou úmidos,<br />

conforme a precisão onomatopaica e o efeito de<br />

impressionismo que passou pela retina do escritor, do<br />

artista e do estilista.<br />

Neste ruído de teorias e de idéias gerais<br />

naturalistas que ainda não se firmaram totalmente neste<br />

País, aparece o vigoroso provinciano com as Miudezas.<br />

Não se escreveu ainda, pensamos, nem mesmo em língua<br />

portuguesa, um livro de contos tão pitoresco, tão<br />

“pintado”, tão musical e tão cantante.<br />

E nós dizemos um livro de contos, sem indagarmos<br />

se ele tem o todo necessário, o plano que constitui o<br />

caráter de um livro, isto é, a síntese de um estudo social,<br />

artístico, político ou religioso. Mas se formos a demorar<br />

bem o olhar no merecimento das Miudezas, ver-se-á que<br />

são muitos livros dentro de um só livro, porque cada<br />

conto representa uma fisionomia particular, destacada<br />

e distinta. Assim, o “Albino”, o “Morfético”, “Romance de<br />

um rapaz”, o “Manuel basta”, “A enjeitadinha”, etc. são<br />

contos profundamente humanos, paisagistas,<br />

parnasianos, cheios de um humor notável, vibrados a<br />

rijos golpes de verdade, naturais, onde se observam<br />

estudos de psicologia, um conhecimento exato do estilo<br />

moderno, uma penetrabilidade de escritor consciencioso,<br />

fiel na execução de seus personagens, dos seus moldes<br />

de comunicabilidade afetiva.


82 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Os outros, a “Cabra cega”, “Enterro no sítio”, “A<br />

travessia”, “O Sândalo”, “Passeio no campo”, etc., etc.<br />

exprimem os seus coloridos, os seus sons quentes e<br />

radiosos, as suas vibrações, os seus toques de pintura<br />

cromática de água-forte.<br />

H. Taine, o soberano crítico francês, diz, na sua<br />

Philosophie de l’Art, o que damos aqui, textual e autêntico,<br />

no próprio idioma, que “Chaque artiste a son style, un style<br />

qui se retrouve dans toutes ses oeuvres. Si c’est un peintre, il<br />

a son coloris, riche ou terne, ses types préférés, nobles ou<br />

vulgaires, ses attitudes, sa façon de composer, même ses<br />

procedés d’éxecution, ses empâtements, son modèle, ses<br />

couleurs, son faire. Si c’est un écrivain, il a ses personages,<br />

violents ou paisibles, ses intrigues compliquées ou simples,<br />

ses dénouements, tragiques ou comiques, ses effets de style,<br />

ses périodes et jusqu’a son vocabulaire.”<br />

Seus efeitos de estilo, seus períodos e até seu<br />

vocabulário, conclui o grande crítico. E é o que tem o<br />

nosso valente escritor jovem: seus efeitos de estilo, seus<br />

períodos e seu vocabulário, que alguns chamam<br />

neologismos e outros, menos incompetentes e mais<br />

ousados, termos empolados ou pedantes; questão esta<br />

que ele resolve e explica distinguidamente e cabalmente<br />

no prólogo da sua obra.<br />

Neste ou em qualquer caso, as Miudezas são um<br />

livro superior, adorável, primoroso e extasiante,<br />

constelado de surpresas de imaginação, matinal e festivo<br />

como se uma eterna aurora iluminada e perfumosa<br />

cantasse e risse pelas páginas a fora. As palavras, a<br />

verve, a graça, a elegância, a gentileza e a delicadeza<br />

das imagens lembram um rio de ouro fluido, sutil e<br />

límpido, que se desenrola pelos meandros do livro em<br />

ondulações suaves; rio, em cuja face sonora um sol de<br />

vitória derrama rubis, topázios, esmeraldas e berilos da<br />

refrangibilidade dos seus venábulos cintilantes.<br />

Uma pessoa recorda-se, pela imaginação acesa<br />

desses escritos, dos suntuosos palácios do Alcorão, e


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 83<br />

vê-se numa sala oriental, toda de espelhos e púrpuras e<br />

cristais, ao lado de alguma divindade majestática,<br />

coroada de estrelas, de túnica de rosas e de lírios, tendo<br />

aos pés, num morno êxtase sensual e amoroso, qualquer<br />

Paxá asiático, extravagante e faiscante de pedrarias,<br />

com as suas pantufas verdes marchetadas de pérolas e<br />

diamantes. Nas Miudezas há o goût de terroir de que falam<br />

os franceses, e sente-se o vigor, o enseivamento de uma<br />

natureza literária muito sistematizada, decidida e<br />

pertinaz no trabalho. Ninguém, com mais propriedade e<br />

unidade de ação tomou a si e desenvolveu aqueles<br />

assuntos que, pela simplicidade ingênua, pelo saudoso<br />

e grato sabor de infância que conservam, pela intimidade<br />

e pureza de que são revestidos, parecem a muitos<br />

vulgares e banais. Referimo-nos a “Cabra cega”, para<br />

não citar mais, onde Virgílio Várzea pôs, tão maviosa e<br />

tão doce, uma nesga de luz da sua infância, fazendo<br />

ressuscitar aquele passado morto, tomar vida, mover-se<br />

e caminhar do fundo da tela das descrições, a mais<br />

expressiva e a mais verdadeira, com um milagre do seu<br />

talento indiscutível, pronto, decisivo na ação como um<br />

belo aparelho rotativo.<br />

É preciso ter-se um merecimento bem vasto e bem<br />

real para se saber dar valor e tratar assuntos tocantes<br />

que quaisquer outros, mesmo de certa nomeada,<br />

repeliriam por supô-los indignos e sem significação<br />

alguma de toda a forma que fossem encarados.<br />

Realmente, o talento é uma coisa imperceptível, um<br />

delicadíssimo filtro de luar que poucos percebem. Uma<br />

espécie desses corpos microscópicos que estão n’água,<br />

a mais cristalina, a mais clara e a mais etérea, sem<br />

serem vistos senão através de lentes graduadas e<br />

próprias. Nesta hora em que a preguiça mental tornouse<br />

quase geralmente uma [ilegível] é bom, é consolador<br />

ler-se um livro sincero, novo, escorrendo psiquismo, cheio<br />

de alma; faz-nos bem, tonifica-nos completamente a vida.<br />

E, deitando um olhar até a última linha extrema do


84 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

horizonte, por sobre o dorso esverdinhado e nevrótico do<br />

mar, onde a luz da lua, a clorótica Ônfale do infinito, cai<br />

como um dolente beijo de amor, lembremo-nos lá, além,<br />

longe, do outro lado da montanha, e do lado ainda de<br />

um outro mar, a seara dos espíritos cada vez mais<br />

enlourece e se enflora; e, deixando os que ficam atrás<br />

de nós, caminhemos sempre para legar aos de amanhã<br />

a bênção de nossas palmas e dos nossos triunfos.<br />

As Miudezas não são tudo quanto se tem de esperar<br />

do magnífico e encantador talento de Virgílio Várzea.<br />

Aguardemos os acontecimentos, deixemos que a<br />

evolução se faça, e em seguida aos frutos da alvorada,<br />

aos saborosíssimos contos, morangos que ele colheu nas<br />

alamedas do parque aristocrático e azul do Ideal, hão de<br />

surgir mais idéias, tão bonitas, tão cristalinas e tão<br />

nobres como estas, armadas de dignidade e de força,<br />

como um exército de cossacos, cujos sabres e cujos<br />

capacetes, à mordedura nervosa da luz, faíscam de<br />

reflexos de aço pelos relvosos campos de batalha.


EMILE ZOLA<br />

(1887)<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 85<br />

Em torno da Academia Francesa tem esvoaçado,<br />

ultimamente, num luminoso eletrismo, como um grande<br />

pássaro de ouro, o nome de Emile Zola.<br />

Discussões sobre discussões acumularam-se de<br />

intensidade com relação à entrada do prodigioso artista<br />

na Academia, e mais especialmente depois que Pierre<br />

Loti para lá entrou agora.<br />

Essas discussões e opiniões que se cruzam<br />

parecem, de certo modo, estranhar a entrada de Zola<br />

na casa dos imortais, e isso unicamente por que ele em<br />

tempos foi o maior combatente contra aquela casa.<br />

Mas, por isso mesmo, a entrada de Emile Zola na<br />

Academia Francesa sugere-me, entre as diferentes<br />

opiniões que se deblateraram, uma ordem de idéias que<br />

tentarei expor, usando o mais livre exame, que é um<br />

dos acentuados característicos do mestre.<br />

A princípio, sem uma investigação demorada e<br />

refletida, diante de um espírito tão intransigente, tão<br />

demolidor, completado por moldes tão críticos, tão<br />

profundos de analista, chefe de um sistema literário,<br />

avant-coureur de um movimento novo na Arte, como é<br />

Emile Zola, a idéia que acode a quase todos é de uma<br />

transigência de doutrinas, quando, para o caso do<br />

infatigável operário, esse vivo desejo, convertido já em<br />

resolução definitiva, constitui a força natural que faz<br />

com que os heróis se recolham triunfalmente, depois de<br />

imensas batalhas ganhas, à sombra dos seus louros<br />

flamantes, à maneira do sol que se oculta no seio dos<br />

ocasos em sangue.<br />

Porém, quanto a mim, isso não empalidece a glória<br />

do poderoso escritor.<br />

Desde o “Mon Salon”, no Figaro, que Zola estendeu<br />

pelo mundo, com o seu nome, um rastro de estrelas,<br />

uma via-láctea tão estranhamente luminosa e vinculada


86 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

aos corações como as intensas raízes de uma robusta<br />

árvore monumental.<br />

Ele conhecia bem a força da sua estatura, media<br />

bem a vibração do seu pulso.<br />

De um vigor mental extraordinário, trazendo para<br />

a escrita a corrente das teorias positivas que se firmavam<br />

no mundo culto e delas adquirindo mais essencialmente<br />

a ciência fisiológica, como base de todo o pensamento<br />

moderno, Emile Zola, com a possança dos seus músculos,<br />

cabal, necessária, equilibrada, sabendo girar com todos<br />

os elementos de que carecia, meteu-se supremamente<br />

à forja e, com um valor gigantesco, foi acumulando na<br />

sociedade, no tempo, livros que outra cousa não<br />

representavam senão fatos, documentos da verdade, sob<br />

o mais rigoroso experimentalismo e uma forma<br />

naturalistamente definitiva na relatividade dos seus<br />

processos e que lhe parecia ficar como uma alta<br />

significação ou afirmação da natureza.<br />

O egrégio observador, num impulso d’águia,<br />

conhecia, decerto, a obra que levantava, o movimento<br />

de luz que distribuía em torno do seu nome, pelo aplauso,<br />

pela admiração das nações, e, pesando o alcance de sua<br />

envergadura, estabeleceu fisiologicamente uma série de<br />

teses, isto é, de assuntos que ele os desenvolveria<br />

evolutivamente, na proporção das funções de um<br />

organismo animado.<br />

Daí essa engrenagem de obras, todas elas<br />

obedecendo a um princípio assente, marcando uma fase,<br />

determinando uma época ou estudando um<br />

temperamento.<br />

Numa elevada pressão de idéias ele se tinha<br />

imposto à lei de marchar direito ao seu fim, sereno<br />

sempre, na convicção dos seus admiráveis planos.<br />

Fazia vagamente lembrar o Dr. Fausto, idealizado<br />

com a sua ciência, surdo às contestações do mundo, na<br />

análise crua dos homens e das coisas, atraído pelas


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 87<br />

profundas investigações do saber e esquecido, alheio às<br />

solicitações da carne.<br />

O colossal edifício que Zola tem erguido firme na<br />

terra é um trabalho ainda para mais ser abrangido no<br />

futuro, quando outras gerações mais pensantes do que<br />

a nossa o sentirem de mais perto.<br />

O incomparável artista de Germinal lembra um<br />

gerador, um enseivador de progresso, determinando, de<br />

modo singular e concreto, abrangente do que nos cerca,<br />

pela retina e por todas as expressões dos sentidos, a<br />

vida dos seres orgânicos e inorgânicos como ela se<br />

desenrola, pronunciando-se como a manifestação do ar<br />

e da luz.<br />

Só a perfectibilidade cerebral mais delicada, mais<br />

dúctil, com mais vibração sensacional, poderá finamente<br />

perceber, em todos os minuciosos detalhes, esse<br />

excêntrico e assombroso vulto que enche a França e o<br />

mundo, embora o mundo inteiro seja ainda um<br />

academismo, esteja preso ainda, se bem que não<br />

manifestamente, à casuística da metafísica; embora por<br />

aí andem, mal percebidos e assinalados, os livros<br />

fundamentais que poderiam fazer do mundo, das<br />

sociedades, dos homens, um fio só de pensamento,<br />

dando-lhes o poder de abstração e síntese que só se<br />

adquire em virtude de condições muito probantes, e de<br />

faculdades superiores e radicais de raça.<br />

O certo é que Zola nunca foi compreendido,<br />

genericamente, na sua alta manière, na sua prodigiosa<br />

estrutura de analista.<br />

O que mais se percebe dele são as chamadas<br />

imoralidades, produtos do meio social, correspondendo<br />

à flor dos pântanos e terrenos charcosos que, nem por<br />

isso, deixa de viçar para os astros.<br />

A sociedade, na sua maior parte, é obtusa e não<br />

pode penetrar, como uma luz não penetra uma parede,<br />

em sentimentos muito leves, muito fluidos, que só um


88 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

vasto cultivo e aperfeiçoamento estético consegue<br />

apreender.<br />

No Brasil, por exemplo, a seleção dos espíritos<br />

não se fez ainda totalmente porque é necessário,<br />

primeiro, para isso, que concorram elementos,<br />

principalmente étnicos, para depois se formar o tipo da<br />

nossa mentalidade. E numa raça de atributos diversos,<br />

heterogêneos, sem condensamento, dificilmente se pode<br />

determinar o objetivo psíquico. Porque, se é certo que<br />

no Brasil há um grupo ilustre de escritores com a<br />

plasticidade necessária para a adaptação de idéias gerais,<br />

uns temperamentos mais requintados, mais exóticos,<br />

mais artísticos, com penetração mais aguda, é certo,<br />

também, que estão fora da sua época, relativamente,<br />

porquanto o meio não comporta ainda todas as suas<br />

excentricidades, nervosismos e pontos de vista novos, o<br />

que os faz prevalecer pouco ou vagamente, sem tomarem<br />

a posição que lhes compete.<br />

Nem quase se pode responsabilizar ninguém por<br />

esse fato, que depende de razões muito fundamentais.<br />

Seria como quem quisesse responsabilizar a raça<br />

negra pela diferença do pigmento, que apenas obedece<br />

a um simples fenômeno de química biológica.<br />

A opinião muito generalizada e superficial, que se<br />

tem de Emile Zola, é que ele é um rude e brutal trapeiro<br />

que anda remexendo os monturos só para tirar de lá os<br />

sujos e esfrangalhados farrapos, o osso descarnado e<br />

frio.<br />

Mas esse brutal trapeiro, por entre esses sujos<br />

farrapos que sentis pelo olfato, ó eunucos, bonzos do<br />

entendimento!, muitas vezes esconde turbilhões e<br />

turbilhões de brilhantes, turbilhões e turbilhões de<br />

cristais, de fino ouro, de radiantes pedrarias,<br />

constelações deslumbrantes, enfim, que o vosso duro<br />

olhar não vê, que o vosso espesso cérebro, nem os vossos<br />

rombos ouvidos percebem a harmonia sonora.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 89<br />

Com a provável entrada para o oficialismo da<br />

Academia Francesa, o cérebro de Zola não perde a sua<br />

organização vital, a sua disciplina, a sua função. Isso<br />

não passa de uma preocupação natural do Mestre, se<br />

atendermos à sua idade, pela aclamação do alto.<br />

Tendo já o aplauso reverente e franco da multidão,<br />

ele quer agora o do mundo oficial: da aristocracia e da<br />

burguesia, para a completa coroação da sua obra.<br />

Mas fica sendo o mesmo aparelho reprodutor, a<br />

mesma câmara fotográfica para receber, em clichés<br />

instantâneos, toda a movimentação da vida.<br />

No pórtico da Academia o seu espírito será como<br />

um astro de fulgor e grandeza raros, o centro de um<br />

mundo, o sol a jorrar luz para todas as direções da terra.<br />

Não pode aquela natureza, subordinada ao<br />

sistema, à orientação artística, ao soberano<br />

regulamentarismo de preceitos de crítica, afastar-se<br />

uma só linha da rota seguida. Pode, entretanto, terminar<br />

a sua fase guerreira, a grandiosa fase, mas não pode<br />

terminar a sua vitória, que é imortal.<br />

Velho agora, ele se recolherá ao descanso para<br />

dar lugar a novos combatentes.<br />

Esse batismo, que se efetuará futuramente,<br />

decerto, ou essa fé intelectual de seita, se assim se<br />

pode dizer de uma célebre individualidade que foi<br />

sempre eminentemente pagã nos princípios, não tem,<br />

contudo, a significação baroque e arcaica que se supõe.<br />

Antes, pode-se afirmar que será a apoteose feita<br />

a uma cerebração genial, a suprema aclamação, a<br />

consagração do triunfo que, em toda a parte, se votou ao<br />

vencedor.<br />

São as festas do leão que, com o salto das garras,<br />

conquistadoramente abateu os fósseis nas cavernas.<br />

Ele é que jamais ficará fóssil! porque o sentimento<br />

naturalista das suas obras se perpetuará, evidenciando<br />

a tirânica força sugestiva das suas concepções literárias,


90 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

como uma bandeira desfraldada, na eminência de um<br />

forte evidência, a grandeza e a heroicidade de uma pátria.<br />

Podem passar, desdobrar-se, desfilar diante dele<br />

as escolas! – o bronze inteiriço das suas criações ficará<br />

inalterável, eterno, de pé, no Tempo e no Espaço – pela<br />

verdade, pela ação, pela luz, pela cor, pela voz e pela<br />

majestade, por tudo isso que dá às suas estupendas,<br />

maravilhosas páginas uma segunda natureza original e<br />

palpitante, que é a natureza peculiar a cada objeto e a<br />

cada ser.


GUILHERME I<br />

(1888)<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 91<br />

O imperador Guilherme morreu, morreu o<br />

Imperador Guilherme!<br />

Sobre o saxão estandarte negro, branco e<br />

vermelho, esvoaça agora uma grande e dominadora águia<br />

sinistra, a mesma que nos campos de batalha pairara<br />

sobre os corpos rígidos e frios...<br />

Ressoam orquestrações militares, clarins atroam<br />

o ar clamorosamente, passam a mil e mil os estandartes<br />

de todas as nações do mundo, passam e tornam a passar<br />

os séquitos guerreiros, os colossais esquadrões,<br />

reverentes, na pompa das tristezas solenes, d’armas em<br />

funeral, para as exéquias do Imperador, fazendo tilintar<br />

e fulgir os estrepitosos metais das espadas e dos sabres.<br />

No céu, calado, imóvel, o sol, como um ofuscante<br />

capacete bávaro, rutila com a alva luz prateada das pontas<br />

das baionetas.<br />

Mas, que é esse sol, deus dos poetas?<br />

E os espíritos célebres de Goethe, Heine e Uhland,<br />

esse que cantara outrora a batalha de Leipzig, pasmam<br />

e silênciam no ar parado que a neve cobriu de um vasto<br />

e fulgente sendal branco.<br />

Quem é, então, esse sol frio?<br />

E dos lados da Alsácia e da Lorena levanta-se um<br />

murmúrio, como que um trêmulo rio de vozes, surdo,<br />

abafado numa noite profunda, através das altas, rochosas<br />

montanhas alpestres, onde os graves castelos feudais<br />

geram as lendas e os sonhos.<br />

E o rio das vozes, crescendo, subindo, enchendo a<br />

imensidade, assim sombriamente murmura:<br />

Esse sol é Bismarck, que ficará, pelos tempos,<br />

como o Alerta avançado das glórias militares, das<br />

supremas conquistas da guerra, atroando o espaço de<br />

ecos metálicos de fanfarras, avassalando as forças


92 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

estranhas com a técnica belicosa do transcendentalismo<br />

alemão, como o mar avassala o mundo...<br />

E os sonhadores da jovem Germânia, os utopistas<br />

revolucionários, Laube, Gutskow, Wienberg, Mundt,<br />

palpitariam de emoção nas sepulturas se ainda<br />

pudessem ficar agindo no mecanismo da velha e austera<br />

Alemanha, nevoenta e sonora da alma de Schiller, que<br />

é a alma da balada, o prepotente chanceler de ferro.<br />

E de lá do fundo glacial das sepulturas, todos eles<br />

dirão, sorrindo, na cortante, na ácida ironia teutônica,<br />

que a Rússia armipotente gelará vencida, na Sibéria, o<br />

fogo dos seus canhões soberanos, que aterram...<br />

Mas, o imperador Guilherme morreu, morreu o<br />

imperador Guilherme!<br />

E, na serena mudez das catedrais e, no luto do<br />

Império saxônio, o Protestantismo livre e de pedra aponta<br />

filosoficamente para o sol, nas flechas pontiagudas das<br />

torres góticas, como uma interjeição!<br />

O “EL-DORADO”<br />

Esse então é um nunca acabar de apoteoses, de<br />

glórias.<br />

Mal a gente sai encantada de lá uma noite e já<br />

outras noites se sucedem, num esplendor de sóis,<br />

cantantes, alegres, radiosos.<br />

Quem uma vez entra ali sai curado de males e<br />

lavado de dúvidas.<br />

As águas lustrais do prazer lá estão.<br />

Na boca rósea de todas aquelas mulheres ferve o<br />

champagne do amor.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 93<br />

CARTA A GONZAGA DUQUE<br />

Rio, 11 de abril de 1894.<br />

Na impossibilidade de falar-te calmamente,<br />

escrevo-te uma ligeira exposição sobre a Revista dos<br />

Novos.<br />

Penso que o grupo que deve constituir os<br />

combatentes da Revista dos Novos tem de ser composto<br />

da tua individualidade, Emiliano Perneta, Oscar Rosas,<br />

Artur de Miranda, Nestor Vítor, B. Lopes, Emílio de<br />

Meneses, Lima Campos, Araújo Figueiredo, Virgílio<br />

Várzea, Santa Rita, Maurício Jubim, Cruz e Sousa e<br />

Gustavo Lacerda, simplesmente, sendo que este último<br />

deverá dar escritos sintéticos, muito generalizados, sem<br />

personalismos, sobre política socialista. Penso assim<br />

porque esses foram sempre, mais ou menos, de vários<br />

modos intelectuais, e em tese, os nossos companheiros,<br />

tendo cada um deles, na proporção da sua aptidão na<br />

esfera da sua perfectibilidade, um sentimento<br />

homogêneo do nosso sentimento comum na Arte do<br />

Pensamento escrito. Penso também que o único homem<br />

fora da nossa linha artística de seleção relativa possível,<br />

que deve ser simpaticamente admitido para críticas<br />

científicas, para artigos de caráter positivo e moderno,<br />

é o Gama Rosa, que podemos considerar, à parte toda a<br />

nossa independência e rebelião, como um austero e<br />

curioso Patriarca do Pensamento novo.<br />

Os mais, seja quem for, que venham de fora, isto<br />

é, que se apresentem com trabalhos estéticos de tal<br />

natureza alevantados e sérios que possam ser admitidos<br />

nas colunas nobres da grande Revista, para o que basta<br />

uma análise severa, rigorosa, desses trabalhos.<br />

Enfim, apenas esse deve ser o grupo fundador por<br />

excelência, deve constituir o corpo uno das Idéias da<br />

Revista nos seus elevados fundamentos gerais, à parte<br />

os detalhes da compreensão de cada um em particular.<br />

Entre esses fundamentos gerais acho que deve ser um


94 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

dos principais, o maior e o mais firme radicalismo sobre<br />

teatro, não permitir seções, notícias, folhetins ou coisa<br />

que diga respeito a teatro, que, por princípio e integração<br />

de Idéias, não deve existir para a nossa orientação d’Arte<br />

na Revista dos Novos.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 95<br />

HORÁCIO DE CARVALHO<br />

Diante deste nome, desenrolado como uma<br />

tapeçaria de Beauvais à frente dos nossos olhos,<br />

lembramos o Oriente, a Turquia, a Arábia, a Pérsia, todos<br />

os povos muçulmanos, que têm a frouxidão dos nervos, a<br />

elasticidade de membros de raças decadentes em todas<br />

as suas funções fisiológicas e psíquicas. Principalmente<br />

a Pérsia lembra-nos a indolência, a languidez orgânica<br />

de Horácio de Carvalho, indolência de fantasista, de<br />

sonhador e artista intertropical, que não constitui<br />

propriamente, porém, um senão físico, uma falha ou<br />

ausência de qualidades originais de espírito; mas que<br />

antes representa uma “maneira de ser” na vida – muda<br />

abstração, na qual o pensamento é, sem dúvida, um<br />

doirado pássaro, viajando pelas mais altas regiões<br />

etéreas, inacessíveis à vontade da matéria.<br />

Com o seu ar fidalgo, que lhe dá através dos vidros<br />

do pince-nez as linhas nítidas, a distinção e o ar douto<br />

de um sadio e forte estudante da Universidade de Bonn<br />

ou de Oxford, Horácio de Carvalho parece viver apenas<br />

numa flirtation com as idéias, numa despreocupação de<br />

touriste e num diletantismo d’Arte, a que as asperezas e<br />

arestosidades do meio emprestaram já as cores tristes<br />

e carregadas de um pessimismo pungente que se<br />

originara primeiro nas leituras intensas desse intenso<br />

e artístico Schopenhauer, conquanto, na transparência<br />

dessa despreocupação aparente, ele analise, perceba e<br />

sinta passar, como entre a difusa e doce luz do<br />

crepúsculo matinal os primeiros aspectos do dia que sobe,<br />

as for mas vivas e as manifestações dos fenômenos<br />

naturais.<br />

Na verdade, esse amargo pessimismo que os<br />

pensadores e artistas germanos, anglo-saxônios e<br />

eslavos, beberam nas obras profundas do grande filósofo<br />

de Dantzig, como numa enorme ânfora de ouro cinzelada<br />

onde houvessem purificado num vinho negro o sentir e


96 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

o dolorido pensar de muitas gerações; esse pessimismo<br />

agro-doce, divino e ao mesmo passo torturante d’O Mundo<br />

como vontade e representação, dos Aforismos sobre a<br />

sabedoria da vida e das Páginas fundamentais da ética, bem<br />

como desse outro genial Eduardo de Hartmann,<br />

especialmente nessa transcendente Filosofia do<br />

Inconsciente, parece amarrar ainda mais Horácio de<br />

Carvalho ao poste do ceticismo de Murger, de Nerval e<br />

de outros tantos artistas queimados pela chama interna<br />

de grandes Sonhos e Desejos nunca corporificados ou<br />

materializados numa floração ou frutificação natural ou<br />

real...<br />

Mas esse pessimismo, feito de névoas germanas<br />

ou eslavas, tênue, sutil, que insensivelmente inebria e<br />

transporta ao seio paradisíaco da Espiritualidade e da<br />

Ilusão, como esse venenoso e verde absinto dos Franceses<br />

e esse flamante e nevado kümmel dos russos, esse<br />

pessimismo, se Horácio de Carvalho o tem enraizado<br />

até à medula, não lhe enevoa e nem ensombra,<br />

entretanto, a garrida e fulva verve do espírito, de vôo<br />

amplo e alígero, la grâce qui ouvre les ailes, colorida como<br />

asas de borboletas e dançante ao vento como galhardetes<br />

de navios festivos.<br />

É que ele, por entre a variabilidade das<br />

circunstâncias e do tempo, não perde a “linha” luminosa<br />

e serena das atitudes mentais, acordando dessa morna<br />

indolência turca ou persa para pôr ditos d’arte faiscantes<br />

nas abstratas e transcendentes palestras literárias,<br />

porque é especialmente um causeur, sóbrio e fúlgido,<br />

que atrai e fascina sempre com o seu verbo brilhante e<br />

límpido, embora escasso e tardo, mas de uma ironia que<br />

lampeja e tine aqui e ali na frase, como os guizos de<br />

Colombina e Arlequim deslocando-se em pinchos loucos<br />

e febris, ao tam-tam-tam carnavalesco e burlesco na<br />

Alegria e da Folia.<br />

É um temperamento singular, esquisito, que tem<br />

nesses próprios qualificativos o documento positivo e<br />

autêntico da sua inteligência, da sua estesia artística.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 97<br />

Vivendo na província, num centro antagônico ao<br />

desenvolvimento e fulgor do seu talento; na aridez das<br />

estafadas idéias em circulação, entre muros fechados<br />

de assuntos banais, numa atmosfera onde a hematose<br />

quase não se faz, onde o sangue não circula bem, nem<br />

os nervos se tonificam convenientemente, Horácio de<br />

Carvalho lembra um cáctus ou uma flor boreal, nascida<br />

sobre a rocha ou sobre o gelo, vermelha ou alva, perdida<br />

tristemente na esterilidade, queimada por um sol de<br />

brasas ou na desolação da frigidez imensa...<br />

O seu estado de languidez, de inércia mental na<br />

escrita se parece com certos dias pardacentos,<br />

nebulosos, sombrios, cobertos de nuvens, por detrás dos<br />

quais, entretanto, o sol brilha a pleno esplendor, e, em<br />

certos momentos admiravelmente se mostra por uma<br />

nesga aberta no Azul, iluminando por instantes um<br />

recanto do Espaço e da Terra, para logo atrás se obumbrar<br />

sob cúmulos, voltando então todo o céu ao seu primitivo<br />

estado de névoa.<br />

Assim é Horácio de Carvalho, cérebro nevoento<br />

como esses céus da Germânia e da Rússia, ao Centro<br />

do qual, porém, rebrilha o sol do pensamento sobre a<br />

amplidão azul da inteligência, que estranhos cúmulos e<br />

nimbos encobrem perenemente, permitindo apenas<br />

raras, raríssimas vezes, revelar-se por pequenas nesgas<br />

de luz que aparecem instantaneamente, lançando frases,<br />

ditos, conceitos e observações delicados sobre todos os<br />

assuntos – modo de ser fisiológico e neuro-psíquico<br />

singular e inexplicável, sob o qual arde e flameja a brasa<br />

radiante de um grande e ansioso anelar de espírito,<br />

feição quase enigmática e fenomenal de uma bela<br />

organização humana, cuja psicologia o entendimento<br />

comum dos homens não apreenderá jamais, mas que os<br />

pensadores e os artistas sentem e compreendem nas<br />

suas manifestações superiores e efêmeras, sem lhe<br />

pretenderem sondar os motivos e as origens.


98 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

O PEQUENO BOLDRINI<br />

Uma jóia o pequeno Boldrini.<br />

Não era exatamente bem pequeno, porque fizera<br />

quinze anos já.<br />

Linda, bem linda cabeça tinha ele, redonda, leve<br />

e macia, como cabeça de ave.<br />

Ah! Havia de encerrar lá dentro muito sonho<br />

dourado a cabeça do pequeno Boldrini.<br />

O seu nome musical, miúdo e tímido, dizia de que<br />

pátria ele viera: do Mediterrâneo, sob um céu largo e<br />

azul sempre, sentado à Porta do Sol, em Roma, quem<br />

sabe! fazendo gemer demoradamente no ar claro do dia<br />

as notas trêmulas da sua rabeca.<br />

Porque o pequeno Boldrini tinha a sua rabeca<br />

amiga, afetuosíssima e boa, que chorava com ele pelas<br />

praças e ruas.<br />

E que dueto de lágrimas faziam ambos: o fanciulleto<br />

e o instrumento! Era adorável de ver o pequeno Boldrini:<br />

rosado, de uma bela cabeleira crespa caída em anéis<br />

castanhos sobre a testa morena.<br />

Muito bom, realmente, encantadoramente bom,<br />

deliciosamente bom aquele tic nervoso das suas arcadas.<br />

Ora o arco, vibrando rijo nas cordas, duro e<br />

retesado como um músculo distendido, tirava sons<br />

soturnos, cavernosos como regougos de condenados ao<br />

fundo de subterrâneos. Parecia então haver uma<br />

tempestade de lutas na alma do pequeno Boldrini; aquilo<br />

tinha um jeito de Wagner, e dava a toda gente que o<br />

ouvia um ar vago e dúbio de sonâmbulo.<br />

Ora as arcadas eram solenes, majestosas, falavam<br />

de coisas transcendentais, de soberanias místicas, dando<br />

uma exaltação à idéia: era como que um desfilar heróico<br />

de procissões de rajás, de altas imponências egipcíacas,<br />

extravagantes de luz e de pompa na resplandecência<br />

viva do sol da manhã atravessando galerias e largos pátios<br />

suntuosos lajeados de mármore branco.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 99<br />

Ora a rabeca tinha romanzas de beijos, barcarolas<br />

saudosas, idílios de balcões em flor, cantava todo o louro<br />

viver lascivo e madrigalesco de Veneza, dizia as canções<br />

do Tirol, doces e castas, prateadas como o luar, abrindo<br />

o peito às lufadas frescas das perfumosas aragens que<br />

vêm dos laranjais floridos do amor.<br />

E, às vezes, notas mais brandas, ciciadas como<br />

brisas, desfolhavam-se no ar, semelhantes a pétalas de<br />

rosas, como se fossem os íntimos segredos imaculados<br />

dessa almazinha de artista das ruas, alma que se abria,<br />

cheia de fantasias e de quimeras, como um livro cheio<br />

de letras douradas, diante da presença de todos.<br />

E o pequeno Vítor Boldrini, com quinze anos, que<br />

eram talvez quinze ilusões da sua existência, metido no<br />

seu jaleco de veludo preto, todo moreno e crespo, olhos<br />

repassados de doçura de mar sereno, atravessados de<br />

luz como cristal, lá ia vivendo como uma delicada flor de<br />

estufa, meridional e azul, ou como uma flor de parque<br />

aristocrático, no terreno palustre e neutral de uma<br />

cidade populosa e inclemente da América do Sul, vendo<br />

a sua Itália amada pelo cosmorama do seu coração de<br />

bambino ou nas vistas coloridas e fulgurantes dos realejos<br />

dos seus patrícios.<br />

Então, o pequeno Boldrini, à noite, sonhava<br />

histórias interessantes: via-se no Coliseu, grande na<br />

presença dos homens, tocado duma chama divina e<br />

regendo com o arco, não aquele arco velho e vulgar, mas<br />

um outro arco novo, encrustado de ouro, uma vasta<br />

orquestra real de músicos dolentes e romantizados,<br />

falando de gôndolas sobre golfos iluminados de redondos<br />

giornos de luz verde, rubra e amarelada, pondo<br />

esmeraldas, rubis e topázios nas frias águas dormentes.<br />

E o piccolo maestro abria muito os olhos como<br />

costumamos fazer diante de uma coisa que deslumbra,<br />

vendo através do espelho do seu sonho desenhado tudo<br />

aquilo que ele cismara acordado, crente no futuro, mas<br />

que lhe parecia, quando se levantava de dormir, ao outro


100 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

dia, fugir para sempre; porque as aspirações que ele<br />

tinha, longe de horizontes italianos e sem esperanças<br />

de voltar para lá, nada mais eram do que uma sombra<br />

que se deveria esvair mais tarde, a exemplo da sombra<br />

que acompanha na frente o corpo até ao meio-dia e que<br />

depois fica para trás, como uma dúvida que nos tortura<br />

e persegue eternamente.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 101<br />

SIGNOS<br />

(NESTOR VITOR)<br />

A missão dos medíocres célebres, que em<br />

batalhões cerrados enchem os milhões de andares da<br />

Babilônia típica da história, a missão do cretinismo,<br />

notório é já nascer morta, ironicamente no ventre dos<br />

Destinos, qualquer cousa que deveriam trazer de<br />

assinalado e luminoso.<br />

A missão dos Espíritos, dignos desse nome, entre<br />

a mascarada das classificações, é trazer uma vida dupla,<br />

é viver, em dualidade e densamente, uma vida perpétua<br />

no Espaço, fora do estreito veredictum dos homens e das<br />

suas ostentações.<br />

Claramente que a caraça de papelão dos parvos<br />

há de opor obstáculos, com o seu sorrisozinho inócuo de<br />

“havemos de ver isso”. Mas o espírito que traz força oculta,<br />

que traz em cada mão, agitada no ar, o gládio pujante<br />

da sua fé serena de conquistador; o espírito firme e<br />

temerário, que assistiu, sorrindo, a todas as hecatombes,<br />

a todas as misérias e a todas as glórias que fazem a<br />

auréola triste do mundo, esse resiste no seu pólo<br />

invulnerável, esse está afeito aos tufões, experimentou<br />

bem de perto, nos ouvidos, o estrondo, o rouco estridor<br />

das tormentas, sentiu rolarem-lhe aos pés os raios<br />

inclementes e fulminadores, conserva os olhos perfeitos<br />

e serenados na confusão babélica das coisas, é bem livre<br />

e bem alta, a cabeça, para que ao menos as estrelas a<br />

vejam.<br />

Nada pode fazer vacilar ou perder sua intensidade<br />

maior ou diminuir seu impulso mais amplo nessas<br />

naturezas, ou antes nessas afirmações fenomenais do<br />

Espírito, que quanto mais sentem a dura mossa que lhes<br />

faz a Terra, mais almejam o céu; que quanto mais<br />

sentem o vácuo que lhes querem dar por morada, mais<br />

o procuram encher das constelações e magnificências<br />

do sonho.<br />

Nestor Vítor é o novo missionário do Espírito.


102 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

É a natureza para os largos horizontes, é a alma<br />

para as grandes e emocionantes comunhões.<br />

Ele sente a sede inflamada e bendita de rasgar<br />

novas esferas ao pensamento, de fazê-lo girar<br />

imprevistamente nas zonas da eterna luz, de criar e<br />

fecundar prodigiosos estados sensíveis para a alma,<br />

nessa esquisita e infinita percussão de todos os sentidos<br />

refinados.<br />

O surpreendente e curiosíssimo artista dos Signos,<br />

que agora tão soberbamente se manifesta nas páginas<br />

deste livro de uma alta significação estética, tão<br />

anunciante de segredos, tão revelador de mistérios e<br />

tão sugestivo de majestade, é um dos raros poderosos<br />

que tem o dom magnífico e mágico de violentamente<br />

arrebatar a nossa alma, de a fazer tremer e soluçar de<br />

comoção diante da sua, de a fazer dignamente humilharse,<br />

na curva doce, aristocrática, nobre, das profundas<br />

admirações diante da sua, de enfim despir-se, na nudez<br />

mais pura e mais franca dos sentimentos, diante da<br />

su’alma. Porque a su’alma é como um destes exóticos e<br />

deslumbrantes instrumentos que acordam toda uma<br />

série delicada e nervosa de sons que só ouvidos eleitos<br />

escutam e reconhecem. Um desses instrumentos<br />

saudosamente e egregiamente velhos que algum erradio<br />

menestrel do Oriente vibrou acaso por algum poente<br />

triste, no fundo de alguma era remota...<br />

Só este grande amor que nos fecunda, só esta<br />

abundante seiva de Idealismo, só esta potente fé<br />

transfigurada que nos alimenta e ilumina pode<br />

responder, como a clarividente voz do Desconhecido,<br />

porque são as campanhas formidáveis em que nos<br />

empenhamos, porque são os arrebatamentos loucos em<br />

que vivemos, porque são as contemplações em que<br />

mergulhamos, porque é, enfim, toda esta poesia tocante<br />

e trágica que nos tonifica e convulsiona.<br />

O artista dos Signos pertence à aristocracia<br />

mental dos Poetas. Na sua sensibilidade existe o cunho<br />

original da mais delicada e penetrante poesia, que não


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 103<br />

será fácil de ser sentida pelas velhas carcaças das<br />

Letras.<br />

Porque isso de Letras não é mais do que a falsa<br />

exposição de tipos, cada qual com uma teoriazinha<br />

serôdia atrás da orelha, estafados de serem inócuos e<br />

inodoros, aparecendo aqui e ali pelos alçapões teatrais<br />

da opinião como verdadeiros marionetes de feira.<br />

Nestor Vítor é uma alma intimorata de poeta; traz<br />

o seu ser banhado dos eflúvios raros da mais<br />

incomparável poesia. Mas dessa poesia nobilitante e<br />

purificadora que tem asas para o Infinito, ansiedades<br />

para as Esferas.<br />

Os Signos, apesar de serem trabalhados em prosa,<br />

evidenciam extasiantes modos de ser de um curioso<br />

poeta, dão a medida de uma alma bastante elevada para<br />

não ser apenas terrestre, bastante impoluta e requintada<br />

para não deixar de embalsamar-se nas ondas<br />

fascinadoras de uma emovente poesia, que é a linguagem<br />

interpretativa do Sonho.<br />

A maneira, os processos de Nestor Vítor, ao menos<br />

nesta obra, são simples, mas dessa simplicidade que<br />

implica complexidade, como toda a simplicidade que<br />

nasce de fundamentos superiores.<br />

A sua estética possui a severidade de um dogma<br />

e a precisão, a eloqüência de uma vontade manifesta.<br />

O que se lê neste livro sente-se que é sentido,<br />

que é vivido, que é filtrado puro da imaginação do autor,<br />

tão claro, tão lúcido, tão percuciente e tão flagrante como<br />

se o Sentimento se movesse em torno de nós e falasse e<br />

dissesse e vivesse a sua psicose e a sua nevrose.<br />

O seu estilo, a sua forma, ele a faz com verdadeira<br />

pompa de um desdém fidalgo. Isto é, não se preocupa de<br />

modo fatigante e rebuscado, e deixa que a forma surja,<br />

original e fascinadora no entanto, porque vem vestindo<br />

um pensamento original e fascinador. E como cada<br />

pensamento já sai naturalmente revestido da solenidade<br />

da forma, o artista deixa simplesmente que esse<br />

pensamento se manifeste, ficando então, desdenhoso,


104 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

tranqüilo, a sorrir da forma que tenha de vir, porque já<br />

sabe que essa forma há de ser, sem esforço, superior,<br />

desde que é uma correspondente direta de um<br />

pensamento do mesmo modo superior.<br />

Nesse ponto Nestor Vítor recorda um pouco Villiers<br />

de L’Isle-Adam, cuja sobriedade e simplicidade de forma<br />

repousa, no entanto, num processo complexo, excelso e<br />

raro, que é o segredo de certos estilos surpreendentes,<br />

inefáveis, que de tão requintadamente simples não<br />

parecem estilos. Esses podem ser classificados os estilos<br />

brancos ou os estilos leves e finamente estrelados, que<br />

decorrem do pensamento de um cérebro superior, com o<br />

alto desdém aristocrático de quem sente que é Eleito<br />

entre os Eleitos, e não desce a prestar obediência dos<br />

seus espirituais brasões honoríficos à plebe ignara e<br />

sacrílega, que quer à força reconhecer a legitimidade<br />

da hierarquia, das linhas nobres e puras da raça ideal<br />

de onde esse Eleito procede.<br />

A maior ambição que Nestor Vítor põe na forma é<br />

a de conduzir a sua idéia para o rumo onde ele a queira<br />

levar. É de fazer com que essa idéia, deixando o nebuloso<br />

caos da sua origem, encontre livre, espontânea, franca<br />

e ampla, a forma, para, como asas, alar a idéia para as<br />

alturas, arrebatá-la na luz, fasciná-la nos astros e<br />

deslumbrá-la nos céus.<br />

O estilo de Nestor Vítor, forte, solene, é a evidente<br />

característica, o desdobramento especial e genuíno da<br />

sua feição grave e séria na Arte; representa bem o cunho<br />

austero e eminentemente determinado, significativo, da<br />

sua Estética elevada e nobre, rude às vezes, violenta,<br />

libérrima e sobretudo desdenhosa em certos pontos de<br />

vista.<br />

Ele sente essa angústia, essa sede do Exprimir,<br />

do Dizer, mas do Dizer denso, intenso e legitimamente<br />

original.<br />

Quer que o seu vocábulo sangre a vida, que o seu<br />

verbo cave fundo na natureza do seu pensamento, que<br />

imprima um movimento de convulsão e de sensação às


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 105<br />

cabeças, nos quatro pontos cardeais da Terra; quer que<br />

o seu verbo opere a luz e ilumine de uma cintilação<br />

muito clara, eletrize, faça acordar, agitar-se, palpitar,<br />

estremecer o sentimento ocioso e covarde que dormita<br />

dentro das almas.<br />

Um espírito assim, uma eloqüência assim, de tanta<br />

penetração e de tanta concentração, tem de ser uma<br />

grande tuba nervosa desconhecida, um clamor mais<br />

ardente e mais virgem, uma voz de uma vibração e de<br />

um impulso maior que projeta mais alto e mais longe o<br />

pensamento que ela enuncia e proclama.<br />

Essa covardia e essa inépcia para afirmar os que<br />

pairam nas Transcendências da Arte e no Imprevisto do<br />

Gênio, esse eterno e capcioso Não-Sentir e esse eterno<br />

e capcioso Não-Ver dos que vivem se equilibrando em<br />

mútuas muletas de Fama; essa tendência criminosa e<br />

fatal que têm muitas vezes as almas mais bem dotadas<br />

para se deflorarem e envenenarem nos sinistros tédios<br />

culpados; todos esses esguios e escuros corredores onde<br />

se esguelham e encolhem as lesmas sutis de vagos<br />

movimentos caolhos e hipócritas da psicologia de certas<br />

naturezas; todas essas escápulas cômodas para o Silêncio<br />

e para a Sombra, essas cumplicidades mudas com a<br />

própria Consciência, essas cópulas ilícitas e sacrílegas<br />

com a Treva, este Verbo em febre do espírito dos Signos<br />

condena do alto do seu dogma dantesco e santo, fustiga<br />

com as suas ironias e a sua verve comburente, queima<br />

e fulmina com os seus jorros de raios flamejantes.<br />

Nos Signos há um sentimento delicado de velha<br />

fidalguia estética; dessa delicadeza que é uma<br />

florescência nobre e egrégia da estesia, dessa delicadeza<br />

que é o refinamento dos nervos e do psiquismo e não<br />

dessa outra toda exterior e aparente que parece feita<br />

de óleo de oriza, de chic, de boninas do prado, de brisa e<br />

dos suspiros das onze mil virgens.<br />

Quanto à observação de Nestor Vítor, esta ele a<br />

possui poderosa, pronta, fácil, livre e simples, quer dizer,<br />

espontânea e natural. A sua imaginação toda particular


106 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

fornece-lhe um imenso cabedal para isso. Mas Nestor<br />

Vítor considera a observação, como realmente o é, um<br />

ponto de partida e não o fator máximo da sua obra.<br />

Superiormente dotado, ele sabe que essa<br />

observação, tão aclamada pelos medíocres e pelos<br />

estacionários em Estética, não constitui a fonte, ou<br />

antes, a causa primordial da elevação maior ou menor<br />

de um espírito.<br />

É lógico que quem tem ao seu dispor qualidades<br />

estéticas singulares, elementos seguros e radiantes<br />

para as interpretações mais belas da Arte, vê na<br />

observação uma preliminar, uma força elementar dessa<br />

Arte, mas nunca a sua melhor ou maior expressão.<br />

Ter simplesmente observação, por mais vasta e<br />

completa que ela seja, é, na Região do Pensamento, estar<br />

apto para fazer alguma coisa ainda, mas não considerar<br />

já essa coisa feita pelo único fato de possuir observação.<br />

Assim, a observação não é mais do que uma<br />

acidental nos grandes planos do Pensamento,<br />

subordinada, dependendo de outras forças muito mais<br />

complexas e abstratas.<br />

Um livro do qual só se pode dizer – tem muita<br />

observação, mesmo muita, e exata – é, quando menos,<br />

um livro que olha e perscruta, com toda a correção,<br />

embora tenha certos lados inferiores, cheira e palpa<br />

muito as cousas, mas que não se eleva nem se projeta,<br />

profunda e emocionalmente, em esferas superiores.<br />

Celebração séria e serena, na mais absoluta<br />

expansão da Arte, perscrutador penetrante do coração<br />

humano, psicólogo de novas faces e de novos mundos<br />

humanos, vendo quase tudo por uma visão de hora de<br />

ocaso de outono, com certas linhas langues, mornas e<br />

mórbidas, mas desse mórbido psíquico que é soluço e<br />

que é dor na atmosfera mental, o glorioso artista dos<br />

Signos conseguiu enfeixar na sua obra os símbolos mais<br />

expressivos e belos, alguns de um fundo bem cruel e<br />

bem funesto, mas onde ressaltam, vivas e dominantes,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 107<br />

as sensações e as idéias que uma rara fé desperta nos<br />

espíritos definitivos.<br />

Do centro, porém, dos Signos destacam-se<br />

iluminantemente quatro singulares trabalhos que<br />

formam como que o eixo fundamental em torno ao qual<br />

se movem todos os outros.<br />

Embora prenda admirativamente a nossa atenção,<br />

“Alegria fúnebre”, onde Nestor Vítor atesta toda a sua<br />

larga observação generalizada, sintética, que ele tem<br />

das cousas, todo o conhecimento perfeito da espécie<br />

humana, desenvolvendo com emoção e pujança<br />

extraordinárias a vida de dois seres miseráveis e<br />

shakespeareanos na sua desgraça; embora nos seduza<br />

e encante a psicologia ingrata, de uma sensação travosa<br />

de desespero sem remédio, mas firme, completa, desse<br />

outro lindíssimo trabalho “A Vitória”, e ainda o bizarrismo<br />

precioso, a fina e desdenhadora fidalguia, o soberano<br />

sarcasmo, intenso e cortante como lâminas aceradas,<br />

como peste de fogo, desse “Olivério”; embora sintamos<br />

esse esplendor de charge, impiedosa humour, caricatura<br />

de uma face inédita, descarnando muito a fundo ridículas<br />

usanças típicas, costumes incaracterísticos,<br />

macaqueados, postiços, carregando a zarcão os<br />

medalhões de uma sociedade falsa, que se julga<br />

equilibrada e correta, embora compreendamos essa<br />

excentricidade, essa firmeza perceptiva, essa segurança<br />

de observação mundana, esse mal-entendu das relações,<br />

de pessoas que se encontram num dado meio, pelas<br />

correntes do acaso e que mutuamente se impressionam<br />

e mistificam, sem, no fundo, se conhecerem com nitidez<br />

e exatidão, como no “O Máscara”; muito embora mesmo<br />

ainda vejamos a risada bárbara, selvagem, de “Hirânio<br />

e Garba”, páginas tão irônicas e tão verdes na exótica<br />

expressão, rindo, sob a égide do símbolo, de um mundo<br />

que até para o amor tem fórmula e convenção; de “Hirânio<br />

e Garba”, cujo pitoresco da forma revela preciosamente<br />

o picaresco do fundo, que a ela com uma perfeita<br />

curiosidade se adapta, o que parecerá talvez arcaico,


108 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

esteticamente antipático e desgracioso aos<br />

entendimentos superficiais e frívolos que acreditam que<br />

a Arte é a elegância e o bom gosto dos assuntos; embora,<br />

enfim, tudo isso, há neste livro quatro trabalhos<br />

culminantes que são as colunatas de ouro maciço que<br />

sustentam toda a cúpula ideal dos Signos.<br />

“Fatalidade”, símbolo amargo do Amor, o primeiro<br />

casal enleado nas ilusões do amor, casal idílico, ingênuo,<br />

querendo fugir, furtar-se loucamente e em vão ao seu<br />

destino e ao seu fim na Espécie, querendo fazer do amor<br />

um platonismo inefável, um eterno, imperecível laço sem<br />

o cumprimento das leis fatais da Natureza, até que<br />

ambos, ele e ela, rolam crua e animadamente no<br />

Irremediável do gozo carnal que é a enganadora sedução<br />

com que o amor ironicamente se oculta e tenta.<br />

Porque mesmo, no fundo da grande Causa, todos<br />

os encantos, todas as graças e atrativos de que se reveste<br />

um casal que mutuamente se impressiona na vida, são<br />

simples e instintivamente para o efeito da função<br />

fisiológica, são seduções apenas para encobrir de vagos<br />

véus aparentes e sugestivos o sentimento sexual da<br />

procriação da espécie – triste sonho genésico que<br />

alimenta e embala, consolando, a cismadora e aflita raça<br />

humana.<br />

“Agonias” – miserere solene, majestoso, de uma fé<br />

que morre, sintetizada num fiel e num justo. Soluço<br />

generalizado do Requiescat in pace dos grandes esforços<br />

vãos, das lutas e dos sacrifícios seculares, das humildes<br />

propagandas, das obscuras mas veementes doutrinas,<br />

dos sublimes Vencidos ainda crentes e consolados até<br />

mesmo às portas da morte; tristes lágrimas e<br />

lancinamentos derradeiros de simpáticos e eloqüentes<br />

apóstolos perdidos ao longe na poeira do infinito Saara<br />

da Ilusão e da Fé, e que apenas têm como prêmio o<br />

ponto final da cova.<br />

“Gavita” – o encanto culpado, esse estado de<br />

volubilidade inquieta, aparente ou latente, que reside<br />

na mulher em flor.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 109<br />

Qualquer cousa de volúpia do luar e da delícia do<br />

néctar e das rosas. Curvas leves, aéreas de um sonho<br />

corporificado, alvorando em esquivas surpresas, cantando<br />

frescura e música, sorrindo e viçando graça.<br />

Íris de virgindade, no céu azul constelado de uma<br />

beleza de melindrosos atrativos e seduções pecadoras,<br />

fazendo irradiar de si todo o delicioso cromatismo da<br />

feminilidade borboleteante, fugitiva.<br />

Desabrochar de alvorada de frutos de ouro, que<br />

uma névoa deslumbrante de mistério envolve ainda de<br />

translucidez, de magia e de meigas suavidades aladas.<br />

Gavita é uma dessas criaturas meio imaginadas<br />

e meio reais que formam no comovido coração de quem<br />

as ama um doce oásis consolador.<br />

Poucos sentirão a diafaneidade daquelas linhas,<br />

os lascivos quebrantamentos daquele ser vaporoso,<br />

metade sílfide e metade áspide, graça delicada e branca<br />

de vôo de anjo, mas inevitável e demoníaco travor de<br />

perfídia nos movimentos inconscientes e cúmplices do<br />

seu fenômeno de mulher e de virgem.<br />

“Sapo” – um desespero de condenado mordendo<br />

os pulsos, terrível galé da Sibéria dos Destinos, sentindo<br />

que o mundo está para ele do avesso, que as perspectivas<br />

gangrenam, que os aspectos gangrenam, que os homens<br />

gangrenam.<br />

Ruge e troveja nessa criação densa e monstruosa<br />

uma dor tão intensa, tão abismante, tão absurda como<br />

se o oceano crescendo e inchando para o firmamento<br />

rebentasse numa explosão de uivos pantéricos<br />

atroadores.<br />

O “Sapo” é uma destas concepções que parecem<br />

fundidas em bronze por artistas revéis e alucinados. Por<br />

todas aquelas páginas percorre um frio soluçante e<br />

nirvânico. A vida ali ganha uma inconcebível densidade<br />

e crueza, uma irradiação, mórbida, de eclipse de morte.<br />

Secretos, os instintos da destruição moral, do<br />

aniquilamento de tudo, fazem a sua catequese feroz e<br />

sombria na já devastada alma do Bruce. E o Bruce, nesse


110 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

terror de alma sangrada na mais indefinível angústia,<br />

clama e chora despedaçadamente, já até com o pânico<br />

de si mesmo, como que sentindo o próprio solo, na<br />

formidável catástrofe do mundo, recuar-lhe dos pés. A<br />

dor, então, atinge até a um grau de transcendência e<br />

de furor que parece epilético.<br />

Nestor Vítor descobre, revela, rasga, ali, com<br />

profundidade, o infinito de uma dor pateticamente<br />

humana e misteriosa.<br />

A vida contrai, aperta cada vez mais os seus<br />

círculos. Um estreito Teorismo pretende tomar de assalto<br />

o mundo. O mundo parece chegar à vacuidade do nada.<br />

Tudo se desloca dos eixos, se desagrega do conjunto.<br />

Como que o ritmo das cousas cessa e vai se estabelecer<br />

a confusão geral. Daí, sujeitas a esse anárquico<br />

sentimento universal, na harmonia negra desse estado<br />

social e moral, sob a lei fatal desse Momento histórico,<br />

geram-se naturezas como a do Bruce, de um fundo, no<br />

entanto, dignamente intelectual e límpido, mas que<br />

vendo para sempre partido, quebrado o maior fio de uma<br />

afetividade qualquer que as equilibra na Terra, e já<br />

trazendo mesmo, no seu íntimo, certas qualidades<br />

ingênitas de desorganização, desorientam-se de todo,<br />

desmoronam por completo, e tomam, no físico e na alma,<br />

a gravidade triste, desesperadora, de flores tóxicas de<br />

doenças patológicas.<br />

A conclusão a que se chega no “Sapo” é cruel,<br />

desoladora, mas eloqüentemente verdadeira.<br />

A convulsão e vulcanização psíquica desta<br />

admirável concepção, o símbolo tremendo que ela<br />

representa, a mordacidade de caveira que ri<br />

cabalisticamente da Vida e que é a própria mordacidade<br />

glacial de Nestor Vítor, o fatalismo horrível que a<br />

nirvaniza e que lhe sopra tufões inquisitoriais, tudo isso<br />

enchendo malditamente aquelas páginas de belezas<br />

austeras e tristes, de luzes roxas e amargas, como que<br />

nos torna acerba e antipática a alma, tira-lhe toda a<br />

piedade e toda a misericórdia, todas as auréolas brancas


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 111<br />

da compaixão e do carinho, fazendo-a desvairada, louca,<br />

maligna, perdida por dédalos sinistros de crimes, sem<br />

fé e sem rumo, desvirginada nas suas nobres e delicadas<br />

raízes.<br />

A grandeza perigosa e envenenada desse trabalho<br />

é de tal forma, a vastidão suprema do tema abala de tal<br />

modo a nossa Consciência, fá-la de tal modo descer, fála<br />

de tal modo subir, acende uma luz tão clara e tão<br />

grande, mas ao mesmo tempo tão impiedosa, tão dura,<br />

tão castigadora, que perguntamos aterrorizados a nós<br />

mesmos por que é que se foi revolver tanto sentimento<br />

estranho, por que é que se foi arrancar ao Incognoscível<br />

tanto mundo tenebroso, por que é que se foi descobrir,<br />

com tanta paixão e tanta febre, tamanha região de<br />

lancinamentos e de culpas!<br />

Depois, essa esquisita silhouette do Pai do Bruce,<br />

assim como Nestor Vítor a sentiu, dando-lhe toda a<br />

impressionabilidade da sua natureza, traz-nos uma<br />

sugestão de diabólico, de fantástico pavor.<br />

Esse velhinho de olhos piscos, andar apressado e<br />

miudinho – sombra, espectro na vida, sombra, espectro<br />

na morte – porque o glorioso artista dos Signos faz dele<br />

um perfil indeciso, nebuloso, do qual não se pode precisar<br />

bem as linhas e as qualidades integrais; esse velhinho<br />

ideal, lugubremente grotesco, meio sinistro, meio<br />

feiticeiro e meio profeta como surgindo do fundo<br />

cabalístico de um além-túmulo macabro; esse ignoto<br />

velhinho, sonâmbulo das Cinzas, tão sombra espectral<br />

na morte como foi sombra espectral na vida, é de um<br />

raro exotismo e de um maravilhoso segredo de<br />

imaginação genuinamente infernal!...<br />

O próprio Ernesto é um perfil cativante, amorável.<br />

Dessas organizações lânguidas, cuja juvenilidade<br />

solitária, desabrochada na amargura e no abandono,<br />

parece provocar sempre uma simpatia imediata, um<br />

movimento de amparo e uma irresistível atração. É quase<br />

uma natureza feminina, nervosamente histérica, de um<br />

fundo tocantemente romântico, de onde mórbidas e


112 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

mornas vicejam flores pálidas e lascivas de timidez, de<br />

frouxidão.<br />

O Ernesto é o lírio magoado e doce, é a sombra<br />

acariciadora e terna daquele Vale de lágrimas, que é o<br />

Bruce; é o canto matinal e lírico daquela epopéia<br />

humana, é a água dessedentadora, ainda que nublada,<br />

daquele deserto horrível.<br />

Lembra um ser esquecido em si mesmo,<br />

adormecendo, do fundo da sua castidade meiga e da<br />

sua melancolia, num desejo impreciso, vago de que ele<br />

mesmo não sabe explicar nem acompanhar as<br />

ondulações e as curvas.<br />

Só quem subterraneamente e chamejantemente<br />

viver nos infernos de agonias semelhantes ou idênticas<br />

pode estremecer e chorar diante dessa concepção<br />

formidanda, na qual o trágico e estranho perfil do Bruce<br />

louco fica como um farol negro e de pedra, alto e imóvel,<br />

na solidão carregada e bárbara de uma ilha longínqua<br />

desconhecida do mundo onde um vento noturno e<br />

gemebundo glacialmente sopra e sibila.<br />

É preciso, na verdade, ter a cabeça<br />

melancolicamente voltada para certas teses, para certos<br />

problemas da psicologia humana; vir de muito longe na<br />

peregrinação do Pensamento; trazer em si uma força<br />

majestática, uma clarividência suprema e, além de tudo,<br />

um desprendimento completo, absoluto, das frívolas<br />

vaidades mundanas, para arrancar de tão fundo essas<br />

raízes sangrentas de vida, para clamar de tão alto<br />

verdades tão augustas, tão independentes e perigosas,<br />

para rasgar, enfim, com tão violentos movimentos de<br />

ação e sensação, os longos sudários que pesadamente<br />

encobrem essas mórbidas auroras pressagas do<br />

Sentimento.<br />

O tipo do Bruce é um dos mais intensos e<br />

profundos entre as Criações universais. Sente-se que<br />

ele desloca as correntes do ar, move-se, respira, vive,<br />

agita convulsamente os braços no Infinito.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 113<br />

É um louco formidável que se fez homem; um<br />

soluço que enche as Esferas com a ansiedade e a nevrose<br />

subterrânea da alma delicada, com passiva, comovida e<br />

angustiada de um russo.<br />

Todos os desclassificados do destino, todos os<br />

vacilantes, todos os sem rumo, todos os sem objetivo<br />

certo, todos os silenciosos do orgulho nobre, todos os<br />

corações amargos e fracos, todos os dolentes e desolados<br />

do espírito, todas as vidas de meia luz e de meia sombra,<br />

todos os vencidos da Glória, todos os inacabados, todos<br />

os incompletos que aspiram um Ser, todos os que ondulam<br />

entre a Fé e a Dúvida, todos os incompreendidos, todos<br />

os irresolutos ou covardes morais encontrarão no<br />

poderoso e sintético tipo do Bruce afinidades, diretas<br />

correspondências, secretas confissões e apelos, ritmos<br />

harmônicos e sugestivos, pontos especialíssimos e<br />

tocantes de contato, hão de senti-lo e amá-lo.<br />

De todas essas linhas vagas que formam tantas<br />

almas indecisas, sôfregas, ansiosas e sofredoras que<br />

por aí andam, de uma fronteira a outra da Terra,<br />

esbatidas em nuances de melancolia e tédio, de<br />

desespero e de agonia; de todas essas queixas confusas<br />

e desencontradas dos Desgraçados, dos Solitários e dos<br />

Contemplativos de todo esse sensível, denso e imenso<br />

crespúsculo geral de gemidos, que é o fundo sublime e<br />

misterioso da alma humana, foi que se gerou a natureza<br />

do Bruce, foram esses os germens que constituíram tão<br />

extraordinário tipo e que assim lhe dão, por isso, clara e<br />

perfeitamente, a característica de simbólico.<br />

Há no “Sapo” um niilismo agudo; tremendo, quase<br />

sinistro, mas ao mesmo tempo justo e consolador, porque<br />

vem para purificar e punir...<br />

Esses quatro trabalhos formam com efeito o centro<br />

do poderoso e admirável espírito de Nestor Vítor. Neles<br />

acha-se condensada a maior massa de idéias. Sentetizase<br />

aí a psicologia curiosa de um ser que voa no sonho<br />

das águias; sente-se aí a nervosidade mais coleante,


114 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

mais voluptuosa, mais sedutora; palpita aí a gênese mais<br />

imprevista, mais original, a estesia mais delicada, a<br />

sensibilidade mais dúctil, a profundidade mais<br />

misteriosa. Por esses quatro trabalhos tem-se a medida<br />

exata da sua celebração, toma-se a altura do seu vôo,<br />

vê-se o infinito Intangível do seu espírito.<br />

Do fundo de cada um desses Signos ou desses<br />

temas psíquicos raia uma forte, clara luz soberana de<br />

Arte.<br />

Cada conjunto daqueles tem uma irradiação<br />

central: são focos estéticos representando o máximo da<br />

luz de uma singular natureza.<br />

Cada um por si vive as suas linhas, traz a sua<br />

sensação especial, o seu ritmo langoroso, a sua música<br />

amarga, a sua tempestade trágica ou a sua nudez cruel.<br />

Cada um de per si acende as suas estrelas de<br />

melancolia e de cismada dolência, as suas violáceas<br />

luas de morte ou os seus comburentes e chagados sóis<br />

de vida.<br />

O grau supremo a que pode atingir um espírito,<br />

através de Abstrações e de Sínteses refinando-se,<br />

apurando-se, na maior contensão da alma, tocando com<br />

a alma o pólo astral das Quintessências do Sonho fazendo<br />

da alma a nova Estrela-d’alva nas Matinas da nova Fé;<br />

esse ansiar virgem, branco, nobre, claro, que é como se<br />

andássemos pelas divinas eiras celestes, sequiosos por<br />

devorar o trigo de ouro dos astros; essas asas do Inaudito,<br />

que não são asas para a Terra e que palpitam e roçam<br />

pelo peregrino fogo sagrado e sidéreo da Arte, tudo, como<br />

estranhas relíquias de um outro encantado mundo, como<br />

talismãs eternos que miraculosamente dão a vida e dão<br />

a morte, esse pálido Sonhador dos Signos traz consigo<br />

das estradas de onde vem, fazendo de algum modo<br />

emudecer, e cismar, é a palidez dolente do seu<br />

semblante, o altivo traço de austeridade, de força, da<br />

sua cabeça eleita e a magnificência, a claridade sã,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 115<br />

acolhedora, de deus jovem, mas serenamente severo,<br />

dos seus olhos inquietadores e profundos.<br />

Não são, essas criações dos Signos, produtos de<br />

um realista, de um observador seco, mirrado, ou de um<br />

analista de minúcias banais. Não é um fútil teorismo<br />

ronchante e metafísico querendo empolgar o mundo com<br />

as suas tentaculosas sistematizações, os seus caducos<br />

julgamentos a sua miopia e estreiteza de microcéfalo.<br />

Não é um frívolo bater de bigorna nos estafados e<br />

relaxados assuntos que são a eterna tela dos seculares<br />

torneiros de todas as literaturas do mundo.<br />

O horizonte que aqui se alarga, os planos gerais<br />

que aqui se estabelecem são outros.<br />

Trata-se de uma natureza verdadeiramente,<br />

legitimamente natureza, cuja complexidade e<br />

fundamentos são extraordinários e assinalados.<br />

É um grande ser, bem irmão dos grandes seres,<br />

que desperta, pálido e grave, com o seu Verbo, para dizer<br />

à Terra a grandeza do profundo Sentimento que trouxe<br />

consigo.<br />

A Terra poderá não o ouvir, não o entender, não o<br />

escutar, não o amar; mas a sinfonia majestosa da sua<br />

alma continuará, se desdobrará pelos dias, passará os<br />

anos, encherá a atmosfera dos séculos, e, como um<br />

soluço feito de beijos, feito de músicas, feito de lágrimas<br />

e ansiedades, irá rolar, rolar, rolar, rolar na Eternidade<br />

abismante um pouco da sua sensibilidade para torná-la<br />

mais doce, um pouco da sua luz para torná-la menos<br />

abismante, um pouco do seu amor para torná-la menos<br />

tediosamente Eternidade.<br />

Nestor Vítor traz no seu temperamento as mais<br />

radicais qualidades; ele vem para o apostolado da sua<br />

Obra, para determinar com elevação e pujança o<br />

caprichoso e extravagante fenômeno de seu ser.<br />

Ele vem para o apostolado da sua Obra, e uma<br />

Obra é a evidência integral de uma Consciência, a cabal


116 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

afirmação de um pensamento, a radical expansão de<br />

um sentimento.<br />

Trazer uma Obra é ser capaz de todas as altas e<br />

gerais responsabilidades, de todos os ódios e antipatias,<br />

ineptos e injustos, que uma verdadeira obra provoca.<br />

É arrostar, sem temor e sem alucinações, com as<br />

zumbaias fúteis ou com zombarias atroadoras.<br />

Certamente que uma coleção de livros, por<br />

brilhantes e mesmo notáveis que eles sejam, não chega<br />

a constituir o que na realidade se pode chamar uma<br />

obra, desde que esses livros não tragam o cunho quase<br />

imperceptível, o selo particular que caracteriza uma obra<br />

e que forma o fundo da sua irradiação e da sua amplidão<br />

no tempo e no espaço.<br />

A obra de um artista vem inteira e completa nos<br />

seus nervos, no seu sangue, na sua aspiração, na sua<br />

virtude, na sua moral, na sua alma, realizando o que de<br />

fato se pode chamar a natureza de um Complexo estético,<br />

um mundo novo de Intelectualismo requintado.<br />

A obra de um artista é feita na segregação de<br />

elementos corruptores, fora das atmosferas viciadas,<br />

infectas do mundanismo, das perspectivas rasas, no<br />

isolamento do meio social banal, como uma gestação<br />

nas purificadas esferas celestes.<br />

A obra de um artista é feita de todos os fluidos e<br />

forças da concentração, da intensidade, da fé abstrata,<br />

do amor e da mais perfeita seriedade mental.<br />

É a ação freqüente e conseqüente de um estado<br />

legítimo da alma, o latente e intenso palpitar de uma<br />

aspiração para o Sonho, a expressão generalizada,<br />

sintética de uma Vida, o sistema arterial de uma<br />

simples, pura e profunda Convicção.<br />

Com todos estes atributos essenciais, com todos<br />

estes predicados rigorosos aparece agora Nestor Vítor,<br />

radiando de si uma obra, isto é, constituindo-se ele o<br />

vivo órgão, o invólucro da matéria palpitante que vem<br />

comportando a Emoção e a Sensação de uma obra.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 117<br />

Os movimentos do seu espírito têm qualquer coisa<br />

de avalanches que, quando passam, vão arrastando<br />

consigo tudo. Ele é a avalanche mental, arrasa tudo,<br />

devasta tudo, desola tudo com a sua fatal visão acerba e<br />

sombria de Fulminador do Espírito. Parece que uma<br />

aluvião má de demônios atravessa, por vezes, na câmara<br />

escura dos seus pensamentos e nela tragicamente<br />

proclama, escreve o Nihil, a vermelho.<br />

No seu riso, ora de um desdém galvânico, de um<br />

sarcasmo oblíquo, ora de uma desfaçatez de belo rebelde,<br />

de divino celerado da Arte, cascalha a risada da morte.<br />

E não estamos apenas rendilhando estilo,<br />

floriturando frases, imaginando tropos: – o Poeta dos<br />

Signos, insistimos, tem essas soberbas e raras<br />

singularidades fatais consigo, o que o faz semelhar, de<br />

certo modo e certas faces, a um desses esquisitos e<br />

flagelados Sonhadores eslavos.<br />

Mas, entretanto, o fundo melancolicamente<br />

doentio e letal da sua natureza artística esbate-se, diluise<br />

logo na candidez abençoada da sua alma, na<br />

transcendentalizada bondade de todo o seu ser de<br />

demônio que se fez anjo, e anjo para punir as antigas<br />

culpas do demônio.<br />

Como, pelos requintes a que sobe, pelos raios de<br />

luz em que paira, pela perfectibilidade a que chega, o<br />

artista é o ciliciador de si próprio, o purificador de si<br />

mesmo, que anda recebendo os santos-óleos, a extrema<br />

unção dos extremos perdões, Nestor Vítor poderá ter do<br />

demônio apenas a velha nostalgia, a triste visão do Letes;<br />

mas tem, porque com ela para sempre ficou na esfera<br />

tranqüila da sua alma, no mudo mistério casto da sua<br />

alma, toda a glória e toda a celeste resplandecência dos<br />

anjos.<br />

Mas ainda mesmo sendo anjo, tomando do anjo o<br />

resplendor e as asas vitoriosas, a olímpica divindade<br />

desse anjo foi como que aos poucos desaparecendo, se<br />

transformando; e onde era uma excelsa brancura de


118 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

anjo ficou uma lividez de monge, e onde eram as níveas<br />

asas triunfais de um anjo, ficaram as vestes de um<br />

monge, e onde eram o deslumbramento e o ruído<br />

apoteósico de um anjo, ficaram o silêncio e a sombra de<br />

um monge.<br />

Ele é, na sua gênese, na sublime essência do seu<br />

ser, um perfeito demônio que se fez monge, que foi<br />

cristalizando e transfigurando a alma através dessa<br />

longa vida que não é só vivida nos anos, que não é apenas<br />

escoada no tempo, mas através da vida vivida nas idéias,<br />

na intensidade e na chama das idéias, da vida que faz<br />

dos pensamentos velhos monges solitários a desfiarem<br />

o interminável rosário das sensações do mundo, quando<br />

se adquire, através de lentas e recônditas transformações,<br />

essa grave expressão refinada de<br />

espiritualidade, de dolência e melancolia antiga.<br />

Quem nunca trouxe a cabeça docemente e<br />

pungentemente pendida para certos lados secretos do<br />

Pensamento e do Sentimento nunca poderá entrever<br />

esses céus claros, céus e céus que se desdobram na<br />

Imensidade peregrina da alma. E elevar a alma até essas<br />

essências ignotas da Luz e fazê-la pairar, bendita e<br />

branca, na paz infinita do Éter espiritual, é sagradamente<br />

mostrar ao mundo que a alma não deve ser apenas um<br />

miserável frangalho imundo, abjeto, nos círculos<br />

nervosos da Vida. Que ela, a alma, quando sabe sentir e<br />

sonhar, encantando tudo, maravilhando tudo,<br />

transfigurando tudo, pondo claros céus novos em tudo,<br />

é porque traz em si um toque desconhecido de graça e<br />

grandeza, qualquer cousa de tabernáculo inviolável, de<br />

venerado e abstrato que os contatos terrestres não<br />

conseguem jamais poluir.<br />

Os Signos são a extraordinária sinfonia de abertura<br />

de obras formidáveis que aí vêm vindo e nas quais o<br />

grande espírito de Nestor Vítor há de soberanamente e<br />

fatalmente assinalar cada vez mais a sua superioridade<br />

artística entre as intelectualidades do mundo.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 119<br />

Ele vem para o alto objetivismo. Mas sabe, no<br />

entanto, que não há puro e perfeito objetivismo sem puro<br />

e perfeito subjetivismo, porquanto o objetivo não pode<br />

deixar de depender do subjetivo, isto é, porquanto o<br />

mundo interior do eu não se pode desprender do mundo<br />

exterior que a visão abrange ou, mais claramente,<br />

porquanto o temperamento não se pode separar do<br />

documento do real e nem o fato prescindir da alma, a<br />

fim de persistirem as essenciais concordâncias, baseadas<br />

na Sinceridade do ser, que formam o fundo das legítimas<br />

naturezas artísticas.<br />

Cabeça de larga generalização, alto desdenhador<br />

de todas as fórmulas sociais e de todos os estilos<br />

literários, mesmo os mais aclamados, a completa<br />

individualidade de Nestor Vítor tem sérias afinidades<br />

com Balzac na análise, com Goethe na complexidade e<br />

na síntese, com Ibsen no sereno poder pensador e<br />

filosófico e na alma vasta, perfectibilizada e cismadora,<br />

e com Villiers de L’Isle Adam no estilo, no pinturesco<br />

sarcástico lúgubre, macabro, e mesmo no lado emocional<br />

sutil e penetrante de certos assuntos.<br />

Mas, além de todas as qualidades que<br />

representam o conjunto harmônico desta natureza, há<br />

nela a faculdade maravilhosa, quase sobre-humana e<br />

quase divina, de arrancar das almas todas as mais<br />

secretas e fugitivas verdades, como que vendo e sentindolhes<br />

as transparências íntimas do Invisível,<br />

surpreendendo-lhes o pensamento incógnito e todas as<br />

suas curiosidades e latitudes.<br />

Nestor Vítor é um dos raros que trazem a fé viva e<br />

superior do Pensamento, o seu Intelectualismo é uma<br />

alvorada que rebenta cheia dos mais majestosos<br />

prenúncios.<br />

Nele não há a fé pretensa do simples métier, a<br />

atitude falsa de parecer um açodamento momentâneo,<br />

o interesse medíocre pela contemporaneidade, o que


120 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

caracteriza especialmente os continuativos e os<br />

oportunistas da Arte.<br />

Do íntimo de su’alma, de algum modo<br />

soluçantemente ritmada por nonchalances, dolências e<br />

aristocráticas melancolias hamléticas, nasce-lhe uma<br />

fé poderosa e consoladora, como uma flor mística cujo<br />

aroma purificador indefinivelmente o enleva.<br />

Por isso, apesar de todo o seu vulcanismo<br />

revolucionário, de todas as suas faces significativas de<br />

Revelador de novos hemisférios da Emoção, a obra de<br />

Nestor Vítor é edificante, de uma grande luz simpática,<br />

levanta as almas e as impele a marchar por um cuidado<br />

claro e seguro, que é o simples, livre e sensibilizante<br />

caminho da Perfectibilidade ante as manifestações<br />

fenomenais da Natureza.<br />

Os Signos, da forma por que estão elaborados,<br />

trazem essa propriedade secreta e característica que<br />

têm os Eleitos de confundir e mistificar o<br />

convencionalismo oficial da Opinião.<br />

Nestor Vítor vem com a compreensão nítida e<br />

absoluta da missão livre da Arte, do ser por ser, de<br />

logicamente produzir por logicamente sentir.<br />

Ele vem com este arrebatamento emocional, esta<br />

doce volúpia de amor de sentir uma alma, mas uma<br />

verdadeira alma, e ir espontaneamente ao encontro dela.<br />

Com esta ansiedade nervosa e transcendente, com este<br />

grande soluço para alargar, dar mais amplidão e mais<br />

ar às esferas da Vida, a fim de ficar mais sereno e mais<br />

puro diante da transformação da Morte!<br />

Nesta hora violácea de ocaso, em que o Egoísmo<br />

tomou conta da Terra; nestas confusões, neste caos dos<br />

Espíritos e do Tempo, fazem-se mister largas<br />

investigações mortais, mergulhamentos, fundas e<br />

profundas sondagens luminosas, para achar e ter a nobre<br />

coragem de levantar, clara e pura no Espaço, a Radical<br />

de um Espírito.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 121<br />

A VIRGÍLIO VÁRZEA<br />

Evocando com emoção, com a mais intensa<br />

sensibilidade, a época floreal, combatente, bizarra, da<br />

saudosíssima Tribuna Popular, obscura ermida metida por<br />

entre as sombras da vegetação primitiva de uma província<br />

simples e onde uma campanha viva, chamejante, abria<br />

em messes de ouro.<br />

À camaradagem, à febre, ao entusiasmo, ao amor<br />

daqueles intrépidos e inolvidáveis tempos, sans peur et<br />

sans reproche, tempos de gládio e facho, sob as<br />

impressionativas emulações dos belos companheiros, hoje<br />

desgarrados: Araújo Figueredo, Carlos de Faria, Horácio<br />

de Carvalho, e sob a repercutidora saudade de Santos<br />

Lostada.<br />

A esse tocante en arrière, que neste momento me<br />

faz profundamente e recordativamente viver...


Histórias Histórias Simples<br />

Simples


124 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Para solenizar gentilmente, com todas as<br />

delicadezas do espírito, a fulgurantíssima idéia de libertar<br />

escravos nesta aprazível terra, vamos contar aos<br />

amabilíssimos senhores e particularmente às Exmas.<br />

senhoras, umas “histórias simples”, interessantes e<br />

leves e fáceis e claras, uma espécie de croquis ligeiro<br />

do escravo no lar e na sociedade, com a mesma luz geral<br />

do método racionalista, intuitivo e prático do grande<br />

alemão Froebel, um belo homem que à luz do Jardim da<br />

Infância estabeleceu a fisionomia lógica do ensino primário<br />

nas sociedades infantis do mundo, com a sua ciência<br />

liberal e fecunda de transcendentalismo pedagógico.<br />

As “histórias simples” desfilarão por estas colunas<br />

como um cortejo de bênçãos e de ironias, picantes e<br />

dóceis, como um perfume de coreopsis ou como um<br />

perfume de violeta.<br />

Serão trabalhadas de estilo, brandamente<br />

esmaltadas de idéias como um céu esmaltado de<br />

estrelas.<br />

Baterão no assunto pelo que ele tiver de mais<br />

verdade, de mais penetrabilidade, de mais objetivismo,<br />

de mais caráter. Descerão do trono de papelão o ridículo<br />

manequim do preconceito oficial e improgressivo, numa<br />

grande risada salutar e vitoriosa, bem da alma, bem de<br />

crítica e de análise.<br />

Eis, pois, as


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 125<br />

I<br />

À IAIÁ<br />

HISTÓRIAS SIMPLES<br />

Vós sabeis, Iaiá, como o mar é indomável e mau.<br />

O vosso admirável paisinho, uma gentil pessoinha<br />

fraca de nervos, impressionada e enjoada pelos grandes<br />

e fortes balanços do navio no mar alto, o vosso pai,<br />

quando volta de viagem, vos tem de certo contado as<br />

inclemências do oceano, as suas lutas, os seus uivos<br />

despedaçando-se e abrindo-se em diamantes de espuma<br />

no costado das embarcações. E ele tem um riso de alma<br />

contente para vós, unicamente porque se lembra do que<br />

haveríeis de sentir, do quanto o vosso histerismo se<br />

abalaria se o acompanhásseis, a ele já velho e doente,<br />

na costumada peregrinação sobre as águas que gemem<br />

saudades. Pois, ouvi-me, Iaiá: um belo dia, pacífico e<br />

doce, cheio talvez da doçura infinita do vosso olhar, pela<br />

hora calma e solene do meio-dia, um grupo de homens,<br />

pescadores, marinheiros, operários, trabalhadores de<br />

toda a casta, lutadores de toda a vida, fisionomias rudes<br />

e chãs, agrestes como as altas árvores selvagens, se<br />

ocupavam à beira de uma praia em observar qualquer<br />

coisa estranha e inexplicável.<br />

O sol direito jorrando do alto como que apagava,<br />

pela força da luz, os traços ou as sombras carregadas e<br />

duras dos seus rostos. Mas, queridíssima Iaiá, um<br />

agrupamento, de indivíduos em certos lugares e em<br />

certas ocasiões, influi, pelas circunstâncias de mistério<br />

de que se cerca, nas nossas naturezas ocidentais e<br />

brasileiras, ávidas de surpresa, de acontecimentos, de<br />

fantasmagoria. A indecisão de conhecer a verdade<br />

arrasta-nos e nós lá vamos, sôfregos, ofegantes,<br />

impacientes, saber do ocorrido que tem para nós uma<br />

ardente e atormentadora tentação de pecado.


126 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

O caso era o seguinte:<br />

Tinha dado a uma outra praia deserta e longínqua<br />

e fora transportado para aquela, até ser entregue à<br />

família que quem sabe se ele a teria, ou simplesmente<br />

atirado à implacável e fria indiferença da terra, o cadáver<br />

de um homem, velho e negro, envolto numa noite física<br />

que parecia rir muito, com um riso aflitivo e trêmulo,<br />

em toda a extensão da pele do seu corpo. Era<br />

tragicamente lindo de ver-se, Iaiá, o seu cadáver sinistro<br />

mas calmo, mas sereno, como um deus terrível dos<br />

destinos, em cujos olhos vidrados e mudos o sol punha<br />

vivos reflexos luzidios.<br />

.................................................................<br />

Depois, interessante e amável e bela Iaiá, os<br />

boatos correram no cruzamento e, na acumulação dos<br />

tempos, e a história verdadeira dos fatos que abre luz<br />

nos assuntos da treva, veio dizer-nos que aquele<br />

desgraçado não era nada mais nada menos do que... um<br />

escravo que procurava na desventura da vida, a liberdade<br />

da morte, no mar, no mesmo mar indomável e mal aberto<br />

à existência quase marítima do vosso pai.<br />

A Regeneração, Desterro, 23 de junho de 1887.<br />

II<br />

À SINHÁ<br />

Foi pelo inverno que se deu esta cena triste e<br />

lúgubre, Sinhá.<br />

Tinha eu ido passar a invernada de Junho, num<br />

dos nossos sítios tranqüilos e modestos, cheios da<br />

placidez melancólica da vida humilde e serena, duma<br />

paz virginal, lá onde o verde da paisagem não é mais


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 127<br />

casto nem mais doce que as naturezas francas dos<br />

matutos.<br />

No dia em que se deu o fato que vou relatar,<br />

chovera.<br />

Miudinhas cintilações de diamantes, de prata,<br />

como vidro liquefeito, tremeluziam vivamente nos troncos<br />

e nos galhos das árvores. Havia então um ar de frescura,<br />

de purificação, de nitidez em toda a atmosfera e escala<br />

ascendente do verde, desde o verde-paris, claro e forte,<br />

até ao verde-mar, ao verde-bronze, mais cerrado e<br />

compacto.<br />

Não sei se, naquele sítio de um aspecto pueril e<br />

dócil, poderia haver a invasão da maldade e do egoísmo<br />

do homem, Sinhá; mas sei entretanto que os meus olhos<br />

e que o meu coração, doídos e magoados, tiveram de<br />

presenciar isto: Um homem rude, de fisionomia cruel e<br />

trágica, apresentando todo o irracionalismo e<br />

temperamento animal explosivo, vergastava a duros<br />

golpes de relho, de pé atrás para retesar e dar toda a<br />

elasticidade e esgrima melhor ao músculo do braço, uma<br />

frágil mulher, escrava indefesa que não sei se ria ou<br />

chorava, se blasfemava ou suplicava, tanta era a descarga<br />

de impropérios que o terrível homem lhe rebentava as<br />

faces, como o estado de brusca excitação nervosa em<br />

que os meus sentimentos se achavam diante da mais<br />

ignóbil das cenas.<br />

Oh! era brutal, não, Sinhá?<br />

A Sinhá é casada ou é solteira ou é viúva. Tem de<br />

cuidar do seu maridinho querido ou do seu vestido creme<br />

com rendas da Inglaterra para o baile do primo João que<br />

é seu noivo, ou tem de cuidar de chorar elegantemente<br />

o passado através do véu negro, rodeada talvez de filhitos<br />

louros que o defunto deixou; tem de pensar nestas<br />

feminilidades, nestas miudezas, nestes chics de mulher,<br />

nestes nadinhas bonitos e encantadores mas sempre<br />

criancis, mas sempre ingênuos; não tem a preocupação<br />

crua e material do outro sexo, os negócios, a vida prática,


128 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

a responsabilidade da inteligência mais culta para dirigir<br />

nações, para fazer livros, para fazer leis. A sinhá não<br />

tem, por isso, a rija couraça de aço da luta que põe na<br />

consciência de certos homens um terror obtuso e bronco<br />

pela moral, pelo caráter, pelo amor. E o amor é para a<br />

Sinhá, eu sei, o primeiro princípio da sabedoria feminina.<br />

E mal sabe agora a Sinhá o que me ocorreu à<br />

idéia quando vi o caso que lhe contei: É que aquele<br />

desgraçado ente era uma mulher e vivia sob a pressão<br />

do chicote, num sítio afastado e pobre; e a Sinhá é uma<br />

mulher também e vive na cidade dos ricos, das luzes e<br />

dos rumores, sob a música e harmoniosíssima influência<br />

de um piano de Erard que geme scherzos dolentes<br />

atravessados de um luar de amor ou de uma balada<br />

meiga e saudosa cantada por nereidas de voz de prata e<br />

lábios de aurora, numa barca, à flor de espuma do mar<br />

azul.<br />

A Regeneração (o recorte não traz indicação de<br />

data).<br />

III<br />

À NICOTA<br />

Loura Nicota, venta muito lá fora. O leste frenético<br />

e convulsivo arrepia e desgrenha as árvores, fazendo<br />

hieróglifos de rugas trêmulas nas águas turvas dos rios.<br />

Não chove. Mas esse leste que zune, efusiva e zarguncha<br />

num desespero nevrótico de doido, zangaleando as<br />

vidraças, esse leste, loura Nicota, devasta tanto como<br />

as grandes chuvas copiosas que caem dos torvos ares<br />

elétricos. É noite, escura e erma; e alguns vultos que<br />

passam nela, encolhidos, esguios, a largos passos para<br />

casa, semelham duendes, antigos fantasmas das belas


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 129<br />

histórias patuscas contadas por nossas avós junto à<br />

fogueira crepitante e alegre das noites de São João.<br />

Loura Nicota, venta muito lá fora; e tu estarás<br />

talvez dormindo e tu não sentirás o zum-rum do leste;<br />

dormirás no teu leito de alvas cobertas de renda, num<br />

quarto arejado, de papel escarlate com estrelinhas<br />

douradas, janelas para o nascente, sonhando, quem<br />

sabe, este sonho que tem o mesmo ar vago, inconsciente<br />

e o mesmo tom indeciso do vento. Sonhavas que eras<br />

escrava, pobre loura Nicota, que ias vendida para longe,<br />

para além, para onde tu não sabias. Haviam te amarrado<br />

os pés para não fugires. Tinhas no rosto um rasgão de<br />

sangue; e a tua fina pele delicada e cetinosa doía-se<br />

toda naquela crueldade imprudente. E tu gemias e tu<br />

choravas e tu suplicavas. Em vão tudo. Iam te levar para<br />

lá. Tu não sabias bem onde era lá, mas ias. O teu filho,<br />

porque tu tinhas um filho, gritava por ti, soluçava e tinha<br />

quase uns magoados e surdos ganidos de cãozinho amado<br />

e mimoso que o pé brutal de um estranho fere de rijo na<br />

pequenina pata dianteira.<br />

E tu eras mãe, tinhas um filho, querias ficar ou<br />

levá-lo; mas lá estava o olhar imperioso de um sujeito<br />

de cara de pedra impassível e tredo, que te ordenava<br />

que seguisses sem ele. Era daí a instantes. Tinhas que<br />

embarcar. Lá estava o mar brasileiro, o mar latino a te<br />

chamar na coma espumada das suas ondas onde o sol<br />

abria coruscações. Lá estavam as velas enfunadas dos<br />

barcos que se meneavam, as saliências rubras das bóias,<br />

a nuvem branca e macia de algum cano de vapor a sair,<br />

os botes com a mastreação armada, de remos nas<br />

toleteiras, toda a paisagem marítima, fresca e saudável,<br />

desenrolada como um cosmorama diante dos teus olhos<br />

pisados do choro.<br />

E tu embarcaste.<br />

Nisto as névoas do teu sonho se desfizeram como<br />

se desfazem as neblinas da manhã destacando o dorso<br />

azulado das montanhas, e tu, impressionada, levemente


130 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

comovida, fizeste-te a honra de chorar uma lagrimazinha,<br />

um diamante redondo que te tremia na asa rosada do<br />

nariz, como se tu foras a desventurada que, não em<br />

sonhos, mas em realidades, alguém houvesse escravizado<br />

e enviado a senhor estranho, da outra banda do mar,<br />

loura Nicota, fora da terra em que nasceste e na qual<br />

tivesses deixado um filho!<br />

A Regeneração, n° 141, domingo, de julho de 1887.<br />

IV<br />

À BILU<br />

Vamos no trem, Bilu. A locomotiva corta as<br />

distâncias, de um fôlego, atravessando o ar cálido dos<br />

túneis, subindo e descendo montanhas, na grande<br />

coragem de ferro do seu ventre, pelo trilho em fora, aos<br />

guinchos da máquina que apita e expele ondas de fumaça<br />

adiante.<br />

No carro em que eu vou, ao meu lado direito, um<br />

francezito de cabeça pelintra, louro e moço passeia o<br />

seu olhar viajado e latino pela fremente natureza que<br />

acordara com o dia.<br />

As janelas do wagon estão abertas. Vêem-se<br />

extensões de terreno agricultado, terras aradeadas e<br />

lavradas, pastagens, gado que muge, pinheirais imensos,<br />

um mar tremulante e verde de canas, despenhadeiros,<br />

grotas onde a água cai cascateando branca e cristalina,<br />

cumes de serras altas onde os ventos aflam, povoados,<br />

casarias brancas alinhando ao alto das encostas, rindo<br />

na luz clara da manhã, um idílio fresco de mulheres, de<br />

raparigas novas que levam cabras ao monte, cantando,<br />

todo um bucolismo e um lirismo campestre que o largo<br />

concerto wagneriano da floresta enche dos pomposos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 131<br />

sons metálicos das aves, que estridulam notas no espaço,<br />

voando.<br />

O francezito louro, duma aparência fina de duque,<br />

com toilette leve de verão, assesta repetidas vezes o seu<br />

lorgnon para fora, para as amplidões de verdura e<br />

particularmente para mim.<br />

Eu indago de mim mesmo o que será. Ele retorna<br />

a acertar-me o vidro redondo, sem aro, apenas com uma<br />

pequenina argola de metal de onde pende uma delgada<br />

fita preta. Há uma atmosfera de curiosidade. Os viajantes<br />

interrogam-se com o olhar despindo os guarda-pós pela<br />

razão da calma que já vai no dia, um forte dia de verão.<br />

Mas o francezito não se pode conter e olha desta vez<br />

para mim num seigneur de admiração e de surpresa.<br />

Eu não dou cavaco e faço não entender. Ele então<br />

levanta-se do seu posto, vem a mim e pergunta-me baixo,<br />

mas em louvável português, apontando para um vasto<br />

terreno onde uns homens negros, mais de cem,<br />

trabalhavam sob a ardente chama do faiscante sol<br />

abrasador: O que é aquilo, homens negros, trabalhando<br />

assim, ao sol, quase nus! Oh! São escravos brasileiros,<br />

respondi-lhe eu no mesmo tom. Então os brasileiros são<br />

escravos!... Eu disse que sim. Falei-lhe da França,<br />

mostrei-lhe os seus homens, Thiers, Gambetta, Michelet,<br />

os grandes patriotas, os belos corações do amor da<br />

igualitaridade humana. Toquei-lhe em Girardin. Teve<br />

uma comoçãozita nervosa. Riu-se. Disse mesmo, Girardin<br />

é o Jornal, é o princípio, é a doutrina. Falei-lhe de Zola,<br />

de Goncourt, de Daudet, de Maupassant, de Mendés, de<br />

Richepin, de Rollinat.<br />

Falei-lhe da Inglaterra. Olhando-me e disse: da<br />

Inglaterra só o sport man e o punch, não o jornal,<br />

acrescentou com espírito, mas o punch feito com rum e<br />

conhaque, chamejante, de vivas chamas azuis e<br />

amarelas.<br />

Compreendi. Mas ele voltou-me aos homens<br />

negros que trabalhavam.


132 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Eu então expliquei-lhe que eram escravos no eito,<br />

trabalhando sem cessar, desde o romper da aurora até<br />

a noite, quase nus, vivendo em senzalas, buracos escuros<br />

e subterrâneos onde não há ar e onde uma eterna<br />

umidade de terrenos palustres põe nos pulmões a<br />

mordente tarântula da tísica. Expliquei-lhe mais que<br />

não havia nas fazendas, como se chamavam os centros<br />

em que residem escravos, ordem de doenças, de agonias,<br />

de prazeres, de entusiasmos. Aqueles indivíduos cor de<br />

treva eram maquinados, dizia eu; tinham um cordel nos<br />

olhos, outro na boca, outro na cabeça, outro nas pernas,<br />

outro nas mãos. Quando o feitor queria que eles rissem<br />

puxava um cordel, quando queria que chorassem puxava<br />

outro, quando queria que pensassem puxava outro,<br />

quando queria que andassem puxava outro, quando<br />

queria que falassem puxava outro.<br />

O francezito ria devagar e entredentes.<br />

Depois, senhor, explicava-lhe ainda eu, não têm<br />

vontade própria para coisa alguma, comem os restos mal<br />

cheirosos de comidas de muitos dias, são separados<br />

brutalmente, os filhos de suas mães, as mães de seus<br />

filhos, e quando alguém intercede piedosamente por eles,<br />

há um personagem notável, Sua Majestade o feitor, que<br />

os amarra a troncos de árvores e lhes abre as carnes, a<br />

chicote, em fundas chagas de sangue.<br />

E o francezito ria. E perguntava, de olhar aceso e<br />

indagador, com um sarcasmo agudo na ponta do nariz<br />

de celta: E a polícia?! Eu ria-me também, dizendo-lhe:<br />

Mas isso é lei, é muito legal tudo quanto explico ao<br />

senhor; pois se os donos de escravos têm até direito de<br />

propriedade! Eles compraram a mercadoria, compraram<br />

a carne, podem fazê-la apodrecer nas senzalas.<br />

Nisto anuncia-se a estação a que eu me destinava<br />

e tive de separar-me do amável francês que ficou no<br />

trem; ia desembarcar mais adiante.<br />

Porém ainda hoje, prezada Bilu, parece-me ver o<br />

francezito de cabeça pelintra, louro e moço, o francezito


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 133<br />

chamado Ideal pátrio, rir muito, rir ironicamente do país<br />

da luzida pessoa do D. Pedro II, assestando o seu pedaço<br />

de vidro redondo, na noite, numa careta diabólica, para<br />

os homens negros escravizados à vergonha da História.<br />

A Regeneração, n° 144, Desterro, quinta-feira, 7<br />

de julho de 1887.<br />

V<br />

À SANTA<br />

Nós, adorada santa, tu e eu somos livres,<br />

escravizados apenas pelo amor. Bom é agora, neste caso,<br />

que eu te conte umas coisas bonitas sobre liberdade e<br />

sobre escravidão. Escuta.<br />

* * * * * * * * * *<br />

O nazareno Jesus, de maneiras singelas e<br />

cândidas, de voz persuasiva e penetrante, de palavra<br />

fácil e clara como a luz, representa o poderoso e grande<br />

princípio da moral dos povos. A sua vida, uma vida de<br />

piedade, de simplicidade e de amor, será, pelos tempos<br />

em fora, a filosofia abençoada da humanidade. Ele veio<br />

da Galiléia, veio do povo hebreu, cheio de mistérios<br />

sagrados. O divino operário, o filho humilíssimo e calmo<br />

do carpinteiro José, tinha ao redor de si uma atmosfera<br />

de honestidade e de paz.<br />

Os fracos, os pequenos, os tristes, os sofredores,<br />

os lacrimosos, todos ele cobria e aquecia do frio da<br />

desolação com o seu olhar bom como a sua doutrina,<br />

doce como o seu rosto e como os seus cabelos<br />

encrespados e lindos.<br />

Deixai vir a mim os pequeninos, dizia ele. E as<br />

crianças dóceis e pobres aproximavam-se risonhas desse


134 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Cristo que era a esperança, que era a caridade, que era<br />

a crença e que era a fé.<br />

Nunca fora sonhado outro céu mais largo e mais<br />

puro do que a alma cristã do Messias cuja vinda a<br />

profecia anunciara, pela voz dos sábios do Oriente, em<br />

letras de verdade e de luz.<br />

Desde a Caldéia até a Síria a sua fama e o ar<br />

brando e simpático do seu tipo ressoavam, casta e<br />

sonorosamente, como uma música vinda dos astros;<br />

alastravam-se nos corações como eternos rosais que o<br />

sol fecunda e faz vigorizar. Cristo! Cristo! Cristo! Jesus!<br />

Jesus! Jesus! Assim iam de boca em boca estas sílabas,<br />

como preces, como ladainhas católico-romanas.<br />

Quando ele aparecia era como uma aurora<br />

iluminando tudo. Abriam-se os casais e as almas para<br />

recebê-lo como para receber o dia. Paravam as gentes<br />

nas estradas, os betânios, os de Jaffa, para vê-lo de<br />

perto e para ouvi-lo falar; ou sentavam-se junto às<br />

piscinas, ou debaixo dos sicômoros, ou à sombra das<br />

palmeiras, deliciados pela sua frase nua e tosca onde<br />

havia unção do bem, tanta humanidade, tanta<br />

fraternidade e grandeza.<br />

E o Cristo tinha sempre diante de si, dos seus<br />

olhos meigos e ternos que sabiam ver longe e fundo, a<br />

humanidade triste e paciente que sofria e chorava na<br />

obscuridade da noite, lá, quem sabe onde, muito além,<br />

na pátria da miséria, longe da vida e bem perto da morte.<br />

E ninguém diga que ele foi um revolucionário.<br />

Ele foi um revolucionário se acaso o sol com a sua<br />

viva claridade pode fazer revolução nos vegetais. Não!<br />

Ele não foi petroleiro, não foi incendiário; transformava<br />

mas não revoltava. Como pensador, pensava; como pastor<br />

de almas, apascentava o seu rebanho.<br />

Jesus era escravo do seu ideal, era escravo da<br />

sua religião, da sua igreja, do seu apostolado, da<br />

humanidade enfim; mas Jesus amava e queria, pelo<br />

amor, a liberdade dessa própria humanidade.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 135<br />

Uma bela mulher morena e pecadora lhe acendera<br />

uma chama tão veemente e tão nobre que Jesus se<br />

considerava um Deus, tanta era a altura do afeto que o<br />

santificava todo.<br />

Jesus, escravo, queria ser livre também para o<br />

amor como a outra gente; queria amar muito, amar<br />

sempre, amar na eternidade; porque Jesus, como Deus,<br />

tinha essas consoladoras palavras, falava em eternidade,<br />

falava em céu. Queria a vida eterna e a alma imortal.<br />

Madalena, que outra não era a sua amada, tinha<br />

pelo nazareno muito respeito e muita adoração. O amor<br />

entre eles dois era a liberdade. Mas a Judéia era a<br />

escravidão, a escravidão do princípio, de doutrina, de<br />

uma certa ordem de idéias práticas e puras da vida e<br />

que Jesus apregoava, esclarecia e exemplificava com as<br />

suas parábolas e com as suas prédicas.<br />

Por isso a Judéia crucificou Jesus e por isso Jesus<br />

não fecundou o ser de Madalena; de sorte que não ficou<br />

sobre a terra homem nenhum profundamente e tão<br />

santamente imaculado e sereno como ele.<br />

E essa mesma lenda da ressurreição que a Bíblia<br />

conta e que só poderia ser feita por filósofos evangelistas<br />

embriagados pelos eflúvios transcendentais do<br />

cristianismo, tal é o seu alcance, a sua natureza<br />

racional, nada mais que dizer senão que aquele que<br />

adora, protege e combate a liberdade, triunfa e ressuscita<br />

até da morte que é a única escravidão eterna, onde<br />

habita o verme; porque, se não ressuscita em matéria,<br />

ressuscita em espírito no coração de todas as eras.<br />

* * * * * * * * * *<br />

Eis pois, aí tens, Santa, oh doce filha do meu amor,<br />

o que é liberdade e o que é escravidão!<br />

A Regeneração, n° 146, Desterro, sábado, 9 de julho<br />

de 1887.


136 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

VI<br />

À BIBI<br />

A Bibi foi criada desde pequenina com a sua<br />

escrava Maria. Maria é uma crioula muito viva, de olhos<br />

rasgados, raiados de sangue, acusando temperamento<br />

ardente e tresloucado. Nunca Bibi deixara Maria. Eram<br />

os “irmãos siameses”, costumava a afirmar com<br />

autoridade o senhor, o Castro, advogado, quando voltava<br />

dos clientes para a família.<br />

Bibi era uma raparigota faísca, barulhenta,<br />

mexendo em tudo, algazarrenta, trepando aos etagères<br />

para brincar com os copos limpos e arrumados ali,<br />

derrubando de sobre o gueridon o elegante álbum de couro<br />

da Rússia com fecho de metal branco, alvoroçando as<br />

aves domésticas no quintal, amarrotando e quizilando<br />

as visitas com implicâncias, com ditos, com esquisitas<br />

comparações desastrosas. Porque afinal os pais faziamlhe<br />

a vontade, deixavam-lhe o gênio à rédea solta, não<br />

lhe ralhavam, não viam aquilo. Demais, Bibi era o mimo<br />

da casa, a filha única, não queriam contrariá-la,<br />

coitadinha; também, era uma criança, diziam, tinha<br />

tanta graça.<br />

E Maria e Bibi completavam-se. Nunca se via uma<br />

sem a outra.<br />

Influenciada por Maria, Bibi fazia tudo. Maria<br />

mandava-a tirar às escondidas da sinhá velha um torrão<br />

de açúcar, Bibi tirava; Maria mandava tirar uma ave<br />

qualquer do quintal para fazer com as meninas da<br />

vizinhança um festejo de bonecas, Bibi tirava; Maria<br />

mandava tirar um vintém ou dois ou três ou quatro ou<br />

cinco, do resto das compras do dia, de sobre a mesa da<br />

sala de jantar, Bibi tirava. Ambas inclinadas ao mal<br />

desenvolviam-se no mesmo meio como uma planta<br />

enxertada na outra. E Bibi tornava-se imprudente, de


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 137<br />

maus costumes, mentirosa e vingativa. Maria era a<br />

causa, Bibi o efeito.<br />

Bibi ia fazer quinze anos. Tinha todos os predicados<br />

complementares da feminilidade verde: a excessiva<br />

vaidade, o amor pelos galanteios, o romantismo dos<br />

recitativos langorosos e sem metro acompanhados ao<br />

piano numa melopéia monótona e esfalfada, os passeios<br />

ao luar calmo e voluptuoso de tranças soltas pelas<br />

espáduas; os espetáculos de dramas sinistros,<br />

impossíveis, os bailes, os romances manhosos e<br />

desenxabidos de causar nevroses, vertigens, febres, um<br />

poucochinho de spleen pela virtude e de nostalgia pelo<br />

vício.<br />

Pelas quinze primaveras de Bibi, dançara-se muito,<br />

fizera-se estilo palaciano nas salas do Castro. Ele e a<br />

mulher tinham o coração transbordando de entusiasmos<br />

paternos pela filha, como os convivas tinham as taças<br />

transbordando de champagne rosé e de chambertin, nos<br />

hips e nos hurrahs.<br />

E as luzes das serpentinas crivando prismas<br />

faiscantes nos pingentes que tilintavam com o ruído das<br />

valsas dulçorosas que faziam palpitar os seios e gemer<br />

as sedas, descreviam hieróglifos de sonhos confusos,<br />

cheios de névoas, como castelos no ar, nas imaginações<br />

picadas de vinho e atordoadas naquela quente<br />

temperatura coreográfica.<br />

Um dia Bibi teve um namorado. Soube-se que era<br />

pobre, os pais não queriam. A gente de Bibi também não<br />

era rica; mas afetava de modo luzente e discreto. Pobre<br />

de Bibi.<br />

Que de choros, de agoniazinhas, de raivas naquela<br />

natureza fremente e desregrada... Que bater de pé!<br />

Mas Bibi não perdera todos os recursos, tinha a<br />

sua íntima, a sua Maria.<br />

Foi a ela, aconselhou-se com ela, abriu-se, disselhe<br />

tudo. Maria ouvia Bibi, reluzindo toda no ônix de sua<br />

cor.


138 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Deu-lhe planos, conselhos, ensinou-a em coisas<br />

que sabia, de muito efeito.<br />

Disse-lhe que escrevesse que ela levaria a carta<br />

e traria alguma que ele tivesse. Ficaram nisto.<br />

Passados tempos soube-se que Bibi fugira com um<br />

palhaço e que Maria dissera ao vê-la partir:<br />

– Tenho saudades dela mas não perdi o negócio.<br />

O meu plano valeu-me cinco notas de dez tostões,<br />

novinhas em folha. Muito bom aquele seu Chico palhaço!<br />

Este interessante caso da outra Bibi de teu nome<br />

fez-me despertar no cérebro a idéia de que todas as<br />

Bibis como tu, criadas desde a infância com alguma<br />

escrava Maria, recebem os costumes e os instintos maus<br />

dessa própria Maria; porque o elemento escravo,<br />

pernicioso e fatal como é, contagia de vícios a família<br />

brasileira da qual tu, meiguíssima, boa e excepcional<br />

Bibi, puramente descendes.<br />

A Regeneração, n° 150, Desterro, quinta-feira, 14<br />

de julho de 1887.<br />

VII<br />

À NENÉM<br />

Hoje é domingo, Neném. Celebra-se a Semana<br />

Santa.<br />

Estamos na Ressurreição.<br />

São cinco horas da manhã.<br />

Na rua, há ainda um ar vago de alvorada que põe<br />

uma guipure de névoa nos aspectos variados da natureza.<br />

Entremos na igreja.<br />

Na igreja, há também o mesmo ar vago trazido<br />

pela larga e polida vidraçaria do templo que se conserva<br />

aberta; ar com tudo menos vago talvez pela razão dos<br />

lustres acesos e da gala sagrada que enche de


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 139<br />

resplandecimento e solenidades toda a extensa nave<br />

onde os fiéis rumorejam num crescendo de mar<br />

tormentoso e cavado.<br />

O altar-mor está vistosamente ornado, rutilante,<br />

cheio de flores colocadas em jarros dourados, rodeado<br />

de grandes tocheiros que faíscam e reluzem com as suas<br />

chamas ensangüentadas e amarelas.<br />

Lá em cima, até onde os olhos sobem mais, num<br />

trono de luzes, entre uma pesada cortina escarlate caída<br />

em pregas longas e fundas, vê-se o Cristo, ressuscitado<br />

e chagado, tendo numa das mãos um ramo verde.<br />

Nos altares laterais, os santos parecem ainda<br />

possuir a auréola triunfal de aleluia de ontem e sorriem<br />

seraficamente, meigos, tanto os mártires como os<br />

gloriosos.<br />

Pelo teto abobadado, como convém às construções<br />

de certos edifícios em conseqüência da acústica, da<br />

repercusão dos sons entre as harmonias melífluas,<br />

sentimentosas, ternas e docemente melancólicas dos<br />

violoncelos e das rabecas, das flautas e do harmonicorde<br />

que chora, pianíssimo, na majestade sagrada das suas<br />

notas, ecoam sonoramente as vozes que vêm do coro,<br />

beatíficas e sérias, entoando o Kirie eleison, num<br />

misticismo de bandolins empíricos cujas cordas flébeis<br />

os ventos celestes vêm gemer e soluçar tremulamente.<br />

Os sacerdotes festivamente paramentados, com<br />

as suas capas lustrosas e relampejantes, verdes,<br />

encarnadas, brancas e roxas, bordadas a flores de ouro,<br />

de estolas pendidas no braço, ou com as suas sobrepelizes<br />

alvas e rendadas destacando forte na batina preta,<br />

curvam-se em genuflexões religiosas diante do altarmor<br />

e, levantando-se depois com mesuras graves e<br />

medidas, lê um deles a “sacra”, em voz pouco alta: In<br />

principio erat verbum et verbum, etc., enquanto os acólitos,<br />

em linha e reverentes, agitam, fazem balançar<br />

cadenciada e ritmadamente os lavrados turíbulos de<br />

prata, donde partem brancas e leves espirais de incenso.


140 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

E o cerimonial prossegue com toda a minudência<br />

escrupulosa do rito romano.<br />

Mas a minha atenção prende-se agora a um vulto<br />

feminino ajoelhado para lá do cruzeiro.<br />

Olha, não estás vendo, Neném, aquela senhora<br />

idosa, de cabelo repartido em bandós, de vestido preto e<br />

de amplo mantelete de vidrilhos, ali, perto da capela do<br />

santíssimo?<br />

Bem que tu conheces!<br />

Repara bem como ela reza com devoção.<br />

O longo rosário de padre-nossos e de ave-marias<br />

pende-lhe das mãos engelhadas e trêmulas que o<br />

reviram sempre de um lado para outro, enquanto os seus<br />

lábios frouxos e desmaiados balbuciam com furor<br />

histérico intermináveis orações que falam do amor<br />

divino, da tentação da carne, do inferno e da glória<br />

eterna.<br />

Em cada ruga profunda do seu rosto há um<br />

mistério, talvez um remorso, um crime talvez.<br />

Ela mal pode ter-se de joelhos, as pernas<br />

fraqueiam-se-lhe, o seu tronco curva-se e curva-se mais<br />

como se se quisesse dobrar e partir; e no entanto essa<br />

senhora reza sempre, sem levantar os olhos para<br />

ninguém, nem para os santos, preocupada no seu mister<br />

beato e salvador, apenas olhando obliquamente, de<br />

soslaio, como uma pessoa vesga, de modo invejoso e<br />

cruel, para algum chapéu Pierrete, de rosas e clematites,<br />

colocado vitoriosamente, com um atrevimento e uma<br />

brejeirice e petulância chic, na cabeça grácil de alguma<br />

mulher bela e nova.<br />

Oh! essa velha tem uma história lúgubre, Neném.<br />

Ali onde a vês está sem dúvida com cinco<br />

comunhões e seis confissões.<br />

Vem todos os dias à igreja, muito cedo; às vezes<br />

ainda há crepúsculo matutino, confessar-se pelos seus<br />

grandes pecados e obter a absolvição e as indulgências<br />

do senhor padre.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 141<br />

Ah! ele que a confessa não tem culpa, não.<br />

Não tem porque conhece certamente, embora o<br />

fumo espesso da teologia lhe tirasse ao espírito certa<br />

lucidez filosófica mais necessária, ele conhece como é<br />

feita toda essa manobra da religião, não a religião alegre,<br />

piedosa e consoladora do Cristo que eu e tu adoramos,<br />

Neném, mas a triste e pervertente religião hipócrita dos<br />

homens.<br />

Neném, tu és uma moça de espírito, tocas muito<br />

bem Schubert e Verdi, tens uma paixão artística pelo<br />

“sento una forza indomita” do Guarani e pelos musicais<br />

esplendores gregos da Aída; teu pai, um capitalista grave<br />

e lord, de cheques ao portador, parecido com um certo<br />

nobre de teatro, educou-te muitíssimo bem, com capricho<br />

e dedicação mesmo; fez-te aprender o francês, o inglês,<br />

pôs às tuas ordens um magnífico professor de música<br />

vocal, mandou-te ensinar um pouco de geografia física,<br />

de geografia matemática, de geografia política e de<br />

história e creio mesmo que até chegou a conseguir que<br />

tu folheasses com atenção, por muitas vezes, um tratado<br />

de fisiologia e de patologia, porque o teu belo pai tinha<br />

um orgulho e um desejo extravagante e clássico de te<br />

fazer médica.<br />

Até mesmo me afirmaram que certos folhetins que<br />

os periódicos literários publicam são escritos por ti, como<br />

“As borboletas”, “Os ninhos de colibris”, “Os querubins<br />

do lar”, etc. com a maneira gentil de Valentina de<br />

Lucena, de Guiomar Torresão, de Júlia da Costa e sob o<br />

pseudônimo esbelto e aristocrático de – Rosalina do Val.<br />

Portanto, educada assim como és, inteligente e<br />

ponderosa, hás de saber por certo o que é um caso<br />

patológico.<br />

Sabes, não é?<br />

Pois essa velha é isso, é um caso patológico<br />

terrível que ainda o mais sábio homem de ciência não<br />

poderá estudar facilmente.<br />

Essa velha tem a nevrose da maldade.


142 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Ela é devota assim como tu vês, não é verdade?...<br />

Mas se tu a visses em casa!<br />

Em casa ela muda de figura, transforma-se, não<br />

é aquela que lá está, não é a mesma.<br />

Todo aquele aparato de beatice some-se como<br />

numa mágica, pelo alçapão do cálculo e do interesse<br />

egoísta e fica só em cena, no tablado da sala, da varanda<br />

ou da cozinha, uma mulherzinha pantérica, sinistra e<br />

fatal que não é mais trêmula como a outra nem mais<br />

curvada também; mas uma mulher que se impertiga,<br />

que anda rápida e desembaraçada, falando forte, de<br />

relâmpagos na voz e com um olhar onde há o sangue<br />

dessorado e venenoso de muita raiva concentrada e de<br />

muita inveja dos outros.<br />

Essa velha possui escravos que castiga atrozmente,<br />

de uma maneira desumana e brutal.<br />

E quando volta da igreja, com o ar ressabiado e<br />

hostil por ter ouvido repreensões ásperas do confessor<br />

que a conhece e que não lhe permite fazer todas as<br />

maldades e barbaridades que ela quer, a velha,<br />

despeitada por ele não estar sempre do seu lado, a seu<br />

favor naquele modo de vida, de mulher irascível e má,<br />

chama uma pobre escrava, doente e encanecida pela<br />

idade e pelos sofrimentos, e dá-lhe pela cara com um<br />

vergalho de couro molhado e passado em areia ou chegalhe<br />

aos seios e às pernas um pedaço de lenha ardente<br />

em brasa, dizendo-lhe entre um riso satânico e feroz:<br />

Anda, negrinha, pula agora aí e lembra-te do pai Antônio<br />

que não te quis; também o padre não me quer mais a<br />

mim.<br />

A Regeneração, n° 162, Desterro, quinta-feira, 28<br />

de julho de 1887.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 143<br />

VIII<br />

À ZEZÉ<br />

Neste momento, Zezé, tenho sobre a mesa de<br />

escrita, diante dos olhos, um pequeno folheto cuja capa<br />

da frente forma o desenho sereno de uma nuvem<br />

prateada, no meio da qual um bando alegre de serafins<br />

celestes, de crianças louras e rechonchudas voa com as<br />

suas asas rosadas, suspendendo no ar uma fita azulclaro<br />

que diz – Lisboa-Creche.<br />

Lisboa-Creche é um jornal-miniatura, galantezinho,<br />

leve e acariciador como um ninho de ave, onde uma<br />

turba luminosa de indivíduos que escrevem deixou toda<br />

a cintilação do seu espírito doce e cantante como uma<br />

revoada zumbente de abelhas douradas.<br />

Esmaltam a Creche, além dos escritos mignons,<br />

graciosíssimas aquarelazitas, espécie de cromos<br />

encantadores, das quais ressalta a Tarantella,<br />

interessante dança de costumes napolitanos, meridional<br />

e vibrante, ruidosa de primor e de graça, pintada com<br />

muito chic pelo pincel elegante e radioso de Bordallo<br />

Pinheiro, cheia de um sol de talento artístico como de<br />

um sol dos trópicos.<br />

E para que se fez esse jornal miniatura?<br />

Eu te digo.<br />

Um dia, em Portugal, lá onde canta a cotovia “tão<br />

límpido, tão alto que parece que é a estrela no céu que<br />

está cantando” uma rainha amável e pia como o seu<br />

nome deu-se ao bom humor, lembrou-se de descer<br />

simpaticamente até ao povo e abriu os seus braços<br />

fidalgos às crianças sem asilo e sem pão.<br />

Porém, tantas e tão pobres eram elas que não<br />

bastariam por certo o socorro e o amparo de uma rainha,<br />

conquanto benévola e poderosa fosse, porque essa rainha<br />

não sustentaria, ela só, nos seus ombros débeis e


144 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

delicados, o peso de tanta desventura e tanta<br />

necessidade juntas.<br />

Então agruparam-se em redor dela os artistas, os<br />

escritores, os poetas – todos eles floridos e frementes<br />

de idéias – contentes e gloriosos como se fossem<br />

desenterrar de cova do passado, com a enxada da<br />

fantasia, todas as lembranças queridas e saudosas da<br />

sua infância.<br />

E daí nasceu, como homenagem à idéia da rainha,<br />

o Lisboa-Creche.<br />

Bem vês, Zezé, que a intenção, que a razão<br />

principal desse jornalzinho não pode ser mais pura; é<br />

tão pura, tão casta e tão cândida mesmo como uma<br />

magnólia aberta, orvalhada ao luar.<br />

Ocorre-me isto à memória, apraz-me narrar-te,<br />

conversar amigavelmente e fraternalmente contigo estas<br />

coisas, porque sei que também tens um coração generoso<br />

como a rainha.<br />

Tens sim.<br />

E para prova disso, basta olhar para as lindas<br />

chinelas de lã, bordadas a missanga, que tu trabalhas<br />

com tanto gosto e orgulho.<br />

As tuas mãos giram e tornam a girar o tapete de<br />

um para outro lado, esse tapete por hora tosco e simples,<br />

mas que há de ficar estrelado daqui a pouco dos<br />

fulguramentos da tua habilidade.<br />

Os fios de lã caem de entre os teus dedos,<br />

flexivelmente, como fios de luz, enquanto o retrós colorido<br />

e fino, com tons de íris etéreo, confunde-se em meadas,<br />

cujo segredo da ponta só tu conheces, dentro da tua<br />

cesta de vime.<br />

E para que fazes isso, Zezé?<br />

Tu mesma nada me dirás, nada me responderás,<br />

nada me contará a tua boca, porque desejas conservar<br />

mistério nessas chinelas até um certo tempo, até ao dia<br />

em que elas tiverem de levar o destino que tu imaginas<br />

e queres; mas, não obstante essa tua persistência em


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 145<br />

nada me revelares, eu sei de boa fonte, de fonte bem<br />

cristalina, sei do teu próprio coração que não mente<br />

nunca nem engana a ninguém, que tu caprichas nesse<br />

objeto porque tencionas dá-lo ao bazar dos escravos e lá<br />

deve haver com certeza ricos objetos aprimorados, muito<br />

preciosos e muito lindos com os quais esse não poderia<br />

naturalmente competir jamais, se não fosse, como está<br />

sendo, trabalhado caprichosamente.<br />

A Regeneração, n° 193, Desterro, sábado, de<br />

setembro de 1887.


Outras Outras Evocações<br />

Evocações


148 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ELIZIRNA<br />

Elizirna! Elizirna!<br />

Como faz a gente pensar nos mundos de além,<br />

emigrar, boemizar, para a gare azul dos sonhos estrelados<br />

de auroras, o teu perfil correto, linha direita de<br />

imperatriz da Rússia.<br />

Como essa cintura, mais delicada e galante do<br />

que a pétala branca, de leite, da deliciosa magnólia,<br />

quando a gente te vê elegantemente espartilhada,<br />

jubilosa, parecendo uma alegria do céu, tantaliza e<br />

arrebata os bravios leões do desejo.<br />

Elizirna! Elizirna!<br />

E a tua epiderme, macia, jambosa, com a penugem<br />

veludínea do pêssego, molar com a suavidade doce do<br />

creme, e o frescor perfumoso da malva-maçã; de um<br />

róseo queimado, a tua epiderme, flor azul dos luares<br />

brancos, impressiona o nervosismo, dá irritabilidades<br />

espasmódicas.<br />

E a música do teu laringe, o gargantear<br />

cantarolante do cristal, semelhante ao tinido miúdo,<br />

claro, sonoro de uma campainha elétrica, vibrada num<br />

palácio de vidro, como prostra a alma num êxtase, num<br />

êxtase...<br />

Elizirna! Elizirna!<br />

E a curva do teu colo, a abençoada curva do teu<br />

colo!<br />

Quantos ideais meus, quantas cismas<br />

encharcadas no licor saborosíssimo da ventura que<br />

palpita, que ferve, que escalda e esbraseia, não foram<br />

flutuar, boiar no maciosíssimo topázio rico do teu colo<br />

moreno, como um batalhão triunfal de pássaros<br />

vermelhos, nos fluidos da enorme concha de alabastro<br />

do firmamento.<br />

Elizirna! Elizirna!...<br />

Pomba doce dos países de ouro.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 149<br />

E a tua boca, cor de pitanga madura, levemente<br />

roxa, esse escrínio rútilo dos meus beijos, esse fruto<br />

ruborizado, polposo, sempre aromático, infiltrado do<br />

sândalo agradável da mocidade, do gosto saudável da<br />

beleza pura, castíssima, frescurizada, vegetabilizante,<br />

como é consoladora e boa.<br />

Elizirna! Elizirna!<br />

E a tempestade negra dos teus cabelos, cortada<br />

pelos fuzis dos meus olhares, por onde o vento absurdo,<br />

desabrido, das minhas desgraças, faz ziguezagues e<br />

esfuziotes continuados; o mar profundo e vão dessas<br />

tranças, por onde o meu destino naufraga<br />

desoladoramente, como eu acho terrivelmente<br />

deslumbrante, esmagadoramente belo...<br />

Elizirna! Elizirna!...<br />

E os teus olhos, filha, abundantes de cousas<br />

celestiais, fartos das bênçãos do gozo, inundados dos<br />

equatorianos rosicleres primaverinos, cheios dos<br />

pizzicatos, dos acceleratos das paixões, como iluminam e<br />

cantam...<br />

Elizirna! Elizirna!...<br />

Parecem dois sóis esplendorosíssimos, os teus<br />

olhos, cada qual com um sabiá dentro, abrindo,<br />

cristalinizadoramente, em trilhos gorjeadores, a<br />

bravuresca garganta lírica...


150 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

CONSCIÊNCIA TRANQÜILA<br />

O ilustre, o douto homem rico, o abastado senhor<br />

de escravos está já, segundo a previsão do seu médico,<br />

quase às portas da morte.<br />

Sobre o luxuoso leito largo, na alvura fria dos<br />

linhos, entre os gélidos silêncios das paredes altas, ele<br />

está mudo, semimorto, dormindo, como que se<br />

predispondo para o sono eterno.<br />

No confortável aposento onde ele aguarda afinal o<br />

último suspiro, vai e vem, abafando os passos, toda uma<br />

sociedade de honrados bajuladores, de calculistas<br />

espertos e frios, de interessados argutos, de herdeiros<br />

capciosos, de tipos bisonhos e suspeitos, almas<br />

simplesmente consagradas ao instinto de conservação<br />

da vida no que ela tem de mais caviloso e oblíquo.<br />

Graves e grandes, como bocejos lassos, como tédios<br />

esquecidos, os momentos do moribundo se prolongam e<br />

os comentários esfuziam e ferem, à surdina, o ar doentio,<br />

pesado...<br />

– Não há dúvida que vamos perder um homem<br />

útil, prestimoso, eminente, carregado de saber e<br />

virtudes, bom e piedoso, ah! sobretudo bom e piedoso.<br />

Que coração de anjo para os humildes, para os tristes,<br />

para os fracos, para os desamparados. A sua bolsa,<br />

sempre inesgotável, dividia-se com todos. Verdadeiro<br />

apóstolo da caridade, da religião e da ciência, era um<br />

justo na acepção da palavra, de uma moral elevada até<br />

à santidade. Nunca me há de esquecer de como ele foi<br />

sempre generoso para essas raparigas miseráveis, gente<br />

baixa, que nem ao menos tem a vala comum para cair<br />

morta e que ele afinal protegia com a sua bolsa e<br />

arranjava-lhes noivos entre pobres-diabos da plebe,<br />

quando por acaso elas deixavam de ser virgens com ele...<br />

De muitas, de muitas sei eu que ele tornou felizes com<br />

o seu prestígio, dando-lhes casamento e dinheiro. Sim!<br />

porque outro fosse ele, como esses bandidos que por aí


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 151<br />

andam, que deixariam as pobrezinhas ao desamparo e<br />

com filhos. Ele, não; casava-as logo e assim trazia<br />

felicidade aos casais que constituía. Muito, muito justo,<br />

sempre foi muito justo em tudo! Homem distinto! Homem<br />

distinto! Este é dos poucos que podem morrer com a sua<br />

consciência tranqüila, perfeitamente tranqüila!<br />

Quem assim falava com esta ingênua malignidade,<br />

com esta nova, inédita inocência, com esta terrível e<br />

eloqüente ironia, por si próprio, no entanto,<br />

desconhecida, era um homem de olhos ladinos e gestos<br />

sacudidos, próspero, rubicundo, expressão loquaz de ave<br />

rapace, nariz altivo, espécie de sagaz furão de negócios,<br />

parecendo estar sempre ocupado em absorver e conhecer<br />

pela atilada pituitária o ar das cousas e dos interesses<br />

imediatos.<br />

Num dos dedos da sua mão ágil, pronta, precisa<br />

para o assalto à vida, com a medida exata dos grandes<br />

golpes ocultos, reluzia a clara gota d’água iriada de um<br />

rijo brilhante.<br />

Mas, o troféu de glórias deste curioso exemplar<br />

humano era o famoso e filaucioso cavaignac, meio<br />

diabólico, meio cínico, que ele afagava com gravidade e<br />

volúpia, abrindo em leque, num gozo particular, como se<br />

o cavaignac fosse o seu inspirador e o seu oráculo naquela<br />

eloqüência.<br />

Como todo o bandido bem acabado, perfeito, como<br />

todo o Tartufo casuístico, tinha o seu séquito, os seus<br />

satélites, que instintiva ou calculadamente ouviam e<br />

aprovavam sempre em silêncio servil tudo quanto ele<br />

dizia e lhe forneciam a manhosa e morna atmosfera,<br />

feita de rastejantes e vermiculares sentimentos na qual<br />

ele vivia à farta, num transbordamento de tecidos<br />

adiposos, cevando-se nas lesmentas vaidades e caprichos<br />

mesquinhos dos outros, lisonjeando-lhes as pretensões,<br />

alimentando-lhes os vícios, devorando-lhes o ar, numa<br />

verdadeira existência parasitária.


152 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Mas, agora, todas as atenções se voltavam,<br />

alvoroçadas, ansiosas, para o velho moribundo, que<br />

acordara afinal em sobressaltos, o olhar desvairadamente<br />

pairado num ponto, como se por um esquisito fenômeno<br />

tivesse ressurgido do terror do sono eterno e viesse ainda<br />

perseguido por glaciais fantasmas que o arrastavam pelos<br />

cabelos e pelas vestes, através de uma treva duramente<br />

muda e aflitiva...<br />

E, ou fosse remorso ou fosse álgido medo da hora<br />

extrema ou fosse mesmo agudo e histérico delírio<br />

imaginativo de senil e tábido celerado que vai morrer, o<br />

certo é que todos, no auge do espanto, no mais esmagador<br />

dos assombros, sem poder conter a súbita e estupenda<br />

torrente que lhe foi espumando e jorrando da boca<br />

bamba, ouviram este cruel e amorfo monólogo, feito de<br />

lama e podridão, de estanho inflamado, de ferro e fogo,<br />

de acres e apunhalantes sarcasmos, de ódio e visco, de<br />

mordentes perversidades, de chagas nuas, de lacerações<br />

de carnes gangrenadas, de soluços e estupros, de ais e<br />

risadas, de suspiros e concupiscências baixas, de beijos<br />

e venenos, de estertores e lágrimas, tudo rodando,<br />

rodando através do pesadelo da Morte.<br />

Como que a seu pesar, um fenômeno desconhecido<br />

o transfigurava, punha-lhe na boca a eloqüência viva de<br />

chamas devoradoras. Ele era, naquele momento, a presa<br />

formidanda das correntes da matéria, que os mais<br />

curiosos e estupendos sentimentos abalavam: como que<br />

uma outra natureza, sem ser propriamente,<br />

legitimamente a sua, a natureza dos mistérios, que paira<br />

acima de tudo o que nos é terrenamente acessível, a<br />

natureza do Incognoscível das Esferas, dos maravilhosos<br />

Ritmos, o inspirava, falava pela voz dele, enchia-o de<br />

fluidos prodigiosos, arrebatava-o para um meio sonho e<br />

para um meio delírio, onde, contudo, transpareciam faces<br />

verdadeiras das cousas, já galvanizadas pelo passado.<br />

Aquilo era como que o exemplo vivo, iniludível e<br />

supremo dessa vaga névoa, dessa bruma de Abstrato,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 153<br />

que há em todo o Tangível, do Sobrenatural que há em<br />

todo o Verdadeiro.<br />

– Ah! lá se vão elas, vejam, lá se vão elas! Quantas!<br />

Quantas! Eram todas minhas! Vinham entregar-se ao<br />

meu ouro que tinia, tilintava, tinia com a sua luz sonora.<br />

Olhem, lá vão elas! Todos aqueles corpos eu beijei, eu<br />

gozei, eu depravei, eu saciei! Todos aqueles belos corpos<br />

brancos se adelgaçaram, se quebraram, vergaram, em<br />

curvas voluptuosas de abóbada estrelada, às minhas<br />

furiosas luxúrias. Parecia que corcéis de fogo disparavam<br />

no meu sangue, corriam a toda brida nos meus nervos,<br />

tanto a sensualidade me agitava, me vertiginava,<br />

aguilhoava-me com os seus aguilhões acerados. E eram<br />

todas virgens, que eu desviei, estrábico de gozo, nas<br />

formidáveis alucinações da carne. Pois se eu tinha o<br />

meu ouro, o meu ouro que agisse sem demora e mas<br />

trouxesse vencidas; pois se eu tinha o meu ouro, o meu<br />

ouro que as escravizasse à minha lascívia, o meu ouro<br />

que as fascinasse, o meu ouro que as atraísse, o meu<br />

ouro que as magnetizasse, o meu ouro que as cegasse, o<br />

meu ouro que as perdesse, o meu ouro que as aviltasse!<br />

Pois se eu tinha o meu ouro, que mal então que eu<br />

comprasse formas de argila, com o meu ouro de forma<br />

de sol! Pois se eu tinha o meu ouro! Pois se eu tinha o<br />

meu ouro! Pois se eu tinha o meu ouro!<br />

Por entre os linhos alvos do leito, naquelas<br />

brancuras preciosas, como que um rio de ouro, um<br />

cascatear de ouro, uma música de ouro vinham então<br />

finamente e fluidamente rolando, distendendo pelo leito<br />

os seus harmoniosos e claros veios de ouro, numa feeria<br />

de som, de alvura e de ouro.<br />

E o senil e tábido milionário estava ali como um<br />

célebre mago dominado pelo ritmo alucinante, pela vara<br />

magnética desse êxtase de visionário moribundo, pela<br />

doentia e sonâmbula superexcitação nervosa, por toda<br />

essa vertigem, por todo esse deslumbramento hipnótico,<br />

fatal, enlouquecedor, do ouro. E ele ria alvarmente uma


154 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

risada entre amarela e negra, que fazia lembrar o<br />

fúnebre caixão que o esperava...<br />

Todos, estupefatos, suspensos, diante daquele<br />

delirante e sensacional espetáculo que não podiam<br />

encobrir nem conter, tinham a respiração sufocada, os<br />

semblantes transtornados, lívidos, tão lívidos que<br />

pareciam outros tantos moribundos que ouviam, imóveis,<br />

num espasmo de angustioso terror, esse outro sinistro<br />

moribundo falando.<br />

Agora, porta mais negra e mais ensangüentada<br />

se abrira escancaradamente, num rápido rasgão de raio<br />

que fende as nuvens, ao delírio do cérebro demente do<br />

quase morto: era como se nenhum escrúpulo delicado,<br />

sutil o prendesse mais à terra e aos homens; se todos<br />

os fios e laços das suscetibilidades da alma se houvessem<br />

partido, despedaçado e ele ficasse só nos instintos, à<br />

vontade, besta desenfreada, livre de todas as correntes<br />

do Sensível, sob o impulso primitivo, selvagem,<br />

desorientado, animal, deserto, da simples matéria e da<br />

simples carnalidade:<br />

– Ah! Ah! pois não era o meu ouro, só o meu ouro,<br />

sempre o meu ouro que comprava tanta carne humana,<br />

desprezível, que eu via entrar nas senzalas, de volta do<br />

eito?! Negros trêmulos, velhos e tristes, com o dorso<br />

curvado por uma remota subserviência ancestral, atávica,<br />

fantasmas de pedra, mudos e cegos na sua dor absurda...<br />

Às vezes era pelos amargos desfalecimentos da<br />

tarde; e, no fundo denso da noite algumas estrelas<br />

espiavam como sentinelas, de olhos acesos e vigilantes,<br />

aquela torva massa trôpega e tarda que caminhava como<br />

do fundo de um tempestuoso e formidável sonho: os<br />

crânios desconformemente alongados, os perfis com<br />

deformações hediondas, talhados à bruta por mãos de<br />

gênios rebeldes, infernais e os olhos envenenados pela<br />

mais atroz, bárbara e mórbida melancolia das<br />

melancolias. Como que vinham, num turvo e amorfo<br />

desfilar do centro misterioso da terra, com a cor da terra,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 155<br />

com a cor das trevas primitivas, esqueléticos,<br />

cadavéricos, héticos, na assombrosa condensação de<br />

todas as criações shakespeareanas, arrastando os<br />

miseráveis e ensangüentados farrapos das almas.<br />

Parecia-me que se cavava de repente, por toda a<br />

extensão do eito, imensa, profunda cova; que essa cova<br />

era como velha chaga secular formidavelmente grande,<br />

sinistramente sangrenta, a devorar, a devorar, a devorar<br />

carne humana, legiões e legiões de míseros, um fabuloso<br />

mar negro e selvagem de corpos e almas amaldiçoadas...<br />

E essa chaga tremenda, avassaladora, fatal, ia então<br />

alastrando, não já sangrenta, mas verde, podre,<br />

gangrenada, aberta a monstruosa e purulenta boca verde.<br />

Não sei para que sobre-humano horror eu recuava,<br />

para que noite caótica de horror animal eu mergulhava<br />

a tremer, a tremer, a tremer...<br />

Ficava então de repente com a imaginação<br />

dominada por cruéis sobressaltos, com ansiedades,<br />

delírios a se vulcanizarem no cérebro... Subiam-me ao<br />

cérebro obsessões de loucura, como que os meus<br />

pensamentos se agachavam, se encolhiam aterrorizados<br />

a um canto do cérebro... Um medo agudo, invencível,<br />

me amarrava os nervos... Todo eu gelava, suava medo...<br />

E aquela bamba, trôpega e tarda massa torva, fenomenal,<br />

numerosa, estranha, tão estranha aos meus sentidos<br />

apavorados, dava-me a impressão fantástica de abismos<br />

que caminhavam, de tenebrosas florestas de corpos<br />

cheias de rugidos de feras, de garras, de dentes<br />

devoradores, que eu via de repente atirarem-se,<br />

arrojarem-se sobre mim, bramindo vingança, e<br />

despedaçarem-me, estrangularem-me todo.<br />

Ao meu espírito aterrado, ao mundo virgem e<br />

nunca visto de visões que se me desenvolviam no<br />

deslumbrado raio visual, era como se todos aqueles<br />

esqueletos negros se reproduzissem, surgissem por toda<br />

a parte turbilhões e turbilhões, tumultos e tumultos,<br />

matas serradas, compactas, selvas bravias de esqueletos


156 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

negros, toda a África colossal ululando e soluçando num<br />

ululo e num soluço milenário... E, por sobre todos esses<br />

milhões de cabeças tenebrosas, pairava no ar,<br />

solenemente, prognosticadamente, sugestionadoramente,<br />

como o satânico e sinistro Anjo da Guarda da<br />

negra raça dos desertos, lassa e descomunal, lânguida<br />

e letárgica serpente, talvez dormindo e sonhando novos<br />

e mais maravilhosos venenos, com as grandes asas<br />

abertas... Ah! eram sobrenaturais esses sofrimentos que<br />

assim me remordiam tanto com tamanhos dentes e com<br />

tamanhas garras!<br />

Deus, a essas horas tão tremendas para a minha<br />

consciência, ali tão humilhada, batida, cobarde de terror<br />

diante daqueles negros espectros, onde estava Deus,<br />

para trazer-me um alívio, um consolo para ter piedade<br />

de mim, para dar-me de beber da fonte clara, fresca e<br />

suave da tranqüilidade, para saciar a sede de humildade,<br />

de pobreza, de simplicidade, a sede devoradora que me<br />

incendiava, a mim, a gula viva do ouro, a mim, a gula<br />

viva da sensualidade, a mim, a gula viva do crime!<br />

No entanto, ah!, que risadas satânicas, diabólicas,<br />

que satisfação perversa me assaltava quando o feitor,<br />

bizarro, mefistofélico, de chicote em punho, lanhava,<br />

lanhava, lanhava os miseráveis e lindos corpos de certas<br />

escravas que não queriam vir comigo! Oh! lembra-me<br />

bem de uma que mandei lanhar sem piedade. A cada<br />

grito que ela soltava eu gritava também ao feitor: – Lanha<br />

mais, lanha mais! E o bizarro feitor lanhava! O sangue,<br />

grosso e lento, como uma baba espessa, ia formando no<br />

chão um pântano onde os porcos vinham fuçar<br />

regaladamente! Com que febre, com que alucinação<br />

inquisitorial eu gozava essas torturas! Até mesmo, às<br />

vezes, via-me possuído de um extravagante desejo<br />

animal, de um desejo monstro de beber, como os porcos,<br />

todo aquele sangue. Lembro-me também de outra,<br />

bestialmente grávida, prestes a ser mãe, a quem eu,<br />

para saciar a minha sede feroz de ciúme, a minha sede


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 157<br />

de raiva, a minha sede de concupiscência suína, mandei<br />

aplicar quinhentas chicotadas, enquanto os meus dentes<br />

rangiam na volúpia do ódio saciado. Desta foi tamanha<br />

e tão atroz a dor, tão horríveis as contorções, enroscandose<br />

como serpente dentro de chamas crepitantes, que<br />

esvaiu-se toda em sangue, abortou de repente e ali<br />

mesmo morreu logo, felizmente lembro-me bem, com a<br />

boca retorcida numa tromba mole, espumando roxo e<br />

duas grossas lágrimas profundas a escorrerem-lhe no<br />

canto dos olhos vidrados...<br />

E de outra ainda lembro-me também, porque eu a<br />

mandei afogar no rio das Sete Chagas, junto à figueirado-inferno,<br />

com o filho, que era execravelmente meu,<br />

dentro das entranhas... Mandei afogar tarde, a horas<br />

mortas, depois que certo sino cavo soluçou as doze<br />

badaladas lentas e sonolentas no amortalhado luar... E<br />

devo ter algum remorso disso? Remorso? De quê? Por<br />

quê? Por quem? Meu filho? Como? Feito por um civilizado<br />

num bárbaro, num selvagem? Remorso por tão pouco?<br />

Por lama vil que se joga fora, por barro ignóbil que para<br />

nada presta?! Remorso por fezes, resíduos exíguos de<br />

elementos inservíveis, bílis negra, composto de produtos<br />

podres, gases deletérios e inúteis, pus fétido – pois por<br />

essa asquerosa e horrenda cousa que se formou e<br />

ondulou misteriosamente sonâmbula nas entranhas<br />

pantéricas de uma negra hei de ter, então, remorso,<br />

hei de ter, então, remorso?!<br />

E os quatro enforcados da encruzilhada do<br />

engenho, com as hirtas línguas de fora, por uma noite<br />

de trovões e relâmpagos, oscilando dos galhos das árvores<br />

como pêndulo da morte! E os que morreram no tronco,<br />

com a espinha dorsal quase vergada ao meio! E aqueles<br />

que de desespero e de aflição sem remédio se rasgaram<br />

os ventres enterrando-lhes fundo facas agudas! Os que<br />

estalaram tostados, queimados nos fornos em brasa! Os<br />

que foram arrastados pelos campos a fora, a galope,<br />

atados a caudas de cavalo! Os que tiveram os ventres


158 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

atravessados pelas aspas dos bois bravios! Os que se<br />

envenenaram com venenos mais mortais que o das<br />

serpentes! Os que se degolaram na mais desesperada<br />

das agonias!<br />

E aquela negra terrível que morreu louca,<br />

abraçada ao filho pequeno, dando-lhe alucinadamente<br />

de mamar, nua, toda nua, com o seio a escorrer leite e<br />

ao mesmo tempo a escorrer sangue pelas feridas de<br />

trezentas e setenta e tantas chicotadas, com os olhos<br />

esbugalhados, a olhar-me muito, a olhar-me sempre,<br />

parece que ainda horrivelmente a olhar-me agora, a<br />

perseguir-me, a cortar-me de pavor como uma lâmina<br />

gelada e penetrante.<br />

Ah! e aquele negro de cem anos, morfético,<br />

inchado como um sapo enorme, manipanço senil, a quem<br />

eu arranquei os dois olhos com a ponta de uma verruma,<br />

enquanto ele urrava e escabujava de dor como um tigre<br />

apunhalado! E isto em pleno eito, num meio-dia de ferro<br />

e fogo, que cortava e queimava, por um sol dilacerante,<br />

devorador como feras esfaimadas, sangüinolentas! E eu<br />

arranquei-lhe os olhos, enterrando-lhe fundo a verruma<br />

sem piedade, depois de já lhe haver aplicado por todo o<br />

corpo, apodrecido e chagado pela morféia, seiscentas<br />

vergalhadas, de pulso musculoso e rijo e de relho forte<br />

aberto em trinta pernas terminando em agudos pregos<br />

nas pontas. Ah! como o velho manipanço se retorcia,<br />

espumava, gania, mordia a língua, soltava pinchos por<br />

entre os torvelinhos, os círculos vertiginosos,<br />

desvairados, das trinta pontas aguçadas das pernas<br />

rígidas do relho!<br />

E ainda aquele outro negro decrépito, de uma<br />

boçalidade caduca, cego, mudo e idiota, completamente<br />

cego e mudo, que foi encontrado morto no curral dos<br />

porcos, a cabeça fora do tronco, inteiramente decepada<br />

a machado, os órgãos genitais dilacerados!<br />

Remorsos, eu, então, de toda essa treva trágica,<br />

de toda essa lama de crimes apodrecida?! Como,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 159<br />

remorso? Pois não era do trono do meu ouro que eu<br />

estava rei soberano, assim, com o cetro do chicote em<br />

punho, coroado de ouro, arrastando um manto de púrpura<br />

feito de muito sangue derramado?! Remorso? De quê?<br />

Se o meu ouro tudo lavava, vencia, subjugava a todos e a<br />

tudo, emudecia a justiça, tornava completamente servis<br />

e de pedra os homens, fazendo de cada sentimento um<br />

eunuco?!<br />

A estas palavras como que pareceu haver um certo<br />

movimento de protesto, de altivez revoltada, na pasmada<br />

assembléia que o ouvia: quase que um vago vento de<br />

indignação passou... Mas, como entre os males da vida<br />

“o mal de muitos consolo é”, e quase todos que ali estavam<br />

eram parentes do moribundo, aguardavam uma parte do<br />

seu grande ouro; e como também nos seus cerebrozinhos<br />

empíricos lhes passasse de repente a idéia de que talvez<br />

por um milagre da riqueza, por um extraordinário valor<br />

e soberania do potentado, ele muito bem podia levantarse<br />

do leito ainda e expulsá-los a chicote daquele recinto,<br />

todos se entreolharam manhosamente e fizeram<br />

depressa espinha mais flexível, fingiram-se mortos o<br />

melhor que puderam – vivos, mais mortos que o<br />

semimorto.<br />

Toda essa delirante epopéia de lama, treva e<br />

sangue, era por ele murmurada lentamente, com voz<br />

cava, soturna, como através das paredes de um lôbrego<br />

subterrâneo ou nas sombrias, solitárias arcadas de um<br />

convento os crepusculamentos de um Requiem...<br />

Impelido por uma força nervosa erguera-se um<br />

pouco no leito, talvez ainda mais envelhecido agora,<br />

trêmulo, transfigurado, o olhar sempre fixo num ponto,<br />

olhar de cego que olha em vão tudo, que como que só vê<br />

para dentro de si mesmo...<br />

Mas de repente o moribundo teve uma risada alvar,<br />

lugubremente idiota, entre amarelada e negra, que fazia<br />

fatalmente lembrar o fúnebre caixão que o esperava...<br />

E, arremessando convulsamente as frases como lançadas


160 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

no ar, na violência do esforço derradeiro, tremendo, como<br />

quem chama a si as últimas energias da matéria que<br />

desfalece, a língua já presa, já acorrentada pelos pesados<br />

grilhões da morte que vinha vindo, pendeu a encanecida<br />

cabeça de celerado senil, exausto de forças, os braços<br />

molemente caídos ao longo do leito, os olhos e a boca<br />

desmesuradamente abertos, a respiração siflante, num<br />

espasmo sinistro...<br />

No ambiente ansioso, inquietante, do aposento,<br />

pairou uma comoção mortal...<br />

Dos lençóis alvos e frios do leito, bruscamente<br />

revoltos na alucinadora aflição daquele velho corpo<br />

martirizado, como que transpareciam, se levantavam<br />

brancas visões de sepulcro...<br />

Nos circunstantes, à maneira de velhos<br />

instrumentos de cordas usadas, que vibram<br />

insolitamente, percorreu logo um pavoroso<br />

estremecimento. Todos se acercaram do leito, os rostos<br />

transfigurados, na agitação convulsa do grande final –<br />

míseras, tristes sombras que num movimento arrastado,<br />

impelidas por sensações secretas, se acercavam de uma<br />

sombra mais mísera, mais triste...<br />

E, ó ironia da Culpa original!, numa leve contração<br />

da boca, ainda com um voluptuoso e luminoso alento de<br />

vida a esvoarçar-lhe nos olhos, sem longos e torturantes<br />

estertores, deixando apenas escapar um fugitivo, breve<br />

gemido de lá bem do fundo vago, quase apagado,<br />

longínquo, do seu Crime, na atitude de um justo, o ilustre<br />

homem rico, o abastado e poderoso senhor de escravos<br />

expirou – dir-se-ia mesmo com a sua consciência<br />

tranqüila, completamente tranqüila...


O ESTILO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 161<br />

O estilo é o sol da escrita. Dá-lhe eterna<br />

palpitação, eterna vida. Cada palavra é como que um<br />

tecido do organismo do período. No estilo há todas as<br />

gradações da luz, toda a escala dos sons.<br />

O escritor é psicólogo, é miniaturista, é pintor –<br />

gradua a luz, tonaliza, esbate e esfuminha os longes da<br />

paisagem.<br />

O princípio fundamental da Arte vem da Natureza,<br />

porque um artista faz-se da Natureza.<br />

Toda a força e toda a profundidade do estilo está<br />

em saber apertar a frase no pulso, domá-la, não a deixar<br />

disparar pelos meandros da escrita.<br />

O vocábulo pode ser música ou pode ser trovão,<br />

conforme o caso.<br />

A palavra tem a sua anatomia; e é preciso uma<br />

rara percepção estética, uma nitidez visual, olfativa,<br />

palatal e acústica, apuradíssima, para a exatidão da cor,<br />

da forma e para a sensação do som e do sabor da palavra.<br />

Um, porém, pode desvirtuar toda a ação e vitalidade<br />

do estilo, como pode também segurá-lo e afiná-lo. Os<br />

utensílios da escrita são extraordinários, o jogo da frase<br />

é poderoso.<br />

Os livros de Zola, para dar aqui o exemplo de uma<br />

das organizações chefes do nosso tempo, aí estão –<br />

candentes, gerados numa atmosfera de fornalha,<br />

transbordando de surpresas de observação e análise.<br />

Nos livros de Zola, porém, sente-se o efeito de<br />

uma monstruosa trombeta de bronze soprada por um<br />

Hércules gigantesco, formidável – tal é o largo tufão que<br />

dá rumor e faz pulsar todas as páginas.<br />

São naturais, humanos, plenos de natureza esses<br />

livros. Apresentam as faces mais lógicas da existência.<br />

Tais livros palpitam em cada um de nós, saíram de nós,<br />

dos nossos pensamentos, dos nossos usos, das nossas<br />

paixões; falam da direção do nosso espírito, da nossa


162 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

idiossincrasia – segundo o nosso temperamento, o nosso<br />

meio, os elementos climatológicos e etnográficos, a<br />

perspectiva das paisagens, tristes ou doentes, alegres<br />

ou saudáveis, e todos os princípios gerais estabelecidos<br />

e acentuados pela ciência e que influenciam direta e<br />

racionalmente em toda educação física e intelectual.<br />

O escritor nada se tem que importar que os fatos<br />

ou os assuntos lhe sejam simpáticos ou não.<br />

Não há mais, nas evoluções das idéias,<br />

exterioridades, púrpuras de palavra vestindo um assunto<br />

de pau tosco. Pelo contrário! as vestes, as púrpuras da<br />

palavra são de conformidade com os assuntos. E é isso<br />

que faz a inteireza do caráter da escrita...<br />

É preciso que haja um forte tom interior para<br />

haver unidade de ação, de verdade no que se analisa,<br />

no que se observa.<br />

E é por isso, por uma infinidade de qualidades de<br />

análises variadas e radicais, que constituem uma ordem<br />

de fenômenos, que o Estilo há de acentuar-se,<br />

condensar-se, intensificar-se mais entre nós à medida<br />

que se for fazendo a evolução da nossa literatura, quando<br />

a corrente da Arte estiver em íntimas relações<br />

simpáticas com a nossa produtividade mental,<br />

estabelecendo nela a complexidade de um todo uniforme,<br />

depois que nos houvermos libertado dos hibridismos<br />

étnicos que tiram a linha de segurança, de firmeza<br />

intelectual das raças que estão em via de constituir-se.<br />

Entretanto, quando leio um livro, uma frase, cheios<br />

de todas as audácias do talento, vibrantes de energia<br />

espiritual e examino os documentos inteligentes que<br />

estão atestando uma orientação mais completa, um golpe<br />

mais fundo e amplo na luz, mais certeza de “visão”, mais<br />

força e vigor celular, mais profusão de glóbulos rubros,<br />

alvoroço-me, deslumbro-me e eletrizo-me, porque estou<br />

vendo diante de mim, em toda a largueza da minha<br />

rotina, com toda a sinceridade emotiva da minha<br />

convicção e do meu elevado Amor pela arte, espíritos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 163<br />

mais livres e lúcidos que abrem e batem asas, como<br />

pássaros vermelhos na glória do sol, para além, para<br />

longe da retórica e da metafísica, afastando-se dos<br />

princípios de todos os dias, rubricados pelo fastio da<br />

chapa, amarrados pelos barbantes de uma gramática<br />

oficial e convencionada que obriga a idéia a fazer cabriolas<br />

e os esfuziotes do raio, sem regimentá-lo no alto dever<br />

da luta, sem defini-la, sem engrandecê-la, sem dar-lhe<br />

um intenso valor, uma pobre tranqüilidade consciente,<br />

uma fisionomia particular e superior.


164 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

JE DIS NON<br />

A Virgílio Várzea<br />

Subindo uma vez com um amigo, sob a luz<br />

esfuziante e alegre de rubro sol de verão, uma rua ruidosa<br />

e fremente de vasta cidade da América do Sul, paramos<br />

a olhar detidamente a larga vitrina de vistosa livraria<br />

no plano direito de quem sobe a rua, vindo da direção do<br />

mar.<br />

Por muito tempo estivemos ali parados, viajando o<br />

olhar que pousava, como borboleta inquieta neste e<br />

naquele livro, sobre este e aquele título de obras, como<br />

se o nosso espírito quisesse, à maneira dos insetos nas<br />

flores, absorver, compenetrar-se pelos títulos, numa<br />

síntese radical de observação, dos princípios e idéias<br />

contidos em cada livro.<br />

Súbito a nossa atenção parou, descansou sobre a<br />

capa de um volume, vermelha, e onde se lia em grandes<br />

letras negras: – Je dis non.<br />

Parou a nossa atenção nesse volume de capa<br />

vermelha, como se descobríssemos nele, mais do que<br />

em todos, alguma coisa de original, de singular, de<br />

excêntrico – algum sangrento episódio de psicologia que<br />

lá estava a despertar a nossa análise, dentro da vitrina,<br />

longe de o podermos observar, sentir de perto, e por isso<br />

mesmo tentava mais.<br />

Fidalgo de pensamento, experimentalista, o meu<br />

companheiro era um analista rude, d’ar petit marquis,<br />

duma contensão filosófica muito possante, iluminada<br />

figura transfigurada e mística às vezes, espécie de Fausto<br />

de Goethe, numa perene jovialidade e jovialismo amoroso,<br />

imprevisto e radiante pela verve e sugestões críticas –<br />

um desses cérebros poderosos que definitivamente<br />

marcam época, um desses claros soberanos<br />

entendimentos, penetrantes como o ar na vida animal<br />

orgânica, muito inauditos na Abstração e no Gênio, e<br />

para os quais Taine, o supremo chefe da Crítica, teria


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 165<br />

de estabelecer uma nova e derivativa linha determinante<br />

de sua estesia.<br />

Conceituoso, com o pensamento direto ferindo,<br />

atacando muito certo, em flecha, os assuntos, como quem<br />

derruba águias do elevado pendor duma montanha, ele,<br />

sabendo armar e dirigir o aparelho receptor do seu<br />

cérebro à adaptação e generalização das idéias, ainda<br />

as mais delicadas, sutis, fluidas quase – começou,<br />

primeiramente, a tomar a obra em bloco, a uniformizála,<br />

a compô-la, como um organismo, tecido por tecido,<br />

célula por célula, molécula por molécula, dando-lhe corpo,<br />

consubstanciando-a, alargando-a – até que ela pareceu<br />

crescer, crescer, subir, ganhar um vulto estranho<br />

através da vitrina, como se a enchesse toda: – uma<br />

grande tela vermelha com letras negras ao centro – Je<br />

dis non; e como se, por um inconcebível, misterioso<br />

processo, ali estivesse ardendo uma chama, mas que<br />

não alastrasse em línguas de fogo, unida, compacta,<br />

igual, à maneira duma prodigiosa matéria inflamável<br />

que não excedesse ou sobrepujasse aquela transparente<br />

circunferência de vidro.<br />

Depois, então, o luminoso originalista, o<br />

evolucionista spenceriano continuou humoradamente a<br />

bordar folhetins sobre a obra, como ele próprio dizia, a<br />

desmanchá-la, a tirar-lhe a consistente verdade, a<br />

preparar-lhe os planos, a determinar-lhe os detalhes, a<br />

sua latente psicologia, a sua tangibilidade de ser, a<br />

tecelagem de ouro da sua forma, a discernir-lhe a<br />

linguagem, a penetrar na nevrose do temperamento que<br />

a confeccionara, que fabricara em estilo a sua contextura,<br />

apanhando-a, dissecando-a, já em mil voltas, já em mil<br />

giros, já em mil efeitos de espírito, sob os mais novos<br />

aspectos, dando do assunto inteiramente tudo que o<br />

assunto poderia dar e penetrando segura e<br />

esmerilhadamente nos entranhados filões recônditos que<br />

lhe constituíam toda a potente força criadora de obra<br />

afirmativa da Natureza.


166 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

E, nesse profundo trabalho de composição e<br />

decomposição mental, ia-se uma incomparável, infinita<br />

porção de glóbulos rubros, à qual a mais requintada<br />

estesia d’Arte se integrava completamente.<br />

Eu, absorto, perplexo, calado pela atenção aguda,<br />

acompanhava sorrindo, numa alegria que me sacudia<br />

os membros eletrizados, os condoreiros vôos do mestre,<br />

que subiam regiões para o alto, além, até aos astros, na<br />

rija envergadura das flavas asas à luz em jorro, que<br />

depois abundantemente fulgurava, resplandecia na obra,<br />

a iluminava por dentro dum clarão, numa transcendente<br />

visão espiritual arrebatadora.<br />

E o filósofo, o Schopenhauer moderno, nessas<br />

sortidas intelectuais que me enlevavam, projetando as<br />

idéias mais admiráveis e fecundas, dizia-me então, na<br />

serenidade correta dos seus gestos de disciplinado, de<br />

frio saxônio:<br />

– Pois, é isso, vê? Je dis non! Imagine uma dessas<br />

paixões que tudo consigo arrastam para sempre, que<br />

desmoronam a vida de um artista contemplativo, vivendo<br />

das impressões da Natureza, sob o grito, os vibrantes<br />

clarins da carne e a alucinante, inquietadora vertigem<br />

dos ideais insonhados! Imagine um instante<br />

quintessenciado no absoluto das coisas, amando dum<br />

amor imaculado, virginal, sidéreo, já pouco da Terra,<br />

desde longo tempo, uma dessas vigorosas mulheres de<br />

Tom de luxo, de idade outonal de fruta, que tanto<br />

entontecem, perturbam como uma ampla absorção de<br />

ar, de luz e de aroma no altanado cume das serras,<br />

quando se tem saído da densa e lôbrega treva dum<br />

calabouço. Louras Ceres maduras, um tipo, enfim, forte<br />

de primitiva beleza, opulenta e formosa deusa da Hélade,<br />

uma dessas maravilhosas criaturas, assim humanas e<br />

assim etéreas, que eternamente conservam na carne a<br />

centelha da mocidade, na epiderme o doce aroma das<br />

violetas, a frescura das magnólias, o diáfano cor-de-rosa<br />

das auroras de sangue e que através dos seus nervos,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 167<br />

do ímpeto da sua seiva ainda palpitante e viçosa, sabem,<br />

como animal que esconde as garras, pôr apenas em<br />

evidência, diante de uns olhos apaixonados que as<br />

desejam, não o afeto que igualmente as emociona e torna<br />

convulsas, mas toda a febricitante graça borboleteadora,<br />

alada, dos seus encantos, todo o atraente enlevo das<br />

suas sedições – radiantes asas satânicas com que a<br />

Natureza as dotou e com as quais elas voam<br />

desassombradas para o coração do homem, como para<br />

uma chama, vencendo-o, subjugando-o, empolgando-o,<br />

sem, contudo, porém, muitas vezes, nem de leve<br />

crestarem as rutilantes plumagens.<br />

Imagine isso, uma dessas paixões, trágicas,<br />

apunhalantes, que queimam, incendeiam, devoram tudo<br />

– bárbara paixão selvagem de Otelo por uma Desdêmona<br />

fria, de luar gelado, mas formosa; indiferente mas<br />

altivamente olímpica, onipotente no esplendor cinzelado,<br />

como os mármores coríntios ou os bronzes celinescos,<br />

do alabastro do corpo.<br />

Uma dessas paixões tumultuosas em onda, em<br />

que os amantes estão por vezes separados só pela<br />

distância de um beijo e de um abraço, e que quando ele,<br />

sonhando a hora feliz e ao mesmo tempo fatal entre<br />

todas, que lhe parecesse a mais serena às exigências<br />

dela, o doce momento aflitivo no qual ele com veemência<br />

pensasse que ela nada lhe negaria, depois de tanto<br />

esperar, depois de tanto ansiar – nem a flor dos seus<br />

beijos nem a flor dos seus carinhos nem a flor da sua<br />

carne – nesse supremo instante enfim em que ele<br />

supusesse que do encontro, do atrito amoroso das suas<br />

almas tão longamente afastadas, entre si irradiasse e<br />

nascesse o sol do mais imperecível amor – ela, com os<br />

olhos fagulhantes cheios de expressão e sagacidade<br />

feminina, fria por cálculo, indiferente por sistema,<br />

acostumados já aos lancinantes envenenamentos<br />

dolorosos que trazem as desesperadas e fundas loucuras,


168 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

lhe dissesse, pondo nas suas palavras todo o torturante<br />

fel do desprezo:<br />

– Jes dis non.<br />

Suponha, pense tudo isso e veja a brusca e abrupta<br />

alucinação dele, o seu desvairamento ao ouvi-la condenar<br />

o seu amor.<br />

No entanto esse errante das ilusões teria quase<br />

toda a certeza que ela o atenderia, lá o esperava com<br />

beijos ardentes esvoaçando já nos lábios como abelhas.<br />

Observando, sabendo todas as modalidades da<br />

alma, conhecendo todas as manifestações da Natureza,<br />

o artista não havia, entretanto, compreendido essa, não<br />

pôde abrangê-la nunca no que ela tem de mais<br />

imperceptível, de mais vago, surpreendente, aéreo.<br />

Não pôde abrangê-la e ei-lo agora aí desmoronado,<br />

esmagado, como se todo o império romano do seu afeto<br />

de repente perdesse a pompa gloriosa e se fizesse em<br />

ruínas.<br />

Palácios mouriscos, torreões e minaretes árabes,<br />

mesquitas persas, coruscantes pagodes incrustados de<br />

madrepérola e pedrarias preciosas, suntuosas e góticas<br />

catedrais, um luxo de damascos esmirnos, todo o famoso<br />

deslumbramento dos seus sonhos de um místico<br />

templário do amor, feito subitamente em cinzas com<br />

aquelas pungitivas palavras dilacerantes.<br />

Aí tem, pois, o que é Je dis non.<br />

Assustador, angustioso, estranho na sua gênese,<br />

mas é Jes dis non. Di-lo a epígrafe, em letras negras, dilo<br />

a capa vermelha, que é o pronunciamento psicológico<br />

de uma tormenta de sensibilidade, de nevropatia que<br />

agitou a existência de alguém.<br />

Mas, não o leiamos nunca: deixemo-lo estar assim,<br />

o excêntrico volume, lá ao fundo, através da vitrina,<br />

saciando a nossa sede de Ideal, absorvendo os nossos<br />

sentidos na emoção íntima de um gozo intelectual muito<br />

mais intenso e raro que a realidade.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 169<br />

A realidade pode não ser isso que sugeri, pode<br />

ser banal, qualquer caso de deformação da vida, qualquer<br />

fenômeno teratológico da moral, que abata e deprima as<br />

iluminuras e ilusionismos da frase, os caprichosos<br />

floreios estéticos que agora faço.<br />

Deixemo-lo estar nessa impressionante mudez de<br />

Esfinge. De tal forma valerá mais para a nossa análise,<br />

para o consolo do rebuscamento de singularidade que<br />

perscrutamos em redor do mundo, que se lhe<br />

penetrarmos na verdade fundamental da concepção e<br />

do estilo.<br />

Assim, essa Esfinge vale astros e flores.<br />

Rasgando o mistério que para nós ambos, num<br />

momento dado da investigação, a celebrizou, talvez<br />

apenas valesse areia ou lama.<br />

Vivamos, pois, na excepcionalidade virginal,<br />

etereal do espírito. Não desçamos à bruta crueza<br />

flagrante da matéria...


170 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ÉCLOGA<br />

À hora do sol, por estes tranqüilos sítios afastados,<br />

goza-se os montes vestidos de um polvilhamento de ouro;<br />

as perspectivas deliciosas na matinal e ruidosa expansão<br />

da luz; estes luxos bizarros e tons quentes de estio,<br />

onde parece que Sátiros lascivos vão trepando e saltando<br />

pelas escarpas calcárias e pelos socalcos pedregosos,<br />

entre o verde lustroso e denso da folhagem da mata e os<br />

encachoeirados, tormentosos rios.<br />

Galharda natureza esta, de manhã, cheirosa e<br />

sadia, em que o jorro da vida vertiginosamente entra e<br />

circula pelos pulmões em ar e aroma, dando uma<br />

fremente e forte sonoridade aos órgãos humanos, como<br />

vibrante clarim de batalha que nos soprasse<br />

metalicamente ao peito, enchendo-o de ecos, de alvoroço,<br />

de música e rumores.<br />

Por aqui estende-se, amplia-se, alarga-se por aqui<br />

o céu verde das copadas ramagens das árvores — e nada<br />

mais idílico e bucólico, nada mais virgiliano e pastoril<br />

do que estes aspectos sagrados, quase bíblicos, onde a<br />

écloga rebenta de cada tufo perfumoso de rosas, de cada<br />

serpente elétrica de hera, de cada pâmpano báquico de<br />

vinha, de cada ramo salitroso de murta e de cada concha<br />

rosada e branca nas finas e claras praias, além, onde o<br />

mar espumeja doce, parecendo trazer, no fluxo e refluxo<br />

das suas ondas cantantes, a olímpica e serena<br />

recordação da mocidade e da formosura da Grécia,<br />

ritmada em flóreas canções de Afroditas engrinalda das<br />

de algas...<br />

Montes e vales, vales e montes, faz bem percorrer<br />

aqui estes religiosos recantos, estes saudosos retiros<br />

onde parece que o passado, que tudo o que está longe,<br />

que tudo o que está remoto, ilusões e eras, tudo aí se<br />

veio refugiar e vive um momento agora da nossa<br />

presença, da nossa alacridade, do nosso humor, que nós<br />

nababescamente derramamos por todas as paisagens,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 171<br />

entre estes pássaros que cantam e voam, purificandose<br />

no Azul, como os palpitantes pássaros alados do<br />

inquieto, do vertiginoso Espírito.<br />

Encantaria ser pastor, para galgar esses penhascos<br />

solenes, para subir essas alcantiladas serras e ver<br />

borbotar delas a água fresca em finos e prateados fofos<br />

vaporosos de espuma, abundante, em turbilhões<br />

impulsivos porejando virgem das origens recônditas, como<br />

grande força represa, insubmissa e elementar da<br />

Natureza, rebentando e surgindo das profundas<br />

entranhas rijas da terra e dominando, enchendo,<br />

avassalando a amplidão do ar.<br />

Encantaria ser pastor, para ir, cedo, na luz, campo<br />

em fora, peludo e florestal como Pã, no vigoroso esplendor<br />

de sangue da força de um touro novo, por entre a<br />

exuberante luxúria vegetal, apascentar os mansos<br />

rebanhos alvos de arminho das nostálgicas ovelhas, que<br />

balassem desoladamente, numa compunção evangélica;<br />

e conduzi-las após ao redil, já tarde, na roxa melancolia<br />

das tintas da noite – enquanto a lua, fluida e fria,<br />

nevasse as tenras culturas e subisse então infinitamente<br />

ao céu – e enquanto, à distância, longe, no ermo, uma<br />

leve e flutuante fita de voz se desenrolasse, esvoaçasse<br />

e perdesse ao longo e ao largo pelas quebradas, na mais<br />

harmoniosa e apaixonada cantiga!<br />

Ah! Roma antiga! Ah! Grécia! Ah! Paganismo!<br />

Quanto melhor não fora pecar na primitividade dos<br />

instintos e dos impulsos, alma espiritualizada no ideal<br />

abstrato, existência votada aos cultos soberanos da<br />

matéria e tendo para equilíbrio no requinte da calcinação<br />

do entendimento, o requinte da elaboração do sentir e<br />

do gozar – aberto em chamas no sangue, aberto em<br />

chamas nos nervos, aberto em chamas na carne – até<br />

ao supremo aniquilamento final, no qual a morte era<br />

como uma nova espécie transcendental de<br />

concupiscência e lascívia mais requintada ainda, por


172 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

isso que era original, desconhecida inteiramente para<br />

esses que a experimentavam.<br />

Antes nascer e morrer num leito de rosas, amando<br />

e gozando rosas, coroado de rosas, como um romano ou<br />

como um grego, no mais virtual e mítico paganismo, do<br />

que ter-te a ti, vida consciente e disciplinar, como a<br />

tremenda esfinge de pedra, colossal e terrível, sufocando,<br />

esmagando a seiva, o ímpeto, uma corrente de<br />

desregramento animal que há no fundo de todo o<br />

organismo, no fundo de todo o temperamento.<br />

E é por isso que dá um instintivo desejo de<br />

pastorear e que se sente uma emoção do mesmo modo<br />

instintiva quando essas imaculadas existências<br />

campestres, rudes mas angélicas e sãs na sua casta<br />

nudez de sentimentos, nos sulcam a alma como um<br />

clarão, a iluminam e a cobrem de esplendor,<br />

desdobrando-nos ante os olhos estupefatos, como<br />

opulentas, riquíssimas lhamas rutilosas de diamantes,<br />

as magnificências reais do mais profundo e germinal<br />

Amor!


IMPRESSÕES<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 173<br />

Através das verdejantes colinas do sul, a noite de<br />

São João tem a graça pitoresca de uma animada pintura,<br />

tornando vivo o clarão de amor das cousas adormecidas<br />

ou mortas nas recordações passadas.<br />

Ora é numa beira de praia, ora é num trecho de<br />

rua que se passam essas cenas de costumes, esses<br />

episódios característicos, cheios de um encanto virgem,<br />

que afagam a nossa memória.<br />

Desceu a noite já!<br />

E num luar de junho.<br />

As verduras, pulverizadas de luz, escorrendo prata<br />

líquida, numa crua irradiação branca, reluzem com a<br />

nitidez e brilho dos alvos flocos de neve.<br />

Para lá da terra firme, além de uma curta divisa<br />

de mar manso, navegável em canoas, num ponto em<br />

que os olhos distinguem claramente bem uma aragem<br />

fresca, leve, como um sopro musical de flauta campestre,<br />

afla nos canaviais viçosos que se agitam suavemente.<br />

Porém, na rua, umas vozes cantantes, cheias de<br />

mocidade e frescura, gritam alto, sonoras:<br />

– Olá, João, anda cá! Hoje é teu dia. Viva S. João!<br />

Viva S. João!<br />

E o João, um rapaz que passara assobiando, jovial,<br />

franco, na alegria da sua alma chã, entra numa venda,<br />

paga vinho – um vinho cor de topázio bebido entre a<br />

algazarra dos companheiros e os bruscos entusiasmos<br />

do taverneiro, que faz tinir as moedas, todo risonho, na<br />

gaveta do balcão.<br />

– E as canas, João, e as canas! – repetem as vozes.<br />

E o João paga de novo e de novo a algazarra cresce,<br />

os vivas, as aclamações, os prazeres acesos nas almas<br />

desses bons rapazes, como as bichas e os buscapés que<br />

eles soltam nos largos, por troça, em meio de muita<br />

gente reunida, dispersando e alvoroçando tudo, entre<br />

galhofas e risadas.


174 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Mas a noite de S. João dobra de encantos e de<br />

enlevos.<br />

Agora, fogueiras crepitantes estendem a sua<br />

ardente chama, loura e alegre, na frente das casas,<br />

dourando-as. Agora, a rapaziada, crianças saltam as<br />

fogueiras; velhos de cócoras ou sentados em redor<br />

contam uns aos outros histórias cabalísticas de bruxas<br />

e almas do outro mundo, e, aquecendo-se do frio da<br />

noite, esfregam confortavelmente as mãos, fazendo às<br />

vezes ressoar no claro ar sereno a nota cristalina de<br />

uma cantiga de ritmo simples, como motivo da festa,<br />

tremida e repinicada na voz, misteriosa e cheia de<br />

saudades amadas.<br />

Agora são as novenas nos lares – as velhas novenas<br />

que de tão longe vêm na religião, como ainda um doloroso<br />

soluço atormentado dessa fanática e sonâmbula Idade<br />

Média...<br />

Numa sala, ao centro de um altar armado em<br />

dossel, resplandecente de luzes, de alfaias, de jarras<br />

azuis e de flores, S. João Batista, com o seu rosto roliço<br />

e doce, destaca, sorrindo, de um quadro de moldura<br />

dourada, em estampa, do fundo de um nimbo cinzento,<br />

cabeleira crespa, faces coloridas, abraçado ao cordeiro<br />

manso, que olha para a gente com os seus olhos<br />

pequeninos, plenos de docilidade e de paz.<br />

E, depois da novena cantarolada numa lúgubre<br />

melopéia, a rapaziada cai na arrastação dos pés, e dança,<br />

gingando, com os voluptuosos requebros e bamboleios<br />

quentes da raça.<br />

No intervalo das danças, bebe-se Carlsberg e<br />

comem-se belos bom-bocados saborosos que cocegam<br />

aperitivamente o céu da boca, e as brancas ou rosadas<br />

cocadas, em forma de estrela, que lembram a Bahia, tal<br />

é o paladar do coco de que elas são feitas.<br />

No meio disso tira-se a sorte, numa espécie de<br />

consulta ao destino: para saber se morrerá cedo ou tarde,<br />

se casará, se terá este ou aquele desejo. Passatempo


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 175<br />

esse que dá às pessoas que nele tomam parte um<br />

contentamento e uma felicidade que iluminam as<br />

fisionomias, remoçando e fortalecendo a velhice e<br />

consolando de esperança a todos.<br />

No fim desse contratempo e das últimas<br />

contradanças de grandes e frenéticos galopes, todo o<br />

mundo volta para casa, tarde bastante, no frio silêncio<br />

hibernal da longa noite já sem lua, mas estrelada, de<br />

um amarelado tom esmaecido de madrugada cor de<br />

limão.<br />

Nem mais um só ruído notável do prazer se escuta<br />

na rua.<br />

Apenas, a essa alta hora, um ou outro foguete<br />

tardio, ao longe, aqui e ali, como esquecido elemento da<br />

festa ou indiferente conviva que chega tarde, estala e<br />

brilha no ar saudosamente.


176 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

CROQUI DUM EXCÊNTRICO<br />

Diante do nome deste Excêntrico, dum brilho<br />

feérico de fantasia, desenrolado aos meus olhos como<br />

tapeçaria de Beauvais, lembro nitidamente o remoto<br />

Oriente: a Turquia, a Arábia, a Pérsia – todos os povos<br />

muçulmanos, que têm a frouxidão dos nervos, a<br />

elasticidade de membros de raças decadentes, em todas<br />

as suas especiais funções fisiológicas e manifestações<br />

psíquicas.<br />

Principalmente a Pérsia lembra-me a indolência,<br />

a morbidez orgânica deste Excêntrico – a indolência que<br />

não constitui, no entanto, defeito fundamental, ausência<br />

de qualidades singulares de espírito, mas que antes<br />

representa uma maneira de ser na vida – muda abstração<br />

na qual o pensamento é um grande pássaro alado<br />

viajando nas mais altas regiões, inacessíveis à vontade<br />

da matéria.<br />

Com o seu ar fidalgo, que lhe dá, através dos finos<br />

vidros claros do pince-nez, as linhas e a distinção correta<br />

e douta de um sadio e forte estudante da Universidade<br />

de Bonn ou de Oxford, o Excêntrico parece viver apenas<br />

numa flirtation de idéias, numa despreocupação de touriste<br />

e num diletantismo fatigado de artista boulevardier, a<br />

quem as asperezas e arestosidades do meio<br />

emprestaram já as findas cores carregadas e pungentes<br />

do pessimismo – conquanto na transparência dessa<br />

despreocupação aparente, ele analise, perceba e sinta<br />

passar, como entre uma luz difusa, o corpo vivo dos<br />

positivos fenômenos naturais.<br />

Na verdade, esse amargo pessimismo que os<br />

artistas anglo-saxônios e eslavos beberam, como numa<br />

dorna onde se houvesse purificado num vinho negro o<br />

sentir e o dolorido pensar de várias gerações; esse<br />

pessimismo torturante por vezes nos livros de<br />

Schopenhauer e Hartmann, especialmente nessa<br />

transcendente Filosofia do Inconsciente, parece prendê-


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 177<br />

lo também ao ceticismo mórbido de Murger, de Nerval e<br />

Chatterton e de tantos outros artistas queimados pela<br />

flamejante chama interna de um desejo nunca realizado.<br />

Mas esse pessimismo, feito de germanismo e<br />

eslavismo, tênue, fluido, sutil, que entontece<br />

capciosamente, insensivelmente, como os glóbulos<br />

microscópicos do álcool que fica no fundo do copo de um<br />

russo envenenado pelo niilismo e pelo rum, esse<br />

pessimismo, se o Excêntrico o possui, não lhe tira, de<br />

resto, a bizarra, a garrida forma do espírito leve, fino, a<br />

iriante graça de abelha.<br />

É que ele, contudo, por entre a variabilidade do<br />

tempo, não perde as latentes atitudes nervosas do seu<br />

temperamento, acordando dessa persa indolência para<br />

gozar a Arte, para sentir e para amar a Arte.<br />

Num centro antagônico do desenvolvimento e<br />

fulgor do seu espírito estético, na aridez dos fatos, numa<br />

atmosfera onde um ar livre de ideal não circula no<br />

sangue, um sangue fremente, rico, não gorgoleja nas<br />

veias e as turgesce, o Excêntrico lembra um cáctus,<br />

uma rara flor nascida no gelo, alva na vastidão das<br />

fulgurantes neves, dando, entretanto, uma encantadora<br />

poesia serena de pitoresco e originalidade a toda a<br />

amplidão do terreno.<br />

Ou, então, para abrasileirar mais o símile<br />

comparativo, lembra também uma dessas simples<br />

parasitas brancas, flores pensativas e melancólicas que<br />

rebentam dentre pedras, florindo virginalmente para o<br />

azul, indiferentes à rigidez do granito...<br />

O seu estado de morbidez intelectual, que parece,<br />

por humorismo sombrio talvez, corresponder a um estado<br />

comatoso, é como a aparência de certos céus turvos,<br />

nebulosos, não obstante carregados do ouro flamante do<br />

sol e do intenso azul, que de repente aparece em nesgas,<br />

como um prenúncio de aurora, através de fuscos,<br />

floreosos pedaços de nuvens que se vão, lenta,<br />

demoradamente esgarçando... Depois, outras nuvens,


178 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

mais pesadas, mais densas, correm, como cortina de<br />

brumas, sobre esse ouro de sol e esse azul, voltando<br />

então tudo às primitivas névoas eternas.<br />

Alma êxul do Espaço, triste às vezes, decerto, mas<br />

dessa alta e excelsa tristeza e magoada nonchalance de<br />

velha águia real de cabeça pendida e parado vôo, como<br />

que adormecida, sonhando dolentemente a melancolia<br />

do Azul...<br />

Assim é, assim será para sempre esse meditativo<br />

Excêntrico!<br />

Névoa de emoções, debaixo da qual estão o sol e o<br />

azul de uma idéia, que se descobrem, bem poucas vezes,<br />

para determinadas observações delicadas sentirem;<br />

cinza fria de afetos debaixo da qual arde a radiante,<br />

rubra constelação de um anelar do espírito, cuja<br />

complexidade o entendimento comum dos homens não<br />

apreende nem percebe.<br />

Natureza calma, contemplativa, que a placidez das<br />

montanhas e os aspectos quietos, remansosos do campo<br />

pacificaram, ele se apura e delicia na nobre convivência,<br />

na grandeza mental dos livros, onde a espiritualidade e<br />

o esmalte da forma pedem a atenção dos sentidos<br />

civilizados.


A CASA<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 179<br />

Perto do mar, junto às velhas e carcomidas<br />

muralhas musgosas de uma antiga fortaleza, em redor<br />

da qual cresce a erva como a hera que alastra os pórticos<br />

de um solar em ruínas, há uma tosca vivenda dentro de<br />

um pequeno cercado de espinheiros e miúdas e coloridas<br />

rosas agrestes.<br />

Aí arborizações luxuriosamente sobem para o alto,<br />

numa alacridade de vivos tons de folhagem.<br />

Na rusticidade dessa vivenda, todas as tardes,<br />

numa ilha verde do Atlântico, eu vou gozar o incoercível<br />

sentimento humano do amor, olhando o mar sulcado de<br />

embarcações, calmo, brando de leite, como um luxuoso<br />

e pesado damasco azul, e olhando os ocasos<br />

incomparáveis do sol solene que mergulha num ouro<br />

infinito, através das montanhas.<br />

Para ali vou gozar o sentimento incoercível do<br />

amor, que emociona e exalta, faz nascerem e viverem<br />

em mim, desprenderem para longe o vôo, indefiníveis<br />

águias do pensamento.<br />

E eu não sei que fluidos serenos se exalam dos<br />

nossos corações e se encontram; que há em nós a mais<br />

harmoniosa simpatia congênere de sentimentos.<br />

A doçura lirial da palma de sua mão, quando eu a<br />

aperto nas minhas, passa-me inteiramente a sua alma<br />

em eflúvios, inteiramente, com a recôndita emoção<br />

afetiva de todo o seu ser e –, nesses instantes, seria<br />

pequeno o mar, tão grande, que lá está fulgurando e<br />

cantando diante dos nossos olhos, e o céu, lá em cima,<br />

amplo e azul, para conter tão intensa e consoladora<br />

ventura.<br />

Então, assim, só com ela, eu desejara bem<br />

estabelecer lar, fundar casa – não sobre alicerces de<br />

pedra e areia, mas sobre o alicerce profundo das nossas<br />

almas. Fazer da casa uma canção eterna, uma simples<br />

tenda de irmãos, arejada pela comunicativa e mútua


180 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

afinidade suave do afeto dos dois, e que cada um, na<br />

preciosa singeleza do gosto, firmasse a lei do viver, a lei<br />

de amar, a lei de ser feliz, deixando fluir, fortalecente e<br />

livre, o amor – como um fio d’água subindo e descendo<br />

montes, descendo e subindo vales, regando ervagens,<br />

fartando a sede à terra e fartando a sede aos que erram,<br />

sob sóis ardentes.<br />

No íntimo desse conforto, no supremo egoísmo<br />

desse sentimento, da vida exterior apenas eu gozaria as<br />

aves meigas e afagadoras, que voassem, d’asas abertas<br />

e ruflantes, espalmadas no espaço, arrulhando sobre o<br />

nosso amor; os navios que passassem, eretos, na ideal e<br />

fugidia correção dos mastros, velas brancas tufadas,<br />

quando o mar está rosetado das arestas do sol, picado<br />

de agulhetas de raios, como uma fulgurante tapeçaria<br />

chamalotada; o crescente da lua, frescura salutar,<br />

subindo, meigo, numa ternura de poma cheia e afagadora<br />

que aleita os eternos peregrinos e os sequiosos eternos,<br />

fria, silenciosa, na soturna paz da noite; as ridentes<br />

veigas que se estendem para os lados, além, verdes, em<br />

raros veludos, na planície infinita...<br />

Depois a morte aí me viria colher, aí seria para<br />

mim como uma leve mudança fácil de sonhos, a viagem<br />

para o abstrato ideal, transformação passageira, enfim,<br />

ascensão de vôo perdido no éter transluzente...<br />

Mas, acima dessa perspectiva que eu gozasse e<br />

sentisse em torno da existência, que o seu olhar sobre<br />

mim radiasse, fulgisse, resplandecesse, protetor e<br />

angélico, com o misticismo, a suavidade dos astros...<br />

Para isso, porém, bastaria, bastaria para isso, que<br />

essa recíproca afeição tivesse sempre o encanto, a<br />

limpidez e a graça original, a vegetal candidez de flores<br />

que se leva por uma doirada manhã de presente a<br />

alguém. Bastaria que uma música só fizesse o acordo<br />

de dois corações, como muitos aromas reunidos dão ao<br />

olfato uma só sensação. Não bastaria, certamente, sentir<br />

dentro de nós uma igual similitude de enlevos e de


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 181<br />

cuidados: seria preciso que ambos se percebessem, se<br />

completassem, se identificassem nessa similitude, como<br />

edificação moral em que cada um trabalhasse, conjunta<br />

e compreensivamente, para o outro. Seria mister viver<br />

numa absoluta homogeneidade de entendimentos e<br />

afetos – como as aves que pousam nas romãzeiras e nos<br />

pessegueiros em flor, têm, cada uma, todos os dias, a<br />

mesma homogeneidade inefável nas gorjeações e no<br />

vôo...<br />

Assim, a casa, dessa forma, bem fundada e perfeita<br />

ficaria; e, sol, harmonia e perfume, canções de amor e<br />

de mocidade subiriam alto no tempo, adoçando todas as<br />

coisas, pacificando a existência dos dois, como uma<br />

grande bênção e um grande perdão podem trazer messes<br />

de felicidade e misericórdia à consciência de muitos.<br />

Ao contrário disso, tudo terminaria enfim para<br />

ambos.<br />

A vegetação que ao redor daquelas regiões, fora<br />

das proximidades da vivenda, viça em arbustos rentes<br />

como em terras da Palestina, pareceria murchar,<br />

definhar, secar e acabar para sempre; e os ramos<br />

d’árvores, pela manhã enxameada de pássaros,<br />

perderiam toda a sonoridade dos trinados; e o mar,<br />

bucólico e épico, que tem às vezes o seu som profundo,<br />

as graves e harmoniosas imponências catedralescas de<br />

órgão, circunvolvendo em ondas toda essa habitação de<br />

amor, como uma ronda poderosa que guardasse raro e<br />

fabuloso tesouro escondido – o mar ficaria então<br />

semelhante a um surdo e cego a quem são indiferentes<br />

belezas virgens de paisagens, enroseirados trechos de<br />

colinas, madrugadas, auroras e noites estreladas,<br />

peregrinos cantos melodiosos de pássaros e trinados<br />

cantos matinais de raparigas do campo indo à fonte<br />

encher os cântaros d’água.<br />

Sem poder jamais fundar a casa, dirigir a casa,<br />

dar-lhe o claro, gradual desenvolvimento de um livro,<br />

tudo, afinal, em mim, esperanças e sonhos, de repente


182 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

se esvairia, como esses opulentos ocasos undiflavados,<br />

tintos de prata e sangue, que na turva neblina<br />

crepuscular das tardes esmaecem e morrem... E a alma<br />

alegre do meu ser, como uma fresca e fina flor de neve,<br />

definharia no Esquecimento e na Sombra; e na minha<br />

boca, como na boca dessa criatura amada, os sorrisos e<br />

os beijos morreriam logo, como plantas estioladas a que<br />

os fortes verões abrasadores crestaram fundo as<br />

entranhadas, enraizadas origens...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 183<br />

O SENHOR PRESIDENTE<br />

(Desterro)<br />

O senhor presidente vai chegar, vai chegar o<br />

senhor presidente.<br />

Por toda a parte da terra pacata e simples os<br />

senhores burocratas, os senhores políticos de ambas as<br />

parcialidades, e o povo murmuram: O senhor presidente<br />

vai chegar, vai chegar o senhor presidente.<br />

Boatos locais correm parelhas, vitoriam e<br />

martirizam, conforme o caso, desprestigiosos ou<br />

honrosos, a pessoa ignota do senhor presidente.<br />

Homens e mulheres, à maneira de necromantes,<br />

deitam pareceres, opiniões, como numa mesa de jogo se<br />

deitam cartas ao azar: será alto, gordo, baixo, magro;<br />

usará cavaignac, será louro, terá suíças, será moreno,<br />

ou usará simplesmente bigode, ou não terá barba<br />

nenhuma?<br />

Os provincianos não sabem. Calculam,<br />

estabelecem semelhanças, fazem paralelos, comparam<br />

o presidente fulano, o presidente sicrano, etc., e o nome<br />

do senhor presidente, que deve chegar no paquete do<br />

dia, desenrola-se de todas as bocas, flexivelmente,<br />

invariavelmente, dando impaciências e febrilidades à<br />

massa anônima que o quer ver já ao pé de si, saber-lhe<br />

os tics, como veste, se é bonito ou se é feio.<br />

Mas lá no fundo do horizonte plúmbeo destaca-se<br />

um vultinho, por ora sem forma, vago, indeciso e<br />

nebuloso, como uma bola negra.<br />

Porém, à proporção que os horizontes se<br />

desfumaçam e as montanhas somam saliências azuladas<br />

e contornadas, transparentizando-se então os variados<br />

aspectos das cousas em conseqüência da onda de luz<br />

matinal que agora ilumina e faz viver tudo, a bola negra<br />

avulta gradualmente, veste as conformações que lhe dá<br />

a luz da manhã caindo eterificada, diluída em prata no<br />

mar, destaca-se, afirma-se e, todos, algumas senhoras


184 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

e cavalheiros que assestam o binóculo para lá, e o povo,<br />

apinhado no cais, curioso e alvoroçado, exclamam: É o<br />

vapor, é o vapor; aí vêm o presidente, aí vêm o presidente.<br />

Que tal será, seu Barbosa, perguntam uns<br />

indivíduos, você que entende isso de política?!<br />

E o seu Barbosa, homenzinho hirto, franzino e<br />

magro, conhecido por muito engraçado, de boas chalaças<br />

e que estava placidamente a olhar o mar, volta os olhos<br />

para estes indivíduos, endireitando e puxando para cima,<br />

desafogando do pescoço o alto colarinho brilhante como<br />

não cabendo na honra e no orgulho da consulta que lhe<br />

fazem e da competência que lhe dão em assunto tão<br />

palpitante e melindroso, dizendo com importância:<br />

Homem, isto de presidentes médicos não é lá para que<br />

digamos. Todo o mundo bem sabe que ele é médico; ora,<br />

é muito capaz o nosso cidadão de quando a província<br />

precisar leis fazer-lhe receitas. Não aprovo um facultativo<br />

no governo da província.<br />

E o seu Barbosa, rindo, gingando com garbo e<br />

discretamente, para não perder a sua linha de sensatez,<br />

foi indo para outras rodas, inchado de bazófia, supondose<br />

imortalizado pela sua opinião.<br />

Então os tais indivíduos insuflados por aqueles<br />

argumentos, banais e atrabiliários, sem cor e sem<br />

retidão, deram-se mutuamente os pêsames de não<br />

haverem tido há mais tempo a idéia tão original e exata<br />

sobre o senhor presidente. Mas um som rasgado e<br />

metálico de cornetas ouve-se ao longe: é a guarda que<br />

vem fazer honras do estilo ao senhor presidente.<br />

Chega-se ao cais, ao mando do superior e aguarda<br />

as ordens, formada, porque o paquete aproxima-se já,<br />

entra no porto, fundeia entre baforadas alvas de fumo,<br />

apitando.<br />

E, do lado da capitania, do lado da polícia, da<br />

alfândega e do trapiche geral parte uma fila vileira e<br />

alegre de botes, de escaleres, repletos de gente, leves e<br />

alígeros como golfinhos, os escaleres com os seus toldos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 185<br />

brancos debruados de vermelho, os botes com as suas<br />

velas em verga, enfumadas, de bandeirolas e galhardetes<br />

no topo do mastro, aproando ao paquete, na alegria e no<br />

colorido brunido da manhã, às frescas aragens salutares<br />

que aflam do norte. Após a visita de bordo, o senhor<br />

presidente aparece no tombadilho, na doçura e na nitidez<br />

da paisagem marinha, novo como uma surpresa, de<br />

estatura regular e curta barba redonda e preta,<br />

parecendo feita a riscos de fusain, e pince-nez nos olhos<br />

profundos e graves. É abraçado e saudado no meio de<br />

muita palavra balofa com falta de S, S, cheia de<br />

perdigotos, de alguns senhores funcionários públicos que<br />

se atrapalham e coram. O senhor presidente toma então<br />

o escaler que lhe é destinado e embarca com os<br />

correligionários e algumas autoridades da terra.<br />

Logo que o senhor presidente se aproxima do<br />

trapiche, o povo murmurinha, sussurra, gesticula e olha<br />

vagamente, com uma interjeição pregada à cara: Qual<br />

daqueles será, vêm outros estranhos no escaler da<br />

polícia.<br />

Efetivamente com o senhor presidente vêm outras<br />

pessoas. Passageiros, amigos do senhor presidente<br />

talvez. Mas o povo está frenético; sentem a prurigem da<br />

ansiedade. Ah! dizem uns, há de ser aquele ali, à direi<br />

ta daquele sujeito baixo de pince-nez – aquele alto e louro,<br />

de chapéu de castor branco, fino sobretudo claro no braço.<br />

Sim! Sim! É esse naturalmente, é aquele mesmo,<br />

confirmam outros, logo se vê pela figura importante e<br />

pelos trajes.<br />

Mas o senhor presidente chegara ao cais, saltara<br />

já com os seus companheiros. E a curiosidade crescia,<br />

crescia como uma onda muito alta que avassala e alastra<br />

tudo.<br />

Porém a multidão se desiludira afinal a respeito<br />

do seu modo de ver sobre o qual era o senhor presidente;<br />

porque agora o senhor presidente é cumprimentado,<br />

apertando-lhe a mão, dizem-lhe coisas sepulcrais, tristes


186 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

de espírito: Cumprimentamos a V. Exª., felicitamos a<br />

província, etc..<br />

E o povo vê então que o sujeito de pince-nez e sem<br />

mais elegantes maneiras de toillette é que é o senhor<br />

presidente.<br />

Já daí nasce uma dúvida sobre o governamento<br />

que ele poderia dar à província.<br />

No entanto o senhor presidente com o seu amplo<br />

olhar de médico conhece de um só golpe de vista qual a<br />

doença étnica desse povo e qual o diagnóstico a fazerse.<br />

Os soldados que aguardam a presença do senhor<br />

presidente fazem sentido, braço armas, apresentar<br />

armas, enquanto o senhor presidente passa, baixo e<br />

moreno, enxergando através do seu pince-nez de vidro<br />

claro, como de uma larga vitrina aberta ao sol, todas as<br />

aspirações e necessidades da terra.<br />

O senhor presidente é transcendentalista. O seu<br />

espírito latino, incomensural e vasto como o mar donde<br />

acaba de vir, tem a larga solenidade austera das<br />

catedrais babilônicas do mundo. No cérebro do senhor<br />

presidente cabem todas as grandezas e todas as elevadas<br />

nobrezas mentais. Nunca a terra tivera um homem na<br />

gerência dos seus negócios tão transcendentalmente<br />

ilustre e preclaro.<br />

O franco ar iluminado que vinha de sua erudição,<br />

da sua serenidade anglo-saxônia, fazia impressão rude<br />

e brusca nos patriotas, nos dissidentes de pequena<br />

política, a ponto de tomarem o senhor presidente por<br />

selvagem.<br />

A imaginação popular pensou jamais poder<br />

compreender o senhor presidente; se atordoava e<br />

entontecia como sujeito que leva à noite numa esquina<br />

forte pedrada na cabeça sem saber de que lado partiu.<br />

E o senhor presidente vivia num modesto luxo<br />

burguês e clássico de palácio de província, numa vida<br />

de fábula como um deus fantástico cuja ausência


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 187<br />

provocava ateísmos e anátemas, exorcismos puros, mas<br />

cuja presença acabrunhava e desarmava a todos, tal<br />

era o respeito que lhe vinha debaixo do pince-nez dos<br />

seus tranqüilos olhos de filósofo, como um poderoso e<br />

desconhecido fluido do magnetismo animal que, sem<br />

saber como, tendo sobre o povo as mais inabaláveis e<br />

prontas influências, imobilizava-o, transformava-o em<br />

mudo e automático eunuco.


188 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

O SENHOR SECRETÁRIO<br />

O senhor secretário está sentado à mesa do<br />

trabalho e faz os papéis do seu mister oficial com uma<br />

letra espichada e magra, como pernas de inseto.<br />

O senhor secretário também é magro, de uma<br />

magreza natural e estética, tendo o rosto, como um<br />

pergaminho, estrelado de miudinhos sinais de sarda.<br />

O senhor secretário veste com certa elegância<br />

que, num golpe de vista rápido, não parece de todo<br />

provinciana.<br />

Há mesmo um discreto tic de parisianismo na forma<br />

do seu chapéu em forro, verde-garrafão, um tanto<br />

afunilado, armado em cone, de abas quase direitas,<br />

colocado em cima de uma estante em que há jornais<br />

velhos.<br />

O senhor secretário está na sua juventude valente<br />

e florida e tem um enamorado jeitinho patrício; diz-se<br />

até que ele vive na flirtation das belas jovens de cuja<br />

sociedade faz parte; e, como na sua linda cabeça<br />

meridional há uma provável calvície e o senhor secretário<br />

quer parecer sempre bem às mulheres, deixa cair para<br />

a testa, desde a nuca, uma grande pasta castanha<br />

perfumada a Orisa e a Ilan-Ilang.<br />

Traz ao pescoço, à maneira dos rio-grandenses,<br />

um fourlard a listas estreitas e de cores variadas que<br />

parecem significar os tons cambiantes do ideal que o<br />

senhor secretário abraça.<br />

De vez em quando pára de escrever, e abre, com<br />

uma espátula de marfim, as folhas de um livro de tipo<br />

elzeviriano, impresso em papel melado, com filetes e<br />

delicadas bordaduras na fina capa de granito e apenas<br />

com dois frisos dourados na lombada.<br />

São versos.<br />

Depois abre a gaveta de verniz rosé da sua<br />

secretária e tira de lá um outro livro, volumoso, mas<br />

não de tão elegante luxo de arte como o primeiro. Folheia-


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 189<br />

o. Lê uma passagem, alto, para uma pessoa que está à<br />

sua direita.<br />

É O Primo Basílio.<br />

Oh! o senhor secretário é literato?! Parece que<br />

sim...<br />

Ele tem um precioso paladar estético, muito celta,<br />

e goza então a delícia de ler o Eça.<br />

Esse artista incomparável tem para o senhor<br />

secretário a alta importância, quase cultual, de uma<br />

adoração.<br />

O severo estilo impecável do Primo Basílio dá ao<br />

senhor secretário uma grande vitalidade mental, ampla,<br />

larga, que o inunda de sol.<br />

Nunca esse livro admirável sai das burocráticas<br />

mãos do senhor secretário, tão amado e contemplado é<br />

ele.<br />

Os trechos mais delicados, os tipos mais<br />

característicos, as descrições mais fotográficas, de mais<br />

pompa e esplendoroso vigor de estilo passam e tornam a<br />

passar na retina psíquica do senhor secretário,<br />

intermitentemente, como vistas vivas e brilhantes de<br />

um gigantesco Caleidoscópio.<br />

A paisagem da Escócia, vivendo fundo no livro; o<br />

Visconde Reinaldo, esquelético e finamente elegante e<br />

crevé, murmuram e vivem nas idéias do senhor secretário<br />

numa forte chama sideral de astro.<br />

Ah! que suntuoso e que nobre, ser-se o senhor<br />

secretário.<br />

Na verdade há um límpido ar de conforto na<br />

repartição em que ele está! Um ar fresco e lavado de<br />

marinha, de capitania do porto.<br />

Deve bem ser agradável, sem dúvida, fruir ali,<br />

desde as 10 horas, o expediente encerrado às 3.<br />

Que o mesmo senhor secretário, na atmosfera<br />

clara da arejada sala verde, rodeado de cartas<br />

geográficas, de tabelas de sinais, fazendo a escrita com<br />

uma bela tinta azul muito fluida, sobre o vistoso e polido


190 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

papel oficial com os troféus de armas da Nação, como<br />

um brasão nobiliário, e tendo a alegria touriste de viajar<br />

os olhos pelo mar que freme perto, o senhor secretário<br />

parece gozar um céu exclusivo, ter um paradisíaco Te<br />

Deum de felicidades.<br />

Quem o vê fazer soar cristalinamente o tímpano a<br />

fim de que se dê cumprimento a qualquer ordem superior,<br />

de que se expeça qualquer papel, tem-no por um pequeno<br />

príncipe gentil (porque o senhor secretário é de pequena<br />

estatura) coberto de opulência e cuja hierarquia o mundo<br />

constela de glórias supremas.<br />

Feliz, no entanto, sem essas apoteoses, o senhor<br />

secretário vive cantando e sorrindo à limpidez do seu<br />

espírito desabrochado e reflorido com a virgindade das<br />

rosas que abrem à beira-mar...


NICHO DE VIRGEM<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 191<br />

Loura, numa frescura de prados atravessados de<br />

luar, de madressilvais floridos ou, morena, tostada a<br />

pele virginal de fino fruto aromado, assim é que eu te<br />

vejo dentro do nicho da tua alcova, quando, no alto do<br />

teu claro palácio, uma janela me aparece iluminada na<br />

noite.<br />

Bem por vezes o firmamento suntuoso d’estrelas<br />

espalha no silêncio da natureza uma irradiação<br />

eucarística de sacrário e no meu ser viva chama de<br />

sideral emoção.<br />

E, bem por outras vezes, uma estrela só surge<br />

com um brilho aceso, coruscante, pelo firmamento<br />

tranqüilo, quando eu, amorosa e instintivamente, olho<br />

a janela do santuário em que tu às vezes na noite<br />

apareces como se olhasse a estrela em cima.<br />

E fico a meditar, languidamente, nos linhos, nas<br />

bretanhas e cambraias finas dessa alcova, nas painas<br />

alvas do teu leito, onde a tua vida de astro resplende na<br />

nudez da carne.<br />

Fico a meditar nessa serena beleza que brilha e<br />

canta na capela mística do Amor, num nicho de prata e<br />

esmeralda, com o esplendor das Virgens por entre ritmos<br />

e timbres diamantinos e verdes.<br />

Idealizo logo majestosos salões iluminados,<br />

ondulosas, vaporosas nuvens de valsas, amantes<br />

entrelaçados, num noivado de aves, por entre exalações<br />

de aromas voluptuosos, inebriando-te, fascinando-te em<br />

sonhos o cérebro delicado.<br />

Um véu tenuíssimo, como que tecido de névoas,<br />

pende-te candidamente da cabeça enflorada e radiante;<br />

tens suntuosidades e linhas harmoniosas de harpas e<br />

elances augustos, etéreos, idealidades soberbas e<br />

sonhadoras, de arcanjo, cujas níveas e transluzentes<br />

asas vão desprender vôos inefáveis, celestes; os teus<br />

olhos fulguram com tão incomparável fulgor e toda a tua


192 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

formosura desfere uma luz tão original, tão imaculada,<br />

tão nobre, que parece que as graças, os infinitos<br />

encantos, as eternas mocidades, só de dentro de ti, da<br />

tua carne, auroram.<br />

E, na penumbra fidalga do nicho onde repousas,<br />

entre lustres e candelabros, esse vulto valquiriano, essa<br />

sombra doce de balada, formada das espirais d’incenso<br />

do teu próprio sonho, se esvairá, se apagará, por fim,<br />

como o último cintilar da luz no cristal dos lustres e<br />

candelabros.<br />

E aí ficarás, só e dolente, fechada na treva da tua<br />

alcova, no cárcere de chumbo do sono, com as curiosas<br />

seduções e os eletrismos atraentes de veludosa serpente<br />

de volúpia, à espera que o sol, esmaltando a alta e branca<br />

janela do teu palácio, venha pela manhã abrir-te os olhos<br />

no nicho das cambraias e das bretanhas; à espera que o<br />

sol, fabuloso dragão de asas consteladas, desprenda os<br />

seus vôos majestosos e rufle sonora e fulgentemente as<br />

asas sobre o teu corpo, surpreendendo-te a luxuosa<br />

florescência carnal e deixando escorrer das asas, sobre<br />

ela, como finos vinhos de ouro, cálidos e palpitantes,<br />

das estreladas Vindimas, o pólen claro e virgem das<br />

supremas fecundações – ó formosa e frívola Divindade<br />

que com os tentáculos magnéticos e fascinantes da Carne<br />

estrangulas o mundo...


AROMA<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 193<br />

Manhã clara, cristais de luz, que parecem ter<br />

finas vibrações de sonorosos clarins no ar...<br />

Uma dessas manhãs líricas, aromadas, de um azul<br />

apaixonado...<br />

Alta, loura, esguia, o perfil nervoso, destacado ao<br />

sol com a nitidez, a correção de gravura em aço, vêm<br />

subindo a areada alameda das violetas e jasmins, dos<br />

resedás e lilases de antigo parque famoso, na toilette<br />

fofa e fresca dos climas quentes, meio-dia em dezembro,<br />

à fulva irradiação do calor.<br />

De toda a sua estatura nova, lirial, exala-se<br />

brandamente um peregrino perfume, um aroma delicioso<br />

de campo enroseirado, quando o luar acorda as culturas.<br />

As madeixas caprichosas, lânguidas serpentes do<br />

sol, preguiçosamente se lhe abandonam, em carícias<br />

luminosas, sobre as aladas formas arcangélicas das<br />

espáduas de ouro, de marfim e rosa: o colo claro esplende<br />

na brancura macia de penugentos veludos,<br />

fascinantemente desnudado para o tépido enlaçamento<br />

dos braços, para o chamejante estrelejamento dos beijos.<br />

Toda a linha suave do seu perfil encanta, atrai os<br />

sentidos; enquanto o olfato penetrante, delicado, sutil,<br />

talvez por um requinte artístico de sensualidade, buscaa,<br />

procura-a, percorre-lhe o corpo todo, a rósea, áurea<br />

carne cheirosa, como infinidade de irrequietos e<br />

sequiosos faunos.<br />

E tudo o que dela vem, a emanação virginal dos<br />

seus seios e da sua boca, parece fecundar a luz de<br />

frescuras imaculadas, purificar o aroma das Cousas,<br />

inebriar o som.<br />

Como que o ar onde cintila a auréola resplandecente<br />

da sua formosura recende embalsamado do feno<br />

fresco dos prados, fica banhado em ambrosias, em nardos,<br />

mirras e sândalos orientais.


194 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Experimenta-se rara sensação esquisita, que<br />

dilata, tensibiliza os nervos, dá agudas vibratilidades,<br />

intensos espasmos de luxúria, quando o olfato mais a<br />

sente, mais se aproxima dela, tateando-a, tocando-a,<br />

absorvendo-a, como se o olfato só para ela palpitasse...<br />

Há um deslumbramento de gozo, quando a flor do<br />

decote lácteo do seio, entre os cetinosos rendados e os<br />

folhos luxuosos do corpete, um aroma impoluto de<br />

aristocráticas magnólias trescala, adocicado e morno.<br />

E há também o mesmo, ou maior deslumbramento<br />

ainda, quando, numa graça de ave, ela abre, rindo, a<br />

boca.<br />

Então, não só da boca, não só do seio, como de<br />

toda a aveludada alvura daquele ser, evola-se um eflúvio<br />

de forças virgens, a suprema beleza em auroras flavas<br />

aflora.<br />

Delgada, ágil, com histerismos de mulher felina,<br />

faz idealmente lembrar cinzelada ânfora d’incenso,<br />

marchetado turíbulo de prata, de onde, para o alto, alamse<br />

claros, alvos fumos puríssimos e sacros...<br />

E, sempre que o olfato iluminado, atilado sente,<br />

longe ou perto, o aroma casto, inalterável, da loura<br />

resplandecente, é como se ela, então, de repente<br />

vicejasse, florescesse na frescura cheirosa de suntuoso<br />

pomar de frutos e alvorecesse em rosas ou em flores<br />

níveas e afrodisíacas de Noivado, majestosamente nua,<br />

de dentro de um tálamo branco...


A MILIONÁRIA<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 195<br />

Todos os que te vêem passar, ou passeando o olhar<br />

através dos brancos luares tranqüilos, ou, pelas tardes<br />

de março, indo às pitorescas digressões costumadas e<br />

elegantes, a algum pic-nic de rapazes do tom no teu coupé<br />

ou na tua victoria puxada por vistosos e lindos cavalos do<br />

Cabo – os que te vêem passar exclamam a meia voz e<br />

com respeito, com solenidade:<br />

– Oh! como esta senhora é milionária!<br />

Na verdade, essas pessoas não mentem.<br />

O irradioso luxo das tuas toilettes de verão e de<br />

inverno, de um alto ar nobre e aristocrático, enchendo<br />

as ruas por onde passas de uma majestade principesca,<br />

lembra as fulgurantíssimas pompas orientais, perto das<br />

quais o sol parece triste e desmaiado, tal é a prodigiosa<br />

onda de luz, de perfume e encantamento que nelas faz<br />

explosão e ruído...<br />

E o teu formoso chalet, de altas janelas para os<br />

ares frescos, engrinaldado de rosas, de heras e<br />

madressilvas, com incrustações de marfim como os<br />

chalets chineses, cantante e alegre ao sol, como é<br />

artístico e raro!<br />

E o teu parque, o teu parque, largo e doce, de<br />

tanques cheios de pequenos peixes de prata e vermelhos,<br />

que pulam n’água estrelando-a de irradiações sulfúreas,<br />

de esquisitas aves de toda a parte do mundo, desde o<br />

pavão, que vêm da Ásia, colorido e ovante, até ao melro<br />

e o rouxinol da Europa e até aos sabiás da América do<br />

Sul, que cantam nas palmeiras; de árvores grandes e<br />

graves, viço que murmuram luxuriosos salmos de amor<br />

na sua folhagem rica e farta de seiva – o teu parque,<br />

milionária senhora, tem a placidez, a vasta serenidade<br />

do conforto das riquezas.<br />

Realmente, tu és milionária. Tem razão o povo.<br />

No entanto, entre essas qualidades possuis uma<br />

outra, que parece destoar do caráter geral da tua pompa.


196 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

És caridosa, muito caridosa, tão caridosa mesmo<br />

quanto és rica.<br />

Muitas vezes os teus sentimentos de mulher<br />

ilustre, preclara têm sido cantados em prosa e verso,<br />

em prosa seca e desalinhada e em verso ainda pior do<br />

que a prosa. E tu, sentindo no ouvido o velho tom clássico<br />

daquela frase banal que diz “Valha o desejo se não vale<br />

o canto”, lês os jornais, orgulhada e embevecida dos<br />

dizeres chics, encomiásticos, sentada na tua chaise-longue<br />

ou na tua conversadeira, na sala amarela de reposteiros<br />

também amarelos, cheia de bijouteries, de estatuetas de<br />

Saxe, de cristais de Sèvres, lembrando todo esse requinte<br />

e galanteria da arte de Luís XV e da Pompadour.<br />

E ficas vivamente enlevada, tocada de um eflúvio<br />

de grandeza e opulência bizarra, abandonada a mão<br />

fidalga e polposa, de transparentes unhas rosadas, sobre<br />

o regaço que treme debaixo do roupão claro e em tufos<br />

na frente, entremeados de fitas azuis e rendas.<br />

Não obstante, apesar do rumor e da luz que sai do<br />

teu ouro, me parece a mim, rica senhora, que tu não és<br />

caridosa. Pelo menos ia eu jurá-lo.<br />

E senão, vejamos. Prodigamente ofertas quantias<br />

aos clubes de dança, aos jockey-clubs, aos clubes de<br />

regatas, ao lírico, aos concertos, aos jornais de modas,<br />

a todo o mundanismo elegante das belas cidades de estilo<br />

e de elite. Mas tudo isso que fazes é com rubros cartazes<br />

de ostentação, é propalado com reclamos espetaculosos,<br />

a mise-en-scène mágica da tua vaidade.<br />

Mesmo os hospitais, as sociedades de utilidade<br />

pública que socorres com a tua bolsa, inesgotável e<br />

poderosa, não é por um simples impulso emocional,<br />

simpático, de uma risonha compreensividade, mas sim<br />

por um chiquismo, um certo aplomb oficial das naturezas<br />

criadas, desenvolvidas na atmosfera fácil da riqueza.<br />

Depois tu serias profunda e evangelicamente<br />

caridosa se eu próprio nada soubesse das tuas<br />

magnanimidades. E eu não tive ainda a suprema delícia


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 197<br />

de sonhar, ao menos acordado, que entras obscuramente<br />

numa casa onde há crianças famintas e maltrapilhas e<br />

aí deixas uma bolsa cheia de ouro, sem um sinal<br />

qualquer, sem os teus brasões, sem o traço azul da tua<br />

filiação genealógica de sangue, se é que és baronesa ou<br />

condessa.<br />

Porque tu só praticas a caridade pela apoteose<br />

gloriosa, triunfante do teu nome.<br />

E tanto é assim que, no dia seguinte a uma<br />

magnanimidade tua, toda a gente te vê nas ruas e nos<br />

bairros mais populosos da terra a mostrares a tua pessoa,<br />

moça e formosa, como uma vitrina se mostra, aos olhos<br />

ávidos e espantados do transeunte inexperiente das<br />

maravilhas do mundo, um originalíssimo brilhante negro.<br />

A caridade tem para ti a influência de um perfume<br />

raro e forte que, aspirado persistentemente, perturba e<br />

excita os nervos.<br />

É uma espécie de ópio ou de haschih árabe que te<br />

permite ter alucinações, deliciosas visões fantásticas e<br />

sonhar com cousas paradisíacas, com galgos e<br />

genuflexões de indivíduos de curvatura flexível e leve.<br />

E o que tu pareces sonhar vê-lo realizado pelos<br />

jornais, por pessoas que falam em ti com adoração, com<br />

respeito, quase com medo; pelos srs. deputados,<br />

ministros, conselheiros e toda uma ala luzida de<br />

titulares, que te tiram o chapéu a grandes e amplas<br />

barretadas adulatórias, todos eles refulgentes de triunfo,<br />

por terem ocasião de te saudar sempre e por serem os<br />

primeiros que aparecem nos teus chás cavalheirescos,<br />

pondo-te açúcar na preciosa xícara dourada aberta em<br />

preciosos lavores.


198 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

DE <strong>VOL</strong>TA AOS PRADOS<br />

Venho da paisagem.<br />

Acaba de me entrar um largo jorro de vida pelos<br />

pulmões.<br />

De andar todo o dia através searas e prados, entre<br />

giestas em flor, finas, frescas e fofas papoulas rubras,<br />

campos verdes e floridos de rosais, trago o aspecto um<br />

tanto rude e campônio, tenho a linha pitoresca e viril de<br />

um rural boy.<br />

A fim de me arejar do pó da cidade levei para a<br />

natureza virgem dos campos, de onde volto agora, um<br />

livro espiritualizante.<br />

E nada mais encantador e sereno do que esse picnic<br />

de bom humor e de verve que eu acabo de fazer, sob<br />

as árvores, como um druida, debaixo de tetos verdes<br />

onde as aves cantam, sentindo, na frescura da seiva, os<br />

vegetais virem à carícia morna do sol.<br />

Nada mais de sentimentos nostálgicos, de vagos<br />

nevoeiros de spleen. O ar salubérrimo da paisagem,<br />

pondo-me nas carnes a elétrica sensação do sangue<br />

alvoroçado, despertou-me a intensa, a profunda, a<br />

complexa fibra sonora da Arte.<br />

Porque eu não sei de cascatas de ouro de lei, de<br />

portentosas riquezas nabábicas, de luxos asiáticos, os<br />

mais extravagantes e majestosos, que possam apagar<br />

na imaginação dos verdadeiros artistas as impressões<br />

que se recebe de uma bela prosa estilada, certa, onde a<br />

palavra esboça, desenha e cobre todos os variados e<br />

complicados assuntos da vida, como que fotografando a<br />

luz, o perfume, o movimento, a cor.<br />

Na natureza de cada objeto, na essência de cada<br />

ser há, nos livros que se propõem a mais alguma cousa<br />

do que divertir, e a agradar, mas a convencer, a<br />

impressionar, a comover pela psicologia e a análise, uma<br />

resplandecente verdade que ilumina de um largo clarão<br />

de filosofia a consciência do escritor.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 199<br />

Com nuances diversas, como fitas de fuzis, os<br />

livros acusam sempre a maneira literária, sugestiva de<br />

um temperamento, pondo-lhe à luz a excitabilidade<br />

nervosa das personalidades desenvolvidas num dado<br />

meio, amorosas, apaixonadas, tendo, para cada expansão<br />

da vida, além de um espírito seguro, impulsivo, uma<br />

qualidade de sentir, de ver, de assimilar, de discernir e<br />

de crer, a mais estética e delicada.<br />

Nós, que estamos cá para a América do Sul, pareceme<br />

que ainda não nos podemos compenetrar bem, com<br />

toda a profundidade e largueza, desses grandes<br />

sentimentos afetivos que, filtrados do cristal da alma,<br />

passam, na mais graciosa e límpida forma literária, para<br />

umas tantas páginas de livro.<br />

Porque é preciso fazer transplantar para a escrita<br />

aquilo que sentimos, com toda a expressão do colorido,<br />

com toda a gradação de tons, com toda a crua exposição<br />

do real – do mesmo modo e com a mesma intensidade<br />

com que o ar nos tonifica o sangue e nos dá movimento,<br />

ação, a todas as funções do organismo.<br />

Agora, porém, é que vem rompendo uma floração<br />

de talentos, artistas do Atlântico, mais complexos, mais<br />

dúcteis, com toda a delicadeza da expressão e o colorido<br />

de cinzelada forma – artistas preocupados da correção<br />

suprema, que num trecho de prosa fazem vibrar os seus<br />

nervos, palpitar a vigorosa força dos seus músculos,<br />

resplandecer a flamante aurora vertiginosa do seu<br />

sangue.<br />

Esses são os impressionistas, os coloristas, os<br />

estilistas, dando à escrita a intensa vibração dos órgãos<br />

humanos, fazendo da linguagem o mais prodigioso<br />

aparelho que, como um estranho instrumento de ouro,<br />

brilha nos nossos olhos, canta nos nossos ouvidos,<br />

impressiona e sensibiliza a nossa alma.<br />

Todo o processo literário depende, primeiro que<br />

tudo, das tendências, do caráter objetivo do escritor.


200 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

E, quem conseguir ter idéias gerais das cousas e<br />

souber dispor de elementos de observação e análise,<br />

será necessariamente um escritor, dentro dos limites<br />

do seu alto dever artístico, pintando a natureza como a<br />

natureza se apresenta, e dando a cada assunto, a cada<br />

particularidade a cor e o estilo que cada assunto e que<br />

cada particularidade pedir.<br />

Assim far-se-ão escritores e não máquinas<br />

reprodutivas de toda uma natureza morta, de todo um<br />

cliché de idéias por bitola, e isso para o bem, para a<br />

inteira perfeição da Arte.


INVESTIGAÇÃO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 201<br />

O que ela pensa de ti não é nada gentil e não é<br />

nada amável. Tu fazes versos. Ninguém sabe se os teus<br />

madrigais, se os teus idílios rimados nadam diluídos no<br />

éter ou servem de harmonia à garganta de algum<br />

pássaro. Ninguém sabe disso. Mas o certo é que tu fazes<br />

versos, lindos versos, sonoros versos musicais e<br />

frementes, que dizem toda a história do coração, todos<br />

os episódios da alma humana.<br />

O teu modo de vibrar as estrofes é natural e<br />

fluente, e exprime bem o estado do teu ser, penetra nos<br />

organismos, tem toda a comunicabilidade sutil e delicada<br />

como um excitante perfume.<br />

Incontestavelmente possuis algum oculto veio de<br />

sol no cérebro! Porque, na verdade, tudo isso, florescente<br />

e radiando, que te surge assim do pensamento, não pode<br />

vir apenas do sangue. É necessário um outro elemento<br />

mais poderoso e intenso para te inflamar, exaltar assim<br />

de poesia e esse elemento é, sem dúvida alguma, o sol...<br />

Contudo, isso, assim como num enxurro que as<br />

chuvas carregam para os rios vai muita coisa inútil e<br />

pode ir também muito brilhante e muita pérola, no jorro<br />

de luz da tua imaginação vem às vezes, como ironia<br />

aguda, muito morto elemento de verso fútil, que passa e<br />

que vai embora, ao mesmo tempo que se sucedem os<br />

mais heróicos e bravios leões da idéia...<br />

E é de forma tal o teu espírito, que o teu nome<br />

poderia constelar de glória qualquer página de história<br />

sem o mais tênue ridículo.<br />

No entanto, são bastantes todas essas qualidades<br />

para ela te aborrecer e preferir a ti o mais banal e ínfimo<br />

dos homens.<br />

É certo, porém, que tens obtido dela firmes provas<br />

de afeição: os anéis de cabelo, os mais sedosos e belos;<br />

os olhares, os mais apaixonados e ardentes; as frases,<br />

as mais convencedoras e amantes.


202 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Mas tu esqueceste que o coração ilude quase<br />

sempre, esqueceste o coração dela, não lhe perguntaste<br />

nada, não o dissecaste como a um querido cadáver,<br />

porque ai! o coração das nossas amadas é quase sempre<br />

um indiferente cadáver gelado.<br />

Nada indagando, enfim, do coração da tua morena<br />

ou da tua loura, deixaste-te ir boiando na embaladora<br />

onda dos seus beijos e das suas carícias, dormiste sobre<br />

essa onda, a sonhar, e acordaste nas aflições e nos<br />

desesperos do naufrágio...<br />

Oh! oh! dirás, este senhor escritor entra-me pela<br />

alma a dentro como se entrasse por uma sala deserta...<br />

É exato que ela me tem iludido algumas vezes, mas tão<br />

poucas vezes mesmo que até nem me dei ao trabalho de<br />

contar, nem valeria a pena fazê-lo...<br />

E esse senhor escritor te responderá: Não, não<br />

acertaste por esse lado. Se ela te tem enganado tão<br />

poucas vezes, que não te deste ao trabalho de contar,<br />

oh! dói-te de ti mesmo, errante louco do amor! porque<br />

se não consegues te enumerar todas as vezes que ela te<br />

iludiu, é que tantas, tantas foram elas, que o teu brio<br />

aparenta ou a tua consciência de forte se envergonha<br />

de o confessar...<br />

Esta é que parece ser a verdade tremenda,<br />

esmagadora, que te comprime e achata o cérebro. E se<br />

não crês, vejamos.<br />

Ontem ela viu-te passar, a “tua eternamente”,<br />

como ela mesmo te diz nas suas cartas. Tu não a viste.<br />

Ela estava à janela e, assim que te aproximaste, ocultouse.<br />

E por quê? Não te adora ela tanto?<br />

Mas é que tu te não lembras que vinhas com<br />

companheiros, amigos, rapazes como tu, e, entre eles<br />

todos, eras, não o mais feio, mais o mais pobre de toilette.<br />

As tuas botas tortas e rotas faziam-te escorregar<br />

na calçada, dando-te a aparência dúbia de bêbado. Tu<br />

não pisavas firme, não tinhas elegância como os outros,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 203<br />

e isso oh! perdoa, mas a tua amada não podia suportar<br />

nem desculpar sequer. Ah!<br />

Ah! doía-lhe mais isso na vaidade, certamente,<br />

do que se soubesse, nesse mesmo instante, que tinhas<br />

acabado de morrer.<br />

Parece-te demais isto, não? Pois escuta ainda.<br />

Hoje há um grande baile de luxo num clube da<br />

capital. Foram expedidos convites a toda a gente fina e<br />

ilustre. A ti ninguém julga ilustre; e se alguém te julga<br />

fino é apenas na magreza da luta pela vida que te enruga<br />

o semblante num brusco movimento de dor, quase numa<br />

picaresca momice. Mas, como tu andas pelos jornais,<br />

em espírito, e os senhores sócios do clube, supondo-te<br />

um imbecil, “contam com uma notícia floreada sobre a<br />

festa”, como eles dizem, tu alcanças o teu convite, bem<br />

certo de que ela irá, e simplesmente por causa dela.<br />

Para isso vais consultá-la. Ela diz-te que irá com<br />

certeza, sem se esquecer de te fazer sentir que vai por<br />

teu respeito, por valsar contigo, para estar perto de ti.<br />

E, não obstante os seus olhos dizerem o contrário, não<br />

obstante afirmarem que vai para ver os outros, para<br />

divertir-se, tu, com todo o teu poder de espírito e verve,<br />

ficas preso nas capciosas malhas dessa fidelidade de<br />

momento, mas em que tu absolutamente crês, e vais ao<br />

clube, alegre e triunfante, como os vencedores.<br />

Lá, ninguém sabe que tamanha nevrose<br />

experimentas, que ficas excitado, bebes demais, começas<br />

a tontear no solo das contradanças, não por causa das<br />

botas tortas, porque nesse dia tiveste o cuidado gentil<br />

de calçar um Milliés elegante, mas pelo álcool que te<br />

sobe então à cabeça em espessas e atordoantes névoas<br />

de vapor...<br />

De repente perdes o equilíbrio num galope e cais<br />

bruscamente no assoalho. Todos te cercam e dão-te<br />

socorros que o acidente requer; mas a “a tua amada<br />

para sempre”, essa, deixa-se ficar a um canto, no vão da<br />

sacada, pelo braço do cavalheiro, pálida e trêmula, é


204 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

verdade, mas do susto apenas, tendo logo o cuidado de<br />

dizer: – Que inconveniente! Quem o convidaria? Eu nem<br />

o conheço, é a primeira vez que o vejo.<br />

E tu, desfigurado, abatido depois de mais calmo o<br />

teu estado fatal, voltas para casa com uma agonia de<br />

despeito e de vergonha que te insufla de soturnos soluços<br />

abafados toda a concavidade do peito.<br />

E se isto não basta ainda, se te não convence, ora<br />

ouve lá então...<br />

No dia seguinte, tu, com o corpo mole e quebrado<br />

como se te houvessem esbordoado com chibatadas de<br />

junco, com o paladar azedo para tudo, deixaste-te ficar<br />

em casa e, incendiado por um ciúme que aplica tenazes<br />

em brasa nas carnes – profundo ciúme despedaçador<br />

nascido do ridículo que pusera em ti aquele fato, e dos<br />

indivíduos que ficaram ainda no clube a gozar a beleza<br />

da tua amada, tu lhe escreves umas linhas emocionadas,<br />

quentes, cheias de febre da paixão, desculpando-te o<br />

mais hábil e convencedoramente possível daquele<br />

incidente involuntário, dado apenas pela vertigem de<br />

adoração que ela te inspirou no clube.<br />

Porém ela, recebendo a carta, impassível e fria,<br />

não a abrirá, não a lerá, rasgando-a.<br />

E o portador, já teu conhecido, que leva a resposta<br />

e que viu, de olhos arregalados de espanto, a tua amada<br />

rasgar a carta na sua presença, tendo dó de ti, porque<br />

sabe o tormentoso amor que tu votas a ela, te há de<br />

dizer que ela leu a carta com desvanecimento, com<br />

interesse, à sua vista; e que acrescentou mais até que<br />

não escrevia já naquele momento por estar muito nervosa<br />

em conseqüência de um pobre, esfrangalhado e sujo,<br />

que lhe foi pedir esmola logo pela manhã, atrever-se a<br />

apertar, beijando-a, a sua mão delicada.<br />

Tu, então, vendo nisso a graciosa maneira de<br />

reatar uma afeição que parecia perdida, acreditarás no<br />

portador; e apesar de todos os teus grandes sentimentos,<br />

por ti mesmo apregoados, maldirás no íntimo esse


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 205<br />

miserável pobre que te impediu de receberes logo a<br />

desejada, a querida resposta da tua carta.<br />

E, assim, andarás, dessa amada para outra, ontem,<br />

hoje, amanhã, como em três pesadelos da vida, jogado<br />

para lá, para cá, como um corpo morto, no mar, ao embate<br />

das ondas entre recifes – sem quereres admitir que o<br />

que ela pensa de ti não é nada gentil e nem é nada<br />

amável; sem acreditares que tu és para ela nada mais<br />

nada menos que um pequeno cão bravio, que late e se<br />

arrepela às vezes, mas que serena, amansa logo, desde<br />

que o tacão ou a ponta de uma bota se levanta no ar<br />

ameaçadoramente.


206 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

PSICOSE<br />

Ritmos de cristais aristocráticos; harmonias<br />

veludosas de órgão; nostálgicos, neblinosos violinos;<br />

maravilhosas sonatas tudescas de um sonâmbulo luar;<br />

sons dispersos, inexpremíveis da Noite! está diante de<br />

vós o cruciante fantasma da minha Dor!<br />

Ele persegue-me eternamente, como um vigia que<br />

eu tivesse dentro de mim! E eu o sinto horrivelmente<br />

escancarar a boca, e rir, e rir, numa risada pungente,<br />

dilacerante, como a das figuras dantescas que o<br />

funambulesco Doré criou.<br />

É a comédia negra, a comédia das torturas<br />

psíquicas, que ri, porque a sua faculdade de chorar é<br />

rindo, nuns esgares bufos, numa ironia musical de<br />

Offenbach.<br />

Ah! são precisas lâmpadas de entendimento para<br />

descer aos ergástulos sombrios, lôbregos de certas almas,<br />

para ver-lhe o fundo tenebroso onde a Dor sempre cavou<br />

a fonte das lágrimas.<br />

Tudo o que essas almas manifestam para fora de<br />

si, são apenas efeitos, esmaltes de sol, que se apagam<br />

logo que a luz na altura se apaga.<br />

O que realmente existe lá dentro é uma densa<br />

poeira triste de desertos caminhados em desolação, onde<br />

a figura torva do tédio fica ao alto, num relevo de bronze,<br />

na eterna gravura do humorismo.<br />

Flor de luxo das civilizações requintadas, flor<br />

doente, o tédio espiritualiza-se, recebe a contextura da<br />

prosa, entra na concepção e no estilo.<br />

É como o personagem ideal, alegre e doloroso ao<br />

mesmo tempo, o personagem vermelho e negro, o<br />

Mefistófeles fantasioso que, sob as estrelas, sabe<br />

peregrinamente cantar, para que algumas almas<br />

solucem.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 207<br />

Olhando para dentro de certas naturezas nem<br />

sempre tudo é claro, de uma luz larga, ampla e vivamente<br />

palpitante como o mar ao sol.<br />

Há pontos obscuros, turvos, nebulosos, espécie de<br />

mundos de idéias ainda em gênese, em formação e que<br />

às vezes não chegam nunca a desenvolver-se.<br />

Aspectos vagos de chuva e sol, quando, entre a<br />

leve cintilação da luz, caem as neblinas, os nevoeiros, a<br />

chuva, apresentando à visão um brando tom<br />

impressionista de clarão e de sombra.<br />

Assim és tu, nobre natureza das idéias que eu<br />

amo!<br />

Tu te fortaleceste nos combates, te avigoraste e<br />

reuniste em ti a força, a alegria nova dos campos<br />

lavrados, quando os primeiros rebentos começam<br />

virginalmente a florir numa intensidade de verdura.<br />

Em ti natureza das idéias deu-se o mesmo que<br />

nos campos: a charrua era forte, o aço era fino e<br />

lampejante e poderia bem lavrar terras abundantes para<br />

que o veio original do espírito surgisse, viesse, raiasse a<br />

flor.<br />

Mas, ante essa força e alegria nova de campos,<br />

raramente deixa de perseguir-te, de avassalar-te, nobre<br />

natureza das idéias que eu amo! – esse duro tédio que,<br />

como a invasão de um budismo nirvanamente religioso,<br />

lança-me venenos letais nas veias.<br />

Em vão, em vão às vezes o meu sangue flameja,<br />

como uma aurora boreal de reação contra essa noite<br />

fria, glacial, apagada d’estrelas e rijamente cortada de<br />

uivos convulsivos de ventos epiléticos...


208 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

LUZ E TREVA<br />

Não sei que luz estranha ilumina os espíritos<br />

superiores; eles refletem cousas extraordinárias que os<br />

seres vulgares nem sequer percebem, cambiantes de<br />

mágico brilho, fulgurações de astros incendidos no céu<br />

através a bruma transparente distendida no espaço.<br />

Nessas imaginações esplêndidas, que parecem<br />

continuamente mergulhadas numa fosforescência<br />

translúcida, há incêndios de sóis, rendilhados jasperinos<br />

de espumas, colorações de astros e flores, diafaneidades<br />

de gozos indescritíveis; há risos de auroras, prantos de<br />

orvalho, rios de lágrimas, céus de alegrias, noites de<br />

tristezas, oceanos estrelados de amor, tempestades de<br />

ódio, eternidades de agonia; há envergaduras de heróis,<br />

reflexos de mulheres divinas, corpos aéreos de criaturas<br />

sobre humanas!...<br />

Há um mundo, uma natureza além das cousas<br />

terrestres superior a todas as cousas, em que vivem<br />

deuses fabulosos, arcanjos e sombras, que a vulgaridade<br />

não conhece.<br />

É a grande visão do imenso olhar do talento, que<br />

se debruça para dentro do próprio cérebro, que reverbera<br />

como um grande foco elétrico, deslumbrado, refletindo<br />

visões que pairam no pensamento, aureoladas e fúlgidas,<br />

como as cousas sublimes que o escritor transporta à<br />

tela incomparável dos seus quadros fantásticos,<br />

luminosos...<br />

Só os cérebros apagados não sabem ver assim; só<br />

os que não possuem o reflexo da luz suavíssima e<br />

aurifulgente das auroras do pensamento, só eles não<br />

podem ver, na cinza escura da sua esterilidade, as<br />

grandes telas esbatidas e enfeixadas de raios, estrelas,<br />

e sóis dentro de infinitos azulados e tranqüilos; é que<br />

na escuridão vazia e tenebrosa que eles têm em si, nada<br />

distinguem, nada compreendem, porque não lhes<br />

chameja a imaginação, essa peregrina centelha


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 209<br />

acendida no cérebro como um grande farol na<br />

imensidade, essa luz fertilizante que vê as cousas<br />

inauditas que nos deslumbram; é que eles têm dentro<br />

do crânio a maldição da treva a esterilizar-lhes a mente,<br />

a mergulhá-los na sombra implacável do vácuo e do nada!


210 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

<strong>VOL</strong>ÚPIA...<br />

A chuva cai lá fora, ininterrupta, em torrente fria...<br />

Uma tinta escura entenebrece o ar. Não se vê<br />

mais o sol. O grande sol flavo, original Fecundador, não<br />

surgiu hoje das nuvens, não raiou, com a sua prodigiosa<br />

luz.<br />

E a chuva, assim torrencial nesta manhã de<br />

outubro, dá-me um afrouxamento aos nervos, uma infinita<br />

lassidão, um torpor que voluptuosamente sensibiliza...<br />

Que continue a cair lá fora a chuva, morosa e<br />

nostálgica, nessa viuvez triste de melancolia, numa<br />

cadência, num lânguido ritmo.<br />

Não sei por que vaga, abstrata expressão dos<br />

horizontes, ao longe, das horas dormentes deste dia, eu<br />

amo fidalgamente a chuva que cai dos altos espaços.<br />

Quisera estar agora, na indolente filosofia de um<br />

faquir, com a luxúria e o luxo de um mandarim, numa<br />

larga sala de mármores brancos, ouvindo a sonoridade<br />

da água que desce das brumas e ouvindo músicas<br />

aristocráticas, sonatas convulsivas e dolentes e místicas<br />

de Beethoven, que me enlevassem, a pensar, a pensar,<br />

organizando com delicadeza e curiosidade idéias<br />

imaculadas.<br />

E que a chuva, fora, caísse, jorrasse, cantasse<br />

em amplos, largos, claros, frescos pátios sonoros<br />

ladrilhados de verdes mosaicos.<br />

Ou, então, quisera bem, numa igreja silenciosa,<br />

ouvir ao confessionário, como os sacerdotes católicos,<br />

as femininas almas amarguradas e virgens, que me<br />

dissessem, numa pureza de veio original, na linguagem<br />

de luz que só os astros devem cristalinamente possuir,<br />

os secretos dilaceramentos e ansiedades, as obscuras e<br />

inquietantes paixões que como áspides ardentes e<br />

caprichosas alvoroçam e mordem de nervosidades, de<br />

êxtases, nos paroxismos do delírio genital, as alvoradas<br />

brancas das Noivas adolescentes.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 211<br />

E, contemplativo, absorto, desejara, do meio de<br />

velhos e austeros palácios renanos, ouvir, sublimemente,<br />

comentar Schopenhauer, dentre um fundo meditativo<br />

de bruma germânica, sob retalhante, fuzilante humor a<br />

Heine; ou, senão, num evocativo transporte, ver passar,<br />

desfilar diante dos meus olhos, fagulhante e em pompa,<br />

empoada, numa esfuziante coquetterie e ostentação<br />

fabulosa, a brava Corte fascinante e faustosa de Luís<br />

Quinze, na linha dos ritmos donairosos, dentre os<br />

meneios fidalgos do minuete – cintilante colméia de sol,<br />

de onde se filtrou outrora o divino mel da graça e onde<br />

essa voluptuosa e luxuosa Pompadour tentadoramente<br />

reinou, esvoaçando, ágil, trêfega, com a sua volubilidade<br />

e favoritos encantos de grande e deslumbrante Abelha<br />

funesta e cor-de-rosa.<br />

Desse modo, então, tudo na minha imaginação<br />

ficaria deliciado, pelo esplendor e bizarra galanteria<br />

nobre das mulheres, como por esquisita essência<br />

finíssima de ambrosia, de formosura e sol.<br />

Assim concentrado, alheado de tudo, como que<br />

vagamente entontecido pelos vapores quiméricos do vinho<br />

alvo de um luar de Idealismos, ansiara infinitamente<br />

gozar todos os Grandes Amados, os curiosos<br />

sensibilizados do Pensamento e da Forma.<br />

Gozá-los nas suas vivas páginas evocativas,<br />

sagradamente, com emoção e paixão, incendiando-me<br />

nas suas chamas, perdendo-me nas suas lânguidas e<br />

extravagantes Arábias de Sonhos, subindo aos seus<br />

crepitantes delírios, às suas alucinações e crises<br />

nervosas que a mentalidade gera, mergulhando com<br />

intensidade, com profundidade, nas suas poderosas<br />

sensações.<br />

Assim, penetrado de emoções tocantes e<br />

luminosas, eu vivamente sentiria a alegria espiritual,<br />

voluptuosa, de viver e todo o meu ser viçaria logo numa<br />

triunfal beleza radiante de grandes rosas escarlates.


212 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Poderia a chuva insistentemente cair! Eu<br />

experimentaria, no religioso e cativante silêncio da<br />

minha reclusão mental, uma sensação íntima, preciosa,<br />

original, que me vibrasse, despertando a mais delicada<br />

sensibilidade nervosa, o frêmito, o alvoroço d’asas, os<br />

caprichos d’arrebatamento de vôo de pássaro selvagem,<br />

ao sol do mar largo, e o ressurgir inefável de certas<br />

sentimentalidades passadas...


A CARNE<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 213<br />

Para nós, que estamos sentindo, como numa<br />

grande calamidade de legenda, a carestia da carne, a<br />

sua fabulosa inópia, a visão da felicidade toma aspecto<br />

de bife de grelha, sangrento, alapardado numa porcelana<br />

de frisos doirados, entre as franjas louras das alfaces<br />

lavadas, macias, frescas, deliciosas...<br />

Adormece-se ao entorpecimento de um dia mal<br />

alimentado; tem-se sonhos terríveis de voracidades<br />

espantosas, entrevendo através de mil estiletes agudos<br />

de uma barreira de dificuldades, as pomposas polpas de<br />

carne rubra, fascinante como um sorriso de madona,<br />

sob a roupagem amarela e tênue da gordura fresca,<br />

oleosa...<br />

Mais além, na planície verdurosa e banhada de<br />

córregos múrmuros, a boiada ofegante, coleando na<br />

pastagem rica, mastigando e mugindo, como numa<br />

antecâmara de guilhotina, à espera da hora em que terá<br />

de entrar para o talho...<br />

São as visões cruciantes do caminheiro<br />

abandonado num deserto de areias, ressequido e estéril,<br />

a ver, na vigília causticante, no sono, as límpidas<br />

cascatas em borbotões espumarados, jorrando as massas<br />

líquidas, irisadas, de um pedregal entre selvas,<br />

marulhado de ondas e bafejado de coruscantes brisas,<br />

por uma fresca e iluminada manhã outonal, do sul.<br />

Mas como num acordar de sonho, alquebrados,<br />

famintos e triturantes, ao volver os olhos à realidade,<br />

eis-nos deparados com a lamentável e furibunda inópia:<br />

a dessa farta iguaria que os deuses chamariam o seu<br />

manjar, em terras da América, mais ricas do que os<br />

campos da Austrália. E uma grande tristeza, alastrada<br />

de lágrimas, em nossos olhos rasos se desenha, como<br />

numa noite de inverno, ao viandante friorento, em torno<br />

de uma fogueira apagada!


214 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

O que estamos sofrendo todos, na sequidão<br />

devorante dos apetites dilacerados pela ignomínia da<br />

carestia que nos tortura, é uma cousa inaudita,<br />

semelhante àquelas antigas calamidades bíblicas, dos<br />

tempos dos Faraós, pela penúria dos trigos.<br />

Pode-se dizer que o bife está transformando o<br />

caráter nacional. Já não se encontra quem tenha no<br />

rosto a expressão da alegria sã, com um sinal evidente<br />

de um povo repleto e farto; toda a gente nesta terra<br />

parece triste, por essa espécie de alta inopinada da carne<br />

que, mais avara de si mesma que a libra esterlina, ou<br />

não vêm aos mercados ou apodrece à porta dos açougues,<br />

mas não se deixa ir para a mesa de qualquer, se não a<br />

peso de ouro e destemperado como um acepipe alemão.<br />

O horror da fome já nos apunhala a alma; porque<br />

tudo que em nós não é fome é mágoa pela escassez do<br />

bife, pelo adelgaçamento da pança, pelas torturas das<br />

vísceras, que pedem beef!<br />

Daqui a mais alguns dias, se não abranda a<br />

carestia, seremos apenas isto – a fome!


OS FELIZES<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 215<br />

No bairro aristocrático duma aprazível cidade do<br />

sul da América, quem mora lá ou quem viaja para lá há<br />

de ver uma elegante habitação pitoresca, ao rés-do-chão,<br />

graciosa na rua arejada e larga, entrançada de heras e<br />

de roseiras que alastram pelas vidraças e pelos telhados,<br />

transformando-a num nicho de viçosa e tufada verdura.<br />

Nos lados que deitam saudavelmente para o mar<br />

erguem-se pombais, onde pombos alvadios, de peito<br />

oválico, entram e saem, numa revoada alegre, ruflando<br />

a branca plumagem das asas e ternamente arrulhando,<br />

como num tom de soluços, amorosas baladas que só eles<br />

conhecem.<br />

Uma habitação colocada num trecho fremente e<br />

confortador de paisagem, recebendo a frescura marinha<br />

das praias, o bom cheiro acre da maresia, bem certo é<br />

que parece um castelo feudal medievo, na Alemanha,<br />

entre árvores velhas e enevoadas. Só lhe falta a<br />

montanha alpestre e o rio azul fluindo e gorgolejando<br />

nas penedias.<br />

Mas, à falta do rio azul, tem a caprichosa morada<br />

um pequeno ribeiro que vai, a uns tantos passos de<br />

distância, em estrias de prata, gemente nas suas águas<br />

tranqüilas.<br />

Ah! aí nessa vivenda deve existir a felicidade!<br />

O casal que lá mora não pode ter mais conforto,<br />

mais bem-estar, melhor graça na vida.<br />

A mulher, ménagère alemã, ativa e prática no<br />

mister do seu ménage, virtuosa, fiel como poucas – um<br />

belo tipo de nobreza grega, esbelto, de uma plástica doce,<br />

linha direita de imperatriz da Áustria, formosa como se<br />

se tivesse gerado da luz.<br />

O marido, quase um lorde, satisfeito nas toilettes<br />

finas, muito sports-man, sempre num belo cavalo fogoso<br />

e claro d’espuma, de crinas cetinosas que o vento agita


216 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

e faz tremular nos galopes, ao sol, como delicadíssimos<br />

filamentos de astros.<br />

À noite, quer haja luar, quer não; quer a lua surja,<br />

redonda e glacial, quer haja apenas estrelas, a música<br />

consoladora soa ali, através dos stores verdes, em<br />

partituras alemãs, em scherzos e melancólicas sonatas.<br />

A orquestra que se escuta dentro é executada por um<br />

curioso terceto de instrumentos: é o piano, o violino e o<br />

violoncelo – almas apaixonadas que murmuram<br />

sonoramente todas as alegrias e amarguras das notas.<br />

Mas, ah! egoístas da felicidade!<br />

Esses pequenos concertos a négligé, feitos entre o<br />

chá da noite, sem diletantismo, são ocultos e<br />

misteriosos.<br />

O gentil casal fecha discretamente todas as portas<br />

da sua linda casa e encerra-se com a sua música dentro<br />

de uma sala, como Luís da Baviera e Wagner, sozinhos,<br />

dentro de suntuosos palácios reais.<br />

E, olhando de fora, através dos stores verdes,<br />

descidos nas janelas entre a luz também verde, coada<br />

da sala para a rua, os olhos e a alma, embevecidos,<br />

enlevados, extasiam-se diante daquela atmosfera de paz<br />

e de afetos, perfumosa e confortável, onde as harmonias,<br />

como uma água fresca muito fina que flui ou como<br />

prantos arrancados de cítaras saudosas, se evolam,<br />

sobem alto, muito alto, até onde a nossa fantasia não<br />

poderá voar jamais.<br />

Dá veementes desejos de amar, de abrir os braços,<br />

num êxtase, a um ideal qualquer, tal é o inefável ritmo<br />

penetrante de suavidade que sobe desse retiro sereno,<br />

banhado de um misticismo casto de sacrário, onde parece<br />

que devem viver e cantar as lendas nevoentas dos<br />

Niebelungen todas as almas virgens dos seres<br />

apaixonados, contemplativos e comovidos, sonhando<br />

quimeras no alvo regaço das suas valquírias de neve.<br />

Então, assim como essas provas irrefutáveis que<br />

a gente sente em redor de si, como que se afirma logo


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 217<br />

que há nesse casal uma duradoura felicidade de céu<br />

claro, firme, perfeita e eterna como a morte.<br />

Mas, entretanto, não vos assombreis, não duvideis<br />

um instante, ó iludidos felizes do mundo! se alguém vos<br />

for dizer que esse casal divorciou-se porque o alemão,<br />

num doloroso momento, encontrou a altiva ménagère<br />

entregue à pecadora lascívia de outro – daquele, talvez,<br />

que ele acreditara incapaz de inspirar afeto a quem quer<br />

que fosse, e de quem, por julgá-lo tão ignóbil e fútil, não<br />

se daria a honra de ter, ao menos, nem piedade, nem<br />

ódio, nem compaixão sequer.


218 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

NATAL<br />

À hora matinal das borboletas brancas e do lirial<br />

desabrochamento das rosas, cedo na luz, quando havia<br />

ainda uma espécie de oscilante névoa luminosa nos<br />

ares, dando uma translucidez aos aspectos e<br />

espiritualizando os longes – good morning! – salta fora do<br />

leito! Adeus atarracadas casarias tumulares da cidade,<br />

adeus ruas estreitas, encaminhadas e lôbregas como<br />

corredores de convento, adeus por um dia e vamos para<br />

o campo.<br />

A luz, duma finíssima e branca fulguração, dava<br />

vivas tonalidades de prata às perspectivas.<br />

Rios de prata sonora; verdes de paisagem com<br />

suavíssimas nuances de prata; curtos e coleados riachos<br />

de prata; colinas e montes polvilhados de uma leve<br />

rutilância de prata; e ao fundo, destacando na linha<br />

geral do campo, o mar, fúlgido, calmo, cinzelado num<br />

esmalte d’águas, como vasta e polida baixela de prata<br />

para dar de comer às nereidas e às náiades.<br />

Dentro e fora, na cidade, ficará em brilho o Natal.<br />

E as casas, numa radiante alacridade de<br />

primavera, como se o sol, à maneira de uma champagne<br />

de ouro, as tivesse alvoroçado e por elas se derramado<br />

em cascata; na garridice de presepes, de bibelots, de<br />

árvores luminosas e coloridas, garrulavam de risos, de<br />

alegria, de flores e vaporosos riachos espumantes à mesa<br />

do almoço e do jantar, nas comunicativas horas<br />

simpáticas do lar, quando em torno à querida mamã,<br />

morenas e louras crianças cor-de-rosa, de cheirosa<br />

carne macia, meigas e delicadas, para o fino pincel<br />

maneiroso de Lobrichon ou Geoffroy, são os mais<br />

encantadores frutos e as mais risonhas festas do Natal.<br />

E eu tive como presentes e festas a vastidão do<br />

campo, entre a natureza solene e as grandes árvores<br />

revestidas de folhagens como de ilusões, mais vigorosas<br />

e verdadeiras do que as simbólicas árvores do Natal,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 219<br />

porque naquelas corre a livre seiva impetuosa da força<br />

vegetativa que maravilhosamente desenvolve os troncos,<br />

faz infinitamente brotar a folha e o fruto.<br />

Indo para o campo, como um pagão, farto da<br />

materialidade da forma prática da vida em cidade –<br />

cidade fusca, pesada, cor de terra da Arábia – eu simples,<br />

banalmente não fui contemplar, mudo, num êxtase<br />

muçulmano de derviche, a natureza verde, rindo em<br />

tudo a luz, surpreendendo em tudo o aroma e cantando<br />

em tudo o colorido.<br />

Não fui para consultar os sombrios monges dos<br />

troncos, para que eles me revelassem toda a evolução<br />

do mundo, que é, nativamente, em essência, a genuína,<br />

a clara evolução do amor.<br />

Fui para que em todos os ninhos das árvores desse<br />

campo, tão conhecido e por mim gozado na infância, os<br />

mesmos bicos de aves implumes eu visse, como outrora,<br />

abertos e trêmulos de ansiedade à aproximação maternal<br />

dos alimentos, pipilando, balbuciando as notas que mais<br />

tarde haveriam de encher o espaço de harmoniosos sons<br />

alados.<br />

Fui para que esses ninhos, vazios agora de<br />

pássaros, eu os encontrasse, como corações<br />

desabrochando em sonhos, derramados na tenra verdura<br />

campestre das ramagens.<br />

As árvores, umas, figueiras e nogueiras,<br />

laranjeiras a que eu tanta vez subira e vira crivadas de<br />

gaturamos furta-cores, que ao sol tinham fugidios tons<br />

de arco-íris, são as mesmas de há bem vinte anos; e<br />

outras, viçosas e reluzentes de folhagem, numa<br />

exuberância de força, são desconhecidas para mim,<br />

novas e virginais habitantes que eu estranho ao<br />

enfrentar com elas, mas que entretanto adoro também<br />

porque continuam a viver na mesma amplidão fecunda<br />

do terreno onde a minha infância floriu, resplandeceu e<br />

cantou...


220 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Assim um coração que ama na vida uma só<br />

mulher, não é de todo indiferente às outras mulheres<br />

virgens e formosas, que desconhece, mas que no entanto<br />

o perfumam com a esvoaçante graça de um sorriso e o<br />

fascinante enlevo de uma sedução passageira.<br />

Os ninhos caíram dessas árvores amadas, se<br />

desfizeram, findaram. Emigraram já para longe os<br />

pássaros: chegou um dia a neve do tempo e enregeloulhes<br />

as asas.<br />

Morreram. Tal e qual o passado em mim, para<br />

sempre morreram.<br />

Apenas resta, em meio à nostalgia e desolação<br />

que me invadem, aquele imenso campo que me ensinou<br />

a sonhar e algumas árvores, já velhas, onde os ventos<br />

tantas canções e baladas desferiram.<br />

Contudo, a esses que pelo Natal recebem ricas e<br />

suntuosas festas em deliciosos presentes, e parecem<br />

ficar profundamente satisfeitos e gloriosos, a esses nem<br />

mesmo eu de leve me posso comparar agora – porque<br />

tenho nesta perfumosa e idolatrada recordação o mais<br />

carinhoso, o mais casto e consolador presente de festas<br />

que o Natal me poderia trazer à comovida e espiritual<br />

alegria.


EM <strong>JULHO</strong><br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 221<br />

Cantante ao sol e cantante azul impregnado de<br />

frescura, de aroma dos campos, sonoro de alegria e<br />

trinados de ave!<br />

Cantante sol e cantante azul de julho! Há agora<br />

na natureza um terrestre noivado de rosas brancas, nas<br />

manhãs frias, e um celeste noivado de estrelas brancas,<br />

pelas noites claras!<br />

A natureza flori agora em rosas; é tudo um vasto,<br />

opulento rosa!, como os rosais de Jerusalém, os rosais<br />

de Sião, numa pompa de rosas.<br />

Ritmos de amor afinam as almas numa só<br />

esperança e num só desejo e as almas buscam o tépido,<br />

carinhoso aconchego dos ninhos.<br />

Ardam, ardam, no grande esplendor das paixões<br />

fecundantes, os corações que se amam; palpitem,<br />

sensibilizadas, as fibras que se desejam, as carnes que<br />

se procuram, os organismos sãos, felizes e virgens que<br />

se completam.<br />

Julho aí está, doirado e frio, luminoso, para<br />

fecundar a aurora desses sangues frementes, desses<br />

sangues vivazes.<br />

Desflorem-se alvas grinaldas, esgarcem-se véus<br />

castos e, sob a púrpura ardente, sob a chama inflamada<br />

do luxurioso desejo, brote, surja mais tarde um<br />

demoninho louro ou moreno, que encha de encanto tudo,<br />

bulhento, garrulador de alacridante vivacidade de<br />

pássaro, vindo em festa, como este próprio julho.<br />

E que tu, belo astro nobre das salas, divinizado na<br />

formosura, alta e irradial, guardes ainda para mim, por<br />

este e por outros julhos, a mirra pura e real dos teus<br />

beijos, dentre a melancolia monástica, a dolência meiga<br />

dos teus olhos de monja.<br />

Guarda para mim, sempre, como infinita, indelével<br />

primavera, esses beijos imaculados, e eu, gloriosamente,<br />

das profundas catedrais iluminadas onde celebro o culto<br />

deste Ideal, farei brilhar, faiscar ao sol, sobre os polidos<br />

zimbórios elevados, a bandeira vermelha e a negra cruz<br />

do Amor!


222 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

SÍMBOLO<br />

Em norte américa, contam as crônicas, um terrível<br />

desastre ocorreu outrora nas costas da Virgínia.<br />

Sobrevindo ali tremenda e trovejante borrasca,<br />

como as que tragicamente abalam aquelas costas, deuse,<br />

além de imensos naufrágios no mar, da inundação<br />

da cidade de Norfolk, um dos mais destruidores e<br />

surpreendentes incêndios.<br />

No momento em que um trem expresso, repleto<br />

de viajantes, entrava nos campos de Dakota, uma faísca<br />

elétrica caiu sobre os campos, inflamando-os, acendendo<br />

neles um estranho, infernal esplendor dantesco.<br />

Era mister atravessar a zona incendiada; porém<br />

a zona era muito mais extensa do que na realidade se<br />

julgava.<br />

O trem, então, teve de parar, decidindo-se,<br />

fatalmente, que recuaria.<br />

Mas era muito tarde já.<br />

Para trás o incêndio ganhara os trilhos; para<br />

diante alastrava cada vez mais, devastador, horrível, em<br />

tentáculos de fogo.<br />

A morte, morte aflitiva, angustiosa, tornara-se,<br />

decerto, inevitável.<br />

Os viajantes, batidos, acossados de pânico, lívidos,<br />

ansiosos, como se acabassem de ser desenterrados vivos,<br />

apearam-se, como visões espectrais, na mudez sinistra<br />

dos pavores absolutos, tentando salvar-se, alcançar o<br />

ar, a frescura, a livre expansão dos pulmões quase<br />

asfixiados.<br />

Em vão! em vão!<br />

Todos os passageiros tiveram de voltar ao trem,<br />

queimados, com as roupas em desordem, numa confusão<br />

de derrota.<br />

Então, aí, o terror tornou-se indescritível.<br />

Homens e mulheres, num desespero, num<br />

dilaceramento profundo, atravessavam desgrenhados,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 223<br />

com aspecto selvagem, por entre o fumo que subia em<br />

grossos rolos, em novelos densos, empastados, como<br />

longas e largas, espessas telas negras suspensas no<br />

ar...<br />

Aquilo lembrava avalanche humana, delirante e<br />

enorme, quase louca, através de campos incendiados.<br />

Modelada em bronze, numa ampla gravura, essa<br />

palpitante tragédia daria ao genial Doré uma vasta página<br />

assombrosa, como aquelas em que ele pinta, a sangue,<br />

a treva e a sol, exércitos armipotentes, d’armas duras<br />

de aço, e báratros avérnicos, formidandos, onde arrojamse<br />

capros, peludos, cornóides e corpulentos satanases.<br />

Naquela assoberbante catástrofe de chamas<br />

tornava-se impossível respirar.<br />

Dentro, no trem, na vasta galeria dos vagões,<br />

silhouettes confusas de cabeças e braços moviam-se,<br />

agitavam-se agora, numa ânsia suprema na cruciante<br />

expressão dos enforcados.<br />

Um esforço de maravilhosa coragem, um<br />

verdadeiro prodígio de resolução, imediatamente, e talvez<br />

ficassem salvos!<br />

Essa coragem, essa resolução surgiu enfim,<br />

triunfal, na alegre, na rumorosa esperança, no poderoso<br />

sentimento instintivo da conservação da vida, como um<br />

fio d’água brotando, fluindo de repente da avidez de uma<br />

rocha e dessedentando bocas ardentes e ressequidas<br />

que andassem se quiosas, sob sóis tórridos, por torvos e<br />

escalvados desertos.<br />

Era forçoso caminhar adiante. Então, o maquinista<br />

deu todo o vapor à máquina.<br />

E durante alguns segundos o trem, colossal, como<br />

um formidável animal pré-histórico, atravessou, numa<br />

velocidade vertiginosa, elétrica, os campos de Dakota.<br />

Afinal, decorridos esses pungentes, torturantes<br />

segundos, o trem franqueou o círculo de fogo, ganhando<br />

o terreno livre até onde o incêndio não alastrara.


224 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Já era tempo, porque os vagões começavam a arder<br />

e os viajantes estavam desfalecidos de asfixia...<br />

* * * * * * * * * *<br />

Ó nervosa mulher glacial e satânica, Lésbia pálida<br />

e sarcástica, por quem, no entanto, clamo e procuro nas<br />

horas da concentração do silêncio!<br />

Como esse aterrador incêndio nos campos de<br />

Dakota, também um outro incêndio, mais funesto, mais<br />

impetuoso e mortal, absorveu-me, extinguiu-me<br />

dolorosamente o coração.<br />

Como um glorioso viajante, um deus original<br />

coroado de pâmpanos, ele embarcara um dia numa<br />

locomotiva iluminada, florida de rosas e doirada como<br />

as galeras de Cleópatra.<br />

Partira alegre e feliz, a rir e a cantar, na carreira<br />

vertiginosa da vida, às conquistas triunfais do Amor, indo<br />

afinal morrer por entre as chamas altas e deslumbrantes<br />

do Sonho.


O BATIZADO<br />

(Desterro)<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 225<br />

Ao fulgurante talento de Horácio de Carvalho<br />

2 a dedicatória: a Gonzaga Duque-Estrada<br />

Por uma manhã de aromas, cheia de rosas e ouro,<br />

em que voavam pombos em vôos triangulares ao alto dos<br />

beirais das casas, e os pássaros trinavam festivalmente<br />

nos arvoredos ramosos, um rancho alegre de lavradores<br />

descia, em caminho da igreja do sítio e no ruído vivaz de<br />

coloridas conversas risonhas e cantadas, a íngreme<br />

ladeira barrenta daqueles terrenos agrestes, mais para<br />

o lado em que o mar freme e se encrespa à chicotada<br />

brusca dos ventos, nas brancas praias caladas.<br />

Era um rancho em descanso e em festa, um tanto<br />

livre dos amanhos das terras e do longo mourejar dos<br />

dias passados, que levava a batizar um filho do seu amor,<br />

o gorducho pimpolho rosado das lavouras do seu coração,<br />

e que lá ia, sorrindo na ternura das delicadas carnes<br />

infantis, cheiroso, perfumado de trevo, contente e fresco<br />

como um rosal, de linda touca de fitas escarlates<br />

esvoaçantes na aragem, envolto numa toalha de<br />

trabalhadas rendas vistosas, sobre os orgulhosos braços<br />

polpudos da madrinha, rica rapariga de sol, radiante<br />

como um altar em Maio, florente como trigais.<br />

O dulçuroso encanto desta abençoada gente,<br />

passando ali, sob o raro calmo damasco do Azul, através<br />

de campos, dava à paisagem uma leve graça pitoresca<br />

de pintura aldeã pastoril, ou lembrava essa tão séria<br />

vida holandesa disciplinar e feliz de outrora, em que as<br />

pessoas, só com terem um fértil pedaço de pasto vivo e o<br />

bucolismo e o idílio de alguns bois amenizadamente a<br />

gozarem, ou a viçosa horta dentro da simpleza campestre<br />

de cerca dos verdes, eram, para todo o sempre,<br />

consoladamente ditosas e cristãs!


226 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Na margem dos caminhos alvoroçados do rumor e<br />

da alacridade vibrante da luz, em murmurosas fontes<br />

cristalinas, cujos finos veios de prata corriam<br />

nitidamente esfiados, rudes mulheres lavadeiras<br />

tagarelavam, batendo a roupa na pedra, com um estalo<br />

seco, à proporção que interminamente desenrolavam os<br />

picantes episódios de amor e as fundas desgraças negras<br />

daquele sítio, que se desfolhavam e sumiam na<br />

correnteza espumante e túrgida das águas.<br />

O rancho dos lavradores tomava agora por um<br />

comprido atalho, fazendo curva, coleando, até chegar a<br />

uma ampla várzea, onde, no tom alvo de uma visão de<br />

balada, ficava a igrejinha, muda e clara no dia, como<br />

um símbolo sereno de religião e de fé na crença e na<br />

primitiva paz vegetal da natureza.<br />

Subiam já, sorrindo e palrando, o curto adro da<br />

igreja e entravam na alegria comunicativa do ato que<br />

iam realizar – pura e cândida alegria essa! tão pura e<br />

tão cândida mesmo como a infância que forja no colo da<br />

madrinha, quase mais batizada também pela luz que a<br />

acariciava e doirava então do que pelas católicas águas<br />

lustrais que lhe deveriam apostolicamente banhar a<br />

virginal cabeça pequenina.<br />

À volta, após o batizado, na humildade rústica do<br />

lar, os chorados repinicados da viola, entre cantigas<br />

esfuziadas no rosto meigo da criança, aos padrinhos,<br />

aos pais, num tropear jubiloso e fremente, e num<br />

alentado e aberto gozo tranqüilo de felicidade obtida sem<br />

queixas, sem invejas, sem cuidados e sem remorsos, na<br />

pobreza casta e sagrada das suas almas chãs, ante a<br />

lembrança do Senhor do Bonfim e da cera que a Maricas<br />

prometera o ano passado para que aquele bem tão<br />

querido, agora alvorecido no mundo, nascesse e se<br />

batizasse e crescesse sem males, sem dores, são,<br />

saudável como os Campos que se andavam sachando e<br />

mondando por tantos verões amados.<br />

Não há nem doces nem vinho.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 227<br />

Tão somente, mais quase à noite, no meio dos<br />

sonoros guizos dos grilos melancolicamente nas folhagens<br />

mudas de sombra, os ocasos em chama, tão vermelhos<br />

como se houvessem passado nas nuvens uma enorme<br />

esponja grossa embebida e encharcada em sangue, são<br />

a acesa púrpura do vinho com que estas serenas gentes<br />

dos sítios apenas se confortam e aquecem, nas suas<br />

festas, dos frios invernos da vida.


228 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

DOENÇA PSÍQUICA<br />

Que mal vos fez a vida, ó serenos filósofos, para a<br />

encherdes do mais negro Pessimismo, como de uma<br />

treva soturna e dolorosa e de um rio de sangue<br />

eternamente caudaloso?!<br />

Para ti, Schopenhauer, a existência é a<br />

materialidade; o alimento, para ti, é apenas a<br />

necessidade de prevalecer na luta, a força para a função<br />

dos órgãos nervosos, a bem de que se propague a espécie;<br />

– enquanto que para outros, ó sombrios monges do<br />

Pensamento, o alimento é a lascívia, a luxúria da carne,<br />

que fazia, desde os romanos, a Carne viçosa e rica.<br />

Basta, para ti, que o estômago metodicamente<br />

funcione, na normalidade cronométrica de um relógio,<br />

a fim de que tenhas a positiva segurança de que subsiste<br />

aos vermes e à seca dissecação dos fenômenos da<br />

natureza.<br />

No entanto, para outros, o sentimento palatal<br />

educado, gozando o requinte das iguanas faustosas, de<br />

incomparáveis gourmandises, as vaporosas luminosidades<br />

de dourados vinhos, apenas, bastam para que<br />

os sonhos sejam felizes e o sorriso seja alegre.<br />

Para esses, os alimentos, como no Oriente o fumo,<br />

têm insubstituíveis encantos, voluptuosas graças de<br />

viver, que atilam, acendem a imaginação, fazem abrir e<br />

flamejar por todos os pontos do mundo, infinitamente,<br />

os mais inauditos sóis do espírito.<br />

Neles, a vida é um fluido, um alado perfume de<br />

úmidas bocas purpúreas de rosa, de níveos colos cor de<br />

camélia, de veludosos seios, macios como a alva<br />

plumagem fresca de um pássaro real; um amoroso ansiar<br />

de etéreos olhos de estrelas, atravessando em visão,<br />

claros e pesados de luz, com o brilho aceso e ardente de<br />

preciosas e raras pedrarias, a quase extinta noite remota<br />

das recordações.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 229<br />

Para ti, Schopenhauer, os seres orgânicos não têm<br />

senão o caráter essencial da concorrência vital e<br />

representam no mundo, funcionalmente, o mesmo valor<br />

dos elementos inorgânicos, químicos e físicos da terra.<br />

Assim, a pedra, o fogo, o ar, a água são tantas<br />

forças complexas da vida como o homem – ou labore pelo<br />

psiquismo, num século de livros, sob o complicado<br />

aparelho da ciência ou, simplesmente, ame, seja fator<br />

da evolução humana, dando a forma do Amor ao princípio<br />

genesíaco da sexualidade.<br />

Por isso, ó egrégio, magnificente filósofo alemão,<br />

eu, que no entanto sinto e percebo a tua radiante e<br />

clara verdade, que brilha e fere como as arestas agudas<br />

de um cristal – verdade aceita pelos homens sob a<br />

nebulosa denominação de Pessimismo – eu tenho tédio,<br />

profundo, supremo, e inesgotável tédio, vendo que a vida<br />

orgânica é toda ela adstrita à matéria, e que apenas,<br />

para ser feliz, nada mais é preciso do que ter a estrutura<br />

de um forte e belo animal, premunido de garras para o<br />

assalto, de dentes para devorar e com a regular<br />

circulação do sangue para o equilíbrio do coração e do<br />

cérebro.


230 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

POLICROMIA<br />

A Maurício Jubim<br />

Pintar a cor sangrenta da vida, a cor gelada da<br />

morte; dizer a dor dos tons, todo o cromatismo das tintas<br />

interpretar, à maneira nova, fresca, original, palpitante,<br />

de forma que os pincéis comuniquem com veemência<br />

uma alma à tela, que os coloridos vivam e cantem na<br />

trinalagem vibrante de pássaros matutinos.<br />

Exprimir as tonalidades quentes e possantes, os<br />

rubores humanos, o purpurejamento dos sangues, com<br />

tintas acres e com tintas delicadas, numa expressão<br />

forte de luxúria ou numa branda nuance de carne<br />

virginal e saudável, onde a aurora das seivas puras<br />

resplende.<br />

Pintar toda a pungência latente de uma Cabeça<br />

triunfante de vida, perfumada de graça, idealizada por<br />

algum sonho enevoado; dar-lhe, à feição da tua<br />

sensibilidade artística, linhas vagas, fugidias, linhas<br />

angélicas e pulcras, firme e fundo cavando-lhe a negro<br />

ou a louro a onda torrencial dos cabelos, dando-lhe luz<br />

estrelar aos olhos, sangrando-lhe álacre a massa tenra<br />

dos lábios, traçando-lhe a meia lua dos seios lácteos –<br />

gerando-a, enfim, com tintas dúcteis, de modo que a<br />

cabeça surja maravilhosamente da tela, te fascine, te<br />

deslumbre e tu a ames, como se ela possuísse o recôndito<br />

sentimento chamejante da Vida.<br />

E, assim, boca, olhos, cabelos, nariz, seios e faces<br />

pintar a claro, na limpidez d’ouro da luz, banhando a<br />

tela de luz, inundando-a de luz, descrevendo as curvas<br />

da primorosa cabeça com o pincel encharcado em sol,<br />

no clarão sideral de uma luz ampla, larga, alastrante...<br />

Com esse fulgor de execução, sem os empirismos<br />

clássicos, com toda a expansão da liberdade de sentir e<br />

de ver, de traçar, de apanhar os efeitos, de aparelhar as<br />

tintas, é que te fora prodigioso pintar, dum golpe altivo<br />

de concepção, fora da tacanhez dos moldes, já célebres


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 231<br />

embora, já afamados e já universais, mas por isso mesmo<br />

acadêmicos, arcaicos, sem o grito rubro das grandes<br />

revoltas, o clamor agudo das naturezas inquietas que<br />

lutam para significarem, à parte das confusões e leis<br />

preestabelecidas, a seleção das faculdades estéticas.<br />

Recluso do ideal, enclausurado, sombrio e mudo,<br />

alvoroça-te o desejo vertiginoso de pintar intenso, de<br />

pintar singular, numa virgindade de cores, com toda a<br />

escala do íris, com a gama variada do alvorecer e a<br />

indizível cor abstrata de tudo aquilo que te sensibiliza.<br />

Tons violáceos e espiritualizados de crepúsculos<br />

ou tons brancos de manhãs diáfanas, com sonoridade<br />

de trompa de caça, branca e fresca também na claridade<br />

matinal; sensações rasadas de carnes impolutas,<br />

cheirosas a flor de laranjeira e a leite, excitam-te a<br />

pintar miraculosamente, a distribuir na palheta tintas<br />

inexploradas e imortais e passá-las e filtrá-las para a<br />

tela, na execução da misteriosa Cabeça, a tua simbólica<br />

ansiedade mais viva, mais vibrante, através dessa<br />

fecunda e fremente paixão da Arte – sempre flamante,<br />

em labareda febril e alta, aberta na tua alma brava e<br />

branca como uma sagrada umbela rutilante e vermelha.<br />

Um movimento nervoso, um impulso decisivo e<br />

vitorioso do teu pincel imaginativo, donde as cores jorram<br />

como um turbilhonante enxame de colibris e de<br />

borboletas iriadas voejando e a Cabeça, em que meditas<br />

e te alagas sonhadoramente em contemplações,<br />

emergirá da tela, lavada em tons puros, nascida do cristal<br />

virgem da Originalidade, sem mácula e sem defeito,<br />

numa harmonia de toques deliciosos, imprevistos,<br />

vivendo nas tintas castas, viçosas e cintilantes que<br />

lembrem a irradiação do teu sangue primaveril, forte,<br />

sadio, latejando nas veias de ricos rubis de glóbulos<br />

abundantes.<br />

Fantasias finas, como silfos aéreos, te fecundarão<br />

a palheta com polens radiantes; e em torno a esse<br />

símbolo das tuas emoções, com que andas ainda


232 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

alimentando a imaginação, como um produto de<br />

idealizados requintes, visões em variadas formas de<br />

cabeças liriais circularão anelantes e vaporosas, leves<br />

nas infinitas brancuras do colorido inefável, floridas de<br />

peregrino encanto, consteladas por esse Amor dominante<br />

da Arte que tudo diviniza e transfigura, cada uma delas<br />

mais nobre, mais bela e mais maravilhosa, rindo, como<br />

ninfas na frescura açucenal de vergéis, dentre a<br />

vitalidade, a força juvenil, a impulsiva espontaneidade<br />

nervosa da coloração.<br />

Tintas alvas de lírios e de espumas para os cetins<br />

e veludos da epiderme; tintas fluidas e secretas para<br />

dar o deslumbramento aos olhos; tintas voluptuosas,<br />

purpurinadas, para a expressão fascinante da boca, para<br />

o inaudito e cristalino borbulhar do riso; tintas sutis,<br />

flexíveis, etéreas, para as curvas arredondadas da face,<br />

para as linhas cinzeladas do busto a Cabeça que idealizas<br />

tanto raiará, alvorecerá da tela – tão viva e virginal como<br />

a sensibilidade do teu temperamento inquieto, do teu<br />

ser errante de beduíno que vaga e cisma na planície<br />

oriental infinita.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 233<br />

FLOR SENTIMENTAL<br />

Prodigioso Sancta Sanctorum vedado aos Infiéis, ó<br />

mistério sutil da Sensibilidade, envolve-me nos<br />

delicados azuis, nas diluências de magnólias<br />

maceradas dos teus diáfanos luares, vibra-me os vagos<br />

e finos scherzos dos teus stradivarius amargurados...<br />

Ó flor sentimental, que te despojaste, na Morte,<br />

da carne maravilhosa, perfumadamente tecida de<br />

jasmins e lírios.<br />

Ó Flor sentimental, que os grandes e fervorosos<br />

beijos de uma paixão sacramentada, ungida nas<br />

profundas lágrimas, purificaram para sempre!<br />

Ó Flor sentimental que as imensas caudais de<br />

sangue das chagas do sofrimento, da dilaceração, da<br />

angústia martirizante, outrora tanto e tão intensamente<br />

orvalharam!<br />

Se é que te podes recompor ainda, ao menos uma<br />

vez em sonhos, das essências imaculadas do teu ser<br />

delicado, angélico, surge, aparece e vem trazer a esta<br />

existência que se debate, que anseia nos círculos<br />

titânicos das inquisitoriais inclemências, o segredo da<br />

crença, que tu levaste.<br />

Dos cibórios d’ouro dos Astros, vem, sidéreo, Sirius<br />

sagrado, Vésper clara, clara Vésper diamantina e<br />

matutina e traz-me essa hóstia magnolial e rara, lá dos<br />

altos cibórios d’ouro dos Astros...<br />

Se é verdade que agora reinas triunfalmente, por<br />

entre chamas de luz azul, nas serenas Espiritualidades<br />

celestes; se bem certo é, sidério Sirius Sagrado, clara,<br />

cândida Vésper diamantina e matutina, que te exilaste<br />

lá, cismativa, solitária, ó fria e fina Flor sentimental!,<br />

dentre as pálidas, lânguidas, mortas auréolas de luar<br />

da Eternidade, ressurge, vêm, flameja por esses níveos<br />

caminhos constelados, na tua meiga, terna harmonia


234 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

de claridade e saudade e nesse breve encanto alado do<br />

teu perfil de forma hasteal de letra siríaca.<br />

Traz contigo velhas recordações impalpáveis, doces<br />

e tépidos abraços da adolescência – a alegria aleluial de<br />

cânticos na frescura nova das primaveras louras, a flórea<br />

suavidade do oásis virgem e cor-de-rosa da Infância, todo<br />

esse incomparável Amor que tu levaste para além contigo.<br />

Ah! como eu vos recordo, Sombras, como eu vos<br />

lembro, Fantasmas, como eu vos evoco, Espectros, como<br />

eu me revolvo em ânsias, em palpitações, em êxatase,<br />

no infindável deserto das Noites sensibilizantes dessas<br />

agora tão longínquas e enregeladas reminiscências...<br />

Como eu me despenho, choroso, taciturno, só,<br />

absurdamente só, no silêncio e no esquecimento, negras,<br />

lôbregas e abismadoras galerias que vão dar aos<br />

subterrâneos da loucura, foragido dos flagelados<br />

clamores humanos, na desolação e empoeirado desalinho<br />

de derrotado ovante guerreiro de cem batalhas heróicas,<br />

pela primeira vez ferido e insolitamente vencido ou na<br />

melancolia decadente do ideólogo, imaginoso demônio<br />

inclementemente apedrejado de Anátemas!<br />

Ó tristeza dos momentos lívidos! Vácuos amargos<br />

desses longos, lentos poentes nublados, ciliciados de<br />

ansiedade, de aflitivas visões de dúvida, e onde o Espírito<br />

erra, ondula, flutua por entre névoas e surdinas...<br />

Sentimento indefinido, inquieto, insatisfeito, que<br />

turvas e agitas e convulsionas de tumultos a alma, num<br />

torvo, vendavalesco rodomoinho de ardente e atordoante<br />

simum!...<br />

Ó algidez fulminante, aterradora, mortal, de tudo<br />

o que finda, leve, vaporoso, vago, nas linhas sutis,<br />

fugidias, da infinita lembrança!<br />

Ó antiga velhice das Mágoas! Ó dor de esquecer!<br />

Ó dor de desesperar e descrer! Como toda essa música<br />

negra, toda essa mórbida sinfonia nervosa<br />

voluptuosamente me punge...


VELHO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 235<br />

Pelas infinitas estradas do tempo, a fora, ao sol,<br />

segue, mudo, soturnamente silencioso, esse frio deserto<br />

ambulante, a que alguns chamam Velho e outros<br />

chamam apenas Desilusão.<br />

Hirto, engelhado, com o seu alforje de peregrino,<br />

a sua rude veste de estamenha, o seu bordão de jornada,<br />

e os seus pés nus, caminha, o deserto frio – tão vago,<br />

tão tateante, tão verdadeiramente sombra, que dir-seia<br />

que é o vácuo, o intangível que caminha...<br />

Longas, profundas barbas brancas alvejam-lhe no<br />

rosto, dando-lhe um ar de austeridade profética,<br />

evocando as severas e legendárias figuras dos<br />

Patriarcados bíblicos.<br />

Na sua fronte vasta, sulcos imensos formam como<br />

que vias dolorosas por onde pensamentos amargos<br />

percorrem, lembranças angustiantes peregrinando<br />

passam...<br />

Certo, esse Velho, assim sugestivo e belo, viera<br />

dos Mitos, do fundo das odisséias gregas e ouvira d’alto<br />

cantar nos finos céus d’ouro da Hélade a alma augusta<br />

e mediterrânea de Homero, sentira as linhas doces da<br />

graça antiga e mergulhara sereno no seio branco e de<br />

rosas do Olimpo dos deuses priscos.<br />

Nenhum manto real o cobria, nenhum laurel o<br />

coroava – nada parecia revelar, tangivelmente, os seus<br />

troféus de onipotência.<br />

No entanto, pelos vestígios supremos, deixados não<br />

só nas rugas da sua face, não só na tristeza e<br />

contemplatividade ascética dos seus olhos e até nos<br />

caracteres abstratos da Angústia que lhe singularizava<br />

o aspecto, como também em todo o seu vulto fascinante,<br />

dominativo e grave, percebia-se o poder e a clarividência<br />

transcendental de um Predestinado, de um Inspirado,<br />

de um Deus, perfeito e sagrado Deus concebido da Dor,<br />

alimentado e envelhecido na Dor.


236 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Certo, era ele, o Poderoso da Dor, aquele a quem<br />

a Dor avassalara mas não vencera, a quem a Dor ungira<br />

mas não execrara nem banalizara.<br />

Maior, talvez um século maior com o contacto<br />

espiritualizante dos Sofrimentos, era efetivamente agora<br />

que ele existia, como a própria consubstanciação da Dor.<br />

Mas, nos abismos fundos dos seus olhos velados,<br />

amortalhados de saudade, vivos e vendo e parecendo,<br />

no entanto, cegos, um sonho impenetrável esvoaça muito<br />

de leve, e de muito leve surge, sai, em forma de silfo, de<br />

dentro dos olhos amortalhados do Velho e põe-se então<br />

a rondar, a rondar em torno dele, numa fascinação, com<br />

as suas asas diáfanas e fosforescentes de tentador<br />

demônio...<br />

E o Velho, subitamente deslumbrado pela<br />

fosforescência das asas, das asas diáfanas de silfo, tem<br />

estremecimentos convulsivos; e a sua face, então, toma<br />

a expressão singularíssima, de tal modo fica nesse<br />

momento transfigurada, que até como que se lhe<br />

aprofundam, que se lhe cavam mais as rugas...<br />

Também logo, com a rapidez própria dos sonhos, a<br />

fosforescente Visão desaparece... E o Velho, taciturno e<br />

trágico, parecendo concentrar em si toda a eloqüência<br />

simbólica do Eclesiastes, como que lança na terra a<br />

condenação suprema do Juízo Final, tendo, porém, na<br />

face agora imensamente lívida, duro ríctus sarcástico<br />

de ceticismo voltaireano...<br />

Mas, ah! quem poderia penetrar nos labirintos<br />

daquela existência; quem poderia saber os vergéis,<br />

campos, vales cheirosos, enflorados de Ilusão, onde essa<br />

alma viveu, floresceu e gozou; os pântanos esverdeados,<br />

de concupiscência animal ou de tédio desesperado, onde<br />

ela mergulhou vencida; as alvejantes e ermas<br />

encruzilhadas de caminhos onde a Imagem desolada dos<br />

seus Destinos errou, vagueou e gemeu exausta, fatigada,<br />

batida ao largo dos temporais atroantes e tremendos da<br />

Vida!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 237<br />

Todos que o viam passar, que lhe admiravam a<br />

enfibratura óssea, os filamentos nervosos das grandes<br />

rugas; que experimentavam a sensação quase de um<br />

pavor abstrato de respeito divino que a sua patriarca<br />

figura inspirava, pareciam inquiri-lo, fazer-lhe mil<br />

curiosas e significativas perguntas: – Se tinha já cem<br />

anos, que saudades, que recordações trouxera na alma,<br />

que pão fresco no alforje; que jornadas fizera, e se<br />

cansara muito, nas longas e pedregosas estradas áridas;<br />

se tivera fome através os pomposos banquetes à Luculo<br />

das altas cidades; se tivera frio sob as cruas neves<br />

inclementes e fulgurantes; se sentira sede d’água, mas<br />

só sede d’água!, por tórridos e languescentes calores,<br />

ou se sentira sede insaciável de desejos ante o pecado<br />

de uns olhos...<br />

Solenemente grande pela Dor, fazia lembrar, como<br />

sentimento de religiosidade que dele vinha, todas as<br />

magnificências do Elevado e do Sagrado.<br />

Parecia, então, que aquela incomparável amargura<br />

de Doloroso ganhava proporções de matéria inerte, se<br />

condensava, concretizava em blocos de granito e<br />

mármore; que aquela sublimidade de mistérios de<br />

secular Velhice tomava formas estáveis, solidificadas<br />

com raízes infinitas na Terra, de arquiteturas prodigiosas<br />

de catedrais, de igrejas góticas, de basílicas, de templos<br />

vetustos.<br />

E, pelo sentimento de divinização que ele<br />

inspirava, os olhos absortos, extasiados imaginosamente,<br />

viam que essa Dor ia se transmutando e avultando<br />

colossalmente como organismo físico, alargando,<br />

alargando, alargando para o espaço, na vastidão de um<br />

bojo enorme, arredondando pomposamente em cúpulas<br />

estreladas, em zimbórios de bronze, em torres<br />

formidáveis, crescendo, crescendo, ficando então<br />

monstruosamente de pé na amplidão alta, a majestade<br />

eterna da Basílica da Dor – ao mesmo tempo de<br />

venerações e sacrilégios, igualmente divina e profanada!


238 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Passados ermos, remotas antiguidades, eram<br />

extintas, recordando lentos, longos desânimos;<br />

ansiedades, desesperos, impaciências e saudades, eram<br />

como que a melancólica penumbra da imensa nave dessa<br />

Basílica.<br />

E as paixões atormentadas, os ímpetos lascivos,<br />

os desejos delirantes e em grita, as deprecações e<br />

blasfêmias, as raivas rugidoras, os ódios tempestuosos,<br />

eram então as vozes clamantes e plangentes dos<br />

violoncelos, no coro, e os profundos graves chorosos, de<br />

soluços pungentes e atormentados, dos órgãos e<br />

cantochão.<br />

Alvoroços másculos e sãos de juventude,<br />

heroísmos alegres e alados de esperança, bondade<br />

bizarra e florescente, galhardias, lhanezas afetivas,<br />

pensamentos límpidos, castos, de brancuras virgens,<br />

ternuras angelicais de sonho, eram, enfim, símbolos<br />

eucarísticos, pão e vinho claros de comunhões puras.<br />

Todo o espírito do Velho se afinava por esse acorde,<br />

a harmonia das grandes Intuições e Criações evangélicas<br />

o consagrava e santificava Deus – harmonia que se<br />

elevava para ele numa auréola de bênção elísia...<br />

* * * * * * * * * *<br />

A natureza, em redor, calma, repousada,<br />

tranqüila, penetrada dos sentimentos imponderáveis do<br />

Absoluto, ampliava-se numa expansibiidade de<br />

vegetações que pareciam quiméricas, numa concentrativa<br />

mudez de forças originais.<br />

Para os largos e longes do vasto e verde mar<br />

melancólico, alguns barcos singravam, dentre os<br />

espreguiçamentos voluptuosos da luz, no leve ritmo da<br />

graça banzeira de bamboleantes bailadeiras bailando...<br />

E a figura profética do Velho, com a alva cabeça<br />

nua, as longas barbas brancas ondulando aos ventos<br />

gementes, ia vivamente desenhada no fundo vago da


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 239<br />

luz, como a concepção extravagantemente soberana,<br />

grandiosa dos egrégios Desígnios, a caminho das<br />

jornadas eternas, pelas peregrinações perpétuas, pelas<br />

estradas sem termo, pelos indefiníveis desertos sem<br />

fim...<br />

* * * * * * * * * *<br />

Vai, Velho! Clarão frio, clarão morto! Tu que trazes<br />

contigo Agonias e Recordações seculares, sobe, sobe<br />

solitário, só, sinistramente só, a escalvada montanha<br />

erriçada de agudos cardos bravos, de ásperas ríspidas<br />

silvas, dos Fatalismos tremendos, eloqüentes, épicos,<br />

rasgando, ferindo, chagando, ensangüentando<br />

mortalmente os pés.<br />

Vai para o Esquecimento e para o Nada, calado,<br />

mudo, fechado no sepulcro do teu segredo místico, com<br />

os extremos e expressivos silêncios da clausura da<br />

tu’alma, levando sob a umbela dos Astros o Sacramento<br />

eucarístico da tua Dor.<br />

Vai! Vai! Some-te, perde-te, mergulha soturnamente,<br />

aprofundadamente, nas estranhas sombras,<br />

nas estranhas sombras, nas estranhas sombras...


240 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

DECAÍDO<br />

Arrebatado num violento rodomoinho, num<br />

verdadeiro ciclone de paixões, o que esperas, Tu, Sátiro<br />

tricórnio e bufo, que resfolegas e inchas de<br />

pantagruelismo e luxúria – tricórnio como trifloro – com<br />

três hirtos cardos agudos?!<br />

O gozo das mórbidas concupiscências tomou, para<br />

a tua idiossincrasia afetada do Infinito, aspectos soturnos<br />

e miríficos, efeitos mais do que genuinamente capros,<br />

mais do que virtual e genitalmente eróticos, duma<br />

insânia ingênita e transcendental de lascívia; e isso de<br />

tal forma supersexual intensa, que és apenas um simples<br />

Sátiro tricórnio e bufo e não és mais Diabo mago e<br />

sulfúreo, nem radiante belo e horrível Arcanjo de<br />

maravilhosas asas colossais e flamipotentes de fundas<br />

envergaduras a ouro fosco e bronze, mas um Satanás<br />

suíno e gongórico, um Sileno senil tatuado das equimoses<br />

do Vício, tremendamente decaído nos abismos torvos...<br />

Êxtases, indefinidos espasmos estéticos, que<br />

espiritualizavam outrora em eras primitivas os teus<br />

estranhos olhos d’águia, cheios de um fulgor de epopéias,<br />

operaram nesse maquiavélico, complicado organismo,<br />

evoluções, metamorfoses, profundas transfigurações; e<br />

a tua cabeça titânica, satânica, cortada, detalhada fundo<br />

nas auréolas negras das supremas Blasfêmias e dos<br />

Anátemas, cantou e radiou vitória, triunfou<br />

milenariamente das outras frívolas, desfantasiadas<br />

cabeças.<br />

Era a conquista real do Sonho, em que a tua cauda<br />

espiralante e magnética ia traçando caracteres<br />

simbólicos e feiticeiros e em que os teus cornos tetros e<br />

sibilinos, expressivamente assinalados como a coroa<br />

genial e hostil da Rebelião, davam o ritmo, com a cauda<br />

espiralante e magnética, das divinas sinfonias da<br />

Imaginação.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 241<br />

Porque, Tu, criador legendário das Ideogenias!<br />

velho Ideólogo imortal!, desde logo foste o Deus uno e<br />

trino, o Todo-Poderoso do Sonho, fascinando almas e<br />

almas, almas e almas e arrastando-as frementes aos<br />

teus lagos noturnos e chamejados, originalmente<br />

brotando da condensação de bilhões de noites sem<br />

estrelas, porque já eram abstratamente, esses<br />

chamejados lagos noturnos, estrelados de Ideal.<br />

E os teus cornos tetros e sibilinos, dominando<br />

amplidões, esgarçavam, rasgavam, defloravam os diáfanos<br />

véus nevoentos das Nuvens onde o segredo dos viços e<br />

germens ocultos, das virgindades brancas, das<br />

castidades tenras, das originalidades puras, dormia,<br />

mumiamente, sonos seculares e ignaros.<br />

E esse segredo e mistério que dormiam perpétuos<br />

sonos, num dormir infinito de fenômenos, Tu, com a<br />

significativa mágica do Ideal, fizeste para sempre acordar<br />

e circular e morrer e febricitar de vertigens e<br />

alucinações a Terra.<br />

E esse abençoado e prodigioso bem fecundou<br />

admiravelmente a terra, semeou constelações nos mares,<br />

tocou de auroras os temperamentos, floresceu de rosas,<br />

de madressilvas e lírios, as leves, as sutis<br />

espiritualidades humanas.<br />

Uma seiva do Desconhecido errou e cintilou por<br />

toda a parte, inundou tudo; as púrpuras palpitantes de<br />

um novo Idealismo se desdobraram como firmamentos<br />

ou majestosos mediterrâneos.<br />

Mas hoje, que o teu mundanal e soberano domínio<br />

é bem raro já, que todo o esplendor das tuas flavas,<br />

flamejantes glórias é já remotamente e olvidadamente<br />

passado, não és mais o excelso, o preclaro Sátiro fino, o<br />

Diabo prófugo e ágil, aventureiro e sábio, que notivagou<br />

em gôndolas por Veneza, nos estrelados idílios; que<br />

cantou outrora baladas aos astros aristocráticos, com o<br />

seu bandolim de luar e o seu perfil mais aristocrático<br />

ainda; que apaixonou e languesceu as monjas com suas


242 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

curiosas lendas enevoadas e rendilhadas; que foi o<br />

Gentil-Homem da Aventura e da Graça nas Cortes de<br />

Luís Quinze; que dourou e enflorou toda a Grécia e<br />

fecundou de Poesia e Arte o antigo Inferno mítico.<br />

Arrebatado num violento rodomoinho, num<br />

verdadeiro ciclone de paixões, és agora o Sátiro tricórnio<br />

e bufo, o membralhudo e velho histrião devasso, que<br />

resfolegas e inchas de pantagruelismo e luxúria.<br />

Não és mais o delicado deus artista, que eu muitas<br />

vezes vi, através das brumas azuladas da fantasia, pelos<br />

contemplativos crepúsculos da Alemanha, cismando,<br />

envolto num resplendor de imponderáveis saudades e<br />

nostalgias, tocado dos supremos desdéns, sentado junto<br />

aos pórticos medievais com as alongadas, esguias pernas<br />

mefistofélicas fidalgamente cruzadas em x.<br />

E tu perpetuas agora, através da universal<br />

harmonia, no equilíbrio sempiterno, Belzebu obeso e<br />

bonzo, inchado de concupiscência e tédio, ignobilmente<br />

obsceno, grotesco e esfingético, sonâmbulo de<br />

melancolias, tragicamente triste, atirado para um canto<br />

obscuro das Idades, como a truanesca e monstruosa<br />

figura orgíaca, báquica e pantagruélica do Vício!


FUGITIVO SONHO<br />

Pouco sentiria eu que o teu olhar fulgisse e a tua<br />

voz vibrasse, se tu não fosses a loura e sugestiva Imagem<br />

que vi em sonhos e ainda hoje entre os nimbos da<br />

memória me aparece, terna como as baladas antigas.<br />

Eu não digo que seja o luzido e bizarro cavaleiro<br />

medieval de nobre coturno e cinzelada espada d’aço<br />

polido, retinindo e fulgindo, que te aguarde na<br />

rendilhada sala gótica, ou nos pátios de mármore, ou<br />

nos balcões em flor, para fugirmos, alucinados e errantes,<br />

por alguma escada de seda, nalgum nitrente corcel.<br />

Tu és bem loura e bem fria para os medievos<br />

arrojos, para esses aventurosos jogos florais, e eu sou,<br />

talvez, em demasia tímido para arriscar-me a tais<br />

assaltos, que romanticamente e naturalmente teriam<br />

de ser ao luar, na vaporosa e velada voluptuosidade da<br />

lua, como nesses lascivos jardins do Capuleto aquela<br />

sonhadora Julieta e aquele pálido Romeu arrulhando<br />

em abraços e beijos.<br />

Mas tu cantaste. Cantaste, e o que eu tinha já<br />

morto nas recordações ressurgiu, enfim, nesse canto.<br />

Tu cantaste e eu, enfim, revivi e resplandeci para o Amor.<br />

A tua garganta, fina, aristocrática, fazia voar, como<br />

um pássaro branco, uma voz alada, cuja harmoniosa<br />

sonoridade penetrava, escorria pelo meu ser como um<br />

raro líquido untuoso...<br />

E eu parecia diluir-me em essência, em leves<br />

eflúvios, nos gorjeios. Os límpidos trinados, nos<br />

apaixonados, impetuosos vôos altos da tua voz – pura,<br />

clara, clara fresca e aberta no ar – amplo firmamento<br />

estrelado desenrolado por sobre mim odorante dilúvio<br />

de luar, ou como um pássaro branco e estranho que por<br />

ali surgisse, abrisse, ruflasse, batesse fremente as asas<br />

para além dos etéreos seios virgens das empíreas<br />

regiões...


244 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Tu cantaste, trinaste, desfolhaste em rosas, fizeste<br />

esvoaçar em abelhas e borboletas radiantes todas as<br />

músicas, todas as emotivas canções, todas as barcarolas<br />

e baladas em que há névoas de lágrimas e essas lágrimas<br />

– tanta era a melodiosa tonalidade da tua voz – quase<br />

que as sentia eu passar, nítidas, cristalinas, através da<br />

transparência do canto que constelava sonoramente o<br />

ar como um luminoso tecido de finos fios melodiosos.<br />

E, enquanto, dessa forma, em requinte, funcionava<br />

em mim o extasia do sentimento, o teu olhar fulgia e a<br />

tua voz vibrava, vibrava, vibrava infinitamente, num<br />

esplendor harmonioso e claro, fazendo evocar a expressão<br />

feérica de uma lua muito branca, do alto cantando<br />

sonoridades de prata, subindo céus acima, astros acima,<br />

por legiões luminosas e gloriosas de águias, cantando...


Formas Formas e e Coloridos<br />

Coloridos


246 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

A ABELHA<br />

Naquele dia a industriosa abelha iriada, como<br />

surgisse a manhã num fulgurante pó branco de neblinas<br />

e ela fosse desferir o vôo até à colméia onde trabalhava,<br />

nos quentes verões, com outras companheiras; perdeuse<br />

em caminho, entre o nevoeiro, como se a cegasse de<br />

repente ali aquela alva irradiação matinal.<br />

Contudo, animada por uma chama intensa e viva,<br />

e que outra cousa não era mais do que o amor à<br />

carinhosa colméia, tentava sempre romper o nevoeiro,<br />

ir através da bruma espessa, penetrar nela num arrojo<br />

mais de vôo, fazendo um pequenino orifício por onde<br />

pudesse atravessar, feliz e gloriosamente, o seu gentil<br />

organismo diminuto e alado.<br />

Mas em vão! A cada esforço empregado em<br />

distender para frente as asas débeis, a cada ímpeto<br />

resoluto, a cada impulso tenaz, parecia que a neblina se<br />

obstinava em condensar-se, em intensificar-se mais; e<br />

estava esta lua já assim há tempo continuada resultando<br />

talvez num triste perigo para o volatilizado ser<br />

microscópico e sonoro, quando, finalmente, num golpe<br />

de luz – o sol irrompeu; surgiu, subiu festivo e triunfoso<br />

para o alto, como um redondo cano de ouro cheio de<br />

molhos inflamados de loiras espigas ardendo.<br />

Perante o brusco emergir flamejante do sol a<br />

rápida (...) abelha mais ainda se entonteceu e<br />

deslumbrou então; e tanto se deslumbrou e entonteceu<br />

que jamais conseguiu vencer a fina gaze diáfana, que<br />

agora, com o súbito clarão já se ia esvaindo no ar...<br />

E era inefável, deliciava entretanto ver a abelha<br />

presa no éter, sem poder caminhar, sem poder voar,<br />

suspensa no azul e doirada pelo sol, como uma leve gota<br />

que o sol deixasse pender no espaço, caída das suas<br />

rutilantes pedrarias de raios e librada apenas nos<br />

imperceptíveis fios sutis do fluido luminoso.<br />

Ah! se a abelha pudesse enviar recado à colméia,<br />

às companheiras, que a viessem tirar bem depressa dali!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 247<br />

Mas quem sabia onde era a colméia?<br />

Os reis, que habitam lá acima os claros palácios<br />

do luxo, entre soberanos confortos sedosos? Os ministros<br />

que passam lá embaixo no culto rumor da cidade,<br />

fechados no seu coupé, lendo jornais, como dentro de<br />

um rodante e tépido gabinete de estudo?<br />

A rapariga do campo, que através da frescura dos<br />

fenos, leva o gado a pastar na grama vasta e viçosa que<br />

cintila e fuma pelas manhãs?<br />

Quem sabia onde era a colméia?!<br />

Ninguém o saberia decerto! E essa tênue e<br />

voejante abelha, embora solta da trama da luz e não<br />

obstante claramente saber para que lados ficava a<br />

colméia, erraria em vão pelos vales cheirosos, perdida<br />

para todos os pontos, daquelas vargens, castos vergéis –<br />

porque esse tempo gasto a vaguear e a vacilar na neblina<br />

a cobriria de receio em comparecer, mais uma vez só<br />

que fosse, à presença das outras, sem que sentisse nos<br />

seus dormentes e enxameados zumbidos a mais<br />

acusadora censura e a queixa mais penetrante às horas<br />

que, no exigente pensar egoísta e caprichoso das<br />

companheiras, ela andara à toa no campo em flor amando<br />

e sugando alguma pétala, em vez de ir, por essa radiosa<br />

manhã, para o trabalho, abrir, no favo de mel, as<br />

curiosidades artísticas e os arabescos filigranados da<br />

efervescente colméia.<br />

* * * * * * * * * *<br />

Também, ó imaginária criatura amada! a peregrina<br />

abelha de meu sonho, voando um dia para a vida, foi<br />

logo em viagem surpreendida pelas profundas névoas<br />

impenetráveis das desilusões, e, sem poder nem<br />

prosseguir nem recuar, vencida pela distância e pela<br />

altura vertiginosa do ideal, perdeu para sempre, para<br />

nunca mais encontrar o desejado rumo, o caminho fluido,<br />

luminoso e gorjeante, que vai dar ao teu coração.


248 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

OBSESSÃO DA NOITE<br />

Vem, tartufo, rir ao pé de mim a tua risada de fel.<br />

O sol, em cima, ri a sua risada de aurora, que<br />

tudo aclara e resplende.<br />

Mas é em vão para essa risada de luz, que jorra<br />

d’alto sobre tudo, que tudo ilumina e claresce.<br />

Quero-te a ti, risada de fel, Tartufo! Quero-te a<br />

ti, risada do crime, risada da noite, risada da treva.<br />

Apavora-me esse sol eterno, a flamejar, incendiado<br />

na altura, porque ele todas as coisas põe em relevo.<br />

Eu não quero essa aflitiva evidência da luz – que<br />

ri das nossas chagas, ironiza o nosso amor e avulta o<br />

nosso remorso.<br />

Quero a sombra que esbate os claros aspectos,<br />

que esfuminha os longes, que enevoa e quebra a linha<br />

dos corpos.<br />

A sombra que desce, que se desdobra em noites,<br />

em trevas amargas.<br />

Esse luto etéreo que tudo esconde e faz repousar<br />

no mesmo vasto silêncio.<br />

O luto que esconde o crime e esconde a dor, que<br />

confunde a máscara hedionda de Gwymplaine com a<br />

máscara loura de Vênus.<br />

Esse luto, essa noite, essa treva é que eu desejo.<br />

Treva deliciosa que me anule entre a degenerescência<br />

dos sentimentos humanos. Treva que me disperse no<br />

caos, que me eterifique, que me dissolva no vácuo, como<br />

um som noturno e místico de floresta, como um vôo de<br />

pássaro errante.<br />

Treva sem fim, que seja o meu manto sem estrelas<br />

que eu arraste indiferente e obscuro pelo mundo a fora,<br />

arredado dos homens e das cousas, confundido no<br />

supremo movimento da natureza, como um ignorado<br />

braço de rio, que através de profundas selvas escuras<br />

vai sombria e misteriosamente morrer no mar...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 249<br />

Nela é que eu quero afundar-me, na noite que me<br />

defende da lesma humana que babuja ao sol, à grandeza<br />

da luz.<br />

Nela é que eu quero viver, na treva que me despe<br />

da realidade da vida, que me sepulta e piedosamente<br />

consola.<br />

Ela tem a majestade para me apagar da vista esses<br />

mil animais sinistros e terríveis que, em múltiplas<br />

formas diversas, mordem sempre, caminhando para mim<br />

ao clarão do dia em truculenta marcha cerrada de<br />

massas pesadas e formidáveis.<br />

Quero, ó noite niveladora, fria águia negra das<br />

solidões infinitas, ir preso nas tuas asas e perder-me,<br />

insensivelmente vagar átomo desconhecido, talvez a<br />

gerar longe o mundo estranho de uma nova Dor!


250 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

HORA CERTA<br />

Inexoravelmente, imperturbavelmente, na<br />

inevitabilidade de um pêndulo estranho, o último suspiro<br />

há de soar, na hora atroz, que reboará soturna como por<br />

cavernas e subterrâneos.<br />

Com a alma supliciada de nevroses, assediada por<br />

ciúmes inquisidores, através de trêmulos angustiantes<br />

de violinos, o Agonizante elevará os olhos claros, cheios<br />

já da transfulgência de outras esferas e aspirará, ainda,<br />

gemente, Águia triste de solenes asas despedaçadas,<br />

os desejos esparsos, perdidos, que para além ficaram no<br />

clamor atordoante da Vida.<br />

Como por um mapa fabuloso, viajará ainda a<br />

imaginação desfalecida pelas regiões de outrora, onde<br />

se agitaram, vivas e palpitantes, todas as grandes forças<br />

do seu sentir.<br />

E, diante dos olhos adivinhadores de belezas<br />

secretas; dos olhos penetrantes e gozadores que<br />

pousavam inteligentemente nas cousas com finas asas<br />

ideais, amando-as, envolvendo-as numa chama de<br />

sentimento, nobres olhos de emoção e profundidade; dos<br />

olhos, cujo entendimento cintilava quando olhavam<br />

curiosamente tudo; diante dos olhos do Agonizante<br />

desfilará então a Visão do seu Ideal – Beleza tão<br />

radiante, tão doce, que lhe lembrará ao mesmo tempo a<br />

frescura iluminada de um vale e a profunda pompa<br />

noturna das estrelas.<br />

O muito que odiou e o muito que amou, os traços<br />

reveladores do seu espírito, formas de enunciação<br />

características de sentimento, ondulações voluptuosas<br />

de som, tudo, como um fumo, lhe tecerá brumas na<br />

retina; e certas recordações, já nebulosas na memória,<br />

certas tempestades d’alma, já entrecruzadas, difundidas<br />

e repercutidas na tempestade das Esferas, tudo, como<br />

um fumo, lhe tecerá brumas na retina.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 251<br />

Soberbos oceanos de imaginação onde mergulhou<br />

seguro o desenterramento da sua Obra, do Escuro para<br />

a Luz, ressuscitando-a das sepulturas do Nada e fazendoa<br />

logo abrir clarões e asas no Espaço, tudo, tudo há de<br />

ecoar, em extremo, nos desvãos do seu cérebro a fenecer,<br />

como a vibração esmorecidamente saudosa de rouca<br />

fanfarra longínqua no fim crepuscular de triste e ovante<br />

vitória assinalada por aclamações e festões de louros,<br />

regada abundantemente pelo vinho quente e humano<br />

do sangue.<br />

E, relembrando cousas, revendo todas as veredas<br />

passadas, como quem revolve poeira, se o Agonizante<br />

achar então que afinal lhe doeu muito a Vida, consolado<br />

morrerá de que sofrendo por todos teve assim a mais<br />

bela e nobre purificação e consagração dessa Dor.<br />

E, de reminiscência em reminiscência,<br />

consultando no largo, no amplo, no formidável mostrador<br />

do Tempo as horas certas do Mundo – a hora certa para<br />

o Amor, a hora certa para o Ouro, a hora certa para o<br />

Ódio, sentirá, então, claro, nítido, evidente na eloqüência<br />

fatal do último suspiro – concentração tremenda de todos<br />

os círculos tremendos do Ser – sentirá então que a única<br />

hora certa, ó Vida!, é a hora da Morte, quando o último<br />

suspiro soa, trêmulo, marcando o inevitável rumo, como<br />

um pêndulo estranho que marca horas imponderáveis<br />

caindo inexoravelmente, imperturbavelmente...


252 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ROSICLER<br />

Imaginar agora, saudosa Rosicler, que essa boca<br />

virginal, onde têm vivido, esvoaçado e cantado os ardentes<br />

pássaros dos beijos, fica gelada e muda, negra, como a<br />

boca de uma cova; que o colorido alvoral da tua carne<br />

esmaece, morre; que os fluidos Danúbios claros e azuis<br />

dos teus olhos somem-se na névoa da morte; que tu<br />

toda esfrias horrivelmente nas minhas mãos, num<br />

pavoroso contacto de neves álgidas – hirta, inteiriçada,<br />

glacial – como pesado e rígido bloco maciço de mármore<br />

branco!<br />

E imaginar, também, que a tua infância de flor,<br />

de alva magnólia cheirosa cor de luar, na seda fina da<br />

pele nívea, foi passada entre os meus braços: todo o<br />

delicioso encanto louro dos teus cabelos, a delicada polpa<br />

rosada dos teus lábios e as límpidas marchetarias dos<br />

teus dentes na láctea candidez do rosto a que os fluidos<br />

Danúbios claros e azuis dos teus olhos de ninfa davam<br />

frescuras bucólicas de mirtais e de mares meigos da<br />

Grécia.<br />

E imaginar, também, celeste Rosicler, que tu, já<br />

na pubescência, com as nobrezas régias de dama<br />

medieval, planta inglesa e forte desabrochada na<br />

atmosfera de uma estufa de Lorde, na luxuosa irradiação<br />

da formosura, vais, através do aristocrático rumor de<br />

cidades, alta e loura, como soberba Águia fidalga que<br />

para sempre houvesse abandonado algum antigo, grande<br />

palácio renano!<br />

Outros chamem-te Aurora! Hoje que já tens a<br />

esveltez palmeiral, o viçoso verdor primaveril e que na<br />

transparência d’ouro da epiderme dos seios cantam-te<br />

inefavelmente os desejos...<br />

Outros chamem-te Aurora! Hoje que já o travo<br />

picante da perfídia feminina dá um encanto fatal e acídulo<br />

à tua cabeça funesta e trêfega e dá volúpias secretas e


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 253<br />

tentadoras às tuas garridas formas de louro demônio, a<br />

essa sedução prófuga e prônuba, entre sílfide e áspide...<br />

Outros chamem-te Aurora!<br />

Uma vez que ainda diante dos olhos vejo a rosada<br />

e consoladora luz difusa da tua Infância; que ainda sinto<br />

os leves e perfumados eflúvios da tua voz; o cristalinar<br />

do teu riso nos lábios frescos de vida e de leite; os fios<br />

sonoros do teu cabelo de sol na primorosa, suave,<br />

resplandecente cabeça; agora que tudo isso, enfim,<br />

acorda ainda no meu ser a balada longínqua das<br />

Recordações, não te chamarei jamais Aurora, mas<br />

Rosicler! que lembra os tons alvorais incomparáveis da<br />

tua vaporosa existência de aroma, quando eu tinha nos<br />

braços, envolta em neblinas paradisíacas do sonho, a<br />

tua formosa, suave, resplandecente cabeça, da excelsa<br />

idealização de cabeças de Anjos, revivescentemente<br />

cinzeladas em astro...


254 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

BEIJOS MORTOS<br />

Para o frio silêncio do firmamento, para a alta<br />

sideração das estrelas, os beijos de chama que me deste<br />

outrora subiram mortos, frígidos, glaciais, sem aquele<br />

quente, inflamado clarão que os tornava apaixonados.<br />

Foram-se os beijos e tu te foste também com eles,<br />

Alma sonora, Carne de perfume e de luz, cujos olhos, de<br />

tanto incomparável amor carinhosamente me falavam.<br />

A minha boca, sequiosa e saudosa agora desses<br />

beijos que a constelaram, mal pode sonorizar as sílabas<br />

de sol – Amor – que tão inefavelmente sonorizava.<br />

Foram-se os teus beijos, sumiram-se aqueles<br />

astros, que ardiam, e, agora, ei-los, já frios, lá, acima,<br />

no esplendor, esparsos no arqueado Azul infinito...<br />

Que brilhem, lá, gélidos, esses beijos mortos, como<br />

a serena e sagrada Via-Láctea da Paixão!<br />

Para mim, cá da terra, embaixo, eu os verei e os<br />

sentirei ainda palpitar para sempre sobre a minha alma,<br />

purificando-a e iluminando-a, miraculosamente, contra<br />

o frio veneno negro da Dor, derramada fundo no meu<br />

peito por fulvos e inquisitoriais demônios,<br />

atropeladamente arremessados à escalada vertiginosa<br />

do Mundo!


Últimas Últimas Evocações<br />

Evocações<br />

Resgatadas Resgatadas por por Iaponan Iaponan Soares Soares e<br />

e<br />

Zilma Zilma Gesser Gesser Nunes<br />

Nunes<br />

Dispersos Dispersos – Poesia Poesia e e Prosa<br />

Prosa


256 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

MARGARIDA<br />

Sorrisos e lágrimas de Margarida<br />

O que procuraria nele?!...<br />

Talvez quisesse descobrir nesse imenso véu onde<br />

estariam embuçados seus pais, talvez, fitando esse<br />

horizonte rosicler, seu pensamento voasse a se encontrar<br />

com os deles!<br />

Não, não era isso!<br />

Ela volvia o olhar a Deus para pedir-lhe sempre a<br />

mesma paz de espírito, a mesma bonança em sua vida e<br />

que o sorriso lhe brincasse eterno nos lábios purpurinos!<br />

Quanto era misterioso esse seu pensar!<br />

Brilhante e preclaríssima existência!!!...<br />

De manhã, antes que a luz do sol principiasse a<br />

irradiar nos azulados píncaros dos montes, ela, essa<br />

virgem meiga, erguia-se de seu leito e ia tratar do<br />

rebanhozinho!<br />

Que quadro admirador, o ver-se a gentil pastora<br />

acariciando suas ovelhas...<br />

Umas deitavam-se em seu lindo colo, outras<br />

osculavam-lhe as alvinitentes mãos, os cetinosos e louros<br />

cabelos; outras, saltando em torno dela, pareciam dizerlhe:<br />

Olha, nós te adoramos, só tu és a nossa querida<br />

mãe.<br />

E ela, como que adivinhando-lhes o pensamento,<br />

tornava a afagá-las ainda com mais ardor, com mais<br />

doçura, como se fora uma própria mãe.<br />

E passava horas e horas esquecidas afagando-as,<br />

acariciando-as, conchegando-as a seu palpitante seio<br />

num anelo suave, numa louca vertigem, enfim numa<br />

languidez febril.<br />

E assim corriam os anos, os meses, os dias, as<br />

horas, os minutos, os segundos, para ela sempre de gozo,<br />

de sorrisos lúcidos, de manhã de flores, de prazer infinito.<br />

Depois desses puros estremecimentos, dessa<br />

expansão de sua alma, começava a correr, a saltar como<br />

a borboleta febril, por moitas, por vales, por lagozinhos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 257<br />

de prata, em busca de saudades e lírios, flores de sua<br />

afeição.<br />

E lá ia veloce, célere como as setas!<br />

Como encantava vê-la assim.<br />

Vestida de uma linda saia curta que deixava ver o<br />

bem torneado de uma linda perna, com duas louras<br />

tranças presas nas pontas por laços azuis que se<br />

deslizavam por suas bem contornadas espáduas, dir-seia<br />

uma divindade.<br />

E corria sempre com o sorriso doirando-lhe os<br />

lábios.<br />

Nunca lágrimas, nem uma só!...<br />

E era assim sua vida!...<br />

..........................................................<br />

Um dia, ao cair da tarde, quando estava embebida<br />

em ver, em admirar os aurifulgentes arrebóis de que se<br />

orna a sidérea cúpula, foi surpreendida por um leve rumor<br />

próximo à choupana; voltou-se e verificou que tivera<br />

motivo essa surpresa.<br />

Era um caçador que indo divertir-se por aqueles<br />

lados e como chegasse a noite desejava ali, se acaso o<br />

consentisse Margarida, descansar um tanto, para depois<br />

continuar seu caminho, pois morava um pouco retirado.<br />

Ambos saudaram-se...<br />

Depois ele, com certa entonação de voz, dirigiulhe<br />

a palavra:<br />

– Minha linda pastora, dá-me por alguns minutos<br />

um agasalho em sua modesta choupana?...<br />

Margarida, tremendo toda como um arbusto<br />

agitado pelo vento e baixando os olhos, respondeu-lhe:<br />

– Mas, sr., eu não o conheço, não sei quem é...<br />

e... além disso eu...<br />

Suspendeu-se.<br />

– Mas, tornou-lhe o jovem, asseguro-lhe que nada<br />

tem a temer; é que venho muito cansado e almejo mais


258 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

que tudo uma hora de repouso, para então continuar o<br />

meu caminho.<br />

– Pois bem, senhor, eu estou segura da sua<br />

probidade. O senhor parece-me um belo moço; entremos.<br />

Mesmo apesar deste elogio quem olhasse para as<br />

faces de Margarida, vê-las-ia tornarem-se rubras e<br />

morder de leve o lábio inferior.<br />

Contudo, conteve-se e tímida, acanhada, levantou<br />

o trinco da porta e abriu-a.<br />

Entraram...<br />

Margarida, aquela virgem infante sentou-se a um<br />

canto trêmula.<br />

Não sabia o que dizer.<br />

O caçador também, por mando de Margarida,<br />

descansara sua espingarda a um canto e sentara-se.<br />

A pastora, conservando sempre os olhos baixos,<br />

não se atrevia a erguê-los para se não encontrarem com<br />

os do caçador que a fitava com ternura.<br />

Depois de alguns instantes, este rompeu o<br />

silêncio.<br />

– Então, minha linda pastora, habita aqui, sozinha,<br />

não tem receio de algum maldoso?<br />

Ela estremeceu com esta idéia e com um leve<br />

movimento de cabeça, respondeu:<br />

– Não...<br />

– Oh! Então é por que está bem guardada?<br />

Margarida não respondeu, mas levantando-se abriu uma<br />

portinhola e mostrou-lhe dois grandes cães que dormiam.<br />

– Oh! belo! São guardas de respeito! Como se<br />

chamam?<br />

– Um chama-se Cérbero e outro Leão. E cerrou a<br />

porta.<br />

– Ora até que enfim falou... Vamos, diga-me quem<br />

são seus pais?<br />

– Não os tenho, respondeu-lhe comovida a pastora.<br />

E aquela que vimos há pouco sorrindo e saltando<br />

levou a mão a seu avental para enxugar uma lágrima.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 259<br />

– É bem infeliz, tornou-lhe o caçador... diga, esta<br />

é a sua verdadeira pátria?<br />

– Não, respondeu-lhe Margarida, com a sua voz<br />

meiga, o senhor é bom, é; parece-me que estou vendo<br />

transparecer em sua alma a meiguice, a bondade! Oh! o<br />

senhor é bom!<br />

– Diga-me uma coisa, formosa pastora, gosta desta<br />

vida que passa, nunca pensou em estreitar os laços do<br />

himeneu, nunca pensou em casar-se?<br />

Dois olhares e ao mesmo tempo dois sorrisos<br />

encontraram-se.<br />

Depois profundo silêncio...<br />

– Então, não responde?<br />

– Senhor... disse enleada, corando a pastora.<br />

– E... nunca amou... nunca conheceu o amor?<br />

Outra vez dois olhares trocados, mas mais<br />

ardentes, mais vivos, mais vertiginosos.<br />

– Então, minha encantadora pastora, nunca amou,<br />

insistiu o caçador.<br />

– Nunca! gemeu a pastora.<br />

E o jovem não podendo conter mais a sua louca<br />

paixão e o pulsar inquieto de seu coração, lançou-se-lhe<br />

aos pés exclamando:<br />

– Pois bem eu serei quem te ame, dar-te-ei meu<br />

coração, consagrar-te-ei mil afetos; tu chamar-me-ás<br />

Jorge eu direi...<br />

– Margarida, concluiu a pastora, sorrindo-se entre<br />

lágrimas e com uma suavidade na voz que encantava!<br />

E depois, de repente, estacando, parando de<br />

comoção e dizendo entre Si:<br />

– Oh! meu Deus, e meu Futuro com ele, quem<br />

sabe o que será!<br />

E pendendo o rosto na mão ficou pensativa.<br />

– Então, linda Margarida, o que tens?!<br />

Ainda há pouco tão expansiva e agora...<br />

Colombo. Folhetim. Desterro, 14 e 21 maio, 1881.


260 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

COMEMORAÇÃO DO SEXAGÉSIMO PRIMEIRO<br />

ANIVERSÁRIO NATALÍCIO DE JOAQUIM GOMES DE<br />

OLIVEIRA E PAIVA<br />

É hoje o dia 12 de Julho, data do nascimento do<br />

grande orador Joaquim Gomes de Oliveira e Paiva.<br />

É preciso que o povo catarinense, animado pelo<br />

sublime amor patriótico, revista-se de entusiasmo como<br />

de uma inconcussa clâmide romana, em honra daquele<br />

que tanto o engrandeceu.<br />

É preciso que o povo catarinense erguendo-se do<br />

fatal marasmo, são, lépido como o Lázaro da Escritura,<br />

fazendo um esforço hercúleo, estranho, quebre os<br />

ferruginosos grilhões que o entorpecem, exulte iluminado<br />

pelos raios abrasadores de seu mais soberbo revérbero:<br />

– o nome de – Oliveira e Paiva.<br />

Já é tempo de ao menos por um dia, por uma hora,<br />

por um segundo, deitarmos por terra o fundo<br />

materialismo, de não cuidarmos única e precisamente<br />

do nosso eu.<br />

Já é tempo de não nos deixarmos embrutecer na<br />

parva admiração de uma gorda parcela monetária, para<br />

subirmos à luz da história, à luz dos conhecimentos<br />

humanos, intelectuais.<br />

Toda a moral, toda a estética, toda a pura filosofia,<br />

deve abraçar por certo os princípios que vimos de<br />

descrever.<br />

Não é absorvendo o tempo em coisas fúteis<br />

comezinhas, materiais, quando não estólidas, ridículas;<br />

não é enervando, calcinando a alma nos desregrados<br />

orcos terrenos dos gozos fáceis, hebetisinando a razão,<br />

que nos fazemos homem, que nos fazemos povo.<br />

Por Deus!... nem tanta filáucia, nem tanto<br />

egoísmo!...<br />

É próprio isso dos tempos antediluvianos!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 261<br />

Não é, repetimos, deixando passar desapercebido<br />

o que é grande, o que é louvável, o que é justo, que<br />

podemos dizer temos civilização.<br />

Quem sabe se muitos julgam que a verdadeira<br />

acepção dessa palavra está apenas nos cumprimentos<br />

familiares, nas atenções para com as senhores, no<br />

respeito à honra e em muito mais que nos seria fastidioso<br />

relatar?!...<br />

Não, mil vezes não!<br />

Olhai a Europa; fitai o mundo exterior ou quando<br />

não seja assim, sondai bem vossa razão que encontrareis<br />

lá bem nas profundidades dela o completo qualificativo<br />

de civilização.<br />

Quem não conheceu Oliveira e Paiva, aquela<br />

cabeça leonina onde irradiavam mil constelações de<br />

pensamentos?!...<br />

Quem não lhe apreciou a palavra eloqüente que<br />

brotava de seus lábios em enormes catadupas, em<br />

repetidos borbotões de rasgos oratórios?!...<br />

Quem não admirou aquele todo simpático e<br />

preclaro de uma polidez sutil a toda prova?!<br />

Quem, por último, não conviveu com esse irmão<br />

de Mont’Alverne, Vieira, Anchieta, Souza Caldas, Patrício<br />

Moniz e tantos outros?...<br />

Não há negar pois, que o povo Catarinense seria<br />

por demais ingrato, se envolvesse no espesso manto do<br />

olvido esse dia tão faustoso que trouxe ao mundo o grande,<br />

o Messias querido que gravou seu nome, com letras<br />

indeléveis, eternas, nos corações verdadeiramente<br />

patrióticos.<br />

Para nós que, se revolvemos o humilde e pequeno<br />

cinerário da história, não encontramos muitos vultos<br />

tão ilustres como o do exímio pregador Oliveira e Paiva;<br />

não é mistério, é prova mesmo de adiantamento, de<br />

progresso, fazer uma homenagem como a que se acaba<br />

de preparar.


262 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Portanto deve a elite literária da sociedade<br />

Catarinense apresentar-se garbosa, preparar seus<br />

brilhantes discursos, suas éclogas, seus sonetos, para o<br />

maior realce e solenidade dessa festa.<br />

Deixamos que o Zoilo ignaro, escancarando a boca<br />

com a gargalhada mordaz, estendendo a ponta aguçada<br />

do estilete do sarcasmo, dos vis esgares, como um truão<br />

imbecil, como um palhaço mazorral das praças públicas<br />

esbraveje, raive, zurre furiosamente.<br />

Deixemos que soltem o agourento grasno esses<br />

esquálidos, negros e esfaimados abutres.<br />

Deixamos que se anteponham a nossos passos<br />

esses semicadáveres!<br />

Para as consciências inteiramente de lama, talvez<br />

sejam os nossos festejos encarados pelo lado do ridículo;<br />

para os hodiernos realistas talvez pratiquemos uma<br />

fanfarronada, é a frase admissível; mas para as<br />

consciências imparciais, sensatas, claras, teremos feito,<br />

se bem que em parte, o que o nosso herói merece e<br />

lançado aos fundos alicerces de seu Panteão de glória,<br />

uma pedrinha de bastante valor.<br />

..................................................<br />

Se viveras ainda, ó excelso Paiva, iríamos<br />

pressurosos a teu gabinete de trabalho ofertar-te, hoje,<br />

data do teu grande nascimento, mil coroas de lírios e<br />

açucenas, vivas imagens da inocência; porém como<br />

morreste, ou antes tropeçaste tão somente na campa,<br />

ressurgindo à imortalidade, ousamos dedicar à tua<br />

memória estas toscas, rudes, mas sinceras palavras.<br />

Jornal do Comércio, Desterro, 12 jul., 1882.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 263<br />

JULIETA DOS SANTOS<br />

Julieta dos Santos estreou segunda-feira, 25, no<br />

drama Georgeta, a cega. Eu achava-me lá no teatro, nessa<br />

grande escola, maquinalmente sentado, com a cheia de<br />

esperanças e a alma a transbordar de desejos febris,<br />

vagos, loucos, vorazes, aguardando a ocasião de ver surgir<br />

do palco essa embrionária terrível.<br />

A seu tempo ergueu-se o pano e dali a instantes<br />

apareceu em cena, dentre os bastidores, como as<br />

sombras evocadas pelo poeta nas noites do mistério, no<br />

céu ideal, o evoluciozinho de uma borboleta delicada,<br />

vaporosa, sutil.<br />

Eu acotovelei o companheiro que se achava junto<br />

a mim e disse-lhe – emudece.<br />

Ela começou a falar.<br />

Sua voz levemente embaraçada, insinuante, tinha<br />

de quando em vez umas vibrações cristalinas; seus<br />

alvinitentes bracinhos estendidos ao longo buscavam os<br />

tropeços que por acaso houvessem em sua passagem.<br />

Eu, boquiaberto, estático, vezes colado à cadeira,<br />

sentia a algidez de uma estátua de aço, às vezes como<br />

impelido por uma mola secreta, estranha, erguia-me<br />

insensivelmente sentindo percorrer nas fibras d’alma<br />

uns fluidos magnéticos.<br />

E as cenas sucediam-se cada vez mais brilhantes,<br />

mais belas, mais expressivas.<br />

E eu acotovelava o meu companheiro fazendo-lhe<br />

notar ora um gesto, ora uma inflexão, ora um jogo<br />

fisionômico dessa Favart, dessa Raquel, dessa Téssera<br />

do futuro.<br />

Terminou o primeiro ato sempre esplendente,<br />

sempre ameno, sempre divino da parte da pequena<br />

atrizinha e também de seus colegas que secundaram<br />

mui devidamente.


264 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Passaram-se alguns momentos. A orquestra<br />

dirigida pelo Sr. Brasilício executou uma melopéia suave.<br />

E eu, impaciente, esperava o 2° ato.<br />

Subiu o pano afinal!... Apareceu Georgeta sempre<br />

cega, sempre simpática, já eletrizando-me nuns lirismos<br />

vagos e encantadores, já sensibilizando-me nuns lances<br />

ternos, numas queixas repassadas de langor, nuns quês<br />

finalmente impassíveis e solenes.<br />

Oh! mas quando ela recupera a luz, quando se<br />

abisma na contemplação dos objetos, das flores, quando<br />

se aproxima do espelho e tem ante ele aquela cena<br />

inimitável, aquela luta gigante como a da treva com o<br />

clarão, como a do possível com o impossível, como a da<br />

matéria com o espírito eu, por Deus, senti em meu<br />

cérebro uma revolução como que um cataclismo moral.<br />

Terminou o drama e eu maravilhado, emudecido,<br />

sentia-me preso à cadeira por uma atração irresistível.<br />

Oh! quanto prende, quanto arrasta essa criação<br />

fenomenal!... Gênio, eu te saúdo, porque tu tens o dom<br />

de animar as almas de gelo, as organizações de pedra,<br />

como Fídias as suas criações esculturais, como Rafael<br />

a sua Fornarina.<br />

Tu inspiras, tu suplantas, tu avassalas.<br />

Trabalhastes na – Georgeta, a cega – e no entretanto<br />

encheste de luz!!...<br />

O Caixeiro, Desterro, 31 dez., 1992.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 265<br />

A MUSA MODERNA<br />

(Versos de Damasceno Vieira)<br />

O sr. Damasceno Vieira, no pródromo sintético<br />

da sua obra, fundamenta umas teorias didáticas que<br />

não acentua bem, de modo claro e filosófico.<br />

Desde o batismo do seu trabalho Musa Moderna<br />

encontra-se analiticamente, observadamente uma falta<br />

de coerência, de concatenação lógica com as idéias<br />

expendidas na substância do livro.<br />

S.S. mesmo diz:<br />

“Para dar a medida exata de seu tempo –<br />

preocupação de todo artista superior – cumpre ao poeta<br />

identificar-se com as aspirações do século nas suas idéias<br />

filosóficas, nos seus gigantescos impulsos de progresso,<br />

na sua veemente paixão pela liberdade.”<br />

Ora, S.S. admira Guerra Junqueiro e quase não<br />

admite Jean Richepin, quando, segundo a minha opinião,<br />

foi na Chanson des Gueux que aquele poeta bebeu a maior<br />

luz da inspiração para o seu último poema.<br />

A fim de atestar, ampliar mais sensatamente o<br />

seu modo de ver as coisas, S.S. cita algumas palavras<br />

de Ramalho Ortigão, desse escritor tão reputado e tão<br />

querido, mas que embora a sua nomeada, a sua<br />

consideração européia, não suponho, estudadamente<br />

visto, digno de uma crítica séria sobre poesia.<br />

Não devemos receber a luz porque ela venha dc<br />

alto, do mais alto píncaro das serras elevadas.<br />

Não!...<br />

Irrompa ela da sombra, mas seja uma luz clara,<br />

franca, espontânea.<br />

Venha ela das anfractuosidades das minas, das<br />

gargantas das fornalhas, dos brasidos do carvão – mas<br />

seja luz.<br />

Para se compreender as vantagens da nova<br />

literatura, em todas as fases, é preciso ter as bossas


266 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

intelectivas desenvolvidas na altura dessas mesmas<br />

vantagens.<br />

O poeta de hoje é o reformador, o inspirado, o<br />

revolucionário.<br />

São os três elementos constitutivos do poeta.<br />

Dizendo-se revolucionário, compreende-se que<br />

poeta seja artista inteiro, completo.<br />

Se a arte caminha ao lado das revoluções do<br />

espírito, não se admitirá por certo revolução sem arte.<br />

Ora, o sr. Damasceno que bate os linfáticos da<br />

Musa, aqueles que não têm pulmões nem sangue para<br />

os entusiasmos decentes, para as concepções grandes<br />

e fortes, abre o seu livro ainda com versos sem rima,<br />

solto como se diz, quando a rima, natural, precisa,<br />

verossímil é a cintilação prismática, a eufonia<br />

dulçorosíssirna do verso; quando os melhores poetas da<br />

península e mesmo os novos brasileiros têm essa<br />

preocupação que é também um dos esmaltes mais<br />

delicados e bonitos da forma.<br />

Daí, S.S. continua no emprego estafado das<br />

décimas e oitavas francesas, pesadas, retumbantes pela<br />

sua factura pelo seu modo arrogante de exprimir o<br />

pensamento.<br />

Os poetas devem conhecer, para o complemento<br />

da arte, a maneira de distribuir os tons a fim de que as<br />

consoantes aglomeradas, empacadas não esporeiem o<br />

ouvido do leitor; colocar esteticamente os agudos, os<br />

graves e esdrúxulos – dispor muito concisamente o<br />

colorido da inspiração vibrante, altívola, sangüínea.<br />

Os poetas – essa boemia de ouro, essa borboleta<br />

azul que muitas vezes se queima na sua própria luz,<br />

quanto a mim devem arrojar-se mais e mais nas asas<br />

da fantasia a águia do infinito das idéias – devem ter os<br />

vôos desesperados, as cóleras supremas, o humorismo<br />

doido, as gargalhadas estrepitosas do mar, rugir como o<br />

leão e arrulhar como a pomba, ter a fulguração<br />

escaldante do sol e a sua suavidade consoladora do luar.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 267<br />

Não há poesia onde não houver fôlego, sentimento,<br />

paixão pela natureza sempre farta de assuntos para os<br />

espíritos empreendedores.<br />

Não há poesia onde houver convenção, onde a<br />

espontaneidade e a fé individual do cantor não se revelem<br />

com força.<br />

O sr. Damasceno bem sabe quais são as armas<br />

combate, mas não usa delas, talvez por uma religiosidade<br />

pacata aos seus escrúpulos literários.<br />

O sr. Damasceno Vieira é por vezes fraco nos seus<br />

ideais, nas suas imagens e comparações.<br />

O seu espírito não conserva na Musa Moderna a<br />

nota nervosa do sentimento, os rasgos apaixonados da<br />

razão.<br />

Não há na sua poesia uma fluência agradável que<br />

force a ler-se o livro até o fim, na melhor disposição de<br />

gosto; vai-se tropeçando a cada passo com versos soltos,<br />

com uns nomes próprios, de uns heróis da guerra, como<br />

espantalhos da civilização, introduzidos nas estrofes,<br />

dando-lhes uma gravidade pesada, pouco artística e<br />

poética.<br />

E além disso a originalidade, a primeira qualidade<br />

do homem moderno, não é com certeza a lei do<br />

distinguido escritor.<br />

S.S. canta a escola, as oficinas, o trabalho, o<br />

progresso com tintas nada originais e boas.<br />

A verdadeira centelha da arte, o fogo, a robustez,<br />

o pulso, como disse Edmundo de Amicis, tratando de<br />

Zola, não são circunstâncias às quais o sr. Damasceno<br />

ligue muito séria importância.<br />

Achará que isto são tropos de estilo, são<br />

esmiuçamentos de crítica.<br />

Mas nem nos propusemos a escrever uma crítica<br />

sobre o seu livro; unicamente como S.S. não é<br />

positivamente um calouro da literatura, mas uma<br />

inteligência que tem produzido diferentes frutos, nos<br />

certames da idéia, é preciso, que pelo menos os que


268 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

cuidam de letras, autopsiem franca e lealmente, com a<br />

dignidade superior de confrades, os trabalhos que vão à<br />

luz da publicidade.<br />

E demais S.S. teve a delicadeza de remeter, com<br />

dedicatória especial e bastante lisonjeira, a Virgílio<br />

Várzea, Santos Lostada e à minha humílima<br />

individualidade, a sua Musa Moderna.<br />

Nasce, portanto, desse atestado despretensioso<br />

de simpatia – esta ligeira análise da obra.<br />

Não diria coisa alguma sobre ela, se a achasse<br />

fora dos trâmites da crítica e dos limites do senso.<br />

Há nela, em todo o caso, cunho de talento, mas<br />

não rijeza firme de idéias.<br />

Não existe homogeneidade na sua observação,<br />

complexidade no seu raciocínio.<br />

O seu espírito não tem nem aquela facilidade<br />

dúctil, nem aqueles atrevimentos razoáveis e admissíveis<br />

do poeta.<br />

É possível que se encontre sinceridade nas suas<br />

doutrinas mas para os outros, porque S.S. não professa<br />

as doutrinas que expõe.<br />

Fala de progresso, de arte, de evolução, apresentanos<br />

os seus dados filosóficos e – apoteosifica, endeusa<br />

as guerras, porque endeusa os seus heróis.<br />

Quando hoje, na vanguarda triunfante do<br />

evolucionismo, não pode, não deve seguir a guerra, senão<br />

como um escarro de sangue atirado à face da luz.<br />

Porque é preciso não confundir evolucionismo com<br />

moda.<br />

Há espíritos alheios de intuição, da percepção clara<br />

das coisas, que, dizendo-se modernos, evolucionistas,<br />

adiantados – não estudam profundamente a organização<br />

desse vocábulo.<br />

E Evolucionismo é a direção racional que tomam<br />

todos os cérebros, ante os fenômenos patológicos,<br />

psicológicos e fisiológicos é a fonte elementar onde se<br />

bebem todos os princípios da verdade, toda a sua saúde


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 269<br />

do pensamento; o Evolucionismo é que nos apresenta as<br />

causas primordiais do existir, as transformações da<br />

matéria, os necessários terremotos do Cosmos universal.<br />

É pelo Evolucionismo que o homem compreende,<br />

vê, sabe, conhece os poderes que tem para olhar, para<br />

ouvir, para pensar.<br />

Com o Evolucionismo é que o homem se apodera<br />

dos direitos da sua animalidade – alargando, estendendo<br />

os conhecimentos diversos.<br />

É no Evolucionismo que pairam todas as crenças<br />

robustas desta humanidade pensadora, que trabalha<br />

para a educação de todas as consciências que ainda<br />

não entenderam o seu lugar sobre a terra.<br />

Dentro pois do Evolucionismo, em toda a sua<br />

acepção, deve girar a esperança do poeta, como um<br />

pêndulo enorme, oscilando de entre a curvidade azulada<br />

dos espaços amplíssimos.<br />

Nestas horas em que a civilização vai rasgando<br />

todos os horizontes compactos de treva, não há meios<br />

termos, ou o escritor se adapta à sua época ou morre –<br />

ou tem músculos para galgar a montanha de verdade<br />

filosófica ou estaciona pelas estradas das quimeras e<br />

das dúvidas que não guiam, mas adoecem profundamente<br />

os crânios.<br />

Para se rasgar a crosta do anônimo, é preciso<br />

cotovelos de bronze, escreveu alguém, isso.<br />

E o sr. Damasceno Vieira, já não está do lado do<br />

anônimo...<br />

Mais um esforço sobre si mesmo e estará do lado<br />

justo da verdade.<br />

O seu livro não é um – Grito de Guerra.<br />

É um clamor que não se sabe bem de que trombeta<br />

foi saído.<br />

Não se pode analisar, de boa atitude, a escala e<br />

os sons.<br />

A Musa Moderna – segundo a sua estrutura, a sua<br />

essência, não é um livro que possa atravessar futuros e


270 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

entrar no conclave dos poetas da musa incontestavelmente<br />

moderna.<br />

O sr. Damasceno Vieira que encaminhe o seu<br />

espírito por outras veredas, que atravessa a floresta da<br />

existência... intelectual, como um leão e que sinta em<br />

si o bronze inabalável da coragem, na frase de Guerra<br />

Junqueiro, a encouraçar-lhe o peito das suas convicções.<br />

Regeneração, Desterro, 9, 10 e 11 jun., 1885.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 271<br />

MANHÃ NO CAMPO<br />

A Eliseu Guilherme<br />

Quase manhã.<br />

Vagos bocejos de vida, ainda, nas compriduras<br />

verdes dos campos.<br />

A natureza estremunha.<br />

Uma pessoa como que tem ímpetos de sorver o ar<br />

fresco que paira sobre as coisas, de infiltrar nos pulmões<br />

largas baforadas de oxigênio.<br />

Bebe-se o leite quente das cabras monteses e<br />

peraltas, que andam a saltar as cercas tufadas de<br />

jasmins e rosas agrestes, para as várzeas distantes.<br />

Os bois saem das manjedouras na silenciosidade<br />

dos túmulos.<br />

Mugem, mais além, desconsoladoramente.<br />

É que vão para a cidade.<br />

As fontes estão como se alguém se lembrasse de<br />

espalhar um punhado de sombras, por elas.<br />

Sente-se apenas a cristalinidade, o som metálico<br />

de seus veios fartos.<br />

O lavrador acorda para o plantio, revolvendo,<br />

aradeando a terra, como quem prepara um ventre para<br />

a fecundação animal.<br />

Rompem do chão a vitalidade saudável e o frescor<br />

que a seiva introduz nos vegetais.<br />

Para longe, nos sítios afastados, os galos, como<br />

sentinelas, dialogam monótonos alertas, cantaroladoramente.<br />

Nos firmamentos altos e longos, baralha-se uma<br />

confusão de cores.<br />

Ora um amarelo-gema de ovo, claro, vai morrer<br />

num sulfurino vivo; uns chamalotes de prata, muito alva<br />

e nítida, perdem-se num roxo-violeta; cintilações<br />

rosadas unificam-se a escumilhas com tonalidades de<br />

chumbo; um azul-ferrete limpo, amalgama-se ao<br />

escarlate vibrante, que parece cantar.


272 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Como que se sente o cheiro ativo e o gosto dos<br />

coloridos.<br />

E o sol, como uma cobiça de ouro, como o fruto do<br />

Bem procriador, lá vem vindo, na vermelhidão do fogo<br />

das coivaras, atrás dos reposteiros pardos da montanha,<br />

que agora rasgam-se...<br />

Regeneração, 12 jul., 1885.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 273<br />

UMA LENDA<br />

Ao sr. M. das Oliveiras Margarida<br />

É uma lenda fantástica, a vida dos imigrantes da<br />

luz.<br />

Eu conheço uma dessas compleições, batida pelos<br />

ventos desordenados de um milhão de desgraças,<br />

estrangulada pelo guante fatal de indiferenças atrozes<br />

e que, como todo o boêmio do Ideal dourado, sente cantar<br />

dentro de si a balada saudosa, estribilhada de esperanças<br />

e de crenças, metido numa tebaida de asceta, tendo,<br />

talvez, uma gargalhada de Polichinelo, para a sociedade<br />

que passa, tilintando os guizos da loucura e do prazer.<br />

E, pela calada harmônica da tarde, quando o céu<br />

profundamente azulado parece uma turquesa enorme;<br />

quando a natureza veste a escumilha finíssima do<br />

crepúsculo, cortado pelas badaladas melancólicas da Ave-<br />

Maria, ele passa, com o seu tronco curvado, barba de<br />

profeta antigo, as mãos fartas de rosas, caminho direito<br />

ao cemitério, na atitude calma e triste de quem se quer<br />

remontar pelo pensamento, a algum passado mavioso e<br />

bom, fico cismando porque é que a terra criadora não<br />

lhe introduziu, não lhe infiltrou nos poros, toda aquela<br />

mocidade castíssima e doce das filhas, cuja campa ele<br />

vai sempre cobrir de flores e de lágrimas?!<br />

Por que a seiva exuberante, do que é novo e forte,<br />

não pode emprestar vida aos organismos velhos e<br />

magoados?!<br />

Por que todo o sangue fecundo dos corpos há de<br />

apenas fortalecer os nervos e os músculos das plantas,<br />

dar o grão germinativo à saúde dos vegetais?!...<br />

Ah! Daudet, Daudet!...<br />

Tens razão em deplorar a morte das fadas!...<br />

Se existissem fadas, eu lhes pediria um palácio<br />

de ouro, com escadarias de marfim, portas de esmeraldas<br />

e safiras, iluminado por cem sóis representando lustres,<br />

guardado por mil fortalezas de bronze, onde habitasse,<br />

numa irradiação de estrelas, essa outra fada olímpica –<br />

a mocidade.<br />

O Moleque, Desterro, 2 ago., 1885.


274 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

A ROMARIA DA TRINDADE<br />

Tradicionalismo é a filosofia do povo e faz acordar<br />

em nossas almas, como o eco de uma balada longínqua<br />

e saudosa, perdida na distância azul dos montes cobertos<br />

de neblina, tudo o que viveu de esperanças, tudo o que<br />

viveu de sonhos e felicidades.<br />

Esta romaria que se faz à Trindade é tradicional<br />

e festiva.<br />

A certa hora do dia, começa a afluir gente:<br />

carroças de molas perras e gastas, enfeitadas de<br />

fazendas de cores vibrantes e fortes onde sobressai o<br />

escarlate, com grandes penachos coloridos de flores e<br />

fitas, radiantes de bandeirolas, conduzindo dentro toda<br />

uma rapaziada ávida de troça, de pândega, gargalhando<br />

alto no ar calmo e iluminado o seu bom humor de<br />

romaristas, cascaquinando ditos, numa algazarra franca<br />

de consciências despreocupadas e jovens, aos estridentes<br />

sons metálicos da banda fanfarrona que atira os seus<br />

agudos de requinta e os seus abertos e rasgados de<br />

trombone pela estrada adiante.<br />

Simpáticas amazonas nos seus cavalos mansos e<br />

dóceis, como convém ao sexo, deixando ondular aos<br />

ventos o véu azul e roxo e branco e verde dos seus<br />

chapelitos altos, cartolados, pretos, dando-lhes,<br />

colocados na cabeça gentil e estética, uma aparência<br />

de cavaleiras fantásticas do ideal indo à romaria da moda<br />

e da elegância.<br />

Depois, já na Trindade, uma aglomeração ruidosa<br />

do povo, de todo o colorido e de toda a casta, como uma<br />

aquarela imensurável feita a largos traços quentes de<br />

verde-paris, de amarelo e de uma grande porção de<br />

borrões estirados e grossos de tinta encarnada. Ao ar<br />

livre, ou debaixo das laranjeiras cobertas de fruto que<br />

os raios do sol um tanto já perpendiculares mais<br />

enlourecem e douram, ou nas barracas de lona e de<br />

aniagem, nas velhas barracas tradicionais, come-se à


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 275<br />

fartela, numa deglutição furiosa, bebendo-lhe em cima<br />

um péssimo vinho picante temperado a pão campeche e<br />

a cana miúda, o belo farnel querido que se leva em<br />

cabazes ou acondicionado nas maxam-bombas ou no charà-bancs:<br />

o farnel crônico e frugal da galinha assada, da<br />

mortadela, da sardinha e do aperitivo lombo de porco,<br />

tostado e porejando gordura.<br />

A seu tempo, os sinos bimbalhantes vibram no ar,<br />

abrindo naquela atmosfera de festa e de rumor, um vivo<br />

clarão de alegria, e os foguetes estourantes e<br />

estrepitosos, com a marcha brava e pomposa da música,<br />

põem em tudo aquilo espalhafatosos e murmúrios, como<br />

o eterno zumbir de cem colméias trabalhadoras e amigas.<br />

Então, numa gala de púrpura e de arminho, saem<br />

da igreja, S.M. infantis e ingênuas, num sorriso feliz de<br />

crianças festejadas, comendo as balas ou as massas,<br />

em forma de boizinhos e bonecas, que a boa mamãe ou o<br />

festeiro lhes trouxera todo expansivo e contente. Dá-se<br />

por concluída a festa da igreja e, no mesmo instante,<br />

vêem-se grupos que altercam, indivíduos e avinhados e<br />

congestos que questionam, que gritam, fazendo estourar<br />

murros sobre as pequenas mesas toscas das barracas,<br />

alvoroçando a polícia que apita e chega sempre tarde e<br />

as cavalgaduras que rincham e dão pinotes correndo<br />

algumas à rédea solta pela planura relvosa do adro.<br />

Mais tarde, ao descambamento lento do dia, o<br />

regresso à cidade, em grupos, aos pares, trôpegos,<br />

cansados e frouxos como quem vem em debandada,<br />

carregados, mulheres e homens, de laranjas, de canas,<br />

de flores, de preguiça, e de tédio da viagem que deixa<br />

de ter agora toda a satisfação e todo o prazer, por se ter<br />

já acabado toda a graça e todo o contentamento que a<br />

gente sente ver acabar no domingo pachorrento e<br />

tranqüilo como um domingo de Páscoa.<br />

Regeneração, 5 jun., 1887.


276 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

O ABOLICIONISMO<br />

A ação que o Abolicionismo tem tomado nesta<br />

capital é profundamente significativa. Nem podia ser<br />

menos franca e menos sincera a adesão de todos a esta<br />

idéia soberana, à vista dos protestos da razão humana,<br />

do patriotismo e do caráter nacional ante tão bárbara e<br />

absurda instituição – a do escravismo.<br />

A onda negra dos escravocratas tem de ceder lugar<br />

à onda branca, à onda de luz que vem descendo,<br />

descendo, como catadupa de sol, dos altos cumes da<br />

idéia, preparando a pátria para uma organização futura<br />

mais real e menos vergonhosa. Porque é preciso saberse,<br />

em antes de se ter uma razão errada das coisas,<br />

que o Abolicionismo não discute pessoas, não discute<br />

indivíduos nem interesses; discute princípios, discute<br />

coletividade, discute fins gerais.<br />

Não vai unicamente pôr-se a favor do escravo pela<br />

sua posição tristemente humilde e acobardada pelos<br />

grandes e pelos maus, mas também pelas causas morais<br />

que o seu individualismo traz à sociedade brasileira,<br />

atrasando-a e conspurcando-a.<br />

Não se liberta o escravo por pose, por chiquismo,<br />

para que pareça a gente brasileira elegante e graciosa<br />

ante as nações disciplinadas e cultas. Não se<br />

compreendendo, nem se adaptando ao meio humanista<br />

a palavra escravo, não se adapta nem se compreende da<br />

mesma forma a palavra senhor.<br />

Tanto tem esta de absurda, de inconveniente, de<br />

criminosa, como aquela.<br />

Se a humanidade do passado por uma falsa com<br />

preensão dos direitos lógicos e naturais, considerou que<br />

podia apoderar-se de um indivíduo qualquer e escravizálo,<br />

compete-nos a nós, a nós que somos um povo em via<br />

de formação, sem orientação e sem caráter particular<br />

de ordem social, compete-nos a nós, dizíamos, fazer<br />

desaparecer esse erro, esse absurdo, esse crime.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 277<br />

Não se pense que com a libertação do escravo,<br />

virá o estado de desorganização, de desmembramento<br />

no corpo ainda não unitário do país.<br />

Em toda a revolução, ou preparação de terreno<br />

para um progredimento seguro, em todo o<br />

desenvolvimento regulado de um sistema filosófico ou<br />

político tem de haver certamente, razoáveis choques,<br />

necessários desequilíbrios, do mesmo modo que pelas<br />

constantes revoluções do solo, pelos cataclismos pelos<br />

fenômenos meteorológicos, descobrem-se terrenos<br />

desconhecidos, minerais preciosos, astros e constelações<br />

novas. O desequilíbrio ou o choque que houver não pode<br />

ser provadamente sensível, fatal para a nação. Às forças<br />

governistas compete firmar a existência do trabalho do<br />

homem tornado repentinamente livre, criando métodos<br />

intuitivos e práticos de ensino primário, colônias rurais,<br />

estabelecimentos fabris, etc..<br />

A Escravidão recua, o Abolicionismo avança, mas<br />

avança seguro, convicto, como uma idéia, como um<br />

princípio, como uma utilidade. Até agora o maior poder<br />

do Brasil tem sido o braço escravo: dele é que partem a<br />

manutenção e a sustentação dos indivíduos de pais<br />

dinheirosos; com o suor escravo é que se fazem<br />

deputados, conselheiros, ministros, chefes de Estado.<br />

Por isso no país não há indústria, não há índole de vida<br />

prática social, não há artes.<br />

Os senhores filhos de fazendeiros não querem ser<br />

lavradores, nem artífices, nem operários, nem músicos,<br />

nem pintores, nem escultores, nem botânicos, nem<br />

floricultores, nem desenhistas, nem arquitetos, nem<br />

construtores, porque estão na vida farta e fácil,<br />

sustentada e amparada pelo escravo dos pais, que lhes<br />

enche a bolsa, que os manda para as escolas e para as<br />

academias.<br />

De sorte que, se muitas vezes esses filhos têm<br />

vocação para uma arte que lhes seja nobre, que os<br />

engrandeça mais do que um diploma oficial, são obrigados


278 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

a doutorarem-se porque se lhes diz que isso não custa e<br />

que poderão, tendo o título, ganhar mais facilmente e<br />

até sem merecimento, posições muito elevadas; e mesmo<br />

porque, ser artista, ser arquiteto, ser industrial, etc., é<br />

uma coisa que, no pensar acanhado dos escravocratas,<br />

dos retrógrados e dos egoístas, não fica bem a um nhonhô<br />

nascido e criado no conforto, no bem-estar no gozo<br />

material da moeda dada pelo braço escravo.<br />

Regeneração, Desterro, 22 jun., 1887.


GEMA CUNIBERTI<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 279<br />

Esta grande atrizinha, que por toda a parte foi<br />

muito admirada, deixou o teatro e reside em Turim, onde<br />

seus pais a fazem estudar literatura.<br />

A inteligente menina tem surpreendido os seus<br />

mestres com os progressos que vai fazendo, revelandose<br />

já uma poetisa de estro elevado.<br />

A princípio custou-lhe a abandonar a cena, mas<br />

hoje raras vezes vai a espetáculos e dedica-se aos estudos<br />

com tanto aproveitamento, que tornam-se<br />

extraordinárias a sua intuição e o seu talento precoce.<br />

Regeneração, Desterro, 20 jul., 1887.


280 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

A NOITE DE SÃO JOÃO<br />

Nunca o meu provinciano peito de artista vibrou<br />

mais forte, mais rijo e mais fremente do que vibra nessas<br />

deliciosas festas populares onde a minha infância acorda,<br />

canta e sonha feliz.<br />

Tão belos, tão expressivos e harmoniosos são esses<br />

festejos, que o cérebro se incendeia dos lumes navios<br />

da imaginação para desenhá-los, para pintá-los a largos<br />

traços comovidos, sinceros e quentes como o vivo clarão<br />

de amor que eles trazem às coisas adormecidas e mortas<br />

nas recordações passadas.<br />

Oh! que painel aí se desenrola, na frente dos<br />

nossos olhos, cheio de meiga ternura do tempo que<br />

passou que não volta mais!<br />

É num terraço, numa praia ou num pedaço de rua<br />

que se passam estas cenas de costumes, estes episódios<br />

característicos que afagam a nossa memória.<br />

Desceu a noite já. Faz um luar que dá gosto. Oh!<br />

como a lua é lírica no Azul!<br />

As verduras pulverizadas de luz, escorrendo prata<br />

líquida, numa crua irradiação branca, reluzem com a<br />

nitidez e o brilho dos alvos blocos de mármore.<br />

Para lá da terra firme, além de uma curta divisa<br />

de mar manso navegável em canoas, num ponto que os<br />

olhos distinguem claramente bem, uma aragem fresca,<br />

leve, como um sopro musical de flauta campestre, afia<br />

nos canaviais viçosos que se agitam branda e<br />

suavemente.<br />

Porém na rua umas vozes contentes e sonoras<br />

gritam cheias de mocidade e frescura: Olá! João, anda<br />

cá; vamos às canas. Pague! Pague! Hoje é o seu dia.<br />

Viva S. João! Viva S. João.<br />

E o João, um rapaz que passara ali assobiando,<br />

jovial e franco, ria alegria da sua alma chã, entra numa<br />

venda, paga vinho, um rico vinho cor de topázio bebido<br />

entre a algazarra dos companheiros e os entusiasmos<br />

bruscos e metálicos do homem da onda que faz tinir os<br />

cobres, todo risonho, na gaveta do balcão.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 281<br />

E as canas, João, e as canas, repetem as vozes.<br />

E o João paga de novo, e de novo a algazarra cresce,<br />

os vivas, as aclamações, os prazeres que estouram nas<br />

almas desses bons rapazes, como as bichas e os buscapés<br />

ziguezagueantes que eles soltam em pândega, nos<br />

largos, no meio de muita gente reunida, dispersando<br />

tudo, entre galhofas e risadas.<br />

Mas a noite de S. João dobra de encantos e de<br />

enlevos.<br />

Agora as rubras fogueiras crepitantes estendem<br />

a sua ardente chama loura e alegre na frente das casas;<br />

agora a rapaziada – crianças saltam as fogueiras, velhos<br />

sentados ao redor delas contam uns aos outros<br />

interessantes histórias de bruxa e de alma do outro<br />

mundo, aquecendo-se do frio da noite e fazendo às vezes<br />

ressoar no claro ar sereno a nota cristalina de uma<br />

cantiga de ritmo ameníssimo e simples, com o motivo da<br />

festa, tremida e repenicada na voz misteriosa e cheia<br />

de saudades amadas.<br />

Então! olha essas batatas que saiam – gritam cá<br />

de fora para o interior da casa. O fogo está bom. Venha<br />

isso. Maria traz as batatas e as canas, traz também o<br />

aipim. Vamos assar. Êta diabo! O fogo está mesmo bom,<br />

está pedindo coisa. Então. Venha isso!<br />

De repente alguém exclama: Vamos ao terço do<br />

seu João da passagem; principia às oito, são sete. Hoje<br />

há lá forrobodó, há comes e bebes, vai orquestra. Vamos!<br />

E vão-se todos ao terço do seu João da passagem.<br />

Aí há muita gente, a sala parece um ovo, diz uma<br />

rapariga; e, no centro de um altar armado em dossel,<br />

esplandecente de luzes, de alfaias, de jarras azuis e de<br />

flores, o S. João Batista todo imaculado e tranqüilo,<br />

satisfeito e sorridente, com o seu rosto roliço e doce,<br />

gordo e macio, destaca de um quadro em moldura<br />

dourada, em estampa, do fundo de um nimbo cinzento,<br />

muito colorido e crespo, com uma tanga escarlate,<br />

abraçado com o cordeiro divino que olha para a gente<br />

com os seus olhos irracionais e pequeninos pleno de<br />

docilidade, de mansidão e de paz.


282 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Então a dona da casa, a sinha Jacinta que vem lá<br />

de dentro toda redonda, como uma roda de fogo, de saias<br />

engomadas, de babados e de tufos, diz que o terço vai<br />

começar.<br />

Aí um capelão prosa e pernóstico põe todo o seu<br />

saber sacerdotal à vista dos devotos e ingresa um latino<br />

onde há muito orum, retumbado, cantarolado e<br />

pavonesco, numa melopéia fúnebre.<br />

Depois a rapaziada cai na patusca arrastação de<br />

pés, e dança, gingada e requebrada, ao som da orquestra<br />

que fere as polcas do Calado e as quadrilhas do Mesquita,<br />

de uma melodia delicada, original e vibrante, cheia de<br />

guizos, como uma partitura de Offenbach ou de Souppé.<br />

No intervalo das contradanças bebe-se Carlsberg<br />

e comem-se os belos bombocados saborosos que cocegam<br />

aperitivamente o céu da boca, e as brancas e rosadas<br />

cocadas em forma de estrela que lembram a Bahia tal é<br />

o paladar do coco de que elas são feitas.<br />

No meio disso, tiram-se sortes; uma espécie de<br />

consulta ao destino: para a gente saber se morrerá cedo<br />

ou tarde, se casará, terá este ou aquele desejo, etc..<br />

Divertimento esse que dá às pessoas que nele tomam<br />

parte um contentamento e uma felicidade luminosa que<br />

escorrem nas fisionomias como um óleo celeste de<br />

esperança e de fé remoçando e fortalecendo a velhice e<br />

consolando e abençoando a todos.<br />

No fim desse passatempo agradável e das últimas<br />

contradanças de grandes e frenéticos galopes<br />

entusiásticos, todo o mundo volta para as suas casas,<br />

bastante tarde, no silêncio da noite já sem lua, mas<br />

estrelada e bonita, de um amarelado tom de madrugada<br />

cor de limão sem mais ruído notável de prazer; apenas<br />

animada por um ou outro foguete tardio, que, ao longe,<br />

aqui e ali, como esquecido elemento da festa, ou como<br />

um indiferente conviva que chega tarde, estala, e brilha<br />

no ar saudosamente.<br />

Regeneração, 18 set., 1887.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 283<br />

ENTRE CIPRESTES<br />

(No dia de finados)<br />

Viva a morte! Aqui estão sob estes ciprestes, nas<br />

geladas criptas sombrias dos vermes, as mulheres louras,<br />

esses pálidos luares de neve que deliciam; as mulheres<br />

morenas esses ardentes sóis tropicais que matam. Aqui<br />

estão. Quanta vez, nas lagoas brancas da alma delas a<br />

alva-garça do sonho não vagueou e rufou as asas. Quanta<br />

vez, as vermelhas rosas da quimera, como flores de<br />

aurora, não perfumaram a religiosa eucaristia mística<br />

do seu coração? Quanta vez? E agora? Agora aquelas<br />

esperanças não florescem nem abrem mais os lírios<br />

puríssimos daqueles olhos não recenderão mais de<br />

aromas imaculados e doces, não estrelarão mais de<br />

afetos o céu agora vazio da existência de muitos homens.<br />

Tudo acabou, tudo gelou desapiedadamente nesta crua<br />

treva da terra, aqui, lá embaixo, no profundo Nirvana<br />

para onde se desce hirto, de dentes cerrados, num<br />

resfriamento material que dói.<br />

Foi-se tudo nestas paragens da eterna noite<br />

incoercível, entre estes ciprestes que grasnam o pulvis<br />

est no tremendo repouso lúgubre dos mochos: Viva a<br />

Morte! Viva a Morte! e que vai ecoando funebremente.<br />

E além, sob os chorões desgrenhados como<br />

imensas cabeleiras verdes, estende-se a galeria dos<br />

mortos de luxo, belos mortos aristocratas cheios de anéis<br />

nos dedos e reluzentes crachás no peito: príncipes,<br />

cavalheiros da legião de honra, e duques, que ostentam<br />

os seus pomposos exílios mortuários onde se exilaram<br />

para sempre vindos do país da vida, entre lágrimas<br />

ignorados desmentidos em jornais comunistas e<br />

demagógicos, desses que gritam contra o conforto e a<br />

suprema felicidade dos reis que as mais das vezes andam<br />

errantes e loucos de tédio e de dor nas imponências da<br />

corte enquanto lá fora, nas praças, o populacho se


284 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

alvoroça e exalta fazendo ressoar nas pedras de pátios<br />

de palácios os seus grossos sapatos revolucionários.<br />

E os mochos repetem: Viva a morte! Viva a morte!<br />

E a galeria dos mortos continua: Cá estão as mães<br />

sofredoras, as mães que choraram, que gemeram, que<br />

soluçaram, que endoideceram de amor de pesar na<br />

existência dos filhos; e cá estão também os filhos homens<br />

uns, já responsáveis da vida; com a idade da luta,<br />

esboroados de sofrimentos, martirizados até o desespero;<br />

crianças outros, como botões de rosas em antes de abrir,<br />

como beijos que petrificaram tão cedo, tão de madrugada,<br />

tão nos translucidamente e na inefável paz da quermesse<br />

da vida infantil na qual os sorrisos são as jóias<br />

preciosíssimas, as delicadas prendas adoráveis e<br />

estremecidas.<br />

Mas, viva Deus! a este soturno e convulso chorar<br />

de mágoas e de saudades dos ciprestes esguios<br />

respondem ainda assim, vitoriosamente, como um clarim<br />

de batalha, as rosas que rebentam como corações<br />

perfumados pelos aromas do céu, as vermelhas rosas<br />

que ao menos cantam nestas regiões tristes a canção<br />

alegre do sangue que lembra a vida, a vida escorrendo<br />

em grandes borbotões do fogo enorme do sol e da seiva<br />

profunda das árvores. Viva Deus!<br />

Regeneração, Desterro, 19 nov., 1887.


A VIDA NAS PRAIAS<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 285<br />

Ah! a vida nas praias! a vida nas praias!<br />

Pela manhã a claridade esterificada e igual que<br />

aveludece as perspectivas convida-nos aos belos passeios<br />

pitorescos sobre a areia clara das praias – passeios que<br />

têm tanto de artístico como de científico. Artístico porque<br />

nos dão a firmeza da linha estética na imaginação que<br />

recorda viagens sobre os mares calmos, horizontes novos;<br />

largos jorros de vida saudável e de frescura matinal nas<br />

toldas de navios transatlânticos, quando em antes do<br />

almoço de bordo se estuda e se observa a binóculo os<br />

pontos afastados da natureza que se iluminam pouco a<br />

pouco com o dia. Científico porque se estuda também<br />

um modo prático, intuitivo e gracioso de insuflar azoto<br />

no sangue, de tornar temperada a extravagante<br />

temperatura do corpo, de oxigenar o cérebro cujo fósforo<br />

se acende de aticismo e de bom humor.<br />

A vida nas praias é uma espécie de educação física<br />

dos nervos que ginasticam e ficam preparados para todas<br />

as evoluções musculares que dão à rijeza das formas<br />

essa aparência da fortaleza seivosa dos troncos das<br />

árvores. E as ondas do mar esfarelando-se numa<br />

espumarada branca de champagne ao longo das praias,<br />

têm o ingênuo ar de candidez do desenho d’A Natividade,<br />

de Wagrez, sob uma nítida gravura de Baude. E os<br />

temperamentos ásperos e montanhos como que se<br />

docilizam, como que se amaciam, recebendo as<br />

emanações de saúde e força vital que as marés lhes<br />

infiltram, enquanto que as epidermes anêmicas,<br />

mordidas pela clorose enervante das grandes paixões<br />

que gelaram, tornam-se sangüíneas, tomam cor, da<br />

mesma forma que o fruto amadurece e se ruboriza aos<br />

ardentes clarões solares.<br />

O sentimento vegetal que vem da existência<br />

passada em prados, entre searas e campos agrícolas,


286 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

tem um quê de correlativo e harmônico com a vida nas<br />

praias.<br />

Há em ambas as vidas uma completa afinação de<br />

detalhes, o mesmo tom geral quase.<br />

A vida nas praias é a vida na natureza livre, no<br />

vastíssimo lar de todos nós, cujo teto azul, lá no alto, se<br />

arredonda côncavo sobre as nossas cabeças. A vida<br />

vegetal, a vida dos prados, das searas e dos campos<br />

agrícolas, é a vida primitiva, a vida livre também, a vida<br />

pagã, a vida das vinhas carregadas de uvas maduras e<br />

saborosas, como de ametistas, a vida dos primeiros<br />

israelitas que iam ao morrer abrir e armar as tendas<br />

floridas das suas almas nuas e chãs no dourado território<br />

da glória eterna onde uma aluvião de pombinhos alvos,<br />

emissários do Espírito Santo, os havia de receber e<br />

arrulhar em redor das suas frontes venerandas coroadas<br />

e sagradas pelo resplendor dos cabelos brancos.<br />

E, por um desses dias que amanhecem enevoados,<br />

cerrados dos reposteiros das neblinas, e que depois<br />

surgem resplandecentes, vertiginosos de sol, com um<br />

azul muito intenso brunido no céu; num desses dias<br />

que parecem emergidos de um banho de ouro fluido, dá<br />

um consolo e uma satisfação tamanha passear à beira<br />

das praias, com os altos sossegos da voz, contemplando<br />

o efeito ridente e sereno da marinha quando na láctea<br />

transparência casta do ar voam as aves em circumevoluções<br />

pela paisagem toda e que a gente as segue<br />

demoradamente com a vista; lembrando-se de viajar<br />

assim com elas, de prender nas suas asas a alma com a<br />

fita verde da esperança uma vez que não pode prender o<br />

corpo pesado de chumbo que mais tarde a terra há de<br />

achar tão leve como uma pena destruindo-o sem esforços<br />

nem piedade.<br />

E o nosso espírito artístico, batido pelas<br />

impetuosidades higiênicas das aragens frescas do mar,<br />

sente-se rejuvenescido, vitalizado, num renascimento<br />

e numa eflorescência de rosas brancas, como um viajante


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 287<br />

eletrizado no forte ambiente de luz de uma purpureada<br />

aurora dos trópicos.<br />

Pela exuberância da cor e pela placidez da hora<br />

matinal a vida nas praias identifica-se com o sistema<br />

nervoso, aplica às espontâneas e disciplinadas<br />

organizações literárias uma ducha salutar de verve e<br />

de crítica – dessa crítica e dessa verve que nasce da<br />

tenra retina e da idéia muito passeada pelo grandioso<br />

panorama da natureza, sob uma rigorosa lente de<br />

observação e de análise em ordem.<br />

E, quando chegam as ameníssimas tardes<br />

enriquecidas pelas acesas e flamejantes pedrarias do<br />

ocaso, e que o tênue filó das nuvens leves e volantes se<br />

rarefaz e se adelgaça, é agradável, à viva percepção dos<br />

sentidos, é doce à delicadeza material do olfato e dos<br />

olhos ver passar para o banho as mulheres cor de jambo<br />

e cor de pérola, cujos perfis, movendo-se em flexões<br />

suaves e balanceadas, lá se vão mergulhar na onda clara,<br />

surgindo delas frescos, palpitantes e macios como a<br />

carne polposa, rosada e tenra das crianças cheirosas de<br />

vida e babadas do leite suspensas ao colo protetor e tépido<br />

das mães.<br />

Regeneração, 20 nov., 1887.


Missal<br />

Missal


290 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ORAÇÃO AO SOL<br />

Sol, rei astral, deus dos sidéreos Azuis, que fazes<br />

cantar de luz os prados verdes, cantar as águas! Sol<br />

imortal, pagão, que simbolizas a Vida, a Fecundidade!<br />

Luminoso sangue original que alimentas o pulmão da<br />

Terra, o seio virgem da Natureza! Lá do alto zimbório<br />

catedralesco de onde refulges e triunfas, ouve esta<br />

Oração que te consagro neste branco Missal da excelsa<br />

Religião da Arte, esmaltado no marfim ebúrneo das<br />

iluminuras do Pensamento.<br />

Permite que um instante repouse na calma das<br />

Idéias, concentre cultualmente o Espírito, como no<br />

recolhido silêncio de igrejas góticas, e deixe lá fora, no<br />

rumor do mundo, o tropel infernal dos homens<br />

ferozmente rugindo e bramando sob a cerrada metralha<br />

acesa das formidandas paixões sangrentas.<br />

Concede, Sol, que os manipanços não possam,<br />

grotescamente, chatos e rombos, com grimaces e gestos<br />

ignóbeis, imperar sobre mim; e que nem mesmo os Papas,<br />

que têm à cabeça as veneráveis orelhas e os chavelhos<br />

da Infalibilidade, para aqui não venham, com solene<br />

aspecto abençoador, babar sobre estas páginas os<br />

clássicos latins pulverulentos, as teorias abstrusas, as<br />

regras fósseis, os princípios batráquios, as leis de Crítica<br />

megatério.<br />

E faz igualmente, Sultão dos espaços, com que os<br />

argumentos duros, broncos, tortos não sejam<br />

arremessados à larga contra o meu cérebro como<br />

incisivas pedradas fortes.<br />

Livra-me tu, Luz eternal, desses argumentos<br />

coléricos, atrabiliários, como que feitos à maneira de<br />

armas bárbaras, terríveis, para matar javalis e leões<br />

nas selvas africanas.<br />

Dá que eu não ouça jamais, nunca mais! a<br />

miraculosa caixa de música dos discursos formidáveis!<br />

E que eu ria, ria – ria simbolicamente, infinitamente,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 291<br />

até o riso alastrar, derramar-se, dispersar-se enfim pelo<br />

Universo e subir, nos fluidos do ar, para lá no foco<br />

enorme onde vives, Astro, onde ardes, Sol, dando então<br />

assim mais brilho à tua chama, mais intensidade ao<br />

teu clarão.<br />

Pelo cintilar dos teus raios, pelas ondas fulvas,<br />

flavas, ó Espírito da Irradiação! pelos empurpuramentos<br />

das auroras, pela clorose virgem das estepes da Lua,<br />

pela clara serenidade das Estrelas, brancas e castas<br />

noviças geradas do teu fulgor, faculta-me a Graça real,<br />

o magnificente poder de rir – rir e amar, perpetuamente<br />

rir, perpetuamente amar...<br />

Ó radiante orientalista do firmamento! Supremo<br />

artista grego das formas indeléveis e prefulgentes da<br />

Luz! pelo exotismo asiático desses deslumbramentos,<br />

pelos majestosos cerimoniais da basílica celeste a que<br />

tu presides, que esta Oração vá, suba e penetre os<br />

etéreos paços esplendorosos e lá para sempre vibre, se<br />

eternize através das forças firmes, num som álacre,<br />

cantante, de clarim proclamador e guerreiro.


292 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

DOLÊNCIAS...<br />

Tu, na emoção desse encanto doloroso e acerbo<br />

da Arte, te sentirás, um dia, velho, fatigado, como um<br />

peregrino que percorreu ansiosamente todas as viassacras<br />

torturantes e perigosas.<br />

Essa maravilhosa seiva de pensamentos, toda essa<br />

púrpura espiritual, as vivas forças impetuosas do teu<br />

sangue, agindo poderosamente no cérebro, irão aos<br />

poucos, momento a momento, desaparecendo, num brilho<br />

esmaecido, vago, o brilho branco e virgem das estrelas<br />

glaciais.<br />

A tua alma será condenada à solidão e silêncio,<br />

como certas formosuras claustrais de monjas que<br />

brumalmente aparecem por entre as celas, deixando no<br />

espírito de quem as vê, quase que o mistério de um<br />

religioso esplendor...<br />

E, já assim emudecido e gelado para as nobres<br />

sensações do Amor, ficarás então como se estivesses<br />

morto – sem cabelos, sem dentes, sem nariz, sem olhos<br />

– sem nenhuma dessas expressões físicas que tornam<br />

os seres humanos harmoniosamente perfeitos.<br />

Em vão te recordarás da doçura de mãos<br />

aveludadas e brancas, da amorosa diafaneidade de uns<br />

olhos claros...<br />

As tuas Iedos, as tuas Lésbias e as tuas Aldas<br />

fluidamente te passarão na memória, alvas e frias...<br />

Por infinitamente tratar de idéias como de astros<br />

prodigiosos, sonhas-te com os opulentos, doirados<br />

prestígios da Glória; pensaste na Elevação como na<br />

solenidade augusta das montanhas.<br />

Mas, velho já, lembrarás um sol apagado, cuja<br />

forma material poderá persistir talvez ainda e cuja chama<br />

fecundadora e ardente se extinguirá para sempre...<br />

Não crer em nada, não sentir nada, não pensar<br />

nada, será a tua filosofia da senilidade. E, neste estado<br />

do ser, mais cruel que o Budismo, deixarás, como disse


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 293<br />

Heine, que a morte vá enfim tapar-te a boca com um<br />

punhado de terra...<br />

No entanto, pela tua retina cansada, desfilará tudo<br />

o que tu outrora amaste com intensidade: os ocasos<br />

afogueados, de verberações de metal sobre o mar e sobre<br />

o rio. Os finos frios radiantes, de azul resplandecente.<br />

A Lua, como estranha rosa branca, perfumando o ar,<br />

derramando lactescências luminosas nos campos<br />

alfombrosos. Os navios, as escunas e os iates, todas as<br />

embarcações admiráveis, que fazem sonhar, balouçando<br />

nas ondas, em relevos nítidos, em gravuras esmaltadas<br />

ao fundo dos horizontes.<br />

Tudo o que pensaste, o que trabalhaste pela Forma,<br />

com nervos e com sangue; tudo o que te deixou<br />

despedaçado, na amargura das lutas com o estilo e com<br />

a frase, cantará saudosamente no teu peito, cantará<br />

grandioso, solene, como os Salmos de Salomão.<br />

Com essa natureza mística, quase religiosa, que<br />

possuis, o Mundo te parecerá uma catedral vastíssima,<br />

colossal, de bilhões e bilhões de torres de cristal, de<br />

safira, de rubi, de ametista, de ônix, de topázio e<br />

d’esmeralda.<br />

E, à hora longínqua de profundo luar glacial e<br />

imóvel, de cada uma dessas torres surgirá um espectro<br />

branco dos teus sonhos, como uma ronda fantástica, e<br />

os sinos plangentemente vibrarão ao mesmo tempo, com<br />

tristezas noturnas e lancinantes, por todo o<br />

sepulcramento dos teus Ideais.<br />

E tu, velho, embora, na torre verde d’esmeralda,<br />

ficarás egrégio, vencedor, imortal, eterno, só e sereno,<br />

ao alto, sob as estrelas eternas...


294 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

OCASO NO MAR<br />

Num fulgor d’ouro velho o sol tranqüilamente<br />

desce para o ocaso, no limite extremo do mar, d’águas<br />

calmas, serenas, dum espesso verde pesado, glauco, num<br />

tom de bronze.<br />

No céu, de um desmaiado azul, ainda claro, há<br />

uma doce suavidade astral e religiosa.<br />

Às derradeiras cintilações doiradas do nobre Astro<br />

do dia, os navios, com o maravilhoso aspecto das<br />

mastreações, na quietação das ondas, parecem estar<br />

em êxtase na tarde.<br />

Num esmalte de gravura, os mastros, com as<br />

vergas altas, lembrando, na distância, esguios caracteres<br />

de música, pautam o fundo do horizonte límpido.<br />

Os navios, assim armados, com a mastreação, as<br />

vergas dispostas por essa forma, estão como que a fazerse<br />

de vela, prontos a arrancar do porto.<br />

Um ritmo indefinível, como a errante, etereal<br />

expressão das forças originais e virgens, inefavelmente<br />

desce, na tarde que finda, por entre a nitidez já indecisa<br />

dos mastros...<br />

Em pouco as sombras densas envolvem<br />

gradativamente o horizonte em torno, a vastidão das<br />

vagas.<br />

Começa, então, no alto e profundo firmamento<br />

silencioso, o brilho frio e fino, aristocrático das estrelas.<br />

Surgindo através de tufos escuros de folhagem,<br />

além, nos cimos montanhosos, uma lua amarela, de face<br />

chata de chim, verte um óleo luminoso e dormente em<br />

toda a amplidão da paisagem.


SOB AS NAVES<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 295<br />

Àquela hora, meio tarde no dia, não sei que<br />

compunção evangélica me assaltou, me invadiu a alma,<br />

que eu penetrei no templo iluminado.<br />

Altas naves sombrias pela névoa crespuscular da<br />

tarde, já em tons violáceos, abriam-se aos meus olhos,<br />

numa solene paz mística.<br />

Do alto do altar-mor vinha uma austera eloqüência<br />

de Religião, de Fé Católica, de Rito Romano.<br />

Velas amareladas e frias, de chama nobre e<br />

ardente, elevavam-se em tocheiros cinzelados, numa luz<br />

oscilante, trêmula às vezes por alguma momentânea<br />

aragem, como almas na indecisão do viver.<br />

Na capela do Santíssimo, rutilante de caros<br />

brocados e douraduras custosas, de fulgentes pratarias,<br />

de tons azulados e brancos de jarras esbeltas, uma<br />

lâmpada fulgurava, toda em esmaltes de prata, por entre<br />

a meia-tinta aveludada da hora, através do silêncio<br />

eucarístico, monástico da capela.<br />

Uma serenidade de força divinal, de majestade<br />

tranqüila, enchia o templo de um grande ar panteísta.<br />

Nos altares laterais, os santos, histerismos<br />

mumificados, no imortal resplendor das cousas abstratas,<br />

dos impulsos misteriosos que alucinam e por vezes fazem<br />

vacilar a matéria, tinham dolorosas e fortes expressões<br />

de luxúria.<br />

Eu sentia, sob aquelas rígidas carnes mortificadas,<br />

frêmitos vivos do sangue envenenado e demoníaco do<br />

pecado.<br />

E, de repente, não sei por que profana, tentadora<br />

sugestão, vi nitidamente Nossa Senhora descer aos<br />

poucos do altar, branca e muda, arrastando um manto<br />

estrelado, e, vindo anelante para mim, de braços abertos,<br />

dar-me, com os olhos claros de azul, profundos e celtas,<br />

infinitas, inefáveis promessas...


296 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Ah! naturalmente eu sonhara acordado, porque<br />

Tu, durante este meu sonambulismo de sátiro lascivo,<br />

subitamente entraste, trêfega, com vivacidades de<br />

pássaro, no templo iluminado; e eu então logo senti que<br />

os lindos olhos claros de azul que virginalmente se<br />

encaminharam para os meus, na ardência de um desejo,<br />

eram, por certo, os teus olhos, sempre meigos, sempre<br />

amorosos, ó luz, ó sol, ó esplendor dos meus olhos!


PAISAGEM<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 297<br />

Na colina da vila trepada no alto agrupam-se as<br />

casarias. Há sol. E na frente das casas caiadas de branco<br />

a luz vibra nervosamente, fazendo tremer a vista sob a<br />

crua irradiação da soalheira, como sob os flamantes bicos<br />

vertiginosos do gás da ribalta; enquanto que nas casas<br />

pintadas de amarelo e de vermelho quebra-se a forte<br />

intensidade da luz.<br />

Nestas ubérrimas regiões agricultáveis, de louras<br />

messes de produto, amanha-se a terra para a plantação<br />

da cana, da mandioca e do milho – do milho que nasce e<br />

cresce com as suas folhas compridas, flexíveis e largas<br />

como lustrosas, acetinadas fitas verdes.<br />

E vê-se agora, na grande extensão do campo, entre<br />

a verdura fremente de sol, a gente da lavoura, aplicada<br />

ao arado, ao alvião e à enxada – homens, mulheres e<br />

crianças, com os trajes da labuta, trabalhando e cantando<br />

queixas passadas que ecoam no ar tranqüilo,<br />

emprestando a essas paragens o pitoresco tom de vida<br />

de um desenho quente e colorido de leque chinês.<br />

Mais abaixo da roça, além de uma estreita ponte<br />

de pau-a-pique, que se atravessa a um de fundo, está o<br />

mar, fulgurante, profundamente calmo e liso, espelhando<br />

o céu, e cortado, às vezes docemente, por canoas à vela<br />

e a remo de voga que seguem para o mar grosso, ou por<br />

canoas a remo de pá que vão e voltam da pesca, cheias<br />

de peixe fresco que salta dentro, prateado e luzente,<br />

ainda vivo, com olhos vidrados de madrepérola, as<br />

guelras rubras e as barbatanas membranosas palpitando,<br />

no último anseio vão de se moverem na água.<br />

Ao lado direito da lavoura estão os engenhos de<br />

açúcar, de farinha e de arroz, com seu ar rústico,<br />

emadeirados de novo, no aspecto simples dessa vida rude<br />

do trabalho nos campos.<br />

Ao lado esquerdo há uma vasta eira de sólida<br />

argamassa de cimento romano, mandada fazer pelo


298 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

proprietário desses terrenos campestres e férteis, na<br />

qual se põem a secar, se debulham e limpam os cereais,<br />

pelo tempo das eiras, no outono, e onde os pequenos<br />

lavradores daqueles arredores brincam o Tempo-será, de<br />

cabeça nua ao fresco dos luares serenos que espalham<br />

grandes silêncios soturnos e misteriosos nas brancas<br />

estradas dos sítios.<br />

Quem anda por ali, nas estações primaveris, goza<br />

do panorama ridente da vila, refrescado de auras leves<br />

e puras, que vêm do mar; da resina que exalam as árvores<br />

à noite, salubrizando a atmosfera e dando às verdejantes<br />

campinas a frescura e a nitidez de uma gouache<br />

encantadora.<br />

E, quem for artista, e quiser percorrer ao longo da<br />

costa, até a uma gruta de pedras brancas, que ali há,<br />

formando um vulto agachado, ou ao longo da paisagem<br />

toda, nos descampados; ou ao comprido dos atalhos<br />

marginados de ervas agrestes e tufos de espinheiros<br />

abrindo em flor, ou ao direito do chão claro, arenoso e<br />

úmido das praias, há de sentir as mais pitorescas e<br />

vivas comoções da Natureza.<br />

De manhã, o gado que desce os vales, lento e<br />

dócil, aspirando a temperatura azotada, seguido pelo<br />

tropeiro que canta alegre no seu cavalo; os leiteiros,<br />

que vêm de longe, que passam para a cidade com o leite<br />

dentro de latas bojudas colocadas em paus que eles<br />

atravessam no ombro direito; as graciosas raparigas da<br />

roça, que levam a apascentar o rebanho das cabras<br />

monteses que saltam barrancos e carcavões, alígeras,<br />

lépidas, com os seus pequenos chifres pontudos, a<br />

Mefistófeles; os carros de boi, que chiam devagar,<br />

morosamente, na poesia do seu campestre ritmo<br />

simpático, atulhados de lenha e de cana rosa e guiados<br />

pelo campônio que vai na frente, munido de varapau,<br />

rosto grave e sóbrio, governando os benignos animais<br />

com a velha técnica arrastada e tremida na aspereza da<br />

voz – abençoada técnica que já vem de lá dos seus


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 299<br />

antepassados e que os seus queridos filhos e netos,<br />

depois, mais tarde, quando ele fechar os olhos, terão de<br />

a receber também, intacta, sempre a mesma, saturada<br />

do íntimo perfume intenso do passado, como uma<br />

herança eterna.<br />

À tarde, o gado que volta de abeberar-se, de arejar<br />

no campo, ao suave ocaso do dia, quando tintas multicores<br />

se esbatem no fundo dos espaços côncavos; os leiteiros<br />

que voltam com a féria arranjada, pitando, ou de cigarro<br />

atrás da orelha, assobiando meigas cantigas que<br />

aprenderam na infância e que se fundem à melancolia,<br />

à dolência da loira luz que morre – quando, no cimo da<br />

encosta, após a última badalada saudosa do Angelus,<br />

apagam-se os esboços e os contornos dos horizontes,<br />

caindo então sobre a terra a neblina cinzenta do<br />

crepúsculo...


300 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ASTRO FRIO<br />

Por entre celas místicas, silenciosas, lá te foste<br />

emudecer, para sempre, ó harmonioso e célebre pássaro<br />

do canto, nos pesados claustros.<br />

Cor de rosa e de ouro na iluminada sala dos<br />

teatros, trinavas para o alto inefavelmente, e, agora,<br />

não sei por que tormentosa paixão que te desolou um<br />

dia, ficaste infinitamente reclusa, sob os fuscos tetos<br />

de um convento, como uma rara rosa opulenta numa<br />

estufa triste, fugindo ao sol dos prados.<br />

Fria e muda, estarás, talvez, a estas horas,<br />

ajoelhada na capela de um Cristo glacial de marfim<br />

sagrado – branca, mais glacial e de mais branco marfim<br />

do que esse Cristo, com as níveas mãos de cera e a face<br />

também de cera macerada pelos jejuns e pelos cilícios,<br />

dentro de sombrias vestes talares.<br />

E, assim muda e assim fria, perpassarás como a<br />

sombra de um vivo afeto ou de um profundo sentimento<br />

artístico, ao frouxo clarão de âmbar das lâmpadas<br />

lavoradas.<br />

O teu alado perfil, as tuas linhas suaves, serão,<br />

no religioso crepúsculo da capela, como que a recordação<br />

do aroma, da luz, do som que tu para a Arte foste.<br />

Nos olhos, apenas uma centelha, uma leve faísca<br />

evidenciará o passado esplendor, o encanto que eles<br />

tiveram, quando amaram, cá fora no mundo, com as<br />

violências do desejo, com os ímpetos frenéticos,<br />

vertiginosos da carne.<br />

E os corações que te adoraram, que te ouviram<br />

outrora os incomparáveis gorjeios da garganta, que te<br />

sentiram a carnação formosa palpitando sob a vitória<br />

dos aplausos, ficarão saudosos e perplexos, ao ver-te<br />

agora assim para sempre enclausurada, para sempre<br />

gelada aos fulgores e sensações do mundo, mergulhada,<br />

enfim, na necrópole de um convento, como um astro<br />

através de frígidas e espessas camadas de neve...


BÊBADO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 301<br />

Torvo, trêmulo e triste na noite, esse bêbado que<br />

eu via constantemente à porta dos cafés e dos teatros,<br />

parara em frente do cais deserto, na alta, profunda hora<br />

solitária.<br />

Espadaúdo, de grande estatura, ombros fortes,<br />

como um cossaco, costumava sempre bater a cidade em<br />

marchas vertiginosas, na andadura bamba dos ébrios,<br />

indo pernoitar depois ali, perto das vagas, amigas eternas<br />

da sua nevrose.<br />

Um luar baço, enevoado, de quando em quando<br />

brilhava, abria, rasgando as nuvens, num clarão que<br />

iluminava amplas faixas de céu de um tom esverdeado,<br />

como folhagens tenras e frescas lavadas pela chuva.<br />

O Mar tinha uma estranha solenidade, imóvel nas<br />

suas águas, com uma larga refulgência metálica sobre<br />

o dorso.<br />

Da paz branca e luminosa da lua caía, na vastidão<br />

infinita das ondas, um silêncio impenetrável.<br />

E tudo, em torno, naquela imensidade de céu e<br />

mar, era a mudez, a solidão da lua...<br />

Junto ao cais, olhando as vagas repousadas, a<br />

taciturna figura do bêbado destacava em silhouette<br />

sombria.<br />

E ele gesticulava e falava, movia os braços,<br />

proferia palavras ásperas e confusas, como os<br />

tartamudos.<br />

Eu via-lhe as mãos, todo o corpo invadido por um<br />

convulsivo tremor, que não era, decerto, a desoladora e<br />

enregelada doença da senilidade.<br />

O seu aspecto, ao mesmo tempo piedoso e feroz,<br />

traduzia a expressão terrível que deixa o bronze<br />

inflamado da Dor calcinando naturezas nervosas e<br />

violentas, Trôpego, espectral, fazia pensar, pela<br />

corpulência, na massa formidanda de um desses ursos


302 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

melancólicos, caminhando aos boléus, como que numa<br />

bruma de pesadelo...<br />

Os seus grandes olhos d’árabe, muito perturbados<br />

pelo álcool, tinham o brilho amargo de um rio de águas<br />

turvas e tristes.<br />

Era talvez um desses seres nebulosos, gerados do<br />

sangue aventureiro e venenoso de uma bailarina e de<br />

um judeu, sem episódios pitorescos, frescos e picantes<br />

de alegria e saúde.<br />

Um desses seres tenebrosos, quase sinistros, a<br />

quem faltou um pouco de graça, um pouco de ironia e<br />

riso para florir e iluminar a vida.<br />

Alma sem humor – essa força fina e fria, radiante,<br />

que deu a Henri Heine tanta majestade.<br />

No entanto, quanto mais eu observava esse<br />

fascinado alcoólico, pasmando instintivamente, na<br />

confusão neblinosa da embriaguez, para as ondas<br />

adormecidas na noite, mais meditava e sentia as<br />

profundas visões de sonâmbulo que lhe vagavam no<br />

cérebro, as saudades e as nostalgias.<br />

Porque o álcool, pondo uma névoa no entendimento,<br />

apaga, desfaz a ação presente das idéias e fá-las recuar<br />

ao passado, levantando e fazendo viver, trazendo à flor<br />

do espírito, indecisamente, embora, as perspectivas, as<br />

impressões e sensações do passado.<br />

Nos límpidos espaços nem um movimento, um<br />

frêmito leve de aragem perturbava a harmoniosa<br />

tranqüilidade da noite clara, por entre os finos<br />

rendilhamentos prateados das estrelas.<br />

Mais amplo, mais vasto e sereno ainda, o silêncio<br />

descia, pesava na natureza, sobre os telhados, que<br />

pareciam, agrupados, aglomerados nos infindáveis<br />

renques de casas, enormes dorsos escuros de<br />

montanhas, de elefantes e dromedários.<br />

Sobrepujando, avassalando tudo, com expressões<br />

misteriosas da Idade Média, as elevadas torres das<br />

igrejas, como vigias colossais de granito, eretas para o


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 303<br />

firmamento na luminosa sonoridade do luar, tinham a<br />

nitidez dos desenhos.<br />

E a luz do astro noturno e branco, da Verônica do<br />

Azul, fria, congelada de mágoas, envolvia a face<br />

atormentada do bêbado como num longo sudário de<br />

piedades eternas...


304 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

SABOR<br />

Os ingleses, fidalgo entendimento de artista, para<br />

significar – o melhor – dizem na sua nobre língua de<br />

prata: the best.<br />

O que os ingleses chamam the best é finamente o<br />

que eu quero exprimir com a palavra – sabor – que, para<br />

a requintada espiritualidade, marca alto na Arte –<br />

filtrada, purificada pela exigência, pelo excentrismo da<br />

Arte.<br />

Após a delícia frugal de um lunch de frutas<br />

silvestres e claros vinhos, numa colina engrinaldada de<br />

rosas, quando o sol sob nuvens aparece e desaparece,<br />

numa confortante meia-sombra de luz, não é apenas o<br />

gozo das frutas e dos vinhos que te fica saboreando no<br />

paladar.<br />

O asseado aspecto do dia levemente frio,<br />

agulhante nas carnes, o ouro novo do sol em cima, a cor<br />

bizarra, correta do verde luxuoso, o gelo fresco e<br />

cristalino nas taças sonoras espumantes de líquidos<br />

vaporosos, e o viçoso encanto de formosas mulheres,<br />

rindo em bocas de aurora e dentes de neve – toda essa<br />

impressionante, alegre palheta de pintura à água, aflora<br />

num esplendor de gozo a que tu bem podes chamar o<br />

raro sabor das cousas.<br />

A clarividência na atitude dos perfis que a essa<br />

hora pintalgam a paisagem de colorido variado, o aroma<br />

que de tudo vem e que de tudo sobe para a serenidade<br />

azul, o ritmo simpático do momento, a lassitude branda<br />

de nervos, que engolfa as idéias numa larga felicidade<br />

amável – como em amplos coxins de arminho – todas<br />

essas preciosas maneiras e pitorescos estilos que dão<br />

linha, grande tom ao viver, fazem, enfim, que de tudo se<br />

experimente um radiante, aguçado sabor.<br />

Não basta, pois, o paladar. Esse, apenas,<br />

materializa. Não é, portanto, suficiente, que se sinta o<br />

sabor na boca, que se o examine, que se o depure, que


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 305<br />

se o saiba distinguir com acuidade, com atilamento. É<br />

necessário, indispensável que, por um natural<br />

desenvolvimento estético, se intelectualize o sabor, se<br />

perceba que ele se manifesta na abstração do<br />

pensamento.<br />

Para mim, as palavras, como têm colorido e som,<br />

têm, do mesmo modo, sabor.<br />

O cinzelador mental, que lavora períodos, faceta,<br />

diamantiza a frase; a mão orgulhosa e polida que, na<br />

escrita, burila astros, fidalgo entendimento de artista,<br />

deve ter um fino deleite, um sabor educado, quando, na<br />

riqueza da concepção e da Forma, a palavra brota, floresce<br />

da origem mais virginal e resplende, canta, sonoriza em<br />

cristais a prosa.<br />

Para a profundidade, a singularidade de todo o<br />

complexo da Natureza, o artista que sente claro entende<br />

claro, pensa claro, saboreia claro.


306 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

LENDA DOS CAMPOS<br />

Por uma doirada tarde azul, em que os rios, após<br />

as chuvas torrenciais, sonorizavam cristalinamente os<br />

bosques, os camponeses de uma vila risonha, numa<br />

unção bíblica, conduziam ao tranqüilo cemitério florido<br />

o loiro cadáver branco de uma virgem noiva, morta de<br />

amor, tão bela e tão nova, emudecida no féretro, como<br />

se tivesse acabado de nascer da rosada luz da manhã.<br />

Infantil ainda, viera outrora da Alemanha, através<br />

de castelos feudais, de montanhas alpestres, de árvores<br />

velhas e enevoadas...<br />

E, então, desde o dia da sua morte, uma lenda<br />

espalhou-se, como a dos Niebelungen, em todas aquelas<br />

cabeças ingênuas, rudes e humildes.<br />

Ela era a deusa fantástica, a visão encantada dos<br />

antigos palácios medievais de vidraçaria gótica, onde as<br />

rainhas mortas apareciam, brancas ao luar, à flor dos<br />

lagos e rios, suspirando toda a tragédia histérica dos<br />

convulsivos amores passados, que os ventos de hoje como<br />

que ainda melancolicamente repetem...<br />

Era a monja das ameias dos castelos feudais,<br />

graves e solenes, cheios de névoas alemãs, atravessados<br />

de fantasmas que fazem mover alvas e longas clâmides<br />

de linho no ar neutralizado da meia-noite...<br />

E, por altas horas, em certos dias, ao luar, a<br />

imaginação apreensiva dos homens e mulheres do campo,<br />

via uma virgem loira, de ignoto aspecto de ondina mágica,<br />

surgir do solo entre exalações fosforescentes, o coração<br />

traspassado de flechas inflamadas, arrastando<br />

soturnamente pela areia luminosa uma vasta túnica<br />

branca, os cabelos de sol soltos para trás, candidamente<br />

pálida, cantando a canção sonâmbula do túmulo e<br />

desfolhando grandes grinaldas de flores de laranjeira,<br />

cujas frescas e níveas pétalas cheirosas redemoinhavam,<br />

agitadas por um vento frio – pelo vento gelado e soluçante<br />

da Morte...


NOCTAMBULISMO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 307<br />

Enquanto, fora, na noite, gralha, grasna e grulha<br />

o Carnaval em fúria, vai, Mergulhador, rindo para o<br />

espaço a tua aguda risada acerba.<br />

Os luminosos lírios das estrelas desabrocharam<br />

já nos faustosos brocados do Firmamento, como que para<br />

ritmar em claras árias de luz a tua torva risada triste.<br />

Apavora-te o Sol flamejante, eterno, na altura<br />

infinita. Não queres a aflitiva evidência do sol, que tudo<br />

põe num relevo brusco, que pinta as chagas de vermelho,<br />

faz sangrar as dores, perpetuar em bronze o remorso.<br />

Amas a sombra, que esbate os aspectos claros,<br />

esfuminha os longes, turva e quebra a linha dos corpos.<br />

Queres a noite, longas trevas amargas que<br />

confundam máscaras hediondas de Gwimplaines com<br />

faces louras de deusas.<br />

Noite igualmente deliciosa e dilacerante que te<br />

anule para os sentimentos humanos, que te disperse no<br />

vácuo, dissolva imortalmente o espírito num som, num<br />

aroma, num brilho.<br />

Noite, enfim, que seja o vasto manto sem astros<br />

que tu arrastes pelo mundo a fora, perdido no movimento<br />

supremo da Natureza, como um misterioso braço de rio<br />

que, através fundas selvas escuras, vai, por estranhas<br />

regiões, sombriamente morrer no Mar...<br />

A noite tem, para a tua delicada sensibilidade, o<br />

majestoso poder de apagar-te dos olhos esses sinistros<br />

animais terríveis que babujam ao sol e desfilam, diante<br />

de ti, na truculenta marcha cerrada de pesadas massas<br />

formidandas.<br />

Enquanto, pois, lá fora, o Carnaval em fúria gralha,<br />

grasna e grulha, num repique macabro de guizos<br />

jogralescos, uivando uma língua convulsiva e exótica de<br />

duendes e noctâmbulas bruxas walpurgianas, prendete,<br />

ó deus do Tédio, Mergulhador dos Mediterrâneos da<br />

Arte! às imensas asas da fria águia negra das amplidões<br />

– a Noite – e ri, ri! sob as claras árias de luz das Estrelas,<br />

a tua venenosa risada em fel e em sangue...


308 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

NAVIOS<br />

Praia clara, em faixa espelhada ao sol, de fina<br />

areia úmida e miúda de cômoro.<br />

Brancuras de luz da manhã prateiam as águas<br />

quietas, e, à tarde, coloridos vivos de ocaso as matizam<br />

de tintas rútilas, fiavas, como uma palheta de íris.<br />

Navios balanceados num ritmo leve flutuam nas<br />

vítreas ondas virgens, com o inefável aspecto das longas<br />

viagens, dos climas consoladores e meigos, sob a<br />

candente chama dos trópicos ou sob a fulguração das<br />

neves do Pólo.<br />

Alguns deles, na alegre perspectiva marinha,<br />

rizam matinalmente as velas e partem – mares a fora –<br />

visões aquáticas de panos, mastros e vergas, sobre o<br />

líquido trilho esmaltado das espumas, em busca, longe,<br />

dos ignotos destinos...<br />

À tarde, no poente vermelho, flamante, dum rubro<br />

clarão de incêndio, os navios ganham suntuosas<br />

decorações sobre as vagas.<br />

O brilho sangrento do ocaso, reverberando na<br />

água, dá-lhes uma refulgência de fornalha acesa, de<br />

bronze inflamado, dentre cintilações de aço polido.<br />

Os navios como que vivem, se espiritualizam nessa<br />

auréola, nesse esplendor feérico de sangue luminoso<br />

que o ocaso derrama.<br />

E mais decorativos são esses aspectos, mais novos<br />

e fantasiosos efeitos recebem as afinadas mastreações<br />

dos navios, donde parece subir para o alto uma fluida e<br />

fina harmonia, quando, após o esmaecer da luz, a Via-<br />

Láctea resplende como um solto colar de diamantes e a<br />

Lua surge opaca, embaciada, num tom de marfim velho.


EMOÇÃO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 309<br />

Não sei que estranho frisson nervoso percorre-me<br />

às vezes a espinha, me eletriza e sensibiliza todo como<br />

se o meu corpo fosse um harmonioso teclado de cristal<br />

vibrando as sonoridades mais delicadas.<br />

Um ombro aveludado e trescalante a frescuras<br />

aromáticas, que pelo meu ombro levemente roce na rua,<br />

num encontro fortuito, produz-me um estado tal de<br />

volúpia, dá-me tão longa, larga volúpia, que me vejo por<br />

entre incensos, festivamente paramentado como o<br />

sacerdote que ergue o cálix acima da cabeça, ao alto do<br />

Altar-Mor dos templos doirados, sentindo que uma<br />

aluvião de almas crentes o adora de joelhos.<br />

A mão fina, ideal, calçada em luva clara, de<br />

formosa mulher que por entre a multidão aparece e<br />

desaparece, como uma estrela por entre nuvens, bem<br />

vezes, também, me alvoroça e agita o sangue.<br />

E sigo, radiante, triunfal, rei, essa nobre mão<br />

enluvada, à qual eu em vão pediria o ouro, a riqueza<br />

afetuosa de um gesto carinhoso – a essa delicada mão<br />

avara e milionária que, para mais avara tornar-se ainda,<br />

se fora esconder na maciez elegante da luva fresca,<br />

vivendo dentro dela afagada, confortada, palpitando talvez<br />

por encontrar a mão feliz que vibrará de amor ao seu<br />

contacto.<br />

Então, assim, a emoção que desperta todos os<br />

meus sentidos, no curioso giro que faço com o<br />

pensamento acompanhando a feminina mão fidalga, não<br />

é uma emoção de indiferença, por certo, mas uma<br />

emoção de despeito.<br />

Estranhamente, como uma força hercúlea que me<br />

prendesse à terra, chamando-me à iniludível Realidade,<br />

desço das inauditas, siderais regiões a que subira.<br />

Vejo-me logo, então, profundamente vencido no<br />

tempo, e, no meu rosto, à maneira dos fundos sulcos<br />

que as charruas abrem nos campos, imprevistas rugas


310 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

se evidenciam, como se eu tivesse de repente<br />

envelhecido um ano.<br />

Da Dor, bem poucas vezes sinto só o que ela tem<br />

de selvagem, de rugidora.<br />

Emoções delicadas, sutis, que me doem também<br />

fundo na alma porque me melancolizam, deixam-me um<br />

ritmo de música, uma afinada dolência de suavíssimos<br />

violinos, e que por fim delicia.<br />

É como se alguém vibrasse de brando as cordas<br />

dum instrumento e ele, trêmula, amorosamente, ficasse<br />

a gemer no mais meigo, no mais doce dos dedilhados<br />

acordes...<br />

A emoção é que me faz amar os eucaliptos, altos,<br />

afilados, contorcidos convulsamente, como a dor dum<br />

gigante.<br />

É ainda essa mesma emoção que me faz perceber<br />

e ouvir o misterioso som dos metais: o claro riso<br />

diamantino da Prata e o trovejante rumor do Bronze.<br />

O que o mundo chama fatalidades, negras e<br />

assoberbantes catástrofes, como um incêndio, não posso<br />

bem com nitidez dizer que emoção me causa.<br />

Realmente, num incêndio, todas aquelas chamas<br />

são maravilhosas!<br />

Não sei que raro, que estupendo Rembrandt veio<br />

de surpresa encharcar de um rubro violento,<br />

sanguinolento e flamejante, todo aquele belo edifício que,<br />

há pouco, era um rendilhado palácio ou uma igreja gótica,<br />

um Louvre em pompas ou um faiscante chalet d’esmalte.<br />

E não sei até como todas essas chamas, formando<br />

miríades de fantasmagorias, ilusionismos, entre os quais<br />

às vezes perpassa a deliciosa cor azulada, aveludada,<br />

de poncheiras colossais, não devoraram logo tudo a um<br />

tempo!<br />

Têm sido, talvez, benévolas, piedosas demais as<br />

chamas, porque há já bastantes horas que o fogo alastrou,<br />

minou, rastejou como um verme de incêndio, pelos<br />

alicerces do edifício e só agora é que os travejamentos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 311<br />

desabam, as paredes caem, como se fossem de cera,<br />

milhares de fogozinhos correm eletricamente como<br />

microscópicos insetos luminosos pelo luxuoso papel das<br />

paredes, enquanto todo o resto da madeira estala e<br />

range, num craque-craque seco, caindo desmantelada<br />

como os mastros e vergas de um navio que se afunda na<br />

fúria dos oceanos, sob o rijo estourar das tormentas.<br />

Alucinamento, nevropatia, embora, eu não sei<br />

bem, na verdade, se um incêndio me apavora ou me<br />

delicia – o que sei é que intimamente me sobreexcita.<br />

Também o Mar, a emoção que experimento ao vêlo,<br />

verde, amplo, espelhado, dá-me uma saúde virgem,<br />

uma força virgem.<br />

Sinto o gozo repousante de sondá-lo, de descer à<br />

imensa e profunda necrópole gelada onde uma<br />

florescência de algas vegeta; e, ao mesmo tempo, diante<br />

do Mar, sinto o peito alanceado da incomparável saudade<br />

de países vistos através do caleidoscópio da imaginação,<br />

dos sonhos fantasiosos – países lindos e felizes, floridos<br />

trechos de terra, ilhas tranqüilas, províncias loiras,<br />

simples, de caça e pesca, onde a sombra amorosa da paz<br />

benfazeja fosse como uma sombra doce, protetora, de<br />

árvore velha, e onde, enfim, a Lua tudo imaculasse numa<br />

frescura salutar de pão alvo...<br />

A emoção, a sensibilidade em mim, quase sempre<br />

desperta uma meditativa amargura, uma grande e<br />

mística dolência do passado, que enevoa tudo – como o<br />

indefinido mistério perfumado dessas soberbas mulheres<br />

de Versailles, carnações fidalgas e perfeitas que<br />

estremeceram de luxúria e apaixonadamente amaram<br />

pelos velhos parques abandonados, rojando sobre a areia<br />

sonora das alamedas a cauda astral das vestes de<br />

Deusas.


312 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

OS CÂNTICOS<br />

No templo branco, que os mármores augustos e<br />

as cinzeluras douradas esmaltam e solenizam com<br />

resplandecência, dentre a profusão suntuosa das luzes,<br />

suavíssimas vozes cantam.<br />

Coros edênicos inefavelmente desprendem-se de<br />

gargantas límpidas, em finas pratas de som, que parecem<br />

dar ainda mais brancura e sonoridade à vastidão do<br />

templo sonoro.<br />

E as vozes sobem claras, cantantes, luminosas<br />

como astros.<br />

Cristos aristocráticos de marfim lavrado, como<br />

fidalgos e desfalecidos príncipes medievos apaixonados,<br />

emudecem diante dos Cânticos, da grande exaltação de<br />

amor que se desprende das vozes em fios sutilíssimos<br />

de voluptuosa harmonia.<br />

O seu sangue delicado, ricamente trabalhado em<br />

rubim, mais vivo, mais luminoso e vermelho fulge ao<br />

clarão das velas.<br />

Dir-se-ia que esse rubim de sangue palpita, aceso<br />

mais intensamente no colorido rubro pela luxúria dos<br />

Cânticos, que despertam, ciliciando, todas as virgindades<br />

da Carne.<br />

Fortes, violentas rajadas de sons perpassam<br />

convulsamente nos violoncelos, enquanto que as vozes<br />

se elevam, sobem, num veemente desejo, quase impuras,<br />

maculadas quase, numa intenção de nudez.<br />

E, através da volúpia das sedas e damascos<br />

pesados que ornamentam o templo, das luzes<br />

adormentadoras, dos perturbadores incensos, da<br />

opulência festiva dos paramentos dos altares e dos<br />

sacerdotes, das egrégias músicas sacras, sente-se<br />

impressionativamente pairar em tudo a volúpia maior –<br />

a volúpia branca dos Cânticos.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 313<br />

FULGORES DA NOITE<br />

Desce um desses crepúsculos violáceos em que<br />

parece errar no espaço a enevoada música das<br />

casuarinas...<br />

Envolvem gradativamente a imensidade os veludos<br />

negros da Noite.<br />

Num céu frio d’inverno, que umas mais frias<br />

estrelas esmaltam pouco a pouco, começa<br />

prodigiosamente a surgir a Lua, alta e misteriosa,<br />

lembrando baladas.<br />

Dias d’ouro, ricos e raros, resplandeceram já com<br />

o Sol na luxúria verde da folhagem.<br />

E agora, o luar, que veste as noites de noivas,<br />

desdobra suntuosamente as suas tules delicadas e os<br />

seus luxuosos cetins brancos, imaculados.<br />

Fecundam-se os grandes campos, quietos na nívea<br />

luz da Lua, no clarão que dela jorra, dormente e doce.<br />

E os animais, que repousavam na amplidão dos<br />

viçosos gramados, gozam tranqüilos um sono brando,<br />

acariciador, como que produzido pela amorfinada<br />

claridade da Lua límpida e profunda.<br />

As águas, as frescas águas das fontes e rios, as<br />

largas águas dos mares serenamente adormecem, num<br />

esplendor cristalino.<br />

Apenas uma surdina leve que sai delas, como um<br />

leve ressonar, lhes denuncia, no silêncio claro da noite,<br />

a natureza sonora.<br />

E enquanto a rumorosa paisagem, todos os<br />

frementes impulsos do dia calam-se, em redor, na noite,<br />

a lua e as estrelas amorosas acordam e brilham, num<br />

recolhimento de Santuário, todas de branco, como virgens<br />

para a primeira comunhão.


314 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

PSICOLOGIA DO FEIO<br />

Peters, esse humorismo ao mesmo tempo<br />

alucinante e alado; o pessimismo paradoxal de Alphonse<br />

Karr e Gustavo Droz, tão semelhantes nas linhas gerais;<br />

todo aquele pungente, doloroso, estranho Livro de Lázaro,<br />

de Henri Heine, tudo isso, fundido numa cristalização<br />

de lágrimas e sangue, como a flamejante e<br />

espiritualizada epopéia do Amor, exprimiria bem, talvez,<br />

a noite da tua psicologia negra, ó soturno, ó triste, ó<br />

desolado Feio!<br />

Tu vens exata e diretamente do Darwin, da forma<br />

ancestral comum dos seres organizados: eu te vejo bem<br />

as saliências cranianas do Orango, o gesto lascivo, o ar<br />

animal e rapace do símio.<br />

As tuas feições, duras, secas, quase imobilizadas<br />

em pedra, puxadas, arrepanhadas num momo, como a<br />

confluência interior dos desesperos e das torturas,<br />

abrem-se rebeladamente num sarcasmo, ao qual às vezes<br />

uma gesticulação epiléptica, nevrótica, clownesca, faz<br />

impetuosa brotar a gargalhada das turbas, enquanto a<br />

tua voz coaxa e grasna, numa deprecação de morte, com<br />

ásperas e surdas variabilidades ventríloquas de tons.<br />

O teu horror não é deplorável só, não causa só<br />

piedade – mas é um obsceno horror – e as abas compridas<br />

e esfrangalhadas duma veste que te fica em rugas, em<br />

pregas encolhidas de largura nesse teu corpo esquelético,<br />

e que parece a mortalha dalgum hirto cadáver que<br />

houvessem desenterrado – as esquisitas abas dessa<br />

veste, sob o chicote elétrico do vento, alçam-se em vôo,<br />

deblateram por trás de ti, ansiosas, aflitas, puxando-te,<br />

num arrebatamento histérico, como se fossem fúrias<br />

tremendas que te quisessem arrojar pelos ares, num<br />

delírio de darem-te a morte.<br />

Outras vezes, porém, lembram as asas de um<br />

grande morcego monstro, imensas e membranosas,<br />

causando asco nauseante e enchendo tudo duma


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 315<br />

sinistra treva lugubremente cortada de arrepios e<br />

esvoaçamentos medonhos.<br />

Árvores frondentes e undiflavadas de sol, onde os<br />

pássaros cantem; rios gorgolejantes de cristais sonoros;<br />

vivos e iluminados vergéis em flor; campos verdes,<br />

afogados na verdura tenra, como estofos de veludos e<br />

sedas rutilosas e orientais, não são já para a tua alegria,<br />

recuada agora no fundo das nostálgicas neblinas da<br />

torturante desilusão de seres Feio.<br />

Os perpétuos gelos do Volga e do Neva para sempre<br />

rolam, em densas camadas, sobre o teu coração; e, aí,<br />

tudo o que dele se aproxima, outros corações que te<br />

buscam, outros afetos que te procuram, perdem todo o<br />

calor, resfriam logo, inteiramente ficam gelados já diante<br />

da tangibilidade gwimplainesca da tua fealdade.<br />

Só eu, numa suprema hora de spleen, de<br />

esgotamento de forças psíquicas, em que me falte<br />

extensamente o humor – essa radiosa bondade hilariante<br />

do Espírito – te idolatro e procuro, ó lascivo Feio! que na<br />

luxúria pantagruélica dos vermes devoras na treva os<br />

sonhos – porque não os podes alimentar, nem ver florir,<br />

nem crescer! sem que a diabólica verdade flagrante<br />

esteja a rir do teu amor e a pintar picarescamente<br />

caricaturas na quase apagada perspectiva da tua<br />

existência.<br />

Só as artísticas sensibilidades nervosas, vibráteis,<br />

quase feminis podem amar-te; enquanto que as<br />

individualidades ocas, estéreis, áridas, duras, sem<br />

vibração sensacional, sem cor, sem luz, sem som e sem<br />

aroma, fugirão para sempre de ti como à repelência<br />

asquerosa de um putrefato.<br />

Entretanto, eu gosto de ti, ó Feio! porque és a<br />

escalpelante ironia da Formosura, a sombra da aurora<br />

da Carne, o luto da matéria doirada ao sol, a cal<br />

fulgurante da sátira sobre a ostentosa podridão da beleza<br />

pintada. Gosto de ti porque negas a infalível, a absoluta<br />

correção das Formas perfeitas e consagradas, conquanto


316 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

tenhas também, na tua hediondez, toda a correção<br />

perfeita – como o sapo, coaxando cá embaixo na lodosa<br />

argila, tem, no entanto, a repelente correção própria de<br />

sapo; – como a estrela, fulgindo, lá, em cima, no precioso<br />

Azul, tem a serena e sidérea correção própria d’estrela.<br />

Por uma espécie apenas de schopenhauerismo é<br />

que eu adoro-te, ó Feio! e quereria bem rolar contigo<br />

nesse Nirvana de dúvida até à suprema aniquilação da<br />

Morte, vendo surgir, como de lagos de quimeras, em<br />

estalagmites de neve, diante de mim, sombrios e álgidos<br />

pesadelos de mulheres amadas: pálidas Ofélias,<br />

Margaridas louras, Julietas atormentadas, visões, enfim,<br />

como nas tragédias de Macbeth ou a nevoenta Visão<br />

germânica do Graal.<br />

Numa seda negra d’Arte, vestidos de negro, à<br />

semelhança desse trágico Hamlet da Dinamarca, iríamos<br />

os dois, através dos largos e profundos cemitérios<br />

silenciosos, consultar as rígidas caveiras das virginais<br />

Ilusões que se foram, e que, à nossa aproximação,<br />

sorririam, talvez, felizes, como se lhes levássemos a<br />

palpitante matéria animada dos nossos corpos para cobrir,<br />

fazer viver as suas galvanizadas carcaças frias.<br />

Mas ah! eu quisera bem, por vezes, também, ter o<br />

rude materialismo analítico de Büchner, que,<br />

certamente, não sentiria por ti, ó Feio! esta extravagante,<br />

excêntrica, singular influência mórbida que nas funções<br />

de meu cérebro vem, contudo, como doença amarga, um<br />

tédio amarelo e pesado de chim que o ópio estuporou e<br />

enervou.<br />

Não houvesse dentro em mim, através das Ilíadas<br />

do Amor, das Bacanais do Sonho, um sentimento<br />

melancólico ao qual o pensamento dá uma expressão de<br />

enfermidade psicológica, e eu não arrastaria a tua<br />

sombra, não andaria preso ao teu esqueleto, ó soturno,<br />

ó triste, ó desolado Feio!


VITALIZAÇÃO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 317<br />

Há uma irradiação larga e opulentíssima nos ares.<br />

O esbraseamento do sol do fim da tarde dá fortes<br />

verberações quentes à paisagem, que resplandece, e de<br />

cuja vegetação estuante de calor parecem rebentar as<br />

raízes túmidas de seiva como veias imensas latejando<br />

de sangue oxigenado e vivo.<br />

Nessa elaboração enorme da Terra que procria e<br />

fecunda, na gestação desses mundos que, como astros,<br />

gravitam talvez em cada grão de areia, pululando e<br />

vibrando, a Natureza é como uma grande força animada<br />

e palpitante dando entendimento e sentimento à Matéria<br />

e fazendo estacar a vida no profundo ocaso da Morte.<br />

E daí a pouco, a Lua, através das matas do vale,<br />

anelante e álgida, surgirá, rasgará d’alto as nuvens no<br />

céu, acordando os aromas adormecidos, cristalizada,<br />

vagarosa e tristemente, como uma dor que gelou...


318 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

GLORIA IN EXCELSIS<br />

Num recolhimento sugestivo, como se o meu<br />

espírito estivesse longinquamente a orar nalguma velha<br />

abadia, penetrei na catedral em festa.<br />

Não sei quê de nevoento, vago, dolente e nostálgico<br />

me invadira de repente e por tal forma que eu fui como<br />

que sonambulamente à solenidade.<br />

Todo o templo, ornamentado, resplandecia, numa<br />

imponência, numa augusta suntuosidade, a que o grande<br />

esplendor das luzes dava majestades romanas.<br />

A onda humana, compacta, densa, mumurejava,<br />

numa compunção.<br />

Alvuras de incenso envolviam como que em brumas<br />

imaculadas, em flocos matinais de neblinas, o vasto<br />

recinto da igreja.<br />

Lustres imensos pendiam pomposamente da<br />

abóbada branca, numa infinidade de pingentes que<br />

tiniam e cintilavam como polidas, facetadas lâminas<br />

metálicas, num brilho molhado.<br />

Do coro, para o alto, os instrumentos de corda<br />

choravam, salmodiavam, num crescendo de notas,<br />

através dos vivos metais sonoros.<br />

Eram excelsos, eram egrégios aqueles sons sacros,<br />

religiosos, que subiam para as naves à maneira que os<br />

incensos subiam.<br />

No peito, como numa urna de cristal, o coração<br />

batia-me, pulsava-me, anelante, na ânsia, na vertigem<br />

de vê-la por entre todo aquele confuso e amplo borboletear<br />

de cabeças.<br />

E, quando houve um alegre e diamantino tilintar<br />

de campas e o sacerdote elevou no cálix o Vinho Sagrado,<br />

o coração, como estranho pássaro de sol, fugiu-me do<br />

peito, num alvoroço, arrebatado, maravilhado na grande<br />

luz do templo, em busca dos olhos dela, que de repente<br />

me fitaram, longos, negros e veludosos, quando, por entre<br />

níveas névoas d’incenso, o Gloria in Excelsis, exalçando


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 319<br />

os Evangelhos, triunfava nas vozes e levantava um festivo<br />

rumor no templo.<br />

E foi, para o meu coração lancinado de amor, como<br />

se Ela, naquele instante, me trouxesse toda essa Glória<br />

luminosa nos olhos...


320 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

PÁGINA FLAGRANTE<br />

Inflamados de sol, como pássaros no esplendor da<br />

aurora, partiam ambos a digressões singulares, por<br />

manhãs alegres, da alegria impulsiva e bizarra dos Halalis<br />

de caça.<br />

Uma virginal exalação de leite, um aroma finíssimo<br />

de lilás e rosa errava pelos prados sãos e férteis, na<br />

grande luz alastrante e germinadora da primavera.<br />

Na franqueza heróica da força que a expansão<br />

vigorescente da Natureza lhes infiltrava, experimentavam<br />

ambos uma sensação aguda de<br />

espiritualidade, um eletrismo de idéias, que os agitava,<br />

dava-lhes intensa vibratilidade, uma embriaguez<br />

fascinante de acre aticismo mental, por entre os<br />

radiantes orientalismos da luz.<br />

E eles partiam nervosamente, alvoroçados, finos,<br />

fulgurantes, como sob a impressão da alta e<br />

convulsionante música wagneriana.<br />

De uma abundante e luxuriosa vegetação psíquica,<br />

enclausurados na Arte como numa cela, lá iam sempre<br />

nessas continuadas batidas, nesses verdadeiros assaltos<br />

ao Ideal, num fausto de Império Romano, arrebatados<br />

pela grande borboleta iriante, fugidia e fascinadora da<br />

Arte.<br />

Vinham então os livres exames, os amplos golpes<br />

de Crítica, ao fundo e ao largo, através dos turbilhões<br />

luminosos do sol.<br />

Quase feroz, cheio de bárbaros venenos e ao<br />

mesmo tempo untuoso como os inquisidores, um deles<br />

fazia vagamente lembrar a urze das montanhas áridas,<br />

sobre a qual, entretanto, o Azul canta de dia os hinos<br />

claros do sol e à noite a amorosa barcarola da lua e das<br />

estrelas.<br />

O outro recordava também, pela sua exótica<br />

natureza perpetuamente envolta numa bruma de<br />

mistério, um Cristo célebre de Gabriel Marx, corpulento,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 321<br />

viril, de aspecto igualmente aterrador e piedoso, que vi<br />

uma vez numa galeria...<br />

Organizações dúbias, obscuras, de acridão agreste,<br />

que representam, na ordem animal, o que representa,<br />

para as camélias e para as rosas, o cróton.<br />

E aquelas duas almas, intelectualmente<br />

impulsionadas, abriam-se em chamas altas, aos<br />

deslumbramentos da sua estesia.<br />

As idéias fulgiam, cabriolavam, penetravam todo<br />

o arcabouço do assunto, tomavam formas, aspectos<br />

estranhos, macabros; e era tal a intensidade, a<br />

veemência com que brotavam do cérebro, que pareciam<br />

viver, radiar, ter cor, vibrar.<br />

A verve esfuziava, mentalizada pela Análise, pela<br />

Abstração e pela Síntese; sátiras frias, cortantes como<br />

rijos e aguçados cutelos, espetavam capras a carne tenra,<br />

viçosa, próspera, de S. Majestade Imbecil; e, para<br />

supremamente assinalar todas as surpresas e elevação<br />

do Entendimento, uma psicologia rubra, flamante,<br />

sangrava, sangrava em jorro, torrencialmente sangrava.<br />

E eram boutades maravilhosas, a charge leve,<br />

pitoresca, ferretoando, zumbindo sobre os homens<br />

circunspectos, que passavam, o andar solene, ritmado,<br />

em cadência, como na marcha das procissões.<br />

E Ambos riam, riam, numa risada sonora e forte,<br />

como se festins cintilantes, bacanais, triclínios, todas<br />

as vermelhas orgias do Espírito, lhes cantassem<br />

cristalinamente no riso.<br />

De repente, como uma pausa repousadora nesse<br />

crepitante incêndio de verve, penetravam sutilmente,<br />

com delicadezas extremas, nos pensamentos mais<br />

curiosos, mais sugestivos, nos amargos dolorimentos e<br />

pungências latentes da Arte.<br />

Diziam cousas aladas, quase fluidas, que<br />

determinavam a abstração do ser que os animava e floria;<br />

tinham essa percepção, esse entendimento profundo,<br />

tanto luar como sol, que explica, mais ainda do que o


322 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

que se perpetua em flagrância num livro, a poderosa<br />

força criadora, a ductilidade, a emoção e a contensão<br />

nervosa de raras naturezas artísticas.<br />

Refletiam que certo modo de colocar, de pôr as<br />

mãos, de certas mulheres, lhes fazia longamente<br />

considerar, meditar nas monjas...<br />

Pensavam que no mundo há naturezas tão<br />

excêntricas e nebulosas que, pelas condições complexas<br />

em que se encontram na vida, precisariam de uma<br />

filosofia nova, original, para determiná-las. Eram como<br />

que existências eriçadas de abetos alpestres, carnes<br />

que se rasgavam, se despedaçavam...<br />

As rosas pareciam-lhes belezas opulentas,<br />

pomposas, da Inglaterra...<br />

E todo o universo estava agora tão atrozmente<br />

perseguido por tédios mortais, que os homens já<br />

naturalmente falavam em morrer como quem fala em<br />

viajar ou em rir...<br />

Quanto à Arte queriam que a expressão, que a<br />

frase vivesse, brilhasse, sonora e colorida, como um órgão<br />

perfeito. Que tudo o que dissessem ficasse imperecível,<br />

eterno, perpetuado no Espaço e no Tempo, com os sons<br />

que os circundavam, a cor, a luz, o aroma que os atraía.<br />

As palavras deveriam ser, para se eternizarem,<br />

cravadas no ar límpido, como num forte cristal de rocha.<br />

Era a ânsia dos requintes supremos, a exigência<br />

das formas castas, que os fascinava, que os seduzia,<br />

tentava como nudez formosa de mulher virginal. Tudo,<br />

enfim, na Arte, deveria ficar luminoso e harmonioso,<br />

como um cantar d’astros.<br />

E lá caminhavam, inquietos, vertiginosos, no<br />

esplendor matinal, que os alagava e fecundava, como<br />

um prodigioso rio de ouro e diamantes, terras<br />

maravilhosas e produtivas.<br />

Iam à conquista das Origens verdes, das puras<br />

águas brancas da Originalidade, dentre o vibrante


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 323<br />

alarido de cristal dos seus temperamentos austrais,<br />

ardentes e sangrentos.<br />

Como orquestrações largas, sinfonias vivas de<br />

emoção e idéias, rompiam dia a dia nessas batidas<br />

frementes, numa transcendência de princípios e<br />

sentimentalidades – talvez no íntimo dolorosos,<br />

lancinados pelo Miserere das Ilusões elevadas.<br />

E, muitas vezes, já alta madrugada, sob o sereno<br />

e suave adormecer das estrelas alvorais, não era sem<br />

uma derradeira Apóstrofe à soberana Chatice que essas<br />

duas existências chamejantes se separavam, num<br />

grande clarão espiritual de afetos.<br />

Então, um deles, numa aclamação, num gesto<br />

singular e profético, arrojava, além, para os séculos, esta<br />

charge infernal, suprema:<br />

– A divina Estupidez, a onipresente Imbecilidade<br />

ficaria eterna, ao alto, junto às nuvens, sobre uma<br />

estranha Babel de milhões de degraus de bronze, como<br />

num trono colossal, bufando e roncando, a dominar as<br />

imensidades, fantasticamente, onipotentemente<br />

guardada por cem mil esquadrões ferozes, monstruosos<br />

e formidáveis, de hipopótamos e búfalos!...


324 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

TINTAS MARINHAS<br />

Mar manso, pelo fim da tarde.<br />

O ouro fulvo dos horizontes no ocaso a pouco e<br />

pouco esmaece.<br />

Pela manhã chovera; mas em antes do pôr-do-sol<br />

o dia levantara e as perspectivas úmidas e frescas<br />

embebem-se agora no eflúvio salutar das marés.<br />

No espaço há uma grande acumulação de nuvens<br />

áureas e róseas, dum forte colorido de silforama.<br />

Para além, da outra banda do mar, a faixa larga e<br />

prateada da praia, em curvas, coleando, está de uma<br />

extrema doçura e nitidez inefável. A retina mal pode<br />

apanhá-la.<br />

Os olhos pestanejam, nas infinitas vertigens e nos<br />

prismas visuais sutis e cambiantes de míope, diante do<br />

encanto dos tons da luz leve, rarefeita, espiritualizante<br />

e fina como um tecido tenuíssimo.<br />

Há em toda a marinha um aspecto amável, uma<br />

suavidade de aquarela d’après nature, quase êxtase...<br />

Dá um esplêndido efeito à visão óptica e um<br />

revigoramento humorado às faculdades artísticas, este<br />

belo trecho sadio e agradável de vagas, em cuja superfície<br />

a luz frouxa da tarde se encarrega, com as suas<br />

pinceladas de fantasista, de fazer as mais extravagantes<br />

e rendilhadas decorações.<br />

O mar, aquietado, sereno, está de um verde glauco<br />

ativo e salgado, convidando a viajar, e, sobre ele, navios<br />

balouçantes, embarcações, soltas como aves, de<br />

delicadas formas artísticas, com afinidades abstratas<br />

de certas linhas fugidias de um perfil de mulher,<br />

conservam então, como lenços de adeuses, as suas velas<br />

brancas estendidas, os seus panos a secar da chuva da<br />

manhã.<br />

Balançam-se um pouco, numa cadência<br />

harmônica, num ritmo musical, com os altos mastros<br />

erguidos para o céu em posição de vigia.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 325<br />

E, assim, com os mastros e as velas, na<br />

aglomeração das adriças e dos cabos, os navios fazem<br />

vagamente lembrar, na calma da tarde, enormes e<br />

estranhas plantas de ornamentação.<br />

Ao fundo, na recortada e esfuminhada linha das<br />

montanhas, uma queimada faz evolar para os ares o seu<br />

azulado penacho de fumo.<br />

E, no meio da pitoresca delícia da marinha alegre<br />

e lavada, de um acre sabor de azote, uma ou outra<br />

gaivota esvoaça, além, num vôo incisivo, rápido, ou pousa<br />

junto aos líquens ou junto às algas, mergulhando e<br />

roçando na vítrea vaga a nevada plumagem de arminho.<br />

Então, de toda a paisagem, larga, aberta,<br />

revigorativa e cheia de um grande ar primitivo de<br />

virilidade, vem um sopro intenso, confortador e pagão<br />

de Heroísmo e de Mocidade, fazendo inflar o peito, e um<br />

sentimento anelante e virgem de pesca, no bravo Mar<br />

Alto, entre tropicalismos primaverais de sóis sangrentos<br />

e de dias azuis, sobre as rasgadas ondas murmurejosas.


326 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ESMERALDA<br />

No fundo verde da tela avulta em claro uma Cabeça<br />

macilenta, dolorosa, como que envolta num albornoz<br />

branco.<br />

Toques da mesma cor garça põem-lhe leves<br />

nuances nos cabelos, nos olhos cismativos, anelantes,<br />

que têm a expressão de um desejo nômade...<br />

Desse cromatismo de tons verdes idealizou o<br />

artista o nome da sua viva cabeça imaginária — que<br />

parece uma dessas fisionomias raras que só naturezas<br />

especiais sabem distinguir e amar, uma dessas cabeças<br />

de mulheres singulares que a dolência da paixão<br />

enervante calcinou e turvou de dores.<br />

Do golpe rubro da boca escapa-lhe um sentimento<br />

de amargor, que a travoriza e acidula, como se um acre<br />

veneno ardente lhe estivesse sangrando os lábios.<br />

E essa boca, assim em golpe rubro, purpurejada<br />

por um vinho secreto de ilusão antiga, destacando álacre<br />

no palor do rosto frio, como que excita aos beijos,<br />

turbilhões de beijos como de chamas...<br />

E descendo da boca aos seios alvos de lua, a<br />

imaginação vai fantasiosamente compondo todo o corpo<br />

de Esmeralda e despindo-o à proporção que o vai<br />

compondo, despindo-o e gozando a carne cor de papoula.<br />

E, as tintas, na tela, vivendo da<br />

impressionabilidade artística que um pincel de mão<br />

original e nervosa lhes infiltrou, como que exprimem,<br />

no colorido e no ideal da contemplativa Cabeça, a emoção<br />

vaga, aérea, de alguma formosa e amada Esmeralda<br />

virgem, perdida e morta dentre as verdes pedrarias do<br />

Mar solene...


FIDALGO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 327<br />

Pé esguio, fino, leve, a Mefistófeles, para galgar,<br />

não já a Roma pomposa e purpúrea, enflorada em glórias;<br />

nem mesmo já até a Grécia estóica, de ouro e de<br />

mármore; mas para supremamente galgar as regiões<br />

infinitas e virgens da deslumbrante Originalidade.<br />

Colorido de graça, madrigalesco e maravilhoso, a<br />

luva negra vestindo a mão real de loiro e fantasioso<br />

Excentrista, a face meditadora e branca voltada para as<br />

Estrelas, donde surgiriam as leis transcendentes da<br />

Arte, penetrarias os pórticos suntuosos de palácios<br />

d’esmeralda e safira, subindo por escadarias de prata e<br />

pérola.<br />

E, prodigiosamente, em sedas e ouros de luz, aí<br />

te perpetuarias nos Azuis imortais da Eternidade, onde<br />

o Espírito deve ter, não a claridade coruscante e<br />

clarinante do Sol mas o brilho de paz, de incomparável<br />

repouso são da Lua sonele e sonolenta.<br />

A tua Obra, vasta e fecundadora, seria então<br />

singularmente traçada em panos mais largos que os de<br />

tendas de desertos e mais alvos ainda do que as neves<br />

imaculadas.<br />

Com um fio d’astro cinzelarias, darias esmaltes<br />

indeléveis e marchetarias idéias, como um tecido<br />

d’estrelas, liriais e siderais.<br />

E para que a correção inteira, a harmonia perfeita<br />

irradiasse na Obra, em luz mais clara, um pássaro<br />

estranho, verde, cor de brasa, branco, azul, conforme o<br />

tom do teu Ideal, cantaria, gorjearia em ruflagens d’asa<br />

ao alto da tua nobre cabeça fidalga, como que para te<br />

ritmar as idéias.<br />

E tu, como um deus mítico, afinarias pelo ritmo<br />

inefável do canto os pensamentos delicados da grande<br />

Obra, até produzires nela a harmonia, a cor, o aroma.<br />

Músicas excelsas e tristes, como uma combinação<br />

de roxo e azul profundo, dariam frêmitos, vibrações às


328 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

tuas páginas, que ficariam vivendo como o Som,<br />

perpetuamente.<br />

Bonzos, Manitus, não gralhariam e grasnariam<br />

jamais em torno do teu ser abstrato e tranqüilo, feito<br />

para florir, cantar e resplandecer.<br />

Como as pérolas guardadas em cofre do Oriente,<br />

envoltas em areia do Mar Vermelho, para não perderem<br />

o raro esplendor, a tua Obra, coroada pelas rosas<br />

triunfais da Originalidade, ficaria afinal, ó Fidalgo da<br />

Arte! envolta nos mistérios do Sol, egregiamente<br />

cantando e chamejando, na helênica resplandecência<br />

da Forma.


ANGELUS<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 329<br />

Um sol em sangue alastra, mancha<br />

prodigiosamente o luxuoso e largo damasco do<br />

Firmamento.<br />

Opulentos, riquíssimos esplendores de púrpuras<br />

luminosas dão uma glória sideral à tarde.<br />

E, pela sugestão cultual, quase religiosa da hora,<br />

os deslumbrantes efeitos escarlates do grande astro que<br />

desce, d’envolta com douramentos faustosos, fazem<br />

lembrar a magnificência romana, a ritual majestade dos<br />

Papas, um festivo desfilar católico de bispos e cardeais,<br />

através dos resplandecentes vitrais do Vaticano, com os<br />

báculos e as mitras altas, sob os pálios aurilavrados.<br />

Embalsamam a tarde aromas frescos, sãos,<br />

purificadores, como que emanados da saúde, das<br />

virgindades eternas.<br />

Um ar olímpico, talvez o sopro vital de mares verdes<br />

e gregos, eterifica harmoniosamente a curva das<br />

montanhas, ao longe, contorna-as, recorta-as, dá-lhes<br />

a nitidez, o esmalte do aço.<br />

Como que a Natureza, nesse esmaecer do dia,<br />

tem mocidades imortais e como que as forças, as origens<br />

fecundas da terra, desabrocham em rosas.<br />

O rubente esplendor solar gradativamente smorza<br />

num cor-de-rosa leve, de veludosa suavidade.<br />

Serenamente, lentamente, uma pulverização<br />

neblinosa desce das amplidões infinitas...<br />

Névoas crepusculares envolvem afinal a<br />

imensidade, no recolhimento, na paz dos ascetérios.<br />

Os campos, as terras da lavoura, a vegetação dos<br />

vales e das colinas adormecem além, repousam num<br />

fluido noctambulismo...<br />

Por estradas agrestes pacificadas na bruma, uma<br />

voz de mulher, dispersa no silêncio, clara e sonora, canta<br />

amorosamente para as estrelas que afloram rútilas e<br />

mudas.<br />

Canta para as estrelas! e parece que a sua voz,<br />

errante na vastidão infinita, vai inundada do mesmo<br />

perfume original que a alma viçosa e branda dos vegetais<br />

exala na Noite...


330 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

NÚBIA<br />

Amar essa núbia – vê-la entre véus translúcidos<br />

e florentes grinaldas, Noiva hesitante, ansiosa, trêmula,<br />

tê-la nos braços como num tálamo puro, por entre<br />

epitalâmios; sentir-lhe a chama dos beijos, boca contra<br />

boca, nervosamente – certo que é, para um sentimento<br />

d’Arte, amar espiritualmente e carnalmente amar.<br />

Beleza prodigiosa de olhos como pérolas negras<br />

refulgindo no tenebroso cetim do rosto fino; lábios<br />

mádidos, tintos a sulferino; dentes de esmalte claro;<br />

busto delicado, airoso, talhado em relevo de bronze<br />

florentino, a Núbia lembra, esquisita e rara, esse lindo<br />

âmbar negro, azeviche da Islândia.<br />

O seu sangue quente, aceso em púrpuras de<br />

luxúria, através da pele sombria e veludosa, recorda<br />

avermelhamentos de aurora dentre uma penumbra de<br />

noite, como o deslumbramento boreal das regiões<br />

polares...<br />

No entanto, amar essa carne deliciosa de Núbia,<br />

ansiar por possuí-la, não constitui jamais sensação<br />

exótica, excentricidade, fetichismo, aspiração de um<br />

ideal abstruso e triste, gozo efêmero, afinal, de naturezas<br />

amorfas e doentias.<br />

Senti-la como um desejo que domina e arrasta,<br />

querê-la no afeto, para fecundá-lo e flori-lo, como uma<br />

semente d’ouro germinando em terreno fértil, é querer<br />

possuí-la para a Arte, tê-la como uma página viva,<br />

veemente, da paixão humana, vibrando e cantando o<br />

amor impulsivo e franco, natural, espontâneo, como a<br />

obra d’arte deve vibrar e cantar espontaneamente.<br />

Crescida, desenvolta aos poucos no meio culto,<br />

entre relações de simpatia inteligente e harmônica, sob<br />

um sol saudável de cuidados, de apuro de tratos e de<br />

maneiras, que tornou mais leve e penetrante,<br />

iluminando, o seu cérebro simples, de ignorância<br />

ingênua, a Núbia abriu em flor de carícia, alvorou com a


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 331<br />

doce meiguice dos tipos galantes e preclaros de mulher<br />

e recebeu também, em linhas de conjunto, do mesmo<br />

meio onde desabrochou, essa suavidade e graça núbil<br />

que é todo o encanto vaporoso, aéreo, do ser feminino.<br />

No seu rosto oval, de uma penugem sedosa de<br />

fruto sazonado, há, por vezes, certa expressão de<br />

melancolia, de cisma dolorosa, que punge e contrista; o<br />

tênue, já quase apagado raio errante de uma lembrança<br />

vaga – como se Ela de repente parasse na existência e<br />

se sentisse no vácuo, perdida e só nos caminhos<br />

desolados, desertos, de onde veio outrora, sem leito e<br />

em lágrimas, a caravana gemente da sua raça...<br />

Então, nesses momentos em que um dolorimento<br />

secreto, misterioso, a conturba e magoa, Ela parece<br />

serena divindade aureolada de martírios, macerada de<br />

prantos; e é talvez bem pequeno, bem frágil todo o amor<br />

do mundo para proteger, para amparar, como que numa<br />

redoma sagrada de Misericórdia, essa humilde criatura<br />

que o fatalismo das forças fenomenais da Natureza<br />

condenou à indiferença gelada e à desdenhosa ironia<br />

das castas poderosas e cultas.<br />

Assim, adorá-la em compunção afetiva, trazê-la<br />

no coração como relíquia rara num relicário estranho,<br />

claro é que não significa banal emoção transitória, que<br />

o rude desdém da análise fria pode, apenas com um<br />

golpe brusco, extinguir para sempre.<br />

Essa emoção, esse amor, cada vez mais profundo<br />

e espiritualizante, penetra impetuoso no sangue como a<br />

luz e o ar, deliciando e ao mesmo tempo afligindo como<br />

a Idéia e a Forma igualmente deliciam e afligem...<br />

E, nem mesmo, no fundo íntimo de qualquer ser<br />

tocado de uma intuição maravilhosa da origem terrestre<br />

da felicidade podem resplandecer, mais do que a Núbia,<br />

as belezas de neve da Escócia e da Irlanda ou as<br />

formosuras originais e flagrantes da Armênia e da<br />

Circássia.


332 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Tudo ela possui de luminoso e perfeito, como a<br />

noite possui as Estrelas e a Lua, visto e sentido tudo<br />

através da harmonia espiritual, da alta compreensão<br />

requintada e subjetiva de quem a ama e deseja.<br />

A sua alma, de forma singela e branca de hóstia,<br />

tem ritmos de bondade infinita, meigas claridades<br />

brandas e consoladoras de piedade e enternecimento, e<br />

a sua voz sonorizada, com a vivacidade nervosa e o alado<br />

timbre argentino, claro e fresco, de um gorjeante cristal<br />

de pássaro, derrama por toda a parte a música<br />

emocionante, sugestiva e curiosa, de violino afinado...<br />

E nenhum peito dedicado de nobre dama medieval<br />

nobiliárquica será mais gentil e dedicado que o seu peito,<br />

donde jorra, com firmeza e força, em onda original, talvez<br />

manado dessa simpleza de obscuridade, um inefável<br />

sentimento verdadeiro e virgem como o tenro broto verde<br />

dos arbustos.<br />

Ela é a Núbia-Noiva, singular e formosa, amada<br />

com religioso fervor artístico, com a fé suprema, a unção<br />

ritual dos evangeliários do Pensamento; e todo esse<br />

feminino ser precioso brota agora em exuberâncias de<br />

afeto, em pompa germinal de extremos lascivos, floresce<br />

em rosas juvenis e polínicas de puberdade, abertas<br />

sexualmente nos seios pundonorosos e pulcros...


SOM<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 333<br />

Trago todas as vibrações da rua, por um dia de<br />

sol, quando uma elétrica corrente de movimento circula<br />

no ar...<br />

Mas, de todas as vibrações recolhidas, só me ficou,<br />

vivendo a música do som no ouvido deliciado, a canção<br />

da tua voz, que eu no ouvido guardo, para sempre<br />

conservo, como um diamante dentro de um relicário de<br />

ouro.<br />

Cá está, cá a sinto harmonizar, alastrar em som<br />

o meu corpo todo, como flexuosa serpente ideal, a tua<br />

clara voz de filtro luminoso, magnética, dormente como<br />

um ópio...<br />

Muitas vezes, por noite em que as estrelas<br />

marchetam o céu, tenho pulsado à sensação de notas<br />

errantes, de vagos sons que as aragens trazem.<br />

As fundas melancolias que as estrelas e a noite<br />

fazem descer pelo meu ser, da amplidão silenciosa do<br />

firmamento, dão-me à alma abstratas suavidades,<br />

vaporosos fluidos, sinfonias solenes, misticismos, ondas<br />

imensas de inaudita sonoridade.<br />

E, calado, na majestade sombria da Natureza, como<br />

num religioso recolhimento de cela, vou ouvindo,<br />

esparsos na vastidão, smorzando nos longes, entre<br />

redondos tufos escuros de folhagem, onde se oculta<br />

alguma luxuosa existência de mulher, inebriantes sons<br />

de peregrinas vozes ou de invisíveis instrumentos.<br />

E os sons chegam, vêm até mim, na estrelada<br />

tranqüilidade da noite, frescos e finos, como através de<br />

rios claros que nevassem ou de vagas embaladoras que<br />

o frio luar prateasse.<br />

E eu penso, então, nessas simpáticas, corretas<br />

atitudes e expressões da música.<br />

Vejo, na nitidez de cristal do pensamento, a harpa,<br />

sonora asa de ouro, com as cordas tensas, dedilhada<br />

por brancas mãos aristocráticas que arrancam dela


334 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

frêmitos, soluçantes dolências, plangências<br />

incomparáveis.<br />

Escuto a pompa, a imponência sonorizante de um<br />

órgão de catedral, quando, pelas altas naves, sobem rolos<br />

alvos de incenso, e, o sol, fora, com as flechas dos raios,<br />

constela de astros microscópicos as polidas e góticas<br />

vidraçarias.<br />

Ou, pressinto ainda, num fidalgo salão do tom,<br />

onde os perfis ostentam valorosidades de linhas ducais<br />

e a luva impera galantemente, a assinalada elegância<br />

dos concertos da graça, quando os violinos, zurzinando<br />

notas que esvoaçam do arco resinado às cordas<br />

retesadas, zumbindo e ruflantemente, prendem-se à voz<br />

que resplende, triunfa na sala, sonorizando-a e<br />

iluminando-a mais que os fúlgidos lustres e os<br />

candelabros facetados, como se, da garganta de quem<br />

cantasse, a aurora alvorecesse e vibrasse.<br />

E cuido logo ver uma mulher – alta, beleza grega,<br />

formas esculturais primorosamente cinzeladas.<br />

A cabeça, de uma discreta severidade de deusa,<br />

pousa-lhe no rico, abundante torso inteiriço do corpo<br />

forte.<br />

Há uns meigos tons louros no aveludado cabelo<br />

que, por entre a luz, mais louro e aveludado brilha.<br />

De pé, ereta, o perfil nitidamente marcado, no<br />

meio da cauda astral da veste de seda rara, ela<br />

desprende, evola a voz da garganta de aço novo e essa<br />

espiral de voz revoluteia no salão, fica algum tempo<br />

aquecendo e sonorizando o ar...<br />

Como um astro, essa voz flameja, palpita e gira<br />

na iluminada órbita da sala cheia da multidão que a<br />

escuta, e, como um astro, cai, fulgurando, semelhante<br />

a exalações meteóricas, no fundo do meu ser como num<br />

golfo...<br />

Nobremente, pela cadência do canto, o corpo da<br />

imaginária mulher tem certas flexões delicadas e


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 335<br />

eletrismos de gata voluptuosa, e o seio, fremente da<br />

melodia que o emociona, se afervora e pulsa.<br />

E a voz ala-se, ala-se, gorjeada, arrulhante,<br />

trinada, ave de luz harmoniosa que ela enfim solta do<br />

aviário do peito.<br />

Todos esses dulçurosíssimos efeitos musicais me<br />

impressionam singularmente, distribuindo por mim a<br />

mais aguda vitalidade mental, que me sensibiliza os<br />

nervos da atenção, como se todo eu me achasse sob<br />

uma atmosfera salutar e tonificante.<br />

Ou, então, cobrem-me também de opulências, de<br />

gloriosas soberanias, as vivas forças orquestrais, onde<br />

perpassam ruídos largos de floresta, clarins, inefáveis,<br />

misteriosas melodias de pássaros.<br />

Mas, do som, da música, não me exalça, não me<br />

enleva só o ritmo leve, educado, que deixa uma suavidade<br />

acariciando, bafejando o ouvido como um perfume bafeja,<br />

acaricia o olfato.<br />

Ficam-me nos sentidos, nos nervos, calafrios sutis,<br />

ligeiros narcotismos, pequeninas vibrações que, não sei<br />

de que rútila chama, parecem faiscar...<br />

E começo, após um engolfamento de sons<br />

profundos, a ter penetrabilidades intensas, estranhas<br />

emoções que me despertam infinita série de fatos já<br />

gelados no tempo, como passadas fases de lua.<br />

Evidenciam-se-me idéias, impressões, sugestões<br />

curiosas, certos obscuros estados mórbidos da alma, que<br />

em vão a espiritualidade humana tenta transplantar para<br />

os livros, mas que só o ritmo aviventa, levanta aos poucos<br />

da nebulosa das existências, como um sol sempre amado,<br />

mas já antigo, já velho, remotamente apagado nos<br />

sentimentos...


336 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

GATA<br />

De neve, de uma maciez de arminho e<br />

lactescência de neve, de uma nervosidade frenética, era<br />

luxuosa, principesca, decerto, essa orgulhosa gata.<br />

As esmeraldas dos seus olhos claros fosforeavam<br />

sensualmente, eletricamente, quando alguém, no<br />

conforto da casa, lhe acarinhava de manso o dorso, o<br />

focinho tenro, polposo, espiguilhado de prateados fios<br />

sutis; e, no seu lindo pêlo cetinoso e alvo, como numa<br />

fresca e virginal epiderme de mulher aristocrata,<br />

perpassava um frisson de ternura, um estremecimento,<br />

como se em toda ela vibrasse alguma fibra de espiritual<br />

e amoroso.<br />

E era então fidalga nas sensações, no ronronar<br />

apaixonado, ao luar, sob o cintilante cristal das estrelas,<br />

pelas caladas vastidões da noite, ou, nas horas de sesta,<br />

nos quentes, enlanguescedores mormaços, preguiçosa<br />

e fatigada, anelando o repouso, numa onda de gozo e<br />

volúpia, enroscada, serpenteada, torcicolosa e convulsa,<br />

como um organismo suave e débil que um vivo azougue<br />

eletriza e agita.<br />

Talvez fosse a alma de alguma vaporosa rainha<br />

que ali vivesse nesse precioso animal, alguma misteriosa<br />

visão polar dentro daquele feltro branco, daquela pelúcia<br />

rica, daqueles flocos eslavos; algum sonho, enfim,<br />

errante, vago, perdido nesse nobre exemplar felino de<br />

formas lascivas, flexuosas e delicadas.<br />

Às vezes, mesmo, ela errava, como a nômade que<br />

perde a rota da caravana pelos desertos escaldados de<br />

sol, em busca de alimento; e os seus olhos, penetrantes<br />

no verde úmido e agudo das luminosas pupilas, mais<br />

até fantasiosa a tornavam e mais nevoeiro davam à sua<br />

lenda de fadas.<br />

E assim, arminho girante, que as quatro veludosas<br />

patas faziam fidalgamente caminhar, miando histérica,<br />

era como uma sonâmbula idealizada e amante que


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 337<br />

soluçava e gemia implorativamente a sua dor, através<br />

de aposentos, na indiferença de quase todos.<br />

Um dia, porém, uma doce mão feminina e<br />

perfumada quis tê-la junto de si e levou-a consigo para<br />

a tepidez e a pompa das alcovas cheirosas, vivendo com<br />

ela ao colo, passando-lhe os íntimos alvoroços do seu<br />

sangue de Virgem – como se a gata fosse um profundo<br />

seio de afagos a que ela confiasse todos os seus mistérios<br />

e segredos de Noiva ainda presa no claustro cerrado,<br />

como as monjas normandas, da carne inquietante e<br />

alucinadora.<br />

Agora, com a formosa seda do pêlo vibrando à<br />

carícia, alta e feliz a cabeça artística, vive nesse colo<br />

impoluto, em sonhos deliciosos e gozos infinitos de<br />

orientalista, o belo exemplar felino, branco, voluptuoso<br />

e dolente como a luz embalada e cismando,<br />

imaculadamente, no seio azul das Esferas.


338 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

DIAS TRISTES<br />

Apesar do sol, que imensa tristeza para certos<br />

seres, que dias tristes, esses, de uma melancolia e<br />

dolorosa névoa...<br />

Os ruídos todos, o esplendor da luz, convergindo<br />

em foco para o coração, deslumbram, fascinam de modo<br />

tal e tão profundamente, que o abatem, infiltrando-lhe<br />

essa tristeza infinita que se não define e que está, como<br />

um fundo de morbidez, nas almas contemplativas e<br />

nômades, que vão armar a sua tenda nas desconhecidas<br />

e longínquas paragens abstratas do Pensamento.<br />

Dias tristes, muita vez, os dias de sol.<br />

Mergulhado o espírito na onda profunda de desejos<br />

irresistíveis, como numa intensa e luxuriosa paixão, os<br />

aspectos que se lhe manifestam na Natureza são<br />

amargos, atravessados dessa pungência aflitiva, dessa<br />

magoante desolação e atormentadora ironia que há na<br />

essência de todas as cousas e idéias.<br />

E, como o pensar dá uma grande tristeza, põe no<br />

cérebro uma incomparável tortura, o Pensamento, à<br />

evidência da luz, na alegria do sol, deixa-se possuir de<br />

um nervosismo triste, de um meio luar turvo e trágico<br />

de impressões agudas, dilacerantes.<br />

Os dias tristes, para raras naturezas intelectuais,<br />

são quase sempre os dias triunfantemente alegres,<br />

sonorizados de pássaros, quando há uma alta irradiação<br />

no ar, um repouso, uma paz feliz em toda a vegetação e<br />

que o sol, numa vitória astral, vai, como um deus pagão,<br />

em festins de luz...<br />

Como que filtros de dolorimento partem de todas<br />

essas luminosidades, todo esse fulgor solar verte uma<br />

nostalgia cruciante, que fere e fende o peito,<br />

incisivamente, como as flechas letalmente envenenadas<br />

dos hindus.<br />

Quanto a mim, amargamente sinto esses dias<br />

tristes.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 339<br />

À larga luz de um templo vasto, na suntuosidade<br />

de uma festa católica, quando pela infinidade de<br />

rutilantes lustres acesos há facetas de estrelas, íris<br />

fulgurantes e pelos douramentos dos altares<br />

borboleteiam faíscas, acendem-se chamas nas velas<br />

amareladas, e vozes flébeis, numa compunção religiosa,<br />

sobem para as naves com a vaporosidade dos brancos<br />

incensos, dentre mósicas festivas – um angustioso anseio<br />

me insufla, me enche infinitamente o peito.<br />

E, batido de uma pungência, vibrado de uma<br />

recordação, alanceado por uma idéia, subitamente, para<br />

logo, toda a aparente radiação de alegria foge e eu me<br />

vejo então dentro dos meus dias tristes e que alguém,<br />

dos longes do Passado, acena-me, ou com um lenço<br />

amoroso, para as recônditas e virgens emoções do<br />

coração, ou com uma bandeira de combate, para as<br />

impulsivas faculdades do cérebro.<br />

Se um riso me aflora aos lábios, nervosamente;<br />

se uma verve satânica os inflama; se uma esfuziante<br />

sátira os eletriza, é ainda assim uma maneira de ser<br />

triste, apunhalante sarcasmo às tempestades mentais<br />

que se dão por dentro – humorismo doente, que para se<br />

convencer de que é alegre e de que é são, flori em rosas<br />

de riso, abre em Via-Láctea de riso.<br />

O esplendor das salas iluminadas, na abundância<br />

de cristais e flores, entre auroras de mulheres e<br />

luxuosas roupagens, dá-me também, a pouco e pouco,<br />

um abatimento, um afrouxamento aos nervos e daí nasceme<br />

logo, como uma tentaculosa planta negra e de morte,<br />

essa indescritível tristeza, que é a feição ingênita de<br />

tudo, que cobre tudo como que de uma neblina<br />

crespuscular sensibilizante...<br />

Assim, também, ao almoço, pelas claras manhãs,<br />

quando a toalha branca da mesa, as flores das jarras, o<br />

pão, o vinho, a atitude correta das pessoas, a limpidez<br />

simpática da hora, fazem lembrar resplandecências,<br />

alvuras castas, paramentações de altar para a evangélica


340 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

celebração da Missa, um sentimento de inexplicável<br />

tristeza me invade, nascido de toda essa disposição<br />

harmoniosa de objetos e de pessoas. E, abstratamente,<br />

como num nebuloso sonho, durante toda a alimentação<br />

desenrola-se lenta, vagarosa e fluida no meu ser, uma<br />

surdina oceânica que parece estar, na plangência de<br />

sons abafados, lembrando todas as abundantes fontes<br />

de afeto que para mim já para sempre secaram, todos os<br />

astros prodigiosos de enternecedor carinho que para mim<br />

já eternamente se apagaram.<br />

Mas, esses dias tristes, as horas, os momentos<br />

desses nevoeiros d’alma, tão densos, tão cerrados,<br />

nascem apenas de uma Visão que se adora, que nos<br />

abre inefavelmente os braços, que o espírito ama no seu<br />

recolhimento, na sua cela sombria e muda! essa Visão<br />

seráfica, nervosa, histérica, ideal – a Santa Teresa<br />

mística da Arte.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 341<br />

PAISAGEM DE LUAR<br />

Na nitidez do ar frio, de finas vibrações de cristal,<br />

as estrelas crepitam... Há um rendilhamento, uma<br />

lavoragem de pedrarias claras, em fios sutis de<br />

cintilações palpitantes, na alva estrada esmaltada da<br />

Via-Láctea. Uma serenidade de maio adormecido entre<br />

frouxéis de verdura cai do veludo do firmamento, torna<br />

a noite mais solitária e profunda.<br />

O Mar, pontilhado dos astros, faísca, fosforesce e<br />

rutila, agitando o dorso glauco.<br />

E, de leve, de manso, um clarão branco, lânguido,<br />

lívido, vem subindo dos montes, escorrendo fluido nas<br />

folhagens, que prateiam-se logo, como se fabuloso artista<br />

invisível as prateasse e as polisse.<br />

A lua cheia transborda em rio de neve na<br />

paisagem, e, no mar, há pouco apenas fagulhante da<br />

inação das estrelas, a lua jorra do alto.<br />

Por ele a fora, pelo vasto mar espelhado, pequenas<br />

embarcações se destacam agora, alígeras, lépidas, à<br />

pesca da noite, velas brancas serenas, sob a constelação<br />

dos espaços.<br />

A água repercute, na amorosa solidão do luar, a<br />

barcalora sonora dos pescadores, que, de entre a glacial<br />

amplidão da água, mais fresca e sonora, vibra.<br />

Um aspecto de natureza verde, virgem, que<br />

repousa, estende-se nos longes, desce aos prados, sobe<br />

às montanhas e infinitamente espalha-se nas mudas<br />

praias alvejantes.<br />

E, à proporção que a lua mais vai subindo o páramo,<br />

à proporção que ela mais galga a altura, mais as<br />

pequenas embarcações de pesca avançam nas vagas<br />

resplandecentes, com as asas das velas abertas à<br />

salitrosa emanação marinha.<br />

Com o brilho fúlgido, aceso, d’esmeralda facetada,<br />

uma estrela parece peregrinamente acompanhar de<br />

perto a lua, num ritmo harmonioso...


342 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Perfumes salutares, tonificantes eflúvios exalamse<br />

da frescura nova, imaculada dos campos, como dum<br />

viçoso e casto florir de magnólias, na volúpia da natureza<br />

adormecida numa alvura de linhos, dentre opulências<br />

de Noivados.


ARTISTA SACRO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 343<br />

Na catedral, com toda a pompa da liturgia, celebrase<br />

a Semana Santa.<br />

Pela Ressurreição, às quatro horas da manhã, há<br />

na igreja um ar vago de alvorada, em amarelo cidrento,<br />

trazido da rua pela larga e polida vidraçaria que se<br />

conserva aberta – ar menos vago, contudo, do que a névoa<br />

que turva fora os aspectos, em virtude dos lustres acesos,<br />

da variada profusão de luzes e da gala sagrada que enche<br />

de resplandecências e solenidades toda a extensa Nave<br />

onde os devotados católicos murmurejam num crescendo<br />

de mar tormentoso e cavado...<br />

O Altar-Mor está vistosamente ornado,<br />

deslumbrante, viçando de flores colocadas em jarras<br />

azuis e douradas, numa frescura e colorido cromático<br />

de jardim, rodeado de grandes tocheiros arabescados<br />

que faíscam, flamejam com chamas ensangüentadas e<br />

amarelas.<br />

Em cima, até onde os olhos sobem mais, num trono<br />

de luzes, entre uma pesada cortina de damasco<br />

vermelho, de tons profundos, caída para os lados em<br />

pregas longas e largas, vê-se o Cristo, na alegoria de<br />

Redivivo, com a chaga simbólica no flanco direito, tendo<br />

numa das mãos um ramo verde.<br />

Nos altares laterais os Santos como que ainda<br />

mostram possuir a auréola triunfal da Aleluia, sorrindo<br />

seraficamente, quer os mártires, quer os gloriosos.<br />

Pelo teto abobadado, dentre as melífluas<br />

harmonias, as melancólicas sonoridades dos violinos,<br />

das flautas, dos violoncelos e do órgão pianíssimo, ecoam<br />

majestosas as vozes que irrompem do coro, beatíficas,<br />

no Kirie Eleison.<br />

Os sacerdotes, festivamente paramentados, com<br />

as suas casulas custosas, relampejantes, bordadas a<br />

flores de ouro, em alto-relevo; de estolas rutilantes e<br />

franjadas pendidas no braço ou com as sobrepelizes alvas


344 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

e rendadas destacando forte na batina preta, curvamse<br />

genuflexos diante do Altar-Mor, erguendo-se após com<br />

mesuras graves e medidas, enquanto os acólitos, ao<br />

fundo, em linha e reverentes, fazem balançar,<br />

cadenciada e ritmadamente, turíbulos lavorados, de onde<br />

se exalam espiralados incensos...<br />

E o Cerimonial prossegue, na minudência exata,<br />

escrupulosa do Rito romano.<br />

Mas, nas suntuosidades da festa, ressalta de<br />

magnificências, esmaltadamente, um esbelto sacerdote<br />

novo e formoso, talhado em estátua branca, e que ergue<br />

no meio das outras vozes, a sua clara voz sonora, cheia<br />

de unção religiosa como de um sentimento amoroso e<br />

carnal.<br />

Chegado há pouco de Roma é essa a primeira<br />

cerimônia de mais estilo em que toma parte com o seu<br />

tipo amável, doce e misericordioso, amantíssimo, de São<br />

Luís Gonzaga.<br />

A sua linda cabeça suave, direita, correta, através<br />

da vaporosidade incensal, domina pela saúde e pela<br />

mocidade, que resplende no rosto liso, escanhoado, onde<br />

os olhos brilham com raios místicos...<br />

O seu porte ornamental, que parece afirmar o<br />

poder de uma força divina, conserva-se aprumado, ereto;<br />

e, quando a voz se lhe desprende untuosa dos lábios,<br />

como que ele paira num resplendor espiritual, vaga num<br />

nimbo etéreo, cercado por alas de querubins inefáveis e<br />

de arcanjos de asas fulgentes...<br />

De toda essa pessoa clerical como que vêm fluidos<br />

magnéticos, que fascinam e prendem certo olhares<br />

juvenis femininos, que a seguem, que a buscam em todas<br />

as direções, em todos os movimentos, sofregamente,<br />

deliciados da sua prodigiosa figura que ali naquele<br />

recinto sagrado tão imperiosamente e tão alto se destaca,<br />

como que revestida de poderes celestes.<br />

E o sacerdote instintivamente percebe os êxtases,<br />

os enlevos que despertam nas mulheres belas, porque


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 345<br />

dá então mais nitidez às mesuras, requinta nas<br />

curvaturas solenes, fica mais excelso e egrégio ainda,<br />

deixando escapar com brandura um sorriso paradisíaco,<br />

que é talvez a promessa sacrossanta dos dons<br />

maravilhosos, das graças, do Perdão infinito que a sua<br />

onipotência consegue.<br />

Nas suas mãos aristocráticas, delicadas e níveas<br />

como hóstia, sente-se, quando ele as eleva no ritmo do<br />

Cerimonial, um ligeiro estremecimento amoroso, que o<br />

embaraça, fazendo com que logo, para apagar essa<br />

impressão pecadora, exagere o Rito, afetadamente.<br />

Os olhares femininos, deslumbrados pelo êxito<br />

daquelas maneiras evangélicas, não deixam jamais de<br />

seguir o airoso sacerdote, as linhas harmoniosas da sua<br />

figura, o seu másculo vigor de deus viril e vitorioso, como<br />

seguem, no circo, os movimentos ágeis, dúcteis, e a<br />

plástica, firme e forte, dos corpos cinzelados de acrobatas<br />

célebres e atraentes...<br />

Realmente, na sua carne, que os incensos<br />

perfumam, circula o sangue em labareda de instintos<br />

sexuais e a sua cabeça primaveril, que a Arte da Religião<br />

abençoou em Roma, tem o encanto, a fascinação<br />

diabólica, satânica, da venenosa cabeça da Serpe bíblica.<br />

Mas, o decorativo apóstolo, resplandecendo nas<br />

vestes talares, imponente, magistral, faz simbolicamente<br />

lembrar, assim venerado pelas mulheres, com fervor<br />

beatífico, um Sultão em palácios, no Bósforo, como Abdul-<br />

Azid, amado por odaliscas e sultanas.<br />

De vez em quando, no templo, passam fios etéreos<br />

de harmonias de instrumentos e cânticos, que ondulam,<br />

que flutuam no ar...<br />

E o Eclesiástico, numa volúpia sacra, com toda<br />

essa Arte ritual de símbolos, de missais, de eucaristias,<br />

de pálios, de pedras de ara, de corporais, de âmbulas,<br />

de santos óleos, de chamalotes, lavrados e damascos,<br />

íris, lhamas de prata e ouro, recebe a opulência, o brilho<br />

feérico, o luminoso esplendor de um astro.


346 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

De lá, do seu sólio real de aparatosos efeitos, entre<br />

sedas, chamas e pedrarias, ele rege, com renomes<br />

episcopais, solene e sereno, a sinfonia das eternas<br />

Dulias.<br />

É o ateniense das formas católico-romanas,<br />

triunfando no idealismo de um gótico, de um medieval,<br />

através de cinzeluras de templos, com refulgências<br />

siderais de constelado...<br />

Casto cenobita, recluso nas celas do Cristianismo,<br />

ficará, talvez, para sempre, com elanguescimentos<br />

histéricos, na muda contemplação das cismadoras<br />

Imagens liriais dos hagiológios.<br />

Ou, batido das realidades carnais, sentindo a<br />

avidez das paixões terrestres, verá passar, ante os olhos<br />

mortificados na marmórea veneração de Jesus, à luz de<br />

círios ou de lâmpadas, violentamente, a visão cor-derosa<br />

das virgens vitais – fina, transparente epiderme da<br />

gaze auroral das papoulas.<br />

Então, dirá decerto ao mundo, extasiado por essas<br />

vivas expressões carnais que o transfiguram e<br />

humanizam, todos os mistérios, todos os inauditos<br />

clarões da Eternidade, que Ele, Artista Sacro,<br />

transcendentalmente conhece, lendo sempre, para dar<br />

mais abstração ao Miraculoso, os arcaicos latins<br />

apocalípticos e antifônicos...


VISÕES<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 347<br />

Num brilho cintilante de tiara persa a Via-Láctea<br />

encurva-se do alto por sobre mim, nas alvas flores<br />

cristalinas das suas estrelas.<br />

Encurva-se por sobre mim a pompa negra da noite<br />

densa, vagamente lembrando o luminoso esplendor de<br />

uns olhos dentre a pompa negra de aromados cabelos.<br />

Como em arejados pátios claros de castelos<br />

renanos desfilassem visões germânicas, willis<br />

enamoradas e vaporosas, sílfides serenas e<br />

encantadoras, ao luar das baladas, de cada estrela<br />

frígida, branca, desfila, vai desfilando nas rutilantes<br />

esferas uma Ilusão e um Sonho e cada Sonho e cada<br />

Ilusão se corporifica, toma consistência de nervos e<br />

cinzelada escultura de linhas, e eis então aí<br />

fascinadoras, deslumbrantes mulheres avassalando o<br />

firmamento, como ampla Via-Láctea de corpos<br />

ondulantes e níveos...<br />

* * * * * * * * * *<br />

Ah! mulher que eu procuro e desejo da tenda<br />

nômade da Arte, peregrina e fugidia sereia! que as<br />

harmonias deliciosas da tua carne não sejam como são,<br />

misteriosas para mim como a Via-Láctea, a cujas<br />

estrelas, que representam cada uma, uma Ilusão e um<br />

Sonho, está infinitamente presa, num amoroso eletrismo,<br />

esta alma ardente, alanceada e nervosa...


348 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

A JANELA<br />

Dava para o mar a larga janela verde, em frente<br />

às águas também verdes e turbilhonantes às vezes,<br />

outras limpidamente quietas, num remanso de golfo<br />

sereno.<br />

Velas saudosas de navios, enfunadas ao impulso<br />

das correntes aéreas; mastreações caprichosas e<br />

confusas, misteriosamente interrogando o céu; os<br />

montes, ao fundo, formando panoramas álacres com os<br />

seus cabeços azulados e colossais, e a grandeza olímpica<br />

das ondas fechadas pela natureza numa extensa área<br />

de terreno, tudo gozava e sentia além viver a janela; e,<br />

ao longe, na indefinida barra dos horizontes<br />

esfuminhados, a linha vaga, melancolizada, das imensas<br />

distâncias intermináveis...<br />

Dum lado e doutro da janela, subindo-a, galgandoa<br />

festivamente em caracóis negligentes, a expansão, a<br />

nevrose vegetal da folhagem trepadeirante que busca<br />

em ânsias o ar...<br />

Rosas vermelhas e rosas jaldes alastravam numa<br />

primaveral e casta alegria radiosa de Via-Láctea, o<br />

quadrado verde da janela, enquanto amorosamente um<br />

jasmineiro florido, entrelaçado às rosas, com flores alvas<br />

e cheirosas desabrochadas em forma de pequeninas<br />

estrelas, punha um encanto romântico e noival de janela<br />

de Julieta na larga janela verde que dava para o mar.<br />

E as embarcações, os iates, os navios, os paquetes<br />

paravam no mar dormente e do mar dormente partiam,<br />

lá iam todos a fora – ambulância marinha, dorso de tritões<br />

ferozes e soturnos, vogando na superfície das ondas...<br />

Iam talvez perto: a países meridionais, sob céus<br />

elegantes e azuis, ou – mundo a dentro – às eternas<br />

neves glaciais das geleiras do Pólo: às regiões<br />

setentrionais das flamejantes auroras boreais: a<br />

Islândia, a Lapônia, a Noruega, por entre as frias e<br />

brancas estalactites fulgurantes da lua...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 349<br />

Em frente à janela eram terrenos desapropriados<br />

e planos, que um rente folhedo luxuriosamente cobria.<br />

Depois era o mar, sempre o mar, todos os dias, a<br />

toda hora, a todo o instante, cortando, no entanto, com<br />

a monotonia do seu aspecto, a agreste monotonia<br />

daqueles sítios suaves.<br />

Mas, contudo isso, o mar nenhuma monotonia<br />

parecia inspirar, porque dava à janela, àquele original<br />

recanto, àquele desconhecido retiro isolado, aberto na<br />

parede como o nicho de uma Santa, a recordação de<br />

todo o vasto ruído atordoante e culto da vida de longe: os<br />

rumorosos cais frementes, as movimentosas cidades<br />

alegres, os grandes portos febris de efervescente efusão<br />

cosmopolita de mil exemplares de povos.<br />

Pela manhã, aparecia à janela, como um lindo sol<br />

feminino, uma bela mulher, forte, alta, loura, de flavos<br />

cabelos, talhada dum golpe numa quente e perfumosa<br />

massa de luz e de sangue, clara da epiderme macia e<br />

clara dos rendados vestidos em fofos e folhos que lhe<br />

afogavam soberbamente a garganta bourbônica,<br />

arrematados por fitas de azul leve e doce graciosamente<br />

enlaçarotadas sobre o sedoso colo oválico.<br />

E logo os seus olhos azuis como as fitas, da mesma<br />

meiga frescura e candidez de hóstia transparente,<br />

pareciam adejar, voar, como dois pássaros inquietos e<br />

deslumbrados, pela amplidão das vagas verdes e vivas,<br />

como se ambos quisessem nelas colher alguma certeza<br />

ou derramar alguma esperança.<br />

E o seu perfil, sob o sol, alvorecido na janela,<br />

lavado nas frescas essências salitrosas que emanavam<br />

do mar, tinha florescimentos, resplandecências, um vivo<br />

fulgor de ouro novo, derramando no ambiente eflúvios<br />

de magnólia.<br />

Às vezes ela deixava-se ficar por mais tempo à<br />

janela – e era então ali uma deliciosa e cristalina ária<br />

de trinados, de matutinos gorjeios de pequenas aves<br />

que por entre a viçosa verdura da janela esvoaçavam


350 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

em ruflos e contentamentos d’asa, em palpitações<br />

elétricas de plumagem, cantando para o espaço todo esse<br />

sonoro amor infinito dos pássaros que o seu estreito<br />

laringe metálico tão maravilhosamente sabe desfolhar<br />

em notas, como se essa mulher loura fosse a<br />

corporificação da própria aurora que raiasse doirada no<br />

acanhado horizonte enquadrado na florida janela verde.<br />

E ficava ali constantemente a olhar, a ver o mar,<br />

talvez na esperança de algum sonho de afeto que de<br />

repente lhe surgisse e cuja enamorada lembrança lhe<br />

vibrava o coração anelante, fazendo dolentemente o seu<br />

colo arfar, agitar-se, numa onda nervosa de convulsão e<br />

alvoroço, inflado desse tormentoso e vago desejo<br />

irresistível do amor, que um dia vertiginou o mundo, e<br />

que, quanto mais afastado se está de quem se adora,<br />

mais fundo, mais entranhado fere e martiriza.<br />

Pelas noites, quando o hostiário das estrelas abria<br />

a sua rendilhada cintilação de prata nos sidéreos<br />

espaços calmos, ou as finíssimas gazes lácteas da lua<br />

flutuavam, velando tudo, ela, virgem noiva, branca e<br />

muda como a lua, por lá ficava ainda a viajar na gôndola<br />

da imaginação e fantasiosa saudade que a emocionava,<br />

através do mar, ao encontro sonhado do seu afeto querido.<br />

E, tonta, magnetizada, narcotizada na emoliente<br />

volúpia da lua, na quente exalação dos aspectos, lá<br />

adormecidamente ficava a amar, presa na fluida teia<br />

luminosa das estrelas e da lua...<br />

* * * * * * * * * *<br />

Agora um muro enrijecido e alto, que o musgo e o<br />

limo maciamente vestem de um veludoso verde escuro<br />

de tapeçaria, veio para sempre obstar a ampla vista<br />

azotada e alegre do edificante panorama do Mar.<br />

Para além, como um gigantesco protesto que a<br />

pedra opusesse às jubilosas, triunfantes águas marinhas,<br />

o muro vai, longo e impenetrável, estendido em pano


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 351<br />

ríspido de parede socavada e cerrada, que tudo do mar<br />

avaramente encobre – levantado da terra como um brusco<br />

e bronco biombo de treva à livre expansão da luz.<br />

Austeros homens egoístas, no intuito de edificar,<br />

apropriaram-se dos terrenos e para ali ergueram,<br />

dividindo-os, semelhante à rija muralha d’imperecível<br />

fortaleza, esse imenso muro empedernido, rochoso, como<br />

que feito de um só bloco inteiriço de calcária matéria<br />

rude.<br />

Então, sem a perspectiva da alacridade vitoriosa<br />

e bizarra das ondas, sem aquela vastidão consoladora,<br />

salutar, das águas salgadas, e sem a visão branca dessa<br />

mulher, vive agora quase sempre fechada, triste e fria,<br />

a reluzente vidraça clara eternamente descida, na meia<br />

sombra crepuscular da persiana, a idealizada janela<br />

verde – a florejante janela que abria, como um desejo<br />

vago, para o Mar infinito...


352 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

UMBRA<br />

Volto da rua.<br />

Noite glacial e melancólica.<br />

Não há nem a mais leve nitidez de aspectos, porque<br />

nem a lua, nem as estrelas, ao menos, fulgem no<br />

firmamento.<br />

Há apenas uma noite escura, cerrada, que lembra<br />

o mistério.<br />

Faz frio...<br />

Cai uma chuva miúda e persistente, como fina<br />

prata fosca moída e esfarelada do alto...<br />

À turva luz oscilante dos lampiões de petróleo,<br />

em linha, dando à noite lúgubres pavores de enterros,<br />

vêem-se fundas e extensas valas cavadas de fresco, onde<br />

alguns homens ásperos, rudes, com o tom soturno dos<br />

mineiros, andam colocando largos tubos de barro para o<br />

encanamento das águas da cidade.<br />

A terra, em torno dos formidáveis ventres abertos,<br />

revolta e calcária, com imensa quantidade de pedras<br />

brutas sobrepostas, dá idéia da derrocada de terrenos<br />

abalados por bruscas convulsões subterrâneas.<br />

Instintivamente, diante dessas enormes bocas<br />

escancaradas na treva, ali, na rigidez do solo, sentindo<br />

na espinha dorsal, como numa tecla elétrica onde se<br />

calca de repente a mão, um desconhecido tremor nervoso,<br />

que impressiona e gela, pensa-se fatalmente na Morte...


MODOS DE SER<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 353<br />

Com uma nobre emoção da Arte dizia Balzac que<br />

faltariam sempre cordas à lira de uma alma que nunca<br />

tivesse visto o Mar.<br />

Na verdade, sem o Mar, sem esse organismo vivo,<br />

movimentado, vibrante, as perspectivas como que são<br />

indecisas, vagas, a retina pouco se desenvolve e educa<br />

sem essa larga vastidão das ondas, de onde parece subir,<br />

nascer para o alto, como uma luz original, todo o<br />

sentimento indutivo das cousas.<br />

Diante do mar, à sua influência vital, que é a<br />

influência da força, do vigor do pensamento, as<br />

faculdades de cada um recebem impressões estéticas<br />

muito consideráveis, ampliando o seu modo de ser,<br />

dando-lhe a sugestão das latitudes geográficas,<br />

correspondentes também, para um espírito de indução<br />

e dedução fina e atilada, à amplidão das idéias.<br />

Gozar o Mar é viver, sentir a eflorescência da<br />

carne, crer nalgum poder forte e épico que nos encoraje,<br />

dê ao pulso e ao cérebro essa poderosa segurança de<br />

existir que levanta sobre rijos alicerces os princípios e<br />

crenças de cada homem.<br />

Do Mar vem essa emanação virginal, salutar, que<br />

traz o impulso às ações, o vigor nobre à vontade, dando a<br />

todo o organismo uma função especial, uma atividade<br />

própria, uma determinação expressivista da Natureza.<br />

Os efeitos maravilhosos que a visão recebe do Mar,<br />

como uma máquina fotográfica recebe nitidamente as<br />

fisionomias, desenvolvem-se nos temperamentos<br />

artísticos em impressões, em nuances, em colorações,<br />

em estilos, em linhas, em sutilezas de percepção, em<br />

ductilidades, em fiorituras de imagens, em abundantes<br />

floras de imaginação, tão múltiplas e luminosas quantas<br />

são as infinidades de ilhas verdes de algas e de sargaço<br />

que o Mar contém no seu seio.


354 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Ele infiltra nos órgãos emocionais e pensantes<br />

todo um exuberante eletrismo nervoso, todo um fluido<br />

de luz e originalidade, uma essência, um gérmen rico e<br />

novo de graça e fantasia alada.<br />

Fica-se numa saudável impressão e frescura<br />

radiante de caça e pesca, numa alegria de sol<br />

undiflavando rouparias brancas e finas.<br />

* * * * * * * * * *<br />

Serenidade de Campo e Mar é esta em que estou<br />

agora.<br />

Campo fértil, verde, como se agora mesmo<br />

brotasse, em flor, da terra.<br />

Nas manhãs claras, de grande majestade de sol,<br />

pelos domingos, a missa da capela branca convida a<br />

digressar entre árvores, sob o festivo e claro repique do<br />

sino.<br />

E, por estar no campo, numa extensão de relva,<br />

de verdurosas alfombras, lembro-me vivamente do campo<br />

das paradas, ao sol, num espelhar faiscante de baionetas,<br />

rutilar de fardas e triunfal desfraldamento de bandeiras,<br />

quando, imensas, pesadas massas marciais, na evolução<br />

de um corpo disciplinar, agitam-se, num tinir e cintilar<br />

de metais, como enorme serpente de coruscantes<br />

escamas.<br />

Com o espírito livre, em asa aberta, eu procuro<br />

arrancar das vozes mudas, inexprimíveis da Natureza,<br />

significações.<br />

Campo e Mar estendem-se até longe, ao infinito<br />

horizonte, fulgurando às luxuosíssimas sedas do sol.<br />

Elevados cômoros de areias alvas, ao longo das<br />

praias, conservam a aparência de grandes dorsos de<br />

elefantes brancos deitados.<br />

Então, um ritmo me sobe da alma ao cérebro para<br />

me afinar os pensamentos em aspectos felizes,<br />

luminosos, como quando os alemães, fumando cachimbo


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 355<br />

e bebendo cerveja, por entre uma leve névoa ideal de<br />

fumo e álcool, mentalmente produzem filosofias...<br />

Como essas raças finas e louras a que nada mareia<br />

a pureza clara da carne civilizada, a idéia da Arte surgeme,<br />

alvorece-me no espírito, diante das ondas, sideral,<br />

imaculada, como uma doce monja vestida de linho branco<br />

e virgem.<br />

Estranhos, misteriosos, na magia dos feiticeiros<br />

caldeus, com o pensamento cristalizado na Forma, sinto<br />

que me ferem o cérebro, pesando fundo sobre ele, os<br />

nevropatas de agudeza psíquica, mórbida, doentia, os<br />

psicólogos tenebrosos que, como Huysmans, vibram num<br />

eletrismo histérico, numa dança macabra, satânica, num<br />

deliriutm tremens de sensações.<br />

Ninfomaníacos mentais, como que sob a impressão<br />

de um sono de morfina ou de ópio, numa alucinação ou<br />

fascinação de hipnotizados, a alma deles flutua, desce<br />

sombriamente lá abaixo, ao antro negro da Terra, ou<br />

sobe lá acima, à infinita mudez do céu, como que em<br />

busca, sinistros e luminosos, revoltados Moisés de uma<br />

Bíblia nova, em busca de saber qual a doença que dá a<br />

Morte...<br />

Sente-se-lhes isso na tortura da prosa, no<br />

funambulesco cabriolar do estilo, na acre violência das<br />

palavras, abertas umas em chagas e escorrendo sangue,<br />

outras brancas como Noivas amadas derramando<br />

lágrimas astrais...<br />

E, dentre esse exalar de vida espiritual dolorosa,<br />

rompem coros de catedrais entoados por veladas, místicas<br />

vozes freiráticas; ouvem-se Missas negras e abrem-se,<br />

num ritual cristão, para a contemplação dos áugures e<br />

dos símbolos, os medievos Hagiológios.


356 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

NO FAETON<br />

Na manhã fria, fresca de maio, por uma rua areada,<br />

um nobre esplendor de mulher iluminou-me e<br />

surpreendeu-me os olhos.<br />

Numa elegância de pelúcias claras, o seu perfil<br />

delicado, um biscuit d’arte, surgia em flor no faeton, alta<br />

a estatura, sobre as moles almofadas, a cabeça serena,<br />

com a graça educada de amazona espiègle.<br />

Nos amplos largos de aspecto arejado de gare, sob<br />

o espaço vibrante, sonoro como uma grande cúpula de<br />

cristal, o faeton girava, de manso, na doce flexão das<br />

rodas leves, como se girasse sobre macias relvas de<br />

veludo.<br />

Os cavalos normandos, lustrosos no cetim do pêlo,<br />

davam a correção, o tom das carruagens de molas<br />

flexíveis, suaves, das envernizadas caleches<br />

aristocráticas de luxo, cujos claros e polidos metais dos<br />

eixos cinti1am.<br />

Com uma linha fidalga ela manobrava as rédeas,<br />

nuns volteios audazes e galantes, a mão fremente,<br />

agitada, convulsa pelo ferir matinal do frio no sangue<br />

novo de gazela, com a orgulhosa atitude das ecuyères.<br />

Algumas atenções paravam diante desse feminil<br />

deslumbramento desabrochado ao sol em aromas e<br />

formosura.<br />

No ar nítido, azul, fino do dia, duma limpidez<br />

deliciosa, o seu esbelto porte nervoso vinha ereto, num<br />

alto-relevo, destacando forte no fundo luminoso,<br />

transparente da manhã, como que cortado, talhado numa<br />

lâmina de vidro.


RITOS<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 357<br />

À luz lirial da Lua abre a tu’alma, artista, como<br />

um solar antigo.<br />

Sob a névoa luminosa do grande astro noctâmbulo,<br />

as visões que um dia amaste aparecerão agora.<br />

Ah! a tu’alma é um antigo solar, onde mulheres<br />

prodigiosas, enfioradas de beleza, peles finas,<br />

transparentes, de delicadezas de porcelana, passaram.<br />

És um solar antigo...<br />

Tens o ar enevoado do crepúsculo de melancolia<br />

que há nos velhos solares.<br />

Alguma coisa de nostálgico, de evocativo, como<br />

vagos sons plangentes, à noite, ou à hora do Angelus, na<br />

solidão dos campos, levanta e acorda a tu’alma.<br />

Teu coração é o Sagrado Viático, mais puro e<br />

branco que as claras hóstias.<br />

De que fundo de civilização, de que ramo de raça,<br />

de que regiões vieste assim, numa original sensação de<br />

nervos, palpitante, convulso como o mar e como o mar<br />

sereno e também como o mar profundo e grande?!<br />

Pelas tuas idéias, pelos teus olhos fatigados de<br />

ver e perceber de perto o incoercível mundo, passam as<br />

alegrias, as lágrimas, o intenso viver de muitas gerações.<br />

E tu representas bem todas elas, és a essência<br />

espiritual de infinitas camadas humanas, o luminoso<br />

requinte dessas gerações que findaram e que não foram<br />

mais do que simples moléculas para formar o teu<br />

estranho, poderoso organismo de artista.<br />

Sofreram, gozaram e pensaram – para que tu sobre<br />

elas fizesses nascer, surgir o mundo virgem das tuas<br />

impressões e idéias.<br />

E é por isso, artista, que abres a tu’alma, como<br />

um solar antigo, à luz lirial da Lua – apaixonada sultana<br />

que vaga à noite, que vigia e vela pelas Religiões<br />

incomparáveis do Pensamento, seguida do fulgurante<br />

cortejo das estrelas odaliscas...


358 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

MULHERES<br />

Magnólias de aroma tépido, finos astros, que elas<br />

sejam, olhos fascinantes, como águas dormentes de<br />

delicioso Danúbio que a luz sonoriza e doura, humildes<br />

e imperiosas, ninguém jamais saberá o mistério que as<br />

envolve...<br />

Amar e gozar as nebulosas mulheres, mergulhar,<br />

engolfar a alma infinitamente, inefavelmente, em<br />

repouso, como num harmonioso luar, sem sobressaltos<br />

e ansiedades, na alma enevoada que elas ocultam<br />

sempre, só é dado às naturezas vulgares, que amam<br />

com a carne, que amam com o sangue apenas, no ímpeto<br />

brutal de todos os instintos, com a luxúria viva da carne,<br />

que fazia, desde os romanos, a carne viçosa e rica.<br />

Os que as amam e gozam sensualmente, à lei da<br />

sexualidade, não lhes ouvem a vaporosa música<br />

embriagante do vinho dos encantos da voz e do sorriso;<br />

não lhes sentem o perfume delicado de úmidas bocas,<br />

purpúreas, de níveos colos cor de camélia, de veludosos<br />

seios macios como a alva plumagem fresca de um pássaro<br />

real; não lhes percebem o amoroso ansiar de etérea<br />

cintilação de estrela nos olhos indagadores, que<br />

atravessam, costumam passar em visão, pesados de luz,<br />

com o brilho aceso e fagulhante de preciosas e raras<br />

pedrarias, as geladas noites brumosas do Ciúme...<br />

Para esses, que só as possuem sexualmente, elas<br />

trazem um deleite, um atrativo, como no Oriente o fumo,<br />

que dá prazeres insubstituíveis, voluptuosas graças de<br />

viver, atila e acende a imaginação, faz abrir e flamejar,<br />

incomparavelmente, para todos os pontos do mundo, os<br />

mais inauditos sóis do Espírito...<br />

Esses, ainda outros ou todos, poderão decerto<br />

inundar-se no esplendor da beleza das mulheres, fruir<br />

delas toda a fremente carícia, possuí-las, dominá-las<br />

sem hesitações e embaraços estranhos.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 359<br />

Para todos elas não terão sombrias torcicolosidades<br />

de serpente, anseios, anelos indecifráveis, enigmas<br />

tremendos, que nos deixam deslumbrados, extáticos, na<br />

mais intrincada rede de perplexidades.<br />

Elas serão para todos o eterno feminino, leve,<br />

simples, fácil na conquista, fácil na vitória, tendo para<br />

os homens os arrastamentos prontos de um animal que<br />

se abandona à lubricidade.<br />

Ninguém saberá ver nas mulheres esse complicado<br />

segredo de nervos, que ora se patenteia claro e penetrável<br />

e que ora mais se condensa, se intensifica de<br />

obscuridade, torturando, afligindo, vago, abstrato como<br />

a dor e por isso ainda mais terrível, mais esmagador e<br />

frio...<br />

Só um ser, consubstanciação de todas as<br />

angústias, de todas as incertezas e dilaceramentos do<br />

espírito, um ser contemplativo, amargurado pelas<br />

análises, ferido sempre pela observação, pelas idéias<br />

que sangram e vivem perpetuamente a martirizá-lo, para<br />

o seu gozo excêntrico e único, só esse ser as<br />

compreenderá, mudo e solene, encerrado na solidão dos<br />

seus pensamentos, como um missionário, alheio às<br />

exterioridades dos corpos delas, às linhas, ou só as<br />

amando por sentimento estético e analisando<br />

continuamente, sondando, perscrutando o feminino<br />

organismo dúbio.<br />

Só a psicologia desse ser, que é o artista, saberá<br />

ver fundo o delicado ser das mulheres e penetrar nas<br />

sutilezas, nas direções variadíssimas e múltiplas que<br />

toma o seu espírito, à maneira das aves que voam alto,<br />

sem rumo, além, indefinidas na distância...<br />

Esse poderá querê-las muito, adorá-las com outra<br />

chama sagrada; mas nunca as poderá amar carnalmente,<br />

friamente com os nervos – porque aparecerá sempre o<br />

analista sufocando o afeto espontâneo que não se<br />

delimita nem regulariza, o entendimento artístico, que


360 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ama a Forma, destruindo o fator humano que fecunda a<br />

Carne, que perpetua a Espécie.<br />

Quanto mais elas forem complexas, segredantes,<br />

misteriosas, tanto mais a análise se manifestará mais<br />

arguta, mais penetrante, de um modo experimental, nu,<br />

amplo; e as mulheres, afinal, ficarão diante do artista<br />

como documentos palpitantes de uma dada natureza,<br />

provas flagrantes de paixões veementes, de desejos, de<br />

vontades, de uma infinidade de atributos e qualidades<br />

radicalizadas na alma feminina e que o pensamento do<br />

artista investiga, conhece, põe para fora, a toda a luz,<br />

como se expusesse, na presença do mundo, explicando<br />

a função de cada um, os milhares de glóbulos de sangue<br />

que circulam no organismo humano.<br />

A dor de tudo isso, porém, a pungitiva dor de tudo,<br />

é que o artista não pode, assim como todos<br />

espontaneamente amar.<br />

Ele ama um golpe de luz, um olhar, a fascinação<br />

de uns cabelos quentes, a polpa virgem de uns seios, a<br />

graça idealizante e alada de um sorriso, o talho vermelho<br />

de uns lábios frescos, o tom das elegâncias fidalgas<br />

dessas Flores escarlates das Babéis do ouro, que passam<br />

na corrente das civilizações e na febre, no delírio dos<br />

luxos fortes.<br />

Vendo para dentro de si, como para o fundo de<br />

um mar prodigioso, ele domina com o olhar perscrutante,<br />

inquieto, que apanha de pronto as situações, a<br />

maravilhosa ductilidade das mulheres, vendo também<br />

perfeita e singularmente o que se dá dentro delas, as<br />

suas inquietitudes, as suas impaciências, os seus<br />

receios, os seus caprichos inesperados, as suas<br />

volubilidades doentes e curiosas, as suas resoluções<br />

bruscas, os seus ímpetos de leoa, os seus<br />

enternecimentos ingênuos e monocordes, os seus<br />

momentos horríveis de crise hiper-histérica, sem causa<br />

determinada, sem assinalamentos de origem, mas<br />

assoberbantes, convulsos e que de repente cessam como


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 361<br />

vieram, para tornarem ainda, mais desabridos e<br />

persistentes.<br />

As mulheres, para o artista, para a estesia<br />

exigente, requintada, são apenas um elemento de<br />

sugestão estética amoldável às necessidades artísticas<br />

do sugestionado. Elas falam, abrem-se mesmo ao amor<br />

em rosas fecundas de sinceridade, dizem os ardores<br />

apaixonados, as recônditas sensações, a vida íntima do<br />

seu afeto; mas o artista as ouvirá, como artista que é, a<br />

frio, simulando interesse, formando já, mentalmente,<br />

com as palavras delas, com essa confissão franca, pura<br />

e sentida, embora, verdadeiras páginas de emoção e<br />

estilo.<br />

E, no entanto, ele as quererá amar muito,<br />

eternamente e sem reserva, abrir-lhes os braços ao<br />

amor, com todas as forças másculas, vigorosas e livres<br />

de homem, com a firmeza mais casta dos carinhos e das<br />

ternuras, estremecendo-as, idolatrando-as.<br />

Mas, um ligeiro contacto apenas, um leve roçar<br />

de lábios, um abraço desfalecido, murcho, algumas<br />

frases balbuciadas materialmente, ao acaso – e aí estará<br />

de novo o mentalizado, o espiritual, descendo a<br />

investigações, medindo cada gesto e cada olhar, inquieto,<br />

aflito com a expressão de um toque de luz numa trança<br />

de cabelos, que ele quer levar para a sua Obra ou<br />

preocupado com o fino Sèvres que fulgurou uma noite<br />

em certo boudoir, faiscando centelhas de astro.<br />

Contudo, quando esse luminoso torturado as vê<br />

descendo ou subindo os átrios claros de palácios festivos,<br />

altas Valquírias de neve nas pompas orgulhosas das<br />

sedas que roçagam, como que fica preso, magnetizado<br />

por aqueles aromas fluidos, vivendo na auréola majestosa<br />

do clarão que elas de si desprendem; e então como que<br />

na cauda constelada e rojante os fulgores sedosos levam<br />

aspirações, sonhos que ficam errantes e que quereriam<br />

talvez subir ou descer, opulentamente, com as deusas


362 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

resplandecentes, os mesmos festivos palácios de átrios<br />

claros.<br />

Entretanto, não é aí o amor o sentimento que se<br />

manifesta ainda na alma artística, não é uma expansão<br />

afetiva – mas uma verdadeira expressão d’arte, um<br />

desejo de posse, que logo invade as naturezas<br />

dominadoras, altivas, onde as idéias predominam,<br />

atuando, fatais e intensas, nos fenômenos da Vida os<br />

mais elementares ainda.<br />

O que excita o artista, seja nos átrios claros de<br />

palácios ou em toda a parte, é simplesmente a Forma, é<br />

toda essa roupagem deslumbrante que faz as mulheres<br />

parecerem auroras boreais; o que lhe incita a pensar<br />

nelas, a desejá-las, é a plástica olímpica, o onipotente<br />

esplendor das curvas cinzeladas, os mármores coríntios,<br />

o alabastro dos corpos flóreos. O que o surpreende, deixa<br />

atraído e fascinado, é o luar gelado da carne alva das<br />

louras, que deliciam, o ardente sol tropical da carne<br />

tentadora das morenas, que cheiram a sândalo e matam.<br />

Amar as mulheres, profundamente, com<br />

simplicidade, com singeleza, sem cuidados latentes de<br />

observá-las a toda hora, com os mínimos detalhes, linha<br />

por linha, traço por traço, sem essa preocupação doente<br />

que as exigências do Pensamento provocam, não é para<br />

a concentração, para a contensão nervosa dos<br />

falangiários da Arte, que, de todas as coisas, querem<br />

arrancar o gérmen que necessitam, o pólen que lhes é<br />

mister para a fecundação da sua Obra.<br />

A linguagem feminina, algumas fiorituras de<br />

frases passageiras constituem, de certo modo, um tecido<br />

primoroso, os fios delicadíssimos com que a Arte<br />

contextura, urde a tecelagem da Forma.<br />

Mas o desolado psicologista do Pensamento não<br />

as pode amar com intensidade e desprendimentos<br />

espirituais, sem as querer observar sempre, desataviálas<br />

das plumagens garridas e ver-lhes, à luz, o que elas<br />

sentem e pensam de nebuloso...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 363<br />

Por isso é que muito naturalmente, por intuição<br />

própria, elas percebem que não poderão jamais amar os<br />

artistas, tendo até para eles uma repulsão como que<br />

instintiva e sendo mesmo indiferentes às suas<br />

solicitações mais veementes e calorosas.<br />

Vendo-se a cada instante o objeto das<br />

interpretações deles, reveladas através dos seus<br />

pensamentos tão recatados como os seus seios, os<br />

pudores dos seus corpos angélicos, em tantas páginas<br />

dilacerantes e impiedosas, as mulheres não buscam<br />

sistematicamente os artistas para amar, feridas nos seus<br />

orgulhos melindrosos, nas suas vaidades excessivas e<br />

principescas, nas suas finas suscetibilidades de formosos<br />

seres triunfantes e inacessíveis.<br />

Só raramente, por singularidade, uma ou outra<br />

mulher ama o artista, quando já acaso também existe<br />

nela qualquer corrente de simpatia mental, qualquer<br />

relação de afinidade que estabeleça entre ambos uma<br />

claridade e harmonia de sentimentos mais ou menos<br />

congêneres, equilibrados.


364 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

PERSPECTIVAS<br />

Naquela alvejante planura de areias salitrosas,<br />

onde o mar espumeja; naquela fulgurante extensão de<br />

praias brancas, indizíveis de pitoresco, felizes os olhos<br />

que se demoram, com o carinho, o afeto das coisas, a<br />

gozar as riquezas, o encanto, a imponência imortal dos<br />

aspectos.<br />

Mas manhãs, céus louçãos, de um leve ar azul,<br />

azotado, fresco, pacificam o porto, adoçam os horizontes,<br />

inefavelmente.<br />

Ocasos opulentos, feéricos, imprimem às tardes<br />

a mais suntuosa e serena majestade.<br />

No mar, ao largo, entram e saem navios de alto<br />

bordo, numa infinita beleza de excêntricas formas<br />

requintadas, em caprichosos estilos diversos,<br />

mastreações aparatosas, parecendo enormes aparelhos<br />

estranhos para maravilhosamente arrancarem do fundo<br />

das ondas o misterioso deus das algas, da lenda secular<br />

e virgem dos hirsutos tritões verdes.<br />

Marinheiros terrosos e fuscos, como que sujos a<br />

betume; outros louros, flamejantes do sol, do ouro<br />

cantante da pele, dão à paisagem sã, revigoradora e<br />

larga, tons álacres e acres.<br />

Das vagas, como exóticos monstros marinhos, as<br />

rubras e arredondadas cabeças das bóias, aqui e além,<br />

emergem.<br />

Os mastros avultam, enchem prodigiosamente o<br />

mar supremo, sob a flava cintilação do dia; e, assim<br />

firmes, aprumados ao alto, ao firmamento, parecem<br />

tochas imensas para a celebração do Te Deum sideral<br />

dos astros, nos templos pagãos dos navios.<br />

À noite, peregrinadoras estrelas, em claras<br />

chamas sagradas, nos espaços ardem.<br />

Uma lua virginal, aureolada de branco, irrompe,<br />

fria e magoada, com um ar antigo e desolante de


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 365<br />

histerismo atormentado, como as freiras que envelhecem<br />

nos claustros.<br />

Hálitos, vivos estremecimentos elétricos, passam,<br />

perpassam no dorso glauco das ondas que o luar então<br />

alastra...<br />

Mas, o que mais enternecidamente enleva e<br />

perturba até as lágrimas, num sentimento intenso, de<br />

recôndita vibração, é um simples lenço, um adeus febril,<br />

vertiginoso, em ânsia, que ali fica às vezes a palpitar ao<br />

sol, infinitamente, na emoção de uma alma, para a vela<br />

que vai já além confusa na distância, desaparecendo,<br />

perdida nos longes esfuminhados, infinitamente,<br />

infinitamente...


366 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

CAMPAGNARDE<br />

O dia abriu numa explosão d’oiro, dum oiro<br />

inflamado de forja, trescalando perfumes, cheirando<br />

acremente à terra.<br />

Tu, gárrula vivandeira dos prados, que ao primeiro<br />

rumor sonoro do teu coração amoroso, como ao alegre<br />

rufo bizarro de um tambor de guerra ou à esfuziante<br />

vibração matinal de uma trompa de caça, toda<br />

estremeces e fremes, voltas agora púrpura dos campos<br />

onde te fecundaste, desabrochaste e floriste logo em<br />

papoula.<br />

E voltas mais púbere, mais virtual, mais mulher,<br />

porque sorveste o leite virginal e sadio aos abundantes<br />

seios da Natureza.<br />

Quando para lá foste, o teu corpo frágil, tênue,<br />

traspassado do azulado enraizamento arterial das veias,<br />

era quase diáfano, transparente, vitrescível quase,<br />

através do qual bem facilmente a aurora coaria os seus<br />

flavos raios rútilos, como através de um delicado e<br />

aromático filó finíssimo, cor-de-rosa e translúcido.<br />

Além disso, quando para lá foste, eras infantil<br />

ainda, ainda a ave implume, e entrarias daí por diante,<br />

como por uma zona de sol, nesse luxurioso período<br />

genesíaco da mulher, quando as suas formas se ampliam,<br />

se completam e perdem essa volatilidade aérea, o<br />

borboletismo, essa tonalidade vaporosa da primitiva<br />

graça, para irem aos poucos adquirindo opulências,<br />

exuberante vigor germinativo no sangue que as alimenta,<br />

enlabareda e fecunda, arredonda e turgesce triunfais e<br />

alucinantes no colo as duas polposas saliências carnudas,<br />

das quais, em busca da instintiva subsistência, pende,<br />

mais tarde, como astros no firmamento, o encanto virgem<br />

dos filhos.<br />

Mas, agora que de lá chegas, vens florescente<br />

como a vinha verde, dum sabor de uva branca, inundada


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 367<br />

do palpitante pólen dourado da antera dos vegetais, das<br />

emanações revigorativas da planturosa paisagem.<br />

Trazes a carne amadurecida, sazonada em fruto,<br />

exalando essências de campos, sutilíssimos eflúvios de<br />

vergéis, alastrada de brilhos quentes, de elétricas faíscas<br />

narcotizantes, como se o teu imaculado torso inteiriço<br />

irrompesse, brotasse do noivado da Natureza no mesmo<br />

veemente e original impulso das árvores e rios.<br />

Perfeito, soberbamente rico e raro, Campagnarde!<br />

esse humor campestre, esse alagamento e deslumbramento<br />

de luz com que regressas da Vida, do seio<br />

livre da grande amplidão da saúde, onde tudo, afinal,<br />

são concentradas forças, pujanças novas para o sangue,<br />

renascimento para a carne.<br />

Ninguém, por certo, calcula, a ninguém sugere,<br />

por certo, a alta realidade do quanto é salutar e é nobre<br />

o supremo bem que lá se goza nos campos e como ao<br />

corpo abalado pelos inevitáveis golpes da matéria falível,<br />

resiste o espírito, o fluido nervoso, dando à existência o<br />

equilíbrio sereno.<br />

Nenhum pincel colorista, nenhuma entranhada<br />

emoção ou visão impressionista d’arte, nenhuma<br />

perceptibilidade acústica de músico poderá bem com<br />

exatidão apanhar a cor, o sentimento, a errante, dispersa<br />

harmonia que se eterifica na liberdade dos campos e<br />

que assim te penetrou pelo coração e pelos olhos,<br />

primorosamente enflorescendo e viçando no teu corpo<br />

de garça, lirial e formoso.<br />

Abres a veludosa e cerejada boca e os teus<br />

esmaltados dentes rutilam – lisos e claros – enrijados<br />

nos ares puros, nas frescas águas correntes, nos frutos<br />

castos e doces. Falas, e a tua voz, em músicas, desfolha<br />

notas da canção feliz da tu’alma; e a tua voz pelo espaço<br />

voa, voa, voa de eco em eco, infinitamente,<br />

inefavelmente, parecendo então reproduzir o teu próprio<br />

nome, Campagnarde! Campagnarde! e eternamente<br />

desdobrá-lo, arremessá-lo ao longe, por colinas e vales<br />

derramá-lo, Campagnarde! Campagnarde!


368 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

RITMOS DA NOITE...<br />

Lá fora a noite é estrelada e quente.<br />

Chego da rua. A vida ferve ainda nos cafés, com<br />

intensidade. No Londres, uns imbecis doirados de<br />

popularidade fácil, saudaram-me, e, nessa saudação,<br />

senti o ar episcopal das proteções baratas que os<br />

conselheiros costumam dar aos jovens esperançosos.<br />

Eu percebi o conselheirismo e tive uma careta,<br />

uma grimace diabólica de ironia...<br />

Oh! oh! infinitamente incomparáveis os caríssimos<br />

imbecis doirados de popularidade fácil!...<br />

* * * * * * * * * *<br />

No meu quarto, entro, enfim, agitado, da rua, com<br />

mil idéias, com mil impressões e dúvidas e fundamente<br />

considero, tenho tão estranhos monólogos mentais, que<br />

quase que me alucinam.<br />

A luz da vela, em torno à sombra do quarto, põe<br />

uma claridade velada, penumbrada, quase morta.<br />

Um retrato de Daudet, pendurado à parede,<br />

parece ter para mim piedade no seu fino perfil de Cristo<br />

alemão.<br />

Ah! por que será que na hora dos estrangulamentos<br />

supremos, quando a Dor nos alanceia e torna<br />

velhos, os objetos têm todos, para nós, uma feição<br />

singularmente diversa da que têm sempre – ou sinistra,<br />

ou agressiva, ou piedosa?<br />

Por que será que nas longas noites de desolação,<br />

quando uma ventania de desesperos sopra por trompas<br />

de bronze do nosso peito, todas as cousas desfalecem<br />

aos nossos olhos, as perspectivas se anulam, os astros<br />

loiros se apagam e a própria luz de uma lamparina ou de<br />

uma vela projeta claridade dúbia, que antes punge, que<br />

antes apunhala e dói do que ilumina!?


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 369<br />

O coração cerra-se-nos de uma névoa triste, e,<br />

como um solitário monge, põe-se a balbuciar, não sei<br />

para que mundos distantes, orações indefinidas, kyries<br />

eternos e nostálgicos, de um nebuloso sentimentalismo,<br />

que estão no fundo de todos os seres espirituais.<br />

São fluidos íntimos, virginais, da alma, que sobem<br />

para o desconhecido; são incensos inefáveis de que está<br />

cheio o turíbulo do nosso amor e que, nos lancinantes<br />

momentos em que se desmorona para nós alguma força<br />

nobre, alguma força edificante, partem candidamente<br />

para as regiões do Ideal, país jamais descoberto e que<br />

só o Pensamento logrou conhecer...<br />

Vão lá saber qual é a tecla sombria que vibra no<br />

nosso organismo em certas horas, qual é a corda que<br />

pulsa, quais os nervos que se agitam!<br />

Por uma impressionabilidade indizível, por um<br />

toque no orgulho, por uma mancha no cetim branco da<br />

Arte, lá fica uma nobre cabeça doente, sob a febre das<br />

nevroses, sentindo ebulir o sangue em chama e sentindo<br />

até que o cronômetro regular do pulso alterou a marcha<br />

das vibrações...<br />

Tudo o que nos vem às idéias são princípios de<br />

demolição, de destruição, armados das rijas couraças e<br />

das agudas lanças da sua inevitabilidade.<br />

O mundo surge-nos logo como uma formidável<br />

floresta dos tempos primitivos e só tremendos animais<br />

de uma colossal corpulência urram e bufam<br />

sanguinolentos.<br />

E a Noite, que verte fel no espírito, arrebatando-o<br />

não sei para que inferno de agitações, não sei para que<br />

tercetos do Dante, ainda mais pesadas barras de chumbo<br />

arroja sobre o florido arbusto da Crença, cujas flores<br />

luminosas já a indiferença humana calcou a pés, ou a<br />

ruidosa, jogralesca multidão dos cafés desdenhosamente<br />

cuspiu em cima.<br />

E, nessas batalhas, batalhas vivas, acres, onde o<br />

coração está eternamente a sangrar, a sangrar; nesses


370 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

rudes combates, ao mesmo tempo tão puros e fidalgos, a<br />

carne é o menos que fica ferido, os músculos são o menos<br />

que se perde, os nervos, o menos que se atrofia.<br />

O que se perde de todo é a alta penetração da<br />

Vida, do Mundo e dos Homens, para terrivelmente se<br />

adquirir uma doença amarga, aguda e dilacerante que<br />

se constitui das frias e torturosas análises e que se<br />

chama – Psicologia.


SUGESTÃO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 371<br />

Tu, quem quer que sejas, obscuro para muitos,<br />

embora, tens um grande espírito sugestivo.<br />

Os jornais andam cantando a tua verve flamante,<br />

pertences a uma seita de princípios transcendentais.<br />

Na tua terra os cretinos gritam, vociferam.<br />

Não sabem o que tu escreves. Não entendem<br />

aquilo... Palavras, palavras, dizem.<br />

Tu tens, porém, uma tal orientação, uma tão<br />

profunda firmeza artística, que não te abalas com a<br />

vozeria que se levanta. Pelo contrário! À bateria de frases<br />

ríspidas, que te assestam, rompe do teu cérebro a bateria<br />

viva das idéias. Não recuas, escreves.<br />

Tudo quanto a imaginação pode criar de imprevisto,<br />

original, surpreendente, vais arrancar à nevrose da<br />

composição, incrustar, como pedrarias, na escrita<br />

cinzelada, cujo estilo apuras e aprimoras com verdadeiro<br />

êxtase de uma devotada seita religiosa. E, apesar das<br />

frases que te dirigem, cercam-te apoteoses. E isso,<br />

conquanto simules o contrário, sempre te desvanece.<br />

Então, para que o teu esplendor seja maior e mais<br />

completo, andas a preparar um livro de estilo nobre e<br />

que, segundo pensas nas horas de nervosismo psíquico,<br />

há de fazer sucumbir no lodo da banalidade a turba<br />

triunfante dos imbecis.<br />

E assim, com a tua elevação mental e disciplina,<br />

julgas-te profundamente feliz. Não trocarias o teu espírito<br />

pela ostentação e pompas do mundo. Ah! se tu tens a<br />

pompa das idéias!<br />

O cocheiro mais agaloado e galante, guiando o<br />

mais elegante coupé tirado por éguas de raça, de amplas<br />

ancas carnudas e luzidias, cheias de nervosidades, de<br />

altivezes bourbônicas, com um fino sentimento mulheril<br />

nas linhas, tudo isso, Artista, não vale a página mais<br />

simples, mais frouxa, sem mesmo maior ornamentação<br />

de estilo, que tu, por acaso, escrevas.


372 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Nem tu trocarias todo o veio virgem do ouro do<br />

mundo pelo livro que daí a meses deve entrar para o<br />

prelo.<br />

Os reclamos soam pelos jornais, como clarins.<br />

Andam já longe. Caminham. Chega já ao domínio de<br />

todos a notícia. Há ansiedade. Espera-se a obra. Vai<br />

aparecer, brevemente, cintilando, a duas cores, em tipos<br />

Elzevires, vistosos e claros, com o teu retrato, papel satin,<br />

nas lustrosas vitrinas, acendendo um clarão em torno<br />

do teu nome, como um facho de fama.<br />

Mas, um dia, vais ao teatro, um acaso, por exemplo.<br />

Sentas-te na tua poltrona junto à orquestra. Num<br />

intervalo suas demasiadamente. Estás abafado do calor<br />

da noite tórrida. Precisas de ar, de refrigerantes. Um<br />

sorvete, um gelado.<br />

E, seguro do teu vigor de mocidade, da tua saúde<br />

e do radiante rubor do teu rosto, que é admirado na<br />

rumorosa cidade onde habitas, tomas, sem o menor<br />

receio, o gelado que te trazem.<br />

Daí sentes-te logo como que atordoado.<br />

Não estás bem. Calafrios agudos percorrem-te a<br />

espinha. Vertigens cálidas fisgam-te a cabeça. Ardemte<br />

os olhos e se umedecem sob a luz flagrante e crua da<br />

ribalta; mesmo o gás te dá mais febre; parece que te<br />

estalam as fontes, latejando fortemente – e tu não podes<br />

mais ficar, nem um instante sequer, na vasta sala<br />

iluminada e cheia da multidão matizada que formiga e<br />

aplaude.<br />

Então, um dos teus amigos te conduz à casa, já<br />

abatido e quase sem voz; e, mais tarde, passados dias,<br />

corre a dolorosa notícia – ó amargurado Espírito moderno!<br />

– de que morreste de uma pneumonia aguda...<br />

E após a tua morte ainda se haveria de contestar<br />

o teu merecimento. Muitos diriam:<br />

– Também não deixou um livro que significasse a<br />

sua individualidade.<br />

A que outros responderiam:


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 373<br />

– Mas deixou escritos em jornais.<br />

– Ora, jornais! jornais são papéis avulsos, vivem o<br />

curto espaço de um minuto ou de um segundo, e, muitas<br />

vezes, até sem os lermos, com os mais resplandecentes<br />

pensamentos contidos em suas colunas, os deitamos pela<br />

janela fora... Um livro sintetiza qualquer individualidade.<br />

Não se pode acreditar, portanto, não há documentos que<br />

atestem, criticamente, o valor intelectual desse escritor<br />

que morreu.<br />

Daí então, só o preciso decurso de tempo para o<br />

teu cadáver apodrecer na soberana indiferença da terra,<br />

aparece o teu livro, aquele mesmo onde tanto<br />

trabalhaste, que fecundaste de idéias, onde tanto<br />

derramaste o vivo poder do teu cérebro, onde consumiste<br />

uma porção de sangue e de nervos, assinado, e com<br />

outro título, por uma vulgaridade batráquia, na qual toda<br />

a gente acredita, e, oh! comparando-a contigo, acha-a<br />

mais superior, extraordinária, sem igual até.<br />

E tu, lá embaixo, ficarás, na frialdade da terra,<br />

sem nunca teres vencido! com a ironia dessa glória de<br />

néscio a rir de ti, perpetuamente, à chuva, aos vendavais<br />

e ao sol, do alto da tua cova!


374 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

SOFIA<br />

Foi na sala branca, de leves listrões d’ouro, que<br />

eu a vi interpretar um dia ao piano Mendelsohn,<br />

Schumann, as fugas de Bach, as sinfonias de Beethoven.<br />

Tinha um nome bíblico, lembrando palmeiras e<br />

cisternas: chamava-se Sofia.<br />

Era alta, de uma brancura de hóstia, como certas<br />

aves esguias que os aviários conservam e que aí vivem<br />

num grande ar dolente de nostalgia de selvas, de matas<br />

cerradas, de sombrios bosques.<br />

Nervosa, de um desdém fidalgo de fria flor dos<br />

gelos polares, e triste, traía a Arte aquele altivo aspecto,<br />

a orgulhosa cabeça ereta em frente das partituras, que<br />

os seus olhos garços liam e que os seus dedos rosados e<br />

aristocráticos executavam com perfeição, com claro<br />

entendimento nas teclas.<br />

E de todo esse nobre ser delicado, de todo esse<br />

perfil de imagem de jaspe, irradiava uma harmonia vaga,<br />

melancólica, uma auréola de pungitiva amargura, mais<br />

desolada que as sinfonias de Beethoven, como se todas<br />

aquelas músicas excelsas tivessem sido inspiradas nela.<br />

* * * * * * * * * *<br />

Ó aromas, sutilíssimas essências dos finos frascos<br />

facetados do luxuoso boudoir dessa musical Magnólia;<br />

aromas vaporosos, maravilhosos perfumes que incensais,<br />

à noite, de volúpia, a sua alcova, como as purpurinas<br />

bocas das rosas, falai a linguagem alada que as vozes<br />

humanas não podem falar e dizei os murmúrios<br />

estranhos dos sentimentos imperceptíveis, imaculados,<br />

que alvoroçam a alma ansiosa dessa sonhadora Sofia.<br />

Só os aromas, só as essências terão os eflúvios<br />

castos, os fluidos luares de expressão, o ritmo inefável<br />

para contar que latentes palpitações traz Ela no sangue,<br />

que chama d’astro lhe inflama o peito, quando volta triste<br />

dos concertos egrégios e vai enclausurar-se na alcova –<br />

muda, muda, talvez sob a névoa das lágrimas, na<br />

emovente concentração dos que morrem amando...


MANHÃ d’ESTIO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 375<br />

O azul hoje amanheceu numa melodiosa canção,<br />

duma consoladora carícia veludosa de arminho, duma<br />

doce e suavíssima frescura de maçã rosada — brunido,<br />

reluzente, como um raro bronze florentino finíssimo,<br />

vivamente cheirando a violetas, a jasmins e a rosas<br />

machucadas.<br />

Na cristalina sonoridade do côncavo páramo aberto<br />

há uma etérea música que passa em fios sutilíssimos<br />

de luz e de aroma pela sua transparência diamantina e<br />

velada, como um líquido radioso e fragrante através duma<br />

primorosa safira.<br />

E o canto de um pássaro, que além atravessa o<br />

céu, é mais brando, é mais terno, então, mais<br />

harmonioso e sereno, prende, emociona e arrebata mais<br />

porque vai cheio desta ambiente fluidez matinal, desta<br />

vaporosa e delicada tonalidade aérea, deste fino<br />

sentimento amoroso do impoluto noivado dos elementos<br />

naturais animados, destes, enfim, deliciosos tons alegres<br />

que dão um rico sabor à terra, uma vibração luminosa<br />

aos aspectos e um mais meigo encanto imaculado aos<br />

frutos que pendem das árvores e às flores que cobram,<br />

dulcificam tudo com a graça, a inefável candidez de<br />

sorrisos.<br />

Os arvoredos recortam nitidamente no ar as suas<br />

ramagens intensas, cujo verde orvalhado cintila, e as<br />

palmeiras, que mais de perto avisto, altas, sobrepujando<br />

os outros arvoredos, como a afirmação soberana do poder<br />

germinativo, aprumam-se, firmes, desdobrando no alto<br />

as suas verdejantes plumas que tremeluzem nas aflantes<br />

aragens.<br />

Na pradaria florida os gorjeios crescem, trinados<br />

festivalmente cortam o espaço, vôos, rumores d’asas,<br />

claros e argentinos ruídos frescos de rios, chiantes carros<br />

dormentes de lavouras tomando o vermelho e risonho<br />

atalho murmuroso dos campos relvosos, entre a


376 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

implorativa plangência mugidora dos tardos bois<br />

melancólicos; movimentos agrícolas de enxadas, de<br />

sachos e arados, todos os instrumentos e aparelhos<br />

rurais, cavando, mondando, preparando a terra para as<br />

culturas, avigorando-a e adubando-a, dando-lhe a larga<br />

força nutriente aos germens para que ela opere e<br />

produza, farte infinitamente a todos de sazonadas<br />

colheitas.<br />

E toda essa orquestração da Natureza e do<br />

trabalho, todas essas impetuosas, palpitantes correntes<br />

da Vida, enchem o ar de alvoroço, de alarido, duma<br />

religiosa bênção panteísta e dum cântico enlevador que<br />

desce consolativamente sobre as cousas – como se toda<br />

a seiva, vegetal e humana, estivesse na gestação<br />

poderosa, na fecunda elaboração de mundos virgens e<br />

novos.<br />

Nós, Artistas, que dissipamos toda a nossa mais<br />

bela e opulenta porção de glóbulos rubros para arrancar<br />

à Natureza a sua latente verdade; que nos embevecemos<br />

na contemplação, no misticismo do céu; que de tudo<br />

ansiamos pelas recônditas, encantadas origens; que<br />

tanta vez nos mergulhamos no azedume e na inclemente<br />

maresia do tédio, achando a vida gasta, acabada, falazes<br />

e mentidos os seus lentejoulados, fascinantes enlevos,<br />

trememos de comoção, ficamos extasiados quando essas<br />

perspectivas se nos antolham assim d’esplendor, trazendo<br />

ainda à nossa desvirilizada e já quase decadente<br />

estrutura moral um pouco de alento, heroísmo e força,<br />

de sagrada virtude de pensamento e gloriosa envergadura<br />

espiritual para a luta, hauridos a plenos sorvos nos<br />

abundantes mananciais da luz, na soberba caudal<br />

imensa da Natureza fecunda e generosa.<br />

Porque só a Natureza, germinalmente só ela, nos<br />

sabe dar à alma e ao corpo esta nobre saúde, estas<br />

estóicas atitudes épicas; porque só ela nos comunica os<br />

seus emotivos impressionismos, nos penetra os seus<br />

evangélicos, pensativos silêncios e recolhimentos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 377<br />

alpestres, tão empiricamente transvasados do neblinoso<br />

luar dos Sonhos e tão relicariamente votados ao culto<br />

como os santuários; só é dela que vem a crença robusta<br />

que nos põe no peito como que afiadas lâminas de espada<br />

para destruirmos bizarros as mil venenosas cabeças da<br />

formidável serpente da Dúvida; só ela nos veste dessa<br />

flamante irradiação de aurora da qual emergimos<br />

vitoriosos, no fluido ouro resplandecente da apoteose da<br />

Vida; e só ela, enfim, nos lava do Mal, nos purifica como<br />

a salitrosa salsugem do Mar glauco nas salutares e<br />

matinais travessias d’alacridade picante, quando se volta<br />

das ondas numa eflorescência pagã de Tritão marinho,<br />

no luminoso frescor primaveril e sonoro dum viçoso ramo<br />

silvestre ruflante de revoadas de coleiros e gaturamos<br />

cantando.<br />

Um clarim, uma trompa de caça que por aqui<br />

vibrasse, como numa pastoral da Idade Média, nesta<br />

formosa manhã perfumada, apanharia, tomaria destes<br />

murmúrios todos, pelo fenômeno acústico da recepção e<br />

transladação dos sons, como em placas fonográficas,<br />

todos os profundos e vagos ecos e os levaria então para<br />

longe – derramando-os, espalhando-os em cada placidez<br />

sedentária de sítio, em cada remanso bonançoso de<br />

campo, fazendo renascer a brava cultura ingênita das<br />

terras, palpitar o rijo pulmão d’aço do movimento<br />

incessante, pulsar, latejar vinculativamente as artérias<br />

da fecundidade e circular em tudo o sangue oxigenado,<br />

ardoroso e produtivo que gera e fortalece tudo e que não<br />

é mais do que o Sol eletricamente entranhado nas mais<br />

profundas raízes de tudo.


378 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

APARIÇÃO DA NOITE<br />

Fria aparição da meia-noite, o Luar seja contigo!<br />

Tu vens da neve, das algidezes cruas da neve; e<br />

eu não sei bem se é a neve que te faz fria ou se és tu<br />

que fazes fria a neve.<br />

Há, contudo, em ti, algum calor, que não é<br />

inteiramente a vida, mas que suaviza os apunhalantes<br />

regelos da neve; que não é o sol da tua carne, a chama<br />

do teu corpo, mas um quente raio d’estrela, a estrela do<br />

teu olhar aceso como velas místicas no recolhido e<br />

sagrado santuário de uma Capela.<br />

O luar seja contigo, seja contigo o luar emoliente<br />

e lascivo, este luar equatorial que não é dia nem noite,<br />

mas uma doce penumbra velada do sol do teu sorriso –<br />

como se sobre o sol do teu sorriso, para dulcificar a<br />

intensidade do foco da sua luz, quando tu eras astro<br />

inflamado, que ardias, força latente, matéria animada<br />

e pulsante, se houvesse colocado um transparente abatjour<br />

verde, branco, azulado e amarelado, conforme é, às<br />

vezes, a refração luminosa da Lua.<br />

Mas tu deveras aparecer-me, fria Visão da meianoite,<br />

dentro de uma redoma de cristal, por entre um<br />

resplendor de lágrimas, para eu então poder assim crer<br />

no teu encanto, no teu mistério de meia-noite.<br />

No entanto, aqui me apareces, metida em peles<br />

de Astrakan, melancólica, pálida, vaporosa, livorescida<br />

quase, como aquelas belezas apagadas e tristes que vêm<br />

dos frígidos ares desolados do Norte.<br />

Porque tu acabas de vir da Rússia agora, das<br />

fulgurantes estepes, da ostentação militar do Tzar de<br />

ferro, ouvindo os clamores da dinamite.<br />

Vens das hirtas margens do Neva para os<br />

coruscantes fogos tropicais das terras da América. E<br />

chegas ainda virginal e pubescente para a irradiação<br />

angélica do Véu, para o simbolismo cândido da Grinalda


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 379<br />

de flores de laranjeira, para a bênção serena e perfumosa<br />

do Noivado.<br />

Chegas a tempo...<br />

E se queres um noivo, se andas em busca de um<br />

noivo, aí tens, pois, o Luar, frio como essa natureza fria,<br />

e alvo, lirialmente alvo, como tu.<br />

Aí tens o Luar...<br />

Envolve-te na sua clâmide de linho, mergulha-te<br />

nos seus flocos de prata, ó meiga Eslava triste, meu<br />

desmaiado amor e heliotropo branco dos sonhos, que<br />

aqui vieste findar eternamente a vida nessa nostálgica<br />

doença nervosa de melancolia que trouxeste do teu país<br />

polar, muito longe nos gelos, e que até te dá já a névoa<br />

densa, a espessa nuvem dolorosa das ilusões que se<br />

transformam em nuvens.<br />

Vens para sempre extinguir-te sob estes tórridos<br />

mormaços, nessa doença histérica de que ninguém na<br />

tua pátria pôde decerto determinar a pungentíssima<br />

origem, e que não é mais, nada mais é, talvez, do que a<br />

doença do clima, do spleen das tardes, das exaustas<br />

paisagens sem seiva; as displicências amargas à hora<br />

dos longos ocasos taciturnos, quando adormecidamente<br />

as campinas e as planícies incultas nevam e o horizonte<br />

é de uma trespassante angústia crepuscular que desola...<br />

Aí tens o luar...<br />

Cobre-te nessa musselina fúlgida, veste essa<br />

finíssima gaze diáfana...<br />

Abre os primorosos olhos de Madona, castíssimos,<br />

chorosos e macerados, e absorve pelos cílios todo este<br />

nosso fluido e luxuoso azul; e fecha depois esses teus<br />

primorosos olhos também azuis...<br />

Sorri ainda uma vez, como num supremo frêmito<br />

final de ave ferida no peito; agita amorosamente,<br />

languescidamente, numa poeirada d’ouro, como na<br />

última noite de beijos da remota paixão que se foi, a<br />

loira e divina cabeça astral, leonina e doirada; tem um<br />

derradeiro estremecimento convulsivo e sonoro de cordas


380 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

d’harpa em todo o níveo corpo; cerra à música celeste,<br />

eucarística da voz para sempre os lábios, e, assim, nesse<br />

lácteo nimbo seráfico da Lua, fica em êxtase, na doce,<br />

na infinita quimera misteriosa da Morte, numa leve graça<br />

idealizante e alada de vôo etéreo de Querubins, como<br />

quem está dormindo ou como um sol que empederniu e<br />

gelou...<br />

Fria Aparição da meia-noite, o Luar seja contigo!


ESTESIA ESLAVA<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 381<br />

Como os embriagados de cava da Polinésia vou<br />

tartamudeando e soluçando sob as paixões, ó águia,<br />

Águia Germânica, imperiosa e doirada!<br />

Uma estranha harmonia de “Dança Macabra” de<br />

Saint-Saens me entorpece e invade em lágrimas negras<br />

de notas.<br />

Todo o meu pensar e sentir estacou de súbito<br />

agora, como um nervoso cavalo da Arábia a que se refreia<br />

o bridão, diante da tua plumagem d’oiro, da tua rija<br />

envergadura d’asa valente – ó águia! doirada Águia<br />

humana e Germânica, que tudo de mim para sempre<br />

levas, Esperanças e Sonhos, impetuosamente arrebatado<br />

no alto, ao impulso fremente das tuas garras alpinas.<br />

E eu fico em ânsias no vácuo, num vago anelar<br />

indefinido, como a aspiração do perfume que quer ser<br />

luz...<br />

Mas, um pedaço de horizonte ao longe marcando<br />

as infinitas distâncias e uma língua de terra aprumada<br />

em monte, tornam-me tangível o sentimento da<br />

realidade; e, então, claramente vejo e sinto, desiludido<br />

das Cousas, dos Homens e do Mundo, que o que eu<br />

supunha embriagamento, arrebatamento de amor nas<br />

tuas asas, ó loira Águia Germânica! nada mais foi que o<br />

sonambulismo dum sonho à beira de rios marginados de<br />

resinosos aloendros em flor, na dolência da Lua nebulosa<br />

e fria, à alta paz do Azul, sob as pestanejantes estrelas<br />

rutilantemente acesas...


382 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

TÍSICA<br />

Lângüida e loura, tinha, na verdade, um ruidoso<br />

e festivo acordar de canários.<br />

Quando o dia vem triunfalmente cantando por<br />

todas as gargantas de oiro dos pássaros, perfumado por<br />

todos os prados de rosas, rumorejando por todos os<br />

sonoros veios cristalinos de fontes, Ela erguia-se também<br />

do leito, cantando, numa alegria comunicativa que<br />

iluminava tudo e ia para o piano soluçar ao teclado lindas<br />

barcarolas de valsas.<br />

Quanta vez a ouvi, e quantas outras a vi no résdo-chão<br />

que enfrentava a minha morada, sempre com<br />

um vermelho esmaecido, manchado, em ambas as faces.<br />

Como era feliz, e que ruidoso e festivo acordar de<br />

canários tinha Ela!<br />

* * * * * * * * * *<br />

Chegou, afinal, o Inverno.<br />

A emigração das andorinhas começa em vôos<br />

incisivos, que frisam os espaços translúcidos de ruflagens<br />

d’asa...<br />

Os grandes frios pedem as grandes capas de lã<br />

para as mulheres, os confortáveis regalos de pelúcia, as<br />

luvas, que agasalham, que protegem as mãos, os pardessus<br />

e os largos fichus para a cabeça.<br />

Desprendem-se já do éter as fortes lestadas de<br />

vento e chuva, destruidoras e rijas, arrepiando e<br />

convulsivamente contorcendo os galhos das árvores, que<br />

amarelecem.<br />

Amanhece-se tiritando sob o fulgurante ar frígido<br />

das geadas, que nevam os plácidos campos.<br />

E, lá, acima das serras altas, nas desprotegidas<br />

cabanas onde a miséria habita, tiritam também de frio<br />

e desamparadamente morrem, com uma chama azul no<br />

olhar vítreo, as louras e morenas virgens tísicas que na


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 383<br />

estação passada levaram a trabalhar nos rudes amanhos<br />

da lavoura e a mourejar nas longas vigílias amargurosas<br />

da agulha.<br />

* * * * * * * * * *<br />

A tísica! A tísica! Essa doença simbolicamente<br />

dolorosa e triste, que devasta os lares como os cortantes<br />

invernos devastam a searas! Doença artística e desolada,<br />

que dá um aspecto eminentemente romântico a todas<br />

as mulheres, como àquela violeta de Parma, flor dolente<br />

e venenosa do Amor, essa Margarida Gautier, roxo lírio<br />

inefável de melancolia plantado à margem de lagos<br />

furtacores de quimeras e que a mais abrasadora paixão,<br />

a febre mais intensa, o tufão ardente de um fundo e<br />

desvairado sentimento para sempre emurcheceu e<br />

desfolhou!<br />

Doença amarga! que soturnamente devorando os<br />

pulmões, põe em redor de quem a sofre um magoado<br />

impressionismo de saudade e uma névoa gelada de<br />

sepulcro...<br />

E as virgens, que morrem dessa doença tão<br />

atormentadora e serena ao mesmo tempo, levam para o<br />

túmulo, na crispação dos lábios entreabertos e violáceos,<br />

como derradeira e a mais pungente ironia da Dor, o<br />

desmaiado sorriso da última esperança, do último sonho,<br />

da última ilusão que tiveram sobre a Terra.<br />

me.<br />

* * * * * * * * * *<br />

Há muitos dias já que não a vejo, a lângüida Loura.<br />

Não sei por quê, mas a sua ausência inquieta-<br />

Eu quisera sempre vê-la, como dantes, pálida,<br />

lângüida e loura, com um vermelho esmaecido,<br />

manchado, em ambas as faces.<br />

Porém ela não aparece, não vai, como então,<br />

sentar-se ao piano, no luminoso purpurear das manhãs,


384 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

fazendo soluçar no teclado lindas barcarolas de valsas.<br />

E isso punge-me n’alma de tal modo que eu procuro saber<br />

o que é feito dela e dizem-me que adoeceu.<br />

– Adoeceu! E de quê?<br />

– Está tísica. O médico diz que não durará muito.<br />

– Tísica! Tão moça e tão bela! E que ar festivo<br />

tinha ela. Como cantava! Que sonoridade de voz! E tudo<br />

isso agora acabar, morrer...<br />

* * * * * * * * * *<br />

É certo, aflitivamente certo o que me disseram.<br />

Ela vai morrer!<br />

Vejo-a continuamente de uma palidez clorótica,<br />

os olhos de um brilho cru, agudo, que faz febre; as orelhas<br />

diáfanas, muito despegadas do crânio; o nariz cada vez<br />

mais afilado e desfalecido; toda ela de uma amarelada<br />

transparência de morte, duma magreza hirta, como essas<br />

santas mártires do cilício que vivem nos claustros<br />

fechados e austeros de pedra, olhando entre grades para<br />

céus fuscos, com olhos cheios dos fluidos místicos do<br />

Panteísmo, e que parecem subir, através de nimbos, além,<br />

às empíreas regiões dos excelsos arcanjos alvos de luz...<br />

Vejo-a, constantemente, através de vidraças, sem<br />

brilho de vida quase, como um astro vesperal prestes a<br />

apagar para sempre todo o seu clarão diamantino e<br />

virgem.<br />

E, no entanto, nos intervalos lúcidos da doença,<br />

que lhe abrem no peito, às Esperanças, como um<br />

esplendor de força nova, de vigorosa saúde, o piano vibra<br />

de quando em quando, sob as suas mãos febris, trêmulas,<br />

nervosas e cadavéricas, alguma melodia triste de<br />

casuarinas gementes, um desvairamento histérico de<br />

lágrimas, a fina música nostálgica do fim de tudo – talvez<br />

essa suspirante serenata de Schubert, cujo ritmo<br />

saudoso tão fundamente nos invade a alma e a entristece<br />

e no qual parece haver gritos e soluços de amor<br />

entrecortados pela agonia torturante da Morte...


ORAÇÃO AO MAR<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 385<br />

Ó mar! Estranho Leviatã verde! Formidável pássaro<br />

selvagem, que levas nas tuas asas imensas, através do<br />

mundo, turbilhões de pérolas e turbilhões de músicas!<br />

Órgão maravilhoso de todos os nostalgismos, de<br />

todas as plangências e dolências...<br />

Mar! Mar azul! Mar de ouro! Mar glacial!<br />

Mar das luas trágicas e das luas serenas, meigas,<br />

como castas adolescentes! Mar dos sóis purpurais,<br />

sangrentos, dos nababescos ocasos rubros! No teu seio<br />

virgem, de onde derivam as correntes cristalinas da<br />

Originalidade, de onde procedem os rios largos e claros<br />

do supremo vigor, eu quero guardar, vivos, palpitantes,<br />

estes Pensamentos, como tu guardas os corais e as algas.<br />

Nessa frescura iodada, nesse acre e ácido salitre<br />

vivificante, Eles se perpetuarão, sem mácula, à saúde<br />

das tuas águas mucilaginosas onde geram-se prodígios<br />

como de uma luz imortal fecundadora.<br />

Nos mistérios verdes das tuas ondas, dentre os<br />

profundos e amargos Salmos luteranos que elas cantam<br />

eternamente, estes Pensamentos acerbos viverão para<br />

sempre, à augusta solenidade dos astros resplandecentes<br />

e mudos.<br />

Rogo-te, ó Mar suntuoso e supremo! para que<br />

conserves no íntimo da tu’alma heróica e ateniense toda<br />

esta dolorosa Via-Láctea de sensações e idéias, estas<br />

emoções e formas evangélicas, religiosas, estas rosas<br />

exóticas, de aromas tristes, colhidas com enternecido<br />

afeto nas infinitas aléias do Ideal, para perfumar e florir,<br />

num abril e maio perpétuos, as aras imaculadas da Arte.<br />

Em nenhuma outra região, Mar triunfal! ficarão<br />

estes Pensamentos melhor guardados do que no fundo<br />

das tuas vagas cheias de primorosas relíquias de<br />

corações gelados, de noivas pulcras, angélicas, mortas<br />

no derradeiro espasmo frio das paixões enervantes...


386 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Lá, nessas ignotas e argentadas areias, estas<br />

páginas se eternizarão, sempre puras, sempre brancas,<br />

sempre inacessíveis a mãos brutais e poluídas, que as<br />

manchem, a olhos sem entendimento, indiferentes e<br />

desdenhosos, que as vejam, a espíritos sem harmonia e<br />

claridade, que as leiam...<br />

Pelas tuas alegrias radiantes e garças; pelas<br />

alacridades salgadas, picantes, primaveris e elétricas<br />

que os matinais esplendores derramam, alastram sobre<br />

o teu dorso, em pompas; pelas convulsas e mefistofélicas<br />

orquestrações das borrascas; pelo epiléptico chicotear,<br />

pelas vergastantes nevroses dos ventos colossais que te<br />

revolvem; pelas nostálgicas sinfonias que violinam e<br />

choram nas harpas da cordoalha dos Navios, ó Mar!<br />

guarda nos recônditos Sacrários d’esmeralda as Idéias<br />

que este Missal encerra, dá-o, pelas noites, a ler às<br />

meditadoras Estrelas, à emoção dos Angelus<br />

espiritualizados e, majestosamente, envolve-o, deixa que<br />

Ele repouse, calmo, sereno, por entre as raras púrpuras<br />

olímpicas dos teus ocasos...


Evocações<br />

Evocações


388 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Les seuls vivants méritant le nom d’Artistes<br />

sont les créateurs, ceux qui éveillent des impressions<br />

intenses, inconnues et sublimes.<br />

VILLIERS DE L’ISLE ADAM, L’Ève Future<br />

INICIADO<br />

Desolado alquimista da Dor, Artista, tu a depuras,<br />

a fluidificas, a espiritualizas, e ela fica para<br />

sempre, imaculada essência, sacramentando<br />

divinamente a tua Obra.<br />

Pedrarias rubentes dos ocasos; Angelus piedosos<br />

e concentrativos, a Millet; Te Deum glorioso das<br />

madrugadas fulvas, através do deslumbramento<br />

paradisíaco, rumoroso e largo das florestas, quando a<br />

luz abre imaculadamente num som claro e metálico de<br />

trompa campestre – claro e fresco, por bizarra e medieval<br />

caçada de esveltos fidalgos; a verde, viva e viçosa<br />

vegetação dos vergéis virgens; os opalescentes luares<br />

encantados nas matas; o cristalino cachoeirar dos rios;<br />

as colinas emotivas e saudosas – todo aquele esplendor<br />

de colorida paisagem, todo aquele encanto de<br />

exuberância de prados, aqueles aspectos selvagens e<br />

majestosos e ingênuos, quase bíblicos, da terra<br />

acolhedora e generosa onde nasceste – deixaste, afinal,<br />

um dia, e vieste peregrinar inquieto pelas inóspitas,<br />

bárbaras terras do Desconhecido...<br />

Vieste da tua paragem feliz e meiga – amplidão<br />

de bondade patriarcal, primitiva – mergulhar na onda<br />

nervosa do Sonho, que já de longe, dos ermos rudes do<br />

teu lar, fascinava de magnéticos fluidos, de<br />

imponderados mistérios, o teu belo ser contemplativo e<br />

sensibilizado.<br />

Chegas para a Via-Sacra da Arte a esta avalanche<br />

imensa de sensações e paixões uivantes, roçando esta


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 389<br />

multidão insidiosa, confusa, dúbia, que de rastos, de<br />

rojo, burburinha, farejando ansiosamente o Vício.<br />

Vens ainda com todo o sol fremente do teu solitário<br />

firmamento provinciano na carnação vigorosa de forte,<br />

de virilizado naqueles ares; trazes ainda no sangue aceso<br />

a impetuosidade dos lutadores alegres e heróicos e ainda<br />

todo esse organismo desenvolvido livremente nos campos<br />

respira a saúde brava daquela atmosfera casta e verde,<br />

dos amplos céus úmidos da tinta fresca das manhãs,<br />

aguarelados delicadamente de claro azul.<br />

Mas, daí a pouco, uma vez imerso completamente<br />

na Arte, uma vez concentrado definitivamente nela, todo<br />

esse brilho e viço vitoriosos, por uma surpreendente<br />

transfiguração, desaparecerão para sempre, e então, tu,<br />

lívido, trêmulo, espectral, fantástico, terás o<br />

impressionante aspecto angustioso e fatal do lúgubre<br />

aparato de um guilhotinado...<br />

A Arte dominou-te, venceu-te e tu por ela deixaste<br />

tudo: a viva, a penetrante, a tocante afeição materna,<br />

de um humano enternecimento até as lágrimas, até a<br />

morte, até o sacrifício do sangue. Por ela deixaste esse<br />

afeto extremo, louco, quase absurdo, de tua mãe – cabeça<br />

branca estrelada de amarguras, Espírito celestial do<br />

Amor, aquela que, nas miragens infinitas e nas<br />

curiosidades enigmáticas da Infância, santificou, ungiu<br />

o teu corpo com o óleo sacrossanto dos beijos.<br />

Tudo esqueceste, para vir fecundar o teu ser nos<br />

seios germinadores da Arte. E, quando alimentado,<br />

quando conquistado e vencido por ela, quiseres voltar<br />

depois aos braços acariciantes de tua mãe, num risonho<br />

movimento de afetiva alegria, clara, fresca, espontânea,<br />

sadia e simples como a de outrora, esse movimento lhe<br />

parecerá funesto e acerbo, como o ríctus de uma caveira,<br />

sem jamais o antigo encanto e frescura.<br />

E tu, então, surgirás para ela como a sombra, o<br />

fantasma do que foste, um desvairado, perdido, errante<br />

na Dor – tais e tantas serão em ti as duras rugas,


390 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

imprevistas e prematuras, para sempre pungitivamente<br />

produzidas pelo dilaceramento da Paixão estética.<br />

Mas tua mãe te falará das bizarras correrias da<br />

tua mocidade, mais florida e mais virgem do que um<br />

campo de rosas brancas nas agrestes regiões onde<br />

nasceste.<br />

E a alma da tua mocidade, a tua jovem bravura de<br />

mocidade, andará, vagará já, errando, errando,<br />

esquecida do mundo, como um solitário monge, através<br />

dos longos e sombrios claustros da Saudade.<br />

E, não só tua mãe, mas teus irmãos, teu pai, todos<br />

os teus te olharão depois, secretamente abalados, como<br />

a um desconhecido, sentindo, por vago instinto, que os<br />

caracteres ignotos e supremos do teu ser não são apenas,<br />

elementarmente, os mesmos caracteres da simples e<br />

natural consagüinidade; que tu, por mais unido que<br />

estejas a eles por laços inevitáveis, fatais, estás longe,<br />

afastado deles a teu pesar, sem malícia, de alma<br />

desprevenida e sã, como as estrelas nas soberanias<br />

transcendentes da sua luz estão para sempre afastadas<br />

da obscura Terra. E tudo isso por andares atraído por<br />

forças redentoras, perdido nos centros fascinantes do<br />

absoluto sentir e do absoluto sonhar!<br />

Agora, ainda trazes a alma como a mais excêntrica<br />

flor do Sol, com todas as febrilidades e deslumbramentos<br />

do Sol – flor da força, da impetuosidade das seivas, aberta,<br />

rasgada em rubro, viva e violenta a vermelho, cantando<br />

sangue...<br />

Porém, se és vitalmente um homem, e trazes o<br />

cunho prodigioso da Arte, vem para a Dor, vive na chama<br />

da Dor, vencedor por senti-la, glorioso por conhecê-la e<br />

nobilitá-la. Tira da Dor a profunda e radiante serenidade<br />

e a solene harmonia profunda. Faze da Dor a bandeira<br />

real, orgulhosa, constelada dos brasões soberanos da<br />

poderosa Águia Negra do Gênio e do Dragão cabalístico<br />

das Nevroses, para envolver-te grandiosamente na Vida<br />

e amortalhar-te na Morte!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 391<br />

Vem para esta ensangüentada batalha, para esta<br />

guerra surda, absurda, selvagem, subterrânea e soturna<br />

da Dor dos Loucos Iluminados, dos Videntes Ideais que<br />

arrastam, além, pelos tempos, para os infinitos do<br />

incognoscível futuro, as púrpuras fascinadoras das suas<br />

glórias trágicas.<br />

Se não tens Dor, vaga pelos desertos, corre pelos<br />

areais da Ilusão e pede às vermelhas campanhas abertas<br />

da Vida e clama e grita: quem me dá uma Dor, uma Dor<br />

para me iluminar! Que eu seja o transcendentalizado<br />

da Dor!<br />

Vem para a Dor, que tu a elevas e purificas, porque<br />

tu não és mais que a corporificação do próprio Sonho,<br />

que vagueia, que oscila na luxúria da luz, através da<br />

Esperança e da Saudade – grandes lâmpadas de luas de<br />

unção piedosa, cuja velada claridade tranqüila dá ao<br />

teu semblante a expressão imaterial, incoercível, etérea,<br />

da Imortalidade...<br />

E essa Imortalidade em que meditas é a das Idéias,<br />

da Forma, das Sensações, da Paixão, cristalizadas<br />

maravilhosamente num corpo vivo, quente, palpitante,<br />

que sintas mover, que sintas estremecer, agitar-se numa<br />

onda de sensibilidade, fremer, vibrar nas efervescências<br />

da luz...<br />

Condensa, apura, perfectibiliza, pois, o teu Sonho<br />

– Sol estranho, em torno ao qual voam condores e águias<br />

vitoriosas de garras e asas conquistadoras...<br />

Para a gênese desse Sonho, para a gênese dessa<br />

Arte, é necessário o Otimismo da Fé, poderosa e<br />

religiosamente sentida; é necessário que a tua alma,<br />

forte, avigorada para a grande Esfera, tenha a Crença<br />

edificante e paire presa às correntes invisíveis, ignotas,<br />

de um sentimento espiritualizado e sereno.<br />

Ao Pessimismo de Schopenhauer, que tu, pelo<br />

fundo de crítica psicológica e de alada e fagulhante ironia<br />

adoras, como Satã, por diabólica fantasia, adora os<br />

abstrusos venenos do Mal; a esse Pessimismo seco, duro,


392 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ditador e esterilizante, prefere antes o Otimismo<br />

religioso de Renan, que não abate nem envilece as<br />

almas, mas antes as alevanta e ilumina, sem lhes tirar<br />

a retidão austera da Verdade, as linhas justas e solenes<br />

da alta compreensão da Vida.<br />

Do pessimismo e do otimismo, do conjunto dessas<br />

duas forças, tira a linha geral do teu ser, para que a<br />

visão da tua alma fique perfeita e profunda e não ganhe<br />

nem hipertrofias nem vícios de percepção nem graves e<br />

antipáticos desequilíbrios de sensibilidade, na frescura<br />

abençoada e nos rejuvenescimentos e reflorescências<br />

da Fé.<br />

Assim, concordará a ação com a sensação, estarás<br />

em imediata e clara harmonia com a tua extrema<br />

natureza, estudados os fundamentos que intimamente<br />

a constituem: a bondade, o afeto, o enternecimento, a<br />

delicadeza, a resignação, a brandura, a abnegação, o<br />

sacrifício e a calma, latentes qualidades essas todas<br />

puramente de um Otimismo religioso, porque são essas<br />

qualidades que representam o fundo sincero e sério das<br />

faculdades estéticas, presas sempre a um Ideal abstrato,<br />

que é, na sua essência, o Ideal do Infinito, da<br />

Imortalidade, da Religião, da Fé.<br />

Se tens Fé, se vens inflamado veemente e<br />

intensamente para o sentimento original da Concepção<br />

e da Forma; se te devora a ansiedade lancinante de<br />

uma Aspiração que arrebata em asas, que desprende<br />

vôos brancos e largos para regiões muito além da Morte;<br />

se percorrem os teus nervos, em prodígios de harmonia,<br />

músicas estranhas e coloridas como paixões e sensações;<br />

se dentro de todo o teu ser há o Inferno dantesco,<br />

tumultuoso de Visões, épico de majestade mental, a<br />

crescer, a crescer, a subir mediterraneamente em ondas<br />

cerradas, compactas de sonambulismos estéticos; se<br />

sentes a atraente vertigem da palpitação dos astros, a<br />

dolência pungente das melancolias enevoadas e doentes<br />

que insensivelmente umedecem os olhos; se na luz, se


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 393<br />

no ar, se na cor, se no som, se no aroma tens a fina, a<br />

delicada, a sutil percepção da Arte; se sabes ser, ter na<br />

Arte uma existência una, indivisível, és o Eleito dela, o<br />

Impressionado, o Iniciado.<br />

Não tens mais do que agir fatalmente pelo teu<br />

temperamento, numa função original, numa castidade<br />

ingênita de emoções, na espontaneidade do teu sangue<br />

novo e dos teus nervos aristocráticos, tensibilizados pela<br />

estesia.<br />

Mas, para livremente chegares a esse resultado<br />

artístico, é mister que preceda a tudo isso um sistema<br />

de princípios integrais, fecundos e profundos na tua<br />

natureza, dando-te, por esse modo, uma firmeza e<br />

serenidade emotiva.<br />

Não é, apenas, querer, não é poder, apenas – é<br />

Ser! – E se tu sabes ser, se tu és, numa legitimidade<br />

flagrante, num enraizamento muito intenso de todo o<br />

teu organismo, vivendo a Arte e não a Arte vivendo em<br />

ti; se assim tu és, na profundidade real desse esquisito<br />

e maravilhoso estado, meio-inconsciência, meio-névoa,<br />

que te impulsiona para a Concepção; se assim tu és, por<br />

germens inevitáveis, fatais, a tua Obra, ainda em<br />

gestação, atestará eloqüentemente, mais tarde, as<br />

inauditas manifestações do temperamento.<br />

Tudo está em seres a tua Dor, em seres o teu<br />

Gozo, homogeneamente; em saíres, por movimentos<br />

espontâneos, livres e simples, representativos de um<br />

vivo e afirmativo Fenômeno, da Esfera do mero Instinto<br />

para a Esfera reabilitadora, pura e radiante do<br />

Pensamento.<br />

Se é certo que trazes em ti a principal essência,<br />

as expressivas raízes, a flama eterna, o nebuloso segredo<br />

dos Assinalados, um poder mágico, irresistível, a que<br />

não poderás fugir jamais, te arrastará, te arrojará, como<br />

Visão legendária, profética, numa grande convulsão e<br />

estremecimento, para fora das humanas frivolidades<br />

terrestres, para fora das impressões exteriores do


394 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Mundo, mergulhando-te soberanamente, para sempre!,<br />

no fundo apocalíptico, solene, das Abstrações e do<br />

Isolamento...<br />

Se trazes essa verdadeira, perfeita aristocracia<br />

genésica do Sentimento; se sentes que toda a límpida e<br />

nobre grandeza está apenas na simplicidade com que te<br />

despires dos vãos ouropéis mundanos, para entrar larga<br />

e fraternalmente na Contemplação da Natureza; se vens<br />

para dizer a tua grave, funda Nevrose, que nada mais é<br />

do que a eloqüente significação da Nevrose do Infinito,<br />

que tu buscas abranger e registrar; se tens essa missão<br />

singular, quase divina, vai sereno, o peito estrelado pelas<br />

constelações da Fé, impassível ao apedrejamento dos<br />

Impotentes, firme, seguro, equilibrado por essa força<br />

oculta, misteriosa e suprema que ilumina<br />

milagrosamente os artistas calmos e poderosos na<br />

obscuridade do meio ambiente, quando floresce e<br />

alvorece nas suas almas a rara flor da Perfeição.<br />

Que importam a excomunhão e os desprezos<br />

mordazes sobre a tua cabeça?! Que importam os<br />

arremessados lançaços d’aço e de ferro contra o broquel<br />

do teu peito e contra o vigor de tronco em rebentos verdes<br />

do teu flanco?! Os ímpios não pairam nestas órbitas,<br />

não giram nestas chamejantes Esferas, não se<br />

incendeiam e não morrem nestes augustos e inéditos<br />

Infernos.<br />

Segue, pois, os que seguem contritos, sob um arcoíris<br />

celestial de esperanças vagas, a alma como uma<br />

flor exótica dos trópicos ceruleamente aberta às messes<br />

de ouro do sol, e a boca, no entanto, secamente,<br />

asperamente amordaçada sem piedade pelas sedes<br />

tenazes e amargas dos mais inquietantes desejos...<br />

E vai sereno, como os Eleitos da Arte, extremados<br />

e apaixonados na chama do seu Segredo, da sua excelsa<br />

Vontade – levitas extraordinários, martirizados nas<br />

inquisições truculentas da Carne, mas benditos,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 395<br />

purificados, sem culpa de pecado mundano, na recôndita<br />

manifestação das Emoções e do Entendimento.<br />

Segue resoluto, impávido, para a Arte branca e<br />

sem mancha, sem mácula, virginal e sagrada,<br />

desprendido de todos os elos que entibiem, de todas as<br />

convenções que enfraqueçam e banalizem, sem as<br />

explorações desonestas, os extremos de dedicação falsa,<br />

as fingidas interpretações dos cínicos apóstatas, mas<br />

com toda a forte, a profunda, a sacrificante sinceridade,<br />

da tua grande alma, conservando sempre intacta,<br />

sempre, a flor espontânea e casta da tua sensibilidade.<br />

Para resistir aos perturbadores ululos do mundo<br />

fecha-te à chave astral com a alma, essa esfera celeste,<br />

dentro das muralhas de ouro do Castelo do Sonho, lá<br />

muito em cima, lá muito em cima, lá no alto da torre<br />

azul mais alta dentre as altas torres coroadas d’estrelas.<br />

Vai sereno, belo Iniciado! Vai sereno para esta<br />

prodigiosa complexidade de Sentimentos, agora que<br />

abandonaste a franqueza rude das montanhas, além,<br />

longe, na solidão concentrativa, no silêncio banhado de<br />

impressionante, comunicativa e augusta poesia, da tua<br />

terra de selvas e bosques bíblicos!<br />

Vai sereno! a cabeça elevada na luz, vitalizada e<br />

resplandecida na nevrosidade mordente da luz e os<br />

fatigados olhos sonhadores, graves, ascéticos, atraídos<br />

pelo mistério da Vida, magnetizados pelo mistério da<br />

Morte...


396 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

SERÁFICA<br />

Como as iluminuras dos Missais, que ressaltam<br />

de marfins ebúrneos, era infinitamente seráfica, da<br />

beatitude angélica dos querubins, aquela pálida mulher<br />

juncal, de um moreno triste e contemplativo de magnólia<br />

crestada.<br />

Seus grandes olhos negros, profundos e veludosos,<br />

de finíssimos cílios rendilhados, raiados de uma<br />

expressão judaica, tornavam ainda maior o relevo do<br />

palor esmaiado do rosto melancólico, que a singular<br />

formosura brandamente iluminava de claridade velada...<br />

As linhas harmoniosas do seu busto sereno,<br />

perfeito, davam-lhe encanto vago, aéreo, siderações<br />

egrégias, prefulgências de Arcanjo.<br />

Pairavam nessa mulher jalde-esmaiado, que na<br />

luz loura do sol tinha toques d’ouro, suavidades de<br />

cânticos sacros, carícias de aves, e ritmos preciosos de<br />

cítaras e harpas finamente vibradas través a sonoridade<br />

clara das lânguidas águas do Mar.<br />

Altiva e alta, com o sentimento frio do mármore<br />

das Imagens amarguradas, fluíam-lhe da voz, quando<br />

raramente falava, cismativas dolências, fundas<br />

nostalgias enevoadas...<br />

Mas, muda, na mudez das religiosas claustrais,<br />

ficava então de uma beleza divinal e secreta, da excelsa<br />

resplandecência sagrada dos Hostiários.<br />

E, quando erguia os cílios densos e cetinosos e o<br />

clarão dos olhos brilhava, como que se evaporizavam deles<br />

chamas e músicas paradisíacas, uma espiritualização a<br />

glorificava, eflúvios de aroma, a leve irisação da graça.<br />

Dominadora, triunfal, na auréola do esplendor que<br />

a circundava, parecia reinar num altar etéreo, por entre<br />

os finos astros imortais.<br />

Fazia crer que todos os sentimentos afetivos<br />

purificados, que todas as emanações originais da terra<br />

correriam, perpetuamente, em cortejos reverentes, a


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 397<br />

vê-la passar, a beijá-la na epiderme de cera, a venerála,<br />

enfim, com esse amor ideal, indelével, eterno, da<br />

natureza abstrata...<br />

O perfume e a radiação da sua cabeça majestosa,<br />

astral não fascinavam, não atraíam apenas, mas<br />

idealizavam sempre – como se a Seráfica fosse a Aparição<br />

simbólica, surgindo de um fundo lívido de lua, uma Santa<br />

Teresa, bela e ascética nos cilícios da religião do Amor,<br />

amortalhada na castidade das açucenas e lírios...<br />

A alma dos Estéticos, dos curiosos Emocionados<br />

se deslumbrava em êxtases de ocasos ao ver-lhe a<br />

aristocrática esveltez monjal, os grandes olhos negros e<br />

magoados, de beleza deífica, os ondeados cabelos<br />

tenebrosos e a boca purpurejante, anelante, letárgica,<br />

ligeiramente golpeada de um travor enervante de volúpia<br />

dolorosa...<br />

Os seios deliciosos e tépidos, origem branca e bela<br />

da graça e do desejo, eram duas raras rosas intemeratas,<br />

cujo aroma esquisito e vivo meigamente deixava um fino<br />

encanto e uma suave fascinação no ar...<br />

Virgem ainda, com todo o impoluto verdor do seu<br />

corpo misterioso, fechada nos recatos ingênitos do pudor,<br />

a Morte, afinal, veio entoar o Canto Nupcial de Seráfica,<br />

o seu Epitalâmio...<br />

E ela, no tálamo da Morte, nessa mística<br />

melancolia de outrora, que a velava, e naquele esmaiado<br />

palor, lembrava, aos entendimentos delicados, aos<br />

solenes e reclusos profetas da Grande Arte, ter<br />

emudecido glacialmente para sempre, sem os<br />

impundonorosos, profanadores contatos, de uma exótica<br />

e asiática doença...


398 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

MATER<br />

Naquela hora tremenda, grande hora solene na<br />

qual se ia inicar outra nova vida, foi para mim uma<br />

sensibilidade original, um sofrimento nunca sentido, que<br />

me desprendia da terra, que me exilava do mundo, tal<br />

era o choque violento dos meus nervos nesse momento,<br />

tal a delicada e curiosa impressão de minh’alma nesse<br />

transe supremo.<br />

Ela, abalada por gemidos, na dor que a dilacerava,<br />

quase desfalecia, com a mais rara expressão misteriosa<br />

nos grandes olhos, os lábios lívidos, o semblante de uma<br />

contemplatividade de martírio, transfigurada já pela<br />

angústia sagrada daquela hora, no instante augusto da<br />

Maternidade.<br />

Todo o meu ser, arrebatado por essa imensa<br />

tragédia de sacrifícios, de abnegação cristã, de<br />

heroísmos incomparáveis, sofria com o estranho ser da<br />

Mater toda a amargura infinita do majestoso aparato da<br />

Vida prestes a surgir do caos, da chama palpitante,<br />

prestes a irromper da treva...<br />

Como que outra natureza, uma paixão viva e forte,<br />

um carinho maior me inundava, subia vertiginosamente<br />

pelo meu ser, me incendiava numa onda flamante de<br />

luz virginal, de claridade vibrante, que me trazia ao<br />

organismo alvoroçado rejuvenescimentos inauditos,<br />

mocidade viril, poderosa, alastrando em seiva fremente<br />

de sensações, nervosamente, nervosamente<br />

impulsionando o sangue.<br />

Às vezes ficava como que num vácuo, só, numa<br />

sinistra amplidão vazia de afetos, sob o eletrismo de<br />

correntes invisíveis que me prendiam, me arrastavam<br />

ao pensamento da Morte, ao auge do dilaceramento, da<br />

aflição, do delírio despedaçador da lembrança de vê-la<br />

morta, sem estremecimentos de vitalidade; sem que as<br />

suas mãos cheias de afago, as suas mãos dementes,<br />

bem-aventuradas, misericordiosas, perdoadoras,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 399<br />

sagradas, relicariamente sagradas, me acariciassem<br />

mais; sem que os seus braços longos, lentos, lânguidos,<br />

me acorrentassem de tépidos abraços; sem que o contacto<br />

dos meus beijos apaixonadamente profundos a acordasse,<br />

– fria, insensível, horrível, gelada ao meu clamor de<br />

adeus, ao meu grito tenebroso, tremendo, de leão<br />

despedaçado, ferido pela flecha envenenada de uma dor<br />

onipotente, rojado de bruços, baqueando em soluços sobre<br />

a terra maldita e bárbara!<br />

De súbito, porém, as lancinantes incertezas, as<br />

brumosas noites pesadas de tanta agonia, de tanto pavor<br />

de morte, desfaziam-se, desapareciam completamente<br />

como os tênues vapores de um letargo...<br />

E uma claridade inefável de madrugadas de ouro,<br />

alvorecida das aves brancas de um país sideral, apagava<br />

em mim a dor fria, exacerbante, desses pensamentos<br />

impacientes e torvos; dava-me o vigoroso alento, a grande<br />

esperança de que ela sobreviveria, de que ela sentiria,<br />

com Orgulho sagrado, nesse primeiro movimento da<br />

Maternidade, correr nas veias todo o impulso delicioso e<br />

nobre, toda a delicada aptidão ingênita, poderosa,<br />

profunda, para amamentar, fazer florir e cantar no<br />

hostiário sacrossanto dos seus seios, aquela doce e<br />

vicejante existência que na sua atribulada existência<br />

se gerara.<br />

E toda a antiga e virtual castidade, a adolescência<br />

promissora, prenuncial, o mago segredo púbere da sua<br />

passada virgindade se transfigurariam na opulência, no<br />

fausto de sensibilidade, de nervosidade, da complexa<br />

paixão materna.<br />

Mas o momento da angústia suprema se<br />

aproximava, fazia-se uma pausa religiosa nesse monólogo<br />

mental que me agitava em febre, na concentração aflitiva<br />

dos meus pensamentos – agora mudos, no reverente<br />

silêncio, na ansiedade calada de quem espera...<br />

Era chegado o momento, grande, grave e belo<br />

momento entre todos, em que a mulher, perdendo a


400 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

volubilidade, a gracilidade diáfana e o alado encanto de<br />

virgem, se transfigura e recebe uma auréola, um sério<br />

resplendor de nobre martírio, de simpático consolo,<br />

envolve-se numa sombra e num silêncio de piedade e<br />

de sacrifício, num Angelus abençoado de amor.<br />

Era chegado o momento em que aquelas formas<br />

se espiritualizavam, se eterizavam, tomavam asas de<br />

sonho, inflamadas por um novo e alto sentimento, tão<br />

tocante e tão augusto, que parecia afinado e fecundado<br />

nos céus pela graça divina e peregrina dos anjos. Ê<br />

quando a mulher parece desprender-se, libertar-se suave<br />

e secretamente da argila que a gerou e criar para si,<br />

solenemente, uma esfera perfeita e eleita de abnegação<br />

infinita e de resignação sublime. Quando os seus seios<br />

magnificentes, nos renascimentos da Beleza, símbolos<br />

delicados da maternal Ternura, florescem à vida dos<br />

pequenos seres que nascem, numa alvorada carinhosa<br />

e tépida de agasalho, amamentando-os com o néctar<br />

delicioso do leite.<br />

Nessa hora extrema em que parece desprenderem-se<br />

da mulher, desatarem-se, evaporarem-se véus<br />

translúcidos de virgindade, para surgir, como de um<br />

caule misterioso, a meiga e mágica flor da Maternidade.<br />

Todo aquele organismo fecundado estremecia,<br />

estremecia, nesse inicial e materno estremecimento<br />

virgem, vagamente lembrando as fugitivas vibrações<br />

nervosas de sonora harpa nova, de ouro puro, original e<br />

intacta, pela primeira vez vibrada com excepcional emoção<br />

por dedos inviolados e ágeis...<br />

E, em pouco, então, como num suntuoso levante<br />

de púrpuras, através de gemidos pungentes, de gritos e<br />

ânsias delirantes, a cabeça docemente pendida numa<br />

contemplativa amargura, os olhos adormentados pelas<br />

brumas crepusculares e lacrimosas de um pressentimento<br />

vago, magoado e esmaecida toda a suave graça<br />

feminina, na extrema convulsão do corpo dela, todo<br />

aquele surpreendente fenômeno foi como que acordando,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 401<br />

alvorecendo, surgindo das névoas mádidas e sonolentas,<br />

letárgicas, de pesadelo... E a flor maravilhosa e rubra<br />

da matéria, gerada na imensa dor, abriu, enfim, em<br />

prodígios, pomposamente.<br />

Numa apoteose de sangue, respirando o sangue<br />

impetuoso, abundante, que jorrava em auroras, em<br />

primaveras vermelhas de viço germinal, raiara como<br />

clarão aceso de Vida, num grito íntimo, latente, do seu<br />

tenro organismo elementar ainda – um grito talvez<br />

selvagem, um grito talvez bárbaro, um grito talvez<br />

absurdo, arremessado para além, ao Desconhecido do<br />

mundo em cujos dédalos intrincados esse delicado ser<br />

acabara de penetrar agora por entre ensangüentamentos.<br />

Parecia que de uma zona fantástica, dessa Índia<br />

ouro e verde, opulenta, feérica, como caprichoso tesouro<br />

de Lendas e de Baladas, alvorara o Encanto, criara asas<br />

e viera, com o pólen radiante da fecundação, insuflar a<br />

vertigem, dar o fremente sopro criador à cabeça, aos<br />

olhos, à boca, aos braços, ao tronco, a todo o corpo num<br />

movimento quebrado, voluptuoso, lânguido, de germens<br />

que se concretizam, que se condensam e vão adquirindo<br />

aos poucos, com infinitas delicadezas e inefabilidades,<br />

todas as formas perfeitas, todas as linha dúcteis, todas<br />

as curvas e flexibilidades sensíveis, todas as fugitivas<br />

expressões corretas e harmoniosas.<br />

Ali estava aquele vivo e eloqüente rebento,<br />

iluminado pelos idealismos da minh’alma, vivendo dos<br />

florescimentos olímpicos, da alacridade cantante, do<br />

ruído em festa, da imaculada frescura da minha livre e<br />

forte alegria antiga de adolescente.<br />

Ali estava, para o meu amor sereno, para o consolo<br />

meditativo das minhas grandes horas de anseio, para o<br />

recolhimento ascetérico da minha fé estesíaca, a Imagem<br />

palpitante, gárrula, trêfega, da Infância já passada.<br />

Ali estava agora a vida desabrochante, o encanto<br />

alegre, aflorado, ridente – hino viçoso e verde e virgem e


402 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

evocativo e sugestivo de uma ventura morta, saudade<br />

intensa, chamejante, como que espiritualizada no Filho,<br />

rememorando, evocando, numa expressão elegíaca, todos<br />

esses longínquos, remotos e significativos deslumbramentos,<br />

cânticos, miragens, sóis e estrelas da<br />

primeira idade tão enternecivelmente assinalada.<br />

Era como que a retrospectividade luminosa de um<br />

tempo, que subia, em incensos, de um fundo enevoado:<br />

terra sagrada e extinta, saudosa e verdejante Palestina<br />

que eu entrevia longe, nas brumas vagas da memória,<br />

dentre hosanas e sicômoros; – página recordativa que<br />

as estrelas e os aromas docemente fecundaram de amor<br />

e de sonhos.<br />

E eu ficava por muito tempo a olhá-lo, a olhá-lo, a<br />

rever-me na frescura cândida daquela carne, a aspirar<br />

com avidez o perfume violento daquela flor viva,<br />

considerando, meditando sobre todos os seus traços,<br />

sobre a expressão curiosa, de pequenina múmia, do seu<br />

corpo veludoso, como que embalsamado no óleo virtuoso<br />

de preciosas ervas verdes e virgens.<br />

Ali estava, enfim, quem me tornava de ora em<br />

diante soturno, calado, no êxtase mudo da contemplação,<br />

como sob o impressionante poder cabalístico, sob a<br />

eloqüência vidente de hieróglifos mágicos...<br />

E, assim mentalmente considerando, eu sentia o<br />

mais reverente, o mais profundo, o mais concentrado<br />

respeito, o afeto mais vibrantemente tocante, aureolado<br />

de lágrimas, pelo templo majestoso e santo daquele belo<br />

ventre, onde enfim se oficiara a primeira Missa de<br />

Propagação perpétua.<br />

Todas as perfeições espirituais do ser que se<br />

liberta da materialidade vil, todos os anseios supremos<br />

pelas formas intangíveis das transcendentes<br />

sensibilidades, me transfiguravam, contemplando em<br />

silêncio aquele ventre precioso e bom, onde tomara corpo,<br />

se consolidara em organismo o gérmen quente e intenso<br />

da Paixão.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 403<br />

Contemplando em silêncio aquele ventre<br />

venerando e divino – Vas honorabile! – de onde o<br />

sentimento épico e místico das sempiternas Abnegações<br />

ondulou como aroma eterno e celeste; ventre gerador e<br />

poderoso que se purificara e sagrara triunfalmente com<br />

os sacrificantes milagres da Fecundação; Olimpo glorioso<br />

que abrira os pórticos fabulosos à dominativa emoção, à<br />

fantasia heróica, à graça d’asas seráficas, do Gênio<br />

consolador, estóico e elíseo das amparadoras,<br />

misericordiosas Mães!<br />

Ó Ventre obscuro e carinhoso, soberbo e nobre<br />

pela egrégia função de gerar! Ventre de afetivas<br />

sublimidades, donde cantou e floresceu à luz a dolente<br />

vitória de uma existência, a encarnação soberana, a<br />

fugitiva tulipa negra para idealizar singularmente os<br />

Infinitos nostálgicos da minha Crença! Ó Ventre amado.<br />

Como foram extremamente puros e penetrantes e<br />

frementes os beijos de apaixonada volúpia e reverência<br />

sacrossanta que eu depus sobre o teu ébano!<br />

Em torno, no ambiente carregado da intensidade<br />

de toda essa maravilhosa sensação, errava o segredo<br />

ritmal de Litanias, de preces que Visões rezavam baixo,<br />

por Céus inefáveis, num abrir e fechar d’asas<br />

arcangélicas, d’asas límpidas, d’asas e asas<br />

rumorejantes, aflantes, cujo suave e ciciante ruído eu<br />

na Imaginação escutava enlevado...<br />

E a doce Mater, mais calma, numa unção de bemaventurança,<br />

numa auréola deífica, serenada já da dor<br />

profunda da Maternidade, parecia penetrada de um<br />

sentimento celeste, de fluidos virtuais do grande Amor,<br />

de resignada piedade – água lustral, da maternal paixão,<br />

que a lavava do mal do torturante pecado, purificando a<br />

sua alma simples, iluminando-a toda com o altivo<br />

esplendor de uma força heróica.<br />

Lembrava uma dessas excelsas Divindades<br />

espirituais, a Entidade das Abstrações dos reclusos<br />

místicos, Aparição imortal, cuja face, no resplendor


404 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

translúcido daquele sofrimento regenerante, tinha para<br />

mim o encanto mais alto, a ternura mais bela, a<br />

abnegação mais serena.<br />

Sentia-me diante de completa Religião nova que<br />

evangelizava a Crença naquela Mãe e naquele Filho –<br />

inteira Religião nova, cujos rituais e cultos eternos eram<br />

para mim agora esses dois seres extremadamente<br />

amados, cujo sangue irradiava no meu sangue, cuja vida<br />

penetrava na minha vida, inoculando-a de um júbilo e<br />

de uma graça profética – graça de Anjos e Astros em<br />

claridades, músicas e cânticos, por fios sutis de múltiplas<br />

cordas d’harpas, d’harpas e harpas, dentre os Azuis e as<br />

Constelações...<br />

Ao mesmo tempo sentia então que profundos e<br />

penetrantes frêmitos me abalavam, me convulsionavam<br />

todo, como se se operassem no meu organismo<br />

transformações recônditas, gerando uma outra alma,<br />

trazendo-me sede insaciável da Vida, o ressurgimento<br />

de estesia particular e rara.<br />

Força estranha, que eu até aí não conhecia,<br />

circulava com veemência nos meus nervos, dava-lhes<br />

tensibilidade e vibratilidade mais leves, mais finas; e,<br />

grandes asas diáfanas de Aspiração e Sonho, alavamme<br />

às supremas serenidades da Piedade e do Amor.<br />

O desejo que me clamava dentro do peito, em<br />

claras trompas guerreiras, numa onda sonora e<br />

impetuosa, era o de ir além, fora, longe do tédio das<br />

cidades murmurejantes, longe das curiosidades<br />

indiscretas, dos indiferentes e frívolos, das<br />

sentimentalidades aparatosas, dos enternecimentos<br />

calculados, decorativos e clássicos, das expansões<br />

d’estilo, ornamentais como corpos em tatuagem, de tudo<br />

o que grulha e reina na boçalidade majestática da<br />

espécie humana.<br />

O meu desejo indômito era de ir além, fora das<br />

brutas portas de pedra da Região dos Egoísmos, gritar,<br />

gritar, clamar, livremente, à natureza virgem, aos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 405<br />

campos, às florestas, aos mares, às ululantes<br />

tempestades, aos sóis em febre, às noites triunfais,<br />

coroadas d’estrelas, aos ventos coroados de pesadelos,<br />

que esse Filho extravagantemente amado nascera, que<br />

surgira enfim do mistério sonâmbulo da Maternidade...<br />

A ansiedade que me agitava, levantando dentro<br />

de mim o desconhecido, convulsionando este organismo<br />

num incêndio de sensação, era de deprecar ao Indefinido<br />

das Cousas, ao Abstrato das Formas, ao Intangível do<br />

Espírito, à Eloqüência dos Presságios, para que me<br />

dissessem o que ia ser desse frágil obscuro, dessa tímida<br />

flor da Desgraça, o que ia ser daqueles membros tenros,<br />

débeis; que estupendos augúrios dormiriam no brilho<br />

fugitivo daqueles olhos inconscientes, perdidos no vago<br />

de um fluido sentimento, sob o fundo fatal das impurezas<br />

da Carne, das inquietações do Pecado – germens latentes<br />

ainda, apesar do desdobramento milenário das eras, da<br />

absoluta e primitiva Culpa humana.<br />

Ansiava que me dissessem que mágicos filtros de<br />

gnomos da Noite o predestinariam; que frêmitos de<br />

desejo convulsionariam essa boca ainda tão impoluta,<br />

sã, ainda sem laivos visguentos; que luxúria intensa e<br />

nova inflamaria, acenderia centelhas nessa boca úmida,<br />

fresca, viçosa, apenas entreaberta já num indefinido<br />

anelo, sedenta, inquieta, impaciente, ávida já da<br />

instintiva volúpia do leite...<br />

Todo o evocativo estremecimento das saudades,<br />

das esperanças, das alegrias, das lágrimas me invadia<br />

a alma num sonho esquisito, exótico, oriental, por entre<br />

os nardos quentes, perturbadores e magnéticos, da<br />

Abissínia e da Arábia Ideal de todos os meus<br />

pensamentos fugidios, circulando, girando,<br />

torvelinhando, como silfos procriadores, em torno àquela<br />

meiga e venerada cabeça.<br />

Eu ficava absorto, contemplativo ante as sugestões<br />

delicadas que o supremo fenômeno trazia, nessa<br />

manifestação singular de curiosidades de preciosas


406 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

revelações ingênitas e caprichos ignotos da Natureza,<br />

sentindo que o Filho poderosamente me fascinava, que<br />

a mais irresistível atração me chamava para ele, atração<br />

vital, imediata, eterna, do sangue comunicativo e fraterno<br />

que clama pelo sangue fraterno.<br />

Ela, afetiva Sacrificada, Mater, dolorosamente aí<br />

ficaria na terra, gravitando nos centros nervosos da Vida,<br />

– Sombra divina e errante! – para o futuro, para a<br />

obscuridade, para a velhice, para o silêncio e<br />

esquecimento dos tempos...<br />

Ele, Filho, surgindo das nebulosidades da Matéria,<br />

caminhando, caminhando à Via-Sacra das horas e dos<br />

dias pelas ermas e infinitas encruzilhadas dos Destinos,<br />

iria então, resignado ou desesperado, para o Vilipêndio<br />

ou para as medíocres conquistas do Mundo, através dos<br />

conclamadores Anátemas, através dos lancinamentos<br />

inconcebíveis, através das taciturnidades melancólicas,<br />

através de tudo, tudo, tudo o que chora d’alto, profunda<br />

e apocalipticamente, o Requiem solene, a soberana<br />

majestade, tremenda, trágica, da imponderável Dor!...


CAPRO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 407<br />

Dentro daquele organismo em seiva fumente de<br />

novilho espojando se na amplidão os campos relvosos,<br />

trinavam, cantavam pássaros, vibravam fanfarras<br />

marciais.<br />

Temperamento de guerra, ostentoso como um<br />

carro de triunfo, outrora, nas hostes helênicas, era a<br />

volúpia que lhe ritmava as idéias, que lhe dava diapasão<br />

ao entendimento.<br />

Virginal, como a alva constelação dos astros, a<br />

sua Arte abria-se numa florescência vigorosa, dimanando<br />

o aroma natural, puro, criador e intenso, de terras<br />

lavradas e germinais, revolvidas de fresco, a doçura verde<br />

das tenras e viçosas folhagens, entre as quais brilha ao<br />

sol a loura abundância sazonada dos frutos.<br />

A sua natureza deveria ser estudada sem<br />

roupagens, sem atavios, livremente, a golpes crus e<br />

acres, a tons violentos e rubros, profundos e flagrantes,<br />

na plenitude de toda a extravagância e de toda a<br />

idiossincrasia que o singularizava.<br />

A afloração da sua força psíquica fazia lembrar<br />

uma fantástica floresta vermelha por efeito de um<br />

incêndio colossal: – largas e longas manchas de sangue<br />

alastrando tudo, clarinando tudo de gritos, de brados,<br />

de púrpuras de indignação, de ódios artísticos, de<br />

despeitos, de tédios mortais, de spleens enevoados.<br />

A cor, a luz, o perfume, para a sua esquisita e<br />

caprichosa sensibilidade, sangravam, vertiam sangue<br />

sinistro de dolorosa volúpia; e, todos os aspectos, todas<br />

as perspectivas, pareciam-lhe à retina requintada e<br />

misteriosa outras tantas manchas de sangue, que a sua<br />

estesia doente mais vivas, mais flagrantes via por toda<br />

a parte.<br />

E nessa tendência espiritual orgânica para os<br />

efeitos sangrentos, preferia à clorose das magnólias e


408 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

lírios brancos a rubente coloração das rosas e cravos<br />

bizarros.<br />

Superexcitado pelas nevroses ardentes do<br />

Pensamento, desde as liturgias simbólicas de Verlaine<br />

até aos satanismos de Huysmans, exigindo as linhas<br />

em alto requinte da Arte, toda a sua estética se<br />

manifestava então por uma corrente impetuosa de<br />

luxúria, de caprismo, de lubricidade pagã de sátiro, de<br />

fauno mítico, estirado ao sol, como certos animais no<br />

período da incubação, gozando, sibaritamente, a morna<br />

carícia do eterno clarão fecundante.<br />

Diante da retina coruscavam-lhe deslumbramentos<br />

de idéias, com claras, cantantes cores.<br />

Feriam-lhe agudamente a retina, impressionandoa,<br />

hipnotizando aquela idiossincrasia fatal, o<br />

ensangüentamento dos ocasos, os vermelhos clarinantes<br />

dos clarões de fogo, os rubros candentes, inflamados,<br />

das forjas, os escarlates violentos das púrpuras, os<br />

álacres rubis de certas tropicais florações e folhagens,<br />

os rubores quentes de certos sumarentos e selvagens<br />

frutos, a sulferina coloração delicada de vinhos tépidos,<br />

todos os rubros majestosos, potentes, embriagantes, toda<br />

a clamante alucinação dos vermelhos crepitando em<br />

sensações de chama, todas as atroantes fanfarras e<br />

gamas infinitas e finíssimas das cores como que<br />

aperitivas, palatais, genealógicas do Sangue.<br />

Os livros carnalíssimos, que porejam luxúria,<br />

acendiam-lhe, mais flamejantes, os instintos sensuais;<br />

e ficava então puro maometano, revestido em sedas e<br />

pedrarias prodigiosas de gozo, nesse lasso luxo oriental<br />

em que a Ásia se perpetua como o lânguido sol decadente<br />

das exóticas sensualidades.<br />

Nos seus nervos, nas suas veias circulavam flamas<br />

geradoras dessa Originalidade trucidante que naturezas<br />

febris ansiosamente procuram, como buscariam o<br />

recôndito veio profundo da água nas camadas mais<br />

obscuras da terra.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 409<br />

Olfato delicado, claro, que tudo sentia, que tudo<br />

respirava, ainda por extremo requinte de volúpia, era<br />

extraordinária, maravilhosa a sensibilidade aguda da<br />

sua membrana pituitária, fariscando ativamente, em<br />

cios.<br />

Mas, os cheiros mais prediletos, mais sugestivos<br />

para ele, que lhe penetravam e cocegavam mais a<br />

mucosa nasal, numa atuação de esfregamento, como<br />

que no atrito agradável provocado na pele para a cessação<br />

de irritante prurigem, eram os cheiros acres de matérias<br />

resinosas, as emanações de folhas silvestres<br />

machucadas, a exalação úbere dos estábulos, o aroma<br />

estonteador e verde das maresias, o odor do sedimento<br />

de certos líquidos, o fartum que diversos animais<br />

segregam, o hircismo quente dos bodes, o estimulante<br />

de fermentação da cevada nas cervejarias, o sumo<br />

travoroso e ativo dos limões verdoengos, quase que<br />

tocados de um sentido penetrante, claro, inteligente e<br />

todos os amargos sabores das frutas ácidas e cálidas<br />

que como que lhe feriam, abriam numa chaga, em<br />

apetites aguçados e picantes, o grosso lábio enervado<br />

pela volúpia letárgica.<br />

E como ele se empurpurasse, se enlabaredasse<br />

no esplendor triunfal da Arte, esses odores todos o<br />

penetravam, o fascinavam, alertando-o, transfigurandoo<br />

para a Escrita, para a Forma.<br />

Era como se saísse de andar em volta de vasta<br />

coivara a arder e viesse dela aquecido, com o sangue<br />

esporeado, as veias latejando em febre, numa sensação<br />

intensa de produtividade.<br />

Mas, uma vez caído em frente ao papel branco,<br />

que tinha de receber o exuberante pólen do seu espírito,<br />

todos esses ímpetos, esses fervores esmoreciam, o calor<br />

dessa temperatura artística baixava logo e ei-lo então<br />

novamente vencido, numa espécie de coma, no<br />

adormecimento que lhe tolhia sempre o próprio esforço<br />

da vontade.


410 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

E, súbito, naquela espiritual ansiedade de natureza<br />

impotente, como que a dolorosa e enervante crise olfativa<br />

continuava, mais violenta, dava- se o mesmo fenomenal<br />

período de volúpia capra, nervosa, mental, no qual o<br />

sentimento pituitário dominava, impunha-se, avassalava<br />

as outras funções de modo verdadeiramente estranho.<br />

E o seu olfato desejava, ansiava sentir o talho<br />

sangrento nos açougues, as carnes rasgadas nos<br />

anfiteatros anatômicos, as feridas abertas nos hospitais<br />

de sangue, dentre os aços frios e cortantes dos<br />

instrumentos, como indiferentes, desdenhosos<br />

aparelhos, rindo, em rijas cutiladas sonoras, cantando<br />

o hino dos metais fulgentes ante as torturas humanas<br />

da matéria dilacerada.<br />

No entanto, outrora, esse lascivo, natureza<br />

dispersa, sem unidade de conjunto, produzira já algumas<br />

belas páginas cantantes, estilos com flamejamentos de<br />

espadas, vibrações candentes de bigorna, cintilantes<br />

como os polidos, espelhados broquéis antigos.<br />

Fora isso na adolescência, quando a sua natureza<br />

não se achava absorvida pela pestilência do meio ou<br />

mesmo quase constituindo, como agora, as próprias<br />

células dele. Eram primícias, prodigalidades do seu<br />

cérebro ainda não sazonado completamente; a<br />

abundância espontânea, mas não produzida por seleção,<br />

de um temperamento fecundo, farto de idealização e de<br />

força, mas sem a intensidade essencial que nasce da<br />

condensação e da síntese. Aquelas páginas eram<br />

verdadeiros viços, opulências de rebentos, florescências<br />

inéditas e castas que lhe brotavam do ser com o mesmo<br />

ímpeto de germinação dos vegetais rasgando a terra.<br />

Mas, desde que o seu temperamento chegara ao<br />

mais cabal desenvolvimento, que atingira à Elevação,<br />

subindo a extremos requintes, ele sentira essas páginas<br />

descoloridas, ocas, vazias, sem mergulharem no mar<br />

convulsivo, vulcânico da sua Imaginação, sem dizerem,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 411<br />

sem falarem, sem reproduzirem todo o sol e toda a treva<br />

da sua recôndita Nevrose.<br />

Armado de coruscante cota de malha de espírito,<br />

tecida de diamantes, ele agora quereria para a Estética<br />

um majestoso damasco de Inauditismo, a psicologia<br />

imprevista que os organismos virgens e novos provocam<br />

na sua evolução lenta e curiosa.<br />

Impotente, no entanto, para revelar, sob uma forma<br />

gráfica, os segredos espirituais que o dominavam, incapaz<br />

de concentração, de isolamento para agrupar e dar corpo<br />

às visões que ondulavam em torno do seu centro ardente<br />

de ação mental, o pólo das emoções do Capro, talvez por<br />

um doentio e instintivo despeito dessa Impotência, era<br />

a sensualidade, e era gozar, através das puras<br />

manifestações da Carne, sem a dolorosa expressão<br />

escrita, a volúpia secreta de um anseio transcendental,<br />

de um Ideal rebuscado e uno, olfatando tudo, tocando<br />

mentalmente tudo, para ver se encontraria nas cousas<br />

o odor do Desconhecido, a essência singular, a emanação<br />

casta e original que tanto o inquietava e atraía.<br />

A idéia da Morte, com os seus terrores ocultos,<br />

obscuros e surdos, imponderados, com os seus<br />

enregelamentos supremos, lançava-lhe sempre à<br />

espinha um frio de angústia, soprava-lhe no cérebro tredo<br />

tufão tenebroso, esmagando-o e deleitando-o ao mesmo<br />

tempo, num deleite luxurioso e fatal, que o envenenava<br />

como de ódio terrível, sanguinolento.<br />

Vinha de um fundo misterioso, de recônditas<br />

raízes de sofrimento, de ânsias e desesperos<br />

concentrados, esse vendaval ululante de sensações<br />

imprevistas que o abalavam até ao íntimo do seu ser,<br />

perante a idéia vulcanizadora da Morte, da lívida, da<br />

rígida, da impenetrável Morte...<br />

Era o estremecimento latente, lancinante, de um<br />

terror absurdo, que o esmagava, que o dilacerava, como<br />

se já andasse de rastros, agrilhoada às sombras e à<br />

gelidez tumulares, toda a sua convulsa existência de


412 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

extasiado olímpico, de absorto egrégio nas luminosas<br />

volúpias da Arte.<br />

E quando lhe soava nos nervos a hora alta da febre<br />

da grande alucinação para a perpetuidade do nome no<br />

espírito das Gerações que surgissem; quando se<br />

surpreendia absorto, na contemplatividade muda desse<br />

inquietante e vago Aspirar que fecunda as almas<br />

anelantes de Indefinível; nesses impressionativos<br />

momentos em que ele, transfigurado, empalidecia, os<br />

que mais e melhor sentiam todos os íntimos segredos,<br />

todos os voluptuosos encantos da sua mentalidade, lhe<br />

perguntavam pela obra que deixaria, lhe diziam:<br />

– Então! nada tens feito que revele a tua estesia,<br />

que determine as tuas sensações, a tua sensibilidade<br />

extrema. Vives preguiçando, dormindo lassos, longos<br />

sonos de luxúria... Olha que a morte aí vêm, aí vêm já,<br />

irremovível e oblíqua, sôfrega, sequiosa da tua carne e<br />

te vai surpreender inútil, mudo, sem nada dizeres ao<br />

mundo, cérebro budicamente indiferente, boca fechada<br />

numa contração torturante de impotência doentia<br />

rodando na mesma poeira vertiginosa, no mesmo torvo e<br />

banal rodomoinho dos homens e das cousas, sem nunca<br />

revelares todo esse estranho Infinito que trazes na alma.<br />

Sentes o mundo vão, estreito, de dolorosa dureza<br />

e no entanto não queres ou não sabes fugir dele pela<br />

única larga porta estrelada que se te oferece ao teu<br />

espírito, esse vasto campo ideal onde livremente colhes<br />

a cada passo tanta admirável flor de pensamento! Olha<br />

a morte, olha a morte!... Aí vêm ela, irremovível e<br />

oblíqua... Olha o tempo, olha as horas fatais que te caem<br />

na cabeça, negras e surdas, fulminando-te, com a<br />

inevitabilidade inquisitorial do lento suplício do pingo<br />

d’água.<br />

Ele ficava, ante estas abaladoras palavras, em<br />

sobressaltos assustadores, aterrado, azoinado e vencido,<br />

quase cambaleando, como um homem que leva de<br />

repente em cheio uma forte pedrada em pleno peito.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 413<br />

Abria-se então na alma inquieta do Capro um<br />

rasgão de mar e estrelas, dava-se no seu temperamento<br />

fugitivo um tocsin de alarma, um bimbalhar de carrilhões<br />

ruidosos, um estrugir de músicas marciais em marcha,<br />

clarões que rompiam névoas de vacilação, de timidez<br />

psíquica, um flavo e transfigurado acordar de alvoradas,<br />

todo um sol de alvoroço e triunfo que o iluminava,<br />

impelindo-o ao trabalho tenazmente, insistentemente,<br />

mergulhando-o na chama das concepções, dos estilos<br />

virgens, das formas não sonhadas ainda — órbitas<br />

estreladas e azuis onde a sua astral natureza com tanta<br />

ansiedade girava.<br />

Mas desde que essas transfigurações o<br />

impulsionavam ao trabalho, desde que ele procurava<br />

traduzir, por formas caprichosamente sensacionais e<br />

singulares, as impressões que o abalavam, que viviam<br />

nele vida curiosa e intensa, todo esse poderoso esforço<br />

tornava-se vão, o pulso, de repente, gelava-se-lhe, a mão<br />

não agia com eficácia, e os pensamentos, confusos,<br />

embaralhados, emaranhados, num tropel, fugiam,<br />

recuavam como paisagens encantadas, feéricas, como<br />

ondulantes zonas de luz que desaparecessem da retina<br />

deslumbrada de um opiado visionário.<br />

Um vácuo tenebroso, um vazio sepulcral, horrível<br />

fazia-se logo no seu cérebro, como se uma onda pestífera,<br />

violenta e glacial, lhe varresse os pensamentos<br />

desoladoramente.<br />

Ficava então sufocado, em ânsias, respirando mal:<br />

parece que lhe faltava ar, sol, céu. Erguia-se da mesa<br />

do trabalho, inquieto, lívido; sentava-se de novo; erguiase<br />

outra vez; saía, corria, desorientado, desesperado, a<br />

vagar nalgum cais, onde o mar parecia estar de grandes<br />

braços abertos para recebê-lo, para dar-lhe<br />

generosamente toda a seiva dos seus abismos glaucos;<br />

ou então buscava com ansiedade a paz bucólica de algum<br />

campo próximo, respirando assim com avidez e consolo o<br />

hálito virgem, as sadias emanações fortalecentes da


414 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

vegetação e das ondas salgadas, como se procurasse<br />

haurir nelas todo o poder secreto que não possuía, toda<br />

a força de concentração, de generalização e de síntese<br />

que no momento fatal da Concepção tão capciosa se lhe<br />

mostrava e tão impiedosamente lhe fugia.<br />

Era como se ele fosse um condenado a quem<br />

estivessem para sempre interditas as portas livres e<br />

luminosas da salvação. Natureza que a intemperante<br />

sensualidade, já pela sua expressão alcoólica, já pela<br />

sua expressão carnal, já pela sua expressão de preguiça<br />

inerte e até mesmo, por fim, de gula, ia aos poucos<br />

devorando funestamente. Dir-se-ia que procurava nos<br />

inebriamentos, vertigens, delírios e perturbações da<br />

Carne como que o veículo mais pronto, mais fácil, embora<br />

inferior, para nele fazer mover e canalizar<br />

alucinadamente a Sensação que trazia.<br />

As qualidades que lhe tinham de vir unas,<br />

homogêneas, condensadas para o espírito, dispersavamse<br />

na sensualidade, transformavam-se em instintos<br />

puramente sensuais, como que para mais e melhor<br />

justificar, agravando, a sua impotência conceptiva.<br />

Nas claras e fundas horas abstratas de julgamento<br />

próprio que cada um tem no seu Íntimo, seja o mais<br />

puro ou o mais perverso dos homens, o mais superior ou<br />

inferior, ele reconhecia toda a sua Impotência, via-se<br />

flagrante no espelho cruel e nu do seu Nada.<br />

Assim como há certos intelectuais que na<br />

superioridade dos grandes meios ficam radicalmente<br />

esmagados, enquanto outros ganham o mais<br />

extraordinário esplendor e vigor, como que absorvem o<br />

céu e a terra, os continentes, são infinitos que se<br />

desdobram no Infinito; há também, especialmente nas<br />

regiões da Arte, seres que trazendo consigo a alta<br />

responsabilidade do Espírito, pelo verbo falado, não a<br />

podem registrar, entretanto, pelo verbo escrito.<br />

Como que se dá com eles o mesmo fenômeno<br />

curioso e aflitivo de um cego que sente tactilmente as


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 415<br />

cousas, mas que não as pode ver; de um mudo, que<br />

possui o órgão vocal, mas que não pode falar...<br />

Nesses momentos acerbos de irrequietabilidade<br />

mórbida, doentia, quando lhe fugiam todos os raios de<br />

unidade amorável e harmoniosa do seu ser e que alguém<br />

lhe surpreendia o flagrante do sentimento, o íntimo do<br />

íntimo da alma, certas negruras venenosas, o Capro<br />

perdia-se na floresta de brumas, afundava-se nos<br />

atoleiros lúbricos do álcool, como numa capciosa desculpa<br />

de vício, de miséria e de tristeza, para que não lhe<br />

sentissem os gritos surdos e o ranger de dentes daquela<br />

Impotência.<br />

Parece que se dava nele um transbordamento<br />

esquisito de natureza, uma anomalia da visão e da<br />

imaginação, de modo a não se poderem ligar entre si os<br />

fios sutis e harmônicos do entendimento e do sentimento,<br />

a não terem correspondência direta e rítmica as<br />

correntes psíquicas do seu cérebro e da su’alma. Parece<br />

que falta a esses seres mais um grão de visão para<br />

abrangerem o complexo todo psíquico ou que algumas<br />

das suas células não têm a intensidade una, a energia<br />

pronta, a espontaneidade essencial e igual para<br />

manifestar por completo as sensações que<br />

experimentam...<br />

E o Capro perdia-se, mergulhava no centro<br />

devorador do seu nirvana de impotência; sucumbia sob<br />

as garras ferozes e os despedaçadores tentáculos do seu<br />

Irremediável!<br />

Ah! era o eterno, o tremendo e incognoscível sofrer<br />

da dor das Idéias, implacavelmente, no tormento profundo<br />

das mais acerbas agonias.<br />

Mas essa insaciabilidade, essa aguda inquietação<br />

indomável, tensibilizando-lhe cada vez mais os nervos,<br />

requintando-lhe os sentidos, galvazinando-lhe o rosto<br />

num espasmo lívido, ia no entanto cavando d’enxadadas<br />

brutais e inevitáveis a sua própria cova.


416 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Toda a desarmonia geral, todo o desequilíbrio do<br />

seu esforço ingênito de mentalizado, toda a ação<br />

desvirtualizada dos seus pensamentos, que era já o<br />

desmoronamento final provocado pela hipertrofia, ou<br />

anulação de uma função do seu cérebro, todo o<br />

desmembramento intelectual do Capro, resultante do<br />

seu subjetivismo facilmente transbordante, sem centros<br />

de intensidade, de condensação, tudo isso apressava já<br />

os seus passos impacientes, ávidos nas batidas da Vida,<br />

para a sepultura, dando- lhe à fisionomia gasta e dolente<br />

um lúgubre macabrismo de esqueleto...<br />

E, quando afinal o vi na Morte, pairando-lhe na<br />

face fria o êxtase ignoto da indefinida, incoercível visão<br />

do Sonho, não sei por que vaga sugestão daquela<br />

improdutiva concupiscência psíquica, daquele lascivo e<br />

psicológico sentir e pensar desordenado, os seus pés,<br />

hirtos, enregelados no féretro, pareciam ter também,<br />

sinistra e ironicamente, estranha evidência capra, como<br />

se toda aquela espiritualidade que transbordara em<br />

luxúria, como se todo aquele vão e dilacerado esforço<br />

houvesse, por agudos fenômenos de sensibilidade<br />

nervosa, por cristalização de angústias lancinantes,<br />

desesperadas, supremas, transformado fantástica e<br />

exoticamente o seu ser naquela expressão animal<br />

reveladora do seu espírito, por um espectral e derradeiro<br />

desdém da Natureza...


A NOITE<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 417<br />

Ó doce abismo estrelado, nirvana sonâmbulo, taça<br />

negra de aromas quentes, onde eu bebo o elixir do<br />

esquecimento e do sonho! Como eu amo todas as tuas<br />

majestades, todas as tuas estrelas, todos os teus ventos,<br />

todas as tuas tempestades, todas as tuas formas e forças!<br />

Como eu sinto os perfumes que vêm das grandes rosas<br />

místicas dos teus maios; os eflúvios vibrantes, cândidos<br />

e finos dos teus junhos; o grasnar dos teus abutres e o<br />

claro bater das asas dos teus anjos! Como eu aspiro<br />

sedento todos esses cheiros salgados do mar dominador,<br />

essa vida aromal das folhagens, das selvas reverdecidas<br />

com os teus orvalhos revigoradores, com a tua esquiva<br />

castidade misteriosa!<br />

Ah! como eu te amo, Noite! Como a tua eloqüência<br />

muda me fala, me impressiona e me chama, Aparição<br />

seráfica, fabulosa irmã do Caos e das Legendas!<br />

O peito cheio de vibrações ansiosas, a alma em<br />

cânticos de amor, os olhos iluminados por esplendores<br />

secretos, como é maravilhoso vagar no solene<br />

tabernáculo dos teus silêncios, no in pace do teu Sonho!<br />

Como faz bem e tonifica mergulhar profundamente<br />

a cabeça nos teus mistérios que deslumbram, adormecer<br />

com eles, deixar que a alma se embale neles, vaguear<br />

pelo Infinito, tendo todos esses mistérios imaculados<br />

como o vasto manto consolador da Piedade e do Descanso!<br />

A tua docilidade e frescura, o teu carinho, os teus<br />

afagos, a tua música selvagem, as tuas solenidades<br />

augustas, o teu antediluviano encanto bíblico, as<br />

monstruosas risadas mefistofélicas dos teus fantasmas<br />

tenebrosos são como seres singulares, verdadeiros<br />

irmãos da minh’alma.<br />

Mordido de nervosidade aguda, perdido no teu<br />

solitário regaço maternal, ó estranha Noite, eu sinto<br />

que o cavalo de asas da minha consciência galopa, voa<br />

longe, livre, sumindo-se na infinita poeira de ouro dos


418 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

astros; que os movimentos dos meus braços ficam<br />

também livres, para abraçar as Quimeras; que os meus<br />

olhos, alegremente felizes, se libertam do carnívoro<br />

animal humano, para só fitarem sombras; que a minha<br />

boca aspira o Vácuo estrelado, para saciar-se dele, para<br />

beber todo o seu luminoso vinho noturno; que os meus<br />

pés erram melhor, oscilantes e vagos embora na<br />

embriaguez e na cegueira da treva, para melhor se<br />

desiludirem de que se arrastam na terra; que as minhas<br />

mãos se estendem e se movem largamente, como asas<br />

de espontâneo vôo bizarro, para dizerem triunfante adeus<br />

por algumas horas às terríveis contingências da Vida!<br />

Perdido nas solidões da tua treva vibram-me as<br />

tuas harpas, seduzem-me os teus êxtases, arrebatamme<br />

os teus misticismos.<br />

Com os olhos radiantemente abertos, como se<br />

fossem duas curiosas flores de raios celestes, eu<br />

nôctambulo em silêncio, na concentração de um<br />

missionário contemplativo vagando num imenso templo<br />

deserto e cheio de sagradas sombras...<br />

Em cima, sobre a cabeça, sinto cantar-me, doce e<br />

terna, a fina luz das meigas estrelas, e essa luz arde,<br />

chameja melancolicamente como uma alma que aspira...<br />

Dentro de mim uma sensibilidade incomparável<br />

vibra e vive como essas estrelas delicadas e meigas.<br />

Todos os quebrantos da noite fascinam-me,<br />

enlevam-me e eu me surpreendo arrebatado por uma<br />

transfiguração que não sei de onde parte, que não sei<br />

de onde vem, mas que me enche a alma como de uma<br />

crença maior, como de um revigoramento de marés<br />

picantes, como de um largo e belo sopro natal de<br />

revivescências juvenis!<br />

E quando levanto acaso religiosamente os meus<br />

olhos, no meio da candidez da solidão noturna, para o<br />

azulado e magoado estrelejamento do céu e vejo o céu<br />

suntuoso e mudo com os seus astros, os meus olhos,<br />

felizes e gloriosos por te olharem, Noite, exilam-se cada


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 419<br />

vez mais na tua mudez, vivem cada vez mais do teu<br />

deslumbramento e do teu gozo, inteiramente órfãos de<br />

todas as outras perspectivas, como dois príncipes<br />

hamléticos exilados para sempre numa sombria, mas<br />

inefavelmente amorável região de luto.<br />

Quando um pesadelo sinistro cavalga o meu dorso,<br />

me oprime o peito e os rins, tira-me a respiração –<br />

pesadelo gerado do Nada que nos envolve a todos – a tua<br />

fascinação astral é para mim um alívio supremo, a tua<br />

liberdade ampla é para mim larga emanação vital.<br />

As tuas sutilezas me acordam, os teus Stradivarius<br />

me espiritualizam, os teus preciosos ritmos me afinam...<br />

Ó Noite! inimiga irreconciliável dos que não te<br />

sabem engrinaldar com os lírios das suas saudades,<br />

encher com os seus soluços, estrelar com as suas<br />

lágrimas! Hóstia negra dos Sonhos brancos que eu<br />

eternamente comungo! Tu que és misericordiosa e que<br />

és boa, que és o Perdão estrelado suspenso sobre as<br />

nossas desgraçadas cabeças, tu que és o seio espiritual<br />

dos miseráveis seres, embalsama-me com os teus ósculos<br />

perfumados, com o eflúvio da infância primitiva dos teus<br />

idílios, abençoa-me com o teu Isolamento, cobre-me com<br />

os longos mantos de veludo e pedrarias das tuas volúpias,<br />

purifica-me com a graça dos teus Sacramentos.<br />

Fantasista do soturno, do galvânico, do lívido;<br />

Colorista do shakespeareano e do dantesco; Mater dos<br />

meios tons e das meias sombras, das silhouettes e das<br />

nuances; trombeta de Josafá, que fazes caminhar todos<br />

os espectros, ressuscitar todos os mortos, máscara<br />

irônica de todas as chagas; confessionário de todos os<br />

pecados; liberdade de todos os cativos: como eu recordo<br />

a galeria subterrânea dos teus mórbidos bêbados, dos<br />

teus ladrões cavilosos, das tuas lassas meretrizes, dos<br />

teus cegos sublimes e formidáveis, dos teus morféticos<br />

obumbrados e monstruosos, dos teus mendigos<br />

teratológicos, de aspecto feroz e perigoso de tigres e ursos<br />

enjaulados, acorrentados na sua miséria, dos teus


420 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

errantes e desolados Cains sem esperança e sem perdão,<br />

toda a negra boêmia cruel e tormentosa, ultra-romântica<br />

e ultra-trágica, dos vadios, dos doentes, dos<br />

degenerados, dos viciosos e dos vencidos!<br />

E a peregrina boêmia dos teus cães uivantes e<br />

contemplativos no amoroso espasmo do luar, dos teus<br />

gatos sonhadores, exilados e raros estetas felinos<br />

deslizando sutis pelos muros, histéricos da lua, os olhos<br />

fosforescentes como a luz de estranhos santelmos!<br />

Noite que abres teus circos funambulescos, cheios<br />

de palhaços rubicundos, tatuados de mil cores, de<br />

acrobatas de formas e movimentos aligeros e elásticos<br />

como serpentes; que expões todo o arco-íris inflamado<br />

dos teus bazares, a vertigem de zumbir de abelhas dos<br />

teus fagulhantes cafés-cantantes, o olho ignívomo e<br />

solitário dos faróis no mar alto e toda essa ondulação de<br />

aspectos e sonhos fugitivos, essa nebulosa do rumor e<br />

da emoção, que é o teu véu de noiva, que é o teu manto<br />

real!<br />

Tu apagas a mancha sangrenta da minha vida,<br />

fazes adormecer as minhas ânsias, és a boca que sopras<br />

a chama do meu desespero, és a escada de astros que<br />

me conduzes à minha torre de sonho, és a lâmpada que<br />

desces aos carcavões da minh’alma e fazes desencantar,<br />

caminhar e falar os meus Segredos...<br />

Tens uma expressão milenária de Epopéias, um<br />

curioso e extravagante sentimento druídico, e como que<br />

toda melancolia arcaica da Decadência latina.<br />

No fundo velho e pitoresco do teu Oriente, ó Noite,<br />

meu caprichoso e exótico Crisântemo; nos longes dos<br />

teus grandes e famosos Frescos ondulam em curvas<br />

lascivas e donairosas as românticas e visionárias virgens,<br />

os pálidos poetas meditativos, os ascetas lívidos que<br />

velam à claridade magoada dos círios, os fascinantes e<br />

capciosos Fra-Diavolos, os galhardos, zumbentes e<br />

coruscantes carnavais de Veneza da tua prodigiosa<br />

Fantasia e as quermesses louras e cor-de-rosa dos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 421<br />

querubins da Infância, que dormem sonhando, lírios de<br />

comovida ternura, meigamente seduzidos e embriagados<br />

no delicado e casto regaço do mistério dos sexos.<br />

O bendita Noite! dá-me a morte na irradiação dos<br />

teus raios, para que eu rompa o selo cabalístico dos teus<br />

segredos; dá-me a morte na cristalização dos teus astros,<br />

nas auréolas das tuas nuvens, no pesado luxo das tuas<br />

constelações, no vaporoso de tuas visões de lagos, na<br />

solenidade bíblica das tuas montanhas enevoadas, nas<br />

cerradas cegueiras apocalípticas das tuas maravilhosas<br />

florestas virgens, quando lentas luas langues<br />

florescerem nos céus como grandes beijos congelados<br />

de brancas noivas gigantes encantadas e mortas...


422 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

MELANCOLIA<br />

Falo ainda e sempre a ti, branco Lusbel das<br />

espirituais clarividências! A ti, cuja ironia é ferro e é<br />

fogo! Cuja eloqüência grave e vasta faz lembrar, como a<br />

de Bossuet, longas alamedas de verdes e frondejantes,<br />

altos plátanos chorosos. A ti, que amargurado deploras<br />

toda esta decadência dos seres; a ti, que te voltas<br />

desolado e saudoso para os tempos augustos que se foram,<br />

quando a Honra vã de hoje, era, como um poderoso e<br />

altivo brasão de águias negras atravessado de uma<br />

espada no centro!<br />

Sim! branco Lusbel, nós caminhamos para o<br />

irreparável empedernimento; desde o solo até aos astros,<br />

homens e cousas, tudo vai quedar de pedra. Será um<br />

sono universal de uma universal esfinge. Tudo, na pedra,<br />

dormirá um sono de pedra. A pedra respirará pedra. A<br />

pedra sentirá pedra. A pedra almejará pedra. E esta<br />

tremenda aspiração de pedra profundamente simbolizará<br />

os sentimentos de pedra dos homens de hoje. E, então,<br />

branco e iluminado Lusbel, mais claro do que nunca,<br />

verás que os olhos dos homens só luzem diante do<br />

dinheiro! Que pelo Amor nenhum se sente com ânimo<br />

de brandir um facho, de agitar um gládio ou desfraldar<br />

uma bandeira! Que pelo Sacrifício nenhum se arrojará<br />

nos Nirvanas transcendentes, porque dói muito<br />

abandonar o Conforto! Que pela Abnegação nenhum se<br />

colocará na vanguarda, porque custa muito aniquilar o<br />

Interesse.<br />

Bem sei que tu, ainda com uns restos de<br />

demência, não sei se diabólica, não sei se divina, acharás<br />

paradoxal esta intuitiva profecia; mas, para te fazer<br />

apagar de uma vez as últimas claridades de crença<br />

inexperiente que ainda conservas na alma, vou<br />

ministrar-te um rápido e curioso exemplo – síntese<br />

preciosa de que o Sentimento está metalizado em ouro,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 423<br />

de que a alma anda em cheques universais, no câmbio<br />

feroz do egoísmo humano:<br />

– Meu filho, ouvi perguntar um dia a uma criança<br />

de sete para oito anos que chegara desse rude e corrupto<br />

mundo europeu a tentar fortuna nestas novas terras<br />

azuis – meu filho, você, com certeza, deixou lá fora<br />

família, sua mãe, seu pai, não?!<br />

– Deixei, respondeu ele.<br />

– E não tem vontade de voltar, não tem saudade<br />

deles?<br />

– Eu! saudades, replicou a inocente criança de<br />

sete para oito anos; eu não vim cá para ter saudades,<br />

vim para ganhar dinheiro!<br />

Aí tens tu, branco e iluminado Lusbel, a boca dessa<br />

esquisita criança, na qual deveria desabrochar a flor<br />

tépida de um afeto cândido, instintivamente gangrenada<br />

já por tamanhas abjeções de palavras duras!<br />

Nesse ingênuo bandidozinho aí tens tu a imagem<br />

simbólica, a mais que exata medida da alma humana<br />

universal que tu desoladamente observas com tão<br />

desesperada melancolia, cuja psicologia secreta tu<br />

penetras tanto nos requintes de toda a tua inquieta<br />

Indignação!


424 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

CONDENADO À MORTE<br />

Soyez victorieux de la terre.<br />

BALZAC, Seraphita.<br />

Desde que ele, o doloroso Estético, penetrou<br />

naquele Noviciado divino, que se sentiu para sempre<br />

condenado à Morte!...<br />

Bem o pressentiu logo, bem o compreendeu, assim<br />

que em torno à sua cabeça melancólica e triunfante um<br />

clangor de guerra ecoou, vitoriando-o, e cem mil<br />

estandartes gloriosos dos falangiários do Ideal se<br />

desfraldaram e abateram ante seus pés, numa solene<br />

homenagem de conquista.<br />

A Vida terrena do Tangível que flamejasse lá fora,<br />

nos turbilhões cruentos dos dias, no dilaceramento das<br />

horas; os homens que se atropelassem e gemessem e<br />

rojassem sob a mole formidanda das paixões; o gozo, a<br />

ebriedade do gozo, o prazer picante e álacre, fútil, leve,<br />

fácil, que cantasse sobre a terra, que agitasse todos os<br />

seus guizos jogralescos, rufasse todos os seus tambores<br />

festivos, fizesse ressoar todos os seus clarins ovantes...<br />

Ele, o Estético doloroso, não! Dentro desse<br />

Noviciado divino estaria perpetuamente condenado à<br />

Morte – visão, fantasma, sombra do Imponderável,<br />

arrebatado não sei por que estranho Mistério, não sei<br />

por que esquisita impressão abstrata, não sei por que<br />

fluido maravilhoso, para a Morte, antes mesmo da<br />

consumação da matéria, por condenar as vãs alegrias<br />

que arrastam tantas almas, as venturas banais que<br />

fascinam e embriagam tão loucamente os homens.<br />

Outros que se alassem às correrias preciosas da<br />

Mocidade, às opulências, ao fausto, ao esplendor das<br />

pompas exteriores, ao estridente rumor das festas,<br />

perdidos pelas estradas intermináveis, longínquas,<br />

ermas, dos Destinos desencontrados.<br />

Ele, o Estético doloroso, não! Naquela intuição<br />

tocante de Iluminado, ficaria no Desconhecido, para a


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 425<br />

consagração do Espírito, olhando, numa indizível tristeza<br />

de mar noturno, as gerações que se aglomeram e<br />

mutuamente devoram nos pórticos desolados do Universo,<br />

pela batalha bárbara do Existir...<br />

Ele estivera já em contactos com o Mundo,<br />

sentindo-o, respirando o mesmo ar, chocando-se com os<br />

sentimentos mais abstrusos e soturnos, com as paixões<br />

mais vorazes, com os corações mais gelados, roídos pelo<br />

cancro alastrante de um tédio doentio, de um nirvanismo<br />

agudo, de um nihil eslavo...<br />

Sentira todas essas psicoses sangrentas, todas<br />

essas manifestações exóticas de uma espécie de absurda<br />

teratologia mental; todas essas complexidades d’alma<br />

de um fundo caótico, esmagador, aniquilante, de onde a<br />

Fé fugiu desolando e enrijecendo tudo, ficando apenas<br />

o granito de umas naturezas hirtas, impassíveis,<br />

estratificadas no egoísmo e na indiferença das cousas,<br />

vendo a perfeição, a beleza serena das abstrações ideais,<br />

das formas onipotentes e singulares, com os vesgos olhos<br />

da lascívia, da impotência ou da inveja reptilosa e<br />

lesmenta.<br />

Ele viu atritarem-se convulsamente os leprosos,<br />

os aleijados, os epilépticos, os morféticos, os tísicos, os<br />

cegos, enroscados todos na sua negra mortalha de<br />

suicidas, cambaleantes, ébrios de dor, de desespero, na<br />

agonia da carne que se dilacera, que se rasga, que se<br />

despedaça – enquanto o soberbo sol, dos Altos, como um<br />

pagão, bizarro, cantava sobre todas essas chagas abertas,<br />

sarcasticamente, diabolicamente, indiferentemente, a<br />

música offenbachiana, do seu clarão comunicativo e<br />

cortante...<br />

Ele viu, como um largo mediterrâneo, todo o<br />

assombro das lágrimas recalcadas, toda a epopéia<br />

sinistra, toda a majestade dolorosa da alma humana,<br />

torcida num espasmo de angústia lancinada,<br />

amargamente lancinada numa aflitiva treva de<br />

dilaceramentos.


426 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Ele observara tudo, descera a esses subterrâneos<br />

fatais, a essas criptas letíficas de nevroses e<br />

spleenéticas doenças, onde parece errarem duendes<br />

infernais e onde como que uma lua lívida, espectral,<br />

d’além túmulo, trêmula e triste, derrama sonolenta e<br />

esverdeada claridade de augúrios medonhos e<br />

indefiníveis...<br />

Vira tudo isso, mas vira igualmente todas as<br />

graças e aromas da terra na fascinação satânica da<br />

mulher, no encanto virginal da sua carne, na tantálica<br />

tentação dos seus braços tentaculosos.<br />

Mas, tendo desde logo entrado na posse secreta<br />

de si mesmo, o doloroso Estético só sentira mais a mulher<br />

nas linhas e aspectos da visão, desprezara a carne,<br />

idealizara, espiritualizara a mulher.<br />

Ele vira os fatigantes prazeres, as bizarras e<br />

galhardas alacridades do Vinho – quando a mocidade<br />

ruidosa, num alvoroço, arrebatada nos fantasiosos<br />

corcéis alados da alegria, por ser futilmente, mas<br />

intensamente amada, abre os braços nervosos à loucura,<br />

com todo aquele sangue exuberante, claro, vigoroso, de<br />

leão dominador, que mais tarde a boca visguenta da cova<br />

há de beber, sugar então fartamente para sempre.<br />

Tudo, absolutamente tudo, ele vira; tudo o que é<br />

ventura breve, mas tangível, mas real, tudo o que se<br />

goza pelo olfato, pelos olhos, pelo paladar e pelo tato;<br />

tudo o que constitui o epicurismo grego e o que constitui<br />

o júbilo mundano, a felicidade clássica, oficial,<br />

convencionada, das sociedades cansadas, decadentes,<br />

esgotadas pela degenerescência do sangue, pela<br />

intensidade da Análise, torporizadas e entorpecidas no<br />

amolecimento e no postiço das fórmulas, sem ter<br />

enfibratura para a Grande Vida, em regiões estreladas,<br />

ao de leve, sutil e delicadamente, noutra chama, noutra<br />

esfera mais fina, mais pura...<br />

Completamente tudo, afinal, ele vira e sentira com<br />

profundidade, enclausurado naquele Noviciado divino,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 427<br />

pelo qual, como de dentro da terrível, solene e hieroglífica<br />

porta do INFERNO, deixara lá fora no Mundo toda a<br />

esperança de gozos efêmeros, de ambições medíocres,<br />

de aclamações decretadas, de acolhimentos e apoteoses<br />

mundanas, de séquitos reverentes e cortesãos<br />

arrastando a pompa impura, enxovalhada, rota, ridícula,<br />

da larga púrpura de ovações cediças e seculares.<br />

Se ainda lhe fosse permitido ouvir o eco<br />

adormecido, distante, vago, das Ilusões, das Alegrias<br />

livres, dos Sonhos de há vinte anos, das Esperanças<br />

imensas, das Saudades intraduzíveis da sua<br />

adolescência, para lá destas eras rudes e austeras do<br />

Pensamento e do Sentimento, outra cousa não<br />

repetiriam, não clamariam todas essas sacrossantas<br />

Imagens, todas essas inefáveis Visões, senão que o<br />

doloroso Estético é agora um perfeito condenado à Morte<br />

– sereno e grande condenado que ufanamente esqueceu<br />

e desprezou, para trás, para os tempos de outrora, tanta<br />

luz de tranqüilidade, de paz ingênua, para vir então<br />

espontaneamente entregar-se aos martirizantes cilícios<br />

das Idéias.<br />

As sensações que poderia experimentar com<br />

simplicidade, como natureza elementar, sem febre, sem<br />

delírio de impressões, sem agudezas de nervosismos;<br />

essas sensações comuns de sentir, físicas, flagrantes<br />

como ferro em brasa chiando em cheio nas carnes, o<br />

doloroso Estético deixou intensamente de experimentar,<br />

para mais intensas sentir as outras sensações que tocam<br />

por toda a escala dos nervos, por todo o enraizamento<br />

das fibras, por toda a delicadeza etérea, aeriforme, da<br />

ductilidade e da vibração.<br />

Impassível diante de tudo que não seja a expressão<br />

de uma Estética, a afirmação de uma estesia rara, a<br />

latente, profunda originalidade sensacional e vivendo<br />

por entre o ruído, a confusão, a vertigem da multidão<br />

que ri, que goza com distinções boçais, com a sua<br />

celulazinha empírica – Ele não vive a vida externa dos


428 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

homens, não participa, de fato, do meio ambiente — antes<br />

o seu estado vital é a morte, por uma condenação<br />

perpétua e lógica de todos os vários elementos da Matéria<br />

contra ele conclamados...<br />

Isolado do Mundo, no exílio da Concentração,<br />

solitário, na tristeza majestosa de um belo deus<br />

esquecido, as outras forças múltiplas que agem na Terra,<br />

na luta desenfreada de cada dia, que equilibram as<br />

sociedades, que regem a massa vã dos princípios, que<br />

dão ritmo à onda eterna do movimento e entram na vasta<br />

elaboração da cultura das raças, sentiram-se<br />

hostilizados diante da sua intuitiva percuciência de<br />

vidente, da sua ironia gelada de asceta, do seu desdém<br />

soberano de apóstolo, da sua Fé indestrutível, serena<br />

de missionário, de extraordinário levita sombrio de um<br />

culto estranho, que leva aos lábios, em extremo, o Cálix<br />

místico da comunhão suprema da Espiritualidade e da<br />

Forma.<br />

E então, o doloroso Estético, soberbo e sublime na<br />

sua solidão e no seu silêncio, vagueou – afastado do foco<br />

real, positivo da Vida – sem existir de fato, como um<br />

simples condenado à Morte, errante fantasma na sombra<br />

de sepulcros, misteriosamente vibrado por grande Sonho<br />

doloroso ritmado nas longas, monótonas e amargurantes<br />

melancolias do Mar, para sempre gemendo e sonhando,<br />

noturnamente, velhas lendas bárbaras.<br />

É que o Estético viera da caudal misteriosa dos<br />

que acharam clarividentemente o inédito das suas<br />

almas, que se sentiram seres, que se salvaram do Caos<br />

universal com a evidência simples e clara de uma<br />

natureza afirmativa.<br />

Mas, afinal, assim mesmo condenado à Morte, sob<br />

os filtros negros da Morte, ele, purificado do Espírito,<br />

perfectibilizado da Alma, remido e libertado da Matéria,<br />

ficou simbolizando, no entanto, o único ser<br />

verdadeiramente livre e legitimamente ser, o mais belo,<br />

o maior, o mais alto ser, ainda que desolado e sombrio,<br />

vitorioso da Terra!


ANHO BRANCO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 429<br />

Lembrava frescura de úmidas rosas<br />

desabrochadas, eflorescência de magnólias e a candidez<br />

de alma de pastores aquela carnação opulentamente<br />

branca.<br />

Existência singela, segetal, um tanto primitiva,<br />

de serranias alpestres, o espírito a imaginava surgindo<br />

dentre vergéis de lírios e açucenas, numa clara<br />

fulguração de brancuras, como se as constelações a<br />

houvessem fecundado.<br />

Uma luz desconhecida parecia rodeá-la de<br />

auréolas arcangélicas, celestiais...<br />

No entanto, a sua carne viva, virgem,<br />

radiantemente alva, da translucidez requintada da lua,<br />

determinava bem a sua terrestre descendência.<br />

Pelos campos, pelos prados, ela surgia com o sol,<br />

ela noctivagava com as estrelas, branca e de fino ouro<br />

flavo nos cabelos.<br />

Surgia com o sol, na lactescência imaculada do<br />

seu corpo de flexibilidades e delicadezas de linho;<br />

noctivagava com as estrelas, na chama doirada dos seus<br />

cariciosos, suaves cabelos.<br />

Na alvorada púbere desse sangue majestoso de<br />

Virgem, inefável Infinidade de sereias de volúpia cantava.<br />

Relâmpagos vagos de desejos quiméricos cruzavam,<br />

abriam claridades iriadas nesse sangue triunfal<br />

impoluto, tão puro e verde nas exuberâncias como as<br />

verdes e tropicais vegetações dos campos claros que a<br />

geraram.<br />

A alma adormecia no azul doce, langue,<br />

balouçante, dos seus olhos radiantes, festivos, inundados<br />

de uma frescura silvestre de náiade onde, por vezes, a<br />

dolente melancolia de amargas águas de mar em repouso<br />

vagava.<br />

Carne casta e branca, tenra e veludosa, epiderme<br />

de leve luz rosada, cujas transparências sutis


430 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

extasiavam, tinha, no entanto, uma fascinação animal,<br />

um quebranto delicioso de pecado, uma provocante<br />

flexura nervosa nos quadris afelinados, qualquer cousa<br />

de inebriante segredo selvagem no extravagante conjunto<br />

da linhas dúcteis da alva e flavescente figura.<br />

Certos caprichos que a dominavam, certos arrojos<br />

e aventuras, traziam-lhe mesmo afinidades selvagens:<br />

– em saltar aos vales, logo pela manhã, aos primeiros e<br />

luxuosos coloridos; em coroar-se de rosas agrestes, pelos<br />

prados, gárrula, trêfega, no aspecto bizarro, no<br />

movimento fugidio e arisco de pássaro airoso; na ousada<br />

graça montanhesa de subir a árvores frondejantes e<br />

dormir depois à sombra delas, livre, descuidadosa, na<br />

expansão vegetal dos campos, identificando-se larga e<br />

singularmente com todos os aromas e mistérios da<br />

Natureza.<br />

E era surpreendente vê-la assim, transfiguradamente<br />

formosa, errando pelos vergéis, pelas campinas e<br />

vales, voando quase, na febre da luz e da paisagem verde<br />

que a impressionava, que a eletrizava, como se ocultas<br />

asas a levassem, a levassem, para sempre confundida e<br />

mergulhada nas eflorescências abundantes das louras,<br />

sazonadas searas.<br />

E, por entre os giestais engrinaldados de flores<br />

amarelas, por entre a rubente coloração das papoulas, a<br />

espessura densa das folhagens glaucas, a gradação<br />

pinturesca da verdura e pela margem das lagoas e lagos<br />

prateados e sonolentos, à beira dos brejos e alagados,<br />

das fontes, cachoeiras e rios e ainda sob a tenda<br />

abrigadora dos tamarineiros e jambeiros perfumados, e<br />

ainda por entre as galhardas alacridades dos cravos,<br />

por entre os amargosos e acres rosmaninhos, era o<br />

encanto picante, o supremo êxtase ver como essa Ninfa<br />

branca das selvas corria, corria, toda resplandecida de<br />

sol, arrebatada através das seivas impetuosas, dos<br />

travorosos odores, dos bálsamos, das resinas, das<br />

cheirosas e vertiginosas emanações de todas as ervagens


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 431<br />

e plantas exuberadas, na fascinante volubilidade alígera<br />

de movimentos imprevistos de gamo, acusando ainda<br />

mais, fazendo ainda mais viver e cintilar, em luminosos<br />

relevos, no desalinho soberbo da corrida, a glória da<br />

carne branca, a pubescência maravilhosa das formas.<br />

E essas seduções prófugas, essa timidez e<br />

melindre gracioso, junto às audácias e vivacidades<br />

másculas, às surpresas e revelações do seu borboletismo<br />

irrequieto, faziam meditar, em silêncio e melancolia,<br />

nos sigilos assinaladores, nos recônditos, secretos<br />

pudores, na recatada e ingênita malícia de alguma<br />

curiosa filha de lendário e poderoso gigante, viçada<br />

branca, sob o inflamado e fecundativo pólen do sol, na<br />

luxúria animal e verde das florestas.<br />

E ela corria, corria, galgava as ribanceiras,<br />

transpunha pomares em fruto, sebes de madressilvas e<br />

acácias, e perdia-se, perdia-se fantasiosamente pelos<br />

infinitos estrelados de flores e de brilhos de todas aquelas<br />

amplas, sonoras, e prodigiosas regiões de virgindades<br />

campestres.<br />

Errava um primitivo e saudoso sentimento de<br />

Criação paradisíaca sempre que ela irrompia através da<br />

vaga esmeralda das vinhas, do purpurejamento palpitante<br />

das rosas, entre as aves que abriam e batiam asas<br />

cantando em torno à sua esvelta e fascinadora cabeça<br />

d’ouro virgem.<br />

Na solenidade épica dos vales, dos bosques, das<br />

colinas e campos, onde bois resignados e majestosos<br />

tocante e melancolicamente mugiam com os grandes<br />

olhos de um sentimento bíblico, espiritualizados por um<br />

suavíssimo luar de lágrimas de evangélica bondade, esse<br />

corpo branco de brancura olímpica de deusa – ode das<br />

odes vivas, Cântico dos Cânticos, Via-Láctea<br />

transfundida em carne – parecia ter a influência<br />

misteriosa de um silfo alado, parecia derramar, por<br />

aqueles horizontes augustos, o luar de imensos e


432 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

voluptuosos pesadelos dos fenômenos infinitos da<br />

Germinação...<br />

Era a estranha Visão florestal que, quando<br />

aparecia, como que tornava brancos todos os aspectos,<br />

fazendo a retina sentir, por efeito dos deslumbramentos<br />

e ampliações visuais, vastas miragens brancas, vertigens<br />

de cores brancas, perspectivas brancas, nuances<br />

brancas, tudo nevadamente aceso em fulguramentos e<br />

cambiantes brancos.<br />

Nem o sol, com a sua clarinante chama fiava,<br />

conseguira jamais empalidecer, dar tons de razão a essa<br />

brancura intacta, da inviolabilidade de tabernáculos, que<br />

parecia sempre repurificada nas origens das extremas<br />

lactescências, das neves inacessíveis, dos indeléveis<br />

florescimentos.<br />

E essa incomparável brancura magnetizava os<br />

sentidos como eflúvios de óleos exóticos e místicos<br />

vaporosamente queimados...<br />

Mas, as curvas esquisitas do seu perfil ágil, lépido,<br />

tentadoramente assinalado por fugitivos meneios<br />

animais e curiosos; o coleante movimento dos braços de<br />

lânguidas nervosidades de áspide; a dilatação sedenta<br />

das narinas acendidas numa aspiração de sorver os<br />

cheiros vitais das terras fundamente revolvidas e das<br />

ervas sumarentas e quentes; a gula farta da boca úmida<br />

num viço rubro, exalando lilás e trevo; as mornas e magas<br />

magnólias embriagantes dos seios; as finas e elíseas<br />

claridades azuis dos olhos, e, enfim, a candidez e<br />

brancura suave das pompas da carne virgem,<br />

despertariam nos temperamentos violentos, selvagens,<br />

anseios intensos, acordariam o gozo idiossincrático, não<br />

de desvirginá-la, de violá-la, na brutalidade feroz dos<br />

instintos, mas de a morder, de fazer sangrar à faca,<br />

com volúpia, com febricitante paixão, carne tão odorante,<br />

tão balsâmica, tão lirial e nevada, engolfando<br />

saciadoramente nela o aço fólgido e rijo, rasgando-a com<br />

a lâmina acerada e aguda em talhos veementes, vivos,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 433<br />

gritantes de sangue fresco e fumegante, escorrendo,<br />

gotejando rubinosos vinhos de aurora, toda ela<br />

flagrantemente aberta numa esdrúxula floração boreal.<br />

E, então, toda, toda essa sexual magnificência,<br />

toda essa casta beleza, fazia extravagantemente<br />

despertar a lembrança, dava a impressão sugestiva, ao<br />

mesmo tempo profana e sagrada, da unção angélica, da<br />

encarnação humanada e miraculosa do alvo, tenro e<br />

meigo cordeiro imaculado, do lhano, doce e delicioso<br />

Anho branco original dos Ermos, para a efusiva Páscoa<br />

nova das transcendentes luxúrias...


434 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

O SONO<br />

Ceux qui rêvent éveillés ont connaissance de mille<br />

choses qui échappent à ceux qui ne rêvent<br />

qu’endormis. Dans leurs brumeuses visions, ils<br />

attrapent des échapées de l’éternité et frissonent,<br />

en se réveillant, de voir qu’ils ont été un<br />

instant sur le bord du grand secret.<br />

EDGARD POE, Eleonora.<br />

A tua voz! a tua voz! Clamo em vão pela tua voz,<br />

procuro-a como por uma ave maravilhosa e a tua voz<br />

está estranhamente adormecida no sono...<br />

Está adormecida no sono, muda, calada de gorjear,<br />

de cantar na tua garganta e na tua boca, aquela voz que<br />

eu sonhara filtrada dos raios do sol, tecida dos raios do<br />

sol, de uma prodigiosa essência etérea na qual radiasse<br />

o sol, todo o esplendor do sol.<br />

Tu estás nostalgicamente dormindo, e esse sono<br />

em tão profundo e misterioso Além te imergiu, que<br />

pareces de mármore. E é, assim, em vão que clamo,<br />

trêmulo e desvairado, pelo brilho quente dos teus olhos,<br />

pela vida da tua voz, que me sacia de vida, que me afoga,<br />

que me embriaga de vida.<br />

Acorda! acorda! acorda! acorda os olhos e a voz, e<br />

mergulha-me na vida que se derrama deles: quero sentir<br />

os teus olhos olharem, a tua boca palpitar de voz, como<br />

um rio transbordante, perenal, que chamejasse,<br />

ondulando em gorgolões e vertigens.<br />

Esse sono frio, hirto, que me aflige, que me<br />

dilacera, lembra uma esperança que dorme<br />

perpetuamente, um desejo, uma alegria que não acorda<br />

mais e dorme, dorme para sempre nos gelos infinitos.<br />

Os meus ciúmes, bravos leões acordados, instigamse,<br />

açulam com a tua mudez, feridos de penetrante<br />

susceptibilidade por não sentirem os frêmitos, o alvoroço<br />

nervoso da tua voz.<br />

Eu quero toda a fremência, toda a palpitação da<br />

tua voz, acordada em músicas, em sinfonias de beijos,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 435<br />

atordoando a dor da minh’alma, como harmonioso e<br />

estonteante carinho, como extasiante licor renano,<br />

vivendo na intensidade, nos turbilhões do movimento,<br />

do ar...<br />

Quero a sensibilidade, a flexibilidade voluptuosa<br />

da tua voz alvorecida do sono como de uma noite polar,<br />

ressurgida, lavada do caos, clara, imaculada de som.<br />

Quero a tua voz, ágil, dúctil, aflante como asas e<br />

como asas abrindo e fechando em tépidos e alvoroçados<br />

véus...<br />

Acorda! fala! fala! No teu sono pairam neblinas<br />

glaciais, as primeiras névoas do esquecimento... As<br />

auréolas místicas, os nimbos cintilantes do Sonho, as<br />

miragens e os íris, circulam a tua bela e imaginativa<br />

cabeça; e hordas invisíveis de resplandecentes arcanjos,<br />

vibrando cítaras, alaúdes, harpas e violinos, numa<br />

inefável surdina, guardam, velam de ritmos vaporosos o<br />

teu sono seráfico...<br />

Eu não sei que sentimentos estão agora em curiosa<br />

gênese dentro de mim, que na minha alucinação e<br />

superexcitação nervosa apalpo ansioso o vácuo, que o<br />

sono em que mergulhas encheu de segredos cabalísticos,<br />

e procuro, procuro em vão as formas, as formas, as<br />

fugitivas formas intangíveis, extremas, ondeantes, sutis,<br />

as formas de perfume, as formas de luz e as formas de<br />

som da tua voz, que o emoliente sono levou não sei para<br />

que necrópoles vazias, não sei para que geladas estepes<br />

de egoísticas e mortais indiferenças.<br />

Ver-te assim, dormindo, esmaiada, branca e<br />

lânguida, nesse abandono de delíquio, num aspecto e<br />

espasmo sonhador de lua morta, faz-me experimentar a<br />

mais dolorosa ansiedade, como que a sensação<br />

flagelante de esquecer-te, uma angústia, uma agonia<br />

de sensibilidade tal, que os meus nervos quase se<br />

despedaçam, tão grande, tão profunda é a tensibilidade<br />

deles quando te apercebem dormindo, e que os teus<br />

olhos, fechados por longas e pesadas trevas, não deixam<br />

ver os recônditos deslumbramentos; e que a tua boca,<br />

muda, calada, encerrando em cárcere misterioso a tua


436 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

voz virginal, não deixa sentir a alada harmonia das<br />

formas e dos aromas!<br />

Oh! acorda! fala! fala!<br />

Vivamente acordada, que sejas, em flama ardente<br />

de vida, nesse hosana triunfante da imortal beleza, eu<br />

agito-me, estremeço, vibro e desvairo, para beber<br />

insaciavelmente todos os encantos delicados e ignotos<br />

da tua voz, todas as ciciantes carícias e luxúrias.<br />

E só com a martirizante lembrança de que talvez<br />

esse sono seja eterno e eu não ouça, não sinta jamais,<br />

nunca mais! as vibrações e as chamas da tua voz,<br />

percorrem-me o corpo todo estranhos calafrios, letais<br />

pesadelos alucinadores me sufocam...<br />

E eu clamo, clamo, num tremor convulso, pela<br />

tua voz: procuro-a transfigurado, pergunto inquietamente<br />

ao Vago em que mistério a escondeu, em que abismo<br />

infernal de trevoso horror rolou, voou e extinguiu-se,<br />

apagou-se, desapareceu, como a alma original dos ventos<br />

e da luz, a tua colorida e chamejante voz!<br />

Invade-me a ânsia de te sentir a voz fluir, borbotar<br />

dos lábios, acesa na paixão de existir, de viver, de<br />

sensacionalmente viver.<br />

A ânsia, o desejo sedento de ver a tua boca<br />

febrilmente, frementemente palpitar com o meu nome,<br />

dizê-lo, repeti-lo, repeti-lo sempre, sempre, ungi-lo e<br />

acariciá-lo na voz, perpetuá-lo com amor, com compaixão,<br />

com misericórdia, com volúpia, com febre, com essa<br />

emoção e agitação de sentimento que impele, arrebata<br />

a alma aos êxtases da Eternidade!<br />

Dormindo, no nebuloso e mago sono, onde a<br />

mórbida flor das melancolias e desdéns amargos murcha<br />

e outonalmente desfolha, e onde esvoaçam em<br />

torvelinhos magnéticos as borboletas translúcidas e<br />

multicoloridas da Quimera, o carinho e a piedade maior,<br />

mais intensa, mais viva, dos teus olhos e da tua voz,<br />

deixam-me desamparado, só, num deserto de silêncio e<br />

de frio, tiritando de pavor e desespero, envelhecendo<br />

cego, tateando de abandono, de desolamento...


TRISTE<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 437<br />

Je devorais mes pensées comme d’íautres<br />

dévorent leurs humiliations.<br />

BALZAC, Histoire Intellectuelle de Louis<br />

Lambert.<br />

Absorto, perplexo na noite, diante da rarefeita e<br />

meiga claridade das estrelas eucarísticas, como diante<br />

de altares sidéreos para comunhões supremas, o grande<br />

Triste mergulhou taciturno nas suas profundas e<br />

constantes cogitações.<br />

Sentado sobre uma pedra do caminho, imoto<br />

rochedo da solidão – ele, monge ou ermitão, anjo ou<br />

demônio, santo ou cético, nababo ou miserável, ia<br />

percorrendo a escala das suas sensações, acordando da<br />

memória as fabulosas campanhas do dia, as incertezas,<br />

as vacilações, as desesperanças; inventariando com rara<br />

meticulosidade e um rigor de detalhes verdadeiramente<br />

miraculoso todos os fatos curiosos, coincidências e<br />

controvérsias engenhosas que se haviam dado durante<br />

o dia, como um gênero insólito e singular de tortura<br />

nova.<br />

As estrelas resplandeciam com a sua doce e úmida<br />

claridade terna, lembrando espíritos fugitivos perdidos<br />

nos espaços para, compassivamente, entre soluços,<br />

conversar com as almas...<br />

E o grande Triste, então, prosseguia no seu<br />

monólogo esquisito, mentalmente pensado e sentido e<br />

que de tão violento que era nos fundos conceitos,<br />

naturalmente até os mais revolucionários e<br />

independentes do espírito achariam, por certo, ser um<br />

monólogo injusto, pessimista, cruel:<br />

– E assim vai tudo no grande, no numeroso, no<br />

universal partido da Mediocridade, da soberana Chatez<br />

absoluta!


438 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

O caso está em ser ou parecer surdo e cego, em<br />

tudo e por tudo, conforme as conveniências o exigem.<br />

Pôr a mão, de dedos abertos, sobre o rosto e<br />

parecer, fingir não ver e passar adiante, porque as<br />

conveniências o exigem.<br />

Essa é que é afinal a teoria cômoda dos tempos e<br />

que os tempos seguem à risca, a todo transe, ferozmente,<br />

selvagemente, com o queixo inabalável, duro, inacessível<br />

ao célebre e pitoresco freio da Civilização, protegendose<br />

contra o perigoso assalto da Lucidez.<br />

– Apaguem o sol, apaguem o sol, pelo amor de<br />

Deus; fechem esse incomodativo gasômetro celeste,<br />

extingam a luz dessa supérflua lamparina de ouro, que<br />

nos ofusca e irrita; matem esse moscardo monótono e<br />

monstruoso que nos morde, é o que clamam os tempos.<br />

Deixem-nos gozar a bela expressão – locomotiva do<br />

progresso – tão suficiente e verdadeira e que cabe tanto<br />

na agradável e estreita órbita em que giramos e não nos<br />

aflijam e escandalizem com os tais pensamentos, com<br />

as tais espiritualidades, com a tal arte legítima e outros<br />

paradoxos de loucura. Deixem-nos pantagruelicamente<br />

patinhar, suinar aqui no nosso lodoso e vasto buraco<br />

chamado mundo, anediando pacatamente os ventres<br />

velhos e sagrados, eis o que dizem os tempos. Que<br />

excelente, que admirável regalo se a humanidade se<br />

tornasse toda ela numa máquina de boas válvulas de<br />

pressão, um simples aparelho útil e econômico, do mais<br />

irrefutável interesse – sem saudade, sem paixão, sem<br />

amor, sem sacrifício, sem abnegação, sem Sentimento,<br />

enfim! Que admirável regalo!<br />

Inútil, pois, continua a sonhar o Triste, todo o<br />

estrelado valor e bizarro esforço novo das minhas asas,<br />

todo o egrégio sonho, orgulho e dor, sombrias majestades<br />

que me coroam – monge ou ermitão, anjo ou demônio,<br />

santo ou cético, nababo ou miserável, que eu sou – inútil<br />

tudo...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 439<br />

Por mais desprezível que fosse esta procedência,<br />

ainda que eu viesse da salsugem do mar das raças, não<br />

seria tanta nem tamanha a minha atroz fatalidade do<br />

que tendo nascido dotado com os peregrinos dons<br />

intelectuais.<br />

Assim, dada a situação confusa, esquerda,<br />

tumultuária, do centro onde vou agindo, estas nobres<br />

mãos, feitas para a colheita dos astros, têm de andar a<br />

remexer estrume, imundície, detritos humanos.<br />

Adaptações, pastiches, intelectualismos, espécie<br />

de verdadeiros enxertos da Inteligência, esses florescem<br />

fáceis logo, porque bem difícil e raro é determinar a<br />

pureza infinitamente delicada, sentir onde reside o fio<br />

profundo, a linha sutil divisória que separa, como por<br />

maravilhoso traço de fogo, os Dotados, dos Feitos ou<br />

Transplantados.<br />

E, pois, com a alma tocada de uma transcendente<br />

sensibilidade e o corpo preso ao grosso e pesado cárcere<br />

da matéria, irei tragando todas as ofensas, todas as<br />

humilhações, todos os aviltamentos, todas as decepções,<br />

todas as deprimências, todos os ludíbrios, todas as<br />

injúrias, tudo, tudo tragando como brasas e ainda<br />

cumprimentos para cá, cumprimentos para lá, para não<br />

suscetibilizar as vaidades e presunções ambientes.<br />

Como flechas envenenadas tenho de suportar sem<br />

remédio as piedades aviltantes, as compaixões<br />

amesquinhadoras, todas as ironiazinhas anônimas, todos<br />

os azedumes perversos e tediosos da Impotência ferida.<br />

Tenho que tragar tudo e ainda curvar a fronte e<br />

ainda mostrar-me bem inócuo, bem oco, bem<br />

energúmeno, bem mentecapto, bem olhos arregalados e<br />

bem boca escancaradamente aberta ante a convencional<br />

banalidade. Sim! suportar tudo e cair admirativamente<br />

de joelhos, batendo o peito, babando e beijando o chão e<br />

arrependendo-me do irremediável pecado ou do crime<br />

sinistro de ver, sonhar, pensar e sentir um pouco...<br />

Suportar tudo e obscurecer-me, ocultar-me, para não


440 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

sofrer as visagens humanas. Encolher-me, enroscar-me<br />

todo como o caracol, emudecer, apagar-me, numa<br />

modéstia quase ignóbil e obscena, quase servil e quase<br />

cobarde, para que não sintam as ansiedades e rebeliões<br />

que trago, os Idealismos que carrego, as Constelações a<br />

que aspiro... Recolher-me bem para a sombra da minha<br />

existência, como se já estivesse na cova, a minha boca<br />

contra a boca fria da terra, no grande beijo espasmódico<br />

e eterno, entregue às devoradoras nevroses macabras,<br />

inquisitoriais, do verme, para que assim nem ao menos<br />

a respiração do meu corpo possa magoar de leve a<br />

pretensão humana.<br />

E, sobretudo, nem afirmar nem negar: – ficar num<br />

meio termo cômodo, aprazivelmente neutral.<br />

Que até nem mesmo eu possa, na melancolia<br />

crepuscular dos tempos, dar com unção emotiva e com<br />

cordialidade o braço a certos profundos e obscuros<br />

Segredos íntimos e, levemente irônico e pungido de<br />

dolência, errar e conversar com eles através das<br />

avenidas sombrias de minh’alma.<br />

Nada de pairar acima de tudo isto que nos cerca,<br />

dos turbilhões ignaros do rumor humano, deste estrondo<br />

atroador de rugidos, desta ondulante matéria, desta<br />

convulsão de lama, acima mesmo destas Esferas que<br />

cantam a luz pela boca dos astros.<br />

E que o mundo veja e sinta que eu o conheço e<br />

compreendo, e que apesar da obscuridade com que me<br />

atrito comumente com ele, apesar dos contactos<br />

execrandos na rodante contingência da Vida, tenho-o<br />

como que fechado nesta pequena e frágil mão mortal.<br />

Dizendo tudo ao mundo, originalmente tudo, com<br />

o verbo inflamado em vertigens e chamas da mais alta<br />

eloqüência, que só um complexo e singular sentimento<br />

produz, o mundo, espantado da minha ingenuidade,<br />

fugirá instintivamente de mim, mais do que de um<br />

leproso.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 441<br />

E até mesmo lá numa certa e feia hora em que se<br />

abre na alma de certos homens uma torporizada flor<br />

tóxica de perversidade, lá muito no íntimo, lá bem no<br />

recesso das suas consciências, nuns vagos instantes<br />

vesgos e oblíquos, quantos dos mais generosos amigos<br />

não acharão, embora falando baixo, muito baixo, como<br />

que num piscar de olhos ao próprio eu, mais ridículo<br />

que doloroso o meu interminável Sofrimento!<br />

Mas, por mais que me humilhe, abaixe resignado<br />

a desolada cabeça, me faça bastante eunuco, não<br />

murmure uma sílaba, não adiante um gesto, ande em<br />

pontas de pés como em câmaras de morte, sufoque a<br />

respiração, não ouse levantar com audácia os olhos para<br />

os graves e grandes senhores do saber; por mais que eu<br />

lhes repita que não me orgulho do que sei, mas sim do<br />

que sinto, porque quanto ao saber eles podem ficar com<br />

tudo; por mais que lhes diga que eu não sou deste mundo,<br />

que eu sou do Sonho; por mais que eu faça tudo isto,<br />

nunca eles se convencerão que me devem deixar livre,<br />

à lei da Natureza, contemplando, mudo e isolado, a<br />

eloqüente Natureza.<br />

E, então, assim, infinitamente triste, réprobo,<br />

maldito, secular Ahasverus do Sentimento, de martírio<br />

em martírio, de perseguição em perseguição, de sombra<br />

em sombra, de silêncio em silêncio, de desilusão em<br />

desilusão, irei como que lentamente subindo por sete<br />

mil gigantescas escadas em confusas espirais babélicas<br />

e labirínticas, como que feitas de sonhos. E essas sete<br />

mil escadas babilônicas irão dar a sete mil portas<br />

formidáveis, essas sete mil portas e essas sete mil<br />

escadas correspondendo, como por provação das minhas<br />

culpas, aos sete pecados mortais.<br />

E eu baterei, por tardos luares mortos, baterei,<br />

baterei sem cessar, cheio de uma convulsa, aflitiva<br />

ansiedade, a essas sete mil portas – portas de mármore,<br />

portas de bronze, portas de pedra, portas de chumbo,<br />

portas de aço, portas de ferro, portas de chama e portas


442 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

de agonia – e as sete mil portas sete mil vezes<br />

tremendamente fechadas a sete mil profundas chaves,<br />

seguras, nunca se abrirão, e as sete mil misteriosas<br />

portas mudas não cederão nunca, nunca, nunca!...<br />

Num movimento nervoso, entre desolado e altivo,<br />

da excelsa cabeça, como esse augusto agitar de jubas<br />

ou esse nebuloso estremecimento convulso de<br />

sonâmbulos que acordam, o grande Triste levantara-se,<br />

já, de certo, por instantes emudecida a pungente voz<br />

interior que lhe clamava no espírito.<br />

De pé agora, em toda a altura do seu vulto<br />

agigantado, arrancado talvez a flancos poderosos de Titãs<br />

e fundido originalmente nas forjas do sol, o grande Triste<br />

parecia maior ainda, sob os constelados diademas<br />

noturnos.<br />

As estrelas, na sua doce e delicada castidade,<br />

tinham agora um sentimento de adormecimento vago,<br />

quase um velado e comovente carinho, lembrando<br />

espíritos fugitivos perdidos nos espaços para,<br />

compassivamente, entre soluços, conversar com as<br />

almas...<br />

E, na angelitude das estrelas contemplativas, na<br />

paz suave, alta e protetora da noite, o grande Triste<br />

desapareceu – lá se foi aquele errante e perpétuo<br />

Sofrimento, lá se foi aquela presa dolorosa dos ritmos<br />

sombrios do Infinito, tristemente, tristemente,<br />

tristemente...


ADEUS!<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 443<br />

Zulma, adeus! adeus, Zulma! O derradeiro abraço,<br />

o derradeiro beijo, e adeus!<br />

Os primeiros esmorecimentos do dia descem e<br />

um crepúsculo de cismas, de brumas misteriosas, turva<br />

as claridades bizarras e palpitantes de há pouco.<br />

É o crepúsculo da noite – velha saudade dos<br />

tempos, recordação fugidia das eras primitivas, spleen<br />

das almas – acendendo no alto das colinas remotas e<br />

enternecedoras do Passado todos os faróis apagados das<br />

reminiscências, fazendo cintilar claros todos os<br />

pressagos santelmos das Navegações velejantes, outrora,<br />

pelos países da Ilusão!<br />

Adeus, Zulma! O derradeiro abraço, o derradeiro<br />

beijo, e adeus!<br />

As inclementes amarguras do Mundo vieram já<br />

gralhar agoirentamente dentro da necrópole sombria<br />

deste coração... E tu foste a maior dessas amarguras,<br />

que em forma de ave sinistra gralhaste os teus dolorosos<br />

agoiros.<br />

Através dos dilaceramentos da Vida, das<br />

tortuosidades do Desejo, das inquietações do Espírito,<br />

uma tarde – bela e majestosa tarde foi essa! – cheia de<br />

silêncios e sombras, vi pela primeira vez o teu perfil<br />

fascinativo, que o ritmo nobre de uma estranha música<br />

de perfeições e graça sonorizava serenamente.<br />

Pareceu-me que desconhecida Divindade inspirava<br />

e iluminava a tua beleza, envolvendo num sacrário de<br />

estrelas a tua castidade branca.<br />

Uma auréola de exclamações cercava-te,<br />

vibrantemente, em assombros admirativos, em hinos e<br />

aleluias aclamatórias.<br />

Coleantes, sutis, de rastros, iam as minhas<br />

impaciências, os meus frêmitos, o meu anseio profundo,<br />

formando ígneo terreno vulcânico, um chão de chamas,


444 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

por onde tu passavas indiferentemente, alta no esplendor<br />

translúcido da beleza.<br />

Era, para mim, surpreendente revelação, o tipo<br />

extravagante, irreal, da tua não sonhada formosura –<br />

tipo de pureza e pompa brava, evocando, trazendo consigo<br />

os segredos grandes dos Vedas.<br />

Qualquer coisa de prodigioso fazia flamejar os teus<br />

olhos negros, negros, negros até a fadiga, até o pesadelo,<br />

até a saciedade, negros, intensamente negros até o<br />

tenebroso requinte da cor negra, até os profundos tons<br />

exagerados, até a uma nova e inédita interpretação visual<br />

da cor negra.<br />

E os meus sentidos sentiam, por atração<br />

irresistível, os atritos, os contactos da tua pele<br />

embalsamada de ambrosia, quentemente impressionante;<br />

corria pelos meus nervos uma volúpia doce e<br />

morna, que no entanto me fazia estremecer e tiritar de<br />

inexplicável gozo, como por calafrio de imenso medo...<br />

Mas, ah! que tentadora beleza, abençoada ou<br />

maldita, eras, então, tu, Zulma, que assim me deixavas<br />

extático, dominado, vencido, sem quase ação no<br />

pensamento e só ação e chama e febre e transfiguração<br />

no gozo? Onde era o teu Céu, onde era o teu Mar, onde<br />

era a tua Terra ou o teu Inferno – deusa dos Astros,<br />

deusa das Ondas, deusa dos Bosques, deusa infernal?!<br />

Onde era?! Não sei! Só o que sei é que a fascinação<br />

produzida pela tua boca acesa em lavas de desejo, pelo<br />

negror de caos bíblico dos teus olhos, pela cisterna farta<br />

de leite dos seios verdemente virgens e pulcros, pela<br />

cristalização de todas as tuas formas, fez florescer em<br />

mim a Vinha exuberante e ardente da Paixão, cujos<br />

frutos, afinal, me embriagaram de tal modo, tão<br />

violentamente me arrebataram, de tais travores tóxicos<br />

me angustiaram e acidularam a alma, de tão finos<br />

dolorimentos e agoniados transes a laceraram, que eu<br />

parto hoje para sempre de ti desiludido, deixo, abandono,<br />

para nunca mais! a amplidão larga, tépida e magnética


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 445<br />

dos teus braços, a cuja sombra mancenilhosa adormeci<br />

descuidoso, sonhei e acordei agora fundamente<br />

envenenado por letais narcotismos...<br />

Fugi de ti, desiludido, fatigado de percorrer as<br />

estepes da tua alma, cansado de girar absorto em torno<br />

dos enigmáticos caracteres egipcíacos dos teus caprichos<br />

indomáveis, do sepulcro tremendo onde jaz a múmia<br />

fria do teu Afeto.<br />

Não posso mais entregar-me ao cilício martirizante<br />

de tua insana volubilidade, aos calvários tantálicos da<br />

tua sede egoística e vingativa de gélidos e apunhalantes<br />

desdéns, aos teus sorrisos negros, aos teus beijos negros,<br />

ao teu coração sombriamente morto como um relógio<br />

parado numa casa deserta, aos teus encantos sinistros,<br />

a todos os teus feminis e sedutores encantos sinistros...<br />

Parto, sigo, vou-me para sempre embora!<br />

A tua voracidade de Águia famulenta fez-me<br />

delirar de incertezas, de dúvidas e blasfemar dessa<br />

beleza augusta, do bronze majestoso onde por certo algum<br />

demônio inquisitorial e régio modelou satanicamente a<br />

encarnação soberana dessas formas.<br />

Adeus, Zulma! Levo no coração a vertigem<br />

sanguinolenta daqueles desesperos alucinantes do<br />

ciúme; e no lábio ansioso, anelante, a palpitação inquieta<br />

deste adeus supremo, torturado, aflitivo; deste adeus<br />

soluçado num crepúsculo amargo; deste adeus de vôos<br />

solitários, cujas asas, como as de um pássaro torvo de<br />

erradias e taciturnas tristezas, voam longe, para além<br />

das lembranças, para além das saudades, para além<br />

das recordações e reminiscências antigas...<br />

Adeus! Adeus! Adeus!<br />

Fujo arrebatadamente de ti, levando para desertos<br />

áridos, sáfaros, longínquos, às regiões do Esquecimento,<br />

lá, muito para lá da monstruosa Terra, o único talismã<br />

precioso que me deste – a Dor!<br />

E, como para perpetuar a comoção crepuscular<br />

deste adeus, destas transfiguradas lágrimas de adeus,


446 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

todo o infinito nirvânico deste adeus, nesta hora poente<br />

em que os Céus começam a revestir-se dos soturnos e<br />

solenes ensombramentos da Noite, eu irei erigindo,<br />

levantando com essa Dor, com os seus despedaçamentos,<br />

dilaceramentos e gritos, as torres de Mistério e<br />

Melancolia dos negros castelos maravilhosos da Paixão,<br />

em cujos soberbos, longos e silenciosos paços constelados<br />

as nossas duas almas erraram letárgicas, sonâmbulas,<br />

acorrentadas pelos Estigmas imponderáveis dos<br />

Sentimentos humanos e em cujos terraços altos e<br />

desolados tanta vez me debrucei aterrado e vencido, nas<br />

fundas horas da fadiga, da saciedade e das alucinações<br />

do Tédio, sentindo em torno rugir, bramar temporais,<br />

trovões, fora, surda e confusamente na Natureza, os<br />

desgrenhados invernos lívidos...


TENEBROSA<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 447<br />

Alta, alta e negra, de uma quase gigantesca altura,<br />

torso direito e forte, retesada na espinha dorsal como<br />

rígido sabre de guerra; colo erguido de ave pernalta,<br />

aprumado, gargalado e toroso; longos braços roliços,<br />

vigorosos, caídos, como extensas garras de falcão, ao<br />

amplo dos quadris abundantes e de linhas serenas,<br />

esculturais, de soberana estátua de mármore – semelhas<br />

bem uma noturna e carnívora planta bárbara, ardente e<br />

venenosa da Núbia.<br />

Olhos grandes, largos, profundos, cheios de<br />

tropical sensualismo africano e abertos como estrelas<br />

no céu da refulgente noite escura de ébano polido do<br />

rosto redondo – alta, alta e negra, de uma quase<br />

gigantesca altura – lembras também o astro nublado,<br />

caliginoso da Paixão, girando na órbita eterna da<br />

humanizada dolência da Carne, como mancha na luz,<br />

ou soturna mulher da Abissínia, cujos luxuriosos<br />

sentimentos panterizados sinistramente gelaram e<br />

petrificaram na muda esfinge dos secos areais tostados.<br />

E eu quisera possuir o teu amor – o teu amor, que<br />

deve ser como frondejante árvore de sangue dando frutos<br />

tenebrosos. O teu amor de ímpetos de fera nas brenhas<br />

e nas selvas, sobre os broncos, graníticos penhascos, na<br />

cáustica solar de exóticos climas quentes de raças<br />

tropicalizadas na emoção, porque tu és feita do sol em<br />

chamas e das fuscas Areias, da terra cálida dos desertos<br />

ermos...<br />

Quisera possuí-lo – inteiro, estranho, eterno, esse<br />

amor! E que me parecesse, se o possuísse e o gozasse,<br />

possuir e gozar o Mar, ter dentro de mim o oceano<br />

coalhado – como a minh’alma está coalhada de sonhos –<br />

de navios, de iates, de escunas, de lugares, galeões,<br />

naus e galeras, por uma tormenta avassaladora em que<br />

trovões formidáveis e cabriolas elétricas de raios<br />

fosforescentes, brechando o firmamento, sacudissem,


448 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

num brusco arrepio proceloso, o túmido colo crespo e<br />

ululante das Vagas.<br />

Quisera amar-te assim! E que nesse Mar<br />

tormentoso, sob a angustiosa pressão dos elementos, a<br />

um cabalístico sinal meu, como se absoluto poder me<br />

houvesse constituído o Deus terrível e supremo da Terra<br />

– iates, navios, lugares, escunas, naus e galeras,<br />

conduzindo toda a humanidade a várias regiões do<br />

monstruoso mundo, de repente soçobrassem juntos,<br />

subitamente se afundassem nas goelas hiantes do Mar<br />

escancarado, abismante, tremendo...<br />

Nós dois, então, fulminados pelo mesmo raio,<br />

batidos, esporeados pelo mesmo estertoroso trovão,<br />

seríamos arremessados ao seio glauco do oceano,<br />

abraçados na extrema contração espasmódica do gozo,<br />

indo dar às ilimitadas praias do Ideal os nossos<br />

cadáveres, ainda fortemente, desesperadamente unidos,<br />

enlaçados, presos, como se a derradeira agonia cruciante<br />

da sensualidade e da dor houvesse justaposto os nossos<br />

corpos na fremência carnal dos alucinados sentidos!<br />

Alguma coisa de aventuroso – fantástico, como o<br />

espírito de Byron, aceso pela caricatura viva de uma<br />

deformação física; alguma coisa de estranho e satânico<br />

como Poe, tantalizado também pelas agruras da<br />

ironizante matéria, e por isso mesmo ainda mais<br />

esfuziante e flamejante; alguma coisa, enfim, de infernal,<br />

de diabólico, de luminoso e tétrico, ficaria então para<br />

sempre esvoaçando e pairando em torno da nossa<br />

memória, sobre o Nihil das nossas vidas, como sinistra<br />

ave desgarrada de outras ignotas regiões inacessíveis e<br />

cujo canto soturno e maravilhoso reproduzisse a magoada<br />

plangência da harpa misteriosa dos nossos sentimentos,<br />

infinitamente vibrando e soluçando através do lento<br />

desenrolar das longas eras que passam.<br />

Quisera amar-te assim! Vibrado ao sol do teu<br />

sangue, incendiado na tua pele flamante, cujos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 449<br />

penetrantíssimos aromas selvagens me alvoroçam,<br />

entontecem e narcotizam.<br />

Assim amar-te e assim querer-te – nua, lúbrica,<br />

nevrótica, como a magnética serpente de cem cabeças<br />

da luxúria – os olhos livorescidos, como prata embaciada;<br />

a fila rútila dos rijos dentes claros cerrada no<br />

deslumbramento, no esplendor animal do coito; os nervos<br />

e músculos contraídos e os formosos seios de cetinoso<br />

tecido elevados como dois pequenos cômoros negros,<br />

cheios de narcotismos letais, impundonorosamente nus<br />

– nus como todo o corpo! – excitantes, impetuosos,<br />

tensibilizados e turgescidos, na materna afirmação<br />

sexual do leite virgem da procriação da Espécie! E que a<br />

tua vulva veludosa, afinal! vermelha, acesa e fuzilante<br />

como forja em brasa, santuário sombrio das<br />

transfigurações, câmara mágica das metamorfoses, crisol<br />

original das genitais impurezas, fonte tenebrosa dos<br />

êxtases, dos tristes, espasmódicos suspiros e do<br />

Tormento delirante da Vida; que a tua vulva, afinal,<br />

vibrasse vitoriosamente o ar com as trompas marciais e<br />

triunfantes da apoteose soberana da Carne!<br />

Assim, arrebatado no teu impulso fremente de<br />

águia famulenta de alcantiladas montanhas alpestres,<br />

eu teria sobre ti o poderoso domínio do leão de majestosa<br />

juba revolta, amando-te de um amor imaterial, sob a<br />

impressão miraculosa de transcendente sensação, muito<br />

alta e muito pura, que se dilatasse e ficasse eternamente<br />

intangível sobre todas as vivas forças transitórias da<br />

terra.<br />

Então, na cela mística do meu peito, como num<br />

sacrário, eu sentiria passar em vôos brancos esse grande<br />

Amor espiritualizado, estrela diluída em lágrimas,<br />

lágrimas convertidas em sangue, como a expressão de<br />

um sonho, ao mesmo tempo carnal e etéreo, humano e<br />

divino, que palpitasse, vivesse no meu ser e me trouxesse<br />

o travo, o sabor picante e amarguroso da Dor, que é a<br />

consagração, a perfeita essência do Amor.


450 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Seria esse um requintado gozo pagão, cujo aroma<br />

enervante e capro, como o aroma selvático que vem do<br />

bafo morno e do cio dos animais das africanas florestas<br />

virgens, embriagasse o meu viver, desse ao meu espírito<br />

a alada forma de pássaro e desse à Arte que<br />

cultualmente venero, a pompa larga e bravia desse teu<br />

bufalesco temperamento e o resistente bronze inteiriço<br />

e emocional do teu nobre corpo de bizarro corcel guerreiro<br />

ó alta, alta e maciça torre de treva, de cuja agulha<br />

elevada, esguia, aguda e expirante no Azul, o condor do<br />

meu Desejo vertiginosamente trêmula e vai as asas<br />

ruflando em torno...


REGIÃO AZUL...<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 451<br />

As águias e os astros abrem aqui, nesta doce,<br />

meiga e miraculosa claridade azul, um raro rumor d’asas<br />

e uma rara resplandecência solenemente imortais.<br />

As águias e os astros amam esta região azul, vivem<br />

nesta região azul, palpitam nesta região azul. E o azul, o<br />

azul virginal onde as águias e os astros gozam, tornouse<br />

o azul espiritualizado, a quintessência do azul que os<br />

estrelejamentos do Sonho coroam...<br />

Músicas passam, perpassam, finas, diluídas, finas,<br />

diluídas, e delas, como se a cor ganhasse ritmos<br />

preciosos, parece se desprender, se difundir uma<br />

harmonia azul, azul, de tal inalterável azul, que é ao<br />

mesmo tempo colorida e sonora, ao mesmo tempo cor e<br />

ao mesmo tempo som...<br />

E som e cor e cor e som, na mesma ondulação<br />

ritmal, na mesma eterificação de formas e volúpias,<br />

conjuntam-se, compõem-se, fundem-se nos corpos<br />

alados, integram-se numa só onda de orquestrações e<br />

de cores, que vão assim tecendo as auréolas eternais<br />

das Esferas...<br />

E dessa música e dessa cor, dessa harmonia e<br />

desse virginal azul vem então alvorando, através da<br />

penetrante, da sutil influência dos rubros Cânticos altos<br />

do sol e das soluçadas lágrimas noturnas da lua, a grande<br />

Flor original, maravilhosa e sensibilizada da Alma, mais<br />

azul que toda a irradiação azul e em torno à qual as<br />

águias e os astros, nas majestades e delicadezas das<br />

asas e das chamas, descrevem claros, largos giros<br />

ondeantes e sempiternos...


452 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

SONAMBULISMOS<br />

Foi pelas horas concentrativas de uma noite<br />

tropical de verão, numa dessas noites em que o espírito<br />

se debate e anseia na infinita vertigem das profundas e<br />

sombrias cogitações, alanceado por amarguras<br />

incomparáveis; numa noite em que desfalecimentos<br />

supremos me assediavam, que a minha visão ficou<br />

sonambulamente deslumbrada por este espantoso e<br />

imaginoso espetáculo da Lua.<br />

Todo o azulado espaço estrelara já, fina e<br />

aristocraticamente.<br />

Na floreada constelação da Via-Láctea, na vasta,<br />

solene e celeste, alta Nave dos Astros, alvas cintilações<br />

pompeavam, rútilos fagulhamentos, faustosas chamas<br />

claras sideralmente acesas, palpitação de harmonias,<br />

de formas, de brancuras imaculadas.<br />

Como que diamantinas cordas tensibilizadas de<br />

harpas miraculosas afinavam sonoramente de ritmos<br />

inefáveis a solidão sagrada, eucarística, da noite; e como<br />

que também vinham desfilando, descendo lentas e<br />

letárgicas pelos fios etéreos das estrelas, alas e alas<br />

fulgentes de querubins e arcanjos revestidos das<br />

pratarias, da translucidez, da névoa vaporosa da Via-<br />

Láctea.<br />

E eu sentia leves, doces rumorejos de asas que<br />

afiavam, girando num torvelinho, num redemoinho<br />

branco de plumagens suaves...<br />

Mas, nas sutis vibrações ignotas do Éter, errava<br />

certa sensibilidade, o dolorimento secreto de<br />

imperceptíveis nervos delicados de freira histérica,<br />

dilacerada nos infinitos êxtases do misticismo alucinado,<br />

dos intensos refinamentos, dos requintes esquisitos das<br />

macerações.<br />

Parecia que nas esparsas correntes do ar a dor<br />

circulava, cristalizada, filtrada na tenuidade vaga da luz...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 453<br />

As transparências luminosas da noite tinham altos<br />

silêncios augustos de sacrários, fazendo meditar e<br />

sonhar...<br />

E toda a amplidão das Estrelas era de uma<br />

solenidade e majestade muda. Através de brumas<br />

diáfanas, como através de uma paisagem de nevoeiros<br />

polares, vinha lentamente vogando, vogando, lassa, leve,<br />

como numa atmosfera aquosa, a angustiada aparição da<br />

estupenda lua, imensa, mole e mórbida, untuosa,<br />

magnetizadora Flor de filtros letais, Odalisca Fabulosa<br />

do opulento Mar-Sultão, derramando uma paz branca,<br />

morna, claridade viscosa nas vastidões em torno.<br />

Do modo por que eu a via, por que eu a estava<br />

sentindo na imaginação e na visão, a lua parecia crescer,<br />

crescer, ir avolumando cada vez mais e, à proporção que<br />

avolumava, ir adelgaçando, adelgaçando, frouxa e<br />

oleosamente, numa forma glutinosa e elástica de<br />

estranho Verme sulfúreo rastejando em preguiçosas,<br />

felinas ondulações e enchendo, avassalando todo o espaço<br />

com a sua redonda auréola luminosa e langue...<br />

E então todo o firmamento ficava invadido por essa<br />

maravilhosa face da lua, que velava completamente as<br />

estrelas.<br />

E era só uma ampla lua que formava o espaço<br />

inteiro, era só aquela face fria, branca, que dominava<br />

de fosforescência toda a vastidão do horizonte.<br />

Mas essa mesma face fria como que depois se<br />

transfigurava ainda; certos aspectos, os caracteres, as<br />

linhas, o contorno breve que lhe dá a semelhança de<br />

uma máscara de múmia, as manchas e sombras que por<br />

vezes turvam a ebúrnea candidez do seu palejante clarão,<br />

subitamente desapareciam, se desfaziam; e ela, a lua<br />

espectral, a lua frígida, cadavérica, começava a<br />

experimentar a sensação de um ser, a viver a vida de<br />

uma alma...<br />

Pouco e pouco se acentuavam linhas, traços,<br />

aspectos, iam aparecendo novas formas intensas, que


454 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

acusavam já a contornação de um vulto destacado nos<br />

amplos céus, gerado da face lívida da lua.<br />

Imensa dolência e imensa tristeza, transfundidas<br />

na asiática beleza judaica de Rabino erradio e<br />

sacrossanto, como que envolviam numa bruma ideal de<br />

paixão essa magoada e cismadora figura.<br />

E era, afinal, agora, pela metamorfose da luz, todo<br />

o busto sereno, a face dolorosa do Cristo, como que<br />

surgindo num grande e profundo soluço mudo.<br />

Era a face do Cristo, aparecendo nos sudários do<br />

Infinito, ciliciada no meio de esplendores sidéreos, com<br />

a imaginativa cabeça enxameada de curiosos e<br />

fascinadores apólogos, coroada de epodos, inflamada dos<br />

segredos ardentes e voluptuosos do Cristianismo!<br />

E essa cabeça legendária, de triste e de patética<br />

doçura, de emotiva palidez romântica, avultava, avultava<br />

mais, num relevo fundo, como se se quisesse corporificar<br />

e mover, abrindo desmesuradamente os olhos cheios de<br />

mistérios incomparáveis e fazendo ondular no ar a<br />

espessa cabeleira enovelada, derramada em longos<br />

caracóis flavescentes pelas espáduas divinas...<br />

E eu olhava, absorto, para o surpreendente<br />

espetáculo da lua, assim sagradamente transfigurada!!<br />

Ah! e como a branda face de Jesus sorria agora<br />

para mim com magoa do sorriso de piedade; como esse<br />

sorriso me acarinhava, derramava perdões e clemências,<br />

do alto, sobre a minh’alma terrena! Um sorriso da mais<br />

bem-aventurada bondade, da ternura mais celeste, um<br />

sorriso infinito que abrangia toda a amplidão e se<br />

confundia com a claridade dormente da noite.<br />

E era bem para mim esse sorriso, porque ele me<br />

atraía, me magnetizava com o seu vaporoso fluido,<br />

radiando como esmaecida, lívida madrugada, na boca<br />

sensual e roxa pelo fel da agonia, boca contorcida no<br />

derradeiro espasmo, do Cristo peregrino, no Cristo<br />

errante lacerado de chagas...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 455<br />

Com esse enternecido e perdoador sorriso eu me<br />

sentia lavado de todos os soturnos e rudes males, viame<br />

purificado de tudo, vivendo nas primitivas essências<br />

imaculadas do Bem.<br />

Ao mesmo tempo parecia que aquele prodigioso<br />

sorriso se transformava num gesto de mão poderosa,<br />

onipotente, mas, contudo, mansa, que me afagava<br />

meigamente a vertiginada cabeça, com doçura, com<br />

ternura, com amor, acordando em mim indefinidos<br />

estados d’alma, células que adormeciam há muito os<br />

seus desencontrados pensamentos e arrebatando<br />

alucinadamente todo o meu ser não sei para que<br />

estranhos mistérios e fenômenos da sensação...<br />

E eu, abstraído, enlevado, gozava com volúpia, sob<br />

aquela mão divinal e terna que me acarinhava, que me<br />

mergulhava, quase adormecido, em branduras inefáveis<br />

de tufos de sedas alvas, de linhos repousantes, de<br />

veludosidades, de arminhos consoladores.<br />

E dizia comigo, mentalmente:<br />

– Sim! Tu és, afinal, o meu Deus, bom e justo,<br />

Todo poderoso, o Unigênito, que te sorris para mim<br />

abençoando-me e protegendo-me contra o Mal com o teu<br />

sempiterno perdão! Eu me humilho à tua Onisciência e<br />

à tua Graça, porque eu pensava sempre que te haveria<br />

de encontrar um dia, uma hora, um momento, bom e<br />

justo, dando-me o alívio extremo! Oh! és tu! és tu! que<br />

eu reconheço bem! És tu o louro Deus profético e<br />

apaixonado das saudosas terras da Ásia!<br />

Oh! és tu! és tu! Bem te reconheço, pela majestade<br />

das transcendentes misericórdias que semeias e pelas<br />

ciliciantes grinaldas de sonhos que te circundam a<br />

aflitiva, desolada cabeça...<br />

Tanto clamei, tanto bradei por ti nas solidões, que<br />

tu afinal apareceste para me salvar do fundo desta geena<br />

onde em vão me debato e rojo. Do fundo desta geena<br />

que me devora, apertando-me nos seus cem mil círculos<br />

de ferro.


456 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Sim! vens consolar-me de tudo na atroz geena do<br />

Mundo, vens suavizar-me estes áridos dias de pedra em<br />

que até mesmo o sol é para mim a pedra mais indiferente<br />

de todas as pedras.<br />

Vens trazer-me justiça, Deus sempiterno – justiça,<br />

a quem vive sequioso por ela; justiça, a quem vive de<br />

agonias por ela; justiça, a quem combate e depreca no<br />

mundo por causa dela.<br />

Se eu aqui me desalento e desolo perante a tua<br />

Imagem não é que eu duvide da tua suprema clemência<br />

nem da tua suprema justiça! Não é porque eu julgue a<br />

justiça uma palavra inútil, convencional, vã, perfeito<br />

engodo doirado para iludir as almas crédulas, para<br />

favorecer os potentados e punir os humildes! Não é! Não!<br />

Mas, um dia, já um visionário do Infinito, um<br />

desses errantes do Ideal, com uns olhos espiritualizados<br />

de tísico, contou-me que lá no seu país bárbaro, uma<br />

vez que ele quis justiça, que ele clamou por justiça,<br />

responderam-lhe com esta espada fria de sarcasmo:<br />

– Ah! tu queres justiça, vais ter justiça. Metam<br />

este diabo numa jaula, derretam-lhe os pés em azeite a<br />

ferver, arranquem-lhe a pele a ferro em brasa e<br />

arranquem-lhe a língua pelas costas, se é que ele, na<br />

verdade, quer justiça, da pura e boa justiça, da imparcial,<br />

da generosa justiça!<br />

Tu, Deus excelso, sim, tu não iludes ninguém, tu<br />

vens trazer-me justiça, eu bem creio, eu creio muito,<br />

porque o sorriso inefável que abre essa original aurora<br />

nos teus lábios não pode iludir nunca, não pode enganar<br />

jamais.<br />

E mesmo os mais descrentes, os mais céticos e<br />

pessimistas acreditariam, se vissem! como eu agora vejo<br />

nesse teu piedoso sorriso tão carinhosamente iluminado<br />

da mais incomparável irradiação de justiça...<br />

Sim! vens trazer-me justiça! vens trazer-me<br />

justiça!<br />

Parecia mesmo, então, que para como que afirmar<br />

ainda mais os meus amargurados pensamentos, um


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 457<br />

pranto imenso, diluvial, me inundava, caindo do alto;<br />

que o Cristo chorava, chorava, num monótono choro<br />

soluçante que eu escutava pungido e enternecidamente<br />

agradecido a Ele por tanto e tanto compreender e sentir<br />

assim a minha Dor e assim chorar por mim...<br />

Mas, de repente, como por uma transmutação de<br />

mágica, tive um fundo sobressalto; do meio daquela<br />

espécie de torpor fui violentamente sacudido por uma<br />

impressão de deslumbramento, e, então, vi! estupefato,<br />

que aqueles divinos lábios lívidos a pouco e pouco se<br />

satanizavam e enrubesciam, passava sobre eles um<br />

relâmpago de fogo; aquela boca martirizada afinal abriase<br />

estranhamente rubra, estranhamente rubra! — e<br />

desvairadas gargalhadas vermelhas estalaram e rolaram<br />

retumbantemente pelo espaço a fora como atroantes<br />

excomunhões...<br />

E as estrepitosas risadas rolaram ríspidas,<br />

cortadas sangrentamente de sarcasmos e ensangüentando<br />

e abalando todo o espaço, como risadas de um<br />

novo Cristo satânico, despenhado e rebelde na eterna<br />

confusão dos séculos...<br />

Toda aquela face de celeste ternura desaparecera,<br />

a doce expressão piedosa daqueles olhos se exilara para<br />

longe e apenas então ficara o mais duro e feroz<br />

semblante, com a apocalíptica expressão sagrada e<br />

selvagem do Arcanjo titânico dos Extermínios agitando<br />

no ar o gládio fulminante.<br />

E a boca rubra dessa face tremenda ria, bruta,<br />

grosseiramente como os Getas da Trácia, bárbaras,<br />

empedernidas risadas d’escárnio que rolavam, rolavam<br />

pela noite a dentro, de eco em eco, com o clangor<br />

monstruoso de turbilhões, de cerradas massas de sons<br />

de trombetas conclamantes ou formidáveis e pesados<br />

carros de batalha, fantástica e atropeladamente<br />

arremessados através dos bíblicos, profundos e<br />

tenebrosos despenhadeiros de Josafá!


458 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

DOR NEGRA<br />

E como os Areais eternos sentissem fome e sentissem<br />

sede de flagelar, devorando com as suas mil bocas<br />

tórridas todas as rosas da Maldição e do Esquecimento<br />

infinito, lembraram-se, então, simbolicamente da<br />

África!<br />

Sanguinolento e negro, de lavas e de trevas, de<br />

torturas e de lágrimas, como o estandarte mítico do<br />

Inferno, de signo de brasão de fogo e de signo de abutre<br />

de ferro, que existir é esse, que as pedras rejeitam, e<br />

pelo qual até mesmo as próprias estrelas choram em<br />

vão milenariamente?!<br />

Que as estrelas e as pedras, horrivelmente mudas,<br />

impassíveis, já sem dúvida que por milênios se<br />

sensibilizaram diante da tua Dor inconcebível, Dor que<br />

de tanto ser Dor perdeu já a visão, o entendimento de o<br />

ser, tomou decerto outra ignota sensação da Dor, como<br />

um cego ingênito que de tanto e tanto abismo ter de<br />

cego sente e vê na Dor uma outra compreensão da Dor<br />

e olha e palpa, tateia um outro mundo de outra mais<br />

original, mais nova Dor.<br />

O que canta Requiem eterno e soluça e ulula, grita<br />

e ri risadas bufas e mortais no teu sangue, cálix sinistro<br />

dos calvários do teu corpo, é a Miséria humana,<br />

acorrentando-te a grilhões e metendo-te ferros em brasa<br />

pelo ventre, esmagando-te com o duro coturno egoístico<br />

das Civilizações, em nome, no nome falso e mascarado<br />

de uma ridícula e rota liberdade, e metendo-te ferros<br />

em brasa pela boca e metendo-te ferros em brasa pelos<br />

olhos e dançando e saltando macabramente sobre o lodo<br />

argiloso dos cemitérios do teu Sonho.<br />

Três vezes sepultada, enterrada três vezes: na<br />

espécie, na barbaria e no deserto, devorada pelo incêndio<br />

solar como por ardente lepra sidérea, és a alma negra<br />

dos supremos gemidos, o nirvana negro, o rio grosso e


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 459<br />

torvo de todos os desesperados suspiros, o fantasma<br />

gigantesco e noturno da Desolação, a cordilheira<br />

monstruosa dos ais, múmia das múmias mortas,<br />

cristalização d’esfinges, agrilhetada na Raça e no Mundo<br />

para sofrer sem piedade a agonia de uma Dor sobrehumana,<br />

tão venenosa e formidável, que só ela bastaria<br />

para fazer enegrecer o sol, fundido convulsamente e<br />

espasmodicamente à lua na cópula tremenda dos<br />

eclipses da Morte, à hora em que os estranhos corcéis<br />

colossais da Destruição, da Devastação, pelo Infinito<br />

galopam, galopam, colossais, colossais, colossais...


460 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

SENSIBILIDADE<br />

Com os seus lindos bandos brancos e o seu<br />

rendado mantelete de vidrilhos, aquela doce velhice<br />

tinha, apesar de enrugada e trêmula, um certo encanto<br />

nobre.<br />

Fazia lembrar uma gravura antiga e grave, dessas,<br />

solenes e vagas, que pousam tristes, quase apagadas de<br />

traço, esmaecidas na tela, mas saudosas, ao fundo de<br />

algumas salas severas.<br />

O seu nome carinhoso e parnasiano, recordava à<br />

primeira vista, pelo esmalte claro das sílabas, a forma<br />

de delicada porcelana, um fino e precioso mosaico ou os<br />

embutidos luxuosos dos charões.<br />

E esse nome, aveludadamente azul – Lúcia –<br />

cantava-me ao ouvido com a doçura, a terna suavidade<br />

da mais íntima, penetrante carícia.<br />

Rara e obscura existência, cabeça embranquecida<br />

nos gelos das sombrias dores ignoradas e apunhalantes,<br />

Lúcia, no entanto, andava dentre auréolas invisíveis de<br />

bem-aventurança, dentre etéreas redomas de clemência<br />

divina, como se nunca roçasse as diáfanas e níveas asas<br />

sutis das suas ilusões e reminiscências no lutulento,<br />

letífico charco da terra...<br />

Era assim uma alma ainda não esgotada, ainda<br />

intacta, inédita, purificada nos rios claros e evangélicos<br />

das esperanças, atravessando o mundo sem ruído, oculta,<br />

calada, vivendo baixo, devagar, nos sugestivos silêncios,<br />

como numa eterna pausa de todos os rumores, pedindo<br />

aos recônditos dilaceramentos do coração que<br />

emudecessem, ou magoassem e afligissem, mas em<br />

segredo, para que lá fora o faustoso clamor da Vida,<br />

desdenhoso e vão, não se importunasse e humilhasse.<br />

Era uma dessas assinaladas e tocantes velhinhas<br />

que impressionam e das quais, muita vez, a tremenda<br />

complexidade da Dor fica como que encerrada aos olhos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 461<br />

insensíveis da formidanda massa do Mundo, através das<br />

brumas do egoísmo.<br />

E ela mesma como que faz pensar em todas essas<br />

brumas, porque o seu perfil é brumoso, são brumosos os<br />

seus belos cabelos, é brumosa toda a sua contemplativa<br />

figura, que as brumas, as neblinas, os nevoeiros de fundo<br />

mistério envolvem de um luar solitário...<br />

Outrora toda a sua bondade espiritualizava-se,<br />

subia à serenidade dos Astros, quando, pelas manhãs<br />

d’ouro e linho virgem, frescas de sol, eu a via, junto ao<br />

mar melancólico, gozando a saudade das vagas.<br />

Por ali, perto das vagas, erguia-se um muro austero<br />

e alto, donde bucolicamente pendiam imensas e<br />

exuberantes latadas, verdes tentáculos de folhagem<br />

estrelados de rosas jaldes, de rosas brancas e de rosas<br />

rubras. Através de um gradil aberto viam-se louçanias<br />

de jardins, preciosidades de plantas, uma alegria<br />

pinturesca de vergéis e um repouso secreto e claro de<br />

Recolhimento, quebrado em dadas horas pelo quente<br />

esplendor bizarro de risadas.<br />

Era uma página de comunicativa emoção, de<br />

emoção sempre crescente, sentir, no ouro e na prata<br />

fluido-vagante das manhãs, o pequenino perfil da Lúcia,<br />

vago e triste, tão humanizado naqueles momentos, tão<br />

existente, tão ser, tão vivo na irradiação alegre, clarinal<br />

do dia, olhando ao mesmo tempo, com igual<br />

enternecimento, o mar e os jardins próximos ruidosos<br />

em certas horas.<br />

O peito desoprimia-se, respirava ao largo amplos<br />

e sadios haustos de mar diante dessa velhinha meiga,<br />

tão infinitamente sensível, tocada de uma graça de amor<br />

supremo, talvez pouco da terra já mas que parecia ser o<br />

símbolo sagrado das resignadas, abnegadas mães.<br />

Toda aquela vida era, entretanto, assediada de<br />

agitações constantes, com todos os fenômenos do<br />

Desconhecido, fenômenos profundos, com origens e<br />

raízes longínquas e em cujo centro ciclônico, terrível,


462 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ela girava amargamente, confusamente, arrebatada na<br />

vertigem do Mundo.<br />

E tudo, em redor, como que a torturava em<br />

fogueiras acesas de inquisições, fazendo-a delirar de<br />

angústia, dessa lancinante impaciência, dessa<br />

inquietude que alvoroça os corações velhos que não têm<br />

a esperar mais nada.<br />

E quantas, quantas vezes eu a vi, perdida nos<br />

tumultos, circulando por entre as multidões cerradas e<br />

atordoantes – erma, isolada, trêmula e triste, como se<br />

levasse toda a fatigada velhice lutadora de rastros ao<br />

sacrifício dos desdéns eternos, à indiferença de ferro<br />

das bárbaras hordas humanas.<br />

E tão só, tão só caminhava, talvez sem objetivo,<br />

talvez sem rumo, que a minh’alma compadecida a<br />

acompanhava de longe, numa grande e genuflexa<br />

piedade muda de companheira misteriosa e solitária.<br />

Mas com que dolorosa agonia, com que tormento,<br />

quase voluptuoso, ela circulava através multidões, errava<br />

através do ruído, através do alarido das ruas, das praças,<br />

através dos burburinhantes enxames de uma população<br />

variada, diversa de atitudes, de sensações, brutal de<br />

instintos, impetuosa de gestos, frívola, fútil, mexendose<br />

em ondulações de estupendos bichos vorazes,<br />

venenosamente serpenteando...<br />

Muitas vezes era pelos dias de abrasante sol e<br />

poeira, quando os mormaçosos estios relampejam e<br />

torram as vegetações recentes e o ar pesa elétrico,<br />

túmido de trovões e raios.<br />

As correntes intensas e luminosas do calor, as<br />

atmosféricas fulgurações zumbentes e escaldantes,<br />

atravessadas da poeirada fatigante, punham no ambiente<br />

lassa preguiça tropical, dando uma forte exaustão de<br />

nervos, que pedia longas, demoradas sestas...<br />

Era por esses dias febrilmente calmosos, em que<br />

o espaço, hirto, rígido, parece feito de metais<br />

incandescentes e de vidro.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 463<br />

Candente dureza estéril, surda, sufoca, numa<br />

asfixia mortal.<br />

Paira em tudo a prostração, a combustão de um<br />

incêndio prodigioso em longas extensões de florestas,<br />

de selvas intermináveis, de matas escuras e virgens; a<br />

tontura morna e enervante da chamejação poderosa,<br />

luxuosa, rica, de grossas e resinosas cordoalhas<br />

alcatroadas ou das línguas flamívomas e fantásticas de<br />

enormes aglomerações de carvão de pedra ardendo com<br />

feéricas e estrepitosas labaredas.<br />

Como que chiantes e algazarrantes crepitações<br />

de cigarras, riscam, retalham e cortam nervosas, com a<br />

vibrátil tensibilidade das asas, as fremências ríspidas<br />

do sol aberto, aceso estranhamente nos altos.<br />

E o sol, devorando ferozmente as seivas, numa<br />

insaciabilidade animal de tigres e panteras esfaimadas,<br />

faz lembrar horrível, tremendo e torturante carrasco<br />

levantando no Infinito guilhotinas atrozes, cujos<br />

formidáveis e ígneos cutelos invisíveis fulminam<br />

medonhamente os corpos...<br />

E a retina fatigada, cansada de fitar os aspectos<br />

quentes, as paisagens abrasadas, ofuscada pelos<br />

deslumbrantes estrelejamentos que a constelaram,<br />

descai langue, frouxa, perdendo já a percepção clara<br />

das linhas.<br />

Lúcia, entretanto, nômade eterna, errava entre<br />

essa atmosfera de sol e poeira, como nas tórridas, áridas<br />

vastidões de um deserto. E o seu humilde perfil de<br />

peregrina, martirizado pela inclemente ação cáustica<br />

da luz, parecia convulsionar-se, contrair-se, contorcerse<br />

espiralmente em eletrismos ardentes de serpes ébrias<br />

de cio, encolher-se, murchar como planta esquisita e<br />

melindrosa que a chama cresta, devora...<br />

Era de uma sensibilidade que magoava até às<br />

profundezas da alma ver girar sob o sol em fogo, na<br />

amolentadora dormência da poeira turva, o vulto triste<br />

dessa velhinha – alquebrada, aturdida, sonolenta nos


464 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

entontecedores espasmos, nas radiantes nevroses do<br />

sol...<br />

Parecia que todo o fino tecido, todas as fibrilhas e<br />

filamentos da claridade fulva, vibrante, a magnetizavam,<br />

a prendiam como que em redes cintilantes de raios, de<br />

brilhos, de centelhas, de siderações, de flamas, de<br />

ardências solares, de coruscantes crepitações.<br />

Parecia que as chamejativas e agulhantes áspides<br />

mordentes e circundantes do sol a apertavam, a<br />

comprimiam, a enlaçavam, roçando, babando, lambendo<br />

sedentas, sedentas, a epiderme engelhada da suplicia<br />

da velhinha, embebedando-a de sensações infinitamente<br />

complexas e esdrúxulas com as atritantes e cocegantes<br />

flexibilidades circulatórias dos seus filiformes e moles<br />

organismos...<br />

Deveria, ao certo, embalá-la, adormecê-la, fazêla<br />

sonhar um pouco, ao certo, toda aquela luminosidade<br />

letárgica, ansiante, flagelativa, que morbidamente a<br />

atravessava, a inoculava de tóxicos e alcoolizadores<br />

amavios de feitiços narcotizantes, de venenosos e<br />

deliciosos ópios, de sutilezas, de delicadezas<br />

nervosíssimas de uma sensibilidade quase lasciva, de<br />

tão martirizante, dolorosa e penetrante que era através<br />

dos espessos, densos nevoeiros da poeira e do sol...<br />

Fazia pensar que uma desconhecida voz, que ela<br />

não sabia de onde vinha, chamava com carinho por ela,<br />

a abençoava na sua aflição, no seu dilaceramento,<br />

suavizando-a na dor, protegendo-a na torturante<br />

peregrinação, compadecendo-se dela, bradando,<br />

clamando, como através do nebuloso pesadelo de um<br />

sono ou de brumas de luar, o seu nome meio velado,<br />

meio sonhado e soluçante: Lúcia, Lúcia, Lúcia – como o<br />

consolo da Sombra, como a piedade do Mistério, como a<br />

demência do Vago: Lúcia, Lúcia, Lúcia!<br />

O seu coração agoniado vibrava com mais<br />

veemência, com mais ímpeto, com febre, num profundo<br />

êxtase de sofrimento; e os seus amortecidos olhos,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 465<br />

turvados pela névoa das lágrimas, espiritualizavam-se,<br />

languesciam, como num torpor comatoso, e ela então<br />

voltava, voltava, tornava a circular, ali, além, lá, por entre<br />

a multidão tenebrosa, como ainda na última esperança<br />

de alcançar o que buscava, o que em vão procurava no<br />

torvelinhoso caos da existência – velhinha, trêmula,<br />

triste, frágil, a cabeça agitada numa convulsão, no<br />

lancinamento angustioso de todo o seu ser fatigado, sob<br />

o flagelo inflamado das cortantes refrações luminosas,<br />

das faíscas e fuzis cambiantes e circunvolventes e da<br />

inquietante poeirada turva que subia em turbilhões no<br />

ar...<br />

Parecia que aquele coração sofredor, arrancado<br />

violentamente do peito, eu sentia e via palpitar,<br />

sangrando ainda, suspenso, solto, alado, magnetizado,<br />

atraído pela intensa e estonteante vibratibilidade aérea,<br />

ao alto do Éter vertiginoso, com todos os seus gemidos,<br />

com todos os seus soluços, com todos os seus ais, com<br />

todos os seus gritos, com todos os seus gritos, com todos<br />

os seus gritos!<br />

Penetrado de uma curiosidade doentia, desse<br />

indefinido desejo de mergulhar no absoluto das cousas,<br />

o espírito a acompanhava, sem se aperceber quase, por<br />

um movimento instintivo e simpático de atração pelo<br />

que é obscuro, isolado, só, como acompanha as emoções<br />

e sensações que abrem asas à noite, fugindo ao<br />

esmagamento do dia.<br />

Não era apenas uma velhinha, trêmula,<br />

engelhada, que vagava todas as manhãs, desamparadamente:<br />

– era a Dor, a Dor cruel e ignota, que<br />

ninguém sentia, ninguém via, mas que vinha sempre<br />

sombriamente viver junto à estranha vida que no mar<br />

palpitava.<br />

E, quem olhasse bem para ela, com afeto piedoso,<br />

com todo o concentrado sentimento, e demorasse num<br />

exame lento, silencioso, detalhado, de todas as suas<br />

feições, de todas as suas rugas, veria então como a Lúcia


466 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

se transfigurava sempre que ouvia a matinal correria<br />

nos jardins do Recolhimento, sempre que encarava por<br />

muito tempo o mar, fitando-o como horrível inimigo que<br />

se não pode jamais destruir, mas apenas odiar em vão.<br />

Um amargor, um fel, uma ansiedade, ansiedade<br />

de tudo, ansiedade mortal a crucificava, e ela então<br />

começava a percorrer novamente ao longo das praias,<br />

mas tão febril, tão inquieta, tão vertiginada a nobre e<br />

doce cabeça branca, que se temeria que ela fosse<br />

enlouquecer ou morrer ali de desespero.<br />

Fazia mesmo lembrar um louco, igualmente cego<br />

e mudo, encarcerado e tateando na sua desgraça,<br />

debatendo-se para espedaçar as perpétuas grades do<br />

cárcere tenebroso da loucura, da cegueira e da mudez,<br />

ensangüentando inutilmente as mãos nos grilhões<br />

imaginários, com o delírio supremo, a aflição tremenda<br />

de uma alma que não sabe, que não pode dizer quanto<br />

sofre e sofre ainda mais por isso e sufoca e soluça e<br />

convulsiona e rebenta de sofrimento.<br />

Era uma dor que tinha a sensibilidade curiosa de<br />

um violino miraculoso, vibrando freneticamente, com<br />

requintada nevrose, através de nevoeiros frios, nalgum<br />

país polar, e cujo som, partindo em arestas finíssimas e<br />

inflamáveis, em vez de deliciar de harmonia, ferisse,<br />

cortasse e queimasse as carnes.<br />

A princípio aquela Dor subia como leve, melodiosa<br />

balada fria e triste, por turvo luar, sobre lagos calados,<br />

entre paisagens de lenda.<br />

Subia suspirantemente, na mágoa dilacerante dos<br />

adeuses derradeiros, aflitiva lancinância das preces...<br />

Depois, transfigurada por invisível vendaval sinistro, era<br />

uma Dor que avassalava todo o seu organismo como um<br />

espasmo de alucinação, rugindo em bramidos de mar<br />

alto nos bravios costões desertos, nas abruptas penedias,<br />

nas brenhas brancas, sob as trevas soturnas e avérnicas<br />

das tempestades, cruzadas pelos Signos diabólicos e<br />

fosforescentes dos relâmpagos...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 467<br />

Ah! como eu a amava, como eu me apiedava dela<br />

assim, como me identificava com o seu sentir, como<br />

penetrava nos crepúsculos estrelados da minh’alma,<br />

assim dolente, assim fatalizada, essa extraordinária<br />

Criação dos dolorimentos, das incoercíveis angústias<br />

imponderáveis!<br />

Vencida pela saudade e sugestão evocativa das<br />

ondas, ela vagava sempre, sem que ninguém soubesse<br />

qual era o seu objetivo secreto... E essa maravilhosa dor<br />

como que se ampliava, se derramava, enchia as vastidões<br />

do Mar imaginativo, cortado de lubricidade e tédio,<br />

enevoado de spleen, embriagado de um vinho sombrio e<br />

glauco, fascinador, inebriante, atordoativo, de<br />

sonambulismos esparsos, sedento da monstruosa, da<br />

satânica paixão dos naufrágios, soturnamente cantando,<br />

com triunfos d’inquisidor, as elegias das noivas – mais<br />

formidável que a Morte!<br />

E enchia, enchia, enchia profundamente o Mar a<br />

grande Dor, filtrava-se pelos raios fluidos da luz, diluíase<br />

no cheiro azotado e virginal das marés, eterificavase,<br />

era essência, era eflúvio de emoção, era gérmen de<br />

sonho, perdido no ambiente picante, acre e ácido, das<br />

largas, amargas águas marinhas; era sensibilidade<br />

humana depurada, cristalizada, vivida na sensibilidade<br />

voluptuosa das ondas, partindo, vagando, errando como<br />

aroma e brilho flavo de sol nos turbilhões fugitivos das<br />

velas nômades, também infladas, palpitantes também<br />

de flutuante, balouçante volúpia e da mais alanceada e<br />

nostálgica sensibilidade do Infinito...


468 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ASAS...<br />

Abertas em iris, pelos espaços intérminos,<br />

esvoaçam as Asas, voam a regiões antigas enevoadas de<br />

dolência e de lenda, às velhas maravilhas do mundo:<br />

pelos Jardins da Babilônia, pelas Pirâmides do Egito.<br />

Vão à Pérsia, palpitar no fulgor de alcatifas e tapeçarias;<br />

vão à Arábia, voar entre os incensos orientais e,<br />

condorizadas, sempre pelas fulvas, fagulhantes<br />

opulências do Oriente em fora, ruflar e subir, perder-se<br />

além das esguias agulhas alanceoladas das mesquitas,<br />

que arrojam para o firmamento as liturgias<br />

maometanas...<br />

E as Asas flavescem, doiram-se ao sol prisco dos<br />

tempos, à chama acesa da Imortalidade – porque as Asas<br />

são o Desejo, o Sonho, o Pensamento, a Glória – que<br />

tomam assim sempre essa forma, mil vezes, alada,<br />

peregrina, errante, das asas.<br />

Porque a Forma, a Forma é esse ansiar para o<br />

alto, esse fremente rufiar e abrir largo d’asas<br />

impulsionadas na Luz, na refulgência das Estrelas, de<br />

onde, a música, a harmonia pura da Arte, serena e<br />

ritmalmente canta...<br />

Mas, essa Forma que abre, cinzelada em astro<br />

flamejante, essa mesma Forma sai pontuada de<br />

lágrimas, como um relicário onde eternamente ficassem<br />

guardadas as hóstias impoluídas de um amor sideral<br />

infinito.<br />

E essas mesmas lágrimas são asas – asas<br />

espirituais, partindo da fremência de um sentimento<br />

doloroso, pungente, que nos alanceia, impacienta e agita<br />

em febre – sentimento fundamental do Profundo, do Vago,<br />

do Indefinido...<br />

Turbilhões d’asas, turbilhões d’asas, turbilhões<br />

d’asas – asas, asas e asas imensas, amplas, largas,<br />

infinitamente rufladoras, infinitamente, infinitamente,<br />

cruzando-se e acumulando-se nos tempos, nas orgias


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 469<br />

báquicas do Sol, nas deblaterantes e atroantes nevroses<br />

das tormentas, no rouco e surdo regougar de epilepsias<br />

satânicas dos ventos.<br />

Asas leves, finas, borboleteantes, falenosas, dos<br />

magnificentes, dos radiantes, dos delicados, dos febris,<br />

dos imaginosos, dos vibráteis, dos penetrantes, dos<br />

emotivos, dos sutis, curiosas abelhas d’ouro, insetos<br />

flavos do sol, esmeraldas e meteoros voejantes e asas<br />

gigantescas, condoreiramente titânicas, dos hercúleos<br />

Proteus do Sentimento e da Forma.<br />

Tudo recebe singularidades, impressionantes<br />

transfigurações de asas – asas que abrem e tumultuam<br />

com vertiginoso e confuso tropel nos Céus, que da Terra<br />

vibrando partem, asas, asas e asas, em enigmas<br />

esfíngicos, num anseio, num frêmito, num delírio de<br />

alcançar, subir além, maravilhosamente subir, com<br />

pujanças repurificadoras e a majestade melancólica das<br />

águias, à Aspiração Suprema!


470 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ESPIRITUALIZADA<br />

Agora fechando de leve os olhos, fechando-os,<br />

como para adormecimentos vagos, vejo-te, no entanto,<br />

melhor, sinto-te eterizada, de uma essência finíssima<br />

onde há diluidamente talvez muito do sol e muito da<br />

lua...<br />

Assim, mudo e só, neste obscuro aposento, onde<br />

apenas uma janela alta dá para o claro dia, como um<br />

coração que abre e pulsa para a vida, gozo a divina graça<br />

de ficar isolado, intacto, neste momento, ao menos, dos<br />

atritos nauseantes da laureada banalidade, de certo<br />

fundo chato de plebeísmo intelectual de sentir.<br />

Nos seis ou sete palmos deste aposento, que ainda<br />

não são, contudo, os sete palmos da cova, eu vejo-te das<br />

prefulgentes transcendências da minha Piedade, e,<br />

aristocratizando a alma, como um céu se requinta<br />

aristocraticamente d’estrelas, sinto que me apareces<br />

espiritualizada pelo grande Afeto que te fecundou e sinto<br />

que há de ti para mim uma tal influência estésica, uma<br />

identidade tamanha, uma tão intensa irradiação, que<br />

as nossas naturezas fundem-se num mesmo êxtase,<br />

num mesmo espasmo emotivo e numa mesma<br />

chamejação de beijos...<br />

E, assim, ainda assim, nobre Palmeira de sagrada<br />

sombra que me abrigas o coração errante; e, ainda assim,<br />

pelas virtudes sublimes do teu ser, canta-me na alma o<br />

Cântico claro de que não me separarei jamais de ti, que<br />

me acompanharás, boa, crente, do castelo branco das<br />

tuas altas virtudes, pelas jornadas eternais da Morte,<br />

saciando-me a sede ansiosa, inquieta, de Infinito, com<br />

as cisternas puras e transbordantes da tua eterizada<br />

Bondade.<br />

E como o nosso pequenino filho preso à tua carne<br />

pelo cordão umbilical, eu ficarei para sempre preso aos<br />

teus graciosos cuidados e fugitivos enlevos, girando em<br />

torno à tua ternura – vibrante abóbada de músicas e de<br />

luzes – como um velho pássaro fatigado abrindo e


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 471<br />

fechando lenta e amorosamente as asas sem no entanto<br />

desprender o vôo através do atordoamento e rumor das<br />

Esferas...<br />

Crê, tem fé profunda na profunda chama que por<br />

ti me eleva.<br />

Fechando de leve os olhos, como para<br />

adormecimentos vagos, mais eu vejo a curiosa beleza<br />

negra dos teus olhos transfigurados por olhares pouco<br />

terrestres e olhares de tão cintilantes fluidos, de raios<br />

tão penetrantes, de tão afagadoras, consoladoras<br />

baladas, que só olhares de olhos resignados,<br />

perfectibilizados por egrégio Sofrimento, podem por tal<br />

forma exprimir a impressionante transfiguração dos teus<br />

olhos.<br />

Crê, pois, que eu te amo, crê que eu te amo com a<br />

majestade serena de um apóstolo e a meiguice trêmula<br />

de uma criança. Crê que eu te amo com a alma simples,<br />

com o coração inundado de frescura, iluminado de<br />

bondade. Crê que eu te amo, sacrossantamente te amo<br />

de um afeto indissolúvel, indelével, indefinível, que se<br />

perpetuará além da minha morte, sobreviverá aos meus<br />

suspiros, aos meus amargos gemidos, abraçar-te-á com<br />

abraços muito longos, beijar-te-á com beijos ainda mais<br />

longos que esses abraços, numa carícia lenta, muda e<br />

aflita, sob o repouso branco das estrelas, na imensa<br />

mágoa, no desolado enviuvamento das noites...<br />

Assim, maternizada, ó boa e generosa terra de<br />

sangue de onde brotou a flor nervosa e lânguida do filho;<br />

assim, transfigurado pelo sentimento purificante da<br />

Maternidade, ó ser docemente, arcangelicamente<br />

formoso, dessa formosura triste, mas nobre, mas excelsa,<br />

mas imaculada, das almas que se sensibilizam e vibram;<br />

assim, nessa expressão tocante, fina, sutil, do teu<br />

semblante que a dolência pungente da Maternidade<br />

enluarou de harmonia, fluidificou de delicadezas,<br />

angustiou de mistério, és, afinal, a Eleita peregrina do<br />

meu Sonho, coroada de um diadema de lágrimas...


472 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ASCO E DOR<br />

Últimos risos palermas, últimos escancaramentos<br />

de bocas parvas nos fins destroçados de um carnaval,<br />

por tarde ardente e nevoenta. Massas de nuvens torvas<br />

tumultuam no firmamento, sob múltiplas conformações<br />

fabulosas. Raios derradeiros de sol em poente<br />

languescem do alto, mornamente crepusculares.<br />

Um tédio enorme espreguiça, estremunha no ar,<br />

lânguido, letárgico, invencível, indefinível...<br />

Por uma rua estreita, sombria e lôbrega como um<br />

prolongado corredor de convento ou uma infecta galeria<br />

subterrânea, vem desfilando, aos pinchos, saracoteando<br />

toda, desconjuntando-se toda, uma turba miserável de<br />

carnavalescos, impondo aos últimos raios tristes do sol<br />

as suas carantonhas mais horrivelmente tristes ainda,<br />

as suas vestimentas funambulescas, fazendo lembrar<br />

diferentes aspectos de loucura, graus de imbecil<br />

demência, angulosidades de crime, estados primitivos<br />

de ignorância amassados numa embriaguez mórbida,<br />

selvagem e sinistra.<br />

Os pinchos, os saracoteios, os ziguezagues dos<br />

quadris elásticos das mulheres, com os moles seios<br />

bambos e as nádegas proeminentes, num deboche nu<br />

de Inferno relaxado onde vinhos alucinantes entrassem<br />

como oceano canalizado para as bocas; os perfis ósseos,<br />

anfratuosos dos homens, mascarados de sapo, de gorila,<br />

de serpente, de crocodilo, de dragão de cornos, de<br />

morcego, de monstro bifronte, de urso, de elefante e de<br />

mentecapto, dão à turba carnavalesca a sensação<br />

formidável do descaro final, do pandemonium derradeiro,<br />

da nudez lúbrica, desbragada, bestial, da cega hediondez<br />

dos instintos soltos na hora eclíptica do aniquilamento<br />

do mundo!<br />

Mas, eis que do centro do desprezível bando,<br />

vestida em farrapos, boçal, congestionada de<br />

bestialidade, urrante de chascos, destaca-se uma


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 473<br />

terrível figura mais grotesca do que as outras, trazendo<br />

na cabeça, em forma de troféu, uma trunfa alta, feita<br />

de cobras emaranhadas, com as caudás em pé,<br />

semelhando uma coroa de vícios em convulsão. E no<br />

meio do círculo que as outras formam e ao som de palmas<br />

cadenciadas e batuques selvagens, através de risadas<br />

aparvalhadas do público, fica então a dançar<br />

alucinadamente. Nas suas pernas magras, espectrais,<br />

de esqueleto ironicamente esquecido pela cova, dir-seá<br />

que lhe puseram azougue e lhe puseram também<br />

rodízios nos pés.<br />

E ela fica então a rodar, a rodar, macabra, doida,<br />

numa febre, num delírio, como se fosse esse todo o<br />

extremo esforço das suas faculdades de dançarina. E<br />

ela roda, roda, vai rodando, em vertigens e vertigens,<br />

em giros esquisitos, fazendo flutuar os dourados farrapos<br />

da veste, dentre uma saraivada grossa de risos e<br />

aclamações, gozando triunfos na miséria daquilo tudo,<br />

como a rainha da lama humana. E a grotesca figura<br />

roda, mascarada de múmia verde – alucinação que<br />

ondula, desvairamento que serpenteia – a exemplo de<br />

uma cousa amorfa, de um bicho inconcebivelmente<br />

estranho que se tivesse ao mesmo tempo absurdamente<br />

tomado de uma epilepsia nervosa e da dança de São-<br />

Guido...<br />

De vez em quando piparoteiam-lhe a pança, as<br />

nádegas moles e ela então, ignóbil animal aguilhoado<br />

por essa baixa carícia, saracoteia mais, espaneja-se toda<br />

no seu lodo como num leito de volúpia.<br />

Ah! daquela momice cínica, daquela desordenada<br />

bebedeira d’instintos erguiam-se, hórridos fantasmas de<br />

sangue, de lama e lágrimas, o Asco e a Dor!<br />

Eu para ali me arrastara, no amargo tédio da tarde,<br />

na ânsia crepuscular do sol, que lembrava um palhaço<br />

senil e lúgubre, sem mais alegria, vestido de ouro e<br />

morrendo, só, desamparado até mesmo das ovações ou


474 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

dos apupos da rota garotagem, no fundo de um beco<br />

imundo...<br />

Levaram-me para ali não sei que desencontrados<br />

sentimentos, que emoções opostas, que vagos<br />

pressentimentos... A verdade é que eu para ali fora, talvez<br />

fascinado por certo encanto misterioso dessa miséria<br />

cega: para embriagar-me de asco, para envenenar-me<br />

de asco e tédio e desse tédio e desse asco talvez arrancar<br />

os astros e ferir as harpas de alguma curiosa sensação.<br />

A verdade é que eu para ali fora, quase hipnotizado, de<br />

certo modo mesmo impelido pela extravagante turba<br />

carnavalesca, pela sua monstruosa miséria.<br />

Mas, agora, todo esse misto de animalidade, de<br />

suinice, esse hibridismo mascarado, de paixões<br />

rastejantes, vermiculares, essas formas humanas que<br />

atrozmente se convulsionavam como feras devorando,<br />

todo esse ambulante sabbatt foi então desfilando por<br />

outras ruas, seguindo o seu rumo de calcetas do ridículo,<br />

bambamente, aos boléus sob o fim torvo da tarde que<br />

parecia, também mascarada de feiticeira, rindo uma<br />

risada de augúrio feral aos últimos bamboleios<br />

carnavalescos que se afastavam, finalizando como a tarde<br />

finalizava, dispersando-se, desaparecendo pelos oblíquos<br />

becos tortos num tropel de manadas de gado estropiado<br />

que uma peste assolou...<br />

E enquanto a multidão, vesga, atordoada, tonta,<br />

azoinada de calor, de rumor, de carnaval e de poeira,<br />

aplaudia com gritos e zumbaias delirantes,<br />

ensurdecedoras, aquela turba vil, incaracterística, a<br />

minh’alma sentia-se como que pendida de um cadafalso<br />

que a estrangulava, acorrentada a um asco mortal, a<br />

uma dor tremenda que não tinha linhas de unidade, de<br />

conjunto e de entendimento com as outras dores; dor<br />

ingenitamente original, que não participava, em<br />

nenhuma das suas fibras, em nenhuma das suas<br />

interpretações sensacionais, das outras dores do mundo!<br />

Dor legitimamente outra, que não tinha limites no limite


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 475<br />

da dor comum; dor que me parecia cobrir o céu de luto,<br />

enegrecer tudo, aumentando-me o asco de tal sorte que<br />

o ar, os horizontes enublados, as árvores, as pedras da<br />

rua, as paredes dos edifícios, a multidão que<br />

burburinhava, tudo me parecia estar possuído do mesmo<br />

asco e da mesma dor. Dor sem raízes conhecidas, sem<br />

ritmos definidos, sem origens encontradas nem na vida,<br />

nem na morte, fora das correntes eternas, das<br />

correlações das esferas, das circunvoluções do<br />

pensamento! Dor inaudita, cujas partículas sagradas<br />

eram formadas da flamejante constelação de um anseio<br />

transcendental, da luz misteriosa das espiritualizações<br />

supremas, de sentimentos fugidios, sutis, de sensações<br />

que volteavam e ondulavam em torno da minha cabeça,<br />

como auréolas psíquico-estesíacas, por paragens<br />

ultraterrestres.<br />

Asco que era para mim como se eu me sentisse<br />

coberto de lesmas, lesmas fazendo pasto no meu corpo,<br />

lesmas entrando-me pelos ouvidos, lesmas entrandome<br />

pelos olhos, lesmas entrando-me pelas narinas, pela<br />

boca asquerosamente entrando-me lesmas. Um asco feito<br />

de sangue, lama e lágrimas, composto horrível de um<br />

sentimento inexplicável, hediondo, donde brotava a flor<br />

de fogo e veneno de uma dor sem termo.<br />

Asco daquelas postas de carne que além<br />

obscenamente se rebolavam numa mascarada infernal,<br />

bêbadas, bambas, fora da razão humana, a toda a brida<br />

no Infinito do deboche, sem fé e sem freios, na confusão<br />

dos instintos como na confusão do caos.<br />

Dor e asco dessa salsugem de raça entre as<br />

salsugens das outras raças.<br />

Dor e asco dessa raça da noite, noturnamente<br />

amortalhada, donde eu vim através do mistério da célula,<br />

longinquamente, jogado para a vida na inconsciência<br />

geradora do óvulo, como um segredo ou uma relíquia de<br />

bárbaros escondida numa furna ou num subterrâneo,<br />

entre florestas virgens, nas margens de um rio funesto...


476 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Dor e asco desse apodrecido e letal paul de raça<br />

que deu-me este luxurioso órgão nasal que respira com<br />

ansiedade todos os aromas profundos e secretos para<br />

perpetuá-los através da mucosa; estes olhos<br />

penetradores e lânguidos que com tanta volúpia e mágoa<br />

olham e assinalam as amarguras do mundo; estas mãos<br />

longas que mourejam tanto e tão rudemente; este órgão<br />

vocal através do qual sonâmbula e nebulosamente<br />

gemem e tremem veladas saudades e aspirações já<br />

mortas, soluçantes emoções e reminiscências maternas;<br />

este coração e este cérebro, duas serpentes convulsas<br />

e insaciáveis que me mordem, que me devoram com os<br />

seus tantalismos.<br />

Dor e asco dessa esdrúxula, absurda turba bruta<br />

que além, sob a tarde, uivava, desprezivelmente ridícula,<br />

na infrene mascarada, com os seus ínfimos vultos<br />

sinistros transfigurados em crocodilos, em serpentes,<br />

em sapos, em morcegos, em monstros bifrontes, todos,<br />

todos da mesma origem tenebrosa de onde eu vim,<br />

negros, sob a lua selvagem e sonolenta dos desertos, no<br />

seio torcido das areias desoladas...<br />

Asco e dor dessa ironia que para mim vinha, que<br />

para mim era, que só eu estava compreendendo e<br />

sentindo assim particular e exótica – ironia gerada nos<br />

lagos langues do Letes, fundida nas perpétuas chamas<br />

do Abstrato das Esferas, ironia para mim só, só para<br />

mim descoberta nas camadas infinitas da Vida; ironia<br />

só para o meu Orgulho mortal, só para a minha Ilusão<br />

humana, só para o meu insatisfeito Ideal, ironia! ironia!<br />

ironia rindo às gargalhadas no fim da tarde pelas<br />

máscaras obtusas e pela boca parva da multidão que<br />

aplaudia truanescamente como o supremo truão eterno.<br />

E, ó Dor maior! Asco mais estranho ainda!<br />

Daqueles círculos mômicos, daqueles círculos de<br />

chacota e de zumbaias, daqueles requebros de quadris<br />

obscenos, daquelas vertigens mórbidas e redomoinhos<br />

de corpos lassos, entorpecidos, suarentos, empoeirados,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 477<br />

esfalfados; daquelas caras bestiamente cínicas, ignaras<br />

e negras, sem máscaras algumas, pintalgadas a cores<br />

vivas, a tatouages grosseiras; daqueles langores mornos<br />

e doentios de olhos suínos, de todos esses grilhões<br />

medonhos, de todo esse lodoso cárcere fatal eu ficava<br />

como uma sombra irremediavelmente presa dentro de<br />

outra sombra, querendo fugir dali por esforços inauditos<br />

e vãos, debatendo-me no vácuo contra esse golfo sem<br />

fundo, contra esses vórtices tremendos da matéria, de<br />

onde, no entanto, a minh’alma viera, cristalizada em<br />

essência, requintada numa imaculabilidade d’estrelas<br />

purificadas nos cadinhos celestes.<br />

E a minh’alma circunvagava, ia e vinha alucinada,<br />

através de adormecidas zonas de sonho, oscilante como<br />

um pêndulo de pesadelos, numa aflita ondulação de<br />

nevroses, meio dividida entre a bárbara turba mascarada<br />

e meio dividida entre a natureza, circundante, cá e lá,<br />

guilhotinada misteriosamente pela mesma dor e pelo<br />

mesmo asco, cá e lá misturada, amalgamada e perdida<br />

em iguais misérias de sangue, lama e lágrimas, ainda e<br />

para sempre com o mesmo asco e com a mesma dor...


478 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

INTUIÇÕES<br />

– Mas, afinal, por que és triste?!<br />

– Sou triste, porque o fundo de toda a Natureza é<br />

triste. Triste, por que a tristeza é Deusa, Deusa severa<br />

e soberana, com a sua larga, longa clâmide majestosa<br />

sombriamente pendida em graves, grandes rugas,<br />

envolvendo para sempre os Desolados... A tristeza<br />

medita... E é poderosa e sagrada, porque simboliza a<br />

profundidade dos Fenômenos que nos rodeiam. Olha tu<br />

para tudo. Ergue d’alto a visão do pensamento por essa<br />

inclemência dolorosa da Vida e vê lá, se, no íntimo, no<br />

recôndito das origens eternas, não está a tristeza<br />

irreparável de tudo?! Ouve os teus tumultos interiores!<br />

Busca as correntes da Vida e as correntes da Morte.<br />

Procura as tuas aspirações supremas e vê lá se não é<br />

pela estrada infinita, mas excelsa, da tristeza, que elas<br />

seguem. Amo a tristeza, porque ela fecunda a todos os<br />

sentimentos de uma nobre paixão abstrata. E é doce,<br />

suavizador e piedoso para mim quando às vezes encontro,<br />

pelos caminhos que trilho, tão augusta Deusa<br />

transfigurando os celerados, purificando os bandidos,<br />

dando paz e morte serena aos corações dos cínicos.<br />

Ser fundamentalmente triste não exclui, no<br />

entanto, a alegria, a alegria sã – essa alegria mesma<br />

que é mais sincera e séria porque foi fecundada na<br />

sinceridade e seriedade da própria tristeza.<br />

Não essa alegria romba, a alegria dos adolescentes<br />

espirituosos, que é a forma mais expressiva da<br />

imbecilidade distinta.<br />

Não a alegria dos que não são vitalmente alegres,<br />

dos que riem, pelo estilo, pelo tom de rir, por ser oficial<br />

o riso, por estar, d’alto abaixo, decretado, na grande<br />

causerie famosa do Mundo, que se deve rir, porque o riso<br />

dá maneira, porque o riso dá egrégias virtudes, porque o<br />

riso dá beleza, e não se pode, nos centros da fina gente,<br />

deixar, enfim, de proclamar o riso!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 479<br />

Não é essa alegria fácil, fútil, essa que chega a<br />

celebrizar-se, a formar tipo, que constitui o singular<br />

encanto sereno de certo modo de ser e sentir...<br />

Mas, bem diferentes, outros aspectos e linhas da<br />

alegria, bem variados e nobres.<br />

A alegria de um lindo rosto louro de Ruth angélica<br />

e segetal; uma serenidade cor-de-rosa de face de Cibele<br />

branca surgindo dentre lírios; a alegria verde da<br />

originalidade dos viços virgens, dos imaculados renovos;<br />

a alegria nova dos vergéis em maio, sob o Te Deum do<br />

sol.<br />

A alegria fantasiosa de um Baco empurpurado de<br />

vinho; a alegria pagã de um grego engrinaldado de<br />

acanto; a alegria ideal do Diabo coroado de cornos; a<br />

alegria obscura e ascética do Isolamento; a alegria<br />

clemente, justa, do orgulho natural e simples; a alegria<br />

modesta e sóbria da fé convicta e messiânica; a alegria<br />

tranqüila e fria do desdém calado e secreto; a alegria<br />

da bondade simples e radiante, a alegria enfim,<br />

fecundadora e sã dos que se sentem fortes porque se<br />

sentem dignos!<br />

A solenidade dessas alegrias todas vem das linhas,<br />

da harmonia, da austeridade pura da tristeza – noite<br />

miraculosa que gera sóis.<br />

A alma anseia ficar intacta das argilas lodosas, o<br />

espírito aspira envelhecer casto, na velhice milenária<br />

da Dor, mas elevando bem alto o sacrocibório das<br />

comunhões intelectuais.<br />

E, assim, essa tristeza é o tabernáculo severo e<br />

sombrio donde o espírito ergue-se calmo e mudo, intenso<br />

e seguro nas múltiplas faces da Vida, conhecendo e<br />

sentindo com eloqüência os homens e tirando desse<br />

conhecimento e desse sentimento as forças altas e os<br />

nobilitantes vigores para a profética, fecunda clemência.<br />

Pois no fundo dessa tristeza resultante das fadigas<br />

e tédios que deixa o insano ardor por se haver dado o<br />

balanço final aos Homens e às Cousas, existe a felicidade


480 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

forte, de robustez de fundamentos, uma espécie de<br />

Otimismo desdenhoso, que é a única e compensadora<br />

alegria mais elevada e pura das almas.<br />

Sou triste, sem ser cético; sou triste, porque creio<br />

ainda, vendo já, no entanto, tudo a esfacelar-se em<br />

ruínas...<br />

Por isso, por essas causas absolutas, sou triste.<br />

Eram dois vultos que caminhavam estrada a fora,<br />

através de paisagens, mergulhados numa intensa<br />

palestra d’idéias, por clara tarde maravilhosa de luz.<br />

Um deles, adolescente, imberbe, conservava a<br />

aparência reservada e sisuda de um monástico,<br />

acusando mesmo, pelo seu rosto um tanto alongado e o<br />

seu perfil bisonho, soturno, haver pertencido a um desses<br />

antigos seminários de província, reclusos dentre muros<br />

contemplativos e brancos e rodeados das sombras<br />

silenciosas de altas e recordativas árvores frondejantes.<br />

Visto um pouco ligeiramente parecia ter na face<br />

uma expressão dura, rígida, uma tonalidade seca e<br />

cética, à Voltaire.<br />

Mas, bem reparado de frente, os seus doces olhos<br />

grandes, tenebrosos e raiados levemente de vermelho,<br />

quebravam essa impressão voltaireana.<br />

Tudo, de expressivo e oculto, que ele tinha, estava<br />

nos olhos. Uma onda de seivas virgens parecia fluir<br />

milagrosamente deles. Dormiam talvez ainda, lá, como<br />

princesas encantadas em bosques fabulosos, as<br />

misteriosas Paixões do Pensamento e da Forma.<br />

Olhos reveladores, de uma expressão inédita de<br />

sentimento, dizendo límpido na sua transparente<br />

claridade úmida todos os segredos e sonhos que andem<br />

sonambulamente romeirando nas almas.<br />

Desses olhos para cujo centro profundo e luminoso<br />

parece afluir toda a essência pura, todo o idealismo claro<br />

e são, todo o alto requinte de Sensibilidade de uma<br />

geração mais elevada, mais bela, prestes a surgir!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 481<br />

O outro, mais severo, mais perseguido de perto<br />

pelas desilusões, com o ar fatigado de quem vem de<br />

muito longe – olhos de uma penetração aguda de brilho<br />

fundo, um tanto adormentados por uma melancolia<br />

nômade; boca de mordacidade viva, de onde as palavras<br />

deveriam irromper incisivas como dardos ou sugestivas<br />

como parábolas.<br />

Sentia-se logo que era doutras Regiões,<br />

transfigurado dos Rumos espiritualizantes, dos<br />

Fatalismos sombrios, reivindicador solitário do peso negro<br />

e venenoso das grandes culpas e por isso, agora, calmo,<br />

seguro, como os que trazem consigo, sem até mesmo<br />

pressentirem, o cunho singular das Predestinações<br />

imprescritíveis, a sede e a febre de um saber intuitivo,<br />

contemplativo.<br />

De vez em quando, no diálogo que ia estabelecendo<br />

com o outro, a sua boca sorria, num sorriso de resignada<br />

esperança, de muda contemplação, ou, ferida por um<br />

sarcasmo tão puramente justo que a idealizava, ria claro,<br />

ria, mas um riso leal, bom e regenerante, fresco,<br />

balsâmico, capaz de inundar e imacular de bens as<br />

milenárias e maléficas impurezas do Mundo decaído.<br />

E a tarde, numa paz luminosa, em auréolas de<br />

ouro, os envolvia beatificamente.<br />

As duas figuras, unificadas naquele instante por<br />

um idêntico e chamejante pensamento, caminhavam<br />

devagar na tarde, sob a efusão simpática da suave<br />

claridade da tarde.<br />

Entretanto, o diálogo continuara.<br />

– Sim, sou alegre como Deus, entediado, invejando<br />

o Inferno; sou triste como o Diabo, arrependido e<br />

sonhando, querendo voltar para o Céu!<br />

Sinto esta tristeza impaciente do Irreparável, do<br />

Irremediável, do Perdido... E a febre que me devora, a<br />

vertigem que me alvoroça, é por não poder fundir as<br />

almas sob novas formas, dar-lhes intuições novas,<br />

entendimentos inauditos, encarnar-lhes o sentimento


482 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

noutros moldes mais belos, fazê-las, enfim, mais flexíveis,<br />

mais dúcteis, torná-las mais espirituais e vibráteis para<br />

as grandes comoções do Imprevisto.<br />

A paixão da minha tristeza é por não poder<br />

fecundar de novo essas almas, não lhes poder dar as<br />

maleabilidades sensíveis, inocular-lhes o fluido estranho<br />

de uma vida aperfeiçoada, quintessenciada numa chama<br />

eterna.<br />

A doença espiritual da minha tristeza é por não<br />

poder impoluir, virginar jamais as consciências já<br />

violadas; por não poder fazer brotar nelas a flor<br />

melindrosa e boa da timidez simples, que o pecado brutal<br />

das luxúrias imponderadas e das intemperanças ferozes<br />

fez para sempre murchar.<br />

A nevrose da minha tristeza é por não me ser<br />

dada a graça magna, o dom soberano e assinalado de<br />

vazar, nos cadinhos de ouro da fecundação perpétua, só<br />

seivas prodigiosas, ineditamente belas, só germens sãos<br />

e perfeitos, só sementes preciosas e raras, para que,<br />

talvez, assim então se gerassem as Formas impecáveis,<br />

as Correções extremas, as Perfectibi1idades imperecíveis.<br />

Aos que, como tu, se fundam nos mistérios da sua<br />

própria natureza; para os que surgem das obscuras<br />

gêneses, no movimento de espontaneidade das Origens<br />

vivas, das afirmações eloqüentes e cujo espírito vai, no<br />

tempo e no espaço, se organizando por células,<br />

fecundando por sonhos, completando por vibrações de<br />

nervos, por germens de paixão, por glóbulos de Vida,<br />

aguardando, calmos e resolutos, sentindo a intuição de<br />

esperar o instante original para irromper da Sombra –<br />

para esses, deve significativamente impressionar toda<br />

a fundamental tristeza destas Manifestações supremas.<br />

O certo é que a humanidade erra pelo fantástico,<br />

que a natureza está toda sobrecarregada de fantástico.<br />

E nem mesmo há homem que não tenha o seu lado<br />

extravagantemente ideal, fantasioso; que não percorra,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 483<br />

nas vagas horas da Desolação, as galerias sinistras dos<br />

fantasmas, ou que não vá em busca do Sonho, que existe<br />

na Realidade, como os fenômenos físicos existem<br />

esparsos no organismo concreto do Universo. O ideal é<br />

real, desde que radia no mundo criado à parte, na<br />

circunvolução cerebral de cada ser. Tudo está em saber<br />

acordar, com estilo e emoção, esse sonho, onde ele<br />

exista, ou na alma do selvagem ou na alma do culto.<br />

Para isso os Artistas de todos os tempos produzem as<br />

suas Obras que nascem sempre por um movimento de<br />

meia inconsciência conceptiva, para serem assim mais<br />

fortemente vivas e mais transcendentemente<br />

sensacionais.<br />

Porque o real é cheio de brumas de sobrenatural,<br />

o verdadeiro é cheio de brumas de fantástico e no fundo<br />

original da grande Causa está o Sonho.<br />

– Ah! Sim! Sim! Clamou o outro, num grito de<br />

alvoroçado assentimento: – o natural na Arte é o alto<br />

Absurdo, é o Absurdo, o Fantástico, Intangível! Se eu<br />

dissesse, em páginas, mais tarde, os êxtases volúpicos<br />

que me dominavam no silêncio discreto do Seminário,<br />

diante da Imaculada Conceição, doce e cândida no seu<br />

rosto de porcelana fina, com aqueles olhos paradisíacos<br />

que tanto me aproximavam da serena e celeste luz! Se<br />

eu dissesse quanta nevrose, quanto delírio sexual<br />

percorreu a minha carne naquele solitário noviciado;<br />

quanto misticismo mórbido me ciliciou a alma; quanto<br />

espasmo lânguido me dominou o corpo, certo me<br />

julgariam louco... E depois, quando deixei a paz austera<br />

do Seminário, a sua clausura mestra, os seus hábitos<br />

duros; quando deixei toda aquela vasta, longa melancolia<br />

que dentro dele reinava como nevoenta Visão de<br />

meditações e recolhimentos; quando despedi-me das<br />

suas paredes brancas, das suas torres simbólicas, das<br />

suas árvores evangélicas, da sua fachada ampla e<br />

adormecida olhando para a alegria verde do Mar – e caí<br />

então na plebéia profanação da Existência – ah! que


484 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

complicadas sensações de prazer, de recordação, de<br />

mundanismo, de misticismo, de liberdade, de saudade,<br />

de inexprimível angústia, promiscuamente vivendo<br />

dentro de mim e viçando os mais tenebrosos, os mais<br />

negros e já agora irremediáveis tédios!<br />

No entanto, se eu descrever um dia com flagrância<br />

de tintas, com violências e cruezas, todo este trecho<br />

passado da minha vida; se eu lhe der todo o<br />

impressionismo abstrato, todo o requinte de sensibilidade<br />

e mesmo até de impressões fantásticas, dirão que eu<br />

não tenho a mínima observação do Natural, que não<br />

observo a verdade inteira, e sou, em tudo, absurdo.<br />

– Belas palavras, essas, a verdade, a observação!<br />

Tanto é verdade aquela que determinadas<br />

individualidades apenas vêem com os olhos, apalpam<br />

com o tato das mãos, ouvem com os ouvidos,<br />

experimentam pelo paladar, aspiram pelo olfato,<br />

apreendem com a atenção, lembram com a memória,<br />

percebem, enfim, com todos os sentidos inferiores, como<br />

é verdade a verdade que a Imaginação vê, que a<br />

Concepção cria, que o Ideal fecunda, que o Sonho<br />

transmite, desde que não haja, no modo de reproduzir<br />

essa verdade vista pela Imaginação, uma completa<br />

hipertrofia sensacional e sim, de certa forma, um fundo<br />

lógico, rítmico, harmonioso e equilibrado, até mesmo no<br />

próprio Absurdo.<br />

Tanto é verdade todo esse mecanismo, todo esse<br />

aparelho montado, toda essa fotografia exata, de exatidão<br />

até à futilidade e banalidade, como é verdade, tanto<br />

mais verdade ainda, tudo que os Estesíacos sentem<br />

através dos seus entontecedores desvairamentos,<br />

através dos seus espiritualizantes espasmos, dos seus<br />

êxtases emocionais e profundos.<br />

A verdade na Arte existe em cada temperamento<br />

sincero que se manifesta, em cada singular sentimento<br />

que se revela, em cada alma original que vem dizer o<br />

seu segredo à Vida!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 485<br />

Porque a perfeita verdade da Vida na sua alta e<br />

pura essência, não é tangível – é intangível. Para apanhála<br />

não se faz mister uma visão direta, uma observação<br />

imediata, muito perto dos fatos, muito em cima dos tipos,<br />

nem um psicologismo científico sistemático, à outrance.<br />

A frase do egrégio Balzac – o artista adivinha o<br />

verdadeiro – é de uma eloqüência profunda e<br />

transcendental neste assunto.<br />

A vida é real e é ideal, é ideal e é real. As<br />

inverossimilhanças, as coincidências, os acasos, os<br />

pressentimentos, a fatalidade dos seres, os absurdos,<br />

as exceções dos fenômenos gerais, as correntes de<br />

atração simpática ou antipática, as impressões<br />

desconhecidas, os espasmos ou estados patéticos, o<br />

contato, o choque, o encontro magnético e curioso das<br />

almas, o Indefinido das cousas, como que constituem o<br />

secreto lado ideal, fantástico, de sonho, da Vida.<br />

A alta verdade da Vida está em Hamlet – pêndulo<br />

miraculoso e eterno que marca as oscilações da Alma.<br />

Hamlet surge-nos de um fundo diluído e tocante<br />

de lágrimas e lírios, da evocação simpática e doce do<br />

Angelus das almas, num crepúsculo abençoado de infinita<br />

dolência, espiritualizado como um círio divino<br />

bruxuleando na câmara mortuária das almas numa luz<br />

final consoladora.<br />

Hamlet é o céu melancólico das almas, cujas<br />

estrelas tristes, contemplativas, deslumbram-nos de um<br />

gozo quintessenciado e nos tornam cegos e perplexos de<br />

Indefinível...<br />

Hamlet é a grande ansiedade do Sonho, é o Sonho<br />

se dilatando, se dilatando, como celeste, sideral<br />

serpente, na esfera da Dor, tomando nessas<br />

transfigurações, esses velados, sombrios silêncios e essas<br />

nevrorias mentais da Dúvida.<br />

Hamlet é o violino imortal e secreto do Pensamento<br />

humano que as torturantes noites nebulosas da<br />

Consciência ferem de sons desolados.


486 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Hamlet é o Arcanjo supremo das nostalgias, branco<br />

e belo, meigo, arrebatador e convulsivo, cujo gládio em<br />

chama fosforescente flameja num fundo de sombra de<br />

exótico e fulminante desdém e cujo grave gênio pálido,<br />

de uma alta e velha aristocracia de Sensibilidade,<br />

requintada e esquecida para além nos limbos da Saudade,<br />

se debruça, desespera e chora delirantemente sobre o<br />

ideal firmamento de astros mortos do seu amor...<br />

Hamlet não é louco, não é doente, não é epiléptico,<br />

conforme o veredictum, as investigações e cogitações dos<br />

críticos, dos fisiologistas e psicólogos de todos os tempos.<br />

Hamlet é o zênite da alma humana, nos seus<br />

momentos augustos e tremendos, nos seus estados<br />

soberbos e soberanos de laceração. É o espasmo do<br />

desdém e do orgulho transcendentalizados, acima das<br />

camadas da Terra, girando no Absoluto. É o Abstrato<br />

que odeia e que ama, que perdoa e que castiga. É a<br />

Matéria que tem sede de ser Sombra, para esvair-se,<br />

para apagar-se, para desaparecer da Matéria que a<br />

encarcera, e que a tortura. É a vibrante chama sensível<br />

da Aspiração insaciável que sonha ser o pó do Nada,<br />

para que o invólucro físico e efêmero que a contém possa<br />

acabar de aspirar e de sofrer. É o sentimento da volúpia<br />

radiante, redentora e purificadora da Morte na Vida,<br />

secretamente embalsamando de um aroma letal<br />

estonteador, como um longo e lento beijo imortal de alémtúmulo,<br />

os infinitos da Eternidade.<br />

Cada homem, quando se escuta a si mesmo,<br />

quando se olha a si mesmo, quando se palpa a si mesmo,<br />

quando desce em silêncio à funda cisterna imensa de si<br />

mesmo, há de sentir um pouco de si mesmo no Hamlet,<br />

daquelas irrequietabilidades, daqueles surdos, soturnos<br />

e subterrâneos desesperos, daqueles preguiçamentos<br />

edênicos, daquela alma não alma, daquele ser não ser,<br />

daqueles sublimes vácuos candidamente e<br />

misteriosamente cheios ainda de tépidas e quiméricas<br />

irradiações de estrelas apagadas.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 487<br />

Os tipos de Shakespeare não são absurdos<br />

propriamente ditos, nem são fantásticos; todos, mais ou<br />

menos, existem nos fenômenos livres e simples,<br />

espontâneos, ainda que muito pouco visíveis ou<br />

perceptíveis, da Natureza; isto é, cada um no seu<br />

conjunto, no seu todo, tem as particularidades secretas<br />

peculiares a cada ser. São tipos que rigorosamente não<br />

existem no seu modo complexo. Mas cada sentimento<br />

obscuro, esquisito, raro, subterrâneo, misterioso, de cada<br />

ser em particular, representa uma célula do organismo<br />

de cada tipo de Shakespeare, uma qualidade formadora<br />

daquelas concepções. Esses sentimentos todos, na suma<br />

unidade geral, na mais alta condensação, é que<br />

concorrem para a formação capital das sínteses<br />

maravilhosas de Shakespeare.<br />

Porque nele os tipos vinham por blocos inteiriços,<br />

por avalanches de paixões, por complexidades sugestivas,<br />

o que por isso lhes dá a significava toda especial de<br />

Criações.<br />

Entretanto essas Criações não entram em<br />

absoluto nas regiões do incognoscível absurdo nem do<br />

incompreensível; são, pelo contrário, possíveis e<br />

verossímeis no Tempo e no Espaço, no infinito dos<br />

sentimentos humanos, porque definem esses próprios<br />

sentimentos em teses formidáveis, embora não sejam<br />

tangíveis os objetivos que tais Criações genericamente<br />

representam e simbolizam.<br />

Mas, justamente porque a natureza sutil de certos<br />

fenômenos da alma e da consciência nos tipos de<br />

Shakespeare se encontra harmonicamente num dado<br />

momento com a natureza sutil dos fenômenos da alma<br />

e da consciência humana, num choque emocional<br />

profundo de forças e de elementos que se reconhecem e<br />

equilibram, é que as obras sintéticas de Shakespeare<br />

serão eternamente aclamadas, ainda que só<br />

intimamente e mais profundamente admiradas e<br />

sobretudo mais sentidas por capacidades artísticas, por


488 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

intensidades mentais nervosas cujos fenômenos girem,<br />

mais ou menos, pelos mesmos pólos por onde gira a<br />

genialidade assombrosa de Shakespeare.<br />

Para isso é preciso subir toda a escala misteriosa<br />

da Intuição e chegar a certos altos espasmos psíquicos<br />

da alma.<br />

Esses que dizem perceber Shakespeare, admirar<br />

Shakespeare, sentir Shakespeare, para o fazerem vestem<br />

casacas de erudição por dentro, concentram-se<br />

oficialmente, ficam graves e sérios, tornam-se os difíceis<br />

e os inacessíveis da Sabedoria, porque, no entender<br />

deles, é necessário toda essa compostura solene, todo<br />

esse aparato clássico de maneiras e atitudes, quando,<br />

no entanto, para ver Shakespeare basta penetração clara,<br />

pureza e nitidez de ser, porque ele é uma expressão da<br />

Natureza, por certo a maior, a mais intensa, a mais<br />

condensada, a mais transcendente, mas uma expressão,<br />

uma força fenomenal dela deslocada, como se deslocam<br />

os corpos meteorológicos e cósmicos. Sendo um foco<br />

central Shakespeare é, no entanto, uma expansão<br />

natural dos elementos vivos e superiores da matéria<br />

organizada, é uma voz de todas as vozes, uma hora de<br />

todas as horas, um tempo de todos os tempos, uma<br />

atmosfera de todas as atmosferas, um ser de todos os<br />

seres, uma alma de todas as almas.<br />

Se Shakespeare não tivesse atrás de si séculos,<br />

nem as gravidades dos doutos juízos dogmáticos, nem<br />

as fundamentações de teses críticas, nem os<br />

rebuscamentos fundos de análises psicológicas, de<br />

agudos comentários, nem as réplicas e tréplicas famosas<br />

das argumentações cerradas e fecundas como as<br />

camadas da Terra, Shakespeare não seria visto com essa<br />

encenação prodigiosa nem com esses estilos oficiais,<br />

nem com esse fundo sonhado que lhe dá a distância do<br />

tempo. Quase que já se aliena do cérebro a idéia de que<br />

Shakespeare fosse matéria animada, estivesse sujeito<br />

às leis fisiológicas dos outros homens. Hoje o seu Gênio


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 489<br />

perde-se no Espaço, é como o fio do infinito do Espírito<br />

unindo-se etereamente ao fio do infinito da Matéria e<br />

formando um só corpo abstrato.<br />

Para entender, para amar, para sentir<br />

Shakespeare é apenas preciso vê-lo sem convenções nem<br />

preconceitos obscuros de consciência, na mais fácil,<br />

franca e vital nudez do Sentimento, na espontaneidade<br />

do ser, em toda a largueza genésica das suas obras, em<br />

toda a sua amplidão de Liberdade, em todos os seus<br />

gritos de Justiça, em todos os seus brados de<br />

Misericórdia, em todos os seus ais de Piedade, em todo<br />

o seu clamor de Desespero, em todo o seu soluço<br />

universal, em toda a sua dor augusta, suprema, em todo<br />

o seu amor integral e germinal da Natureza.<br />

Shakespeare é uma dessas cristalizações puras e<br />

excepcionais das Paixões, o seu consumado e colossal<br />

gladiador.<br />

Shakespeare, assim como Dante, pelo maravilhoso<br />

das chamejantes esferas psíquicas onde os seus espíritos<br />

rodavam estranhamente, singularmente, pela<br />

grandiosidade patética dos seus aspectos sublimes, pela<br />

resplandecente flagrância, pelo caráter genuinamente<br />

livre, altivo e soberano da sua Imaginação, pelas<br />

iconoclastias à fórmula da Compreensão secular estreita,<br />

pelas irreverências ao Método e ao Dogma, deduzidas<br />

fatalmente e logicamente dos grandes traços gerais e<br />

dos profundos golpes de vista das suas obras, dos seus<br />

temas fundamentais e revolucionários em absoluto, por<br />

conseguinte contra a Convenção moral e espiritual do<br />

Mundo; Shakespeare e Dante, fora do oficialismo e do<br />

classismo dos seus renomes imortais, mas vistos em<br />

toda a larga e luminosa amplidão da Natureza, como<br />

devem ser vistos os grandes Espíritos, são os trágicos e<br />

majestosos faróis magnos de todas as épocas, os órgãos<br />

poderosos e mágicos da Sensibilidade humana.<br />

Shakespeare nos evoca as correntes vulcânicas,<br />

largos e fundos abalos atmosféricos, rara e curiosa


490 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

elaboração de um novo sistema planetário, vales de rosas<br />

e de lágrimas, eclipses de sol e de lua, o Caos tomando<br />

forma e tomando corpo, a luz, por fim, se projetando e<br />

iluminando a Imensidade.<br />

Shakespeare é a Vida por camadas densas,<br />

chamejando e clamando, polarizada no abismante infinito<br />

do Sonho.<br />

Shakespeare é o Grandioso do Belo-Horrível, do<br />

Trágico-Sublime e do Trágico-Grotesco, do Riso-Lúgubre,<br />

do Sarcasmo de lama, estrelas e ais – é o Deus infernal<br />

e o Diabo divino.<br />

Shakespeare é a Flora absurdamente gigantesca,<br />

esquisita e ensangüentada do estranho e morno mar<br />

marulhoso e maravilhoso dos gemidos, dos soluços, das<br />

lágrimas.<br />

Quanto à observação, essa é o fatigado, o gasto<br />

lugar-comum dos que muito pouco ou mesmo nada<br />

possuem além dela. É evidente que um artista, desde<br />

que chegou a requintes superiores, desde que a sua<br />

concepção e forma atingiram graus elevados, se<br />

espiritualizaram, se eterificaram em abstrações, a<br />

origem dessas perfectibilidades, o crisol onde esse artista<br />

se apurou foi no da observação, no da análise. A<br />

observação parece a força mais poderosa, a qualidade<br />

mais particular para os realistas da última hora, porque<br />

no Realismo a observação é flagrante pelo documento<br />

humano, é flagrante nos objetos, nos aspectos, nas<br />

atitudes, nos tipos. Ligeiramente visto, parece, com<br />

efeito, ser a mais radical qualidade, por ficar mais em<br />

evidência, mais no primeiro plano, fazendo como que<br />

um grande relevo no Realismo e sendo assim, por isso,<br />

mais acessível às faculdades inferiores da atenção, da<br />

visualidade e da memória. Mas, o que é certo, é que em<br />

todos os tempos, para dizer um aspeto de céu, de<br />

paisagem, para traçar um fato ou um tipo, nas<br />

narrativas, novelas e romances antigos, houve sempre<br />

a observação, senão com a perfeição e apreensão


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 491<br />

modernas, ao menos com os elementos que as épocas<br />

forneciam. E mesmo nunca se poderia prescindir dessa<br />

observação na ocasião de puras descrições e desenhos<br />

de lugares, de horas, de acontecimentos, de paisagens.<br />

Por isso não me parece que seja a observação faculdade<br />

suprema. Acho-a muito evidencial, muito física, muito<br />

de nota e informação subsidiária, participando muito da<br />

natureza dos trabalhos de investigação material, de<br />

detalhes, de minudências, para poder constituir e<br />

representar a força magna do Pensamento humano. É<br />

até às vezes faculdade elementar, conseguida mais pela<br />

tenacidade de organismos por algum modo oficiais,<br />

inferiores, pela pesquisa paciente, de visão<br />

perscrutadora, do que pelas linhas profundas que formam<br />

a estesia eleita de um artista.<br />

A observação constitui a força básica do artista,<br />

dela é que ele parte para as mais altas abstrações<br />

estéticas, como os Decadentes, os Simbolistas, os<br />

Místicos partem das cruezas brutais do Materialismo,<br />

da tangibilidade do Realismo e do agudo e livre exame<br />

das Idéias positivas, além de outras absolutas origens<br />

idealistas nevro-psíquicas, num movimento natural,<br />

simples e até nobre e claramente evolutivo, de requintes<br />

da alma.<br />

Se dado artista chegou logicamente a um apuro<br />

maior de emoções e só as determina de um modo<br />

abstrato, vago, fluido, não quer isso dizer que ele não<br />

tenha observação, pois essa se enuncia e consubstancia<br />

muitas vezes apenas num vocábulo exato, determinante<br />

próprio e profundo do sentimento, essa ficou, como os<br />

resíduos de um corpo líquido que se filtra, no fundo<br />

daquelas mesmas emoções mais requintadas. E, como a<br />

natureza não dá saltos, uma fisionomia legítima de<br />

artista, desde que se perfectibilizou no pensar e no<br />

sentir, passou primeiro pelos processos, embora obscuros,<br />

desconhecidos, meramente mentais, da mais pura<br />

observação, deixando simplesmente dela, para trás, tudo


492 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

quanto ela tem de mais presente, seco e documental. É<br />

precisamente um trabalho delicado de alquimia da<br />

Emoção, para dar cristalinidade astral ao Espírito e à<br />

Forma, que no organismo artístico intuitivamente e<br />

invisivelmente se opera.<br />

De outro modo, não se daria então o caso dos<br />

artistas que não são realistas se compenetrarem, com<br />

inteira compreensão e unção, do sentimento de<br />

observação e análise de todas as obras verdadeiramente<br />

notáveis, singularmente belas do Realismo.<br />

Aqui mesmo, agora, no que vamos naturalmente<br />

dizendo, com este ar de livre e leve bom humor, estamos<br />

exercendo a observação, mais do que a observação a<br />

análise, mais do que a análise, a direta, a penetrante<br />

psicologia das Cousas.<br />

A observação, a análise, a psicologia, depuradas,<br />

filtradas pela Sensibilidade, produzem, em essência, a<br />

Abstração.<br />

E, já que abordamos estes pontos curiosos,<br />

atraentes, ouve ainda o que penso: Quanto à prosa, para<br />

ligar um fio de palestra que já há dias tivemos e que<br />

agora correlaciona-se a estes assuntos, dir-te-ei que a<br />

prosa não é qualidade excepcional dos prosadores<br />

exclusivos. Para um espírito complexo de Arte, para o<br />

verdadeiro Clarividente, para o Poeta, na grande acepção<br />

de sensibilidade desse vocábulo, prosa e verso são teclas,<br />

órgãos diferentes onde ele fere as suas Idéias e Sonhos.<br />

Prosa e verso são simples instrumentos de transmissão<br />

do Pensamento. E, quanto a mim, se me fosse dado<br />

organizar, criar uma nova forma para essa transmissão,<br />

certo que o teria feito, a fim de dar ainda mais<br />

ductilidade e amplidão ao meu Sonho. Nem prosa nem<br />

verso! Outra manifestação, se possível fosse. Uma Força,<br />

um Poder, uma Luz, outro Aroma, outra Magia, outro<br />

Movimento capaz de veicular e fazer viver e sentir e<br />

chorar e rir e cantar e eternizar tudo o que ondeia e


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 493<br />

turbilhona em vertigens na alma de um artista definitivo,<br />

absoluto.<br />

A prosa não pode ser sempre de caráter imutável,<br />

impassível diante da flexibilidade nervosa, da aspiração<br />

ascendente, da volubilidade irrequieta do Sentimento<br />

humano. Não há hoje, nesta Hora alta e suprema dos<br />

tempos, fórmulas preestabelecidas e constituídas em<br />

códigos para a estrutura da prosa, principalmente quando<br />

ela é feita por uma sensibilidade doentia e extrema. Há<br />

tantas maneiras de fazer cantar a prosa, de a fazer viver,<br />

radiar, florir e sangrar, quantas sejam as diversidades<br />

dos temperamentos reais e eleitos.<br />

E um caquetismo intelectual ou cavilosidade dos<br />

que só produzem verso e dos que só produzem prosa,<br />

não perceberem que determinado artista se manifesta<br />

igualmente no verso e na prosa, especialmente quando<br />

nessa prosa ele consegue traduzir, comunicar com<br />

clareza, com profundidade, a sua estesia, a sua<br />

idiossincrasia, os seus êxtases, as suas ansiedades<br />

íntimas. Pouco importa que essa prosa não guarde<br />

regularidades de preceitos, de dogmas, de convenções,<br />

que embora partindo às vezes de cérebros até certo ponto<br />

livres, são ainda, de certo modo, por certas causas,<br />

convenções puras. O que importa é que o artista consiga<br />

dizer imperturbavelmente, com a sinceridade dos seus<br />

nervos e da sua visão, o que de mais delicado e elevado<br />

experimenta.<br />

Desde que ele tenha conseguido com lealdade<br />

estética essa profunda manifestação do seu<br />

temperamento, tem funcionado na prosa como num<br />

legítimo e perfeito órgão da sua Arte, com toda a virginal<br />

originalidade das formas inquietas, dos estilos que não<br />

são apenas literariamente feitos, que não são apenas<br />

literariamente burilados, intelectualmente brunidos,<br />

mas das formas sentidas, vividas, mas dos estilos<br />

arrancados, sangrados, vibra dos eloqüentemente da<br />

Alma.


494 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Se essa determinada prosa dá sugestões, desperta<br />

curiosidades, faz acordar a imaginação e consegue trazer<br />

no estilo modalidades perfeitamente originais,<br />

correspondentes à originalidade do temperamento do<br />

artista, como, pois, que o que ele produz, não é prosa,<br />

não se deverá chamar prosa?<br />

Por um lado até mesmo parece que não deveria<br />

ser esse o seu nome; não por não abranger o pretendido<br />

sentimento e forma especiais, particulares, da prosa,<br />

mas por ultrapassar, por superiorizar-se, por tomar outra<br />

elasticidade, outras vibrações, outras modalidades que<br />

a prosa convencional e feita sob moldes estabelecidos<br />

jamais comporta.<br />

Demais, prosa e verso, numa dada natureza, são<br />

cordas vibráteis, manifestações integrais e simples de<br />

uma Estética pura e à parte.<br />

E, dessas cordas vibráteis, se muitos possuem<br />

apenas uma, com delicadeza, intensidade e correção<br />

superior, não quer isso dizer que outros não possam, por<br />

excepcionalidade, possuir duas, com igual ou maior<br />

correção ainda, o que simplesmente indica complexidade<br />

e força.<br />

Um ser artístico assim é como uma harpa exótica<br />

de duas cordas: – uma corda para a prosa, outra corda<br />

para o verso, formando os sons de ambas essas cordas<br />

uma igual harmonia.<br />

Há horas em que o espírito, por infinitas dolências,<br />

pela volúpia do Vago, pelo desejo consolador de elevar<br />

cânticos às Esferas, de compor músicas leves, sutis,<br />

ritmos langues, finas baladas, peregrinas barcarolas, de<br />

murmurar, enfim, queixas veladas, cinzela estrofes, vaga<br />

pelas gôndolas siderais da Poesia...<br />

Mas, há também outras horas, em que o espírito,<br />

revestido de severas vestes talares, é arrastado por<br />

sugestões desconhecidas de uma eloqüência magna,<br />

mais indutiva, comunicativa e direta e fala então<br />

clarividentemente pelo Salmo austero da prosa.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 495<br />

Da prosa que nos faz viver com as suas vidências<br />

sugestivas, que cria para nós novos mundos imaginativos,<br />

que nos revela tesouros virgens, intactos de pensamento<br />

e que nos abre de par em par as portas de uma outra<br />

Vida.<br />

Da prosa clarividente e percuciente – alvorada de<br />

fanfarras de ouro e diamantes, que acorda, chamando<br />

alvoroçadamente e nervosamente a postos, os belos e<br />

bravos legionários da Reivindicação do Espírito!<br />

Do verso que nos desperta, que nos chama com<br />

seu amor, que nos procura, que vem a nós<br />

generosamente, que nos conquista e que nos bate<br />

heroicamente ao peito com suas asas de águia.<br />

Do verso que renasce, que ressuscita na glória da<br />

Forma e que semeia d’estrelas e de lágrimas o seio<br />

branco, cândido e fecundo da Alma.<br />

E a Originalidade alacridade nervosa, vinho<br />

acídulo e delicioso da sensação, extravagante humor corde-rosa<br />

– timbra claro e quente, com os afidalgamentos<br />

do Estilo, a emotiva e esdrúxula linguagem do<br />

atormentado Sentimento.<br />

Depois, há naturezas que são como cristais de<br />

múltiplas facetas; têm diversas irradiações, brilhos<br />

imprevistos, que são fugidios, escapam a muitas<br />

percepções.<br />

Depois, certas percuciências, certos atilamentos,<br />

certos golpes acres e fundos, embora por síntese, em<br />

tudo quanto é meandro e capciosidade do medalhismo,<br />

certos sentidos, exotismos de forma, dão, para certa<br />

classe incolor e inodora de inteligências, um efeito<br />

d’escândalo obsceno. Como que perfeitamente causam,<br />

sempre, em todas as épocas, em todas as fases, a<br />

sensação brusca, violenta, de um homem flagrantemente<br />

nu entre outros homens inteiramente vestidos e muito<br />

apertados numa espécie de espartilho de convenção<br />

intelectual.


496 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

– É como a velha questão das escolas, dos grupos,<br />

que desorienta e confunde a tantos.<br />

– É verdade, as escolas, as escolas! As escolas só<br />

ficam com os principais, com os chefes ou fundadores.<br />

Só os que conseguem marcar fundo a expressão de um<br />

sentimento e de uma forma, os que têm os<br />

arrebatamentos e alucinações do Sonho e que pairam<br />

fora das órbitas geralmente traçadas. Os mais são<br />

apenas satélites, reflexos pálidos, metidos numa<br />

compreensão restrita como em escuros, lôbregos e<br />

estreitos corredores. Essas filiações, pois, desde que não<br />

há grandes asas desvairadas para plainar no alto, só<br />

amesquinham e vão aos poucos inoculando o espírito<br />

frívolo de moda nos que não possuem temperamento<br />

ingênito nem essa força de isolamento mental para criar<br />

sem sugestões diretas, imediatas. Quanto aos grupos,<br />

tanto quanto é mister a organizações sociais, não há<br />

grupos constituídos, como a Sociedade Amor às Letras,<br />

a Palestra Amena, a Brisa e o Grêmio do Momento<br />

Solene. Os grupos, como se compreende, são os que se<br />

podem dizer criados por abstrações, isto é,<br />

individualidades que já existindo, aqui, além, lá, em todo<br />

o tempo, vêm a se ligar mais tarde, no mesmo meio ou<br />

fora dele, por grandes linhas gerais, por correntes de<br />

simpatia intelectual, por inteiras relações de afinidade<br />

estética, por harmonia de requintes até certo modo unos,<br />

embora cada uma dessas individualidades tenha a sua<br />

enfibratura especial correspondente a um dado requinte.<br />

Os grupos, quanto a mim, só se estabelecem assim,<br />

independente da vontade própria de cada um, mas por<br />

um impulso desconhecido, por um instintivo apuramento,<br />

por uma seleção natural que foge a todas as regras<br />

preestabelecidas.<br />

Assim, meu caro e saudoso seminarista de<br />

outrora, de que servem argumentos de ferro, de que<br />

valem confusões e atropelos, se tudo, na Arte, vai se<br />

aclarando numa luz meiga, inefável, serena como a desta


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 497<br />

tarde que nos envolve, se tudo são embaraços que<br />

desaparecem uma vez que se adquire a força altiva,<br />

embora obscura e humildemente desenvolvida, de uma<br />

convicção e fé verdadeiras?!<br />

Em Arte é escusado negar quem for um ser<br />

definitivo, supremo, como também é escusado afirmar<br />

quem o não for. Não é a opinião deste nem daquele,<br />

nem mesmo do mundo inteiro que afirma ou que nega;<br />

mas sim única e simplesmente a Natureza nas<br />

espontâneas, flagrantes Revelações, no poder misterioso,<br />

na inevitabilidade dos seus fenômenos profundos.<br />

Depois, quando se chega a certas claras alturas;<br />

quando, transfigurados, nos encontramos frente a frente,<br />

e de olhos leais e límpidos, com a verdadeira magia do<br />

Belo; quando, afinal, sentimos dentro em nós viver o<br />

Absoluto, ficamos vagamente sorrindo, serenos e<br />

silenciosos, a cabeça um tanto inclinada numa atitude<br />

beatífica, como, na eloqüente mudez das Esferas, sob a<br />

augusta solidão das estrelas, a atitude patética e meio<br />

sonâmbula de um demônio divino.<br />

De que servem, pois, mofas, de que valem, pois<br />

apupos?<br />

É de ti, deste, daquele, que falam, que vociferam?<br />

Pois as bocas, que eles trazem, para que foram feitas?<br />

Para falar, não é assim? Pois que falem, as bocas... Pois<br />

que unjam de fel o teu nome, as bocas... Pois que se<br />

saciem de ti, as bocas... Pois que lubricamente te<br />

devorem, as bocas...<br />

Que te neguem, por pregões ridículos, por decretos<br />

grotescos, que façam, em torno do teu nome, a campanha<br />

cavilosa do silêncio ou das perfídias e caluniazinhas da<br />

mediocridade e nulidade triunfante – que importa isso?!<br />

– se tu, na serena força da tua Fé, vais calmo, vais<br />

tranqüilo, no radiante humor, despreocupado, simples,<br />

dos que caminham, dos que seguem desdenhando<br />

sempre?!


498 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Riem de ti, acaso?! Pois, então, ri-te, tu, do riso...<br />

A tudo isso, a tudo isso, ri-te, ri-te... Por mais venenos,<br />

por mais perversidades, por mais volúpia maligna, por<br />

mais crime, por mais vício psíquico que essas risadas<br />

possam ter, fica simples e alto, intacto, imperturbável<br />

diante de tudo isso e ri-te, – risadas, risadas, grandes<br />

risadas vibradas d’alto e ao largo a tudo isso – grandes<br />

risadas, grandes risadas!<br />

E, um dia, pelas razões ingênitas da tua<br />

organização, se tiveres uma natureza genuinamente<br />

eleita, tocando alto no Sentimento; um dia que a<br />

manifestares toda inteira, amplamente, tal como se foi<br />

ela de grau em grau fecundando, verás o abalo, os<br />

turbilhões de ar que irás aos poucos deslocando em torno<br />

de ti.<br />

A princípio, os mais fátuos, que te julgarem<br />

conhecer melhor, só sentirão e conhecerão de ti os lados<br />

visíveis, os pontos de perfeita tangibilidade.<br />

Mas, quando a obra que estiver chamejando dentro<br />

de ti for tomando complexidades, absurdos novos,<br />

exotismos, eloqüências esquisitas e por isso<br />

inocentemente agressivas, atacantes e demolidoras nas<br />

suas linhas gerais, sem parti-pris, sem pose, mas por<br />

fundamentações e interações, tudo se bandeará do teu<br />

lado, os de mais lisura ou mais afeta dos apenas de<br />

intelectualidade recuarão de ti como se tivesses lepra<br />

ou trouxesses estigmas infamantes, labéus ignóbeis, e,<br />

desde logo, a cisão fatal se dará então subitamente,<br />

pejando o ar de dissabores amargos de veementes<br />

dissensões...<br />

É como se tu fosses por um livre caminho a fora<br />

com diferentes companheiros e de repente o caminho<br />

se bifurcasse: – várias encruzilhadas, uma direita, clara,<br />

extensa, as outras curtas e tortuosas, se te apresentas<br />

sem diante dos olhos.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 499<br />

Tu seguirias pela mais longa, pela mais ampla,<br />

pela mais larga. Poucos te acompanhariam. A maior parte<br />

tomaria as fáceis encruzilhadas curtas, mas tortuosas...<br />

E, se um dia, chegado primeiro que eles ao termo<br />

da viagem, em virtude da mais pronta acessibilidade do<br />

caminho largo, franco, direito, tivesses de os encontrar<br />

mais tarde, poderias, não há dúvida, apertar-lhes<br />

lealmente as mãos, falar-lhes com simplicidade e afeto,<br />

abrir-lhes cordialmente os braços, mas terias ficado,<br />

pelas dispersadoras fatalidades do tempo, já muito<br />

afastado, muito longe deles.<br />

É que as almas, quando chega a hora alta e grave<br />

dos supremos julgamentos, das seleções supremas,<br />

separam-se inevitavelmente, sem remédio, irreconciliáveis<br />

e tristes, só ficando juntas sempre aquelas que<br />

marcham para o centro inflamado do mesmo Objetivo.<br />

Depois, mesmo, neste deserto de pedra das almas,<br />

as almas brancas, essas que trazem a Grandeza e a<br />

Espiritualidade consigo, essas, em virtude das Dúvidas,<br />

das Oscilações ambientes, têm que soluçar até à morte!<br />

Enquanto passares por certa fase de incipiência;<br />

enquanto deres a esperança de ser uma eterna<br />

esperança; enquanto te julgarem o perpétuo acólito<br />

reverenciador e discreto, a fácil muleta de apoio às suas<br />

vaidades e pretensões, todos te bafejarão como um<br />

recém-nascido beijocado de mimos, amamentado com<br />

carinhos babosos, cercado de cuidados infinitos, de<br />

enleios afagadores. A Hidra das Literaturas, supondo-te<br />

tímido e nulo, te embalará em seu seio, iludida contigo,<br />

dizendo soturnamente: – este é dos nossos! este é dos<br />

nossos!<br />

Mas, assim que levantares resoluta e<br />

inabalavelmente a fronte, assim que começares a<br />

manifestar mais a recôndita sensibilidade dos teus<br />

nervos, a insatisfação da tua estesia, assim que o teu<br />

espírito for se difundindo no espaço, enchendo as


500 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Esferas, a boa Hidra-Mãe te será carrasco, forjando para<br />

a tua cabeça, subterraneamente, a guilhotina feroz!<br />

Vendavais de antipatias, de ódios, de despeitos,<br />

de retorcidas e esverdeadas invejas soprarão<br />

desencadeados sobre os teus ombros atléticos e firmes...<br />

Enfim, carregar cruzes, arrastar calvários, irás<br />

pelo mundo, irás pelo mundo!<br />

Se trazes com efeito contigo uma feição nova da<br />

Arte, trazes contigo uma Dor nova...<br />

Se trazes com efeito contigo a inflamada matériaprima<br />

para fundir os Ideais mais nobres e belos, agora é<br />

só comunicar-lhes vida, intensos sopros de vida, te<br />

concentrares neles, e resplandecer, e alar...<br />

Nessas romarias e escaladas obscuras em que por<br />

ora vais, pelo Espírito, não sejas dos oportunistas da<br />

Arte.<br />

Acompanhe-te, ilumine-te sempre esse profundo<br />

sentimento artístico de abnegação cultual, de<br />

resignação, ou antes de conciliação na Dor, de<br />

desprendimento completo das Ambições e Ostentações,<br />

do Grande-Lânguido Verlaine, alma de meigo lirismo,<br />

essa frescura e velhice cândida de emoção, Fauno-<br />

Sacerdote a oficiar nos Missais hieroglíficos da suprema<br />

volúpia da Forma ou desse outro ducal, aureoladamente<br />

flordelisado e excelso Villiers de L’Isle Adam, sublime e<br />

celeste Artista, que tem para mim um encanto misterioso<br />

de cintilação planetária e uma solenidade sagrada de<br />

tabernáculos intactos.<br />

Que a tua forma seja floresta, seja mar ou seja<br />

céu!<br />

Segue, com unção e contrição, essa espécie dolente<br />

de martirizados Santos sem nichos – Santos temerários<br />

que afrontam com impassibilidade os incêndios<br />

devoradores das paixões do mundo; que, como Santo<br />

Estêvão, se deixam brusca e impetuosamente apedrejar<br />

na concavidade do peito, tendo a douta, a erudita<br />

clemência apostólica de Santo Agostinho.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 501<br />

Segue esses Santos tristes meio obscuros e<br />

poderosos, meio humildes e rebelados, meio ironistas e<br />

sarcásticos. Seres mórbida e voluptuosamente<br />

estesíacos, eles como que trazem um curioso desvio do<br />

sexo, fazendo evocar Santa Teresa de Jesus, cuja<br />

requintada mortificação no recolhimento da cela parecia<br />

significar a tortura máscula, viril, do sentimento de um<br />

eleito da Grande Arte, que se tivesse ido<br />

fenomenalmente asilar, por sutil, imperceptível erro<br />

genésico, num delicado e nervoso temperamento<br />

feminino...<br />

Falo-te assim, venho formando diante da tua<br />

imaginação prenuncial de noviço esta atmosfera de<br />

Evangelho e Religião, não por abusados e calculados<br />

misticismos, mas porque falo a quem, pelo menos, sentiu<br />

já, nas reclusões aquietadoras do Seminário, os grandes<br />

e graves Ensinamentos e Eloqüências e Intuições da<br />

Religião, na sua essência livre, na sua estética original<br />

e na sua harmonia.<br />

Segue, pois, com todos os teus exageros de<br />

natureza, com todos os teus grandes defeitos aclamados,<br />

que a Chatez gloriosa há de esmiuçar e descobrir mais<br />

tarde, para não se sentir muito pequena, diminuída na<br />

tua presença; defeitos só correspondentes a grandes<br />

qualidades, e que constituiriam, só por si, de tão<br />

eloqüentes e francamente excepcionais que são, as obras<br />

mais espontâneas e impressionantes dos que não trazem<br />

nem mesmo esses grandes defeitos, dos que são apenas<br />

individualidades feitas, intelectualizadas, mas não<br />

originadas de fatais e enraizados fundamentos artísticos.<br />

Ah! esta sufocação de ar, esta asfixia, estes<br />

escrúpulos, esta suscetibilidade por ver-se a gente livre<br />

de todos os incipientes, de todos os noviços, que são<br />

eternamente incipientes, eternamente noviços, “porque<br />

não têm horas vagas para obrazinha, porque isso de<br />

Literaturas não dá pão para a boca”, e outras capciosas<br />

razões de impotência que eles entre si discutem.


502 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Sim! porque quanto a mim o Artista é um<br />

predestinado!<br />

Quanto a mim ele é como uma ave estranha que<br />

já nascesse com as suas asas poderosas e gigantescas,<br />

ainda retraídas embora por algum tempo, mas que depois<br />

as fosse abrindo aos poucos, abrindo, abrindo, até que<br />

se distendessem de todo pelos espaços fora, projetando<br />

então a sua grande e consoladora sombra de Amor sobre<br />

o velho mundo fatigado.<br />

Ah! esta ansiedade de segregar-se a gente desses<br />

liliputianos prolíferos, que se reproduzem mais<br />

indefinidamente que os bichos-da-seda; que nos agarram<br />

pelo braço, que nos entram pelos ouvidos, pelos olhos,<br />

que nos atordoam com prosas e versos, sempre muito<br />

superiores e requintados!<br />

Dessas individualidades grotescas, que querem<br />

tomar a Arte de assalto e à bruta, sem nunca<br />

compreenderem profundamente as cousas, por mais que<br />

falem, por mais que gesticulem; verdadeiros animais de<br />

corrida que pensam que a Arte é uma questão de aposta<br />

para ver quem chega primeiro e mais garboso ao final.<br />

Iconoclastazinhos, sem essa veneração nobre, sem<br />

esse recato elevado, esse melindre das naturezas<br />

concentradas, cujo acatamento e cujo fundo de timidez<br />

característica são o toque mais belo e mais digno dos<br />

que reconhecem justa e eloqüentemente a superioridade<br />

dos outros, exprimindo e demonstrando também assim,<br />

por essa forma simples e simpática, uma das faces da<br />

sua própria superioridade.<br />

Oh! insaciável, ardente aspiração de árvore antiga,<br />

legendária, que quisesse ficar completamente liberta<br />

de todas as parasitas, de todas as ervas, de todas as<br />

lianas, de todos os musgos, de todas as trepadeiras e<br />

baraços e nervosidades e vertigens de folhagens que a<br />

abraçassem, que subissem por ela acima, que a<br />

povoassem de verdura alheia – deixando-a só, só, simples


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 503<br />

e cheia de sombra, vivendo serena e silenciosa, ou<br />

gorjeada da Aleluia dos pássaros, para a Amplidão azul!...<br />

Não, não será por um estreito pessoalismo<br />

egoístico, por uma compreensão acanhada, por uma<br />

presunção individual que tu te manifestarás com<br />

excepcionalidade de sentir, de ver, de pensar.<br />

Mas o teu lábio arderá de tanta inquietude,<br />

palpitará de tanta febre, sangrará tanto que tu exprimirás<br />

então por Sínteses tudo o que constitui a essência do<br />

teu ser e passarás assim por iconoclasta e pessimista à<br />

outrance, apregoador de falsos paradoxos, demolidor sem<br />

o fundo de um objetivo honesto, fútil, folgazão, mundano<br />

que afinal até inveja as glórias mais decantadas que<br />

cem mil trombetas proclamam das velhas muralhas de<br />

Jericó da Opinião!<br />

Mas tu, como um inquisidor original e santo,<br />

purificarás com o fogo benéfico do teu Espírito essas<br />

chagadas consciências humanas debatendo-se,<br />

desoladas numa impotência que escondem sempre bem<br />

fundo como certos tísicos escondem, negando, o grau<br />

agudo da doença corrosiva e lenta que os dilacera.<br />

Nós outros, que por aí dolorosamente andamos<br />

desbravando as florestas virgens da língua, deflorando<br />

os viços púberes do vocábulo, procurando dizer claro,<br />

claro como trompas sonoras estrugindo no mar sargaçoso<br />

e resplandecente, numa rosada manhã de pesca, claro<br />

como se o sol falasse, os nossos estados d’alma, os nossos<br />

êxtases, as nossas idiossincrasias e inquietudes, de<br />

abelhas nos caprichos curiosos da colméia, somos como<br />

fantasmas múmicos, por desertos, batemos de cheio em<br />

paredes de bronze, rebentamos horrivelmente a cabeça<br />

contra tenebrosas masmorras de granito...<br />

E vê, vê tu lá que não é isso uma visão do avesso,<br />

um modo rude, violentamente carregado, de sentir; –<br />

mas, tu que sonhas, que ambicionas já ser limpo nas<br />

tuas Enunciações, trazer o sinal característico, o cunho<br />

imaculado, a prata e a bronze, a ouro e a aço, a sol e a


504 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

sangue, de uma evidência firme, vê lá bem se não é<br />

assim tudo, se tudo não é corja, corja, corja que rasteja,<br />

corja que raiva, corja que ruge, hordas brutas que<br />

bramem, bárbaras, hórridas hordas...<br />

Através da névoa delicada das cismas que te tecem<br />

brando e emovente crepúsculo nos olhos, eu vagamente<br />

pressinto radiantes lineamentos, revelações curiosas do<br />

teu Oriente espiritual futuro, como das neblinas<br />

tranqüilas e luminosas desta carinhosa tarde que finda<br />

antevejo a aurora flavescente de amanhã...<br />

Sugestivamente, agora, cheia de concentrações e<br />

de vago, a tarde descia, mística, suave e sagrada,<br />

evangélica, para a Religão solene do Silêncio...<br />

Derradeiras harmonias veladas, de sol e sombra,<br />

erram indefinidamente nos espaços...<br />

E, sombra e sol, na transição dessa hora<br />

meditativa, como que parecem sensibilizados, tocados<br />

de emoção humana, de músicas enevoadas, misteriosas,<br />

sonorizando os afetivos acordes de almas virgens, mortas,<br />

felizes e firmes, com alvuras meigas de Castidade, na<br />

solidão da Fé cristã.<br />

Dorsos de colinas, ao fundo do mar calmo,<br />

recortam-se nitidamente no horizonte, já mais vago,<br />

esfuminhando o doce tom de verdura que ao longo e ao<br />

largo aveludesce.<br />

Um barco, lentamente, fere as águas melancólicas<br />

do verde e vasto mar amargo.<br />

A embaladora dormência dos aspectos dá um<br />

repouso pacificante...<br />

E, dentre a crepuscular serenidade, mais densa<br />

aos poucos, voa, vai e vem e volta através da espuma<br />

branca das ondas, pelos aloendros floridos e salitrosos,<br />

uma ave alvinitente, de incomparável suavidade, que<br />

não canta, mas que dá saudosamente à tarde a mais<br />

tocante espiritualidade só com o encanto aéreo dos vôos,<br />

só com o ritmo leve, fino, das asas simples e venturosas...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 505<br />

O sol, nos opulentos damascos do Poente imergira<br />

já de todo, profundamente: – Nero lascivo, em tédios<br />

augustos, no gozo mórbido das chamas rubras do<br />

incêndio de Roma; Rei guerreiro, por entre as púrpuras<br />

sanguinolentas de acres batalhas.<br />

As sombras, vagarosas, no delíquio final do dia,<br />

descem, descem...<br />

Estrelas, num esmalte finíssimo de cristais e<br />

pratas, começam a florescer, a marchetar o firmamento,<br />

em faiscantes e trêmulas claridades de Relíquias<br />

miraculosas.<br />

Soberba, imensa, prodigiosamente branca,<br />

misteriosa, como eterna paixão estranha, uma lua<br />

brumosa, feiticeira e lendária, surge, trazendo vivamente<br />

um desejo na face triste, atormentada, arrastando<br />

pesadelos sinistros de assinaladores presságios de<br />

vingança...<br />

A paisagem amplia-se num adormecimento<br />

luminoso e velado, toda ela recendendo aromáticos<br />

eflúvios, como se névoas delicadas de perfumes<br />

luxuriosos, queimados em ânforas invisíveis, ondulassem<br />

vaporosamente...<br />

E, sob a noite, que pompeava profunda, aureolada<br />

da resplandecência maravilhosa das Estrelas e da Lua,<br />

os dois vultos, como missionários graves dos sombrios e<br />

supremos Sacrifícios, seguiram mudos, calados, a cabeça<br />

descoberta ao sabor carinhoso da aragem perfumada.<br />

Assim graves e abstratos caminhando<br />

atravessavam agora as abóbadas cheias de segredos<br />

noturnos das grandes árvores frondosas de um vasto<br />

parque, parecendo, então, pela austeridade religiosa que<br />

os exaltava nesse momento, penetrarem, reverentes e<br />

calmos, paramentados solenemente, no majestoso<br />

Vaticano da Arte.


506 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

MORTO<br />

No féretro negro, por entre os círios langues, o<br />

grande, o doloroso Errante está serenamente morto.<br />

Está morto, no féretro negro, para nunca mais<br />

ressurgir! aquele espírito doentio e torturado, aquele<br />

organismo triste, tenebroso, que trágicos pessimismos<br />

humanos fecundaram do ódio mais canceroso,<br />

gangrenado.<br />

Ali está, gélido, rígido, alto, esquelético, com o<br />

fino aspecto delicado e singular de um magno aristocrata<br />

martirizado, inquisitoriado, a cujo fugitivo semblante<br />

duros cilícios deram a expressão lancinante de sacrifício<br />

ascético.<br />

Não sei sob que sugestão de pesadelo ou de letargo<br />

fica o pensamento diante desse mortuário aparato, que<br />

o morto parece avultar aos meus olhos, ter a enformatura<br />

titânica, a grande e extraordinária corpulência de gigante<br />

rojado por terra, subjugado, vencido pela majestade<br />

suprema de uma dor avassaladora, imensa...<br />

Do tom negro do féretro destacam, brusca e<br />

pavorosamente, os tons brancos, álgidos, crus, irritantes,<br />

dos gelos da Morte...<br />

O corpo, hirto, tensibilizados os nervos na extrema<br />

convulsão do tremendo e derradeiro momento, tressua<br />

um frio horrível, lesmento, que parece, tal a agudeza da<br />

impressão mortal que se experimenta, tocar,<br />

envenenando, por filtros letais, o pensamento...<br />

No silêncio aflitivo e torvo do ambiente como que<br />

vagam, num refrain lúgubre, numa sinistra litania,<br />

errantes, incoercíveis vozes de além-túmulo, crocitando:<br />

morto, morto, morto!<br />

E a impiedosa palavra, amargamente desdobrada<br />

em angústias, ecoa, ecoa, perde-se no silêncio aflitivo e<br />

torvo do ambiente, como um dobre agudo, cortante,<br />

arrepiando e pungindo: – morto, morto, morto!...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 507<br />

No entanto, esse aristocrático cadáver, que agora<br />

tudo aterroriza e lesma, edificou outrora na Imaginação<br />

palácios encantados de índias opulentas, bebeu o vinho<br />

perturbador da Vida até à saciedade, sentiu com<br />

intensidade a paixão das cousas como chamas eternas<br />

que o devorassem e, como por um lodo verde e putrefato,<br />

foi vorazmente invadido pela febre pestilenta do Mal...<br />

Goza-se agora uma sensação esquisita, mas<br />

eloqüentemente bela, em evocá-lo em Vida: quando ele<br />

voltava da vertigem, da alucinação das turbas; quando<br />

ele errava exilado, perdido, lívido, soturno, silhuético<br />

na sombra da multidão desdenhosa, arrastado pelo<br />

turbilhão devorador dos fatos, sem hora e sem rumo,<br />

como fora de todo o tempo e de todo o espaço – fantasma<br />

do Vácuo, impelido pela avalanche sangrenta dos<br />

sentimentos atrozes que o apunhalavam, que o<br />

retalhavam...<br />

Evocá-lo em Vida, desde a profunda cabeça que<br />

um nirvanismo búdico assinalava, cabeça venenosa de<br />

serpente que em vão a si própria morde, cabeça donde<br />

voejaram idéias sinistras como famulentas aves de<br />

rapina.<br />

A face, branca e lânguida, de um estremecimento<br />

precocemente senil, que os livores de intensa mágoa<br />

tornavam ainda mais branca, mais esmaecida e<br />

transfigurada... Face trêmula e fria, como velho e<br />

maravilhoso mármore móvel, acusando todos os<br />

nervosismos interiores, todas as vibrações recônditas,<br />

todos os tédios desesperados e infinitos.<br />

Os olhos lúridos, desse lúrido sombrio que dá a<br />

biliosa expansão dos ódios, olhos turbados pelos nevoeiros<br />

da amargura, pela melancolia da meditação, ou<br />

estranhamente iluminados pelos incêndios do delírio e<br />

onde a feérica fantasia rutilara e cantara outrora; esses<br />

olhos fatigados que tanto se queimaram de curiosidades<br />

exóticas, de visualidades fantásticas, de miragens<br />

excêntricas, que tanto se embriagaram na orgia da luz


508 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

e do sangue, que tanto viram, gozaram, se extasiaram e<br />

esgotaram na paixão de olhar, que tantas vezes sentiram,<br />

atônitos, estupefatos, a Visão do Ignoto persegui-los,<br />

afligi-los, agoniá-los...<br />

A boca, a boca mordaz de outrora, acre, violenta,<br />

remordida asperamente de um sarcasmo satânico,<br />

ansiada de apetites, aberta na febre voluptuosa de devorar<br />

os frutos atraentes do pecado, e rubra, rubra, acesa num<br />

colorido vermelho de guerra, gritando e cantando guerra,<br />

gritando e cantando guerra, gritando e cantando guerra,<br />

guerra, guerra, guerra, por toda a parte, por toda a parte,<br />

por toda a parte...<br />

Evocá-lo nas mãos, luxuosas mãos de príncipe<br />

esvelto, esgalgado, nas mãos de falanges longas, e<br />

rememorar que gestos curiosos, magos, que hieróglifos<br />

demoníacos, que símbolos miraculosos aquelas mãos não<br />

traçariam finamente no ar!? Quanto poder dominativo,<br />

real, que solenes predomínios, que majestade suprema,<br />

só com um sinal rítmico dessas mãos inteiriçadas agora!<br />

Quanto ideal e quanta glória impulsionados no gesto<br />

simples, sóbrio, das mãos que tão veementemente<br />

palpitaram, que tanto estremeceram e pulsaram vivas<br />

como dois estranhos corações que vibrassem juntos! Que<br />

fugidias expressões nas linhas, nas curvas e que fluido<br />

de mistério, que segredo nos atritos, no contacto quente<br />

dessas mãos que foram já os seres caprichosos, flexíveis,<br />

dúcteis, das delicadezas da forma. Dessas mãos<br />

batalhadoras, combatentes, tenazes, onde uma vitalidade<br />

excepcional de atividades circulava; mãos intrépidas,<br />

vitoriosas, cheias de emoção, de sensibilidade, de alma,<br />

penetradas de uma bravura indômita de aplicação, de<br />

altivez e sereno orgulho; mãos donde parecia alarem-se<br />

leves asas diáfanas e triunfais de um sonho e cuja<br />

ramificação das veias, em múltiplos raios estriados,<br />

parecia também acusar uma eflorescência perpétua de<br />

qualidades, de aptidões, de sentimentos, de gostos, de<br />

secretas e particulares predileções do tato...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 509<br />

Para onde foi, já, todo esse surpreendente encanto<br />

das mãos, toda essa maravilha de sutilezas de pássaro,<br />

de névoa, de nuvem, que as duas mãos enigmáticas desse<br />

enregelado e esgalgado cadáver por tanto tempo<br />

prodigiosamente contiveram?! Onde, já, a beleza artística<br />

do seu gesto, a graça da sua ductilidade, a eloqüência<br />

do seu movimento?...<br />

E os pés, – ah – e os pés?! Por onde ficou perdido<br />

todo aquele alvoroço e ardor de caminhar, toda aquela<br />

sede insaciável, toda aquela angústia de percorrer<br />

caminhos, de demandar estradas, de conquistar<br />

distâncias, de romper nervosamente, infatigavelmente,<br />

o rumo de um Destino desconhecido?! Onde essa febre,<br />

essa febre de caminhar, de vagar sonâmbulo, pelas<br />

noites, pelos dias, taciturnamente? Onde? Onde essa<br />

nervosidade, esse calor latente para errar, para<br />

noctambular só, por entre os rudes aspectos hostis da<br />

Natureza fechada em trevas, mudo e só nas noites, sem<br />

estrelas e sem rumo!<br />

Onde a ansiedade vertiginosa, delirante, desses<br />

pés agora frígidos, parados no espasmo terrível, no<br />

doloroso enregelamento, petrificados na amargurante<br />

saudade de rasgar caminhos ermos e infinitos?! Pés<br />

inquietos, impacientes, atormentados pela desolação dos<br />

desertos, queimados pelas tórridas areias saarianas, e<br />

agora – ah! – para sempre álgidos, hirtos e horríveis,<br />

rígidos no féretro, para jamais caminharem, para jamais<br />

errarem, como que numa glacial ironia de mudez e<br />

terror...


510 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

VULDA<br />

Os veludos e aromas noturnos do teu próprio nome,<br />

Vulda, têm o estranho encanto dessa indiana majestade<br />

bramânica e ao mesmo tempo uma volúpia morna de<br />

luar de Verão, derramado lânguido, lento, molemente,<br />

pelas longas e caladas praias claras...<br />

Desperta-me o desejo do longe, do ignoto, do<br />

remoto, do ermo, do indefinido, na nonchalance, na<br />

displicência e preguiça aristocrática de um príncipe êxul,<br />

que erra e sonha, contemplativo e solitário, nas arcarias<br />

góticas dos nobres pórticos onde viera vê-lo, outrora, a<br />

Amada peregrina.<br />

Sempre que o pronuncio, sempre que ele me aflora<br />

aos lábios, Vulda, experimento a sensação esquisita do<br />

sabor de um fruto delicioso, de maravilhosa tonalidade,<br />

sazonado num clima d’ouro e d’azul, por sóis germinais<br />

e terras virgens.<br />

Sempre que o pronuncio, como que sinto o lábio<br />

sangrar, sangrar, pelo gozo vivo, intenso, de o pronunciar,<br />

como se a minha boca mordesse com avidez, com gula, a<br />

polpa deslumbrante de áurea carne viçosa, pubescente,<br />

fina.<br />

Fico num êxtase de o murmurar baixo,<br />

mansamente, e o ficar gozando, gozando, quase<br />

palatalmente, no requinte voluptuoso de todos os<br />

sentidos apurados.<br />

Evapora-se dele o eflúvio emoliente, langue, da<br />

penugem sedosa das gatas a coleante e hipnótica<br />

nervosidade das serpentes, tentando, fascinando,<br />

tentando, magneticamente fascinando pelo brilho agudo,<br />

aterrorizante e elétrico, dos sinistros olhos letíficos...<br />

Como que escorre do teu nome um óleo doce que<br />

tudo fluidifica, dilui...<br />

E faz pensar num vasto mar desolado, deserto,<br />

em regiões longínquas, onde, d’alto, d’asa espalmada e<br />

ufana, pássaros tardos voam...<br />

Nome excêntrico, lembrando o tropicalismo de uma<br />

vegetação exuberada, exultante de seivas, que dir-se-ia


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 511<br />

profundamente vibrada de sensação psíquica, vivendo a<br />

nevrose estética de sentimentos delicados.<br />

Ele evoca-me o colorido extravagante, exótico, de<br />

uma Flor selvagem e rara destas prodigiosas florestas<br />

da ampla e verdejante América – Flor aberta através as<br />

vertigens e as pompas de folhagens seculares e através<br />

as plantas gigantescas e esdrúxulas, de uma<br />

complexidade original de germens, de fibras, de infinitas<br />

raízes, de cheiros acres, mornos e intensos, de nuanças<br />

e formas múltiplas, como de desejos e aspirações vivas.<br />

Teu nome sugestivo, conceptivo, constela-me a<br />

Imaginação de bizarras e preciosas fantasias.<br />

E só de o lembrar, só de o recordar e acender nos<br />

lábios, uma grande Saudade fere-me pungitivamente a<br />

alma, que agitada estremece, e tu, então, surges, Vulda,<br />

surges do meio de um clarão esmaecido – não sei se<br />

viva, não sei se morta!...<br />

Não sei se viva, com a boca alvorada num beijo em<br />

febre, os olhos crepitando na chama de uma luxuriosa<br />

ansiedade, e vagos, vagos na perdida dolência infinita<br />

das cismas e melancolias.<br />

Não sei se morta, álgida, mumificada, os impolutos<br />

braços e seios florescentes outrora, agora lívidos, rígidos,<br />

desvirginados pela peçonha lesmenta, larvosa, da Morte...<br />

E há também o langor d’onda quebrada,<br />

adormentada, Vulda, no teu nome nostálgico e evocativo<br />

de extasiantes ocasos – nome harmonioso, ritmal, de<br />

voluptuosa graça d’ave, voando, Vulda; nome sonâmbulo<br />

de mistério, Vulda; nome impressionante, velado,<br />

solitário e dolente, de monja, Vulda; nome de Visão<br />

alanceada, martirizada, em cilícios e sonhos circulando,<br />

volteando, Vulda; nome, enfim, de trágica, de bárbara e<br />

bela, sanguinolenta Rainha de aventuras e apaixonada,<br />

apunhalando, em gôndolas, sobre golfos, nos<br />

alucinamentos do ciúme, pelas maravilhosas noites<br />

prateadamente estreladas do Adriático, num delírio<br />

romântico, os patéticos Manfredos espiritualizados e<br />

pálidos...


512 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ANJOS REBELADOS<br />

Trindade de tristes e de trêmulos, sombrio terceto<br />

do Dante, todas as tardes, pela violácea bruma poente,<br />

aquelas velhas obscuras apareciam, solitárias, soturnas,<br />

e tomavam diretamente o nebuloso caminho do Campo<br />

Santo.<br />

As suas três altas e graves figuras de impressão<br />

violenta, talhadas em relevo forte, evocavam mesmo,<br />

juntas, um titânico terceto dantesco, pela expressão<br />

funda e singular, pela majestade sagrada que ressaltava<br />

dos seus semblantes pálidos e macerados.<br />

Mas, quem olhasse bem para elas, quem lhes<br />

penetrasse as psicologias profundas, sentiria que através<br />

de toda essa austera e estranha fisionomia pairava uma<br />

candura diáfana, a meiga e terna suavidade de Grandes<br />

Anjos brancos e piedosos.<br />

O encanto de um sonho, o sentimento de uma<br />

infinita nostalgia, dessa nostalgia de seres emigrados<br />

de regiões longínquas e misteriosas nimbavam os seus<br />

perfis assinalados de uma unção celeste.<br />

Era como se elas tivessem realmente descido dos<br />

céus, brancas e arcangélicas, as grandes asas excelsas<br />

palpitando, o grande resplendor das Onipotências e das<br />

Graças nas frontes intemeratas, para purificar e tornar<br />

perfeitas as pobres almas na Terra.<br />

Toda a intensa e nobre vida afetiva, toda a<br />

resignação, todos os abnegados sacrifícios, todo o imenso<br />

martirológio humano cantavam elegias, melancólicas<br />

sonatas nos seus olhos misteriosamente nublados pela<br />

névoa das desesperanças...<br />

Percebia-se que eram Mães, pelo acentuado das<br />

solenes figuras, pela linha das cabeças sublimadas,<br />

grandíloquas, que uma larga auréola de estoicismo<br />

circundava, santificando.<br />

Mas, porque a Dor transforma as almas mais<br />

belas, faz blasfemar as consciências mais firmes e


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 513<br />

crentes, faz poluir de deprecações e anátemas as bocas<br />

mais castas, mais impolutas e santas, as três Dolorosas<br />

se transfiguravam, os seus corações traspassados das<br />

espadas dilacerantes da agonia infinita, enchiam-se de<br />

um torturante fel, de um mal secreto, de uma terrível<br />

cólera sacrílega contra o Vago, o Desconhecido, o Incerto.<br />

E, então, os Grandes Anjos brancos e piedosos<br />

eram agora os Anjos Rebelados, iluminados pela luz das<br />

Vinganças absolutas, de joelhos junto aos túmulos<br />

amados dos filhos, com os braços abertos em êxtase, na<br />

ansiedade e palpitação de asas que desejam abrir vôo<br />

para além, para além das recordações.<br />

A angústia que lhes agitava os espíritos, a<br />

atmosfera circundante: – campas, contemplativos<br />

ciprestes, chorões suspirantes, eucaliptus nervosos e<br />

contorcidos, a doentia vegetação de todo o Campo Santo,<br />

aquele ambiente carregado de impressionismos lúgubres,<br />

de silêncios penetrantes, de solenidades panteístas,<br />

davam às três velhas e aflitivas figuras uma eloqüência<br />

suprema de Videntes.<br />

A rudeza, as asperezas, os volteios chãos e simples<br />

da sua linguagem, vestiam-se, pelo efeito mágico das<br />

intuitivas inspirações, de suntuosos veludos; pompas<br />

augustas de frase davam deslumbramentos inauditos<br />

às suas queixas, iluminavam as suas blasfêmias,<br />

imponderalizavam os seus sacrilégios, que vinham mais<br />

radicais, mais irrefutáveis que Dogmas!<br />

E as imprecações lhes jorravam vivas e violentas<br />

das fundas bocas amargas e murchas...<br />

Uma lividez de desesperos contidos, mais forte,<br />

lhes avivava a máscara trágica dos rostos engelhados,<br />

cujas peles ressequidas tinham, por vezes, com a febre<br />

interior do sangue, leve brilho fugace.<br />

Ventos desencontrados e duros, soprando rijos no<br />

crepusculamento da tarde, agitavam como frouxas e<br />

flébeis cordas de harpa os fios sonoros e cetinosos dos


514 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

seus cabelos alvos, através dos quais passava uma ligeira<br />

música convulsiva, que os desgrenhava...<br />

Eram três pesadelos deblaterantes, hirtos –<br />

cabeças brancas elevadas ao céu, braços espectrais<br />

abertos, abertos, abertos na ânsia das inconsoláveis<br />

saudades, abertos em busca dos bens amados que lhes<br />

fugiram, como vazias cruzes de estradas ermas<br />

esperando em vão os Cristos místicos e ensangüentados<br />

que imprevistamente as desampararam levados por<br />

transluzentes Arcanjos invisíveis.<br />

E, das suas fundas bocas amargas e murchas, a<br />

linguagem blasfematória, assim épica e transcendentemente,<br />

em monólogos, clamava:<br />

– Aqui estou, meu Deus, Senhor! nesta penitência<br />

de angústia, batendo o peito, junto à sepultura querida<br />

do meu filho, murmurando as rezas, as orações da minha<br />

Fé.<br />

Tanto que te pedi, tanto que te supliquei que me<br />

deixasses morrer primeiro que o meu Luís, ou que me<br />

deixasses acabar ao menos perto dele, para que pudesse<br />

cobrir de ardentes beijos os seus olhos azuis que eu<br />

adorava, as suas mãos que batalharam por mim, sentir<br />

o último clarão da sua doce inteligência e alma pura<br />

que só, só para mim viviam, só por mim eram felizes e<br />

carinhosas! O meu primeiro filho, que tanta luta me<br />

custou, tantos perigos, tantos e tão grandes me fez sofrer!<br />

O que eu te pedia, só, Senhor! é que me deixasses meu<br />

filho, tão rico de mocidade, tão rico de esperança, tão<br />

protegido do meu amor e que lá se foi morrer longe de<br />

mim, náufrago, nessa cova medonha do Mar, por uma<br />

noite de tempestade, talvez já sem velas o barco e sem<br />

ao menos, ah!, quem sabe!, sem ao menos estrelas no<br />

céu, Senhor, sem estrelas no céu, Senhor!<br />

Apenas um consolo tive e esse bem amargo, bem<br />

amargo consolo foi.<br />

Quando encontraram o seu cadáver e que mo<br />

vieram piedosamente trazer para que eu o enterrasse,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 515<br />

para que eu sentisse a comoção derradeira de vê-lo e<br />

enfim dar-lhe a sepultura, a última despedida do meu<br />

olhar, o desesperado adeus final; quando mo vieram<br />

trazer, quando vi aquele cadáver amado perto de mim,<br />

ah! como estremeci de horror e de agonia... Como estava<br />

tão mudado, tão desfigurado, tão monstruosamente feio,<br />

de tal modo inchado e esverdeado pela asfixia do Mar,<br />

que não parecia mais ser ele, o meu filho, o meu Luís<br />

adorado que eu trouxera outrora com extremos tamanhos<br />

dentro de meu ventre.<br />

Tu, Senhor, apesar de estares em toda a parte,<br />

de tudo saberes e adivinhares, nunca soubeste o que<br />

era o meu filho, coração simples, religioso e suave como<br />

as humildes ermidas brancas, bondade mansa,<br />

evangélica como a dos bois que ele pastoreava alegre,<br />

cantando...<br />

E como eu me orgulhava quando o via, forte,<br />

generoso, franco, leal como a árvore que dá sombra, como<br />

a fonte clara e fresca que mata a sede, como o céu<br />

estrelado que dá encanto aos olhos. Oh! como ele<br />

percorria aqueles campos íntimos da sua mocidade, onde<br />

a sua infância desabrochou como as rosas, onde a sua<br />

adolescência viu e sentiu ir embranquecendo os meus<br />

cabelos, aprofundando a melancolia das minhas rugas.<br />

Vê tu, pois, que viuvez agora no meu peito, que<br />

desconforto na minha alma, que vazio imenso em torno<br />

a mim sem o amparo, a bondade do meu filho, esse<br />

bordão seguro a que eu me arrimava na cegueira da<br />

minha velhice, o meu filho, a única, a melhor e maior<br />

claridade que iluminou sempre a minha pobre cabeça<br />

branca.<br />

Ó Deus sem piedade, ó Deus sem religião e<br />

compaixão, maldito sejas! Que Satanás, o Vencido por<br />

ti, vingue todas as Mães, vencendo-te, conquistando todo<br />

o teu poder, triunfando eternamente de ti nas<br />

masmorras negras do Inferno!


516 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

E a outra boca, amarga e murcha, blasfemou<br />

então:<br />

– Jesus dos Amargurados, Jesus dos Tristes, Jesus<br />

dos Desamparados! A mim roubaste a filha, a minha<br />

idolatrada filha; e, tão sem piedade o fizeste, que não<br />

foi até mesmo um castigo que mandaste pelos meus<br />

pecados, foi um crime que cometeste. E tão sem<br />

misericórdia, com tamanha crueldade, que tu não<br />

pareces, Jesus, filho dessa angélica Maria que alucinada<br />

gemeu e se desolou por teus martírios!<br />

Roubaste a minha filha quando ela era noiva,<br />

quando estava a cingir a grinalda branca e virgem, quando<br />

estava a galgar, tímida, com os pudores da puberdade, o<br />

altar sagrado, sob o véu resplandecente como um pedaço<br />

de nuvem do teu céu estrelado!<br />

Como hei de viver sem o seu encanto, sem a<br />

candidez da sua alma, como me hei de tranqüilizar neste<br />

deserto onde vivo sem ela, onde existo, solitária, sozinha<br />

por este Mundo, inteiramente sozinha, como perdida<br />

numa escura floresta, num lodaçal sinistro, ouvindo<br />

uivar lobos?<br />

Pois não te bastava tanta vida que ceifas dia a<br />

dia, tanta lágrima que fazes correr em silêncio? Não te<br />

saciaram já tantas e tão preciosas existências que<br />

levaste, era preciso ainda roubares minha filha, formosa<br />

e já noiva, radiante da alegria de ser depois também<br />

mãe como eu?<br />

Ah! se tu soubesses, quando ela adoeceu, que<br />

cuidados, que sacrifícios, que vigílias, quanto doloroso<br />

esforço para dar-lhe logo a saúde!<br />

Eu te pedi tanto, te supliquei tantas vezes de<br />

joelhos, roguei tanto à tua Onipotência, tanto que afligi<br />

e cansei pedindo o teu socorro para ela e, no entanto,<br />

foi tudo inútil, o teu desdém me feriu, o teu desprezo<br />

me apunhalou e tu de repente a levaste, ela, afinal,<br />

morreu...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 517<br />

Depois, quando a vi completamente morta nos<br />

meus braços, como sofri, quantos padecimentos<br />

horríveis, que choro perdido e convulso me sufocou a<br />

garganta, que delírio me acometeu!<br />

Ah! foram estas mãos magras, esqueléticas, estes<br />

dedos ressequidos que lhe colocaram, trêmulos de<br />

comoção, dolorosamente enternecidos, a grinalda e o<br />

véu de noiva de que ela foi vestida. Foram estas mãos<br />

cadavéricas que ornaram aquela cabeça loura, linda;<br />

que ajeitaram com delicadeza entre aqueles admiráveis<br />

cabelos os níveos botões das flores de laranjeira; que<br />

colocaram entre aquelas mãos gentis e enregeladas o<br />

ramo branco simbólico, o crucifixo de marfim e o pequeno<br />

missal azul de fechos de prata.<br />

Depois, depois, já deitada no caixão, num sono<br />

sereno de Querubim, quando uns homens vestidos de<br />

negro, indiferentes, decerto, estranhos à minha dor,<br />

vieram arrancá-la, arrebatá-la de junto a mim, estremeci<br />

tanto, tantos abalos me atravessaram, tantos e tamanhos<br />

horrores, tal luz alucinante me cegou os olhos, que eu<br />

pensei enlouquecer de tormentos, caída de bruços,<br />

soluçando, chorando, gemendo sobre o caixão<br />

medonhamente fechado que para sempre a levava...<br />

Ah! nunca pensei que aquele corpo adorado que vi<br />

crescer e florescer aos poucos, ganhando graça e beleza,<br />

descesse tão cedo ao irremediável apodrecimento; que<br />

o branco enxoval perfumado, feito com carinho, com<br />

alegria feliz, com todo o enternecimento, servisse apenas<br />

para tão depressa amortalhá-la!...<br />

Jesus das supremas bênçãos, dos infinitos<br />

perdões, dos infinitos consolos, das infinitas<br />

misericórdias! Do fundo do meu coração despedaçado<br />

de saudades, de desesperanças, de aflições, eu te lanço<br />

todas as blasfêmias, todos os anátemas, todo o fel à tua<br />

Inclemência!<br />

E a última, amarga e murcha boca, ainda deprecou<br />

assim, mais convulsa e violentamente que as outras:


518 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

– Ó Santa Virgem das Dores, Mãe de todos os<br />

desamparados, de todos os sós, de todos os famintos, de<br />

todos os cegos, de todos os nus, de todos os Jós, de<br />

todos os desiludidos! Como tu foste desnaturada para<br />

mim! Que angústias me reservaste! Que tormentos! Que<br />

dilacerações! Que prantos! Que dores! Ó Santa Virgem<br />

dos Martírios! Mãe vã, que concebeste por obra e graça<br />

do Espírito Santo! Mãe sem Maternidade verdadeira, sem<br />

o parto brutal e ensangüentado do teu Filho, sem os<br />

olhos desvairados no humano transe de dar à luz, sem<br />

as entranhas rasgadas, despedaçadas, sem os gritos<br />

horríveis, sem os espasmos catalépticos, sem os letargos<br />

febris! Ó Mãe sem nervos e sem sangue, sem<br />

estremecimentos, sem sensibilidades, sem êxtases, sem<br />

frêmitos, sem convulsões da carne na hora augusta de<br />

gerar, ah! como tu dilaceraste entre os teus dedos<br />

sagrados, como entre garras ferozes, o meu humilde e<br />

frágil coração materno! Num só dia, por um seco simoun<br />

de peste, levaste todos os meus três filhos, negros e<br />

apodrecidos ainda quentes pelo atroz fantasma da morte.<br />

Pequeninos, anjos que eram, dizem, talvez para<br />

me consolar agora, que eles foram para o Céu. Mas, no<br />

Céu, no Mar, na Terra, mortos como estão, tudo são<br />

covas, Virgem das Dores, tudo são covas e eu bem sei<br />

que eles jazem enterrados, medonhamente enterrados!<br />

No entanto, quando as chuvas são torrenciais, à<br />

noite, e o vento ruge com violência, arrepiando as árvores,<br />

vento gemente e gelado de tempestade, ah! como parece<br />

à minha pobre cabeça dolorida e tresloucada de Mãe<br />

sem consolo, tristemente horrível o frio que eles hão de<br />

sentir lá, lá embaixo desses buracos negros! Como parece<br />

aos meus extremos alucinados, à minha aflição de<br />

demente que eles hão de tiritar sem remédio dentro<br />

dessas covas, sozinhos, lá, tão fundo, tão fundo nas<br />

sepulturas!<br />

Eu bem sei e bem sinto ainda agora com os meus<br />

brancos cabelos arrepiados de pavor até à raiz, que


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 519<br />

línguas e dentes glaciais de vermes os devorarão sem<br />

se saciarem; que nunca mais os beijarei como outrora;<br />

que não terei, palpitando mais, aquecendo-se ao meu<br />

seio protetor, aqueles corpos tenros, delicados; que tudo,<br />

afinal, acabou, Santa Virgem das Dores, Maria! Mãe!<br />

Mãe desnaturada que eu daqui amaldiçôo, numa<br />

imprecação selvagem, atirando pragas profundas, como<br />

facadas contra a sementeira improdutiva da tu’alma...<br />

Não é só em nosso nome mas em nome de todas<br />

as mães que te falamos nós três, que pela grandeza do<br />

Amor que nos liga e sublimiza descendemos diretamente<br />

do Cristianismo e somos três apenas, representando<br />

juntas o sentimento uno da Maternidade.<br />

É em nome de todas as mães que vêm sofrendo<br />

desde o princípio do mundo que nos dirigimos a ti: das<br />

mães que viram seus filhos morrer na guilhotina; que<br />

os perderam nas guerras, rasgados os ventres por<br />

baionetas e por metralhas; que os viram devorados pelos<br />

incêndios; que os souberam naufragados, na agonia<br />

horrível das ondas, ou mortos nas minas, operários<br />

míseros, ou loucos, andando como fantasmas, ou cegos,<br />

caminhando como sombras.<br />

Ah! é por tudo isso, por todo esse infinito de dores<br />

que eu me rebelo contra ti, que eu te amaldiçôo, que eu<br />

te amaldiçôo, que eu te amaldiçôo! Três vezes! Em nome<br />

do Diabo Todo-Poderoso, Criador do Inferno e do Mal! Eu<br />

te amaldiçôo! Eu te amaldiçôo! Eu te amaldiçôo! Que tu<br />

te transformes na serpente negra que tens aos pés sobre<br />

a esfera estrelada e azul e que uma peste bárbara,<br />

infernal, peste de fome e fogo, de sole, extermine esse<br />

teu Céu fatal, gangrene esse teu Paraíso falso, cujas<br />

bem-aventuranças são mentiras, cuja piedade e<br />

consolação só trazem cruéis e aterradoras torturas!<br />

E, a cada monólogo, os braços esqueléticos dessas<br />

três piedosas figuras, assim tão profundamente<br />

transfiguradas pela Dor, agitavam-se, debatiam-se no


520 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ar aflitivamente, aflitivamente, abertos às inexprimíveis<br />

majestades da solidão do Campo Santo.<br />

Os eucaliptos, ciprestes e chorões, como que<br />

impressionados, tocados da emoção que se derramava<br />

em fluidos magnéticos desse tremendo terceto dantesco,<br />

espiritualizavam-se de segredos sonâmbulos, gemendo<br />

baixo nas nervosidades e retorcidos movimentos<br />

convulsos, epilépticos, das melancólicas ramagens.<br />

Mas, de repente, nas copas mais densas e altas<br />

das grandes árvores corpulentas, os ventos, como titãs<br />

despenhados, sopraram torvos, atroantes trovejamentos;<br />

enquanto grasnos corvejantes de bruxas iam<br />

sarcasticamente crocitando ríspidas, rápidas risadas,<br />

através das finas e sensibilizadas casuarinas siflantes<br />

e dos ciprestes vetustos...<br />

A noite, desabrochada na amplidão com estranho<br />

esplendor tenebroso, florira de estrelas claras ao alto.<br />

Em torno, dentre os montes longínquos, uma<br />

cintilante neblina fria vinha então harmonicamente<br />

emergindo, emergindo, e, súbito, o plenilúnio cidrento,<br />

de marfinal claridade mortificada, ondulou e fulgiu<br />

sereno sobre a paisagem da Morte.<br />

E as trêmulas Velhas simbólicas, arrebatadas<br />

numa mesma febre, levadas por igual alucinação de dor,<br />

já de pé sobre a terra úmida e revolta das últimas covas,<br />

clamavam ainda em coro:<br />

– Maldição! Maldição! Maldição! desaparecendo<br />

depois silenciosas, como almas esquecidas num<br />

abandono de ruínas antigas, por entre as sombras<br />

esparsas – Grandes Anjos Rebelados, de asas<br />

impotentes, vencidas, com os dolorosos vultos funestos<br />

agora parecendo mais altos, quase gigantescos, mais<br />

velhos, mais brancos, mais misteriosamente alvejados<br />

e findos sob a volúpia triste, a mágoa muda do luar<br />

elegíaco e macerado...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 521<br />

UM HOMEM DORMINDO...<br />

Les hommes endormis et les hommes morts ne<br />

sont que de vaines peintures.<br />

SHAKESPEARE, Macbeth<br />

Ei-lo, na noite, após as inclementes fadigas do<br />

dia, corpo estirado sobre o leito, gozando o repouso de<br />

algumas horas, mudo e imóvel dormindo...<br />

O descanso, como um bem misericordioso, como<br />

um óleo consolador, unge-o voluptuosamente, enquanto<br />

a grande asa crepuscular da ave taciturna da Cisma<br />

faz-lhe uma sombra piedosa, grave e doce como uma<br />

bênção paterna, em torno do corpo cansado.<br />

Na indiferença quase da morte, que o envolve todo<br />

de um vago esquecimento das cousas, deitado sobre o<br />

leito, como estirado sobre a terra, com a face mergulhada<br />

num meio luar galvânico de lividez, esse homem de<br />

ombros vigorosos e largos, de tórax poderoso, de estatura<br />

gigantesca, hércules fatigado e melancólico da Natureza,<br />

talvez o vencedor de batalhas formidáveis, parece, agora,<br />

tão pequeno, deitado!<br />

De pé, há pouco no dia, caminhando, andando,<br />

girando no absurdo Contingente, sob as guerras armadas<br />

da Vida, como esse homem se projetava verdadeiramente<br />

grande, se compenetrava do valor do aço do seu peito,<br />

se iludia a si mesmo com os seus invejáveis músculos,<br />

com a sua forte andadura de animal de campanha –<br />

lesto, tenaz, reto, preciso e forte nas distâncias e nas<br />

culminâncias a galgar!<br />

Mas, agora, deitado no leito, como esse homem<br />

forte parece fraco, como toda a sua força hercúlea se<br />

evaporou à toa pelos interstícios da prisão brumal do<br />

sono e, como simplesmente, mas fatalmente ele recorda,<br />

exprime bem a rastejante atitude de um verme!<br />

Há nele a expressão do mais completo aniquilamento,<br />

da mais funda inanição; ele sente-se sufocado


522 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

pelos espectros sub-reptícios do Nada que vertiginam e<br />

rodam em torno ao eterno absoluto.<br />

Deitado, dormindo, ele não é mais o homem, mas<br />

o silêncio, o vácuo, o além, o esquecimento. Dormindo,<br />

ele conserva essa aparência, essa abstração aflitiva, essa<br />

espasmada alucinação de um ser que já foi ser, de uma<br />

voz que se tornou mudez, de um movimento que se fez<br />

impassibilidade.<br />

Não importa mesmo que todos os seus órgãos não<br />

estejam totalmente paralisados, sob camadas letais de<br />

gelo. Mas a expressão do sono é por tal forma aureolada<br />

de mistérios, tais segredos escapam dessa indiferença,<br />

que o homem que dorme estirado no leito fica nesse<br />

momento mais indefeso, mais frágil e mais inócuo do<br />

que uma criança, que na sua vibrante garrulice cor-derosa<br />

e cristalina impõe mais ação, mais vida, desprende<br />

mais ritmos e acordes do sangue, projeta mais ondas<br />

sonoras e nervosas de movimento.<br />

Pelo estado inerme desse homem que está<br />

dormindo parece que uma força oculta, uma catástrofe<br />

inesperada, invisivelmente suspensa há muito sobre a<br />

sua existência, vai, afinal, certeira e rápida,<br />

desapiedadamente esmagar-lhe, caindo dos altos<br />

Destinos, a atormentada e vaidosa cabeça com a mais<br />

natural facilidade. Pois não é tão fácil, sem dúvida,<br />

destruir um obscuro reptil que se arrasta na terra?!<br />

Toda a sua coragem louca de guerreador da<br />

Existência, toda a aspiração alucinada, todo o sonho de<br />

Infinito que lhe povoa a alma, sem mesmo ele se<br />

aperceber disso, e que às vezes, por acaso, escapa,<br />

traindo-se pelo brilho misterioso dos olhos e por vagos,<br />

perdidos suspiros desolados que ele desprende à toa,<br />

sem mesmo saber por que, na inconsciência dos<br />

fenômenos ingênitos do seu ser; tudo isso está por algum<br />

tempo desvanecido, apagado, sumido já nessa<br />

amesquinhada posição de homem deitado, a quem só


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 523<br />

falta, cerradas como estão as pálpebras, cruzar sobre o<br />

ventre as mãos e unir os pés para semelhar um morto.<br />

Entretanto, no silêncio e na sombra desse sono<br />

como que se está gerando secretamente, sutilmente e<br />

profundamente, átomo a átomo, um mundo de<br />

fenômenos, uma tragédia muda de fenômenos.<br />

Entretanto, assim parecendo despreocupado dos<br />

segredos e signos da Vida, renunciando a tudo, agora,<br />

nesse aspecto de aparente tranqüilidade simples do<br />

sono, ele está ali curiosamente, em fundas brumas,<br />

vivendo uma alta e íntima vida psíquica muito mais<br />

intensa, muito mais complexa e preocupada do que a<br />

outra.<br />

Porque ninguém sabe que, a seu pesar, ele, por<br />

mil sutis combinações transcendentes e engenhosas do<br />

querer latente do seu organismo anelante deseja atingir,<br />

tocar e radiar entre as esferas siderais do majestoso<br />

Espírito.<br />

Porque mesmo não há alma nenhuma, por mais<br />

vã, por mais humilde, por mais obscura que seja que<br />

não aspire subir, por secretos movimentos instintivos e<br />

intuitivos, que são as transfulgentes escadas do Abstrato,<br />

às transfiguradoras montanhas do Sonho, ao<br />

desenvolvimento melhor, à pura perfectibilidade;<br />

penetrar, consolada, alheando-se de tudo, nas<br />

transcendentalizantes auroras boreais do Sentimento,<br />

satisfazendo assim, embora inconscientemente, a<br />

ansiedade de Infinito que cada alma traz mais ou menos<br />

em si, por maior ou menor que seja a esfera de ação<br />

onde ela gravite.<br />

No sono como que esses fenômenos tomam vulto,<br />

começam a girar, a girar, a girar, em íris de sensibilidade,<br />

em halos de lua, na Imaginativa do homem<br />

dormindo, cujo fundo vago carregado de narcotismos e<br />

de ópios secretos e fascinantes fica como uma rara<br />

região, rara e polar, gerando flores exóticas de<br />

quintessência.


524 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

E nas volúpias e melancolias do sono a alma paira<br />

absorta, perplexa, tateando em brumas maravilhosas,<br />

como celeste cega de sede da Imortalidade, nos círculos<br />

convulsos das lágrimas.<br />

Véus diáfanos adelgaçam-se para além da visão<br />

terrena! Véus de fimbrias de luar! Véus de centelhas<br />

de luar! Véus de fogos-fátuos de luar!<br />

E o ser, mudo, solitário, solene, pálido,<br />

indiferente, misterioso, fugitivo, trágico, belo, horrível,<br />

no espasmo elixírico do sono, dormindo, dormindo aspira,<br />

dormindo, dormindo anseia, dormindo, dormindo goza e<br />

sofre e geme e soluça e suspira e chora para além da<br />

outra vida dos sentidos encarcerados no sono e na outra<br />

vida do sono sonha com a Morte libertadora, engrinaldada<br />

de virgem, esqueleto extravagante de nervosismos e<br />

histerismos terríveis e curiosos de Eternidade – noiva<br />

do Soluço, branca, friamente bela e branca, de um terror<br />

que vence, que atrai, que esmaga, e que faz delirar de<br />

sinistra majestade e de sinistra beleza.<br />

É que o ser bebeu, esgotou até às fezes o licor<br />

sombrio, taciturno e estranho do sono pelo cálice amargo<br />

da Fadiga e ficou embriagado de sombra, vencido de<br />

sombra, desceu ao poço cheio de cismas e pesadelos do<br />

Nada para no Nada dormir ansiando, para no Nada viver<br />

dormindo, para no Nada dormir sonhando...<br />

O sono em que ele está embalsamado põe-lhe em<br />

torno à fronte fatigada uma auréola de martírio, mas de<br />

um martírio tão singular e tão abstrato que parece como<br />

que glorificá-lo, imortalizá-lo, dando-lhe a aparência<br />

secreta de estar gozando um gozo muito belo e muito<br />

triste, vagamente empoeirado de Esquecimento...<br />

Nessa hora de descanso transitório, a mágoa, os<br />

dissabores, os infortúnios inclementes, as desgraças sem<br />

remédio, as paixões desmanteladas e sem termo, as<br />

aflições, os desesperos, os sentimentos obscuros que<br />

revestem uma expressão magicamente cabalística, toda<br />

essa horrível escala humana de desventuras e misérias,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 525<br />

tudo está, por um pouco, sem movimento, inerte, como<br />

animais de emboscada, à socapa, eternamente de<br />

espreita na vida desse homem, esperando que ele de<br />

novo acorde para de novo assaltá-lo e para de novo vencêlo.<br />

E ah! como a esse homem que dorme estirado no<br />

leito da sua noite de mísero e efêmero repouso, quase<br />

mergulhado na calma negra da morte, há de talvez<br />

parecer sempre essa noite pútrida, esverdeada e<br />

formidável vala comum onde podem perpetuamente caber<br />

bilhões e bilhões de corpos humanos!


526 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

NO INFERNO<br />

Mergulhando a imaginação nos vermelhos Remos<br />

feéricos e cabalísticos de Satã, lá onde Voltaire faz sem<br />

dúvida acender a sua ironia rubra como tropical e<br />

sangüíneo cáctus aberto, encontrei um dia Baudelaire,<br />

profundo e lívido, de clara e deslumbradora beleza,<br />

deixando flutuar sobre os ombros nobres a onda pomposa<br />

da cabeleira ardentemente negra, onde dir-se-ia viver e<br />

chamejar uma paixão.<br />

A cabeça triunfante, majestosa, vertiginada por<br />

caprichos d’onipotência, circulada de uma auréola de<br />

espiritualização e erguida numa atitude de vôo para as<br />

incoercíveis regiões do Desconhecido, apresentava, no<br />

entanto, imenso desolamento, aparências pungentes de<br />

angústia psíquica, fazendo evocar os vagos infinitos<br />

místicos, as supremas tristezas decadentes dos<br />

opulentos e contemplativos ocasos...<br />

Como que a celeste imaculabilidade, a candidez<br />

elísea de um Santo e a extravagante, absurda e<br />

inquisidora intuição de um Demônio dormiam longa e<br />

promiscuamente sonos magos naquela ideal e assinalada<br />

cabeça.<br />

A face, branca e lânguida, escanhoada como a de<br />

um grego, destacava calma, num vivo relevo, dentre a<br />

voluptuosa noite de azeviche molhado, poderosa e tépida,<br />

da ampla cabeleira.<br />

Nos olhos dominadores e interrogativos, cheios de<br />

tenebroso esplendor magnético, pairava a ansiedade,<br />

uma expressão miraculosa, um sentimento inquietador<br />

e eterno do Nomadismo...<br />

A boca, lasciva e violenta, rebelde, entreaberta<br />

num espasmo sonhador e alucinado, tinha brusca e<br />

revoltada expressão dantesca e simbolizava aspirar,<br />

sofregamente, anelantemente, intensos desejos<br />

dispersos e insaciáveis.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 527<br />

Parecia-me surpreender nele grandes garras<br />

avassaladoras e grandes asas geniais arcangélicas que<br />

o envolviam todo, condoreiramente, num vasto manto<br />

soberano.<br />

Era no esdrúxulo, luxuoso e luxurioso parque de<br />

Sombras do Inferno.<br />

Em todo o ar, d’envolta com um cheiro resinoso e<br />

acre de enxofre, evaporizava-se uma azulada tenuidade<br />

brumosa, fazendo fugitivamente pensar no primitivo Caos<br />

donde lenta e gradativamente se geraram as cores e as<br />

formas...<br />

Como que diluente, fina harmonia de violinos vagos<br />

abstrusamente errava em ritmos diabólicos...<br />

Árvores esguias e compridíssimas, em alamedas<br />

intermináveis e sombrias, lembrando necrópoles,<br />

apresentavam troncos estranhos que tinham aspectos<br />

curiosos, conformações inimagináveis de enormes<br />

tóraxes humanos, fazendo pender fantásticas ramagens<br />

de cabelos revoltos, desgrenhados, como por estertorosa<br />

agonia e convulsão.<br />

Pelas longas alamedas exóticas do fabuloso<br />

parque, deuses hirsutos, de patas caprinas e peluda testa<br />

cornóide, riam com um riso áspero de gonzo, numa dança<br />

macabra de gnomos, cabriolando bizarros.<br />

De vez em quando, as suas asas fulgurantes, furtacores<br />

e fortes, rufiavam e relampejavam...<br />

Baudelaire, no entanto, suntuoso e constelado<br />

firmamento de alma refletindo em lagos esverdeados e<br />

mornos, donde fecundas e esquisitas vegetações como<br />

que sonâmbula e nebulosamente emergem, estava mudo,<br />

imóvel, com o seu perfil suavemente cinzelado e fino,<br />

fazendo lembrar a figura austera e altiva, a alada graça<br />

perfeita de um deus de cristal e bronze – tranqüilamente<br />

de pé, como num sólio real, na posição altanada de quem<br />

vai prosseguir nos excelsos caminhos dos inauditos<br />

Desígnios...


528 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Por conhecer-lhe os ímpetos, as alucinações da<br />

audácia, as indomabilidades estesíacas, os alvoroços<br />

idiossincráticos da Fantasia, eu imaginava encontrá-lo,<br />

vê-lo revoltamente arrebatado para os convulsos Infinitos<br />

da Arte por potentes, negros e rebelados corcéis de<br />

guerra.<br />

Mas, a sua atitude serena, concentrada, isolada<br />

de tudo, traía a meditação absorvente, fundamental, que<br />

o encerrava transcendentemente no Mistério.<br />

E eu, então, murmurei-lhe, quase em segredo:<br />

– Charles, meu belo Charles voluptuoso e<br />

melancólico, meu Charles nonchalant, nevoento aquário<br />

de spleen, profeta muçulmano do Tédio, ó Baudelaire<br />

desolado, nostálgico e delicado! Onde está aquela rara,<br />

escrupulosa psicose de som, de cor, de aroma, de<br />

sensibilidade; a febre selvagem daqueles bravios e<br />

demoníacos cataclismos mentais; aquela infinita e<br />

arrebatadora Nevrose, aquela espiritual doença que te<br />

enervava e dilacerava? Onde está ela? Os tesouros d’ouro<br />

e diamante, as pedrarias e marchetarias do Ganges, as<br />

púrpuras e estrelas dos firmamentos indianos, que tu<br />

nababescamente possuíste, onde estão agora?<br />

Ah! se tu soubesses com que encanto ao mesmo<br />

tempo delicioso e terrível, inefável, eu gozo todas as tuas<br />

complexas, indefiníveis músicas; os teus asiáticos e<br />

letíficos aromas de ópios e de nardos; toda a mirra<br />

arábica, todo o incenso litúrgico e estonteante, todo o<br />

ouro régio tesourial dos teus Sonhos Magos,<br />

magnificentes e insatisfeitos; toda a tua frouxa morbidez,<br />

as doces preguiças aristocráticas e edênicas de decaído<br />

Arcanjo enrugado pelas Antigüidades da Dor, mas<br />

inacessível e poderoso, mergulhado no caos fundo das<br />

Cismas e de cuja Onisciência e Onipotência divinas<br />

partem ainda, excelsamente, todos os Dogmas, todos os<br />

Castigos e Perdões!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 529<br />

Oh! que demorados e travorosos sabores<br />

experimento com o quebranto feminil das tuas<br />

volubilidades mentais de bandoleiro...<br />

Essa alma de funestos Signos, como que gerada<br />

dentro de atordoante e feiticeiro sol africano, com todas<br />

as evaporações flamívomas, com todas as barbarias das<br />

florestas, com todo o vácuo inquietante, desolador,<br />

inenarrável, dos desertos, flexibiliza-se, vibratiliza-se,<br />

adquire suavidades paradisíacas de açucenais sidéreos,<br />

do céu espiritualizado pelos mortuários círios roxos dos<br />

ocasos...<br />

Açula-me a desvairadora sede, espicaça-me a<br />

ansiedade indomável de beber, de devorar, sorvo a sorvo,<br />

sofregamente, o extravagante Vinho turvo, de lágrimas<br />

e sangue, que orvalha, como um suor de agonias, todas<br />

essas olímpicas e monstruosas florações do teu Orgulho.<br />

Ah! se tu soubesses como eu intensamente sinto<br />

e intensamente percebo todos os teus alanceados,<br />

lacerados anseios, todas as suas absolutas tristezas<br />

dormentes e majestosas, o grande e longo chorar, o<br />

desmantelamento vertiginoso das tuas noites soturnas,<br />

as fascinadoras ondas febris e ambrosíacas da tua insana<br />

volúpia, as bizarrarias e milagrosos aspectos da tua<br />

Rebelião sagrada; a fulminativa ironia dolorida e<br />

gemente, que evoca melancolias de dobres pungentes<br />

de Requiem aeternam rolando através de um dia de sol e<br />

azul, vibrados numa torre branca junto ao Mar!... Como<br />

eu ouço religiosamente, com unção profunda, as tuas<br />

Preces soluçantes, as tuas convulsas orações do Amor!<br />

Como são fascinativos, tentadores e embriagantes os<br />

perfumosos falernos da tua sensação, os esquecidos<br />

Reinados enevoados e exóticos onde a tua clamante e<br />

evocativa Saudade implorativa e contemplativa canta,<br />

ondula e freme com lascívia e nonchalance! A tua inviolável<br />

e milenária Saudade, velha e antiga Rainha destronada,<br />

aventurosa e famosa, que erra nos brumosos e vagos<br />

infinitos do Passado, como através das luas amarguradas


530 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

e taciturnas do tempo. A tua lancinante Saudade de<br />

beduíno, perdida, peregrinante por países já adormecidos<br />

nas eras, remotos, longe, nos neblinamentos da<br />

Quimera, onde os teus desejos agitados e melancólicos<br />

tumultuam numa febre de mundos multiformes de<br />

germens, em estremecimentos sempiternos; onde as<br />

tuas carícias nervosas e felinas sibaritamente dormem<br />

ao sol e espojam-se com sensualidade, num excitamento<br />

vital frenético de se perpetuarem com os aromas cálidos,<br />

com os cheiros fortes que impressionativos e afrodisíacos<br />

provocam, atacam, cocegam e ferem de extrema<br />

sensibilidade as tuas aflantes e capras narinas!<br />

Ah! como eu supremamente vejo e sinto todo esse<br />

esplendor funambulesco e todas essas magnificências<br />

sinistras do teu Pandemonium e do teu Te Deum!<br />

Ó Baudelaire! Ó Baudelaire! Ó Baudelaire!<br />

Augusto e tenebroso Vencido! Inolvidável Fidalgo de<br />

sonhos de imperecíveis elixires! Soberano Exilado do<br />

Oriente e do Letes! Três vezes com dolência clamado<br />

pelas fanfarras plangentes e saudosas da minha<br />

Evocação! Agora que estás livre, purificado pela Morte,<br />

das argilas pecadoras, eu vejo sempre o teu Espírito<br />

errar, como veemente sensação luminosa, na Aleluia<br />

fúlgida dos Astros, nas pompas e chamas do Setentrião,<br />

talvez ainda sonhando, nos êxtases apaixonados do<br />

Sonho...<br />

E a singular figura de Baudelaire, alta, branca,<br />

fecundada nas virgens florescências da Originalidade,<br />

continuava em silêncio, impassível, dolorosamente<br />

perdida e eternizada nas Abstrações supremas...<br />

E, enquanto ele assim imergia no Intangível azul,<br />

velhos deuses capros, teratológicos Diabos lúbricos e<br />

tábidos, desaparecidos desse egrégio vulto satânico,<br />

cismativo e sombrio, dançavam, saltavam, infernalmente<br />

gralhando e formando no ar quente, em vertigens de<br />

diabolismos, os mais curiosos e simbólicos hieróglifos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 531<br />

com a flexibilidade e deslocamento acrobático e mágico<br />

dos hirsutos corpos peludos e elásticos...<br />

Mas, em meio do misterioso parque, elevava-se<br />

uma árvore estranha, mais alta e prodigiosa que as<br />

outras, cujos frutos eram astros e cujas grandes e<br />

solitárias flores de sangue, grandes flores acerbas e<br />

temerosas, flores do Mal, ébrias de aromas mornos e<br />

amargos, de dolências tristes e búdicas, de<br />

inebriamentos, de segredos perigosos, de emanações<br />

fatais e fugitivas, de fluidos de venenosas mancenilhas,<br />

deixavam languidamente escorrer das pétalas um óleo<br />

flamejante.<br />

E esse óleo luminoso e secreto, escorrendo com<br />

abundância pelo maravilhoso parque do Inferno, formava<br />

então os rios fosforescentes da Imaginação, onde as<br />

almas dos Meditativos e Sonhadores, tantalizadas de<br />

tédio, ondulavam e vagavam insaciavelmente...


532 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

A NÓDOA<br />

Naquela hora de superexcitação nervosa, tarde<br />

na noite nevoenta em que os ventos lugubremente<br />

grasnavam, rondando, rondando, Maurício entrou agitado<br />

da rua...<br />

Via-se bem, pela lividez espectral do seu rosto, os<br />

tumultos sinistros que trazia consigo.<br />

Com o cérebro escaldando, numa temperatura<br />

mental inconcebível, parecia que alguma cousa dentro<br />

do seu ser estava sendo guilhotinada e que grandes,<br />

caudalosas torrentes de sangue vivo, quente, o alagavam<br />

interiormente, deixando-o exangue, desfalecido...<br />

Era, na verdade, um aspecto extravagante o desse<br />

cardíaco lascivo, desse neurastênico que o álcool andava<br />

aos poucos devastando e povoando já das suas visões<br />

trementes e delirantes, lá do fundo absíntico das<br />

impenitentes boêmias; desse sombrio e ferrenho<br />

misantropo fechado ao alto da sua velha torre torva de<br />

melancolia, sentindo em torno o mundo, grosso mar<br />

vasto, ululando deprecações...<br />

Cabelos em desalinho, olhos estupefatos, boca<br />

num espasmo de angústia, mãos convulsas e<br />

avelhantadas, braços tateando o ar como garras, pernas<br />

trêmulas, tudo naquela desgraçada matéria determinava<br />

uma vulcanização muito íntima, um desespero muito<br />

particular, talvez o desmoronamento absoluto.<br />

Era o lance cruel de uma dessas vidas<br />

despedaçadas, dilaceradas, sem centros harmônicos de<br />

um objetivo ideal, sem pontos de apoio, girando fora das<br />

órbitas da unidade dos sentidos e que vagam, de um a<br />

outro extremo da alma, de um ao outro pólo do ser, sem<br />

uma luzerna, sem um santelmo, sem Refúgios interiores,<br />

quase o vácuo de si próprias, batidas por um frio sinistro<br />

de desolação, sob a lei inexorável, horrível, dos<br />

desequilíbrios e degenerescências. Demônios mórbidos,<br />

fatais, arremessados à terra para cobri-la, como de um


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 533<br />

luto de peste, do sentimento negro, perverso, infernal,<br />

do aniquilamento e das culpas.<br />

Qualquer cousa de curioso, de secreto, dava-se,<br />

sem dúvida, no fundo dessa excepcional natureza que a<br />

noite tanto e tão intensamente carregara dos seus<br />

esparsos fluidos misteriosos.<br />

Apenas mergulhado no aposento, triste tugúrio<br />

abandonado e frio, acendeu logo, com a mão febril,<br />

nervosamente, a pequena lâmpada que pousava sobre<br />

um velho móvel querido que ali jazia como a recordação<br />

de vagos e inolvidáveis tempos...<br />

Assim que a luz coou em torno a sua tíbia<br />

claridade amarelenta, Maurício aproximou-se da luz,<br />

sôfrego, a fronte em suor, numa ansiedade muda.<br />

Em sobressaltos, inquieto, palpitando, nervoso,<br />

cada vez mais nervoso, uma agitação contínua na pupila,<br />

quase num delírio, arrastado por curiosidade torturante<br />

e ao mesmo tempo por medo avassalador, chegou uma<br />

das mãos à luz, aproximou-a da luz, aproximou-a mais<br />

da luz, quase a fazendo arder, crepitar, estalar na chama<br />

da luz, inquiriu mentalmente toda a palma da mão, o<br />

cabalístico M letal, as unhas, uma por uma as falanges,<br />

novamente a palma da mão, examinou-a, palpou-a,<br />

analisou-a longamente, demoradamente, com<br />

movimentos singulares de sonâmbulo e de mago,<br />

conservando no rosto tal expressão horrível, tal expressão<br />

transfigurada que não era mais deste mundo...<br />

E ele olhava e tornava a olhar para a mão, a<br />

perscrutá-la bem, detendo-se em cada linha, em cada<br />

traço da mão, como sob impressão magnética.<br />

– Mas, não, não! dizia, arrepiando o lábio num<br />

velado sorriso contrafeito, macabro. Não! Eu vi! Eu vi!<br />

Eu bem lhe fui acompanhando a gradação, o vulto que<br />

fazia aqui em toda a mão; a princípio tênue, leve,<br />

pequena; depois grande, densa e negra, enchendo a mão<br />

toda pavorosamente, reptilmente rastejando, pondo-me<br />

calafrios tremendos na espinha. Sim! Eu bem a vi, aqui,


534 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

aqui, persistente, entranhada, a horrível nódoa negra,<br />

manchando-me a mão toda, não sei como, não sei donde<br />

mandada.<br />

E os outros que lá estavam também como eu no<br />

cabaré, na sua hora d’álcool, sentiram-me a obsessão e<br />

riram e perguntaram se eu não estaria louco, se não<br />

era de fato um demente.<br />

Mas eu ouvi e nada lhes disse, nada lhes respondi<br />

porque eu bem via, bem estava vendo a nódoa tomar-me<br />

pouco a pouco conta de toda a mão, alastrar-se por ela,<br />

negra, em breves momentos. Eu bem a vi! E o que<br />

importava o desdém ou a indiferença dos outros, o<br />

ridículo que os outros me lançassem, se só eu a via, só<br />

eu! unicamente eu percebia que ela cá estava, funda,<br />

intensa, sem que eu a pudesse extinguir, fazê-la<br />

desaparecer para sempre. Sim! Ela cá estava! Senti então<br />

de repente um pavor maior lembrando-me se ela me<br />

tomasse o corpo todo, me subisse pelo tronco, me<br />

manchasse o rosto, envolvendo-me tenebrosamente na<br />

sua oleosa baba negra. E assim pensando parecia-me<br />

estar já avassalado por ela, que me cobria como de um<br />

manto fúnebre.<br />

E nesta sugestão doentia, numa extraordinária<br />

vibração de nervos, que titilavam de horror, voei pelas<br />

ruas em busca de repouso em meu triste aposento, pois<br />

era tão forte a obsessão, tão violenta, punha-me em tal<br />

estado, que até julguei, com essa infantilidade ingênua<br />

que nos transfigura nas íntimas e esmagadoras aflições,<br />

que desapareceria aquela nódoa lúgubre logo que eu<br />

estivesse tranqüilamente repousado.<br />

Sim! este meu triste, generoso e leal aposento<br />

que com tanto e tanto carinho me acolhe sempre na<br />

hora do meu grande abandono, dos meus extremos<br />

desfalecimentos, saberia condensar todas as suas<br />

diluentas amarguras, todas as suas queixas secretas,<br />

todas as suas mágoas esparsas, dar-lhes corpo, dar-lhes


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 535<br />

vida e alma para, consolando-me, trazer calma piedosa<br />

a esta minha agitação profunda.<br />

Com efeito, agora, olho e torno a olhar, para a<br />

mão e nada encontro nela, nada do que eu vi, porque eu<br />

vi! Não encontro mais a nódoa, não está cá. Olho e torno<br />

a olhar, reparo, observo bem tudo e não encontro, não<br />

vejo mais a nódoa...<br />

E não a vejo, mesmo, por mais que examine, em<br />

nenhuma das mãos! Ah! respiro! Não a vejo em nenhuma<br />

das mãos! Respiro, enfim! Que alívio! Que alívio<br />

supremo!<br />

Foi, sem dúvida, foi loucura minha, neblinoso<br />

torpor de embriaguez, visão, sombra, pesadelo de<br />

momentos. Tinham razão os outros em rir... Foi simples<br />

loucura minha, simples loucura minha, simples loucura<br />

minha!<br />

Entretanto, como se uma diabólica força oculta<br />

no seu pobre cérebro demente insistisse, agisse dentro<br />

dele com perversa e feroz tenacidade calculada,<br />

fisgando-lhe as arestas cruas e agudas de cerrada<br />

argumentação casuística, mas em certos planos, de certo<br />

modo, irrefutável, Maurício colocou-se diante de um<br />

espelho oval que havia no aposento, e mirou-se bem nele,<br />

com atenção, com minúcia.<br />

Como que queria reconhecer-se, como que<br />

acreditava ter perdido a legitimidade do seu ser, terem<br />

reaparecido, por um desses incompreensíveis fenômenos<br />

nervosos, a perfeita identidade das suas feições, as<br />

linhas do seu semblante, da sua natureza, e com elas a<br />

sua própria sensibilidade.<br />

Mas, não! Ele ali estava, vendo-se apenas tão<br />

desfigurado, tão abatido, com esse aspecto vago, ignoto,<br />

retrospectivamente antigo, de quem já além viveu...<br />

Quase se desconhecia! Não era mais o intrépido, o afouto<br />

Maurício de outrora, que a bravura de sentimentos<br />

bizarros iluminava de esplendor e força. Não era mais o<br />

adolescente, amado desse amor frívolo da mundanal


536 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

mocidade, e cuja alma engrinaldava-se de rosas,<br />

esmaltava-se d’estrelas, vibrava de canções e cânticos,<br />

na frescura e no azul matinal de um idílio que lhe parecia<br />

eterno. Não era mais esse Maurício que através dos<br />

longos rumos do tempo se perdera e desaparecera...<br />

Era agora um outro Maurício, todo vivamente<br />

abalado, é certo, por inquietos sonhos de indefinível<br />

ansiedade, mas por isso mesmo acabando, findando já<br />

para tudo.<br />

Na encruzilhada dos caminhos que percorrera, ele,<br />

embevecido, perplexo, como que divulgava, pela curiosa,<br />

desoladora e irônica sugestão do espelho, duas nobres<br />

figuras de inefável expressão contemplativa que se<br />

enlaçavam num amplexo enlevativo e saudoso de<br />

idolatrados sentimentos velhos, surgindo das brumas<br />

álgidas do Esquecimento.<br />

Uma dessas figuras o olhava, atenta, nova e<br />

cariciosamente risonha, na meiguice mais cândida, a<br />

cabeça loira pendida numa atitude de enternecimento<br />

supremo.<br />

Igualmente o olhava a outra, subjugada pela febre<br />

devoradora do desespero, curvada de anos, por entre<br />

rugas e soluços... E ambas essas figuras evocativas se<br />

enlaçavam, emocionalmente se enlaçavam, do fundo<br />

sombrio e longínquo daquele espelho, no abraço extremo,<br />

profundo, infinito, como que fundidas na mesma<br />

apaixonada e embriagada convulsão da Vida...<br />

E, então, por uma esquisita afinidade de<br />

pensamento, como se por acaso mais essa outra obsessão<br />

da identidade perdida desnaturasse o rumo lógico do<br />

seu raciocínio, esclarecendo, mesmo por esse fato e com<br />

igual irrefutabilidade, o fenômeno da nódoa que o<br />

perseguia, Maurício espalmou diante do espelho ambas<br />

as mãos, certificando-se de tudo, pois até quase lhe<br />

parecera, na agonia cruciante daquelas implacáveis<br />

conjeturas psíquicas e por lenta compreensibilidade<br />

nebulosa, labiríntica do cérebro, mesmo por certa


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 537<br />

infantilidade demente, que o espelho, refletindo assim<br />

sobre o seu busto, desnevoaria, arrancaria mais depressa<br />

toda a fatal verdade sobre a nódoa do que apenas a<br />

simples chama dúbia e amarelenta da doce luz da<br />

lâmpada.<br />

E o espelho, no seu fundo glacial de boca turva,<br />

crespusculada, de poço; cova de névoas e treva de onde<br />

naquela hora se desenterravam todos os seus Afetos;<br />

alma de cristal onde um delicado sentimento de<br />

esquecimento e de saudade parecia estar diluído; o<br />

espelho, naquela alta hora noturna dormente e<br />

sonolentamente mergulhado na doce luz amarelentada,<br />

da lâmpada, lembrava brumoso vale de lágrimas<br />

aureolado de luar...<br />

E Maurício revia-se no espelho, consultava-o,<br />

analisava, comentava, analisava os próprios reflexos e<br />

mutismo do espelho; feria a fina corda vibrátil dos seus<br />

nervos, dos seus sentidos de desequilibrado, de<br />

impotente, monologava com eles, e esse exame tão<br />

detalhado, tão minudente, tão penetrante, dava-lhe certa<br />

atração doentia, certa volúpia martirizante, certa lascívia<br />

de angústia.<br />

Mas, nada. Mesmo ante o espelho ele não<br />

distinguia nada nas mãos, nem no rosto, nem em parte<br />

alguma do corpo. Estava salvo, efetivamente estava salvo<br />

do caprichoso e funesto abalo que o sacudira e gelara!<br />

Estava salvo! Estava salvo!<br />

Nisto, de repente, como se com aquelas argüições<br />

e investigações mentais tivesse despertado, provocado<br />

violentamente o Mistério, rasgado os profundos véus<br />

translúcidos e transcendentes do Mistério, ei-lo que<br />

agora fixa demoradamente os olhos na mão esquerda e,<br />

recuando como um fantasma até à outra extremidade<br />

do aposento, solta este grito surdo.<br />

– Ah! a nódoa!<br />

Então, a visão que ele teve nesse momento foi<br />

tremenda. Recuado até ao fundo da parede, o tronco


538 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

vergado, a cabeça vencida, na expressão dos supremos<br />

aniquilamentos, os braços desalentados, os olhos acesos<br />

numa fosforescência e parados numa imobilidade<br />

persistente de olho de ciclope, a boca escumando todo o<br />

horror até ali concentrado, dolorosamente vivido naquele<br />

organismo, encolhido como um fardo humano, na atitude<br />

de um animal acuado, Maurício estava medonho.<br />

Sentia que a nódoa da mão já lhe tomava um braço<br />

todo, depois outro, que lhe envolvia o peito e o ventre,<br />

que lhe descia às pernas e aos pés e que subia fatalmente,<br />

numa inexorabilidade terrível, numa avassalação<br />

desolante de peste, pelo rosto, como langue lesma negra,<br />

viscosa e envenenada lagarta de pauis apodrecidos,<br />

nódoa que até lhe amortalhava os olhos, que o tornava<br />

irremediavelmente cego. E por todo ele era só aquela<br />

nódoa, aquela nódoa, aquela flageladora nódoa a crescer<br />

implacavelmente. Nódoa que mesmo lhe sufocava a<br />

garganta para os gemidos e para os gritos, lhe tirava o<br />

olfato, lhe roubava os movimentos, o paralisava e gelava<br />

todo e o arremessava agora ali, mudo, para um canto,<br />

como uma cousa inútil, num semi-idiotismo esquisito,<br />

numa lividez mortal, rangendo os dentes e olhando o<br />

vácuo, pasmosamente olhando o vácuo...<br />

E, assim encolhido, atirado a um canto, as feições<br />

já invadidas de súbita e precoce senilidade, dentes<br />

rigidamente cerrados, olhos muito abertos vidrados do<br />

espanto, do terror singular concentrado no fundo<br />

devastado das órbitas, Maurício foi encontrado morto,<br />

devorado pela sensacional obsessão delirante daquela<br />

estranha nódoa que, no entanto, sem que ele soubesse<br />

ou pudesse determinar nitidamente no cérebro<br />

alucinado, era a profunda, a incoercível, a grande nódoa<br />

negra simbólica da sua própria vida.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 539<br />

TALVEZ A MORTE?!...<br />

Sob a florescência casta e voluptuosa da lua, numa<br />

noite em que eu ia embebido num desses sonhos que<br />

nos transportam ainda mesmo acordados, deparei com<br />

um vulto de mulher, alta, esgalgada e lívida, vestida de<br />

negro e velada pela redoma vaporosa da bruma da lua...<br />

Parecia trazer, como auréola extravagante, a<br />

nostalgia de ecos e rumores extintos...<br />

O seu rosto branco, lactescente, na majestade do<br />

negror das vestes, tinha uma beleza augusta.<br />

A fronte era como um céu pálido e sereno para<br />

constelar de beijos soluçados de imprevista e suprema<br />

paixão.<br />

Os cabelos, iriados d’orvalho luminoso, como que<br />

desprendiam certa fosforescência leve... Não eram<br />

louros, eram negros e de um oleoso quente,<br />

impressionante, fascinativo.<br />

Os olhos chamejantes lembravam dois astros<br />

ardendo numa treva densa e ondulante, coruscando no<br />

abismo das duas órbitas fundas, fatidicamente<br />

embaladores como berceuses de um doce e delicioso<br />

Nirvana...<br />

O nariz, ainda que belo e de uma aristocracia<br />

incriada, tinha uma expressão de ansiosas luxúrias de<br />

além-túmulo, um sentimento de austera firmeza e<br />

inexorabilidade de causar mistério e pavor...<br />

A boca, de um langor quebrado e letal, de uma<br />

expansão meio morta, fazia recordar os alucinamentos<br />

e o gozo de uma flor de melancólico desejo alvorecida<br />

nos frios terrores de uma cova.<br />

O andar, lento e grave, de um gracioso e nervoso<br />

balanceado de sonambulismo, maravilhava todo o seu<br />

vulto esquisito de um encanto desconhecido, como se<br />

ela, na verdade, caminhasse sob a magia de um sonho.


540 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Vagamente, o espírito ficava arrebatado a cismar<br />

num grande lírio tenebroso de perfume adormecedor e<br />

fatal!<br />

De longe, olhando-a entre o enevoamento do luar,<br />

ela passava-me na retina ferida de deslumbramento<br />

fantasioso, com cintilações de uma estranha serpente<br />

branca e negra, os movimentos coleantes e ondulosos<br />

do andar lento e grave de curiosidades e de ritmos<br />

imaginários.<br />

Dir-se-ia a visão das tormentosas nevroses, a<br />

deusa cândida das singularidades emotivas, embriagada<br />

por vinhos sombrios e sutis de soberanos requintes.<br />

Eu experimentava ao vê-la um estremecimento<br />

de fascinação e uma tontura de abismo, como se ela<br />

própria fosse um abismo que a pesar meu, bela e<br />

tremenda, me viesse estrangular com os seus abraços<br />

não sei de que sensação e nem de que delírio, num<br />

amor venenoso e luminoso ao mesmo tempo...<br />

Não se sentia nela o contato carnal, o travo<br />

miserando, a garra cruel da matéria. Não era a lama vil<br />

que tomava aqueles inauditos aspectos. Certo não a carne<br />

venal mundanizada!<br />

Uma força secreta fazia com que ela vagasse,<br />

caminhasse... Uma espiritualização nobre a revestiu de<br />

vida miraculosa – filtro das Esferas, ansiedade palpitante<br />

do Infinito, magno amor dos Espaços, imortalidade<br />

invisível das Cousas, quintessência da dor do Nada!<br />

Como que da su’alma de pinturesco de vitrais,<br />

sobre um fundo de madrugadas violáceas, deveriam<br />

irradiar aleluias lúgubres...<br />

Mas, pela obsessão de olhá-la, parecia-me agora<br />

que ela não se movia mais, que quedara num ponto,<br />

imperturbavelmente olhando os longes indistintos, alta<br />

e branca, afilada como uma torre perdida nos<br />

descampados do céu, sob a lua em silêncio<br />

supersticioso...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 541<br />

Doze badaladas sombrias, mensageiras funestas<br />

do Sortilégio, ressoaram, soluçaram, cavas no ar, lentas,<br />

compassadas, monótonas...<br />

Inquieto, febril como nunca, cravei o olhar agitado,<br />

sofregamente, no ponto onde devia estar a visão; porém<br />

ela havia desaparecido, se desfeito, quem sabe!<br />

reentrado nos seus mundos, ante as badaladas choradas<br />

e cabalísticas da Meia-Noite!<br />

Ah! quem era, afinal, essa Visão, essa ave de luto<br />

e melancolia celeste?! Talvez a Arte?! Talvez a Morte?!


542 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ÍDOLO MAU<br />

...voici que, tout à coup, ces élus de l’Esprit sentent<br />

effluer d’eux-mêmes où leur provenir, de toutes<br />

parts, dons la vastitude, mille et mille invisibles<br />

fils vibrants en lesquels court leur Volonté sur<br />

les événements du monde, sur les phases des<br />

destins, des empires, sur l’influente lueur des<br />

astres, sur les forces déchainées des éléments.<br />

VILLIERS DE L’ISLE ADAM, Axël<br />

De descaro em descaro, de deboche em deboche,<br />

as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos,<br />

empolgaram-te.<br />

Estás agora preso à calceta de sentimentos negros<br />

e, obscenamente, te arrastas, lesmado e vil, preso à<br />

calceta de sentimentos negros.<br />

Na tua alma iníqua, pestilenta e vencida, nada<br />

mais arde, nada mais flameja, nada mais canta.<br />

Como a ave noturna e luciferina do – Nunca mais!<br />

– desse peregrino e arcangélico Poe – como essa ave<br />

noturna, pairou sobre ti a desilusão de todas as cousas.<br />

E tu, agora, só ouves os misteriosos carrilhões da<br />

noite, da grande noite do Nada, convulsamente<br />

soluçarem e só vês errar os espectros lívidos da Saudade<br />

arrastando as longas túnicas inconsúteis e brancas.<br />

De descaro em descaro, de deboche em deboche,<br />

as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos,<br />

empolgaram-te.<br />

De tal sorte te afundaste, te abismaste no caos<br />

infernal da malignidade, de tal sorte o crime absurdo,<br />

feio, torto, te avassalou supremamente, que a própria<br />

origem de lama, de onde surgiste, nega-te, rejeita-te,<br />

repele-te.<br />

Tu não morrerás mais!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 543<br />

Ficarás na terra – imenso Purgatório –<br />

regenerando, purificando, cristalizando a tu’alma dessa<br />

mancha sinistra e lutulenta, que a envolve toda.<br />

Não morrerás mais! Te perpetuarás, para te<br />

remires do teu enorme Pecado, cuja sombra orbicular<br />

põe nódoas fundas no sol, doentias penumbras no luar,<br />

turva, entenebrece a fina pedraria branca das estrelas.<br />

Entretanto, legiões e legiões de homens deixamse<br />

fascinar por ti; tu os atrais insensivelmente ou<br />

calculadamente, os sugestionas, os arrastas, e,<br />

fetichistas tristes, bufos lúgubres, eles vivem de sugar<br />

o veneno hediondo das tuas palavras e das tuas obras,<br />

com a alma e a consciência de rastos a teus pés, na<br />

covardia langue, lassa, dos que dão toda a veneração<br />

vilã aos ídolos malignos.<br />

Nem o retalhante knut siberiano, nem os suplícios<br />

fabulosos do Tântalo, nem os horríveis martírios de<br />

Ugolino são suficientes dilícios para remir e imacular o<br />

teu ser da mácula de lodo e sangue que tanto o está<br />

manchando cada vez mais intensamente.<br />

Tal é a malignidade, o descarnado cinismo em<br />

que reinas, bandido e bonzo, que pareces o porta-bandeira<br />

funesto das fantásticas legiões armadas do<br />

Aniquilamento supremo, trazendo como divisa fatal esta<br />

inscrição formidável: – Fome! Peste! Guerra!<br />

És, pois, o proclamador da Fome, da Peste, da<br />

Guerra. Vieste sob a claridade assinaladora de um íris<br />

prenuncial, sob os eclipses pressagos, sob os sóis<br />

reveladores, sangrando em chaga, dentre círculos de<br />

fogo, sob as luas augurais, mórbidas e sonolentas, de<br />

amarelidão defunta.<br />

Entretanto, se não fora a preguiça mental, um<br />

verdadeiro servilismo, uma covardia crassa que tolhe-te<br />

completamente os nervos do Pensamento, poderias<br />

salvar-te ainda.<br />

Porque tudo está na espiritualidade, na alma. Tudo<br />

está em fazer da alma nova hóstia, um sol incomparável,


544 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

a quintessência do Sentimento, para que a alma seja<br />

mais eterna que a luz, mais forte que os bronzes, mais<br />

etereal do que os astros.<br />

Alma, alma, mais alma, mais alma, muita alma,<br />

muita alma, toda, toda a alma, toda a infinita alma!<br />

É mister que pouco a pouco te devore uma doce<br />

ansiedade secreta e nobre; que uma suavidade celestial<br />

desça por sobre ti; que um encanto maravilhoso te<br />

engrandeça, te levante e faça sonhar; que aspires às<br />

sublimes purificações, às emocionais magnitudes, às<br />

surpreendentes transformações, às grandes eloqüências<br />

da Sensação que perpetuamente constelam as naturezas<br />

assinaladas.<br />

É mister que a serena e imaculada Sideralidade<br />

dê-te o poder das Reivindicações; que de ignóbil e rojado<br />

aos mais terrestres vilipêndios, surjas, como de um<br />

Batismo novo e original, Arcanjo das Transfigurações,<br />

alto e calmo dominando, vencendo os Vândalos em torno.<br />

E que uma rara fé, mais forte que toda a fé cristã,<br />

mais ardente, mais viva, te inflame e ilumine com as<br />

suas chamas prodigiosas.<br />

É de lágrimas, é de desejos, é de gemidos, é de<br />

aspirações e agonias que se fecunda a imortalidade.<br />

Se tu tornares bem intensos os teus pensamentos,<br />

bem chamejantes, bem profundos, arrancados do mais<br />

íntimo do teu ser com todas as estranhas raízes da tua<br />

sensação, tu te salvarás ainda, te remirás do teu crime<br />

nefando, do teu cinismo bandido, do teu escarnecedor<br />

deboche de celerado.<br />

Se souberes manifestar toda a expansão do<br />

temperamento, com os segredos da Intuição; se<br />

desabrochares como força própria, entranhadamente<br />

própria e poderosa, sem veres apenas o que te for tangível<br />

aos olhos, sem imaginares o que já foi imaginado, sem<br />

sentires o que já foi sentido, sem te nivelares com a<br />

materialidade da massa humana, serás uma afirmação,<br />

um estado de existir, de impressionar. E, enfim, se


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 545<br />

ficares livre, inteiramente livre de todas as peias<br />

obscenas da miséria coletiva e da convenção dourada,<br />

serás verdadeiramente um espírito, originalmente um<br />

homem, matrimoniando-te com o sentimento, como o<br />

sol nos frementes e lúbricos esponsais com a terra.<br />

Basta, apenas, para te purificares de todo e com<br />

solenidade desse descaro e desse deboche, que te<br />

possuas de ti próprio, que comungues os Sacramentos<br />

abstratos, que te unjas de dons incomparavelmente<br />

preciosos e belos, despindo-te primeiro de todas as<br />

necessidades, de todas as vanglórias, para que, enfim,<br />

vivas, excepcionalmente vivas; para que sintas, intuitiva,<br />

eloqüente, a póstuma volúpia espiritual de te perpetuar<br />

de te difundir no Azul, de ainda, através dos tempos,<br />

viver...<br />

Basta, para isso, que renasças de ti mesmo, com<br />

entusiasmos bizarros, revitalizados pelo fluido de ouro,<br />

rico e fecundo, dos Idealismos, olhando as cousas com<br />

olhos sonoros, harmoniosos; que ascendas à<br />

Perfectibilidade e surjas, simples e sereno, da lama<br />

esverdeada onde coaxas de descaro em descaro, de<br />

deboche em deboche – sapo asqueroso de sensualidades<br />

tristes – Astro imortal do Sonho, assim singularmente,<br />

curiosamente remido e perdoado para sempre de tudo,<br />

na palpitação extática das Luzes, das Formas, das<br />

Transcendências!...


546 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

BALADA DE LOUCOS<br />

Oui, nulle souffrance ne se perd, toute<br />

douleurfructifie, il en reste un arome subtil qui<br />

se répand indefiniment dans le monde!<br />

M. DE VOGUÉ<br />

Mudos atalhos afora, na soturnidade de alta noite,<br />

eu e ela, caminhávamos.<br />

Eu, no calabouço sinistro de uma dor absurda,<br />

como de feras devorando entranhas, sentindo uma<br />

sensibilidade atroz morder-me, dilacerar-me.<br />

Ela, transfigurada por tremenda alienação, louca,<br />

rezando e soluçando baixinho rezas bárbaras.<br />

Eu e ela, ela e eu! – ambos alucinados, loucos, na<br />

sensação inédita de uma dor jamais experimentada.<br />

A pouco e pouco – dois exilados personagens do<br />

Nada – parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo,<br />

como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas<br />

rítmicas do esquife...<br />

Eram em torno paisagens tristes, torvas, árvores<br />

esgalhadas nervosamente, epilepticamente – espectros<br />

de esquecimento e de tédio, braços múltiplos e vãos sem<br />

apertar nunca outros braços amados!<br />

Em cima, na eloqüência lacrimal do céu, uma lua<br />

de últimos suspiros, morta, agoniadamente morta,<br />

sonhadora e niilista cabeça de Cristo de cabelos<br />

empastados nos lívidos suores e no sangue negro e<br />

esverdeado das letais gangrenas.<br />

Eu e ela caminhávamos nos despedaçamentos da<br />

Angústia, sem que o mundo nos visse e se apiedasse,<br />

como duas Chagas obscuras mascaradas na Noite.<br />

Longe, sob a galvanização espectral do luar, corria<br />

uma língua verde de oceano, como a orla de um eclipse...<br />

O luar plangia, plangia, como as delicadas violetas<br />

doentes e os círios acesos das suas melancolias, as<br />

fantasias românticas de sonhador espasmado.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 547<br />

Parecia o foco descomunal de tocheiros ardendo<br />

mortuariamente.<br />

A pouco e pouco – dois exilados personagens do<br />

Nada – parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo,<br />

como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas<br />

rítmicas do esquife...<br />

Beijos congelados, as estrelas violinavam a sua<br />

luz de eternidade e saudade.<br />

E a louca lúgubres litanias rezava sempre, soluços<br />

sem o limitado do descritível dor primeira do primeiro<br />

ser desconhecido, originalidade inconsciente de um<br />

dilaceramento infinitamente infinito.<br />

Eu sentia, nos lancinantes nirvanescimentos<br />

daquela dor louca, arrepios nervosos de transcendentalismos<br />

imortais!<br />

O luar dava-me a impressão difusa e dormente<br />

um estagnado lago sulfurescente, onde eu e ela,<br />

abraçados na suprema loucura, ela na loucura do Real,<br />

eu na loucura do Sonho, que a Dor quintessenciava mais,<br />

fôssemos boiando, boiando, sem rumos imaginados,<br />

interminamente, sem jamais a prisão do esqueleto<br />

humano dos organismos – almas unidas, juntas, só almas<br />

vogando, almas, só almas gemendo, almas, só almas<br />

sentindo, desmolecularizadamente...<br />

E a louca rezava e soluçava baixinho rezas<br />

bárbaras.<br />

Um vento erradio, nostálgico, como primitivos<br />

sentimentos que se foram, soprava calafrios nas suas<br />

velhas guslas.<br />

De vez em quando, sobre a lua, passava uma nuvem<br />

densa, como a agitação de um sudário, a sombra da asa<br />

de uma águia guerreira, o luto das gerações.<br />

De vez em quando, na concentração esfingética<br />

de todos os meus sofrimentos, eu fechava muito os olhos,<br />

como que para olhar para o outro espetáculo mais<br />

fabuloso e tremendo que acordava tumulto dentro de<br />

mim.


548 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

De vez em quando um soluço da louca, vulcanizada<br />

balada negra, despertava-me do torpor doloroso e eu abria<br />

de novo os olhos.<br />

E outro soluço, outro soluço para encher o cálix<br />

daquele Horto, outro soluço, outro soluço.<br />

E todos esses soluços parecia-me subirem para a<br />

lua, substituindo miraculosamente as estrelas, que<br />

rolavam, caíam do Firmamento, secas, ocas, negras,<br />

apagadas, como carvões frios, porque sentiam, talvez!<br />

que só aqueles obscuros soluços mereciam estar lá no<br />

alto, cristalizados em estrelas, lá no Perdão do Céu, lá<br />

na Consolação azul, resplandecendo e chamejando<br />

imortalmente em lugar dos astros.<br />

A pouco e pouco – dois exilados personagens do<br />

Nada – parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo,<br />

como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas<br />

rítmicas do esquife...<br />

O vento, queixa vaga dos túmulos, esperança<br />

amarga do passado, surdinava lento.<br />

De instante a instante eu sentia a cabeça da louca<br />

pousada no meu ombro, como um pássaro mórbido, meiga<br />

e sinistra, de uma doçura e arcangelismo selvagem e<br />

medroso, de uma perversa e febril fantasia nirvanizada<br />

e de um sacrílego erotismo de cadáveres. Ficava tocada<br />

de um pavor tenebroso e sacro, uma coisa como que a<br />

Imaginativa exaltada por cabalísticos aparatos<br />

inquisitoriais, como se do seu corpo se desprendessem,<br />

enlaçando-me, tentáculos letárgicos, veludosos e doces<br />

e fascinativos de um animal imaginário, que me<br />

deliciassem, aterrando...<br />

Eu a olhava bem na pupila dos grandes olhos<br />

negros, que, pela contínua mobilidade e pela beleza<br />

quente, davam a sugestão de dois maravilhosos astros,<br />

raros e puros, abrindo e fechando as chamas no fundo<br />

mágico, feérico da noite.<br />

Naquela paisagem extravagante parecia passar o<br />

calafrio aterrador, a glacial sensação de um hino negro


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 549<br />

cantado e dançado agoureiramente por velhas e<br />

espectrais feiticeiras nas trevas...<br />

A lua, a grande mágoa requintada, a velha lua<br />

das lágrimas plangia, plangia, como que na expressão<br />

angustiosa, na sede mais cega, na mais latente<br />

ansiedade de dizer um segredo do mundo...<br />

E eu então nunca mais, nunca mais me esquecerei<br />

daqueles ais terríveis e evocativos, daquelas indefiníveis<br />

dolências, daquela convulsiva desolação, que sempre<br />

pungentemente badalará, badalará, badalará na<br />

minh’alma dobres agudos e lutuosos de uma Ave-Maria<br />

maldita de agonias, como se todos os bons Anjos da<br />

Mansão se rebelassem um dia contra mim, cantando<br />

em coro reboantes, conclamantes hosanas de perseguição<br />

e de fel!<br />

Nunca! nunca mais se me apagará do espírito essa<br />

paisagem rude, bravia, envenenada e maligna, todo<br />

aquele avérnico e irônico Pitoresco lúgubre, por entre o<br />

qual silhueticamente desfilamos, eu, alucinado num<br />

sonho mudo, ela, alienada, louca – simples, frágil,<br />

pequenina e peregrina criatura de Deus, abrigada nos<br />

caminhos infinitos deste tumultuoso coração.<br />

Só quem sabe, calmo e profundo adormecer um<br />

pouco com os seus desdéns serenos e sagrados pelo<br />

mundo e escutar já, de manso, através das celas<br />

celestes do mistério das almas, uma dor que não fala,<br />

poderá exprimir a sensação aflitíssima que me<br />

alanceava...<br />

Ah! eu compreendia assim os absolutos Sacrifícios<br />

que redimem, as provações e resignações que<br />

transfiguram e renovam o nosso ser! Ah! eu compreendia<br />

que um Sofrimento assim é um talismã divino concedido<br />

a certas almas para elas adivinharem com ele o segredo<br />

sublime dos Tesouros imortais.<br />

Um Sofrimento assim despertava em mim outras<br />

cordas, fazia soar outra obscura música. Ah! eu me sentia<br />

viver desprendido das cadeias banais da Terra e pairando


550 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

augustamente naquela Angústia, tremenda, que me<br />

espiritualizava e disseminava nas Forças repurificantes<br />

da Eternidade!<br />

E como dentro de mim estava aberto para ela o<br />

suntuoso altar da Piedade e da Ternura, eu, com<br />

supremos estremecimentos, acariciava essa alucinada<br />

cabeça, eu a levantava sobre o altar, acendia todas as<br />

prodigiosas e irisantes luzes a esse fantasma santo, que<br />

ondulava a meu lado, no soturno e solene silêncio de<br />

fim daquela sonâmbula peregrinação, como se ambos os<br />

nossos seres formassem então o centro genésico do novo<br />

Infinito da Dor!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 551<br />

ESPELHO CONTRA ESPELHO<br />

Tu, alma eleita, que trazes essa sede de Espaço,<br />

essa ansiedade de Infinito, essa doença do Desconhecido<br />

que te fascina os nervos, que vieste ao mundo para falar<br />

pelas outras bocas, para ser a voz viva de todas as vozes<br />

mortas; tu, que andas em busca de uma dor que venha<br />

ao encontro da tua; tu, que interpretas tanta queixa,<br />

tanta queixa, tanta queixa dos Corações, tanta queixa<br />

dos Espíritos, tanta queixa das Almas, tudo porque não<br />

há resposta a esta pergunta horrível: por que nos deram<br />

a Vida?! Tu, que legaste toda a delicadeza virginal do<br />

Sentimento a este Apostolado doce e amargo da Arte,<br />

bela e triste; tu, que sentes chamejar e cantar a inefável<br />

poesia que te alimenta como o óleo alimenta as lâmpadas;<br />

tu, cujo espírito é uma fonte de dons maravilhosos onde<br />

os sedentos se debruçam e bebem à farta a água mais<br />

cristalina, mais clara; tu, que tão sagradamente te<br />

revoltas, na majestade ideal das águias e dos leões, e<br />

que, na candidez, na ingenuidade casta e santa da tua<br />

alta nobreza de Arte, atinges com a ponta das asas<br />

espirituais a ponta das asas dos Anjos! Tu, ó alma<br />

aureolada de deslumbramentos brancos, Lírio estético<br />

que um luar de sonhos sensibilizou, ouve este verbo<br />

veemente, vivo, de quem procura sentir os altos segredos<br />

da Existência, perscrutar-lhe as íntimas origens fugidias.<br />

Ouve este verbo vulcanizado, convulso, cheio das<br />

grandes tempestades ideais que abalam o Sentimento<br />

do mundo. Ouve este verbo aceso, inflamado na chama<br />

do Absoluto, para ele subindo e para ele palpitando<br />

sempre. Ouve este verbo indomável vento que sopra pelas<br />

trompas do mar e que soluça pelas harpas do céu toda a<br />

grandeza de uma Ilusão, toda a majestade de uma Fé.<br />

Eu falo a ti, Alma eleita e desolada nos crepúsculos<br />

da Cisma; não falo às almas antipáticas, cruamente<br />

ardentes, acres, como terrenos crestados, muito<br />

flagrantes de sol, sem sombras consoladoras... Falo a ti,


552 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

que sentes e sabes o frio que vai pelo mundo, como as<br />

almas tiritam sem agasalho, desabrigadas, como as<br />

consciências enregelam sem amor e sem bondade na<br />

ferocidade dos brutos instintos, como a doce e nobre<br />

Humildade se encolhe e protege nos obscuros vãos de<br />

uma porta para não morrer esmagada pelo bárbaro tacão<br />

da Prepotência, como a filáucia triunfa e como a Grande<br />

Virtude de todos os tempos está cega e pede esmola<br />

envolta em duros frangalhos! Tu, Genial, que tens<br />

suspiros, que tens ânsias, que tens lágrimas para esta<br />

Comédia fúnebre, mas dolorosa, em que vai o mundo;<br />

tu, singular e lívido demônio que te fizeste monge, que<br />

tens a tua ironia santa que diviniza e nirvaniza, o teu<br />

rebelado sarcasmo em brasas, toda tua mordacidade<br />

inclemente para essas tristes cousas terrenas, não podes<br />

ver sem abalo, sem comoção profunda, almas de mocidade<br />

já sem dedicação intensa, sem energias claras, sem<br />

entusiasmo absoluto. Não desse entusiasmo oficial,<br />

coletivo, das massas – mas esse entusiasmo propulsor<br />

das células, esse entusiasmo dúctil, voluptuoso, nervoso,<br />

que vem da extrema sensibilidade; esse entusiasmo que<br />

é tônico, que é éter puro, que é oxigênio matinal, que é<br />

essência criadora, que é chama fecunda e asa branca<br />

no genuíno espírito; esse entusiasmo que é força altiva,<br />

que é dignidade serena, que é emoção original e casta,<br />

que infiltra azul e sol nas veias, acende aurora e vibra<br />

cânticos no sangue.<br />

Há de doer-te fundo esse desolamento, essa morte<br />

das almas, essa aridez, essa petrificação de sentimentos<br />

em tudo. Há de doer-te muito que os impotentes se liguem<br />

aos impotentes, os nulos aos nulos, os frouxos aos frouxos,<br />

os esgotados aos esgotados. Que nada os separe, nada<br />

os afaste. Que quanto mais se reconheçam tartufos mais<br />

se unam no intuito e no instinto de se conservarem<br />

inatacáveis, embora, mesmo, no fundo, e fatalmente, se<br />

destruam, se odeiem, achando um incômodo a existência<br />

dos outros. Há de doer-te muito que uma envenenada


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 553<br />

relação secreta os una, os congregue, os irmane, para<br />

juntos darem batalha subterrânea, cavilosa e vilã, aos<br />

que trazem a clara força tranqüila de um alto Desígnio,<br />

como armadura de astros, no peito.<br />

Há de afligir-te muito que na hora da mais<br />

profunda, da infinita Desolação, até os mais íntimos te<br />

abandonem, desapareçam, como que tocados pela idéia<br />

de que os teus extremos fatalismos são inconvenientes<br />

e contagiosos!<br />

Há de fazer brotar em ti a luminosa flor da ironia,<br />

o aspecto ousado do Asinino, que quer a todo o transe<br />

medir-se contigo, pôr-se no mesmo paralelo, porque vê<br />

tanto como tu, sente tanto como tu, sonha e é tão legítimo<br />

ser como tu!! Se tu lhe dizes versos, ele diz-te versos;<br />

se tu lhe dizes prosa, ele diz-te prosa, opondo a natureza<br />

dele a tudo, atropelando as cousas, atrabiliariamente,<br />

acertando, às vezes, por acaso, por assimilação fácil,<br />

por percepção de simples arguto, mas não trazendo os<br />

fundamentos de sangue e de sonho, esse longínquo<br />

infinito de origem, essa harmonia interior e essa beleza<br />

heróica tão pouco perceptível e penetrável.<br />

Sentirás no Asinino a pressa de comunicar<br />

primeiro que ninguém idéias que já Alguém pôs em<br />

circulação no tempo, nas correntes do ar; idéias que já<br />

foram acariciadas por outro com delicadeza mais<br />

particular, com veemência mais extrema, com intuição<br />

mais clara, com amor mais eloqüente, com entendimento<br />

mais recôndito. Sentirás no Asinino a natureza<br />

essencialmente auditiva, que ouve e torna-se o eco fácil,<br />

ingênuo, irresponsável, mas errado, mas corrompido,<br />

impuro já, da Grande Voz poderosa, honesta e pura que<br />

ouviu, porém que ouviu mal, sem a plasticidade<br />

necessária para receber, no seu primitivo apuramento<br />

imaculado, todas as complexas e infinitas vibrações,<br />

nuances e modalidades dessa Grande Voz.<br />

Sentirás no Asinino a intenção capciosa de ser o<br />

teu refletor, de cruzar nos teus os seus raios, de produzir


554 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

os mesmos reflexos, de apresentar as mesmas faces<br />

iluminantes, as mesmas irradiações e golpes de luz, as<br />

facetas do mesmo cristal e o fundo do mesmo aço.<br />

Sentirás no Asinino a revelação da tua revelação,<br />

o despertar do teu despertar, a sugestão da tua sugestão<br />

– mas isso truncado, hipertrofiado, inteiramente desviado<br />

dos eixos centrais do teu Objetivo, sem a unidade inicial<br />

dos órgãos ingênitos que propulsionaram e deram a<br />

integração final às linhas gerais da sensibilidade do teu<br />

ser, à zona compacta e luminosa do foco supremo das<br />

tuas Intuições.<br />

Sentirás no Asinino a imitação do teu Silêncio, a<br />

imitação da tua Sombra – sombra e silêncio d’espelho,<br />

sombra e silêncio refletidos do teu silêncio e da tua<br />

sombra, sombra e silêncio reproduzidos d’espelho contra<br />

espelho.<br />

Não poderás projetar o teu vulto num lago que o<br />

Asinino não projete também o seu vulto no mesmo lago;<br />

não poderás aquarelar o teu perfil num luar que o Asinino<br />

não aquarele também o seu perfil no mesmo luar.<br />

Se a tua Imaginação é virgem, reverdece agora<br />

nos luminosos pomares da Fantasia, a Imaginação do<br />

Asinino também é virgem e reverdece agora nos mesmos<br />

luminosos pomares. Não podes vir da raiz viva e violenta<br />

de uma sensação, da agudeza de uma Causa, da livre<br />

enunciação de um fenômeno, porque o Asinino também<br />

vem de lá, também de lá procede, também de lá se<br />

origina. Não há originalidades subjetivas, clama o Asinino,<br />

não há o puro sentir, o novo sentir, o excepcional sentir!<br />

Tudo já passou depurado pelo meu organismo, que é o<br />

crisol das purificações, clama o Asinino.<br />

Vida do eu visual, do eu olfativo, do eu mental, do<br />

eu sensível, faz vida original, faz vida de temperamento,<br />

portanto, vida ingenitamente particular e nova, dirás tu<br />

na perfectibilidade da tua visão.<br />

Mas o Asinino, que é a Rotina secular, que é a<br />

Regra universal, argumenta com pedras em vez de


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 555<br />

argumentar com sentimentos, com emotividades, com<br />

dutilidades e mistérios de alma.<br />

Nuances novas de alma, caminhos não explorados<br />

no mundo do Pensamento, certos segredos e<br />

transfigurações, rumos inéditos, paragens de uma<br />

inaudita melancolia, tudo é paralelamente julgado pelo<br />

Asinino, que logo estabelece para as relações de cada<br />

caso especial a mesma esfera de ação de múltiplos casos<br />

diversos.<br />

Sempre sol contra sol, sempre sombra contra<br />

sombra, sempre espelho contra espelho.<br />

Sempre este espelho – Homero, contra este<br />

espelho – Virgílio. Sempre este espelho – Shakespeare,<br />

contra este espelho – Balzac, ou contra este espelho –<br />

Dante, ou contra este espelho – Hugo. Sempre este<br />

espelho – Flaubert, contra este espelho – Zola, ou contra<br />

este espelho – Goncourt. Sempre este espelho –<br />

Baudelaire, contra este espelho – Poe, contra este<br />

espelho – Villiers e contra este espelho – Verlaine.<br />

Sempre este espelho – Ibsen, contra este espelho –<br />

Maeterlinck.<br />

Sempre, eternamente estes espelhos impolutos e<br />

astrais que reproduzem a perfectibilidade de sentimentos<br />

nas gerações, paralelamente igualados, medidos e<br />

pesados pelo Asinino, que os equipara, confundindo- lhes<br />

a delicadeza e fulguração dos cristais.<br />

Sempre um Sentimento contra outro Sentimento,<br />

como se pudesse haver uma alma com a cor e a<br />

sonoridade de outra alma!<br />

E tu, na impaciência, na inquietação do teu vôo<br />

astral para as serenas Esferas, buscarás libertar-te,<br />

desacorrentar-te dos grilhões a que essa Rotina te<br />

prendeu, a que ela te sujeitou com a responsabilidade<br />

das primitivas camadas da Inteligência, para poderes<br />

afirmar que, como os Eleitos guiados a sós pelo seu<br />

Destino, tu também vieste só, representando um<br />

fenômeno desprendido no Espaço, sem leis de correlação


556 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

no sentimento da tua Dor – uno e indivisível fenômeno<br />

no obscuro e perpétuo germinal da Natureza.<br />

Na solidão do teu Ideal ficarás como um astro<br />

singular vivendo na luz nostálgica de uma órbita<br />

imaginária, sem que a confusão dos tempos possa jamais<br />

quebrar a intensidade do teu brilho e a serenidade da<br />

tua força.<br />

O Asinino continuará lá embaixo, na turba, na<br />

multidão, no rodar das épocas, estreitamente e<br />

empiricamente a comparar, a comparar, a medir o teu<br />

Infinito pelo infinito da sua miopia secular, lá embaixo,<br />

na turba, na multidão. Tu, além, lá em cima, superpondote<br />

aos mundos, rolarás, transbordarás, na augusta<br />

perpetuidade do Sentimento.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 557<br />

ABRINDO FÉRETROS<br />

Agora, que deixei para lá, na plebéia rua, a filáucia<br />

e a mordacidadezinha do inqualificável cretino; agora,<br />

que consigo sacudir-me à vontade da poeira da frivolidade<br />

dos caminhos; que já estou, afinal, longe dos<br />

perturbadores, vampíricos contactos execrandos, posso,<br />

talvez, fechando-me nos meus secretos isolamentos, nas<br />

minhas solenes abstrações, concentrando-me, afinal,<br />

penetrar serenamente no Além, debruçar-me<br />

transfigurado no Mistério.<br />

Sinto mesmo que o Mistério chama-me, ele<br />

chama-me, atravessa-me com os seus sutis e poderosos<br />

filtros.<br />

Dilui-se na atmosfera do meu ser uma luz doce,<br />

dolente, meiga tristeza de leves nuanças violáceas que<br />

deve ser melancolia...<br />

Acendem-se e ficam crepitando, ardendo, todos<br />

os altos círios sagrados da velada capela da minh’alma,<br />

onde o meu passado e morto Amor, como o Santíssimo<br />

Sacramento, está exposto.<br />

Lâmpada por lâmpada vai também se acendendo<br />

o langue, untuoso luar das lâmpadas, como nas azuladas<br />

e cintilantes arcarias da Via-Láctea estrela por estrela.<br />

E, neste tom do Angelus da minh’alma, nesta<br />

surdina vesperal, começam as litanias vagas, as preces<br />

desoladas por Aparições que só a vara mágica da contrita<br />

saudade e da espiritualidade pura sabe fazer<br />

desencantar e ressurgir, nimbadas de transfulgentes<br />

lágrimas e luzes...<br />

Sinto-me afinado por uma música de luar e lírios,<br />

por uma eterificação de beijos celestes.<br />

E, a meu pesar, sai da minha boca, como de uma<br />

cova do esquecimento, este doloroso, ansioso clamor:<br />

– Ó mármore impenetrável do Sepulcro! palpita!<br />

canta! abre-te em veias! E que por essas veias corra e<br />

estue a caudal infinita do sangue leonino e virgem das


558 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

grandes forças criadoras da Beleza! Ó mármore<br />

misérrimo! ó matéria missérrima! Escuta-me, ouve-me,<br />

sente-me! Sensibiliza-te, espiritualiza-te, vibratibilizate...<br />

PRIMEIRO FÉRETRO – ANA<br />

Alma de colegial que se fizesse, de repente, irmã<br />

de caridade. Ah! essa era, com efeito, irmã da minha<br />

vida e tinha caridade de mim. Fazia meditar num destes<br />

seres obscuros que morrem sem nunca ninguém lhes<br />

penetrar o segredo.<br />

Ela mesmo morreu como uma tarde elísea<br />

vagueada de pássaros: – no outono da castidade, intacta<br />

natureza que o Nada devorou sem piedade, reclusa e<br />

triste, só, no ascetério da sua fé, penitente da carne,<br />

monja sem mancha.<br />

Parece-me ainda vê-la no féretro, a fronte lívida,<br />

que os longos e meigos, fagueiros cabelos aureolavam.<br />

Era como se um cortejo de águias, em alas, a levasse<br />

pelo Azul, enquanto o seu alvo corpo em flor e gelado ia<br />

virginalmente, para sempre, dormindo...<br />

Parece-me ver no seu olhar se refletir ainda,<br />

talvez do fundo claro da Eternidade, este pensamento<br />

cândido; ó inocente alegria da Infância, graça cor-derosa<br />

e ingênua dos tempos, para onde te exilaste? Eram<br />

olhos, os seus, onde vagava a harmonia cantante dos<br />

claros rios, e a frescura dessa ingênita bondade que<br />

floresce instintivamente e espontaneamente nas almas,<br />

como as estrelas no céu, apesar das tentações malignas,<br />

das apostasias do Bem, dos sacrilégios do Amor. Olhos<br />

onde havia bizarro e cintilante alvoroço alegre de<br />

mocidade, qualquer cousa de farfalhante ruflar d’asas<br />

por entre festões de flores, sonoridades de cristais e<br />

luzes.<br />

Como, pois, aquela forma de tanta suavidade e de<br />

tanto encanto evaporou-se logo?! Como, pois, aquele ser,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 559<br />

tão oculto da terra, tão obscuro, tão humilde, zero inútil<br />

no grande algarismo do Mundo, mas tão simples e tão<br />

bom, assim desapareceu um dia, arrebatado num vento<br />

macabro, convulsivo, de morte?! Como as essências<br />

desconhecidas, os filtros esquisitos daquela triste dor<br />

nunca foram descobertos? Como os abafados soluços<br />

daquela pobre Mágoa nunca foram ouvidos?!<br />

Pois que Deus é esse que faz vigorar nos centros<br />

do rumor e da luz, como amplas e verdejantes árvores<br />

célebres, existências medíocres que pompeiam e fazem<br />

ressoar com vaidoso estrondo a sua prepotência vazia,<br />

enquanto aniquila, abate existências onde há um sonho<br />

bom de amor e de carinho! Pois que Deus é esse! Que<br />

divina misericórdia e que clemência iguais ele, cego,<br />

tão cego, semeia na terra, que todos, bons ou maus,<br />

colhem o mesmo imutável quinhão?!<br />

Que celeste ironia, acaso, dá-lhe asas satânicas,<br />

dá-lhe asas ferozes de fogo, que ele, cego, tão cego, tudo<br />

por igual incendeia e em toda a parte cospe lesto a<br />

peste?!<br />

Quando Ana morreu eu senti, tal foi o impressionativo<br />

abalo, como que uma espada varar-me, lado a<br />

lado, o coração.<br />

Eu estava num desses períodos que as<br />

reminiscências para sempre conservam, que se não<br />

apagam nunca mais no íntimo sadio das nossas fibras,<br />

das partículas mínimas do nosso sangue, da espontânea<br />

florescência casta do nosso ser. Eu estava na mocidade,<br />

na plena e na fortalecente mocidade. Desabrochavam<br />

em mim perigosas e viçosas flores de delírio juvenil. Eu<br />

aspirava o Vago, o Turbilhão das Quimeras. Palácios de<br />

fadas eram as minhas noites. Palácios de fadas eram os<br />

meus dias. Uma saúde vital dava-me aços de intrepidez,<br />

envergaduras ousadas, fantasia e força e frescura<br />

matinal de montanhês que vai galgando montanhas por<br />

alvoradas de ouro e aves.


560 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Na paisagem da minha Imaginação só havia<br />

cânticos e uma brancura purificadora envolvia as cousas<br />

na calma de leve e ingênua felicidade ridente.<br />

Ana foi para mim como uma harpa que deixou, de<br />

repente, de soar...<br />

Ela era, com efeito, a harpa delicada onde eu,<br />

adolescente e sem saber como, tirava as harmonias, os<br />

sentimentos rítmicos que guardei comigo e que agora<br />

aqui vou aos poucos difundindo.<br />

Ela era a harpa em cujas cordas sensibilizadas<br />

eu sempre adivinhei os acordes místicos e fugitivos de<br />

um segredo amargo.<br />

Aquela candidez de virgem tinha luto, aquela<br />

madrugada de mulher tinha insônias.<br />

Um meio-dia de sol, onde, por um etéreo capricho<br />

fenomenal dos astros, se entrecruzasse, transfiguradamente,<br />

o crepúsculo.<br />

Desde que Ana morreu começou a cair na<br />

minh’alma uma cinza fria de desolação, uma sombra<br />

dolente.<br />

Ela foi quem primeiro me ergueu a fronte e as<br />

mãos para os sublimes Sacrifícios. Foi ela quem primeiro<br />

me ungiu com os seus cuidados cordiais. Foi ela quem<br />

me deu a comungar a hóstia da Vida com as suas mãos<br />

de amor. Ela arejou a minh’alma, deu sol ao meu<br />

Desconhecido, deu luar de paz ao meu Sonho.<br />

Vibrações virgens de harpa inviolada para o<br />

mundo, as emoções da alma de Ana faziam meditar no<br />

mesmo vago e no mesmo encanto longínquo de regiões<br />

ainda não descobertas. Nela dir-se-ia dormir uma vida<br />

nova, que, ai! nunca despertou e afinal envelheceu no<br />

mistério daquele organismo.<br />

Delicadezas de sensibilidade que nunca<br />

transbordam no mundo, tímidas lágrimas reconcentradas<br />

que nunca enchem os oceanos!<br />

Com a morte de Ana foi se diluindo a minha<br />

sensibilidade, começou de leve, lento, a harmonia velada


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 561<br />

do meu ser, veio vindo, se difundindo e definindo a<br />

Dolência.<br />

Era um fio imperceptível da minha vida, ligado à<br />

vida dela, que se partira e que só se tornaria a reunir,<br />

talvez, mais tarde, nos reinos encantados e noturnos da<br />

Saudade, perto dos rios roxos do Esquecimento, às<br />

margens amargas da Ilusão.<br />

Ana fora uma espécie dessas crepusculares,<br />

outoniças flores nostálgicas, de desconsoladas perpétuas<br />

do celibato que as insônias aquebrantadoras e perigosas<br />

definham e crestam como mormaços venenosos.<br />

Fazia lembrar uma dessas donzelas de honor,<br />

insontes e peregrinas; seres para os quais a Dor tornase<br />

de alguma sorte um vinho selvagem e alucinante que<br />

embriaga, iluminando de certa forma, e cujas religiosas<br />

surpresas e revelações da alma estão para sempre<br />

veladas e veladas a muitas almas profanas.<br />

E lá, nos reinos encantados e noturnos da<br />

Saudade, essa, para mim veneranda e magnânima<br />

Criatura – coração, sem dúvida, inquieto, mas parecendo<br />

alheio às seduções do mundo e que, quem sabe!, falhou<br />

ao seu Destino, lá estará nos parques solitários da<br />

Melancolia, no renunciamento de tudo e na indiferença<br />

augusta e clássica, nessa doce expressão de beleza de<br />

certas estátuas antigas, envelhecidas pelo tempo e<br />

tristes, que se vêem através de grandes jardins<br />

enevoados...<br />

SEGUNDO FÉRETRO – ANTÔNIA<br />

Sombra de luto, de viuvez e de velhice. Angelus<br />

sem plangências consoladoras de campanário, sem ecos<br />

saudosos, sem elos de afeto, só, na solidão árida, no<br />

abandono sem limites de uma voz que chamasse por ela<br />

– já apagada a última luz dos faróis interiores, escura já<br />

toda aquela vasta região de velhice.


562 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Era a harpa soturna, surda, sem cordas, como as<br />

que ficam ao acaso, para ali a um canto no leilão dos<br />

tempos, sem que uma vibração ambiente as faça gemer,<br />

sem que um vento dormente as faça cantar. Vida já de<br />

vacilações e de ânsias baixinho, de certos nirvanismos<br />

curiosos e mudos – alma sem impulso, sem hora, sem<br />

desejo, apenas vácuo e vácuo infernalmente circulado<br />

de símbolos desesperadores. Sentimentos anônimos, sem<br />

consolo, mas de profunda significação genésica, e que o<br />

mundo vãmente arrasta nos seus turbilhões medonhos,<br />

no seu pó secular, no tumulto das suas venenosas<br />

seduções. Tipo que vaga, tipo que ondeia, tipo que gira<br />

sem órbitas definidas, ao acaso dos Desígnios,<br />

confundidos, amalgamado no supremo Comum, mas<br />

Existente original no fundo abismal do seu ser.<br />

Para os que sofrem a Dor do Infinito e mergulham<br />

nas profundas, longas e complexas galerias dos<br />

subterrâneos das almas, na claridade saudosa dos olhos<br />

de Antônia parecia haver a transfiguração de uma<br />

cegueira singular da alma, que andava, como as fugidias,<br />

capciosas mãos sem visão de um cego, tateando por<br />

penumbras de bruma.<br />

Naquela ignorada alucinação da vida, que círculos,<br />

quantas correntes tão opostas se cruzariam!<br />

E a efêmera velhinha, sempre obscura, verdadeira<br />

nebulosa de gemidos, despertava curiosidades histéricas,<br />

emotivas, como os signos assinaladores do arco de<br />

aliança – todas as cores, todo o cromatismo esquisito do<br />

sofrimento de um ser que vive isolado na ermida da<br />

alma, sobre os penhascos, os ásperos outeiros do mundo.<br />

Alma apoiada ao bordão da velhice, tiritando e se<br />

arrastando sob as lâminas cruas das espadas glaciais<br />

da Desolação, caminhando sem tréguas por entre ruas<br />

soturnas e confusas, ao longo de imensos muros, vestidos<br />

de limo, sob o soluçante e lacrimoso brumar eterno de<br />

uma chuva fina, muito lenta, triste, monotonamente<br />

triste...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 563<br />

Eu a via, naquela paz lutuosa dos anos, nas<br />

ingênuas manifestações da su’alma como se ela andasse,<br />

sob as provações terrestres, a purificar-se por crisóis<br />

imortalizadores, além pelos sete céus cristalinos e<br />

astrais.<br />

TERCEIRO FÉRETRO – CAROLINA<br />

Esta, Carolina, uma flor infernal de sangue e treva<br />

que a Angústia fecundou.<br />

Esta, a harpa maior, a harpa da Dor, cujas cordas<br />

são mais puras, mais admiráveis e onde mais alto e<br />

majestoso chora todo o incomparável Intangível da minha<br />

Saudade.<br />

Este féretro é um oceano rasgado de tempestades,<br />

de ventos imprecativos, anatematizadores e negros.<br />

Fluidifica-se deste féretro uma música bárbara<br />

de sensibilidade, de martírio.<br />

Aberto diante de mim, assim como eu o estou<br />

vendo aqui, que sugestões singulares me traz, que<br />

despedaçamentos me recorda, que sombrios idílios e<br />

delírios!<br />

Ah! na vida avara, como os sentimentos são avaros,<br />

como o pensamento humano é avaro para perscrutar<br />

uma existência assim!<br />

Onde estão os ascetas que se martirizaram, onde<br />

estão os apóstolos que creram, onde estão os santos que<br />

ciliciaram e que escutaram de perto, mudos, o eloqüente<br />

silêncio da Dor, para virem agora, aqui, comigo, aqui,<br />

com a minh’alma, traduzir os recônditos segredos que<br />

aí estão nesse féretro, penetrar nos ergástulos sem nome<br />

que aqui estão, nessa alma.<br />

Que purificações e que sugestivas grandezas<br />

parabólicas, que transcendentalismos das palavras de<br />

Cristo no Sermão da Montanha, ecoando impressionativo<br />

e a medo como o ulular primicial e majestoso de<br />

imaginários mundos em gestação, poderão, acaso,


564 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

interpretar esta vida deserta que subiu às mais<br />

longínquas e altas cordilheiras da Dor, exprimir os ais<br />

que a violinaram, os soluços que a transportaram ao<br />

céu, os desencontrados combates que a despedaçaram!<br />

Sim! Vazio é tudo no mundo! Os olhos acordam<br />

nesta ânsia viva de chorar e de amar! As ansiedades<br />

que em vão se escondem plangem à flor dos sentidos,<br />

diluem-se, fluidificam-se e, vagamente, aí vêm então<br />

jorrando, vêm vindo as lágrimas...<br />

Sim! Criatura dos Anjos que, no entanto, o Inferno<br />

possuiu e por fim acabou por estrangular! Coração<br />

sangrante! Ser do meu ser! Os outros seres vãos que<br />

babujam a terra com a argilosa Infâmia de que são feitos<br />

nunca poderão, nunca saberão, melancolicamente não,<br />

nunca, que hóstia sanguinolenta e travorosa deram-te<br />

a comungar na Vida, que pão tenebroso de Páscoa de<br />

lágrimas deram-te a devorar, que cálix de vinho letal,<br />

alucinante, sugado ao fel das chagas e das gangrenas<br />

propinaram-te à boca verminada pelo primeiro beijo de<br />

amor, quando tu tinhas as fomes e as sedes vorazes,<br />

cegas, desesperadas do Não-Ser, quando aspiravas às<br />

formas celestes, quando sentias, apesar da tua<br />

inocuidade de poeira mas, talvez!, poeira de algum divino<br />

astro diluído, o insaciável desejo de abranger Infinitos.<br />

QUARTO FÉRETRO – GUILHERME<br />

O que importa a Vida e o que importa a Morte,<br />

obscuro velhinho que te foste, operário humilde da terra,<br />

que levantaste as torres das igrejas e os tetos das casas,<br />

que fundaste os alicerces delas sobre pedra e areia como<br />

os teus únicos Sonhos.<br />

Deixa sinfonicamente cantar sobre ti a<br />

sacrossanta alegria branca e forte do profundo<br />

Reconhecimento que te votei na existência! Deixa correr<br />

sobre o teu virtuoso flanco de lutador, sobre as tuas<br />

mãos rudes e abençoadas, sobre os teus olhos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 565<br />

hipocondríacos de senil desterrado de Reinos ignotos,<br />

sobre o teu coração suave de cordeiro imaculado, as<br />

grandes e maravilhosas lágrimas repurificantes que<br />

nesta hora sublimizam o meu ser de uma divinização<br />

incomparável! Velho tronco robusto de onde seivas<br />

prodigiosas de Afeição porejaram sempre! A tua alma,<br />

blindada de uma honra ingênua, antiga e clássica,<br />

parecia-se reveladoramente com a natureza – alma<br />

franca e virgem, espontânea nos seus fenômenos, puro<br />

bloco inteiriço de Sentimento, de onde os cinzelários do<br />

Sonho cinzelariam com a sua estética soberana as<br />

criações imortais.<br />

A claridade e a harmonia de uma bondade<br />

primitiva davam à tua alma, não a consagração<br />

espartana unicamente, mas uma simpleza e propriedade<br />

genésica de selvas que geram o Desconhecido e o Vago<br />

da Pureza, sem contactos egoísticos do mundo. Através<br />

da tu’alma eu lia, em caracteres indeléveis, a significação<br />

eloqüente do teu fenômeno triste, do teu simpático e<br />

lhano irradiamento na Existência!<br />

Para os que têm a boa sombra, o Angelus meigo do<br />

Amor, para os que sabem venerar e perdoar do fundo<br />

dos grandes Silêncios da alma, a flor genuína da tua<br />

sensibilidade tinha esse aroma oculto e amargo que se<br />

não define – esse aroma acerbo que vem das naturezas<br />

chãs mas sempre castas, inevitavelmente sepultadas<br />

no obscuro centro fatal do seu Destino.<br />

Se aflito, se desolado, se doloroso tu foste, como<br />

que esse sentimento era alado, era etéreo, isolado como<br />

tu andavas das causas originais de tudo, no relevo de<br />

rocha viva da tua Ignorância pura, mergulhado até ao<br />

fundo no mar augusto, formidável e sem raias da crença<br />

em Deus!<br />

A tua figura paternal, que a condição ínfima das<br />

frívolas categorias sociais obumbrava profundamente na<br />

terra, tinha para mim o encanto mítico de vetusto deus<br />

dalguma ilha abandonada em regiões, longe, vivendo


566 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

resignado, paciente, sem queixas, na iluminação teatral,<br />

flagrante e acabrunhadora de modernas e autoritárias<br />

Civilizações, como o legítimo representante dos seres<br />

humanos.<br />

Minh’alma, ao cuidar em ti, a considerar nos teus<br />

dias, a interpretar a tua mudez, a ver as curiosidades e<br />

instintivos caprichos dos teus movimentos de ser,<br />

quedava-se numa espécie dessa melancolia, dessa<br />

nuance aquebrantadora, desse emovente langor de um<br />

verso verlainiano que melancoliza tanto.<br />

Eu, longe que andava, ausente do teto onde<br />

exalaste o derradeiro gemido, não te pude ver no teu<br />

belo e grave desdém tranqüilo de morto. Não pude<br />

meditar nas ironias secretas e significativas da morte<br />

às vaidades da vida. Não te fui fechar os olhos,<br />

compungidamente, com a delicadeza amorável das<br />

minhas mãos trêmulas, nem passar para eles, em fluidos<br />

ardentes, o magoado adeus dos meus olhos.<br />

Não te pude dizer, de manso, bem junto aos teus<br />

olhos e coração moribundos, com toda a volúpia da minha<br />

dor, as untuosas e extremas palavras da separação, as<br />

cousas inefáveis e gementes no dilacerante momento<br />

em que os nossos braços abandonam, para nunca mais<br />

apertar, os amados braços que já estão vencidos,<br />

entregues ao renunciamento de tudo e que nós tanto e<br />

tão acariciadamente apertamos.<br />

Mas, nada importa a Vida e nada importa a Morte!<br />

O encanto do teu ser foi obscuro; a graça do teu<br />

Bem foi toda fugitiva. Porém do seio imenso da minh’alma,<br />

do fundo oceânico de soluços de que ela é feita, tu<br />

emerges e emergirás sempre, proba e doce figura,<br />

caridoso fanal do meu passado, que enfim me iluminaste<br />

com o clarão da Bondade e me trouxeste com a tua<br />

bênção paternal de grande Humilde a Fé sacrificante e<br />

salvadora das Resignações para atingir as Esferas<br />

supremas do Absoluto.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 567<br />

Lá, no Inexorável, na perpétua Dispersão, não<br />

sentirás mais o grosso rugir da miséria humana, a mão<br />

de ferro da prepotência esmagando tua subjetividade<br />

modesta.<br />

Todas as ferocidades, todas as durezas, enfim,<br />

cessaram no fundo Silêncio negro.<br />

Rebrilharam e ressurgiram as Solenidades<br />

transfiguradoras da Saudade! Enfim, és morto, agora!<br />

Posso evocar-te de lá das sombrias e glaciais<br />

imensidades! Posso sentir-te através do enevoamento<br />

de distâncias infinitas estreladas de lágrimas! Posso<br />

rasgar pelo Azul portas de Devotamento celestial à<br />

procura da tua Imagem. Iluminar a tua funda noite de<br />

morte com a triste luz saudosa da minha vida. Tu,<br />

eternamente, participarás das formas incoercíveis...<br />

E eu irei, por este lutulento mundo, com a cabeça<br />

um tanto pendida de dolência, como que vagamente<br />

aplicando o ouvido a um ponto distante, escutando,<br />

enlevado, em arroubos íntimos, secreta música difusa e<br />

longínqua de Além, que parece chamar-me para esse<br />

rítmico Indefinido onde afinal te dispersaste e sumiste.<br />

E essa música, de atrativos sutis, letíficas seduções, de<br />

místicos e transcendentalizadores acordes, fluindo aos<br />

meus ouvidos, continuará a chamar-me, a chamar-me,<br />

misteriosamente a chamar-me...


568 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

O SONHO DO IDIOTA<br />

Je suis inconsolable de t’avoir vue. Hélas!<br />

tu es la bien-aimée! J’ai la mélancolie de<br />

toi. Je n’ai de force que vers toi.<br />

VILLIERS DE L’ISLE ADAM, Axél.<br />

Revelações de Gênesis que acorda, talvez, no<br />

cérebro daquele idiota. Revelações de gênio incubado,<br />

que o segredo de um pensamento isolou e emudeceu...<br />

Mas, contudo, o certo era que no cérebro daquele idiota<br />

rasgavam-se esferas curiosas de sensação, radiavam<br />

chamas fenomenais, línguas malditas falavam as<br />

linguagens cabalísticas, misteriosas, das paixões<br />

humanas, das complexidades psíquicas.<br />

Espécie de formidável olho de ciclope, esse cérebro<br />

deformado via em visão múltipla, de sorte que, ainda<br />

mesmo na realidade, parecia sempre estar sonhando,<br />

ainda mesmo acordado, era um sonho vivo que<br />

perambulava...<br />

Belo idiota, triste idiota, soturnizado idiota, este,<br />

em verdade, atado de pés e mãos ao cepo da sua própria<br />

existência, como anfratuoso e feroz orango preso em jaula<br />

de ferro!<br />

De que rumos obscuros e tortuosos viera ele,<br />

girando no centro infernal das agonias desconhecidas;<br />

espécie dessas almas soluçantes na Dor e das quais a<br />

Natureza, por duras e rudes experiências, faz os eternos<br />

mármores e bronzes resistentes onde afia desassombrada<br />

e confiantemente as suas espadas e as suas lanças!<br />

Quem sabe se ali não dormiria, nesse ser<br />

hediondo, a fina intuição arcangélica de um missionário<br />

celeste, para sempre irremediavelmente perdido no<br />

fundo dos grandes tédios e das grandes saudades?!<br />

* * * * * * * * * *


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 569<br />

Uma vez que ermo e hirsuto como um dromedário<br />

sonolento errava pelas ruas escuras de certa cidade<br />

sombria, o pobre idiota foi corrido por apupos, pela chacota<br />

irreverente e apedrejada e penetrou, acolhendo-se, –<br />

massa mórbida, riso amolentado, aparência monstruosa<br />

de hidrocéfalo – a larga porta aberta de um templo<br />

iluminado.<br />

Diante da multidão que murmurinhava dentro,<br />

ele estacou deslumbrado, como se de repente lhe parasse<br />

a circulação da vida, numa expressão animal tão<br />

veemente que os que o viram entrar olharam para ele<br />

surpresos, com movimentos instintivos de defesa, como<br />

diante de um perigo iminente.<br />

Ele, mudo, no entanto, mas parecendo falar consigo<br />

mesmo qualquer cousa inteligível, exprimir qualquer<br />

cousa entre grunhido e voz humana, não se apercebera<br />

desses movimentos e continuava ali, parado, a atitude<br />

dura e hostil de uma pedra humanizada, em forma de<br />

ser existente, mas sem a completação fisiológica de todos<br />

os sentidos normalizados.<br />

Um perfume celeste errava, vivo e intenso, no ar,<br />

evaporava-se lânguido das névoas brancas dos incensos...<br />

O órgão nebuloso e sensibilizante, despertando<br />

na imaginação a lembrança de uma sombria clausura<br />

de almas suspirando e gemendo em sonhos tocantes e<br />

solitárias harmonias e magoados queixumes, e ao mesmo<br />

tempo longínquo, largo, lento e velado vento onduloso e<br />

dormente graduado em sons, expirava com<br />

enternecimentos melódicos, com taciturnas lágrimas<br />

sonâmbulas, deixando no ar a pungente melancolia<br />

fugitiva de um esquecimento amargo...<br />

No recinto, agora, bizarros alvoroços passavam...<br />

Um zunzunear de turba que ondeia e que murmura. Era<br />

o vago adeus de final da festa. Abriam-se vastos e nítidos<br />

claros na multidão espessa, que se afastava, que saía...<br />

Uma agitação subia, uma pressa e confusão de retirada,<br />

como se o sopro rápido e fatal da desolação das cousas


570 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

tivesse vindo inexoravelmente apagar a chama daquela<br />

fé que ali há instantes se acendera.<br />

E aquela ondulação de corpos ia e vinha, circulava,<br />

para a direita, para a esquerda, subia e descia, para<br />

baixo, para cima, estuando, com a respiração de desabafo<br />

de um grande monstro saciado, já decrescendo,<br />

diminuindo, com oscilações fugitivas de torrente que<br />

escapa, que cede nos turbilhonamentos do curso...<br />

Arrastado pelo povo, atirado aqui e ali pela onda<br />

que decrescia cada vez mais, o idiota tinha desaparecido<br />

de repente, semelhante a um mergulhador exótico que<br />

desce aos incoercíveis abismos do mar para surpreenderlhe<br />

os segredos.<br />

Mas, daí a pouco, como a última onda da multidão<br />

se aproximasse da nave central, voltando do altar-mor<br />

onde genuflexara ante a imagem lívida e melancólica<br />

de Jesus, o idiota então novamente apareceu.<br />

Agora, porém, o seu rosto de uma dureza e aridez<br />

de deserto, parecia estar transfigurado por um<br />

sentimento de infinita doçura, que o tornava quase belo.<br />

Uma irradiação dava-lhe asas... As linhas do seu perfil<br />

tortuoso ameigavam-se, suavizavam-se, e, nos olhos<br />

sempre opacos e indiferentes, fluía um brilho inefável,<br />

uma indizível emoção, tão intensa, tão viva, que dir-seia<br />

que os olhos tinham voz, que essa voz falava, que essa<br />

fala vinha pungida de lágrimas e acariciada de beijos...<br />

Olhos cheios das úmidas fulgurações de ouro líquido<br />

dos grandes e comoventes alucinamentos, parecendo<br />

terem atravessado a luz virgem de outros mundos<br />

intactos, invioláveis a olhos profanos; olhos que<br />

continham em si as febris alegrias de gozos<br />

inimagináveis.<br />

Ele sentira, na verdade, qualquer cousa que o<br />

abalara, que o metamorfoseara assim por instantes desse<br />

modo.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 571<br />

Desvendara algum mistério, achara alguma<br />

constelação na terra, algum anjo entre os homens,<br />

alguma visão entre as mulheres! Sim!<br />

Ele a tinha visto, na sua beleza mais do céu do<br />

que da terra, loura, os cabelos finíssimos, os olhos azuis<br />

peregrinos de frescura suave, a boca deliciosa e doce,<br />

na expressão cândida, infinitamente delicada, da carícia<br />

sutil de beijos alados.<br />

Ele a tinha visto, espiritualizada por nimbos de<br />

angelitude – flor de graça e de glória, misto de<br />

madressilvas e luar, madona de seu viver mumificado,<br />

santa de lirial candidez entre todas as santas dos altares<br />

que ele estava vendo, mais bela do que todas, bendita e<br />

branca, inundada do cintilante pólen fecundativo da<br />

puberdade, vestida para o seu amor das alvas<br />

resplandecências sidéreas, pomba pulcra que não se<br />

dignava abrir e pousar as finas asas níveas e virginais<br />

sobre a necrópole vazia do seu coração de Idiota. Sim!<br />

ele agora era como um firmamento pomposo de astros: a<br />

beleza dela, que sorrira, passara e desaparecera na<br />

multidão, o tinha estrelado celestemente. Vergava, pois,<br />

ao peso de tanta e luminosa ventura, da ventura única<br />

de vê-la, de olhá-la sem pecado e sem crime nesse olhar,<br />

de senti-la de longe sem que o seu sentir a lesmasse, a<br />

manchasse com a lepra da sua miséria. Não! Ela fora<br />

embora, mas tão imaculada ou mais ainda do que nunca<br />

por aquele olhar-bênção, por aquele olhar-perdão, por<br />

aquele olhar-amor que ele lhe havia vibrado ocultamente,<br />

de longe. Nenhuma das partículas da sua<br />

desgraça sem limites a maculara, ele bem o sabia.<br />

Ela era a flor, ao mesmo tempo carnal e mística,<br />

onde dormiam sonos mornos e magnéticos os insetos<br />

miraculosos de uma volúpia secreta. E ele, ao vê-la, para<br />

ali ficara absorto, contemplativo, no êxtase misterioso<br />

de uma Sombra sonhando...<br />

Naquele instante divino todo o seu mísero ser<br />

estava também divino. Um prodígio de sensibilidade, de


572 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

um sentimento melhor, que não é deste mundo, o<br />

iluminava e bendizia.<br />

E esse sentimento que o transformava e que ele<br />

próprio desconhecia assim tão intenso e curioso na sua<br />

alma, transcendentalizava-o e dava-lhe ao obtuso<br />

idiotismo uma como que supervisão, certa regularização<br />

lúcida e nobre, fazia-o por instantes viver, reflexamente,<br />

na origem ignota de uma especial percepção mental e<br />

de uma extravagante emoção.<br />

Podiam ligar-se, pois, ele e ela, no mesmo fundo<br />

de abstratas purezas, prender-se pelas mesmas<br />

espirituais correntes, fundir-se nos mesmos emotivos<br />

espasmos... Não! ele não violaria os melindres, os<br />

escrúpulos arcangélicos daquela natureza delicada, não<br />

iria empanar os cristais impolutos das esferas azuis onde<br />

ela triunfava. Podia, pois, reentrar, pura, inviolada, nos<br />

seus sacrários de ouro, nas suas preciosas redomas,<br />

nos seus majestosos domínios e reinados de formosura,<br />

incensar-se com o seu perfume de sempre, porque nada<br />

inteiramente nela nem de leve experimentara o contacto<br />

sutil das secretas e torturantes emoções dele.<br />

Naquele grande momento a sua alma de olvidado<br />

tinha altares iluminados como esse templo, onde ele<br />

hóstias de sentimento comungava. Sim! ela se fora, ela<br />

passara, rápida e descuidada dele, mas deixando-lhe<br />

nesse curto espaço de tempo, que sintetizava toda a sua<br />

vida, mais funda e mais em chama que um abismo de<br />

sóis vulcanizados, a sangrante e convulsiva paixão que<br />

faz a febre, o delírio mortal do mundo.<br />

Entretanto, parecia-lhe que já a havia encontrado<br />

outrora, noutros orientes longínquos, noutra região de<br />

sol e de néctar, d’estrelas e açucenas, sob outra forma<br />

divina. Parecia-lhe que no país vago, azuladamente<br />

nevoento e remoto das suas reminiscências ela passara<br />

um dia, sob um fundo curioso de dolências, na delícia<br />

suprema e nunca mais gozada de sensações inolvidáveis<br />

que ele então experimentara.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 573<br />

Mas onde, já, o contacto das suas duas almas,<br />

sublimadas no Afeto, se dera na Terra? Onde se<br />

assinalara o encontro dos seus seres opostos? Que<br />

ritmos simpáticos os tocaram sensibilizantemente?<br />

Ah! que vãs Interrogações ao mesmo tempo tão<br />

inefáveis e tão terríveis!<br />

Sim! não era ela nada mais do que a encarnação<br />

palpitante da sua visão, a cristalização das suas fugitivas<br />

saudades e ilusões, que por aquela embaladora e fugitiva<br />

forma vinha dizer-lhe o melancólico, o aflitivo, o<br />

desesperado adeus para sempre. Esse ressurgimento<br />

assim inaudito se lhe afigurava ser um fio tenuíssimo,<br />

disperso, de esquecida melodia, pelo qual se vai<br />

lentamente compondo e definindo aos poucos toda uma<br />

abandonada música sugestiva... Criação imprecisa,<br />

indecisa, indecisa, e que ele como que sentia ondular,<br />

através do espírito, na beleza e na tristeza fatal da lua<br />

melancolicamente exilada no exílio dos céus!<br />

Ele radiava como uma transfigurada águia de<br />

envergaduras maravilhosas por entre um arco-íris<br />

sensacional de mistérios solenes – ele, miseranda lesma,<br />

que queria atingir, com as suas viscosas babas, o sol,<br />

purificar-se, perfectibilizar-se no sol!<br />

A sua alma de noite paludosa, de caverna sem<br />

eco de vida afetiva, parecia agora feita de um azul meigo<br />

e crepuscular de firmamento osculado de luar,<br />

acordando numa opulenta e prodigiosa floração de pomos<br />

pomposos, de pasmos sensibilizantes...<br />

Aquele organismo feio, nauseante, asqueroso,<br />

requintara nessa hora imprevista de deslumbramento,<br />

numa afinação rítmica de beleza estésica singularíssima,<br />

evidenciando ainda mais uma vez, assim desse<br />

modo, quanto as chamas da transcendência moral<br />

clarividenciam e transfiguram os seres, quintessenciando-lhes<br />

a forma do Sonho; que só a alma que sobe,<br />

sobe, sobe, que atinge ao céu astral de um purificado e<br />

abstrato Amor é bela...


574 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Naquela hora todo o seu ser aspirava às<br />

intangibilidades supremas.<br />

Vôos e vôos de veementes anelos secretos<br />

cruzavam-se no seu ser. Aqueles momentos incoercíveis,<br />

etéreos, refinados num gozo original, subiam, do pólo<br />

negativo da sua humilhada matéria, ao pólo augusto das<br />

imortalidades do Espírito. Sim! Ficariam intactamente<br />

imortais esses surpreendentes e transfiguradores<br />

momentos de sensibilidade sem igual! Uma luz indelével<br />

de ilusão e de sonho fazia alvorecer e vibrar para sempre<br />

as recônditas e curiosas sensações, as ocultas e raras<br />

harmonias de tão fenomenal natureza.<br />

Mas, como estivesse nestas profundas e<br />

extraordinárias conjeturas e agitações, revolto e<br />

incendido, a exemplo de um terreno onde há matérias<br />

inflamáveis, o idiota não havia reparado que a igreja<br />

estava quase vazia e que era ele uma das últimas<br />

sombras que ainda por ali se arrastavam na<br />

inconsciência dos pesadelos.<br />

Nos altares já se haviam apagado todas as velas.<br />

Apenas, num dos altares laterais, dois círios acesos,<br />

mas quase extintos, ardiam, agonizando em fogachos<br />

fumosos e sangrentos, últimos soluços da luz, como<br />

almas abandonadas que ainda penassem no final de uma<br />

dor... Em cima, no seu nicho aberto em arabescos<br />

dourados, em ornamentações caprichosas, confusas e<br />

complicadas como sonhos, uma Santa loura, linda, o<br />

manto azul constelado de estrelas de prata, coroada de<br />

um diadema de cintilantes pedrarias, imobilizava-se<br />

indiferentemente como se por acaso a visão amada do<br />

idiota se tivesse ido ali corporificar nesse mármore de<br />

Santa.<br />

Na sua pequena mão graciosa abria-se um lírio<br />

branco – florescência simbólica das castidades místicas,<br />

forma cândida e aromal de volúpias sagradas e noviças...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 575<br />

O templo, como as portas misteriosas de um<br />

desses antigos subterrâneos suntuosos de riquezas,<br />

fechara-se afinal quase que por encanto...<br />

Uma vida fantástica, místico-psíquica, ia sem<br />

dúvida se desenvolver agora na sombra, no silêncio frio,<br />

na solenidade morta, na solidão sagrada, através das<br />

vestiduras dos Santos, das luzes d’ocaso das lâmpadas,<br />

dos paramentos chamalotados, dos vitrais multicores,<br />

surgir, enfim, do enevoado esquecimento dos Ritos, como<br />

se o templo, significando e concentrando simbolicamente<br />

toda a histérica unção devota da Idade Média, naquele<br />

instante representasse o seu curioso cérebro<br />

hipercatólico, maquiavélico e fabuloso.<br />

E, ou fosse porque não o tivessem visto ou porque<br />

o julgassem inócuo dentro do templo ou por qualquer<br />

outra capciosa razão, que escapara à penetração<br />

fiscalizadora dos acólitos, o certo é que ninguém deu<br />

pela presença do idiota sob aquelas abóbadas, só,<br />

silencioso e sombrio, após estarem seguramente fechadas<br />

todas as altas, largas e pesadas portas chapeadas de<br />

ferro.<br />

Um profundo mutismo amortalhava o vasto recinto,<br />

dando à impassibilidade marmórea dos Santos uma<br />

expressão assustadora.<br />

Parecia que todos eles dormiam sonos seculares<br />

e que por milagre inconcebível iam afinal acordar<br />

coincidentemente naquele momento, mover-se nos seus<br />

nichos, descer pé ante pé dos altares e, um a um<br />

desfilando, avultando, crescendo em número, enchendo<br />

toda a amplidão do templo, surpreender o idiota e punilo<br />

para sempre da culpa de tão insólita profanação.<br />

Ele, porém, naquela solidão majestosa de onde se<br />

levantava o pavor, ia e vinha absorto num sentir<br />

extravagante, fechado no segredo tremendo da sua<br />

esquisita sensação de idiota, perdido o olhar<br />

atentamente nas Imagens mudas, a boca meio aberta,<br />

as narinas dilatadas num gozo mórbido de volúpias


576 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

histéricas, como que na absorção das últimas névoas<br />

entontecedoras dos incensórios, percorrendo altar por<br />

altar, na perambulação hipnótica de fantasma do próprio<br />

fantasma do seu Desejo, de sombra da própria sombra<br />

do seu Afeto.<br />

As altas, caladas e côncavas abóbadas, das quais<br />

parecia-lhe aos seus ouvidos alucinados do Desconhecido<br />

ouvir o profundo coro apocalíptico, reboando, ecoando de<br />

abóbada em abóbada; as grandes lâmpadas, à semelhança<br />

vaga de luas marchetadas ou de estranhas lágrimas<br />

estratificadas; todas essas magnificências de rituais que<br />

emudecem, de culto que dorme no granito e nos<br />

mármores dos seus santuários e Imagens, nas suas<br />

pratas e nos seus ouros lavrados, o magno e solene sono<br />

austero das Religiões, tudo isso incutia na<br />

impressionabilidade doentia do idiota emoções esparsas<br />

e amorfas, que não eram propriamente nem<br />

ingenitamente oriundas das idéias, mas curiosos estados<br />

de ser, enigmáticos monólogos, fenômenos nebulosos,<br />

talvez recuados ao antropomorfismo das células, à noite<br />

caótica, primitiva, da sensibilidade humana.<br />

Mas, assim perambulando de altar em altar, de<br />

nicho em nicho, o triste idiota estacou diante daquela<br />

Santa loura, linda, o manto azul constelado d’estrelas,<br />

coroada de um diadema de cintilantes pedrarias, tendo<br />

na mão um lírio branco.<br />

Estacou diante dela como que impelido por íntimo<br />

sobressalto, batido dalguma recordação impulsiva que o<br />

tornava mais estranho que nunca. Levantou bem para<br />

ela os olhos em bugalhos de delírio, de aflição sem<br />

remédio e, caindo de joelhos, prosternado, os braços<br />

invocativamente abertos, num espasmo terrível, rolou<br />

para ali todo o seu tormento medonho, toda a sua dor<br />

amordaçada, toda a sua miséria secreta, numa linguagem<br />

obtusa e confusa de demência.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 577<br />

A alma do Idiota alvorava numa aurora negra de<br />

lágrimas, abria numa grande flor glacial e lacerante de<br />

soluços.<br />

Eram soluços e grunhidos, verdadeiramente<br />

grunhidos animais e soluços humanos, que abalariam<br />

as pedras, se as pedras não fossem mortas, que abalariam<br />

os Santos, se os Santos não fossem pedra.<br />

Caído de bruços, babando, como mordido por<br />

serpentes, na impotência da Dor que encarcera e<br />

despedaça a alma, o Idiota tinha viva, de pé, em flor e<br />

em beleza diante da sua angústia, como um tentador<br />

espectro divino, a florescente aparição que ele vira ali<br />

mesmo no templo.<br />

Passava-lhe agora pela mente todo esse clarão<br />

mortificante de gozo, todo esse tantalismo de mulher<br />

que sorri uma vez, brilha e para sempre desaparece. E<br />

ele nunca mais a veria, nunca mais, nunca mais, nunca<br />

mais!<br />

Ah! que inferno nunca sonhado tinha posto ante<br />

os seus olhos inúteis e desprezados essa luz consoladora,<br />

essa luz que ele jamais sentira, tão bela e tão funesta,<br />

aparecendo na serenidade dessa manhã dentro do templo<br />

iluminado? Que força desconhecida arrancara dos limbos<br />

do mistério aquela formosura ondulante como um verme,<br />

perigosa como um veneno, para deixá-lo prostrado assim,<br />

assim de bruços rojado, impotente e impenitente,<br />

babando a baba do ciúme, talvez a baba verde da Inveja?!<br />

Sim! ciúme desesperado por vê-la de outro, por<br />

senti-la nos braços de outro, exalando a frescura matinal<br />

da sua mocidade inteira nos braços de outro, abrindo e<br />

desfolhando todas as rosas e magnólias olentes e virgens<br />

dos seus encantos para o gozo de outro! Sim! Ciúme<br />

feroz e inveja ainda mais feroz por ver-se idiota, inerme<br />

e inútil para florescer, para brilhar ao lado de outro<br />

homem são e forte que a desejasse, que a possuísse!<br />

Ah! ele tinha uma inveja sinistra de toda essa<br />

humanidade que passava equilibrada, direita, sempre


578 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

com os mesmos e retos raciocínios, pela sua presença.<br />

Em cada homem ele via um rival desapiedado,<br />

indiferente, que lhe roubaria, não somente essa aparição<br />

alvoral, mas todas as outras femininas belezas que<br />

serpenteiam no mundo.<br />

Só o silêncio, só a solidão o consolava e por isso<br />

ali estava sob a vastidão daquelas abóbadas, mísero, de<br />

rastros, suplicando, como o mais estranho e ignóbil dos<br />

mendigos, a esmola santa da morte. Só na morte ele<br />

podia libertar-se desta inveja que o acorrentava, que<br />

lhe porejava do sangue, que lhe vertia um fel verde à<br />

boca – inveja verde, nauseabundo réptil verde<br />

enroscando-se-lhe nas carnes, medonho réptil verde<br />

saindo- lhe dos olhos, asqueroso réptil verde saindo-lhe<br />

das narinas, todo o seu miserável corpo invadido por<br />

hediondos réptis verdes.<br />

E como se essa sugestão doentia e diabólica da<br />

inveja lhe tomasse logo todo o cérebro e pasmosamente<br />

lhe gerasse absurdas visões na retina, jungido à mais<br />

perseguidora e atroz obsessão, o idiota, como um<br />

monstruoso réptil verde, sentiu-se subdividido,<br />

multiplicado infinitamente em milhões e bilhões de réptis<br />

verdes de todos os aspectos e formas, longos, lentos,<br />

elásticos, subindo pelos altares, descendo pelos<br />

paramentos, viscando as vestes dos Santos, se arrastando<br />

pelas asas, pelos frisos das colunatas, pelo arco cruzeiro,<br />

tatuando de verde a pratadas lâmpadas e subindo,<br />

sempre triunfais, avassaladoras, sufocantes, numa peste<br />

verde, numa alucinação verde, até o altar-mor, sobre o<br />

cibório de ouro, sobre o cálix de ouro, sobre a cruz do<br />

Cristo de ouro, esmeraldeando maravilhosamente com<br />

bizarrismos bizantinos de formas as requintadas<br />

cinzeluras refulgentes, de níveas claridades puras e<br />

brumosas de Via-Láctea, da velada e suntuosa Capela<br />

de reverências, tabernaculal, do Santíssimo Sacramento.<br />

Era uma fantástica vegetação de réptis que tomara<br />

todo o templo, ondas e ondas de réptis que se acumulavam


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 579<br />

convulsamente, num surdo murmurinhar e sibilos de<br />

esmeraldas ondulantes. Uns, de tamanho desconforme,<br />

verdadeiras serpentes formidáveis que com as cabeças<br />

e as caudas agitadas galgavam as grandes colunas do<br />

coro, os suportes dos púlpitos, enlaçando-se-lhes no bojo,<br />

em convulsões delirantes, como se os quisessem pôr por<br />

terra. Outros, de conformações exóticas, esguios,<br />

fugidios, lânguidos, esgueirando-se como crimes,<br />

encaracolavam-se nos colos brancos das Santas à<br />

maneira de colares. Por toda a parte a invasão sinistra<br />

dos réptis verdes da inveja lesmando tudo. Por toda a<br />

parte esse pesadelo verde, brilhos, reflexos, refrações<br />

esverdeadas por toda a parte, como se aquela vastidão<br />

sagrada se abrisse toda numa floresta de lúgubres<br />

assombros.<br />

Batido, esporeado por um terror supremo,<br />

agrilhoado por todos esses réptis verdes, com os olhos<br />

transparentes do verde deslumbrados de pânico, no meio<br />

de todo aquele mar verde que o afogava, perdida quase a<br />

noção de que era humano, o idiota foi se arrastando, se<br />

arrastando até ao centro da igreja, como um sapo no<br />

fundo de um subterrâneo, agora ironicamente constelado<br />

em cheio pelo largo clarão matinal que osculava os vitrais<br />

ao alto.<br />

A sua figura vil, miseranda, parecia torcida,<br />

crispada toda em garras, se arrastando sempre, sempre,<br />

a monstruosa cabeça bamboleando – crânio de<br />

mentecapto girando dentro do templo como dentro de<br />

outro misterioso crânio. Tentou gritar. Mas os gritos,<br />

nesse horror de túmulo, morriam-lhe na garganta,<br />

sufocavam-no, como se grossas cordas o enforcassem.<br />

Apenas podia se arrastar assim, mudo, sem um só<br />

gemido! – massa inútil rojada por terra, dor humana<br />

mordendo-se, devorando-se, despedaçando-se...<br />

E ele se arrastava, se arrastava, em direção às<br />

portas, para sair, para correr, fugindo aterrorizado


580 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

daquela colossal avalanche de réptis verdes, que por<br />

toda a parte, como ele, se arrastava.<br />

Queria fugir como um homem alucinado que foge<br />

absurdamente da sua sombra num louco desespero; na<br />

agonia tremenda de um cego de nascença que se sentisse<br />

de repente preso pelas chamas de um incêndio, sozinho<br />

a tatear, a tatear num aposento fechado, aflito, gemente,<br />

terrível, sinistramente doloroso, a tatear, a tatear,<br />

sozinho, rasgando as roupas, rasgando as carnes, sem<br />

nunca conseguir libertar-se das chamas que cada vez<br />

mais o fossem devorando verminalmente.<br />

E o Idiota se arrastava, se arrastava, se<br />

arrastava... Até que, exausto, banhado em suor, batendo<br />

os dentes de frio e de febre, grunhindo de horror, numa<br />

indefinível sensação, aos arrancos, aos solavancos,<br />

chegou afinal à grande e chapeada porta central do<br />

templo, que logo, como por encanto, abriu-se às amplas<br />

cintilações do sol do meio-dia – alta e larga – de par em<br />

par...<br />

E só então foi que ele, acordando entre soluços,<br />

justamente e coincidentemente num meio-dia de sol,<br />

se apercebeu, perplexo, que tinha estado a sonhar, preso<br />

às inconseqüências reveladoras do seu Sonho de Idiota,<br />

que mesmo assim acordado, continuaria eternamente e<br />

amargamente a sonhar...


A SOMBRA<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 581<br />

Ó Dor das Origens milenárias! Divina Consagração das<br />

Lágrimas! Seio profundo e misterioso das Apoteoses<br />

negras do Gemido e do Soluço! Dor das supremas<br />

Dores! Dor da imponderável Saudade! Que tu sejas<br />

neste momento comigo e me unjas com a tua<br />

espiritualizante graça...<br />

Sim! Devia ser em sonhos, num fundo de<br />

fosforescências e neblinas, que eu vi a tua sombra, o<br />

teu vulto – certo a tua carne, o teu corpo, palpitando<br />

vida, caminhando para mim, espectral e ao mesmo tempo<br />

vivo, dessa vida que respira, que fala, que olha, que<br />

olfata, que gesticula e ondula...<br />

Sim! foi em sonhos!<br />

Não sei que estado eu experimentava em certa<br />

hora, que estado de nervos, de sensibilidade, de vibração;<br />

não sei que música dolente de melancolia, nem que<br />

amargurantes tristezas patéticas de saudade me<br />

invadiam em certa hora, que distintamente, nitidamente<br />

vi! – vi e senti que estava perto de mim aquela Sombra<br />

santa e amada que eu perdera um dia no Letes do<br />

esquecimento que a Morte cava...<br />

Não era alucinação nem pesadelo – não era<br />

alucinação: eu estava sentindo diante de mim, como se<br />

surgisse do caos da Existência, aquela Sombra muda,<br />

mas viva, que caminhava para mim resolutamente, na<br />

afirmação vital do Ser.<br />

Percorria-me um frio álgido o corpo todo, um frio<br />

de pavor, pavor de vê-la, medo de olhá-la assim, naquela<br />

imprevista ressurreição.<br />

Ah! eu a amara muito, muito, com a eloqüência<br />

profunda de um sentimento que não era talvez bem amor,<br />

mas sagração, adoração, fé religiosa, veneração e<br />

compaixão. Um sentimento que subia como incensos da<br />

minh’alma, que se exalavam ante a sua Imagem, como


582 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

num altar sagrado. Sentimento épico, quase clássico,<br />

como por mármores augustos, por antigos templos<br />

cristãos. Um sentimento de carinhosa piedade patriarca!<br />

pelos seus sacrifícios, pela sua abnegação, pelos seus<br />

afetos extremos e dedicações sem limites, pela sua<br />

lhaneza estóica, pela sua caridosa ingenuidade humana,<br />

pela sua celeste ternura e misericórdia.<br />

Mas a Sombra avultava, crescia, avultava mais,<br />

destacava da treva donde surgira, da treva do Além, das<br />

geladas névoas do sepulcral Silêncio... E das névoas,<br />

das névoas sepulcrais dos crepúsculos lôbregos, das<br />

tenebrosas argilas, vinha ela, numa transfiguração,<br />

surgindo viva: – vivas as carnes palpitantes, vivos os olhos<br />

amargurados, vivas as mãos batalhadoras, vivo e vibrante<br />

o coração majestoso de infinita bondade.<br />

Eu a vira, a princípio em linhas indecisas, vagas,<br />

o contorno apagado, esboçado apenas num meio-tom de<br />

luz esmaecida como numa pálida claridade de lua d’alta<br />

noite, quando já os aspectos fulgurantes vão esmaiando,<br />

esvaindo lentos e perdendo a graça vaporosa e velada<br />

com as primeiras cores de rosa, os primeiros diluimentos<br />

e tenuidades da madrugada...<br />

Depois, todo aquele fantasma tomava miraculosa<br />

feição singular, pouco a pouco; compunha-se todo aquele<br />

sistema de nervos, ampliavam-se aquelas formas,<br />

ganhavam as essenciais correções, a estrutura de um<br />

corpo vitalizado que age, que move-se, que sente.<br />

E a Sombra buscava-me, caminhava para mim<br />

resolutamente.<br />

Como círculos concêntricos de uma luz palejante,<br />

iam-se formando em torno dela auréolas, etéreos<br />

resplendores, nimbos diáfanos, refulgências de meteoros,<br />

vaga tonalidade violácea e amarelada, cintilas de<br />

ardentia, como que as dormentes refrações ouro-açoazuladas<br />

de um sol de eclipse...<br />

Parecia-me que ela vinha transfiguradamente<br />

irrompendo por entre discos, discos, discos e discos


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 583<br />

luminosos que se multiplicavam, que se acumulavam,<br />

num movimento de rodomoinho de sílfides aéreas<br />

vaporosamente circulando, girando em volta de lácteo<br />

clarão de leve luz nevoenta e gelada de uma lua polar...<br />

Tais cambiantes, tais miríades de cintilações<br />

iriadas afetavam-me de tal modo a retina absorta, que<br />

nova e original comoção, nova sensibilidade a tocava,<br />

como de um ritmo fino...<br />

Misticismos de êxtases, delicadezas de sensação,<br />

espasmos de ascetas enclausurados, de mártires lívidos<br />

nos cilícios da penitência, serenos na suprema Dor –<br />

circunvolviam-me de uma ideal beatitude de atenção<br />

resignada, para vê-la, para olhá-la, para reparar, trêmulo,<br />

no seu aspecto de Passado, de Esquecimento, de Túmulo,<br />

percorrendo com magoada ternura nos olhos todas as<br />

meigas curvas de sua face que eu beijara, como se o<br />

meu olhar deslumbrado tivesse tato, a apalpasse;<br />

evocando com lancinante saudade toda a angústia da<br />

sua velha e fatigada cabeça que eu tanto amara.<br />

Doía-me aquela Aparição, afligia-me aquele<br />

Ressurgimento, tão vivo na minha presença, tão tangível<br />

ali, tão flagrantemente, que eu não sei de abnegações<br />

nem de resignações humanas, só celestes, só divinas!<br />

capazes de sofrer, sem estranha convulsão d’espanto,<br />

essa realidade móvel que vinha do Desconhecido...<br />

E a Sombra buscava-me, caminhava para mim<br />

resolutamente!<br />

Uma onda forte de emoções me inebriava, me<br />

atordoava como uma dor física, fazia-me pairar num<br />

círculo dantesco de fenômenos, paralisando-me a voz, o<br />

gesto, o andar, mumificando-me à Terra.<br />

Só, dentro do meu cérebro, o pensamento girava,<br />

funcionava como em brumas muito altas, num<br />

revolvimento de germens recônditos; formavam-se<br />

mudamente idéias que não achavam a expressão<br />

eloqüente da linguagem, tão confusas e atropeladas de<br />

terror sagrado vinham elas...


584 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Mas um mistério maior desolava-me de morte,<br />

torturava-me, dava-me o suplício gelado de achar-me<br />

vivo numa sepultura: – o mistério da semelhança!<br />

Ela parecer-se comigo, ter os mesmos traços,<br />

certos estremecimentos da face, o mesmo olhar, o mesmo<br />

espesso lábio sensual, a mesma expressão nostálgica<br />

de beduíno no semblante, a mesma fugitiva melancolia<br />

– tudo, tudo isso me flagelava, eram tormentos insanos<br />

que eu sofria calado, parecendo que ela trazia em si,<br />

em impressionismos abstratos, desfeita, desaparecida,<br />

muita sensação que já fora minha, muita esperança,<br />

metade da minh’alma já morta, partículas originais de<br />

afeto, de cuidados, segredos e curiosidades íntimas,<br />

perdões e clemências que tinham ido embora para<br />

sempre com ela.<br />

Uma infinidade de sentimentos obscuros,<br />

secretos, eu via passar, ondulando, através daquela<br />

Sombra, como através de um espelho fantástico que ali<br />

estivesse milagrosamente refletindo paixões...<br />

Eu existia naquela semelhança perseguidora,<br />

naquela semelhança que parecia reproduzir imensa<br />

aluvião de fenômenos da alma que já dormiam<br />

eternamente no meu ser...<br />

Eram períodos gradativos e curiosos, a evolução<br />

lenta de organismo novo que procura adaptar-se à Vida,<br />

a intuição eloqüente dos Destinos, formando grandes e<br />

enevoadas colunas de mistério, como as hebraicas<br />

colunas de fogo...<br />

Então, eu via-me ali quase que vivendo em parte,<br />

tendo bem pouco do que tinha quando ela, de fato, vivia<br />

– via-me em parte, porque se ela na existência trouxera<br />

o meu sangue e esse sangue gelara, deixara de circular<br />

nas suas veias, certo era que bem pouco desse sangue<br />

eu trazia também agora a circular nas minhas.<br />

E sentia diante de tão flagelante semelhança uma<br />

dualidade de natureza operando em mim mesmo: – a<br />

que partia, fremente, do meu ser, que existia no meu


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 585<br />

eu e a que partia, estranha, daquela Sombra móvel... E<br />

no espírito crescia-me a obsessão de que ambas essas<br />

naturezas, pertencendo-me, se desequilibravam no<br />

entanto no plano geral de existirem unas e indivisíveis.<br />

Uma era a natureza real, a propriamente minha; outra<br />

era a natureza da Sombra, estranha. E eu debatia-me,<br />

debatia-me com ânsia para libertar-me da segunda e<br />

envolver-me todo, isolar-me, concentrar-me e subjetivarme,<br />

profunda, fundamentalmente na primeira...<br />

E eu lutava, bracejava doloridamente, bracejava,<br />

tateando numa dúvida cruciante, para sair fora daquele<br />

cárcere de angústia, para desprender-me daquela<br />

tumular Visão, para fugir daquele mirrado esqueleto a<br />

que eu estava agrilhetado e cujo impressionismo de pavor<br />

me dilacerava e queimava as carnes, me devorava como<br />

uma chaga, rasgava-me a punhaladas o coração,<br />

hipertrofiava-me, despedaçava-me os nervos...<br />

E eu abria muito os olhos, assombrado, num<br />

espanto mudo... E um silêncio negro e gelado e espessas<br />

névoas de sono pesavam no ambiente... E nos olhos<br />

passavam-me deslumbramentos cegantes, visões<br />

pulverulentas de além-sepulcro... E eu abria cada vez<br />

mais os olhos, assombrado, num espanto mudo... E eu<br />

abria cada vez mais os olhos, cada vez mais, cada vez<br />

mais... E os olhos, espasmados de terror, aflitos,<br />

perseguidos pela Sombra, parecia-me senti-los crescer,<br />

dilatarem-se, grandemente, longamente, rasgadamente<br />

abertos e fascinados pelos magnetismos letais da<br />

Sombra...<br />

Invadia-me um desejo angustioso, soluçante, um<br />

delírio mortal de gritar, de gritar alto, atroadoramente,<br />

de encher todo aquele ambiente com os meus gritos<br />

desesperados; mas, apenas meus lábios se moviam para<br />

gritar, um soluço estrangulador guilhotinava-me a voz,<br />

desarticulava-me a língua, e apenas rouco, surdo,<br />

absurdo som ininteligível, como o grunhido animal de


586 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

um mudo, rolava, arrastava, rangia áspera,<br />

pedregosamente na garganta o seu torvo tartamudismo.<br />

Parecia-me que se eu gritasse, se abalasse a<br />

atmosfera com grandes e longos brados, talvez que o<br />

Fantasma, assim arrebatado, assim repeli do, assim<br />

violentamente sacudido pelos gritos, se aterrorizasse e<br />

desaparecesse...<br />

Parecia-me que esses gritos de terror<br />

sobrepujariam, venceriam afinal o alucinante fantasma,<br />

que era o próprio terror...<br />

Mas ao mesmo tempo, temia que esses gritos, como<br />

um vento sinistro que levanta, torna mais intensas as<br />

chamas de um incêndio, despertassem, acordassem de<br />

repente com impetuosidade, com estranha veemência,<br />

a vida insana, estupenda, que eu imaginava estar<br />

nebulosamente dormindo lá dentro, lá bem no fundo<br />

misterioso desse Fantasma.<br />

E a Sombra buscava-me, caminhava para mim<br />

resolutamente!<br />

Por um fenômeno singular de visão, que os nervos<br />

superestesiavam, eu a via, ora perto, ora longe, mais<br />

longe, muito longe, quase já sumida, já apagada no fundo<br />

das cinzas da distância, vindo e se afastando, se<br />

afastando e vindo para mim...<br />

Mas que germens ocultos fecundaram de novo<br />

aquela vida, que seivas inauditas a geraram de novo,<br />

que filtros mágicos, maravilhosos, a ressuscitaram, que<br />

ela me aparece de tal forma agora, muda, muda,<br />

caminhando serenamente para mim, solene e augusta<br />

na divinal atitude, sublime, egrégia, como se fosse<br />

soberanamente julgar as almas no supremo Juízo Final!<br />

E como eu a reconhecia então – ela – a mesma<br />

que a Imaginação sonhara – Mãe! Mãe! Mãe! – três vezes<br />

bendita entre as mulheres, três vezes crucificada de<br />

Agonia!<br />

E toda a longínqua e azulada colina de um passado<br />

foi se desnevoando, desnevoando, aparecendo aos meus


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 587<br />

olhos, bíblica, povoada dos brancos e mansos rebanhos<br />

da paz, da alegria, da suavidade infantil, da adolescência<br />

ingênua, guardados pelo amor daquela Sombra – cândido<br />

pastor, simples e tranqüilo, vestido de linho alvo, guiado<br />

pela estrela simbólica, sob a demência dos Céus...<br />

E por que me viera assim surpreender essa<br />

heróica e transcendente Aparição? O que vinha ela saber<br />

de mim? O que quereria nesse extremo momento? O<br />

que buscava? A minh’alma, o meu pecado, o meu crime<br />

em viver ainda e abandoná-la no Além, só e fria,<br />

enterrada tantos torvos palmos, tão profundamente<br />

enterrada na terra lutulenta e enregelada? O que<br />

buscava ela? O que procurava em mim assim surgindo,<br />

andando sonâmbula, vagando sem rumo e rumor como<br />

sobre onda, nuvem, espuma?<br />

Mas por que me aparecia ela agora? Seria para<br />

exprobrar-me o passado? Seria, por acaso, porque não<br />

pude envolver na vida em mais delicados cuidados e<br />

recônditas carícias as suas longas dores angustiadas?!<br />

Ah! porém ela agora está morta, ela agora está morta!<br />

Se estivesse viva sentiria então que devotamentos, que<br />

consagrações, que inabaláveis, que terríveis dedicações<br />

a cercariam, defendendo-a, como couraças e lanças<br />

gloriosas de um soberbo e insólito heroísmo; como eu a<br />

estremeceria de um amor infinito, como eu lhe votaria<br />

afetos supremos, entranhados, profundos!<br />

Que segredos tremendos me vinham agora fazer<br />

essa Sombra viva, que eu sentia, que eu via, olhandome<br />

muito, em silêncio, mergulhando os seus olhos<br />

cavados nos meus olhos, estendendo – ah! horrível! – os<br />

braços longos, para mim, como para abraçar-me num<br />

abraço, por certo, gélido, num abraço, por certo,<br />

esquelético e terrível!<br />

Oh! como era lancinante, que aflição de afogado<br />

ante essa Visão que me chumbava os pés, que me punha<br />

um peso imenso de pavor na língua, um suor letal na<br />

fronte e como que lúgubres cadeias de ferro nos pulsos!


588 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Como era dolorosamente, lugubremente medonho<br />

o seu caminhar tateante, oscilante, mas que seguia<br />

resoluto para mim, perseguindo-me, atraindo-me como<br />

um demônio, fascinando-me como um filtro pecaminoso,<br />

como um vício secreto, como um mal doentio, como uma<br />

serpente magnética, como uma nevrose fatal!<br />

E a Sombra caminhava, caminhava para mim<br />

resolutamente, resolutamente, agora com o passo mais<br />

largo, alongando mais para mim o vulto hediondo...<br />

Caminhava, caminhava... E eu, pregado, estatelado ao<br />

chão, jazia inerte, hirto, petrificado, sem ação para<br />

libertar-me daquele horror... E ela perseguia-me,<br />

perseguia-me, inexorável Remorso! com o passo cada<br />

vez mais largo, alongando cada vez mais para mim o<br />

vulto hediondo, quase já ó Trevas eternas! – tocando as<br />

minhas vestes, quase, quase... Quando, eu, quebrando,<br />

partindo, despedaçando todos os ferros de algemas das<br />

tormentosas masmorras do meu Sonho, num grande<br />

grito, afinal, portanto e tão longo tempo angustiadamente<br />

sufocado, acordei de repente, esvaindo-se então a<br />

Sombra, de um sopro, retomando as letíficas, glaciais<br />

estradas do Além, de onde por instantes surgira...<br />

Apenas o meu cérebro, atordoado ainda,<br />

adormentado, abatido, ficara, como dentre restos de<br />

fumo denso, de vapores espessos do fogo de sanguinolenta<br />

batalha, turbado pela pesada bruma letárgica do pesadelo<br />

que o invadira, subjetivamente chamando este monólogo<br />

amargo:<br />

– Ah! Sim! Sim! Que estranho pavor! Que estranho<br />

pavor ter-te bem junto a mim, num contacto álgido – Tu!<br />

– que eu na Grande Hora da Vida amei já, lá para o<br />

passado dos anos! Tu, a quem eu consagrei Evangelhos<br />

de Adoração, altas venerações, sentimentos excelsos,<br />

solenes como elevadas torres de cristal tocando<br />

sideralmente as Estrelas...<br />

Tu! que produziste a dolente, a magoada Obra de<br />

sangue da minha existência e a quem eu dediquei alma,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 589<br />

afetos, ternuras, suavidades do coração, sinfonias<br />

beethovínicas do Amor, Tu! – misericordiosa! – Tu! –<br />

clemente para mim como nem os Céus o são!, Tu! – dáme<br />

o teu perdão, o teu perdão, porque eu não poderia<br />

mais receber os teus abraços, os teus beijos, o teu olhar<br />

de sepulcro, teria de repelir-te e – ó! desespero dos<br />

Esquecimentos eternos! – de repudiar até a tua Sombra,<br />

tão grande e tão fundo seria em mim o terror de sentirte<br />

perto!<br />

Não que eu desdenhasse da tua Entidade<br />

amargurada, aflitiva, tristíssima, dolorosíssima; da tua<br />

bondade suprema, compassiva e comovente; não que eu<br />

crivasse de pungentes ironias a tua obscura alma presa,<br />

arrastada pelos ergástulos das lágrimas, abalada<br />

tragicamente por soluços...<br />

Mas tu me aparecerias tão mudada, tão<br />

transfigurada por fluidos, trazendo tão prodigiosos<br />

eflúvios de outros mundos, tantos raios doutras esferas,<br />

tantas fantásticas expressões e singularidades absolutas<br />

da treva de atros, tetros báratros, que eu, frágil, que eu,<br />

matéria humana, que eu, tecido tênue de nervos, me<br />

aterrorizaria e sucumbiria de pasmo...<br />

No entanto experimento ainda uma esquisita<br />

sensação de dor de lembrança, de saudade, se te evoco,<br />

se recordo os bens assinalados que me fizeste, a Criatura<br />

ideal que foste, tão meiga de bondade, que toda a carícia<br />

da terra é hoje para mim desprezível e vã diante do mar<br />

soberano da tua espiritual Afeição.<br />

E, é só espiritualmente, só pela eterificação do<br />

Pensamento, que sinto que ardes ainda, em chama<br />

perpétua, nas majestosas lâmpadas evocativas dos<br />

sacrossantos ocasos das Recordações.<br />

Mas, se por um absurdo da Natureza me<br />

aparecesses flagrantemente, tangivelmente viva, não<br />

mais esqueleto, não mais cadáver inteiriçado – seria<br />

tamanho o abalo, a convulsão do meu ser, tão intensos<br />

delírios e vertigens, tantas ondas de estremecimento


590 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

me agitariam, tão latentes se riam as transfigurações,<br />

as metamorfoses dos meus sentidos, repudiando-te<br />

aterrorizado nesse momento – que até tu mesma, que<br />

foste Mãe piedosa, Mãe clemente, Mãe misericordiosa,<br />

desconhecerias teu filho e talvez então o amaldiçoasses,<br />

blasfemando; talvez lhe arremessasses à face Anátemas<br />

como pedras, desoladamente chorando e soluçando para<br />

sempre por tanto e tão doloroso desamparo e<br />

esquecimento eterno!...


NIRVANISMOS<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 591<br />

Há loucuras que, como as noites polares, se<br />

transformam em verdadeiras auroras boreais<br />

reveladoras da mais perfeita lucidez e são a ponte<br />

mágica de cristal e azul sobre a qual emigramos do<br />

gólfão infernal da Terra para as alvoradas de ouro de<br />

um Ideal.<br />

Madrugada verde, madrugada de esmeraldas<br />

liquefeitas que cintilavam na folhagem tenra, foi essa<br />

em que Araldo se fez de marcha, florestas densas a<br />

dentro, através da frescura e da virgindade lirial da luz<br />

que ondulava...<br />

Já todo o extremo limite do mar, no horizonte<br />

longe, acendia, rebrilhava, num polimento de cristal<br />

sonoro e a última estrela tardia, terna e doce, vagava,<br />

peregrinalmente vagava na Boêmia celeste, extinta já<br />

no esplendor verde da madrugada subindo, a intensidade<br />

viva da sua chama branca das cândidas vigílias<br />

esponsalícias dos astros.<br />

Pairava no ar um anseio voluptuoso de despertar,<br />

um espreguiçamento, de braços lânguidos, uma revelação<br />

genésica, o nebuloso sentimento da renascença da terra,<br />

sempre casta e fecundadora, sonhando e gerando as<br />

perpetuidades da Vida.<br />

A hora da transição, da ansiedade do claro-escuro<br />

surdinava no ar, bandolinava no céu as derradeiras e<br />

saudosas serenatas...<br />

Um calafrio luminoso alvoroçava tudo. Começavam<br />

delicadamente, harmoniosamente a vibrar leves baladas<br />

de auras que vinham picadas do sargaçoso mar salgado,<br />

dos bafejos aromados das plantas e das resinas.<br />

Pelo horizonte subia o êxtase claro da luz difundida<br />

aos poucos e gorjeios e cânticos e rumores e alacridades<br />

e murmúrios de águas que acordavam cantando, e<br />

alaridos e zumbir de insetos, e estrépitos e palpitações,


592 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

e vozes estranhas e vôos e cicios e ecos e clamores<br />

longínquos, e frêmitos e beijos e risos e canções e formas<br />

confusas, e vertigens e movimentos, tudo acordava em<br />

ondas, burburinhantemente, turbilhonantemente.<br />

Clareava, clareava; e a claridade meiga, suave,<br />

que aveludava tudo, parecia cheirar a magnólias<br />

desabrochadas ao luar.<br />

Através das florestas, por onde Araldo errava<br />

foragido, a alma jungida aos remorsos, fugindo à<br />

condenação dos homens, levantavam-se, tremendas e<br />

tumultuosas, grandes árvores seculares, sombras e<br />

espectros verdes ramalhando as largas copas agitadas<br />

de sonhos.<br />

Eram florestas imensas, desconhecidas e<br />

imensas, por onde nunca o olhar humano vagara,<br />

inacessíveis a outros seres, mas onde Araldo sonhou,<br />

ansioso, achar de repente um abrigo eterno, profundo,<br />

que ninguém poderia devassar jamais!<br />

E tinham suntuosidades e orquestrações de órgãos<br />

monstruosos de catedrais festivas, gemendo e<br />

murmurando, plangendo, suspirando graves litanias,<br />

cânticos aclamatórios de grande unção coral<br />

magnificente, suprema.<br />

Troncos senis e formidandos, como Prometeus<br />

petrificados, expunham as suas corpulências primitivas,<br />

lembrando aspirações antigas, velhos desejos fatigados<br />

que ali houvessem para sempre tomado a compostura<br />

indiferente das múmias.<br />

Quem teria guiado Araldo por esses ínvios<br />

caminhos? Quem lhe teria, Desespero, Tédio ou<br />

Saudade, ensinado o abrigo, a solidão, o obscuro repouso<br />

dessas florestas invioladas?!<br />

Ele queria fugir à Vida, fugir, fugir sempre,<br />

esconder-se da face do mundo, habitar numa furna como<br />

selvagem, viver nas florestas como os lobos, errar nos<br />

desertos como os párias.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 593<br />

Fugir para longe dos execrandos contactos dos<br />

homens, da medonha estagnação dos seus sentimentos,<br />

da descarnada nudez dos seus egoísmos ferozes.<br />

Errar sozinho, sozinho, sombrio visionário<br />

peregrino de suprema Aspiração nova, vulto messiânico,<br />

talvez um desses graves missionários cujas vidas<br />

sacrificadas por uma idéia rasgam-se nos espinhos dos<br />

ermos, despedaçam-se nas hostilidades ambientes,<br />

martirizam-se crucificadas nas monstruosas cruzes<br />

negras dos calvários tantálicos do Tédio...<br />

Ah! a solidão, o deserto, o deserto!<br />

Que belo e que majestoso o deserto, frio e só, só<br />

com a lua, só com o sol, só com as estrelas, caminhando<br />

sobre as infinitas areias desoladoras, sentindo chorar<br />

no peito, como negra água presa e triste,<br />

melancolicamente cismadora, a que despedaçaram as<br />

asas sem piedade, o grande sentimento de uma<br />

esperança para sempre extinta.<br />

Esconder, esconder a chaga da Vida para bem<br />

longe, fugir para além deste mundo, para o imponderável<br />

Ideal, errar nos sonambulismos da treva e nos<br />

sonambulismos da luz – sombra informe batida das<br />

rebeliões da terra, arrastada pelas tebaidas de uma<br />

enorme saudade e enchendo dela todo o tempo, todo o<br />

vácuo desse existir peregrino, desse existir lacerado de<br />

impaciências, de febres, de ansiedades, de desejos<br />

embrionários cuja primeira flor vermelha e de ouro outras<br />

mãos sacrilegamente colheram.<br />

Invadido pela força poderosa de uma paixão<br />

aterradora, talvez de uma sensibilidade extra-humana,<br />

Araldo queria esconder em seios inteiramente intactos<br />

de florestas desconhecidas, em regiões nunca vistas, o<br />

horror da sua culpa em muito ter amado e em muito ter<br />

iludido o coração e os olhos. Verdadeiramente açoitado<br />

pela peste, pela lepra sinistra do ódio e do desprezo<br />

humano, como um animal acuado, ele espiritualizara<br />

mais e mais a sua natureza, requintara o seu sentir,


594 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

quintessenciara os seus nervos e, no sensibilizante<br />

misticismo de um Santo, mergulhou no mistério, pairou<br />

no maravilhoso, vagueou no Sonho, eterificando-se,<br />

diluindo-se em lágrimas, em gemidos abafados, quase<br />

perdendo todas as qualidades ingênitas que o prendiam<br />

fatalmente à Matéria.<br />

E Araldo é agora o Espectro, a Sombra, o Fantasma<br />

de si mesmo, que vê rodar, eternamente rodar diante<br />

dos olhos, num espasmo de alucinado, o tropel de Visões<br />

da alma gemente, das suas desesperadas Saudades. Vê<br />

rodar, eternamente rodar os inquisidores círculos<br />

múltiplos, trágicos, onde as suas excelsas Esperanças<br />

lentamente, monotonamente nasceram e morreram.<br />

Já, clara e quente nos horizontes, a luz subira de<br />

todo, intensa, larga – mar de ouro, mar de ouro e<br />

pedrarias prodigiosas, auréolas de íris, sangue, azul e<br />

leite derramado abundantemente, vinhos preciosos de<br />

astros escorrendo das domas celestes.<br />

E Araldo, na sua peregrinação constante pelas<br />

florestas, caminhava...<br />

Lívido, a cabeça num bamboleio de fadiga, com os<br />

cabelos em patético desalinho, como a cabeça de um<br />

enforcado, os olhos transpassados de um tormento mudo,<br />

a boca seca, áspera, retorcida por um momo lúgubre, o<br />

seu perfil dolorosamente esquecido tinha uma doçura<br />

triste, uma carícia dolente, uma taciturnidade tão funda,<br />

uma angústia tão cruel, uma aflição tão desamparada,<br />

que parecia álgido cadáver que procurava para único<br />

descanso o túmulo que até mesmo na morte lhe era<br />

vedado; ou então um louco que por alguma sugestão<br />

hipnótica, por algum pressentimento estranho que os<br />

altos Signos assinalam, corresse a ver, despenhado e<br />

incerto, os funerais de sua mãe...<br />

E Araldo, nessa peregrinação pelas florestas,<br />

caminhava, caminhava.<br />

O sol leonino e guerreiro fazia fuzilar d’alto as<br />

suas couraças d’aço, de cristal e prata e desses


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 595<br />

coruscantes troféus d’armas facetadas viva marchetaria<br />

de raios e de centelhas cravejava as florestas por onde<br />

Araldo seguia vestido do manto miraculoso das pompas<br />

consteladas.<br />

Ah! que transitório, que efêmero nababo ia ele, e<br />

que mendigo, que miserando eterno!<br />

Mas, que florestas eram essas que Araldo rompia<br />

sempre e a quanto tempo ele as rompia?<br />

Moço, forte, a cabeça ainda chamejante das<br />

Quimeras, todos, com pasmo, o viram partir um dia,<br />

desaparecer bruscamente de todos, ocultar-se num<br />

esquisito Segredo de viver, cujos fabulosos perigos e<br />

originais deslumbramentos ninguém perscrutou jamais!<br />

* * * * * * * * * *<br />

Ele era da eterna Raça maldita dos gloriosos<br />

Tristes, dos gloriosos Grandes e vinha de um fundo muito<br />

carregado de Meditações e de Cismas, de sede de Sonho,<br />

como do centro misterioso e flamejante de um Sistema<br />

planetário.<br />

A terra parecera-lhe sempre um formidável buraco<br />

onde os homens se arrastavam com as cabeças vazias,<br />

mas com os ventres cheios.<br />

A mulher parecera-lhe sempre a perfídia, a traição<br />

mordente, verminal de lago, com negras asas sutis de<br />

tentação fatal e com carícias de fel.<br />

Assim, sem objetivo entre os homens, sem laços<br />

terrestres e sem amor, como que ia deixando finar-se,<br />

apodrecer a matéria, para só ressurgir e vitalizar a flor<br />

melindrosa e virgem das quintessências da<br />

Espiritualidade.<br />

Lembrava um ser que quisesse absurdamente<br />

transpor as barreiras inevitáveis da Vida sem estar sob<br />

as diretas influências e as correntes impulsionantes e<br />

fatais da matéria.


596 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Perdido, emaranhado por obscuras e confusas<br />

psicologias, de síntese em síntese, de generalização em<br />

generalização, operando-se em todas as suas faculdades<br />

criadoras, imaginativas, em todas as complexidades do<br />

seu ser mental, uma profunda, radical Transformação,<br />

como esses abaladores terremotos que agitam e<br />

convulsionam o frágil organismo do mundo, Araldo foi<br />

pouco a pouco rasgando horizontes desconhecidos,<br />

atingindo pólos raros e mágicos, subindo a<br />

Transcendentalismos invisíveis, imperceptíveis,<br />

desprendendo-se cada vez mais da velha Causa tangível,<br />

despindo-se do Real, fugindo do seu raio biológico de<br />

ação comum, entregando-se completamente ao<br />

Isolamento, à Abstração absoluta, até que afinal, um<br />

dia, em virtude das próprias Regiões quase extrahumanas<br />

a que ascendera, penetrou, transfigurado, em<br />

outras delirantes e nebulosas Regiões!<br />

* * * * * * * * * *<br />

Tempos passaram, muito anos, talvez um século<br />

e ei-lo que aí segue ainda, velho já, as pernas bambas,<br />

bambas, trôpego velhinho que o Silêncio e o Passado<br />

santificam e envolvem com o seus longos véus noturnos...<br />

Que florestas eram essas, com animais piores que<br />

os lobos, piores que os tigres, piores que as serpentes,<br />

piores que os homens? Não eram, de certo, em região<br />

nenhuma da terra, nem do céu, nem do inferno. Onde<br />

eram, então, essas florestas? Onde eram?<br />

Mas Araldo, na sua peregrinação constante,<br />

caminhava, caminhava, caminhava, como que arrebatado<br />

por um vento acre de Imaginação.<br />

O sol, que se tornara intenso, flamejava cada vez<br />

mais, ardia-lhe cruamente na face em chicotadas de<br />

fogo, fervia, chiava-lhe na pele, abria-lhe a pele em<br />

equimoses vermelhas, chagava-o com as suas tenazes<br />

em brasa e ele rasgava-o com os pés nos cardos bravos,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 597<br />

ensangüentava nos tentáculos hostis das ramagens<br />

intrincadas, da multiplicidade maravilhosa de vegetações<br />

extravagantes, multiformes, confusas, de exuberâncias<br />

fenomenais de folhagens inauditas, dentre as apoteoses<br />

viridentes de todas aquelas seivas, das possanças de<br />

todos aqueles germens, das impolutas manifestações de<br />

todas aquelas vidas vegetativas, sentindo uivar, bramir,<br />

rugir feras terríveis que lhe parecia virem de dentro de<br />

si próprio, sempre caminhando, caminhando pelas<br />

florestas como um deus singular ou um índio<br />

magnetizador e feiticeiro que, sob a ação de filtros<br />

mágicos, anulasse todo o poder dos animais selvagens,<br />

que se abatiam tímidos ante o horror doloroso do seu<br />

Espectro peregrinante e como que sobre-humano.<br />

E as florestas se reproduziam infindavelmente,<br />

cheias de um pavor majestoso, de fenômenos que as<br />

fecundavam e circulavam por todas elas como estupendas<br />

criações feéricas.<br />

E ele rompia florestas, florestas, florestas,<br />

caminhando como um pesadelo, numa onda surda de<br />

ansiedades que não lhe arrancavam, no entanto, nem<br />

um grito, nem um ai agoniado, nem um soluço abafado –<br />

mas que o transfiguravam, que o tornavam lívido, mais<br />

lívido, muito lívido e as pernas mais bambas e os braços<br />

mais desolados e o olhar mais perdido, mais errante,<br />

mais perdido...<br />

E a hora desse dia era infinita, uma hora que não<br />

acabava mais, por um sol que abrasava cada vez mais,<br />

incendiava as florestas e parecia não findar nunca! Um<br />

dia cruel, interminável, de um sol duro e bruto, pregado<br />

impassível no firmamento, que parecia não ter jamais o<br />

oásis repousante de um ocaso. Um dia de hora acesa no<br />

espaço, como num relógio imutável. Um dia de século,<br />

um dia que ele sentia penetrar, abranger a eternidade,<br />

à proporção que ia envelhecendo mais, que lhe cresciam<br />

barbas mais longas, rugas mais imponderáveis, tremuras


598 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

mais senis, mais pavorosos arrepios, apesar da cáustica<br />

flamejação do sol.<br />

Envelhecia mais, gradualmente, com as árvores,<br />

com as florestas, que se cobriam também<br />

surpreendentemente de um nevoeiro branco como de<br />

cabeleiras de velhice...<br />

Envelhecia, envelhecia e as florestas envelheciam<br />

juntas com ele, numa fraternidade piedosa de<br />

acompanhá-lo na mesma suprema e insana desolação,<br />

na mesma alucinação da Vida.<br />

E ele caminhava, caminhava, tão velho como as<br />

Idades, no seu constante peregrinar....<br />

Para que novo e intacto Inferno caminhava então<br />

ele assim?!<br />

Mas, de repente, eis que as florestas recuam, se<br />

apagam, vão desaparecendo aos poucos como por<br />

encanto; o assombroso esplendor verde das árvores<br />

some-se no longínquo horizonte, como névoas que se<br />

desfazem, começam, então, de repente, a surgir areais,<br />

areais de desertos inóspitos, areais infindáveis, areais<br />

que sucessivamente se reproduzem, longos, muito longos<br />

e alvejantes, lá, para além das distâncias que a retina<br />

não pode abranger nem descortinar...<br />

E Araldo começa de novo a mergulhar noutra<br />

ansiedade, a engolfar os pés nos fofos areais fugidios<br />

que como que recuam a cada passo que ele vai dando.<br />

E os areais se prolongam, numa intraduzível<br />

tristeza de vastidão, surdos e estéreis, com as suas ondas<br />

brancas de pó acumuladas solitariamente.<br />

Vencido pelo tempo, vilipendiado, Araldo vai<br />

mergulhando nas surdas areias torvas. Mas, a cada passo<br />

que ele dá para adiante, a onda de areia, fofa, frouxa, o<br />

arrasta mais para trás; cada investida que ele dá para a<br />

frente parece uma investida falsa, vã, inútil, porque os<br />

seus pés, pesados e adormentados pela marcha perpétua<br />

paralisam completamente quando em mais fofa, mole<br />

vaga de areia ansiosamente mergulham.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 599<br />

Em certas zonas, em certas regiões, a vastidão<br />

plana dos areais se modifica, dá-se uma transmutação<br />

súbita; e elevações de colinas, cômoros altos, de<br />

protuberâncias piramidais de catafalcos ostentam-se<br />

ameaçadores diante do escarnecido pária, que galga por<br />

eles acima, vai subindo, subindo, lá enterrando<br />

inquietamente os pés nos lassos areais, descendo após<br />

às ampliações planas, galgando novamente os catafalcos<br />

de pó, subindo, descendo, descendo, subindo, às vezes<br />

abalado pela impressão de ir suspenso no ar, com as<br />

mãos, trêmulas e tísicas, lesmadas por um frio tumular<br />

de medo, tateando, oscilando no espaço como duas asas<br />

hirtas e a envelhecida e espectral cabeça<br />

martirizantemente nimbada pelo sol.<br />

E, à proporção que ele caminha mais para a frente,<br />

os horizontes se ampliam e afastam para longe como se<br />

obedecessem a um movimento gradual e curioso da<br />

elasticidade nos corpos...<br />

E Araldo segue, assombroso, sinistro, através da<br />

amplidão e da solidão dos areais mortos, como a Epopéia<br />

simbólica das sensações!<br />

Súbito uma legião de fantásticas aves colossais,<br />

formidáveis, de corpulência humana abateu-se sobre ele,<br />

precipitou-se, num vôo incisivo, como se acaso ali mesmo<br />

o fossem devorar inclementemente.<br />

Mas, talvez por tê-lo reconhecido, por senti-lo irmão<br />

naquelas agonias supremas, como eram também elas,<br />

aves simbolizantes do Sentimento e do Vago, da Piedade<br />

e do Consolo, deslizaram suavemente sobre Araldo em<br />

carícias de asas, em grasnos compassivos, quase<br />

gemidos, cobrindo-o, envolvendo-o com as suas<br />

plumagens errantes do Azul e da Treva, na infinita<br />

misericórdia das Esferas!<br />

E Araldo assim ficou por alguns momentos,<br />

subjugado por esse terror sagrado e ao mesmo tempo<br />

pacificante, de olhos fechados aos vultos negros e<br />

sepulcrais das aves, atordoado, sonâmbulo, dir-se-ia


600 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

gozando morbidamente, inconscientemente, o espanto<br />

dessas incognoscíveis e emplumadas Aparições.<br />

Depois, quando abriu lentamente os olhos, tinham<br />

desaparecido todas as aves, reentrado no Mistério,<br />

remergulhado no Vácuo, levando na fimbria das asas<br />

olvidadas e poderosas os últimos raios ouro-violáceos do<br />

crepúsculo que essas aves ignotas pareciam ter trazido<br />

nas imensas sombras das asas e que descera então afinal<br />

sobre aquele pasmoso e interminável dia tão duramente<br />

impassível como as pedras.<br />

As sombras, amplas, largas, pesadas,<br />

circunvolveram logo os sáfaros areais desertos.<br />

Por entre brumas espessas, vagorosa e taciturna,<br />

na lenta gênese da sua luz, apareceu a lua, vagamente<br />

lembrando a nebulosa de um Espírito...<br />

Uma claridade diluída, fina, frouxa, ia ungindo<br />

tudo...<br />

Ondas e ondas nervosas de brancuras lívidas se<br />

derramavam como resinas iluminantes; evaporações<br />

subiam, se exalavam como de ânforas ardentes,<br />

envolvendo a vastidão entre diáfanas auréolas<br />

fantasiosas.<br />

Certas tonalidades azuladas, roxas, sulfúreas,<br />

languesciam, quebravam-se...<br />

E aqueles aspectos deslumbradores, magos, dos<br />

desertos que se repetiam e que o luar martirizava de<br />

uma grande mágoa muda, pareciam os aspectos quietos,<br />

calados, lacerantemente, silenciosamente dolorosos, das<br />

paragens mortas do Esquecimento...<br />

E agora, no luar, outra original ansiedade se<br />

difundia – profunda, mais profunda do que nunca, para<br />

o Desventurado eterno.<br />

Harmonias violinadas e doloridas alanceavam-lhe<br />

os nervos; finas e sutilíssimas melodias afinadas pela<br />

mais intraduzível amargura fluíam dos raios do luar,<br />

das neblinas, dos Angelus do luar...


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 601<br />

E jamais, jamais Araldo parecera tanto um<br />

Espectro como agora, com o selo impenetrável das<br />

Desilusões augustas, os olhos, a boca, o peito e os pés já<br />

letárgica, sonolentamente tocados por fluidos gélidos e<br />

magnéticos de morte, como que revestido do sambenito<br />

para os Autos-de-fé, caminhando dentro do Sonho, do<br />

espasmo branco do luar soturno e cirial...<br />

E todos os sentidos de Araldo se requintavam,<br />

atilados na sonoridade acústica da alva claridade<br />

noturna; uma percuciência maior, mais intensa, os<br />

vibrava; ele sentia a acuidade penetrante de tal modo<br />

expressiva e flagrante como se o seu ser fosse parte<br />

esparsa, diluída no grande todo que a lua liriava, agindo<br />

com o agir dos inorgânicos, do alado, do evaporável, na<br />

mesma sensibilidade intangível da natureza circundante.<br />

Ele sentia difundir-se-lhe diante dos olhos esse<br />

indefinido perpetuar de visões e sensações, essas<br />

ondulações de mundos fascinadores e novos, o flutuante,<br />

o vaporoso estado principal de orbes, de esferas flamantes<br />

em condensação; sentia a sugestão original de gênesis<br />

que se revelam, e todo esse torpor, esse adormecido<br />

quebranto de corpos que se fecundam e geram, todo o<br />

caprichoso caos germinativo e alucinante que deve<br />

singularmente afetar, com o mais intenso e profundo<br />

nevropsiquismo, impressionar curiosamente a retina<br />

interior dos cegos no seu sonambulismo tátil.<br />

Fogos-Fátuos, prismas cambiantes, eclípticos,<br />

giravam-lhe, fosforeavam-lhe dormentemente diante dos<br />

olhos, no enebriamento entorpecedor do luar...<br />

Os ouvidos, a cada instante mais dúcteis, mais<br />

rítmicos, mais afinados, tinham a pouco e pouco mais<br />

aguda suscetibilidade.<br />

O terror do deserto, o sigilo amedrontador do luar,<br />

a amplidão, o vago, o incoercível da Noite, punha-lhe em<br />

todo o organismo essa excessiva vibração, essa extrema<br />

sensibilidade, essa extraordinária superestesia nervosa.


602 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Então, através dos finos cristais musicais do luar,<br />

com o ouvido de uma delicadeza quase mórbida de<br />

percepção, que atuava no seu sistema nervoso pela<br />

ansiedade flagelante, pelo excesso atordoador do<br />

sofrimento, pelo refinamento da angústia, parecia a<br />

Araldo escutar, vibrado longe na limpidez glacial da lua,<br />

o seu nome desventurado: Araldo! Araldo! Araldo!<br />

E essa voz compungida, num brado claro, como<br />

timbrada em aço, chamava alto: – Araldo! Araldo! Onde<br />

estás? Onde estás, Araldo?! E como que essa voz se<br />

reproduzia, se multiplicava, cada vez se aproximando<br />

mais dele – era um marulhar de vozes que estalavam,<br />

cantavam de todos os lados, subiam dos areais mortos,<br />

desciam dos infinitos céus, do esplendor fabuloso da lua,<br />

bradando: Araldo! Araldo! – vibração deslocada na<br />

cristalização luminosa; Araldo! Araldo!; osculando os<br />

areais desertos, Araldo! Araldo!; vozes castas,<br />

carinhosas, abençoadoras e ternas, aladas<br />

fantasticamente através do luar tão cheio de miragens,<br />

de ilusionismos, tão velado de sugestões e germens<br />

miraculosos.<br />

De toda a parte ele ouvia o mesmo clamor,<br />

chamando-o, procurando-o, buscando-o por toda a parte.<br />

E todo esse clamor formava como que um Requiem triste<br />

de impaciência, de inquietudes, de ansiedades,<br />

crescendo em mar atroante de vozes, sombriamente:<br />

Araldo! Araldo! Araldo!<br />

A sua velha e atormentada cabeça como que<br />

acordava então daquela peregrinante alucinação, agitada<br />

pelas saudades que essas erradias vozes lhe traziam,<br />

saudades que se transfiguraram outrora nas lendas do<br />

luar, saudades que foram para sempre se asilar nos<br />

estrelados santuários da Via-Láctea e que vagueavam<br />

por lá, sonhando, Virgens e Santas de regiões<br />

inacessíveis vestidas do linho imaculado tecido nas<br />

refulgências e lactescências dos astros, alanceadas por<br />

todas as grandes dores do Mundo, aureoladas de


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 603<br />

cintilantes diademas feitos de todas as puras lágrimas<br />

transfundidas, serenas na graça langue dos seus corpos<br />

venusinos e com os seios intactos dos beijos tentadores<br />

sagradamente nus, aflorados da pubescência inicial.<br />

Agora, as vozes vinham-lhe em gradações de<br />

sonoridade – vozes graves, soturnizadas e proféticas de<br />

cantochão e vozes angélicas e frescas de corais gloriosos<br />

nas Dulias matutinas e floreadas de maio.<br />

Eram os seus bizarros instintos de Mocidade que<br />

acordavam gritando; os aviários de ouro das suas alegrias<br />

magoadamente irônicas, que gorjeavam; os seus desejos<br />

adormecidos, procurando-o, seduzindo-o, tentando-o; as<br />

vibrantes fanfarras, já emudecidas, dos seus vagos<br />

triunfos, atordoando-o de ecos dolentes; todo o seu gozo<br />

chamejante de outrora e as suas amarguras, desalentos,<br />

desesperanças, que o buscavam enternecidamente, com<br />

carinho, com profundos estremecimentos.<br />

A requintada magia, as deliqüescências do luar,<br />

davam velada, quase apagada reminiscência de um luar<br />

muito vago, muito remoto, muito triste, já visto, já<br />

sentido e já contemplado outrora nalgum país tumular<br />

d’além dos tempos, um luar velho, em diluências de<br />

giestas amarelas, de margaridas roxas, de pálidos<br />

monsenhores...<br />

Longo, largo disco azulado circundava<br />

prognosticamente agora a face imóvel da lua, que parecia<br />

penetrada de um letargo morno... Imensas, imensas e<br />

incomparáveis tristezas se difundiam no mistério<br />

daqueles desertos infinitos, cujo sentimento tremendo<br />

da desolação e do nada dilacerava.<br />

Toda a vastidão era como um solitário sarcófago<br />

monstruoso, onde – visão dos imprescritíveis Destinos –<br />

errasse, cego e só, esse ser desconhecido, única<br />

palpitação, única chama nervosa, única alma em ânsias,<br />

único suspiro vivo desprendido na mudez absoluta do<br />

mágico luar...


604 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Dentre o peso aflitivo da grande noite ritmada de<br />

magoadas surdina o céu, o impassível céu estava agora<br />

brumosamente velado de um fino nevoeiro d’estrelas,<br />

como uns olhos de lágrimas...<br />

E Araldo seguia, esquecido Arcanjo primitivo,<br />

levado pelas asas sulfúreas dos corcéis árdegos daquele<br />

fantástico sonambulismo, tatuado pelos gilvazes do luar;<br />

lá ia aquela tormenta viva de nervos, aquela alta psicose,<br />

nas transfigurações e nas auréolas da Dor; lá ia o<br />

nirvanismo do nirvanismo, o infinito do infinito...<br />

Súbito, porém, um vendaval terrível, o atordoante<br />

simoun convulsivo, epiléptico, abrasador e medonho, tão<br />

espesso, tão denso que encobriu totalmente o luar,<br />

bramiu em rodomoinhos, em vórtices tenebrosos,<br />

revolvendo, levantando em montanhas no espaço toda a<br />

torva poeira das areais.<br />

Um simoun estranho, mais horrível que nos<br />

desertos da Núbia, enovelado, torcicoloso, em grossas<br />

espirais de serpentes gigantescas, ciclópicas, com as<br />

caudas e as cabeças titânicas vertiginosamente<br />

alvoroçadas nos delírios sanguissedentos dos letíficos e<br />

monstruosos venenos.<br />

Nas cordas tempestuosas desse vento tremendo<br />

choravam por vezes sinfonias tannhäuserianas, loucuras<br />

reileareanas. Era como se turbilhões de demônios soltos,<br />

arrancando os cabelos com desespero, bufassem e<br />

ululassem. Um pavor trágico enchia o deserto,<br />

assombrava o deserto. Indefinidas angústias gemiam, e<br />

soluçavam no vento velhas queixas encantadas, velhas<br />

tristezas milenárias e fundas; primitivas línguas<br />

bárbaras violenta e confusamente se dilaceravam, se<br />

atropelavam; uivos felinos, ganidos, urros formidáveis<br />

de monstros cruzavam-se no ar...<br />

A brancura tenra, de anho branco, de cordeiro<br />

imaculado, da lua, aparecia, por vezes, de uma tonalidade<br />

sombria, apagada, de um eterismo mórbido de eclipse,<br />

dando um diluente sentimento de remotividade amarga,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 605<br />

como se a lua assim desse modo vista trouxesse a<br />

impressão longínqua de ser ela própria a saudade da<br />

lua...<br />

No meio desse tétrico deserto nunca imaginado,<br />

desse luar inquisitorial, mortal, esse vento sinistro tinha<br />

uma ressonância subterrânea, funesta e cruel de clamor<br />

niilista, evocava as florescências e as quintessências<br />

doentias das sensibilidades do Budismo.<br />

E Araldo, cada vez mais Espectro em meio à<br />

Natureza toda, cada vez mais silhuético, mais perdido,<br />

mais apagado, mais vago no vácuo tremendo daquelas<br />

vastidões dolorosas, o vulto cada vez mais diminuído,<br />

sumindo-se, sumindo-se, sumindo-se na distância, na<br />

absorção da Imensidade circunvolvente, absurda e<br />

insensivelmente mergulhou nos turbilhões do vendaval<br />

terrível, foi arrebatado nas malhas atrozes e negras do<br />

simoun, envolto na lúgubre mortalha dos areais — louco,<br />

no auge da sua loucura, na crise formidável dos acordados<br />

e alucinados pesadelos que lhe abalavam assim, sempre,<br />

fundamente, o cérebro e eram, no entanto, através da<br />

grande alucinação da Vida, do abismo eterno da Vida,<br />

as únicas horas mais felizes e puras em que ele se<br />

enclausurava nos tabernáculos fechados da sua Paixão,<br />

os únicos instantes sagrados, os únicos momentos<br />

lúcidos para os sóis febricitantes, esquisitos e majestosos<br />

da sua fabulosa e sobre-humana Imaginação de louco...


606 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

EXTREMA CARÍCIA...<br />

O que ele, apenas, em realidade sentia naquela<br />

hora velada, além de uma esparsa e acerba saudade de<br />

tudo, era uma carícia infinita, verdadeiramente<br />

inexplicável, invadi-lo todo, difundir-se pelo seu ser como<br />

que em músicas e mornos tóxicos luminosos. Era uma<br />

dormência vaga, uma leve quebreira e letargia que o<br />

mergulhava num sono nebuloso, por entre irisações de<br />

brancura, num apaziguamento suave, como se ele<br />

estivesse acaso adormecido em cisternas de leite,<br />

ouvindo pássaros invisíveis cantar e sons sutilíssimos<br />

de harpas docemente, finamente fluindo...<br />

Era um luar espasmódico, em delíquios, que<br />

nervosamente o aureolava, que lhe caía em neblinas de<br />

lírios mádidos nas origens mais recônditas da alma. Era<br />

um óleo paradisíaco que manso e manso o acalmava, o<br />

anestesiava. Uma extrema carícia, que fazia dilataremse-lhe<br />

todas as fibras, percorrendo-lhe pelo organismo,<br />

extasiantemente, numa onda de fluidos maravilhosos,<br />

de longos langores, de demorados gozos, de supremas<br />

quintessências de sensibilidade.<br />

O sentido palatal, o sentido olfativo e o sentido<br />

visual, profundas manifestações da vida molecularizada,<br />

ele os sentia agora de uma aguda penetração<br />

superorgânica, prodigiosamente penetrados da extrema<br />

carícia, dos fenômenos desconhecidos que o invadiam.<br />

Um nimbo azul, ouro, azul, ouro, azul, eterizavao,<br />

como se ele, por abstratas formas estranhas, girasse<br />

nas constelações, nas curiosidades prismáticas,<br />

cambiantes dos eclipses...<br />

Parecia que áspides delicadas, de uma volúpia<br />

ultraceleste, enroscavam-se nele, enlaçavam-lhe o corpo<br />

todo, sugando-lhe com insaciável frenesi a força vital<br />

das vértebras e dando-lhe uma nova vida ainda não vivida<br />

pelos seus nervos, ainda não experimentada pelo seu<br />

sangue, ainda não sofrida pelos seus sentidos — vida de


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 607<br />

outras origens, de outras sensações fugitivas, de outras<br />

complexidades múltiplas, de outras nevroses absurdas,<br />

de outras estesias cândidas, de outros sóis e de outras<br />

noites, de outras recordações e de outros<br />

esquecimentos... Uma vida sem os contactos<br />

epidérmicos, sem os quebrantos doentes da carne, sem<br />

os delírios da matéria – inteiramente livre de todos os<br />

grilhões do organismo humano. Vida desmolecularizada<br />

nas esferas, plainando no absoluto – luz de harmonia,<br />

harmonia de luz evaporada, diluída na grande luz astral,<br />

subindo camadas, camadas, mais camadas de luz, mais<br />

camadas de harmonia, quintessenciadamente subindo<br />

sempre, subindo, impessoalizando-se e sideralizandose<br />

através dos corpos em gestação, nas partículas<br />

mínimas, infinitesimais do Ser, no branco infinito do<br />

Sonho...<br />

E aquela extrema carícia, sempre a inocular-lhe<br />

nas veias um frio e divino vinho voluptuoso de graça<br />

langue, de graça mórbida, de graça sonâmbula. Sempre<br />

aquela carícia adormentadora miraculosamente<br />

adormentadora.<br />

Sempre aquele ópio fascinante que o sonolentava,<br />

pouco a pouco mais intenso, mais profundo... E névoas,<br />

névoas de uma deliciosa e pacificadora noite aveludada,<br />

sem uma só estrela! o iam envolvendo de forma capciosa<br />

e lenta. Aos poucos se extinguia, num final de<br />

crespúsculo, a vida chamejativa e original de seus olhos,<br />

a ânsia derradeira, o alento último de sua boca já<br />

apagada, já muda. No cérebro ia-se-lhe vagamente<br />

distendendo, tentacularizando a sensação secreta de<br />

um negro, sinistro silêncio... As reminiscências<br />

recuavam, sumiam-se nos indefiníveis mistérios...<br />

Mesmo, agora, finas mãos glaciais, esqueléticas e<br />

invisíveis, de longos e esguios dedos trêmulos, andavamlhe<br />

demoradamente a palpar o corpo todo, de baixo acima,<br />

tateando pelo seu rosto, devagar, pousando sobre os seus<br />

olhos, sobre as pálpebras, a cerrá-las, a fechá-las com


608 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

cuidado, devagar na delicadeza e na extrema carícia<br />

dos longos e esguios dedos trêmulos... Até que, na<br />

convulsa vibração das íntimas cordas sensibilizadas de<br />

todo o seu ser, ele sentiu então, compreendeu então<br />

irremediavelmente já, do mais horrível modo tenebroso<br />

e gelado, pela primeira e única vez! todos esses sutis e<br />

esquisitos efeitos letais daquela extrema carícia...


EMPAREDADO<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 609<br />

Ah! Noite! feiticeira Noite! ó Noite<br />

misericordiosa, coroada no trono das<br />

Constelações pela tiara de prata e diamantes<br />

do Luar, Tu, que ressuscitas dos sepulcros<br />

solenes do Passado tantas Esperanças, tantas<br />

Ilusões, tantas e tamanhas Saudades, ó Noite!<br />

Melancólica! Soturna! Voz triste, recordativamente<br />

triste, de tudo o que está morto,<br />

acabado, perdido nas correntes eternas dos<br />

abismos bramantes do Nada, ó Noite meditativa!<br />

fecunda-me, penetra-me dos fluidos magnéticos<br />

do grande Sonho das tuas Solidões<br />

panteístas e assinaladas, dá-me as tuas brumas<br />

paradisíacas, dá-me os teus cismares de Monja,<br />

dá-me as tuas asas reveladoras, dá-me as tuas<br />

auréolas tenebrosas, a eloqüência de ouro das<br />

tuas Estrelas, a profundidade misteriosa dos<br />

teus sugestionadores fantasmas, todos os<br />

surdos soluços que rugem e rasgam o majestoso<br />

Mediterrâneo dos teus evocativos e<br />

pacificadores Silêncios!


610 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Uma tristeza fina e incoercível errava nos tons<br />

violáceos vivos daquele fim suntuoso de tarde aceso<br />

ainda nos vermelhos sanguíneos, cuja cor cantava-me<br />

nos olhos, quente, inflamada, na linha longe dos<br />

horizontes em largas faixas rutilantes.<br />

O fulvo e voluptuoso Rajá celeste derramara além<br />

os fugitivos esplendores da sua magnificência astral e<br />

rendilhara d’alto e de leve as nuvens da delicadeza<br />

arquitetural, decorativa, dos estilos manuelinos.<br />

Mas as ardentes formas da luz pouco a pouco<br />

quebravam-se, velavam-se e os tons violáceos vivos,<br />

destacados mais agora flagrantemente crepusculavam<br />

a tarde, que expirava anelante, num anseio indefinido,<br />

vago, dolorido, de inquieta aspiração e de inquieto<br />

sonho...<br />

E, descidas, afinal, as névoas, as sombras<br />

claustrais da noite, tímidas e vagarosas Estrelas<br />

começavam a desabrochar florescentemente, numa<br />

tonalidade peregrina e nebulosa de brancas e erradias<br />

fadas de Lendas...<br />

Era aquela, assim religiosa e enevoada, a hora<br />

eterna, a hora infinita da Esperança...<br />

Eu ficara a contemplar, como que sonambulizado,<br />

como o espírito indeciso e febricitante dos que esperam,<br />

a avalanche de impressões e de sentimentos que se<br />

acumulavam em mim à proporção que a noite chegava<br />

com o séquito radiante e real das fabulosas Estrelas.<br />

Recordações, desejos, sensações, alegrias,<br />

saudades, triunfos passavam-me na Imaginação como<br />

relâmpagos sagrados e cintilantes do esplendor litúrgico<br />

de pálios e viáticos, de casulas e dalmáticas fulgurantes,<br />

de tochas acesas e fumosas, de turíbulos cinzelados,<br />

numa procissão lenta, pomposa, em aparatos cerimoniais,<br />

de Corpus Christi, ao fundo longínquo de uma província<br />

sugestiva e serena, pitorescamente aureolada por mares<br />

cantantes. Vinha-me à flor melindrosa dos sentidos a<br />

melopéia, o ritmo fugidio de momentos, horas, instantes,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 611<br />

tempos deixados para trás na arrebatada confusão do<br />

mundo.<br />

Certos lados curiosos, expressivos e tocantes do<br />

Sentimento, que a lembrança venera e santifica; lados<br />

virgens, de majestade significativa, parecia-me surgirem<br />

do suntuoso fundo estrelado daquela noite larga, da<br />

amplidão saudosa daqueles céus...<br />

Desdobrava-se o vasto silforama opulento de uma<br />

vida inteira, circulada de acidentes, de longos lances<br />

tempestuosos, de desolamentos, de palpitações<br />

ignoradas, como do rumor, das aclamações e dos fogos<br />

de cem cidades tenebrosas de tumulto e de pasmo...<br />

Era como que todo o branco idílio místico da<br />

adolescência, que de um tufo claro de nuvens, em<br />

Imagens e Visões do Desconhecido, caminhava para<br />

mim, leve, etéreo, através das imutáveis formas.<br />

Ou, então, massas cerradas, compactas de<br />

harmonias wagnerianas, que cresciam, cresciam, subiam<br />

em gritos, em convulsões, em alaridos nervosos, em<br />

estrépitos nervosos, em sonoridades nervosas, em<br />

dilaceramentos nervosos, em catadupas vertiginosas de<br />

vibrações, ecoando longe e alastrando tudo, por entre a<br />

delicada alma sutil dos ritmos religiosos, alados,<br />

procurando a serenidade dos Astros...<br />

As Estrelas, d’alto, claras, pareciam cautelosamente<br />

escutar e sentir, com os caprichos de relicários<br />

inviolados da sua luz, o desenvolvimento mudo, mas<br />

intenso, a abstrata função mental que estava naquela<br />

hora se operando dentro de mim, como um fenômeno de<br />

aurora boreal que se revelasse no cérebro, acordando<br />

chamas mortas, fazendo viver ilusões e cadáveres.<br />

Ah! aquela hora era bem a hora infinita da<br />

Esperança!<br />

De que subterrâneos viera eu já, de que torvos<br />

caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes,<br />

com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e<br />

majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado,


612 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

ouvindo sempre por toda a parte exclamarem as vãs e<br />

vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar!<br />

Por que estradas caminhei, monge hirto das<br />

desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da<br />

Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta<br />

e chora Requiens nas árvores, nos mares, nos ventos,<br />

nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar!<br />

Esperar! Esperar!<br />

Por isso é que essa hora sugestiva era para mim<br />

então a hora da Esperança, que evocava tudo quanto eu<br />

sonhara e se desfizera e vagara e mergulhara no Vácuo...<br />

Tudo quanto eu mais eloqüentemente amara com o delírio<br />

e a fé suprema de solenes assinalamentos e vitórias.<br />

Mas as grandes ironias trágicas germinadas do<br />

Absoluto, conclamadas, em anátemas e deprecações<br />

inquisitoriais cruzadas no ar violentamente em línguas<br />

de fogo, caíram martirizantes sobre a minha cabeça,<br />

implacáveis como a peste.<br />

Então, à beira de caóticos, sinistros<br />

despenhadeiros, como outrora o doce e arcangélico Deus<br />

Negro, o trimegisto, de cornos agrogalhardos, de<br />

fagulhantes, estriadas asas enigmáticas, idealmente<br />

meditando a Culpa imeditável; então, perdido,<br />

arrebatado dentre essas mágicas e poderosas correntes<br />

de elementos antipáticos que a Natureza regulariza, e<br />

sob a influência de desconhecidos e venenosos filtros, a<br />

minha vida ficou como a longa, muito longa véspera de<br />

um dia desejado, anelado, ansiosamente, inquietamente<br />

desejado, procurado através do deserto dos tempos, com<br />

angústia, com agonia, com esquisita e doentia nevrose,<br />

mas que não chega nunca, nunca!!<br />

Fiquei como a alma velada de um cego onde os<br />

tormentos e os flagelos amargamente vegetam como<br />

cardos hirtos. De um cego onde parece que<br />

vaporosamente dormem certos sentimentos que só com<br />

a palpitante vertigem, só com a febre matinal da luz<br />

clara dos olhos acordariam; sentimentos que dormem


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 613<br />

ou que não chegaram jamais a nascer, porque a densa e<br />

amortalhante cegueira como que apagou para sempre<br />

toda a claridade serena, toda a chama original que os<br />

poderia fecundar e fazer florir na alma...<br />

Elevando o Espírito a amplidões inacessíveis,<br />

quase que não vi esses lados comuns da Vida humana,<br />

e, igual ao cego, fui sombra, fui sombra!<br />

Como os martirizados de outros Gólgotas mais<br />

amargos, mais tristes, fui subindo a escalvada montanha,<br />

através de urzes eriçadas, e de brenhas, como os<br />

martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais<br />

tristes.<br />

De outros Gólgotas mais amargos subindo a<br />

montanha imensa – vulto sombrio, tetro, extra-humano!<br />

– a face escorrendo sangue, a boca escorrendo sangue,<br />

o peito escorrendo sangue, as mãos escorrendo sangue,<br />

o flanco escorrendo sangue, os pés escorrendo sangue,<br />

sangue, sangue, sangue, caminhando para tão longe,<br />

para muito longe, ao rumo infinito das regiões<br />

melancólicas da Desilusão e da Saudade, transfiguradamente<br />

iluminado pelo sol augural dos Destinos!...<br />

E, abrindo e erguendo em vão os braços<br />

desesperados em busca de outros braços que me<br />

abrigassem; e abrindo e erguendo em vão os braços<br />

desesperados que já nem mesmo a milenária cruz do<br />

Sonhador da Judéia encontravam para repousarem<br />

pregados e dilacerados, fui caminhando, caminhando,<br />

sempre com um nome estranho convulsamente<br />

murmurado nos lábios, um nome augusto que eu<br />

encontrara não sei em que Mistério, não sei em que<br />

prodígios de Investigação e de Pensamento profundo: – o<br />

sagrado nome da Arte, virginal e circundada de loureirais<br />

e mirtos e palmas verdes e hosanas, por entre<br />

constelações.<br />

Mas, foi apenas bastante todo esse movimento<br />

interior que pouco a pouco me abalava, foi apenas<br />

bastante que eu consagrasse a vida mais fecundada,


614 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

mais ensangüentada que tenho, que desse todos os meus<br />

mais íntimos, mais recônditos carinhos, todo o meu amor<br />

ingênito, toda a legitimidade do meu sentir a essa<br />

translúcida Monja de luar e sol, a essa incoercível<br />

Aparição, bastou tão pouco para que logo se levantassem<br />

todas as paixões da terra, tumultuosas como florestas<br />

cerradas, proclamando por brutas, titânicas trombetas<br />

de bronze o meu nefando Crime.<br />

Foi bastante pairar mais alto, na obscuridade<br />

tranqüila, na consoladora e doce paragem das Idéias,<br />

acima das graves letras maiúsculas da Convenção, para<br />

alvoroçarem-se os Preceitos, irritarem-se as Regras, as<br />

Doutrinas, as Teorias, os Esquemas, os Dogmas, armados<br />

e ferozes, de cataduras hostis e severas.<br />

Eu trazia, como cadáveres que me andassem<br />

funambulescamente amarrados às costas, num<br />

inquietante e interminável apodrecimento, todos os<br />

empirismos preconceituosos e não sei quanta camada<br />

morta, quanta raça d’África curiosa e desolada que a<br />

Fisiologia nulificara para sempre com o riso haeckeliano<br />

e papai!<br />

Surgido de bárbaros, tinha de domar outros mais<br />

bárbaros ainda, cujas plumagens de aborígine<br />

alacremente flutuavam através dos estilos.<br />

Era mister romper o Espaço toldado de brumas,<br />

rasgar as espessuras, as densas argumentações e<br />

saberes, desdenhar os juízos altos, por decreto e por lei,<br />

e, enfim, surgir...<br />

Era mister rir com serenidade e afinal com tédio<br />

dessa celulazinha bitolar que irrompe por toda a parte,<br />

salta, fecunda, alastra, explode, transborda e se propaga.<br />

Era mister respirar a grandes haustos na<br />

Natureza, desafogar o peito das opressões ambientes,<br />

agitar desassombradamente a cabeça diante da liberdade<br />

absoluta e profunda do Infinito.<br />

Era mister que me deixassem ao menos ser livre<br />

no Silêncio e na Solidão. Que não me negassem a


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 615<br />

necessidade fatal, imperiosa, ingênita de sacudir com<br />

liberdade e com volúpia os nervos e desprender com<br />

largueza e com audácia o meu verbo soluçante, na força<br />

impetuosa e indomável da Vontade.<br />

O temperamento que rugia, bramava dentro de<br />

mim, esse, que se operasse: precisava, pois, tratados,<br />

largos in-fólios, toda a biblioteca da famosa Alexandria,<br />

uma Babel e Babilônia de aplicações científicas e de<br />

textos latinos para sarar...<br />

Tornava-se forçoso impor-lhe um compêndio<br />

admirável, cheio de sensações imprevistas, de<br />

curiosidades estéticas muito lindas e muito finas – um<br />

compêndio de geometria!<br />

O temperamento entortava muito para o lado da<br />

África: – era necessário fazê-lo endireitar inteiramente<br />

para o lado Regra, até que o temperamento regulasse<br />

certo como um termômetro!<br />

Ah! incomparável espírito das estreitezas<br />

humanas, como és secularmente divino!<br />

As civilizações, as raças, os povos digladiam-se e<br />

morrem minados pela fatal degenerescência do sangue,<br />

despedaçados, aniquilados no pavoroso túnel da Vida,<br />

sentindo o horror sufocante das supremas asfixias.<br />

Um veneno corrosivo atravessa, circula<br />

vertiginosamente os poros dessa deblaterante<br />

humanidade que se veste e triunfa com as púrpuras<br />

quentes e funestas da guerra!<br />

Povos e povos, no mesmo fatal e instintivo<br />

movimento da conservação e propagação da espécie,<br />

frivolamente lutam e proliferam diante da Morte, no ardor<br />

dos conúbios secretos e das batalhas obscuras, do frenesi<br />

genital, animal, de perpetuarem as seivas, de<br />

eternizarem os germens.<br />

Mas, por sobre toda essa vertigem humana, sobre<br />

tanta monstruosa miséria, rodando, rodomoinhando, lá<br />

e além, na vastidão funda do Mundo, alguma cousa da<br />

essência maravilhosa da Luz paira e se perpetua,


616 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

fecundando e inflamando os séculos com o amor indelével<br />

da Forma.<br />

É do sabor prodigioso dessa essência, vinda de<br />

bem remotas origens, que raros Assinalados<br />

experimentam, envoltos numa atmosfera de<br />

eterificações, de visualidades inauditas, de<br />

surpreendentes abstrações e brilhos, radiando nas<br />

correntes e forças da Natureza, vivendo nos fenômenos<br />

vagos de que a Natureza se compõe, nos fantasmas<br />

dispersos que circulam e erram nos seus esplendores e<br />

nas suas trevas, conciliados supremamente com a<br />

Natureza.<br />

E, então, os temperamentos que surgissem, que<br />

viessem, limpos de mancha, de mácula, puramente<br />

lavados para as extremas perfectibilidades, virgens, sãos<br />

e impetuosos para as extremas fecundações, com a<br />

virtude eloqüente de trazerem, ainda sangradas, frescas,<br />

úmidas das terras germinais do Idealismo, as raízes vivas<br />

e profundas, os germens legítimos, ingênitos, do<br />

Sentimento.<br />

Os temperamentos que surgissem: – podiam ser<br />

simples, mas que essa simplicidade acusasse também<br />

complexidade, como as claras Ilíadas que os rios cantam.<br />

Mas igualmente podiam ser complexos, trazendo as<br />

inéditas manifestações do Indefinido, e intensos,<br />

intensos sempre, sintéticos e abstratos, tendo esses<br />

inexprimíveis segredos que vagam na luz, no ar, no som,<br />

no aroma, na cor e que só a visão delicada de um espírito<br />

artístico assinala.<br />

Poderiam também parecer obscuros por serem<br />

complexos, mas ao mesmo tempo serem claros nessa<br />

obscuridade por serem lógicos, naturais, fáceis, de uma<br />

espontaneidade sincera, verdadeira e livre na enunciação<br />

de sentimentos e pensamentos, da concepção e da forma,<br />

obedecendo tudo a uma grande harmonia essencial de<br />

linhas sempre determinativas da índole, da feição geral<br />

de cada organização.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 617<br />

Os lados mais carregados, mais fundamente<br />

cavados dos temperamentos sangrentos, fecundados em<br />

origens novas de excepcionalidades, não seriam para<br />

complicar e enturvecer mais as respectivas psicologias;<br />

mas apenas para torná-las claras, claras, para dar,<br />

simplesmente, com a máxima eloqüência, dessas<br />

próprias psicologias, toda a evidência, toda a intensidade,<br />

todo o absurdo e nebuloso Sonho...<br />

Dominariam assim, venceriam assim, esses<br />

Sonhadores, os reservados, eleitos e melancólicos<br />

Reinados do Ideal, apenas, unicamente por fatalidades<br />

impalpáveis, imprescritíveis, secretas, e não por<br />

justaposições mecânicas de teorias e didatismos<br />

obsoletos.<br />

Os caracteres nervosos mais sutis, mais finos, mais<br />

vaporosos, de cada temperamento, perder-se-iam,<br />

embora, na vaga truculenta, pesada, da multidão<br />

inexpressiva, confusa, que burburinha com o seu lento<br />

ar parado e vazio, conduzindo em seu bojo a<br />

concupiscência bestial enroscada como um sátiro, com<br />

a alma gasta, olhando molemente para tudo com os seus<br />

dois pequeninos olhos gulosos de símio.<br />

Mas, a paixão inflamada do Ignoto subiria e<br />

devoraria reconditamente todos esses Imaginativos<br />

dolentes, como se eles fossem abençoada zona ideal,<br />

preciosa, guardando em sua profundidade o orientalismo<br />

de um tesouro curioso, o relicário mágico do Imprevisto<br />

– abençoada zona saudosa, plaga d’ouro sagrada, para<br />

sempre sepulcralmente fechada ao sentimento herético,<br />

à bárbara profanação dos sacrílegos.<br />

Assim é que eu sonhara surgirem todas essas<br />

aptidões, todas essas feições singulares, dolorosas,<br />

irrompendo de um alto princípio fundamental distinto<br />

em certos traços breves, mas igual, uno, perfeito e<br />

harmonioso nas grandes linhas gerais.<br />

Essa é que fora a lei secreta, que escapara à<br />

percepção de filósofos e doutos, do verdadeiro


618 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

temperamento, alheio às orquestrações e aos incensos<br />

aclamatórios da turba profana, porém alheio por causa,<br />

por sinceridade de penetração, por subjetivismo mental<br />

sentido à parte, vivido à parte, – simples, obscuro, natural<br />

– como se a humanidade não existisse em torno e os<br />

nervos, a sensação, o pensamento tivessem latente<br />

necessidade de gritar alto, de expandir e transfundir no<br />

espaço, vivamente, a sua psicose atormentada.<br />

Assim é que eu via a Arte, abrangendo todas as<br />

faculdades, absorvendo todos os sentidos, vencendo-os,<br />

subjugando-os amplamente.<br />

Era uma força oculta, impulsiva, que ganhara já a<br />

agudeza picante, acre, de um apetite estonteante e a<br />

fascinação infernal, tóxica, de um fugitivo e deslumbrador<br />

pecado...<br />

Assim é que eu a compreendia em toda a<br />

intimidade do meu ser, que eu sentia em toda a minha<br />

emoção, em toda a genuína expressão do meu<br />

Entendimento – e não uma espécie de iguaria agradável,<br />

saborosa, que se devesse dar ao público em doses e no<br />

grau e qualidade que ele exigisse, fosse esse público<br />

simplesmente um símbolo, um bonzo antigo, taciturno e<br />

cor de oca, uma expressão serôdia, o público A+B, cujo<br />

consenso a Convenção em letras maiúsculas decretara.<br />

Afinal, em tese, todas as idéias em Arte poderiam<br />

ser antipáticas, sem preconcebimentos a agradar, o que<br />

não quereria dizer que fossem más.<br />

No entanto, para que a Arte se revelasse própria,<br />

era essencial que o temperamento se desprendesse de<br />

tudo, abrisse vôos, não ficasse nem continuativo nem<br />

restrito, dentro de vários moldes consagrados que<br />

tomaram já a significação representativa de clichés<br />

oficiais e antiquados.<br />

Quanto a mim, originalmente foi crescendo,<br />

alastrando o meu organismo, numa veemência e num<br />

ímpeto de vontade que se manifesta, num dilúvio de<br />

emoção, esse fenômeno de temperamento que com


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 619<br />

sutilezas e delicadezas de névoas alvorais vem surgindo<br />

e formando em nós os maravilhosos Encantamentos da<br />

Concepção.<br />

O Desconhecido me arrebatara e surpreendera e<br />

eu fui para ele instintiva e intuitivamente arrastado,<br />

insensível então aos atritos da frivolidade, indiferente,<br />

entediado por índole diante da filáucia letrada, que não<br />

trazia a expressão viva, palpitante, da chama de uma<br />

fisionomia, de um tipo afirmativamente eleito.<br />

Muitos diziam-se rebelados, intransigentes – mas<br />

eu via claro as ficelles dessa rebeldia e dessa<br />

instransigência. Rebelados, porque tiveram fome uma<br />

hora apenas, as botas rotas um dia. Intransigentes, por<br />

despeito, porque não conseguiam galgar as fúteis, para<br />

eles gloriosas posições que os outros galgavam...<br />

Era uma politicazinha engenhosa de medíocres,<br />

de estreitos, de tacanhos, de perfeitos imbecilizados ou<br />

cínicos, que faziam da Arte um jogo capcioso, maneiroso,<br />

para arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a<br />

não ofender, a não fazer corar o diletantismo das suas<br />

idéias. Rebeldias e instransigências em casa, sob o teto<br />

protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico,<br />

muito demolidor e feroz, com ladainhas e amuletos em<br />

certa hora para livrar da trovoada e dos celestes castigos<br />

imponderáveis!<br />

Mas, uma vez cá fora à luz crua da Vida e do Mundo,<br />

perante o ferro em brasa da livre análise, mostrando<br />

logo as curvaturas mais respeitosas, mais gramaticais,<br />

mais clássicas, à decrépita Convenção com letras<br />

maiúsculas.<br />

Um ou outro, pairando, no entanto, mais alto no<br />

meio, tinha manhas de raposa fina, argúcia, vivacidades<br />

satânicas, no fundo, frívolas, e que a maior parte,<br />

inteiramente oca, sem penetração, não sentia. Fechava<br />

sistematicamente os olhos para fingir não ver, para não<br />

sair dos seus cômodos pacatos de aclamado banal,<br />

fazendo esforço supremo de conservar a confusão e a


620 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

complicação no meio, transtornar e estontear aquelas<br />

raras e adolescentes cabeças que por acaso aparecessem<br />

já com algum nebuloso segredo.<br />

Um ou outro tinha a habilidade quase mecânica<br />

de apanhar, de recolher do tempo e do espaço as idéias<br />

e os sentimentos que, estando dispersos, formavam a<br />

temperatura burguesa do meio, portanto corrente já, e<br />

trabalhar algumas páginas, alguns livros, que, por<br />

trazerem idéias e sentimentos homogêneos dos<br />

sentimentos e idéias burguesas, aqueciam, alvoroçavam,<br />

atordoavam o ar de aplausos...<br />

Outros, ainda, adaptados às épocas, aclimados ao<br />

modo de sentir exterior; ou, ainda por mal compreendido<br />

ajeitamento, fazendo absoluta apostasia do seu sentir<br />

íntimo, próprio, iludidos em parte; ou, talvez,<br />

evidenciando com flagrância, traindo assim o fundo fútil,<br />

sem vivas, entranhadas raízes de sensibilidade estética,<br />

sem a ideal radicalização de sonhos ingenitamente<br />

fecundados e quintessenciados na alma, das suas<br />

naturezas passageiras, desapercebidas de certos<br />

movimentos inevitáveis da estesia, que imprimem, por<br />

fórmulas fatais, que arrancam das origens profundas,<br />

com toda a sanguinolenta verdade e por causas fugidias<br />

a toda e qualquer análise, tudo o quanto se sente e<br />

pensa de mais ou menos elevado e completo.<br />

Mistificadores afetados de canaillerie por tom, por<br />

modernismos falhos apanhados entre os absolutamente<br />

fracos, os pusilânimes de têmpera no fundo, e que, no<br />

entanto, tanto aparentam correção e serena força<br />

própria.<br />

Naturezas vacilantes e mórbidas, sem a integração<br />

final, sem mesmo o equilíbrio fundamental do próprio<br />

desequilíbrio e, ainda mais do que tudo, sem esse poder<br />

quase sobrenatural, sem esses atributos excepcionais<br />

que gravam, que assinalam de modo estranho, às<br />

chamejantes e intrínsecas obras d’Arte, o caráter<br />

imprevisto, extra-humano, do Sonho.


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 621<br />

Hábeis viveurs, jeitosos, sagazes, acomodatícios,<br />

afetando pessimismos mais por desequilíbrio que por<br />

fundamento, sentindo, alguns, até à saciedade, a<br />

atropelação do meio, fingindo desprezá-lo, aborrecê-lo,<br />

odiá-lo, mas mergulhando nele com frenesi, quase com<br />

delírio, mesmo com certa volúpia maligna de frouxos e<br />

de nulos que trazem num grau muito apurado a faculdade<br />

animal do instinto de conservação, a habilidade de<br />

nadadores destros e intrépidos nas ondas turvas dos<br />

cálculos e efeitos convencionais.<br />

Tal, desse modo, um prestidigitador ágil e atilado<br />

colhe e prende, com as miragens e truques da<br />

nigromancia, a frívola atenção passiva de um público<br />

dócil e embasbacado.<br />

Insipientes, uns, obscenamente cretinos, outros,<br />

devorados pela desoladora impotência que os torna lívidos<br />

e lhes dilacera os fígados, eu bem lhes percebo as<br />

psicologias subterrâneas, bem os vejo passar, todos,<br />

todos, todos, d’olhos oblíquos, numa expressão<br />

fisionômica azeda e vesga de despeito, como errantes<br />

duendes da Meia-Noite, verdes, escarlates, amarelos e<br />

azuis, em vão grazinando e chocalhando na treva os<br />

guizos das sarcásticas risadas...<br />

Almas tristes, afinal, que se diluem, que se<br />

acabam, num silêncio amargo, numa dolorosa desolação,<br />

murchas e doentias, na febre fatal das desorganizações,<br />

melancolicamente, melancolicamente, como a<br />

decomposição de tecidos que gangrenaram, de corpos<br />

que apodreceram de um modo irremediável e não podem<br />

mais viçar e florir sob as refulgências e sonoridades dos<br />

finíssimos ouros e cristais e safiras e rubis incendiados<br />

do Sol...<br />

Almas lassas, debochadamente relaxadas,<br />

verdadeiras casernas onde a mais rasgada libertinagem<br />

não encontra fundo; almas que vão cultivando com<br />

cuidado delicadas infamiazinhas como áspides galantes


622 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

e curiosas e que de tão baixas, de tão rasas que são<br />

nem merecem a magnificência, a majestade do Inferno!<br />

Almas, afinal, sem as chamas misteriosas, sem<br />

as névoas, sem as sombras, sem os largos e irisados<br />

resplendores do Sonho – supremo Redentor eterno!<br />

Tudo um ambiente dilacerante, uma atmosfera<br />

que sufoca, um ar que aflige e dói nos olhos e asfixia a<br />

garganta como uma poeira triste, muito densa, muito<br />

turva, sob um meio-dia ardente, no atalho ermo de vila<br />

pobre por onde vai taciturnamente seguindo algum<br />

obscuro enterro de desgraçado...<br />

Eles riem, eles riem e eu caminho e sonho<br />

tranqüilo! pedindo a algum belo Deus d’Estrelas e d’Azul,<br />

que vive em tédios aristocráticos na Nuvem, que me deixe<br />

serenamente e humildemente acabar esta Obra extrema<br />

de Fé e de Vida!<br />

Se alguma nova ventura conheço é a ventura<br />

intensa de sentir um temperamento, tão raro me é dado<br />

sentir essa ventura. Se alguma cousa me torna justo é<br />

a chama fecundadora, o eflúvio fascinador e penetrante<br />

que se exala de um verso admirável, de uma página de<br />

evocações, legítima e sugestiva.<br />

O que eu quero, o que eu aspiro, tudo por quanto<br />

anseio, obedecendo ao sistema arterial das minhas<br />

Intuições, é a Amplidão livre e luminosa, todo o Infinito,<br />

para cantar o meu Sonho, para sonhar, para sentir, para<br />

sofrer, para vagar, para dormir, para morrer, agitando<br />

ao alto a cabeça anatematizada, como Otelo nos delírios<br />

sangrentos do Ciúme...<br />

Agitando ainda a cabeça num derradeiro<br />

movimento de desdém augusto, como nos cismativos<br />

ocasos os desdéns soberanos do sol que ufanamente<br />

abandona a terra, para ir talvez fecundar outros mais<br />

nobres e ignorados hemisférios...<br />

Pensam, sentem, estes, aqueles. Mas a<br />

característica que denota a seleção de uma curiosa<br />

natureza, de um ser d’arte absoluto, essa, não a sinto,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 623<br />

não a vejo, com os delicados escrúpulos e<br />

suscetibilidades de uma flagrante e real originalidade<br />

sem escolas, sem regulamentações e métodos, sem<br />

cotterie e anais de crítica, mas com a força germinal<br />

poderosa de virginal afirmação viva.<br />

D’alto a baixo, rasgam-se os organismos, os<br />

instrumentos da autópsia psicológica penetram por tudo,<br />

sondam, perscrutam todas as células, analisam as<br />

funções mentais de todas as civilizações e raças; mas<br />

só escapam à penetração, à investigação desses positivos<br />

exames a tendência, a índole, o temperamento artístico,<br />

fugidios sempre e sempre imprevistos, porque são casos<br />

particulares de seleção na massa imensa dos casos<br />

gerais que regem e equilibram secularmente o mundo.<br />

Desde que o Artista é um isolado, um esporádico,<br />

não adaptado ao meio, mas em completa, lógica e<br />

inevitável revolta contra ele, num conflito perpétuo entre<br />

a sua natureza complexa e a natureza oposta do meio, a<br />

sensação, a emoção que experimenta é de ordem tal<br />

que foge a todas as classificações e casuísticas, a todas<br />

as argumentações que, parecendo as mais puras e as<br />

mais exaustivas do assunto, são, no entanto, sempre<br />

deficientes e falsas.<br />

Ele é o supercivilizado dos sentidos, mas como<br />

que um supercivilizado ingênito, transbordado do meio,<br />

mesmo em virtude da sua percuciente agudeza de visão,<br />

da sua absoluta clarividência, da sua inata<br />

perfectibilidade celular, que é o gérmen fundamental<br />

de um temperamento profundo.<br />

Certos espíritos d’Arte assinalaram-se no tempo<br />

veiculado pela hegemonia das raças, pela preponderância<br />

das civilizações, tendo, porém, em toda a parte, um valor<br />

que era universalmente conhecido e celebrizado, porque,<br />

para chegar a esse grau de notoriedade, penetrou<br />

primeiro nos domínios do oficialismo e da cotterie.<br />

Os de Estética emovente e exótica, os gueux, os<br />

requintados, os sublimes iluminados por um clarão


624 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

fantástico, como Baudelaire, como Poe, os<br />

surpreendentes da Alma, os imprevistos missionários<br />

supremos, os inflamados, devorados pelo Sonho, os<br />

clarividentes e evocativos, que emocionalmente<br />

sugestionam e acordam luas adormecidas de<br />

Recordações e de Saudades, esses ficam imortalmente<br />

cá fora, dentre as augustas vozes apocalípticas da<br />

Natureza, chorados e cantados pelas Estrelas e pelos<br />

Ventos!<br />

Ah! benditos os Reveladores da Dor infinita! Ah!<br />

soberanos e invulneráveis aqueles que, na Arte, nesse<br />

extremo requinte de volúpia, sabem transcendentalizar<br />

a Dor, tirar da Dor a grande Significação eloqüente e<br />

não amesquinhá-la e desvirginá-la!<br />

A verdadeira, a suprema força d’Arte está em<br />

caminhar firme, resoluto, inabalável, sereno através de<br />

toda a perturbação e confusão ambiente, isolado no<br />

mundo mental criado, assinalando com intensidade e<br />

eloqüência o mistério, a predestinação do temperamento.<br />

É preciso fechar com indiferença os ouvidos aos<br />

rumores confusos e atropelantes e engolfar a alma, com<br />

ardente paixão e fé concentrada, em tudo o que se sente<br />

e pensa com sinceridade, por mais violenta, obscura ou<br />

escandalosa que essa sinceridade à primeira vista<br />

pareça, por mais longe das normas prestabelecidas que<br />

a julguem – para então assim mais elevadamente<br />

estrelar os Infinitos da grande Arte, da grande Arte que<br />

é só, solitária, desacompanhada das turbas que<br />

chasqueiam, da matéria humana doente que convulsiona<br />

dentro das estreitezas asfixiantes do seu torvo caracol.<br />

Até mesmo, certos livros, por mais exóticos,<br />

atraentes, abstrusos, que sejam, por mais aclamados<br />

pela trompa do momento, nada podem influir, nenhuma<br />

alteração podem trazer ao sentimento geral de idéias<br />

que se constituíram sistema e que afirmam, de modo<br />

radical, mas simples, natural, por mais exagerado que<br />

se suponha, a calma justa das convicções integrais,


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 625<br />

absolutas, dos que seguem impavidamente a sua linha,<br />

dos que, trazendo consigo imaginativo espírito de<br />

Concepção, caminham sempre com tenacidade,<br />

serenamente, impertubáveis aos apupos inofensivos, sem<br />

tonturas de fascinação efêmera, sentindo e conhecendo<br />

tudo, com os olhos claros levantados e sonhadores cheios<br />

de uma radiante ironia mais feita de demência, de<br />

bondade do que de ódio.<br />

O Artista é que fica muitas vezes sob o signo fatal<br />

ou sob a auréola funesta do ódio, quando no entanto o<br />

seu coração vem transbordando de Piedade, vem<br />

soluçando de ternura, de compaixão, de misericórdia,<br />

quando ele só parece mau porque tem cóleras soberbas,<br />

tremendas indignações, ironias divinas que causam<br />

escândalos ferozes, que passam por blasfêmias negras,<br />

contra a Infâmia oficial do Mundo, contra o vicio hipócrita,<br />

perverso, contra o postiço sentimento universal<br />

mascarado de Liberdade e de Justiça.<br />

Nos países novos, nas terras ainda sem tipo étnico<br />

absolutamente definido, onde o sentimento d’Arte é<br />

silvícola, local, banalizado, deve ser espantoso, estupendo<br />

o esforço, a batalha formidável de um temperamento<br />

fatalizado pelo sangue e que traz consigo, além da<br />

condição inviável do meio, a qualidade fisiológica de<br />

pertencer, de proceder de uma raça que a ditadora<br />

ciência d’hipóteses negou em absoluto para as funções<br />

do Entendimento e, principalmente, do entendimento<br />

artístico da palavra escrita.<br />

Deus meu! por uma questão banal da química<br />

biológica do pigmento ficam alguns mais rebeldes e<br />

curiosos fósseis preocupados, a ruminar primitivas<br />

erudições, perdidos e atropelados pelas longas galerias<br />

submarinas de uma sabedoria infinita, esmagadora,<br />

irrevogável!<br />

Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor da<br />

minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade


626 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos<br />

e gritos? Qual a dos meus desejos e febre?<br />

Ah! esta minúscula humanidade, torcida,<br />

enroscada, assaltando as almas com a ferocidade de<br />

animais bravios, de garras aguçadas e dentes rijos de<br />

carnívoro, é que não pode compreender-me.<br />

Sim! tu é que não podes entender-me, não podes<br />

irradiar, convulsionar-te nestes efeitos com os arcaísmos<br />

duros da tua compreensão, com a carcaça paleontológica<br />

do Bom Senso.<br />

Tu é que não podes ver-me, atentar-me, sentirme,<br />

dos limites da tua toca de primitivo, armada do bordão<br />

simbólico das convicções pré-históricas, patinhando a<br />

lama das teorias, a lama das conveniências<br />

equilibrantes, a lama sinistra, estagnada, das tuas<br />

insaciáveis luxúrias.<br />

Tu não podes sensibilizar-te diante destes<br />

extasiantes estados d’alma, diante destes<br />

deslumbramentos estesíacos, sagrados, diante das<br />

eucarísticas espiritualizações que me arrebatam.<br />

O que tu podes, só, é agarrar com frenesi ou com<br />

ódio a minha Obra dolorosa e solitária e lê-la e detestála<br />

e revirar-lhe as folhas, truncar-lhe as páginas,<br />

enodoar-lhe a castidade branca dos períodos, profanarlhe<br />

o tabernáculo da linguagem, riscar, traçar, assinalar,<br />

cortar com dísticos estigmatizantes, com labéus<br />

obscenos, com golpes fundos de blasfêmia as violências<br />

da intensidade, dilacerar, enfim, toda a Obra, num ímpeto<br />

covarde de impotência ou de angústia.<br />

Mas, para chegares a esse movimento apaixonado,<br />

dolorido, já eu antes terei, por certo – eu o sinto, eu o<br />

vejo! – te arremessado profundamente, abismantemente<br />

pelos cabelos a minha Obra e obrigado a tua atenção<br />

comatosa a acordar, a acender, a olfatar, a cheirar com<br />

febre, com delírio, com cio, cada adjetivo, cada verbo<br />

que eu faça chiar como um ferro em brasa sobre o<br />

organismo da Idéia, cada vocábulo que eu tenha pensado


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 627<br />

e sentido com todas as fibras, que tenha vivido com os<br />

meus carinhos, dormido com os meus desejos, sonhado<br />

com os meus sonhos, representativos, integrais, únicos,<br />

completos, perfeitos, de uma convulsão e aspiração<br />

supremas.<br />

Não conseguindo impressionar-te, afetar-te a bossa<br />

intelectiva, quero ao menos sensacionar-te a pele,<br />

ciliciar-te, crucificar-te ao meu estilo, desnudando ao<br />

sol, pondo abertas e francas todas as expressões,<br />

nuances e expansibilidades deste amargurado ser, tal<br />

como sou e sinto.<br />

Os que vivem num completo assédio no mundo,<br />

pela condenação do Pensamento, dentro de um báratro<br />

monstruoso de leis e preceitos obsoletos, de convenções<br />

radicadas, de casuísticas, trazem a necessidade inquieta<br />

e profunda de como que traduzir, por traços<br />

fundamentais, as suas faces, os seus aspectos, as suas<br />

impressionabilidades e, sobretudo, as suas causas<br />

originais, vindas fatalmente da liberdade fenomenal da<br />

Natureza.<br />

Ah! Destino grave, de certo modo funesto, dos que<br />

vieram ao mundo para, com as correntes secretas dos<br />

seus pensamentos e sentimentos, provocar convulsões<br />

subterrâneas, levantar ventos opostos de opiniões,<br />

mistificar a insipiência dos adolescentes intelectuais, a<br />

ingenuidade de certas cabeças, o bom senso dos cretinos,<br />

deixar a oscilação da fé, sobre a missão que trazem, no<br />

espírito fraco, sem consistência de crítica própria, sem<br />

impulsão original para afirmar os Obscuros que não<br />

contemporizam, os Negados que não reconhecem a<br />

Sanção oficial, que repelem toda a sorte de conchavos,<br />

de compadrismos interesseiros, de aplausos forjicados,<br />

por limpidez e decência e não por frivolidades de orgulhos<br />

humanos ou de despeitos tristes.<br />

Ah! Destino grave dos que vieram ao mundo para<br />

ousadamente deflorar as púberes e cobardes<br />

inteligências com o órgão másculo, poderoso da Síntese,


628 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

para inocular nas estreitezas mentais o sentimento<br />

vigoroso das Generalizações, para revelar uma obra bem<br />

fecundada de sangue, bem constelada de lágrimas, para,<br />

afinal, estabelecer o choque violento das almas,<br />

arremessar umas contra as outras, na sagrada, na<br />

bendita impiedade de quem traz consigo os vulcanizadores<br />

Anátemas que redimem.<br />

O que em nós outros Errantes do Sentimento<br />

flameja, arde e palpita é esta ânsia infinita, esta sede<br />

santa e inquieta, que não cessa, de encontrarmos um<br />

dia uma alma que nos veja com simplicidade e clareza,<br />

que nos compreenda, que nos ame, que nos sinta.<br />

E de encontrar essa alma assinalada pela qual<br />

viemos vindo de tão longe sonhando e andamos esperando<br />

há tanto tempo, procurando-a no Silêncio do mundo,<br />

cheios de febre e de cismas, para no seio dela cairmos<br />

frementes, alvoroçados, entusiastas, como no eterno seio<br />

da Luz imensa e boa que nos acolhe.<br />

É esta bendita loucura de encontrar essa alma<br />

para desabafar ao largo da Vida com ela, para respirar<br />

livre e fortemente, de pulmões satisfeitos e límpidos,<br />

toda a onda viva de vibrações e de chamas do Sentimento<br />

que contivemos por tanto e tão longo tempo guardada na<br />

nossa alma, sem acharmos uma outra alma irmã à qual<br />

pudéssemos comunicar absolutamente tudo.<br />

E quando a flor dessa alma se abre encantadora<br />

para nós, quando ela se nos revela com todos os seus<br />

sedutores e recônditos aromas, quando afinal a<br />

descobrimos um dia, não sentimos mais o peito opresso,<br />

esmagado: – uma nova torrente espiritual deriva do nosso<br />

ser e ficamos então desafogados, coração e cérebro<br />

inundados da graça de um divino amor, bem pagos de<br />

tudo, suficientemente recompensados de todo o<br />

transcendente Sacrifício que a Natureza heroicamente<br />

impôs aos nossos ombros mortais, para ver se<br />

conseguimos, aqui embaixo na Terra, encher, cobrir este<br />

abismo do Tédio com abismos da Luz!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 629<br />

O mundo, chato e medíocre nos seus<br />

fundamentos, na sua essência, é uma dura fórmula<br />

geométrica. Todo aquele que lhe procura quebrar as<br />

hirtas e caturras linhas retas com o poder de um simples<br />

Sentimento desloca de tal modo elementos de ordem<br />

tão particular, de natureza tão profunda e tão séria que<br />

tudo se turba e convulsiona; e o temerário que ousou<br />

tocar na velha fórmula experimenta toda a Dor<br />

imponderável que esse simples Sentimento<br />

responsabiliza e provoca.<br />

Eu não pertenço à velha árvore genealógica das<br />

intelectualidades medidas, dos produtos anêmicos dos<br />

meios lutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas<br />

girafas verdes e spleenéticas de algum maravilhoso e<br />

babilônico jardim de lendas...<br />

Num impulso sonâmbulo para fora do círculo<br />

sistemático das Fórmulas preestabelecidas, deixei-me<br />

pairar, em espiritual essência, em brilhos intangíveis,<br />

através dos nevados, gelados e peregrinos caminhos da<br />

Via-Láctea...<br />

E é por isso que eu ouço, no adormecimento de<br />

certas horas, nas moles quebreiras de vagos torpores<br />

enervantes, na bruma crepuscular de certas melancolias,<br />

na contemplatividade mental de certos poentes<br />

agonizantes, uma voz ignota, que parece vir do fundo da<br />

Imaginação ou do fundo mucilaginoso do Mar ou dos<br />

mistérios da Noite – talvez acordes da grande Lira<br />

noturna do Inferno e das harpas remotas de velhos céus<br />

esquecidos, murmurar-me:<br />

– “Tu és dos de Cam, maldito, réprobo,<br />

anatematizado! Falas em Abstrações, em Formas, em<br />

Espiritualidades, em Requintes, em Sonhos! Como se<br />

tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos<br />

arianos, depurado por todas as civilizações, célula por<br />

célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num<br />

verdadeiro cadinho de idéias, de sentimentos – direito,<br />

perfeito, das perfeições oficiais dos meios


630 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente,<br />

rei!, em galeras, dentre opulências, ou tivesses a<br />

aventura magna de ficar perdido em Tebas,<br />

desoladamente cismando através de ruínas; ou a iriada,<br />

peregrina e fidalga fantasia dos Medievos, ou a lenda<br />

colorida e bizarra por haveres adormecido e sonhado,<br />

sob o ritmo claro dos Astros, junto às priscas margens<br />

venerandas do Mar Vermelho!<br />

Artista! pode lá isso ser se tu és d’África, tórrida<br />

e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto,<br />

tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no<br />

lodo das Civilizações despóticas, torvamente<br />

amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia!<br />

A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das<br />

Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas,<br />

gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido das<br />

profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração<br />

humana! A África laocoôntica, alma de trevas e de<br />

chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente<br />

tempestuosa como a alma espiritualizada e tantálica da<br />

Rússia, gerada no Degredo e na Neve – pólo branco e<br />

pólo negro da Dor!<br />

Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu<br />

vens dessa longínqua região desolada, lá no fundo exótico<br />

dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e<br />

sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada<br />

África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa<br />

de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal;<br />

dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada<br />

pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal<br />

e tenebrosa das maldições eternas!<br />

A África virgem, inviolada no Sentimento,<br />

avalanche humana amassada com argilas funestas e<br />

secretas para fundir a Epopéia suprema da Dor do Futuro,<br />

para fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de<br />

algum novo e majestoso Dante negro!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 631<br />

Dessa África que parece gerada para os divinos<br />

cinzéis das colossais e prodigiosas esculturas, para as<br />

largas e fantásticas Inspirações convulsas de Doré –<br />

Inspirações inflamadas, soberbas, choradas, soluçadas,<br />

bebidas nos Infernos e nos Céus profundos do Sentimento<br />

humano.<br />

Dessa África cheia de solidões maravilhosas, de<br />

virgindades animais instintivas, de curiosos fenômenos<br />

de esquisita Originalidade, de espasmos de Desespero,<br />

gigantescamente medonha, absurdamente ululante –<br />

pesadelo de sombras macabras – visão valpurgiana de<br />

terríveis e convulsos soluços noturnos circulando na<br />

Terra e formando, com as seculares, despedaçadas<br />

agonias da sua alma renegada, uma auréola sinistra,<br />

de lágrimas e sangue, toda em torno da Terra...<br />

Não! Não! Não! Não transporás os pórticos<br />

milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás<br />

de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram<br />

acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre<br />

pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado<br />

de uma raça.<br />

Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás,<br />

ansioso, aflito, numa parede horrendamente<br />

incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se<br />

caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências<br />

e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará<br />

profundamente no espanto! Se caminhares para a frente,<br />

ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências,<br />

tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto!<br />

Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma<br />

derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo –<br />

horrível! – parede de Imbecilidade e Ignorância, te<br />

deixará num frio espasmo de terror absoluto...<br />

E mais pedras, mais pedras se sobreporão às<br />

pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras...<br />

Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações<br />

e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas<br />

paredes hão de subir – longas, negras, terríficas! Hão


632 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até as Estrelas,<br />

deixando-te para sempre perdidamente alucinado e<br />

emparedado dentro do teu Sonho...”


Correspondência<br />

Correspondência


634 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

1. À COMISSÃO ORGANIZADORA DO CLUBE<br />

DOS JORNALISTAS<br />

[Bahia, l o semestre de 1885].<br />

Como representante da Gazeta da Tarde, da Bahia,<br />

congratulo-me com o Clube dos Jornalistas, aplaudindo,<br />

no maior grau das minhas convicções sociais, essa<br />

brilhante idéia regeneradora. Assim como a biblioteca é<br />

o restaurante do espírito, a imprensa é o grande sol da<br />

consciência coletiva. Abraço por isso o jornalismo<br />

fluminense, que deve ser a consubstanciação da<br />

democracia moderna.<br />

Cruz e Sousa<br />

2. À SOCIEDADE CARNAVALESCA DIABO A<br />

QUATRO<br />

Desterro, 31 de maio de 1887.<br />

Ilmos. Srs.<br />

Cumpre-me responder ao ofício de Vv. Ss. que me<br />

foi dirigido em data de 20 deste mês. Agradecendo,<br />

sumamente penhorado, as amabilidades cavalheirosas<br />

e distinções que no aludido ofício me fazem, cabe-me a<br />

ocasião de cumprimentar, de saudar altamente, com<br />

um largo sopro de retumbante clarim de aplauso, a digna<br />

e prestimosíssima Sociedade Carnavalesca Diabo a<br />

Quatro, à qual Vv. Ss. estão agremiados, pela idéia<br />

grandiosa e simpática de promover a libertação dos<br />

cativos desta capital. A Sociedade Diabo a Quatro, que<br />

ri, que solta a gargalhada do bom humor que abre nos<br />

corações de todos, ao sol da idéia, a luminosa e<br />

resplandecente febre da alegria, nos curtos dias do seu<br />

curto mas pitoresco reina do de galhofa e de crítica – os<br />

dias de carnaval – definiu e ampliou ainda mais a alma


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 635<br />

franca e forte que costuma ter nas festas de Momo, dando<br />

a essa alma toda a amplidão serena da liberdade.<br />

Eu faço significar, com toda a lealdade, o meu<br />

aplauso a essa estimável corporação, e ponho ao dispor<br />

da bela causa dos tristes, não só a minha insignificante<br />

e deslustrada pena, não só o meu pequenino préstimo<br />

intelectivo, mas todo o meu coração de patrício, que é,<br />

para estes casos, o fator absoluto, aberto como um<br />

estandarte de paz e democracia. A Sociedade Diabo a<br />

Quatro que tenha sempre como divisa de luta este<br />

princípio filosófico e político de um economista inglês:<br />

“Destruir para organizar”. Deus guarde a Vv. Ss.<br />

Cruz e Sousa<br />

3. A GAVITA<br />

Rio, 31 de março de 1892.<br />

Minha adorada Gavita<br />

Estou cheio de saudades por ti. Não podes<br />

imaginar, filhinha do meu coração, como acho grandes<br />

as horas, os dias, a semana toda. O sábado, esse sábado<br />

que eu tanto amo, como custa tanto a vir. Ah! como se<br />

demora o sábado. E tu, minha boa flor da minh’alma,<br />

que és o meu cuidado, a minha felicidade, o meu orgulho,<br />

a minha vida, não sabes como eu penso em ti, como eu<br />

te quero bem e te desejo feliz. Tu, Gavita, não me<br />

conheces ainda bem, não sabes que amor eterno eu<br />

tenho no coração por ti, como eu adoro os teus olhos que<br />

me dão alegria, as tuas graças de mulher nova, de moça<br />

carinhosa e amiga de sua boa mãe.<br />

Quanto mais te vejo mais te desejo ver, olhar<br />

muito, reparar bem no teu rosto, nos teus modos, nos<br />

teus movimentos, nas tuas palavras, nos teus olhos e<br />

na tua voz, para sentir bem se tu és firme, fiel, se me


636 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

tens verdadeira estima, verdadeira amizade bem do fundo<br />

do teu coração virgem, bem do fundo do teu sangue.<br />

Por minha parte sempre te quererei muito bem e<br />

nada haverá no mundo que me separe de ti, minha<br />

filhinha adorada.<br />

Se o juramento que me fizeste dentro da igreja é<br />

sagrado e se pensas nele com amor, eu creio em ti para<br />

sempre, em ti que és hoje a maior alegria da minha<br />

vida, a única felicidade que me consola e que me abre<br />

os braços com carinho.<br />

Estar junto de ti, eu, que nunca dei o meu coração<br />

assim a ninguém, tão apaixonadamente, como te dei a<br />

ti, é para mim ser muito feliz. Quando estou a teu lado,<br />

Gavita, esqueço-me de tudo, das ingratidões, das<br />

maldades e só sinto que os teus olhos me fazem morrer<br />

de prazer. Adeus! Aceita um beijo muito grande na boca<br />

e vem que eu espero por ti no sábado, como um louco.<br />

Teu<br />

Cruz<br />

4. A GAVITA<br />

Noite de terça-feira, 20 de setembro, às 7 horas.<br />

Minha adorada Noiva<br />

Saudades, saudades, muitas saudades é o que<br />

eu sinto por ti.<br />

Escrevo-te triste por não te ver e tenho, na hora<br />

em que te escrevo, o teu querido retrato diante de mim,<br />

entre os meus livros, companheiros dos meus<br />

sofrimentos.<br />

Minha Vivi estremecida, nunca me esquecerei do<br />

dia 18 de setembro, aniversário do dia em que tive o<br />

prazer de ver-te pela primeira vez, de admirar os teus<br />

lindos olhos, a graça de todo o teu corpo, toda a tua<br />

pessoa amável que me prendeu para sempre com os laços


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 637<br />

do mais profundo e sincero amor. Acredita, minha filha<br />

adorada do coração, que eu te tenho como o consolo<br />

maior da minha vida, a luz do meu coração, a esperança<br />

feliz da minha alma. Por minha honra te juro que, sempre<br />

serei teu, que podes viver descansada, sem desconfiança,<br />

porque o teu Cruz nunca será de outra e só à Vivi fará<br />

carinhos, dedicará extremos, amizade eterna.<br />

Pela minha honra e pelo dia em que nos vimos<br />

pela primeira vez, juro-te que só quero a tua felicidade,<br />

só desejo dar-te prazer e tratar-te com os mimos e<br />

delicadezas, de que tenho dado provas, bastante.<br />

A todas as horas o meu pensamento voa para onde<br />

tu estás, vejo-te sempre, sempre e nunca me esqueço<br />

de ti em toda a parte onde estou. És a minha preocupação<br />

constante, o meu desejo mais forte, a minha alegria<br />

mais do coração. Amo-te, amo-te muito, com todo o meu<br />

sangue e com todo o meu orgulho e o meu desejo poderoso<br />

é unir-me a ti, viver nos teus braços, protegido pela tua<br />

bondade pura, pelas tuas graças que eu adoro, pelos<br />

teus olhos que eu beijo. No momento em que te escrevo<br />

sinto uma grande falta de ti. Só, no meu quarto, eu só<br />

possuo, para consolar-me o teu retrato. Mas é muito<br />

pouco. Eu te queria a ti, em pessoa, para te apertar de<br />

abraços, pedindo a Deus para abençoar o nosso amor.<br />

Esta carta é como mais um juramento feito a ti pelo dia<br />

18 de setembro, em que te vi pela primeira vez apanhando<br />

flores, tu, que és a flor dos meus sonhos.<br />

Espero-te sábado, com aquele penteado de<br />

domingo, que te fazia muito bonita. Adeus! Beijo-te muito<br />

os olhos, a boca e as mãos e dou-te abraços muito<br />

apertados, bem junto ao meu coração, que palpita de<br />

saudades por ti.<br />

Teu<br />

Cruz e Sousa


638 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

5. A GAVITA<br />

Quinta-feira, 17 de novembro, à 1 hora da tarde.<br />

Minha doce e muito estremecida Vivi<br />

Sinto as maiores saudades de ti, que és a alegria<br />

do meu coração, o consolo da minha vida.<br />

Desde a última noite que te deixei tenho me<br />

lembrado sempre de ti e o teu nome adorável não me<br />

sai da boca a toda a hora: Estimo de toda a minh’alma<br />

que estejas passando bem de saúde. Eu vou bem, apenas<br />

com a tristeza de não estar sempre a teu lado, junto de<br />

ti, que és hoje para mim no mundo o maior prazer, a<br />

maior satisfação.<br />

Sou teu como tu és minha, sem me importar com<br />

ninguém. Só me lembro que tu vives e que eu te quero<br />

extremosamente, com toda a delicadeza e carinhos do<br />

meu amor. Tu é que me fazes feliz, orgulhoso, rei do<br />

mundo, porque de tuas qualidades, a tua bondade, o teu<br />

sorriso, os teus olhos me fazem o homem mais contente,<br />

mais alegre do mundo, minha pomba querida, luz da<br />

minha vida inteira, Noiva adorada e santa.<br />

Como sempre, estou ansioso que chegue sábado,<br />

morrendo de saudades por ti, flor da minh’alma, que<br />

tanta coragem me dás para a vida e tanta esperança. O<br />

teu bom coração pode descansar em mim, porque eu<br />

sou teu como se já fosse casado, vivendo na mesma casa<br />

contigo, gozando, os teus carinhos. Ah! Gavita, o céu te<br />

abençoe, Deus te proteja e te acompanhe sempre para<br />

que tu saibas ver o amor eterno que eu te tenho e que<br />

está firme no meu coração.<br />

Adeus! Recebe o meu sangue, as minhas lágrimas,<br />

os meus beijos, os meus abraços.<br />

Teu<br />

Cruz e Sousa


6. A GAVITA<br />

<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 639<br />

Rio de Janeiro, quarta-feira, 14 de dezembro de 1892,<br />

7 horas da noite.<br />

Minha estremecida Vivi<br />

A hora em que te escrevo tenho diante de mim o<br />

teu retrato, que trago sempre comigo, que é o meu<br />

melhor companheiro e amigo.<br />

Adorada do meu coração, não calculas a saudade<br />

que sinto de ti, como eu desejava agora estar ao pé de<br />

ti, na alegria e na felicidade da tua presença querida,<br />

flor da minha vida, consolo do meu coração.<br />

Desejo que tenhas passado bem esses dias e que<br />

só tenhas como sofrimento, como pesar o não nos vermos,<br />

o estares longe de mim, porque isso é o que mais me faz<br />

infeliz e triste.<br />

Sabes quanto eu te amo, quanto eu te quero do<br />

fundo do meu sangue sobre todas as mulheres do mundo.<br />

Fico sempre alegre, contente, cheio de orgulho, quando<br />

te posso dizer que sou e serei sempre teu, que hei de<br />

amar-te até a morte, enchendo-te dos carinhos, das<br />

amabilidades, dos extremos, das distinções que só a ti<br />

eu quero dar, idolatrada Gavita, adorável criatura dos<br />

meus sonhos, dos meus cuidados e, pensamentos.<br />

Só tu, és a Rainha do meu amor, só tu mereces<br />

os meus beijos e os meus abraços, a honra do meu nome,<br />

a distinção da minha Inteligência, os segredos da<br />

minh’alma.<br />

Só tu és merecedora de que eu te ame muito,<br />

como te amo, muito, muito, muito, e cada vez mais, com<br />

mais firmeza, sempre fiel, sempre teu escravo bom e<br />

agradecido, fazendo de ti, minha estrela, a esposa santa,<br />

a adorada companheira dos meus dias. Vê lá que orgulho<br />

tu não deves ter! Adeus! Adeus! Estou morto para que<br />

chegue sábado e ter o prazer, maior de todos os prazeres,<br />

de estar contigo.<br />

Aceita beijos e abraços do teu<br />

Cruz e Sousa


640 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

7. A GERMANO WENDHAUSEN<br />

Desterro, 2 de abril de 1888.<br />

Caríssimo e nobre amigo<br />

Germano Wendhausen<br />

Venho, mais uma vez, valer-me da sua proteção,<br />

da generosidade dos seus sentimentos, pedindo-lhe que<br />

me faça a gentileza de me ouvir. Ilustre amigo, não sei<br />

se sabe ou não a situação difícil da minha vida nem o<br />

estado de fatalidade em que me acho; no entretanto,<br />

acreditando-me um individuo sério e leal, dará a atenção<br />

devida às minhas palavras.<br />

Acontece que, por largo espaço de tempo, me tenho<br />

visto embaraçado, muito afogado de lutas, achando<br />

sempre contrariedades em tudo que proponho fazer para<br />

melhorar de estado, para trabalhar, ter um futuro mais<br />

garantido e seguro, não encontrando nunca o auxílio de<br />

ninguém. Como deve saber, na Tribuna Popular, onde<br />

escrevo, nada me dão, nem eu o exijo porque não o podem<br />

fazer, e eu estou ali, apenas, para ajudar o Lopes, porque<br />

o faço generosamente, de coração aberto, com dedicação<br />

e simpatia, e mesmo, pela grande causa abolicionista<br />

que nós todos defendemos com desinteresse e honra.<br />

Já vê o meu nobre amigo que, nas dificuldades em que<br />

estou, tenho absoluta necessidade de procurar destino.<br />

Assim, tendo já deliberado a minha viagem para a Corte,<br />

venho valer-me do seu prestígio e da sua generosidade<br />

jamais desmentidos pedindo-lhe encarecidamente para<br />

influir com o seu amigo e correligionário Virgílio Villela<br />

sobre uma passagem, ou, no caso de ser isso<br />

absolutamente impossível, embora o meu excelente<br />

amigo envide os seus esforços, fazer-me o supremo<br />

obséquio de me emprestar 50$000 réis para eu poder<br />

transportar-me, pois, fica na honestidade do meu caráter


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 641<br />

e do meu brio satisfazer-lhe essa importância desde que<br />

o trabalho me garanta mais poderes para isso.<br />

Bem sei que já o ocupei e que me serviu tão<br />

bondosamente, com tanta consideração e apreço, mas,<br />

no estado em que vivo não vejo a quem recorrer senão à<br />

sua prestimosa individualidade.<br />

Sabe Deus quanto me custa e quanto a minha<br />

dignidade se vê abatida por me ver obrigado a fazer-lhe<br />

tal pedido! Mas, acredite o sr. Germano Wendbausen<br />

que em mim terá sempre um rapaz sincero, franco e<br />

leal, daqueles que não abusam e que sabem ser gratos.<br />

Só a sua pessoa me pode valer, e eu a ela me dirijo com<br />

confiança, em nome de sua veneranda mãe.<br />

Disponha sempre de um amigo firme, que fará<br />

mais e mais por se tornar digno da sua estima e<br />

consideração que tanto distinguem as pessoas que têm<br />

a felicidade de as possuir.<br />

Cruz e Sousa<br />

8. A GERMANO WENDHAUSEN<br />

Corte, junho de 1888.<br />

Caro amigo Germano Wendhausen<br />

Cá estou nesta grande capital que cada vez mais<br />

se distingue pelo movimento e atividade mercantil de<br />

que dispõe em alto grau. Isto importa dizer que continuo<br />

a ser amigo e apreciador sincero e firme das pessoas<br />

que, como o meu belo e generoso amigo, tanto me<br />

desvaneceram e honraram com a sua consideração e<br />

simpatia. Um dever de cavalheirismo, pois reconheço a<br />

franqueza, modéstia e o desprendimento do meu<br />

excelente e digno patrício, me faz deixar de falar nas<br />

gentilezas incomparáveis que me fez, que eu não<br />

esquecerei nunca e que em tempo saberei retribuir como<br />

precisa ser.


642 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

O senador Taunay recebeu a minha carta, isto é<br />

– a carta que os adoráveis e distintos amigos aí me deram<br />

para ele; porém nem ao menos me mandou entrar,<br />

procedimento esse que me autorizou a não voltar mais à<br />

casa de tal senhor. Embora eu precise fazer carreira,<br />

não necessito, porém, ser maltratado; e, desde que o<br />

sou, pratico conforme a norma do meu caráter. –<br />

Deixemos o sr. Taunay que não passa de um parlapatão<br />

em tudo por tudo.<br />

Aqui, em alguns arrabaldes, também continuam,<br />

com bastante brilho, diferentes festejos em homenagem<br />

à libertação do país. Até 15 ainda assisti algumas<br />

manifestações de regozijo ao triunfante e heróico<br />

acontecimento que ainda me faz pulsar de alegria o<br />

coração e o cérebro.<br />

A imprensa tem me recebido bem, tenho sido<br />

apresentado a todos os escritores da corte, alguns dos<br />

quais conhecem-me. – Queira dar-me a honra de<br />

escrever e recomendar-me à Exma. família, a Manuel<br />

Bithen court, Margarida, Schmidt, dr. Paiva, Manuel João<br />

e a toda a leal e gloriosa falange do Diabo a Quatro. –<br />

Sou, com consideração e sinceridade, amigo e criado<br />

agradecido.<br />

Cruz e Sousa<br />

9. A VIRGILIO VÁRZEA<br />

Corte, 8 de janeiro de 1889.<br />

Adorado Virgílio<br />

Estou em maré de enjôo físico e mentalmente<br />

fatigado. Fatigado de tudo: de ver e ouvir tanto burro, de<br />

escutar tanta sandice e bestialidade e de esperar sem<br />

fim por acessos na vida, que nunca chegam. Estou<br />

fatalmente condenado à vida de miséria e sordidez,<br />

passando-a numa indolência persa, bastante prejudicial


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 643<br />

à atividade do meu espírito e ao próprio organismo que<br />

fica depois amarrado para o trabalho.<br />

Não sei onde vai parar esta coisa. Estou<br />

profundamente mal, e só tenho a minha família, só te<br />

tenho a ti, a tua belíssima família, o Horácio e todos os<br />

outros nobres e bons amigos, que poucos são. Só dessa<br />

linda falange de afeições me aflige estar longe e morro,<br />

sim de saudades. Não imaginas o que se tem passado<br />

por meu ser, vendo a dificuldade tremendíssima,<br />

formidável em que está a vida no Rio de Janeiro. Perdese<br />

em vão tempo e nada se consegue. Tudo está furado,<br />

de um furo monstro. Não há por onde seguir. Todas as<br />

portas e atalhos fechados ao caminho da vida, e, para<br />

mim, pobre artista ariano, ariano sim porque adquiri,<br />

por adoção sistemática, as qualidades altas dessa grande<br />

raça, para mim que sonho com a torre de luar da graça<br />

e da ilusão, tudo vi escarnecedoramente, diabolicamente,<br />

num tom grotesco de ópera bufa.<br />

Quem me mandou vir cá abaixo à terra arrastar a<br />

calceta da vida! Procurar ser elemento entre o espírito<br />

humano?! Para quê? Um triste negro, odiado pelas castas<br />

cultas, batido das sociedades, mas sempre batido,<br />

escorraçado de todo o leito, cuspido de todo o lar como<br />

um leproso sinistro! Pois como! Ser artista com esta cor!<br />

Vir pela hierarquia de Eça, ou de Zola, generalizar<br />

Spencer ou Gama Rosa, ter estesia artística e verve,<br />

com esta cor? Horrível!<br />

És um coração partido, acabo de saber pela tua<br />

chorosa carta.<br />

Broken heart! Broken heart!<br />

A tua Lilly emigrou, doce pássaro d’amor, para<br />

esta tumultuosa cidade.<br />

Hoje vou vê-la e à mãe e as flores que elas<br />

espalharam pela tua lembrança e pelo teu coração, eu<br />

farei com que cheguem ainda vivas e cheirosas junto de<br />

ti. Quero ver como essa avezinha escocesa trina de amor<br />

e saudade...


644 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Adeus! Saudades infinitas à tua encantadora<br />

família, e que eu lhe desejo bons anos de ouro e de<br />

festas alegríssimas no meio da mais soberana das<br />

satisfações.<br />

Abraços no celestial Horácio, no Araújo, no Jansen<br />

e no digno Lopes da nossa Tribuna e no excelente e<br />

adorabilíssimo Bithencourt.<br />

Veste o croisé e vai, por minha parte, apresentar<br />

pêsames sinceros e honestos às tuas Exmas. primas,<br />

pela morte do cavalheiro, do limpo homem de distinção<br />

José Feliciano Alves de Brito. Não te esqueças. Honrame<br />

por esse modo delicado e gentil. Abraça-te<br />

terrivelmente saudoso.<br />

Cruz e Sousa<br />

10. A ARAÚJO FIGUEIREDO<br />

Ondina, abril, de tarde, 2, de 90.<br />

Meu querido poeta<br />

Não! Nem canalha, nem mulato, nem ingrato! Não<br />

julgues, meu madrigalesco sonhador, que eu sou o vidro<br />

de cheiro, na frase do Várzea, do Rodolfinho Oliveira;<br />

ele, sim, palito humano, como é, é quem deve ter raivas<br />

fáceis e banais ao não receber cartas tuas. E até tu<br />

dando-me zangas e canseiras caixeirais pelas demoras<br />

de notícias tuas em cartas tuas, igualas-me, comparasme,<br />

muito naturalmente e muito logicamente como o<br />

vidrinho de cheiro. Mas, vade retro, Araújo! como o outro<br />

que dizia – Vade retro, Fradique. Jamais me parecerei<br />

com o Rodolfinho: nem nas unhas.<br />

Eu, claramente sei o que são atropelos de chegada<br />

e depois gozos e gostos de provinciano largamente<br />

impulsionados e vibrados numa grande capital como esta<br />

em que agora vives lordificado e regalado... Assim,<br />

claramente sei também, e vivamente sinto também, que


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 645<br />

em tais cidades, o rumor, sol alto dos assuntos mais<br />

inauditos, inflamam, queimam, incendeiam qualquer<br />

provinciano, tanto mais quando o provinciano, como tu,<br />

tem qualidades e sentimentos de arte.<br />

Portanto, sabendo tudo meu espírito, da visão que<br />

tenho das coisas, fútil, grandemente fútil foi começares<br />

os teus linguaços de correspondência, em data de 15 do<br />

que acabou, com aquela suposição de lamuriosas queixas.<br />

No mais, não: a tua carta vem arejada, com ar de<br />

outros ares, como se o teu viver fosse de dentro de uma<br />

toca transportado a um alto castelo situado no mar...<br />

Sim senhor! Adoro-lhe as atitudes, a maneira livre,<br />

a nota que tem tomado no Rio. – Belo Rio esse, que tão<br />

cristalinas águas saudáveis possui para duchar os poetas!<br />

Quanto ao perguntar se podes mandar<br />

correspondência para a Tribuna achas outra pergunta<br />

de muletas. Para que interrogações? Corrija-se disso.<br />

Manda, manda tudo! Manda a cabeça do Castro<br />

Lopes com arroz; do Melo Moraes, com batatas; do Gastão<br />

Bousquet, com abóboras; do Soares de Sousa Júnior,<br />

com quiabos; do Gregório de Almeida, com lingüiça; do<br />

Barão de Paranapiacaba, com pepinos; do Taunay, com<br />

cenouras; do Rangel Sampaío, com feijões; manda,<br />

manda todos esses caracteres verdes, manda tudo, que<br />

quero empanturrar, fazer rebentar de comedorias a<br />

terra.<br />

Isto, em blague; agora sem blague:<br />

Saberás ou já sabes? que por Maio sigo para aí e<br />

conto morar contigo. Nada digas ainda sobre essa<br />

resolução ao Oscar. Depois ele o saberá. Convém-me<br />

mais morar contigo enquanto não tiver ocupação segura.<br />

Por isso apronta-te para receber-me que no<br />

princípio d’aquele mês, ou por meados dele, lá estarei,<br />

num impulso de verve, a chicotear esses literatos de<br />

sapatos, que aí também os há, e a abraçar-te fortemente,<br />

amorosamente, num longo abraço espiritual, a ti e ao<br />

Oscar.


646 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Adeus! Florzinha! Só me punge agora a dor de<br />

não ter uns beijuzitos da titia para mandar-te como<br />

recuerdo...<br />

Manda a correspondência, mas coisa com jeito, e<br />

escreve-me, como na cantiga, ao menos uma vez na vida.<br />

Até a volta.<br />

Teu<br />

Cruz e Sousa<br />

11. A LUIZ DELFINO<br />

Capital Federal, 19 de novembro de 1893.<br />

Ilustre Poeta Amigo<br />

Com os cumprimentos de estima e consideração<br />

que lhe apresento, tomo novamente a liberdade de<br />

importuná-lo com relação ao pedido que tive necessidade<br />

de fazer-lhe por carta.<br />

Uma vez que se não dignou responder-me, peçolhe<br />

ainda, apelando para os seus generosos sentimentos<br />

de homem, que me sirva, já não direi com a quantia de<br />

300$000 réis, como lhe pedi, mas ao menos com a metade<br />

ou mesmo com 100$000 réis, pois é bem dolorosa a minha<br />

situação neste momento.<br />

Peço-lhe, que mesmo em sentido negativo, resolva<br />

com urgência este bastante difícil pedido.<br />

Seu admirador e am°<br />

Cruz e Sousa.<br />

12. A GONZAGA DUQUE<br />

Rio, 11 de abril de 1894.<br />

Na impossibilidade de falar-te calmamente,<br />

escrevo-te uma ligeira exposição sobre a Revista dos<br />

Novos.<br />

Penso que o grupo que deve naturalmente<br />

constituir os combatentes da Revista dos Novos tem de


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 647<br />

ser composto da tua individualidade, Emiliano Perneta,<br />

Oscar Rosas, Arthur de Miranda, Nestor Victor, B. Lopes,<br />

Emilio de Menezes, Lima Campos, Araújo Figueiredo,<br />

Virgílio Várzea, Santa Rita, Maurício Jubim, Cruz e<br />

Sousa e Gustavo Lacerda, simplesmente sendo que este<br />

último deverá dar escritos sintéticos, muito<br />

generalizados, sem personalismo, sobre política<br />

socialista. Penso assim por que esses foram sempre,<br />

mais ou menos de vários modos intelectuais, e em tese,<br />

os nossos companheiros, tendo cada um deles, na<br />

proporção de sua aptidão, na esfera de sua<br />

perfectibilidade, um sentimento homogêneo do<br />

sentimento comum na Arte do Pensamento escrito. Penso<br />

também que o único homem fora da nossa linha artística<br />

de seleção relativa possível, que deve ser simpaticamente<br />

admitido, para críticas científicas para artigos de caráter<br />

positivo moderno, é o dr. Gama Rosa, que podemos<br />

considerar, à parte toda a nossa independência e rebelião<br />

como um austero e curioso Patriarca do Pensamento<br />

novo.<br />

Os mais, seja quem for, que venham de fora, isto<br />

é, que se apresentem com trabalhos estéticos e de tal<br />

natureza alevantados e sérios que possam ser admitidos<br />

nas colunas nobres da grande “Revista”, para o que basta<br />

apenas uma análise severa, rigorosa, desses trabalhos.<br />

Enfim, apenas esse deve de ser o grupo fundador<br />

por excelência, deve constituir o corpo uno das Idéias<br />

da Revista nos seus elevados fundamentos gerais, à parte<br />

dos detalhes da compreensão de cada um em particular.<br />

Entre esses fundamentos gerais acho que deve ser um<br />

dos principais, o maior e mais firme radicalismo sobre<br />

teatro, não permitir seções, notícias, folhetins ou coisa<br />

que diga respeito a teatro que, por princípio e integração<br />

de Idéias, não deve existir para a nossa orientação d’Arte<br />

na Revista dos Novos.<br />

Teu<br />

Cruz e Sousa


648 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

13. A NESTOR VITOR<br />

Rio, 16, dezembro de 1894.<br />

Meu caro Nestor<br />

Sobre a minha pretensão tenho a dizer-te que um<br />

dos lugares que me serve é o de amanuense, que tem<br />

um vencimento maior do que o lugar que exerço<br />

atualmente.<br />

O dr. Piragiba que aluda a isso ao marechal Jardim,<br />

pois o meu amigo Ricardo de Albuquerque também se<br />

interessa com grande e decidido esforço. Também não<br />

deixo de aceitar o teu empenho, conforme falaste para o<br />

d. Antonio Olyntho a quem sou bastante simpático,<br />

segundo estou informado.<br />

O momento é de decisão e eficácia. Já longo e<br />

doloroso tempo tenho aguardado uma melhora na vida.<br />

Teu<br />

Cruz e Sousa<br />

14. A NESTOR VÍTOR<br />

Rio, 18 de março de 1896.<br />

Meu Grande Amigo<br />

Peço-te que venhas com a máxima urgência a<br />

minha casa, pois minha mulher está acometida de uma<br />

exaltação nervosa, devido ao seu cérebro fraco que,<br />

apesar das minhas palavras enérgicas em sentido<br />

contrário e da minha atitude de franqueza em tais casos,<br />

acredita em malefícios e perseguições de toda a espécie.<br />

Cá te direi tudo. A tua presença me aclarará o alvitre<br />

que devo tomar.<br />

Escrevo-te dolorosamente aflito.<br />

Teu<br />

Cruz e Sousa


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 649<br />

15. A ALBERTO COSTA<br />

Rio, 8 de maio de 1896.<br />

Meu caro Amigo<br />

Abraço-o com afeto e recomendo-me a Exma.<br />

família.<br />

Ouso insistir no pedido que lhe fiz por carta, pois<br />

acho-me na maior angústia e não tenho outro recurso<br />

senão importuná-lo ainda uma vez. Peço-lhe<br />

encarecidamente que me sirva, se não em toda ao menos<br />

na metade da importância que eu lhe solicitei. As minhas<br />

contrariedades e aflições avolumam-se cada vez mais.<br />

O amigo não pode calcular certamente nem a<br />

metade da situação por que estou passando.<br />

Pode confiar na pessoa que lhe entregar esta carta.<br />

Sempre ao seu dispor, com simpatia e<br />

reconhecimento.<br />

Am o Obmo<br />

Cruz e Sousa<br />

16. A NESTOR VITOR<br />

Rio, 2, junho, 96.<br />

Nestor<br />

Desejo muito que me faças um sacrifício de amigo,<br />

ao menos com a quantia de vinte mil réis.<br />

Tenho tido grandes saudades da nossa convivência,<br />

tão consoladora e tão nobre.<br />

Aparece que tenho uns trabalhos para mostrarte.<br />

Teu profundo amigo.<br />

Cruz e Sousa


650 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

17. A ARAÚJO FIGUEIREDO<br />

Rio, 8 de janeiro de 1897.<br />

Caríssimo Araújo<br />

Saudades e abraços. – Esta carta tem por fim<br />

somente convidar-te para uma Revista de Arte que o<br />

Nestor Vítor, eu e outros vamos fundar. Será uma<br />

publicação vigorosa e alta nos seus fundamentos,<br />

trazendo o cunho superior de uma força espontânea e<br />

nobre. Deves mandar teus originais o mais breve possível,<br />

com a contribuição de 5$000 réis, que é quanto nós<br />

arbitramos a cada membro da Revista, mensalmente e<br />

durante um ano. Depois disso os membros ficarão<br />

considerados remidos. Espero que recebas este convite<br />

com vivo entusiasmo, mandando já a tua correspondência<br />

e a contribuição mensal para a Rua do Ouvidor n° 74,<br />

Papelaria Leandro.<br />

Teu<br />

Cruz e Sousa<br />

18. A NESTOR VÍTOR<br />

Rio, 27 de dezembro de 1897.<br />

Meu Nestor<br />

Não sei se estará chegando realmente o meu fim;<br />

– mas hoje pela manhã tive uma síncope tão longa que<br />

supus ser a morte. No entanto, ainda não perdi nem<br />

perco de todo a coragem. Há 15 dias tenho tido uma<br />

febre doida, devido, certamente, ao desarranjo intestinal<br />

em que ando.<br />

Mas o pior, meu velho, é que estou numa<br />

indigência horrível, sem vintém para remédios, para leite,<br />

para nada, para nada! Um horror!


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 651<br />

Minha mulher diz que eu sou um fantasma, que<br />

anda pela casa!<br />

Se pudesses vir hoje até cá, não só para me<br />

confortares com a tua presença, mas também para me<br />

orientares n’algum ponto desta terrível moléstia, será<br />

uma alegria para o meu espírito e uma paz para o meu<br />

coração.<br />

Teu<br />

Cruz e Sousa<br />

19. A NESTOR VÍTOR<br />

Rio, 7 de janeiro de 1898.<br />

Nestor<br />

Peço-te para ires ao Escritório da Linha, em S.<br />

Diogo, entregar o meu requerimento pedindo licença,<br />

por que os dias estão passando e eles já reclamaram<br />

esse papel. Qualquer demora me pode prejudicar muito.<br />

Se já entregaste noutro lugar que não no Escritório de<br />

S. Diogo então está tudo atrapalhado e o requerimento<br />

perdido.<br />

É necessário entregar em mãos do Chefe do<br />

Escritório Jacutinga.<br />

Peço-te para liquidar isso, pois vivo muito<br />

aborrecido porque quase todo o dia vem aqui em casa<br />

um empregado do Escritório dizer-me que ainda não<br />

receberam o requerimento e que essa demora me pode<br />

ser prejudicial.<br />

Teu<br />

Cruz e Sousa


652 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

20. A ARAÚJO FIGUEIREDO<br />

Rio, janeiro de 1898.<br />

Meu Araújo<br />

Que os meus braços amigos te apertem bem de<br />

encontro ao meu coração, no momento em que receberes<br />

estas linhas saudosas. Mas escrevo-tas, meu querido<br />

irmão, com a alma dilacerada de angústias, porque me<br />

vejo a morrer aos poucos, e quisera, pelo menos passar<br />

alguns dias contigo, antes que isso sucedesse, pois vejo<br />

em ti um grande e afetuoso amparo aos meus últimos<br />

desejos. Fala com teu amigo José Fernandes Martins, e<br />

arranja com ele uma condução no paquete Industrial,<br />

para mim, para a Gavita e para os meus quatro filhos.<br />

Se escapar da morte que, no entanto, julgo próxima,<br />

ajudar-te-ei no teu colégio, ouviste? Saudades.<br />

O teu pelo coração e pela arte,<br />

Cruz e Sousa<br />

21. A NESTOR VÍTOR<br />

Rio, 18 de janeiro de 1898.<br />

Meu caro Nestor<br />

Cumprimentos a Exma. Senhora e beijos nas<br />

meninas.<br />

Preciso muito que dês um pulo até nossa casa,<br />

porque apareceu uma dificuldade com relação a minha<br />

licença e é necessário desfazer o mais breve possível<br />

essa dificuldade.<br />

Eu logo vi que por força havia de aparecer uma<br />

porcaria destas para incomodar-me. Vem que eu de viva<br />

voz te direi tudo e veremos se amenizamos este inferno<br />

que em tudo me persegue.<br />

Teu profundo amigo<br />

Cruz


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 653<br />

22. A NESTOR VITOR<br />

Rio, 27 de janeiro de 1898.<br />

Meu belo Nestor<br />

A tua carta de 24 foi um clarim de anjo trazendome<br />

belas novas, animação e coragem.<br />

Sim! Nenhuma dúvida deve ter de que eu não<br />

esteja absolutamente resolvido a partir. Mas antes disso<br />

há muitas cousas sérias a tratar: – principalmente uma<br />

procuração ou cousa que o valha para poderes todos os<br />

meses receber os meus pingues ordenados; como<br />

também deixar feito por antecedência o novo<br />

requerimento pedindo prorrogação da minha licença, o<br />

que é inteiramente indispensável. Essas cousas devem<br />

merecer a nossa maior atenção, porque as datas da<br />

licença podem estar extintas e haver demora prejudicial<br />

com a entrega tardia do outro requerimento de<br />

prorrogação.<br />

Enfim penso que tudo se acordará de modo a não<br />

haver atropelo e a não suceder que eu seja forçado a<br />

deixar o lugar.<br />

Teu<br />

Cruz e Sousa<br />

23. A NESTOR VÍTOR<br />

Nestor<br />

A luta das casas continua horrível. Não imaginas<br />

que verdadeiro desespero. Todos querem fiador – e é<br />

para ali, de punhos cerrados, de dentes cerrados. Já<br />

não temos quase recursos nem para os trens nem para<br />

os bondes. Estas cousinhas é que ninguém parece<br />

lembrar-se delas.


654 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

Não sabemos mais do que havemos de lançar mão<br />

para conseguir uma casa ou um cômodo qualquer. Tudo<br />

é um despropósito de dinheiro.<br />

Amanhã, 28, Gavita vai novamente sair à luta das<br />

casas. Não sei se conseguirá a casinha, mas enfim lutará<br />

até a última. O furor maior nisso tudo é o da finança,<br />

que é uma cousa terrível de se conseguir.<br />

Teu<br />

Cruz<br />

24. A ARAÚJO FIGUEIREDO<br />

Meu Araújo.<br />

Esqueci-me de dizer-te, na carta que escrevi há<br />

dias, que moramos à Rua Malvino n° 50, no Encantado.<br />

O teu<br />

Cruz e Sousa<br />

25. A NESTOR VITOR<br />

Rio, 3 de fevereiro de 1898.<br />

Meu caro Nestor<br />

Mudo-me hoje para a rua Malvino Reis — 50.<br />

Vem mais<br />

Teu<br />

Cruz<br />

26. A NESTOR VÍTOR<br />

17 de março de 1898.<br />

Meu caro Nestor<br />

Cheguei sem novidade a 16 deste por 7 horas e<br />

meia da manhã desse dia. Fiquei cansadíssimo da


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 655<br />

viagem. Nada tenho de importante mais a dizer- te. Os<br />

remédios tomo-os regularmente. Preciso com muita<br />

urgência de dinheiro. Isto aqui é muito agradável. Depois<br />

mandarei dizer tudo. Não te esqueças do dinheiro.<br />

Lembranças de Gavita.<br />

Teu<br />

Cruz e Sousa<br />

Como vão os meus filhos que aí ficaram? Fico no<br />

hotel Amadeu. Sobrado. Diária 6$000. No correr da<br />

Estação.<br />

Abraço todos os amigos<br />

Cruz<br />

DEDICATÓRIAS EM MISSAL:<br />

A ARAÚJO FIGUEIREDO:<br />

Araújo Figueiredo<br />

Na serenidade desta página clara, quero<br />

perpetuar, como na corrente do Tempo, a Amizade, o<br />

Culto Intelectual, o alto Amor estético que te consagro/<br />

ouros, mirras e incensos do meu ser devotado. A ti,<br />

Coração nobre; a ti, luminosa Cabeça; a ti, delicioso poeta<br />

dos Campos, dos Mares, das Rosas, dos Astros; a ti,<br />

amigo-irmão, casta e branca natureza de Sonhador<br />

olímpico, Israelita da Arte, que tens a virgindade emotiva<br />

das Forças novas, originais/este Missal de Abstração,<br />

de Espiritualidade, de Forma.<br />

Cruz e Sousa.<br />

Rio de Janeiro, 13 de março de 1893.


656 * <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2<br />

A TIBÚRCIO DE FREITAS:<br />

Meu adorável Tibúrcio<br />

À tua penetrante compreensão de Arte, à tua<br />

delicadeza de sentir/flores raras e luminosas deste<br />

meio/ofereço este exemplar do Missal, para que, lendoo<br />

muitas vezes, em repouso, possas avaliar da<br />

espontânea, viva e comovida simpatia intelectual que<br />

me ligou a ti serenamente, num movimento estranho,<br />

misterioso e íntimo de almas que se amam e percebem.<br />

Assim, belo Tibúrcio, aqui me tens encerrado em<br />

essência abstrata de Pensamento/palpitando junto ao<br />

teu coração bom e franco, nobre e valoroso, que tão<br />

afetivamente me acolhe.<br />

Cruz e Sousa<br />

Rio, 5, abril de 1893.<br />

DEDICATÓRIAS EM RETRATOS:<br />

A GONZAGA DUQUE:<br />

Meu ilustre e querido Duque Estrada.<br />

No fundo desta fotografia eu quisera trazer-te um<br />

página de prosa, colorida, sonora, e esmaltada de estilo,<br />

mas despretenciosa, mas simples, mas meiga, que me<br />

corresse livre, neste cartão, como a expressão franca,<br />

profunda e original da minh’alma quando me encontro<br />

contigo e te falo de Arte.<br />

Porém, não me restando campo, aqui, para eu<br />

lavorar, com os instrumentos da forma, uma página<br />

d’idéias, que palpitasse e fulgisse junto ao teu belo ser,<br />

como um pássaro ao sol, para aí fica, muda,<br />

significativamente muda, a minha fisionomia que, para


<strong>OBRA</strong> <strong>COMPLETA</strong> <strong>VOL</strong>UME 2 <strong>CRUZ</strong> E <strong>SOUSA</strong> * 657<br />

o teu fino sentimento artístico, que eu tanto sei querer<br />

e considerar; para o teu delicado espírito, que eu<br />

vivamente acaricio entre as raras flores claras da minha<br />

Crítica, para o teu nobilíssimo coração de camarada<br />

firme, leal nas crenças, admirações e afetos, deve<br />

exprimir o mais íntimo e comovido apreço da Inteligência<br />

e da Amizade de<br />

Cruz e Sousa.<br />

Rio de Janeiro, 3, setembro, 1891.<br />

AO PAI:<br />

Ao meu bom e extremoso pai que eu estimo e<br />

considero de todo o meu coração. Ao respeitável homem,<br />

honrado pela velhice, pela bondade e pelo trabalho, que<br />

viu junto a si morrer a minha querida mãe, de quem<br />

nunca mais hei de esquecer enquanto for vivo.<br />

Lembrança de um filho reconhecido.<br />

Cruz e Sousa<br />

Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1891.

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