Ernesto Rosa - Matemática Interativa
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<strong>Ernesto</strong> <strong>Rosa</strong><br />
PAEd
Nesso e Eratóstenes<br />
centauro estava descansando à sombra de uma<br />
oliveira carregada de azeitonas. Era um dia bonito e ensolarado.<br />
Menecmo veio se aproximando devagar, com muito receio...<br />
Encontrar um centauro era coisa rara! Menecmo nunca tinha visto<br />
um deles de perto: homem da cintura para cima e o resto era<br />
cavalo. Foi se aproximando, impressionado com a figura, mas<br />
com muito medo.<br />
De certa distância, Menecmo falou com muita cautela, quase<br />
gaguejando:<br />
− Desculpa perguntar, mas tu és carnívoro ou herbívoro?<br />
− Onívoro, o mesmo que tu.<br />
Um pouco mais aliviado, Menecmo<br />
continuou:<br />
− Caramba, tu tens seis patas!<br />
− Tu deverias ter observado melhor<br />
que tenho quatro patas e dois braços...<br />
Sou mais que tu.<br />
− Qual é o teu nome?<br />
− Sou Nesso.<br />
− E onde tu moras?<br />
A conversa foi logo interrompida por<br />
estrondosos barulhos vindos dos lados da praia. Menecmo e o<br />
centauro aproximaram-se muito receosos. Foram chegando<br />
devagar, escondendo-se no meio do mato, e viram um homem<br />
muito forte destruindo tudo ao seu redor.<br />
− É Hércules, disse o centauro,<br />
e está tomado de fúria.<br />
− Por que será?<br />
− Acho que… não sei. Só sei<br />
que ele não pode me ver.<br />
Mas Hércules viu! E correu em<br />
direção a eles. O centauro deu um<br />
pinote e desapareceu no mato. Hércules<br />
agarrou o rapaz pelo gasnete antes que pudesse<br />
fazer meia volta e o levantou, deixando-o com as pernas<br />
balançando. Menecmo percebeu que estaria morto em instantes.<br />
Nada poderia fazer contra o homem mais forte do mundo.<br />
Hércules foi um famoso herói grego, que realizou doze<br />
trabalhos impossíveis para os homens comuns. Ele era filho de<br />
Zeus − o maior dos deuses − com uma mulher Alcmena. Mas não<br />
era um semideus; era mortal, comum, só que muito forte.<br />
Depois de libertar Teseu dos fundos dos infernos, o herói da<br />
Grécia Antiga ficou ainda mais famoso. Mas, ele não realizou<br />
apenas esses doze trabalhos, fez muito mais. Era mesmo um<br />
1
super herói! No entanto, os livros não relatam a sua grande falha:<br />
o décimo terceiro trabalho.<br />
Ajudai-me deusa Mnemósine a fazer a narração sem deixar<br />
escapar fatos importantes. Peço inspiração à musa Calíope para<br />
tornar a história o mais fluente e agradável possível. Clamo a<br />
Prometeu me iluminar.<br />
Muitas histórias empolgantes da Grécia Antiga sobreviveram<br />
até hoje. Algumas são puras lendas, outras partem de fatos<br />
realmente acontecidos, como essa que vamos narrar com a ajuda<br />
de Mnemósine. Sempre nos emocionamos com a mitologia grega<br />
e seus deuses no Olimpo. O rei dos deuses era Zeus, o deus dos<br />
mares era Posêidon e havia muitos outros deuses.<br />
Também ficamos emocionados com os feitos dos grandes<br />
pensadores gregos como Arquimedes, Euclides e Aristóteles;<br />
artistas e escritores como Fídias e Homero e tantos outros<br />
grandes vultos. Mas, nem só de pessoas importantes é composta<br />
a sociedade. Também existia o povo! E é de um rapaz – Menecmo<br />
− que vamos falar. Esse que estava perigosamente nas mãos de<br />
Hércules...<br />
Menecmo enfrentou muitas adversidades e não era afilhado<br />
de nenhum dos deuses. Muito cedo, perdeu os pais, passando a<br />
perambular, fazendo pequenos trabalhos para sobreviver. Sua<br />
vida era muito difícil.<br />
Desta vez, passava perto da orla do Golfo de Corinto de<br />
onde se avistava o monte Parnaso, e encontrou um centauro sob<br />
uma oliveira. Conversavam quando foram vistos por Hércules<br />
que, furioso, agarrou Menecmo pela garganta erguendo-o. O<br />
centauro conseguira fugir a galope.<br />
Por que Hércules estava tão bravo?<br />
O rei Eristeu ordenou-lhe, como décimo terceiro trabalho,<br />
que medisse o tamanho da Terra. Imediatamente o herói foi<br />
pegar um metro, ou melhor, outra unidade de medida que era<br />
usada na época, e saiu medindo de fora a fora já que Terra era<br />
considerada plana como uma bolacha. Depois, pensou melhor, e<br />
resolveu medir apenas do centro, que era a Grécia, até a borda e<br />
multiplicar por dois. Hércules sabia multiplicar por dois. Assim,<br />
pegou uma vara de um metro, ou melhor, de um cúbito, marcou<br />
um risco no chão, fez a primeira medida, marcou outro risco, fez<br />
a medida seguinte e, assim por diante, saiu pela estrada a fora...<br />
Atravessou rios, subiu e desceu montanhas, passou por povoados<br />
e mais povoados, sempre medindo e fazendo risquinhos até,<br />
depois de muitos dias, chegar à praia.<br />
2
Para poder andar no fundo do mar, amarrou grandes pedras<br />
nos pés e continuou as medidas. Afinal, era filho de Zeus. Quase<br />
morreu afogado! Foi salvo por Posêidon, o deus dos mares. Jogou<br />
muita água fora, mediante massagens de Posêidon, além de<br />
respiração boca a boca. Hércules pediu-lhe ajuda para continuar a<br />
empreitada, mas Posêidon disse-lhe que não podia ajudar porque<br />
estaria contrariando as ordens de Prometeu.<br />
Assim que Posêidon mergulhou para as profundezas do mar,<br />
Hércules passou a um acesso de fúria, destruindo tudo ao seu<br />
redor. Pela primeira vez estava diante de um trabalho que parecia<br />
impossível. Isso, ele não podia admitir!... De repente, viu que<br />
estava sendo observado. Correu em direção a eles e agarrou o<br />
rapaz Menecmo, que tremia como gelatina. O centauro<br />
desaparecera pelo meio do mato. Quando Hércules ia descontar<br />
sua fúria no pobre do Menecmo, viu chegar um homem que<br />
andava pela praia. Imediatamente o reconheceu gritando:<br />
−ERATÓSTENES!<br />
E dirigiu-se a ele, deixando Menecmo desabar ofegante e<br />
trêmulo ao chão.<br />
Eratóstenes era um famoso sábio grego: matemático,<br />
astrônomo, geógrafo e poeta. Uma celebridade, um herói que as<br />
crianças queriam imitar. Cumprimentaram-se alegres, porque há<br />
muito não se viam.<br />
− Que bom te encontrar depois de tanto tempo, Hércules.<br />
Fiquei sabendo das tuas façanhas. Ainda bem que somos<br />
amigos…<br />
− Eu também estou feliz de te ver. Também fiquei sabendo<br />
das tuas invenções. Ouvi falar do teu crivo para obter números<br />
primos. Tu és demais!<br />
− Que nada! Sou um simples mortal.<br />
− Por falar nisso, estou com um problemão, e bota<br />
problemão nisso… é do tamanho da Terra.<br />
−!?<br />
− O meu irmão, rei Eristeu, mandou-me medir o tamanho da<br />
Terra… Parti, medindo do Partenon, em Atenas, e até aqui já<br />
encontrei 193 974 cúbitos. Deu um trabalhão e estou com dor<br />
nas costas de tanto me abaixar. Mas, e agora, no fundo do mar?<br />
Como vou fazer para continuar medindo? Quase morri afogado…<br />
ainda bem que sou bom nadador…<br />
−Ah! Hércules. Assim, tu nunca conseguirás realizar o<br />
trabalho. É preciso usar outro tipo de raciocínio. E tem outra<br />
dificuldade, todo mundo acha que a Terra é plana, mas alguns<br />
pensadores dizem que ela é redonda.<br />
−Pelas barbas de Tanatos! Como vou medir de cabeça para<br />
baixo, dependurado no outro lado da Terra?<br />
−Como te disse, com esse conhecimento<br />
comum, tu não conseguirás.<br />
−Pensei em pedir ajuda a Ícaro,<br />
mas o seu sistema de vôo não deu<br />
certo. Conversei com Atlas. Ele fica sustentando<br />
o mundo sobre os ombros, mas não sabe seu<br />
tamanho. Meu pai sabe, mas não pode dizer.<br />
Será que tu tens como me ajudar?<br />
−Quem é esse rapaz? Disse Eratóstenes<br />
3
tomando consciência da sua presença.<br />
−Não sei… apareceu ali no mato – disse<br />
Hércules − quase o esganei.<br />
−M-meu nome é é Menecmo, só es-estava passando por<br />
aqui. Se for desejo dos senhores, desapareço imediatamente.<br />
Estava encolhido, amedrontado, observando de olhos<br />
arregalados os dois famosos campeões: um, da força; o outro, da<br />
inteligência.<br />
−Amanhã, devo retornar à Alexandria – voltou Eratóstenes<br />
para Hércules, esquecendo Menecmo. Meu amigo Menelau, depois<br />
que venceu a guerra de Tróia, foi para o Egito e está<br />
comercializando água de beber. É um bom negócio vender água<br />
no deserto! Ele me pediu para resolver um problema.<br />
−Que problema?<br />
−Ele acabou de perfurar um poço em Alexandria e outro em<br />
Assuam e quer saber por que a água de Alexandria é mais fresca<br />
que a de Assuam. Enquanto resolvo o caso, vou pensando no seu<br />
problema e assim que tiver algum resultado, venho te encontrar.<br />
− Ótimo! Enquanto isso, vou ficar enrolando, praticando<br />
algum heroísmo e até efetuando umas medidas.<br />
− Diga ao rei que mediu a Terra e que o tamanho é de<br />
13.472 estádios!<br />
− Pô, Eratóstenes, como tu sabes essa medida?<br />
− Eu não sei, mas se o rei duvidar, manda conferir.<br />
− Poxa, amigo, tenho um nome a zelar. Não sei mentir…<br />
− Então vá segurando aí. Assim que eu tiver algum<br />
resultado, mando te dizer.<br />
− Agora, sim! Um abraço.<br />
− Sai pra lá! Abraço de Hércules?…Nem vem, hem…<br />
Alexandria<br />
ratóstenes partiu para<br />
Alexandria, levando Menecmo como<br />
ajudante. Depois de alguns dias<br />
navegando, o barco passou perto de umas<br />
ilhas nas proximidades de Creta de onde<br />
vinha um canto encantador.<br />
− Sereias!<br />
− Tapa teus ouvidos, Menecmo, ou<br />
não resistirás ao canto da sereia.<br />
− Que negócio é este, mestre?<br />
− Sereia! Metade mulher, metade<br />
peixe.Ninguém resiste ao seu canto.<br />
Muitos já pularam ao mar para ir atrás<br />
4
delas e morreram afogados. Ulisses pediu para ser amarrado no<br />
mastro do barco para escutá-las nos rochedos, perto da ilha de<br />
Cápreas, onde moravam. Assim, as sereias não conseguiram<br />
atraí-lo e, desesperados com o fracasso, pularam no mar. Hoje<br />
em dia, podemos encontrá-las em qualquer lugar.<br />
− Também quero experimentar, gritou Menecmo.<br />
Assim foi feito. Menecmo foi amarrado no mastro principal,<br />
sem tamponar os ouvidos. Aos poucos, chegando perto da ilha, o<br />
canto ficou mais forte. Um coro celestial, belo e atraente.<br />
Menecmo ficou maluco. Contorcia-se tentando desesperadamente<br />
escapar para ir encontrar com as sereias. Um marinheiro incauto,<br />
retirou o tampão dos próprios ouvidos e, escutando o chamado,<br />
pulou na água nadando para o lado do som mavioso,<br />
desaparecendo por entre as ondas. Aos poucos o canto foi ficando<br />
para trás com o barco seguindo seu rumo.<br />
A viagem transcorria tranqüila e, mais alguns dias,<br />
aportaram em Cnossos para reabastecimento e seguiram viagem.<br />
Depois de dezessete dias de navegação, apareceu no<br />
horizonte a ponta do farol de Alexandria − uma das sete<br />
maravilhas do mundo antigo. Menecmo ficou impressionado com<br />
o tamanho e imponência do farol cuja luz, à noite, era avistada de<br />
longe, orientando os navegantes. O barco aportou em Alexandria,<br />
a grande cidade fundada por Alexandre Magno, ao lado do delta<br />
do rio Nilo, e que recebeu seu nome.<br />
Eratóstenes e Menecmo desembarcaram e saíram do porto<br />
caminhando por entre um burburinho de milhares de pessoas e<br />
centenas de barracas que vendiam de tudo, em feira permanente.<br />
Menecmo olhava admirado aquele monte de gente<br />
negociando aos gritos<br />
Dirigiram-se ao Museu de Alexandria com sua imensa<br />
biblioteca. O diretor – Euclides – havia preparado uma festa de<br />
5
ecepção ao amigo. Vários pensadores, com seus discípulos das<br />
diversas áreas, foram homenagear Eratóstenes e receber as<br />
novas notícias trazidas da península grega.<br />
Menecmo contou a sua história até o caso do centauro,<br />
Hércules e do encontro com Eratóstenes. De vez em quando,<br />
cortava uma fatia de um gostoso bolo para comer. Numa dessas<br />
vezes, Euclides lhe disse:<br />
− Tu cortas o bolo de modo errado!<br />
E passou a explicar:<br />
− Não deves cortar<br />
torto assim…<br />
… nem assim.<br />
6<br />
Tem que ser reto.<br />
− Acho que entendi − disse Menecmo − O corte deve apontar<br />
para o centro do bolo.<br />
− Isso mesmo! Tu és esperto, mas não me leves muito a<br />
sério. Para cortar bolo não é necessária a Geometria.<br />
− Mas é um conhecimento útil, mestre. Aliás, pensando bem,<br />
eu o conhecia intuitivamente e o usei na hora de espetar<br />
azeitonas. Se a gente tentar espetar sem apontar para o centro, a<br />
azeitona sai escorregando...<br />
− Isso mesmo! Apontando para o centro, não precisas<br />
esperar a azeitona se cansar.<br />
Euclides saiu dando risada e foi contar a conversa aos<br />
amigos. Talvez, daí sairia alguma teoria.<br />
Menecmo ficou pensando que o ambiente era propício aos<br />
estudos. Mesmo nas brincadeiras.<br />
No dia seguinte, Eratóstenes retomou seus trabalhos.<br />
Passando a pensar no problema de Menelau, acabou se<br />
esquecendo do amigo Hércules com seu problema de medir a<br />
Terra.<br />
Logo, começou a examinar o poço de Alexandria. Todos os<br />
dias retirava água com um balde para beber e experimentar. Era<br />
uma água agradável e fresca, a qualquer hora. Menecmo também<br />
participava dessas operações.<br />
Assuam
epois de alguns dias, iniciou viagem para Assuam, que<br />
ficava mais ao sul do Egito, perto da primeira cachoeira do rio<br />
Nilo. Foi encontrar Menelau e sua esposa Helena. Menecmo foi<br />
junto para ajudar.<br />
Até a cidade de Mênfis iriam de camelo pelo deserto, depois<br />
subiriam o rio Nilo de barco até Elefantina, e a pequena distância<br />
final até Assuam seria feita outra vez de camelos.<br />
Partiram de madrugada, ainda escuro. No céu brilhavam<br />
milhares de estrelas. Os camelos caminhavam bem, mas muito<br />
devagar.<br />
Já com sol alto, passaram por um oásis onde pararam para<br />
descansar e reabastecer de água. Lá encontraram três irmãos<br />
brigando para repartir uma herança de 35 camelos. Eratóstenes<br />
tentou ajudar, mas os jovens, muito desconfiados, não aceitaram<br />
ajuda. Depois de descansarem um pouco, continuaram a viagem.<br />
Logo saindo do oásis, depois da primeira duna, encontraram duas<br />
pessoas montadas em um único camelo, vindas em sentido<br />
contrário. Eratóstenes contou para o viajante da frente – Beremis<br />
– a desavença que estava ocorrendo no oásis. Despediram-se e<br />
continuaram subindo e descendo intermináveis dunas de areia.<br />
Enfrentaram uma terrível tempestade de areia. Os fortes<br />
ventos misturavam a areia ao ar, o que impedia a visão. Passada<br />
a ventania, perceberam que estavam perdidos. Andavam e<br />
andavam, sem saber para onde iam. O sol abrasava, o sono<br />
chegava por causa da monotonia.<br />
− DECIFRA-ME OU TE DEVORO!<br />
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Levaram um susto com o vozeirão. Era a esfinge − leão com<br />
rosto de gente. Quem passasse perto dela, deveria responder a<br />
uma pergunta. Caso errasse, seria devorado.<br />
Durante muitos anos a esfinge devorou muitas pessoas,<br />
sempre com a mesma pergunta, que ninguém conseguia<br />
responder: O que é, o que é, de manhã tem quatro pernas, ao<br />
meio dia tem duas e à tarde tem três?<br />
Mas… chegou um dia em que Édipo acertou a resposta. A<br />
esfinge ficou fula da vida e se precipitou no mar. No entanto, não<br />
morreu e continuou a atormentar os passantes com outras<br />
perguntas e em vários lugares diferentes.<br />
− TU PRIMEIRO, RAPAZ: O QUE É, O QUE É, TEM SEIS<br />
PATAS E NÃO É INSETO?<br />
− Socorra-me Palas Atena, pensou Menecmo apavorado.<br />
Dessa não escapo, vou virar lanche de esfinge. Se pelo menos<br />
pudesse correr como um centau… − CENTAURO!<br />
Assim, Menecmo escapou de virar petisco e tratou de<br />
esgueirar-se depressinha.<br />
− TAMBÉM, TU ÉS MUITO MAGRO E PEQUENO − disse a<br />
esfinge − ESTOU MAIS INTERESSADA NO OUTRO. Voltou-se<br />
medonha para Eratóstenes, apontando em uma direção.<br />
− DECIFRA-ME OU TE DEVORO.<br />
QUAL É A DISTÂNCIA DE ALEXANDRIA ATÉ ASSUAM?<br />
− Hoje não é teu dia, esfinge. A distância de Alexandria a<br />
Assuam é de oitocentos quilômetros. Tu foste perguntar logo para<br />
mim que sou matemático, geógrafo e bibliotecário da Biblioteca<br />
de Alexandria? Chauziiinho… fica para a vooolta…<br />
E foram se afastando, deixando a esfinge muito revoltada.<br />
− Caramba, mestre, como tu sabias a distância entre<br />
Alexandria e Assuam?<br />
− O Egito já está mapeado, com as distâncias determinadas<br />
e corrigidas há muito tempo. A distância entre Alexandria e<br />
Assuam é a soma das pequenas distâncias locais, atualizadas há<br />
muitos séculos. É muito diferente de medir a Terra inteira.<br />
− Mas essas pequenas distâncias locais foram medidas pelo<br />
método tradicional?<br />
− Sim! O faraó mantém uma equipe de medidores,<br />
chamados esticadores de corda, para medir e cadastrar as<br />
propriedades ao longo do rio Nilo. Depois da enchente anual, que<br />
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cobre as margens, é preciso tornar a marcar os limites de cada<br />
sítio.<br />
− Caramba! Cada ano?<br />
− É… dá trabalho! Mas essa atividade provocou um grande<br />
desenvolvimento da Geometria. Aliás, a palavra geometria é<br />
composta de geo que significa terra e metria que é medida.<br />
− Geo-metria, medida da terra… que interessante!<br />
− E o faraó é sábio! Ele não quer povo ocioso nem terra<br />
ociosa. Manda efetuar a divisão proporcional ao tamanho da<br />
família que vai trabalhá-la.<br />
− Puxa vida! Onde moro há terras sem cultivo e pessoas sem<br />
ocupação. Mesmo perto das cidades... Precisamos de um faraó<br />
por lá.<br />
− Tem faraó que só faz obras faraônicas.<br />
A noite chegava e, logo que apareceram as primeiras<br />
estrelas, Eratóstenes determinou o rumo a tomar. Seguiram,<br />
agora na direção certa. No dia seguinte, ultrapassando uma<br />
colina, avistaram as grandes pirâmides de Queops, Quefrem e<br />
Miquerinos, consideradas maravilhas do mundo, como o farol de<br />
Alexandria.<br />
Estavam chegando à Mênfis, importante porto fluvial do rio Nilo.<br />
Arranjaram um lugar para acampar e foram conhecer a cidade<br />
com seus inúmeros palácios. Pernoitaram e, pela manhã,<br />
tomaram o barco que os levaria à Assuam<br />
A viagem correu sem atropelos. Avistaram muitos crocodilos<br />
e hipopótamos dentro e fora do rio. Viam-se poucas pessoas nas<br />
margens. Já passara a época das colheitas, os lavradores<br />
estavam em outros afazeres como construções do faraó. O calor<br />
aumentava e em um mês, aproximadamente, começaria a<br />
enchente anual.<br />
− Mestre. A enchente vai cobrir toda a margem?<br />
− O rio vai triplicar de largura, mas não chega a cobrir as<br />
margens mais altas onde as aldeias foram construídas.<br />
Às noites, escutavam muitos ruídos nas margens, inclusive<br />
urros de leões. Pararam no porto que servia Tebas – a cidade das<br />
cem portas − onde houve rápida carga e descarga além de<br />
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eabastecimento. Não houve tempo para visitar as importantes<br />
Luxor e Carnak com seus palácios<br />
Desembarcaram em Elefantina, onde havia venda intensa de<br />
marfim, e imediatamente formaram caravana e partiram,<br />
chegando a Assuam ao anoitecer.<br />
Hipóteses<br />
rocuraram falar com Menelau só para mostrar que<br />
haviam chegado, depois dirigiram-se ao alojamento. Foi uma<br />
noite agitada e mal dormida por causa dos barulhos de animais.<br />
Inclusive rugidos de leões do deserto. Teriam de se acostumar<br />
com a nova situação de ficar tomando muito cuidado com a<br />
ameaça de leões e crocodilos.<br />
No dia seguinte, andaram pela redondeza até onde podiam ir<br />
com segurança, depois, dirigiram-se à feira onde estava a tenda<br />
de venda de água Menelau. Passaram por diversas barracas.<br />
Havia muita variedade de mercadorias, mas o que chamou<br />
atenção foi a quantidade de objetos de marfim. Logo descobriram<br />
que ali era escoadouro do resultado das caçadas de elefantes. Por<br />
isso, o porto fluvial perto de Assuam se chamava Elefantina.<br />
Quando chegaram à barraca de Menelau, era quase meio dia. Ele<br />
deixou sua mulher tomando conta do negócio e foi mostrar o<br />
poço a Eratóstenes.<br />
A distância era pequena e logo chegaram. Eratóstenes<br />
10
começou a descer o balde para apanhar água e... parou. Alguma<br />
coisa lhe perturbava, mas não sabia o que era. Ficou parado,<br />
pensando, pensando... De repente, disse para ninguém: - O sol<br />
ilumina o fundo do poço... Isso não pode!... não pode...<br />
Eratóstenes era treinado para pensar, não era uma pessoa<br />
comum. Imediatamente observou que em Assuam, ao meio dia, o<br />
sol batia no fundo do poço, enquanto que, em Alexandria batia na<br />
parede. Sua cabeça começou a pensar. Havia alguma coisa<br />
importante que ele ainda não sabia o que era. Nem estava mais<br />
preocupado com Menelau. Saiu correndo para outros poços por<br />
perto notando que, em todos eles, o sol batia no fundo. De<br />
repente disse para si mesmo:<br />
− Por que? Por que aqui o sol atinge o fundo do poço e em<br />
Alexandria bate na parede, na mesma hora, ao meio dia?<br />
Menecmo estava admirado vendo que Eratóstenes parecia<br />
alheio a tudo, apenas concentrado no problema do sol. Depois de<br />
algum tempo, quando Eratóstenes parou a andar de um lugar<br />
para outro, Menecmo pediu licença dizendo:<br />
− Mestre, desculpa-me a interrupção, mas tu estás tão<br />
absorto… e com um rosto de grande concentração. Qual é o<br />
problema?<br />
Os olhos de Eratóstenes se desviaram para ele, mas seu<br />
olhar estava longe… Não obteve resposta. O mestre começou a<br />
traçar um desenho na areia. Depois de mais algum tempo,<br />
parecia que havia descido para o chão.<br />
Poço de<br />
Alexandria<br />
Voltando-se para Menecmo e apontando o desenho disse:<br />
− Deveria ser assim, mas não é. Os raios solares tinham que<br />
cair igualmente no fundo dos dois poços, como acontece com<br />
todas as cisternas que você vê por aqui.<br />
− Claro! E daí, mestre?<br />
− Eu observei que em Alexandria os raios solares batem na<br />
parede e aqui em Assuam batem no fundo do poço.<br />
− Quando retiramos água no poço em Alexandria, ao meio<br />
dia, o sol não batia na água lá no fundo, mestre?<br />
− Não! Não batia, esse é o problema!<br />
− Mestre! Não há problema! Ao contrário, isso explica porque<br />
a água de lá é mais fresca…<br />
Voltou para falar com Menelau, mas este, quando viu que<br />
11<br />
Poço de<br />
Assuam
Eratóstenes estava em outro mundo, já tinha ido embora.<br />
− Mestre. Qual é o problema?<br />
Meio alheio a tudo, Eratóstenes explicou a Menecmo.<br />
− Talvez o poço de Alexandria esteja inclinado. Vá chamar<br />
Menelau.<br />
Menecmo saiu correndo enquanto o cientista fazia outro<br />
desenho na areia. Quando voltaram, Eratóstenes perguntou,<br />
mostrando o desenho:<br />
Poço de<br />
Alexandria<br />
− Menelau, tu achas que o poço de Alexandria pode estar<br />
assim inclinado para que os raios solares caiam na parede e não<br />
no fundo?<br />
− De jeito nenhum! Quem fez aquele poço foi Ahmés, que<br />
possui grande competência e habilidade. Posso garantir que o<br />
poço está bem reto.<br />
Dizendo isso, Menelau voltou correndo para a sua venda de<br />
água. Eratóstenes fez outro desenho.<br />
Poço de<br />
Alexandria<br />
− Outra hipótese é que os raios solares não sejam paralelos,<br />
disse o mestre.<br />
− Caramba! Isso explica porque o sol bate no fundo do poço<br />
em Assuam e na parede em Alexandria.<br />
− É, mas todos consideramos os raios solares paralelos… Já<br />
fizemos medidas.<br />
− Como?<br />
− Por exemplo. Dois furinhos no telhado fazem aparecer no<br />
escuro dois feixes de luz paralelos, de cima abaixo. Medindo as<br />
distâncias entre eles, encontramos os mesmos valores, seja<br />
medindo mais cima ou mais baixo.<br />
− Pelas barbas do faraó. Não vejo saída!<br />
− Mas os raios podem não ser paralelos, agora que estamos<br />
mexendo com distâncias maiores. Não são dois pontos do<br />
telhado, são duas cidade bem distantes, são 800 quilômetros.<br />
− Mestre! São ou não são paralelos?<br />
12<br />
Poço de<br />
Assuam<br />
Poço de<br />
Assuam
− Não sei! Para pequenas distâncias, podem ser<br />
considerados paralelos. Se houver erro, será muito pequeno.<br />
A partir daí, os dois começaram a pensar com concentração.<br />
Menecmo estava treinando a fazer isto. Depois de algum tempo,<br />
o mestre voltou a escrever na areia. Estava muito agitado.<br />
Desenhava frenético.<br />
− Existe outra possibilidade!... outra, existe outra...<br />
Poço de<br />
Alexandria<br />
Menecmo observava sem entender onde o mestre queria<br />
chegar.<br />
− Vê, Menecmo. São três possibilidades: 1° poços tortos, 2°<br />
raios solares tortos e 3° Terra torta. Terra redonda também<br />
explica o sol na parede.<br />
− Mestre! Isso está um pouco difícil!<br />
− Observa o desenho. A Terra está curva, os poços estão<br />
perpendiculares ao chão e os raios solares estão paralelos. Tudo<br />
se encaixa perfeitamente!<br />
− Caramba! Em Alexandria os raios batem na parede e em<br />
Assuam, batem na água.<br />
− Devemos estudar as três hipóteses para determinar qual é<br />
a mais útil.<br />
−A primeira, Menelau já descartou. Ficamos com duas.<br />
− Mesmo assim…<br />
− Mas, no desenho, tu fizeste torto o poço de Alexandria!<br />
Eratóstenes fez três desenhos e perguntou:<br />
− Qual desses três poços está certo, sem inclinação?<br />
− Ah! Não há dúvida que é o do meio. Agora, me lembro…<br />
− Claro! Tu és esperto. Dizer que os dois poços de Menelau<br />
não estão inclinados é dizer que estão na situação do desenho do<br />
meio, que é o que aponta para o centro da Terra.<br />
Nesse momento, notaram que se aproximava uma<br />
ameaçadora tempestade de areia. Saíram correndo para o<br />
alojamento, mesmo porque já estava na hora da refeição.<br />
− O vento vai apagar teus desenhos, mestre.<br />
Entraram no alojamento. Eratóstenes fechou a porta<br />
praguejando contra Éolo − o deus dos ventos − que atrapalhava<br />
seus estudos. Sabia que não adiantava praguejar e, mesmo que<br />
13<br />
Poço de<br />
Assuam
adiantasse, os deuses da região eram outros.<br />
− Talvez os deuses daqui queiram apagar teus escritos,<br />
observou Menecmo.<br />
Foram servidos pelo escravo que lhes fora colocado à<br />
disposição e, quando Menecmo pensou que iam descansar,<br />
Eratóstenes já estava desenhando. Desta vez em folhas de<br />
papiro.<br />
O mestre refez os três desenhos, mesmo sabendo que o<br />
primeiro, com os poços tortos, estava descartado. Ele estudava<br />
todas as possibilidades com igual empenho.<br />
Depois de muito tempo, pegou de um papiro que desenhara<br />
e mostrou:<br />
TERRA<br />
Poço de<br />
Alexandria<br />
− Vê, Menecmo. Examine com cuidado. A Terra é redonda!<br />
Não há mais dúvida. Onde está o poço de Assuam? Veja que o<br />
raio do sol bate no seu fundo. E o poço de Alexandria? O raio bate<br />
na parede!<br />
− Muito claro, mas difícil de admitir, mestre! Acho que tu não<br />
poderás sair dizendo isto por aí… Vão dizer que tu enlouqueceste.<br />
Como pensar em uma Terra redonda? As pessoas e as coisas<br />
cairiam todas!<br />
− Eu sei disto. Todo mundo pensa que a Terra é uma<br />
bolacha. Mas, não é!<br />
− Tu serás ridicularizado…<br />
− O povo não precisa saber dessas idéias.<br />
− Somente o mestre?<br />
− E tu, não aceitas?<br />
− Não consigo ver como as coisas ficariam em cima de uma<br />
bola.<br />
− Eu também não sei, mas esse é outro problema…<br />
− Mestre! Outra coisa difícil de admitir é essa possibilidade<br />
do pensamento abranger toda a Terra. Geralmente pensamos<br />
sobre as nossas pequenas coisas diárias. Tu trabalhas com a<br />
Terra como se fosse uma bola em cima da mesa…<br />
Ficaram bastante tempo pensando. Menecmo respeitava<br />
profundamente o mestre. Sabia da sua capacidade e treino para<br />
14<br />
800km<br />
Poço de<br />
Assuam
pensar. Gostava de raciocinar sobre as suas idéias, entendia que<br />
a sombra no poço de Alexandria era uma formidável prova da<br />
redondeza da Terra. Admirava como o mestre havia conduzido o<br />
raciocínio até o final. Ficara muito emocionado com essa<br />
capacidade de tirar conclusões. Mas, não há como colocar coisas<br />
sobre uma bola! Sobre uma mesa, sim!<br />
A ventania passara e o céu estrelado formava uma grande<br />
abóbada bem no alto. Os dois saíram a passear admirando a<br />
vastidão celeste.<br />
− Mestre, é assustadora essa imensidão por sobre nossas<br />
cabeças, não é?<br />
− Muito bonito e impressionante. Estamos acostumados a<br />
manusear coisas pequenas e o céu é fora de medidas.<br />
− Por que as estrelas não caem?<br />
− Uma resposta bastante usada é que o céu seria uma esfera<br />
de cristal, muito transparente, com as estrelas presas nela.<br />
− Então! Se a Terra fosse redonda deveria também existir<br />
algo nos mantendo sobre ela.<br />
− Talvez haja. Talvez… O que não pode é ser uma bolacha<br />
com uma meia bola por cima? Isso não dá certo!<br />
− Mestre! Tenho um pouco de medo do que está<br />
acontecendo. Sempre há pessoas bisbilhotando o que fazemos e o<br />
que falamos. Sinto que estão nos olhando, mesmo agora, de<br />
dentro da escuridão. Se chegar aos ouvidos das autoridades,<br />
poderemos ser até presos por falar em Terra redonda.<br />
− Certas pessoas possuem preconceitos contra os<br />
pensadores e suas descobertas. Tudo bem. Mas, quando essas<br />
pessoas possuem algum poder, o perigo é grande!<br />
Um leão rugiu por perto e eles trataram de se trancar em<br />
casa, temerosos. Quando os ruídos ficaram mais longínquos,<br />
Eratóstenes voltou aos seus escritos. Imediatamente se<br />
concentrou. Cada vez escrevia e desenhava com maior<br />
velocidade. Parecia que estava possesso. De repente gritou:<br />
− O ângulo! Preciso medir o ângulo.<br />
Abriu a porta, mas a escuridão e os barulhos noturnos o<br />
obrigaram a voltar.<br />
− Que ângulo, mestre, tu queres medir?<br />
− O ângulo formado pelos dois poços. Dá para calcular o<br />
tamanho da Terra…<br />
− O problema de Hércules?<br />
− É, mas temos que medir em Alexandria.<br />
Eratóstenes completou o desenho da Terra redonda e<br />
15
começou a falar:<br />
TERRA<br />
Poço de<br />
Alexandria α<br />
α<br />
− O dois poços formam um ângulo que separa uma fatia da<br />
Terra. Para essa fatia, temos a distância de 800km entre<br />
Alexandria em Assuam. Se eu souber quantas fatias dessas<br />
cabem na volta toda da terra, saberei quantos vezes 800km<br />
teremos.<br />
− Cada fatia tem 800km, pensava alto Menecmo<br />
emocionado. Basta saber quantas fatias…<br />
− A volta toda tem 360 graus. Preciso saber quanto mede o<br />
ângulo α.<br />
− Fácil mestre! Vamos chamar Hércules para aprofundar os<br />
poços até se encontrarem no centro da Terra.<br />
Os dois deram risada.<br />
− Seria o caso, se fosse necessário! Mas basta medir em<br />
cima o ângulo da sombra.<br />
− Como, assim, mestre?<br />
− Quando tu tens duas retas paralelas, se uma terceira reta<br />
cortar as duas, formará ângulos de mesma medida. Veja:<br />
α<br />
16<br />
800km<br />
Poço de<br />
Assuam<br />
800km<br />
800km<br />
800km<br />
α
− Claro! Isso é muito óbvio.<br />
− É o que acontece com os raios de sol. Eles são paralelos.<br />
Por isso, o ângulo α no centro da Terra é igual ao de cima em<br />
Alexandria, formado pelo raio solar.<br />
− Temos que voltar para Alexandria?<br />
− Imediatamente!<br />
− Que pena! Até aqui estava tudo muito bom.<br />
− Voltaremos depressa de barco descendo o rio Nilo.<br />
Nesse momento, escutaram barulhos de armas do lado de<br />
fora. Chegou um sacerdote acompanhado de guardas, solicitando<br />
a presença de Eratóstenes no prédio da guarda do templo de<br />
Amon-Rá. Ficou combinado que se apresentariam pela manhã.<br />
Quando os religiosos e guardas saíram, Eratóstenes mandou<br />
arrumar tudo depressa para irem já embora. Foram à casa de<br />
Menelau.<br />
O tamanho da Terra<br />
epressa, precisamos de mais camelos para levar as<br />
coisas.<br />
Partiram no escuro sabendo dos riscos de todos os tipos.<br />
Chegaram à Elefantina ainda escuro, mas o horizonte começava a<br />
esbranquiçar. O sol não tardaria. Bem cedo estavam embarcados<br />
descendo o rio Nilo.<br />
− Mestre. O que vai acontecer? Quando descobrirem nossa<br />
fuga, virão atrás da gente?<br />
− Espero que não! Talvez não queiram se indispor com<br />
Alexandria. Talvez queiram apenas que nos retiremos para não<br />
perturbar a ordem vigente.<br />
−Provocaram a nossa fuga?<br />
−Acho que sim.<br />
−Será que estiveram nos escutando e observando todo esse<br />
tempo?<br />
Depois de alguns dias, descendo o rio sem maiores<br />
problemas, chegaram à Alexandria. Era manhã e a primeira coisa<br />
que fizeram foi ir correndo para o poço.<br />
− Que estamos esperando, mestre?<br />
− A medida deve ser feita ao meio dia, quando o sol bater no<br />
fundo do poço em Assuam. Fica muito mais fácil, depois eu te<br />
explico. Vamos nos preparar.<br />
Pegaram linhas esticaram uma vertical na beirada do poço,<br />
pegaram um transferidor e esperaram. Ao meio dia esticaram<br />
uma linha seguindo a sombra. Ela formava um ângulo com a<br />
beirada do poço. Pronto! Bastava medir esse ângulo.<br />
17
Poço de α<br />
Alexandria<br />
− Sete graus e meio, disse Eratóstenes.<br />
− Mas, isso é demais! Essa é a medida do ângulo no centro<br />
da Terra, sem ir até lá, exclamou Menecmo.<br />
− Não é necessário ir até lá. Quem vai é o raciocínio.<br />
− Agora precisamos saber quantos ângulos de 7,5° cabem<br />
em uma volta?<br />
− Sim! Vamos dividir 360 por 7,5. Para cada 7,5 graus,<br />
teremos 800 km.<br />
Efetuaram as contas e encontraram 48.<br />
− São 48 ângulos, exclamou Menecmo, portanto a volta da<br />
Terra tem 48 vezes 800 km. Não é isso, mestre?<br />
− Justamente.<br />
Eratóstenes efetuou as contas e encontrou 38 400km para<br />
uma volta ao redor da Terra. Por um instante, ficaram mudos,<br />
emocionados com o que acabara de acontecer. Depois veio o<br />
momento de euforia.<br />
− Coitado do Hércules… que ingenuidade, disse Menecmo.<br />
− Ele usa o conhecimento prático, de senso comum. É o<br />
conhecimento da aparência. Para ir mais fundo é necessário outro<br />
tipo de conhecimento. No nosso caso, foi a matemática.<br />
− Incrível! Ser capaz de calcular o tamanho da Terra sem<br />
sair do lugar.<br />
− Para isso serve a matemática, ou melhor, o conhecimento<br />
sistematizado. A partir dos nossos sentidos construímos uma<br />
aparência, ingênua e imediata. O raciocínio metódico nos leva<br />
cada vez mais fundo.<br />
− Só que os resultados não são os esperados pelas pessoas<br />
comuns. O resultado é diferente do que parece!<br />
− Vamos dizer de outro modo: o conhecimento usado para<br />
trabalhar a aparência é diferente do conhecimento usado para<br />
trabalhar mais profundamente.<br />
− É espantoso!…<br />
− Temos muitas novidades. Muitos pensadores estão<br />
trabalhando na sistematização do conhecimento. O que está mais<br />
avançado é a Geometria que foi concluída por Euclides. A<br />
Aritmética está bem trabalhada por Diofante e outros.<br />
− Só a <strong>Matemática</strong>, mestre?<br />
− Não! Estão classificando as palavras da nossa língua,<br />
18
estudando suas funções e relações, formando uma estrutura com<br />
regras e fórmulas a que chamam Gramática. O mesmo está<br />
acontecendo em outras áreas do conhecimento.<br />
−Mestre. Como faço para desenvolver também esse novo<br />
tipo de conhecimento?<br />
−Não é um conhecimento de rua. É necessário trabalhar<br />
junto com mestres. Foi por isso que surgiram várias escolas. A<br />
Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles, a escola pitagórica e<br />
muitas outras. As escolas surgiram por causa da criação do<br />
conhecimento sistematizado.<br />
− E como surgiu o conhecimento sistematizado?<br />
− É uma necessidade social, resultado do advento do uso do<br />
ferro que provocou uma grande revolução no trabalho. Você já<br />
pensou o que significou trocar uma enxada de pedra por uma de<br />
ferro, só para dar um exemplo?<br />
− Muito mais fácil de trabalhar…<br />
− Provocando um grande aumento de produtividade e de<br />
atividade comercial. A sociedade passou a utilizar técnicas cada<br />
vez mais complexas, necessitando e motivando um conhecimento<br />
mais elaborado e acumulativo. Barcos maiores, pontes, cidades,<br />
estradas exigem projetos. Assim, na Grécia, ocorreu um imenso<br />
acúmulo de conhecimentos e de pessoas que trabalhavam esse<br />
conhecimento. Surgiram os pensadores.<br />
− E como faço para treinar esse tipo de conhecimento<br />
organizado?<br />
− Já pensei nisso. Tu estás bem motivado. Vou recomendarte<br />
a Euclides.<br />
Concluídos os cálculos da medida da Terra, Eratóstenes fez<br />
as anotações em um rolo de papiro. Antes de guardá-lo na<br />
biblioteca, levou-o a Euclides que se mostrou muito interessado,<br />
fazendo muitas observações. Depois, falou de Menecmo. Euclides<br />
mandou chamá-lo.<br />
− Então, tu desejas aprender a construir conhecimento<br />
sistematizado?<br />
− Desejo, muito! Quero possuir esse poder mágico. Quero<br />
calcular a distância da Terra à Lua, ao Sol… Quero o poder de<br />
calcular prédios, barcos, ancoradouros, aquedutos, máquinas…<br />
− Pode parar! Vejo que estás bem motivado.<br />
− Vais me ajudar?<br />
− Tu disseste bem − ajudá-lo − porque será tu mesmo que<br />
construirás teu conhecimento em contato com os mestres, com os<br />
livros, com a realidade e com seus colegas.<br />
− Então, existem outros alunos, mestre?<br />
− Vem comigo.<br />
Euclides mostrou a Menecmo suas acomodações, a<br />
19
iblioteca, falou-lhe de Alexandria e apresentou-lhe outros<br />
estudantes. Retirou-se para retomar seus estudos.<br />
Os colegas estavam curiosos para falar com Menecmo que<br />
logo começou a contar suas aventuras, desde o centauro Nesso<br />
até os sacerdotes e guardas ameaçadores e o cálculo do tamanho<br />
da Terra.<br />
− Caramba! Eratóstenes é demais. Matou o problema como<br />
gente grande, disse Tifeu.<br />
− Corajoso ao adotar a terceira hipótese da Terra redonda,<br />
completou Gélon.<br />
− A primeira é ridícula. Qualquer um sabe construir um poço<br />
reto, perpendicular ao chão, exclamou Hipácia.<br />
− Se o chão for horizontal… disse Gélon<br />
− Óbvio! Numa rampa, o poço não pode ficar perpendicular<br />
ao chão, emendou Menecmo.<br />
− Lá onde for, usamos o fio de prumo, rematou Hipácia<br />
fazendo uma proposta.<br />
− Vamos adotar a segunda hipótese de Terra plana com raios<br />
solares não paralelos?<br />
− Boa idéia!<br />
Os colegas refizeram o desenho da segunda possibilidade e<br />
passaram a discuti-la.<br />
Poço de Poço de<br />
Alexandria 800km Assuam<br />
7,5º<br />
− Dos dois poços para cima até ao Sol, temos<br />
um triângulo cujo lado embaixo mede 800km.<br />
− Isso mesmo… e é triângulo retângulo,<br />
emendou Hipácia.<br />
− E o ângulo lá em cima no Sol mede 7,5°.<br />
− Calma, disse Menecmo. Estás indo muito<br />
rápido…<br />
− Eu também não estou conseguindo<br />
acompanhar, disse Gélon.<br />
Os colegas voltaram ao começo, discutindo<br />
os detalhes. Tifeu e Hipácia estavam muito<br />
seguros e fizeram um novo desenho<br />
− De Alexandria a Assuam são 800 km,<br />
tudo bem, mas porque o ângulo lá no Sol é de<br />
7,5°? Ninguém jamais foi ao Sol, exclamou<br />
Gélon.<br />
− Já estou acostumado com esse negócio<br />
de mandar a <strong>Matemática</strong> aonde não podemos ir,<br />
disse Menecmo, mas ainda não sei como.<br />
− Ridículo! Esse caso é muito simples,<br />
falou Tifeu, fazendo dois outros desenhos.<br />
20<br />
7,5 o<br />
800km<br />
Al As
− Quando duas retas paralelas são cortadas por uma terceira<br />
transversal, formam-se ângulos correspondentes iguais.<br />
Tifeu ia dizendo e mostrando os ângulos no desenho.<br />
− Sendo os dois poços perpendiculares ao chão, então são<br />
paralelos e o raio de sol inclinado é a reta transversal. Assim, o<br />
ângulo embaixo tem mesma medida que o ângulo lá em cima no<br />
Sol que também mede 7,5 graus. Diste quanto distar!<br />
Os desenhos deixaram clara a igualdade. Nem precisava da<br />
explicação de Tifeu. Mas tudo isso mostrava que os alunos<br />
estavam em diferentes estágios. Tifeu estava muito mais treinado<br />
e o pobre do Menecmo era o último que chegara.<br />
− Esse ângulo é o mesmo do centro da Terra, disse<br />
Menecmo.<br />
− Seria, com a Terra redonda − disse Hipácia − mas estamos<br />
partindo da suposição que é plana.<br />
Enquanto explicava, desenhava as duas hipóteses.<br />
− Ou são iguais os ângulo no poço e no Sol, ou são iguais os<br />
ângulos no poço e no centro da Terra. São essas as hipóteses.<br />
− E agora? Perguntou Menecmo cada vez mais motivado.<br />
− Agora, podemos calcular a distância que o Sol está.<br />
Dito isso passou a desenhar um triângulo parecido com o<br />
triângulo dos dois poços com o Sol.<br />
1º) Começaram desenhando um ângulo de 7,5 graus de lados<br />
bem compridos:<br />
21
1º 2º 3º<br />
7,5 o 7,5 o 7,5 o<br />
8cm 8cm<br />
2º) Em seguida, traçaram uma reta paralela a um dos lados mas<br />
a 8cm de distância.<br />
3º) A partir do cruzamento, traçaram uma reta perpendicular ao<br />
outro lado, fechando um triângulo.<br />
Assim, obtiveram um triângulo retângulo com 8cm no lado<br />
menor e 7,5 graus no ângulo oposto. Mediram o lado<br />
perpendicular ao lado menor e encontraram 61,3cm. Em seguida,<br />
queriam saber quantas vezes 8cm cabia em 61,3cm. Efetuaram a<br />
divisão de 61,3 por 8 encontrando 7,6625<br />
− Estão vendo? Neste triângulo um lado é aproximadamente<br />
7,7 vezes o outro de 8cm. Do mesmo modo, a distância até ao<br />
Sol deverá ser perto de 7,7 vezes 800km.<br />
− Acho bem plausível, mas gostaria de ter certeza, disse<br />
Gélon.<br />
Tifeu fez outro desenho no chão e comentou:<br />
− Veja um triângulo pequeno e um grande. Se o pequeno for<br />
crescendo até ficar igual ao grande, carregará a mesma relação<br />
entre os lados.<br />
Hipácia complementou:<br />
− Se no triângulo pequeno, o lado vertical for o dobro do<br />
horizontal, então a mesma coisa ocorrerá no triângulo grande. O<br />
22<br />
61,3
lado vertical será o dobro do horizontal.<br />
− Sim! Exclamou Menecmo. Se for o triplo em um, será o<br />
triplo no outro.<br />
− Se for 7,7 vezes em um, será 7,7 vezes no outro,<br />
emendou Gélon.<br />
− Caramba! Que transferência!<br />
Se no triângulo do poço, um lado é 7,7<br />
vezes o outro, no triângulo do Sol a<br />
distância será 7,7 vezes 800km, sem<br />
jamais alguém ter ido até lá.<br />
Imediatamente passaram a<br />
calcular 7,7 vezes 800km e<br />
encontraram 6.160km.<br />
Ficaram eufóricos.<br />
− O Sol passa aí em cima a pouco<br />
mais de 6.000 quilômetros.<br />
Saíram correndo para contar aos<br />
mestres. Encontraram Euclides absorto em<br />
800<br />
uma mesa repleta de rolos de papiros. Para não interromper o<br />
seu pensamento, ficaram esperando uma oportunidade. Depois<br />
de um tempo, o cientista se levantou e avistou os rapazes. Eles<br />
entusiasmados mostraram seus estudos. Euclides sorriu<br />
satisfeito.<br />
− É muito pouco! O Sol está muito mais longe… O raciocínio<br />
está perfeito! O vosso trabalho está ótimo, só que partindo da<br />
hipótese de a Terra ser plana. Isso levou a esse pequeno valor. O<br />
Sol está muito, muito longe.<br />
− Porque, mestre?<br />
Alexandria Oeste Alexandria<br />
d = 7,7×800km<br />
− A partir do meio dia o Sol vai para oeste e, se mantivesse<br />
sempre a mesma altitude, em duas horas estaria aparentemente<br />
bem menor por ficar mais longe de nós que estamos em<br />
Alexandria. Às quatro horas estaria menor ainda. Como isso não<br />
acontece, ele deve percorrer uma circunferência, ficando sempre<br />
à mesma distância de Alexandria. Mas, neste caso, para os povos<br />
que ficam milhares de quilômetros a oeste, o Sol se aproximaria<br />
ao entardecer. Nada disto se percebe… ele está muito longe…<br />
− É… não tem jeito… a Terra é mesmo redonda! Murmurou<br />
Menecmo.<br />
Euclides voltou aos estudos recomendando que mostrassem<br />
o trabalho a Eratóstenes.<br />
No dia seguinte Menecmo encontrou Euclides no jardim que<br />
lhe perguntou:<br />
− Como é, estás gostando daqui de Alexandria?<br />
− Mestre! O que já cresci de ontem para hoje me deixou<br />
pensando em como estarei daqui alguns anos. É isso mesmo que<br />
23
quero.<br />
− Espero que uses esse poder para o benefício da<br />
humanidade.<br />
− É tudo o que almejo, mestre.<br />
− Também espero que nada venha interromper nossos<br />
estudos, disse Euclides reticente como se previsse alguma<br />
desgraça.<br />
− Preciso entender ainda uma coisa a respeito dos cálculos.<br />
Eratóstenes disse que depois explicaria porque os poços deviam<br />
estar um ao norte do outro.<br />
− Apenas por comodidade. Estarem os poços um ao norte do<br />
outro significa mesma hora, assim os dois pontos onde estão as<br />
cisternas e mais o Sol formam um triângulo de fácil resolução. Se<br />
for ao meio dia, o triângulo estará perpendicular ao chão, ficando<br />
ainda mais fácil. Sendo na época em que o Sol ilumina o fundo de<br />
um dos poços, ficará ainda mais fácil, bastando medir o ângulo no<br />
outro poço!<br />
Euclides se retirou para a biblioteca. Menecmo continuou a<br />
caminhar pelos jardins pensando nas conversas com Eratóstenes<br />
e Euclides. Avistou Hipácia e procurou ficar no caminho por onde<br />
ela passaria. Deu certo!<br />
− Olá, Menecmo. Que dia bonito está hoje…<br />
− É mesmo… pensei que, conhecendo melhor o céu e essas<br />
distâncias, o encanto se quebraria, mas aconteceu o contrário…<br />
− Claro! O inatingido possui o encanto do mistério, mas o<br />
dominado também possui o encanto da nossa potência.<br />
− Mas… conhecemos pouco dos céus!…<br />
− Quanto mais conhecemos, mais dúvidas aparecem…<br />
Quanto mais dilatamos a esfera do nosso conhecimento, mais<br />
alargamos as fronteiras a serem construídas.<br />
− Como faço para distinguir se um conhecimento é de senso<br />
comum ou não?<br />
− O conhecimento de senso comum é prático, intuitivo e<br />
memorizado por repetição de uso. O conhecimento sistematizado<br />
faz parte de um sistema, como diz o nome. É conhecimento<br />
integrado a uma estrutura mediante uma lógica.<br />
− Poderia dar um exemplo?<br />
− Pegue uma tábua ou uma tira de papel.<br />
Faça dois riscos<br />
Serre a tábua ou, se<br />
for papel, recorte.<br />
Você obterá duas<br />
tábuas pontudas.<br />
− Como são essas pontas? São iguais ou diferentes?<br />
− Iguais, claro.<br />
− E se mudarmos as posições dos riscos?<br />
Hipácia foi falando e fazendo vários desenhos:<br />
− Não importa a posição dos riscos. As pontas sempre serão<br />
iguais, qualquer um sabe disto. Não precisa ser marceneiro!<br />
− Conhecimentos desse tipo, que qualquer um sabe, são<br />
conhecimentos de senso comum. Agora veja o que Tales fez.<br />
− Quem foi Tales?<br />
24
− Tales de Mileto. Um grande matemático, iniciador da<br />
sistematização da Geometria.<br />
c<br />
a b<br />
Hipácia continuou.<br />
− Vamos chamar de a, b e c as medidas de três dos ângulos<br />
formados por duas retas que se cortam.<br />
1) O número a+c é a medida de meia volta.<br />
2) O número b+c é a medida de meia volta.<br />
3) Então a+c = b+c.<br />
4) Cortando o número c em cada lado da igualdade, ficamos com<br />
a = b.<br />
− Chegamos ao a = b pela lógica, admirou-se Menecmo.<br />
− Muitos pensadores, incluindo os pitagóricos, trabalharam<br />
nessa direção para, por fim, fecharem um grande edifício<br />
geométrico onde cada conhecimento era deduzido de outros.<br />
− E esses outros? Perguntou Menecmo.<br />
− Esses outros também eram retirados de outros, formando,<br />
como que, uma árvore.<br />
− Até chegar às raízes…<br />
− Até chegar a algumas proposições chamadas postulados.<br />
Menecmo ficou pensando... e, tão absorvido estava pelo que<br />
acabara de escutar, que nem viu Hipácia se afastar. Ficou<br />
concentrado em tudo aquilo que estava acontecendo. Depois foi<br />
para a biblioteca pegar algum livro de Tales de Mileto.<br />
A nova era<br />
assados alguns dias, Menecmo foi chamado por<br />
Eratóstenes que lhe disse para resolver o caso de Hércules.<br />
Menecmo retornou à Grécia e saiu a procura do herói para<br />
lhe falar do tamanho da Terra.<br />
Um dia, vagando desanimado perto da praia, viu vários<br />
centauros que se preparavam para uma festa de bodas do rei<br />
Piritoo. Logo encontrou Nesso. Contou-lhe toda a história do<br />
cálculo do tamanho da Terra e perguntou se vira Hércules. O<br />
centauro lhe disse que passara perto da casa de Hércules, vira<br />
Djanira, sua mulher, mas ele não estava. O herói não tinha<br />
parada. A qualquer momento poderia aparecer.<br />
− E tu, o que achas? – perguntou ao centauro.<br />
− Achar o que?<br />
25
− Terra redonda e seu tamanho.<br />
− Quando observamos um barco indo embora no mar,<br />
notamos que primeiro desaparece o casco no horizonte e depois<br />
os mastros. Parece que está descendo do outro lado.<br />
− É mesmo? Nunca tive oportunidade de observar essa<br />
curiosidade!<br />
− Só que é uma aparência!<br />
− Isso! O que Eratóstenes fez foi provar matematicamente!<br />
− É estranha a idéia de Terra redonda, mas não chega a me<br />
incomodar. Na verdade há muitas outras idéias desse tipo que<br />
não condizem com a nossa experiência diária.<br />
− Está me parecendo que quem fica somente com as<br />
experiências diárias, fica apenas com a aparência. Não vai fundo.<br />
− O raciocínio organizado vai muito mais longe.<br />
− Isso significa que a teoria vale mais que a prática?<br />
− Valem a mesma coisa. Na verdade, vale mais quem tem a<br />
teoria e a prática. Quando os deuses fizeram os centauros, acho<br />
que estavam tentando reunir o braçal e o intelectual.<br />
− Deu certo?<br />
− Estou sentindo uma ponta de ironia nessa tua pergunta.<br />
− E os faunos e sereias, seriam também sínteses?<br />
− Interessantes conjeturas.<br />
− O pobre do Minotauro é o contrário: homem com cabeça<br />
de boi.<br />
− Muito moderno…<br />
Quando assim falavam, pousou<br />
Pégaso − o cavalo alado. Estava um<br />
pouco receoso, mas o centauro<br />
acalmou-o dizendo que eram amigos,<br />
quase parentes, e nada teria que<br />
temer.<br />
Com a chegada de Pégaso,<br />
mudaram de assunto.<br />
− O problema, disse Menecmo, é que estou perdendo tempo.<br />
Quero voltar logo para Alexandria. Por isso, preciso me<br />
desembaraçar logo da tarefa.<br />
− Que tarefa, quis saber Pégaso.<br />
− Tenho que encontrar Hércules para lhe dar um recado.<br />
− Eu o vi agora mesmo na ilha de Ítaca e me pareceu muito<br />
bravo, assim olhando do alto.<br />
− E onde fica Ítaca?<br />
− É uma das ilhas Jônicas onde Ulisses é o rei. Posso levá-lo<br />
até lá.<br />
− Voando?<br />
− Voando!<br />
Menecmo despediu-se do centauro e montou em Pégaso.<br />
Levantaram vôo.<br />
− Costumo carregar apenas poetas até o monte Hélicon,<br />
disse Pégaso.<br />
− Por que abriu exceção?<br />
− Não sei! Talvez poetas não sejam apenas os que fazem<br />
poesias…<br />
Rapidamente estavam sobrevoando o golfo de Corinto,<br />
depois o golfo de Patras e mais um pouco estavam pousando em<br />
26
Ítaca perto de Hércules. Menecmo apeou. O herói grego estava<br />
furioso e avançou sobre os dois. Pégaso levantou vôo pousando<br />
mais adiante, deixando Menecmo à própria sorte.<br />
− Hércules, sou Menecmo. Eratóstenes mandou-me até aqui<br />
para falar-te.<br />
Hércules parou, reconheceu Menecmo e pediu-lhe o recado.<br />
− Eratóstenes calculou o tamanho da Terra e mandou-me<br />
dizer-te que é de 38.400km.<br />
Hércules se acalmou, até começou a sorrir. Finalmente tinha<br />
a resposta para levar ao rei Eristeu.<br />
− Caramba! Eratóstenes é mesmo um grande amigo. Mas,<br />
como ele mediu?<br />
− Ele não mediu, ele calculou!<br />
− Calculou?! Como assim, calculou? E se ele tiver errado?<br />
Como vou conferir?<br />
− Acho que nem tu nem Aristeu poderão conferir.<br />
Hércules caiu em profunda tristeza porque as coisas saíram<br />
do seu poder de compreensão e de ação. A época de Hércules<br />
passara, mas ele foi importante e teve grande significação em sua<br />
época.<br />
A história relata que Hércules matou o centauro Nesso que<br />
queria raptar Djanira. Quando agonizava, Nesso deu à Djanira<br />
uma túnica envenenada que a guardou. Depois, com ciúmes de<br />
uma rival, temendo ficar só, deu a túnica de presente ao marido.<br />
Atormentado de dores com a túnica grudada ao corpo, Hércules<br />
acendeu uma fogueira no monte Eta deixando-se consumir por<br />
ela.<br />
Mas não foi assim que ocorreu. Perdoem-me os deuses do<br />
Olimpo. A verdade verdadeira me foi relatada pela própria Djanira<br />
e confirmada por Atlas. O que atormentava Hércules era a idéia<br />
de estar ficando para trás. A sua imensa força já não estava<br />
valendo tanto. A gota d'água foi que, por mais que tentasse, não<br />
conseguira levar um barco novo dos estaleiros para a água. Era<br />
um barco grande, de três mastros, com bancos para mais de 60<br />
remadores. Mas um professor − Arquimedes − sozinho e com<br />
extrema facilidade, executou a tarefa, usando roldanas. Com os<br />
novos conhecimentos e tecnologia, qualquer mortal adquiriu um<br />
poder de fazer coisas impossíveis para Hércules que não podia<br />
sequer compreendê-las. O famoso herói tivera a sua época de<br />
glória, e isso nunca mais seria esquecido, mas era refratário aos<br />
novos conhecimentos. Preferia executar os trabalhos à sua<br />
maneira, no entanto o mundo seguia outro caminho! Os deuses<br />
do Olimpo perdiam suas funções. Por isso, Hércules se imolou!<br />
A história da túnica de Nesso foi criada para representar<br />
esse doloroso auto isolamento.<br />
FIM<br />
27<br />
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