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Mito Eros e Psiquê revisitado na modernidade por

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MITO EROS E PSIQUÊ REVISITADO NA MODERNIDADE<br />

POR “A BELA E A FERA”<br />

IVETE IRENE SANTOS<br />

(INSTITUTO ALVORADA PLUS E MACKENZIE)<br />

Grosso modo, o mito é associado ao contexto religioso, mas<br />

apropriado pela literatura, acaba atribuindo e recebendo característi-<br />

cas específicas desse linguagem. Várias obras presentes <strong>na</strong> nossa<br />

literatura revelam a sobrevivência de mitos, tomando-os parafrasica,<br />

intertextual ou estilisticamente, apresentando ainda intersecção com<br />

os gêneros afins lendas, contos de fadas, fábulas, entre outros.<br />

Objetivamos, nessa comunicação, discutir sobre a permanên-<br />

cia do mito e sua apropriação pela literatura, levantando as caracte-<br />

rísticas estruturais e ainda os temas comuns. Para tanto, focalisare-<br />

mos o mito <strong>Eros</strong> e <strong>Psiquê</strong> resgatado em 3 textos diferentes: o primei-<br />

ro, é a revisitação “Viagem ao reino das sombras”, de Luiz Galdino;<br />

o segundo é “A bela e a fera”, de Câmara Cascudo, e <strong>por</strong> fim, “A<br />

bela e a fera”, uma versão em história em quadrinhos, da Maurício de<br />

Sousa produções.<br />

Observando a presença do mito ao longo da história, nota-se<br />

que o seu surgimento data de tempos remotos. Como todo texto tra-<br />

dicio<strong>na</strong>l, o mito <strong>na</strong>sceu <strong>na</strong> oralidade e esteve associado à explicação<br />

do surgimento dos fenômenos da Natureza e dos fatos da vida rela-<br />

cio<strong>na</strong>dos ao homem. “Ao utilizar a temática mitológica, a literatura<br />

concretiza, desde a Antiguidade, a função dos dois elementos que a


caracterizam exteriormente: o aspecto lúdico e o educativo” (Jaboul-<br />

le, 1999. p. 23).<br />

2<br />

O mito possui, desta forma, um caráter lúdico e, ao mesmo<br />

tempo, educativo, e como em <strong>na</strong>da há neutralidade ideológica, o<br />

mito acaba passando as ‘visões de mundo’ de uma sociedade. Pode-<br />

se assim, a<strong>na</strong>lisar como um fato, um mesmo fenômeno da Natureza,<br />

um acontecimento, é explicado em diferentes culturas.<br />

Com a propagação da escrita, a literatura além de registrar os<br />

mitos e lendas, tor<strong>na</strong>-se eficaz divulgadora. Percebemos a quantida-<br />

de abundante de mitologias que são constantemente reescritas: o<br />

texto vai se alimentando do texto e encontra <strong>na</strong> própria literatura<br />

uma fonte de inspiração.<br />

Como as demais modalidades de texto, o mito não tem obriga-<br />

ção de retratar a realidade, mas acaba permitindo que, através deste,<br />

seja possível conhecer aspectos da cultura em que está inserido, pois<br />

“o mito é de facto, o reflexo de cada época e, desse modo, afirma-se<br />

em contínua actualização.” (Id., Ibid.,.p.23.).<br />

Nossa pesquisa objetiva a<strong>na</strong>lisar as mudanças <strong>na</strong>s figuras que<br />

compõem o mito. Para tanto, apresentaremos algumas definições de<br />

mito.<br />

Os mitos, elucidando arquétipos humanos, exemplificam a<br />

busca do ser humano em entender o mundo que o cerca, <strong>por</strong> isso,<br />

embora haja vários estudos sobre esse gênero, há sempre um aspecto<br />

novo a ser ressaltado, pois o próprio gênero é renovado a cada revisi-<br />

tação. A<strong>na</strong>lisaremos neste trabalho 3 textos diferentes: o primeiro, é


a revisitação “Viagem ao reino das sombras”, de Luiz Galdino; o<br />

segundo é “A bela e a fera”, de Câmara Cascudo e <strong>por</strong> fim, “A bela<br />

e a fera”, uma versão em história em quadrinhos, da Maurício de<br />

Sousa produções.<br />

Breve conceituação do mito<br />

<strong>Mito</strong>, grosso modo, significa “<strong>na</strong>rrativa” e não veicula o senti-<br />

do de “<strong>na</strong>rrativa mentirosa” que um estágio evoluído da civilização<br />

lhe acrescentou, opondo-o “estruturalmente” ao discurso verdadeiro,<br />

a exemplo temos um quadro do programa Fantástico, intitulado “Os<br />

caçadores de mitos” que investiga fatos do senso comum e sempre<br />

revela-os infundados, associando a idéia de mito à inverdade.<br />

Ao se falar de mito, alude-se ao termo “lenda” pela similarida-<br />

de entre as características de ambos no que concerne à forma lúdica e<br />

dissertativa <strong>na</strong> retratação ou alusão a fatos que estimulam a curiosi-<br />

dade e a imagi<strong>na</strong>ção huma<strong>na</strong>. Câmara Cascudo escreve a respeito<br />

dos dois temas, ressaltados algumas similaridades entre os conceitos:<br />

Lenda: Episódio heróico ou sentimental com o elemento maravilhoso<br />

ou sobre-humano, transmitido ou conservado <strong>na</strong> tradição<br />

oral popular, localizável no espaço e no tempo. De origem letrada,<br />

lenda, legenda, “legere”, possui características de ficção geográfica<br />

e peque<strong>na</strong> deformação. Liga-se a um local, como processo<br />

etiológico de informação, ou à vida de um herói, sendo parte e<br />

não todo biográfico ou temático. Conserva as quatro características<br />

do conto popular (marchen, folktale) : Antigüidade, Persistência,<br />

Anonimato, Oralidade. Os processos de transmissão, circulação,<br />

convergência, são os mesmos que presidem a dinâmica<br />

da literatura oral. É independente da psicologia coletiva ambien-<br />

3


4<br />

tal, acompanhando, numa fórmula de adaptação, seus movimentos<br />

ascensio<strong>na</strong>is, estáticos ou modificados. Muito confundido<br />

com o mito, dele se distancia pela função e confronto. O mito pode<br />

ser um sistema de lendas, gravitando ao redor de um tema central,<br />

com área geográfica mais ampla e sem exigência de fixação<br />

no tempo e no espaço. (Cascudo, 1999, p. 511)<br />

Constata-se que o mito tende a ser mais “universalista”, uma<br />

vez que trata dos arquétipos humanos, não que exclua-se essa carac-<br />

terística da lenda. Ambos, como já citado, possuem o caráter lúdico,<br />

didático e, de certa forma, religioso, dando uma explicação a fenô-<br />

menos considerados sobre<strong>na</strong>turais ou instigantes à criatividade hu-<br />

ma<strong>na</strong>.<br />

O surgimento do mito se dá inicialmente para a funcio<strong>na</strong>lida-<br />

de, explicação dos fatos , ao mesmo tempo que surge com o objetivo<br />

de registrar e fixar as tradições. Porém o mito sobrevive pela neces-<br />

sidade do ser humano explicar os fatos ludicamente ou, de simples-<br />

mente, ser lúdico. A linguagem do mito abrange as problemáticas<br />

huma<strong>na</strong>s e, desta forma, os mitos surgidos numa determi<strong>na</strong>da cultura<br />

podem ser lidos <strong>por</strong> outras culturas, provocando catarses, identifica-<br />

ções, e/ou simplesmente prazer pela leitura, proliferando mesmo<br />

onde não tenham mais a função educativa e de mantenedor de valo-<br />

res:<br />

O mito prolifera ao contrário em variantes romanescas precisamente<br />

onde não exerce mais sua função. Qualquer que seja o sucesso<br />

das variantes e das reinterpretações, mesmo se elas geram<br />

fenômenos culturais tão im<strong>por</strong>tantes quanto a epopéia ou a tragédia,<br />

a teologia ou a filosofia, mesmo e sobretudo neste caso, a<br />

“verdadeira coisa” desapareceu. Da “verdadeira coisa”, no entan-


to, os homens não deixam de ter necessidade, tanto quanto têm<br />

necessidade de água e de pão. A “verdadeira coisa” é a armadura<br />

de um mundo onde os homens aceitam viver, deve-se esperar,<br />

<strong>por</strong>tanto, que ela se manifesta de uma outra maneira. (Nascimento,<br />

1977, p. 21)<br />

O mito não tem ape<strong>na</strong>s a palavra como medium, mas igual-<br />

mente o afresco, a liturgia, o calendário, o protocolo e todas as espé-<br />

cies de monumentos, outros tantos códigos rivalizando com o conto<br />

em efeitos variados de combi<strong>na</strong>ções.<br />

Sempre que o mito permanece “funcio<strong>na</strong>l”, isto é, associado<br />

às instituições em serviço, ele encerra informação e sabedoria: in-<br />

formação geográfica, climática, agronômica, artesa<strong>na</strong>l; sabedoria<br />

constituindo um código ético, um protocolo, um certo pensamento<br />

da condição huma<strong>na</strong>.<br />

Muito se falou da possibilidade da “morte” do mito, <strong>por</strong>ém o<br />

caráter universal e atem<strong>por</strong>al dos mitos permite não só a sua leitura e<br />

propagação entre diferentes povos e tempos históricos como também<br />

a sua reescritura e assim sua transformação:<br />

Estas transformações que se operam de uma variante a uma outra<br />

do mesmo mito, de um mito a um outro mito, de uma sociedade<br />

para os mesmos mitos ou para mitos diferentes, afetam ora a armada,<br />

ora o código, ora a mensagem do mito, mas sem que este<br />

cesse de existir como tal; elas respeitam assim uma espécie de<br />

princípio de conversação da matéria mítica, ao termo do qual, de<br />

todo mito poderia sempre sair um outro mito. (Nascimento,<br />

1977, p. 9)<br />

Desta forma:<br />

5


6<br />

É preciso reconhecer: o mito de nossa época existe ainda alhures.<br />

Ele existe onde sua <strong>na</strong>rrativa se transmite de boca em boca sem<br />

que ainda nenhuma fábula se escreva; sem que nenhuma <strong>na</strong>rrativa,<br />

ainda, organize-lhe a ação em torno dos três perso<strong>na</strong>gens divino,<br />

heróico e humano. Ele existe onde quer que os homens se<br />

reú<strong>na</strong>m. Do grupo surge a história sem pai; é que o mito já existia,<br />

antes da história. Ele existe <strong>por</strong>tanto desde sempre, dizendo<br />

ocultação e celebração, esquecimento e perpetuação do começo.<br />

(Id., ibid., p. 9)<br />

O mito está relacio<strong>na</strong>do com a origem da existência e traz em<br />

si o caráter de universidade, de atem<strong>por</strong>alidade e de circularidade,<br />

recuperando metaforicamente o retorno ao útero. O mito ao mesmo<br />

tempo é um retorno ao passado já que mostra as tradições e ao mes-<br />

mo tempo é um espelho para o futuro, mostrando sobre a essência<br />

huma<strong>na</strong> e, se <strong>na</strong> sociedade arcaica era ligada ao Cósmico, hoje é<br />

ligado à história. Se no passado tínhamos a criação de heróis divinos,<br />

sobre-humanos, hoje criamos heróis ficcio<strong>na</strong>is ou biográficos. Se a<br />

Olimpíada era uma exaltação aos deuses, hoje permanece ainda co-<br />

mo a superação de capacidades huma<strong>na</strong>s, ao lado de outros es<strong>por</strong>tes.<br />

Se o herói do mito arcaico era o responsável <strong>por</strong> grandes feitos, hoje<br />

ainda o é e serve de referencial aos demais indivíduos.<br />

Hollis 1 , questio<strong>na</strong>; “O que é o heróis hoje? A que mito ele ser-<br />

ve? Existem heróis em um mundo que tolhe cada vez mais o indiví-<br />

duo?” Seguidor de Jung, o autor considera o mito sob 3 níveis : <strong>Mito</strong><br />

como imagem psicodinâmica,, como uma estrutura capaz de trans-<br />

<strong>por</strong>tar energia que, quando carregada, tem o poder de evocar uma<br />

1 HOOLIS, James. <strong>Mito</strong>logemas encar<strong>na</strong>ções do mundo invisível.


esposta enérgica dentro de nós; O mito como cenário pessoal: iden-<br />

tificação com o mito e mito como sistemas de valores tribal- a pre-<br />

sença do mito como história dos valores culturais.<br />

Resumindo, Hollis (2005) define “herói” como um nome pa-<br />

ra uma desig<strong>na</strong>ção de uma personificação de certa energia e inten-<br />

cio<strong>na</strong>lidade que se encontra dentro de todos nós. Embora possamos<br />

ter um acesso incerto a ela, o mito faz essa religação. Ao enxerga-<br />

mos com olhar de descoberta o mundo, às vezes para nós já velho<br />

conhecido, resgatamos a poeticidade e mágica do mito, assim o mito<br />

sai do plano do religioso, como surgiu, para estabelecer-se no cotidi-<br />

ano, <strong>na</strong> <strong>modernidade</strong>.<br />

No item “Freud e o conhecimento da ‘origem’”, Elíade<br />

(2006. p. 73), explica:<br />

O desejo de conhecer a origem das coisas caracteriza igualmente<br />

a cultura ocidental. No século XVII e, sobretudo, no século XIX,<br />

multiplicaram-se as pesquisas concernentes não só à origem do<br />

Universo, da vida, das espécies ou do homem, mas também da origem<br />

da sociedade, da linguagem, da religião e de todas as instituições<br />

huma<strong>na</strong>s. Há um esforço para conhecer a origem do sistema<br />

solar quanto a de uma instituição como o matrimonio ou de<br />

um jogo infantil como a amarelinha.<br />

O inicio do indivíduo seria a primeira infância, e o retorno de-<br />

sejado é a volta ao útero. A psicologia busca nessas fases as raízes<br />

das características individuais. Mas é preciso ter claro, como alerta<br />

em suas obras, os autores Elicea Miarde, Claude Levi Straus, a so-<br />

brevivência dos mitos se deveu a alguns indivíduos e estes também<br />

7


acrescentaram subjetividade aos mitos. Por isso, é possível encon-<br />

trar em obras semelhantes não só características comuns, mas tam-<br />

bém variações. Nas palavras de Góes,<br />

8<br />

O texto é uma tessitura de signos, responsável pela formação global<br />

do significado de suas mensagens, indo da compreensão literal<br />

do texto, sua temática, sua ideologia,. Que interfere, modifica<br />

a interpretação do leitor crítico. A leitura das produções textuais,<br />

em especial de obras da contem<strong>por</strong>aneidade, exige a leitura das<br />

diversas linguagens, além da verbal (imagética, visual, grafotipográfica,<br />

diagramática e outras) que compõem o que denomi<strong>na</strong>mos<br />

hoje, Objeto Novo, livro de literatura de vanguarda. Leitura<br />

re-conhecimento do autor, do contexto, do leitor, da obra.<br />

(Góes, 1980)<br />

Análise de versões de eros e psique<br />

A <strong>na</strong>rrativa de Luiz Galdino, intitulada “Viagem ao reino das<br />

sombras” reconta o mito de <strong>Eros</strong> e Psique. No capítulo “A beleza de<br />

Psique”, Psique é apresentada como a mais bela de três irmãs e que<br />

se sentia infeliz <strong>por</strong> ser exposta <strong>por</strong> essa característica. O problema<br />

<strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa é desencadeado quando Psique é comparada à Afrodite,<br />

que, irritada, pede a seu filho que a fleche para que assim ela se<br />

apaixone e se case. A inveja e a vaidade são dois aspectos da perso-<br />

<strong>na</strong>lidade e permeiam a <strong>na</strong>rrativa: ao se apaixo<strong>na</strong>r <strong>por</strong> Psique, <strong>Eros</strong>,<br />

com a ajuda dos deuses, consegue, em segredo, ficar com Psique sem<br />

mostrar-se a ela. Mas ele tem toda a felicidade inquietada pela inveja<br />

das irmãs de Psique, que a instigam a descobrir quem seu marido era,


argumentando que ele a trataria bem <strong>por</strong> um tempo determi<strong>na</strong>do,<br />

pois seu esposo devia ser mesmo a serpente cuja revelação do orácu-<br />

lo afirmara.<br />

O tema da confiança aparece nesse momento da <strong>na</strong>rrativa: tex-<br />

tualizado explicitamente <strong>na</strong> fala de <strong>Eros</strong>, coincidindo com o discurso<br />

bíblico que preconiza que se deve deixar os pais, família, para formar<br />

outra. A psicologia também faz usos de várias alegorias em que te-<br />

matiza a necessidade do rompimento com os laços parentais para que<br />

se u<strong>na</strong> ao cônjuge: a família de Psique não deveria saber e muito<br />

menos a mãe de <strong>Eros</strong>. É a desconfiança de Psique que quebra o en-<br />

canto da união. A ferida causada pela cera da vela é a materialização<br />

do desapontamento. Como redenção, Psique submete-se a servir às<br />

vontades de Afrodite que cria provas impossíveis, com o objetivo<br />

não de matar Psique e sim destituí-la de beleza. Entretanto, com o<br />

auxílio de outras perso<strong>na</strong>gens, solidários à Psique, ela cumpre as<br />

provas. Tematiza-se no conto que a sabedoria vence as provas. Mas<br />

como já antecipamos, a vaidade vai estar presente no enredo e , ao<br />

carregar o que acreditava ser uma poção de imortalização da beleza,<br />

e querendo mostrar-se bela para seu amado, Psique não resiste à vai-<br />

dade e curiosidade e abre a caixa e, se ela sobrevivera ao mundo dos<br />

mortos (prova destacada pelo título do livro) , acaba sendo atingida<br />

pela poção do sono.<br />

Ao pressentir o desfalecimento de sua amada, <strong>Eros</strong> rompe com<br />

sua mãe, e luta <strong>por</strong> Psique. Pedindo aos deuses que transformem-<strong>na</strong><br />

em uma deusa para que possam se unir. Psique é a união do amor e a<br />

9


sabedoria, interpretado, como mito alegórico, são aspectos do mesmo<br />

individuo, ou ainda, arquétipos de indivíduos diferentes.<br />

10<br />

Passemos ao segundo texto.<br />

O texto de Câmara Cascudo já tem como título “A bela e a Fe-<br />

ra”. Se no texto anterior, “bela” e “fera” eram adjetivos implícitos,<br />

nesse texto são o nome da perso<strong>na</strong>gens. Nessa versão, o pai de Bela<br />

era um rico mercador falido que <strong>por</strong> isso, afasta-se da cidade. Com<br />

mais duas filhas interesseiras, ao partir em viagem de negócios tem<br />

os mais caros pedidos realizados <strong>por</strong> elas. Bela, no entanto, disse que<br />

desejava ape<strong>na</strong>s que ele fosse feliz e a abençoasse. Mas o pai insistiu<br />

que Bela escolhesse uma prenda. Bela pede a mais bela flor encon-<br />

trada <strong>por</strong> ele. A flor é o que desencadeia a problemática da <strong>na</strong>rrativa.<br />

O pai de Bela não obteve sucesso nos negócios e desesperançoso de<br />

encontrar hospedagem, avista um castelo. A medida que entrava,<br />

chamava, mas embora ninguém respondesse, o jantar e o quarto<br />

estavam preparados, como à espera dele.<br />

Já <strong>na</strong> hora da partida, ao avistar um jardim, o mercador lem-<br />

bra-se do pedido de Bela, e ao arrancar uma flor, surge de súbito a<br />

Fera, esbravejando: “Em paga de eu te haver acolhido em meu palá-<br />

cio,vens roubar o meu sustento! Pois não sabes que eu me alimento<br />

só de rosas?”<br />

O mercador tenta se redimir e devolver a rosa, mas Fera é irre-<br />

dutível, afirmando querer em troca da flor a primeira coisa que o<br />

mercador avistar ao chegar em casa. O ser avistado ao entrar em casa<br />

não foi um cachorrinho, como pensara, e sim Bela. Depois do relato


do ocorrido, Bela, resig<strong>na</strong>da, foi ao encontro de sua sorte. Assim<br />

como no mito, Bela foi bem tratada e também sentiu saudades dos<br />

seus familiares. Depois de muito insistir, Fera permitiu sua visita aos<br />

parentes, mas a instruía a não tirar o anel, para não se esquecer dele.<br />

Em algumas versões não é o anel, mas o espelho mágico que<br />

liga Bela a Fera. As irmãs, invejosas, com a felicidade de Bela es-<br />

condem o anel. Quando advertidas pelo pai, devolvem o anel e Bela<br />

retor<strong>na</strong> ao castelo, encontrando Fera quase moribunda, no jardim.<br />

Supondo que Fera estivesse morto, e como muito o estimava, deu-lhe<br />

um beijo, transformando-o em príncipe. Nesse trecho temos a meta-<br />

morfose, o desencantamento com o beijo, presentes em vários contos<br />

de fadas.<br />

A Mauricio de Sousa produções também revisitou esse mito e<br />

fazendo uso da linguagem verbal e não-verbal simultaneamente,<br />

reconta parodisticamente, uma vez que o enredo é modificado e é<br />

dado ao texto comicidade. Bela é Magali, filha de um caixeiro via-<br />

jante, que tem mais duas filhas que enche-o de pedidos a cada via-<br />

gem. Magali-Bela sempre diz <strong>na</strong>da querer pois está feliz. Após insis-<br />

tência do pai, pede uma melancia. Já notamos aqui a variação textu-<br />

al: melancia é a fruta preferida de Magali. O pai havia esquecido de<br />

comprar o seu presente, mas ao avistar um casarão com um pomar,<br />

resolve colher uma, acreditando não haver problemas, já que o pomar<br />

estava repleto, mas assim que a pega, ouve grunidos e pensa ser um<br />

cachorro; assustado, tenta se desculpar, mas como no texto-base é<br />

em vão: Fera exige a troca. Chegando em casa e contando às filhas,<br />

11


Bela, sentindo se culpada, oferece-se à troca. Fera a trata com hosti-<br />

lidade e tenta amedontrá-la, mas Bela a compara a seu gato Mingau,<br />

afirmando ainda que, embora saiba que sentirá saudades de seus<br />

familiares, gostará de ficara <strong>na</strong>quela casa, apesar da restrição de co-<br />

mer melancias. Esse trecho assemelha-se ao conto “Barba Azul”, em<br />

que há restrição à entrada em um quarto.<br />

12<br />

Magali-Bela resiste à proibição durante um bom tempo, mas<br />

como melancia é sua fruta preferida, acabada comendo não uma, mas<br />

todas do pomar. Ao perceber o que estava acontecendo, Fera a cha-<br />

ma de traidora, pois estavam convivendo muito bem. Fera explica<br />

que morrerá, pois sua vida, segundo uma maldição, estava condicio-<br />

<strong>na</strong>da à existência das melancias. Sentindo-se culpada, Magali-Bela<br />

chora. Fera, magicamente transforma-se em um belo príncipe e ex-<br />

plica que o feitiço fora quebrado pelo amor de Bela(nessa versão<br />

expresso pelas lágrimas e não <strong>por</strong> beijo).<br />

Na ce<strong>na</strong> fi<strong>na</strong>l, já casados, em um jantar de família, como so-<br />

bremesa Magali pede uma melancia e ao vê-la comendo desenfrea-<br />

damente, o príncipe diz: Äs vezes, ela parece uma fera!”<br />

<strong>Mito</strong> e outras mídias<br />

O cinema também utilizou-se dos mitos como fonte de inspi-<br />

ração. Hércules foi um grande sucesso de bilheteria, assim como<br />

Mulan, um mito oriental. Há 3 anos, parodiando os clássicos Disney,<br />

a DreamWorks criou o Shrek, que recupera parodisticamente várias


perso<strong>na</strong>gens da literatura infantil. Shrek é, <strong>por</strong> assim dizer, a Fera:<br />

grotesco, poucos amigos, arredio. As perso<strong>na</strong>gens da literatura infan-<br />

til estão fugindo do conde Farquaad, <strong>por</strong> isso ele é eleito o herói de-<br />

les para defendê-los. Como anti-herói ele só aceita defendê-los e<br />

salvar a bela Fio<strong>na</strong> de um dragão <strong>por</strong>que entregando a princesa ao<br />

conde,como acordo, as perso<strong>na</strong>gens dos contos de fadas seriam liber-<br />

tas e poderiam voltar aos seus reinos, deixando Shrek em paz. O<br />

convívio com Fio<strong>na</strong> abranda seu coração e ele se vê apaixo<strong>na</strong>do <strong>por</strong><br />

ela. Mas ao comparar sua feição e seus hábitos, tem certeza de que<br />

seu amor é impossível.<br />

Shrek, é uma obra moder<strong>na</strong> que parodia o texto clássico, Fio<strong>na</strong><br />

é que está enfeitiçada, mas <strong>por</strong> uma boa magia: de dia ela é uma bela<br />

princesa, à noite, assume sua verdadeira forma de ogra. Dessa forma,<br />

se o beijo e o amor desencanta os príncipes e as feras, nessa obra, o<br />

amor igualá-os: ela assume sua forma de ogra e rompendo com os<br />

valores, apesar de ser princesa, casa-se com o ogro, sem títulos no-<br />

bres.<br />

Considerações fi<strong>na</strong>is<br />

Observando as várias modalidades de <strong>na</strong>rrativas constatamos<br />

que há sempre a influência de um gênero em outro, <strong>por</strong> isso observa-<br />

se a presença de elementos mítico em vários gêneros <strong>na</strong>rrativos, co-<br />

mo pode-se constatar <strong>na</strong>s afirmações da citação a seguir:<br />

Sabe-se que, assim como outros gêneros literários, a <strong>na</strong>rrativa épica<br />

e o romance prolongam, em outro plano e com outros fins, a<br />

13


14<br />

<strong>na</strong>rrativa mitológica. Em ambos os casos, trata-se de contar uma<br />

história significativa, de relatar uma série de eventos dramáticos<br />

ocorridos num passado mais ou menos fabuloso. É inútil recordar<br />

o processo longo e complexo que transformou uma “matéria mitológica”<br />

em um “objeto” de <strong>na</strong>rração épica. O que deve ser salientado<br />

é que a prosa <strong>na</strong>rrativa, especialmente o romance tomou,<br />

<strong>na</strong>s sociedades moder<strong>na</strong>s, o lugar ocupado pela recitação dos mitos<br />

e dos contos <strong>na</strong>s sociedades tradicio<strong>na</strong>is e populares. Melhor<br />

ainda, é possível dissecar a estrutura “mítica de certos romances<br />

modernos, demonstrar a sobrevivência literária dos grandes temas<br />

e dos perso<strong>na</strong>gens mitológicos. (Nascimento, 1977, p. 15)<br />

Bruno Bettelheim, no livro “A psicanálise dos contos de fa-<br />

das”, compara as várias modalidades de <strong>na</strong>rrativas e faz algumas<br />

considerações sobre o mito, comparando-o com os contos de fadas:<br />

Há uma concordância geral de que os mitos e contos de fadas<br />

falam-nos <strong>na</strong> linguagem de símbolos representando conteúdos in-<br />

conscientes. Seu apelo é simultâneo à nossa necessidade de ideais do<br />

ego também. Por isso é muito eficaz, e no conteúdo dos contos, os<br />

fenômenos internos psicológicos recebem corpo em forma simbólica<br />

(Bettelheim, 1980, p. 47).<br />

Ítalo Calvino e Philippe Boyer coincidem perfeitamente com<br />

os psica<strong>na</strong>listas neste ponto: o de que o mito é simbologia, mas “para<br />

uns e outros, o mito é transgressão e o escritor que ousa profa<strong>na</strong>r a<br />

pági<strong>na</strong> branca do interdito é sacrilégio: duplamente sacrilégio <strong>por</strong>que<br />

ele rouba ainda a autoridade, salvo se declarar ape<strong>na</strong>s instrumento de<br />

transmissão realista” (Nascimento, op. cit., p.15)<br />

Para os psicólogos junguianos, o ato heróico distancia os de-<br />

mais mortais dos heróis, a identificação do leitor se dá no nível do


superego, os heróis fazem grandes feitos os quais nos mortais não<br />

são capazes de realizar, o tempo do mito é único. O conto de fadas<br />

consagra-se pelo fi<strong>na</strong>l feliz, já <strong>na</strong> mitologia isso nem sempre aconte-<br />

ce. O fi<strong>na</strong>l resulta numa contribuição que não aparece só no plano da<br />

perso<strong>na</strong>gem, mas muitas vezes atinge a humanidade, ou ao menos<br />

uma <strong>na</strong>ção. Há mitos universais que falam do surgimento do dia e da<br />

noite, que falam sobre o dilúvio. Temos vários mitos que explicam o<br />

surgimento de frutos e ainda das grandes descobertas: a lenda da<br />

mandioca, a lenda do guaraná, a lenda do milho. Mas vários mitos<br />

figurativizam aspectos da perso<strong>na</strong>lidade huma<strong>na</strong>: <strong>Eros</strong>, Psique, Nar-<br />

ciso, Édipo, Ïcaro, entre outros, são utilizados como referência <strong>na</strong><br />

Psicologia.<br />

Os mitos surgiram para explicar os mistérios que instigam a<br />

curiosidade e a imagi<strong>na</strong>ção huma<strong>na</strong>, e <strong>por</strong> tratarem de temas tão in-<br />

trigantes, os mitos estão presentes em várias culturas, sendo propa-<br />

gados pelas constantes reescritas e releituras. A mitologia grega,<br />

indíge<strong>na</strong>, as lendas orientais e africa<strong>na</strong>s são exemplos de <strong>na</strong>rrativas<br />

que elucidam a busca do ser humano. Os mitos, além de característi-<br />

cas literárias, apresentam e simultaneamente propõem uma leitura e<br />

uma reflexão sobre o ser humano e sobre mundo, como bem eluci-<br />

dam as versões e as leituras de “<strong>Eros</strong> e Psique” e “A Bela e a Fera”.<br />

Referências bibliográficas<br />

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