Baixe o 1º capítulo deste livro - Valente
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Dira Paes<br />
Ilustrações P. P. Condurú<br />
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– Cabra-cega de onde tu vieste?<br />
– Do Maranhão.<br />
– O que tu trouxeste?<br />
– Uma cuia de camarão.<br />
– Ouro ou prata?<br />
– Ouro.<br />
– Então vira que nem um besouro.<br />
Inspirado no jogo recreativo da cabra-cega.<br />
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Para Flor, minha mãe, Pablo, meu amor, e<br />
Inácio, minha vida.<br />
Chiquinho e Carmita deram três rodopios<br />
em Flor, que quase foi ao chão. A venda que<br />
cobria seus olhos, bem atada pelos irmãos,<br />
não deixava a pequena enxergar nem uma<br />
fresta de sol daquela tarde de verão. Dentro da<br />
escuridão da venda, ela sabia de cor e salteado<br />
cada pedacinho daquele quintal. Cada açaizeiro,<br />
pupunheira, taperebazeiro, cupuaçuzeiro,<br />
ingazeiro, miritizeiro... cada pé de fruta, dos<br />
quais ela e os irmãos se fartariam após as<br />
brincadeiras de todas as tardes.<br />
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Naquela manhã, Flor já havia<br />
ido à escola na montaria do Luci,<br />
que todo dia levava a criançada e a<br />
trazia de volta para casa. Ela estava<br />
impressionada com a lição que sua<br />
professora Dirce lera para a turma,<br />
logo no início da aula. Flor destacava-se<br />
dos colegas, pois gostava de<br />
decorar todas as lições na ponta da<br />
língua, respeitando cada vírgula,<br />
cada verbo, cada respiração.<br />
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Os irmãos galhofavam ao seu redor, cha-<br />
mando-a:<br />
– Ei, pata-cega, cabrita, coxa grossa, tu<br />
não me pegas....<br />
Ela tateava o ar em busca de suas vozes,<br />
cheiros ou movimentos ao pisarem as folhas<br />
espalhadas pelo quintal. Procurava aquelas<br />
duas pestes incansavelmente, balançando os<br />
braços fortinhos para todos os lados, e, ao<br />
mesmo tempo, revolvia em seu pensamento<br />
a tal lição. Foi assim, dividida entre as duas<br />
funções, que a pequena fez um gesto repentino<br />
para trás e conseguiu agarrar com toda força<br />
o vestido de Carmita, que de todo jeito tentou<br />
desvencilhar-se da irmã, esbravejando:<br />
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– Não vale, tu rasgaste o meu vestido,<br />
não vale....<br />
Mas Flor não a soltou, feliz por ter<br />
conseguido algo que parecia ser impossível<br />
ver no escuro.<br />
Sentindo-se vitoriosa ao tirar a venda,<br />
a cegueira da claridade invadiu seus<br />
olhos e Flor mal teve tempo de ver os<br />
dois lançando-se às águas frescas do rio<br />
Campompema, o rio que era a sua rua,<br />
pois era nascida e criada naquela ilha<br />
da floresta amazônica.<br />
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Já na água, eles continuaram a<br />
caçoada, pulando e rindo. Chiquinho<br />
imitava o nadar do boto, e fazia de<br />
conta que ia pegar Carmita. Ela fugia<br />
às gargalhadas, mas com medo<br />
de ser levada para o fundo do rio.<br />
Flor ficou brava e desistiu de continuar<br />
a brincadeira no rio como seria<br />
de costume. Zito, seu outro irmão,<br />
que não era dessas brincadeiras de<br />
correr ou pular, chamou-a:<br />
– Florzinha, vem cá, rapidola...<br />
Vem ver o que eu fiz.<br />
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A caçula correu sem titubear, e encontrou<br />
o irmão em frente a sete garrafas penduradas<br />
no frechal da varanda da casa. Cada uma continha<br />
um tanto a mais de água que a outra.<br />
Ele tocava-as com uma faca e as garrafas emitiam<br />
o som de todo o dó-ré-mi-fá-sol-lá-sidó.<br />
Zito parecia hipnotizado pela melodia que<br />
conseguia arrancar daquelas garrafas velhas<br />
de guardar azeite de andiroba e copaíba.<br />
A menina brincou com o irmão, até seus<br />
ouvidos cansarem de tanto tilintar daquele<br />
dó-ré-mi-fá. Lembrou-se de seu <strong>livro</strong> Na fazenda<br />
Santa Margarida, e correu para reler a<br />
lição que matutava em sua cabeça. Os trovões<br />
anunciavam a chuva das quatro da tarde e<br />
os estrondos pareciam fazer o céu desabar.<br />
O frescor das chuvas de verão levou Flor a se<br />
aconchegar em sua rede para a leitura.<br />
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Nelson mora num bairro operário. Sua casa<br />
é tão pobre que tem vergonha de dizer aos companheiros<br />
onde reside. Há três dias não vai às<br />
aulas. Sérgio, sentindo a ausência do colega, resolveu<br />
visitá-lo. Na padaria da esquina comprou<br />
um pacote de biscoitos e na quitanda, três maçãs,<br />
conforme sua mãe lhe recomendara, e seguiu para<br />
o endereço que a professora lhe dera. Chegando à<br />
casa 1303 da rua dos Mundurucus, bateu à porta.<br />
Veio lhe atender uma senhora magra e alta.<br />
– Boa tarde, aqui é a casa do meu colega<br />
Nelson?<br />
– Sim, o que deseja?<br />
– Eu vim visitá-lo.<br />
– Pois não, pode entrar.<br />
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