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Jornada dos anJos - Vivaluz Editora

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<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong><br />

<strong>anJos</strong>


<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong><br />

<strong>anJos</strong><br />

Pelo espírito<br />

Lucius<br />

romance psicografado por<br />

sandra carneiro


Copyright 2010 by<br />

VIValuz EDItora EsPírIta ltDa.<br />

Rua Emídio Fazzio, 114 — Alvinópolis<br />

PABX: (11) 4412-1209 — Fax: (11) 4412-8750<br />

CEP: 12942-420 — Atibaia — SP<br />

vivaluz@vivaluz.com.br<br />

www.vivaluz.com.br<br />

Da<strong>dos</strong> Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />

(Preparado na <strong>Editora</strong>)<br />

Lucius (Espírito).<br />

<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong> Anjos / pelo espírito Lucius / psicografado por Sandra<br />

Carneiro. - -<br />

1. ed. - - Atibaia, SP : <strong>Vivaluz</strong> <strong>Editora</strong> Espírita Ltda, 2010.<br />

ISBN 978-85-89202-10-7<br />

1. Espiritismo 2. Psicografia 3. Romance espírita I. Carneiro,<br />

Sandra. II. Título<br />

10-02187 CDD-133.9<br />

Índices para catálogo sistemático:<br />

1.Romance espírita : Espiritismo 133.9<br />

revisão de texto<br />

Capa e projeto gráfico<br />

Coordenação editorial<br />

Imagens de capa e miolo<br />

Impressão<br />

1ª edição — Agosto 2010<br />

18.000 exemplares<br />

Gisele Quirino<br />

Maria Helena de Mola<br />

SGuerra Design<br />

Alexandre Marques<br />

© 2010 Istockphotos<br />

Lis Gráfica e <strong>Editora</strong><br />

Os direitos autorais deste livro foram doa<strong>dos</strong> pelo autor espiritual à <strong>Vivaluz</strong> <strong>Editora</strong>,<br />

para contribuir com a divulgação da Doutrina Espírita.


Prefácio<br />

O tempo é curto. É imprescindível estarmos prontos e disponíveis para<br />

fazer o trabalho que se apresenta diante de nós. Não percamos momentos<br />

preciosos correndo atrás de ilusões efêmeras, que não nos levarão a nada.<br />

Acordemos do longo e pesado sono que nos entorpece os senti<strong>dos</strong><br />

e, principalmente, a percepção espiritual, dificultando nossa<br />

compreensão do que é verdadeiro e perene.<br />

Façamos uso da prece e não nos permitamos adormecer de novo.<br />

Abandonemos definitivamente a atitude que nos afasta de Deus e traz<br />

sobre nós profundo sofrimento.<br />

É hora de despertar!<br />

Que Jesus, da luminosa morada onde nos aguarda há quase 2<br />

mil anos, nos ajude a trilhar o caminho do bem, da renúncia e do<br />

amor, libertando nossas consciências e nossas vidas para iniciarmos a<br />

jornada da iluminação interior, rumo à perfeição, ao Criador.<br />

Amigo leitor, que a paz do Mestre envolva o seu coração, bem<br />

como nossa morada terrestre, em fulgurante esperança de renovação.<br />

Lucius


O mar estava agitado. A pequena embarcação se afastava com dificuldade,<br />

buscando alcançar o navio que esperava para partir. Com<br />

as vestes ensopadas e água até a cintura, João 1 e os outros cristãos<br />

tentavam atingir a praia, mas eram joga<strong>dos</strong>, pelas fortes ondas da arrebentação,<br />

exatamente onde acabavam de ser deixa<strong>dos</strong>. Cefas – uma<br />

senhora cristã, exilada junto com os demais do grupo – caiu e, na<br />

tentativa de se levantar, chorava desesperada:<br />

– O que será de nós agora? Como sairemos deste lugar? Vamos<br />

morrer aqui!<br />

Paciente e amoroso, João procurava acalmá-la:<br />

– Tenha fé, minha irmã, Deus nunca nos desampara. Ele sempre<br />

cuida de to<strong>dos</strong>.<br />

E enquanto a ajudava a se erguer, prosseguiu:<br />

– Não desanime. Por mais difícil que seja nossa situação, vamos<br />

confiar no Mestre.<br />

1 João foi um <strong>dos</strong> doze apóstolos de Jesus.<br />

Introdução


8<br />

Sandra Carneiro | Lucius<br />

Um pouco mais confortada, a mulher assentiu com a cabeça e<br />

enxugou as lágrimas misturadas à água do mar. Explicou a razão de<br />

sua angústia:<br />

– Não temo por mim, apóstolo João, e sim por meus filhos, que<br />

ficaram em Éfeso. É por eles que me angustio. Estou pronta a dar a<br />

vida pelo Senhor, se ele assim o desejar, mas e meus filhos? Como é<br />

difícil para uma mãe ver os filhos ameaça<strong>dos</strong>...<br />

– Eu posso imaginar, Cefas, posso mesmo. No entanto, Jesus<br />

está no comando de nossas vidas, não está?<br />

Cefas o olhava calada e, ao chegarem finalmente à praia, exaustos,<br />

ele aconselhou:<br />

– Agora descanse. Precisamos recuperar as forças.<br />

Aqueles eram mais alguns <strong>dos</strong> muitos cristãos exila<strong>dos</strong> por ordem<br />

do imperador romano Domiciano. Os componentes do pequeno<br />

grupo estenderam-se na areia quente e fina, enquanto tentavam<br />

recompor as forças e os corações, abala<strong>dos</strong> pela longa e difícil jornada.<br />

Não obstante a solicitude com que atendia e se preocupava com<br />

to<strong>dos</strong>, João parecia cansado. Olhou ao redor, notando a beleza do cenário:<br />

Patmos era uma ilha esplendorosa, localizada no leste do mar<br />

Egeu. Acostumado aos encantadores cenários já vistos quando saía para<br />

a pesca, e depois pelas viagens que empreendera para difundir o Evangelho<br />

de Jesus, ele estava embevecido diante da pequena ilha grega. Já<br />

ouvira muitos falarem daquele lindo lugar, porém nunca estivera ali<br />

antes. Acomodou-se ao lado <strong>dos</strong> demais e ficou a contemplar a bela paisagem.<br />

A brisa perfumada soprava suavemente. O sol se punha devagar,<br />

deixando no horizonte um rastro de tons avermelha<strong>dos</strong> e intensos. A<br />

vegetação da ilha parecia acalentar o entardecer e recebê-lo com todo o<br />

prazer, pois o aroma exalado pelas plantas era doce e agradável.<br />

Não demoraria a anoitecer. Ebenezer tocou o ombro de João e<br />

sugeriu:<br />

– Não seria melhor procurarmos abrigo para passarmos a noite?<br />

Será que conseguiremos encontrar ainda hoje outros cristãos, também<br />

presos na ilha?


<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong> anjos 9<br />

– Não tenho a menor ideia de onde possam estar...<br />

– A ilha é pequena, João, e não creio que estejam muito longe<br />

da praia. Seria melhor que nos colocássemos logo a caminho.<br />

Ao observar o olhar de João, que focalizava o grupo, Ebenezer<br />

aconselhou:<br />

– Embora estejamos to<strong>dos</strong> cansa<strong>dos</strong>, não podemos passar a noite<br />

aqui. Temos de procurar abrigo.<br />

João sorriu ao admitir:<br />

– Seu bom senso é inegável.<br />

E dirigindo-se ao grupo, pediu:<br />

– Vamos, irmãos, precisamos de um abrigo. Sei que estão to<strong>dos</strong><br />

esgota<strong>dos</strong>, mas não podemos demorar mais.<br />

– Também parece cansado, apóstolo.<br />

João abriu sincero sorriso e respondeu:<br />

– E estou mesmo! A idade chegou de vez para mim, minha<br />

irmã...<br />

Entregando-se a enorme esforço, puseram-se a caminho, em<br />

busca de outros que já estivessem na ilha. Caminharam cerca de meia<br />

hora e avistaram algumas casinhas improvisadas, feitas de madeira e<br />

cobertas com vegetação. Antes que alcançassem o minúsculo vilarejo,<br />

alguns moradores correram ao encontro do grupo. Um <strong>dos</strong> homens<br />

perguntou, ainda a distância:<br />

– São cristãos?<br />

Foi João quem respondeu:<br />

– Somos, viemos de Éfeso.<br />

Um <strong>dos</strong> que vinham mais atrás gritou:<br />

– João! Apóstolo João? É você mesmo?<br />

Quando reconheceu o companheiro de longos anos, com quem<br />

fizera muitas viagens tendo por objetivo disseminar o Evangelho,<br />

João exultou:<br />

– Ananias, é você?<br />

Ao se encontrarem, trocaram apertado e carinhoso abraço.<br />

Emocionado, o mais jovem disse, enxugando as lágrimas:


10<br />

Sandra Carneiro | Lucius<br />

– Não pouparam nem a você, João!<br />

– Ora essa, e por que poupariam?<br />

– Já está com idade avançada! Eles deveriam levar isso em conta.<br />

Além do mais, você só faz o bem a to<strong>dos</strong>...<br />

João sorriu e fitou o outro nos olhos:<br />

– Você esquece que não pouparam o melhor de nós to<strong>dos</strong>, Ananias?<br />

Aquele que só fez o bem em toda a sua vida? Quem pode exigir ser<br />

tolerado ou aceito depois do tratamento que teve o Mestre <strong>dos</strong> Mestres?<br />

Não, não podemos nos iludir jamais. Nossa luta é difícil. Jesus já nos<br />

ensinou que o caminho para aqueles que desejam segui-lo é estreito.<br />

Fez-se longo silêncio, e Ananias convidou:<br />

– Vamos à minha casa. Mesmo pequena e improvisada, to<strong>dos</strong><br />

nos arranjaremos por lá.<br />

Depois de conversarem muito e trocarem informações sobre o<br />

dia-a-dia na ilha e o que acontecia no continente, com notícias de<br />

amigos e parentes de muitos daqueles que ali estavam há mais tempo,<br />

Raquel, a irmã de Ananias, aproximou-se e sugeriu:<br />

– Devem estar com fome. Vou servir o jantar. Embora bastante<br />

frugal, vai alimentar a to<strong>dos</strong>.<br />

Depois da leve refeição, sentaram-se à volta de João e alguns<br />

pediram:<br />

– João, conte-nos uma história sobre Jesus. Temos ouvido muitas,<br />

mas sei que você deve saber de outras que ainda não conhecemos.<br />

O rosto de João iluminou-se, refletindo suave luminosidade que<br />

imediatamente envolveu a to<strong>dos</strong>. O cansaço que sentia desapareceu,<br />

ele ajeitou-se no assento que ocupava e disse sorrindo:<br />

– É sempre uma grande alegria poder relembrar as experiências<br />

preciosas que tivemos ao lado de Jesus de Nazaré.<br />

E pôs-se a narrar episódios que vivenciara como discípulo de<br />

Jesus. Ficaram acorda<strong>dos</strong> até muito tarde, relembrando as doces<br />

experiências.<br />

No plano espiritual, em torno do pequeno agrupamento,<br />

brilhava intensa luz. Se os olhos materiais o permitissem, eles se


<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong> anjos 11<br />

surpreenderiam ao observar a numerosa companhia espiritual com<br />

que contavam naquela noite. Um grupo bem maior de espíritos envolvia<br />

aqueles que se reuniam na Terra, e com eles apreciava as histórias<br />

sobre o enviado de Deus. Entre seus integrantes estava Ernesto,<br />

outrora exilado de Capela. Só muito mais tarde, João disse:<br />

– Bem, agora gostaria de descansar.<br />

Ananias concordou com a cabeça e o ajudou a se levantar, enquanto<br />

dizia:<br />

– Ficaria aqui a noite toda ouvindo você.<br />

Ao colocar-se de pé, João bateu levemente nos ombros do mais<br />

novo e disse:<br />

– Teremos muitas ocasiões para conversar, não é mesmo?<br />

– Acha que ainda ficaremos muito por aqui?<br />

– Quem sabe? De toda forma, vamos aproveitar bem nosso<br />

tempo. Tenho uma porção de histórias sobre Jesus para compartilhar.<br />

Depois de acomodar a to<strong>dos</strong>, distribuindo-os pelos espaços disponíveis<br />

nas pequenas casas, Ananias voltou, sentou-se e, sorvendo<br />

um copo de água fresca, em um suspiro desabafou com Raquel:<br />

– Não sei se fico triste ou feliz com a chegada de João.<br />

A irmã afirmou:<br />

– Quanto a mim, estou aliviada por tê-lo conosco. Já estava<br />

começando a perder as esperanças...<br />

No dia seguinte, mal os primeiros raios de sol surgiram no horizonte,<br />

João já se levantara e, silencioso, saíra da pequena cabana que<br />

os abrigava. Caminhou devagar em direção ao mar e em algum tempo<br />

avistou a praia. Admirou a beleza do alvorecer, com os raios cada vez<br />

mais fortes do astro-rei rasgando o céu até dominar o espaço. O dia<br />

amanhecia belo e cheio de energia. João olhou ao redor e notou uma<br />

pedra bem desenhada que poderia servir de banco. Sentou-se, ainda<br />

contemplando o mar e o céu. Depois, indagou em pensamento:<br />

– Deus, meu Pai, Mestre Jesus, o que desejam de mim? Estou<br />

aqui, isolado de tudo e de to<strong>dos</strong>. Como prosseguir com a tarefa<br />

de levar o Evangelho ao povo, de difundir seus ensinamentos, se


12<br />

Sandra Carneiro | Lucius<br />

permitiram que para cá eu viesse? É chegado o momento da minha<br />

passagem para o mundo espiritual?<br />

Ernesto, espírito que fora seu pai em existência longínqua, em<br />

Capela, afagou-lhe os cabelos e sussurrou-lhe ao ouvido: “Não, querido<br />

Henrique, não é o momento da sua transição. Serene seu coração<br />

e espere tranquilo. Ainda tem muito trabalho a fazer. Contamos com<br />

você, com sua força física e sua fé em Jesus”.<br />

Registrando no coração aquelas palavras, João sorriu e falou<br />

baixinho:<br />

– Estou aqui, Senhor, pronto para fazer tudo o que de mim<br />

desejar. Sou seu servo.<br />

Ele se calou. Mais uma vez Ernesto afagou-lhe os cabelos e beijou-lhe<br />

a fronte envelhecida. Àquela altura João já somava 85 anos de<br />

vida, e ainda mantinha vigor físico que impressionava a to<strong>dos</strong>.<br />

O apóstolo continuou a meditar e orar por mais algum tempo.<br />

Foi interrompido pela voz amiga de Ananias:<br />

– Sabia que o encontraria aqui.<br />

João sorriu para o companheiro, que logo se acomodou ao seu<br />

lado e comentou:<br />

– É lindo ver o nascer do sol deste local. Muitas vezes tenho<br />

vindo para apreciar a beleza e orar...<br />

– É um lugar ideal para a prece. O silêncio ainda domina a paisagem<br />

e tudo vai despertando aos poucos, à medida que oramos. É como se<br />

nos integrássemos a toda a natureza, louvando a Deus pelo dom da vida.<br />

Ananias ficou calado. Lágrimas brotaram em seus olhos e lhe<br />

desceram pela face. Limpou o rosto, porém elas teimavam em cair.<br />

João tocou-lhe o ombro fraternalmente e indagou:<br />

– O que foi, Ananias? O que o entristece tanto, meu irmão?<br />

– Eu não entendo bem o que acontece, João. Por que estamos<br />

aqui, separa<strong>dos</strong> de nossos parentes e amigos? Estamos tentando fazer<br />

o bem, conforme Jesus nos ensinou, e somente isso. Não infringimos<br />

nenhuma lei, e tantos cristãos já foram sacrifica<strong>dos</strong>, tantos... Por que<br />

isso está ocorrendo, João? Você compreende?


<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong> anjos 13<br />

– Meu caro Ananias, não se deixe abater. A tristeza pode vir, é<br />

normal, mas não permitamos que ela tome conta de nós. Lutemos<br />

contra a tentação do abatimento e do sentimento negativo de derrota.<br />

Lembre-se de que somos mais do que vencedores por aquele que nos<br />

amou até a morte.<br />

Depois de breve silêncio, Ananias continuou, enxugando as<br />

lágrimas:<br />

– Eu sei, João, e por isso me entristeço. Não consigo ter fé igual<br />

à que vejo em você e em tantos outros cristãos. Apesar de amar o<br />

Mestre e confiar nele, às vezes fico realmente cansado de lutar tanto.<br />

Por que tudo isso acontece?<br />

– As resistências e oposições que levaram Jesus ao madeiro são<br />

as mesmas que nos perseguem e querem nos calar. Assim como acham<br />

que emudeceram Jesus, matando-o, pretendem matar a to<strong>dos</strong> nós,<br />

para silenciar a própria consciência que lhes desperta sutilmente na<br />

alma. Não querem enxergar, pois isso os obrigaria a mudar, a abrir<br />

mão de seus interesses, de seu orgulho, das ilusões sobre si mesmos e<br />

sobre o mundo que acalentam no íntimo. Jesus os incomodou, Ananias,<br />

e nós, igualmente, muito os incomodamos.<br />

Ananias ficou novamente pensativo. João prosseguiu:<br />

– Apesar de tudo, veja que eles não conseguem calar os cristãos.<br />

Alguns realmente foram sacrifica<strong>dos</strong>, mas muitos outros estão abraçando<br />

a causa do Evangelho.<br />

– E dá para crer que logo seremos aceitos e finalmente poderemos<br />

viver nossas vidas, tentando aplicar e ensinar o que Jesus<br />

nos deixou? Isso só fará bem às pessoas... Como é possível que não<br />

percebam?<br />

Dessa vez foi João que nada disse. Ananias suspirou fundo, em<br />

curto intervalo, e confessou:<br />

– Estou cansado, João. Foi muito doloroso para mim perder<br />

entes queri<strong>dos</strong> da minha família. Você sabe, meu pai e meus irmãos<br />

foram mortos por ordem de Domiciano. Minha mulher e meus filhos<br />

estão em Éfeso, escondi<strong>dos</strong> na casa de amigos. Não consigo perdoar


14<br />

Sandra Carneiro | Lucius<br />

totalmente, conforme Jesus nos ensinou. Sinto muita dor no coração,<br />

muita saudade...<br />

– Ananias, você sabe que seu pai e seus irmãos não morreram!<br />

Estão vivos e a serviço de Jesus, em outra dimensão da vida. Eles estão<br />

bem, muito bem!<br />

Subitamente, João parou de falar, fechou os olhos por um instante<br />

e em seguida os abriu.<br />

– E estão aqui agora – disse.<br />

Ananias arregalou os olhos e perguntou:<br />

– Aqui, conosco? Eles estão aqui?<br />

– Sim. Seu pai pede que você se tranquilize, pois Ester e as<br />

crianças passam bem. Estão seguras e bem protegidas.<br />

Ananias, tocado pela energia de amor que emanava do pai e <strong>dos</strong><br />

irmãos desencarna<strong>dos</strong>, vertia copioso pranto. João prosseguiu:<br />

– Seu pai o envolve em terno abraço, Ananias, e lhe diz que eles<br />

partiram porque a hora havia chegado; já tinham cumprido a tarefa<br />

que lhes cabia na encarnação. Agora precisam dar sequência ao trabalho,<br />

no plano espiritual, e contam com sua ajuda para realizá-lo. Eles<br />

têm permanecido muitas vezes ao seu lado, intuindo-o e orientandoo<br />

quanto à forma de colaborar.<br />

Limpando as lágrimas, ele disse:<br />

– Gostaria de poder abraçá-los também. Eu os amo tanto...<br />

– Eles sabem, sentem o seu carinho. Todavia, você os ajudará<br />

muito mais confiando na Providência e sabendo que continuam por<br />

perto.<br />

Ananias calou-se, tomado pela emoção. Aos poucos se acalmou<br />

e, depois de prolongado silêncio, afirmou:<br />

– Estou melhor, e só posso agradecer-lhe por me proporcionar<br />

tamanha alegria.<br />

Sem dizer nada, João abraçou carinhosamente o amigo. Então,<br />

Ananias convidou:<br />

– Não seria melhor irmos? Você precisa se alimentar. Comeu<br />

algo antes de sair?


<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong> anjos 15<br />

– Não. Gosto de orar pela manhã, antes de me alimentar.<br />

– Só que agora deve comer.<br />

– Vá indo, Ananias. Eu sigo logo atrás.<br />

– Não, João. Vamos, terá tempo de sobra para voltar aqui quantas<br />

vezes quiser; está na hora de cuidar bem de seu corpo, ainda vai<br />

precisar muito dele...<br />

João ergueu-se e concordou:<br />

– Tem razão; Ananias; vamos indo.<br />

Enquanto caminhavam em silêncio pela trilha que levava da praia<br />

até a cabana, João imaginava quantos cristãos deveriam estar sentindo<br />

angústia idêntica à que vira em Ananias. Por certo havia os que compreendiam<br />

o sentido do sofrimento que lhes era imposto, ao passo que<br />

muitos provavelmente se questionavam sobre os motivos de tanta resistência,<br />

de tamanha oposição enfrentada. À medida que pensava, uma<br />

ideia lhe surgia, clara e nítida, no fundo da mente: escrever aos cristãos,<br />

esclarecendo e comentando a vitória do Cristianismo no mundo.<br />

Em pensamento indagou: “Quando começaremos?”. E a resposta<br />

lhe soou na mente: “Em breve”.<br />

Quase um ano se passou. Outros grupos de cristãos chegaram<br />

à ilha, contando os horrores que muitos estavam enfrentando por<br />

causa <strong>dos</strong> governadores romanos. Por toda a parte era árdua a luta<br />

<strong>dos</strong> cristãos. Certa noite, depois de ouvir alguns deles narrarem o que<br />

se passava em diversos pontos da Palestina e de outras regiões, João<br />

se recolheu com o coração dolorido. Sabia que o combate seria duro,<br />

mas sempre que constatava a aridez do coração humano, e quanto de<br />

mal um homem era capaz de fazer ao seu semelhante, ficava triste. Ao<br />

acomodar-se na cama, naquela noite, ele não conseguia dormir. Virava-se<br />

de um lado para o outro, na tentativa inútil de conciliar o sono.<br />

Sentou-se, e escutou mentalmente, com nitidez uma voz: “Durma,<br />

João, aquiete-se e durma. Hoje começará a receber as informações<br />

que deverá escrever”. Ainda sentado, ia questionar, quando a voz pediu<br />

com suavidade: “Deite-se. Logo você dormirá e então verá, diante<br />

de seus olhos, o que deverá escrever”.


16<br />

Sandra Carneiro | Lucius<br />

Acostumado a obedecer às orientações espirituais que recebia, João<br />

deitou-se outra vez, procurando pensar apenas no rosto amigo e meigo<br />

de Jesus, que trazia na memória com to<strong>dos</strong> os detalhes. Pouco a pouco<br />

a lembrança o acalmou e ele adormeceu. Seu corpo espiritual foi então<br />

desprendido do corpo físico e Ernesto, que o aguardava, perguntou:<br />

– Então, Henrique, está pronto para traduzir o que ainda há por<br />

vir para os cristãos, as lutas e também as vitórias?<br />

Abraçando o querido amigo, João respondeu:<br />

– Estou pronto para tentar.<br />

– Vamos, está tudo preparado. Você verá o desenrolar <strong>dos</strong> fatos<br />

futuros lá na colônia, e, ao regressar, começará a traduzir para nossos<br />

irmãos encarna<strong>dos</strong> aquilo a que tiver assistido.<br />

João calou-se, pensativo.<br />

– O que foi, está preocupado? – Ernesto indagou.<br />

– Nunca fui muito bom para escrever, você sabe, não é? Tenho<br />

lá minhas dificuldades.<br />

– Não se preocupe. Você terá muita ajuda.<br />

Preparavam-se para partir quando João perguntou, com um<br />

sorriso:<br />

– Tem visto Elvira?<br />

– Não, desde que ela regressou para Capela, mas sei que está<br />

sempre pensando em nós. Sinto seus pensamentos envolvendo minha<br />

mente.<br />

– E como está você, Ernesto?<br />

– Fortalecendo-me com o seu exemplo.<br />

João sorriu e abraçou-o.<br />

– Podemos ir agora – falou.<br />

Partiram. Logo alcançaram a colônia, próxima ao orbe da Terra,<br />

e lá João pôde visualizar, numa tela imensa, muitos fatos que ao longo<br />

do tempo se sucederiam no planeta. Mais tarde, ao retornar, ele pediu:<br />

– Por favor, Ernesto, precisarei de ajuda para o que devo realizar.<br />

Não sei como colocar na linguagem <strong>dos</strong> meus contemporâneos aquilo<br />

que vi hoje.


<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong> anjos 17<br />

– Voltaremos muitas vezes à colônia. Você poderá rever o que<br />

para você for motivo de dúvida e conversaremos sobre cada detalhe.<br />

Ajudaremos em tudo que estiver ao nosso alcance. Vai dar certo, não<br />

se preocupe.<br />

Na manhã seguinte, o sol já ia alto quando João despertou. A<br />

cabana estava vazia e ele se sentia atordoado. Sentou-se e meditou<br />

um pouco, buscando compreender tudo o que sentia. Então saiu em<br />

busca de Ananias e logo encontrou Raquel, que informou:<br />

– Ananias foi pescar. Pediu que ninguém o acordasse e to<strong>dos</strong><br />

tentamos deixar a cabana sem fazer barulho.<br />

– E conseguiram. Agora, preciso de pergaminhos, pena e tinta.<br />

Tenho de escrever.<br />

Imediatamente Raquel correu para a cabana e logo surgiu à porta,<br />

avisando:<br />

– Está tudo na mesa. Sobre o que o senhor vai escrever? É alguma<br />

orientação para nós?<br />

– Para nós e to<strong>dos</strong> os cristãos, Raquel.<br />

– Puxa, que notícia boa!<br />

Sorrindo, João explicou:<br />

– Vou tratar de escrever, antes que o que vi em sonho esmaeça<br />

em minha mente.<br />

Assim, durante os anos que passou na ilha de Patmos, João<br />

ocupou-se em registrar, da melhor forma possível, tudo o que observava<br />

no plano espiritual, com relação ao futuro da Terra e <strong>dos</strong><br />

homens. Embora desejasse ardentemente transmitir mensagens de<br />

otimismo e esperança, constatava, dia a dia, que o porvir da humanidade<br />

seria marcado por uma longa trajetória de dor, lutas e<br />

muito sofrimento, até que o raiar de nova era libertasse, finalmente,<br />

a consciência humana.<br />

Naquele cenário de rara beleza, João escreveu as páginas que<br />

seriam conhecidas pelas futuras gerações como o Livro do Apocalipse,<br />

retratando uma das fases de transformação da Terra, em seu processo<br />

evolutivo.


PriMeira<br />

ParTe<br />

“Não cuideis que vim trazer paz à Terra; não<br />

vim trazer a paz, mas a espada.”<br />

Jesus (Mateus, 10:34)<br />

“... Na verdade, o Cristo trouxe ao mundo a espada<br />

renovadora da guerra contra o mal, constituindo em si<br />

mesmo a divina fonte de repouso aos corações que se<br />

unem ao seu amor; esses, nas mais perigosas situações na<br />

Terra, encontram, nele, a serenidade inalterável...”<br />

Emmanuel/Francisco Cândido Xavier<br />

“Caminho, Verdade e Vida”


Um<br />

Roma, ano 324 da era cristã. No salão de audiências ouviam-se os<br />

gritos do poderoso general:<br />

– Saia já da minha frente, verme inútil! Desapareça, suma, ou<br />

não sei o que faço com você!<br />

Licínio 1 , agressivo, empurrou o mensageiro que se mantinha<br />

curvado diante dele, fazendo-o cair nos degraus da escadaria próxima.<br />

O jovem logo se ergueu e, aterrorizado, saiu rapidamente da sala. Sabia<br />

do que aquele velho general era capaz.<br />

Constância entrou a tempo de presenciar a cena e, verificando a<br />

enorme irritação do marido, indagou:<br />

– Por que maltrata tanto o pobre rapaz? Ele trouxe más notícias?<br />

O experiente general do império endereçou olhar furioso à esposa<br />

e limitou-se a dizer:<br />

– É seu irmão outra vez.<br />

Aproximando-se do marido e buscando aparentar calma, Constância<br />

insistiu.<br />

1 Valério Liciniano Licínio, coimperador romano no período de 250 a 325 d.C.


22<br />

Sandra Carneiro | Lucius<br />

– E o que foi agora?<br />

– Sei muito bem o que ele planeja, suas intenções...<br />

– O que houve?<br />

Medindo a mulher de alto a baixo, o general disse, enquanto<br />

saía apressado do amplo salão:<br />

– Não vai vencer, escreva o que digo... Por Zeus! Ele não vai<br />

vencer!<br />

Constância fez Licínio estacar na porta ao argumentar:<br />

– Constantino é determinado e ardiloso. Consegue tudo aquilo<br />

que deseja.<br />

Ele virou-se para ela e esbravejou, ainda mais contrariado, deixando<br />

perceber todo o seu furor contra o opositor:<br />

– Tem conseguido ampliar o território sob seu poder à custa<br />

de muito ouro e muitas vidas romanas. Sabe seduzir os generais com<br />

seus argumentos e pontos de vista, mas não é perfeito. Pelos deuses!<br />

Quem ele pensa que é? Quer dominar todo o império. Quer tornar-se<br />

o único César, poderoso e absoluto!<br />

Constância afirmou, hesitante:<br />

– Provavelmente sim.<br />

– Pois ele não conseguirá! Vou impedi-lo, custe o que custar!<br />

A mulher segurou o braço do marido e advertiu:<br />

– Seja cauteloso. Com Constantino, todo o cuidado é pouco.<br />

Por favor, veja lá o que planeja. Além do mais, é meu irmão, e não<br />

quero que nada lhe aconteça.<br />

– Não se iluda, Constância. Ele jamais teria qualquer piedade<br />

de você.<br />

A esposa argumentou:<br />

– Está enganado. Constantino é um homem determinado, ambicioso<br />

e astuto, mas é justo. Não faria nada que me prejudicasse, a<br />

menos que eu o prejudicasse primeiro. Portanto, pense muito bem<br />

antes de agir contra ele.<br />

Sem responder, o velho general desapareceu pelo corredor, deixando<br />

a esposa a meditar. Respeitava o marido e admirava o irmão;


<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong> anjos 23<br />

queria bem aos dois, mas temia pelas atitudes sempre intempestivas<br />

de Licínio. Sentou-se e, observando pela janela a movimentação <strong>dos</strong><br />

solda<strong>dos</strong> sob as ordens do marido, ficou a se perguntar o que exatamente<br />

estaria acontecendo. Licínio se irritava muito com as atitudes<br />

de Constantino; embora antes fossem muito próximos (até mesmo<br />

o seu casamento havia sido negociado com o irmão, para estreitar<br />

os laços entre eles), agora estavam a ponto de um confronto direto.<br />

Depois de muitas lutas e combates, mentiras e traições, assassinatos<br />

e disputas cruéis, que não poupavam ninguém e nem mesmo laços<br />

familiares <strong>dos</strong> mais próximos, Constantino havia conquistado toda a<br />

região ocidental do império, tornando-se o imperador do Ocidente, e<br />

Licínio era então o Augusto do Oriente. Ambos dividiam o poder do<br />

imenso território sob a égide da águia.<br />

O olhar de Constância, que parecia perdido, encheu-se de temor.<br />

Ela continuava a refletir que haviam sobrado apenas os dois e<br />

que seu irmão não dividiria o poder. Pressentia que eles iriam entrar<br />

em confronto direto, e não demoraria muito. Tirando de sob as roupas,<br />

junto ao peito, uma pequena cruz de madeira que trazia pendurada<br />

em uma corda fina feita de couro, apertou-a com uma das mãos<br />

e pediu, baixinho:<br />

– Ajude-me, Jesus, por favor. Proteja Constantino e também<br />

Licínio. Não deixe que minha família seja dizimada por essas disputas<br />

estúpidas de poder! Por favor, Nazareno, olhe por mim...<br />

Ainda segurava firme a pequena cruz quando sua serva pessoal<br />

entrou, ofegante:<br />

– Minha senhora, precisa vir depressa!<br />

– Calma, Ana. O que foi?<br />

– Venha, senhora, rápido! Uma desgraça está prestes a acontecer!<br />

A senhora precisa impedir!<br />

Constância acompanhou Ana pelos corredores do palácio até<br />

chegar à porta do gabinete do marido que, aberta, permitia que o escutasse<br />

a gritar pela sacada do amplo salão, diretamente aos solda<strong>dos</strong>.<br />

Enfurecido e enlouquecido, ele gritava:


24<br />

Sandra Carneiro | Lucius<br />

– Meus leais servidores, moradores da bela e poderosa Bizâncio,<br />

obedeçam às minhas ordens. Quero que to<strong>dos</strong> os funcionários cristãos<br />

deixem seus postos e partam imediatamente. Que não fique um<br />

só em meu reino. To<strong>dos</strong> fora! São traidores, perigosos, eu os quero<br />

longe daqui. To<strong>dos</strong> servem a Constantino!<br />

Constância aproximou-se do marido e, segurando-o pelo braço,<br />

implorou:<br />

– Acalme-se, por favor! O que está fazendo?<br />

Ele arremessou-a para longe com toda a violência, fazendo-a<br />

cair sobre um banco e depois sobre uma mesa mais adiante. A serva<br />

ia entrar para socorrer sua senhora, que continuava no chão, ferida,<br />

quando Licínio, olhando-a com fúria, gritou:<br />

– Não ouse entrar em meu gabinete, cristã imunda! Suma daqui!<br />

A ordem é para você também! Suma da minha frente ou acabo<br />

com você com minhas próprias mãos! Já! Desapareça!<br />

Em seguida ele voltou para a sacada, e continuou a gritar aos<br />

subordina<strong>dos</strong>:<br />

– Até o final do dia quero to<strong>dos</strong> os cristãos bem longe daqui.<br />

To<strong>dos</strong> eles, sejam romanos ou não! Não quero um remanescente!<br />

Aqueles que não concordarem com minhas ordens, podem partir<br />

também. Quero limpar meu reino dessa praga e vai ser hoje mesmo.<br />

Constância permanecia no chão, desacordada e ferida na cabeça.<br />

Totalmente cego pelo ódio que sentia por Constantino e por seus<br />

frequentes avanços militares, Licínio escrevia uma ordem expressa<br />

para que, em todas as cidades de seu reino, os cristãos fossem bani<strong>dos</strong><br />

imediatamente de qualquer cargo ou função que tivessem em<br />

qualquer área relevante. Que se tornassem to<strong>dos</strong> escravos! Assim que<br />

terminou, saiu da sala com o pergaminho nas mãos e sumiu no corredor,<br />

diretamente para o grêmio onde ficavam os seus solda<strong>dos</strong> mais<br />

gradua<strong>dos</strong>. Levava pessoalmente a ordem.<br />

Ana, que se afastara aturdida, buscou ajuda de outra serva de<br />

confiança de Constância, que mantinha em segredo sua opção pelo<br />

Cristianismo, e pediu:


<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong> anjos 25<br />

– Helena, precisa ajudar a senhora! Ela está ferida.<br />

– O que houve?<br />

– Já escutou a ordem do imperador Licínio?<br />

– Sim, já correu por todo o palácio.<br />

– A nossa senhora tentou intervir e ele a empurrou...<br />

Ana começou a chorar angustiada. Helena trouxe-lhe um pouco<br />

de água e pediu:<br />

– Fale, o que houve?<br />

– Eu acho que a matou...<br />

– Não é possível! Ele não seria capaz...<br />

– Acho que foi sem querer. Ele estava com muita raiva, jogou-a<br />

com força e ela caiu e bateu a cabeça na mesa... Vi que sangrava... Se<br />

não está morta, acho que está morrendo...<br />

Pálida, Helena ergueu-se dizendo:<br />

– Precisamos ajudá-la!<br />

– Eu não posso. O imperador me impediu de entrar em seu<br />

gabinete e me quer fora do palácio. Se me encontrar de novo por aí,<br />

é capaz de me matar... Precisava ver como ele estava... Parecia fora de<br />

si, enlouquecido... Você precisa ajudá-la... Eu não posso fazer nada!<br />

Helena pensou por um instante e, virando-se para Ana, pediu:<br />

– Vá então, Ana, vá antes que ele a encontre. Mas primeiro peça<br />

a Juliano para vir até aqui; diga que a mãe está ferida, não fale de suas<br />

suspeitas mais graves.<br />

Olhando para o céu, disse:<br />

– Tenho esperança de que ela esteja apenas ferida. Agora vá.<br />

Procure por Juliano e diga que me encontre no gabinete de Licínio.<br />

Vamos socorrer Constância.<br />

Antes de sair, ao alcançar a porta, Ana se voltou e disse, em<br />

lágrimas:<br />

– Tome cuidado, Helena. Ele está fora de si...<br />

Ana saiu depressa e Helena correu pelos corredores, encontrando<br />

amigos e parentes que, com alguns pertences nas mãos, fugiam<br />

assusta<strong>dos</strong>. Ela seguiu até atingir a parte mais alta do edifício, onde


26<br />

Sandra Carneiro | Lucius<br />

ficava o amplo salão de Licínio. Observou que estava vazio e correu<br />

até Constância. Havia sangue espalhado sob sua cabeça e Helena<br />

constatou que o ferimento era grave. Debruçou-se sobre o peito da<br />

outra e escutou-lhe o coração. Ainda batia. Logo, Juliano entrou, à<br />

procura das duas:<br />

– Estou aqui.<br />

Ele estava lívido, com as mãos trêmulas e suando frio. Olhou<br />

para a mãe e depois para Helena e perguntou, assustado:<br />

– Ela... está...<br />

– Ela está viva, mas precisamos tirá-la logo daqui e tratá-la. Se<br />

perder mais sangue, não sei o que poderá acontecer...<br />

– É claro! Mas o que foi que deu no meu pai dessa vez?<br />

– Não sei, Juliano. Acho melhor você se preocupar com isso<br />

depois. Agora precisamos socorrer sua mãe.<br />

– Claro...<br />

Helena rasgou parte de suas vestes e cobriu o ferimento, procurando<br />

estancar o sangramento. Assim que o curativo improvisado<br />

ficou pronto, Juliano carregou a mãe para seu quarto e colocou-a<br />

na cama.<br />

– E agora, o que faremos?<br />

Helena não titubeou:<br />

– Vou procurar ajuda. Fique aqui com ela e não deixe ninguém<br />

se aproximar antes que eu chegue, está bem?<br />

O rapaz balançou a cabeça afirmativamente.


Dois<br />

Juliano sentou-se à beira da cama e afagou com ternura o rosto da<br />

mãe. Seu coração batia descompassado; suas mãos suavam frio e de<br />

seus olhos desciam pesadas lágrimas que corriam pela face alva, alcançando,<br />

vez por outra, as mãos de Constância. Esta, imóvel, empalidecia<br />

mais e mais, e agora já tinha os lábios arroxea<strong>dos</strong>. O rapaz olhava<br />

para a porta a todo instante, ansioso para que alguém aparecesse em<br />

socorro da mãe. Ele a beijou na face e sussurrou, angustiado:<br />

– Por favor, mamãe, aguente! Helena foi buscar ajuda. Não<br />

morra, por favor...<br />

Escutou a voz forte e irritada do pai:<br />

– O que está fazendo aqui? Onde está sua mãe?<br />

Juliano ergueu-se indignado:<br />

– Não está vendo que ela está aqui, prestes a morrer por sua<br />

causa?<br />

Sustentando o olhar arrogante, Licínio, incrédulo, acercou-se<br />

da ampla cama que acomodava a esposa. Fitando-a, exclamou:<br />

– Não tive a intenção de machucá-la, mas ela insistia em interferir<br />

em minhas ordens!


28<br />

Sandra Carneiro | Lucius<br />

– Não sente nada por ela, mesmo, não é?<br />

– E quem você pensa que é para questionar meus sentimentos,<br />

rapaz? Ainda não sabe nada da vida, das dificuldades e desafios que<br />

o mundo nos impõe. Não tem o direito de julgar-me ou discutir<br />

meus atos.<br />

– Você machucou a minha mãe, tratou-a com violência, e é só<br />

isso que me diz? Vem ainda me censurar...<br />

Juliano interrompeu-se, em pranto. Licínio aproximou-se mais<br />

da mulher, auscultou-lhe o coração, ergueu-lhe a cabeça e observou o<br />

curativo e o ferimento. Depois, recolocando-a com cuidado na cama,<br />

ergueu-se e disse:<br />

– A mim você não puxou, definitivamente. Parece uma mulherzinha<br />

choramingando. Vou buscar alguém que a possa ajudar.<br />

Sem esperar pela resposta do rapaz, Licínio saiu decidido. Antes<br />

de deixar o cômodo, no entanto, virando-se para o rapaz, disse:<br />

– Mandarei um <strong>dos</strong> sacerdotes vir vê-la. Depois partirei com<br />

meus melhores homens para terminar o que comecei. Quero expulsar<br />

definitivamente to<strong>dos</strong> os funcionários cristãos que trabalham em áreas<br />

administrativas do meu reino.<br />

– Por que tanto ódio, meu pai?<br />

– Você pensa que sabe alguma coisa sobre esses cristãos, mas<br />

não sabe. Eles são como uma praga que se espalha por toda parte e se<br />

infiltra em todas as áreas do império. Um sem-número de aristocratas<br />

da mais alta casta romana está se juntando a esses seguidores de um<br />

mestre nazareno que faz milagres e promete vida eterna... Vida eterna...<br />

Promete o paraíso...<br />

– Eu realmente não o compreendo, meu pai. Não foram você<br />

e meu tio que fizeram promulgar o Édito de Milão, em que determinam<br />

que haja tolerância religiosa no império? Você apoiou tio Constantino<br />

e fez valer essa lei. Por que fez isso, se não aprecia os cristãos?<br />

Licínio, de cenho fechado e olhar distante, considerou:<br />

– Eram outros tempos, muito diferentes de agora. Constantino<br />

ainda tinha algum respeito pelos seus colegas militares, e talvez até


<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong> anjos 29<br />

mesmo pelos desgraça<strong>dos</strong> cristãos. Agora, to<strong>dos</strong> não passam de instrumentos<br />

de seus interesses, de bonecos em suas mãos... De coisas,<br />

entendeu? Coisas que ele usa conforme seus desejos e caprichos. A<br />

cada um ele usa e descarta, como fez comigo. Ou você acha que seu<br />

tio vai descansar enquanto não me enfrentar?<br />

Licínio parou por um momento, depois bradou, ainda mais enfurecido:<br />

– E vou derrotá-lo! Ele não me vencerá!<br />

Juliano baixou a cabeça, limpando as lágrimas, e fitou a mãe<br />

com terna tristeza. Licínio sumiu esbravejando pelo corredor. Podia-se<br />

escutar sua voz ecoando pelo palácio e desaparecendo aos<br />

poucos. Logo que Licínio afastou-se, Helena entrou depressa, trazendo<br />

consigo um médico romano, que havia pouco se tornara cristão.<br />

Já conhecendo a gravidade do problema de Constância, ele não<br />

demorou a fazer-lhe novo e cuida<strong>dos</strong>o curativo, e em seguida fê-la<br />

beber um preparado que ele fizera com muitas ervas, para restituirlhe<br />

a força e ajudar seu próprio corpo na restauração do ferimento.<br />

Helena o ajudava, observando-o em silêncio. Juliano se afastara um<br />

pouco, pois não suportava ver a mãe naquelas condições. Otávio<br />

não havia ainda terminado os seus cuida<strong>dos</strong>, quando Gripínio, o<br />

sacerdote mais graduado e responsável pelos serviços aos deuses romanos,<br />

entrou no quarto em busca da mulher de Licínio. Juliano<br />

adiantou-se e informou:<br />

– Otávio já cuidou dela.<br />

– Seu pai ordenou que eu a visse.<br />

– Pois ele não está aqui agora. Eu, sim, e digo que ela já recebeu<br />

os cuida<strong>dos</strong> de que necessitava. Deixe-nos. Meu pai não sabia que eu<br />

já mandara vir ajuda, por isso foi procurá-lo.<br />

– Engano seu. Ele foi à minha procura porque confia em mim e<br />

sabe que farei o que é o melhor para salvar sua mãe.<br />

– Ela já foi socorrida. Agradeço, mas não necessitamos mais de<br />

sua ajuda.<br />

– Pois bem, se algo acontecer a ela, será sua responsabilidade!


30<br />

Sandra Carneiro | Lucius<br />

– Minha?! Ora essa! Meu pai foi quem quase a matou e você<br />

vem me dizer que a responsabilidade será minha?<br />

– Então me deixe vê-la!<br />

Otávio, que terminara o atendimento, interveio:<br />

– Consinta que ele a veja, Juliano. Que mal pode haver? O estado<br />

dela é muito grave e toda a ajuda é bem–vinda.<br />

O rapaz afastou-se da cama para que Gripínio se aproximasse.<br />

Ele a examinou minuciosamente; depois se ajoelhou e fez alguns<br />

gestos, pedindo socorro aos deuses. Em seguida, fitou Otávio, que<br />

aguardava em silêncio, e disse a Juliano:<br />

– Ela recebeu cuida<strong>dos</strong> adequa<strong>dos</strong>. Agora está nas mãos <strong>dos</strong><br />

deuses. Vou até o templo preparar um sacrifício especial pela vida<br />

dela. Eles haverão de me escutar.<br />

Juliano balançou a cabeça sem dizer nada e Gripínio saiu do<br />

quarto. Otávio aproximou-se do rapaz e, tocando-lhe o ombro, disse:<br />

– Como disse antes, o estado dela é bem delicado. O que podemos<br />

fazer agora é pedir a Deus por ela.<br />

– Será que está sentindo muita dor?<br />

Dessa vez foi Helena quem se aproximou e disse:<br />

– Uma das ervas que Otávio lhe deu tem efeito de atenuar a dor.<br />

Dirigindo-se ao médico, ela indagou:<br />

– Não há mais nada que possamos fazer?<br />

– Continue dando o chá de hora em hora. Isso vai ajudá-la. Se<br />

seu estado piorar, veremos o que podemos fazer. Por enquanto, temos<br />

de aguardar.<br />

Helena se prontificou:<br />

– Se você me permitir, Juliano, vou ficar aqui cuidando dela,<br />

dia e noite.<br />

Otávio também se ofereceu:<br />

– Tenho algumas tarefas para terminar, mas depois posso ficar<br />

aqui também.<br />

Apertando as mãos de Helena e depois de Otávio, ele concordou:<br />

– Aceito, por certo.


<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong> anjos 31<br />

O estado de Constância alternou fases de ligeira melhora e de<br />

piora acentuada nos dias que se seguiram. Ela permanecia inconsciente.<br />

Às vezes sussurrava palavras desconexas, quase incompreensíveis,<br />

em outras calava completamente. Juliano, dedicado e amoroso, não<br />

saía do lado da mãe. Otávio e Helena também se revezavam em cuida<strong>dos</strong><br />

e atenção e a jovem, vez por outra, ajoelhada à beira da cama,<br />

orava ao Mestre que há pouco conhecera, rogando pela vida daquela<br />

mulher aparentemente frágil, mas cheia de força interior. Muitas<br />

vezes, ao terminar suas orações, ia devagar até a cabeceira da cama e<br />

sussurrava no ouvido de Constância:<br />

– Não nos abandone. Por favor, lute!<br />

Algumas semanas depois, a notícia do ocorrido com a irmã chegou<br />

aos ouvi<strong>dos</strong> de Constantino 1 . Ele permanecia sentado, ocupando<br />

o lugar de maior destaque no centro de seus conselheiros, e ouvia a<br />

narrativa sobre as últimas ações de Licínio sem esboçar nenhuma reação.<br />

Constantino era um general respeitado pelos seus homens e pelos<br />

seus súditos. Conquistara cada pedaço do território romano que ora<br />

estava sob seu controle com muita astúcia e arguta estratégia, o que o<br />

tornara um conquistador querido e respeitado.<br />

Com rosto de forte ossatura, transparecia em seu corpo e sua<br />

postura a determinação e a coragem de, destemida e sabiamente, lutar<br />

pelas suas aspirações. Constantino parecia incansável e inabalável.<br />

Nada tirava dele a calma e a determinação na tomada de decisões e<br />

nas ações. Ele raramente reagia e, sim, utilizava toda e qualquer informação<br />

ou situação em seu favor. Quando o mensageiro terminou de<br />

narrar o que se passava no império do Oriente, ele parecia distante,<br />

mas logo perguntou:<br />

– E como está minha irmã agora?<br />

– Não sabemos exatamente, parece que seu estado é muito<br />

grave.<br />

1 Constantino I, Constantino Magno ou Constantino, o Grande.


32<br />

Sandra Carneiro | Lucius<br />

– Está recebendo os cuida<strong>dos</strong> devi<strong>dos</strong>, ou Licínio a abandonou<br />

à própria sorte?<br />

– Juliano, seu sobrinho, é quem está tomando conta dela.<br />

Constantino calou-se, pensativo. O silêncio era absoluto no salão,<br />

quando um soldado surgiu à porta e interrompeu a reunião:<br />

– Senhor, um mensageiro da fronteira chegou apressado e deseja<br />

falar-lhe. Diz que é extremamente urgente.<br />

Constantino não respondeu, apenas inclinou a cabeça afirmativamente.<br />

O soldado reproduziu o sinal positivo e saiu apressado.<br />

Logo retornou com o mensageiro, que aparentava abatimento e cansaço<br />

extremo.<br />

– Senhor, trago notícias da fronteira. Más notícias, senhor.<br />

Constantino disse, atento:<br />

– O que houve?<br />

– Os sármatas se preparam para invadir o reino do Ocidente. Já<br />

arregimentaram grande número de homens, que não param de chegar.<br />

O exército deles está crescendo a cada dia.<br />

O imperador guardou silêncio. Seus generais mais leais e seus<br />

conselheiros já o conheciam bem e sabiam que seu silêncio era a<br />

maior ameaça contra seus inimigos. To<strong>dos</strong> esperavam pelo que diria<br />

Constantino, sem se manifestarem. Ele se levantou, caminhou até<br />

um mapa de seu reino e de suas fronteiras, examinou o desenho com<br />

atenção, depois virou para o soldado e perguntou:<br />

– Mostre-me onde exatamente se concentram.<br />

O jovem foi até o desenho colocado sobre uma mesa enorme,<br />

observou o mapa com atenção, depois apontou:<br />

– Estão aqui, entre as montanhas...<br />

Constantino observou o lugar exato que o jovem apontara, depois<br />

sorriu levemente e sugeriu:<br />

– Descanse e coma um pouco. Parece exausto.<br />

– Agradeço, senhor, mas estou a seu serviço, aguardando suas<br />

ordens. Só descansarei depois que o atender, meu senhor.<br />

Tocando-lhe o ombro, Constantino insistiu:


<strong>Jornada</strong> <strong>dos</strong> anjos 33<br />

– Descanse, pois tenho planos para seu regresso.<br />

O jovem escutava o imperador com atenção, assim como os demais<br />

ouvintes. Constantino aproximou-se do mapa, analisando ainda<br />

melhor cada detalhe, depois se virou para o rapaz e disse:<br />

– Amanhã quero que parta bem cedo e vá direto ao meu amigo,<br />

Augusto do Oriente, Licínio.<br />

Sem compreender, to<strong>dos</strong> aguardavam o esclarecimento de seu<br />

líder, que prosseguiu depois de longa e premeditada pausa:<br />

– Quero que Licínio nos permita atravessar seu território para<br />

exterminarmos os sármatas. Quero que ele me autorize a atravessar<br />

suas cidades mais lucrativas, para surpreender os sármatas, pelos flancos,<br />

certamente por onde não esperam que ataquemos.<br />

Um de seus generais apenas balbuciou:<br />

– Mas esse é o caminho mais longo...<br />

Constantino comentou, com sorriso irônico:<br />

– Pode até ser mais longo, mas iremos conquistando tudo o<br />

que estiver em nosso caminho. Ao nos defrontarmos com os sármatas,<br />

não somente nosso exército será maior, como meu império estará<br />

consolidado. Confie em mim, Galenius, sei o que estou fazendo.<br />

Erguendo todo o seu corpo e esticando o braço em sinal de profundo<br />

respeito, Galenius saudou o seu imperador:<br />

– Não tenho a menor dúvida disso! Ave César!<br />

To<strong>dos</strong> em uníssono repetiram:<br />

– Ave!<br />

Constantino manteve-se sério e em silêncio. No entanto, um<br />

observador atento registraria em seu olhar a enorme satisfação que<br />

sentia pela destacada posição que ocupava, pela admiração que recebia<br />

de seus subordina<strong>dos</strong> e súditos, bem como pela perspectiva cada<br />

vez mais próxima de tornar-se o único imperador de Roma.

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