FILOSOFANDO, INTRODUÇÃO À FILOSOFIA EDITORA MODERNA ...
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<strong>FILOSOFANDO</strong>, <strong>INTRODUÇÃO</strong> <strong>À</strong> <strong>FILOSOFIA</strong><br />
<strong>EDITORA</strong> <strong>MODERNA</strong><br />
MARIA LUCIA DE ARRUDA ARANHA<br />
Professora da Escola Nossa Senhora das Graças (São Paulo)<br />
MARIA HELENA PIRES MARTINS<br />
Professora da Escola de Comunicação e Artes da USP<br />
2ª edição revista e atualizada<br />
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />
(Cãmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)<br />
Aranha, Maria Lúcia de Arruda<br />
Sào Paulo - 1993.<br />
Bibliografia.<br />
I. Filosofia 2. Filosofia-Introduções I. Martins,<br />
Maria Helena Pires. II. Título.<br />
93-1477 CDD-I01<br />
Índices para catálogo sistemático:<br />
I. Filosofia : Introdução 1 01<br />
ISBN 85-16-00826-6<br />
Todos os direitos reservados<br />
<strong>EDITORA</strong> <strong>MODERNA</strong> LTDA.<br />
Rua Afonso Brás. 43I<br />
Tel.: 8?2-5099<br />
CEP 0451 I-90l - São Paulo - SP - Brasil<br />
Impresso no Brasil<br />
24681097531
SUMÁRIO<br />
#UNIDADE I - O HOMEM<br />
1. A cultura<br />
1. Introdução<br />
2. A atividade animal<br />
Ação instintiva,<br />
A inteligência concreta<br />
3. A atividade humana<br />
A linguagem, O trabalho<br />
4. Cultura e humanização<br />
5. A comunidade dos homens<br />
CAPITULO 1<br />
A CULTURA<br />
As meninas-lobo<br />
Na Índia, onde os casos de meninos-lobo foram relativamente numerosos, descobriramse,<br />
em 1920, duas crianças, Amala e Kamala, vivendo no meio de uma família de lobos.<br />
A primeira tinha um ano e meio e veio a morrer um ano mais tarde. Kamala, de oito<br />
anos de idade, viveu até 1929. Não tinham nada de humano e seu comportamento era<br />
exatamente semelhante àquele de seus irmãos lobos. Elas caminhavam de quatro patas<br />
apoiando-se sobre os joelhos e cotovelos para os pequenos trajetos e sobre as mãos e<br />
os pés para os trajetos longos e rápidos. Eram incapazes de permanecer de pé. Só se<br />
alimentavam de carne crua ou podre, comiam e bebiam como os animais, balançando a<br />
cabeça para a frente e lambendo os líquidos. Na instituição onde foram recolhidas,<br />
passavam o dia acabrunhadas e prostradas numa sombra; eram ativas e ruidosas<br />
durante a noite, procurando fugir e uivando como lobos. Nunca choraram ou riram.<br />
Kamala viveu durante oito anos na instituição que a acolheu, humanizando-se<br />
lentamente. Ela necessitou de seis anos para aprender a andar e pouco antes de morrer<br />
só tinha um vocabulário de cinqüenta palavras. Atitudes afetivas foram aparecendo aos<br />
poucos. Ela chorou pela primeira vez por ocasião da morte de Amala e se apegou<br />
lentamente às pessoas que cuidaram dela e às outras crianças com as quais conviveu.<br />
A sua inteligência permitiu-lhe comunicar-se com outros por gestos, inicialmente, e<br />
depois por palavras de um vocabulário rudimentar, aprendendo a executar ordens<br />
simples.<br />
(B. Reymond, Le développement social de l'enfant et de 1'adolescent, Bruxelas, Dessart, 1965,<br />
p.12-14, apud C. Capalbo, Fenomenologia e ciências humanas, Rio de Janeiro, J. Ozon Ed., p.<br />
25-26.)<br />
2.1. Introdução<br />
O relato desse fato verídico nos leva discussão a respeito das diferenças entre o<br />
homem e o animal. As crianças encontradas na Índia não tiveram oportunidade de se
humanizar enquanto viveram com os lobos permanecendo, portanto, "animais". Não<br />
possuíam nenhuma das características humanas: não choravam, não riam e, sobretudo,<br />
não falavam. O processo de humanização só foi iniciado quando começaram a participar<br />
do convívio humano e foram introduzidas no mundo do símbolo pela aprendizagem da<br />
linguagem.<br />
Fato semelhante ocorreu nos Estados Unidos com a menina Helen Keller,<br />
nascida cega, surda e muda. Era como um animal até a idade de sete anos, quando seus<br />
pais contrataram a professora Anne Sullivan, que, a partir do sentido do tato, conseguiu<br />
conduzi-la ao mundo humano das significações. Esses estranhos casos nos propõem<br />
uma questão inicial: Quais são as diferenças entre o homem e o animal?<br />
2. A atividade animal<br />
Ação instintiva<br />
Os animais que se situam nos níveis mais baixos da escala zoológica de<br />
desenvolvimento, como, por exemplo, os insetos, têm a ação caracterizada, sobretudo<br />
por reflexos e instintos. A ação instintiva é regida por leis biológicas, idênticas na<br />
espécie e invariáveis de indivíduo para indivíduo. A rigidez dá a ilusão da perfeição<br />
quando o animal, especializado em determinados atos, os executa com extrema<br />
habilidade. Não há quem não tenha ainda observado com atenção e pasmo o "trabalho"<br />
paciente da aranha tecendo a teia.<br />
Mas esses atos não têm história, não se renovam e são os mesmos em todos os<br />
tempos, salvo as modificações determinadas pela evolução das espécies e as decorrentes<br />
de mutações genéticas. E mesmo quando há tais modificações, elas continuam valendo<br />
para todos os indivíduos da espécie e não permitem inovações, passando a ser<br />
transmitidas hereditariamente.<br />
Em certas aves chamadas tentilhões, o hábito de fazer ninhos típicos da espécie é<br />
tão fixo que após cinco gerações em que essas aves eram criadas por canários, ainda<br />
continuavam a construí-los como antes 1 .<br />
O psicólogo Paul Guillaume 2 explica que um ato inato não precisa surgir desde o<br />
início da vida, pois muitas vezes aparece apenas mais tarde, no decorrer do<br />
desenvolvimento: andorinhas novas, impedidas de voar até certa idade, realizam o<br />
primeiro vôo sem grande hesitação; gatinhos não esboçam qualquer reação diante de um<br />
rato, mas após o segundo mês de vida aparecem reações típicas da espécie, como<br />
perseguição, captura, brincadeira com a presa, ronco, matança etc.<br />
Na verdade os instintos são "cegos", ou seja, é uma atividade que ignora a<br />
finalidade da própria ação. A vespa "fabrica" uma célula onde deposita o ovo junto ao<br />
qual coloca aranhas para que a larva, ao nascer, encontre alimento suficiente. Ora, se<br />
retirarmos as aranhas e o ovo, mesmo assim o inseto continuará realizando todas as<br />
operações, terminando pelo fechamento adequado da célula, ainda que vazia. Esse<br />
comportamento é "cego" porque não leva em conta o sentido principal que deveria<br />
determinar a "fabricação" da célula, ou seja, a preservação do ovo e da futura larva.<br />
1 A mente, in Biblioteca Cientifica Life, Rio de Janeiro, J. Olympio, p.192-193.<br />
2 P. Guillaume, Manual de psicologia, p. 35-37.
O ato humano voluntário, em contrapartida, é consciente da finalidade, isto é, o<br />
ato existe antes como pensamento, como uma possibilidade, e a execução é o resultado<br />
da escolha dos meios necessários para atingir os fins propostos. Quando há<br />
interferências externas no processo, os planos também são modificados para se<br />
adequarem à nova situação.<br />
***<br />
A inteligência concreta<br />
Nos níveis mais altos da escala zoológica, por exemplo, com os mamíferos, as<br />
ações deixam de ser exclusivamente resultado de reflexos e instintos e apresentam uma<br />
plasticidade maior, característica dos atos inteligentes. Ao contrário da rigidez dos<br />
instintos, a resposta ao problema, ou à situação é nova para os quais não há uma<br />
programação biológica, é uma resposta inteligente, e como tal é improvisada, pessoal e<br />
criativa.<br />
Por que o comportamento dos símios sempre nos provoca um olhar intrigante?<br />
Talvez porque, se os gestos do macaco o fazem assemelhar-se aos homens, ao mesmo<br />
tempo percebemos o abismo que separa os animais dos seres humanos, os únicos<br />
capazes de consciência de si.<br />
Experiências interessantes foram realizadas pelo psicólogo gestaltista Kõhler nas<br />
ilhas Canárias, onde instalou uma colônia de chimpanzés. Um dos experimentos<br />
consiste em colocar o animal faminto numa jaula onde são penduradas bananas que o<br />
animal não consegue alcançar. O chimpanzé resolve o problema quando puxa um<br />
caixote e o coloca sob a fruta a fim de pegá-la. Segundo Kõhler, a solução encontrada<br />
pelo chimpanzé não é imediata, mas no momento em que o animal tem um insight<br />
(discernimento, "iluminação súbita"), isto é, quando o macaco tem a visão global do<br />
campo e estabelece a relação entre o caixote e a fruta.<br />
Esses dois elementos, o caixote e a banana, antes separados e independentes,<br />
passam a fazer parte de uma totalidade. É como se o animal percebesse uma realidade<br />
nova que lhe possibilita uma ação não-planejada pela espécie. Portanto, não se trata<br />
mais de ação instintiva, de simples reflexo, mas de um ato de inteligência. A<br />
inteligência distingue-se do instinto por sua flexibilidade, já que as respostas são<br />
diferentes conforme a situação e também por variarem de animal para animal. Tanto é<br />
que Sultão, um dos chimpanzés mais inteligentes no experimento de Kõhler, foi o único<br />
que fez a proeza de encaixar um bambu em outro para alcançar a fruta.<br />
Trata-se, porém, de um tipo de inteligência concreta, porque depende da<br />
experiência vivida "aqui e agora". Mesmo quando o animal repete mais rapidamente o<br />
teste já aprendido, seu ato não domina o tempo, pois, a cada momento em que é<br />
executado, esgota-se no seu movimento. Em outras palavras, o animal não inventa o<br />
instrumento, não o aperfeiçoa, nem o conserva para uso posterior. Portanto, o gesto útil<br />
não tem seqüência e não adquire o significado de uma experiência propriamente dita.<br />
Mesmo que alguns animais organizem "sociedades" mais complexas e até aprendam<br />
formas de sobrevivência e as ensinem a suas crias, não há nada que se compare às<br />
transformações realizadas pelo homem enquanto criador de cultura.
3. A atividade humana<br />
A linguagem<br />
O homem é um ser que fala. A palavra se encontra no limiar do universo<br />
humano, pois caracteriza fundamentalmente o homem e o distingue do animal. Se<br />
criássemos juntos um bebê humano e um macaquinho, não veríamos muitas diferenças<br />
nas reações de cada um nos primeiros contatos com o mundo e as pessoas. O<br />
desenvolvimento da percepção, da apreensão dos objetos, do jogo com os adultos é feito<br />
de forma similar, até que em dado momento, por volta dos dezoito meses, o progresso<br />
do bebê humano torna impossível prosseguirmos na comparação com o macaco, devido<br />
à capacidade que o homem tem de ultrapassar os limites da vida animal ao entrar no<br />
mundo do símbolo.<br />
Poderíamos dizer, porém, que os animais também têm linguagem. Mas a<br />
natureza dessa comunicação não se compara à revolução que a linguagem humana<br />
provoca na relação do homem com o mundo. É interessante o estudo da "linguagem"<br />
das abelhas, que dançando "comunicam" às outras onde acharam pólen. Ninguém pode<br />
negar que o cachorro expressa a emoção por sons que nos permitem identificar medo,<br />
dor, prazer. Quando abana o rabo ou rosna arreganhando os dentes, o cão nos diz coisas;<br />
e quando pronunciamos a expressão "Vamos passear", ele nos aguarda alegremente<br />
junto à porta. No exemplo das abelhas, estamos diante da linguagem programada<br />
biologicamente, idêntica na espécie. No segundo exemplo, o do cachorro, a<br />
manifestação não se separa da experiência vivida; ao contrário, se esgota nela mesma, e<br />
o animal não faz uso dos "gestos vocais" independentemente da situação na qual<br />
surgem. Quanto a entender o que o dono diz, isso se deve ao adestramento, e os<br />
resultados são sempre medíocres, porque mecânicos, rígidos, geralmente obtidos<br />
mediante aprendizagem por reflexo condicionado.<br />
A diferença entre a linguagem humana e a do animal está no fato de que este não<br />
conhece o símbolo, mas somente o índice. O índice está relacionado de forma fixa e<br />
única com a coisa a que se refere. Por exemplo, as frases com que adestramos o<br />
cachorro devem ser sempre as mesmas, pois são índices, isto é, indicam alguma coisa<br />
muito específica.<br />
Por outro lado, o símbolo é universal, convencional, versátil e flexível.<br />
Consideremos a palavra cruz. Além de ser uma convenção é "de certa forma arbitrária<br />
(é assim em português; o inglês diz cross, e o francês croix). Mas a palavra cruz não tem<br />
um sentido unívoco, na medida em que faz lembrar um instrumento usado para executar<br />
os condenados à morte; pode representar o cristianismo; referir-se à morte (ver seção de<br />
necrologia dos jornais); se usada de cabeça para baixo, adquire outro significado para<br />
certos roqueiros; pode significar apenas uma encruzilhada de caminhos; ou um enfeite,<br />
e assim por diante, com múltiplas, infindáveis e inimagináveis significações.<br />
4 - Linguagem, conhecimento, pensamento<br />
Assim, a linguagem animal visa à adaptação à situação concreta, enquanto a<br />
linguagem humana intervém como uma forma abstrata que distancia o homem da<br />
experiência vivida, tornando-o capaz de reorganizá-la numa outra totalidade e Ihe dar<br />
novo sentido. É pela palavra que somos capazes de nos situar no tempo, lembrando o<br />
que ocorreu no passado e antecipando o futuro pelo pensamento. Enquanto o animal
vive sempre no presente, as dimensões humanas se ampliam para além de cada<br />
momento. É por isso que podemos dizer que, mesmo quando o animal consegue<br />
resolver problemas, sua inteligência é ainda concreta. Já o homem, pelo poder do<br />
símbolo, tem inteligência abstrata.<br />
Se a linguagem, por meio da representação simbólica e abstrata, permite o<br />
distanciamento do homem em relação ao mundo, também é o que possibilitará seu<br />
retorno ao mundo para transformá-lo. Portanto, se não tem oportunidade de desenvolver<br />
e enriquecer a linguagem, o homem torna-se incapaz de compreender e agir sobre o<br />
mundo que o cerca.<br />
Na literatura, é belo (e triste) o exemplo que Graciliano Ramos nos dá com<br />
Fabiano protagonista de Vidas secas. A pobreza de vocabulário da personagem<br />
prejudica a tomada de consciência da exploração a que é submetida, e a intuição que<br />
tem da situação não é suficiente para ajudá-la a reagir de outro modo.<br />
Exemplo semelhante está no livro 1984, do inglês George Orwell, cuja história<br />
se passa num mundo do futuro dominado pelo poder totalitário, no qual uma das<br />
tentativas de esmagamento da oposição crítica consiste na simplificação do vocabulário<br />
realizada pela "novilíngua". Toda gama de sinônimos é reduzida cada vez mais: pobreza<br />
no falar, pobreza no pensar, impotência no agir. Se a palavra, que distingue o homem de<br />
todos os seres vivos, se encontra enfraquecida na possibilidade de expressão, é o próprio<br />
homem que se desumaniza.<br />
O trabalho<br />
Seria pouco concluir daí que a diferença entre homem e animal estaria no fato de<br />
o homem ser um animal que pensa e fala. De fato, a linguagem humana permite a<br />
melhor ação transformadora do homem sobre o mundo, e com isso completamos a<br />
distinção: o homem é um ser que trabalha e produz o mundo e a si mesmo.<br />
O animal não produz a sua existência, mas apenas a conserva agindo<br />
instintivamente ou, quando se trata de animais de maior complexidade orgânica,<br />
"resolvendo" problemas de maneira inteligente. Esses atos visam à defesa, a procura de<br />
alimentos e de abrigo, e não devemos pensar que o castor, ao construir o dique, e o<br />
joão-de-barro, a sua casinha, estejam "trabalhando". Se o trabalho é a ação<br />
transformadora da realidade, na verdade o animal não trabalha, mesmo quando cria<br />
resultados materiais com essa atividade, pois sua ação não é deliberada, intencional.<br />
O trabalho humano é a ação dirigida por finalidades conscientes, a resposta aos<br />
desafios da natureza na luta pela sobrevivência. Ao reproduzir técnicas que outros<br />
homens já usaram e ao inventar outras novas, a ação humana se torna fonte de idéias e<br />
ao mesmo tempo uma experiência propriamente dita.<br />
O trabalho, ao mesmo tempo em que transforma a natureza, adaptando-a às<br />
necessidades humanas, altera o próprio homem, desenvolvendo suas faculdades. Isso<br />
significa que, pelo trabalho, o homem se auto-produz. Enquanto o animal permanece<br />
sempre o mesmo na sua essência, já que repete os gestos comuns à espécie, o homem<br />
muda as maneiras pelas quais age sobre o mundo, estabelecendo relações também<br />
mutáveis, que por sua vez alteram sua maneira de perceber, de pensar e de sentir.<br />
Por ser uma atividade relacional, o trabalho, além de desenvolver habilidades,<br />
permite que a convivência não só facilite a aprendizagem e o aperfeiçoamento dos
instrumentos, mas também enriqueça a afetividade resultante do relacionamento<br />
humano: experimentando emoções de expectativa, desejo, prazer, medo, inveja, o<br />
homem aprende a conhecer a natureza, as pessoas e a si mesmo.<br />
O trabalho é a atividade humana por excelência, pela qual o homem intervém na<br />
natureza e em si mesmo. O trabalho é condição de transcendência e, portanto, é<br />
expressão da liberdade.<br />
Veremos no Capítulo 2 (Trabalho e alienação) que o trabalho, para atingir esse<br />
nível superior de condição de liberdade, não depende apenas da vontade de cada um. Ao<br />
contrário, inserido no contexto social que o torna possível, muitas vezes é condição de<br />
alienação e de desumanização, sobretudo nos sistemas onde as divisões sociais<br />
privilegiam alguns e submetem a maioria a um trabalho imposto, rotineiro e nada<br />
criativo. Em vez de contribuir para a realização do homem, esse trabalho destrói sua<br />
liberdade.<br />
Segundo o mito grego, Dédalo consegue fugir de seu cativeiro construindo asas<br />
para ele e seu filho Ícaro. Dédalo alça vôo e pousa a salvo na Sicília, enquanto seu<br />
imprudente filho voa em direção ao sol, cujo calor derrete a cera que prende as asas e o<br />
faz tombar. Esse mito simboliza a engenhosidade técnica que permite ao homem sua<br />
liberdade, mas cuja ambição desmedida pode levar à destruição.<br />
4. Cultura e humanização<br />
As diferenças entre o homem e o animal não são apenas de grau, pois, enquanto<br />
o animal permanece mergulhado na natureza, o homem é capaz de transformá-la,<br />
tornando possível a cultura. O mundo resultante da ação humana é um mundo que não<br />
podemos chamar de natural, pois se encontra transformado pelo homem.<br />
A palavra cultura também tem vários significados, tais como o de cultura da<br />
terra ou cultura de um homem letrado. Em antropologia, cultura significa tudo que o<br />
homem produz ao construir sua existência: as práticas, as teorias, as instituições, os<br />
valores materiais e espirituais. Se o contato que o homem tem com o mundo é<br />
intermediado pelo símbolo, a cultura é o conjunto de símbolos elaborados por um povo<br />
em determinado tempo e lugar. Dada a infinita possibilidade de simbolizar, as culturas<br />
dos povos são múltiplas e variadas.<br />
A cultura é, portanto, um processo de auto-liberação progressiva do homem, o<br />
que o caracteriza como um ser de mutação, um ser de, que ultrapassa a própria<br />
experiência. Quando o filósofo contemporâneo Gusdorf diz que "o homem não é o que<br />
é, mas é o que não é", não está fazendo um jogo de palavras. Ele quer dizer que o<br />
homem não se define por um modelo que o antecede, por uma essência que o<br />
caracteriza, nem é apenas o que as circunstâncias fizeram dele. Ele se define pelo<br />
lançar-se no futuro, antecipando, por meio de um projeto, a sua ação consciente sobre o<br />
mundo.<br />
Não há caminho feito, mas a fazer, não há modelo de conduta, mas um processo<br />
contínuo de estabelecimento de valores. Nada mais se apresenta como absolutamente<br />
certo e inquestionável.<br />
É evidente que essa condição de certa forma fragiliza o homem, pois ele perde a<br />
segurança característica da vida animal, em harmonia com a natureza.
Ao mesmo tempo, o que parece ser sua fragilidade é justamente a característica<br />
humana mais perfeita e mais nobre: a capacidade do homem de produzir sua própria<br />
história.<br />
5. A comunidade dos homens<br />
Retomando o que foi dito até agora: o homem é um ser que fala; é um ser que<br />
trabalha, por meio do trabalho, transforma a natureza e a si mesmo.<br />
Nada disso, porém, será completo se não enfatizarmos que a ação humana é uma<br />
ação coletiva. O trabalho é executado como tarefa social, e a palavra toma sentido pelo<br />
diálogo.<br />
Nem mesmo o ermitão pode ser considerado verdadeiramente solitário, pois nele<br />
a ausência do outro é apenas camuflada, e sua escolha de se afastar faz permanecer a<br />
cada momento, em cada ato seu, a negação e, portanto, a consciência e a lembrança da<br />
sociedade rejeitada. Seus valores, mesmo colocados contra os da sociedade, se situam<br />
também a partir dela. A recusa de se comunicar é ainda um modo de comunicação.<br />
O mundo cultural é um sistema de significados já estabelecidos por outros, de<br />
modo que, ao nascer, a criança encontra o mundo de valores já dados, onde ela vai se<br />
situar. A língua que se aprende, a maneira de se alimentar, o jeito de sentar, andar,<br />
correr, brincar, o tom da voz nas conversas, as relações familiares, tudo enfim se acha<br />
codificado. Até na emoção, que pareceria uma manifestação espontânea, o homem fica<br />
à mercê de regras que dirigem de certa forma a sua expressão. Podemos observar como<br />
a nossa sociedade, preocupada com a visão estereotipada da masculinidade, vê com<br />
complacência o choro feminino e o recrimina no homem.<br />
O próprio corpo humano nunca é apresentado como mera anatomia, de tal forma<br />
que não existe propriamente o "nu natural": todo homem já se percebe envolto em<br />
panos, e, portanto em interdições, pelas quais é levado a ocultar sua nudez em nome de<br />
valores (sexuais, amorosos, estéticos) que lhe são ensinados. E mesmo quando se<br />
desnuda, o faz também a partir de valores, pois transgride os estabelecidos ou propõe<br />
outros novos.<br />
Todas as diferenças existentes no comportamento modelado em sociedade<br />
resultam da maneira pela qual os homens organizam as relações entre si, que<br />
possibilitam o estabelecimento das regras de conduta e dos valores que nortearão a<br />
construção da vida social, econômica e política.<br />
Considerando isso, como fica a individualidade diante da herança social? Há o<br />
risco de o indivíduo perder sua liberdade e autenticidade. É o que Heidegger, filósofo<br />
alemão contemporâneo, chama de "mundo do man" (man equivale em português ao<br />
pronome reflexivo se ou ao impessoal a gente). Veste-se, come-se, pensa-se, não como<br />
cada um gostaria de se vestir, comer ou pensar, mas como a maioria o faz. Os sistemas<br />
de controle da sociedade aprisionam o indivíduo numa rede aparentemente sem saída.<br />
Entretanto, assim como a massificação pode ser decorrente da aceitação sem<br />
crítica dos valores impostos pelo grupo social, também é verdade que a vida autêntica<br />
só pode ocorrer na sociedade e a partir dela. Aí reside justamente o paradoxo de nossa<br />
existência social, pois, como vimos, o processo de humanização se faz pelas relações<br />
entre os homens, e é dos impasses e confrontos dessas relações que a consciência de si
emerge lenta mente. O homem move-se, então, continua mente entre a contradição e sua<br />
resolução.<br />
Cabe ao homem a preocupação constante de manter viva a dialética, a<br />
contradição fecunda de pólos que se opõem, mas não se separam, pela qual, ao mesmo<br />
tempo em que o homem é um ser social, também é uma pessoa, isto é, tem uma<br />
individualidade que o distingue dos demais.<br />
Portanto, a sociedade é a condição da alienação e da liberdade, é a condição para<br />
o homem se perder, mas também de se encontrar. O sociólogo norte-americano Peter<br />
Berger usa a expressão êxtase (ékstasis, em grego, significa "estar fora", "sair de si")<br />
para explicar o ato possível de o homem "se manter do lado de fora ou dar um passo<br />
para fora das rotinas normais da sociedade", o que permite o distanciamento e<br />
alheamento em relação ao próprio mundo em que se vive.<br />
A função de "estranhamento" é fundamental para o homem desencadear as<br />
forças criativas, e se manifesta de múltiplas formas: quando paramos para refletir na<br />
vida diária, quando o filósofo se admira com o que parece óbvio, quando o artista lança<br />
um olhar novo sobre a sensibilidade já embaçada pelo costume, quando o cientista<br />
descobre uma nova hipótese.<br />
O "sair de si" é remédio para o preconceito, o dogmatismo, as convicções<br />
inabaláveis e, portanto paralisantes. É a condição para que, ao retornar de sua "viagem",<br />
o homem se torne melhor.