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Geração do Deserto - Guido Wilmar Sassi

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* cura de <strong>do</strong>enças<br />

* andar sobre as águas<br />

* águas bentas<br />

* cinzas de fogo aceso por ele tornavam-se remédios<br />

• Com o desaparecimento <strong>do</strong> monge São João Maria, surge<br />

São José Maria, mais afeito à guerra que à religião.<br />

• A história é narrada em terceira pessoa, por um narra<strong>do</strong>r<br />

onisciente. O tempo da narrativa é o mesmo da Guerra <strong>do</strong><br />

Contesta<strong>do</strong>.<br />

• A questão <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong> presente no livro foi transformada<br />

em filme por Silvio Back, cineasta catarinense premiadíssimo, com o<br />

nome de “Guerra <strong>do</strong>s Pela<strong>do</strong>s”.<br />

• Gui<strong>do</strong> <strong>Wilmar</strong> <strong>Sassi</strong> faz parte <strong>do</strong> Grupo Sul, o grupo <strong>do</strong><br />

Modernismo em Santa Catarina.<br />

• Junto com Tito Carvalho, Eneas Athanásio e Edson<br />

Ubal<strong>do</strong>, Gui<strong>do</strong> <strong>Wilmar</strong> <strong>Sassi</strong> vinculava-se à literatura serranogauchesca<br />

de Santa Catarina. Nele as marcas da regionalidade<br />

temáticas, não vocabular, apresentam como base, a cor local <strong>do</strong><br />

planalto, com seus pinheiros, seus rios...<br />

• <strong>Geração</strong> <strong>do</strong> <strong>Deserto</strong> conta, pois, o que foram as lutas pela<br />

posse da região <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong>, em meio a toda sorte de<br />

desman<strong>do</strong>s, perseguições e violências.<br />

36<br />

COLÉGIO BOM JESUS CORAÇÃO DE JESUS<br />

(48) 3211 4400 – Rua: Emir Rosa, 120 – Centro<br />

Florianópolis - www.bomjesus.br<br />

Professora: Sônia Rivello<br />

GUIDO WILMAR SASSI<br />

Terceirão 2012


BIOGRAFIA<br />

Gui<strong>do</strong> <strong>Wilmar</strong> <strong>Sassi</strong> nasceu em Lages, Santa Catarina, em<br />

1922. Sempre gostou de ler to<strong>do</strong> o tipo de livro e foi um autodidata.<br />

Sua primeira obra publicada foi um conto, "Amigo Velho", cujo<br />

personagem principal é um pinheiro, impresso na Revista Globo de<br />

Porto Alegre em 1949. Morou em São Paulo e lá publicou o romance<br />

"São Miguel". Em 1963 mu<strong>do</strong>u-se para o Rio de Janeiro onde vive<br />

até hoje. Em 1964 publicou "<strong>Geração</strong> <strong>do</strong> <strong>Deserto</strong>" (que virou filme<br />

em 1971 com o título: "A Guerra <strong>do</strong>s Pela<strong>do</strong>s") e em 1989, "Os Sete<br />

Mistérios da Casa Queimada". No livro "<strong>Geração</strong> <strong>do</strong> <strong>Deserto</strong>"<br />

descreve com perfeição como foi a Guerra <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong> entre os<br />

esta<strong>do</strong>s de Santa Catarina e Paraná, a vida, os personagens<br />

(camponeses, peões, jagunços, coronéis...) e a cultura da época.<br />

2<br />

José Maria não era propriamente um religioso, era mais um<br />

estrategista de guerra. Organizou os jagunços, criou o Quadra<strong>do</strong><br />

Santo e seus adeptos e segui<strong>do</strong>res sobreviviam da agricultura de<br />

subsistência e <strong>do</strong> roubo de ga<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> o governo vê um povo reuni<strong>do</strong>, preocupa-se aqui<br />

tanto o Governo Federal quanto o estadual enviam forças militares<br />

para o planalto catarinense, para enfrentar o monge e seus<br />

segui<strong>do</strong>res. Por isso a diáspora eterna. Primeiro fugiram para Irani,<br />

cidade <strong>do</strong> Paraná.<br />

O governo não sossegou e uma nova expedição foi criada.<br />

As tropas militares foram denotadas, porém viram seu líder espiritual<br />

ser morto.<br />

Em 1914, mais uma fuga, mais derrotas das tropas<br />

governistas. E o conflito termina quan<strong>do</strong> o exército policial lança mão<br />

de armamento pesa<strong>do</strong> e até aviões para atacar os caboclos.<br />

O término das lutas e o acor<strong>do</strong> de 20/10/1916, assina<strong>do</strong><br />

pelos governos <strong>do</strong> Paraná e Santa Catarina resolveu a questão <strong>do</strong>s<br />

limites e a região “contestada” foi repartida de uma forma como se<br />

encontra no mapa hoje em dia.<br />

Santa Catarina teve seu território amplia<strong>do</strong> e foram cria<strong>do</strong>s<br />

os municípios de Mafra, Porto União, Joaçaba, Chapecó, Itaiópolis,<br />

Caça<strong>do</strong>r, Concórdia e Videira.<br />

• A Brazil Railway Company e a Southern Brazil Lumber são<br />

as multinacionais que provocaram a crise econômica e social na<br />

região. Esta era responsável pela extração da madeira, aquela, pela<br />

construção da estrada de ferro.<br />

Os caboclos sem ter para onde irem, agarram-se à fé sem<br />

medidas, pois só assim teriam alguma espécie de justiça.<br />

• Com o aban<strong>do</strong>no total <strong>do</strong> governo, os caboclos e to<strong>do</strong> o<br />

povo da região começaram a seguir o monge São João Maria de<br />

Agostinho, que lhes prometia uma vida melhor em Cristo. Eis como<br />

surge, então, o fanatismo religioso.<br />

• Os monges faziam várias previsões no romance: praga de<br />

gafanhotos que destruiria a lavoura; chuva de pedra devi<strong>do</strong> os<br />

peca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> povo; fim <strong>do</strong> ano em 2000; um burro de ferro<br />

atravessaria os campos (trem); “muito pasto e pouco rasto” (animais<br />

morreram devi<strong>do</strong> à peste); um gavião de aço roncan<strong>do</strong> nos céus.<br />

• Segun<strong>do</strong> o povo o monge João realizou muitos milagres:<br />

35


Estillac Leal (personagem ficcional) – Era o comandante de<br />

campo das forças governistas que atacava os fanáticos, destruin<strong>do</strong><br />

cada um <strong>do</strong>s redutos até chegar ao de Santa Maria, perto de onde<br />

acampou e atacava constantemente. Só conseguiu conquistá-lo<br />

quan<strong>do</strong> vieram outras tropas pelo outro la<strong>do</strong>, comandadas pelo<br />

Coronel Potiguara.<br />

• CONTESTADO:<br />

É BOM SABER:<br />

A guerra <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong> aconteceu entre 1912 e 1916, no<br />

início <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, nos limites entre Paraná e Santa Catarina.<br />

A região possuía uma rica floresta e boas terra para a plantação de<br />

erva-mate.<br />

A ganância <strong>do</strong>s grandes proprietários empurrava para longe<br />

os pequenos e posseiros. Para piorar, veio a construção de uma<br />

estrada de ferro que ligava os esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul e São<br />

Paulo.<br />

De propriedade de Percival Farquhar, a Brazil Raiway<br />

Company comprou uma extensa faixa de terra, (15R de cada la<strong>do</strong> da<br />

ferrovia) onde já havia muitas pessoas instaladas.<br />

Para esta construção, o governo trouxe pessoas de várias<br />

partes <strong>do</strong> Brasil (cerca de oito mil operários) e ao final daquela, os<br />

trabalha<strong>do</strong>res ficaram sem emprego, além de proibi<strong>do</strong>s de ficarem<br />

nas terras.<br />

A opressão capitalista não para por aqui, pois a Brazil<br />

Raiway Company criou uma subsidiária, a Southern Brazil Lumber<br />

and Colonization, em 1913, para realizar a extração da madeira.<br />

Foram criadas, então, duas grandes serrarias em Santa Catarina:<br />

uma em Três Barras, outra em Calmon. Como a tecnologia era<br />

grande, não se fazia necessária uma mão de obra. Mais uma vez os<br />

pequenos agricultores foram expulsos.<br />

A região ficou, pois, com um grande número de<br />

desemprega<strong>do</strong>s de toda ordem. Sem esperanças, agarraram aos<br />

monges que apareciam para consolá-los, entre eles: São João Maria<br />

de Agostinho e São José Maria. Estes pregavam a favor da<br />

Monarquia e contra a República. Deu-se então um movimento<br />

messiânico.<br />

34<br />

INTRODUÇÃO<br />

<strong>Geração</strong> <strong>do</strong> <strong>Deserto</strong> tem como tema a Guerra <strong>do</strong><br />

Contesta<strong>do</strong>, que ocorreu entre 1912 e 1916.<br />

Misturan<strong>do</strong> realidade e ficção, o autor nos mostra um<br />

romance regionalista.<br />

O Contesta<strong>do</strong> mostra um povo oprimi<strong>do</strong> e escorraça<strong>do</strong> pelas<br />

mãos <strong>do</strong>s poderosos, durante a questão de fronteiras entre Paraná e<br />

Santa Catarina.<br />

O autor narra o conflito pelo ponto de vista <strong>do</strong>s<br />

revolucionários, foi a luta de uma minoria sem recursos bélicos, mas<br />

movi<strong>do</strong> por uma fé muito grande.<br />

Gui<strong>do</strong> <strong>Wilmar</strong> <strong>Sassi</strong> mistura personagens ficcionais com<br />

figuras reais da história, que culmina com a derrota <strong>do</strong>s mais fracos.<br />

O tempo da narrativa é o mesmo da guerra, vale dizer, entre<br />

1912 e 1916, ten<strong>do</strong> como local as quatro partes da obra. Taqudruçu,<br />

Caraguatá, Santa Maria, os quais eram os redutos <strong>do</strong>s fanáticos.<br />

PRIMEIRA PARTE<br />

IRANI<br />

ANTOLOGIA COMENTADA<br />

Nessa parte, o monge São João Maria faz milagres pelo<br />

interior catarinense, mas é uma figura misteriosa, a qual aparece e<br />

some intermitentemente.<br />

Um outro monge aparece, dizen<strong>do</strong> ser irmão <strong>do</strong> primeiro,<br />

seu nome era José Maria. Este cria um exército, montan<strong>do</strong> seus<br />

Doze Pares de França para preparar os jagunços para a guerra.<br />

Nesta morrem o líder <strong>do</strong> governo, João Gualberto, bem como o líder<br />

<strong>do</strong>s jagunços, o monge José Maria.<br />

1. Só mesmo São João Maria de Agostinho para dar um jeito<br />

nas coisas e endireitar a vida <strong>do</strong> povo. Somente ele!<br />

Em toda aquela região ficara, profundamente gravada na<br />

lembrança <strong>do</strong>s mais velhos, a imagem <strong>do</strong> homem que percorrera o<br />

sertão, anos antes. Esperança ele trouxera para to<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> pelo<br />

mun<strong>do</strong> peregrinara, auxilian<strong>do</strong> os oprimi<strong>do</strong>s e consolan<strong>do</strong> os aflitos.<br />

Ele se fora, mas os pobres, relembran<strong>do</strong> seus conselhos e palavras,<br />

3


neles encontravam lenitivo. Envolto em lenda ele surgira, no meio de<br />

uma lenda também desaparecera. Escondera-se no morro <strong>do</strong> Taió,<br />

havia anos, mas prometera voltar, quan<strong>do</strong> muito, ele fora ao céu,<br />

falar com Deus, mas regressaria para cuidar da sua gente.<br />

Aguardavam-no, pois.<br />

⎯ São João Maria duas vezes an<strong>do</strong>u pelo mun<strong>do</strong>.<br />

Davam a explicação:<br />

⎯ Além de naturalista ele também era monge, e andava<br />

fazen<strong>do</strong> penitência. Fez voto de pobreza. Não aceitava dinheiro de<br />

ninguém.<br />

⎯ É verdade que andava descalço?<br />

⎯ Às vezes andava descalço, outras de alpargata... Os<br />

cabelos e a barba que nem de monge mesmo: bem compri<strong>do</strong>s, da<br />

brancura <strong>do</strong> algodão. Vestia uma roupinha pobre, de brim, toda<br />

remenda. Tinha um barrete na cabeça, feito de pele de bicho.<br />

Debaixo <strong>do</strong> braço carregava uma caixinha, com umas imagens de<br />

santos, da devoção dele, e os apetrechos <strong>do</strong> chimarrão.<br />

⎯ E comida?<br />

⎯ Aceitava o que lhe davam, mas não comia carne. Gostava<br />

muito era de couve, e só tomava chimarrão. Disso ele gostava.<br />

⎯ E outras bebidas?<br />

⎯ Nunca ninguém viu ele pôr café nem leite na boca.<br />

Também era contra as bebidas de álcool, e nunca bebeu cachaça<br />

nem vinho. Nem podia fazer isso: ele era um santo.<br />

E quan<strong>do</strong> ele, o santo monge – olhos bon<strong>do</strong>sos, rosto<br />

sereno, barbas longas –, chegava às povoações e às fazendas, o<br />

povo se reunia ao seu re<strong>do</strong>r, pedin<strong>do</strong> remédios e conselhos. Ele<br />

predissera pragas de gafanhotos, uma chuva de peras muito grande,<br />

por causa <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> povo, uma peste nas criações; dizem que<br />

não ficou uma só cabeça de ga<strong>do</strong>, e morreu tu<strong>do</strong> quanto foi cavalo,<br />

profetizou também o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, bem como um burro de ferro que<br />

atravessaria os campos, com gente dentro, gavião de aço, ou num<br />

gafanhoto de aço, roncan<strong>do</strong> pelo céu.<br />

O povo, há um tempo sofre<strong>do</strong>r e esperançoso, aguardava a<br />

volta <strong>do</strong> santo monge <strong>do</strong> sertão. O monge foi pro morro <strong>do</strong> Taió e<br />

prometeu que voltaria quan<strong>do</strong> cumprisse a penitência.<br />

2. Exalta<strong>do</strong> e bem-falante, Juca Tavares não perdia ocasião<br />

de defender os direitos de Santa Catarina. Nas vendas de beira de<br />

estrada, nas fazendas ou nas casas <strong>do</strong>s amigos, ele discutia e<br />

falava, quase sempre em tom de discurso:<br />

⎯ Então ser catarinense é crime? Desde quan<strong>do</strong>? Essa<br />

desordem não pode continuar, meus amigos. Ninguém mais se<br />

4<br />

Boca Rica (personagem ficcional) – Gaúcho valente e forte, tinha<br />

vários dentes de ouro na boca. Era muito respeita<strong>do</strong> e tinha a<br />

confiança <strong>do</strong>s companheiros.<br />

Manoel Alves de Assunção Rocha (personagem ficcional) –<br />

Rocha Alves como era conheci<strong>do</strong>, foi escolhi<strong>do</strong> como Impera<strong>do</strong>r<br />

pelos chefes <strong>do</strong>s rebeldes. Era fazendeiro de muito prestígio entre<br />

os caboclos. Bon<strong>do</strong>so e simplório, tinha cabelos e barbas brancas,<br />

que o deixava muito pareci<strong>do</strong> com D. Pedro II.<br />

Doquinha (personagem ficcional) – Era um <strong>do</strong>s jagunços. Vivia<br />

aprontan<strong>do</strong> no reduto. Pego por roubo na primeira vez, levou muitas<br />

vergadas nas nádegas, dadas por Boca Rica. Nutria por este um<br />

ódio mortal, principalmente depois que se apaixonou por sua mulher<br />

Belmira. Acabou castra<strong>do</strong>. Morreu numa atitude suicida frente aos<br />

solda<strong>do</strong>s, em combate.<br />

Belmira (personagem ficcional) – Era a prenda mais linda <strong>do</strong><br />

lugar. Acabou casan<strong>do</strong> com Boca Rica. Como vivia pedin<strong>do</strong><br />

pequenos favores a Doquinha, este achou que ela estava se<br />

oferecen<strong>do</strong>. Repudiou o homem, quase lhe causan<strong>do</strong> a morte<br />

quan<strong>do</strong> Boa Rica descobriu. Depois da morte de seu homem, não<br />

aceitou a ressurreição inventada por Adeodato para saciar a sede de<br />

sexo <strong>do</strong>s homens. Com seu desprezo, causou a castração de<br />

Doquinha.<br />

Adeodato (personagem real) – Um <strong>do</strong>s líderes <strong>do</strong> movimento,<br />

era quem impunha a ordem no reduto. Com o passar <strong>do</strong> tempo,<br />

tornou-se mais cruel e sanguinário, recorren<strong>do</strong> a vários truques para<br />

matar quem lhe conviesse. Acabou viran<strong>do</strong> um déspota pior <strong>do</strong> que<br />

aqueles que combatia.<br />

Frei Manuel (personagem ficcional) – Na vida comum era um<br />

vidente, meti<strong>do</strong> a adivinho. Depois, no embalo <strong>do</strong> movimento cristão,<br />

intitulou-se frei e vestia uma batina rústica e toda remendada. Ora<br />

cúmplice de Adeodato nos seus golpes, ora dan<strong>do</strong> conselhos de fé<br />

aos mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> reduto, mantinha o respeito de to<strong>do</strong>s.<br />

Coronel Setembrino de Carvalho (personagem real) –<br />

Comandante encarrega<strong>do</strong> de destruir a resistência <strong>do</strong>s fanáticos.<br />

Instalou seu Quartel-General em Canoinhas, de onde mandava as<br />

tropas para os combates.<br />

33


Coronel Chiquinho (personagem real) – Superintendente de<br />

Canoinhas, “gente <strong>do</strong> Governo”, era desafeto <strong>do</strong> monge São José<br />

Maria, que lhe tinha ódio mortal, mas não conseguiu exterminá-lo.<br />

Acabou desaparecen<strong>do</strong> em meio à narrativa.<br />

Gasparino Melo (personagem ficcional) – Um <strong>do</strong>s primeiros a<br />

chegar com a família, corri<strong>do</strong> de suas terras. Participou ativamente<br />

da luta. Nutria um ódio muito grande pela Lumber, a madeireira<br />

estrangeira que lhe tomara a pequena serraria e o deixara sem<br />

nada.<br />

Zeferina Papuda (personagem ficcional) – Velha louca que vivia<br />

a catar pedras junto com o filho, dizen<strong>do</strong> que eram pedras preciosas.<br />

Juntava quinquilharias e oferecia aos outros como fabulosos<br />

tesouros. Aju<strong>do</strong>u o filho na empreitada de agradar o Impera<strong>do</strong>r<br />

Rocha Alves para casar com a filha deste.<br />

Nenê (personagem ficcional) – Filho de Zeferina, também <strong>do</strong>i<strong>do</strong><br />

como a mãe, viu a filha <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r toman<strong>do</strong> banho no rio e<br />

apaixonou-se. Pediu à mãe que o ajudasse. Quan<strong>do</strong> o Impera<strong>do</strong>r<br />

pediu-lhe como <strong>do</strong>te vinte orelhas de pelu<strong>do</strong>, bulin<strong>do</strong> de seu desejo,<br />

armou-se de uma espada de madeira, que chamou Elética e treinava<br />

to<strong>do</strong>s os dias. Como não aparecessem pelu<strong>do</strong>s, a mãe convenceu-o<br />

a matar o burro de ferro que corria pelos campos e tirava as terras<br />

das pessoas. Acabou como uma poça de sangue, atropela<strong>do</strong> pela<br />

locomotiva que atacara.<br />

Coronel Henrique de Almeida (personagem ficcional) – O<br />

Henriquinho, era protetor <strong>do</strong> beato José Maria e adversário de<br />

Chiquinho de Albuquerque.<br />

Capitão João Gualberto (personagem real) – Comandante das<br />

tropas paranaenses que foram enviadas para desalojar os fanáticos<br />

de Irani. Não aceitou o pedi<strong>do</strong> de retirada que o monge lhe fez,<br />

queren<strong>do</strong> dizimar de vez a gentalha. Caiu numa armadilha armada<br />

pelos jagunços. Antes de morrer, feriu de morte o monge, com <strong>do</strong>is<br />

tiros no peito.<br />

Euzébio Ferreira <strong>do</strong>s Santos (personagem real) – Seu Zebinho<br />

ajudava em tu<strong>do</strong> no reduto. Suas duas netas foram virgens<br />

inspira<strong>do</strong>ras de José Maria. Embora um personagem real, na<br />

narrativa de <strong>Sassi</strong> tem pouquíssima participação.<br />

32<br />

entende. Um dia um catarinense apanha pelo crime de ser<br />

catarinense, e logo no dia seguinte apanha de novo, pelo crime de<br />

não ser mais. Isso porque as fronteiras não são fixas. Um dia<br />

mudam para cá, e no outro mudam para lá. Esta zona <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong><br />

está viran<strong>do</strong> uma terra sem lei e sem <strong>do</strong>no. Mas os <strong>do</strong>nos<br />

verdadeiros somos nós, os catarinenses. E não é só o povo que está<br />

<strong>do</strong> nosso la<strong>do</strong>, meus amigos. Gente de influência também.<br />

Tavares arrolava os companheiros: Guilherme Gaertner,<br />

comerciante; Elias de Morais, também comerciante; Aleixo<br />

Gonçalves, fazendeiro e político de prestígio; Dom Rocha Alves,<br />

fazendeiro muito estima<strong>do</strong> pelos caboclos; e ainda o caudilho<br />

Bonifácio Papu<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s pessoas influentes.<br />

Tavares dizia que tinha aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> a carreira de promotor<br />

público de Canoinhas para lutar por direitos <strong>do</strong> país e afirmava que a<br />

fronteira de Santa Catarina devia estender-se, pelo direito, até os<br />

Campos de Palmas. No entanto, aquele município não é nosso, e<br />

sim <strong>do</strong> Paraná. E o nosso adversário, que não se contenta nunca,<br />

ainda quer que o seu território alcance o município de Lages inteiro,<br />

quase lá nos limites <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul. É um trato de terras com<br />

mais de quarenta mil quilômetros quadra<strong>do</strong>s em litígio. Este<br />

Contesta<strong>do</strong> é um país, um mun<strong>do</strong>! É preciso que o Governo Federal<br />

tome providências e ponha fim à contenda. Se isso não for feito,<br />

meus amigos, nós mesmos teremos de resolver a questão. Por bem<br />

ou pela força!<br />

Nada adiantava, os discursos de Juca Tavares. Ele não tinha<br />

poderes para impedir as correrias das forças policiais, as<br />

perseguições e os abusos.<br />

Os injustiça<strong>do</strong>s na questão <strong>do</strong>s limites haviam si<strong>do</strong> expulsos<br />

das suas terras, quan<strong>do</strong> foi iniciada a construção da Estrada de<br />

Ferro São Paulo – Rio de Janeiro. Causava espanto a enorme<br />

concessão de terras que o Governo fizera à Companhia.<br />

Só tinha um jeito: trabalhar na Estrada de Ferro. As pessoas<br />

que não saíam de suas terras eram mortas. A companhia tinha<br />

<strong>do</strong>cumentos de cartório e advoga<strong>do</strong>s.<br />

O povo diziam que o regime da República não prestava,<br />

quan<strong>do</strong> D. Pedro II era vivo, protegia os pobres. Fora da monarquia<br />

só sobrava João Maria.<br />

A Lumber e a companhia da Estrada de Ferro tomaram<br />

conta de tu<strong>do</strong>, das terras, <strong>do</strong>s ervais e <strong>do</strong>s pinheirais.<br />

3. Um dia surgiu a notícia da volta de João Maria, mas era<br />

outro monge, o que o povo supunha ser irmão de São João Maria. O<br />

5


novo monge chamava-se José Maria, era mais novo e também fazia<br />

milagres, dava remédios e mandava o povo rezar.<br />

E o povo, então, seguiu em romaria para o Espinilho. Lá<br />

encontrariam o remédio para to<strong>do</strong>s os males, o lenitivo de todas as<br />

angústias. São João Maria não voltara, mas mandara o irmão em<br />

seu lugar.<br />

São João Maria não gostava de ajuntamento perto dele.<br />

José Maria rezava, mas também reunia o povo e até gente armada<br />

andava com ele. A volta <strong>do</strong> profeta percorreu o Contesta<strong>do</strong> inteiro.<br />

To<strong>do</strong>s seguiram para Espinilho: o cego Tavinho, o leproso<br />

Tibúrcio Ribas, o fugitivo José de Souza, o negro Vitorino, Gasparino<br />

Melo e a família, Mané Rengo e sua mulher Luzia e a parteira<br />

Delminda.<br />

4. Tavares, pensan<strong>do</strong> na ajuda <strong>do</strong> povo de José Maria,<br />

man<strong>do</strong>u que Chico Ventura, um fazendeiro amigo seu, fosse fazer<br />

promessas ao monge, convidan<strong>do</strong>-o para morar nas terras de<br />

Curitibanos, em Taquaruçu.<br />

José Maria consentiu, contanto que o seu povo fosse.<br />

Convocou os crentes e fez-lhe ver as vantagens que havia na<br />

mudança para o município vizinho. O povo to<strong>do</strong> o acompanhou.<br />

Acamparam no lugar chama<strong>do</strong> Taquaruçu. Ali, o monge<br />

resolveu estabelecer o Quadro Santo, o reduto da Monarquia e o<br />

arraial começou a crescer.<br />

Eles precisavam organizar-se e defender-se. Acontecia que<br />

nem to<strong>do</strong>s os fazendeiros estavam dispostos a auxiliá-los,<br />

oferecen<strong>do</strong>-lhes ga<strong>do</strong>. Muitos escorraçavam-nos de suas terras.<br />

José Maria, inspira<strong>do</strong> no impera<strong>do</strong>r Carlos Magno da<br />

França, decidiu formar sua guarda e escolheu os Pares de França<br />

entre os caboclos (igual aos <strong>do</strong> Império de Carlos Magno).<br />

José Dias selecionou os seguintes pares: Aparício Borges –<br />

Oliveiros; Lauro Macha<strong>do</strong> de Oliveira – Oliveiros; Aristides Mata<br />

(branco) Ricarte; Vitorino (Preto) – Ricarte; José de Souza – Urgel<br />

de Danoa; Daniel – Guarim de Lore; Gasparina Melo – Jofre, senhor<br />

<strong>do</strong>s Bordéus; Raldão – Conde de Cenabria; Gui de Borgonha –<br />

Lamberto de Bruxelas; Hoel e Nemé – Bosim de Gênova e<br />

Guandeboa; Tietri – duque de Dardânia.<br />

Em meia hora, José Maria analisava o armamento, pouco,<br />

insuficiente e inadequa<strong>do</strong> para os seus planos. Os cavalos não eram<br />

<strong>do</strong> pêlo e da raça por ele deseja<strong>do</strong>s. As montarias eram estropiadas,<br />

mas era preciso disciplinar aquela gente, fazê-la trabalhar, distribuir<br />

funções, torná-la um verdadeiro exército de São João Maria. O<br />

monge sugeriu ao povo que construíssem espadas de pau e,<br />

6<br />

Gegé (José de Souza)/Urgel de Danoa (personagem ficcional) –<br />

Foragi<strong>do</strong> <strong>do</strong> presídio de Campos Novos, juntou-se aos crentes,<br />

primeiramente para se esconder, mas depois tornou-se fiel partidário<br />

da causa. Era um <strong>do</strong>s Doze Pares de França, a guarda pessoal <strong>do</strong><br />

monge São José Maria.<br />

Mané Rengo (personagem ficcional) – Corri<strong>do</strong> de suas terras<br />

pela Cia. Da Estrada de Ferro, juntou-se aos desfavoreci<strong>do</strong>s e lutou<br />

até o fim. Foi um <strong>do</strong>s últimos a cair.<br />

Delminda (personagem ficcional) – Velha experiente que ajudava<br />

nos partos e nas curas <strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s. Muito crente, sabia todas as falas<br />

<strong>do</strong> monge São João Maria e as profecias que deixara relatadas aos<br />

mais antigos.<br />

Elias de Morais (personagem real) – Comerciante que<br />

simpatizava com a causa, acabou envolvi<strong>do</strong> completamente, vin<strong>do</strong> a<br />

tornar-se o chefe supremo <strong>do</strong>s rebeldes, após a morte de São José<br />

Maria.<br />

Chico Ventura (personagem real) – Fazendeiro, amigo de Juca<br />

Tavares, também simpatizante. Levou o monge e seus segui<strong>do</strong>res<br />

para suas terras, em Taquaruçu, onde ficariam melhor protegi<strong>do</strong>s.<br />

Coco (Aparício Borges) (personagem ficcional) – Baiano que<br />

trabalhava na estrada de ferro. Ficara na região, pois não tinha para<br />

onde ir. Abraçou a causa e era valente e determina<strong>do</strong>. Acabou morto<br />

por engano <strong>do</strong> amigo Ricarte.<br />

Ricarte Branco (Aristides Mota) (personagem ficcional) – Moço<br />

sensato e inteligente, conquistava a confiança de to<strong>do</strong>s,<br />

principalmente a de seu Elias. Na ânsia de matar um pelu<strong>do</strong>, pois<br />

ainda não matara nenhum, acabou atiran<strong>do</strong> no amigo Coco, que<br />

estava numa moita fazen<strong>do</strong> necessidades.<br />

Vitorino (personagem ficcional) – Negro forte e alto, acabou<br />

sen<strong>do</strong> o Ricarte Preto, <strong>do</strong>s Pares de França.<br />

Liveira (personagem ficcional) – Amigo e compadre de Mané<br />

Rengo, também valente e destemi<strong>do</strong>, juntamente com o amigo, foi<br />

um <strong>do</strong>s últimos a deixar o reduto e a morrer na mata, em luta com os<br />

solda<strong>do</strong>s.<br />

31


PERSONAGENS<br />

São João Maria de Agostinho (personagem real) – Foi o santo<br />

monge de que se lembrava a gente <strong>do</strong>s redutos, principalmente os<br />

mais velhos. To<strong>do</strong>s esperavam pela ressurreição daquele santo<br />

homem, de olhos bon<strong>do</strong>sos, rosto sereno e barbas longas que<br />

prometera voltar um dia. Era venera<strong>do</strong> como milagreiro e protetor <strong>do</strong><br />

povo. É o único personagem que não tem parte ativa na época em<br />

que se passa a narrativa. É constantemente cita<strong>do</strong> através da fé que<br />

lhe tinham os populares.<br />

Juca Tavares (personagem real) – Ex-promotor público de<br />

Canoinhas, defendia a luta armada contra os paranaenses para<br />

resolver as questões de fronteira. Quan<strong>do</strong> se instalou o movimento<br />

<strong>do</strong>s fanáticos pelas terras e pela instauração <strong>do</strong> Império, juntou-se<br />

aos comandantes, que eram na maioria amigos seus, para reforçar o<br />

movimento.<br />

São José Maria (personagem real) – O líder espiritual e político<br />

<strong>do</strong>s fanáticos. Dizia-se irmão de São João Maria, com o qual não<br />

tinha nenhum parentesco. <strong>Deserto</strong>r <strong>do</strong> exército paranaense,<br />

escondeu-se na pele <strong>do</strong> novo monge. Inteligente e bom ora<strong>do</strong>r,<br />

soube conquistar a fé e a confiança <strong>do</strong> povo. Organizou-o como<br />

comunidade e depois como exército. Segurou até onde pôde a luta<br />

armada, saben<strong>do</strong> que as chances de vitória eram poucas. Quan<strong>do</strong><br />

não deu mais para impedir a luta, participou logo da primeira batalha,<br />

sen<strong>do</strong> morto pelo comandante João Gualberto <strong>do</strong> exército<br />

paranaense, que também tombou mortalmente feri<strong>do</strong>. Seus<br />

ensinamentos e liderança, porém, já haviam inicia<strong>do</strong> um movimento<br />

que não tinha mais volta e sua figura serviu para manter o povo<br />

uni<strong>do</strong> até o fim.<br />

Tavinho (personagem ficcional) – Cego que acompanhou o povo<br />

para o reduto. Andava também no meio da soldadesca junto com o<br />

amigo Tibúrcio, seu guia, tiran<strong>do</strong> informações que passava para os<br />

fanáticos.<br />

Tibúrcio (personagem ficcional) – Leproso que tinha esperança<br />

de cura, por isso juntou-se, também, aos fiéis. No caminho,<br />

encontrou o cego Tavinho a quem serviu de guia dali em diante.<br />

30<br />

diariamente, instruía seus homens a marcharem e a manejar armas,<br />

apesar de poucas.<br />

5. O Quadro Santo deixou de ser provisório, e José Maria<br />

exercia sua função de guia espiritual e líder <strong>do</strong>s crentes da<br />

Monarquia.<br />

6. José Maria teve alguns problemas com um tal de<br />

Barnabé, conheci<strong>do</strong> seu, de quem tinha si<strong>do</strong> colega na Força<br />

Pública <strong>do</strong> Paraná, da qual, aliás, haviam deserta<strong>do</strong> juntos. Barnabé<br />

possuía <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong>s quais constava o verdadeiro nome <strong>do</strong><br />

monge – Miguel Lucena de Boaventura –, e experimentou fazer<br />

chantagem, obrigan<strong>do</strong>-o a dividir com ele o dinheiro das esmolas.<br />

José Maria chamou um <strong>do</strong>s seus Pares, Urgel de Danoa, e contoulhe,<br />

muito em segre<strong>do</strong>, que Barnabé era um espião da República.<br />

Dias depois Barnabé apareceu morto, perto <strong>do</strong> Quadro Santo, com<br />

uma bala nas costas. A culpa recaiu sobre os homens <strong>do</strong> coronel<br />

Chiquinho.<br />

José Maria dizia que Chiquinho tinha rixa com ele e incitou<br />

os caboclos contra o coronel. Gasparino Melo comentou que<br />

algumas cabeças a mais ou a menos não deixariam o coronel mais<br />

pobre, o que imediatamente o monge acatou.<br />

Começaram a diminuir não só as reses <strong>do</strong> Cel. Chiquinho,<br />

mas também a criação possível de to<strong>do</strong>s os outros fazendeiros.<br />

7. O monge José Maria continuava contente e anunciou que<br />

tivera uma visão. Disse que havia fala<strong>do</strong> com Deus e que lhe fora<br />

recomenda<strong>do</strong> que se fizesse rodear de meninas virgens. Uma das<br />

virgens escolhidas foi a rapariga Teo<strong>do</strong>ra, de onze anos de idade,<br />

neta <strong>do</strong> seu Zebinho. A seguir o profeta escolheu uma outra,<br />

também neta <strong>do</strong> Euzébio, de nove anos. Alguns estranharam o fato,<br />

mas ninguém reclamou.<br />

8. Zeferina e o filho, Nenê, diziam ter acha<strong>do</strong> pedras<br />

preciosas e em poucos dias tornaram-se as pessoas mais populares<br />

<strong>do</strong> reduto. A to<strong>do</strong>s mostravam os tesouros que possuíam,<br />

procuran<strong>do</strong> negócios ou propon<strong>do</strong> barganhas.<br />

9. Taquaruçu continuava crescen<strong>do</strong>. A velha Delminda,<br />

desde que chegara, já atendera a <strong>do</strong>ze partos.<br />

O alimento às vezes escasseava. A própria Delminda fora<br />

obrigada a matar quase todas as galinhas que trouxera consigo, e o<br />

7


ga<strong>do</strong> que os fazendeiros ofertavam já era insuficiente para o<br />

sustento <strong>do</strong> povo.<br />

Se longe das vistas <strong>do</strong> monge as desordens aconteciam, no<br />

acampamento ele procurava manter a lei e a disciplina.<br />

Como não podia administrar sozinho o arraial, o monge<br />

organizou um ministério para auxiliá-lo.<br />

Quanto às esmolas, moedas, patacas, onças de ouro e<br />

dinheiro de papel o próprio José Maria administrava.<br />

10. Apesar <strong>do</strong>s apelos <strong>do</strong>s ministros e representantes <strong>do</strong>s<br />

Pares da França, o monge relutava em declarar guerra aos<br />

“pelu<strong>do</strong>s”.<br />

Dias depois, com a notícia de que as forças <strong>do</strong> Governo se<br />

aproximavam, o monge resolveu ir pro Irani, lá nos Campos de<br />

Palmas, no Paraná. A maior parte <strong>do</strong>s habitantes de Taquaraçu<br />

seguiu o monge. Apesar <strong>do</strong> sofrimento to<strong>do</strong>s aguardavam o<br />

momento da Guerra Santa contra a República.<br />

11. Em Irani, nos Campos de Palmas, no Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Paraná,<br />

bem dentro da zona contestada, estabeleceu José Maria o novo<br />

Quadro Santo. E Irani aumentou, em gente e poderio.<br />

Houve alarme na capital <strong>do</strong> Paraná, por causa da invasão de<br />

José Maria em zona contestada e o Coronel João Gualberto, à frente<br />

de quatrocentos homens, tinha a missão de expulsar os “fanáticos”.<br />

José Maria decidiu que não correria mais. Os jagunços<br />

muniram-se de “patuás”, orações fortes e bálsamo milagroso e<br />

formaram um exército de seiscentas pessoas, incluin<strong>do</strong> velhos,<br />

mulheres, crianças e enfermos.<br />

José Maria tentou em vão um acor<strong>do</strong> com o coronel João<br />

Gualberto.<br />

Madrugada ainda, <strong>do</strong> dia 22 de outubro de 1912, sessenta<br />

homens, dez cavaleiros e mais a metralha<strong>do</strong>ra invadiram o arraial<br />

<strong>do</strong>s jagunços.<br />

12. Os jagunços encurralaram os solda<strong>do</strong>s, muitos morreram<br />

e outros fugiram. Os <strong>do</strong>is chefes se encontraram cara a cara, e a<br />

espada <strong>do</strong> monge atingiu o coronel na cabeça, com um promenhaço<br />

forte. João Alberto, mesmo caí<strong>do</strong>, desfechou <strong>do</strong>is tiros no peito <strong>do</strong><br />

monge. João Alberto venci<strong>do</strong>, os jagunços retalharam-no a facão.<br />

13. Sem chefe agora, era necessário restabelecer a ordem e<br />

a calma e Chico Ventura tomou à frente, reuniu os mais gradua<strong>do</strong>s e<br />

decidiram que to<strong>do</strong>s voltariam para suas casas.<br />

8<br />

40. Liveira pediu ao compadre que seguisse com os outros e<br />

cuidasse de sua família. Retornou à mata e man<strong>do</strong>u que seguissem<br />

até passarem para o outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> rio, lá estariam a salvo.<br />

Os outros seguiram e Liveira entrincheirou-se para esperar<br />

os solda<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> o primeiro apareceu ele atirou. Veio de volta<br />

uma chuva de tiros. Liveira caiu e ficou de costas, olhan<strong>do</strong> o céu.<br />

Rezava para que os seus conseguissem cruzar o rio.<br />

Júlia ouviu os tiros e voltou. Ninguém conseguiu segurá-la.<br />

Pouco depois os tiros avisaram que ela havia encontra<strong>do</strong> a tropa.<br />

Logo em seguida também foram vistos. Um tiro acertou Mané nas<br />

costas.<br />

Chegaram ao rio e bandearam-se na água. Aos trancos e<br />

escorregões chegaram ao outro la<strong>do</strong>.<br />

Mané Rengo sabia que, se os solda<strong>do</strong>s também passassem,<br />

não teriam muita chance. Chamou Valentim e encarregou-o de<br />

cuidar <strong>do</strong>s outros de agora em diante. Depois man<strong>do</strong>u-os seguir.<br />

Acomo<strong>do</strong>u-se num barranco e esperou. Quan<strong>do</strong> apareceu um<br />

solda<strong>do</strong> ele atirou. O homem estatelou-se na ribanceira e ali ficou.<br />

Os outros chegaram e sentiram que seria difícil passar com tocaias<br />

<strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>. Desceram o rio pela margem, até ver se achavam um<br />

lugar seguro.<br />

Mané levantou-se e quis seguir adiante. Uma golfada de<br />

sangue cobriu-lhe a boca. Escorregou devagarinho para dentro <strong>do</strong><br />

rio.<br />

Comentário:<br />

Aqui a força foi diminuin<strong>do</strong>, um verdadeiro circo de horrores:<br />

homens feri<strong>do</strong>s, mulheres feridas, <strong>do</strong>entes...<br />

Foram venci<strong>do</strong>s pela fome, disenteria, tifo, varíola, pelas<br />

armas pesadas.<br />

Triste!<br />

29


36. Numa noite calma, somente o tinir das armas sen<strong>do</strong><br />

preparadas para o amanhecer era ouvi<strong>do</strong>. Gegé levantou-se e saiu a<br />

perambular. Estava calmo e pensativo. A antiga fé estava quase<br />

toda ela de volta, mas queria, ainda, tirar uma prova. Queria ver se a<br />

oração fechava mesmo o corpo e se a ressurreição prometida era<br />

verdade.<br />

⎯ Cuida<strong>do</strong>, hein! Não vá muito longe. Tem muito pelu<strong>do</strong> por<br />

aí.<br />

Continuou caminhan<strong>do</strong> mata a dentro. Achou uma pedra e<br />

sentou-se nela.<br />

O tempo não tinha mais senti<strong>do</strong>. O amanhã ainda estava<br />

distante. Passa<strong>do</strong>, presente e futuro se confundiam num só<br />

momento: aquele. Gegé segurou o patuá com a mão esquerda. Com<br />

a direita levou o Smith & Wesson ao ouvi<strong>do</strong>. As dúvidas iriam cessar<br />

agora. Puxou o gatilho.<br />

37. Elias de Morais foi morto pelos solda<strong>do</strong>s. Adeodato ficou<br />

sen<strong>do</strong> o único chefe e governava como um tirano. Man<strong>do</strong>u matar as<br />

crianças para poupar bocas inúteis. Matou Jovina, pois, além de ser<br />

mulher, estava grávida. Arrematou com um tiro no ventre para não<br />

deixar dúvidas.<br />

38. Os solda<strong>do</strong>s avançavam mais e mais. Por to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong><br />

tinha gente morta. O cheiro era insuportável. Às vezes achavam que<br />

já tava tu<strong>do</strong> morto, mas os tiros que partiam da mata tiravam<br />

qualquer dúvida.<br />

Do outro la<strong>do</strong> se aproximavam as tropas <strong>do</strong> capitão<br />

Potiguara. Vinha abrin<strong>do</strong> caminho à bala. To<strong>do</strong>s os redutos estavam<br />

cain<strong>do</strong>. Não demorou muito para que chegasse, aos <strong>do</strong>mínios de<br />

Santa Maria. Mas esta não havia caí<strong>do</strong> ainda. Os jagunços se<br />

reorganizaram e contra-atacaram. Pela manhã, porém, os homens<br />

de Estillac Leal se encontraram com os de Potiguara. Santa Maria<br />

estava conquistada.<br />

39. Liveira ia com a filha nos braços. Andavam rápi<strong>do</strong> pela<br />

mata. A filha estava quente e Liveira sabia o que era – o tifo.<br />

Valentim, Luzia, Júlia e Mané Rengo iam junto. Paravam alguns<br />

momentos para descansarem. Num deles, Liveira largou a menina.<br />

Estava morta. Ali mesmo cavou com as mãos uma cova. Não tinham<br />

tempo nem para uma reza. Deviam continuar.<br />

28<br />

Liveira e Julia, Mané Rengo e Luzia e o velho Florêncio, pai<br />

de Júlia ficaram porque Júlia já sentia as <strong>do</strong>res <strong>do</strong> parto.<br />

Comentário:<br />

É preciso notar que o povo precisava acreditar em algo, pois<br />

estava sen<strong>do</strong> massacra<strong>do</strong> pela LUMBER que lhes tirou as terras, os<br />

pinheiros, o mate. Os fanáticos culpavam a república, sentiam falta<br />

da proteção de Dom Pedro II.<br />

SEGUNDA PARTE<br />

TAQUARUÇU<br />

Os fanáticos acreditam na volta <strong>do</strong> monge ressuscita<strong>do</strong>,<br />

mudam-se para Taquaruçu, que as “virgens” dizem ser a Terra<br />

Prometida.<br />

A liderança passa a ser Manuel, filho de Euzébio. Alia-se ao<br />

grupo Elias de Morais, homem de respeito. A guerra recomeça,<br />

trazen<strong>do</strong> muita matança. Maria Rosa tem uma visão <strong>do</strong> monge e<br />

leva o povo para Caraguatá.<br />

1. Euzébio não acreditou na morte <strong>do</strong> monge. Nem ele, nem<br />

suas duas netas que haviam si<strong>do</strong> virgens inspira<strong>do</strong>ras de José<br />

Maria. Influencia<strong>do</strong> pelas netas, arregimentava os crentes a voltar<br />

para Taquaruçu.<br />

Começaram as versões mais diferenciadas sobre o monge e<br />

as falas de Euzébio. Convenceram e convocaram to<strong>do</strong>s os adeptos<br />

de José Maria para retornarem a Taquaruçu.<br />

Enquanto aguardavam o retorno de José Maria escolheram<br />

um chefe, Manuel Ferreira <strong>do</strong>s Santos, filho <strong>do</strong> seu Zebinho, o<br />

menino – virgem. Manuel também proibia a circulação <strong>do</strong> dinheiro da<br />

República e rodeou-se de um turma de meninas mensageiras <strong>do</strong><br />

monge.<br />

Elias Morais, a convite de Tavares, viera a Taquaruçu e<br />

tornou-se importante nas decisões. Elias foi escolhi<strong>do</strong> para<br />

preencher um lugar vago entre os Doze Pares da França.<br />

2. Certo dia Mané Rengo alardeou que o “virgem” tinha<br />

abusa<strong>do</strong> das moças.<br />

Elias destituiu Manuel <strong>do</strong> cargo, passou-lhe um sermão e<br />

man<strong>do</strong>u que dessem uma surra de vara no rapaz.<br />

9


Maria Rosa, uma virgem, estava ten<strong>do</strong> “visões”, e Elias<br />

tornou-se seu intérprete, transmitin<strong>do</strong> as ordens <strong>do</strong> monge.<br />

Juca Tavares propôs uma reunião para escolher o novo<br />

Impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s jagunços e Rocha Alves recebeu a incumbência de<br />

fundar Caraguatá, mas devia morar em Taquaruçu onde estava<br />

Maria Rosa, a autoridade espiritual.<br />

3. Nenê, filho de Zeferina Papuda, observou a filha de Rocha<br />

Alves tomar banho na cascata e decidiu casar-se com ela.<br />

Mãe filho foram fazer o pedi<strong>do</strong> a Rocha Alves, que em tom<br />

de brincadeira, decide-lhe que primeiro ele teria que provar sua<br />

coragem e valentia e juntar vinte orelhas de pelu<strong>do</strong>. Nenê foi à luta.<br />

4. “A faca de Ricarte Preto (Vitorino) foi encontrada nos<br />

peçuelos de Doquinha. Elias condenou o culpa<strong>do</strong>. Boca rica infligira<br />

o castigo: vergões rubros nas nádegas <strong>do</strong> caboclo. Doquinha não<br />

teve tempo de defesa.<br />

5. Passa<strong>do</strong> <strong>do</strong>is meses da proposta de Roca Alves a Nenê,<br />

o reduto continuava tranquilo.<br />

Nas conversas junto ao fogo, Zeferina escutou Florêncio<br />

falar num “dragão de ferro” que passava pela Estrada de Ferro, eram<br />

as profecias de João Maria já realizadas.<br />

Zeferina chamou o filho para conversar e ficou saben<strong>do</strong> que<br />

Juca Tavares estava conversan<strong>do</strong> com a filha <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r. A velha<br />

pensou que pelu<strong>do</strong> por ali não havia mesmo, a alternativa era tornar<br />

Nenê, mais adiante, era uma posta de sangue. Zeferina<br />

ensandecera de to<strong>do</strong>.<br />

7. E começou a guerra. Maria Rosa foi para Caraguatá com<br />

os crentes. O Governo Federal mandara as tropas a fim de acabar<br />

com o “fanatismo” <strong>do</strong>s sertões catarinenses. Mas os jagunços<br />

desorientavam os militares com suas estratégias.<br />

8. O primeiro ataque <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s foi uma granada no meio<br />

<strong>do</strong> Quadro Santo e depois metralha<strong>do</strong>ras varreram as choupanas e<br />

furaram gente.<br />

Gasparino Melo buscou a bandeira santa de São José Maria,<br />

levantava e baixava a bandeira para manter os jagunços na luta. As<br />

velhas diziam que era como São José Maria havia fala<strong>do</strong>: a cada<br />

tiroteio <strong>do</strong>s fanáticos de cada vez caíam mortos cinquenta solda<strong>do</strong>s.<br />

Um solda<strong>do</strong> gritou que a bandeira era a rendição, mas depois de<br />

10<br />

Naquela manhã, quan<strong>do</strong> os pelu<strong>do</strong>s atacaram a Guarda <strong>do</strong><br />

Santo, Doquinha deixou a trincheira e, desarma<strong>do</strong>, meteu-se no<br />

meio da tropa.<br />

⎯ Cortem isso aqui! Vocês são cachorros. Comam! Cortem<br />

isto aqui!<br />

Um sargento até quis aprisioná-lo, mas um vaqueano não<br />

gostou <strong>do</strong>s gestos obscenos e meteu-lhe uma bala na testa.<br />

33. Entre os solda<strong>do</strong>s correu a notícia de que os fanáticos<br />

iam se entregar. Seus emissários haviam proposto a rendição para<br />

breve. Logo que a notícia se confirmou, começaram a chegar os<br />

primeiros rendi<strong>do</strong>s. Gente aleijada, semimortos de fome, disenteria,<br />

tifo e varíola; a maioria velhos, mulheres e crianças. Pelo<br />

acampamento desfilou aquele ror de trôpegos, macilentos e<br />

esfomea<strong>do</strong>s – o sal<strong>do</strong> de quatro anos de guerra.<br />

Entre os jagunços mais velhos, a manobra já era conhecida.<br />

Adeodato livrava-se <strong>do</strong>s “pesos mortos”, gente que não podia mais<br />

lutar e, assim, fazia sobrar comida para os valentes que continuavam<br />

a peleia. Mesmo assim, a fome rondava constantemente o reduto.<br />

Começaram a comer os animais.<br />

34. Certo dia, pouco antes <strong>do</strong> meio-dia, a lua encobriu o sol.<br />

O dia escureceu e as velhas crenças se reforçaram. Era bem como o<br />

monge tinha dito. Três dias de escuridão e depois o mun<strong>do</strong> acabava.<br />

Delminda acendeu a vela santa, que fora dada pelo próprio monge.<br />

Logo em seguida fortes estron<strong>do</strong>s começaram a sacudir o<br />

lugar. A estrada que os solda<strong>do</strong>s estiveram abrin<strong>do</strong> ficou pronta e o<br />

abuseiro entrava em ação. Durante dias as explosões abriam<br />

buracos aqui e ali. Numa delas Delminda foi colhida. O mun<strong>do</strong>, para<br />

ela acabara mesmo.<br />

35. A estrada pela mata finalmente ficara pronta. Como a<br />

peça era pesada e difícil de manobrar, os solda<strong>do</strong>s passavam um<br />

trabalho dana<strong>do</strong> para posicioná-la.<br />

Os fanáticos até troçavam daquela artilharia. Um <strong>do</strong>s tiros,<br />

porém, caiu bem no meio de uma procissão, ferin<strong>do</strong> muita gente. Os<br />

revoltosos atacaram sem dó. Os tiros <strong>do</strong> obuseiro não estavam mais<br />

surtin<strong>do</strong> efeito. Ou o artilheiro estava feri<strong>do</strong> ou as balas não eram<br />

apropriadas, pensavam os atacantes. Estavam certos nas duas<br />

hipóteses. Estilac Leal man<strong>do</strong>u buscar novo artilheiro e novo<br />

artilheiro e suas balas.<br />

O tifo acabou levan<strong>do</strong> Dom Rocha Alves. Foi-se o Impera<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong>s jagunços.<br />

27


⎯ Atire, homem1 Atire!<br />

A arma entre as mãos, inútil, sem disparar.<br />

O solda<strong>do</strong> não tinha problemas de consciência. Atirou antes.<br />

30. Jovina conversava com Belmira. Estava contente e<br />

falava <strong>do</strong> fogo que o seu Coco tinha. Se ela deixasse, era to<strong>do</strong> o<br />

santo dia. Belmira perguntou se ela tinha certeza de que era ele<br />

mesmo. Claro que era, confirmou Jovina. Mas como ela sabia?<br />

Tinha reconheci<strong>do</strong> uma cicatriz que Coco tinha na barriga. Era ele.<br />

Naquela vez era a noite de Belmira. Era a noite de receber<br />

Boca Rica. Ela esperou no silêncio da cabana, no escuro. Ele veio e<br />

deitou com ela. Logo estavam se aman<strong>do</strong>. A porta abriu-se,<br />

deixan<strong>do</strong> entrar o luar. De repente Belmira viu que era Doquinha que<br />

estava sobre ela. Ela gritou, arranhou, rolaram pelo chão.<br />

31. Muitas mulheres foram punidas, não só a Belmira.<br />

Adeodato, enfureci<strong>do</strong>, não permitia que elas duvidassem <strong>do</strong> que ele<br />

havia dito, que não acreditassem que os mari<strong>do</strong>s estavam<br />

incorporan<strong>do</strong>. Pela manhã e à tarde os castigos eram aplica<strong>do</strong>s.<br />

Acabavam todas por concordar. Todas, menos Belmira. Ela não<br />

recebera Boca Rica em sua cama. E o castigo pegava.<br />

Após cinco castigos segui<strong>do</strong>s, implorou clemência. Aceitou<br />

tu<strong>do</strong> o que mandavam.<br />

À noite, Doquinha chegou e foi logo se agarran<strong>do</strong> na mulher.<br />

Nenhuma reação. Depois <strong>do</strong> certo tempo, entre afagos, gritos e<br />

bofetadas. Doquinha, viu que Boca Rica continuava entre eles. Saiu<br />

<strong>do</strong> casebre aos tropeços.<br />

32. De manhã Adeodato quis saber como foi. Doquinha<br />

disse que não acontecera nada. O chefe ficou furioso. Então a<br />

vagabunda teimava de novo? Mas Doquinha não o deixou terminar.<br />

Falou que ele fora o problema. Não conseguira... sabe...<br />

Pasmos, os homens caíram na gargalhada. Adeodato deu a<br />

tirada final:<br />

⎯ Pois só tem um remédio: corte fora essa porcaria e dê<br />

pros cachorros comer.<br />

A frase escarninha fazia-o sofrer <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>. A notícia<br />

espalhara-se. A chacota corria sempre que passava. Acabara<br />

mesmo castra<strong>do</strong> e Belmira, agora, só em sonhos. E de fato sonhava.<br />

Belmira se oferecen<strong>do</strong>, chaman<strong>do</strong>-o, mas ele não podia fazer nada.<br />

Não tinha mais os aparelhos. Acordava gritan<strong>do</strong>.<br />

26<br />

algum tempo viram que não era nada disso e a metralha<strong>do</strong>ra<br />

“pipocou de contínuo” até a chuva impedir o ataque final.<br />

9. No dia seguinte o arraial amanheceu em silêncio.<br />

Taquaruçu estava deserto. Somente ruína, mortandade, escombros<br />

e cinzas, os sobreviventes <strong>do</strong> reduto se haviam retira<strong>do</strong> para<br />

Caraguatá.<br />

Comentário:<br />

Tanto Curitiba quanto Florianópolis achavam-se com a<br />

razão. O fanatismo avança, espadas de pau e fé.<br />

TERCEIRA PARTE<br />

CARAGUATÁ<br />

Elias de Morais assume o poder sobre os jagunços e<br />

descobre mais uma virgem, a jovem Ana, porém esta é deflorada por<br />

um <strong>do</strong>s pares de França.<br />

Os fanáticos descobrem que o exército queria fazer um<br />

ataque em massa ao reduto, por isso vão para Santa Maria. Elias<br />

acha que lá estarão mais seguros.<br />

1. Em Caraguatá, com a chegada <strong>do</strong>s fugitivos, só se<br />

ouviram choros e lamentações. Elias de Morais deu um balanço nos<br />

medicamentos e por pouco não tiveram que voltar ao uso <strong>do</strong>s<br />

remédios antigos, alguns casos não havia cura.<br />

Coube aos solda<strong>do</strong>s a tarefa de sepultar os mortos de<br />

Taquaruçu. Convenci<strong>do</strong>s da vitória, os solda<strong>do</strong>s fizeram meia-volta e<br />

regressaram aos acantonamentos.<br />

2. Debalde, Elias tentou fazer com que o dinheiro de papel<br />

circulasse, mas somente as moedas metálicas tiveram curso e logo<br />

foram aceitas no reduto vizinho.<br />

Elias de Morais tornou-se um chefe único e também<br />

guardião <strong>do</strong>s livros: cadernos de registros; um livro grosso, uma<br />

espécie de diário <strong>do</strong> reduto e uma Bíblia. Elias receitava remédios,<br />

descobria mediunidade, como no caso da “virgem” Ana. Elias e frei<br />

Manuel constataram que Ana já podia receber o espírito de José<br />

Maria. Mané Rengo achava tu<strong>do</strong> empulhação.<br />

11


3. A rivalidade entre Gegé (Urgel de Danoa) e Daniel (Gui de<br />

Borgonha) não era a dúvida sobre quem tinha mata<strong>do</strong> mais pelu<strong>do</strong>,<br />

mas sim, Carolina, uma mulata que se decidiu por Gegé e<br />

continuava a “sorrir” para Daniel.<br />

4. Ricarte Branco sabia que era sacrilégio e seu desejo e o<br />

seu amor por sua Ana. Se ele pudesse ler os pensamentos de Ana<br />

descobriria que ela também o amava.<br />

O pai de Ana a<strong>do</strong>eceu e Ricarte Branco foi incumbi<strong>do</strong> de<br />

acompanhá-la até o reduto de Josefino. Durante o percurso, os <strong>do</strong>is<br />

permaneceram em silêncio até que sentiram fome e fizeram<br />

sesteada. Antes de partirem, Ana chorou e ambos trocaram carícias.<br />

5. Um dia fora necessário para a ida! Quase quatro levaram,<br />

porém, na volta. Amavam-se à vontade, no meio da mata. À noite,<br />

enrodilha<strong>do</strong>s entre os pelegos, amavam-se outra vez. Os poderes de<br />

Ana diminuíram, ela somente concentrava-se na figura de Ricerte,<br />

nas desculpas que deveria dar à mãe, e no antegozo <strong>do</strong>s beijos e<br />

<strong>do</strong>s abraços <strong>do</strong> amante. O remorso e o castigo foram esqueci<strong>do</strong>s, a<br />

felicidade era maior.<br />

6. As tropas <strong>do</strong> governo haviam ataca<strong>do</strong> o reduto de<br />

Josefino. Elias e Chico Alonso resolveram mandar os Pares da<br />

França e um piquete xucro para atacar os solda<strong>do</strong>s. Gegé riu!<br />

Antes de partir, Carolina conversou com Daniel e Gegé não<br />

gostou. No ataque <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s, Gegé man<strong>do</strong>u Daniel contar as<br />

mortes e, ao voltar ao reduto, man<strong>do</strong>u Daniel marcar quatro cruzes<br />

na sua Winchester, pelos três solda<strong>do</strong>s que havia mata<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong><br />

Daniel questionou sobre a quarta cruz, Gegé disparou-lhe a arma na<br />

cara.<br />

7. Ricarte Branco não havia mata<strong>do</strong> um pelu<strong>do</strong> que fosse.<br />

Ele saíra ce<strong>do</strong>. Olhos prontos para surpreender qualquer movimento.<br />

Uns galhos se agitaram, um solda<strong>do</strong> se escondera ali. Ricarte, atrás<br />

de um pinheiro, não se enganara. Os galhos se agitam novamente.<br />

Ricarte atirou. Era Coco, ele estava fazen<strong>do</strong> uma necessidade.<br />

Desespera<strong>do</strong>, Ricarte decidiu calar-se.<br />

8. Ana estava grávida e Ricarte, com o seu segre<strong>do</strong>, não<br />

pôde resistir e pediu conselho a Boca Rica e Liveira, sobre seu caso<br />

com Ana.<br />

Elias, zanga<strong>do</strong> a princípio, acabou per<strong>do</strong>an<strong>do</strong> e Ana e<br />

Ricarte foram felizes o quanto podiam ser.<br />

12<br />

O movimento já não era o mesmo, se desvirtuara. Bandi<strong>do</strong>s<br />

e ladrões chegavam à toda hora. A moral andava por baixo. Os<br />

grandes chefes haviam morri<strong>do</strong>. Adeodato não era o guia certo para<br />

aquela gente. Um criminoso, disso não passava.<br />

Mané Rengo olhava as matas e os descampa<strong>do</strong>s:<br />

⎯ Meu compadre Liveira, essa terra não vai ser nossa.<br />

Nunca!<br />

⎯ Seu Elias e a Bíblia é que tão certos. A nossa gente é da<br />

geração <strong>do</strong> deserto, que nem o povo de Moisés. Essa terra que você<br />

vê aí não vai ser nossa...<br />

28. Frei Manoel tentava ajudar Gegé a devolver-lhe a fé.<br />

Conversava sobre as coisas sagradas que o outro havia<br />

aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. De homem valente e destemi<strong>do</strong> agora se amedrontava<br />

à-toa. Aos poucos as palavras <strong>do</strong> frei começavam-lhe a devolver a<br />

fé. A batina esfarrapada dava-lhe um ar de força, uma auréola de<br />

virtude, e fazia com que Gegé se sentisse mais à vontade.<br />

O ferimento no pulso estava quase bem e ele não usara<br />

nenhum remédio a não ser o bálsamo. Deste duvidara, mas talvez<br />

seu poder de cura fosse assim mesmo, devagar, ajuda<strong>do</strong> com muita<br />

oração e fé.<br />

Frei Manoel fez um patuá novo para Gegé. Usou um pedaço<br />

de sua batina, que era benta e pertencera a um penitente da<br />

Galileia, <strong>do</strong>s tempos de Jesus Cristo. Colocou o patuá no pescoço<br />

<strong>do</strong> outro e pediu que rezasse com ele.<br />

Gegé ajoelhou.<br />

29. Da Tapera os solda<strong>do</strong>s avançavam até a Guarda <strong>do</strong><br />

Santo. Mais adiante não seguiam, pois os fanáticos, sempre<br />

vigilantes, os rechaçavam. Ninhos de metralha<strong>do</strong>ras foram<br />

assenta<strong>do</strong>s, mas os jagunços, em expedições suicidas,<br />

desmantelaram-nos.<br />

O comandante Estillac Leal man<strong>do</strong>u abrir uma estrada na<br />

mata para poder passar o obuseiro. Em meio à derrubada das<br />

árvores caíam também solda<strong>do</strong>s e mais solda<strong>do</strong>s, ataca<strong>do</strong>s pelos<br />

jagunços. Num rastro de sangue a estrada prosseguia.<br />

Um agito das folhas, um barulho no mato. Barulho de gente.<br />

Ricarte Branco viu surgir das folhas um brilho de arma e o<br />

fardamento cáqui.<br />

⎯ Atire, homem! Atire!<br />

Não atirou, a voz era uma traição <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s. Estava<br />

sozinho. Não havia ninguém para alertá-lo, para mandar abrir fogo.A<br />

voz vinha de dentro dele mesmo.<br />

25


25. Desta vez a arma estava funcionan<strong>do</strong>. Cada pelu<strong>do</strong> que<br />

saltava caía fura<strong>do</strong> pelas balas de Winchester. Não dava nem tempo<br />

de fazer a marca da coronha com o canivete. Era um tiro e um<br />

solda<strong>do</strong> que caía, um atrás <strong>do</strong> outro. Ricarte Branco não parava de<br />

atirar. Seu Elias, Liveira, Gegé, Mané Rengo... to<strong>do</strong>s estavam<br />

mortos. Um horror! Os solda<strong>do</strong>s saltavam das moitas e ele atirava,<br />

mas, antes de morrer, o pelu<strong>do</strong> se transformava em gente amiga – e<br />

mais um jagunço caía.<br />

⎯ Saia da minha frente, Coco! Saia, pelo amor de Deus!<br />

Acordava banha<strong>do</strong> em suor, feliz por ter acorda<strong>do</strong>. Todas as<br />

noites era a mesma coisa. De dia até que agüentava, pois tinha<br />

coisas a fazer, mas as noites eram um suplício. O fantasma de Coco<br />

não o aban<strong>do</strong>nara mais em to<strong>do</strong>s esses anos.<br />

26. Para atrapalhar mais ainda a vida no reduto, os homens<br />

estavam cada vez mais inquietos pela falta de sexo. Já não havia<br />

mulheres para casar. Só meninas muitas jovens e viúvas. Estas,<br />

porém, empacavam na esperança da ressurreição <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s, que<br />

voltariam para elas conforme prometera o monge.<br />

Adeodato foi ter com seu Elias para este dar alguma<br />

solução. Os homens já andavam fazen<strong>do</strong> porcaria pelos matos e a<br />

coisa estava insustentável.<br />

A solução era fazer as viúvas aliviarem a tensão <strong>do</strong>s homens<br />

e o jeito encontra<strong>do</strong> foi a de que elas deveriam ficar em casa, à<br />

noite, e no escuro, que os espíritos <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s viriam para<br />

satisfazer as necessidades.<br />

Gegé, depois <strong>do</strong> incidente com a mulher já sabia de tu<strong>do</strong>.<br />

Ela andava por aí <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> com to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, fosse amigo ou<br />

inimigo. Ficava quieto, porque perdera a coragem e não mais podia<br />

reagir. Até a molecada <strong>do</strong> reduto gozava com a cara dele:<br />

Lá vai o seu Gegé,<br />

perequeté!<br />

Viu “pelu<strong>do</strong>” e deu no pé...<br />

As negociações para que os fanáticos depusessem as<br />

armas seguiam o seu curso. Elias de Morais, consulta<strong>do</strong>, impôs<br />

condições. Queria o retorno de to<strong>do</strong>s os mortos, para que os vivos<br />

aban<strong>do</strong>nassem a luta. Não faria por menos.<br />

A guerra continuou.<br />

27. Mané Rengo, quan<strong>do</strong> os trabalhos amainavam,<br />

procurava seu Elias para juntos lerem a Bíblia. Sabiam muitos<br />

trechos de cor. Somente a leitura os mantinha ativos.<br />

24<br />

9. O ataque <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s a Caraguatá fracassou. Os<br />

caboclos acompanharam a retirada até bem perto da Vila<br />

Curitibanos.<br />

Elias aconselhou que o povo fosse à Serra de Santa Maria.<br />

Novamente Júlia, Liveira, Mané Rengo e o menino Tadeu tiveram<br />

que esperar o segun<strong>do</strong> parto de Júlia. Outro parto difícil e Gracinda<br />

nasceu.<br />

10. Mané Rengo e a mulher ficaram uns tempos num<br />

ranchinho, perto <strong>do</strong> vale de Santa Maria, em Tapera <strong>do</strong>s<br />

Granemann. Reunin<strong>do</strong> os jagunços das re<strong>do</strong>ndezas, descobriram,<br />

entre os feri<strong>do</strong>s, o menino Valentim, que a<strong>do</strong>taram, encontran<strong>do</strong> o<br />

filho que nunca tiveram.<br />

Comentário:<br />

Fracassou o ataque em massa que os solda<strong>do</strong>s pretendiam<br />

contra Caraguatá. Estes não sabiam lidar com uma guerrilha, os<br />

fanáticos escondiam nas árvores, invisíveis.<br />

QUARTA PARTE<br />

SANTA MARIA<br />

Trata-se de um território inexpugnável! Adeaodato é o novo<br />

líder <strong>do</strong>s jagunços. Extremamente centraliza<strong>do</strong>r e autoritário.<br />

Os fanáticos ficam acua<strong>do</strong>s e as tropas governistas invadem<br />

o arraial de Santa Maria, deixan<strong>do</strong> um rastro de morte e de muitos<br />

feri<strong>do</strong>s. Somente uma família consegue fugir.<br />

1. Foram para Santa Maria to<strong>do</strong>s os fugitivos <strong>do</strong>s redutos<br />

aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s. Homens, mulheres e crianças feridas. Ali estavam em<br />

segurança. São Sebastião e São José Maria estavam com eles. A<br />

mudança não lhes abatia a fé nem destruía a confiança. Não mais<br />

existia a cidade de Taquaruçu, não mais existia Caraguatá, mas os<br />

redutos menores subsistiam ainda, de Canoinhas até Rio Caça<strong>do</strong>r.<br />

Ao norte de Santa Maria ficou o reduto de Maria Rosa. A maioria <strong>do</strong>s<br />

jagunços, porém, ficou no reduto inexpugnável de Santa Maria.<br />

Perto deste último, uns quinze quilômetros, ficava a fazenda<br />

de Dom Rocha Alves, o Impera<strong>do</strong>r. A chefia civil estava com Chico<br />

Alonso, Adeodato fora nomea<strong>do</strong> Ministro da Guerra e a autoridade<br />

religiosa permanecia com frei Manoel. No final das contas, porém,<br />

quem continuava mandan<strong>do</strong> mesmo era Elias de Morais.<br />

13


O local <strong>do</strong> novo aldeamento, no desfiladeiro <strong>do</strong> quadro, perto<br />

<strong>do</strong> novo Quadro Santo, tinha água, serras, guarda dia e noite,<br />

morros de ambos os la<strong>do</strong>s, colinas, pinheiros, choças, arbustos, o<br />

espinilho, as palmeiras. Numa casa maior, isolada, Elias de Morais<br />

dava ordens e conselhos, receitan<strong>do</strong> remédios, administran<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>.<br />

Outro local igual àquele não havia. Era inexpugnável. Ali era o<br />

baluarte da fé antiga e da Monarquia. O desfiladeiro <strong>do</strong> Quadro era<br />

intransponível.<br />

2. Tibúrcio Ribas aproximou-se <strong>do</strong> cadáver. O solda<strong>do</strong> tinha<br />

junto de si uns papéis rasga<strong>do</strong>s. Ofícios e ordens. Nos bolsos,<br />

dinheiro. Dinheiro e mais dinheiro. Dinheiro da República, que dentro<br />

<strong>do</strong>s redutos não valia nada. Dinheiro sujo, mas não para ele,<br />

Tibúrcio. Dia haveria de chegar que o dinheiro da República tivesse<br />

valor de novo. Esperar não custava nada. Aquela guerra não poderia<br />

durar eternamente. Ele não iria contar a ninguém daquele acha<strong>do</strong>,<br />

nem reparti-lo com o cego Tavinho.<br />

3. Tavinho, então, não era cego? Enquanto contava e<br />

recontava o dinheiro, Tibúrcio era assalta<strong>do</strong> pelas dúvidas. Seria<br />

mesmo? Não enxergaria nada, nem um pouquinho que fosse?<br />

Tibúrcio notava que o cego também tinha suas<br />

desconfianças. Naquela mesma noite acor<strong>do</strong>u, sentin<strong>do</strong> as mãos de<br />

Tavinho apalpan<strong>do</strong>-lhe as roupas. Ao sentir que o outro acordara, o<br />

cego alegou que vira rumor de gente lá fora.<br />

O morfético ficou cisma<strong>do</strong>. No dia seguinte, enquanto o cego<br />

tomava chimarrão com os amigos, pôs-se a trabalhar. Descoseu o<br />

forro <strong>do</strong> paletó e enfiou o dinheiro entre as ombreiras. Costurou o<br />

mais rápi<strong>do</strong> que conseguiu.<br />

4. Enquanto o morfético se preocupava com o seu, Doquinha<br />

necessitava de um dinheiro para um plano que vinha elaboran<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> conseguisse, alguém iria ver uma coisa...<br />

Boca Rica era o mais forte, mais ágil, desferia os golpes com<br />

maior destreza, com mais força e precisão. Também a ele pertencia<br />

o cavalo mais bonito <strong>do</strong> reduto, o mais bem apara<strong>do</strong>. Por essas e<br />

por outras razões é que Doquinha tinha inveja. O pior de tu<strong>do</strong> era o<br />

riso <strong>do</strong> outro: largo, aberto, rebrilhan<strong>do</strong> ouro. Doquinha tinha inveja e<br />

raiva. Duas vezes fora pega<strong>do</strong> como gatuno, duas vezes fora<br />

condena<strong>do</strong> e duas vezes, também fora Boca Rica o executor da<br />

sentença. E como batera com força, o infame. Cobriu-lhe de<br />

vergastadas as nádegas. Fora humilhante. Um homem apanha nas<br />

costas ou na cara, jamais na bunda.<br />

14<br />

me<strong>do</strong>. Estava paralisa<strong>do</strong> sem saber o que fazer. Os homens<br />

gritavam para ele se mexer e a muito custo conseguiram colocá-lo<br />

no lombo de um cavalo e sair dali.<br />

23. Tavinho não perguntou sobre o tempo. Estava choven<strong>do</strong><br />

e escuro como breu. Melhor assim. Seguiu para a sua faina diária. O<br />

tempo era ideal.<br />

Novamente corpos e corpos foram sen<strong>do</strong> descobertos. Um<br />

deles o cego reconheceu. Faltava um pé e este era o Joaquim. O de<br />

Tibúrcio devia estar bem próximo. Chegan<strong>do</strong> junto ao pé da<br />

goiabeira, Tavinho cavou até encontrar um corpo. Era esse. A<br />

verruga na mão direita, o casaco que nunca tirava. Era Tibúrcio.<br />

Rapidamente despiu o paletó <strong>do</strong> morto. Rasgou as ombreiras com o<br />

canivete. Os maços de notas apareceram. Era dinheiro mesmo, não<br />

era papel comum. Tavinho gritou de alegria. Colocou o dinheiro nos<br />

bolsos. Ergueu-se e caminhou de volta ao reduto. A chuva, porém,<br />

arrastava tu<strong>do</strong> quanto era pedra, montinho, sinais que o cego<br />

conhecia. Quan<strong>do</strong> ouviu o barulho de um rio corren<strong>do</strong>, parou. Estava<br />

perto <strong>do</strong> rio Xaxinal. Errara o caminho. Voltou e deu uns gritos para<br />

ver se alguém ouvia. Após algum tempo já não sabia mais onde<br />

estava. Com me<strong>do</strong> começou a correr. Acabou voan<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se<br />

despenhou num itaimbé.<br />

No dia seguinte os jagunços encontraram o cadáver. Ao<br />

revistarem, acharam o dinheiro. Só tinha uma explicação: Tavinho os<br />

estava train<strong>do</strong>, contan<strong>do</strong> aos solda<strong>do</strong>s seus segre<strong>do</strong>s. Cortaram o<br />

corpo em pedaços e queimaram o maldito dinheiro da República.<br />

24. O fracasso de Gegé chegou ao reduto antes dele. To<strong>do</strong>s<br />

já sabiam <strong>do</strong> aconteci<strong>do</strong>. Somente cinco homens conseguiram sair<br />

<strong>do</strong> tiroteio com vida. E nenhum mantimento fora consegui<strong>do</strong>. Gegé<br />

abusara da autoridade, não avisara Jesuíno, seu superior. Foi<br />

destituí<strong>do</strong> da condição de Par de França e condena<strong>do</strong> a cento e<br />

cinquenta chibatadas.<br />

Carolina lavou-lhe as feridas com salmoura e vinagre, mas o<br />

bálsamo Gegé não a deixou aplicar. A mulher ficou surpresa.<br />

Insistiu, ele se negou. Falou a ela que não acreditava mais. Contou<br />

que abrira o patuá e até lhe mostrou o papel. Carolina achava que<br />

ele cometera um peca<strong>do</strong> muito grande. Que seu Elias ou Adeodato<br />

não soubessem, senão... Gegé não tinha me<strong>do</strong> deles. A mulher riuse,<br />

não tinha se borra<strong>do</strong> to<strong>do</strong> nas calças lá na estrada? Gegé<br />

indignou-se com a mulher, mas ela o desafiou e, dali em diante, as<br />

coisas ficariam mudadas.<br />

23


enfrentara tu<strong>do</strong> nas lutas contra os pelu<strong>do</strong>s e nunca se ferira. Agora<br />

não via qualquer satisfação em ter aquele saquinho amarra<strong>do</strong> ao<br />

corpo. Num safanão, arrancou o patuá e ficou revolven<strong>do</strong>-o nos<br />

de<strong>do</strong>s. Que será que tinha dentro. Besteiras, com certeza.<br />

A fé aos poucos se esboroava e a descrença deitava raízes.<br />

Uma porcaria, tu<strong>do</strong> aquilo: o bálsamo, o patuá, as rezas e as<br />

aparições <strong>do</strong> monge.<br />

Gegé pegou um canivete e abriu o patuá. Continha um papel<br />

<strong>do</strong>bra<strong>do</strong> muitas vezes, corroí<strong>do</strong> nas bordas pelo uso. Des<strong>do</strong>brou-o.<br />

Uma das orações que vira o monge copiar tantas vezes. Um papel<br />

escrito, nada mais. Papel que foi amassa<strong>do</strong> e guarda<strong>do</strong> no bolso.<br />

21. Outra noite e Tavinho à procura da cova de Tibúrcio.<br />

Cava aqui, ali, acolá, corpos de to<strong>do</strong> o tipo, mas nada <strong>do</strong> defunto<br />

certo aparecer. Todas as noites era a mesma coisa. Voltava para o<br />

rancho com os primeiros sinais de que a alvorada estava chegan<strong>do</strong>.<br />

No entanto, a violação das sepulturas não passou<br />

desapercebida. Primeiro acharam que era tatu <strong>do</strong> rabo mole, que<br />

gosta de remexer as covas, depois até lobisomem surgiu como<br />

suspeito. Elias, quan<strong>do</strong> soube, arriscou o palpite de que seria tatu ou<br />

então os pelu<strong>do</strong>s é que andavam tiran<strong>do</strong> o pessoal da terra sagrada.<br />

Mas pelu<strong>do</strong> naquelas bandas era difícil. Deve ser algum inimigo <strong>do</strong>s<br />

mortos, queren<strong>do</strong> se vingar. Iriam vigiar as covas.<br />

Mas não houve tempo nenhum para vigiar e nem gente para<br />

ficar de sentinela. A luta com os solda<strong>do</strong>s não parava.<br />

Tavinho, esbodega<strong>do</strong>, <strong>do</strong>rmia durante o dia to<strong>do</strong>.<br />

22. Gegé continuava na vanguarda <strong>do</strong> grupo de Jesuíno.<br />

Procurava há dias por alimento e não achava nada, nem ga<strong>do</strong>, nem<br />

porco <strong>do</strong> mato, tu<strong>do</strong> sumira. Encontrou um <strong>do</strong>s bombeiros com boas<br />

notícias: a estrada para Curitibanos estava desguarnecida e era por<br />

ali que passavam os carroções com mantimentos.<br />

Gegé e alguns homens ficaram de tocaia. Com efeito, logo<br />

surgiu na curva um carroção acompanha<strong>do</strong> por apenas cinco<br />

homens. Gegé e os seus nem precisaram disparar. Quan<strong>do</strong> os<br />

solda<strong>do</strong>s viram os jagunços, foi um atropelo em direção ao mato e<br />

sumiram.<br />

Fora um acha<strong>do</strong>; arrobas e arrobas de charque, açúcar,<br />

farinha, latas de conservas, rapaduras, armas e munição.<br />

Levaram rapidamente a carroça pela estrada e, numa curva<br />

entre <strong>do</strong>is barracos, aconteceu. A fuzilaria vinha <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s.<br />

Logo caiu um <strong>do</strong>s homens, depois foi o condutor. Gegé lembrou-se<br />

de que não tinha mais a proteção <strong>do</strong> patuá. Pela primeira vez sentiu<br />

22<br />

5. Para cá e para lá andavam o cego e o leproso, entre os<br />

redutos e até em meio às tropas. Encarrega<strong>do</strong>s de vigiar os<br />

solda<strong>do</strong>s e transmitir aos jagunços seus movimentos, por lá<br />

andavam, sem levantar suspeitas.<br />

Tavinho tocava sua viola e cantava versos e modinhas. Os<br />

solda<strong>do</strong>s gostavam dessa distração, que ajudava a passar o tempo e<br />

melhor aceitar as coisas <strong>do</strong> acampamento.<br />

Muni<strong>do</strong>s de salvo-condutos eles transitavam, colhen<strong>do</strong> as<br />

compensações: um bom prato da comida, um canto obriga<strong>do</strong> para<br />

<strong>do</strong>rmir e, às vezes, até algumas moedas.<br />

6. O plano de Doquinha estava in<strong>do</strong> às avessas. Tanta<br />

mulher por ali e ele fora se apaixonar por Belmira, a mulher de Boca<br />

Rica. Era a mulher mais bonita <strong>do</strong> reduto, a de corpo mais perfeito e<br />

<strong>do</strong>s cabelos mais lin<strong>do</strong>s. Até nisso o desgraça<strong>do</strong> tinha sorte. Mas um<br />

dia...<br />

A sua vingança máxima seria a conquista da mulher <strong>do</strong><br />

outro. Haveria de enfiar-lhe um bom par de chifres. Ela vivia dan<strong>do</strong><br />

entrada para ele se aproximar, pedin<strong>do</strong> um ou outro favor, mas sua<br />

timidez não lhe permitia avançar nada em direção a uma proposta<br />

para ela.<br />

Um dia haveria de ter dinheiro para dar-lhe presentes e, aí<br />

sim, conquistar-lhe as graças. O plano seria muito bom se ele não<br />

estivesse, na verdade, apaixona<strong>do</strong>. Cada vez mais.<br />

7. Tavinho esperou o morfético <strong>do</strong>rmir. Apalpou ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

leito, achan<strong>do</strong> papel de balas, palhas de rapadura, latas vazias. De<br />

onde o Tibúrcio estava tiran<strong>do</strong> aquilo? Estaria usan<strong>do</strong> o dinheiro das<br />

esmolas? Mas isso não daria para comprar quase nada. Que<br />

mistério seria aquele? Tavinho podia ser cego, mas não era burro.<br />

Ali tinha coisa.<br />

8. Doquinha ganhou <strong>do</strong> alemão um par de esporas. Tirou as<br />

rosetas, gastou o dentea<strong>do</strong>, poliu e gravou as letras GS. Aquilo era<br />

dinheiro da Guerra Santa, dinheiro aceito nos redutos. O seu<br />

dinheiro.<br />

Comprou de um comerciante um fino lenço de seda, to<strong>do</strong><br />

branco e correu a ofertá-lo à Belmira. Esta recusou o presente. Era<br />

mulher casada e só aceitava presentes <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Quis saber com<br />

que intenções o outro lhe estava oferecen<strong>do</strong> aquilo. Ele gaguejou,<br />

disse que pensava que ela... ele... A mulher não esperou mais,<br />

enxotan<strong>do</strong> o infeliz de sua casa.<br />

15


Para azar de Doquinha, no momento da zanga da mulher,<br />

eis que chega Boca Rica. Quan<strong>do</strong> soube <strong>do</strong> caso, deu um safanão<br />

no pretenso conquista<strong>do</strong>r e puxou a espada. Ia matá-lo, quan<strong>do</strong><br />

Liveira interveio: quem resolvia as pendengas ali era o seu Elias.<br />

Na presença de Elias de Morais foi constatada a culpa de<br />

Doquinha e a inocência da mulher. ⎯ Cinquenta varadas! E sem<br />

direito a pagar em penitência.<br />

Mais uma vez Boca Rica foi o executor.<br />

Doquinha, durante uma semana, não pôde sentar direito.<br />

9. Chico Alonso morreu. Adeodato ficou sen<strong>do</strong> o chefe militar<br />

de Santa Maria. Como há muito os jagunços queriam, man<strong>do</strong>u<br />

atacar a vila de Curitibanos. Pouco protegida, não houve resistência<br />

na vila, mas o coronel Chiquinho não estava. Tinha se refugia<strong>do</strong> na<br />

capital.<br />

Adeodato não participou <strong>do</strong> assalto. Ficou no reduto,<br />

admiran<strong>do</strong> a viúva <strong>do</strong> Chico Alonso, da qual se agradara. Mas tinha<br />

que dar o bom exemplo. Não podia fazer-lhe a corte, já que era<br />

casa<strong>do</strong>. Procurou frei Manoel para arquitetarem um plano.<br />

O Coronel Henrique de Almeida, o Henriquinho, antigo<br />

amigo e simpatizante da causa, andava agora com os solda<strong>do</strong>s, até<br />

comandan<strong>do</strong> tropa. ⎯ É azar! dizia frei Manoel. Alguém anda dan<strong>do</strong><br />

caiporismo no reduto. Precisamos descobrir quem é. E sobrou para<br />

o velho Zebinho, que foi julga<strong>do</strong> e fuzila<strong>do</strong>.<br />

Depois foi o Alemãozinho, jagunço <strong>do</strong>s bons, que caiu<br />

prisioneiro e começou a cooperar com os solda<strong>do</strong>s. ⎯ É azar! mais<br />

uma vez disse frei Manoel. E a culpa recaiu sobre a mulher de<br />

Adeodato, que a julgou, sentenciou e executou num repente. Agora<br />

estava livre para casar com a viúva de Chico Alonso. E foi o que fez.<br />

Adeodato, contu<strong>do</strong>, não se contentava só com uma mulher.<br />

Abusava de todas, não respeitan<strong>do</strong> nem casadas nem solteiras. Ele<br />

era o chefe e ninguém ousava discutir. Era o intérprete da vontade<br />

<strong>do</strong> céu. Seus defensores diziam que era de carne e osso e, como tal,<br />

era sujeito às tentações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Era uma provação!<br />

Mané Rengo ficava indigna<strong>do</strong>:<br />

⎯ Provação, é? Boa provação é essa! A minha é dar duro, é<br />

sofrer no mato, é brigar com pelu<strong>do</strong>. A dele é comer cabacinho novo.<br />

Boa provação.<br />

10. Tavinho já não tinha mais dúvidas, seu Tibúrcio tinha<br />

dinheiro, e muito. To<strong>do</strong>s os dias havia diversos indícios de comida,<br />

guloseimas e até de cigarro. Cigarros eram difíceis e caros. Tinha<br />

que ter dinheiro.<br />

16<br />

o bálsamo de Ferrebrás que trazia consigo e derramou sobre a<br />

ferida. Esta não se fechou milagrosamente como deveria acontecer.<br />

Aumentou a <strong>do</strong>se, bebeu <strong>do</strong> bálsamo, mas o sangue continuava a<br />

jorrar. Amarrou um lenço no pulso. Agora, com ele, não somente<br />

raiva, despeito e <strong>do</strong>r; também a decepção e a dúvida.<br />

18. ⎯ Atire, homem! Atire!<br />

Ricarte Branco tinha que ser alerta<strong>do</strong> a to<strong>do</strong> momento para<br />

entrar na briga e atirar contra os pelu<strong>do</strong>s. Ficava <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> na mira e<br />

não puxava o gatilho. Cada vulto que via era um companheiro seu.<br />

Mesmo à curta distância, as caras <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s teimavam em ser as<br />

<strong>do</strong>s seus companheiros, o Gegé, o Liveira, seu Elias. Desde que<br />

atingira o Coco, confundin<strong>do</strong>-o com um solda<strong>do</strong>, não mais conseguia<br />

atirar. Tinha me<strong>do</strong> de acertar outro amigo.<br />

Preferia os entreveros, as pelejas de arma branca. Ali<br />

defendia-se e atacava. Era bem verdade que mais se defendia.<br />

Ninguém notava suas hesitações na hora de atacar. Se era hábil<br />

defesa, era ler<strong>do</strong> no ataque. O me<strong>do</strong> de matar erra<strong>do</strong> lhe prendia os<br />

golpes. Cada escaramuça era um suplício.<br />

19. Tavinho procurava a cova <strong>do</strong> Tibúrcio, perguntan<strong>do</strong> a<br />

to<strong>do</strong>s onde o haviam enterra<strong>do</strong>. Afinal, o morfético tinha si<strong>do</strong> seu<br />

amigo e ele queria rezar junto à sua cova. Era o que dizia. O<br />

pessoal, com pena, procurava ajudar, mas eram tantos os mortos<br />

que, às vezes, nem dava tempo, de enterrar. Ou enterravam <strong>do</strong>is,<br />

três até dez numa mesma cova. Não seria fácil achar onde Tibúrcio<br />

estava enterra<strong>do</strong>.<br />

Valentim levou-o a um lugar que, de certeza, eram onde<br />

estava Tibúrcio.<br />

À noite, rastejan<strong>do</strong> pelos obstáculos <strong>do</strong> caminho, Tavinho<br />

pôs-se a cavar. Usava as mãos nuas. Achou um corpo, entretanto<br />

era muito pequeno. Sabia que estava perto, aquele devia ser o<br />

filhinho de Joaquim. O cansaço, porém, levou-o a deixar para outra<br />

noite.<br />

20. Gegé examinou a ferida. Estava feia, inchada e<br />

inflamada. Droga de bálsamo mentiroso. Grande porcaria! Como é<br />

que não se dera conta antes? To<strong>do</strong>s os feri<strong>do</strong>s ao seu re<strong>do</strong>r,<br />

curtin<strong>do</strong> ferimentos <strong>do</strong>s mais feios e ninguém se curava duma hora<br />

para outra. Tu<strong>do</strong> inútil. Conversa fiada!<br />

O pior é que, se o bálsamo não tinha nada de especial,<br />

Gegé começou a achar que o patuá que lhe fechava o corpo<br />

também não tinha propriedades especiais. Com ele ao pescoço,<br />

21


outro ali. Sorte das tropas, ainda, o fato de os jagunços usarem<br />

balas deformadas, com furos ou cruzes no chumbo. O alcance era<br />

mínimo. Porém, quan<strong>do</strong> as balas acertavam o alvo, produziam<br />

ferimentos horríveis. Aterroriza<strong>do</strong>s, os recrutas se recusavam a<br />

avançar mais. O me<strong>do</strong> se apossara mesmo <strong>do</strong>s praças velhos, e a<br />

marcha não rendia, os olhos amedronta<strong>do</strong>s voltan<strong>do</strong>-se em todas as<br />

direções.<br />

Os oficiais, vez ou outra, mandavam a tropa parar e varriam<br />

a mata com as metralha<strong>do</strong>ras. Era como atirar pedra no mar para<br />

acertar algum peixe. A mata era fechada e parecia não ter fim.<br />

16. Boca Rica estava entrincheira<strong>do</strong> num tronco de imbuia.<br />

Ali perto, Doquinha conseguira subir num pinheiro e olhava o seu<br />

desafeto com to<strong>do</strong> o ódio que tinha. Quan<strong>do</strong> Boca Rica ergueu a<br />

cabeça para olhar os solda<strong>do</strong>s que se aproximavam, um tiro pegou-o<br />

em cheio. Doquinha desceu rapidamente. Com o auxílio da coronha<br />

<strong>do</strong> revólver e da faca, arrancou to<strong>do</strong>s os dentes de ouro <strong>do</strong> outro.<br />

Movimentos na mata o fizeram subir novamente no pinheiro. Mas<br />

fora visto. Um tiro pegou-o de raspão no crânio e derrubou-o,<br />

desacorda<strong>do</strong>.<br />

Os solda<strong>do</strong>s revistaram os corpos. Doquinha foi da<strong>do</strong> como<br />

morto. Quan<strong>do</strong> o solda<strong>do</strong> que o revistava achou os dentes,<br />

assustou-se com aquelas coisas que brilhavam junto com sangue e<br />

pedaços de gengiva. Atirou longe. Os outros, ao saberem,<br />

revistaram a mata, porém nada encontraram. A noite caiu e eles<br />

foram embora. Doquinha acor<strong>do</strong>u no meio da madrugada e foi se<br />

arrastan<strong>do</strong> em direção ao reduto.<br />

17. Gegé estava indigna<strong>do</strong>. Ele, Urgel de Danoa, um <strong>do</strong>s<br />

Pares de França, Ministro da Fazenda, estava agora destituí<strong>do</strong> deste<br />

último cargo. E deram o coman<strong>do</strong> para um desconheci<strong>do</strong>, um tal de<br />

Jesuíno, que ninguém sabia ao certo quem era. Uma injustiça. Ele<br />

que sempre lutara com raça, com fé. Agora esqueciam de tu<strong>do</strong> o que<br />

ele já havia feito. Deixassem estar!<br />

Para o cúmulo da frustração, ainda o colocaram sob as<br />

ordens <strong>do</strong> tal. Este não conhecia os caminhos, não sabia quais<br />

picadas levavam às fazendas, não sabia nada. Ele é que tinha que ir<br />

na frente e abrir caminho. Deixassem estar!<br />

A fúria levou-o a dar um faconaço numa árvore. Foi tanta a<br />

força que a arma resvalou num talho superficial no tronco e voltou,<br />

ferin<strong>do</strong>-o no pulso esquer<strong>do</strong>. Ainda mais essa! Ele tinha o corpo<br />

fecha<strong>do</strong>. Fora benzi<strong>do</strong> pelo próprio monge. Nunca uma bala, um<br />

sabre ou uma faca lhe haviam toca<strong>do</strong>. E agora estava feri<strong>do</strong>. Pegou<br />

20<br />

Numa das apalpadelas noturnas, descobriu que as<br />

ombreiras <strong>do</strong> casaco <strong>do</strong> morfético eram muito volumosas. Só podia<br />

ser ali que estava o dinheiro. Mas o que fazer? Podia dar uma<br />

facada, mas se errasse tu<strong>do</strong> se perderia. Não poderia denunciar o<br />

homem, pois acabariam ambos sem o dinheiro. Ah, não fosse ele<br />

cego...<br />

11. Os pelu<strong>do</strong>s estavam mais arroja<strong>do</strong>s. Faziam pressão ao<br />

norte de Santa Maria, cortan<strong>do</strong> a comunicação e o abastecimento.<br />

Mais uma vez Curitibanos foi atacada. Sem resistência de novo. Mas<br />

ainda não houve a tão sonhada vingança.<br />

As guerrilhas se sucediam. Ninguém morria de velhice. Não<br />

dava tempo. Era bala, faca ou <strong>do</strong>ença. Elias não parava o tempo<br />

to<strong>do</strong>. Olhan<strong>do</strong> os <strong>do</strong>entes, aconselhan<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> preparativos para<br />

as batalhas. Às vezes ele desanimava, e o seu pessimismo e sua<br />

desilusão ficavam transparentes nos sermões.<br />

Pigarrean<strong>do</strong> e limpan<strong>do</strong> a voz, mais uma vez ele falou:<br />

⎯ Não somos a geração <strong>do</strong> deserto! Como a nação <strong>do</strong>s<br />

judeus nós estamos neste deserto, em busca da Terra Prometida.<br />

Faz quase quatro anos que nós declaramos a Guerra Santa tem que<br />

continuar, porque nós somos a geração <strong>do</strong> deserto, os que devem<br />

ser sacrifica<strong>do</strong>s. A nossa geração tem que vencer esta guerra, nem<br />

que to<strong>do</strong>s tenham que morrer. No tempo de Moisés ele também<br />

guiou o povo pelo deserto, e toda uma geração velha morreu. Mas<br />

os que nasceram no deserto chegaram à Terra de Canaã, prometida<br />

por Deus. São José Maria também prometeu que o nosso povo ia ter<br />

uma terra. Este Contesta<strong>do</strong> é um país enorme, <strong>do</strong> qual to<strong>do</strong>s terão o<br />

seu pedaço. Mas para isso temos que lutar! Não por nós, mas pelos<br />

nosso filhos. Não se esqueçam, pois, de que nós somos a geração<br />

<strong>do</strong> deserto. Estamos aqui para purgar nossos peca<strong>do</strong>s, e só depois<br />

teremos direito à Terra de Canaã. Aqueles que têm peca<strong>do</strong>s não são<br />

dignos de entrar na Terra Santa. É por causa disso que a gente está<br />

brigan<strong>do</strong> contra os solda<strong>do</strong>s da República. Nós temos que continuar<br />

lutan<strong>do</strong> por nossa causa e, principalmente, por causa <strong>do</strong>s nossos<br />

filhos. O povo precisa ter fé, precisa resgatar as culpas e os<br />

peca<strong>do</strong>s, porque, com a alma limpa, esta nossa geração <strong>do</strong> deserto<br />

vai ser também aquela que gozará as delícias de Canaã. O povo<br />

precisa ter fé. Muita fé! Quem morrer agora, pode deixar seus ossos<br />

apodrecen<strong>do</strong> no deserto, pois São José Maria prometeu que to<strong>do</strong>s<br />

ressuscitarão depois, na Terra Santa. O povo precisa ter fé, para<br />

poder sair <strong>do</strong> deserto... Agora vamos rezar.<br />

17


12. Mais uma das profecias de São José Maria era<br />

lembrada; dissera que ia chegar o tempo <strong>do</strong>s homens lutarem contra<br />

os pinheiros e estes contra os homens. E estava acontecen<strong>do</strong>. As<br />

serrarias estavam empenhadas numa luta feroz contra as árvores, e<br />

elas revidavam. Muitos homens eram esmaga<strong>do</strong>s pelos troncos que<br />

caiam e rolavam pelas ribanceiras.<br />

A pior de todas era a Lumber, cria da República, como dizia<br />

Gasparino. A empresa estrangeira estava acaban<strong>do</strong> com os<br />

pequenos serralheiros.<br />

Gasparino Melo contou <strong>do</strong> que lhe acontecera, de como fora<br />

obriga<strong>do</strong> a vender sua pequena serraria por quase nada, por não ter<br />

pinheiros para serrar, por não poder contratar emprega<strong>do</strong>s, pois a<br />

Lumber pagava mais. Contou da concorrência desleal que lhe<br />

faziam, das injustiças que sofrera, <strong>do</strong>s direitos que perdera. E a<br />

indignação <strong>do</strong>s homens foi crescen<strong>do</strong>, foi crescen<strong>do</strong>, aumentan<strong>do</strong><br />

sempre de volume e intensidade, até que se tornou enorme.<br />

Ao anoitecer, um ban<strong>do</strong> de jagunços ateou fogo nas<br />

serrarias da Lumber.<br />

13. Os jagunços seguiam a via férrea. Uma vagão<br />

aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, com as letras E.F.S.P.R.G., chamou a atenção de<br />

Gasparino. O que queriam dizer?<br />

⎯ Estrada feita somente para roubar pro Governo. – alguém<br />

disse.<br />

O vagão ficou parecen<strong>do</strong> renda, de tanta bala que levou.<br />

A estação de Calmon foi atacada. Mataram o telegrafista e<br />

mais duas pessoas que tentaram defendê-lo. Depois tocaram fogo<br />

em tu<strong>do</strong>. Atacaram as colônias rutenas de Iracema e Moema e<br />

continuaram em frente, levan<strong>do</strong> consigo a morte e o fogo.<br />

Os jagunços movimentavam-se livremente pelas terras <strong>do</strong><br />

Contesta<strong>do</strong>.<br />

Do Rio de Janeiro veio o Coronel Setembrino com sua<br />

gente. Curitibanos foi feita de Quartel General. Urgia acabar com os<br />

jagunços, de uma vez por todas. A polícia catarinense juntou-se às<br />

forças. Setembrino man<strong>do</strong>u vir, da capital da República, <strong>do</strong>is aviões<br />

e <strong>do</strong>is avia<strong>do</strong>res. A nova arma estava dan<strong>do</strong> bons resulta<strong>do</strong>s na<br />

guerra europeia. Do alto, podiam os pilotos localizar os redutos, e<br />

até mesmo auxiliar no bombardeio.<br />

Os jagunços ficaram apavora<strong>do</strong>s com aquele bicho estranho<br />

que roncava no céu.<br />

⎯ O gavião de aço! O gavião de aço!<br />

18<br />

Mais uma vez, as previsões de São José iam se cumprin<strong>do</strong>.<br />

Ele disse que seria assim. Dos céus viram sinais quan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong><br />

estivesse para se acabar.<br />

Mas durou pouco o temor. Um <strong>do</strong>s aviões espatifou-se<br />

contra o solo, matan<strong>do</strong> o piloto, e o outro aparelho, sofren<strong>do</strong> avaria<br />

por causa de um princípio de incêndio, estava inutiliza<strong>do</strong>.<br />

Outra vez Adeodato consultou frei Manoel. De novo o azar<br />

precisava ser <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>. Desta vez o escolhi<strong>do</strong> foi Aleixo Gonçalves.<br />

Convoca<strong>do</strong>, veio imediatamente. Adeodato nem o deixou apear.<br />

Atirou no outro em cima <strong>do</strong> cavalo.<br />

As notícias, porém, continuavam ruins. As tropas <strong>do</strong><br />

Governo continuavam avançan<strong>do</strong>, embora Adeodato soubesse que<br />

em Santa Maria eles dificilmente conseguiriam entrar.<br />

Além <strong>do</strong>s preparativos bélicos, as rezas também se tornaram<br />

intensas. José Maria aparecia em to<strong>do</strong>s os meios de tarde. Vinha<br />

monta<strong>do</strong> em seu cavalo branco, cavalgan<strong>do</strong> pelo céu. Quem não<br />

visse, Adeodato matava.<br />

Até Adeodato começou a ser cada vez mais aclama<strong>do</strong>.<br />

Acabou viran<strong>do</strong> santo: São Joaquim de Palmas.<br />

14. Mané Rengo não se conformava. Achava uma<br />

barbaridade, uma judiaria. E os homens cada vez mais rareavam no<br />

reduto. Ou eram dizima<strong>do</strong>s pelos solda<strong>do</strong>s, tifo, varíola, disenteria ou<br />

desertavam. O jeito era promover à condição de homens os meninos<br />

de <strong>do</strong>ze anos ou ate menos.<br />

Gasparino Melo foi nomea<strong>do</strong> comandante <strong>do</strong>s meninos e<br />

passava treinan<strong>do</strong>-os todas as manhãs. Muitos deles não<br />

aguentavam o peso da arma nas costas. Marchavam<br />

desordenadamente mediante o esforço além de sua capacidade.<br />

Mané Rengo chegava a sentir um ardume nos olhos pela<br />

provação daquela <strong>do</strong>lorosa promoção a homem, prematura e insana.<br />

Mas não havia outro jeito. Tinha que ser assim.<br />

15. Choveu oito dias sem parar. Ninguém conseguia se<br />

mexer de dentro das tendas ou <strong>do</strong>s casebres. Os nervos andavam à<br />

flor da pele. Começavam a se questionar sobre a vida miserável que<br />

estavam levan<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> a chuva parou, os solda<strong>do</strong>s puseram-se em marcha.<br />

Penosa e lentamente a tropa seguia. Os sapatos <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s se<br />

abriam nas costuras, perdiam as solas e pesavam que nem chumbo.<br />

Muitos já estavam descalços, e feriam os pés nas raízes e nos<br />

estrepes. Das copas <strong>do</strong>s pinheiros, embosca<strong>do</strong>s nas voltas das<br />

picadas, os jagunços, isola<strong>do</strong>s, atiravam. Um solda<strong>do</strong> caía aqui,<br />

19

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