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SHOLEN ASCH SHOLEN ASCH - CEAE Perdizes

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“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

<strong>SHOLEN</strong> <strong>SHOLEN</strong> <strong>SHOLEN</strong> <strong>ASCH</strong><br />

<strong>ASCH</strong><br />

TRADUÇÃO TRADUÇÃO DE DE MONTEIRO MONTEIRO LOBATO<br />

LOBATO<br />

1<br />

1


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

PRIMEIRA PRIMEIRA PARTE<br />

PARTE<br />

2<br />

2


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

Não o poder de recordar, sim o poder de esquecer constitui uma das condições necessárias à nossa existência. Se<br />

a crença na transmigração das almas é verdadeira, então as almas que mudam de corpos atravessam as águas do mar do<br />

esquecimento. Para os judeus, essa transição de almas se faz sob a regência do Anjo do Olvido. Mas certas vezes esse anjo<br />

esquece de remover de nossa memória o material anterior e eis-nos impregnados de fragmentárias recordações de outra vida.<br />

Como nuvens esgarçadas sobre os montes e vales do nosso espírito, elas se entretecem nos incidentes da nossa vida diária.<br />

Afirmam-se, vestidas de realidade, sob a forma dos pesadelos noturnos – e o efeito é o mesmo de quando, ao ouvirmos um<br />

concerto radiofônico, súbito nos chegam flébeis trechos de melodia irradiada em outra onda.<br />

Eu estava diante duma porta na qual, mesmo na penumbra reinante no corredor, se distinguiam as três leras I. H.<br />

S., escritas a giz: circunstância que me anunciou ser ali a residência dum cristão ou, mais especificamente, dum católico. E foi<br />

esse mesmo cristão quem me abriu.<br />

Um bafo de ar confinado, como vindo de bolores e papéis que a umidade consome, chofrou-me o rosto – e no<br />

escuro da sala que naquela tarde de outono se abria diante de mim, senti, mais que vi, a dinâmica figura que me defrontava.<br />

Não que fosse uma figura poderosa e imponente; ao contrário, bem reduzida de vulto era, e murcha. Mas minha sensação foi<br />

de que naquele homem se concentrava uma tremenda carga elétrica, pronta para explodir a qualquer momento. Aproximei-me<br />

com o maior cuidado, e foi com a mais humilde voz que, em resposta à sua expressão de espanto, pude dizer da minha<br />

presença ali.<br />

− Oh...<br />

Cava respiração se fazia pelo seu horrível nariz, fino, ósseo, aristocraticamente cinzelado – única sugestão de<br />

forma distinguível naquela mancha de rosto sem feições. E eu ouvia o eco do ar inspirado. Sem pronunciar uma só palavra,<br />

sem realmente dar-me um olhar, o vulto fez o gesto de “siga-me”.<br />

Atravessamos a sala da frente, comprida e estreita, ladeada de estantes. Não estavam arrumados os livros, mas<br />

dispostos aos grupos e atados, como se em preparo de mudança. Também as paredes do escritório se revestiam de estantes,<br />

com os livros igualmente em pacotes. Tive tempo de observar tudo, porque, mal me introduziu naquele seu hábitat, o homem<br />

esqueceu-se de mim e com grande calma sentou-se à mesa donde o havia tirado o toque da campainha. Não me mandou sentar;<br />

ignorou minha presença, como se eu não existisse no mundo. Antes de entrar, eu mentalmente me firmara na idéia de não<br />

reagir a nenhum insulto, não perder a paciência nem mesmo diante da maior provocação. Como me não fosse estranha a sua<br />

atitude para com a nacionalidade e a religião a que pertenço, dispus-me a evitar qualquer atitude desviadora do meu propósito:<br />

travar íntimo conhecimento com aquele homem. E, pois, contive-me, não me deixei perturbar pelo seu silêncio; aproveitei-o<br />

para melhor observa-lo. A escrivaninha ficava perto da janela dupla, a única do recinto, e que devia dar para uma pequena área<br />

interna; a luz que se coava pelas cortinas era evidentemente a luz moribunda dessas áreas. Mas apesar disso o rosto daquele<br />

homem emanava um luar de pergaminho amarelecido. A cabeça em destaque na atmosfera neutra do escritório lembrava a<br />

cabeça dum César em puída moeda romana. O nariz fino, todo ossos, era como um delicado instrumento com duas asas<br />

finamente esculpidas: dava a impressão de bico de águia e dominava aquele rosto, apagando as demais feições. A cabeça<br />

grande, descoberta. Apenas escassa penugem dum branco amarelecido circulava-lhe a calvície. Senti muita energia na mão<br />

nervosa pousada sobre o papel, trêmula, a escrever. E espantou-me como conseguira acomodar naquela mesa tanta coisa que<br />

eu lá via: torres de dicionários, enciclopédias, manuais; e, entremeio aos volumes grandes, folhetos, periódicos, rumas de papel<br />

em branco e ainda vários objetos sem conexão – capacete romano, uma espada, quantidade de vasos de bronze e outros<br />

fragmentos arqueológicos, cravos, fivelas, pedaços de figurinhas de mármore, gregas e romanas. E ainda grande número de<br />

pedras com variadas inscrições.<br />

Em dado momento veio-lhe a lembrança a minha presença ali e o homem ergueu-se. Com ele revoou a mosca,<br />

única do recinto, que estivera a tormentá-lo, mas sem mas sem conseguir embaraçar-lhe a escrita. Passou a circular em torno à<br />

sua cabeça. Ele espantou-a com um lenço e em passos firmes aproximou-se de mim. E falou-me como se já nos<br />

conhecêssemos de anos – como se estivéssemos retomando uma conversa velha, apenas interrompida.<br />

− Que terríveis pestes, as moscas! Sabe com que as comparava o historiador Tácito? Com esses homens<br />

barulhentos, os judeus! Ah, ah, ah... E sabe como o imperador Domiciano costumava matar o tempo? Caçando moscas no<br />

palácio e arrancando-lhes as asas. Ah, ah, ah... Nobre ocupação para um César romano, heim? Mas era simbólico, moço, era<br />

simbólico. Ele não prestava para outra coisa. Sua campanha contra os germânicos não passou dum blefe – nada mais. Nem<br />

sequer cruzou o Reno, embora fosse um dos Vespasianos que libertou o mundo da praga judaica e queimou o Templo, aquele<br />

ninho dos fariseus e saduceus, ah, ah, ah...<br />

Respondi com a maior calma:<br />

− Senhor, aqui vim recomendado por Madame B. Desejo colocar à vossa disposição o meu conhecimento da<br />

língua hebraica.<br />

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O velho olhou-me com espanto, aproximou-se um pouco mais, como para me ver melhor; depois recuou um<br />

passo e disse, sério:<br />

− Se de qualquer maneira ofendi ao fanático que existe em você, peço desculpas, ó neto dos Macabeus e de<br />

Simeão bar Giora! E eles ainda dizem que o cordeiro Jesus saiu do antro de leões de Judá! Estou com Nietzsche: dou todo o<br />

Novo Testamento por uma só página do Velho. O Velho Testamento é másculo; o Novo é todo mulheres; o Velho está cheio<br />

do Deus da Vingança – o Novo exsuda perdão feminino...<br />

Receoso de que ele voasse para muito longe, interrompi-o com a repetição do que já dissera:<br />

− Madame B. recomendou-me e eu tenho a honra de...<br />

− Ah, sim, Madame B. cientifica-me de que o moço está pronto a compartir comigo os mistérios da língua<br />

sagrada, que me são necessários cá num assunto importante. Agradeço a oferta e sou obrigado a confessar que admiro a sua<br />

coragem, moço. Poderei conhecer as razões que o levam a procurar contato com o inimigo do povo eleito? Talvez o preço que<br />

vai pedir seja muito alto e esteja acima das minhas forças.<br />

− Preço? repeti, espantado. Julguei que Madame B. já houvesse dito que nada quero pela minha cooperação.<br />

− Ah, ah, ah... Tenho muito mais medo dessa variedade espiritual.<br />

− Senhor, o único pagamento que aceitarei é o ensejo de compartilhar do seu grande conhecimento da literatura<br />

clássica. Venho seduzido pela fama do erudito e profundo investigador das coisas romanas. Devo confessar que também me<br />

sinto atraído pela época que tanto o interessa e sobre a qual já tanta coisa deu ao mundo. De longa data me seduz o ensejo de<br />

conhece-lo.<br />

Estas palavras suasórias acalmaram-no, como mel acalma o urso furioso, e o velho silenciou; mas era silêncio<br />

desconfiado, porque o vi recuar de novo e examinar-me inquisitivamente. Aqueles olhos pareciam verrumas, e o nariz adunco<br />

dava idéia de um gancho olfativo ainda mais investigador do que os próprios olhos. Depois, como se me houvesse aprovado,<br />

sentou-se de novo e deu luz à lâmpada pendente sobre sua cabeça – e foi bom que o fizesse, porque as trevas já haviam<br />

invadido o recinto. Na verdade aquela lâmpada, com quebra-luz feito duma folha de papel tostado, era insuficiente para<br />

iluminar toda a sala; servia apenas para avivar a mesa e as suas feições. Num gesto seco apontou-me a velha poltrona junto a<br />

si. Fui para lá e não vi o gatão que sonolentamente a ocupava; ia esmagá-lo sob o meu peso, mas o animalzinho reagiu a tempo<br />

e esgueirou-se para um canto escuro da sala.<br />

− Minhas realizações no campo das ciências objetivas, disse ele passando os dedos pelos tosados bigodes<br />

amarelecidos, teriam sido maiores e de maior importância, se não fosse a minha eterna luta contra as forças hostis à verdade.<br />

Não direi o nome dessas forças para não chocar a sua sensibilidade, moço, mas espero que me compreenda... Justamente agora,<br />

uma singular oportunidade me favoreceu: o encontro dum documento oculto durante mil e novecentos anos. Trata-se da<br />

verdade sobre uma tragédia ocorrida em Jerusalém e que, infortunadamente, se tornou o mais importante fator da nossa historia<br />

nestes dois últimos milênios. Esse documento, ora em meu poder, irá revolucionar a nossa atitude em relação às verdades<br />

aceitas. Inúmeras serão as conseqüências da sua publicidade e eu necessito de sua assistência, moço, para o completo estudo do<br />

manuscrito. Porque esse documento, ao invés dos outros, preparados para uso dos pagãos, não está escrito em grego, mas em<br />

antigo hebreu, como o seu uso particular o impunha. O que espero da sua cooperação, moço, é que, desatento aos deveres para<br />

com a comunidade judaica, que o atam com juramentos e proibições, ponha o interesse da ciência pura acima de tudo, acima<br />

até da lealdade sectária, e sem tergiversão me ajude a decifrar o manuscrito que por um feliz acaso me veio ter às mãos.<br />

Eu já sabia os hábitos de exagero e gabolismo daquele homem, mas mesmo assim impressionou-me o seu tom de<br />

sinceridade. E pressenti que iria defrontar-me com algo importante e ignorado do mundo. A voz baixa com que ele me falou e<br />

a expressão grave do seu rosto pergaminhento não transluziam nenhuma sugestão de coisa mistificada – caso muito freqüente<br />

em suas descobertas. Convenci-me de que pelo menos daquela vez estava de fato à beira de algo da maior importância e<br />

respondi com sinceridade:<br />

− Permita-me assegurar, professor, que unicamente um impulso me trouxe cá: a sede de saber; porque para mim<br />

a ciência e a verdade absoluta passam diante de todas as outras considerações – e apresentei-lhe os meus sinceros<br />

agradecimentos pela confiança que lhe ia eu merecer, apesar do breve do nosso conhecimento pessoal e do pouco que ele de<br />

mim sabia.<br />

− Sim, tem a minha confiança, e não sei como a conquistou. Parece-me que mostra a respeito destas coisas uma<br />

atitude muito diferente da dos seus correligionários. Na realidade, o pouco que sabemos da vida e dos atos da personalidade<br />

que nos preocupa e que infortunadamente modelou a historia do mundo ocidental nestes últimos dois mil anos, devemo-lo a<br />

uns tantos “patrícios” seus – ou direi correligionários? – os quais nos transmitiram informes sobre a vida e as atividades do<br />

ente em causa. Mas tais informes não se eximem da eiva de paixão e sectarismo. Estas tendências acentuam-se dos dois lados,<br />

o pró e o contra, e modelam a figura do herói. Há de saber – e dizendo isso apontou para mim – que no começo, antes que o<br />

gênio greco-romano pusesse um pouco de ordem no caos da mentalidade farisaica da seita cristã, todo este assunto não passava<br />

de pura matéria local. Os seguidores da nova fé e seus adversários eram feitos do mesmo material humano com que Deus criou<br />

o povo eleito.<br />

Não obstante o meu intuito de não me deixar afetar por nenhuma observação que ele fizesse, senti que<br />

investigações teologais daquele naipe eram de molde a romper nossas relações logo de início; porque nada lhe saia da boca que<br />

não revertesse em provocação. E foi com esforço que respondi com suavidade:<br />

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− Professor, creio que seria de mútua conveniência se evitássemos digressões teológicas, das que levam ao<br />

campo do desagradável. Muito melhor confiar-nos ao assunto que nos aproximou.<br />

Vi espanto e cólera em seu rosto, ante a minha impudência em interromper-lhe o discurso. Por seus lábios<br />

coaram-se palavras ininteligíveis e ele caiu em silêncio, com os olhos fixos em mim, como se decidindo o que fazer: lançarme<br />

pela janela sem mais preâmbulos ou fulminar-me ali na cadeira. Por fim disse:<br />

− Tudo suporto por amor à ciência – inclusive a insolência dos tolos.<br />

Nos círculos literários da nossa cidade provinciana havia um homem intitulado “o teólogo” ou “o professor”.<br />

Não era nenhum escriba profissional, mas amigo e consultor de escritores, um esteta, um filólogo das línguas clássicas. Apesar<br />

disso, periodicamente ventilava a sua extraordinária erudição, publicando breves ensaios e observações em jornais<br />

especializados em literatura e história grega e romana. Se, por exemplo, certo escritor de alguma projeção errava no nome dum<br />

general, jurista ou filósofo romano, ou mencionava uma data errada, ou pronunciava mal o nome dum tribuno, ou cometia<br />

qualquer pecadilho contra os heróis maiores ou menores da antigüidade, imediatamente sobrevinha a correção. Na maior parte<br />

dos casos os diretores dos jornais tinham de rescrever as cartas corretivas ou lança-las à cesta, tal o estilo em que vinham<br />

vazadas. Era esse estilo, antes de tudo, rigorosamente clássico, isto é, jogava com tantas palavras gregas e latinas que punha<br />

tonto o leitor moderno. E havia ainda a sua mania de desenterrar, ninguém sabia de onde, nomes de heróis clássicos,<br />

desconhecidos de todo mundo. Daí a suspeita de que era da sua própria imaginação que ele exumava esses heróis. Outros,<br />

menos precípites, mergulhavam nas antologias e enciclopédias, em procura dos nomes citados – mas raramente com feliz<br />

sucesso; descobriam os nomes, mas não o que significavam. A impressão geral era de que aquele professor estava na posse<br />

exclusiva duma biblioteca de obras clássicas, literárias e históricas, desconhecida de todos os homens. E ele assinava os seus<br />

escritos com pseudônimos sucessivos, todos estrangeiros. Tais manias podiam passar como simples e inocentes<br />

excentricidades, se não fosse o seu costume introduzir neles observações ferinas sobre fatos ou indivíduos contemporâneos. E<br />

parece que o fazia justamente com o fim de dar largas à fúria contra o que mais detestava – os judeus. Com o leve pretexto de<br />

corrigir um erro tipográfico, lá vinha com todo o rol de defeitos dessa gente. Se por acaso mencionava o nome de Cícero, não<br />

deixava de esclarecer, “aquele que há dois mil anos já aludia ao povo rixento e gritador”. Em conseqüência dessa mania, suas<br />

relações com os editores nunca foram das melhores.<br />

Mas impossível negar o vulto da coterie de seus admiradores lá no café por ele freqüentado. Seguindo os velhos<br />

modelos de outrora recorria mais à linguagem falada do que a escrita, na transmissão da sua sabedoria ao mundo. À maneira<br />

dos filósofos de Atenas, rodeavam-no jovens discípulos, a beberem-lhe as palavras como se fossem mais preciosas que pérolas.<br />

Não sei da composição do grupo que rodeava Sócrates, mas o grupo d’ “o professor” compunha-se de homens já longe da<br />

juventude, alguns com cabelo bastante escasso ou grisalho. Fumando sucessivos cigarros filados, aquela figura de barba<br />

crescida sentava-se dentro da nuvem de fumo dos cachimbos amigos. Provinham seus seguidores, sobretudo, dos arraiais dos<br />

sem talento e mal sucedidos. Não seria exagero dizer que quem quer que falhasse no mundo literário ou profissional era logo<br />

atraído pela roda freqüentadora daquele café.<br />

Em língua polonesa a palavra kaval significa o que os franceses chamam “carnad” – uma “peça”, uma<br />

mistificação. O prazer de pregar um kaval faria o “professor” vender pai e mãe, ou destruir metade do mundo; e sempre que<br />

lhe saia a contento a “peça”, indescritível felicidade o invadia; chegava a chorar de prazer.<br />

Foi associado a um kaval que certo dia seu nome apareceu na imprensa. O incidente ligava-se à comunicação<br />

dum manuscrito etiópico no Novo Testamento que ele alegou ter descoberto num mosteiro do Monte Sinai, com o auxílio dum<br />

notório falsificador (como mais tarde foi verificado). Fosse qual fosse o remate dessa memorável descoberta (verdadeiro<br />

escândalo mundial), no momento serviu para lançar sobre o “professor” o manto da fama. Daí por diante sempre viveu ele a<br />

espantar o mundo com manuscritos preciosos descobertos nas suas longas viagens pelo Oriente. As numerosas falsificações<br />

contidas nesses papéis acabaram arruinando-lhe a reputação de sábio: apesar disso a atitude para com ele do mundo acadêmico,<br />

sempre cheio de suspeitas, não deixava de revelar interesse; isso por que no meio daquelas falsificações havia sempre uma<br />

certa dose de autenticidade, estranha, mística, ininteligível – elemento que deixava em suspenso a condenação formal d’ “o<br />

professor”. Só com o correr do tempo seria possível o perfeito ajuizamento das “suas falsidades” – aquelas falsidades sempre<br />

inoculadas de autenticidades. As opiniões variavam muito. Havia a dos que tinham suas descobertas como verdadeiras, embora<br />

bastante misteriosas. E se acaso o apanhavam em falsificação flagrante, a escusa do homem era de que estava pregando um<br />

kaval nos eruditos, com o fim de provar quão pouca fé merecem.<br />

Nos últimos tempos conseguiu impingir nos sábios algo que muito agitou a imprensa e quase o levou à cadeia –<br />

e nunca sua reputação desceu tanto. Certo dia apareceu nos jornais com a declaração de que havia encontrado em velha igreja<br />

um manuscrito de Josepho em antigo eslavônico, coisa do século décimo e que escapara à censura da Igreja. Vinha nesse<br />

manuscrito (alegava ele) uma passagem, inexistente em todos os textos desse historiador e muito ao sabor dos desejos de<br />

certos sábios anti-semitas que pretendem incorporar Jesus aos arianos. É fácil de imaginar o barulho que a revelação causou no<br />

mundo da Igreja, e também é fácil de imaginar a seqüela: declaração não só de que não existia tal passagem, como de que toda<br />

a historia do manuscrito não passava de grande exagero; o que havia era apenas a introdução em Josepho de duas paginas<br />

duma velha crônica eslava, cuja autenticidade não podia ser provada nem negada. Mas a contestação só serviu para aumentar o<br />

mistério. Altos representantes da Igreja perseguiram-no por blasfêmia, num processo que lhe custou muito esforço e<br />

sofrimento – mas não o abateu. Foi no julgamento desse processo que pela primeira vez ele revelou os sintomas duma estranha<br />

doença mental: a sua declaração aos juízes de que era contemporâneo de Pôncio Pilatos, o Procurador da Judéia, e de que tinha<br />

conhecimento de primeira mão dos incidentes ocorridos em Jerusalém e nos quais tomara parte.<br />

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Essa extraordinária doença foi conservada em “rigoroso segredo”. Perceberam os juízes tratar-se dum caso de<br />

aberração mental, e relutaram em dar a público aquele fantástico depoimento, que só poderia agravar os danos já infligidos à<br />

Igreja pelo incidente. O processo foi arquivado. Mas ainda não haviam cessado os ecos desse kaval, quando o “professor” veio<br />

com outro igualmente prodigioso: a sua alegação de que descobrira num antiquário judeu da velha Varsóvia nada menos que o<br />

papiro duma ignorada versão do Novo Testamento, com parábolas e mais coisas inéditas de Jesus de Nazaré, bem como um<br />

novo relato da crucificação. Vindo, como veio, depois do caso do texto de Josepho, essa descoberta de um novo evangelista<br />

não produziu o efeito que seria de esperar. Dois jornais escandalosos deram-lhe publicidade, mas o mundo erudito negou-lhe<br />

atenção. Isto fez que o “professor” atribuísse semelhante atitude, parte ao ciúme dos eruditos, parte à dominação dos judeus no<br />

mundo; os judeus estavam determinados a manter na sombra aquela sua descoberta com medo das repercussões sociais e<br />

históricas da verdade sobre a tragédia ocorrida em Jerusalém. E, além disso, quem, em qualquer parte do mundo, sabia mais da<br />

matéria que ele?... E por muitas razões, que não podia revelar, iria reter em secreto o documento enquanto continuasse a<br />

estudá-lo.<br />

Ao tempo em que essa história começa, isto é, quando travei conhecimento com aquele homem, seu nome já<br />

estava quase completamente esquecido. E também fisicamente ele decaíra muito; já não se mostrava mordaz como outrora, e<br />

suas inspirações eram menos freqüentes e menos interessantes. Tudo como se ele houvesse esgotado o poço das maravilhosas<br />

descobertas. Envelhecera. Só de raro em raro aparecia no café e diziam-no sujeito a longos acessos de depressão; passava o<br />

tempo fechado em casa; outras vezes consumia semanas inteiras na biblioteca da universidade, embolorando entre livros e<br />

manuscritos.<br />

Não posso definir com clareza as razões que tão poderosamente me levaram a esse homem e me induziram a<br />

ganhar-lhe a confiança, a ponto de fazê-lo falar sobre aqueles dias. Tudo quanto sei é que sempre me senti tremendamente<br />

arrastado pelo período histórico em questão. E vindo a saber que ele necessitava de alguém com sérios conhecimentos da<br />

língua hebraica, consegui ser-lhe apresentado. Eu não ignorava que o nosso encontro nada preluzia de agradável; que mais me<br />

esperariam insultos que outra coisa. Mas estava firmemente resolvido e realizei o meu intento. No começo tudo foi, de fato,<br />

difícil. Era como se não houvesse afinidade entre nós. Traguei seus insultos, sem indagar se os merecia ou não. Depois, quando<br />

firmei idéia sobre o seu caráter, minha determinação se retesou. O fato de ter diante de mim um contemporâneo de Pôncio<br />

Pilatos, um homem que havia vivido em Jerusalém e pessoalmente comparticipado na repressão de rebeliões e testemunhado<br />

os tremendos sucessos da época – ainda que tudo não passasse de ilusão – manteve-me na escada. E tenho de confessar que<br />

ainda hoje me pergunto a mim mesmo se não se tratava dum caso de metempsicose, ou reencarnação de alguém da época de<br />

Pilatos, ocasionalmente emergido em nossos tempos.<br />

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Maior intimidade não há que a de dois homens que põem de lado suas fés e convicções colidentes e baseiam o<br />

contato unicamente nas comuns necessidades e fraquezas humanas. No caso do nosso temível teólogo – ou seja Pan<br />

Viadomsky – o que se deu foi o seguinte: apesar da sua orgulhosa conduta de cavaleiro andante ou guerreiro romano, não<br />

passava de fraca e doentia criatura de nossos tempos. Nascido em casa modesta (seu pai fora um humilde médico rural), bem<br />

cedo, na meninice, revelou excepcional aptidão para as línguas clássicas. Mas levado por razões que ignoro, interrompeu a<br />

meio caminho os estudos acadêmicos e pôs-se a viajar. E quando em virtude da falsificação de documentos antigos perdeu o<br />

bom nome, entrou a ensinar matéria clássica a filhos de gente rica. Mas a independência e o orgulho interferiram com a nova<br />

profissão. A arrogância de seu trato fez que mais uma vez perdesse o emprego, quando chamado a preparar alunos nalguma<br />

grande propriedade rural. E não era só isso; sobrevinham aventuras com os pais dos alunos, demandas, lutas – razão pela qual a<br />

gente rica entrou a evita-lo. Andava ele agora a viver da venda dos livros da sua enorme biblioteca e dos dúbios documentos<br />

“originais” descobertos durante as viagens. Mas não lhe advinham disso recursos suficientes para as suas modestas<br />

necessidades, o que o ia mantendo em estado de semi-penúria. Ocupava aqueles cômodos desde antes da guerra, e unicamente<br />

as leis protetoras dos inquilinos impediam que o senhorio o pusesse no olho da rua; os aluguéis estavam com anos de atraso. O<br />

judeu, proprietário de seu apartamento, nada ousava fazer contra o mau inquilino. De longe em longe velhos conhecidos de<br />

Viadomsky, em geral professores ginasiais, arranjavam-lhe a achega duma conferência sobre assunto clássico; e mais<br />

espaçadamente ainda conseguia ele editor para algum dos seus estudos. A mulher do porteiro, uma velhota, fazia a limpeza do<br />

apartamento duas vezes por semana, mais por caridade do que com olho na paga, que só de vez em quando vinha. Comida,<br />

preparava-a ele próprio num fogareiro Primus, lá na cozinha – cômodo literalmente atochado de pacotes de livros, jornais e<br />

documentos. Tudo prenunciava ali um incêndio de primeira ordem – mas ai de quem fosse sugerir tal coisa!<br />

Era um tipo solitário e não mau homem, como vim a convencer-me mais tarde, apesar de todo o seu amargor.<br />

Não há dúvida que detestava o povo comum, a “plebe”, e nunca deixava de apoiar o seu desprezo com citações de grandes<br />

pensadores antigos, sempre no original; mas igualmente não mostrava nenhuma especial simpatia para com os ricos – ao<br />

contrário, tinha ódio aos muito ricos ou poderosos. Contra eles lançava no original grego as palavras do Novo Testamento: “É<br />

o rico que vos oprime, é o rico que vos leva ao tribunal”. Mas seu maior desprezo reservava-o para os tempos modernos;<br />

nenhum homem dos nossos sistemas sociais lhe era do agrado, nem coisa nenhuma da atualidade. A vida contemporânea não<br />

tinha quadro a oferecer-lhe – e Pan sentia-se um rejeitado. E como defesa, refugiava-se na era a que pertencia, lá com os<br />

homens que ele conhecia melhor, no torvelinho de circunstâncias e incidentes que mais o interessavam: o mundo clássico.<br />

Com respeito a história romana era extensíssimo o seu saber e evidentemente com base em fontes só dele<br />

conhecidas. Episódios clássicos, restritos pelas fontes que os fixaram, ele os opulentava com detalhes oriundos da sua<br />

imaginação – mas fabricados em tal harmonia com a essência da matéria e as circunstancias históricas e humanas, que<br />

sobrevinha a todos uma dúvida: seriam totalmente falsos os seus celebres documentos originais? Ele dava às histórias um tom<br />

de verossimilhança que destruía o intervalo de dois mil anos, e punha-as tão perto de nós como só o poderia fazer um ator<br />

dessas histórias. Assim, por exemplo, costumava tecer estranhas fiorituras em sua narrativa do ocorrido entre Germânico e<br />

“nós da Segunda Itálica”.<br />

− Que “nós” é esse? Interpelei surpreso.<br />

−Oh, estou falando da Segunda Legião, composta quase que exclusivamente de romanos, respondeu ele, com um<br />

levíssimo afluxo de sangue às faces.<br />

Depois de algum tempo abandonamos este assunto.<br />

Todos os anti-semitas possuem “o seu judeu”, tido e havido como exceção à regra; eu me tornei a “exceção<br />

judaica” de Pan Viadomsky. Chegou até a dar-me novo nome: Josephus. E não podia viver sem mim. Se eu falhava de<br />

procura-lo um dia, no dia seguinte mandava-me carta chamando. E devo confessar que também me apeguei muito àquele<br />

homem. Antes de mais nada eu gostava de ouvir-lhe as histórias; a sua imensa cultura muito me beneficiava. Os restos da sua<br />

biblioteca ainda constituíam uma enorme coleção de obras clássicas, no original ou em traduções, e Pan não só me dava livre<br />

acesso aos livros como me guiava naquele labirinto. A despeito de contrários em nossa visão dos acontecimentos, o nosso<br />

comum interesse no período histórico do Segundo Templo nos ligava. Mas acima de tudo o que me induzia a respeitá-lo era o<br />

seu caráter amargo, teimoso e cheio de arestas – a sua quixotesca feição de eterna repulsa às transigências do oportunismo,<br />

feição que lhe trouxera muitos inimigos e o isolava dos contemporâneos – e também a mim muitas vezes irritava ou feria.<br />

Convenci-me de que suas sensacionais “descobertas” não provinham de premeditada desonestidade (e realmente nunca lhe<br />

trouxeram vantagem), mas sim dum ingênuo e fanático enlevo no assunto. Do mesmo modo que em muitos outros antisemitas,<br />

notei nele um especial encanto por petiscos judaicos – o encanto, quem sabe, do fruto proibido. Eu costumava trazerlhe<br />

do bairro judeu pequenos presentes: pão branco ou preto à moda judia, arenques, pepinos em conserva, salsichas, coisas<br />

que comíamos juntos com o chá tomado em nossas longas tardes. E Pan nunca deixava de expressar os seus agradecimentos,<br />

não tanto por meio de palavras (as amabilidades não conseguiam transpor a barreira de seus lábios: um filtro psicológico as<br />

barrava), mas com um olhar ou um sorriso, coisa aliás rara naquele homem.<br />

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Certa ocasião adoeceu; havia-se resfriado e sobreviera a febre. Dele cuidei durante vários dias e cheguei mesmo<br />

a chamar um médico. De guarda ao doente me deixei ficar duas ou três noites – e Pan confessou que jamais admitira a<br />

possibilidade de um judeu no papel de Bom Samaritano.<br />

E tudo assim contribuiu para que entre nós se fosse desenvolvendo a amizade (involuntariamente ou será que no<br />

fundo a desejávamos?). Algo curioso sucedia; éramos como dois conterrâneos que numa velha comunidade sempre tivessem<br />

vivido em choque, mas que o destino lançara numa ilha deserta no extremo do mundo. E como em situação dessas o exilado se<br />

agarra a quem lhe mostra algum carinho, ou como o doente que aperta a mão do enfermeiro e não a quer mais largar, de igual<br />

modo Pan Viadomsky a mim se agarrava com dedos crispados e me retinha.<br />

Eu realmente não sabia o que se passava comigo; ao ter conhecimento de que ele estava doente e sem poder<br />

deixar a cama, senti-me inquieto e corri para seu lado. E foi assim que, sem o perceber, me vi com um pobre velho entregue<br />

aos meus cuidados – e só aos meus cuidados. Senti-me preso ao seu destino, irremissivelmente. E o pior momento foi quando<br />

chegou a hora de deixá-lo. Vi que ele tinha medo de ficar sozinho pelas longas noites insones, mas Pan era orgulhoso; custavalhe<br />

deixar entrever que dependia de alguém – por fim venceu a resistência. E quando comecei a dar a entender que me era<br />

forçoso deixá-lo, infantilizou-se e quase me implorou que ficasse.<br />

Desde essa ocasião começou Pan a tomar profundo interesse por mim, pela minha vida pessoal e meus estudos,<br />

chegando até a me expressar o desejo de reeducar-me. E a primeira coisa que teria eu de fazer – sugeriu – era submeter-me a<br />

disciplina romana; e neste ponto naturalmente me recordou que se o caráter romano desapareceu do mundo, a culpa era nossa,<br />

dos judeus, por termos introduzido o princípio desintegrador dum cristianismo judaizante; ele queria recriar em mim o<br />

indivíduo que fizera a grandeza de Roma. Ouvi-o com demonstração de simpatia, sentindo o calor da amizade e mesmo do<br />

amor (no quanto possível em tal homem) que pela primeira vez conseguia varar as muralhas de pedra em que se encerrava sua<br />

alma.<br />

Mas eu ainda não dera um olhar ao famoso manuscrito, objeto de nossas primeiras conversas. Pan havia saído do<br />

campo e eu não desejava ser o primeiro a voltar ao tema. Era como se o seu interesse se houvesse deslocado. Interpelou-me a<br />

fundo sobre a vida dos judeus na era do Segundo Templo, e espantou-me com o seu conhecimento do assunto. O que dizia está<br />

claro que provinha das fontes judaicas, mas com muitos detalhes e tons de coisa vivida. Mostrava-se perfeitamente ao par da<br />

“oblação dos primeiros frutos” e igualmente dos ritos do Dia da Expiação e do Dia da Água. A mim mesmo me perguntei,<br />

mais de uma vez, onde poderia ter ele obtido aquele conhecimento, assim com minúcias de todo mundo ignoradas. Certa<br />

ocasião inquiriu-me sobre as relações dos judeus com os Sumos Sacerdotes, e falou de Hanan, que tivera os cinco filhos e mais<br />

um genro elevados a essa alta posição. E foi justamente sob a regência de José Kaipha, esse genro que Yeshua de Nazaré<br />

incidiu em condenação – e “o velho não deixou de ter culpa no caso...” acrescentou Pan com um sorriso.<br />

Outra vez, quando por uma noite glacial tomávamos chá com pão branco que eu trouxera, perguntou-me ele de<br />

chofre se existia nas fontes judaicas o rol dos Ciliarcas, ou governadores de Jerusalém instalados na fortaleza Antônia.<br />

“Ciliarcas?”. Exclamei. “Sim, os encarregados da vigilância do Templo”. “Nunca tive noticia de tal rol”. Respondi. Há os<br />

nomes dos Sumos Sacerdotes, transmitidos por Josepho; temos também o dos Procuradores, mas dos Ciliarcas não sei...” E Pan<br />

ainda perguntou se eu encontrara alguma referência ao ciliarca Cornélio; respondi que não; que, ao que sabia, tal nome só<br />

aparece no Novo Testamento aplicado ao centurião de Cesaréia. “E tenho também a impressão de que o nome do centurião de<br />

K’far Nahum era Cornélio”, Pan respondeu: “Não, não. Conheci pessoalmente o centurião de K’far Nahum. Encontramo-nos<br />

muitas vezes. Falo do ciliarca Cornélio, que comandou a fortaleza Antônia e foi encarregado da vigilância do Templo na<br />

regência de Poncio Pilatos”.<br />

Encarei Pan Viadomsky e vi que mudara de aspecto. Tinha o cabelo em desarranjo e os olhos a brilharem<br />

estranhamente, como a emitirem raios febris vindos lá do fundo das órbitas. Ocorreu-me que o homem estava delirando. Tentei<br />

acalmá-lo e sugeri que talvez fosse melhor mudarmos de assunto; ele devia deitar-se e procurar dormir – e levantei-me, como<br />

para deixá-lo. Mas com surpresa minha Viadomsky agarrou-me com aqueles dedos só ossos, tais os dum cadáver, e em severo<br />

tom de comando gritou: “Fique!” Forçou-me a voltar à minha poltrona e, sentado no seu lugar de sempre, do lado oposto, pôsse<br />

a enfitar-me penetrantemente. Seu rosto fizera-se em extremo pálido, com as maçãs como que mais salientes e os olhos em<br />

chama. Assim esteve longo tempo, até que me falou de novo, calmamente, mas com outra voz – voz que me era desconhecida,<br />

imperiosa e sentenciosa.<br />

− Não me conhece, judeu? Olhe para mim. Nunca me viu à frente de minha coorte no pátio interior do Templo,<br />

ali destacada para a manutenção da ordem entre vocês judeus?<br />

Mantive-me calado, e ele:<br />

− Sou Cornélio, o Ciliarca das coortes acampadas na Antônia – Cornélio, o lugar-tenente e o representante de<br />

Pôncio Pilatos em Jerusalém. Responda, judeu! Não me conhece? Não me viu no pátio dos Gentios, lá no Templo, quando<br />

todos fugiam do meu caminho?<br />

Estranhíssima sensação me empolgou. Não era de medo daquele homem, esta claro, sim de piedade e<br />

desconchavo ao vê-lo assim a desvelar o seu mistério. E um profundo interesse quanto à identidade de Viadomsky me reteve<br />

na poltrona; deliberadamente ignorei as possibilidades de conseqüências fantásticas e concordei com ele, como se o estivesse<br />

encorajando a mergulhar ainda mais fundo no incompreensível papel que a sua mórbida imaginação lhe conferia.<br />

− Sim, sim, murmurei. Reconheço-o, sim – Cornélio, da fortaleza Antônia.<br />

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− E é desse modo que se dirige a um homem da minha categoria, judeu? Os seus patrícios de Jerusalém só me<br />

chamavam pelo título – Hegemon Cornélio.<br />

− Sim, Hegemon Cornélio.<br />

Ele encarou-me de novo.<br />

− E não o vi eu? Esse cabelo crespo e tão negro, essa barba nova a emoldurar o rosto pálido – tudo coisas que me<br />

são familiares. Não esteve entre os cabecilhas que ousaram erguer a voz contra o Sumo Sacerdote, contra Pilatos e até contra<br />

Roma, quando estávamos arrastando Yeshua de Nazaré, coroado de espinhos, para a crucificação no Gólgota? Não estava no<br />

meio dos que tentaram romper nossas fileiras afim de libertar aquele rebelde? Não tiveram os nossos duros legionários de sacar<br />

das espadas para mantê-los à distância? Sim! – Eu o reconheço! E reconheço-o, porque mais tarde foi levado à minha presença.<br />

Qual era o seu nome naquele tempo? Jochanan! Sim, Jochanan! O mesmo rosto! Lembro-me como se fosse ontem...<br />

A coisa estava indo longe, mas apesar de ansioso por ouvir o que ele ainda tinha a dizer dominei o meu impulso<br />

de aproveitar do seu delírio para a descoberta do grande segredo. E procurei chamá-lo à razão.<br />

− Pan Viadomsky, Pan Viadomsky, de que está falando? Desperte, isso é sonho...<br />

Eu tinha diante de mim dois olhos muito abertos e terrificados. Mas o despertar daqueles olhos não sobreveio<br />

imediatamente, sim aos poucos, como se uma névoa se estivesse desfazendo; as pupilas, imóveis e recrescentes de fulgor,<br />

como que emergiam dos misteriosos páramos da noite, rumo à realidade. À medida que voltavam à vida, maiores e mais<br />

profundos se tornavam. Era como se Pan Viadomsky estivesse chorando, mas com as lágrimas a caírem para dentro. Seu rosto<br />

parecia avultar, com uma dor incomensurável a transparecer das fundas rugas de sua testa e das olheiras pergaminhentas. As<br />

faces murchas afundaram ainda mais, os ossos do queixo se acentuaram, os bigodes eram como asas fechadas sobre a boca.<br />

Aqueles olhos estavam sobre mim – mas só depois de desanuviados é que me viram. Pan entreabriu a boca para dizer qualquer<br />

coisa que não saiu. E de boca aberta ficou. A dentadura de cima desceu sobre as gengivas inferiores. Faltavam-lhe palavras,<br />

faltava-lhe até a respiração. Senti o esforço com que procurava o ar. Suas narinas se dilatavam. Eu podia acompanhar a entrada<br />

do ar em seus pulmões pelo movimento do nó de Adão naquela garganta de pelancas murchas. Seus dedos se crisparam<br />

convulsivos. Por fim respirou e, a balbuciar, gago de excitação e fúria, inquiriu:<br />

− Está ai?<br />

− Sim.<br />

− E ouviu o que eu disse?<br />

− Sem dúvida.<br />

Pan silenciou por um instante, enquanto me afuroava com olhar cada vez mais penetrante.<br />

− Você não pode nunca mais deixar esta casa.<br />

− Que quer dizer com isso? Perguntei.<br />

− Descobriu meu segredo. Não pode mais sair desta casa.<br />

− Que segredo? Não tive a revelação de segredo nenhum.<br />

Ele achou forças para agarrar-se aos braços da poltrona e erguer-se.<br />

− Asseguro, disse eu, que tudo quanto se passou ficará para sempre selado dentro de mim, pois a ninguém no<br />

mundo direi uma só palavra.<br />

− Esse segredo só poderá ficar bem guardado com sua morte, disse-me ele dramaticamente e (pareceu-me) num<br />

tom falso de atitude assumida e desmascarada. Mas o mais grave foi que se encaminhou na direção da porta.<br />

− Que vai fazer?<br />

− Conservá-lo aqui comigo.<br />

− Que história é essa? gritei e apressei-me a lhe barrar o caminho.<br />

Seus dedos convulsivos agarraram-me.<br />

− Já declarei que vai ser retido aqui!<br />

− Mas que está dizendo? repeti, libertando-me de suas mãos num movimento brusco e empurrando-o, colérico.<br />

Ele vacilou como bêbedo, e teria caído se eu o não amparasse.<br />

− Não pedi que me revelasse segredo nenhum! Gritei. Se o fez, foi de moto próprio. Vá para a cama. Durma, que<br />

a calma voltará.<br />

− Pare! Pare! Para onde vai?<br />

− Embora. Não quero ficar aqui, declarei com firmeza, já de pé na porta. Sinto-me que está mal.<br />

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− O judeu roubou-me! O judeu roubou-me! pôs-se ele a gritar.<br />

Fechei a porta, com medo de que seus gritos despertassem a atenção dos vizinhos; depois tomei-lhe a mão, leveio<br />

até à poltrona, onde o fiz sentar-se. Estava débil como criança doente e não resistiu.<br />

Sossegue.<br />

− Pan Viadomsky, vejo que está doente e precisa de repouso. Juro que guardarei eternamente o seu segredo.<br />

Pan Viadomsky tinha o rosto mergulhado nas mãos.<br />

Fiquei ali ainda dois ou três minutos; depois saí, e entreparei do lado de fora; pude ouvir o choro do velho.<br />

Entrei de novo, fui-me a ele; levantei-o da poltrona e conduzi-o ao leito, onde o deitei e cobri. Pan Viadomsky<br />

ressentiu-se de ver-se tratado como uma criança.<br />

cessado.<br />

Saí de novo e lá fora apressei-me em voltar para casa, resolvido a não vê-lo nunca mais. Nossas relações tinham<br />

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Não me admirei de, três dias depois, receber uma carta de Pan Viadomsky. Em estilo severo e alcandorado,<br />

declarava que embora eu me houvesse conduzido como de esperar da minha raça, e surrupiado o seu segredo, ele acedia em<br />

tratar-me cristãmente e perdoar-me; e eu que fosse ao seu apartamento, pois necessitava de mim para algo importante.<br />

Esta claro que não dei resposta.<br />

Dias depois, segunda carta, diversa da primeira no conteúdo e no estilo. Não falava em surrupiamento nem<br />

perdão. Passava por cima do incidente e metia-se pelo caminho sentimental. A mudança surpreendeu-me; mais ainda,<br />

comoveu-me. Pan declarava com franqueza que se “acostumara” comigo; que nossos encontros tinham-se tornado para ele<br />

uma necessidade, não só cientifica como sentimental. Aquela nossa troca de idéias sempre fora de muita valia no refrescar-lhe<br />

a memória. E propunha que reatássemos as relações. Eu lhe havia provado a verdade do velho provérbio: “Não há regra sem<br />

exceção”. E, de fato, concluiu ele, a própria exceção prova a existência da regra; quanto mais baixo o nível geral duma<br />

sociedade, mais nobres e altas são as exceções individuais.<br />

Acho escusado dizer que também essa carta ficou sem resposta.<br />

Mas certa manhã muito cedo (meu aposento estava escassamente iluminado pela luz do dia, tal o embaciamento<br />

das vidraças com a neve caída durante a noite), fui surpreendido por som de passos na escada – pesados, tropeçados, arrastados<br />

e escandidos de acessos de tosse. A escada levava a uma só porta – a minha, no último andar duma casa de madeira do bairro<br />

judeu. Não me ocorreu o nome de ninguém que pudesse procurar-me àquela hora; e os passos incertos e a tosse não eram de<br />

nenhum meu conhecido. Quedei-me de respiração suspensa e na cama, porque o cômodo era muito desabrigado e estava muito<br />

frio para levantar-me. Esperei deitado, e a espremer o cérebro no vão esforço de adivinhar quem subia. Por fim, uma batida na<br />

porta – e a voz de Pan Viadomsky!<br />

Pedi-lhe que esperasse um momento enquanto eu punha um pouco de ordem no recinto – logo em seguida,<br />

quando abri, caiu-me nos braços o corpo do velho enregelado.<br />

Carreguei-o meio de arrasto até minha poltrona, perto da estufa. Lancei nela papel amarrotado e lenha e fiz fogo.<br />

Seus bigodes e o velho capote de pele estavam vegetados de agulhinhas de gelo. Pan deixou-se sentar na poltrona – um velho<br />

alquebrado, de olhos rubros e entumecidos de quem passou várias noites em claro. Seus dedos ossudos e azuláceos tremiam no<br />

esforço de manter o lenço na boca para abafar os acessos de tosse, e as faces chupadas como que palpitavam ao ritmo da<br />

respiração.<br />

− Que há, Pan Viadomsky? perguntei, profundamente perturbado pelo intempestivo da aparição. Que é que o<br />

trouxe aqui, com um tempo destes?<br />

− Vim porque nós ambos necessitamos deste encontro e minhas cartas não o levavam lá, disse e corrigiu-se logo:<br />

“Eu precisava vê-lo; tenho coisa muito importante a revelar”.<br />

− Pan Viadomsky, aproxime-se mais do fogo. Esta a tremer – está doente...<br />

− Sinto-me bem; vim até aqui para conversarmos sobre aquele assunto...<br />

− Depois, depois. Acalme-se primeiro. Vou aquentar água. Está congelado – e, como ele se aproximasse do fogo,<br />

fí-lo voltar e sentar-se de novo, enquanto eu enchia a chaleira.<br />

− Não vim para o chá, disse ele. Vim para discutir matéria da mais alta importância para ambos.<br />

− Se veio falar sobre aquele assunto, quero que antes de mais nada saiba que tudo quanto ouvi naquele dia já<br />

desapareceu da minha memória. Não ignoro que certos homens bem dotados de imaginação com freqüência se revelam<br />

sujeitos a visões, às vezes no sono, às vezes acordados; mas tais visões não são reflexos desses homens. Encarecidamente peço<br />

que varra a idéia de que estou na posse dum segredo seu. Não houve nenhuma revelação de segredo; houve um sonho em voz<br />

alta do qual já me esqueci completamente – e, preparando-lhe uma xícara de chá, fiz o possível para sossegá-lo. Ele, porém, a<br />

repeliu.<br />

− Não se trata de nenhuma visão mórbida, nem é você nenhum doutor que me possa dar conselhos. O assunto e<br />

mais sério do que supõe. Aquilo que naquela tarde me saiu da boca não é nenhum produto da imaginação em delírio. Sabe<br />

quem sou? Sabe quem esta aqui sentado? Sou o homem que sob às ordens de Pôncio Pilatos, meu superior, e de acordo com<br />

sentença dada pelo Sumo Sacerdote em Jerusalém, dirigiu a execução daquela misteriosa personalidade, cuja natureza até hoje<br />

permanece sem explicação.<br />

− De quem está falando? Que misteriosa personalidade é essa? Indaguei com espanto – e minha mão devia estar<br />

tremendo, pois senti o queimor do chá derramado.<br />

− Se insiste em saber o nome de quem falo, di-lo-ei: Yeshua de Nazaré, ou, como vocês dizem, Jesus Cristo.<br />

− Mas, em nome de Deus, que é que está querendo revelar-me, Pan Viadomsky?<br />

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− Não me faça voltar a este miserável mundo: deixe-me no mundo ao qual pertenço.<br />

− Mas, pelo amor de Deus, decifre-me o que está a dizer!<br />

− E não só dirigi a execução, como o torturei e insultei antes que a morte sobreviesse. Sou o homem que o<br />

espionou e o principal culpado pela sua morte – eu e mais ninguém.<br />

de insônia.<br />

− Pan Viadomsky, isso é delírio mórbido. Vamos, deite-se em minha cama e acalme-se.<br />

− Matei-o, sim, e fiquei a matá-lo durante todos os dias de minha vida, e estou ainda a matá-lo em minhas noites<br />

− Senti-me atordoado. Depois de alguns momentos, Pan Viadomsky pareceu reviver. Emitiu um suspiro<br />

profundo, como se um grande peso houvesse saído de sobre seu coração.<br />

Sobreveio um acesso de tosse, findo o qual, em voz rouca, a trair algo da sua agitação interior, mas já mais<br />

calmo, ele disse:<br />

− Creio que posso retirar-me. Já confiei a um inimigo o meu segredo. Entreguei-me em suas mãos. Faça de mim<br />

o que quiser. Nada mais posso – e devotadamente persignou-se três vezes.<br />

Fiquei sem palavras. Ele, ali sentado ou esmagado, estava como um homem a quem mil ventos furiosos<br />

ameaçam desmembrar. Grande piedade invadiu-me. Eu não sabia que mal realmente o mortificava, eu não podia dar-lhe nome<br />

à doença; mas suas palavras me desvelaram a imensidade dos seus tormentos. Procurei dizer qualquer coisa; as palavras<br />

morreram-me na boca; meus lábios se selaram – e minha compaixão emudeceu.<br />

Foi ele quem me libertou, quando, de súbito, com as minhas mãos nas suas, disse:<br />

− Acabamos de fazer um pacto, você e eu. Estamos amarrados um ao outro pelo segredo que acabo de revelar.<br />

Não nos podemos separar nunca mais, porque já agora nos pertencemos um ao outro. Você é o único homem a quem achei de<br />

necessidade abrir a minha alma opressa.<br />

− Pan Viadomsky, acalme-se. Isto é auto-sugestão. Quando voltar a si há de arrepender-se de ter admitido um<br />

estranho no segredo dessa fantasia criada em seu cérebro. Aquiete-se. Está febricitante; sinto-o no calor das suas mãos. Venha<br />

– venha dormir na minha cama; eu o abafarei com as cobertas. E tome mais uma xícara de chá. Há de fazer bem.<br />

Mas Pan Viadomsky não largava as minhas mãos.<br />

− Esquecer? Esquecer o que sou? Esquecer o propósito da minha vida? O que o destino me reservou? Realmente<br />

crê que o que acaba de ouvir é delírio da minha imaginação? Fantasias do cérebro, como diz? Não sente então que estou a<br />

revelar a minha verdadeira vida? É o que moo e remoo em cada minuto que vivo desperto! O falso é justamente a minha vida<br />

que todos conhecem – essa perpétua máscara. A outra vida, a que vivi lá, essa, sim, é a minha vida verdadeira e eterna. É a em<br />

que mergulho em todos os instantes de solidão. Ouço vozes daquele tempo, chamando-me. À noite, no inferno de insônia que é<br />

a minha cama, vivo a realidade da minha verdadeira pessoa – vivo infindavelmente a vida que é a minha. E então retorno<br />

àquelas cidades antigas, e lhes percorro as ruas, e encontro as caras daquele tempo. Que quer que eu esqueça? Meus estudos da<br />

vida inteira, o que escrevi, as viagens de investigação que fiz, os perigos que defrontei, todas as descobertas de insuspeitadas<br />

fontes, a eterna rebusca nos velhos livros? Por que passo eu dias e dias nas bibliotecas? Por que fujo da luz do sol e da<br />

presença dos homens? E por que me confiei em você, um judeu, meu inimigo? Para tentar esquecer? Você faz parte do meu<br />

segredo! Esteve comigo lá, naquele tempo! Quando olho para sua cara, lembro-me de tudo. Você é, como eu, um ser<br />

permanente em meio dessas criaturas transitórias que se arrastam como insetos pelas ruas; hoje estão elas aqui, amanhã já não<br />

existem. Quem delas saberá daqui a cinqüenta, a vinte e cinco anos, de agora? Mas nós dois somos eternos – eternos no<br />

torvelinho do pó, porque juntos estivemos naquele tempo e juntos vamos viver em todos os tempos, por toda a eternidade!. . .<br />

Deixei-o falar, porque me pareceu que lhe fazia bem; falar, esvaziar-se de tudo quanto nele se acumulara durante<br />

os últimos dias ou – quem sabe? – durante todos os dias e noites insones de sua vida inteira. Conservei-me calado.<br />

− Nada diz, Jochanan? Interpelou-me Pan, com os olhos fitos em mim.<br />

− Que hei de dizer, Pan Viadomsky?<br />

− Por que me dá esse nome falso? Para você eu sou Cornélio, o Ciliarca da fortaleza Antônia de Jerusalém.<br />

− Pois seja: Cornélio. Mas depois vai lamentar-se de que eu o trate assim.<br />

− Por que lamentar? Nada há que lamentar. Nós dois não pertencemos à vida de agora, sim à vida do passado.<br />

Naqueles recuados tempos ainda não haviam nascido as circunstâncias e proibições desta era, que nos movem à degradação,<br />

que nos fazem escolher entre a denegação e a admissão e porisso criam a tristeza. Você é meu contemporâneo; é de minha<br />

família – e ainda mais que isso: é o meu único parceiro de alma. Para todos os mais, para o resto do mundo, eu uso máscara. Só<br />

diante de você eu sou eu mesmo e só de você nada tenho a ocultar. Somos os únicos entes que passamos imutáveis através do<br />

mar do esquecimento. Eis porque o procurei durante toda a minha vida e, encontrando-o, revelei o meu segredo. Eis por que<br />

vou ainda revelar tudo que existe secreto dentro de mim – tudo que deve ser mantido em segredo para o resto do mundo. Vou<br />

descobrir-me e vai você escrever tudo, palavra por palavra, minuciosamente. Porque só através de você posso tornar-me<br />

totalmente eu mesmo. Só quando me encontro com você me torno a verdade acima do tempo. Porisso deixei-me arrastar por<br />

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você e não posso liberar-me. Preciso tê-lo sempre comigo e se não posso amá-lo, tenho de odiá-lo; porque sem você sou pó,<br />

sou o deplorável Pan Viadomsky de hoje, esmagado sob o peso do pecado. E, então, envergonhe-me de Cornélio, o<br />

pensamento do qual me chibateia com o chicote da consciência, mói-me como a mó do moinho. Mas através de você e em<br />

você eu adquiro uma significação, encho-me com a certeza de que fiz o que tinha de fazer: o dever ditou minha conduta.<br />

Através de você e em você eu sinto o orgulho do que fui – o verdadeiro Cornélio. Fale! Quem sou eu? Quem está diante de<br />

você? Não me reconhece?<br />

− Certamente que o reconheço Cornélio! O Hegemon Cornélio, comandante da fortaleza Antônia, diante do qual<br />

Jerusalém treme como folha de árvore. Quando à testa de sua coorte ele passa pelo Pátio dos Gentios, no Templo, a multidão<br />

foge com terror.<br />

Estas palavras acalmaram-no (assim mo pareceu) mais que tudo quanto antes eu dissera. Exerceram o efeito<br />

duma injeção de ópio nas veias dum nicotinômano. Pan voltou à poltrona perto do fogo, exausto, mas aliviado.<br />

− Mas agora, disse eu, venha deitar-se em minha cama e tomar outra xícara de chá; ou então vá para casa e leve<br />

um pedaço daquele pão judeu de que tanto gosta.<br />

− Não antes que me jure pelas sagradas vestes do Sumo Sacerdote, como faziam os judeus de Jerusalém.<br />

− Que quer que eu jure pelas sagradas vestes do Sumo Sacerdote?<br />

− Que virá ver-me todas as tardes para tomar por escrito o que tenho a dizer. Escreverá palavra por palavra, letra<br />

por letra, a narração do que sucedeu naqueles dias. Fixá-la-á como eu ditar, sem interferência de nenhuma outra luz, de<br />

nenhuma outra idade, de nenhuma outra interpretação que os homens foram dando àqueles acontecimentos. Existem muitas<br />

verdades, e há verdade em todas as verdades. A verdade penetra nos corações de mil maneiras – pela espada e pela palavra,<br />

pelas tradições e pela fé. Mas só é verdadeira a verdade que desce âncoras em seu tempo ou no temporal da vida dos seres.<br />

Temos nós dois de sair fora do oceano das verdades aceitas conforme a mentalidade das épocas. Temos de começar dos<br />

começos do que eu e você fomos testemunhas. Você também – eu o reconheço de novo, Jochanan; apossei-me de você e já não<br />

me escapará...<br />

A pressão dos seus dedos nos meus acentuaram essas palavras.<br />

− ... e fixaremos em escrita os acontecimentos e homens insculpidos em nossas almas: de todos, como me vêm<br />

em minhas noites de insônia, meus velhos amigos e meus velhos inimigos – não, velhos não, mas de hoje, de sempre, porque<br />

tudo é eterno e imutável. Promete-me, Jochanan? E seus dedos se crisparam em minha mão como se não quisessem nunca mais<br />

largá-la.<br />

− Sim, Cornélio, prometi, e juro-o pelas sagradas vestes do Sumo Sacerdote.<br />

Pan Viadomsky emitiu um profundo suspiro.<br />

− Mas agora, continuei, acho melhor que volte para casa. Irá descansar e eu aparecerei lá amanhã.<br />

− Não, não amanhã, hoje! Espero-o ainda hoje, à tarde. Há um provérbio corrente em Jerusalém: “O tempo é<br />

curto e o trabalho, longo”.<br />

− Assim seja, Hegemon. Acato a sua vontade.<br />

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A criatura que me defrontava do outro lado da mesa, batida pela luz da lâmpada suspensa, não pertencia à nossa<br />

era. Fora daquele círculo de luz reinava escuridão naquele recinto. Estávamos como que suspensos num infinito universo de<br />

sombra. Aquele rosto! Aquele rosto dum palor seco de pergaminho não sugeria um ser vivo meu contemporâneo, mas um<br />

fantasma. Passado e presente fundiam-se em seu cérebro e essa fusão transparecia em tudo nele. Na narração que fez falava às<br />

vezes no passado, às vezes no presente, como se os fatos ainda se estivessem desenrolando. Ponho aqui as suas palavras<br />

exatamente como as ouvi.<br />

Sou o comandante da fortaleza Antônia. Meu título aqui é o de Ciliarca; os judeus chamam-me Hegemon. A<br />

importância e delicadeza da tarefa à mim confiada – manter submisso um povo estranho e rebelde como os judeus – exigiu a<br />

nomeação dum comandante que fosse a um tempo soldado e bom administrador. Também desempenhei as funções de oficial<br />

de ligação e estou adido ao governo político de Pôncio Pilatos, com quem vim para este país selvagem. Mas no desempenho<br />

de minhas obrigações, fiz numerosas viagens entre Cesaréia e Antióquia, onde visitei o legado Vitelo, nosso governador e<br />

chefe. Também foi a serviço que me aproximei dos Tetrarcas. Estive em Cesareia Philippi e em Tiberias. Certa ocasião<br />

alonguei-me até o tetrarcado da Galileia onde Herodes Antipatro mantém a fortaleza de Machaerus numa montanha rochosa<br />

além do Mar Morto, rodeada de um oceano de areias. Neste lugar presenciei uma cena muito em harmonia com aquele<br />

ambiente de calor e ventos do deserto. Falarei do caso na ocasião oportuna...<br />

Meu conhecimento com Pôncio Pilatos data de quando servíamos os dois nas legiões de Germânico, então em<br />

guerra contra os germânicos. O posto de Pilatos não era superior ao meu, mas já vinha de mais tempo. Centuriões ambos, e<br />

com boas perspectivas de promoção. Servi durante toda a campanha de Germânico, tomei parte nas mais ferozes batalhas,<br />

acompanhei-o nas marchas mais penosas, ajudei-o a varar as florestas, as escuras e retrançadas florestas daqueles selváticos<br />

páramos dos germânicos. Ainda tenho no corpo, para glória de Roma e honra de César, as cicatrizes dos ferimentos feitos pelas<br />

flechas e dardos emitidos do escuro das selvas. Eu estava com Germânico ao tempo em que naveguei por aquele desconhecido<br />

rio de águas tão escuras como as florestas marginais; estava com ele quando a tempestade nos levou às praias desconhecidas<br />

onde as hordas guerreiras nos aguardavam. Às vezes nosso comandante nos conduzia através do subosque úmido e sombrio em<br />

que a morte espiava de todos os lados – oculta no palude traiçoeiro, de superfície coberta de musgos mas capaz de engolir<br />

legiões, ou suspensa dos galhos das árvores, donde um machado de guerra podia de repente projetar-se e remeter um soldado<br />

romano para a noite eterna. Não obstante fomos varando através da região desconhecida, e se não fosse o ciúme do astuto<br />

César Tibério, sempre invejoso das vitórias de Germânico, teríamos levado as águias de Roma pelas florestas negras a dentro<br />

até plantá-las entre os povos do leste, dotados de chifres e de um só olho na testa.<br />

De volta à Roma com as nossas legiões, fomos alcançados pelo desvalimento em que incidira Germânico. Mas<br />

ainda nesse transe Pilatos não sofreou as suas grandes ambições. Sabendo que havia vagado o cargo de Procurador da Judéia,<br />

pôs-se em campo para obtê-lo. Não ignorava ser a Judéia uma província tediosa e pequena, com uma população rixenta e em<br />

eterna inquietação; raro o mês em que não ocorria lá algum levante. Mas também não ignorava que os Procuradores da Judéia<br />

voltavam ricos. Grato, o Procurador removido, enchera-se de riquezas do dia para a noite. A gente judaica tinha o hábito de<br />

disputar entre si o cargo de Sumo Sacerdote – e era de fato uma admirável posição! O ouro de todos os judeus do mundo<br />

encaminhava-se para a tesouraria do Templo. Quatro famílias tinham o direito de desempenhar o alto cargo, e quando<br />

sobrevinha vaga travava-se, entre elas, lutas. Irmão traía irmão, genro traía sogro. Anualmente punha Grato em leilão, entre as<br />

quatro famílias, o cargo de Sumo Sacerdote, e deixava que livremente disputassem a corrida. Quando Pilatos se certificara de<br />

que era a Judéia uma vaca de inesgotável úbere, dispôs-se firmemente a não ceder o passo a ninguém na disputa da nomeação.<br />

Cedo percebeu que em Roma só haviam duas escadas: a da lisonja e a da traição.<br />

Na corte de César Tibério estava sendo “educada” a sua enteada Cláudia. . . Cláudia, filha de Juliana, mulher de<br />

Tibério. Depois de seu terceiro casamento, com Tibério, esta mesma Juliana entregou-se a tais orgias com os escravos da corte<br />

de seu pai Augusto, então no trono, receou escândalo e baniu-a de Roma. Foi no exílio que Juliana deu à luz Cláudia, produto<br />

de um qualquer cavaleiro romano. Ao vê-la com treze anos, Juliana enviou-a ao esposo Tibério para ser “educada” – Tibério<br />

acabava de subir ao trono, depois da morte de Augusto. Aquela dissoluta e astuta raposa, de olhos sempre erguidos para o céu,<br />

fingia-se de santo; e quando o Senado pensou em conferir-lhe o título de “Pai da Pátria”, piedosamente recusou-o; e simulou<br />

que fora a contragosto que assumira o governo supremo do Império. Escravo da patuleia romana, jamais com ânimo de arrostála<br />

e sempre a iludir a aristocracia, não passava dum devasso. Mórbida luxúria se estampava em seu rosto – no lábio inferior<br />

caído, na mandíbula estreita; tudo nele lhe dava o ar de ave de rapina astuciosa e presa das paixões mais baixas. Ninguém em<br />

Roma jamais soube o que se passava na cabeça daquele César; nem mesmo os seus mais íntimos nunca tiveram a certeza do<br />

modo como iria ele agir, nem que trapas lhes estava ele preparando, como no caso do nobre Germânico – tal a dissimulação de<br />

Tibério. E uma de suas paixões era manter na corte uma “escola” para meninas, de que ele mesmo era o “professor”... Não é<br />

difícil imaginar a forma que ia sendo dada à alma pura de Cláudia, posta sob a direção de Tibério. A corrupta Juliana havia<br />

mandado para lá a menina exatamente com esse propósito, na esperança de que o régio presente a restaurasse no favor do<br />

César seu esposo. Muito naturalmente Roma inteira sabia da história, sempre sussurrada nas altas rodas sociais. Imponentes<br />

senadores em sessão cochichavam entre si detalhes do “métodos educativos” de Tibério, desse modo amenizando a ingestão<br />

dos tediosos e longos discursos políticos. E para as lascivas matronas romanas que precioso material de mexericagem era<br />

aquilo! Quando se juntavam nas varandas de suas vilas ou nos jardins, afastavam as escravas – não que tivessem vexame de<br />

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abordar tais assuntos na presença delas, mas de medo da delação – e entregavam-se, deliciadas, à troca de informes sobre a<br />

“escola” de César.<br />

Está claro que nenhum nobre romano, dotado dum grão de respeito próprio, se abaixava a tomar o que caia da<br />

mesa de Tibério. . . A aristocracia até se arrepiava à idéia de que de um momento para outro o velho César escolhesse algum<br />

dos seus membros para esposo da pequena Cláudia, com o fim de restaurar-lhe, a ela, a reputação. E foi quando, de súbito,<br />

apareceu um homem que, em vez de arrepiar-se com a perspectiva, entrou a deseja-la: Pôncio Pilatos.<br />

Pilatos deu de manifestar terna e respeitosa inclinação pela pequena Cláudia. Ficava horas entre as colunas do<br />

palácio imperial no Palatino, ou na porta do Circo Máximo, a espera de que os escravos passassem com a liteira da menina, de<br />

saída ou de visita a um templo. Aos ourives de Roma encomendou os mais bem trabalhados braceletes, não só para os pulsos<br />

de Cláudia como para o pescoço do seu papagaio favorito. Também recorreu aos advinhos e às feiticeiras caldaicas, tão<br />

abundantes em Roma, e ainda aos encantadores de serpente de Alexandria; pagava-lhes para ficarem junto às portas do palácio<br />

e gritarem, quando a pequena Cláudia aparecia, que um cavaleiro romano de origem hispânica estava pelos astros destinado a<br />

ser seu esposo.<br />

Mas o maior auxílio que Pilatos obteve na sua pretensão adveio dos judeus localizados em Roma.<br />

A existência de uma colônia judaica de bastante importância já era notória em Roma. Como havia essa gente se<br />

estabelecido lá? Pergunta ociosa! Onde foi que não se infiltraram os judeus? Era voz geral que grande número de prisioneiros<br />

judaicos fora trazido à Roma por Pompeu. A unidade dessa gente, característica racial já muito acentuada, permitiu-lhes que<br />

fossem comprando a liberdade; e no tempo de Júlio César chegaram a representar um papel importante. Como todos os<br />

grandes homens, era Júlio César dotado de caprichos, um dos quais voltado para os judeus. De tal modo estimulou-os a<br />

excessos, que o grande Cícero achou base para denuncia. No tempo de Augusto o número dos judeus aumentou, e agora estava<br />

Roma com mais judeus do que nunca. Quando começaram a extorquir dinheiro das matronas em benefício do Templo, Tibério<br />

expulsou-os de Roma, mas pouco depois todos voltaram. A verdade manda dizer que não eram tão numerosos quanto visíveis.<br />

Apareciam muito. Apinhavam-se no fórum em todas as reuniões públicas; e se um orador por eles favorecido falava, a agitação<br />

dessa gente era tal que a plebe romana se via contaminada pelo entusiasmo. Mas se era um orador inimigo que ocupava a<br />

tribuna, oh! A onda de tossidas, espirros e assobios ininterruptos! E ninguém se sentia com ânimo de atacá-los publicamente. O<br />

próprio Cícero, tão grande, tinha medo deles; quando enunciava algo de mau sobre os judeus, abaixava a voz e falava como em<br />

aparte... Que cena quando um dos seus favoritos entrava em triunfo pelas portas de Roma e se dirigia ao Capitólio, ou quando<br />

um dos seus sustentáculos morria! Que música de lamentações invadia a cidade! Lembro-me de quando recebiam uma<br />

deputação judaica vinda de fora, ou um dos seus chefes de visita à cidade. Roma dava a idéia de totalmente povoada por<br />

judeus. As ruas flamejavam de alegres trajes nacionais, feitos para a ocasião; eles conduziam em parada seus rolos de<br />

pergaminho, ou as “Escrituras”, e a atoarda dos cantos de júbilo ensurdecia. Eu me admirava de que as autoridades não<br />

interviessem. Mas isso foi nos tempos de Augusto, um imperante sempre atento às tradições de Júlio César, o conferidor de<br />

privilégios aos judeus. Nesse reinado eram os judeus os donos de Roma.<br />

A mais perniciosa influência judaica em Roma vinha das judias. Insinuavam-se na mais alta sociedade e<br />

proporcionavam às matronas romanas filtros de amor de receita secreta, amuletos e óleos preciosos; muito hábeis de língua,<br />

tornaram-se às ocultas conselheiras das altas rodas sociais. E justamente com os filtros de amor iam elas introduzindo nos<br />

palácios romanos a sua fé religiosa, proclamando a grandeza de seu Deus, cantando as glórias do Templo de Jerusalém e<br />

instilando nas matronas a crença da realização de todos os sonhos para os que faziam donativos àquela instituição. As<br />

mulheres sempre foram as propagadoras das crenças e cultos estrangeiros na alta sociedade. Deixam-se arrastar pela<br />

instrumentalidade exótica – os incensos, os milagres e outros truques de invenção sacerdotal. Oh, as judias conquistaram mais<br />

de uma matrona romana, puseram-nas contra os deuses nacionais e transformaram-nas em adoradoras de Jeová. Perfeita praga,<br />

puro castigo do céu para a cidade imperial, essas insinuantes mulheres judaicas!<br />

Entre as provedoras de drogas, perfumes e ritos da religião dos judeus uma houve de grande popularidade. A<br />

“Negra Hannah”, assim chamada por aparecer envolta em místicos véus negros, como vestal. Declarava ter feito voto de que<br />

enquanto o mar a separasse do Templo de seu Deus, não usaria ela outra cor no vestuário senão aquela. Destacava-se das<br />

demais judias pela sua penetração, pela beleza e habilidade. O fino véu que lhe velava o rosto não escondia de todo o moreno<br />

da pele, nem os grandes olhos negros. Hannah tornou-se logo a favorita das mais altas damas da aristocracia, e tinha fama de<br />

inesgotável em misteriosas receitas trazidas do Oriente, infalíveis na exasperação do amor. Mas na verdade a eficácia da ação<br />

de Hannah residia na sua inteligência e no seu conhecimento da psicologia humana. Tinha o espírito lúcido como o sol, e tanto<br />

os homens como as damas não lhe dispensavam o conselho. Também eu tive ensejo de tratar com ela, mas isso mais tarde,<br />

quando estacionei em Jerusalém e em circunstâncias muito diferentes.<br />

A Negra Hannah desempenhou papel de algum vulto na capital do Império pelo fato de tantas matronas a<br />

consultarem para solução de casos amorosos. Aconselhava-as, ensinava-lhes como agir. Tinha a compostura serena, sabia<br />

ouvir com paciência, falava pouco, uma palavra agora, uma fina observação depois, tudo com tal habilidade que a matrona<br />

consulente não percebia a hábil insinuação daquele pensamento alheio ao seu, e atribuía a si própria o que era com tanta manha<br />

sugerido. E assim ia ela, com sua frequentação dos mais proeminentes lares romanos adquirindo iniciação na trama interior da<br />

política. Muitas vezes entrava na posse de fatos ignorados até dos próprios senadores. Gente bem informada tinha Hannah<br />

como agente do príncipe judeu Agripa, que a enviara à capital afim de predispor para a sua causa certos altos elementos<br />

romanos.<br />

Hannah breve conquistou a confiança da pequena Cláudia, para a qual passou a fornecer perfumes, poções e<br />

pomadas. Corre que exerceu má influência na mente da menina, inoculando-a com o confuso misticismo de sua religião,<br />

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ensinando-a, por exemplo, que Deus ia mandar ao mundo um Messias para a elevação do povo judaico. Essa mesma funesta<br />

influência exerceu sobre muitas matronas e em particular sobre uma famosa pela beleza e muito perseguida por todos os<br />

senadores e generais – certa Pompéia, que mais tarde se tornou imperatriz e secretamente se converteu à fé judaica.<br />

Negra Hannah entrou a ajudar Pilatos.<br />

Diz-se que Pilatos lhe fez uma promessa bem definida: se ela o ajudasse a tornar-se o Procurador da Judeia, ele<br />

trataria os judeus com especial consideração. Restituiria, por exemplo, as sagradas vestes do Sumo Sacerdote, então retidas da<br />

fortaleza Antônia; outros favores concederia, mas esse a todos sobrelevava, já que os judeus consideravam tais vestes como<br />

caídas do céu. Em troca teria Hannah de fazer que a pequena Cláudia se apaixonasse por Pilatos.<br />

Mas não era isso o bastante para a obtenção do cargo; não passava dum começo. O astuto César Tibério<br />

detestava a lisonja; não era o melhor meio de predispô-lo. Só a ação o movia, e o alto cargo impunha feito de especial<br />

qualidade.<br />

Não tardou a Pilatos oportunidade para revelar a sua devoção ao César e vencê-lo. Germânico, o general caído<br />

em desvalimento, fora para Alexandria a conselho de seus antigos companheiros de armas. Pôncio foi dos que mais insistiram<br />

para que Germânico se retirasse de Roma, preferivelmente para a grande cidade de Alexandria, esse campo de ação que em<br />

Roma Tibério lhe sonegava; e por sugestão de Pilatos corroborei nos mesmos argumentos. “Faça bom uso da sua popularidade<br />

no Império enquanto a tem”, dizíamos nós; “a sua fortuna jaz fora dos muros de Roma”. E insistíamos: “Alexandria é o campo<br />

de treino dos grandes romanos”. “Sim”, concordava Germânico, “mas há o caso de Pompeu e Antônio. E o próprio Júlio César<br />

teria sido enleado nas teias de Alexandria, se não fosse Herodes...”<br />

Continuamos na catequese e por fim Germânico entrou na rede que o astuto Tibério lhe havia preparado:<br />

Alexandria, onde, como se sabe, foi envenenado pelo Governador da Síria – por ordem de Tibério. Quando a notícia chegou à<br />

Roma, a plebe veio para a rua e exigiu a restituição de Germânico. O imperador, covarde por natureza como todos os traidores,<br />

amedrontou-se, porque jamais previu que aquela morte provocasse tanto ressentimento. E procurou limpar-se da culpa por<br />

meio da imponência do funeral. Excedeu-se em lamentações, mas nesse mesmo momento, antes que a terra cobrisse o corpo do<br />

general envenenado, Pilatos fazia circular entre os senadores e a plebe o rumor de que Germânico estivera conspirando para<br />

arrancar o Império das mãos de Tibério e para esse fim reunira um exército no Egito e na Ásia. Muito perigoso para Pilatos<br />

fazer aquilo naquele momento, e tinha ele de proceder com as maiores cautelas; o sentimento do povo era forte, e só aqui e ali<br />

podia Pilatos encontrar ouvidos receptivos para o seu veneno. Mas a resolução valeu-lhe. Chegou a promover a falsificação de<br />

documentos comprobatórios de que Germânico tentara arrastar-nos, a ele e a mim, na sua conspiração. Levou-me diante de<br />

Tibério para testemunhar que Germânico me contratara para alistar soldados na Ásia. E foi bem sucedido; conseguiu limpar a<br />

testada de Tibério, embora apisoando o nome e a reputação do herói, seu próprio comandante, o general que nos levara, a ele e<br />

a mim, através das negras florestas da Germânia, rumo a gloriosas vitórias para Roma.<br />

A recompensa de Pilatos não tardou a vir. Meses depois, quando a fúria da plebe já estava amainada à força de<br />

sangue derramado na luta dos gladiadores – tudo, está claro, promovido com esse fim pelo Imperador – o casamento de Pilatos<br />

com a enteada de Tibério, foi feito com grande pompa no templo de Diana.<br />

Depois da cerimônia, quando ia o noivo entrar na liteira de sua jovem noiva, teve o caminho barrado pelo<br />

Imperador. Em vez da esposa recebeu um rolo de pergaminho com ordem de seguir imediatamente para Cesaréia e daí para<br />

Jerusalém, afim de assumir o cargo de Procurador.<br />

− E minha mulher? indagou o atônito marido.<br />

− Por enquanto fica na corte. Bem sabe que não é costume conduzirem consigo as esposas os procuradores e<br />

generais em comissão. Talvez mais tarde eu a mande seguir, respondeu a velha raposa, com um sorriso cruel em seu lábio<br />

caído.<br />

Quando Pilatos foi apresentar-lhe as despedidas, deu-lhe Tibério as últimas instruções.<br />

− Creio que sabe que não gosto de mudar meus homens. E, a razão é que quando os coloco em qualquer país,<br />

para ele se atiram como moscas famintas sobre um corpo; e as moscas só se tornam calmas e pacíficas depois de abarrotadas<br />

de sangue. Procure agir de modo que eu não envie para a província da Judéia uma nova mosca faminta...<br />

Ao partir para a Judéia, Pilatos levou-me consigo, em virtude da nossa velha amizade. Recebi o posto de<br />

principal conselheiro do Procurador, oficial de ligação e comandante da fortaleza Antônia, essa sentinela do Templo de<br />

Jerusalém.<br />

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Em obediência às ordens do César embarcamos para Cesaréia, onde nossa estada foi curta, e de lá rumamos para<br />

Jerusalém. Afim de tornar mais imponente a nossa entrada, agreguei à comitiva uma coorte da guarnição de Jericó; outra veio<br />

ao nosso encontro lá da fortaleza Antônia, com apêndice de cavalaria germânica; e com Pôncio Pilatos à frente fizemos a nossa<br />

entrada em Jerusalém. Atendendo aos privilégios dos judeus, ordens especiais foram dadas por Pilatos para que as coortes<br />

velassem na cidade as águias e outras insígnias, os feixes de flechas e o retrato do Imperador! Essa crime de lesa-majestade nos<br />

espantou. Ocultar os emblemas de Roma, as visíveis insígnias de nossos triunfos e glorias, em atenção a um pugilo de judeus?<br />

Por toda parte no mundo as legiões orgulhosamente ostentavam à luz do dia esses emblemas, e nações inteiras as recebiam<br />

com gritos de admiração e respeito – e ali, nas portas de Jerusalém, tínhamos de ocultá-los!<br />

Mas que podíamos fazer, nós soldados? Era ordem. Tínhamos de cumpri-la. A religião dos judeus recebera<br />

reconhecimento oficial em Roma, e fazia parte da estratégia de Roma assegurar aos bárbaros plena liberdade religiosa. O divo<br />

Augusto confirmara os privilégios dos judeus, estabelecidos por Júlio César; e Tibério mostrava-se escrupuloso na observância<br />

das leis e costumes vindos de seu predecessor no trono. Nada podíamos fazer! Mas onde estavam, perguntei a mim mesmo, as<br />

delegações do país e da cidade, onde os representantes das autoridades locais, civis e religiosas, os anciãos e legisladores, que<br />

deviam receber o grande representante de Roma, o deputado de César, o Procurador da Judéia? Em vão esperamo-los na porta<br />

Hebron – e vi o rosto de Pilatos empalidecer de cólera. Por fim apareceu, vindo ao nosso encontro um bando de judeus em<br />

vestes brancas, alguns com a cabeça coberta de chales, alguns com altos penteados no estilo da Caldeia, e outros com barbas<br />

encaracoladas à moda persa. O chefe era um velho de comprida barba branca – de nome Hanan, como depois vim a saber,<br />

sogro do Sumo Sacerdote reinante e anterior ocupante do posto. Esse velho passava como amigo de Roma e fizera-se o<br />

representante oficial do Sumo Sacerdote nas recepções oficiais. Muito tenho a dizer de Hanan nesta história, o qual não só<br />

sabia conservar-se no poder, como habilmente manobrar o próprio Procurador. Aqui apenas direi que dentre os notáveis de<br />

Jerusalém, só ele veio receber os romanos na porta da cidade. Os demais do bando, sem exceção, eram cabeças de palha,<br />

alugados para a degradante tarefa de saudar Roma. Foram escolhidos apenas pela bela estampa e as longas barbas; na realidade<br />

não representavam coisa nenhuma. Não havia entre eles nenhum mestre da lei, nenhum de alguma distinção, fosse qual fosse.<br />

Se figuravam também dois ou três “notáveis”, eram figuras menores do Sanhedrim, pertencentes ao circulo de relações de<br />

Hanan – saduceus. Hanan sempre encontrara dificuldades em reunir uma deputação decente para as celebrações oficiais<br />

romanas, e recorria a meros figurantes; do mesmo modo, em suas práticas religiosas, os judeus alugavam indivíduos para a<br />

dúbia honra de ler a seção das Maldições das Escrituras Sagradas...<br />

Mas tudo isso só iríamos saber depois. Naquele momento a nossa impressão foi de que os maiores notáveis de<br />

Jerusalém, os mestres e os eruditos, tinham vindo nos saudar em nome da cidade. As ruas estavam desertas, como em tempo de<br />

peste, mas o apisoamento do pó do chão dizia que de pouco haviam estado cheias de gente – o bulício como que ainda pairava<br />

no ar. Súbito, todos sumiram, como se grande mão os varresse, ou o anjo da morte lhes desse asas de terror. Desertas as<br />

arcadas das residências nobres. As tendas tinham fechado as portas, mas os boiões de azeite e mel ficaram fora – muito<br />

pesados para serem recolhidos à pressa. Não se via vivalma. Em certo ponto, um vendedor de objetos de cerâmica deixara toda<br />

a sua tralha na rua e sumira-se. Nossos soldados marcharam por cima daquilo, tudo reduzindo a cacos. Em outro ponto demos<br />

com asnos carregos de odres de vinho e bilhões de azeite, mas ali largados ao léu; seus condutores tinham fugido. Na rua das<br />

Especiarias os moinhos não rodavam, sementes e raízes jaziam sobre as mesas, mas ninguém por perto. O mesmo na rua dos<br />

Tecelões. Panos de lã e linho esticavam-se nos teares, mas ninguém os atendia... E foi assim que marchamos pelas ruas sem<br />

gente, duma cidade abandonada – mas de trás dos altos vedos das colunas ou cortinas, chegava-nos odioso o murmúrio da<br />

multidão excitada, como das ondas em prenúncio de tempestade... De vez em quando vislumbrávamos através das rótulas<br />

movimento de gente, e mesmo o fulgor de olhares hostis em nossa direção. E não havia dúvida que milhares de olhos ébrios de<br />

ódio nos seguiam. E após a nossa passagem ouvíamos o bulício da vida retornando à cidade. Todos voltavam...<br />

Nossa estada em Jerusalém deu-nos a medida do que esperar de seus habitantes. O toque de nossas trombetas<br />

morreu sem repercussão naquelas ruas desertas. E por entre paredes mudas que abrigavam o inimigo oculto, marchamos até a<br />

parte mais alta da cidade. Ali a população se mostrou mais amistosa; víamos caras risonhas nas janelas; à sombra das arcadas<br />

grupos alegres nos saudavam: e por fim chegamos a um sitio relembrativo do Monte Palatino em Roma.<br />

Imaginei que fosse ali, a residência dos reis, príncipes, sumos sacerdotes e nobres judaicos, tanto nos espantou o<br />

aspecto duma construção antiquada, com poderosas torres, em estilo que não era o local. Mas não se tratava dum palácio, sim<br />

duma fortaleza feita de enormes blocos de pedra embutidos uns nos outros, e tão maciça que dava idéia de coisa<br />

espontaneamente brotada da terra. Colunas jônicas se perfilavam junto às paredes como as imóveis sentinelas da misteriosa<br />

construção. Nem janelas ou rótulas, nem seteiras ou balcões, vinham-lhe quebrar a severidade exterior. Unicamente no topo da<br />

entrada em arco havia um rótula de pedra em forma de coroa, com ponto de espia; e depois vinha a torre cônica que afuroava<br />

os céus. Era uma das mais altas estruturas de Jerusalém; e, como depois vim a saber, fora um palácio real do tempo dos<br />

asmoneus; e mesmo em meu tempo, quando um dos tetrarcas ou príncipes herodianos vinha a Jerusalém, era ali que se<br />

hospedava. Em redor dessa torre dos asmoneus, palácios e mais palácios emergiam do solo, abrigados por ciprestes e cintados<br />

de muralhas. O mais importante de todos era o do Sumo Sacerdote ou, como diziam, “a Torre da Casa de Hanan”. Tive ensejo<br />

de passar horas em seus agradáveis jardins e de banhar-me em suas piscinas – o que muito atenuou a tristeza de minha estada<br />

na capital judaica.<br />

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Alem dessas torres e palácios ainda havia fileiras de imponentes edifícios. A Casa do Conselho de Jerusalém,<br />

com os arquivos nacionais, confinava com a ponte que ia da parte mais alta da cidade à praça do Templo. De grande distância<br />

já tínhamos a visão amiga e familiar dos grandes teatros construídos por Herodes nas linhas do Circo Máximo – e aquilo me<br />

valia por um saudoso eco de Roma. E como detestavam os judeus esses grandes teatros circulares à moda romana! Cada vez<br />

que por eles passavam, vinham-lhes preces lá ao seu Deus, pedindo que nunca fossem chamados a sentar-se lá ou a visitar os<br />

templos das deidades olímpicas. Que miserável ignorância! Em outro ponto direi das minhas observações sobre a intolerância<br />

dessa gente.<br />

A parte superior da cidade era cercada de muramento espacejado de torres. Havia as três que o grande Herodes<br />

erguera em memória dos entes que mais amou – seu pai, seu irmão Feisal e sua esposa Míriam. Tais estruturas não eram<br />

propriamente torres, sim enormes construções com muitos subterrâneos, cárceres, quartéis e senzalas para soldados e escravos,<br />

acomodações para servos e hospedes. A mais interessante e magnífica do grupo era a Torre Míriam, dedicada à memória da<br />

esposa que Herodes fez executar por força do ciúme. Como para melhor recorda-la, o gracioso e nobre palácio sugeria linhas<br />

femininas. A Torre Míriam, bem como, os demais palácios, era feita da mesma pedra sobre que jazia Jerusalém, mas modelada<br />

de modo a lembrar as curvas dum vaso grego. Herodes pusera na pedra toda a sua inútil saudade da esposa morta. A fachada<br />

maciça compunha-se duma gigantesca plataforma acima da qual se erguia a torre cônica em forma de seio de mulher. Perto da<br />

Torre Míriam, o majestoso palácio de Herodes era como um Hércules fechando a série dos palácios atorreados. Uma torrente<br />

de estruturas de pedra, de colunas de mármore, escadarias, guaritas de sentinelas, num derrame para oeste até alcançar as<br />

muralhas da cidade. Nós não ignorávamos que o palácio de Herodes era o de maior esplendor em Jerusalém; rodeado de<br />

colunas coríntias, podia estar situado no coração de Roma a competir com o melhor Fórum de Augusto. Era a sede oficial do<br />

Procurador quando em Jerusalém; e, bem equipado de uma coorte de legionários, constituía o nosso ponto estratégico de maior<br />

importância na cidade.<br />

Da sua liteira Pilatos deu ordem para que prosseguíssemos na marcha, através da ponte que ligava os altos com a<br />

praça do Templo. Mas antes de atravessarmos a porta que abre para a misteriosa área desse Templo, sobre cujas riquezas e<br />

santidade eu tantas coisas ouvira, tivemos de passar por um edifício de grandes proporções, encravado na muralha que rodeia o<br />

Templo. Do teto dessa estrutura erguia-se uma torre com domo no topo, tudo muito relembrativo dum templo de Diana – só<br />

faltavam as colunas. Era um palácio construído de blocos de pedra engenhosamente embutidos, e funcionava como tribunal de<br />

justiça, ou o Sanhedrim. O verdadeiro Senado dos judeus, como depois me disseram. E por fim encontramo-nos no meio de<br />

uma opulência ou magnificência que nos surpreendeu.<br />

Nossa procissão militar havia entrado no primeiro pátio do Templo, denominado Pátio dos Gentios, porque ali<br />

ainda eram admitidos os não circuncisos. Se o lugar das torres podia ser relacionado com o Monte Palatino, aquele Pátio dos<br />

Gentios bem merecedor se mostrava do nome de Fórum de Jerusalém. Tinha para essa cidade a mesma função do nosso Fórum<br />

em Roma.<br />

Eu nunca supus que dentro das maciças muralhas em redor do Templo houvesse tanta agitação como a que se me<br />

deparou; era ali que a verdadeira vida de Jerusalém se espelhava. Encontramo-nos entre dois renques de arcadas com colunas.<br />

O trecho que ia até a muralha exterior comportava quatro renques de colunas coríntias, chão de mosaico e forro de cedro. Por<br />

entre inúmeros balcões, tendas e mesas de cambistas enxameava a multidão humana, variegadíssima. Ao longo da linha de<br />

colunas beirante ao muro do pátio interior do Templo, estendia-se um verdadeiro labirinto de varandas com capacidade para<br />

abrigar gente inúmera – e na gente que de lá nos espiava sentimos o inamistoso do olhar. Não tivemos tempo de bem apreender<br />

o que nos rodeava; seguíamos com os olhos postos na frente, rumo aos quatorze degraus de mármore que barravam a<br />

aproximação da entrada interior do Templo.<br />

A porta estava aberta, mas atravessada por uma corrente de ouro da qual pendiam fragmentos duma águia<br />

quebrada. Essa águia simbolizara outrora o poder de Roma e ali fora colocada por Herodes o Grande em honra ao César, mas<br />

havia sido despedaçada por um judeu fanático. Como castigo Herodes castigou os judeus com um massacre e restaurou a águia<br />

– mas os judeus já a haviam de novo removido. O sangue ferveu-nos nas veias diante desse crime de lesa-majestade, e foi com<br />

sentimentos em que se misturavam a cólera e a dor que nos aproximamos dos catorze degraus, onde nos esperava uma<br />

delegação com o Sumo Sacerdote à frente.<br />

Não trazia as suas vestes oficiais, o Sumo Sacerdote, sim um manto que o envolvia da cabeça aos pés, de tecido<br />

de prata rebrilhante – símbolo apenas do seu poder civil. Era homem de alentada estatura, como o sogro; e também, como o<br />

sogro, usava a barba bipartida e mais encaracolada que os outros. Tinha na cabeça uma tiara e na testa um diadema; mas o que<br />

acima de tudo acentuava a sua aparência eram os pesados cachos da cabeleira, tecidos com tão extraordinária arte, tão<br />

delicados e mimosos, que o conjunto dava idéia do produto dum maravilhoso tear. A comitiva de seus seguidores não era<br />

grande e nela vimos poucos sacerdotes, os quais se distinguiam pelas vestes brancas, calças e túnicas, cintos coloridos e o que<br />

lhes cobria a cabeça. Mais tarde soubemos que eram seus genros e altos oficiais da administração, tesoureiros e<br />

superintendentes.<br />

O Sumo Sacerdote pediu desculpas a Pilatos de não se ter apresentado com séquito maior, como era de praxe na<br />

recepção dum Procurador Romano. Explicou que estavam num dia de muito serviço no Templo. Os judeus da Babilônia, da<br />

Pérsia e do norte da África, haviam remetido uma forte quantidade de gado para os sacrifícios, de modo que os sacerdotes<br />

estavam intensamente ocupados na faina sagrada. Em compensação, disse, comparecera o mais alto representante do Templo<br />

depois dele, um antigo Sumo Sacerdote, e todos os outros altos funcionários. Esses, os filhos de Hanan e seus genros,<br />

representavam não só o Templo e o Sacerdócio como também a alta justiça do Sanhedrim. Também aludiu a mais dois ou três<br />

homens, que apresentou como importantes intérpretes da lei e grandes mestres. Eram amigos dos romanos – saduceus<br />

desejosos da luz de Roma e da paz com os Césares.<br />

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O carnudo nariz de Pilatos caiu: inspecionou rapidamente o grupo e disse:<br />

− Vejo que sim. Tudo depende da boa vontade.<br />

− Dum lado pelo menos a boa vontade existe, respondeu o Sumo Sacerdote.<br />

− É necessário que os fatos o provem, tornou Pilatos – e mandou que os corneteiros dessem sinal de continuação<br />

da marcha. Começamos a subir os degraus conducentes à porta do Templo.<br />

Herodes.<br />

prosseguiu.<br />

O rosto do Sumo Sacerdote empalideceu sob a rebrilhante tiara.<br />

− A residência do Procurador é na cidade! Exclamou ele terrificado e apontando para fora. É no palácio de<br />

− Sei, respondeu Pilatos, mas minha idéia é passar a noite com minhas tropas na fortaleza Antônia – e a marcha<br />

Nesse momento, o bárbaro som das buzinas de chifre de carneiro ressoou, vindo das sentinelas postadas à porta,<br />

e as duas portadas do Templo, revestidas de ouro, fecharam-se por dentro. Fomos barrados.<br />

Pálido como defunto e com brilhos de espada nos olhos, o Sumo Sacerdote permaneceu de pé em frente à porta<br />

fechada, e sem dizer palavra apontou para as duas placas de bronze laterais; nelas havia em grego e latim a seguinte inscrição:<br />

“Além deste ponto, nenhum não circunciso pode passar, sob pena de morte”.<br />

− Ah, sim!. . . murmurou Pilatos, com o lábio inferior já a tremer, sinal de cólera montante. Eu me havia<br />

esquecido; mas, se não estou em erro, creio que romanos já transpuseram essa porta. Eu gostaria de saber como Pompeu<br />

capturou o Templo, a despeito dessa inscrição.<br />

− Pompeu surgiu num sábado, Procurador, dia em que os judeus podiam defender-se mas não podiam atacar.<br />

Hoje estamos um pouco mais adiantados. E Pompeu teve o seu castigo do céu – o grande Júlio César vingou-nos.<br />

− Parece que o vosso Deus é muito poderoso, já que tem aliados assim. . .<br />

− Tem aliados em todos os grandes de Roma, a começar pelo poderoso Imperador! E temos a nossa esperança de<br />

que o novo Procurador da Judeia figure entre esses aliados, concluiu o Sumo Sacerdote com um sorriso conciliatório.<br />

− Isso depende da atitude dos crentes nesse Deus. Centurião, conduze as coortes de volta ao Procuratório.<br />

E Pilatos também, acompanhado de pequeno destacamento, fez-se a caminho da fortaleza Antônia, retornando<br />

pelo Pátio dos Gentios.<br />

Passamos entre dias paredes cindidas de colunas, entre as quais estacionavam vendedores de pequenas peças<br />

sacrificiais. Havia os mercadores de pombas do tipo usado nos sacrifícios, e os apregoadores de especiarias e incensos, e<br />

bufarinheiros de objetos que podiam ser apresentados aos sacerdotes como oblatas para a purificação dos pecados ou<br />

pagamento dos tributos impostos por Jeová ao seu povo eleito. E havia ainda os cambistas que, sentados em suas mesas,<br />

trocavam por moeda da terra qualquer divisa estrangeira. Que extraordinária veriedade de homens e costumes se exibia ali!<br />

Judeus da Abissínia de pés descalços, o corpo envolto em pano branco; judeus de Alexandria ou das nobres ilhas gregas,<br />

vestidos de lã e pele de carneiro, com palmas ou fitas douradas nos cabelos crespos; judeus do deserto, vestidos de pele de<br />

camelo e até de leão; homens da Galileia, com o vestuário reduzido a uma estopa, a pele do rosto encorreada pelo sol e as<br />

durezas do trabalho; e havia os pobres quase nus e os ricos de dedos cheios de anéis e outro em fio em seus mantos de linho de<br />

Sidon. E também judeus da remota Babilônia, onde nunca haviam penetrado as legiões de Roma, e judeus do frio oeste, onde<br />

também nunca ressoaram passos de soldados romanos; e judeus do Reno, com pesados capacetes de pele selvagem. Eu<br />

ignorava, antes de assistir a esse espetáculo, que os judeus fossem um povo tão expandido dentro e fora do Império. E<br />

convenci-me da sabedoria de Cícero ao acautelar-nos contra a má influência desse povo que enchia todos os mercados do<br />

Oriente e do Ocidente e penetrava em todas as terras conhecidas e desconhecidas. Devo confessar que, ao pôr meus olhos<br />

naquela policromia multitudinária, naquela festa de trajes, naquela variedade de raças enxameante ali nas portas do Templo da<br />

Judeia, comecei a compreender o bem avisado dos dirigentes romanos que sempre insistiram em andar às boas com os judeus,<br />

e respeitaram-lhes os credos e lhes concederam privilégios especiais... Um povo assim tão espalhado pelo mundo, e tão capaz<br />

de influência, tinha de entrar nos cálculos de todos os governantes.<br />

Dei muita atenção ao tipo humano e ao comércio em curso junto ao Templo. Senti que teria de lidar mais vezes<br />

com aquela gente. Impressionou-me o religioso êxtase que manifestam mesmo ali fora do Templo, quando faziam compras de<br />

coisas destinadas aos sacrifícios; notei com que infinito cuidado examinavam as pombas, escolhiam as mais bonitas, as mais<br />

ricas de penas, as mais perfeitas; e também notei com que vivo interesse trocavam as suas moedas de outro por óleos caros e<br />

essências de plantas odoríferas exóticas, ou por objetos de prata; era como se estivessem escolhendo presentes para a amada ou<br />

algum poderoso soberano de graças conquistáveis, e não para uma imaginária deidade que nenhum deles jamais vira e à qual<br />

nenhum artista jamais dera forma, no mármore ou no bronze. Percebi que os serviços religiosos dos judeus realmente<br />

começavam ali, com o ato da compra das oblações. Tão entretidos, que nem sequer davam um olhar às nossas coortes. Não<br />

manifestavam o menor interesse pelo novo Procurador em sua liteira. Absorviam-se integralmente nas compras feitas para<br />

obséquio ao Deus. Vi uma mulher cujo vestuário se resumia num trapo de estopa; estava empenhada em adquirir,<br />

evidentemente com o seu último dinheirinho, duas pombas; e de posse delas, beijou-as, apertou-as ao seio, acariciou-as;<br />

murmurou-lhes segredos com tanta fé que parecia estar-lhes confiando recados ao Deus. Vi um alentado homenzarrão de<br />

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ombros largos timidamente segurando entre os dedos um raminho de incenso, com medo de quebrá-lo; olhava para aquilo, com<br />

olhos de quem implora, tal se a planta tivesse poder de limpá-lo da gafa dos pecados. Vi moços correndo com vasilhas de<br />

comida ou óleo. Havia uma universal e feliz absorção no serviço do Templo, de modo que ninguém reservava um simples<br />

olhar para o homem que fora mandado de Roma, com jurisdição de vida e morte sobre todos ali. Privados como estávamos dos<br />

emblemas das nossas legiões, das nossas águias e escudos, não dávamos idéia duma legião romana em marcha através duma<br />

cidade submetida e a guardar o Procurador da província, sim dum bando de mercenários errantes, no campo dum exército<br />

estrangeiro. A espaços eu olhava para o Procurador lá na sua liteira aberta, e percebia que estava de rosto congesto, em revolta,<br />

maquinando a vingança. Mas o ter de pacientar custava-lhe tanto esforço, que receei morresse ali mesmo de apoplexia.<br />

Em certo ponto fomos dar numa multidão reunida em torno dum orador, com certeza mestre ou intérprete da lei,<br />

o qual, encostado a um esteio do beiral duma loja, dirigia a palavra à assistência. Tão absorvidos estavam aqueles homens nas<br />

palavras do orador que nem ouviram o som das nossas trombetas anunciando a nossa proximação; ou isso, ou deliberadamente<br />

fingiam nos ignorar e não saiam do caminho. Bom lhes foi não estivéssemos ali com a nossa cavalaria germânica! Dois<br />

legionários adiantaram-se e à ponta de espada disseram àqueles judeus da presença ali do representante de Roma. Eles<br />

simplesmente recuaram e abriram passagem à liteira e ao seu cortejo. Olhei para Pilatos; já não estava vermelho, estava quase<br />

azul de cólera! Mas breve o calor da raiva arrefeceu; o agradável brilho do ouro acalmou-lhe a alma feroz.<br />

Estávamos marchando ao longo do lado Este do Pátio dos Gentios quando um espetáculo nos estarreceu. Muito<br />

tínhamos ouvido falar da incomensurável opulência do Templo, mas a vista da enorme porta de sólido bronze de Corinto nos<br />

esmagou. Era a entrada do Pátio das Mulheres, sempre cheio, porque ali se reuniam tanto as mulheres da Judéia como as<br />

estrangeiras. Aberta encontramos a porta, não sei se por inadvertência ou cálculo; e ainda estávamos com olhos cheios daquela<br />

incrível massa de bronze de Corinto quando vislumbramos, do outro lado do pátio, um brilho cegante de ouro; vimos, não uma<br />

porta, mas uma enorme torre recamada de ouro que servia de passagem para o interior do Templo. Soube depois que “Bela<br />

Porta” era o nome dessa torre, da qual se falava até em Roma, e fora donativo dum dinheiroso judeu de Jerusalém. Acima da<br />

porta da torre pendia um grande cacho de uvas de ouro, emblema dos judeus. Mas o relanço d’olhos que demos no que havia<br />

dentro excedeu a tudo quanto poderíamos imaginar. O Templo era construído em forma de pirâmide, com escadaria de largos<br />

degraus de um salão para outro; a parte central lembrava uma montanha de ouro assente em alto pedestal de mármore. Para<br />

qualquer lado que olhássemos só víamos ouro, ouro e mais ouro, rebrilhante à luz do sol da tarde. Nossos olhos umedeceramse<br />

– de cansaço, de espanto, de cobiça. Mas as buzinas de chifre ressoaram e aquelas portas de bronze se retraíram diante de<br />

nossos olhos. Só víamos agora as portas mais próximas, em cujas superfícies lisas não apareciam imagens de vivente, humano<br />

ou não; era como se o Deus Jeová tivesse ciúmes da imaginação dos homens e não permitisse nenhum adorno no Templo,<br />

querendo ser servido somente com aquilo que ele criou, em estado de material não trabalhado pela arte. E em verdade aquelas<br />

portas, bem como o Templo em seu conjunto, produziam um efeito esmagador. Era como se os elementos da natureza<br />

houvessem, eles mesmos, trabalhado aquela estrutura, e como se tudo houvesse emergido da terra, como montanha.<br />

Olhei de novo para Pôncio Pilatos e vi em seu rosto o espanto.<br />

− Procurador, murmurei, a primeira coisa que tendes a fazer ao chegar à fortaleza Antônia é mandar vir<br />

sanguessugas que extraiam das vossas veias o sangue mau.<br />

− Estou pensando em outro modo de libertar-me do sangue mau.<br />

− Sei, Procurador. Chupando o sangue dos judeus.<br />

Pilatos tentou sorriu.<br />

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A Fortaleza Antônia ficava do lado norte; erguida sobre altas rocas, dominava e projetava sombra sobre a área do<br />

Templo. Compunha-se de diversas construções, entre as quais os nossos quartéis, e dispunha de espaço livre para o exercício<br />

das tropas, um ginásio e piscinas de banho. Ao centro ficava a cidadela com suas quatro torres, erguida em base piramidal no<br />

topo da roca. As galerias da cidadela davam para a área de Templo, de modo que podíamos ver o que lá se passava. Ah, e<br />

quanto descontentamento nos judeus por causa desse fato! Descontentamento que muitas vezes rebentou em rebelião. Sempre<br />

que de lá viam nossos guardas de passagem pelas galerias, agitavam os punhos ou os panos brancos e gritavam: “Fora! Fora!”<br />

Escusa dizer que nossos guardas nenhuma atenção davam a essas demonstrações; talvez apenas retardassem o passo para<br />

melhor aprecia-las. Também havia direto acesso da fortaleza Antônia à área do Templo, duas séries de degraus separados por<br />

um muro divisório; mas esse muro poderia facilmente ser eliminado e não ficaria nenhum óbice entre nós e a área do Templo.<br />

E, desconhecida de quase toda gente, havia uma passagem secreta construída por Herodes, que conduzia da Fortaleza, não para<br />

a área do Templo, mas para dentro do próprio Templo!<br />

Chegamos à fortaleza, assumimos o comando da coorte ali estacionada, mudamos as sentinelas e fomos ao<br />

banho. Pilatos teve o jantar servido na galeria da cidadela, de onde, a cômodo, pôde observar os seus novos e impenitentes<br />

súditos, lá nos pátios do Templo. Sombreados por pára-sóis que nos livravam da luz do poente, sentamo-nos com ele e tivemos<br />

sob nossos olhos todo o panorama da cidade. Era como se a luz do sol houvesse fundido as quentes e arenosas muralhas das<br />

montanhas de Moab, visíveis do outro lado do Mar Morto. A transparência do ar aproximava-as dos nossos olhos. Do lado<br />

oposto o sol refletia-se nas portas do Templo e em seus inúmeros ressaltos dourados; e naquele momento ninguém o diria<br />

construído de pedras e metais, e sim imerso como um só jacto de ouro fundido. E entre as áureas flamas pairavam pendentes de<br />

azul e púrpura. Mil raios de luz multicolorida rebrilhavam atrás da fantástica estrutura, maciça na simplicidade da sua<br />

construção e leve em seus efeitos, em razão dos muitos muramentos que não passavam de aflantes cortinas de cor púrpura e<br />

azul. Como soubemos depois, as cores das cortinas simbolizavam os quatro elementos de que o mundo é feito: fogo, ar, terra e<br />

água. O conjunto total embasava-se em mármore branco; e em redor, como a guardá-lo com ternura e a acentuar a sua<br />

santidade única, numerosos pátios se grupavam, separados entre si por torres fantasticamente altas, e portas, renques de<br />

colunas e nichos por sua vez separados entre si, como o próprio Templo, por muros e pilares. E em certo sentido ainda era mais<br />

extraordinário que o próprio Templo e seus arredores a vida que enchia os pátios. Ao primeiro volver d’olhos parecia reinar lá<br />

apenas a confusão; os sacerdotes de vestes brancas e pés descalços, em cadenciado movimento sobre os mármores polidos e os<br />

granitos, pareciam mover-se sobre as águas dum lago; a massa humana dava idéia de uma só e indiferenciada; observação mais<br />

atenta, porém, mostrava que os sacerdotes se mantinham afastados da multidão e na mais rigorosa disciplina – verdadeiramente<br />

militar. Depois das primeiras novidades, pude atentar com mais clareza no pátio em que se reuniam as mulheres, no pátio dos<br />

homens e nos degraus em que se dispunham os músicos; também havia uma separação entre o pátio externo e o Santuário,<br />

onde os sacerdotes se reuniam no intervalo entre os serviços, e o pátio interior do Santuário, onde os Sacerdotes<br />

desempenhavam os serviços sagrados. Tudo – percebemo-lo – era severa e exatamente dividido, com se tivéssemos diante de<br />

nós menos um povo de crentes que uma organização militar pronta para a revista. As sentinelas às portas, os guardas noturnos<br />

que faziam a ronda com archotes acesos para controle das sentinelas, os cantadores das horas da noite, os trombeteiros, a<br />

primeira, segunda e terceira divisão de sacerdotes, os que estavam de serviço e os de folga, os supervisores, os acendedores de<br />

lâmpadas, as mulheres tecedeiras, os fiscais dos sacrifícios que os iam marcando, os inúmeros assistentes prepostos aos<br />

cerimoniais – toda a vasta e complicada atividade do Templo, em suma – eqüivalia a uma associação de alta disciplina, sujeita<br />

à autoridade do Sumo Sacerdote e seus assistentes.<br />

Deitamo-nos em coxins na galeria da cidade, refrescados pelos abanadores orientais; tomamos vinho de Chipre e<br />

comemos figos de Jericó, com os olhos postos na casa de Jeová, esse deus tão ciumento que não permitia a mortal nenhum vêlo<br />

de cara. O Templo, com os seus inumeráveis tesouros de ouro e custosos vasos, seus sacerdotes, levitas e orgulhosos<br />

mestres, lá jazia a nossos pés, bem como toda a cidade. O quadro nos fascinava. Daquele ponto de observação a massa humana<br />

parecia em enxame de imponentes pigmeus toda ela e mais o seu Deus, estavam nas mãos da poderosa Roma – nas nossas<br />

mãos, mero botim tomado, como o leão toma a sua presa. Mas não podíamos compreender donde provinham o orgulho e a<br />

segurança daquela gente. Uma palavra nossa a uma coorte dos legionários de Askelon, apoiada por um destacamento da<br />

cavalaria germânica, e todo aq uele jogo de divindade e independência desapareceria; o Santuário dos Santuários seria<br />

violado, os tesouros apreendidos, o sacerdócio disperso como folhas ao vento. E eles sabiam disso. Líamo-lo no brilho de ódio<br />

que se denunciava no olhar dum sacerdote de vestes brancas ou dum barbaçudo mestre da lei. Sim, sabiam que estavam presos<br />

nas nossas mãos como um brinquedo nas de uma criança. E, pois, achávamos incompreensível o orgulho de tal gente e aquelas<br />

insensatas ilusões sobre o seu Deus.<br />

Marco Petrônio, o velho centurião da Antônia, que já servira sob os primeiros Procuradores e estava de muito<br />

anos ali, era conhecedor de todos os usos, costumes e crenças dos judeus. Foi quem me instruiu quanto à severa disciplina<br />

reinante no Templo, a estranha mudança de guardas, dos padres e dos levitas, os vigilantes noturnos em formação militar com<br />

suas tochas acesas e as sentinelas trocando as palavras sacramentais: “Tudo bem?” Quando os primeiros raios do sol aparecem,<br />

as buzinas de chifre ressoam. Um destacamento de Sacerdotes marcha para o primeiro serviço do dia. Marco também nos falou<br />

das vestes do Sumo Sacerdote, tidas como sagradas e sobre as quais juram. Essas vestes estavam guardadas numa das torres da<br />

cidadela, e a lâmpada acesa no alto proclamava que elas tinham sido tocadas. Jaziam sob o selo do Procurador e do Sumo<br />

Sacerdote. “Procure apagar aquela lâmpada para ver o que acontece!” Marco também nos falou do Santuário dos Santuários,<br />

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onde mortal nenhum penetra, com exceção do Sumo Sacerdote – e isso mesmo uma só vez por ano. E que tremenda ocasião é<br />

para os judeus quando o Sumo Sacerdote dele emerge, intacto, perfeito, defendido pela sua santidade!<br />

Pilatos, que ouvia com o maior interesse a descrição dos costumes exóticos daquela gente, perguntou a Marco<br />

Petrônio se realmente havia no santuário judaico a tal câmara mística de penetração perigosa para um mortal; e se nessa<br />

câmara existia uma cabeça de asno, como os legionários romanos afirmavam – a cabeça de asno que era o objeto de devoção<br />

de todos aqueles judeus.<br />

− Cabeças de asno? Pompeu penetrou no Santuário dos Santuários e não viu nada disso. Na realidade não viu<br />

nada – e eu não sei o que lá se contêm. Eu de mim só vi as câmaras externas para as quais são levadas as oferendas; lá penetrei<br />

na manhã duma festa, quando houve necessidade da restauração da ordem. O que vi foi uma incrível quantidade de ouro –<br />

mesas de ouro, um gigantesco altar de ouro em que arde um tremendo fogo, um candelabro de ouro, inúmeros jarros de outro,<br />

tenazes, vasos e mais coisas necessárias às cerimônias, e duas aves místicas recobertas pelas próprias asas. Ouro, ouro e mais<br />

ouro.<br />

− Parece que os judeus não regateiam em se tratando da sua divindade, mas não sei onde encontram tanto ouro.<br />

− Onde? Todos os judeus do mundo inteiro pagam taxas ao Templo e a César. E por isso é que dizem: Deus é o<br />

nosso César. E com que prazer pagam essas taxas! Nenhum foge a isso, nenhum se atrasa, por mais selvagem e remota seja a<br />

terra em que vivam. E além das taxas, não há o que não enviem ao Templo. Vê aquela tremenda porta com torres, a cavaleiro<br />

das outras portas? Pois vale um reino. Dum lado é revestida de prata e de outro de ouro – e não passa do donativo de um<br />

homem. E há outros que deram coisas de alto valor assim. E é de ver-se de que remotos cantos da terra encaminham-se eles<br />

para aqui. Às vezes a gente até duvida que sejam judeus; outras vezes damos com homens evidentemente civilizados. Eu<br />

pessoalmente duvido que estes sejam judeus; acho que são não-judeus atraídos pelo misterioso poder do Deus deles, e por isso<br />

trazem oblatas e lhe fazem preces. O ouro que transparece nas portas do Templo é nada; eles possuem tesouros secretos em<br />

que se vêm acumulando os donativos de gerações; e embora muitas vezes sejam despojados, o ouro, retorna sempre, vindo de<br />

inexauríveis fontes.<br />

− Os judeus não deixam de exercer influência na côrte do César, disse Pilatos.<br />

− É difícil verificar o grau dessa influência e em que círculos se exerce; também não sabemos com quem<br />

lidamos, quando ofendemos um judeu. Muitas oblatas vieram ter ao Templo – aberta secretamente – oriundas dos mais altos<br />

figurões de Roma; e, pior ainda, os judeus – dizem-me – criaram muito sentimento a favor de seu incompreensível Deus entre<br />

as altas damas da aristocracia de Roma.<br />

− Sim, sei disso; e sei também dos métodos que usam para criar tais sentimentos.<br />

Um espasmo perturba a serenidade do rosto de Pilatos; sem que os outros vissem, ele torceu minha toga e fez ar<br />

de quem vai dizer alguma coisa, mas susteve-se e permaneceu calado.<br />

mistério.<br />

− É o que acontece com as mulheres, observou alguém. Estão sempre prontas para se deixarem seduzir pelo<br />

Antes de deixar Jerusalém, rumo a Cesaréia, Pilatos me disse:<br />

− Marco Petrônio falou-nos do uso que fazem os judeus em seu Templo de duas aves místicas; isso mostra que a<br />

oposição dos judeus à águia romana tem mais base política do que religiosa; não é a religião deles que lhes proíbe de olhar para<br />

o símbolo do poder de Roma, sim a inimizade para conosco. A águia romana é o nosso emblema no mundo inteiro, e não deve<br />

estar ausente de onde quer que o poder de Roma se haja implantado.<br />

− É isso uma ordem?<br />

− Interprete-o como quiser.<br />

A partida de Pilatos pôs-me no comando da fortaleza. Dum lado da Antônia, fronteira à parte nova da cidade,<br />

existia uma profunda fenda. Ordenei aos meus cavaleiros germânicos, contra os quais os judeus alimentavam intenso ódio, que<br />

tomassem posição ao longo dessa fenda. Depois mandei engraxar as pedras da fortaleza na face que dava para o Templo de<br />

modo a torná-las bem escorregadias. À noite, depois de cumpridas essas ordens, ordenei que os escudos com emblemas da<br />

nossa coorte e as imagens do César fossem pendurados ao longo da galeria da cidadela. E também mandei apagar a lâmpada<br />

que ardia no topo da torre onde as vestes do Sumo Sacerdote eram guardadas e substitui-la pela águia romana.<br />

Bem cedo, na manhã seguinte, antes de nasce o sol, fui com meus guardas à galeria para observar a reação dos<br />

judeus em face daquilo. Quando os primeiros raios do sol se projetaram de trás dos montes a Leste ouvimos o sem de suas<br />

trombetas e vimos o primeiro destacamento de padres avançando em formação regular: de volta das abluções iam paramentarse.<br />

Súbito, como a uma voz de comando, detiveram-se. A luz do sol começava a refletir-se na águia e nos escudos. Que<br />

mudança no rosto daqueles homens! Que atoarda! Era como se uma catástrofe houvesse reduzido o Templo a escombros.<br />

Centenas de trombetas e buzinas deram o alarma. Sacerdotes e levitas borbotavam de todos os cantos, muitos ainda<br />

estremunhados e semi-paramentados. Nunca imaginei que houvesse tantos; parecia um enxame de abelhas. Velhos de longas<br />

barbas cacheadas, alentados moços, neófitos e estudantes das escolas sacerdotais. Os levitas continuavam a soar as trombetas<br />

fazendo a multidão recrescer de vulto. Gradualmente iam todos se aproximando da cidadela, e uma floresta de punhos cerrados<br />

se erguia contra nos, no clamor enraivecido. E como o alarma já houvesse acordado a cidade, dela afluíam ondas e mais ondas<br />

de gente. As mulheres, que não ousavam transpor os limites do seu pátio no Templo, uivavam e lamentavam com voz aguda,<br />

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como se o inimigo houvesse assaltado a praça e lhes estivesse sangrando os filhos; e um coro de rugidos de ódio vinha dos<br />

homens cada vez mais perto a fortaleza. Do lado da profunda fenda não havia aproximação possível: lá estavam a postos os<br />

cavaleiros germânicos e uma nuvem de flechas mantinha os assaltantes à distância. Já da outra banda, avançando além do<br />

ponto velado à gente comum, os Sacerdotes procuravam galgar o enrocamento da fortaleza. Encostavam-se à pedra, uns<br />

trepavam nos ombros dos outros e iam assim tentando a subida. Mas davam com o mármore liso e engraxado, onde não havia<br />

ressalto de pega – escorregavam e caiam. Entretanto, lá nos torrões nossos legionários de Askelon, mais os samaritanos<br />

destacados da guarnição de Jericó, ardiam por dar uma boa lição àqueles judeus insolentes. Flechavam os assaltantes mais<br />

avançados, um por um, e lá caiam eles e esmagavam-se contra as pedras do chão. Mas tal era a insistência daqueles homens<br />

que alguns conseguiam alcançar a base da galeria e de vez em quando víamos mãos se agarrem à rotula. Mas lá vinha o golpe<br />

de espada asquelonita, e um corpo sem mão rolava em queda aos trancos. Outras vezes era na cabeça que o golpe acertava, e<br />

tínhamos um judeu a menos. Antes que o sol de todo se levantasse acima dos montes já a base da nossa fortaleza estava<br />

abundantemente irrigada de sangue judeu e coberta de cadáveres – a mesma abundância de sangue e carne de seus altares<br />

sacrificiais.<br />

Por fim vi emergir o Sumo Sacerdote em meio da sua entourage. Reconheci-o pela imponência da figura e as<br />

demonstrações de respeito de todos em redor. E aqueles homens começaram a acalmar a exaltação, a fazer ver a loucura que<br />

era o assalto à fortaleza. Dentre eles um se destacava, ainda jovem, com evidentes ares de chefe; alto e forte, impunha respeito<br />

e reverência. À frente de seus discípulos falou àquela multidão furiosa. Era um Jochanan ben Zakkai, como depois vim a saber,<br />

que fora discípulo de um dos maiores sábios judeus, falecido em avançada idade. Esse Jochanan soube arrefecer a exaltação da<br />

malta, ajudado pelo velho Hanan, sogro do Sumo Sacerdote; facilmente reconheci Hanan, pois que fora o chefe da delegação<br />

que havia recebido Pilatos nas portas de Jerusalém. Rodeado de seus cinco filhos, aproximou-se da cidadela e fez sinal de<br />

querer falar-nos. Um mensageiro nosso foi indagar das suas intenções. Desejava ser recebido em audiência – mas eu não tinha<br />

poder para dar audiências. Cheguei-me então a uma abertura da galeria e, com risco de ser alcançado por pedra ou flecha,<br />

gritei-lhe que falasse. Hanan conhecia mal o latim e com mais desembaraço o grego. Naquele momento falou num misto das<br />

duas línguas, aludindo à substituição da lâmpada pela águia e apelando para os antigos privilégios concedidos por Júlio César,<br />

e respeitados por Augusto e Tibério.<br />

Eu não desejava debater o assunto; apenas respondi que lá na fortaleza não tínhamos poder para alterar uma<br />

ordem do Procurador; se queriam queixar-se, lá estava o Procurador em Cesaréia para recebê-los.<br />

Naquele mesmo dia um numeroso grupo de sacerdotes e levitas, chefiados pelo velho Hanan e acompanhado por<br />

metade da população, homens, mulheres e crianças, partiu para Cesaréia. Jerusalém ficou deserta; no Templo só permaneceram<br />

os sacerdotes estritamente necessários para os ritos do dia. Em marcha, aquela multidão evitou passar pela cidade de Sichem,<br />

terra dos Samaritanos, tradicionais inimigos dos judeus; deu volta pelos campos e montes e aproximou-se de Cesaréia sem usar<br />

as estradas gerais. Lá os postulantes foram acrescidos dos judeus daquela zona e em grande massa sitiaram a residência do<br />

Procurador. Durante cinco dias e cinco noites Pilatos deixou-os acampados nas ruas e praças de Cesaréia, a espera de que lhes<br />

fosse marcada audiência. Tiveram tempo de bem assimilar o espetáculo daqueles pagãos vindos de longe ocupando as casas de<br />

mármore que o rei Herodes levantara com o dinheiro judeu em honra ao César. Viram o excelente porto, os ginásios, os teatros,<br />

os coliseus, as escolas de cavalaria e – pior que tudo – os templos, particularmente o magnífico Templo de Augusto, que<br />

Herodes, com taxas arrancadas ao povo, erigira em honra a um detestado soberano. Os garotos de Cesaréia acompanhavamn’os<br />

e lançavam-lhes pedras. Mas em nome de sua divindade, aqueles judeus tudo sofreram com a maior paciência. Durante o<br />

dia erravam, cansados, famintos e sedentos, pelas ruas da cidade hostil; as noites passavam-nas nos parques e ruas de acesso às<br />

praias; deitavam-se para descansar na pedra dura do porto e levantavam-se mais cansados ainda. E nada de Pilatos recebê-los.<br />

Naquela cidade que eles mesmos haviam construído, no coração de seu país, tinham de beber até às fezes a taça de humilhação<br />

imposta por gente estranha. No quinto dia Pilatos fê-los tanger, como carneirada, para o recinto da escola de cavalaria, sob a<br />

guarda dos germânicos montados; e insinuou entre os judeus destacamentos de asquelonitas e samaritanos, chefiados por<br />

gregos. Isto feito, mandou notificá-los de que se não se comprometessem a voltar em silêncio para Jerusalém e a prestar<br />

homenagem à águia e aos escudos romanos, ele os faria imediatamente esmagar, como vermes, pelas patas da cavalaria<br />

germânica. E sabe qual foi a resposta dos judeus? Todos, desde o chefe supremo até as mulheres e crianças, lançaram-se por<br />

terra e gritaram: “Podeis mandar contra nós não somente os selvagens bretães e a cavalaria da Germânia, como também todos<br />

os animais ferozes das florestas. Nós preferimos mil vezes essa morte a vermos o nosso santuário poluído com símbolos<br />

estrangeiros”.<br />

“Poluído o nosso santuário!” Poluí-lo com a efígie do César e da triunfante águia romana! Incrível a insolência<br />

dos judeus! Se eu fora o Procurador, teria incontinente dado execução à ameaça – mas Pilatos tinha na cabeça outra coisa mais<br />

forte que a efígie de César e a águia romana... Resolveu receber em audiência secreta o astuto Hanan, com o qual conferenciou<br />

durante duas horas. O que entre eles se passou não sei; o que sei é que seguiram para Jerusalém ordens para a remoção da<br />

efígie e dos escudos. “Roma respeita as leis!” escrevera Pilatos. Os judeus triunfaram.<br />

Mais tarde vim, a saber, que depois do encontro com Hanan, Pilatos adquiriu na Sicília a sua primeira<br />

propriedade, e em Pompéia construiu a vila com que presenteou a sua esposa Cláudia, por esse tempo ainda na corte de<br />

Tibério.<br />

Roma comentou: “Raro chove na Judeia; mas quando chove não cai água, sim ouro...”<br />

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Aos poucos fui adquirindo bom conhecimento daquela gente entre a qual eu vivia como exilado; comecei a<br />

penetrar-lhe no íntimo da vida e do pensamento, a saber conduzir-me no labirinto de suas divisões partidárias e a familiarizarme<br />

com os seus usos e costumes. Não era isso coisa de pouca monta, em se tratando de povo tão sonso, tão fechado com sete<br />

selos – sobretudo na presença de funcionários de Roma. E meses correram antes que eu pudesse enviar a Pilatos um relatório<br />

substancial. Mal entreviam o brilho de minha armadura ou o pano da minha toga, e já se fechavam como diante dum<br />

transmissor da própria peste. Mas pacientemente fui fazendo relações, e assim os acostumei à minha presença. E não sei por<br />

que motivo aquela gente que tanto me repelia mostrava ao mesmo tempo certa curiosa atração por mim – desde o começo.<br />

Meus deveres punham-me em freqüente contato com os altos funcionários do Templo, e também me tornei assíduo<br />

freqüentador das aristocráticas residências da Cidade Alta. Fiz amizades nos mais finos círculos sociais. E em particular muitas<br />

obrigações contraí para com os dois filhos mais moços do Sumo Sacerdote, que tanto me auxiliaram naquela obra de<br />

aproximação – e desse modo fui reunindo informações de grande valor para o exercício do meu cargo.<br />

Além desses contatos especiais eu sentia prazer em circular pela cidade e observar-lhe a vida. Não me confinava<br />

aos quarteirões residenciais da aristocracia, mas perlustrava as seções mais pobres, penetrando no seio da massa popular. Foi<br />

na praça do mercado que tomei o pulso de Jerusalém. Não era aquilo propriamente uma praça de mercado, mas uma comprida<br />

e larga rua a cindir a velha cidade em duas. Lá ficava a maior parte das lojas e tendas. Para lá levavam os pescadores do Mar<br />

de Genesaret e de Acco os seus peixes frescos e salgados, e para lá levavam suas verduras os hortelões de Sharon. A variedade<br />

de frutas e legumes era como não vi em parte alguma. Das hortas dos arredores vinham os figos melosos, macios e em forma<br />

de úberes cheios; algumas dessas hortas eram adubadas com o sangue dos sacrifícios, drenado do Templo, e disso vinha a<br />

especial riqueza de seus frutos. Vi lá cachos de uva irrivalizados em qualquer país do mundo. E ao longo daquela rua, sob<br />

toldos de folhas de palmas ou baiucas de estopa esticada entre esteios, ou nos nichos entre as colunas das arcadas, inúmeros<br />

artesãos trabalhavam em aberto. Tintureiros, azeiteiros, tecelões (dentre estes os mais moços eram ferozes, rixentos e nos<br />

davam muito trabalho), os alfaiates, os sapateiros que tomavam a medida dos pés das damas sem nunca lhes olhar para o rosto<br />

(eram em geral excepcionalmente religiosos); os seleiros; os fabricantes de tendas e os vendedores de perfumes – estes últimos<br />

mal vistos dos judeus, porque pelo fato de só lidarem com mulheres facilmente se desencaminhavam. Lado a lado da longa rua<br />

estendiam-se intermináveis fileiras de bilhas de azeite e potes de mel; e abundavam odres de vinho de todos os tipos, desde os<br />

de Sharon, até os preciosos vinhos de Chipre; e havia toda sorte de cereais, inclusive o famoso trigo de Efraim, pesado,<br />

suculento; e havia as afamadas tâmaras de Jericó.<br />

Os homens das várias profissões eram facilmente distinguíveis, mesmo quando já as não exercitassem. Os<br />

tintureiros traziam nas orelhas brincos de fio multicor; os alfaiates espetavam agulhas no peito. E quantos escribas! Todos com<br />

penas de ganso atrás da orelha, sentados às suas mesinhas, vendendo escrita e pequenos rolos com excertos das sagradas<br />

escrituras; usavam nos braços e na testa bolsinhas de couro com o “Shema”, ou passagens do código de leis judaico, que eles<br />

faziam as crianças decorar. Porque em cada rua de Jerusalém os judeus tinham suas sinagogas e capelas-escolas para a<br />

criançada. Se saia uma mulher em procura de óleo para sua lâmpada (as mulheres tinham de adquirir esse óleo com dinheiro<br />

por elas mesmas ganho), não se esquecia de comprar também um “Shema” para seus meninos, ou qualquer outro pergaminho<br />

sagrado. Freqüentemente ocorriam no tumulto das praças disputas entre escribas e eruditos sobre o modo de escrever certa<br />

frase. Quase tão numerosos como estes eram os cambistas. Impossível evitá-los, porque apareciam em toda parte com dinares<br />

pendentes das orelhas e sacolas de moedinhas na mão, tilintantes. Pelo meio da massa humana circulavam os coletores de<br />

taxas, com os seus distintivos no peito, e funcionários do Templo, com a correia de couro nas mãos, recolhendo dízimos e<br />

oferendas para o Sumo Sacerdote. Se algum campônio ou hortelão deixava de pagar o devido ao Templo, suas mercadorias<br />

eram declaradas imundas e intocáveis – e nenhum freguês delas se aproximava.<br />

Cada comércio tinha o seu ponto na cidade. Na rua dos tintureiros o passante podia apreciar as valiosas púrpuras<br />

de Tiro e Sidon, a alva lã dos carneiros do Líbano e da Síria e as ricas sedas da Pérsia; na rua dos vendedores de especiarias o<br />

ar impregnava-se de vários perfumes. Não tinha conta a variedade dos óleos usados, desde os mais grosseiros, para<br />

amaciamento do couro das sandálias, aos mais requintados, de uso entre as noivas no dia do enlace ou para o embalsamamento<br />

dos mortos. E cada qual com o seu nome. Na rua dos ourives encontravam-se primores artísticos da Mesopotâmia, de<br />

Alexandria, de Antióquia e até das ilhas gregas. E não era incomum encontrarem-se implementos, armas, tecidos, pedras e<br />

peles das mais remotas províncias do Império – Gália, Espanha e Bretanha.<br />

Jerusalém tornara-se um empório mundial. O Templo atraia peregrinos de todas as partes do mundo, dentro e<br />

fora do Império, e dessas regiões também vinham os produtos. Muito divertido errar naquele caos de homens, materiais e<br />

cores, e muito mais o seria ainda se não fosse o espírito inquieto e turbulento do povo judaico.<br />

A vida dos visitantes estrangeiros de Jerusalém espelhava-se sobretudo no Pátio dos Gentios, pelo qual eu<br />

freqüentemente passava. Minha sede pessoal era na Antônia; mas nossas coletorias, nossa administração militar; os armazéns e<br />

postos de policia, espalhavam-se pelas informes estruturas do velho palácio de Herodes, no qual o Procurador se alojava<br />

quando vinha à Jerusalém nos dias santos. Existia uma passagem mais curta entre a Antônia e o Palácio (passagem estratégica),<br />

mas eu preferia cruzar o Pátio dos Gentios. Dentro da cidade era freqüente o encontro de caravanas de camelos vindas de<br />

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províncias distantes com carregamento de oferendas ao Templo, precedidas de homens exóticos; mas nos pátios do Templo é<br />

que se concentrava a fascinante vida espiritual dos judeus. Porque à parte o comércio sacrificial de pombas, farinha fina,<br />

especiarias e incenso, e à parte o regatear dos cambistas, encontravam-se lá também, entre os pilares nos dias de sol e sob as<br />

arcadas nos dias de chuva, os mestres e intérpretes da lei, os pregadores, visionários e profetas anunciadores do Messias. Os<br />

grupos em redor deles formados compunham-se de homens de todas as condições, pobres e ricos, operários vestidos de<br />

algodão grosso e peregrinos entrajados de linho; e todos ouviam com reverente atenção. O mais interessante de tudo, porém,<br />

era o Sábado – ou sétimo dia da semana, consagrado ao descanso.<br />

Nunca pude bem apreender a idéia judaica do Sábado. Imagine-se todo um povo consagrando cada sétimo dia de<br />

sua vida ao descanso e só ao descanso! O país inteiro parado naquele dia – nada de movimento, nem trabalho de qualquer tipo!<br />

Só e só o descanso! Todos a descansarem, homens, mulheres, crianças e até os animais. Nos sábados só se lembravam dos<br />

animais para leva-los a beber nos poços ou para dar-lhes comida. No começo tive a impressão de que esse sétimo dia de<br />

descanso, ou Sábado, instituição desconhecida tanto entre os bárbaros como entre os polvos civilizados, não fosse mais que<br />

uma concessão à moleza – um dia de completa indolência. Mas logo verifiquei que não era assim. Todas as acusações poderá<br />

receber esse povo extraordinário, menos a de indolência. São ativos até demais. Se o fossem menos, se tomassem o seu Deus e<br />

o seu Templo um pouco menos a sério, teriam poupado a si próprios e ao mundo uma infinidade de tribulações. Eram na<br />

realidade extremamente industriosos; o árido solo da terra natal lhes havia ensinado a lição do trabalho contínuo; tinham de<br />

extrair a subsistência das próprias pedras, das areias; o seu Deus os não amolentara com a superabundância de dons da<br />

natureza. E convenci-me de que os judeus haviam criado aquele repouso do Sábado, tão cheio de proibições, proscrições e<br />

deveres, menos como um período de descanso mas como pesada carga a mais. Eles não ousavam caminhar até certa distância,<br />

de medo de infringir a santidade do dia. Não era propriamente um dia de repouso, mas de serviço sagrado, dia de dedicação ao<br />

Deus. E para isso desligavam-se do mundo; era como se se transportassem para outra vida, com olhos, corações e cérebros<br />

postos no céu. Naquele dia entregavam-se unicamente ao seu Deus.<br />

E, entretanto, não eram de nenhum modo inimigos da vida mundana, denegadores das pompas do mundo, como<br />

iremos ver. Apesar do caráter sombrio gostavam de rejubilar-se. Havia, por exemplo, os dias santos; um deles era consagrado à<br />

oferta ao Templo dos frutos precoces das colheitas; e era divertido, lá da fortaleza Antônia, ver os camponeses do Sharon e da<br />

Galileia, de espinha arcada pelo constante lavrar do solo, trazerem os primeiros frutos de suas plantas. Segundo me<br />

informaram, eles escolhem essas oferendas, as tâmaras, as romãs, as uvas, quando ainda no pé. Percorrem as plantações,<br />

observando quais os frutos mais adiantados e marcam-n’os. Era estranho ver com que piedade, com que fé tão fanática, eles<br />

conduziam as cestas de tributos para a moradia de seu Deus. As delegações das várias províncias e distritos chegavam aos<br />

grupos, os ricos e pobres da cada localidade marchando juntos. À frente traziam um touro de coroa dourada nos chifres; essa<br />

peça sacrificial caminhava ao som de músicas – e assim entravam na cidade. Ricos proprietários de terras, e até membros da<br />

aristocracia, transportavam as oferendas aos ombros, em cestas prateadas ou douradas; os pobres traziam-nas em cestas<br />

comuns de vime. Os funcionários do Templo e a população de Jerusalém acorriam às portas da cidade para recebê-los; os<br />

operários e artesãos alinhavam-se em filas nas ruas para vê-los passar e os convidavam para descanso em suas casas.<br />

Durante essas festas os judeus alcançavam êxtases de alegria. Lembro-me, por exemplo, do dia mais sagrado de<br />

todos, o da Expiação, quando o Sumo Sacerdote emergia do Santuário dos Santuários incólume, apesar do contato tido com a<br />

suprema santidade!<br />

O amargor que durante o ano inteiro os judeus mostravam para com o Sumo Sacerdote e seus acólitos era<br />

esquecido e perdoado naquele momento. E em sua honra promoviam procissões dignas dum general vitorioso na guerra.<br />

Conduziam-no à sua residência ao som de cantos e músicas, com os levitas a tocarem harpas e flautas e a flor do sacerdócio a<br />

dançar à frente do grande chefe. Depois vinham o cortejo dos aristocratas, as famílias sacerdotais, os veneráveis sábios da<br />

cidade, os eruditos, os interpretes da lei, de mistura com a multidão de peregrinos. Vestidos de suas mais ricas e coloridas<br />

vestes e com tochas em punho, cantando e rejubilando-se, levavam o Sumo Sacerdote até sua residência.<br />

Outra festividade digna de nota era a do Dia Santo da Água, na qual ofereciam ao seu Deus água como oferenda<br />

sacrificial – festa que se aproximava das nossas celebrações báquicas. Tinha início com a viva iluminação da cidade, de modo<br />

a dar idéia de que Jerusalém estava em chamas. Reuniam-se no teto das casas, rasgavam tiras das roupas velhas embebiam-nas<br />

em óleo e acendiam-nas. A principal celebração era nos pátios do Templo. Neles se juntavam massas de peregrinos e os<br />

sacerdotes se apinhavam junto às paredes do Templo, nas portas e nos torreões: também traziam as vestes fora de uso, que<br />

embebiam de óleo e acendiam. Entre essas vestes destinadas ao fogo vinham muitas bordadas a mão com fios de ouro e prata,<br />

de lã azul e púrpura, feitas especialmente nos teares do interior do Templo, ou doadas pela gente rica. Da torre da Antônia<br />

víamos a chamarada resultante daquela queima, junto às paredes do Templo ou no teto das casas. Sugeria a idéia de que<br />

Jerusalém estava sendo saqueada e incendiada; mas o rumor do fogo era abafado pela atoarda alegre, pelos cantos e o barulho<br />

das chamas na área do Templo e nas ruas estreitas. Outra coisa de ver-se eram os noviços, ou, como diziam, a floração do<br />

Sacerdócio. Suas vestes e coifas brancas ressaiam daquele mar de fogo; seus pés nus moviam-se no ritmo da dança, ao<br />

acompanhamento da harpa, da flauta, das trombetas e címbalos dos levitas dispostos na escada de mármore. Tudo parecia livre<br />

naquela noite; era como se naquela noite de fogo e água o próprio deus Jeová abandonasse a sua eterna solidão e viesse<br />

misturar-se com os jubilosos adoradores – aquela gente ébria do Invisível Espirito e passível, dum momento para outro, de ser<br />

por Ele raptada numa nuvem de fogo e levada para as secretas lonjuras dos Céus... Tal júbilo, que até os graves interpretes da<br />

lei se sentiam arrastados e se tornavam centros da alegria delirante. Os anciãos se transformavam em crianças. Víamos austeros<br />

sábios barbaçudos jogando com as chamas, quais prestidigitadores. Moços dançavam entre espadas, e moças dançavam entre<br />

labaredas. Alguns faziam mágicas, porque todos eram dados a certas classes de pelotiquices. Que mais preciso dizer? Naquele<br />

dia (ou naquela noite, porque o principal da celebração era a noite) a cidade de Jerusalém e o seu sombrio Templo se<br />

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transformavam num gigantesco altar em que os elementos opostos, água e fogo, eram elevados em sacrifício uno ao Deus dos<br />

judeus.<br />

Por estranho que o pareça, os líderes espirituais daquela gente não eram os Sumos Sacerdotes, mas os interpretes<br />

da lei – ou os rabis. Enorme nos parecia a influência destes mestres que o povo seguia cegamente. Na aparência nada tinham<br />

contra nós, isto é, contra o poder de Roma, já que não interferíamos em sua vida interior. Essa vida voltava-se para o ritual<br />

religioso e o estudo dos costumes sagrados; não havia pois, razão para que interferíssemos, nem nunca houve entre os romanos<br />

essa tendência. Mas não podíamos prever-lhes as intenções, nem adivinhar o que conspiravam. Vendo os judeus em suas lojas<br />

e arcarias dos pátios, observando aqueles rabis de vestes ritualmente franjadas, com cintas de couro nos braços e na testa, a<br />

argüirem com teimosia sobre algum ponto da lei, vinha-me o pensamento de que não eram os inocentes carneiros que<br />

pretendiam ser. Dum ponto me convenci: por mais que nos odiassem como estrangeiros opressores, os judeus odiavam e<br />

desprezavam ainda mais o poder local. E preferiram mil vezes submeter-se ao governo de Roma do que ao da casa de Herodes<br />

que desprezavam.<br />

Mas que amor, que reverência, que sincera devoção revelavam para com os seus rabis, os homens que estatuíam<br />

o Sim e o Não! Esses rabis moviam-se entre os discípulos como reis entre os guardas. Eram discípulos que não tiravam os<br />

olhos do mestre, como para não perder uma só palavra das interpretações e exegeses. Com freqüência provinham os rabis das<br />

baixas camadas do povo, e havia os que moravam em cabanas humildes nos bairros mais miseráveis de Jerusalém. À frente<br />

dessas cabanas aglomeravam-se discípulos à espera de que o mestre findasse lá dentro algum trabalho e viesse interpretar-lhes<br />

a lei. Outros eram operários ou trabalhadores dos campos, tão pobres que mal se cobriam duns trapos – e nem isso teriam se<br />

não fosse a generosidade de seus jovens seguidores. Magros alguns ao extremo – magros de penúria. Um vi que me pareceu<br />

transparente; meus olhos acompanhavam garganta abaixo a descida dos bocados ingeridos. Outros se abstinham da<br />

alimentação simplesmente por nada terem para comer. Nada recebiam pelo ensino ministrado, por mais ricos que fossem os<br />

alunos. Mais duma vez vi na comitiva desses miseráveis operários ou campônios da lide, moços da alta sociedade, bem<br />

vestidos de linho e montados em asnos de custosos arreios. Havia-os velhos e moços. Vi rabis moços, que alunos velhos<br />

seguiam e ouviam com o maior respeito – e nunca pude apreender o segredo dessa misteriosa influência sobre o povo. Porque<br />

todo o povo, não apenas os discípulos, estava sempre pronto para obedecer em tudo aos rabis, por maior que fosse o perigo.<br />

Nós, romanos, nos mantínhamos em guarda contra o poder desses homens.<br />

Não demorou para descobrirmos que os nossos naturais aliados naquele ambiente tão hostil, eram os membros da<br />

alta sociedade, com o Sumo Sacerdote à frente. Esses aristocratas aproximavam-se psicologicamente do pensamento romano.<br />

Não vou aqui entrar em detalhes sobre as suas divergências partidárias; pode ser assunto de importância, mas é dos tais que<br />

nunca deixam de produzir dor de cabeça. E não sei se o partido aristocrata era realmente amigo de Roma como protestava ser;<br />

mas sei que a situação das famílias nobres levava-as naturalmente a caírem sob nossas mãos. Sem o auxílio romano não<br />

poderiam manter-se por um só dia; precisavam, pois, de nós, mais do que nós precisávamos delas.<br />

Só por esforço de imaginação poderíamos dizer que eram amados do povo todos aqueles Sumos Sacerdotes e sua<br />

corte de levitas, cantores e sicofantas. Constituíam pesada carga para o povo, e tomavam-se excessivamente a sério. Tenho<br />

mais coisas a dizer, mas aqui apenas direi que vocês, judeus, nada têm a orgulhar-se dos seus reis, Sumos Sacerdotes e mais<br />

aproveitadores do poder. Era com o auxílio da força romana que eles mantinham o povo submisso. Mas adiante voltarei ao<br />

assunto. . .<br />

O povo na verdade odiava os Sumos Sacerdotes, mas nada podia contra eles. Os sacerdotes guardavam o Templo<br />

– e o Templo era o núcleo central da vida religiosa dos judeus; e por sua vez a religião era o nervo central da vida espiritual e<br />

física dos judeus. Essa gente vivia para a religião. Vi muitas terras e muitos homens. Com Germânico passei quase todo um<br />

lustro na Germânia; estudei os usos e costumes dos bárbaros d’além Reno; estive na Gália, na Espanha e na África; penetrei<br />

nos mistérios do sacerdócio egípcio, dos magos da Caldéia, dos encantadores de serpente da Abissínia – e jamais encontrei um<br />

povo que não dedicasse suas energias à luta contra os vizinhos hostis, à aquisição dos bens do mundo e da sabedoria, ao culto<br />

das proezas, à satisfação, em suma, das paixões normais do homem. Mas no caso dos judeus tudo era diferente: seus interesses,<br />

sua vida inteira, todos os pensamentos e todo o amor, tudo se voltava para um fim único – o seu Deus. Era no que todos se<br />

concentravam, ansiosos por lhe acatar os mandamentos até nos mais estranhos e minuciosos detalhes ritualísticos.<br />

E como fosse o Templo o núcleo central da vida religiosa, muito naturalmente se fez também o centro de todas<br />

as atividades do povo, das suas meditações, sonhos e desejos. Não havia para os judeus outra vida além daquela, e desse modo<br />

o Sumo Sacerdote se tornou não só o diretor das funções religiosas como na realidade o dirigente do povo inteiro. Era o mais<br />

alto funcionário religioso e ao mesmo tempo um rei sem coroa. Podia mandar prender judeus ainda além das fronteiras da<br />

Judeia. Mas o Sacerdócio se foi transformando numa sanguessuga: para ele todo o sangue e toda a medula do povo. Os Sumos<br />

Sacerdotes nadavam em riquezas; além dos dízimos e primeiros frutos pagáveis em espécie, ainda impunham taxas adicionais.<br />

Cada peça sacrificial trazida ao Templo era acompanhada de um emolumento para os sacerdotes. Mesmo que o mais pobre dos<br />

fieis viesse com uma pomba, um punhadinho de incenso, modesto cântaro de vinho ou sacola de farinha, não se eximia do<br />

tributo em dinheiro para os sacerdotes. E a renda da carne dos sacrifícios! O que o Deus recebia era apenas algum sangue,<br />

parte do sebo e muxibas; o remanescente, a carne boa, ia para os Sumos Sacerdotes. Todos aqueles dízimos cabiam a umas<br />

tantas famílias monopolizadoras dos mais altos cargos do Templo. Os sacerdotes de inferior classificação, membros de<br />

famílias obscuras, esses eram pobres – e arcavam com todo o trabalho. Verdadeiros escravos. E era dessas ínfimas camadas do<br />

Sacerdócio que brotavam os rebeldes e fomentadores de todos os levantes.<br />

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Por traz da fortaleza Antônia corriam os muros da cidade. Ora, aconteceu certa vez que, descendo a ladeira, me<br />

desviei da trilha regular e me assombrei com o que vi. Primeiramente, sonidos como de cincerros, tal se houvesse gado<br />

pastando por ali, mas não tardei a ver que as campainhas e matracas eram conduzidas por seres humanos em vozeio enquanto<br />

caminhavam. “Tama, tama”, iam dizendo, palavras que, vim a saber, significavam “Impuro! Impuro!”. E eu me aproximava<br />

daquelas criaturas para indagar o que era, quando um dos homens me deteve. Interpelei-o, mas antes que me respondesse,<br />

começaram a desfilar hordas de aleijados, mancos e cegos que ao me pressentirem debandaram em pânico, uns de arrasto,<br />

outros tropegamente, outros levados em carrinhos. Os cegos apalpavam o terreno com os bordões e gritavam pelos guias; e<br />

naquela aflição descreviam círculos, sem que ninguém os pusesse no caminho. Por que? Porque toda aquela gente estava<br />

fugindo da peste. Agarrei o meu homem e foi com dificuldade que o induzi a falar.<br />

O extraordinário movimento se relacionava a uma fonte ali da encosta. Havia a superstição de que<br />

periodicamente vinha um anjo mexer naquela água, e que quem dela tomasse se curava de qualquer doença. Até aquele dia a<br />

fonte permanecera o remédio natural dos doentes e aleijados da cidade; mas os leprosos, sempre metidos fora da cidade, no<br />

vale de Kidron, haviam invadido a encosta e ocupado a fonte. Daí a corrida louca dos aleijados e doentes.<br />

A despeito da multidão que me tomava o caminho, aproximei-me da fonte, mesmo com risco de infecção, e vi,<br />

rebocando-se na lama grossa aqueles trágicos resíduos humanos, criaturas sobre cujo esqueleto as carnes horrendas se<br />

apegavam como os andrajos se apegam ao corpo dos mendigos. Homens, mulheres e crianças, agitando desesperadamente seus<br />

tocos de membros, lutavam por um lugar na lama, que tomavam e esfregavam no corpo. Não pude suportar o horror daquela<br />

visão – voltei-me e fugi. O ar recendia a carne podre.<br />

Então era assim! Nos altos, Jerusalém estampava contra o céu, o seu Templo todo ouro, e suas nobres torres, e<br />

ali em baixo gania aquela podridão e miséria! De qualquer lado que voltasse os olhos eu só via mendigos e aleijados, e párias<br />

de todos os cantos da terra. Ali na Cidade Baixa, ao pé das muralhas, no vale de Hinnom e junto às águas do Siloah, lá na<br />

região do vale de Kidron e no pé do Monte das Oliveiras, iam ter as valas em que os humildes servidores dos Sacerdotes<br />

lavavam o couro dos animais sacrificados, e ali os pobres lutavam desesperadamente pela posse dos resíduos. Que contraste<br />

aquilo com a vida dos opulentos contratadores de taxas, com os palácios da aristocracia sacerdotal da Cidade Alta e com os<br />

jardins do Monte das Oliveiras e dos bairros novos! Havia um abismo entre as duas classes da população – entre a gorda<br />

opulência de cima e horrorosa pobreza de baixo.<br />

Jerusalém enxameava de coletores de taxas e dízimos, grandes e pequenos. Não tinha fim a variedade dos<br />

tributos impostos à pobreza. O Povo Eleito, ali em sua própria terra, era comparável ao asno que pacientemente conduz carga<br />

dupla – a dos senhores locais e a dos senhores de fora. Havia em primeiro lugar os impostos devidos a nós, romanos. Ao<br />

tomarmos posse da província encampamos o sistema fiscal dos tetrarcas e príncipes judeus, e não vimos razão para diminuir,<br />

no mínimo que fosse, as exações por eles instituídas. Coletávamos taxas de capitação de água, de produtos alimentícios, carne,<br />

sal, pão e a de estradas; e além disso impúnhamos tributos especiais a cada cidade separadamente. Vinha depois uma série de<br />

taxas sobre as coisas levadas ao mercado: o lavrador da Galiléia, o campônio do vale de Jezreel, o vinhateiro do Sharon não<br />

podiam levar ao mercado as suas cestas de verduras ou frutas, nem os seus cereais e vinhos, antes do pagamento da parte<br />

devida aos romanos; e em cada passagem de rio ou encruzilhada erguiam-se as guaritas dos arrecadadores. Tudo isto era a<br />

parte de Roma, e depois de arrecadada vinha a série de exações religiosas – as taxas do Templo, os primeiros e segundos<br />

dízimos dos sacerdotes, o imposto de redenção dos recém-nascidos, o dos primeiros frutos e semelhantes. A tributação era<br />

arrendada a contratantes especiais que mantinham um exército de arrecadadores; por toda parte viam-se esses homens com<br />

suas medidas e cordas de nós, entregues à tarefa de espremer a gente pobre. E ai do lavrador que ficasse em atraso! Eles<br />

tomavam-lhe a última vaca, o último asno, e ainda o vinhedo e o campo de cultura – e o lançavam à prisão . Raramente eram<br />

vendidos como escravos; as leis impediam que judeus comprassem judeus. Praticamente qualquer escravo retinha todos os<br />

direitos do homem livre. E toda escravização terminava ao fim de sete anos, mesmo que o escravo fosse vendido por toda vida.<br />

A compra estendia-se ao trabalho do escravo, não à sua pessoa, de modo que só afetava o dia do trabalhador. E, nestas<br />

condições, que judeu quereria adquirir um escravo judeu? Havia um ditado popular “Aquele que compra um escravo, compra<br />

para si um senhor”. Esta situação agravava o problema da pobreza. Por um lado, com aquelas espoliações os contratadores<br />

acumulavam mais e mais terras; e por outro lado, mais e mais gente acorria para as cidades. Destituídos de todas as suas<br />

posses, não restava àquela gente meios de ganhar a subsistência – nem mesmo escravizando-se.<br />

Muito nos preocupávamos com isso. Nada mais claro que a perpétua inquietação daquela província se radicava<br />

no sistema de taxação, determinante da pobreza das massas. Numerosos espoliados aderiam aos bandos patrióticos que não se<br />

detinham diante de nada, no esforço de destruir a ordem estabelecida. Tinham o nome de fanáticos, mas na realidade não<br />

passavam de salteadores de estrada. As cavernas naturais, tão abundantes na zona montanhosa da Palestina, oferecia-lhes<br />

abrigo e segurança. Herodes manteve-se em constante luta contra eles – contra os que roubavam dos ricos para dividir entre os<br />

pobres. E dentre eles emergiram líderes sempre prontos para desafiar tanto o poder de Roma, como o dos Sumos Sacerdotes.<br />

Freqüentemente aderiam aos grupos muitos sacerdotes pobres, cuja oratória fanática, voltada contra os invasores do território,<br />

acarretavam ataques aos soldados romanos. Não era tarefa simples suprimi-los, e tivemos de acentuar a severidade dos nossos<br />

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métodos. Estávamos decididos a acabar com os bandos, crucificávamos cada líder que nos caía nas mãos, e aos seus seguidores<br />

vendiamo-los como escravos nos mercados estrangeiros ou mandávamos para a carniçaria do anfiteatro de Roma. E não eram<br />

os mais perigosos. Havia os refugiados no êxtase religioso; os que fugiam para o deserto filiados a uma seita que tinha a<br />

pobreza não como infortúnio, mas como alta virtude que todo homem deve cultivar. Os mestres e intérpretes dessa seita<br />

criaram um sistema religioso baseado na idéia de outra vida depois da morte, ou da sobrevivência da alma. Pretendiam que a<br />

punição dos maus atos e a recompensa dos bons não eram coisas deste mundo, senão do outro. Não é preciso dizer que os<br />

judeus de boa cabeça, como o Sumo Sacerdote e o seu partido, não se deixavam levar por estes absurdos. Mas a gente de que<br />

estou falando tinha a vida no outro mundo como uma absoluta realidade; a vida aqui, diziam eles, serve apenas como<br />

preparação para a vida do além; isto aqui “é o vestíbulo da grande morada”. E com estas idéias na cabeça, viviam a purificar-se<br />

e a evitar a prática do mal. Não bebiam vinho, nem comiam carne. Muitos passavam a figos e mel silvestre, comum naquelas<br />

paragens. Compartilhavam entre si tudo quanto possuíam – um dava a outro o seu último pedaço de pão, o seu último trapo.<br />

Formavam irmandades, com refeições em comum, precedidas de cerimônias religiosas. Para entrarem nessas irmandades<br />

tinham de desfazer-se de todos os bens terrenos; era condição essencial. A propriedade cessava de ser individual e tornava-se<br />

comum. Quando vinham do deserto para a cidade, eram hospedados por “irmãos” que ali vivessem; formavam realmente uma<br />

grande família. Nós, romanos, sabíamos dos perigosos elementos incorporados a essa seita e nos precavíamos.<br />

Aparentemente esses homens podiam ser tomados como os mais humildes do mundo; mansos como cordeiros,<br />

criaturas das quais não poderia sobrevir mal nenhum para o estado e a hegemonia romana; chegavam a Ter um axioma assim:<br />

“É proibido ao homem opor-se à vontade de Deus; cada governo existe por vontade de Deus e portanto é proibido ser contra<br />

qualquer governo”. Inofensivos para o estado como eram na aparência, na realidade sobreexcediam em perigo aos rebeldes e<br />

salteadores. Estes eram inimigos declarados do Sumo Sacerdote e de Roma; francamente proclamavam que a única salvação<br />

estava no destruir o estrangeiro dominador e que o seu Deus Jeová os ajudaria nisso. Nós não ignorávamos o que tínhamos<br />

pela frente; mas a pretensa humildade daqueles não passava de astúcia judaica. Esses homens não se erguiam contra a<br />

autoridade; absolutamente, não; apenas esperavam pela vinda do Messias. Era-nos difícil apreender a significação dessa<br />

palavra “Messias”. Que coisa era o Messias? Alguma espécie de rei judeu preposto a libertar a judeia do jugo romano? Algum<br />

soberano do mundo? Proclamavam que o Messias era o eliminador do mal do mundo, o introdutor universal da bondade;<br />

alguém que, segundo a visão alucinada dos seus poetas, iria fazer “o leão deitar-se ao lado do cordeiro, e o leão não atacaria o<br />

cordeiro”. E igualmente faria as “nações transformarem suas espadas em charruas”. Ou, ainda, segundo as ilusões de outros<br />

poetas dessa ordem, conquistaria o mundo com o “espírito de Deus”, não com as armas, à moda romana. Mas a mim, que<br />

diferença fazia que Roma fosse conquistada por este ou aquele meio? E constantemente eu acentuava para Pilatos o ponto. O<br />

Sumo Sacerdote apoiava a minha idéia: os tais místicos tão humildes e com caras de santo, que não faziam guerra contra Roma<br />

e apenas esperavam pelo seu Messias, eram mil vezes mais perigosos que os abertamente rebelados. Estes pretendiam<br />

declaradamente no expelir da Judeia; os outros visavam transformar o mundo inteiro numa Judeia e levar toda a gentilidade à<br />

circuncisão! Que desmarcada insolência!<br />

Passei a odia-los desde o momento em que pela primeira vez os defrontei. Encarei-os como os mais sutis e piores<br />

inimigos da ordem vigente, obscuras toupeiras que subterraneamente minavam a segurança de Roma. Sempre que dos altos da<br />

Antônia eu via um deles lá num pátio do Templo, meu sangue refervia: criaturas de aspecto selvagem, quase nuas, uma pele de<br />

leopardo ou carneiro sobre os ombros, pés descalços, cabelo arrepiado, pele requeimada do sol do deserto, com todos os sinais<br />

da magreza por fome e privações e o brilho do fanatismo nos olhos, levantavam as mãos toda ossos para o santuário,<br />

invocando espíritos tão maus quanto eles. Eu lia-lhes na alma o anseio pela destruição de Roma para que o seu Messias<br />

entrasse.<br />

A primeira impressão que me causavam era a de não pertencerem a este mundo; impossível ser da terra aquele<br />

fanatismo incompreensível. Qualquer outra classe de gente que chegasse a tal ponto de humilhação por amor a uma fé,<br />

abandonaria os seus deuses e procuraria outros mais poderosos e inspiradores de mais confiança. Porque eu não podia<br />

compreender o que eles achavam no seu Deus Jeová, nem de que maneira este Jeová os ajudava. Um povo escasso e pobre,<br />

num obscuro e desértico pedacinho do mundo e ainda mais sujeito ao poder de Roma; um povo a viver uma existência de<br />

torturas e incertezas e que a qualquer momento nós poderíamos reduzir a nada. Que espécie de vida era essa?... Eu de mim não<br />

submeteria o pior dos meus escravos ao ritual que tal Deus impunha aos seus fiéis. Vedada a alegria, vedado o amor, vedada a<br />

beleza: tudo lhes vedava Jeová. E, no entanto, que devoção, que incompreensível fé tinham em seu Deus, que exaltado amor a<br />

Ele os ligava, com que enlevo a Ele se escravizavam! E qual a recompensa? Muitas vezes me veio a idéia de que as relações<br />

entre os judeus e Jeová não se assemelhavam às relações dos demais povos com os outros deuses; não se baseavam em<br />

nenhuma reciprocidade de obrigações – era um amor sem limites e sem recompensa. Por aquele Deus aquela gente arriscava<br />

tudo, sujeitava-se a tudo, inclusive lançar-se contra o poder de Roma. E aí estava o perigo...<br />

Os fanáticos abundavam em Jerusalém. Acontecia com freqüência que um campônio vindo à cidade por ocasião<br />

dum dos três grandes dias santos lá ficava até o dia santo seguinte. O povo era muito hospitaleiro quando se tratava de irmãos<br />

da província, sobre tudo entre os pobres. Davam trabalho a esses peregrinos, de modo que pudessem ganhar a subsistência<br />

durante a estada na cidade. Na parte do Templo reservada ao povo todos os ofícios tinham a sua área reservada. Um peregrino<br />

ourives, ou tecelão, ou fazedor de tendas que entrasse em Jerusalém dirigia-se ao setor do ofício correspondente e encontrava<br />

trabalho. Havia também um lugar reservado aos lavradores e operários braçais – ficava na parte mais baixa, entre os pilares<br />

que sustinham a plataforma do Templo. E em conseqüência da grande aglomeração urbana durante os dias santos, doenças<br />

infecciosas rebentavam e espalhavam-se rapidamente.<br />

Mas a onda de peregrinos não era composta apenas dos pobres, dos sem lar, dos desempregados e indigentes;<br />

sim também de galileus rebeldes, de revolucionários e fanáticos, homens que nas massas descontentes encontravam o melhor<br />

elemento para as atividades anti-romanas. Que material melhor, por exemplo, do que a gente privada de suas terras pelo rigor<br />

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fiscal dos coletores de taxas? Muitas altercações tive com o Sumo Sacerdote a este respeito, quando insistia na necessidade de<br />

limpar Jerusalém desse resíduo de fora e limitar a peregrinação dos dias santos. Mas, sempre com o olho na renda do Templo,<br />

o Sumo Sacerdote não me atendia. Era da maior importância para o tesouro aquele perpétuo afluxo de peregrinos. E, ademais,<br />

matéria da exclusiva competência lá deles – totalmente fora da jurisdição romana.<br />

Em noites de insônia muitas vezes deixei a galeria da fortaleza, e do alto dum torreão me punha a contemplar o<br />

que se passava em redor do Templo. As estrelas brilhavam no céu. Os pátios que durante o dia enxameavam de homens e<br />

mulheres caiam então em silêncio. Voz nenhuma era ouvida, nenhum rosto eu distinguia; só o movimento dos archotes<br />

denunciando a presença dos guardas noturnos na ronda eterna. Claro que não me sentia intimidado por aquele Deus que em<br />

toda a imensidão da terra havia escolhido justamente aquele ponto para sua morada, e lá morava atrás de cortinas de ouro e<br />

purpura, rodeado do fogo eterno que ardia nos altares. E no entanto não me sentia à vontade. O desconhecido e a invisibilidade<br />

de tal Deus perturbavam-me o espirito e despertavam-me a curiosidade. E ia recrescendo a minha tentação de penetrar no<br />

Santuário dos Santuários pela passagem secreta subterrânea, afim de surpreende-lo e descobrir quem Ele era, ou o que é que<br />

repousava entre as asas dos dois grandes pássaros místicos. Ver o jamais visto e travar conhecimento com a divindade<br />

desconhecida! Mas tenho de confessar que me faltou coragem. Com os olhos lá naquela estrutura dentro da qual se achava o<br />

Deus misterioso, um estranho sentimento me tomava. Eu tinha a certeza de que os nossos deuses romanos eram mais<br />

poderosos – Júpiter, por exemplo, com os seus raios. E a prova estava no que havia feito em prol dos seus seguidores. Mas<br />

apesar disso, o Deus dos judeus me deixava inquieto. Um Deus que não corporificava uma só paixão, que se continha inteiro<br />

em si mesmo e não podia ser representado! Um Deus que não encarnava nenhuma qualidade humana e enchia todo o universo<br />

– que ficava acima do universo e escravizava o povo da sua eleição, fazendo-se adorar com os maiores extremos de amor!<br />

Quem era Ele? Quem era esse Deus dos judeus?<br />

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Mas afinal me fartei daqueles judeus. Sempre em rixa, mesmo na área do Templo – até os sacerdotes viviam em<br />

disputas com os intérpretes da lei. A celeuma daqueles choques alçava-se até o céu. Certa vez chegaram a vias de fato – e<br />

receei a deflagração de alguma revolta; tive de mandar meus asquelonitas pacificá-los, enquanto fiquei a ponderar qual poderia<br />

ter sido a causa da disputa, evidentemente da maior importância. Era uma nonada: decidir se quem trazia um carneiro para o<br />

sacrifício tinha de apor a mão sobre a cabeça do animal e confessar os seus pecados, ou confessar os seus pecados sem apor a<br />

mão sobre a cabeça do animal. Assombrei-me com a insignificância daquilo. Eu já não agüentava mais. O tédio me ia<br />

consumindo.<br />

Certa manhã apareceu-me na cidadela um moço de formosa aparência; trazia toga à moda da metrópole, e se não<br />

fosse o seu leve sotaque alexandrino, eu o tomaria por um autentico nobre romano. Constituição atlética mas não excessiva,<br />

belo rosto, maneiras distintas. Chegou e disse:<br />

− Hegemon (era este o meu título oficial entre os judeus), enquanto estiver em nossa modesta Jerusalém, que, em<br />

virtude da severidade das leis religiosas não permite as diversões greco-romanas a que estais acostumado, meu pai, o velho<br />

Sumo Sacerdote, convida-vos a honrar sua casa amanhã e a tê-la em tudo como vossa. Também me confiou a missão de<br />

oferecer-vos esta coroa de louros, feita de ouro fino, como lembrete do convite ora feito. Meu pai, o velho Sumo Sacerdote,<br />

meu irmão Eliezer, também antigo Sumo Sacerdote, meus outros irmãos e eu, todos nos esforçaremos por vos proporcionar<br />

modesta compensação do vosso trabalho na mantença da paz em nossa cidade.<br />

Confesso que o moço produziu em mim ótima impressão. Jamais esperei ver entre os judeus um tipo assim bem<br />

educado, e depois de breve reflexão aceitei o convite.<br />

À hora marcada lá apareci e fui introduzido não em uma casa mas numa série de construções. De fora, como de<br />

uso em todos os palácios de Jerusalém, nada se via; a mansão dava idéia duma caserna construída com blocos da pedra local e<br />

dotada de torreões de vigilância. Mas dentro era o paraíso. A primeira coisa que vi foi o chamado pátio externo, com<br />

pavimento de mármore branco; em redor dispunham-se os numerosos oficiais do Sumo Sacerdote. Trabalhavam ali os<br />

coletores de taxas e mais funcionários da administração. Num dos edifícios funcionava o pequeno Sanhedrim, constituído<br />

largamente de membros da família e amigos íntimos. Passamos depois a um pátio interno, onde vi os jardins do Sumo<br />

Sacerdote, a sua residência particular e a dos seus. Dele saia um corredor ladeado das acomodações da guarda.<br />

Quando ali cheguei senti o perfume de numerosas plantas desconhecidas, agrupadas em moitas num belo parque<br />

com piscinas. Altos ciprestes, oleandros e limoeiros sombreavam as águas. As rosas eram evidentemente as flores prediletas<br />

da aristocracia judaica, pois vi o parque inteiro florido de rosas de todas as cores. Fora, na cidade, a população padecia sede, a<br />

água era um luxo, as cisternas secavam no verão; e quando sopravam os ventos quentes carreadores da areia fina do deserto, os<br />

habitantes de Jerusalém de comprimiam à beira dos filetes d’água derivados do riacho de Siloah. Muito freqüente nas ruas a<br />

disputa dos odres d’água que os aguadeiros enchiam nos poços dos arredores e nas lagoas de Salomão. Mas ali no pátio do<br />

Sumo Sacerdote o líquido golfava abundante de muitas fontes de bocas de leão, dispostas em redor das piscinas. Uma<br />

canalização especial aduzia a água da Fonte do Templo para os jardins do Sumo Sacerdote, como também uma canalização<br />

especial conduzia para ali (e para os jardins dos nobres) o adubo líquido que era o sangue dos animais sacrificados. Aquela<br />

abundante irrigação com água e sangue mantinha os canteiros de plantas orientais em maravilhoso grau de desenvolvimento. E<br />

lindos bandos de pombas esvoaçavam por ali.<br />

Como em geral as residências nobres de Jerusalém, a casa do Sumo Sacerdote era feita de grandes blocos de<br />

pedra, sem nenhuma decoração exterior para que a aparência fosse da maior austeridade. Janelas em triângulo, com vidros<br />

coloridos da Fenícia, coavam suave luz para os aposentos. Do lado norte, fronteiro ao Templo, uma escadaria de quinze<br />

degraus, de mármore branco, levava ao salão das colunas. Três renques de colunas, dos três lado: corintias, com os capitéis<br />

sopesando as vigas de cedro do teto revestido de finas madeiras e adornado de mosaicos. O assoalho era um tapetamento de<br />

mosaico de lindas cores, figurando diversos símbolos judaicos. No patamar da escadaria e sobre o teto do salão das colunas<br />

erguia-se uma pirâmide – a pirâmide que compunha a fachada da residência daquele lado.<br />

Fui recebido pelo mordomo chefe, acompanhado de um grupo de servos, e conduzido através do pátio exterior.<br />

À entrada desse pátio esperava-me o moço do convite – justamente o filho mais jovem do velho Sumo Sacerdote. Trazia um<br />

manto de fios de prata e coroa de louro sobre os cabelos artificialmente encaracolados. Ao pé do salão das colunas adiantaramse<br />

para me receber todos os seus irmãos, vestidos do mesmo modo, igualmente altos e varonis, alguns com barba em trança à<br />

moda caldaica. Conduziram-me cerimoniosamente pela escadaria, rumo ao salão das colunas. Servos e escravos, em leves<br />

vestes transparentes, acompanhavam-nos com lâmpadas de óleo, apesar de ser ainda bastante a luz do dia. Do salão das<br />

colunas passamos para o grande salão das recepções, onde me esperavam, em tronos, o Sumo Sacerdote na regência e mais<br />

dois antigos Sumos Sacerdotes – seu sogro Hanan e seu cunhado Eliezer.<br />

Tenho de confessar que tão cerimoniosa recepção me surpreendeu. Aquela gente tomava-se bastante a sério. Eu<br />

sabia que, segundos os costumes, um ex-Sumo Sacerdote gozava de todos os privilégios do Sumo Sacerdote reinante – e eram<br />

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privilégios quase reais. Tinha o direito de usar a tiara e honras de soberano. E foi assim que lá vi não um, mas três reis – o que<br />

era um tanto forte para mim.<br />

O Sumo Sacerdote reinante saudou-me em hebreu ou aramaico. O terceiro filho do velho Sumo Sacerdote,<br />

Teófilo, que traduziu em grego a saudação – e nessa mesma língua retribuí. Assistentes trouxeram-me uma poltrona, e depois<br />

de acomodado, o Sumo Sacerdote perguntou-me se eu estava apreciando a minha estação em Jerusalém; e exprimiu a<br />

esperança de que, embora privado das coisas amáveis de meu país, eu encontrasse em Jerusalém muita matéria de interesse e<br />

um largo círculo de pessoas educadas, tudo o que me havia de tornar agradável a residência entre eles. Respondi que nós,<br />

romanos, quando nomeados para cargos nas províncias, não deixávamos a capital do Império com vistas em prazeres e<br />

diversões, mas levados a cumprir o nosso dever para com o Imperador. A recepção foi curta, graças a Júpiter! O Sumo<br />

Sacerdote escusou-se com o trabalho que tinha no Templo, onde iam começar os sacrifícios da tarde. Deixou-me entregue à<br />

sua família, ao sogro e aos cunhados – e muito grato eu lhe fiquei.<br />

A refeição foi servida, segundo as praxes orientais, no salão das colunas. Os servos arrumaram as poltronas<br />

estofadas com os linhos tintos de Sidon. Tomamos lugar nas mesas, tendo diante de nossos olhos a vista de Jerusalém.<br />

O salão dava para três lados da cidade. À nossa frente víamos a ponte que da Cidade Alta, passando pelo<br />

Sanhedrim, ia Ter ao Templo, sempre cheia de homens e mulheres indo e vindo. Da altura em que estávamos podíamos<br />

distinguir o Pátio dos Gentios; o que ficava para além nos era oculto pela alta porta dourada e torreada, assente sobre os catorze<br />

degraus e com as galerias laterais. Era agradável aquele salão das colunas; cortinas coloridas nos defendiam dos raios do sol já<br />

no ocaso, e por elas se coavam os perfumes dos jardins, como que refrescando o ambiente. Servos em leves túnicas<br />

transparentes nos serviam em vasos de ouro água de rosas, e enxugávamos nossas mãos em toalhas de Sidon. Lá estava diante<br />

de nossos olhos Jerusalém, como um enorme forno superaquecido. Na parte baixa, onde residia a gente mais pobre, os casebres<br />

de barro davam a idéia de pedrouços rolados, pelas encostas até as muralhas externas, e depois para além, pelo vale de Kidron<br />

afora, até que começavam a galgar o Monte das Oliveiras. Foi daquele salão que verifiquei como a cidade se espalhava pelo<br />

morros vizinhos. Lembrava uma lebre a saltar de uma elevação para outra. Essas elevações eram cobertas de aterraçados<br />

descendentes de casario muito congesto, entremeado de cisternas e moitas de arbustos; árvores e flores. Eu não supunha que<br />

Jerusalém fosse tão grande; derramava-se para além das muralhas e cobria com seus bairros novos toda a área do monte<br />

Scopus, do lado da Antônia, e descia até a Porta dos Carneiros e ainda mais além; do outro lado galgava a Leste o Monte das<br />

Oliveiras e a Norte espalhava-se pelo vale do Hinnon, formando a zona dos pobres.<br />

E tudo aquilo cheio de gente, os tetos, os balcões as janelas; os habitantes de Jerusalém fugiam do calor interno<br />

das casas. Aqui e ali meus olhos se repastavam numa mancha de verdura – pequeno bosque de ciprestes em meio ao casario.<br />

Evidentemente lá se refrescavam os aristocratas. E, transpostas as muralhas, essas manchas de verdura iam-se amiudando até<br />

formar florestas de ciprestes e oliveiras.<br />

A refeição correu em amena atmosfera de dignidade, com poucas falas; o comer parecia assumir um caráter<br />

religioso. À direita do pai Eliezer, o filho mais velho, reclinava-se em seu coxim; escravos serviam-no com o mesmo respeito<br />

devotado a Hanan; o mesmo com os outros filhos e os hospedes. Meu coxim fora colocado à esquerda do velho; do lado oposto<br />

ficavam os outros quatro filhos. Pequenas mesas com toalhas de linho, e serviço acompanhado de suave música de harpa e<br />

flauta, vinda de trás das cortinas. Não vi mulher nenhuma. Tudo ali homem – hóspedes e servos.<br />

Notei que os pratos, vasos e o mais eram de metal batido e sem ornamento nenhum; parecia que também naquele<br />

ponto os judeus imitavam Jeová. O cardápio incluía coisas de forno, preparadas por um cozinheiro sírio. Após o cerimonial da<br />

lavagem dos dedos, o velho Sumo Sacerdote abençoou o pão que tinha diante de si em rato de ouro, e o ritual foi repetido pelo<br />

outro Sumo Sacerdote, seu filho mais velho. Em seguida foi o pão assim abençoado servido a todos os comensais. Tirante a<br />

carne de porco, proibida pela religião, nada mais faltava. Tivemos peixe do Egito e do mar da Galileia, e peixe da cidade de<br />

Akko, preparado de muitas formas, assado, cozido em pastelaria ou em conserva – e nesta vi de novo a predileção dos judeus<br />

pelo alho e a cebola. E tudo muito irrigado de vinho. Era notável a ciência da escolha do vinho segundo o prato. Assim, depois<br />

do peixe em óleo, nos serviam um vinho de uvas brancas, que nos refrescava o paladar. Muito variados os pratos de carne, mas<br />

quase todos de ave. Pombas, galinhas e marrecos; e também aves selvagens, como o faisão; mas em caso nenhum serviam-nas<br />

inteiras, como era de moda entre os romanos e fora levada à maior perfeição pelos cozinheiros de Alexandria, também<br />

especializados em servir assim leitões. Depois de cada prato os servos faziam a ronda com bacias de águas de rosas. Além de<br />

peixe e carne notei abundância de verduras, cosidas ou em saladas – algumas ignoradas pelos romanos.<br />

Finda a refeição, correram de novo as bacias com água de rosas e toalhas de linho, e teve início a mais agradável<br />

parte da reunião. Cessou a solene compostura do jantar, que fazia parte da etiqueta. Os servos acenderam as lâmpadas de óleo<br />

suspensas das colunas coríntias; as sombras da noite já começavam a envolver Jerusalém. A luz das estrelas misturou-se com a<br />

emitida pelas lâmpadas e candelabros e, reclinados em nossos assentos, ficamos a ouvir as melodias da harpa tangida atrás das<br />

cortinas. Quando a mesa foi tirada e entre as colunas se acenderam os turíbulos para perfumar o ambiente, tive ensejo de<br />

atentar melhor nos meus anfitriões.<br />

Os cinco filhos do velho Sumo Sacerdote eram todos finamente educados. Além da educação oficial necessária<br />

aos pretendentes às altas posições do Sacerdócio, haviam recebido a subministrada pelos mestres gregos adquiridos para esse<br />

fim; – e desse modo estudaram retórica, história grega, matemática e astronomia. E mostravam-se perfeitamente senhores das<br />

línguas e literaturas grega e romana. Unicamente o hábito judeu de gesticular e o sotaque alexandrino os denunciava como não<br />

romanos; mas podiam passar por filhos de Askelon e mesmo da Grécia.<br />

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O velho Sumo Sacerdote educara-os em Alexandria, onde também eles se deram aos esportes. Sem nada de<br />

excessivo na musculatura, mostravam-se bem desenvolvidos e atléticos. O mais moço, Hanan, tinha o mesmo nome do pai e<br />

era o favorito. Pareciam-se muito; os mesmos lábios firmes, o mesmo queixo enérgico; o cabelo grossos, crespo e jogado para<br />

trás lembrava em ambos o leão. O jovem Hanan tinha a barba e os cabelos mais grosso que os dos irmãos e mostrava-se<br />

especialmente orgulhoso da barba.<br />

Hanan interpelou-me sobre os mais recentes fatos políticos de Roma, assunto que aparentemente muito lhe<br />

interessava; pediu notícias do César já no seu retiro de Capri e quis saber o que se dizia sobre o provável sucessor do velho<br />

imperante. Falava-se em Sejano, o conselheiro de Tibério? Os irmãos de Hanan interessavam-se mais pelos esportes, e<br />

ouviram muito atentos as notícias que dei; indagaram do nome do gladiador mais popular em Roma e perguntaram se eu o vira<br />

na arena; também se mostraram interessados em saber quando ia o Imperador celebrar os próximos jogos. Não posso dizer<br />

quais as classificações sacerdotais desses moços, mas senti que com tal educação de nenhum modo poderiam interessar-se a<br />

fundo pelo severo e complexíssimo ritual judaico; haviam de estar arquifartos com a monotonia do serviço – aquela eterna<br />

matança de carneiros, os quais eram banhados num lavadouro de ouro antes de conduzidos para o altar. Cansados igualmente<br />

daquela eterna música de flauta, sempre tocada por homens. E convenci-me de que se não fosse a grande riqueza que seus<br />

cargos sacerdotais lhes traziam vitaliciamente, de bom grado abandonariam o Sacerdócio por outra qualquer atividade. Senti<br />

neles simpatia pelos nossos costumes e nossos deuses.<br />

A moribunda luz do dia punha no ar da cidade uma névoa difusa. Em todas as casas luzes se iam acendendo – lá<br />

no Templo já brilhavam os archotes dos guardas. As asas da noite, relembrativas das asas daquelas aves místicas que eles<br />

chamavam querubins, fechavam-se gradativamente sobre o próprio Templo; e acima dele como que brilhava a luz do alto da<br />

torre Antônia. E pairante sobre tudo o pálio das estrelas...<br />

O velho Sumo Sacerdote tinha-me ao seu lado, e de assunto em assunto nossa conversa foi derivando até<br />

falarmos nas perturbações da província; e confessou as dificuldades que estava tendo com os irrequietos galileus. Cientifiqueime<br />

de que de novo o poder do Sumo Sacerdote estava sendo desafiado por algum daqueles indivíduos, fanaticamente crentes<br />

em si próprios, que se dão como portadores de missão divina ou mensagem. Parece que naquela ocasião uma dessas figuras<br />

emergira, e excepcionalmente perigosa; um homem que, desta ou daquela maneira, conseguira persuadir a gente comum de<br />

que ele era a reencarnação dum dos antigos profetas, famosos na história e na lenda pelas maravilhas operadas; e atrás desse<br />

homem ia-se juntando uma multidão cada vez maior de gente persuadida de estar realmente seguindo o portador duma<br />

mensagem divina de redenção e promessa.<br />

E lá reclinados em nossos coxins no salão das colunas, discutimos o homem Jochanan, o qual, por ter induzido o<br />

povo a mergulhar nas águas do rio Jordão, passara a ser conhecido como “O Batista”. No começo Hanan e seus filhos não<br />

mostraram interesse em debater diante de mim tal assunto; aparentemente queriam ocultar ao gentio que eu era a história do<br />

estranho “profeta”. Durante a primeira parte da noite os mais moços entretiveram-se com façanhas de gladiadores e recordes<br />

olímpicos, enquanto o mais velho conversava com o Sumo Sacerdote sobre os distúrbios da Galileia e do deserto; mas, embora<br />

entretido na conversa de esportes, apanhei o que pude de que os dois cochichavam.<br />

− De onde diz que veio esse homem, perguntou o velho em aramaico, língua que jamais supuseram que eu<br />

conhecesse mas da qual eu já sabia o bastante para dar tento àquele assunto.<br />

− Da Galileia.<br />

− Galileia! Repetiu o velho com desprezo – e recordou um dito popular: “Que pode vir de bom da Galileia?”<br />

Eu naquele momento estava a ouvir Teófilo e a falar ao jovem Hanan dos últimos escândalos de Roma – mas<br />

interrompi a conversa e indaguei do velho:<br />

− Perturbações na província do Tetrarca?<br />

− “Perturbações”? repetiu ele. Oh, de modo nenhum – além de que nada temos com isso. Herodes Antipatro<br />

saberá lidar com qualquer rebelde que surja em seu território, como aliás sempre fez. Estávamos falando de desordeiros da<br />

Galileia, um lugar abominável, estufa de rebeliões; não fossem os galileus e poderíamos dormir sossegados. Mas tudo<br />

acontece na Galileia. Hoje, é um surto de banditismo. Amanhã, um Messias que explode... O povo lá, crédulo em extremo, está<br />

sempre pronto para seguir qualquer aventureiro. E não só os fanáticos: há lá ainda aqueles absurdos super-pietistas, os hasidins,<br />

os essenianos, que vivem eternamente em cerimônias de lavagem e batismo. Batizam tudo – seus corpos e suas vasilhas – e<br />

acabarão batizando o sol e a lua, disse o velho num acesso de riso colérico, que seus filhos emendaram.<br />

− Sei a que homens se está referindo, disse eu. Àquelas criaturas esqueléticas e famintas que às vezes aparecem<br />

nos pátios do Templo, com peles de animais às costas. Diga-me: quem são exatamente, e em que crêem?<br />

O velho respondeu, sempre em tom de cólera:<br />

− Esses homens filiam todas as fraquezas e misérias humanas à divindade eterna. Arrastam Deus ao nível dos<br />

mais miúdos interesses humanos. Crêem, por exemplo, que o Todo Poderoso, morador do nosso sagrado Templo, nada de mais<br />

importante tem a fazer senão ocupar-se dos negocinhos de cada um deles. Em vez de guiar o mundo e dirigir os destinos das<br />

nações, sobretudo a sua amada e eleita Israel, esse Deus preocupar-se com as tribulações de cada pequenino esseniano – e note<br />

que não apenas neste mundo, mas no mundo do além, no qual preparou para os bons essenianos um paraíso, e para os maus um<br />

poço de fogo denominado Gehenna – coisas a que não se refere o sagrado Torah. E não é só. Ainda dotaram o Eterno com uma<br />

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comitiva de espíritos benéficos e maléficos, prepostos a lhe executar as ordens. Transferem a providencial atenção do Deus do<br />

povo de Israel – o povo herdeiro de Abraão, Isaac e Jacó – para as miúdas coisinhas pessoais de cada um.<br />

O velho me falava em greco-siríaco.<br />

− Sim, não há dúvida, exclamei. Isso me cheira a blasfêmia – mas por que o permite? Por que não age com vigor<br />

contra esses judeus ateístas?<br />

− Blasfêmia? Ateísmo? Hum... Não podemos usar dessas expressões, nem tampouco agir contra eles por<br />

pensarem assim. Infortunadamente não são esses os únicos infectados com tais loucuras – com a crença, por exemplo, de que<br />

cada homem vive uma Segunda vida num mundo imaginário, e que sua alma se purifica nos céus. Uma grande seita existe<br />

entre nós da qual fazem parte pessoas importantes, todas comparticipando dessas absurdas idéias. Compõem-na os escribas e<br />

fariseus, os homens que interpretam a letra do nosso Torah, não segundo o sentido evidente, mas de acordo com idéias lá deles,<br />

contrárias às nossas tradições, vindas desde Moisés. Mas repito que contra eles nada podemos fazer. As massas incultas estão<br />

do lado dos intérpretes da lei, e se tentássemos eliminá-los – como já o tentamos no passado – correríamos o risco de esfacelar<br />

a unidade da nação, o que cumpre evitar. Que tontas e histéricas esperanças esses homens associam ao culto do tal Messias! E<br />

que perigo essas ilimitadas esperanças criam! Acho melhor calar-me.<br />

− Perigos para Roma? Um levante geral? Perguntei.<br />

− Não vou tão longe, respondeu o velho cautelosamente.<br />

Digo apenas que o fogo da imaginação os transporta a zonas muito perigosas. Mas acho que não devemos tomar<br />

muito a sério os seus absurdos. Chegam a predizer que o Messias vai ressuscitar de suas covas os defuntos...<br />

Risadas gerais irromperam. O velho Hanan voltou-se para mim:<br />

− E como se a carga da lei já não fosse bastante pesada, os fariseus do Sanhedrim introduzem intoleráveis<br />

dificuldades em nosso código criminal – e complicam o processo nos casos dos crimes capitais. Interpõem tantos escrúpulos,<br />

apresentam tantas objeções contra a evidência, descobrem tão cerebrinas interpretações da lei, que os criminosos acabam<br />

sempre escapando.<br />

− Nesse caso, são evidentemente cúmplices dos elementos criminosos, e não me surpreenderei que haja um<br />

secreto acordo entre eles e os fanáticos que levantam o povo contra a vossa religião e a vossa autoridade.<br />

− Não é exatamente assim, contraveio o velho, voltando à sua cautela habitual; mas essas tortuosas sutilezas não<br />

deixam de encorajar a desordem e a enfraquecer a lei. Darei um exemplo das novas idéias que eles lêem no código. Nosso<br />

Torah estatui especificamente que qualquer homem que assalte outro e lhe quebre um dente, ou lhe estrague um olho, deve<br />

pagar o crime com um dente e um olho. Pois lá vêm os intérpretes e dizem que a idéia do Torah não é que o dente seja de<br />

modo literal pago com outro dente, e o olho com outro olho, mas compensatoriamente. Ora, isto vem encorajar a violência.<br />

− Perfeitamente, concordou um dos filhos.<br />

E eu acrescentei:<br />

− Se a lei judaica já não é capaz de manter a paz e a ordem em Jerusalém, nós romanos temos de ver isso.<br />

Parece quer a cautela do velho não fora bem medida, pois que ao ouvir-me dizer essas palavras empalideceu,<br />

enquanto os moços se entreolhavam, alarmados.<br />

Nesse momento chegou-me aos ouvidos um rumor distante no qual se distinguiam palavras em aramaico, de que<br />

não peguei o sentido. Mas tornou-se-me claro, da mudança de expressão que lhes vi no rosto, que o velho Hanan e os filhos<br />

entendiam aquelas palavras e percebiam a quem eram dirigidas. Os servos apressaram-se a correr as cortinas entre as colunas,<br />

de modo a abafar a grita lá longe. Por alguns segundos se fez um silêncio opressivo; por fim o velho falou:<br />

− A razão do protesto é ter convidado o Hegemon para a minha mesa.<br />

− Que estão gritando?<br />

− Os moços remexeram-se, incomodados.<br />

− Por que não dizer? tornou o velho Hanan. Aquilo é uma espécie de sátira contra os Sumos Sacerdotes – veja a<br />

que ponto chegamos... Teófilo, recite para o Hegemon o que se canta nas ruas de Jerusalém contra a mais alta autoridade... isto<br />

é, contra a mais alta autoridade judia, o Sacerdócio, corrigiu ele prontamente.<br />

Teófilo traduziu a canção em latim:<br />

Maldição sobre nós, por causa da Casa de Beitus,<br />

Maldição sobre nós, por causa de seus chicotes chumbados<br />

Maldição sobre nós, por causa da Casa de Ananus,<br />

Maldição sobre nós, por causa de suas traições.<br />

Eles entre si tornaram-se Sumos Sacerdotes,<br />

Fazem dos filhos tesoureiros<br />

E dos genros altos dignitários,<br />

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inquietude.<br />

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E a seus servos chibatam-nos com chicotes de chumbo.<br />

− Eis a nossa recompensa dum longo e fiel serviço prestado ao povo, suspirou amargamente o velho.<br />

− Já é tempo de restaurar a ordem em Jerusalém, observei.<br />

O velho Hanan fez que sim com a cabeça, mais incerto – e os moços olharam-me com um misto de gratidão e<br />

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Com clareza fui percebendo que na família do Sumo Sacerdote era o seu jovem cunhado Hanan quem exercia<br />

maior influência nos negócios do Templo. Sim, era realmente esse moço o poder atrás do trono. O velho Sumo Sacerdote<br />

amava-o mais que aos outros (todos os judeus mostram predileção pelos filhos na velhice) e lhe tinha dado o seu próprio nome.<br />

Hanan bem Hanan não era apenas o mais hábil daquela irmandade; possuía ainda muita força de caráter. Jovem como era –<br />

calculei-o ainda nos vinte e poucos – já havia estabelecido as suas rotas e as trilhava resolutamente. Vejo-o como se o tivesse<br />

ainda à minha frente: alto, musculoso sem exagero, corpo endurecido pelos esportes e peludo; a barba negra tratada<br />

diariamente por um cabeleireiro caldaico, emendava com o cacheado dos cabelos e punha-lhe em moldura o rosto. O nariz<br />

acentuava-se forte, sombreando os lábios finos. Testa larga e os olhos os mesmos do pai, arrogantes sob as bastas sobrancelhas.<br />

Um homem a rever energia dos pés à cabeça, com tudo a postos para a ação imediata. Mãos sempre fechadas, como se prontas<br />

para assumir a ofensiva, lábios tensos, como se a sofrearem um grito de batalha: era um homem em perpétuo estado de<br />

mobilização. Uma palavra imprudente, um olhar inamistoso, e seus músculos se retesavam e o cabelo de seu peito se enristava<br />

qual vegetação de lanças.<br />

Hanan bem Hanan nascera lutador – e havia então muito ensejo para a luta. Não nos era coisa simples – a nós,<br />

romanos ou aos sacerdotes – sustentar o poder em Jerusalém – e aquele moço tinha fome de poder. Fome de poder era o que<br />

toda a sua pessoa gritava, como também sucedia a seu pai. Mas enquanto em longo traquejo o velho aprendera a satisfazer seus<br />

desejos com infinita habilidade e paciência, contentando-se com a dose de autoridade civil que seu genro lhe delegava, Hanan<br />

bem Hanan, ainda com o fogo da mocidade no sangue, não sabia esconder a sua ânsia.<br />

Sabia que muita água tinha de correr pelo Siloah abaixo, antes que ele pudesse realizar seus sonhos. Ainda havia<br />

entre ele e o posto supremo três irmãos mais velhos, também ambiciosos, embora menos. E conquanto o velho amimasse o<br />

filho mais novo como o favorito, o seu desejo era de ver todos quatro revestirem as vestes sagradas. Até aquela data só Eliezer<br />

o conseguira. E lá estava o seu genro no alto cargo, aparentemente sem intenção de retirar-se e ceder o posto aos cunhados. O<br />

Sumo Sacerdote era sinecura de muita riqueza e poder para que um homem dela desistisse voluntariamente. E nessas<br />

circunstâncias, nada mais natural que entre o velho Hanan e o Sumo Sacerdote reinante, começasse a batalha para a disputa do<br />

favor de Pilatos. Na aparência o Sumo Sacerdócio era propriedade de família, com todos os negócios debatidos pelo grupo<br />

familial; mas na realidade havia uma feroz competição para o exercício do cargo – com a inevitável onda de subornos ao<br />

Procurador, ao Procônsul Vitélio em Antióquia e a toda a horda de conselheiros e sicofantas em situação de influir nas decisões<br />

dos potentados. Mas Joseph Kaifa mantinha-se no posto; apesar daquela sua maneira calma e de todas as concessões de<br />

autoridade civil que fizera ao sogro, era ele o mais astuto e pertinaz dos dois. Seus presentes sobrepujavam os dos outros; os<br />

sacos de ouro que ele remetia para Cesaréia pesavam mais. A conseqüência foi triunfar como jamais nenhum Sumo Sacerdote<br />

triunfara antes: e Kaifa permaneceu como ostra no Sumo Sacerdócio durante todo o tempo da procuradoria de Pilatos! A luta<br />

corria subterrânea e o velho Hanan sabia que era vã – pelo menos enquanto lá estivesse Pilatos; e concentrava todas as suas<br />

energias na manutenção do poder de sua seita, sua classe, sua família...<br />

O jovem Hanan, legítimo herdeiro dos dons de liderança do pai, viu com clareza que o cargo de Sumo Sacerdote<br />

em Jerusalém, como qualquer outro, só tinha significação e valor quando apoiado na riqueza. E desde cedo entrou a interessarse<br />

pelo fortalecimento do trono que um dia esperava ocupar. Recém entrado na virilidade, começou a dar ao Sumo Sacerdócio<br />

uma base puramente comercial. O dízimo ou o décimo do trigo e outros produtos naturais, que a lei reservava para o<br />

Sacerdócio, tornou-se de exclusiva propriedade do Sumo Sacerdote e sua família. A massa dos sacerdotes tinha de contentar-se<br />

com a renda dos sacrifícios. A arrecadação das taxas em dinheiro também cabia ao Sumo Sacerdote, que delas dispunha como<br />

quisesse.<br />

Mais ainda: as coisas consumidas dentro do Templo, a farinha para o pão sagrado, as ervas para os sacrifícios, o<br />

incenso e os óleos refinados, o linho egípcio para os teares em que as mulheres teciam as vestes sacerdotais e as cortinas do<br />

Templo – tudo isso era sagrado e só podia ser fornecido pelo Sumo Sacerdote. E ainda havia as pombas, inumeráveis, pois<br />

cada mulher ofertava uma, cada vez que lhe nascia um filho. Não eram pombas comuns, das existentes em toda parte. Não as<br />

vendidas no mercado. Tinham de ser duma raça pura, bem criadas e alimentadas dum modo especial. A criação de tais pombas<br />

estava nas mãos do Sumo Sacerdote, e como fosse o único sacrifício de purificação permitido às mulheres, só dele podiam<br />

adquiri-las e pelo preço exigido. E que mulher não encontrava o dinheiro necessário, já que era meio de se purificarem? A lei<br />

reguladora da oferta sacrificial das pombas podia ser modificada, de modo a forçar o aumento da procura; e o preço já havia<br />

subido de um dinar de prata a um dinar de ouro, por um par de pombas sem defeito.<br />

Foi por intermédio dos filhos do Sumo Sacerdote que penetrei no círculo da mocidade dourada de Jerusalém e<br />

descobri que a capital da Judéia não era apenas a desolação que parecia. Por trás das severas proibições impostas como tributo<br />

ao ciumento Deus Jeová, a mocidade aristocrata dava-se às mesmas cultas diversões da aristocracia gentílica e gozava a vida<br />

como em qualquer metrópole grega.<br />

Esse círculo social era olhado com deprezo e ódio pela populaça e conhecido como “os heréticos”; também o<br />

acusavam de ateísmo. Mas pelo que pude concluir, nada mais faziam os moços do que levar às últimas conclusões o sistema de<br />

idéias de seus pais – os saduceus. Havia o argumento: “Se tudo quanto a vida nos pode dar é o de destino do camelo caído no<br />

deserto, ou do pássaro abatido pelo caçador, por que motivo contrariarmos o nosso natural impulso para o prazer? Por que não<br />

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colhermos a felicidade madura? Por que hesitarmos em fazer uso da posição social em que nascemos? Se Deus nos colocou<br />

acima de nossos irmãos, está claro que é para que os tenhamos bem presos pelas rédeas e com boa carga no lombo”. E citavam<br />

o dito dum dos seus poetas “Que é o homem para que nos preocupemos com ele?” O modo de vida daqueles moços baseava-se<br />

num princípio amargamente acentuado por um profeta: “Comamos e bebamos hoje, já que a morte vem amanhã”.<br />

E assim se formavam associações de moços, a princípio secretas e depois sem ocultação nenhuma, com o<br />

propósito de destruir as peias e proibições religiosas. Descobriam esses moços o mundo da beleza e do prazer que a lei cruel<br />

lhes vedava – e a ele se lançaram com a fúria dos famintos. Breve se afizeram a todos os tipos de diversões que a experiência<br />

ensinara aos romanos. Ricos que eram, o custo do prazer não os detinha. E os banquetes noturnos que davam, sobre estrados<br />

cobertos de rosas, começaram a exceder os nossos. Havia reuniões presididas por moços e moças, maravilhosos de corpo,<br />

educação e cultura, cujos cantos e finezas se destacariam nos melhores salões de Antióquia, de Alexandria e até de Roma.<br />

Devo aqui acentuar um ponto muito próprio dos judeus. Nada nessas festas noturnas das bacanais de violento fundo erótico,<br />

despidas de qualquer decência, tão comuns em Alexandria e de lá espalhadas pelo helenismo. Os judeus deram ao helenismo<br />

um tom novo, uma nota de pudor e decência que no fundo era um requinte de provocação, tal qual o perfume dos seus<br />

incensos. As mulheres judaicas nunca de esqueciam da compostura e mesmo no auge da excitação, nunca se desnudavam<br />

totalmente – havia as longas cabeleiras com que se velavam. Mas isso ainda era mais forte que a nudez absoluta. Ademais, em<br />

todos os banquetes pervagava, discreto mas insistente, um laivo de tristeza na alegria, um estado d’alma elegíaco e como que<br />

saudoso, tal como se lhes fosse impossível a completa libertação de sob a carga antiga – e sentiam-se forçados a pensar na<br />

morte.<br />

Como a sombra que passa, assim é nossa vida.<br />

Depois de chegados ao fim não há voltar.<br />

Prelibemos as alegrias que se nos oferecem<br />

E depressa, enquanto ainda temos mocidade.<br />

O círculo de moços em que fui admitido era freqüentado por uma mulher de nome Míriam, ou Maria, também<br />

chamada Madalena, ou Míriam de Migdal, por ter vindo da cidade de Migdal, no Mar de Genesaret ou Tiberias. Não gozava de<br />

reputação imaculada; ou, melhor, sua reputação variava segundo o ponto de vista de cada um. Em nossa roda todos muito a<br />

amavam e honravam. Quando a encontrei andava Míriam não muito perto da primeira mocidade – já nesse ponto de madureza<br />

que os mestres helenos escolhiam para retratar a deusa do amor. Tinha o tipo da mulher mãe, bacia larga e seios bem<br />

desenvolvidos, bojando como recatadas pombas entre os vermelhos véus de seu cabelo. Também era em tom maternal que<br />

tratava os pretendentes aos seus favores. E distribuía esses favores mais segundo as necessidades de cada um do que como<br />

recompensa, porque Míriam era caprichosa, cheia de fantasias e surpresas – uma fiel representante daquele povo. Homens<br />

ricos havia que a amavam, que tinham consumido fortunas para agradá-la e haviam satisfeito as suas mais arbitrárias<br />

exigências no anseio de seu hálito e ficavam a desejá-la em vão. Mas aos pobres, aos sem importância que nem ânimo ou<br />

meios tinham de cortejá-la, ou nem sequer sonhavam com isso, esses pobres e abandonados tudo obtinham. Míriam distribuía<br />

os seus favores como quem distribui esmolas entre mendigos – sem esperar recompensa ou retribuição.<br />

Muita coisa ouvira eu falar dela, mesmo antes de travarmos conhecimento. E quem a ignorava? Toda Jerusalém<br />

estava farta de saber da mulher que exercia profunda influência sobre os filhos do velho Sumo Sacerdote, esses líderes da<br />

aristocracia. Isto tinha algo que ver com a popularidade de Míriam entre os jovens aristocratas, porque os aspirantes da<br />

distinção social começavam imitando os filhos do Sumo Sacerdote. Míriam de Migdal, ou Maria Madalena, sabia viver; seus<br />

favores eram muito espalhados e, como a chuva, alcançavam muitos campos; seus amantes encontravam-se uns com os outros,<br />

conheciam-se e estranhamente não revelavam ciúme nenhum. Em vez de criar inimizades, tinha Madalena o dom de ligar as<br />

criaturas. Devo confessar que também eu caí sob sua influência – e a começar do primeiro encontro, pois que a impressão que<br />

me causou foi das inesquecíveis.<br />

Isso ocorreu num banquete em honra de Hanan ben Hanan, por uma gloriosa noite de lua; no céu, aquele véu<br />

opalino e aos nossos pés a cidade em trevas, já adormecida. Estávamos sob a ebriez dos perfumes das flores; os jasmins e os<br />

íris, as rosas e a alfazema, perturbadoramente misturavam os seus aromas no ar. Reclinado em coxins no salão das colunas da<br />

casa de Hanan, a perfumada cabeça de meu amigo Teófilo repousava sobre meu ombro, e à discreta luz das lâmpadas<br />

suspensas assistíamos à dança de Abisheleg, a querida de Jerusalém; o acompanhamento vinha de invisíveis harpas.<br />

Ritmicamente aquele corpo perfeito ondeava diante de nossos olhos. Muito nova ainda, três lustros de idade apenas, era um<br />

botão de carne em véspera de abrir-se. O tom alabastrino de sua pele transparecia sob a delicada trama do linho de Sidon que<br />

lhe velava as ancas, e seu corpo lactescente seguia de perto a severa harmonia da música. Seu ventre, circundado duma<br />

grinalda de folhas, tremia e se torcia dum modo espasmódico, como a superfície dum lago transbordante; e o botão de seus<br />

seios punham na língua dos movimentos a canção da maturidade próxima. Mas o que mais encantava em Abisheleg era a linha<br />

serpenteante de suas costas; uma cascata de brancuras descia a partir das curvas os ombros, e a espinha elástica traduzia todos<br />

os movimentos coleantes das cobras.<br />

E enquanto nosso olhos se inebriavam na harmonia da dança, a ponto de esquecermos as uvas dulcíssimas e as<br />

romãs e os figos recendentes que jovens servos fenícios nos apresentavam em cestas de fios de outro, ouvimos de súbito, vinda<br />

dum canto sombrio do salão, uma voz de mulher a declamar:<br />

“Quem pode deter e eternizar o hálito de mocidade de nossos corpos, o qual é como o orvalho noturno na rosa?<br />

Quem pode perpetuar a firmeza de nossas carnes, de modo que não se arruinem com o perpassar do tempo? Quem pode deter<br />

por um instante apenas a nossa marcha rumo à destruição? Quem conhece, tanto quanto nós, o nada que é o nosso ser? Nossos<br />

corpos ele os fez ninho de vermes que nós mesmos criamos para a nossa própria destruição. Ele nos fez testemunhas da nossa<br />

própria descida. Que é a beleza, que passa como a neblina? O vento a espedaça e leva consigo. Sobre que rejubilar-nos – sobre<br />

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o que foi e já não é mais? Não são os nossos dias como os do trabalhador da terra nos campos? Assim como a escravo anseia<br />

pelas sombras da noite, assim ansiamos pelas sombras da morte...”<br />

Abisheleg suspendeu a dança e ficamos todos imóveis, em silêncio. A cabeça de Teófilo tremeu em meu ombro.<br />

E então fez Hanan sinal aos escravos para que se retirassem, e opressiva, mortal quietude nos invadiu. Abisheleg, a dançarina<br />

de lindo corpo, rompeu em choro histérico e nesse momento a mulher que nos matara a alegria com a soturna lamentação pôsse<br />

de pé lá em seu canto. Era Míriam de Migdal. Aproximou-se da pequena Abisheleg e cobriu-a com o seu véu, e a enxugarlhe<br />

as lágrimas no lenço levou-a para a sombra de onde emergira.<br />

Mais tarde aproximei-me mais de Maria de Migdal. Na realidade ela nos trazia como cães no ajoujo; deixava que<br />

alguns de achegassem, a outros repelia implacavelmente. Tempos havia em que os afastava a todos. O mais favorecido de seus<br />

amantes nunca tinha certeza de nada. O jovem Hanan era um dos seus “admiradores oficiais” e com isso já despendera grandes<br />

somas. Seu irmão Teófilo e a esposa visitavam-na em casa e lá passavam maravilhosas tardes. Um dos oficiais asquelonitas da<br />

nossa guarnição apaixonara-se furiosamente por Madalena. Outro homem, Kalman bem Kalman, filho dum milionário da<br />

cidade e herdeiro de imensas posses, igualmente se deixara prender e cortejara-a com os mais ricos presentes. Mas parece que<br />

o admirador de maior interesse para a admirada era um principezinho babilônio que por sua causa se convertera à fé judaica. E<br />

para ela construíra uma casa em estilo da Babilônia lá em certo ponto da Cidade Baixa. Míriam contava ainda com inúmeros<br />

amigos entre os mercadores judeus de Alexandria, Antióquia e Cesaréia, que vinham a Jerusalém à negócios ou em<br />

peregrinação.<br />

Por puro capricho escolhera para ponto de sua casa a zona mais pobre de Jerusalém, e sempre se recusara residir<br />

nos bairros nobres da Cidade Alta ou no bairro novo do monte Scopus, além da porta do Carneiro, distrito que se tornara<br />

elegante em virtude do muito espaço que havia para jardins. Míriam localizou sua casa junto aos muros que separavam a<br />

cidade do vale de Kidron.<br />

Não era bairro agradável. Só existia um ainda menos atrativo: o vale além da Porta do Estrume – aquele vale do<br />

Hinnom invadido pelos leprosos, onde as águas do Siloah corriam em valas. Não era sem razão que o Ge-Hinnom, ou Vale do<br />

Hinnom, se tornara o símbolo do inferno reservado aos maus na vida futura. Claro que a zona escolhida por Madalena para<br />

erguer aquela casa não era a que convinha a uma dama da sua posição. Se não havia ali leprosos, havia muita gente, homens e<br />

mulheres, afetados de outras moléstias; aglomeravam-se à beira das águas do Kidron e empestavam de mau cheiro o ar.<br />

Enxames de moscas se geravam no vale, porque de um lado, ao pé do Monte das Oliveiras, ficavam os estábulos e os depósitos<br />

de couro do Sumo Sacerdote. Seus servos lavavam as peles nas águas desse rio e lá as preparavam para o mercado. Não se<br />

descreve o mau cheiro ali reinante. Todo o lixo de Jerusalém era carregado pela Porta do Estrume e lançado no vale do Kidron.<br />

Indigentes remexiam aquilo em procura de restos dos abastados – comida ou trapos.<br />

Lá fez Madalena construir sua casa, no meio da pobreza de Jerusalém, rodeada de ruas malcheirosas e oculta<br />

entre ciprestes e oliveiras. Vinha daí que a porta de sua casa vivia permanentemente aglomerada de pobres, aos quais os seus<br />

criados, por ordem expressa, nunca deixavam de atender com pratos de comida e esmolas em dinheiro.<br />

Um extravasante amor à vida levava-a a esgotar até às fezes a taça da alegria, mas na beira da taça ficava sempre<br />

o gosto do veneno, da inquietação e do remorso instilados pela religião dos judeus. Todos os seus servos andavam vestidos<br />

ritualisticamente como mandava aquele credo; nenhuma representação ou imagem de criatura humana ou de animal era<br />

permitida lá; mobília, do melhor material , mas sem enfeites; traço nenhum da arte ou dos costumes do mundo pagão; dentro<br />

da casa de Míriam reinava a severa disciplina da fé judaica. Já ao tempo em que a conheci andava sujeita a êxtases religiosos –<br />

característica muito geral, como observei, entre os povos do Oriente. Míriam rodeara-se dum bando de intérpretes da lei,<br />

eruditos e escribas. Não eram, entretanto, os sábios aceitos no Templo; esses não se aproximariam a cem passos de Míriam, e<br />

sempre que ela mandava ao Templo donativos ou peças sacrificiais explodia lá a infindável disputa sobre a aceitação das<br />

oferendas, sobre a “pureza” do dinheiro de Míriam. Já outros sábios não tinham os tantos escrúpulos quanto à profissão<br />

exercida por essa mulher. Não deixavam a ameaçá-la com os fogos e demônios da Gehenna, mas lhe davam também a<br />

segurança da outra vida, já que Madalena devotava a riqueza de seus admiradores a propósitos benevolente – e nenhum mais<br />

alto do que sustentar esses sábios. Havia ainda a legião de mendigos que lhe transformavam a casa em refúgio da pobreza, da<br />

penúria e da doença. Formigavam as ruas quando ela saia de liteira, precedida por dois servos com sacos de moedas que iam<br />

distribuindo. Madalena igualmente fazia generosos donativos a várias instituições fundadas pelas mulheres caridosas de<br />

Jerusalém, assistência de largo âmbito que ia dos cuidados com as parturientes à amenização dos últimos dias dos<br />

condenados... Escusa dizer que Míriam de Migdal não era admitida como sócia nas instituições “das nobres damas de<br />

Jerusalém.” Também essas damas relutavam em lhe aceitar os donativos; mas os “sábios” descobriam interpretações<br />

conciliadoras do rigor da lei com a ininterrupta entrada de tais dinheiros. E Míriam, a orgulhosa e linda mulher, não se ofendia,<br />

ao contrário, alegrava-se de ter permissão de contribuir para tais obras com as moedas de ouro que lhe vinham dos amantes.<br />

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E era naquele centro de sujeira e mau cheiro que Míriam de Migdal guardava a coleção de perfumes distilados<br />

das flores do seu jardim no Monte das Oliveiras. Aquelas preciosas essências, que mais de um rei invejaria, contrapunham-se,<br />

num desafio, às exalações malsãs dos arredores.<br />

Tinham os judeus acentuada fraqueza por óleos e plantas de cheiro. No próprio Templo havia um laboratório<br />

para a distilação de ervas de aroma, cuja essência era usada nas lâmpadas sagradas e em outros propósitos do ritual. Tinham<br />

também um tesouro especial de óleos e perfumes que já se tornara lendário e eles não punham abaixo dos tesouros em moedas.<br />

Consistia em produtos dos mais longínquos países do globo, mandados pelos seguidores da religião de Jeová, entre eles óleos<br />

de incrível antigüidade. Um, dizia a lenda, vinha do tempo em que os judeus erravam no deserto; a deidade o mandara do céu<br />

para que eles o guardassem até à vinda do Messias; era um óleo especial, criado justamente para ungir o Messias. Havia a<br />

crença de que certos óleos desapareciam quando um incréu se aproximava, tendo depois de ser descoberto e novamente<br />

distilado pelos sacerdotes. E um complicado e incompreensível culto se desenvolvera em torno das ervas, óleos e especiarias<br />

de emprego nas cerimônias sacrificiais. Usavam-se óleos e essências em muitas ocasiões – para ungir os noivos, para a<br />

preparação das noivas e dos defuntos. Os ricos perfumavam-se para os banquetes, e a própria gente comum recorria a aromas<br />

em certas ocasiões. Havia cheirosas pomadas para a pele e perfumes que despertavam o amor no coração do objeto amado.<br />

Havia plantas e sementes de queimar para neutralização de feitiços, ou para defesa contra mau olhado – isso para não falar dos<br />

inumeráveis óleos de toucador. Jerusalém estava cheia de pequenas destilações de plantas, reconhecíveis pelos perfumes que se<br />

escapavam para a rua. Não havia planta que não destilassem, e a língua dos judeus era rica de nomes de óleos, conforme as<br />

plantas donde provinham ou o emprego que lhes davam. Cada mulher das altas rodas possuía os seus perfumes individuais,<br />

cosméticos e óleos só seus, preparados segundo receitas especiais – mas os produtos de Míriam de Migdal eram os<br />

inexcedíveis. Mulher de dupla personalidade, havia a Míriam da casa do vale Kidron e outra, diametralmente oposta, do jardim<br />

do Monte das Oliveiras. Na sua vivenda da Cidade Baixa era Míriam uma mundana que atordoava os moços ricos e finos de<br />

Jerusalém; lá recebia os seus opulentos admiradores e se apresentava sob o cendal de seus próprios cabelos tecidos pelas<br />

servas, com tal primor que a nudez do corpo era apenas entrevista. Mas no alto da encosta do Monte das Oliveiras, no jardim<br />

que fazia parte do bairro de Bet Eini, possuía Míriam a casa em que morava sua irmã Marta e seu irmão Eliezer. Gat Shemen<br />

era o nome do jardim, ou Prensa de Óleo, porque ali eram preparados os ungüentos de uso familiar. Curiosíssimo horto aquele,<br />

bem merecedor da reputação que gozava em Jerusalém e fora. Míriam reunira ali um infinito sortimento de plantas de todas as<br />

partes do mundo. Sempre que lhe chegava a notícia dalguma flor rara, algum cacto de remoto deserto, mandava atrás da<br />

maravilha e punha-a em seu jardim; nada era obstáculo a que um novo perfume nele figurasse. Para a fabrico das essências<br />

Míriam dispunha de seus próprios destiladores, criaturas de olfato muito desenvolvido e donos de receitas secretas, de família,<br />

para a extração e composição de perfumes. Corria até que naquele jardim viçava a fabulosa planta chamada “mar-d’ror”, pelos<br />

judeus trazida do deserto; dela fora destilado o óleo que, derramado sobre o altar, revelou-se agradável a Jeová. Com o tempo<br />

essa planta se perdeu, e histórias corriam em Jerusalém sobre os sábios que foram ao jardim de Míriam verificar se realmente<br />

lá havia um pé de mar-d’ror; e violentos debates sobrevieram quanto ao uso do mar-d’ror de Miriam no Templo. Seus<br />

conselheiros religiosos admiravam-se daquela grande variedade de plantas: seriam criadas separadamente, conforme a lei, ou<br />

eram produto de enxertias e hibridação, coisas que a lei desautorizava?<br />

O jardim de Míriam de Migdal interessava aos estudiosos de todas as nações. Os que vinham de Roma, da<br />

Grécia e do Egito e chegavam até Jerusalém invariavelmente pediam-lhe licença para estudar o seu jardim. E Míriam raro a<br />

outorgava, porque tinha o horto como recreio particular seu. Quando cansada da vida tumultuosa de Jerusalém, nele se acolhia<br />

como a um refugio próprio para meditações e exame de consciência. Os problemas da eternidade, do destino final e de<br />

objetivo da vida humana sempre foram pontos de interesse para Madalena. Não se contentava, como os outros, com as alegrias<br />

rotineiras ou os frutos que caiam dos ramos das hortas. Nada disso a interessava, e os brilhantes banquetes em sua outra<br />

vivenda eram mais um meio de esquecer do que de satisfazer um visceral apetite pelo gozo. A débil chama do seu desejo<br />

brilhava numa ou noutra noite de verão, lá no terraço, sob as estrelas do céu – e ela desaparecia por semanas, entregue a jejuns<br />

de arrependimento e a consultas a barbaçudos rabis sobre como lavar-se dos pecados.<br />

Seu jardim era de fato admiravelmente próprio para a meditação, como posso testemunhar. Juntamente com<br />

vários amigos, tão desejosos quanto eu de conhecê-lo, deliberamos certa ocasião arriscar uma visita. Galgamos a encosta do<br />

Monte das Oliveiras e uma inesperada surpresa tudo nos facilitou: Míriam não estava em casa. Como de costume havia ido<br />

passar o dia nos pátios do Templo, a ouvir as disputas dos sábios. Fomos recebidos por um moço que mais tarde vim a saber<br />

seu irmão. Muito alto, e com cara como nunca vi semelhante. Tinha as faces incrivelmente repuxadas, mas a irradiarem um<br />

eterno sorriso de bondade – ou era o sorriso da idiotia? Que havia nele, simplicidade de espírito ou bondade consciente? A<br />

princípio me pareceu que um caso de desenvolvimento mental interrompido, porque não parava de rir enquanto falava, e com<br />

prazer fazia tudo aquilo que nós, estranhos, sugeríamos. Mais tarde me certifiquei que se tratava de simplicidade dum tipo<br />

muito freqüente no povo da Judeia, e ainda mais no da Galiléia. Aquele homem não nos perguntou quem éramos nem o que<br />

queríamos ali, mas humildemente nos fez gesto de entrar. Lá dentro nos trouxe água para lavar os pés e toalha, embora<br />

estivéssemos bem calçados. Lavou-nos as nossas mãos e, conforme o costume da terra no recebimento de visitas, achegou o<br />

rosto para beijar-nos. Tudo ali dentro muito simples e limpo; coisa nenhuma sugeria uma das grandes casas da cidade. Mobília,<br />

só a necessária: duas esteiras sobre o chão de terra batida, duas almofadas e cobertas a um canto, parcialmente ocultas por<br />

biombos de bambu; mesa baixa, com esteirinhas lado a lado – e ainda vasilhas de barro e cestas e cabaças, uns tantos boiões,<br />

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duas urnas grandes e prateleiras toscas para o mantimento diário, pão, queijo, leite coalhado. Como nas casas pobres, o fogão<br />

não tinha chaminé: a fumaça escapava-se pelas portas. Portas e janelas defendidas por cortinas de palha tecida. O homem nos<br />

mandou sentar e ficar à vontade, mas não desfazia a minha primeira impressão. Falava de vagar e com pausas freqüentes, como<br />

os homens pesadões. De temperamento lerdo, mas ao mesmo tempo a sua compostura humilde e o sorriso bondoso como que<br />

pediam desculpas da morosidade de expressão. Breve descobri que não provinha aquilo de nenhum defeito orgânico, mas de<br />

certa inquietação interna: quando nos levou ao jardim e falou com inteligência e conhecimentos daqueles exotismos vegetais.<br />

Mas no começo a segurança de sua fé fez-me sentir nele qualquer deficiência, como se fosse incapaz de apanhar e analisar<br />

coisas muito simples e incidentes; uma impressão curiosa a minha, tal se aquele homem, em vez dum homem normal, todo<br />

nervos e vontade, fosse um estranho animal freugmático. Por toda a casa notei a mesma sugestão de estranheza, direi mesmo<br />

de morte, pois aquela calma das coisas e a severa limpeza pareciam dizer que só a morte morava lá. Já muito diversa ia ser a<br />

nossa impressão da irmã de Míriam, a jovem Marta, que ele chamou e apareceu na sala; apesar de perturbada pelo inesperado<br />

da nossa visita, conservou a vaidade necessária para uma vista d’olhos em seu próprio rosto, refletido na urna d’água que nos<br />

trouxe. O homem permaneceu de lado, humilde e submisso, com o ar distante de quem não é deste mundo.<br />

Estava igualmente afastado de nós e deste mundo, quando nos levou pelo Jardim. Interessava-se no que nos ia<br />

dizendo, mas com absoluta indiferença. Víamo-lo adiante de nós, apontando para um objeto e outro, falando-nos deles e do que<br />

os cercava, tocando-os com a mão – mas a despeito de tudo aquele homem não estava lá, estava em outra parte, como quem<br />

apenas emerge dum sonho que é a sua vida real.<br />

Muita harmonia entre o seu estado d’alma e o espírito do jardim. Nunca vi tanta variedade de plantas, nem<br />

imaginei que fosse coisa possível. Não era um jardim comum, mas uma necrópole de folhagem petrificada sob formas<br />

reptantes de animais e membros de desconhecidas criaturas. A Judeia nos familiariza com formas vegetais não encontradas em<br />

outras terras. Para satisfação das rígidas prescrições rituais impostas na preparação dos pratos de carne, os judeus recorrem em<br />

boa parte ao que podem tirar de seus jardins e hortas, e vem daí a grande variedade de plantas cultivadas. Lá encontramos<br />

melões e alcachofras de formas e tamanho nunca vistos em outras terras. Existe uma espécie de maçã-melão que eles chamam<br />

“K’sus” e se assemelha a um animal subindo sobre folhas negras e duras como couro velho, e espinhentas. Parece uma mistura<br />

de flor e fruta, com forte sabor de menta, que arde na língua. Havia também a alcachofra de nome “Kineres” – uma espécie de<br />

cacto com unhas como as de gato, que se enclavinham e fecham quando um inseto atraído pelo mel da planta cai na armadilha.<br />

E havia plantas que eram mais animais do que vegetais – mas o que vi naquele jardim sobreexcedia a tudo quanto eu havia<br />

visto antes na Judeia.<br />

Num aterraçado em declive, à sombra de escuros ciprestes, estendiam-se quatro ruelas com latadas laterais, e<br />

perto da entrada ficava quatro canteiros de flores; um, todo um fogaréu de papoulas vermelhas como são comuns pela Judeia<br />

na estação primaveril; o segundo formava uma harmonia de jacintos azuis pendentes em cachos; o terceiro era um ninho de<br />

trêmulos lírios do vale – o quarto só tinha íris roxas. O irmão de Míriam explicou-nos que as quatro cores representavam os<br />

quatro elementos da natureza – terra, ar, fogo e água. Era, como eu recordei, repetição do simbolismo cromático da estranha<br />

cortina babilônica que, segundo me falou o jovem Hanan, cobria a entrada do Santuário do Templo, tecida de jacinto, bisso,<br />

escarlate e púrpura. Entre os quatro canteiros e latadas sob os ciprestes ficava o jardim de especiarias ou, como já acentuei, a<br />

necrópole de formas vivas petrificadas: um campo de figuras fantásticas, bocas abertas, membros contorcidos, gavinhas<br />

crispadas, línguas negras e lâminas em riste, numa confusão de cores cruas e opressivas, desde o roxo profundo ao mais<br />

berrante vermelho. Lado a lado, canteiros de dracunculos como um emaranhamento de vermes, e canteiros de íris que<br />

lembravam borboletas, e canteiros de cravos adormecidos nos caules, e de narcisos, de cuminho, de hortelã, e moitas da<br />

azulácea e cheirosa alfazema e o picante gengibre, e noz-moscada e açafrão e canela. Por entremeio, incontáveis flores do<br />

campo. Não só harmonia de cor como de quase visível exalação de aromas.<br />

Mas isto que venho referindo é coisa de todos os jardins. Quando deixamos para trás estes canteiros, defrontounos<br />

uma incrível erupção de cores e formas contorcidas como raízes, pontudas e preensíveis, que nos embaraçavam os passos e<br />

nos agarravam a roupa. Eram as plantas venenosas vindas dos mais distantes lugares do deserto, o helbonah de cheiro<br />

penetrante e o lebonah, ambos de uso no Templo; provinham da Síria e davam um tipo de incenso. Vi que era ali que Míriam<br />

de Migdal tomava as ervas odoríferas de uso nos turíbulos de sua casa. E vi também ali plantas que na forma e na cor<br />

lembravam membros de homens e animais – a rubra crista dos galos, as orelhas eretas dos jumentos, narinas sensíveis imersas<br />

do solo e como que vibrantes com o ar aspirado e inspirado; e havia plantas aleijadas que não produziam flor, meros fungos ou<br />

retorças raízes espichadas da terra como mãos e mudos punhos depredatórios. Eu como que as ouvia lamentarem-se<br />

amargamente, tais se fossem reencarnações de mortos amaldiçoados e sequiosos de perdão. E todas aquelas plantas, flores,<br />

espinheiros e cactos, familiares ou exóticos, florzinha dos arredores da casa ou planta vinda de remoto deserto, tudo ali<br />

contribuía para a coleção de perfumes e ungüentos odoríferos de Míriam de Migdal.<br />

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Os acessos religiosos de Míriam era intermitentes. Nos intervalos promovia em sua residência reuniões das mais<br />

interessantes de Jerusalém, com tudo que havia de ilustre na cidade.<br />

Lá, nós romanos livremente nos misturávamos e trocávamos idéias com judeus. Unia-nos a nossa admiração por<br />

aquela extraordinária mulher, o comum encantamento pela sua pele nacarada, entrevista nas dobras de seus véus. Seu corpo<br />

fechado dizia de todos os mistérios do amor de que ela estava refarta... O pescoço bem lançado e os grandes olhos negros<br />

coroavam a bênção de seu corpo; e isso, mais a nuvem de sustis perfumes dentro da qual ela se movia, punham-nos, a nós<br />

romanos e aos judeus, como escravos. E para cada atitude recorria a certo aroma, mudando o tom olfativo da sua aura. Míriam<br />

jogava aqueles perfumes, como certas serpentes jogam com as cores da pele. Quando caia em tristeza – vésperas de mais um<br />

acesso religioso – sua presença exalava o profundo e calmo perfume de heliótropo e dos íris, odores que põem sombras no<br />

espírito. Quando desejava transmitir aos outros uma delicada sensação de pudor, recorria ao inocente perfume da violeta<br />

misturado com o do lírio do vale, reminescente das leves chuvas primaveris. E se queria atear em um de nós o fogo dos mais<br />

profundos desejos da carne – ondas sobre ondas de anseio ardente que abafavam a vontade e faziam do paciente um escravo de<br />

Míriam – ela deixava escapar de seus véus e de seus cabelos um maduro e doce aroma de rosas tocado de outro, penetrante e<br />

perturbador, cuja natureza nos era desconhecida.<br />

Míriam reservara um cômodo da casa para depósito de seus perfumes e óleos; havia lá um extraordinário<br />

sortimento de garrafas, frascos e pequenos receptáculos de madrepérola, ou finos vidros irisados da Fenícia, com desenhos de<br />

candelabros e cachos de uva. E havia conta-gotas de pescoço comprido; e seus preciosos óleos eram guardados em potes de<br />

louça, porque outros materiais mais porosos favoreciam a evaporação, com prejuízo da essência. Míriam também era dona de<br />

grande número de pequeninos vasos feitos em pedras preciosas, turquesas, esmeraldas, que ela trazia em cadeia de ouro ao<br />

pescoço. Nos momentos de extrema afabilidade ela ungia o seu eleito com o conteúdo dum desses preciosos frasquinhos.<br />

Creio que já falei do senso dos perfumes e óleos, tão desenvolvido entre os judeus, e das receitas transmitidas de<br />

pais a filhos através das gerações, e das ocasiões de usá-los e como. A profissão do perfumista era das mais respeitadas e<br />

rendosas de Jerusalém, e havia um ditado popular: “Os óleos gostam da voz do almofariz”. Fiz relações com várias destes<br />

manipuladores de essências, um deles encontrado em casa de Maria Madalena. Vou referir as circunstâncias.<br />

Estávamos certa tarde sentados na sala de perfumes de Míriam; éramos um grupo grande. A festa fora dada em<br />

honra do seu rico admirador babilônio, o príncipe, o qual viera de visita ao Deus do Templo; esse homem já se tinha<br />

convertido. Tornara-se ponto de honra entre os aristocratas da cidade, que aquele homem poderoso e influente fosse bem<br />

recebido – daí a reunião em casa de Míriam. Compareceram dois filhos de Hanan, e com eles diversos moços ricos da cidade,<br />

como o jovem Kalman. Também compareceu o oficial asquelonita a que já me referi. Mulheres, poucas. Míriam não se<br />

agradava da companhia feminina e apenas convidara a pequena Abisheleg, à qual tinha amizade e mais uma ou duas moças.<br />

Míriam gostava de rodear-se de mocidade e por isso não tinha em sua casa músicos gregos e egípcios, como era de uso em<br />

todas as casas nobres de Jerusalém. A razão estava na idade desses músicos; quer viessem livres, quer fossem mandados como<br />

escravos dos mercados de Tiro e Askelon, nunca eram jovens; muitos já calvos e todos já com os desejos apagados. Os<br />

músicos de Míriam eram jovens levitas das camadas pobres, que não tinham conseguido entrada no Templo, apesar de<br />

treinados em música na escola que o Templo mantinha para os filhos dos levitas. Os vincos da sua cultura musical, sempre<br />

firme na tradição, tornavam-n’os inúteis para qualquer outra atividade. Quando Madalena dançava era sempre acompanhada<br />

pela pequena Phiha, a sua querida flautista egípcia.<br />

Os hóspedes lá reunidos naquela noite traziam suas melhores vestes e as mais caras jóias. Como que competiam<br />

entre si. Pérolas e outras gemas de valor entremostravam-se na dobras de cada ketonet de seda. O príncipe viera em trajes da<br />

corte, com um fulgurante diadema na cabeça; mas o que mais nos prendeu a atenção foi o seu ketonet de delicado tecido<br />

babilônio, que usava abotoado até o pescoço e com franjas de pérolas. Os cunhados do Sumo Sacerdote pouco abaixo ficam,<br />

pois traziam um rico manto de fios de prata sobre o ketonet. O filho do magnata, cuja posição na sociedade era a de simples<br />

judeu, não tinha permissão para o uso de tal manto (privilégio reservado aos membros da casa reinante; a prata se associava no<br />

espírito dos judeus aos anjos, ou demônios bons que rodeavam o seu Deus Jeová), mas procurou sobrepujar os outros nos anéis<br />

de pedras negras como a noite e azuis como o céu, a na cadeia de brilhantes de tinha ao pescoço. O brilho daquelas gemas<br />

dominava a sala, a ponto de nos parecer uma exibição de arrivista de mau gosto. Nós, romanos, estávamos em nossos<br />

uniformes de centuriões, com as nossas medalhas no peitoral. Mas só conservamos os peitorais durante a parte formalística do<br />

banquete. Depois, quando ia Míriam dar começo à dança e a atitude geral já era de “à vontade”, o príncipe tirou da cabeça o<br />

diadema, os cunhados do Sumo Sacerdote despiram as capas de prata e nós romanos fizemos que os criados nos removessem<br />

os peitorais e as togas; ficamos só de túnicas. O calor emanado dos incensórios havia aquecido o recinto.<br />

Phiha, a acompanhadora da dança de Míriam, tinha uma boquinha de uva madura; a forma amendoada dos seus<br />

olhos havia sido acentuada por uma operação e seus cabelos negríssimos rolavam em numerosos cachos sobre a curva dos<br />

ombros. Vários ornamentos dançavam-lhe entre os cabelos, em redor dum pente de alvo marfim, e numa das têmporas alvejava<br />

uma flor de lotus. O pescoço bem desenhado e os braços um tanto longos para o busto, estavam revestidos de braceletes e<br />

outros ornamentos – e do mesmo modo os pés. Delicado véu de tule preto, semeado de flores de lotus, cobria-lhe o corpo bem<br />

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formado e bojava em curva sobre os seios e as ancas. Phiha tinha um joelho em terras e corria os dedos de unhas esmaltadas de<br />

amarelo sobre as cordas da harpa, produzindo estranha melodia. E Madalena apareceu diante de nós enleada nos anéis de fumo<br />

odorante emanado dos incensórios suspensos das mãos dos jovens levitas. A princípio aquela nuvem ocultava-lhe quase<br />

totalmente o corpo, mas o fumo se ia desfazendo e ela emergia. Mas com que fantástica aparência! Sua nudez aninhava-se no<br />

cendal de cabelos cor de fogo, com os fios entretecidos de tal maneira a dar idéia duma túnica de chamas. Aquele<br />

delicadíssimo tecido como que lhe filtrava o moreno lustro do seu corpo. Por um momento transparecia a plenitude dos seios<br />

redondos; desapareciam, e no momento seguinte tínhamos uma rápida visão das suas espáduas opulentas, do pescoço forte, da<br />

espinha dorsal elástica. Da garganta roliça pendia-lhe, como sempre, a cadeia com as gemas portadoras de preciosas essências<br />

egípcias de ação inebriante. Na cabeça, uma coroa de verdes folhas de oliveira, com uma jóia desconhecida a brilhar no centro.<br />

Os olhos, artificialmente aumentados por meio de cosméticos. E sobre os pés ricamente argolados Míriam dançava para nós ao<br />

som da harpa, naquele círculo de jovens levitas ajoelhados e com os turíbulos em balouço.<br />

Vim a saber mais tarde que era aquilo a dança nacional dos judeus, na qual a mulher exprime seus amorosos<br />

anseios pelo homem escolhido. Traduz em movimento uma canção de amor do povo – canção largamente apreciada e cantada.<br />

A tradição atribuía a letra ao famoso rei dos judeus, Salomão. Em certo momento da dança a mulher estende as mãos para o<br />

muito amado e seus olhos enchem-se da quebreira do desejo; diante de outro ela se retrai, como a pomba que se oculta sob a<br />

própria asa. Assim dançava Míriam. O corpo tomado de febre contorcia-se em êxtases agonizantes, inebriada pelo ritmo da<br />

música – e olvidava a nossa existência. Ou então ignorava a nossa presença ali. Deixava a descoberto os seios, as costas, os<br />

ombros, dentro daquele torvelinho de sons. A boca lembrava uma esponja prenhe de beijos. Seus braços giravam-lhe em torno<br />

como se ela se abraçasse consigo mesma; Míriam fazia chover ternura sobre si própria. Quando começou a cantar a velha<br />

canção e sua voz veio intensificar o êxtase causado pela música, pelos movimentos rítmicos e pelos perfumes, a assistência<br />

sentiu-se como que fundida num mar de desejo. Olhei para meu vizinho, o jovem Hanan, reclinado num coxim, e vi que seus<br />

lábios tremiam; tinha os olhos semicerrados. Olhei para o príncipe babilônio: parecia devorado pelo fogo interior; fechara os<br />

olhos, e com a mão crispada ergueu uma rosa e comprimiu-a de encontro à têmpora, como para refresca-la. Olhei para o meu<br />

oficial asquelonita, ali recostado a uma coluna na sombra: estava pálido como os outros, de olhos muito abertos e<br />

excessivamente brilhantes. Olhei para o filho do magnata de Jerusalém: erguera os olhos da dançarina e fixara-os os em<br />

profunda concentração na pedra negra dum dos seus anéis.<br />

E algo então sucedeu que nos tirou daquele êxtase: no outro extremo da sala um homem havia rompido a<br />

barragem dos servos. Percebemos logo pelo apalpamento do bordão que era um cego. Um homem pálido e magro qual raiz<br />

seca, com o corpo a dançar dentro duma túnica de saco. Mas aquele rosto morto brilhava do fogo interior. Arrancou-se das<br />

mãos dos servos que tentavam dete-lo e avançou na direção de Míriam, cantando, ou, antes, uivando com ela os versos da<br />

canção popular que se referiam aos seus ungüentos:<br />

− L’reack shemonecha há-tovim... ou “por causa do sabor dos teus generosos ungüentos...”<br />

A assistência sentiu-se paralisada de espanto. Não compreendíamos coisa nenhuma. Míriam suspendeu a dança e<br />

fez sinal ao guarda da casa, o qual se aproximou e deu explicações.<br />

E então por mais incrível que o pareça, em vez de enfuriar-se e mandar expulsar dali o cego, Míriam rompeu<br />

num riso incoercível, como o dos histéricos. E quando afinal se dominou, deu ordem aos servos para que o levassem, lavassem<br />

e ungissem, e o vestissem do melhor linho da Fenícia – e o trouxeram de novo para ali.<br />

Depois, voltando-se para nós, e com acessos do mesmo riso histérico, explicou que aquele homem era um certo<br />

Bar Talmai, antigo e famoso manipulador de óleo em Jerusalém. “Lá da porta da rua sentiu o perfume de meus ungüentos e<br />

enlouqueceu. É sempre assim, cada vez que passa por aqui. Espero que nenhum de vós se constranja com a presença desse<br />

infeliz. Deus cerrou-lhe os olhos, mas deu-lhe em compensação uma grande acuidade na percepção dos perfumes”.<br />

A extraordinária ordem de Míriam foi executada. Os servos lavaram, ungiram e vestiram o cego antes de trazê-lo<br />

de novo para a sala, onde o fizeram reclinar-se num coxim; e na sua frente puseram-lhe as melhores frutas e os mais raros<br />

vinhos. Mas o cego não comeu nem bebeu. Com o rosto escondido nas mãos, respirava pesadamente e repetia os versos da<br />

canção popular.<br />

E não foi tudo. Míriam de Migdal teve de repetir a dança para aquele novo espectador; e como fosse cego,<br />

passava perto dele e ondeava os véus e o cabelo de modo a carrear-lhe para as narinas este ou aquele perfume. E eram muitos e<br />

fortes esses perfumes que pareciam levar consigo a cor das flores de que tinham sido destilados. E cada vez que o cego<br />

aspirava um perfume não retinha um grito de alegria. E beijava o ar, estendia as mãos para o perfume, como que o agarrava e o<br />

espargia sobre as faces e os olhos tal se fosse um ungüento odorífero – tudo entremeio às palavras da canção: “Quem me a<br />

reconfortado como tu, minha escolhida do coração? Teus ungüentos consolam o coração como o gosto das maçãs, curam as<br />

feridas como o bálsamo, afastam a contumélia dos desprezados, fortalecem os oprimidos. Vê, elas estendem-se para mim, tuas<br />

macias mãos e acariciam-me como a mãe acaricia o filhinho único. Canta para mim, amada, canta-me dos teus perfumes,<br />

porque eles me devolvem ao jardim de minha mãe quando eu era pequeno e me regalava ao calor do sol. Sinto o açafrão que<br />

floria em nosso jardim e vejo os ternos botões dos jasmins – e assim terna e casta e florescente és tu, tão pequena e tão radiante<br />

de perfumes. Sinto-me refrescado pelo vento do campo e da floresta em dias de verão; o aroma dos lírios do vale lava-me com<br />

o orvalho que cai na rosa da manhã; e das rosas o mel se derrama em minha pele. Oh, não me entristeças com a tempestade do<br />

íris cruel, não me amedrontes com a noite da rosa escura, mas ameiga-me com o odor das violetas em meu coração, com a<br />

doçura da mirra. Oh, canta para mim a canção de teus perfumes...” e o cego ainda remorou em versos de ebriez que nos<br />

escaparam.<br />

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Míriam esquecera-se de nós, só queria saber do cego; não dava a menor demonstração de estar consciente da<br />

nossa presença ali. Continuava a dançar em redor dele e a alternar perfumes com rabanadas dos véus e da cabeleira. E aquilo<br />

eram raios de luz na noite daquele cego, sincopados de gritos de felicidade – espetáculo tão estranho que nos começou a<br />

incomodar.<br />

O príncipe babilônio remexia-se inquieto em seu coxim. O nariz aquilino do jovem Hanan ficou ainda mais sem<br />

cor e seus olhos em fogo cerravam-se. Tive medo que de repente se atirasse sobre o cego e o desfizesse em pedaços. O mesmo<br />

ódio li no rosto do filho do magnata e do oficial asquelonita; parecia-me ouvir o bater tumultuoso de seus corações. Mas<br />

Míriam, sempre a dançar em redor do cego, defendia-o da raiva geral.<br />

Um a um fomos deixando a sala do banquete. Primeiro, o príncipe babilônio, o qual colocou na cabeça o<br />

diadema, envergou o manto e com voz impaciente gritou pelo servo. Mas Míriam não lhe deu a menor atenção. Depois chegou<br />

a vez dos nobres sacerdotais, e do asquelonita – e a minha. Deixamo-la só com o cego, em êxtase – e Míriam nem sequer notou<br />

a nossa retirada.<br />

Na manhã seguinte, ao passar pelo Pátio dos Gentios, vi-a com uma serva junto a uma tenda de pombos<br />

sacrificiais. Estava toda velada da cabeça aos pés, como uma vestal. Entreparei e por ali fiquei até que ultimasse a compra;<br />

Míriam demorou na escolha de duas pombas de seu agrado. Quando percebeu a minha presença, cobriu com o véu as<br />

cabecinhas azul-iridescentes das duas aves que tinha junto aos seios, como medrosa de que meu olhar contaminasse a sua<br />

oferenda. Aproximei-me e disse qualquer coisa sobre o caso da véspera, mas Míriam não me deixou concluir; num gesto vago<br />

de “sim, sim”, despediu-se e afastou-se. Seguia-a até certa distância, rumo à entrada do Pátio das Mulheres. Na porta de bronze<br />

corinto Míriam tirou o véu e pôs outro que sua serva trazia. Talvez admitisse que minhas palavras tinham contaminado o véu...<br />

E descobriu a cabecinha das pombas e cobriu o rosto e com um bastão de incenso em punho desapareceu pela porta do Pátio<br />

das Mulheres.<br />

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agir amanhã.<br />

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13<br />

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Depois tudo aquilo desapareceu, como levado por uma onda. São assim os orientais. Ninguém sabe como vão<br />

Míriam conservou em sua casa o cego – e foi fatal a influência que nela exerceu esse homem; arrancou-a da vida<br />

que levava como o jardineiro arranca do canteiro uma planta. Era o cego um desses homens crentes de que os mortos vão<br />

ressurgir das tumbas ao advento do Messias, e soube contaminar com sua fé o coração de Madalena.<br />

Grandemente versado era Bar Talmai nas escrituras dos judeus, e a partir daquela noite Míriam sempre o<br />

conservou junto a si em todos os banquetes e recepções. Bem tratado, barba bem penteada, bem ungido e bem vestido nas<br />

franjas do ritual, sentava-se lá e murmurava interminavelmente os versos da canção. Estragava assim todas as nossas reuniões;<br />

transformava os nossos outrora tão agradáveis banquetes em cansativas e tediosas noites de disputa interpretativa.<br />

Madalena entregava-se cada vez mais à dominação daquele homem, que depois se tornou um dos seguidores de<br />

Jochanan o Batista, o encarcerado por Herodes Antipatro por blasfêmia contra as realeza, como o velho Hanan me contou.<br />

Quando correu a notícia da prisão de Jochanan por ataque ao tetrarca, o povo comum entrou a acreditar que ele fosse um dos<br />

antigos profetas de Israel ressurgido – e o cego induziu Míriam de Migdal nessa crença. Todos esperavam grandes<br />

acontecimentos, como a vinda do Redentor anunciada por Jochanan, e não cessavam de purificar-se. Míriam abandonou o<br />

viver que até então levara, olvidou os velhos amigos e lá um belo dia desapareceu da cidade. Não foi mais vista nem sequer no<br />

Templo. Enclausurara-se por longo tempo na casa do jardim, em companhia do cego Bar Talmai, e lá recebia os seus irmãos<br />

em fé, entre os quais (dizia-se) até leprosos e outros doentes assim. O magnificente jardim foi transformado numa cultura de<br />

especiarias que eram negociadas na cidade e no Templo. Com isso se sustentavam, e o que sobrava era distribuído entre os<br />

pobres.<br />

Intrigados com a sua longa ausência, o jovem Hanan, sempre amoroso, e eu, todo curioso pelo destino de<br />

Míriam, tomamos nossos cavalos e fomos ter ao Monte das Oliveiras. Chegamos afinal à casa do jardim, mas com dificuldade<br />

a reconhecemos, tais as mudanças havidas. Em vez da maravilhosa coleção de plantas exóticas, uma simples cultura para fins<br />

comerciais. Uma horda de maltrapilhos infestava a residência e o jardim. Trabalhavam na produção de óleos e perfumes,<br />

moíam plantas em moinhos manuais ou almofarizes. Muita doença por ali, e das contagiosas, porque Míriam como que<br />

procurava os mais ínfimos mendigos da rua. Um me repugnou, evidentemente um leproso. E aquilo mais parecia um refúgio de<br />

escravos do que reunião de gente livre.<br />

No meio daqueles resíduos humanos Míriam de Migdal movimentava-se alígera, com aquele rosto tão nobre e a<br />

pele tão pura, translúcida como o alabastro. Revoltava-nos ver o primor daquele corpo sempre tratado com os mais preciosos<br />

óleos e vestido das mais finas sedas e lãs de Sidon lançado agora no meio daquela escumalha em trajes de estopa e pelegos.<br />

Íamos já no fim do outono e o úmido ar prenunciava chuva próxima – e já fazia frio em Jerusalém. Vi Míriam tiritar. Suas<br />

mãos, outrora amaciadas pelos cosméticos, estavam estragadas pelo trabalho e queimadas de sol. Da sua beleza empolgada<br />

pelo fanatismo religioso só se havia salvo a cabeleira ruiva, a descer em cascatas pelos ombros abaixo.<br />

Míriam recebeu-nos como se não tivesse havido mudança nenhuma; e nós, do nosso lado, não demos qualquer<br />

demonstração de surpresa. Fez-nos entrar e indicou-nos assentos perto do cego, em redor do qual se concentrava o trabalho.<br />

Auxiliares traziam-lhe flores ou folhas secas, que ele escolhia antes de passa-las aos moageiros. Tudo operava às cegas, mas<br />

como se tudo enxergasse com olhos interiores. E entrementes não cessava de falar coisas que os circunstantes ouviam com a<br />

maior atenção. Às vezes o serviço era interrompido e pediam-lhe que repetisse o que dissera – e o cego falava como se<br />

estivesse a descrever visões. Até o meu companheiro, o jovem Hanan, absorveu-se em suas palavras; e conquanto mostrasse no<br />

rosto sinais de irritação, nada arrancava-o às palavras do cego. Míriam também o ouvia, mas não com o simples interesse do<br />

curioso; tinha o rosto radiante de felicidade e salvação, com toda a alma à flor dos olhos. O cego falava sobre o tema já comum<br />

entre o povo de Jerusalém, Judeia e Galiléia: o Messias a vir, que eles tinham como um homem perfeitamente identificável.<br />

Esse Messias era como um rei que tivesse ido para a guerra e vencesse, de modo que todos lhe aguardavam o retorno triunfal.<br />

Mensageiros e batedores o precediam, anunciando a sua aproximação...<br />

Hanan, por fim, perdeu a paciência e lá começou a disputa – como é inevitável quando judeus se reúnem. O<br />

desprezo que ele tinha pela plebe cedeu o passo ao ressentimento. Esqueceu a dignidade da sua posição social. Ignoro se<br />

aquela pobre gente ali sabia estar diante do onipotente Hanan ben Hanan. O velho Bar Talmai suponho que soubesse, porque<br />

logo depois senti que deliberadamente o provocava.<br />

E sobre o que foi a disputa? Sobre isso: quanto pão, óleo, mel e vinho os campos produziriam, quando o Messias<br />

viesse! Que riquezas lhes iriam ter às mãos, que povos conquistariam – caso não se submetessem espontaneamente – e que<br />

milagres não se realizariam, quando os céus se rompessem, a terra fosse agitada de tremor!<br />

− Mas quem poderá ser esse Messias que anunciais como já ás portas da cidade, a ouvir as vossas lamentações?<br />

Algum poderoso rei que nos vai encher os celeiros, e abastecer-vos de óleo e mel, e dar a todos terras de cultura e vestes com<br />

que cobrir-vos a nudez? Quem é essa criatura na qual depositais tanta fé? De onde tirará ele tudo quanto vos falta e com que<br />

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sonhais? Irá conquistar outros países? E onde encontrará exércitos? Que aliados terá? Perguntou em tom de displicente<br />

superioridade o filho do Sumo Sacerdote.<br />

Aquelas bocas sem dentes, abriram-se em risadas.<br />

− Pensas que vai ele conquistar terras? Ah! As nações a ele submeter-se-ão e de vontade própria.<br />

− Quando o enviado de Deus aparecer, uma só uva dará tanto vinho que eu encherei odres e mais odres, e<br />

beberei, beberei, beberei, declarou um homem de olhos com feridas, mas de rosto transfigurado.<br />

− E eu, gaguejou outro, eu i...rei ao meu cam...po e com uma só es...piga encherei todos os meus sa... aacos e<br />

terei pão durante me...eses.<br />

− Bobo! Achas que terás de colher espigas? disse o terceiro. O vento colherá os grãos e ainda os trará para o teu<br />

moinho. Ou então o comerás na haste, porque na própria planta o trigo se transformará em pão.<br />

− E eu, balbuciou outro com alegria, passarei todo o tempo deitado sob as minhas tamareiras, e das tâmaras o<br />

mel me pingará na boca – e lambeu os beiços como se já lambuzados daquele mel.<br />

Vi entre eles uma mulher corcunda, sentada de pernas cruzadas e a dar idéia dum toco humano; espichava o<br />

pescoço e gemia estaticamente:<br />

− E cada dia eu darei...eu darei...eu darei...<br />

− Que é que darás cada dia, mulher?<br />

− Cada dia darei à luz um filho.<br />

Mas o cego Bar Talmai os fez emudecer. Tinha o aspecto de querer esgana-los e força-los ao silêncio. Os<br />

circunstantes, porém, não deram atenção aos seus olhos enevoados de branco e agora vermelhos, nem ao seu rosto que se<br />

contorcera, nem ao rouco da sua voz – tão absorvidos estavam naquelas visões da abundância. Por fim o cego pode gritar:<br />

− Não, não é nada disso de comer e beber à farta e dar à luz uma criança por dia. Nada disso, nada! Não a força<br />

do braço, mas a força do espírito do Senhor – o sagrado espírito, como os profetas disseram. Será o tempo da justiça pura, da<br />

verdade pura – do reino de Deus...<br />

O que ainda havia de paciência em Hanan bem Hanan desapareceu.<br />

− Mas quem poderá ser? Perguntou. Um rei da casa de Daví? Nem o próprio Salomão, com toda a sua sabedoria,<br />

era capaz de portentos como esses.<br />

− Um novo Salomão? Exclamou o cego. Certo que o Messias vai ser da casa de Daví, como já foi profetizado,<br />

mas não rei. Não é um novo Salomão que esperamos, nada de reis! Que fizeram por nós os nossos reis, Deus que me perdoe?<br />

Não se realizaram as palavras de Samuel com relação aos nossos reis? “Eles vos tomará os vossos filhos para o seu serviço,<br />

para conduzir os seus carros e cavalos, e tomará as vossas filhas para suas costureiras e cozinheiras e padeiras”. Mas foi pior.<br />

Quanto tempo durou o reinado de Daví? Seu filho Salomão nos transformou em escravos, do mesmo modo que seu sogro o<br />

Faraó transformou em escravos o povo do Egito. Qual foi a nossa parte no rico Templo que ele ergueu para o Senhor? O Altar<br />

de ouro pingava o suor de angústia do povo. Um lago feito com todo o cobre que os filhos de Sidon fundiram para o Templo<br />

não bastaria para conter as lágrimas do povo. Mas nem o altar de ouro, nem o lago de cobre era o que o Senhor pedia – ele<br />

pedia consciência reta e mãos que não oprimissem a viúva e maltratassem o órfão. Não tomou Salomão, o grande rei judaico,<br />

tantas e tantas mulheres e não ergueu altares e ídolos moabitas fazendo que o povo se cindisse em fragmentos? Seguiram seus<br />

filhos melhor caminho? Não são de Rehoboão, seu filho, estas palavras: “Meu pai vos castiga com chicote, eu vos castigarei<br />

com escorpiões”? E na realidade não nos castigaram ele e seus filhos com escorpiões e não adoraram ídolos, e não praticaram<br />

o mal diante dos olhos do Senhor, até que o Senhor nos afastasse de si, como nós deitamos fora um precioso pé de d’ror que<br />

caiu em degeneração e em vez de flores só dá espinhos (e aqui o cego lançou um ramo que tinha em punho, com expressão de<br />

desprezo no rosto), até que o Senhor lhe castigasse a casa e nos lançasse na dor e vergonha do exílio? E seriam melhores os<br />

reis que vieram depois? Uma geração da casa dos asmoneanos manteve a retidão – minto! nem isso, porque deixaram que<br />

penetrasse no Templo a impureza que seu avô combatera. Vede em que deram a segunda e a terceira geração dessa casa de<br />

reis. Com suas eternas brigas, e movidos da inveja, trouxeram a dominação de Edom e nos deram como rei um homem mau de<br />

sangue estrangeiro. Eis o que foram os reis judeus que inventamos, até que enfim nos alegramos com a submissão a um<br />

governo estrangeiro. E foi melhor o governo dos Sumos Sacerdotes? (Neste ponto adquiri a certeza de que o cego Bar Talmai<br />

não ignorava a identidade dum dos visitantes: evidentemente havia reconhecido Hanan pela voz, familiar ali na casa de<br />

Míriam. E agora envenenava a sua arenga, como se de muito tempo esperasse aquela ocasião para justar contas com um filho<br />

da casa reinante.) Serão os filhos de Hanan melhores que os filhos de Eli? Não fisgam com seus garfos os melhores pedaços no<br />

caldeirão de Deus? E não foi recentemente ouvida uma voz no Templo: “Os filhos de Eli não conhecem o Senhor...”?<br />

Hanan empalidecera.<br />

− Que palavras foram ouvidas? Indagou.<br />

Alguém em redor apressou-se em responder:<br />

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− Uma voz celestial gritou no Templo; os sacerdotes ouviram e tudo transpirou e entrou no conhecimento do<br />

povo: “Os filhos de Eli não conhecem o Senhor” – e todos nós sabemos que “filhos de Eli” quer dizer “filhos de Hanan”.<br />

Outra voz acrescentou:<br />

− No pátio do Templo ouvi um rabi interpretar como um aviso para os filhos de Eli aquele verso das Escrituras:<br />

“Os dias do mau serão abreviados...”<br />

Mas o jovem Hanan já havia voltado à sua compostura de sempre. Tomou-me a mão e disse:<br />

− Vamos, Hegemon, isto aqui é um ninho de rebeldes!<br />

Na caminhada de volta, Hanan manteve-se longo tempo calado, a digerir a cólera. Estávamos ambos<br />

convencidos de que não só o cego como também os outros lá da casa de Míriam tinham a certeza de estarem diante do filho do<br />

Velho Sumo Sacerdote. Procurei arrancar o moço àquele estado d’alma.<br />

− Que vai fazer com o cego? Cortar-lhe a língua?<br />

− Infelizmente não temos aqui esse castigo, suspirou Hanan.<br />

− Ah, se ele houvesse dito tais coisas contra o César e o nosso governo! Mas apenas insultou os reis e a religião<br />

daqui. O Sanhedrim deve julgar este caso de blasfêmia.<br />

Hanan estava meditativo.<br />

− O nosso Sanhedrim está estragado pelo fariseus. Que pena acha o Hegemon que o Sanhedrim imporia a esse<br />

homem por haver conspurcado a memória de nossos reis e a reputação de nossos Sumos Sacerdotes? Condená-lo-ia no<br />

máximo a 39 chibatadas – eis por que tanto abundam os rebeldes e blasfemadores.<br />

− Isso é mau. Já representei ao Procurador sobre a lenidade dos castigos nesta província.<br />

− Quando eu subir ao poder, rosnou o jovem Hanan, sei o que fazer com esta canalhada.<br />

− E não poderá me dizer o que é?<br />

− Já várias vezes insisti com o Sumo Sacerdote para formar um Sanhedrim só com elementos do nosso partido –<br />

um pequeno Sanhedrim que se reuna em casa do Sumo Sacerdote – e os blasfemadores do Templo e do Sacerdócio ficarão<br />

exclusivamente sob a jurisdição desse Sanhedrim.<br />

Já íamos chegando às muralhas da cidade. Entre os arrecadadores de taxas e os guardiães da porta encontramos<br />

os agentes do Templo. Distinguiam-se pelo chicote chumbado a alta coifa branca e a insígnia no peito. Reconhecendo o filho<br />

do velho Sumo Sacerdote, correram-lhe ao encontro e curvaram-se em profunda reverência.<br />

Hanan ben Hanan falou com voz imperiosa.<br />

− Ide ao Monte das Oliveiras, bairro de Eini. No jardim de essências de Maria Magdalena está um cego de nome<br />

Bar Talmai. Manietai-o trazendo-o depois para o Tribunal. É um dos mais perigosos blasfemadores da cidade.<br />

Os agentes partiram imediatamente.<br />

Quando mais tarde Bar Talmai entrou em julgamento, parece que Hanan bem Hanan não conseguiu o que<br />

intentava: a remessa do cego como escravo para os moinhos de óleo. Mas convidou-me a testemunhar a sentença dada pelo<br />

Tribunal.<br />

− Que é que eu disse? Foi como me recebeu Hanan à porta da casa de justiça. Trinta e nove chibatadas! Com<br />

penas assim, como amedrontar os criminosos e os blasfemadores?<br />

Os guardas já haviam deitado Bar Talmai no chão de mármore e despiam-lhe as costas. A chibata era composta<br />

dum látego de couro de asno cosido a outro de couro de boi, e aqueles servos do Sumo Sacerdote, vestidos de branco sabiam<br />

manejá-lo. Um deles ficava de lado, cantando: “Uma, uma e duas, uma e três”.<br />

O cego não emitiu um só gemido de dor. Ali de borco no chão, batia no peito e confessava os seus pecados.<br />

Logo após esse incidente Maria Madalena desapareceu da cidade. Foi para a Galiléia, onde segundo se dizia, um<br />

novo visionário andava a lidar com o povo.<br />

O fim que por esse tempo levou o cego Bar Talmai, não sei dizer. Saí da Judeia em missão de importância<br />

perante o Tetrarca Herodes Antipatro. Quando os encontrei de novo, a Bar Talmai e Míriam de Migdal, as circunstâncias já<br />

eram totalmente outras.<br />

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Foi nessa época que travei conhecimento com Herodes Antipatro e com a sua nova capital construída a beira do<br />

Genesaré, nas vizinhanças de fontes termais. Minha visita era oficial. As relações entre o Procurador Pôncio Pilatos e o<br />

Tetrarca estavam longe de ser satisfatórias. A divergência começou por causa dum ponto da etiqueta: qual dos dois devia<br />

visitar ao outro em primeiro lugar? O Tetrarca se tinha como amigo do César Tibério, em honra do qual havia construído<br />

aquela cidade (na realidade todos eles se consideravam amigos do César e nunca deixavam de acentuar isso na cunhagem das<br />

moedas); além disso era o dirigente de uma nação, quase um rei – e olhava d’alto o Procurador, como um simples funcionário<br />

romano. E por sua vez Pôncio ignorava o Tetrarca. Herodes Antipatro não era homem que despertasse simpatias: não caíra em<br />

graça de Vitélio, o Procônsul da Síria, e sua “amizade” com o Imperador era coisa muito duvidosa. Na verdade se ligava muito<br />

mais a Sejano, o poderoso ministro imperial a quem ele e os mais dirigentes de outras províncias mandavam ricos presentes em<br />

troca de favores. Era o Tetrarca um sutil e astucioso asiático. Na aparência não lembrava os judeus; nada de judaico em seu<br />

tipo. Seu rosto enérgico e bem barbeado, a cabeça pesada, os olhos de samaritano dum azul metálico, penetrantes e<br />

desconfiados, podiam constituir os traços dum comandante romano (todos ansiavam por parecer-se com os romanos). Era um<br />

homem musculoso, perito no arco e no lançamento do dardo. Distinguia-se na caça, cultivava as boas maneiras e falava um<br />

tolerável latim e igualmente o grego. Mas tudo simples exterioridades. Sua cultura helenistica pendurava-se nele como uma<br />

toga romana num selvático chefe germânico ou bretão.<br />

Como não fosse o herdeiro do trono por morte de seu pai, não havia sido em moço mandado a estudos para<br />

Roma, como os filhos de Míriam. Mais tarde, porém, quando o velho Herodes mandou matar os filhos de Míriam, também foi<br />

morto por crime de traição seu terceiro filho, justamente o herdeiro do trono – o que deu margem à famosa frase de Augusto:<br />

“Eu queria antes ser um leitão do que um filho de Herodes”. E isso fez que Herodes, Antipatro, filho duma mulher samaritana,<br />

se tornasse o herdeiro do trono da Galiléia e Peréia. Mas o César Augusto não lhe permitiu tomar o título de Rei; Herodes teve<br />

de contentar-se com o de Tetrarca.<br />

O deus deste Herodes era seu pai, o velho Herodes o Grande, que ele e seus irmãos não só adoravam como<br />

procuravam imitar em tudo. E do mesmo modo que o velho Herodes, Antipatro intitulou-se amigo do Senado Romano e do<br />

César, e vivia espremendo o povo para poder mandar riquíssimos presentes aos senadores prestigiosos. Mas nem os seus<br />

protestos de amizade, nem os seus presentes jamais convenceram os romanos; nós os trazíamos sempre espionados e<br />

estávamos sempre bem informados de seus encontros secretos com os tetrarcas e príncipes vizinhos – porque havíamos<br />

proibido esses encontros, ou “intercâmbios sociais”, como eles diziam. Posteriores acontecimentos vieram justificar as nossas<br />

suspeitas. Descobrimos um seu arsenal de armas – porém mais tarde. Ao tempo desta história sabíamos que ele não tinha<br />

elementos para se sustentar uma dia no governo da Galiléia, se não fosse o apoio das nossas coortes.<br />

Herodes assemelhava-se, ou imitava, ao pai na mania de construções; mas não dispunha dos mesmos meios do<br />

velho Herodes. E também herdara a cupidez do velho; esmagou de impostos aquela província pequena, mas abundosa, já que<br />

provia de trigo a Judéia e ainda fornecera o suficiente para o Tetrarca construir a nova capital Tiberias. Com a característica<br />

astúcia dum bárbaro, fazia Herodes jogo duplo; para os judeus apresentava-se como um fiel seguidor da tradição, um piedoso<br />

observador da lei judaica. Não consentia, por exemplo, que imagem de homem ou de animal fosse estampada nas moedas;<br />

usava, como seu pai, apenas símbolos agrícolas, a espiga de trigo e a oliveira. Nos grandes dias santificados vinha a Jerusalém<br />

conforme o velho costume; freqüentava o Templo e oferecia como oferendas os mais gordos ovinos e bovinos. E no interpretar<br />

da lei não se punha ao lado dos luzeiros saduceus; formava com os fanáticos fariseus. Em compensação lá em seu palácio de<br />

Tiberias levava um viver perfeitamente gentio. Para assegurar-se contra a instrução dos seus judeus erigiu a nova capital sobre<br />

o chão dum antigo cemitério; isso fez que os judeus, segundo a lei, declarassem impura a cidade e nela não se estabelecessem.<br />

Herodes então encaminhou para lá gregos, asquelonitas e fenícios de Tiro e Aco; dizem até que abriu a sua cidade a mendigos<br />

e escravos fugidos, para apressar o povoamento. Trouxe colonos de Chipre e da Síria, aos quais deu lotes de terras e ainda os<br />

beneficiou com piscinas, ginásios e teatros – e até importou atores e gladiadores de Antióquia. Promoveu jogos olímpicos com<br />

prêmios tentadores para os atletas de Alexandria, Atenas e outras cidades gregas. Imitava assim Herodes o Grande. E cumpre<br />

mencionar ainda o famoso Templo de Augusto, de mármore branco, por ele erigido em honra ao falecido imperador. E para a<br />

realização de tanta coisa sangrava sem dó os judeus.<br />

Tive a honra em minha visita de ser apresentado à primeira dama da corte, Herodias, matrona muito culta e de<br />

muito boa raça. Herodes Antipatro encontrara-a a caminho para Roma e tomara-a de seu irmão. Herodias era ambiciosa, fez<br />

muitas amizades em Roma e trabalhou para obter para o marido o título de rei e mais territórios, à custa dos irmãos de<br />

Herodes.<br />

Herodias (bem como seu irmão Agripa) foi educada na corte de Augusto; vinha daí o seu profundo<br />

conhecimento de todas as intrigas entre as grandes famílias e as suas relações com altas personagens. Trocava cartas com a<br />

Imperatriz e com Agripina, filha de Germânico, que já andava a representar papel importante nos círculos governamentais.<br />

Herodias introduziu na corte do Tetrarca a cultura helenista e rodeou-se de filósofos gregos, atores e dançarinos romanos – e<br />

elevou a corte ao nível de magnificência das dos grandes reinos. Fez vir para Tiberias, Ptolomeu, o irmão de Nicolau, para<br />

dirigir os negócios do estado e compor os discursos que Herodes tinha de pronunciar em certas ocasiões, e também conduzir a<br />

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correspondência com a capital do Império Romano. Era freqüente passarem pelos territórios do Tetrarca importantes<br />

funcionários fiscais de Roma – e a todos Herodias obsequiava na corte. Proporcionava-lhes diversões, teatro e sacrifícios no<br />

Templo em honra do César. Nenhum desses visitantes deixava de mencionar em seus relatórios aquele oásis de cultura grecoromana<br />

no oceano da barbárie judaica – aquele recanto amigo de Roma no centro da inquieta e sempre hostil Galiléia.<br />

Também eu, como representante do Procurador, fui recebido amistosamente. A esposa de Herodes fez-me sentir<br />

em casa desde o momento em que penetrei o magnificente salão das colunas. Tomou-me pelo braço e lavou-me a ver os seus<br />

lindos jardins no declive que ia ter à praia do calmo e rebrilhante mar de Genesaré; águas de prata corriam entre canteiros de<br />

flores exóticas e maravilhosos pássaros voavam de arbusto em arbusto. Ao seguirmos pela comprida aléia de palmeiras de<br />

Jericó beirantes à praia, no extremo do jardim, a mulher do Tetrarca me disse no mais puro latim:<br />

− Estamos infelizmente, muito longe de Roma e de seus tesouros de cultura. Mas tudo fazemos para manter aqui,<br />

nesta fímbria do deserto, o espírito do gentio latino, a única fonte de luz e felicidade dos seres humanos.<br />

Herodias apresentou-me sua filhinha Salomé, fruto do primeiro matrimônio. Não teria então mais que nove ou<br />

dez anos, mas já impressionava. Os lindos cachos de cabelo brincavam sobre seus ombros; e os olhos que me enfitavam eram<br />

negros, dum negro levemente tocado de vermelho profundo e que sugeria a cereja muito madura. Tinha o corpo elástico como<br />

o das serpentes e rijo como a corda esticada dum arco; parecia um menino bem treinado e disciplinado; era, em suma, uma<br />

beleza caracteristicamente oriental, a despeito de um tanto judaica – com aquela exaltação, aquela sensibilidade nervosa dos<br />

judeus. Todinha coberta de enfeites, produzia um contínuo trinclido ao caminhar.<br />

− Ainda é um pouco selvagem, disse a mãe em tom escusatório. Realmente ainda não teve nenhuma educação.<br />

Vivíamos com seu pai no âmago do deserto e lá cresceu como gazela solta – e amimava os cabelos da filha. Mas agora vai ser<br />

diferente. Já lhe comprei no mercado de Tiro um mestre grego, homem educado em todas as ciências e nas melhores maneiras<br />

helênicas. Sua educação ficará sob as vistas do nosso amigo Ptolomeu. O Ciliarca certamente já se encontrou com o nosso<br />

Secretário de Estado, disse ela com orgulho. É irmão do célebre Nicolau de Damasco, que tantas vezes representou o grande<br />

Herodes na corte de Augusto. Não duvido que com sua ajuda minha filha assimile a melhor cultura grega; logo entrará para a<br />

sociedade e tomará parte nos negócios públicos. Porque irá um dia governar; seu tio, o Tetrarca Filipe, já expressou tenção de<br />

desposá-la – e voltando-se para a menina: Como futura Tetrarca, minha filha, tens de ir aprendendo a lidar com estranhos.<br />

Do que eu já disse facilmente se conclui que na corte de Herodes não nos sentíamos embaraçados pelas<br />

restrições judaicas – na mesa, por exemplo. A cozinha estava a cargo dum excelente cozinheiro de Alexandria. E se à boa mesa<br />

juntarmos as demais distrações, a música, as danças executadas por dançarinos e dançarinas, nada dava idéia de estarmos na<br />

corte duma província judaica, em meio á barbárie asiática; a minha impressão era de estar em Roma. E havia ainda os<br />

discursos de Ptolomeu de Damasco, sofistas. Eu de mim os dispensaria, como extremamente tediosos em meio aos encantos da<br />

festa e à muita bebida. Tive ensejo naquela ocasião de renovar relações com o futuro rei dos judeus, Agripa, no momento<br />

ocupadíssimo com o jogo e a fazer dívidas. Era hospede de seu cunhado Herodes, o qual lhe dera o lucrativo emprego de fiscal<br />

dos mercados. Talvez seja forte esse “lucrativo”, porque pouco ficava nos mercados depois que Roma e o Tetrarca tocavam as<br />

suas quotas. E o que ainda podia Agripa extorquir dos agricultores galileus era bem pouco – razão de viver sempre sem<br />

dinheiro. Rodeava-se de muita gente, num estadão mais de rei atual que futuro. O fato da sua educação na corte afizera-o ao<br />

mais alto luxo, e para satisfazê-lo Agripa levantava empréstimos de todos os lados, tanto de piedosos judeus como de<br />

opulentos romanos. Também recorria ao Tetrarca, seu cunhado e tio – e quem pagava tudo era sempre o pobre camponês da<br />

Galileia.<br />

Eu já me encontrara com Agripa nas festas oficiais de Cesaréia e Antióquia; conheciamo-nos muito bem – mas<br />

Agripa fingia não me reconhecer. Aparentemente era eu muito ínfimo para calar na memória dum príncipe judeu. Por fim nos<br />

chocamos numa corrida de carros em Neápolis, Samaria, no estádio construído por Herodes o Grande. Mas, com todos os seus<br />

salões e templos, era um instituto muito caro para ser mantido pelo Procurador, de modo que estava começando a arruinar-se.<br />

De vez em quando visitantes de excepcional importância vinham de Roma e de Antióquia e para homenagiá-los<br />

improvisavam-se jogos atléticos, lutas de gladiadores e corridas. Entediado com a sua pasmaceira em Tiberias como<br />

superintendente dos mercados, Agripa não perdia esses ensejos de encontrar-se com os romanos itinerantes e igualmente<br />

satisfazer a sua paixão pelo jogo.<br />

Certa vez encontrei alistado entre os corredores de carro dois filhos do Sumo Sacerdote – meu amigo Teófilo,<br />

habilíssimo corredor, e seu irmão Matatias. Apostei em Teófilo e Agripa em Matatias, de quem era amigo. E estávamos antes<br />

da corrida examinando os cavalos, quando Agripa suspendeu para alta quantia em ouro a sua aposta. Eu conhecia Teófilo e<br />

estava certo de que seria o vencedor, mas não tinha certeza nenhuma do ouro dum príncipe judeu que jogava e perdia com<br />

tanta prodigalidade – e exigi, em vez da simples palavra, a apresentação do dinheiro. Agripa ofendeu-se, porque minha<br />

exigência atingia-o no ponto sensível; e mediu-me de alto a baixo com um olhar que dizia: “Quem é este homem que ousa<br />

duvidar da minha palavra?” Depois, voltando-se para seus amigos:<br />

desconta.<br />

− Hoje não mais sabemos com quem lidamos. Antigamente não era assim: sabíamos com quem tratávamos.<br />

Está claro que revidei.<br />

− Sim, isso era no tempo em que os príncipes da casa de Herodes pagavam em ouro e não em letras que ninguém<br />

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Escuso dizer que a aposta não foi feita – e daí por diante o príncipe teve outra razão, além da minha pouca<br />

importância, para ignorar-me. Quando sua irmã de novo nos apresentou em Tiberias, seu ar não foi de agrado; tomou a<br />

esmeralda, ajustou-a ao olho e mirou-me dos pés à cabeça, dizendo:<br />

− Não sabia da existência dum Ciliarca em Jerusalém, ao que respondi:<br />

− Já tive o prazer de ser apresentado ao príncipe nas corridas de Neápolis.<br />

Ele fingiu não se recordar – e sua irmã, fina em perceber coisas, apressou-se em dizer:<br />

− Mas, Agripa, estamos diante do comandante Cornélio, o braço direito de Pôncio Pilatos.<br />

Agripa não era muito apreciado em Tiberias. Tratava Herodes d’alto, como a um inferior. Único herdeiro<br />

masculino da casa real dos Asmoneus – com a qual se ligava por linha materna como filho da desventurada Míriam,<br />

companheiro de meninice do único e já falecido filho de Tibério, amigo íntimo dos primos de Tibério e filhos de Germânico,<br />

Calígula e Cláudio, Agripa se sentia imensamente superior ao Tetrarca e não o escondia. Nunca falava em Roma sem referir-se<br />

ao “meu amigo Calígula” ou ao “meu amigo Cláudio”. E por meio de palavras ou gestos sugeria que Tibério já estava vivendo<br />

muito e em breve o trono iria caber a um desses amigos – e então...<br />

Eu não tolerava esse aristocrata judeu que assim se gabava das suas amizades em Roma, que conhecia todas as<br />

tricas políticas da capital e andava afundado na intrigalha. Com olho na sua possível elevação a rei da Judéia ou mesmo de toda<br />

a Palestina, ele empenhara a sua amizade, contra pesados empréstimos, aos futuros prováveis imperadores. Na aparência era<br />

um puro romano, de rosto perfeitamente barbeado. Quando na mesa, levava ao olho a esmeralda polida e olhava para os<br />

comensais com indiferença. Bocejava, alheava-se e se levantava no meio dos banquetes. Não é preciso dizer que tomei nota<br />

dos seus gestos e expressões indicativas de impaciência com a longevidade de Tibério, dando conhecimento de tudo à Roma.<br />

Não, não havia amor nenhum entre mim e o vosso rei judeu Agripa I. Mas sua irmã Herodias – oh, todas as honras lhe cabiam!<br />

Que inteligente e encantadora mulher! Espirituosa, divertida, sempre a pedir desculpas dos desazos do irmão.<br />

− Compreende-se, Ciliarca; estragado como foi pelos requintes de Roma, que pode encontrar aqui nesta<br />

província abandonada? Entedia-se e o tédio irrita.<br />

Tive a honra de ser convidado pelo Tetrarca para uma visita à sua fortaleza de Machaerus, na província de<br />

Peréia, além do Mar Morto, isso por ocasião dum seu aniversário; ele queria festejá-lo longe da capital, em família e com<br />

alguns íntimos – e incluiu-me na lista.<br />

Erguia-se num alto morro essa fortaleza, com poderosas muralhas separando-a do deserto. Não ficava longe a<br />

fronteira da Arábia, o reino do primeiro sogro do Tetrarca e agora seu inimigo. E essa inimizade recrescera depois que Herodes<br />

trocou a esposa árabe por Herodias.<br />

O acesso à fortaleza era penoso; a nossa caravana de camelos, mulas e asnos passou o dia a galgar aquelas<br />

sendas pedregosas – era como se um mar de lava houvesse escorrido morro abaixo, queimando e fundindo tudo; só aqui e ali<br />

algum miserável cacto emergia duma fenda de rocha. Os judeus deram àquela região o nome do Sodoma e dizia a lenda que já<br />

fora zona de terra fértil, mas os pecados do povo fizeram que Deus a amaldiçoasse e tudo queimasse com uma torrente de fogo.<br />

Do alto do morro descortinamos, muito longe, o refrescante verde das tamareiras, oliveiras e vinhedos de Jericó, entre o Mar<br />

Morto e o rico vale do Jordão. Mas o próprio Mar Morto mergulhava fundo no deserto, como um olho arregalado, em rosto<br />

híspido.<br />

Chegado à sua fortaleza, o Tetrarca desfez-se do manto da cultura romana que usava na capital – em parte por<br />

insistência da mulher – e mostrou-se o que realmente era – um desabusado tirano oriental. Lá mantinha um harém com<br />

inúmeras concubinas e muita escravaria masculina e feminina – pela maior parte dote da filha do rei árabe. A vida de Herodes<br />

em Machaerus era completamente solta; a presença da esposa culta e dos hóspedes não o impedia de nada. “Ele precisa viver a<br />

sua vida...” foi o que aquela fina mulher me disse com um resignado sorriso. “Depois dalguns meses lá na capital, entre<br />

pessoas civilizadas e na atmosfera da cultura, Herodes começa a entristecer-se – e tem de vir para esta fortaleza bárbara. E aqui<br />

solta-se de todos os laços que o peiam em Tiberias, e tem quantas concubinas quer. Acalma-se, repasta-se – e pode de novo<br />

voltar à vida civilizada”.<br />

Logo depois de minha chegada vim a saber que Herodes havia encarcerado lá aquele estranho fanático de nome<br />

tão popular em Jerusalém, Jochanan o Batista. Seus insultos contra Herodias e as desgraças que lhe profetizava, bem como os<br />

seus ensinamentos anti-religiosos, constituíam elementos de sobra para uma condenação à morte – e no entanto era tratado com<br />

extraordinária leniência. Herodes apenas o removera da zona de Jericó fim de diminuir a influência de Jochanan sobre as<br />

hordas que o procuravam às margens do Jordão. Apesar de preso, tinha permissão para receber seus discípulos e neles<br />

continuava a inocular as suas incompreensíveis idéias. Mais ainda: vim a saber que livremente enviara Jochanan mensageiros a<br />

pregar em seu nome por toda parte. A razão era que, como todos os tiranos, Herodes sempre fora profundamente<br />

supersticioso, e considerava Jochanan um profeta. Sentia-se forçado a podar o raio da sua influência como pregador, mas não<br />

tinha coragem de erguer contra ele a mão.<br />

Herodias, porém, interpretava semelhante leniência como ofensiva à sua pessoa; estava certa – e estava<br />

igualmente certa em considerar a fraqueza do Tetrarca como perigosa para a segurança do estado. Blasfêmia religiosa é uma<br />

coisa, ataque impune às mais altas autoridades do estado é outra – e acaba destruindo a autoridade. Eu plenamente concordava<br />

com suas idéias, a até cheguei a abordar o assunto com o Tetrarca, falando em parte como romano. Disse-lhe: “Ainda que olhe<br />

este caso como puramente local, só dizendo respeito à jurisdição do Tetrarca, cumpre não esquecer do interesse que tem Roma<br />

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na manutenção da ordem civil. Os criminosos não podem ficar impunes, quaisquer que sejam a natureza de seus crimes”. E em<br />

nome de Roma insisti no julgamento de Jochanan o Batista.<br />

Não foi Herodias a única pessoa a agradecer-me – Ptolomeu também o fez e reforçou minhas sugestões. Mas<br />

tudo inútil. Justamente num ponto que afetava a sua dignidade e segurança Herodes comportou-se com teimosia de mula. Veio<br />

com evasivas. “Tenho de esperar que sua popularidade arrefeça entre o povo, de modo que a execução não provoque<br />

ressentimento”. Que absurdo! Quanto mais tempo fosse aquele homem conservado preso, mais sua popularidade cresceria.<br />

Mas a verdade era outra: O Tetrarca tinha medo de Jochanan.<br />

Senti curiosidade em conhecer esse extraordinário maníaco que desse modo aterrorizava Herodes, e pedi a<br />

Ptolomeu que mo mostrasse. Eu também queria ouvir o "profeta”.<br />

Encontramo-lo numa das células do cárcere, encadeado por um dos pulsos à parede. Diante da janelinha, do lado<br />

de fora, um grupo de seguidores ouvia a sua prédica. Jochanan falava gesticulando exageradamente com a mão solta, e como<br />

que não deu tento de nossa presença ali. Atitude deliberada ou realmente não nos viu? Aquele quadro de livre intercâmbio<br />

entre um prisioneiro político e seus cúmplices impressionou-me – mas eu nada disse.<br />

A aparência de Jochanan era mais ou menos a que eu havia imaginado – um daqueles homens do deserto que<br />

com freqüência eu encontrava nos pátios do Templo: alto, maltratado, seco, esqueleto com pele por cima – pele muito<br />

queimada pelo sol do deserto. Mas era dotado de poderosa musculatura e constituição de gigante. Trazia na cabeça uma<br />

daquelas caixetas ritualísticas dos judeus, com o pergaminho em que declaram o amor a Jeová, e a espaços a mão solta e<br />

gesticulante arrumava-a no lugar – a correia era curta e o cabelo muito. Na fímbria de sua túnica de estopa pendia a clássica<br />

franja judaica. Seus olhos ardentes não deixavam a janelinha por onde espiavam seus seguidores. Quando entramos estava ele<br />

a declamar palavras que não pude entender – não no aramaico vulgar, mas em antigo hebraico, a língua dos velhos profetas.<br />

Ptolomeu deu-me a tradução em latim.<br />

recitando?<br />

Escolhido ele foi e oculto de Deus antes da criação do mundo;<br />

E com Deus estará por toda a eternidade.<br />

E julgará os ocultos feitos dos homens,<br />

Ninguém poderá esconder coisa nenhuma.<br />

O estilo retórico impressionou-me e me fez dizer a Ptolomeu:<br />

− Se não fosse um homem tão perigoso, poderíamos fazê-lo declamar em nossos teatros. Que é que está<br />

− São versos do chamado “Livro de Enoch”, um visionário que viveu no tempo dos reis asmoneanos e profetizou<br />

o advento do Messias. Esse livro tem exercido perniciosa influência – tem perturbado a cabeça de milhares de judeus. Ouça!<br />

O fanático prosseguia na declamação, sempre a ignorar a nossa presença; dirigia-se unicamente aos que estavam<br />

com as caras na janelinha.<br />

Naquele dia vi o poço da justiça<br />

Do qual todos estão bebendo.<br />

Antes que o sol e os sinais celestes fossem criados,<br />

Antes que as estrelas do céu fossem feitas,<br />

Seu nome já tinha sido pronunciado pelo Senhor.<br />

Ele será o bordão de amparo de todos os justos<br />

Que nele se apoiam para não cair<br />

O filho do homem, a quem tu vês,<br />

Despoja de seus tronos<br />

Os reis e os homens poderosos.<br />

Ele lança dos tronos os reis<br />

E expulsa-os de seus reinos.<br />

E manda-os para as trevas<br />

E entrega-os aos vermes.<br />

Quando Ptolomeu me traduziu estes versos não pude me impedir de exclamar:<br />

− Mas isso é contumácia levada ao extremo! É incitamento do povo contra o Imperador, contra o Senado e o<br />

poder mundial de Roma!<br />

− E porisso mesmo foi preso.<br />

− Mas que espécie de aprisionamento é este? Admitem então gente de fora em comunicação com o detido, de<br />

modo que possa continuar na catequese criminosa? Olhe! Não só preleciona como obtém notícia do que se passa lá fora...<br />

− Infelizmente é assim, suspirou Ptolomeu. Recebe informes e manda mensageiros para todos os pontos do país.<br />

− Mas por Júpiter, que espécie de governo é o desta terra?<br />

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− Ciliarca, nada podemos contra este homem. Cada vez que o Tetrarca ouve a sua voz, treme como criança. Bem<br />

sabe disso, já me conversaram sobre o caso.<br />

− Bom, se não há outro meio, tenho de pedir a intervenção do Procônsul em Antióquia. Bem sabe que não<br />

gostamos de interferir nos negócios internos do tetrarcado, mas se os daqui não sabem resguardar a segurança da terra, outros<br />

de fora têm de fazê-lo.<br />

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alcançou.<br />

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O que nós, estadistas, diplomatas e altos funcionários, não conseguimos, uma menina de dez anos facilmente<br />

Naquela tarde íamos ter o banquete oficial no terraço de colunas da cidadela – um banquete à moda oriental.<br />

Fileiras de archotes iluminavam a cena, e ao longe a faixa do Mar Morto refletia o brilho das estrelas. O Tetrarca estava de<br />

bom humor, com o sangue espicaçado pelo forte vinho de Chipre de mistura com mel – que por instigação de Herodias bebera<br />

em excesso. Seus olhos pousavam satisfeitos nas dançarinas seminuas e lantejoulantes, as escravas árabes e africanas do dote<br />

da primeira esposa. Mas à medida que os vapores do vinho acentuavam seus efeitos, o espetáculo o ia interessando menos e<br />

menos. Seus olhos vermelhos procuravam algo mais picante e por fim pousaram na pequena Salomé, ali à mesa ao lado de<br />

Herodias. Seus ornatos de cabelo tilintavam aos menores movimentos da cabecinha inquieta e viva. Os olhos do Tetrarca<br />

fizeram-se concupiscentes, porque de fato era um prazer olhar para a menina. Aquela esbelta figura de linda pele morena<br />

merecia mais que uma corte provinciana – fazia jus à própria corte de Tibério. Tornara-se hábito os príncipes bárbaros imitar o<br />

Imperador em tudo; fizeram-se assim requintadamente voluptuosos, apaixonados pelas coisas finas do mundo helenístico. E<br />

em todas as cortes barbarescas apareciam as mesmas juventudes consagradas ao prazer, masculinas e femininas, que Roma<br />

cultivava. Eu realmente não posso dizer se o Tetrarca da Galiléia e Peréia de fato já se alçara àqueles requintes ou se o<br />

simulava por motivos políticos. Seja como for, por algum tempo aborreceu ele as dançarinas árabes e egípcias e se voltou para<br />

as meninas adolescentes.<br />

Aqueles olhos fixos em Salomé iam-se congestionando – e Herodes não procurava ocultar a emoção que o<br />

invadia. Súbito gritou:<br />

− E agora vai a pequena Salomé dançar para mim!<br />

Mas Salomé era a única pessoa presente que ousaria opor-se à vontade do potentado. Um gesto infantil sacudiu<br />

os cabelos tilintantes e respondeu:<br />

− Não, a pequena Salomé não dança para você, e escondeu a cabeça na túnica de Herodias.<br />

O Tetrarca vacilou por uns instantes, como prestes a explodir de cólera; mas o vinho ainda não o havia<br />

empolgado de todo e ele ainda estava consciente da nossa presença ali. Dominou-se e em voz brincalhona disse:<br />

− Oh, sim, a pequena Salomé vai dançar para o Tetrarca.<br />

A menina de novo sacudiu a cabeça:<br />

− Não, não vou.<br />

− Que? Então não obedece nem ao Tetrarca da Galiléia e Peréia?<br />

− Não! Salomé não obedece a nenhum Tetrarca.<br />

A brincadeira ia-se tornando séria, mas com o potentado, não à criança, em pior posição.<br />

− E se o Tetrarca da Galiléia e Peréia prometer à pequena Salomé um palácio em Tiberias, e um jardim com<br />

gazelas e pavões belíssimos e lindos papagaios? Propôs Herodes num tom sombrio que nos impressionou.<br />

− Nem assim Salomé dançará! foi a resposta da menina.<br />

Rimo-nos todos, parte para aliviar a tensão ambiente, parte por impulso espontâneo. Era difícil agora dizer quem<br />

era o Tetrarca e quem era a criança, porque a brincadeira já não era brincadeira. Os olhos de Herodes diziam do assomo<br />

crescente da cólera interior. Era como se considerasse ponto vital a dominação da vontade da menina, ou por meio de<br />

promessas ou por meio de ameaças. Vontade não lhe faltava de recorrer logo à violência, mas estávamos ali nós e Herodias, e<br />

isso o detinha; ou talvez obscuramente estivesse ele procurando agravá-la; indiferente de revelar diante de nós o tom de luxúria<br />

de suas palavras, talvez visasse a esposa. E Herodes insistiu:<br />

− E se o Tetrarca da Galiléia e Peréia prometer à pequena Salomé satisfazer qualquer pedido que ela faça, ainda<br />

que lhe custe metade do reino? perguntou com os olhos fixos na esposa.<br />

para ele.<br />

− Nem assim... começou Salomé – mas sua mãe cochichou-lhe algo ao ouvido e a menina voltou atrás.<br />

− Dará mesmo o Tetrarca da Galiléia e Peréia o que Salomé pedir?<br />

Herodes soltou uma gargalhada e respondeu imitando a voz da menina:<br />

− O Tetrarca da Galileia promete satisfazer qualquer desejo da pequena Salomé, se a pequena Salomé dançar<br />

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Sem mais uma palavra a pequena Salomé levantou-se da mesa e foi para defronte de Herodes. E sem preparo<br />

nenhum começou a ondear o corpo ao som dum tambor batido por um escravo. Na sua inocência infantil, sem desconfiança de<br />

nada, deixou cair a túnica que lhe cobria o busto, ficando desnuda até o umbigo. De pés fixos num ponto, ondulava o corpo<br />

juvenil em movimentos elásticos de serpente; e apesar do infantil da dança cada movimento da menina punha incêndios no<br />

sangue do Tetrarca e de todos os presentes. Mas sua expressão de inocência deixava em dúvida se havia nela a menor<br />

consciência do efeito causado. E quanto mais dançava, tanto mais sensuais eram os desafios de sua cadência. Salomé regirava<br />

e contorcia-se, ora apresentando as costas, ora os seios em botão e o ventre menineiro – e tinha movimentos de cisne. De novo<br />

a lembrança de Tibério me acudiu: que régio presente para o voluptuoso sátiro! Mesmo em seu retiro de Capua, a meditar e<br />

filosofar sobre a vida, ele teria prazer em retornar ao mundo por força da sugestão daqueles pequeninos seios e daquele dorso.<br />

Voltei-me para o meu vizinho, um oficial romano, e cochichei-lhe o meu pensamento. Mas a mãe de Salomé ouviu-me ou<br />

adivinhou, e inclinando-se disse:<br />

fazendo.<br />

− Não sei onde essa menina aprendeu isso – com as escravas árabes, com certeza. Ela não sabe o que está<br />

− Em todo caso, murmurei meio de brincadeira, se o César Tibério vê esta menina, as probabilidades de obter o<br />

Tetrarca o título de Rei crescerão muito.<br />

Herodias era uma perfeita dama de salão e foi bem humorada que me ameaçou com o lenço.<br />

− Que cinismo é esse, Ciliarca? Está-me fazendo mudar de idéia a seu respeito...<br />

Mas, Salomé, cansada, parecia prestes a cair. E sua mãe já se ia erguendo para acudi-la quando Herodes, num<br />

trôpego movimento de bêbado, avançou, agarrou-a e depô-la em seu colo, no coxim.<br />

− E agora, pequena Salomé, pode pedir ao Tetrarca da Galiléia o que esse coraçãozinho deseja – e, como disse o<br />

rei Assuero à Ester, satisfarei esse desejo ainda que me custe metade do reino.<br />

Amimando o rosto do Tetrarca a pequena Salomé respondeu:<br />

− Quero que o Tetrarca da Galiléia mande seus fiéis guardas germânicos trazerem-me numa salva de prata a<br />

cabeça de Jochanan.<br />

Ouvimos claramente essas palavras mas não pudemos compreende-las. E parece que com o Tetrarca também<br />

aconteceu o mesmo, pois perguntou em voz de quem ouviu mal:<br />

tal homem?<br />

− Cabeça de quem queres tu que meus fiéis guardas germânicos tragam em salva de prata?<br />

− A cabeça de Jochanan o Batista, o profeta encarcerado.<br />

− A cabeça do profeta louco? Murmurou Herodes empalidecendo. Que idéia absurda! Para que quer a cabeça de<br />

Estávamos todos nós no maior assombro, mas Herodias observou com a maior naturalidade:<br />

− Onde aprendeu essa menina tais coisas? Foi a vida que passou no deserto...<br />

− Que? Exclamou a pequena Salomé no colo de Herodes. Então o Tetrarca da Galiléia e Peréia tem medo dele,<br />

porque é profeta?<br />

Herodes lançou um olhar terrível, como e de Zeus em cólera, primeiro contra a mãe da menina e depois ao seu<br />

secretário Teófilo, o qual baixou os olhos inocentemente. Depois encarou-me e quase com insolência respondeu, menos a<br />

Salomé do que a nós todos:<br />

− O Tetrarca da Galiléia não tem medo de ninguém, nem mesmo do... ele ia dizer algo terrível, mas dominou-se<br />

e corrigiu: nem mesmo do rei da Arábia, que me ameaça de guerra porque troquei sua filha pela mulher de meu irmão – e seus<br />

olhos voltaram a fixar-se em Herodias.<br />

− Oh, sim! gritou a menina. Está sim com medo dele! e apontou para baixo.<br />

− Já disse que não tenho medo de ninguém, exceto, sem dúvida, do César, meu amigo de tantos anos – e seus<br />

olhos voltaram-se para mim, como uma ameaça.<br />

− Então por que não me manda trazer a cabeça que pedi?<br />

− Porque a cabeça dum homem não é brinquedo de criança, respondeu Herodes com os olhos de novo em<br />

Herodias, como a dizer que não ignorava donde tudo provinha.<br />

Peréia?<br />

− Mas deu a palavra de que satisfaria qualquer desejo meu. Será que não tem palavra o Tetrarca da Galiléia e<br />

Em vão Herodes procurou socorro em nossos olhos – desviamo-los dele e ele entendeu.<br />

− Sim, murmurou finalmente. Sim, pequena Salomé. O Tetrarca da Galiléia é escravo de sua palavra, como<br />

todos os soberanos, como o César em Roma. Vamos, executem-lhe a vontade! ordenou para os guardas.<br />

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Profundo silêncio se seguiu. Ouvimos os passos dos guardas que desciam e se afastavam. Herodes afastou<br />

Salomé de seu colo e estendeu a taça a um servo para que a enchesse, e bebeu.<br />

− À paz de Roma e ao seu César!<br />

Todos acompanhamo-lo na saudação. Herodes como que acalmara o seu terror íntimo com aquela invocação do<br />

César romano.<br />

Passos na escada, que se aproximavam, e breve dois soldados germânicos surgiram com uma cabeça de homem<br />

sobre uma salva de prata. A mesma cabeça que eu vira horas antes, viva, requeimada de sol. Junto à cabeça vinha o filatério, a<br />

bolsinha de couro ritualística. Olhos e lábios entreabertos. Aquela boca parecia prestes a falar.<br />

A salva foi apresentada à pequena Salomé, que estendeu as mãos, e nesse momento o filatério caiu sobre o<br />

sangue da salva – e aqueles olhos e aqueles lábios imediatamente se fecharam.<br />

De fora, lá da praça fronteira, subia um som confuso de maldições e lamentos. Admirei-me de que em hora tão<br />

avançada houvesse gente estranha na fortaleza. Fingimos não ouvir e procuramos retomar o fio da conversa, como se nada<br />

tivesse havido. Mas notei que o Tetrarca, momentaneamente senhor de si com a invocação do César, estava de novo pálido de<br />

terror. Já cessara o efeito dos vinhos e ele não tentava ocultar o que sentia. Falava alto, procurava brincar – mas não mais com<br />

a pequena Salomé, que afastara de si repugnado. Deu ordem para que removessem dali a salva com a cabeça do profeta.<br />

Salomé protestou: a cabeça lhe pertencia... O Tetrarca enfitou Herodias com semblante colérico – e Herodias agarrando<br />

Salomé fê-la calar-se. E como quem se escusa nos disse:<br />

− Esta idéia cruel com certeza lhe foi posta na cabeça por aqueles bárbaros da corte de seu pai. Quem jamais<br />

soube duma menina que agisse assim? Uma criança que quer brincar com uma cabeça cortada...<br />

Herodes esforçou-se para continuar no banquete. Mandou servir mais vinho e bebeu e bebeu, e saudou de novo o<br />

Império e a sua amizade para com o César... Era algo triste. Nem o vinho lhe sopitava o terror. E lá fora aquele coro de<br />

lamentações.<br />

− São os seguidores e discípulos de Jochanan, explicou superfluamente Ptolomeu.<br />

− Por que não os faz expulsar? Perguntei.<br />

− Ele não deixaria, disse o ministro apontando para o Tetrarca.<br />

Mas por si mesma a lamentação afinal cessou e tudo caiu num estranho silêncio. Depois, uma voz solitária soou.<br />

Uma voz que quebrava o silêncio inquietante, como um som de buzina. Palavras vinham articuladas nitidamente. Eram versos<br />

do livro sagrado, com aplicação na tragédia – palavras que abalavam profundamente o Tetrarca e também não deixavam de<br />

perturbar a serenidade de Herodias.<br />

− “Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho!”<br />

− Oh, por que não faz calar isso? Exclamou Herodias.<br />

Está nos perturbando o banquete.<br />

− Fazer calar, como? respondeu Herodes. É uma voz do deserto. Como silenciá-la? e erguendo-se<br />

precipitadamente, retirou-se do recinto sem sequer um olhar para os hóspedes romanos.<br />

Herodias fez um esforço para apagar de nosso espírito a penosa impressão da fuga do esposo. E disse:<br />

− Mas está tudo bem. Punido foi o rebelde, cumprida foi a lei. Roma deve estar contente.<br />

− Não deixarei de expor estes fatos ao Procônsul, respondi. A pequena Salomé muito merece de Roma.<br />

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16<br />

A morte de Jochanan o Batista não pôs fim às esperanças dos judeus quanto ao Messias; ao contrário, veio<br />

fortalece-las. A interpretação geral era que quanto pior, melhor – mais perto estaria o advento. Falavam muito nos “dias do<br />

Messias”. E não tardou que na Galiléia – sim, naquele viveiro – aparecesse outro fanático, que conclamava os homens ao<br />

arrependimento e a se prepararem para o reino de Deus, já bem próximo. No começo foi olhado como um simples seguidor do<br />

Batista. Depois correu que era o próprio Jochanan ressurrecto. Outros queriam que fosse o profeta Elias, que em seu tempo<br />

operara coisas assombrosas – curas de lazarentos, expulsão de espíritos maus. Grandemente honrado era o nome de Elias entre<br />

os judeus, o que os inclinava a crer na sua volta.<br />

A primeira menção do novo fanático por mim ouvida, proveio do velho Sumo Sacerdote. Por uma serena tarde<br />

de primavera estava eu no jardim do palácio, a ver seus filhos em natação nas piscinas, quando Hanan se aproximou e disse em<br />

tom sarcástico:<br />

− Já soube? Apareceu outro profeta a pregar o Reino de Deus àquela gente rude da Galiléia. Desta vez surgiu de<br />

Nazaré – e o velho riu-se com desprezo. De Nazaré, imagine...<br />

− Que há de estranho que venha de Nazaré?<br />

− Oh, é de todas as rústicas cidades da Galiléia a pior! Lá só há campônios e carpinteiros iletrados,<br />

profundamente ignorantes da lei e que nunca sabem como se guardarem da impureza.<br />

Assunto da maior importância para os judeus era esse de pureza e impureza, e dividia as gentes em dois grupos.<br />

Um homem culto, bom conhecedor da lei e da distinção entre o puro e o impuro, era considerado chaver ou colega de outro<br />

homem igualmente culto, e como tal podia ser convidado para sua mesa, sem perigo de “corrompê-la” ristualisticamente. Já os<br />

incultos eram considerados am há-aretz, ou homem-do-campo, homem-da-terra, homem rústico, e não podiam ser recebidos<br />

pelos homens cultos, nem se misturarem com eles.<br />

Pois bem: tanto a cidade da Galiléia como toda a região com esse nome formava exatamente o núcleo central dos<br />

“homens-da-terra”. Os judeus tinham-na como a “confusão dos povos”. E Nazaré sempre fora uma cidade tão típica daquela<br />

rusticidade, que a idéia dum interprete da lei surgido lá, ou dum profeta nazareno, fazia sorrir um homem como o velho Hanan.<br />

A estrada que me levou à Sepphoris, ou à Tiberias, quando fui de visita ao Tetrarca, passava por Nazaré. E a<br />

estrada das caravanas pelo vale do Jezreel ia do Mar Grande à Damasco também passava por lá. Nazaré ficava entre morros,<br />

numa encosta que descia para o Jezreel. Os campos arados entre Tabor e Gilboa estendem-se como um mar até aos pés da<br />

cidade, a qual aparece emoldurada de vinhedos, escuros bosques de ciprestes e tamareiras melifluentes; mas no conjunto a<br />

paisagem toma o tom azuláceo das oliveiras. No tempo em que por lá andei as culturas iam prósperas. Gente trabalhadeira.<br />

Nazaré não passava dum lugarejo de campônios e artesãos, com casas, ou melhor, cabanas, palhoças de barro com tetos de<br />

folhas de palmeiras. Aqui e ali, um seleiro, uma oficina de carpinteiro, um tecelão, a casinha do oleiro, o sapateiro – e mais<br />

carpinteiros que outra coisa. Sita à beira da grande estrada real das caravanas, abundava Nazaré em poços d’água para os<br />

animais, com ranchos de pouso ao lado. Carpinteiros especializados em carretas e rodas tinham sempre muito serviço com as<br />

caravanas que passavam, e também com os agricultores locais, sempre necessitados de charruas de madeira, ancinhos, pés e<br />

outros implementos.<br />

Dessa cidadezinha saíra o profeta de que me falara o Sumo Sacerdote em Jerusalém, mas eu não iria encontrá-lo<br />

lá e sim em K’far Nahum; e não era um caso de rir, como julgara o velho Hanan; pareceu-me, ao contrário, profundamente<br />

sério.<br />

K’far Nahum fica à beira do mar de Genezaré ou Kineret (o nome judaico é Yam Genoser, o Mar do Jardim dos<br />

Príncipes, porque o corpo d’água fica num vale que é um jardim de flores e frutas). É o grande centro de comércio das<br />

redondezas, com um porto de pesca e alfândega. Botes de fundo chato ali se enchiam com cereais e frutas da zona e eram<br />

levados a remo para a margem oposta, já território do Tetrarca Filipe. As duas principais fontes de renda: os hortos em redor da<br />

cidade e a pesca. Belo quadro, a partida pelas noites de luar dos barcos de pesca de K’far Nahum – águas dum azul profundo,<br />

com rebrilhos da lua e das estrelas. Partiam cantando e da praia ouvíamos o canto esmaecer na distância – trechos do muito<br />

amado Cântico dos Cânticos ou velhos salmos. De dia coalhava-se o porto de embarcações de vela e as mulheres expunham as<br />

redes para que secassem ou para os remendos. A maior parte dos pescadores viviam a serviço dos abastados fornecedores de<br />

peixe seco, aos mercados da Galiléia e da Judéia. População pobre; o arroxo da taxação impedia que os homens do mar<br />

tivessem negócio por conta própria, de modo que se assalariavam. Vida dura na Galiléia e mão de obra das mais baratas. Os<br />

preparadores do peixe não o comiam – tinham de contentar-se com figos, tâmaras e bolos de massa não fermentada, assados<br />

em seus fornos abertos. Se não fossem as pesadas taxas impostas aos pescadores e preparadores de peixe, aquela cidadezinha<br />

seria feliz. Mas havia dois grupos de coletores, os do Tetrarca e os de Roma. Na cidade só se viam pescadores, preparadores de<br />

peixe, fruteiros – e arrecadadores de taxas. Por mais que aquela gente trabalhasse não conseguia acumular dinheiro, nem ao<br />

menos para a construção de uma sinagoga; um dos nossos centuriões ali estacionado teve de ajudá-los nisso. Que era possível<br />

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sobrar, se depois das exações do Tetrarca e de Roma vinham as do Sumo Sacerdote para o Templo e os dízimos e oferendas<br />

para os padres e levitas?<br />

Estive em K’far Nahum muitas vezes. Sempre que visitava o Tetrarca em Tiberias não deixava, nas noites de lua,<br />

de rumar até o porto em busca de peixe fresco. A estrada para Antióquia na Assíria também passava por K’far Nahum; e era<br />

ainda por K’far Nahum que eu passava durante as minhas missões oficiais perante o Tretarca Filipe.<br />

O centurião no comando da coorte estacionada em K’far Nahum estava oficialmente à disposição do Tetrarca,<br />

embóra o seu superior fosse o Procônsul em Antioquia. A posição da cidade entre os dois tetrarcados fazia dela um ponto<br />

estratégico de muito valor – e uma razão a mais para manter ali uma guarnição era o montante com que K’far Nahum<br />

contribuía para o Tesouro.<br />

Como já observei, o centurião vivia nos melhores termos com os judeus, muito acamaradado. Em sua casa eu<br />

ficava quando por lá, e foi dele que ouvi a história do tal homem – o homem que curava os doentes, expulsava os espíritos<br />

maus e fazia outros milagres.<br />

No começo não me interessei muito, porque não relacionei o caso daquele homem com o que me dissera o Sumo<br />

Sacerdote; e ademais eu já vira muitos exorcistas em Jerusalém: milagreiros era o que não faltava lá. A magia andava muito<br />

em moda, e até membros do Sanhedrim tinham de praticar a arte na sua capacidade de juizes, afim de se protegerem dos<br />

mágicos. Mas não valiam os da Caldéia. De modo que só quando o meu amigo me contou que um servo seu se havia<br />

beneficiado da força curativa do novo profeta é que comecei a interessar-me. Eu conhecia o rapaz, um interessante moço grego<br />

das ilha de Rodes. Esse meu amigo romano, graças à sua peculiar inclinação para o judaísmo, era sujeito a exaltações como a<br />

dos judeus; e cheguei até a suspeitar que seguisse secretamente a fé dos judeus. Pedi-lhe a história toda e ele ma desfiou com<br />

minúcias.<br />

− Bem sabe, disse ele, como quero a esse rapaz, Andros, que me é mais filho do que servo. Pois lá um belo dia<br />

cai doente. Não sei o que teve, só sei que não podia mover membro nenhum. Isso me afligiu muito, sendo Andros como meu<br />

filho, e fiquei sem saber como agir. Não há médicos em K’far Nahum. Há apenas curandeiros, aplicadores de ervas, amuletos,<br />

simpatias. Súbito, começaram a falar no homem dos milagres – o homem que havia curado um leproso muito conhecido e que<br />

todos nós evitávamos. Ele vinha à Sinagoga, mas ficava de fora, à distância. Pois esse leproso encontrara o homem dos<br />

milagres e lhe dissera: “Se tu quiseres tu me curarás” e o homem respondeu: “Pois quero que sares” e no mesmo instante o<br />

leproso sarou, como se uma pele nova e limpa lhe substituísse a antiga. E o homem mandou-o que se fosse ao sacerdote com<br />

uma oferenda, sem nada dizer a ninguém do acontecido – mas no dia seguinte toda a cidade já sabia da história, e eu também.<br />

Pois quando vi o meu Andros como morto na cama (ingerira qualquer coisa venenosa ou fora mordido por algum inseto),<br />

dirigi-me com sinceridade aos judeus e disse: “Tenho sido bom para todos aqui e ajudei a construir a sinagoga. Agora preciso<br />

que me ajudem. Peçam ao homem milagroso que cure o meu Andros”. Eles não fizeram dúvida; foram em busca do homem.<br />

Mas não fiquei ali à espera; segui-os à distancia, e ao dar com o homem me impressionei muito. Aproximei-me e fiz o pedido.<br />

O homem encarou-me e leu a dor do meu coração, e disse: “Irei à tua casa e curarei o teu doente”. A sua bondade me<br />

comoveu. Ir à casa dum pagão! Porque tu sabes, Cornélio, que a lei judaica proíbe o ingresso dos judeus em casa pagã. E então<br />

eu lhe disse: “Que necessidade tens de te dares incômodo de ires à minha casa? Governais os espíritos com as vossas palavras,<br />

do mesmo modo que com a minha governo soldados. Sei disso”. O homem sentiu-se abalado e disse aos que o rodeavam.<br />

“Encontro mais fé neste gentio do que nos judeus”. E para mim: “Vai, e tudo se fará de acordo com a fé que tens em mim”.<br />

Cumpre dizer que quando olhei para aquele homem, sua presença me encheu de fé, sinceramente admiti que ele comandava os<br />

espíritos como eu comandava homens. Pois bem: ao voltar para casa encontrei o meu Andros de pé, andando e falando como<br />

nós neste momento.<br />

já.<br />

Minha curiosidade despertou.<br />

− Centurião, poderei ver esse homem?<br />

− Nada mais simples. Aparece no porto todos os dias. Vive misturado com os pescadores. Podemos ir procurá-lo<br />

E lá fui com o centurião para o porto de K’far Nahum – uma curva da ilhota defendida do lago por um dique de<br />

pedra, porque embora as águas do Genesaré sejam habitualmente calmas, nos dias tempestuosos chegam a ameaçar o casario<br />

próximo da praia. Gente do mar por ali, sentada nos botes varados em terra, e em certo ponto um grupo. Em redor daqueles<br />

homens parados, a vida do porto seguia o seu curso. Mulheres reparavam as redes de seus maridos pescadores; e homens nus<br />

até a cintura – a primavera já ia adiantada e fazia muito calor naquela zona de pouca altitude – traziam cestas de peixe dos<br />

botes para os salgadouros, onde os preparavam e punham a secar sobre folhas de palmeiras estendidas no chão. Outros homens<br />

seminus carregavam nos ombros tostados do sol, balaios de frutas, sacos de cereais, amarrados de verdura – produtos do vale<br />

de Jezreel, trazidos em lombo de asno – e com aquilo carregavam batelões e barcos de vela. Arrecadadores de taxas andavam<br />

por ali de grupo em grupo, compradores batiam língua com vendedores, feitores apressavam o trabalho da gente a lidar com o<br />

peixe. Mas sempre que podia, um homem escapava daquela agitação para juntar-se ao grupo dos que rodeavam o mestre ou<br />

interprete da lei; e quando voltava para o trabalho vinha muito excitadamente a dizer o que ouvira. Eu estava ansioso por<br />

aproximar-me, mas o centurião advertiu-me que apesar de estarmos de toga, isto é, em trajes civis, nossa presença os assustaria<br />

e faria debandar. E, pois, aproximamo-nos disfarçadamente, e nos abrigamos ao pé de uma figueira próxima.<br />

Havia dum lado do porto, bem junto à água, umas tantas figueiras estioladas, como que remanescentes dum<br />

antigo figueiral ou jardim que as marés tivessem aos poucos destruído. Nada mais restava além daquela triste lembrança; e na<br />

primavera, quando a natureza lança flores até das pedras, só lá nas pontas dum ou outro galho dessas figueiras apareciam<br />

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algumas folhas. As mulheres dos pescadores utilizavam-nas para pendurar redes e coisas, e a gente do campo também ali<br />

amarrava os seus asnos – e até esses asnos judiavam das figueiras, mordiscando-lhes a casca. Não há quadro mais triste que o<br />

duma figueira nua de folhas, com galhos atormentados como mãos dum homem na cruz. Sob aquelas figueiras estava o grupo<br />

de homens – pescadores, preparadores de peixe, carregadores e campônios vindos a compras, todos em redor dum moço.<br />

Curioso quadro formava aquela gente simples, com os implementos do trabalho em mão – o pescador com a fisga, o<br />

carregador com a cesta, o campônio com a gangalha do burrico. E donde estávamos podíamos ver a satisfação impressa em<br />

todos os rostos; havia momentos de cabeça confirmatórios; outros riam-se de alegria; outros coçavam as costas com o porrete,<br />

de gosto. E piscavam-se deleitados. Mas o que mais me admirou foi ver entre eles alguns publicanos, ou arrecadadores de taxas<br />

– sem que ninguém refugisse ao contato desses homens. A regra entre os judeus era que os publicanos fossem considerados<br />

pecadores com os quais ninguém devia misturar-se – mas naquele grupo estavam eles em perfeita fraternidade com os demais.<br />

E o grupo não cessava de crescer. Trabalhador que pilhava um momento de folga, para ali acorria, como o sequioso que corre à<br />

fonte cristalina. Perto, uns tantos botes de pesca varados na areia, junto aos quais outros homens também ouviam as palavras<br />

do moço – homens do mar, descalços, tanados pelas soalheiras, peito à mostra. E tal era a atenção daquela gente toda, que<br />

ninguém deu conosco ali.<br />

Sou forçado a confessar que a primeira impressão que recebi daquele moço foi simplesmente extraordinária – e<br />

contraditória, um misto de realidade e irrealidade. Em primeiro lugar, sua figura e atitude, seu modo de estender os braços ali<br />

sob as torturadas figueiras. Devia andar nos trinta anos; magro de corpo, da magreza advinda de privações como as de<br />

Jochanan, mas sem a compleição atlética do fanático que eu vira na fortaleza de Machaerus. Aquele moço ali tinha um corpo<br />

evidentemente frágil, embora fosse mais alto que todos os presentes; sua cabeça, em pescoço longo e esbelto, destacava-se<br />

acima das do grupo, como se ele estivesse de pé sobre uma pequena elevação. Rosto pálido, pele fina – eu distinguia-lhe as<br />

veias das têmporas; mas o vivo da expressão dava-lhe o fulgor da extrema mocidade. O pálido rosto oval emoldurava-se na<br />

barba negra e fina, levemente bipartida e encaracolada nas pontas. Entrajava-se como os da classe culta – veste branca que o<br />

envolvia inteiro, do pescoço aos pés, e por cima túnica azul claro sem mangas, com as compridas franjas ritualísticas. Assim o<br />

vi eu sob a figueira desfolhada, a pregar àquele gente humilde no dialeto aramaico.<br />

E eu o teria compreendido muito melhor, se não se entretecesse em seu discurso tantas citações em hebraico das<br />

antigas escrituras – mas era claro que tudo quanto dizia numa língua ou noutra tinha direta significação para a gente simples<br />

que o atendia. Eram palavras de reconforto, a avalia-las pelo efeito produzido, pela felicidade estampada naqueles rostos. O<br />

moço dizia-lhes que eles eram o sal da terra e que deles viria a salvação do mundo. “Bem-aventurados os humildes, porque<br />

deles será o reino dos céus!” (Lá estava de novo aquele refrão do reino do céu!). “Bem-aventurados os pobres, porque eles<br />

herdarão a terra”. Depois citou qualquer coisa das escrituras, que o centurião me traduziu – “Os que andam nas trevas viram<br />

uma grande luz; os que moram na terra dos mortos foram iluminados por uma grande luz”.<br />

Súbito, todos os rostos deram-me a impressão de caídos em êxtase. Não ouvi o que o moço anunciou, mas devia<br />

ser algo supremamente profundo. “Está explicando uma parábola popular muito apreciada”, murmurou-me o centurião e foi o<br />

fim. Uma chuva de pancadas caiu sobre aquela gente. Chicotes estalaram no ar. Debandada, correria – com os feitores furiosos<br />

atrás. As expressões de êxtase transformaram-se em expressões de terror. Os pescadores e os carregadores lá se sumiram com<br />

seus anzóis e cestas. Alguns, entretanto, ou porque não fossem homens assalariados ou porque não pudessem escapar ao<br />

encanto da pregação, permaneceram firmes onde estavam, à espera de mais. Os feitores gritavam:<br />

− Por que vem ele aqui, confundir e distrair os trabalhadores? Acaso não saberá que esta gente é do serviço?<br />

− O dia do trabalhador pertence ao seu Senhor, gritou o chefe daqueles feitores.<br />

− Tu o disseste, volveu o moço, com o sorriso no rosto pálido. O dia do trabalhador pertence ao seu senhor, mas<br />

ninguém pode ser chamado amo e senhor senão o Senhor do mundo – os nossos dias a Ele pertencem. Com que isto se parece?<br />

Ele queria falar, mas o chefe dos feitores opôs-se aos berros.<br />

− Se tem bonitos sermões na boca, guarde-os para os sábados na sinagoga. Dia de trabalho não é dia de sermão.<br />

Outra voz entrou na disputa. Vinha dum homem de preto que eu já havia entrevisto no decorrer da pregação.<br />

Estava de lado, absorvido na cena. Disse ponderosamente: “É contra a lei perturbar o trabalhador durante o seu trabalho, nem<br />

que seja para pregar o Torah”. O centurião informou-me que era o chefe da sinagoga local. No último sábado tinha havido um<br />

choque entre ele e o jovem pregador agora seguido pela populaça.<br />

O apoio do chefe da sinagoga estimulou o chefe dos fiscais, fazendo-o gritar ainda mais alto:<br />

−Vamos expulsar daqui esse desrespeitador da lei! Vamos leva-lo ao tribunal e exigir dele indenização.<br />

Não posso prever como teria acabado aquilo, se subitamente não viesse rodear o pregador um grupo de homens –<br />

espécie de guarda. Um deles já me havia chamado à atenção, quando sentado em seu bote na praia – um judeu de barba negra e<br />

ombros largos, de baixa estatura mas fortemente construído, retaco e musculoso como uma raiz de árvore. Interpôs-se de<br />

punho cerrado entre o pregador e seus inimigos. Outros fizeram o mesmo, pescadores de peito cabeludo que estavam a lidar<br />

com suas redes. E formaram uma muralha em redor do “perturbador da lei”.<br />

− O porto é público, pertence a todos nós e não apenas aos coletores de taxas! gritou um deles. Quem quiser<br />

pregar aqui, tem o direito de o fazer.<br />

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Mas o jovem pregador, no centro do tumulto, parecia não dar atenção ao que se passava, nem ouvir o que<br />

diziam. Tinha os olhos fixos no primeiro pescador que se chegara. Vi aqueles grandes olhos escuros examinarem<br />

penetrantemente o pescador, que se sentia perturbado e dominado. Por uns instantes os dois homens encararam-se em silêncio.<br />

Depois estendeu o pescador a mão, tomou a do pregador e levou-o dali como se levasse uma criança.<br />

comentaram.<br />

Os circunstantes ficaram em suspenso, a vê-los se afastarem, até se perderem na sombra duma rua. Só então<br />

− Tudo porque ele é amigo nosso – amigo dos pobres. Detestam-no só por causa disso.<br />

− Sim, ele nos consola! Quem outro existe que fale como ele fala?<br />

− Ele é o profeta Elias, já que cura os doentes como Elias curava.<br />

− Basta, basta! gritaram os feitores. Deixem o resto para a sinagoga. Ao trabalho! Ao trabalho! Já se perdeu<br />

muito tempo hoje – mas os homens continuavam com os olhos na direção em que ele e o amigo tinham desaparecido.<br />

ouvintes.<br />

− Estão certos, não há dúvida, disse eu para o centurião, cujos olhos estavam sonhadores como os dos demais<br />

− Quem? indagou ele, alheado.<br />

− Os fiscais, está claro. Esses homens são trabalhadores assalariados. São pagos por dia – e esse pregador vem<br />

desviá-los do serviço.<br />

O centurião olhou-me dum modo estranhíssimo e murmurou:<br />

− Sim, ele perturba os homens no trabalho, como o sol da primavera os perturba com a sua alegria consoladora.<br />

Não entendi aquelas palavras do meu amigo – e era tempo de afastar-me, pois os trabalhadores tinham dado pela<br />

minha presença e já se mostravam indecisos. Meu ar de estrangeiro, tudo em mim os alarmaria, se não fosse a presença do<br />

centurião, muito conhecido e amigo de todos.<br />

− Vamos, propus. Os judeus começarão a supor que também nós nos estamos convertendo à sua fé. Bem sabe<br />

como são; se ficarmos por aqui mais um pouco, entram com familiaridades.<br />

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Sim, tenho de admitir que desde o momento em que pus nele os olhos, lá na praia do porto, nunca mais aquela<br />

figura me saiu da cabeça. Tinha o poder de dar profunda realidade a tudo quanto dizia. Sua simples aparência, sua figura, seu<br />

modo de lidar com as gentes, tudo nele despertava indizível confiança. E devo dizer ainda que apesar de minhas palavras de<br />

superioridade ditas ao centurião, pouco faltou para que também eu me deixasse prender naquele círculo mágico. Se não<br />

sucumbi, se não me tornei vítima daquele magnetismo asiático, como sucedeu a outros romanos, devo-o à força do meu caráter<br />

e à severa disciplina com que fui criado. Mesmo assim, houve tempo em que me debati contra a obsessão daquele homem. E<br />

não admira. Muitas vezes fui testemunha dos extremos a que pode ir o poder da fé. Nós, romanos, assim de fora, não podemos<br />

conceber até que limites levam os judeus a sua fé. É preciso vê-los nos dias santos lá nos pátios do Templo. Apinham-se<br />

naqueles recintos a ponto de não caber mais um alfinete; mas quando se prostram para confessar os seus pecados um milagre<br />

se opera, e há tanto espaço para cada um, que um não ouve o murmúrio de confissão do vizinho. Milagre! O que realmente<br />

acontece, não sei dizer – não sei se os pátios se alargam ou se aquela gente diminui de tamanho. E eles acreditam que em todo<br />

aquele Templo, lugar onde a matança de animais para os sacrifícios é contínua, nem uma só mosca aparece. Suponho que a<br />

razão desta crença é tornar o incrível, crível. Nossos deuses também fazem coisas assim; Zêus transforma-se em cisne ou<br />

nuvem de ouro. Mas o poder que os judeus atribuem a Jeová não tem paralelo.<br />

Vim a saber que aquele pregador era muito conhecido e amado em K’far Nahum. Tratava-se dum rabi aceito não<br />

só pelos pescadores do porto como também pela gente culta das vizinhanças – e sua reputação subiu muito depois que ele<br />

declarou ter vindo “não para destruir a Lei e os profetas, mas para confirmá-los”. Também lhe atribuíam estas palavras: “Mais<br />

cedo desaparecerão os céus e a terra do que um jota da lei”, ou coisa assim. Isto, aliás, era bem típico da arrogância com que os<br />

judeus falam de seus livros sacros – e naquele tremendo orgulho aquele rabi era igual aos outros. A convicção geral era de que<br />

o poder divino residia em tais livros sagrados e caídos do céu. Qualquer desconfiança que houvesse existido entre o jovem<br />

pregador e a gente culta desaparecera depois dessa extravagante declaração patriótica. A realização de milagres não o<br />

prejudicava, porque era corrente que os mestres socorressem aos enfermos com orações e milagres, não sendo ele o único rabi<br />

que gozava de tal fama.<br />

Vários discípulos o acompanhavam, gente do povo, pobres pescadores que haviam deixado a profissão para<br />

seguir o mestre, o qual morava com um deles, justamente o que o livrara da cólera dos feitores. Simão, chamava-se esse seu<br />

primeiro discípulo, com o qual fiz conhecimento. Um homem simples, de altura abaixo da mediana, mas extremamente forte e<br />

de barba endurecida pelos ventos e tempestades. Todo ele era amor e ternura para com o jovem rabi. Se a multidão de pobres o<br />

rodeava e ameaçava esmagá-lo, Simão o erguia nos braços, como a uma criança, e o salvava dali. Unicamente para ele vivia<br />

Simão – e nada mais tocante do que vê-lo entre os pescadores lá na praia, ou entre os fiéis na sinagoga, de olhos fixos no<br />

mestre, a boca entreaberta de felicidade. Lágrimas de entusiasmo vinham-lhe aos olhos. Também um irmão deste pescador<br />

figurava no rol dos discípulos que tudo abandonaram para seguir o mestre. Era assim com os judeus. Por amor a um rabi<br />

deixavam até a própria família – abandonavam a casa, a mulher, os filhos, o negócio. Mais dois irmãos seguiam aquele<br />

homem, Jacó e Jochanan, filhos duma rica matrona de Bet Zeida, pequena cidade não longe de K’far Nahum. Abandonaram-na<br />

para acompanhar o pregador. Homens ousados, verdadeiros Macabeus, sempre dispostos, com a mão no cabo da faca, a<br />

desafiar quem não dissesse bem do jovem mestre, o qual freqüentemente era obrigado a intervir para evitar distúrbios. O<br />

discípulo mais amado, porém, era Simão, em casa de cuja sogra o rabi se hospedara.<br />

Por ocasião de outra visita à K’far Nahum, meses depois, tive oportunidade, juntamente com outros, de<br />

acompanhar o rabi até sua casa. Sempre que se mostrava no porto ou na sinagoga acorriam a rodeá-lo doentes e mendigos – e<br />

lá o seguiam pelas ruas. Foi como o encontrei, e também o segui a distância até a casa da sogra de Simão. Lá, porém, Simão<br />

barrou-nos à porta, dizendo: “Deixem-no descansar um pouco. Não vêem como está fraco?” e foi então que me percebeu.<br />

Simão já me conhecia, já me vira mais duma vez nas ruas da cidade com o centurião, ou parado à distância, atento às prédicas<br />

de seu mestre. E, respeitoso, diante dum oficial romano, me deixou entrar.<br />

Era um quintalejo pobre, cercado de folhas de palmeira entretecidas, contendo as clássicas figueiras e tamareiras<br />

de todos os quintais da zona. (Os judeus não podiam passar sem palmeiras, as quais lhes davam muita coisa, inclusive abrigo e<br />

sombras). Os troncos das árvores emergiam de cima de depósitos de escamas de peixe, e de um extremo a outro estendiam-se<br />

as redes a secar. Em frente à casa havia uma horta bem cuidada – outra necessidade entre os judeus, que delas tiravam o<br />

principal do sustento. Separada da residência havia uma pequena cabana entre duas velhas oliveiras; paredes de adobes e teto<br />

de palha trançada. Uma escadinha levava àquele teto em plano horizontal, onde havia um cômodo todo de folhas de palmeira<br />

dos lados, e palha e galharia miúda por cima. A folhagem das oliveiras sombreava e protegia esse cômodo, ali construído para<br />

uso do rabi. As ervilhas de cheiro plantadas em redor da residência estavam toda flores; haviam subido até àquele cômodo de<br />

folhas de palma e o circundavam como um enfeite.<br />

Quando entrei, vi uma velha de pé junto ao fogão de terra, assando uns bolos chatos. Sobre aquela mulher corria<br />

em K’far Nahum que pouco antes estivera à morte e o rabi a curara. Toda gente estava no conhecimento do milagre sucedido<br />

com a sogra de Simão e lá acorria para vê-la. Mais gente por ali, gente nova, membros da família, ocupavam-se no preparo da<br />

refeição da tarde.<br />

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Soube que ia haver um jantar para bom número de seguidores do mestre, e daí aquela azáfama. As mulheres<br />

coziam pão ázimo, os homens dispunham tábuas para aumentar a mesa. A um canto alguém lavava a roupa do rabi. E tudo se<br />

fazia em silêncio. Em vez de em vozeio, homens e mulheres entendiam-se por sinais – tudo para não incomodar o rabi, o qual<br />

havia subido ao seu cômodo e estava imerso na meditação.<br />

Vendo que minha presença ali amedrontava aquela gente, retirei-me. Voltei mais tarde em companhia do<br />

centurião, vestidos os dois à moda da terra, de algodão grosso, afim de não despertar a atenção de ninguém. Encontramos<br />

bastante gente aglomerada à porta e entramos com os que entravam. Sala grande, de onde tudo havia sido tirado, com exceção<br />

das esteiras e da comprida mesa de tábuas toscas que estiveram a armar horas antes. Quinze ou vinte pessoas, algumas sentadas<br />

nas esteiras em redor da mesa, outras de pé. Dois candeeiros de barro pendentes do forro, de luz desnecessária aliás, pois fazia<br />

o lindo luar do Genezaré na primavera.<br />

À cabeceira da mesa, entre sentado e reclinado, estava o rabi; sua tez pálida e sua veste branca ressaltavam<br />

naquele ambiente de cabelos e barbas negras. Eram aqueles homens, pela maioria, pescadores da cidade e camponeses dos<br />

arredores, vindos ao mercado vender coisas; e como tivessem ouvido falar do homem das maravilhas, acorreram à casa de<br />

Simão para vê-lo e ouvi-los. As mulheres da casa trouxeram em pratos de barro a comida preparada no quintal – aqueles bolos<br />

chatos, empanada de peixe (isto em honra do rabi) e muita verdura da horta. Outras mulheres haviam trazido presentes, uma<br />

botija de vinho, um boião de mel, passas, tâmaras.<br />

Muitas crianças, meninos vestidos do tallit ou “chale de rezar”; os pais os conduziam assim à presença do rabi<br />

para que ele os abençoasse. O rabi retinha as crianças e fazia-as sentarem-se-lhe ao lado.<br />

Depois de tudo posto sobre a mesa e antes do partimento do pão o rabi falou:<br />

− Vamos agradecer ao nosso Pai do céu!<br />

Um dos homens observou:<br />

− Rabi, nós somos criaturas ignorantes. Não sabemos orar.<br />

O rabi respondeu:<br />

− Acaso não está escrito: “Sede simples diante de Deus”? Sois mais importantes aos olhos de Deus que os<br />

grandes, porque está escrito: “Os simples e os justos me reconfortam”.<br />

Outro homem falou:<br />

− Nós somos pecadores, rabi.<br />

E ele respondeu com uma parábola.<br />

− Dois homens foram ao Templo, um pecador e um santo. O pecador quedou-se, de coração magoado, diante do<br />

santuário, sem ânimo de erguer do chão os olhos. E dentro de sua alma disse: “Pai do céu, tu sabes que sou um pecador,<br />

perdoa-me e tem dó de mim”. O outro, o santo, ali ereto, diz em seu coração: “Pai do céu, tu me conheces bem; não sou como<br />

esse homem de pecado que ali está, mas ando em teu caminho e cumpro os teus mandamentos”. E eu vos digo que o pecador<br />

saiu dali renascido e limpo de pecados como uma criança nova, e o santo se ficou na mesma.<br />

disse:<br />

Quando a companhia voltou a si do êxtase causado pela parábola, um homem estendeu o braço para o rabi e<br />

− Ensina-nos a rezar, rabi.<br />

E ele respondeu:<br />

− Não julgueis que o Pai do céu não conhece as vossas necessidades, mesmo antes de confessadas. Porisso rezai<br />

desta maneira – e repeti as palavras uma por uma, como as digo.<br />

palavra:<br />

E cobrindo com as mãos o pão, o rabi fechou os olhos e murmurou a prece, por todos repetida palavra por<br />

− Pai nosso que estás no céu, bendito seja o teu nome. Venha a nós o teu reino. Seja feita a tua vontade, assim na<br />

terra como no céu. O pão nosso de cada dia dá-nos hoje e perdoa as nossas dívidas como perdoamos aos nossos devedores.<br />

Não nos deixes cair em tentação e livra-nos do mal. Porque teu é o reino, o poder e a glória por toda a eternidade.<br />

Em seguida tomou o pão, dividiu-o em pedaços de distribuiu-o pelos presentes, homens, mulheres e crianças. O<br />

seu pedaço ele o encostou no sal, fechando os olhos e dizendo qualquer coisa consigo mesmo. Mas quando o ia levando à boca,<br />

uma voz exclamou do canto da mesa:<br />

− Rabi, esqueceste de lavar as mãos antes da comida.<br />

Ele olhou para o homem e disse:<br />

− Para o puro todas as coisas são puras.<br />

Levou o pão à boca e comeu-o – e todos fizeram o mesmo.<br />

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Voltei-me para ver quem havia tido a impudência de interpelar o rabi e na penumbra divisei uma cara a meio<br />

oculta no canto da mesa, cara que eu já havia visto não me lembrava onde. Fiz um esforço. “Onde vi eu esta cara?” e olhei de<br />

novo. Aquela barba amarelenta, o rosto comprido – onde, onde vira eu aquele homem? Súbito, recordei-me. Fora na residência<br />

do Sumo Sacerdote, no pátio, sentado nos degraus perto da guarda; aquela barba me havia impressionado e também aqueles<br />

olhos azuis, frios, como se nunca regados por uma lágrima, olhos como que feitos de pedra. O olhar daqueles olhos tinha a<br />

penetração das setas, e mesmo quando lhe voltava as costas eu o sentia cravado em mim. E ainda mais: mesmo quando tal<br />

homem estava ausente eu não passava por aqueles degraus sem me sentir observado de detrás duma porta ou através de<br />

invisível buraco na parede. E o mesmo homem lá estava à mesa do rabi... Seria possível? Olhei pela terceira vez, ainda<br />

dubitativo. Vinha de sua natureza não sentar-se às claras entre os outros, mas semi-oculto, recessivo, a dardejar aquela luz dos<br />

olhos. O que me confundia era a expressão de tristeza que eu lhe via no rosto pela primeira vez. E à minha memória acudiu a<br />

conversa tida com o velho Hanan, na qual se referiu ao rabi da Galiléia. Teria ele mandado aquele homem espionar o rabi?<br />

− Velha raposa astuta! Murmurei comigo mesmo. Tem olhos e ouvidos por toda parte.<br />

A festa prosseguia. Gente pobre todos aqueles comensais, e a mesma comida simples a que todos estavam afeitos<br />

– os bolos chatos, azeitonas, saladas, coalhada. Mel em que mergulhavam o pão – e pequenos peixes. O rabi serviu-se do prato<br />

de peixes à sua frente e passou-o adiante; cada um tomava um peixinho entre os dedos e comia-o. O rabi fez o mesmo com os<br />

pratos de figos e tâmaras, e entre um e outro todos recitavam salmos, acompanhando um guia que os tinha de cór. E com o<br />

progresso da refeição a unidade os empolgava, de modo a todos se fundirem, homens, mulheres e crianças, numa só alma – a<br />

do rabi. Findo o jantar, veio Simão com uma bacia d’água e o rabi lavou os dedos; a bacia deu volta à mesa e todos fizeram o<br />

mesmo. O rosto dos comensais rebrilhava de alegria. Era como se a presença do rabi lhes tivesse aberto as portas da felicidade<br />

que supunham eternamente fechadas.<br />

E súbito, aquela atmosfera de radiante expectação foi quebrada por um rumor estranho. Que era? Dum balcão<br />

gradeado vinha descendo o leito de um doente – descendo por cordas. O ajuntamento abriu espaço. Duas mãos poderosas se<br />

ergueram – tomaram o leito com o doente e o puseram diante do rabi. O que mais me admirou foi a compostura de todos ali,<br />

muito natural, já que todos tinham aquilo como a coisa mais natural do mundo. O esqueleto na cama tentou erguer para o rabi a<br />

magreza dos braços. Cara e crânio despidos de cabelos, como caveira desenterrada, o rosto morto, exceto nos olhos a<br />

agonizarem nas órbitas. Os lábios sem sangue moveram-se, deixando escapar um murmúrio:<br />

imploravam:<br />

− Acode-me, acode-me, homem de Deus!<br />

Novas caras apareceram às portas, o recinto encheu-se; mãos se erguiam para o rabi e inúmeras vozes<br />

− Cura-o, rabi!<br />

O rabi levantou-se – estou a vê-lo nas vestes brancas, os pés descalços... Levantou-se e deu dois passos rumo à<br />

cabeceira do moribundo. Inclinou-se e por algum tempo os olhos de ambos encontraram-se e ficaram a olhar-se. O rosto do<br />

rabi estava pálido e tenso, com as veias em relevo como pequeninas cobras. Depois colocou as mãos sobre o corpo do doente e<br />

disse em voz alta:<br />

curar-te?<br />

− Mordecai, filho de Isaak, aceitas com perfeita fé que, com a permissão de nosso Pai do céu, tenho o poder de<br />

O doente respondeu, palavra por palavra:<br />

− Eu, Mordecai ben Isaak, com perfeita fé creio que tu, Yeshua ben Joseph, tens o poder e permissão de nosso<br />

Pai do céu para curar-me.<br />

O rabi endireitou-se e eu tive a impressão de que sua cabeça alcançava as estrelas. Mas ainda conservava os<br />

olhos fixos no doente, ao qual falou em tom imperativo:<br />

− Mordecai ben Isaak: pelo poder da fé, ordeno que te ergas dessa cama!<br />

O doente arregalou os olhos, como se não houvesse entendido aquelas palavras, mas o olhar do rabi permanecia<br />

fixo nele. E então, de súbito, o doente moveu as mãos, agarrou as travessas da cama e procurou erguer-se. Falhou na primeira<br />

tentativa, mas fez segunda, sempre dominado pelo olhar imperioso do rabi. Tinha os olhos cheios de terror sagrado; ergueu-se<br />

um pouco e a cabeça pendeu-lhe para a frente. O rabi não arrancava dele os olhos. Espasmos de dor vibraram no corpo daquele<br />

homem; as pernas sem carne moveram-se e os pés, só ossos, tocaram o chão. E o homem ergueu-se de pé, lentamente, como<br />

que levantado pelo olhar que o enfitava. E deu dois passos vacilantes e caiu sobre o peito do rabi.<br />

− Hosana! Hosana! Gritaram os presente na maior alegria – e mãos se estenderam para Mordecai, e deram-lhe<br />

um pano para envolver-se, e fizeram-no sentar-se perto da mesa.<br />

A multidão agora enchia a casa inteira e o quintal – e tinham trazido todos os doentes das redondezas. Dois<br />

homens fortes vararam caminho com uma mulher tomada de espíritos maus. Vinha presa com cordas. Dentro dela os espíritos<br />

maus gritavam em línguas estranhas, ou imitavam vozes de animais domésticos. Outros vinham com os seus doentes às costas.<br />

E grande clamor se foi erguendo, de gemidos de dor, soluços de súplica, exclamações deprecatórias, tudo de mistura com os<br />

uivos animalescos, roncos e ganidos da possessa. O quadro me deu a idéia duma ilha de demônios, ou dum mar de humanidade<br />

putrescente – doença e loucura! E aquele grito incessante do povo: “Hosana! Hosana!”<br />

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Quis fugir do horrendo pesadelo e agarrei a mão do meu amigo – mas não havia jeito de varar a massa humana.<br />

Percebi que também o rabi estava exausto, e dum momento para outro sucumbiria arrastado pelo pandemônio; aquela gente<br />

avançava e agarrava-lhe nas vestes, gritando: “Hosana! Hosana!”<br />

Simão entrou em cena; ergueu-o nos poderosos braços, cobriu-lhe com o manto branco o rosto cansado e safou-o<br />

daquele mar de miséria e dor como quem salva das ondas um homem a afogar-se.<br />

∗ ∗ ∗<br />

Na porta, quando transpus a soleira, dei com o homem de barba amarelada e expressão de tristeza. Detive-o.<br />

− Judas!<br />

O homem de Kiriot olhou-me com espanto.<br />

− Quem me chama?<br />

Encaramo-nos.<br />

− Não me reconheces dentro destas roupas de algodão? Perguntei.<br />

− Quem é? Quem é?<br />

− Não reconheces, Judas, o teu Hegemon?<br />

Seus olhos me afuroaram.<br />

− Como posso eu, um pobre homem, conhecer o Hegemon?<br />

− Judas, já te não vi eu no pátio da casa do Sumo Sacerdote?<br />

− É possível, pois sirvo ao Sumo Sacerdote como todo bom judeu o faz.<br />

− Que estás fazendo aqui, Judas Ish-Kiriot?<br />

− Vim de acordo com a lei judaica honrar um grande rabi e sentar-me a seus pés e ouvir a palavra de Deus. E que<br />

está fazendo o Hegemon aqui entre os judeus? interpelou-me ele a seu turno.<br />

Tenho de confessar que fui compelido à retirada diante da força do seu olhar. E não fiquei completamente certo,<br />

de que era de fato aquele o homem que eu vira na casa do Sumo Sacerdote ou outro com acidental semelhança.<br />

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Passei por aquele tempo várias semanas do fim da primavera na cidade de K’far Nahum, e não escondo que o<br />

meu interesse pelo rabi me levou a negligenciar minhas obrigações. Grande tontice! Fez-me adiar a minha já anunciada visita<br />

ao legado Vitélio em Antióquia – e lá lhe mandei mensagem informando-o de que estava doente. Declarei que havendo o clima<br />

de Jerusalém me afetado a saúde, eu necessitava de algumas semanas em repouso no vale. Até hoje não posso explicar o que se<br />

passou comigo, nem que poder tinha aquele homem para atrair-nos a todos – e até à criaturas totalmente estranhas ao meio,<br />

como eu. E lá me plantei, só para ficar perto dele. E o pior era que esse interesse pelo rabi me prejudicava aos olhos dos<br />

judeus. A distância imposta pela dignidade da minha posição ia-se reduzindo cada vez mais. Entraram a considerar-me um<br />

deles, honra que já haviam concedido ao centurião local. Era coisa que eu devia ter evitado; eu o sentia e me exprobrava.<br />

Resolvi por fim deixar a cidade – mas qualquer coisa acontecera à minha vontade, como acontecia à vontade de todos que<br />

caiam sob a sua influência.<br />

Sim, confesso que naquele tempo seria difícil a distinção entre mim e qualquer outro dos seus extremados<br />

adoradores – e havia-os já em grande número, porque foi nesse entre-tempo que a fama do rabi se ergueu mais alto. E não eram<br />

apenas pobres ignorantes; também judeus cultos o seguiam. Diariamente chegavam a K’far Nahum barcos vindos das terras do<br />

tetrarca Filipe, do outro lado do Mar de Genesaré, conduzindo aleijados, doentes e possessos, e também gente sã que só queria<br />

os ensinamentos do mestre. E temos de reconhecer que ele sabia ensinar. Não compreendo como esse humilde rebento dum<br />

carpinteiro de Nazaré, aprendeu a vestir suas idéias de imagens tão empolgantes. Nada havia da educação grega em seu<br />

cérebro; nada de retórica que nos habilita a expressar-nos com precisão, ciência e arte, seriando as frases no discurso como<br />

pérolas no fio. O estilo daquele rabi nada tinha de grego – era judaico, informe, solto – mas suas parábolas gravavam-se<br />

indeléveis na mente dos ouvintes. A arte de falar por parábolas, isto é, dum modo indireto, estava na moda entre os judeus<br />

cultos. Desenvolvera-se naturalmente por força da situação política do povo – dum povo sujeito à dominação romana e forçado<br />

pela astúcia típica da raça a ocultar o pensamento em fábulas alegóricas.<br />

De certo ponto de vista não me seria errado passar umas semanas à beira do Mar de Genesaré, e algo da minha<br />

relutância em pôr fim ao veraneio corria à conta da beleza da paisagem e suavidade do clima. Estávamos na melhor estação do<br />

ano, mo mais encantador pedaço de terra. Depois da triste monotonia da paisagem judaica em redor de Jerusalém, a qual abate<br />

o espírito e força-o a melancólica meditação, os olhos e nervos deleitam-se com a repousante verdura do vale do Jordão e com<br />

as tonalidade dos ciprestes, das oliveiras, dos vinhedos e dos extensos campos de trigo da zona. Terras sitas abaixo do nível do<br />

mar, onde tudo amadurece mais cedo. Flores inúmeras enfeitando os campos; não se vê um palmo de solo, um pedrouço, uma<br />

cabana, uma cerca que não esteja ataviada de flores silvestres; as gavinhas agarram-se aos muros e enrolam-se nas paredes de<br />

folha de palma. As casotas nos vinhedos e hortos emergem de puros canteiros de flores, e não há campo nem quintal sem<br />

abundância de papoulas vermelhas. Oleandros, plantados ou nativos, à beira dos caminhos e em redor das tinas d’água. E mais<br />

lindo que tudo, o próprio Genesaré, aquela superfície azul engastada em moldura esmeraldina. Ao fundo, longe, o topo nevado<br />

das mais altas montanhas.<br />

Num daqueles formosos dias de primavera ouvi o nosso homem pregar fora da cidade. O centurião me havia<br />

informado que naquela tarde (um dos seus dias santos menores e, se não me engano, consagrado às árvores) ia haver sermão no<br />

alto dum morro próximo. Pusemos a toga civil sobre a nossa armadura e fomos.<br />

Os morros da Palestina são moldados como plataformas, e aquele não teria mais de quarenta a cinqüenta passos<br />

da base ao topo, mas ali cabiam as duas ou três mil pessoas interessadas no sermão. A assistência era a habitual – pescadores,<br />

preparadores de peixe, operários da cidade, embora houvesse uma proporção maior de escribas e interpretes da lei. Estes<br />

ficavam à parte do povo comum, em seus próprios grupos, facilmente discerníveis pelo modo de vestir peculiar à classe.<br />

Haviam trazido rolos de pergaminho e folhas de papiro, e sem dúvida também as escrituras sagradas, porque durante a espera<br />

do sermão travavam-se de vivas disputas lá entre si. Não me passou pela cabeça que eu fosse testemunhar um acontecimento<br />

da maior importância, pois foi nessa reunião que o rabi estabeleceu em forma sistemática a substância de suas doutrinas.<br />

Talvez os escribas e interpretes soubessem que ia ser assim, e porisso acorressem em tal número. Provinham não só de K’far<br />

Nahum como também das cidade próximas, entre elas Naim, e havia lá chefes de sinagogas, rabis e juizes dos tribunais<br />

religiosos locais. Estes homens – ou chaverins – conservavam-se a certa distância dos homens-da-terra, de medo da<br />

contaminação – e estes não procuravam aproximar-se. Mas o povo comum exultava com saber que aquele dia era deles, porque<br />

os chaverins tinham vindo ouvir justamente o rabi do povo comum.<br />

As encostas dos morros, do mesmo modo que os campos em redor, estavam abundantemente floridas de<br />

anêmonas, e ao alto havia um minúsculo bosque de ciprestes com um dominante, cheio de ninhos de pássaros – e lá iam e<br />

vinham eles no afã de carrear insetos para os filhotes.<br />

Reunida que foi a multidão, vi chegar o rubi, vindo da praia, para onde seus discípulos o haviam levado de bote.<br />

Sua branca veste franjada brilhava de encontro ao vermelho das papoulas que ele ia amassando aos pés. Dessa vez trazia uma<br />

coifa negra. Rosto severo. A passos lentos, quase solenes, subiu o morro e saudou os escribas e intérpretes da lei com o<br />

tradicional Shalon aleichem, ao qual eles respondiam com o Aleichem shalom. Um de seus discípulos apresentou-lhe o “chale<br />

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de rezar”, que ele lançou sobre a cabeça depois de abençoá-lo. Tomou lugar sob o cipreste grande, ergueu os braços, como a<br />

amparar toda a multidão, e começou a pregar.<br />

Falou demoradamente e com pausas freqüentes, às vezes remorando nas frases para melhor acentuação de uma<br />

idéia. Vinham-lhe as palavras não como se fossem sons destinados a se perderem no ar, mas como imagens eternas que se<br />

transmitem de cérebro à cérebro. E com que poder falava! Aquele corpo frágil parecia expandir-se até fazer-se uma poderosa<br />

pirâmide humana, de que o morro ali não passava do pedestal. Talvez que o sol no poente, já a avermelhar as nuvens,<br />

acentuasse a ilusão da imensa estatura daquele homem. Mas sua voz também parecia algo fora da terra, tão fortemente enchia o<br />

ar em torno.<br />

O sermão produziu extraordinário efeito nos grupos de escribas e intérpretes da lei. Lia-se o espanto em seus<br />

rostos, e não lhes faltavam gestos de admiração nos trechos mais vivos. Já era diversa a impressão no povo comum; preparadas<br />

de antemão para tudo aceitar, aquelas criaturas bebiam as palavras do rabi, balançando as cabeças aprovativamente. A<br />

expressão dos rostos era de êxtase. Os escribas e intérpretes ouviam tão atentos que as veias lhes ressaltavam na testa, nas<br />

faces, na garganta, como se o sangue nelas se houvesse coagulado. Às vezes franziam os sobrolhos ou mordiam os lábios. Às<br />

vezes, nas pausas, consultavam-se entre si e trocavam sinais de assentimento. Foi assim quando o rabi disse: “Portanto, se<br />

trouxeres ao altar tua oferenda e diante dele te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa no altar a oferenda e<br />

vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem apresentar a tua oferenda”. Aqui fez uma pausa, como para ouvir um<br />

eco dos escribas e intérpretes. Eles encaravam-se fixamente como se estivessem analisando aquelas palavras, e depois lhes<br />

deram aprovação. Outras vezes a aprovação lhes brotava imediata e manifestava-se por meios de gestos largos ou enérgicos<br />

movimentos de cabeça. Assim foi, por exemplo, na passagem em que o rabi disse: “Quando deres esmola, não saiba a mão<br />

esquerda o que faz a direita”. Certas passagens desse tipo eles as aceitavam com respeito, mas em outras estampavam-se-lhes<br />

no rosto a contrariedade e o medo. Quando falou o rabi do rigor da lei e exigiu ainda mais severidade, aqueles homens<br />

murmuraram com desânimo: “Ele segue a escola de Chammai”. Em outra ocasião ouvi-os dizer: “Está agora seguindo a escola<br />

de Hillel”. Eram as duas grandes doutrinas a que eles procuravam ajustar as leis proclamadas pelo rabi. Quando este disse:<br />

“Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem”,<br />

eles fizeram gesto de desespero e espanto, como se no dia imediato tivessem de cumprir esse mandamento. Houve troca de<br />

olhares confusos. “Seria bom se pudesse ser assim. Mas quem pode praticar isso? Os anjos, talvez; não homens de carne e<br />

osso”.<br />

Novamente a confusão e o medo os empolgaram quando vieram estas palavras: “Eu vos digo, porém, que não<br />

resistais ao mal; se alguém vos bater na face direita, oferecei-lhe também a esquerda”. Isso os aterrorizou, como se o tivessem<br />

de praticar naquele mesmo instante. Às vezes não era medo que mostravam, sim despeito; e em particular refranziam a testa<br />

sempre que o rabi usava as palavras: “Eu vos digo, porém”; isso os fazia dar de ombros e trocar momos de ressentimento. Mas<br />

nada os espantou tanto quanto estas palavras: “Também foi dito: Quem deixar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio; mas eu vos<br />

digo que quem repudiar sua mulher, exceto por adultério, faz que ela cometa adultério, e o homem que se casar com uma<br />

divorciada comete adultério”.<br />

− De que passagens das escrituras deduz ele isto? Exclamaram indignados os intérpretes da lei. Nada mais<br />

contrário à lei de Moisés, porque Moisés permite o divórcio e ele quer proibi-lo. Considerar-se-á por acaso maior que Moisés?<br />

Um daqueles homens tentou defendê-lo, dizendo:<br />

− Nossos velhos mestres também disseram que quando um homem repudia sua primeira mulher, o altar do<br />

Templo derrama lágrimas.<br />

− Sim, nós não contestamos que seja coisa má. Quarenta dias antes que a mulher nasça uma voz soa no céu,<br />

dizendo: “Filha de tal e tal, o Senhor do mundo arranja os casamentos e vais tu descer à terra para destrui-los?” Mas nada<br />

impede que o que ele prega seja contrário à lei de Moisés.<br />

Esta interrupção foi mais longa que as outras. As idéias do rabi sobre o divórcio determinaram uma tempestade<br />

de disputas entre aqueles eruditos, e passou-se algum tempo antes que arrefecessem. Entrementes desenrolaram os<br />

pergaminhos e verificaram as passagens em causa, ou as em que Moisés autorizava o divórcio. Naquele ponto discordavam do<br />

rabi, mas todos concordaram com o “ter fé em Deus e não pensar no dia seguinte”. O rabi dissera-lhes que olhassem para as<br />

avesinhas do campo, que não semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros – e o Pai do céu as alimenta. “Acaso não tendes,<br />

vós homens, mais valor que elas?”<br />

− “E quanto as vestes, porque vos preocupardes? Olhai para os lírios do campo, vede como crescem. Não<br />

trabalham, não fiam, e eu vos digo que nem Salomão em toda a sua gloria jamais se vestiu como qualquer dessas flores”, e o<br />

rabi apontou para as florinhas brotadas por ali. “Se assim enfeita Ele as ervas do campo, que hoje existem e amanhã já estão<br />

queimadas, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?”<br />

− “Belo dito!” ouvi uma voz dizer – e os rostos dos pobres se encheram de beatitude ao pensamento de não mais<br />

precisarem trabalhar ou fiar, semear ou colher, ou construir abrigos contra o inverno, pois que lhes bastava apenas Ter fé em<br />

Deus, o qual deles cuidaria como cuidava das aves do ar e das flores do campo.<br />

A hostilidade àquelas idéias desenhava-se nas rugas da testa de alguns dos eruditos; outros, porém, sorriam –<br />

mais da linguagem poética que o rabi usara que da sabedoria das suas palavras.<br />

Terminado o sermão, o rabi desceu do alto do morro. Vinha com a tez ainda mais pálida do esforço que fizera,<br />

mas seus olhos brilhavam com a satisfação do desencargo. A alegria pura tem um nimbo de tristeza e a beleza daquele homem<br />

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me pareceu mais alta do que nunca. Pairava sobre ele uma paz que não era deste mundo. E então algo me aconteceu que nunca<br />

me pude explicar. Ao descer a encosta fora o rabi rodeado pelos eruditos e a discussão se travou. Uns desenrolavam os<br />

pergaminhos para apontar as passagens em desacordo com os seus ensinamentos; outros apoiavam esses ensinamentos .<br />

Durante aquela discussão o povo comum se mantinha à distância, respeitoso, não ousando perturbar o debate – e<br />

foi quando Simão, percebendo o cansaço de seu mestre, abriu caminho e aproximando-se do rabi pediu-lhe que saísse dali e se<br />

sentasse na relva; esse bom discípulo talvez também receasse que daquela discussão saísse alguma divergência. Mas assim que<br />

o rabi se afastou do grupo de eruditos, o povo comum correu a rodeá-lo. E a alegria de todos irrompeu sem restrições; gritos de<br />

amor e admiração enchiam o ar; dir-se-ia que um grande herói voltava vitorioso da guerra. Inclinavam-se uns e beijavam-lhe a<br />

fímbria da veste; outros contentavam-se em estar perto de tocá-lo. E veio também a criançada, que os pais haviam trazido por<br />

diante para que ele a abençoasse. E depois começaram a chegar doentes ansiosos pela cura. Os discípulos lutavam com a<br />

multidão, particularmente os filhos da mulher de Zebedeu, mas não conseguiram desembaraçar o rabi. Por fim Simão o ergueu<br />

nos braços potentes e levou-o dali – mas mesmo assim a multidão lá se foi atrás, como a água dum dique que se rompe.<br />

E o que a mim me aconteceu foi o seguinte – coisa que repito com vexame mas é a verdade pura: eu, o Ciliarca<br />

de Jerusalém, esqueci completamente a minha dignidade, a minha identidade, a minha posição social; e, juntamente com o<br />

centurião de K’far Nahum, que estava tão tomado quanto eu, meti-me no meio daquele povo em delírio – corri com ele como<br />

se eu fizesse parte da massa e as palavras do rabi também me dissessem respeito! Até esse ponto eu e meu amigo nos deixamos<br />

arrastar! Com o centurião não era tanto, por que lá residia já de muito tempo e pois sofrera de longo o influxo judaico; mas eu,<br />

o comandante da fortaleza Antonia, o braço direito de Pôncio Pilatos – eu a comportar-me daquela incrível maneira!...<br />

Confesso que durante o sermão da montanha deixei-me arrastar pela magia daquele homem. Quer mais pormenores de como<br />

terminou aquilo? Empolgado pela atmosfera de sedução aproximei-me e pela primeira vez na vida prestei obediência a um<br />

judeu. Ao sentir isso ele olhou-me com expressão de piedade compassiva – e eu senti qualquer coisa quebrar-se dentro de mim.<br />

E o que há de mais estranho (custa-me a confessá-lo) é que naquele momento eu não sentia vexame nenhum da minha<br />

sujeição. Essa emoção empolgar-me-ia mais tarde, mas naquele momento senti uma luta dentro de mim, provocada por aquele<br />

olhar compassivo – luta entre a cólera e o anseio. O pálido rosto do rabi, emoldurado na barba tão moça, e corpo frágil, a<br />

expressão de infinita piedade, tudo me tocou e senti-me com ele. E eu ainda pressentia que algo superior à minha compreensão<br />

pairava em torno daquele homem e me libertava de qualquer medo. Súbito, lembrei-me de quem eu era; a cólera sobrepairou;<br />

voltei-me para o meu amigo e disse:<br />

− Vamo-nos daqui – e de lá escapamos.<br />

A instintiva vigilância do meu medo salvara-me.<br />

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19<br />

Depois deste terrível incidente é que apreendi o tamanho do perigo que ameaçava o centurião – e dou graças aos<br />

deuses de me terem salvo no último momento: uns instantes mais e o socorro teria sido inútil. Já de muito eu notara como o<br />

meu amigo andava impressionado pela palavras do rabi; mas por meio daquela experiência eu tinha de aprender que, sob certas<br />

circunstâncias até eu poderia ser arrastado a abandonar a minha rígida disciplina romana – esse perfeito molde do caráter – e<br />

ceder diante duma influência asiática. Aquilo me valeu de lição e aviso.<br />

O centurião já de muito tempo que viera dum acampamento romano e se imbuía a fundo no ambiente judeu.<br />

Sempre que um homem passa longos anos numa província bárbara, muito afastada da civilização de Roma, torna-se capaz dos<br />

atos mais absurdos – é o que se tem visto. Alguns dos nossos melhores homens, heróis de cem batalhas, vencedores de<br />

inumeráveis hordas de bárbaros, terminaram vítimas dos vencidos, quando se fixaram entre eles e passaram muito tempo fora<br />

de Roma. Grande força de caráter requer a resistência a um meio estranho, quando a estada é longa – e caráter desse tipo não o<br />

possuía o centurião de K’far Nahum. Mesmo antes do aparecimento do admirável rabi já havia ele revelado a sua inclinação<br />

para o judaísmo. Passara a negligenciar na terra dominada a prática da nossa religião e a revelar-se remisso no seu dever de<br />

estimular o uso dos ginásios e a freqüência dos teatros. Raramente viam-no no templo dos nossos deuses – nem mesmo no<br />

César, que o Tetrarca erigira em sua nova capital; o centurião só lá aparecia em função oficial. E concomitantemente passara a<br />

freqüentar as sinagogas judias, deixando-se arrastar pela mística do Deus invisível e instruindo-se a respeito com os sábios<br />

locais. Comparou os méritos das duas religiões e o resultado foi que em vez de esforçar-se pela ereção em K’far Nahum dum<br />

templo a Júpiter, habilitou os judeus de lá a construírem a sua sinagoga. Vi essa sinagoga; tão orgulhoso se sentia ele desse<br />

templo que insistiu em mostrar-mo. Fora construído no mais belo teor greco-judaico, com fachada de mármore e colunas de<br />

granito ornamentadas; o mosaico do assoalho, esplendido, representa símbolos religiosos. Muito explicável a gratidão dos<br />

judeus por aquele homem – mas os soldados romanos murmuravam.<br />

Seus mais íntimos amigos eram os mestres da lei judaica. E como não podia ser visitado por esses homens – as<br />

leis proibiam aos judeus a entrada em residência de pagãos – encontravam-se eles nas ruas, sinagogas e capelas de estudo, e<br />

assim ia sendo o centurião instruído. Por fim ocorreu a maravilhosa cura de Andros, feita pelo rabi.<br />

Creio que o meu amigo havia comprado Andros para propósitos de prazer, pois que se tratava dum rapaz<br />

extraordinariamente belo, como tive ocasião de verificar quando nos serviu na vila do centurião, na estrada para Tiberias. Mais<br />

tarde, pela corruptora influência do culto judeu, que severamente proíbe essa forma de amor (como condena quase todas as<br />

alegrias da vida), o centurião transformou a sua inclinação pelo rapaz em ternura de pai. É possível mesmo que o tenha adotado<br />

como filho, e o amor que tinha por Andros despertou nele o amor pelo rabi que realizara a maravilhosa cura; e mais tarde,<br />

quando passou a conhecer melhor o rabi, cresceram-lhe tanto a amor, a admiração e reverência por aquele homem, que os seus<br />

sentimentos pelo rapaz foram absorvidos.<br />

Tenho de referir, como curiosa fraqueza desse meu amigo, a sua tendência para procurar o que amar e admirar.<br />

Tal pendor era uma necessidade de sua alma. E não é sem repugnância que conto certa descoberta que fiz naquele tempo.<br />

Aquele homem de alentada constituição, cujo peito maciço tantas vezes se expusera às lanças inimigas, aquele homem que à<br />

frente de sua coorte marchava através dos pântanos da Germânia, aquele romano punha de lado a sua armadura de prata, da<br />

qual pendiam as medalhas de doze campanhas, e escondia-se sob as vestes de franja dos judeus! Ou vestia os andrajos de<br />

algodão grosso dos pobres e ficava à porta das sinagogas e capelas de doutrina a ouvir os sermões dos mestres da lei! Fora<br />

tragado pela vida religiosa do povo para o seio do qual viera como conquistador. Levantava-se respeitosamente diante dos<br />

velhos judeus; mandava donativos e oblatas ao Templo de Jerusalém – e ficou ainda pior depois do aparecimento do rabi.<br />

Sempre que podia escapava de sua obrigação para ir vê-lo. Voava à sinagoga para não perder suas prédicas. E isso que no meu<br />

caso não passou duma simples e única experiência, nele se tornou prática permanente: o meu amigo centurião ocultava a sua<br />

identidade nas vestes grosseiras dos pobres e vezes sem conta comparecia à casa de Simão, o discípulo...<br />

A partir daquela tarde em que o rabi pronunciou o seu sermão da montanha o meu pobre amigo não teve mais<br />

sossego. Sentava-se sozinho em seu jardim fechado, perto das estátuas dos deuses romanos, ou então caminhava com ar<br />

distraído pelas praias do Mar de Genesaré, meditando as palavras do rabi. Obtivera daquele sermão uma cópia em papiro e<br />

lera-o até decorá-lo inteirinho. Onde quer que estivesse, sentado ou de pé, repetia as palavras do sermão. E várias vezes tentou<br />

imbuir-me daquelas doutrinas acentuando com insistência o conteúdo de tal ou tal trecho.<br />

Foi assim quando estávamos, ao cair da noite, no terraço de colunas de sua residência, com os olhos postos nos<br />

reflexos da lua sobre as ondas do Mar de Genesaré. A lua erguera-se logo que o sol se pusera – uma lua muito acobreada e<br />

envolta em nuvens; pouco depois desfizeram-se essas nuvens e os raios do luar vieram refletir-se nas águas em movimento.<br />

Andros estava presente. Meu amigo apoiou a cabeça nas mãos e disse qualquer coisa.<br />

− Que? indaguei.<br />

− São palavras daquele sermão do homem dos milagres, respondeu ele. Ouça-as: “Pedi e dar-se-vos-á; buscai e<br />

encontrareis; bateis e vos abrirão”.<br />

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− Nada vejo nisso que acrescente a filosofia, declarei. São conceitos que não repousam em base de experiência,<br />

de realidade ou de conhecimento adquirido. Apenas refletem esse estado d’alma indisciplinado dos judeus sonhadores, e que os<br />

leva a procurar a felicidade no oceano do nada.<br />

− É o começo de todas as verdades, volveu o centurião com o infantil anseio de um bárbaro. A aquisição de<br />

conhecimentos não cessa diante dos estreitos limites da nossa consciência, do mesmo modo que o mundo não se finda nesse<br />

céu, nessa lua, nessas estrelas que nos parecem tão próximas – nem naquela nuvem que envolve os altos das montanhas do<br />

outro lado do Mar de Genesaré. Nossa vida não tem como limite o túmulo. Acima das nuvens e acima dos céus outros mundos<br />

existem – e assim também há outra vida depois da morte. E essa é a vida eterna, o eterno consciente-inconsciente, o eterno<br />

procurar e achar. E desde que essas palavras me soaram nos ouvidos, ouvi uma voz do outro lado, não do nosso tempo e do<br />

nosso espaço, mas do ilimitado que tem sua morada em meu coração. Sinto que estou no começo duma fé; que há portas onde<br />

podemos bater e atrás das quais alguém nos pode abrir. Desde que essas palavras caíram em meus ouvidos foi como se eu<br />

houvesse descoberto uma primavera eterna que se não exaure nunca. Comecei a compreender a fé...<br />

Eu o olhava com espanto e tristeza.<br />

− Fantasias, fantasias, murmurei em tom veemente. O cérebro bem firme nas realidades não encontra aí<br />

substância. Estados d’alma assim são coisa dos fatalistas, aos quais escasseiam a vontade e o poder para ter em mãos o seu<br />

destino pessoal. Tais homens jamais conheceram os privilégios, nem nunca sentiram as características que formam um<br />

romano; incapazes de bravura, e, pois, desconhecem os deleites da batalha e a ebriedade do triunfo; nunca provaram da<br />

peculiaríssima bebedeira da conquista e da dominação pela espada. E como de todo alheios a essas alegrias, assim também não<br />

submetem o caráter à disciplina. Afundados na submissão, nada sabem da verdadeira vontade de amar, da vontade de<br />

senhorear, de tomar vingança, de combater. Nada sabem da vida e do mundo. Como pode então um deles dar juízo sobre as<br />

coisas? Este povo aceita contente a dotação que lhe coube – estas montanhas rochosas e estas areias de seu pequenino país. A<br />

terra nega-lhes tudo – hei-los a levantar os olhos para o céu e a sonhar outra vida além das nuvens. Que temos a ver, nós<br />

romanos, com essas coisas? Não nos bastam a nós os nossos heróis nacionais? Poderemos lá trocar o grande Mário, os grandes<br />

Sula e César, ou o divo Augusto, ou o nosso próprio comandante Germânico, homens que conquistaram o mundo, pelos<br />

patriarcas judeus, afim de podermos uma dia sentar-nos com eles no reino do céu? Conclui em tom irônico.<br />

Mas a resposta do centurião foi profundamente séria e grave.<br />

− As realizações dos nossos heróis? disse ele. Quem pode enumerá-las? Eles plantaram as águias romanas até<br />

nas extremas do mundo e submeteram incontáveis povos. Quem lhes negará valor? Mas podiam comandar os espíritos do<br />

mesmo modo como comandavam soldados? Podiam estender redes que os amparassem na queda no abismo sem fundo da<br />

morte? Podiam com todas as suas armas e exércitos embotar os dentes desse invisível verme chamado o tempo – esse verme<br />

que com tanta insolência rói os corpos dos pequenos e grandes? Com todo o seu imenso valor podiam eles por acaso alongar<br />

de um só minuto a sua medida de tempo, ou exigir como tributo de guerra uma só batida de coração a mais que as prescritas?<br />

Podiam seus triunfos dar-lhes um segundo de alegria pura não amargada pela mórbida lembrança do fim? Que valem riquezas<br />

constituídas de realidades mensuráveis pela régua de destruição? Que valem suas vitórias, se o vencedor e o vencido<br />

compartilham do mesmo destino e são igualmente lançados no mesmo poço da noite sem fim? Que valem seus efeitos, se são<br />

moídos pelas mós da destruição e levados pelos ventos do passado e extintos pela niilidade do nosso limitado ser? Vitória sim<br />

é a que creia na eterna alegria da posse eterna. Proeza é o libertar-nos das paixões e desejos transitórios, desses que satisfazem<br />

superficialmente mas nada realizam. A vitória dum homem sobre si mesmo prepara-o para receber a grande bênção da fé num<br />

poder eterno, que na plenitude de sua graça tomou esse homem sob sua proteção e o guarda em todos os mundos, através da<br />

eternidade do tempo em todas as formas e existências por que passe. Oh, então podem esmagar meus ossos, podem derramar<br />

meu sangue nos campos de batalha da vida: Deus reunirá meus ossos esmoídos e meu sangue derramado e de novo os<br />

recomporá em minha unidade. Que chamas poderão destruir-me? Que guerras poderão contra mim prevalecer? Eu sou a<br />

eternidade em Deus. Só uma espécie de poder pode dar-me a vitória final: o poder que vem da integração do homem na eterna<br />

e única divindade – e só a fé destes bárbaros que conquistamos me dá essa integração<br />

Grandemente me surpreendeu esse discurso e interpelei-o:<br />

− Centurião, que há? A que lado pertences?<br />

− Cornélio, respondeu ele. Não podes entender-me. És cego. Sinto que qualquer coisa nasceu dentro de mim –<br />

uma porta se me abriu e por ela não podes passar. O nome dessa porta é Fé.<br />

Calei-me. Vi que era um homem perdido...<br />

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Não dormi naquela noite. Antes de deixar K’far Nahum obtive de meu amigo uma tradução grega do sermão da<br />

montanha, que ele mesmo fizera para uso próprio. Passagens havia que eu não alcançara quando o pregador as pronunciou em<br />

aramaico. De outras eu não me lembrava – as que ouvi com a atenção posta nos escribas e intérpretes. Além disso, o meu<br />

estado de ânimo naquela tarde não fora o mais adequado para uma audição meditada. Mas agora tinha eu comigo a prédica<br />

transposta para um idioma civilizado. Pude analisá-lo ponto por ponto e chegar à conclusão de que as atividades daquele<br />

homem, conquanto inócuas na aparência (pois que procurava levar os homens pelos caminhos do justo) podiam com o tempo<br />

tornar-se extremamente perigosas. E não era a criatura frágil que pretendia ser. Seus ensinamentos eram de molde a periclitar<br />

até o regimem dos próprios judeus (nós tínhamos interesse em perpetuar o poder dos dirigentes daquela época) e portanto do<br />

nosso governo também. Era até possível que aquele homem fosse uma ameaça para toda a civilização latina no Oriente, parte<br />

do mundo onde tais idéias se espalham com a rapidez do fogo na floresta entre as massas ignorantes. E de todos os povos<br />

orientais, qual o mais inflamável que o judeu? Esses incêndios começam inocentemente, com origem em assunto religioso<br />

local e acabam em revolta contra a situação dominante e contra Roma. Oh, nós tivemos nossas experiências! Porque embora<br />

eles se ocultassem atrás da máscara da religião, matéria em que não interferíamos, todos tinham o mesmo secreto propósito:<br />

libertarem-se dos dominadores de fora.<br />

Os levantes dos judeus nos custavam muito caro para que os víssemos com indiferença; daí a nossa contínua<br />

vigilância. Quando os judeus adotavam um culto, a ele se agarravam até a morte. Antes de minha vinda, nos tempos do<br />

primeiro Procurador, Copônio, um homem se levantou a Judéia – chamado Judas o Galileu. Começou, ao que me informaram,<br />

exato como aquele rabi, pisando terreno estritamente religioso. Nada tínhamos com o que ele ensinava. Judas lançou entre os<br />

judeus um moto ou provérbio lá na linguagem deles, qualquer coisa com a significação de que a Deus pertence o governo. A<br />

frase espalhou-se e fez muito mal, porque se o governo pertencia unicamente ao Deus deles, o dever de todos era opor-se ao<br />

governo de Roma. Começaram a negar-se ao pagamento das taxas, expulsavam das aldeias os arrecadadores, levantaram o<br />

pavilhão da revolta e formaram bandos armados ocultos nas cavernas, de onde saiam para atacar os viajantes e as caravanas – e<br />

até alimentaram a esperança de destruir nossas legiões. Escusa dizer que não demoramos a dar cabo deles. O Procurador tomou<br />

medidas enérgicas, crucificou os chefes, mandou outros para os mercados de escravos, outros para as arenas de gladiadores,<br />

outros para as galés. Muitos anos depois, numa viagem que fiz de Alexandria à Cesaréia, encontrei-me com um sobrevivente<br />

do levante. O capitão do meu navio informou-me que entre os escravos presos aos remos havia um verdadeiramente<br />

fenomenal, que já de doze anos vinha resistindo àquilo. O caso interessou-me e desci para ver - e vi um gigante acorrentado ao<br />

remo, e com seus poderosos movimentos conduzia, ou arrastava, todos os outros. Seus olhos queimados, mais não eram que<br />

dois rombos vermelhos a minar sangue e pus. Corpo coberto de pelos empastados pela sujeira. Avançava com o poderoso peito<br />

e recuava ao compasso do guarda, e se se retardava no mínimo que fosse o chicote de pontas chumbadas descia-lhe sobre o<br />

corpo. Intolerável mau cheiro erguia-se daquela congérie de carne humana. Coleção dos piores bandidos e rebeldes que ali<br />

estava a putrefazer-se em sua própria imundície. Recebiam a quantidade de alimento estritamente necessária para conservá-los<br />

vivos e com força para mover os remos. O fato de dispormos de muitos escravos nos dispensava de dar atenção àquelas<br />

condições. Na verdade não sabíamos o que fazer dos numerosíssimos prisioneiros de guerra, rebeldes e criminosos que se iam<br />

juntando em nossas colônias. O César Tibério não se notabilizava pela extravagância e não mimava a plebe das províncias ou<br />

de Roma com excesso de espetáculos. Não que faltassem homens para ser lançados às feras – as feras é que nos saia muito<br />

caras. E, assim, o melhor meio de dar vazão ao excesso de homens estava nas galés. “Em regra”, disse-me o hortador, “um<br />

escravo no remo não dura mais de seis ou oito meses. Mas esse escravo – e apontou para o macabeu cego – está nisso há já<br />

doze anos. Não sabemos que força é a que o mantém vivo”. Dominando a minha repugnância, aproximei-me do escravo e<br />

ouvi-o a murmurar qualquer coisa em sua língua nativa. “É o grito de guerra da sua gente”, explicou o hortador. “E é só o que<br />

ele diz a si mesmo”.<br />

− E que significa? perguntei.<br />

− “Só a Deus pertence o governo”.<br />

Ali preso ao remo, cego, imerso na sua própria imundície, aquele homem não cessava de murmurar o seu grito<br />

de guerra: “Só a Deus pertence o governo!” E o repetiria até no último momento. Isso está na natureza dos judeus. Se uma<br />

coisa lhes entra na cabeça, nem todas as chibatas do mundo a arrancam. O rabi cujo discurso eu tinha nas mãos era daquele<br />

tipo. Ele também proclamava a sua divindade como o único senhor de tudo e não lhe admitia nenhum rival. Lá estava no texto:<br />

“Um homem não pode servir a dois senhores”. E ia além, sugeria aos seus seguidores que abandonassem o pernicioso hábito<br />

de com grande esforço produzirem o que comem e vestem: “Não andeis inquietos quanto à vossa vida, indagando que haveis<br />

de comer, de beber, de vestir”. Oh, aquilo era puro incitamento à indolência. E ele dizia adiante: “Não ajunteis os tesouros da<br />

terra, que a traça e a ferrugem consomem e os ladrões roubam. Mas formai tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não<br />

operam...” Que era aquilo senão desordem e rebeldia? Ataque a toda ordem social existente e ao governo; e ainda pior, por<br />

mais específico, do que o moto de Judas o Galileu. Manda que os homens se recusem ao trabalho, rompam a ordem social,<br />

sentem-se de braços cruzados até que o invisível Deus deles faça cair o pão do céu! Se aceitasse o povo estes sentimentos, a<br />

terra afundaria na ruína. E como nós romanos cobraríamos taxas? E como sustentaríamos nossos soldados? Na realidade este<br />

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homem convoca os seus seguidores à destruição da vida afim de que também nós sejamos destruídos! E por que, pergunto eu,<br />

permite-se que tal homem circule livremente e prossiga nessa perigosa atuação?<br />

Ele ataca o processo legal. “Se alguém te processa e toma teu casaco, dá-lhe também o teu manto”. Temos aqui<br />

incitamento ao desrespeito da lei e da justiça dos tribunais! Nenhum juramento será feito porque “não podeis fazer um cabelo<br />

branco ou preto”. Isto é a destruição das formas fundamentais da administração pública. Ele quer suprimir todos os códigos,<br />

proíbe aos homens a resistência aos malfeitores: “Se um homem te bate na face direita, oferece-lhe também a esquerda”.<br />

Qual o objetivo desta doutrina? Perguntei-me a mim mesmo. E a resposta me veio clara: Procura desfazer e<br />

destruir tudo quanto o homem acumulou por experiência, tudo quanto obteve na luta pela dominação e supremacia, todos os<br />

costumes e leis que estabeleceu, tudo que tem sido cultivado e é controlado por instituições, dirigentes políticos e chefes<br />

espirituais; e em lugar de tudo isso instituir uma nova ordem baseada em princípios diametralmente opostos. O que nós<br />

olhamos como virtude, como as mais altas realizações dum homem, ele condena como vício ou defeito; e, reversamente,<br />

transforma vícios e defeitos em altos mandamentos morais. Os valores passam a ser outros. Não mais a dignidade e o orgulho,<br />

que têm forjado o caráter do homem; mas a fraqueza e a submissão, a humildade, a modéstia e a brandura: os humildes<br />

herdarão a terra e deles será o reino do céu! Não mais a riqueza acumulada pela indústria e a conquista, mas a pobreza, a<br />

renuncia, será o ideal do gênero humano! Para evitar o ódio e a cólera que trazem a batalha e geram o triunfo, ele prega a<br />

renúncia de tudo e manda-nos amar aos nossos inimigos, e fugir da batalha e perdoar aos nossos contrários para que o Pai do<br />

céu nos perdoe a nós! Proíbe que nos entreguemos aos deleites da vida, à glória, à abundância da riqueza; que demos livre<br />

soltura às nossas paixões naturais. Quer, ao contrário, que vivamos a reprimi-las, a destrui-las. “Se teu olho direito te<br />

escandaliza, arranca-o; se tua mão direita te escandaliza, corta-a”. Quer tristeza eterna no coração dos homens. Mas sem que o<br />

rosto traia a tristeza. “Quando jejuares, unge tua cabeça e lava do teu rosto”.<br />

Cheguei à conclusão de que aquele homem era totalmente diverso de todos os outros intérpretes da lei e mestres<br />

judaicos que o precederam. Porque esses aplicavam a lei unicamente ao povo eleito e não se preocupavam com os demais. Já a<br />

doutrina do rabi se dirigia aos simples e crédulos de todos os povos, mesmo os pagãos. Ele não se confinava aos limites do<br />

serviço do Templo e dos costumes religiosos dos judeus, como faziam os sacerdotes; suas palavras eram dirigidas a todos os<br />

homens do mundo.<br />

Muitos romanos existem suscetíveis ao misticismo e desvairos espirituais dos povos que dominamos. Uma<br />

fraqueza nos levar a baixar a cabeça diante de deuses bárbaros e a oferecer-lhes sacrifícios em seus templos – para não falar<br />

nos repulsivos e astutos gregos que se consideram nossos superiores em cultura, arte e filosofia e nos desprezam como símios<br />

imitadores. Eles nos governam – não nós a eles; são eles que nos instilam seus gostos e sua visão das coisas por meio de<br />

professores e educadores que compramos nos mercados de escravos.<br />

Os egípcios e caldeus também nos infeccionaram com a sua magia, sua arte de engolir fogo e encantar serpentes<br />

– e por meio de suas mulheres. E não é segredo que nas mais altas rodas de Roma gostam de brincar com idéias judaicas. Mas<br />

a clara significação de tudo isso só me veio em K’far Nahum, quando com meus próprios olhos pude ver como a magia dum<br />

rabi judaico levava um nosso comandante a negar seus deuses pátrios, a trair a têmpera romana e a transformar-se num<br />

sonhador asiático, todo sentimentalismo e brandura.<br />

E não era o único. Entre os homens de Cesaréia e Askelon imiscuídos na multidão que acompanhava o pregador,<br />

lá de vez em vez eu via algum oficial, que ainda não chegara ao ponto do centurião de K’far Nahum mas corria esse risco.<br />

E, pois passei a ver naquele rabi uma súmula de todos os perigos, de todos os levantes, de todo ranger de dentes<br />

e cerrar os punhos, de toda a impotente fúria que o nome de Roma despertava no coração dos judeus. E prevendo a destruição<br />

que aquelas idéias eram capazes de nos trazer, vi nele um inimigo de Roma maior do que o fora Cartago – ou que qualquer<br />

nação hostil o era naquele tempo.<br />

Tratava-se da guerra que a Judeia havia declarado a Roma, guerra feita não com a espada, mas com o espírito de<br />

Deus, como eles diziam. Antes que fosse tarde demais tínhamos de sufocar aquilo...<br />

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Para caso assim, nada de meias medidas. A indiferença significava derrota. Ou sucumbíamos à doutrina do<br />

homem, como sucedeu ao centurião, ou com todas as armas lutávamos pela segurança ou mesmo pela própria existência de<br />

Roma. E resolvi agir.<br />

Comecei procurando certificar-me, duma vez por todas, se o homem chamado Judas Ish-Kiriot – ou Judas o<br />

homem de Kiriot – fora realmente mandado a K’far Nahum para trazer de olho ao perigoso rabi. Se era ele um emissário do<br />

Sumo Sacerdote (e de quem mais?) claro que nos poderíamos entender, embora não fosse fácil. Está na índole dos judeus<br />

ajudarem-se uns aos outros quando entra em cena um estrangeiro. Mas a coisa tornou-se ainda mais difícil porque Judas havia<br />

desaparecido. Não mais o vi depois do sermão na montanha. Informaram-me que lá se fora com o rabi para as aldeias vizinhas,<br />

onde iam demorar-se algum tempo.<br />

Esperei, e afinal o rabi Yeshua voltou a K’far Nahum. Se era assim, então estaria também lá o seu discípulo,<br />

pretenso ou não, Judas, sobre o qual eu não tinha certeza de coisa nenhuma. E realmente estava. Mandei-lhe mensagem por um<br />

coletor de taxas do nosso grupo, homem de confiança, ao qual não declarei a verdadeira razão do meu interesse em falar com<br />

Judas. Homem de confiança ou não, o coletor era judeu. Um dos truques peculiares ao rabi Yeshua era dirigir-se a esses<br />

coletores, ou publicanos, embora fossem gente odiada pelo povo. (Havia uma extraordinária sutileza nos métodos do rabi. Suas<br />

doutrinas nos privavam dos homens de maior confiança, e os punha como secretos conspiradores.) Representei diante do<br />

publicano o papel de simpatizante; declarei estar muito interessado nas idéias e milagres do rabi, do qual eu desejava saber<br />

mais coisas por intermédio dum dos seus discípulos, Judas Ish-Kiriot, já meu conhecido de Jerusalém.<br />

A resposta de Judas foi esta: Quem era ele, pobre e obscuro operário, para ser conhecido do Hegemon de<br />

Jerusalém? Não havia dúvida que o Hegemon se enganara – confundira-o com outra pessoa.<br />

Judas continuava no mesmo jogo – se jogo era – iniciado comigo na casa de Simão. Compreendi que tinha de<br />

recorrer a outros meios. Eu podia, está claro, mandar atrás dele soldados asquelonitas ou samaritanos, mas não queria empregar<br />

a violência. Preferia conquistar-lhe a confiança. Isso porque, admitindo que fosse ele agente do Sumo Sacerdote, seria uma<br />

excelente coisa usá-lo para dois fins. O velho Hanan jamais economizava protestos de amizade para com os romanos, mas que<br />

mal faria se aquele seu agente confidencial também o fosse nosso? E decidi procurar eu mesmo o precioso Judas Ish-Kiriot, o<br />

qual, segundo me informara o publicano, estava hospedado com certo oleiro de K’far Nahum, Cananias, homem famoso no<br />

conhecimento da lei. Judas ajudava-o no trabalho, amassava a argila, acendia o forno; e enquanto trabalhavam iam discutindo<br />

as sagradas escrituras e as novas doutrinas do rabi. Lancei um manto sobre o meu uniforme e, seguindo as instruções do<br />

coletor, fui ter à casa do oleiro, fora da cidade, na rota de Naim. Encontrei-os no trabalho, em serena conversa. Dirigi-me<br />

naturalmente ao homem procurado.<br />

presente.<br />

− Vem comigo, Judas, temos algo a tratar.<br />

Sem erguer os olhos do vaso que estava modelando, Judas respondeu:<br />

− Não possuo segredos para este homem aqui. Podes dizer o que te trás.<br />

Tentei de novo:<br />

− O que tenho a te comunicar é de grande importância e só diz respeito à tua pessoa; um terceiro não pode estar<br />

Mas Judas continuou atento ao serviço e disse:<br />

− Sou um trabalhador alugado por dia e não posso abandonar a faina. Se tens algo e me dizer, dizei-o aqui<br />

mesmo – ou então espera o cair da noite.<br />

Nada mais tinha eu a fazer. Se na presença daquele seu amigo estava Judas representando o papel do homem<br />

inocente, eu tinha de sustentá-lo na mentira. E esperei fora até o fim da tarde; Judas então saiu e eu lhe disse:<br />

− Judas Ish-Kiriot, bem sabes quem sou e sabes que te conheço. Encontramo-nos em Jerusalém – sou o<br />

Hegemon de lá; e vimo-nos ultimamente na casa de Simão, ao tempo em que o teu rabi estava ensinando e realizando os<br />

milagres.<br />

Calma, porém obstinadamente, Judas repetiu a velha resposta: “Quem sou eu para conhecer o Hegemon de<br />

Jerusalém? Não passo dum homem do povo que só lida com gente do povo”.<br />

− Judas, muito breve retorno a Jerusalém, onde verei teu amo, o velho Sumo Sacerdote. Tens para ele alguma<br />

mensagem? e procurei apanhar-lhe o olhar, mas Judas conservou os olhos abaixados.<br />

− Quem sou eu para ter a honra de conhecer Hanan, o velho Sumo Sacerdote? Já disse e repito que sou homem<br />

do povo e não o que procuras. Há aqui engano.<br />

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− Judas, insisto em que és um servo do Sumo Sacerdote, o qual te mandou aqui para espionar o homem de<br />

Nazaré e informá-lo de tudo.<br />

− O Sumo Sacerdote é realmente meu senhor, como o é de todos os judeus piedosos. Quanto ao resto, nada<br />

entendo do que me dizes.<br />

Minha paciência estava no fim, e declarei com aspereza:<br />

− Judas, sou amigo de teu amo o Sumo Sacerdote, e tanto ele como eu temos interesse nas palavras e atos do rabi<br />

Yeshua de Nazareth. Este é o assunto que me trás. Nada deves esconder de mim.<br />

Estranha mudança se operou naquele homem. Ergueu para mim os olhos penetrantes e acesos duma luz<br />

selvagem. E insolentemente retrucou:<br />

− Queres falar comigo dos atos e palavras do meu rabi Yeshua de Nazareth? És por acaso judeu? Foste admitido<br />

no grêmio de Abraão? Serves a adoras o Deus vivo de Israel?<br />

− Sou romano e sirvo aos deuses de minha pátria.<br />

− Se assim é, por que procuras discutir comigo palavras e atos do meu rabi? As palavras e atos do meu rabi<br />

destinam-se unicamente aos filhos de Israel, não a estrangeiros.<br />

− Na qualidade de Hegemon de Jerusalém tudo quanto se passa nesse país me interessa.<br />

− O Hegemon de Jerusalém já fixou o tributo que temos de pagar a César. Como vem agora interferir em<br />

assuntos da nossa fé, no Deus vivo de Israel e em suas leis?<br />

− Judas, respondi contendo-me a custo, não estás tratando o Hegemon de Jerusalém com o respeito que lhe é<br />

devido. Tenho alguma coisa a dizer relacionada ao teu amo e meu amigo Hanan.<br />

− Para o Hegemon de Jerusalém eu entrego o tributo devido ao César. Com meu amo o Sumo Sacerdote eu<br />

discuto as matérias pertinentes à nossa fé – e com essas palavras Judas me deixou.<br />

Compreendi que todos os meus esforços naquele rumo seriam inúteis e determinei recorrer à mais alta autoridade<br />

civil da terra. Dias depois, em meu retorno a Jerusalém, estava eu no palácio do Tetrarca.<br />

Dirigi-me primeiro a Herodias, a qual, como mulher da sociedade, me compreendia melhor que o esposo e me<br />

ajudaria com a sua influência.<br />

− Senhora, comecei depois da troca de cumprimentos, nas galés romanas que sulcam o Grande Mar temos<br />

encadeados aos remos muitos de vossos súditos; em nossos circos e teatros centenas deles são lançados às feras. Este<br />

tetrarcado fornece-nos mais rebeldes e fanáticos perturbadores da paz do que toda a província da Síria. Vossos súditos causamnos<br />

mais preocupações que todo o Egito, com a sua grande metrópole Alexandria. Diariamente ocorrem novas insurreições da<br />

Galiléia, assunto referido mais duma vez pelo Procônsul em Antióquia e falado na corte do César. E eu a informo, Senhora,<br />

que essas contínuas perturbações não fazem o Tetrarca bem visto aos olhos do César. E mais ainda depois que Agripa,<br />

pretendente ao trono da Judéia e amigo dos herdeiros do Império, voltou à Itália e está com o César em Capri, a tecer intrigas.<br />

Asseguro ainda mais que a cotação desse pretendente subiu muito nestes últimos tempos; não há quem lhe negue novos<br />

empréstimos – além de que os velhos credores tornaram-se muito mais pacientes. E sabe por que? Porque a sua idéia de tornarse<br />

rei da Palestina não é ignorada de ninguém; e muita gente espera que isso aconteça ainda durante a vida de Tibério. Tomo a<br />

liberdade de sugerir, Senhora, que é tempo de provar o Tetrarca ao Procônsul em Antióquia e ao César em Roma que é capaz<br />

de suprimir todas as insurreições no início, arrancando-lhes as raízes antes que se alastrem.<br />

Herodias não procurou ouvir mais. Tomou-me da mão e levou-me ao Tetrarca.<br />

− Mas, Hegemon, que sucede? Interpelou-me Herodes, depois que lhe repeti tudo quanto dissera à esposa: Seu<br />

rosto empalidecera.<br />

− Tetrarca, respondi, acabo de chegar de K’far Nahum, onde passei umas semanas como hóspede do centurião. E<br />

suponho que já haja chegado aos ouvidos do Tetrarca rumores do extraordinário homem por lá aparecido e que anda a arrastar<br />

tanta gente. Tive ensejo de observá-lo nas praias do Genesaré e lhe ouvi as doutrinas. E cheguei à conclusão de que esse<br />

homem representa um grande perigo para o estado e a ordem vigente; e que quanto antes o Tetrarca puser fim a tais atividades,<br />

tanto melhor. Mas o que ele ensina é também contrário às leis, costumes e tradições da própria religião judaica. Verifiquei que<br />

suas idéias levantavam amarga hostilidade entre os mestres e intérpretes da lei. À vista de todas essas razões aconselho o<br />

Tetrarca a pôr fim às atividades desse homem que agita o povo contra o trabalho e a obediência e corrompe-o com promessas<br />

de um reino nos céus. Também verifiquei que o seu poder já vai além das massas ignorantes; começa a atuar nas pessoas<br />

impressionáveis das classes altas. Sugiro uma repressão imediata, antes que seja tarde.<br />

A palidez do rosto de Herodes acentuara-se. Teve de reclinar-se no leito trazido pelos servos ao jardim onde<br />

conversávamos. Ficou longo tempo com a cabeça entre as mãos; por fim ergueu-a e disse:<br />

− Não tenho nenhum poder sobre este homem, Hegemon – nem nenhum de nós aqui o tem.<br />

− Que quer dizer com isso, Tetrarca? exclamei, surpreso.<br />

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− Já o decapitei, não é assim? E ele retornou à vida – e sua voz revelava o terror da alma.<br />

− Não compreendo, Tetrarca, murmurei volvendo os olhos para Herodias, que também empalidecera ao ouvir as<br />

palavras do esposo.<br />

Herodes dava-me a impressão de haver perdido a tramontana. Olhava para pontos vagos no espaço e tremia da<br />

cabeça aos pés.<br />

− Não esteve aqui, Hegemon, continuou ele com os dentes a baterem, quando os soldados germânicos desceram<br />

ao porão da fortaleza e voltaram com a sua cabeça numa salva de prata, depondo-a diante da pequena Salomé?<br />

− Está-se referindo a Jochanan o Batista?<br />

− Sim, a ele mesmo. É Jochanan o Batista que ressuscitou e trás agora essas mensagens de arrependimento e<br />

acena ao povo com o reino do céu. Fechei-lhe a boca, e hei-lo a falar novamente. Não tenho poder sobre tal homem, Hegemon!<br />

Não posso cortar a cabeça a um homem já decapitado!<br />

− Tetrarca, isso são sonhos e fantasias da imaginação popular. Como pode dar crédito a tais crendices?<br />

− Hegemon, nosso povo só possui sonhos e fantasias, tudo mais lhe foi tirado. Que mal pode fazer à realidade do<br />

poder romano os sonhos e fantasias que esse homem de K’far Nahum espalha entre os pobres? Em que ameaça à glória de<br />

Roma um reino estabelecido no céu? Acaso terá Roma ciúmes de tesouros celestes? – e com estas palavras Herodes nos<br />

deixou.<br />

− Fique o caso comigo, Hegemon, murmurou Herodias. Não tenha cuidado que há de ser bem atendido. O<br />

Tetrarca está sob a impressão das histórias que andam a circular e não tem dormido à noite. Logo assentará e tudo será feito<br />

como o Hegemon sugere.<br />

Não obtive melhor resposta do velho Hanan em Jerusalém, quando lhe expus o caso.<br />

A conversa realizou-se em seu palácio, no salão das colunas, entre taças do saboroso vinho das tâmaras de Jericó<br />

– deliciosa bebida que só encontrei naquela casa. Expus-lhe todo o caso do meu encontro com o estranho rabi de K’far Nahum<br />

e acentuei as corruptoras doutrinas por ele disseminadas entre os ignorantes. Fiz sobre Hanan a mesma pressão feita sobre o<br />

Tetrarca; observei-lhe que se Cesaréia viesse a saber do perigoso estado de ânimo dos que ouviam aquele rabi, conseqüências<br />

desagradáveis para os Sumos Sacerdotes e outras autoridades locais certamente sobreviriam. Disse-lhe que o que mais me<br />

espantava nos judeus, era o ciúme que revelavam sobre coisas mínimas do ritual e da tradição quando um estrangeiro se<br />

aproximava – e no entanto deixavam que pregadores judeus livremente atacassem os próprios alicerces da fé judaica.<br />

O velho ouviu-me com a maior atenção, a cofiar como de costume a longa barba de neve, e sem esconder a<br />

expressão de desprezo dos cantos da boca. Depois respondeu:<br />

− Sonhos, Hegemon; nada virá dum perigo tão remoto. Nosso povo não sabe viver sem sonhos, Hegemon; e<br />

todas as gerações têm que ter o seu sonhador – um homem que os adormeça com estranhas melodias. Desde os tempos de<br />

Abraão que o nosso povo há vivido mais de promessas do que de realidades. E eu até chego a duvidar se realmente o nosso<br />

povo quer transformar os seus sonhos em realidades; parece que tem medo da experiência. Medo de que o frio da realidade<br />

paralise as asas do sonho. Qualquer homem que ponha no futuro o dia da sua libertação, que transporte para céu remotíssimo a<br />

cena da sua felicidade final, conquista logo o entusiasmo dos judeus. E quanto a essa doutrina de que falais, Hegemon, ela só<br />

mostra que estranho povo somos. Cada um de nós é o seu próprio Moisés e o seu próprio interprete da lei. Nesse ponto não<br />

podemos ser comparados com as nações em que a disciplina leva o povo a obedecer um código fixo. Quando temos de<br />

interpretar a lei somos independentes, cada qual a vê à luz de seu próprio entendimento, sempre dentro do espírito da doutrina<br />

aceita. Mas a moldura da doutrina é tal que não há limites para a variedade das interpretações, porque o espírito que as anima<br />

não é o espírito deste mundo. Sem aviso, sem base em coisa nenhuma, pode acontecer entre nós que um homem largue o<br />

arado, ou abandone os carneiros que pastoreia, ou o barro que modela, ou o serviço que tem no Templo, e declare que viu<br />

Deus. Esse homem, na véspera desconhecido, passa a ser um profeta a cujas palavras todos atendem. E nossa tarefa é<br />

investigar se é ele realmente um enviado de Deus. Nisto nos guiamos por certos sinais e certas regras indicadas nas escrituras,<br />

por meio das quais verificamos se suas idéias estão dentro do espírito da nossa doutrina e se fortalecem ou enfraquecem a<br />

nossa fé em Deus. Estamos a vigiar esse homem de K’far Nahum. Estamos tomando nota de todas as suas palavras e atos – e<br />

asseguro que até este momento nada existe que permita apreensões. Tudo quanto dele até aqui soubemos não passa de sonho<br />

vazio. E se acaso vier a tornar-se ele perigoso (no que não acredito), ficai certo de que o trataremos como já tratamos tantos,<br />

tantos outros anteriormente.<br />

− Sim, sei que o Sumo Sacerdote está vigilante quanto a esse jovem rabi. Encontrei em K’far Nahum o vosso<br />

emissário, o qual se fez discípulo do rabi e é um dos mais importantes. Também me disseram que se tornou o tesoureiro da<br />

irmandade.<br />

− Meu agente, meu emissário? Repetiu surpreso. Não sei de tal homem.<br />

Encarei o Sumo Sacerdote, atrapalhado. Leve sorriso pairava-lhe no canto da boca, mas não pude determinar que<br />

significação tinha. Ria-se de mim e de satisfação da sua onisciência?<br />

− Judas Ish-Kiriot, o homem que muitas vezes vi sentado junto à porta do pátio interno.<br />

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− Judas Ish-Kiriot? Não – não sei quem é, insistiu Hanan. Equívoco vosso, Hegemon. Em todo caso, voltando<br />

ao pregador de K’far Nahum, vamos mandar daqui uma junta de escribas e intérpretes da lei para verificar se as idéias do novo<br />

pregador são de fato perigosas para a nossa fé, como o Hegemon supõe.<br />

− Eu gostaria de conhecer os resultados dessa investigação, ajuntei.<br />

− Ah, meu caro, isso é matéria religiosa de nosso interesse exclusivo, e bem sabe com que ciúme o nosso povo<br />

defende esse ponto...<br />

− A aparência será, retruquei secamente, que o nosso profeta de Nazaré conspira fundo contra Roma, já que o<br />

Sumo Sacerdote, homem que consideramos amigo, acha necessário ocultar de nós o resultado dessa investigação.<br />

− Oh, creia-me, Hegemon, que todo este negócio do profeta de Nazaré não vale a atenção que lhe estamos<br />

dando. Se fôssemos tomar a sério todos os profetas e messias e sonhadores que surgem em nosso meio, tínhamos de consagrar<br />

a eles todo o nosso tempo, com grave dano para tudo mais. Ficaríamos a lutar contra sombras. O melhor remédio contra<br />

messias e profetas é deixá-los às voltas com a própria maluquice, até que se cansem – ou se cansem deles seus seguidores. Se<br />

os perseguimos, sabe o que sucede? Fazemos deles mártires – transformamo-los em santos aos olhos do povo. Deixe toda essa<br />

matéria a nosso cargo, Hegemon; nossa experiência é grande. Como isto aqui é um canteiro de messias e profetas, já<br />

descobrimos o melhor meio de lidar com eles. Quanto lá ao novo profeta da Galiléia, que tanto está a preocupar o amigo, a<br />

investigação, conduzida com auxílio dos fariseus oposicionistas, revelará se realmente existe matéria de alarma para o estado –<br />

e então o poremos ao par de tudo. Pois bem sabe que nada podemos fazer contra esse homem sem a ratificação das autoridades<br />

romanas.<br />

Por mais sossegadoras que fossem as suas palavras e promessas, não fiquei plenamente confiante na verdadeira<br />

atitude do velho Sumo Sacerdote. Resolvi não entregar-me inteiramente a ele e conservar-me em direta ligação com o caso.<br />

∗ ∗ ∗<br />

Neste ponto Pan Viadomsky interrompeu a narrativa de suas experiências como Ciliarca da Fortaleza Antônia,<br />

no tempo de Pôncio Pilatos, as quais me ditou parte de memória, parte com o auxílio de notas – e que escrevi palavra por<br />

palavra durante o inverno daquele ano. A interrupção dos nossos encontros, ocorreu em conseqüência de causas fora do nosso<br />

controle.<br />

72<br />

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SEGUNDA SEGUNDA PARTE PARTE<br />

PARTE<br />

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Minhas relações com Pan Viadomsky pioraram novamente. A hostilidade partiu dele e coincidiu com uma<br />

grande mudança em sua vida social. Começou Pan a receber visitas, e se eu estava lá quando alguma chegava, ele se sentia<br />

tremendamente incomodado com a minha presença. Ah, se pudesse esconder-me debaixo da cama! Diversas vezes bati à sua<br />

porta e ele não me abriu. E chegou até a não responder ao meu cumprimento na rua. Ia ele passando com um dos seus velhos<br />

admiradores e minha saudação foi retribuída com uma careta, condenatória de minha inconcebível impudência. Tomei nota e<br />

nunca mais o cumprimentei em público.<br />

A causa disso foi que uma nova onda de reação varria o país e Pan Viadomsky voltava a estar como queria.<br />

Diversos periódicos anti-semitas que o tinham alijado pediram-lhe de novo colaboração. A estrela de Pan voltava a brilhar e<br />

trazia-lhe melhora de vida e até de saúde. Pan recobrou a confiança em si mesmo, a altivez e o bom humor. Até na aparência<br />

era visível a melhora. Chegou a encorpar. Atribuo-o menos ao físico do que às boas condições espirituais; podia ele agora<br />

repastar-se à larga no pão do ódio e isso lhe dava carnes. Por algum tempo pensei, e com grande tristeza e desapontamento, que<br />

nada mais era possível entre nós. Errei. Passada a primeira onda do seu desdém de triunfador, Pan Viadomsky voltou-se a<br />

mim. Um belo dia apareceu-me lá pela água-furtada. Visita secreta, está claro, como ele mesmo explicou:<br />

− Em tempos como estes, você sabe... Mas o nosso trabalho histórico é coisa à parte. É a nossa missão. Não pode<br />

ficar prejudicado. Temos de retomar a tarefa de restaurar aqueles inesquecíveis acontecimentos...<br />

E de novo Pan Viadomsky e eu recaímos na vida dupla – mas agora emprego esta expressão em outro sentido.<br />

Suas visitas a mim e as minhas à ele eram furtivas e espaçadas. Durante o dia não nos conhecíamos. E se acaso nos<br />

cruzávamos não havia troca nem sequer de olhar. Mas as noites – não todas, está claro – eram reservadas aos nossos encontros<br />

secretos.<br />

Mas não era fácil lidar com ele. Seu ódio aos judeus, estimulado pela onda reacionária, crescera a ponto de<br />

degenerar em mania. Não falo de seus artigos, que erram torrentes de insultos e não poupavam nem aos judeus nem a nada que<br />

sendo progressista se associasse a esta peculiaridade dos judeus. Era o homem em pessoa, o homem em carne e osso, que se<br />

tornara quase insuportável. Ilusões de grandeza borbulhavam em seu cérebro. Se não estava arrasando os judeus, estava<br />

fanfarreando que agora, afinal, chegara o seu tempo de revelar-se em toda a sua grandeza; as sementes que ele semeara em<br />

lágrimas iriam breve dar colheitas de alegria. Quando ele se librasse em suas asas (as metáforas são dele) o mundo ia ver quem<br />

ele era... E assim por diante, ad nauseam. O que, em suma, queria dizer era que agora o seu grande trabalho iria aparecer.<br />

Viadomsky, porém, falava tão extensamente, tão cansativamente, tão insultuosamente sem nunca chegar ao<br />

porto, que comecei a perder a esperança; cheguei mesmo a suspeitar que tal manuscrito de “fazer época” não existia. E com<br />

esta suspeita, e o cansaço de meus nervos, eu já andava pensando em abandonar aquela estranha associação. Não podia apertálo;<br />

Viadomsky era tão sensível e caprichoso como certas damas de alto coturno já murchas. Mas de súbito ele abandonou<br />

aquelas generalidades e reatou o fio da história. Começou a falar com a simplicidade e naturalidade dos dias de outrora. Com<br />

uma diferença, porém: já não falava como em estado hipnótico. O retorno ao velho eu que ele fora operara-se sem luta ou<br />

transição. Era o passado que revivia, mas sem aniquilar o presente, de modo a entrar na personalidade do Hegemon sem deixar<br />

de ser Pan Viadomsky, o profundo orientalista.<br />

A revelação do grande segredo daquele homem, o desvendar do seu incomparável tesouro, fez-se certa noite já<br />

tarde, em seu apartamento. Viadomsky afundou sem preâmbulos na narrativa, e de tal modo que no momento fiquei sem saber<br />

quem falava.<br />

− Durante certo período, as atividades do homem na Galiléia escaparam à minha observação, disse ele, e não<br />

posso agora reconstrui-las inteiramente. Procurei informes com o velho Sumo Sacerdote, mas em vão. Nunca pude apreender o<br />

que realmente estava atrás de sua reserva. Mesmo quando o rabi de K’far Nahum apareceu em Jerusalém e entrou em séria<br />

disputa com os rabis locais, a natureza dos desacordos e a causa do barulho me foram ocultadas. Pelo menos para mim o Sumo<br />

Sacerdote podia falar, mormente conhecendo o meu interesse pelo caso. Mas agiu de modo contrário – e enquanto isso a espera<br />

do Messias, o sentimento de que sua vinda estava próxima ia conquistando mais e mais campo. Pode ser que eu não tenha<br />

penetrado no âmago da disputa; e mais tarde, quando o caso foi submetido a Pôncio Pilatos, também não conseguiu ele<br />

entender a natureza e as minúcias da acusação. Mas disto falarei a tempo. Essa lacuna quanto às atividades do rabi da Galiléia<br />

procurei enche-la, sempre de modo incompleto e superficial, com episódios ouvidos aqui e ali. A história na íntegra eu vou<br />

extrair... de você.<br />

− De mim? exclamei, tonto.<br />

− Perfeitamente, de você – por meio de você, Josephus! E foi para isso que me amarrei a um membro da sua raça<br />

e religião, conquanto você não ignore o que sinto e penso a respeito. Mas já disse uma vez e repito – não há regra sem exceção.<br />

polonês.<br />

1<br />

− Agradeço o cumprimento, Pan Cornélio, murmurei ainda tonto, antepondo ao apelido romano o prefixo<br />

74<br />

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O rosto de Viadomsky endureceu.<br />

− Perdão! Corrigi-me depressa. Hegemon Cornélio.<br />

− Já não disse que a vida atual que nos rodeia está morta?<br />

− O Hegemon manda e eu obedeço. Estou ansioso.<br />

− Sei disso. Sei disso desde o começo. E agora, por causa da solenidade e segredo do que vai seguir-se, exijo<br />

especial declaração, sob o mais terrível juramento de seu credo, de que o que vou revelar ficará para sempre entre nós. Quero<br />

que jure sobre o Torah e pelas luzes das velas negras, como é do costume judaico.<br />

− Hegemon, respondi com a cabeça tonta daquele vai e vem entre os séculos; as velas negras e a excomunhão<br />

por juramento sobre o Torah são coisas dos últimos tempos – desses tempos agora mortos para nós dois. Eu já jurei, e repito<br />

essa jura, sobre as sagradas vestes do Sumo Sacerdote, que era o juramento dos velhos judeus – isto é, dos judeus de agora.<br />

Juro que o que me for revelado ficará entre nós na vida e na morte.<br />

− Amem, Jochanan! Murmurou ele sombriamente. Vou revelar o que homem nenhum sabe ou soube – no<br />

presente ou no passado.<br />

Pan Viadomsky recuou a cadeira e, abrindo uma das gavetas de sua enorme secretária, lá dum compartimento<br />

secreto retirou algo embrulhado num jornal polonês. Abriu, e enleado num chale indiano ou lenço embainhado apareceu um<br />

pacote de papiro embolorado de velhice. Mas não era ainda o tesouro; vinham as folhas de papiro embrulhando um semidestruído<br />

pedaço de linho de múmia – e só então apareceram os documentos secretos, escritos no que chamamos samaritano.<br />

Não eram em rolo, como de uso entre os judeus, mas em folha, à maneira dos samaritanos.<br />

Meu coração pulava excitado. O rosto sem sangue de Pan Viadomsky tremia quase tanto como suas mãos. Ao<br />

depor sobre a mesa o manuscrito, volveu os olhos para mim e disse:<br />

− Não procure, Jochanan, descobrir como estes documentos vieram ter às minhas mãos. É um segredo que<br />

descerá comigo ao túmulo. O que temos diante de nós é o próprio relatório de Judas Ish-Kiriot, documento que esteve<br />

enterrado num túmulo junto à cidade de Sepphoris.<br />

Aproximei-me mais, enquanto Pan Viadomsky conservava a mão sobre o manuscrito, como de medo que eu o<br />

tocasse. Meus olhos viram caracteres gregos bem traçados e uma ou duas frases inteiras. Parece que alguém começara a<br />

tradução do original em grego e abandonara a tentativa. E li: “O Evangelho segundo Judas Ish-Kiriot”, e mais subtítulos. O<br />

texto começava na segunda folha e estava perfeitamente legível.<br />

− Pode ler esta língua?<br />

− Perfeitamente. Conheço-a. É o judeu antigo, que hoje chamamos samaritano e que ainda encontramos nas<br />

moedas judaicas da era do Segundo Templo e em documentos desse período. Conheço o alfabeto, mas preciso de tempo para<br />

fazer uma leitura fluente.<br />

− Bem. De agora em diante virá você aqui todas as tardes e lerá e traduzirá para mim, palavra por palavra,<br />

fielmente e no espírito do original, tudo de acordo com o juramento feito.<br />

− Às ordens, Hegemon. Mas antes de retirar-me, permita uma pergunta. Foi o próprio Hegemon, com suas<br />

próprias mãos, quem tirou o manuscrito de Judas Ish-Kiriot do túmulo em que estava enterrado?<br />

− Já disse: não procure esclarecer esse ponto. Meu tempo ainda não chegou.<br />

E nada mais nos dissemos naquele dia.<br />

∗ ∗ ∗<br />

Mas certos vagos informes quanto à proveniência do documento escaparam a Pan Viadomsky nas noites<br />

subsequentes, os quais procurei religar entre si, como veremos adiante. Enquanto isso dei toda a minha atenção ao texto. Vi de<br />

pronto que tinha diante de mim parte apenas dum todo, embora boa parte. Algumas das folhas eram palimpsestos, ou escrita<br />

mais recente feita sobre escrita antiga raspada. Sentenças gregas encontrei de difícil decifração por serem tradução literal do<br />

hebreu, e vice-versa. Deduzi que grande parte do texto faltava no fim, e fiquei com a idéia de que na redação final dois<br />

pensamentos opostos se chocaram, cada qual tentando impor a sua interpretação.<br />

As fontes históricas da Bíblia estão longe de exaustas, e precisamente em nosso tempo importantes descobertas<br />

têm sido feitas no genizots ou coleções de documentos das antigas sinagogas. São fontes de enorme significado, donde<br />

advieram confirmação de certas assertivas bastante problemáticas. Também foram descobertos, entre o envoltório de linho das<br />

múmias de seres humanos ou crocodilos, papiros com fragmentos de textos bíblicos, ou reconhecíveis como tais, em língua<br />

síria ou etiópica, que não figuram nas Escrituras mas obviamente delas fazem parte. O clima sem umidade do Egito preservouos<br />

em excelente estado. Documentos que remotíssimas gerações confiaram aos mortos, ou esconderam em cavernas, e secretos<br />

repositórios de sinagogas, estão agora vindo à luz e solucionando enigmas tidos como insolúveis.<br />

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Bem. E agora, quanto à proveniência dos documentos de Pan Viadomsky nada tenho a oferecer senão confusas<br />

sugestões. Certa vez, muito antes do nosso encontro, falou ele abertamente dum velho Novo Testamento que havia achado num<br />

mosteiro do Monte Sinai, com o auxílio – soube-se mais tarde – dum notório falsário. Depois disso declarou ter descoberto<br />

num belchior de Varsóvia um Evangelho desconhecido, que ele estava condicionando para a publicação. Descontada como<br />

pura invenção, essa Segunda história, fica a primeira como a única pista para o conhecimento da origem dos documentos –<br />

pista consubstanciada por certas alusões de Pan Viadomsky, durante aqueles seus ímpetos de irresponsável, ao homem que o<br />

havia ajudado. Isso deslocava a cena para Damasco, nos últimos anos do século findo – e relembrava um já esquecido<br />

incidente de sua vida.<br />

Logo depois que abandonou os estudos regulares, Pan Viadomsky foi várias vezes visto no Egito e terras<br />

vizinhas, na companhia dum falsificador profissional de antigüidades, homem largamente conhecido no mundo acadêmico<br />

tanto pela sua incomparável erudição, como pela sua desonestidade. Parece que os dois, um deles já ilustre e conhecido e o<br />

outro ainda muito jovem, foram juntos para o mosteiro do Sinai, e juntos passaram a servir a um grupo de mercadores<br />

levantinos empenhados em escavações ilegais no Egito, Palestina e Síria. Por aquele tempo, isto é, muito antes que Pan<br />

Viadomsky lançasse a sua primeira história, rumores correram de que os dois homens, ou o mais velho, haviam encontrado<br />

numa gruta perto de Sepphoris, na Galileia, um antigo documento da mais alta importância: o original de um novo Evangelho<br />

da autoria de um dos apóstolos. Mas nada confirmou o boato. Logo depois o mais velho apareceu morto num hotelzinho de<br />

Damasco. A polícia do Sultão procurou o companheiro desse velho, cúmplice na venda ilegal de antigüidades – mas não o<br />

encontrou. Havia desaparecido – e nunca mais ninguém falou no tal documento. Os mercadores levantinos não ousaram insistir<br />

no inquérito, com medo de chamar atenção para as suas secretas e ilegais atividades. Por vários meios fizeram correr o rumor<br />

de que o velho havia morrido em conseqüência da maldição lançada pelos antigos sacerdotes egípcios. Por fim todos se<br />

esqueceram do caso; e eu, que lera algo a respeito, jamais me recordaria do que li, se não fossem certas vagas referências de<br />

Pan Viadomsky quanto à origem do manuscrito.<br />

Escusa dizer que não pretendo atribuir a Viadomsky a mais leve ligação com a tragédia ocorrida há tantos anos,<br />

num obscuro khan de Damasco, embora qualquer estudioso defrontado pelo inigualável valor do documento fosse tentado a<br />

agir do mesmo modo que o companheiro do velho. E com maior razão ainda Viadomsky, que não era um “estudioso qualquer”<br />

e sim o mais apaixonado orientalista. Eu de mim confesso que cada vez que minhas mãos tomavam o manuscrito, no curso da<br />

minha tradução, um arrepio me passava pelo corpo e uma voz me dizia lá dentro: “Sabe o que tem diante dos olhos? Nada<br />

menos que o relatório original deixado por Judas Ish-Kiriot no túmulo de Sepphoris, na Galiléia”. A tentação era imensa!<br />

E como, pois, caiu um tal tesouro na posse de Pan Viadomsky? E que fim levaram as outras partes? Nada posso<br />

responder. O segredo em sua totalidade descerá ao túmulo com Pan Viadomsky, para ser afinal revelado quando ele de tudo<br />

prestar contas ao eterno juiz. Mas isso não tem relação com a matéria em causa, e podemos dizer com o mais sábio de todos os<br />

homens: “O que está muito longe e muito fundo, quem o poderá encontrar?”<br />

É tempo de permitir que o manuscrito fale por si mesmo.<br />

76<br />

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“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

Está escrito: Inquirireis, e procurareis, e perguntareis deligentemente. Segue-se, portanto, que sobre o verdadeiro<br />

profeta tereis também de inquirir, procurar e perguntar deligentemente. E isso fiz eu – eu, vosso companheiro em pensamento,<br />

Judas o homem de Kiriot... Sigo os passos do meu rabi e sento-me a seus pés, e meço cada uma de suas palavras, e investigo a<br />

fundo em todos os seus atos – e nenhum mal nele encontrei; seu coração está em paz com o seu Deus, e o que quer que ele<br />

pensa e diz está no espírito de Deus. Porque está escrito: “Seguireis o Senhor, vosso Deus, temê-lo-eis e obedecereis aos seus<br />

mandamentos, e atentareis em sua voz e não o largareis...<br />

E como já em parte vos relatei, o nosso rabi reuniu uma multidão de gente num morro perto da cidade e declarou<br />

as leis e mandamentos que o povo tem de seguir, se todos quiserem ser chamados filhos de Deus e terem sua parte no reino do<br />

Céu. Muitos escribas e homens cultos também vieram ouvir as palavras do meu rabi. Vieram de Migdal e da grande cidade de<br />

Sepphoris, e até da cidade de Naim, que goza de grande nome por causa dos seus sábios, e de lá veio Simão o Fariseu e muitos<br />

outros fariseus, e também Ananias o Oleiro, e Hanan o Tanoeiro, e o rabi Jonas, tecelão de tendas, e os discípulos de Jochanan,<br />

que chamam o Batista, com todos os homens cultos e escribas de K’far Nahum, e em grande multidão se reuniram no morro. E<br />

meu rabi, Yeshua Ben Joseph, que é de Nazaré, interpretou para todos a lei e po-los de coração mais perto de seu pai do céu.<br />

Os rabis e os homens cultos grandemente se reconfortaram com as palavras do nosso rabi, e se limparam de todas as dúvidas<br />

que sobre o nosso rabi traziam no coração. Sentiram que ele caminha nas sendas de Deus e que tudo quanto faz é por amor de<br />

Deus.<br />

E deveis saber que em muitas coisas o meu rabi segue a casa de Shammai, e faz ainda mais pesada a lei, como os<br />

rabis que erguem um vedo paralelo a outro em redor dos jardins celestiais. Assim prescreve ele nas coisas entre marido e<br />

mulher, e torna a lei excessivamente severa. Porque ele até anula a regra do divórcio, dizendo que o divórcio nos foi dado por<br />

Moisés unicamente por causa da dureza do nosso coração; e neste ponto os rabis não se mostraram acordes. Mas consideraram<br />

que era esse o costume dos hasideanos entre os quais o meu rabi esteve ao tempo em que aprendeu a palavra de Deus com o<br />

rabi Jochanan o Batista.<br />

Porque é sabido que alguns deles são tão estritos nas leis da pureza que destruíram o mandamento do multiplicaivos<br />

e não contraem casamento, razão pela qual nossos sábios dizem os “loucos hasideanos”. Mas a dúvida que sobre aquele<br />

ponto os rabis tinham em seus corações, foi logo afastada pela grande retidão e simplicidade do nosso rabi, e pela inexcedível<br />

fé que ele tem em nosso pai do céu. Porque sua fé no Senhor do mundo está acima de tudo, como o Rei Davi – paz à sua alma!<br />

– disse: “O Senhor é a minha rocha. Sim, embora eu caminhe no vale da sombra da morte, não temo nenhum mal porque Tu<br />

estás comigo. E embora Moisés nosso mestre já o tenha mandado, ainda assim o nosso rabi nos afoita a sermos “filhos de<br />

nosso pai do céu”, e temos de nos agarrar aos feitos de Deus; e como Deus é misericordioso e manda seu sol brilhar sobre o<br />

bom e o mau, e deixa que a chuva caia sobre o justo e injusto, assim temos nós de amar aos nossos inimigos, abençoar aos que<br />

nos maldizem e pedir pelos que nos perseguem. Quem jamais ouviu palavras de tanta retidão? Ele quer que sejamos como<br />

anjos do céu e como as crianças desta terra. E ainda quando tocou na honra dos fariseus, ao dizer: “Se a vossa retidão não for<br />

maior que a dos escribas e fariseus, seguramente nos entrareis no reino dos céus”, todos o perdoaram, porque referia-se apenas<br />

aos falsos fariseus, que procedem como os de Zimri e pedem pagamento como Phineas e fazem grande exibição de piedade.<br />

Porque ele se firma na lei, como os fariseus, e várias vezes repetiu “que até que a terra e o céu sejam passados, não se omitirá<br />

nem um só til da lei”. E em muitas coisas ele aligeira a lei, em outras fá-la mais pesada, mas o seu ponto principal é a bondade<br />

de coração. E ele ensina a lei de acordo com o sábio Hillel: “Não façais aos outros o que não quereis que vos façam”. Porque<br />

isto é a principal coisa. E quanto ao que se passa entre um homem e Deus, tem de ser feito modestamente, em segredo, não<br />

observado por ninguém. “Quando jejuares, unge tua cabeça e lava teu rosto, para que não notem que jejuas; mas teu pai no céu,<br />

que tudo vê, abertamente te recompensará”.<br />

Feliz a boca que fala essas palavras, felizes os ouvidos que as ouvem! Feliz Israel que possui agora um mestre e<br />

profeta para nos reconduzir ao nosso pai do céu!<br />

Mas não me demorarei em sua doutrina porque suas palavras, como ele as pronunciou, tenho-as escritas por<br />

Ananias o Escriba, e por elas vejo que o coração do meu rabi está em paz com Deus. Mas isto quero que saibais, que quando<br />

ele fala acorrem a honrá-lo todos os escribas e homens cultos, como manda a lei relativamente a um grande mestre, e indagamlhe<br />

da sua paz. E nós, seus discípulos, que nos sentamos aos seus pés e lhe bebemos as palavras, muito nos exaltamos com a<br />

sua grandeza, e uma porção da sua honra cai sobre nós. E o rabi Simão o Fariseu, e todos os escribas e sábios de Naim que<br />

vieram ouvi-lo, convidaram-no a ir com eles para essa cidade, a ensinar lá, a espalhar lá as águas da sabedoria, e a entrar com<br />

eles numa casa afim de partir o pão; e nosso rabi prometeu fazê-lo. E eles separaram-se do nosso rabi com grande amor,<br />

2<br />

I<br />

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“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

porque em espírito estavam com ele! E o rabi Simão o Fariseu e mais homens cultos que com ele vieram para a cidade de<br />

Naim, para lá retornaram.<br />

E quando o nosso rabi desceu do morro onde pregara a palavra de Deus e já ia de regresso à cidade, uma grande<br />

multidão o rodeou e o acompanhou até a casa de Simão o Pescador onde o rabi mora. E lá já se haviam juntado numerosos<br />

doentes e possessos de maus espíritos. E muitos que tinham ouvido a noticia dos milagres o esperavam na casa de Simão, e<br />

estenderam-lhe os braços dizendo: “Hosana, valei-nos!” E o número dos doentes e possessos aumentou, e ele não podia moverse,<br />

porque o rodeavam como ondas de um mar. Porque havia lá muita gente pobre e muitos aflitos de sofrimentos, que tinham<br />

vindo de K’far Nahum à notícia de seus maravilhosos feitos. E seu coração estava cheio de dor e piedade de tanta gente, e a<br />

vários deles curou, e a vários confortou, até cansar-se do muito que teve de falar; e por causa da multidão ele não podia afastarse<br />

e ir orar em silêncio, nem mesmo comer o pão da paz. E então Simão o Pescador o agarrou e o ergueu nos braços e dali o<br />

levou para a praia do Genesaré, onde deixara o seu barco.<br />

Nós, seus discípulos, entramos com ele no barco, e conosco ele disse a oração da tarde e conosco fez a refeição.<br />

E então Simão deitou-o no fundo do barbo e cobriu-o com seu manto, para o resguardar do frio da noite. E nosso rabi<br />

descansou aquela noite, como descansa o operário depois de seu dia de serviço, e nós, seus discípulos, sentamo-nos em roda e<br />

o guardamos dentro da noite. E então, quando a estrela da manhã apareceu, nosso rabi saiu do sono, e Simão levou-nos a um<br />

olival chamado “o campo do Rei” porque era do governo. Ficava à beira do lago. E fizemos a ablução da manhã no Genesaré e<br />

dissemos a oração da manhã; e tirando o pão dos amarrados, depois da oração fizemos a nossa comida matutina.<br />

E o modo do nosso rabi é assim: não é como outros homens cultos que ficam dentro das quatro alnas de seus<br />

mandamentos nas casas de estudo e pregam a lei aos seus discípulos, ali sentados em seu redor; mas é como o poço farto de<br />

beira de caminho que com sua água viva dessedenta todos os passantes. Meu rabi insinua-se entre o povo comum e guia-o no<br />

caminho reto. Nos dias de trabalho vai ao porto, para onde afluem os pescadores com suas redes cheias de peixes e<br />

carregadores descem as cargas dos navios. Muita gente se reúne lá, porque lá vão alugar seus braços aos mercadores. E o nosso<br />

rabi fica em meio deles e por meio de admiráveis parábolas fala-lhes do reino dos céus, e a um conforta com palavras, e a outro<br />

cura uma doença. Aos sábados vai a Sinagoga e às vezes prega sobre um trecho do Torah. Mas o rabi espalha a sua doutrina<br />

não só na cidade de K’far Nahum como nas aldeias circunvizinhas, e mostra-nos como vive o povo humilde, e nos estimula a<br />

seguir aquele exemplo. Freqüentemente acontece que a noite nos colhe a caminho da cidade e das casas sobe a fumaça do pão<br />

a assar no forno. E os homens chegam vindos do trabalho, e as mulheres os aguardam à porta com a lâmpada na mão. E<br />

quando o rabi entra na cidade, não vai para a casa do abastado, sim para a dos pobres, e fica parado à porta até que o convidem<br />

a entrar.<br />

Entra e com ele entra a paz, e abençoa a casa e senta-se com os moradores para comer o pão do pobre, e<br />

abençoa-o e louva a mulher para o marido. E depois de comido o pão, chama a si as crianças e pergunta-lhes das lições, e cada<br />

criança lhe recita o que sabe. E então ele as abençoa e diz: “Que os vossos iguais se multipliquem em Israel”, e as mães<br />

sentam-se à soleira das portas e quando vêem o rabi louvar-lhes o fruto de seu ventre e faze-las amadas de seus maridos, elas<br />

se dizem umas para as outras que ele não pode ser senão um homem de Deus, porque traz consigo a paz onde quer que entre. E<br />

então ele fica até tarde com os homens, perguntando-lhes de seus negócios. Não ignora o que os preocupa; conhece-lhes de<br />

perto as necessidades; e a um cura o corpo com um remédio e a outro dá uma boa palavra para a alma. E reconforta-os a todos<br />

e fá-los sentir que a salvação está próxima. As portas do reino dos céus estão abertas para receber todos os que estão prontos. E<br />

ele torna claras as suas idéias por meio de parábolas e belas palavras. E nós nos alojamos ali com aquela pobre gente, numa<br />

cama, numa esteira – não como os cultos fazem, os quais consideram impura a cama dum homem do campo. E de manhã ele<br />

vai com os homens ao campo e ajuda-os no trabalho, ou paga-lhes o pão da hospedagem apenas com a bênção. E se volta<br />

segunda vez ao mesmo lugar, então os moradores acodem a nos receber, e as mulheres nas portas de suas casas chamam o rabi:<br />

− “Deixai ficar aqui conosco o rabi, e aqui descansar e abençoar minha casa”. E as crianças correm a festejá-lo, e rodeiam-no, e<br />

puxam-no pela roupa, e recitam o que naquele dia aprenderam na escola . E se acaso algum discípulo fala impaciente com as<br />

crianças e manda que não molestem o rabi, ele nos diz: “Deixai que venham a mim os pequeninos, porque deles é o reino dos<br />

céus”. E assim entra ele na cidade rodeado das crianças, e os homens acodem a saudá-lo, exclamando:<br />

− Vem, ó abençoado de Deus!<br />

E quando a noite desce, ele os reúne numa casa ou no pátio de uma das casas e eles levam as suas lâmpadas. E o<br />

rabi senta-se entre eles, e parte o pão e fala-lhes do reino dos céus – e o povo se volta para Deus. E o nome do rabi se espalha<br />

sobre a terra, como um azeite.<br />

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E em K’far Nahum meu rabi mora na residência da sogra de Simão bar Jonas, no cômodo que há em cima do<br />

teto. E de dia vai ao porto da cidade e lá ensina do modo como já vos contei.<br />

No porto de K’far Nahum há a guarita da alfândega na ponte, e na guarita estaciona Levi, arrecadador<br />

alfandegário, porque quem quer que leve o fruto de suas terras para o porto ou do porto algo receba, tem que passar pela ponte.<br />

E o arrecadador espicha lá da guarita a cabeça e a mão, com o distintivo do governo no peito, porque ele tem autoridade para<br />

cobrar as taxas. Sua sacola pende-lhe da cintura e cada um paga a sua taxa e então ele abre a cancela e deixa-o passar com suas<br />

mercadorias; e se alguém não paga, não passa.<br />

II<br />

II<br />

E os arrecadadores de taxas são tidos em Israel como pecadores.<br />

Mas o arrecadador Levi não é como os outros, e quando de caminho para o porto o rabi chega à ponte, Levi<br />

levanta-se e curva-se diante dele, e sua expressão mostra como ele se arrepende de seus pecados e como deseja voltar para a<br />

trilha dos judeus. Porque enquanto o meu rabi fala ao povo lá do porto, o arrecadador fica sentado lá em sua guarita, a cabeça<br />

apoiada numa das mãos e a outra a cofiar a barba, e ele pensa muitos pensamentos. E uma vez, indo o meu rabi a passar, o<br />

arrecadador ergueu-se e encarou-o com os olhos cheios de arrependimento e disse:<br />

rebanho...<br />

− Eu sei que o grande e terrível dia vem, como tu proclamas, e eu ficarei de fora, como a ovelha lançada do<br />

E meu rabi pôs-lhe a mão sobre o ombro e disse:<br />

− Está escrito. Deus anda junto dos de coração humilde – e eu percebo de teu rosto que te arrependes dos teus<br />

pecados. Levanta-te e vem comigo.<br />

E o publicano deixou a guarita e seguiu-o. E o rabi perguntou-lhe:<br />

− Há muitos como tu em Israel? e ele respondeu:<br />

− Muitos há na cidade que foram expelidos de Israel, como eu fui, porque eram pecadores confessos. Eu te<br />

suplico a ires comigo reconfortá-los, como eu fui reconfortado.<br />

O rabi disse:<br />

− Leva-me a eles.<br />

E então, na tarde daquele dia, Levi o publicano deu uma festa em honra do rabi, na qual reuniu muitos<br />

publicanos e pecadores, gente fora da congregação de Israel. Porque entre eles havia os que duvidavam de Deus em seus<br />

corações, e outros que não podiam casar-se por suspeita de bastardia; e lá havia igualmente ladrões de estrada, e apanhadores<br />

de pombas, os que não podem servir de testemunhas nos tribunais; também mulheres de má reputação, cortesãs que desviam os<br />

homens do caminho reto, e os que traem os judeus para o governo. E o rabi com eles se sentou à mesa e nos convidou a fazer o<br />

mesmo. E isso foi duro, sim, tão duro como o abrir-se do Mar Vermelho; e nós, que éramos cultos, nos sentimos como se<br />

estivéssemos em adoração do bezerro de ouro. Mas a mão do rabi pesava sobre nós, e partimos o pão e comemo-lo sem que<br />

nos lavássemos, só com uma oração e bênção do rabi. Simão bar Jonas andava em redor a servi-los, como também os filhos de<br />

Zebedeu. Não era para eles coisa difícil.<br />

E o rabi falou a cada um separadamente e confortou-os e inclinou-lhes o coração para a bondade e disse-lhes o<br />

que fazer para a obtenção da vida eterna. E eles ouviram-no e disseram: “Tudo faremos assim”.<br />

E lá entre si murmuravam: “Quem jamais nos deu tais palavras de conforto? A gente culta nos repele, lança-nos<br />

fora da congregação como a ovelha doente é lançada do redil. E esse vem a nós e dá-nos o seu coração, como ao filho amado<br />

um pai dá o seu coração”.<br />

E o rabi tomou Levi o publicano e colocou-o em nosso meio e impôs sobre ele as mãos e disse-nos: “Deste dia<br />

em diante ele será vosso irmão e um filho de Abraão”.<br />

E aquilo nos foi duro. Irmãos, nós, dum publicano? E misturados ali com prostitutas? Porque até então nunca<br />

fora ouvido em Israel que um pecador pudesse ser discípulo dum rabi.<br />

E o rabi viu o nosso espanto e disse:<br />

− Por que me chamais Senhor, Senhor, e não obedeceis às minhas palavras? O discípulo não deve alçar-se mais<br />

que o mestre – deve satisfazer-se de ser como o seu rabi. Por que enxergais o argueiro no olho do vosso irmão e não vedes a<br />

trave no vosso? Estas gentes estão perto de Deus. Ele viu-lhes o coração pesado e chamou-as para si – e vós não repelireis o<br />

que Deus chama”. E o rabi então enunciou uma bela parábola: “Com que se parecerá o reino dos céus? O reino dos céus pode<br />

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ser comparado a um homem que semeia na terra” – e ele nos ensinou com outras parábolas, até que dominou nossos espíritos e<br />

nos tornou obedientes. Porque nós percebemos que Deus estava com ele.<br />

Mas no dia seguinte, quando fomos à sinagoga, vimo-nos rodeados de homens cultos, os fariseus e os discípulos<br />

de Jochanan o Batista, os quais nos disseram:<br />

− Que coisas são essas que se dizem sobre o vosso rabi? E que sendas escolheu ele para trilhar? Haverá em Israel<br />

falta de gente necessitada de consertos, para que ele recorra a publicanos e pecadores? Quem jamais ouviu falar dum rabi que<br />

se senta com eles à mesa e come o pão sem lavar-se? Quem já soube dum rabi em roda com prostitutas? Porque o hálito de<br />

suas bocas torna impuro e o olhar delas é todo pecado. E a voz duma mulher é impureza e o toque de sua mão prostitui. O pão<br />

dum homem-do-campo é impuro e proibido, porque ele não paga os tributos devidos a Deus; e seu leito é impuro, e um chaver<br />

nele não pode deitar-se, porque eles não sabem como avir-se no pertinente à pureza. E sua mesa deve ser desprezada porque é<br />

coberta de panelas e o alimento é como a carne de cadáveres. E o publicanos não podem testemunhar nos tribunais e não<br />

pertencem à congregação de Israel. E com essa gente se imiscui o vosso rabi e com ela come! Já não cantou a harpa de Israel:<br />

“Bem-aventurado o homem que não freqüenta o conselho dos ímpios, nem pisa a estrada dos pescadores, nem se senta à mesa<br />

dos insolentes?” E o vosso rabi tudo isso faz.<br />

responder.<br />

assim:<br />

E nós levamos aquelas palavras aos ouvidos do nosso rabi, dizendo:<br />

− Os homens que sabem, murmuram que nós nos sentamos à mesa com publicanos – e não sabemos como lhes<br />

Então o rabi nos reuniu em redor dele no cômodo lá do teto, e comprimidos junto à lâmpada ouvimo-lo falar<br />

− Qual de vós, possuindo cem ovelhas e perdendo uma, não deixa as noventa e nove para ir em busca da que<br />

falta, até que a encontre? E não a traz às costas, jubiloso, e não fala aos vizinhos e amigos: “Alegrai-vos comigo, porque a<br />

ovelha tresmalhada eu a tenho aqui”. E em verdade vos digo que maior deve ser nossa alegria diante dum pecador que se<br />

arrepende do que diante de noventa e nove que não têm necessidade de arrependimento.<br />

E ainda nos disse a bela parábola do homem que tinha dois filhos... E aconteceu que ao dizer esta parábola<br />

Simão bar Jonas ergueu-se com o rosto radiante de alegria e com as lágrimas nos olhos. E disse: “O que quer que ele me<br />

ordene que faça, isso farei, ainda que seja sentar-me com publicanos e servi-los. Porque tudo que ele faz é por amor de Deus”.<br />

E todos os doze discípulos redisseram estas palavras. E as mulheres que estavam de pé nas portas e ouviram as palavras do rabi<br />

estalaram os dedos e engoliram suas palavras e choraram com a alegria que lhes encheu o peito como o vinho enche a uva<br />

madura. E nós agradecemos a Deus e louvamo-lo por nos haver aproximado daquele homem de Deus.<br />

E o momento veio em que o rabi nos ensinou de que modo servir ao nosso pai celeste e como conduzir-nos para<br />

alcançarmos o reino do céu. E disse-nos muitas parábolas naquela noite, e fez que nossos corações se aproximassem do nosso<br />

pai do céu. Mas naquela noite ele não realizou milagres, nem curou doentes, porque queria estar só conosco, os seus<br />

escolhidos.<br />

E imensa foi a nossa alegria então, e durante aquela noite nós nos rejubilamos em nosso rabi e ele em nós.<br />

E quando o segundo dia veio, apressei-me em ir para a sinagoga, onde encontrei Zadok o oleiro, sentado com os<br />

principais da terra, e eles estavam ensinando os meninos a ler as sagradas escrituras. E eu lhes disse:<br />

− Não suspeiteis dos puros, pois haveis pecado com o murmurardes contra o meu rabi. Sabei, todos vós, que tudo<br />

quanto ele faz é feito por amor de Deus. E repeti-lhes as palavras do nosso rabi sobre a grande coisa que era trazer os<br />

pecadores para o arrependimento.<br />

E Zadok o oleiro respondeu:<br />

− Essas coisas são de fato boas, e nossos sábios também ensinam que as alturas a que chega o penitente nem o<br />

verdadeiro santo as alcança. E hão dito ainda: “Aquele que para Israel reconquista uma alma é como se conquistasse todo um<br />

mundo”. Mas o direito não tem ele de perdoar pecados. Porque nós não sabemos, nem nunca ouvimos dizer, que um ser de<br />

carne e sangue possa perdoar o pecado de outrem – não o pecado entre um homem e o seu vizinho, mas o pecado contra Deus.<br />

Só o Senhor – bendito seja ele! – pode fazer assim, como Deus nos indicou na lei e nos mandamentos de Moisés nosso mestre,<br />

juntamente com o que um homem deve fazer a fim de conseguir perdão.<br />

E com ele concordaram os outros sábios da sinagoga, mas nada disseram porque o meu rabi o havia feito por<br />

amor de Deus e há muitas maneiras de servir a Deus.<br />

E éramos então doze discípulos, que tínhamos deixado todas as nossas posses, a casa e o campo, a mulher e os<br />

filhos; havíamos abandonado tudo para segui-lo. Porque ele nos persuadiu e nós nos tornamos sua posse, almas que ele refez. E<br />

éramos em suas mãos como o barro nas do oleiro, e ele podia fazer de nós como quisesse, porque acreditávamos em todas as<br />

suas palavras.<br />

E aconteceu que certo dia em que estávamos na estrada com o nosso rabi, a noite sobreveio e alcançamos certa<br />

hospedaria e entramos. E havia lá um grupo de escarnecedores, chefiados por um velho dissoluto; e tomavam cerveja com mel<br />

e riam-se e faziam todas as loucuras. E o escravo que os servia era um homem culto que as dívidas tinham lançado na<br />

escravidão. E aconteceu que quando o grupo se toldou de juízo começaram a lançar os restos do vinho na cara do homem que<br />

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os servia, e por fim até os copos, e o escravo ali de pé tudo suportava e nada dizia. E o velho dissoluto regalava-se tanto que<br />

seu rosto se tornou vermelho e os cachos de cabelo branco sacudiam. E ele falou:<br />

− Dize teu texto, ó filho dum asno.<br />

E o homem culto que era escravo respondeu, dizendo: “Os dias do homem são como a relva – ele é como a flor<br />

do campo”. E ao ouvir essas palavras o velho esbofeteou o escravo, dizendo:<br />

− Vim com meus amigos para folgar na alegria e tu nos perturba a nossa alegria. Mau servo és.<br />

E isto vendo, Jochanan, um dos irmãos Zebedeu, disse ao rabi:<br />

− Rabi, por que toleras que ele domine o outro? Devo fazê-lo calar-se?<br />

E nosso rabi respondeu: “Não vim para destruir, sim para construir”; e aproximando-se do velho disse: “Eu te<br />

darei tal alegria que ninguém jamais a perturbará, nem a tirará de ti”.<br />

E o velho respondeu:<br />

− Tu com certeza falas do vinho. Porque está escrito: “O vinho alegra o coração do homem”.<br />

E o rabi respondeu, dizendo:<br />

− Alegria que tem no fim a tristeza, não é alegria. Vem, que te darei a alegria que cresce sempre e não tem fim.<br />

E o velho perguntou:<br />

− Que alegria é essa que não tem fim?<br />

E o rabi respondeu:<br />

− É a alegria que um homem recebe de seu pai, o criador do mundo. Esta é a alegria que não tem fim; e a alegria<br />

do reino do céu ninguém a tomará de ti, porque não está fora de ti, mas dentro.<br />

E o velho disse:<br />

− Essa alegria me é vedada, porque o caminho ao meu pai do céu está obstruído pelos muitos pecados que me<br />

enchem a vida.<br />

E o rabi disse:<br />

− Tu te fazes grande no que tu te fazes pequeno. As portas estão sempre abertas para os que querem voltar.<br />

E o velho disse:<br />

− Ainda haverá esperança para mim? Jamais imaginei.<br />

E ele aproximou-se do escravo e caiu-lhe aos pés e pediu-lhe perdão. E o nosso rabi nos disse:<br />

− Vinde e olhai: com uma palavra podeis lançar vosso irmão no mais profundo abismo e com uma palavra<br />

podeis alçá-lo à glória. Não vos enganeis pois, com o que os olhos vêem, mas procurai ver o que está no coração dum homem.<br />

E ao servo disse: “Quando o teu irmão pecar contra ti, pune-o; e quando se arrepender, perdoa-o”. E o nosso rabi fez as pazes<br />

entre eles.<br />

E disse para o velho:<br />

− Levanta-te, que estás confortado.<br />

E sentou-se com eles e bebeu e transformou o grupo de escarnecedores num grupo de irmãos, como está escrito:<br />

“Irmãos moram juntos”.<br />

E havia na cidade um discípulo de Jochanan o Batista, que atormentava o corpo com mortificações e jejuns, e<br />

abstinha-se de carne e vinho como era de regra entre os discípulos de Jochanan. E era excessivamente devoto, e o primeiro a<br />

procurá-lo na sinagoga e o último a deixá-lo. E quando jejuava cobria a cabeça de cinzas e vestia algodão grosso, e saia ao<br />

encontro das gentes e lhes recordava que o reino dos céus lhes estava ao alcance e pois se arrependessem. E corria a cidade e<br />

não cessava de exprobrar as pessoas a incitá-las ao arrependimento. E quando viu o nosso rabi sentado à mesa entre pecadores<br />

e a comer carne e a beber vinho, chegou-se ao meu rabi e advertiu-o: “Essa não é a maneira de Jochanan. Ele não come carne<br />

nem bebe vinho, e mortifica o corpo – mas tu comes carne e bebes vinho na companhia de publicanos e pecadores”.<br />

E nosso rabi respondeu e disse: “Não vim pregar remendos novos em roupa velha, e os caminhos que escolho<br />

são meus próprios. Não disse Deus: “Justiça vos peço e não o sangue dos sacrifícios”? Não vim para levar os justos ao<br />

arrependimento, mas sim os pecadores – e não somente com mortificações e jejuns serve um homem ao Senhor. E vos digo<br />

que só em alegria vos aproximareis dele, porque o homem bom, como a boa árvore, só dá de si bem e não mal. E já de longa<br />

data não vos ensinaram que tereis de guardar vossos corpos? E eu vos digo que vossos corpos não são vossos mas do Senhor”.<br />

E voltando-se para nós disse: “Cuidado com os excessos de virtude; aquele que jejua demais torna-se mais doente que os<br />

doentes, porque o homem doente sabe que precisa de quem o cure. Alguns há que reúnem tesouros de dinheiro, e outros<br />

reúnem tesouros de virtudes; mas ambos os tesouros são consumidos pela ferrugem e a traça, porque eles não os reúnem por<br />

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amor ao pai do céu e sim por amor de si mesmos. Portanto, guardai-vos de praticar o bem só para que o mundo veja, porque<br />

isso não vos trará nenhuma recompensa do vosso pai do céu. Quando derdes esmolas não toqueis trombeta antes, como fazem<br />

os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para que os outros os vejam e os louvem. Esses já têm a sua recompensa na terra – para<br />

que a dos céus? Mas quando derdes esmolas, que a vossa mão esquerda não saiba o que faz a direita; secretas sejam vossas<br />

esmolas – e vosso pai do céu, que vê o oculto, vos recompensará abertamente. E quando orardes não o façais como os<br />

hipócritas, que oram de pé nas sinagogas e nas esquinas para que todos os vejam e louvem. E quando jejuardes não mostreis,<br />

como os hipócritas, cara triste, para que os outros vos vejam e louvem, mas penteai o vosso cabelo e lavai o rosto, não<br />

deixando que os homens vejam que estais em jejum, e só o veja o vosso pai do céu, o qual vê o oculto e vos recompensará<br />

abertamente”.<br />

E aconteceu que quando reproduzi as palavras de meu mestre para os sábios da sinagoga eles disseram: “Boca é<br />

a sua que emite pérolas. Abençoados os ouvidos que o ouvem! Assim era Antígono, o homem de Socho, aquele que recebeu a<br />

tradição de Simão o justo, o qual também dizia: “Não sereis como os criados que servem ao amo para que possam receber a<br />

paga”. E o dar esmolas em segredo é uma grandíssima virtude, como nossos sábios ensinaram. E seguramente a prece feita por<br />

amor de teu irmão, é melhor aceita que a por amor de ti mesmo. E certamente servir ao Senhor com alegria é uma grandíssima<br />

virtude, porque alegria é amor, e só há glória no meio da alegria. De quem estas palavras senão de Deus? Mas o temor de Deus<br />

é o princípio da sabedoria, pois está escrito: “A primeira sabedoria é o temor de Deus. Porisso as palavras que são faladas e os<br />

feitos que são feitos no temor de Deus perduram, e sem o temor de Deus não há palavras sábias, nem atos bons e sim apenas<br />

murmúrio vão e vã agitação”.<br />

E por esse tempo o nosso rabi nos levou para o campo e nos mostrou as maravilhas de Deus e pediu-nos que<br />

aprendêssemos a lição do criador. E ensinou-nos a conduta a ser observada entre um homem e seu irmão. E disse: “Não<br />

julgueis para não serdes julgados, porque com a medida com que julgardes com ela sereis medido”. E disse mais: “Se teu<br />

irmão pecou contra ti, castiga-o em privado. E se ele te atende, então encontraste o teu irmão; mas se ele não te atende, então<br />

toma duas ou três testemunhas, porque toda matéria tem que ser atestada por duas ou três testemunhas. E se ele ainda não<br />

atende, então dá parte à congregação; e se ele não atende à congregação, para ti ficará sendo como um gentio ou um publicano.<br />

Mas não deixes que a ofensa fique morando em teu coração, expele-a dele. Sede filho de vosso pai do céu e ele vos perdoará os<br />

pecados, para que também perdoeis os que pecarem conta vós”.<br />

E então Simão perguntou:<br />

− Quantas vezes deverei perdoar a meu irmão? Sete?<br />

E o rabi respondeu e disse:<br />

− Não sete, mas setenta vezes sete. Porque assim como fores com os teus irmãos na terra, assim será contigo o<br />

teu pai do céu – e ele nos disse uma parábola, porque gosta de falar por meio de parábolas. E quando entrei na sinagoga e lá vi<br />

os sábios com os discípulos em redor, como um colar de azeitonas, então lhes transmiti as palavras de meu mestre, e os sábios<br />

beberam aquelas palavras como bebem os que têm sede, e disseram:<br />

− Na verdade não compreendemos o teu rabi, porque ele fala como um discípulo do venerável Hillel que tenha<br />

vindo espalhar a paz no mundo; e entretanto faz coisas que agitam o coração dos homens cultos, porque são contra o Torah, o<br />

qual nos foi comunicado através dos sábios por Moisés nosso mestre, o qual o recebeu no Monte Sinai. Devemos tapar nossas<br />

olhos com as mãos para não vermos seus feitos? Só devemos ouvir as palavras de sua boca?<br />

E outro disse: “Se suas palavras e feitos são por amor do céu, suas palavras e feitos hão de perdurar; se o não<br />

são, breve passarão”.<br />

E eles esperaram para ver como seria.<br />

E os sábios cada vez mais se afastavam de nós, porque não compreendiam os caminhos do meu rabi. E as gentes<br />

da cidade também se puseram a murmurar contra nós, e delas nos separamos, porque já não nos tomavam em suas casas, nem<br />

nos ofereciam lugar em suas mesas. E ficamos sós com o nosso rabi e ele nos levava pelos campos. E aconteceu que um dia era<br />

Sábado e num trigal encontramos espigas já em ponto de colheita, e as espigas pendiam para a terra com o peso do pão, e eram<br />

uma tentação para os olhos, louras, do seu louro de sol. E os discípulos estavam com fome e colheram as espigas maduras e<br />

comeram os grãos. E o rabi viu e nada disse.<br />

E na cidade espalhou-se que os discípulos do rabi haviam profanado o Sábado e que o rabi assistira a profanação<br />

e nada dissera. E a murmuração foi crescendo e os sábios e os principais da cidade disseram:<br />

− Nós não compreendemos o homem e suas palavras. Ele diz um coisa com a boca e faz outra com as mãos.<br />

Talvez tenha vindo para destruir o Torah e as lei e mandamentos que nos deu Moisés.<br />

E quando o meu rabi veio à sinagoga para pregar e quis subir ao púlpito, eles o impediram, dizendo:<br />

− Teus discípulos fazem o que é proibido no Sábado.<br />

E todos esperaram que ele se arrependesse e respondesse escusatoriamente, mas não foi assim:<br />

− Meus discípulos estavam com fome, respondeu o rabi. E acaso não lestes que nos velhos tempos Daví e seus<br />

homens, estando famintos, entraram na casa de Deus e comeram o pão exposto, que não era para ser comido nem por ele, nem<br />

pelos levitas que com ele vinham, mas só pelos Sacerdotes? E não lestes no Torah que os sacrifícios dos Sacerdotes<br />

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profanavam o Sábado? E se alguém pode profanar o Sábado por causa dum sacrifício, por que não por causa da fome? Porque<br />

o profeta já disse: “Deus quer bondade, não sacrifícios”.<br />

cidade:<br />

E ouvindo estas palavras o chefe da congregação, que era seu amigo, rejubilou-se, e disse ao principal homem da<br />

− É claro que os rabis encontraram permissão para esta coisa. Porque este rabi apelou para o Torah e interpretou<br />

a lei de acordo com a tradição.<br />

E o principal homem da cidade, mais os sábios refletiram sobre o assunto, e depois vieram ter com o nosso rabi e<br />

disseram, com muito amor:<br />

− Ensina-nos, rabi, em que casa de estudo foi encontrada a permissão para tal coisa, e feita a emenda, de modo<br />

que o perigo de vida suprima o Sábado? Foi a lei alterada nesse ponto pelos sábios e a alteração aprovada ou é opinião de um<br />

homem? Matéria de grande importância é, e importa-nos saber em que se baseia o rabi.<br />

E o rabi respondeu:<br />

− O homem é também o senhor do Sábado.<br />

E quando pronunciou estas palavras todos ali foram tomados de terror, e houve silêncio na sinagoga, e um<br />

olhava para outro com espanto, e se perguntavam: “Que quer dizer o rabi com essas palavras? Quem está acima do Torah de<br />

Deus, a não ser o que no-lo deu, o Sagrado, ou o mensageiro que mandará para nos libertar, se dignos disso formos?” E eles<br />

voltaram-se para o nosso rabi e perguntaram-lhe, com o terror nos corações: “Dize-nos que espécie de homem és que ousas<br />

pronunciar tais palavras”.<br />

Mas o rabi não respondeu e deixou a sinagoga. E a assembléia quedou-se grandemente admirada, porque tais<br />

palavras nunca tinha sido ouvidas em Israel.<br />

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III<br />

III<br />

E no dia seguinte o nosso rabi nos disse: “Vinde, levantai-vos e vamos para Naim”.<br />

E a cidade de Naim ficava a três dias do ponto onde estávamos. E então Simão e seu irmão André nos tomou em<br />

seu barco e fomos a Migdal, mas não saímos de bordo, e igualmente evitamos a cidade de Tiberias, porque nosso mestre no-la<br />

declarou impura e proibida, significando com isso que o Governo de Herodes tinha sede lá. E então vagamos de bote até o<br />

meio do dia e em certo lugar desembarcamos, e dali seguimos e subimos o monte do Tabor. E do alto do Tabor a terra se<br />

estendia diante de nós como uma palma de mão – toda a superfície do Mar de Genesaré e o verde vale de Jezreel, com todas as<br />

cidades e aldeias esparsas pelos trigais e vinhedos, palmeirais e olivais. E meu rabi viu as tendas de Israel, como são na paz, e<br />

encheu-se de piedade. E erguendo as mãos sobre o vale disse: “Que agradáveis são tuas tendas, ó Jacó, e teus tabernáculos, ó<br />

Israel!”. E depois disse: “A seara é abundante, mas os trabalhadores poucos”, e nós não lhe compreendemos essas palavras –<br />

iríamos entendê-las mais tarde.<br />

E foi da vontade do nosso rabi que naquele lugar dormíssemos a céu aberto. E pela manhã, depois da primeira<br />

oração, descemos do monte e fomos para a cidade de En Dor, que fica a um dia de viagem do sopé do monte. Mas o lugar é<br />

impuro, porque Baal Peor ainda reina lá, como nos dias da feiticeira, no tempo em que Saul a procurou e pediu que fizesse<br />

aparecer a alma de Samuel o Profeta.<br />

E não ficava longe daquele lugar a cidade de Naim. E como reza o nome da cidade – Naim quer dizer agradável<br />

– agradável é a cidade. E está escrito: “E Issachar viu que a terra era agradável...” porque a porção de Issachar é como o Jardim<br />

de Deus, antes que Adão pecasse com a árvore do bem e do mal. A terra era como um jardim e os campos abundavam de trigo,<br />

aveia, frutas e flores. E vimos muita gente trabalhando no solo. E alguns colhendo entre cantos o que haviam semeado entre<br />

lágrimas, e o rabi abençoou-lhes o trabalho e fez muitas parábolas e comparações. E quando o nosso rabi viu os campos, como<br />

eram eles semeados pelo trabalho do homem e como as parreiras apojavam de cachos e as árvores de flores, levantou a voz e<br />

disse:<br />

− Os céus, os céus são para o Senhor, e a terra ele a deu aos filhos do homem. E como os céus declaram a glória<br />

de Deus, assim os campos declaram o trabalho do homem. Na verdade voz digo, os soldados do exército são menos conhecidos<br />

do seu comandante que as ervas do campo do seu criador, e cada folha de capim tem um anjo que a guarda. Pela colheita do<br />

terreiro conhecereis o trabalho do lavrador, e pela colheita de atos bons que praticardes em vida e depuserdes no terreiro do<br />

Senhor sereis julgados. Não haverá outra medida, nem outro peso, nem outro número, senão os dos atos bons que houverdes<br />

praticado. Porque o campo não é vosso, apenas vos é arrendado, porisso fazei que o vosso arado produza no máximo, já que<br />

não sabeis quando vos será tomado o campo.<br />

E outras palavras disse enquanto seguia para Naim, relativas ao arado e ao arador, e às hortas e hortelões que<br />

encontrávamos pelo caminho: e desde o tempo do mais sábio dos homens, o rei Salomão, e igualmente desde o tempo de ben<br />

Sira, nada igual fora enunciado na terra. E todas as suas palavras só tinham um propósito – plantar em nossos corações o amor<br />

e o temor de nosso pai do céu.<br />

Abençoados os ouvidos que o ouviram. Suas palavras eu as gravei em minha memória, para mais tarde escrevelas<br />

em benefício das gerações porvindouras.<br />

E quando o sol descambou, derramando luz nas vestes do nosso rabi, chegamos às portas da cidade.<br />

E havia lá grande multidão de povo, gente que vinha dos campos com os jumentos carregados de grão; e<br />

igualmente caravanas de camelos com boiões de azeite e mel, panos de lã e linho e toda sorte de mercadorias. Porque a cidade<br />

de Naim era rica de posses, e os abastados da terra não se contentavam com os produtos locais – muita coisa importavam de<br />

longe. Mas daquela multidão de gente algumas pessoas notaram a presença do rabi e seus discípulos (os quais o rodeavam<br />

para que não sujassem as suas vestes) e essas pessoas puseram-se a gritar: “Abri caminho!” E quando já ia escurecendo uma<br />

delas – um rapaz que conduzia um jumento – olhou-nos e exclamou: “Eis o homem das maravilhas, da cidade de K’far Nahum,<br />

que está vindo para nós!”<br />

E isso fez que muita gente nos rodeasse, porque o bom nome do meu rabi espalhava-se pela terra como o<br />

perfume duma essência. E então os artífices deixaram suas bancas e os mercadores suas lojas, e para a frente de suas casas<br />

vieram com lâmpadas acesas, para nos iluminar o caminho, e exclamavam:<br />

− Bendito seja quem vem em nome do Senhor!<br />

E encaminhamo-nos para a sinagoga da cidade, porque a tarde chegara ao fim e era tempo da oração da noitinha.<br />

E na cidade de Naim havia um homem devoto que se chamava Simão o Fariseu. E esse homem havia estado em<br />

K’far Nahum e ouvido o sermão que o nosso rabi pregara na montanha, e se agradara daquelas palavras. E porisso resolveram<br />

alguns dos discípulos que o rabi fosse alojado na casa de Simão o Fariseu, porque era uma casa freqüentada por homens cultos<br />

e escribas. E eu estava me preparando para procurar a casa de Simão o Fariseu e dar-lhe a notícia da chegada de nosso rabi. E o<br />

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discípulo Levi, que havia sido publicano, tinha na cidade um amigo publicano de nome Jochanan, que era rico. E porisso<br />

alguns dos discípulos, como Simão o Pescador e os irmãos Zebedeu, decidiram que o rabi se hospedasse na casa do publicano,<br />

porque ele podia receber lá o povo comum, e os despojados e os condenados, e os que tinham grande necessidade do socorro e<br />

da consolação do nosso rabi. Mas o nosso rabi nos disse: “Iremos à sinagoga, onde todo o povo se reúne e lá ficaremos, e se<br />

nos chamarem para irmos às casas, iremos, porque a palavra divina cabe a todos os judeus e nenhum deve ser excluído”. E nós<br />

fizemos como nosso rabi determinou.<br />

E quando alcançamos a sinagoga muita gente nos acompanhava, porque havia corrido a notícia que o homem<br />

dos milagres viera a Naim. E Simão o Fariseu soube que o nosso rabi estava em Naim e vestiu-se de finas roupas e juntou os<br />

escribas e fariseus, também vestidos no fino, e foram à sinagoga recebe-lo com honras. E Simão o Fariseu levantou a voz e<br />

disse ao nosso rabi:<br />

− Os sábios desta nossa cidade te vêm receber com honras, segundo o costume da terra, eu te convido à minha<br />

casa, para que te sentes à minha mesa e comas conosco, e assim eu cumpra o mandamento sobre a boa acolhida aos hóspedes.<br />

E o rabi respondeu:<br />

− Simão, unicamente por causa do mandamento sobre a acolhida me pedes vá à tua casa?<br />

− Também para que nos sentemos à mesa e comamos e conversemos da doutrina de Deus, como manda a lei,<br />

respondeu Simão.<br />

Porque aos ouvidos de Simão haviam chegado as notícias sobre os estranhos feitos do nosso rabi, que não eram à<br />

maneira dos homens cultos e haviam agitado os homens mais notáveis de K’far Nahum; e por isso estava Simão desejoso de<br />

inquirir sobre o nosso rabi e saber como se comportar. E por essa razão é que o convidava para sua casa e também convidara os<br />

sábios de Naim.<br />

sábios.<br />

E o nosso rabi sabia que era assim mas nada disse e consentiu em ir para a casa de Simão e lá sentar-se entre os<br />

E Simão e os sábios conduziram-no à casa, acompanhados de grande multidão, porque todos já sabiam que<br />

Yeshua ben Joseph estava na cidade e ia sentar-se à mesa de Simão o Fariseu para ser perguntado e responder.<br />

E quando chegamos àquela casa vimos à porta muita gente querendo entrar para ouvir a palavra de Deus. Mas os<br />

criados de Simão barravam-lhe a entrada e expulsava-a dali com paus e chicote, só deixando entrar os chavers ou colegas de<br />

Simão. E quando o rabi viu isso, perguntou a Simão:<br />

− Por que não permitem teus servos e escravos que o povo entre em tua casa?<br />

E Simão respondeu:<br />

− Essa gente da terra é ignorante, conhece mal o ritual e pouco sabe da lei da pureza e impureza: por isso temos<br />

medo que contaminem a casa, os pratos ou o pão.<br />

E o rabi olhou com piedade para a ralé e disse:<br />

− O povo é como um abandonado rebanho de carneiros, que não tem pastor.<br />

Não obstante, entrou o rabi na casa de Simão e nos levou consigo. Mas Simão bar Jonas e os Irmãos Zebedeu<br />

ficaram fora, no meio do povo, à espera do rabi.<br />

Simão o Fariseu era um homem rico, com casa cheia de preciosos vasos de prata, ouro e marfim, e servida de<br />

muitos criados. E os criados trouxeram bacias de prata e jarros d’água, e toalhas, e lavaram as mãos do dono da casa e seus<br />

amigos. Mas não lavaram as mãos e os pés do nosso rabi e de seus discípulos. Porque já lhes haviam dito que o nosso rabi<br />

repudiara o mandamento da lavagem das mãos e assim de mãos não lavadas partia o pão com os publicanos.<br />

E o rabi tudo viu em silêncio. E eu pensei comigo: “Que sairá disto?” porque todos viam que aquele homem<br />

tinha convidado o rabi a sentar-se em sua casa com os sábios, afim de pô-lo em prova.<br />

E assim foi que, em seguida, servindo os criados o pão e apresentando-o ao nosso rabi num pano, para não<br />

contaminá-lo, ele o tomou e sem lavar as mãos o partiu e distribuiu entre nós, que o comemos.<br />

E os sábios grandemente se espantaram, porque realmente era aquela uma prova que queriam tirar: se o nosso<br />

rabi comia sem lavar as mãos, e para isso mandaram que os criados não lavassem as mãos do rabi. E então um dos sábios<br />

ergueu-se e perguntou ao nosso rabi:<br />

− Os sábios de Israel decretaram um grande decreto sobre a lavagem das mãos antes do comer, o qual temos<br />

cumprido desde as velhas gerações, e agora vemos que um rabi em Israel come o pão sem lavar-se, porisso lhe perguntamos:<br />

São as palavras que pronuncias e os atos que praticas coisa recebida dos teus rabis ou dos antigos hasideanos? Por que<br />

pronuncias palavras e fazes coisas que não estão autorizadas nas Escrituras e não dizes de onde recebeste tais coisas?<br />

E o nosso rabi espondeu:<br />

− O que o filho do homem faz e o filho do homem diz, ele o recebeu de seu pai do céu.<br />

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Os sábios grandemente se surpreenderam e se olharam uns para os outros, e para o dono da casa, Simão o<br />

Fariseu, que era o maior de todos em sabedoria e riquezas.<br />

E então Simão o Fariseu segurou a longa barba, franziu a testa e disse:<br />

− Das palavras do rabi três coisas podemos tirar, duas claras para mim e a terceira duvidosa. A primeira dessas<br />

três coisas é que o rabi se julga um enviado de Deus. Porque está escrito no texto: “E Deus me disse: filho do homem, eu te<br />

mando para a casa de Israel”. Consequentemente, segue-se que se o rabi fala de si próprio como filho do homem, então é que<br />

se crê enviado de Deus. E a segunda coisa é que cada filho de Israel tem o direito de chamar Deus seu pai, porque está escrito:<br />

“Filhos sois do Senhor vosso Deus”. Mas o que queremos saber é como sabe disso o rabi.<br />

E meu rabi respondeu:<br />

− Os pássaros nas árvores proclamam-no.<br />

− Nós não aceitamos provas de pássaros nas árvores, volveu Simão.<br />

− As pedras nas ruas proclamam-no.<br />

− Nós não aceitamos provas de pedras nas ruas.<br />

− Os mortos, os leprosos, os possessos testemunham-no.<br />

− Possessos, leprosos e mortos não são testemunhas aceitáveis.<br />

− Se é assim, então que o assunto da disputa apareça em pessoa para confirmar-se.<br />

E estando os sábios assim sentados juntos e eu em meu coração a aplicar o texto: “Que bom e agradável para<br />

irmãos morarem juntos!”, ouvimos barulho de agitação no vestíbulo, e antes que nos déssemos conta do havido, uma mulher<br />

entrou impetuosamente na sala do banquete. Criados a perseguiam, procurando agarra-la, mas o dono da casa fez-lhes sinal<br />

para que a deixassem. E a mulher estava vestida de delicados panos de Sidon, de muitas cores, à moda das mulheres de má<br />

fama; e seu cabelo não vinha oculto à maneira das judias, mas solto pelo pescoço e os seios; e do colo, preso por cadeia de<br />

ouro, pendia um frasco de alabastro com fino ungüento, cujo perfume invadira o recinto porque isso é moda das mulheres<br />

ricas, mas aquela estava de pés descalços; e estendeu as mãos e perguntou:<br />

− Quem entre vós é o maravilhoso homem que disse a todas as criaturas: “Vinde a mim, vós que estais exaustos,<br />

que eu vos darei repouso”?<br />

E não sobrevindo resposta de nenhum dos presentes, ela correu os olhos ansiosos pela mesa do banquete até que<br />

percebeu o rabi. E então aproximou-se dele, caiu de joelhos e chorou amargamente, e suas lágrimas, caindo sobre o pés do<br />

rabi, lavaram-n’os. E quando a mulher viu que suas lágrimas haviam lavado os pés do rabi, enxugou-os com seus cabelos e<br />

beijou-os. E então tomou do colo o frasco de alabastro de derramou preciosa mirra sobre os pés do rabi e ungiu-os.<br />

E os escribas e sábios em contemplação da cena sorriram e disseram uns para os outros: “Se fosse ele um profeta<br />

certamente que reconheceria a espécie de mulher que é esta...” porque era a mulher uma pecadora muito conhecida na cidade e<br />

arredores, e viera de Migdal. E os sábios julgavam que houvesse vindo para lançar a rede sobre os ricos da terra. E pensaram<br />

ainda que ela havia ungido os pés do rabi com o ungüento com que despertava o desejo em seus amantes, afim de excitar os<br />

presentes. E disseram: “Se ele fosse profeta saberia quem é esta mulher...” Mas os sábios não sabiam que aquela mulher se<br />

arrependera e que tinha vindo com o cego Bar Talmai, o qual a trouxera para Naim depois de terem procurado o rabi em K’far<br />

Nahum. E as preciosas vestes que a mulher trazia não eram para acentuar a sua beleza, mas para honrar o nosso rabi, e o<br />

mesmo com o precioso ungüento. Mas debaixo daquelas sedas o seu coração estava cheio de arrependimento.<br />

E tudo isso era do conhecimento do nosso rabi, o qual disse:<br />

− Simão, vou te fazer uma pergunta. Havia um credor que tinha dois devedores; um deles de quinhentos<br />

dinheiros e outro de cinqüenta. E como não pudessem pagar, o credor fez presentes aos dois de suas dívidas. Dize-me agora<br />

qual dos dois devedores devia agradece-lo e ama-lo mais?<br />

E Simão respondeu:<br />

− Certamente o que devia mais.<br />

E o meu rabi falou e respondeu:<br />

− Sabiamente decidiste, Simão. E agora atende: eu vim para tua casa e tu não me deste água para meus pés – já<br />

esta mulher mos lavou com suas lágrimas e mos enxugou com os seus cabelos. Tu não me deste nenhum beijo e ela desde que<br />

entrou não cessa de beijar-me os pés. Não ungiste com óleos minha cabeça e ela o fez aos meus pés com o mais precioso<br />

ungüento. Por isso te digo, Simão, que os pecados desta mulher lhe serão perdoados porque ela muito amou. E voltando-se<br />

para a mulher: “Teus pecados estão perdoados; tua fé te salvou. Vai em paz”.<br />

E quando os fariseus e os sábios aquilo ouviram, muita comoção houve entre eles. E puseram-se de pé a<br />

perguntarem-se uns aos outros: “Quem é este que perdoa pecados? Como é isto? Por que a mulher lhe beijou os pés e os ungiu<br />

com o seu óleo pecaminoso, serão perdoados os seus pecados?” E os outros perguntaram: “Que? É ele então profeta mandado<br />

por Deus para remir pecados?”<br />

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E meu rabi nada lhes respondeu, mas voltou-se para Simão, que permanecia reclinado em seu assento de marfim,<br />

tão comovido que tinha o rosto pálido e a negra barba a tremer e os olhos brilhantes.<br />

− Simão, hás visto como a parte em causa veio e entregou-me nas mãos o tesouro?<br />

Mas Simão respondeu:<br />

− Tu não podes citar como prova o pecaminoso. Pecadores não são admitidos a testemunhar.<br />

E o meu rabi respondeu:<br />

− Os de perfeita saúde não precisam de médico mas precisam-no os doentes, e eu te digo que os doentes são<br />

mais sãos que o sãos; porque o que é são ignora que é doente, mas o doente não ignora que o é.<br />

E voltando-se para os fariseus e sábios disse:<br />

− Os que têm o coração aflito estão mais perto de Deus. Isaias disse: “Eu que moro na alta e sagrada morada,<br />

moro com o que foi despejado e está humilde em baixo, afim de que eu possa confortar o espírito do humilde e levantar o<br />

coração dos despejados”. Que fizestes para provocar tais palavras? Ai de vós, fariseus, que amais os melhores lugares na<br />

sinagoga e as saudações nas ruas. Ai de vós, escribas e hipócritas, que sois como sepulcros caiados.<br />

E quando os sábios ouviram estas palavras perderam a cor do rosto e levantaram-se e disseram: “Quem é este<br />

homem que assume o direito de falar tais palavras?” E um deles se voltou para o nosso rabi e disse: “Rabi, tuas palavras nos<br />

ofendem”.<br />

E o rabi respondeu:<br />

− Ai de vós, sábios, que pondes sobre o povo a carga pesada e nela não tocais nem com a ponta do dedo.<br />

Mas os sábios responderam:<br />

− Isso não é verdade, porque nós observamos as leis e os mandamentos.<br />

− Vós os observais como um negócio que aprendestes a fazer e afim de que vos gabeis disso. Vindes cedo para<br />

as casas e rezais até que os outros vejam e apontem. Lançais cinzas sobre vossas cabeças e rompeis as roupas para mostrardes<br />

aos outros que estais em jejum. Mas não abris em vossas mesas um lugar para o povo e o expulsais de vossas casas para que<br />

não macule as vossas coisas. Limpos trazeis as taças e pratos por fora e sujos por dentro, e por isso vossas casas e objetos são<br />

impuros, e comer em vossas mesas é comer a carniça dos sacrifícios – tudo porque afastastes o povo. E está escrito daquele<br />

que se senta convosco: “Ele se sentará no assento dos insolentes”.<br />

E depois de dizer estas palavras o nosso rabi levantou-se e saiu da casa do fariseu e da mesa dos sábios, das quais<br />

eu, havia pensado aquilo que está escrito, “Que bom e agradável para irmãos morarem juntos!” mas que virara um foco de<br />

controvérsias.<br />

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“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

Meus joelhos tremeram, meus lombos cederam, meu coração ansiou e todos os meus membros foram sacudidos<br />

pelo tremor, como se me tivessem agarrado pelos cabelos e suspenso no ar. Não sei quem está diante de mim – não sei quem<br />

segue diante de mim e cujos passos eu acompanho.<br />

Meu rabi é mais que um rabi – e é isso que não entendo. Não sei de que fontes tira ele sua força, e que<br />

permissões recebeu. Quem é ele? Estarei eu perto do Sagrado de Israel? Ai de mim, homem de boca impura e mau coração!<br />

Quando meu rabi se afastou da casa de Simão o Fariseu e da presença dos mestres que lá se sentavam, eu e os<br />

demais discípulos o acompanhamos. E quando passamos pelos guardas e servos e chegamos à porta, vimos um grande<br />

ajuntamento de povo; e tinham nas mãos lâmpadas acesas, e Simão bar Jonas, o discípulo, estava com o povo, e igualmente<br />

Jacó e Jochanan, os Zebedeus, e os três conspiraram entre si para esconder aos outros discípulos uma certa coisa. E Simão bar<br />

Jonas aproximou-se do rabi e o povo ergueu as lâmpadas, de modo que a luz brilhasse no rosto do rabi e nas suas vestes<br />

brancas, e eles exclamaram: “Rabi, hosana, ajuda-nos!” e Simão bar Jonas disse:<br />

− Mestre, tem compaixão do povo desta cidade de Naim; eles vieram a ti com lâmpadas acesas e anseiam por ver<br />

teu rosto e rejubilar-se em ti, beber a água da tua fonte e ser curados por ti.<br />

E Jacó e seu irmão Jochanan, os dois Zebedeus juntaram seus pedidos ao de Simão, porque todos tinham o<br />

mesmo pensamento; e Jacó disse:<br />

− Rabi, os sábios não acreditam em ti e se procuram falar contigo sobre o Torah, é apenas para exibir erudição;<br />

mas o povo te ama e crê em ti. E não disseste: “Bem-aventurados sejam os humildes”? E a ti eles vêm, humildes de espirito, e<br />

te trazem o amor de seus corações. Vai com eles, porque teu lugar é entre eles.<br />

IV<br />

IV<br />

E seu irmão Jochanan também procurou persuadir o nosso mestre, dizendo:<br />

− Tu atrais os de coração aflito. Vem conosco, rabi, à casa de Jochanan o Publicano, o qual limpou a casa para<br />

receber-te e lá juntará o povo para que todos se rejubilem em ti.<br />

Mas eu me inclinei e disse ao ouvido do meu rabi:<br />

− Quando virem os sábios que abandonaste a casa deles e foste à dos pecadores, e trocaste a mesa deles pela dum<br />

publicano, sentir-se-ão grandemente ofendidos e darão queixa perante os anciãos de Israel.<br />

E meu rabi respondeu:<br />

− Judas, os homens não acendem uma vela e a escondem sob o alqueire, mas põem-na em lugar alto, onde todos<br />

a possam ver...<br />

E o publicano, que lá estava, curvou-se diante do rabi e disse:<br />

− Vem, abençoado de Deus, vem para minha casa, para que abençoada fique por amor de ti.<br />

E abriu caminho para o meu rabi com sua lâmpada. E Simão bar Jonas o seguiu, e Jacó e Jochanan, e mais a<br />

gente que levava lâmpadas e archotes, e pelas ruas da cidade de Naim foram ter à casa do publicano.<br />

Ora Jochanan o Publicano era homem rico, e em sua grande casa podia receber muita gente; e Kuza, o oficial de<br />

Herodes, também lá estava com sua mulher Jochana e com uma certa mulher de nome Suzana, ambas ricas. E a mulher de<br />

nome Míriam de Migdal, que havia lavado com lágrimas e ungido os pés do rabi na casa do Fariseu também acompanhava o<br />

rabi.<br />

E quando entrou o rabi na casa do publicano o povo o rodeou e impediu-lhe os movimentos. Os doentes<br />

lançavam-se diante dele, e cegos apalpavam, tentando pegar e beijar suas vestes; e os possuídos por espíritos ansiavam para<br />

que ele os limpasse; e diante deles os pecadores curvavam-se até o chão, e outros ocultavam as caras para que ele não lhes<br />

lesse nelas os pecados que neles corrompiam a imagem de Deus. E muitos para ele espichavam as mãos e imploravam:<br />

“Ajuda-nos, rabi!”<br />

suas mãos.<br />

E vendo o nosso rabi tanta fé em seu redor, encheu-se de poder e seu rosto ficou como a chama, e também as<br />

E foi como se víssemos as faiscas que saiam de seu rosto e sua barba, e seus olhos fulguravam como o âmbar,<br />

como se neles os céus se tivessem aberto e nós víssemos a luz celestial. E suas vestes, que eram brancas, emitiam raios<br />

cegantes como se estivessem em fogo.<br />

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E quando viu o povo a luz que emanava do rosto do rabi, de sua pele e seus cabelos, e viu a luz que saia de suas<br />

vestes, todos foram colhidos de tremuras e recuaram de medo, e fizeram círculo em redor dele, e ele ficou no meio do círculo<br />

como a chama que arde.<br />

Mas houve uma mulher que ousou varar o povo e penetrar no círculo. Suas pernas fraquejavam; tinha o rosto<br />

sem sangue e os olhos como se fossem cegos; e ela curvou-se para o chão e beijou a fímbria das vestes do rabi.<br />

E o rabi tremeu como se houvesse tocado em fogo, e olhou em redor e disse: “Quem tocou em minha veste,<br />

porque senti sair dela o poder?” E quando viu a mulher curvada ali diante dele, a tremer como a última folha de árvore em dia<br />

de chuva, ergueu-a e disse:<br />

− Vai, tua fé te salvou.<br />

E depois dessa mulher vieram outros, que ousaram penetrar no círculo de fogo do rabi. E veio um cego, e com as<br />

mãos espichadas entrou no círculo de fogo sem saber o que fazia. E quando sentiu a mão do rabi, saltou o cego como se<br />

houvesse tocado fogo ardente, e gritou:<br />

− Um fogo me queimou – é que toquei a mão do rabi!...<br />

E a mulher que viera de Migdal estirou-se ao comprido aos pés dele. Como as cordas da harpa se estiram, assim<br />

se estirou ela no chão. E por uns momentos permaneceu imóvel. Mas logo os espíritos que lhes estavam dentro começaram a<br />

agitar-se e a sacudi-la, como a tempestade sacode o mar, e a lança-la dum lugar para outro, como se quisessem fugir de seu<br />

corpo e não pudessem. E então os espíritos agarraram-na e levantaram-na, e ela começou a girar como rodamoinho de vento. E<br />

aos seus lábios veio espuma, e seus olhos se dilataram e ficaram como flamas, e seus cabelos eram línguas ferozes que<br />

dardejavam em redor dela. E vozes e lamentações lhe saiam de dentro. E no começo era como o choro duma criança que canta<br />

sem palavras, mas logo mudou para um lamento, e ela estendia as mãos como se visse alguém diante de si, e começou a cantar<br />

o Cântico dos Cânticos, que é de Salomão: “Quem é este que sobe do deserto?” E agia como se estivesse indo ao encontro de<br />

alguém, com passos de dança e ar cândido, como se fosse ao que lhe era destinado. E então ela sentiu medo e tremeu, e vibrou<br />

no corpo inteiro e dobrou-se em três. E começou a chorar, dizendo que seus pecados haviam gerado maus espíritos em seu<br />

ventre e agora eles a atavam com cordas; e diziam que ela lhes pertencia e não a deixavam aproximar-se dele. E como quem<br />

cai no mais profundo abismo e está rodeado de serpentes e escorpiões que lhe atormentam a alma, assim ela implorou ao rabi,<br />

de mãos para ele estendidas:<br />

disse:<br />

− Salva-me, tu, o escolhido, dos tormentos que moram em meu corpo, tu que és o meu único socorro!<br />

E caiu e escondeu nas mãos o rosto e chorou longa e amargamente. E o rabi apôs as mãos sobre sua cabeça e<br />

− Pura, pura, pura estás.<br />

E mandou que os espíritos e demônios a deixassem, porque seus pecados estavam perdoados. E tomando-a pela<br />

mão ergueu-a e nos disse: “Ela é nossa irmã” e sentou-a aos seus pés. Mas a mulher estirou-se no chão e cobriu os pés do<br />

nosso rabi com o rosto e os cabelos, e ali ficou em silêncio, como uma criança recém-nascida.<br />

E quando viu o povo os milagres que o nosso rabi operava com os doentes e os pecadores, todos espicharam para<br />

ele os braços e imploravam:<br />

− Rabi, ensina-nos o que temos de fazer para sermos salvos e alcançarmos o reino do céu.<br />

E nosso rabi impôs as mãos e disse:<br />

− Alcançareis o reino dos céus se vos libertardes do jugo que tendes sobre vós. Porque o tempo está próximo, a<br />

salvação bate às portas e os que estão preparados por elas entrarão – os outros ficarão do lado de fora.<br />

− Mas que devemos fazer, rabi?<br />

− Abandonar as riquezas terrenas que haveis juntado, porque somente os que confiam no pai do céu e não no<br />

supérfluo que hão juntado e oculto em lugares secretos podem herdar o reino dos céus. Se um de vós tem dois pães que dê um<br />

a seu irmão, e se tem dois vestidos que dê um a seu irmão. Porque estreita é a porta do reino do céu e somente os nus e<br />

famintos por ela podem entrar. Não podeis servir a Deus e a Mamon, e aquele que me segue, esse deve antes de tudo<br />

abandonar todas as suas riquezas terrenas, e firmar sua fé no pai do céu e não no dinheiro.<br />

E houve um longo silêncio no povo em que ninguém ousava pronunciar uma palavra. Muitos estavam de cabeças<br />

pendidas, porque havia ricos ali e esses não desejavam largar as riquezas ganhas. Mas no círculo penetrou uma mulher e<br />

aproximou-se do rabi; e arrancou do pescoço um colar de ouro e sacou os anéis e os brincos e tudo largou aos pés do rabi. E<br />

tirou igualmente o seu manto de rica fazenda, e o frasco de alabastro com o ungüento precioso e tudo depôs aos pés do rabi. E<br />

só ficou com uma túnica de linho que lhe cobrisse a nudez, e disse:<br />

− Mestre, toma-me como me vim a ti!<br />

Era Jochana, a mulher de Kuza, o oficial de Herodes.<br />

E nosso rabi disse:<br />

− Jochana, tu és nossa irmã no reino do céu. Vamos, levanta-te e toma lugar atrás de mim.<br />

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E depois dessa, fez ele o mesmo a outra mulher que se chamava Suzana e era filha daquela cidade.<br />

E a mulher que ele havia purificado de seus pecados, e cujo nome era Míriam, disse-lhe:<br />

− Rabi, nada mais tenho para trazer-te senão minha alma que purificaste. Tudo quanto eu possuía doei como<br />

expiação dos meus pecados, e trago minha alma para depositar a teus pés.<br />

salvos?<br />

E meu rabi respondeu:<br />

− Tu também és nossa irmã no reino do céu. Vamos, coloca-te atrás de mim.<br />

E alguns dos publicanos se aproximaram e disseram:<br />

− Nada temos de nosso senão o nosso emprego, e nosso emprego é pecaminoso. Que podemos fazer para ser<br />

− Não extorquireis dos devedores mais do que segundo a lei eles devem, e não oprimireis o pobre; quanto ao<br />

resto, sereis recompensados de acordo com os vossos feitos, porque Deus lê no coração dos homens e julga-os de acordo com<br />

os seus pensamentos.<br />

E os publicanos vieram um por um e confessaram os seus pecados e o nosso rabi lhes disse: “Servi vosso pai do<br />

céu, como servis vosso rei na terra”.<br />

E o rabi falou-me que tomasse as jóias e mais coisas ricas que as mulheres haviam deposto aos seus pés e tudo<br />

vendesse e distribuísse o dinheiro entre os pobres. Mas não houve mais donativos além daqueles das mulheres, porque os<br />

homens de posse disseram: “Ele nos sobrecarrega com o jugo do reino dos céus ainda mais que os fariseus, porque os fariseus<br />

nos pedem só a décima parte e este exige tudo. E se damos tudo, que nos resta?” E pensando assim deixaram a casa do<br />

publicano e se foram – e o rabi disse:<br />

− Vinde e vede! Mais fácil é um camelo passar pelo fundo duma agulha do que um rico entrar no reino do céu.<br />

E o rabi sentou-se à mesa com os pobres ali presentes, e os pecaminosos publicanos e as mulheres que havia<br />

curado, e com eles comeu o pão. E quando viu o nosso rabi que aquela gente não lavava as mãos porque não eram fortes na lei,<br />

para não vexá-los também não lavou as suas; apenas disse a oração que sempre dizia antes de comer. Abençoou o pão que lhe<br />

fora trazido já em pedaços e o distribuiu. Depois pediu vinho e disse aos presentes que comessem e bebessem e se<br />

rejubilassem, porque seus pecados tinham sido perdoados e eles faziam jus ao reino do céu. E fortaleceu-os com palavras<br />

consoladoras, dizendo que não se entristecessem e ficassem apreensivos por não conhecerem a lei. Porque Deus não quer a lei<br />

pela lei, e o coração puro e a humildade de espírito lhe são os sacrifícios mais agradáveis. E Moisés, nosso mestre, disse em<br />

seu Torah: “Esta lei que te dou não está no céu nem sob o mar – mas em teu coração”. Não as leis gravadas em pedra trouxe<br />

Moisés do Monte Sinai para os hebreus, mas os dez mandamentos gravados no coração do homem. E como o profeta disse,<br />

“Eu construirei o Templo em teu coração”. E quando eles viram que o rabi estava disposto com eles, rejubilaram-se e aquela<br />

alegria não tinha fim, e a casa de Jochanan o Publicano ardia entre luzes e ressoava de cantos.<br />

Então Simão bar Jonas, o discípulo, viu que o nosso rabi estava em espíritos e que o momento chegara, e<br />

tomando uma lâmpada foi para rua, onde reinavam as trevas e os filhos da noite, e disse-lhes:<br />

− Na casa de Jochanan o Publicano está o homem a quem foi dado o poder de remir os vosso pecados e de<br />

receber-vos no reino do céu.<br />

E na casa de Jochanan o Publicano entrou a gente da noite que não faz parte da congregação de Israel – gente<br />

cujas caras dizem da doença e corrupção das almas – gente carregada de pecados. Muitos estavam vestidos de farrapos, com a<br />

pele a aparecer pelos rasgões, doentes de todas as doenças e lepras, como suas almas. Outros estavam pintados e enfeitados,<br />

mas com as almas imundas, como as prostitutas que erram pelas ruas à noite e lançam a rede sobre os passantes. Outros eram<br />

foragidos da justiça do governo. E a todos, Simão o Discípulo trouxe para a casa de Jochanan o Publicano. E quando o rabi os<br />

percebeu ali e o mau cheiro daqueles corpos nos chegou às narinas, ele estendeu as mãos e disse:<br />

− Vinde a mim todos os carregados de culpas – e levantou-se e acomodou-os à mesa, e sentou-se entre eles e<br />

disse: “Todos vós, os abandonados, a que vos hei de comparar? Eu vos compararei ao horto de Isaias o Profeta, não ao horto<br />

bem cuidado. Ninguém arou e semeou o vosso horto, ninguém o irrigou nem conservou os vedos, toda gente podia entrar e<br />

pisar sobre as jovens plantinhas, de modo que a terra ali não dava senão uvas azedas – mas, olhai, ela deu uvas doces e boas.”<br />

E o rabi tomou o pão que tinha perto de si e repartiu-o entre eles, dizendo:<br />

− Vamos, comei comigo, meus irmãos e irmãs no reino dos céus. Porque nosso pai do céu viu o tormento de<br />

vossas almas e vos perdoou os pecados.<br />

E parte daquela gente começou a chorar, dizendo: “Quem és tu, homem abençoado? Quem nos mandou a nós a<br />

consolação do céu?”<br />

E um deles se levantou e disse: “Nós somos de fato gente ignorante e pouco sabedora da lei, mas nossos<br />

corações estão em paz com o nosso Deus e seguiremos os seus caminhos. E conquanto sejamos pobres, todavia ganhamos<br />

nosso escasso pão com o suor do nosso rosto e não nos fica bem sentar-nos com ladrões e prostitutas” – e deixaram a mesa do<br />

rabi.<br />

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E o rabi chamou-os e disse:<br />

− Para os fariseus e sábios sois pecadores e decaídos, assim como para vós esta pobre gente é pecadora e<br />

decaída; mas eu vos digo que quanto mais baixo está o homem, mais forte é em Deus – e mais fundo cai o que está mais alto.<br />

Não foi o Rei Daví – paz à sua alma! – que disse: “La das profundas eu clamo por ti, ó Deus”? E quem está mais fundo que<br />

estes? E eu vos digo que eles estão mais perto de Deus do que vós e os outros; e aquele que lhe faz o bem, faz o bem para meu<br />

pai do céu; e aquele que se afasta deles, afasta-se do meu pai do céu.<br />

os modos”?<br />

E eu me inclinei para meu rabi e falei em seu ouvido e perguntei:<br />

− Rabi, onde fica a linha onde a misericórdia acaba e o julgamento começa?<br />

E o rabi respondeu-me e disse:<br />

− Não há linha. Vai com teu irmão até a beira do poço e além.<br />

E eu animei-me a dizer ao meu rabi:<br />

− Não está escrito: “O Senhor é um juiz justo”? E não está escrito mais adiante: “O Senhor fará justiça de todos<br />

Mas meu rabi olhou-me e respondeu dizendo:<br />

− Judas, Judas, vim eu para botar remendos em roupa velha? Eu sou a porta última, e se esta porta fechar-se<br />

também a eles, onde é que haverão de bater?<br />

E eu compreendi e calei-me.<br />

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Então Simão saiu à procura e encontrou um pouso de descanso onde o nosso rabi pudesse passar a noite, porque<br />

o nosso rabi muitas vezes passava a noite a céu aberto. Quem dorme assim tem os céus como telhado e está em casa com seu<br />

pai. Aquele que dorme sob um teto, confina-se dentro de quarto alnas e só tem a si próprio como guarda. E o nosso rabi se<br />

alojou aquela noite na guarida do guarda dum vinhedo de Jochana, a mulher do rico oficial de Herodes.<br />

E quando foi de manhã, no segundo dia, depois de pronunciar o “Ouve-me, ó Israel”, o nosso rabi mandou o<br />

filho de Jonas abrir o saco de pão, para que comêssemos antes dos trabalhos do dia. Porque naquele dia o rabi tinha muito que<br />

fazer, e disse: “Há muito trabalho e pouco tempo, a seara é grande e os ceifeiros são poucos”. E quando o filho de Jonas<br />

colocou diante de nós o pão, o nosso rabi viu um guarda do vinhedo que estava a certa distância e nos observava, pois como<br />

fosse homem-da-terra não ousava aproximar-se dos rabis, para não conspurca-los. Mas o nosso rabi disse ao guarda do<br />

vinhedo:<br />

− Por que ficas aí de parte? Aproxima-te e come do nosso pão.<br />

E o guarda respondeu:<br />

V<br />

− Como posso aproximar-me e comer do vosso pão, se sois homens cultos e eu não passo dum homem-da-terra?<br />

E o nosso rabi disse:<br />

− Está escrito: “Todos vós sois filhos de nosso pai”.<br />

E o guarda, respondeu:<br />

− Sim, mas eu não sou culto, a lei não é forte em minha mão, não sei como observar os mandamentos da pureza<br />

e da impureza, e minhas mãos conspurcam o pão.<br />

Mas o rabi olhou para o céu e disse:<br />

− Olha e vê, ó meu pai do céu, como eles dividiram os teus filhos em puros e impuros! E para o guarda: “Vem,<br />

Matatias, senta-te conosco e come do nosso pão; não é a sabedoria que aparece a que ergue um homem e o faz limpo, mas a<br />

sabedoria que está no coração. Matatias, tu preenches toda a lei...”<br />

O guarda aproximou-se muito a medo; e quando tomou o pão que o rabi lhe deu seus olhos se encheram de<br />

lágrimas, e as lágrimas caíram sobre o pão e ele disse:<br />

não fazer.<br />

− Ai de mim, rabi! Sei que vou para as profundas, porque não tenho observado a lei, ignoro o que fazer e o que<br />

Mas o rabi enxugou-lhe as lágrimas e disse:<br />

− Eu te digo, Matatias, que não tu, mas àqueles que ao nosso pai do céu falam mal de ti, esses sofrerão os fogos<br />

do inferno. Diante de Deus abriste o teu coração, e um coração humilde e a suavidade do espírito são as oferendas que ele<br />

mais agradece – e voltando-se para a cidade o rabi ergueu a mão e disse: “Ai de vós, escribas e fariseus, que viajais por terras e<br />

mares em busca de uma alma e quando a ganhais fazeis dela uma filha do inferno.”<br />

Deus”.<br />

E o rabi disse a Matatias o guarda: “Leva-me ao teu vinhedo para que eu me regale com a vista da criação de<br />

E estando no vinhedo de Jochana, a mulher do oficial de Herodes, o rabi pôs os olhos nos verdes que brotavam<br />

da terra e nas flores que vinham dos botões. Porque era a estação de maior beleza ali, a primavera. E havia Deus mandado o<br />

seu sol, o seu amor, a sua benignidade. O orvalho da noite ainda brilhava nas folhas; o sol emitia calor e apagava as friagens<br />

noturnas. Os pássaros nos ramos iam despertando e se punham ocupados no carregamento do cibo para os filhotes. Tudo ali<br />

cheio da vida e criação. Era como se aves e árvores sentissem a alegria de obedecer ao mandamento de viverem em plenitude<br />

de vida – e o contentamento da paz enchia a terra.<br />

E quando o nosso rabi sentiu aquela paz alegre que Deus fizera descer do céu, seu coração se encheu de amor<br />

pela terra, pelos homens e todas as criaturas; e ele amou e abençoou tudo que vive. E tomando das mãos de Matatias a pá,<br />

ajudou-o em seu trabalho. E tinha o coração cheio de alegria que seu pai do céu dá a todas as criaturas, e elevando a voz<br />

ensinou-nos e disse:<br />

− O Senhor é o meu pastor nada me faltará. E disse depois: “Por isso não vos preocupeis com vossas vidas, com<br />

o que haveis de comer ou vestir. Porque a vida é mais preciosa que o alimento e o corpo é mais precioso que a roupa. Olhai as<br />

andorinhas e com elas aprendei. Elas não semeiam, nem guardam em celeiros e Deus as alimenta. E quanto mais preciosos que<br />

os pássaros sois vós! Qual de vós, com todos os cuidados, aumenta de um só dia vossa vida? E se não podeis criar uma coisa<br />

tão pequena, por que preocupar-vos com o resto? Olhai as rosas, que não fiam nem tecem – e nem Salomão em toda a sua<br />

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glória jamais se trajou como elas se trajam. Se Deus assim veste as ervinhas do campo, que hoje existem e amanhã estão<br />

queimadas, como não vos vestirá a vós, homens de pouca fé? Não vos mergulheis em cuidados quanto ao que beber e comer, e<br />

não vos orgulheis quando estiverdes bem vestido e bem comido, porque é assim que fazem os pagãos. Vosso pai do céu<br />

conhece as vossas necessidades”.<br />

E então na estrada surgiram mensageiros da corte de justiça. E entre eles havia um, vestido de pele de camelo,<br />

magro e pálido de tantos jejuns e mortificações; cabelos recrescidos, em desalinho. E esse homem era um dos discípulos de<br />

Jochanan o Batista e tinha o nome de Zadok. Muito devoto e o povo acreditava nele. E os que com ele estavam eram<br />

mensageiros da justiça de Naim. E aproximaram-se de nós, e voltando-se para os discípulos, não para o rabi, disseram:<br />

− Discípulos do rabi Yeshua, intimados estais a aparecerdes perante o tribunal de justiça afim de testemunhardes<br />

os feitos e palavras do vosso rabi, em virtude dos maus rumores que hão chegado aos ouvidos dos devotos e cultos com relação<br />

aos ensinamentos do vosso rabi; e sois tão responsáveis quanto ele.<br />

E então o rabi disse aos discípulos:<br />

− Ide e comparecei perante o tribunal de Naim e testemunhai tudo quanto haveis visto e ouvido. Colocada fica<br />

minha casa em vossas mãos.<br />

escribas?<br />

E então Simão bar Jonas, que se amedrontara com as palavras dos mensageiros, disse:<br />

− Rabi, não sou culto e as escrituras não moram em minha boca. De que modo posso disputar com sábios e<br />

− Tu também, Simão bar Jonas, terás que ir e testemunhar. E dirás o que o meu pai do céu puser em tua boca,<br />

porque minha causa está em tuas mãos.<br />

E Simão bar Jonas seguiu conosco, e só os irmãos Zebedeu ficaram com o rabi, porque eram eles coléricos e as<br />

palavras dos sábios devem ser ouvidas calmamente.<br />

E o tribunal da cidade de Naim já estava reunido, com os principais homens da cidade, os intérpretes da lei e<br />

muitos discípulos de Jochanan o Batista.<br />

E quando nós, os discípulos do rabi Yeshua, nos apresentamos ao tribunal, Simão o Fariseu nos disse:<br />

− Discípulos do rabi, sois chamados a este tribunal de justiça afim de testemunhardes em relação ao vosso rabi,<br />

ou dizerdes que doutrina ele prega e que feitos há realizado. Porque seus feitos não nos parecem compreensíveis. Ele perdoa os<br />

pecados da gente má, mas ninguém aqui sabe que a carne e o sangue possam perdoar os pecados da carne e do sangue, pois só<br />

o nosso pai do céu perdoa. Escrito está: “E orarás ao Senhor e ele te perdoará”. Saberão por acaso os escribas aqui presentes se<br />

nas passadas gerações houve homem que em seu próprio nome perdoasse os pecados alheios? E com que autoridade o fazia?<br />

E Jochanan, o mais velho dos escribas, sábio nas escrituras e mestre na tradição, baixou as sobrancelhas que<br />

guardavam seus olhos e respondeu:<br />

− Não sabemos, nenhum de nós, nem jamais ouvimos dizer, que nas gerações passadas haja um homem<br />

perdoado os pecados de outro homem, coisa que só o nosso pai do céu pode fazer. Os profetas nada mais fizeram senão<br />

conclamar o povo a arrepender-se diante do Senhor, como está escrito: “Volta, ó Israel, ao Senhor teu Deus!”. E o Torah<br />

enumera todos os pecados que um homem comete, de propósito ou não, e diz que traga este ou aquele sacrifício e se confesse<br />

diante do Senhor. Mas nenhum homem tem o direito de perdoar os pecados de outro, salvo se é pecado cometido contra esse<br />

homem.<br />

E o chefe do tribunal voltou-se para os discípulos de Jochanan o Batista e perguntou:<br />

− Por acaso perdoou o vosso rabi os vossos pecados, quando vos conduziu ao batismo nos desertos da Judeia?<br />

− Jochanan o Batista mandava que nos arrependêssemos diante de nosso pai do céu, e purificássemos nossos<br />

corpos com jejuns e mortificações, e orássemos com nossos corpos, pelo batismo, porque o reino do céu estava perto.<br />

E Simão o Fariseu levantou a voz e disse:<br />

− E quando inquirimos do vosso rabi com que autoridade perdoava ele pecados, coisa que nenhum homem de<br />

sangue e carne pode fazer, que não foi feita nem por Moisés e os profetas, nem pelos anciãos hasideanos, nem ainda por<br />

Jochanan o Batista, ele respondeu com aspereza aos escribas e sábios lá reunidos; e abandonando a nossa companhia, foi para a<br />

casa de Jochanan o Publicano, na qual nenhum judeu entra, porque a casa do homem mau é impura. E assim o vosso rabi<br />

trocou a mesa dos sábios e dos escribas pela mesa do publicano, onde se reuniam mulheres pecadoras e homens-da-terra, cujas<br />

mãos são impuras porque eles não agem de acordo com a lei; e perante essa gente exibiu o rabi milagres, exorcismou possessos<br />

e perdoou pecados, e falou com autoridade como se a lei houvesse sido entregue em suas mãos e ele pudesse afeiçoa-la como<br />

quisesse. As palavras do vosso rabi não nos são compreensíveis e nós vos intimamos a esta corte de justiça porque vós,<br />

discípulos, sois por ele responsáveis, como ele o é por vós. E queremos agora que nos declareis explicitamente: Quem é o<br />

vosso rabi? Sobre quê autoridade baseia ele suas palavras? Com que poder realiza milagres? Temos de sabe-lo para também<br />

sabermos como trata-lo.<br />

Levantou-se, então, Zadok, o discípulo de Jochanan o Batista, cuja voz era fraca de tanto que mortificara o corpo<br />

com jejuns e disse:<br />

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− Jochanan o Batista levou-nos para o deserto e mandou que mortificássemos o nosso corpo com a fome e a sede<br />

para que nossas almas se fortalecessem, já que o reino de Deus estava próximo. E nossos corpos foram santificados pelo<br />

batismo e assim se tornaram moradas dignas de nossas almas. Mas quem é esse que come e bebe com pecadores? Ouvimos as<br />

suas palavras e vimos seus feitos, mas não os compreendemos. Porque ele não segue os passos de Jochanan.<br />

E nós, os discípulos do nosso rabi, olhamo-nos uns para os outros e esperamos que um de nós levantasse a voz e<br />

testemunhasse. Mas todos permaneceram calados. E quando percebi que ninguém falava, eu, Judas Ish-Kiriot, o menor de<br />

todos levantei-me para testemunhar pelo meu rabi e falei deste modo:<br />

− Digna corte, ouvi as palavras do menor dos seus discípulos. Sou um homem de Judá que durante toda a vida<br />

freqüentou os pátios do Templo em procura das palavras de Deus. O rabi Nicodemo foi o meu rabi. José de Arimatéia e Simão<br />

de Cirene são meus camaradas. E sentávamos juntos e conversávamos sobre quais os caminhos de Deus e que trilhas tínhamos<br />

de trilhar. O que ouvíamos aos rabis só se relacionava à matéria da lei; o Torah indica mandamentos de ação e omissão e<br />

através desse muro não podíamos ver a totalidade. E então se veio a nós um homem da Galileia e falou dum rabi que por lá<br />

aparecera e pregava a doutrina do venerável Hillel. E nós desprezamos o anúncio porque era coisa da Galileia – e quando<br />

jamais veio coisa boa da Galileia? Mas aos nossos ouvidos continuaram a chegar rumores das maravilhas por ele operadas, e<br />

da santa lei por ele propagada entre o povo. E então Nicodemo o rabi disse: “É assunto digno de estudo”, e mandou-me à<br />

Galileia para que eu visse com meus olhos e ouvisse com meus ouvidos. E eu inquiri e agora digo como Saul: “Vim em<br />

procura de asnos e encontro um reino”. Na sinagoga de K’far Nahum, vi o pálido moço judeu, vestido com seu manto de reza e<br />

a falar ao povo da hora da leitura do Torah: “Nada resiste à fé”. – “Daí que vos será dado”. – “Por que vês o argueiro no olho<br />

de teu irmão e não vês a trave no teu?” – “Não julgueis para não serdes julgado”, e outros ditos assim. E no começo pensei que<br />

o venerável Hillel houvesse lá da sepultura mandado um discípulo favorito renovar na terra a sua doutrina. Mas investigando<br />

descobri coisa diferente. Meu coração se fundiu no medo, e meus joelhos tremeram, e o terror de Deus entrou em mim por<br />

causa do que o presenciei fazer e das palavras que lhe ouvi. Digna corte: não está a casa de Jacó abandonada e envergonhada<br />

aos olhos dos pagãos? Edom fez ninho no sagrado monte de Sião. Insolentemente seus pés calcam a casa de Deus, seu jugo<br />

pesa sobre nossos pescoços e sua chibata nos corta os lombos. A palavra nos foi suprimida, não surgiu entre nós um profeta e<br />

nenhum sinal apareceu. Seremos nós menos merecedores que nossos pais? Por que há Deus afastado de nós o seu rosto?<br />

Suspendemos a respiração e apuramos o ouvido na ânsia de saber se ainda soam passos, e olhamos atentos na ânsia de ver luz<br />

no monte e distinguir vozes no deserto, de acordo com a promessa de que o ungido de Deus virá e nos justificará da espera, e<br />

soprará sobre os nossos sofrimentos e fará verdadeira a palavra dos nossos profetas. E eu fui e vi. Que vi eu? Vi a realização<br />

dos anúncios dos profetas: “O surdo ouvirá e o cego receberá a luz”. Com o hálito de sua boca ele dominava maus espíritos;<br />

suas palavras são como lâminas afiadas; ele junta o povo como o ceifeiro junta as espigas e o enceleira para Deus. Quem<br />

jamais aproximou de Deus tantas almas? Quem tantas esperanças despertou entre os pobres e abandonados? Quem ao céu<br />

devolveu tantas almas errantes e repelidas? Quem sabe os seus caminhos? Quem alcança os seus propósitos? Não toqueis na<br />

planta que Deus plantou! Deixai-nos estar com os corações trêmulos e a prece nos lábios; deixai-nos esperar e observar a luz<br />

que apareceu para a salvação de Israel.<br />

E depois que me calei ergueu-se Simão o Zelote e começou a falar.<br />

− Digna corte, eu fui com os Zelotes e com eles me internei nas montanhas, porque não suportava ver o pé de<br />

Edom sobre o pescoço de Jacó. Não iríamos dobrar os joelhos a nenhum homem de sangue e carne, e a nenhum senhor<br />

reconhecer além do Senhor do Mundo. E nos lançamos contra exércitos, crentes de que Deus nos ajudaria a quebrar o jugo de<br />

Edom – mas fomos enganados em nossas esperanças. Ocultei-me em cavernas, como um animal selvagem. E teria caído no<br />

mais profundo abismo, se Deus me não houvesse ajudado e guiado meus passos rumo ao rabi. Encontrei-o no porto do K’far<br />

Nahum, onde os pescadores varam em terra seus botes. Dizia ele aos pobres: “Vinde a mim os oprimidos” – e eu vi como o<br />

povo se ia a ele. Vinham de começo para rir e mofar, mas logo se tornavam pensativos e depois sérios; e depois a alegria lhes<br />

brilhava nas caras e seus espíritos também se aprumavam. E eu enchia-me de maravilhamento e aproximei-me e indaguei:<br />

“Rabi, quando vai Deus redimir-nos das garras de Edom?” e ele respondeu: “Só são livres os que com amor tomam sobre si o<br />

jugo do reino do céu; unicamente são remediados os que se desembaraçam do pecado; a liberdade fica-lhe nas mãos e ninguém<br />

lha pode tomar”. E eu me enchi de admiração ao ouvir estas palavras, mas não as entendi. Seguindo, porém, seus passos e dia a<br />

dia vendo seus feitos e ouvindo suas palavras, a luz caiu sobre meus olhos e vi que ao tempo em que eu procurava a minha<br />

liberdade eu havia vendido a Satã minha alma, como se vende um escravo cananita. E me fui ao meu rabi e implorei: “Salvame,<br />

rabi!” E meu rabi tomou-me e atou-me como quem ata um bezerro e trouxe-me para o jugo do nosso pai do céu – e<br />

encontrei a verdadeira e eterna felicidade que nenhum homem de carne e sangue pode tirar de mim, porque eu sou o servo de<br />

Deus.”<br />

E a seguir levantou-se Simão bar Jonas e testemunhou:<br />

− Sou um homem simples, pescador em K’far Nahum, nada sabido na lei; mas meu coração anseia pelo meu pai<br />

o Criador e sem Ele sou como a folha caída da árvore ou como a ovelha que se tresmalhou. Meu coração anhelava por amarrarse<br />

a Deus, mas são muitos tortuosos e ramificados os caminhos pelos quais os sábios levam ao criador do mundo. Quem<br />

poderá senhorea-los? Vós dividistes a lei de Deus em mil partes; quem as reunirá e as terá todas na mão, a não serem os sábios<br />

que nisso se ocupam dia e noite? Para nós, os iletrados e oprimidos, a palavra de Deus está fechada com muitos selos. Não<br />

sabemos o que é e o que não é permitido. Erramos perdidos no escuro, e como cegos damos com o corpo de encontro às<br />

paredes sem número erguidas em redor do nosso pai do céu. E de vós só ouvimos as palavras de advertência: “Não nos toqueis<br />

com as vossas mãos impuras”. Mas nossos corações também procuram as sendas que levam a Deus, nossas almas tentam atarse<br />

a ele, encontrar depois da morte o caminho para o trono de sua glória; e gastamos os nossos olhos na procura daquele que<br />

virá libertar nossas almas, elevar-nos à eterna glória e fazer-nos comparticipar da vida eterna, em vez de empurrar-nos para o<br />

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abismo da noite sem fim para o qual vós nos remeteis. Sedentos e famintos, sentamo-nos à soleira das vossas sinagogas e casas<br />

de estudo e apanhamos as migalhas de saber que caem de vossas mesas, às quais não permitis que nos sentemos. E por fim ele<br />

veio e nos estendeu as mãos, a nós, cegos. No porto de pesca de K’far Nahum eu o vi do meu bote, rodeado da gente simples e<br />

ouvi sua boca dizer: “Vinde a mim todos vós oprimidos”. E o povo se juntou em redor dele como os pintainhos se reúnem sob<br />

as asas de sua mãe de penas quando a tempestade se denuncia. E ele tomou-os sob a sua asa, e veio para o meu bote e disse:<br />

“Simão bar Jonas, vem comigo que te farei pescador de almas” e desde então o segui. E vi seus feitos dias e dias, e ouvi todas<br />

as suas palavras. E não sei quem ele é. Mas sei que é a luz nas nossas trevas, que é a palavra para nós que somos surdos, que é<br />

o guia para nós os abandonados. Ele mostrou-nos o meio mais rápido e simples de chegar ao nosso pai do céu. Ensinou-nos a<br />

orar e a ter fé em Deus. E desde o tempo em que a nós se revelou, tornou-se ele como um teto sobre nossas cabeças, fez-nos<br />

parte do povo de Israel, filhos de Abraão, Isaac e Jacó. Deus é nosso pai, dele provimos e a ele vamos. Ele guarda-nos neste<br />

mundo e no mundo futuro nenhum mal nos atingirá.<br />

Quando Simão bar Jonas terminou a sua fala, fez-se uma grande calmaria entre os rabis e os sábios, até que o<br />

chefe do tribunal ergueu a voz e disse:<br />

− Outros discípulos de Yeshua há que queiram testemunhar perante a corte?<br />

E então levantou-se Jochanan o Publicano afim de testemunhar, mas eles o impediram porque um publicano não<br />

dá testemunho aceitável. E a corte ponderou sobre o caso em julgamento e um disse para o outro:<br />

− Não vejo pecado no rabi.<br />

E outro disse:<br />

− Segundo o testemunho dos seus discípulos, ele aproxima de Deus o coração dos homens e pois abençoadas<br />

sejam as suas mãos.<br />

E Zadok, o discípulo de Jochanan o Batista, disse:<br />

− Quem sabe? Pode ser que Deus tenha tido compaixão de seu povo; deixai-nos ver melhor nesta matéria. Se ele<br />

é de Deus, então nada do que é de carne e sangue poderá destruí-lo; mas se ele não é de Deus, então cairá. Porque está escrito:<br />

“Se Deus não constrói a casa, os construtores trabalham em vão”.<br />

E assim terminou o assunto.<br />

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Escrito também está: “Lança teu pão sobre as águas e ele voltará depois de muitos dias.” Por isso abandonamos<br />

nossos lares, deixamos tudo quanto tínhamos e fomos com o nosso rabi para uma terra desconhecida, como o texto manda:<br />

“Com a benevolência de tua mocidade tu me seguiste no deserto, numa terra não semeada”. E nós pusemos fé em Deus e nossa<br />

esperança não foi enganada.<br />

E o nosso rabi nos disse:<br />

VI<br />

VI<br />

− Levantemo-nos e sigamos para Nazaré, minha cidade natal, pois que fica perto.<br />

E tomamos às costas nossos sacos de pão, e coisas de jornada – e uma ou duas roupas em honra ao nosso rabi. E<br />

antes que o nosso rabi deixasse a cidade abençoou o guarda do vinhedo e disse:<br />

− Ai de quem declarar impuro aquele que Deus purificou! Matias, tu és nosso irmão em Israel – alegra-te. Não é<br />

forte em tuas mãos a lei, mas a lei de Deus está em teu coração e na tua humildade de espírito.<br />

E ele deixou aquele lugar e seguiu à nossa frente. E a paz do Senhor se derramava por onde ia ele passando.<br />

E como nosso rabi percebeu que a paz do Senhor estava no mundo, alegre se tornou, e cheio de glória, porque a<br />

glória só vem quando há alegria. E ele nos disse muitas parábolas e muitas palavras boas, que nos atavam o coração ao nosso<br />

pai do céu. Muitas delas seus discípulos aprenderam de cór para as relembrar às futuras gerações, mas muitas se perderam.<br />

E na calma do dia chegamos à beira do vale de onde o caminho começa a subir a montanha. E quando galgamos<br />

a montanha vimos pastores na lida com suas rezes. E os pastores conheciam o nosso rabi porque freqüentemente o nosso rabi<br />

fora ter com eles, vindo lá de Nazaré, onde ainda morava. E os carneiros o rodeavam e lambiam-lhe os pés, também o<br />

reconhecendo.<br />

E no céu uma pequena nuvem negra apareceu não maior que a mão dum homem; e a mão se abriu e encerrou os<br />

céus, e os céus estavam carregados de nuvens ocultadoras da luz do sol. E sombras passaram sobre a face da terra e tudo em<br />

torno se velou de trevas. E um dos discípulos disse:<br />

− Ocultemo-nos numa caverna ou sob algum pedrouço, porque a tempestade vem.<br />

Tempo era das últimas chuvas, e a última chuva sempre vem com tempestade. Mas o rabi disse:<br />

− Onde te ocultarás de Deus? Ele te descobrirá no coração da pedra, ele te verá no fundo da caverna; e pois o<br />

lugar mais seguro é sob o céu de Deus. Considera as ovelhas e com as ovelhas aprende; elas não procuram as grutas, nem se<br />

alapam sob os pedrouços, sim deixam seus corpos entregues à compaixão de Deus. Olhai como em tempo de borrasca elas não<br />

se alongam entre si, mas se juntam. Assim também entregai vosso corpos à compaixão de Deus e ponde a vossa esperança no<br />

vosso pastor, o qual em tempo próprio acudirá e vos salvará.<br />

E enquanto ele falava, o temporal veio a sacudiu os quatro pilares da terra e houve grande rumor e grita, com<br />

trovões e relâmpagos; e o vento penteou com pentes todo o capim e todas as plantas dos campos, e lhes inclinou para o chão as<br />

cabecinhas, ora para cá, ora para lá; e o vento sacudia as árvores procurando quebrar-lhes os galhos. E depois sobreveio o<br />

aguaceiro e cada um se abrigou onde pode, e o mesmo fizeram os pastores. E estando eles assim na montanha, a tempestade<br />

agarrou nos dentes um ou dois cordeiros, como os agarram as feras, e os cordeiros se prendiam com os pés às rochas. Mas os<br />

dentes da tempestade eram mais fortes que os pés dos cordeiros e o vento em fúria os lançou da encosta ao abismo. E ao<br />

rolarem para o abismo os cordeirinhos chamavam pelo pastor com a voz dos animais. Mas o pastor não ouviu o grito dos<br />

cordeirinhos, porque o medo à tempestade o fizera esconder-se na caverna.<br />

E quando a chuva cessou procuramos o nosso rabi e não o pudemos achar. Porque cada um de nós estava<br />

escondido no abrigo que buscou e nenhum viu que o rabi descera ao abismo em busca dos cordeirinhos nele lançados. E<br />

procuramo-lo aqui e ali e não o descobrimos. E chamamos, “Rabi, rabi!” e não obtivemos resposta. E então, depois de algum<br />

tempo, vimos o rabi a erguer-se do abismo, com as vestes encharcadas, os cabelos molhados, os pés feridos pelas pedras<br />

chapinhando na água torrencial – mas trazendo ao ombro o cordeiro que ia entregar ao rebanho. E quando o vimos assim a<br />

emergir do abismo com o cordeiro ao ombro, sentimo-nos todos vexados, e recordamo-nos de nossos avós que também haviam<br />

sido pastores, e soubemos do nosso rabi o que os sábios sabem de Moisés: “E Moisés era um pastor”, o que significa que Deus<br />

primeiro ensinou e provou Moisés na vida de pastor – é o que dizem os sábios. Quando estava Moisés a pastorear os rebanhos<br />

de Jethro, uma ovelha se tresmalhou e Moisés a seguiu até ao ponto em que ela se abrigara. E ao chegar lá a ovelha, Deus fez<br />

brotar uma fonte em que o animal bebeu. E aproximando-se Moisés e vendo aquilo, disse em seu coração: “Eu sabia que tinhas<br />

fugido levada pela sede, mas agora deves estar também cansada” – e tomando-a às costas trouxe-a para o rebanho. E Deus<br />

disse para Moisés: “Tu que tens bastante compaixão para cuidar de ovelhas, a ti confiarei as ovelhas de Israel”.<br />

E depois mandou Deus o sol, e as nuvens fugiram diante de seus raios. E nós sentamos nas pedras da montanha e<br />

tiramos as nossas roupas para as secar. E enquanto o nosso rabi, ali sentado na pedra, esperava que suas vestes se secassem, as<br />

ovelhas vinham e deitavam-se a seus pés.<br />

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E estávamos a distância de um dia da cidade de Cana, onde o nosso rabi havia realizado o seu primeiro milagre,<br />

da mudança da água em vinho nas núpcias duma pobre gente. Não obstante não fomos para lá, porque era o quinto dia e o rabi<br />

prometera chegar a Nazaré, sua cidade, para celebrar o Sábado e honrar sua mãe como quer o mandamento; seu pai já não era<br />

vivo.<br />

E levantamo-nos e pusemo-nos a caminho; e com o sol já no ocaso chegamos à porta da cidade. Como uma<br />

criança montada num camelo, Nazaré repousa entre dois montes, no caminho que vai de Damasco ao Mar Grande. Os<br />

habitantes sustentam-se com o trabalho dos campos e a carpintaria, porque a estrada para Damasco corre por dentro de Nazaré.<br />

E nosso rabi também era carpinteiro e filho de carpinteiro, mas não há sábios e cultos em Nazaré, além do capitão da sinagoga<br />

e do chefe da cidade, ambos igualmente juízes da corte.<br />

Quando nos aproximamos da porta de Nazaré, o sol já se havia posto e era tempo da oração da tarde. Ficamos no<br />

meio dum campo; a noite começava a cair sobre montes e vales e estrelas entravam a brilhar. E então o nosso rabi disse o<br />

“Ouve, ó Israel” e falou-nos assim:<br />

− Não é bom que entremos todos juntos na cidade, porque é pequena e seus habitantes gente simples; se virem<br />

um rabi rodeado de discípulos, amedrontam-se. Cada um pois siga do seu lado e procure onde passar a noite, e reunamo-nos<br />

pela manhã em casa de minha mãe, onde comemoraremos o Sábado e cumpriremos o mandamento que manda honrar as mães.<br />

E o rabi levou consigo unicamente Simão bar Jonas e os filhos de Zebedeu, Jacó e Jochanan, que eram os mais<br />

amados, e Míriam, a mulher que nos havia seguido. Porque as outras almas que ele tinha salvo em Naim, como Jochana e<br />

Susana, lá haviam ficado, e seguiriam para K’far Nahum, casa da sogra de Simão, onde o rabi vivia.<br />

E quando eu vi que o rabi nos deixava, pus-me diante dele e disse:<br />

− Está escrito: “Teus olhos verão o rei em seu esplendor”, e quem é maior rei que o rabi? Deixa-nos ir contigo à<br />

casa de tua mãe para que vejamos como cumpres o mandamento de honrar tua mãe e assim aprendamos.<br />

E o rabi consentiu.<br />

E a casa da mãe do meu rabi ficava à beira da cidade, onde passavam as carretas e os caminhantes, de modo que<br />

ela pudesse ser a primeira a cumprir o mandamento da hospitalidade para com os forasteiros. Porque a mãe do meu rabi era<br />

uma mulher temente a Deus.<br />

E depois de atravessarmos aquelas ruas estreitas fomos dar no campo aberto e logo vimos uma casa com luz<br />

dentro, no sopé da montanha; e o rabi nos disse:<br />

− E é a casa de minha mãe.<br />

E o rabi mandou-nos aos dois, a Simão e a mim, que sou o menor de seus discípulos, que fôssemos na frente<br />

anunciar a sua chegada. Porque o bom não é chegar de surpresa e sim anunciado. E fomos nós dois à casa e encontramos a mãe<br />

do rabi à mesa com seus filhos e filhas, a comerem o honesto pão dos lavradores. Porque era hora da refeição da noitinha. E<br />

nós nos curvamos e dissemos:<br />

− A paz seja convosco.<br />

E todos nos olharam com espanto e perguntaram donde vínhamos.<br />

− Vimos mandados por vosso filho e irmão, a trazer o anúncio de sua presença aí fora.<br />

E no momento a surpresa impediu-os de responder. Depois um dos cunhados falou e disse: “Que vem ele fazer?<br />

Vexar-nos de novo aos olhos da gente desta cidade?”<br />

Mas a mãe do rabi ergueu-se, estendeu os braços e perguntou:<br />

− Onde está o meu amado filho, que quero abraça-lo?<br />

E tomando de sobre a mesa a lâmpada foi para a porta e chamou:<br />

− Tinoki, tinoki, meu filhinho, meu filhinho!<br />

E meu rabi respondeu: “Imi, Imi”, ou “Minha mãe, minha mãe”, e adiantou-se para ela e curvou-se e disse:<br />

“Mãe, coroa da minha cabeça, que a paz seja convosco”.<br />

E ela respondeu:<br />

− Meu primogênito, benvindo sejas no teu lar.<br />

E ele abraçou-a e beijou-a e entrou na casa e nós o seguimos.<br />

E a casa de sua mãe não era grande; pouco espaço havia lá porque o barco de carpintaria tomava-o muito.<br />

(Quando o rabi deixou a família e saiu pelo mundo em seu trabalho de Deus, seu irmão Jacó tomou-lhe o lugar de carpinteiro,<br />

afim de sustentar a casa, como está escrito: “Grande coisa é o trabalho, e honra quem nele se ocupa”.)<br />

E Jacó ergueu-se diante de seu irmão, curvou-se e disse:<br />

− Benvindo sejas em tua volta ao lar, meu rabi e meu irmão mais velho. Está a paz contigo?<br />

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E nosso rabi respondeu:<br />

− A paz está comigo e todo o tempo comigo tem estado o meu pai do céu. Está a paz convosco, irmãos?<br />

E Jacó e os demais responderam: “Paz”.<br />

Mas os cunhados, os maridos das irmãs, levantaram-se e saíram da casa, porque eram contra o rabi.<br />

E a mãe disse aos filhos:<br />

− Ide, trazei água e lavai os pés dos nossos hóspedes. E eu vou preparar o melhor que há, em refeição para ti e os<br />

hóspedes que contigo vieram. Porque deves estar com fome e sede, da caminhada.<br />

E meu rabi respondeu:<br />

− Peço-te que não vás, mas fiques comigo para que meus olhos se repastem em teu rosto, que há tanto tempo não<br />

vejo. Meus irmãos que preparem a ceia; e os que comigo vieram os ajudarão; são meus discípulos e é bom que os discípulos<br />

sirvam ao seu rabi, já que são hábeis nisso.<br />

E sua mãe disse:<br />

− Acendamos todas as lâmpadas, porque hoje é sábado. Tenho guardada no depósito uma cabaça de bom óleo,<br />

na espera do retorno de meu filho. Ide-vos e trazei o boião de mel, ide ao curral ordenhar a ovelha e preparai favas e verduras,<br />

e ponde os bolos na mesa, porque meu filho chegou e estamos em grande festa agora.<br />

E todos fomos executar as ordens da mãe do rabi e acendemos o forno do quintal e preparamos a comida. E<br />

como todos saíssem, sozinha ficou na sala a mãe do rabi e seu filho mais velho. Já anos que não se avistavam e muito tinham a<br />

dizer.<br />

Fiquei junto à porta e espiei, e vi à luz da lâmpada o rosto daquela mãe a brilhar de alegria, mas seus olhos tristes<br />

olhavam para o filho melancolicamente. Tinha a pele como a folha do outono, vincada das rugas dos cuidados, e seu aspecto<br />

lembrava o livro de Job, salvo os olhos, que lembravam o Cântico dos Cânticos; e seus lábios tremiam e palpitavam as veias de<br />

seu pescoço e ela disse:<br />

− Meu filho, contigo estive em todos os transes.<br />

E ele ergueu a mão direita, que já tanto trabalhara, e respondeu:<br />

− Sei disso, minha mãe.<br />

E ela continuou:<br />

− Meu coração está sempre inquieto por ti. Vem gente de K’far Nahum e outros lugares e contam maravilhas a<br />

teu respeito. Meu coração treme entre a esperança e o medo: tu passas necessidades, meu filho.<br />

E ele respondeu:<br />

− Deus, meu pai, está comigo.<br />

E sua mãe:<br />

− Perigoso é o caminho que segues, meu filho. Sinto o coração pesado. Freqüentemente desapareces e não sei<br />

para onde vais. Deus que tenha compaixão de mim e nunca deixe de acompanhar-te.<br />

consolação.<br />

E meu rabi tomou a mão direita de sua mãe e disse:<br />

− Sossega, minha mãe; tudo é por amor de Deus e de Sua glória.<br />

− Meu filho, sei que a graça de Deus desce sobre ti e guarda-te noite e dia, e isso é a minha força e a minha<br />

E então disse o meu rabi:<br />

− Mas conta-me o que vai contigo. Que se passa em tua casa?<br />

− Sou uma velha, respondeu a mãe do rabi. Teu pai morreu, teu irmão Jacó tomou o trabalho e com dificuldade<br />

sustenta a casa. Os outros são muito crianças e necessitam de quem os guie na honradez – e tu, que és o mais velho e devias<br />

ensina-los no judaísmo, tu abandonaste a casa, meu filho.<br />

E meu rabi respondeu e disse:<br />

− Meu pai terreno faleceu, mas meu pai celeste vive e me chamou para realizar o seu trabalho e pôr seus filhos<br />

no caminho da honradez. Pode Jacó substituir-me no governo da casa, pois é um devotado judeu.<br />

te conheço?<br />

− Meu filho meu coração treme quando te ouço falar assim. Quem então és tu, meu filho, que nem eu, tua mãe,<br />

E meu rabi apertou a mão direita de sua mãe e disse:<br />

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− Acalma-te, minha mãe. E que teu coração se encha de alegria, como a uva se enche de vinho no outono. Os<br />

povos da terra abençoar-se-ão em ti e serás igualada a Raquel, a Sara e Rebeca, as mães sagradas...<br />

E a mãe do rabi enxugou as lágrimas nas fímbrias da saia e disse:<br />

− Que Deus te console, como consolas tua mãe. Agora deixa-me ir filho, porque minha ajuda lá dentro se faz<br />

necessária. Lava tuas mãos e teus pés, e os que vieram contigo façam o mesmo, e todos se sentem à mesa.<br />

Ditas que foram estas palavras, a mãe do rabi deixou-o e se foi para dentro; e na pressa e alegria escapou-se-lhe<br />

do pé uma sandália. E o rabi viu e lá se foi ela, e baixando-se e pondo as mãos de palma sobre o chão disse:<br />

à sua.<br />

− Mãe, pisa em minhas mãos, para que teus pés nus não toquem o assoalho.<br />

E ela:<br />

− Meu filho, tu me honras em excesso.<br />

E ele:<br />

− Minha mãe, deixa-me cumprir o mandamento de honrar às mães como Damias ben Nathainas de Askelon o fez<br />

− Referia-se a um certo kushita da cidade de Askelon, de nome Damias bem Nathainas, que a tal ponto se<br />

distinguia no respeito a esse mandamento, que nem os sábios da cidade conseguiram iguala-lo – e por isso o invejavam.<br />

Estando certa vez numa festa com os grandes da terra, sua mãe apareceu e o repreendeu severamente, e sacando a sandália com<br />

ela o espancou, porque estava realmente fora de si. Mas seu filho não a envergonhou diante dos principais da cidade; limitouse<br />

a receber as pancadas e por fim disse: “Minha mãe, acha o castigo suficiente?” E como a sandália houvesse caído da mão<br />

daquela mulher, tomou-a e entregou-lha, para que a dona não tivesse o trabalho de abaixar-se.<br />

E quando eu vi como o meu rabi honrava sua mãe, enchi-me de júbilo, porque no desempenho daquele<br />

mandamento a virtude de meu rabi excedia a do kushita Damias bem Nathainas de Askelon.<br />

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VII VII<br />

VII<br />

Lavamos nossas mãos e sentamo-nos à mesa. E na casa da mãe do meu rabi, a mesa, que é como um altar de<br />

Deus, estava posta com grande asseio e de acordo com todos os mandamentos. E os da casa se sentaram em ordem de idade; a<br />

mãe à cabeceira; seu filho mais velho ao lado e a seguir os outros. E nós também, os hóspedes, fomos tratados honrosamente, e<br />

sentamo-nos perto da mãe do rabi, do outro lado da mesa. E o rabi abençoou o pão, partiu-o e passou no sal o seu pedaço, o<br />

que também fizemos com os nossos, como manda o mandamento – o mais velho primeiro e os outros conforme a idade. E o<br />

mesmo com os pratos do dia; primeiro o mais velho mergulhava a mão e depois os outros, segundo a ordem das idades. E<br />

depois de finda a refeição lavamos nossos dedos e abençoamos o Senhor que nos saciara.<br />

E depois a mãe do rabi lhe preparou a cama no cômodo em cima do teto, que fora o seu quando morara ali. E o<br />

rabi tomou a lâmpada, desejou paz a todos e subiu, porque estava cansado da caminheira do dia. Ficamos nós na sala com sua<br />

mãe e seus irmãos.<br />

E sós que ficamos, Simão bar Jonas e eu, a ela nos dirigimos e dissemos:<br />

− Bendita sejas entre as mulheres, tu de cujo ventre saiu a luz de Israel. Mãe nossa também és, porque a mãe do<br />

rabi também o é de seus discípulos. Escrito está: “Aquele que a um homem ensina o Torah é como se o houvesse gerado”.<br />

Dizei-nos agora, te pedimos, da vida e atos de teu filho até este momento, para que saibamos quem é o nosso rabi.<br />

E a mãe do rabi sentou-se à soleira da porta e à luz das estrelas nos falou assim:<br />

− Que direi de meu filho aos discípulos de meu filho? Abençoado seja o Senhor que me considerou digna dele.<br />

Nós procedemos de gente pobre, e moramos com o povo comum: somos filhos de trabalhadores. Quando estava para vir meu<br />

filho e meu peito era todo alegria, senti que o Senhor me enviara uma grande coisa e a ele falei assim: “Quando for de Tua<br />

vontade que Tua serva dê à luz um filho eu o farei Teu, como Hanna fez Teu o seu filho Samuel”. E foi assim que quando o<br />

meu tempo chegou, meu marido tomou-me, e mais o pouco de sua casa, e levou-me para Belém em Ephrath, que é na Judéia,<br />

porque somos de lá. É que se procedia ao censo e cada um devia estar em sua terra natal. E a cidade de Belém encheu-se de<br />

gente nascida ali e que morando fora viera. Acomodação para todos não havia, e com mais gente pobre fomos alojados no<br />

pátio duma estalagem; e meu marido obteve trabalho com um carpinteiro local e assim ganhava o pão. E quando me chegou o<br />

dia de dar à luz, meu marido falou com pastores que tinham rebanhos perto da cidade e obteve licença para que eu desse à luz<br />

no estábulo onde eles punham os carneirinhos novos. Porque era inverno, fazia muito mau tempo e nós naquela cidade não<br />

tínhamos nem teto sob que nos abrigar. E os pastores encheram-se de compaixão, porque eram homens bons e tementes a<br />

Deus. E arranjaram-me um canto no estábulo em meio aos carneiros, e espalharam palha seca para que eu tivesse calor. E<br />

conhecereis do meu estado de espírito sabendo que orei ao Senhor com estas palavras: “Vê minha vergonha de dar à luz ao<br />

meu primeiro filho entre animais, como se fosse um deles”. E meu marido sentou-se ao meu lado e me consolou, dizendo:<br />

“Não te entristeças, minha mulher, porque num estábulo nascerá aquele que vai acudir Israel. E não foi nosso rei e pai Daví um<br />

pastor desta cidade? E não o tirou Deus de entre as ovelhas para po-lo rei de Israel? Nosso filho é da semente de Daví – e quem<br />

sabe não será rei também?” E outras palavras de reconforto meu bom marido me disse. E quando chegou a hora do parto,<br />

ninguém havia ali para me ajudar, senão ele. Mas Deus me viu e veio em meu socorro, e me levantou o ânimo, e acendeu sobre<br />

minha cabeça a lua e as estrelas para que me olhassem lá de cima e me consolassem. E havia silêncio em redor e meu coração<br />

tremia e o medo me dominava. Porque eu não passo duma pecadora ignorante da lei de Deus, mas pareceu-me que o céu se<br />

tinha coberto de glórias, e a paz e a boa vontade desceram para todos os homens com o nascimento de meu filho. E voltei-me<br />

para meu marido e disse: “Não sei o que se passa comigo, mas me parece ver uma grande luz, e cânticos me chegam aos<br />

ouvidos e perfumes como os do Éden me envolvem”. E meu marido respondeu: É que teu coração estava pesado e Deus viu<br />

nossa aflição e confortou-te, porque tu deste à luz um filho”. E eu perguntei-lhe: “Mas de onde vem esta luz? É como se a lua e<br />

as estrelas tivessem descido a este estábulo para me saudarem”. E ele, sempre a me ajudar: “Bom sinal é, minha mulher, que<br />

vejas muita luz, porque isso quer dizer que a luz nasceu para Israel”. E ele me pôs nas mãos o recém-nascido e cobriu-me com<br />

uma manta de crina. E os carneirinhos e as vacas chegavam e lambiam-me com suas línguas, como para me darem calor.<br />

Porque o frio ali era intenso. E meu marido disse: Vê, minha mulher, como até o gado se rejubila contigo?”. E disse-me ainda:<br />

“Nossos antepassados também eram pastores, e Deus tirou Moisés do pastoreio para conduzir o seu povo do Egito. Não te<br />

deprimas, portanto, de nosso filho ter vindo ao mundo entre carneiros”. Assim me falou meu marido naquele tempo.<br />

E também vieram os bons pastores e me saudaram e reconfortaram, e puseram leite e pão diante de mim,<br />

dizendo: “A paz seja contigo, mãe em Israel; Deus está contigo, porque nunca houve noite de tanto brilho como esta.<br />

Vivíssimas estão as estrelas e a lua plena de luz está em cima, e os picos de neve parecem baixados das montanhas. Uma<br />

grande luz deve Ter nascido para Israel.<br />

E eu lhes disse:<br />

− Muito vos agradeço, bons pastores, tantas boas palavras.<br />

E eles cobriram meus pés com pelegos, porque estava frio – e a hora da minha necessidade se tornou a hora da<br />

minha felicidade.<br />

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E lá fiquei eu com os pastores até que chegou tempo de levar meu filho ao batismo, no qual lhe demos o nome<br />

de Yeshua, que significa auxílio a Israel. E meu marido tomou-me e ao filhinho, e a todos os nossos pertences e nos levou para<br />

a cidade santa de Jerusalém, de passagem para nossa cidade; porque era tempo de fazer a minha oferenda de purificação e de<br />

apresentar meu filho ao Sacerdote, para que ele o redimisse.<br />

E fiz a oferenda do pobre sobre o altar, duas pombas, e meu marido tomou numa das mãos meu filho e na outra<br />

cinco shekels da moeda de Sidon e de pé ficou diante do sacerdote, e o sacerdote perguntou-lhe: “Que preferes entregar ao<br />

Senhor: teu filho ou os cinco shekels de prata que vão redimir teu primogênito, o qual pertence a Deus, como Moisés<br />

ensinou?”. E quando meu marido deu ao Sacerdote os cinco shekels de prata, o sacerdote os tomou; mas perto estava um<br />

homem devoto de nome Simão, conhecido em toda Jerusalém como justo e favorecido do Senhor. E ele tomou meu filho dos<br />

braços de seu pai e ergueu-o alto e disse: “Bem pode ser que esteja aqui o Messias. Agradeço-te, Senhor, me teres feito ver o<br />

salvador de Israel”. E quando logo depois isto contei às mães reunidas no pátio das mulheres, todas vindas, como eu, para<br />

redimir seus primogênitos, elas disseram: “O mesmo fez ele com os nossos filhos. Porque esse homem espera o redentor de<br />

Israel, e pede a Deus para não se finar antes que seus olhos hajam visto o Messias dos judeus. E ele passa o dia ali, esperando<br />

os primogênitos que vêm redimir-se, e toma-os nas mãos e ergue-os e diz: “Talvez seja este o Messias”. Porque qualquer mãe<br />

pode dar à luz o Redentor de Israel.<br />

E por fim meu marido me reconduziu ao lar aqui, com meu filho e meus pertences.<br />

E meu filho cresceu em Deus, e quando começou a falar eu lhe ensinei a dizer: “Ouve, ó Israel”, de modo que se<br />

realizasse o que está escrito: “Da boca das criancinhas novas vem o teu louvor, ó Senhor”. E quando ainda se aleitava em meu<br />

seio, sob seus olhos eu pus a sagrada escritura, de modo que o que está escrito se cumprisse: “Com o leite de teu seio...”. E a<br />

criança cresceu na graça do Senhor, e todas as mães da cidade se abençoavam nele, porque era belo para os olhos e favorecido<br />

por Deus e pelos homens.<br />

E quando fez seis anos seu pai enleou-o no manto de rezar e levou-o à sinagoga, para que aprendesse o Torah<br />

com os outros meninos da cidade. E cada dia me voltava para a casa com um texto. E era assim que todos os dias quando se<br />

sentava para comer o pai dizia: “Recita-me teu texto, meu filho, que aprendeste na sinagoga hoje”. E ele recitava o texto: “O<br />

temor de Deus é o princípio da sabedoria”. E seu pai ensinava-o ao cair da tarde, para que se cumprisse o que está escrito: “E<br />

tu ensinarás isto a teus filhos”. E o menino lia nas escrituras sagradas e sabia muitos textos de cór. E quando alguém o<br />

encontrava na rua dizia-lhe: “Menino, recita-me teu texto”, e ele respondia com o texto que aprendera naquele dia.<br />

Certa vez houve aqui uma seca; as espigas de trigo vieram chochas e homens e animais eram torturados pela<br />

sede – e nada de água nos poços. Os velhos daqui foram em procura dum sábio que residia no campo e tinha fama pela sua<br />

santidade e o peso de sua palavra perante Deus. O sábio se vinha recolhendo do labor no campo quando os velhos o<br />

abordaram, dizendo: “Pede chuva, porque nosso grão falha nas espigas e ao sobrevir do inverno nada haverá em nossos<br />

celeiros; também nosso gado perece de sede nos pastos”. Mas o santo respondeu: “Vossos pecados atraíram sobre vós este<br />

castigo, pois que abandonastes o caminho da honestidade”. E não pediu por eles, com medo de que não se arrependessem. E<br />

então meu menino aproximou-se, de volta da sinagoga, e pensou em seu coração – como mais tarde nos disse: “Acaso não está<br />

escrito: “Quando a necessidade chega às portas eu apelo para o Senhor”?. E também não está escrito: “Assim como o pai tem<br />

piedade de seus filhos, assim o Senhor tem piedade dos que o temem?”. Se o sábio não quer pedir a Deus, eu pedirei” – e pôsse<br />

a orar, e Deus ouviu sua oração e os céus se cobriram de nuvens e veio a chuva. E quando meu filho percebeu que o Senhor<br />

atendera à sua prece, teve medo e correu comigo e tudo me contou. E eu o sosseguei: “Que tolice passa pela tua cabeça? Deus<br />

fez chover por amor aos pobres, não por causa da tua prece”. Mas aquilo me ficou no coração.<br />

E aconteceu que quando meu filho fez doze anos, a mim me disseram ser tempo de leva-lo às festas de<br />

Jerusalém, para que seus olhos vissem a glória de Israel, que é o Templo do Senhor, como está escrito nas escrituras. E<br />

escolhemos uma ovelha do nosso pobre rebanho, coroamo-la com folhas de oliva e fomos com mais gente daqui passar a<br />

Páscoa em Jerusalém. E no caminho nos juntamos às gentes das outras cidades, e fomos cantando pelos campos em fora, por<br />

aquela sazão da primavera. Dizíamos palavras de louvor dos Salmos e outros cantos devotos, e meu marido e eu nos<br />

alegrávamos de Ter conosco o nosso filho e de em breve estarmos diante do santuário. E fomos para Jerusalém por entre os<br />

montes que a rodeiam e nossos olhos viram a glória de Israel. O Templo brilhava como o sol sobre o monte em que se ergue, e<br />

meu filho rejubilava-se grandemente, como se houvesse recebido asas e para lá fosse voar. E conheceu cada canto, cada<br />

passagem dos pátios do Templo, como se ele fosse uma das flores do Sacerdócio e o Templo houvesse sido o seu lar. E<br />

conheceu todos os pontos onde os sábios se sentam e julgam o povo, e onde os sacerdotes se retiram para descanso; os<br />

depósitos de óleo e das vestes sacerdotais, e todos os recantos e sendas e arcos e áticos que lá existem. E errou entre os pilares<br />

do Templo onde tantos peregrinos se reúnem nos dias de festa. E se dirigiu a cada grupo vindo desta ou daquela cidade, e<br />

sentou-se com cada família, para ouvir o que diziam as gentes. E tinha os ouvidos abertos a cada grito de dor, a cada soluço – e<br />

seu coração recolhia cada angústia do povo de Israel em Jerusalém. Os tempos estavam duros para Israel. Sobre Israel pesava a<br />

mão de Roma e o povo murmurava contra o novo Sumo Sacerdote que fora nomeado pelos romanos afim de agravar as taxas<br />

impostas. E falava-se muito no Messias, cujos passos já eram ouvidos. E o povo já não podia suportar o peso do jugo que<br />

Roma e o Sumo Sacerdote lhe tinham colocado em cima, e grande era o amargor corrente de boca em boca. E uma enorme<br />

multidão se reuniu diante da Porta Bela. E os soldados romanos de guarda entre os pilares do Pátio dos Gentios lançaram-se<br />

contra o povo, dizendo que o povo estava-se rebelando contra o Sumo Sacerdote, amigo de Roma. E os romanos sacaram das<br />

espadas e perseguiram o povo através da ponte até a cidade. E muitos morreram de ferimentos naquele dia, muitos acabaram<br />

atropelados e outros caíram de cima da ponte sobre o vale. E meu coração tremia de medo porque o meu menino estrava na<br />

multidão e tudo era de acontecer. E em meu coração rezei: “Em Tuas mãos te entrego meu filho e sê Tu o seu guarda”. E breve<br />

me apareceu o menino lá onde estávamos com os outros peregrinos de Nazaré, e olhei para ele e pareceu-me mudado. Grande<br />

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palidez no rosto e os olhos em chamas. E lembro-me das palavras que me disse: “Ó Senhor, estrangeiros invadem o Teu<br />

santuário!”. E repetiu a frase diversas vezes. E eu perguntei: “Que tens, meu filho?” E ele respondeu: “Por que tarda tanto o<br />

Messias?”. E eu disse: “Paciência, meu filho; ele vem, seus passos já ressoam, porque sendo nossas tribulações contadas e<br />

nossas lágrimas recolhidas, logo a conta estará completa. E ele perguntou: “E quando seremos considerados dignos da<br />

redenção?” “Talvez esteja aqui conosco o Messias, meu filho, à espera de que nos tornemos dignos e volvamos a Deus nossos<br />

corações, porque só então Ele nos redimirá”. “Mas onde está, onde está o redentor, mãe?” E eu respondi: “Quem sabe? Talvez<br />

sejas tu, meu filho, porque a libertação vai vir de qualquer judeu”.<br />

E nós dois nos amedrontamos com aquelas palavras saídas de minha boca.<br />

E quando a festa chegou ao fim e voltamos para casa, meu filho desapareceu no caminho. Julguei que estivesse<br />

com outras pessoas da cidade, dado o seu costume de misturar-se com todo mundo. Mas procurei-o entre os amigos, sem<br />

resultado. Por fim deixamos os companheiros e voltamos à Jerusalém afim de descobri-lo, e achamo-lo afinal na sala das<br />

pedras polidas, onde os sábios e mestres se reúnem. E lá estava no meio deles, muito atento ao que diziam; depois sentou-se<br />

aos pés dum velho e propôs-lhe perguntas, e como era seu costume com as perguntas das crianças o velho respondia. Mas<br />

grandemente se rejubilou com a sabedoria de meu filho e disse: “Possam os que são como tu se multiplicarem em Israel!”. E<br />

quando vi meu filho aos pés dos sábios, chamei-o e disse-lhe: “Por que nos fizeste isso?. Pesados nos ficaram os nossos<br />

corações de mãe e de pai”. E ele respondeu. “Mãe, melhor será me deixares aqui na casa de Deus. Não me dedicaste ao Senhor<br />

no dia do meu nascimento, como me foi dito, e não me santificaste no Torah?”.<br />

E quando de volta para Nazaré ele não deixava de suspirar por Jerusalém, saudoso de aprender a palavra de<br />

Deus, sentado aos pés dos sábios. Mas éramos gente do comum, e meu marido – a paz seja com ele! – disse que o Torah era<br />

bom só para os que têm um ofício, de modo a não fazer do Torah um meio de vida, como acontece com muitos. E que aquele<br />

que não ensina ao filho um ofício, ensina-o a ser ladrão, como diz o provérbio. E quando meu filho entrou nos treze anos e seu<br />

pai lhe ensinou o mandamento do filactério, também o levou a um banco de carpinteiro e ensinou-lhe o ofício de seus avós,<br />

como é de costume fazer pai a filho. Depois Deus abençoou meu ventre e dei a meu marido quatro filhos e filhas, e a família<br />

cresceu – e ganhar o pão para tal família é para os pobres tarefa tão grande como a abertura do Mar Vermelho; e nós todos<br />

trabalhávamos durante o dia e de acordo com o costume dizíamos no curso do trabalho versos dos Salmos. E à noite meu<br />

marido ensinava a meu filho tudo quanto sabia. À luz das estrelas lhe foi transmitindo os textos que tinha de cór. E havia ainda<br />

na posse da família um rolo – a mais preciosa herança que meu esposo recebera de seus antepassados e que de geração em<br />

geração chegou ao meu filho mais velho. Guardado era o rolo com o maior capricho, envolto em pano para que nossas mãos o<br />

não manchassem; e nos dias de festa e mesmo nas noites de lua eles desenrolavam o rolo e estudavam o que lá vinha, porque<br />

está escrito: “E nele meditareis dia e noite”. E meu marido transmitiu a meu filho só a lei escrita, porque pouco sabia da oral,<br />

isto é, da tradição; só tinha na memória o que trouxera de Jerusalém, lá uma lei ou interpretação ouvida aos sábios no Templo,<br />

como as que nos foram dadas pelo venerável Hillel e outros velhos. Às vezes vinha a Nazaré um rabi da cidade de Naim, para<br />

no Sábado ler a lei na sinagoga. Mas meu filho queria mais, mais, porque está escrito: “Como o meu coração palpita, assim<br />

minh’alma anseia por Deus”.<br />

E ele sentava-se na sinagoga e assimilava o que podia. E se estava um rabi na cidade, a seus pés vinha ele sentarse<br />

e bebia a palavra de Deus. E reunia os pequeninos da escola e levava-os à sinagoga e ensinava-lhes a dizer no lugares certos,<br />

as palavras “Amem” e “Exaltado seja o seu Nome” – e o chefe da congregação o louvava. E muito amavam a meu filho,<br />

porque ele seguia nas sendas de Deus e era devoto em sua conduta. E quando rezava era como se os anjos o rodeassem para<br />

levar suas palavras às assembléias do céu. Isso não falo por ele ser meu filho, pois que aí está todo o povo da cidade para o<br />

testemunhar. Sabedor ficou ele das escrituras sagradas como um puro sábio. E quando no sábado o convidavam a ler o Torah<br />

na sinagoga, ele ia e pregava ao povo atento, que nunca vira coisa assim dum menino. E inquiriam espantados: “Donde lhe<br />

vem tanta sabedoria? Pois não é o filho do carpinteiro José? Quem o ensinou?”. Deus estendeu sobre ele Sua mão e daí aquele<br />

fervor do povo; e quando ele rezava todos viam que sua reza era aceita. E certa vez aconteceu ver meu filho um velho<br />

paralítico sentado na soleira da sinagoga e olhou-o compadecido. O velho encarou-o e erguendo a voz disse: “Por que me olhas<br />

com tais olhos, como se me quisesses curar?”. E meu filho respondeu: “Se crês que posso curar-te, então realmente posso<br />

curar-te”. E o paralítico disse: “Vejo em teus olhos o grande poder da compaixão. Creio com absoluta fé que se for do agrado<br />

de Deus serei curado por teu intermédio”. E meu filho respondeu: “Tu o disseste! Em nome do Senhor ordeno-te que te ponhas<br />

de pé, porque estás curado”. E o homem se pôs de pé – um homem que estava paralítico já de tantos anos! E a noticia<br />

espalhou-se pela cidade – que ele possuía uma força secreta dada pelo Senhor. E começaram os doentes a procurar meu filho.<br />

E quando nós, seus pais, vimos quão longe tinham ido as coisas, ficamos amedrontados e dissemos entre nós: “Que pretenderá<br />

Deus com o nosso filho, para assim descer Sua graça sobre ele?”.<br />

E meu filho veio Ter conosco e perguntou: “É verdade que somos da semente de Daví?” porque tal era a tradição<br />

de nossos parentes em Belém e está escrito no livro genealógico de Israel. Mas quando o rei Herodes começou a perseguir os<br />

que procediam da casa de Davi, esse livro desapareceu – só ficou a tradição na família de meu marido. E quando meu marido<br />

ouviu de meu filho aquelas palavras, levantou-se e disse em voz alta: “Pretendes ser como José o sonhador e te elevares acima<br />

de teus irmãos? Deus só ama aos humildes de espírito”. Mas nós guardamos aquilo no coração.<br />

Grande mudança sobreveio por esse tempo nos modos de meu filho. Já o não reconhecíamos. Seus atos não eram<br />

como os de ontem ou anteontem. Passava fora de casa dias e dias, errava pelas florestas e nelas dormia de noite, voltando pela<br />

manhã ainda molhado de orvalho. Ou então ia para os campos e ajudava os trabalhadores e ensinava-lhes as escrituras, e<br />

repetia versos dos Salmos para consola-los. Só era visto com os miseráveis, com abandonados de Deus e dos homens, lá pelos<br />

campos ou na porta da sinagoga. E procurava e visitava os doentes, e para onde quer que fosse, encontrava penúria e dor. E a<br />

todos ajudava a conduzir os fardos da tristeza. E muitas vezes o ouvi a murmurar amargas palavras contra os ricos e os cultos<br />

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que oprimem os pobres e não tomam a si a causa dos órfãos. E o coração de meu filho era atormentado pelos crimes que os<br />

ricos perpetram contra os pobres e a gente comum. Nossa cidade fica em meio de campos de cultura, e a maior parte de seus<br />

habitantes são trabalhadores da terra, iletrados; e entre eles há os de judaísmo duvidoso, que os ricos perseguem. E sobre o<br />

pobre caem muitas taxas e tributos para o César, e para o Templo, e para os sacerdotes e levitas; e os publicanos têm mão forte.<br />

E eles tomam nossas posses, nossos asnos e nossas terras de plantio, o que é contra a palavra das sagradas escrituras, pois está<br />

escrito: “Não deixarás o pobre sem a sua coberta à noite”. E eles ainda lançavam os pobres nas prisões, ou os escravizavam e<br />

os faziam trabalhar em suas próprias terras para benefício de outrem. Muitas coisas cruéis são praticadas contra o povo dos<br />

campos – e o ódio o separa da gente culta. E meu filho via essas iniquidades e clamava pela justiça de Deus. “Ai da geração<br />

que tem tais chefes”, dizia ele, “porque eles são como os pastores que tosam os carneiros na chuva e no rigor do inverno, para<br />

se aquecerem na pele nua do pobre. A ira de Deus cairá sobre eles”.<br />

E aconteceu que não demorou muito ficar meu filho às avessas com o chefe da congregação e os principais da<br />

sinagoga, homens que haviam deixado as coisas chegarem àquele ponto e se afastado dos pobres. Porque por nosso mal os<br />

homens cultos estabeleceram uma grande divisão entre si próprios e o povo comum, que eles desprezavam e chamavam de<br />

impuros. E como não pudesse meu filho suportar as injustiças feitas contra os homens comuns, muitos atritos havia entre ele e<br />

os importantes da cidade, contra os quais dizia ele palavras duras. E chamado um dia à sinagoga para a leitura do Torah, meu<br />

filho tomou o Livro de Isaias e leu: “Eles juntam borda com borda” e pregou contra os ricos e disse: “Ai de vós, ricos que<br />

oprimis o pobre” e outras palavras amargas. E houve murmúrios na sinagoga e perguntas: “Quem é esse que vem ensinar-nos e<br />

censurar-nos? Não é o filho de José o carpinteiro?”. E agarraram-no e levaram-no para fora da cidade e o espancaram, e tê-loiam<br />

lançado no abismo como fizeram ao profeta Zacarias, se Deus o não houvesse salvo de suas unhas.<br />

E o espírito de meu filho se foi tornando cada vez mais forte, e ele procurava justiça entre os homens e não a<br />

encontrava. Eu sentia que com cada iniquidade lhe sangrava o coração, como se um espinho ferisse o coração da rosa. E os<br />

tempos lhe foram ficando duros e eu temi – Deus que me perdoe! – que a situação fosse forte demais para meu filho. Porque<br />

ele procurava perpetuamente e nós não sabíamos o que ele procurava. E então apareceu na cidade um homem, um desses<br />

nazaritas que moram no deserto e procuram a palavra de Deus. E esse homem apresentou-se no mercado e implorou ao povo<br />

que se arrependesse, porque o reino de Deus estava próximo e os passos do Messias já eram ouvidos. E meu filho, enlevado<br />

pelo nazarita, obteve de nós licença para se ir com ele para o deserto em busca da palavra de Deus. E disse: “Fiz voto comigo<br />

mesmo de afundar no deserto e sondar os caminhos de Deus, porque minha alma anseia por conhecer Deus”. E meu marido<br />

disse: “Se sua alma anseia por conhecer Deus, ele que se vá em nome de Deus e fique com os nazaritas no deserto, já que fez<br />

voto e tem responsabilidade”. E foi com o coração pesado que me separei de meu filho. Porque embora o Senhor me houvesse<br />

abençoado com outros, era aquele o primogênito – e, como José para Jacó, o mais amado. E dei-lhe pão e queijo seco e veste, e<br />

mandei-o para o deserto em nome de Deus.<br />

E dias e anos se passaram sem que dele me viessem notícias. Mas meu coração sentia saudades, porque eu tinha<br />

a alma ligada à sua. E um dia o Senhor levou de mim a coroa de minha cabeça, meu marido, o qual foi dormir com seus pais; e<br />

fiquei viuva, e ficaram meus filhos órfãos, e eu não sabia o que fazer; porque eu não tinha um redentor na cidade e meus filhos<br />

eram pequenos e pouco alimento havia e ninguém para consolar-nos. E assim foi até que um dia um homem veio ter à minha<br />

porta, de pés no chão, cabelos compridos, uma pele de leopardo sobre os ombros. Era magro de corpo e rosto, e tostado pelo<br />

sol do deserto. Parou à minha porta e, quando vim ver, eis que dou com meu filho diante de mim, e ele diz: “A mim me<br />

disseram que teu esposo dorme com seus pais e ficaste só com teus filhos, e então vim para ajudar-te na tua necessidade”. E no<br />

banco de carpinteiro tomou o lugar de seu pai e com seu trabalho nos sustentou e deu instrução na fé judaica aos irmãos<br />

menores. Mas já eu não reconhecia o meu primogênito, porque transformava suas noites em dia, e nas noites de inverno em seu<br />

cômodo lia à luz da lâmpada, e nas noites de verão meditava seus próprios pensamentos ou os livros sagrados que trouxera. E<br />

também durante o trabalho dizia para si mesmo versos e textos, e eram versos e textos desconhecidos. E falou-me do Livro de<br />

Enoch, relativo aos gigantes que caíram do céu e se misturaram com as filhas da terra, e da má geração que daí veio – e dos<br />

maus tempos em que vivíamos. E disse que a redenção estava próxima e um filho de Israel iria brilhar aos olhos do mundo. E<br />

disse-me, em textos e parábolas, da derrota que esperava os iníquos, e da luz que esperava o justo, e das messes que viriam<br />

para o pobre, e do desastre pendente sobre a cabeça do rico – tudo por efeito da vinda dum filho de Daví. E ele se conservava<br />

afastado de todos, sempre a purificar o corpo, não tocando em nada que fosse impuro, abstendo-se de carne e vinho; só se<br />

alimentava de vegetais e aos sábados punha mel no pão. E um dia eu lhe falei: “Na idade estás de ires a um homem sábio que<br />

te liberte do voto feito, porque é tempo de me dares consolação e alegria. Pois não dizem os sábios que aos dezoito anos é o<br />

tempo das núpcias?”. Isto eu lhe falava como todas as mães falam aos filho; ele, porém, me respondeu: “Não me disseste, mãe,<br />

que ainda antes do meu nascimento já me tinhas consagrado ao Senhor?”. Essas palavras me encheram de compaixão, e eu<br />

disse: “Meu filho, eu não queria dizer tanto”. E ele: “Fiz meu voto e a ele me atenho” – e não tocou mais no assunto.<br />

Continuou no seu caminho, mas já em outra direção. Passou a não castigar os ricos e a não resistir ao mal, pois dizia: “Do<br />

Senhor vem igualmente o bem e o mal. Escrito está que ele criou a luz e as trevas, fez a paz e a guerra, porque ele é o Senhor<br />

que faz todas as coisas; e o mal existe na terra como instrumento para nossa melhoria. Não resistamos ao mal já que ele vem de<br />

Deus, e aceitemos os sofrimentos com submissão e amor. O homem não foi criado para resistir ao mal, e sim para fazer o<br />

bem”. E ele visitava os doentes e curava-os com plantas trazidas do deserto. Freqüentava os pobres, reconfortava-os dizendo<br />

que no reino de Deus seriam eles os primeiros. Evitava a companhia dos ricos e cultos, e quando ia à sinagoga ficava perto da<br />

porta, entre os vexados e repelidos. E em seu cômodo no teto, que eu lhe havia preparado, freqüentemente vi à noite uma<br />

grande luz e ouvi como se estranhos com ele estivessem falando. E parecia-me que ele lhes falava citando versos e textos,<br />

havendo respostas em vozes desconhecidas. E eu me tomava de medo diante das coisas que se passavam naquele cômodo e<br />

disse-lhe: “Meu filho, a mim me parece que já te não conheço mais, que não sei quem és e que fazes”. E ele respondeu: “Não<br />

te aflijas, minha mãe, porque tudo quanto digo e faço, digo-o e faço-o por amor do nosso pai do céu”.<br />

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3


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

E aconteceu que uma noite, em pleno escuro, estando eu a meditar sobre o destino de meu filho, um vento se<br />

levantou forte, que colheu a casa e sacudiu-a como se a fosse levar. E tomada de tremor eu estava, quando o vi aproximar-se de<br />

mim dizendo: “Mãe, chamaste-me?” e eu respondi: “Não, não te chamei, meu filho”. Três vezes repetiu ele a pergunta e por<br />

fim me disse: “Talvez meu tempo haja chegado” e, como eu nada entendesse, interpelei-o sobre o que pretendia fazer. E ele<br />

respondeu: “Tenho que espalhar mensagens e novas para onde quer que meu pai me mande”. Aquelas palavras me assustaram.<br />

Com quem me ia eu ficar ali? A resposta de meu filho foi pronta: “Meu irmão Jacó está crescido e tomará meu posto no banco<br />

de carpinteiro e educará os irmãos menores nos caminhos de Israel. Porque eu tenho de ir-me para onde quer que seja<br />

mandado”. E naquela mesma noite meu filho deixou a casa, e eu chorei, dizendo: “Tinoki meu filhinho, que Deus vá contigo”,<br />

e ele respondeu dentro do escuro: “Consolada sejas, minha mãe” e sumiu-se. E dias e dias se passaram, e anos, sem que dele<br />

me chegasse uma palavra, nem que meus olhos o vissem, até que apareceu gente de K’far Nahum e contou dele as maravilhas<br />

que andava a fazer nas praias de Genesaré. E também me procuraram gentes de outras cidades e me contaram das doutrinas<br />

que ele espalhava em Israel. E eu não sei o que o Senhor quer de mim, porque meu coração flutua entre a esperança e o medo.<br />

Grandes coisas faz o Senhor por intermédio dele, mas não sei porque meu coração se aflige; não conheço os caminhos do<br />

Senhor; sou uma mulher simples. E agora quero que vós, seus discípulos, me digais quem é meu filho.<br />

esse santo.<br />

Ao ouvir essa pergunta, levantei-me, curvei-me diante da mãe do rabi e disse:<br />

− Bendita sejas entre as mulheres, porque os povos do mundo contigo se consolarão. Bendito o ventre donde saiu<br />

Mais tarde, à noite, eu disse a Simão bar Jonas:<br />

− Bem-aventurados somos por termos sido considerados merecedores de tanto. Grandes coisas está o Senhor a<br />

fazer conosco.<br />

Simão bar Jonas não entendeu o sentido de minhas palavras e disse:<br />

− Não sou profundo nas escrituras e pois dizei-me com clareza o teu pensamento.<br />

E eu:<br />

− Simão bar Jonas: a mãe do nosso rabi declarou que ele nasceu em Belém de Judá e procede da casa de Daví – e<br />

não expliquei mais nada – tudo guardei em meu coração.<br />

E assim foi aquela noite na casa a que se acolhera o santo de Israel. E dentro das trevas a casa começou a brilhar.<br />

E a luz da lua e das estrelas derramava-se sobre ela como mensageira da proteção de Deus.<br />

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4


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

VIII<br />

VIII<br />

Grande é o Sábado o qual foi assemelhado ao Messias de Deus; e assim como o Messias esteve com o Senhor<br />

no céu antes de criado o mundo, assim também o Sábado. O que quer dizer que houve repouso antes de haver movimento, e<br />

houve redenção antes de haver escravidão.<br />

E então o dia seguinte era o sexto, ou a véspera do Sábado; e meu rabi levantou-se cedo e antes de começar os<br />

preparativos para o Sábado, fez que seus irmãos se fossem às suas ocupações, como era próprio; porque era esse o costume no<br />

tempo de seu pai e no em que ele estava ali na casa, sendo nós uma gente afamada pela ordem através das gerações.<br />

Chamou seu irmão Jacó, que já o havia substituído no banco de carpinteiro afim de sustentar a família, e com ele<br />

foi à oficina e o pôs em prova, pois verificou se a madeira usada na construção dos carros não estava muito verde, e, portanto<br />

quebradiça, nem seca demais; e viu se as rodas estavam bem centradas e com os raios bem firmes; e se os freio não ofendiam a<br />

boca dos animais e não os impediam de comer, como manda o Torah. E quando viu que seus irmãos faziam o trabalho com<br />

esmero, de acordo com as tradições da família, louvou-os.<br />

Depois chamou seu irmão Simão e o levou ao horto que era no campo, por que o seu irmão Simão era o<br />

encarregado daquele pequeno lote de terra de propriedade da família e trabalhava nele e no campo. E o nosso rabi viu que seus<br />

irmãos observavam na faina todos os mandamentos relativos ao trabalho da terra, como estão escritos no Torah; e que<br />

deixavam as extremas do campo para uso dos pobres da cidade e forasteiros. E também indagou se seu irmão punha de parte o<br />

décimo da colheita destinado ao Sacerdote, como manda o mandamento. E perguntou depois se seu irmão deixava para os<br />

pobres a segunda camada de cachos de uva, em vez de colhe-la; e sem também nos campos de cereais deixava no chão as<br />

espigas dos pobres, que os respigadores vinham juntar, tudo de acordo com o mandamento. E como estávamos na primavera e<br />

o trigal ainda todo verde e ondulante ao vento, meu rabi o abençoou.<br />

Depois foi com seu irmão ver o pomar atrás da casa, e atentar se em cada figueira estava marcado, o primeiro<br />

figo, pois que teria de ser levado como primícia da estação ao Templo de Jerusalém. E a horta viçava no apogeu, e sua mãe no<br />

meio das verduras colhia cebolas e cenouras para a comida do Sábado. E meu rabi lhe disse:<br />

− Mãe, larga do trabalho, deixa-o para os meus discípulos, que logo chegarão da cidade e prepararão a festa do<br />

Sábado para o seu rabi, porque é isso o que lhes compete.<br />

E sua mãe respondeu:<br />

− O mandamento e a boa feitura do Sábado são coisas grandes, e quanto mais nela trabalhamos maior é o mérito.<br />

E meu costume ainda é o que era nos dias de teu pai; os frutos mais maduros e os melhores vegetais, eu os marco para serem<br />

colhidos na véspera do Sábado.<br />

E ele tomou o seu irmão menor Judas e levou-o ao estábulo. Judas era muito pequeno quando ficou órfão e<br />

tornou-se o mais amado de todos, sobretudo do nosso rabi, que o queria como se fosse seu pai. E o rabi lhe disse lá fora:<br />

− Judas, tinoki, ou Judas, meu pequeno, vamos, leva-me para onde está o gado.<br />

Porque ao menino incumbia cuidar do pequeno rebanho do qual a mãe do rabi obtinha o leite e o queijo de<br />

consumo na casa e a lã com que fazia as cobertas para o inverno e as roupas de todos os dias. Pequeno era o rebanho, composto<br />

de alguns carneiros e algumas cabras. E quando nos aproximamos dos animais, vieram os carneiros rodear o meu rabi, como se<br />

quisessem conhece-lo, e lamberam-lhe as mãos e os pés. E ele indagou de coisas relativas ao bem estar dos animais, e se ele os<br />

atendia quando reclamavam água. E Judas respondeu:<br />

− Tudo faço do melhor modo, pois desde os dias de Abraão não têm sido os nossos antepassados pastores?<br />

E meu rabi disse: “Bem respondido, meu filho”.<br />

E enquanto isso voltaram da cidade os discípulos e com eles a mulher que os acompanhava desde Naim, Míriam.<br />

E quando a mãe do rabi viu os discípulos (porque nem todos tinham estado lá na noite anterior), perguntou:<br />

− Quem são estes homens?<br />

E o meu rabi respondeu:<br />

− Todos aqui são almas que eu criei; poucos em número, hoje, mas legião em dias vindouros.<br />

E o rabi tomou a mão da mulher e levou-a à sua mãe e disse:<br />

− Entrego-a à tua graça, mãe; toma-a contigo, porque tem sido uma abandonada; e ensina-lhe todos os<br />

mandamentos que deve acatar uma filha do nosso povo.<br />

E a mulher curvou-se diante da mãe do rabi e tocou-lhe na bainha da saia e disse:<br />

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5


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

− Não sou digna de com as minhas mãos tocar a fímbria de tuas vestes, porque sou impura.<br />

Mas a mãe do rabi ergueu-a e disse:<br />

− Levanta-te, minha filha; impura não é quem meu filho purificou. E depois: Grande dia para mim é o de hoje,<br />

não só porque me permitiu Deus rever o rosto de meu primogênito, como porque me trouxe os discípulos que fez e as almas<br />

que salvou. Haverá em Israel mais feliz mãe que eu? Ide agora ao curral escolher um carneiro para, segundo o mandamento,<br />

ser sacrificado e preparado para o dia de amanhã. E tu, minha filha, me ajudarás a preparar o pão e a encher as lâmpadas.<br />

E a mãe do rabi levou Míriam para dentro e lá tomaram a branca farinha e a misturaram com o azeite de uma<br />

cabaça; prepararam a massa e a levaram ao fogo; depois dividiram o pão.<br />

E os discípulos foram com Judas ao curral e lá pegaram um carneiro e o sacrificaram segundo o ritual e os<br />

mandamentos. E Jacó e Jochanan, os filhos de Zebedeu, abriram uma cova na qual acenderam fogo de palha e lenha, e<br />

formaram as brasas e nelas assaram o carneiro. Pois dobrada seria a virtude se cada discípulo comparticipasse no trabalho de<br />

preparação de comida do rabi e do mais para o Sábado. E assim os irmãos Zebedeu iam virando o espeto sobre as brasas. E<br />

Filipe ocupava-se das verduras e raspava as beterrabas. E um trouxe óleo do mercado e nele empapou o peixe e o enrolou em<br />

farinha e o assou. E Timóteo e Jacó ben Halfi lavaram as vestes externas que os discípulos haviam tirado durante o serviço,<br />

para que não se sentassem à mesa com o rabi com as roupas enxovalhadas no trabalho. E as roupas secaram ao sol e ficaram<br />

prontas para o Sábado. E eu lidei com as lâmpadas, preparei os pavios, de modo que não dessem fumo nem mau cheiro. E<br />

André trabalhou na preparação do vinho. Porque eu e André tínhamos instrução nas leis pertinentes à preparação dos vinhos e<br />

lâmpadas e óleos, como também nas leis do Sábado. E Simão o Zelote tirou água do poço. Mas Simão bar Jonas ocupou-se<br />

com o rabi e preparou-lhe o banho do Sábado, aquecendo água e levando-a numa grande vasilha ao canto do quintal cercado de<br />

folhas de palmeira, como convinha. E para lá levou meu rabi e lavou-lhe o corpo e ungiu-o e vestiu-o, e pôs-lhe por sobre as<br />

vestes o manto de franjas de nome zizit, e calçou-lhe as sandálias e reclinou-o num canapé, para que o nosso rabi lembrasse um<br />

anjo do Senhor descido do céu para abençoar o Sábado.<br />

E quando o meu rabi se reclinou no canapé e deu tento à beleza do mundo inundado da luz do sol, e viu seus<br />

discípulos na faina da preparação do Sábado, encheu-se de alegria. E depois começou a chegar gente da cidade, entre elas<br />

pessoas de grandes posses, ansiosas por novidade; e pobres que vinham atrás de esmolas, pois tinham ouvido que o nosso rabi<br />

dava aos pobres o dinheiro recebido dos ricos. E também vieram os aleijados e cegos que nele não criam e curados não seriam<br />

– vinham também apenas pela novidade. Homens cultos não apareceram, porque não os havia na cidade, com a exceção do<br />

chefe da sinagoga, os rabis e os fiscais do Templo, membros que também eram das pequena corte local. E por ali de pé ficou o<br />

povo, e caçoava. E dizia um para o outro: “Vê, ele traz consigo discípulos”. E o aleijado conduzia o cego, e perto de nós<br />

ficaram motejando. “Dizei-me: não trouxe ele muitos camelos carregados de bilhas de óleo?” E o aleijado respondia: “Não –<br />

não vejo camelos carregados de óleo”. E o cego perguntava de novo: “Talvez haja trazido sacos de dinheiro”. E o aleijado:<br />

“Não – não vemos sacos de dinheiro que ele haja trazido”. E o cego: “Olha bem!” E outros respondiam: “Só vemos gente<br />

pobre como ele mesmo, por ele trazida e também uma mulher – são os seus discípulos”. E o cego: “Mas talvez haja<br />

magicamente transportado para cá o palácio do rei, para que nele more sua mãe”. E o aleijado respondia: “Não, só vemos a<br />

surrada casa da família onde sempre moraram”. E o cego ainda disse: “Mas talvez haja lá dentro uma mesa de ouro carregada<br />

de boas coisas, mandada pelo céu para a celebração do Sábado”. E outros responderam: “Não – nada de mesa de ouro e coisas<br />

finas; os discípulos assam pequenos peixes passados em óleo, como fazem todos os pobres na festa do Sábado”. E o cego ainda<br />

perguntou: “Dizei-me: Não adornou ele sua mãe com pedras preciosas e não a vestiu de trajes reais?” E eles: “Não – sua mãe<br />

usa as roupas de algodão grosso da mulher do pobre”.<br />

E Simão bar Jonas falou àquela gente e disse: “Vós todos que sois cegos, por que estais aí parados, a mofar?<br />

Melhor que vos rojásseis por terra e implorásseis a cura da vossa cegueira. Porque a salvação reside com o nosso rabi, e ele<br />

pode ajudar-vos como ajudou a muitos que também eram cegos”. E o cego respondeu: “Oh, nós não somos tolos como a gente<br />

das outras cidades. Porque se ele pudesse ajudar a alguém, ajudar-se-ia primeiro a si próprio e aos seus. Daqui somos e vemos<br />

como seus irmãos mourejam no campo ou na carpintaria, tão pobres todos eles quanto nós. Por que não os enche de ouro? Por<br />

que magicamente não os cumula de tesouros?” E o cego e o aleijado riram e mofaram ainda mais, dizendo por fim para o meu<br />

rabi: “Doutor, cura-te a ti mesmo!” E apalpando com o porrete um dos cegos saiu da roda, em busca no nosso rabi e disse:<br />

“Onde está o homem que faz milagres, e por que não se nos revela aqui como o fez em outros lugares?” E assim falando,<br />

aproximou-se do nosso rabi, enquanto os outros gritavam com sarcasmo: “Cego, cego – foge, que ele soltou contra ti uma<br />

serpe e um buraco se abriu no chão à tua frente!” E o cego, em terror, gritava: “Onde? Onde?”<br />

Vendo aquilo, os irmãos Zebedeu largaram o trabalho e perguntaram ao rabi:<br />

− Queres que os expulsemos daqui? Por que deixas que moteje desde modo esta gente?<br />

E o rabi respondeu:<br />

− Eu não vim para destruir vidas, sim para construir.<br />

E ergueu-se de onde estava e se foi para o cego muito confuso e tomou-o pela mão. E quando julgamos que o<br />

nosso rabi o ia transformar num monte de cinzas, ouvimo-lo dizer:<br />

− Que te adiantam olhos que vejam, se cego permanece teu coração? e levou-o para o círculo de cegos, dizendo:<br />

“Cego que és, fica entre os cegos”.<br />

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6


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

Depois tomou dinheiro e distribuiu-o pelos pobres, e impondo a mão sobre um ou outro disse: “Permita Deus<br />

que tenhas fé, porque o que tem fé nunca será pobre”.<br />

E então soou o toque da buzina lá da sinagoga, avisando de que o Sábado estava próximo e todos os trabalhos<br />

tinham de ser interrompidos. E o povo saiu dali e se foi para a cidade. E os discípulos e irmãos do rabi igualmente deixaram o<br />

trabalho e cobriram os instrumentos, para que o Sábado não fosse perturbado nem com a vista dos instrumentos de trabalho. E<br />

na tina do quintal os discípulos lavaram as mãos e os pés e vestiram as roupas lavadas e já secas. E o mesmo fizeram os irmãos<br />

do rabi. E da cidade vieram suas irmãs com os maridos e os filhos para saudar sua mãe no Sábado. E os discípulos estenderam<br />

as tábuas da mesa e cobriram-nas com a toalha. E a mãe do rabi e as mulheres lavaram o rosto e pentearam os cabelos, e<br />

vestiram as roupas do Sábado e prepararam as lâmpadas, tantas quantas havia, porque é bom iluminar a casa no Sábado com<br />

todas as lâmpadas existentes. E quando lá na sinagoga soou o segundo toque da buzina, acenderam-se as lâmpadas. E então a<br />

mãe do rabi colheu flores e folhas da oliveira do quintal e adornou a mesa, e lá do seu quarto trouxe a garrafa de vinho de<br />

tâmaras e colocou-a onde estavam os pães do Sábado.<br />

E quando o sol descambou e ouvimos o terceiro toque da buzina, chamou o rabi aos discípulos e entre eles ficou<br />

no pátio para receber o Sábado. E quando as primeiras estrelas brilharam, pronunciou o “Ouve, ó Israel” da tarde e todos<br />

responderam “Amem”.<br />

E entramos então na casa, já com todas as lâmpadas acesas e enfeitadas com flores e ramos de oliveira. E em sua<br />

veste branca o meu rabi brilhava como um anjo do Senhor. E depois de haver saudado os anjos que com o advento do Sábado<br />

entraram na casa; o rabi tomou a mão de sua mãe e fê-la sentar-se ao seu lado, e todos os irmãos também se sentaram, na<br />

ordem da idade. E o mesmo fizeram os discípulos, as irmãs e os maridos. E então o rabi levantou a sua malga e santificou o<br />

Sábado e bebeu do vinho e fez que também dele bebessem as crianças. Depois lavou as mãos e nós fizemos o mesmo. E disse a<br />

prece ao Senhor sobre o pão de cada dia, como é do costume em todas as refeições. E depois repartiu o pão, primeiro dando-o<br />

às crianças, depois à sua mãe e por fim aos discípulos, irmãos e irmãs.<br />

E nós, os discípulos, nos levantamos, e cada um por sua vez serviu o rabi, porque grande é o mérito de servir a<br />

um rabi, mais ainda que servir pai e mãe. E depois descobrimos os pratos sobre a mesa, e primeiro deixamos que neles as<br />

crianças metessem as mãos, porque é do costume que os pequenos se alimentem antes dos grandes. Depois tomou o rabi a<br />

comida entre seus dedos, e cada um de nós se serviu a seu turno, segundo a ordem dos anos.<br />

E entre um prato e outro cantamos versos dos Salmos, e nosso rabi nos explicou as palavras dos textos, e grande<br />

era a alegria na mesa. Benditos os olhos que contemplaram aquela cena! E quando vi como a mãe se sentava entre seus filhos,<br />

e como as lâmpadas iluminavam, e como brilhava a luz do Sábado e estava adornada e limpa a casa, e como o espírito do<br />

Senhor presidia à refeição, pois que todos falavam em coisas sagradas, então me vieram à lembrança aqueles versos: “Como a<br />

mãe se rejubila com seus filhos, aleluia!”.<br />

E naquela noite, nós, os discípulos, nos alojamos no pátio da casa do rabi, cada qual se arrumando como pôde,<br />

porque todos queríamos estar com o rabi pela manhã, para a ida à sinagoga. Porque está escrito: “Na multidão do povo está a<br />

majestade do rei”, e um rabi é como um rei e o acompanhamento dos discípulos o honra.<br />

E quando amanheceu lá nos movemos e nos fomos para a sinagoga. E de todas as casas saia gente de rumo para<br />

lá, e galgavam as ladeiras porque a sinagoga era na parte mais alta da cidade. E a sinagoga já estava cheia, porque ninguém<br />

ignorava a vinda do rabi com os seus discípulos e todos esperavam ver algum milagre, como acontecera em outros pontos.<br />

Junto à parede de leste, no estrado, lá onde ficava a arca com as Escrituras, sentaram-se o chefe da congregação e os principais<br />

homens da cidade. E o chefe da congregação era um velho de longa barba branca, em brancas vestes do Sábado. E dum lado<br />

tinha o chefe das preces, que era professor de meninos, ainda na força dos anos; fazia parte do Sacerdócio e dos filhos de<br />

Aarão; homem de muito cabelo, com a barba penteada a moda dos sacerdotes. Do outro lado o principal ajudante do chefe da<br />

sinagoga, moço ainda. E perto deles sentavam-se os velhos, entrajados em suas roupas do Sábado, com os mantos de franja. E<br />

o povo ali se distribuía conforme a posição de cada um, os ricos e importantes nos primeiros lugares, os pobres perto da porta.<br />

Como está escrito: “Como um homem pobre na porta”. E as mulheres ficaram no lado das mulheres, separadas dos homens por<br />

dupla fila de pilares, de modo que ouvissem a prece dos homens mas não pudessem vê-los. E nosso rabi tomou o seu lugar na<br />

porta, como de costume, com os discípulos atrás. E quando a sinagoga se encheu, o chefe levantou-se e disse:<br />

− Está entre nós algum hospede importante ao qual possamos pedir que nos leia o Torah?<br />

Alguém entre o povo respondeu:<br />

− Acaba de voltar à cidade Reb Yeshua ben Joseph, que mereceu a honra de tornar-se rabi em Israel e veio<br />

cumprir o mandamento de honra aos pais. E está agora aqui presente com os seus discípulos.<br />

E então o chefe da sinagoga disse:<br />

− Que o rabi Yeshua ben Joseph seja a voz da congregação neste Sábado.<br />

Era costume de Israel que quando um homem fosse convidado para voz da congregação na prece, por três vezes<br />

recusasse a honra, declarando-se indigno e assim demonstrando modéstia – e só ao quarto convite cedesse. Mas nosso rabi não<br />

procedeu assim. Ao primeiro convite do chefe da sinagoga encaminhou-se para o púlpito. Envolvido no manto de franjas,<br />

começou a orar em voz alta:<br />

coisas!<br />

− Bendito sejas, ó Senhor, dono do universo, criador da luz e das trevas, mensageiro da paz, autor de todas as<br />

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O povo dobrou os joelhos e cobriu o rosto com os mantos de rezar.<br />

E quando chegou a passagem em que o mensageiro da congregação abençoa o Sábado, então o nosso rabi<br />

acentuou as palavras com grande força: “Derrama sobre teu povo uma grande e eternamente duradoura paz, porque tu és o<br />

príncipe e o rei da paz”.<br />

E aqui deixou o rabi a oração costumária e, como faziam os grandes rabis, prosseguiu com palavras próprias. E<br />

quando o povo na sinagoga ouviu a sua prece verificou que era a do homem pobre que o rabi dizia a cada refeição. E disseram<br />

uns para os outros: “É a oração do homem pobre e é boa”, e repetiram-na com ele.<br />

E quando a mãe do rabi, que estava no lado das mulheres, ouviu a voz do filho orando em nome da congregação,<br />

encheu-se de felicidade e orgulho, e as outras lhe disseram: “Bendito o ventre que gerou tal fruto, ó abençoada entre as<br />

mulheres!”<br />

E então, acompanhado pelo homem principal, subiu o rabi para a arca das Escrituras e da lá retirou o Torah; e<br />

quando o vimos de pé, envolto no manto de franjas, com o rolo sagrado erguido acima de nossas cabeças, foi como se<br />

víssemos Moisés no Monte Sinai, e a assistência curvou-se e cantou o canto dos degraus, que cantam quando sobem para o<br />

pátio do Templo.<br />

E então o rabi, o chefe da sinagoga e o ajudante trouxeram o rolo para o púlpito e desenrolaram-no para que<br />

ficasse aberto no ponto a ser lido, e os principais da cidade foram convocados à honra de cada um ler o seu trecho. E cada um<br />

leu o seu trecho e o tradutor o traduziu ao público.<br />

E quando chegou a vez do nosso rabi, ele leu com grande força a sua parte; e em seguida o ajudante desenrolou o<br />

rolo na seção dos profetas e mostrou ao rabi a parte que devia ser lida naquele Sábado.<br />

Mas o rabi tomou o rolo e o desenrolou em outro ponto, ou seja no Livro de Isaías, na parte em que o profeta fala<br />

nos prenúncios do Messias. E envolto em seu manto, ergueu o rolo e leu com voz potente: “O espírito do Senhor desceu sobre<br />

mim, pois que me ungiu para trazer novas aos pobres. Mandou-me para curar os corações aflitos, para libertar os<br />

prisioneiros...”<br />

Ouvindo tais palavras, o chefe da sinagoga estremeceu e se foi para o rabi e disse:<br />

− Não é esse o profeta prescrito para a leitura adicional de hoje – mas o rabi entregou o rolo ao ajudante e<br />

continuou a dizer as palavras de Isaías, que ele sabia de cór:<br />

− Deus mandou-me libertar os encadeados, e proclamar um ano de devotamento a Deus. O povo que caminhava<br />

no escuro viu uma grande luz.<br />

E o chefe da sinagoga e os velhos estavam pálidos e com medo, e se achegaram do meu rabi e disseram:<br />

− Que palavras são essas e que queres significar? Não és o filho de Joseph, com irmãos e irmãs morando aqui? A<br />

quem diriges tais palavras, e que queres dizer com elas?<br />

Mas o nosso rabi não os ouvia e continuava em voz potente:<br />

− Deu-me o Senhor a língua dos que sabem, dos que falam para os exaustos. Abriu-me os ouvidos o Senhor e eu<br />

os não fechei. Dei as costas para os violentadores, e minhas faces para os que arrancam as barbas, e não recuei meu rosto do<br />

vexame de que nele cuspam. E pois de nada me envergonho, e porisso meu rosto é forte como a pedra e sei que ele não vexará.<br />

E o chefe da sinagoga apelou para o povo em altas vozes:<br />

− Expulsai-o daqui, porque ele blasfema contra Deus!<br />

E foi o povo tomado de medo e espanto, porque o rosto no nosso rabi estava branco e brilhava com o sol, e sua<br />

voz era como a do raio que cai na montanha, e suas palavras tinham graça e beleza. E os espectadores, atônitos, diziam um<br />

para o outro: “Mas este é o filho de Joseph; quem lhe ensinou a ler as sagradas escrituras?<br />

E Simão bar Jonas interveio e disse:<br />

− Por acaso não ouvistes o que fez ele em K’far Nahum, onde curou doentes e deu olhos aos cegos? E não<br />

soubestes do que fez em Naim? E não chegou até aqui a voz corrente de que ele é um santo em Israel? Ide, estendei para ele os<br />

vossos braços, porque dele depende a vossa salvação.<br />

dizendo:<br />

E ouvindo a voz de Simão e vendo a luz do rosto do rabi, vários caíram a seus pés e estenderam os braços,<br />

“Rabi, acode-nos! Mostra-nos os milagres que fizeste em K’far Nahum”. Mas o nosso rabi respondeu: “Não me<br />

lançastes ao rosto a parábola do “Doutor, cura-te a ti mesmo”? Na verdade vos digo que não há profeta em sua terra. Muitas<br />

viúvas havia nos tempos de Elias, quando ele suspendeu as nuvens por três anos e seis meses, e houve fome na terra; mas Elias<br />

não foi enviado senão a uma das viúvas, em Zerifin, em Sidon. E muitos leprosos havia no tempo do Eliseu, e ele só limpou<br />

Naaman o sírio.<br />

E quando isto ouviram grande clamor se levantou no povo em cólera, e tê-lo-iam maltratado, se não fossem os<br />

discípulos que o defenderam. E saímos da sinagoga, lá deixando os fiéis grandemente perturbados.<br />

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E aconteceu que depois da volta à casa da mãe do rabi suas irmãs brigaram com os maridos por causa dele. E<br />

esses homens diziam: “Como vamos agora erguer nossos olhos nesta cidade? E, ademais, vão eles tirar-nos o pão por causa das<br />

palavras que pronunciaste”. E até mesmo alguns dos irmãos de Yeshua estavam de má cara, e murmurando: “O povo da cidade<br />

vai vingar-se e nós seremos as vítimas”. Mas a mãe do rabi sentou-se com seu filho a um canto e embora estivesse de coração<br />

dorido nada deixou transparecer, porque era o Sábado. Apenas disse ao nosso rabi:<br />

sandálias.<br />

− Sinto-o por ti, meu filho. Deus te guarde.<br />

E quando a tarde caiu e as estrelas vieram, o rabi juntou seus discípulos e disse:<br />

− Já nada tenho com esta gente daqui. Levantemo-nos e vamo-nos para K’far Nahum.<br />

E alguém perguntou:<br />

− Não dormirás esta noite na cidade?<br />

E ele respondeu:<br />

− Uma cidade que destrói seus filhos é pior que um animal selvagem. Não levemos daqui nem o pó em nossas<br />

E quando foi ter com sua mãe afim de pedir licença para retirar-se, ela cobriu o rosto e chorou, dizendo:<br />

− Meu filho, não quero que vás. Agora vejo quão perigoso é o caminho que escolheste, e temo pela tua vida.<br />

Mas o rabi respondeu:<br />

−Pelo meu pai do céu me foi apontado esse caminho e nele já tenho os pés. E antes que ele chegue ao termo da<br />

viagem, tu não verás de novo o rosto de teu filho.<br />

E o nosso rabi deixou sua mãe em lágrimas e abandonou aquela cidade e nós o acompanhamos. E já em marcha,<br />

no silêncio da noite, ainda nos chegava a voz de sua mãe a chamá-lo: “Tinoki, tinoki, meu filho, meu filho”, ao que ele<br />

respondia: Imi, imi, minha mãe, minha mãe”.<br />

E quando já íamos longe da cidade ouvimos passos atrás de nós. Era Jacó, o irmão do rabi, o qual lhe perguntou:<br />

− Jacó, meu irmão, que fazes aqui?<br />

E Jacó respondeu:<br />

− Quero seguir teus passos.<br />

E o rabi respondeu:<br />

− Volta, Jacó; tua hora ainda não chegou.<br />

E os dois irmãos abraçaram-se e beijaram-se – e Jacó voltou e nós prosseguimos na jornada.<br />

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E saímos noite a dentro e pela manhã chegamos a Migdal, a cidade dos tintureiros. E nos detivemos diante duma<br />

casa que Míriam, a mulher do Migdal, nos apontou. E era cidade rica, cheia de povo, porque nas suas águas abundava aquele<br />

mexilhão de nome hiluzon, do qual se extraí a tinta púrpura. Também lá criava o povo as pombas próprias para os sacrifícios<br />

no Templo – e por isso era uma cidade pintalgada de tinta púrpura e cruzada de vôos de pombas. E o rabi sentou-se conosco na<br />

casa de estudo, onde já estavam reunidos alguns homens de cultura, e ensinou-nos a sua doutrina, a nós, seus discípulos. E<br />

muita gente da cidade veio ouvi-lo e saiu a lhe espalhar a fama, dizendo que pérolas lhe rolavam da boca. E agradou-se o meu<br />

rabi de lá ficar, por ser uma terra cujo povo muito o honrava. Mas nenhum milagre realizou.<br />

E depois de alguns dias fez-nos embarcar de rumo a K’far Nahum, onde Simão o Pescador o conduziu à casa de<br />

sua sogra, a qual lhe havia preparado o cômodo sobre o teto.<br />

E a K’far Nahum foram ter as mulheres de Naim: – Jochana, a esposa do oficial de Herodes, e Suzana. Jochana<br />

era esposa dum homem rico e dona de muitos campos; e levou o seu dinheiro e deu-o ao nosso tesouro; e nós compramos pão<br />

para os pobres que se reuniam em redor do nosso rabi. E Suzana juntou-se à sogra de Simão e outras mulheres devotas ali<br />

presentes e entregues à faina de servir ao rabi e seus discípulos. E cuidavam também das festas que o rabi dava aos pobres<br />

vindos em busca da salvação. Só Míriam, a mulher de Migdal, não tomava parte nas tarefas caseiras, porque se dava toda a<br />

atender ao nosso rabi. E quando findos os seus sagrados trabalhos do dia, nosso rabi entrava para o cômodo lá no teto, ou na<br />

hora de graça, Míriam lhe caia aos pés em submissão de espírito, e a espuma lhe vinha à boca e o espírito santo sobre ela<br />

descia e a punha em exaltação profética. Mas nós os discípulos, com base nas escrituras, não gostávamos que assim fosse e<br />

Míriam se separasse das outras mulheres; e murmurávamos contra suas maneiras e também porque ela punha o nosso rabi na<br />

companhia dos pecadores.<br />

E também víamos que o semblante no nosso rabi não era o mesmo para todos os seus discípulos. A mim, o<br />

menor de todos, e também a André e Simão o Zelote, ele ia afastando, ao passo que cada dia mais se aproximava de Simão bar<br />

Jonas, o irmão de André, e de Jacó e Jochana, os dois Zebedeus, os quais entravam no cômodo mais vezes que nós; e com eles<br />

freqüentemente se fechava o nosso rabi e lhes dizia coisas que não dizia a nós. E os desfavorecidos queixavam-se e<br />

disputavam, enciumados.<br />

Simão bar Jonas era o de mais fé e parecia com os tomados do amor. Ficava diante da porta fechada do rabi e<br />

cria ouvir lá dentro vozes, embora o rabi estivesse sozinho. E tanto ele como os irmãos Zebedeu criam que a salvação só vinha<br />

através dos ignorantes e simples, porque é a fé e não a razão que tem a chave do reino do céu. Os irmãos Zebedeu eram<br />

homens de poder e riqueza. Dispunham de muitos barcos de sua mãe mas tudo abandonaram para seguir o rabi. E Jacó, o<br />

irmãos mais velho, era o discípulo amado por causa de sua fé, talvez ainda maior que a de Simão. E certa vez que fomos à<br />

praia do Mar de Genesaré e quisemos passar do outro lado e não havia barco próximo e Jacó disse ao rabi:<br />

− Rabi: está na tua vontade de abrir o mar como o fez Moisés no êxodo dos judeus do Egito e nós passaremos<br />

para o outro lado a pé enxuto.<br />

E o rabi respondeu:<br />

− Estivesse eu contigo sozinho e o faria, porque nada há acima do poder da fé; mas a pequenez da fé dos outros<br />

não mo permite.<br />

E o rabi falava assim por ver que eu não acreditava naquilo. E Jacó sentou-se aos pés do rabi e serviu-o, como<br />

fazia Simão. E Jochanan seu irmão era mais alto e mais largo de ombros que os outros, um gigante com voz de gigante, muito<br />

íntimo com o povo comum, pois que dele provinha. E o rabi fez previsões sobre seus três discípulos, desta maneira: “Simão é a<br />

pedra sobre a qual me firmo; Jacó é o bordão a que me arrimo e Jochanan a trombeta por meio da qual eu chamo”.<br />

E, ao voltarmos para K’far Nahum, Jochanan foi à praia onde estavam os pescadores, e ao mercado, e à porta das<br />

pombas, que é entrada da cidade e disse à gente simples: “O homem-maravilha está de novo entre nós. Vinde todos que tendes<br />

sede de amparo”.<br />

E quando soube o povo que o rabi havia voltado, começou a reunir-se diante da casa de Simão e a invadi-la, de<br />

mãos espichadas e na boca o apelo: “Rabi, socorrei-nos!” E quando viu o rabi a sequiosa multidão, sua força cresceu, sobre ele<br />

desceu o Espírito Santo, ele tornou-se um poço cheio de água da consolação e da salvação de Israel.<br />

E ele colocou seu branco manto de franjas e saiu com os discípulos. E quando a multidão o viu assim, de branco<br />

e rodeado de seus discípulos, todos se lhe arrojaram aos pés: “Santo de Israel, socorrei-nos!” e o rabi disse:<br />

−A compaixão não desce do céu sem que da terra seja implorada, e varando pelo meio do povo começou a<br />

perdoar pecados e a curar os doentes e a consolar os aflitos.<br />

Havia em K’far Nahum um homem de dignidade, culto e muito na estima de todos, que era o chefe da sinagoga<br />

onde o rabi pregava. Esse homem tinha fé no rabi. Veio à sua procura, e caiu-lhe aos pés, e convidou-o a ir à sua casa, onde a<br />

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IX<br />

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“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

filha única, menina de doze anos, estava à morte. Mas era tal o aperto da multidão em roda do rabi que ele não podia<br />

desvencilhar-se; e estava ainda o chefe da sinagoga naquilo, quando alguém chegou em sua procura, a correr.<br />

− Tua filha morreu; escusa agora incomodar o rabi.<br />

Mas o rabi ouviu e disse-lhe:<br />

− Nada temas, sê forte e tua fé te ajudará.<br />

E afinal desembaraçaram-se da multidão e foram à casa do chefe da sinagoga, e o rabi só deixou que com ele<br />

entrassem seus três discípulos Simão, Jacó e Jochanan; e lá dentro disse aos pais da menina:<br />

− Não choreis porque a menina apenas dorme, não está morta; e, tomando a mão da criança, disse: “Pequenina,<br />

levanta-te”. E ela levantou-se tão boa como qualquer de nós. E nós, os discípulos que ficamos de fora, murmuramos: “Por que<br />

não fomos considerados dignos de presenciar o milagre?” E a cólera nos tomou, em virtude da inveja que sentíamos do trato<br />

especial que o rabi dava a Simão e aos Zebedeus.<br />

E o modo de agir do nosso rabi era este: ele saia num barco, remado pelos dois discípulos queridos, Simão e<br />

Jacó, e ia ter à praia duma cidade perto de Genesaré, onde o povo se reunia e ele falava do mesmo bote; e dizia muitas coisas<br />

sábias e parábolas, afim de ensinar ao povo como alcançar o reino do céu. E dizia: “O reino do céu é como um homem que<br />

semeia a semente. Ele dorme de noite, levanta-se de manhã e a semente germina sem que ele saiba dela. Porque o solo extrai<br />

de si mesmo os frutos e as plantas”. E outras analogias ele expunha; os de boa cabeça entendiam-lhe o sentido; e os de cabeça<br />

fraca eram arrastados pela beleza da parábola. E ele não falava senão por meio de parábolas. E era sabido que Herodes<br />

Antipatro ouvira falar do rabi e tinha-lhe medo, e desejava vê-lo e falar-lhe; porque muita gente acreditava que o nosso rabi era<br />

o mesmo Jochanan o Batista que Herodes mandara decapitar em sua fortaleza. E Herodes estava com o medo no coração e<br />

perguntou: “Como pode retornar à vida um que eu decapitei?” E os sábios também estavam descontentes com o nosso rabi<br />

porque não se comportava como eles; e mesmo os discípulos de Jochanan o Batista mostravam para com o rabi hostilidade,<br />

visto como o rabi não pregava o jejum e a mortificação da carne, como fizera a Jochanan. E também muitos donos de casas e<br />

homens de dinheiro o malqueriam, porque o rabi tomava o tempo dos jornaleiros.<br />

E quando a policia urbana aparecia na praia onde o meu rabi falava, Simão e Jacó metiam os remos e afastavam<br />

o bote, de modo que ninguém pudesse segui-los. E também faziam o seguinte: tomavam os botes da mãe dos Zebedeus e<br />

levavam-nos, cheios de gente, atrás do bote do rabi. E nos próprios botes preparavam o pão e outras comidas, com o dinheiro<br />

dado por Jochana, Suzana e outras devotas. E o rabi com os seus seguidores se passava para outra praia do Mar de Genesaré,<br />

como Bet Zeida, ou outro ponto vazio de gente; e desembarcávamos e nos espalhávamos pelos campos. E vezes havia em que<br />

penetravam em ruínas e nos ocultávamos nos vinhedos perto da praia. E o rabi sentava-se no meio da gente e com ela repartia<br />

o pão, ensinava as veredas de Deus e proclamava o advento do reino do céu. E dizia-lhes o que tinham a fazer para que<br />

pudessem herdar o mundo futuro e ser dignos dum lugar no reino do céu. E às vezes curava um doente com ervas, às vezes<br />

apenas lhe impondo as mãos. E trazia a calma aos atormentados de espírito e reconfortava os abatidos e perdoava aos<br />

pecadores. E o povo a ele se agarrava e ele era corpo e alma com o povo.<br />

E a fé de Simão bar Jonas em nosso rabi aumentava cada vez mais. Chegou a crer possível coisas jamais feitas<br />

por homem de carne e sangue; e que o rabi tinha poder não só sobre os homens, como sobre os espíritos e as forças dos<br />

elementos; e que os anjos estavam sempre prontos a atender aos seus pedidos.<br />

E Simão tinha visões que nenhum outro via, e ouvia vozes que nenhum outro ouvia. E certa vez houve isto:<br />

Tínhamos deixado o nosso rabi na praia do mar, visto como era seu desejo orar sozinho. Afastamo-nos até certa distância em<br />

nossos botes para a ele retornar mais tarde. Entrementes sobreveio a noite, e um nevoeiro sobre a água tudo ocultou, e era<br />

como se céu e mar se fundissem num só corpo. E a escuridão se fez espessa a ponto de não vermos a proa dos nossos botes, e<br />

os remadores apalpavam o caminho no escuro. E os filhos de Zebedeu, que estavam remando, disseram: “Voltemos à praia<br />

onde está nosso mestre, pois é tarde”. E Simão bar Jonas e os outros ali no bote mostravam-se inquietos quanto ao nosso rabi,<br />

depois que o mar mudara de feição. Súbito, um grito de Simão bar Jonas: “Olhai! Olhai!...” e olhamos na noite, mas as trevas<br />

nos tirava a vista de tudo, como se uma rede estivesse estendida diante de nossos olhos, e não vimos nada senão o negrume em<br />

redor. E perguntamos, em terror: “Simão bar Jonas, que estás vendo? E Simão bar Jonas apontou num rumo e disse: “Vejo o<br />

meu rabi a encher o espaço do mundo, com a cabeça nas estrelas, e a caminhar sobre as ondas, e as ondas deitam-se aos seus<br />

pés como cordeiros e deixam que sobre elas ele caminhe”. E firmamos a vista nas trevas e nada vimos, como se a escuridão<br />

fosse um escudo de aço sobre as águas, e nem nos víamos uns aos outros; mas a voz de Simão continuava: “Vede! Ele caminha<br />

sobre o mar. Vem vindo do nosso lado...”<br />

E certo dia nosso rabi saiu de bote com alguns discípulos e povo atrás e chegaram a uma praia e como de<br />

costume desembarcaram para o repartimento do pão. E alguns dos discípulos, entre os quais eu, Judas, ficamos nos botes, de<br />

guarda. E a noite veio e o rabi e os demais não voltavam – e desembarcamos e ficamos na praia a esperá-los. E uma borrasca se<br />

ergueu das águas e encapelou as ondas e ergueu-as altas como montanhas. E nós, de pé na praia, ouvíamos o rugir das ondas<br />

que se arremessavam uma sobre a uma, como leviatans que tudo espedaçam com a cauda. E nossos corações estavam como<br />

água, de medo pelo destino do nosso rabi e os outros discípulos. E as mulheres vieram com lâmpadas e ali ficamos na praia a<br />

esperar. Subitamente ouvimos vozes dentro da noite, em apelo: “Hosana! Salva-nos!” e depois um silêncio como se uma<br />

grande espada houvesse decepado a cabeça das ondas e a todas abatido. E das trevas emergiu calmamente uma embarcação da<br />

qual em suas brancas vestes, desceu em terra o nosso rabi; e depois desceram Simão bar Jonas e os Zebedeus com as roupas<br />

em frangalhos, cabelos e barbas revoltos, encharcados da cabeça aos pés. E com as mãos estendidas e os olhos em fogo, Simão<br />

gritava para nós, e nós ouvíamos o bater de seu coração: “Vede e ouvi o que Deus nos fez. Estávamos longe no mar quando a<br />

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tempestade sobreveio de chofre, de modo que logo nos vimos rodeados num cerco de altos vagalhões demoníacos e ferozes,<br />

com guelas abertas para nos tragar. Olhamos para o nosso rabi como quem olha para a salvação – mas ele dormia em santa paz,<br />

descansando dos trabalhos do dia. Tinha a cabeça apoiada sobre a mão direita e o corpo coberto com o manto. E ficamos a vêlo<br />

respirar. Súbito, uma violenta onda sobreveio, que nos destroçou o leme e fez gemer o madeirame. E nós gritamos: “Rabi,<br />

rabi, não ouves estes tumultos, não vês o nosso terror? Tem compaixão dos que te seguem os passos, mesmo dentro do mar<br />

tempestuoso”. E ele despertou e olhou-nos e disse: “Ó homens de pouca fé!” E como um senhor que repreende a cães que<br />

molestaram seus amados hospedes, ele repreendeu as ondas, e logo as viu submissas, baixando as cabeças a seus pés. E nós<br />

varamos, como os judeus vararam o Mar Vermelho.<br />

E quando ouvimos o que nos disse Simão bar Jonas, pusemos nossas mãos e oramos ao nosso pai do céu pela<br />

bondade que havia mostrado, e o temor do nosso rabi encheu todos os nossos corações. E os que tínhamos pouca fé fomos<br />

vencidos pelo medo. E achegamo-nos do nosso rabi com o corpo em tremura, e espalhamos cinza sobre nossas cabeças e<br />

tiramos as sandálias e caímos aos seus pés, dizendo: “Malditos sejamos nós, que contra ti pecamos em nossos corações, ó santo<br />

de Israel! Perdoa-nos e lança-nos longe da tua presença!”<br />

E o rabi impôs sobre nós as mãos e disse:<br />

− Erguei-vos e consolai-vos; vossos pecados estão perdoados, porque nada resiste à fé.<br />

E sentimo-nos consolados e com os corações cheios de certeza, e dissemo-nos um para o outro:<br />

− A salvação está à porta. Bendito o que viveu para vê-la!<br />

E entre os que pediram perdão ao nosso rabi estava eu, Judas Ish-Kiriot.<br />

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De Jerusalém haviam chegado naqueles dias os mensageiros de Hanan, o mais velho dos Sumos Sacerdotes,<br />

vindos para inquirir dos feitos e ensinamentos do nosso rabi. Porque a história do nosso rabi havia chegado ao Sanhedrim de<br />

Jerusalém e todos lá sabiam dos atos do rabi Yeshua ben Joseph e da estranha doutrina por ele espalhada, nem toda no espírito<br />

da tradição aceita; e o Sanhedrim expediu investigadores.<br />

Era de sete o número dos mensageiros ou deputados, todos muito eruditos nas escrituras e aptos a contar e pesar<br />

cada palavra.<br />

Entre eles vinha um muito notório em Jerusalém, de nome Nicodemo. Havia sido meu rabi e consócio, homem<br />

de mente una comigo, devoto e justo, e que também aguardava o advento do ungido de Deus, o redentor de Israel. E eu, servo<br />

de seu amo e Sumo Sacerdote, fui ao encontro de Nicodemo e adverti-o:<br />

− Não toques no santo de Israel!<br />

E contei-lhe das maravilhas até aquele momento realizadas pelo nosso mestre e também lhe expus a doutrina que<br />

pregava. E disse-lhe ainda o que ouvira à mãe do rabi em Nazaré: que ele era de Belém de Judá, a cidade mencionada pelos<br />

profetas.<br />

Nicodemo ouviu-me e observou:<br />

− Há qualquer coisa aqui.<br />

E também vieram os discípulos de Jochanan o Batista, os quais, depois da morte de seu rabi, decapitado por<br />

Herodes, se haviam disperso, como carneiros sem pastor, e esperavam a vinda do Messias anunciado por Jochanan.<br />

A eles me fui e contei dos admiráveis feitos de meu rabi; e Nicodemo e os discípulos de Jochanan, secretamente<br />

foram de noite à casa de Simão e se apresentaram diante do nosso rabi.<br />

− Dizei-nos agora quem és e dá-nos sinal do teu poder, para prova. És ou não és o Esperado?<br />

E a seu turno também falaram os discípulos de Jochanan:<br />

− Quando o nosso rabi ainda vivia mandou-nos ele a ti e em seu nome nós te perguntamos: “És o Esperado ou<br />

temos de continuar a espera-lo?” e tu respondeste: “Voltai a Jochanan e contai-lhe o que tendes ouvido. E abençoado o homem<br />

que a mim se dirige, porque esse não cairá”. E de volta já encontramos o nosso rabi decapitado por ordem de Herodes e<br />

incitamento de sua esposa. E aqui estamos agora como carneiros sem pastor, abandonados, porque teus caminhos são<br />

diferentes dos caminhos de Jochanan. Ensinava-nos o nosso rabi a manter puro o corpo – e tu te sentas com publicanos,<br />

pecadores e transgressores. Serás acaso aquele que os profetas anunciam? Se és, sopraremos as grandes trombetas e<br />

espalharemos a nova em Israel”. E estendendo para ele as mãos: “Tem compaixão de teus servos e livra-nos da incerteza”.<br />

Mas o nosso rabi não respondeu sim nem não. Falou em parábolas, dizendo:<br />

− Com quem posso assemelhar os homens desta geração e onde posso colocá-los? São como crianças no<br />

mercado, que dizem uma para a outra: “Nós tocamos para vocês e vocês não dançaram; nós lamentamos para vocês e vocês<br />

não choraram”. Jochanan se vai para vós, jejuno de carne e vinho, e vós dizeis: “Ele é um espírito”. E o filho do homem se<br />

vem para vós, e come e bebe, e vós dizeis: “Este homem é um glutão e um bebedor, companheiro de publicanos e pecadores”.<br />

Mas a sabedoria será justificada pelos seus filhos.<br />

E mais não falou, de modo que todos se retiraram da sua presença, tão ignorantes da matéria como no começo, e<br />

Nicodemo disse:<br />

− Nada mais agora nos resta nas mãos além da lei. É ela o fio que seguramos. Porque nos foi dada por Deus e<br />

nós a seguiremos. E faça Deus o que a Seus olhos for justo.<br />

E na manhã seguinte os mensageiros do Sanhedrim sentaram-se e chamaram a julgamento o nosso rabi, afim de<br />

que ele declarasse por si e seus discípulos. Porque um rabi tem a responsabilidade dos discípulos, como estes a tem de seu rabi.<br />

Os deputados do Sanhedrim sentaram-se na sala dos julgamentos que faz parte da sinagoga de K’far Nahum.<br />

Estavam entre eles Eliezer, filho de Judas, que era do partido dos Sumos Sacerdotes, e Nicodemo, filho de Nicodemo,<br />

discípulo de Hillel e muito respeitoso da tradição. E Nathan, filho de Ishmael, forte nas escrituras e discípulo de Shammai. E<br />

também convocaram Simão o Fariseu, da cidade de Naim, que hospedara o nosso rabi e fora o primeiro a disputar com ele<br />

quanto à remissão dos pecados. E o rabi Judas, filho de Hanan, era o chefe do tribunal, porque o mais velho. E o ajudante e<br />

chefe de orações da sinagoga sentaram-se com eles; e o povo veio e depôs sobre as palavras e feitos do rabi. E falaram assim:<br />

“Vimos o rabi Yeshua ben Joseph sentado à mesa com pecadores; vimo-lo junto com publicanos, que são equivalentes a<br />

salteadores; vimo-lo com mulheres de má reputação”. E isto ouvindo, a corte interpelou o nosso rabi. “Yeshua ben Joseph, por<br />

que te imiscuís com pecadores e publicanos e mulheres de má vida?” E nosso rabi respondeu: “O médico trata dos doentes e<br />

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não dos de perfeita saúde”, e a corte aceitou a sua resposta. E vieram outros e testemunharam que haviam visto, no Sábado, o<br />

rabi e seus discípulos num campo de trigo, e que alguns de seus discípulos colheram espigas apesar de ser Sábado, e comeramnas,<br />

e o rabi nada disse. A corte mandou buscar o nosso rabi e interpelou-o: “Yeshua, filho de Joseph, não sabes que está<br />

escrito: “E o Sábado será para sempre um signo entre mim, o Senhor, e os filhos de Israel”? Se teus discípulos profanaram o<br />

Sábado, a ti cabe a responsabilidade, porque é o rabi o responsável pelos pecados de seus discípulos”. E nosso rabi respondeu,<br />

dizendo: “Acaso não lestes o que fez Daví quando seus homens tinham fome? Como entrou na casa do Senhor e comeu o pão<br />

sagrado que nenhum homem pode comer, salvo se é Sacerdote? E deveis ter lido no Torah que os Sacerdotes profanaram o<br />

Sábado no Templo e isso não foi considerado pecado. E eu vos digo que há uma coisa ainda maior que o Templo, pois que está<br />

escrito: “Quero piedade, não o sangue dos sacrifícios”. E não acusareis o puro, porque o filho do homem é o senhor do<br />

Sábado”.<br />

Ao ouvir estas palavras a corte guardou silêncio, e a seguir Eliezer, filho de Judas, perguntou: “A quem se refere<br />

ele ao dizer filho do homem?” E Nathan, o filho de Ishmael, explicou: “Ele quer dizer o Messias, como está no livro de<br />

Daniel”. E nesse passo tomou a palavra Simão o Fariseu e perguntou: “Aceitam os nossos sábios a doutrina de que o perigo de<br />

vida tem precedência sobre o Sábado?” E Nicodemo, filho de Nicodemo, respondeu: “Sim, isto nos vem pela tradição do<br />

venerável Hillel. E os sábios também o deduzem do Torah, pois está escrito: “E ele será sagrado em ti”, isto é, o Sábado te foi<br />

dado e não foste tu dado ao Sábado”. E Nathan o filho de Ishmael retificou este conceito com as palavras do profeta Isaías: “E<br />

tu chamarás ao Sábado um deleite”, o que significa que é o Sábado um deleite e não uma carga. E o chefe do corte disse: “O<br />

rabi Yeshua ben Joseph citou o rei Daví e porisso está de pé sobre as bases do Torah – e sua resposta nós a aceitamos”.<br />

E vieram outros e testemunharam: “Vimos o rabi sentado à mesa, ele e seus discípulos, em companhia de<br />

pecadores e homens-da-terra, e com todos repartiu o pão sem que antes lavassem as mãos, como manda o mandamento”. E a<br />

corte muito se indignou, intimando o rabi a comparecer novamente porque aquela acusação era mais grave que as anteriores.<br />

E o nosso rabi cobriu-se com um manto negro, segundo a lei, e veio e sentou-se diante dos juizes. E ao saber<br />

disso o povo se reuniu no tribunal – o operário deixando o seu banco, o pescador deixando o seu anzol, o camponês deixando o<br />

seu arado. E a sala da sinagoga tornou-se pequena para conter tanta gente, e muita ficou de fora, tentando espiar pelas portas e<br />

janelas. Porque o tribunal se reunia de portas e janelas abertas para que todo o povo pudesse conhecer da Justiça de suas<br />

sentenças. E o chefe do tribunal disse:<br />

− Yeshua ben Joseph, grave denuncia a teu respeito foi trazida a esta corte e a ti intimamos que respondas se a<br />

acusação é verdadeira ou falsa, pois que te acusam, a ti, Yeshua ben Joseph, de te sentares à mesa com pecadores e homens-daterra<br />

e com eles repartires o pão sem antes lavares as mãos, como a lei prescreve, e de permitires que teus discípulos façam o<br />

mesmo.<br />

Mas agora, em vez de responder serenamente e com suas palavras firmadas em textos do Torah, como fazem os<br />

sábios, o nosso rabi tornou-se de cólera e disse:<br />

− E por que profanais vós a lei quando ela pertence à vossa tradição? Deus mandou: “Honrai pai e mãe, e àquele<br />

que blasfema contra seu pai e sua mãe será dada a morte”. E vós dizeis: “Aquele que toma um voto diante de seu pai e sua mãe<br />

e lhes faz um sacrifício agradável, esse não necessita honrar pai e mãe. Não vedes que destruís a palavra de Deus, por amor à<br />

vossa tradição, hipócritas? De gente como vós muito bem disse Isaías: Eles estão perto de mim com suas bocas, seus lábios<br />

honram-me a mim, mas o coração está longe. Vã é a honra que me fazeis, porque isso é coisa aprendida de homens”. E depois<br />

voltou-se para a multidão que enchia a corte e disse: “Ouvi e compreendei: Não o que entra boca a dentro torna o homem<br />

impuro, mas o que sai da boca” – e deixou a corte e se foi embora.<br />

E depois disto não acompanhei o meu rabi, como os outros discípulos o fizeram, mas ali fiquei para ouvir a<br />

sentença e os comentários.<br />

E Eliezer, o filho de Judas, que era da família e do partido do Sumo Sacerdote, disse:<br />

− Vimos o homem e ouvimos suas palavras, e castigo merece ele não por seus feitos, mas por suas palavras, pois<br />

blasfemou contra a tradição que não está escrita no Torah – e não sabemos que castigo isso comporta. E ademais menoscabou<br />

a honra dos sábios e o bom nome dos que estudam a lei; o que é o mesmo que falar desrespeitosamente de todo o Torah. Como<br />

nossos sábios ensinaram, “A honra do sábio é maior que a honra de um anjo”. E, portanto, desejo saber o que esta muito<br />

justiceira corte há por bem impor como pena ao homem que insultou os sábios.<br />

E então levantou-se Simão o Fariseu e falou deste modo:<br />

− A honra dos sábios descansa em seu lugar e Deus seja nossa testemunha de que não está em causa aqui a honra<br />

da casa de nossos pais mais a honra do Deus, Único e o seu grande Torah. Não podemos punir o rabi por haver dito o que dos<br />

sábios disse porque é uma virtude dizer a verdade no rosto dos homens, e mais ainda numa corte reunida para julgamento; e é<br />

uma virtude gritar “Hipócritas!” a sábios que não praticam o que pregam e fazem o alarde de sua devoção perante o mundo;<br />

diversos dos nossos sábios hão procedido assim e está escrito: “Queimareis o mal onde o encontrardes”, o que inclui sábios e<br />

eruditos. E pois não há base para castigo do rabi, já que ele disse o que desejava dizer. Mas agora o que quero saber é que<br />

sentença esta meritíssima corte lhe dá pelos atos que há feito. Altíssima corte: sabido é, e aceito, que no Monte Sinai, recebeu<br />

Moisés a lei e a passou a Josué, e este a passou aos anciãos, e os anciãos a passaram aos profetas, e os profetas aos homens da<br />

grande congregação; e das mãos dos homens da grande congregação a lei passou para a dos sábios, até os dias de Shemaya e<br />

Abtalion. E Hillel serviu Shemaya e Abtalion e com eles aprendeu o Torah, e do venerável Hillel procede a tradição de que a<br />

lavagem das mãos é deduzida e prescrita por Moisés – e temos aqui uma das dezoito prescrições sobre que as casas de Hillel e<br />

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11<br />

4


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

Shammai concordaram. E tudo se foi passando de nossos pais a nós, e nós observamos o mandamento do lavar as mãos com o<br />

maior devotamento, e rodeamo-nos de cercas para evitar a impureza em nossas vasilhas, em nossos alimentos, em nossas<br />

roupas; mesmo um rolo no santuário está sujeito à contaminação da impureza e temos de lavar as mãos antes de nele tocarmos.<br />

E por que com tanta devoção conduzimos assim o jogo do reino do céu? E por que nos restringimos em nossas vidas, e<br />

tornamos pesada a nossa carga, e nos impomos proibições e mais proibições? Por nosso prazer? Por nossa honra ou pela honra<br />

de nossos pais? Não. Tudo isso fazemos para nos diferençarmos dos gentios, para que fiquemos o povo sagrado e os<br />

sustentadores da luz de Deus. Somos uma pequena ilhota no mar da impureza e da idolatria. Observai os povos do mundo, os<br />

que nos governam; adoram pedaços de pau ou pedra e invocam deuses que não vêem nem ouvem. Dizem à besta: “Tu és meu<br />

pai, que me gerou”, e para o animal: “Tu és meu deus, que me podes livrar do mal”. A eles sacrificam seus filhos; e suas<br />

mulheres praticam a prostituição nos templos; e seus homens fazem toda sorte de indecências, e não reina entre eles a justiça<br />

porque eles ignoram a lei de Deus e oprimem a viuva, e vendem os órfãos, e escravizam as criaturas pela vida inteira em<br />

benefício de seus dirigentes. E enchem o mundo com um mar de pecados e prostituições, a ponto de fazer subir ao céu o grito<br />

da terra. E no entanto são os senhores do mundo e nós, os guardiães da luz, a eles vivemos submetidos e pisados por seus pés.<br />

Isto nos faz, talvez, olhar com olhos corruptos para as loucuras do mundo e ponderar em nossos corações: “Quem sabe – Deus<br />

que me perdoe! – a verdade está com eles e devemos nós imitá-los? E assim – Deus que me perdoe! – a justiça desaparecerá da<br />

terra, como desapareceu em dias de nossos antepassados, quando foram dispersos por causa de seus pecados e tiveram o<br />

Templo destruído. Mas lá entre eles surgiram profetas, e os profetas os puniram e os reavivaram na crença do Deu Único e<br />

Vivo, e não deixaram que nossos avós se misturassem com os povos do mundo, para que a luz da palavra de Deus não<br />

desaparecesse da terra. Mas nos dias de hoje não temos profetas – por causa de nossos pecados o espírito dos profetas nos<br />

desertou; mas subsiste a palavra dos nossos sábios e é de acordo com essa palavra que vivemos. E com muitas cercas os sábios<br />

nos separaram dos que nos rodeiam, dividindo as criaturas em puras e impuras; e fixaram o costume da lavagem das mãos para<br />

que a qualquer momento nos lembremos de que somos judeus, o povo amado de Deus, escolhido para manter seus<br />

mandamentos, guardar o Seu Torah e honrar o Seu nome. E assim até que o Messias venha e restaure a justiça na terra e todos<br />

os homens reconheçam o Deus Vivo, como o profeta profetizou: “E isto acontecerá nos últimos dias”. E, pois, nos últimos dias<br />

todas as nações aceitarão o Deus de Israel. Como o profeta diz: “E os povos correrão para Ele, e muitas nações dirão: “Vamos<br />

para a casa de Deus”. Nesse dia a divisão que separa os homens e as nações desaparecerá. Mas até esse dia deles estaremos<br />

separados, porque fomos dedicados à guarda da luz de Deus, como está escrito: “E vós vos santificareis em mim”. Portanto,<br />

nossos sábios erigiram essas cercas e aquele que as rompe é como se rompesse todas as leis do Torah. E por essa razão nossos<br />

sábios deram à tradição ainda mais força que a lei escrita: a tradição nos é mais cara porque por nós mesmos no-la impomos<br />

como carga pesada, e a suportamos por amor de Deus, sem que o seja por ordem dele. E devemos deixar que entrem em nosso<br />

jardim e nos pisem os canteiros e não haja punição nenhuma? Quem é esse que pretende destruir o muro erguido entre nós e<br />

eles? “Filho do Homem”, é como se chama a si mesmo. “Filho do Homem significa profeta, como está escrito no Livro de<br />

Ezequiel. E também significa o Messias. Será ele o Messias? Se é, onde estão os sinais? Porque está escrito”: “Atendei, eu vos<br />

mando Elias o Profeta antes do advento do grande e terrível dia do Senhor”.<br />

E vozes foram ouvidas, vindas do povo: “Ele faz prodígios, dá luz aos cegos, ergue da cama os enfermos”. E<br />

outro gritou: “Com uma palavra ele curou a lepra de meu pai”. E outro: “Ele consolou minha irmã e perdoou os seus pecados”.<br />

E Simão o Fariseu disse em resposta:<br />

− Não levamos em conta milagres, porque milagres não são a prova do Messias. Forças negras existem, forças da<br />

impureza, que Deus criou para pôr em prova a humanidade, como disse o profeta: “Ele criou a luz e as trevas, e fez a paz e o<br />

mal”, as quais coisas os gentios adoram desde a serpente do Éden, a qual nos contagiou com o pecado de Adão, até a<br />

abominação de Belzebu, o deus das moscas, que a gente de Ekron adora. Eles têm os seus falsos profetas, e com o poder das<br />

trevas os falsos profetas fazem milagres.<br />

Mas o povo insistiu: “Qual então a aprova do Messias? Que devemos esperar, dizei-nos? Cansados estão nossos<br />

olhos de perscrutá-lo, e nossos pais desceram à cova desapontados na esperança de ver o Messias. Trevas eternas os cobrem<br />

hoje e nós perecemos na penúria e na opressão – e o Messias não aparece. Dizei-nos por que signos devemos esperar, e quais<br />

as provas do Messias”.<br />

E Simão o Fariseu retrucou:<br />

− Está escrito no Torah: “E então surgirá entre vós um profeta ou um sonhador de sonhos que vos que vos dará<br />

um sinal e vos dirá: “Vinde, sigamos outros deuses, deuses que não conhecemos, e sirvamo-los”; e pois não é prudente ouvir as<br />

palavras desse profeta ou sonhador de sonhos”.<br />

E o povo gritou: “Ele não nos manda servir outros deuses, e sim ao nosso Deus vivo de Israel”.<br />

− Mas não vos manda obedecer os mandamentos que estão no Torah, dados pelo Deus vivo a Moisés. E não vos<br />

manda respeitar a tradição dos sábios em cujas mãos está o poder de interpretar o Torah. Aquele que destrói o Torah destrói o<br />

pacto entre Deus e Israel. Quem nega o Torah nega o Deus de Israel. Só pode fazer isso quem provar que é o Messias mandado<br />

por Deus; só ele terá a autoridade, e nenhum homem de carne e sangue. Se esse homem em causa é o Messias, por que não<br />

aparece o profeta Elias para proclamá-lo? Por que não faz ele descer as legiões do céu para destruir o governo de Edom? Por<br />

que não leva as gentes para o monte sagrado, como o profeta profetizou? Por que não nos declara a sua missão, se para isso foi<br />

mandado?<br />

Mas Nicodemo, filho de Nicodemo, observou:<br />

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11<br />

5


discípulos.<br />

“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

− Quem diz que o rabi Yeshua ben Joseph é o Messias? Jamais de sua boca ouvimos isso, nem da de seus<br />

E Simão o Fariseu:<br />

− Se não é o Messias e o mensageiro de Deus, por que tenta remover a separação que há entre nós e os gentios,<br />

ele que é homem de carne e sangue? E, portanto, peço a esta mui justiceira corte que dê rigorosa sentença contra o rabi Yeshua<br />

ben Joseph, culpado de destruir a tradição que nos vem dos antepassados.<br />

sentenciar.<br />

disseram:<br />

Mas Nicodemo, filho de Nicodemo, respondeu:<br />

− Em nossas mãos não foi posto o poder de punir. Essa corte se reuniu unicamente para averiguar fatos, não para<br />

E o mais velho da corte e todos os mais juizes concordaram com a palavra de Nicodemo ben Nicodemo e<br />

− O Sanhedrim de Jerusalém não nos deu o poder de julgar o rabi Yeshua ben Joseph, mas só o de investigar<br />

seus atos e palavras.<br />

Mas Simão o Fariseu voltou ao seu argumento e disse:<br />

− Então não peço a esta muito justiceira corte que pronuncie sentença contra o rabi Yeshua ben Joseph, mas peço<br />

que, tendo esta corte verificado pessoalmente que ele falou com desprezo da tradição da lavagem das mãos, que nos vem da lei<br />

conferida a Moisés no Sinai, seja dado ao povo um aviso contra o rabi Yeshua ben Joseph, declarando que ele não faz milagres<br />

nem cura doentes com o puro poder do Torah, mas com o impuro poder de Belzebu.<br />

Novamente a corte se dividiu em sua opinião. Alguns argumentavam que semelhante aviso era equivalente a<br />

sentença, o que não estava no poder da corte. Outros alegavam que o aviso não tinha força de sentença e sim de mera<br />

precaução – e para isso a corte tinha poder.<br />

Foi o lado que prevaleceu e assim se fez.<br />

116<br />

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6


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

A matéria caiu no dia em que a corte deu sua opinião. Eu, Judas Ish-Kiriot, o único discípulo que ali ficara,<br />

regressei ao cair da tarde à casa de Simão bar Jonas; era a hora da última oração, quando os sacerdotes do Templo fazem o<br />

sacrifício da tarde e os lavradores voltam dos campos. Meu rabi havia subido para seu cômodo no teto e seus discípulos<br />

estavam no pátio comentando os acontecimentos. Pesavam-lhes os corações e consumiam-nos os cuidados; porque nenhum<br />

deles compreendia as palavras que o rabi dissera na corte, nem distinguia o puro do impuro. E quando lhes comuniquei a<br />

sentença ou aviso da corte, isto é, que os milagres do rabi vinham de Belzebu, seus corações ficaram como água, na incerteza<br />

do que sobreviria. E estávamos assim, um dizendo uma coisa, outro outra, quando o rabi nos apareceu de súbito, sem que<br />

nenhum de nós o pressentisse. Como uma luz que cai do céu, assim desceu ele até nós e, antes que falássemos no julgamento<br />

da corte, disse:<br />

− Como pode Belzebu expulsar Belzebu? Um reino dividido não se sustenta, e se Satã está dividido e se ergue<br />

contra si mesmo, então seu reino chegou ao fim. Pode um homem entrar na casa dum gigante e furtar o que há lá, antes de<br />

haver dominado e amarrado o gigante? Claro que o tem de dominar e amarrar primeiro e só depois lhe tomará a fazenda...”<br />

XI XI<br />

XI<br />

Mas os discípulos permaneceram calados e com as cabeças baixas. E então Simão bar Jonas curvou-se e pediu:<br />

− Dizei-nos, rabi, o que significam as palavras que pronunciaste na corte, porque tuas palavras estão acima da<br />

nossa compreensão. Pelos nossos pais fomos ensinados sobre as coisas que são puras e as que são impuras, mas tuas palavras<br />

nos deixaram confusos.<br />

E o nosso rabi respondeu, dizendo:<br />

− Também vós não compreendeis? Não vedes que o que de fora entra num homem não pode faze-lo impuro?<br />

Porque não é coisa que vá ao seu coração e sim vai ao seu ventre e depois sai. Mas o que emerge de dentro do homem isso o<br />

faz impuro: luxúria, homicídio, roubo, impudência, maldade, má inclinação, blasfêmia, orgulho, loucura – tudo isto vem de<br />

dentro do homem e o faz impuro.<br />

Grandemente se contentaram com a resposta os discípulos de maior fé no rabi; mas os mais lidos nas escrituras<br />

continuaram atormentados pela dúvida, com os corações opressos e as bocas fechadas – e assim também Simão bar Jonas.<br />

E vendo aquilo disse o rabi:<br />

− Já vos declarei que não se põe remendo novo em roupa velha, porque o remendo cai e o buraco ainda fica<br />

maior. Nem se põe vinho novo em garrafa velha, porque a garrafa rebenta e o vinho se perde; vinho novo requer garrafa nova.<br />

Essas palavras nos deixaram ainda mais mudos. E Simão disse:<br />

Quando os escribas e fariseus ouvirem estas coisas, ficarão grandemente encolerizados e se erguerão contra ti e<br />

contra nós, seus discípulos.<br />

E o rabi respondeu assim:<br />

− Ninguém acende uma vela e a põe sob o alqueire ou debaixo da cama, mas ergue-a bem alto de modo que<br />

todos possam vê-la. E depois: “Aquele que ama pai e mãe mais que a mim, não é digno de mim. E desse modo com cada um<br />

de vós: aquele que por mim não abandona tudo quanto possui, não é meu discípulo. Bom é o sal; mas se o sal perde sua força,<br />

com que será ele salgado? Porque então está sem valor e tem de ser deitado fora. Quem tem ouvidos, que ouça”.<br />

suas trevas.<br />

E dizendo-o, deixou-nos e voltou ao seu cômodo sobre o teto da casa. A noite já havia coberto o mundo com<br />

E eu, Judas Ish-Kiriot, o homem de espírito pesado, ali fiquei dentro da noite, envolvido em meu manto. Tinha o<br />

meu coração oprimido pela dúvida, como se as montanhas de Gilead pesassem sobre mim. Era como se me houvessem expulso<br />

duma casa e eu não pudesse entrar em nenhuma outra – e a rua se houvesse tornado o meu lar. Era também como se eu<br />

houvesse caído do céu mas não tivesse pousado na terra, e suspenso ficasse entre um e outro. Nenhuma rede a me amparar, e<br />

eu estava caindo no abismo do inferno; porque eu me eximira da proteção duma autoridade e não entrara sob a proteção de<br />

outra.<br />

E então perguntei a mim mesmo, e o repeti mil vezes: “Quem é esse homem cujos passos eu sigo, que eu<br />

conheço e não conheço, embora meus olhos o vejam todos os dias? Presencio seus atos e não sei quem ele é. Sua voz tem<br />

poder sobre as tempestades do mar e sobre os maus espíritos; ele comanda Samael e amarra Asmodeu e o põe submisso aos<br />

seus pés: quem é ele? O homem que com a sua palavra reconforta os pobres e enxuga as lágrimas dos oprimidos – quem é ele?<br />

E recordei todos os seus feitos do tempo em que o segui, e todas as palavras que falou e ouvi – e fui tomado de um tremor. E<br />

disse em meu coração: “Algo deve haver neste homem que fala com a força das profecias: ele opera como quem tem permissão<br />

de Deus. Ele não se curva diante do Torah ou da tradição dos antigos mas age como se a palavra lhe venha diretamente do céu.<br />

117<br />

11<br />

7


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

Ele ergue-a como Jacó erguia a pedra do poço – com sua própria força. Será esse homem aquele que nossos olhos esperam –<br />

aquele que vai remover as últimas barreiras entre nós e Deus? Aquele que os profetas profetizaram, a esperança de Israel?”<br />

E assim pensando senti-me envolto em vento a flama, como quando a tempestade ergue da terra nuvens de pó. E<br />

disse dentro de mim: “Judas, Judas, que pensamentos são esses que vieram ao teu coração? E que palavras são essas que<br />

vieram aos teus lábios? És um homem de lábios imundos e coração impuro.<br />

Perto de mim jazia Simão o Zelote, e como eu ele esperava que como o raio desce do céu assim a luz do Senhor<br />

o viesse iluminar. Seu pai fora esquartejado por Herodes o Edomita por haver removido do Templo a abominação das Águias<br />

Romanas com que Herodes profanara o santuário. Seus irmãos tinham sido crucificados por Varo, aquele homem do pecado,<br />

ao tempo em que arrazou a cidade de Sephhoris. Unicamente Simão conseguira escapar, e como um chacal perdido no deserto<br />

passara a viver em cavernas. Serpes e escorpiões eram seus companheiros e o mel silvestre o seu vinhedo. Procurava a palavra<br />

de Deus na boca de Jochanan e com isso se consolou, até que enfim lhe apareceu o rabi. E tendo-o encontrado, a ele se<br />

prendeu. Porque, como nós, ele acreditava que uma abertura se rompera na rocha da nossa masmorra por onde a salvação<br />

entrasse.<br />

E Simão dormia perto de mim no espesso da noite. E Deus andava com a face oculta nos céus impenetráveis e<br />

deixara a terra atolada num abismo de ignorância e dúvida. E Simão ali jazia como a planta arrancada pelo vento e lançada<br />

além dos montes. E eu chamei-o e disse:<br />

− Simão o Zelote: ouviste as palavras de nosso rabi e senhor? Viste a mão que ele ergue qual machado para<br />

cortar as raízes que amarram Israel ao umbigo de seu pai? Ouviste e entendeste? Dizei-me agora que palavras pensas em teu<br />

coração.<br />

E Simão o Zelote respondeu, dizendo:<br />

− Sou o escravo de Deus. E o escravo não tem o direito de questionar os caminhos de seu senhor. Só me cumpre<br />

atender e obedecer a vontade do Senhor, que o nosso rabi nos comunica.<br />

− Mas quem é esse que nos traz a vontade do Senhor? É a vontade do Senhor a velha vontade que os sábios nos<br />

ensinaram ou é a nova vontade enunciada pela boca do nosso rabi?<br />

E Simão o Zelote afligiu-se e levantou-se do chofre do lugar onde se deitara. E como se uma serpente o houvesse<br />

mordido agarrou minha mão com dedos crispados e disse:<br />

− Judas Ish-Kiriot, Deus proíbe que haja uma verdade velha e uma nova! Há a mesma sempre e eterna.<br />

E eu colei meus lábios em seu ouvido e disse:<br />

− Simão o Zelote, no dia de hoje ouvimos uma coisa nova dos lábios do rabi – nova porque os antigos nunca nola<br />

ensinaram.<br />

E os dois ali ficamos de pé, ele a mim agarrado como para evitar cair. E dizia, tremulo: “Judas Ish-Kiriot”, para<br />

onde queres levar-me? Eu não compreendo”. E eu respondia: “Não ouviste as palavras do rabi?” e Simão o Zelote silenciava.<br />

Perto de nós dormia Simão bar Jonas, homem cujo coração era inteiro de Deus e tão cheio de fé como a uva o é<br />

de vinho. E Simão dormia o sono do justo. E eu despertei-o e disse: “Simão bar Jonas, como podes dormir quando os<br />

discípulos tremem como folhas na tempestade por causa do que ouviram da boca do nosso rabi?” E Simão respondeu: “Meu<br />

coração está quedo e meu espírito está em paz porque tenho fé em que ele não negará o Deus de Israel”.<br />

E eu perguntei-lhe: “Dizei-me, Simão bar Jonas: que vontade de Deus devo atender, a velha ou a nova?”<br />

E Simão bar Jonas respondeu: “Longe de nós a idéia de admitir que haja vontade velha e nova, pois uma só<br />

existe desde o começo até o fim. Está escrito: “Ambas estas palavras são palavras do Deus Vivo”. E não proclamou Daví que<br />

por meio da fé ele sabia como guardar as leis de Deus? “O justo vive na sua fé”, eis o que está escrito.<br />

Mas não me contentei e apertei-o para que me dissesse em que devia eu crer: nas leis e mandamentos que nossos<br />

sábios nos transmitiram e que receberam de Moisés, nosso mestre, e através dos profetas e de Ezra o Escriba e depois através<br />

dos anciãos, nas mesmas leis e mandamentos que ensinam hoje nossos rabis e mestres; ou nas leis e mandamentos que temos<br />

ouvido da boca do nosso rabi? Porque se o nosso rabi fala como fala, deve ter autoridade sobre a lei. E se não é assim, quem<br />

pode dizer até onde isto pode chegar ?<br />

E quando os discípulos, que haviam acordado, ouviram estes dizeres, o túmulo se fez dentro da noite. E uma voz<br />

indagou: “Para onde vamos? Seguimos a senda dos nossos antepassados ou – do que Deus nos livre! – sendas novas? E se<br />

estamos em senda nova, que fazermos com este homem?”<br />

Então Simão bar Jonas falou: “Discípulos do meu rabi, que palavras são essas? Nada mais certo que as<br />

esperanças de Israel não sejam decepcionadas.<br />

E o vozeio crescia em redor de Simão bar Jonas, e um disse: “Vai tu, Simão, levar nossas dúvidas aos ouvidos do<br />

rabi, porque tu vives mais perto dele e de ti nada ele ocultará”.<br />

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8


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

E Simão bar Jonas respondeu: “Não irei só, mas com dois discípulos mestres nas escrituras, e subiremos ao<br />

cômodo do nosso rabi e nos lançaremos aos seus pés dizendo: ‘Rabi, isto e isto se passa conosco’ e Deus nos ajudará e tudo se<br />

nos esclarecerá. Porque tudo quanto o nosso rabi faz, ele o faz pelo amor de Deus”.<br />

E então Simão bar Jonas me tomou a mim, o menor e o mais indigno dos discípulos, e a Simão o Zelote, e todos<br />

os três subimos pela escada ao cômodo de cima e pela fresta da porta enxergamos muita luz lá dentro, como se a luz do céu<br />

estivesse com ele. E o silêncio nos tomou os corações, porque era como se o terror de Deus houvesse caído sobre nós. E Simão<br />

bar Jonas chamou pela fresta da porta: “Rabi, rabi, tem piedade de nós”.<br />

disse:<br />

E a voz do rabi respondeu: “Simão!”<br />

E Simão entrou e eu atrás dele; e Simão lançou-se por terra e sua barba tocou os pés nus do nosso rabi: e Simão<br />

− Meu senhor e rabi! Tu trataste benevolamente teus servos. Tu nos tomaste das ruas e nos permitiste que nos<br />

sentássemos aos teus pés e bebêssemos as palavras da tua boca. Nosso senhor e rabi! Nós sabemos que o Senhor Deus<br />

confidencia contigo. Vemos o zelo de Deus arder em ti como um fogo, e vemos como tua alma se consome com a sede da<br />

salvação e redenção. Vemos teus feitos e nos enchemos de espanto, porque Deus pôs em tua mão a força de fazer e desfazer.<br />

Tu tens domínio sobre os espíritos e demônios; ergues a tua voz e eles te ouvem atentos. Nossos corações enchem-se de alegria<br />

e esperança porque vemos que a redenção amadurece em ti, como a criança amadurece no útero materno. Mas tu nos impuseste<br />

cargas de cuidados, e nuvens desceram sobre nossos olhos. Vemos os feitos e não podemos interpretá-los; ouvimos palavras e<br />

não podemos compreende-las. Estamos diante do poço como a ovelha sedenta; a tampa de pedra está tirada mas a água não<br />

corre e não matamos a sede. Não nos lance de ti, mas toma-nos em teu coração; conforta-nos com tua palavra e traze a<br />

calmaria ao tumulto da nossa mente.<br />

E o rabi falou bondoso, dizendo: “Que te oprime o coração?”<br />

− As palavras que hoje disseste aos juizes, rabi; nunca nada igual ouvimos antes. É a verdade velha que nos vem<br />

do Sinai ou tu nos ensina caminhos novos nunca trilhados pelos nossos pais? Teus discípulos querem saber.<br />

E o rabi disse:<br />

− Homens de pouca fé, quantas vezes tenho de dizer-vos que não vim para destruir o Torah, nem vim para negar<br />

a palavra dos profetas mas para faze-la valer? Porque em verdade vos digo que o céu e a terra se extinguirão, antes que um jota<br />

ou um til se mude no Torah e tudo quanto está escrito se realize.<br />

E Simão estendeu para o rabi os braços, exclamando com alegria: “Senhor e rabi, tu és nosso consolo e amparo”.<br />

E lágrimas lhe vieram aos olhos e lhe correram pelas faces. E, erguendo-se, Simão voltou-se e nos falou: “Não vos disse que o<br />

santo de Israel não decepcionaria as nossas esperanças?”<br />

E o rabi para Simão:<br />

Levanta o ânimo, Simão. Vai e acende as lâmpadas e dizei às mulheres que tudo preparem, porque quero repartir<br />

o pão com os meus discípulos e dizer-lhes o que têm a fazer.<br />

E as mulheres fizeram como lhes foi pedido e nós nos reunimos na sala da casa da sogra de Simão. E o pão foi<br />

colocado sobre a mesa, com os discípulos em redor e as mulheres de pé na porta. E o rabi fez a sua oração e partiu o pão e<br />

distribuiu-o entre nós.<br />

E enquanto partia o pão nos foi falando palavras que nossos ouvidos retinham mas nossos corações não<br />

compreendiam. Não obstante caíam como fogo dentro do nosso imo e nos fundia por dentro formando de todos nós uma só e<br />

mesma família. E estas foram as suas palavras:<br />

− Pai do céu! Abri os olhos dos que crêem em Ti para que eles vejam a Tua luz. Porque sabes que não por minha<br />

honra, nem pela honra da casa de meu pai, fiz eu as coisas que tenho feito e falei as palavras que tenho falado, mas unicamente<br />

em honra do Teu amado nome, para que Tua fé se derrame nos corações dos homens, que estão como carneiros sem pastor e<br />

não sabem o que fazer...<br />

Sentamo-nos em silêncio, enquanto o rabi continuava:<br />

− Sabei que o sinal da graça divina não é felicidade neste mundo, e sabei que Ele não exalta com felicidade e<br />

opulência aquele que mais ama. As posses da terra não são os prêmios que Deus distribui aos seus eleitos. As posses da terra<br />

ele as dá aos ímpios, porque pouco mérito neles vê. Freqüentemente faz o Senhor dos Seus escolhidos o alvo das flechas; e<br />

galardoa dos Seus amados com dores; enche de espinhos a senda do justo, porque as mágoas dos homens os aproximam de<br />

Deus. Não fez Deus levar Abraão seu único filho ao altar do sacrifício? E não manteve Seu povo escravizado aos egípcios<br />

durante quatrocentos anos? Olhai em torno e vede: a iniquidade triunfa, os maus erguem a voz e pisam impudentemente sobre<br />

a cabeça do justo. Mas a medida do mundo não é a medida da eternidade; Deus mede com outra medida e o filho do homem<br />

não foge ao que lhe é destinado, mas paga o preço total.<br />

E o rabi silenciou.<br />

E nós ficamos cheios de medo, sem saber o que ele significava.<br />

E Simão bar Jonas disse: “Senhor e rabi, esclarece-nos a significação de tuas palavras”.<br />

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E o rabi respondeu:<br />

− Simão bar Jonas, mesmo os que vão comigo devem estar preparados para pagar o preço total.<br />

E Simão disse:<br />

− Rabi, acaso não abandonamos tudo quanto possuíamos para te seguir?<br />

E o rabi ergueu os olhos e disse:<br />

− Bem-aventurados os pobres porque deles será o reino do céu; bem-aventurados os que hoje choram porque<br />

serão consolados; é para bem vosso que os homens vos odeiem agora e de vós se afastem, e de vós digam todas as coisas<br />

odiosas por causa do filho do homem. Rejubilai-vos, porque a recompensa é grande como o céu. Assim foi que vossos<br />

antepassados procederam com os profetas. E basta que o discípulo seja como o rabi e o escravo como o seu senhor. E se eles<br />

invocam Belzebu, como não por este nome em sua casa? Não os temais, portanto. O que vos digo nas trevas, isso proclamareis<br />

em plena luz; e o que vos digo aos ouvidos, proclamareis do alto das casas. Como Deus disse ao profeta: “Vê, transformei-te<br />

hoje numa cidade fortificada e num pilar de ferro, e em muralhas de bronze contra a terra inteira, contra os reis de Judá, contra<br />

seus príncipes e seus sacerdotes e o povo da terra”. E por isso eu vos digo: Não temais os que apenas destruem o corpo, mas<br />

não podem lançar a alma no inferno. Não são dois pardais vendidos por uma moedinha? E nenhum deles cai do céu sem o<br />

conhecimento de vosso pai. Mesmo os cabelos de vossas cabeças são contados. Por isso não temais.<br />

E nosso rabi pôs as mãos sobre nossas cabeças, de um em um, e consagrou-nos. E nós éramos em número de<br />

doze. E o rabi deu-nos o poder de expulsar os maus espíritos e curar os doentes e sofredores, e disse: “Não ireis no caminho<br />

dos gentios, nem entrareis nas cidades dos samaritanos, mas sim empós as perdidas ovelhas da casa de Israel e lhes pregareis:<br />

‘O reino do céu se aproxima’. Não levareis ouro ou prata ou cobre em vossos sacos, nem levareis víveres para a jornada, nem<br />

tereis duas camisas ou sandálias ou bordão, porque quem trabalha ganha o seu jornal. Quem quiser ir comigo tem que negar-se<br />

a si próprio. Tem que tomar sobre si o jugo de Deus e seguir-me. Porque aquele que procura salvar a vida perdê-la-á; e aquele<br />

que dá a vida por minha causa e por causa das minhas mensagens, esse vencerá. Porque, que vale ao homem vencer o mundo<br />

inteiro e perder sua alma? E que dará um homem em redenção de sua alma?”<br />

E as trevas da noite se transformaram em grande luz e a hora da desolação se passou para hora de júbilo. E<br />

naquela noite o rabi nos uniu entre nós e fez de nós uma mesma família. Éramos como homens que tivéssemos morrido<br />

naquela noite e nascido novamente.<br />

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XII<br />

XII<br />

Depois, quando circulou na cidade e redondezas a nova da sentença pronunciada pelos deputados do Sanhedrim<br />

contra o nosso rabi, muitos dos seus seguidores se retraíram; e muitas almas que ele havia criado em Gedera, Bet Zeida,<br />

Migdal e outras cidades dele se afastaram. E muitas damas ricas que contribuíam para o nosso tesouro deixaram de o fazer e<br />

voltaram para suas casas, só ficando as que não tinham para onde ir.<br />

E quando eu, Judas Ish-Kiriot, vi a pobre gente que ficara na casa e no quintal de Simão bar Jonas, meu coração<br />

se confrangeu. Porque eu, Judas Ish-Kiriot, era o tesoureiro do grupo; e quando os ricos se afastaram, o tesouro começou a<br />

esvaziar-se e eu pensei em meu coração sobre o que faríamos. Como agora alimentar aquela gente? Porque até aquele<br />

momento Jochana, a mulher de Kuza, o rico oficial de Herodes, e Suzana, a moça, essas duas almas que o rabi havia salvo em<br />

Naim, eram de famílias ricas e donas de muitas posses. E uma a uma foram vendendo essas posses e dando o dinheiro ao<br />

tesouro dos pobres, como havia mandado o rabi. E assim também fizeram outros ricos que a ele se tinham vindo, porque de<br />

outro modo não podia o rabi toma-los em sua congregação de almas.<br />

Com esses dinheiros comprávamos pão e outros alimentos e sustentávamos os pobres que sempre se reuniam em<br />

redor do rabi. Mas agora, por efeito da sentença da corte, o marido de Jochana veio busca-la e tentou compeli-la a voltar para<br />

casa; e o mesmo fez com a sua filha Zadok, o opulento pai de Suzana. E como essas mulheres se recusassem a abandonar o<br />

rabi, foram destituídas de seus bens. E com a mulher Míriam de Migdal aconteceu o seguinte:<br />

Com exceção do dia em que pela primeira vez aparecera ao nosso rabi na cidade de Naim, Míriam só se trajava<br />

de estamenha grosseira. Bar Talmai, o perfumista cego, que fora um dos discípulos de Jochanan o Batista, lhe havia ensinado<br />

os jejuns e mortificações da carne para redenção dos pecados de sua vida anterior e para que pelo arrependimento se<br />

purificasse. Mas o nosso rabi não concordou com a necessidade de modificar o corpo e só vestir estamenha grosseira como<br />

meio de purificar-se; porque, disse ele, Deus olha no coração do homem e não nas roupas; e a glória de Deus só desce dentro<br />

da alegria; e os verdadeiros arrependidos usam o algodão sobre a carne mas sobre ele vestem a seda e a púrpura e ungem-se de<br />

essências para que o mundo não saiba que estão jejuando e se mortificando. E aconteceu que Míriam de Migdal mudava de<br />

trajes e ungia-se de óleos e punha sedas de várias cores e muitos enfeites sempre que aparecia diante do rabi. E era ela a que<br />

mais cuidava do rabi, e lavava sua roupa e lhe fazia camisa de fino linho, às quais perfumava com os caros perfumes que havia<br />

trazido e conservava nos preciosos frascos suspensos ao pescoço. As outras mulheres haviam dado ao tesouro comum, tudo<br />

quanto possuíam, chegando mesmo, algumas, até a cortar as cabeleiras para, vendendo-as, conseguirem mais moedas. Não fez<br />

assim Míriam, embora muitos pobres pudessem ser alimentados com o que ela possuía. As outras mulheres trabalhavam na<br />

casa e no quintal, na roça e na lavagem, para atender às necessidades dos pobres e dos discípulos. Mas Míriam de Migdal não<br />

cessava de cuidar de suas mãos para que se conservassem belas, já que eram dedicadas ao cuidado do rabi. Porque Míriam<br />

dizia que consagrara sua alma e seu corpo como oferenda ao rabi, e já que suas mãos tinham sido consideradas dignas de tocar<br />

nos pés do rabi, errado seria estraga-las nas fainas grosseiras. E assim não trabalhava na casa como as outras mulheres, salvo<br />

no que fazia no cômodo do rabi, o qual conservava em grande limpeza e enfeitado de flores do campo e ervas odoríferas. E<br />

sobre seu leito ela espargia perfumes daqueles frasquinhos vindos da Fenícia.<br />

E quando voltava o rabi para casa, vindo de seu sagrado labor, era como se houvesse tomado sobre si todas as<br />

doenças e terrores, todas as dores e mágoas dos que ele tinha curado, e vinha cansado. E seu corpo parecia prestes a quebrar-se<br />

sob a carga, e o rosto vinha pálido e sulcado. E então Míriam de Migdal entrava em seu cômodo e lhe lavava os pés, e ungiaos,<br />

e enxugava-os com os seus cabelos. E o rabi deixava-a fazer. E às vezes o espirito descia nela e Míriam caia e de sua boca<br />

brotava espuma e ela enunciava mensagens e novas, e a profecia falava de dentro dela, de dentro de seu amor e da sua devoção<br />

pelo rabi.<br />

E as outras mulheres invejavam-lhe aquela intimidade com o rabi, e murmuravam, e queixavam-se de que<br />

Míriam não se dava aos trabalhos da casa e sim só ao trato pessoal do rabi. E mulheres que haviam contribuído para o tesouro<br />

comum e depois que se retiraram diziam: “Míriam que venda seus preciosos perfumes e dê comida aos pobres”. E nosso<br />

tesouro ia ficando cada vez menor e nossa congregação ia perdendo em número.<br />

A casa da sogra de Simão vivia cheia de pobres que não tinham onde morar e de doentes que não tinham quem<br />

os tratasse, ou de pecadores sobrecarregados de pecados. E essas criaturas dormiam ali no pátio, como montes de lixo lançados<br />

fora de casa; e alguns deles erravam pela cidade esmolando pão. E o povo da cidade murmurava contra o rabi dizendo: “Ele<br />

que chamou os pobres e não pode mais sustenta-los é que o seu poder já o abandonou”. E também os pobres diziam: “Onde<br />

estão os caminhos que tu nos apontaste? Por que não nos ajudas? Estarão mais uma vez frustradas as nossas esperanças?<br />

Isso porque o rabi se tinha fechado em seu cômodo no alto da casa e não queria ver ninguém. E então Simão<br />

procurou-o e disse:<br />

− Os pobres estão reunidos no pátio em baixo e de ti esperam a salvação. Que faremos com eles?<br />

E o rabi respondeu:<br />

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− Convosco estarei por certo espaço de tempo. Vamo-nos daqui porque me sinto cansado. Nas vizinhanças de<br />

Bet Zeida existem umas ruínas. Lá nos ocultaremos da multidão que não cessa de gritar: “Dai-nos! Dai-nos!” E prepararemos<br />

nossos corações para o nosso pai do céu.<br />

E eu, Judas Ish-Kiriot, saí e com o pouco que havia em nosso tesouro, comprei cinco pães e dois peixes, e<br />

entramos num bote e fomos para Bet Zeida, que é nas praias do Genesaré. Mas quando a multidão nos viu partir, atrás de nós<br />

se foram todos quantos podiam mover-se. E alguns entraram em botes, outros seguiam ao longo da praia. E quando o povo da<br />

cidade viu o nosso rabi retirando-se, riu-se e gritou: “Vede! Leva-o Belzebu, a ele e aos demônios que o rodeiam”.<br />

E chegamos às vizinhanças de Bet Zeida e nas ruínas que lá havia nos escondemos da multidão, porque o nosso<br />

rabi estava cansado e queria ficar sozinho conosco.<br />

Mas os pobres e doentes não desistiram de nos seguir; foram chegando, perquiriram aqueles campos e afinal nos<br />

encontraram.<br />

Também na cidade de Bet Zeida o rumor correra de que estávamos lá, e todos os doentes da terra se moveram<br />

em nossa procura. E doentes e sãos nos rodeavam e cegos e pecadores, e pediam: “Rabi, rabi, vem a nós! Por que te<br />

escondes?”<br />

dizer:<br />

E quando o nosso rabi ouviu o grito da multidão, a piedade lhe tomou o peito e saiu, de braços estendidos, a<br />

− Vinde a mim todos os abandonados e proscritos!<br />

E sobre ele desceu o espírito e o encheu de graça; e o povo rejubilou-se nele e bebeu-lhe as palavras. Os cegos,<br />

apalpando, foram tocar em suas vestes e os doentes que não podiam andar dele se aproximaram de arrasto. E breve ficou o<br />

nosso rabi emparedado como a pedra angular duma construção.<br />

E a um tocou ele com suas mãos, e a outro fez um gesto de cabeça, e a um terceiro disse palavras reconfortantes.<br />

E a multidão se sentiu feliz de estar perto dele e ouvi-lo. E o tempo ia passando e ao ver o sol descambar perguntei em meu<br />

coração o que fazer com tantos pobres. Em minha cesta só havia cinco pães e dois peixes, reservados para os discípulos.<br />

E então falei-lhes assim:<br />

− Que faremos com essa multidão de pobres? O tesouro está vazio e para pouco dará. Peçamos ao rabi que os<br />

mande embora para suas casas.<br />

E fomos os doze discípulos rumo ao rabi, rompendo a muralha de pobres que o cercava e falamos todos juntos<br />

para que não parecesse que um tinha menos fé que os demais, e dissemos:<br />

− O fim do dia se aproxima, estamos num lugar deserto e abandonado e o povo não tem pão. Manda-os embora<br />

para suas casas, e que se espalhem pelos campos e aldeias, pois assim talvez obtenham pão e alojamento para a noite.<br />

Mas o rabi perguntou:<br />

− E nada lhes daremos a comer?<br />

Ao ouvir essas palavras meu coração se fundiu de medo, e perguntei:<br />

− Como sairmos e comprarmos duzentos dinheiros de pão, se nossa bolsa está vazia?<br />

Mas o rabi respondeu, como que espantado:<br />

− Não preparastes comida? Ide e arrumai o povo em fila de modo que nenhum falte à festa. E colocai diante de<br />

mim o cesto de pão para que eu o abençoe e dê graças ao nosso pai do céu.<br />

Ouvindo-o falar dessa maneira, senti medo no coração – medo de que ele se desmoralizasse diante de toda<br />

aquela gente, e pensei comigo: “Como vai ser agora?” Dirigi-me para Simão e disse:<br />

− Simão bar Jonas tenho de ir à cidade comprar pão, mas nada há em nossa bolsa; poderei apenas trocar por pão<br />

estes dois ornatos. A multidão é grande e na cesta só há cinco pães e dois peixes – e o rabi convidou-os todos para a festa.<br />

E Simão me disse que fosse.<br />

Apressei meus passos rumo à cidade de Bet Zeida e Deus me favoreceu. Troquei um dos ornatos por dinheiro e<br />

numa padaria vi quatro cestas de pão que haviam assado para a cidade e comprei-os. E com facilidade encontrei um homem<br />

que me alugou dois asnos e veio comigo conduzindo a carga de pão; eu não queria que o meu rabi passasse por um vexame.<br />

E a noite ia caindo e as estrelas já estavam no céu; e pusemos os asnos a trote. E quando me aproximei das ruínas<br />

onde eu havia deixado o meu rabi, ouvi de longe um grande barulho de vozes alegres e vi o sitio iluminado dos muitos fogos<br />

acessos. E quando cheguei com os asnos carregados de pão, vi meu rabi em seu alvo manto sentado em glória, com um bando<br />

de crianças em redor.<br />

E toda a multidão, homens, mulheres e crianças, os sãos e os doentes, estava cheia de júbilo e alguns dançavam e<br />

batiam palmas entre gritos: “Hosana! Hosana! Eles nos deu comida!”<br />

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Fiquei surpreso, sem nada entender. E quando viu o povo a minha carga de pão pôs-se a rir com grande<br />

alacridade, apontando para o chão coberto de migas, como se houvesse nevado – e aquelas migas davam para encher muitas e<br />

muitas cestas. E gritaram-me: “Tu foste longe buscar-nos pão, mas um que estava perto abasteceu-nos e nós comemos a<br />

contento e muito ainda sobrou”. Eu continuava no meu espanto. “Que se passou por aqui? Não há casas perto. Donde veio esse<br />

pão?”<br />

E Simão bar Jonas disse: “Ele ergueu os olhos para o céu ao dar a bênção e partiu o pão e o dividiu em pedaços,<br />

e houve pão para todos e sobejou”. E baixei os olhos, ali, junto aos dois asnos, vexadíssimo da minha pouca fé.<br />

E a multidão não parava de rejubilar-se, cantando e dançando, e assim foi até tarde da noite. E dançavam em<br />

redor do rabi e alegravam-no. E a mulher Míriam que estava conosco, caiu-lhe aos pés com olhos enevoados e espuma na<br />

boca; e ergueu-se e girou sobre si como um rodamoinho, e gritou em voz cantante: “Vede, ele é como o noivo no dia do<br />

casamento, iluminado com a luz da redenção. Vede, as nuvens baixam sobre a terra e espalham-se a seus pés. Porque ele<br />

comanda à vontade os espíritos. Como Moisés, ele faz cair sobre nós o maná. Com toda a sua glória ele vem no momento da<br />

nossa necessidade... Ele sangra mais do que nós com as nossas feridas, sente fome com todos os famintos, sente sede com<br />

todos os sedentos. Vai com os cegos através das trevas da noite e conduz diante deles a luz de seus olhos. Ele guia os<br />

pecadores e carrega sobre os ombros o tormento de seus pecados.”<br />

E as vozes soavam cada vez mais altas, e como chamas os gritos se elevavam para o céu. E diziam uns para os<br />

outros: “Por que não se torna ele nosso rei?” E um homem que lá estava e, cego dum olho e de pele coberta de feridas, fora<br />

curado pelo rabi, gritou: “Trazei a coroa de Daví e deixai-nos coroa-lo rei. Aquele que nos alimenta que seja o nosso rei! Quem<br />

melhor para rei dos pobres?”<br />

E quando as mulheres lá presentes ouviram a palavra rei, muitas se lançaram por terra, porque ficaram de<br />

espuma na boca. E começaram a profetizar; e mesmo crianças eram tomadas pelo Espírito Santo e entravam no delírio<br />

profético, e declamavam os versículos das escrituras ensinados pelos seus mestres; e todos aproximavam a sabedoria do nosso<br />

rabi com a de Daniel, e comparavam os seus milagres com os de Elias. E muitos disseram que ele era o próprio Jochanan o<br />

Batista voltado à terra.<br />

Olhando em redor vi os discípulos do rabi e entre eles Simão bar Jonas. Estava de pé e calado; não dançava, nem<br />

gritava; mas entre seus cabelos e a barba, já nevados pelos anos, seus olhos tinham o brilho das estrelas e estavam fixos no<br />

rabi, vestido de branco, ali no meio daquela roda de crianças; e lágrimas brotaram dos olhos de Simão.<br />

Depois, com o avançar da noite, a multidão se dispersou, porque o meu rabi estava cansado e lhes pedira assim; e<br />

muitos se espalharam pelas aldeias próximas; outros foram para Bet Zeida, onde moravam. E as águas do Genesaré, sonolentas<br />

sob a bondade das estrelas, eram despertadas por muitos botes de volta a K’far Nahum e outros lugares donde tinham vindo. Só<br />

ficamos ali o rabi e nós os seus discípulos.<br />

E então o rabi nos disse: “Abrigai-vos nestas ruínas que eu vou subir àquele monte para orar sozinho; depois<br />

virei ter convosco”. E Simão perguntou-lhe: “Não poderei acompanhar-te, rabi?” E a resposta foi: “Não. Fica com os outros”.<br />

E os discípulos acomodaram-se entre as ruínas e deitaram-se e cobriram-se com seus mantos e tiveram sono<br />

profundo, visto como estavam cansados dos labores do dia. Eu, porém, não pude dormir.<br />

Muita inquietude me latejava no coração e eu me perguntava a mim mesmo: “Por que de todos os discípulos do<br />

rabi foi Deus escolher a mim, e a mim só, para nunca ver com meus olhos as maravilhas operadas e delas só vir a conhecer por<br />

informe dos outros? Só eu, de todos os discípulos, permaneço fora, e bato e não me abrem. Por que se me não abrem as portas?<br />

Cercará minha alma um broquel de pecados e porisso não cai sobre mim a luz e tenho de ficar fora? E se é assim, que tenho a<br />

fazer aqui?” E meu coração chorava dentro de mim, e eu ponderei comigo mesmo: “Dito já foi, de longa data: Todas as coisas<br />

são dadas pelo céu, salvo o temor do céu”. Disso se segue que o homem precisa adquirir a fé por meio de seus esforços, do<br />

mesmo modo que adquire roupa e comida para o corpo”. E então orei para meu pai do céu: “Abri meus olhos e dai<br />

entendimento ao meu coração, de modo que veja e sinta como os outros!” E retesei-me e disse: “Não está escrito que o Torah<br />

não existe no céu mas foi dado ao homem? E não será o que o meu rabi faz e diz, a continuação do Torah? Tudo me pertence a<br />

mim, tanto quanto a qualquer outro da casa de Israel?.<br />

Alonguei-me dali, dentro da noite, e divisei meu rabi sozinho no monte, braços erguidos de quem ora e as vestes<br />

irradiantes de luz. E foi como se as trevas me houvessem caído dos olhos, porque vi meu como um anjo do céu; e rojei-me por<br />

terra no sopé do monte e pus as mãos e gritei: “Rabi, rabi, ajuda-me! E meu rabi me disse: “Judas, sobe cá até mim, porque é<br />

por ti que mando minhas preces as céu”. E eu me levantei para subir o monte, mas a encosta estava cheia de espinhos e de<br />

travancas e eu tomava numa direção e noutra, e afinal não pude chegar-me ao rabi. Perdi-o de vista e ali fiquei sozinho, dentro<br />

da noite, agarrado, maltratado pelos espinheiros agrestes. “Rabi, onde estás?” eu chamava, e ouvia a sua voz mas não o via<br />

com meus olhos. Passado algum tempo, eis que surge diante de mim e me toma pela mão e me leva monte acima, e lá fiquei<br />

junto ao meu rabi com os céus iluminados por sobre minha cabeça. E o rabi me disse:<br />

− Judas, teu coração está inquieto; está como a nau perdida nas tormentas do mar. Por que não encontras<br />

sossego, como meus outros discípulos?<br />

E eu respondi, dizendo:<br />

− Rabi, realiza uma das tuas maravilhas para que se me fortifique a fé.<br />

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E meu rabi respondeu: “Foi o que acabei de pedir, Judas, porque tu podias ser o meu discípulo mais amado” e<br />

tomando minha mão desceu o monte e levou-me às ruínas, onde vi os outros discípulos dormindo com as cabeças deitadas em<br />

lajes e os corpos cobertos com os mantos. Dormiam o sono dos justos, como dormiu Jacó em Beth El, com a luz das estrelas e<br />

banhar-lhes os rostos.<br />

E o rabi disse: “Obrigado a ti me fico, pai do céu, de que ocultes a coisa aos sábios e inteligentes e a reveles às<br />

crianças e aos inocentes”. Mas enchi-me de coragem e disse: “Os que conservam nas mãos os fios que nos foram dados por<br />

nossos pais não podem dormir, não encontram paz porque temem que esses fios lhe caiam das mãos. Porque se os fios caem,<br />

que farão eles? Não terão outros a que se agarrarem, e errarão tontos nas trevas de suas vidas.<br />

Ao que o rabi respondeu:<br />

− Foi o tesouro entregue em tuas mãos, mas não é o que detém o tesouro aquele que possuí o tesouro, e sim<br />

aquele que julga que o perdeu e continua a procurar...<br />

salva-a.<br />

− Rabi, eu não compreendo.<br />

Ao que ele respondeu:<br />

− Quem procura salvar sua alma por meu intermédio, perde-a. Mas aquele que por mim perde sua alma, esse<br />

Curvei-me diante dele e disse:<br />

− Grande coisa me acabas de dizer. Não te deixarei até que me digas quem és.<br />

Mas o rabi respondeu, dizendo:<br />

− Judas, eu sou aquele que repousa em teu coração. Eu sou a fé. Moro em cada coração na medida em que cada<br />

coração pode conter-me.<br />

Mas eu lancei-me a seus pés e gritei:<br />

− Rabi, eu sei quem tu és. Só pode falar assim aquele a quem foi dado o poder de assim falar.<br />

Mas meu rabi ergueu-me e apontou para os outros discípulos no sono, dizendo: “Vai, Judas, deita-te entre eles e<br />

deixa que a paz volte ao teu coração”.<br />

E deitei-me entre os outros e com eles dormi, lá nas ruínas das vizinhanças de Bet Zeida.<br />

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XIII<br />

XIII<br />

Na manhã seguinte, quando os habitantes de K’far Nahum e cidades próximas souberam das maravilhas<br />

operadas na véspera, seus corações se agitaram, e entre si alguns disseram: “Certo que com ele pretende Deus fazer grandes<br />

coisas”; e outros disseram: “Seu poder vem de Satã. Esse homem vai trazer-nos grande infortúnio”.<br />

E quando souberam que aqueles a quem havia o rabi dado comida desejaram proclama-lo rei e para ele pediram<br />

a coroa de Daví, o medo os tomou. E diziam: “Quando o governo souber que os judeus quiseram proclamar outro rei, lançará a<br />

culpa sobre todos nós; e seremos responsabilizados pelo tonto falatório dos pobres, e temos de sofrer as conseqüências”.<br />

E alguns deles foram em procura do rabi e lhe disseram: “Levanta-te e sai da nossa cidade, porque o governo<br />

sabe de teus feitos e que queres ser rei dos judeus e agora vão perseguir-te e prender-te. E se não te entregarmos nas mãos do<br />

governo, hão de dizer que juramos proclamar um novo rei dos judeus e assim por tua causa cairão calamidades sobre nós”.<br />

E então o rabi nos chamou e disse: “Saiamos deste lugar. Podemos ir para Tiro e Sidon. Pois não disse Deus a<br />

Elias o Tishbita: “Levanta-te e vai a Zarephath em Sidon”? Por que não ser agora como com Elias, já que a gente de hoje não é<br />

melhor que a daquele tempo? E assim como o mesmo Ahab tem seus profetas, assim têm eles também seus falsos profetas”.<br />

E meu coração se fundiu de medo quando vi que meu rabi pensava em deixar as cidades da terra de Israel, onde<br />

o espirito da santidade repousa, e ir para as terras dos idólatras que se dão à impureza. Mas nenhum de nós ousou dizer-lhe<br />

uma só palavra, porque seu poder se exercia sobre nós como o do senhor sobre o escravo, e seu peso estava sobre nós como o<br />

do jugo sobre os animais de tiro; e baixamos nossas cabeças em silêncio e seguimo-lo.<br />

E era como se o rabi lesse nos meus pensamentos. Porque eu estava a ponderar sobre o que iríamos comer na<br />

terra da impureza quando ele disse: “Homem de pouca fé! Não foi Elias alimentado por Deus por meio dos corvos e das<br />

abelhas silvestres?”<br />

Tomamos nossa coberta de estamenha e pusemo-nos a caminho. As mulheres e nossos amigos acompanharamnos<br />

até longe; depois voltaram, e as mulheres ficaram em casa da sogra de Simão, de guarda aos vasos. Porque o rabi dissera<br />

que não ia pregar a palavra de Deus, mas descansar do tumulto do povo e sondar em seu coração qual o caminho a seguir.<br />

E nas praias do Genesaré banhamo-nos naquelas águas e dissemos o “Ouve, ó Israel”, e comemos o pão que<br />

havíamos trazido. Depois seguimos entre as montanhas que ficam entre as terras de Israel e as terras de Tiro e Sidon. E embora<br />

o trajeto fosse mais semeado de propriedades agrícolas do que a romã o é de grãos, não nos acolhemos sob nenhum teto,<br />

porque era da vontade do rabi passarmos a noite sob a copa dos grandes cedros. Ao fim de dois dias de viagem chegamos a um<br />

lugar chamado Cheder Bayarim e acampamos fora da cidade.<br />

Quando no terceiro dia o sol se levantou, sua luz caiu sobre as terras que descem para o Mar Grande; e vimos a<br />

costa ocidental cheia de cidades com muitos jardins e rodeada de verdes pradarias. E as cidades invadiam o mar com seus<br />

portos. E dos altos víamos o mar tomado de navios e muito nos admiramos da grandeza daquele reino. Não eram as casas<br />

iguais às nossas, pois que feitas de tijolos e pedra, com salas de colunas resguardadas do sol. E quando nos aproximamos de<br />

Sidon compreendemos a razão da sua grande riqueza: eles não punham bois e asnos nas charruas, mas sim homens.<br />

A terra de Sidon é engordada com o sangue e a carne dos escravos que caem. O grito dos esmagados sobe como<br />

nuvem sobre Tiro, funde-se no ar e desce em chuva de lágrimas e terror. E no primeiro campo o nosso rabi encontrou um<br />

homem que arava a terra com dois escravos jungidos à charrua, um velho e um moço. Porque era costume jungir um fraco a<br />

um forte, para que o fraco suasse atrás do forte. Nus estavam os dois. E quando na terra dura o velho não pode arrancar o ferro<br />

com a força com que o fazia o moço, e seus pés tropeçaram na leiva, o chicote chumbado que o arador sustinha vergastou-lhe o<br />

pobre corpo. Ao ver aquilo o nosso rabi deteve a mão do homem mau e disse: “Por que bates em teu irmão? Não vês que é<br />

velho e fraco e não pode fazer o mesmo trabalho que o moço?” e o arador respondeu: “Chamas a essa criatura meu irmão?<br />

Meu escrevo é, pois comprei-o com o meu bom dinheiro. Cinqüenta dracmas de prata, e só de Tiro, dei eu por ele no porto dos<br />

escravos quando nossos navios trouxeram um carregamento das terras da Gália. Dois anos apenas me serviu e vê em que<br />

estado está! Dou-lhe pão de acordo com o seu trabalho, mas por menos pão que lhe dê, seu trabalho não vale o pão que lhe<br />

dou. Mas quem és tu que vens perturbar as leis da nossa terra? Segundo teu modo de vestir e pela voz, és um estrangeiro, e<br />

hebreu pelo calçado. Ainda não sacudiste o pó das sandálias e já queres julgar nossas coisas”.<br />

Então os filhos de Zebedeu disseram: “Rabi, que diz esse mau homem? Devemos faze-lo calar-se?” E o rabi<br />

respondeu: “Não vim para destruir as vidas dos homens, mas para cura-los”. E nós nada dissemos e prosseguimos na jornada; e<br />

quanto mais nos aproximávamos da cidade mais escravos íamos encontrando no trabalho. Porque enquanto em nossa terra só<br />

trabalhamos com animais, os quais também descansam como nós nos sábados, eles aqui tudo fazem com escravos. Vimos<br />

muitas rodas d’água, que em nossa terra são giradas por asnos ou camelos, movidas aqui por escravos de olhos furados, por<br />

que em Tiro um homem custa menos que um animal do campo.<br />

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Mas isso foi nada diante do que nossos olhos viram na cidade. A costa do Mar Grande estava coberta de<br />

vivendas magníficas, na península que penetra nas águas. E quanto mais íamos entrando pela cidade, mais compreendíamos a<br />

iniqüidade da escravidão.<br />

Por toda parte só o trabalho escravo. Passamos primeiro pelas ruas dos teares, reunidos num certo bairro. Porque<br />

em Sidon não é como entre nós; as mulheres não tecem nas casas nas horas de folga, ao pé do fogo, rodeadas dos seus e entre<br />

cânticos. Fazem de modo diferente. Coifas, chales e panos, tudo é tecido por criaturas que eles compram no mercado de<br />

escravos. E não tecem apenas para o gasto da casa, mas mandam seus linhos para todas as terras do mundo. E para isso reúnem<br />

em amplos lugares os seus tecelões escravos, presos aos teares como o asno do agricultor é preso à charrua. E um feitor<br />

sentado em nível mais alto e de vara na mão vai contando, e à medida que ele vai contando os escravos vão lançando a<br />

lançadeira. E há outros feitores com chicotes para castigo do tecelão que sair do compasso com os demais.<br />

Inúmeros eram os teares que enchiam os amplos recintos coberto de ramos. E inúmeros eram ali os escravos,<br />

como aranhas no tecido de teias. Pela maior parte velhos já sem fibra, homens e mulheres sem forças para os trabalhos duros;<br />

os escravos moços e fortes trabalhavam nos pisadouros de óleo e nas seções de tinturaria. E as mulheres que enleavam os<br />

carretéis eram como vermes esmagados aos pés dos tecelões, como os abandonados de Deus, como a erva que é jogada fora.<br />

Entre os fiandeiros, grande número de crianças com os olhos enferidados, sem cabelo, corpo chaguento e pus a escorrer dos<br />

ouvidos. Porque as crianças que são fortes e bem favorecidas eles as usam nos serviços domésticos ou para os seus prazeres<br />

pecaminosos. As fracas, feias e doentes vão para os teares.<br />

E encontramos homens e mulheres encadeados juntos, que não sabiam um a língua do outro. É assim que fazem:<br />

quando um escravo envelhece e já não presta para o trabalho, não o tomam na família, como é de uso nas terras de Edon, nem<br />

os metem em zonas só de escravos para que lá vivam até o fim, como fazem os gregos. Porque eles não usam os escravos<br />

apenas para servi-los, como as gentes de Edon e da Grécia, mas para fabricar as várias mercadorias com que enchem seus<br />

barcos e levam a vender em longes terras; porisso quando um escravo já não pode trabalhar eles o lançam fora e não mais lhe<br />

dão comida. Daí encontrarmos junto aos galpões de tecelagem montes de moribundos que com as mãos descarnadas<br />

imploravam um pedaço de pão – e ninguém tinha piedade deles. Não havia lá nenhum conhecimento da palavra “compaixão”<br />

que é a qualidade do Senhor do mundo, o qual a transmitiu ao nosso antepassado Abraão. O trabalho ali não tem fim, e<br />

nenhum homem ou mulher anseia pela chegada da noite como hora de descanso. Vimos igualmente fileiras de escravos moços<br />

atrelados às carretas de transporte dos fios que saem das casas de tingir. Assim tratam as criaturas escravizadas; e como um rio<br />

corre sem cessar, do mesmo modo em Tiro e Sidon a escravidão corre dia e noite em caudal de amargura e raiva.<br />

E quando o nosso rabi viu a escravidão dos tecelões não disse uma só palavra, mas seu aspecto deixou<br />

transparecer o que lhe ia no coração. Seu rosto demudou, de dor; a angústia falava em seus lábios e seu olhos se ergueram para<br />

o céu. E ouvi o gemido de súplica que saiu de dentro dele: “Senhor, tem piedade de tuas criaturas”.<br />

Por fim nos deslocamos dali e saímos da cidade, seguindo as carretas de transporte dos fios tintos nas casas de<br />

tingir, sitas à beira do mar.<br />

Maior que as ondas do Mar Grande são as ondas de injustiça das terras de Tiro. Nós não podíamos ver as<br />

poderosas águas do mar porque nossos olhos estavam entenebrecidos pelo quadro de lepra que se nos descortinava naquelas<br />

praias.<br />

Todas as costas de Tiro e Sidon não passam duma cadeia de escravatura, com as praias conspurcadas pelo suor e<br />

as lágrimas dos míseros. As águas do mar em Sidon não possuem espuma própria: espumejam podridão humana. Vi<br />

pescadores escravos chegarem com botes cheios de caramujo marinho que dá a tinta púrpura. Pela noite inteira esses escravos<br />

descem no mar seus cestos e suspendem-nos cheios desses caramujos, que amontoam na praia. E lá entre os montes de<br />

caramujos do mar havia homens de alentada estatura, encadeados a grande mós de pedra; e esses homens, que tinham os olhos<br />

furados para que não pudessem ver, moviam incessantemente as grandes mós sob a chibata dos feitores, e assim moíam os<br />

caramujos do mar, que outros escravos, manejando pás, iam lançando sobre as mós. E a escorrência roxa que vem do fígado<br />

dessas criaturas do mar espirrava nos corpos nus dos escravos e os ia tingindo. E as esmoídas criaturas do mar iam-se<br />

amontoando em massa aos pés daqueles escravos, cujos corpos chafurdavam na horrível e fedorenta massa. O ar em torno<br />

tinha um fedor espesso e o chão em redor era lama pútrida. Perto passavam lotes de escravos encadeados um no outro e<br />

carregando fardos de lã branca de Damasco e dos nossos portos de Cesaréia e Joppa; e fardos de linho do Egito; e lançavam<br />

aquilo nas grandes celhas de espessa calda púrpura, porque perto dos moinhos ficavam as tinturarias.<br />

Mulheres moças banhavam o linho nas celhas; outras tiravam-no, escorriam-no e punham-no a secar nas praias.<br />

E toda a zona da praia era habitada por homens e mulheres em estado de nudez, sem outra coisa sobre o corpo senão a segunda<br />

pele formada pelo manchamento da tinta púrpura; isso lhes tirava o aspecto humano – ficavam como animais malhados – e<br />

como animais eram tratados.<br />

E ali também, do mesmo modo que em redor dos barracões de tecelagem, os escravos velhos e em abandono<br />

apodreciam junto aos montes de caramujos, quando o trabalho do dia chegava ao fim. Roíam-nos as doenças que aquelas tintas<br />

põem no corpo. Seus olhos purulentos rolavam nas órbitas, ali naquela podridão, e ninguém atentava neles. E eles comiam a<br />

massa esmagada que saia dos moinhos e seus corpos inchavam.<br />

O grito de dor daqueles homens era silenciado pela fraqueza de seus corpos; e eles arrastavam-se até a fímbria<br />

das ondas e uma lá vinha mais forte que os levava e afinal os levava da vida. Deixamos aquele lugar e fomos para diante, mas<br />

para onde quer que fôssemos não saímos de dentro do mar de escravatura. De qualquer lado que volvêssemos os olhos, víamos<br />

a nudez de carne atrelada ao trabalho.<br />

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Inúmeros eram os navios do mar, com as coloridas velas de tantas nações, Egito e Ilhas Gregas, Espanha e<br />

Pérsia, Itália e África. Escravos, os carregadores do embarque e desembarque, os transportadores de todas as mercadorias do<br />

mundo, sedas da Pérsia, vinhos de Chipre, bronze e prata de Espanha. Como diligentes formigas, trabalhavam criaturas<br />

humanas na praia – e tão numerosas quanto as formigas. E tropas de escravos encadeados trotavam sem cessar entre os navios<br />

e as tinturarias, ou as forjas e oficinas de modo que a cidade de Tiro vivia envolta num cinto de dor e pecado.<br />

E o nosso rabi parou diante de cada lugar de trabalho e olhou. Tudo queria ver e saber; e como se quisesse<br />

esvaziar a taça da injustiça até a borra, ia de um vale de lágrimas a outro – dos tecelões aos tintureiros e destes aos recintos<br />

onde as mulheres costuravam.<br />

Porque assim como usam os homens nos trabalhos pesados, assim usam as mulheres na costura de trajes que<br />

Sidon vende. E as mulheres que trabalhavam na costura eram escravas que também proporcionavam o prazer aos homens, de<br />

modo que lhes cabiam trabalhos leves, que não se lhes estragasse o corpo.<br />

E fomos à seção das crianças inválidas nas oficinas de metais; e lá vimos muitas em cujos lábios o leite do seio<br />

materno ainda não havia secado; meninos e meninas sentados no chão e a baterem com martelos dentro de vasos de bronze e<br />

prata recém-saídos da fornalha. E aquelas crianças tinham em seus corpos as marcas da escravidão feitas com queimaduras; do<br />

mesmo modo como seus pais, usavam-lhes todas as forças no trabalho até que se esgotassem – e então iam para o monte de<br />

podriqueira em que os adultos acabavam.<br />

Estavam algumas já quase cegas; por falta de habilidade tinham outras o rosto queimado pelo fogo. E a carne de<br />

outras era torturada pelo chicote dos feitores. Seus corpos não interessavam aos prazeres dos sodonianos e pois se consumiam<br />

ali junto às fornalhas. Como nada dessem nos mercados de escravos, vinham para ali para que acabassem mais depressa.<br />

Depois vimos como aquelas jovens mãos tocavam o fogo, como se em vez de feitas de carne fossem tenazes<br />

feitas de ferro; e vimos crianças com as barrigas inchadas de tanta água bebida por causa do grande calor das fornalhas; e a<br />

água que bebiam era suja, a mesma em uso para os resfriamentos das forjaduras.<br />

E dali nós fomos para os grandes fornos, onde vimos escravos trazendo em cestas, a terra de chumbo que os<br />

navios colhem na Bretanha. Fornos montados na praia e acesos com fogos do inferno. E derretem a terra de chumbo e<br />

misturam o metal com o ferro e a prata das minas de Tarshish. Outros alimentam as chamas com os carregamentos de lenha<br />

trazidos do Carmelo. Ao clarão que sai dos fornos dançam homens nus dentro da nuvem de fumo que tudo envolve e escurece<br />

o sol. No meio do calor e do fumo aqueles corpos são como os dos pecadores no inferno; movem-se e com as pás de cabo<br />

longo derramam nos moldes o metal fundido; e o metal espirra-lhes no corpo e queima-os.<br />

E vimos homens estropiados, semi-queimados de membros e rosto; e quando queriam afastar-se do trabalho<br />

eram pela chibata dos feitores tangidos para dentro da nuvem de calor e fumo. E quando um espirro de metal fundido cegava<br />

um homem, lá era ele posto nos moinhos de caramujo. E se nem nos moinhos podia trabalhar, descobriam-lhe algo que fazer,<br />

pois não havia de escapar ao trabalho, até que a vida não abandonasse o corpo – tal como fora com os nossos antepassados no<br />

Egito.<br />

E depois fomos às oficinas dos sopradores de vidro, onde as grandes chamas dos fornos subiam para o céu. Tais<br />

fogos também eram alimentados com a lenha que os escravos traziam do Carmelo e do Líbano. E também ali outros homens<br />

arrastavam pesadas cestas de areia vítrea, como nossos antepassados as haviam arrastado no Egito; e a areia vítrea, que é<br />

encontrada na praia, entra areia solta nos fornos e sai massa fluida. Ai não trabalhavam homens fortes, mas sim mulheres e<br />

crianças, criaturas de pulmões novos, bons na tarefa de soprar o vidro.<br />

E havia crianças com a pele sobre os ossos de tanto calor suportado, e todas queimadas, como entre os<br />

trabalhadores dos metais. E dos caldeirões puxavam a massa de vidro na ponta de tubos de assoprar, e assopravam, dando ao<br />

vidro a forma bojuda. E enquanto ainda quente e mole aquilo, afeiçoavam-no com os dedos nus em forma de vasos. E por cima<br />

o sol queimava-lhes os corpos e o calor dos vidros queimava-os por baixo. E de quando em quando uma criança não agüentava<br />

mais e caia; e se naquele corpo ainda houvesse um pouco de vida o feitor a despertava a chicote; e se naquele corpo já não<br />

existia vida nenhuma, lançava-o nos montes de lixo da praia, onde vinham devora-lo as aves carniceiras.<br />

E aconteceu que enquanto ali estávamos vieram com uma criança caída lá nos fornos por excesso de calor e a<br />

jogaram sobre um monte de areia vítrea que ali fora acumulada; e um dos feitores chegou e olhou, e sobre aquele corpo inerte<br />

desceu o chicote de vários rabos com pontas de chumbo. E como o corpo não despertasse, o feitor ali o deixou, porque não<br />

havendo vida dentro já nenhum valor possuía. E não houve ninguém que tomasse o partido da criança. Nosso rabi chegou e<br />

olhou para aquilo e ficamos à espera de que ele erguesse a mão e transformasse o feitor em estatua de sal, como foi com a<br />

mulher de Lot; ou que fizesse como Moisés quando abateu o egípcio e enterrou o cadáver na areia.<br />

Porque nós pusemos os olhos no rosto do nosso rabi e vimo-lo como se estivesse em fogo e com a tempestade a<br />

rugir dentro. Mas nada disse ele; seus lábios mantiveram-se selados, numa linha contorcida de dor. E também nós silenciamos.<br />

Mas Jochanan, o filho de Zebedeu, bateu com o punho sobre o seu próprio coração, que refervia de raiva.<br />

Também os outros discípulos estavam abeberados de cólera contra o feitor facínora, e todos ansiávamos para que<br />

o nosso rabi pronunciasse a palavra que fizesse o feitor mergulhar nas areias, como fizera ele a criança mergulhar na morte.<br />

Mas o nosso rabi se mantinha em silêncio; compreendemos que tinha razões para isso e também nos calamos.<br />

Mas quando o matador da criança se afastou dali, então o nosso rabi veio para perto do pequeno cadáver e nós o<br />

seguimos. E olhou para a criança morta, que era um menino de nove ou dez anos, de corpo todo lavrado de queimaduras, já<br />

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sem carnes, só ossos e pele enferidada. E ainda aleijado de uma perna e cego de um olho – razão pela qual o haviam lançado<br />

nos fornos. Na orelha direita, porém, trazia o sinal do amor de sua mãe, o brinco que ela lhe havia posto ao nascer. E tinha os<br />

cabelos negros e o rosto nada de criança, sim dum velho exausto, cheio de rugas. E nós esperamos, pensando que o rabi fosse<br />

ter compaixão do menino e o despertasse do sono da morte. Mas não foi assim. E compreendendo que devia haver razões para<br />

que não fosse assim, nada perguntamos. O rabi guardou silêncio, mas as lágrimas que lhe brotaram dos olhos caíram sobre o<br />

corpo da criança.<br />

E nós nos fomos dali, daquele vale de dor das crianças para o lugar onde conservavam os escravos trazidos por<br />

mar de longes terras do mundo. Consistia num cercado na praia, coberto de folhas de palmeira, no qual vimos homens,<br />

mulheres e crianças, moços e velhos, de todas as raças e povos, e até mães com filhos no seio. Os sidonianos não obtinham<br />

escravos por meio da conquista à espada, como faziam outras nações, mas por compra. Seguiam os capitães e chefes e lhes<br />

compravam os prisioneiros de guerra, e iam até onde a espada de Roma alcançava – às ilhas da Bretanha, às terras além dos<br />

desertos da África, além da Armênia e do Cáucaso; e também compravam escravos dos povos seus vizinhos. E dividiam os<br />

escravos em grupos e classes. A muitos mandavam para as remotas minas da Espanha e da Bretanha e esses nunca mais viam a<br />

luz do sol, pois só saiam de dentro da terra quando cadáveres; e os escravos mineradores eram escolhidos entre os mais fortes e<br />

no vigor da idade. E ali estavam aqueles escravos na praia, caídos ou de joelhos, com cadeias que os prendiam um ao outro,<br />

com os olhos no sol, como se, conhecedores das trevas subterrâneas que os aguardavam quisessem prender consigo o sol. E<br />

havia os escravos cujo destino era de galerianos. E outros que se iam aos trabalhos a que estavam afeitos em suas terras. E<br />

outros de corpos jovens e bem formados, boa mercadoria para os mercados de carne do prazer, distantes dali. Eram<br />

examinados e separados e tratados conforme o destino, e a mesma diferença sofria a alimentação de cada um. Os de músculos<br />

rijos eram apartados para os trabalhos duros; alimentavam-nos de coisas cruas, carcaças e toucinhos fedorentos e punham-nos<br />

sob o chicote. Os destinados ao serviço doméstico e ao prazer eram tratados com brandura, bem abrigados e bem alimentados,<br />

para que nada perdessem do valor. Vimos um dono de escravos enfurecer-se contra um feitor que levantara o chicote contra<br />

tais escravos e desse modo lhes ameaçara o valor. Eram até ungidos de essências para que despertassem o desejo dos<br />

compradores.<br />

Longo tempo ali ficou o nosso rabi olhando para os escravos, e naquele dia nada comeu, como se estivesse<br />

satisfeito com tanta dor que havia contemplado. E percebemos que qualquer coisa lhe refervia no coração e por fim lhe veio<br />

uma grande cólera. Eu jamais o vira assim, por todo o tempo em que o acompanhei, porque fogo saia de seus olhos e todo ele<br />

era uma chama rubra. E sua boca falou: “Três vezes ímpia tu és, Tiro; tua carne é a carne dos cadáveres e tua água brota do<br />

sangue”.<br />

E ele saiu dali e fomos para o centro da cidade, onde nos sentamos numa praça, porque nosso rabi não podia<br />

entrar em casas como aquelas, impuras como se a morte morasse dentro. E não comeria do pão dali, porque “o pão de Sidon é<br />

a carne dos cadáveres e a água de Sidon sai do sangue”. Iria apenas passar a noite lá e voltaria para as terras de Israel, porque<br />

os usos e costumes daquela gente nos eram estranhos e sentíamo-nos perdidos em tal tumulto de dor e pecado.<br />

E aquela cidade do pecado e da tortura tinha o ar duma prostituta muito pintada. Seu ouro era espremido do<br />

sangue dos homens e sua riqueza vinha do suor das crianças. Casas de construção maciça, escadarias amplas, colunas, tetos<br />

ornamentados como de templos. E templos em todas as praças para a abominável adoração de seus ídolos; e vimos muita gente<br />

que neles entrava e deles saia, vestida de panos multicores. Quanto mais importante era um homem, mais cores trazia no<br />

vestuário, e ornatos, como as aves de belas plumagens; na testa, bandas de ouro. Também as mulheres se ornavam<br />

multicoloridamente, e saiam acompanhadas de escravos nus, com as vergonhas expostas; e a cidade se enchia de cantos e<br />

músicas de bandos de celebrantes que iam para ou vinham de suas pecaminosas reuniões. E tanto as mulheres como os homens<br />

ataviavam-se e pintavam-se, e traziam atrás de si escravos nus com as vergonhas à mostra.<br />

E o nosso rabi, mais os seus discípulos em trajes negros, sentaram-se à esquina dum palácio, sob uma palmeira, e<br />

fecharam os olhos para os tirarem de tanta indignidade. E pelas nossas roupas os da terra viram que éramos de fora; mas<br />

nenhum nos veio convidar para sua casa, como é de costume na abençoada terra de Israel, onde o temor de Deus paira sobre<br />

todos. Embora desde os tempos de nossos avós reinasse a paz entre Tiro e Israel e houvesse comércio entre as duas terras,<br />

ninguém nos deu um olhar.<br />

E na cidade de Tiro percebemos o quão diferentes de nós são os gentios. E não nos aproximamos de nenhum<br />

deles porque nenhum deles nos compreenderia e teria mofado de nós. Ali, naquele estranho lugar, percebemos afinal quão<br />

santa é Israel e quão bem fez Deus que seu espírito descesse sobre nós e que em vez de sermos escravos de homens de carne e<br />

sangue fôssemos os filhos eleitos do Senhor do mundo. E ansiamos por estar de volta para os nossos irmãos, no seio da lei<br />

judaica do Torah, onde nos sentiríamos abrigados como sob as asas do nosso pai e guardião.<br />

E enquanto ali estávamos assim perdidos naquela terra de pagãos, um homem se aproximou de nós, vestido com<br />

a nossa mesma simplicidade e indagou em nossa língua:<br />

− Irmãos, certo que sois filhos de Israel, pois que passais a noite ao relento para não entrardes em casa de gentio.<br />

E nós respondemos:<br />

− Na verdade somos irmãos em Israel.<br />

E o estrangeiro nos disse:<br />

− Bendito seja o Deus de Israel que me mandou a mim os meus irmãos. Vinde e acolhei-vos sob meu teto.<br />

Bendito será o limiar da minha porta, se o transpuserdes. Há pão em minha casa e também vinho – e vinho ritualmente puro, de<br />

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acordo com a leis de Israel. E minha esposa, a dona da casa, se rejubilará, e minha família também, de que tenhamos tão<br />

importantes hóspedes.<br />

residência .<br />

E, feliz do encontro, nos beijou a cada um na face, como é o costume de Israel, e com alegria nos conduziu à sua<br />

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XIV<br />

XIV<br />

Bendito sejas, pai do céu, que nos escolheste para te servir e não nos fizeste como os povos idolatras que se<br />

curvam diante do trabalho de suas próprias mãos. Tem compaixão, pai do céu, de tuas criaturas e abre-lhes os olhos, de modo<br />

que todas possam ver que só tu és o rei dos mundos, e não há outro além de ti.<br />

Josué ben Kalman recebeu-nos em sua casa; e quando soube quem éramos – um rabi e seus discípulos – fez-nos<br />

grande honra, tomando sobre si a tarefa de servir ao nosso mestre. Mas nós nada sugerimos sobre quem havia cruzado o limiar<br />

de sua casa, porque o nosso rabi nos proibira de dizer a alguém o seu nome, nem contar seus feitos, pois não queria ser<br />

conhecido daqueles estranhos lugares. E embora pelos nossos atos percebesse Josué bem Kalman que éramos da seita dos<br />

fariseus, nem por isso deixamos de esquecer todas as divisões existentes entre nós para que ficássemos apenas filhos do Deus<br />

vivo.<br />

O homem nos trouxe água em jarras de barro e junto com seus filhos nos ajudou a lavar as mãos e os pés; depois<br />

sentamo-nos à mesa. E sua mulher se foi à cozinha e nos preparou a refeição, porque estávamos famintos e nada leváramos à<br />

boca naquele dia. Sobre a mesa foi posto o pão, a manteiga e o queijo, tudo preparado seguindo o rito judeu; também tivemos<br />

verduras, mas nada de carne, conquanto vivessem entre gentios comedores do sangue vivo dos animais; unicamente quando ao<br />

tempo das peregrinações a Jerusalém, pela Páscoa, é que comiam a carne do carneiro sacrificado.<br />

Aquele homem nos falou na vida dos judeus na cidade pagã de Tiro, onde o Deus vivo lhes arrumara um ninho.<br />

E disse: “Louvado seja o Senhor por dar aqui vida em paz, cada qual ajudando o outro. Temos na congregação alguns bem<br />

instruídos nas escrituras e também temos a nossa pequena sinagoga, onde nos reunimos aos sábados para a leitura do Torah. E<br />

os anciãos nos lêem cada Sábado a parte relativa à semana, uma vez na língua sagrada e duas vezes na tradução, e o pregador<br />

prega. E os que voltam das peregrinações a Jerusalém rendem graças na mansão do Senhor. E quem traz de lá alguma tradição<br />

que nos é ignorada, ou alguma nova palavra de rabi, de tudo logo nos informa. E há sempre uma boa obra a fazer, como seja o<br />

resgate dum escravo, porque os que negociam com almas humanas trazem às vezes na sua mercadoria algum judeu aprisionado<br />

no mar ou em terra e vendido como escravo. E como é assim, sempre que um navio entra o capitão da nossa sinagoga vai ao<br />

porto e indaga e há algum judeu nos novos lotes chegados. Temos para esse resgates um tesouro comum. Anos atrás, na grande<br />

agitação do tempo de Arquelau, muitos judeus escravos foram trazidos da Galileia, que Varo, o malvado, vendeu aos filhos de<br />

Tiro – e porisso o puniu Deus mais tarde. Grandes coisas fez a nossa congregação naqueles tempos da guerra contra Varo, com<br />

a ajuda do Templo e dos fundos mandados pelo Sumo Sacerdote; inúmeros escravos resgatamos. Alguns voltaram para a terra<br />

pátria depois que tudo se acalmou. Outros aqui ficaram e assim reforçaram o número da nossa congregação. Há os que vivem<br />

nestas terras já de longo tempo, vindos nos dias dos hasmoneanos. E aqui no meio destes gentios comportamo-nos como se<br />

vivêssemos na sagrada congregação de Israel. Não deixamos de fazer nossas peregrinações a Jerusalém, cada grupo num<br />

festival, e de volta trazemos mais confirmação da nossa fé. Também cada Sábado renovamos a nossa fé. E quando acontece<br />

passar por aqui algum sábio, todos nos reunimos para ouvi-lo pregar a palavra de Deus no dia de Sábado. Se o vosso rabi vai<br />

ficar até Sábado e está disposto a pregar, irei imediatamente dar aviso aos anciãos”.<br />

E o homem teria ido anunciar aos anciãos da sinagoga a presença do rabi em sua casa, porque, como disse, não<br />

ambicionava essa honra só para si e se o não fizesse e os outros viessem a saber da passagem do rabi pela cidade, certo que o<br />

censurariam. Mas o nosso rabi não lhe deu permissão, pois queria permanecer ignorado naquela cidade.<br />

E estando nós ali sentados, a agradecer a Deus a graça de nos haver deparado um teto judeu, desse modo nos<br />

salvando de passar a noite entre gentios, súbito entramos a ouvir uma onda crescente de sons – vozes que cantavam, e flautas e<br />

tambores, tudo num tumulto de gente. Admiramo-nos, e o dono da casa nos explicou que eram preparativos de festa, porque na<br />

manhã seguinte iam os habitantes da cidade oferecer ao seu deus Moloch, em sacrifício, o filho primogênito duma das grandes<br />

famílias locais. Sempre que na cidade ocorre um desastre, oferecem eles ao deus um sacrifício humano – e tinha havido<br />

catástrofe séria: dez navios mercantes tragados pelo mar em Tarshish. Aquele tumulto nas ruas queria dizer preparo para o<br />

dissoluto sacrifício, em que por uma semana a cidade entrega-se a abominações: castram-se abertamente nas ruas e jogam para<br />

dentro das casas as partes cortadas e os de dentro das casas jogam para fora vestidos de mulher, com que eles se vestem para<br />

tomar parte nas devassidões praticadas no templo de Ashtarot.<br />

E quando isto ouvimos, o terror da noite caiu sobre nós, e pensamos em fugir daquela cidade para escaparmos o<br />

mais depressa possível à terra impura. E olhei para o meu rabi e não me pareceu o mesmo; estava cor de terra, com os olhos<br />

sombrios e cavos, como se toda a dor do mundo pesasse sobre seus ombros e o esmagasse. Mas nada dizia.<br />

E tarde da noite ouvi a prece de nosso rabi, e conquanto fosse a quinta noite que ele passava sem fechar os olhos<br />

e pois estivesse cansado, nem o pouso ali sob aquele teto lhe quebrou a vigília; e desperto passou a noite entre seus discípulos<br />

acomodados no terraço que o homem nos dera para alojamento. E eu vi suas mãos erguidas para o céu, e ouvi a voz que se lhe<br />

sussurrava dos lábios em gemido de sofrimento; mas palavras não lhe ouvi, como se seu coração estivesse extinto.<br />

E na manhã seguinte pensamos de novo em deixar a cidade e tornar a Israel como ovelhas perdidas, ansiosas<br />

pela flauta do pastor. Mas nosso rabi nos disse que tencionava ficar para conhecer as abominações daqueles gentios. E pediu ao<br />

dono da casa que o levasse ao lugar dos ídolos. Espantamo-nos da sua resolução, mas lá o seguimos. E quando chegamos ao<br />

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coração da cidade, a cidade era como uma prostituta bêbada. Ruas cheias de gente em trajes de festa, chales e túnicas das cores<br />

dos lírios, e roxos com listas azuis e vermelhas. E não só as vestes mas também os rostos muito pintados, com lábios de<br />

carmim como se acabassem de beber o sangue dos animais sacrificados. E muitos homens vestidos de mulher andavam com as<br />

mulheres e as imitavam em tudo; brincos nas orelhas, anéis nos dedos, colares e cadeias com frascos de perfume ao colo, e<br />

colos nus à maneira das mulheres. E havia mulheres em trajes masculinos, com barbas postiças de trancinhas e perucas de<br />

homem. Eram os sacerdotes e as sacerdotisas de Ashtarot. E caminhavam em procissões e levavam em andor seus ídolos; e<br />

também conduziam arvores cortadas de seus jardins; e músicos seguiam na frente tocando, por entre homens e mulheres nuas<br />

que dançavam.<br />

E vinha a procissão do grande ídolo Bel; e nessa procissão os tirenses traziam grandes toucados e policromos<br />

cintos sobre as vestes brancas, e diante deles flautistas tocavam e vinham os tocadores de sistro e grande multidão seguia<br />

depois dos sacerdotes.<br />

E entre os sacerdotes seguia uma mulher com uma criança pela mão, menino de seus nove a dez anos, da maior<br />

beleza e perfeição em tudo. E o menino chorava e resistia, sabendo que fora destinado ao sacrifício. E a mãe lhe falava<br />

carinhosamente e tentava vence-lo com oferecimentos de doces; e a massa humana prestava grande homenagem à mãe e ao<br />

menino, mais à mãe que ao menino, porque aquela mãe precisava mostrar espírito forte, sem a mínima descaída de fraqueza, e<br />

em tudo revelar que era voluntariamente que conduzia seu filho para o deus, pois do contrário podia o deus Moloch não lhe<br />

aceitar o sacrifício do menino e voltar sua ira contra a cidade. Assim deviam ser as mães nas famílias nobres, pois só estas<br />

gozavam do privilégio de oferecer tais sacrifícios ao deus.<br />

E nós acompanhamos a procissão até o pátio do templo do deus Moloch. E o pátio estava cheio da melhor gente<br />

da cidade, e também das plantas que eles haviam trazido de seus jardins e fincado em vasos em redor dos ídolos. E o ídolo do<br />

deus Moloch tinha a feição dum homem sentado com cabeça de boi, mas de chifres retorcidos. Lado a lado erguiam-se dois<br />

bodes. E o ídolo tinha as mãos espalmadas para melhor receber os sacrifícios. E era feito de metal, mistura de ferro e cobre e<br />

oco, como um forno. E perto ficava o outro ídolo daquela gente, Melkat, que quer dizer Melech Kiriot, ou o rei da cidade.<br />

Tinha forma dum homem-leão; rosto também de leão com barba crespa e chifres de bode; trazia nas mãos um cabrito partido<br />

em dois pedaços, como sinal da sua força. Mais adiante do ídolo do deus Bel ficava a imagem da deusa Ashtarot, com feição<br />

duma mulher nua a apertar uma pomba ao seio, sinal de fecundidade; depois do deus Moloch era Ashtarot a divindade mais<br />

querida daquela gente. Em torno de Ashtarot reuniam-se os sacerdotes e as sacerdotisas vindos na procissão. E ainda havia<br />

outros ídolos, que os padres tiravam do templo e expunham naquele dia da grande festa de Moloch. Cada um deles tinha seus<br />

sacerdotes e sacerdotisas.<br />

E quando, rodeada dos padres, a mãe chegou com o filho, ergueu-se o Sumo Sacerdote – era o mais idoso de<br />

todos – e aproximando-se do deus Moloch fez uma oração e com um archote acendeu a fogueira de lenha armada em seu<br />

ventre oco de ferro e cobre. E os padres dos demais ídolos ergueram suas vozes em cânticos de louvor, e o Sumo Sacerdote e<br />

seus acólitos lançaram mais lenha no ventre de Moloch, e assim até que o metal ficasse rubro.<br />

E durante todo o tempo em que o metal se aquecia, a mãe ao lado, com o filho pela mão, olhava para o fogo que<br />

ia recebe-lo sem nenhuma perturbação em seu rosto, sem nenhum gemido em sua boca, sem nenhuma lágrima em seus olhos –<br />

e reconfortava o menino e acalmava-o com doces. Porque o menino chorava e queria fugir e os padres não deixavam, e sua<br />

mãe ainda mais lhe apertava o pulso. E nós não sabíamos se aquela mulher fazia aquilo por amor ao seu deus ou crueldade de<br />

coração.<br />

E quando o ídolo de metal enrubesceu com o calor do fogo interno, o Sumo Sacerdote aproximou-se da mãe e do<br />

filho; e ergueu a criança nos braços e mostrou-a ao povo. E um grande grito irrompeu da multidão, que assustou a criança,<br />

fazendo-a parar de chorar, já não sabendo o que lhe acontecia. E o menino espichou as mãos para sua mãe, em gesto de quem<br />

pede socorro, mas sua mãe, de pé ali junto dele, apontou com os olhos e o dedo para o Sumo Sacerdote. E o Sumo Sacerdote<br />

tomou a criança e levou-a para o ídolo em brasa e colocou-a sobre seus braços candentes.<br />

E o grito lancinante do menino soou e suas vestes incendiaram-se; e aquilo cortou o coração do povo, mas um<br />

coro de vozes se ergueu e soaram as flautas e sistros e os urros da criança foram abafados.<br />

E a mãe de pé ao lado olhava, e via as chamas devorando a carne de seu filho, e como a gordura dessa carne<br />

chiava e emitia fumo, porque o sacrifício fora bem preparado e a criança bem alimentada para que o deus a aceitasse. E o<br />

cabelo da criança desapareceu numa chama, e sua cabeça descaiu de encontro ao seio do ídolo – e não houve gemer nos lábios<br />

daquela mãe, nem lágrimas em seus olhos; ela sorria e ria-se, tudo para que Moloch não recusasse o sacrifício. Moloch quer ler<br />

nos olhos das mães das crianças sacrificadas que não há neles sombra de piedade pela carne da carne dessas suas adoradoras.<br />

E Simão bar Jonas, que estava com o rabi na entrada do pátio, levantou a voz e disse:<br />

− Os filhos de Israel que vejam destes idólatras como servir ao único Deus vivo.<br />

E nosso rabi nada respondeu, mas vi em seu rosto a marca da cólera; e pareceu-nos que com um sopro iria ele<br />

destruir toda a abominação que se desdobrava diante de nossos olhos, como quando nosso antepassado Abraão destruiu a<br />

marteladas os ídolos de Terah seu pai; e pareceu-nos que se nosso rabi erguesse a mão seriam eles engolidos, como outrora<br />

foram engolidos Korah e sua congregação. Ou que iria chover raios do céu e consumir aquela gente, porque o mau cheiro de<br />

suas abominações até lá chegara. Mas o rabi nada fez – continuou silente.<br />

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E enquanto se consumia a carne do menino nos braços candentes do ídolo, o povo dançava em redor dos deuses,<br />

e lhes lançava flores, grinaldas de oliveira e ramos de palma; e todos se misturavam com os sacerdotes e as sacerdotisas; e com<br />

eles fornicavam sob as árvores erguidas no pátio do templo.<br />

Mas nosso rabi nada dizia, estava com a boca selada; e meditando profundamente, sua expressão mostrava o que<br />

lhe ia no coração. E disse adeus ao homem que nos levara até ali; embora já fosse tarde não queria entrar em nenhuma casa<br />

daquela cidade, nem comer dentro de seu perímetro. E fez-nos sinal de retirada e de lá saímos e sacudimos o pó das nossas<br />

sandálias ao transpormos as portas da cidade.<br />

E uma mulher cananita que estivera na multidão dos idólatras (entre os de Sidon os cananitas são escravos)<br />

destacou-se do povo e nos seguiu. E quando transpusemos as portas da cidade fez ela o mesmo. E então correu e gritou para o<br />

nosso rabi: “Tende piedade de mim, meu senhor, porque minha filha está sendo torturada por um mau espírito”, e o rabi não<br />

deu resposta. A mulher continuou a seguir-nos, e punha as mãos e não cessava de gritar: “Meu senhor, filho de Daví”.<br />

Muito nos assombramos daquilo – de que ela conhecesse nosso rabi e o tratasse daquela maneira; e ficamos a<br />

pensar se não lhe teria sucedido o que sucedeu com a asna de Balaão, que vislumbrou com seus olhos o anjo do Senhor.<br />

E os discípulos disseram ao rabi: “Manda-a embora, pois está gritando atrás de nós”. E alguns deles ajuntaram:<br />

“Ajuda-a; santifica o Deus de Israel”.<br />

E o rabi respondeu: “Só fui mandado para salvar os filhos perdidos de Israel”, e nós justificamos essas palavras<br />

em nossos corações; mas a mulher parou diante do nosso rabi e, curvando-se, disse: “Senhor, ajudai-me”. E nosso rabi<br />

respondeu: “Bom não é tomar o pão das crianças e lança-lo a cachorrinhos.” E nós justificamos essas palavras em nossos<br />

corações, porque o que havíamos visto naquela cidade nos endurecera contra os gentios, fazendo-os aparecer como cães aos<br />

nossos olhos.<br />

Mas a mulher cananita continuava a chorar rente do nosso rabi: “Sim, meu senhor, mas mesmo os cachorrinhos<br />

comem as migalhas que caem da mesa de seus donos”.<br />

E quando a mulher disse tais palavras uma luz brilhou no rosto do nosso rabi, como se um espírito houvesse<br />

renovado. E ele mandou que se aproximasse a mulher e pondo-lhe a mão sobre a cabeça, disse: “Mulher, grande é tua fé e teu<br />

pedido será satisfeito”.<br />

E a partir daquele instante o aspecto do nosso rabi demudou; as sombras desapareceram de seu rosto, sua força<br />

se renovou e ele se encheu de alegria. O quadro nos pareceu maravilhoso – e o segredo de tudo nos ia ser revelado mais tarde.<br />

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XV<br />

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Deus de Israel, purifica meu coração e abre-me os olhos, de modo que meu coração possa sentir e possam meus<br />

olhos ver o que se passa em redor de mim. Porque sou cego a apalpo na escuridão. O sol brilha e não vejo. Vozes ouço e as não<br />

entendo. Tem compaixão, Pai do céu, porque grandes e tremendos dias se aproximam.<br />

Depois que deixamos as terras de Sidon não nos levou o nosso rabi para as cidades de Israel, senão para as além<br />

do Genesaret, que Pompeu, o malvado, nos tomou e entregou a pagãos, de modo que ficaram as cidades por meio puras e por<br />

meio impuras. Porisso não nos levou o nosso rabi para dentro das cidades, mas pelos campos em redor, em ronda, como de<br />

ladrões. E onde passávamos a noite não passávamos o dia. E se um dia estávamos num vale com pastores, a noite acendíamos<br />

fogos na montanha. Subíamos aos altos e descíamos aos baixos. De dia nos queimava o sol; de noite tiritávamos. Acendíamos<br />

fogueiras de ervas e abrolhos e nos sustentávamos com o mel das abelhas silvestres que se enluram nas pedranceiras. E desse<br />

modo errávamos de lugar em lugar por entre aqueles montes. E recordávamos o salmo: “As aves do céu têm seu ninho e as<br />

raposas têm a sua toca”, mas nós os discípulos do rabi não tínhamos onde repousar a cabeça. Escorpiões e gafanhotos se<br />

tornaram a nossa comida. Mas não abandonamos o nosso mestre. Tudo por ele deixáramos e seguíamos seus passos iluminados<br />

pela luz da nossa fé. Porque assim como o vento sopra a palha do cereal abanado e só deixa o grão, assim tudo largamos para<br />

seguir o nosso rabi.<br />

E fomos Ter à cidade de Cesaréia Philippi, que já além do Genesaré e pertence ao reino de Felipe Herodes. Mas<br />

em vez de entrarmos na cidade ficamos num monte próximo chamado Pamias. No sopé desse monte há uma caverna donde<br />

brota uma fonte – e é ali o berço do rio Jordão. Sitio agradável aos olhos, de muitas fontes e terra gorda e frutífera, com<br />

pradarias dos dois lados; e lá os pastores pastoreavam os seus rebanhos. Havia igualmente muitos hortos e belos vinhedos e<br />

figueirais. Mas a despeito de tudo a terra é impura, visto como na caverna onde nasce o Jordão construíram um templo à deusa<br />

Diana. Sua imagem lá está e constantemente da cidade vem gente oferecer-lhe sacrifício de pombas, óleo e flores. E também<br />

de cabeleira de mulheres. Reúnem-se os pastores à boca da caverna e tocam em suas flautas, e todas as abominações são<br />

praticadas sob as árvores dos arredores.<br />

Meu rabi ficava a olhar a gente da cidade que vinha para os sacrifícios à deusa, e notei como seu aspecto se<br />

demudou, e como falava sozinho, como se um espírito o houvesse tomado.<br />

E naquele dia não houve com ele paz e passou-o todo sempre afastado de nós. Parecia que estivesse preparando<br />

algo importante, porque era um homem a debater consigo mesmo, como Jacó nosso pai debatia com um anjo do céu. E uma ou<br />

duas vezes fez menção de aproximar-se de nós, mas suspendeu-se, como se pensasse melhor; e depois duns passos em nossa<br />

direção retornava e nos deixava na ignorância. Nossos corações palpitavam de temor e esperança. E quando sobreveio a tarde a<br />

paz cobriu aquele lugar como se a gloria de Deus se houvesse derramado sobre a terra. Recamou-se de estrelas o céu e o Monte<br />

Hermon emergia dum cendal de nuvens. E nós murmurávamos: “Que temeroso é este lugar”.<br />

Por fim o rabi chamou-nos e disse:<br />

− Espere-me aqui; vou afastar-me monte acima e orar.<br />

E o rabi afastou-se de nós monte acima e pôs-se a orar na solidão. Não o víamos naquele escuro, senão apenas às<br />

suas vestes alvas, as mangas pendentes dos braços espichados para o céu. E o medo nos tomou, porque dentro da noite o nosso<br />

rabi parecia um radiante anjo do Senhor. E depois de passado algum tempo se veio ele a nós – e era como se em vez de<br />

caminhar deslizasse, sem que os pés tocassem o chão – um cisne a vir para nós em sua rutilante plumagem. E de pé diante de<br />

nós ficou, com o rosto diferente do que fora na véspera e dias anteriores, mas a brilhar duma nova e pálida santidade. E o<br />

orvalho da noite pingava de seus cabelos de seus cabelos e lhe caia sobre a barba, e seu corpo tremia como de febre sagrada.<br />

Nossos corações se fundiram de temor, enquanto ele nos olhava sem nada dizer. Ficamos à espera duma grande coisa.<br />

Por fim o nosso rabi falou:<br />

− Que diz o povo, do filho do homem?<br />

Estávamos com as línguas paralisadas pelo terror, mas houve um que respondeu:<br />

− Dizem uns que o filho do homem é Jochanan o Batista e dizem outros que é o profeta Elias. E há os que<br />

pensam em Jeremias e ainda outros profetas.<br />

E então eu, Judas Ish-Kiriot, senti que chegara o momento de termos a revelação de quem ela era. E eu teria<br />

aberto a boca para pronunciar a palavra ou enunciar o nome pelo qual eu tanto esperava. Mas minha língua se paralisou e o<br />

temor nada me deixou dizer.<br />

O rabi voltou-se para nós e disse:<br />

− E quem achais vós que sou? E permanecemos mudos naquele grande silêncio. Senti que os olhos do mestre se<br />

colavam em mim – em mim que estava com a sagrada e terrível palavra na boca; minha língua já se despegara mas a palavra<br />

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não me saia por causa do terror. Simão bar Jonas, porém, lançou-se diante do rabi, estendeu os braços e gritou: “Tu és o<br />

Messias, nosso Senhor, que os profetas profetizaram!”<br />

E quando ouvimos da boca de Simão essa palavra terrível foi como um raio que caísse sobre nós. Lançamo-nos<br />

por terra sem coragem de olhar, tomados do terror de Deus. Mas o rabi ergueu Simão bar Jonas e disse: “Feliz és tu, Simão bar<br />

Jonas, a quem isso não foi revelado por homem de carne e sangue, mas pelo nosso rabi Pai do céu”.<br />

E ao ouvir essas palavras, nós, os outros discípulos, mais ainda nos curvamos, sem coragem de olhar para a<br />

Esperança de Israel ali de pé diante de nós. Estávamos como num sonho, e parecia que as hostes celestes lá das estrelas nos<br />

enfitavam com os olhos. E também nos parecia que os patriarcas, sim, e os profetas também estavam a pique de se revelarem.<br />

Como que ouvíamos passos de aproximação, e rumor de asas; e como que o ar estava ali cheio de almas, como os céus do<br />

Monte Sinai quando nossos antepassados receberam das mãos de Moisés o Torah. Igualmente criamos que o anjo Messias<br />

estava conosco. E espantávamo-nos de nos ver ali sós, em vez de termos ali toda Israel, como toda Israel daquele tempo se<br />

reunia no Sinai. E nossos corações vibravam de alegria, e se o terror nos não tolhesse teríamos cantado e gritado a nossa<br />

salvação dentro da noite.<br />

E um som de soluço nos encheu de alegria e uma voz falou: “Levai-me perante o sagrado de Israel. Quero rojarme<br />

a seus pés”.<br />

E a voz era voz de Bar Talmai o Cego que ali estava dum lado. E um de nós ergueu-se e levou-o para diante do<br />

rabi, dizendo: “Vê, estás diante do sagrado de Israel”.<br />

E quando se achou diante do rabi, um grito grande saiu de dentro de Bar Talmai: “Eu vejo! Eu vejo!” E quando<br />

lhe perguntamos que é que via respondeu: “Vejo diante de mim um anjo do céu vestido de fogo”.<br />

E Bar Talmai jazia diante do rabi, a olhar através dos olhos fechados. E seus lábios profetizavam: “Vejo o<br />

sagrado de Israel. Ele caminha sobre os montes – trombetas soam adiante dele – e a alegria de Deus o segue. Jerusalém: põe<br />

tua melhor veste, sobe aos altos e vê como alegres chegam teus filhos vindos de norte, sul, leste e oeste! Deus os traz das<br />

distantes ilhas do mar; diante deles se nivelam as montanhas, os vales se aplainam, as flores lhes dão sombras, ervas<br />

aromáticas brotavam-lhe sob os pés. Jerusalém: veste tuas mais ricas vestes, abre tuas portas para que por elas entre o sagrado<br />

de Israel!”<br />

E as palavras de Bar Talmai nos despegaram a língua e a alegria que nos sufocava o coração nos irrompeu em<br />

palavras de sonho profético. Porque estávamos como os que sonham de noite, e cantávamos os cantos do portador das boas<br />

novas. E batíamos palmas, e Simão o Zelote voltou-se para ele e declamou este verso:<br />

− O mensageiro está sobre os montes, o portador da paz: celebrai tuas festas, ó Jerusalém, que teu voto foi<br />

satisfeito. Já não serás escravizada por tantos vis malvados.<br />

E dançamos em redor dele, batendo palmas. E cantamos os cânticos de Daví, seu pai. E Simão bar Jonas disse<br />

este verso: “Ele é meu servo, sobre ele me apóio. Minha alma ama-o, deixo que nele repouse meu espírito para que ele possa<br />

julgar as nações”.<br />

E eu, o menor dos seus discípulos, adiantei-me, lancei-me por terra e disse esse verso: “Mandarei diante dele<br />

meu mensageiro abrir o caminho. Subitamente virá ele ao seu santuário, o senhor a quem procuramos e o anjo da aliança pelo<br />

qual ansiamos. Ele vem! diz o Senhor do céu”.<br />

E assim cada um de nós se detinha diante do rabi e lhe aplicava um verso.<br />

E o rabi ali entre nós; e o nosso pensamento era que se erguesse a mão os céus se abririam e legiões de anjos<br />

desceriam em carros ardentes, tirados por querubins alados; e passariam através do mundo como um trovão; e os reis da terra<br />

ficariam a seus pés como ovelhas atadas, para que ele os julgasse, como profetizaram os profetas.<br />

E, vede, enquanto ainda dançávamos em redor do nosso rabi e nos rejubilávamos na salvação que descera sobre<br />

nós “como o orvalho de Deus cai em gotas sobre a relva quando nenhum homem o espera”, levantamos os olhos e vimos que a<br />

tristeza torturava o seu rosto. E ele ergueu a mão e guardou silêncio. Depois disse:<br />

− Muita dor espera o filho do homem.<br />

E quando ouvimos essas palavras, nossas palavras se nos travaram nas gargantas, nossos gritos de júbilo<br />

emudeceram e entreolhamo-nos atemorizados, porque não entendêramos o que ele dissera; mas suas palavras nos queimavam<br />

com um fogo vivo. E Simão bar Jonas tremia; e lançando-se aos pés do rabi disse:<br />

− Não, rabi, Deus não permitirá tal coisa.<br />

− E o rabi falou com aspereza:<br />

− Afasta-te de mim, Satã. Teu coração pensa de coisas de homem, não de coisas de Deus. E nos disse: “Quem<br />

quiser seguir-me tem de negar-se a si mesmo. Aquele que procura salvar sua alma, perdê-la-á. Mas aquele que por mim e pela<br />

mensagem que trago perder sua vida, esse está salvo”.<br />

E estando nós assim, como os lançados das alturas celestiais ao mais profundo abismo, como que despidos de<br />

trajes reais e largados nus e descobertos, o rabi chamou-nos; seu rosto novamente se encheu de alegria e de seus lábios vieram<br />

palavras de conforto.<br />

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− Eu vos digo que se acham entre vós aqueles que não provarão de taça da morte antes que assistam ao advento<br />

do reino de Deus em toda a sua força – e depois destas palavras retirou-se pela segunda vez e foi orar sozinho distante dali.<br />

E, vendo-se sós, os discípulos guardaram longo silêncio. Cada um procurava interpretar no coração as palavras<br />

do rabi. Os sábios nas escrituras esforçavam-se por encontrar sugestões nos dizeres dos profetas, e os não sabidos interpelavam<br />

os outros. E Simão o Zelote disse com amargor: “Suportamos o insulto e a mofa para que ele brilhasse em sua glória. Sofremos<br />

o jugo de Edon afim de que a alegria lhe viesse. E cairá ele também sob a sombra da vara? Que quererá dizer com aquelas<br />

palavras? Teremos nós moído pó em nossos moinhos? Será levado a julgamento aquele que vai julgar o mundo? Oh, procurai,<br />

procurai nas escrituras uma prova, uma sugestão, de que as suas palavras querem dizer outra coisa”.<br />

E os discípulos procuraram e meditaram; porque muitos de nós jamais ouviram que o Messias tinha de passar<br />

por muitos sofrimentos, de modo que aquela idéia nos sabia a coisa nova.<br />

E os discípulos puseram os olhos em mim, porque me consideravam forte nas escrituras; e depois em Bar<br />

Talmai, e em André, o mais profundo de todos como discípulo que fora de Jochanan, e depois em Felipe. E nós, os que<br />

conhecíamos as escrituras, sentamo-nos em grupo e consultamos a nossa memória, e dela extraímos versos aprendidos nos<br />

tempos de criança, entre eles os duma fala do Livro de Isaías: “E Deus abriu meus ouvidos e eu não me rebelei e voltei as<br />

costas. Voltei as costas aos destruidores e meu rosto aos que arrancavam o cabelo, e não o escondi”.<br />

Do fim desse texto não nos podíamos lembrar e o dissemos – e os discípulos perguntaram: “Mas que significa?”<br />

E eu respondi: “Refere-se ao trabalho do Messias.” E eles quiseram saber quais os trabalhos do Messias. Quem poderia<br />

interpretar as palavras? Não teria um de nós ouvido nada do nosso rabi concernente ao assunto? E não podia esse que ouviu<br />

nos informar? Súbito me ocorreu a fala que havia ouvido.<br />

Eu estava certa vez no pátio do Templo e vi o velho sentado nos degraus, à sombra dum cubículo, falando a<br />

outros dos trabalhos do Messias. Insinuei-me entre eles e ouvi, por que suas palavras tinham a autoridade da tradição que os<br />

rabis trouxeram da Babilônia para Jerusalém e foram transmitindo de uns para outros. E quando comecei a recordar isso, todos<br />

se interessaram e disseram: “Conta-nos o que o velho falou a respeito dos trabalhos do Messias, porque desejamos saber”.<br />

E eu repeti a fala que tinha ouvido ao velho lá no pátio do Templo: “O Sagrado – bendito seja Ele! – falou assim<br />

do Rei-Messias: Aqueles por cujos pecados tu irás sofrer, porte-ão sob um jugo de ferro. Far-te-ão como o bezerro de olhos<br />

sombrios. Por causa dos pecados deles está decretado que tua língua será cravada no céu da tua boca. Queres isto?” E o<br />

Messias respondeu: “Senhor do mundo, com a luz da minha alma e a alegria do meu coração tomo sobre mim esse trabalho.<br />

Mas com a condição de que não se perderá nem uma só alma de Israel. E não serão ajudados só os vivos do meu tempo, como<br />

também todos os que viveram desde o tempo de Adão, o primeiro homem. Se me isto for dado, consinto em tomar sobre meus<br />

ombros todos esses sofrimentos”.<br />

E eu, Judas Ish-Kiriot, prossegui assim a fala sobre os trabalhos do Messias:<br />

− Ensinam os nossos rabis que na semana do advento do Messias ben Daví eles trarão barras de ferro e as porão<br />

sobre o seu pescoço, até que o seu corpo arreie e ele grite e chore. E quando sua voz chegar ao céu, gritando: “Senhor do<br />

mundo, quanto tem minha força que suportar? Quanto têm que suportar meu espírito e meus membros? Não sou de carne e<br />

sangue?”, então o Altíssimo – bendito seja! – responderá: “Efraim, meu justo Messias, assim o decretei eu desde os seis dias da<br />

criação. Deixai que tua dor seja igual à minha. Do dia em que Nabucodonozor, o malvado, destruiu minha casa e queimou o<br />

meu santuário, e expeliu meus filhos dentre os povos da terra, desde esse dia não me sentei em meu trono. E se não crês em<br />

mim, olha o orvalho sobre minha cabeça”. E nessa hora o Messias dirá a Deus: “Senhor do mundo, agora me sinto<br />

reconfortado. Porque é bastante que teu servo seja como o seu senhor”.<br />

E os rabis ensinaram que os patriarcas virão perante o Messias e dirão: “Efraim, nosso grande Messias, mais<br />

velho que tu somos, mas tu és maior. Sofreste pelos pecados de nossos filhos e grande tormenta se ergueu contra ti, como<br />

jamais houve entre os homens. Por amor de Israel tu te tornaste a mofa das gentes, jazes em espessas trevas, teus olhos não<br />

vêem luz, tua pele cobre os ossos, teu corpo está como o pau seco e teus dentes caíram. E sobre ti tudo isto tomaste por causa<br />

dos pecados de nossos filhos”.<br />

E naquela hora o Altíssimo – bendito seja Ele! – erguerá o Messias ao mais alto céu e o banhará em Sua glória. E<br />

as nações virão e lamberão o pó dos pés do Messias.<br />

E está escrito: “Como um noivo que brilha em beleza”. Disto se segue que o Altíssimo – bendito seja Ele! –<br />

vestirá o Messias em veste de luz, a qual brilhará dum extremo da terra a outro, e nessa luz se rejubilará Israel dizendo:<br />

Bendita seja a hora em que ele nasceu!<br />

Bendito o ventre donde saiu!<br />

Bendita a geração que for a sua!<br />

Benditos os olhos que o tiverem visto!<br />

O hálito de sua boca traz bênção e paz.<br />

E quando conclui a história do velho, André, irmão de Simão, disse: “Oh, agora me lembro do final do verso!<br />

“Deus me ajudará e não serei vexado”, o que quer dizer que o Messias sairá de suas dores fortificado”.<br />

E quando os discípulos ouviram estas palavras, disseram: “Agora sabemos a significação dos trabalhos do<br />

Messias” e todos se rejubilaram. Mas Simão bar Jonas sentou-se sozinho, envolvo no manto de máguas, como se houvesse<br />

sugado os seios da dor; e mudo ali ficou por longo tempo. Depois nos disse:<br />

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− Não obstante, eu não o deixaria ir a Jerusalém. Só de lá pode vir o Messias?<br />

E eu respondi:<br />

− Simão bar Jonas, tu pecas com tais palavras. Dos ombros do Messias não podes tirar o jugo que lhe está<br />

decretado. Eles sabem que a senda da salvação passa por Jerusalém e sem Jerusalém não há Messias.<br />

E então nós, os discípulos, procuramos onde passar a noite, e nos abrigamos e cobrimos a cabeça com os mantos.<br />

Mas dois deles não dormiram e um terceiro os vigiava. O rabi, em cima do monte, orava sozinho. Ao sopé sentou-se Simão bar<br />

Jonas, coberto pela sombra da noite. E quando os outros discípulos dormiam, eu vi Simão esgueirar-se como ladrão rumo ao<br />

rabi. E à luz das estrelas vi Simão bar Jonas estender as mãos num gesto de apelo. Mas o rabi o expulsou do monte com um<br />

grito: “Vai-te de mim, Satã!”<br />

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XVI<br />

XVI<br />

E, dormindo ou despertos naquela noite, esperamos em nossos corações que pela manhã uma voz viesse<br />

proclamar por montes e vales a notícia do advento do Messias; e que ao levantar-nos de madrugada víssemos os filhos de<br />

Israel, vindos de todos os recantos do mundo, ali reunidos em redor de nós. Mas não desceu do céu voz nenhuma, nem surgiu<br />

Elias nos montes, nem nenhum portador de boa nova; o dia correu como todos os outros, num mundo igual ao da véspera.<br />

E quando naquela manhã nos levantamos estávamos, nós discípulos, todos famintos e sem já um pedaço de pão<br />

na sacola. Pleno verão já; da terra resseca nada vinha para refrescar o Messias. Encontrávamo-nos sobre o monte Palmias, da<br />

cidade de Cesaréia, no reino de Herodes Felipe. E Herodes Felipe era um rei justo, que nos deixou em paz. Diariamente lá do<br />

alto olhávamos as mulheres que vinham à convanca donde brotava o rio Jordão e a deusa tinha o seu bosque. E as mulheres<br />

traziam oferendas de trigo branco, e boiões de azeite e jarras de vinho, e pombas, incenso e flores; e naquele mesmo monte<br />

estava o Messias de Deus com fome e sede, sem Ter onde repousar o corpo.<br />

E então saímos daquele lugar e fomos para outro. Mas o rabi não nos levou para as abençoadas cidades de Israel<br />

cheias de santidade. Nós esperávamos que quando ele se revelasse ao povo o seu sagrado reino ia começar, mas fomos levados<br />

longe, para as cidades dos gentios além do Genesaré. E era sempre o mesmo cada vez que penetrávamos numa dessas cidades;<br />

fechávamos nossos olhos e ouvidos para não vermos as abominações pagãs nem ouvirmos seus cantos e risos. Procurávamos<br />

as tendas de Jacó, os nossos irmãos que lá morassem, e nos abrigávamos sob teto judeu e comíamos pão judeu; todos nos<br />

recebiam como a um rabi com seus discípulos. Porque a ordem do nosso rabi era ocultarmos a sua identidade. Aquela gente<br />

ignorava que tinha consigo o Messias. E entre nós e o nosso rabi havia uma separação, como se uma cortina de fogo houvesse<br />

descido do céu. Porque se ainda era ele o nosso rabi como o tínhamos conhecido, e cujas palavras tínhamos ouvido até o dia da<br />

véspera, e com o qual dividíamos o pão, já era entretanto outro, como se no-lo ocultasse a luz de Deus descida sobre ele; e um<br />

palmo revelava e dois palmos ocultavam; nós o víamos e não o víamos.<br />

E naqueles dias chegamos a Gedera, no extremo do Genesaré, cidade cheia de gentios, com muitas praças e<br />

jardins, muitos templos e ídolos, entre os quais o maior de todos, o templo da abominação chamada Zêus, que a cidade<br />

adorava.<br />

Também lá se adoravam outros ídolos, tanto próprios como estrangeiros. Cada ídolo tinha seu templo na cidade<br />

poderosa e opulenta; e havia os templos de Rá, o deus do sol dos egípcios, e de Astra, a deusa da gente de Sidon. E cada<br />

templo tinha seus sacerdotes e suas sacerdotisas, homens e mulheres sagrados na devoção dos ídolos. E os mercados e lojas<br />

enchiam-se de prostitutas. Quando á chegamos estavam na festa do seu deus principal, Zêus, de modo que todos os homens e<br />

mulheres vestiam trajes festeiros, alguns de custosa púrpura, outros de suave cor violeta ou lírio pálido, como de uso em Sidon.<br />

E iam aos bandos para os templos, com tocadores de instrumentos à frente. Primeiro vinham os tocadores de trombetas, depois<br />

os tocadores de flauta e os batedores de címbalos, e ao som de músicas levavam sacrifícios de animais aos deuses. Os chifres<br />

desses animais eram adornados com coroas de ouro, outros com grinaldas de oliveira; e iam os bois entrajados de custosos<br />

enfeites, com virgens e adolescentes coroados de rosas dançando em torno. E as sacerdotisas seguiam entrajadas de modo que<br />

a nudez de seus corpos fosse apenas entrevista e desse modo despertasse com mais intensidade os desejos dos homens. E<br />

depois delas vinha o herói do dia, um jovem na flor dos anos que acabava de vencer nas corridas. Todo nu, apenas com a coroa<br />

da vitória na cabeça. E para esses vencedores das corridas a gente da cidade tinha mais honras que para os sacerdotes e<br />

sacerdotisas; e todos se deleitavam na nudez de seu corpo e na força de seus músculos, e louvavam a altura de seu peito e as<br />

linhas de suas coxas. E homens e mulheres admiravam o poder de seus braços e de suas pernas, e a sua virilidade, e lhe<br />

lançavam flores como para um deus, gritando: “Adonis! Adonis!” ou seja, “Tu o belo!” E depois dele vinha o povo, homens e<br />

mulheres misturados, conduzindo frutas e flores; e comportavam-se de maneira abominável, não permitida em Israel.<br />

Éramos comprimidos pela multidão e apertados contra as paredes, e tínhamos conosco o Ungido de Deus e<br />

ninguém o reconhecia!<br />

Olhei para o rosto do meu rabi e o vi pálido como lá em Tiro diante das abominações do deus Moloch, e seus<br />

lábios tremiam, e seus olhos ardiam com o fogo de Deus. E esperei pelo milagre, pelo grito que eu via prestes a sair de sua<br />

boca – mas o meu rabi apenas murmurava para si mesmo. Apurei os ouvidos e ouvi; ele sussurrava as palavras que Deus<br />

escrevera na parede da Babilônia: “Mene, Mene, Tekel, Upbarsin” – e eu o compreendi e me contive.<br />

Começamos então a perceber os feitos do nosso rabi a uma nova luz, e começamos a compreende-lo.<br />

Judas dizia: “Sabido é que para o Senhor do mundo, não para honra minha e do meu rabi, conto eu estas<br />

maravilhas; conto-as só para honra de Deus – bendito seja Ele! – afim de fortalecer a fé no coração das criaturas”.<br />

E deixamos aquela cidade profanada por ídolos e fomos para as margens do Genesaré, bem distante da elevação<br />

em que ficava a cidade. E grandemente nos rejubilamos de rever o nosso querido mar; ao longe, no extremo das águas,<br />

pudemos ver a terra das santas cidades de Israel, banhada de luz do sol, e exclamamos: “Que agradáveis são tuas sendas, ó<br />

Jacó, teus tabernáculos, ó Israel!” Mas antes de alcançarmos a beira das águas passamos por um morro íngreme, muito acima<br />

do nível. Lugar deserto, sem marcas de habitação humana. Pedranceira musguenta, cheia das ervas dos lugares abandonados; e<br />

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espinheiros com garras de animais silvestres nos rasgavam a roupa e feriam a carne. Raquíticas e retorcidas, as árvores eram<br />

como pigmeus aleijados e como se não pertencessem à nossa criação. Desfolhadas, como se os demônios dos abismos as<br />

houvessem flagelado com chicotes de fogo. E tudo que ali crescia tinha o mesmo caráter áspero, tão distante das coisas verdes<br />

que os homens cultivavam e estamos acostumados a ver. Tudo abrolhos e línguas de fogo. Como se tivesse havido guerra na<br />

vegetação e as plantas se houvessem estraçoado mutuamente e devorado umas às outras, como acontece com as feras.<br />

Ao ver-nos cercados de tantos abrolhos e espinhos naquele adusto pedraçal, o medo nos tomou, como se<br />

estivéssemos para além dos limites da graça de Deus. Aquilo não dava idéia de fazer parte da criação do Senhor. E conquanto<br />

seja proibido pensar tal pensamento, já que está escrito que “a terra está cheia da Sua glória”, aquilo era como se fosse um<br />

lugar fronteiro do Espírito Mau, brotado das fontes da impureza e da abominação. E tudo confirmava o pensamento proibido,<br />

pois bem logo se ergueu uma nuvem de pó que velou o sol; e nas trevas irrompeu um tumulto que não era de tempestade e sim<br />

de tropel das hostes do mal. E de dentro do tumulto vinha um uivo como que de espírito atormentado. E o pó e o uivo vinham<br />

de manadas de porcos selvagens que como demônios desciam do alto dos pedraçais; e muitos deles caíram em buracos e<br />

covancas ocultos pelas ervas, e outros se despenharam sobre pedras pontiagudas e se espetaram ou se cravejaram de espinhos e<br />

abrolhos. E os restantes rolaram para o mar. E depois deles, vieram os porqueiros aos gritos de pavor, porque os perseguia um<br />

homem feroz, de porte gigantesco e membros jamais vistos, nu e peludo como os animais de pelo. E não tinha no rosto feição<br />

humana, mas de besta, com olhos a chispar fogo e focinho como trombeta retorcida; e da boca, que era a porta do inferno,<br />

saiam dentes como pontas de lança. E perseguia os porqueiros com o ímpeto de quem vai levado pelos ventos da tempestade.<br />

Ao avistar-nos, abandonou aquela perseguição e se veio do nosso lado. Quando se aproximou e percebeu as vestes brancas do<br />

nosso rabi, o qual tinha os braços abertos para recebe-lo, o homem selvagem entreparou e olhou para o nosso rabi. Parecia<br />

tomado de medo daquelas vestes brancas, pois teria retrocedido, se o nosso rabi não lhe dissesse, com as mãos estendidas:<br />

“Vem a mim, filho extraviado!”<br />

E vimos o homem selvagem lançar-se ao encontro do nosso rabi, como que em fúria e para esmaga-lo. Mas<br />

chegando perto entreparou, como que acalmado pelo olhar do nosso rabi, do mesmo modo que o olhar do domador acalma o<br />

animal domado. E ficaram os dois um diante do outro, nosso rabi e o homem selvagem, de mãos estendidas um para o outro.<br />

Era como a luta entre Jacó e o anjo, com a diferença de que o nosso rabi lutava apenas com os olhos. E nosso rabi falou ao<br />

homem selvagem com grande compaixão:<br />

− Acalma-te, meu filho. Conheço a casa de teu pai e sei de onde vens. Volta, que teu pai está à tua espera.<br />

E quando o homem selvagem ouviu aquilo, levantou uma voz desesperada e disse:<br />

− Como voltarei à casa de meu pai, se a casa de meu pai é pura e eu sou impuro? Demônios fizeram ninho em<br />

minha carne e moem-me continuamente com mil males. Legiões de demônios moram dentro de mim, e meu nome é legião.<br />

E rojando-se por terra urrou com mil vozes, como se centenas de gatos selvagens estivessem dentro dele em<br />

corrida louca, na procura de escapula e a não encontrassem. E ele tremia dos pés à cabeça.<br />

E meu rabi impôs sobre ele as mãos e mandou que os demônios o abandonassem e não mais o atormentassem; e<br />

que entrassem no corpo dos porcos que rolavam das pedras e caiam no mar. E meu rabi lhe disse:<br />

− Teu nome não será mais Legião e sim Israel, como teu pai te chamou. E já não serás um homem selvagem,<br />

mas um filho de teu pai, o filho perdido que à casa paterna torna.<br />

E o nosso rabi ergueu-o do chão e mandou que um de nós descesse e trouxesse água do lago, e levasse àquele<br />

homem e lhe cobrisse com roupa a nudez. E o rabi fê-lo sentar-se e disse:<br />

− Os demônios te deixaram e entraram no corpo dos porcos despenhados no mar. Estás perfeito.<br />

E o homem sentou-se aos pés do rabi como um de nós.<br />

E o rabi abriu a sacola de pão e deu pão ao homem, e o homem o comeu como um de nós.<br />

E nosso rabi lhe disse: “Estás purificado e curado. Volta para casa de teu pai, que te espera de braços abertos”.<br />

E o homem respondeu, em voz como a nossa: “Como posso voltar para a casa de meu pai? Roubei o seu dinheiro<br />

e o perdi com prostitutas e maus homens até me ficar igual aos porcos e ir morar com eles”.<br />

E o nosso rabi reconfortou-o e disse:<br />

− Teu pai mandou mensageiros em tua procura.<br />

Mas o homem tremia. “Tenho medo de meu irmão mais velho, que está em fúria contra mim”.<br />

− Teu pai te espera com os braços abertos para receber-te. Volta para casa e conta do prodígio que Deus fez<br />

contigo, terminou o rabi.<br />

Nós, os discípulos, atentamos a fundo naquilo e compreendemos os feitos do nosso rabi; porque não era só com<br />

o homem selvagem que ele lutava, mas com todos os deuses de Tiro e Sidon; e não eram demônios o que ele expulsava e<br />

incorporava nos porcos, mas Moloch e Ashtarot, Zêus e Afrodite e todas as abominações dos gentios; sim, era a esses que ele<br />

havia expulsado e afogado no mar no corpo dos porcos, para que o homem selvagem se curasse e se fosse para casa de seu pai.<br />

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E de chofre nós percebemos a grandeza do nosso rabi. Porque ele havia lutado com os deuses de Tiro e Sidon e<br />

os vencera, e limpara o homem e o preparara para receber o reino do céu.<br />

E nós rendemos graças ao Senhor.<br />

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XVII<br />

XVII<br />

Atentai. Deus declarou pela boca dos profetas: “Mandarei Elias o profeta antes do grande e temeroso momento.<br />

Preparai o caminho”.<br />

E por que está meu coração de novo inquieto? Quanto mais me aproximo das cidades de Israel mais recresce<br />

minha inquietação e avulta o meu medo do que está para vir.<br />

Deixamos as cidades dos gentios e nos dirigimos para as terras santas de Israel. E não cessava a minha esperança<br />

de que meu rabi se revelasse; e que aparecesse Elias o profeta e desse a boa nova da chegada do Messias. Mas enquanto isso<br />

nosso rabi andava pelas cidades e se hospedava com os pastores nos campos, e assim até que chegamos a um monte, onde nos<br />

disse: “Aqui passaremos esta noite”; porque a noite nos tinha alcançado ali. E a luz do céu descia sobre o monte como se fosse<br />

o espírito de Deus; e o silêncio cobria o mundo, não como a calmaria que precede a tempestade, mas a do repouso eterno que<br />

vem quando todas as coisas se fundem com o seu criador e a si próprias se realizam como foi decretado no momento de sua<br />

concepção. Ouvimos o canto da noite; e que é o canto da noite? O silêncio; o canto da noite é o silêncio que canta em nossos<br />

corações o temor e o amor de Deus.<br />

E o rabi nos disse: “Oremos”, e envolveu-se no tallit e levou consigo Simão e os filhos de Zebedeu para o topo<br />

do monte, porque a hora era propícia para a oração. Os demais discípulos ficaram no sopé do monte.<br />

E tomamos pedras do chão e as dispusemos sob nossas cabeças, e cobrimo-nos com os nossos mantos, e<br />

dormimos sem demora, porque estávamos cansados das caminheiras do dia. E à meia noite uma voz poderosa vinda do alto nos<br />

despertou. E quando abrimos os olhos espantamo-nos da brancura da noite; estava a terra embebida de luz e os altos do monte<br />

cobertos duma nuvem com feição de asa de anjo; era como se as neves do Hermon tivessem vindo cobrir o monte em que o<br />

nosso rabi orava.<br />

E Simão emergiu da nuvem, pálido e de cabelos revoltos pelo vento, os olhos dilatados pelo terror, a tremer um<br />

grande tremor. E depois vieram os irmãos Zebedeu, Jochanan a passos rápidos e braços estendidos, e Jacó atrás dele. Vinham<br />

também terrificados. E nós, os outros discípulos, levantamo-nos e fomo-lhes ao encontro, porque certamente grande coisa se<br />

havia passado. E dissemos-lhes: “Que houve que estais como batido pela tempestade?” E Simão gritou: “Vimos Elias o<br />

profeta, aquele por quem tanto esperamos”. E os Zebedeu deram igual testemunho. E nós perguntamos a Simão: “Quando?<br />

Onde?” e ele respondeu: “Lá no alto do monte onde o rabi foi orar. Elias o profeta está lá com ele e Moisés também”. E essas<br />

palavras nos encheram de assombro. “Simão, contai-nos como tudo foi, pois coisa é de muita importância para nossas vidas”.<br />

E Simão contou.<br />

− Atentai. Estávamos nós no alto do monte e o nosso rabi nos disse: “Esperai-me aqui que vou sozinho lá<br />

adiante”, e se foi até certa distância e lá víamos a luz do céu caindo-lhe sobre o tallit. E seus braços espichavam-se para o céu e<br />

ele orava. E, súbito, estando nós a vê-lo de longe, um terror nos invadiu. Suas vestes começaram a irradiar de brancura, e em<br />

torno dele palpitavam asas como de querubins. E ouvimos o som de passos, embora não víssemos ninguém. Parecia que um<br />

vento nos soprava. E súbito vimos dois anciãos de vestes brancas de pé junto ao nosso rabi, em conversa. Pouco depois eles se<br />

esvaíram numa nuvem branca como se a neve os envolvesse aos três. E de dentro da nuvem saiu uma voz que testemunhou<br />

nosso rabi nas palavras dos profetas. E então a nuvem desapareceu e nosso rabi ficou sozinho e nós lhe perguntamos: “Quem<br />

esteve contigo?” E o rabi respondeu: “O primeiro deles era Elias o profeta, que vós procurais e o outro era Moisés nosso<br />

mestre”. E eu disse ao meu rabi: “Senhor, bom é este monte; e se bem te parece ergueremos aqui três cabanas, uma para ti,<br />

uma para Moisés e outra para Elias o profeta. Porque não quero que meu rabi vá a Jerusalém por causa do que lá o espera”.<br />

E Jacó e Jochanan testemunharam as palavras de Simão.<br />

E lá estávamos, em grande espanto, quando vimos o rabi descer do monte, com as vestes mais brancas do que<br />

nenhuma lavagem pode conseguir e com a glória de Deus no rosto; e os pés nus andavam como se não estivesse andando na<br />

terra. E havia uma nuvem sobre sua cabeça e nós tremíamos.<br />

E o rabi aproximou-se de nós e tocou-nos com a mão, dizendo: “Levantai-vos e de nada temei”, e mandou-nos<br />

que não revelássemos aquilo a ninguém antes que o tempo fosse chegado.<br />

Perguntamos: “Quer isto dizer que Elias o profeta virá antes do Messias como dizem os escribas?” E o rabi<br />

Yeshua respondeu: “Elias veio, mas os homens não o conheciam e com ele fizeram como entenderam. O mesmo sucederá com<br />

o filho do homem – assim está escrito”.<br />

Baixamos os olhos ao ouvirmos aquelas palavras, sabendo que o nosso rabi se referia a Jochanan o Batista. Mas<br />

Simão gritou: “Isso não pode ser”.<br />

Descansamos no dia seguinte na praia do Genesaré, bem abrigados do calor do sol. Terra agradável aos olhos; o<br />

trigo era um mar verde a revestir o solo, e os cachos de uva pendentes eram como cheios úberes de ovelhas sonhadoras; as<br />

figueiras esparziam o seu olor; o homem andava pelos campos e o canto da colheita soava como está escrito: “Aqueles que<br />

semeiam em lágrimas colhem em alegria”, porque era tempo da colheita das espigas nos trigais.<br />

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E o rabi nos disse:<br />

− Segui os ceifeiros e respigai, e rejubilai-vos com o pão que Deus separa para os pobres.<br />

E nós nos enchemos de admiração e perguntamos um ao outro:<br />

− Mas dele não é toda a terra? Não o fez Deus para governar sobre todos nós, como a harpa de Daví cantou:<br />

“Pede-me e dar-te-ei por herança os povos, e tua parte alcançará os limites da terra?”<br />

Mas o rabi adivinhou nossos pensamento e falou assim:<br />

− Os mais ricos serão os mais pobres.<br />

E então mandou-nos que tomássemos as espigas e as moêssemos entre pedras, e fizéssemos pão e os assássemos.<br />

E assim fizemos.<br />

Era ao cair da tarde, depois do “Ouve, ó Israel!” quando o lavrador senta-se para a sua refeição. O rabi nos<br />

reuniu em redor do fogo. Tinha o rosto profundamente triste e todo ele impregnava-se do espírito santo. E sentado ali conosco<br />

permaneceu algum tempo calado.<br />

Depois tomou do pão que assamos e benzeu-o. E ao dividi-lo disse:<br />

− Eu sou o pão vivo que vem do céu. Quem comer do pão do céu viverá vida eterna. E o pão que vos dou é a<br />

minha carne, que eu sacrifico para bem do mundo.<br />

Simão observou:<br />

− Palavras duras são essas. Quem as compreenderá?<br />

O rabi dividiu o pão e o distribuiu entre nós e mandou que o comêssemos.<br />

E entreolhamo-nos com espanto, porque nunca lhe tínhamos ouvido palavras como aquelas. Daí por diante muito<br />

nos falou ele, a nós e aos outros, em pão da vida – e nós não entendíamos a significação.<br />

Depois deixamos aquele lugar e fomos para K’far Nahum. E a inveja que sentimos de Simão bar Jonas e dos<br />

Zebedeu recrescia em nossos corações. E nós perguntávamos uns aos outros, cheios de ressentimento: “Por que distingue o<br />

rabi entre os seus discípulos? Por que foram eles iniciados nos segredos do rabi de modo a poderem testemunhar grandes<br />

coisas, e nós não?”<br />

E os irmãos Zebedeu comportavam-se com orgulho diante de nós, falavam entre si como se fossem os primeiros<br />

no reino do céu, e sentavam-se do lado direito do rabi e esperavam que o governo do mundo lhes fosse dado.<br />

E Jochanan dizia: “Não estive com o rabi no monte? Não fui testemunha das grandes coisas que lá se passaram?”<br />

E o rabi ouvia e calava-se.<br />

Mas em K’far Nahum aconteceu encontrarmos um grupo de crianças brincando à entrada da cidade. A maior de<br />

todas era o rei; as outras, servos. Em dado momento deixou o rei o trono e disse: “Vamos agora deixar a menor de todas ser rei,<br />

e nós ficamos seus servos”. E o rabi se foi para o menino e perguntou: “Que palavras aprendeste hoje na escola?” E o menino<br />

respondeu: “Do pó levantarei o indigente”. E então o rabi pregou: “O Sagrado Um – abençoado seja Ele! – diz para Israel: Que<br />

desejo de vós? Unicamente que vos ameis uns aos outros”. E voltando-se para nós: “Sobre que disputais?” perguntou ele, e nós<br />

contamos tudo. E o rabi então falou: “Em verdade vos digo que a não ser que vos torneis crianças, não entrareis no reino do<br />

céu. Porque o reino do céu é como o reino da criança; e depois do reino do céu, o reino da criança é o único que abriga e não<br />

pode ser tomado. O que entre vós quer ser o primeiro, deixai que seja o último e vos sirva. O que pode apequenar-se como uma<br />

criança, esse será o maior no reino do céu”.<br />

Mas os filhos de Zebedeu não estavam contentes com sua parte no rabi e meditavam em como seriam os maiores<br />

dos discípulos. E Jochanan Zebedeu deixou-nos e foi para Bet Zeida por causa do que segue: Os irmãos Zebedeu haviam<br />

abandonado os ricos barcos da sua mãe para seguir o rabi. E sua mãe se encolerizara de terem abandonado a pesca certa do<br />

peixe para pescarem homens. E disse-lhes: “Esse negócio vai dar em nada, vossa mãe sai prejudicada e as redes secam nos<br />

varais e se estragam”. Mas Jochanan replicou: “O advento do reino do céu se aproxima, e teus filhos serão nele grandes<br />

senhores, porque estamos mais perto do rabi o qual nos prefere aos outros e nos confiou segredos. E então a tua recompensa,<br />

mãe, será grande; verás teus filhos transformados em grandes senhores da terra porque toda a terra vai pertencer ao nosso<br />

mestre, como os profetas profetizaram. Porisso mãe, sê forte e vai ao rabi e pede-lhe que derrame sobre nós a sua graça e que<br />

sempre nos conserve do seu lado direito”.<br />

E a mãe selou um asno e carregou-o com um saco de farinha e um cesto de figos frescos e dois queijos e dois<br />

boiões de mel, porque era uma mulher rica e de nome Suzana.<br />

E a mãe dos Zebedeu foi Ter com o rabi e curvou-se e disse: “Se tua serva encontrou graça aos teus olhos, deixame<br />

que te fale. Meus dois filhos tudo deixaram para te seguir. Eram pescadores de peixes e tu os fizeste pescadores de homens;<br />

para te seguirem abandonaram o trabalho. E agora que o reino do céu vai começar e todas as riquezas da terra virão Ter às tuas<br />

mãos e tu te tornarás o rei dos reis, peço-te que os recompenses de seu trabalho e que Jacó e Jochanan se sentem à tua mão<br />

direita”.<br />

141<br />

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E o rabi entristeceu-se e guardou silêncio por uns instantes. Depois respondeu à mulher: “Preparados estão eles<br />

para beber da taça que eu tenho de beber?”<br />

E para os filhos de Zebedeu ele disse: “Habilitados estais a receber o batismo que vou receber?” A resposta foi:<br />

“Sim, rabi”. Mas o rabi lhes disse: “Mesmo assim não podeis ser os maiores. Porque o filho do homem também não veio para<br />

ser servido, mas para servir aos outros, e ele dará sua vida em sacrifício pelos outros”.<br />

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XVIII<br />

XVIII<br />

Ao alcançarmos a porta de K’far Nahum ninguém apareceu com palmas e archotes para nos receber. Ninguém<br />

fez soar diante de nós a flauta, o saltério ou o tambor. A gente da cidade havia esquecido o que por ela tinha feito o rabi – o<br />

pão multiplicado no deserto e tantas outras maravilhas por eles testemunhadas diariamente.<br />

Fomos para casa da sogra de Simão, onde só um punhado de pobres dos mais pobres lá nos saudou, criaturas que<br />

o rabi havia alimentado com dinheiro doado pelos ricos. Quando os pobres perceberam que os ricos tinham voltado as costas<br />

ao rabi pela maior parte nos abandonaram, dizendo: “Aqui não há mais nada”. E fomos abandonados, nós, os discípulos e as<br />

mulheres que estavam conosco. E alguns de nós nos fomos ao trabalho na cidade para ganhar o pão de cada dia; e os Zebedeu<br />

foram ter com sua mãe e tomaram dois botes, saindo com Simão a lançar as redes; e deste modo nos sustentamos a nós<br />

mesmos e ainda os poucos pobres que não nos tinham abandonado.<br />

A gente importante da cidade murmurava, dizendo: “Por que é que voltou ele para cá? Os mensageiros de<br />

Herodes andam a procura-lo, e se o encontram aqui em nosso meio vão culpar-nos disso. Muito melhor que se afaste de K’far<br />

Nahum”. Mas os que ele havia curado e para os quais havia realizado milagres disseram: “Não, esperemos para ver o que<br />

acontece. Porque se os mensageiros do governo vierem, ele os destruirá; nada façamos contra esse homem porque ele é santo”.<br />

Entre os que isto diziam estavam o chefe da sinagoga, aquele que tivera uma filha curada e o centurião das hostes de Herodes<br />

em K’far Nahum; e o centurião ocultou das autoridades a presença do rabi e contra ele não ergueu a mão, pois acreditava em<br />

seu poder.<br />

E assim como em passos firmes o dia segue a noite e a expulsa, assim também nosso rabi começou de novo a<br />

construir a sua congregação e a mostrar-se forte. Percebíamos que ele estava com a autoridade na mão. Sim, muitos havia que<br />

ainda mofavam, mas o rabi não lhes dava atenção e construiu o seu ninho de novo, dentro da teia do governo dos perversos.<br />

Vieram de novo para o redor dele os doentes e pobres e abandonados e expulsos – e não havia ninguém que por muito baixo<br />

não fosse recebido em sua congregação. E com a autoridade que lhe vinha do alto encaminhou-se em pleno dia para o porto da<br />

cidade e falou aos pescadores e carregadores como falara antigamente. E embora sem revelar as grandes coisas que lhe<br />

acontecera, de vários modos levava-os a compreender que o prêmio de seus trabalhos e sofrimentos vinha perto, e perto<br />

estavam a redenção e o reino do céu. E aquela gente dava-lhe crédito e esperava. Mas havia outros que diziam: “Não, com este<br />

Yeshua nada mais acontecerá”. Porque a opinião do povo estava dividida.<br />

E no Sábado reuniu-se ele em redor, a nós, seus discípulos, e nos levou à sinagoga. E alguém disse: “Este é o que<br />

faz milagres com o poder de Satã”. E outros: “Este foi o que nos curou da nossa doença”. E quando o rabi subiu ao púlpito para<br />

pregar depois da leitura do Torah, alguns acharam que ele podia pregar e outros não. E quando se fez silêncio o rabi disse: “Eu<br />

sou o pão vivo que veio do céu. Quem deste pão come, eternamente viverá. E o pão que vos darei será minha própria carne,<br />

que sacrificarei pela vida do mundo”.<br />

E um grande tumulto se ergueu na sinagoga. “Quem pode compreender essas palavras?” disse o chefe. “Como<br />

pode ele nos dar a comer a sua carne?”<br />

E os fiéis começaram a murmurar: “Não é Yeshua filho de Joseph? Como pode nos dar a comer a sua carne?”<br />

Mas o rabi atendeu-os, dizendo: “Na verdade vos digo que não terá vida aquele que não comer da carne do filho<br />

do homem e não beber do seu sangue. Aquele que comer da minha carne e beber do meu sangue viverá em mim e eu nele”.<br />

E quando os fiéis o ouviram a repetir tais palavras, entraram-se de grandes risadas, dizendo que com certeza um<br />

mau espírito se havia encostado nele. Mas não foram além disso; limitaram-se a mofar com desprezo.<br />

E o rumor breve se espalhou por toda parte nas regiões vizinhas de que um espírito mau havia entrado no corpo<br />

do rabi, de modo que quando ele ia ao porto já as gentes não o procuravam, como antes. E alguns, envergonhados, diziam:<br />

“Vede, lá vai o homem que tirava Satã do corpo dos outros e agora o tem dentro do seu”. E as crianças gritavam-lhe atrás:<br />

“Vai-te embora, possesso!” E ainda outros diziam: “Ninguém sabe; alguma coisa ainda é capaz de sair desse homem”.<br />

Unicamente os de fé muito forte mantiveram-se com ele, e entre esses muitos dos pobres, amargurados de<br />

coração, que nada tinham a perder. E também os que não eram recebidos na congregação de Israel, e os impuros, aos quais ele<br />

falava do reino do céu, com muitas sugestões e sinais. E a alguns chegou a fazer seus discípulos, concedendo-lhes poder de<br />

expelir espíritos maus; e mandou-os para as cidades próximas. Porque ele dizia: “A seara é grande e os ceifeiros poucos.<br />

Porisso quem comanda os ceifeiros deve manda-los trabalhar”. E de novo começou a vir ter com ele gente das aldeias que<br />

haviam ouvido a nova da boca desses discípulos. Alguns traziam seus doentes, outros vinham apenas para ver sem nada<br />

pedirem para si mesmos, mas com a esperança no reino do céu sobre que falavam os discípulos. E o rabi os recebia a todos,<br />

mesmo os maiores pescadores. Alguns eram filhos de Amon e Moab, impedidos de entrar na congregação de Israel, mas o rabi<br />

não aceitava diferenças e os fazia sentarem-se ao seu lado como os outros. O perigo da chegada dos mensageiros do governo<br />

de nenhum modo o perturbava. E quando não havia pão para aquela gente, porque minha bolsa estava magra e os ricos já não<br />

vinham em nossa ajuda, ele os alimentava com o sagrado pão do reino do céu. E conquanto não lhes revelasse as grandes<br />

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coisas que estavam perto, e a nós, seus discípulos, fosse duro nos conservarmos em silêncio, os pobres não o largavam porque<br />

o rabi os tinha no coração como se fossem uma só família.<br />

E quando os da cidade mais uma vez perceberam que o rabi atraía os pobres e doentes das aldeias vizinhas,<br />

vieram ter com ele e disseram: “Tu trazes o infortúnio sobre nossas cabeças. Os mensageiros do governo te procuram e, vendo<br />

tanto povo reunido em seu redor, vão encolerizar-se contra nossa cidade”. Mas o rabi respondeu: “Ide e dizei à velha raposa<br />

que minha hora ainda não chegou”.<br />

E a noticia de que o rabi estava de novo em K’far Nahum depois de ter percorrido terras de gentios, foi correndo<br />

até chegar aos ouvidos de sua mãe em Nazaré. E ela reuniu os filhos e com eles veio a K’far Nahum, com a idéia de persuadir<br />

o rabi a voltar para a casa paterna, pois que muito temia pela sua segurança. E sua mãe chegou e olhou-o da porta, com os<br />

olhos vermelhos de lágrimas. E lágrimas lhe desciam pelas rugas do rosto quando lhe estendeu os braços e disse: “Meu filho,<br />

que infortúnio atraís sobre tua cabeça? O que eu temia está acontecendo. Por tua causa foge-me o sono à noite. A espada do<br />

governo pende sobre tua cabeça e o povo briga por tua causa. Volta ao lar de tua mãe; o trabalho de teu pai te espera e tu<br />

encontrarás repouso no seio da família. Porque perigosa coisa é a que tomaste sobre teus ombros”. E mais coisas falou, como<br />

as mães falam quando um filho segue mau caminho.<br />

E o rabi, sentado entre nós, não ouvia as palavras de sua mãe, porque ela na porta não podia varar a multidão que<br />

nos rodeava. E alguém advertiu o rabi, dizendo: “Ouve: tua mãe te espera na porta”. Mas o rabi respondeu: “Quem é minha<br />

mãe? Quem são meus irmãos? Os que fazem a vontade do nosso Pai do céu, esses são meus irmãos e minha mãe”. E ouvindo<br />

estas palavras, os irmãos do nosso rabi levaram sua mãe dali, lavada em lágrimas.<br />

E eu, Judas Ish-Kiriot, disse comigo:<br />

− Sempre vivi entre os sábios e nunca ouvi tal coisa. Percebo raios, ouço o trovão e não sobrevem a chuva. Vejo<br />

aqui nesta cidade os feitos do meu rabi e já o não conheço. Sua conduta não é a que era. Sua doutrina mudou, e as sendas que<br />

trilha não são as mesmas. Sou um homem perdido; já não sei o que se passa aqui.<br />

E me veio um tremor ao corpo e a dúvida novamente me empolgou e derrubou. Eu não sabia o que fazer, até<br />

que, certa noite, me apareceu em sonho o espírito do rabi Nicodemo de Jerusalém. E eu disse para mim mesmo: só tu, Judas,<br />

homem de Kiriot, não penetras na verdade concernente ao rabi Yeshua e nas coisas que estão no cume do mundo. Por que te<br />

não resolves?<br />

E grandemente eu me admirei que a idéia não me tivesse vindo antes, ou mesmo no dia em que voltamos para<br />

aquela cidade.<br />

E quando amanheceu procurei um mensageiro e disse-lhe: “Vai a Jerusalém e procura o rabi Nicodemo; dizeilhe<br />

que abandone tudo e venha imediatamente para K’far Nahum, porque grandes coisas estão para acontecer. E dizei-lhe<br />

também que seu discípulo já não tem o poder de compreender e não sabe se está com a autoridade do céu ou – Deus que o<br />

perdoe! – sem ela. E portanto ele que se apresse, já que se trata de assunto que toca nas raízes de Israel.<br />

E recomendei ao mensageiro que nada dissesse e ninguém pelo caminho, visto como a mensagem era<br />

exclusivamente para o rabi Nicodemo.<br />

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XIX<br />

XIX<br />

E o rabi Nicodemo apressou-se e veio a K’far Nahum, onde me procurou em segredo e demoradamente me<br />

ouviu. Contei-lhe tudo quanto sucedera, tanto naquela cidade como fora, pelos caminhos por onde seguíramos; contei-lhe das<br />

palavras e feitos do nosso rabi. E contei também que Elias e Moisés tinham baixado para instrui-lo.<br />

Pálido de terror ficou o rabi Nicodemo ao saber disso, e com as mãos trêmulas; mas grande luz brilhou em seus<br />

olhos e ele exclamou: “Certo que o Senhor está conosco. Não acontecem em vão tais coisas. E para o que ele faz e ensina,<br />

seguramente há de ter recebido autoridade; sem autoridade, como diria e faria o que disse e fez? E por que havemos de<br />

duvidar? Leva-me ao teu rabi, para que ele tudo me confirme”.<br />

O rabi estava como de costume em seu cubículo em cima do teto da casa.<br />

E levamos conosco Simão o Zelote, que era o que entre os discípulos pensava como eu.<br />

E fomo-nos ao nosso rabi no segredo da noite, para que ninguém soubesse dos nossos passos. Nicodemo curvouse<br />

diante dele e disse:<br />

− Ouvimos vozes e as não entendemos; divisamos sinais e não sabemos como interpretá-los. Dizei-nos: és aquele<br />

que nos foi prometido ou temos de esperar outro? Se és o esperado, não no-lo escondas, porque cansados estamos da longa<br />

espera. Dá-nos um sinal de que Deus te mandou ao mundo, e nos lançaremos aos teus pés e te reconheceremos como o Ungido<br />

de Israel, e obedeceremos todas as tuas ordens.<br />

Mas nosso rabi respondeu de modo oculto:<br />

− Quando vem a tarde vós dizeis: O dia de amanhã vai ser bom, porque o céu está ruivo. Pela manhã dizeis:<br />

Vamos ter chuva hoje porque o céu está carregado. Sabeis interpretar os sinais do céu mas não sabeis interpretar os sinais da<br />

terra. Uma geração má e adúltera deseja um sinal, e nenhum sinal será dado.<br />

Mas o rabi Nicodemo curvou-se de novo e disse:<br />

− Como crermos que és o esperado, e como seguir-te, sem sinais? Atende: nós estamos presos pelas leis e<br />

mandamentos que Moisés nosso mestre nos deu; e ele ensinou como nos conduzir quando um novo profeta aparece.<br />

Mas o rabi respondeu:<br />

− Aquele que crê em mim terá o mundo e a vida eterna, porque eu sou o pão e a vida.<br />

Nicodemo espantou-se; estava pálido. Depois curvou-se pela terceira vez e disse:<br />

− Moisés nosso mestre veio e não nos mandou que nele crêssemos e sim apenas em Deus que o havia mandado,<br />

e nas leis e mandamentos de Deus. Igualmente profetas têm vindo, mas não nos pedem que neles creiamos, e sim em Deus que<br />

no-los mandou para que nos ajudassem. És tu acaso maior que Abraão, nosso antepassado, e maior que Moisés e todos os<br />

profetas, os quais nos mandam acreditar em Deus e não neles?<br />

E o rabi respondeu:<br />

− Cacos tendes vós em vossas mãos, mas eu tenho o vaso inteiro – o novo vaso que o Senhor criou.<br />

− Mas como hemos nós de entender tuas palavras, rabi?<br />

E o rabi respondeu:<br />

− Não já vos hei eu dito que não se põe remendo novo em roupa velha, ou vinho novo em velhas garrafas?<br />

E o rabi Nicodemo respondeu:<br />

− Justamente por tua causa te pedimos um sinal, porque tu não te apoias nos homens dos velhos tempos, mas<br />

trazes matéria nova, que as gerações do passado não nos transmitiram. Porisso necessitamos de segurança, ou de ter a certeza<br />

de que és realmente o vaso novo e inteiro que nos foi prometido, e que tens autoridade do céu.<br />

Mas o rabi se encolerizou e disse:<br />

− Ai de vós, escribas, que ganhais almas sobre os túmulos dos profetas que vossos pais assassinaram. Se essas<br />

maravilhas houvessem sido operadas em Tiro e Sidon...<br />

O rabi Nicodemo respondeu:<br />

− Nem a lei nem os mandamentos foram dados para Tiro e Sidon, que também não estão ligados ao Torah de<br />

Moisés. Mas entre nós há o Torah e nós havemos assentido em ouvir e obedecer. Como podemos agora agir de encontro ao<br />

Torah?<br />

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Vi que as coisas estavam indo muito longe e perguntei ao meu rabi:<br />

− Rabi, peço que me digas uma coisa: até onde vai a fé? Onde ficam os limites da fé?<br />

E o rabi respondeu:<br />

− Não há limites para a fé. Fé é a corda que o homem segura quando desce ao inferno. Com ela vai para a beira<br />

do túmulo e mesmo além. Não disse o rei Daví: “Sim, embora eu caminhe no vale da sombra da morte, nada temo porque tu<br />

estás comigo”? Se acreditardes em mim, então eu sou o que sou. Não te ensinei, Judas, que se tiveres uma fé pequena como<br />

grão de mostarda e disseres à grande figueira: “Tira tuas raízes da terra e finca-as no mar”, assim acontecerá?<br />

Olhamo-nos um para o outro, eu e o rabi Nicodemo, como tomados de medo do nosso rabi, porque havia força<br />

em suas palavras. E Nicodemo curvou-se e disse:<br />

− Muitas palavras de ti hemos ouvido, que nos enchem de esperança o coração. Mas estamos diante duma parede<br />

e não vemos porta. Não no-la escondas de nós, porque nós somos os que te estivemos esperando. Ensina-nos, rabi: Quando irás<br />

tu nos libertar do jugo de Edom?<br />

E o rabi respondeu:<br />

− Nicodemo, o reino de Deus não é aqui e não é percebido pelos olhos – mas sim em nossos corações. Eu não<br />

vim para vos redimir dos jugos de Edom, mas dos jugos do pecado que vos envolvem como serpentes. Vim trazer uma<br />

redenção que não conhece os limites do mar e da terra, mas cobre o mundo inteiro como o espírito de Deus, e ninguém que é<br />

carne e sangue vos pode tomar este reino, porque o tendes dentro de vós mesmos.<br />

E Nicodemo respondeu:<br />

− Felizes os ouvidos que recebem essas palavras! também o profeta profetizou: “E eu farei um acordo entre<br />

todas as nações e darei uma luz aos gentios, para abrir os olhos aos cegos, e tirar dos prisioneiros as cadeias e dos que estão no<br />

escuro as trevas”. Mas não tens, rabi, o teu trombeteiro, o teu mensageiro, que te anuncie para Israel? Nós fechamos nossos<br />

corações às alegrias do mundo para que nos pudéssemos dar inteiramente a Deus. Nossos inimigos têm devorado com mil<br />

bocas todas as alegrias da vida; seus lábios hão provado as delícias do poder e da vitória, enquanto os nossos estão oclusos com<br />

a amargura dos desprezados. Sentamo-nos no galho quebrado e não cessamos de esperar. Atende: nossos sofrimentos<br />

conjuraram a redenção ao longe, e agora que a redenção chega às nossas portas, não vai ela anunciar-se em Israel? Alto preço<br />

pagamos por este galardão. Ele é nosso.<br />

Mas o rabi disse a Nicodemo:<br />

− Nicodemo, Nicodemo, ai dos que medem Deus com as medidas dos homens! O galardão não é coisa de<br />

comprar, sim de dar. É dado por nada e é recebido por nada, como um presente do pai do céu ao seu eleito entre as criaturas,<br />

que é o homem. Antes da criação da terra, antes que o mundo fosse afeiçoado e lançado no espaço, esse galardão estava com<br />

ele no céu. Por causa desse galardão criou ele o mundo e por causa desse galardão mandou ele seu filho para a terra. Nenhum<br />

preço pode paga-lo, só a graça de Deus, porque o galardão não tem preço, está além do preço e é mais alto que a lei, mais alto<br />

ainda que o Torah. Nenhuma balança pode pesa-lo, nenhuma medida pode medi-lo. É a graça de Deus o galardão que Deus<br />

conferiu ao homem.<br />

E Nicodemo disse:<br />

− Edom mantém o seu domínio com carros de guerra, cavalos e espadas, e não pode ser dominado pelo espírito.<br />

Quem se atira contra Edom com outras armas é um filho da morte.<br />

Mas o rabi respondeu:<br />

− Nicodemo, o filho do homem é como o senhor da morte.<br />

E nós não sabíamos o que aquelas palavras significavam; mas depois de ouvi-las guardamos silêncio. E as<br />

palavras do rabi ficaram entre nós três, pois nada dissemos aos outros discípulos.<br />

E depois de assim nos falar, o rabi reuniu todos os discípulos e disse:<br />

− Meu tempo é chegado e vou para Jerusalém; preparai-vos. E sabei que no filho do homem se cumprirão todas<br />

as profecias dos profetas.<br />

Depois nos disse tudo quanto iria acontecer com ele em Jerusalém.<br />

E quando nós, os discípulos, soubemos que o fim estava-se aproximando, nossos corações tornaram-se como<br />

água, e nossos joelhos tremeram, e ficamos sem saber o que dizer. Simão caiu aos seus pés, abraçou-lhe os joelhos e gritou:<br />

“Não irás a Jerusalém, sim ficarás aqui conosco, e nós construiremos três cabanas naquele monte, uma para ti, outra para Elias,<br />

outra para Moisés..-” e Simão bar Jonas nem sabia o que dizer, na sua aflição! Mas o rabi respondeu: “Se queres assim,<br />

poderás deixar-me, como os outros o fizeram”. E Simão estendeu-lhe as mãos dizendo: “Rabi, que temos nós senão a ti? Já<br />

deixamos tudo e te seguiremos até Jerusalém”.<br />

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E antes que partíssemos de K’far Nahum para cruzar o Jordão e as fronteiras de Judá, nós, Simão o Zelote e eu,<br />

Judas, o homem de Kiriot, fomos atrás de Nicodemo para dele nos despedirmos. E dissemo-lhe o que o rabi nos dissera sobre o<br />

que o esperava em Jerusalém. E Nicodemo perguntou a Simão o Zelote: “E segues-lo tu?” E Simão respondeu: “Sim, sou o<br />

eterno escravo de Deus”. E em seguida Nicodemo me perguntou: “Eu tu, Judas, também vais à Jerusalém?” Ao que respondi:<br />

Sim, porque com perfeita fé creio que dele depende o galardão”.<br />

E quando em K’far Nahum correu a notícia de que o nosso rabi ia partir para Jerusalém, algumas pessoas<br />

deliberaram segui-lo, na esperança de grandes acontecimentos por lá, como a tomada pelo rabi da riqueza dos ricos para<br />

espalha-la entre os pobres – e eles queriam sua parte. E um apareceu diante do rabi e disse: “Meu senhor, a ti seguirei para<br />

onde fores” e Yeshua lhe respondeu: “As raposas têm suas tocas, e as aves dos céus seus ninhos, mas o filho do homem não<br />

tem onde pousar a cabeça”.<br />

E quando ouviu o povo estas palavras do rabi, todos se amedrontaram, e os que o iam acompanhando retornaram<br />

para suas casas. Mas o rabi chamou a um deles e disse: “Vem e segue-me”. E esse homem respondeu: “Rabi, deixe-me<br />

primeiro chegar até minha casa e enterrar meu pai”. E o rabi respondeu: “Aquele que põe a mão no arado e depois volta atrás<br />

não é digno do reino do céu”. E largou-os a todos e seguiu seu caminho.<br />

E ninguém o acompanhou até Jerusalém, salvo nós, os seus discípulos, que éramos unos com ele. E embora<br />

nossos corações tremessem do que estava na frente, mesmo assim o seguimos; nós, seus discípulos, e Míriam, a mulher que<br />

guardava os óleos aromáticos e conduzia o cego Bar Talmai.<br />

Nota do tradutor.<br />

Aqui tinha fim o manuscrito que Pan Viadomsky depôs em minhas mãos. A última página estava rasgada; e o<br />

rasgão do papiro dava mudo testemunho da mão brutal que fizera aquilo.<br />

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TERCEIRA TERCEIRA TERCEIRA PARTE PARTE<br />

PARTE<br />

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Nova mudança ocorreu em minhas relações com Pan Viadomsky. Tornava-se-me cada vez mais difícil manter<br />

contato com ele, pois que de súbito se entregara a uma nova atividade e vivia rodeado dum grupo de pessoas misteriosas. Ia eu<br />

vê-lo no curso das minha visitas regulares e encontrava-o com alguém trancado no escritório. Esperava-o uma hora e mais no<br />

estreito corredor e, invariavelmente, quando a paciência se me ia esgotando, ele irrompia do escritório, desalinhado,<br />

preocupado e distraído, com a pena atrás da orelha – como se um estranho instinto o prevenisse do fim da minha espera – e<br />

desculpava-se apressada e incoerentemente, pedindo-me que voltasse outro dia.<br />

Não tardou que eu descobrisse a natureza das novas preocupações de Pan Viadomsky. Estava colaborando com<br />

um padre, em nada menos que numa obra destinada a provar que os judeus faziam uso do sangue dos cristãos no preparo do<br />

matzot da Páscoa! Com o mesmo fim passava dias inteiros metido com eruditos de reputação duvidosa. Um deles, como<br />

verifiquei, era um teólogo com tinturas de hebreu, que conhecia todas as passagens “perigosas” do Talmud, bem como as<br />

relacionadas com os “goyim”, os “necharim” e os “minim” – palavras que aproximadamente se traduzem por “não-judeus”,<br />

“estrangeiros” e “heréticos”, mas cuja significação exata já se perdeu; e mais coisas assim. A especialidade desse teólogo era<br />

reunir o material “teórico” dos ataques difamatórios feitos pelo anti-semita escritor romano Félix contra os primitivos cristãos,<br />

quanto ao emprego de sangue de crianças em suas festas noturnas. (Mais tarde os cristãos dirigiram essa acusação contra os<br />

judeus.) Outro colaborador de Viadomsky era o “historiador”, o qual tinha por função colecionar dados históricos, consistentes<br />

em relatos de julgamentos por crime de homicídio ritual, de confissões obtidas sob tortura pela Inquisição e de sentenças dadas<br />

por tribunais eclesiásticos e seculares. Para si próprio Viadomsky reservava a tarefa de unificar tudo aquilo num todo coeso,<br />

indicando a transferência desses “hábitos” e “costumes” para os judeus de hoje e acrescentando comentários dele próprio em<br />

que se refletiam os “protestos” e a “indignação” das massas cristãs. Não consegui saber se aqueles produtos eram destinados ao<br />

consumo interno ou à exportação; nem vim a saber se era coisa planejada para lançar uma acusação de “ritual sangrento”<br />

contra certos judeus ou para dar base a um grande movimento anti-semita. Fosse qual fosse o objetivo, a empresa tomava todo<br />

o tempo e atividade de Viadomsky. Escusa declarar que minhas visitas àquele homem se foram rareando à medida que eu me<br />

capacitava de seu jogo, e por fim se interromperam. E em conseqüência nosso trabalho sofreu longa interrupção.<br />

De novo, nesse tempo, tomei a resolução de romper definitivamente com Viadomsky e tudo fiz para esquece-lo.<br />

Mas como já havia acontecido antes, era uma resolução bastante precária, porque se aquele homem de novo me honrasse a<br />

água furtada com sua alta presença, eu não saberia resistir-lhe ao mandonismo. Não havia escapatória para o curioso papel que<br />

os dois representávamos um para o outro, à guisa de complementos. E devo confessar que a despeito da repulsa em mim<br />

despertada pelas suas atividades dos últimos tempos, estranha atração continuava ele a exercer sobre mim. Era como se eu me<br />

não pudesse passar sem tal homem. Confesso que lhe sentia a falta, que ansiava pelo reatamento dos nossos encontros<br />

noturnos, e recordava-me com saudades das noites de inverno que passáramos exumando de remotíssimos tempos as<br />

obliteradas vidas que vivêramos juntos. Agora que tudo fora cortado, minha vida tão modesta e oca estava despojada de tudo<br />

quanto a podia tornar interessante. Também para mim aqueles fantásticos acontecimentos, filhos da febre e da imaginação, que<br />

Pan Viadomsky tecera sobre nós ambos, tornara-se-me uma perfeita necessidade. Minha vida “real”, a de hoje, insignificante,<br />

trivialíssima e lamentável, um deprimente jogo de vaidade e ódios, asfixiava-me. Meu espírito se fixara, faminto, nos grandes<br />

acontecimentos e paixões dos longes tempos evocados. Eu não podia esquecer-me das ruas de Jerusalém, do túmulo dos pátios<br />

do Templo, das brisas dos montes e vales da judeia – de tudo que desaparecera com o meu afastamento de Pan Viadomsky.<br />

Meses vivera eu naquele ambiente, respirando aquele ar. Uma obscura esperança me animava: o apelo da floresta no coração<br />

do lobo domesticado; essa esperança era de que Viadomsky sucumbisse ao apelo do mundo antigo e esquecesse os rancores do<br />

mundo contemporâneo, agora a lhe monopolizarem a atenção. Eu esperava que de súbito ele se restituísse ao catastrófico<br />

drama em que tinha tomado parte.<br />

E foi o que aconteceu.<br />

O tempo mudou. Os ventos mornos, anunciadores da primavera e da Páscoa começaram a soprar, e Pan<br />

Viadomsky emergiu como emerge o animal que hiberna – afastou de si o Viadomsky do século 20 e voltou a ser o Cornélio<br />

antigo.<br />

E seguiu-se uma estranha inversão de situações. Lá pela semana santa, a época dos festivais religiosos cristãos e<br />

judeus, começou Pan a agir de modo mais estranho do que antes. Queria fazer-me crer que perdera todo o interesse nos<br />

trabalhos “históricos”; e em vez de ocultar dos seus misteriosos colegas as relações que tinha comigo, procurava ocultar de<br />

mim as relações que tinha com eles! Vinha ver-me com bastante freqüência em meu tugúrio e passava horas errando comigo<br />

pelos mais pobres bairros judeus. Com a minha ajuda descobriu antigas relações que tinha na cidade, desenterrou alfaiates e<br />

sapateiros que conhecera anos antes. Subimos a sótãos sem ar e sem luz; espantamos e aterrorizamos donas de casas judias,<br />

naquela estação entregues aos preparativos da Páscoa.<br />

− Não me explico por que, me disse ele, mas quando se aproximam os dias da Páscoa, sinto necessidade de me<br />

rodear de judeus. Não posso... não posso passar sem eles. Transportam-me às vésperas da festa em Jerusalém. Também lá a<br />

espera da Páscoa eram dias cheios de movimento. De todos os recantos do país afluíam peregrinos, famílias inteiras, com<br />

oferendas sacrificiais. Jerusalém se tornava tão alegre e viva, que agora, quando esse tempo chega, eu me sinto nostálgico e<br />

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tenho de sair em procura de judeus. Eles me matam as saudades de Jerusalém. Basta que lhes olhe para as caras: sinto-me de<br />

novo nos pátios do Templo.<br />

Pan falava absorto em cismas, com os olhos fixos em cenas do passado. Em sua face pergaminhenta brilhava a<br />

luz fresca do sol da primavera de Varsóvia. Seus escassos cabelos como que se faziam em fios de sol. A saudade ressoava em<br />

sua voz, quando dizia versos dum vate desconhecido:<br />

− Ó, Jerusalém, a primavera transpõe tuas portas acompanhada dos passos da morte.<br />

− Que quer dizer com isso? Perguntei, intrigado.<br />

− Oh, nada. Um estado d’alma apenas. A primavera que está no ar... Sempre que a primavera chega sinto<br />

saudades de Jerusalém. E se não posso transpor suas portas, posso espiar as casas de moradia de seus filhos de hoje. Quer ver<br />

Judas, homem de Kiriot, ou Judas Ish-Kiriot? Venha comigo. Iremos visita-lo. Oh, sim, quando a Páscoa chega procuro meus<br />

velhos amigos. Não sei se já disse que o meu amigo Judas Ish-Kiriot vive hoje em Varsóvia.<br />

absoluta.<br />

Eu esperava que nada mais naquele homem me surpreendesse, mas aquilo me surpreendeu como novidade<br />

− Judas Ish-Kiriot em Varsóvia? Ele também aqui?<br />

− Pois é verdade! Reconheci-o assim que lhe pus os olhos em cima – e o reconheceria entre dez mil. E não é o<br />

único que está aqui. Simão também – aquele que depois se chamou Pedro; descobri-o nas ruas de Varsóvia. Muitos deles estão<br />

aqui, muitos homens eu conheci em Jerusalém, nos pátios do Templo, na Cidade Baixa. É extraordinário! Sempre que me<br />

insinuo numa multidão de judeus parece-me que os conheço a todos. É como se eu tivesse tido negócios com todos.<br />

Reconheço-lhes, as maneiras, os costumes, os gestos, o orgulho, a obstinação, a vontade irredutível. Encaro-os aqui no tumulto<br />

do Mercado Velho e parece-me que dum momento para outro vão lançar de si as gabardines e aparecer nas roupas brancas de<br />

outrora esbeltos e ardentes filhos das areias, olhos brilhantes, cabelos compridos, a me rodearem como o faziam nos tempos de<br />

festa do Templo. Freqüentemente me vem que um erro qualquer do destino os lançou aqui nestas ruas glaciais, com neve<br />

lamacenta sob os sapatos e as brisas geladas no ar. Foi assim que encontrei meu velho amigo Judas Ish-Kiriot.<br />

− Encontrou-o? repeti, incrédulo.<br />

− E pode você também encontra-lo, se quiser. Tem ponto no Mercado Velho.<br />

E então, um dia, no momento de deixar sua casa, Pan Viadomsky tirou dum canto algo que eu nunca vira: uma<br />

longa capa preta de Capuz: Ainda havia coisas que aquele homem ocultava de mim...<br />

− Para que isso? Perguntei. O tempo está agradável lá fora.<br />

− Ah, ah!... Não quero que Jerusalém inteira saiba que o Hegemon está de visita a Judas Ish-Kiriot. É coisa que<br />

deve ser conservada em segredo.<br />

Pan Viadomsky arrumou o capuz e saiu; e escusa dizer que aquele disfarce só servia para despertar a atenção de<br />

toda gente. Fomos para o Mercado Velho, onde ele parou diante duma casa antiga e em tal estado que só não caía porque as<br />

laterais a escoravam; as paredes revelavam a antiga pintura vermelha, e as janelas haviam sido verdes. Pan Viadomsky espiou,<br />

cauteloso, à esquerda e à direita, como a ver se o observavam; depois tomou-me pela mão e levou-me ao sótão pela escada em<br />

ruína.<br />

Aquele interior deu-me idéia duma casa de antiquário, e como fosse vésperas da Páscoa, estava o dono<br />

procedendo a uma caiação, o que punha aquilo ali em grande desordem; vi lâmpadas de bronze de todos os tamanhos e formas,<br />

e pilhas cai-não-cai de bandejas e pratos; e quadraria, alguns em molduras outros não, cadeiras, trouxas de estofos preciosos,<br />

objetos de vidro, figurinhas de mármore, de metal e gesso. No centro daquela babilônica desordem estava em judeu vestido de<br />

longo capote e ocupado em restaurar a ordem ao acaso. De entrada Pan Viadomsky esbarrou num candelabro entalado entre<br />

pratarias e louças; a pirâmide deu aviso de vai-cair e o judeu avançou na nossa direção, terrificado.<br />

− Acuda! Vocês derrubam tudo! E sua mão impediu a tempo o vem-abaixo, enquanto, num sorriso muito<br />

forçado, ele nos saudava.<br />

Hegemon.<br />

− Olá, Judas! Vejo que não me estava esperando. Isto por aqui não me parece preparado para a visita do<br />

− Sara! Sara! gritou o judeu para dentro em puro yddish de Varsóvia. Aquele velho gentio está cá outra vez! e<br />

voltando-se para mim continuou na mesma língua: Cada véspera de Páscoa aparece-me por aqui. Antigamente costumava<br />

comprar coisas, mas nestes últimos tempos nada ganhei dele. Não compra nada, mas vem, olha-me muito e trata-me de Judas.<br />

Vire a festa de Páscoa em enterro, se tenho a menor idéia do que esse velho pagão tem nos miolos.<br />

− Ah, Judas, Judas! exclamou Pan Viadomsky maneando a cabeça como em reprovação, você nunca manteve as<br />

coisas em ordem – nem lá nem aqui.<br />

− Fique eu paralítico se sei de que Judas está falando! Tive um avô com o nome de Judas – ora isso é nada. Meu<br />

nome é Mordecai. Mas pouco se me dava que ele me desse este ou aquele nome, contanto que gastasse um pouco de dinheiro<br />

aqui antes das festas.<br />

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− Reconheci-o imediatamente, disse Viadomsky voltando-se para mim com ar triunfante. Essa cara! Não há<br />

duas. Aconteceu-me certa ocasião, por uma noite de inverno, passar por aqui e vi-o sentado, sob a luz dum lampião de<br />

querosene. Tiritava de frio, com o rosto azulado, com os cabelos cacheados e a barba em ponta sobre a gabardine sacudidos<br />

pelo vento. Encarei-o e reconheci-o! “Judas, que está fazendo aqui?” No começo recusou-se a reconhecer-me – fez tal qual<br />

naquele tempo em K’far Nahum. Mas tarde me reconheceu.<br />

E dirigindo-se ao judeu: “Judas, não reconhece o seu Hegemon? Não parece que está subindo comigo o Monte<br />

das Oliveiras, rumo ao Gat Shemen, naquela tarde?<br />

O antiquário fixou em mim os olhos surpresos. “Talvez saiba do que ele está falando. Ele vem aqui cada véspera<br />

da Páscoa, quando estou preparando o levedo, e papagueia sobre Jerusalém e o Monte das Oliveiras. Parece qualquer coisa<br />

como um pagão muito erudito; pergunta sempre se tenho à venda algum livro hebraico. Certa vez encontrou um velho<br />

manuscrito surrado, e não me esqueço do barulho que fez! Comprou-o e pagou bem. Para que quereria aquilo? Para curar<br />

alguém? Sempre que dá com coisas velhas fica fora de si, de tanta curiosidade e alegria. Costumava ter dinheiro – e gastava.<br />

Mas ficou limpo. Vejo-o assim de longe em longe – de ano em ano e só por ocasião e dos preparativos da Páscoa. Creio que<br />

não passa hoje dum pobre velho sem níquel. E doente também, coitado – disto! terminou o judeu apontando significativamente<br />

para a testa.<br />

− Ele pretende, respondi ao lojista, que conheceu na Jerusalém do período do Segundo Templo, um Judas Ish-<br />

Kiriot que negociou Yeshua de Nazareth por trinta dinheiros e diz que esse Judas é você.<br />

− Que? Que? Que é que vendi? Trinta dinheiros de prata. Escute, Pan! Diga-me o que eu poderia fazer nesta<br />

véspera de Páscoa com esse dinheiro, se pudesse vender... Que é que vendi?<br />

− Yeshua de Nazareth, expliquei. Ou, melhor, Jesus Cristo. Por trinta dinheiros de prata você vendeu Jesus ao<br />

Sumo Sacerdote e aos funcionários romanos.<br />

O judeu ficou da cor de giz – duma palidez mortal, com cara de máscara da morte. Seus olhos tinham o vítreo do<br />

terror e revolviam-se estranhamente nas órbitas. A voz lhe tremia.<br />

− Se Pan quer brincar com um judeu, ele que ache outra coisa, tartamudeou o mísero. Sara, Sara! gritou para<br />

dentro. Venha cá imediatamente.<br />

− Que está ele a berrar? Perguntou-me Viadomsky em tom de impaciência. Será que me reconheceu? Esse<br />

terror... Exatamente como o vi em Jerusalém. O mesmo rosto sem sangue, o mesmo cabelo arrepiado. Sim, ele me reconhece<br />

afinal. Reconhece o seu Hegemon. Não, não, Judas, não se apavore dessa maneira. Não vou entregar você – e Pan segurou-lhe<br />

a mão. Temos um pacto entre nós – estamos amarrados um ao outro.<br />

A esposa do judeu surgiu lá dos fundos, e dando com Pan Viadomsky rompeu numa torrente de insultos. “Mil<br />

pragas caiam em cima dele!” gritava ela, com a surrada peruca dançando na cabeça; tinha as mangas arregaçadas e o<br />

esfrangalhado avental molhado. “Que é que ele quer com as suas trinta moedas de prata? Aparece aqui cada Páscoa. Ah, se eu<br />

soubesse...”<br />

− Eu sei o que ele quer, disse o judeu, excitadamente, uma daquelas conspirações. Contra mim. É só o que me<br />

falta nestes tempos...<br />

− Que conspirações? gritou a mulher. Por que está querendo meter-me medo?<br />

− Conspirações sobre o seu Deus lá deles. Diz que eu o vendi por trinta dinheiros de prata.<br />

− Que o Espirito Mau desça sobre ele! conjurou a mulher. Quer a devolução dos trinta dinheiros de prata? Pensa<br />

que está aqui conosco? Ele que procure pela casa inteira e veja se temos trinta moedas de prata. O que encontrará são trinta<br />

pragas!<br />

Sussurrei ao ouvido de Pan Viadomsky: “Toca a sair daqui. Estamos assustando esta pobre gente” e tomando-lhe<br />

a mão procurei leva-lo para a rua. Pan resistiu, por fim cedeu relutantemente.<br />

− Ah, Judas, Judas, disse voltando-se para o trêmulo judeu. Você esqueceu-se de tudo.<br />

Quis levar Pan para casa, mas não consegui. Fincou-me no braço os dedos ossudos e disse em tem voluntarioso:<br />

“Venha comigo. Vamos procurar Israel. Quero ver os filhos de Israel”.<br />

Penetramos fundo no bairro judaico atravessamos as arcadas cheias de vendedores e compradores, judeus e<br />

judias, diante de seus artigos da Páscoa. O tumulto era indescritível. Mulheres com cestas e latas estacionavam diante das tinas<br />

de peixe ou dos açougues, e regateavam furiosamente. Galinhas faziam cró e remexiam-se nas gaiolas. Vendedoras juntas a<br />

barris de pepinos em conserva, pareciam tão azedas como aquela mercadoria. Pan Viadomsky ia por toda parte, espiava tudo,<br />

não perdoava nenhum canto. Meteu-se por um magote de mulheres em compra de louças novas e vasos em certo ponto.<br />

Insistiu em examinar uma loja de fazendas e armarinho. Mostrava-se alegre e curioso como uma criança e não cessava de<br />

dizer:<br />

− Absolutamente nada mudou. Absolutamente! Tudo tal qual naqueles dias.<br />

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Deteve-se diante dum pequeno vendedor de matzot. Judeus pobres em surradas roupas de festa e botas altas<br />

estavam tentando comprar nas últimas horas (não tinham conseguido dinheiro até aquele momento) um pouco de pão ázimo<br />

para a famosa festa. Pan pulava de excitação.<br />

− O matzot! O matzot! O pão que há três ou quatro mil anos eles trouxeram do Egito! Sempre que vejo este<br />

matzot meu espírito se volta para o passado. Que povo velho! Que povo provado e atormentado! O matzot! O pão da<br />

libertação!<br />

E voltando-se de súbito para mim:<br />

− Diga-me... Eu sei que homens do seu tipo são muito inteligentes para dar atenção ao caso, muito assimilados,<br />

muito corrompidos pela decadente e especiosa cultura humanística de hoje; os homens do seu tipo querem submeter todas as<br />

criaturas ao mesmo molde – pães e mais pães iguaizinhos, saídos assados, e mal assados, do mesmo forno. Você não acredita<br />

nestas coisas, acha-as loucas, fantásticas, fanáticas, e quer varrer com elas. Mas ouça-me – ouça-me: entre vocês também<br />

devem existir seitas secretas e conspiratórias, grupos místicos, conjurados religiosos que praticam negros e terríveis rituais que<br />

nem têm nome... Está-me seguindo? Quero referir-me ao...<br />

− Não, Pan Viadomsky, não sei ao que está aludindo e nada compreendo daquilo que quer dizer.<br />

− Sim, está claro que o não vai revelar a mim. Tem os lábios pregados com o selo da grande excomunhão.<br />

Também não é de todo impossível que não esteja iniciado nesses segredos. Infelizmente a fé religiosa tem declinado entre os<br />

judeus, mas não duvido que nas camadas mais profundas a antiga tradição permaneça pura e os velhos rituais sejam praticados<br />

por seitas ocultas. Fala-me com toda a honestidade: crê que entre vocês judeus ainda há aquelas seitas que perpetuaram aquele<br />

ritual?<br />

− Que ritual? perguntei.<br />

− Ora... O ritual de pingar pelo menos uma gota de sangue cristão na massa do matzot.<br />

− Pois então realmente acredita nisso?<br />

− Claro – e por que não? Um povo antigo... uma cultura que recua de alguns milhares de anos... Moisés... Jeová,<br />

o Deus da vingança... Um povo rijo de caráter, não pertencente ao nosso incaracterístico e frouxo mundo cristão – o mundo<br />

formado pela religião que os judeus nos impuseram. Vocês judeus quedaram-se incorruptos, a mesma ardente tribo do deserto,<br />

toda paixões, com ódios eternos e eternas lealdades... Por que não? Se eu fosse judeu, certo que pertenceria a uma dessas seitas<br />

ainda apegadas ao ritual do sangue, ainda que eu corresse os mais temerosos perigos – ainda que tivesse de pagar com a vida.<br />

Tal povo seria digno no nome! A isso, sim, poderíamos chamar uma raça, uma religião, uma nação. Mas indivíduos como<br />

vocês, modernos, fracos descendentes duma fogosa ancestralidade, tremem diante de palavras. Também a sua raça está<br />

degenerando...<br />

− Com que então se apagaria a um tão horrível ritual? indaguei curioso.<br />

− Claro que sim! E por que não? Sentir o sangue do meu inimigo na boca, ainda que fosse uma gota, um toque,<br />

um vago sabor – ou um símbolo, afinal! O apelo da raça, o apelo do ódio eterno! Olhe!... e repentinamente seus olhos se<br />

arregalaram. Olhe aquelas mulheres pegando aquelas cebolas. Gosto dos judeus que comem cebolas, gosto dos judeus que<br />

tresandam o alho, e que através das barbas o baforejam como um vento do deserto. O cheiro do alho e da cebola está<br />

incorporado na pele desses homens. Homens poderosos, fortes, autênticos! Ho! ho! Suas esposas sabem do que os maridos<br />

gostam, cebola e alho! O cheiro do verdadeiro macho... Não são como nós, degenerados europeus modernos que se<br />

desintegram...<br />

Subitamente Pan Viadomsky imobilizou-se, rígido. O sangue desapareceu de sua cara e seus olhos expandiramse<br />

como presas do medo. Senti seus dedos ossudos apertarem-me o braço.<br />

− Olhe! Olhe quem está lá! Conheço aquela cara. Conheço-a daquele tempo. Olhe!<br />

E antes que eu voltasse do meu espanto, Viadomsky separou-se de mim e lançou-se impetuosamente na direção<br />

dum homem de alentado físico, de pé diante dum setor de peixe.<br />

− Simão! Simão bar Jonas! Que está fazendo aqui?<br />

Meu espanto recresceu quando o peixeiro voltou o rosto para Viadomsky e eu reconheci a cara do apostolo<br />

Simão bar Jonas como os pintores clássicos o fixaram. Cabeça quadrada e rosto de pele rija, toda rugas; olhos grandes, negros<br />

e de muito brilho, fundos sob o arco da testa poderosa. Olhos que ardiam naquele emaranhado de cabelo e barbas grisalhas em<br />

moldura ao rosto. O nariz curto e achatado dizia bem com os beiços carnudos. Aparentemente tão surpreendido quanto eu, o<br />

peixeiro espichou a mão nervosa como surrada raiz de oliveira e encarou Pan.<br />

− Então me conhece? Perguntou.<br />

− Sem dúvida nenhuma. E não reconhece você, Simão, o Hegemon de Jerusalém?<br />

− O que?<br />

− O Hegemon. Sou lá o vosso Hegemon.<br />

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O judeu fechou os sobrolhos e voltou-se para os fregueses que estava servindo. “Hegemon? Que será lá isso e<br />

que quer esse homem? Fala coisas que não entendo” e abandonando o interruptor prosseguiu o pregão da sua mercadoria.<br />

“Peixe! Peixe fresco. Lúcio gordo para a Páscoa. É comprar, é comprar, minhas santinhas”.<br />

− Simão, Simão! insistia Viadomsky. Não me reconhece? Onde deixou o rabi?<br />

− Rabi? Que rabi? E que tem um pagão da sua marca com os rabis? Parolice tonta. Não tenho tempo para isso<br />

agora, homem. Peixe, peixe fresco para a Páscoa! A dois “guldens” a libra!<br />

− Olhe só para isso! Exclamou Pan voltando-se para mim. Este é o homem que puxou da espada contra a minha<br />

pessoa. O único judeu que jamais se atreveu a me arrostar! E cortou a orelha de um dos meus mais fiéis homens. Olhe em que<br />

se tornou agora! Simão, que fez daquela espada?<br />

assustada.<br />

− Que espada, que caracol? rosnou o peixeiro colérico. Tirem-me da frente este gentio antes que haja barulho.<br />

− Vamos, Pan! roguei. Sinto-o febril. Não está bom hoje. Vamos para casa. Esta pobre gente está ficando<br />

Foi com esforço que o tirei daquele tumulto do mercado.<br />

− Oh, Israel, em que te tornaste!<br />

− Vamos, Pan.<br />

− E eu gosto deles assim, murmurou de si para si Viadomsky em tom melancólico.<br />

− Deles quem, Pan?<br />

− Ora, dos meus judeusinhos, dos meus hebreus, foi a sua sinistra resposta. Suas mãos e seus lábios tremiam, as<br />

narinas vibravam. E ele repetiu com tristeza: “Israel, Israel, que fizeste de ti mesma?”<br />

−Vamos, Pan. Tomemos um carro.<br />

Mas Viadomsky não me ouvia.<br />

− Sapateiros, mascates, vendedores ambulantes, compradores de roupa usada e ferro velho, eis o teu desfecho,<br />

Israel! Sentas-te em sarjetas de cidades de bárbaros, empapadas de neve e lama. Os Jochanans, os Simãos, os Judas, os Jacós,<br />

os Josés... E lá as buzinas de chifre de carneiro eram soadas pelas sentinelas nas torres do Templo e os sacerdotes surgiam para<br />

os serviços da manhã, e as ruas e aléas próximas do Templo abarrotavam-se dos primeiros peregrinos com os seus sacrifícios.<br />

E aqui se sentam eles, remendões, alfaiates e mais coisas, ocultos em seus miseráveis antros, enquanto eu, o Hegemon, aqui<br />

estou também, nesta mesma época e neste lugar lamacento. Respiro o mesmo ar e eles não me reconhecem, não sabem quem<br />

sou. Será que não reconhecem suas próprias caras, não ouvem suas próprias vozes? Israel, que te tornas-te Israel? Vê: tu<br />

preparas a tua Páscoa longe, longe da casa de teu pai! E eu, o teu Hegemon, sou igualmente um exilado...<br />

Viadomsky quase rompeu em choro, tal a sua depressão de espírito. Passantes nos olhavam, assustados, e<br />

pequena multidão começou a formar-se atrás de nós. A frescura do ar primaveril punha um espírito de curiosidade no coração<br />

das gentes. Eu estava com medo de que as estranhas palavras de Pan Viadomsky sobre a outra vida e o declínio dos judeus<br />

pudessem ser ouvidas, o que seria muito desagradável tanto para ele como para os ouvintes. Chamei um carro e quase forcei<br />

meu companheiro a entrar.<br />

Já era noite quando chegamos à sua casa. No escuro que fazia lá dentro quis acender a lâmpada, mas Pan não<br />

deixou. Apenas correu as cortinas e abriu as janelas. Deitei-o na cama e deixei que o ar frio de fora o banhasse. Nada porém o<br />

aquietou. Permanecia na mesma agitação. A lua estava no céu, e a luz da lua dava-lhe no rosto, empalidecendo-o ainda mais.<br />

Mais fino ainda parecia o seu nariz, e os olhos tinham uma expressão infernal. Depois, uma espécie de rigidez o colheu e Pan<br />

começou a falar mais para si mesmo do que para mim:<br />

− Exatamente como outrora...<br />

− Procure esquecer, Pan Viadomsky.<br />

− Não. Não posso esquecer. Quero estar com eles... Estou com eles... agora...<br />

Sentou-se de golpe na cama, a olhar sem ver, e falou, falou...<br />

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Aquele inverno em Jerusalém estava-se mostrando excepcionalmente duro. Chegamos a ter uma nevada que<br />

tapetou todos os montes circunvizinhos, inclusive o Scopus, mas devo dizer que não foi coisa de muita duração: quando veio o<br />

sol tudo desapareceu. Mas a vista de Jerusalém naquele dia – cidade sitiada de fortalezas brancas – deixou-me impressão<br />

imorredoura. Desacostumada de tais extremos meteóricos aquela gente sofreu muito. Eram criaturas de vida ao ar livre, e<br />

naquela estação tinham de sair embrulhadas da cabeça aos pés, os ricos em mantos de feltro, os pobres em panos grosseiros ou<br />

trapos. Muitos se refugiavam nas casas de oração. Os rabis e mais mestres que freqüentavam os pátios do Templo elegeram<br />

como refúgio a basílica de Herodes; lá se sentavam com os discípulos em torno de braseiros alimentados pelas mulheres<br />

piedosas. Vestidos de calças de linho e túnicas brancas, tiritavam os sacerdotes quando, descalços, iam processionalmente para<br />

o santuário, afim de realizar os trabalhos do dia. Naquele inverno Jerusalém mostrava-se bastante sossegada. Durante o longo<br />

intervalo entre a Festa das Barracas e a Páscoa, período sem nenhum dia santo, poucos peregrinos apareceram na cidade.<br />

Freqüentavam as praças públicas e os pátios do Templo as criaturas de todos os dias, mendigos profissionais, vagabundos,<br />

escravos fugidos e agitadores revolucionários. Pela maior parte a gente rica, a aristocracia da cidade e as grandes famílias<br />

sacerdotais, fugiam para a região de Jericó, onde era eterna a suavidade do clima. Movimento de fora, só o dos discípulos que<br />

vinham sentar-se aos pés dos rabis. Não eram eles tirados unicamente das classes pobres, procediam também das abastadas<br />

famílias da Judéia e terras além dos mares e desertos. Jerusalém era o grande centro educacional daquela parte do mundo.<br />

Jovens neófitos vinham para as escolas sacerdotais e levíticas, e misturavam-se com os grupos em redor dos rabis, junto aos<br />

braseiros.<br />

Pouca coisa havia que me ocupasse em Jerusalém naquele inverno, de modo que eu pouco aparecia na cidade.<br />

Passava boa parte do meu tempo com Pilatos em Cesaréia, discutindo o importante projeto que tomava o seu coração naquela<br />

hora. Pilatos sempre excogitara um plano que lhe desse acesso aos imensos tesouros do Templo e agora via um caminho.<br />

Jerusalém sofria de falta d’água. Os reservatórios construídos por Salomão à margem da estrada do Hebron, dos quais a água<br />

era levada à cidade em aqueduto, haviam sofrido os estragos do tempo; a canalização vazava; e a perda da água pelo caminho<br />

somada ao crescimento da população agravou o problema do abastecimento. Havia, sem dúvida, as águas do Siloah e das<br />

fontes públicas. E havia os poços – mas não eram suficientes. Ora, além daquela sua fome pelos tesouros do Templo animava<br />

Pilatos uma aspiração muito comum nos procônsules romanos, qual a de deixar às futuras gerações um sinal público da sua<br />

passagem pelo governo – e que melhor memória deixaria ele de si senão um grande aqueduto capaz de resolver duma vez para<br />

sempre o angustiante problema da água em Jerusalém? Não era empresa simples, porque a cidade ficava em nível muito acima<br />

do dos vales circunvizinhos, numa elevação com ladeiras de três lados; mas Pilatos resolveu tentar a obra, para a qual<br />

necessitava os fabulosos tesouros guardados no Templo, os depósitos votivos, as posses tuteladas das viúvas e dos órfãos. Os<br />

dedos de Pilatos comixavam por pegar no dinheiro, como sua imaginação ardia por obter fama. Mas se era difícil a construção<br />

dum aqueduto em meio de tantos obstáculos naturais, não menos difícil era convencer aos judeus quanto dos dinheiros do<br />

financiamento. O clamor entre as massas plebéias seria tremendo – e era preciso levar em conta esse fator. Muitas horas de<br />

passeio tive com Pilatos em Cesaréia, debatendo sobre os melhores meios de quebrar essa resistência. Fiz freqüentes visitas de<br />

sondagem ao Sumo Sacerdote e às mais importantes famílias sacerdotais de Jericó. E foi assim que naquele inverno poucos<br />

dias passei em Jerusalém; a calmosa Cesaréia na costa e a bem sombreada Jericó tomavam-me todo o meu tempo.<br />

Numa das minhas rápidas fugas para a capital, estando eu na Antônia, fiz um passeio, sem nenhum propósito<br />

definido, lá pela zona do mercado dos carneiros. E fui ter à miserável casaria em redor da fonte chamada Bet Zeida, o bairro<br />

onde os aleijados, os cegos, os doentes de toda sorte aguardavam o surto da água pela primavera, afim de se lançarem na poça<br />

lamacenta a que uma fé cega atribuía virtudes curativas.<br />

Eu já havia visto aquilo no verão, mas não me ocorrera que no inverno, quando uma camada de neve cobria a<br />

terra, tanta gente fosse visitar a fonte. E com espanto deparou-se-me lá uma grande multidão exaltadíssima. Espécie de pânico,<br />

mas muito diferente dos pânicos que já havia observado. Grito de alegria, hosanas – uma novidade. Minha repugnância foi<br />

menor que minha curiosidade. Suspeitei duma coisa, e ao aproximar-me vi que acertara. Um rabi no meio daquele povo curava<br />

com milagres. Não era aquilo novo na Judéia, pois milagres de tal tipo são um lugar comum entre os Judeus. O que me<br />

espantou foi a impressão que os milagres daquele rabi produziam nos doentes. Eu já me familiarizara com os êxtases das<br />

massas judaicas; conhecia-lhes os assomos de fervor no Templo, e os seus frenesis religiosos; mas espetáculo como aquele não<br />

vira ainda. Os doentes e moribundos que se espojavam na fria lama da fonte, os sãos que tinham vindo como enfermeiros dos<br />

doentes, todos gritaram exultantes quando um vulto alvadio, que apenas entrevi, se afastou da massa. O silêncio sobreveio e<br />

inúmeras mãos se espicharam na direção tomada pelo rabi.<br />

− Quem é? Perguntei a um aleijado que se vinha arrastando atrás de mim, apoiando-se num pau.<br />

− Ele diz uma palavra e tudo muda! respondeu o homem. Está vendo aquele caso ali? Vivia amarrado à cama há<br />

anos, com a carne apodrecendo nos ossos. Pediu que o trouxéssemos à fonte, mas ninguém lhe deu tento. Quem podia acreditar<br />

que qualquer coisa no mundo o ajudasse? Todos nós já o dávamos como morto. Pois de repente o rabi aparece e o paralítico<br />

espicha para ele as mãos e murmura qualquer coisa. O rabi encara-o e diz em voz de comando: “Ergue-te, toma tua cama e<br />

caminha”. E o velho paralítico assim fez – ergueu-se, tomou a cama nas costas e lá se foi! Não!... Ele nem sequer mandou-o<br />

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sentar-se na lama da fonte. Curou-o só com uma palavra de sua boca. E tudo rápido como relâmpago. Oh, se ele tivesse feito<br />

isso para mim...<br />

Extraordinário povo os judeus! Também outras nações têm os seus magos, os seus taumaturgos e exaltados com<br />

poder de exorcismar espíritos, curar doenças e serenar loucos. Também podem restituir a sanidade aos aleijados, com um<br />

simples olhar. Vi alguma coisa desse gênero na Caldéia e no Egito. As cidades de Alexandria, Antióquia, Askelon e Tiro<br />

andam cheias de milagreiros, mas nenhum deles olha para isso como uma graça de Deus, ou faz as curas em nome de Deus. A<br />

magia entre esses homens não passa duma simples profissão, como a do barbeiro ou banhista, como a do escriba que prepara<br />

amuletos de pergaminhos para conservar demônios a distância. Unicamente entre os judeus é que estas ocorrências tão<br />

vulgares são tidas como suspensão das leis da natureza, sinais dos deuses – deuses que nessas ocasiões deixam suas tarefas<br />

normais para virem conferir tais favores a obscuros seres humanos que se querem curar duma corcova ou duma ferida que não<br />

fecha. Vocês, judeus, decididamente não são um povo modesto...<br />

Por uma razão ou outra suspeitei naquele momento que o milagreiro de vestes brancas era o mesmo rabi de K’far<br />

Nahum – e não me enganei. Horas depois, seguindo eu por uma das ruas que levava ao Templo, tive ensejo de vê-lo de novo.<br />

Ele, sim! Era já; um meu velho conhecido, naqueles trajes brancos, mas quanto mudara! Tornara-se mais alto, mais ossudo,<br />

mais emaciado – quase esqueleto. Sua cabeça voltava-se para o céu. Estava no centro duma turba de fanáticos que vivamente<br />

lhe faziam perguntas e pediam coisas. Oculto atrás dum pilar da arcaria pus-me a observar. Era aquele grupo composto do<br />

mesmo tipo de gente que o freqüentava em K’far Nahum; gente comum, carregadores d’água com odres equilibrados nos<br />

ombros, artífices com instrumentos em punho, etc. Também vi entre eles vários kanains ou galileus entusiastas que se deixam<br />

ficar em Jerusalém duma festa a outra. Jerusalém sempre enxameou destes homens mais ou menos ociosos e perigosos, que<br />

forneciam recrutas para cada revolta ou motim. Eram reconhecíveis pelo trajes – ou pela quase nenhuma roupa, esses “homens<br />

nus da Galileia”, como lhes chamavam. Mesmo durante o inverno não traziam mais que andrajos de estamenha, com tanga<br />

para esconder a vergonha. Pareciam indiferentes ao frio e à chuva. E lá estavam eles em redor do rabi, a ouvi-lo, como também<br />

eu, ali do meu pilar, ouvia. Aquele mestre não ensinava ao modo dos rabis comuns, com citação e comentários de textos; mas<br />

contava coisas interessantes, coisas que os excitavam, que os levavam a tais divisões de opinião que receei luta feroz dum<br />

momento para outro.<br />

Nem todos os ouvintes pertenciam ao povo comum. Vi um muito diferente dos que de ordinário seguiam o rabi.<br />

No começo ficou a distância. Era visivelmente da classe alta, talvez da aristocracia saducéia. Estava vestido de um manto de lã<br />

preso por uma faixa de várias cores que lhe descia muito abaixo dos joelhos – e franjada; seus cabelos eram cacheados à moda<br />

caldaica e a barba também. Mesmo à distância em que me achava pude sentir o perfume dos óleos com que se ungira. Súbito,<br />

tornando-se interessado no que o rabi dizia, deu uma ordem a dois escravos e os escravos abriram caminho entre os mendigos e<br />

os homens do comum em redor do rabi. O rico saduceu adiantou-se e parou-lhe diante; ergueu a mão cheia de anéis e fez uma<br />

pergunta. Devia ter dito algo bastante cômico, porque os dois escravos não puderam conter o riso e outros os imitaram. Sem<br />

dar atenção a tais risotas o rabi respondeu com gravidade – mas o saduceu nem o ouviu, afastou-se com um sorriso de triunfo<br />

nos lábios.<br />

Continuei no meu posto e depois de alguns instantes vi atrás do mestre uma extraordinária criatura, cujo aspecto<br />

me perseguiu até muito tempo depois. Era como a aparição dum amortalhado – um esqueleto. A caveira estava coberta duma<br />

espécie de pele, mas de cor nada humana; lembrava a pele dum animal selvagem, resseca e requeimada – cinéria, morta. Nas<br />

órbitas profundas entrevi dois olhos tão mortos quanto a pele, inumanos, sem vida. Do alto do crânio, relembrativo dum bojo<br />

de pote, duas ou três mechas de cabelo emaranhado desciam pelo pescoço ossudo, sobre o qual a cabeça procurava equilibrarse.<br />

O mais notável, porém, era que em seus movimentos a sugestão da morte era mais acentuada que na imobilidade. Aquele<br />

homem – suponhamos que fosse um homem – estava de pé atrás do rabi e repetia todos os movimentos deste. Cada gesto,<br />

cada passo, cada inclinação de cabeça do rabi determinava nele um movimento similar e como que involuntário; era como um<br />

autômato que recebesse animação de fora. E notei um breve intervalo entre o movimento do rabi e a repetição desse<br />

movimento pelo fantasma, o que mais acentuou a minha horrível impressão de que não era um ser vivo, mas realmente um<br />

autômato operado de fora. Fiquei de olhos arregalados para aquele prodígio, até que me veio uma vaga lembrança. Eu conhecia<br />

aquele homem!... Fui-me a um informante ali perto e perguntei:<br />

− Quem ou que coisa é aquela?<br />

− Não sabe? Respondeu-me ele. Pois é Eliezer, o irmão de Marta e Míriam.<br />

− Eliezer, o irmão de Marta e Míriam? Sim, conheci-o – mas que lhe aconteceu? Parece um morto.<br />

− Parece e é! O rabi acordou-o da morte.<br />

− Acordou-o da morte? ...<br />

Sim... lembro-me dele, ponderei comigo. Vi-o em Gat Shemen, na casa de Míriam de Migdal, quando lá estive<br />

com o jovem Hanan. E lembro-me também que já naquele tempo aquela criatura me havia impressionado com a inexpressão<br />

do rosto e a lentidão dos movimentos. Eu lhe observara os olhos muito abertos, infantis, olhos de bezerro ou de qualquer<br />

animal que só pode expressar-se pelos olhos – e senti que não se tratava duma criatura normal. Não era um ser deste mundo.<br />

Sim, pensei eu, naquele tempo, toda sorte de coisas pode acontecer com um homem desses. E agora, vendo o fantasma, eu o<br />

senti como argila nas mãos dos místicos – sobretudo nas do meu rabi de K’far Nahum. Quem o sabe? pensei comigo; não vejo<br />

nada impossível em que estes rabis possuam estranhas receitas mágicas, secretas, passadas de pais a filhos desde remotíssimos<br />

antepassados, “familiares de Deus”. Ou então, trouxeram do Egito, quando libertos pelo faraó, segredos dos mágicos da lá, e<br />

com eles erguem dos túmulos os mortos. E, realmente, olhando para aquele Eliezer, inclinei-me a crer nisso; estava muito claro<br />

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ali o milagre para que pudesse alguém nega-lo. Depois lembrei-me de que casos assim eram narrados nas famílias mais cultas<br />

de Jerusalém, mesmo entre os aristocratas. Não, não. Aquilo era demais. Um homem que pode ressuscitar os mortos constitui<br />

um perigo para qualquer governo, em particular num país tão inclinado para a rebeldia como a Judéia...<br />

Certa tarde, pouco tempo depois destas ocorrências, estive de visita ao Sumo Sacerdote e filhos; procurei-os<br />

levado pela minha missão – cooperar no plano do aqueduto. Missão difícil, não havia dúvida. Só com muita paciência e<br />

habilidade seria possível arrancar do Sumo Sacerdote permissão para o emprego dos tesouros do Templo. Mas nunca supus<br />

que a resistência oferecida fosse a que foi. Esbarrei na maior unidade de oposição – todos, todos eram contrários à idéia. “A<br />

tesouraria do Templo é um santuário e os santuários não podem ser tocados!” Até o meu amigo Teófilo pensava assim. E o que<br />

ainda mais me surpreendeu foi a atitude do jovem Hanan, moço de muita receptividade e que compreendia e admirava a<br />

civilização romana, honrava nossas instituições e tinha – ou parecia ter – visão de estadista. Mas nem Hanan ficou do meu<br />

lado. “O tesouro nacional do Templo? Quem nele tocar minará a fé do povo no próprio Templo. Os judeus de todas as terras se<br />

sentirão ultrajados, se pusermos o dedo nos dinheiros dos órfãos e das viuvas. O Templo deixará de ser o invencível centro<br />

unificador e santificador do povo judeu. Não, não. Semelhante passo destruirá os alicerces do nosso estado e do nosso povo.<br />

Não negamos que seja o aqueduto uma grande construção, mas os fundos devem ser obtidos por outro meio – novas taxas. O<br />

procônsul em Antióquia terá de aproximar-se do governo imperial – mas é preciso que o tesouro do Templo fique intangível!”<br />

Eu tinha razões para suspeitar que naquela unidade de opiniões houvesse outras causas que não a dita santidade do tesouro ou<br />

os sentimentos dos judeus da Judéia e de outros países. Aquele tesouro era reunido para custeio da rebelião final contra Roma!<br />

Difícil nos enganarem, a nós romanos, em tais assuntos. Conhecíamos as manobras estratégicas das nações. Ouro é poder. O<br />

ouro compra armas, exércitos e aliados. E pensando assim, naquele debate com o Sumo Sacerdote e sua família, toquei num<br />

ponto que os iria incomodar: o rabi da Galileia.<br />

− Lembra-se, disse eu ao Sumo Sacerdote, daquele homem de quem falei, o pregador da Galiléia que andava<br />

aliciando seguidores? Encontrei-o há dias num dos pátios do Templo. Anda agora conduzindo aquela mesma agitação, mas em<br />

aberto e aqui em Jerusalém. Ninguém se anima a embaraça-lo. E os que aqui o rodeiam são do mesmo tipo dos que o rodeavam<br />

lá – desordeiros e rebeldes. Com certeza vieram de lá com ele. A mim me parece espantoso que o fiscal da área do Templo<br />

tolere semelhante coisa. Acho extraordinário.<br />

− Oh, Hegemon, refere-se ao rabi de K’far Nahum? Perguntou o velho Sumo Sacerdote, e riu-se de chorar. Será<br />

possível que o tome como perigoso? Ah, ah... Ele, sabe o que é? E fez na testa, com a ponta do dedo, sinal de miolo virado.<br />

− Que?<br />

− Louco, meu caro. Fora dos gonzos. Expulsa espíritos maus do corpo dos outros e trás um em si. É um<br />

possesso. Sabe o que diz de si mesmo? Que é, nada mais nada menos, o “pão vivo do céu”. E todos os seus seguidores devem<br />

comer de sua carne e beber de seu sangue, antes que possam transpor os umbrais do reino do céu.<br />

Risos gostosos ecoaram no recinto.<br />

− É sabido, continuou o velho Sumo Sacerdote com ar cansado, que toda sorte de visionários se reúnem em redor<br />

do Templo – profetas e mensageiros do Senhor. Vivemos atormentados pela loucura dessa gente. Mas enquanto ficarem dentro<br />

dos limites da lei e se cingirem a sermões morais ou religiosos, que fortalecem a fé popular, eles podem ter quantas visões<br />

quiserem. Não interferimos. Mas está claro que os conservamos de olho, a ver como se comportam. Se não constituem perigo<br />

para a ordem existente e comportam-se bem podem papaguear à vontade. E cumpre-me dizer que a pior coisa possível nesses<br />

casos, é promover a perseguição dum desses entusiastas, porque muitos sonham com o ensejo de se tornarem mártires. É o<br />

primeiro passo! É o que os torna realmente perigosos. Assim com o galileu de que nos fala, Hegemon. Não me surpreenderei<br />

que ele também esteja esperando isso – ser arrastado à prisão, julgado e condenado. Condenado à morte, talvez. É o que sugere<br />

em suas pregações. Conhecemos esse homem – mas não queremos fazer o seu jogo. Não tenho dúvidas sobre o que ele pensa,<br />

isto é, que assim que apareça nos pátios do Templo com os seus seguidores, aquela gente rústica da Galileia, nós o<br />

mandaremos prender e levar ao Sanhedrim. Mas verificamos que suas prédicas são inofensivas; não são dirigidas contra Roma<br />

ou o Templo, apenas falam num sonho de ressurreição no reino do céu; ele vai dividir o reino do céu entre os seus seguidores –<br />

e que lá o faça em paz. Esse Galileu tem chegado aos maiores absurdos: fala em fazer seus adeptos comerem-lhe a carne e<br />

beberem-lhe o sangue...<br />

− Pois eu não deixarei que isso corra assim, respondi ao Sumo Sacerdote. O poder desse homem está crescendo<br />

no seio do povo. Sua força mágica desperta a fé. Basta que diga uma palavra a um aleijado e o aleijado ergue-se e caminha –<br />

tal a ação do seu espírito sobre os doentes, como vi com meus olhos na Galileia. E no pátio do Templo apontaram-me um<br />

fantasma, ou um homem que ele tirou da tumba. Devo dizer que o aspecto daquela criatura era de realmente saída de entre os<br />

mortos. Ora, eu insisto em que um ser possuidor de tais poderes não é o inofensivo sonhador que julgam. Ninguém pode prever<br />

que ordens dará ele aos seus adeptos – mas sabemos que todos o obedecerão às cegas.<br />

− Haverá tempo para isso, caso algo aconteça, Hegemon. Confie em mim: não teremos muitas dificuldades com<br />

esse homem. Já dominamos rebeldes bem mais perigosos. Sempre fui contra as medidas prematuras, apressadas, mal<br />

ponderadas. Até agora esse galileu não se revelou nocivo, e em conjunto o conteúdo moral dos seus sermões nada encerra de<br />

condenável; com exceção daquela carne e sangue comida e bebida pelos seus seguidores, podemos aceitar todo o resto da sua<br />

doutrina de arrependimento e preparo para a conquista do reino do céu. O que realmente quer ele significar pelo reino do céu<br />

ignoro; mas seja lá o que for, ele exorta o povo ao bem, ao amor reciproco, condena a opressão – e assim por diante. Será<br />

talvez um tanto exagerado e muito alcandorado, mas isso é próprio de todos que se julgam mensageiros da divindade. Eu de<br />

mim acho-o muito mais perigoso para os fariseus do que para nós. Terão que roe-lo. Eles também acreditam nessas loucuras,<br />

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na ressurreição, em anjos e demônios e não sei mais que. Lá se arrumem. Para nós não vejo perigo – pelo menos até agora.<br />

Além de que nós confiamos nos saudáveis instintos das massas populares.<br />

− Mas as massas o seguem.<br />

− As massas seguem a quantos lhes prometam um pouco de felicidade, seja neste mundo ou no outro. Mas, meu<br />

amigo, com a mesma facilidade com que esses homens conquistam as massas, perdem-nas. Ademais – e aqui o Sumo<br />

Sacerdote mudou de tom – andamos já de algum tempo com a idéia de levar esse galileu perante o Sanhedrim, não por crimes<br />

contra Roma, mas por possíveis contra a nossa fé. Estávamos já prestes a dar a ordem de prisão, quando algumas pessoas de<br />

importância intervieram. Devo confessar que muito me surpreendeu a qualidade das pessoas que o apoiam. Entre elas, por<br />

exemplo, José de Arimateia, membro do Sanhedrim. E também Simão Cirene. E mais me espantou ainda que Nicodemo o<br />

Fariseu, homem piedoso e culto, viesse em sua defesa, porque sei da rixa que houve entre os fariseus e esse rabi da Galileia.<br />

Dizem-me que ele não cessa de insultar e denunciar os fariseus. Pois apesar disso, esse Nicodemo correu precipitadamente a<br />

assegurar que o rabi não havia insultado a fé dos fariseus – aquilo era coisa do seu modo de falar sob forma de parábolas. E<br />

Nicodemo ainda foi mais longe: fez o panegírico do rabi, exaltou-lhe as virtudes e vivamente aconselhou-nos a deixa-lo em<br />

paz, para ver o que sai disso. Parece que as idéias desse rabi...<br />

Nesse ponto notei que os filhos do velho Sumo Sacerdote, sobretudo Eliezer, o mais velho, faziam sinais para<br />

seu pai. E súbito o velho Hanan, interrompendo a longa narrativa, deu de ombros e mudou de assunto.<br />

− Sim, parece que esse galileu é de fato criatura muito piedosa e talvez até vá longe demais no conceito de<br />

piedade. Pertence obviamente ao partido dos fariseus, a despeito daquelas disputas. Não, não, Hegemon, não há perigo nenhum<br />

nesse homem. Se houvesse, as pessoas de posição que citei não interfeririam a seu favor.<br />

− Mas que é que afinal de contas pensam dele? perguntei de chofre, voltando ao ponto do qual o Sumo Sacerdote<br />

fugira. Que esperam dele?<br />

− Oh, esperam que o rabi conduza as massas ao bom caminho. Não há negar que nos últimos tempos a fé muito<br />

se enfraqueceu nas massas – esses pregadores podem reavivar a fé e desse modo fazer que donativos e sacrifícios afluam com<br />

mais abundância ao Templo.<br />

Obviamente não era isso o que o velho Hanan quase dissera quando os filhos o interromperam: Hanan tinha ido<br />

muito longe. Se José de Arimatéia, que eu conhecia muito bem e era homem de alta cultura, tinha interferido em prol do rabi<br />

da Galiléia, o caso não era tão sem importância como me queriam fazer crer. E a mesma observação se aplicava ao rabi<br />

Nicodemo, adversário dos saduceus, homem grandemente honrado e amado pelas massas. De fato era muito estranho que<br />

mestres daquele porte surgissem em defesa dum rabi da Galileia cujos seguidores eram “rústicos ignorantes”, como diziam<br />

com superioridade os piedosos fariseus. E aquilo me cheirou a conspiração. Pressenti que eles esperavam do homem da<br />

Galileia algo mais que simples instrução moral. Que é então que homens como José de Arimateia, Nicodemo e Simão viam<br />

nele? Eu jamais o descobri, nem mesmo mais tarde, quando os seus seguidores o abandonaram, por ocasião de sua morte, e<br />

estes homens lhe permaneceram fiéis. Eterno mistério. Mas você, Jochanan, seguramente pode dizer-me alguma coisa a<br />

respeito.<br />

Os olhos de Pan Viadomsky perderam o tom de sonho e fixaram-se vivamente em mim.<br />

− Quer dizer-me que é que eles esperavam daquele homem? Pode dizer-me que é que o velho Sumo Sacerdote<br />

estivera a pique de revelar quando os filhos o interromperam? Se está nesse segredo, revele-mo agora – agora que tudo já se<br />

passou e só nos restam sombras e recordações.<br />

− Eu? Eu? Exclamei na maior das surpresas.<br />

− Sim, você, Jochanan. Não era você um dos discípulos de Nicodemo? Não o vi eu tantas vezes no grupo de<br />

amigos dos filhos de Simão Cirene, Alexandre e Rufo? Não o vi tentando varar por entre nossos legionários quando íamos<br />

levando o homem da Galileia para a cruz do Golgota? E quantas vezes não o vi seguindo Nicodemo ou o homem de Nazaré? E<br />

naquela ocasião, também, no jardim de Get Shemen. Faça um esforço, Jochanan. Recorde-se.<br />

Algo extraordinário estava acontecendo comigo.<br />

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Como aquilo foi, não sei dizer. Não compreendi o processo mental interior por que passei. Eu havia observado,<br />

não há dúvida, que quando Pan Viadomsky narrava os incidentes da sua vida em Jerusalém fazia uma vivíssima evocação do<br />

mundo antigo. Lado a lado, porém, havia algo infinitamente mais misterioso, como seja uma gradual deslocação da minha<br />

identidade de agora para outra emergida do passado; minha identidade atual foi-se tornando cada vez mais fraca à medida que<br />

a minha identidade de outrora se impunha – e por fim transformei-me num contemporâneo do Hegemon.<br />

Consciente de tão prodigiosa transformação enquanto ela se ia operando, procurei resistir. Lutei; firmei-me em<br />

todos os pontos fixos da minha existência de hoje. Eu repelia de mim as garras que me puxavam para trás, e por um momento<br />

venci na luta. Meu eu atual me defendia qual sentinela. Mas foi fraqueando, porque sempre que Viadomsky dava a sua versão<br />

sobre este ou aquele acontecimento daquela época, uma recordação surgia em mim, e tão vívida, que eu era forçado a<br />

manifestar qualquer desacordo entre o que ele dizia e o que eu me recordava. Havia em sua exposição falhas evidentes, de fato<br />

ou de interpretação de fatos; ou minúcias que ele ignorava e de que eu me recordava, e que expostas poriam a sua narrativa em<br />

perfeito equilíbrio. Mas eu me continha. Em certo momento, porém, quando o narrador se referiu a algo que me dizia muito de<br />

perto, minha resistência cessou. Foi como se a terra sólida se derretesse a meus pés, deixando-me no ar e vítima de qualquer<br />

força que me arrastasse. Por que havia ocorrido aquela crucial rendição? Ter-me-ia cansado a longa excitação do dia? Foram<br />

os amavios da primavera no ar o que me amolentara a defesa? O guardião, a fiel sentinela do meu eu, já não estava ao meu<br />

lado – adormecera, ou também fora arrastada para o mundo que Pan Viadomsky havia evocado. E que alegria em minha<br />

rendição? Eu realizava um velho desejo de precipitar-me de cabeça, sem nenhuma restrição ou reserva, no oceano do passado.<br />

O que se destacou com maior clareza das névoas do mundo morto, foi a cara do meu rabi Nicodemo. E de dentro<br />

de mim emergiu o velho sentimento de amor, entusiasmo e ilimitada admiração que eu tinha por aquele mestre. Em meu<br />

coração alternavam-se ondas de entusiasmo e temor, como quem depois de longa separação vê a face dum ente amado. Porque<br />

eu naquele tempo me dera de coração ao meu rabi. E agora via-o de novo – via aquele rosto que rebrilhava de bondade.<br />

Nenhuma sombra de cuidados, de desespero ou má vontade jamais pairara em suas feições. Nunca eu o vira ceder à mágoa;<br />

fossem quais fossem as suas dificuldades de momento e fosse qual fosse o mal dos tempos, seu rosto jamais traia coisa<br />

nenhuma. Aquele rosto viril nunca deixava de brilhar com a fé e a certeza. Tinha a pele morena e lustrosa, sempre bem tratada<br />

com os mais finos óleos. Moço ainda naquele tempo, em redor dos quarenta, o vigor de seu espírito emparelhava-se com o do<br />

corpo, emanava de seu todo um tanto retacado. O cabelo negro descia em cachos para o ombro robusto, mas a sua força<br />

entremostrava-se sobretudo no negror e brilho dos olhos. Por mais que a dor ou o desespero nos atormentassem, bastava um<br />

olhar para aqueles olhos e a tranqüilidade nos voltava. Olhos que emitiam os raios da fé, da confiança, do amor – fontes de<br />

força para a alma dos fracos. Aqueles olhos amarravam-me ao meu mestre, como também amarravam todos os demais<br />

discípulos, como uma corda amarra bezerros: aqueles olhos identificam-nos com ele. Esse o rosto brilhante que luzia diante de<br />

mim, e luzirá sempre em minhas recordações. Não admira, pois, que quando o velho mundo passado se tornou de novo parte<br />

de meu eu, ou que de novo eu me tornei parte daquele mundo, o rosto do meu rabi se erguesse diante de mim qual um<br />

prodígio.<br />

Meu rabi recusara fazer da ciência picareta, meio de ganhar a vida; era em vez disso como a fonte cristalina que<br />

corre pura e fresca para quem quer que nela venha dessedentar-se. Para não ser obrigado a cobrar qualquer coisa pelos seus<br />

ensinamentos, por pouco que fosse, ganhava o meu rabi a vida por outros jeitos que não o Torah. José de Arimatéia, homem de<br />

grande riqueza, era seu amigo; ia com freqüência à nossa casa de ensino e sentava-se entre os discípulos, para com eles<br />

absorver a palavra de Deus fluente dos lábios do nosso rabi. José quis tomar a seu cargo todas as necessidades materiais de<br />

meu rabi e sustentá-lo com largueza, mas Nicodemo repetia o provérbio: “Podeis comprar um amigo, mas tereis de construir o<br />

professor que vos convém”. Queria dizer que a amizade pode ser comprada com presentes, mas um mestre só pode ser<br />

adquirido pela fé e pelo arrastamento, sem oferta em troca de nenhum bem terreno. José de Arimatéia, entretanto, custeava<br />

aquela casa de estudo e certo número de estudantes. Meu rabi ganhava o pão diário numa pequena sapataria na parte baixa da<br />

cidade. Damas da melhor sociedade vinham fazer-lhe encomenda e dar a medida de seus pés. Muitas eram puras de intenções,<br />

porque sabiam que o rabi lhes tomava a medida dos pés sem dar atenção às portadoras; outras, atraídas pela beleza do rabi,<br />

vinham vê-lo quando grávidas, na esperança de que sua beleza lhes comunicasse beleza aos filhos. Mas o rabi não dava muito<br />

do seu tempo àquele trabalho, preferindo consumi-lo quase todos conosco. Com pouco abastava às suas necessidades. Não<br />

tinha filhos, circunstância que o rebaixava aos olhos dos outros sábios, como infrator do mandamento da multiplicação. Mas<br />

sua resposta era: “Um mestre ou um sábio não pode andar com uma mó de moinho presa ao pescoço”, significando com isso<br />

que um sábio ou um mestre deve dar toda sua força ao Torah. Quando lhe perguntavam por que não se casara, respondia:<br />

“Minha noiva é o Torah”. E não era o único assim entre os sábios de Jerusalém. Também outros olhavam para as mulheres<br />

como tentações e armadilhas. Conservavam-se solteiros tanto por amor à pureza, como para se devotarem sem distração ao<br />

Torah – a isso chamando “as eternas núpcias com a sagrada noiva”.<br />

Eu fui o terceiro discípulo de Nicodemo. Os dois primeiros eram Alexandre e Rufo, filhos de Simão Cirene,<br />

outro amigo do meu rabi. Simão também costumava comparecer à casa de ensino e sentar-se entre nós. Outros discípulos:<br />

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Hillel, o carregador de água, e Judas Ish-Kiriot, o qual com outros adultos veio sentar-se no que era chamado o “escabelo do<br />

Messias”, ou sejam as preleções do meu rabi. A todos ligava uma idéia comum: o breve advento do Messias. E em virtude do<br />

meu contato com todos eles, fui testemunha e co-participante do que se passou em Jerusalém naquela Páscoa.<br />

Mas antes de prosseguir devo dizer algo a meu respeito; tenho de revelar quem eu era, de que família vinha e<br />

como foi que o meu destino me ligou ao rabi e àquela gente.<br />

Nasci nos plainos do Sharon, numa aldeia ao sopé dos montes de Efraim. A partir dali a planura se dilatava até as<br />

areias do Mar Grande. À noite forte orvalho caia sobre o Efraim e a névoa punha os seus véus pelas redondezas. O solo cor de<br />

bronze, assim bem umedecido, viçava o gordo pasto onde tínhamos os nossos rebanhos. O verdor não descaia o ano inteiro – e<br />

quem nunca viu aquele nosso verde não sabe o que verde é. O rico verde-pepino dos altos e das veigas estendia-se como<br />

sombra brilhante, no qual emergiam, juntamente com milhares de anêmonas, as afamadas rosas do Sharon. Cada pé de rosas<br />

carmesins e amarelo-pálido era como a noiva enfeitada para as núpcias. Quantidade de flores espiavam dos canteiros de musgo<br />

verde e dentre os interstícios das pedras; pareciam, quando no balouço dos ventos brandos, tocar a música da cor. E se o arado<br />

passava, a boa terra fecunda abria-se em leivas cor de canela. E nessa tapeçaria de corres nossos campos se pintalgavam de<br />

rochas coloridas e levavam o seu marchetamento de flores até às fímbrias sombras das florestas do Carmelo, nas fronteiras da<br />

Judeia daquele lado. A oeste a pradaria e as matas transformavam-se nas dunas de areia indicativas da proximidade do mar.<br />

O solo do nosso vale é, além de rico, bem abastado de fontes. A natural fecundidade da terra, tão boa na<br />

produção de suculentos vegetais, era aprimorada pela ciência dos nossos sábios, que estabeleceram as regras e leis da<br />

semeadura e colheita. O gado que ali se criava tinha mais preço que o das outras terras – e o mesmo se dava com o gosto de<br />

figo das nossas uvas, produtoras de vinho não inferiores aos de Jericó e Chipre, e sempre presentes nas mesas dos ricos não só<br />

da Judeia como os povos d’além-mar. Deus abençoou-nos o vale com a fartura do leite e mel. Lendas havia sobre a uberdade<br />

do nosso solo e a riqueza do leite de nossos rebanhos. Nas zonas magras da Judeia dizia-se que no Sharon os carneiros<br />

pastavam cachos de uva madura, e que o mel escorria da boca do nosso gado como baba, e que à menor pressão os úberes<br />

derramavam leite. Até agora tenho saudades daquele generoso solo que nos nutria assim prodigamente. Sinto saudades dos<br />

ocasos vermelhos, quando os trabalhadores do campo se deitavam à sombra das vinhas, e também das calmas noites tranqüilas,<br />

tão orvalhadas pelo orvalho do céu. Luzinhas de lâmpadas brilhavam nas trevas e flautas soavam a música do repouso.<br />

Mas a beleza e a benignidade daquela região de nenhum modo vedavam a entrada ali da infelicidade, pois havia<br />

muita discórdia nos casebres dos industriosos trabalhadores, sobretudo nos mais próximos da praia. A terra é sem liga naquele<br />

ponto e freqüentemente os alicerces das casas cedem – e isso sem aviso. Surgem de inesperado fendas no solo, buraqueiras se<br />

escancaram e engolem casas, como aconteceu com o perverso Korah e a sua congregação. Essa a causa de não construirmos<br />

casas grandes e sim pequenas como barracas, tanto os pobres como os ricos. Tetos muito leves e baixos, mas mesmo assim nos<br />

soterravam – motivo pelo qual o Sumo Sacerdote tinha uma oração especial para a circunstância – oração em que pedia que<br />

nossas casas não se transformassem em túmulos. E os sharonitas muito se orgulhavam daquela menção de suas casas, na<br />

oração especial que o Sumo Sacerdote pronunciava uma vez por ano no Santuário.<br />

Cresci entre rebanhos de carneiros. Como eu gostava de lhes apalpar a lã, de lhes acariciar o pelego úmido de<br />

orvalho! Eu fincava meus dedos na lã fofa e com eles era levado quando o pastor os conduzia à fonte – e só ali me pilhavam.<br />

Eu admirava a flauta dos pastores e seguia-os no pastoreio; descansava com eles nas cabanas nas horas de calor intenso;<br />

perseguia a correr os cordeirinhos extraviados. Pela estação da tosa eu me plantava ao pé dos tanques de lavagem... A festa!<br />

Um carneiro assado ao espeto em fogo ao ar livre e o vale a ecoar as canções dos pastores. Eis as visões que me vêm com os<br />

sonhos da minha infância na terra fértil do Sharon.<br />

Lembro-me de minha mãe nos meus primeiros anos, quando ainda entregue aos seus carinhos. Sempre absorvida<br />

nos trabalhos caseiros. Trabalhava com as pessoas na ordenha e no fabrico de queijos que eram postos a curar sobre o teto das<br />

casas; trabalhava também na feitura de tapetes ou esteiras de palma. Ainda tenho na boca a suavidade de figo que eu sentia nos<br />

queijos fabricados por minha mãe. Mas o que mais a ocupava era a fiação da lã, em companhia das mulheres dos nossos<br />

trabalhadores – e havia entremeio a lavagem de pratos. A tarefa de parir e amamentar muitos filhos esgotara-a, deixara-a com<br />

aspecto doentio e cor de cera. Mas de minha mãe eu extraí, com o leite de seu seio, o espírito temente a Deus. Foi ela a<br />

primeira a falar-me do Templo e da cidade de Jerusalém, e a apontar-me as estrelas atrás das quais residia o Onipotente. Dela<br />

aprendi meus primeiros versos da escritura: “O temor de Deus é princípio da sabedoria”; e também com ela aprendi a abençoar<br />

cada bocado de alimento e cada gole de água.<br />

Mas eu ainda era muito pequeno, quando me passaram do recinto das mulheres para o dos homens. Dominava lá<br />

meu pai, e foi quem me estabeleceu os caminhos a percorrer. Eu tinha em meu pai aquela coluna de fogo que no deserto seguia<br />

na frente dos israelitas.<br />

Já ia ele longe da mocidade naquele tempo, e eu era o quinto filho de seu segundo matrimônio. Homem forte e<br />

retacado, de barbas brancas e olhos cheios de bondade. Tinha as mãos como raízes de oliveira velha, ossudas, com veias<br />

salientes, encorreadas no trabalho. Porque meu pai trabalhava tanto quanto os homens alugados; arava com eles e com eles<br />

mourejava em todas as fainas agrícolas. Mas a sua maior atenção era para com os carneiros. Um grande criador, com muita<br />

experiência herdada de seu pai. Produzia carneiros para carne e lã, e também para os sacrifícios do Templo de Jerusalém;<br />

exportava-os para K’far Saba e Ludd, e também explorava o leite. A renda maior era a que lhe advinha da lã. Depois de<br />

lavados os carneiros, vinha a tosa e a lã era limpada, penteada e enfardada. Em lombo de camelo seguiam os fardos para o<br />

porto de Joppa ou o de Cesaréia, onde eram comprados por agentes fenícios por conta dos tecelões e tintureiros de sua terra.<br />

Na cosmopolita Cesaréia as lãs do Sharon alcançavam melhor preço que no porto judaico de Joppa. Mas meu pai não gostava<br />

de Cesaréia; razões nacionalistas o faziam preferir Joppa.<br />

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A indústria da criação de carneiros era a fundamental em nossa família, e ao que se falava, meu pai conhecia<br />

cada rez de seus rebanhos. Dum relance via o erro ou o descuido. Adivinhava que o pastor não vinha observando as horas<br />

certas de dar de beber ao rebanho, ou se o havia exposto demasiadamente ao sol, ou se os levara a um pasto gordo ou magro.<br />

Conhecia todas as doenças dos animais e todas as ervas curativas, tudo ciência herdada dos avós. Lia no rasto dos animais e<br />

identificava qualquer rapinante que se aproximasse à noite. Lia os sinais do céu e adivinhava o tempo do dia seguinte. Muitas<br />

vezes se levantou à noite e com energia de moço correu ao campo onde estavam seus carneiros: é que havia pressentido a<br />

tempestade e queria estar com eles para acudi-los. Apesar da idade saia em procura dos tresmalhados. E era de ver-se como<br />

aquele homem agia no tempo das parturições; passava as noites no campo junto com os pastores. Para saber se faltava uma<br />

ovelha bastava-lhe um olhar sobre o rebanho; dispensava a contagem. E quando em procura dum cordeiro só reaparecia depois<br />

do encontro – jamais sem ele.<br />

Aquela devoção ao rebanho fazia parte da sua fé. Meu pai admitia que Deus pusera os carneiros sob sua guarda,<br />

cabendo-lhe portanto a responsabilidade de tudo. Tal se pertencessem ao tesouro de outro homem e ali fosse ele posto como o<br />

guardião, sob ameaça de terríveis penas. Essa era a tradição não só de meu pai como do comum dos pastores.<br />

Conquanto pouco sabido nas escrituras era meu pai um homem temente a Deus e sempre preocupado em seguir a<br />

vontade do Senhor. Muito o aborreciam as complicadas leis e os regulamentos ritualisticos do pastoreio. Certa vez fez vir da<br />

cidade de Ludd um mestre que o instruísse no permitido e no proibido em matéria de semeadura a cruza de sementes, e<br />

também no distanciamento das covas. Sentia-se mais seguro diante dos mandamentos mais simples, como no sobre o destino<br />

dos primeiros produtos do rebanho, os quais cabiam aos sacerdotes, e sobre o destino das tigueras, essa parte do pobre. Isto<br />

sempre fora tradição na família, conservada através das gerações. Grande espetáculo sempre quando o sacerdote chegava da<br />

cidade de Ludd; com que reverência e cordialidade meu pai o recebia e lhe apresentava os dízimos e os primeiros cordeirinhos<br />

da estação! Tinha aquilo como a essência da santidade. Mas vinha-lhe logo o embaraço e às vezes até o desespero quando<br />

entravam em cena complicadas leis da pureza, da lavagem das vasilhas, da defesa do pão e do vinho do contato com os nãojudeus.<br />

Viviam em nossa vizinhança numerosos estrangeiros, cananitas, gregos e outros, gente da costa, e o comércio nos<br />

punha em diário contato com eles. Vinha daí o permanente terror de meu pai, de que desse contato adviessem infrações da lei<br />

da pureza. Tudo podia ser contaminado por aquela gente, ou influenciado pelas práticas religiosas dos gentios. Seu maior medo<br />

estava em nossas mulheres, que podiam corromper-se e depois corromper-nos. Porque as mulheres judias facilmente se<br />

inclinavam à adoração de Ashtarot, a deusa da fecundidade. As estéreis, ou as que concebiam de longe em longe e com<br />

dificuldade, freqüentemente, e em segredo, levavam flores e pompas ao altar de Ashtarot. E não era raro descobrirem-se nas<br />

cabanas dos nossos trabalhadores pequenas imagens da deusa, modeladas no barro – coisa das mulheres. Quando de Ludd<br />

vinha o sacerdote arrecadar os dízimos, lá ia meu pai com ele de cabana em cabana, em busca dessas imagens escondidas pelas<br />

mulheres, para destrui-las. E surgiam desordens, brigas, expulsão de esposas pelos maridos sob a acusação de idolatria. Mas<br />

apesar de tudo as mulheres não se curavam da sedução de Ashtarot – e meu pai tremia de medo de dum momento para outro<br />

ser também arrastado à mesma transgressão. Sempre que se sentia em dúvida quanto à interpretação dum mandamento, lá<br />

mandava um portador a Ludd. Era ou não era puro isto ou aquilo? Podia usar o vinho que havia sido tocado pelo filho dum não<br />

circunciso? E como invejava algum vizinho que tivesse filho educado na lei! Seu maior desejo era de que um de nós estudasse<br />

e recebesse licença para a interpretação da lei.<br />

Tão grande era o medo que tinha meu pai da infecção pagã que além das regulações e proibições já estabelecidas<br />

pelos mestres da lei ele ainda inventou outras.<br />

Quando menino, lembro-me que meu pai me levava nas caravanas de camelos que conduziam a nossa lã ao porto<br />

de Cesaréia. Esta cidade, conquanto construída por um rei judeu dentro das terras da Judéia e habitada sobretudo por judeus,<br />

era por todos nós tida como um ninho de gentios. E antes de partimos meu pai me advertia com severidade para que, em<br />

circunstância nenhuma, eu aceitasse qualquer coisa de comer dos infiéis – nem que fosse um pedacinho de pão do tamanho de<br />

uma azeitona.<br />

Estou vendo o grande porto da cidade... O casario de mármore cor de rosa erguia-se vivamente iluminado dentre<br />

os jardins circundantes. Eu naquele tempo só conhecia uma cidade grande – Jerusalém, mas o efeito que em mim produziu<br />

Cesaréia foi diferente. Jerusalém exaltou minh’alma à reverência e adoração, mas Cesaréia enfureceu-me – ofendeu-me com a<br />

sua riqueza, suas ruas bem ordenadas e com tantas colunas de mármore. Naquelas ostentações eu via uma expressão de<br />

hostilidade contra nós. Em vez do santuário do nosso Deus erguia-se lá um gigantesco templo em honra ao César Augusto, a<br />

cavaleiro de todas as construções da cidade. Também o porto diferia muito do de Joppa; neste as embarcações carregavam e<br />

descarregavam entre recifes, o que é perigoso, mas no porto de Cesaréia havia um quebra-mar de duzentos passos de extensão,<br />

proporcionador de bom abrigo aos navios. Dentro do ancoradouro fechado e tão sereno, inúmeros barcos se reuniam com velas<br />

de todas as cores. Cada uma daquelas cores – vim a saber de meu pai – indicava o país donde procedia a embarcação – de Tiro<br />

e Sidon, do Egito e da ilha de Chipre, da ilha grega de Rodes e de pontos ainda mais remotos do Mar Grande. A praça do cais<br />

do porto era calçada de mármore e nela se reuniam, em redor de seus embarques e desembarques, e vestidos de estranhos<br />

modos, mercadores de inúmeras terras. Nós também figurávamos entre eles, na seção das lãs, onde descarregávamos os nossos<br />

camelos. Compradores de Tiro, de vistosos mantos, nos rodeavam, apalpavam e examinavam a lã, mercadejavam-na com meu<br />

pai. O pagamento era feito em dracmas de Tiro em saquinhos; depois escravos conduziam para os botes a lã comprada e os<br />

botes levavam-na aos navios.<br />

Concluído o negócio, deixava meu pai os camelos entregues aos cameleiros e me levava a ver a cidade.<br />

Atravessávamos uma longa arcaria com pilares de mármore e vigas de cedro, sobre as quais estendiam um toldo branco. Ali se<br />

agitava a multidão, a ir e vir, com aglomeramentos à entrada das tendas de tecidos, vasos, utensílios e móveis de cedro com<br />

embutidos de ébano. Vendiam-se ainda imagens de deuses, estatuasinhas de divindades masculinas e femininas, fundidas em<br />

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bronze ou esculpidas em alabastro; e estatuetas de mulher nua com os braços cruzados sobre os seios ou o ventre. Os fregueses<br />

mexiam nas coisas à venda, examinavam-nas, debatiam sobre o preço duma divindade como quem debate o preço dum odre de<br />

vinho ou cesta de romãs. Nos escuros nichos das arcadas, mulheres faziam sinais aos passantes masculinos; também havia<br />

baiucas donde saiam marinheiros bêbados, cantando. Naquele ponto meu pai apressava o passo para que eu visse o menos<br />

possível aquelas impurezas de pagãos, e só remorava quando atingíamos o bairro judeu. Íamos a um khan ou estalagem, e no<br />

pátio coberto de toldos, víamos os cameleiros judeus em descanso. Também lá encontrávamos vizinhos nossos do vale do<br />

Sharon. Os animais dos caravaneiros, livres de suas cargas, eram trazidos a beber nas fontes. Nós desatávamos a bagagem<br />

trazida de casa e comíamos junto com os outros judeus.<br />

Certa vez, numa dessas refeições, eu disse a meu pai:<br />

− Ensina-me uma coisa, pai e mestre. Os gentios adoram ídolos e outras abominações; em vez de observar a lei<br />

dos nossos mandamentos vivem segundo os seus desejos, como ainda hoje vimos; e no entanto Deus os não castiga. Só castiga<br />

a nós judeus, e ainda permite que os pagãos sejam nossos dominadores.<br />

− Não sei, meu filho, porque são as coisas desse modo. Não está em nós questionar os caminhos de Deus, mas<br />

temos de aceita-los com amor e dizer que o que ele faz é sempre o melhor. Foi como me ensinaram meus pais. Mas os sábios<br />

de outros homens profundos nas escrituras penetram nesses mistérios e procuram os desígnios de Deus. Esses conhecem as<br />

razões. Não quererás, meu filho, ser um desses homens?<br />

− Sim, meu pai. Eu também quero sondar o mistério dos caminhos de Deus.<br />

E meu pai disse: “O sonho da minha vida sempre foi que um meu filho se santificasse no estudo do Torah, de<br />

modo a iluminar-me em meus últimos anos; assim eu me asseguraria dos frutos do mundo vindouro, como em vida me tenho<br />

assegurado dos frutos deste. Teus irmãos escolheram como sua parte este mundo aqui, e treinam-se nos trabalhos de seus<br />

antepassados. São criadores de carneiros. Mas pode ser que a vontade de Deus me favoreça com a realização do meu sonho por<br />

intermédio do mais jovem dos meus filhos”.<br />

− Que devo fazer, meu pai, para tornar-me digno do Torah?<br />

− Do que ouvi dos sábios, o Torah só pode ser conseguido por alto preço. Quem quer o Torah tem que comer<br />

pão seco, beber água por medida e dormir em chão duro. Deve ser o servo de seu mestre, e comportar-se diante dele como o<br />

escravo diante do senhor. Porque para um discípulo o rabi é mais que o pai. O pai gera o filho, mas o rabi forma-lhe a alma.<br />

Isso é o Torah. Estás preparado, meu filho, a pagar esse preço pelo Torah?<br />

− Meu pai, pagarei esse preço e todos os outros que forem necessários, contanto que me habilite a procurar os<br />

caminhos de Deus.<br />

− Assim seja, então. Mandar-te-ei primeiro a um rabi de Ludd e mais tarde a um de Jerusalém.<br />

Meu pai ergueu as mãos para o céu e murmurou:<br />

− Obrigado, Senhor, por teres insuflado o coração de meu filho com o desejo de conhecer o Teu Torah.<br />

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Quando cheguei a idade de treze anos meu pai pronunciou a benção: “Agradeço-te, ó Senhor, o teres afastado de<br />

mim esta responsabilidade”. Porque, de acordo com a lei judaica, ao completar os treze anos o menino penetra na virilidade e<br />

aos olhos de Deus se torna responsável pelos seus atos. Meu pai mandou-me para Ludd, onde havia diversas sinagogas. Numa<br />

delas me tornei discípulo dum rabi local, que me ensinou a lei escrita, os códigos e a história que fazem parte da educação<br />

superior de cada judeu. Fiquei morando com a família do irmão de meu pai, um seleiro, e com ele aprendi esse ofício. Embora<br />

meu pai fosse abastado e me destinasse a uma carreira culta, havia o provérbio: “Aquele que não ensina a seu filho um ofício<br />

prepara-o para salteador de estrada”.<br />

Não me demorarei nos meus anos de estada na agradável cidade de Ludd, onde fiz muitos amigos. Direi apenas<br />

que minha inclinação para o estudo era acentuada – estudo da lei escrita e da tradição oral, e que aprendi muito, tanto de uma<br />

como de outra. Chegando aos dezesseis anos voltei para casa e meu pai me perguntou novamente:<br />

− Ainda é teu desejo te consagrares profundamente ao Torah?<br />

− Com toda minh’alma e de todo o coração, respondi.<br />

− Se é assim, irás acompanhar-me à próxima festa de Jerusalém. Como sabes, tenho lá um amigo, Simão Cirene,<br />

cujos dois filhos freqüentam o famoso rabi Nicodemo. Deixar-te-ei com eles.<br />

E não se falou mais naquilo. Em vésperas do festival seguimos todos, meu pai, dois dos meus irmãos mais<br />

velhos e eu, e levamos uma pequena ponta de carneiros para o mercado e dois jumentos; num deles meu pai montava quando<br />

cansado e o outro conduzia vinho e mel, de presente ao seu amigo de Jerusalém e ainda as provisões para a jornada – frutas,<br />

pão e queijo.<br />

Ao atravessarmos Ludd aderimos a uma pequena caravana de peregrinos, e em Jabneh já estávamos tão<br />

numerosos que enchemos toda a praça do mercado. Depois entramos a subir as montanhas da Judéia no rumo de Jerusalém, e a<br />

estrada se enchia da música de nossas flautas.<br />

Não era a minha primeira peregrinação a Jerusalém, mas me ficou mais nítida na memória que todas as outras.<br />

Ainda ouço o tilintar dos cincerros e vejo a longa procissão de peregrinos como uma serpente pelos caminhos montanhosos. Eu<br />

não ignorava que daquela vez ia ficar morando em Jerusalém, com a minha existência irrevogavelmente dedicada ao Torah, e<br />

estava ansioso por conhecer o meu novo rabi e dar começo à fase nova. Lembro-me das noites dessa peregrinação, quando<br />

nosso grupo acampava numa aldeia junto a uma fonte ou poço. Os homens não entravam em casa nenhuma, achando preferível<br />

a noite passada a céu aberto; e eu, já me considerando homem, fazia a mesma coisa; não entrava em casa nenhuma nem na<br />

barraca das mulheres; meu lugar era entre os homens, junto ao fogo acesso ao pé da fonte. Noites frias naqueles altos; os mais<br />

velhos embrulhavam-se em pelegos e deitavam-se; nós os mais moços ficávamos em redor por ali, em respeitoso círculo, e os<br />

servíamos. Mas ninguém dormia do cair da noite à madrugada. Era na primeira quinzena do mês e o nítido crescente da lua<br />

mostrava-se no céu logo que o sol se punha. As estrelas brilhavam radiantes. Os velhos contavam histórias da grande rebelião<br />

de Judas o Galileu, na qual alguns deles haviam tomado parte. Recordavam como tinham fugido de casa, com as armas<br />

escondidas sob o manto, afim de engrossar as fileiras rebeldes. Do porto de Joppa seguiram muitos pescadores. Nossa<br />

esperança era naquele tempo enorme; todos nós julgávamos muito próximo a salvação: íamos ser libertados do jugo de Edom!<br />

Mas aquela esperança degenerou em grande desilusão, pois a espada de Deus foi quebrada pelos pagãos.<br />

Saba.<br />

4<br />

− A espada de Deus não pode ser quebrada porque a espada de Deus é o Torah, disse um homem culto de K’far<br />

− Não é da espada do Torah que precisamos hoje, mas duma espada de aço, murmurou uma voz na sombra. A<br />

espada do Torah deve dormir na bainha enquanto a espada de aço conquista.<br />

Todas as cabeças se voltaram. Quem seria aquele ousado? Alguém ergueu um archote e à sua luz vimos a figura<br />

dum homem forte, de cabelos revoltos e olhos que faiscavam no escuro.<br />

− Bar Abba! Bar Abba está entre nós! foi o murmúrio que correu.<br />

− Precisará Deus de armas e carros de guerra para manter-se no mundo? Não tem ele ao seu dispor as hostes que<br />

enchem o céu? Quando for o tempo, Deus nos mandará o seu ungido.<br />

Jerusalém?<br />

− Mas por que espera tanto tempo?<br />

− Está escrito: “Apesar da demora, deveis esperá-lo todos os dias”. Quem sabe se não vamos encontrá-lo em<br />

− Não, o Messias não descerá dos céus enquanto o não forjarmos na bigorna ardente e nela não temperarmos<br />

nossas espadas.<br />

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− Deus não quer uma escória de escravos como seu povo. Deus quer filhos da liberdade disse alguém em apoio<br />

de Bar Abba.<br />

Uma sensação de inquietude e terror invadiu a assembléia. Ainda hoje vejo o vulto de Bar Abba, de pé, batido<br />

pela luz da fogueira. Era um pescador do porto de Joppa, gigantesco de estatura, queimado de sol, escuro como um etíope e<br />

com músculos de aço. Tinha os cabelos e a barba revoltas pelo vento e os dentes alvos brilhavam entre os lábios. Ergueu a mão<br />

para o rabi que o havia repelido e disse:<br />

− A galha amarga da opressão está grande demais em nosso seio. Se aparecer alguém nos moldes de Judas o<br />

Fanático para congregar as hostes em seu redor, nós arrojaremos daqui Edom e seus mercenários, como a tempestade arroja o<br />

navio no mar.<br />

− Bar Abba! Bar Abba! Isso são palavras dum pecador! Não vê ao que chegamos? Sem Deus nada pode ser<br />

realizado. Tal é a vontade de Deus, e não ousamos questiona-lo até que Ele nos mande o Messias que nos vai reerguer.<br />

Outro falou: “Corre que nos desertos da Judéia anda um homem que atrai as gentes e pelo batismo as prepara<br />

para a vinda do Messias”.<br />

− Não é com batismo de água que nos prepararemos para a vinda do Messias!<br />

− Ai dos ouvidos que ouvem tais palavras! Que teus lábios se selem, Bar Abba! Homens que pensam assim<br />

apenas retardam a redenção. É da vontade de Deus que façamos dos nossos pescoços um escabelo para nossos inimigos. E<br />

temos que obedece-lo com amor e calados; não podemos questionar a Sua decisão, gritou o rabi. A barba branca do velho<br />

tremeu e seus olhos como que saltavam das órbitas.<br />

− Mas por que? exclamaram vozes.<br />

− Porque somos pecadores – todos, todos nós, respondeu o valho.<br />

− E são os gentios melhor que nós?<br />

− Deus não fez nenhum pacto com os gentios e sim conosco. É o laço estabelecido entre Deus e Abraão que nos<br />

impõe os deveres do Torah. Cada um de nós, mesmo os ainda não nascidos, lá estavam quando o pacto foi confirmado – e cada<br />

um de nós hoje devia tomar sobre si a carga do Torah. Mas lançamos a carga dos nossos ombros e Deus nos pune. Porque ele<br />

nos escolheu como o seu povo eleito e para ser uma luz do mundo, uma luz para os gentios, sempre a observarmos as suas leis<br />

e mandamentos enquanto não nos manda ele o Messias. E nesse dia todas as nações se curvarão diante de Deus e aceitarão o<br />

Seu Torah. Até que isso aconteça, temos de suportar em silêncio o nosso jugo – e com o dedo cruzado na boca o velho fez sinal<br />

de silêncio.<br />

povo.<br />

Naquela noite na montanha senti-me afinal homem. Pela primeira vez me defrontava com a rocha viva do nosso<br />

Em Jerusalém vivi em casa de Simão Cirene, cuja tinturaria ficava junto às águas do Kidron, na Cidade Baixa,<br />

ao pé do monte das Oliveiras lá onde viviam os tanoeiros e outros artesãos impedidos de morar na cidade alta. Simão também<br />

ainda está muito vivo em minha memória. Extraordinariamente alto e magro; a cabeça pendia lá de cima do pescoço; e era<br />

muito corcovado pela curvatura constante na tinas de tingir. A ação das tintas o havia tornado calvo. Simão usava receitas<br />

próprias, trazidas de Cirene, e sua pele toda manchada dizia a profissão. Nos lóbos das orelhas, uns fios coloridos, como<br />

brincos. Era um homem calmo e sorridente. Quando naquela peregrinação chegamos a Jerusalém veio ele receber-nos, abraçou<br />

meu pai, beijou-o, perguntou de todos e só então nos conduziu à sua residência.<br />

Morava numa casa pequena, composta dum quarto amplo com camas de esteiras lado a lado, umas com colchas<br />

coloridas para uso do dono da casa e dos hóspedes e as outras mais humildes. Em certo ponto, uma esteira de bambu: ali<br />

dormiam os filhos dos hóspedes. Havia uma divisão por meio de cortina, atrás da qual ficava as camas das mulheres. Fora,<br />

junto à porta, uma estrutura de pedra onde ficava as vasilhas d’água e outros utensílios caseiros. A parte da casa destinada aos<br />

hóspedes fora caiada de fresco. Se a vivenda em si parecia-me pequena, o quintal, vedado por uma cerca viva, era bastante<br />

amplo e se prolongava nos fundos. Lá ficavam os galpões de depósito da lã crua ou preparada. Viam-se três grandes caldeirões<br />

suspensos em buracos abertos no chão e em redor inúmeros vasos e celhas de colorantes. Havia também uma grande cisterna<br />

aberta na parte mais baixa do quintal e cercada. Os sinais da profissão de Cirene abundavam por toda parte – vasos, cercas, as<br />

pedras, tudo ali estava espirrado de purpura e de carmins. A própria velha oliveira do quintal, única ali, e o toldo resguardador<br />

dos ardores do sol a pino, estavam pintalgados de manchas vivamente coloridas.<br />

Receberam-nos naquela casa como membros da família. Lavaram-nos os pés e sem demora nos deram comida.<br />

A seguir desempacotamos nossos víveres, o queijo seco, o mel e o vinho. As mulheres retiraram-se para um canto a parolar<br />

sobre as coisinhas caseiras, enquanto os homens discutiam assuntos de maior importância. Meus irmãos mais velhos foram à<br />

cidade indagar das últimas cotações da lã e dos carneiros, e fiquei só com meu pai e Simão; seus filhos, rapazes mais ou menos<br />

da minha idade, estavam com o rabi.<br />

Após a troca das principais novidades, meu pai e Simão foram para o quintal e sentaram-se em celhas<br />

emborcadas, vazias por causa da festa próxima, e eu sentei-me no chão a seus pés.<br />

Era a hora em que os sacerdotes do Templo fazem os sacrifícios do Minchah. Ainda estavam iluminados os altos<br />

dos montes em redor de Jerusalém, embora as sombras da noite já cobrissem o vale do Kidron. Meu pai e Simão discutiam o<br />

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eterno assunto: Por que iam tão mal as coisas para as gente de Jacó, e por que Edom triunfava? Por que se havia invertido a<br />

bênção original de Jacó, de forma que o pé de Esau oprimisse o orgulho dos filhos de Israel?<br />

Serenamente meu pai perguntou: “Apareceu ultimamente algum sinal? Alguma sugestão da boa nova? Que<br />

dizem os sábios?”<br />

− Jochanan foi para o deserto e como preparo para o Messias chama o povo ao batismo e arrependimento.<br />

− Tive notícia disso de outra feita que vim a Jerusalém e falei com pessoas por ele batizadas no deserto.<br />

− Sim, muita gente de Jerusalém irá ter com ele depois de finda a festa próxima, e também eu quero ver<br />

Jochanan com meus próprios olhos e fazer-me batizar.<br />

Simão guardou silêncio por alguns instantes e depois prosseguiu:<br />

− Eles dizem que o tão esperado acontecimento está próximo, e falam os sábios que a provação do Messias já<br />

começou, porque as nossas tribulações e sofrimentos cresceram além de toda conta e medida. Pilatos, o mau, está no poder.<br />

Seus soldados matam nossos peregrinos nas estradas. As taxas e extorsões crescem dia a dia. Os filhos do Sumo Sacerdote<br />

dão-nos de chicote e as palavras da Escrituras se realizam: “A Terra caiu na mão dos perversos”. As águas subiram ao nível da<br />

nossa boca.<br />

− E qual a significação da nossa agonia? Indagou meu pai. Que dizem os sábios?<br />

− Que esses tormentos são sinais do amor de Deus. Descem sobre nós para nosso bem, para abrir nossos<br />

corações aos mandamentos de Deus. Nós somos o sal da terra, Deus nos escolheu entre todos os filhos do homens. Temos de<br />

não resistir ao mal, de não nos levantar contra a vontade de Deus e receber com amor estas provações. Porque Deus nos limpa<br />

por meio do sofrimento, e purifica nossos corações para que não caiamos na baixeza e na corrupção, entregues aos deleites que<br />

nos ligam a Deus, até o dia em que Ele se revele a todos na terra e nos mande o Messias preposto a destruir toda a maldade<br />

com o raio do seu olhar e a reunir em hostes os justos. Nesse dia os povos gentios verão e compreenderão, e nós também<br />

perceberemos, fora de qualquer dúvida, que os nossos sofrimentos eram o preparativo para a salvação do mundo e o desdobrarse<br />

da glória de Deus. Por todos estes motivos temos que não ceder ao desespero da degradação em que caímos; e, bem ao<br />

contrário, suporta-la com orgulho. E embora nos haja Deus transformado em alvo das setas dos gentios, cumpre não<br />

fraquejarmos em nosso amor quando as setas nos penetram na carne; havemos que recebe-las com amor, como os fiéis<br />

soldados de um rei que conduz a guerra da justiça.<br />

Estas reconfortantes palavras, e outras, deu-nos Simão naquele dia. Notei que os olhos de meu pai brilhavam de<br />

júbilo e esperança.<br />

− Simão, disse ele apertando a mão do amigo, em que casa de estudo foram essas palavras ensinadas e que boca<br />

as pronunciou? Benditos sejam os lábios que transmitem a mensagem de Deus!<br />

Simão Cirene ergueu a cabeça e olhou ao longe, com um último raio de sol a brincar na nudez de seu crânio.<br />

− Essas palavras, disse ele, eu as ouvi do meu mestre Nicodemo, o filho de Nicodemo. Na sinagoga dos cirineus<br />

ele fala todos os sábados depois da leitura do Torah – esta é a essência de seus sermões.<br />

fonte.<br />

− Onde está ele, esse homem de Deus? Quero que mo apresente. Também desejo beber da água fresca dessa<br />

− Havemos de vê-lo esta noite, pois que lhe pedi a graça de comparecer à festa que vamos dar em honra ao teu<br />

filho – a esse que trouxeste a Jerusalém para aprender a palavra de Deus. Também convidei outros amigos, como Judas Ish-<br />

Kiriot, oleiro de profissão e muito temente a Deus, fariseu e filho de fariseus que espera a qualquer momento ver o Messias. E<br />

virá ainda Hillel, o carregador de água, o mais humilde dos homens, um santo. Apresentar-te-ei a Nicodemo ben Nicodemo e<br />

lhe pedirás que aceite teu filho como discípulo.<br />

− Deus haja por bem recompensar a grande bondade que mostras por mim e por meu filho, disse meu pai; e<br />

voltando-se para mim: “Levanta-te, meu filho, e prepara-te para conhecer teu novo pai, o rabi que te instruirá nos caminhos de<br />

Deus”.<br />

− É tempo de arrumar-nos, disse Simão Cirene. As mulheres já acenderam as lâmpadas. Precisamos estar prontos<br />

para receber nossos hóspedes.<br />

Meu pai e Simão Cirene lavaram-se nas gamelas fora da casa, ungiram-se e vestiram roupa limpa, pois que<br />

desejavam honrar os visitantes. Também eu me lavei e ungi e mudei de roupa. Vesti o ketonet passim, casaco de várias cores<br />

que era o meu traje de gala; empomadei os cabelos e enquanto os esfregava dizia em meu coração: “Fase, pai do céu que eu<br />

encontre graças aos olhos do rabi, de modo que ele me tenha à mão e não à distância”. Depois de pronto e vestido, fui colocarme<br />

à porta da casa, de coração trêmulo, à espera.<br />

Os homens ajudaram a arrumar as mesinhas junto aos leitos e as mulheres deram a última demão nos<br />

preparativos; apareceram com verduras cosidas e cruas em saladeiras e pratos de barro que Simão havia trazido de sua terra<br />

natal, porque não era coisa de uso na Judéia. A sala fora varrida e ramos de oliveira adornavam as mesas. A mulher de Simão,<br />

de chale roxo à cabeça, trouxe bolos embrulhados num pano branco, e nos assentos destinados a meu pai e ao rabi colocou<br />

duas coroas de oliveira, segundo o costume da Cirenaica. Boiões de óleo de oliva e de rico mel figuravam nas mesas, ao lado<br />

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de cestas de figo secos e cabaças de vinho. Os candeeiros do teto punham luz no recinto e sua calma luz, e um lençol branco<br />

pendurado à porta como cortina era o sinal de que se esperavam hospedes e que quem tivesse fome podia entrar e comer.<br />

Não tardou chegassem os primeiros hóspedes, dois tintureiros com brincos de fios coloridos. Compatrícios de<br />

Simão, vinham vestidos à moda de Cirene – túnicas roxa e negra e altas sandálias de couro; cabelos ungidos com óleo e<br />

circundados pela coroa de oliveira. Foram apresentados aos homens vindos do Sharon e tomaram os assentos a eles reservados.<br />

Outros vieram e, conforme a posição social, a idade e a altura, eram conduzidos às esteiras no meio da sala ou aos canapés<br />

junto às paredes. Hillel o aguadeiro entrou e foi para o lugar de honra, à cabeceira, e a mesma distinção foi conferida a Judas<br />

Ish-Kiriot, o Fariseu, que como Hillel era contado entre os sábios. E foi assim que esperamos a chegada do rabi. Nicodemo<br />

veio com seus dois principais discípulos, Alexandre e Rufo, os dois filhos de Simão, os quais penetraram no pátio com<br />

lâmpadas de óleo suspensas, iluminando o caminho do rabi.<br />

Todos nos pusemos de pé e assim ficamos até que o rabi lavasse as mãos e tomasse assento na cabeceira<br />

principal, marcada com tapeçarias e enfeites pendentes. Alexandre e Rufo não se sentaram à mesa, ficaram de cada lado do<br />

rabi, para servi-lo. Como os invejei, de terem a honra de servir ao seu mestre! E pensei no dia em que faria o mesmo, e ao lado<br />

do meu rabi eu lhe anteciparia desejos. Nem por um instante tirei os olhos de Nicodemo e ia guardando todos os gestos que ele<br />

fazia; desse modo aprendi a maneira própria de partir o pão, de deitar-lhe sal antes de abençoa-lo, de molho em vinagre e mel;<br />

observei o modo como ele comia – calmo, atento, como se executando um sacrifício diante do altar. E assim era (fui instruído<br />

mais tarde), porque a mesa em que os homens comem deve ser igual a um altar, e os que a ela se sentam devem conservar-se<br />

puros e respeitosos como num santuário. Pois que quando os homens partem o pão e não falam do Torah, podem estar<br />

comendo carne de cadáver ou o sacrifício a ídolos. Logo depois de termos começado a comer o rabi ergueu a voz e explicou<br />

aos presentes a razão de ter chegado tarde.<br />

− Este ano, como todos vós sabeis, a Páscoa vai cair no Sábado. Ora, sempre que isso acontece renasce entre os<br />

sábios e sacerdotes uma antiga controvérsia baseada no seguinte: Deve o sacrifício da Páscoa ter prioridade sobre o Sábado ou<br />

deve ser adiado para depois do Sábado? E, como também sabeis, há um velho regulamento do caso, estatuído pelo venerável<br />

Hillel, o qual grande fama adquiriu por causa disso; esse regulamento prescreve que o sacrifício da Páscoa tenha precedência<br />

sobre o Sábado. O venerável Hillel baseia sua decisão no ensino de Shemaya e Abtalion, os sábios que lhe ensinaram a lei.<br />

Mas desde esse tempo os sacerdotes do partido saduceu levantam a questão e desafiam a regra de Hillel. E fazem-no porque o<br />

triunfo de Hillel deu grande força aos fariseus e abriu o caminho para a introdução no serviço do Templo de outras leis que os<br />

sacerdotes consideram infrações às suas prerrogativas.<br />

E desse modo, sobretudo para benefícios dos mal preparados nos detalhes da lei, o rabi Nicodemo explanou a<br />

natureza dos debates que o prenderam até àquela hora no Sanhedrim.<br />

− Notai a grandeza do venerável Hillel, continuou ele. O regulamento por ele instituído ensina-nos ainda mais<br />

que isso. Ensina-nos que devemos fazer a vontade de Deus com amor e liberdade de espírito; que devemos, pois, atentar na<br />

maneira da nossa obediência. Temos de aplicar no serviço de Deus todos os dons e faculdades com que Ele nos abençoou. Não<br />

somos cegos escravos, como ensinam os saduceus – escravos que cumprem resignadamente os mandamentos de Deus. Somos<br />

seus filhos, como diz o verso: “Sois filhos do Senhor vosso Deus”. Filhos da liberdade. Não fomos dados ao Torah, o Torah é<br />

que nos foi dado; e tendo-o recebido, cumpre-nos estuda-lo atentamente e apresentar-lhe as significações. E assim também<br />

com os mandamentos! Devemos viver neles! O mesmo com o Sábado, porque o Sábado não é um capataz – não é uma besta<br />

que foi enviada para nos destruir. Não fomos entregues ao Sábado, o Sábado é que nos foi entregue para deleite nosso.<br />

Os hóspedes bebiam religiosamente as palavras do rabi. E todos os olhos o fixaram quando Nicodemo cofiou a<br />

barba e prosseguiu:<br />

− Nossos sábios estabeleceram que devemos repetir duas vezes por dia a oração: “E tu servirás o Senhor teu<br />

Deus com todo teu coração e com toda a tua alma”. A que pode ser isto comparado? Ao amo que deste modo se dirige ao<br />

servo: “Tu me servirás não por causa da paga, mas por amor”. Mas como pode saber o amo se seus servos o servem por causa<br />

da paga ou por amor? Aqueles escravos que depois da libertação volvem aos amos e com eles ficam, esses os servem por amor.<br />

Deus deu aos homens livre arbítrio para que possam escolher entre o bem e o mal. Porque Deus deseja que o homem a Ele se<br />

dirija por livre escolha, e não por força da paga, como o servo. Deus quer o homem como o filho que por amor serve seu pai.<br />

Foram as primeiras palavras do Torah que ouvi pela boca do meu mestre e nunca mais se me apagaram da<br />

memória. Eu estava de pé atrás de meu pai – bem me lembro – com os olhos presos no rabi. Não só suas palavras me entravam<br />

no coração, mas os seus gestos, o seu tom, a sua acentuação. Minha alma se ligara à dele já naquela noite; e meu amor por ele<br />

era mais forte que o primeiro amor dum rapaz pela jovem da sua escolha.<br />

Pouco depois meu pai tomou-me pela mão e respeitosamente me apresentou ao rabi, dizendo:<br />

− Rabi, este é meu filho que eu trouxe para o confiar às tuas mãos. Se merecer a tua graça, sê de agora em diante<br />

seu pai; sê como o que lhe deu a vida, já que lhe vais dar o Torah.<br />

Imaginei que todos estivessem ouvindo as batidas do meu coração, tanto ele me pulava no peito. Minhas mãos<br />

tremiam, todo meu corpo vibrava de felicidade e medo. O rabi tomou minha mão nas suas e acalmou-me. Lembro-me também<br />

que me alisou o cabelo – e que carícia foi aquela!<br />

− Meu filho, disse ele, recita-me o verso que sabes.<br />

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em vida.<br />

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Era costume nosso dar a cada criança um versinho da Sagrada Escritura para que o decorasse e o acompanhasse<br />

Minha resposta saiu gaguejada.<br />

− L’hakshiv l’chochma hozneicha... inclina teu ouvido para a sabedoria, volta teu coração para a sabedoria.<br />

− E por que razão queres procurar a sabedoria, meu filho? perguntou o mestre.<br />

− Para servir a Deus de coração aberto, como um filho da liberdade, e não com o coração cego do escravo, como<br />

nos ensinaste esta noite, respondi.<br />

Nicodemo apôs as duas mãos sobre minha cabeça e pronunciou esta bênção:<br />

− Possam multiplicar-se em Israel os que te assemelham, e que a vontade de Deus te acresça o merecimento<br />

como filho de Abraão.<br />

E depois mandou que seus outros discípulos me recebessem em sua companhia.<br />

− Daqui por diante este neófito é vosso irmão. Recebei-o como tal.<br />

Naquela mesma noite despedi-me de meu pai e, finda a festa, juntei minhas roupas numa trouxa e segui meu<br />

novo pai no Torah.<br />

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Rufo, o filho mais novo de Simão Cirene tornou-se o meu mais íntimo amigo. Já nos conhecíamos de antes, mas<br />

naquela noite nossas almas se juntaram em união eterna. Era um rapaz de agradável presença, com aqueles escuros cabelos<br />

cacheados. Olhos cor de cinza, brilhantes de liberdade e felicidade, mas eram dos que nos penetram fundo e despertam em nós<br />

os mais nobres e enternecidos sonhos. Alto e esbelto como a jovem palmeira, e irradiante: por onde passava, levava consigo os<br />

corações. Todos o amavam, porque tinha a rapidez dos veados novos no seguir a vontade dos sábios. Comíamos juntos, eu e<br />

ele, estudávamos juntos, cantávamos em uníssono os versículos da lei e da tradição ensinados pelo rabi. Passeávamos juntos<br />

pelas ruas de Jerusalém. Jovem os dois, cheios da alegria dos verdes anos, andávamos de mãos presas ou abraçados.<br />

Percorríamos todas as vielas da cidade, demorávamos nos pátios do Templo, ouvíamos os pregadores a céu aberto. Jerusalém<br />

era uma cidade tumultuosa e onde quer que qualquer coisa ocorresse lá estávamos nós dois, eu e Rufo. Varávamos pela praça<br />

do mercado por entre bilhas de óleo e jarras de vinho; tropeçávamos em cestões de frutas e vegetais, espiávamos os balcões<br />

carregados de lãs coloridas, atentávamos nos pregões dos vendedores de perfumes e tecidos, nos ourives de prata e ouro, cujas<br />

vozes eram as mais insistentes e dum modo mágico atraiam as mulheres. Aventurávamo-nos pelas zonas de maior perigo,<br />

como a Porta do Estrume, ou junto às estalagens dos cameleiros, nas extremas da cidade. Tínhamos também nossos segredos<br />

da idade, e freqüentemente nos demorávamos nos jardins onde as filhas de Jerusalém passeavam à tarde, com véus sobre os<br />

cabelos.<br />

Nossa primeira obrigação da manhã depois de lavar-nos e dito o “Ouve, ó Israel”, era esperar pelo nosso rabi na<br />

sinagoga dos cirineus. Havia dois salões apenas. O maior, a casa da Oração, onde ficavam a arca com as Rolos de Lei, lidos<br />

ritualmente no Sábado e no segundo e quinto dias da semana; também lá ficava o púlpito. A sala menor era a casa de Ensino,<br />

onde havia duas classes para os filhos dos cirineus residentes em Jerusalém. Um rabi primário instruía os pequenos; e dentre os<br />

maiores os de mais bela vocação eram escolhidos para a classe do rabi Nicodemo. No pátio da sinagoga havia diversas cabanas<br />

que o rabi e seus discípulos passavam as noites; todos comiam em comum na mesa da Casa de Ensino, cuidada pelos<br />

discípulos mais jovens. Outra regra de rigor era que cada discípulo aprendesse um ofício. Meu rabi, por exemplo, era sapateiro,<br />

como já vimos. Mas nos últimos anos afrouxou essa regra e passou a visitar a sua oficina só de longe em longe. Tomavam-lhe<br />

todo o tempo os trabalhos do Sanhedrim e da escola. Nosso mestre vivia conosco, compartilhava do alimento que nos era<br />

fornecido pela comunidade cirenaica e por José de Arimatéia e dormia numa das cabanas do pátio. Cumpre não esquecer que o<br />

rabi Nicodemo não era apenas o mestre de meninos e o conselheiro no Sanhedrim, mas também chefe espiritual da colônia<br />

cirenaica em Jerusalém. Os membros da sinagoga vinham procura-lo para conselho em todos os problemas de suas vidas, tanto<br />

de ordem religiosa como secular. A companhia era composta dum pequeno número de judeus da Cirenaica, freqüentadores<br />

daquela sinagoga. Eram escolhidos pelo rabi e recebiam o titulo de chaver, que significa Membro da Companhia, Camarada,<br />

Colega. O rabi era alternadamente servido pelos seus discípulos, um cada dia. Preparávamos o seu alimento, púnhamos a sua<br />

mesa, lavávamos-lhe a roupa, preparávamo-lhe o banho e a cama à noite. Éramos num total de cinco: os já mencionados e<br />

Zadoc, filho de Hillel o aguadeiro, o qual vivia na Porta do Estrume mas era um dos mais distintos membros da Companhia, e<br />

Shamaya, um babilônio que o pai trouxera a Jerusalém durante uma peregrinação e lá permanecera. De todos eu era o mais<br />

criança.<br />

Durante as horas de estudo sentávamo-nos em tamboretes ou esteiras de bambu aos pés do nosso rabi, o qual<br />

ficava na chamada posição de Moisés; e era simbólica a nossa atitude – a olhar para ele com a reverência de quem olha para o<br />

céu. Nada pagávamos pela instrução mas pagávamos alguma coisa pelo uso da sala, com o produto do nosso trabalho ou com o<br />

que recebíamos de casa. Ocasionalmente, entretanto, tais pagamentos eram feitos pela damas piedosas de Jerusalém e em<br />

nosso caso particular por José de Arimatéia.<br />

Sentados aos pés do rabi cantávamos versos do Torah, estudávamos os Profetas e a Hagiografia – coisas a saber<br />

de cór. Contávamos as palavras e as letras da cada versículo. Repetíamos as leis e estatutos da vida secular e religiosa do povo<br />

judeu como a tradição no-las transmitiu desde os dias de Moisés: a regra da lavagem das mãos, dos talismãs, dos dízimos e<br />

oferendas, as leis dos sacrifícios, as leis da pureza e da impureza. Eram instruções definitivas, formuladas pelos antigos sábios<br />

e santificadas pela tradição. Como respeito a esta não havia dúvida possível; era o código do que o homem tinha a fazer em<br />

suas relações com a divindade. Já não se dava o mesmo com as relações entre os homens. Tais problemas, emergentes da<br />

infinita variedade dos contatos humanos, não cabiam em leis; impunham-lhes muita interpretação e adaptação. Leis e tradições<br />

existiam já de muito tempo, mas as cambiantes da aplicação nunca eram antecipadas. Também aqui tínhamos de aplicar o<br />

nosso bom senso e a nossa compreensão da responsabilidade humana, empregando ao mesmo tempo as regras do venerável<br />

Hillel, interpretativas do Torah. Esta última parte dos nossos estudos nos consumia muito tempo, visto como alcançava quase<br />

todas as coisas da vida; incluía o método de medir os campos e o estudo da anatomia humana e das regras de higiene, muito<br />

importante por causa da pureza e impureza; e ia até o campo do processo judicial, demandas e julgamento de homicidas e<br />

ladrões. Boa parte do nosso estudo era devotada à botânica e à zoologia, sendo a primeira de especial importância. Tínhamos<br />

de saber a fundo cem coisas sobre ervas e frutas e de estarmos habilitados a classificar toda a flora da nossa terra; porque havia<br />

leis que proibiam a cruza de tipos de planta e a produção de híbridos, e como técnicos seríamos chamados a dar conselhos em<br />

tais assuntos. Cumpria-nos impedir a hibridação das ricas variedades de pastos. A Astronomia também tomava muito do nosso<br />

tempo; tínhamos de saber o nome das estrelas e outros corpos celestes, conhecer o tempo em que apareciam, a função que<br />

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tinham na demarcação das estações e festas sagradas. Em suma, a preparação do Talmid Chacham, ou sábio, por meio do que<br />

era chamado o estudo do Torah, incluiu realmente todos os ramos dos conhecimentos.<br />

Parte dos nossos estudos, como já indiquei, seguia os canais da tradição oral; parte tomava como base os<br />

pergaminhos e papiros que com o maior cuidado os rabis iam transmitindo aos discípulos. No estudo da botânica nosso<br />

professor levava-nos pelos campos em redor da cidade, e muitas vezes passávamos a noite em abrigos nos vinhedos e mesmo a<br />

céu aberto. Nosso rabi nos indicava cada plantinha ou pasto e nos mostrava como distinguir entre os vários grupos e famílias.<br />

Também nos levava às lavouras para que aprendêssemos como se lavra o solo, como é o aramento, a semeadura, a colheita, a<br />

irrigação. Levava-nos ainda aos vinhedos e olivais, para que aprendêssemos como o azeite comum é extraído por meio de<br />

grandes mós tiradas por jumentos e como os óleos mais preciosos, destinados à cosmética ou à medicina, são cuidadosamente<br />

moídos em moinhos manuais de pedras polidas. E não era tudo. Não se omitia nem uma arte ou ofício. No curso dos nossos<br />

estudos íamos ter com os tecelões, os fiandeiros, os tanoeiros, os tintureiros, os oleiros. O mais desagradável era o contato com<br />

os trabalhadores dos teares, porque não gozam de boa reputação os que fazem coisas para as mulheres.<br />

Cumpria-nos ser muito cauteloso no trato dos que tinham comércio com as mulheres. Havia um provérbio<br />

corrente: “Mais seguro e melhor correr atrás dum leão que duma mulher”. Vinha daí que os artífices que lidavam com<br />

mulheres se recrutavam nos mais baixos níveis da população, entre os moços mais grosseiros e vulgares – turbulentos,<br />

ignorantes e incontroláveis. Mas desde que não podíamos omitir um só estudo, tínhamos de freqüentar até os cabeleireiros, já<br />

que os sábios têm que dar parecer sobre toda sorte de ocupações. E corríamos outros perigos além dos morais; no estudo das<br />

doenças éramos obrigados a afundar na imundície do vale do Hinnom, onde se encurralavam os leprosos. Tínhamos de<br />

conhecer não só a variedade das ervas como suas propriedades curativas. Ensinavam-nos como colhe-las, como moe-las e com<br />

elas preparar ungüentos. Porque podíamos ser chamados tanto para dar parecer sobre questões ritualísticas ou relacionadas com<br />

a lei, como para exorcismar maus espíritos, prevenir mau olhado, curar a melancolia e até praticar mágicas.<br />

Todos os ramos do conhecimento se enfeixavam sob o titulo geral da Halachah, ou lei, regulação, regra.<br />

Constituíam metade da nossa educação. A outra metade, a Ágada, nos tomava igual tempo e atenção – era a que contribuía<br />

para o enobrecimento moral, espiritual e cultural do homem. A tarefa para que o rabi nos preparava não se resumia na<br />

transformação do homem num ser inteligente; tinha propósito mais alto, qual o de aproxima-lo do espírito divino, inocular-lhe<br />

impulsos virtuosos, faze-lo um vassalo de Deus. Para este fim ensinava-nos o rabi inúmeras histórias, casos e lendas sobre a<br />

eterna luta da humanidade para alçar-se de nível, pairar além da carne e suas exigências. A compaixão, o amor do homem para<br />

com os homens, a reverência de Deus, a prossecução do bem, a antecipação da pureza da vida celestial, eis os temas da Ágada.<br />

Mas acima de tudo era-nos inculcada a vinda de um Libertador. Ele, o Messias, estava para vir não só com o fim de restaurar a<br />

liberdade dos oprimidos, recompensar o justo, punir o culpado, destruir Edon e a casa de Hanan e todos os maus governos,<br />

como ainda unir todos os povos da terra, introduzir uma universal aliança com Deus e exaltar a vida a níveis mais altos e<br />

místicos em que só a bondade reina, como profetizaram os profetas. Neste passo o nosso rabi nos recitou historias do passado,<br />

interpretou versículos das Escrituras e explanou falas dos profetas. Esse tipo de ensino, porém, não era só para os seus<br />

discípulos, pois que ele prelecionava a respeito, cada Sábado ou dia de festa, para toda a congregação judaica. E nas noites de<br />

inverno reunia os Companheiros ou os espíritos eleitos, para a instrução secreta, consistente no estudo da ciência esotérica<br />

sobre a vinda do Messias.<br />

Os membros deste círculo reservado provinham de todos os níveis sociais, sem distinção de riqueza ou posição.<br />

Uma vez admitidos, todos se tornavam iguais, o que os tornava uma família única sob o paternal governo do rabi. Conheci<br />

muito bem quatro membros da Companhia e deles falarei. Um era o rico e distinto José de Arimatéia; outro, o aguadeiro Hillel;<br />

outro, o homem Judas Ish-Kiriot e o quarto, Simão Cirene, pai dos meus amigos. Mas antes de descrever estes homens tenho<br />

de falar dos modos e da pessoa do meu rabi, descrição que seria impossível sem referência aos professores que lhe<br />

transmitiram o que ele transmitia a nós.<br />

O mestre do meu rabi fora o venerável Hillel, mas isto é um modo de dizer; Nicodemo o filho de Nicodemo era<br />

discípulo de Hillel no sentido de ter-se educado no espírito desse grande mestre de Israel, como aliás todos os sábios e rabis<br />

fariseus. Mas meu rabi levara a grau fora do comum o seu amor e a sua admiração pelo pai da interpretação farisaica do Torah.<br />

Havia coletado com o maior capricho todas as regulações por Hillel formuladas em vida, todas as suas interpretações das<br />

Escrituras, e se senhoreara de seus métodos de estudo; e nunca deixava de humildemente mencionar e com a maior reverência<br />

o nome do velho sábio, quando a ele se referia. Muitas lendas ainda circulavam naquela tempo sobre Hillel, e nosso rabi as<br />

repetia para que em nossos corações o amor por aquele sábio fosse como era no seu. Durante essas narrativas que doces eram<br />

as suas palavras e como brilhavam seus olhos! Ele dizia-nos das maravilhosas virtudes de Hillel, de sua infinita paciência com<br />

as criaturas humanas e das provações que os homens lhe impunham com os atentados à sua bondade. O rabi Nicodemo nunca<br />

se cansava de descrever a piedade e humildade de Hillel. Quando queria fortalecer-nos no amor ao estudo, punha à nossa frente<br />

aquela imagem e insistia nas privações por que passara no esforço de adquirir a palavra de Deus. Mais de uma vez nos referiu a<br />

um incidente da vida de Hillel revelador de sua tremenda vontade e saber. Durante certo período de vida caiu Hillel em tal<br />

penúria que não dispunha da moeda de cobre necessária para transpor a porta da Casa de Ensino – e ele então trepava ao<br />

telhado e por um buraquinho ouvia as preleções de Shemaya e Abtalion. E continuou nessa prática até que, inverno já bem a<br />

dentro, foi descoberto quase morto na neve do telhado.<br />

Embora o rabi Nicodemo excedesse a todos os outros nessa reverência a Hillel, não havia quem não exaltasse a<br />

memória do velho sábio. Basta dizer que se tornara regra da boa interpretação firmar qualquer ponto da divergência numa<br />

citação de Hillel. Tão grande era o seu nome que muitos sábios planejavam fundar a escola dinástica de Hillel, para contrapeso<br />

da dominação dos Sumos Sacerdotes, coisa que muita inquietação trouxe à casa sacerdotal dominante. Como se sabe, a<br />

sabedoria dos chefes fariseus sempre foi um espinho para os sacerdotes; e perturbava-os a idéia de que se a escola de Hillel<br />

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surgisse, poderia tornar-se o núcleo duma poderosa oposição. Porque os fariseus excederam os sacerdotes não só em<br />

conhecimentos gerais, como no das leis do serviço do Templo. E o Sumo Sacerdote imediatamente viu um perigo para sua<br />

dinastia no plano da escola de Hillel. Mas nenhum passo prático foi dado para a concretização da idéia. Limitaram-se a prestar<br />

honras quase reais a um neto de Hillel, de nome Raban Gamaliel; em nenhuma reunião de sábios, por mais distintos que<br />

fossem, deixavam de por-se em pé quando ele entrava – e a ele cabia o lugar de honra. Apesar disso a autoridade para dizer a<br />

última palavra sobre uma interpretação hilelita da lei fora outorgada do discípulo de Hillel, Jochanan ben Zakkai ao qual<br />

igualmente deram o alto título de Raban. Foi considerado o guardião espiritual da tradição hilelita. E tal era o poder do nome<br />

de Hillel, que deu a Jochanan ben Zakkai um ilustre quase igual ao seu próprio.<br />

Comparativamente moço para aquele cargo, esse Jochanan, estava na meia idade, o que tornava claro que devia<br />

ter entrado como discípulo do grande mestre muito criança ainda; e isto lhe acrescia a reputação, porque embora houvesse em<br />

Jerusalém muitos mestres mais velhos, nenhum tinha mais fama. E esses sábios mais velhos, mesmo quando tidos como de<br />

larga ciência, tinham Jochanan ben Zakkai como o seu chefe espiritual e proclamavam que suas palavras vinham de Hillel. E<br />

tal era a sua posição que mesmo o Sanhedrim, dominado pelos saduceus, não ignorava as suas manifestações, ainda em<br />

campos de sua especial autoridade, como o serviço do Templo.<br />

Frequentemente vi Jochanan ben Zakkai rodeado de discípulos e seguidores, de rumo às sessões do Sanhedrim.<br />

Tinha o costume de pregar a céu aberto nos pátios do Templo (eximindo-se aqui de interpretar as regras do serviço) e também<br />

pregava a inúmeros ouvintes da Grande Sinagoga e em outras, e em escolas, sobretudo nos dias de festa, quando a cidade se<br />

enchia de peregrinos; também o ouvi pregar sob as arcadas dos pátios, com um grande mar de cabeças atentas em redor.<br />

Em muitas ocasiões seus sermões despertaram a cólera dos funcionários do Templo; e mais duma vez se<br />

tornaram igualmente desagradáveis aos Zelotes – aqueles partidários da rebelião contra Roma. Os seguidores de Bar Abba<br />

puseram-se contra ele. Quase o proclamaram traidor; e se não fosse o escudo da glória de seu mestre Hillel, tê-lo-iam expulso<br />

dos pátios do Templo. Porque em todos os seus sermões Jochanan ben Zakkai mostrava-se contrário à política de Bar Abba.<br />

Lembro-me com clareza dum desses sermões. Eu estava com o meu rabi e os mais colegas no pátio do Templo,<br />

porque Nicodemo queria que, como estudo, ouvíssemos Jochanan ben Zakkai. Tenho duas razões para lembrar-me desse<br />

passo: uma, o espanto que as palavras de Jochanan despertaram em mim; outra, a desordem que ocorreu. Entre os ouvintes<br />

houve quem gritasse que o rabi estava profanando com aquele sermão a área do Templo. Recordo que um ou dois barabitas<br />

semi-nus tentaram falar em competição com Jochanan, e teriam levado o povo ao tumulto se não fosse a resistência dos<br />

discípulos do rabi.<br />

Nessa ocasião Jochanan ben Zakkai pregava sentado no último degrau duma porta. A poderosa barba grisalha<br />

caia-lhe sobre o peito e a faixa branca, signo de sua posição, estava atada à sua cabeça. Os discípulos sentavam-se no chão<br />

diante dele. Era homem de tanta imponência que não precisava estar sentado acima dos outros para domina-los. O tema do<br />

sermão naquele dia era este pensamento: “Não é o lugar que exalta o homem; é o homem que glorifica e exalta o lugar”. A<br />

interpretação que ele deu foi a seguinte. A terra é o escabelo de Deus, porisso nem este ponto aqui, nem aquele lá pode ser<br />

chamado o centro da terra. A vida do povo judeu não dependia dum certo lugar, nem estava ligada a um certo tempo. O povo<br />

judeu podia viver em todos os lugares, em todos os tempos, em meio de quaisquer circunstâncias. Porque, continuava<br />

Jochanan, a vida peculiar dos judeus não está atada a posses materiais, como no caso dos outros povos, mas é puro espírito. A<br />

pátria judaica não se contem dentro de limites rígidos de certas áreas, de modo a perecer se o povo for expelido dessa área –<br />

como sucede com os outros povos. A pátria dos judeus é ilimitada, isso é, sem limites, porque não repousa na terra e sim no<br />

céu.<br />

Nesse ponto gritos irromperam da assistência: “Queremos ser iguais aos outros povos. Não queremos pátria no<br />

céu, mas aqui na terra”. Não está escrito: “Os céus são do Senhor e a terra pertence aos filhos do homem?”<br />

Uma voz clamava mais alto que as outras: “Essas palavras furam meus olhos como espinhos e penetram em<br />

meus ouvidos como serpentes. Quem pode ouvi-las? Deus prometeu-nos uma terra fluente de leite e mel aqui na terra, não no<br />

céu”.<br />

prosseguiu.<br />

− Silêncio, pecadores! Quem se atreve a ofender os céus interrompendo o rabi?<br />

− O rabi está com razão! O Misericordioso deseja o coração do homem!<br />

Pelo número e peso das vozes os discípulos do rabi silenciaram os “pecadores”. A calma voltou e Jochanan<br />

− Há duas Jerusalém, a Grande e a Pequena. Esta consiste em casas e vinhedos onde moram os ricos e ruas em<br />

que vivem os pobres. Muito poucos têm a sua parte na Pequena Jerusalém, mas na Grande Jerusalém todos têm parte. Porque a<br />

Grande Jerusalém não consiste em casas, vinhedos e olivais – consiste na palavra e sabedoria de Deus. Os que seguem os<br />

caminhos de Deus fazem parte desta pátria, mas os que desprezam a palavra de Deus, mesmo que morem no coração de<br />

Jerusalém, não pertencem à pátria da fé. E, portanto, não tem significação a resistência contra o poder de fora que nos domina.<br />

Porque nossa verdadeira pátria, que é a doutrina de Deus, não pode ser dominada por potência estrangeira nenhuma. Enquanto<br />

o estrangeiro invasor não nos invade a nossa pátria espiritual, ou a fé judaica, não há razão para que a ele nos oponhamos, e<br />

tentemos lançar de nós o jugo; em vez de luta, cumpre-nos pacientemente esperar que a vontade de Deus se faça e Ele nos<br />

mande o Libertador. E até lá o jugo da escravidão deve ser carregado com paciência, amor e humildade.<br />

Isto era mais do que os ardentes fanáticos da assistência podiam suportar. Olhos em fogo despediram setas de<br />

ódio contra o rabi, e em todos os rostos estampavam-se a indignação. Era ao tempo, lembro-me bem, da Festa das Barracas e a<br />

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estação acordava no povo os instintos de liberdade e fazia vir à memória as façanhas dos Macabeus. Aqueles Zelotes ali na<br />

assistência tinham vindo do deserto para estimular o povo de Jerusalém à ação. Era o tempo mais alegre e tumultuoso do ano;<br />

os habitantes de Jerusalém saciavam-se de frutas, embriagavam-se de alegria e vinho, exaltados pela beleza da cidade. As<br />

rigorosas regras de decoro afrouxavam-se, e a severidade da divisão entre os sexos se mitigava por algum tempo. Cada casa em<br />

Jerusalém abarrotava de visitantes. Bebia-se na mesma taça, dormia-se na mesma esteira. Era o momento, em suma, do<br />

lançamento das idéias novas – e os partidários de Bar Abba aproveitavam-se e pregavam a rebelião. Mas os romanos viviam<br />

atentos. A fiscalização das ruas fora dobrada; fez-se a mistura de elementos romanos nas tropas sírias e askelonistas; todo o<br />

distrito do palácio de Herodes à fortaleza Antônia fora cercado e as ruas que iam ter ao Templo estavam guardadas por tropas.<br />

Aquele sermão de ben Zakkai não tinha apenas um propósito geral. Tendia também a acalmar o público, não havendo dúvida<br />

de que ele havia escolhido aquele tema depois da consulta com os outros sábios de Jerusalém.<br />

A despeito dos esforços dos Zelotes, o dia correu calmo, e eu mais tarde ouvi Jochanan ben Zakkai em sermões<br />

bem mais extremados que aquele. Ouvi-o negar não só a santidade da terra mais também – em certo sentido – a o próprio<br />

Templo, que ele contestou fosse o centro da nossa vida ou o escabelo de Deus. Disse e voltou atrás deste modo: “Certo que a<br />

terra de Israel é sagrada, mas por que? Unicamente porque a santidade da lei nela repousa enquanto nela vivem os judeus e<br />

observam a lei. Não se trata da santidade idólatra que outros povos outorgaram ao óleo, ao solo, às pedras, elementos que eles<br />

têm como os essenciais de suas vidas e por amor dos quais cometem homicídios e destruem povos. Com essa espécie de<br />

santidade a terra de Israel não tem comércio. E estas verdades tanto pertencem ao Templo como à terra. Certo que é sagrado o<br />

lugar onde Abraão preparou o seu filho Isaac para o sacrifício e onde o Senhor do mundo permitiu que Sua glória repousasse.<br />

Mas a glória do Shekhinah repousa igualmente em qualquer reunião de dez judeus que invoquem o Seu nome. Se o Sol, que é<br />

apenas uma das criações de Deus, brilha em todas as terras e sobre todos os seres, então Deus está em sua gloria por toda parte.<br />

Não haverá picos de montanhas, nem covancas do seio da terra onde Ele não esteja. Nossa mente não pode conceder o mínimo<br />

pontinho privado da Sua eterna Presença. Ele está em toda parte como diz a Escritura: “E em qualquer parte que seja tu<br />

invocarás o meu nome e eu virei abençoar-te”.<br />

Meu rabi Nicodemo, que era um apaixonado admirador de Jochanan ben Zakkai, pelo fato de ter sido aluno do<br />

grande Hillel, admirava igualmente a sua doutrina. Não havia entre os dois, desencontro de idéias. Nicodemo considerava-se<br />

seguidor ou discípulo de Zakkai, o que não quer dizer que houvesse adquirido deste toda a sua sabedoria. Não havia entre<br />

ambos muita diferença de idade, como também não havia muito desnível de cultura. Mas apesar disso meu rabi vinha sentar-se<br />

aos pés de Jochanan e se conduzia como se realmente fosse um dos seus discípulos. E como nosso rabi se chamava a si mesmo<br />

“discípulo de Jochanan ben Zakkai”, nós fazíamos o mesmo, porque tudo que um rabi é, os discípulos o são também.<br />

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Na casa de estudos do rabi Nicodemo havia um banco de pedra junto a uma das paredes. Era o “banco do<br />

Messias”, assim chamado porque nele se sentava o rabi quando pregava sobre o Messias.<br />

Entre os mais atentos ouvintes figurava José de Arimatéia, e todos se admiravam de que um homem de tanta<br />

riqueza e cultura helenística, que freqüentara a companhia de altos funcionários romanos e os círculos dos filósofos gregos,<br />

fosse elemento da Companhia formada em torno dum simples rabi fariseu e se submetesse aos rigores de disciplina ali<br />

impostos.<br />

A verdade é que sob o seu exterior semi-pagão, José de Arimatéia sempre fora um desses homens que procuram<br />

Deus. Antes de admitido na Companhia vinha, como um estranho, e sentava-se perto da porta da sinagoga, entre os pobres,<br />

para ouvir os sermões de Nicodemo. Lentamente foi entrando para o grupo dos Messianistas, e por fim se tornou apaixonado<br />

adepto do meu rabi. Admitido na Companhia, passou a ser o principal sustentáculo da escola. Vinha e sentava-se entre nós<br />

enquanto o rabi ensinava, e certa ocasião fomos todos para sua casa, porque lá se observavam todas as leis da pureza e da<br />

impureza, de modo que o mais piedoso judeu podia sem receio freqüenta-la. A residência de José de Arimatéia tornara-se, na<br />

frase dos os sábios, o ponto de reunião ou a câmara de conselho dos cultos. Mas os gregos e romanos eram tão freqüentes lá<br />

como os aristocratas judeus e os rabis farisaicos, de modo que os judeus tinham ensejo de estabelecer contato com a sabedoria<br />

de Javan. E ainda havia outros contatos, porque filósofos gregos não eram nenhuma raridade em Jerusalém. Alguns ocupavam<br />

modestos cargos na administração; outros tinham vindo como escravos e depois de libertos foram servir na residência da<br />

aristocracia judaica. Era costume dos judeus do tempo de Herodes o Grande adquirir escravos gregos para boa cultura nos<br />

mercados de Sidon e Askelon, para a eles confiar a educação dos filhos. Na maioria dos casos os judeus forravam os escravos<br />

adquiridos, afim de escaparem às severas leis judaicas concernentes aos escravos estrangeiros. Mas os libertos ficavam a<br />

serviço dos seus ex-senhores.<br />

O tom intelectual nas casas aristocráticas de Jerusalém era dado por esses gregos libertos. Juntamente com os<br />

funcionários romanos e os saduceus constituíam eles um grupo bastante grande para manter as instituições helenísticas<br />

fundadas por Herodes, como o teatro, as corridas e certos jogos. Mas a amarga hostilidade dos rabis para com a cultura pagã<br />

não transparecia nas ruas de Jerusalém. Confinava-se aos lares ricos e lá penetrara com fundas raízes, e não só entre os<br />

saduceus como entre os fariseus. Escusa dizer que os romanos eram entusiastas do movimento helenizante. Dentro da Grécia<br />

ainda subsistia o velho ódio contra o conquistador, mas fora havia uma aliança; os gregos consideravam os romanos como<br />

protetores de sua cultura, e os romanos faziam uso dos atrativos da cultura grega para captar a boa vontade dos povos<br />

dominados. E desse modo gregos e romanos caminhavam de mãos dadas. Era uma poderosa aliança. Todas as medidas<br />

tomadas pelos nossos rabis para deter o avanço dessa desmoralização mostravam-se inúteis; o veneno espalhava-se por<br />

milhares de canais secretos rumo ao coração da vida judaica. Afetava a conduta diária dos judeus, manifestava-se nas<br />

refeições, no vestuário, nos penteados, nos enfeites – e havia algo mais profundo; a atitude diante do corpo. Para muitos judeus<br />

o corpo já não era apenas o vaso da alma, sim um tesouro em si, um presente de Deus ao homem. E a influência grega se fazia<br />

sentir até na língua: o dialeto aramaico de Jerusalém cada vez mais se enchia de termos e expressões gregas.<br />

Mas não se julgue que esta influência fosse unilateral. Observando de perto a honestidade da vida judaica e pela<br />

primeira vez atentando na fé judaica, centralizada em torno dum Deus único e vivo, muitos gregos se sentiram influenciados.<br />

Comoveram-se com a expressão lírica do desejo da vida do além e meditaram sobre a esperança universal corporificada na<br />

idéia do Messias. A idéia grega da Fatalidade sentia-se perturbada e pensamentos novos brotavam oriundos daquela<br />

incomensurável devoção dos judeus ao seu Deus, da voluntária aceitação duma rigorosa disciplina, da trágica luta contra o<br />

temporal. Era como se uma gélida estatua grega saísse da sua insensibilidade de mármore e, animada de espírito, perdesse a<br />

fixidez de linhas da harmonia original. Havia algo extraordinário na justaposição do grego ao judeu, dois mundos hostis que<br />

intimamente se atraiam. Eram como metades complementares duma coisa una – metades que sempre se tiveram como inimigas<br />

e agora, por influência do encontro naquele solo da Judéia, estavam, no meio da luta percebendo a unidade essencial.<br />

Esse contato entre os dois mundos revelava-se da mais harmoniosa forma na casa de José de Arimatéia.<br />

A terra natal desse homem, como seu nome indica, era a aldeia de Ramat em Gilead. José provinha de velha<br />

estirpe. Antígono Arimatéia, seu pai, fora contemporâneo de Herodes, e com ele começou a helenização da família, mais por<br />

política do que por inclinação pessoal. Afim de salvar suas terras e posses das unhas dum rei tão rapace, apresentou-se como<br />

um grande partidário da política de Herodes, e procurou até sobreexcede-lo no entusiasmo pela cultura pagã. Mas a tradição<br />

estava no ar, e seu filho não cresceu completamente ignorante das coisas judaicas; e além do rabi, ainda havia na casa Felipe de<br />

Gederah, o preceptor grego. Em companhia de Felipe viajou o rapaz por Alexandria, Gederah, Damasco e ainda as mais<br />

remotas províncias gregas. Passou algum tempo em Roma, pois Antígono desejava que o filho continuasse naquele pé de<br />

amizade com a casa real que ele havia estabelecido, e preparou-lhe o caminho por meio de caros presentes e também por meio<br />

da educação do rapaz. Em Roma, onde estavam sendo educados os filhos de Herodes, José vivia constantemente na companhia<br />

deles; com eles corria no circo e com eles lutava no ginásio. Mas essa parte dos planos de Antígono breve mudou de forma. Os<br />

triunfos sociais dos filhos de Herodes em Roma, despertaram a inveja no velho rei, e Antígono foi bastante hábil para a tempo<br />

retirar o seu filho da zona perigosa. Chamou-o a Ramat, para pô-lo fora do alcance da tempestade que ia estalar. José ficou<br />

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algum tempo em sua aldeia natal; depois casou-se com opulenta fidalga de Alexandria e passou a ocupar-se com a<br />

administração das propriedades paternas.<br />

Quando faleceu Herodes, sentiu-se José muito tentado a mergulhar na vida política de Jerusalém e a fazer<br />

carreira. Mas resistiu, conquanto na posse de tudo quanto fosse necessário para lhe assegurar o triunfo: tato, temperamento<br />

bem equilibrado e acima de tudo a profunda calma interior sem a qual seria impossível navegar com bom norte na luta que os<br />

fariseus conduziam contra Arquelau, o sucessor de Herodes, antes da ocupação romana da Judéia. O treino helenístico de José,<br />

seus altos dons culturais, sua riqueza e generosidade deram-lhe fácil acesso ao palácio do Procurador. Mas por esse tempo já<br />

andava ele conquistado pela fé judaica; observava todas as minúcias do ritual farisaico, freqüentava a companhia dos sábios de<br />

Jerusalém e sustentava escolas e sinagogas. E acima de tudo resistia às tentações políticas, pois recusara-se a apoiar os planos<br />

da casa de Hanan, que os chefes fariseus consideravam a herdeira de tudo quanto havia de pior e mais brutal no governo de<br />

Herodes. Essa atitude de José trouxe-lhe a gratidão e o amor dos rabis.<br />

Suas amistosas relações com as duas forças opostas, inevitavelmente o punham como oficioso e reconhecido<br />

mediador entre os fariseus e os romanos. Os fariseus sentiam-se extremamente felizes de se utilizarem de seus préstimos<br />

sempre que tinham de procurar o governo, de modo a não dar na vista de seus inimigos, os sacerdotes que eram os<br />

representantes oficiais dos judeus. E outras vezes José obtinha para os fariseus privilégios e concessões que o velho Hanan não<br />

se achara habilitado a pleitear.<br />

Até os mais severos entre os fariseus – os que consideravam pecaminosa a simples entrada em casa dum grego<br />

ou romano – fechavam os olhos à indulgência de José nesse ponto. Mas José admitia essa pecaminosidade e nunca deixava de<br />

purificar-se com sacrifícios no Templo. Os anos da sua mocidade na corte do odiado Herodes estavam esquecidos, e conquanto<br />

não fosse erudito em matérias judaicas, os fariseus o admitiram no Sanhedrim.<br />

A mal avisada luta entre os mundos judeu e grego encontrou eco no coração de José. Sua estrita aderência à<br />

tradição do povo judaico não lhe havia de nenhum modo destruído a inclinação para o brilhante mundo dos gentios. E<br />

secretamente lavrava dentro dele a luta entre as duas tendências. José de Arimatéia sonhava a conciliação.<br />

Sua meninice ele a passara num mundo impregnado de cultura helenista. A pequena cidade de Ramat, em<br />

Gilead, era rodeada de colônias gregas. A muito pouca distância ficava Decápolis, um grupo de dez cidades gregas, ponta de<br />

lança do paganismo rumo ao coração do povo judeu. Ali naquele conjunto de cidades, tão perto, reinava o espírito da eterna<br />

mocidade, da alegria e do entusiasmo contaminador à força de sedução – coisas espiritualmente fatais aos olhos dos chefes<br />

judeus. Aquele mágico apelo da felicidade na terra nunca deixava de perturbar a gravidade da vida judaica. A igual distância,<br />

um pouco mais ao sul, ficava a cidade de Bet Shan, com suas corridas atléticas, seus ginásios e os templos de Ashtarot. Nas<br />

fímbrias do Genesaré, no alto do Gederah, o templo de Zêus dominava a região. A tumultuosa beleza de Gederah igualmente<br />

punha em assédio a vida judaica pelo outro lado. E não era apenas o grupo da Decápolis que ameaçava varrer com a onda<br />

helenística os diques erguidos para a perpetuação da fé judaica. No caso de José de Arimatéia, entretanto, o perigo estava<br />

menos na superficial atração exercida pelos gregos do que nos filósofos de Gederah. Era esta cidade um centro de alegria e<br />

pecado, mas também de pensamento sério. De moto-próprio, ou levado pelo seu professor Felipe, José de Arimatéia nunca<br />

deixava de ir ao fórum onde, entre os pilares dos templos, as escolas de Filodemo o Epicurista e Teodo o Retórico – este ali<br />

nascido e mais tarde em Roma o professor de Tibério – disputavam entre si e com os adeptos de Manifro o Satírico. Muito pior<br />

para o moço, do ponto de vista judeu, era o preceptor grego que seu pai lhe escolhera e que José não abandonou. Nos últimos<br />

tempos seguiu o uso geral, que era fazer do professor o administrador dos bens da família.<br />

Eu freqüentava amiúde a casa de José de Arimatéia. Era opinião de meu rabi que devíamos atender aos seus<br />

debates com os filósofos gregos, de modo a mais tarde lhes enfrentarmos os ardis. Às vezes toda a Companhia se juntava na<br />

casa de José e até nós éramos admitidos nas sessões.<br />

A vivenda ficava nos novos bairros do lado da fortaleza Antônia, em Bet Zeida. Aquela zona fora empolgada<br />

pela gente aristocrata por permitir a construção de jardins e piscinas a não grande distância da cidade. O estilo da residência era<br />

grego, segundo o padrão que se generalizara entre os ricos desde o tempo de Herodes. Em vez das velhas paredes pesadas,<br />

severas, maciças e mal acolhedoras, próprias das antigas construções, como, por exemplo, o palácio de Herodes, as novas<br />

construções eram leves, pareciam boiar sobre as colunas; esse o estilo que Herodes adotou para o seu fórum em Nablus. A<br />

arquitetura herodiana, como é chamada, caracterizava-se pela presença de esbeltas torres pontudas, que se erguiam acima do<br />

telhado chato; pelos balcões tão ampliadores da fachada das casas e por um duplo renque de colunas jônicas sombreadoras da<br />

entrada. Mas um dos imprevistos resultados desse estilo foi que o resguardo das colunas passou a ser ponto de ajuntamento de<br />

indigentes, meros transeuntes ou peregrinos que ali acampavam e dormiam. Os moradores não conseguiam libertar-se de<br />

semelhante assédio; e incorreriam no ódio popular, se tentassem expulsar dali os mendigos e peregrinos. Numa cidade de<br />

muito sol e pouca sombra, como Jerusalém, eram um refúgio providencial. Como todas as casas gregas a de José tinha dois<br />

andares, dormitórios em cima, biblioteca e o mais em baixo. Um peristilo rodeava o jardim, dando boa sombra nas horas de<br />

sol. Em todos os pontos o jardim, com seus canteiros e ciprestes, lembrava os jardins dos pagãos gregos, exceto num pormenor<br />

– ausência de estatuas e imagens de deuses.<br />

As discussões a que assisti tinham lugar, durante o dia, à sombra do peristilo e à noite na sala de jantar ou na<br />

biblioteca. Os disputantes reclinavam-se em canapés.<br />

Conheci José de Arimatéia já longe da mocidade, com cinqüenta anos passados, mas ainda em pleno vigor<br />

corporal. Pernas e braços rijos e musculosos; porte ereto, firme, como entalhado num tronco de cedro. Mas leve e elástico, ágil,<br />

como todos os homens com muito exercício físico nos anos verdes. Sua cabeça ainda era moça, apesar dos muitos fios brancos<br />

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nos cabelos crespos e na barba aparada: e notei que em matéria de barba não adotava o pleno crescimento, como faziam os<br />

pietistas, nem recorria à navalha como os romanos. Mantinha-se num intermédio. Era estranho que sua cabeça desse tal<br />

impressão de vigor moço, porque nas faces daquele homem moravam as marcas da inquietude. Apenas o nariz romano e o<br />

queixo forte estavam livres de rugas. Quando em companhia de filósofos, José mantinha-se todo ouvidos, e tomava os debates<br />

mais a sério que os próprios filósofos; seu olhar revia a concentração do espírito. Ali sentado qual imagem da preocupação<br />

espiritual, dir-se-ia que não estava atendendo a um debate de temas distantes e sim a coisas de imediata aplicação prática, de<br />

modo que as conclusões fossem para o seu destino como uma sentença de juiz. E de certo modo isso era compreensível, porque<br />

a luta prosseguia dentro dele e a argumentação ora o arrastava para um lado, ora para outro, para a conquista do seu eu. E para<br />

mais ainda, porque aquele homem admitia que a disputa sobre sua alma individual seguia de par com a da alma de seu povo –<br />

ou, mesmo, do mundo. Meu rabi era como um serafim armado de espada ígnea no harmonioso paraíso terreno que o filósofo<br />

grego Felipe tinha criado para José. A beleza e graça que dele defluíam eram para Felipe o maior dos bens concebíveis; a alma<br />

do homem não passava duma nota na universal harmonia dos deuses. Mas a alma não era coisa que coubesse a todos os<br />

homens e sim privilégio dos galardoados com o dom duma alta inteligência. A alma vinha dar equilíbrio às paixões do homem,<br />

acalmar os ferozes ímpetos do desejo de bafejar a sua conduta com a graça dos deuses. Porisso o homem prudente seguia o<br />

áureo meio termo e afinava os seus desejos e impulsos com a nobreza da alma.<br />

O extraordinário era que esse apóstolo do belo, esse homem que via na beleza terrena a essência da divindade,<br />

pudesse ter sido tratado com tanta crueldade pelos poderes que ele adorava. Felipe de Gederah era de fato um aleijado;<br />

corcunda, com a cabeça entalada entre duas corcovas; e essa deformação fazia que a sua túnica grega parecesse mais curta<br />

ainda e deixasse à mostra as pernas tortas e peludas. Poderia disfarçar a disformidade do corpo com uma hábil disposição das<br />

pregas duma toga, mas seria criar uma contradição com a sua filosofia da vida; os deuses tinham-lhe dado uma inclinação de<br />

cabeça para um lado e para baixo, de modo que sua postura natural compelia-o a ter os olhos no chão em vez de nas estrelas.<br />

Não sei se aqueles defeitos eram de nascença ou adquiridos. Inclino-me a admitir a última hipótese, pois, se<br />

sempre houvesse sido assim, como te-lo-iam escolhido para preceptor duma criança rica? Aquelas deficiências corporais eram<br />

compensadas pela vivacidade do espírito, que muitas vezes humilhava os de corpo bem formado e que podiam erguer os olhos<br />

para as estrelas. Talvez fossem os sofrimentos corporais que o impeliram a concentrar-se na adoração do deus da perfeição e da<br />

plenitude; e com tal força e brilho ele o fazia que a repulsividade corporal como que se apagava.<br />

De homens sei, perfeitos de corpo mas tão aleijados de alma que os aleijões internos se refletem no exterior.<br />

Outros são o contrário; têm a carne cruelmente maltratada pelo destino, mas trazem no exterior os reflexos da harmonia e<br />

beleza internas. E às vezes até acontece que a intensidade da harmonia interna converte o defeito em qualidade. O corpo de<br />

Felipe era a plena contradição de sua filosofia pagã. Vejo diante de mim aquele corpo fanado, magro – um corpo de criança –<br />

as pernas finas e peludas e as corcovas a se erguerem para o céu, em vez da cabeça. Mas também vejo a sua agilidade e,<br />

estranho como o pareça, o ritmo e a harmonia de seus movimentos, semeadores de tranqüilidade em redor, quando erguia a<br />

cabeça e olhava em torno, uma aura de paz irradiava, de efeito imediato para quem estivesse no campo de sua irradiação. Tinha<br />

os olhos escuros e belos, e deles emanava uma luz suave, bondosa, quase escusatória. Seu crânio era despido de cabelos no<br />

alto, só os tendo, e ralos, em redor, formando como que uma coroa; era como se a natureza quisesse simbolizar a magnificente<br />

vitória por ele obtida sobre as enfermidades da carne.<br />

Diante de Felipe eu costumava pensar: “Que características internas, que dons específicos, dão nobrezas à sua<br />

pessoa?” E eu concluía que era o leve toque de tristeza pairante em suas feições e irradiante de seu todo. Era um elemento que<br />

afetava todos os que com ele se punham em contato, e seu poder residia no curioso paradoxo de suas origens. Porque Felipe<br />

não era atormentado por nenhuma tristeza relativa à sua sina pessoal ou às privações que lhe couberam. Sua tristeza provinha<br />

da sabedoria e profunda compreensão de tudo. Provinha, digamos, da sua sabedoria, que não era a do tipo ardente que<br />

transluzia no rosto do meu rabi – mas a do desespero e do supremo desnorteamento. Aqueles olhos haviam visto tudo,<br />

penetrado por toda parte e só tinham encontrado trevas e vácuo.<br />

Divergentes como eram os caminhos seguidos pelos dois homens, Felipe o Grego e Nicodemo ben Nicodemo o<br />

Judeu encontravam-se num ponto: a mesma ânsia de saber. Dia e noite estudavam e meditavam, no tremendo esforço de<br />

descobrir os segredos últimos do ser. Mas havia uma diferença e grande: em sua incessante investigação, meu rabi tinha a<br />

senda iluminada pela fé, ao passo que Felipe apalpava no escuro, e não se sentia em terra firme, mas na mobilidade do mar,<br />

como o navio arrastado pelos tufões. Ele não podia escolher a rota em que pôr a nau, não podia sequer estar certo da existência<br />

dum porto a alcançar. Nisso também tinha raízes a sua tristeza, e havia uma curiosa semelhança na vida prática dos dois<br />

homens. Felipe era como um puro sacrifício posto sobre o altar do conhecimento. Nele nenhum outro desejo senão o da<br />

sabedoria. Desprezava os prazeres terrenos, subordinava o corpo ao espírito – e detestava tudo quanto tendesse a desvia-lo<br />

desse caminho, como a mulher, por exemplo. Recusara a casar-se, embora de bom grado José pudesse dar-lhe uma das suas<br />

escravas e por meio dela adviesse a Felipe filhos. Mas Felipe fugia da vida, de suas peias e impurezas; sua alma dera-se em<br />

eterna virgindade à sabedoria e à prossecução da verdade. E que poderia lembrar melhor o meu rabi? Não admirava, pois, que<br />

embora as conclusões dos dois homens se afastassem entre si, como se afastam os horizontes do Oriente e do Ocidente, se<br />

sentissem tão presos pelos laços da irmandade e em conseqüência tanto se procurassem. Muitas vezes desprezavam a primeira<br />

regra da sabedoria: “a verdade só pode ser procurada com calma de espírito”, e queimavam-se no ardor da discussão – mas um<br />

não podia viver sem o outro.<br />

Qual a substância dessas discussões? A resposta é simples: Tudo. Meu rabi estava sempre preparado para receber<br />

de Felipe qualquer conhecimento obtido pelos gregos sobre as leis da natureza e a compara-lo ou a adiciona-lo aos obtidos<br />

pelos judeus. “Adquirir conhecimento”, dizia o meu rabi, “é aproximar-se de Deus. E quanto mais nos aproximamos de Deus<br />

mais o amamos e tememos, porque mais apreendemos a sua imensidade sem limites. E como conhecer a Deus senão através do<br />

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Seus feitos”? Escrito está: “O trabalho de Tuas mãos mostra a Tua glória”. Esta última citação vinha-lhe espontaneamente aos<br />

lábios quando o grego o punha ao par duma nova lei da natureza, ou o imitia em algum novo processo matemático.<br />

Reciprocamente, o grego mostrava-se sempre ansioso de apreender do meu rabi os fundamentos da fé judaica; desejava<br />

conhecer o que constituía o poder da nossa fé, que mandamentos e leis nos haviam sido revelados pelo Onipotente. E ansiava<br />

por provas da existência do Olho que tudo vê e da Mão que tudo guia na terra.<br />

Todos os tesouros do conhecimento eram acessíveis ao grego porque de seus mestres ele recebera as chaves –<br />

mas uma cidadela lhe permanecia fechada: a da fé. Como não possuísse a chave da fé, sentia-se Felipe abandonado no meio<br />

dos seus tesouros. Destituído da fé, podia continuar perpetuamente a juntar fragmentos de informações sem que esse material<br />

se erigisse em estrutura compreensível; permaneciam simples montes de material. Faltava a Felipe o plano que a cidadela da fé<br />

mantinha oculto. E os seus montes de material de construção nenhum abrigo lhe proporcionavam. E em contraste com essa<br />

impotência da sabedoria e do conhecimento, um homem de espírito simples, sem os recursos da filosofia e da ciência,<br />

penetrava nos mais recônditos segredos da cidadela e encontrava o plano da vida.<br />

E o filósofo ficava de fora. A grandeza de Felipe estava em que sabia estar de fora (muitos nem alcançam esse<br />

conhecimento). Era ardente o seu desejo de entrar, de acordo com o verso: “E minh’alma inclinava-se para o Senhor”. E nossos<br />

sábios declaram que se um não-judeu procura Deus, torna-se maior nisso que o próprio Sumo Sacerdote, e seu desejo pode pôlo<br />

ao abrigo das asas da glória de Deus.<br />

Meu rabi não ignorava a ânsia interna de Felipe; sentia-lhe o desejo da verdade – e daí o mútuo arrastamento.<br />

Era um dos ditos de meu rabi que cada alma faz parte da divindade universal, e é capaz de promover o seu próprio contato com<br />

o Pai Celeste. E embora aquela alma de gentio não estivesse presente no Sinai (como a dos judeus ainda não nascidos) para<br />

receber a imposição do jugo do reino do céu, podia, por força da centelha interna, transpor todos os estágios realizados pelos<br />

judeus no curso de muitas gerações e dum ímpeto atingir a Fonte Universal. Desse modo lhe era dado atingir o alto nível da<br />

alma judaica, e talvez mesmo nível superior, porque chegara à alta posição por sua própria força de vontade. E como além de<br />

tudo isso aquela alma de não-judeu pertencesse a um sábio, quanto mais apta não estaria para aproximar-se da Fonte? Vinha<br />

daí a ânsia do rabi Nicodemo, em ajudar a alma daquele sábio não-judeu em trevas e liberta-lo dos pecados da idolatria. Não<br />

assustava Felipe com a acentuação do peso que era o Torah, como faziam os discípulos de Shammai; mostrava-se encorajador<br />

e bondoso à maneira de Hillel.<br />

Freqüentemente ouvi discussões entre Felipe e Nicodemo sobre as leis mundanas, e certa vez estive presente<br />

quando disputavam sobre o conceito da eternidade da alma.<br />

A conversa partiu deste tema: “Que mais desejável – o primado que Deus conferiu ao homem sobre o resto da<br />

animalidade, de modo que possa procurar Deus, ou a cegueira dos animais?” O filósofo grego argumentava deste modo:<br />

− De fato não há prova de que somos diferentes dos animais do campo, e não temos o direito de aceitar a vossa<br />

orgulhosa conclusão. Intelecto? Todos os animais, todos os vermes, são providos dos meios de assegurar a sua própria<br />

existência e propagar a espécie. Nós, em vez de garras e dentes, fazemos uso de certo engenho a que chamamos intelecto, e<br />

com ele dominamos os mais fortes animais. Mas na verdade não passamos de miseráveis vermes por alguns dias dotados de<br />

mãos; saímos da madre de nossas mães e somos lançados nus sobre as pedras da vida. Ou, se preferis, somos lançados numa<br />

covanca de serpentes onde o forte devora o fraco e onde tanto o forte como o fraco estão destinados a perecer complemente, a<br />

ser reduzidos ao que se reduz uma pequena bolota de carvalho esmoída entre mós potentes. Que prova há de que somos<br />

melhores que os vermes, se a lei do dente mais forte é a que reina entre nós?<br />

O meu rabi respondeu:<br />

− Vide e vede a grandeza do Criador, porque por Suas criações será Ele conhecido. Fez Ele ao homem um<br />

verme, e o homem pôde subir mais alto que os anjos! Se nos fez vermes, por que implantou em nós a sede e a fome de<br />

conhecê-lo? Por que não nos contentamos de comer nossa carne diária, e por que não nos submetemos sem revolta à lei do<br />

mais forte a devorar o mais fraco? Sobe o pó e queixa-se dos ventos que o espalham sobre a terra? O animal rejubila-se ante<br />

cada tufo de relva que o Criador lhe depara; o verme rejubila-se no inseto que lhe cai sob o ferrão. Por que nos fez diferentes<br />

deles o Criador? Na procura de Deus está Deus. Ide e vede os povos do mundo que afeiçoam ídolos com suas próprias mãos e<br />

diante deles se curvam. Por que procedem assim? Por que procuram Deus e por Ele anseiam. Apesar de seus ídolos, adoram o<br />

Criador único. Cegos têm eles os olhos e seus pés pisam sendas erradas – mas o coração desses homens anseia por Deus. E<br />

onde há sede há meios de mata-la, porque onde nunca houve matar à sede está claro que também não há sede. Eis a graça que o<br />

Deus de Israel deu aos homens – o primado entre todas as criaturas.<br />

− Não sabemos, respondeu o grego, se é coisa de agradecer que os deuses hajam instilado em nós essa sede.<br />

Talvez não fosse ato de graça e sim de malevolência. Que melhor: o homem dotado da inteligência que analisa ou o animal<br />

destituído de tal dote? A mim me parece que o intelecto do homem é mais um defeito que uma virtude, e muito bem faríamos<br />

se o destruíssemos e ficássemos como os animais. De que nos vale o intelecto, se não consegue romper a muralha que nos<br />

circunda, a nós e a todos os animais? Não, jamais alcançaremos a verdade última.<br />

− Sem Deus, por que motivo procuraríamos a verdade? perguntou meu rabi.<br />

− Mas não merece a verdade que a busquemos por si mesma, leve-nos ou não aos deuses?<br />

− Sem Deus não há verdade – há apenas verdades. A verdade é uma, como Deus.<br />

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− Então perdoai-me dizer que o veredicto da inteligência faz desse conceito uma forma de idolatria mais obscura<br />

que qualquer outra praticada pelos bárbaros. Estes, pelo menos, têm alguma idéia da aparência de seus deuses, em cujo nome<br />

cometem seus crimes. Possuem lá a sua verdade limitada. Mas os judeus nem sequer sabem que forma o Deus Único tem. Isso<br />

na verdade não é adoração do Deus Único, mas um grito no escuro. Não sabeis se de fato há alguém no escuro para receber o<br />

vosso grito.<br />

− Não no escuro, volveu o rabi, mas no infinito. E nós cremos que lá, dentro do infinito, existe um Ouvido que<br />

ouve e um Olho que vê.<br />

− Mas é uma admissão cega.<br />

− Não apenas admissão cega, mas amor cego.<br />

− E como é possível amar o que não conhecemos?<br />

− Apreendemos Deus pelos seus atributos – e amamos os Seus atributos, embora o não conheçamos e não Lhe<br />

possamos imaginar uma forma. E nosso amor por Ele não depende deste ou daquele atributo, como no caso do vosso amor<br />

pelos vossos deuses. Nosso amor é incondicional e absoluto. Por isso é o único amor, o verdadeiro amor, ilimitado como o<br />

Eterno.<br />

− Mas isso é a adoração da toupeira não de um homem – da toupeira que nunca viu a luz do dia mas se arrasta no<br />

canal subterrâneo por ela mesma escavado e toma-o como o universo. Assim fazem os que com os olhos fechados e a<br />

inteligência adormecida procuram Deus. Mas os deuses conferiram ao homem o poder de contemplar o sol, de sentir as formas<br />

da terra, de ver as estrelas e as flores, os campos e as nuvens e todos os tesouros da cor. O vosso Deus vos proíbe tudo isso.<br />

Achais então que nós, a quem os deuses deram o sentimento da linha, para que nos rejubilemos com o ritmo da dança e as<br />

delicadas mudanças de movimento; nós, que podemos nos enlevar nas harmonias da perfeição e conhecer a beleza da música,<br />

não só a que impressiona pelo ouvido como a que sai da graça dum corpo nu; nós, a quem os deuses ordenaram que<br />

puséssemos ordem no caos do mundo, tornando-nos iguais a eles – achais então que nós devamos, voluntariamente denegar o<br />

nosso papel, repelir a glória que foi feita para nos iluminar? Nós adoramos os nossos deuses por meio dos supremos atributos<br />

que eles próprios distilam dentro de nós, com os olhos, ou ouvidos, os sentimentos, as emoções, os sentidos e com o que mais<br />

alto e nobre possuímos – a arte! Já não é assim convosco. A vossa adoração do Altíssimo é uma adoração de minhocas...<br />

Meu rabi guardou silêncio por uns instantes. Seu rosto, que tão raramente perdia a radiância denunciativa da paz<br />

interior, sombreou-se por um momento – um momento só. Voltando ao normal, ele disse:<br />

− Cada um de nós serve à sua divindade com os atributos que nela vê. Vosso conceito dos deuses consiste na<br />

idealização de virtudes e dons humanos, e com estes elementos construis a vossa adoração: beleza, força e harmonia. Já nós<br />

não atribuímos à nossa divindade dons humanos, virtudes humanas, e sim atributos celestiais: infinidade, indivisibilidade,<br />

eternidade, incorruptibilidade. Por isso a nossa glorificação não pode consistir em virtudes terrenas, que são finitas e mutáveis.<br />

Procuramos em nós mesmos aquela parte que não é mortal, que é a mesma divindade em nós mesmos – nossa alma, e<br />

dirigimo-la para o Eterno. Não sabemos que linhas Ele tem, nem que cor, nem como caem as dobras de Seu manto, nem que<br />

movimentos Seu corpo faz. Por isso a Ele nos dirigimos na linguagem da alma. Os olhos da alma percebem Deus e os sentidos<br />

da alma exaltam-no. Nossa concepção de Deus é divina – faz parte da divindade. Sim, nós fechamos os olhos à beleza do<br />

mundo afim de percebermos a do céu. Fechamos nossos sentidos às harmonias deste mundo para apreendermos a eterna<br />

totalidade do outro.<br />

− Mas que espécie de ilusão é essa de que só vós possuis o segredo e a virtude da alma? Nós também<br />

acreditamos na imortalidade da alma, mas a alma não pode ser um eco vazio num infinito inconsciente. A alma só pode ser a<br />

soma e a estrutura de toda beleza, elevação, poder, amor e amizade: isto é, de todos os ideais que exaltamos no homem, a<br />

criatura. A alma é a medida, a pedra de toque da harmonia, e produz dentro de nós o equilíbrio de nossas faculdades. A alma é<br />

a totalidade do nosso ser.<br />

− Isso só é aceitável para quem crê que nalgum lugar existe um anjo ou gênio da harmonia, do qual a harmonia<br />

emana. Se eu creio que tal fonte de todo o bem existe, posso persuadir-me de que dentro de mim há uma gota dessa fonte,<br />

possuidora de todos os seus atributos. Mas se não creio, se recuso a premissa da existência da fonte, do foco da verdade única e<br />

eterna, na qual todo o bem se contém e da qual minha alma tira todos os seus atributos, se me afasto disso, como saber que<br />

aquela harmonia é a certa e a que devo seguir porque me leva à perfeição? Suponha que seja o contrario! Suponha que não é a<br />

alma que deva ser seguida, obedecida e tida em conta e sim o corpo com todos os seus desejos! Como deverei decidir-me?<br />

Felipe ergueu a cabeça com esforço e seus olhos tinham aquela suavidade do sorriso que desarmava os<br />

oponentes. E comiserado olhou para o nosso rabi, que se exaltara na discussão, como olhamos para uma criança excitada.<br />

− Os deuses foram mesquinhos, disse ele. Nas trevas que nos envolvem deram-nos a pequenina lanterna que<br />

trazemos sobre o pescoço, produtora da luzinha da razão. Com a sua claridade afugentamos o escuro numa pequena área em<br />

nosso redor. A razão ilumina, mas até à distância de poucos passos apenas; para além das trevas, só trevas. Rabi, podeis<br />

penetrar de salto no abismo das trevas eternas, podeis varar, ou supor que varais, as muralhas circundantes e de retorno dizer:<br />

“No extremo da escuridão está o dia eterno”. Mas eu – eu sei que os raios da minha pequena lâmpada batem de encontro à<br />

espessura das trevas e voltam, refletidos. Como saberei o que há dentro das trevas, se nunca a penetrei com meus olhos ou<br />

qualquer outro dos meus sentidos? E com que procurarei penetra-la, ainda que no mais mínimo, senão com a razão que os<br />

deuses me deram?<br />

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− Só há uma faculdade que transpõe a muralha, disse o meu rabi: a faculdade da fé. O cantor de Israel disse: “O<br />

justo viverá para sua fé”.<br />

− Mas que é fé, rabi? Onde encontra-la? Quais dos nossos dons podem erguer-nos ao nível da fé?<br />

− O caminho da fé o aponta. A sede por Deus é a apreensão de Deus – e Deus revela-se a todos quantos o<br />

procuram. Desejai Deus, tende sede de Deus – a apreendereis Deus.<br />

Felipe guardou silêncio. Sua cabeça de novo pendeu para o chão, seus olhos se cerraram, como se ele se<br />

houvesse fechado na cidadela da paz, longe de nós. Depois de algum tempo levantou-a, como por impulso de invisível mão.<br />

Seus olhos procuraram o rosto do meu rabi – e neles já não brilhava a luz da sabedoria; o sorriso de piedade desaparecera de<br />

seus lábios. E havia temor em seu aspecto – temor e esperança, quando a sua resposta veio.<br />

− Talvez seja realmente esse o caminho. Talvez esteja a verdade fora do alcance do conhecimento e o segredo só<br />

possa ser alcançado por um salto no escuro, como o destes, rabi.<br />

Durante toda esta discussão entre meu rabi e Felipe de Gederah, José de Arimatéia permaneceu em silêncio. Seus<br />

olhos pousavam num e noutro disputante e seus lábios pareciam secos, como se a sede de conhecimento queimasse tanto<br />

quanto a sede de água. Profunda preocupação se derramava sobre suas feições, como o luar se derrama sobre as ondas de um<br />

lago. Findo o debate, José ergueu-se, como se haviam erguido os dois sábios, e com eles se foi para o terraço da biblioteca.<br />

Noite suave, céu brilhantemente iluminado. À distância as montanhas do Moab palejavam sob as estrelas, qual um muramento<br />

maciço. José guardou silêncio, ali entre aquelas colunas, com os olhos fixos na barreira montanhosa, como procurando os<br />

espaços denegados dos sentidos da carne.<br />

Nada dizia. A dupla sombra de seu corpo projetava-se no chão de mosaico e, interceptada por uma coluna de<br />

mármore branco, erguia-se a prumo atrás dele; e, como ele, aquela sombra parecia olhar para as montanhas do Moab, em<br />

procura dos mistérios ocultos adiante...<br />

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E Felipe de Gederah, que em toda a sua vida não ousara avançar nas trevas mais que o espaço iluminado pela<br />

lâmpada suspensa ao seu pescoço, passou a mostrar-se cada dia mais inclinado a dar o grande salto no escuro – isto é, a aceitar<br />

aquele desconhecido Deus que Israel pregava. Cativava-o a glória que os rabis punham no que para ele não passava da noite<br />

universal. Um ponto de vulto naquela glória era a expectação do Messias – mensageiro direto do céu que resolveria todos os<br />

problemas humanos e levaria todas as raças para o reino da bondade eterna. Isso, mais que qualquer outra coisa, afetava o<br />

Grego.<br />

Felipe de Gederah crescera num mundo de todo alheio à idéia da compaixão. Desde criança que vira seres<br />

humanos lançados às feras para deleite das multidões, e isso não só nas arenas como nas ruas das cidades. Também ele fora<br />

arremessado aos pés das feras; no saque da cidade de Gederah arrancaram-no de casa e venderam-no como escravo na feira de<br />

Tiro. E ele chegara a adulto dentro da fé tácita de que sempre fora, era assim e não podia ser de outra maneira. Sob a influência<br />

do meu rabi foi que Felipe começou a examinar os feitos do homem a uma luz especial, pesando a justiça e a injustiça e<br />

adquirindo essa sensibilidade que se revolta contra a crueldade e a violência. A idéia do Deus da equidade impressionou-o e felo<br />

aprofundar-se nos mistérios da doutrina judaica. Era-lhe familiar o dialeto aramaico, de uso diário entre os judeus; e serviulhe<br />

como introdução ao estudo do hebraico, língua que logo dominou. E guiado por Nicodemo ben Nicodemo mergulhou no<br />

Torah de Moisés e nas profecias.<br />

Meu rabi consagrava muito de seu tempo ao discípulo grego. Ensinou-lhe as leis e mandamentos, deu-lhe a<br />

interpretação das passagens difíceis e como quem leva uma criança imitiu-o nos caminhos de Deus. Tempo houve em que por<br />

causa de Felipe o nosso rabi nos negligenciou. Sua paciência era extraordinária. Chegava a esquecer o sono, a confundir a noite<br />

com o dia, na ânsia de resolver os problemas levantados por aquele gentio, sempre esperançoso de encher-lhe o coração com a<br />

luz de Deus e traze-lo para o nosso grêmio.<br />

Às vezes nos espantávamos que o rabi denunciasse tão claramente as suas preferências pelo estrangeiro, de modo<br />

até a nos prejudicar os estudos. Não ousávamos nos queixar, porém; escondíamos nossos sentimentos. Mas o rabi suspeitou-os<br />

e falou-nos assim:<br />

− Atendei, meus discípulos. Nossos mestres nos ensinaram que Daví cantou: “Senhor, tomai tento no<br />

estrangeiro!” A que isso pode ser comparado? Pode ser comparado a um rei que possui muitos rebanhos. Cada manhã os<br />

pastores reais levam os carneiros e cabras ao pasto e cada tarde os reconduzem ao aprisco. Mas certa vez um filhote de veado<br />

veio da floresta brincar com os cordeiros. À tarde, quando os pastores iam a recolher o rebanho, lá se foi imiscuído nele o<br />

veadinho. E voltou com o rebanho à pastagem no dia seguinte – e assim todos os dias. Soube o rei do caso e entrou a amar o<br />

veadinho. Ia aos campos vê-lo pastar em companhia de seus carneiros, e incumbiu um dos pastores de zelar por ele. Certa<br />

ocasião, voltando o veadinho com o rebanho para o abrigo, o rei, que estava por ali, disse ao pastor: “Vai dar água ao veadinho<br />

antes de aos carneiros”. Admiraram-se os pastores e disseram: “Senhor, tens muitos rebanhos de carneiros, cabras e vacas e no<br />

entanto jamais nos disseste: ‘Fazei isto ou aquilo por eles’; mas por amor a um veadinho nos fazes recomendações”. E então o<br />

rei respondeu: “É hábito com os carneiros o irem pela manhã aos pastos e o recolherem-se à noite ao aprisco. Mas o hábito dos<br />

veadinhos é passar as noites a céu aberto, nunca de se acolherem a teto humano. Mas este deixou a vida livre e aos seus irmãos<br />

e voluntariamente se veio a nós. Não temos de dar-lhe mais afeição do que se fosse um novo carneiro agregado ao rebanho?” E<br />

o rabi concluiu sorrindo: “Se um estrangeiro, um não-judeu, abandona o seu mundo – a sua carne e o seu sangue – e se vem a<br />

nós, temos que aceita-lo com amor especial, maior que qualquer outro que exista em nós”.<br />

Quando a grande resolução foi tomada e Felipe de Gederah entrou para a nossa comunhão, o nome que recebeu<br />

foi o de Abraão ben Abraão, e a partir daquele dia devotou-se à idéia messiânica mais que seus novos irmãos em fé. Chegou ao<br />

estágio da alucinação; por toda parte lia sinais do breve advento do Redentor. E isso via tanto como resposta às necessidades<br />

do mundo como às do seu próprio coração. O homem de cérebro outrora tão equilibrado passou a ter visões e a ouvir vozes. Já<br />

não falava a linguagem da filosofia; a razão perdera em sua idéia o significado antigo; e a esperança messiânica não era<br />

simplesmente um sonho ou desejo: era uma realidade palpável.<br />

Estranho espetáculo o daquele sábio grego, atarracado, disforme, com suas corcovas adiante e atrás, vestido no<br />

traje de franjas ritualísticas que agora usava; nada mais estranho do que vê-lo passar apressado pelas ruas de Jerusalém, rumo<br />

ao Templo, para oferecer um sacrifício. Abraão ben Abraão mostrava-se particularmente cuidadoso no que dizia respeito às<br />

leis da pureza e da purificação; chegava às raias do pedantismo, nesse pormenor. Dava a mais rigorosa atenção às menores leis<br />

relativas ao governo da casa – leis em geral só incumbentes às mulheres, e em todos os pontos se comportava como o fariseu<br />

dos fariseus. Tão ansioso se mostrava de estar em contínua prontidão para receber o Messias!<br />

Um homem em nosso grêmio muito contribuiu para manter no coração do grego o sentimento da próxima vinda<br />

do Messias: – Judas Ish-Kiriot, o sonhador e entusiasta, já convencido de ter apanhado relanços do Messias nas ruas de<br />

Jerusalém. Depois da conversão de Felipe, Judas aderiu ao filósofo grego e muito o ajudou na distruição dos últimos<br />

remanescentes da antiga disciplina estóica que lhe caracterizara a vida anterior. E se Felipe foi tão longe, a ponto de ter visões,<br />

teve Judas responsabilidades nisso. Porque Judas já estava certo de que o Messias aparecera e não tardaria a ser reconhecido.<br />

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Havia irrompido pela sinagoga a dentro de boca escancarada, olhos em brilho, a exclamar que o vira! Certo – praticamente<br />

certo de que o vira! O efeito de tais manifestações em Felipe era extraordinário e lá saia ele atrás de Judas em investigação.<br />

Talvez também pudesse ver o Messias. Ou, se não o Messias, pelo menos Elias o Profeta. Galgaram os dois o alto dos montes<br />

vizinhos de Jerusalém e olharam em redor, à espera de verem o profeta emergir como o mensageiro do Messias. Tão confusos<br />

ficaram, que confundiram os fogos acesos nas elevações durante a noite para assinalar ao povo o primeiro dia do mês como um<br />

sinal do Esperado. E sentiam que estavam forçando a aparição, antecipando o tempo, compelindo o Messias a declarar-se.<br />

Quando entrei para a escola do rabi Nicodemo em Jerusalém, Judas Ish-Kiriot já era de muito anos membro da<br />

Companhia. Como sábio, seguia o costume de sustentar-se pelo trabalho manual e passava metade de cada dia em sua tarefa de<br />

oleiro. Celibatário, como o rabi. Não desejava formar família e nem sequer ter casa própria. Cérebro e alma tinha-os fixos<br />

numa coisa só: a libertação. E pela maior parte do tempo vivia em estado de êxtase. Freqüentemente se sentava solitário a um<br />

canto da sinagoga, de olhos cerrados, como se dormisse. Mas quem dele se aproximasse ver-lhe-ia o movimento dos lábios. E<br />

às vezes sorria, quando não rompia em lágrimas. Diversas vezes rolou por terra no pátio do Templo, com a boca espumejante –<br />

e começou a profetizar. Também se insinuava ansioso por entre as multidões, olhando, espiando, tentando decifrar caras. E<br />

voltava à sinagoga com a velha insistência: havia tido um vislumbre do Esperado.<br />

Nas multidões que enchiam os pátios do Templo abundavam visionários, peregrinos das províncias e do<br />

estrangeiro, fanáticos e semi-possessos que nunca deixavam de falar do Messias e sua iminência. E muitos procuravam passar<br />

como o próprio Messias. Outros, vendo-se na Cidade Santa, mostravam-se tão ansiosos de ser dos primeiros a testemunharem<br />

as maravilhas, que não despregavam os olhos do céu, na expectativa de que se abrissem e descarregassem o Messias. Os<br />

guardiães do Templo, as sentinelas, os criados, os homens da limpeza, os cantores – todos os enteados entre as tribos, os<br />

explorados levitas bem como as baixas camadas do sacerdócio – sentindo-se igualmente vítimas dos maus tempos, contribuíam<br />

para aquela ambiência de inquietude e expectação. As altas autoridades tinham que avir-se com perturbações da ordem: este ou<br />

aquele sonhador que de chofre emergia acima de seus companheiros e dava margem à formação dum bloco de fanáticos. Muita<br />

habilidade e firmeza tornavam-se necessárias para dissolver tais assembléias sem recorrer aos guardas romanos, os quais, se<br />

chamados, nunca deixavam de satisfazer a sua natural ferocidade e ódio aos judeus.<br />

Como que tenho Judas Ish-Kiriot diante de mim neste momento! Moreno, alto magro de fome. Barba<br />

grisalhante, mas dum grisalho que vinha menos dos anos que das aflições da alma, porque seus olhos eram moços, inquietos e<br />

investigadores. As enormes orelhas de Judas, muito vermelhas, afastavam-se do crânio. E suas mãos jamais ficavam paradas.<br />

Caminhava gesticulando. Tinha o andar asselvajado, anguloso, o que fazia as franjas ritualísticas de suas vestes dançarem no ar<br />

e embaraçarem-lhe as pernas. Movia-se como que arrastado por uma tempestade, ou como se ele próprio fosse a tempestade. O<br />

pano da cabeça soltava a ponta e ia flutuando atrás, como asa quebrada.<br />

O mais extraordinário naquele homem, porém, era a contradição por ele corporificada: seus entusiasmos de<br />

visionário alternavam-se com acessos de profundo cepticismo. Dele disse meu rabi: “Judas Ish-Kiriot e como a mãe que devora<br />

os próprios filhos”. Ele entrava de ímpeto na sinagoga ou na escola, os olhos em fogo, o cabelo arrepiado, as mãos a fazerem<br />

gestos violentos – os cordões de suas sandálias arrastando-se.<br />

− Eu o vi! Ele está entre nós! Está no pátio do Templo a pregar para a multidão! É ele! É ele! entrava dizendo.<br />

Depois agarrava o nosso rabi pela roupa e implorava: “Venha comigo, Nicodemo filho de Nicodemo! O Messias está aqui!”<br />

Mas logo depois de o haver encontrado Judas perdia o Messias. E voltava para a sinagoga com a cabeça caída, os<br />

olhos mortos, em silêncio, envergonhado, como se de volta dum serviço em templo pagão. E não tocava no caso. Se alguém<br />

tinha a crueldade de inquirir: “Que é do Messias?” ele arrancava um suspiro dilacerante e murmurava: “Errei outra vez”.<br />

Naquele ponto das alucinações messiânicas, era Judas totalmente diverso dos sábios e profundamente em<br />

contraste com o rabi Nicodemo. Este sempre fora muito escrupuloso no uso de palavras, e não emitia opinião antes de muito<br />

exame e prova. Tão cuidadoso na expressão de suas vistas como um avarento no gasto do seu dinheiro. Costumava dizer:<br />

“Palavra que sai da boca é feito que deixa marca. Nenhum poder do mundo pode elidi-la”. E também dizia: “O Senhor do<br />

Universo conferiu ao homem o poder de criar e destruir mundos com as simples palavras de sua boca. Portanto, cuidado com<br />

vossas palavras!” E, sendo assim, claro que se desagradava com a temeridade de língua que seu companheiro Judas se<br />

permitia. Sempre que o via chegar ofegante com uma nova revelação, meu rabi observava: “Judas, Judas esqueces a<br />

advertência dos sábios: “Homem prudente, fiscaliza de perto tuas palavras!”<br />

Mas Judas não podia viver uma só hora sem o seu Messias e sem alguém sobre que derramar seus êxtases. Meu<br />

rabi costumava dizer: “Judas não dispensa um gancho especial sobre que pendure sua fé; o Senhor não lhe basta”. E se um dia<br />

se passava sem que tivesse um relanço do Messias, lá se sentava ele à porta da sinagoga, a cabeça afundada nos ombros, como<br />

a do pássaro que a esconde sob as asas. E seus lábios moviam-se na eterna pergunta: “Quando virá? Quando virá?” Meu rabi<br />

consolava-o com bondade. Recordava um dito daqueles dias: “O Filho de Daví não virá antes que a última moeda de cobre saia<br />

de tua bolsa”. Ou: “O Filho de Daví não virá até que a geração esteja totalmente pura ou totalmente coberta de pecado”. E<br />

depois aconselhava-o: “Vai para a rua, Judas, tira do povo todo o dinheiro; transforma todos os homens em santos ou em<br />

irredutíveis pecadores – e então o Filho de Daví surgirá”.<br />

Durante certo período tornou-se Judas adepto de Bar Abba, o pescador de Joppa que pretendia ser um segundo<br />

Judas o Zelote. Se as massas de povo mostravam-se ansiosas por um Messias celestial, menos ansiosas não se mostravam por<br />

um Messias terrestre, que rompesse o jugo dos dois opressores, os sacerdotes e os romanos. Bar Abba fazia prosélitos entre os<br />

deserdados da vida, ali da cidade ou vindos das províncias. Sua palavra de senha fora tomada do venerável Hillel: “Im lo<br />

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achshav, eimatai? Se não agora, quando?” Seu projeto não era chefiar uma direta rebelião contra Roma, que fatalmente<br />

terminaria em desastre; mas sim derrubar um dos opressores, a casa de Hanan, o velho Hanan e seu genro Kaifa.<br />

A linha de seus pensamentos era esta: rompendo contra os sacerdotes, ele poria de seu lado os sábios e os<br />

fariseus, os quais pregavam a submissão à Roma, convencidos de que a libertação do poder do Império não podia ser<br />

assegurada por meios terrestres. Mas a sua esperança última era romper o jugo de Roma. Se ele pretendia realizar um objetivo<br />

cada vez, ou previa uma conflagração que libertasse os judeus ao mesmo tempo de Roma, e da Casa de Hanan, não sei dizer.<br />

Era Bar Abba um filho do povo, saído das camadas mais junto à terra. Havia sido espoliado do bote com que<br />

outrora remara por entre os pedrouços de Joppa; e a circunstância de vir o roubo sob o nome de taxa, inda mais agravou o fato.<br />

A taxação fora dupla, e imposta pelos romanos e a imposta pelos filhos da sua própria gente. Desde aí Bar Abba não teve na<br />

cabeça outro pensamento a não ser o levante. Mas não era um tonto, um irresponsável, apesar do sangue quente. Tinha a<br />

consciência da mudança do povo hebraico; a rebelião armada não seria simples como na época de Judas o Zelote.<br />

As massas recordavam Judas – mas também recordavam as cruzes com rebeldes pregados com que Varo o Mau<br />

semeou o país. E, pois, quanto a Roma, Bar Abba pregava apenas a resistência passiva, a recusa do pagamento de impostos.<br />

Mas à Casa de Hanan declarara guerra franca. O ódio das massas contra o Sacerdócio daqueles dias comparava-se ao ódio<br />

contra o Sumo Sacerdote no tempo de Matatias o Macabeu. E talvez não fosse tanto a ferocidade das exações diretas, como a<br />

profanação do Santuário pelo modo de agir na praça do mercado, o que tanto enfurecia os judeus de Jerusalém e da Judéia.<br />

Desenvolvera-se no povo uma espécie de culto dos mortos. Os vivos não se destacavam dos mortos. Mães havia<br />

que carregavam consigo, como se fossem relíquias, ossos de filhos mortos. Um culto vindo dos pagãos e que nossos rabis<br />

combatiam. As leis e antigos mandamentos ajudavam-nos nisso, pois declaravam que quem quer que tocasse em parte de um<br />

cadáver tornar-se-ia impuro; e para purificar-se tinha de ser borrifado com água em que se misturasse cinza de novilha<br />

vermelha. Mas tal cinza custava caro. Poucas novilhas eram adequadas para esse ritual, pois bastava que tivesse na pelagem<br />

vermelha apenas dois fios brancos para que fosse recusada. E um criador que tinha a sorte de em seu rebanho descobrir uma<br />

novilha vermelha sem jaça, por ela pedia um preço absurdo. Mensageiros do Templo andavam por toda parte, não só pela<br />

Galiléia e Judéia, como por Tiro e Sidon, na esperança de descobrir a raridade. Só uma vez em tantos anos foram bem<br />

sucedidos, e por isso as cinzas de novilha vermelha constituíam um imenso tesouro para o Templo e eram transmitidas de<br />

geração em geração. Até à subida da Casa de Hanan ao Sumo Sacerdócio essas cinzas do Templo eram usadas nos sacrifícios<br />

purificatórios sem nenhuma atenção à riqueza ou pobreza do suplicante. Uma posse nacional, a que todos os judeus tinham<br />

igual acesso. Mas os Filhos de Hanan puseram um elevadíssimo preço nessas cinzas, de modo que ficaram fora do alcance dos<br />

pobres; só os ricos e poderosos podiam tocar num morto e em seguida purificar-se.<br />

Neste aproveitamento do azedume das massas foi Bar Abba auxiliado pelos rumores correntes em Jerusalém de<br />

que havia outras casas sacerdotais, invejosas da Casa de Hanan, que ajudariam uma revolução. É provável que houvesse algum<br />

fundamento nisso, pois do contrário aquele agitador não ficaria tanto tempo em liberdade e a trabalhar as massas.<br />

Bar Abba era homem despido de qualquer cultura. Amargo, cheio de coragem, insolente, incapaz de prender a<br />

língua. Lançava suas palavras ríspidas entre as massas, espevitando-lhes as cóleras sopitadas. Escusa dizer que não o fazia<br />

abertamente nos pátios do Templo e ruas circunvizinhas. Essa parte da cidade era muito vigiada pelos agentes do Sacerdócio.<br />

Qualquer grupo capaz de provocar desordem era disperso pelos guardas, com os seus chicotes de pontas de chumbo. Bar Abba<br />

trabalhava na Cidade Baixa, na zona pantanosa do vale do Kidron ou na Porta do Estrume, entre os mais pobres entre os<br />

pobres. Aparecia de súbito, sem aviso, junto aos trabalhadores ou nas barracas dos padeiros e vendedores de óleo.<br />

Inesperadamente saltava sobre uma pedra de moinho ou prensa de azeite e conclamava o povo a erguer-se contra os Filhos de<br />

Hanan – e também a recusar o pagamento dos impostos a Roma. E enumerava os crimes da Casa de Hanan: eles haviam subido<br />

o preço das pombas e dos trigos sacrificiais. E quando se referia às cinzas da novilha vermelha, tornadas agora inacessíveis à<br />

bolsa do pobre em virtude da ganância sacerdotal, os ouvintes vibravam em tal fúria que fácil lhe seria lança-las contra os<br />

armazéns e lojas dos sacerdotes.<br />

Vi Bar Abba com alguma freqüência. Nossa escola, adida à sinagoga dos cirineus, ficava na Rua das Especiarias,<br />

junto ao velho mercado. Mas duma vez assisti a começos de levante. O barulho dessas comoções vinha perturbar nossas aulas.<br />

E quando saíamos, dávamos com Bar Abba, um vulto feroz, dominando a multidão. As palavras lhe vinham em tumulto da<br />

boca forte, palavras que recordavam a vergonha do sofrimento judeu, as humilhações, as cargas fiscais, as agonias da<br />

escravidão; palavras simples, rudes como a pobreza dos ouvintes. E a multidão dos ouvintes de olhos saltados, faces<br />

afogueadas, os martirizados corpos quase nus, rugiam e ecoavam as trovejantes palavras do orador. Aquelas palavras eram<br />

marteladas.<br />

− Vossas esposas, dizia Bar Abba, andam impuras, não se lavam do sangue dos filhos que parem. Não podem,<br />

porque não podem fazer o sacrifício da purificação. O Sumo Sacerdote subiu o preço das pombas sacrificiais. Dizei-me: há<br />

aqui entre vós alguém que já tivesse o privilégio de ser borrifado com as cinzas da novilha vermelha? Todos vós estais<br />

imundos! Imundos! Nem mesmo vos aproximar das paredes exteriores do Templo ousais. Fostes expelidos, lançados das<br />

hostes de Deus para onde Seus olhos não possam ver-vos. Estais trancados fora das hostes de Deus, com as chaves na posse da<br />

Casa de Hanan. É uma chave de ouro, cujo uso só o ouro pode comprar. Não basta que vos arrasteis famintos e andrajosos<br />

pelas ruas? Será também preciso que vivais com a alma na imundície? A Casa de Hanan transformou a todos vós em cadáveres<br />

fedorentos, em animais putrefatos, em leprosos.<br />

Havia uma força rude em suas palavras e os olhos da assistência flamejavam em reflexos do fogo interior.<br />

Punhos se erguiam no ar. Aqui e ali mulheres irrompiam em choro e lamentos, como se carpissem mortos. A multidão sentia<br />

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uma coisa só e entrava a mover-se. Súbito, fiscal! Soa no espaço a buzina de chifre de carneiro, chamando os guardas do<br />

Templo. Se a multidão de excitados ouvintes é muito grande, os guardas acodem com um pelotão de soldados romanos, o peito<br />

defendido pelos corsoletes, a espada de larga lâmina em punho. E às vezes aparecem até os cavalaríanos da Germânia, vindos<br />

lá do palácio de Herodes. E então os chicotes com chumbadas começam a silvar. Aqui e ali retesam-se resistências – mas a<br />

multidão era dissolvida e lá ficavam corpos sangrentos, mutilados, entre as quitandas arruinadas. E Bar Abba? Sumira-se!<br />

Ninguém o vira. Desaparecera numa viela, galgara um muro, pulara de telhado em telhado e sumira-se.<br />

Mas não se evaporava por muito tempo. Inopinadamente emergia no pátio do Templo e logo depois de formada a<br />

agitação novamente evaporava-se. E as vezes nesse mesmo dia ainda era falado de novo: “Bar Abba rompeu caminho por entre<br />

os guardas duma casa rica; afastou as cortinas duma sala de banquetes, lançou a sua maldição aos ébrios de luxo e sumira”.<br />

Por algum tempo, como já disse, Judas Ish-Kiriot se fizera seguidor de Bar Abba. E num daqueles seus ímpetos<br />

habituais irrompera na sinagoga certo dia, dizendo para o nosso rabi:<br />

− Encontrei-o! Encontrei-o! O Messias está lá fora congregando suas hostes.<br />

Bastara a Nicodemo ouvir um sermão de Bar Abba para convencer-se de que era mais uma dessas inúteis semirebeliões<br />

de rua, e voltara-lhe as costas; de modo que ao ouvir as palavras de Judas, respondeu:<br />

− Desse trigo não virá nenhum pão, porque a massa não é produzida com o levedo de Deus e sim de Satã. Deus<br />

retirou dos homens de Israel o dom da profecia e o pôs na boca das crianças, mas para compensação instilou a força de Seu<br />

espírito em nossos sábios, de modo a realizarem com a sabedoria o que outrora estava no campo da profecia. Judas, Judas,<br />

onde a parte do espírito de Deus instilada em ti? Não sente o teu nariz o cheiro de morte que sai da boca de Bar Abba?<br />

Lembra-te do verso: “O guardião da minha alma conserva-me longe disso!”<br />

O entusiasmo de Judas não durou muito tempo e, ele acabou admitindo que o nosso rabi tinha razão. Bar Abba,<br />

não satisfeito com palavras, havia passado à ação. À frente de um bando aterrorizava as estradas que iam ter a Jerusalém,<br />

atacava os mercadores ricos de rumo à capital e saqueava-os. Era voz corrente que seguia o exemplo de Judas o Zelote – tomar<br />

dos ricos para o dar aos pobres, mas um decreto apareceu contra ele, não só do Sacerdócio como também do Sanhedrim.<br />

Antes da primeira menção que sobre ele ouvi, na noite da minha última peregrinação a Jerusalém, eu já sabia que<br />

um dos essênios fora ter a uma fonte no deserto da Judéia e aplicara a si próprio o verso de Isaias: “A voz que clama no<br />

deserto: preparai o caminho!” Igualmente eu sabia que muita gente, culta e inculta, se encaminhara para lá afim de que<br />

Jochanan as batizasse nas águas do Jordão, num lugar perto de Jericó, a cidade das Palmeiras. Depois de lhes purificar a alma,<br />

Jochanan mergulhava-lhes o corpo na água, não para benefício da carne, mas para prepará-lo para o advento do Messias. No<br />

começo a missão do Batista não nos agitou muito, a nós fariseus, embora nos impressionasse. Os fariseus afastavam-se dos<br />

essênios por motivo de várias divergências; eram os homens dos batismos freqüentes, do celibato, da abstenção de atividade<br />

nos negócios comunais – e viviam agrupados. Chassidim shotim, ou pietistas malucos, era como lhes chamavam os sábios<br />

fariseus, e explanavam que Deus quer que o homem viva nos seus mandamentos, não que morra neles. Porque o que está<br />

escrito é: “Viva neles!” Também sabíamos que Jochanan era homem temente a Deus e erudito no Torah; a substância das suas<br />

prédicas se resumia no próximo advento do Messias. Apesar disso não agradava a muitos a maneira da preparação, com aquela<br />

retirada do mundo. Mais tarde soubemos que Jochanan ousara aparecer diante do Tetrarca da Galiléia, para denunciá-lo e<br />

amaldiçoa-lo por ter tomado a esposa do irmão – e foi a partir daí que o nome de Jochanan adquiriu grande fama. Suas<br />

palavras passaram a ter peso, já que lhe admitiam as virtudes dum profeta. E a isso logo se juntou a auréola do martírio, pois<br />

que fora encarcerado na fortaleza de Herodes. Seus mensageiros iam e vinham da prisão a Jerusalém, e traziam para os pátios<br />

do Templo as palavras de reconforto que o prisioneiro lhes confiava. Pedia Jochanan aos seus seguidores, e a todos os judeus,<br />

que não desesperassem, que não afundassem no mar de maldade que se erguia em redor deles, mas que reunissem forças e tudo<br />

suportassem, até o advento do reino do céu que estava próximo; tudo isto aumentava a expectação dos que sempre haviam<br />

aguardado o anúncio de Elias o Profeta, precursor do Messias.<br />

O número dessa gente avultava: Cada manhã a pergunta de milhares era a mesma: “Teria ele vindo esta noite?”<br />

E diante da resposta negativa murmuravam: “Mas seguramente virá hoje”. E ao passar-se mais um dia sem nada: “É nesta noite<br />

que ele vem”. A esperança não diminuía com a espera, antes ia-se tornando cada vez mais tensa e febril. Muitos caminhavam<br />

com os olhos fixos no céu, atentos ao primeiro sinal. Certa noite em que uma nova estrela apareceu dos lados do Templo, sobre<br />

a porta chamada A Bela, multidões se juntaram na rua a gritar: “O Messias chegou!” Estabeleceu-se o pânico. O povo<br />

acumulado junto às muralhas do Templo intimou os guardas a abrirem os portões, coisa rigorosamente proibida à noite. Houve<br />

necessidade de dispersá-lo à força.<br />

Nada mais natural que fosse Judas Ish-Kiriot o primeiro a apreender os rumores sobre o homem admirável<br />

aparecido na Galiléia. Vivia ele sempre a lidar com peregrinos das províncias, naquela sua perpétua investigação de sinais<br />

messiânicos. Teve ensejo de ouvir a narração dos galileus relativa ao rabi de Nazaré que pregava uma grande doutrina e fazia<br />

milagres. Lembro-me que quando Judas começou a falar naquilo nós demos de ombros e dissemos: “Um rabi de Nazaré! Pode<br />

lá vir da Galiléia a salvação?” Mas cada dia apresentava-se Judas diante do rabi Nicodemo com novas testemunhas, peregrinos<br />

de K’far Nahum, e todos atestavam aquelas maravilhas. Diziam de como Yeshua curava os doentes, levantava os esmagados e<br />

expelia os maus espíritos. E diziam ainda que ele entrava na cabana dos pobres e humildes, comia na mesa dos ignorantes, dos<br />

homens-da-terra e até em companhia de pecadores e publicanos – tudo para ensinar a essa gente os caminhos do bem. E que se<br />

rodeava de crianças e as abençoava. Mas o que mais nos calou foram certos versos das suas doutrinas, repetidos por aquelas<br />

testemunhas – versos que nos falaram ao coração. Um deles: “Não julgueis, para não serdes julgados”. Também ouvimos<br />

repetir algumas das parábolas que lhe saiam dos lábios – denunciativas de haver nele um seguidor de Hillel. Outros ditos que<br />

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nos chegaram mais tarde, porém, nos puseram em grande perturbação. Foi quando Judas propôs a Nicodemo que o deixasse ir<br />

para a Galiléia. “Manda-me, que eu descobrirei quem ele é”.<br />

E tanta foi a importunação de Judas que meu rabi reuniu a Companhia. Estiveram presentes José de Arimatéia,<br />

Simão Cirene, Hillel, o aguadeiro e Abraão ben Abraão o novo converso. Foi decidido aceitar a idéia do homem de Kiriot.<br />

Meu rabi deu-lhe esta última recomendação:<br />

− Procura o homem e vê-lhe os feitos; dá ouvidos às suas doutrinas e descobre-lhe todos os seus meios. Mas não<br />

te esqueças nunca das palavras do mais sábio dos homens, o rei Salomão, quando avisou as filhas de Jerusalém com estas<br />

palavras: “Eu vos acuso de não despertardes meu amor até que ele deseje”. “Meu amor” aqui significa o Messias. Estás<br />

compreendendo, Judas?<br />

− Sim, sim, rabi, respondeu Judas, ansiosamente.<br />

− Vai então em nome de Deus. Talvez realmente haja o Senhor se apiedado de Seu povo, porque as águas já<br />

começam a alcançar o nível de nossas bocas.<br />

Judas arrumou suas coisas no saco, pô-lo às costas e de bordão em punho partiu para K’far Nahum. Unicamente<br />

o rabi Nicodemo o acompanhou até certa distância, porque a Companhia ia guardar segredo daquela missão, não deixando que<br />

fora de seu círculo alguém soubesse do passo.<br />

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Não surpreendeu aos membros da Companhia que aquele entusiasta, imediatamente caísse sob a influência do<br />

visionário da Galiléia, passando de investigador a advogado de Yeshua. O que surpreendeu foi a duração desse estado d’alma<br />

de Judas. Porque suas cartas não cessavam de chegar de Judá, longas e ardentes, escritas e transmitidas secretamente, e todas<br />

proclamando que agora, afinal, com a máxima segurança e nenhuma hipótese de erro, havia ele encontrado o que tanto<br />

procurara. Judas escreveu das maravilhas eu o seu novo rabi operava diariamente, e expôs-lhe as doutrinas e falou da glória<br />

que dele esperava. A sede que por tanto tempo Judas suportava estava sendo saciada. Ao receber suas cartas o nosso rabi<br />

chamava os companheiros, sentava-se no banco do Messias e dava-lhes conhecimento do conteúdo. Nós, os discípulos, não<br />

tomávamos parte nessas sessões; rondávamos junto à porta fechada, e o ouvido às fendas, na esperança de apanhar qualquer<br />

coisa que lá se dissesse.<br />

Era evidente a importância daquelas reuniões. Nosso rabi conservava-se de boca fechada, mas a mudança nele<br />

operada não podia ficar oculta. Em seus olhos eu via uma luz nova; e em seus modos uma inquietação jamais observada e<br />

tendente à impaciência. Já não nos lecionava como antes, muito atento a todos os detalhes da interpretação; falava com mais<br />

generalidade. Dirigia-nos menos para as leis e mandamentos, ou o Halachah, do que para o Agada, as coisas ditas, as histórias<br />

e suas morais. Havia também algo de misterioso nas sugestões emanadas do que dizia; ele citava com muito maior freqüência<br />

as palavras dos profetas, acentuando, mas não esclarecendo, as significações ocultas. Mas tudo isto era nada em comparação da<br />

tempestade que ia lá fora. Não sei se outros além de nós, os discípulos de Nicodemo, haviam tido alguma sugestão das cartas<br />

de Judas à Companhia, ou se a conexão com o rabi da Galiléia fora revelada de K’far Nahum. Nem sei com certeza se tal<br />

conexão foi realmente estabelecida. Só sei que quando o Sanhedrim e os Sumos Sacerdotes começaram a dar atenção ao rabi<br />

da Galileia, o meu rabi Nicodemo se viu a ele relacionado e entrou em suspeita. E súbito o nosso rabi desapareceu;<br />

descobrimos que tinha ido para K'far Nahum em missão do Sanhedrim. O que mais nos espantou foi que não levasse consigo<br />

nenhum de nós, já que um rabi jamais sai sozinho. Não nos deixou nem sequer acompanha-lo até parte do caminho, como era<br />

praxe. Protestamos contra isso, porque não podíamos ser privados da virtude de servir ao nosso rabi. É uma virtude que não<br />

pode ser desprezada, mesmo quando dela nos dispensa um rabi. E foi preciso que Nicodemo se mantivesse com a maior<br />

energia na recusa para que nós nos resignássemos. E, mais: proibiu-nos de dizer a quem quer que fosse que ele havia saído de<br />

Jerusalém.<br />

Não falarei da impaciência com que esperamos o seu retorno. Sentíamo-nos oprimidos não só pela ansiedade<br />

como por um sentimento de orfandade. Reuniamo-nos diariamente e repetíamos as lições que ele nos havia ensinado antes de<br />

partir; estudávamos as leis e o Agadot e procurávamos recordar as sugestões que tinham acompanhado os textos. Mas não<br />

havia felicidade nesses estudos; ficávamos ali como homens sentados em quarto escuro e que contam uns aos outros as<br />

maravilhas da luz do sol. E quando o nosso rabi voltou, depois de duas semanas de ausência, com dificuldade o reconhecemos.<br />

Fora-se-lhe a alegria do aspecto. Aquele mestre sempre tão às claras com seus discípulos e com o mundo, parecia agora um<br />

livro de sete selos. Ele que sempre olhara para a tristeza e para a “escuridão do espírito” como artes de Satã, sentava-se agora<br />

afastado de todos e imerso na mais profunda tristeza. Mas logo notamos que era tristeza de tipo todo especial, que não vinha do<br />

desespero, da rendição, do fracasso. Era como que um estado de suspensão; uma nuvem cobria seus olhos, mas na sombra a<br />

expectação espiava. O rabi Nicodemo se tornara um sonhador. Pronunciava palavra que eram por metade dirigidas a nós e pelo<br />

restante a algo lá dentro de si mesmo, porque tinham a significação obscura. E quando nesse estado, ele se assustava se alguém<br />

abria a porta ou batia. Pior ainda: descobrimos que não conciliava o sono à noite; levantava-se e saía a errar pelas desertas ruas<br />

da cidade.<br />

E então um judeu da Galiléia apareceu-nos certo dia na casa de estudo. Adivinhamo-lo pelo vestuário e pelo<br />

acento, quando perguntou pelo nosso rabi. Mas foi tudo, porque o nosso rabi se fechou com o homem numa sala e o que entre<br />

eles se passou nunca o soubemos. Nosso rabi saiu desse encontro com grande agitação, a cabeça erguida, o rosto radiante,<br />

como se a gloria do Shekhinah sobre ele houvesse descido. Houve aquela noite reunião da Companhia, e na manhã seguinte,<br />

com grande surpresa nossa, Nicodemo deixou a cidade. Não foi longa a sua ausência, como receáramos; e de volta mostrou-se<br />

muito mudado. Era o nosso velho rabi Nicodemo que ressurgia, o anterior ao recebimento das cartas de Judas. Desapareceralhe<br />

do aspecto o ar sonhador, cessaram os seus silêncios e a sua tristeza; a paz lhe voltara ao coração, afinal. A velha<br />

tranqüilidade de seus olhos anunciava ao mundo que tudo ia bem. A fé e a segurança, suas antigas companheiras estavam de<br />

novo a seu lado. Nossas lições foram retomadas, e agora nos dirigia ele, mais uma vez, para as velhas regulações e<br />

mandamentos dos dias de Moisés, a nós transmitidos pelos velhos mestres. Compreendemos afinal que ainda não era chegado<br />

o tempo da abrogação da lei; e que o julgamento de Edom, que pairava sobre nós qual espada, ainda não ia ser removido.<br />

E por fim chegou o inesquecível momento do nosso primeiro encontro com o rabi de Nazaré.<br />

Foi um encontro inesperado, não anunciado nem arranjado. Estávamos em serviço do Sábado na sinagoga dos<br />

cirineus, pela manhã já chegados à leitura do Torah, quando de súbito as brancas vestes do Nazareno apareceram à entrada,<br />

brilhando contra o fundo negro dos discípulos que o acompanhavam. Todos os fiéis se achavam reunidos; os dignitários<br />

ocupavam o banco junto à parede ocidental – porque o Templo fica a oeste da nossa sinagoga. O Ab ha-Kneset, ou Pai da<br />

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Congregação, era José de Arimatéia. Estava de pé com o meu rabi, um à direita e outro à esquerda do Torah. O S’gan, ou<br />

Capitão da Sinagoga, lia a parte do Pentateuco daquela semana. De repente, um sussurro: “O rabi de Nazaré... O Nazareno...”<br />

A presença do Nazareno em Jerusalém já era largamente sabida, e o milagre lá operado era assunto de muita<br />

discussão e divisão de parecer, sobretudo entre os mestres – porque ele havia curado um doente no Sábado. A sua aparição ali<br />

na sinagoga despertou intensa curiosidade. Com um gesto o rabi Nicodemo restaurou a ordem, e em seguida mandou um<br />

auxiliar ao encontro do Nazareno, convida-lo a sentar-se no banco semicircular, entre os dignitários da congregação. Podia ter<br />

ido ele mesmo, se o Torah não estivesse aberto diante dele – mas como afastar-se dali sem dar as costas para o Torah? E o rabi<br />

de Nazaré recebeu o convite e foi sentar-se no banco de pedra, deixando seus discípulos na entrada.<br />

Tive a minha primeira visão do homem das maravilhas, cujo nome já tanto se espalhara. Eu e Rufo estávamos<br />

sentados juntos, com os corações aos pulos. Tínhamos a impressão de que saiam faiscas de luz daquelas vestes brancas. Seu<br />

rosto era pálido, emoldurado em pequena barba negra com fios de prata; lado a lado desciam-lhe cachos de cabelo.<br />

Melancólico sorriso pairou em seus lábios finos quando depois de sentado sua atenção se foi para a leitura do Torah. As<br />

crianças da sinagoga, atraídas pelo estranho das suas vestes e excitadas pelo seu nome – um nome já bastante repetido,<br />

aglomeravam-se perto dele, muito atentas. Um dos funcionários da sinagoga levantou-se e fez menção de ir afasta-las de lá,<br />

mas o rabi de Nazaré pôs nele os olhos e o severo funcionário sentou-se de novo; e então o rabi de Nazaré sorriu para as<br />

crianças, convidando-as a se aproximarem mais. Elas o fizeram, lentas e tímidas, com o medo na expressão, mas o acariciante<br />

olhar do rabi as sossegou; aproximaram-se mais e mais e chegaram até a tocar em suas vestes; e o rabi pôs-lhes a mão nas<br />

cabecinhas e moveu os lábios numa bênção silenciosa.<br />

O S’gan pronunciou o nome do rabi e com o ponteiro indicou a passagem a ser lida: “Nosso mestre, o rabi<br />

Yeshua ben Joseph, está convidado a subir até ao Torah!” O Nazareno ergueu-se, afastou carinhosamente as crianças e subiu<br />

ao púlpito. O S’gan passou-lhe um tallit, com o qual o rabi se envolveu, fechando os olhos e sussurrando a bênção. Depois<br />

lançou a bênção sobre o Torah, leu a passagem, enunciou a bênção do fechamento e desceu do púlpito, tudo de acordo com as<br />

prescrições.<br />

Nesse momento meu rabi aproximou-se de Reb Yeshua ben Joseph e convidou-o a subir novamente ao púlpito e<br />

pregar à congregação, como era o costume quando um rabi comparecia às sinagogas aos sábados. E o rabi de Nazareth acedeu.<br />

Envolto no tallit, como durante a leitura, subiu pela segunda vez ao púlpito, e lá seus lábios se moveram em<br />

silenciosa prece. Depois se aproximou do auxiliar que sustinha o rolo do Torah. Tomou-o e sentou-se na “Cadeira do Messias”<br />

que fica dentro do púlpito e é ocupada nos julgamentos pelo chefe do tribunal. E com o rolo do Torah ao colo começou a<br />

pregar.<br />

A congregação estava profundamente comovida com a simples presença ali do homem maravilhoso de quem<br />

tanto se falava; e essa emoção se tornou confusa diante do modo de comportar-se o Nazareno em tal ensejo. Porque não ficou<br />

de pé diante da congregação enquanto pregava, como os rabis sempre fizeram, mas sentou-se no assento do julgador e pôs o<br />

Torah sobre o colo, como se ele fosse um rei? Nada mais claro que aquele rabi se tinha como diferente dos outros, e ousava<br />

fazer coisas que iam encher o coração dos judeus das mais altas esperanças.<br />

Se não fosse a grave e piedosa expressão do rosto de meu rabi Nicodemo, de pé junto ao púlpito e cujo olhar<br />

impunha silêncio à congregação, e a estranha conduta do rabi de Nazaré teria provocado gritos de protestos. Mas o silêncio<br />

fora imposto e ouvia-se o bater dos corações. Hillel o aguadeiro, que usualmente ficava humildemente à porta, deixara-se<br />

arrastar pela excitação e viera para quase junto do púlpito. Atrás dele estavam Simão Cirene e o converso Abraão ben Abraão,<br />

com o tallit a vestir a sua dolorosa disformidade. Os discípulos do Nazareno também se haviam aproximado do púlpito; Judas<br />

Ish-Kiriot colocara-se bem na frente; do outro lado estava Simão bar Jonas, de guarda aos degraus, e a seguir os filhos de<br />

Zebedeu.<br />

As palavras do rabi de Nazaré foram no começo brandas e macias. Falou do poder da fé, da confiança no<br />

Onipotente e da ação de prece.<br />

− Pede e te será dado. Bate e abrir-te-ão. Porque quem quer que ora será recebido, e quem quer que procura<br />

encontrará, e para quem quer que bata as portas se abrirão.<br />

Sua fala acalmou a agitação provocada pelos seus primeiros atos. Porque ele falou por meio de parábolas que<br />

punham doçura nas idéias. Quando falou da fé, pediu aos ouvintes que atentassem nas aves do campo, que não semeiam, nem<br />

colhem, nem enceleiram, e não obstante são nutridas por Deus. “E quanto mais que as aves sois vós!” disse ele. “E qual de vós<br />

pode aumentar a própria estatura de um só cúbito?”<br />

A grande maioria dos freqüentadores da nossa sinagoga era formada de pobres trabalhadores, em regra<br />

tintureiros, porque os cirineus haviam trazido de Cirene os segredos da coloração da lãs; havia também ali ourives e<br />

trabalhadores do bronze, e celeiros e tecelões. Para esses filhos da pobreza as palavras do rabi de Nazaré eram como ungüento<br />

sobre ferida. Mas também os sábios ali da assistência admiravam o seu sermão. Percebiam a força da fé daquele rabi e a sua<br />

confiança em Deus; e em seus corações louvavam-lhe as palavras, porque eram das que erguem o ânimo dos fracos e dos<br />

humildes. No começo se haviam alarmado com os modos do rabi, o qual não começara o sermão do modo tido como próprio,<br />

com versos do Torah, ou dos Profetas, ou dos Salmos ou mesmo de ben Sirah; nem fizera menção do nome de outros rabis,<br />

nem citara os que tinham sido seus mestres. Falara de autoridade própria. Mas com a continuação o discurso do rabi os foi<br />

vencendo; e eles viram que aquilo não passava dum modo pessoal de agir, porque a substância não diferia dos pensamentos<br />

dos nossos rabis e sábios.<br />

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Não obstante começamos a sentir que estávamos diante dum rabi de tipo totalmente novo. Na realidade não era<br />

um rabi; era algo mil vezes mais alto que um rabi. Como medi-lo? Estaríamos acaso na presença da mais alta esperança dos<br />

judeus? Porque agora ouvíamos palavras que não tinham sido ditas nem por Moisés no Sinai. Quem era aquele homem ali<br />

sentado com o Torah ao colo? Nossos corações começaram a derreter-se de terror, nossos joelhos tremiam. Entreolhávamo-nos<br />

com assombro e terror. Quem sabe se Deus não nos iria erguer às portas do céu e escancará-las, para que víssemos a irradiação<br />

do poder pelo qual havia tanto tempo nossos corações ansiavam! Ou iríamos ser lançados num abismo?<br />

Yeshua começou a falar por conta própria, como que autorizado pela mais alta autoridade. Falou da nossa eterna<br />

esperança de socorro e nos intimou a estar despertos. “Deixai que se acendam as vossas candeias. A cada momento pode<br />

chegar num raio o reino do céu”.<br />

Vozes interpelaram:<br />

− Mas quando virá o reino do céu?<br />

E ele respondeu:<br />

− O reino do céu não vem de palavras. Não podeis dizer que está aqui ou ali; porque, atentai, o reino do céu está<br />

em vós mesmos. Como o relâmpago que rutila dum extremo do céu a outro, assim será em seu dia o Filho do Homem.<br />

Foi como se um raio caísse sobre nós. Da congregação subiu um murmúrio aterrorizado.<br />

− Mas essas palavras só podem significar o Filho, o Ancião de Dias, que estava ao lado de Deus ainda antes da<br />

Criação do Mundo, dizia um.<br />

recurvo.<br />

− Ou, ele pode referir-se apenas ao Filho do Homem que está para vir salvar-nos, murmurou um velho judeu<br />

− É “a águia que se erguerá do mar”, da visão de Daniel.<br />

E de todos os lados a pergunta era a mesma:<br />

− A quem se refere ele? Quem está ele indicando?<br />

E a voz do rabi soou alta:<br />

− Israel, não sois de Deus a mais amada herança? O campo que dá os primeiros frutos? A vinha cuja uva é<br />

trazida para a Mesa da Casa Sagrada? Quem, então, semeou de pedras vossas leivas, de modo que o arado se quebre de<br />

encontro e entorpeça?<br />

A impaciência havia empolgado os fiéis.<br />

− Dizei-nos quem és!<br />

E o estranho rabi abriu os lábios e declarou em voz poderosa.<br />

− Eu sou o pão da vida. Aquele que me come não terá fome, e os que crêem em mim nunca terão sede. Eu sou a<br />

árvore que Deus plantou; e florescerão e prosperarão os unidos com as minhas raízes; mas os não unidos com as minhas raízes,<br />

esses murcharão. Ao que tem sede deixai que se venha a mim e beba, porque eu sou a fonte da vida. Sou o pão que desceu do<br />

céu. Na verdade vos digo que aquele que crê em mim terá vida eterna.<br />

Se o céu se houvesse aberto sobre nossas cabeças e hostes de anjos descidos para se colocarem à direita e à<br />

esquerda do rabi de Nazaré, não ficaríamos em maior estado de espanto. Por uns instantes o silêncio foi profundo, como se nos<br />

tivéssemos transformados em estátuas. Depois um velho ergueu-se do banco e perguntou:<br />

− Não é este Yeshua, o filho de Joseph? Não conhecemos nós seu pai e sua mãe? Como então diz ele que “veio<br />

do céu?” Que palavras são essas?<br />

Um outro velho levantou-se e disse:<br />

− Apareceu-nos Moisés e mandou-nos crer no Torah por ele trazido do Sinai. Apareceram-nos os profetas,<br />

mandando-nos crer no Deus vivo. Este aparece-nos e só manda que creiamos nele. Quem é este homem? Um maior que<br />

Moisés? Um maior que os profetas?<br />

O murmúrio aumentava entre os fiéis, os quais se diziam uns aos outros:<br />

− Se ele diz tais palavras, então é um profeta.<br />

− Não, se fosse profeta não diria tais palavras, porque são as palavras que só podem sair da boca do Messias.<br />

− Messias! Messias! Quem ousa invocar aqui essa palavra tremenda? Terra e céu! Não declara a Escritura que o<br />

Messias virá da semente de Daví e da cidade de Belém?<br />

Mãos se espichavam para o rabi de Nazaré, olhos cheios de assombro não se despregavam de suas vestes, lábios<br />

tremiam com a pergunta: “Quem és tu?”<br />

O Nazareno correu os olhos pela congregação e respondeu:<br />

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“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

− Eu sou aquele que mencionei no começo. Muito tenho a dizer-vos e muito julgamento a pronunciar. Aquele<br />

que a vós me mandou é verdadeiro. E o que dele ouvi, digo-o ao mundo.<br />

O ancião que primeiro se levantara do banco de pedra voltou-se para o rabi Nicodemo e interpelou-o:<br />

− Tu, que és um rabi de Israel, como te calas enquanto ele blasfema contra o Sagrado Um de Israel e nada dizes?<br />

− Deus não permita ouça eu blasfêmias de seus lábios, respondeu Nicodemo. Cada judeu tem o direito de falar<br />

em nome do Sagrado Um de Israel, se nos é mandado com mensagem.<br />

Mas aqui o rabi de Nazaré se ergueu do assento de juiz e falou, envolto no tallit, com o rolo do Torah em punho:<br />

− A voz saiu, quem pode recolhe-la? O trabalho começou, quem pode faze-lo recuar? Eu sou a porta; salvo será<br />

quem me transpuser. Na verdade vos direi que sou a porta das ovelhas. Sou o bom pastor; o bom pastor vive para as suas<br />

ovelhas. Assim como conheço o pai e o pai me conhece, assim darei minha vida pelas minhas ovelhas.<br />

Essas palavras fizeram que o tumulto recrescesse.<br />

− A quem chama ele pai? Quem é o pai?<br />

− Não vedes que há um demônio nele? Louco é! Por que lhe ouvirmos o palavreado tonto?<br />

− Demônio? Que demônio fala assim? Pode um demônio dar vista aos cegos?<br />

− Não devemos ouvir essas palavras, gritaram outros – e em sinal de protesto abandonaram a sinagoga.<br />

Mas o Nazareno não deixava o púlpito; sempre envolto no tallit e de rolo em punho, continuou a predica:<br />

− Maior que o desejo de mamar da bezerrinha, é o desejo de dar de mamar, de sua mãe. Maior que a vossa sede<br />

pelo redentor é o meu desejo de vir-vos ao encontro. Lá do céu o vosso Pai viu vossas necessidades e apressou-se em auxiliarvos.<br />

E agora que a salvação bate às vossas portas ireis conserva-las fechadas? Não estáveis sempre à espera do redentor?<br />

Mas os fiéis ainda davam de ombros e olhavam-se uns para os outros, inquirindo:<br />

− Quem é ele, para chamar-se a si mesmo a salvação?<br />

E de novo mãos se espicharam para o rabi de Nazaré, pedindo:<br />

− Diz-nos quem és!<br />

Mas o Nazareno continuou a pregar:<br />

− A ovelha conhece a voz do pastor. Eu sou o bom pastor e conheço minhas ovelhas e minhas ovelhas me<br />

conhecem. E assim como o pai me conhece e eu conheço meu pai, assim dou a vida pelas minhas ovelhas. E tenho outras<br />

ovelhas que não fazem parte do rebanho, e entretanto eu as alimento. E elas ouvirão minha voz, e virão, e só haverá um<br />

rebanho e um pastor.<br />

Estas palavras do Nazareno fizeram que ainda mais crescesse o tumulto, com descontentamento ainda entre os<br />

mais pobres e simples, os quais até ali vinham ouvindo com a confiança estampada no rosto. E vozes soaram:<br />

− Não somos nós os filhos de Abraão, para os quais foi prometida a salvação? Não nos elegeu Deus como o seu<br />

povo favorito? E por causa disso não trazemos sobre os ombros o jugo do Torah?<br />

Gritos se elevaram:<br />

− Que é que ele quer? Dirigir-se aos gentios? Aos gregos? Aos filhos de Tiro e Sidon?<br />

E o rabi no púlpito continuou a falar:<br />

− Ouvi-me. Com que se parece isto? Com um pai que tinha seis filhos, todos natos cegos, e tinha um sétimo que<br />

via. E quando estava o pai ocupado no campo ou no celeiro, mandava que o mais moço tomasse conta dos outros seis e os<br />

levasse ao trabalho e os trouxesse à casa paterna para as refeições. E os cegos odiavam o irmão mais moço que via, porque o<br />

invejavam. E quando ele lhes disse do sol que brilha nos céus de dia, e da lua e estrelas que brilham de noite, e disse da cor das<br />

flores e do verdor dos campos, os cegos gritaram que tudo era mentira, e que aquele irmão mais moço era um mentiroso. “Não<br />

há luz do sol ou da lua”, disseram eles; “e não há cor nas flores, nem verde nos campos. Ele vê tais coisas em sua imaginação,<br />

porque o que há é só a noite sobre tudo”. Ora, aconteceu que um vidente veio ter à cidade e o pai disse ao filho mais moço:<br />

“Deixo teus irmãos a ti entregues, pois vou à cidade ver o vidente com ele falar; pode ser que me cure a cegueira de meus<br />

filhos. Mas toma tu cuidado com teus olhos, porque se também perdes a vista, terei dado ao mundo toda uma geração de<br />

cegos”. E o pai se foi à cidade, e enquanto lá estava confabularam entre si os irmãos cegos: “Unamo-nos e agarremos o nosso<br />

irmão mais moço e furemo-lhe os olhos, para que cesse de mofar de nós com as coisas que refere, lua no céu, cores, quando o<br />

certo é que Deus cobriu o mundo com a escuridão”. E eles caíram sobre o irmão mais moço e manietaram-no e apalparam-lhe<br />

o rosto e tocaram-lhe nos olhos. E disseram-lhe: “Confessa agora que mofaste de nós e que no mundo só há noite”. Mas o<br />

irmão mais novo gritou: “Não me tireis a luz dos olhos, a última luz deixada à nossa geração. Porque se me fechais os olhos,<br />

nossa geração não poderá mais ver a luz, nem dá-la às gerações que virão depois”. Mas os cegos responderam: “Tudo mentira!<br />

Confessa que nunca viste luz e que o escuro reina sobre o mundo”. E quando o irmão mais novo reafirmou que via a luz de<br />

Deus, eles lhe furaram os olhos. Mas o irmão mais novo guardou em seu coração a luz de Deus e continuou a dizer da luz do<br />

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sol e da lua e das estrelas e da cor das flores e do verde dos campos. E gritava: “Eu vejo! Eu vejo!” Porque aquele que viu a luz<br />

fica com a luz dentro de si e nenhum poder tem força para extinguir essa luz. E assim o irmão mais moço guardou a memória<br />

da luz até que o pai voltasse da cidade em companhia do vidente. E quando viu o pai que o filho mais moço também se tornara<br />

cego, chorou e lamentou-se, dizendo: “Agora a minha velhice vai ser só trevas”. Mas o filho mais moço consolou-o, dizendo:<br />

“Pai, em minhas trevas eu vejo a luz de Deus, porque dela guardei memória em meu coração e me não deixei carregar pela<br />

onda das trevas. E sempre que meus irmãos gritam: “Trevas! Trevas!” eu respondo: “Luz! Luz!” E o pai disse: “Eu te abençôo.<br />

Grande será tua recompensa por haveres guardado a luz dentro das trevas. Mas agora os teus irmãos também vão ver e saberão<br />

que a luz de Deus existe no mundo. Porque eu trouxe comigo um abençoado vidente. E é melhor que eles tenham estado cegos<br />

até agora do que houvessem seguido uma luz falsa; porque o cego pode tornar a ver, mas ai do que vê falsamente, porque esses<br />

são os cegos eternos”. E então o pai deu a bênção do vidente aos seus seis filhos e aqueles olhos se compuseram e eles viram a<br />

luz de Deus sobre o mundo. E envergonharam-se do que suas trevas haviam feito e disseram ao irmão mais moço: “Irmão,<br />

perdoa-nos o que te fizemos, a dor que te causamos e a amargura. Feliz tu que guardaste a luz de Deus!” Pouca coisa será para<br />

ti, Israel, que Deus te haja confiado a luz do mundo para benefício de todos os teus irmãos? Grande é a tua recompensa, ó<br />

Israel. Em teu nome serão abençoados os povos do mundo.<br />

Ouvida esta parábola até o fim, o ânimo dos fiéis serenou e eles se disseram entre si:<br />

− Esperemos o fim desta coisa. Pode ser que haja Deus se amerceado de nós e enviado um redentor que nos<br />

socorra em nossa necessidade. As palavras deste rabi são boas – temos agora que aguardar seus feitos.<br />

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Aquelas palavras que o rabi enunciou em nossa sinagoga breve se espalharam por toda a cidade. Alguns sábios<br />

se ofenderam de que o nosso rabi Nicodemo tivesse ouvido as palavras do Nazareno e deixado que ele falasse até o fim. Mas a<br />

gente comum e os que ouviram Yeshua na sinagoga esperavam que os feitos logo se seguissem às palavras. E para onde quer<br />

que ele fosse, lá ia a multidão atrás, não tanto para ouvir suas palavras, como para presenciar os milagres. E seu nome entrou a<br />

crescer dia a dia – e com ele a expectação geral.<br />

Mas como o tempo se ia passando e nada vinha de portentoso, as divergências de opinião começaram a acentuarse.<br />

E muitos deram de abertamente mofar do rabi e seus discípulos. Quando em disputa com os saduceus sobre a ressurreição<br />

ou quando dizia parábolas numa assembléia, vozes se levantavam repetindo a velha história de que nada de bom vinha de<br />

Nazaré. Incréus iam ter com os discípulos do rabi e indagavam sobre quando o reino do céu ia descer sobre os homens. Mas<br />

outros diziam: “Do alto do saco ninguém pode dizer o que há no fundo. Cuidado com o que dizem dele”. Mas a primeira onda<br />

de entusiasmo havia passado, e tanto os que nele criam como os que nele não criam começaram a afastar-se. E a muitos o rabi<br />

inspirava medo, por causa dos milagres que lhe atribuíam; e muitos nem ânimo tinham de lhe tocar nas roupas.<br />

Os sábios não sabiam o que fazer. Freqüentemente aproximavam-se do rabi da Galiléia e propunham-lhe<br />

perguntas, na tentativa de sondar até que ponto ele respeitava o Torah. Mas suas respostas eram sempre Sim e Não. Certas<br />

vezes parecia-lhes que Yeshua estava radicado no Torah de Moisés e ensinava-o segundo tradição corrente; isso o punha entre<br />

os discípulos de Hillel. Mas outras vezes a impressão era de que ele tinha uma doutrina própria, coisa tão nova e fora do<br />

comum, que os ouvintes se assustavam. Quando lhe perguntavam de onde tirara aquela doutrina, respondia ele com tal<br />

autoridade como se a houvesse recebido diretamente do céu, ao modo de Moisés no Sinai. Mais duma vez sugeriu que fora<br />

realmente assim – o que alimentou muita controvérsia entre os sábios e escribas. E contra estes era áspera em extremo a<br />

linguagem do rabi, o que tudo contribuía para a divergência de opiniões entre os sábios, como já se observava no povo comum.<br />

Pretendiam alguns que ele interpretava a lei de modo acessível aos incultos, e que com suas parábolas atraía os homens para o<br />

céu – e portanto o seu trabalho era abençoado. Outros contendiam que ele degradava o Torah, e citavam o velho dito:<br />

“Dispensamos igualmente o teu mel e o teu ferrão”.<br />

Eis o que tive ensejo de ver certo dia.<br />

Na praça do mercado da Cidade Baixa, onde vendedores de óleo e vinho expõem suas mercadorias em aberto,<br />

grande massa de gente se havia juntado. Como eu saísse da casa de estudo com o meu amigo Rufo, ao ver aquilo aproximeime,<br />

curioso. A causa do ajuntamento era o Nazareno, que reconheci a distância pela alvura da veste. Junto a ele estava um<br />

homem, evidentemente espancado, cuja veste de pelego, em frangalhos, dizia não ser habitante da cidade. Tanto no rosto como<br />

no corpo trazia marcas de violências recente, com o sangue ainda a gotejar. Parece que tinham os discípulos do rabi salvo<br />

aquele homem e ainda o defendiam, porque os negociantes de óleo e vinho ainda tentavam agarra-lo. E berravam que aquele<br />

homem lhes dera um prejuízo imenso. Informei-me do que fora e vi que se tratava dum incidente muito comum nos mercados<br />

de Jerusalém. Um rústico da Galiléia – o homem do pelego em frangalhos – vinha passando com seu gado à frente, e vinha<br />

roendo o seu pão – aquele pão dos rústicos e imundos, que é ritualisticamente impuro; e de passagem deixou cair um<br />

pedacinho num dos recipientes de azeite. E então começou a disputa, porque a isca de pão contaminara aquele pote<br />

destampado, e portanto todos os potes destampados daquela feira estavam corrompidos e tinham de ser postos fora de uso. Os<br />

mercadores de vinho, óleo e mel de Jerusalém são extremamente piedosos e singularmente rigorosos na observação das leis da<br />

pureza. E acusaram o homem de haver cometido o crime de propósito – e a verdade é que muitas vezes um “rústico”, no seu<br />

ódio contra os de Jerusalém, mais sabidos no conhecimento da lei e com monopólios de comércio que este maior<br />

conhecimento lhes conferia, vingavam-se daquela maneira, isto é, contaminavam-lhes as mercadorias expostas ao público.<br />

Ora, aconteceu que o rabi de Nazaré vinha passando no momento em que os mercadores agrediam o homem, e<br />

mandou que seus discípulos o salvassem. E ao saber do que houvera, pôs-se do lado do rústico, em vez de condená-lo. A coisa<br />

soou a novidade completa. Um rabi de Israel recusara-se a tomar o partido dos mercadores prejudicados; não chamara os<br />

guardas para que levassem o ofensor ao Pequeno Tribunal; salvara o homem – que lá estava a tremer no meio do povo, cabelos<br />

em desordem, rosto em sangue – e não só o consolara como lhe dera razão! Semelhante atitude não revoltava apenas os<br />

mercadores daquela feira, sim também os fregueses – daí as murmurações.<br />

− Ainda ontem, queixava-se um oleiro em palavras apenas inteligíveis em virtude de seus maus dentes, ainda<br />

ontem um desses tipos imundos contaminou uma dúzia de panelas minhas. Toda gente me conhece. Sou daqui de perto, da<br />

aldeia de Mediah. E todos podem testemunhar que conheço a lei, os mandamentos da pureza e tenho minhas panelas<br />

ritualmente perfeitas, pois que as fabrico dentro de todas as prescrições aprendidas. Num instante em que virei as costas,<br />

chega-me um rústico, um verdadeiro bicho, e acocora-se entre minhas panelas para comer lá a imundície que comem. Ora,<br />

basta que uma migalha daquela comida espirre de sua boca sobre uma qualquer coisa para torna-la impura – e tive de reduzir a<br />

cacos todas as minhas panelas em redor dele, uma dúzia. Assim queixou-se o oleiro, semeando a cara dos ouvintes com um<br />

chuvilho de perdigotos.<br />

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− Dez medidas de cevada perdi eu do mesmo modo, a semana passada, queixou-se outro. Toda esta boa gente<br />

me conhece. Só trago para a feira cereal que já pagou os dízimos e o mais, de modo que as pessoas mais piedosas podem<br />

compra-lo sem temor. Também moro perto daqui, em Modiin, de modo que estou dentro da zona de permissão dos rabis. Pois<br />

não é que me chega um vendedor de grão lá de não sei de onde e espirra o seu centeio no meu? Tive de deitar fora dez medidas<br />

– ele o fez de propósito!<br />

− E eu, então? gritou um terceiro. Outro dia um rústico derrubou um pedacinho de carne em meus azeites. Eles<br />

fazem isso de propósito, sim. Vamos levar esse malvado ao juiz.<br />

O rabi de Nazaré olhou melancolicamente para os exaltadíssimos mercadores. Estendeu a mão no rumo do<br />

Templo e disse:<br />

− Ai de vós fariseus! Vossas leis são mais preciosas do que a vontade divina. Com as vossas leis e regulamentos<br />

destruís a palavra do nosso pai do céu.<br />

Ouvindo aquilo, a multidão se espantou. E vozes se ergueram:<br />

− Se rústicos cá vêm contaminar nossas coisas, que têm com isso os fariseus?<br />

− Não é o camundongo o ladrão, mas o buraco em que ele se oculta, gritou um dos discípulos do rabi – e<br />

voltando-me tive um vislumbre de Judas Ish-Kiriot, ou de sua barba, que foi o mais que vi.<br />

sai.<br />

O Nazareno continuou a falar.<br />

− Ouvi-me todos vós e entendei-me. Nada do que entra num homem pode faze-lo imundo e sim só o que dele<br />

Os ouvintes abriram a boca.<br />

− Que diz ele? Que quer significar? Não há mais então leis de pureza e impureza para nós judeus? Estaremos<br />

igualados aos pagãos?<br />

Os discípulos do rabi responderam por meio da interpretação de suas palavras:<br />

− Desejos, mentiras, maus pensamentos são o que sai de dentro de vós e o que voz faz imundos. Não o alimento<br />

que ingeris – esse alimento que Deus criou para o homem!<br />

Mas aquela interpretação não foi aceita. Alguém gritou: “Chega este homem e deita por terra o Torah de Moisés<br />

– e os sábios de Jerusalém sabem disso e não se movem”.<br />

− Não, ele não deitou por terra o Torah de Moisés. Não sabeis quem está falando? O profeta da Galiléia.<br />

− Que? Aquele que dizem que é o...<br />

− Sim, ele mesmo. Não deveis exigir palavras claras, porque só sugestões e relanços vos serão dados. Mas o<br />

Messias ben Daví tudo esclarecerá ele mesmo, foram as palavras de Judas Ish-Kiriot.<br />

− Messias Ben Daví! Esse nome correu num sussurro por entre a multidão, como corre a onda do vento por um<br />

trigal. O povo começou a afastar-se do rabi, como de algo sagrado e intocável. A notícia de seus milagres davam-lhe uma<br />

auréola visível. Os mercadores e fregueses calaram-se – e te-lo-iam apedrejado, se se tratasse de outro rabi.<br />

Quando voltamos, eu e Rufo, à nossa escola e contamos ao rabi Nicodemo o que tínhamos visto e ouvido,<br />

frisando o que o Nazareno dissera contra o Torah, espantamo-nos de sua calma. Em vez de enfuriar-se na defesa da lei,<br />

Nicodemo caiu em silenciosa meditação, e depois nos sossegou com estas palavras:<br />

− A própria conversa comum dum sábio merece estudo. E se da boca de um sábio alguém ouve coisas que a<br />

principio lhe soam incompreensíveis, e que parecem em contradição com o Torah, mantenha em suspenso as suspeitas; melhor<br />

admitirmos a nossa incompreensão do que falta de sabedoria no sábio. E quanto ao rabi de Nazaré, todos sabem que se trata<br />

dum Judeu piedoso e observador da lei. E também é sabido que timbra em honrar o Torah, pois que já declarou: “O mundo<br />

inteiro passará antes que um só til ou jota da lei de Moisés”. Por isso precisamos crer que há razão no discurso que ouvistes no<br />

mercado. E se não o entendemos, em tempo próprio ele nos mostrará que suas palavras são as do Deus vivo.<br />

Assim falou o rabi Nicodemo para sossegar nossos temores.<br />

Logo depois, estando nós, discípulos de Nicodemo, a conduzir os seus preparos para o banho, o frasco de óleo<br />

para a unção, camisa e a roupa limpa, aconteceu-nos passar por uma das ruas que levava ao mercado das verduras dos<br />

arredores de Jerusalém. Perto duma das barracas formara-se um agrupamento de povo em torno do rabi de Nazaré, o qual<br />

pregava com grande exaltação. Rodeavam-no mulheres da feira, cameleiros, carregadores e ociosos. E também donos de<br />

barraca, que as deixaram e aproximaram-se. Com muita surpresa nossa o rabi Nicodemo insinuou-se na multidão para também<br />

ouvir as palavras do galileu. Mas eram palavras como nunca as ouvíramos semelhantes. Verdadeiros chicotes de pontas de<br />

chumbo a descer sobre a cabeça dos sábios, escribas e fariseus.<br />

− Os escribas e fariseus, trovejava o rabi, sentam-se no assento de Moisés, e como vos mandam observar a lei, a<br />

lei tendes de observar. Mas cuidado em não procederdes como eles, porque eles não fazem como dizem. Lançam sobre as<br />

costas dos homens cargas que os homens não podem suportar – mas eles próprios não tocam na carga nem com a ponta do<br />

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dedo. E todos os atos que praticam, eles os praticam na vista dos homens. Alargam os cadarços de filatérios, encompridam as<br />

franjas das roupas, colocam-se nos lugares de maior destaque nos banquetes e nas sinagogas. Gostam de ser saudados nas ruas<br />

com o nome “Rabi! Rabi!” Mas não lhes dareis esse nome de rabi, porque um só é o vosso mestre e esse é o Messias e todos<br />

vós sois irmãos. E não chamareis a ninguém pai na terra, porque só um é o vosso pai e esse é o Pai Celeste.<br />

Olhei com horror para o meu rabi e vi que seu rosto empalidecera; e como se destacou do grupo e se afastou, nós<br />

o seguimos. E lá deixamos o rabi da Galiléia a fulminar os escribas e fariseus, sem que ninguém se opusesse ou respondesse.<br />

Até o nosso rabi, que era conhecido do povo e ao qual todos abriam caminho, tinha deixado passar em silêncio aquele desafio à<br />

liderança farisaica – e isso nos assombrava.<br />

Mas quando já nos íamos distanciando da multidão, vimos de súbito Judas Ish-Kiriot em nosso grupo. Tinha-nos<br />

visto e seguira-nos, abandonando o rabi da Galiléia.<br />

− Que o levou a falar assim? quis saber o meu rabi.<br />

− Verdureiros vêm do interior e põem à venda as suas verduras. Vendem-nas por preços menores que os<br />

agricultores dos arrabaldes de Jerusalém. Súbito, chegam os fiscais dos rabis e declaram que as verduras do interior são<br />

impuras. E vão os verdureiros do interior e perguntam por que razão os fiscais não investigam nas verduras dos agricultores<br />

dos arredores de Jerusalém, a ver se observaram o pagamento do dízimo das ervas. Ao que os fiscais responderam: “Os<br />

agricultores de Jerusalém, todos os que estão deste lado do Modiin, acham-se autorizados, por que é sabido que eles conhecem<br />

a lei. Mas vós vindes do interior e sois ignorantes da lei”. E então os verdureiros do interior levantaram uma grande grita<br />

contra os sábios escribas e fariseus. Disseram que os sábios e escribas favoreciam certas pessoas e desfavoreciam outras. E<br />

então as mulheres, que haviam comprado verduras mais baratas, tiveram de devolve-las e compra-las mais caras – e por causa<br />

disso muitas choraram. O rabi da Galiléia ia passando naquele momento e sua cólera não tardou a encapelar-se: Subiu os<br />

degraus duma barraca e começou a falar contra os fariseus.<br />

Meu rabi disse em voz baixa, mas não tão baixa que eu o não ouvisse:<br />

− Isso não me interessa, nem a causa do tumulto, nem seus ataques aos fariseus. O bom nome dos fariseus nada<br />

sofre. Mas não ouviu, Judas, o que disse ele quanto ao único mestre, que é o Messias? Será sua intenção ser revelado em<br />

Jerusalém?<br />

− Foi o que ele disse em K’far Nahum.<br />

− E quando?<br />

− Ignoro. Nada disse ainda quanto ao dia.<br />

Ao voltar de seu banho o nosso rabi, juntamos nas mãos a nossa coragem e interpelamo-lo da seguinte maneira:<br />

− Ensina-nos, rabi. Vimos o nosso rabi testemunhar os insultos lançados contra a honra dos sábios, escribas e<br />

fariseus, mas não o vimos tomar a defesa dos insultos. Como devemos entender isso?<br />

E o nosso rabi respondeu:<br />

− O mais sábio dos homens, o rei Salomão, disse: “Os punidores são brandos, e sobre eles cai a bênção de<br />

Deus”. Dessas palavras podemos deduzir que se algum de todo coração pune ou censura seu amigo de modo a leva-lo ao<br />

arrependimento, nesse caso a punição e a censura são por amor de Deus, e o punidor será abençoado. Por causa da<br />

pecaminosidade dos nossos tempos muitos há entre os sábios que usam o Torah como uma coroa de gloria e não como um<br />

jugo. Engrandeceram seu próprio nome de modo que pudessem governar o povo. Pois bem, esses sábios que cantam louvores<br />

ao Senhor afim de que sejam recompensados como Fineas, encheram-se de ódio contra o que usou aquelas palavras. Mas<br />

aqueles animados da verdadeira vontade do céu, esses o amam. Como o rei Salomão disse: “Pune o sábio, e ele te amará por<br />

isso”. Ora, o rabi da Galiléia estava cheio da vontade do céu. Porque ele não disse ao povo: “Os escribas e fariseus sentam-se<br />

no assento de Moisés; apressai-vos a fazer o que eles dizem”. Ele não fala contra o Torah e os seus verdadeiros interpretes,<br />

mas contra os homens cultos de espírito falso, que do Torah tecem um vestuário com que cobrirem a vergonha da sua nudez.<br />

Mas a despeito do que o meu rabi disse, não pude compreender como os sábios fariseus de Jerusalém não<br />

atacavam o rabi da Galileia. A mim me parecia que qualquer rabi que pronunciasse as palavras que o rabi da Galileia<br />

pronunciou contra as leis da pureza e da impureza teria sido levado ao Sanhedrim. Às vezes me vinha o pensamento de que o<br />

Profeta Galileu (como principiavam a chamar-lhe) deliberadamente fazia aqueles desafios. Em vez de temer a morte, era como<br />

se estivesse procurando o Anjo que Mata. Sua denúncia dos escribas não se confiará às ruas e praças do mercado; ele as repete<br />

até dentro dos pátios do Templo – e nenhum rabi responde. Será que não dão importância ao que ele diz? Porque às vezes noto<br />

como certos discípulos da Casa de Shammai passam por ele, quando ele está sentado nos degraus de um nicho, rodeado de seus<br />

seguidores, falando sobre a ressurreição, o Éden ou o Inferno; um ou dois se detêm, ouvem por uns momentos, depois sorriem,<br />

dão de ombros e seguem. Sim, e a alguns deles ouvi chamar-lhe shoteh, que significa louco ou tonto. Mas apesar disso sei que<br />

no segredo de seus corações inúmeros sábios nutrem grandes esperanças sobre esse domem das maravilhas. Porque não foi<br />

apenas o rumor de seus feitos o que lhe deu nome; isso só alcançaria as massas incultas. Há qualquer coisa impressionante em<br />

seu aspecto e em sua conduta. Muitos que o viram em sua veste branca e de tallit, pregando ao povo sobre as mais sagradas<br />

coisas de Israel, não puderam deixar de comover-se. E vinha a esperança: “Quem lá pode dizer? Talvez seja o Esperado”.<br />

Seria isto a força que obstava a que os sábios o denunciassem? Porque suas palavras freqüentemente se<br />

cravavam como flechas, e entre os Zelotes das escolas de Shammai lavrava fundo ressentimento.<br />

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Os saduceus olhavam para o rabi da Galiléia como para um homem que há perdido o juízo. Quando vinham ao<br />

pátio do Templo e por acaso davam com ele, sentado ou de pé, rodeado duma multidão de pobres aos quais pregava a<br />

ressurreição, iam ter com os guardas e levitas e os censuravam por permitirem aquilo. Também davam queixa às altas<br />

autoridades – donde a conversa nos altos círculos sobre a conveniência de proibir semelhantes sermões na área do Templo.<br />

Mas os fariseus consideravam tal passo como infração dos direitos gerais, pois que aquele homem estava dentro da lei e<br />

apoiava no Torah todas as suas afirmações. As autoridades saducéias também levaram em conta as multidões de pobres que<br />

formavam o grosso da assistência do rabi. Pobres como os do vale do Kidron tinham tão pouca felicidade neste mundo, que se<br />

agarravam àquelas consolações do outro mundo que o galileu pintava com brilhantes cores. Os chefes do Templo ponderavam<br />

a conveniência de deixar que o “louco da Galiléia” embalasse as massas com sonhos do futuro, o que as afastaria de participar<br />

em rebeliões contra a Casa de Hanan e o poder de Roma, como a fomentada por Bar Abba. E porisso deixavam-no livre para<br />

pregar, e muitos deles até bem contentes de que assim fosse. Balanceavam o que nas palavras do rabi os ofendia e o que os<br />

favorecia – e deixavam-no em paz, contra o parecer dos desejosos de leva-lo perante o Sanhedrim.<br />

Quando o assunto era o reino do céu, o galileu agitava violentamente o coração dos ouvintes; dava a entender<br />

que esse reino era um domínio privado seu, por ele distribuído entre os que o ouviam e obedeciam. Mas o rabi apavorava a<br />

outros, quando parecia identificar-se com a Suprema Santidade de Israel. Por isso os seus seguidores também disputavam entre<br />

si. E se acontecia que outros estivessem presentes quando tais palavras eram enunciadas ao povo, o tumulto era grande. Estive<br />

presente certa vez em que os seguidores da Casa de Shammai lançaram objeções violentas, e meu rabi Nicodemo foi insultado<br />

por ser defensor do galileu.<br />

Isso ocorreu pelo tempo das chuvas. Estavam os fariseus na Basílica de Herodes, a qual fica perto da entrada do<br />

Templo, e em outros ponto do pátio; sentavam-se junto aos braseiros, com seus discípulos em redor. Meu rabi vinha chegando<br />

em nossa companhia, para ouvir as palavras de Jochanan ben Zakkai. Súbito, um incidente. Um dos shammitas, conhecido<br />

como fanático, veio correndo em nossa direção, a gritar:<br />

− Afirmo que isto é uma rebelião contra o céu! O homem deve ser preso, julgado e condenado aos açoites – e ao<br />

falar seus cachos dançavam-lhe em redor da cabeça.<br />

Outros chegaram também correndo e, secundaram aqueles protestos.<br />

− Quem jamais ouviu semelhante coisa na boca dum rabi de Israel?<br />

Voltamos o rosto e vimos a pequena distância um ajuntamento em redor do rabi da Galiléia, numa das arcadas<br />

do pátio. Em meio dos ouvintes, na maioria pobres, havia estudantes das escolas rabínicas, levitas e neófitos do Sacerdócio. A<br />

multidão urrava. Uns gesticulavam furiosamente, outros tentavam acalmar os exaltados.<br />

Nós íamos passando, de rumo ao ponto do Jochanan ben Zakkai. Meu rabi quis evitar aquela multidão em fúria<br />

mas não pôde; e então aproximou-se e nós com ele. O rabi da Galileia prosseguia em seu sermão, ou melhor, em seu libelo.<br />

Levantava-se como um profeta acima da massa humana, e suas palavras caiam como trovões. Estava vestido com o tallit, com<br />

o filatério na cabeça.<br />

− Esforçai-vos, para que possais entrar pelo caminho estreito. Porque eu vos digo que muitos procurarão entrar e<br />

não o conseguirão, porque o dono da casa levantará a porta e a trancará. Ficareis de fora a gritar: “Senhor, deixa-nos entrar”. E<br />

o dono da casa responderá: “Não vos conheço. Quem sois vós?” E então direis: “Contigo nós comemos e bebemos, e tu<br />

ensinaste em nossas ruas”. E ele dirá: “Não vos conheço. Quem sois vós? Afastai-vos de mim!” E então haverá choro e ranger<br />

de dentes, quando virdes Abraão, Isaac, Jacó e todos os profetas entrando no céu, enquanto ficais de fora. E virão homens do<br />

norte e do sul, do éste e do oeste e entrarão no reino, e os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos.<br />

rabi:<br />

Depois acrescentou:<br />

− Eu sou a luz do mundo. Aquele que me segue não caminhará no escuro, mas estará na luz da vida.<br />

Neste ponto o momentâneo silêncio foi quebrado e um homem alto, de cabelos em cachos, gritou no rosto do<br />

− Que é isso? Dás testemunho em causa própria e teu testemunho é falso.<br />

O rabi respondeu:<br />

− Ainda que eu dê testemunho para mim mesmo, meu testemunho é verdadeiro. Porque eu sei donde venho e<br />

para onde vou, e vós não sabeis de onde vindes nem para onde ides. Vós julgais de acordo com a carne, mas eu não estou só,<br />

porque há dois, meu Pai e eu, e meu Pai me mandou. E como está escrito no Torah. “Duas testemunhas estabelecem a verdade<br />

de uma coisa”. Eu testemunho por mim e o mesmo faz meu Pai, que me mandou.<br />

Os ouvintes agitavam-se, com todos os sinais de excitação no rosto. Uma voz gritou:<br />

− Onde está teu pai?<br />

O rabi respondeu:<br />

− Vós não me conheceis, nem conheceis meu Pai. Se me conheceis, conheceríeis meu Pai.<br />

Neste ponto o tumulto irrompeu, e inúmeras vozes se altearam.<br />

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− Quem jamais ouviu tais palavras da boca dum judeu?<br />

− Mas se é como ele diz, então ele sabe todas as coisas, porque tem a autoridade, gritou um velho, voltando os<br />

olhos já quase cegos para a multidão e apontando para o pregador.<br />

− Mas quem és tu? Conta-nos.<br />

Uma pausa de silêncio. Mas, como de costume, o rabi respondeu por meio de sugestões.<br />

− Sou o mesmo que falei no princípio. Tenho muito que dizer e muito que julgar. Aquele que me enviou a vós é<br />

a verdade, e o que de mim ouvistes, a mim me foi confiado.<br />

um.<br />

− Não estais vendo que o homem é desarranjado da cabeça? Suas palavras não têm jeito nem significação, gritou<br />

− Não! Não! Se ele fala assim, alguma coisa deve haver e ele sem dúvida tem autoridade.<br />

− Levemo-lo ao Sanhedrim! Basta de impudência em face do céu!<br />

− Ouviste-o? Ele quer excluir-nos do reino do céu. Tem lá os seus favoritos. Tem seus próprios filhos de Abraão,<br />

para os quais reserva o reino. Não o ouviste dizer: “Eles virão do Oriente e do Ocidente e sentar-se-ão com Abraão, Isaac e<br />

Jacó”. Não está claro que vamos ser excluídos?<br />

− Arrastemo-lo perante o tribunal!<br />

− Não somos os descendentes de Abraão, Isaac e Jacó, nós que ele quer deixar de fora?<br />

Houve momentânea pausa e o rabi respondeu:<br />

− Se fosseis descendentes dos patriarcas, imitaríeis os feitos de Abraão.<br />

O tumulto recomeçou.<br />

− Não podemos suportar esse homem! Tem dentro de si um espírito mau. Está louco!<br />

Mas uma voz poderosa se ergueu:<br />

− As palavras dele não são as que vêm dum espírito mau.<br />

Então os que estavam mais próximos do rabi suplicaram humildemente, à uma:<br />

− Por que nos manténs assim na dúvida? Se és o Messias, por que não o dizes abertamente?<br />

− Quem pronuncia aqui essa palavra terrível?<br />

− A língua que falou que emudeça para sempre!<br />

Apesar dos protestos, as suplicas continuavam:<br />

− Por quanto tempo nos conservarás na dúvida? Dizei-nos tudo. Fala...<br />

Não sei em que acabaria aquilo, se os discípulos do Nazareno, sempre em redor dele, o não mantivessem bem<br />

guardado. Um homem de físico poderoso, que eu conhecera como Simão, pescador na Galiléia, estava de braços abertos diante<br />

dele, em defesa. Jochanan, um dos filhos de Zebedeu, fazia o mesmo, e também Simão o Zelote e outros. E havia ainda os<br />

pobres – sim, até os aleijados, que erguiam os punhos. E a luta se travou, e já havia despedaçamento de roupas, quando o nosso<br />

rabi abriu caminho através da multidão e gritou:<br />

− O Torah não permite que um homem seja julgado antes que se saiba o que ele fez.<br />

Sem reconhecer quem falava, muitos da multidão responderam ao rabi Nicodemo:<br />

− Ele excluiu do reino do céu os filhos de Abraão. Ele quer pôr gente de fora no lugar dos verdadeiros<br />

descendentes de Abraão.<br />

Nosso rabi falou:<br />

− “Não deixaremos um estrangeiro dormir fora”, diz o nosso Torah. Que significa a palavra “fora?” Explicam os<br />

sábios que é não excluir do aprisco judaico um homem pela circunstância de ser estrangeiro. Se um estrangeiro reconhece o<br />

Deus único e vivo, que é o Deus de Israel, torna-se igual aos judeus e filho de Abraão como qualquer de nós. Porque Abraão é<br />

o pai não só dos nascidos judeus, como dos conversos. Grande não foi a virtude de Abraão trazendo os estrangeiros conversos<br />

para o nosso aprisco?<br />

− Mas eu ouvi esse homem dizer: “Aquele que ouve minhas palavras esse nunca morrerá”. É ele então maior que<br />

Abraão? Abraão e os profetas morreram e ele diz que os que o ouviram não morrerão.<br />

− O rabi refere-se à vida eterna, respondeu Nicodemo, à vida no reino do céu.<br />

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− Mas por que nos atormenta ele com sugestões e palavras obscuras? Por que não nos diz claramente quem é, já<br />

que se dá a si a autoridade?<br />

− Quem é ele, quereis saber? Silvou uma voz sarcástica. Vou dizer-vos. Ele é um samaritano!<br />

Não se podia lançar em rosto dum judeu maior insulto. Mas meu rabi retrucou:<br />

− Mesmo dum samaritano está escrito: “Amarás ao teu vizinho como a ti mesmo”.<br />

− Bem falado, rabi!<br />

− Ele se fez a si próprio o juiz e o mestre aqui. É ele o que abre e fecha a porta. De onde lhe vem a autoridade?<br />

− Mas já vos foi dito: “Eu não faço por mim próprio; faço-o como meu pai ensinou”.<br />

− Quer dizer então que é filho de Deus, porque esse poder e essa autoridade indicam Deus!<br />

− Qualquer homem tem o direito de chamar-se filho de Deus, foi a resposta de Nicodemo, porque está escrito:<br />

“Filhos sois do Senhor vosso Deus”.<br />

− Mas ele fala contra o Templo, contra o altar e os sacrifícios, gritou um abastado saduceu lá da extrema. (Suas<br />

ricas vestes e os anéis nos dedos identificavam-no aos nossos olhos.)<br />

− Mas o profeta também disse: “Eu desejo justiça e não sacrifícios”. Quem é maior que Jeremias? E não chamou<br />

ele ao Templo uma caverna de facínoras? Rebateu Nicodemo.<br />

− Jeremias era um profeta!<br />

− Qualquer judeu pode ser profeta.<br />

− Mas jamais alguém admitiu que da Galiléia viesse algum profeta?<br />

− Está escrito: “Toda a terra está cheia com a Sua gloria”. A graça de Deus enche a terra e de qualquer ponto<br />

pode levantar-se um profeta, ao qual Deus confie Sua palavra.<br />

− Quem está a dizer isso? Gritou um que não conhecia o meu rabi. Será também galileu?<br />

Mas vozes ergueram-se numa atoarda: “Tonto! Quem fala é o grande rabi Nicodemo!”<br />

Depois disso um murmúrio correu pela multidão, a qual começou a mover-se e afinal dispersou.<br />

Desse tempo em diante as reuniões em redor do Profeta da Galiléia tornaram-se mais e mais tumultuosas, e as<br />

opiniões a seu respeito se dividiram mais acentuadamente. Tanto os seus seguidores, como os oponentes fanatizavam-se em<br />

sectarismo. Entusiastas da Casa de Shammai, ciosos do Torah e do Senhor, viviam atentos, na esperança de lhe ouvirem<br />

qualquer blasfêmia ou heresia. Mas tudo quanto o galileu enunciava era sob forma indireta, embora ousada, de modo que a<br />

interpretação o punha sempre a salvo da lei. Jamais ele saia fora do Torah. Certa ocasião testemunhei uma tentativa dos Zelotes<br />

da Casa de Shammai para arrastar o rabi da Galileia a um passo em falso.<br />

Dessa vez não vinha acompanhado só dos seus discípulos, mas também duma mulher – mulher velada da cabeça<br />

aos pés, e mãos também cobertas, como era o costume das mulheres quando iam para o pátio do Templo. Vinha trazendo pela<br />

mão um dos discípulos, evidentemente cego, e o galileu não tencionava pregar. Simplesmente acompanhava outros de rumo à<br />

tesouraria do Templo, pois era dia de pagamento de taxas. A mulher que conduzia o cego também trazia a sua oferenda.<br />

Súbito, um homem que estacionava por ali reconheceu-a pelo vulto e a maneira de andar, pois que não lhe podia ver o rosto. E<br />

deu aviso aos tesoureiros:<br />

− Cuidado com o donativo dessa mulher. É dádiva de prostituta, é dinheiro sujo.<br />

Como de costume em tais ocasiões, muita gente se juntava na tesouraria de modo que quando as palavras<br />

“dádiva de prostituta”, foram ouvidas, uma onda de agitação passou pelo povo, e cabeças se levantaram, pescoços se<br />

alongaram. O denunciador espichou o dedo para a mulher e disse:<br />

− Não sabeis quem é? Pois é Míriam de Migdal, a famosa Míriam de Migdal.<br />

Mal soou esse nome, toda gente que andava pelo pátio afluiu para ali. Porque a fama daquela mulher – de sua<br />

riqueza, seus amantes e seus perfumes, era grande. Míriam de Migdal ou Míriam Magdala era nome conhecido de todos na<br />

cidade. Eu também me insinuei na direção do rabi e pude dar uma olhada na mulher de véu. Súbito, dois homens tomaram-na<br />

pelas mãos e puseram-na face a face com o rabi da Galileia:<br />

− Rabi, disse um deles, esta mulher que aqui vês foi apanhada em adultério e pecou muitas vezes. Ora, Moisés<br />

nos ensina que as adúlteras devem ser apedrejadas. Que nos tem a dizer, rabi?<br />

Mortal silêncio na multidão. Todos os olhos se fixaram no rabi, que havia empalidecido. Mas súbito achegou-se<br />

ele dos homens que tinham a adúltera e libertou-a. Depois riscou um círculo no chão em redor de si e dela.<br />

Todos em suspenso aguardavam o que o rabi iria fazer. Mas ele nada fez. Quedou-se dentro do círculo invisível<br />

que seu dedo traçara, e desse modo claramente indicava compartilhar do destino daquela mulher, isto é, que tomara sobre si os<br />

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seus pecados e que ambos agora eram um. A multidão compreendeu e nada disse. Mas um dos dois denunciadores, discípulos<br />

da Casa de Shammai, gritou:<br />

− Vamos, rabi. Devemos apedreja-la de acordo com a lei de Moisés?<br />

O rabi ergueu a cabeça, correu os olhos pela multidão e disse:<br />

− Aquele entre vós sem pecado, lance-lhe a primeira pedra.<br />

Ficaram os dois shammitas sem ter o que dizer. Alguém gritou:<br />

− Ela que tire o véu, para vermos se é realmente Míriam de Migdal.<br />

Então o rabi se voltou para a mulher e disse: “Míriam, afasta o véu do rosto para que possam ver quem és”.<br />

Quando a mulher afastou o véu e a multidão lhe viu o rosto, correu um murmúrio de espanto.<br />

− Que? Essa, a Míriam de Migdal?<br />

Também eu me espantei. Seria aquela a Míriam de Migdal cuja beleza se tornara famosa em Jerusalém? Tinha o<br />

rosto emaciado e amarelo, coberto de rugas, como se trabalhado por um mar tempestuoso. Seus olhos enormes, ainda com<br />

brilho, haviam afundado nas órbitas, e sob eles enegreciam as olheiras das incessantes lágrimas choradas. Unicamente seus<br />

lábios, finos e tristemente melancólicos, e a forma do nariz e do mento, recordavam a famosa beleza que ela fora.<br />

− Essa não é Míriam de Migdal, é Noemia! Gritou uma mulher por ali. Míriam é como a rosa aberta, seus seios<br />

apojam, seu corpo é abençoado. E vede coma essa é – quebrada, destruída, já sem nenhum traço de beleza.<br />

− É Miriam de Migdal, sim! Vede em que se tornou!<br />

− Uma Ruth se foi a ele na Galileia e voltou Noemia, crocitou uma voz.<br />

Assim era. Lá estava de pé ao lado do rabi não mais a famosa pecadora Míriam de Migdal, mas uma Noemia<br />

saturada de mágoas.<br />

O povo, envergonhado, baixou os olhos e afastou-se da cena.<br />

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O rabi da Galiléia não lembrava o mar tempestuoso da primavera. Podia mostrar-se tão tranqüilo como um sol<br />

de verão a pino. Para os orgulhosos e poderosos sua língua era a espada flamejante; para os pobres e abandonados era a<br />

consolação e a esperança.<br />

O rabi da Galiléia freqüentava lugares nunca antes pisados por pés de outro rabi de Israel. Sentava-se à mesa de<br />

homens que os outros consideravam pecadores e dos quais diziam: “Que minh’alma deles se conserve afastada”.<br />

Tudo isto ninguém o ignorava em Jerusalém, mas que ele fosse ter a uma hospedaria de cameleiros e tropeiros, e<br />

com eles sentasse e com pastores bebesse, isso era coisa acima do crível.<br />

Tive ensejo de encontra-lo numa ocasião dessas.<br />

No extremo noroeste de Jerusalém ficava a Porta do Estrume. A muralha naquele ponto separava a cidade de<br />

dois vales, o de Kidron e o de Hinnom. Mas havia outra muralha em ruínas, a “muralha velha”, que se levantava próxima da<br />

senda dos aguadeiros, pela margem do rio Siloah. Essa construção vinha dos tempos do rei Daví.<br />

No espaço entre as duas muralhas viviam os mais pobres da congerie de pobres de Jerusalém. Quando pelo<br />

inverno o Siloah transbordava, aquilo virava um mar de lama, com toda a sujeira da Cidade Alta conduzida pelas chuvas. A<br />

umidade roía os miseráveis alicerces das casas, de porões imundos. No verão, quando a lama secava, um fedor miasmático se<br />

erguia do leito do Siloah, misturando-se com as nuvens de pó e o mau cheiro saído dos casebres. Aquelas exalações mefíticas<br />

roíam os olhos das crianças e geravam doenças indescritíveis.<br />

A velha e arruinada muralha do rei Daví tinha muitos nichos, ocos, fragmentos e degraus e galerias suspensas,<br />

que lhe foram sendo agregadas no decorrer das idades. Também havia grandes brechas feitas pelos aríetes de antigos reis<br />

orientais em seus assaltos. A memória desses afastados assédios dava uma boa sugestão da antigüidade do povo judeu – e era<br />

como se os pobres se agarrassem àquele lugar por ser uma herança vinda de remotos e gloriosos antepassados. Pequenas<br />

tumbas tinham sido escavadas na antiga fortaleza, e cabanas a ela se encostavam, presas com cordas às pedras salientes e<br />

cobertas de esteias, pano de saco e galhos entretecidos. Muitas famílias ali habitavam já de muitas gerações, com os seus<br />

direitos consagrados pela velha tradição e de limites com freqüência disputados.<br />

Era tão grande a massa de moradores na muralha de Daví que os desastres se sucediam. Túneis e corredores<br />

tinham sido rasgados na muralha e sob ela, com gente a viver lá a vida das toupeiras. De vez em quando a alvenaria arriava<br />

num ponto ou noutro, esmagando casas e passantes. Um desses desastres – e esse de extensão fora do comum – sucedeu em<br />

meu tempo. Dezoito vítimas, homens, mulheres e crianças, ficaram debaixo dum torreão que aluiu, por força das escavações<br />

feitas em sua base.<br />

Perto da muralha de Daví ficava a hospedaria das cameleiros e tropeiros. Compunha-se dum grande pátio, ou<br />

antes, dum labirinto de pátios, com separação de cercas. A hospedaria propriamente fora escavada na rocha, e dela saia<br />

perpetuamente um forte cheiro de cozinha e o fumo que enegrecera toda a parte superior da muralha. Não apenas cameleiros e<br />

tropeiros eram encontrados lá. Como a hospedaria ficasse fora do perímetro urbano, determinaram os rabis que os que<br />

trouxessem provisões para Jerusalém pudessem passar lá a noite. Também a freqüentavam os pastores que vinham com seus<br />

rebanhos para o mercado. Mas tanto tropeiros, como pastores gozavam de mau nome, estes últimos ainda mais que os<br />

primeiros. Eram tidos como ladrões. Roubavam seus amos; vinha daí ser proibido deles comprar lã, queijo, leite ou gado,<br />

porque o certo era ser produto de roubo. A hospedaria ainda abrigava muita gente suspeita, escravos, criminosos fugidos e os<br />

piores homens-da-terra da Galiléia. Ocasionalmente encontravam-se um ou outro samaritano, ou grego, ou árabe moabita da<br />

cidade de Petra, que vinham à Jerusalém com algum propósito inconfessável. Agitadores políticos igualmente lá apareciam,<br />

menos para difusão de suas idéias do que para contratar capangas e assassinos. E até, às vezes, viam-se lá dois ou três<br />

legionários romanos ou asquelonitas, a tomarem vinho com mel, ou cerveja. E surgiam brigas e vinham facadas, quase sempre<br />

por causa de alguma prostituta árabe de pele morena ou de alguma samaritana macia – porque tais criaturas também<br />

freqüentavam o antro.<br />

Tive ensejo de conhecer aquilo. De vez em quando me mandava Nicodemo com recado para Hillel o aguadeiro,<br />

que tinha negócio lá. Um homem notável, este Hillel. Meu rabi aplicava-lhe o versículo da Escritura: “Ele senta-se só, porque<br />

tomou sobre si o silêncio”. Tive ensejo de vê-lo muitas vezes na Companhia e na sinagoga. Quando nesta, sentava-se entre os<br />

pobres, na entrada, a cabeça afundada nos ombros, a ouvir o discurso do meu rabi ou de debate dos sábios. Mas nunca<br />

perguntava coisa nenhuma, nem entrava no debate. Os que o viam assim sentado sentiam que seus ombros, tão erguidos de<br />

tanta água que carregara à cabeça em toda a sua existência, estavam também carregados de outra carga – e de todas as dores do<br />

mundo. Mas o velho não emitia nenhuma queixa; em vez disso, era como se estivesse a pedir perdão pelo espaço que ocupava.<br />

A casa desse homem – se casa era aquilo – ficava na muralha do rei Daví. Hillel tinha lá um nicho, como os dos<br />

“covanqueiros” de Petra, com entrada por uma escadinha estreita. Uma “herança” de seus antepassados. Hillel estava sempre<br />

nos pátios da hospedaria, entre os camelos e asnos. Durante o dia carregava odres d’água do Siloah para o mercado – e de<br />

passagem pelas ruas dava idéia de estar carregando às costas carcassas inchadas de animais mortos. De volta de seu dia de<br />

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trabalho não descansava antes de dar de beber aos animais nos cercados da hospedaria, porque muito freqüentemente os<br />

tropeiros descuravam deles – e como poderia Hillel dormir com o pensamento na sede dos pobres animais? Da sua cava ele<br />

ouvia o queixume dos sedentos e muitas vezes ia atende-los de manhã, antes de partir para o trabalho. Hillel transportava odres<br />

e odres de água do rio aos cercados, de modo que o melhor meio de encontra-lo, quando sua presença era requerida, era<br />

naquele antro de má fama dos cameleiros e tropeiros.<br />

Meu rabi e Hillel freqüentavam-se muito, e naquele tempo mais do que antes. Pareciam discutir coisas secretas,<br />

que afinal vim a saber quais fossem. Hillel o aguadeiro trazia ao meu rabi informes sobre as palavras e feitos do rabi da<br />

Galileia, que de quando em vez aparecia lá pelo antro.<br />

Não posso esquecer-me da estranha impressão em mim produzida quando pela primeira vez vi o rabi da Galiléia<br />

entre aquela escória humana. Eu, como sempre, tinha vindo em busca de Hillel, e o recinto em que fiquei à espera estava<br />

escuro de vapor e fumo. A luz das pequenas lâmpadas de óleo não podiam atravessar aquele ambiente espesso; apenas se<br />

projetavam sobre a mesa. Dos braseiros de três pés sobre os quais o estalajadeiro preparava a comida erguia-se o fumo em<br />

espiral; ali se assavam carnes e se cosiam vegetais em grandes caldeirões. De tal modo o fumo enevoava o recinto que os<br />

fregueses eram mais entrevistos que vistos. Também havia mesas reservadas para os que podiam pagar o luxo de um<br />

tamborete. Entrevi por lá frangalhos, corpos seminus, cabeleiras em desalinho, pernas peludas e costas, inumeráveis costas. E o<br />

rumor confuso das vozes era constante, picado de berros e troca de insultos. Um hóspede rico tinha tomado uma das mesas<br />

reservadas e pedira um lauto jantar: duas costeletas de carneiro, que o dono do antro estava a preparar. O freguês rico também<br />

pedira um vinho caro e azeitonas da cidade de Shefchani – de outra parte não servia. Eram azeitonas famosas e caras, de modo<br />

que os que ouviram o pedido encheram-se de inveja, já com água na boca. Quando o estalajadeiro serviu as costeletas, muitos<br />

homens se levantaram de seus lugares e foram-se aproximando.<br />

− Um homem pobre pode ser comparado a um morto, disse um deles, lambendo os beiços.<br />

− Quem é rico? Aquele que se rejubila com sua parte, gritou outro, e acrescentou: “Quero uma panela de favas e<br />

um bolo de farinha”.<br />

− Eu digo, tira o couro de cavalos mortos na rua mas não peças esmola! Ainda que ele me enviasse mensageiro<br />

com convite para sua festa, e com o mensageiro uma coroa para me coroar, eu não comeria em sua mesa! gritou altivamente<br />

um terceiro e limpou o pingo d’água que lhe caia da boca. O bolo de trigo que o pobre come, ele o ganhou com o trabalho de<br />

suas mãos e por isso é mais doce que o mel – e assim dizendo lançou à boca uns grãos de ervilha seca e mascou-os<br />

energicamente.<br />

− Estalajadeiro, trazei-me outra medida de vinho, e não esqueças uma boa porção de mel e figos sicômoros,<br />

gritou o homem rico, para fazer inveja aos outros.<br />

Alguém imitou-lhe a voz comicamente, pedindo: “E trazei-me um capão recheado e servido em louça de Sidon,<br />

e também uma pele de vinho de Chipre!”<br />

− Aquele que engorda a carne multiplica o número de vermes que o comerão, gritou um homem que era só pele<br />

e ossos, erguendo-se.<br />

− Deixem-me gozar este mundo, e dou aos vermes licença para me comerem no outro, respondeu o homem rico<br />

numa grande gargalhada.<br />

− Nada mais verdadeiro: os filhos bastardos são conhecidos pela sua habilidade, lançou-lhe alguém.<br />

A seta feriu o alvo; o homem rico fechou a cara, furioso:<br />

− Quem ousa lançar a suspeita sobre o nome de minha mãe?<br />

− Escravos não têm pai nem mãe! Gritaram diversos.<br />

− Estalajadeiro! Trazei-me uma boa malga de vinho de Jericó e manda vir um tocador de flauta. Quero música<br />

em minha refeição – e desse modo o abastado freguês mofou dos outros.<br />

− E manda-lhe também um par de carpideiras! O Anjo da Morte está de pé atrás dele.<br />

− Dinheiro fácil! Ele negocia com taxas não pagas, gritou alguém, querendo dizer que ele traficava com cereais<br />

que não tinham pago a dízimo.<br />

− Ele, não! Ele é o coletor de taxas dos Filhos de Hanan. Arranca a pele do pobre e é porisso que não dá<br />

importância ao seus shokels.<br />

− Um publicano!<br />

− Um samaritano!<br />

− Um pecador!<br />

− Espera um pouco! Bar Abba logo reúne as suas legiões e nós então liquidaremos contas com os da tua laia.<br />

Corte-se o tronco e os galhos cairão por si mesmos.<br />

− Quem disse isso? esganiçou o estalajadeiro terrificado. Aqui ninguém conhece Bar Abba.<br />

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5


Edom?<br />

“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

− Eu não tenho medo de lhe mencionar o nome. Importa lá quem vos mata – a espada da fome ou a espada de<br />

− Deixa-me fora disso e não tragas a desgraça para cima de minha casa. Não conhecemos aqui nenhum Bar<br />

Abba, nem nunca o vimos. Nem sabemos com o que ele se parece, continuou o estalajadeiro.<br />

− Ho! Ho! Conhecemo-lo muito bem aqui, sim. Não tenho medo de o dizer. E se quereis mais, sou um homem<br />

do seu bando! Esperai que os galileus venham por esta Páscoa e vereis ouro êxodo do Egito.<br />

− Bons amigos, tende piedade de minha casa, gemeu o dono da hospedaria. Os mastins de Hanan têm ouvidos<br />

em toda parte.<br />

− Agora sei onde estou, disse o freguês abastado, erguendo-se da mesa. Isto aqui é uma caverna de bandoleiros<br />

do chefe Bar Abba. Não costumo comer com ladrões e assassinos – e encaminhou-se para a porta.<br />

− Detende-o! Detende-o! gritou o estalajadeiro. Meu dinheiro! Ele passou toda uma hora a comer e beber – e<br />

deixando o fogão saiu atrás do homem.<br />

Risada geral. “O bêbado tem os olhos no copo, o hoteleiro em sua bolsa”, gritou um. O homem lá se foi!<br />

A principio ninguém percebeu quem tinha entrado, porque o setor da porta estava às escuras. Ouvimos apenas<br />

um aflar como de brisa. Depois o vimos entrajado de branco, a brilhar na meia escuridade. Vinha seguido de diversos<br />

companheiros, entre os quais reconheci Jochanan, Simão, Judas e também Hillel o aguadeiro, pelo qual estava eu esperando.<br />

Já muito ouvira eu falar daquilo mas não podia acreditar em meus olhos. O rabi da Galiléia no meio de tal gente!<br />

Logo que o perceberam, o silêncio se fez – e parece que ninguém ali mostrou a surpresa que eu sentia. Mas um<br />

homem, ainda animado do irrequietismo anterior, escarneceu:<br />

− Que faz um sacerdote em cemitério?<br />

Uma ombreada dum vizinho o fez silenciar. Cabeças descobertas levantavam-se dos bancos e esteiras junto às<br />

paredes, e todos os olhos seguiram o vulto do rabi, o qual avançou para o centro da sala e sentou. O mesmo fizeram seus<br />

discípulos. O estalajadeiro arrastou para diante deles uma pequena mesa e pôs em cima lâmpadas de óleo. E para meu espanto<br />

também trouxe uma bilha de cabaça e várias tigelas de barro. Judas sacou do cinto a bolsa e pagou as despesas com algumas<br />

moedas. Simão serviu o seu rabi.<br />

Sem demora estranhas criaturas começaram a emergir dos cantos escuros; não se levantaram, mas formavam um<br />

círculo no chão em redor da mesa do rabi. Eram os cameleiros e tropeiros do costume, alguns ainda de chicote na mão. O rabi<br />

dirigiu-se a eles, alguns pelo nome, fazendo votos de paz para as famílias e as alimárias. Depois mandou que Judas pedisse<br />

mais vinho de tâmaras e mais tigelas.<br />

Eu estava petrificado de assombro. Nunca vira coisa semelhante: um chaver, um sábio companheiro dos sábios,<br />

um rabi, sentar-se com miseráveis tropeiros, publicanos, semi-gentios, homens-da-terra, gente tida como profundamente<br />

impura. Lá estava ele não só conversando com essa gente e com ela bebendo como se fosse igual à que conhece a lei.<br />

O rabi falou-lhes de coisas do momento e familiares. Tocou primeiro no trabalho deles e de seus animais. E<br />

enquanto falava notou na mão dum dos ouvintes uma sovela, como as que os tropeiros usam contra os animais lerdos; furamlhe<br />

o couro, não deixando que a ferida se cicatrize, de modo que quando um dos animais não se comporta como eles querem,<br />

enfiam de novo a sovela na carne viva. O rabi inclinou-se, tomou das mãos do homem o implemento e começou a falar da<br />

virtude da bondade para com todas as criaturas vivas. Disse que quando eles atormentavam suas bestas de cargas, estas<br />

choravam para Deus e Deus justava contas com os donos dos animais, porque todas as coisas vivas eram de Deus; e que<br />

quando Deus entregava um dos seus animais à guarda de um homem, fazia desse homem um responsável. E na medida que nós<br />

mostramos piedade para com as criaturas de Deus, nessa medida Deus mostrará piedade de nós.<br />

Uma voz rebelde, brutal, soou no escuro:<br />

− Quer Deus que os eleitos da criação tenham piedade das bestas? Conhecemos as boas palavras dos sábios. Da<br />

língua deles flui mel, mas eles colocam o jugo da lei sobre nossas nucas.<br />

silêncio?<br />

Cabeças se voltaram na direção do orador, e vozes gritaram:<br />

− Cala-te! Tua boca está cheia de escorpiões e coisas rastejantes.<br />

Mas a boca cheia de escorpiões e coisas rastejantes recusou-se a fechar-se. Insistiu:<br />

− Onde está Ele, o teu Deus de bondade? Por que, enquanto o mau pisa no pescoço do justo, fica Ele a olhar em<br />

− Vinde a mim, todos vós torturados de espírito, murmurou o rabi.<br />

Do escuro emergiu um homem colossal, um vulto de Sansão mas não cego; veio vindo e falando; ao aproximarse<br />

da luz vimos a sua boca – um buraco negro com tocos de dentes estragados como tocos de árvores cortadas: um Sansão com<br />

olhos vermelhos que viam e piscavam ofuscadas pela luz das lâmpadas. Seu corpo gigantesco só tinha sobre si uma camisa de<br />

saco amarrada à cintura por uma tira de couro cru. A voz rosnava continuamente:<br />

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começou:<br />

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− Se há alguma justiça no céu, eu a chamo a julgamento, como fez Job.<br />

O rabi estendeu-lhe as mãos e disse:<br />

− Vem a mim e dizei-me o que te aperta o coração. Quem te deixou assim?<br />

− Quem? Toda essa gente – os sacerdotes e os sábios.<br />

− Conta-me como foi.<br />

Abriu-se na mesa um lugar para o gigante e Simão serviu-lhe vinho; depois de tomar assento, o homem<br />

− Meu nome em Israel é Joseph e sou da família dos Efratites. Eram em Jericó as terras que herdei, um horto de<br />

tâmaras – vinte carreiras. Plantadas foram por meu avô, e meu pai já tinha começado a colher. Doze medidas de tâmaras eu<br />

dava por ano aos pobres e levitas, o grande e o pequeno dízimos. Os cantos da plantação eu os deixava para os pobres, como<br />

manda a lei. Minhas tâmaras eram gordas, reçumantes. Eu também tinha mulher e bonita. No contrato de casamento assegureilhe<br />

duzentos dinheiros, mais os presentes em dinheiro e roupas que fiz a seu pai e irmãos. Eu tinha um nome em Israel. Hoje<br />

não tenho nada. A roupa do meu corpo não é minha. Venderam-me como escravo, amarraram-me os olhos, como amarram os<br />

olhos duma besta, para que eu ficasse a mover as mós dum moinho. A essa condição eles me reduziram...<br />

− Quem são eles, meu filho?<br />

− Todos. Os padres, os sábios, os homens do poder.<br />

− Conta-me mais, meu filho.<br />

− Minhas terras herdadas ficavam entre as de dois homens ricos saduceus de grande nome e que por meio de<br />

casamentos se ligaram à Casa de Hanan. Possuíam florestas de tamareiras aí de milhas de extensão, pelo gordo vale do Jericó<br />

além; e vinhedos, e casas e piscinas. Um dia lançaram olhos cobiçosos na minha pequena terra; queriam ligar lá as suas<br />

propriedades que a minha separava. Ofereceram-me outra terra em troca, em Beersheba, mas o meu coração estava com aquela<br />

herança de meu pai; e eu disse-lhes que tencionava legar aquelas terras a meus filhos, como a mim me tinham sido legadas.<br />

Eles então mandaram contra mim os fiscais dos sacerdotes, os quais aumentaram os meus dízimos, o grande e o pequeno;<br />

diariamente inventavam novas taxas; declaravam impuras as minhas tâmaras, de modo que certas colheitas eu não podia<br />

vender. Voltei-me para os letrados e sábios, os quais nada puderam fazer contra os saduceus, que eram da aristocracia de Jericó<br />

e não davam a mínima importância às palavras dos letrados. Em Jericó têm eles suas próprias leis. O Sumo Sacerdote e toda a<br />

família do Sumo Sacerdote estão com eles. E continuaram a perseguir-me cada vez mais e rijo. Antes que a fruta amadurecesse<br />

no pé, vinham os sacerdotes inspecioná-la e separavam muitas vezes mais do que o décimo que lhes cabia. E quando viram que<br />

eu continuava a resistir e não largava da minha herança, então o mais moço deles, Zadoc, lançou as vistas para minha mulher.<br />

Planejou ficar o herdeiro da minha terra e da minha esposa. Visitava-a às ocultas e urgia-a a divorciar-se, prometendo tomá-la<br />

como esposa. E então minha mulher começou a pedir-me que entregasse o seu dote e o dobrasse. Cada vez exigia roupas mais<br />

ricas, panos de Sidon, lãs caras e franjas. E alegava que ficaria mais bela para mim vestida da púrpura de Tiro. E se eu não<br />

dispunha de dinheiro para esses gastos, surgiam onzeneiros muitos prestadios, mandados por Zadoc. Minhas dívidas foram<br />

aumentando e a amargura do meu coração só tinha consolo no vinho. E assim unidos, as taxas e dízimos, os publicanos,<br />

onzeneiros e sacerdotes, levaram-me a herança. Fui expulso da casa de meu pai e, caindo cada vez mais baixo, tornei-me por<br />

fim ladrão. Minha mulher obteve divórcio e eu fui vendido como escravo.<br />

O rabi ouviu até o fim; pousou depois a mão no ombro do gigante e consolou-o:<br />

− Na verdade te digo, Joseph, que não és o escravo, pois escravos são os que te venderam. Escravos do pecado.<br />

E as cordas de seus pecados os descerão ao túmulo. Depois ergueu a mão e exclamou: Ai de vós, escribas e fariseus,<br />

hipócritas! Porque vós taxais a hortelã e o anis e o cuminho, mas omitis o principal da lei – a piedade, a justiça, a misericórdia,<br />

a fé. Mas tu, meu filho, serás consolado, porque pagaste a tua dívida com medida cheia.<br />

Então o rabi falou a todos que tinham ouvido a história de Joseph:<br />

− Vinde a mim, todos vós abandonados e oprimidos. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o<br />

reino do céu. Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. Bem-aventurados, bem-aventurados sois todos<br />

vós, os atormentados e vexados. Grande será o vosso galardão no mundo futuro, quando voltardes desse pesado dia de trabalho<br />

que é a vossa vida.<br />

Profundo silêncio havia caído na sala e o ajuntamento em redor do rabi aumentava. Joseph o escravo abriu a<br />

boca para falar mas fechou-a de novo. As palavras do rabi haviam domado a sua fúria. Seus olhos confusos punham-se no rabi,<br />

traduzindo a luta interior entre a suavidade da fala deste e o espírito rebelado. Como quem anseia pelo sono, Joseph cedeu à<br />

paz que fluía dos lábios de Yeshua – e outros ali na sala sentiram o mesmo.<br />

Todos agora estavam aos seus pés, como carneiros aos pés do bom pastor, e o rabi chamava-os e acalentava-os<br />

em calmo sono. Aqueles rostos pareciam rostos de crianças.<br />

O estalajadeiro esqueceu-se de servir a última medida de vinho pedida; largando sobre a mesa o pichel,<br />

ajoelhara-se entre os outros para ouvir a parábola dos dois filhos que o rabi ia contar.<br />

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− Um pai tinha dois filhos. O mais moço disse-lhe um dia: “Pai dá-me a minha parte em nossa herança”. E o pai<br />

dividiu a herança entre os dois filhos. Logo depois juntou o filho mais moço tudo quanto lhe cabia e se foi para uma terra<br />

distante. Lá tudo esbanjou na vida solta. Quando já estava a nenhum sobreveio carestia na terra e ele ficou em amarga penúria.<br />

E então alugou-se a um morador dali, o qual o pôs a guardar porcos no campo. E lá teria ele matado a fome com as mesmas<br />

bolotas que os suínos comiam, mas não lhe davam nenhuma. E então ele disse para si mesmo: “Quantos criados tem meu pai,<br />

todos dispõem de pão que farte! Mas eu estou aqui morrendo de fome. Vou voltar à casa de meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei<br />

contra o céu e contra ti. Não sou mais digno de ser teu filho. Toma-me como um dos teus criados”. E levantou-se de onde<br />

estava e foi em busca de seu pai. E quando ia chegando, seu pai o viu de longe e se encheu de piedade, e correu-lhe ao<br />

encontro e abraçou-o e beijou-o. E o filho lhe disse: “Pai, pequei e não sou digno de ser teu filho”. Mas o pai voltou-se para os<br />

seus criados e ordenou: “Trazei-lhes as melhores roupas. E calçai-lhe os pés e ponde um anel em seu dedo. Escolhei um<br />

novilho gordo e matai-o. Porque meu filho estava morto e viveu novamente; estava perdido e foi encontrado.” E todos se<br />

rejubilaram. Mas o filho mais velho estava no campo, e quando voltou ouviu toda aquela alegria; e chamando de parte um<br />

criado perguntou-lhe o que era. O criado respondeu: “Teu irmão mais moço voltou e para festejá-lo, o amo fez matar o novilho<br />

gordo”. O irmão mais velho encolerizou-se ao ouvir a explicação e não quis entrar em casa. Então seu pai saiu e pediu-lhe que<br />

entrasse, mas o irmão mais velho respondeu: “Eu te tenho servido, pai, todos estes quatro anos, e nunca desrespeitei as tuas<br />

ordens, e tu nunca me deste nem um cabritinho com que festejar meus amigos. E agora que voltou esse filho que pôs fora a<br />

herança com prostitutas, tu o recebes com um novilho gordo”. E o pai respondeu: “Meu filho, tu estás sempre com teu pai, e<br />

tudo quanto tenho te pertence. E pois também deves te rejubilar, por que o teu irmão estava morto e vive de novo, estava<br />

perdido e foi encontrado”. E assim será contigo, Joseph, concluiu o rabi inclinando-se para o amargurado escravo.<br />

Joseph cobriu o rosto com as mãos e chorou.<br />

Mas tarde, quando o rabi e seus discípulos deixaram a hospedaria, eu os acompanhei até certa distância. Na<br />

entrada do pátio uma multidão se tinha reunido. É que entre os moradores das muralhas correra a notícia de que o rabi da<br />

Galiléia se achava entre os tropeiros. Muito conhecido já era ele em Jerusalém, e muita agente acreditava no seu poder de<br />

conferir felicidade e sorte com um gesto ou palavra. Mulheres saiam das tocas com os filhos pelas mãos ou os bebês no braço.<br />

Quando o rabi apareceu elas iluminaram-lhe o caminho com lâmpadas e comprimiram-se-lhe em redor, e ergueram no ar os<br />

filhinhos para que ele os abençoasse. O rabi tocou com a mão em cada criança e pronunciou a bênção judaica: “Possa ela<br />

crescer para o Torah, para o casamento e para bons feitos”.<br />

Mas aconteceu que na multidão estava um letrado da cidade, o qual, ao sair o rabi do pátio da hospedaria,<br />

exclamou com espanto:<br />

− Rabi em Israel! Não disse o rei Daví: “Abençoado é o homem que não freqüenta o conselho dos perversos, e<br />

não anda na trilha dos pecadores, e não se senta no assento dos motejadores”?<br />

O rabi respondeu não a ele mas às mulheres que tinham trazido suas crianças para a bênção:<br />

− Que pastor, quando perde uma ovelha de seu rebanho, não deixa noventa e nove ovelhas no deserto para<br />

procurar a perdida, e não procura até encontrá-la? Eis o que tenho a dizer-vos: “Há mais júbilo no céu por causa dum pecador<br />

que se arrepende, do que para noventa e nove não-pecadores eu não têm necessidade de arrependimento.”<br />

Voltei ao rabi Nicodemo e contei-lhe tudo quanto tinha visto e ouvido nas muralhas. Quando lhe repeti o que<br />

ouvira por último, concernente a uma ovelha em noventa e nove, meu rabi perguntou, admirado:<br />

− Falou ele realmente em deixar as noventa e nove para ir em procura de uma só perdida?<br />

− Sim, rabi. E acrescentou que há mais júbilo no céu por causa dum pecador que se arrepende do que por causa<br />

de noventa e nove não-pecadores que não têm necessidade de arrepender-se.<br />

O rosto do meu rabi tornou-se grave e por longo tempo esteve ele em meditação. Nunca o vi assim tão imerso<br />

em pensamentos negros. Sua ampla testa denunciava a concentração do espírito, e volta e meia ele corria a mão pela barba. Por<br />

fim falou.<br />

− Deus louvado, ele segue na trilha dos nossos sábios. Porque nossos sábios também disseram: “Aquele que<br />

perde uma alma é como se tivesse perdido o mundo inteiro. E aquele que salva uma alma é como se houvesse salvo o mundo<br />

inteiro”. E ainda há outros ditos no mesmo sentido. “Um homem é o equivalente de todo o ato da Criação”, disseram eles. Um<br />

homem que nasce à imagem de Deus é em sua singularidade semelhante ao Senhor, seu Criador. Deus entra em secreta união<br />

com cada homem, por meio da alma que nele sopra. Esta é a significação do verso: “Porque Teus olhos observam de perto<br />

todos os caminhos do homem”. O homem é um, singular e especial, por virtude duma Providência individual.<br />

Era naquele dia meu turno de servir ao meu rabi. Lavei as mãos e os pés, e ungi-me. Vesti uma camisa limpa e<br />

embrulhei-me num manto lavado, porque não ficava bem servir o rabi nas roupas do dia. Pus-lhe a mesa e apresentei-lhe o<br />

prato de lentilha que Alexandre e Rufo haviam preparado. Depois de servi-o de vinho, e enchendo-me de coragem perguntei:<br />

− Ensina-me, rabi. As palavras que hoje vieram aos teus lábios são as mesmas que ouvi do galileu, ou formamlhes<br />

um comentário. E é também assim com as outras coisas que me tens ensinado, tanto do Halachah como do Agada, e com<br />

coisas que tenho ouvido de outros sábios. Todos acordam com as palavras pronunciadas pelo rabi da Galiléia, tudo se combina.<br />

Que é então que separa os sábios do rabi da Galiléia e qual é a disputa entre eles? Por que sempre que o rabi da Galiléia e<br />

tantos sábios se encontram o atrito surge?<br />

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− Tanto as palavras do rabi da Galiléia como a dos sábios são palavras do Deus vivo, meu filho. Mas os<br />

caminhos dos sábios são diferentes dos caminhos do galileu. Os caminhos dos sábios nos são familiares, por terem vindo até<br />

nós na corrente da tradição; já os do rabi da Galiléia nos são estranhos. Mas aprende uma coisa, meu filho. Cada disputa que se<br />

levanta em nome do céu e com propósitos celestes, deve no fim acomodar-se em paz.<br />

Depois dessas palavras, meu rabi ergueu as mãos para o alto e fez uma prece.<br />

− Senhor do mundo, Tu sabes que não por nossa glória e não pela glória da casa de nossos pais conduzimos nós<br />

esta disputa, mas por amor do Teu nome e para que possamos fazer o que é aceitável aos Teus olhos. E, pois, aproxima de Ti<br />

os nossos corações, porque só em Ti encontraremos paz: Vê, em Ti repousamos nossas esperanças. Tudo quanto temos nos<br />

veio de Tuas mãos. Nada há fora de Ti, Pai do céu.<br />

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Ninguém sabia onde o galileu morava. Viam-no de súbito aparecer nas sinagogas, praças de mercado ou pátios<br />

do Templo, rodeado dos discípulos e dum bando de pobres. E também de súbito desaparecia, às vezes por longo espaço de<br />

tempo, dias ou semanas. Ninguém lhe punha a vista em cima nesses intervalos. Seus discípulos espalhavam-se pelas mais<br />

pobres seções de Jerusalém, onde as casas eram como túmulos de vivos. Paredes de adobes, chão coberto de imundície. Todas<br />

as encostas do Kidron era densamente povoadas de tais tugúrios, e os estreitos labirintos das ruas engoliam quem neles entrava.<br />

Às vezes tentamos seguir um dos discípulos do galileu de caminho para casa, mas perdíamo-lo entre os encontrões do povo<br />

formigante por tais ruelas. E seus discípulos seguiam cada qual do seu lado, aparentemente fugindo à observação.<br />

Mas certa vez Rufo e eu seguimos na pegada do rabi e alguns dos seus discípulos quando deixaram o pátio do<br />

Templo. Fomos varando a multidão, determinados a mantê-los à vista. Iam com pressa, de rumo à Cidade Baixa, o rabi à<br />

frente, Simão bar Jonas, Jochanan e Jacó atrás. Os filhos de Zebedeu não se assemelhavam entre si. Tinha um, poderosa<br />

cabeça, coberta de eriçado cabelo negro, como uma floresta num topo. O segundo era alto como o primeiro, porém delgado,<br />

pálido, de rosto delicado. Mas tarde viemos a saber que aqueles três discípulos do rabi eram os mais amados e os que sempre o<br />

seguiam.<br />

Quando saíram da multidão esgueiraram-se por vias de menor movimento, rumo às zonas mais pobres; depois<br />

afastaram-se da muralha, atravessaram a Porta do Estrume e seguiram quase a correr para o Monte das Oliveiras.<br />

Não nos foi fácil acompanhar aqueles homens, tal a rapidez de sua marcha; mas lá lhes subimos na cola, morro<br />

ainda. As primeiras elevações do vale do Kidron fora da cidade ainda eram muito semeadas de casinhas pobres; e havia tendas<br />

de cultivadores, tingidores e tecelões. Depois, quando nos esbofávamos rumo ao alto, gradualmente fomos encontrando<br />

pequenos retalhos de verdura, quadrados de hortaliças e casas separadas por cercas ou renques de ciprestes. Passamos pelas<br />

lojas de propriedade dos Filhos de Hanan, pelos armazéns e celeiros onde a casa sacerdotal reunia os produtos a ser vendidos<br />

aos pobres. E por fim chegamos ao lugar conhecido como Bet Paga, que fica à boa distância da muralha urbana; mas tudo até<br />

lá ainda fazia parte do perímetro de Jerusalém. Um dito popular rezava assim: “Encontrar-me-ás em toda parte até as muralhas<br />

de Bet Paga”, o que queria dizer: “Estou em toda parte em Jerusalém”. Não obstante, o lugar em si ficava além desses limites e<br />

sem muralhas próprias. Em memória de seu nome, umas poucas figueiras ainda sobreviviam por ali miseravelmente. Os<br />

cálidos ventos do deserto batiam de encontro àquela encosta desprotegida, e era prematuramente que as árvores derrubavam<br />

seus frutos: daí o nome de Bet Paga, a “casa dos figos que não amadurecem”. Naquela ocasião, pleno inverno, os ramos<br />

despidos das figueiras eram mãos de dedos ossudos crispados num pedido de piedade.<br />

Na aldeia havia uma casa de nome Bet Eini, onde vivia um homem conhecido com o estranho nome de Simão o<br />

Leproso. Estranho porque não se tratava dum leproso – se fosse não poderia viver ali; o nome lhe viera porque ele reunia em<br />

redor de si os mais miseráveis e abandonados seres humanos. Não havia nenhum trapo humano, por mais estraçalhado que<br />

fosse, que Simão não recolhesse e com ele não compartilhasse da mesa e mesmo da cama. Aquele homem não se arrepiava de<br />

deitar-se junto com os mais repugnantes aleijados, nem de molhar seu pão no gamelo em que eles o faziam; “No fim”, dizia<br />

ele, “nós todos iremos compartilhar da mesma cama comum – a terra; por que então repelirmos agora a quem quer que seja?”<br />

Outros lhe davam o nome de Simão o Modesto. Mas em hebreu a palavra “modesto”, zenua, difere por uma letra da palavra<br />

zerua, “leproso”; e por erro, ou deliberadamente, o seu nome passou de Modesto para Leproso. Descobrimos que era por ali<br />

que o galileu morava.<br />

Na residência de Simão o Leproso encontramos multidões de pobres e doentes. Conhecedores de Jerusalém,<br />

estávamos nós afeitos à pobreza, mas ainda não tínhamos visto nada assim. Era como se o mais profundo poço de miséria do<br />

Kidron tivesse jorrado sua lama naquela casa. Nem mais homens eram, sim semi-homens, pedaços de homens, gente com<br />

membros podres, criaturas que não possuíam coisa nenhuma, nem mesmo seus próprios corpos. Só possuíam uma coisa:<br />

doenças – ou eram possuídos por elas.<br />

Já pelo caminho havíamos encontrado aleijados, cegos e mendigos de rumo para ali, ajudando-se uns aos outros,<br />

numa procissão de miséria humana. E agora víamo-los aos montes, sentados na lama do quintal. E que alegria brilhou em suas<br />

faces, quantas mãos e vozes não se levantaram, assim que apareceu o rabi das vestes brancas acompanhado de seus discípulos!<br />

Aquela pobre gente pôs-se a arrastar-se em sua direção; era uma onda de doença e podrigueira que se comprimia em seu redor.<br />

Permitiu-lhes o rabi entrarem na casa, e logo a sala se abarrotou como vinho que transborda em espuma. Estávamos numa<br />

friorenta noite de inverno, mas ninguém ali tiritava. Nem sequer procuravam cobrir o corpo com os trapos pendentes – tanto<br />

era o calor da luz interna que lhes dava o contato com aquele homem.<br />

Toda Jerusalém já conhecia as maravilhas realizadas pelo rabi na Galiléia; como ele curara doentes com um<br />

simples toque, como fizera levantar moribundos com uma simples palavra, como alimentara famintos e expulsara maus<br />

espíritos do corpo de possessos. E estávamos seguros que iríamos testemunhar prodígios desse naipe, como por exemplo, a<br />

cura, com uma palavra, de todo aquele bando de doentes. Criamos de fato, que ele iria fazer descer do céu cestas de pão para<br />

matar a fome a todos. Mas nenhum sinal de milagre aparecia, e era como se os pobres e famintos nada de material dele<br />

esperassem e sim coisa diversa, porque todos haviam caído em profundo silêncio.<br />

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Breve nos chegou a voz do rabi, e não era a mesma que estávamos afeitos a ouvir nas praças de mercado e pátios<br />

do Templo, em censura aos ricos e poderosos. Em vez de enérgica, era meiga e suave como música. Era como se cantasse uma<br />

dolorosa melodia que os abrangesse a todos: ao cego que agarrara a fímbria de sua veste e não queria larga-la; ao coberto de<br />

pústulas cujos andrajos se grudavam, dando-lhe aparência de leproso. A este o rabi ergueu e abraçou, e sua barba tocou a<br />

cabeça nua do homem. Depois falou, oscilando de um lado e outro:<br />

− O sofrimento, meu filho, é a fonte do amor. O sofrimento é a graça, a grande graça que nosso Pai do céu<br />

derrama sobre nós. Porque o sofrimento torna submissos os corações dos homens. Aquele que não sofre julga-se colocado<br />

sobre uma alta rocha que ele próprio erigiu. E não vê seu irmão; só vê a si mesmo. Não crê em ninguém; só crê em sua própria<br />

força. Seu coração se torna um pântano enxameante de répteis: orgulho, teimosia, amor próprio. E quando aquele seu pedestal<br />

desaba, ele afunda conjuntamente com todos os répteis e rola para as profundidades do inferno. Mas o homem a quem o<br />

Senhor deu o sofrimento, esse descobrirá que suas dores são cordas que o atam ao Pai do céu. Seu coração está sempre<br />

desperto para sentir a dor de seu irmão. Manda-vos o Senhor aflições e vos faz pequenos na terra para que sejais grandes no<br />

céu.<br />

O rabi ergueu as mãos e manteve-as sobre as cabeças daqueles deserdados da sorte; ali a seus pés como um mar<br />

de imundície, e falou:<br />

− Bem-aventurados os esmoídos pela doença e a miséria, porque pagam os seus pecados nesta vida. Mas que<br />

brilhante será a parte deles no outro mundo, na vida eterna! Ai do rico que só pensa em suas breves alegrias neste mundo! Que<br />

negra será a parte deles no mundo futuro! A que pode isto ser comparado? Havia uma vez um homem rico que só vestia<br />

púrpura e linho fino, e se banqueteava todos os dias. E havia também um homem pobre, de nome Eliezer, que se sentava na<br />

porta do rico, todo coberto de pústulas. E não queria mais que as migalhas caídas da mesa do rico e nem isso tinha; de dentro<br />

daquela casa só os cães vinham lamber-lhe as feridas. Mas quando Eliezer morreu os anjos o levaram para o seio de Abraão. O<br />

rico também morreu e foi enterrado; mas quando se encontrou no inferno, em meio de tormentos, levantou os olhos e viu, lá<br />

distante, Eliezer no seio de Abraão. E implorou: “Meu pai, Abraão, tem piedade de mim! Manda Eliezer molhar a ponta do<br />

dedo em água e refrescar minha língua, que queima nesse fogo”. E Abraão respondeu: “Lembra-te, meu filho, que na vida<br />

terrena tomaste como teu o que era o bom, e Eliezer tomou seu o que era o mau. Agora está ele confortado e tu padeces.<br />

Ademais, há um grande abismo entre os dois. Os que aqui estão não podem se passar para aí, e os que aí estão não podem se<br />

passar para aqui”. E então o homem que fora fico disse: “Se é assim, manda Eliezer à casa de meu pai porque eu tenho cinco<br />

irmãos; e que ele os avise, de modo que possam escapar ao que me coube”. Mas Abraão respondeu: “Não têm eles lá o Torah<br />

de Moisés e os Profetas? Ora, como não deram tento às palavras do Torah de dos Profetas, assim também não o darão a um<br />

saído de entre os mortos”.<br />

Como se demudou o rosto daquela gente aos pés do rabi! A magia daquelas palavras dera-lhes ar de príncipes.<br />

Uma luz pairava-lhes nos olhos. Era como se seus rotos membros, perfeitos se houvessem tornado, como se suas espinhas se<br />

tivessem endireitado, como se os olhos que nada viam passassem a tudo ver. Era como se de súbito eles se convencessem de<br />

que não eram pobres, mas donos de algo acima de todas as riquezas do mundo. E exultavam de alegria.<br />

Abraão?”<br />

Um aleijadinho, agarrado ao batente da porta, gritou: “Rabi! Rabi! Vai o anjo do céu levar-me para o seio de<br />

− Por que não, meu filho? Não te vê o Senhor como a um dos seus?<br />

− Eu não cumpri os mandamentos, não pratiquei o bem, não tenho nenhum estudo, não sou nada.<br />

O rabi varou a multidão que o rodeava e foi ter com o aleijadinho na porta; minúsculo era ele, mas de cabeça<br />

grande e pesada com água.<br />

− És mais rico que os mais ricos. No mundo futuro serás invejado pelos que por aqui andam com a barriga cheia<br />

do Torah; pois quem possui não é quem pensa que possui e sim aquele que pensa que nada possui. Os perdidos são os<br />

encontrados.<br />

Havia uma mulher que procurava aproximar-se do rabi mas não ousava. Por fim falou-lhe sob o véu que lhe<br />

cobria o rosto.<br />

− E também eu serei levada pelo anjo ao seio de Abraão?<br />

− Tu também, minha filha.<br />

A mulher rompeu em choro. “Estou cheia de pecado”. Mas o rabi respondeu: “Feliz tu, minha filha, que sabes<br />

que estás cheia de pecado”.<br />

E levantando a voz falou em geral:<br />

− “Perto de mim estão os de coração partido”, disse o rei Daví. Felizes vós, os de coração partido: Deus está<br />

convosco. Há uma recompensa à espera de vossos trabalhos. Já recebestes o castigo e dado com mão plena. Sois os escolhidos<br />

de Deus; sobre vós apôs Ele o Seu sinal – o sinal da dor. Branda é a vossa carga, porque fazeis o trabalho do dia e a mesa vos<br />

será posta quando à noitinha voltardes à casa do Senhor.<br />

Mais tarde, logo que escureceu, seguido pelos discípulos mais íntimos, deixou o rabi o tugúrio de Simão o<br />

Leproso, cansado já do trabalho feito. Era como se houvesse derramado a sua própria vida. Estava com o rosto mortalmente<br />

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pálido; as palavras ditas tinham-lhe sorvido o sangue; os lábios mais finos do que nunca, as pálpebras pesadas. Mas não lhe era<br />

fácil sair dali, porque a massa humana o não largava. Simão bar Jonas e outros tiveram de intervir e com paciência dispersar o<br />

povo. Lá se foram todos relutantemente, com as palavras do rabi a lhes cantar nos ouvidos, e ébrios, não de vinho, mas da<br />

alegria que lhes apojava os corações. E assim voltaram à cidade.<br />

Mas eu e Rufo ali ficamos, apesar da noite entrante. Sentíamos que algo maravilhoso estava acontecendo diante<br />

de nossos olhos e queríamos aprender mais.<br />

Não longe de Bet Eini, onde morava Simão o Leproso, ficava K’far Míriam e a casa de Míriam e Marta. Para lá<br />

se dirigiu o rabi com os três discípulos. Simão quase o levava a braços, tão cansado ficara o rabi. Nem todos os pobres se<br />

haviam dispersado; alguns ainda os seguiam. Entramos numa sala de jantar de mesa já posta, rodeada de tamboretes. Marta e<br />

as outras mulheres tinham estado a trabalhar ao ar livre no pátio, apesar do frio; andaram a lidar no forno e tudo estava pronto.<br />

Dentro de casa Míriam, irmã de Marta, acendera as lâmpadas e pusera os pratos. Quando o rabi e seus discípulos se sentaram,<br />

Míriam e seu irmão Eliezer se postaram atrás do rabi para servi-lo.<br />

Súbito, estando eu com os olhos naqueles dois ali atrás do rabi, um à direita e outro à esquerda, grande luz<br />

brotou em mim. Parecia-me estar vendo não só a irmã que ele salvara do pecado e o irmão que ele ressuscitara da tumba, como<br />

mais, muito mais.<br />

Ao clarão da lâmpada de óleo o rosto de Míriam não me pareceu tão velho e murcho, nem seus olhos tão<br />

extintos, como no dia em que ela tirara o véu no pátio do Templo. Ali, na paz daquele remanso, no êxtase da santidade, o rosto<br />

de Míriam se transformava; era como o rosto duma criança que houvesse chorado e fosse aquietada, ainda em lágrimas<br />

suspensas nos olhos, mas lágrimas de alegria. Os olhos de Míriam brilhavam dum modo estranho; todas as rugas cavadas pela<br />

dor, o amor e os sofrimentos desapareciam. Sim, a luz dimanada de seus olhos ressurgia-lhe de novo a mocidade, os lindos<br />

tons amorenados da cútis e a frescura juvenil do rosto. Até seus cabelos reassumiam o negror radiante de outrora. Estava como<br />

que liberada do terror da morte. Era de novo Míriam de Migdal, mas com a beleza transformada num calmo e terno cântico de<br />

felicidade contaminadora para os que a cercavam; quem nela punha os olhos sentia-se em enlevo, não no enlevo inquieto e<br />

ardente que por ela sentiam os homens no passado, mas num enlevo de paz – da paz que emana duma alma libertada. E<br />

observei que não era ela a única nesse estado d’alma ali; o mesmo sorriso transfigurado de Míriam pairava nos lábios de todos<br />

quantos o rabi tinha salvo do pecado, arrancado às trevas de Satã e restituído ao Pai do céu.<br />

Foi o que também vi no rosto de Eliezer, o irmão de Míriam.<br />

Eu já tinha ouvido falar do milagre realizado com esse Eliezer, e também corria que ele não estivera morto e sim<br />

apenas caído em longo desmaio. Não obstante a história ainda corrente era de que morrera, e as mulheres o choraram, e fora<br />

levado a enterrar, e o rabi a restituíra à vida; e qualquer que fosse a verdade, desde aquele momento passou Eliezer a ser olhado<br />

com um sinistro respeito em que havia pavor. Para muita gente era ele o homem que tinha estado morto. E as criaturas<br />

sentiam-se mal em sua presença, dele fugiam, tremiam de medo de tocá-lo. E havia ainda a suspeita de que quem quer que<br />

tivesse com ele contato físico tornava-se impuro, corrupto, como se houvesse tocado em cadáver. Porque ele podia ser um<br />

morto vivo, um cadáver com movimentos. Tal realmente era a impressão por ele produzida em muitos – de um ser já não<br />

animado de vontade própria. E, além disso, vivo ou morto ou morto e vivo ao mesmo tempo, aquele corpo esguio e enrugado<br />

cheirava a túmulo, e os que o viam atrás do rabi no pátio do Templo murmuravam: “Lá vai o rabi com o golem que ele<br />

afeiçoou”.<br />

Mas naquela noite, ali à direita do rabi, a servi-lo em gestos lentos com mãos que pareciam de pau, o rosto que<br />

ficava lá em cima assumia um sorriso alegre. Os grandes olhos de bezerro, como luas cheias no fundo das órbitas, só falavam<br />

de vida; não semeavam terror, nem, dalgum modo horrível, pediam perdão de não estarem fechados pela morte; eram olhos<br />

felizes. O sorriso de seus lábios repuxados não era o do idiota, destituído de senso e vontade; era antes o sorriso inteligente e<br />

bom do homem que penetrou todos os segredos e alcançou a paz – o sorriso de quem se encarou com a Morte e a venceu – de<br />

quem decifrou os mistérios últimos e adquiriu a certeza de que além da tumba está a vida eterna. Mas era também o sorriso de<br />

todos os derrotados, vexados e humilhados, de todos os doentes e caídos, de todos que alguma vez estiveram à beira do túmulo,<br />

viram-no aberto diante de si – e voltaram à vida.<br />

Ali na casa de Míriam e Marta, sentado à mesa com seus discípulos e com os que havia curado ou consolado,<br />

não vi mais o rabi de palavra fulminante; não era mais o centro de intermináveis disputas e sim o rabi do perdão e da<br />

reconciliação, da paz e do repouso. Depois que lavou os dedos, abençoou o pão e sobre ele fez a sua prece ao nosso Pai do céu,<br />

acrescentou também a prece do costume, salgou o pão, provou-o, partiu-o e distribuiu os pedaços em redor da mesa. Depois<br />

pregou – e que doces foram suas palavras! Eu lamentava que os sábios de Jerusalém ali não estivessem, que meu rabi<br />

Nicodemo o não estivesse ouvindo. Parece-me que me coubera o privilégio de sentar-me à mesa do venerável Hillel e de ouvilo<br />

pregar, ao modo como o pintavam o meu rabi e outros. O galileu falou de oração; disse que a oração era o único fio que nos<br />

ligava ao Pai do céu. Depois falou da grandeza do homem que anula a própria vontade diante da de seu irmão: “Se dois de<br />

vós”, disse ele, “se tornam um só aqui na terra, então tudo quanto pedis vos será dado pelo Pai do céu. E se teu irmão peca<br />

contra ti, repreende-o; e se se arrepende, perdoa-o. E se contra ti peca sete vezes num dia e sete vezes te procura e diz “Estou<br />

arrependido”, sete vezes tu lhe perdoarás”. Depois lhes disse que não fossem como criados que servem ao amo só por causa da<br />

paga, mas como os que o servem sem pensar na paga. Referiu-lhes também à parábola do amo e dos servos. E disse: “Quando<br />

orais, perdoai a todos que vos fizeram mal, e vosso Pai do céu igualmente vos perdoará todos os erros. Mas se não perdoardes<br />

aos outros, como quereis que vosso Pai do céu vos perdoe”?<br />

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Quando, acompanhado de Rufo, deixei Bet Paga, a noite já se fizera bastante escura. Sombras se tinham<br />

levantado do vale de Jericó e só um apagado palor ainda clareava o céu dos lados do Mar Grande. Apressamos o passo de volta<br />

a Jerusalém, tão derramada por montes e vales. De inúmeras casas emergia a luz de humildes e hospitaleiras lâmpadas,<br />

testemunhando que o trabalhador encerrara a tarefa do dia e estava à mesa com os seus. No Monte Moriah, a Casa que Deus<br />

escolhera erguia-se para o céu estrelado. O fogo dos archotes dos guardas do Templo formavam um círculo em redor dos<br />

muramentos e torres da estrutura, naquele instante mergulhada na noite mas a enviar para os céus a sua radiância. A paz<br />

reinava sobre Jerusalém.<br />

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12<br />

Durante aquela estação fui várias vezes a Bet Eini. Estávamos com um inverno excepcionalmente frio. Chuvas<br />

contínuas, o solo sempre empapado. Riachos erodiam a terra, como charruas. As poucas figueiras das estradas eram galhaça<br />

despida. Mais duma vez, no decurso do inverno, essas árvores tentaram emitir botões que viessem a ser as folhas, mas esses<br />

botões murchavam e caíam.<br />

Pobres e doentes continuavam a juntar-se na casa de Simão o Leproso, e muitos lá ficavam por longos estirões<br />

de tempo. Instalavam-se nos abrigos do pátio como em sua casa e dormiam sobre palha. Os de alguma saúde faziam-se<br />

serviçais, tanto ali em casa de Simão como em K’far Míriam, onde havia um terreiro, um bosque de oliveiras e um horto de<br />

plantas. Outros moíam folhas em grais para extrair as essências que vendiam na cidade. Freqüentes vezes cruzei-me com o<br />

cego Bar Talmai, um dos discípulos, o qual ensinava aos outros a arte das especiarias. Os pobres seguidores do rabi sentavamse<br />

com ele à mesa e compartilhavam de tudo quanto havia.<br />

Na casa das irmãs Míriam e Marta alojavam-se também outras mulheres vindas da Galiléia com o rabi. Uma,<br />

Sulamith, a mãe de Jochanan e Jacó. Havia sido rica outrora. Contava-se que a princípio se opusera a que seus filhos<br />

abandonassem os barcos de pesca do Mar de Genesaré, legados pelo pai, afim de seguir o rabi. Mas tarde foi pedir ao rabi que<br />

desse aos dois rapazes assentos à sua direita e esquerda no reino do céu. Mas tendo-o visto, com ele ficou. Vendeu os barcos e<br />

foi com os filhos para Jerusalém. O dinheiro deu-o ao tesouro comum e passou a viver na casa de Míriam e Marta. No começo<br />

ajudava no trabalho doméstico, depois o tomou todo sobre si, porque a casa andava como navio sem leme. Entrar, comer e<br />

beber era para quem quisesse, hordas de pobres viviam enchendo e pilhando tudo ali. Mas quando Sulamith tomou o governo,<br />

fez que cada um pagasse com o serviço que pudesse prestar; e sempre atarefada vivia ela, correndo tudo e dando ordens. Usava<br />

um grosso vestido de lã, toucado e meias de feltro e sandálias por cima, porque não estava afeita aos invernos úmidos de<br />

Jerusalém, vinda que era das praias ensolaradas do Genesaré. Sua voz severa vivia sempre no ar.<br />

− Vós, aí, madraços! Pensais que porque o reino do céu vem amanhã não tendes de varrer o chão hoje? Tendes<br />

muito tempo, quando o reino do céu chegar, de colherdes pão assado nas hastes dos trigais. Enquanto isso, toca a trabalhar nos<br />

campos, e a ará-lo até com o nariz, se necessário for. E tu, aí! Pretendes ficar deitado do dia inteiro, sem fazer coisa nenhuma?<br />

Roda, roda! Vai juntar folhas secas e gravetos, e estrume de vaca, e põe-no a secar. Se não, como posso aquecer o forno? E de<br />

um velho mendigo passava a uma rapariga nova: “E tu também, beleza, achas que por estar perto o reino do céu temos de nos<br />

sentar no escuro? Vamos, areia as lâmpadas e tece-lhes pavios. Não ouviste de como as boas noivas conservam suas lâmpadas<br />

prontas, para que possam receber seus noivos?”<br />

E Sulamith erguia a voz até contra Míriam de Migdal, por vê-la como a criança mimada do grupo; dizia-lhe que<br />

não perdesse tanto tempo em passar óleos perfumados dum frasco para outro e lavando e costurando as roupas do rabi, em vez<br />

de meter as mãos no trabalho duro da casa. “Quando o reino do céu vier”, dizia ela na sua voz aguda, “nós todas seremos<br />

favoritas – e eu a mãe de dois príncipes. Mas até lá, cumpre que trabalhemos”.<br />

Porque a verdade era aquela: os que aderiam ao rabi eram tomados de uma estagnação e uma espécie de<br />

indolência divina. Toda gente sentia que o reino do céu estava quase à vista, a chegar de um momento para outro: que<br />

adiantava, pois, trabalhar para o dia de amanhã - cuidar da próxima refeição? Não havia o rabi dito: “Transferi todos os vossos<br />

cuidados ao vosso Pai do céu” e “Não pergunteis o que comereis amanhã” e “Ele conhece as vossas necessidades”? Mas<br />

entrementes era necessário comer; e eram necessárias roupas para o corpo, um teto a que abrigar-se, não só para os mais<br />

próximos do rabi, como para todos os pobres que se vinham a ele e ficavam.<br />

Na casa das duas irmãs havia outra mulher também chamada Míriam e que para distinguir-se de Míriam de<br />

Migdal era chamada “a mãe de Jacó e Joseph”. Devia ser parenta próxima do rabi. Vinha também da Galileia e corria que se<br />

tratava da mãe do rabi, mas ninguém tinha a certeza, embora o rabi a tratasse com muita honra e a sentasse junto dele à mesa; e<br />

por isso todos igualmente a respeitavam. Era uma mulher alta, e o véu com que saía testemunhava a sua nobreza. Do mesmo<br />

modo que a outra Míriam, ela não se preocupava com os trabalhos grosseiros da casa, mas ajudava a sua xará no trato do rabi.<br />

O preparo das suas refeições era para as duas Míriams um serviço sagrado. Cada peça de roupa que o rabi usava, tinha aos<br />

olhos delas a mesma santidade das vestes do Sumo Sacerdote. O rabi andava sempre de branco, como a Escritura diz: “Fazei<br />

que alva sempre seja tua roupa e não falte óleo em tua cabeça”. As Mírians ainda lhe faziam as sandálias, e ao preparar-lhe as<br />

refeições comportavam-se como se cuidassem dum sacrifício no altar. Porque o rabi punha grande empenho em suas roupas e<br />

conduzia as refeições como um verdadeiro sacrifício ritual. Gostava do cheiro de incenso em seu redor, e da graça do óleo em<br />

seu corpo. A mesa a que se sentava era coberta de belos linhos. E ele também enxugava as mãos em finas toalhas de linho. E<br />

de tudo isso cuidavam as duas Mírians, com a maior devoção. Realizavam as suas tarefas como num sonho e sussurravam<br />

como sacerdotisas quando se punham a lidar com suas roupas.<br />

E desse modo o trabalho pesado, bem como o do campo e o do jardim e o de dar de comer aos pobres, recaia<br />

sobre as outras duas mulheres, Sulamith e Marta. E na casa só havia um homem, Eliezer, mas este vivia ainda mais<br />

mergulhado em sonhos que as duas Míriams, e por ter sido retirado de entre os mortos, era mais do outro mundo do que deste.<br />

Às vezes ouviam-no falar a espíritos que ele avistava com seus olhos de sonho. Era pois de pouca utilidade na casa.<br />

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E os discípulos nunca estavam à mão. Passavam o dia na cidade, muitos no trabalho, de modo a, com seus<br />

ganhos, manter o tesouro comum. Outros gastavam o tempo nas zonas urbanas mais pobres, pregando a doutrina de seu rabi;<br />

mas Simão e os dois Zebedeus, esses nunca o largavam.<br />

Marta era a verdadeira personificação do trabalho. Estou a vê-la no quintal, na umidade dum dia de inverno,<br />

lavando roupas numa tina ou curvada sobre o forno onde assava bolos, ou cozinhando lentilhas e verduras em uma grande<br />

panela de barro – seu corpo retacado vestido de roupa grosseira, as pernas vermelhas aparecendo sob a saia muito curta. Tinha<br />

o rosto e os braços também vermelhos do frio e do calor do fogão; e cabelos grossos e emaranhados, poentos do pó que as<br />

brisas traziam. E lá dentro está sua irmã Míriam, vestida de seda, pés em sandálias de Laodicéia, cabeça velada com um véu<br />

caído; e seus dedos tremem quando ela prepara o incenso que vai queimar para o rabi. Ou então prepara-lhe ela suas comidas,<br />

aspargos ou espinafre, cozidos em fogo alimentado com os mais finos óleos. Para Marta não há um momento de folga. Se não<br />

está cozinhando, está lavando pratos; se não está na tina de roupa, está arrancando mato do jardim. Entrementes sua irmã conta<br />

à outra Míriam os seus sonhos e visões do reino do rabi e do reino do céu. E Marta às vezes se revoltava; dizem mesmo que<br />

chegou a queixar-se ao rabi daquela desigualdade. Mas o rabi respondeu: “Tua irmã tomou a melhor parte”. Desde então nunca<br />

mais se queixou; e silenciosamente, submissa, aceitou a parte que lhe coubera.<br />

∗ ∗ ∗<br />

Durante o dia pregava o rabi nas ruas e praças de Jerusalém e no pátio do Templo, sob as arcadas. Ao cair da<br />

tarde ia para Bet Eini. Havia dois caminhos para lá chegar, partindo do Templo: o mais curto e quieto descia por uma escada<br />

íngreme como uma cachoeira que descesse das muralhas ao vale do Kidron; o outro, mais longo dava volta pela Cidade Baixa<br />

e passava pela Porta do Estrume. O rabi tomava sempre pelo caminho mais longo, porque era labiríntico e desse modo<br />

despistava os que procurassem segui-lo, já que desejava manter em segredo a sua residência em Jerusalém. Seus discípulos<br />

igualmente tinham muito cuidado em oculta-la. Mesmo depois de já com vários meses de estada na cidade, e de tão conhecido,<br />

os sábios e sacerdotes não tinham descoberto onde ele passava as noites. Nem mesmo o meu rabi o sabia, antes que eu<br />

houvesse feito a descoberta; e então pediu-me Nicodemo que conservasse tudo em segredo, porque se o rabi da Galiléia não<br />

queria que lhe soubessem daqueles seus atos de caridade e bondade, razão teria para isso.<br />

Durante todos os meses do inverno pregou o rabi na sinagoga e nos pátios do Templo a próxima vinda do reino<br />

do céu. Ninguém o molestava. A cidade acostumou-se ao tom dos seus sermões, ficando assente que eram simbólicas aquelas<br />

referências ao reino do céu. Os sábios chegaram até a lhe perdoar as durezas recebidas: o hábito foi embotando o<br />

ressentimento. Ninguém ignorava que o rabi cumpria todos os mandamentos do Torah, inclusive os menores, e ainda os<br />

fixados pela tradição. E embora falasse asperamente dos fariseus, aconselhava a que seus ouvintes lhes obedecessem, visto<br />

como estavam sentados no assento de Moisés. Conhecidas eram a sua piedade e a sua observância da lei, os seus votos de<br />

caridade, as suas orações e a sua defesa do pobre e do degradado. Mesmo não tendo feito nenhum milagre em Jerusalém,<br />

exceto umas tantas curas, e se comportasse como qualquer outro rabi, muita gente vivia esperando a realização do<br />

acontecimento que simbolicamente ele anunciava. Mesmo alguns que dele se riam, secretamente esperavam pela revelação.<br />

Porque os tempos estavam maduros para grandes acontecimentos.<br />

Entre os que esperavam a revelação da mensagem do galileu cito o meu próprio rabi Nicodemo. Eu já havia<br />

notado a profunda mudança nele operada depois da vinda do galileu para Jerusalém. A viagem à Galiléia restaurara-o na sua<br />

antiga tranqüilidade; mas uma febril inquietação se acentuava, e seu interesse por aquele homem degenerara em obsessão,<br />

depois da vinda do galileu. Começou a acompanha-lo, na ânsia de mais e mais ouvi-lo. E resumia os seus sermões messiânicos,<br />

e convocava com freqüência os companheiros.<br />

Um dia Hillel o aguadeiro provocou o encontro de meu rabi com o da Galiléia. Não foi coisa feita por Judas Ish-<br />

Kiriot ou qualquer outro discípulo, mas pelo aguadeiro. Encontro secreto e que só por acidente chegou ao meu conhecimento e<br />

ao de Rufo. Muito nos surpreendemos, certa tarde, quando o rabi nos pediu a sua roupa de gala, e longa itzla preta ou manto<br />

que só punha para visitar os altos personagens. E rejubilamo-nos quando nos pediu que fôssemos na frente com as lâmpadas.<br />

Hillel o aguadeiro estava conosco e conduziu-nos à sua residência, na muralha velha. Quando alcançamos a estreita escadaria<br />

que desce à covanca, o rabi nos pediu que o esperássemos fora; o próprio Hillel não teve licença de entrar. Mas imediatamente<br />

eu e Rufo tivemos a intuição de que lá dentro estava o rabi da Galiléia. Tínhamos reconhecido um dos homens que, como nós,<br />

esperava fora – um companheiro do rabi, mas não dos seus mais íntimos, porque mesmo Simão fora excluído do secreto<br />

encontro. Longo tempo se passou antes que Nicodemo saísse. O que lá conversaram não sei, mas a nossa intuição da presença<br />

do galileu foi confirmada quando Nicodemo nos pediu que não contássemos a ninguém aquela nossa ida à morada de Hillel.<br />

Não muito tempo depois eu e Rufo fomos a K’far Míriam e nos admiramos de saber que já lá não estava o rabi<br />

da Galiléia. Também os discípulos se tinham mudado. Só encontramos as mulheres e o ajuntamento de enfermos e pobres –<br />

estes tão admirados quanto nós. Não quiseram acreditar quando lhes disseram que o rabi se havia retirado para algum sitio<br />

desconhecido.<br />

Judas Ish-Kiriot, que ultimamente muito visitava o meu rabi, também desaparecera.<br />

Era ao tempo do fim do mês de Adar, em que a taxa de meio shekel tinha de ser paga ao tesouro do Templo. Já<br />

as brisas da primavera animavam Jerusalém. Tardes menos frias, com a luz do ocaso a remorar nos flamantes torreões do<br />

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Templo. Pesado fumo emergia do altar grande como coluna ardente e ia até às nuvens. Nos lares de Jerusalém as mulheres<br />

começavam a guardar as coisas hibernais e a preparar-se para receber os muitos peregrinos que viriam pela Páscoa.<br />

Durante todo esse período ninguém soube do rabi da Galiléia.<br />

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13<br />

Que voz havia proclamado que a Páscoa daquele ano iria testemunhar em Jerusalém um segundo êxodo da<br />

escravidão? É verdade que mais ou menos isso se dizia cada Páscoa; mas a advertência tinha agora um ar de enunciação divina<br />

– era como se os céus e a terra mandassem mensagens. Nunca esteve o sol tão brilhante, nunca vestiu Deus a estação<br />

libertadora de roupagens mais radiosas. Grandes feixes de luz chofravam as ruas e refletiam-se nas paredes em caracteres de<br />

esplendor. Simples manchas de luz do sol coadas por frestas dançavam com desusada radiância; os terraços, os tetos e as<br />

cisternas d’água nos tetos, as portas e torres dos palácios – tudo se recamava daquele fogo branco.<br />

E em redor da cidade os estirões de negros ciprestes e oliveiras de folhagem trêmulo-prateada de súbito de<br />

tornaram mais verdes. Cada palmo de chão se vestia de verde. Tanto dos quintais dos ricos como dos pobres exalava-se o<br />

cheiro das figueiras a abotoarem-se e o incenso das florações. A rubra papoula rebentava nos quartéis da pobreza, nos vales do<br />

Kidron e do Hinnom e triunfantemente subia até à Cidade Alta. Em redor das águas do antigo Siloah surrados oleandros<br />

começavam a florir. Moitas de alfazema erguiam suas cabeças até à sombra da muralha de Daví, enquanto ao pé de cada cerca<br />

da Cidade Velha trepavam ervilhas de cheiro, anêmonas e ciclames. Os jasmineiros estendiam-se até além da hospedaria dos<br />

tropeiros, e como que floriam ainda debaixo das patas dos camelos e asnos. De miríade de botões entreabertos uma exalação<br />

viva irradiava, enchendo os homens de vontade e energia – e aquela luz ambiente inundava-os de uma inquieta expectação.<br />

Jerusalém vestira-se de roupa nova e abrira as portas aos filhos de todos os recantos do mundo. Os primeiros a<br />

aparecer foram os da Babilônia, facilmente reconhecíveis pelos negros cabelos cacheados, pendentes sobre os ombros. Rostos<br />

morenos e brilhantes, como se ungidos de óleo; usavam mantos brancos sem manga, feitos de lã de carneiro, presos na<br />

garganta com broches de ouro – e compridos de ocultar-lhes as sandálias. Eram quase todos homens de riqueza, como os anéis<br />

dos dedos anunciavam. Durante a estada em Jerusalém ficavam com parentes ricos da Cidade Alta, como também os vindos de<br />

Tiro, Sidon, Chipre e outras terras fenícias. Os de Tiro faziam de suas barbas um culto. Todos os requintes que os cabeleireiros<br />

sírios aprimoraram transparecia nos judeus fenícios. Alguns usavam a barba dividida em pequenas rosetas crespas, a<br />

emoldurar-lhes o rosto como grinalda. Outros deixavam-na cair em forma de canteiros de jardins sobre o peito. Outros teciamna<br />

em ondas sucessíveis, uma caindo sobre a outra. E outros ainda a dividiam em bandós, que lhes dançavam sobre o peito. E,<br />

com o vestuário tinham esses judeus os mesmos cuidados que com as barbas. Silhuetas de todos os animais da natura bordadas<br />

em seus mantos, túnicas e cintos. Os letrados de Jerusalém tinham a suspeita de que freqüentemente essas roupas infringiam a<br />

proibição de misturar a lã e o linho. Igualmente protestavam contra a exibição da imagem de seres vivos – mas seus protestos<br />

não tinham efeito. Os judeus de Tiro e Sidon já estavam tão afeitos às vestes decoradas que não sabiam vestir-se de outra<br />

maneira.<br />

E também os judeus vindos da pedregosa cidade de Petra imitavam na indumentária os costumes e gostos dos<br />

seu vizinhos pagãos. Os sábios de Jerusalém, exasperados, exigiam que esses peregrinos se purificassem no Templo com um<br />

chuvilho de sua água com cinzas de novilha vermelha, isso antes que ofertassem os seus sacrifícios da Páscoa.<br />

Mas eram esses os visitantes ricos, vindos de terras distantes e que se hospedavam com parentes igualmente<br />

ricos da Cidade Alta ou do Monte Scopus. Em baixo, nas casas e mercados da Cidade Baixa, metiam-se os milhares de<br />

peregrinos pobres: judias do vale do Jordão, homens da região montanhosa da Judéia, agricultores do Sharon, vinhateiros de<br />

Shefelah, aradores da Galiléia e de Bet Shemen, cameleiros e tropeiros de Sodoma, a qual ficava além do Mar Morto,<br />

pescadores de Genesaré, marinheiros de Joppa e Akko; caras que o sol requeimou com o seu fogo, que os ventos enrijeceram,<br />

que e miséria descarnou. Tinham a nudez do corpo coberta com peles de camelo ou carneiro, ou mesmo das feras do deserto.<br />

Outros mal se cobriam de trapos de pano de saco. As barbas desses homens não eram encrespadas ou trançadas ou afeiçoadas<br />

em ondas e anéis, sim barbas ao leu que só o vento penetrava, e cheias de pó e fiapos. Não traziam as cabeças adornadas de<br />

elmos de prata batida ou bronze; sim como agrestes tocos de pau surrados pelas chuvas. De passagem pela Cidade Baixa esses<br />

peregrinos não deixavam atrás de si um rastilho de perfumes caros, sim o odor natural dos campos e águas de Israel, o bodum<br />

dos rebanhos e currais. Em suas mãos nada de anéis, só veias saltadas e pele rija sobre os ossos. Não vinham suas mulheres<br />

envoltas em sedas da Pérsia; nem com cintos de ouro de Tarshish; nem traziam pendentes do pescoço cadeias com pequenos<br />

frascos de perfumes. Apenas recobriam o busto num véu tecido de seus próprios cabelos e enrolavam o corpo num<br />

panejamento de saco, tendo como enfeite único um cordel colorido. Nos pés não usavam as graciosas sandálias de Laodicéia;<br />

eram pés descalços, estragados, maltratados pelas pedras dos caminhos – pés como raízes de oliveira fora do chão. Mas eram<br />

as que enchiam as ruas de Jerusalém, como a água espumejante dum rio que transborda. Apareciam em todos os recantos da<br />

cidade. Vinham em grupos de todos os tamanhos – em famílias, em aldeias, em regiões. Também pela maior parte se<br />

abrigavam com parentes, conhecidos e conterrâneos estabelecidos em Jerusalém. Não havia casa que não recebesse quantas<br />

podia, e mesmo mais do que podia. A cidade de Jerusalém era extremamente hospitaleira. Apesar disso muitos peregrinos<br />

tinham de ficar nos celeiros, sob as arcadas que suportavam a grande praça do Templo. Outros – e em grande número –<br />

acampavam nas ruas. Era cena de ver-se: grupos de mulheres e crianças com seus carneiros e suas bilhas de óleo para oferenda,<br />

com suas trouxas de víveres e tralha de viagem. Esses peregrinos se espalhavam debaixo de cada arcada, à sombra dos<br />

edifícios públicos ou sob os viadutos que ligavam a Cidade Alta com a área do Templo; espalhavam-se até pelos degraus dos<br />

palácios e eram vistos até junto das muralhas do castelo de Herodes. Muitos se insinuavam entre os pilares do teatro e do<br />

hipódromo, onde nenhum judeu piedoso jamais era visto. Está claro que as elevações dos vales de Kidron e Hinnom também<br />

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se enchiam deles. Onde cabiam, ali construíam abrigos de ramos de oliveira e ciprestes. E enxameavam junto às muralhas de<br />

Jerusalém; não ficava uma covanca, um buraco qualquer vazio.<br />

Não havia um só que dissesse: “Para mim não há lugar, ou o lugar é muito pequeno”. Durante o dia banhavam-se<br />

em ondas de luz; durante a noite eram milhares as nuvens que subiam dos fogos de acampamento. Do fundo dos vales em<br />

torno de Jerusalém as lâmpadas de óleo piscavam, enquanto de todos os altos flamas sinaleiras respondiam, como um<br />

intercâmbio entre os moradores urbanos e os forasteiros. Era como o cumprimento da palavra do profeta: “E naquele dia os<br />

povos do mundo dirigir-se-ão em torrente para o Monte Sagrado”.<br />

Mas a congestão era nos pátios do Templo. As ruas para lá convergentes enchiam-se de não caber uma lança em<br />

vertical. Todos se afobavam nos preparativos para a grande festa; todos se purificavam, cumpriam seus votos, realizavam os<br />

sacrifícios e pagavam as taxas em dinheiro. Diante da tesouraria do Templo a afobação era grande; os encarregados recebiam<br />

os donativos de ouro e prata, de pedras preciosas, de sedas e óleos raros trazidos pelos peregrinos dos mais distantes pontos. As<br />

mesas dos cambistas estavam sempre rodeadas dos que necessitavam trocar dinares, dracmas e tetradracmas e mais moedas<br />

estrangeiras com efígies humanas ou de animais, e também moedas judaicas de cobre, pelos siclos do Templo. Outros se<br />

reuniam em torno das mesas dos contadores da tesouraria, que aceitavam em depósito o dinheiro das viuvas e órfãos trazidos<br />

pelos tutores. Toda sorte de dinheiro era entregue à salvaguarda da tesouraria do Templo, e as somas depositadas iam para um<br />

registro de papiro e pergaminho. Na basílica de Herodes, que ficava perto da entrada do Templo, os Filhos de Hanan tinham<br />

estabelecido lojas especiais para a festa, abastecidas pelos armazéns do Monte das Oliveiras; desse modo ficavam os<br />

peregrinos mais bem servidos. Nessas lojas adquiriam-se pombas, óleos, farinha, incenso e mais especiarias de uso nos ritos de<br />

purificação. Freqüentemente as mulheres das províncias faziam coincidir a purificação obrigatória depois de cada parto, com<br />

os rituais das festas. Muitos não podiam oferecer o sacrifício da Páscoa sem primeiramente se purificarem dos contatos<br />

proibidos que ocorreram durante o ano. A encomenda de ritos de purificação era tão grande que uma coluna de fogo e fumaça<br />

subia do altar o dia inteiro. As peças sacrificiais não podiam ser adquiridas senão nas lojas do Sumo Sacerdote, as quais viviam<br />

abarrotadas de fregueses. Os sábios e letrados de Jerusalém olhavam com amargor para aquilo – os Filhos de Hanan abrindo<br />

suas lojas sob as arcadas, entre as colunas, de modo que nos lugares onde durante todo o ano só ecoavam as palavras do Torah,<br />

nada se ouvia pela Páscoa senão os violentos debates entre compradores e vendedores; ali onde os portadores da palavra de<br />

Deus pregavam ao povo de Deus, estabeleciam-se as mesas dos cambistas de moeda. Mas que podiam fazer os sábios? A Casa<br />

de Hanan era poderosa e os sábios fracos; por trás dos Hanans estava o poder de Roma, sempre pronto para defende-los de<br />

qualquer ataque.<br />

Bastante visível em Jerusalém era o poder de Roma, e suas evidências aumentavam com a luz do Sol e o afluxo<br />

de peregrinos. As armas de Edom conservavam a Casa de Deus como num torniquete. Quando as primeiras ondas de<br />

peregrinos apareceram nas ruas de Jerusalém, novas coortes de legionários vieram de Jericó e de Cesaréia, da Samaria e<br />

mesmo do Trans-Jordão. Asquelonitas de rosto bronzeado, cavaleiros germânicos de cabelos amarelos, estacionavam por toda<br />

parte na zona do Templo. Eram como uma lança fincada no coração de Israel, que o fazia sangrar incessantemente. Com o pé<br />

na Casa Sagrada, Edom apisoava todas as santidades. Os guardas da fortaleza Antônia haviam sido dobrados e triplicados.<br />

Podiam ser vistos a qualquer hora do dia, lá nos balcões e terraços da torre. Seus olhos hostis fuzilavam raios contra nós, e<br />

víamo-lhes os punhos cerrados, as espadas recem-afiadas, a armadura polida de fresco – e os corações a transbordarem de ódio<br />

e inveja. Durante o ano inteiro a Antônia trazia de olho o Templo e as áreas vizinhas; e agora coortes saiam da fortaleza e se<br />

misturavam à multidão em baixo. Fortes destacamentos de guardas haviam sido postados nas portas – nas de fora e nas de<br />

dentro. Até a entrada do Santuário estava guardada. Nas horas de rendição desses soldados ouvia-se um rítmico plá-plá-plá de<br />

pés, entremeio ao metálico sonidos dos escudos e ao rebrilhos do aço. À noite a procissão dos archotes dos guardas estabelecia<br />

uma cinta de fogo em redor do Templo – sugestão de que era contínua a ameaça dirigida contra o coração de Israel.<br />

Naquele ano veio o Procurador para Jerusalém mais cedo que de costume. E com ele veio numerosa comitiva;<br />

por todas as ruas circulava um desusado número de romanos. Os vedos, em redor do Palácio de Herodes, também foram<br />

providos de guarda. Ninguém podia aproximar-se da residência do Procurador e de outros edifícios do Palácio de Herodes,<br />

cheios de funcionários da administração e soldados. À noite o fagocho das tochas punha debrum de cobre nas ameias das<br />

muralhas. Outros palácios em Jerusalém, que pelo resto do ano passavam vazios, fechados e tristes, iluminavam-se para a<br />

estação. O sinistro e velho palácio dos Hasmoneus, envolto em trevas o ano todo, voltava à vida na Páscoa. Os príncipes<br />

herodianos tinham vindo à Jerusalém com seus guardas, e às vezes a multidão via de relance ao próprio Herodes Antipatro,<br />

recém chegado de Tiberias, através das rótulas, junto com sua esposa ou concubina Herodias. Demonstrações populares hostis<br />

a ele, irrompiam aqui e ali. Vendo o Edomita (como chamavam a Herodes) e sua mulher a porem os olhos nos pátios do<br />

Templo, certos sacerdotes e zelotes falaram em profanação. A multidão ressentida se juntou, houve pedradas e gritos de “Fora!<br />

Fora daqui o Edomita!” Os guardas agarravam os zelotes gritadores e os entregavam às autoridades romanas, as quais os<br />

soltavam, visto como havia amarga hostilidade entre Herodes e o Procurador.<br />

Juntamente com as comitivas de Herodes e do Procurador chegaram hordas de cozinheiros sírios, de<br />

cabeleireiros caldaicos, de prostitutas árabes, de massagistas e preparadores de perfumes. Enchia-se deles a Cidade Alta. O<br />

palácio do Sumo Sacerdote também estava atochado de gente de fora, porque todos os seus parentes se reuniam pela Páscoa<br />

em Jerusalém; e cada qual passeava nos trajes do cargo, porque todos ocupavam uma boa posição ou outra na hierarquia do<br />

Templo. Kaifa, o genro de Hanan, era então o Sumo Sacerdote; e o velho Hanan e seu filho Eliezer também tinham sido Sumos<br />

Sacerdotes e agora desfrutavam uma situação igual à do Sumo Sacerdote reinante. Mas a mais alta posição depois da suprema<br />

era a que cabia a Jochanan, o segundo filho de Hanan. Estava ele em ascensão para o Sumo Sacerdócio, e já no degrau de<br />

S’gan, ou Assistente Principal do Sumo Sacerdote em exercício. E o terceiro filho de Hanan era o tesoureiro do Templo. O<br />

quarto, superintendente dos depósitos de óleo e madeira. O quinto, comandante dos guardas. O palácio de Kaifa, na Cidade<br />

Alta, era o centro do oficialismo que vinha para Jerusalém durante a Páscoa. Todas as noites havia banquete; os magnatas da<br />

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ordem sacerdotal festejavam-se suntuosamente. Inúmeras lâmpadas pendentes dos balcões, dos terraços e das paredes,<br />

inundavam as salas de luz. Cortinas de preciosos estofos brancos velavam a entrada do palácio, como aviso aos passantes de<br />

que comensais eram obsequiados lá dentro.<br />

O hipódromo herodiano na Cidade Alta sempre fora odioso aos olhos dos judeus de Jerusalém; mas na estação<br />

da Páscoa tornava-se especialmente repugnante, em conseqüência dos preparativos para as festas pagãs. E naquele ano corria<br />

voz que os filhos de Hanan tinham deliberado participar nas mascaradas, pantomimas e concursos retóricos, juntamente com<br />

atores profissionais e amadores. Pilatos encarregara-se de organizar as festas do hipódromo. Havia lá dentro muitas estátuas de<br />

césares romanos, erigidas pelo velho Herodes – ou Herodes o Mau, como lhe chamavam. Não admira, pois, que ali, mais que<br />

em outro qualquer lugar, se concentrasse o ódio dos bons judeus de Jerusalém. Cada Páscoa eles sonhavam com o assalto ao<br />

hipódromo e com o não deixar pedra sobre pedra – e para prevenir qualquer ataque lá estavam os destacamentos de infantes<br />

asquelonitas e cavaleiros germânicos. Um terrível boato corria: que naquela estação tencionava Pilatos inaugurar lutas de<br />

gladiadores e de homens contra feras, já estando na cidade muitos animais ferozes em grandes jaulas. Mas aquilo jamais se<br />

daria em Jerusalém, murmurava o povo, antes que milhares de judeus o pagassem com suas vidas. Os partidários de Bar Abba,<br />

em particular, eram os maiores propagadores desses boatos, com o fito evidente de exasperar a plebe. Sussurravam coisas<br />

insidiosas nos ouvidos dos peregrinos. E também sugeriam que o assalto ao hipódromo ia ser o começo das tremendas coisas a<br />

se passarem em Jerusalém naquela Páscoa. Mas de que natureza seriam esses acontecimentos, todos ignoravam.<br />

E de súbito veio aquilo.<br />

Recordo-me como se tivesse sido ontem. Era pela manhã, ali, à hora do shachrith, no segundo dia depois do<br />

Grande Sábado. Faltavam ainda cinco para a festa. Meu rabi Nicodemo estava sentado em seu banco na sinagoga, e nós aos<br />

seus pés ouvindo-lhe a preleção, no momento em que Judas Ish-Kiriot irrompeu. Tinha em lágrimas os olhos vermelhos da<br />

falta de sono, e um ar selvagem. O corpo, muito mais magro que quando o vimos pela última vez, parecia flutuante. Com o<br />

manto a escovar atrás dele, lançou-se ao nosso encontro, estendeu os descarnados braços e sem uma palavra de saudação ao<br />

rabi foi dizendo:<br />

− Começou!<br />

Nós os discípulos ficamos como pedra, mas o nosso rabi conservou a calma de sempre.<br />

− Que tens tu, Judas? Que é que começou?<br />

− A Redenção!...<br />

O sangue fugiu de nossas faces. Olhamo-nos um para o outro com terror. Mas a calma do rabi não se modificara.<br />

− Dizei-nos o que sucedeu, Judas. Onde tens estado todo esse tempo? E onde está o teu rabi, Judas?<br />

− Meu rabi? O Rei-Messias está nas portas de Jerusalém. Vai entrar montado hoje – um pobre homem sobre um<br />

asno, justamente como o profeta predisse! Vem tomar posse da cidade.<br />

Antes que houvesse tempo de outra pergunta, Judas ergueu para o ar as mãos e começou a dançar. Batia palmas<br />

e cantava: “Uma estrela se ergueu sobre Jacó! Uma criança nasceu entre nós! Este dia é o dia do Senhor! E ele elevará a<br />

decaída Casa de Daví!”<br />

Meu rabi continuava calmo e com os olhos fixos em Judas; depois falou suave, mas imperativamente:<br />

− Conta-nos, Judas, o que aconteceu. O momento não é próprio para cantar.<br />

Judas caiu em si e começou a despejar uma história que o pôs sem fôlego – e dessa vez nosso rabi não nos<br />

afastou, como se o tempo dos segredos já estivesse passado.<br />

− Há dez dias deixamos Jerusalém, narrou Judas aos arquejos. O rabi levou-nos para o deserto e lá fomos até<br />

onde Jochanan havia ensinado. O rabi mandou que fôssemos na frente até o Jordão e lá o esperássemos. Com ele ninguém<br />

ficou, nem mesmo qualquer dos seus discípulos amados, Simão, Jacó ou Jochanan; queria estar só no deserto. E nem lhe<br />

deixamos água e pão. Só havia água numa fonte, com profundidade suficiente para um homem nela batizar-se. Lá ficou o rabi<br />

durante três dias e três noites. E quando ressurgiu e veio ao nosso encontro, todos nós sentimos que já não era o mesmo. O<br />

terror de Deus o invadira; era como se um querubim o tivesse erguido e levado através das hostes celestiais. Seu rosto<br />

queimava com fogo branco e seus membros tremiam – como disse o Rei Daví; “Todos os meus ossos declararão o Senhor”.<br />

Tudo em redor não era como antes, e todos sentíamos que algo tremendo e estranho ia acontecer com ele – mas o que, não<br />

sabíamos, como também ignorávamos o que o rabi fizera na solidão de deserto. Conosco ficou ele três dias junto ao Jordão. E<br />

batizou-se, como se se preparasse. E nós, os discípulos, dissemo-nos uns para os outros: “O tempo agora chegou!” E de fato<br />

chegou! Porque ao virmos do Jordão para Jericó todo o povo o soube e o reconheceu, não só os que enxergam como também<br />

os cegos.<br />

Sentado à beira da estrada encontramos o cego Bar Talmai, e quando o rabi passou foi ele quem o viu, pois<br />

estendeu-lhe as mãos, exclamando: “Filho de Daví, tem piedade de mim!” Quando ouvimos essa grande e terrível palavra na<br />

boca do cego, procuramos faze-lo calar. Mas Simão gritou: “É um bom sinal! É sinal de que o reino do céu começa, já que os<br />

cegos vêem o que não vêem os que têm olhos!”<br />

E o rabi se dirigiu ao cego, dizendo: “Tua fé te curou!” E desde esse momento Bar Talmai, que sempre fora<br />

cego, anda a gritar: “Eu vejo! Eu vejo! Yeshua ben Daví teve piedade de mim!” – e já ninguém pensa em fazê-lo calar-se. E foi<br />

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assim que entramos na cidade de Jericó – como se uma voz celeste nos precedesse para dar o aviso da nossa vinda. O povo<br />

enchia as ruas e estendia-lhe os braços. Era como se todos tivessem a sensação do poder que o revestia; e todos o abençoavam.<br />

Nada lhe perguntavam. As mães traziam seus filhos e a ele os apresentavam nos braços. Famílias disputavam a honra de<br />

hospedar o rabi, porque todos sonhavam com a bênção que era a sua simples presença. Mas o rabi viu um homenzinho que<br />

tinha subido a uma figueira para vê-lo melhor. E disse-lhe: “Desce, Zaqueu, porque vou hoje ficar em tua casa”. Quando ouviu<br />

isto o homenzinho saltou da árvore com a agilidade dum menino, de pura alegria; e correndo para o rabi cortejou-o e conduziuo<br />

para sua casa. O povo de Jericó assombrou-se e houve murmúrios: “Vede, ele entra como hóspede na casa dum pecador” –<br />

porque Zaqueu é o chefe dos publicanos.<br />

Mas Zaqueu plantou-se diante do rabi e disse: “Vê, Senhor, eu dou metade de minhas posses aos pobres. E se<br />

roubei a alguém, faço a restituição em dobro”. O rabi Yeshua consolou-o e disse: “A salvação entrou hoje em tua casa, porque<br />

tu és filho de Abraão”. E ao povo que estava por ali, espantado de que ele entrasse na casa dum publicano, disse Yeshua:<br />

“Porque o Filho do Homem veio procurar e salvar os que estão perdidos”. E o rabi consentiu em ficar na casa do publicano três<br />

dias, e lá comeu, dormiu e repousou. Todos nós também lá ficamos, porque era casa grande e rica. No quarto dia, depois de<br />

descansado das provações no deserto, o rabi Yeshua encaminhou-se conosco para Jerusalém. Nós sabíamos que era aquele o<br />

último passo. Sabíamos que grandes acontecimentos nos esperavam aqui.<br />

E assim foi. Chegamos às beiras da cidade, em Bet Paga, no Monte das Oliveiras, e lá descansou o rabi em casa<br />

de Simão o Leproso. Depois deu instruções a dois de seus discípulos: “Ide à aldeia que fica no caminho. Lá encontrareis um<br />

asno novo que ainda não foi montado. Desamarrai-o e trazei-o. E se alguém perguntar: “Por que desamarrais o asno?”,<br />

respondereis: “Dele necessita o Senhor”. Os dois discípulos admiraram-se e indagaram um do outro: “Para que quer ele um<br />

asno? Irá entrar em Jerusalém cavalgando um asno? Julgamos que fosse entrar cavalgando nuvens, como Elias o Profeta”. Mas<br />

eu lhes recordei o verso da Sagrada Escritura, dizendo: “Não aprendestes na infância o livro de Zacarias e não vos lembrais de<br />

como ele profetizou a entrada do Messias em Jerusalém? As palavras do Profeta diziam isto: “Rejubila-te grandemente, Sião;<br />

grita, ó filha de Jerusalém: vê, teu Rei se chega para ti. Ele é justo; vem humildemente num asno, potro ainda”. Quando os<br />

discípulos ouviram estas palavras, encheram-se de contentamento e apressaram-se a procurar o asno. Mas eu corri para a<br />

cidade afim de trazer-vos aqui a boa nova de que hoje o Rei-Messias vai entrar em Jerusalém para dar começo ao reino de<br />

Deus, de acordo com as profecias, para destruir os inimigos de Deus, quebrar-lhes com mão firme os orgulhosos pescoços e<br />

bota-los em terra sob o pé do justo. As hostes do céu marcharão com ele.<br />

A boca de Judas espumejava quando terminou o seu discurso. Tinha o rosto lívido e os pés trôpegos. Seu corpo<br />

vibrava com a ação do fogo sagrado que o consumia.<br />

Sobre nós também desceu o terror ao ouvirmos essas palavras. Também trememos sob a ação do fogo sagrado.<br />

Só o rabi Nicodemo permaneceu sentado, embora sem pingo de sangue no rosto. E ainda estava calmo quando disse a Judas:<br />

− Judas! Foi o teu rabi quem disse que ia entrar em Jerusalém para destruir o poder de Edom e humilha-lo aos<br />

pés do justo?<br />

− Não, o rabi não disse semelhante coisa.<br />

− Por que então pões na boca do rabi palavras que ele não pronunciou? Esqueceste o velho dito: “Sábios, sede<br />

prudentes com as vossas palavras”?<br />

− Mas o que eu disse tudo se vai dar! Que mais quererá fazer em Jerusalém o filho de Daví? Não estamos todos<br />

nós à sua espera? Não foi de longa data prometida a sua vinda?<br />

− Judas, tudo se passará de acordo com a vontade de Deus, não com a nossa. E não como nos parece, mas como<br />

parece aos olhos do céu. Perigoso passo é o que o teu rabi dá, mas sem dúvida está autorizado. Se a coisa é de Deus, a<br />

construção ficará de pé; se não é de Deus, os construtores terão trabalhado inutilmente. Vai, Judas, cumpre o mandamento do<br />

teu rabi. Para nós nada nos resta senão esperar e confiar.<br />

E voltando-se para nós, seus discípulos:<br />

− Ide e atentai no que se passa na cidade, porque grandes acontecimentos começam a desdobrar-se.<br />

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Uma flecha não pode voar mais depressa do que voamos eu e Rufo para o vale do Kidron. Tomamos aquele<br />

caminho mais breve que começava fora da muralha do Templo, passava pela nossa sinagoga e ia ter ao tumulto da Cidade<br />

Baixa. Por toda parte, tendas, barracas de ramos, abrigos toscos, tralha amontoada na rua. Nós íamos saltando como cabritos<br />

entre os homens e animais; e nos esgueirávamos sob cercas, pulávamos outras, ziguezagueávamos pela multidão – e durante<br />

todo tempo lá seguia atrás de nós Judas Ish-Kiriot. Depois começamos a subir o Monte das Oliveiras e Bet Eini – e<br />

encontramos a procissão. Uma grande procissão de honra ao advento do Rei-Messias. Um asno vinha à frente, puxado por<br />

Simão bar Jonas, um asno novo, cinzento, muito submisso, com cabeça de bezerro, a olhar com aqueles seus olhos mudos de<br />

animal. E embora fosse novo e ainda não amansado – os asnos em geral são bravos – parecia conhecer quem levava no lombo;<br />

vinha de cabeça baixa e gravemente firmava os pés no chão pedregoso. Como sela trazia uns panos, e sobre ele se sentava o<br />

rabi da Galiléia. As pernas magras e nuas do rabi quase tocavam o solo e sua cabeça dominava a multidão. Parecia<br />

estranhamente alto, mais alto do que jamais me parecera; e magro – mas não pele e ossos; o rosto, na moldura da barba negra,<br />

já com uns fios grisalhos, tinha a mesma brancura de suas vestes muito limpas. E que profunda expressão de seriedade e<br />

melancolia vi nele! Seus lábios moviam-se como em muda oração; e realmente ela dava idéia de uma prece personalizada. O<br />

povo que o seguia comportava-se como se estivesse realizando um serviço religioso diante do Senhor. Todos traziam ramos de<br />

salgueiro e oliveira quebrados à beira do caminho e iam lançando folhas por onde o asno tinha de pisar. E amiúde um ou outro<br />

sacava a túnica e com ela forrava o chão. Não era uma procissão imponente e de grandes proporções; quase que se constituía<br />

só dos seus discípulos e dos pobres lá da casa de Simão o Leproso. Com eles vinham alguns doentes amparados por amigos,<br />

dois cegos guiados por meninos e um ou dois publicanos, reconhecíveis pelo distintivo do ofício. E umas duas dezenas de<br />

mulheres atrás dos homens, também trazendo ramos e flores do campo. Entre elas reconheci Míriam de Migdal. Não estava<br />

levando pela mão ao cego Bar Talmai, como sempre fizera no passado, mas sim à sua colega de nome, a outra Míriam, mais<br />

velha, de véu e de estatura dominante. Vinha também Sulamith, a mãe dos Zebedeus; corpulenta como era, arquejava e com<br />

esforço acompanhava os demais. Mais moça e mais forte que ela Marta a ia empurrando. A figura impressionante da procissão<br />

era Eliezer, o irmão de Marta e Míriam. Vinha logo atrás do rabi. Seu rosto de tom cinéreo destacava-se de todos os mais; era<br />

um rosto de caveira sobre um esqueleto vestido. Eliezer movia as pernas com rigidez, como se fossem de pau.<br />

Quando eu e Rufo chegamos, a procissão ainda seguia muito serena. A batida de palmas e o entoamento de<br />

salmos não eram mais que uma forma de oração. Mas assim que se foi aproximando da cidade, sobreveio a exaltação. As<br />

mulheres alçaram o tom da voz, tomadas dum frenesi de júbilo, e esse deleite contaminou os homens. Míriam de Migdal<br />

subitamente se destacou do grupo feminino e correu para a frente da procissão; lá tirou dos ombros o chale de seda persa e<br />

estendeu no chão para que o asno passasse por cima. Repetidamente curvou-se diante do rabi e pensamos que fosse prostrar-se<br />

no pó. Batia palmas e exclamava: “Vede, vede! Ele vem! o Rei vem na sua glória!”<br />

Estas palavras valeram como senha, e Judas Ish-Kiriot foi o primeiro a dar ao mundo a tremenda noticia. Entrou<br />

em delírio de exaltação e freneticamente despedaçou as roupas do corpo, e a estalar as mãos e a gritar:<br />

− Abençoado seja o que vem em nome do Senhor Deus! Hosana! Glória nas alturas! Abençoado seja o reino de<br />

nosso pai Daví, que vem em nome do Senhor! Hosana! Glória nas alturas!<br />

Quando o povo ouviu as palavras de Judas, a alegria irrompeu sem limites; era a proclamação do “reino de<br />

Daví”, e parando de entoar versos dos Salmos e Profetas, romperam as fileiras e precipitaram-se para o rabi que vinha a<br />

Jerusalém assumir o governo do reino de Deus. E sacudiam no ar os ramos. E a voz de Simão elevou-se cima da grita geral:<br />

− Abençoado o Rei que vem em nome do Senhor! Paz no céu, glória nas alturas!<br />

E súbito uma mudança se operou. A procissão saiu de trás da muralha que nos escondia Jerusalém e alcançou o<br />

sopé do Monte das Oliveiras. O glorioso panorama da cidade abriu-se diante de nossos olhos. Jerusalém comparava-se a um<br />

veado que salta dum topo de monte para outros. Suas casas e palácios, suas torres, cidadelas e muralhas, eram erigidos nas<br />

alturas e desciam para os vales. Mais glorioso estava o quadro naquele momento, porque era uma hora apenas depois do meio<br />

dia; iluminado pelo fresco sol da primavera, o céu azul se abria sobre as inumeráveis construções, como as asas duma galinha<br />

sobre seus pintos. E tudo parecia construído de prata, não de pedra e tijolo. Sobre muitos tetos havia cisternas d’água; e do alto<br />

onde estávamos víamo-las refletirem o sol, como pedras preciosas nos muros que cintavam Jerusalém. Mas a cidade havia<br />

irrompido para além desses muros e derramava-se para o Monte Scopus, e espichava-se para Belém, e alcançava Bet Paga.<br />

Como poderosos seios, erguiam-se das muralhas as torres e os torreões de vigilância, com as do palácio de Herodes dominando<br />

todas as outras. E a cidade inteira, com suas casas, torres e muralhas, estendia-se como um exército conquistado aos pés do<br />

flamante Monte da Casa de Deus. Com os seus balcões e portas de ouro era o Templo uma pura flama. Do ponto em que<br />

estávamos, parecia algo sobre-humano e feito de material não terreno; era como uma visão que, perfeita e gloriosa, houvesse<br />

descido do céu: paredes flamantes, portas flamantes, tetos flamantes. Do centro daquela casa de ouro erguia-se uma coluna de<br />

fumaça, amarela na base, ampliada em nuvem transparente em cima. A vista geral do Templo lembrava algo irreal,<br />

extraterreno, incrível. E atrás do Templo, a divisão daquela fortaleza de pedra, atrevida, alta, dando a idéia duma lança terrível<br />

empunhada por mão potente...<br />

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A procissão fez alto, no enlevo do panorama de Jerusalém. Qual farta romã madura, a cidade se desenvolvera<br />

nos montes de Sião. Lágrimas de alegria vinham aos olhos de todos. Depois de momentâneo silêncio, as mulheres romperam<br />

em gritos de louvor: “O Jerusalém!” O rabi, sempre montado, tinha os olhos fixos na urbe e no Templo. Novo silêncio<br />

sobreveio – todos ficaram de respiração suspensa. Duas grossas lágrimas desciam os olhos do rabi, porque em seu coração ele<br />

sabia o que todos nós sentíamos. Tínhamos as almas libertadas e misturadas com a dele. Era como se aquelas lágrimas nos<br />

houvessem fundido juntos – e uma única prece nos acudiu a todos: “Ó Deus, tem piedade de Jerusalém!”<br />

Pouco durou a pausa de silêncio. Não vinha aquele Rei atravessando as portas da cidade para quebrar o poder de<br />

Edom como quem quebra uma vara, e ara desfazer os laços, destruir todo pecado, varrer todo mal e acender no mundo uma<br />

nova luz?” “Teus olhos vêem o Rei em sua beleza!” E de novo as hosanas se ergueram. De novo recobriram o rabi com um<br />

dossel de ramos de oliveira.<br />

− Abençoado o Rei que vem em nome do Senhor Deus! Paz no céu, glória nas alturas! Hosana!<br />

Ao entrarmos no vale do Kidron demos com inúmeros forasteiros que se haviam acomodado por ali. Muitos que<br />

íamos encontrando em nossa descida não eram de Jerusalém, sim peregrinos provincianos. Nada sabiam do rabi da Galiléia,<br />

nem que significava aquela procissão. A curiosidade fez que diversos a nós se juntassem, sobretudo quando ouviram dizer que<br />

se tratava dum rei. Não sabiam como tomar a expressão “Reino da Casa de Daví”, se a sério ou de brincadeira. Mas aos que já<br />

tinham estado em Jerusalém em anos anteriores e nela testemunhado motins de rua e levantes abortados, não restava dúvida<br />

sobre o perigo duma demonstração como aquela. Sentiam no lombo o látego dos guardas, lembravam-se da sangueira e das<br />

espadas dos legionários romanos. E, aterrorizados com as palavras dos seguidores do rabi, preveniam uns aos outros:<br />

flutuar.<br />

− Afastem-se disso!<br />

− Meu anjo da guarda me livre desta gente! exclamou um babiloniano, e pôs-se a correr, com o manto negro a<br />

− Eu sei reconhecer o cheiro da morte a uma légua de distância! Disse um apavorado sharonita à sua família,<br />

quando a procissão passou pela sua barraca, a beira do caminho – e segurou os filhos que a ela queriam juntar-se.<br />

Tudo isto ocorreu antes que o desfile alcançasse a Porta do Estrume, na Cidade Baixa. Lá, ondas de gente<br />

emergiram das covancas e furnas da muralha de Daví; tingidores e malaxadores de óleos; tropeiros e cameleiros brotados da<br />

hospedaria; uma multidão de aguadeiros com as peles cheias ou vazias – todos se foram juntando ao nosso bando. Um<br />

caldeireiro saiu da sua tenda, ainda com a peça em que trabalhava na mão, e perguntou-nos:<br />

− Dizei-me, bom povo, quem estais conduzindo ao Templo? Um rabi?<br />

− Um rabi!... Sim, um rabi, mas não um rabi comum. Não ouviste falar no Profeta de Nazaré?<br />

− Que? Profeta de Nazaré? Quem jamais ouviu dizer de alguém profeta saído de Nazaré?<br />

− Pois este é aquele galileu que vinha abençoar por aqui as nossas crianças.<br />

− Estão conduzindo o Profeta da Galileia ao Templo para coroa-lo rei! Gritou da rua uma rapariga para sua mãe,<br />

cujo rosto aparecera num buraco da muralha.<br />

A noticia espalhou-se por aqueles labirintos – os labirintos da pobreza. O Profeta de Nazaré estava sendo levado<br />

ao Templo afim de receber a coroa! Mulheres até ali ocupadas em preparar para a festa as suas miseráveis moradas, saíam para<br />

a rua com crianças novas ao seio e outras agarradas às saias. Um tintureiro largou do serviço e apareceu com um rolo de pano<br />

na mão, ainda úmido da púrpura com que o tingira, e estendeu-o na rua, no caminho do asno; e todo chamarreado de tintas, lá<br />

seguiu a procissão. Um preparador de incenso esvaziou o seu almofariz aos pés do asno. E também o caldeireiro lançou-lhe à<br />

frente, como oferenda, a peça de metal que tinha na mão. Era como se todo o povo se houvesse transformado por efeito<br />

daquela palavra mágica: “O Reino da Casa de Daví”. A idéia generalizou-se, de que nunca mais voltariam à sua pobreza ou às<br />

suas ocupações diárias. Joseph, o escravo, aquele que o rabi consolara na hospedaria dos cameleiros, apareceu correndo. A<br />

notícia lhe chegara, e ele sem dúvida havia despedaçado as cordas que o prendiam à mó do moinho, pois que pedaços delas<br />

ainda lhe pendiam dos pulsos e o jugo de madeira ainda estava em seu pescoço. Era como se o grande Sétimo Ano houvesse<br />

chegado e feito dele um homem livre. Com os olhos transtornados e os cabelos revoltos vinha ele correndo para nós, e entrou<br />

na procissão gritando: “Hosana! Glória nas alturas!” e sacudia no ar as cordas do pulso como se fossem um ramo.<br />

Da estreita viela que descia às águas do Siloah veio Hillel o aguadeiro em companhia de outros da mesma<br />

profissão, com os odres cheios às costas. Também Hillel aderiu ao desfile, mas deslembrado de desfazer-se de sua carga. Veio<br />

durante todo o caminho com as pesadas peles d’água às costas.<br />

A procissão engrossava cada vez mais e uma senha corria diante de nós: “Estão levando ao Templo o Profeta de<br />

Nazaré!” Na rua dos tecelões os homens deixaram seus teares ou rasgavam os panos em trabalho para estende-los aos pés do<br />

asno, de modo que ali o animal passou como sobre um mar espumante de cores e tecidos. Lençóis e toalhas de mesa pendiam<br />

dos balcões, das portas e janelas – flâmulas de alegria e pobreza. Aqui e ali uma mulher saia de casa com a sua melhor peça de<br />

roupa e desdobrava-a no chão para que o asno passasse por cima, ou pendurava-a nele – às vezes o último remanescente de seu<br />

enxoval de noiva – um véu, bordados, lenços coloridos. E o asno assim ataviado lá conduzia o rabi calmamente, no meio da<br />

multidão e por sobre tanta coisa desdobrada a seus pés. O povaréu recrescera, estava agora um mar de criaturas que se<br />

comprimiam nas vias estreitas, homens, mulheres e crianças, os sãos e os doentes; e todos acenavam com os ramos de oliveira<br />

já desfolhados, ou com as mãos; e todos gritavam em êxtase. E assim o desfile, como larga corrente apertada entre margens<br />

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estreitas, lá se ia de rua em rua, cada vez mais denso, até que o asno chegou às ladeiras que galgavam da Cidade Baixa à<br />

espaçosa praça do mercado.<br />

Lá se concentravam toda a vivacidade e tumulto das festas de Jerusalém. Os mercadores traziam suas coisas e as<br />

dispunham em mesas. Toda a área se apinhava de peregrinos, com pais de família e chefes de grupos, empenhados em fazer as<br />

compras necessárias para a ocasião. Outros tinham vindo vender seus artigos, transportados de longe em camelos. E havia<br />

ainda os que ali se reuniam apenas para apreciar aquele espetáculo estonteante de cores e confusão de vestuários. O barulho<br />

maior era nos balcões dos ourives, para os quais as mulheres levavam os maridos e os forçavam a comprar anéis, cadeias,<br />

broches, diademas, preciosos frascos de perfume. Tecelões desdobravam suas fazendas de cores e os sapateiros as suas lojas e<br />

o mesmo faziam os perfumistas com os seus ungüentos odorantes.<br />

A procissão, com o asno montado pelo rabi à frente, os discípulos em redor e a pobreza atrás, irrompeu na praça<br />

do mercado – e num instante toda aquela área se encheu de gritos, de cânticos entusiastas ao Messias, de ramos agitados no ar.<br />

“Abençoado seja o Rei que vem em nome do Senhor!” Os donos de lojas foram tomados de pânico; os negócios cessaram.<br />

Cautelosamente os vendedores de vinho e mel recolheram a mercadoria exposta na rua. Alguns que se atrasaram viram-na<br />

apisoada e destruída pela onda de povo em movimento. Os estrangeiros que ali se achavam não podiam saber que coisa era<br />

aquela – os babilonianos, os fenícios, os de Antióquia e de Cirene. E voltavam-se espantados para a gente local, perguntando:<br />

“Que é isto? A quem estão eles levando para o Templo com tanta cantoria e louvor?”<br />

− Nada, respondeu um vendedor de chales, para acalma-los. São galileus rebeldes que conduzem um dos seus<br />

rabis. Conhecemo-los pelo modo de falar, e estamos acostumados a isso em Jerusalém. Cada festa do ano trás um novo<br />

Messias para o Templo – e no fim tudo acaba em chicote chumbado e no fio da espada dos romanos.<br />

− Oh, sim, os guardas já estão preparados para reagir!<br />

Na praça do mercado havia também muitos galileus, pescadores de Migdal, Bet Zeida e K’far Nahum, moleiros<br />

de Naim e outras cidades e portos, onde o rabi estivera e realizara milagres e consolara o povo. Quando essa gente soube que o<br />

seu rabi estava sendo levado ao Templo para ser coroado rei, Pai do céu! também sacaram do corpo peças de roupa para forrar<br />

o chão, e jogaram para o ar os seus cintos, e se juntaram à procissão, gritando:<br />

− É o nosso Profeta, nosso Profeta de Nazaré, lá na nossa Galiléia.<br />

E consigo arrastavam as gentes de Bet Shan e do vale de Yizreel. E apelavam para outros que estavam apenas<br />

assistindo àquilo:<br />

− Vinde! Vamos com eles ao Monte da Casa! Com o hálito de sua boca ele destruirá Edom!<br />

− Sim, Edom! E com Edom, os filhos de Herodes e os filhos de Hanan e todos os opressores dos pobres. Ele os<br />

fará afundar no fundo da terra, como aconteceu antigamente a Korah e sua tribo.<br />

− E como o fará? Com que hostes?<br />

− Hostes? As hostes do céu estão prontas para servi-lo. Não lhe basta apor a mão sobre os doentes para que<br />

sarem? Não alimentou milhares de pobres com apenas dois pães, e não ficaram todos satisfeitos? gritou um peregrino de Bet<br />

Zeida.<br />

− E com uma só palavra de ordem não expulsou maus espíritos? Não curou sete loucos e cinco leprosos? Não<br />

deu vista ao cego?<br />

− E em nossa cidade não virou água em vinho? Ide ao norte da nossa terra e todos vos dirão quem é o Profeta de<br />

Nazaré! Sim, na Galiléia também surgiu um Profeta!<br />

Outro galileu, pescador de Genesaré, batia no peito com orgulho. Gago que era, tartamudeava louvor ao rabi. “Eele<br />

é um dos no-ossos de K’far Nahum. E-le curou muita gente. Até o g-goyim acredita nele – um capitão ro-romano”.<br />

Engasgou ai e não pôde dizer mais.<br />

− Oh, Pai do céu! A espada de Roma também está suspensa sobre nossa festa, disse uma voz descrente. Judas o<br />

Galileu também quis trazer-nos a redenção – e as estradas se semearam de judeus crucificados.<br />

− A espada de Roma tornar-se-á bôta! Ele a quebrará como qualquer de nós quebra uma vara tostada ao fogo.<br />

Em pó e cinzas virarão os romanos e todos os amigos dos romanos! Vamos ao Monte da Casa ver com os nossos próprios<br />

olhos a maravilha de Deus...<br />

A simplicidade dos galileus infectava com a sua exaltação os sharonitas, os hebronitas, os belemitas, os do vale<br />

de Josafá e das montanhas da Judéia. Mas ao tempo em que a procissão se derramou da praça do mercado para as ruas<br />

aristocráticas, já não se compunha apenas de doentes, pobres e aleijados, além dos seus discípulos e velhos seguidores: tornarase<br />

uma enorme procissão de criaturas sequiosas da salvação, de povo atormentado e já sem paciência para esperar, e essa<br />

massa humana fluía para o Templo conduzindo o seu Profeta e Libertador, na ânsia de testemunhar o grande acontecimento.<br />

E envolto em seu tallit, os olhos erguidos para o céu, as mãos estendidas em bênção, o rabi irrompeu à testa da<br />

procissão na zona da gente rica e nobre. Nessa parte da cidade o radiante espírito da festa da Páscoa também imperava, mas<br />

não na forma tumultuária e alegre dos pobres. Os sombrios ciprestes velavam as vivendas. Diante de cada portão viam-se<br />

grupos de escravos atraídos de dentro pelo tumulto da procissão. Aqui e ali, num balcão, aparecia um homem de barba bem<br />

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oleada, ou uma mulher de véu de cabelo. Olhavam para rua com inquietação. Que era aquilo? Mas ao perceberem tratar-se<br />

dum homem montado num asno, aquietavam-se e sorriam. Um grupo de moços num terraço mofava da procissão; apontavam<br />

para este ou aquele e riam-se, e gritavam alegres. Num dos portões postaram-se guardas para impedir que aquela horda de<br />

galileus fizesse estrago nas palmeiras da entrada – plantas de cultivo difícil naquelas altitudes frias.<br />

Parece que a arrancada da multidão rumo ao Templo não causou grande impressão nos moradores da Cidade<br />

Alta. Foi considerada como mero divertimento ou brincadeira popular. Aqui e ali passantes se detinham e trocavam<br />

impressões; queixavam-se de que tais cenas fossem permitidas naquela parte da cidade – e lá seguiam seu caminho pensando<br />

em outra coisa. Mas ninguém procurou perturbar os manifestantes. Mesmo os guardas escravos e os soldados romanos do<br />

palácio de Kaifa deixaram sem nenhum gesto hostil que o povo passasse. Apenas se mantiveram de prontidão para impedir que<br />

invadissem os jardins. E no entanto ali, bem defronte do palácio de Kaifa, as vozes do povo se ergueram ainda mais altas. E<br />

como em ameaça à detestada Casa de Hanan, gritaram:<br />

− Abençoado seja aquele que vem em nome do Senhor! Glória nas alturas!<br />

Apenas observei que o chefe da guarda sacerdotal apertou na mão o chicote chumbado e rosnou qualquer coisa.<br />

Indubitavelmente havia recebido ordem para não perturbar a manifestação – e tanta leniência nos espantou. E o mesmo<br />

sucedeu quando o desfile defrontou o lúgubre palácio hasmoneano. Todos nós sabíamos que a “raposa velha” – Herodes<br />

Antipatro – estava lá dentro, pois que já havia chegado à Jerusalém com grande comitiva e pompa. Também havia ali guardas<br />

no portão; comandados por um oficial romano que o Tetrarca havia trazido de Tiberias – mas não houve nenhum gesto de<br />

interferir com a manifestação popular. Só aqui ou ali um legionário sírio ria-se com desprezo e apontava para o rabi montado<br />

no asno: “Olhai! Vão levando ao Templo o Rei dos Judeus! Mas essas palavras eram tomadas a sério e os acompanhantes do<br />

rabi não cessavam de gritar: “Abençoado seja o Rei que vem em nome do Senhor Deus!”<br />

Tal aclamação se chofrava de encontro às paredes maciças do palácio, de modo que não era ouvida lá dentro.<br />

Mas no topo da torre do terraço pompeavam os troféus e bandeiras do Tetrarca, flutuantes ao sol; e entre elas apareceu de<br />

súbito uma cabeça. Era a cabeça do próprio Herodes que olhava surpreendido para a multidão em movimento. Estava ele a<br />

refrescar-se entre amigos íntimos no solário do palácio, quando ouviu a grita dos manifestantes e distinguiu as palavras: “Rei<br />

da Casa de Daví!” Por um momento o seu orgulho dinástico se pôs alerta; mas ao ver o homem montado no asno sentiu que<br />

não havia nenhuma ameaça séria aos seus direitos de soberano.<br />

Mas a multidão crescia. A nova de que o Profeta de Nazaré ia inaugurar o longamente esperado reino do céu<br />

havia alcançado o vale dos fabricantes de queijo, a oeste de Jerusalém. Aquelas ruas estreitas enchiam-se de gente em marcha<br />

precipitada rumo à demonstração. Também do mercado de carneiros, ao norte, onde a afluência de pastores e compradores era<br />

intensíssima, o interesse se tornava grande. Muitos, não sendo nem de Jerusalém nem da Galiléia, não sabiam que fosse o rabi<br />

de Nazaré, ora conduzido daquela maneira para o Templo. Inúmeros se deixavam contaminar pelo êxtase dos galileus, mas a<br />

maioria não; apenas os arrastava a curiosidade e a expectativa dalgum grande acontecimento. E com impaciência pediam<br />

milagres e sinais. “Quando vai ele abrir os céus?” Os entusiastas asseguravam que tal aconteceria no momento em que o rabi<br />

chegasse ao Templo. E assim vibravam as massas que o seguiam.<br />

Entrementes, o homem que encavalgava o asno e era o centro de toda aquela esperança não se comportava como<br />

um anjo que do céu trouxesse os poderes dos dois mundos, mas como um simples rabi da obscura e desprezada cidadezinha de<br />

Nazaré a caminho do Templo, acompanhado de seus pobres e ignaros conterrâneos. Envolto no tallit, cujas franjas desciam até<br />

aos cascos do animal, vinha de olhos cerrados, e tanto mais absorto quanto mais se aproximava do Templo. Sua tez decrescia<br />

de palor e seus lábios agitavam-se incessantes, numa prece intensa. Voltado para si mesmo, profundamente entregue aos seus<br />

próprios pensamentos, ele não via o que se passava em seu redor. Os que o acompanhavam de mais perto, seus discípulos,<br />

sentiam-se profundamente comovidos; a santidade dos pensamentos do rabi passava-se para eles, de modo a dar-lhes como um<br />

senso de participação em serviço sagrado; e agitavam no ar os ramos de oliveira como as palmas eram agitadas na Festa dos<br />

Tabernáculos, e a voz lhes tremia quando exclamavam: “Glória nas alturas!” Era como se procurassem fortalecer o rabi para o<br />

grande e mortal acontecimento que estava próximo de realizar-se. A sensação da grande santidade daquele instante passava dos<br />

discípulos para os inúmeros tomados pela fé de que era o rabi o portador da redenção. Também esses se alheavam do ambiente<br />

e davam-se de todo à preparação espiritual, de modo a em vontade e pensamento ficarem unos com o rabi. E vinham pálidos,<br />

como se aqueles minutos fossem os seus derradeiros momentos da jornada terrestre, antes da entrada na vida do céu. Notei<br />

entre os seguidores o converso de nome Abraão ben Abraão o grego.<br />

Trazia, como sempre, a cabeça baixa, mas levava nos ombros a alegria e a esperança. Caminhava de mãos dadas<br />

a Hillel o aguadeiro, ambos agitados duma sagrada tremura. Parecia judeu de nascença, tal o seu fervor. Com a mão livre<br />

agitava um galho de salgueiro e em seu sotaque estrangeirado ia murmurando incessantemente: “Hosannah b’marom, Gloria<br />

nas Alturas!” Súbito, os dois, o grego e Hillel, agarraram Judas Ish-Kiriot, que em êxtase ia-lhes na frente, e os três dançaram<br />

diante do rabi. O mesmo impulso sobreveio aos outros discípulos, Jochanan, Jacó e Bar Talmai, o cego que via mas que<br />

caminhava como cego. Simão o Zelote cerrou os punhos e mordeu os beiços, como que sentindo o peito cheio de raios. O<br />

mesmo se dava com Jochanan e os Zededeus. Só Simão bar Jonas, que seguia puxando o asno, não dançou nem bateu palmas.<br />

Caminhava como um escravo diante do Senhor, como um discípulo diante de seu mestre. A alegria daquele incomparável<br />

momento fechava seus lábios, mas abria a fonte de seus olhos.<br />

Mas a despeito da felicidade, do amor e do orgulho naturais num senhor que ia entrar na posse da Cidade Santa,<br />

o rabi vinha imerso num mar de humildade. Realmente ele era “o humilde cavalgando um asno” da profecia. Por duas vezes<br />

durante a marcha pediu a Simão que detivesse o animal para ceder o caminho a outros. Uma dessas vezes foi na praça do<br />

mercado, quando uma procissão nupcial emergiu duma rua lateral; os parentes dançavam diante da noiva ao som de flautas e<br />

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cantavam: “Agradável és tu, ó noiva; linda és tu, ó noiva”. Quando o canto, as palmas e o bater dos adufes nos chegaram aos<br />

ouvidos, o rabi pediu a Simão que parasse. Todos desfilaram diante de nós, a noiva, os parentes dançadores, os músicos e os<br />

convidados, com lâmpadas acesas em pleno dia. Certos homens cultos que vinham na procissão do rabi grandemente o<br />

louvaram por isso, dizendo que ele realmente se comportava como um rabi de Israel; porque mesmo um rei deve ceder o passo<br />

a uma noiva.<br />

A segunda interrupção foi menos agradável: o punho de Edom rompeu caminho através da procissão. Estávamos<br />

quase no viaduto que leva aos portões exteriores do Templo e nossos olhos já nele se fixaram, cheios de esperança, quando o<br />

inesperado aconteceu. Duma das ruas laterais que levam à fortaleza de Herodes, então ocupada pela comitiva do Procurador e<br />

pelo orgulhoso oficialismo romano, surgiu uma contra-procissão de liteiras, conduzida a trote na direção do teatro onde<br />

diariamente se realizavam jogos do agrado dos romanos e da aristocracia judaica. Deviam ser de alta importância os que<br />

vinham nas liteiras – talvez lá estivesse até aquele pai da própria abominação, o Procurador – porque forte era o destacamento<br />

de legionários que os guardavam. Um Hegemon a cavalo vinha à frente das liteiras, e atrás os soldados romanos com as<br />

espadas fora da bainha. Os Liteireiros negros eram ladeados pelos louros cavalarianos da Germânia. Mas o trem doméstico<br />

tinha precedência sobre o militar. Dois trombeteiros vinham seguidos por um grupo de escravos romanos sob a condução dum<br />

mordomo, e esses escravos traziam chuços de bambu com ponta de metal, com os quais iam abrindo caminho para os soldados<br />

e as liteiras. Quando nos chegou aos ouvidos o som das trombetas anunciadoras, nossos corações se gelaram. Pareceu-nos<br />

atingido o grande instante – era como se houvesse chegado o momento da redenção pelo qual tantas lágrimas derramáramos.<br />

Oh, quantas gerações entraram no sono eterno levando para o desconhecido aquela esperança! A esperança de que quando a<br />

redenção sobreviesse, seriam eles despertos da tumba e devolvidos à vida pelo som da trombeta! E o momento chegara! Deus<br />

iria parar o tempo no instante preciso em que as duas procissões se defrontassem. Já estávamos vendo os rebrilhos metálicos do<br />

insolente poder de Roma. Sim! Agora! Assim que eles chegassem diante do rabi, este ergueria a mão. Não! Nem isso! Emitiria<br />

um sopro e o poder romano se transformaria em cinzas e pó. E a Redenção teria começo! Mas que aconteceu? Que estávamos<br />

vendo? Impossível! – não podia ser... O rabi fez sinal a Simão bar Jonas para que tirasse o asno do caminho e o puxasse para<br />

outra rua. E eu vi os rebrilhos metálicos do poder de Roma se aproximarem, avançando. A passagem estava aberta! O caminho<br />

lhe era franco. Aberto e franco, não para quem vinha trazer ao mundo a salvação – sim para o punho e a espada romanos, os<br />

tormentos de Israel! Ficamos por uns instantes como transformados em pedra, como se não pudéssemos crer em nossos olhos –<br />

e a reter à força a esperança que se nos escapava. A retirada do rabi diante do poder de Roma eqüivaleu ao mais cruel<br />

desapontamento para aquela massa humana. A exaltação de momentos antes ainda dominava a muitos, e esses continuaram a<br />

acompanhar o rabi; mas os fios da esperança e de fé que tinham atado toda aquela gente ao profeta de Nazaré estavam<br />

cortados.<br />

E não foi tudo. A rua lateral a que o rabi se recolhera era muito angusta, de modo que levou tempo para nossa<br />

gente acomodar-se lá; e os escravos batedores que vinham à frente se chocaram com as últimas camadas em recua da nossa<br />

procissão. E sem nenhuma provocação, animados apenas pela sede de sangue, esses escravos romanos aplicaram seus chuços<br />

de ponta metálica contra a massa de judeus em retirada. E em ajuda a esses escravos acudiram diversos cavaleiros germânicos.<br />

Homens, mulheres e crianças foram apisoados pelas patas dos cavalos, ainda com os gritos de êxtase a lhes saírem das bocas e<br />

os ramos de salgueiro na mão. O pânico dispersou a retaguarda do nosso desfile, embora na vanguarda Simão ainda conduzisse<br />

o asno com o mesmo êxtase e todos em redor não tivessem emergido da exaltação de até ali. Tudo ocorreu como tinha de<br />

ocorrer, porque dito está que o justo se tirará do caminho do mau. Mas muitos dos que por mera curiosidade haviam aderido à<br />

procissão abandonaram-na com furiosas palavras de desprezo. Outros gritaram exigindo provas do poder do rabi no realizar<br />

milagres.<br />

− Será este aquele de quem vínheis dizendo: “Abençoado seja o Rei que vem em nome do Senhor Deus?”<br />

− Não viu ele como o pé de Edom se plantou sobre o nosso pescoço? Por que não reagiu?<br />

− Porque não quebrou o poder de Edom, como se fosse uma vara tostada ao fogo – segundo a promessa?<br />

E assim pediam aos discípulos o cumprimento das promessas, mas os discípulos e os outros que não haviam<br />

desertado prosseguiram avante – e ainda dançavam à frente do rabi, sem nenhuma atenção para a grita. Era como se<br />

esperassem, com seu êxtase, levantar de novo a multidão, apesar de marcada com o pé do opressor.<br />

− Abençoado seja o reino de nosso pai Daví, que chega em nome do Senhor Deus! Hosana! Glória nas alturas!<br />

Mas muitos romperam a procissão e foram ter com o rabi.<br />

− Rabi! Repreende teus discípulos. Não os deixa pronunciar tais palavras!<br />

O rabi respondeu:<br />

− Em verdade vos digo que se eles se calarem, as pedras clamarão!<br />

Ao ouvirem esta resposta, os discípulos do rabi exaltaram-se ainda mais e gritaram ainda mais alto, como se<br />

quisessem forçar as pedras a um grito de resposta. E outros disseram: “Esperemos a ver o que fará o rabi quando penetrar na<br />

Casa do Monte”.<br />

Que amaríssimo desapontamento quando a procissão afinal alcançou ao viaduto que levava à porta do Templo e<br />

o rabi apeou do asno como o faria um judeu qualquer – e misturou-se na grande multidão lá reunida. Nem um só milagre<br />

realizado! Os céus não se romperam, nenhuma hoste celeste apareceu; tudo como ontem e anteontem...<br />

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O dono do asno lá se foi com o seu animal e com os panos e roupas que o povo pelo caminho fora arremessando.<br />

E os que o viram levar o asno disseram:<br />

− Os músicos tocaram, os convidados se reuniram – mas não houve casamento nenhum!<br />

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Quando a grande multidão que com esperança de milagre que seguira o rabi até o Templo se dispersou e<br />

retornou à cidade, lá só ficaram os discípulos e os seus seguidores do costume, inclusive as mulheres. Dentro do pátio dos<br />

Gentios a aglomeração era enorme, dado o tremendo afluxo de peregrinos totalmente ignorantes do rabi. Acompanhado de<br />

perto pelos discípulos, abriu ele caminho através da multidão, sem que ninguém desse tento que por ali passava o homem que<br />

momentos antes fora o portador de todas as esperanças de Israel. Houve quem notasse as suas vestes brancas e o grupo de<br />

discípulos, mas rabis com discípulos eram comuns em Jerusalém, além de que havia coisas mais interessantes ali nos pátios e<br />

na basílica de Herodes. Este enorme edifício ficava do lado sul do Templo; durante a estação das águas, suas arcarias sobre<br />

pilares de cedro favoreciam abrigos para o mestre e seus discípulos, mas estavam agora esses espaços ocupados pelos<br />

vendedores de pombas sacrificiais. E perto das gaiolas de pombas ficavam as mesas dos cambistas. Naquele ponto se deteve o<br />

rabi da Galileia e vendo a morada de Deus profanada pelo mercantilismo dos sacerdotes sentiu o rosto em fogo. Naquele dia,<br />

porém, nada disse nem fez.<br />

À tardinha deixou o templo, sempre acompanhado pelos discípulos. Varou as ruas apinhadas e ninguém o<br />

reconheceu, e sem ser interrompido alcançou o vale do Kidron e começou a subir o Monte das Oliveiras. Acompanhamo-lo, eu<br />

e Rufo. Íamos já a subir a encosta, quando alguém do grupo se voltou para contemplar o panorama da cidade. Os últimos raios<br />

do sol batiam na torre tríplice do Santuário e nos altos da Porta Áurea. A torre da fortaleza Antônia estava às escuras; parecia<br />

uma sentinela à glória da Casa de Deus ou como alguém que pede ao Senhor misericórdia para o Templo e redenção do jugo<br />

de Edom. Um dos discípulos falou:<br />

− Vê, mestre, o Templo!<br />

Mas Yeshua respondeu:<br />

− Na verdade vos digo que nem uma só pedra dessa construção permanecerá no lugar.<br />

Os discípulos quedaram-se imóveis, como fulminados por um raio. Olhavam-se uns para os outros, com os<br />

lábios presos. Voltei-me para Judas e pareceu-me que se havia tornado menor; tinha o aspecto contorcido, como se seus<br />

membros cedessem ao peso do corpo. Era como se de um momento para outro fosse desabar no chão. Seu rosto amarelado, que<br />

durante aqueles últimos meses em Jerusalém havia grandemente envelhecido, não passava de uma máscara de rugas onde os<br />

olhos e os lábios se perdiam. E tremia da cabeça aos pés, como se exposto a forte tempestade.<br />

Os discípulos marchavam em silêncio.<br />

O rabi seguia na frente, rápido e firme, com suas vestes a brilharem de brancura na noite que descia. Evitou as<br />

luzes amigas do Gat Shemen, entrevistas atrás das moitas de ciprestes, e tomou pela estreita passagem de Bet Paga. Ao<br />

chegarmos à casa de Simão o Leproso em Bet Eini, que é perto de Bet Paga, a noite nos envolveu. Entraram a brilhar as<br />

estrelas na frescura do ar primaveril, e uma meia lua vermelha lembrava uma lanterna suspensa no céu. Dos desertos sopravam<br />

brisas ao mesmo tempo quentes e frias, dando-nos a sensação do asfixiante. Ao longe ficava o Mar Morto, e a morraria no<br />

horizonte parecia ao alcance da mão, de tal modo clara e límpida estava a noite.<br />

Vi a casa de Simão o Leproso às escuras, como se ninguém esperasse pela volta do rabi. Unicamente uma<br />

pequena lâmpada de barro alumiava a porta. Os discípulos entraram às apalpadelas e acenderam novas lâmpadas. Estava<br />

cansado o rabi. Deitou-se numa cama do quarto interno, enquanto os discípulos procuravam o que comer. Na pobreza daquela<br />

casa só havia um saco de lentilhas. Então dois discípulos foram à horta e à luz da lua colheram ervas para salada e cenouras.<br />

Também juntaram gravetos e estrume seco para fazer o fogo no fogão; e puseram-se a preparar a ceia do rabi.<br />

Serviram-na com água tirada da cisterna. Depois que o rabi lavou as mãos, foi sentar-se com seus discípulos para<br />

o humilde repasto. Veio para a mesa a panela de barro com as lentilhas; o rabi fez a oração, serviu-se e comeu. A mesma coisa<br />

fizeram os discípulos.<br />

Silêncio. O rabi não pregara nem citara versos do Torah. Estava imerso em pensamentos. E ainda se achavam à<br />

mesa quando Míriam de Migdal entrou. Tinha o rosto descoberto e a brilhar de mocidade renovada, pois que vinha em êxtase.<br />

Do pequeno frasco que trazia na mão pingou óleo sobre a cabeça do rabi – toda a sala recendeu do perfume. Os discípulos<br />

agitaram-se e um deles sugeriu: “Deve ser o caríssimo nardo”. E realmente era óleo de nardo, só de uso para a unção dos reis e<br />

príncipes no poder, pois que seu custo subia a trezentos dinares por um peso mínimo. Ninguém suspeitara que Míriam<br />

conservasse consigo tal preciosidade, com prejuízo do tesouro comum para os pobres.<br />

E um dos discípulos disse: “Será direito gastar assim tão cara substância? Esse óleo podia ser vendido e o<br />

dinheiro dados aos pobres” – e Míriam se sentiu vexada com essas palavras. Mas o rabi interveio:<br />

− Por que entristeceis esta mulher? Acaba de me fazer bem. Aos pobres vós sempre os tereis convosco, mas a<br />

mim só me tereis por pouco tempo – porque quando ela me ungiu estava-me ungindo para o meu enterro.<br />

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Estas palavras provocaram um murmúrio entre os discípulos. Espantaram-se, e Simão bar Jonas exclamou:<br />

“Não! Isso nunca! Não para teu enterro, mas para tua coroação é que esta mulher te ungiu”.<br />

Mas o rabi estava de novo imerso em pensamentos e falou como para si mesmo: “Minha alma está opressa de<br />

dores. Que direi? Pai, ajuda-me a passar esta hora! A ela chego”. E para os que o rodeavam: “E eu, quando me erguer de novo<br />

da terra, atrairei a mim todos os homens”.<br />

Tarde da noite prepararam os discípulos a cama do rabi na casa de Simão o Leproso e no quintal acomodaram-se<br />

como e onde puderam. Judas Ish-Kiriot, Simão o Zelote e outros esgueiraram-se para o celeiro e eu os acompanhei. Já era<br />

muito tarde para voltar ao meu rabi, porque Bet Eini ficava a mais de uma hora de distância da cidade.<br />

Não pude dormir. Em minha cabeça passava tudo quanto durante o dia ocorrera com o Profeta de Nazaré; as<br />

palavras que lhe ouvi não me saiam da lembrança, sobretudo o que ele dissera sobre a destruição do Templo e sobre o seu<br />

enterro, que estava próximo. Nada entendi nem de uma nem de outra coisa e me veio uma opressão. Pensei comigo: “Não nos<br />

ensina o Torah que o Messias permanecerá para sempre? E ele diz que o Filho do Homem erguer-se-á da terra. Quem é o<br />

Filho do Homem?”<br />

Os pensamentos que me atormentavam deviam também atormentar os outros, e notei que Judas Ish-Kiriot, que<br />

se deitara perto de mim embrulhado em sua manta de saco, estava gemendo. Do outro lado deitara-se Simão o Zelote – e<br />

percebi que também estava acordado. Em dado momento chamou Judas:<br />

− Judas, Judas, por que gemes e tens a alma angustiada?<br />

− Não ouvistes as palavras do Mestre sobre a unção em seu enterro e sobre ascensão da terra?<br />

− Ouvi-as tanto como tu, respondeu Simão. Palavras assim já ele as pronunciou em Cesaréira Philippi, quando se<br />

nos revelou como o Messias. Não as compreendi agora, como não as compreendi naquele tempo. Sempre acreditamos que a<br />

hora da alegria eterna estava para chegar, a hora da libertação com que nós e nossos pais tanto sonhamos. Mas agora que esse<br />

dia se aproxima, vai converter-se em dia de morte e luto? Explica-me o que o rabi quer dizer.<br />

Judas respondeu, dentro das trevas:<br />

− Simão, não te lembras do que os discípulos aprenderam, na fala do rabi em Cesaréia Phillippi, sobre as aflições<br />

do Messias e o jugo de ferro que o ungido de Deus iria carregar, e os sete dias agônicos que tinha de viver? Fica sabendo que<br />

essa semana de agonias chegou, e que o Messias vai passar através de todas as fontes de dor e mágoa afim de que possa obter a<br />

salvação, porque a mais alta alegria jáz face a face com a maior dor, e a liberdade ombreia com a escravidão. A dor é a mãe da<br />

alegria. Ele chegou ao ponto extremo de sua luta e está agora diante da abertura do Mar Vermelho. Na primeira libertação os<br />

judeus tiveram de atravessar o Mar Vermelho, mas na libertação de agora tem o Messias que atravessá-lo sozinho, para bem de<br />

todos nós.<br />

− Mas, Judas, qual o significado dessas aflições?<br />

− Ele é o Messias que traz em si a salvação particular de cada alma. Traz a libertação de todos. Antes que possa<br />

salvar uma alma, tem que sentir a agonia de todos. Tem que experimentar as profundidades de todas as dores até o túmulo, e<br />

mais ainda. Afim de trazer a salvação ele tem primeiro de passar pelas profundezas do inferno.<br />

− Judas! Que coisas estás aí a dizer? exclamou Simão, a soluçar no escuro.<br />

− Não chores, Simão, disse Judas. Rejubila-te antes. É por vontade própria que ele toma sobre si todas as mágoas<br />

humanas. Está na sua escolha afastá-las, pois todo o poder reside em suas mãos. Ele, porém, não o usará, e curvará o pescoço<br />

ao jugo, como disse o Profeta. Não viste como recuou para que o orgulho romano passasse? Poderia tê-los reduzido a pó com<br />

um sopro e não o fez. Marchando na imensa humildade de seu asno, ele, o Rei-Messias, o ungido de Israel, cedeu os caminhos<br />

aos escravos de Edom. Essa é a grandeza do Messias.<br />

− Mas por quanto tempo?<br />

− Até que haja bebido até às fezes a taça das lágrimas, até que seu corpo tenha sofrido todas as dores da carne,<br />

até que haja provado todas as agonias que os homens conheceram na terra e Deus lhe diga: “Basta, meu Filho. Em dupla ou<br />

tripla medida recebeste tua recompensa”. E, então Deus lhe estenderá a mão e dirá: Senta-te ao meu lado direito, e farei da<br />

terra um escabelo a teus pés”.<br />

E Simão perguntou com voz trêmula:<br />

− Também experimentará o gosto da morte?<br />

− Não o permita Deus! exclamou Judas amedrontado. Que está a dizer? Messias e morte? Nunca o Messias<br />

provará o gosto da morte. Ele é eterno. “O Messias sabe que o Senhor o não abandonará”, diz a escritura.<br />

− Mas por que retarda ele o momento? Por que se mostra tão triste, como se pudesse evitar o destino que lhe está<br />

preparado? Não o ouviste falar na hora que se aproxima?<br />

− Para que o Messias prove todas as dores, criou-o Deus de carne e sangue. Fê-lo como um de nós. E fê-lo ainda<br />

mais sensível à dor do que nós. Fica sabendo que Deus tomou toda a natureza do homem e derramou-a no Rei-Messias; e para<br />

que o Filho do Homem possa erguer o filho do homem deve primeiramente descer às mais extremas profundidades – assim o<br />

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erguerá às mais extremas alturas. É ele a soma de todos nós. Estão dentro dele todas as criaturas humanas que jamais nasceram<br />

à imagem de Deus. Ensinam os sábios que o Senhor do Mundo encheu o Rei-Messias com a natureza de cada homem e lhe deu<br />

a boa e a má inclinação: mas nele a inclinação é mais forte que em qualquer homem comum. E embora anseie pela salvação, e<br />

lutou por ela com toda a vontade de Messias, sente medo e adia o momento de lançar-se no mar de dor que o espera. Porque<br />

esse mar não tem limites e as dores estão acima da compreensão. Quer Deus que quando através da redenção o Messias<br />

alcance a maior alegria desça também ao mais profundo abismo da dor. Já ele vê as barras de ferro candentes que se<br />

aproximam, e aguarda o momento em que terá de carregá-las. E entretanto ele se retardará um momento ou dois, porque sua<br />

alma teme. Mas não há outro caminho de salvação – só esse das agonias do Messias, e por isso temos de ajuda-lo a toma-las.<br />

− Judas! Judas! Que estás a dizer? exclamou Simão com o peito a tumultar – e mesmo nas trevas apanhei uma<br />

chispa de seus olhos, como centelha de espada. Judas! Que queres dizer?<br />

− Isto: que temos de ajuda-lo a chegar ao fim.<br />

− Como?<br />

Um vulto mais escuro se destacou no negror da noite. Reconheci-o. Era Judas Ish-Kiriot.<br />

Ergui-me dali e esgueirei-me do celeiro para a escuridão a céu aberto. E pus-me a correr sob as estrelas rumo à<br />

cidade – e por todo o trajeto aquele vulto negro de Judas Ish-Kiriot não cessou de perseguir-me.<br />

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Já sem forças, eu caminhava lentamente rumo à casa do rabi Nicodemo, o homem que podia dar-me luz e paz.<br />

Pesado estava meu coração, e minha alma chorava sobre o que eu ouvira da boca de Judas; e abri-me com Deus: “Pai do céu,<br />

Tu que és nossa proteção e socorro, Tu que foste generoso com o primor da Tua criação, o homem, e lhe mandaste um<br />

salvador e libertador: por que há de ele arrastar-se na senda do sangue e da dor? Tu que és a fonte da mais pura alegria, o ninho<br />

de amor e de felicidade eterna, por que fizeste assim áspero o caminho da redenção? Por que de mão aberta não derramas sobre<br />

nós a alegria? Por que temos uma vez mais de aguardar a abertura do Mar Vermelho? Devo acreditar em minha alma – embora<br />

isso a horripile – que há dois poderes, o poder do bem e o do mal, e que o poder do mal pode atravessar-se no caminho do<br />

poder do bem? Faz o Anjo de Edom guerra a Ti nas alturas, como o próprio Edom nos faz guerra aqui? Não! Não! Não! Que<br />

pensamentos são estes? Tu és o único poder, o único regente de todos os céus e todos os mundos. Tu és o que fizeste a aliança<br />

com o nosso pai Abraão e Tua promessa não falhará. Mas por que nos impões tão dura prova? Quem somos nós para que de<br />

nós Tu exijas tanto? Ajuda-nos, Pai. Não nos deixes em abandono fora”.<br />

Tais eram meus pensamentos e minhas palavras de volta de Bet Paga, quando entrei em Jerusalém na alvorada<br />

daquele dia, o terceiro da semana, o décimo primeiro do mês e o terceiro antes do começo das festas em memória da nossa<br />

libertação do Egito. Essa libertação ia ser renovada, e não só a dos nossos corpos como a de nossas almas. Na festa que se<br />

aproxima Deus nos libertaria outra vez, mas dessa feita com libertação eterna e imutável. Assim me vinha eu reconfortando<br />

dentro da madrugada. A estrela da manhã rompera o céu como uma espada de fogo e pelo rombo jorrava luz. Em baixo, na<br />

terra, os jardins e casas começavam a emergir do sudário de trevas, até que toda Jerusalém apareceu diante de mim inundada<br />

dos primeiro raios de sol. Uma a uma foram-se apagando as tochas dos guardas do Templo. O triângulo do Grande Santuário<br />

tinha o aspecto duma montanha flamante – mas lá estava acima dele o punho fechado de Roma qual ameaça do homem mau<br />

contra o homem santo: a torre da fortaleza Antonia.<br />

Apressei os passos através das ruas semi-despertas de Jerusalém, rumo à Sinagoga do meu rabi, porque chegara<br />

a minha hora de serviço.<br />

Encontrei-o de Tallit e Tefillin em meio à sua oração da manhã. Esperei que a terminasse e então corri para ele e<br />

abracei-o, como para o pastor corre a ovelha perdida no momento em que é encontrada. Abri meu coração. Disse-lhe o que<br />

tinha visto e ouvido durante o dia e a noite no pátio do Templo e na casa de Simão o Leproso e repeti-lhe as palavras de Judas<br />

Ish-Kiriot. Tudo ouviu meu rabi em paz, exceto quando lhe contei as palavras de Judas para Simão o Zelote. Ai Nicodemo<br />

encolerizou-se e exclamou:<br />

− A verdadeira redenção não virá através da angústia, mas da alegria, porque aquele que for enviado virá vestido<br />

do poder de Deus. Assim profetizaram os Profetas: “Conduzirei suas guerras e ajudarei seus filhos”. Porque sua cólera contra<br />

nós é apenas momentânea, ao passo que Sua compaixão é eterna.<br />

Disse e por uns instantes guardou silêncio. Depois:<br />

− Grandes coisas estão-se dando hoje e não sabemos o que se passa em redor de nós. Sem a graça de Deus cegos<br />

somos. Vem, meu filho, oremos juntos, para que não caiamos em tentação, porque nada ilumina tanto o coração do homem<br />

como a prece. Purifica-nos e aproxima-nos do nosso Pai do céu.<br />

E meu rabi prostrou-se por terra, com a cabeça voltada na direção do Templo – e eu fiz o mesmo. Em voz baixa<br />

ele enunciou uma prece, que eu repeti:<br />

− Pai do céu, Criador de tudo: vê, todas as mãos para Ti se estendem e todas as preces a Ti se dirigem. Não nos<br />

abandones nesta hora de necessidade. Abre nossos olhos, nestas trevas em que estamos. Tem compaixão de nós e não nos<br />

afaste de Ti, porque sem Ti somos como a sementinha que o vento leva para onde quer, sem destino nem propósito. Reúne-nos<br />

em Teu redor, aproxima de Ti nossos corações para que possamos unificar nossa vontade com a Tua e servir-Te com toda a<br />

alma. Forma-nos à Tua imagem e enche-nos das Tuas virtudes. Espalha o tabernáculo de Tua paz sobre todas as nações do<br />

mundo e abre os olhos dos povos para que Te reconheçam, a Ti que és o começo e o fim de toda esperança e todo desejo de<br />

Tuas criaturas. Amem.<br />

A prece do meu rabi sossegou-me a alma. A pureza encheu-me e diante de meus olhos e de meu coração o véu<br />

da dúvida se dissipou. Senti como a criança que vem do frio da noite e afinal se recolhe à casa paterna, aninhada sob o manto<br />

do pai.<br />

Depois que em companhia dos discípulos tomou a sua refeição matutina de pão e azeitonas, o rabi nos disse:<br />

− Temos de ir ao Monte da Casa porque o rabi Jochanan ben Zakkai vai pregar.<br />

Carregando nossa tralha seguimos com o rabi através das ruas cheias de gente, rumo à Cidade Alta. Ao<br />

chegarmos ao viaduto que leva à Basílica de Herodes, mandou-nos ele que entregássemos nossas bolsas a um do grupo, o qual<br />

seria o tesoureiro da ocasião. Mas instruiu o tesoureiro a ficar fora, porque era proibido entrar no pátio do Templo com uma<br />

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bolsa cheia de dinheiro; e os muito piedosos também tiravam as sandálias, mesmo antes de pisar no pátio exterior. No inverno,<br />

porém, fazia-se perigoso para a saúde andar descalço sobre as lajes, e por isso os sábios decretam a permissão das sandálias –<br />

mas não a das bolsas cheias e o bordão.<br />

Quando chegamos à Basílica de Herodes, uma surpresa nos esperava. Demos com um grande tumulto de<br />

mercadejamento em todas as pequenas tendas de peças sacrificiais. Cestas e gaiolas de pombas empilhavam-se por ali, e<br />

grande massa de homens e mulheres veladas comprimia-se diante dos vendedores. Levitas de toucado branco apalpavam e<br />

examinavam cada pomba antes de passá-la ao comprador, para que só fossem ao sacrifício as perfeitas. Mas aquilo nos era<br />

novidade, porque a Basílica, sempre freqüentada pelos rabis e seus discípulos, nunca fora mercado de pombas. Um de nós<br />

voltou-se para Nicodemo e pediu:<br />

− Ensina-nos, rabi. Momentos antes mandaste que déssemos as nossas bolsas a um de nós e que esse ficasse fora,<br />

porque é proibido entrar no pátio do Templo conduzindo dinheiro; mas aqui vemos esta multidão diante das tendas a comprar<br />

os pequenos sacrifícios. Como pôr isto em harmonia com as regras dos rabis?<br />

− O que aqui vedes nada tem com as regras dos rabis e sim com as regras do Sumo Sacerdote e dos funcionários<br />

do Templo. Mas os que atendem às palavras dos sábios, esses não enchem a casa de Deus com os pregões do comércio; porque<br />

mesmo antes de penetrar no pátio exterior onde a Santidade não impera, já estão com os corações cheios de temor de Deus.<br />

Que a bênção caia sobre eles!<br />

Nesse momento um tumulto irrompeu. Voltamo-nos, cheios de espanto e terror e vimos na Basílica, justamente<br />

no ponto por onde havíamos passado, um tropel de povo. Nosso rabi não ignorou o incidente e prosseguiu no seu caminho<br />

como era seu costume, pois pressentiu que algo importante acontecia, tal era a agitação do povo. Voltamos todos para a<br />

Basílica, a passos rápidos, e lá demos com uma terrível cena. Envolto no tallit, cujas franjas tocavam o chão, o rabi de Nazaré<br />

manejava um pedaço de corda torcida, dessas de ligar bois ao carro; e estava sacudindo a corda sobre a cabeça dos<br />

compradores e vendedores de pombas e expulsando-os dali. E avançando para as gaiolas e cestas de pombas, abriu-as e soltouas.<br />

As aves elevaram-se no ar e ficaram a dar voltas acima da Basílica. Gaiola por gaiola ele as abriu todas. Mas o que mais<br />

espanto nos causou foi que ninguém ousava embaraçar-lhe os movimentos. Com o terror estampado nas caras, tanto<br />

compradores como vendedores fugiam diante dele, deixando-o soltar as pombas. E como se o temor de Deus houvesse caído<br />

sobre eles, fugiam-lhe do caminho. E o rabi, como um fogo descido do céu ou como a espada do Senhor, girava no ar a corda e<br />

expulsava dali aquela gente.<br />

Os levitas, de calças curtas e túnicas brancas, aglomeravam-se num ponto, encostados à parede. Apavorados<br />

todos. E com os seus chicotes de pontas de chumbo lá estavam os guardas com as barbas a tremerem como sob o vento. Em<br />

poucos instantes a Basílica esvaziou-se de vendedores e compradores. No chão só se viam gaiolas abertas e mesas reviradas.<br />

Todos tinham fugido diante do rabi como de diante dum flagelo de Deus e estava ele o senhor único da Basílica.<br />

E então o rabi de Nazaré chegou ao portal e olhou para a massa de povo que lá de fora o via como aparição do<br />

céu. Jamais eu tivera ocasião de observar o galileu àquela luz: em suas vestes brancas, pés descalços, envolto no tallit pareciame<br />

maior que um homem. Tinha o rosto tão branco quanto as vestes. Até sua barba parecia branca: tudo nele era branco. Mas<br />

não vinha daí o seu aspecto terrível, nem de suas vestes, nem do seu tallit, nem de seu rosto, nem mesmo de seus olhos cheios<br />

da ciosa alegria do Senhor; vinha de outra coisa. Pareceu-me que na última noite uma tremenda e misteriosa mudança nele se<br />

operara, e que a corda que manejava era um gladio que lhe dera o Senhor dos mundos para a destruição do mal. Havia ele<br />

começado com a expulsão dos vendilhões do Templo e iria prosseguir. E todos o olhavam com assombro. Que tencionava<br />

fazer agora? Os peregrinos que nada sabiam daquele homem inquiriam ansiosos: “Quem é? Quem é?”<br />

− Não vedes? É um profeta de Deus que nos foi mandado.<br />

− Mas esse é o rabi de Nazareth, uma pequena cidade da Galiléia.<br />

− Não. É Elias o Profeta, mandado por Deus para proclamar a boa nova.<br />

− É Jochanan que se ergueu da tumba.<br />

− Não o vistes ontem quando entrou em Jerusalém cavalgando um asno?<br />

− Este é o que nos foi enviado para trazer a redenção. Não vedes a corda que tem em punho? É a espada do<br />

Senhor e com ela vai arremessar os maus às profundas do abismo. E então teremos o reino do céu. Mas que vai fazer agora?<br />

Expulsar os insolentes legionários romanos que estacionam diante das portas dos pátios internos?<br />

E então o Profeta, com a espada de Deus em punho, desceu, e com fúria de Deus abriu caminho em nossa<br />

direção. O povo abriu-lhe passagem, e ele se foi para as mesas dos cambistas em fileira diante da tesouraria do Templo – e<br />

num instante todas as mesas estavam reviradas! Moedas rolaram pelo chão, tilintantes, sem que ninguém ousasse abaixar-se<br />

para apanha-las. Porque ninguém se movia, tão tremendo era aquele quadro. Os cambistas fugiram, deixando largadas as suas<br />

posses.<br />

Mais tarde, pensando e repensando sobre aquela cena que eu vira com meus olhos, não pude plenamente<br />

compreender o que houvera. Não pude compreender como lhe era permitido fazer tais coisas e como homem nenhum ousava<br />

erguer contra ele a mão, permitindo-lhe que em tão poucos instantes, ficasse o único senhor dos pátios. Os fiscais, aqueles<br />

homens que guardavam o Templo como se houvessem recebido diretamente de Deus essa missão e que não atendiam a coisa<br />

nenhuma, desabaram – fugiram para os cantos – deixaram-no dono exclusivo de tudo. Os próprios romanos, que sempre<br />

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aguardavam com impaciência perversa o instante de arrancar das espadas e ferir, pareciam como que tontos; nada<br />

compreendiam e nenhuma ordem recebiam de seus oficiais também paralisados pelo terror. Era como se o rabi da Galiléia<br />

estivesse para também lançar-se sobre eles e expulsa-los dali. E naquele momento nossos corações se encheram de imensa<br />

esperança, pois vimos o medo nos olhos dos romanos.<br />

A noticia de tais acontecimentos correra célere por todos os recantos do Templo. Tesoureiros, escribas e cantores<br />

deixavam o trabalho e acudiam. Entre eles apareceram os Filhos de Hanan: Eliezer, o mais velho, na veste púrpura que<br />

indicava o alto cargo já exercido; Jochanan, o filho segundo, também de manto púrpura, símbolo de imediato do Sumo<br />

Sacerdote reinante; sua barba à moda síria pendia-lhe como um sino sobre o peito, enquanto a sua coifa branca torreada<br />

lembrava uma coroa. Também lá apareceram Teófilo, o Tesoureiro do Templo, e Matatias, o superintendente do guarda roupa,<br />

dos vasos, das madeiras, dos óleos e utensílios; e estavam também lá Hanan ben Hanan, o mais novo dos cinco irmãos e<br />

administrador dos pequenos sacrifícios negociados nos pátios e de outras empresas sacerdotais.<br />

Todos traziam as vestes do cargo e vinham rodeados dos funcionários menores e duma hoste de neófitos<br />

conduzindo objetos do culto, pás, cinzeiros, turíbulos e mais objetos que estavam a usar, ou estavam areando para a festa. Vios<br />

nos degraus de cima, com o espanto impresso no rosto. Contemplavam a destruição que o rabi de Nazaré fizera entre os<br />

vendedores de pombas e cambistas – as mesas reviradas, as moedas espalhadas pelo chão; e tinham os olhos no causador de<br />

tudo, ali de corda na mão, olhado com reverente júbilo pela multidão regalada e cheia de esperança. O estado d’alma do povo<br />

contaminava os funcionários, cujo palpitar de coração era visível nos rostos; o terror de Deus os empolgava; estavam ali como<br />

diante de algo sobrenatural e incrível.<br />

E mesmo entre eles notava-se um estranho murmúrio de entusiasmo e espanto pela ousadia daquele homem tão<br />

seguro de si. A palidez de seus rostos e o tremor das barbas diziam de como a incerteza lhes enchia o coração. Mas um deles, o<br />

jovem Hanan ben Hanan, mordeu os lábios e avançou. Vimos a congestão da cólera em seu rosto, porque aquilo fora um<br />

assalto ao seu setor de governo, levado a cabo por um desconhecido rabi da província. Todos os corações pararam de bater<br />

quando os dois poderes se defrontaram: o rabi de Nazaré, sem nada em punho senão um pedaço de corda, e o poder sacerdotal<br />

apoiado por todas as suas hostes. Os olhares de ambos se cruzaram – e essa troca de olhares foi um instante longo como a<br />

eternidade. O rabi apontou para o Sacerdócio com a corda e gritou em voz trovejante, forte como a de mil trombetas:<br />

traficantes?<br />

− Não está escrito: “Minha Casa será uma Casa de Oração para todas as nações”? Como fazeis dela um antro de<br />

O mais moço dos Hanans avançou e ergueu a mão, em sinal aos guardas para que descarregassem os chicotes<br />

chumbados sobre o rabi. Mas um olhar firme de seu irmão mais velho, Jochanan, suspendeu a ordem.<br />

Do coração do povo que rodeava o rabi, levantou-se um grito de júbilo, como se um grande peso lhe fosse<br />

removido de cima. Aquilo que tanto os oprimia, todo o amargor e ressentimento contra a Casa de Hanan, tornara-se como uma<br />

pedra que o rabi lançava contra o rosto dos opressores:<br />

− A Casa de Oração dos povos vós a transformastes em covil de ladrões! Transformastes o Templo em<br />

matadouro, em caldeirão de coser carne, em uma goela escancarada que exclama: “Dai! Dai!” porque esta fome não se sacia<br />

nunca. Os Filhos de Hanan são os Filhos de Eli que com seus garfos puxam a carne dos altares! A Casa de Hanan e a Casa de<br />

Beitus fizeram os filhos tesoureiros; os genros, altos funcionários e superintendentes – e eles esmoem seus escravos com<br />

bastões. Ai de vós, Filhos de Hanan! A Casa de Deus, que devia ser a Casa de Oração para todos os povos do mundo, eles a<br />

transformaram em praça de mercado. Sobre a pedra em que Abraão amarrou Isaac para o sacrifício, eles abriram suas bancas.<br />

Maldição sobre vós, Filhos de Eli!<br />

E um a um aqueles altos funcionários foram desaparecendo com suas roupagens de purpura e suas barbas<br />

crespas e oleosas; retiravam-se para trás das cortinas do Santuário. O rabi de Nazaré ficou sozinho em campo, único senhor dos<br />

pátios do Templo naquele dia.<br />

Julgamos então, todos nós, que depois de haver assim disperso os filhos de Eli pela força da santidade que dele<br />

defluía, depois de haver trancado a boca dos Filhos de Hanan, esses manipuladores de Templo, ele iria destruir o maior de<br />

todos os nossos inimigos, a verdadeira fonte de todos os males, o punho que apertava a garganta de Israel; com a autoridade<br />

que lhe fora investida, com aquele pedaço de corda que tinha na mão, o rabi de Nazaré iria varrer da terra o poder de Edom.<br />

Mas isso não se deu naquele dia, porque logo depois o Nazareno reuniu seus discípulos e deixou o pátio do Templo. Voltou ao<br />

Monte das Oliveiras. O povo acompanhou-o como se ele fosse um rei; e todos os rostos estavam radiantes, todos os olhos<br />

brilhavam, todos os corações trepidavam de alegria. Víamos claramente que o momento da redenção chegara. Naquele dia o<br />

nome de Deus fora santificado.<br />

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17<br />

Todos os corações se voltaram para o rabi naquele dia. Jerusalém só tinha um assunto: o que se passara no<br />

Templo. Impossível outra conversa. O povo comum sentia por ele um orgulho imenso, e seus conterrâneos, os galileus,<br />

exultavam. Sempre objeto de riso por causa da tradicional ignorância e de seu estranho e descuidado modo de falar, viam-se<br />

agora os galileus suspensos na altura. Um profeta viera da Galiléia, não apenas um Judas o Galileu, mas um verdadeiro profeta,<br />

um Amós, que ousara lançar toda a verdade em rosto dos Filhos de Hanan; e o terror de Deus caíra sobre os opressores, e os<br />

dominara a ponto de nenhum ter ousado erguer um dedo contra o rabi. E quem sabia o que mais aquela corda estava destinada<br />

a fazer? Espada era aquilo, não corda – e espada de Deus. E não era só o povo comum que pensava assim; os peregrinos e<br />

estrangeiros que enchiam os pátios do Templo, os sábios e letrados nas sinagogas e casas de estudo; todos falavam do rabi<br />

provinciano e dele só; e falavam com temor e admiração.<br />

Lembro-me que depois desses incidentes fui com o meu rabi à casa de Jochanan ben Zakkai, e lá os discípulos de<br />

Jochanan rodearam Nicodemo, certos de que sobre o homem de Nazaré poderia dizer-lhes mais que qualquer outro, pois que<br />

com ele tratara na Galiléia e em Jerusalém e também corria ser Nicodemo ben Nicodemo um partidário secreto de Yeshua.<br />

− Falai-nos, pediram eles, sobre essa misteriosa criatura de Nazaré que ousa entrar no vinhedo e expulsar os<br />

corvos que estragam a uva.<br />

− Não é muito o que vos posso dizer, porque velados são os seus caminhos. Só conhecemos suas palavras e<br />

feitos, mas não nos ajudam a penetrar no fundo. Descobrem um palmo e ocultam nove.<br />

− Quem conhece o poder que o anima e a autoridade de que está investido? Murmurou um discípulo.<br />

− Poder! Autoridade! Um simples rabi comum, digo eu. Tem seus momentos de exaltação em que se toma como<br />

o Messias. Outros conhecemos que se comportam de modo diferente. A exaltação também lhes vem, mas eles não pronunciam<br />

insolências contra os sábios e muito menos contra o céu. Se ele fosse quem julga ser, não se limitaria a falar: agiria.<br />

autoridade...<br />

− Não, não, aqui é diferente. Se ele fala assim, é que tem autoridade. Com meus próprios olhos vi provas de sua<br />

− Não sei, não sei... murmurou meu rabi. Às vezes me vem a idéia de que... Não. Nada direi. Tenho medo que<br />

minhas palavras sejam uma tentação e um estorvo.<br />

− Mas por que não se vão a ele os nossos sábios e letrados e não lhe perguntam com que autoridade procede<br />

assim? Se ele é o que tantos suspeitam, nós temos de nos esclarecer.<br />

− Sim, precisamos saber, disseram outros.<br />

− Onde mora esse rabi? Em que sinagoga prega? Onde se oculta?<br />

Súbito, todos se tornaram conscientes de que nenhum sabia da morada do rabi de Nazaré. Viam-no aparecer nas<br />

ruas e pátios do Templo como uma luz que brilha no céu – depois sumia-se!<br />

− Temos de enviar-lhe mensageiros. Temos de inquirir. Precisamos saber com quem lidamos.<br />

− Mas mandar mensageiros para onde?<br />

− Ele há de voltar aos pátios do Templo.<br />

− Que? Depois de ter feito o que fez?<br />

− Se é ele o que eu suspeito, certo que voltará para concluir o que começou. Ele não se ocultará de ninguém,<br />

disse meu rabi resolutamente.<br />

mensageiro.<br />

− Deus! Se ele volta, saberemos que autoridade lhe foi dada. E isso será o sinal. Até lá não mandaremos<br />

E assim foi decidido.<br />

Naquela tarde não fui a Bet Paga como tinha intenção, e sim à casa de Simão Cirene, no vale do Kidron, afim de<br />

honrar meu pai que tinha vindo passar a Páscoa em Jerusalém. Viera ele cumprir o duplo mandamento de purificar-se e<br />

oferecer o sacrifício pascal. E como de costume trouxera muitos presentes. Para meu rabi, vinho do Sharon ritualisticamente<br />

puro, um carneiro sacrificial e uma medida de mirra misturada com óleo shamir, muito apreciada por Nicodemo. Meu pai<br />

estava satisfeito dos meus progressos no Torah e sentia-se feliz ao pensar no dia da minha entronização no rabinato de Israel.<br />

Na tarde daquele dia, pela primeira vez, pus o meu manto comprido, sinal de que havia atingido o grau de homem culto.<br />

Depois de entoado o “Ouve, ó Israel”, as mulheres acenderam as lâmpadas e os homens lavaram as mãos; em seguida<br />

sentaram-se em redor da mesa baixa e partiram o pão. Em dado momento a porta se abriu e entrou Rufo, o filho mais novo de<br />

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Simão Cirene. Saudou os pais, diante deles se curvando e beijando-os na face direita; depois cumprimentou os demais. Seu pai<br />

admirou-se de vê-lo e receou que qualquer coisa desagradável houvesse sucedido; mas Rufo explicou que apenas tinha vindo<br />

visitar seus pais e aderir à festa. Lavou as mãos e juntou-se a nós.<br />

ligadas.<br />

Na mesa de Simão Cirene a conversa caiu sobre os fatos ocorridos no Templo e sobre as esperanças a eles<br />

− Grandes coisas nos prepara Deus, disse Simão Cirene. Ouvimos vozes e divisamos sinais de redenção próxima<br />

– e a mão de Deus nos sustenta. Como interpretar de outro modo o que houve no pátio do Templo? O cordeiro esteve na boca<br />

do leão e tomado de súbito medo o leão o não engoliu, assim se referiu ele ao recuo dos Filhos de Hanan diante do rabi da<br />

Galiléia.<br />

− Na verdade! É o começo da libertação, concordou meu pai.<br />

Durante toda a conversa o rosto de meu amigo Rufo brilhava de alegria e seus olhos mais e mais se dilatavam,<br />

tomados dum brilho estranho; todo o seu rosto nada mais era senão uma moldura para aqueles olhos. Olhava-me com<br />

impaciência, como se me quisesse dizer algo, e ficamos os dois a ansiar pelo momento da saída. E logo que concluímos a<br />

bênção depois da refeição, erguemo-nos e fomos conversar fora. A lua brilhava no céu.<br />

− Tens algo a dizer-me que meus pais não podem ouvir. Que é, Rufo?<br />

A resposta do meu amigo foi precipitada.<br />

− Depois daquela limpeza nos vendilhões do Templo, eu acompanhei o rabi da Galiléia, e embora não pudesse<br />

segui-lo de perto eu sabia do seu destino: a casa de Simão o Leproso em Bet Paga. Oh, que maravilhosas coisas se passaram!<br />

Exclamou Rufo, detendo-se em pausa de fôlego; e continuou, com os olhos mais brilhantes que as estrelas do céu: Quando<br />

cheguei ao topo do monte, ouvi uma grande grita de júbilo. Os discípulos do galileu reuniam-se em redor duma figueira seca<br />

perto da casa e exclamavam: “Olhai! Olhai! Vede a maravilha!” Perguntei o que era e me foi respondido que naquela mesma<br />

manhã a figueira estivera recoberta de botões. O rabi de Nazaré, com fome, aproximara-se dela em busca de figos, e não<br />

encontrando nenhum, amaldiçoou-a; e quando eles voltaram da cidade, viram que a figueira secara e estava com todos os<br />

botões caídos.<br />

− Mas, Rufo, disse eu, acaso não sabes que as figueiras de Bet Paga perdem habitualmente os seus botões e<br />

secam cedo, porque aquele sítio dá para os desertos da Judeia, dos quais sopram ventos sufocantes e carregados de areia? Vem<br />

daí o nome de Bet Paga, ou lugar onde os figos nunca amadurecem.<br />

− Claro que sei disso, como toda gente. As demais árvores perto da que o rabi amaldiçoara também haviam<br />

perdido seus botões ao calor daquele dia. Mas com a figueira em causa a coisa foi diferente, porque além de caírem as folhas e<br />

os botões, os ramos também murcharam e penderam, como braços e pernas sem vida dum homem tirado da cruz. E a própria<br />

árvore ficou com o aspecto de uma sh’ti v’erev.<br />

− De que?<br />

− De uma sh’ti v‘erev, a cruz que os sanguinários romanos plantam ao longo das estradas de Judéia, ou como as<br />

que são erguidas no topo do Gólgota, com homens vivos nela pregados.<br />

Eu observara em Rufo uma mudança desde o tempo em que começou a visitar o Monte das Oliveiras. Meu<br />

amigo tinha a alma de um sonhador. Sempre que nosso rabi falava do Messias ou recordava os ditos e feitos das gerações<br />

muito remotas como nos foram transmitidas pela Agada, meu amigo cerrava os olhos como se em transporte para outro mundo.<br />

E depois que deu de seguir o rabi de Nazaré, esse seu hábito passou de todos os limites. Em todas as ações e palavras do rabi<br />

ele inquiria sobre a significação maravilhosa. Enchiam-se de visões suas noites, e durante o sono falava no dia messiânico; ou<br />

levantava-se e nos acordava para contar o que vira. Apliquei a Rufo o verso da Escritura: “Quando nos tirou o Senhor do<br />

cativeiro, ficamos como num sonho”. Mas daquela vez me veio o medo e eu disse:<br />

− Rufo: só tu notaste que a figueira marcada pelo rabi tomou forma de cruz, ou outros também o notaram?<br />

− Suponho que outros também o notaram, ou pelo menos Judas Ish-Kiriot, porque enquanto batiam palmas e<br />

rejubilavam-se cantando hosanas, Judas de lado tremia de medo e tinha no rosto mortal palidez. Também me pareceu que<br />

Simão bar Jonas não se alegrava como os demais.<br />

− E que disse o rabi?<br />

− Nada falou daquilo. Quando eles apontaram para a árvore e disseram: “Rabi, vê como secou a árvore que<br />

amaldiçoaste!” ele respondeu: “Tende fé em Deus. Porque em verdade vos digo que se algum de vós disser a uma montanha:<br />

“Sai desse lugar e lança-te no mar”, e se o disser com fé, sem a menor dúvida no coração, a montanha mover-se-á. Por isso vos<br />

digo que o que pedirdes em oração, certos de que vos será concedido, concedido realmente vos será”. E então um dos<br />

discípulos perguntou: “Tudo pode ser alcançado pela oração?” E ele respondeu: “Sim – se a oração é por amor de Deus e<br />

vossos corações estiverem puros de todas as queixas contra os homens. Quando orardes, perdoai primeiro tudo quanto vos<br />

despertou a cólera, e então vosso Pai vos perdoará todos os pecados”.<br />

− E que aconteceu depois? Minha alma anseia por saber.<br />

− Depois? Depois veio da montanha Felipe de Gederah com um grupo de judeus gregos.<br />

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− Felipe?...<br />

− Sim, o grego de José de Arimatéia, Felipe o converso. Veio com os judeus gregos. Cabeça mais baixa do que<br />

nunca, andando de lado, como o navio que aderna depois do temporal e com dificuldade alcança o porto. Mas falava animada e<br />

incessantemente aos que com ele vinham e me admirei de que soubesse onde estava o rabi. Quando se aproximaram, puseramse<br />

a cochichar com um dos discípulos, Felipe de Bet Zeida, que fala grego, enquanto Felipe de Gederah chamava de lado<br />

Simão André.<br />

O rabi já não estava lá; tinha ido para a casa de Simão o Leproso, afim de abrigar-se dos ventos frios que<br />

começavam a soprar na montanha. E então foi André à casa e depois de alguns instantes apareceu o rabi à porta. Felipe de Bet<br />

Zeida apresentou os gregos ao rabi e Felipe de Gederah curvou-se tanto, que deu a idéia dum pequenino verme seco<br />

encarquilhado. Atrás dele tinham ficado os outros gregos, os quais também se curvaram. O rabi disse-lhes então<br />

enigmaticamente: “Chegada é a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado. Em verdade vos digo: Se a semente, não<br />

cai na terra e morre, fica sozinha. Mas se morre, dará fruto. Aquele que vive sua vida perdê-la-á. Mas aquele que detesta sua<br />

vida neste mundo, terá vida eterna. O que me quer servir, que me siga. E no lugar em que estou, aí também estará meu servo. E<br />

meu Pai do céu honrará quem quer que me sirva”.<br />

Fez uma pausa e continuou: “Sinto agora minha alma opressa. E que direi? Pai, ajuda-me neste momento, porque<br />

minha hora chegou. Pai, exaltado seja o Teu nome” – e ao dizer isto um raio rasgou o céu e reboou um trovão. Mas não era<br />

raio nem trovão. Era um anjo de fogo que do céu descia para ele.<br />

− Rufo, Rufo, que visionário és! Exclamei. Toda gente na cidade viu o raio e ouviu o trovão naquela hora, e<br />

todos ficaram à espera de que a chuva viesse encher os poços vazios. Já começavam a rejubilar-se, mas nenhuma carga d’água<br />

sobreveio.<br />

Meu amigo Rufo, porém, insistia no que dissera. Os céus se tinham aberto e um anjo de fogo descera. E na<br />

verdade havia muitos que naqueles dias vogavam num mar de sonhos e visões, tanta era a esperança que lhes enchia o coração.<br />

Naquela mesma tarde eu e Rufo andamos a passear pelas ruas enluaradas do vale do Kidron. De todos os lados<br />

ouvíamos alegres vozes de moços e moças, e risos de criança. Todos os corações transbordavam de contentamento. Ninguém<br />

parava para pensar ou duvidar, porque a expectativa de grandes acontecimentos enchia o espaço.<br />

E assim nós dois, eu e Rufo, de mãos dadas, formos ter à rua dos ferreiros e caldeireiros. As bigornas dos<br />

forjadores ficavam bem dentro da terra, e víamos o fogo chispar no braseiro e ouvíamos o ferro bater no ferro. Espantamo-nos.<br />

Não ignorávamos que os guardas de Edom vigiavam de perto os ferreiros de Jerusalém, e também os servos do Sumo<br />

Sacerdote vinham, em rondas de inspeção, ver se estavam trabalhando em coisas de paz ou de guerra. Por amor à limpeza da<br />

cidade eram os ferreiros confinados, juntamente com os tecelões, tintureiros e tanoeiros, nas ladeiras mais escusas. Jamais<br />

vimos maior atividade entre os ferreiros do que naquele dia, nem os encontramos tão animados. Todos os que tivemos ensejo<br />

de visitar, estavam exultantes do trabalho. Peludos braços moviam os foles ou manejavam os malhos sobre as bigornas, e as<br />

chamas da forja se refletiam em seus dorsos nus. Forjavam espadas, não panelas! E cada vez que sobre o ferro em brasa descia<br />

o malho havia um grito de triunfo e vingança. Dedos conhecedores experimentavam o fio das armas – e as espadas se iam<br />

amontoando. Entravam homens e lá as levavam. Que estaria para acontecer?<br />

Mas numa das forjas eu e Rufo nos sentimos como paralisados. Dois homens entraram sub-repticiamente, ambos<br />

em trajes de estopa. Um, o mais velho, baixo e solidamente constituído, músculos nodosos e corpo de leão, olhos muitos<br />

brilhantes sob as fortes sobrancelhas; outro, alto, de ombros largos e musculatura truculenta. Ambos levaram as mãos às<br />

espadas, experimentaram as lâminas, entregaram o preço e escondendo-as nas roupas, desapareceram.<br />

− Viste? Não os reconheceste? Dois dos discípulos do Nazareno...<br />

− Sim! Simão e Jochanan. La vão eles...<br />

Entreolhamo-nos, eu e Rufo, com uma pergunta na alma: “Qual o significado daquilo?” E tomados de<br />

inquietação deixamos a rua dos ferreiros e nos fizemos de volta para a casa de Simão Cirene.<br />

Pela manhã do dia seguinte fomos para a casa de estudo, eu a levar os presente de meu pai ao rabi. Logo que<br />

penetramos nas ruas estreitas do bairro impressionou-nos a mudança havida durante a noite. A alegria da festa próxima<br />

desaparecera de todo, substituída por amarga tristeza. Homens passavam de cara fechada e boca presa. Mas adiante<br />

encontramos flautistas como os que tocam nos enterros e vimos nas soleiras mulheres em lágrimas,<br />

Indagamos do que houvera e a resposta nos gelou. Esclarecia-nos as cenas da rua dos ferreiros, aquele suspeito<br />

vaivém de homens silenciosos em busca de espadas. Bar Abba e seus seguidores já andavam impacientes com as promessas<br />

dos rabis e o sonho do Messias; e os acontecimentos da véspera tinham-lhes levantado as esperanças. A relutância dos Sumos<br />

Sacerdotes em prender o rabi valera-lhes como sinal e desafio – sinal de que o momento havia chegado. Bar Abba mandou<br />

instruções aos seus homens na Cidade Baixa: que se armassem imediatamente e se reunissem na hospedaria dos cameleiros.<br />

Mas naquela mesma noite as legiões romanas assaltaram de súbito aquele centro e o tomaram. Muitos homens caíram na<br />

refrega e as ruas conducentes à hospedaria foram declaradas impuras, tantos eram os cadáveres nela esparsos. Os feridos<br />

ficaram no lugar, atolados em seu sangue. E o próprio Bar Abba havia sido agarrado pelos romanos.<br />

Ao aproximarmo-nos do campo de batalha entreouvimos um feroz murmúrio. A amargura dos moradores da<br />

Cidade Baixa crescia de ponto e lá só se falava duma coisa: Bar Abba! Tornara-se ele naquela noite o grande herói. Sua<br />

história corria de boca em boca. Todos lhe gabavam a tremenda energia, a bondade, a generosidade – de como odiava os<br />

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guardas do Sumo Sacerdote; de como saqueava os ricos nas estradas e residências, para, como Elias, distribuir a colheita entre<br />

os pobres e as viuvas; e de como comprava custosos ungüentos nas lojas da aristocracia para curar os doentes miseráveis.<br />

Mas, como sempre em casos tais, o que se dizia de seu destemor e de seu amor pelos pobres era exagerado. O<br />

ladrão de ontem tornava-se o herói de hoje. Todos eram unânimes em afirmar que se não fora a traição de um de seus homens,<br />

ninguém nunca o apanharia. E recordavam-lhe as subitâneas aparições nas ruas e na praça do mercado, e mesmo nos pátios do<br />

Templo, para denúncia dos Filhos de Hanan; e de como desaparecia num relance, com grande assombro dos guardas. E agora<br />

todos criam que Bar Abba houvesse formulado tremendos planos; hostes e hostes estariam esperando o seu sinal de ataque;<br />

andara ele preparando o assalto aos guardas do Templo, enquanto lá estivessem os peregrinos.<br />

− Não, não! diziam outros. Bar Abba não iria começar a revolução justamente no Templo. Era um judeu piedoso<br />

que não profanaria os pátios com cadáveres, e isso em vésperas do sacrifício da Páscoa. Seu plano era atacar o procuratórium e<br />

aprisionar o próprio Pilatos.<br />

− Isso não, discordava terceiro. Nada de procuratórium. Ele ia mas era cercar o teatro com uma grande hoste,<br />

quando estivesse cheio de romanos e amigos dos romanos. Lançaria uma grande rede sobre Edom, Herodes e os Filhos de<br />

Hanan; e, capturando-os, levá-los-ia como reféns para as cavernas do deserto.<br />

− Ah, não fosse o tal traidor e nos poderíamos libertar nesta Páscoa!<br />

Esse o assunto que ouvíamos debatido em todos os grupos, por todos os cantos da Cidade Velha. Mas o<br />

Procurador e o Sumo Sacerdote já haviam tomado enérgicas medidas. Dobrados estavam todos os destacamentos de guardas,<br />

não só nos pátios do Templo como nas ruas, no mercado e nas portas dos palácios. Romanos, asquelonitas e sírios com todas as<br />

armas e as largas espadas fora da bainha, lá aguardavam os rebeldes. A cavalaria germânica também fora trazida da Antônia e<br />

patrulhava a cidade. Grande número de guardas sacerdotais mantinham-se de prontidão – os detestados homens dos chicotes de<br />

pontas de chumbo. Quando viam um ajuntamento, atacavam sem aviso, dispersando o povo em todas as direções. Até nós, eu e<br />

Rufo, que pacificamente íamos levando os presentes do nosso rabi, tivemos por várias vezes de nos refugiar em casas, tendas e<br />

quintais. E foi sem fôlego e cansadíssimos que chegamos a destino.<br />

Encontramos o nosso rabi na oração da manhã, e a suspirar profundamente enquanto orava. Tomados de terror<br />

ficamos a ver aquilo. Nicodemo não interrompeu as suas devoções. Tivemos de esperar que chegasse ao fim. E quando chegou<br />

ao fim e se despiu do filatério e do chale de rezar, apenas nos disse:<br />

− Queira aquele a quem toda a terra pertence, que a festa próxima corra em paz e seja a Páscoa da redenção –<br />

não de libertação de nossos corpos, mas de consolação para nossas almas.<br />

Já ele estava a par de tudo quanto se passara durante a noite.<br />

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No quarto dia da semana, faltando apenas dois para a festa, um mensageiro chegou mandado pelos rabis e<br />

escribas em assembléia no Templo; veio com recado para que Nicodemo se fosse para a reunião sem tardança, visto como o<br />

assunto era de grande vulto. Meu rabi não perdeu um só momento; pôs o manto e lá partiu conosco para a Cidade Alta.<br />

Quando chegamos à reunião soubemos que o rabi de Nazaré havia voltado ao Templo. Ignorante do que<br />

aconteceu de noite a Bar Abba e seus seguidores, esquecido do que ele próprio tinha feito ali na véspera e desatento à<br />

duplicação da guarda romana, cujos oficiais estavam agora alertas para qualquer emergência, o rabi de Nazaré havia voltado<br />

com seus discípulos e se sentara diante da tesouraria, a pregar ao povo. Os escribas e anciãos já haviam deliberado enviar-lhe<br />

mensageiros incumbidos de saber dos seus próprios lábios com que direito havia feito aquelas coisas e em nome de quem<br />

agira. Muitos entre eles acreditavam que os tempos haviam chegado e que Deus se amerceara de seu povo; e as esperanças<br />

nascidas no seio dos cultos, oriunda da esperança do povo, fora consolidada pela incerteza reinante no grupo dos Sacerdotes.<br />

Porque destes soubemos que haviam mandado pedir ao Tribunal uma investigação sobre a identidade e autoridade do homem<br />

de Nazaré. A Corte elegeu uma delegação de que faziam parte alguns escribas e anciãos e também membros do Sacerdócio;<br />

mas a inclusão destes últimos foi feita às ocultas, de modo que os romanos não soubessem que a Casa de Hanan se permitia<br />

negociações com o Nazareno. Meu rabi entrou para a delegação, sabidos que eram o seu pendor pelo rabi e o conhecimento<br />

pessoal que dele tinha.<br />

Os mensageiros da Corte encontraram o homem de Nazaré sentado no meio do povo, diante da tesouraria do<br />

Templo, a prelecionar, como de costume, sob forma de parábolas. Prestaram-lhe vênia e disseram:<br />

− Informa-nos, rabi. Com que poder fazes todas essas coisas e pronuncias todas essas palavras, e de onde te vem<br />

a autoridade? Revela-nos quem és, porque estamos cansados de errar no escuro e na dúvida – e os tempos são terríveis.<br />

O rabi de Nazaré respondeu:<br />

− Vou perguntar-vos uma coisa e tendes de responder; direi então com que autoridade faço o que faço.<br />

− Pergunta, rabi.<br />

E o rabi de Nazaré perguntou:<br />

− Foi a batismo de Jochanan coisa do céu ou dos homens? Respondei.<br />

Os sábios da delegação entreolharam-se, porque os escribas, fariseus e anciãos ainda não haviam decidido se o<br />

batismo de Jochanan era coisa do céu ou dos homens. E responderam:<br />

− Rabi, nós não sabemos. Certo que Jochanan era santo, profeta e mártir, pois que foi sacrificado para a<br />

santificação do Nome. Mas não podemos dizer se o seu batismo era coisa do céu ou dos homens; em tais matérias os escribas e<br />

letrados têm que aceitar a decisão do Conselho dos Anciãos e não temos autoridade para falar sobre o ponto, antes que essa<br />

decisão seja dada.<br />

Ao que Yeshua respondeu: “Então não vos direi o poder com que faço estas coisas”.<br />

E enquanto os mensageiros da Corte se quedavam atônitos e mudos, Yeshua voltou-se para o povo e disse a<br />

parábola da vinha:<br />

− Um homem plantou uma vinha cercou-a e construiu uma torre e uma adega. Depois arrendou aquilo a uns<br />

lavradores e se foi de viagem. Chegada a estação própria, mandou ele aos lavradores um seu criado para que trouxesse o fruto<br />

da vinha. Mas os lavradores maltrataram o criado e o devolveram de mãos vazias. E fizeram ainda pior para um segundo<br />

criado: receberam-no com pedras. E ao terceiro mataram. E então o homem, que só tinha um filho e muito o amava, mandou-o<br />

ter com os lavradores, os quais disseram-se lá entre si: “Este é o herdeiro; se o matarmos, herdaremos a vinha”. E mataram o<br />

moço e lançaram-lhe o cadáver fora. Pergunto: que resta ao dono da vinha fazer? Vir, matar os lavradores e entregar a vinha a<br />

outros. Porque nas Escrituras está: “A pedra que os construtores desprezaram tornou-se a pedra fundamental”. Isto veio do<br />

Senhor Deus e é admirável para os nossos olhos.<br />

Quando os mensageiros da Corte ouviram estas palavras, a palidez lhes tomou o rosto. Desviaram os olhos e a<br />

incerteza os invadiu porque não podiam compreender. Por fim o mais velho dos delegados disse ao rabi de Nazaré:<br />

− Longe de nós o pensamento de despertar e abandonar a pedra. Não te pretendemos fazer mal. Dizei-nos quem<br />

és e quem te mandou e tomaremos a pedra e sobre ela construiremos o tabernáculo da paz que nos foi prometida. Dizei-nos,<br />

rabi, qual de nós te quis fazer mal e qual de nós repeliu a pedra. Tu nos pedes que te aceitemos como o principal conservador<br />

do jardim, mais alto que Moisés, e não nos dás indício de quem te mandou. Não ignoras como vivemos amarrados pelas leis e<br />

mandamentos, e como o Torah nos orienta de modo claro sobre o modo de receber os profetas e videntes. E como rabi em<br />

Israel tu igualmente sabes que não podemos repelir uma só lei do Torah sem repeti-lo todo.<br />

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22<br />

7


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

Alguns dos escribas ali presentes murmuraram: “Nada há a fazer com este homem. Não basta a sua parábola?<br />

Nela falou blasfematoriamente contra Deus vivo – e agora sabemos como proceder”.<br />

Mas meu rabi declarou que não se processava ninguém com base em uma parábola, e a maioria dos escribas e<br />

fariseus concordou; enquanto outros se retiravam furiosos porque as palavras que o rabi de Nazaré dissera só se referiam a ele<br />

mesmo e não davam o sinal pedido.<br />

E estavam os deputados e o homem de Nazaré naquilo, e a mais gente reunida no maior embaraço, sem saber<br />

que partido tomar, quando alguns homens de Bar Abba irromperam. Eram reconhecíveis pelos ferimentos na cara e nos corpos,<br />

advindos da luta na noite da véspera; e entre eles figuravam fariseus e até gente do círculo de Herodes Antipatro. Porque o ódio<br />

contra Roma os unia todos, e murmurava-se secretamente, que o próprio Herodes estava acumulando armas em seu palácio de<br />

Tiberias para uma revolta contra os romanos. E porque o profeta de Nazaré havia animado com atos e palavras as esperanças<br />

do povo, esses homens também a ele se reuniam. Um deles, escolhido como orador, tomou a palavra e disse aos escribas:<br />

− Isso é lá tempo de parábolas? O inimigo bate às portas e dentro o povo tropeça no escuro. É lá hora de<br />

debates? Cumpre agir! E voltando-se para o homem de Nazaré: Rabi, conhecemo-te como um homem de verdade, dos que não<br />

se curvam diante da idéia de outro. Não buscas o favor de ninguém, mas ensinas os caminhos de Deus e a verdade. Dizei-nos,<br />

pois, livre e abertamente – e sem parábolas: É justo que nós, o povo de Deus, paguemos taxas a César, ou é injusto? Devemos<br />

ou não devemos pagar tributos a Edom?<br />

A multidão estava em suspenso. Ninguém conseguira descobrir significação nas palavras trocadas entre o rabi e<br />

os delegados, nem tampouco na parábola da vinha; mas agora ouviam palavras simples, das que exigem resposta clara. O rabi<br />

de Nazaré encarou o homem que lhe havia feito aquela pergunta e respondeu:<br />

− Por que me experimentas dessa maneira? Dá-me uma moeda para que eu a veja.<br />

Um dos homens apresentou na palma da mão um moeda em que vinha impressa a indigna imagem de Tibério –<br />

coisa proibida dentro do pátio do Templo. O rabi tomou-a, olhou para a imagem de Tibério e as letras, e depois perguntou:<br />

− Que imagem e palavras são estas?<br />

− Do César, responderam.<br />

− Então daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.<br />

Um murmúrio se ergueu na multidão. Gestos de espanto, barbas que se agitavam em desacordo, lábios mordidos<br />

com despeito.<br />

− Que quer dizer com esse “de César?” Pertence essa moeda a César? Deu-no-la ele de presente? Não tivemos de<br />

suar para obte-la? Não ganhamos com o suor dos nossos corpos a moeda de fora que ele nos impõe? Não nos tira César o<br />

nosso óleo e o vinho, o nosso carneiro e o gado, dando-nos em troca a sua odiada efígie? Que quer dizer então dar a César o<br />

que é de César?<br />

E outras vozes se ergueram, altas: “Não, nunca! Já pagamos demais para o invasor. Somos filhos de Deus e só<br />

reconhecemos um César!”<br />

− Somente a Deus pertence o domínio! gritou alguém, repetindo a senha de guerra de Judas o Galileu.<br />

Mas os sábios e fariseus procuravam acalmar o povo.<br />

− O rabi da Galiléia respondeu dentro do espírito da tradição, disseram. O profeta Jeremias nos pediu que<br />

orássemos pela paz dos nossos dominadores. E nossos sábios ensinam que “a lei do reino é a lei”.<br />

Mas o povo não atendia a tais palavras e insistia:<br />

− Nada mais há a esperar do profeta de Nazaré. Ai de nós! Fomos de novo enganados!<br />

E então, pela primeira vez, soou o grito: “Bar Abba! Queremos Bar Abba!” e o povo começou a dispersar-se. Só<br />

ficaram os fariseus e entre eles o meu rabi. Queríamos ver o fim daquilo, porque os guardas do Templo estavam empregando a<br />

força contra os que gritaram por Bar Abba.<br />

Aproximaram-se da nossa roda alguns dos saduceus que tinham estado ali por perto ouvindo a disputa entre os<br />

fariseus e o rabi. Eram facilmente reconhecíveis pela riqueza da indumentária, pelos anéis, pelas barbas à moda fenícia. Entre<br />

eles figuravam alguns dos seus sábios e intérpretes da lei – estes reconhecíveis pelo toucado piramidal e pela pena de ganso<br />

atrás da orelha. Tudo tinham ouvido a distância, mas sem tomarem parte na discussão, e havia em seus lábios um sorriso de<br />

desprezo pelos sábios fariseus. Aproximando-se propuseram ao rabi da Galileia as eternas e irrisórias perguntas relativas à<br />

ressurreição, ponto em que o rabi da Galiléia e os fariseus estavam acordes. “Quando sete irmãos houverem sucessivamente<br />

desposado a mesma mulher, cada um tendo de casar-se com a viuva dum irmão morto, segundo manda a lei de Moisés, como<br />

vai ser no outro mundo? A qual dos sete irmãos pertencerá essa mulher, quando os sete ressurgirem dentre os mortos?”<br />

O rabi da Galiléia respondeu:<br />

− Não conheceis as Escrituras. Quando se levantarem dentre os mortos, já não serão eles gente casadouras, sim<br />

semelhantes aos anjos do céu. Acaso não leste no Livro de Moisés como lhe falou Deus na sarça ardente? “Eu sou o Deus de<br />

Abraão, Isaac e Jacó”. Deus não é o Deus dos mortos, senão dos vivos – e, pois, laborais em erro.<br />

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8<br />

228


abi.<br />

“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

Ao ouvirem tais palavras os fariseus mostraram-se conquistados, e tudo esqueceram do que contra eles dissera o<br />

− Rabi, rabi, que bem falaste! Deus dá força às tuas mãos.<br />

E um dos fariseus acrescentou:<br />

− A mesma coisa nos ensinaram nossos antigos sábios. Donde sabemos nós que a ressurreição é mencionada no<br />

Torah? Destas palavras: “Confirmarei minha aliança com eles para dar-lhes a terra de Canaã”. Não está escrito “dar-vos”<br />

significando os judeus daquele dia, mas “dar-lhes”, isto é, a Abraão, Isaac e Jacó. Ora, isso é uma promessa de ressurreição<br />

que existe no Torah.<br />

E outro escriba ajuntou:<br />

− Que necessidade de ir tão longe? Nossos sábios estatuíram explicitamente: “A cada unidade do povo de Israel<br />

caberá uma parte no mundo a vir”. E não só para os filhos de Israel como para os justos de todos os povos do mundo. E nesse<br />

mundo a vir não haverá comer nem beber, nem casar, nem gerar filhos. Mas os santos se sentarão com coroas na cabeça e se<br />

rejubilarão nos gloriosos raios de Shekhinah.<br />

Nova aclamação dos fariseus: “Rabi, rabi, admiravelmente falaste! Deus te fortaleça as mãos. Os objetores<br />

calam-se”. E vendo o povo o deleite que o rabi da Galiléia causava aos sábios, sentiu-se de coração mais leve, reconfortado e<br />

de esperanças renovadas.<br />

E então um dos discípulos de Jochanan ben Zakkai adiantou-se para o rabi da Galiléia e disse:<br />

− Rabi, esclarece-nos. Qual o primeiro de todos os mandamentos do Torah?<br />

E o rabi respondeu: “O primeiro mandamento é: “Ouve, ó Israel, o Senhor teu Deus é o único Deus. E tu amarás<br />

o Senhor teu Deus com toda tua alma, com toda a tua mente e todo o teu poder”. Esse, o primeiro mandamento. E o segundo é<br />

de igual força: “E tu amarás teu próximo como a ti mesmo”. Maiores mandamentos que estes não há”.<br />

Os sábios encheram-se de alegria ao ouvi-lo; e o que propusera a pergunta glosou:<br />

− Admiravelmente falaste, e falaste a verdade. Porque só há um Deus e nenhum outro ao lado d’Ele. E amar a<br />

Deus com o coração, a alma e o espírito, bem como amar ao próximo, é mais que todas as oferendas e sacrifícios.<br />

E então o meu rabi Nicodemo falou:<br />

− Nossos sábios ensinaram: “Donde sabemos que quando um dos filhos de outros povos cumpre a lei se torna<br />

maior que o Sumo Sacerdote? Escrito está: “Há as leis que um homem observará e nas quais viverá”, mas não está escrito: “Há<br />

leis que um sacerdote ou um levita ou um filho de Israel Observará”. Está escrito que um homem”.<br />

Outro rabi abordou o mesmo tema:<br />

− Nossos sábios nos ensinaram: “Está escrito: “Abri-vos, portas, e os justos, os guardadores da fé, entrarão”. Não<br />

está escrito: “Abri-vos, portas, e um sacerdote ou um levita ou um filho de Israel entrará”. Está escrito Os justos, e disso<br />

deduzimos que quando o filho de outro povo é um guardador da fé, ele é como se fosse do sangue de Israel”.<br />

O rabi de Nazaré respondeu:<br />

− Falaste a verdade. Não estás longe do reino de Deus – e voltando-se para o povo disse: “E daqueles dois<br />

mandamentos dependem toda a lei e todos os profetas”.<br />

Novamente concordaram os fariseus: “Bem falaste, rabi! O venerável Hillel nos ensinou que o que não nos é<br />

agradável, não o faremos ao nosso próximo. Toda a lei está aqui; o resto é comentário. Ide e aprendei”.<br />

− Ele é discípulo de Hillel! Feliz a mulher que o gerou! Disse um dos discípulos de Jochanan ben Zakkai,<br />

batendo as mãos.<br />

segundo.<br />

Eu tomo a amêndoa e deito fora a casca. Tomo em suas falas o que é bom – ao resto não ouço, disse um<br />

Mas um terceiro acrescentou: “Se um sábio fala do Torah e diz que está de acordo com a tradição aceita pelos<br />

homens de sabedoria, será ele então crido em outras coisas que disser”.<br />

E assim aqueles sábios ali reunidos se rejubilavam com o homem da Nazaré e aceitavam tudo quanto ele dizia,<br />

nada mais tendo a perguntar. A hora propícia chegara. Todas as divisões entre eles e o rabi caíram, tornando-se este o portador<br />

das esperanças dos sábios e escribas: Propícia era hora para a junção de todas as forças numa só – a força que existiu no<br />

começo, a força da aliança de Deus com Abraão e outros antepassados, a força de Moisés e dos Profetas: a força que desata os<br />

homens dos laços do pecado para firma-los eternamente no amor de Deus e de seus semelhantes. Nossos corações pulsavam de<br />

alegria. A luz do Shekhinah brilhava no rosto do meu rabi e no dos outros sábios – a luz da alegria pura. Judas, de pé ao lado<br />

do seu rabi, estava a bater palmas, trêmulo de exultação. E inclinando-se para Simão, gritou-lhe no ouvido: “Se os sábios lhe<br />

dão apoio na terra, então lhe será dado apoio no céu”. E ficamos todos crentes de que a maravilha que esperávamos chegara.<br />

Mas subitamente o rabi de Nazaré ergueu a voz e disse:<br />

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9


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− Como querem os escribas que o Messias seja o filho de Daví? O próprio Daví declarou: “O Senhor Deus diz a<br />

meu Senhor”: “Senta-me à minha mão direita, e, de teus inimigos eu farei um escabelo a teus pés”. Se Daví chama-lhe<br />

“Senhor”, como é Seu filho?<br />

Estas palavras de novo confundiram os sábios, porque não ficaram sabendo a que pretendia o rabi de Nazaré<br />

chegar. Um deles replicou:<br />

− Não são poucos os filhos de Daví e até agora nenhum foi proclamado o Rei-Messias. Não basta ser um dos<br />

filhos de Daví para ser o Messias. É preciso também que seja o escolhido de Deus e mandado com a autoridade do céu.<br />

E então voltando-se para o povo e para o rabi os sábios disseram:<br />

− Sabido é, e reconhecido, que não por nossa glória, nem pela glória da casa de nossos pais, hemos vindo propor<br />

questões ao rabi de Nazaré. Porisso dizei-nos, rabi, com que poder fazes essas coisas e que autoridade tens. Dizei-nos para que<br />

saibamos nos como conduzir. Pedimos um sinal, não para te experimentarmos, mas para que se cumpra o que pela própria mão<br />

de Moisés está escrito no Torah com relação aos profetas e videntes que surgem. Mas em vez de sinal tu só nos deste parábolas<br />

e sugestões. Não podemos aceita-las, temos que seguir o mandamento de Moisés. E aqui estamos com as mãos estendidas no<br />

escuro, exatamente como estávamos ao chegar. E, pois, depomos as coisas nas mãos de Deus, para que ele faça como Lhe<br />

aprouver. Nada mais temos a fazer no assunto.<br />

Mas o rabi de Nazaré disse ao povo:<br />

− Cuidado com os escribas que gostam de andar de longas túnicas e de ser saudados nas ruas; que tomam os<br />

primeiros lugares na sinagoga e sentam-se à cabeceira das mesas de festa e devoram a casa das viuvas. Eles fazem exibição de<br />

preces e serão julgados com a maior severidade.<br />

Nada responderam os escribas, mas um deles murmurou:<br />

− Nossos sábios nos ensinaram isto: “Aqueles que são vexados mas em retorno não vexam, aqueles que são<br />

difamados e não reagem, aqueles que fazem com amor a vontade de Deus e se alegram de seus sofrimentos, esses merecem o<br />

verso:<br />

“Seus amantes são como a força do sol que saí”.<br />

Então os escribas disseram:<br />

− Demos desencargo ao de que fomos incumbidos. Nada mais temos a fazer aqui – e afastaram-se do rabi da<br />

Galiléia. Com eles se foram o meu rabi e muita gente. Outros, porém, ficaram e continuaram a ouvir o homem de Nazaré.<br />

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19<br />

Naquela tarde nós, os discípulos do rabi Nicodemo, pusemo-nos a lidar com os preparativos de mesa para a<br />

festa. Meu pai havia trazido farinha pura de qualquer contaminação e não tocada de levedo. Fizemos a massa, e estávamo-nos<br />

preparando para assar o matzot da Páscoa, quando de súbito Judas Ish-Kiriot se projetou em nosso meio como um homem<br />

atravessado por uma espada e gritou em delírio:<br />

− Não posso, não o posso suportar por mais tempo! Ele me agarra com o furor da tempestade e lança-me do mais<br />

alto da esperança ao mais profundo do abismo. Não suporto mais o tormento da dúvida! Quem é ele? Veio para confortar-nos,<br />

trazer-nos a cura e o socorro, ou veio para aumentar as nossas agonias, para atar-nos como bezerros, e para sempre, aos pés de<br />

Edom? Veio libertar o mundo inteiro e nos deixa em trevas? Por que? Não somos nós sangue de seu sangue? Não o demos à<br />

luz com sofrimentos do nosso corpo? Não temos trazido sobre os nossos ombros o peso da escolha de Jacó? Não fomos<br />

curvados até à terra, não temos deixado o sangue correr de nossas feridas, enquanto carregamos a carga até o dia da redenção?<br />

E agora – vão todas as bênçãos ser tomadas de nós e dadas a estranhos? Por que? Quem é ele e que é ele? Veio libertar-nos ou<br />

escravizar-nos ainda mais? Deixemo-lo vir e cumprir a sua promessa. Deixemo-lo conjurar as hostes do céu – deixemo-lo<br />

destruir Edom com o fogo de sua boca. Estou exausto da dúvida que me esmaga. Não a suporto mais.<br />

E já sem forças caiu Judas sobre os joelhos. Nosso rabi precipitou-se a acudi-lo. Ajudou-o a erguer-se, e a sentarse<br />

num banco. Deu-lhe em seguida vinho com mel, fazendo que Judas bebesse lentamente. E bom tempo se passou antes que<br />

de todo voltasse a si. Meu rabi pacientava. Por fim disse:<br />

− Judas, que sucedeu?<br />

− O Templo será destruído e nem uma só pedra ficará de pé. Jerusalém será nivelada com o chão. Jerusalém será<br />

apisoada pelos pagãos.<br />

− Quem enunciou essas terríveis coisas?<br />

− Meu rabi, meu rabi! Ele, o homem de quem esperei a salvação de Israel.<br />

− Com teus próprios ouvidos ouviste-o dizer?<br />

− Sim, Nicodemo, respondeu Judas.<br />

E agarrando a cabeça entre as mãos, pôs-se a balançar-se qual um possesso:<br />

− Como esperei pelo momento em que meu rabi falasse com os sábios do nosso povo e eles o reconhecessem o<br />

portador de nossas esperanças, o executor do Torah, o redentor do mundo inteiro! Minh’alma mergulhou na luz da alegria<br />

quando vi o acordo entre ele e os escribas e fariseus. E eu disse em meu coração: “Não podia ser senão assim – assim como<br />

Deus fez para que nos alegrássemos”. E pensei que seu reino ia começar, que ele ia levantar a mão, e que nossa esperança não<br />

teria sido vã. E por isso até engoli a sua decisão com respeito ao que deve ser dado a César. E disse a mim mesmo: “Não<br />

compreendo, mas se os sábios com ele acordam, então é que há nisso uma significação. Amanhã verei melhor”. E disse a mim<br />

mesmo que os que nele criam cegamente, esses veriam o seu trabalho. Todas as minhas esperanças estavam depositadas nele.<br />

− Mas, Judas, que aconteceu? Tu te referes às palavras que o rabi pronunciou contra os escribas? A honra dos<br />

escribas e fariseus permanece intacta. Foi isso tudo quanto disse o teu rabi?<br />

− Não, não foi tudo. Quando os escribas e rabis se retiraram, ele nos levou para a porta da tesouraria do Templo<br />

e nos mostrou uma viuva que havia lançado no cofre as duas últimas moedinhas que possuía. E falou assim ao povo: “Ela deu<br />

mais que todos, porque os outros deram do seu supérfluo e ela deu tudo quanto possuía”. Nós nos alegramos com essas<br />

palavras e nos preparamos para deixar os pátios. Alguns o seguimos. Era lá pelo meio-dia e o sol a prumo parecia uma coluna<br />

de fogo descida sobre o Templo; aquele aspecto nos deleitou. E então um de nós lhe falou: “Rabi, vê aquelas pedras, e que<br />

edifício formam?” E Yeshua respondeu: “Dessa poderosa construção não restará pedra sobre pedra”.<br />

O rosto do meu rabi se contorceu, como se uma agulha lhe tivesse picado o corpo. Suas pálpebras baixaram, um<br />

calafrio o tomou. Manteve-se em silêncio uns instantes e depois:<br />

− Foram muitos os que ouviram essas palavras do rabi de Nazaré?<br />

− Sim, todos aqueles que o acompanhavam.<br />

− E que disseram?<br />

− Ficaram aterrorizados, sem poder olhar um para o outro, e arrancavam os cabelos como se houvesse<br />

acontecido um desastre. Muitos largaram o rabi de Nazaré e puseram-se a correr; só ficamos um pequeno grupo. E com ele lá<br />

fomos pelo Monte das Oliveiras acima. A meio caminho sentou-se o rabi numa pedra à beira da estrada. Vimos de lá os<br />

torreões do Santuário batidos pelos últimos raios do sol. O rabi ficou de parte com os seus três discípulos amados, Simão,<br />

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Jochanan e Jacó, a conversarem coisas que não ouvimos. Depois dirigiu-se a todos e revelou o desfecho próximo. Disse que as<br />

dores do Messias se aproximavam – e suas palavras eram as de um homem que se prepara para longa jornada e diz adeus; mas<br />

não sabíamos para onde ele ia. E aquele de quem esperávamos conforto e alegria só falou em dores e ranger de dentes, guerras<br />

e terror: “E um povo se erguerá contra outro, e o irmão dará morte ao irmão”. Nós também, os discípulos – disse ele – seríamos<br />

entregues ao Sanhedrim. “E então, só então, quando o sol obscurecer-se e a luz não der mais luz, eles verão o Filho do Homem<br />

aparecer nas nuvens, em grande poder e glória”. E mandou-nos que ali esperássemos por ele, acordados; tinha medo de voltar<br />

de súbito e nos encontrar dormindo. Ouvi essas palavras do meu rabi e fiquei na mesma. Mas de súbito um grande terror<br />

empolgou-me, porque a dúvida entrou a apertar meu coração com seus dedos gelados – era como se a morte estivesse<br />

apagando a luz diante de mim. E fugi daquele terror – fugi e vim em procura de meu antigo mestre. Ajuda-me, Nicodemo, a<br />

ver claro nos caminhos do meu rabi. Estou como um homem suspenso no ar e que não pode mover-se. Ele me arrancou da terra<br />

mas não me largou no céu. Não posso viver assim e Judas em lágrimas cobriu o rosto com as mãos.<br />

Meu rabi pensou uns instantes e respondeu: “Judas, perdeste a fé em teu rabi?”<br />

− Deus me livre! Mas onde estão os limites da fé? Perguntou Judas angustiadamente.<br />

− Esvaziarias o oceano com um dedal, Judas? Só assim medirias a profundidade da fé. Fé não é mercadoria que<br />

se compra hoje e vende amanhã. As decisões de Deus estão acima da nossa compreensão – da minha, da tua. Estão-nos ocultas<br />

pelos limites de nossos dias e brilham em sua significação um dia depois de nossa morte. Por que te apressas desse modo,<br />

Judas? Espera, e tudo te será revelado.<br />

Assim aconselhou o meu rabi.<br />

− Mas não há então limites para o esperar? Esperar quanto, quanto, quanto tempo? Exclamou Judas. Por que não<br />

nos trás ele a redenção? Autoridade para isso lhe foi dada, e poder. Por que então retarda tanto? Ele vê os pés de Edom<br />

esmagando a beleza de Israel e ouve o pagão motejar o nome de Deus. Ele vê a mão de Edom erguida contra o Sagrado Um de<br />

Israel – e cala-se. Por que derrama ela sua ira contra os escribas e manda-nos pagar tributos a Edom? Chame ele suas hostes do<br />

céu, erga contra Edom sua espada de fogo, e então os escribas e os Sumos Sacerdotes e todos os grandes de Israel virão e<br />

curvar-se-ão diante dele, dizendo: “Tu és o Rei-Messias”. Ele quer quebrar o poder dos rabis com palavras. Se provar-se com<br />

feitos contra Edom, toda Israel se rojará a seus pés. Não, não, o verme da dúvida alcançou as raízes da minha fé.<br />

− Acaso já ouviste da boca do teu rabi as palavras: “Eu virei e quebrarei o poder de Edom”?<br />

Judas procurou recordar-se. “Não, nunca ouvi tais palavras na boca do meu rabi”.<br />

− Por que então, Judas, atribuis ao teu rabi palavras que ele nunca disse? Não sabes que se um discípulo deixa de<br />

transmitir com a maior fidelidade as palavras de seu mestre ajuda a destruir a justiça que governa o mundo?<br />

Judas baixou a cabeça e falou como a si mesmo: “Se é assim, quem é ele? Que esperanças nos trás?”<br />

− Judas, também por longo tempo não pude compreender o teu rabi – era-me um segredo selado. Quando me<br />

mandaste chamar e fui a K’far Nahum, diante dele estive e implorei: “Dá-nos um sinal, mostra-nos que és o esperado”. Mas o<br />

rabi obstinou-se na recusa e eu não pude responder ao enigma que me perturbava o coração: “Quem é ele?” Eu não podia dizer<br />

que ele houvesse abandonado o Senhor e induzisse outros a faze-lo, porque vi que todos os seus feitos eram norteados pelo<br />

amor do céu. Mas num momento parecia estar conosco e no momento seguinte parecia estar contra nós. Agora nos mandava<br />

observar rigorosamente todas as partes do Torah, dizendo que ele não viera para destruir mas para cumprir – e conduzia-se<br />

como um judeu piedoso, dentro das tradições dos escribas e anciãos – e logo depois dizia: “Não podeis botar vinho novo em<br />

bilha velha”. Isso quer dizer que tanto o vinho como a bilha que ele nos traz são novos. Diante dele eu me sentia como diante<br />

dum enigma. Eu procurava, diligentemente inquiria, no esforço de saber quem ele era, mas nada consegui. Meus pensamentos<br />

eram como os teus agora, Judas. E perguntei a mim mesmo: “Se lhe foram outorgados a autoridade e o poder, por que retarda a<br />

redenção – que está esperando?” E não obtendo resposta, a dúvida começou a roer os alicerces da casa que eu construíra sobre<br />

o rabi. Subitamente uma luz me iluminou e entrei a ver tudo diferente.<br />

− Que aconteceu, Nicodemo?<br />

− Houve aquela noite em que Hillel o aguadeiro me levou ao rabi de Nazaré. Na ocasião conservei a visita em<br />

segredo. Fui para indagar mais uma vez, para inquirir mais uma vez, porque a esperança ainda não morrera em mim. E eu lhe<br />

disse: “Rabi, nós sabemos que és um mestre mandado por Deus, porque não poderias fazer o que tens feito senão pela vontade<br />

de Deus”. E que me respondeu ele?<br />

Deus”.<br />

− Nunca nos falaste nisso antes. Como poderemos saber?<br />

− O rabi de Nazaré respondeu: “Em verdade te digo que aquele que não nascer de novo não verá o reino de<br />

− Mas o que significa ele com o “nascer de novo”? indagou Judas, já tomado de medo.<br />

− Foi o que lhe perguntei: “Como pode renascer o homem que já envelheceu? Entrando novamente no corpo de<br />

sua mãe e sendo parido segunda vez? E sua resposta foi: “Aquele que é nascido da carne, carne é. Mas aquele que é nascido do<br />

espirito, espirito é”. E realmente é assim. Mas eu perguntei ainda: “Somos nós nascidos só da carne? Não é o Torah a nossa<br />

mãe e Abraão, Isaac e Jacó não são nossos pais?” E refleti comigo mesmo, Judas: “Esta doutrina do rabi é boa e grande para os<br />

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nascidos sem o espírito, ou para os que negam o espírito. Mas nós que nascemos no espírito da aliança de Deus com Abraão,<br />

como poderemos nascer de novo sem negar o espírito?” E nesse dia eu me afastei do teu rabi.<br />

− Que quer isso dizer? gritou Judas. Que entre nós e ele, jaz a morte?<br />

− Deus nos livre de tal! exclamou o meu rabi. Não a morte, mas a vida. O renascimento de todos que nasceram<br />

sem espírito. E uma luz me iluminou. Judas, não achas possível que o teu rabi tenha vindo por causa dos gentios?<br />

− Por causa dos gentios? Repetiu Judas atônito.<br />

− Sim, por causa de todos os povos do mundo, por causa de todos os nascidos só na carne e não no espírito. Ele<br />

foi mandado para aproximar esses povos do nosso Pai do céu. E agora eu compreendo certas palavras que ele em tempo<br />

enunciou: “Eu sou o pastor de muitos carneiros”. E não disse também: “Na casa de meu pai há muitas mansões”? Sim, desse<br />

tempo em diante, desde que a luz me iluminou, eu tenho feito do meu coração um ninho de esperança. Sigo seus passos com<br />

amor. Tenho a mente e o coração abertos, e boa vontade para a interpretação de seus atos e palavras. Porque digo a mim<br />

mesmo: Ele é o profeta das nações, segundo as profecias dos primeiros tempos e o profeta que abrirá os olhos das nações à<br />

grande luz do Deus Único. E todas as nações farão uma aliança para servir Deus em seus corações e se amarem umas às outras.<br />

Aí estão os dois pilares do mundo, segundo as palavras que ele pronunciou esta manhã no Templo e os sábios acharam boas.<br />

Curvo-me reverente diante dele e espero ansioso o desempenho de sua missão. Mas não é a nós que ele foi enviado, sim aos<br />

pagãos. Deixai-o Judas!<br />

Judas ouvia com as mãos na boca, a morde-las. E retorcia-se como a tartaruga que entra na casca.<br />

− Que? Deixar meu rabi? Deixá-lo, a ele que é a dor da nossa dor, a esperança da nossa esperança, nosso arrimo,<br />

nosso tudo? Deixá-lo? Abandonar mãe e filho? Cortar o ramo a que me penduro? Cair no poço da ruína e da corrupção? Deixálo<br />

– deixar o fruto para o qual foi a árvore plantada? Deixar a última esperança? Fechar a última porta?<br />

− A última esperança, a última porta – isso é o nosso Pai do céu, Judas.<br />

Judas aprumou-se. A fé lhe havia voltado e ele parecia maior do que antes. Estava libertado. E exclamou:<br />

− Ele é o Rei-Messias!<br />

− Judas! Tu assumes grande responsabilidade com respeito ao teu rabi.<br />

Mas Judas, ereto, restaurado, falou como em sonho:<br />

− Creio com a mais perfeita fé, que ele veio trazer ao mundo a redenção. Como Abraão, ele destruirá templos e<br />

ídolos. O poderoso se achatará como carcassa aos seus pés. Ele apisoará a glória de Edom e varejará suas fileiras como uma<br />

tempestade de fogo. Ele reunirá os povos do mundo, como o respigador junta espigas, e os trará para a casa de Deus.<br />

− Se é assim, Judas, por que tanta impaciência? Por que essa inquietação e vacilação?<br />

− Porque não posso esperar mais. Minha alma transborda, a taça está cheia. O sofrimento amadureceu o tempo e<br />

Israel espera na angústia.<br />

E Judas não ouviu mais. Começou a medir passos pela sala, como um homem perdido e confuso. Seus olhos<br />

pulavam das órbitas e pareciam ver o que estava oculto aos nossos. Seu corpo desembaraçava-se de nós. Estava tão grande que<br />

parecia tocar o forro com a cabeça. E falava para si mesmo como que tomado por um espírito – ou era um espírito que falava<br />

dentro dele:<br />

− O fruto está maduro! Por que espera Israel? As hostes celestes estão reunidas. Os patriarcas o rodeiam. Tudo<br />

espera. Há silêncio no céu e na terra. Uma voz soa – uma voz de mulher – de Raquel chorando seus filhos. Moisés está<br />

presente e Jeremias também. Que esperam? O poder e a autoridade ainda não foram concedidos. O espírito Mau interfere e nos<br />

acusa. O anjo de Edom reclama. Israel é pecadora. Os poderes lutam entre si. Os pratos da balança erguem-se e abaixam-se. O<br />

anjo de Edom reúne forças. O Rei-Messias não cinge sua espada de vingança. Não, Deus não quer. Deus não quer! O anjo de<br />

Edom junta forças. Dores do Messias! Sangue, sangue, Deus não quer! Oh, a libertação! Gabriel e Miguel com ele, um de cada<br />

lado. O poder e a autoridade em suas mãos. Fogo a sair de sua boca. As hostes do céu descendo. Com um sopro ele destrui o<br />

anjo de Edom. Ele pisa em cima dos poderosos como um homem pisa sobre vermes. A terra fende-se. O mal afunda. O céu se<br />

aproxima da terra e a terra se aproxima do céu. Uma luz! Salvação! Salvação!<br />

E Judas caiu nos braços do meu rabi.<br />

Quando serenou, meu rabi sentou-se perto dele e disse:<br />

− Judas! Não há dúvida que és filho duma raça impaciente. Quantas vezes não te hei dito: “Não despertarás nem<br />

agitarás meu amor antes que ele queira?<br />

− Minha alma tem fome de redenção.<br />

− Judas, redenção é fogo. Os que a trazem podem iluminar a casa ou incendia-la.<br />

− Pois que uma das coisas aconteça! Que o nome de Deus seja glorificado hoje – agora! Estou imensamente<br />

cansado de esperar.<br />

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3


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− Vai, Judas, deita-te e descansa. Deixa que o sono feche as tuas pálpebras e dê paz ao teu coração. Lembra-te<br />

das palavras dos sábios: “A ti não incumbe completar a tarefa”.<br />

E então o meu rabi levou Judas a um dos quartos onde os discípulos dormiam, deitou-o num banco e cobriu-o<br />

para resguarda-lo da friagem da noite.<br />

∗ ∗ ∗<br />

Fui altas horas despertado por uma lamentação. Não era choro comum, mas choro do coração. Como uivo de<br />

chacal no deserto. Ergui-me e dei com Judas sentado no banco. Seu corpo fundia-se nas sombras da noite, mas seus olhos<br />

brilhavam nas trevas – e ele chorava e falava consigo mesmo:<br />

− Pai do céu, por que entre todos, só o mim escolheste para a maldição? Não me atormentes mais, mas tira a<br />

inquietação que puseste em meu corpo. Por que acendeste em mim este fogo que é a sede da salvação? Por que laceras-me com<br />

o chicote do desejo de redenção e lanças-me na noite? Dá paz ao meu coração e tranqüilidade ao meu espirito. Manda o<br />

repouso à minha alma atormentada, e deixa-me partir desta vida na tenda da fé, cantando o canto da Tua promessa. Pois não é<br />

Tua promessa o bastante para dar força, firmeza e paz? Por que não devo eu ver a promessa cumprida? Sai de mim, ó Deus –<br />

ou Satã! Tenho ânsia de repouso, quero mergulhar nas sombrias ondas da noite. Mas que é que despedaça meu coração? Tu<br />

derramaste em meu coração a sede – o fogo da sede. Tu apuseste em mim Teu sinal. Tu me escolheste como a pedra de que vai<br />

sair a faísca que acenderá a luz do mundo. Tu me enviaste – e eu irei! Como o bode expiatório, serei despedaçado nas rochas,<br />

mas estas serão as eternas rochas das gerações não nascidas. E eu o farei por amor à redenção. Sem mim nenhuma redenção<br />

virá. Sou parte da redenção. E se é assim, isso também é minha dor, meu sofrimento. Mais que os outros, sofrerei cada dor que<br />

ele sofrer. Mais que os outros, sangrarei com cada ferida sua. Beberei as gotas de suor que saírem de seu corpo, e essas gotas<br />

entrarão dentro de mim como chumbo derretido. Lançarei meu corpo aos látegos dos malvados, quando eles o lacerarem.<br />

Gemerei com cada gemido seu e gritarei com seu grito quando a redenção vier! A redenção é também minha! Rabi, rabi, vê –<br />

eu desço ao poço mais profundo afim de que possas subir até Deus!<br />

E cobrindo o rosto com seu manto, Judas calou-se.<br />

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4


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

20<br />

20<br />

O dia imediato era o quinto da semana e segundo antes da festa. Logo que amanheceu Judas deixou-nos e se foi<br />

ao seu rabi, porque o sacrifício da Páscoa ia começar naquela tarde. Os Sumos Sacerdotes vinham ignorando a antiga decisão<br />

do venerável Hillel, aceita pelos fariseus: que a grandeza do sacrifício da Páscoa tinha precedência sobre o Sábado e portanto a<br />

cerimônia de sacrifício podia ser continuada até a tarde do sexto dia, que já é Sábado. Os Sumos Sacerdotes asseguravam que o<br />

sacrifício da Páscoa era um korban yachid, isto é, uma oferenda pessoal e pois sem poder de derrogar o Sábado. Os fariseus<br />

revoltavam-se amargamente contra o Sacerdócio por causa desse desprezo da lei estabelecida por Hillel; mas tinham que<br />

remoer a revolta em virtude de sua impotência diante dos Filhos de Hanan.<br />

Nós, do círculo do rabi Nicodemo, começamos cedo os preparativos do dia. O matzot já havia sido assado na<br />

véspera. Medimos o vinho e moemos e misturamos as ervas para o seder, ou cerimônia festiva da Páscoa: e tudo embora meu<br />

rabi não pretendesse oferecer sacrifício no quinto dia da semana e sim no sexto, a véspera do Sábado, segundo a interpretação<br />

de Hillel. Mas o rabi da Galiléia, ia fazer o sacrifício naquele quinto dia. Os galileus tinham fama de escrupulosos<br />

observadores da Páscoa. Havia entre eles o costume de guardar todo o dia do seder como um dia santo, e durante ele não<br />

faziam trabalho nenhum. E cedo naquele dia Judas, que era o tesoureiro do grupo, foi com Simão ao mercado de carneiros<br />

comprar um cordelinho para o sacrifício da Páscoa.<br />

Logo depois apareceu-nos Hillel, o aguadeiro, com o informe de que o rabi de Nazaré ia comer o sacrifício com<br />

seus discípulos dentro da cidade, de acordo com a lei deduzida da escritura: “Dentro de tuas portas, Jerusalém!” Porque o<br />

Nazareno era cuidadoso no desempenho de todas as prescrições existentes. Mas como não tinha morada em Jerusalém, queria<br />

celebrar o seder no terraço da pobre morada de Hillel, lá na velha muralha de Daví. E Hillel viera ter com Nicodemo para pedir<br />

ajuda nos arranjos e preparativos. Mas tudo tinha de ficar em segredo.<br />

Meu rabi encheu-se de alegria com o ensejo de realizar esse ato de piedade. Tomou a jarra de vinho que meu pai<br />

lhe trouxera de presente e mandou-a por Hillel ao rabi de Nazaré, para que a abençoasse; também proveu Hillel de matzot e<br />

ervas. Rufo e eu fomos encarregados de ir pedir a José de Arimatéia, por empréstimo, pratos e toalhas finas; e de seu próprio<br />

estoque de especiarias – a única posse que o nosso rabi se permitia – separou certa quantidade do precioso d’ror para o<br />

Nazareno.<br />

Levamos a José de Arimatéia a carta de pedido de Nicodemo, e ao mordomo de sua casa José deu ordem para<br />

que mandasse dois criados a Hillel, com lâmpadas, jarras e bacias de lavar as mãos, uma bilha de vinho do melhor, sortimento<br />

de frutas e verduras, uma poltrona para o rabi e tapetes de seda. Coisas para a cerimônia – e como um presente festival para o<br />

rabi, mandou Arimatéia um lenço de delicado tecido. Todas essas coisas foram levadas à casa de Hillel o aguadeiro pelos dois<br />

criados e por mim e Rufo. E lá também ajudamos nos preparativos.<br />

A casa de Hillel, de um só cômodo, não passava duma escavação na antiga muralha de Jerusalém, e o acesso a<br />

esse cômodo único se fazia por uma pequena escada. Era um cômodo comprido e baixo, de paredes formadas pelas próprias<br />

pedras da muralha. A janelinha ali rasgada abria para a Porta da Água, perto do Kidron. Havia lá cama, mesa e fogão de três<br />

pernas. Num dos extremos, estreita escadinha levava a um terraço, rodeado de grade; sobre parte desse terraço havia Hillel<br />

tecido um teto de bambu e do lado em aberto pendurara esteirinhas de palma para abrigo contra o sol. Daquele terraço<br />

podíamos ver os quatro cantos de Jerusalém, sem sermos vistos. Foi lá que fizemos os preparativos para o seder. Penduramos<br />

sobre a grade as caras cortinas de seda e os reposteiros; sob um dossel que armamos num extremo do terraço pusemos a<br />

poltrona do rabi e em torno as esteiras em que se sentarem os discípulos. Depois trouxemos tábuas e as armamos juntas em<br />

forma de mesa, e arrumamos aquela mesa com as belas coisas trazidas. Para os discípulos as taças eram de barro, mas para o<br />

rabi José de Arimateia mandara uma de alabastro. Distribuímos o matzot e as verduras, as ervas e as frutas; e arrumamos as<br />

bacias d’água para a cerimônia da lavagem das mãos. Borrifamos perfumes nas toalhas e pusemos incenso a queimar perto da<br />

poltrona do rabi. Enchemos de precioso óleo as lâmpadas, espevitamos os pavios. Depois eu e Rufo pedimos para servir o rabi<br />

de Nazaré, mas informou-nos Hillel que o desejo do rabi era ficar só com os seus discípulos durante aquele seder. Em vista<br />

disso voltamos para o rabi Nicodemo.<br />

− Cumprimos as tuas ordens, mestre, e ajudamos nos preparativos do seder em casa de Hillel.<br />

− Deus vos abençoe! Respondeu o nosso rabi. Depois acrescentou: Quais dos discípulos estavam lá e quais vos<br />

ajudaram a preparar o terraço? E quem dos vizinhos sabe que está ele celebrando o seder na casa de Hillel o aguadeiro?<br />

− Nenhum dos discípulos de Yeshua estava lá, respondemos, e pois nenhum nos ajudou. Os criados de José de<br />

Arimatéia e nós fizemos todo o serviço, e nenhum vizinho ficou sabendo de nada.<br />

− Tudo deve ser mantido no maior segredo, observou-nos o rabi novamente. Depois disse: “Tenho o coração<br />

pesado. Estou com medo desta Páscoa. Queira Deus corra em paz a festa! Dizei-me: nada mais notastes, a respeito de Judas?”<br />

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5


“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

Contei o que eu tinha ouvido Judas dizer durante a noite, e Nicodemo ficou mais pálido que a vasilha que tinha<br />

nas mãos e na qual moía ervas amargas para o seder.<br />

− Tenho medo de Judas! disse ele. Ninguém sabe que pensamentos lhe andam pela cabeça. Deus se apiede dele...<br />

E depois de uma pausa:<br />

− Ide e segui os passos do Nazareno. Ficai a distância e observai o que lhe acontece a ele e aos seus discípulos, e<br />

tudo vinde contar-me. E se encontrardes Judas, dizei-lhe: “Nosso rabi tem por tua causa o coração pesado, porque tu necessitas<br />

da ajuda do céu”.<br />

O sol já se ia pondo lá dos lados do Mar Grande. Soavam as trombetas de prata do Templo, e em obediência às<br />

posturas sacerdotais relativas aos sacrifícios os judeus subiam para a Cidade Alta com seus carneiros e cabritos a serem<br />

sacrificados no quinto dia da semana à tarde. Entre eles encontramos alguns dos discípulos do rabi de Nazaré. Simão bar Jonas<br />

levava um cabritinho nos braços e vinha acompanhado de Jochanan e Jacó; a pouca distância vimos Judas e outros discípulos,<br />

mas não avistamos o rabi.<br />

Seguimo-los até os pátios, já cheio de israelitas com suas peças sacrificiais. Na maior parte eram galileus,<br />

pressurosos de cumprir o mandamento. Fomos até o décimo quinto degrau, que dá para a entrada Nicanor, e as portas de<br />

bronze do pátio dos israelitas estavam abertas. No topo dos degraus ainda encontramos sacerdotes a tocar as trombetas de<br />

prata, em aviso à cidade de que o sacrifício da Páscoa estava em andamento. Atrás dos sacerdotes estendiam-se fileiras de<br />

levitas. Os peregrinos e portadores de sacrifícios tinham permissão para subir os degraus de dois em dois – dois para cada<br />

família ou grupo; e de dois em dois desciam do outro lado, pelo pátio das mulheres, para realizar o sacrifício. Do pátio das<br />

mulheres todos podiam presenciar o que se passava nos degraus, porque a porta Nicanor estava aberta, deixando ver o grande<br />

fogo no altar, no pátio dos sacerdotes, diante do Santuário. Duas compridas fileiras de sacerdotes vestidos de branco,<br />

estiravam-se do altar ao pátio de Israel; traziam nas mãos os copos de ouro de boca larga, que passavam de um para outro até o<br />

sacerdote junto ao israelita que sacrificava. Este punha o cabritinho no bloco de pedra perfurado para que o sangue fosse ter<br />

aos canais subterrâneos do Templo. O sacerdote recolhia no copo uma gota de sangue, passava-o adiante e lá ia o copo de mão<br />

em mão até o sacerdote de pé diante do altar; este espargia o sangue no altar e entregava o copo ao sacerdote do outro lado para<br />

que o fizesse voltar ao ponto do sacrifício.<br />

Sobre os três degraus que levavam do pátio de Israel ao pátio dos sacerdotes ficavam os levitas, com suas harpas,<br />

adufes e flautas; e à medida que os sacerdotes espargiam o sangue no altar, eles tocavam os seus instrumentos e cantavam<br />

palavras de louvor ao Onipotente.<br />

Dos discípulos do rabi só dois subiram os degraus, Simão bar Jonas, carregando o cabritinho, e Jochanan<br />

Zebedeu, o qual trazia a faca de matar. Os outros ficaram com o povo no grande pátio das mulheres. Mas quando ouviram o<br />

canto do “Hallelujah, louvai o Senhor, louvai-O, louvai o nome do Senhor”. E outros respondiam: “Louvado seja o nome do<br />

Senhor hoje e sempre”.<br />

Breve Simão e Jochanan desceram do pátio, este a carregar aos ombros o cabrito morto e embrulhado num<br />

lençol. Juntaram-se aos demais discípulos e deixaram a área do Templo, seguidos a distância por mim e Rufo. Simão e<br />

Jochanan, que iam na frente, tomaram rumo do mercado, e pelo seu modo hesitante vi que não sabiam o caminho ou talvez<br />

esperassem alguém. E foi assim até que entraram em via conhecida – os estreitos degraus conducentes à Cidade Baixa. Lá em<br />

baixo encontraram a pessoa esperada, que era Hillel o aguadeiro. Logo que Hillel os percebeu, fez-lhe sinal e eles o seguiram;<br />

mas não foram juntos, sim esparsos, de modo a não serem notados. Levou-os Hillel à sua covanca na muralha de Daví. Logo<br />

depois, Rufo e eu, de pé ali fora, vimos sair fumo do terraço; os discípulos estavam assando o cabrito no fogão de três pernas.<br />

O dia chegara ao fim, com o sol desaparecido na direção do Mar Grande; só os topos das montanhas da Judéia<br />

captavam os seus últimos raios. As sombras se iam tornando mais pesadas; era a hora em que o dia se funde com a noite. E foi<br />

então que vimos aproximar-se o rabi da Galiléia em companhia de Jacó Zebedeu. Sua veste não estava simplesmente branca,<br />

mas irradiante. Imóvel permaneceu por um momento, e de encontro ao fundo dos topos avermelhados do Moab pareceu-me<br />

uma névoa de luz. Rosto pálido mas sereno, como se todas as angustiantes questões do seu coração houvessem obtido resposta.<br />

E aquela paz era velada duma tristeza quieta, não tristeza de sofrimento ou dor, mas de plenitude – tristeza que é uma espécie<br />

de alegria. O rabi da Galiléia deu-me naquele momento a sensação de que estava profundamente em paz e preparando para o<br />

rito do dia. Tinha os cabelos penteados e repartidos na testa, gotejantes de água, como se naquele instante ele houvesse<br />

emergido do batismo. E as gotas desciam-lhe pela barba já grisalha. Trazia a veste comprida dos sábios, a lhe cobrir os pés,<br />

com as franjas rituais pendentes. Quando o vimos a avançar de encontro ao fundo flamante das montanhas, um tremor nos<br />

colheu, como se um raio da sua veste irradiante nos houvesse iluminado. O medo nos coseu à muralha. Sentíamo-nos mudos.<br />

Olhávamos apenas; nisto Hillel o aguadeiro apareceu à porta de sua casa, curvou-se para o rabi e disse:<br />

− Abençoado seja quem vem em nome do Senhor.<br />

E o rabi respondeu: “Bênção a ti em nome do Senhor”.<br />

Hillel ajudou-o a subir a escadinha mas não entrou, ficou de fora, porque o rabi dissera querer celebrar o seder<br />

na só companhia de seus discípulos; e ninguém mais, além deles, entrou na casa de Hillel. No momento em que o rabi entrou<br />

as trombetas de prata do Templo anunciaram que o primeiro quarto da noite havia começado. Só então, depois de haver o rabi<br />

desaparecido dentro da casa de Hillel, é que eu e Rufo recobramos a fala. E Rufo disse:<br />

− Um anjo do céu desceu para realizar o rito. Foi a sensação que tive quando ele aproximou.<br />

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Eu respondi:<br />

− Tens razão, amigo. Tivemos hoje a honra de ver face a face um anjo do Senhor. Fiquemos aqui, atentos, como<br />

o nosso rabi nos recomendou. Talvez venhamos a ser testemunhas de grandes coisas que Deus pretenda realizar esta noite.<br />

− Que grandes coisas? perguntou Rufo.<br />

− Pode ser que Judas esteja certo. Talvez esta noite o céu se abra e desçam as hostes celestiais – e os patriarcas,<br />

as mães, os profetas, Moisés, Jeremias, todos eles!<br />

− Jochanan! Jochanan! Oh! Gritou Rufo subitamente.<br />

Estava trêmulo de terror.<br />

− Rufo, meu irmão, que há?<br />

− Vês aquela luz no céu? É a luz da criação, a luz que Deus guardou oculta desde o começo. Olha, está a brilhar<br />

em cima de nós!<br />

Olhei e vi que realmente era como se uma nova luz houvesse irrompido no céu. A lua, muito clara, diluía as<br />

estrelas. Emergira solitária no meio dum rolo de nuvens negras debruadas de branco. Todo céu era um azul brilhante, como se<br />

atrás do firmamento ardessem sois ocultos, para iluminar o mundo duma luz jamais vista. A glória caia sobre as velhas pedras<br />

da muralha de Daví e Salomão naquele momento recamadas de prata, como se os reais mantos dos dois grandes reis as<br />

cobrissem; e das dobras desses argênteos mantos, caras espiavam, brancas, rostos com barbas patriarcais e olhos de brilho<br />

próprio. E Rufo exclamou, aterrorizado:<br />

− Vejo gente! Os antepassados em mantos de prata acodem em caravana! Preciosos estofos arreiam os camelos.<br />

Vejo barbas... Vejo... Vejo...<br />

− Onde? Exclamei batendo na mão de Rufo, que senti em fogo.<br />

− Lá! Para além das velhas muralhas. Não vês suas roupagens agitando-se na noite?<br />

− É a luz da lua que cai sobre velhos pedrouços. É a muralha da fortaleza imersa no luar.<br />

− Não! Vejo os patriarcas que vêm pelo Hebron montados em camelos. São os profetas, os reis, todas as<br />

gerações que esperam pela ressurreição. Estão-se reunindo e voltando.<br />

− Rufo! Rufo! Isso é delírio. Desperta, Rufo. Não há mais que a noite e a lua no céu.<br />

Nesse momento ouvi uma voz. Vinha do terraço, onde estavam acesas as lâmpadas. Voz forte e clara, de tom<br />

devoto, pronunciando a bênção da festa.<br />

− O rabi lança a bênção sobre um copo de vinho! Explicou Hillel, aproximando-se de nós e pondo fim ao sonho<br />

do meu amigo.<br />

− Sim, é o rabi que dedica a festa – e nós fechamos a bênção com o nosso Amem.<br />

Não sei o que se passou naquela noite, lá no terraço de Hillel, entre o rabi e seus discípulos. Ninguém mais além<br />

deles fora admitido – nenhum dos pobres, nenhuma das mulheres. Mas correram várias histórias. Segundo alguns dos<br />

discípulos, o rabi lhes concedera os mais altos poderes e autoridade, e a eles se ligara em uma Nova Aliança. Diziam também<br />

que a confirmação da Aliança ia ser por meio da carne e do sangue do rabi: isto ouvi muito mais tarde de meu amigo Rufo,<br />

depois que se juntou aos messianistas. Também corria que o rabi revelara naquela noite, certas coisas relativas aos dias<br />

próximos, coisas que não tenho o direito de repetir, não estando dentro da Aliança. Mas quando estávamos ali no escuro com<br />

Hillel, só ouvimos a bênção da festa e depois o canto dos salmos, de uso na celebração do seder. Súbito, uma figura agitada e<br />

tonta: Judas a esgueirar-se para fora: e falava consigo mesmo, como tomado de um mau espírito. Passou perto de nós e olhounos<br />

com olhos vermelhos e inchados como nunca víramos antes.<br />

− Quem sois vós? Perguntou ao ver-nos.<br />

− Discípulos do rabi Nicodemo, foi a nossa tímida resposta, o qual te manda um recado: que teme por ti, Judas,<br />

porque tu necessitas do socorro do céu.<br />

Mas Judas nos olhava como se nada houvesse ouvido ou compreendido. Falava sozinho e repetia:<br />

− O que tens a fazer, fazei-o rapidamente... o que tens a fazer fazei-o rapidamente...<br />

Depois cobriu a cabeça até os olhos com a ponta do manto e afastou-se. Sua sombra estampada na muralha<br />

seguiu-o – e como Judas, aquela sombra ia acurvada e a murmurar em eco suas palavras:<br />

− O que tens a fazer, fazei-o rapidamente.<br />

E Judas e sua sombra desapareceram numa curva.<br />

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21<br />

Depois de algum tempo o rabi e seus discípulos vieram para fora. O rabi estava de branco e tinha na mão o lenço<br />

que José de Arimateia lhe mandara de presente; de quando em quando enxugava o suor do rosto. Porque o que lá se passara<br />

com os discípulos lhe consumira as forças e destruíra a paz de seu rosto. Estava agora sombrio e cansado. Já não era como um<br />

pilar de luz, como quando viera, mas caminhava de cabeça baixa e apoiado ao seu discípulo Jacó. Nada mais claro que o<br />

serviço do seder o esgotara.<br />

Os discípulos apareceram em seguida, pesados da refeição e do vinho. Diziam versos dos salmos, com os olhos<br />

pesados de sono. O rabi, à parte, suspirou profundamente. Eu e Rufo acompanhamo-lo de perto, cheios de curiosidade, sem<br />

saber por que o rabi se destacava assim de seus discípulos, nem o que houvera lá no terraço. Em muitas casas a celebração<br />

ainda prosseguia, porque grande era o número das pessoas que tinham escolhido aquele dia para o seder. Luzes brilhavam das<br />

janelas e portas e a toada dos salmos boiava no ar. A espaços detinha-se o rabi e olhava para dentro das casas, o que lhe<br />

aliviava o espírito, talvez por efeito da música dos felizes celebrantes. E as sombras lhe desapareciam do rosto, quando<br />

levantava as mãos e abençoava as mesas daquela gente. Por todo o vale do Kidron lâmpadas brilhavam nas casas e barracas.<br />

Era como se Israel inteira houvesse voltado a seu Deus, vinda de todos os recantos do mundo para o monte de Sião.<br />

pobres.<br />

− Que formosas são tuas tendas, ó Jacó, que belos os teus tabernáculos, ó Israel e ele abençoava as barracas dos<br />

Duma saiu pulando e cantando um grupo de crianças – e a elas se foi o rabi e amimou uma no rosto, e ergueu<br />

outra ao colo, e apôs a mão sobre a cabeça de outra, abençoando-a. E assim semeava a bênção entre os pobres; e os discípulos<br />

viram que com ele estava o espírito e rejubilaram-se.<br />

Quando chegamos aos altos do Monte das Oliveiras o rabi não tomou pela estreita passagem entre as pedras que<br />

levava a Bet Paga, como sempre fazia, mas voltou à direita, rumo à parte cultivada do monte. Cruzou os ciprestes que se<br />

erguiam nos jardins dos ricos, imóveis e negros ali ao luar. E como fizera no vale, foi entreparando diante das casas e espiando<br />

nos jardins; e erguia as mãos e seus lábios moviam-se, como se abençoasse.<br />

Entre os seus discípulos talvez só Simão bar Jonas não ignorasse o que se passava do íntimo do rabi, pois que o<br />

acompanhava de perto e amorosamente pegava-lhe na roupa, como para comunicar-lhe força. Estavam naquele momento<br />

passando pela casa dos Filhos de Hanan, com fiscais sentados diante das portas. O rabi voltou-se para Simão e disse:<br />

− Todos vós esta noite sereis postos à prova e falhareis. Porque está escrito: “Ferirei o pastor e as ovelhas se<br />

dispersarão”.<br />

Ouvindo estas palavras, Simão exclamou – e eu vi sua cabeçorra dominando na noite:<br />

− Ainda que todos te traiam, não te trairei eu. Pronto estou para ir contigo à masmorra e mesmo à morte – e isto<br />

ouvindo, os outros acorreram para o rabi, um por um, e disseram:<br />

− Eu também, rabi.<br />

Mas o rabi respondeu a Simão, tristemente:<br />

− Simão, eu digo amem. Mas esta noite, antes que o galo cante três vezes, tu me negarás três vezes.<br />

Simão bateu no peito com o punho fechado e repetiu:<br />

− Ainda que o tenha de pagar com a vida, não te negarei – e os outros repetiram as mesmas palavras.<br />

A passos lentos e tristes, como se se estivesse aproximando do serviço sagrado, o rabi tomou pela estreita<br />

passagem que conduzia ao jardim dos moedores de óleo. Lado a lado erguiam-se em linha, negros ciprestes. O rabi passou pela<br />

sombra azul que a lua punha naquela senda. Atrás vinham os discípulos, murmurando entre si. A aléia de ciprestes levava a um<br />

cerrado de oliveiras em redor do jardim. Sob a cinérea luz da lua as oliveiras assumiam uma estranha cor de prata,<br />

misticamente entretecida à entrada do jardim; e através daquela teia, ramos erguiam-se para o céu, como mãos em prece.<br />

Quando o rabi penetrou no jardim de Gat Shemen ouvimos ao longe o eco das trombetas do Templo anunciando<br />

o começo de segundo quarto e a mudança da guarda.<br />

Em contraste com a quietação de fora havia um tumulto de vida naquele jardim. Era como se as torrentes de luar<br />

descidas do céu estimulassem a nova frutificação daquelas massas de verdura – e nós estávamos ali como testemunhas do<br />

segredo da criação. Um cheiro pesado, como o do vinho, nos penetrava a carne, os ossos e o sangue, e fazia pressão em nossas<br />

pálpebras. Quando os discípulos sentiram a macieza da relva sob os pés, quando emergiram nas ondas de perfumes boiantes,<br />

um como torpor começou a invadi-los. Foi o que sucedeu com os que ficaram fora, à beira do jardim, e também com Simão e<br />

os Zebedeus, que estavam de guarda ao rabi. Todos lutavam com o sono, porque naquela jardim tudo era o oposto da morte – o<br />

oposto daquele medo e daquela inquietação que haviam oprimido o coração do rabi. E se ali algo se mostrava inquieto, era a<br />

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criação e o movimento da vida. Um murmúrio de insetos, acordados pela luz, encheu o ar; havia um entrelaçamento de cores e<br />

luzes entre os raios do luar e os verdes negros das moitas, tudo acompanhado da irradiação dos aromas e do canto da criação.<br />

Acima desse canto da criação ergueu-se a voz do rabi chamando os discípulos amados – o som de sua voz<br />

denunciava mágoa e medo.<br />

− Minha alma está opressa como em morte! Sentai-vos aqui e vigiai.<br />

E o rabi deixou-os e desapareceu nos espessos do jardim. Lá, no âmago do segredo da criação, ajoelhou-se.<br />

Vimo-lo baixar a cabeça para a terra a ponto de tocar as plantinhas com os lábios. E abria os braços como se quisesse abarcar o<br />

mundo; como se quisesse comprimir toda a criação de encontro ao peito; e era também como se se estivesse agarrando com<br />

toda força à vida. E assim permaneceu por algum tempo.<br />

Meu amigo Rufo, que dele ousara aproximar-se, ouviu as palavras de sua oração: Pai do céu, tem misericórdia de<br />

Tua criação e põe-na sob a Tua piedade. Que belo o Teu mundo, que grandes os Teus feitos! Vê, Deus, o abotoar das coisas em<br />

seu anseio de vida. E tenho de mergulhar na sombra da morte? Se é possível, afasta de mim essa hora. Tudo te é possível a Ti,<br />

Pai”.<br />

Em seguida ergueu-se e aproximou-se de Simão e dos Zebedeus, aos quais encontrou dormindo.<br />

− Dormes, Simão? Não podes permanecer acordado neste momento? Desperta e ora para que não sejas tentado e<br />

falhes. O espírito é forte, mas a carne é fraca.<br />

E retirando-se novamente para o espesso do jardim, caiu de joelhos e orou:<br />

− Pai, Pai, eles são o campo em que semeei minhas sementes. São a leiva onde vão germinar os grãos que lancei.<br />

Se o campo for aniquilado, de que terá valido minha semeadura? Perdidas estarão as minhas sementes. Pai, Pai, eles são tudo<br />

quanto tenho. Neles plantei minha palavra. Guarda minha planta. Vê, Pai do céu; não deixes que minha vida haja sido vã, salva<br />

o meu trabalho.<br />

Conclusa a oração, pela segunda vez o rabi levantou-se e se veio aos discípulos amados. Encontrou Simão de<br />

cabeça caída sobre o alentado peito de Jochanan, em cujo colo também repousava a de Jacó; Todos três dormiam<br />

profundamente, ébrios pelos odores do jardim.<br />

irmãos.<br />

Yeshua chamou-os:<br />

− Simão, Simão, a meu Pai do céu pedi que tua fé não fosse destruída. Quando te arrependeres, fortalece teus<br />

Simão respondeu com os olhos ainda pesados de sono:<br />

− Rabi, rabi, ainda que tenha de ir contigo à masmorra ou à morte... e caiu de novo no sono.<br />

Mais uma vez o rabi deles se afastou e ajoelhou-se na sombra do jardim; e por longo tempo ouvimos o murmúrio<br />

de sua prece. Sua voz dizia:<br />

− Rodeado estou das angústias da morte. Chamo pelo nome de Deus. A ti peço, Deus: salva minha alma! Pai,<br />

Pai, afasta de meus lábios a taça – mas se o quiseres, não porque eu o queira. E depois de breve pausa exclamou: Sim, embora<br />

eu caminhe no vale das sombras da morte, não temo nenhum mal porque Tu estás comigo.<br />

Em seguida levantou-se pela terceira vez e se foi a Simão, Jochanan e Jacó, que pela terceira vez encontrou<br />

dormindo pesadamente. Disse-lhes então:<br />

− Dormi e repousai. Basta. A hora chegou.<br />

Eu e Rufo olhamo-lo e não vimos mais o anjo do Senhor que viera ao seder, mas um homem de carne e sangue.<br />

O terror da morte pairava em seus olhos. A luz do luar dava ao seu rosto um tom cinéreo... Todo seu corpo tremia e grandes<br />

gotas de suor, como gotas de sangue, desciam-lhe pelos cabelos e a barba.<br />

Ficamos ali a distância a ver, estarrecidos, até que Rufo tombou em meus braços. Lágrimas lhe brotavam dos<br />

olhos, e foi entre soluços que ele me sussurrou:<br />

− Será este o anjo do céu que vimos chegar para a festa? Este o Profeta de Nazaré de quem se espera a redenção?<br />

Vê... Ele treme, está tomado de terror...<br />

Eu respondi noutro sussurro:<br />

− Há pouco tempo, em Bet Eini, ouvi Judas comunicar a Simão o Zelote o segredo do Filho do Homem: para que<br />

conhecesse e compreendesse todos que vem salvar, recebeu ele de Deus a natureza do homem, que é de carne e sangue. E<br />

como está com essa natureza, o Filho do Homem deseja viver, conhecer a significação da dor e sente o terror da morte ainda<br />

mais que qualquer homem comum.<br />

− Mas por que mostra tanto medo? Bem sabe que Deus está com ele. E também com ele estão o poder e a<br />

autoridade e portanto o triunfo.<br />

− Sim, mas quando as angústias do terror o assaltam ele é como qualquer criatura comum.<br />

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− Mas que é que teme?<br />

− Ignoro. Ele vê qualquer coisa que nós não vemos, algo que vai acontecer.<br />

− Mas que pode acontecer?<br />

− Não sei. Escuta...<br />

Sons de passos a distância nos interromperam, passos em marcha cadenciada que se vinham aproximando, de<br />

mistura com tinir de armas. Ficamos de respiração suspensa, à espera.<br />

− A hora chegou. O Filho do Homem vai ser entregue. Levanta-te, vamos. Aproxima-se de nós aquele que me<br />

traiu, disse o rabi.<br />

Simão pôs-se em pé de salto e sacudiu fora de si o sono; Jochanan e Jacó despertaram. Puseram-se em redor do<br />

rabi. Vi Simão com uma espada em punho.<br />

Os discípulos que tinham ficado na entrada do jardim vieram correndo, ainda estremunhados. Deviam ter sido<br />

despertos pela aproximação de estranhos – e lá vinham esses estranhos com tochas a lhes alumiar os rostos barbeados e<br />

barbados. As armaduras davam reflexos àquela luz. Suas armas retiniam. À frente do grupo vimos Judas, a mancar dum pé,<br />

apressado, olhando dum lado e doutro como quem procura alguém; seu manto negro vinha arrastando. Ao dar com o rabi,<br />

Judas adiantou-se para ele com os braços abertos.<br />

− Rabi! Rabi! E caindo nos braços de Yeshua, beijou-o na face.<br />

Aqueles homens armados ficaram a distância, espadas e bastões em punho, as armaduras cintilantes. Ficaram a<br />

distância como que tomados de medo de Deus, e não ousavam aproximar-se do rabi. Em vão Judas agitava-se e olhava-os<br />

depois do beijo; aqueles homens mantinham-se imóveis, de braços pendidos, como se lhes fora tirado todo o vigor. Nesse<br />

momento vi nos olhos de Judas um grande brilho de triunfo – o mesmo triunfo que vi nos olhos de outros discípulos. Os<br />

corações começaram a palpitar tumultuosamente em ondas de expectação, subindo das profundas do terror aos mais altos<br />

cimos da esperança – e em todos os lábios nós líamos as palavras não formuladas: “Eles não se atreverão!”<br />

O rabi falou em voz alta, pois toda a sua energia já tinha voltado.<br />

A quem procurais?<br />

− A Yeshua de Nazaré.<br />

− Sou eu, foi a resposta do rabi.<br />

Nossos corações pararam de palpitar, na ânsia da expectação. Que iria acontecer? Ousariam aqueles homens pôr<br />

as mãos no rabi? Não, não! Jamais! Mão mais forte os detinha – a mão de Deus. As asas de Deus se interpunham.<br />

Um grito de triunfo ansiava por sair de dentro de nós, mas não conseguíamos abrir a boca. Um minuto mais e os<br />

céus se rasgariam. Nós como que já ouvíamos o som da marcha das hostes celestes.<br />

recuou.<br />

− A quem procurais? Repetiu o rabi.<br />

− A Yeshua de Nazaré, responderam os homens armados, com voz menos firme.<br />

− Já disse que sou eu.<br />

Um dos homens então ousou aproximar-se – e uma lâmina cintilou no ar. Um grito de dor e o grupo armado<br />

− Um servo do Sumo Sacerdote foi ferido!<br />

− Simão, embainha tua espada. Quem com a espada fere, com a espada será ferido, disse o rabi.<br />

E o rabi se foi para o homem golpeado na orelha e atou-a com aquele lenço que José de Arimatéia lhe havia<br />

dado, depois de faze-lo em tiras. E estava nisso quando o comandante da força, um tribuno romano, aproximou-se. Parece que<br />

até aquele instante ele havia esperado que os servos do Sumo Sacerdote prendessem o rabi. Vendo que estavam com medo e<br />

não ousavam aborda-lo, o romano avançou. Claramente vi esse homem; a luz da lua batia-lhe em cheio no rosto – rosto duro,<br />

nariz comprido, olhos cinzentos, gelados, cruéis. Com a larga espada em punho, pousou a mão livre sobre o ombro do rabi e<br />

disse:<br />

− De que tendes medo, homens? E para Yeshua: Estás preso.<br />

Nossa certeza era absoluta, de que a mão do tribuno sobre o ombro de Yeshua ia desaparecer devorada pelo<br />

fogo. Estávamos certos de que todo ele ia ser transformado em cinza e pó, e também era essa a crença dos homens que<br />

acompanhavam o tribuno. Um grito de salvação e alegria estava prestes a escapar-se de todos nós – mas os instantes se<br />

passavam e nada acontecia para o tribuno: sua espada manopla detinha o rabi e seus homens logo o rodearam, com as espadas<br />

e bastões em punho.<br />

− Desgraça!<br />

Mas o rabi ergueu a voz:<br />

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− Por que viestes a mim como a um salteador, assim com espadas e bastões? Diariamente estava eu em vosso<br />

meio no Templo onde ensinava e não me prendestes. A verdade é que assim viestes unicamente para que a Escritura se<br />

cumprisse.<br />

Eles não o deixaram falar por mais tempo; interromperam-no dizendo:<br />

− As explicações são lá com o Sumo Sacerdote, e ataram-lhe os pulsos.<br />

− Desgraçados de nós!<br />

Em instantes todos os que estavam com o rabi – todos sem falta de um – os discípulos mais amados e os demais,<br />

todos dali fugiram, só interessados em salvar a pele. Evaporaram-se! Simão bar Jonas e Jochanan e Jacó e Simão o Zelote e<br />

André e Felipe. Esgueiraram-se como sombras largando o rabi nas mãos de seus inimigos.<br />

E o rabi deixou que seus inimigos o tratassem como lhes aprove. Amarram-lhe as mãos às costas sem que ele<br />

nada dissesse, apenas deu com os lábios uma demonstração de dor. Seus olhos olhavam com infinita piedade para aqueles que<br />

o prendiam – piedade de si mesmo ou deles?<br />

E de lá o levaram. Ia o rabi de cabeça baixa, no meio do grupo. Suas vestes brancas, banhadas da luz do luar,<br />

destacavam-se entre os soldados romanos; e a melancólica tranqüilidade de seu rosto também transparecia em suas vestes.<br />

Em dado momento o rabi percebeu Simão bar Jonas agachado num campo onde se ocultara e de onde, a<br />

distância, seguia o grupo de soldados que levava o rabi ao Sumo Sacerdote.<br />

Eu e Rufo corremos para a cidade com aquelas notícias para o nosso rabi Nicodemo.<br />

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Uma voz clamou:<br />

− Jochanan! Não reconhece o Hegemon?<br />

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22<br />

Despertei violentamente, olhei e vi diante de mim a cara que eu havia visto naquela noite: o mesmo nariz<br />

aquilino, as mesmas feições, com a só diferença das rugas e o mais da velhice. Aqueles olhos velados de uma névoa eu os<br />

sentia fixos em mim. Em vez do peito poderoso que apojava o corsolete de aço, uma pele enrugada como de ganso depenado.<br />

Senti-me como arremetido das nuvens para a terra; estava novamente em Varsóvia, no triste e escuro apartamento de Pan<br />

Viadomsky.<br />

Devo neste ponto recordar que quando com sua magia Pan Viadomsky me despertou para o meu remoto<br />

passado em outra vida, concordamos em que eu poria por escrito minhas recordações daqueles acontecimentos na Judéia, de<br />

modo a compararmos e completarmos as nossas experiências. Também decidimos publicar num volume este nosso fundo<br />

comum de memórias, para que nossos contemporâneos tivessem uma clara representação da tragédia de Yeshua. Durante o dia<br />

eu ficava em casa lançando no papel tudo quanto me lembrava; à tarde ia ter com Viadomsky para ler-lhe o escrito. E até este<br />

ponto ele me ouvira sem uma só interrupção e sem fazer nenhuma observação. Mas quando cheguei ao incidente do jardim de<br />

Gat Shemen, Viadomsky de súbito interrompeu-me com a pergunta que abre este capítulo.<br />

Sim, eu o reconhecia: o mesmo rosto, o mesmo homem, exceto que agora o seu torturado físico dizia das paixões<br />

e experiências de dezenas de gerações – amargor e alegria e vingança. Declarava-se nele o peso de mil anos.<br />

− Sim, reconheço-o, Hegemon. Foi então o primeiro a agarrar o rabi de Nazaré naquela noite de lua, no jardim<br />

de Gat Shemen?<br />

− Sou o homem que pôs a mão sobre o ombro do vosso rabi, quando os aterrorizados servos do Sumo Sacerdote<br />

esperavam que se o tocassem o fogo do céu os consumiria.<br />

− E foi quem o conduziu ao pátio do Sumo Sacerdote, depois que todos nós fugimos?<br />

− Sim, quando vocês fugiram, eu o conduzi ao Sumo Sacerdote.<br />

− Eu só reapareci mais tarde, na reunião do Sanhedrim na casa do Sumo Sacerdote Kaifa, com o rabi presente,<br />

disse eu. Quer dizer-me o que sucedeu no primeiro interrogatório no pátio dos Hanans? Duas outras perguntas tenho ainda a<br />

fazer, Hegemon, e peço que seja muito claro nas respostas, pois que grandemente interessam como um verdadeiro enigma para<br />

o mundo. Primeiro: quais as palavras que ouviu do rabi de Nazaré quando o prendeu? Segundo: por que permitia que sem<br />

molestação ele pregasse no pátios do Templo? Por que esperou tanto tempo para prende-lo? E de que maneira foram vocês<br />

abordados por aquele discípulo do rabi, Judas Ish-Kiriot?<br />

− São de fáceis respostas essas perguntas. O fato é que os apavorados judeusinhos não ousavam pôr a mão no<br />

rabi, e tendo base para crer que mesmo aquele astuto velho Hanan estava tomado de terror, e admitia que o rabi fosse um anjo<br />

do céu. O medo de todos era enorme, antes de vê-lo preso; e mesmo depois do rabi preso e já na casa de Hanan, ainda o<br />

temiam. A verdade é que os Sumos Sacerdotes me deram muita inquietação por causa desse rabi, sobretudo depois que vocês o<br />

proclamaram rei dos judeus e o trouxeram processionalmente para Jerusalém. A conduta de vocês naquela época foi em<br />

extremo insolente e provocante, e eu sugeri ao Sumo Sacerdote a imediata prisão do homem de Nazaré. Você referiu-se ao<br />

choque entre aquela procissão e a nossa. Vou contar o que houve. O Procurador estava ansioso de assistir no anfiteatro à luta<br />

dentre os Filhos de Hanan e uns visitantes vindos da Fenícia, e mandou saber de mim se as ruas de Jerusalém estavam calmas e<br />

se podia trafegar por elas em liteira, com sua esposa Claudia. Tomei a responsabilidade de tudo e respondi que sim.<br />

Eu mesmo conduzi Pilatos e a esposa naquele dia. Quando saímos da rua Herodes, perto das torres, vimos a<br />

procissão que vinha ao nosso encontro; tanta era a grita, e as palmas e os cantos e o agitar de ramos de oliveira, que me senti<br />

inquieto. Pilatos mandou chamar-me; pôs a cabeça fora da liteira e perguntou o que havia. Respondi que nada de importância<br />

ou de perigoso; apenas uns judeus que conduziam o seu rabi ao Templo. Mas apesar disso, por segurança, mandei que os<br />

guardas da frente jogassem com a tal procissão para a estreita rua Sictus. O vosso rabi, entretanto, me antecipou – e agora<br />

posso dizer que se não fosse assim, se ele não tivesse feito a sua procissão entrar por aquela rua, a festa teria degenerado em<br />

tragédia, por que nossos homens já estavam com as espadas fora da bainha. Pilatos e Claudia espiaram da liteira e viram o rabi<br />

montado no asno – e nunca se riram tanto. Mas Claudia me pareceu com medo – e a razão darei mais tarde. Vendo a risada de<br />

Pilatos, todos em seu redor riram-se também – e foi um alvoroço. Pilatos ria-se de ficar com as veias do pescoço saltadas. E<br />

muita sorte tiveram vocês, judeus, de que aquela procissão nos parecesse simplesmente uma farsa. Mais tarde, quando vim a<br />

saber o que estavam cantando e que frases diziam, tomei a coisa muito mais a sério. O rabi de Nazaré não me pareceu o<br />

inocente cordeiro que vocês nos queriam fazer crer, e firmei-me que ali havia mais do que parecia. Mas não incomodei Pilatos<br />

com as minhas suspeitas; limitei-me a ir na mesma noite à casa do Sumo Sacerdote e a pedir a prisão do galileu rebelde. Falei<br />

claro.<br />

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− Palavras assim deflagram a rebelião, disse eu. Todos vós as ouvistes, porque eles não falavam baixo. Diziamno<br />

o ungido de Deus. Saudavam-no como o Rei na linha de Daví.<br />

Kaifa assumiu ares fleumáticos. “Todos os anos”, disse ele, “nossos judeus proclamam um novo Rei-Messias e<br />

nenhum mal tem vindo disso; o governo romano permanece de pé e a autoridade de Herodes não diminui de um cabelo. Eles<br />

que se divirtam.”<br />

− Divertimentos como esse, insisti, em tempos perturbados como os de hoje, sobretudo quando a cidade está<br />

cheia de galileus exaltados, podem tornar-se muito perigosos. Peço que a guarda do Templo seja instruída para prende-lo,<br />

assim que reapareça por lá. O bom senso manda que o tenhamos em reclusão durante a festa; medida preventiva apenas.<br />

− Justamente como medida preventiva temos de deixa-lo livre durante as festas, retrucou o mais moço dos filhos<br />

de Hanan. O homem é popularíssimo entre as massas pobres da Cidade Baixa e os galileus são muito unidos. Prende-lo no<br />

Templo é pela certa provocar tumulto. Depois da festa, quando os peregrinos se houverem retirado, então, sim, podemos justar<br />

contas com ele.<br />

Eliezer, o filho mais velho, também deu opinião.<br />

− O homem de nenhum modo é perigoso; ao contrário, nos é extremamente útil. Aquieta as massas com suas<br />

belas histórias e conjura-as a não praticarem o mal. Na realidade ele as incita a pagar o mal com o bem e a conduzir com<br />

paciência a carga da vida. A única recompensa por ele oferecida está no mundo futuro – parte no reino de Deus e garantia da<br />

ressurreição. Nós, do nosso lado, não reconhecemos o direito ao reino de Deus. Não fizemos promessa nenhuma. Quando<br />

vierem cobrar o rabi é que serão elas, e se ele não puder cumprir o prometido, tanto pior para ele mesmo. Enquanto isso, lá vai<br />

conservando o povo em paz na canga. O perigo do momento, segundo estou informado, está em Bar Abba; esse, sim, prega<br />

abertamente a rebelião contra o Sumo Sacerdócio e o Governo. Esse é o homem que devemos prender.<br />

− Concordo in totum com meu irmão, disse o Administrador do Templo, cofiando a barba.<br />

Neste ponto do debate o velho Hanan entrou e todos nos pusemos de pé. Ao saber do que discutíamos e do meu<br />

pedido de prisão preventiva, rompeu em risadas muito semelhantes às de Pilatos com a procissão. E repetiu o que Hanan o<br />

moço dissera:<br />

− Todos os anos, sem falha, temos um Messias que entra em Jerusalém em lombo de jumento. E nada mais<br />

simples do que realmente transforma-lo em Messias de verdade: basta prende-lo. Mas se o deixamos em paz, o Messias<br />

fracassa, ainda que rebente os pulmões em promessas do sol, da lua e das estrelas. E, por falar: temos fontes de informações<br />

seguras sobre esse homem, e por elas sabemos que longe de ser perigoso nos é utilíssimo. Bar Abba, sim; desse temos de nos<br />

livrar antes que promova algum levante. Meus homens já lhe andam na pegada.<br />

E assim continuaram eles, fazendo do rabi de Nazaré a verdadeira personalização da inofensibilidade.<br />

Mas tudo se tornou muito diferente no dia seguinte, quando o rabi provocou aquela desordem nos pátios do<br />

Templo, expulsou os vendilhões, revirou as mesas dos cambistas. Não houve então apenas perda de dinheiro, mas de prestígio.<br />

A audácia daquilo! As palavras que lhes lançou ele! “Ninho de ladrões” e que sei eu! E o regalo do povo, e até mesmo dos<br />

fariseus... Sim, porque o homem tinha começado – e onde iria parar? Os Hanans sentiram tremer-se-lhes aos pés as bases da<br />

instituição de que viviam – e juntaram-se em conselho. Mas o notável foi que com seu ato já o homem de Nazaré, havia ganho<br />

enormemente aos olhos daqueles potentados. Cessara de ser o inocente e um tanto risível cordeiro – e o tom com que o<br />

tratavam mudou completamente. Sobreveio o respeito e o medo. Sim, puro medo. Eu não posso compreender o que havia no<br />

espírito do homem para despertar medo. Mas afirmo que mesmo os mais altos, mesmo os sumos chefes do sacerdócio, falavam<br />

do homem de Nazaré em voz baixa e com ar preocupado – ar de que não estavam lidando com um homem simples da Galiléia,<br />

mas com um gigantesco poder místico. Tenho elementos para crer que eles estavam com mais medo do homem de Nazaré, do<br />

que da autoridade romana. A única explicação é que o espírito asiático desses homens tinha sido afetado – e a fantasia se<br />

pusera a trabalhar. Vi homens dos mais fortes serem tomados de acessos de remorso, ou atormentados pela consciência, ou em<br />

estado de excitação mental, desses que fazem de todas as possibilidades sobrenaturais uma realidade positiva – experiências de<br />

todo alheias e nós romanos. E no caso do homem de Nazaré eles acreditavam no que ele dizia e fazia e tinham-no como<br />

mensageiro de um poder mais alto; criam que atrás dele estavam legiões de demônios que a qualquer momento ele era capaz de<br />

conjurar. E se não fosse assim – argumentavam – como poderia ter ousado agir como agira no Templo?<br />

Como vou interpretar os acontecimentos daquele extraordinário dia e a subsequente conduta daqueles homens?<br />

Não pense que nos deram queixa do rabi. De forma nenhuma. Parece até que teriam muito agosto em que aquilo passasse em<br />

silêncio. Pilatos mandou-me ao Sumo Sacerdote com pedido para a prisão dos dois, Bar Abba e o rabi de Nazaré.<br />

Suspeitávamos que os dois estivessem em cooperação conspiratória e resolvêramos agir sem tardança. Quanto a Bar Abba,<br />

nossa ação foi direta. Os espiões do Sumo Sacerdote nos haviam informado duma reunião marcada para aquela noite na<br />

hospedaria dos cameleiros, lá na Cidade Baixa. (Eles sabiam tudo – quando queriam saber.) Mas com o rabi de Nazaré tudo<br />

mudou. Quando pedi a prisão desse homem, os sacerdotes ficaram lívidos. E o próprio Hanan, presente na reunião em casa de<br />

Kaifa, recusou-se a definir a sua atitude. Começou dizendo que não tinha idéia de onde morava o nazareno em Jerusalém – a<br />

coisa mais fácil de ser sabida, visto como ele vinha quase todos os dias no Templo. E o velho Hanan pediu-nos para evitar<br />

qualquer choque com aquele homem dentro da área do Templo. Disse que receava tumultos; que as massas adoravam o rabi de<br />

Nazaré; que o povo acreditava nele – e assim por diante. E insistiu que esperássemos o fim das festas e a saída dos peregrinos.<br />

− E então, assim com a porta aberta, só encontraremos uma gaiola vazia, adverti eu.<br />

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− Que quer dizer, Hegemon?<br />

− Que o vosso profeta some-se – escapa de Jerusalém.<br />

− Os Messias não fogem. Os Messias cumprem a sua missão ou morrem, declarou o Sumo Sacerdote piscando<br />

para mim equivocadamente.<br />

− E que espécie de missão espera este Messias cumprir? perguntei-lhe.<br />

Minha pergunta ficou sem resposta. Limitaram-se a olhar um para o outro como que aparvalhadamente, com o<br />

medo na expressão. Por fim o Sumo Sacerdote disse, mal à vontade:<br />

− O que aconteceu nos pátios do Templo foi um incidente religioso que só têm a ver com a administração do<br />

Templo e de nenhum modo com o governo. Se considerarmos o homem culpado, entregá-lo-emos às autoridades romanas. Em<br />

qualquer hipótese não está em nossa alçada pronunciar a pena de morte.<br />

− O que aconteceu no pátio do Templo, repliquei com firmeza, não diz respeito apenas à administração. Foi um<br />

assalto a todo um sistema de leis e uma ameaça à ordem na província da Judéia. Considerando o mal que fez aquele homem ao<br />

vosso prestígio, não compreendemos que estejais a protege-lo. Como não suspeitarmos de que tendes as vossas razões ocultas?<br />

E não nos sobram tempo nem meios para destramar em todos os detalhes os vossos complicados negócios religiosos e<br />

místicos, que tão facilmente tomam o aspecto de rebelião. O bom senso romano, tão direto, diz-nos que se a suprema<br />

autoridade religiosa desta província estende a sua proteção a um homem que lhe deu tal golpe no prestígio, então é que essa<br />

suprema autoridade religiosa tem interesse em fazer causa comum com o rebelde. Esse interesse não pode estar em<br />

consonância com a ordem constituída.<br />

− Ousa duvidar da nossa lealdade a Roma, Hegemon?<br />

− Não se trata de duvidar ou não duvidar. Mas pode uma tal atitude do Sumo Sacerdócio parecer isenta de<br />

suspeita aos olhos do Legado ou do Procurador?<br />

O Sumo Sacerdote olhou para o sogro e os cunhados, e ficaram os três sem pinga de sangue no rosto. Por um<br />

momento me pareceu que até sua própria barba, tão bem cuidada e oleada para a festa, perdera a cor e se fizera branca. E por<br />

fim falou:<br />

− Que exige de mim, Hegemon?<br />

− O Procurador pede à suprema autoridade religiosa da Judeia, responsável pela observação da lei e pela ordem<br />

no Templo, que mande prender o homem que a perturbou e minou o prestígio da autoridade.<br />

− Mas asseguramos que não sabemos onde esse homem está. Cumpre-nos primeiramente verificar isso e então<br />

transmitiremos a informação às autoridades romanas.<br />

Dessa vez senti-me em parte satisfeito com a resposta de Kaifa.<br />

Sobre o que houve com Bar Abba você sabe. Cercamos a hospedaria à noite e tivemos a sorte de surpreende-los<br />

quase todos no sono. Mesmo assim houve resistência. Nunca vim a saber quantos foram mortos do lado dos rebeldes, nem me<br />

lembro de quantos caíram do nosso lado – mas conseguimos pegar Bar Abba vivo. O arsenal descoberto na hospedaria era<br />

excelente prova do estado de ânimo de Jerusalém.<br />

Restava o segundo fomentador da rebelião, o homem que ao meu ver era o mais perigoso dos dois; pessoalmente<br />

eu estava convencido de que era ele a alma do movimento e que até o Sumo Sacerdote estava de algum modo sob sua<br />

demoníaca influência.<br />

Nós – isto é, os funcionários romanos – muito nos espantamos no dia seguinte ao saber que o rabi de Nazareth<br />

aparecera de novo no Templo e lá pregara, e que não só o Sumo Sacerdote não o fizera prender como os sacerdotes – pelo<br />

menos alguns deles – lhe haviam mandado uma deputação. Para que? Para saber com que autoridade havia ele feito o que<br />

fez!... Nossos espiões nos informaram que mensageiros do Sumo Sacerdote, com a identidade disfarçada, haviam tomado parte<br />

na deputação. Não houve acordo. Havia algo nas místicas escrituras dos judeus, sinais, portentos e interpretações, que o rabi<br />

não satisfez em suas respostas. Daí, concluirmos, nós, romanos, que se o rabi houvesse satisfeito as condições, eles o teriam<br />

proclamado rei ali mesmo...<br />

Quando apresentei a Pilatos o meu relatório sobre Bar Abba, no qual fazia ver a quantidade de armas ocultas na<br />

hospedaria e a resistência encontrada, e sobre o segundo rebelde, evidentemente protegido pelo sacerdócio, Pilatos teve um<br />

acesso de cólera. Estou ainda a vê-lo como ficou ao receber a informação de que os sacerdotes haviam deixado o homem<br />

escapar de suas mãos – ou, antes, lhe haviam mandado uma delegação para negociar. Quando entrei no Procuratorium, estava o<br />

Procurador sentado atrás duma maciça secretária de bronze, dando o seu busto a impressão de fundido no mesmo metal:<br />

enorme cabeça quadrada e calva como um deserto, rosto largo e carnudo, também glabro e peito alentado. Tudo formava um<br />

bloco sem falha, como tirado duma só peça. E aquela enorme massa de homem subitamente explodiu. Fez-me lembrar um<br />

daqueles ídolos populares entre os vizinhos dos judeus, o Moloch em cujo seio faziam fogo. Subiu o sangue em ondas pelas<br />

sucessivas dobras de seu pescoço potente. As sobrancelhas, os únicos pelos daquela cara, eriçaram-se-lhe e seus olhos sempre<br />

frios inflamaram-se. Pilatos ergueu-se e rugiu como um leão.<br />

− Mando que o Sumo Sacerdote me entregue o rebelde imediatamente!<br />

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Não esperei por segunda ordem. Voei à residência de Kaifa e lá vi não só a Casa de Hanan, com o velho Sumo<br />

Sacerdote e os filhos e cunhados, como um grupo de interpretes da lei. Fui obrigado a interromper a sessão especial que<br />

conduziam, porque o momento não era para cerimônias. Observei o ar incomodado de todos e disse abruptamente:<br />

− O leão rugiu!<br />

Eles compreenderam-me e empalideceram, mas guardaram silêncio a olharem-se desesperançadamente. Por fim<br />

o Sumo Sacerdote falou e veio com a velha desculpa:<br />

− Não sabemos onde ele está.<br />

− Mas esteve em vossas mãos no Templo. Mandastes mensageiros discutir com ele.<br />

− Não podíamos prendê-lo no Templo. Muito perigoso.<br />

− Temos em Jerusalém tropas suficientes para enfrentar qualquer situação. Em caso de perigo o Sumo Sacerdote<br />

sabe a quem recorrer.<br />

− Mas é o que procuro evitar – um morticínio como o do ano passado, quando o sangue dos galileus correu<br />

conjuntamente com o sangue dos sacrifícios. O mesmo acontecerá agora, se agirmos com precipitação.<br />

− Errais. O perigo este ano é maior. Não só o sangue dos galileus pode misturar-se com o sangue dos sacrifícios<br />

mas o de outros judeus, do mais baixo ao mais alto. “Amanhã me sentarei para julgamento dele – ou deles!” são as palavras de<br />

Pilatos.<br />

Todos ficaram como petrificados, inclusive o corajoso Sumo Sacerdote. Por fim um murmúrio se ergueu.<br />

− Tudo por causa de um homem! Nossos campos tomados – nossas vidas...<br />

O velho Hanan falou.<br />

− Estamos a disputar a raposa antes de a haver colhida. A questão não é prendê-lo – é prendê-lo fora da área do<br />

Templo, e para isso cumpre saber onde ele pára. Em segundo lugar temos de ter a certeza de que o preso é realmente o homem<br />

que procuramos. Asseguro ao Hegemon que pus em sua pista alguns dos meus mais hábeis auxiliares, e apesar de todos os seus<br />

esforços ainda não alcancei nenhum resultado. As massas acreditam no homem e escondem-no. E temos de estar<br />

absolutamente certos de que ele é ele e não outro. O rabi da Galiléia anda sempre rodeado de discípulos que o defenderão até à<br />

morte – ou que se deixarão prender em lugar dele. Por esse motivo estivemos procurando conquistar um desses seguidores e<br />

suborná-lo com dinheiro ou outra recompensa, não só para que nos indique onde o rabi mora, como para que no bom momento<br />

no-lo aponte. Ainda não conseguimos esse contato, mas solenemente asseguro ao Hegemon que assim que o tenhamos feito,<br />

prenderemos o rabi e o entregaremos às autoridades.<br />

Voltei a Pilatos e dei conta do havido. E acrescentei que em minha opinião os Sumos Sacerdotes tinham motivos<br />

secretos para proteger aquele rabi.<br />

− Que espécie de motivos? perguntou Pilatos.<br />

− Eles lhe atribuem um místico poder. Julgam-no o Messias.<br />

− Que?<br />

− O Rei dos judeus, pelo qual tanto tempo esperam – o Messias que os irá libertar da nossa dominação.<br />

− Rei dos Judeus! Aí está! E eu digo que esse rei dos judeus nos deve ser entregue antes da manhã de manhã.<br />

Não lhes dou nem mais um minuto de prazo – e farei o Sumo Sacerdote pessoalmente responsável pelo cumprimento desta<br />

ordem.<br />

apareceu.<br />

A partir desse momento Pilatos só tratou o galileu de Rei dos Judeus.<br />

Saí dali e fui ter com o velho Hanan, o qual me recebeu com boas notícias.<br />

− Creio, disse ele, que temos uma boa indicação do refúgio do rabi. O homem que procurávamos conquistar nos<br />

− Como o conseguiu?<br />

− Veio a nós espontaneamente. Não sei quais as suas razões para trair o mestre, nem o que está atrás disso. E não<br />

creio que ele o faça por dinheiro, pelas trinta moedas de prata que lhe prometemos. Esse homem é um dos principais<br />

discípulos do rabi e o tesoureiro do grupo. Se fosse por causa de dinheiro, mais lucraria ficando com o rabi do que se pondo<br />

contra. Haverá outros motivos no fundo de sua ação, que ainda não conseguimos apreender. Meus filhos o estão interrogando<br />

na casa da guarda. Preparam a armadilha. Temos de agir com muita cautela.<br />

Fui para a casa da guarda, que era no pátio interno – e quem lá encontrei? Judas! Tinha os olhos vermelhos e<br />

inchados, como de longas vigílias. Mas o olhar que lançava para os filhos do Sumo Sacerdote era de desafio insolente, e sua<br />

voz soava qual um misto de soluço e insulto.<br />

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− Sim, sim. Por trinta dinheiros de prata! Se está pronto o dinheiro, estarei pronto a mostrar-vos onde está o meu<br />

rabi. Em caso contrário, deixai-me ir. Porque então ficarei na certeza de que tendes medo dele – de que não ousais pôr pé em<br />

sua vizinhança. Ele vos destruirá com um sopro. Tendes medo dele, sim! e aqui começou Judas a rir-se tragicamente, com as<br />

gengivas nuas à mostra. Tremeis só de pensardes nele!<br />

− Trinta peças de prata! Exclamou o filho do Sumo Sacerdote. Não podes tomar do tesouro comum trinta<br />

moedas sem que ninguém desconfie? Por trinta moedas de prata entregas o teu rabi? Hum. Há qualquer coisa atrás disso...<br />

− O negócio só a mim diz respeito. Quero esse dinheiro e tenho minhas razões. Afastei-me do meu rabi e vou-me<br />

a uma prostituta. Não basta esta explicação. Fazeis ou não fazeis o negócio? Bem, bem. Eu conheço as vossas razões. Estais<br />

com medo de pôr a mão sobre o meu rabi – e Judas fez menção de retirar-se.<br />

Foi quando intervi:<br />

− Espera, Judas. Se não querem eles te dar o dinheiro, eu o darei. Se o Sumo Sacerdote tem razões secretas para<br />

abafar este caso e permitir que o galileu desapareça de Jerusalém, isto é ponto que ele lá liquidará com o Procurador. O galileu<br />

levantou-se em rebeldia não só contra a administração do Templo como contra Roma. O Procurador exige este homem. Deve<br />

ser entregue esta noite à guarda romana para ser julgado por Pilatos. Judas: falarei de ti ao Procurador. Muito merecerás de<br />

Roma. Terás posto em nossas mãos um dos mais perigosos perturbadores da paz. Queres prestar-nos um serviço e estes<br />

homens te rejeitam. Haveremos de descobrir por quê...<br />

Os filhos do Sumo Sacerdote tremeram e o velho Hanan falou:<br />

− Precisamos ter a certeza de que Judas nos indicará o homem certo.<br />

− Indicá-lo-ei com toda a certeza.<br />

− Como?<br />

− O homem que eu beijar e ao qual disser “Rabi! Rabi!” esse é o que procurais.<br />

− Dai-lhe o dinheiro e ele que nos mostre o lugar.<br />

− Não fica longe dos armazéns dos Filhos de Hanan, disse Judas. No Gat Shemen, do Monte das Oliveiras.<br />

Vinde comigo.<br />

− É preciso convocar sem demora o Sanhedrim e submeter esse homem a julgamento, sugeri eu.<br />

− Impossível!...<br />

− Por que?<br />

− O Sanhedrim não pode reunir-se à noite para julgar um homem que está sujeito à pena de morte. Temos de<br />

esperar até amanhã de manhã. Como convocar o Sanhedrim a estas horas? É contra a lei. Seus membros estão ocupados com o<br />

sacrifício da Páscoa. O processo tem que seguir muitas formalidades e o julgamento só pode ser dado depois das festas.<br />

− As ordens de Pilatos são para que o homem seja entregue imediatamente. Amanhã de manhã o próprio Pilatos<br />

o julgará – julgará aos dois, a Bar Abba e ao nazareno.<br />

− Bar Abba rebelou-se contra o governo. O crime do nazareno é de outra ordem – é um puro negócio religioso<br />

dos judeus. Temos de reunir os membros do Sanhedrim, pelo menos os do Pequeno Sanhedrim de vinte e três. E um certo<br />

número de fariseus, há que comparecer. Sem eles não teremos o quorum necessário para um caso desses. Mas os fariseus com<br />

toda a certeza vão recusar-se a vir. Afirmo-te, Hegemon, que dentro das nossas leis é impossível precipitar assim um caso<br />

destes. É ilegal.<br />

− O tempo não está para formalidades, repliquei, e aviso-vos de que estais a brincar com fogo. Amanhã de<br />

manhã o nazareno deve comparecer diante de Pilatos. São suas ordens específicas – e sabeis o que isso quer dizer. Tudo estou<br />

fazendo para evitar um morticínio na cidade e grandes inconvenientes para o Sumo Sacerdote. Lembrai-vos da grande<br />

procissão a Cesaréia, logo que Pilatos chegou de Roma.<br />

− Referes-te ao caso dos Troféus romanos na Fortaleza Antônia? disse o velho Hanan. Lembro-me, sim – e sua<br />

barba tremeu.<br />

− Pode acontecer coisa idêntica, sugeri.<br />

Os filhos do valho Sumo Sacerdote tinham os olhos no rosto do pai, que era o único do clã a conservar-se calmo.<br />

− Conversarei sobre o assunto com o Sumo Sacerdote – se a situação é realmente séria como dizeis, Hegemon.<br />

Talvez nossos interpretes encontrem um caminho. Mas uma coisa sei: os fariseus jamais concordarão com o processo.<br />

− Nem nós, exclamou o filho mais velho de Hanan, Eliezer. A lei é a lei.<br />

− Meu filho, é preciso agir cautelosamente quando muitas vidas humanas se envolvem num caso. Vou conversar<br />

sobre o assunto com o Sumo Sacerdote, como já disse. Enquanto isso, cumpre termos o homem na mão. A guarda que vá com<br />

Judas a Gat Shemen e prenda-o.<br />

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− Eu mesmo o prenderei! Intervi. O nazareno é tão culpado perante Roma como perante o Sumo Sacerdote – e<br />

eu não confio em ninguém. Não confio nos guardas do Sumo Sacerdote. O nazareno pode embaraça-los com uma das suas<br />

mágicas e fazer que o deixem fugir. Espera, Judas. Vou ao Procuratorium e voltarei com uma coorte de tropas. Não sabemos<br />

quantos rebeldes estarão lá reunidos, nem de que armas dispõem.<br />

Sentado a um canto, a brincar com as trina moedas de prata, Judas tagarelava como um demente: “Ho, ho, zeh<br />

ishi, esse é o meu homem! Trazei também o Procurador e dois legados e todos os altos funcionários e metade do exército. Que<br />

venham todos prender o meu rabi!”<br />

Deixei o Sumo Sacerdote e os filhos na casa da guarda debatendo animadamente o incidente. Uns rebelavam-se,<br />

recusavam-se a obedecer ao Procurador, embora com perigo de vida; outros mostravam-se mais conciliantes. Entre estes<br />

percebi que podia ter confiança no velho Hanan e em seu filho mais moço, Hanan bem Hanan. Logo que o homem estivesse<br />

preso, eles cumpririam até o fim a ordem de Pilatos.<br />

Fui ao Procuratorium e mobilizei uma coorte composta de romanos, asquelonitas e sírios, e vesti meu uniforme,<br />

com a insígnia de tribuno no corsolete. Quando voltei à casa do Sumo Sacerdote já estava reunido um grupo de guardas com<br />

bastões e chicotes. Olhando para aquela escória, vi que tinham a pele enrugada de medo, e que tremiam como se estivessem na<br />

iminência de ser executados – e compreendi que bem fizera eu em não depositar neles nenhuma confiança e trazer toda uma<br />

coorte de quinhentos homens. Mais tarde, no Gat Shemen, depois de realizada a prisão, congratulei-me comigo mesmo pela<br />

previsão. Se não fosse a coorte, os guardas sacerdotais ter-se-iam evaporado à vista do nazareno como fizeram seus discípulos<br />

quando nos viram.<br />

Prendemo-lo, amarramo-lo e trouxemo-lo. Antes de entrarmos na Cidade Baixa tripliquei o número de homens<br />

que o rodeava, para evitar que o vissem. Inútil precaução. Jerusalém dormia; as ruas eram desertos. A cidade não veio a saber<br />

naquela noite que estávamos levando o seu Rei para o julgamento, de mãos atadas às costas.<br />

E devo acentuar que mesmo preso e amarrado aquele nazareno ainda terrificava os sacerdotes. Vim a saber disso<br />

mais tarde, porque não estive presente ao processo. Limitei-me a fazer a entrega do rabi aos sacerdotes e fiquei de fora com<br />

meus homens, enquanto eles faziam o interrogatório com o número de membros do Sanhedrim que puderam juntar àquela hora<br />

da noite. Porque minhas ordens estavam de pé. Eu tinha de entregar o preso a Pilatos pela manhã – e o que aconteceu lá dentro<br />

você sabe, porque esteve lá.<br />

− Sim, respondi – e retomei o fio da minha narrativa.<br />

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A passos rápidos eu e Rufo descemos o morro e entramos na cidade adormecida, de rumo à casa de estudo do<br />

meu rabi. Não havia vivalma nas ruas. Toda gente dormia, cansada dos preparativos da festa. O luar polvilhava as paredes das<br />

casas e as pedras cochilavam ao embalo do luar. Era lá pelo meio do segundo quarto – e uma ou duas vezes pareceu-nos ouvir<br />

a distância passos de guardas nas vias desertas.<br />

Encontramos o nosso rabi dormindo em seu quarto, que era junto à casa de ensino, e ficamos indecisos se o<br />

acordaríamos ou não. Tínhamos dum lado as leis do respeito e da afeição pelos rabis, leis não menos rigorosas que as aplicadas<br />

aos pais; mas de outro lado havia uma vida em perigo. E ainda hesitávamos, quando o nosso rabi despertou – e demos graças a<br />

Deus de estarmos livres do problema.<br />

Nicodemo não havia dormido bem, com medo do que pudesse acontecer para o nazareno; e sua inquietação<br />

recrescera com a nossa demora em voltar. Tinha estado à nossa espera mesmo no sono; e enquanto ali fora vacilávamos se o<br />

despertaríamos ou não, ele acordou e gritou pelo nosso nome.<br />

Encontramo-lo sentado na cama, e pôs-se de pé de um salto quando soube do acontecido no Monte das Oliveiras.<br />

Nunca, em todo o tempo da nossa convivência, vi meu rabi tão perturbado, tão cheio de indignação e raiva – e não me é fácil<br />

recordar as ocasiões em que a cólera o haja dominado. Mas naquele momento era a sagrada cólera de Deus que vibrava nele, e<br />

tão forte que nos foi difícil ajuda-lo a vestir-se. Trouxemos-lhe a bacia d’água, na qual lavou o rosto e as mãos. E a andar de lá<br />

para cá murmurava:<br />

− Mas com que autoridade fizeram isso? Coisa assim nunca houve em Israel.<br />

Depois: “Quero todos os meus discípulos aqui!” Sua idéia era mandá-los em procura de todos os membros do<br />

Sanhedrim. Queria que corrêssemos em busca de Jochanan ben Zakkai e Rabban Gamaliel ben Simão e outros fariseus de<br />

renome. Queria a imediata reunião da Companhia. Mas afinal serenou. Pôs-se a refletir em voz alta. “Em primeiro lugar, eles<br />

não podem reunir-se à noite. Em segundo lugar, ainda que ousassem julgá-lo de noite não poderiam dar sentença. Em terceiro,<br />

em caso como este teriam de reunir pelo menos o Pequeno Sanhedrim, o que é impossível sem a nossa presença. Quarto: De<br />

forma nenhuma podem julgá-lo na véspera da Páscoa. Não há de sobrecarregar-se a si próprio com um pecado, pois que tal<br />

julgamento nada mais seria do que o derrame de sangue dum inocente. Não. Amanhã teremos tempo para tudo. Nada de<br />

alarmar os sábios”.<br />

Mas sua calma fora momentânea. Nicodemo levantou-se e voltou a medir passos dum modo que era novidade<br />

nele. E não cessava de pensar em voz alta.<br />

− Mas de que não são capazes os Filhos de Hanan e os Filhos de Beitus? Coisa nenhuma os detém. Quem lança<br />

contra o povo seus escravos como se fossem cachorros loucos, por que se eximiria a um assalto individual? E do mesmo modo<br />

que os servos, os escribas e sábios saduceus obedecem cegamente aos Filhos de Hanan. Não os vimos desrespeitar as regras do<br />

sacrifício da Páscoa que o grande Hillel nos formulou? Minh’alma não encontra repouso. Vamos. E voltando-se para nós:<br />

Vamos à casa de Kaifa.<br />

Nicodemo vestiu o manto negro do rabi farisaico, que chegava até aos pés, e pôs na cabeça a coifa da categoria<br />

rabínica. E lá fomos os três, eu e Rufo na frente com as lanternas acesas, mais como sinal de respeito do que para lhe iluminar<br />

o caminho, visto que o luar estava claro como dia. Outros discípulos nos acompanhavam e lá fomos para a Cidade Alta, rumo à<br />

residência do Sumo Sacerdote.<br />

Encontramos trancado o portão. Batemos até que um guarda aparecesse e perguntasse o que queríamos.<br />

− Vai dizer que o Rabi Nicodemo, fariseu e membro do Grande Sanhedrim, pede para si e seus discípulos<br />

entrada na sessão.<br />

Longo tempo se passou antes que o porta se abrisse. Parece que houve lá dentro séria divergência a respeito da<br />

nossa entrada. Mas quando o guarda voltou vinha com dois mensageiros do Sanhedrim, os quais convidaram o meu rabi para a<br />

sessão.<br />

− As sessões do Sanhedrim realizam-se na Câmara das Pedras Lavradas, no Templo, e não na casa do Sumo<br />

Sacerdote, foi a resposta seca de meu rabi. Vim para saber onde está o homem que foi preso esta noite.<br />

− Está aqui dentro em sessão com o Sumo Sacerdote.<br />

− Leva-nos a ele! ordenou o rabi.<br />

Atravessamos o pátio externo, e ao chegarmos ao pátio interno vimos uma estranha cena no ponto em que os<br />

guardas usualmente se reuniam. Em torno a uma fogueira reunira-se um grupo de criados, caseiros, cozinheiros e mais gente<br />

dali. Aquentavam fogo e debatiam os acontecimentos da noite. Perto, dois guardas seguravam um homem pelos braços e uma<br />

criada lhe dizia esganiçadamente coisas em pleno rosto. O homem encolhia-se, como que fugindo dela, e negava qualquer<br />

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coisa, e lutava para escapar-se dali. Em certo momento a luz da fogueira deu-lhe de chapa no rosto e pude reconhece-lo: Simão<br />

bar Jonas! Era a imagem do terror e sua cabeça não parava de sacudir em gesto de constante negação. A criada indicava-o com<br />

o dedo e dizia:<br />

− Tu também estivestes com Yeshua o nazareno! Eu vi! Simão sacudia a cabeça e negava, procurando<br />

inutilmente esconder o sotaque da Galileia:<br />

− Não sei o que estás dizendo!<br />

− Todos o abandonaram, suspirou o meu rabi, até os seus discípulos mais fiéis.<br />

Apressamo-nos e seguimos os mensageiros através de muitas salas e corredores, e afinal chegamos ao salão onde<br />

o Sumo Sacerdote reunia em conselho os principais funcionários do Templo para resolver sobre casos de somenos importância.<br />

O salão estava arrumado como o do Grande Sanhedrim, que era na entrada do Templo e conhecido como Câmara das Pedras<br />

Lavradas. Mas menor. Um dos extremos tinha a forma de meia lua e vinte e três assentos junto à parede, com um central<br />

acima dos outros e destinado ao Sumo Sacerdote. Quando entramos só metade dos assentos estavam ocupados. La vi o Sumo<br />

Sacerdote em seu manto púrpura; à direita, o velho Hanan, seu sogro; e Eliezer, os quais, como antigos Sumos Sacerdotes,<br />

também usavam o manto púrpura, apenas um pouco mais curto e mais semelhantes a capa. Eram os mais importantes membros<br />

do Sanhedrim. À esquerda de Kaifa vimos outro genro seu, Jochanan, que como principal administrador do Templo tinha<br />

assento no Sanhedrim mas não vestia capa púrpura que também vestiam outros ex-Sumos Sacerdotes da Casa de Beitus;<br />

estavam ali na qualidade de interpretes da lei. Um deles, de longa barba branca e bastas sobrancelhas também brancas sobre os<br />

olhos dum azul líquido, tinha fama entre os sábios saduceus. Nas sessões plenas do Sanhedrim os membros dum lado da meia<br />

lua dispunham-se fronteiros aos do outro lado, mas naquele momento poucos membros havia ali e sentados só no centro. À<br />

direita e esquerda do Sumo Sacerdote vi os escrivães com os estilos em punho e as lâminas de cera à frente; havia um escrivão<br />

para a defesa e outro para a acusação.<br />

Muitas lâmpadas pendiam do teto e à sua luz se somava a das chamas dos queimadouros de mármore vermelho.<br />

Dois servos com tochas altas ladeavam o Sumo Sacerdote.<br />

De face aos assentos dos membros do Sanhedrim ficavam as fileiras de bancos para os discípulos dos rabis, os<br />

quais não tinham apenas o direito, mas também o dever de assistir às sessões de julgamento, para se instruírem na marcha dos<br />

processos. Podiam tomar parte na defesa do réu mas nunca na acusação. Quando eu, Rufo e outros discípulos do rabi<br />

Nicodemo entramos, os bancos da frente estavam ocupados pelos discípulos dos rabis saduceus, na maior parte filhos das<br />

famílias ricas; eram nossos inimigos. E no primeiro banco sentavam-se os filhos de Hanan que ainda não eram membros do<br />

Sanhedrim, entre eles, alto e enérgico, o mais moço de todos, Hanan ben Hanan.<br />

Naquela luz, e naquele fundo púrpura o negro das vestes, a brancura dos trajes do nazareno impressionou-nos<br />

logo de entrada. Pareceram-me tão alvos como naquele dia em casa do aguadeiro Hillel, quando fora celebrar o seder; mas<br />

com a umidade do suor de angústia em que se embeberam durante a noite as dobras tinham perdido o boleio. A brancura<br />

conservara-se a mesma. Estava o nazareno de pé diante do Sumo Sacerdote, exatamente como eu o vira no Jardim de Gat<br />

Shemen, com a mesma dorida tranqüilidade no rosto; mas a linha de seus lábios afinara e tremia, denunciando profunda dor<br />

íntima. Notei que seus cabelos e a barba estavam já completamente grisalhos; o rabi da Galiléia envelhecera muito, depois que<br />

eu o vira pela última vez. Tinha as mãos flácidas e conservava-as aderidas ao corpo; mas não vi no olhar nenhum traço do<br />

terror que eu notara no Gat Shemen – em seus olhos só havia tranqüilidade, dor e tristeza. E ele olhava com espanto para seus<br />

juízes, com infantil curiosidade, como se tudo ali afetasse a todo mundo, menos a ele.<br />

Quando o Sumo Sacerdote viu o meu rabi na entrada do salão, anunciou-o à assembléia:<br />

− Um rabi dos fariseus, membro do Grande Sanhedrim, o rabi Nicodemo, nos honra com a sua presença – e fez<br />

gesto para que meu rabi tomasse assento.<br />

Meu rabi respondeu da entrada: “Ishi Kohen Gadol!”. Meu senhor Sumo Sacerdote! Antes que eu entre desejo<br />

ser informado sobre que sessão é esta e que perigo o compeliu a convoca-la durante a noite. Não vejo aqui nenhum dos<br />

escribas e sábios fariseus e sim só saduceus. Que isto significa?<br />

− O promotor vai instruir o rabi dos fariseus sobre a matéria, respondeu o Sumo Sacerdote.<br />

− A sessão foi convocada para julgar um homem que tem procurado levar os judeus à rebeldia contra o Deus dos<br />

Judeus. E a convocação foi noturna por se tratar de matéria urgente. Por exigência do governo temos de dar sentença antes do<br />

amanhecer, explicou o Promotor.<br />

− Julgamento de vida e morte à noite? Quem já ouviu falar de tal coisa? É ponto incontroverso da lei que tais<br />

julgamentos se façam de dia e se dê largo tempo para o preparo da defesa. Também é ponto incontroverso que a sentença seja<br />

dada sem pressão de quem quer que seja. Por isso eu, como rabi em Israel, começo por dizer que esta corte não pode<br />

legalmente funcionar a estas horas num caso que envolve uma vida, pois que assim sendo qualquer sentença que a corte<br />

pronuncie será nula. O julgamento terá sido feito contra a lei e a justiça do Torah.<br />

Súbita agitação envolveu a sala. O Sumo Sacerdote empalideceu e cofiou a barba como para acalmar-se. E<br />

travou-se longa discussão entre os sábios e intérpretes saduceus.<br />

Eliezer, o filho mais velho de Hanan, tomou a palavra:<br />

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− Meu senhor Sumo Sacerdote! Embora nós, saduceus, não aceitemos o complicado processo com que os<br />

fariseus rodeiam os julgamentos de crimes capitais, com eles estou neste momento de acordo. Para que propósito fomos<br />

convocados esta noite e qual a significação do nosso julgamento e da nossa sentença? É matéria da competência do governo?<br />

Nesse caso nada temos a ver com ele; o governo que julgue como entender. É matéria da nossa competência? Nesse caso o<br />

julgamento deve correr de acordo com o processo, com a sentença dada segundo as leis do Torah. E se acharmos culpa no réu,<br />

temos de contra ele dar sentença de acordo com as mesmas leis. Mas desde quando tomamos sobre os nossos ombros matéria<br />

da jurisdição do governo?<br />

O Sumo Sacerdote ergueu a mão e abafou o sussurro da sala.<br />

− Peço ao rabi Todros, intérprete da lei, que dê sua opinião sobre as objeções levantadas pelo rabi Nicodemo e<br />

pelo antigo Sumo Sacerdote, rabi Eliezer.<br />

O ancião de longa barba branca ergueu-se e respondeu:<br />

− Considero corretos em suas objeções o rabi dos fariseus e o antigo Sumo Sacerdote Eliezer.<br />

Kaifa tomou a palavra:<br />

− Meritíssima corte! Ouvimos o parecer do nosso intérprete da lei e agora declaro que esta sessão não é de<br />

julgamento, mas de investigação e exame. De acordo com as nossas leis não podemos dar sentença neste caso, porque é<br />

matéria incumbente ao governo. Por isso converto esta sessão em sessão de investigação e exame.<br />

Depois dessas palavras meu rabi adiantou-se e tomou assento no Sanhedrim; eu, Rufo e os demais discípulos<br />

sentamo-nos nos bancos dos discípulos.<br />

Começou a investigação. Sentado perto dum dos escrivães, levantou-se o Promotor e no documento em cima de<br />

sua estante de couro leu:<br />

Todos nós fomos testemunhas das ações deste homem que aqui está, pelo povo chamado: “Rabi” e “Profeta”, e<br />

por outro nome que não repito, quando entrou no pátio do Templo e...<br />

O rabi Nicodemo pôs-se em pé.<br />

− Meu senhor Sumo Sacerdote! Protesto contra as palavras do Promotor. Não somos testemunhas, nem nada<br />

sabemos do que a promotoria diz que o réu fez! Nada vimos nem nada ouvimos. O homem que temos diante de nós é aos<br />

nossos olhos tão inocente como um recém-nascido, porque até que a sua culpabilidade seja estabelecida com o depoimento de<br />

testemunhas de peso, temos de julga-lo favoravelmente.<br />

Promotor .<br />

O Sumo Sacerdote ergueu a mão para o intérprete da lei, o qual disse:<br />

− O rabi dos fariseus está certo, e é essa também a interpretação dos saduceus.<br />

− De acordo com a objeção do rabi dos fariseus mando riscar a acusação que acaba de ser lida, declarou Kaifa ao<br />

− Diante de nós, prosseguiu o Promotor de outra forma, compareceram testemunhas de boa reputação, que<br />

testificaram ter este homem, que o povo chama: “Rabi” e “Profeta”, e outro nome que não repito, falado blasfêmia e<br />

insultuosamente do Sagrado Um de Israel.<br />

depor”.<br />

− Apareçam as testemunhas! Ordenou o Sumo Sacerdote.<br />

Um guarda na porta da câmara das testemunhas chamou: “Judas Ish-Kiriot, discípulo do rabi, queira entrar e<br />

Judas apareceu à porta. Olhou com firmeza os juízes, mas evitou olhar para o meu rabi, embora não fazendo o<br />

mesmo para o seu rabi, sobre o qual fixou os olhos obstinadamente.<br />

− Judas como testemunha! Rugiu o meu rabi com voz estertórica. Judas, essa abominação em Israel que entregou<br />

uma alma judia aos gentios? Testemunha, Judas? Ele? Que seu corpo seja aberto como o de um peixe, e isso no dia da<br />

Expiação, ainda que esse dia caia no Sábado! Morto seja ele por quem o encontrar! Riscado está o seu nome da congregação de<br />

Israel e ele amaldiçoado com todas as maldições do anátema por todas as gerações. Judas não pode testemunhar aqui, porque<br />

um delator não é testemunha de reputação aceitável.<br />

ancião.<br />

Judas cobriu o rosto com a ponta de seu manto e o Sumo Sacerdote voltou-se para o intérprete da lei:<br />

− Está o que foi dito de acordo com a lei segundo os saduceus?<br />

− Sim, aceitamos a objeção do rabi dos fariseus. Um delator não é uma testemunha aceitável, foi a resposta do<br />

Os auxiliares agarraram Judas e o conduziram para fora. O Promotor prosseguiu:<br />

− Diante de nós compareceram honradas testemunhas e depuseram que com seus próprios ouvidos tinham<br />

ouvido o homem aqui diante de nós, conhecido como “Rabi”, “Profeta” e outro nome que não direi, falar blasfema e<br />

ofensivamente do Sagrado Templo.<br />

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“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

− Testemunhas! exclamou o Sumo Sacerdote.<br />

− Testemunhas! repetiu lá adiante o guarda – e de dentro da sala das testemunhas emergiu um homenzinho de<br />

pernas curtas. Vinha ereto como um pavão de cauda aberta, e para que soubessem de seu conhecimento das Escrituras trazia<br />

pena atrás da orelha e pendente do pescoço a lâmina de cera. Foi levado para diante do Sumo Sacerdote.<br />

− Conhece s Escrituras? perguntou este.<br />

− Sim, conheço as Escrituras!<br />

− Conhece a lei do Torah relativa a quem dá falso testemunho?<br />

− Essa lei manda que quem dê falso testemunho receba a pena em que incorreria sua vítima.<br />

Foi pedido então que se voltasse e olhasse para o acusado. O homenzinho ergueu-se na ponta dos pés para<br />

alcançar os olhos do nazareno e disse:<br />

− Com meus próprios ouvidos ouvi este homem, aqui presente, pronunciar com sua boca estas palavras:<br />

“Derrubarei este Templo, que foi construído pela mão dos homens, e em três dias construirei outro, que não terá sido feito pela<br />

mão dos homens”.<br />

− Onde estava ele então?<br />

− No pátio do Templo.<br />

− De que lado?<br />

− Perto da Porta da Água.<br />

− Era de dia ou de tarde?<br />

− Ali pela tardinha, quando os sacerdotes fazem o último sacrifício, antes do fechamento das portas.<br />

− Levai deste homem e detende-o em sala separada.<br />

− Duas testemunhas acordes estabelecem um fato, disse o Sumo Sacerdote. Há outra testemunha?<br />

− Testemunhas! gritou o guarda lá diante e a segunda testemunha saiu da câmara. Ao contrário da primeira, era<br />

um homem excessivamente alto, e que teve de curvar-se para ver os olhos do nazareno.<br />

− Eu com meus próprios ouvidos ouvi este homem dizer aos seus discípulos, quando estes lhe pediram que<br />

olhasse para o Templo: “Estais vendo aquela grande construção? Dela não ficará pedra sobre pedra”.<br />

− Onde foi isso?<br />

− No pátio do Templo.<br />

− De manhã ou de tarde?<br />

− Ao meio dia.<br />

− Quem estava presente?<br />

− Seus discípulos.<br />

− Meu senhor Sumo Sacerdote! Interveio Nicodemo. Declaro inaceitável este testemunho.<br />

− Com que fundamento, rabi dos fariseus?<br />

− As testemunhas de uma e a mesma coisa atribuem ao acusado duas expressões diferentes.<br />

− Mas o acusado pode ter dito ambas as coisas, advertiu o velho Hanan. Temos testemunho disso.<br />

− Meu senhor Sumo Sacerdote! Escrito está no Torah: “Duas testemunhas estabelecerão um fato”. A<br />

significação disto é que cada testemunha diga a mesma coisa, sem contradição. Ora, as duas testemunhas testemunharam duas<br />

expressões diferentes atribuídas ao acusado e com este fundamento declaro inaceitável o testemunho.<br />

O Sumo Sacerdote voltou-se para o intérprete da lei, o qual falou:<br />

− Concordo com o rabi dos fariseus. Dois testemunhos estabelecem um fato. Como as duas testemunhas não<br />

disseram a mesma coisa, o testemunho é inválido.<br />

− A lei está com o rabi dos fariseus, declarou o Sumo Sacerdote – e voltou-se para o Promotor: “Tens outra<br />

acusação a fazer conta este homem?”<br />

− Compareceram diante de nós, leu o Promotor, honradas testemunhas e depuseram que o homem que está<br />

diante de nós é um transviador que prega a rebelião e persuade o povo a afastar-se do serviço de Deus dos Judeus, segundo as<br />

leis e mandamentos, e que...<br />

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“ O N A Z A R E N O “ - S H O L E N A S C H<br />

Mas aqui Nicodemo levantou-se e interrompeu a leitura da acusação.<br />

− Meu senhor Sumo Sacerdote! Protesto contra a acusação do Promotor, mesmo antes de ouvir as testemunhas.<br />

− Com que fundamento? perguntou o Sumo Sacerdote.<br />

− Um transviador é um homem que afasta o povo do nosso Deus e o persuade a adorar ídolos. Há testemunhas<br />

que deponham diante desta corte que o homem aqui presente rebelou o coração do povo contra o Deus vivo e persuadiu-o a<br />

adorar ídolos?<br />

O Promotor continuou:<br />

− Diante de nós compareceram testemunhas que testemunharam que este homem as induzia à rebelião – que<br />

servissem a Deus não de acordo com as leis e mandamentos, como interpretados pelos sábios, mas segundo suas próprias<br />

interpretações pessoais.<br />

De novo meu rabi se ergueu, como o rosto inflamado, e falou em voz altissonante:<br />

− Protesto contra a acusação e peço que seja riscada dos autos antes de ouvida outra testemunha.<br />

− Com que fundamento, rabi dos fariseus?<br />

− Meu senhor Sumo Sacerdote, cada judeu tem o direito de interpretar as leis e mandamentos de acordo com a<br />

sua compreensão, contanto que se firme no Torah. Esse o nosso privilégio. Temos sábios de várias escolas, fariseus e saduceus.<br />

Se afirmardes que a lei só pode ser interpretada no espírito de vossos sábios saduceus, então tendes de trazer a julgamento<br />

todos os que aceitam outra interpretação. E então, de acordo com a acusação do Promotor, podeis trazer a esta corte todos os<br />

escribas e sábios fariseus e acusa-los de rebelião contra Deus e de pregar o culto dos ídolos – para o que a pena é de morte.<br />

Temos aqui um perigoso precedente que pode rasgar e reabrir velhas feridas em nosso povo. Há centenas de anos que esta<br />

disputa está travada. Ponderai, senhores membros do Sanhedrim, sobre o alcance desta acusação. E também peço que seja<br />

riscada e tida como não existente, antes que admitamos outra testemunha.<br />

gesto.<br />

Houve agitação entre os saduceus, murmúrios e confabulações. O Sumo Sacerdote restaurou a ordem com um<br />

− Ouçamos a opinião do nosso intérprete da lei.<br />

O velho intérprete saduceu, de longas barbas brancas, não deu resposta imediata. Esteve conferenciando com<br />

outros cabeças brancas. Depois declarou:<br />

− Isto é uma antiga calamidade de Israel; e afim de evitar a renovação dessas disputas, decidimos não manter a<br />

acusação de rebelde contra Deus e de idolatria enquanto ele se baseie no Torah, mesmo que o acusado negue a tradição aceita<br />

pelos sábios. Unicamente o que afasta o povo do Deus vivo e o conduz à idolatria, só esse será chamado transviador.<br />

− Promotor, disse o Sumo Sacerdote, tens testemunha que possa depor contra este homem por crime de rebelião<br />

contra o Deus vivo e idolatria?<br />

− Meu senhor Sumo Sacerdote! respondeu o Promotor. Para essa acusação não tenho testemunhas.<br />

− Tens testemunhas para qualquer outra acusação conta este homem? Tornou o Sumo Sacerdote.<br />

− Não tenho mais acusações contra ele, Sumo Sacerdote, respondeu o Promotor.<br />

Meu rabi ergueu-se e em voz triunfante exclamou:<br />

− É de todos sabido que este homem aqui de pé diante de nós aproximou do nosso pai do céu o coração das<br />

gentes de Israel. Proponho portanto à esta corte que...<br />

Mas o Sumo Sacerdote ergueu a mão num gesto indicativo de que o direito de encaminhar o processo lhe<br />

incumbia; reconhecendo a prerrogativa, meu rabi curvou-se e desistiu da palavra.<br />

Calmamente o Sumo Sacerdote falou:<br />

− Meritíssima corte! Ouvimos as decisões dos intérpretes da lei relativas às acusações contra o homem que aqui<br />

está diante de nós. Também ouvimos do Promotor que não tem mais do que o acusar. Mas, senhores membros do Sanhedrim,<br />

continuou Kaifa alteando a voz e parecendo muito mais velho, estaremos preocupados com esta ou aquela palavra que este<br />

homem tenha dito? Estaremos realmente preocupados com palavras? Não. Estamos aqui preocupados com matérias que dizem<br />

respeito às nossas mais altas santidades. Quem é esse homem que está de pé diante de nós? Com que direito e autoridade diz<br />

ele o que diz e faz? Neste ponto só uma testemunha poderá esclarecer-nos e essa testemunha é ele mesmo. E voltando-se para o<br />

nazareno, encarou-o e não pôde continuar. Entrou a respirar pesadamente, e como quem procura as palavras. Por fim disse,<br />

com voz trêmula:<br />

− Em nome do Deus vivo, eu te intimo a dizer se és o Messias.<br />

Fez-se profundo silêncio de expectação. Tudo parecia no ar, à espera. O nazareno abriu os lábios e em voz clara<br />

respondeu ao Sumo Sacerdote, mas seus olhos não se puseram nele, estavam voltados para longe dali.<br />

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muito pura:<br />

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− Atah kamarta! Tu o disseste.<br />

O nazareno pronunciou essas palavras e fez uma breve pausa, como para tomar fôlego. Depois continuou em voz<br />

− Mas vos digo que de hoje em diante vereis o Filho do Homem sentado à mão direita do poder e localizado nas<br />

nuvens do céu.<br />

Nenhum membro do Sanhedrim pronunciou uma palavra. Estavam à espera de que o teto se rompesse e o céu se<br />

abrisse afim de testemunhar as palavras ditas pelo nazareno. Nada aconteceu. Súbito, um rumor de tecido rasgado. Era o Sumo<br />

Sacerdote que em sinal de desolação despedaçara o seu manto de purpura. E a seguir todos os mais membros do Sanhedrim<br />

fizeram a mesma coisa – e no mortal silêncio só se ouvia o som de fazenda rasgada.<br />

− Vede! proclamou o Sumo Sacerdote. Que necessidade temos de testemunhas? Todos vós ouvistes a blasfêmia<br />

– e agora pergunto pelo veredictum da corte, disse voltando-se para o membro mais moço do tribunal.<br />

− Filho da morte! foi a sentença que deu esse membro do Sanhedrim.<br />

− Filho da morte! repetiu o segundo.<br />

Mas neste ponto o meu rabi interveio. Pôs-se de pé, ergueu a mão e disse:<br />

− Meu senho Sumo Sacerdote, eu protesto!<br />

O Sumo Sacerdote fez sinal à corte de chamada suspensa.<br />

− Qual o seu protesto, rabi Nicodemo? Não ouviu a blasfêmia proferida contra a mais alta santidade?<br />

− Meu senhor Sumo Sacerdote, o que ele disse não é blasfêmia. O acusado não pronunciou o Nome Inefável – e<br />

a lei diz: “O blasfemo não é culpado antes que mencione especificamente o nome do Deus em todas as suas formas”. O<br />

acusado só disse “o poder” e não pronunciou o Nome Inefável. De acordo com as nossas leis, isso é apenas insolência e tem<br />

como castigo o açoite.<br />

− Ouviremos os nossos intérpretes da lei sobre a objeção do rabi Nicodemo, disse o Sumo Sacerdote.<br />

O intérprete Todros não se consultou com os seus assistentes; respondeu de pronto:<br />

− Não levamos em conta as leis dos fariseus em matéria de blasfêmia. A investigação está sendo conduzida no<br />

espírito da interpretação saducéia. Todos nós ouvimos o acusado enunciar uma blasfêmia contra o nome do Sagrado Um, o que<br />

o torna um filho da morte!<br />

− Sumo Sacerdote! exclamou o meu rabi. Esta sessão não foi convocada para julgamento e sim unicamente para<br />

investigação.<br />

− Não pronunciaremos sentença, rabi Nicodemo. Não podemos pronunciar sentença, nem temos o poder de<br />

executa-la. Isso cabe a outros, respondeu Kaifa.<br />

− Nesse caso, libertemos o acusado.<br />

− Somos forçados a entrega-lo ao governo, o qual no-lo entregou para este exame de investigação.<br />

− Entregá-lo ao governo? Por que decide o governo este caso e não nós? interpelaram diversas vozes. E<br />

Nicodemo perguntou: “Acusado de quê, Sumo Sacerdote, o entregais ao governo?”<br />

− Acusado do que a investigação revelou – de dizer-se o Filho do Homem, que se sentará à mão direita “do<br />

poder”, o que quer dizer, segundo o que ele mesmo prega ao povo, que ele é o Messias. De quê outro modo podemos entender<br />

suas palavras?<br />

Meu rabi empalideceu: “Entregá-lo ao governo com a acusação do que ele se chama a si próprio o Messias? Mas<br />

isso quer dizer pena de morte. Como fazermos semelhante coisa? Como entregarmos uma alma em Israel às mãos dos<br />

malvados?”<br />

− Rabi Nicodemo! exclamou o Sumo Sacerdote, que também empalidecera. Se não o entregarmos ao governo<br />

depois das palavras que ele aqui disse e todos ouvimos, sinal isso será de que as consideramos verdadeiras; e se as<br />

consideramos verdadeiras, temos de nos prostrar aos seus pés e proclamá-lo o Messias. Ninguém – ninguém na história do<br />

nosso povo, jamais ouviu tais palavras, nem Abraão, nem Moisés, nem o Rei Daví. Vamos então nós crer que o acusado é<br />

maior que eles, é mais que sangue e carne, está acima de todos os mortos e vivos e é (Deus que me perdoe!) a segunda<br />

autoridade depois da suprema? Podemos admitir que há duas autoridades?<br />

− Não o permita Deus! gritaram vozes.<br />

O Sumo Sacerdote voltou-se para o meu rabi:<br />

− Estás pronto, rabi dos fariseus, a lançar-te aos pés do acusado e a reconhece-lo como o que ele diz ser?<br />

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− Não o permita Deus! exclamou tal qual os outros o meu rabi. Mas me incumbe reconhece-lo como o que ele<br />

diz ser. E também não me incumbe entrega-lo às mãos dos malvados, que fatalmente o condenarão à morte.<br />

− Rabi Nicodemo, nós, os saduceus, não acreditamos em um Messias do céu. Mas vós, fariseus, acreditais – e<br />

como então falas como acabas de falar? Um Messias realiza o que diz ou morre pelo que disse. Interpela tu o acusado. Se ele<br />

se crê o Messias, poderá dar prova disso amanhã diante de Pilatos.<br />

Mas meu rabi não cedeu.<br />

− Meu senhor Sumo Sacerdote! O Torah estatui: “Não derramarás o sangue de teu irmão” – e que temos aqui?<br />

Temos a entrega duma alma em Israel às mãos dos gentios. Se este homem transgrediu a fé dos judeus, só pelos judeus pode<br />

ser julgado. Desde quando admite Israel estrangeiros em seu jardim, para escoimá-lo das ervas loucas? Israel limpa o seu<br />

próprio jardim. “E tu queimarás o mal nascido em teu seio”. Tu e não o estrangeiro. Peço, pois, aos sábios e rabis aqui<br />

presentes que não entreguem uma alma em Israel às mãos de Edom, e que adiem o processo deste caso para depois das festas.<br />

Reuniremos então o pleno Sanhedrim e agiremos de acordo com o que manda o Torah.<br />

Hanan.<br />

Causaram forte impressão as palavras do meu rabi e foram apoiadas por Eliezer, filho do antigo Sumo Sacerdote<br />

− Meu senhor Sumo Sacerdote! Com permissão de meu pai, disse Eliezer, direi que as palavras do rabi<br />

Nicodemo são as mesmas que eu teria pronunciado. A transgressão é contra a fé judaica: houve blasfêmia do nome de Deus, o<br />

Templo foi profanado, o Sacerdócio difamado – tudo negócio nosso, dos judeus. Conservemos o governo fora disso. Que tem o<br />

governo a ver com isto? Que seja o acusado submetido ao julgamento de Israel.<br />

dom seu.<br />

Ergueu-se então o velho Hanan e o silêncio foi profundo. Cofiou a barba e falou macia e facilmente, como era<br />

− Meu senhor Sumo Sacerdote! Com permissão dos sacerdotes e sábios, deixa-me recordar a esta assembléia,<br />

que nós não podemos sonegar este caso ao governo, nem teríamos autoridade para fazê-lo, se o pudéssemos. Na realidade já<br />

fizemos uma tentativa e falhamos. Ninguém ignora que há várias semanas o acusado aparece nos pátios do Templo e fala ao<br />

povo. Nunca o molestamos, embora nos chegassem aos ouvidos suas palavras e parábolas denunciadoras do Messianato. Não<br />

demos importância a essas sugestões. Também fomos informados de seus flamantes ataques contra os sábios e anciãos, tanto<br />

saduceus como fariseus. Pulamos por cima e nada fizemos contra ele. Mas observamos seus atos e investigamos a doutrina que<br />

ensinava, concluindo que era um rabi fariseu da escola de Hillel, convicto da ressurreição e do advento do Messias. E apesar de<br />

seus ensinamentos não estarem dentro do nosso espírito, não o proibimos de ministrá-los, convencidos de que por meio de boas<br />

parábolas ele aproximava de Deus o coração da gente simples, dissuadia-a de praticar o mal – e afastava-a das teias de Bar<br />

Abba. E assim durante todo o inverno. Mas findo o inverno soubemos que Bar Abba tinha em preparo uma revolta para os dias<br />

da Páscoa e com esse fim juntava armas e homens em Jerusalém. E pois consideramos de nosso dever avisar o governo, para<br />

que não fossemos acusados de mancomunação com o golpe de Bar Abba. E por esse tempo quando o governo só esperava um<br />

pretexto para inundar de sangue as ruas, o acusado permitiu-se entrar em Jerusalém em procissão proclamatória da sua realeza.<br />

E, como se não fosse bastante, ainda irrompeu nos pátios do Templo e expulsou vendedores de pombas e cambistas, lá<br />

estacionados por amor à comodidade dos peregrinos, e também atacou a ordem de coisas estabelecidas já de tantas gerações.<br />

Criou grande tumulto, chamou ao Templo antro de ladrões, falou com profundo desprezo dos sacerdotes, dos sábios e escribas.<br />

Mandamos-lhe mensageiros com a pergunta: “Com que poder fazes essas coisas? Dá-nos um sinal da tua identidade”. Para<br />

estas questões tão importantes não nos deu ele nenhuma resposta. Por acaso supondes, meus rabis e sábios, que o governo<br />

ignora isto? O governo sabe de tudo! Sabe até que em vez de mandar prender o acusado o sacerdócio lhe mandou mensageiros.<br />

E por isso o governo nos inclui na conspiração e nos intima ameaçadoramente a entregá-lo. E mandou no comando de toda<br />

uma coorte um tribuno, e Hegemon de Jerusalém, para operar conjuntamente com os nossos guardas na prisão deste homem.<br />

Estando as coisas neste pé, de que modo sonegar o caso ao governo? Meus rabis e sábios, se Jerusalém vos é cara e quereis<br />

evitar derramamento de sangue nos pátios do Templo, se não quereis a santidade profanada com cadáveres nos dias da nossa<br />

festa, entregai ao governo este homem. Se ele é o que o povo diz, terá ensejo de o provar – e nesse ponto o velho Hanan<br />

voltou-se para o meu rabi: “Rabi Nicodemo, sei que em segredo e abertamente visitaste várias vezes este homem e lhe pediste<br />

um sinal. Pediste um sinal em nome dos judeus, como Moisés manda fazer para os que se apresentam como profetas. Nenhum<br />

sinal foi dado – mas pode ser dado agora. Deixemos que Pilatos seja esse sinal”.<br />

Vozes ergueram-se na assistência: “Deixemos que Pilatos seja esse sinal!”<br />

Os discípulos também gritaram lá de seus bancos: “Que Pilatos seja o sinal!” e até os escravos e criados e mais<br />

gente de serviço gritaram: “Que Pilatos seja o sinal!”<br />

− Sumo Sacerdote, observou o meu rabi, isso é pôr Deus em prova!<br />

− Não! Não neste caso. Não é pôr Deus em prova, mas sim pôr em prova este homem – e seu dedo apontou para<br />

Yeshua. O povo diz que ele é Elias o profeta. Ele que o prove agindo como Elias agiu!<br />

− Sumo Sacerdote! É proibido pôr as vidas dos homens em provas com milagres, gritou o meu rabi.<br />

− Mas Elias o profeta pôs a sua vida em prova com um milagre. Não concordas, rabi Nicodemo, que se Elias<br />

falhasse de fazer descer o fogo sobre os profetas de Baal ter-se-ia tornado um filho da morte nas mãos de Anhab? Mas Elias<br />

saiu triunfante da prova. Deixemos que o novo Elias faça um igual milagre diante dos profetas do novo Baal. E se o acusado o<br />

não conseguir, então “é melhor que um homem pereça do que pereça todo um povo”.<br />

254<br />

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4


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E o caso ficou ali. Obedecendo ordens, os servos do Sumo Sacerdote levaram da sala o rabi de Nazaré.<br />

Quando nos retiramos do recinto as névoas da madrugada envolviam Jerusalém. Ventinho frio. A fogueira do<br />

pátio era um braseiro moribundo.<br />

Vimos os soldados da coorte, com o tribuno à frente, passar com o nazareno de mãos novamente amarradas.<br />

Entre os escudos de aço, os corsoletes, elmos e espadas, suas vestes brancas brilhavam na palidez da hora. Ainda impoluta,<br />

parecia uma esponja que arde por embeber-se, ou um campo arado de fresco que anseia por explodir em flores.<br />

Os soldados lá seguiram com o nazareno rumo ao Procuratorium.<br />

Fora, junto ao portão da residência do Sumo Sacerdote, encontramos Simão bar Jonas. Estava de rosto apoiado<br />

no gradil, chorando.<br />

Das torres do Templo chegou-nos o toque das trombetas de prata. A primeira turma de sacerdotes ia entrar no<br />

serviço matutino.<br />

Hegemon, pode contar-me o que houve com o nazareno na sua apresentação a Pilatos?<br />

255<br />

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O Hegemon começou:<br />

24<br />

24<br />

− Levamos o acusado ao Procuratorium, que naquela estação fora removido da Fortaleza Antônia para o palácio<br />

de Herodes, bastante espaçoso para acomodar várias coortes. Era de manhãzinha – o dia e a noite ainda lutavam no céu.<br />

Não ficava longe da casa de Kaifa o Procuratorium, estando ambos os edifícios situados na Cidade Alta. O<br />

palácio de Herodes era o último dos três grandes edifícios do lado norte, onde a descida começa. Todos estavam no sono<br />

quando chegamos e levamos o preso para as masmorra em baixo do pátio. Em sua cela lá estava o outro, Bar Abba.<br />

Não houve tempo para soldar as algemas e correntes da parede nos pulsos e pernas do preso, como era o uso,<br />

porque tinha ele de sair muito cedo para o novo julgamento. Deixamo-lo como estava, de mãos atadas. Muito escuro ali,<br />

mesmo ao meio-dia, e naquela hora era um buraco negro. Mas antes de o descermos na masmorra os primeiros raios do sol a<br />

nascer a leste iluminaram-lhe o rosto.<br />

Durante os longos anos que passei no serviço do César muitas ocasiões tive eu de ver homens encarando a<br />

morte: vi os que eram levados para a cruz, os condenados às galeras, os lançados aos leões nas arenas. Mas em nenhum rosto<br />

de condenado nunca vi tanta dor, tanta desventura, tanto abatimento e tanto anseio de vida como em meu aterrorizado preso. O<br />

medo da morte paralisava-lhe os músculos. Seus olhos se dilatavam como se estivessem vendo um abismo pronto a receber seu<br />

corpo. E eu disse comigo: “Este então, é o homem que veio libertar os judeus? O redentor? Um homem com pavor da morte? a<br />

isto chamo eu covardia”.<br />

− Não, não era covardia, declarei eu. Era piedade.<br />

− Seja, concordou o Hegemon com ar incrédulo. Mas não ficou muito tempo em sua cela. Soaram as trombetas<br />

do primeiro quarto e nós vimos a maciça figura de Pilatos descer os degraus dos cômodos internos, de rumo ao pretório, em<br />

companhia de seus assistentes. Pretório era o nome dado ao recinto em elevação e em aberto no pátio interior do edifício. Ali<br />

recebia Pilatos as deputações públicas e realizava os julgamentos. Em outras ocasiões era admitido o público, mas no caso de<br />

Yeshua não havia lá um só judeu. Talvez o medo de contaminar-se com o nosso contato, em plena festa da Páscoa. Também os<br />

criados e mensageiros do Sumo Sacerdote não puseram o pé ali, mas como tinham acompanhado o nazareno ficaram nos<br />

portões. Mas à medida que o sol se levantava, um murmúrio de foi erguendo do outro lado das paredes. Aparentemente toda<br />

Jerusalém sabia das ocorrências noturnas, e o povo começava a reunir-se para conhecer o resultado do julgamento e pedir a<br />

Pilatos a libertação dum dos dois presos. Breve tudo se esclarece: o ajuntamento em formação compunha-se de partidários de<br />

Bar Abba, cujo nome era claramente discernível na gritaria.<br />

Os preparativos para o julgamento estavam completos. A cátedra do Procurador ficava entre os tamboretes dos<br />

tribunos e escribas. Numerosos soldados fora de serviço apinhavam o Pretório, curiosos de conhecer os rebeldes que iam ser<br />

condenados.<br />

Pilatos amanhecera de mau humor. Percebi-o pela expressão de seu rosto e o desconfiado dos olhos. Mais tarde<br />

vim a saber que não passara bem a noite. Tinha havido um banquete e o cozinheiro egípcio caprichara nos faisões que o Sumo<br />

Sacerdote fizera vir de longe e mandara de presente ao Procurador. Pilatos e seus hóspedes comeram em excesso e rebateram<br />

os faisões com vinho de Chipre – daí a má noite. (Sempre que estava em Jerusalém e se banqueteava, Pilatos e seus hóspedes<br />

sobrecarregavam o estômago.) Mas, fosse lá qual fosse a causa, seu mau humor era grande e ele queria acabar com aquele<br />

julgamento, o mais depressa possível. Também o estava irritando a grita dos judeus diante do palácio.<br />

Sentou-se Pilatos na cátedra do julgamento, abriu a boca num bocejo com um pouco de espuma nos cantos, e deu<br />

sinal aos funcionários para que começassem.<br />

Os guardas apresentaram-lhe o primeiro preso, o chefe de salteadores Bar Abba, cuja enorme cabeça se inclinava<br />

para o chão por força da corrente que prendia a gargalheira às pernas. Tinha o enorme peito descoberto, mas não pude ver-lhe a<br />

barba por causa da posição das cadeias. Um perfeito touro acorrentado. Pilatos nem sequer pousou nele os olhos. Perguntou ao<br />

tribuno da direita qual era o crime.<br />

Aconteceu ser esse tribuno o velho Petrônio, o qual disse em resposta que se tratava dum assassino, salteador de<br />

estrada e rebelde. “Chefiava bandos e atacava os viajantes ricos. Assaltava casas e roubava o que podia. Coletava armas para<br />

um levante contra os romanos, a realizar-se durante esta Páscoa, como descobrimos. Sua prisão custou a vida de diversos<br />

legionários”.<br />

− Açoite e cruz. E fique seu corpo na cruz para ser comido pelos corvos.<br />

Bar Abba foi levado dali.<br />

Houve um pequeno incidente antes da apresentação do segundo preso. Um escravo aproximou-se, ajoelhou-se e<br />

apresentou a Pilatos uma lâmina de cera. Pilatos lançou os olhos sobre o que estava escrito. Fez-me sinal e mostrou-me a<br />

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lâmina. Era um recado de sua esposa Claudia: “Não ergas tua mão contra o homem justo. Muito sofri esta noite por causa<br />

dele”.<br />

nazareno.<br />

Bom, tenho agora de explicar o que se passava em outro ponto, enquanto estive ocupado com a prisão do<br />

Lembras-te do que falei daquela Negra Hannah que conhecemos em Roma e freqüentava as altas rodas<br />

aristocráticas? A mulher dos filtros de amor, dos encantamentos, das pomadas, dos perfumes e mais coisas do Oriente – e<br />

também a aliciadora de adeptos do Deus judeu? Sua intimidade com as damas da corte dava-lhe grande influência em Roma. O<br />

próprio Pilatos a ela recorrera quando fazia a corte a Cláudia.<br />

Pois a Negra Hannah estava por aquele tempo em Jerusalém e tornara-se uma das primeiras conversas à doutrina<br />

de Yeshua, como tantas outras mulheres.<br />

Durante a curta visita de Pilatos e Cláudia a Jerusalém diversas vezes encontrei-a no Procuratorium. Revivera o<br />

seu velho conhecimento com Cláudia e de novo lhe fornecia filtros. E fora quem enchera a cabeça de Cláudia com a história<br />

dos maravilhosos feitos do rabi, e falara do poder que tinha ele sobre espíritos e homens, de suas ressurreições de mortos, curas<br />

de doentes e amaldiçoamentos de árvores.<br />

Cláudia já me havia interpelado várias vezes sobre o rabi, sobretudo depois que o vira de relance montado num<br />

asno, rumo ao Templo numa procissão de adeptos. Hannah havia causado tal impressão no espírito de Cláudia com suas<br />

fantásticas histórias, que a noticia da prisão do rabi aterrorizou-a horrivelmente. Muito cedo naquele dia, Hannah fora vista a<br />

esgueirar-se no Procuratorium: tinha vindo pleitear a favor do seu rabi a intervenção de Cláudia – e aquelas palavras mandadas<br />

a Pilatos eram o resultado.<br />

− A Negra Hannah esteve aqui esta manhã, disse eu a Pilatos.<br />

− Oh, essa mulher exerce terrível influência sobre Cláudia! Se me aparece cá novamente, entrego-a às tropas<br />

para o açoite, rosnou Pilatos – e afastou de si a lâmina e mais o escravo que a trouxera. Depois disse: “Trazei o outro preso!”<br />

Os guardas trouxeram Yeshua de Nazaré. De pé diante de Pilatos, em suas vestes alvadias, dava idéia duma<br />

criança em roupas de adulto. Yeshua olhava para tudo, menos para o homem de que tudo dependia – era como se não houvesse<br />

dado por ele.<br />

O Procurador divertiu-se uns momentos a examiná-lo.<br />

− Galileu? perguntou-me.<br />

− Sim.<br />

− Logo vi.<br />

Eu era o tribuno que relatava o caso do galileu; tomei a palavra e disse: “Bar Abba foi o organizador do levante,<br />

mas este era o chefe espiritual. Muito mais perigoso que Bar Abba, porque Bar Abba pode ser abatido com armas, ao passo que<br />

este sabe penetrar no coração de seus seguidores, inflama-lhes a imaginação, dissuade-os da obediência a César e incita-os a se<br />

prepararem para outra vida e outra ordem em que ele será o Messias”.<br />

− Messias! Messias! Repetiu Pilatos. Já ouvi esta palavra. Que quer dizer?<br />

Procurei explicar. “O Messias – uma imaginação popular sobre um libertador que vai aparecer mandado pelo<br />

Deus deles. Com suas mágicas, esse Messias conjurará hostes do céu e fa-las-á caírem sobre todos os seus inimigos. E eles<br />

destruirão Roma – que chamam Edom – e nos chacinarão a todos nós, ao César, aos generais e às tropas. E depois então esse<br />

Messias governará o mundo inteiro.<br />

− E acreditam eles nisso? Tomam isso a sério?<br />

− Tomam, e vivem à espera do Messias.<br />

− Então todos devem ser crucificados juntamente com este homem, rugiu Pilatos. E dão-no ainda como rei dos<br />

judeus? acrescentou num acesso de riso.<br />

− Ele próprio se proclamou rei e entrou em Jerusalém montado num asno e seguido de uma multidão de adeptos<br />

que o proclamavam Messias.<br />

− Sim, sim. Estou-me recordando. Não é o homem que vimos na procissão, naquele dia que fomos ao teatro?<br />

− Justamente. No dia seguinte ele invadiu os pátios do Templo e expulsou os mercadores e cambistas –<br />

expulsou-os com uma corda. Temos base para afirmar que os sábios, e até os sacerdotes, queriam sonega-lo às nossas mãos e<br />

só no-lo entregaram por causa das ordens estritas que destes. Todos esperam vê-lo realizar grandes milagres, conforme sua<br />

promessa. Quando ele os libertar do nosso domínio, coroá-lo-ão rei dos judeus. Lá fora a multidão espera o momento em que<br />

ele nos aniquilará com um sopro.<br />

Olhei para Pilatos. Seu rosto esverdecera, parte de ódio, parte de medo; e sinceramente creio que lá no fundo do<br />

coração tornou-se inquieto com a presença daquela mística e incompreensível personalidade vestida de branco, silenciosa e<br />

imóvel, profundamente grave, como se realmente pudesse com um sinal fazer que hostes descessem dos céus.<br />

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− Sim, sim. São coisas que já me dissestes antes. E voltando-se para o preso: “És então o rei dos judeus?”<br />

Yeshua respondeu sem olhar para Pilatos, como se houvesse recolhido a si mesmo para falar.<br />

− Atah kamarta!<br />

− Que quer dizer isso em nossa língua? perguntou-me Pilatos, e eu respondi: “Tu o disseste”.<br />

Pilatos voltou-se de novo para Yeshua:<br />

− Então o confirmas?<br />

Yeshua não deu resposta.<br />

− Não sabes que está em minhas mãos libertar-te ou pregar-te na cruz? Ignora diante de quem te achas?<br />

Yeshua não respondeu.<br />

− Já investigou o Sanhedrim este caso? perguntou-me Pilatos<br />

− Sim, esta noite.<br />

− De que o acharam culpado?<br />

− De blasfêmia. Estão aí fora. Não querem entrar de medo de contaminação.<br />

Um sorriso de ironia passou pelos lábios de Pilatos.<br />

− Se é assim, ir-me-ei a eles.<br />

Diante do Procuratorium erguia-se uma alta plataforma de mosaicos, onde as proclamações e rescritos do César<br />

eram dados ao povo. Sobre os cinco largos degraus a ela conducentes estavam os mensageiros do Sumo Sacerdote, juntamente<br />

com o Promotor. Toda a área em redor enchera-se do povo que ali começara a juntar-se desde manhãzinha. Mulheres, poucas.<br />

Aqui e ali caras e corpos truculentos – partidários de Bar Abba, ou gente dos seus bandos. Vinham pedir a Pilatos a soltura do<br />

salteador. E antes que Pilatos abrisse a boca, uma grita soou – num misto de raiva e pedido:<br />

noite.<br />

− Liberta-nos Bar Abba!<br />

− Queremos a libertação de Bar Abba nesta festa.<br />

− Restitui-nos Bar Abba!<br />

− Bar Abba!<br />

− E que farei do Rei dos Judeus? Perguntou Pilatos com ironia.<br />

O povo não sabia de quem Pilatos falava. Pela maior parte aquela gente não tivera notícia de prisão de Yeshua à<br />

− Que rei dos Judeus?<br />

− O vosso Messias.<br />

− Aquele que curava doentes?<br />

− O Profeta de Nazaré?<br />

− Quando foi ele preso?<br />

− Não vedes lá os Filhos de Hanan?<br />

− Silêncio! O Procurador quer falar.<br />

Pilatos voltou-se para o Promotor, ali entre os mensageiros do Sumo Sacerdote:<br />

− Que mal encontrastes neste homem a quem chamais rei dos judeus? perguntou.<br />

− Publicamente, diante do Sumo Sacerdote, declarou ele que se sentaria à mão direita do poder e que viria com<br />

as nuvens do céu, foi a resposta do interpelado.<br />

− Que quer isso dizer? inquiriu Pilatos, surpreso.<br />

− Quer dizer que se sentará à mão direita de Deus.<br />

− Demente! Exclamou Pilatos.<br />

− Nosso Pai do céu! uivaram muitas vozes. Isto é blasfêmia contra o Altíssimo e coisa que pede a morte. Disse<br />

realmente ele isto?<br />

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nem Daví.<br />

morte.<br />

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− Se não o pode provar, é blasfêmia. Ninguém no povo judeu jamais falou assim – nem Abraão, nem Moisés,<br />

− De que mais é ele acusado?<br />

− De ter-se declarado o Rei-Messias.<br />

− E qual a pena para isso?<br />

− Se não puder provar com um sinal, ou se produzir um sinal mas tentar induzir-nos a adorar ídolos, a pena é de<br />

− Nunca nos persuadiu ele a adorar ídolos, e sim a servir ao Deus Único e Vivo! Gritaram vozes na multidão.<br />

− Ele não pode mostrar o sinal!<br />

− Vai mostra-lo, sim, agora, diante de Pilatos.<br />

− Quereis que eu vos restitua o vosso Rei dos Judeus? perguntou Pilatos à multidão.<br />

− Que história é essa? Que diz ele?<br />

− O Procurador pergunta se em homenagem à festa quereis a libertação de Bar Abba ou a do Rei dos Judeus?<br />

A multidão fez uma pausa, e o debate irrompeu em mil pontos; mãos se erguiam no ar e barbas eram puxadas. O<br />

Procurador e seus assistentes olhavam para a cena, divertidos.<br />

outros.<br />

− Vede como estes judeusinhos disputam, disse Pilatos, rindo-se e apontando. Acabam vazando os olhos uns dos<br />

Gritos soaram:<br />

− Ele não é rei dos judeus. É um blasfemo!<br />

− Não. É um santo! Ninguém sabe quem ele é. Vai mostrar-nos um sinal – quem viver verá.<br />

− Ele nos mandou que pagássemos o tributo ao César! Que Messias é esse que mandar pagar tributo ao César?<br />

− Ele curava os nossos doentes. Fazia assombros. Expulsou do Templo os Filhos de Hanan – e foi por isso que o<br />

entregaram ao governo.<br />

Neste ponto meu amigo Hanan ben Hanan subiu a plataforma e gritou:<br />

− Quantas vezes não vos apresentastes diante dele e lhe pedistes um sinal de que era realmente o Rei-Messias? E<br />

que sinal vos deu? Nenhum. Pois agora que prove, como no Carmelo, Elias provou o que disse. Que destrua os profetas de<br />

Baal!<br />

− Vejamo-lo destruir com um sopro os profetas de Baal!<br />

− Vejamo-lo sentar-se nas nuvens à mão direita do poder!<br />

− Que Pilatos seja o seu sinal!<br />

− Que seja Pilatos o seu sinal!<br />

− Estão pronunciando meu nome, murmurou Pilatos. De que se trata?<br />

− Pedem que como Messias o acusado dê um sinal de seu poder – e que esse sinal sejas tu.<br />

O rosto de Pilatos avermelhou de raiva; seu pescoço taurino fez-se apopléctico. Dominou-se, porém, e com um<br />

sorriso forçado perguntou novamente à massa humana:<br />

− Quereis que eu liberte o Rei dos Judeus?<br />

− O Messias se libertará por si mesmo!<br />

Pilatos não respondeu, mas firmou-se numa resolução. Voltou ao Pretório e pôs-se diante do acusado. Pelo rosto<br />

de Yeshua perpassaram ondas de dor. O leve movimento de seus lábios era de quem quer dizer alguma coisa, mas o selo da<br />

maior dor do mundo mantinha-os silentes.<br />

− Ouviste o que disse o povo? indagou Pilatos.<br />

O prisioneiro não ergueu os olhos e Pilatos voltou-se para o tribuno, ao qual ordenou: “Solta Bar Abba”.<br />

O tribuno de Bar Abba, o velho Petrônio, muito conhecedor da Judéia, pois servira sob outros procuradores,<br />

encheu-se de coragem e disse:<br />

− Procurador, Bar Abba é um rebelde perigoso. Esteve levantando o povo contra Roma. Se não houvéssemos<br />

obtido informações a tempo, muitos soldados teríamos perdido. É homem culpado de diversos crimes. Pensa nos legionários<br />

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que sacrificaram a vida na luta para prende-lo. Mas esse outro ao qual chamam Rei dos Judeus, desse não sabemos que haja<br />

praticado crime nenhum. Sangue nenhum foi derramado por sua causa. E a informação que temos é de que aconselhava ao<br />

povo que pagasse o tributo devido a César. Mas Bar Abba sempre pregou a sonegação do tributo e o levante contra Roma.<br />

Cedes, então, Pilatos, diante do clamor da plebe?<br />

Pilatos encolerizou-se e, como sempre acontecia quando a cólera o empolgava, uma onda de sangue lhe afluiu à<br />

enorme cabeça calva, e seu peito de estufou de arrebentar. Derrubando os cantos da boca, rosnou com desprezo para Petrônio:<br />

− É muito mais perigoso para todos nós o espírito hebreu do que o punho hebreu. Vamos! Entrega esse homem<br />

aos soldados. Açoitai-o e crucificai-o! Coroai-o de Rei dos Judeus!<br />

Entre as tropas que enchiam o espaço em redor do Pretório havia muitos homens da cavalaria germânica,<br />

auxiliares que sempre reuníamos em Jerusalém por ocasião das festas. De todos os nossos soldados eram os mais odiados e<br />

temidos por parte dos judeus, terror e inimizade que vinham dos tempos de Herodes, o primeiro que usou os germânicos para<br />

manter a sujeição judaica. Muitos que envelheceram no serviço e não podiam continuar no exército passaram-se para o<br />

emprego do Sumo Sacerdote, o qual os fazia circuncidar para conservá-los em Jerusalém como escravos e usá-los como<br />

guardas. Os velhos germânicos eram ótimos para isso e recebiam boa paga e boa alimentação. Tinham como armas uns bastões<br />

curtos de nome Eileh, referidos nas grosseiras canções contra o Sumo Sacerdote.<br />

O comandante dos guardas germânicos, era um homem de má cara e olhar facinoroso; sempre fora o terror dos<br />

judeus. Hermanus chamava-se – e a Hermanus foi o preso entregue.<br />

Eu tinha observado esses homens durante o julgamento. Vi-os ansiosos, na ponta dos pés, ganindo como mastins<br />

à espera de um osso. Quando ouviram que aquele homem pálido e magro estava acusado de dar-se como rei dos judeus, uma<br />

gargalhada brutesca os sacudiu. E agora que lhe entregavam a vítima, a alegria deles era a do lobo ao qual lançam uma ovelha.<br />

Hermanus agarrou o preso pela mão, fazendo uma careta que intentava ser sorriso, uma hedionda careta. Na sua<br />

imensa bestialidade aquele germânico não sabia sorrir, e seu todo me fez lembrar as lúgubres florestas negras em que o sol<br />

jamais penetrava e em que ele nascera – e os pântanos onde passara a infância. O monstro arrastou o prisioneiro para o pátio<br />

interno e gritou para os soldados:<br />

− Eia! Vamos coroa-lo Rei dos Judeus.<br />

Havia ali um alto poste com argolas ao qual atavam os prisioneiros condenados ao açoite e à cruz. O que fizeram<br />

com Yeshua não sei. Não acompanhei os soldados, que ficaram com ele longo tempo. Mas não ouvi um só grito ou gemido da<br />

vítima. Fora do Procuratorium ecoava a grita da multidão; era como vagas de sons batendo contra um dique – e recrescia à<br />

proporção que o povo aumentava.<br />

Por fim saiu do pátio interno Hermanus, puxando o prisioneiro pela mão para o lugar onde estavam Pilatos e sua<br />

comitiva. Hermanus curvou-se diante do homem torturado como se curvaria diante do César e, fazendo uma careta, proclamou:<br />

− O Rei dos Judeus!<br />

Olhamos para o condenado. Sobre sua cabeça grisalha vi uma coroa de espinhos – de espinhos que atravessavam<br />

os cabelos e se fincavam na carne. Gotas de sangue desciam de seus cachos e escorriam pelo pescoço e o corpo desnudo. Sim,<br />

o Rei dos Judeus estava nu diante de nós, com uma coroa de espinhos na cabeça, o corpo magro e branco riscado dos vergões<br />

vermelhos das vergastadas. Mas observei algo maravilhoso. Não era como se ele estivesse nu diante de nós, mas como se nós<br />

estivéssemos nus diante dele. Os lívidos vergões valiam sobre seu corpo como uma veste real, e ele não se vexava da nudez.<br />

Em seus olhos, a nós dirigidos, havia mais piedade do que vexame e amargor. E talvez só eu sentisse isso, porque devo<br />

confessar que naquele momento comecei a sentir uma certa fraqueza por esse rabi judaico; e talvez mesmo antes eu já<br />

houvesse sentido isso, quando o levei, tão melancólico e triste, para o escuro da masmorra. Talvez esse sentimento houvesse<br />

brotado em mim, sem que eu nada percebesse, quando o observei no julgamento, de pé diante de Pilatos e mudo às suas<br />

acusações. Sim, acho que meu senso do dever como tribuno já estava minado e eu enfraquecido na determinação de contra ele<br />

proceder vigorosamente. E adverti a mim próprio: “Cuidado, Cornélio! Esse homem começa a arrastar-te para dentro de seu<br />

círculo mágico”. Não era a atitude física do homem que operava em mim; era algo jacente em seu imo e transparente em seu<br />

olhar – um olhar manso que me atravessava e evocava estranhas emoções semíticas. Contra esse arrastamento eu lutara toda a<br />

manhã e agora eu me sentia mais arrastado do que nunca, ao vê-lo coroado de espinho e em sangue. Eu cedia, eu me fundia.<br />

Aqueles olhos me amarravam, me arrastavam para ele; e se eu me não defendesse, transformar-me-ia num daqueles tontos<br />

judeus sentimentais. Tirei dele meus olhos, apelei para minha vontade romana, pedi ajuda ao meu desprezo por aquela raça e o<br />

seu Deus. “Sim, Pilatos tem razão!” murmurei para mim mesmo. “O espírito hebreu é mais perigoso que o punho hebreu”, e<br />

pus-me a rir como os outros.<br />

− Será uma excelente coisa, disse eu a Pilatos, mandar este Rei dos Judeus à velha raposa. À guisa de sugestão:<br />

Ele que veja o que é um Rei dos Judeus.<br />

− Ótimo! Concordou Pilatos. Que o levem e entreguem a Herodes Antipatro. E como o preso é galileu tal qual<br />

Herodes, a sugestão terá um sentido especial.<br />

Tomamos Yeshua, com a coroa de espinhos na cabeça e as mãos atadas às costas, e penduramo-lhe ao pescoço<br />

um dístico com os dizeres “Rei dos Judeus” – e rodeado de soldados lá se foi ele para a praça hasmoneana. Quando o povo em<br />

frente ao Procuratorium viu Yeshua daquele modo, entrou em agitação. Vozes soaram:<br />

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− Por que está escrito “Rei dos Judeus” e não “O que se dava como Rei dos Judeus”?<br />

− Pilatos quer com isso insultar o rei dos Judeus.<br />

− Vede, é uma palhaçada de Pilatos.<br />

Muita gente acompanhou-nos até a praça que não era longe dali. Conduzi Yeshua através dos portões e palácio a<br />

dentro, por aqueles estreitos corredores de velho estilo asiático ou, melhor, babilônio. Num grande salão cinzento encontramos<br />

Herodes Antipatro. Estava sentado numa cadeira-trono, na extremidade mais na sombra e iluminada por lâmpadas, embora<br />

fosse dia de sol lá fora. Naquela meia penumbra pude notar uma palidez fora do comum no rosto do Tetrarca, palidez a que a<br />

débil luz das lâmpadas dava um tom mórbido. Herodes devia ter-se horrorizado bastante com o homem que via diante de si,<br />

coroado de espinhos e de rosto em sangue, pois vi que seu peito arquejava. Chegou a erguer-se da cadeira-trono, mas a<br />

dignidade o fez sentar-se de novo. Também ele, como os sábios judeus e os altos sacerdotes, esperavam um milagre. Porque a<br />

inquietação de espírito que durante toda a cena nele observei não cessava, e dificilmente ele ocultava sob a máscara da simples<br />

curiosidade, o que realmente sentia diante de Yeshua.<br />

profeta!<br />

− Então! exclamou Herodes. O homem que fazia mortos se erguerem da tumba! O homem dado como Elias o<br />

Súbito os olhos do Tetrarca deram com o letreiro “Rei dos Judeus” pendente do pescoço da vítima – e seu rosto<br />

fez-se lívido. De olhos a regirarem nas órbitas não pôde pronunciar uma só palavra. E eu confesso que senti prazer em assistir<br />

ao desmancho de feições daquele pretendente ao título de Rei dos Judeus. Encarei-o fixamente e gozei todos aqueles traços do<br />

terror, para mais tarde contá-los a Pilatos.<br />

A decaída pouco durou. Herodes sabia dominar-se. Voltou a calma a seu rosto, seus olhos normalizaram-se. Mas<br />

uma sombra de profunda tristeza ficou pairante em suas feições – e em silêncio ele olhava para o homem ali de pé à sua frente.<br />

A cena foi curta. O olhar de Herodes era sombrio, perturbado e incerto, como o do homem que força a vista no<br />

escuro e sente a boca dum abismo a seus pés. Embora sombreado pela dor, o olhar do homem de mãos atadas às costas era<br />

seguro e grave; pedia clemência e respondia com piedade. A troca de olhares terminou quando Herodes baixou os olhos para o<br />

chão, dominado pelos da vítima.<br />

− Que crime cometeu este homem? Perguntou Herodes.<br />

− Seu crime está escrito em seu peito, respondi.<br />

Herodes fingiu que via a inscrição pela primeira vez e rompeu num acesso de riso histérico. Até hoje não sei se<br />

era riso para enganar-me, para pôr de lado a venenosa ilação do dístico no peito do rabi ou para enganar-se a si mesmo e<br />

dominar o terror que lhe ia n’alma. Tanto podia ser uma coisa como outra, e talvez mais a segunda do que a primeira. Porque<br />

todos em Jerusalém estavam com medo do rabi de Nazaré. Jamais vi Herodes em tanta convulsão de riso. Agitava-se, agarrava<br />

a barriga e lágrimas saltavam de seus olhos.<br />

− O Rei dos Judeus! Ótimo!, ótimo! E por que não vesti-lo de púrpura? Tu aí! Trazei-lhe a purpura!<br />

Um assistente correu a buscar um manto púrpura, que lançou sobre os ombros de Yeshua.<br />

− Um rei deve vestir-se ao modo real, Hegemon. Transmiti meus agradecimentos ao Procurador. Dizei-lhe que<br />

esta feliz lembrança, varreu com todas as queixas que eu tinha contra ele. Pilatos a pensar no meu prazer! Pilatos é amigo.<br />

Herodes representou tão bem que vacilei e fiquei a pensar se realmente não estava sentindo o que dizia.<br />

− Leva-o e apresenta meus agradecimentos a Pilatos, repetiu ele num gesto de rei, despedindo-me.<br />

Reconduzi o preso ao Procuratorium.<br />

Quando o povo da rua viu Yeshua de manto púrpura e com sangue a lhe brotar da cabeça coroada de espinhos,<br />

houve uma geral erupção de lamentos.<br />

palhaçada.<br />

− Vê, ó Deus, a nossa vergonha! A boca do malvado está cheia do riso que lhe provoca a nossa miséria!<br />

Mas quando Pilatos e sua comitiva viram o Rei dos Judeus em toda a sua glória, eles acharam excelente a<br />

− Dêem-lhe um cetro! ordenou Pilatos.<br />

Um soldado pôs nas mãos de Yeshua uma vara.<br />

− Honra e glória, Rei dos Judeus! exclamaram os soldados passando diante dele e cuspindo-lhe no rosto.<br />

Enquanto isso, vários trouxeram do depósito do acampamento uma grande cruz de madeira. Pilatos olhou e fez<br />

que a aproximassem.<br />

Judeus”.<br />

− Escrevam essas palavras nas três línguas do país, ordenou ele, em latim, grego e hebraico. “Yeshua, Rei dos<br />

A inscrição foi feita sem demora.<br />

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− Bem, disse Pilatos. Mostrem-no agora ao povo em toda a sua glória.<br />

Assim que abrimos os portões do Procuratorium percebemos que uma total mudança se havia operado no<br />

espírito da multidão. Irrompeu o tumulto. Punhos cerrados se espichavam contra nós em meio a gritos de ódio. Era um levante!<br />

E foi com dificuldade que salvamos das mãos do povo o jovem Hanan ben Hanan, filho do velho Hanan. Nunca pude<br />

compreender o que houve entre a primeira e a segunda aparição de Yeshua ao povo como Rei dos Judeus. Pode esclarecer este<br />

ponto? Pediu-me Viadomsky.<br />

− Sim, porque fui testemunha da transformação, respondi. Mas para que bem me compreenda, preciso antes<br />

contar o que fez o meu rabi depois que saiu do julgamento na casa do Sumo Sacerdote.<br />

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O espirito do meu rabi sentia-se mal à vontade quando deixou a sala do pequeno Sanhedrim. Seu coração<br />

pressentia más coisas e ele guardou silêncio durante todo o trajeto até a casa de estudo; mas percebemos que seu sangue<br />

refervia. Não se demorou muito tempo na casa de estudo. Foi para o quarto e nós, seus discípulos, levamo-lhe água da cisterna<br />

para que lavasse o rosto e as mãos. Fez as suas orações da manhã enquanto lhe preparávamos a mesa: azeitonas e verduras,<br />

mas nada de pão, porque a Páscoa se aproximava. Nicodemo não tocou em nada, dizendo que tinha muita coisa urgente a fazer.<br />

A princípio pediu-nos que ficássemos na casa de ensino e nos deitássemos para descanso, sobretudo eu e Rufo, pois que<br />

estávamos acordados já de vinte e quatro horas. Tínhamos muito serviço lá em matéria de preparativos para a festa. Mas<br />

pedimos ao nosso rabi que nos deixasse ir com ele ao Templo, caso se estivesse preparando para lá ir ter com outros sábios. E<br />

como o nosso rabi consentisse, fomo-nos lavar e vestir e assim refrescados dispensamos o repouso – jovens que éramos! Meu<br />

amigo Rufo confessou que o esperavam em casa, para ajudar ao pai Simão Cirene. Naquela época do ano Simão costumava ir<br />

ao campo arrancar o mato nascido entre as oliveiras, e levava Rufo. Mas os acontecimentos do dia eram da maior importância<br />

que aquele costume, e Rufo obteve de Nicodemo permissão para faltar.<br />

Fomos os três para o Templo. Atravessamos a praça do mercado, onde os vendedores estavam começando a<br />

dispor suas mercadorias. Chegavam camelos do interior com cargas de vinho, óleo e peles, e acorria gente a fazer as últimas<br />

compras em geral pobres que só na derradeira hora haviam conseguido dinheiro. O sol brilhava pujante no céu, prometendo um<br />

magnífico prelúdio à festa. Vimos homens com pressa de rumo ao mercado dos carneiros: compradores retardatários de<br />

sacrifícios. E mulheres sentavam-se junto às suas cestas de verduras e as manipulavam.<br />

Ao passar por lá ouvi a conversa dos homens; diziam dos partidários de Bar Abba reunidos diante do<br />

Procuratorium para pedir a soltura do chefe. E realmente vimos por ali alguns deles a insistirem com os mercadores para que<br />

fossem engrossar a onda, mas essa catequese não surtia efeito; ou todos estavam muito ocupados com as compras ou então Bar<br />

Abba pouco os interessava. E sobre o que durante a noite sucedera ao rabi de Nazaré ninguém sabia nada.<br />

Encontrei os pátios do Templo tão ativos quanto o mercado. Peregrinos tinham afluído pela manhã para dizer<br />

suas orações e oferecer os primeiros sacrifícios. Estavam ocupados com seus próprios negócios, trazendo peças sacrificiais,<br />

pagando tributos devidos, ajoelhando-se e rezando ao tempo em que os sacerdotes faziam a oferenda para a paz do mundo e o<br />

bem-estar das setentas nações que o compunham. Também ali ninguém sabia das ocorrências noturnas.<br />

Os rabis e fariseus estavam reunidos em conselho para deliberação contra os sacerdotes, os quais haviam<br />

escolhido aquele ano para impor a interpretação saducéia da lei do sacrifício da Páscoa, interpretação essa que não dava à<br />

Páscoa precedência sobre o Sábado. Os fariseus planejavam realizar os sacrifícios segundo a lei do Torah, isto é, no décimo<br />

quarto dia do mês, à tarde, isto é, já no começo do Sábado.<br />

Quando meu rabi entrou na sala da reunião já viu lá Jochanan ben Zakkai e o rabi ben Simão, discutindo os<br />

sacrifícios que os sacerdotes tinham oferecido na véspera, no décimos terceiro dia do mês. O pensamento geral era declarar<br />

inválidos esses sacrifícios.<br />

− Eles querem retrogradar-nos aos dias de Alexandre Janeu e perseguir-nos como perseguiram Simão ben<br />

Shetah, disse um dos fariseus.<br />

− Mas não estamos no tempo do rei Janeu, declarou outro energicamente. O povo está do nosso lado. Temos de<br />

agitar o povo, para que o povo invada o pátio dos sacrifícios esta tarde.<br />

− Por meios mais brandos conseguiremos mais. Vamo-nos de novo aos sacerdotes e com eles discutamos; talvez<br />

os persuadiremos a não deixarem – Deus não o permita! – metade do povo sem sacrifícios.<br />

Meu rabi puxou de lado Jochanan Zakkai e o rabi Gamaliel e pô-los ao par do que havia. Ao saberem de como o<br />

processo de investigação tinha sido conduzido e que resultado dera, um calafrio os agitou. Jochanan ben Zakkai, afeito a não<br />

dizer uma só palavra, sem antes pesa-la cuidadosamente, irrompeu impetuoso:<br />

− Mas isso é um crime! Que tem a ver o governo com o caso? É negócio nosso. O homem é responsável perante<br />

nossos tribunais, não perante os tribunais do governo!<br />

− Dizem eles que o governo os compeliu.<br />

− Três coisas há, segundo a lição dos nossos sábios, em que um homem não pode ceder, ainda que o pague com<br />

a vida, gritou Jochanan ben Zakkai. Uma é derramar sangue. Se alguém é forçado a derramar sangue, morra mas não ceda.<br />

Eles deviam ter-se deixado matar antes de entregar o homem de Nazaré ao governo, porque isso é entregar o justo na mão do<br />

malvado. Rabi Nicodemo! Segundo o vosso relato o julgamento não foi conduzido dentro das leis de Israel. Foi realizado de<br />

noite e na véspera dum festival. Foi conduzido com parcialidade pela fração do tribunal que interpreta a lei de maneira não<br />

admitida pelos sábios. Por isso, seja lá o que tenha feito e dito o homem de Nazaré, e seja lá qual for a punição em que esteja<br />

incurso, aos nossos olhos ele está inocente até que seja condenado por uma corte judaica reunida de acordo com o Torah e<br />

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segundo todas as regras dos sábios e da tradição. E, portanto, temos que mover céus e terras, e juntar todas as nossas forças, e<br />

invocar todos os nossos direitos; e embora a festa se aproxime, devemos tudo pormos de parte afim de salvarmos da morte uma<br />

alma de Israel. Porque bem sabeis que salvar uma só vida eqüivale a salvar todo o mundo. Temos que abandonar tudo e irmos<br />

ao Sumo Sacerdote, e temos de lutar com unhas e dentes para a salvação dessa vida.<br />

O rabi Gamaliel aprovou aquela atitude.<br />

A câmara do S’gan ou Diretor Principal do Templo estava cheia de povo. O Diretor tinha de funcionar sem ser<br />

visto. Sentava-se à parte, não recebia ninguém; os múltiplos negócios ali tratados eram atendidos pelos seus assistentes, todos<br />

eles filhos e genros das famílias sacerdotais. Abrimos caminho rumo à sala privada do S’gan e lá, diante da porta, vimos Judas<br />

Ish-Kiriot. Estava com os olhos tão no fundo que quase desapareciam. Na mão sopesava um pequeno saco de dinheiro e<br />

discutia com os guardas da porta do S’gan, querendo entrar.<br />

− Tenho qualquer coisa a dizer a ele...<br />

− O Diretor não quer ver-te.<br />

− Mas preciso vê-lo. Preciso...<br />

Judas não deu pela entrada dos rabis e fariseus, diante dos quais todos se levantaram, exceto os tesoureiros<br />

sacerdotais, que nem sequer lhes deram um volver d’olhos. Os guardas da porta saldaram respeitosamente os rabis e<br />

apressaram-se em transmitir-lhes a mensagem ao S’gan.<br />

O S’gan, Jochanan, filho segundo de Hanan, que estava na linha para o Sumo Sacerdócio e para isso conservava<br />

aquela posição, veio receber os rabis. Vestia o mesmo manto púrpura que usara na reunião do Sanhedrim.<br />

Mas antes que ele falasse com os rabis, Judas lançou-se-lhe à frente com o saco de dinheiro na mão e gritou:<br />

− Toma-o! Toma o dinheiro maldito, o dinheiro da abominação!<br />

− Nada tenho com esse dinheiro; é teu, disse o S’gan. Ganhaste-o honestamente.<br />

Mas assistentes que haviam acorrido agarraram Judas pelos braços e espancaram-no por haver abordado daquela<br />

maneira o S’gan. E arrastaram-no dali. Judas esperneava e gritava:<br />

− Não quero o dinheiro da abominação! Ficai com o dinheiro maldito!<br />

E ao ser arrastado, Judas deu de súbito com os rabis Jochanan e Nicodemo. Fechou os olhos e seus uivos se<br />

transformaram em gemido:<br />

interpelou-o:<br />

− Ai de minh’alma! Ai de minh’alma!<br />

Mas ninguém já lhe dava atenção. Os sábios e fariseus tinham os olhos no S’gan. Jochanan ben Zakkai<br />

− Os sábios e os fariseus vieram saber com que autoridade e direito, os Sumos Sacerdotes entregaram uma alma<br />

em Israel às mãos de Edom.<br />

− Essa alma em Israel falou blasfematoriamente do Deus de Israel, como todos nós podemos testificar. Essa alma<br />

em Israel é um corruptor, pois persuade ao povo de que é o Messias. Essa alma em Israel precisa ser alijada de Israel.<br />

− O julgamento das almas de Israel não está em tuas mãos, nem nas mãos da casa de teu pai. Está sim nas mãos<br />

dos sábios e escribas. Está nas mãos da corte sagrada, o tribunal do Sanhedrim, único que pode emitir sentenças em tais<br />

matérias.<br />

− Ousas, rabi em Israel, lançar a dúvida sobre a honestidade da sentença dada pelo Sanhedrim dos sacerdotes?<br />

− Como rabi em Israel eu não só ouso lançar a dúvida, como também declaro irrita e nula a sentença do<br />

Sanhedrim dos sacerdotes. O julgamento foi conduzido com desprezo das leis do Torah e das tradições processuais.<br />

Completamente nula é pois a decisão – e peço a devolução da alma que foi entregue ao governo.<br />

As veias do pescoço do S’gan pareciam prestes a rebentar; mesmo assim conseguiu manter o tom de voz<br />

condigno ao cargo.<br />

− Essa alma, disse ele, foi entregue ao governo depois de submetida a exame e julgamento, de acordo com o<br />

processo aceito por nós os saduceus e com a nossa responsabilidade.<br />

− Como rabi em Israel, denuncio como homicídio essa entrega de uma alma judia às mãos do malvado.<br />

O sangue fugiu de súbito do rosto do S’gan. Os lindos caracóis de sua barba negra estremeceram.<br />

Gente se juntara ali em redor de nós e gente que se agitava à proporção que se punha no conhecimento da<br />

matéria. Entre ela, muitos seguidores dos fariseus e admiradores de Jochanan ben Zakkai. Ao verem que seu lado interpelava o<br />

S’gan, cresceu-lhes o entusiasmo pelo grande rabi. Percebendo aquela elevação de temperatura e vendo o fuzilar de tantos<br />

olhos, o S’gan sofreou a cólera, com receio de tumulto ali no Templo. A ponta de seu nariz vibrava, mas foi com voz mansa<br />

que respondeu:<br />

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− Rabi Jochanan ben Zakkai, a alma já não está conosco. Posta pelo governo em nossas mãos para exame<br />

investigatório, foi de novo pedida e devolvida. Desempenhamos a comissão de acordo com as leis e mandamentos, conforme<br />

nossa consciência os interpreta. O investigado foi de novo entregue ao governo com o nosso informe. Cabe pois ao governo<br />

julgá-lo – nós nada temos que ver com o assunto. Se quereis a restituição do homem que publicamente blasfemou contra o<br />

Sagrado Um de Israel, pedi-o ao governo, não a nós. E quanto ao insulto que nos lançaste em rosto, dele nos dareis conta, na<br />

ação que vos moveremos por difamardes o bom nome do Sanhedrim dos sacerdotes.<br />

− É a ti que pedimos a restituição da alma, interveio o mais moço dos rabis, Gamaliel. Teu nome será expungido<br />

de Israel e tua memória recordada com imprecação até o fim dos tempos!<br />

O S’gan voltou-se e encarou o atrevido que ousara lançar semelhante maldição sobre a poderosa Casa de Hanan.<br />

Estava lívido de cólera. Seus dedos se crisparam. Seus lábios tremiam. Parecia prestes a dar ordem aos seus assistentes para<br />

que prendessem o rabi. Mas aquela última geração da casa saducéia não tinha a força de autoridade dos velhos. O jovem S’gan<br />

tremeu, voltou-se nos calcanhares e saiu do recinto.<br />

Ninguém esperou que Pilatos agisse tão depressa e julgasse pela manhã o homem preso à noite. Nunca havia ele<br />

corrido tanto. Nem o próprio Bar Abba, preso com a espada na mão, fora ainda julgado, apesar de já com dois dias de<br />

masmorra.<br />

Ninguém tampouco esperou que Pilatos pensasse em provocar um acesso de cólera do povo justamente na<br />

véspera da Páscoa, com os judeus já amargados pela sangueira da captura de Bar Abba. Todos esperávamos que Pilatos adiasse<br />

o julgamento do nazareno para depois das festas; e os sábios que haviam abordado o S’gan para pedir a libertação de Yeshua,<br />

igualmente supunham que Pilatos não agiria durante a festa. Vinha daí terem os rabis Jochanan e Nicodemo esperança de agir a<br />

tempo. De volta da câmara do S’gan ponderaram sobre quem mandar discutir com o governo e meu rabi lembrou o nome de<br />

José de Arimatéia. Um mensageiro lhe foi logo enviado, pedindo que comparecesse ao conselho dos fariseus no Templo. Mas<br />

os dois rabis ainda estavam a caminho de suas casas quando, com grande surpresa, souberam que o Procurador havia<br />

condenado Yeshua, e libertado Bar Abba a pedido da multidão de bar-abbitas que sitiavam o Procuratorium; e souberam<br />

também que entre os que encorajaram aquela gente a pedir o perdão de Bar Abba estavam Hanan ben Hanan e os criados do<br />

Sumo Sacerdote. E o coração dos dois rabis se encheu de medo; baixaram os olhos e perderam a coragem.<br />

Nicodemo disse em voz baixa:<br />

− Só um milagre do céu pode salvar o rabi de Nazaré. Vou orar por sua alma. E vós, meus filhos, disse ele<br />

dirigindo-se a Rufo e a mim, ide ver como correm as coisas e vinde dar-me conta do que houver.<br />

Do Monte da Casa ao palácio de Herodes a distância era dum quarto de hora. O caminho descia, pois o<br />

Procuratorium ficava junto da primeira muralha, dando para o vale e estrada para Belém. Embora eu e Rufo trotássemos o mais<br />

depressa possível pelas ruas cheias de gente, levamos tempo para alcançar o palácio. Muitos esbarrões demos em homens e<br />

mulheres que seguiam com o mesmo destino, gente pobre da Porta do Estrume, da Porta da Água e do vale do Kidron. As<br />

mulheres soluçavam e choravam sob os seus rotos e sujos véus de cabelos e os olhos dos homens queimavam de raiva. É que<br />

só então o povo estava sabendo o que fora feito à noite para o amado rabi da Galiléia. E tudo largaram – os carregadores as<br />

suas cargas, os tropeiros as suas tropas – e vieram correndo nas roupas de trabalho, rotos, com trechos de carne à mostra. Eram<br />

a pobreza de Jerusalém, muito conhecida do rabi. Alguns traziam cegos e aleijados, pacientemente os conduzindo por entre os<br />

sãos. Quando chegamos ao Procuratorium vimo-lo bloqueado pela multidão de bar-abbitas e simpatizantes. Nos degraus da<br />

plataforma estava Hanan ben Hanan, rodeado dos mensageiros do Sumo Sacerdote. O portão que abria para o pátio<br />

encontramo-lo fechado, e não vimos ninguém no alto da plataforma. Aquelas paredes nos trancavam o segredo do que se<br />

passava lá dentro.<br />

Multidão tensa e excitadíssima, mas num inquieto silêncio de expectação, de modo que até os bar-abbitas e os<br />

sacerdotes se mantinham mudos. Soubemos que Bar Abba fora perdoado e que o Procurador mandara Yeshua ao Tetrarca, com<br />

a tabuleta de “Rei dos Judeus” ao pescoço – para mofar de ambos, do Tetrarca e dos judeus. Soubemos também que o Tetrarca<br />

não encontrara culpa em Yeshua, e o devolvera a Pilatos com um manto púrpura sobre o corpo. Sim, nada mais poderia salvar<br />

o rabi, a não ser um milagre; havia chegado à última porta – à porta que muitas vezes está à beira da intervenção do céu. E<br />

todos ali na multidão esperavam; mesmo os bar-abbitas e os mensageiros dos sacerdotes esperavam pelo milagre! Enchiam a<br />

praça fronteira ao palácio, eretos, tensos, as cabeças erguidas, os olhos no alto. Invadia-os uma onda de fé e mística sugestão –<br />

e era como se estivessem assistindo ao começo do milagre; chegavam a ver sinais no céu, um escurecimento em pleno brilho<br />

do sol. Julgavam ouvir muito longe o rumor das hostes em marcha e a cada instante esperavam ver o céu abrir-se e despejar<br />

fogo. E o palácio de Herodes seria afundado dentro da terra, como outrora acontecera a Korah e sua congregação. E para<br />

coroamento de tudo, aparecia o rabi da Galiléia sentado numa nuvem.<br />

Esqueciam-se de que lá dentro, atrás daquelas grossas paredes, agonizava na dor comum a todos os homens de<br />

carne e sangue, um homem de carne e sangue. Aos olhos daquela gente o rabi se tornara um espírito, algo que não é deste<br />

mundo. Mesmo os que, tomados de raiva e de punhos cerrados, vinham com a idéia de assaltar o Procuratorium, eram vencidos<br />

pela mística expectação geral; e a cólera lhes caía; era como se aquilo fosse o que tinha de ser – isto é, uma prova a que<br />

submetiam o rabi para que o milagre se realizasse. E os que tinham vindo chorando secavam as lágrimas, porque a fé da<br />

multidão transformava todos os sentimentos num só – o da espera do milagre. E tão grande era a expectativa, que quando<br />

Hanan ben Hanan rompeu o silêncio e exclamou: “Se ele é o Messias, que o prove!”, todos ali exclamaram, tanto os seguidores<br />

de Yeshua como os seus oponentes – todos exclamaram a uma voz:<br />

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− Sim, se ele é o Messias, esperamos que o prove!<br />

− Queremos um milagre!<br />

− Ele que destrua Baal, como Elias!<br />

− Que entre na caverna do leão, como Daniel!<br />

Súbito, o silêncio. As alentadas portas do palácio se abriram vagarosas e Pilatos apareceu com um sorriso de<br />

triunfo na cara cheia. Correu um olhar de desprezo pelo povo ali reunido. Atrás dele brilhavam os escudos e espadas dos<br />

legionários. Depois vinham dois guardas germânicos de elmos altos conduzindo o rabi de Nazaré; colocaram-no de encontro à<br />

parede e nós vimos...<br />

Nós vimos quem o coroou Rei dos Judeus. Vimo-lo. Você o fez! Atrás ficava a gigantesca parede do palácio de<br />

Herodes, atrás do rabi. Uma parede muda, muito alta, de pedra cor de rosa. E vimos o sangue a escorrer da coroa de espinhos<br />

que lhe haviam fincado na cabeça – a escorrer para a barba e pelo corpo nu. Vimo-lo. Vimos “aquele cujas vestes eram sempre<br />

brancas e em cujos cabelos nunca faltou óleo” vimo-lo diante de nós nu, vestido apenas dos vergões que os açoites haviam<br />

riscado em seu corpo, com a coroa de espinhos na cabeça e o manto púrpura sobre os ombros. A cruz com a inscrição “Yeshua,<br />

Rei dos Judeus” estava plantada atrás dele. E perto, de pé, Pôncio Pilatos. Também o vi. Olhava para a multidão, petrificada e<br />

em silêncio, com um sorriso cínico na cara cheia. Seu pescoço curto sorriu, seu corpo inchado estremeceu do riso interior,<br />

quando, erguendo a mão, disse:<br />

− Que quereis que faça do que chamais Rei dos Judeus?<br />

Nós já víramos o que ele fizera com o chamado Rei dos Judeus e nos magoou como punhalada a ironia brutal da<br />

pergunta. Sentimos humilhação e vergonha. Nossos olhos se voltaram para o homem de Nazaré. Eles o haviam torturado de<br />

modo que ele mal podia respirar, seus lábios sem sangue, moviam-se de leve, suas narinas aflavam com esforço. Ele nos<br />

olhava e nós olhávamos para ele. Tínhamos sido, todos nós, lançados dos altos da esperança aos abismos do desespero. Todas<br />

as nossas esperanças repousavam nele. Tínhamos esperado que naquele momento, com a medida das dores cheia, a salvação<br />

estivesse iminente – que ele iria erguer a cabeça e fulminar seus inimigos. Uma fome tinha enchido nossos corações: “Agora!<br />

Agora! Que o nome de Deus seja glorificado! O nome de Deus precisa ser glorificado!” Mas o milagre não sobreveio. Diante<br />

de nós só víamos um judeu torturado e junto a ele o seu carrasco – o agente de Roma.<br />

Um choro de desespero rompia nossos corações. Vi um homem meter os dedos na boca, mordê-los e uivar. E em<br />

meio aos soluços eu distinguia fragmentos de salmos em murmúrio trêmulo. Pilatos olhava para o nosso vexame, para a derrota<br />

das nossas esperanças e para ainda mais nos agravar perguntou novamente:<br />

− Que quereis que eu faça com o que chamais Rei dos Judeus?<br />

− Crucificai-o! gritou Hanan ben Hanan, erguendo-se pálido nos degraus da plataforma – e os mensageiros do<br />

Sumo Sacerdote acompanharam-no:<br />

− Crucificai-o!<br />

O gemido lancinante das mulheres se fez ouvir. Homens espichavam os punhos.<br />

− Ele é nosso irmão!<br />

− É um corruptor, um fraudulento! Espalhava que era o Filho de Deus! gritaram os servos do Sumo Sacerdote.<br />

Vozes soaram: “Todo judeu tem o direito de chamar-se Filho de Deus. Está escrito no Torah: ‘Filhos sois do<br />

Senhor vosso Deus!’ Oremos ao nosso Pai do céu”.<br />

− Ele declarou que destruiria o Templo em três dias! Gritaram os servos do Sumo Sacerdote.<br />

− O Templo é um covil de ladrões! tornou a multidão. Os Filhos de Hanan é que mandam lá. Os Filhos de Hanan<br />

entregaram o rabi às mãos de Edom.<br />

− Que nos reconfortará agora? Quem trará alegria à nossa pobreza? Uivou uma mulher torcendo as mãos.<br />

Um homem culto falou: “Nem tudo está perdido. Talvez tenha ele de encher certa medida de sofrimento antes<br />

que a salvação ocorra!”<br />

E o torturando Nazareno, lá encostado à parede, com a cruz plantada atrás. Era como se ele estivesse preso à cruz<br />

pelo sangue que dele escorria e na madeira empapava. Tinha o rosto cansado e olhos que pediam perdão. Olhava para o povo e,<br />

como invisíveis raios, havia uma corrente de olhares enfocados nele. E o povo esqueceu as suas esperanças e viu no nazareno<br />

apenas um irmão inocente de qualquer crime entregue às mãos malvadas de Edom. E punhos se ergueram em raiva impotente,<br />

e vozes soaram:<br />

− Isto é a resposta dos Filhos de Hanan!<br />

− Ele era nosso irmão na hora da necessidade, o que curava nossas doenças, soluçou uma mulher.<br />

− Tudo porque perturbou a traficância dos Filhos de Hanan dentro da Casa do Senhor! Esta é a vingança! gritou<br />

do meio do povo um velho, apontando para Hanan ben Hanan. Vede-o!<br />

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− Não! responderam os servos do Sumo Sacerdote. Tudo porque blasfemou o nome de Deus. Por isso foi<br />

entregue governo. Houve um julgamento!<br />

convocados.<br />

− Não houve julgamento nenhum! Os rabis e os fariseus lá não se achavam. Nada sabiam do caso. Não foram<br />

− Os Filhos de Hanan conduziram sozinhos o julgamento, gritou um moço de cachos, apontando para o grupo<br />

dos mensageiros do Sumo Sacerdote.<br />

O povo começou a juntar-se em redor de Hanan ben Hanan. Mãos se erguiam contra ele. Olhos fulminavam-no.<br />

− Nós não o submetemos a julgamento e sim apenas a uma investigação. Ele se proclamava o Messias! Se é o<br />

Messias, por que não se salva?<br />

− Ele nunca se declarou Messias! É um rabi em Israel, com direito de interpretar a seu modo a lei!<br />

− Os filhos de Eli, eis os delatores! Foram dizer ao governo que o rabi queria tornar-se rei dos judeus.<br />

− Muito já sofremos com essas más línguas. Delatores, sim, todos eles!<br />

− Vede! Vede os que pediram o sangue do rabi! Foram perante o governo depor contra ele. E está escrito no<br />

Torah: “Não desejarás o sangue de teu irmão!” murmurou um velho, com o dedo apontado para Hanan ben Hanan.<br />

A grita aumentava e o círculo se ia fechando. E então do meio do povo ergueu-se a cantiga:<br />

− Desgraçados de nós por causa dos Filhos de Hanan! Desgraçados de nós por causa dos Filhos de Beitus!<br />

Desgraçados de nós por causa de suas secretas maquinações! Eles são Sumos Sacerdotes; e seus filhos, tesoureiros; e seus<br />

genros, altos funcionários! E seus servos esmoem o povo a pancadas.<br />

Hanan ben Hanan empalidecera. O povo aproximava-se mais e mais, com punhos furiosos estendidos para ele.<br />

Pilatos acudiu em socorro de seu amigo. A um sinal de comando, os soldados de Roma lançaram-se sobre nós como bestasferas;<br />

as espadas trabalharam, o sangue correu e o povo, a gemer e uivar, espalhou-se em fuga.<br />

Yeshua foi empurrado para os fundos do pátio e Hanan ben Hanan o seguiu: os romanos iam torturar a um e<br />

salvavam outro.<br />

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O povo se foi afastando da praça. O sol já ia alto, e os peregrinos e outros que ainda não tinham oferecido o<br />

sacrifício da Páscoa apressavam-se em faze-lo; porque os sacerdotes não permitiriam oferendas depois da tardinha, que já era<br />

considerada Sábado. Só ficaram por ali um ou outro, dos de esperança mais rija e que murmuravam no coração: “Impossível<br />

que tenhamos sido enganados desta maneira. Esperemos. Talvez venha o milagre quando já ninguém mais o espere”.<br />

Entre esses, várias mulheres – e vi lá as duas Míriams, a de Migdal e aquela de fora, alta, que diziam ser a mãe<br />

de Yeshua. Estava apoiada à parede de uma casa defronte o Procuratorium, o rosto encostado à pedra fria. E Míriam de Migdal<br />

viera sem véu; os bastos cabelos já grisalhantes caiam-lhe pelos ombros e entre eles palejava o seu rosto sem sangue. Não<br />

chorava nem se lamentava; seus olhos escuros, que naquele momento extremo readquiriam o fulgor da mocidade, brilhavam<br />

duma estranha luz. Outra mulher que também lá retivera a sua coragem: Sulamith. Rosto descoberto e boca cerrada, o olhar de<br />

seus olhos era o do animal que arma o bote. Os homens que ainda lá permaneciam figuravam entre os mais pobres, ao tipo<br />

daqueles que eu havia encontrado em casa de Simão o Leproso. Vi Joseph, o escravo que Yeshua consolara na hospedaria dos<br />

cameleiros. Pontas de cordas ainda pendiam de seus pulsos. Sua cara era a dum simplório, ou de quem levou grande pancada<br />

na cabeça e não sabe o que lhe está acontecendo. Perto dele vi José de Arimatéia, apoiado a um bordão, e o converso Abraão<br />

ben Abraão, este com a cabeça muito caída para a terra; parecia que seu cérebro se esgueirara para a corcova e lá meditava,<br />

procurando uma explicação para o enigma. A pouca distância vi Hillel o aguadeiro, silencioso, mergulhado em si mesmo como<br />

a tartaruga afunda em sua casca. Não notei espanto ou surpresa nas humildes feições de Hillel; era para ele como se tudo<br />

houvesse acontecido como tinha de acontecer. Foi o que notei nos que ainda andavam por lá, talvez aguardando qualquer<br />

coisa. Também de vislumbre vi uma cabeça a espiar numa esquina, com olhos apavorados. Era Simão. Mas só o vi muito de<br />

relance, porque logo se escondeu de mim.<br />

Depois de algum tempo as portas do Procuratorium abriram-se de novo e um pelotão de soldados romanos saiu<br />

com o nazareno. Estava de novo na veste branca, já bem pouco branca e de franjas arrastando e riscando de sangue as pedras.<br />

A coroa de espinhos ainda na cabeça. Seu rosto não podia ser visto, tão curvado para o chão ele estava ao peso da cruz que<br />

trazia às costas. Pareceu-nos que aquela cruz pesava mais que o seu próprio peso e que invisíveis cargas esmagavam o<br />

vacilante carregador. E assim esmagado ele fazia força para mover-se, com infinita dor, e ia avançando com enorme esforço,<br />

como o rompimento do Mar Vermelho. Atrás dele vinha Hermanus, o terror dos judeus, com a cara má inflamada de fúria e<br />

empapada de suor. Florejou no ar um chicote e desceu-o sobre o nazareno. Espuma de raiva e sede de sangue branquejava nos<br />

cantos da boca de Hermanus. Ao estímulo da chicotada, a atormentada criatura, de cujo corpo gotas de mortal angústia se<br />

misturavam com gotas de sangue, avançou mais um pouco, os membros vacilantes sob o peso e o chicote e as vestes úmidas<br />

coladas à pele. Seus pés deixavam pegadas vermelhas no chão.<br />

Míriam, “a mãe”, começou a bater a cabeça contra a parede; e as outras duas, a de Migdal e Sulamith, levaramna,<br />

esta sustentando-lhe quase todo o peso. Foram seguindo Yeshua. Eu ouvia a lamentação anasalada de outras mulheres. Os<br />

homens seguiam agrupados. Tinham os punhos cerrados e fogo nos olhos, e de suas bocas saiam maldições; mas nada vinha<br />

dos que lhes ia pelo coração. De olhos pregados no chão, seguiam a cruz.<br />

O lamento das mulheres e os gritos e risadas dos soldados iam despertando pelo caminho a atenção dos<br />

habitantes dos casebres. A procissão seguiu rumo nordeste, através dos semi-abandonados quarteirões que iam ter ao Gólgota<br />

ou Praça das Caveiras. As mulheres nas portas torciam as mãos ao verem o atormentado homem entre os romanos, e voltandose<br />

para os maridos gritavam:<br />

− Não sois homens. Sois mulheres. Vedes a agonia de uma alma nossa e vos conservais calados. Não haverá<br />

nenhum que corra a salva-lo?<br />

− Ai de nós! É o rabi de Nazaré, exclamou uma enxugando as lágrimas com o seu véu de cabelo. Quanto nos ele<br />

ajudou quando podia, e não podemos ajuda-lo agora!<br />

E foi então que uma coisa ocorreu, estranha, prodigiosa. O rabi caíra ao peso da cruz: os dois pesos somados, o<br />

visível e o invisível, eram carga demais – ele tropeçou e caiu. Não podia leva-la por diante, e Hermanus, como negra ave de<br />

rapina, lançou-se. A ringir os dentes, o germânico desceu o chicote com toda a força sobre aquele corpo caído e foi reiterando<br />

os golpes. Nova onda de gemidos brotou das mulheres; os homens acompanhantes aproximaram-se mais e ouviu-se um<br />

murmúrio. Punhos fechados se ergueram no ar. Mas os soldados voltaram-se e de espada em punho caíram sobre nós com a<br />

maior fúria. Eu e mais um ou dois fomos agarrados e arrastados para junto do oficial comandante, o qual rugiu:<br />

− Prendam-nos! Serão julgados por tentativa de libertação do preso.<br />

Antes que ele acabasse de dizer isso, torci-me e escapei das mãos que me detinham e fugi, sem maior molestação<br />

que a machucadura duma orelha. Eles não tentaram pegar-me. Entrementes Yeshua recobrou em parte suas forças, e sozinho,<br />

ajudado pela força da vontade, ergueu-se do chão, suspendeu a cruz e vacilantemente seguiu. Nós o acompanhamos a<br />

distância, porque os soldados não permitiam aproximação.<br />

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Mais adiante Yeshua parou de novo, para tomar fôlego. Depois fez um esforço para continuar e não pôde. Sua<br />

força esgotara-se completamente. O chicote cantou sobre ele, mas em vão. Um joelho lhe fraquejou, o outro não agüentou e<br />

seu corpo caiu, com a cruz em cima – a cruz acrescida do peso invisível. Novamente estalou o chicote, sem que ele reagisse.<br />

Não tinha mais forças. As mulheres alçaram os seus gemidos: “Detende a mão do malvado!” e os homens em desespero<br />

erguiam os olhos para o céu na esperança que de lá descesse um raio sobre aquele monstro. E também os homens começaram a<br />

gritar. Alguns aproximaram-se dos soldados e disseram: “Deixai-nos carregar a cruz! Deixai-nos carregar a cruz!” Os romanos<br />

não lhe deram atenção e o chicote continuou a cantar.<br />

Súbito, vi Simão Cirene emergir duma rua lateral. Parece que nada sabia do ocorrido durante aquelas últimas<br />

horas, pois trazia ao ombro a pá e o gancho de podar, como se estivesse de volta de seus campos de cultura. E antes que Rufo<br />

tivesse tempo de gritar “Meu pai, meu pai!”, Simão voltou a si da surpresa, esgueirou-se por entre os soldados e caiu aos pés<br />

do rabi. Os soldados agarraram-no, tiraram a cruz das costas de Yeshua e puseram-na sobre as dele – e estalaram-lhe em cima<br />

o chicote.<br />

− Pai! Pai! gritou Rufo correndo para lá – e eu o adverti, “Rufo! Rufo!”<br />

− Um judeu deve estar sempre pronto para carregar a cruz de outro judeu – e Simão Cirene pôs-se a caminhar<br />

sob o peso da cruz.<br />

Os soldados mostraram-se contentes com o encontro duma nova vítima. Tangeram Simão para a frente como<br />

haviam tangido o rabi de Nazaré, o qual, penosamente, foi seguindo atrás de Simão. E seguia como se só o peso material da<br />

cruz lhe tivessem tirado das costas, não o outro, o invisível. E lá se foi a procissão – o pai de Rufo, o rabi, os soldados e a<br />

distância os homens e as mulheres em lágrimas.<br />

O Gólgota, a Praça das Caveiras, era a elevação não distante dali onde se crucificavam os condenados pelo<br />

governo. O nome do sítio viera de que os ali crucificados permaneciam na cruz até que os corvos lhe comessem toda a carne,<br />

embora a lei de Israel provesse que nenhum morto ficasse desenterrado por um só dia que fosse. Várias vezes havia Israel<br />

pleiteado dos romanos a abrogação do cruel decreto, mas inutilmente. “Gólgota” era uma palavra de terror entre os judeus,<br />

como o nome do germânico Hermanus era uma palavra de abominação e asquerosidade. E conquanto o morro do Gólgota não<br />

fosse longe da cidade, os judeus evitavam-no como um foco de indizíveis males. Pilatos e sua gente tudo faziam para que o<br />

morro nunca estivesse sem vítimas – e era para lá agora que levavam o homem de Nazaré.<br />

Entre os que seguiam na procissão muitos não se animaram a galgar o morro; ficaram no sopé, com medo de<br />

tropeçar nos esqueletos por lá esparsos e se contaminarem. Outros, porém, subiram atrás de Simão com a cruz, e do rabi. E iam<br />

de longe vendo a veste manchada de sangue de Yeshua a brilhar entre as armas dos soldados. Não nos podíamos aproximar<br />

muito, mas vimos como eles conduziram o nazareno até o alto do morro. Varias cruzes levantavam-se lá, com corpos pregados<br />

– cruzes encrostadas de sangue, corpos horrendamente convulsos. De alguns não se podia dizer se ainda estavam vivos ou se já<br />

estavam mortos, porque tinham as bocas abertas e retorcidas, as línguas de fora e os olhos extremamente arregalados. Mas<br />

outros era evidente que viviam, pois moviam-se e às vezes emitiam gemidos e horrendas pragas. Pelo chão, espalhadas, viamse<br />

cruzes que tinham caído com o peso e nas quais pouco restava dos cadáveres. O alto do morro estava semeado de carcaças<br />

humanas, acima das quais soavam os últimos gemidos dos agonizantes em suas cruzes!<br />

Pudemos observar que na subida ao Gólgota o rabi absorvera toda a agonia pairante ali. Ao chegar ao termo de<br />

sua jornada ele viu no topo do monte duas cruzes, de que pendiam dois homens na tortura. Os romanos tomaram a cruz das<br />

costas de Simão e deitaram-na em terra; depois trouxeram o rabi.<br />

Estávamos a distância mas atentos, com o coração todo angustia. Silêncio sobre o mundo – um silêncio que nos<br />

permitia ouvir o perpassar do vento por entre as cruzes e os corpos torturados. Não ousávamos respirar, porque era absoluta a<br />

nossa certeza de que alguma coisa ia sobrevir. Sim, porque o nazareno havia chegado ao imo de sua dor abismal. Chegara ao<br />

limite que separa a morte da vida. Chegara diante da porta última. Seus olhos tinham visto tudo, seus ouvidos tinham ouvido<br />

tudo, seu corpo havia sofrido todas as dores e todas as agonias – estava transbordante do vinho da amargura. Ele havia sorvido<br />

a taça de lágrimas até à derradeira gota. E nós compreendemos por que havia ele deixado que o levassem até ao topo do<br />

Gólgota, era para começar a ascensão suprema tendo partido do mais fundo da maldade humana. E um canto tremeu em nossos<br />

lábios: “Contigo, contigo para a altura máxima!”<br />

Estávamos certos de que quando o pregassem na cruz suas mãos se ergueriam, e os céus se abririam e estava<br />

começada a redenção. E era como se já ouvíssemos o rufar de incontáveis asas.<br />

Ai, ai de nós! Nada, nada aconteceu. De cabeça baixa como a rez no matadouro, o rabi de Nazaré aproximou-se<br />

da cruz. Nenhum movimento em seu rosto – só o horror da morte em seus olhos.<br />

comece!<br />

− Teu é o poder, em Tua mão está a força! gritou uma voz no sopé do Gólgota. Deixa que o Reino do Céu<br />

− Chama Elias! Chama os anjos! acrescentou outra voz.<br />

− Salva-te e salva-nos!<br />

− Oh, vem, mostra teu poder, se és aquele que disseste ser!<br />

Mas o rabi deixou que os soldados o despissem daquelas vestes empapadas de suor e sangue – como o manto de<br />

José despedaçado pelas garras das bestas-feras humanas. Nu ficou o rabi de Nazaré como quando sua mãe o pôs no mundo, um<br />

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corpo sem carnes, a branca pele riscada de vergões vermelhos; um corpo que tremia como o corpo de qualquer homem que<br />

encara a morte. E o rabi aprumou-se. Fechou os olhos e deu-se ao espírito, com os lábios a moverem-se como numa bênção.<br />

Atrás dele os soldados levantaram a cruz, e ergueram-lhe os braços sobre os braços da cruz...<br />

− Agora! Agora! É o momento! Chegou o fim da vitória dos malvados.<br />

Mas Hermanus, o terror de Israel, ergueu o martelo e um prego e começou a pregar na madeira a carne do rabi,<br />

fixando-lhe nos braços da cruz a palma de suas mãos.<br />

Um grito brotou das mulheres – o grito das crianças torturadas. E um grito brotou dos homens.<br />

Com o rosto cruel a irradiar, Hermanus pregou lentamente na madeira a carne do rabi, com firmeza, golpe a<br />

golpe, como se encontrasse deleite no vaivém do braço, como se quisesse eternizar aquele prazer. E a vítima na cruz, como<br />

qualquer mortal torturado, cravou os dentes nos lábios e cobriu-se de sangue. Os olhos saltavam das órbitas. Seus cabelos em<br />

cacho tremiam. O comandante e os soldados olhavam.<br />

− Mostra-nos que és o Messias, vamos! Arrasa com o poder de Edom! gritaram vozes.<br />

Mas o rabi estava a estorcer-se de dor, na suprema agonia da carne e do sangue.<br />

Súbito, ouvimos a voz de Judas Ish-Kiriot, cujo vulto apareceu por trás duma cruz meio caída. Um grito lhe saiu<br />

do peito em arranco.<br />

− Compreendo agora, rabi! Agora eu vejo!<br />

E Judas caiu e afundou o rosto no chão. A atormentada criatura na cruz tentou erguer a cabeça, procurou ver<br />

quem o chamava assim naquele último transe. E viu a prostrada figura de Judas. A agonia dissipou-se de seu rosto por um<br />

momento; em seus olhos lucilou um brilho de alegria. E nós vimos com a maior nitidez uma última lágrima nos olhos do<br />

nazareno. Seus lábios moveram-se como em oração, mas não lhe ouvimos palavras. O chicote do germânico cortava-lhe mais<br />

uma vez a carne.<br />

− Eu vejo agora! Eu sei agora quem ele é! Ai de minha alma! Gemeu Judas num uivo – e erguendo-se do chão<br />

fugiu para a cidade.<br />

Nicodemo.<br />

Lentamente, um a um, os homens foram saindo dali: “Tudo está terminado!”<br />

Também eu me fiz de rumo à cidade, com o coração pesado, para ir dar conta daqueles fatos ao meu rabi<br />

Rufo não me seguiu.<br />

− Não creio que tudo esteja terminado – e ficou no alto do Gólgota, com as mulheres, para ver o que acontecia.<br />

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Na casa de estudo dei com o rabi Nicodemo mergulhado na maior tristeza, pois já fora informado das torturas<br />

que Edom infligira ao nazareno e do escárnio que lançara sobre Israel. Como todos nós, Nicodemo havia até o último momento<br />

esperado o milagre – Deus a salvar o rabi de Nazaré das mãos de seus atormentadores. E ao ouvir de mim que os soldados de<br />

Edom haviam pregado o rabi na cruz, suas palavras foram:<br />

− Enquanto a alma está no corpo é preciso que não desesperemos.<br />

E depois duma pausa me disse:<br />

− Vê a grandeza do justo: quanto maiores as dores que por amor de Deus ele suporta, tanto mais íntima e<br />

fortemente se liga a seu Pai do céu. A dor é a fonte de onde o justo haure a sua fé – e dessa fonte Deus só dá a beber aos Seus<br />

escolhidos.<br />

E depois de mais algum tempo disse ainda:<br />

− Quem lá sabe até onde isto irá?<br />

Nicodemo foi para um canto da casa de oração e orou por longo tempo, sozinho e calado. Mas os seus suspiros<br />

pareciam romper o teto, e sua roupa tornou-se úmida com a angustia de seus pensamentos. Não só a alma do rabi Nicodemo<br />

apelava para Deus como todo o seu corpo, e vimos que ele revivia as dores do rabi da Galiléia, porque aquele que pede a Deus<br />

por outro deve por-se na igual situação do suplicado.<br />

Em certo momento interrompeu-se e me disse:<br />

− É chegado o momento do sacrifício da Páscoa. Não ficarei nesta dor, mas me vestirei de alegria para a festa,<br />

como está escrito: “Rejubilo-me e digo a mim mesmo que vou subir à casa de Deus”. Talvez Deus opere um milagre em honra<br />

à festa e no último momento salve o rabi de Nazaré. Para Deus nada é impossível.<br />

Depois lavou-se, mudou de roupa e preparou-se para ir ao Templo oferecer o sacrifício; o sol estava a pino – era<br />

hora. Mas antes de abrir a porta, eis que Rufo irrompe e lança-se ao pescoço de Nicodemo. Estava tomado de terror e todo o<br />

seu corpo tremia. Nicodemo abraçou-o como um pai e disse:<br />

− Teu rosto denuncia más coisas, Rufo.<br />

E Rufo, sempre abraçado com o rabi, lamentava-se e não se explicava.<br />

− Coragem, meu filho. Conta o resto do que se passou com o rabi de Nazaré, porque com o justo temos de<br />

aprender a ser fortes na fé e a santificar o Nome.<br />

E Rufo, afinal, falou.<br />

− Ai dos meus olhos que viram tudo! Não houve tortura que não lhe infligissem!<br />

As lágrimas não o deixavam continuar.<br />

− Coragem, meu filho, animou Nicodemo. Conta-me tudo que viste e como foi o seu último momento.<br />

Rufo encheu-se de ânimo e contou.<br />

− Quando o pregaram na cruz, pregaram também no topo do madeiro aquela tabuleta de Pilatos com as palavras<br />

“Yeshua, Rei dos Judeus”. E gritaram: “Vamos ver, Rei dos Judeus, se se salva agora!” Mas o rabi olhava-os com piedade.<br />

Tinha a boca retorcida de dor. Seus membros tão fracos não podiam mante-lo ereto na cruz, e ele caía para a frente, e tanto que<br />

esperávamos que dum momento para outro seu próprio peso o destacasse dos pregos, ou o vento o arrancasse da cruz. Porque o<br />

céu escurecera e começara a ventar forte. E o vento cresceu a ponto de pensarmos que ia levar dali o rabi – e todos ficamos<br />

com medo. Esperamos que o vento varresse o escuro e abrisse o espaço para os anjos – os anjos que viriam buscar o rabi. Mas<br />

o vento soprou sobre ele, como que o acariciando, e morreu.<br />

Depois de passado o vento, olhamos para o rabi na cruz. Seu rosto mudara. Tinha aqueles olhos grandes voltados<br />

para o céu. A boca, fechada e com um fio de espuma como se alguém a houvesse molhado com uma bebida. A dor estava<br />

escrita não só em seu rosto, como em todo o seu corpo. E que dor! Aquele corpo se torcia em convulsões, para lá e para cá, e as<br />

mãos não se podiam mexer; o peito caíra e o ventre inchara. E ele procurava manter-se ereto na cruz, porque as costas como se<br />

quebravam e a cabeça afundava no peito; e os dedos de seus pés procuravam agarrar-se à madeira. A carne não ficara dum tom<br />

amarelo de cera, ressecada, mas dum tom delicado como o do marfim. E o rosto lívido, com rajas de sangue, ali emoldurado<br />

pelos cabelos e a barba, era um grito para Deus. E ele endireitou-se e ergueu a cabeça e voltou os olhos para o céu, como se do<br />

céu esperasse socorro – mas não veio socorro nenhum.<br />

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As mulheres, de pé ali diante da cruz, não tiravam os olhos daquela angústia. E uma delas, a Míriam alta, tinha a<br />

cabeça sobre o seio da outra Míriam, que a amparava. Mas a Míriam alta dobrou os joelhos e de joelhos ficou por algum<br />

tempo. Depois, subitamente, ergueu-se sozinha e de rosto descoberto olhou firme para a face do torturado na cruz. Lágrimas<br />

não vi em seus olhos – olhos muitos abertos e secos; um rosto de pedra, de lábios apertados, e nenhum movimento de<br />

músculos. Parecia que os sofrimentos daquela Míriam e os do torturado na cruz se permutassem. Podíamos ver a dor do<br />

torturado penetrar na carne dela. E então foi como se a angústia que ela chamava para si a fizesse mais alta ainda e lhe desse<br />

novas proporções ao corpo e força às pernas, de modo que suas pernas já não vacilavam sob o corpo. Secos estavam seus<br />

olhos, nenhum som saia de sua boca; ela se havia fortalecido com a dor assimilada através dos olhos. E assim se manteve até o<br />

fim.<br />

E então o que estava na cruz começou a torcer-se de dor e a espumejar pela boca; seu rosto estava repuxado e<br />

cada vez mais ele caía para a frente. Seus lábios murmuraram qualquer coisa. O comandante romano lá presente tomou dum<br />

soldado uma esponja e embebeu-a num líquido, e ergueu-a na ponta duma vara aos lábios do rabi; por entre os risos dos<br />

soldados.<br />

E então o que estava na cruz voltou para o comandante romano os olhos cheios de dor e também de piedade – e<br />

ouvimo-lo dizer:<br />

− Perdoai-lhes, Pai, porque eles não sabem o que fazem.<br />

Quando o comandante romano ouviu tais palavras, aproximou-se da cruz e disse qualquer coisa que não<br />

pudemos ouvir. Em seguida o rabi ergueu os olhos para o céu e exclamou amargamente, como um grito:<br />

− Eli, Eli, lama sabachthani?<br />

E quando a mulher alta ouviu esse grito de dor, ergueu as mãos para a cruz e exclamou:<br />

− Tinoki, tinoki! Meu filhinho! Meu filhinho!<br />

Mas o desespero e o terror da morte na face do rabi duraram apenas um momento. Voltou-lhe a força, a calma o<br />

serenou. Cessaram as convulsões espasmódicas da carne, como se o sono a invadisse. O rabi tornou-se menor, como se<br />

encolhido em si mesmo, e as pernas se dobraram lentamente. Num último esforço olhou para o céu e em voz alta e clara<br />

exclamou: “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o Deus Único”.<br />

E sua cabeça pendeu e seus olhos se cerraram. Um leve sorriso de perdão lhe pairou na boca. Sobre ele descia a<br />

paz. Ouvimo-lo num murmúrio, como num canto de embalo: “Em Tuas mãos entrego minha alma!”<br />

E morreu em santidade e pureza, com aquele sorriso nos labios.<br />

Quando Rufo parou de falar, meu rabi disse:<br />

− Escrito está no Torah: “Amarás ao senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda tua alma, e com todo o teu<br />

poder”. E nossos sábios explicam isto assim: “Amarás ao teu Deus com todas as tuas faculdades e em todas as condições. E,<br />

pois, lhe agradecerás tanto pelo bem como pelo mal que te sobrevir”. Vinde, meus discípulos, vamos agradecer a Deus o não<br />

ter permitido que o justo sofresse por mais tempo na cruz. E meu rabi ergueu as mãos para o céu e exclamou: “Abençoado seja<br />

o verdadeiro Juiz!” E para nós disse: “Consolai-vos, meus filhos; a memória do justo será invocada com bênçãos”. Depois<br />

voltou o rosto para a parede e orou com grande recolhimento. “Pai de todas as criaturas, tem dó de teu servo Yeshua ben<br />

Joseph, que procurou servir-Te de todo seu coração e toda sua alma e por Ti ofereceu a vida. Por Ti derramou seu sangue como<br />

água, e seu corpo foi rasgado de feridas – mas contra Ti ele não se revoltou; todos os sofrimentos tomou sobre si com amor,<br />

para que Teu nome fosse santificado. Misericórdia para com ele, e aceita a alma do justo como oferenda, e assegura repouso à<br />

sua alma tomando-o sob o pálio de Teu Shekhinah. Amem!<br />

Em seguida pediu-nos o rabi a bacia d’água e foi à porta da casa de oração e lavou as mãos e disse:<br />

− Pai do céu, és testemunha de que nossas mãos não derramaram esse sangue. Nós e nossos filhos estamos<br />

inocentes desse crime.<br />

E para nós:<br />

− O mandamento que manda render graça aos mortos sobreleva a todos os mais do Torah, e até ao que rege o<br />

sacrifício da Páscoa. E os que morrem para a santificação do Nome são contados entre os mártires e as almas puras. O rabi de<br />

Nazaré, morto por Edom para a santificação do Nome, é um mártir em Israel, e ocupar-nos com o seu enterro sobreleva a todos<br />

os mandamentos. Vamos pois ter com José de Arimatéia e pedir-lhe que se aproxime do governo, do qual é bem conhecido, e<br />

peça a entrega do corpo do santo assassinado pela mão da abominação; e ele que pague o preço pedido, nem que seja toda a<br />

sua fortuna, de modo que possamos dar ao corpo do santo um enterro judeu antes que o sol se ponha e chegue o Sábado. E eu<br />

de mim vou ao Gólgota esperar lá a ordem para que o corpo seja tirado da cruz.<br />

E meu rabi sacou do cofre de pedra os preciosos ungüentos que eram a sua única paixão na vida e sua única<br />

riqueza; e foi para o Gólgota preparar o enterro do santo.<br />

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José de Arimatéia possuía uma pérola de grande valor que recebera de herança; e tinha uma peculiaridade essa<br />

gema: se um pecador punha nela os olhos, sua consciência despertava e chicoteava-o, e ele se arrependia e se afastava do mal.<br />

Foi a pérola que ele deu a Pilatos em troca do corpo de Yeshua. Dias depois Pilatos lha devolvia, porque para ela não podia<br />

olhar.<br />

E José de Arimatéia tomou a lâmina em que Pilatos lançara a ordem de entrega do corpo de Yeshua e se foi para<br />

o Gólgota. Na porta da cidade encontrou-nos à sua espera, o meu rabi, nós e os Companheiros, entre os quais Hillel o<br />

aguadeiro, Simão Cirene e o converso Abraão ben Abraão.<br />

Já de longe distinguimos o corpo do nazareno numa brancura, porque o sol rompera as nuvens e caía sobre sua<br />

carne branca. Ao pé da cruz estava caída uma mulher, de rosto em terra – Míriam de Migdal. Tão imóvel que não havia dizer<br />

se estava viva ou morta. Junto à cruz sentava-se Sulamith, a mãe dos Zebedeus. Tinha os grandes olhos redondos e simples<br />

fixos no corpo do rabi de Nazaré, com expressão mista de mágoa maternal e fé – fé em que o torturado da cruz acordasse e<br />

realizasse um milagre. Perto dela, a Míriam alta, com o rosto da mesma cor mortal do rabi, sem movimentos, como se fosse de<br />

pedra. Unicamente seus olhos, doces e vivos, bebiam a visão do corpo torturado. E à pouca distância das mulheres estava o<br />

comandante romano e seus soldados.<br />

Não havia nenhum sinal de alento no corpo dos dois bar-abbitas crucificados à direita e à esquerda do rabi, mas<br />

parece que na suprema agonia, eles se torceram de modo que pudessem morrer com os olhos fixos nele. Tinham as línguas fora<br />

da boca e as veias empelotadas de nós, como prestes a saltarem do corpo. Olhos muito abertos, exorbitantes, presos ao exangue<br />

cadáver crucificado do rabi. Quando ali chegamos, percebemos que qualquer coisa havia ocorrido; pairava no ar um silêncio e<br />

um êxtase – um êxtase que não empolgava apenas as mulheres, mas também o comandante romano, ali a pouca distância. E até<br />

os soldados, vencidos pela canseira daquela obra sangrenta, sentiam-se mal à vontade, e seus rostos refletiam o medo.<br />

José de Arimatéia dirigiu-se ao comandante e mostrou a ordem de entrega – fomos então autorizados a nos<br />

aproximar da cruz. E só quando chegamos bem perto, é que vimos como estava exangue aquele corpo cor de cera e só ossos. E<br />

apesar disso pairava sobre ele uma estranha frescura, algo de recém-nascido e infantil. A cabeça pendia da carne retorça, acima<br />

do grito das feridas abertas.<br />

Meu rabi começou a ocupar-se do corpo e só deixou que lhe viessem em auxílio os que julgava dignos.<br />

Silenciosamente e com o olhar pediu às mulheres que se retirassem e deixassem só os homens naquele serviço; e meu rabi,<br />

mais José de Arimatéia, Simão Cirene e Hillel o aguadeiro, fizeram-no todo. Nós, os discípulos, tivemos permissão de fornecer<br />

nossos ombros para que o nosso rabi neles trepasse e pudesse retirar os pregos que fixavam o nazareno na cruz – e assim foi<br />

ele retirado.<br />

E muito se atarefaram eles, no desejo de praticar todos os preceitos relativos aos enterros em Israel, e não<br />

deixaram o menor fragmento de carne na cruz, nem nos pregos. E quando as mãos do nazareno foram despregadas, meu rabi<br />

tomou-a às costas – e mãe nenhuma carregou jamais com maior ternura o filho. E enquanto meu rabi estava assim, com o<br />

corpo do rabi às costas, José de Arimatéia e Simão Cirene arrancaram-lhe os pregos dos pés. E quando todo o corpo foi<br />

destacado da cruz, os quatro homens – Nicodemo, José, Hillel e Simão – levaram-no até certa distância.<br />

Lá o deitaram num lençol branco que José de Arimatéia tinha trazido. E aquele corpo lívido sobre a brancura do<br />

lençol era como o corpo duma criança torturada que viesse para os braços de sua mãe, já livre da dor. Mas querendo abrigar<br />

aquele corpo do contato dos olhares humanos, para entrega-lo, com todos os gritos daquelas feridas ao nosso Pai do céu, o<br />

nosso rabi envolveu-o apressadamente no lençol; e com José ergueu-o com grande ternura e levou-o apressado morro abaixo.<br />

Meu rabi, Simão Cirene, Hillel o aguadeiro e Abraão ben Abraão seguiram-nos; depois vínhamos nós, os discípulos e por fim<br />

as mulheres.<br />

E como passássemos por alguns crucificados ainda não mortos, eles torceram o corpo na cruz e com os olhos<br />

exorbitantes seguiram a procissão do rabi de Nazaré, esquecidos da agonia da própria carne. E até os soldados romanos e seu<br />

comandante afastaram-se de lado para nos abrir caminho – e pelo rosto do comandante vi que seu coração estava dentro dele<br />

como água.<br />

E lá seguimos sob o céu carregado de nuvens, como se o escuro que ia envolver o Gólgota, só esperasse que<br />

descêssemos o corpo do rabi na tumba.<br />

José de Arimatéia possuía um horto naquelas redondezas, no qual havia preparado um túmulo para si mesmo,<br />

numa gruta. E disse: “Darei meu túmulo ao santo, para que lá descanse em paz”.<br />

E o corpo do que morrera na cruz foi levado para o horto de José de Arimatéia, e lá ergueram a laje e o<br />

depuseram na cova. E meu rabi tomou os seus preciosos ungüentos, que juntara para o seu próprio enterro, e colocou-os na<br />

cova junto ao cadáver. E ao erguer-se, exclamou:<br />

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− Ele é puro! Ele é puro! Ele é puro!<br />

Recolocada a laje sobre a cova, meu rabi pronunciou a Santificação do Nome. Não falou do que estava sendo<br />

enterrado, porque tinha pressa e o Sábado o esperava.<br />

E quando saímos do horto o céu novamente se descobriu e as nuvens pesadas desapareceram; foram substituídas<br />

por um azul profundo. E dos altos das montanhas o sagrado Sábado começou a deslizar-se sobre Jerusalém, acompanhado dos<br />

últimos raios do sol moribundo.<br />

E a paz do Sábado desceu sobre o mundo.<br />

Fizemo-nos de rumo à cidade e passamos por uma rua estreita, paralela à muralha; e lá vimos uma figueira na<br />

sombra da noite entrante, uma figueira que lembrava uma cruz com um homem nela pregado. Aproximando-nos, vimos o que<br />

era: Judas Ish-Kiriot pendurado dum de seus ramos.<br />

E meu rabi se deteve diante do enforcado e disse:<br />

− Judas! Judas! Tua impaciência te matou! Pois está escrito: “Aquele que trilha o caminho da simplicidade, esse<br />

será ajudado; e aquele que torce o caminho, esse cairá!” Deus se amerceie de tua alma!<br />

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Tudo isto ali eu para Pan Viadomsky em seu quarto na rua Bonaparte, em Varsóvia, durante a primavera... E foi<br />

já tarde da noite que cheguei ao fim da narração da minha parte na tragédia ocorrida em Jerusalém naquela Páscoa.<br />

Por algum tempo, nesses dias, Viadomsky permaneceu acamado, por doente. Eu me sentava ao seu lado e ia<br />

lendo o que pudera pôr no papel sobre as minhas antigas experiências daquela época; e ele me ouvia de olhos cerrados. Mas<br />

Viadomsky piorou e ficou magro como um arenque seco. Era de fato um esqueleto o que eu via na cama. Quando seus olhos se<br />

fechavam, as pupilas faziam bojo sob o fino tecido das pálpebras. Tinha as faces fundas, a garganta murcha, o pomo de Adão<br />

muito saliente sob a pele. O nariz conservara a forma de sempre, mas parecia extraordinariamente pálido; era como um pilar<br />

bem conservado no meio de destroços. E se não fosse o leve aflar das narinas poderia ser tomado por um morto. Pareceu-me<br />

imerso em estado de coma, mas de vez em quando erguia as pálpebras e fixava em mim o olhar cheio de suspeita e inquisição.<br />

Estaria eu dizendo a verdade? E quando terminei a história da tragédia do nazareno, fez ele uma pausa longa, depois do que me<br />

enfitou obstinadamente e disse:<br />

− E então?<br />

− E então o que?<br />

− Que houve depois disso? Perguntou pondo as últimas energias no olhar. Não soube do que sucedeu depois da<br />

morte do que vocês chamavam rabi de Nazaré? e com grande surpresa minha Viadomsky sentou-se na cama.<br />

− O que mais tarde aconteceu com o rabi de Nazaré em Jerusalém nada tem comigo, respondi.<br />

− Mas... não ouviu nada? Não veio a saber do que houve em Jerusalém, depois que José de Arimatéia e o rabi<br />

Nicodemos tiraram-no da cruz e enterraram-no?<br />

− Já disse e repito, Hegemon, que o que se passou depois da morte do rabi de Nazaré nada tem a ver comigo.<br />

− Mas que diziam em redor de você? Nada ouviu, então?<br />

− Certo que ouvi o que diziam.<br />

− Ah! exclamou Viadomsky, com um suspiro.<br />

− Que quer dizer? perguntei.<br />

− Não quererá contar-me o que diziam nos círculos que você freqüentava? Mas quero a verdade! acentuou ele<br />

com energia. Nada me oculte.<br />

− Nada tenho a ocultar.<br />

− Diz isso sob a jura da excomunhão?<br />

− Mais ainda: digo-o sob o juramento das vestes do Sumo Sacerdote, respondi.<br />

− Que é que diziam?<br />

− Em certas rodas de Jerusalém corriam secretamente rumores de que o rabi desaparecera do túmulo e se<br />

mostrara vivo aos discípulos e lhes dera instruções sobre o que fazer. No começo esses rumores só corriam entre os seus<br />

seguidores, mas aos poucos se foram espalhando por toda a cidade; e os que acreditaram no rabi em vida, começaram a reunirse<br />

e a fundar “companhias”; e a voz se espalhou, cada vez mais insistente, de que o rabi era de fato o Messias, e estava agora<br />

com Deus nos céus, e breve desceria à terra para julgar os vivos e dar começo ao reino do céu. Os que assim pensavam tinham<br />

o nome de messianitas.<br />

− Eram em grande número?<br />

− Ignoro. Não tomei nenhum interesse no assunto. Mas conheci a alguns deles, porque certo número de membros<br />

da nossa roda tinham-se tornado messianitas, como o meu amigo Rufo, o seu irmão Alexandre e o converso Abraão ben<br />

Abraão. Creio que José de Arimatéia também, mas não tenho certeza. Mas sei que meu rabi Nicodemo não aderiu ao<br />

movimento; lembro-me duma conversa tida a respeito. Meu rabi dissera: “Basta que o rabi Yeshua haja vivido como um justo,<br />

procurando Deus, aproximando os homens do céu e morrido na maior pureza para que eu me curve à sua memória e o recorde<br />

com bênção. Porque está escrito: “A memória do justo é uma bênção”. Hillel o aguadeiro e outros pensavam do mesmo modo.<br />

Quanto a Simão Cirene, não sei.<br />

− E perseguiram-nos vocês? indagou Viadomsky.<br />

− Perseguiram-nos? repeti com espanto. Por que? Que diferença havia entre eles e nós para que fôssemos<br />

perseguidos? Meu amigo Rufo continuou discípulo de meu rabi mesmo depois de tornar-se messianita. Ia conosco ao Templo<br />

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oferecer sacrifícios como outrora – e o mesmo faziam todos os messianitas. Dizíamos as mesmas orações, e nelas falávamos do<br />

advento do Messias. E continuávamos a espera-lo, dia a dia. Porque tanto eles como nós não sabíamos o quando do advento e<br />

tínhamos de esperá-lo todos os minutos. E como também nos diziam que Deus podia escolher qualquer momento para a nossa<br />

redenção por intermédio de seu emissário tínhamos de estar em perpétuo estado de prontidão: porque esse esperar e esse ansiar<br />

era a fonte da fé. A única diferença entre nós estava em que para eles o Messias já tinha estado na terra e iria voltar, e para nós<br />

não, por que se havia estado na terra, como permanecia a terra irredimida do mal e mergulhada no pecado? Nossa crença era de<br />

que o Messias viria, mas não tinha vindo ainda.<br />

− E não havia disputas entre vocês sobre uma divergência tão importante?<br />

− Certo que havia disputas nas sinagogas e casas de estudo e mesmo nos pátios do Templo. Mas disputas como<br />

todas as outras que sobre outros pontos religiosos corriam entre nós. Todos nós, entretanto, pertencíamos à mesma sagrada<br />

congregação de Deus.<br />

− E não houve rompimento entre você e os messianitas por causa dessa diferença?<br />

− No meu tempo, não! Durante a minha vida em Jerusalém, não!<br />

− E que aconteceu aos Filhos de Hanan?<br />

− A maldição que sobre eles lançou o rabi Gamaliel ben Simão se cumpriu. Eles e todos os do partido saduceu,<br />

foram varridos de Israel. Deles nada resta – e o nome da Casa de Hanan é lembrado com maldição. A palavra corrente em<br />

Jerusalém naqueles dias era: “Os Filhos de Hanan são os Filhos de Eli” – palavras que ficaram até hoje.<br />

− E não pode me dizer o que aconteceu àquele meu amigo Hanan ben Hanan?<br />

− Esse? Ah, tornou-se uma abominação repugnante. Quando, o último da série, se tornou Sumo Sacerdote,<br />

passou a perseguir os sábios. Mas depois que fez morrer Jacó ben Joseph, irmão de Yeshua o crucificado, os sábios tanto se<br />

encheram de indignação que mandaram emissários ao Rei; e também foram ao encontro do novo Procurador Albino, que se<br />

inaugurava; e não descansaram enquanto o Rei Agrippa não depôs Hanan ben Hanan, por causa do assassínio de Jacó ben<br />

Joseph. Mais tarde os judeus se vingaram. Ao tempo duma revolta contra Roma descobriram que ele era traidor e<br />

despedaçaram-no e lançaram-lhe a carne aos cães. E com ele desaparecem de Israel os Filhos de Hanan. E assim aconteça a<br />

todos os malvados, enquanto o justo floresça qual uma tamareira, concluí.<br />

ele:<br />

Pan Viadomsky guardou silêncio. Fechou os olhos e, sempre sentado, na cama, pôs-se a refletir. Voltei-me para<br />

− Permite-me agora uma pergunta? Que aconteceu com o Hegemon?<br />

Gelada mão agarrou a minha e senti – era um aperto de ossos. Pan enfitou-me dum modo selvagem,<br />

penetrantemente.<br />

− Que me aconteceu? Estou aqui hoje, como estive lá ontem, como serei e estarei por todo o sempre. Aqui estou<br />

– sou e não posso parar de ser.<br />

Não compreendi. Pareceu-me que Viadomsky estava em delírio; e meu olhar deve ter traído meu pensamento,<br />

porque ele acrescentou em voz resignada, caindo com a cabeça no travesseiro:<br />

− Ele lançou sobre mim a maldição de existir...<br />

− Ele quem? perguntei em voz baixa.<br />

− Ele. Na cruz.<br />

− O rabi de Nazaré?<br />

− O Messias de Nazaré! gritou Viadomsky.<br />

− Acredita?<br />

− Sempre acreditei, mas não queria admitir.<br />

− E...<br />

− E admito-o agora, tenho de admiti-lo – compreende?<br />

Tenho de admiti-lo mesmo contra a minha vontade, contra a minha natureza, contra tudo o que sou. Tenho!<br />

rosnou ele num uivo feroz.<br />

− Quem o força a isso?<br />

− Ele! respondeu Pan Viadomsky e caiu em colapso, fechando os olhos.<br />

Calei-me. Deixei-o em luta com os seus pensamentos, e a batalha interior que se refletia em sua expressão. Abriu<br />

os olhos e olhou-me, triste e humilde. E – maravilha das maravilhas! – não revelou o mais leve vexame da sua fraqueza. Fingi<br />

que nada havia notado e fiz menção de querer partir.<br />

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− É tarde – tempo de ir-me, murmurei.<br />

− Para onde quer ir? Por que quer deixar-me?<br />

E Pan Viadomsky espichou para mim as mãos, enquanto seu rosto se fazia uma suplica.<br />

− Pan Viadomsky! Que sente? – e admirei-me que me deixasse usar este nome. Ele fez um gesto para que eu<br />

ficasse – e em silêncio sentei-me de novo na cama.<br />

− Muito lutei, mas fui vencido. Ele conquistou-me, murmurou Viadomsky como falando consigo mesmo.<br />

Tomou-me como quem toma uma vasilha de barro e quebra. Quebrou-me. Contra ele lutei até o derradeiro momento. E me fui<br />

sentindo cada vez mais fraco. Procurei evitar o seu olhar. Eu sabia que tinha de acabar dominado. Cada olhar dele me<br />

atravessava, me varava no mais íntimo; era como se exércitos houvessem forçado a passagem dentro de mim, para quebrar a<br />

estrutura do meu caráter e da minha herança, para fundir minha natureza, para despedaçar as raízes do meu ser. Fui derretido e<br />

fundido em novos moldes. E afim de contrabater a sua influência sobre mim, fiz-me mais perverso do que sou. E quando da<br />

cruz ele me pediu água, tomei uma esponja, embebi-a em vinagre e cheguei-lha à boca. E foi então que ele me agarrou.<br />

Agarrou como o leão agarra a presa. Voltou para mim os olhos e minha resistência se sentiu paralisada – meus membros se<br />

sentiram peados e foi como se eu caísse aos seus pés. Lutei ainda. Reuni minhas forças e chamei em socorro a herança do meu<br />

sangue. Procurei manter-me ereto e dominar o seu olhar. Alguma coisa porém aconteceu. Aqueles olhos sangrentos cativaram<br />

os meus; cativaram-me como se fossem duas pedras mágicas. Ele moveu os lábios e ouvi estas palavras: “Que deste dia em<br />

diante o vinagre seja a tua bebida!” Procurei rir-me dessas palavras. Procurei abrigar-me no motejo e no desprezo. Eu sabia<br />

que se naquele momento cedesse, a ele ficaria atado por toda a eternidade. Por isso perguntei-lhe em voz de mofa, enquanto<br />

meu coração chorava: “E quando minha bebida se tornará água?” E sua resposta foi: “Quando uma das minhas lágrimas cair<br />

sobre ti” – e afastou de mim os olhos.<br />

Procurei ainda salvar-me com a mofa e disse-lhe: “Se és Rei dos Judeus, por que não te socorres da ti mesmo?”<br />

mas essas palavras foram inúteis. O que ele me dissera me ficara gravado a fogo no coração e eu nunca mais teria sossego.<br />

Contra ele lutei, mas como luta um peixe fisgado pelo anzol. Por mais que se debata, preso está no extremo da<br />

linha. Assim eu com ele.<br />

Minha boca ri e dela saem pragas, mas meu coração treme diante dele. Seu último olhar me persegue sempre e<br />

sempre. E rebelo-me, preciso rebelar-me. Para libertar-me dele não há o que eu não faça. E estou em luta eterna, a salvar-me<br />

dele – e dele não posso salvar-me.<br />

E assim vou eu de encarnação em encarnação, e em cada encarnação a luta se renova. Dele me arranco, mas<br />

nunca dele me despego. Não posso existir com ele e não posso existir sem ele.<br />

Minha bebida é vinagre. O que ingiro é vinagre e tudo quanto sai de mim é vinagre. E anseio pela límpida água<br />

dum regato. Oh, se minha bebida pudesse novamente ser água! Estou tão cansado! Oh, Deus, tem dó de mim!<br />

E então – nem posso crer no prodígio! – os olhos de Pan Viadomsky encheram-se de lágrimas. Lágrimas grossas<br />

como botões de violeta brotaram de seus olhos. A principio tentou escondê-las e enxugou-as na manga. E eu também voltei o<br />

rosto fingindo que não via. Súbito, arriou de todo, cedeu, e sem nenhuma resistência deixou que as lágrimas corressem<br />

livremente. Já não se envergonhava delas.<br />

− Glória a Deus nas alturas! Sua vontade seja feita na terra, murmuraram seus lábios.<br />

− Pan Viadomsky! Pan Viadomsky! A lágrima do rabi caiu em sua taça! Exclamei deslumbradamente.<br />

Ele procurou dar expressão severa aos olhos, mas nada conseguiu. Só seus lábios me censuraram, dizendo:<br />

“Que? Pan Viadomsky?”<br />

− Hegemon de Jerusalém, corrigi-me.<br />

− Hegemon de Jerusalém, sim, repetiu ele num fio de voz.<br />

Depois duma pausa chamou-me, como saído do sono:<br />

− Que aconteceu lá no pátio do Templo, no último dia, entre ele e os rabis? Informaram-me que haviam chegado<br />

a um acordo relativo ao primeiro e mais importante mandamento.<br />

− Sim! O rabi e os fariseus acordaram em que o primeiro mandamento era amar a Deus e só depois vinha o<br />

mandamento de amar ao próximo. Nestes dois fundamentos repousam os pilares da fé humana.<br />

− Sim, mas que aconteceu?<br />

− Houve divergência quanto ao método de alcançar o alvo, mas o alvo ficou sendo o mesmo para os dois grupos.<br />

− Foi sempre assim com vocês judeus! Jamais chegam a acordo. E ainda quando chegam a um acordo, não se<br />

compreendem. Quem lá sabe dos caminhos dos judeus?<br />

Esta foi a última censura que ele nos lançou. Pan recaiu em silêncio.<br />

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Fiquei sentado ali na cama, com a minha mão presa na sua – na sua mão toda ossos e gelada. Mas seus olhos<br />

ainda estavam abertos.<br />

Os primeiros raios de sol da manhã entravam pela janela e varando as teias de aranha vinham ter à cama. Raios<br />

cansados da viageira longa e dos óbices vencidos, mas ainda quentes da bênção do sol.<br />

Pan ainda estava com vida – com vida nos olhos abertos. Seus lábios moveram-se como se conscientes do gosto<br />

do sol. Uma expressão de paz e serenidade começava a invadir-lhe o rosto, como a do capitão de navio que afinal vê diante de<br />

si o salvamento.<br />

Inclinei-me sobre ele e ouvi com clareza suas últimas palavras:<br />

− Deus! Tem piedade de minha alma pecadora!<br />

Uma breve convulsão e seu rosto se tornou em pedra – ou marfim amarelo finamente cinzelado.<br />

Mais tarde, quando já ia alto o sol e o calor invadia o recinto, a pequena Blimele, filha do alfaiate morador no<br />

apartamento do porteiro, oposto ao de Viadomsky, entrou. Seus cabelos em cachos negros, lavados de pouco, caiam-lhe sobre<br />

os ombros infantis. Que olhos frescos e claros! Neles ainda boiava o sono, como se ela houvesse acordado naquele momento.<br />

Seus pesinhos nus estavam numas chinelas de gente grande, e na mão ela trazia um buquezinho de flores do campo, amarelas e<br />

já meio murchas. E em voz cantante, disse Blimele, infantilmente:<br />

doente.<br />

− Estivemos ontem no cemitério judeu e apanhamos flores. Mamãe me disse para trazer estas para Pan, tão<br />

Tomei o buquezinho de pobres flores amarelas e murchas, flores judias; e depositei-as sobre o coração já em paz<br />

de Pan Viadomsky.<br />

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