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Nise da Silveira: um retrato - Museu de Imagens do Inconsciente

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<strong>Nise</strong> <strong>da</strong> <strong>Silveira</strong>: <strong>um</strong> <strong>retrato</strong><br />

Elvia Bezerra<br />

"Para navegar contra a corrente são necessárias condições raras: espírito <strong>de</strong><br />

aventura, coragem, perseverança e paixão."<br />

Assim a médica alagoana <strong>Nise</strong> <strong>da</strong> <strong>Silveira</strong> classificou os atributos que<br />

marcaram a sua trajetória como psiquiatra que faria <strong>do</strong> Brasil, no século, o<br />

pioneiro na revolução mundial por que passou o tratamento <strong>da</strong><strong>do</strong> ao <strong>do</strong>ente<br />

mental.<br />

Li<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s na Inglaterra por David Cooper e Ronald Laing, e na Itália por<br />

Franco Basaglia, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1970, as mu<strong>da</strong>nças propostas tinham como<br />

principal objetivo pôr abaixo a estrutura hospitalar instituí<strong>da</strong> pela cruel<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a psiquiatria carcerária. Em vez <strong>do</strong> confinamento em celas, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

expressão: esse o novo <strong>de</strong>stino <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente mental.<br />

Aqui no Brasil, e – lembremos – ain<strong>da</strong> na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950, <strong>Nise</strong> <strong>da</strong> <strong>Silveira</strong>,<br />

ao fun<strong>da</strong>r, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, a Casa <strong>da</strong>s Palmeiras, já intuía o paradigma<br />

que seria dita<strong>do</strong> na Europa com gran<strong>de</strong> estar<strong>da</strong>lhaço. Em regime <strong>de</strong> semiinternato,<br />

a Casa tinha o mesmo objetivo <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> pelo psiquiatra italiano,<br />

ou seja, tratar pacientes psiquiátricos fora <strong>do</strong>s manicômios. Reconheçamos,<br />

portanto: a psiquiatra brasileira antecipou-se pelo menos duas déca<strong>da</strong>s a<br />

Franco Basaglia.<br />

Ao tentar viabilizar <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> expressão para o <strong>do</strong>ente mental, <strong>Nise</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>Silveira</strong> ce<strong>do</strong> percebeu que essa expressão não podia ser a verbal. Quantas<br />

vezes ela se <strong>de</strong>tivera à escuta <strong>de</strong> discursos ininteligíveis saí<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s bocas<br />

ansiosas <strong>do</strong>s internos. E, no entanto, constatava que não era por serem<br />

incapazes <strong>de</strong> usar a palavra que eles <strong>de</strong>ixavam <strong>de</strong> sentir emoções. Não<br />

i<strong>de</strong>ntificava o tão divulga<strong>do</strong> "embotamento afetivo" nos clientes, como optou<br />

por chamar aos <strong>do</strong>entes mentais. Pelo contrário, podiam revelar o mais<br />

<strong>de</strong>lica<strong>do</strong> afeto aos animais que ela introduziu no hospital, com objetivo <strong>de</strong><br />

atuarem como co-terapeutas, para espanto e <strong>de</strong>scrença <strong>do</strong>s colegas. A<br />

vivência no hospício lhe revelava <strong>um</strong>a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> diferente <strong>da</strong>quela que<br />

conhecia pelos livros.<br />

Era preciso encontrar o seu caminho. Como, então, ter acesso ao mun<strong>do</strong><br />

interno <strong>de</strong> seres tão atormenta<strong>do</strong>s? Ao se recusar <strong>de</strong>finitivamente a a<strong>do</strong>tar<br />

procedimentos violentos como o eletrochoque e o coma insulínico, por meio<br />

<strong>do</strong>s quais a integri<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente era avilta<strong>da</strong>, <strong>de</strong>dicou-se à busca <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

meio pelo qual o esquizofrênico pu<strong>de</strong>sse se expressar, ain<strong>da</strong> que apenas<br />

parcialmente, em muitos casos.<br />

Aliou-se a Fábio Sodré, então diretor <strong>da</strong> enfermaria <strong>do</strong> Hospital Pedro II, e,<br />

na tentativa <strong>de</strong> encontrar <strong>um</strong>a via <strong>de</strong> acesso ao mun<strong>do</strong> interno <strong>do</strong> cliente,<br />

criou as primeiras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> expressão em <strong>um</strong> mo<strong>de</strong>stíssimo ateliê <strong>de</strong><br />

costura e bor<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />

Em segui<strong>da</strong>, vieram os <strong>de</strong> pintura e mo<strong>de</strong>lagem. Cartolinas tomavam forma<br />

<strong>da</strong>s emoções, telas e papéis se impregnavam <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s


<strong>de</strong> psiques dilacera<strong>da</strong>s. Estava fun<strong>da</strong><strong>do</strong> o Serviço <strong>de</strong> Terapêutica<br />

Ocupacional, on<strong>de</strong>, nos ateliês, os internos se expressavam livremente,<br />

<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> aos terapeutas a função <strong>de</strong> estabelecer conexões entre as imagens<br />

que emergem <strong>do</strong> inconsciente e a situação emocional <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> <strong>um</strong>.<br />

“(...) É por meio <strong>de</strong>ssas manifestações expressivas que nos é <strong>da</strong><strong>do</strong><br />

penetrar no mun<strong>do</strong> interior <strong>do</strong>s psicóticos, mun<strong>do</strong> tão pouco acessível<br />

às abor<strong>da</strong>gens lógico-discursivas. O terapeuta que ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente<br />

<strong>de</strong>seja entrar em contato com seu <strong>do</strong>ente terá <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>cifrar<br />

as imagens que ele pinta ou mo<strong>de</strong>la, terá <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a ler sua<br />

expressão corporal, a captar as vela<strong>da</strong>s expressões <strong>de</strong> suas tentativas<br />

<strong>de</strong> comunicação.”<br />

Com base nessa crença, <strong>Nise</strong> <strong>da</strong> <strong>Silveira</strong> <strong>de</strong>u vi<strong>da</strong>, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, à sua<br />

criação mais importante: o <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>Imagens</strong> <strong>do</strong> <strong>Inconsciente</strong>, hoje<br />

reconheci<strong>do</strong> em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Inaugura<strong>do</strong> em 1952, n<strong>um</strong>a pequena sala <strong>do</strong><br />

Hospital Pedro II, no Engenho <strong>de</strong> Dentro, o museu nascia <strong>do</strong> processo<br />

embrionário firma<strong>do</strong> com a criação <strong>da</strong> Seção <strong>de</strong> Terapêutica Ocupacional,<br />

cinco anos antes.<br />

As pinturas saíam <strong>do</strong>s ateliês direto para as pare<strong>de</strong>s <strong>do</strong> museu vivo. E os<br />

estu<strong>do</strong>s sobre as formas expressas prosseguiam entre os terapeutas,<br />

coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s pela mestra. O objetivo era fazer <strong>da</strong> Seção <strong>de</strong> Terapêutica<br />

Ocupacional <strong>um</strong> campo <strong>de</strong> pesquisa on<strong>de</strong> se encontrasse fun<strong>da</strong>mentação<br />

teórica para a sua prática. A Terapêutica era o caminho que <strong>Nise</strong> <strong>da</strong> <strong>Silveira</strong><br />

buscava, não havia dúvi<strong>da</strong>. Mas como implementá-la n<strong>um</strong> momento em que<br />

a medicina se vangloriava <strong>do</strong> avanço representa<strong>do</strong> pela psicocirurgia, e a<br />

força <strong>do</strong>s laboratórios se impunha com os psicotrópicos?<br />

Sofreu permanentes ataques <strong>do</strong>s que não viam senti<strong>do</strong> nos rabiscos<br />

<strong>de</strong>sconjunta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>do</strong>entes mentais ou <strong>do</strong>s que atribuíam a ela interesse em<br />

<strong>de</strong>scobrir talentos novos. Sim, porque embora jamais fossem induzi<strong>do</strong>s a<br />

fazer qualquer tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho, alguns <strong>de</strong>sses clientes transformaram suas<br />

vivências internas, muitas vezes aterra<strong>do</strong>ras, em imagens plasticamente<br />

belas. Dessa maneira, durante o processo terapêutico <strong>de</strong> expressão,<br />

surgiram ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros artistas, cujas obras seriam reconheci<strong>da</strong>s pela crítica <strong>de</strong><br />

arte especializa<strong>da</strong>. Foram os casos <strong>de</strong> Raphael Domingues, Fernan<strong>do</strong> Diniz<br />

e Emygdio <strong>de</strong> Barros, o último "talvez o único gênio <strong>da</strong> pintura brasileira", na<br />

opinião <strong>de</strong> Ferreira Gullar.<br />

Lutan<strong>do</strong> contra a corrente, ela partiu para Zurique, em 1957, on<strong>de</strong> se<br />

realizava o II Congresso Internacional <strong>de</strong> Psiquiatria, levan<strong>do</strong> embaixo <strong>do</strong><br />

braço a produção <strong>do</strong>s internos freqüenta<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s ateliês. Era o espírito <strong>de</strong><br />

aventura que se unia ao científico. Naquela ocasião, ouviu atenta as<br />

observações <strong>do</strong> psicólogo suíço C. G. Jung sobre a mostra brasileira. Voltou<br />

ao Brasil segura <strong>de</strong> que estava no caminho certo. As imagens produzi<strong>da</strong>s por<br />

esquizofrênicos – acreditava – tinham dupla função: representavam <strong>um</strong>a via<br />

<strong>de</strong> acesso à psique cindi<strong>da</strong>; <strong>da</strong>vam ao terapeuta elementos para que ele<br />

pu<strong>de</strong>sse visl<strong>um</strong>brar o mun<strong>do</strong> interno <strong>do</strong> cliente. Em segun<strong>do</strong> lugar –<br />

constatou ela – <strong>um</strong>a vez expressas, essas imagens eram <strong>de</strong>spotencializa<strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong> sua função <strong>de</strong>sintegra<strong>do</strong>ra na psique. E afirmaria: "O trabalho no ateliê<br />

revela que a pintura não só proporciona esclarecimentos para compreensão


<strong>do</strong> processo psicótico mas constitui igualmente ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro agente<br />

terapêutico."<br />

Opon<strong>do</strong>-se à concepção rasa que vê na Terapêutica Ocupacional <strong>um</strong>a<br />

prática auxiliar e subalterna ou <strong>um</strong> mero preenchimento <strong>de</strong> tempo ocioso, ela<br />

buscou <strong>um</strong> legítimo méto<strong>do</strong> terapêutico que atuasse <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> individual <strong>do</strong> psicótico. Isola<strong>da</strong>, mas livre, seguiu adiante.<br />

Livre também no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>spoja<strong>do</strong> <strong>de</strong> viver, imprimiu esse estilo até mesmo<br />

na sua obra científica <strong>Imagens</strong> <strong>do</strong> inconsciente, publica<strong>do</strong> em 1981, livro que<br />

reúne seus fun<strong>da</strong>mentos teóricos mais importantes e que constitui <strong>um</strong> marco<br />

na psiquiatria contemporânea. O refinamento <strong>de</strong> suas teses consiste<br />

sobretu<strong>do</strong> em mostrar a coragem <strong>de</strong> ser simples. Diz ela no capítulo intitula<strong>do</strong><br />

"O afeto catalisa<strong>do</strong>r":<br />

“(...) Qualquer <strong>um</strong> po<strong>de</strong>rá observar que as tentativas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação<br />

interna, bem como as simultâneas tentativas <strong>de</strong> volta ao mun<strong>do</strong><br />

externo tornam-se mais firmes e dura<strong>do</strong>uras se no ambiente on<strong>de</strong> vive<br />

o <strong>do</strong>ente ele encontra o suporte <strong>do</strong> afeto.”<br />

As teorias, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral, <strong>de</strong>screvem, em linguagem técnica, os sintomas e<br />

reações. O afeto, quan<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, permanece no nível teórico. É<br />

material caro <strong>de</strong>mais para ser leva<strong>do</strong> em conta. A respeito disso, e<br />

consciente <strong>da</strong> interpretação errônea <strong>de</strong> que não raro são vítimas seus<br />

postula<strong>do</strong>s, seja por absoluta incompreensão ou por tendência à<br />

simplificação banal, <strong>Nise</strong> <strong>da</strong> <strong>Silveira</strong> adverte, ain<strong>da</strong> em <strong>Imagens</strong>:<br />

“(...) Nessa apologia <strong>do</strong> afeto, não sejamos <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> ingênuos,<br />

pensan<strong>do</strong> que será fácil satisfazer as gran<strong>de</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s afetivas<br />

<strong>de</strong> seres que foram tão machuca<strong>do</strong>s e socialmente tão rejeita<strong>do</strong>s.”<br />

Coragem teve ela ain<strong>da</strong> para transgredir as leis psiquiátricas, até então<br />

inquestionáveis. Quantas vezes recomen<strong>do</strong>u aos estagiários que<br />

substituíssem os manuais <strong>de</strong> psiquiatria pela leitura <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Macha<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

Assis, em que encontrariam a alma h<strong>um</strong>ana estu<strong>da</strong><strong>da</strong> em espantosa<br />

profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Nunca foi complacente com os psiquiatras que insistiam no uso <strong>do</strong>s<br />

calmantes entorpecentes, para ela ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras camisas-<strong>de</strong>-força químicas.<br />

Desmascarou os tão bem-fala<strong>do</strong>s efeitos <strong>do</strong>s psicotrópicos que, na sua<br />

opinião, servem muito mais ao enriquecimento <strong>do</strong>s laboratórios internacionais<br />

<strong>do</strong> que a <strong>um</strong> processo <strong>de</strong> reconstrução <strong>da</strong> psique. Constatou que os<br />

remédios apenas encurtam o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> permanência no hospital, mas não<br />

diminuem a freqüência <strong>de</strong> internações. Não usou <strong>de</strong> meias palavras para<br />

responsabilizar os colegas pela falta <strong>de</strong> respeito ao <strong>do</strong>ente, como ser<br />

h<strong>um</strong>ano. E pregou, com insistência, que o objetivo <strong>do</strong> tratamento psiquiátrico<br />

não podia mais continuar sen<strong>do</strong> a transitória remoção <strong>de</strong> sintomas.<br />

Sua proposta continuava clara: reconhecer a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s condições<br />

psíquicas que se afastam <strong>da</strong>s ditas normais e proce<strong>de</strong>r à investigação<br />

<strong>de</strong>sses "diferentes esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ser" como chamou Antonin Artaud ao processo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sintegração <strong>da</strong> psique. O méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> investigação? O <strong>da</strong> terapêutica<br />

ocupacional, <strong>da</strong> qual ela nunca se afastaria e que lhe permitiu estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

casos hoje clássicos <strong>da</strong> psiquiatria.


Se a perseverança, a terceira quali<strong>da</strong><strong>de</strong> para se navegar contra a corrente, a<br />

manteve fiel à terapêutica ocupacional, conservou-a durante quarenta anos à<br />

frente <strong>do</strong> Grupo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s C. G. Jung, fun<strong>da</strong><strong>do</strong> por ela em 1958, com<br />

reuniões regulares às quartas-feiras.<br />

Foi ali que a conheci, quan<strong>do</strong> em 1988 comecei a estu<strong>da</strong>r a psicologia<br />

junguiana. Senta<strong>da</strong> à cabeceira <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mesa retangular ro<strong>de</strong>a<strong>da</strong> <strong>de</strong> bancos<br />

toscos, on<strong>de</strong> seus ama<strong>do</strong>s gatos circulavam com a gentileza própria <strong>de</strong><br />

anfitriões, ela sequer perguntava o nome <strong>de</strong> quem estava presente. Um novo<br />

candi<strong>da</strong>to ao Grupo abria a porta, entrava e sentava-se. Se quisesse,<br />

permanecia em silêncio e saía assim, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> os presentes sem saber<br />

quem ali tinha esta<strong>do</strong>. No entanto, na<strong>da</strong> escapava ao olho <strong>da</strong> mestra que,<br />

<strong>de</strong>ssa maneira, fazia a seleção mais rigorosa: como na<strong>da</strong> é exigi<strong>do</strong> <strong>de</strong> quem<br />

freqüentava a reunião, só permanecia ali quem tivesse, ou <strong>de</strong>scobrisse,<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro interesse no assunto. Não podia haver critério mais seletivo!<br />

Privilegia<strong>da</strong> que fui por ter si<strong>do</strong> escolhi<strong>da</strong> para ajudá-la na revisão <strong>de</strong> seus<br />

textos ou para colaborar fazen<strong>do</strong> pequenas traduções, ela abriu-me <strong>um</strong><br />

mun<strong>do</strong>. Durante esse perío<strong>do</strong> em que atuei como sua colabora<strong>do</strong>ra, vivi n<strong>um</strong><br />

"cativeiro feliz", expressão que usou o escritor argentino Alberto Manguel na<br />

sua <strong>de</strong>liciosa A história <strong>da</strong> leitura, referin<strong>do</strong>-se ao perío<strong>do</strong> em que lia em voz<br />

alta para Jorge Luís Borges, cego.<br />

No cativeiro <strong>de</strong> <strong>Nise</strong> <strong>da</strong> <strong>Silveira</strong> não havia trégua. O estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Jung era<br />

contínuo, e a paixão com que ela se <strong>de</strong>bruçava sobre a obra <strong>de</strong> Spinoza me<br />

encantava. O prazer com que estu<strong>da</strong>va mitologia grega!<br />

Muitas vezes interrompia o trabalho para contar <strong>um</strong> caso. Descontração <strong>de</strong><br />

minutos e, em segui<strong>da</strong>, retornava naturalmente ao estu<strong>do</strong>, ao silêncio. Daí a<br />

mais <strong>um</strong>a hora, nova brinca<strong>de</strong>ira, novo intervalo, e o espontâneo retorno ao<br />

livro. Era <strong>um</strong>a disciplina rigorosa, mas natural.<br />

Certa vez, durante <strong>um</strong>a greve <strong>de</strong> ônibus em que os táxis não chegavam até<br />

Santa Teresa, on<strong>de</strong> moro, <strong>de</strong>sci a pé até a sua casa, no Flamengo. E voltei a<br />

pé, sem ousar romper o compromisso.<br />

Sua lendária bravura intimi<strong>da</strong>va a muitos, enfureceu a outros tantos, e<br />

sobretu<strong>do</strong> tornou-a incômo<strong>da</strong> aos que placi<strong>da</strong>mente aceitaram a imposição<br />

<strong>do</strong>s laboratórios em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> digni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente mental. Por sua luta,<br />

tornou-se <strong>um</strong>a "figura épica", nas palavras <strong>de</strong> Wilson Coutinho. Mesmo<br />

assim, seu trabalho no Brasil não tem ti<strong>do</strong> o reconhecimento que merece, e<br />

enquanto esperamos que gerações futuras saibam honrá-la mais <strong>do</strong> que nós,<br />

continua valen<strong>do</strong> o alerta que, em certa ocasião, fez o nosso poeta Manuel<br />

Ban<strong>de</strong>ira: "Somos assim: conhecemos e celebramos autores europeus <strong>de</strong><br />

terceira e quarta or<strong>de</strong>m; relegamos ao esquecimento os gênios <strong>do</strong> nosso<br />

continente."<br />

Das lembranças tão caras <strong>de</strong> nossa convivência, relato a seguir apenas <strong>um</strong>a<br />

que atesta a largueza <strong>de</strong> espírito <strong>de</strong>ssa personali<strong>da</strong><strong>de</strong> extraordinária:<br />

Encerrávamos o trabalho no seu apartamento-biblioteca por volta <strong>da</strong>s sete <strong>da</strong><br />

noite. Em segui<strong>da</strong>, eu a acompanhava até o quarto an<strong>da</strong>r e ali me <strong>de</strong>spedia.<br />

Muitas vezes, porém, ela insistia em que eu ficasse para o jantar, refeição<br />

leve que, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral, constava <strong>de</strong> <strong>um</strong>a sopa <strong>de</strong> arroz integral com<br />

leg<strong>um</strong>es.


Certa noite em que aceitei o convite, sentamo-nos à mesa e esperávamos<br />

que a emprega<strong>da</strong> nos servisse. Mas a moça tinha ciúmes <strong>da</strong> Doutora, como<br />

a chamávamos nós, os que lhe eram mais chega<strong>do</strong>s. Eu não escapava à<br />

hostili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> emprega<strong>da</strong> e, apesar disso, lá estava, à espera <strong>do</strong> jantar.<br />

Para a minha anfitriã, vi chegar o prato quentinho, o cheiro nos anuncian<strong>do</strong> o<br />

sabor. Para mim, <strong>um</strong>a xícara <strong>de</strong> café com leite frio e <strong>um</strong> pãozinho, também<br />

frio, ligeiramente amanteiga<strong>do</strong>. O café usa<strong>do</strong> <strong>de</strong>via ser o que sobrara <strong>do</strong><br />

almoço, pois era turvo e não tinha o aroma tão conheci<strong>do</strong>. A xícara estava<br />

fria.<br />

A Doutora olhou atentamente para a refeição que me tinha si<strong>do</strong> <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> e,<br />

sem levantar o tom <strong>de</strong> voz, apenas muito pausa<strong>da</strong> e serenamente dirigiu-se à<br />

emprega<strong>da</strong>:<br />

“Po<strong>de</strong> levar a minha sopa. Quero o mesmo que a Elvia.”<br />

Falou com tal firmeza e superior digni<strong>da</strong><strong>de</strong> que me <strong>de</strong>ixou impedi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

contestar sua or<strong>de</strong>m, ain<strong>da</strong> que eu me sentisse no <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> lhe lembrar a<br />

recomen<strong>da</strong>ção médica para a alimentação a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> aos seus oitenta e nove<br />

anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, na ocasião. Constrangia-me aquela soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> torrencial;<br />

não me julgava merece<strong>do</strong>ra.<br />

A emprega<strong>da</strong>, por razões naturalmente diversas <strong>da</strong>s minhas, sentiu-se tão<br />

intimi<strong>da</strong><strong>da</strong> quanto eu e limitou-se a retirar o prato e trazer, conforme a or<strong>de</strong>m,<br />

mais <strong>um</strong> café com leite frio e <strong>um</strong> pãozinho magro <strong>de</strong> manteiga.<br />

A contundência <strong>da</strong> atitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> Doutora me <strong>de</strong>snorteara. Eu já não sabia se me<br />

preocupava com sua saú<strong>de</strong>, se me envergonhava diante <strong>da</strong> nobreza <strong>de</strong> sua<br />

renúncia, ou se tu<strong>do</strong> – pensava – não passava <strong>de</strong> <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira.<br />

Misto <strong>de</strong> emoção, estranhamento, perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Não dissemos <strong>um</strong>a palavra. Nos seus "bugalhos enormes", como chamou<br />

Graciliano Ramos aos seus gran<strong>de</strong>s olhos, vi o clarão <strong>de</strong> <strong>um</strong>a firmeza<br />

incondicional, e no silêncio <strong>de</strong> nossa <strong>de</strong>gustação franciscana, a c<strong>um</strong>plici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

mais farta que eu já experimentara.<br />

Serena, ela me olhava com naturali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nunca as palavras <strong>de</strong> Novalis me<br />

pareceram tão ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras: Manger en commun est l’acte symbolique <strong>de</strong><br />

l’union.<br />

Antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixá-la, unimos <strong>de</strong>mora<strong>da</strong>mente nossas faces e, ao me<br />

<strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r <strong>do</strong> abraço, percebi que <strong>um</strong> sorriso leve se prolongava no canto<br />

<strong>de</strong> seu olho.<br />

Jovem e ain<strong>da</strong> senhora <strong>do</strong> charme que Di Cavalcanti transpôs para a tela<br />

quan<strong>do</strong> lhe pintou o <strong>retrato</strong>, <strong>Nise</strong> <strong>da</strong> <strong>Silveira</strong> morreu há <strong>um</strong> ano, em 30 <strong>de</strong><br />

outubro <strong>de</strong> 1999, aos noventa e quatro anos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> profun<strong>do</strong> sofrimento<br />

que durou quase <strong>do</strong>is meses, perío<strong>do</strong> em que se manteve lúci<strong>da</strong> e digna<br />

como viveu.


Elvia Bezerra é colabora<strong>do</strong>ra/re<strong>da</strong>tora na<br />

Encyclopaedia Britannica <strong>do</strong> Brasil e autora<br />

<strong>de</strong> A trinca <strong>do</strong> Curvelo: Manuel Ban<strong>de</strong>ira,<br />

Ribeiro Couto e <strong>Nise</strong> <strong>da</strong> <strong>Silveira</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, Topbooks, 1995.

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