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No entanto, Júpiter resolveu poupar da destruição um homem e sua esposa, que considerava os únicos<br />
justos sobre a face da Terra. <strong>Deucalião</strong> e <strong>Pirra</strong> eram seu nomes. Ao verem que tudo naufragava sob as<br />
ondas impetuosas, <strong>Deucalião</strong> abraçou-se à esposa, e foram ambos refugiar-se num velho barquinho.<br />
As águas rapidamente cobriram tudo, enquanto suspendiam a frágil embarcação até o topo do monte<br />
Parnaso, o último lugar seco da Terra.<br />
Netuno, vendo sua tarefa cumprida, chamou logo os seus tritões, semideuses marinhos metade<br />
homens, metade peixes.<br />
— Vão, agora, e devolvam tudo à normalidade — disse, com autoridade.<br />
Um exército de tritões partiu, espalhando-se pela Terra. Surgindo de vários pontos das águas, fizeram<br />
soar as imensas conchas marinhas, o que milagrosamente fez as águas recuarem de volta aos leitos dos<br />
rios e dos oceanos. Rapidamente as águas foram baixando, deixando à mostra outra vez as árvores, as<br />
casas, os templos, os palácios e uma multidão de homens e animais mortos. Parecia que era a própria<br />
Terra que ressurgia de dentro das águas, toda lavada e pronta para ser novamente ocupada.<br />
O único casal de sobreviventes vagou, assim, pela Terra, revendo antigos lugares que antes<br />
fervilhavam de pessoas, mas que agora eram habitados somente pelo silêncio. De mãos dadas<br />
penetraram num grande teatro, onde dias antes uma multidão alegre rira das piadas e gracejos de uma<br />
velha comédia, pouco antes de morrer afogada. No centro do palco, <strong>Deucalião</strong> enxergou o cadáver de<br />
um dos atores, que ainda tinha presa ao rosto uma máscara, toda dobrada e enferrujada. Curioso,<br />
retirou o dourado e sorridente adereço, mas por detrás da máscara só havia agora uma caveira pálida,<br />
que sorria, a seu modo, o grande e compulsório sorriso da Morte.<br />
<strong>Pirra</strong> virou o rosto para o lado, com um ar compungido.<br />
— Vamos, <strong>Deucalião</strong>. Aqui só há desolação e morte!<br />
Viram também templos desertos, onde as estátuas dos deuses que não haviam tombado ainda<br />
permaneciam em pé, em poses e gestos tão vividos que pareciam prestes a descer de seus nichos para<br />
ocupar o lugar dos vivos. Passaram por ruas desertas. Entraram e saíram de casas vazias. Percorreram<br />
cidades inteiramente abandonadas. Tudo estava ocupado pela morte.<br />
— Ninguém sobreviveu à cólera de Júpiter, a não ser nós! — disse <strong>Deucalião</strong> à esposa.<br />
— Oh! — gemia a mulher. — Que faremos vivos, num mundo de mortos?<br />
— Procuremos nos consolar, minha querida <strong>Pirra</strong>! — exclamou <strong>Deucalião</strong>, que intimamente estava<br />
grato a Júpiter por haver poupado de sua ira a esposa, o seu único consolo e razão de viver.<br />
Ela, de braços cruzados ao peito, chorava em silêncio.<br />
— <strong>Deucalião</strong>, devemos procurar o templo de Têmis e lá implorarmos piedade — disse <strong>Pirra</strong>, tornandose<br />
outra vez resoluta.<br />
De comum acordo seguiram até chegar ao templo da deusa da Justiça. Do teto pendia ainda um musgo<br />
lamacento, que o vento fazia dançar sobre as colunas, enquanto dos capitéis desciam finas cordas de<br />
água. Sobre os altares, os vasos estavam vazios, e não havia fogo algum a brilhar. <strong>Deucalião</strong> e <strong>Pirra</strong>,<br />
comovidos, lançaram-se aos pés da estátua da deusa:<br />
-Poderosa Têmis, que nos observa, com clemência, do alto! — disse <strong>Pirra</strong>. — Não queremos habitar<br />
um mundo sem vida! Como faremos para repovoá-lo, se já não temos mais forças nem idade para<br />
isso?<br />
Uma voz suave saiu da boca cerrada da estátua:<br />
— Meus amados, se quiserem ver de novo a terra povoada, façam exatamente como vou lhes dizer.<br />
Após cumprirem meus ritos, quero que saiam do templo — disse a deusa. — Depois, cubram seus<br />
rostos, alarguem seus cintos e atirem para trás de si os ossos de sua avó! — completou, de modo<br />
enigmático.<br />
<strong>Pirra</strong>, não entendendo o que a deusa desejava, começou a chorar.<br />
— Ó deusa, como farei tal coisa? — exclamou. — E mesmo que reencontre os ossos de minha avó,<br />
como poderia cometer tamanha blasfêmia?<br />
<strong>Deucalião</strong>, no entanto, tomando o rosto de <strong>Pirra</strong> nas mãos, a acalmou: