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PAULO EDUARDO BENITES DE MORAES

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INTRODUÇÃO<br />

A REINVENÇÃO DA INFÂNCIA PERDIDA NA OBRA <strong>DE</strong> MANOEL <strong>DE</strong> BARROS<br />

Paulo Eduardo Benites de Moraes (G-UCDB) 1<br />

Josemar de Campos Maciel (UCDB) 2<br />

Manoel de Barros é um poeta que privilegia em sua obra aspectos relacionado ao seu modo<br />

de ser, ou melhor, prioriza aquilo que por ele fora conhecido e aprendido na infância, representa<br />

em seus poemas formas, costumes, hábitos, referentes à sua terra, terra que é rica em fauna e<br />

flora e isso é capaz de explicar o porquê de se encontrar em seus escritos tantos bichos e seres.<br />

Barros que em sua infância conviveu em um ambiente rústico, oriundo da vida cabocla retrata com<br />

vigor aquilo que o cercava como árvores, bichos, plantas, rios, entre outras coisas que por sinal<br />

hoje são consideradas supérfluas, inúteis aos olhos da sociedade contemporânea que repudia<br />

tudo o que tinha o poeta quando criança.<br />

Comum é ver em seus poemas a linguagem infantil e onírica que ele utiliza, a<br />

personalidade assumida por ele refere-se ao infantilizar o mundo, retornar a etapa da vida em que<br />

era possível usar o “faz-de-conta” para interagir com o mundo sugerindo uma (re)invenção da<br />

cosmovisão. Manoel particularmente faz essa permutação colocando em pauta a vida corrente<br />

adulta que permeia entre coisas sérias, tão sérias que às vezes chegam ao nível paradigmático e<br />

se esquece que são as coisas mais simples e naturais que tem por mérito reger sua vida. Logo<br />

chegamos a um momento em que na obra barrense as coisas exaltadas são aquelas mais simples,<br />

“desimportantes”, mas que em sua essência é grandiosa, é só será possível enxergar essa<br />

grandiosidade por meio da visão “acriançada” de ser.<br />

Sobre o criançamento das palavras.<br />

A infância é um tema constante nas obras de Manoel de Barros e está sempre ligada ao<br />

fazer poético, e o “criançamento das palavras” é um expediente que reúne na poesia barrense<br />

ingredientes que constroem novas formas de se conceber o universo. Em um de seus livros, o<br />

Livro Sobre Nada 3 , há um pensamento do autor que é revelador do possível mundo sugerido por<br />

Barros, “chegar ao criançamento das palavras” (BARROS, 1996, p.47). Quase como se fosse uma<br />

escala de classificação das palavras, e um dos níveis dessa escala fosse o “criançamento”, só será<br />

1 Acadêmico de graduação do Curso de Letras da Universidade Católica Dom Bosco.<br />

E-mail: paul_schweizerische@hotmail.com<br />

2 Professor orientador do presente trabalho.<br />

3 Livro escrito por Manoel de Barros em 1996. Neste livro o autor tece reflexões sobre o nada, sobre<br />

coisas desúteis, um livro que não tem um tema definido e serve-se apenas de seu estilo.


possível atingir este patamar com as invenções de uma infância. Manoel de Barros escreve de um<br />

jeito criança, seus livros, suas obras, enfim, todo seu trabalho é espelhado na memória de sua<br />

infância, e assim encontramos o criançamento das palavras em seus escritos.<br />

Em Exercícios de ser criança 4, o autor retrata de forma clara esta ligação existente entre o<br />

poeta e a criança, perpassando para os interessados em sua leitura que o ser criança e o poetar<br />

são praticamente idéias análogas, pois estão relacionadas à força criativa e imaginativa. Quando<br />

ainda em sua infância Manoel de Barros que viveu em meio aos costumes pantaneiros, em um<br />

ambiente empíreo tendo contato com as coisas mais simples da vida, para praticar suas peraltices<br />

necessitava de uma dose significativa de criatividade, e assim dando vida a seres inanimados,<br />

tendo contato muito próximo com animais e plantas, latas, lamas e árvores. A imaginação de<br />

inventar as coisas somente tem fundamento na criatividade de uma criança, e possivelmente<br />

Manoel de Barros criou e imaginou muito sua infância.<br />

Ao se ler um poema barrense, não há quem não sinta uma inquietude, há uma agonia no<br />

seu interior, a razão parece não acreditar naquilo que a leitura mostra. Toda a riqueza vocabular,<br />

com a transposição dos sentidos das palavras, as construções metafóricas de seus textos,<br />

convidam o leitor a deixar seu mundo lógico e sério e embarcar em um novo mundo, um mundo<br />

reinventado com autêntica criatividade e fantasia, onde a única razão existente é a dos sonhos, do<br />

devaneio, da imaginação e da criatividade assim como se mostra uma criança.<br />

Um exercício de ser criança – tema que foi título de um livro de Manoel de Barros – é<br />

considerado um ato em tempo ideal, o tempo das descobertas, onde tudo é belo e há verdadeira<br />

liberdade, a liberdade de criar. A infância é a verdadeira morada da criatividade e da imaginação, e<br />

assim se é capaz de chegar ao mais profundo nível de simplicidade, compreender e enxergar o<br />

belo no simples.<br />

Para Manoel de Barros, ser poeta é ser criança no sentido mais estrito da palavra, é preciso<br />

usar de muita criatividade e imaginação, logo o poeta chega até a se confundir com uma criança<br />

conforme a sua liberdade de expressão - liberdade de expressar sua criatividade e seu mundo<br />

imagético -. Manoel de Barros vai além da mera significação das palavras e faz a transposição de<br />

significados, assim forçando o leitor a exprimir sua criatividade e praticar o exercício de ser<br />

criança para entender toda a magia que a idéia oferece.<br />

Em Memórias inventadas – A infância 5 , o eu lírico presente neste livro apresenta ao leitor<br />

uma série de lembranças de sua infância. Neste livro, configurado em um “eu poético”, o autor<br />

permite o contato do leitor com alguns devaneios de sua infância, não mostrando a infância como<br />

acontecimentos históricos, mas sim mensurando memórias que foram inventadas, memórias que<br />

foram enriquecidas pelo imaginário, possibilitando, assim ao autor hoje reinventar e recriar a<br />

infância.<br />

4 Livro escrito por Manoel de Barros em 1999. Neste livro o autor aponta a imaginação, a liberdade e<br />

ludicidade num processo essencial para conhecer o universo, representando as idéias das crianças.<br />

5 Livro escrito por Manoel de Barros em 2003, com ilustrações de Martha Barros (filha de Manoel de<br />

Barros). Neste livro o autor varia um pouco seu estilo poético optando pela prosa que é pouco comum em<br />

seus escritos. Revelador das peraltagens de sua infância, o livro trás de maneira bastante original a infância<br />

de Manoel de Barros privilegiando seus leitores que podem se aproximar mais da vida do poeta.


Em um trecho selecionado deste livro, podemos ter uma noção de como foi a infância de<br />

Manoel de Barros. Pela importância do trecho, comentá-lo-emos a seguir, a partir de suas<br />

referências internas, e a partir de alguns exercícios de reconstrução do significado das palavras<br />

utilizadas pelo poeta.<br />

“Eu tenho um ermo enorme dentro de olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta.<br />

Agora tenho saudade do que não fui”. (BARROS, s/p, 2003).<br />

De acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, ermo é aquilo “que está só ou<br />

desacompanhado; solitário. Diz-se de ou lugar desabitado, deserto”. (HOUAISS, 2009), a imagem<br />

do ermo é oposta pelo Poeta ao órgão da visão. Como é possível que um ser humano possua um<br />

ermo, ou seja, um lugar desabitado, justamente no interior do olho, do instrumento ou aparelho<br />

que assinala a sua faculdade de ver e de situar-se no mundo? Em outras palavras, quando Manoel<br />

afirma que tem um “ermo enorme dentro do olho” encontramos o enunciado de um paradoxo, de<br />

resto algo comum nos seus textos, que trazem alusões incrementando a leitura e deslocando os<br />

sentidos cotidianos das coisas.<br />

Ter um ermo enorme dentro do olho, possuir um buraco de olhar no foco da faculdade de<br />

ver, realmente não parece ser algo comum. Mas com boa imaginação, um menino peralta como<br />

Manoel diz que não foi e sente saudades é capaz de ter um ermo dentro do olho, através de uma<br />

invenção da infância. Ter um ermo dentro do olho seria como ver, mas não enxergar o que se<br />

olha, não compreender o sentido primeiro. E o poeta segue adiante.<br />

“Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de<br />

peraltagem”. (BARROS, s/p, 2003). Acabou de fazer uma peraltagem, conforme se pode ver logo<br />

acima, e a enuncia formalmente. O que faz é peraltagem. Desarrumar as palavras, desinstalar<br />

significados, deslocar o cotidiano, encontrar o inesperado naquilo que é aparentemente chão<br />

batido por botas de pensamento mal-acostumado ao mesmo. Neste trecho Manoel declara como<br />

faz a reinvenção da infância perdida, relata que está fazendo o que não pôde fazer de outra<br />

forma, em outros momentos, com outro tipo de peraltagem, peraltagem que faz alusão a todo<br />

tipo de criancice, com o mesmo pensamento, com os devaneios, porém reinventando a sua<br />

infância perdida e não se deixando enrijecer pelo mundo adulto. Isso fica claro nos exemplos que<br />

dá logo a seguir.<br />

“Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia<br />

vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata<br />

era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto”. (BARROS,<br />

s/p, 2003). As brincadeiras sugeridas por Manoel remetem ao tempo em que se permitem essas<br />

liberdades, onde a pureza do ser é representada por uma criança. Pular o muro do vizinho para<br />

catar goiaba seria uma brincadeira muito ingênua para uma criança, assim pular um muro para ela<br />

é apenas pular um muro, sem entrar em temas ou discussões complicadas da sociedade moderna<br />

como, por exemplo, a invasão de privacidade. São coisas desse tipo que acabam com o brilho de<br />

ver o entorno de forma simples, como sempre ele foi. “A criança, então, para Manoel, não é um


ser ingênuo, incompetente, mas sim inquieto, inventivo e transgressor” (SCOTTON, p.4, 2007) 6 .<br />

“Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu<br />

tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser<br />

criança, a gente faz comunhão: de um orvalho a sua aranha, de uma tarde e suas graças, de um<br />

pássaro e sua árvore”. (BARROS, s/p 2003). Fazer comunhão é estar em sintonia com algo,<br />

sintonia de sentimentos, de modo de pensar. Segundo Manoel, há uma identificação da criança<br />

com as coisas e seres com o qual ela está interagindo. Ter uma infância livre sugere transfundir-<br />

se com seu mundo imaginário e torná-lo real, competência que uma criança exerce, por força de<br />

seu momento particular de desenvolvimento, descoberta do mundo da experiência com o<br />

ambiente e com os outros, como que naturalmente enxergando o mundo, as pessoas e as coisas a<br />

partir de vários ângulos e com conceitos sempre novos. Neste caso, com percepções e conclusões<br />

que surgem do imaginar e do poetar, ou seja, de transformar o ato poético em uma expressão<br />

sistemática de uma visão lúdica do mundo da experiência humana. Em sua história, entre outras<br />

atividades, o poeta conviveu com fazendas e com o seu cotidiano. Ali, viu o homem desbravando,<br />

desmatando, colonizando. Por outro lado, agarrou-se à permanência das águas do pantanal, ao<br />

seu ciclo de fecundidade e de irrigação, para imaginar um mundo que não seja de oposição –<br />

como entre a tecnologia e a mitologia, entre a cidade e o campo, entre a ignorância e a ciência,<br />

por exemplo. O mundo de Manoel é de continuidade, de ciclos, de comunhão, ao invés da<br />

comparação. Se a comparação é o início de uma forma de conhecimento que divide para conhecer,<br />

e que conhece para dominar, a comunhão é a participação alegre nas possibilidades que cada ser<br />

oferece no jogo da convivência. O Poeta, aqui, encontra e explora a dimensão lingüística dessa<br />

comunhão, criando algumas novas palavras e deslocando outras.<br />

“Então eu trago de minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu<br />

sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina”. (BARROS, s/p, 2003). Neste trecho da prosa de<br />

Manoel de Barros encontramos o núcleo do pensamento que o autor nos sugere, no qual todos<br />

nós possuímos uma raiz “crianceira” que ainda está plantado em nosso ser. Ter uma visão<br />

comungante e oblíqua das coisas revela um ser que possui um senso crítico, não alienante,<br />

afirmando justamente que existe, na raiz da percepção de mundo do pensador ou poeta, algo que<br />

é oblíquo, e não reto, não disciplinado, que tem o poder de deslocar, por um lado, e algo que é<br />

um escuro que ilumina. A claridade pode ser vista como o terreno daquilo que já está resolvido,<br />

enquanto que o escuro pode iluminar porque cria uma zona de desconformidade, e a partir daí<br />

empurra a criança, o poeta, ou quem queira, à experiência de criar. Quando Manoel defende que<br />

uma criança não é um ser ingênuo nos deparamos com nossa própria ignorância, pois para uma<br />

melhor percepção do entorno necessitamos de boa imaginação e criatividade, características<br />

presentes no pensamento de um infante. Manoel nos mostra essas possibilidades através da<br />

utilização da figura do oxímoro, ou seja, duas idéias que são excludentes entre si. Assim, o escuro<br />

que ilumina sugere que devemos aprender a enxergar de várias formas o mundo: se o indivíduo<br />

tende a iluminar-se pelo escuro, aquele que tende a dominar o que lhe domina, passará a ter<br />

novas concepções do mundo assim como a imaginação de uma criança. Manoel nos faz a<br />

referência que “o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê”. (BARROS, p.75, 1996).<br />

6 SCOTTON, Maria Tereza. A representação da infância na poesia de Manoel de Barros. PUC RJ,<br />

disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/27/at07/t075.pdf [acessado em 20 de março de 2010].


A infância permite todas essas peraltagens, imaginações e sonhos que Manoel relatou que<br />

ele não foi, e hoje escreve que tem saudades, e conseguintemente exibe a reinvenção de sua<br />

infância. O modo com que ele exibe sua reinvenção da infância é fantástico em dois sentidos.<br />

Enquanto uso magistral da invenção poética, e enquanto abre de novo para o pensador cotidiano,<br />

não profissional, o reino da fantasia, justamente no uso mais simples das palavras. Utilizando<br />

todos os aparatos tal como uma criança faz, brincando com a linguagem e, por conseguinte, com<br />

o pensamento e com os seus esquemas de mundo, é possível perceber que implícita em suas<br />

obras existe uma criança, impera sua imaginação, exercitando-se na invenção de novas maneiras<br />

de ver o mundo.<br />

O criançamento se traduz por todas as invenções, reinvenções, imaginações, as<br />

características demiúrgicas, os sonhos e o devaneio oriundos da liberdade de expressão de uma<br />

criança. Além do mais, as palavras também sofrem tal criançamento, desconstruções que são<br />

reveladoras do falar e do expressar de uma criança. Manoel de Barros possivelmente sugere que<br />

reinventemos nossa infância, nos tornemos poetas no sentido mais estrito que se possa imaginar,<br />

até alcançarmos a experiência da autenticidade da criança. Trata-se de o adulto expressar-se de<br />

forma livre, de um jeito criança, até que suas palavras alcancem o criançamento para colorir o<br />

mundo novamente, o criançamento servirá como um ente capaz de rejuvenescer o adulto<br />

enrijecido dentro de nós.<br />

Com tudo o que foi exposto, de forma sucinta, pode-se considerar que, entre outras<br />

leituras do poeta, também ganha lugar aquela que o posiciona como um crítico da cultura. Ou<br />

seja, além, ou apesar de seu trabalho como poeta regionalista, apesar do seu uso forte e<br />

consistente de categorias do chão, Manoel é também um intelectual que, com o ofício de poeta,<br />

tenta incentivar ao uso do imaginário infantil. Isso será melhor expandido na seção a seguir.<br />

Manoel de Barros, crítico da cultura<br />

A produção poética de Manoel de Barros, que se desdobra em ricas direções exploratórias<br />

de utilização da língua, abarca temas referentes à fauna e à flora regionais, bem como referências<br />

a fatos, costumes, hábitos cotidianos dos pantaneiros e pantaneiras incutidos numa infância<br />

mítica que compraz com seu modo de poetar revelando um universo grandioso que permeia no<br />

campo literário. “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a<br />

literatura nos importa” (BARTHES, 1989, p.19 in SOUZA, 1997, p. 26). Para se falar da sutileza da<br />

vida, ou mesmo da pureza e a liberdade que a vida implica quando assume o sentido mais literal<br />

da palavra, é preciso dar vazão ao pensar poético, embarcar numa mística aventura carregando a<br />

condição do viver criativo propondo ver que viver vale à pena 7 , e em Barros a literatura, a<br />

linguagem e a infância assume sentidos primordiais.<br />

O universo lingüístico é extenso e permite que seu processo caminhe em vários trilhos,<br />

isto é, a linguagem como uma faculdade inata do ser humano compete a seu locutor seu uso de<br />

7 Proposta sugerida por Donald Winnicott (1999) introduzindo o índice da vida criativa como uma<br />

experiência de sentir que viver a vida vale a pena, a vida sem sentido, infeliz, aborrecida é aquela na qual não<br />

se teve criatividade.


diversas maneiras, verbalizando-a oralmente ou na forma escrita, portanto a linguagem pode<br />

denominar-se como a arte de usar a palavra. Concomitantemente, a linguagem é responsável por<br />

fornecer ao sujeito a capacidade comunicativa formando uma nova relação do homem consigo<br />

mesmo e com o mundo, e desta forma permitindo a livre expressão aos sujeitos competentes no<br />

uso da linguagem. Uma vez processada a expressão, os sentidos implícitos em cada mensagem<br />

são instáveis, e no universo poético a linguagem é específica e reveladora de vários mundos ante<br />

cada leitor.<br />

Quando falamos que a literatura, a linguagem e a infância na obra barrense assumem<br />

sentidos primordiais, é devido a sua maneira expressa. Ilustrando o pensamento de Barthes, a<br />

literatura barrense opera realmente um ente conectivo entre a ciência e a vida, a literatura sugere<br />

possíveis revelações de “verdades” que não cabe ao conhecimento científico penetrar, mas sim no<br />

devaneio de cada leitor-sonhador. Sua linguagem reflete também o “criançamento das palavras”<br />

no ínfimo do ser humano, pois ser criança é o ser primeiro da vida com toda a pureza humana,<br />

sendo também o momento ideal para a criatividade, cujo sentido da vida permeia na imaginação e<br />

se cria a cada momento. O sentido primeiro da vida deve ser exaltado, aquele que é considerado<br />

como adulto, ser que possui plena consciência é um ser emergente de uma infância criadora e<br />

imagética.<br />

“Manoel de Barros rompe com as tradições lingüísticas e serve-se com êxito de uma<br />

linguagem cabocla, carregada de ingenuidade matreira” (MARINHO, 2009, p.11). Barros que é<br />

avesso a toda e qualquer colocação gramatical utiliza suas palavras para refletir o estado infantil<br />

do ser, suas palavras ganham sentido próprio como que se elas mesmas falassem com seu leitor<br />

apresentando-se como uma autêntica criança buscando recuperar a infância ante a indiferença e o<br />

desprezo do mundo adulto. Hoje nota-se que a vida contemporânea passa por um mal-estar da<br />

cultura e sociedade, é explícito as contradições da modernidade, e junto com essa falha se vão os<br />

valores de um sujeito sócio-histórico-cultural abrindo uma lacuna para uma visão fragmentada e<br />

mecanicista do ser. O homem e o mundo tornam-se cada vez mais capitalísticos<br />

descompromissados com o estilo matreiro que o mundo possui, desatentos também com a ética e<br />

valores morais em conformidade com seu egocentrismo despertando apenas a vontade de possuir.<br />

A cultura tem sua mais forte expressão na sua língua, portanto, a crise que se enfrenta<br />

hoje ilustrada pela dicotomia ter e ser, tem sua expressão através da linguagem também. “Mas a<br />

língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista, ele é<br />

simplesmente fascista, pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (BARTHES, 1989,<br />

p.14 in SOUZA, 1997, p. 21). Assim podemos interpretar que a língua não é livre, ou que não tem<br />

exterior sendo fechada em si mesma obedecendo a um posicionamento ideológico, um poder.<br />

Porém há uma força antagônica a esse pensamento, que vem a ser a força poética da literatura,<br />

possuidora de uma particularidade, fornece à língua outras capacidades que não se restringe<br />

apenas a expressar “o poder”.<br />

A vida em sua plenitude necessita de criatividade, imaginação, a morte do ser humano se<br />

encaminha a partir da perca de sua criatividade, assim o levando à solidão, à depressão, enfim, o<br />

homem torna-se um ser excessivamente pático. “O viver criativo não demanda nenhum talento<br />

especial como a criação nas artes o faz. O viver criativo (ou falta dele) tem a ver com a noção da<br />

presença (ou falta) daquilo que mais nos caracteriza como humanos: a impregnação da realidade<br />

como nosso toque pessoal”. (FRANCO, 2003, p.41).


A poética barrense é dotada de muita criatividade rejuvenescendo as palavras, o mundo,<br />

o leitor que se propõe a embarcar em suas fantasias. Avesso à gramática, Manoel opta por sua<br />

desconstrução, não pelo fato de não saber usar a língua, mas pelo fato de ser um exímio<br />

conhecedor dela conseguindo utilizá-la de diversas formas. A gramática normativa sugere um<br />

engessamento da linguagem representando espaços hierarquicamente valorizados<br />

preestabelecendo normas que apenas quem tem o poder de criá-las opera o mundo e quem não<br />

domina apenas reproduz sem autonomia do ser. Esta idéia que já fora defendida tempos atrás<br />

pelo pai da lingüística moderna, Ferdinand de Saussure, cujo pretexto maior era revelador de uma<br />

amplitude da língua que não se restringia apenas à gramática normativa, mas sim à “gramática<br />

descritiva” 8 . Em um de seus pensamentos Manoel corrobora: “Crianças desescrevem a língua.<br />

Arrombam as gramáticas”. (Gramática Expositiva do Chão, 1966, p.256) 9 .<br />

O sentido do criar, e do imaginar apresenta-se no mundo infantil, “na linguagem da<br />

criança se encontram os deslimites das palavras” (SCOTTON, p.4, 2007) 10 sendo, portanto o tempo<br />

propício para expressar de fato a liberdade, a pureza do indivíduo que não se reporta a<br />

desempenhar o papel aviltado pela sociedade capitalista, desumana e injusta. Manoel representa<br />

em sua linguagem cabocla, valorizando coisas simplórias de uma vida corriqueira que os valores<br />

estão invertidos, é preciso retornar às coisas primárias de onde se emergem todas as coisas<br />

derivadas para recuperar o que se perdeu para a cultura e sociedade contemporânea e capitalista.<br />

A literatura barrense reporta-se com vigor à criatividade de um infante, vinculada a uma<br />

infância mítica de onde surgem suas imaginações e sua criatividade, o autor sugere uma tentativa<br />

de enfrentar a desumanização das relações sócio-afetivas e culturais nesta sociedade moderna<br />

com o intento de resgatar do homem seus valores perdidos, reencontrar a liberdade, reconstruir o<br />

novo a partir do que fora destruído. Para tanto, o autor utiliza as palavras poéticas para encantar<br />

seu leitor, por isso “em Manoel de Barros, somente o estado rústico, ilógico ou selvagem das<br />

palavras pode revelar novas formas de se conceber o universo” (MARINHO, 2009, p.13). Essa<br />

maneira original de Manoel escrever revela realmente sua proposta, subjaz a uma linguagem<br />

cabocla aponta a necessidade de se reinventar a infância perdida, fato consumado pelo<br />

empobrecimento da experiência e da linguagem do mundo moderno.<br />

“Sou hoje um caçador de achadouros de infância. Vou meio dementado e enxada às<br />

costas a cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos” (BARROS, s/p, 2003). Estas<br />

palavras são reveladoras da proposta assumida por Manoel de Barros, uma infância que ainda<br />

habita em nosso ser, porém que precisa ser redescoberta e provocadora da mudança da<br />

8 Estudo iniciado por Saussure em 1916, em seu Cours de Linguistique Générale. Cujo pretexto maior<br />

era abordar o estudo da Língua a partir da gramática descritiva, ou seja, um estudo voltado para a<br />

observação da língua estruturando-a de acordo com seu real funcionamento e uso cotidiano, não<br />

restringindo-se apenas à gramática normativa, pois como a língua vive em constante modificação, muitas<br />

normas já foram ultrapassadas e não serve mais como base para compreender como funciona, e como está<br />

estruturada a língua em funcionamento.<br />

9 Livro escrito por Manoel de Barros em 1966. Representando um estilo cubista das palavras, Manoel<br />

de Barros faz ousadamente várias brincadeiras com as palavras, abordando temas rejeitados pela sociedade<br />

capitalista.<br />

10 SCOTTON, Maria Tereza. A representação da infância na poesia de Manoel de Barros. PUC RJ,<br />

disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/27/at07/t075.pdf [acessado em 20 de março de 2010].


cosmovisão. O infante criativo, devaneador ante ao adulto integrador da sociedade moderna<br />

engessado pelos dogmas e paradigmas tolos que sua sociedade cultiva. Despertar a imaginação e<br />

recriar novamente a vida é importante no processo de reconciliação de um novo mundo, e Manoel<br />

de Barros já disse: “Eu não via nenhum espetáculo mais edificante do que pertencer do chão. Para<br />

mim esses pequenos seres tinham o privilégio de ouvir as fontes da terra”. (Memórias Inventadas:<br />

A segunda infância, 2006 11 ).<br />

Conclusão<br />

É grande o nível de densidade e o valor da Literatura de Manoel de Barros, pois representa<br />

a cultura regional levando-a em forma de textos ao conhecimento de seus leitores, reflete e<br />

instiga no seu leitor a capacidade imagética de um indivíduo como novas maneiras de conceber o<br />

universo. Tecer reflexões sobre a obra barrense, trazer à luz na tentativa de esclarecer o que nos<br />

propõe Manoel de Barros com toda sua linguagem infantil, inventada e criativa são os elementos<br />

que serviram como objetivo deste trabalho, e buscar atingir resultados como resgatar o valor da<br />

Literatura na compreensão do mundo, de forma que a Literatura apresenta uma linguagem<br />

inovadora capaz de recriar e estimular o imaginário visando mudar a roupagem mal acostumada<br />

da mesmice cotidiana e servir-se de um número cada vez maior de apreciadores com o intento de<br />

modificar o entorno, dando-lhe mais brilho, mais cores e fantasias assim como uma boa obra<br />

literária e sua literariedade nos apresenta.<br />

Ler Manoel de Barros não é tarefa fácil para quem se sente engessado em seu mundo<br />

adulto, pouco fértil em imaginação e criatividade, pois a poética barrense representa com vigor<br />

toda a magia de um texto literário, é revelador de grandes criações capazes de estimular o<br />

imaginário. O pouco contato que se tem com suas obras em nada facilita para seu entendimento,<br />

visto que Barros abre vários caminhos instigantes e cheios de novas imaginações para recriar o<br />

mundo, bem como abre portas para o conhecimento da cultura sul-mato-grossense é importante<br />

estudos para ajudar um pouco na compreensão de sua literatura, refletir e despertar o interesse, a<br />

curiosidade de leitores. É fundamental inserir a leitura dessa significante obra poética no cotidiano<br />

de crianças e adultos, do meio acadêmico ou não, o lúdico é imprescindível para o<br />

desenvolvimento da criança, e a Literatura permite abrir esse caminho e explorá-lo mudando<br />

sempre nossa imagem de mundo.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BARROS, Manoel de. Exercício de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.<br />

_______. Gramática Expositiva do Chão (poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 1990.<br />

11 Livro escrito por Manoel de Barros em 2006. Este livro teve ilustrações de Martha Barros, filha de Manoel de<br />

Barros, e reporta-se ao seguimento de Memórias Inventadas: A Infância. Seguindo o mesmo raciocínio, o livro retrata a<br />

infância de Manoel de Barros.


1985.<br />

_______. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 1996.<br />

_______. Memórias Inventadas: a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006.<br />

_______. Matéria de poesia. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1974.<br />

_______. O livro das Ignorãncas. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.<br />

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