Edição 137 - Jornal Rascunho
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setembro de 2011<br />
28 : : sujeito oculto : : rogério Pereira<br />
Dois amigos, dois arbustos<br />
o encontro debaixo de uma árvore à espera do pão com manteiga<br />
Triste de quem não conserva<br />
nenhum vestígio da infância.<br />
Mario Quintana<br />
Nunca mais o vi. Por onde<br />
andará? Quando me estendia<br />
a mão, alegravame.<br />
Compartilhávamos<br />
a infância debaixo daquela árvore<br />
(ainda existirá?) no pátio de chão<br />
batido da escola que nos acolhia,<br />
sem nos garantir qualquer futuro.<br />
A algazarra do recreio corria ansiosa<br />
à espera do sinal que nos levaria<br />
de volta à sala de aula. Dividíamos<br />
silêncios a mastigar lentamente o<br />
lanche que ele trouxera e me entregava<br />
com sua mão magra de dedos<br />
pontiagudos. Éramos crianças magricelas<br />
e silenciosas. Desconfiávamos<br />
muito das adiposas e falantes.<br />
Para nós, a amizade tinha gosto de<br />
pão com manteiga. E quietude.<br />
Não lembro quando nos encontramos<br />
pela primeira vez. Não<br />
lembro seu sobrenome. Não lembro<br />
quando nos separamos. Quando<br />
nossas vidas se dividiram, bifurcaram-se.<br />
lembro pouco daquele<br />
tempo em que tínhamos sete anos<br />
de vida e C. nos parecia apenas um<br />
espaço lúdico em que empurrar<br />
carrinhos, chutar bolas murchas e<br />
esconder-se da mãe nos salvariam<br />
de qualquer tragédia. Mas recordome<br />
muito bem da mão a entregarme<br />
o pão com manteiga, os dentes<br />
saltados a deformar o lábio superior,<br />
como se desejasse dilacerar o<br />
reduzido mundo que nos envolvia.<br />
Éramos tímidos e nos parecia<br />
uma tortura a obrigação de cantar<br />
o hino nacional antes de entrar em<br />
sala de aula. Manhãs que se iniciavam<br />
ruidosas a espantar pássaros<br />
sonolentos. Nossas vozes esganiça-<br />
das desnudavam a timidez que nos<br />
protegia, colocavam-nos no centro<br />
de um universo em que queríamos<br />
apenas existir — sem ser notados,<br />
sem ser importunados. Mas nas<br />
sombras que inventamos, dividíamos<br />
o olhar curioso em direção<br />
aos peitinhos que começavam a<br />
roçar a camiseta de algumas meninas<br />
no pelotão pátrio diante da<br />
bandeira que subia o mastro. Vivíamos<br />
o nosso mundo.<br />
Quando o sinal — um grito<br />
desesperado — invadia os corredores<br />
da Ângelo Trevisan, deixávamos<br />
a horda rumar afoita sem<br />
direção. Baratas em busca do bueiro<br />
predileto. Não falávamos nada:<br />
caminhávamos para a sombra. A<br />
árvore sempre estava lá. Ele abria<br />
a lancheira e retirava o pão com<br />
manteiga; às vezes, um pedaço de<br />
bolo. Estendia-me. Os gestos len-<br />
horaCio Preler<br />
símbolos<br />
Um estrangeiro percorre as ruas<br />
de uma cidade desconhecida.<br />
O mistério termina<br />
nos estranhos labirintos.<br />
Os homens passam uns junto aos outros,<br />
somente os velhos conhecidos se saúdam<br />
com as cerimônias de costume.<br />
Entendemo-nos pobremente,<br />
apenas delineamos os contornos do gesto<br />
articulando símbolos heróicos<br />
para superar o desamparo.<br />
história<br />
Um olho carregado de nostalgia<br />
nos elimina sem pausa.<br />
No entanto, retomamos o mundo,<br />
damos consistência à idéia,<br />
formamos conjeturas.<br />
Tudo é inútil,<br />
as artérias se endurecem,<br />
a pele não pode continuar sua missão,<br />
destina-se o doce ardor do sangue.<br />
Maltratados,<br />
envenenados pelo tempo,<br />
nós deslizamos pelas ruas<br />
como enormes animais históricos<br />
em busca da morte.<br />
o Centro do Poema<br />
As árvores celebram a proteção do vento,<br />
as tormentas resistem,<br />
emitem sons diferentes.<br />
Resvalam papéis jogados ao ar<br />
e o óxido se acumula.<br />
Os canais de rega se abrem para todos,<br />
a água é um elemento contagioso.<br />
Capturamos notas lançadas sem sentido.<br />
Seguramente vão dar no centro do poema,<br />
mas apenas quando notamos uma estranha dor.<br />
a Parede<br />
Todas as manhãs um homem<br />
levanta as paredes de sua casa.<br />
Sobe nos andaimes; o sol brilha em sua pele.<br />
Embaixo, seus filhos brincam com a areia.<br />
Está sozinho.<br />
Talvez pense na mulher que teve<br />
ou na época em que foi feliz.<br />
Quando termina seu trabalho,<br />
recolhe suas ferramentas<br />
e volta pelo mesmo caminho que chegou.<br />
www.vocecomconteudo.com.br<br />
tos indiferentes à inquietude que<br />
nos cercava. Aos outros, éramos<br />
sem vida: dois insignificantes arbustos<br />
sob uma árvore. Vegetais à<br />
espera da chuva e do sol.<br />
De volta à sala de aula, fome<br />
saciada, ele ensinava-me os caminhos<br />
das cores. Não me deixava<br />
perder pela barafunda cromática<br />
que a um daltônico é o inferno. O<br />
inferno do daltônico esconde-se<br />
em grandes caixas de lápis de cor.<br />
Nunca me deixou pintar o mar de<br />
vermelho, o céu de roxo, o cachorro<br />
de alaranjado ou a árvore de<br />
marrom. Protegia-me dos olhos<br />
zombeteiros daquelas crianças que<br />
não sabiam do meu daltonismo. Eu<br />
tampouco sabia. Imaginava-me um<br />
estúpido protegido por um menino<br />
dentuço. Sentia-me menos frágil,<br />
enquanto contornava de preto os<br />
desenhos sobre a carteira compar-<br />
traduÇÃo: ronaldo Cagiano<br />
Palavra final<br />
Hoje regressamos da infância<br />
quase sem nos darmos conta,<br />
sem por nos registros a hora da partida.<br />
Voltamos do passado<br />
com a retina ferida e o osso carcomido.<br />
Os dedos pareciam dardos<br />
arremessados sobre um branco perfeito,<br />
marcas das unhas sobre a pele<br />
e uma profunda peregrinação<br />
tomava o lugar iluminado da carne,<br />
aquilo que integra o mel e o leite<br />
da última palavra.<br />
tarefa do CrePÚsCulo<br />
Do crepúsculo obtenho as razões para viver<br />
os perfumes mais velhos,<br />
as migalhas mais claras.<br />
Cada crepúsculo em sua tarefa.<br />
Extraio o melhor<br />
e o estendo sobre a grama.<br />
Disse finalmente: aqui estou,<br />
sem acertos nem erros,<br />
estou aqui.<br />
Sou a palavra que perdura.<br />
Cada dia se perde<br />
no estado formal da escuridão.<br />
Formar palavras é fácil...<br />
...transmitir conteúdo é um talento.<br />
<br />
tilhada pelo amigo silencioso.<br />
•••<br />
Nestes 30 anos, passei algumas<br />
vezes diante da escola. Agora,<br />
um muro alto a protege dos habitantes<br />
desta C. de violências e desesperos.<br />
Da rua, não é possível<br />
divisar se a árvore ainda está lá.<br />
Muitas vezes, ensaiei ultrapassar o<br />
limite do portão, infiltrar-me pelo<br />
passado, identificar-me, contar que<br />
dividi segredos com um arbusto no<br />
pátio. Poderia vasculhar nos registros<br />
daquele 1980 que só existe<br />
para mim. Descobrir o seu sobrenome,<br />
buscar na internet. Enfim,<br />
encontrá-lo. Mas prefiro carregar<br />
comigo a lembrança do menino<br />
que sempre me estendeu a mão,<br />
com seus dedos finos, sorriso proeminente<br />
e amoroso silêncio.<br />
horaCio Preler<br />
É poeta, ensaísta e historiador.<br />
nasceu em 1929, em la plata<br />
(argentina). É autor de mais<br />
de trinta livros, entre os quais<br />
Lo abstracto y lo concreto<br />
(1973), oscura memoria (1992),<br />
zona de entendimiento (1999)<br />
e silencio de hierba (2001).<br />
recebeu em 2002 a ordem<br />
Chevalier des arts et des lettres,<br />
do governo francês.