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Folha <strong>de</strong> S.Paulo - Antonio Cicero: A <strong>tese</strong> <strong>de</strong> <strong>Ivan</strong> <strong>Karamazov</strong> - 21/04/2007<br />
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São Paulo, sábado, 21 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2007<br />
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ANTONIO CICERO<br />
A <strong>tese</strong> <strong>de</strong> <strong>Ivan</strong> <strong>Karamazov</strong><br />
Longe <strong>de</strong> ser o fundamento da ética, a fé em Deus é a<br />
condição <strong>de</strong> relativizar a ética<br />
VOLTA E meia alguém traz novamente à tona a famosa <strong>tese</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Ivan</strong> <strong>Karamazov</strong>, personagem <strong>de</strong> Dostoiévski: "Se Deus<br />
não existe, tudo é permitido". Acho que muita gente acredita<br />
piamente nela e atribui à irreligiosida<strong>de</strong> da população a<br />
constante e inquietante alta dos índices <strong>de</strong> criminalida<strong>de</strong>.<br />
Será talvez com a intenção <strong>de</strong> baixar esses índices que os<br />
donos ou editores das revistas brasileiras <strong>de</strong> circulação<br />
nacional raramente <strong>de</strong>ixam passar uma semana sem que, ao<br />
menos numa das suas revistas, façam propaganda, numa<br />
reportagem <strong>de</strong> capa, da fé e da religiosida<strong>de</strong> dos brasileiros.<br />
Ora, a <strong>tese</strong> do personagem <strong>de</strong> <strong>Ivan</strong> não resiste a um simples<br />
experimento <strong>de</strong> pensamento. Suponha que me apareça Deus<br />
e me or<strong>de</strong>ne matar o meu filho (ou mãe, ou pai, ou irmão, ou<br />
amante, ou amigo). Que faria eu? Ponha-se o leitor na minha<br />
pele. Não tenho dúvida <strong>de</strong> que a minha primeira reação -a<br />
primeira reação <strong>de</strong> qualquer pessoa que não tivesse perdido o<br />
juízo- seria duvidar do que parecia estar vendo e ouvindo. Eu<br />
me beliscaria, para saber se não estava sonhando; suspeitaria<br />
estar tendo um surto <strong>de</strong> loucura, um <strong>de</strong>lírio etc.<br />
Aquilo simplesmente não po<strong>de</strong>ria estar acontecendo. E não<br />
po<strong>de</strong>ria estar acontecendo por duas razões: primeiro, porque<br />
Deus não costuma aparecer, pelo menos hoje em dia.<br />
Quando alguém diz que conversou com Deus -ainda que<br />
quem o diga seja o presi<strong>de</strong>nte dos Estados Unidos-, suspeitase<br />
imediatamente da sua sanida<strong>de</strong> mental. De todo modo, eu<br />
não obe<strong>de</strong>ceria.<br />
Mas a segunda razão é ainda mais séria. É que, se isso<br />
estivesse realmente acontecendo, então Deus me estaria<br />
mandando fazer uma coisa má: uma coisa inteiramente,<br />
indiscutivelmente, inapelavelmente errada. Ora, não posso<br />
contemplar tal hipó<strong>tese</strong>. Logo, isso não po<strong>de</strong>ria estar<br />
acontecendo. Eu pensaria antes que, ou não havia ninguém<br />
ali, e eu estava simplesmente a <strong>de</strong>lirar, ou havia alguém <strong>de</strong><br />
fato ali, mas se tratava <strong>de</strong> um impostor -talvez até <strong>de</strong> um<br />
<strong>de</strong>mônio-, mas não <strong>de</strong> Deus, pois seria impensável que Deus<br />
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2104200732.htm<br />
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Folha <strong>de</strong> S.Paulo - Antonio Cicero: A <strong>tese</strong> <strong>de</strong> <strong>Ivan</strong> <strong>Karamazov</strong> - 21/04/2007<br />
me mandasse fazer uma coisa errada: e que coisa po<strong>de</strong>ria ser<br />
mais errada do que aquela? Em suma, eu não obe<strong>de</strong>ceria.<br />
Mas levemos a coisa ainda mais longe. Suponhamos que, por<br />
alguma razão inconcebível, fosse incontornável a evidência<br />
<strong>de</strong> que ali se encontrava Deus. Ouso dizer que, ainda assim,<br />
eu não mataria meu filho ou amigo: eu não mataria sequer<br />
um estranho. Por quê? Porque seria errado. E seria errado,<br />
não por causa dos mandamentos que o próprio Deus<br />
<strong>de</strong>cretara, uma vez que, naquele instante, Ele mesmo os<br />
estaria revogando, mas simplesmente porque,<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> qualquer mandamento, é errado matar<br />
uma pessoa. É, portanto, errado matar uma pessoa, ainda que<br />
Deus não exista. Logo, ao contrário do que afirma a <strong>tese</strong> do<br />
personagem <strong>de</strong> Dostoiévski, nem tudo é permitido, ainda que<br />
Deus não exista.<br />
O leitor terá sem dúvida lembrado que, na Bíblia (Gn 22),<br />
Abraão se encontrou na situação em que me imaginei no<br />
experimento <strong>de</strong> pensamento. Com efeito, Deus pôs Abraão à<br />
prova, or<strong>de</strong>nando-lhe que matasse o seu filho primogênito.<br />
Ao contrário <strong>de</strong> mim (e do leitor que se pôs na minha pele),<br />
Abraão se dispôs a obe<strong>de</strong>cer e, quando já havia pegado a<br />
faca para sacrificar seu filho, foi impedido por um anjo,<br />
enviado por Deus.<br />
Como se sabe, foi sobre esse episódio que Kierkegaard<br />
escreveu as páginas impressionantes <strong>de</strong> "Temor e Tremor".<br />
Nelas, ele mostra que, do ponto <strong>de</strong> vista puramente ético,<br />
não se justificaria a prontidão <strong>de</strong> Abraão. Só a fé -superior,<br />
segundo Kierkegaard, à ética, por constituir uma relação<br />
individual e absoluta com Deus- justifica a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Abraão. Desse modo, graças à religião, a esfera da ética é<br />
relativizada pela da fé.<br />
Sendo assim, <strong>de</strong>vemos inverter a <strong>tese</strong> <strong>de</strong> <strong>Ivan</strong> <strong>Karamazov</strong>:<br />
não só não é verda<strong>de</strong> que, se Deus não existe, tudo é<br />
permitido -já que, como vimos, não é permitido matar-, mas,<br />
ao contrário, é se Deus existir que tudo é permitido.<br />
Longe <strong>de</strong> ser o fundamento da ética, a fé em Deus é a<br />
condição <strong>de</strong> relativizar e, no limite, negar a ética. Isso<br />
lembra as palavras do físico norte-americano Steven<br />
Weinberg, <strong>de</strong>tentor do Prêmio Nobel <strong>de</strong> Física: "Com ou<br />
sem religião, as pessoas bem-intencionadas farão o bem e as<br />
pessoas mal-intencionadas farão o mal; mas, para que as<br />
pessoas bem-intencionadas façam o mal, é preciso religião".<br />
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