“O seu amor é canibal”: sobre o devoramento e expulsão do outro ...
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V CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL<br />
E XI CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL<br />
SETEMBRO DE 2012<br />
"O SEU AMOR É CANIBAL": SOBRE O DEVORAMENTO E EXPULSÃO DO<br />
OUTRO NA DINÂMICA DA RELAÇÃO AMOROSA<br />
Vanuza Monteiro Campos Postigo 1<br />
RESUMO: Partin<strong>do</strong> da assunção de que vivemos em uma cultura que enseja no sujeito<br />
mo<strong>do</strong>s de relacionamento cada vez mais “objetifica<strong>do</strong>s” , vamos nos dedicar ao estu<strong>do</strong><br />
das relações <strong>amor</strong>osas no contemporâneo inferin<strong>do</strong> nestas uma dimensão canibalesca<br />
que devora, incorpora e/ou expele este objeto. Para al<strong>é</strong>m de uma relação com um <strong>outro</strong><br />
sujeito, a questão oral da incorporação e <strong>devoramento</strong> <strong>do</strong> parceiro <strong>amor</strong>oso remete a um<br />
mo<strong>do</strong> primitivo de gestão psíquica onde a alteridade parece perder lugar nesta<br />
interrelação e pontuamos aqui a crescente adesão a este mo<strong>do</strong> pático da relação<br />
<strong>amor</strong>osa. A reflexão dessa perda de alteridade e objetificação <strong>do</strong> <strong>outro</strong> nos<br />
relacionamentos <strong>amor</strong>osos será realizada a partir de duas abordagens: por um la<strong>do</strong>,<br />
atrav<strong>é</strong>s das relações compulsivas e adictivas, que vamos metaforizar como bulímicas,<br />
uma “orgia alimentar” onde esse objeto de <strong>amor</strong> <strong>é</strong> avidamente consumi<strong>do</strong> e devora<strong>do</strong>;<br />
por <strong>outro</strong> la<strong>do</strong>, vamos explorar o aspecto da descartabilidade dessa relação, <strong>do</strong> descarte<br />
<strong>do</strong> objeto consumi<strong>do</strong>, <strong>do</strong> “vômito” ou “evacuação” desse objeto . Nesse percurso teórico<br />
vamos operar nossa análise atrav<strong>é</strong>s das noções de oralidade, compulsão, narcisismo,<br />
paixão, bulimia, pathos, entre outras.<br />
PALAVRAS-CHAVE: relação <strong>amor</strong>osa – canibalismo - bulimia<br />
1 Psicóloga (PUC-RJ), Psicanalista (SPAG-Gradiva), Especialista em Psicologia Clínica (PUC-RJ),<br />
Mestre em Psicologia (UFRJ), Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ), Autora <strong>do</strong> livro "Adicção" (Ed.<br />
Juruá), Docente na Associação Psicanalítica RJ (Apsirio). Contato: vanuza.postigo@gmail,com
I – Sobre a relação <strong>amor</strong>osa: o <strong>amor</strong> e a paixão sob a ótica psicanalítica<br />
I.1. Freud, o <strong>amor</strong> e a paixão<br />
Em meus sonhos eu sempre te vejo devoran<strong>do</strong>-me<br />
(Elba Ramalho)<br />
Em psicanálise o <strong>amor</strong> <strong>é</strong> condição para o processo de formação da subjetividade,<br />
o sujeito se constitui a partir <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s e investimentos <strong>amor</strong>osos/narcísicos a ele<br />
dedica<strong>do</strong>s e a partir destes adv<strong>é</strong>m como tal. A grande multiplicidade e complexidade da<br />
noção de <strong>amor</strong> e paixão atravessa toda a obra freudiana, mas vamos aqui nos centrar na<br />
id<strong>é</strong>ia <strong>do</strong> <strong>amor</strong> relaciona<strong>do</strong> ao investimento erótico-romântico entre os sujeitos. Freud<br />
afirma que a escolha <strong>amor</strong>osa decorre da trajetória edípica <strong>do</strong>s sujeitos e são os desejos<br />
inconscientes que sustentam a escolha <strong>do</strong> objeto, pautada ou na busca daquele <strong>do</strong><br />
amparo - a escolha anaclítica - onde o objeto escolhi<strong>do</strong> representa o pai ou a mãe da<br />
infância; ou atrav<strong>é</strong>s da escolha narcísica - baseada na própria imagem <strong>do</strong> sujeito,<br />
guardan<strong>do</strong> estreita relação com o que o sujeito <strong>é</strong>, foi, gostaria de ser ou mesmo parte de<br />
si próprio (FREUD,1914).<br />
A noção de <strong>amor</strong> está relacionada a Eros, à ligação, a uma relação onde existe<br />
uma discriminação entre o sujeito e o objeto, ainda que o sujeito se sacrifique por este<br />
objeto ou que ocorra uma desregulação da balança libidinal. Mas destacamos o uso que<br />
Freud faz de Verliebtheit, um tipo de paixão que tem o <strong>amor</strong> como objeto, constituin<strong>do</strong>-<br />
se numa experiência intensa e excessiva, “uma emoção veemente que invade, <strong>do</strong>mina e<br />
toma conta <strong>do</strong> sujeito, sem lhe deixar possibilidade alguma de controle, mediante os<br />
recursos e diretrizes da razão” (ROCHA, 2002, p. 11). É <strong>sobre</strong> esta paixão que<br />
queremos nos debruçar, <strong>sobre</strong> um mo<strong>do</strong> de relação excessiva, compulsiva e bulímica em<br />
nossa metaforização de determina<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de relacionamento <strong>amor</strong>oso.<br />
Ao inv<strong>é</strong>s de explorar a vertente representada, ligada, erótica, referente à paixão<br />
<strong>amor</strong>osa, privilegiamos aqui a vertente pulsional e mortífera, por revelar um tipo de<br />
modelo e dinâmica de relação marcada pela adesão ao objeto que se torna<br />
imprescindível, em um vínculo atravessa<strong>do</strong> pela invasão e pelo transbordamento<br />
pulsional precariamente <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s (POSTIGO, 2010). Nossa compreensão <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de<br />
relacionamento voraz e compulsivo <strong>é</strong> o mo<strong>do</strong> da paixão, <strong>do</strong> pathos e da desmesura <strong>do</strong><br />
não representa<strong>do</strong> no aparelho psíquico.
I.2. A paixão como pathos: indiscriminação e desmesura<br />
Etmologicamente encontramos duas origens para a palavra paixão: “na grega,<br />
pathos, paixão <strong>é</strong> associada a algo assusta<strong>do</strong>r e misterioso, que <strong>é</strong> interno ao homem e o<br />
<strong>do</strong>mina. Na origem latina, passione, o homem <strong>é</strong> vítima passiva da paixão, mas ela <strong>é</strong><br />
uma força externa, recebida sem resistências” (MAPURUNGA, 2003, p. 133).<br />
Complementan<strong>do</strong> essa explicação, Manoel Berlinck explica que al<strong>é</strong>m de designar um<br />
sofrimento, de pathos derivam-se as palavras “paixão” e “passividade”: estaríamos no<br />
registro <strong>do</strong> fascínio, da submissão, da dependência, da alienação de si: “quan<strong>do</strong> pathos<br />
ocorre, algo da ordem <strong>do</strong> excesso, da desmesura se põe em marcha, sem que o eu possa<br />
se assenhorear desse acontecimento” (BERLINCK, 2000, op. cit., p. 8).<br />
Nesse vi<strong>é</strong>s, Barros e Silva desenvolve um trabalho <strong>sobre</strong> “paixão silenciosa” que<br />
relaciona ao narcisismo, à pulsão de morte e ao masoquismo, relação marcada por uma<br />
dependência abissal, pela alienação de si e pelo não-reconhecimento da alteridade: este<br />
seria o caráter psicopatológico da paixão. A separação e discriminação sujeito/objeto se<br />
faz precária ante a fragilidade das fronteiras egóicas e esse objeto assume lugar de<br />
primazia, busca<strong>do</strong> compulsivamente, na regência <strong>do</strong> traumático pulsional. Nesse senti<strong>do</strong><br />
a metáfora da bulimia parece servir como ilustração desse mo<strong>do</strong> de relação de objeto<br />
que estamos exploran<strong>do</strong>, objeto oral busca<strong>do</strong> desmesuradamente e depois violentamente<br />
expeli<strong>do</strong>, de diversas formas..
II – O mo<strong>do</strong> “bulímico” de relação com o objeto<br />
II.1. Bulimia: uma relação de paixão<br />
Você bota a <strong>sobre</strong>mesa eu como (...)<br />
Você bota a mesa eu como, eu como<br />
Eu como, eu como, eu como você<br />
(Chico Buarque)<br />
Etimologicamente bulimia vem <strong>do</strong> vocábulo grego boulimia, composta pelo<br />
prefixo bou, que significa boi, e de limos, que significa fome, significan<strong>do</strong> literalmente<br />
“fome de boi”. A bulimia se caracteriza pela ingestão de uma grande quantidade de<br />
alimento, de forma impulsiva e voraz, geralmente às presas e às escondidas, em um<br />
esta<strong>do</strong> de excitação segui<strong>do</strong> de mal-estar e vergonha (FERNANDES, 2006). Esses<br />
acessos podem ser acompanha<strong>do</strong>s de a<strong>do</strong>rmecimento e de vômito induzi<strong>do</strong> ou por<br />
<strong>outro</strong>s comportamentos inadequa<strong>do</strong>s como usos indevi<strong>do</strong>s e excessivos de laxantes e<br />
diur<strong>é</strong>ticos, a realização de exercícios ou jejuns. É uma “patologia <strong>do</strong> excesso”<br />
(BRUSSET, 1999, p.92).<br />
A bulimia pode ser compreendida como distúrbio da oralidade que coloca em<br />
cena a comprometida relação com o objeto oral, conforme sustenta Magtaz (2008).<br />
Seguin<strong>do</strong> o modelo freudiano da regressão e da fixação, a bulimia remete-se a oralidade<br />
como primeira etapa libidinal da sexualidade pr<strong>é</strong>-genital. Vale lembrar que objeto oral<br />
transcende o objeto comida, referin<strong>do</strong>-se às formas arcaicas de relação <strong>do</strong> sujeito com o<br />
<strong>outro</strong> e <strong>é</strong> nesse senti<strong>do</strong> que vamos remeter esse mo<strong>do</strong> de funcionamento bulímico ao<br />
que ocorre em determinadas relações <strong>amor</strong>osas.<br />
Nosso objetivo não <strong>é</strong> explorar o tema da bulimia neste trabalho, mas de apontar<br />
um mo<strong>do</strong> de funcionamento bulímico presente em determinadas e relações <strong>amor</strong>osas.<br />
Nesse senti<strong>do</strong> queremos ressaltar como nesse quadro as relações com o objeto<br />
constituem nosso principal interesse. A relação de objeto na bulimia <strong>é</strong> atravessada pelo<br />
traumático, pela paixão, pelo excesso pulsional correlato à precária negativização <strong>do</strong><br />
objeto. É a precariedade das fronteiras nos esta<strong>do</strong>s limites, noção que ilumina a<br />
patologia da bulimia com a compreensão que esse objeto invade os limites – pelo<br />
excesso ou pela falta – e assume a prevalência e a primazia <strong>do</strong> investimento psíquico <strong>do</strong><br />
sujeito.
A porosidade das fronteiras entre o eu e o <strong>outro</strong>, entre o dentro e o fora, entre o<br />
psíquico e o corpo, entre as instâncias intrapsíquicas resultam de uma separação e<br />
discriminação <strong>do</strong> objeto que não se efetivou. Encontramos o apontamento para a<br />
ausência ou precariedade de um trabalho de negativização e de objetalização ocorri<strong>do</strong><br />
nas relações primárias, ocasionan<strong>do</strong> a falibilidade <strong>do</strong> trabalho de representação<br />
(POSTIGO 2010).<br />
São sujeitos cujos esta<strong>do</strong>s limites são atravessa<strong>do</strong>s pelas angústias <strong>do</strong>s<br />
“fronteiriços”, denominadas por Green de “dupla angústia contraditória” (GREEN,<br />
1990, p. 13) que apresenta, por um la<strong>do</strong>, a angústia de aban<strong>do</strong>no, separação e perda <strong>do</strong><br />
objeto e, por <strong>outro</strong> la<strong>do</strong>, a angústia de invasão e engolfamento pelo objeto: a relação<br />
com o objeto fica atravessada por essa “dupla angústia contraditória”. Essas defesas, a<br />
nosso ver, parecem atuar no mo<strong>do</strong> de relação como o objeto na bulimia, no movimento<br />
de busca voraz pelo objeto que <strong>é</strong> devora<strong>do</strong> em resposta à angústia <strong>do</strong> aban<strong>do</strong>no e no<br />
expelir, evacuan<strong>do</strong> ou vomitan<strong>do</strong> o objeto que provoca a angústia de invasão.<br />
II.2. As patologias da relação de objeto: as fronteiras entre o eu e o <strong>outro</strong><br />
A partir da compreensão <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de funcionamento <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s limites, vimos<br />
como na bulimia a busca compulsiva e absoluta ao objeto aponta para a precariedade da<br />
relação com este objeto e para uma separação efetiva que não foi realizada. E, na<br />
impossibilidade da realização <strong>do</strong> trabalho de separação, o sujeito ficaria preso e aderi<strong>do</strong><br />
ao objeto, ante a paixão e o traumático, o sujeito se liga a este objeto de maneira<br />
absoluta, permanecen<strong>do</strong> aprisiona<strong>do</strong> a um mo<strong>do</strong> de relação primário. Um fracasso na<br />
interiorização dessa função pelo infante faria com que o sujeito buscasse em um objeto<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior, concreto, o desempenho <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> objeto interno que seria sempre<br />
insuficiente e transitório. (GREEN, 1988, 1990)<br />
Green sublinha aí a questão da instauração e manutenção <strong>do</strong>s limites que<br />
constituem sujeito e objeto, e aponta para o fato de que esse trabalho envolve algum<br />
tipo de perda, de negativação por parte <strong>do</strong> sujeito, sen<strong>do</strong> esta a condição da<br />
possibilidade <strong>do</strong> trabalho de representação. Quan<strong>do</strong> o objeto deixa de cumprir <strong>seu</strong> papel<br />
de continente faz surgir assim uma segunda fonte de conflito, quan<strong>do</strong> a criança não
apenas luta contra as próprias pulsões, mas tamb<strong>é</strong>m contra as “pulsões <strong>do</strong> objeto”. É<br />
essa exatamente a problemática principal no que se refere aos esta<strong>do</strong>s limites, esta<strong>do</strong>s<br />
em que o sujeito se vê comprometi<strong>do</strong> na capacidade de estabelecer fronteiras<br />
consistentes que sustentem a relação com o objeto.<br />
Magtaz em sua tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> <strong>sobre</strong> os “Distúrbios da oralidade na<br />
melancolia” (2008) destaca expressões que surgem na clínica referidas à angústia de<br />
separação observan<strong>do</strong> o “duplo senti<strong>do</strong> de ‘separar-se de’ e de ‘estar separa<strong>do</strong>’, quer<br />
dizer ‘em pedaços’” (MAGTAZ, 2008, p. 139) e evoca Pierre Fedida quan<strong>do</strong><br />
correlaciona o conceito de canibalismo a fantasias transferenciais, explican<strong>do</strong> que o<br />
“luto” canibalístico seria uma solução incestuosa de união alimentar ao objeto de <strong>amor</strong>,<br />
cuja ambivalência se apresentaria na tentativa de devoração/eliminação <strong>do</strong> objeto. E<br />
explica que a incorporação canibalesca não significaria uma elaboração da perda, “mas<br />
compreenderia um gozo imaginário liga<strong>do</strong> à angústia de perder o objeto de <strong>amor</strong>. A<br />
melhor forma para o canibal melancólico se preservar da angústia de perda <strong>do</strong> objeto <strong>é</strong><br />
destruí-lo, em pedaços, para, assim, conservá-lo vivo dentro de si”. (MAGTAZ, 2008,<br />
p. 139)
III – A oralidade e a dimensão “canibalista”<br />
O <strong>seu</strong> <strong>amor</strong> <strong>é</strong> canibal<br />
Comeu meu coração mas agora estou feliz<br />
(Ivete Sangalo)<br />
III.1. Decifra-me ou devoro-te: <strong>sobre</strong> a oralidade<br />
Segun<strong>do</strong> o Vocabulário de Psicanalise, canibalesco <strong>é</strong> o termo emprega<strong>do</strong> para<br />
qualificar relações de objeto e fantasias correlatas à atividade oral. E o termo “exprime<br />
de mo<strong>do</strong> figura<strong>do</strong> as diferentes dimensões da incorporação oral: <strong>amor</strong>, destruição,<br />
conservação no interior de si mesmo e apropriação das qualidades <strong>do</strong> objeto”<br />
(LAPLANCHE e PONTALIS, 1986, p.93). Pode se referir à fase oral freudiana ou da<br />
segunda fase oral de Karl Abraham, a fase oral-sádica.<br />
Freud enuncia três modalidades de identificação (1921) e a primeira concerne à<br />
forma originária <strong>do</strong> laço afetivo com o objeto: <strong>é</strong> a identificação primária, canibalesca,<br />
pr<strong>é</strong>-edipiana, que coloca em pauta a noção de incorporação. Fernandes (2006), a partir<br />
<strong>do</strong>s supracita<strong>do</strong>s Laplanche e Pontalis, realiza uma distinção entre introjeção e<br />
incorporação, explican<strong>do</strong> que a incorporação exerceria a função <strong>do</strong> limite corporal de<br />
separar o interior <strong>do</strong> exterior enquanto que a introjeção seria algo mais amplo, que<br />
possibilitaria, não só a separação <strong>do</strong> interior <strong>do</strong> exterior <strong>do</strong> corpo, mas tamb<strong>é</strong>m a<br />
separação de uma instância de outra no interior <strong>do</strong> próprio aparelho psíquico. A autora<br />
explica que ambos fazem parte da identificação primária e remetem à relação pr<strong>é</strong>-<br />
edípica <strong>do</strong> bebê com a mãe e que a partir da introjeção que ocorreria a integração das<br />
pulsões mediada pelo objeto que não pode falhar na sua função de paraexcitação<br />
(função essa de proteção, mediação e libidinização), pois senão o mecanismo de<br />
introjeção não pode ser processa<strong>do</strong>.<br />
Trata-se então de um trabalho de simbolização, de ciframento, ou de<br />
deciframento em nosso trocadilho, para que o infans não seja devora<strong>do</strong> pela mãe, para<br />
que possa se constituir na alteridade e na diferença. No fracasso desse intento, quan<strong>do</strong> o<br />
sujeito não dispõe de recursos para poder lidar com as pulsões, surge a necessidade de<br />
incorporar o objeto. Na bulimia a identificação primária se restringiria à incorporação<br />
<strong>do</strong> objeto, não ocorren<strong>do</strong> a introjeção, assim enquanto a introjeção “permitirá ao sujeito<br />
restringir a sua dependência <strong>do</strong> objeto, a incorporação <strong>do</strong> objeto, ao contrário, cria e<br />
reforça a ligação objetal imaginária” (FERNANDES, 2006, p. 212).
III.2. O orgia alimentar e a dimensão canibalística na relação <strong>amor</strong>osa<br />
No plano da oralidade, vivemos a cultura <strong>do</strong>s buffets, rodízios, churrascarias,<br />
shopping centers: <strong>é</strong> a cultura <strong>do</strong> mais e <strong>do</strong> ainda, a cultura <strong>do</strong> excesso. É a<br />
presentificação <strong>do</strong> excesso e das incessantes e velozes ofertas para as vorazes<br />
oralidades. Isso tu<strong>do</strong> alia<strong>do</strong> à máxima aplicada em diversos âmbitos, principalmente no<br />
<strong>amor</strong>oso, “a fila anda”: não se deve fixar e sim fluir nas relações objetais. Ao se esgotar<br />
a relação com o objeto deve-se logo partir para a busca <strong>do</strong> próximo na “lógica da<br />
renovação” e da “expansão das necessidades” fomentadas e incentivadas na sociedade e<br />
na cultura <strong>do</strong> consumo.<br />
Neste cenário localizamos as relações <strong>amor</strong>osas que estamos inferin<strong>do</strong> que<br />
funcionam em mo<strong>do</strong> de relação de objeto semelhante à bulimia. Pois, conforme<br />
argumenta Jeammet (1999), a relação bulímica se caracteriza pela “apetência objetal” na<br />
qual o sujeito bulímico está na “busca perp<strong>é</strong>tua por um objeto a ser consumi<strong>do</strong>”<br />
(JEAMMET, 1999, p.118) na selvageria <strong>do</strong> ato bulímico, na orgia alimentar/oral da<br />
devoração <strong>do</strong> objeto ou, como estamos argumentan<strong>do</strong> aqui, na devoração <strong>do</strong> objeto<br />
<strong>amor</strong>oso esse mo<strong>do</strong> de funcionamento atravessa<strong>do</strong> pelo excesso – pulsional, da paixão e<br />
<strong>do</strong> pathos.<br />
Vimos como no mo<strong>do</strong> de funcionamento bulímico o sujeito vivencia a dupla<br />
angústia, de engolfamento e de aban<strong>do</strong>no pelo objeto, de encontro à descrição Jeammet<br />
ressalta que as relações da bulímica se caracterizam por uma eterna busca de um objeto<br />
que possa ser consumi<strong>do</strong>, no qual possa se apoiar. E isso se justifica em função de uma<br />
excitação interna que precisa ser acalmada a partir desse encontro com o objeto; no<br />
entanto, tal encontro só agrava o mal-estar interno, o que obriga o bulímico a fugir,<br />
rejeitan<strong>do</strong> esse contato com o <strong>outro</strong>. Ora consumin<strong>do</strong> e devoran<strong>do</strong>, ora vomitan<strong>do</strong> e<br />
expelin<strong>do</strong> esse objeto da paixão, ora no engolfamento, ora na <strong>expulsão</strong> <strong>do</strong> objeto.<br />
É o mesmo mecanismo que Brusset (1999) localiza na orgia alimentar que<br />
remete a teoria freudiana da origem <strong>do</strong> homem, em Totem e Tabu, na revolta de uma<br />
horda assassina que mata e devora o pai. Ele explica que o desencadeamento criminoso<br />
desta refeição canibalesca constitui a primeira festa da humanidade e a origem <strong>do</strong><br />
homem social, moral e religioso. O horror <strong>do</strong> crime canibal exigiria o vômito anula<strong>do</strong>r e<br />
expiatório (BRUSSET, 1999, p.95-96). Aí encontramos um registro da culpa, de um<br />
edípico que estamos inferin<strong>do</strong> ser posterior ao momento pr<strong>é</strong>-genital no qual localizamos
a fixação oral canibalesca característica <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>do</strong> funcionamento bulico, onde a<br />
incorporação e não de introjeção propriamente dita.<br />
É um mo<strong>do</strong> de gestão psíquica arcaico que se atualiza em um mo<strong>do</strong> pático de<br />
adesão ao objeto <strong>amor</strong>oso, regi<strong>do</strong> pela desmesura, pelo traumático da paixão. Orgia<br />
canibal, orgia <strong>amor</strong>osa de devoração <strong>do</strong> objeto <strong>amor</strong>oso. Um objeto que <strong>é</strong> “a comida, a<br />
bebida” sem justa medida, <strong>é</strong> um <strong>amor</strong> que <strong>é</strong> o que o sujeito “come, bebe, dá e recebe” 2 ,<br />
devora vorazmente, empanturra-se e expele violentamente o <strong>outro</strong>.<br />
2 Como Erasmo e Roberto Carlos cantaram o <strong>amor</strong> na popular música “Cama e mesa”
IV. Referências bibliográficas<br />
BARROS E SILVA, Maria Helena. A paixão silenciosa: uma leitura<br />
psicanalítica <strong>sobre</strong> as paixões <strong>amor</strong>osas. São Paulo: Escuta, 2002.<br />
BERLINCK, Manoel. Psicopatologia fundamental, São Paulo: Escuta, 2000.<br />
BRUSSET, Bernard. “Psicopatologia e metapsicologia da adição bulímica”. In:<br />
B. BRUSSET, COUVREUR, A. FINE. A bulimia- São Paulo: Escuta, 2003.<br />
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B.BRUSSET, COUVREUR, A. FINE. A bulimia. São Paulo: Escuta, 2003.<br />
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Janeiro: Imago, 1996.<br />
FREUD, Sigmund (1914) - Sobre o Narcisismo: uma introdução. In: Freud, S.<br />
Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.XIV. Edição Standard<br />
Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.<br />
FREUD, Sigmund (1921) – Psicologia das Massas e Análise <strong>do</strong> Ego. In: Freud,<br />
S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, XVIII.. Edição Standard<br />
Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.<br />
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uma mulher em tensão pr<strong>é</strong>-menstrual. São Paulo: Escuta, 2003<br />
POSTIGO, Vanuza. Adicção: Um estu<strong>do</strong> <strong>sobre</strong> passividade e violência psíquica.<br />
Curitiba: Juruá, 2010.<br />
ROCHA, Zeferino. “Apresentação”. In: BARROS E SILVA, Maria Helena A<br />
paixão silenciosa: uma leitura psicanalítica <strong>sobre</strong> as paixões <strong>amor</strong>osas. São<br />
Paulo: Escuta, 2002.