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<strong>WAGNER</strong>
<strong>WAGNER</strong>
Álbum de família/1984<br />
Mario Henrique Simonsen
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
TRISTÃO E ISOLDA –<br />
DA LENDA MEDIEVAL AO<br />
DRAMA <strong>WAGNER</strong>IANO<br />
Alenda medieval de Tristão e Isolda, parte do<br />
ciclo da Távola Redonda, é um romance de<br />
peripécias, segundo os costumes da época.<br />
Para cobrar tributos à Cornualha, o rei da Irlanda para<br />
lá envia o cavaleiro Moroldo, seu campeão e noivo de<br />
sua filha, a princesa Isolda dos Cabelos Louros. Seguin-<br />
do as regras da época, para isso é obrigado a enfrentar<br />
em duelo o cavaleiro Tristão, Campeão da Cornualha e<br />
sobrinho do rei Marke. Tristão mata Moroldo, e como<br />
desforra envia sua cabeça decepada para Isolda.<br />
5
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
Mas, na luta, Tristão fica gravemente ferido, e só<br />
quem conhece as artes médicas para curá-lo é a própria<br />
Isolda. Assim, o cavaleiro viaja solitário para a Irlanda,<br />
disfarçado como Tantris, e consegue ser curado pela<br />
princesa e regressar à Cornualha.<br />
Mais adiante, um tratado de paz é celebrado entre a<br />
Irlanda e a Cornualha. Para sedimentá-lo, Tristão arti-<br />
cula o casamento de Isolda com o rei Marke, voltando<br />
à Irlanda, agora para buscar a princesa. Na viagem de<br />
regresso, Isolda, cheia de ódio e inconformada com o<br />
seu destino, ordena à sua aia Brangânia que sirva num<br />
cálice a poção da morte, para que ela a partilhe com<br />
Tristão. Só que Brangânia, no desespero, troca a poção<br />
pelo filtro do amor. Tristão e Isolda bebem o filtro e<br />
se apaixonam instantaneamente, tornando-se amantes<br />
antes de chegar à Cornualha.<br />
Na corte de Marke, Brangânia e Kurwenal, o escu-<br />
deiro de Tristão, fazem o possível para ocultar o amor<br />
dos príncipes. Brangânia, inclusive, sacrifica a sua vir-<br />
gindade substituindo Isolda na noite de núpcias. Mas o<br />
cavaleiro Melot, falso amigo de Tristão e secretamente<br />
apaixonado por Isolda, prepara uma armadilha para<br />
6
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
apanhar em flagrante os amantes: uma pretensa caça-<br />
da, da qual o rei voltará inesperadamente.<br />
Surpreendidos em flagrante, os amantes não têm<br />
como se desculpar. Tristão é gravemente ferido em<br />
duelo por Melot, sendo recolhido à beira da morte<br />
por Kurwenal, que consegue levá-lo para Kareol, sua<br />
terra natal. E Marke se vinga de Isolda, entregando-a<br />
ao apetite sexual dos leprosos.<br />
Em Kareol, Tristão continua gravemente enfermo.<br />
No meio tempo chega a ter relações amorosas com<br />
outra Isolda, a das Mãos Alvas, mas nunca se esque-<br />
ce da Isolda dos Cabelos Louros. Kurwenal consegue,<br />
finalmente, sequestrar a ex-princesa da Irlanda, mas<br />
Tristão morre em razão do ferimento antes que Isolda<br />
chegue. Esta morre de desgosto pouco tempo depois.<br />
Os amantes são enterrados em túmulos vizinhos. Ao<br />
saber disso, o rei, enfurecido, ordena que se afastem as<br />
sepulturas. Mas, ao lado de cada uma, nasce uma árvo-<br />
re. Com o passar do tempo, seus ramos se entrelaçam.<br />
Wagner transforma o romance medieval num dra-<br />
ma de profunda densidade psicológica, em que muito<br />
pouco se passa em termos de ação, e no qual o que real-<br />
7
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
mente importa são os estados de espírito. Para isso, eli-<br />
mina muita das peripécias da lenda medieval, suprime<br />
personagens acessórios como a Isolda das Mãos Alvas,<br />
e inicia a ópera na viagem da Irlanda para a Cornua-<br />
lha, quando Tristão leva Isolda para se casar com o rei<br />
Marke. Os antecedentes, como a cobrança dos tributos<br />
por Moroldo e a sua morte pela espada de Tristão, a<br />
cura do falso Tantris e o casamento de Isolda e Marke,<br />
são narrados no primeiro ato, em pequena parte por<br />
Kurwenal, e na maior parte pela própria Isolda.<br />
Mas a diferença central é que, no texto wagneriano,<br />
Tristão e Isolda já estão apaixonados antes de sorverem<br />
o filtro do amor. Apenas nenhum acredita ser corres-<br />
pondido pelo outro, e por isso cada qual oculta a sua<br />
paixão, Tristão melhor do que Isolda. De resto, o ca-<br />
samento de Isolda com o rei Marke torna a confissão<br />
desse amor incompatível com a honra de Tristão, que<br />
não admite trair seu tio.<br />
A razão pela qual Isolda ordena Brangânia que sirva<br />
a poção da morte para ser partilhada entre ela e Tristão<br />
é bastante lógica. Tornar-se rainha da Cornualha e ter<br />
sempre perto, na corte, o homem que ama, sobrinho<br />
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TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
do seu marido, é a perspectiva de uma tortura insu-<br />
portável. Por outro lado, ela quer se vingar de Tristão,<br />
que, além de desprezá-la, a ofereceu em casamento ao<br />
velho tio. Tristão aceita sorver o veneno no momento<br />
em que, apesar de toda a dissimulação de Isolda, per-<br />
cebe os seus verdadeiros sentimentos, compreendendo<br />
que caiu num dilema sem saída: ou trai Isolda, ou trai<br />
o rei Marke, restando apenas a liberação pela morte.<br />
O efeito do filtro do amor é apenas fazer com que<br />
os dois apaixonados extravasem a sua paixão, já que<br />
ambos estão convencidos de que vão morrer envene-<br />
nados e a essa altura não precisam esconder mais nada.<br />
Só Brangânia, que não entende as confissões de Isolda<br />
no primeiro ato, realmente acredita que a causa da pai-<br />
xão é a poção que ela serviu em substituição ao filtro<br />
da morte. Presumivelmente consegue convencer o rei<br />
Marke dessa mesma química entre o segundo e o ter-<br />
ceiro ato da ópera.<br />
No segundo ato, os amantes continuam vivos, mas<br />
enredados naquilo que sabem ser um amor impossível.<br />
O extraordinário dueto é o confronto entre a intole-<br />
rância do Dia e as sublimes delícias da Noite. O Dia,<br />
9
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
no caso, simboliza o mundo real, em que não há espaço<br />
para o amor entre Tristão e Isolda. A Noite, um mun-<br />
do imaginário, ao qual só se pode chegar pela morte.<br />
Ou seja, o dueto do segundo ato simplesmente renova<br />
o pacto de morte do primeiro. Uma vez surpreendidos<br />
por Marke e Melot, é a vez de Tristão buscar a morte.<br />
É ele quem desafia Melot em duelo, deixando propo-<br />
sitalmente cair a espada no momento do combate. E<br />
só a interferência do rei impede que Melot o trucide.<br />
Wagner também transforma inteiramente a perso-<br />
nalidade do rei Marke em relação à lenda medieval, e<br />
esse é um ponto-chave na ópera. Pelo que insinua o rei,<br />
o seu casamento com Isolda não se consumou fisica-<br />
mente, com o que Wagner dispensa duas peripécias de<br />
mau gosto da lenda medieval, o sacrifício da virginda-<br />
de de Brangânia fazendo-se passar por Isolda na noite<br />
de núpcias, e a entrega de Isolda à sanha dos leprosos.<br />
Não há em Marke nenhum desejo de vingança, e a pro-<br />
va é que ele próprio evita que Melot liquide Tristão<br />
após feri-lo. Apenas se sente profundamente triste e<br />
humilhado diante da traição do sobrinho. Mais ainda,<br />
convencido por Brangânia de que tudo fora obra do<br />
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TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
filtro do amor, viaja a Kareol no terceiro ato, escoltado<br />
por Melot, para unir em casamento os dois amantes<br />
– tarde demais, pois chega após a morte de Tristão, e<br />
no limiar do Liebestod (morte por amor). Segundo as<br />
indicações da partitura (raramente observadas nas re-<br />
presentações modernas), a ópera se encerra com o rei<br />
abençoando os cadáveres.<br />
Em que momento Isolda se apaixona por Tristão,<br />
torna-se bastante claro na narrativa da terceira cena do<br />
primeiro ato. A princesa conta a Brangânia que, ao co-<br />
meçar o tratamento do falso Tantris, descobrira uma<br />
falha em sua espada, na qual se encaixava exatamente a<br />
farpa por ela encontrada na cabeça de Moroldo. Assim<br />
descobriu que o ferido era Tristão e, num ímpeto de<br />
vingança, levantou a espada disposta a matá-lo. Só que,<br />
nesse momento, pousou-lhe nos olhos o olhar de Tris-<br />
tão. A angústia desse olhar fez com que a espada lhe<br />
caísse das mãos. E, assim, tratou de curar o cavaleiro<br />
para que ele e seu olhar fossem embora, deixando-a em<br />
paz. E Tristão regressou à Cornualha, não sem antes<br />
lhe jurar eterna gratidão e fidelidade. Embora Isolda<br />
não confesse explicitamente sua paixão, qualquer psi-<br />
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TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
cólogo um pouco mais arguto do que Brangânia en-<br />
tenderia tudo o que se passava no coração da princesa.<br />
Antes da narrativa, no início da segunda cena no<br />
primeiro ato, Isolda fala consigo mesma, olhando fixa-<br />
mente para Tristão:<br />
Mir erkoren, Eleito para mim,<br />
mir verloren, Perdido para mim,<br />
hehr und heil, esplêndido e forte,<br />
kühn und feig! ousado e covarde!<br />
Todgeweihtes Haupt! Fronte votada à morte!<br />
Todgeweihtes Herz! Coração votado à morte!<br />
E depois da narrativa da terceira cena, enquanto<br />
Brangânia tenta consolá-la, Isolda responde:<br />
Ungeminnt Sem ser amada<br />
den hehrsten Mann sempre perto de mim<br />
stets mir nah zu sehen! o herói mais sublime!<br />
Wie könnt‘ ich die Como poderia suportar<br />
Qual bestehen? a tortura?<br />
12
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
Ou seja, como suportar a vida na corte da Cornua-<br />
lha, casada com Marke e sempre perto de Tristão?<br />
Em que momento Tristão se apaixona por Isolda<br />
é questão menos fácil de identificar. Possivelmente o<br />
olhar do falso Tantris já era uma manifestação de pai-<br />
xão, mas nesse caso cabe perguntar por que Tristão ar-<br />
ticula o casamento de Isolda com Marke. Uma segun-<br />
da possibilidade é que essa paixão só seja percebida na<br />
viagem do primeiro ato.<br />
O dueto da quinta cena do primeiro ato, embora<br />
constitua uma tentativa de dissimulação por parte de<br />
Isolda, ajuda a esclarecer a questão. Antes de beber<br />
o filtro, Isolda em nenhum momento insinua que<br />
está apaixonada por Tristão. Em síntese, Isolda conta<br />
que, em silêncio, jurara vingar a morte de Moroldo<br />
e, pois nenhum cavaleiro poderia bater Tristão em<br />
duelo, ela própria decidiu assumir a tarefa. Poderia<br />
tê-lo feito quando descobriu que o falso Tantris era<br />
Tristão. Mas não quis se vingar de um doente. Tristão<br />
lhe oferece a espada para que ela se vingue de Mo-<br />
roldo, mas Isolda se recusa a enviar ao rei Marke o<br />
cadáver do seu campeão. No lugar disso, propõe que<br />
13
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
ambos tomem a taça de reconciliação. Só que Tristão<br />
percebe que Isolda está dissimulando, respondendo<br />
sombriamente:<br />
Des Schweigens Herrin A senhora do silêncio<br />
heisst mich schweigen: manda que eu me cale:<br />
fass’ich, was sie entendo o que ela<br />
verschwieg escondeu<br />
verschweig’ich, e escondo o que ela<br />
was sie nicht fasst não entende<br />
O “entendo o que ela escondeu” poderia, à primei-<br />
ra vista, significar que Tristão sabe que a taça de recon-<br />
ciliação é a poção da morte, mas essa é uma interpre-<br />
tação inconvincente, pois a taça não poderia ser outra<br />
coisa e Isolda não tenta dissimular. A versão mais na-<br />
tural para a charada wagneriana é que Tristão percebeu<br />
que Isolda estava apaixonada por ele. E esconde o que<br />
ela não entende, ou seja, que também está apaixonado<br />
pela princesa.<br />
O fato de, no primeiro ato da ópera, a paixão de<br />
Tristão se revelar muito mais discretamente do que<br />
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TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
a de Isolda explica-se por uma razão simples: Tristão<br />
deve lealdade ao rei Marke, Isolda não. O próprio ca-<br />
samento, que não se consuma fisicamente, não muda<br />
essa assimetria de deveres, que transforma Tristão no<br />
personagem mais complexo da tragédia.<br />
Esses pontos são confirmados na terceira cena do<br />
segundo ato, quando os amantes são pegos em flagran-<br />
te por Marke, Melot e seu séquito. Tristão, desde o iní-<br />
cio da cena, decide-se a buscar a morte na espada de<br />
Melot, como insinua a frase inicial de Tristão:<br />
Der öde Tag O dia tenebroso<br />
zum letzenmal pela última vez<br />
No seu longo monólogo, Marke apenas lastima a<br />
deslealdade de Tristão. Velho, viúvo, sem filhos, Marke<br />
pretendera deixar o trono para Tristão. Resistiu como<br />
pôde às pressões da corte que queria que ele se casasse<br />
outra vez para que a Cornualha tivesse uma rainha,<br />
até que Tristão se juntou a essas pressões ameaçando<br />
abandonar o país, e propondo-se a articular um novo<br />
casamento para ele.<br />
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TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
De Isolda, Marke nada cobra. Uma mulher maravi-<br />
lhosa, que lhe daria paz à alma,<br />
Der mein Wille Da qual a minha vontade<br />
nie zu nahen wagte, nunca ousou aproximar-se,<br />
der mein Wunsch à qual o meu desejo<br />
Ehrfurchtscheu entsagte timidamente renunciou<br />
Marke quer apenas entender o mistério da traição<br />
de Tristão. O cavaleiro não tem resposta, e convida<br />
Isolda para segui-lo para uma terra distante onde nun-<br />
ca brilha a luz do sol, o que evidentemente significa a<br />
morte. Isolda concorda em mais uma vez acompanhar<br />
Tristão, e, diante dos protestos de Melot, Tristão o de-<br />
safia em duelo deixando-se ferir propositalmente.<br />
Como Isolda cumpre sua parte no pacto de mor-<br />
te, é questão mais complicada. No texto wagneriano, a<br />
princesa chega a Kareol no terceiro ato apenas a tem-<br />
po de ver Tristão morrer nos seus braços, após longa<br />
e angustiada espera. Isolda desmaia junto ao corpo de<br />
Tristão e, no meio tempo, ocorrem várias peripécias:<br />
chega a Kareol um segundo navio, com Marke, Melot<br />
16
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
e Brangânia. Kurwenal organiza uma barricada contra<br />
os supostos inimigos e, num gesto de suprema vingan-<br />
ça, consegue liquidar Melot, mas pouco depois é ferido<br />
mortalmente, indo expirar ao lado de Tristão. Marke e<br />
Brangânia contemplam desolados os cadáveres, até que<br />
percebem que Isolda está viva. Só que a princesa já mi-<br />
grou para o reino da noite e morre no êxtase do Liebes-<br />
tod. A solução não é inteiramente convincente, abrindo<br />
espaço para a imaginação dos diretores de cena.<br />
OS ‘LEITMOTIVS’ DE TRISTÃO E ISOLDA<br />
Parte I<br />
Para compreender Tristão e Isolda é preciso conhe-<br />
cer a trama de leitmotivs sobre a qual se desenvolve<br />
o drama musical. O conceito de leitmotiv é simples,<br />
uma frase melódica que se repete e se transforma ao<br />
longo da ópera, evocando certa personagem, certo<br />
acontecimento ou determinado estado de espírito. O<br />
problema prático é que Wagner não se deu ao trabalho<br />
de explicitar – e muito menos de apelidar – esses leit-<br />
17
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
motivs. Surgem dois problemas práticos de classifica-<br />
ção: a) um tema que se repita uma única vez na ópera<br />
deve ou não ser considerado um leitmotiv? É o exem-<br />
plo da frase introdutória do segundo ato, após a explo-<br />
são do tema do Dia e que se reproduz antes da entrada<br />
de Tristão; b) uma transposição modal de um motivo<br />
(de maior para menor, por exemplo) deve-se conside-<br />
rar um outro motivo? Em Tristão e Isolda esse segundo<br />
problema não chega a causar muita preocupação, mas<br />
na Tetralogia, o conhecido tema de Erda nada mais é<br />
do que a transposição do tema do Reno para modo<br />
menor. Por economia, resumiremos a estrutura de mo-<br />
tivos ao mínimo possível, ou seja, identificando os que<br />
apenas diferem por transformações e os que não se re-<br />
petem mais de uma vez na ópera.<br />
Estabelecendo esse critério, no prelúdio do primei-<br />
ro ato se distinguem seis leitmotivs.<br />
Os dois primeiros (1 e 2) vêm frequentemente asso-<br />
ciados, podendo-se denominar Paixão e Desejo.<br />
O tema de quatro notas das cordas é o da Paixão;<br />
a figura cromática ascendente, composta pelas quatro<br />
notas seguintes tocadas pelos sopros de madeira, é o<br />
18
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
tema do Desejo. Os dois temas descrevem o estado de<br />
espírito que leva ao drama de Tristão e Isolda. Eles são<br />
propositalmente interrogativos a ponto de explicar<br />
por que Freud pôs a ópera nas raízes da psicanálise. E<br />
percorrem toda a ópera, na maior parte das vezes em<br />
associação, mas com alguns momentos de independên-<br />
cia, sobretudo no caso do Desejo.<br />
O terceiro tema, o do Olhar, talvez seja o mais im-<br />
portante da ópera.<br />
O tema agora se refere a um episódio concreto,<br />
contado por Isolda na narrativa do primeiro ato: Tris-<br />
tão, após matar Moroldo em duelo, voltara à Irlanda<br />
para se curar da ferida com a medicina da princesa<br />
irlandesa, disfarçado como Tantris. Isolda tratou de<br />
curá-lo, quando descobriu que se tratava do assassino<br />
do ex-noivo. Nesse momento, levantou a espada para se<br />
vingar e matá-lo. Só que, aí, o olhar de Tristão a atingiu<br />
nos olhos, fazendo-a deixar a espada cair. Ou seja, foi<br />
nesse momento que Isolda se apaixonou por Tristão.<br />
Os dois temas seguintes, o do Filtro do Amor (nº 4)<br />
e o do Filtro da Morte (nº 5), também surgem associa-<br />
dos no prelúdio.<br />
19
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
A linha melódica cromática descrevendo o Filtro<br />
do Amor, as três notas ameaçadoras dos metais graves<br />
do Filtro da Morte. Esses dois temas, associados ou<br />
não, aparecem frequentemente no primeiro e no ter-<br />
ceiro ato.<br />
O último tema do prelúdio é o da Liberação pela<br />
Morte (nº 6).<br />
No prelúdio, ele desempenha extraordinário papel<br />
no seu desenvolvimento sinfônico. Na ópera, reaparece<br />
três vezes: a primeira, não muito convincente (embora<br />
musicalmente admirável), na terceira cena do primeiro<br />
ato, no diálogo Isolda-Brangânia. Depois, com extraor-<br />
dinária intensidade, sublinhando o dueto de amor do<br />
final do primeiro ato. Por último, na morte de Tristão.<br />
Parte II<br />
Como em todas as óperas de Wagner a partir de<br />
Ouro do Reno, a partitura de Tristão e Isolda se cons-<br />
trói a partir de uma trama de leitmotivs, cada qual ex-<br />
pressando uma ideia, um sentimento ou um persona-<br />
gem. Wagner não se deu ao trabalho de explicitar esses<br />
20
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
motivos, de modo que sua listagem e sua denominação<br />
ficam a critério de cada leitor da partitura. Indicare-<br />
mos a seguir os principais temas limitando-nos aos re-<br />
correntes, isto é, aos que se repetem por mais de uma<br />
cena da ópera.<br />
Os primeiros compassos do prelúdio trazem a<br />
combinação enigmática Paixão-Desejo (1/2).<br />
As notas lá-fá-mi-ré sustenido-ré natural, tocadas<br />
pelas cordas, formam o tema da Paixão; a figura cro-<br />
mática dos sopros, representada pela linha sol susteni-<br />
do-si, é o motivo do Desejo. Os dois temas aparecem<br />
associados várias vezes na ópera, e o do Desejo, isola-<br />
damente, muitas vezes mais.<br />
No décimo oitavo compasso surge um terceiro<br />
tema, também importantíssimo, o do Olhar, e que per-<br />
corre quase toda a ópera (3). O motivo evoca o olhar<br />
do falso Tantris que apaixonou Isolda.<br />
Poucos compassos depois surgem mais outros te-<br />
mas, o do Filtro do Amor (4) e o do Filtro da Morte<br />
(5).<br />
Este último, composto por apenas três notas amea-<br />
çadoras, é tocado pelos instrumentos mais graves da<br />
21
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
orquestra, sejam cordas, sejam sopros de metal. Ambos<br />
os temas voltam à tona várias vezes durante a ópera.<br />
No sexagésimo quinto compasso do prelúdio, sur-<br />
ge um sexto tema, o da Liberação pela Morte (6).<br />
Esse tema apaixonado volta poucas vezes na ópera,<br />
mas em momentos críticos:<br />
a) na terceira cena do primeiro ato, quando Bran-<br />
gânia lembra a Isolda os filtros mágicos preparados<br />
por sua mãe; b) no dueto de amor do final do primeiro<br />
ato; c) na morte de Tristão, na segunda cena do tercei-<br />
ro ato.<br />
Logo após se abrirem as cortinas, a canção do ma-<br />
rinheiro introduz um novo tema, o do Mar (7), de im-<br />
portância tópica no primeiro ato.<br />
O diálogo de Isolda com Brangânia na primeira<br />
cena do primeiro ato se desenvolve a partir desse mo-<br />
tivo e de outros temas não recorrentes na ópera. No<br />
início da segunda cena, logo após a repetição da Can-<br />
ção do Marinheiro, brota dos lábios de Isolda o tema<br />
da Morte – Fronte votada à morte, coração votado à<br />
morte (8): tema da maior importância psicológica e<br />
musical em toda a ópera.<br />
22
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
Brangânia caminha para transmitir a Tristão o<br />
recado de Isolda guiada pelo motivo do Mar, tocado<br />
pelas trompas. Após algumas evoluções do motivo do<br />
Desejo (2), na resposta de Kurwenal surgem dois novos<br />
temas, o da Cornualha (9) e o de Tristão herói (10).<br />
É sob o eco do tema de Tristão herói que se inicia a<br />
terceira cena do primeiro ato, um longo diálogo entre<br />
Isolda e Brangânia. A narrativa de Isolda começa com<br />
uma figura cromática descendente, Tristão ferido.<br />
O motivo se repete até o momento em que Isol-<br />
da lembra como deixou cair a espada que iria matar o<br />
falso Tantris, surgindo aí o tema do Olhar (3). Os três<br />
temas, o de Tristão ferido, o de Tristão herói e o do<br />
Olhar, mais alguns motivos não recorrentes, compõem<br />
o tecido musical da narrativa de Isolda. Brangânia<br />
tenta consolá-la em belíssimas páginas musicais, mas<br />
não chegam a introduzir nenhum tema recorrente. Na<br />
confissão de Isolda, o Ungeminnt, os motivos do De-<br />
sejo (2) e o do Olhar (3) se entrelaçam com especial<br />
impacto dramático. Na parte final da terceira cena,<br />
misturam-se os temas do Desejo (2), da Morte (8), da<br />
Liberação pela Morte (6), dos Filtros do Amor e da<br />
23
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
Morte (4) e (5), até que o Coro dos Marinheiros (12)<br />
introduz um novo leitmotiv, de importância até o final<br />
do primeiro ato.<br />
Kurwenal entra na quarta cena, para anunciar às<br />
damas que se preparem para a chegada do navio à<br />
Cornualha, com uma extraordinária combinação dos<br />
temas do Mar (7) e do Coro dos Marinheiros (12). Na<br />
extraordinária resposta de Isolda dominam dois te-<br />
mas, ainda que transformados, o da Morte (8) e o do<br />
Filtro da Morte (5).<br />
A entrada de Tristão na quinta cena do primeiro<br />
ato é anunciada por um novo tema, o da Honra de<br />
Tristão (13).<br />
Nele o tecido musical mistura esse tema com o Fil-<br />
tro da Morte. Na parte do dueto em que Isolda trata<br />
de dissimular seus sentimentos, esses temas se entrela-<br />
çam com o da Morte (8) e com duas intervenções da<br />
Canção dos Marinheiros. No momento em que ambos<br />
sorvem o suposto Filtro da Morte, a orquestra projeta<br />
o binômio Paixão-Desejo (1/2). Repete-se aí o início do<br />
prelúdio até o momento em que os amantes se entrela-<br />
çam sob o motivo do Olhar (3). O breve dueto de amor<br />
24
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
evoca o tema da Liberação pela Morte (6) e do Filtro<br />
do Amor (4). O ato termina com a chegada do navio à<br />
Cornualha, descrita pelo entrelaçamento dos motivos<br />
do Mar e da Canção dos Marinheiros.<br />
O segundo ato começa com o motivo do Dia (14).<br />
Esse motivo, que descreve o mundo do Dia, incom-<br />
patível com o amor Tristão-Isolda, transforma-se mais<br />
adiante numa versão adoçada pela queda da linha me-<br />
lódica de uma quarta em vez de uma quinta: O Dia<br />
(II).<br />
O prelúdio do segundo ato, além do tema do Dia,<br />
introduz dois outros. Primeiro, o da Ansiedade (16),<br />
segundo, o do Êxtase (17).<br />
Este último, posteriormente, transforma-se na se-<br />
guinte versão, importantíssima no dueto de amor e no<br />
Liebestod, o do Êxtase (18.)<br />
Isolda e Brangânia entram sob o som das trompas<br />
de caça (a caçada preparada por Melot, para o regres-<br />
so imprevisto de Marke) e dialogam conduzidas pelos<br />
temas da Ansiedade (16) e do Êxtase (17). Na parte fi-<br />
nal do dueto, que se inicia com Dein Werk de Isolda,<br />
Wagner desenvolve extraordinárias evoluções cromá-<br />
25
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
ticas do motivo do Desejo (2). Surge então um novo<br />
tema, Frau Minne (19).<br />
No final da primeira cena do segundo ato, voltam<br />
os temas do Êxtase e da Ansiedade, no auge da excita-<br />
ção. E, quando Isolda acende a tocha para chamar Tris-<br />
tão, os metais sopram em fortíssimo o tema da Morte.<br />
A segunda cena do segundo ato, o grande dueto de<br />
amor da ópera, inicia-se pela repetição da seção inicial<br />
do prelúdio, mais um novo tema não recorrente sobre<br />
a ansiedade dos amantes. Logo após o primeiro abra-<br />
ço, a orquestra toca o tema do Êxtase (17) com toda<br />
a força, seguindo-se um pouco depois de Frau Minne<br />
(19). Segue-se a seção do dueto devotada ao Dia. Os<br />
principais temas são o do Dia, inicialmente na versão<br />
(14), depois na versão (15), bem mais doce aos ouvidos:<br />
o de Tristão herói (10); o do Desejo (2); o do Êxtase<br />
(17); o de Frau Minne (19); o da Ansiedade (16). No<br />
final da seção, surge o motivo do Êxtase na versão (18),<br />
e se antecipam dois temas da segunda seção do dueto,<br />
o da Noite (20) e o da Rejeição ao Dia (21).<br />
E que dominam a primeira parte da seção do dueto<br />
que consagra a revolução harmônica de Tristão e Isolda.<br />
26
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
Depois da fantástica aventura cromática que é a vi-<br />
gília de Brangânia, surge um novo tema, o da Felicida-<br />
de (22).<br />
O dueto prossegue combinando os temas da Feli-<br />
cidade, da Rejeição ao Dia, da Morte, até que se inicia<br />
a última seção, anunciada pela Canção da Morte (23).<br />
Que domina o final do dueto, e que inicia o Liebestod.<br />
Após a advertência de Brangânia, voltam os temas<br />
da Felicidade (22), da Rejeição ao Dia (21), até a explo-<br />
são final em O ew’ge Nacht (Ó noite eterna), em que<br />
se misturam os motivos da Rejeição ao Dia, da Canção<br />
da Morte, do Êxtase, e mais uma figura cromática de<br />
transição, que apelidaremos tema do Sonho (24).<br />
O dueto é interrompido subitamente pelo flagran-<br />
te preparado por Melot, ecoando os temas da Canção<br />
da Morte, do Sonho, e, finalmente, do Dia.<br />
A lamentação de Marke introduz pelo menos um<br />
novo leitmotiv, A tristeza de Marke (25).<br />
A resposta (ou, mais precisamente, a não respos-<br />
ta) de Tristão ao seu tio e protetor é sublinhada pelo<br />
binômio Paixão-Desejo que inicia o prelúdio do pri-<br />
meiro ato (1/2). Logo a seguir, Tristão se dirige a Isolda<br />
27
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
com o motivo da Rejeição ao Dia (21), convidando-a<br />
para o País da Noite, descrito por um novo leitmotiv<br />
(26).<br />
E que se combina com os temas da Felicidade (22) e<br />
da Rejeição à Noite (21).<br />
A réplica de Isolda é uma transformação cromá-<br />
tica do convite de Tristão baseada nesses mesmos três<br />
motivos. Tristão a beija na testa sob os motivos do Êx-<br />
tase (18) e do Sonho (24). No desafio final a Melot,<br />
ouvem-se uma transformação para menor do tema de<br />
Tristão herói (10) e o motivo do Desejo (2), este último<br />
quando Tristão sublinha que Melot também se apaixo-<br />
nou por Isolda.<br />
O prelúdio do terceiro ato se baseia em dois temas,<br />
o da Desolação (27) e o da Esperança (28): o primei-<br />
ro, na realidade, é uma transformação do motivo do<br />
Desejo (27).<br />
Ao prelúdio segue-se a Velha Melodia (29) tocada<br />
pelo pastor no corne inglês.<br />
O breve dueto entre o pastor e Kurwenal combina<br />
esses três motivos, a Desolação, a Esperança e a Velha<br />
Melodia. Tristão desperta sob o som desse último tema<br />
28
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
e, ao perguntar onde se encontra, ouve de Kurwenal<br />
um novo motivo, Kareol (30).<br />
A narrativa de Kurwenal, entremeada por bre-<br />
ves perguntas de Tristão, desenvolve esse novo tema,<br />
associando-o episodicamente com o da Cornualha (9)<br />
e Tristão herói (10).<br />
Segue-se o primeiro monólogo de Tristão em que<br />
se misturam os temas do País da Noite (26), da Noite<br />
(20), do Dia (14/15), da Felicidade (22), da Desolação<br />
(27), do Desejo (2), da Rejeição ao Dia (21), da Morte<br />
(8), da Ansiedade (16), do Êxtase (18). A resposta de<br />
Kurwenal traz de volta o motivo Tristão ferido (11).<br />
O segundo monólogo de Tristão, Isolde kommt!,<br />
inicia-se com um novo leitmotiv (31), o de Kurwenal.<br />
Descritivo da lealdade do escudeiro, e que logo se<br />
entrelaça com o motivo da Esperança (28), a esperança<br />
da chegada de Isolda.<br />
Após o final delirante do segundo monólogo, Tristão<br />
cai em depressão quando, sob o som da Velha Melodia<br />
(29), Kurwenal anuncia que não há nenhum navio à vis-<br />
ta. Começa aí o longo e dificílimo terceiro monólogo,<br />
inicialmente ancorado na Velha Melodia. Seguem-se te-<br />
29
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
mas do Dia (14/15), do Tristão ferido (11), do Desejo (2),<br />
da Desolação (27), do Filtro do Amor (4). A intervenção<br />
desesperada de Kurwenal se baseia numa transposição<br />
para menor do tema do Filtro do Amor (4).<br />
O tema do Desejo (2) serve de transição para o<br />
quarto monólogo de Tristão, o admirável Und drauf<br />
Isolde, baseado nos motivos do Filtro do Amor (4) e<br />
da Felicidade (22), mais uma transformação do motivo<br />
da Paixão (1) que leva ao climático Ach, Isolde, Isolde!<br />
sublinhado pelo tema do Desejo (2).<br />
Um novo tema, o do Reencontro (32), inicia o agi-<br />
tadíssimo dueto final entre Tristão e Kurwenal.<br />
O dueto combina esse tema com a canção alegre<br />
do pastor. Kurwenal sai de cena para buscar Isolda, e<br />
Tristão canta o seu quinto e último monólogo, com-<br />
binando os temas do reencontro com o da Liberação<br />
pela Morte (6), mais vários motivos não recorrentes.<br />
A chegada de Isolda é prenunciada pelo tema da An-<br />
siedade (16), e anunciada pelo da Morte (8). Seguem-se<br />
temas da Paixão-Desejo (1/2), e Tristão morre nos bra-<br />
ços de Isolda sob o tema do Olhar (3).<br />
No monólogo de Isolda ressurgem os motivos da<br />
30
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
Esperança, da Rejeição da Noite, da Canção da Morte,<br />
do Sonho, do Êxtase e finalmente um tema desespera-<br />
do, o da Aniquilação (33).<br />
Na cena subsequente, a da chegada do segundo na-<br />
vio e da barricada de Kurwenal, o tema predominante<br />
é o escudeiro (31), que explode em alegria no momento<br />
da morte de Melot. Seguem-se a transposição para me-<br />
nor do Filtro do Amor e, na entrada de Marke, o da<br />
Aniquilação.<br />
O lamento final de Marke se baseia nos temas da<br />
Tristeza (25), da Aniquilação (33) e do Filtro do Amor<br />
(4), enquanto os comentários de Brangânia são subli-<br />
nhados pela Canção da Morte (23).<br />
Segue-se a Morte de Isolda, o Liebestod que re-<br />
solve dramática e musicalmente a ópera, concluin-<br />
do o final interrompido do dueto do segundo ato.<br />
O maravilhoso tecido musical combina os temas da<br />
Canção da Morte (23), do Sonho (24) e do Êxtase<br />
(18). O que faltava ao dueto se soluciona no extraor-<br />
dinário In des Welt-Atems: o clímax do Êxtase, e que<br />
vai se arrefecendo até a ópera terminar numa última<br />
transformação do tema do Desejo.<br />
31
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
DE RAMEAU À REVOLUÇÃO HARMÔNICA<br />
DE TRISTÃO E ISOLDA<br />
Os fundamentos acústicos da harmonia diatônica<br />
foram apresentados em 1722 por Jean-Philippe Rameau<br />
no seu famoso Traité de l’harmonie, um livro clássico<br />
de teoria musical. O ponto básico é a observação de<br />
que uma nota musical nada mais é do que um acor-<br />
de, composto da nota básica e seus harmônicos, isto<br />
é, das notas com frequências de vibração múltiplas da<br />
nota básica. Assim, a nota dó-2, de fato, corresponde<br />
ao acorde dó 2 – dó 3 – sol 3 – dó 4 – mi 4 – sol 4 – dó<br />
5 etc. Só que as notas superiores soam cada vez mais<br />
longínquas.<br />
Essa relação entre a nota básica e seus harmônicos<br />
ajuda a compreender a escala diatônica dó-ré-mi-fá-<br />
-sol-lá-si-dó, apesar das suas conhecidas assimetrias: a<br />
distância entre o mi e o fá e o si e o dó é aproximada-<br />
mente metade da distância entre as outras notas. Na<br />
realidade, em termos de simplicidade de frequências, o<br />
si bemol seria uma opção mais natural do que o si na-<br />
tural, já que a frequência do primeiro é 9/5, a do segun-<br />
32
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
do 15/8 do dó inicial da escala: a escolha do si natural<br />
se deve a uma conveniência harmônica, aproximar o<br />
dó por um semitom. Explica também a diferença en-<br />
tre acordes consonantes e dissonantes. Nos primeiros,<br />
há muitas coincidências de harmônicos, o que os deixa<br />
agradáveis aos ouvidos, tornando-se apenas um pouco<br />
mais complexos do que uma nota isolada. É o caso do<br />
acorde perfeito em Dó maior, dó-mi-sol. Nos segundos,<br />
os harmônicos das diferentes notas custam a se juntar,<br />
gerando uma lembrança de ruído. É o caso do acorde<br />
mi-fá, ou do famoso trítono dó-mi-sol sustenido.<br />
Um verdadeiro ruído é bem mais agressivo aos ou-<br />
vidos do que esses acordes: trata-se de uma completa<br />
confusão de harmônicos ou, mais precisamente, um<br />
movimento molecular incapaz de ser descrito por uma<br />
série de Fourier, mas esse é um pormenor que só inte-<br />
ressa ao leitor versado em matemática e física.<br />
Na verdade, dispensar as dissonâncias seria conde-<br />
nar a música à extrema monotonia. Elas serviam para<br />
criar tensões, e o que o tratado de Rameau ensina é<br />
como resolvê-las. Na linha melódica, as assimetrias da<br />
escala diatônica exigem uma definição de tonalidade,<br />
33
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
ou seja, da nota que serve de ponto de partida à escala.<br />
Com a invenção do cravo bem temperado, que dividiu<br />
a oitava em doze semitons igualmente espaçados (uma<br />
pequena concessão à desafinação, mas que viabilizou<br />
os instrumentos de teclado), há doze possibilidades à<br />
opção do compositor. Firmar a tonalidade, na estética<br />
diatônica, era garantir ao ouvinte uma âncora de esta-<br />
bilidade aural. Chama-se escala cromática a que divide<br />
a oitava em doze semitons.<br />
Já na primeira metade do século XVIII, sobretudo<br />
na segunda, os compositores observaram dois pontos.<br />
Primeiro, em peças longas, excesso de estabilidade au-<br />
ral significaria monotonia. Era preciso, assim, mudar<br />
volta e meia de tonalidade, ainda que no final se voltas-<br />
se à base. Com isso, surgiram as primeiras técnicas de<br />
modulação, já conhecidas por Rameau. A mais simples<br />
era explorar o círculo de quintas: passar de Dó maior<br />
para Sol maior, transformando a dominante (sol) em<br />
nova tônica na linha melódica, e pivoteando adequada-<br />
mente a linha harmônica. Tratava-se simplesmente de<br />
substituir o dó pelo seu harmônico mais próximo na<br />
oitava, o sol. A segunda é que, tanto na linha melódica<br />
34
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
quanto na harmonia, a disciplina diatônica era uma<br />
camisa de força da qual os compositores precisavam<br />
se libertar. Afinal, se o piano tem notas pretas, por que<br />
proibir o seu emprego numa peça em Dó maior (ou lá<br />
menor)?<br />
Rameau jamais pensou em proibir terminantemen-<br />
te esse uso das notas pretas, e o seu emprego nas com-<br />
posições em Dó maior (assim como o de certas notas<br />
brancas em outras tonalidades) foi francamente ad-<br />
mitido sob a denominação “ornamentos cromáticos”.<br />
Só que, no momento em que esses ornamentos foram<br />
aceitos, o conceito de tonalidade se transformou numa<br />
estátua de pés de barro. Com efeito, numa escala musi-<br />
cal em que as notas se espaçam por intervalos iguais, a<br />
ideia de tonalidade perde qualquer sentido.<br />
A essa altura, o que passou a ser música diatônica<br />
e o que se transformou em música cromática é uma<br />
questão de convenção, dependendo da frequência dos<br />
ornamentos cromáticos. Em Haydn, esses ornamen-<br />
tos são exceção, e é natural considerá-lo um discípu-<br />
lo fiel da estética diatônica. Já Mozart é um caso mais<br />
complicado. A maioria das suas composições segue<br />
35
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
a disciplina diatônica, mas em algumas obras, como<br />
nas sinfonias 38 e 40 e na abertura de Don Giovanni,<br />
há incursões cromáticas extremamente ousadas, talvez<br />
mais do que as de Beethoven, exceto nos últimos<br />
quartetos de cordas.<br />
Wagner certamente conhecia todas as possibilida-<br />
des do cromatismo antes de compor Tristão e Isolda,<br />
e as utilizou na medida de suas necessidades de expres-<br />
são musical no Ouro do Reno e na Valquíria. Só que o<br />
cromatismo era um meio a ser usado quando preciso,<br />
e não um fim. O prelúdio de Ouro do Reno, por exem-<br />
plo, é um modelo de disciplina diatônica, assen tado<br />
por 138 compassos num pedal de mi bemol, e cons-<br />
truído a partir da série de harmônicos desse pedal,<br />
uma descrição musical admirável da Natureza em sua<br />
forma primitiva. Já em Tristão e Isolda, a viagem dos<br />
amantes para o reino da noite pedia outra forma de<br />
expressão. Era preciso transmitir ao ouvinte a sensação<br />
de levitação, o que exigia desamarrar as âncoras tonais<br />
em certos momentos da ópera.<br />
O problema é que, enquanto só existe uma gramáti-<br />
ca diatônica, há uma infinidade possível de gramáticas<br />
36
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
para o cromatismo. Wagner não pretendeu construir<br />
uma teoria a esse respeito, ligando as relações harmô-<br />
nicas no cromatismo com os princípios de acústica, à<br />
moda de Rameau. Mas o seu gênio descobriu como<br />
transmitir o êxtase dos amantes na entrada para o rei-<br />
no da noite.<br />
Algumas regras se insinuavam de imediato. Primei-<br />
ro, certas linhas melódicas deveriam ficar fora de qual-<br />
quer escala diatônica. É o que acontece logo no início<br />
do prelúdio da ópera com os temas gêmeos Paixão-<br />
Desejo.<br />
Exemplo 1<br />
O tema Desejo, uma figura cromática ascenden-<br />
te por semitons, funciona como espécie de ponto de<br />
interrogação no início do prelúdio, e percorre toda<br />
a ópera, até resolver-se no acorde final da morte de<br />
Isolda. De fato, com linhas melódicas diatônicas, as<br />
possibilidades de enriquecimento harmônico se re-<br />
sumiriam a mudanças mais ou menos abruptas de<br />
tonalidade, a técnica usada por Verdi em Otello. Só<br />
que a sensação aural seria a de deslocamentos bruscos<br />
37
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
das âncoras tonais, exprimindo tensão ou angústia. A<br />
sensação que Wagner queria transmitir, a de êxtase,<br />
deveria libertar essas âncoras, e não deslocá-las de um<br />
ponto para outro.<br />
Uma segunda regra, mas a ser administrada com<br />
muito juízo estético, era a dispensabilidade das mo-<br />
dulações. Estas, afinal, haviam sido inventadas pela<br />
gramática diatônica para preparar os ouvidos para as<br />
mudanças de tonalidade. Na escala de doze notas não<br />
havia tonalidade, e, portanto, qualquer razão para mo-<br />
dular. O exemplo clássico na ópera é o tema da Morte,<br />
cantado por Isolda no início da segunda cena do pri-<br />
meiro ato no verso Todgeweihtes Haupt.<br />
Exemplo 2<br />
A genialidade de Wagner foi perceber que, para<br />
criar a sensação de levitação, essas mudanças de tonali-<br />
dade sem aviso prévio deviam se basear em intervalos<br />
curtos, um semitom, no caso na palavra Haupt. Se a<br />
mudança fosse de uma quinta ou de uma sexta, a sen-<br />
sação seria a de um golpe, e não de liberação gravita-<br />
cional. De fato, é através das progressões por semitons<br />
38
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
que Wagner concretiza a revolução harmônica de Tris-<br />
tão e Isolda, cujo ponto culminante é o início da seção<br />
da noite no dueto do segundo ato O sink hernieder,<br />
Nacht der Liebe.<br />
Um problema mais complexo era como tratar das<br />
dissonâncias, fantasticamente agradáveis aos ouvidos<br />
em Tristão e Isolda. Mais uma vez funcionou o gênio<br />
de Wagner. Primeiro, as dissonâncias não necessaria-<br />
mente ferem os ouvidos, mesmo na estética diatônica.<br />
Elas simplesmente pedem uma resolução posterior, e<br />
a arte do compositor consistiu em postergar a solução<br />
pelo emprego da melodia contínua. O entrelaçamento<br />
de leitmotivs, diga-se de passagem, cria uma estrutura<br />
polifônica em que as dissonâncias não ferem os ou-<br />
vidos. É claro, por outro lado, que as dissonâncias se<br />
tornam muito mais presumíveis numa gramática cro-<br />
mática do que numa diatônica. E soam conforme as<br />
combinações de timbres dos instrumentos.<br />
Em apenas um momento da ópera os ouvintes se<br />
sentem agredidos: no final abrupto do dueto do segun-<br />
do ato, quando a esperada resolução musical é inter-<br />
rompida pelo flagrante preparado por Melot para os<br />
39
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
amantes, e quando a música deixa seus voos cromáticos<br />
para voltar às bases diatônicas do mundo do dia. Só<br />
que essa frustração faz parte do plano genial de Wag-<br />
ner para o final da ópera: resolver musicalmente o due-<br />
to do segundo ato no In des Welt-Atems da morte de<br />
Isolda, um dos mais extraordinários efeitos dramáticos<br />
em toda a história do teatro lírico.<br />
É muito importante sublinhar que a revolução<br />
harmônica de Tristão e Isolda não é a consequência<br />
de uma teoria, mas da busca do meio de expressão<br />
adequado para a perfeita fusão da palavra à música,<br />
dentro do conceito Gesamtkunstwerk. Tanto que,<br />
nas obras posteriores, o mestre usou o cromatismo<br />
nas medidas das suas necessidades de expressão mu-<br />
sical. Em Mestres Cantores, há evidentes incursões<br />
cromáticas, mas as âncoras diatônicas quase sempre<br />
estão presentes. A novidade, exigida pela comédia, são<br />
fantásticas inovações não em matéria de harmonia,<br />
mas de contraponto. Em Parsifal, Wagner usa duas<br />
linguagens, uma basicamente diatônica no primeiro e<br />
no terceiro ato, outra altamente cromática, no reino<br />
mágico de Klingsor. O contraste é o mesmo de Tristão,<br />
40
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
diatônico no mundo do dia, cromático no da noite.<br />
A revolução harmônica de Tristão e Isolda desafiou<br />
os músicos pós-wagnerianos a construir uma gramá-<br />
tica do cromatismo semelhante à que Rameau havia<br />
consolidado para a escala diatônica. Debussy encon-<br />
trou seus próprios caminhos, inclusive com a escala de<br />
seis notas, produzindo muita música de extraordinária<br />
qualidade, mas com a liberdade de expressão tolhida<br />
pela gramática que inventou. Schönberg resolveu in-<br />
ventar a música serial como escapatória ao caos da to-<br />
nalidade: a ordem seria determinada por uma série, ou<br />
seja, por uma permutação dos doze semitons da oitava<br />
musical. Tratava-se de um exercício de matemática, e<br />
que se transformou na base de toda a música dodecafô-<br />
nica. O que faltou foi correlacionar esse exercício com<br />
os princípios de acústica conhecidos desde Pitágoras.<br />
O método foi inverso ao adotado por Wagner. Este<br />
buscou a melhor expressão musical para os seus dra-<br />
mas líricos independentemente das regras gramaticais<br />
aceitas pela ortodoxia. Os serialistas da Segunda Esco-<br />
la de Viena (Schönberg, Webern e Berg) trataram de<br />
matemática elementar, subordinando a sua capacidade<br />
41
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
de expressão a essa teoria. Não surpreende, assim, que<br />
a música dodecafônica nada lembre o cromatismo de<br />
Tristão e Isolda ou do segundo ato de Parsifal.<br />
OS PROBLEMAS DE UMA ENCENAÇÃO<br />
DE TRISTÃO E ISOLDA<br />
Tristão e Isolda, pela maravilha musical que é,<br />
firmou-se no repertório de todas as grandes casas de<br />
espetáculos operísticos. O problema é que se trata de<br />
uma ópera que impõe demandas extraordinárias para<br />
uma apresentação de primeira categoria.<br />
Primeiro, é preciso que o espetáculo seja coman-<br />
dado musicalmente por um grande regente e uma<br />
excelente orquestra. Isso, no entanto, não chega a ser<br />
o maior obstáculo para uma grande performance da<br />
ópera, pois a partitura de Tristão já está suficientemen-<br />
te dissecada para que um grande número de orquestras<br />
e maestros se encontrem preparados para enfrentar as<br />
suas dificuldades.<br />
O maior desafio é encontrar um tenor heroico e<br />
um soprano dramático para assumirem os dois prin-<br />
42
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
cipais papéis da ópera. Wagner parecia desconhecer os<br />
limites de resistência da voz humana, e exige quase o<br />
impossível do tenor no segundo ato, e, sobretudo, no<br />
terceiro, e do soprano nos dois primeiros atos. Fora<br />
a tensão emocional do Liebestod no terceiro. Duplas<br />
extraordinárias, como Kirsten Flagstad e Lauritz Mel-<br />
chior, na década de 1930 e no início da de 1940, Astrid<br />
Varnay e Set Svanholm pouco antes de 1950, Birgit<br />
Nilsson e Wolfgang Windgassen na década de 1960,<br />
Helga Dernesch e Jon Vickers nos festivais de Salzbur-<br />
go da Páscoa em 1972 e 1973, contam-se a dedo.<br />
Isto posto, o espectador geralmente é obrigado a se<br />
contentar com um espetáculo de bom nível, mas algu-<br />
mas deficiências. Como os tenores heroicos são espé-<br />
cimes mais raros que os sopranos dramáticos, o mais<br />
difícil é encontrar um intérprete que preencha todos<br />
os requisitos do Tristão. Isso acontece até nas grava-<br />
ções completas da ópera, que podem ser espaçadas por<br />
vários dias nos estúdios. Assim, na gravação histórica<br />
de 1953 com Flagstad no papel de Isolda sob a batuta<br />
de Wilhelm Furtwängler, Ludwig Suthaus é um Tristão<br />
de voz heroica e dramaticamente convincente, mas de<br />
43
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
timbre desagradavelmente áspero. Em 1960, a Decca<br />
confiou sua gravação completa de Tristão à regência<br />
de Georg Solti (muito pouco inspirada, diga-se de pas-<br />
sagem), escolhendo uma Isolda extraordinária, Birgit<br />
Nilsson. Fritz Uhl é um Tristão de timbre vocal agra-<br />
dável, mas que é virtualmente massacrado por Nilsson.<br />
Na gravação da década de 1980 regida por Carlos Klei-<br />
ber, René Kollo é um Tristão de belo timbre vocal, mas<br />
de volume bem aquém das exigências do papel. Sua<br />
única vantagem é contracenar com uma Isolda ainda<br />
mais frágil, Margaret Price. Peter Hoffmann, na edição<br />
regida por Bernstein, sai-se um pouco melhor, mas está<br />
a léguas de distância de Windgassen e Vickers, o pri-<br />
meiro na gravação ao vivo em 1966 de Bayreuth com<br />
Karl Böhm e Birgit Nilsson, o segundo na de 1972 com<br />
Herbert von Karajan e Helga Dernesch.<br />
Se as dificuldades de se encontrar um excelente<br />
Tristão se estendem aos estúdios de gravação, imagi-<br />
ne-se num espetáculo ao vivo. As lendas remontam<br />
à estreia da ópera em Munique: Ludwig Schnorr von<br />
Carolsfeld, o primeiro Tristão, morreu três semanas<br />
após a estreia, em 1865, ao que dizem as más línguas<br />
44
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
porque o papel exauriu seus músculos cardíacos. Isso<br />
para não falar num episódio grotesco ocorrido no Me-<br />
tropolitan de Nova York em 1960: não havendo ne-<br />
nhum tenor wagneriano que aguentasse contracenar a<br />
ópera com o canhão vocal de Birgit Nilsson, o diretor<br />
Rudolf Bing saiu-se com uma solução exótica: três te-<br />
nores para enfrentar o Tristão, um para cada ato.<br />
As demandas vocais para os três outros papéis im-<br />
portantes da ópera são bem mais limitadas. O papel de<br />
Brangânia está longe de ser extenuante, mas o meio-<br />
soprano precisa ser capaz de sustentar os diálogos com<br />
Isolda no primeiro ato e na primeira cena do segun-<br />
do, o que exige boa potência vocal. Kurwenal precisa<br />
transmitir a lealdade e a rudeza do escudeiro de Tris-<br />
tão, e Marke deve expressar nobreza de sentimentos e<br />
cansaço da vida.<br />
Balancear as cincos vozes, as de Tristão e Isolda,<br />
mais as dos três principais coprimários, é um problema<br />
difícil até mesmo nos estúdios de gravação. Tome-se<br />
a gravação histórica regida por Furtwängler, com Flag-<br />
stad e Suthaus nos papéis principais. O então jovem<br />
Dietrich Fischer-Dieskau interpreta Kurwenal com<br />
45
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
extraordinária sensibilidade e beleza vocal. Só que as<br />
suas inflexões são as de um cavaleiro e não as de um<br />
rude escudeiro. Mais ainda, pela juventude vocal, pare-<br />
ce filho de Tristão e Isolda, já que Flagstad e Suthaus se<br />
encontravam no final de suas carreiras. Na estupenda<br />
gravação ao vivo de Bayreuth em 1966, quem desequi-<br />
libra o balanço é o baixo finlandês Martti Talvela, na<br />
época com 32 anos de idade. O timbre é extraordiná-<br />
rio, a linha de canto impecável, mas a potência vocal é<br />
de tal magnitude que lembra o Marke da lenda medie-<br />
val e não da versão wagneriana. Em conjunto, a grava-<br />
ção mais bem balanceada parece ser a de Karajan, com<br />
Helga Dernesch (Isolda), Jon Vickers (Tristão), Christa<br />
Ludwig (Brangânia), Walter Berry (Kurwenal) e Karl<br />
Ridderbusch (Marke).<br />
Uma solução prática para aliviar as dificuldades<br />
dos cantores é introduzir cortes na partitura em espe-<br />
táculos ao vivo. Para os puristas, trata-se de uma here-<br />
sia, mas o próprio Wagner reconheceu que numa ópera<br />
com quatro horas de duração, fora os dois intervalos,<br />
alguns cortes seriam admissíveis. O problema é o que<br />
cortar, sem mutilar a continuidade musical e dramáti-<br />
46
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
ca da obra. No primeiro ato não há o que cortar. No<br />
segundo é possível omitir quase dez minutos na pri-<br />
meira parte do dueto, a seção do Dia, o que se faz fre-<br />
quentemente (inclusive nas apresentações de Karajan<br />
em 1972 e em 1973 no Festival da Páscoa em Salzburgo):<br />
perde-se um pedaço de boa música e sacrifica-se parte<br />
da arquitetura do dueto, mas poupam-se os dois pro-<br />
tagonistas que têm inúmeras dificuldades a enfrentar<br />
mais adiante. Partes das lamentações de Marke tam-<br />
bém podem ser cortadas desde que se mantenham<br />
intactos o início de Mir dies? e de Dies wundervolle<br />
Weib, mas aí a pergunta é: para que o corte? Afinal,<br />
enquanto Marke canta, Tristão e Isolda descansam. No<br />
terceiro ato, em que Tristão tem nada menos do que<br />
cinco monólogos a enfrentar, além de dois duetos com<br />
Kurwenal, dois cortes podem ser feitos sem prejuízos<br />
nem para a continuidade dramática nem para a musi-<br />
cal. O primeiro suprime a parte central do primeiro<br />
monólogo, de Isolde noch im Reich der Sonne! a Ach,<br />
Isolde, süsse Holde. O segundo elimina a parte inicial<br />
do terceiro monólogo, transferindo o seu início para<br />
o terceiro Die alte Weise. Poupam-se, com isso, cerca<br />
47
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
de sete minutos de solo do tenor, o que não é pouco.<br />
Só que, para o tenor, o segundo corte é uma armadi-<br />
lha: exprime alguns minutos de canto a meia voz, para<br />
fazê-lo emendar o dificílimo segundo monólogo com<br />
a duríssima parte do final do terceiro.<br />
Melhor do que os cortes seja talvez prolongar os<br />
intervalos de modo a dar uma pausa para os cantores.<br />
Essa é uma solução de Bayreuth, em que cada intervalo<br />
dura uma hora. Só que essa fórmula estende o espetá-<br />
culo por seis horas, que em Bayreuth começa às qua-<br />
tro da tarde e acaba às dez da noite. Num festival, no<br />
qual o público se dedica em tempo integral a assistir<br />
a óperas wagnerianas, a solução faz sentido. Mas em<br />
cidades onde os espectadores têm que cumprir outras<br />
obrigações, é preciso adotar alguma outra solução que<br />
não lhes tome tanto tempo.<br />
Equacionados os problemas musicais, vem o da en-<br />
cenação propriamente dita. Como apresentar as perso-<br />
nagens, vesti-las e determinar os seus movimentos em<br />
cena? Uma solução é seguir à risca as instruções extre-<br />
mamente pormenorizadas da partitura wagneriana no<br />
que respeita os cenários e a movimentação dos atores.<br />
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TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
Essa era a maneira tradicional de se apresentar Tristão<br />
e Isolda até a década de 1950. Até que Wieland Wagner,<br />
neto do compositor, abriu espaço para a imaginação<br />
dos diretores de cena nos Festivais de Bayreuth por ele<br />
dirigidos.<br />
Implicitamente, Wieland Wagner admitiu que seu<br />
avô reconheceria que as suas indicações cênicas não<br />
eram condizentes com o gosto artístico do século XX.<br />
Tristão e Isolda é um drama de estados de espírito.<br />
Para que lotar o palco com figurantes e coristas no fi-<br />
nal do primeiro ato, para que Tristão e Isolda precisam<br />
ser apanhados em flagrante no segundo ato não apenas<br />
por Marke e Melot e por um séquito de cortesãs? Mais<br />
do que tudo, como conciliar o final musical sublime da<br />
ópera com quatro cadáveres no palco, Melot, Tristão,<br />
Kurwenal e Isolda, sendo abençoados pelo rei Marke?<br />
Wieland Wagner reconheceu um aspecto fundamental<br />
trazido pelo progresso tecnológico: as técnicas moder-<br />
nas de iluminação, que eram desconhecidas no século<br />
passado, fornecem uma linguagem complementar à<br />
música e que não pode ser ignorada no presente sécu-<br />
lo. Assim, numa produção moderna, à direção musical<br />
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TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
e à direção de cena é preciso acoplar uma terceira: a<br />
direção de iluminação.<br />
Como Wagner jamais cogitou de uma partitura<br />
de iluminação, o campo fica aberto aos produtores da<br />
ópera. O que se exige apenas é consistência com a es-<br />
trutura psicológica do drama wagneriano. Só que isso<br />
pode ser conseguido por uma infinidade de soluções<br />
diferentes.<br />
A principal vantagem dos jogos de iluminação<br />
é que eles economizam a movimentação dos atores.<br />
Não é o caso de postá-los em posição de sentido, mas<br />
também não é preciso que eles se desloquem incessan-<br />
temente de um lado para outro para animar a cena.<br />
Num drama de estados de espírito, como o de Tristão<br />
e Isolda, os atores devem gesticular o mínimo possível.<br />
Em particular, seria ridículo se o tenor ou o soprano<br />
levantassem os braços para emitir um agudo, como<br />
em algumas representações bisonhas de óperas italia-<br />
nas. Por certo, alguns movimentos ríspidos são neces-<br />
sários: quando Tristão sorve o suposto filtro da mor-<br />
te é preciso que Isolda lhe arranque a taça das mãos,<br />
pois a intenção do Cavaleiro é tomá-lo sozinho. Do<br />
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TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
mesmo modo, no final do segundo ato é indispensável<br />
que Tristão avance para Melot com a guarda aberta,<br />
deixando cair a espada para ser ferido mortalmente.<br />
Não é preciso que o rei se precipite sobre Melot para<br />
impedir que ele trucide Tristão. Para cumprir as ins-<br />
truções de Wagner, basta um discreto gesto de mão, ou<br />
mesmo um olhar. Ou, segundo alguns produtores, até<br />
essas instruções podem ser esquecidas. Afinal, Melot,<br />
que também é um cavaleiro, certamente percebe que<br />
Tristão não se bateu em duelo: tentou suicidar-se.<br />
Um momento crítico da ópera é a transformação<br />
dos dois amantes logo após tomarem o suposto filtro<br />
da morte. Wagner fornece uma série de instruções por-<br />
menorizadas sobre como os dois atores devem repre-<br />
sentar, mas é muito difícil torná-las dramaticamente<br />
convincentes. Os jogos de iluminação fornecem a me-<br />
lhor resposta ao problema, envolvendo os personagens<br />
numa neblina que expresse a sua confusão de senti-<br />
mentos, até que eles se abracem.<br />
A seção da Noite do dueto do segundo ato tam-<br />
bém abre inúmeras possibilidades para a partitura de<br />
iluminação. Uma das soluções mais imaginativas foi<br />
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TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
encontrada por August Everding na sua produção da<br />
ópera para o Metropolitan de Nova York: um elevador<br />
invisível desloca os amantes como se eles estivessem<br />
em levitação, e os ilumina com combinações de luzes<br />
perfeitamente afins com o cromatismo da música.<br />
A morte de Isolda é o grande desafio para os pro-<br />
dutores da ópera, já que a solução da partitura wagne-<br />
riana, o Liebestod em meio a Brangânia, o rei Marke,<br />
e os cadáveres de Tristão, Kurwenal e Melot, é visi-<br />
velmente insatisfatória. A solução natural é apresentar<br />
a morte de Isolda como uma transfiguração, concen-<br />
trando todos os focos de luz na cantora, e deixando as<br />
demais personagens na escuridão, se é que elas ainda<br />
estão no palco.<br />
Até que ponto as indicações cênicas de Wagner po-<br />
dem ser desrespeitadas é uma boa questão. A resposta<br />
parece ser positiva à medida que as inovações sejam<br />
condizentes com a estrutura psicológica e musical do<br />
drama. Com efeito, é quase certo que, se Wagner co-<br />
nhecesse a tecnologia do século XX, seguramente teria<br />
composto uma partitura de iluminação para Tristão e<br />
Isolda.<br />
52
TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
A questão é até que ponto avançar, e aí o problema<br />
fica ao julgamento estético de cada espectador. Uma<br />
produção controversa, mas de extraordinário impacto<br />
dramático, é a de Jean-Pierre Ponnelle para o Festival<br />
de Bayreuth no início da década de 1980. O ponto de<br />
partida de produção é que, do ponto de vista dramá-<br />
tico, a ópera se encerra no final do segundo ato, com<br />
o suicídio de Tristão. O terceiro ato é musicalmente<br />
extraordinário, resolvendo o dueto do segundo no In<br />
des Welt-Atems, mas dramaticamente supérfluo e in-<br />
convincente no final.<br />
Ponnelle ousa mudar o enredo do final da ópera.<br />
Kurwenal, quando percebe que Isolda não irá chegar<br />
antes da morte de Tristão, faz sinais para que o pastor<br />
toque a melodia alegre que anuncia a chegada do na-<br />
vio. E a chegada de Isolda, do segundo navio, a morte<br />
de Melot e Kurwenal, e finalmente o Liebestod, são<br />
apenas o delírio final de Tristão. No acorde final, todos<br />
os demais personagens somem do palco, e Tristão cai<br />
morto nos braços de Kurwenal e do pastor.<br />
Até que ponto Wagner concordaria com essa trans-<br />
formação do enredo da ópera? A resposta é impossí-<br />
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TRISTAO<br />
E ISOLDA<br />
vel de se obter. Dramaticamente, o final de Ponnelle<br />
é muito mais realista do que o de Wagner, e não é in-<br />
compatível com a estrutura musical do Liebestod, já<br />
que Tristão morre em êxtase. Resta saber se Wagner<br />
queria tanto realismo. Esse é um mistério que o com-<br />
positor levou para o túmulo.<br />
*<br />
54
Original de Mario Henrique Simonsen sobre “Tristão e Isolda”<br />
Mario Henrique Simonsen’s original on “Tristan und Isolde”
ISBN 978-85-98831-18-3<br />
9 788598 831183