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Ética e estética em Do Natal, Dez Histórias - João de Mancelos

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<strong>Ética</strong> e Estética<br />

<strong>em</strong> <strong>Do</strong> <strong>Natal</strong>, <strong>Dez</strong> <strong>Histórias</strong> Impopulares, <strong>de</strong> Vasco Branco 1<br />

<strong>João</strong> <strong>de</strong> <strong>Mancelos</strong><br />

(Universida<strong>de</strong> Católica Portuguesa, Viseu)<br />

Palavras-chaves: Vasco Branco, literatura regional, contos<br />

Keywords: Vasco Branco, regional literature, short stories<br />

Não <strong>de</strong>sceram pela chaminé, não chegaram <strong>em</strong> <strong>Dez</strong><strong>em</strong>bro, n<strong>em</strong> vinham vestidos <strong>de</strong><br />

vermelho. Porém, <strong>de</strong>ixaram no sapatinho a solidarieda<strong>de</strong> entre criadores — textos <strong>de</strong> Vasco<br />

Branco, <strong>de</strong>senhos do mestre Resen<strong>de</strong> — para com as crianças vítimas da peste do século: a<br />

SIDA. Uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> contos ilustrados foi o pretexto para este antecipado abraço natalício,<br />

<strong>em</strong> Junho — a provar que a cooperação não espera pela neve quando a urgência suplanta a<br />

pontualida<strong>de</strong>.<br />

Des<strong>de</strong> criança, s<strong>em</strong>pre achei profundamente injusto que os Antípodas, os tais<br />

homenzinhos que mercê da força gravitacional e da maçã <strong>de</strong> Newton, caminham <strong>de</strong> cabeça<br />

para baixo, s<strong>em</strong> caír<strong>em</strong> num qualquer vazio, não tivess<strong>em</strong> neve, trenós ou meias <strong>de</strong> lã on<strong>de</strong><br />

armazenar os <strong>em</strong>brulhos do mistério. Porém, pouco há <strong>de</strong> azevinho nestas histórias que<br />

Branco nos oferece ao pensamento, ou não se apelidass<strong>em</strong> elas <strong>de</strong> impopulares.<br />

O conto mo<strong>de</strong>rno, <strong>de</strong> Chekhov a Maupassant, <strong>de</strong> Katherine Mansfield a Joyce, <strong>de</strong><br />

Virginia Woolf a Luís Borges é um fenómeno internacional, com raízes na oralida<strong>de</strong>. Ainda<br />

hoje, <strong>em</strong> zonas do Portugal profundo, além-Marão ou interiores, no oeste da Irlanda Gaélica,<br />

na Índia ou na África tribal, as narrativas <strong>de</strong> pequena extensão são tão usuais quanto as<br />

urbanas anedotas (termo que v<strong>em</strong> do grego anecdota — coisa não publicada). Nos nossos<br />

dias, e apesar <strong>de</strong> alguma tendência regressiva, a história já não lida com o invulgar ou o<br />

inverosímil. O método <strong>de</strong> Scheheraza<strong>de</strong>, que nas Mil e Uma Noites entretinha o sultão com<br />

contos do inusitado, ce<strong>de</strong>u lugar a uma literatura <strong>em</strong> que se preza mais o inci<strong>de</strong>nte, a sageza<br />

do narrador e a capacida<strong>de</strong> interpretativa <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> lê.<br />

Também os contos <strong>de</strong> Vasco Branco se centram <strong>em</strong> comuns momentos <strong>de</strong> caráter<br />

episódico da existência mundana, inci<strong>de</strong>ntes possíveis, reduzidos, ocasionalmente, ao<br />

fragmento. As raízes <strong>de</strong>sta escolha po<strong>de</strong>rão estar no olhar cin<strong>em</strong>ático <strong>de</strong> Vasco Branco, que<br />

1 <strong>Mancelos</strong>, <strong>João</strong> <strong>de</strong>. “<strong>Ética</strong> e <strong>estética</strong> <strong>em</strong> <strong>Do</strong> <strong>Natal</strong>, <strong>Dez</strong> <strong>Histórias</strong> Impopulares, <strong>de</strong> Vasco Branco”. Vasco<br />

Branco: Vida Literária. Org. Rosa Maria Oliveira. Aveiro: Câmara Municipal <strong>de</strong> Aveiro, 1999. 61-64. ISBN:<br />

972-9137-45-5


imagina e <strong>de</strong>screve ações como cenas teatrais ou simples takes. Que po<strong>de</strong>rá haver <strong>de</strong> mais<br />

oral que um diálogo entre vagabundos apátridas, os s<strong>em</strong>-abrigo, com que se abre a<br />

colectânea? Ou o roteiro dramático e efémero <strong>de</strong> O Trapezista, ao longo <strong>de</strong> um dia?<br />

A int<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> possível marca também esta produção. Recupero, <strong>de</strong> À Procura <strong>de</strong><br />

um Hom<strong>em</strong>, estas linhas: “Que ano? Interessa? Talvez se vivesse o ano trezentos e cinquenta<br />

antes da nossa era. (...) Quantos anos, os do seu arrasto penoso e inglório? Per<strong>de</strong>ra-lhe a<br />

conta” (p. 51). A falta <strong>de</strong> referência ao lugar, está presente no conto <strong>de</strong> partida, ou <strong>em</strong> A<br />

Espera. E <strong>de</strong> on<strong>de</strong> serão os vagabundos cosmopolitas <strong>de</strong> Pai <strong>Natal</strong>, g<strong>em</strong>inados na sua miséria<br />

com as personagens <strong>de</strong> O Milagre? Po<strong>de</strong>rá ser característico <strong>de</strong> algum país o duelo <strong>de</strong> silêncio<br />

travado entre os cônjuges <strong>de</strong> Perdido?<br />

Nesta aceção, Vasco Branco d<strong>em</strong>anda-se um distanciamento das coor<strong>de</strong>nadas<br />

cronológicas e físicas. À maneira <strong>de</strong> uma mão-cheia dos Contos Ex<strong>em</strong>plares, <strong>de</strong> Sophia, ou <strong>de</strong><br />

certas histórias da fase mais existencialista <strong>de</strong> Urbano Tavares Rodrigues. Esta d<strong>em</strong>arcação, a<br />

roçar o brechtiano, po<strong>de</strong> sugerir uma visão global do humano, ligado por mais laços que<br />

muros. O que <strong>de</strong> comum t<strong>em</strong>os, o que ultrapassa a cor da pele, o estatuto ou a i<strong>de</strong>ologia, é o<br />

sermos humanos, constituídos <strong>de</strong> idêntica matéria cósmica, probl<strong>em</strong>as e afinida<strong>de</strong>s. Uma<br />

perspetiva fraternal <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras aventuras literárias, Branco não prescin<strong>de</strong>. A<br />

i<strong>de</strong>ntificação do espaço só nos é consentida quando se trata <strong>de</strong> contrastar o primitivismo da<br />

existência <strong>de</strong> certas pessoas com os avanços da era cibernética:<br />

Ossos que atravessam a pele e são outros tantos <strong>de</strong>dos apontando a<br />

nossa indiferença. E isto <strong>em</strong> toda a parte e neste nosso mundo <strong>de</strong><br />

hoje. Mundo <strong>de</strong> foguetões, <strong>de</strong> submarinos atómicos, <strong>de</strong> mísseis <strong>de</strong><br />

toda a ord<strong>em</strong>, das viagens interplanetárias, dos supermercados<br />

mamute. (p. 16)<br />

Tal estratégia reveste os episódios <strong>de</strong> uma poesia intrínseca aos enredos das histórias<br />

tradicionais: um príncipe qualquer, uma donzela s<strong>em</strong> nome, um cavaleiro pária, etc. A esta<br />

galeria opta o autor por juntar os vagabundos incaraterísticos, o casal comum, o menino<br />

vulgar, o artista diletante, etc. Trata-se <strong>de</strong> uma escrita que intervém no mundo atual, <strong>de</strong> um<br />

compromisso com o ser humano e as suas lutas.<br />

A diferença acontece quando o narrador, ao invés <strong>de</strong> nos oferecer relatos<br />

plurissignificativos, páginas abertas às interpretações do leitor, opta por apresentar<br />

consi<strong>de</strong>rações morais ou filosóficas <strong>de</strong> sua lavra. Um bom ex<strong>em</strong>plo encontra-se no conto<br />

Queria Que Deixasses no Sapatinho:<br />

(...) eu, Pai <strong>Natal</strong>, queria que <strong>de</strong>ixasses no meu sapatinho (estamos<br />

tão carecidos disso...), no calçado <strong>de</strong> todos os portugueses que ainda<br />

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fing<strong>em</strong> acreditar <strong>em</strong> ti, não mais heróis do mar, não mais brinquedos<br />

eletrónicos, não mais livros <strong>de</strong> poetas <strong>de</strong> esperança, mas apenas e<br />

só, um simples (e n<strong>em</strong> que seja pequeno) atado <strong>de</strong> autênticos heróis<br />

da terra. (p. 22)<br />

É feito o apanágio da mencionada gente comum, que sobrevive na partilha do pão<br />

amargo, por paradoxo com o materialismo; as palavras <strong>de</strong> intervenção, por contraste com a<br />

escrita <strong>de</strong> mero <strong>de</strong>leite; a heroicida<strong>de</strong> das vítimas; a revisão do herói picaresco, numa mesa<br />

redonda com o mito português, um monólogo com Camões, <strong>Do</strong>m Sebastião e Pessoa, a<br />

l<strong>em</strong>brar que se cumpriu o mar, mas falta justiçar a terra. Mais do que moralizar, Branco<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a literatura <strong>de</strong>ve ser protagonista na <strong>de</strong>núncia ou, como salienta a epígrafe da<br />

obra “o silêncio é uma forma <strong>de</strong> d<strong>em</strong>issão” (Roland Barthes).<br />

A componente didática e o aflorar <strong>de</strong> um público mais jov<strong>em</strong> que urge educar levaram,<br />

talvez, Branco a ser mais explícito do que os teóricos das Letras apreciariam. Aqui, a um<br />

t<strong>em</strong>po, se enquadra e intromete na tradição literária lusitana mais recente. Sophia Andresen<br />

propagava: “Que outra coisa po<strong>de</strong>rá crescer no t<strong>em</strong>po senão a justiça?”; Ge<strong>de</strong>ão <strong>de</strong>fendia:<br />

“Abaixo o mistério da poesia”; Jorge <strong>de</strong> Sena afirmava: “Tudo é possível, / ainda quando<br />

lut<strong>em</strong>os, como <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os lutar, / por quanto nos pareça a liberda<strong>de</strong> e a justiça, / ou mais que<br />

qualquer uma <strong>de</strong>las uma fiel / <strong>de</strong>dicação à honra <strong>de</strong> estar vivo”. Palavras que lhe po<strong>de</strong>riam ser<br />

<strong>de</strong>dicadas. Vasco Branco soube combinar ética e <strong>estética</strong>, <strong>em</strong> <strong>Do</strong> <strong>Natal</strong>, <strong>Dez</strong> <strong>Histórias</strong><br />

Impopulares, uma <strong>de</strong>fesa sincera e relevante dos mais <strong>de</strong>sfavorecidos.<br />

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