A herança maldita de FHC – Sérgio Miranda - Cultura Brasileira
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A <strong>herança</strong> <strong>maldita</strong> <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> <strong>–</strong> <strong>Sérgio</strong> <strong>Miranda</strong><br />
O FMI foi co-gestor da economia do país no último mandato <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, que <strong>de</strong>ixou o país quebrado,<br />
a inflação alta e o futuro comprometido pela ruína da infra-estrutura, como estradas e energia<br />
elétrica.<br />
Não é o julgamento <strong>de</strong> um homem; é o <strong>de</strong> um caminho. O neoliberalismo, o<br />
pensamento político que serviu <strong>de</strong> inspiração a Fernando Henrique, é uma corrente<br />
po<strong>de</strong>rosa. Não surgiu no Brasil; não empolgou apenas <strong>FHC</strong> e os políticos e intelectuais<br />
que o acompanharam no governo. E nem será <strong>de</strong>rrotado apenas porque ele sai do<br />
Planalto. Po<strong>de</strong>-se dizer que o neoliberalismo tirou do fundo do baú, num contexto<br />
histórico preciso, a partir do final da segunda meta<strong>de</strong> dos anos 70, idéias velhas que<br />
pareciam ter sido <strong>de</strong>rrotadas pelos avanços socialistas. Essas idéias foram se<br />
aprimorando com o governo neofascista <strong>de</strong> Pinochet no Chile, com seus experimentos<br />
com os monetaristas <strong>de</strong> Milton Friedman, da “Escola <strong>de</strong> Chicago”; com o governo<br />
antitrabalhista e anti-sindical <strong>de</strong> Margareth Thatcher e seu plano <strong>de</strong> privatizações, na<br />
Inglaterra; e, finalmente, ganharam o mundo com os dois governos <strong>de</strong> Ronald Reagan<br />
(1981-1988) <strong>–</strong> o operador da recuperação política do império americano que, em<br />
meados dos anos 70, fora fragorosamente <strong>de</strong>rrotado pelos guerrilheiros no Vietnã.<br />
Fernando Henrique Cardoso é um neoliberal tardio; não foi o primeiro político<br />
brasileiro famoso a a<strong>de</strong>rir à onda neoliberal que varreu o mundo já <strong>de</strong> modo<br />
avassalador a partir da queda do Muro <strong>de</strong> Berlim, em 1989. No segundo turno da<br />
eleição presi<strong>de</strong>ncial daquele ano, <strong>FHC</strong> estava do lado oposto: juntou-se à campanha<br />
da esquerda para eleger Lula, contra Fernando Collor <strong>de</strong> Mello.<br />
Collor, sim, merece o título <strong>de</strong> o verda<strong>de</strong>iro precursor do neoliberalismo político no<br />
País. Foi ele que tornou popular a campanha pela redução do tamanho do Estado, com<br />
sua guerra <strong>de</strong> mídia contra os marajás do serviço público, já antes <strong>de</strong> ser eleito. Foi<br />
Collor que criou o Plano Nacional <strong>de</strong> Desestatização, nos seus primeiros meses <strong>de</strong><br />
governo. E foi ele também que, no começo <strong>de</strong> 1991, com a ajuda <strong>de</strong> Jorge Bornhausen<br />
e Antônio Carlos Magalhães, comandantes do PFL, reorganizou o comando do setor<br />
financeiro do Brasil, colocando três financistas essenciais nos postos-chave: Marcílio<br />
Marques Moreira como ministro da Economia; Francisco Gros, como presi<strong>de</strong>nte do
Banco Central; e Armínio Fraga, como diretor da Área Externa do BC. Marcílio e Gros<br />
já eram então homens ligados à gran<strong>de</strong> finança global. De lá vieram e para lá<br />
retornaram. Marcílio <strong>de</strong>ixou o governo Collor e foi para o banco <strong>de</strong> investimentos<br />
americano Merril Lynch. Gros <strong>de</strong>ixou o BC brasileiro e foi para o Morgan Stanley, outra<br />
casa financeira <strong>de</strong> Wall Street. E Armínio seguiu para Nova Iorque para ser o diretor<br />
para os países emergentes dos hedge-funds <strong>de</strong> George Soros, os agressivos fundos<br />
<strong>de</strong> investimento do mais conhecido megaespeculador global.<br />
É essa trinca que dá forma final aos mecanismos para integrar o Brasil na gran<strong>de</strong><br />
finança global. “Os investimentos são como o vento: não entram em casa on<strong>de</strong> não<br />
exista uma brecha para a saída”, dizia Marcílio. Para isso, o Ministério da Fazenda e o<br />
BC brasileiro mo<strong>de</strong>rnizaram o regulamento para as chamadas CC-5, contas <strong>de</strong> não<br />
resi<strong>de</strong>ntes, pessoas físicas e empresas instaladas no Brasil mas com controle do<br />
exterior, que passaram a ter direito <strong>de</strong> enviar dinheiro para fora sem aviso prévio às<br />
autorida<strong>de</strong>s monetárias. Para isso também foram criados os seis anexos do Banco<br />
Central que iriam facilitar a vinda para o Brasil dos capitais <strong>de</strong> estrangeiros e <strong>de</strong><br />
brasileiros legal ou ilegalmente instalados em paraísos fiscais ou escondidos por traz<br />
<strong>de</strong> fundos e trusts <strong>de</strong> investimento.<br />
A peça final para a atração <strong>de</strong>sses capitais foi a elevação espetacular dos juros<br />
promovida pela trinca Marcílio-Gros-Armínio, em outubro <strong>de</strong> 1991. Fernando Henrique,<br />
que passou a ser uma figura estratégica na política brasileira a partir <strong>de</strong> meados <strong>de</strong><br />
1993, quando assume o Ministério da Fazenda no governo <strong>de</strong> Itamar Franco, foi um<br />
continuador <strong>de</strong>ssa política e uma espécie <strong>de</strong> mentor político <strong>de</strong>sses financistas. Para<br />
enten<strong>de</strong>r melhor suas ações, é preciso ver o contexto mais específico em que as<br />
<strong>de</strong>sempenhou. Como diz Marx, os homens fazem a história, mas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> condições<br />
<strong>de</strong>terminadas. E essas eram as do <strong>de</strong>smoronamento final do império soviético, por um<br />
lado, e, por outro, da ampla recuperação do império e da economia americana.<br />
Fernando Henrique, no entanto, pega o bon<strong>de</strong> quando ele já está perto <strong>de</strong> sair dos<br />
trilhos, perto da fase na qual, como disse <strong>de</strong>pois Alan Greenspan, o presi<strong>de</strong>nte do<br />
Fe<strong>de</strong>ral Reserve, o banco central americano, os mercados seriam acometidos da<br />
“exuberância irracional” e da “ganância infecciosa”.<br />
Destruir a <strong>herança</strong><br />
Numa primeira fase, <strong>de</strong> meados <strong>de</strong> 1993 a meados <strong>de</strong> 1994, os financistas <strong>de</strong><br />
Fernando Henrique terminaram com as oscilações <strong>de</strong> política monetária que
persistiram no Brasil após a ditadura militar e armaram o Plano Real. No governo <strong>de</strong><br />
José Sarney (1985-1989) e mesmo nos dois primeiros anos <strong>de</strong> governo Collor (1990-<br />
1991) houve períodos <strong>de</strong> juros reais muito baixos e mesmo negativos. Como ministro<br />
da Economia <strong>de</strong> Itamar e tendo Pedro Malan como presi<strong>de</strong>nte do Banco Central, <strong>FHC</strong><br />
consolidou a política <strong>de</strong> juros altos do final do governo Collor para atrair dólares. As<br />
reservas em dólar do país cresceram espetacularmente. E sobre elas <strong>FHC</strong> construiu o<br />
Plano Real, lançado em julho <strong>de</strong> 1994, e que o elegeu presi<strong>de</strong>nte logo a seguir.<br />
Já presi<strong>de</strong>nte eleito, quando se <strong>de</strong>spediu do Senado com um discurso no dia 14 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1994, Fernando Henrique Cardoso disse com clareza que um dos<br />
objetivos centrais do seu governo era <strong>de</strong>struir a <strong>herança</strong> <strong>de</strong> Getúlio Vargas. “Resta um<br />
pedaço do nosso passado que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da<br />
socieda<strong>de</strong>. Refiro-me ao legado da era Vargas, ao seu mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
autárquico e ao seu Estado intervencionista”. <strong>FHC</strong> consi<strong>de</strong>rava o Estado brasileiro<br />
fechado para o exterior, in<strong>de</strong>vidamente envolvido na produção <strong>de</strong> bens e serviços e<br />
antiquado na sua concepção. No discurso, apontou os alvos para a sua operação <strong>de</strong><br />
reforma: era preciso abrir a economia aos capitais estrangeiros, principalmente no setor<br />
<strong>de</strong> energia elétrica, mineração, petróleo, telecomunicações, então dominados pelas<br />
empresas estatais. “No ciclo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento que se inaugura, o eixo dinâmico da<br />
ativida<strong>de</strong> produtiva passa <strong>de</strong>cididamente do setor estatal para o setor privado (...) O<br />
processo <strong>de</strong> privatização <strong>de</strong>ve ser acelerado e estendido a outras ativida<strong>de</strong>s e<br />
empresas <strong>de</strong> energia, transporte, telecomunicações e mineração”, disse ele, aprovando<br />
o esforço <strong>de</strong> privatização iniciado com Collor, mas mantido em câmara lenta por Itamar<br />
Franco. Itamar <strong>–</strong> é verda<strong>de</strong>, permitiu a venda da Companhia Si<strong>de</strong>rúrgica Nacional,<br />
gran<strong>de</strong> símbolo da Era Vargas; mas se recusou, por exemplo, a abrir o setor elétrico e<br />
o <strong>de</strong> telecomunicações.<br />
Além disso, disse <strong>FHC</strong> no Senado, era preciso acabar com a distinção entre<br />
“empresa brasileira” e “empresa brasileira <strong>de</strong> capital nacional”. Com isso, apontava<br />
essencialmente para a revisão dos critérios <strong>de</strong> financiamento dos bancos públicos<br />
brasileiros, especialmente o Banco do Brasil e o Banco Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
Econômico e Social (BNDES), voltados para o apoio das empresas nacionais. No caso<br />
do BNDES, especificamente, o banco era proibido <strong>de</strong> financiar empresas <strong>de</strong> capital<br />
estrangeiro.<br />
Com uma maioria <strong>de</strong> quase 400 parlamentares em pouco mais <strong>de</strong> 500, o governo<br />
passou como um rolo compressor n não só sobre aspectos essenciais da <strong>herança</strong> <strong>de</strong><br />
Vargas mas também sobre aspectos <strong>de</strong>sse legado que haviam sido reformulados e<br />
aprimorados pela Constituinte <strong>de</strong> 1988, que surgira da luta contra a ditadura militar.<br />
Em 1995, foi praticamente refeito o Título VII da Constituição, que trata “Da Or<strong>de</strong>m<br />
Econômica e Financeira”. A Emenda Constitucional nº 6, <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> agosto, revogou todo
o artigo 171, que estabelecia a distinção entre “empresa brasileira” e “empresa<br />
brasileira <strong>de</strong> capital nacional” e <strong>de</strong>finia diversas situações nas quais a lei po<strong>de</strong>ria<br />
estabelecer privilégios para as nacionais. A mesma Emenda alterou o artigo 176, que<br />
assegurava a pesquisa e a lavra <strong>de</strong> recursos minerais apenas “por brasileiros ou<br />
empresa brasileira <strong>de</strong> capital nacional”, trocando a expressão “empresa brasileira <strong>de</strong><br />
capital nacional” por “empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua se<strong>de</strong><br />
e administração no país”. A Emenda nº 7, promulgada também em 15 <strong>de</strong> agosto,<br />
eliminou ainda o privilégio que era dado às “embarcações nacionais” na navegação <strong>de</strong><br />
cabotagem, no interior do país.<br />
Em processo rapidíssimo, o Congresso Nacional também que alterou o inciso XI e<br />
a alínea "a" do inciso XII do art. 21 da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, dando margem à<br />
privatização do Sistema Telebrás. Em 16 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1995, o presi<strong>de</strong>nte da<br />
República enviou ao Legislativo a Mensagem nº 191/95, com a Proposta <strong>de</strong> Emenda<br />
Constitucional nº 03-A/95. Dessa proposta resultou a Emenda Constitucional nº 8,<br />
promulgada também em 15 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1995, que permitiu à União explorar,<br />
diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços <strong>de</strong><br />
telecomunicações.<br />
Já perto do final do seu primeiro ano <strong>de</strong> mandato, em 9 <strong>de</strong> novembro, foi aprovada<br />
a Emenda número nº 9, que mudou os incisos <strong>de</strong> I a IV do artigo 177: o monopólio da<br />
pesquisa e lavra <strong>de</strong> petróleo e gás; o refino <strong>de</strong> petróleo nacional ou importado; a<br />
importação e a exportação; e o transporte marítimo e por meio <strong>de</strong> dutos do petróleo e<br />
gás. Foi acrescentado um parágrafo: “a União po<strong>de</strong>rá contratar com empresas estatais<br />
ou privadas a realização das ativida<strong>de</strong>s previstas nos incisos <strong>de</strong> I a IV <strong>de</strong>ste artigo”.<br />
Após esse conjunto <strong>de</strong> medidas, as privatizações foram <strong>de</strong>satadas em todos os<br />
setores. E o BNDES, além <strong>de</strong> dar suporte à venda do patrimônio público, passou, cada<br />
vez mais, a financiar o capital estrangeiro: em 1995 estiveram em 2,7% dos<br />
financiamentos do banco; em 96 foram 2,9%; em 97, 3,7%; em 98, 4,6%; em 99 já<br />
estavam mais <strong>de</strong> 10%; em 2000, 16,1%; e em 2001 chegaram a 20,9%.<br />
Des<strong>de</strong> os seus primeiros pronunciamentos, o presi<strong>de</strong>nte <strong>FHC</strong> investiu também<br />
contra outro aspecto da <strong>herança</strong> Vargas: a legislação trabalhista. Como a<br />
<strong>de</strong>snacionalização foi acompanhada também do crescimento do <strong>de</strong>semprego e da<br />
precarização das relações <strong>de</strong> trabalho, ele usou sua autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> presi<strong>de</strong>nte e<br />
sociólogo famoso para ven<strong>de</strong>r a tese <strong>de</strong> que esses males advinham, principalmente, <strong>de</strong><br />
posições atrasadas dos partidos <strong>de</strong> esquerda e do movimento sindical, que se<br />
opunham à chamada “flexibilização das leis trabalhistas”.<br />
De fato, a legislação trabalhista no Brasil se transformou num emaranhado ao longo<br />
das décadas. Hoje, são 197 leis, 71 portarias, 361 <strong>de</strong>cisões do Tribunal Superior do
Trabalho, 22 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho e 42 dispositivos da<br />
Constituição atual. Mas <strong>FHC</strong> não apresentou nenhum plano, nenhum estudo<br />
merecedor do nome que procurasse dar forma nova, organizar o conjunto <strong>de</strong>ssas leis e<br />
regulamentos. Em conseqüência, as mudanças que fez, ajudaram a reduzir o custo da<br />
mão-<strong>de</strong>-obra e ampliaram o <strong>de</strong>semprego e a precarização do trabalho (texto nas<br />
páginas <strong>de</strong> 40 a 43).<br />
A teoria e a prática<br />
A nova moeda promoveu uma queda abrupta da inflação e uma euforia nos<br />
mercados. E foi um sinal ver<strong>de</strong> para o endividamento externo. Quem trouxesse dólares<br />
para o país tinha a garantia do governo <strong>de</strong> que, por um ano, po<strong>de</strong>ria retirá-lo a hora<br />
que quisesse, comprando, no Banco Central, dólares a um real, pois o banco tinha<br />
acumulado uma montanha <strong>de</strong> moeda americana como lastro.<br />
Por mais que os nacionalistas e a oposição <strong>de</strong> esquerda protestassem, o<br />
<strong>de</strong>smanche do Estado promovido por Fernando Henrique tinha uma lógica aparente.<br />
Em tese, o governo estava ven<strong>de</strong>ndo as estatais para tirar o Estado <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s nas<br />
quais seria ineficiente e concentrá-lo nas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fiscalização e <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong><br />
serviços públicos essenciais, como educação, saú<strong>de</strong>, cultura.<br />
A terrível política <strong>de</strong> juros reais gigantes, por sua vez, <strong>de</strong>stinava-se a consolidar a<br />
estabilida<strong>de</strong> monetária e atrair capitais, que promoveriam a mo<strong>de</strong>rnização industrial e<br />
elevariam a competitivida<strong>de</strong> do país, com o que seriam pagos os juros <strong>de</strong>vidos no<br />
período <strong>de</strong> estabilização. Esses capitais <strong>de</strong>veriam ser pagos, é claro, com remessas <strong>de</strong><br />
juros, lucros ou amortizações. Mas a dívida externa, em princípio, não <strong>de</strong>veria ser um<br />
problema: o país havia renegociado, no início <strong>de</strong> 1993, a dívida velha, contraída no<br />
tempo dos militares. O trabalho fora iniciado e concluído pelo ministro Pedro Malan,<br />
indicado para a função por Marcílio Marques Moreira, ainda no governo Collor.<br />
Além disso, como repetia sistematicamente Gustavo Franco, diretor do Banco<br />
Central e uma das maiores estrelas do corpo <strong>de</strong> financistas <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, o mundo teria<br />
entrado numa nova conjuntura, <strong>de</strong> abundância <strong>de</strong> capitais. Não havia no horizonte<br />
qualquer ameaça <strong>de</strong> uma contração na economia global, como a <strong>de</strong> 1930; os ciclos<br />
econômicos eram passado na história do capitalismo <strong>–</strong> “1929, nunca mais”, dizia<br />
Franco.
Na prática, o plano só <strong>de</strong>u certo em parte. Em 6 anos da política <strong>de</strong> atração <strong>de</strong><br />
capitais, <strong>de</strong> 1992 a 1998, as empresas privadas instaladas no país <strong>–</strong> <strong>de</strong> capital nacional<br />
e estrangeiras <strong>–</strong> tomaram no exterior cerca <strong>de</strong> 120 bilhões <strong>de</strong> dólares. Com o crédito<br />
interno caríssimo, capitalistas e empresas que tinham crédito ou dinheiro lá fora<br />
trouxeram esses capitais para o Brasil, por meio <strong>de</strong> diversos tipos <strong>de</strong> empréstimos e<br />
das contas especiais permitidas pelo Banco Central. Isso fez a fortuna <strong>de</strong> alguns e<br />
<strong>de</strong>spertou muitas ilusões <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização.<br />
No conjunto, para o país, no entanto, o resultado foi diferente. Aqui vale uma<br />
comparação. Tome-se a China, por exemplo. Brasil e China fizeram políticas visando<br />
atrair capitais estrangeiros. Aparentemente elas foram iguais. Na prática, foram<br />
radicalmente diferentes. A China, como diz o Prêmio Nobel <strong>de</strong> Economia e ex-diretor<br />
do Banco Mundial, Joseph Stiglitz, foi um dos poucos países que resistiu à <strong>de</strong>vastação<br />
provocada por sucessivas crises financeiras no mercado mundial a partir <strong>de</strong> 1995.<br />
Continua crescendo a mais <strong>de</strong> 7% anuais há 20 anos. E continua atraindo capitais <strong>de</strong><br />
fora, ao contrário do Brasil, que está sem crédito, crescendo a taxas baixíssimas e há<br />
quatro anos está pendurado no FMI. A razão para isso, diz Stiglitz, é o fato <strong>de</strong> a China<br />
ter adotado uma política <strong>de</strong> abertura financeira completamente oposta à do Brasil.<br />
Enquanto o Brasil abriu completamente as suas duas contas do balanço <strong>de</strong><br />
pagamentos <strong>–</strong> a <strong>de</strong> transações correntes e a <strong>de</strong> capitais <strong>–</strong>, a China abriu apenas uma,<br />
<strong>de</strong>ixou sob controle a conta <strong>de</strong> capitais. É uma diferença muito gran<strong>de</strong>.<br />
O óbvio: como pagar?<br />
As transações correntes <strong>de</strong> um país com o exterior incluem suas importações e<br />
exportações; os fretes que paga por mercadorias transportadas em navios <strong>de</strong> outras<br />
ban<strong>de</strong>iras e os que recebe quando o transportador é nacional; as diferenças entre os<br />
juros, os lucros, os royalties, as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> assistência técnica que paga e as que<br />
recebe; e também o saldo entre as remessas dos migrantes seus que enviam dinheiro<br />
para o país e dos imigrantes que o país tem e enviam dinheiro para o exterior.<br />
A outra conta é a dos capitais propriamente ditos e é a mais crítica: nela são<br />
contabilizados os empréstimos e os investimentos. Os capitais estrangeiros vão para<br />
um país para obter lucros, no caso dos investimentos, ou juros, no caso dos<br />
empréstimos. Os chineses viram o que é óbvio: se recebem investimentos ou<br />
empréstimos, têm <strong>de</strong> saber como pagá-los.
Para eles, por exemplo, seria absurdo permitir que se instalasse no país uma<br />
indústria <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> aparelhos <strong>de</strong> telefonia celular que importasse mais <strong>de</strong> 90%<br />
dos componentes <strong>de</strong>sses aparelhos, como a brasileira. Como iriam pagar essas<br />
importações? No caso do Brasil, com uma política <strong>de</strong> abertura sem esses princípios, a<br />
diferença entre importações e exportações <strong>de</strong> componentes eletro-eletrônicos criou um<br />
buraco crescente no balanço <strong>de</strong> pagamentos do país, que atingiu cerca <strong>de</strong> 8 bilhões <strong>de</strong><br />
dólares em 2001.<br />
Para os chineses, também, seria absurdo ven<strong>de</strong>r ao capital estrangeiro empresas<br />
do setor <strong>de</strong> serviços, como as elétricas e as <strong>de</strong> telecomunicações, que não exportam<br />
nada. De que forma o país iria obter os dólares <strong>de</strong> que elas necessitariam para remeter<br />
os seus lucros ao exterior?<br />
Os chineses <strong>de</strong>cidiram tornar sua moeda amplamente conversível por etapas, a<br />
partir <strong>de</strong> 1978. Só em 1996 completaram a abertura da conta <strong>de</strong> transações correntes,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitas experiências. E <strong>de</strong>ixaram fechada a conta <strong>de</strong> capitais: quem quiser<br />
investir, comprar empresas ou emprestar às empresas na China, não po<strong>de</strong> agir no<br />
mercado; tem <strong>de</strong> passar pelo governo, cuja preocupação central é saber como os<br />
dólares que entrarem serão pagos.<br />
Como se po<strong>de</strong> ver hoje, a abertura do Plano Real não foi como a dos chineses.<br />
Gustavo Franco, diretor da área externa do Banco Central no lançamento do Plano<br />
Real, or<strong>de</strong>nou aos operadores do banco, no primeiro dia <strong>de</strong> vigência da nova moeda,<br />
que passassem a trocar livremente dólares por reais na conta financeira, <strong>de</strong> capitais.<br />
De início, pareceu um milagre. Atraídos por juros monumentais, os dólares<br />
<strong>de</strong>saguaram no Brasil. O real, que vinha sendo <strong>de</strong>svalorizado todos os dias, há mais <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>z anos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o país quebrara sob os militares, <strong>de</strong> repente, tornou-se uma<br />
moeda forte. Chegou a valer 1,25 dólares por alguns meses, entre o final <strong>de</strong> 94 e o<br />
início <strong>de</strong> 95. E ficou valendo mais que um dólar até o começo <strong>de</strong> 1996, graças a<br />
<strong>de</strong>terminação do Banco Central <strong>de</strong> sustentar a sua cotação com juros estratosféricos.<br />
Isso, no entanto, provocou uma <strong>de</strong>vastação na economia do país. Com o dólar<br />
barato, as importações dispararam, foram <strong>de</strong> 33 bilhões <strong>de</strong> dólares, em 1994, para 50<br />
bilhões <strong>de</strong> dólares, em 1995, e o saldo <strong>de</strong> comércio exterior, que girava em torno dos<br />
10 bilhões <strong>de</strong> dólares anuais <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1984 e era gasto pagando a velha dívida externa<br />
estatal, <strong>de</strong>sapareceu. Os outros gastos da chamada conta <strong>de</strong> transações correntes <strong>–</strong><br />
as <strong>de</strong>spesas dos turistas no exterior, a contratação <strong>de</strong> fretes marítimos estrangeiros, as<br />
remessas <strong>de</strong> lucros, juros, royalties e divi<strong>de</strong>ndos <strong>–</strong>, foram todos, em pouco tempo, para<br />
a casa <strong>de</strong> alguns bilhões <strong>de</strong> dólares anuais.
Para cobrir esse rombo, o capital estrangeiro era atraído com juros altos,<br />
indiscriminadamente, sem se saber como pagá-los. A entrada <strong>de</strong>ssa massa <strong>de</strong> dólares<br />
e a política <strong>de</strong> juros altos tiveram um efeito arrasador sobre a dívida interna pública.<br />
Boa parte dos dólares foi comprada pelo governo: as reservas internacionais do<br />
país, que estavam em 9 bilhões <strong>de</strong> dólares, em 1991, abaixo do mínimo exigido pela<br />
Constituição <strong>–</strong> o equivalente a três meses <strong>de</strong> importações <strong>–</strong> foram para 60 bilhões <strong>de</strong><br />
dólares, em 1996. O governo comprou esses dólares emitindo dívida pública. Até<br />
mesmo os dólares vindos para a compra <strong>de</strong> empresas privadas nacionais por<br />
empresas brasileiras ou estrangeiras instaladas no país, ficavam parados por bom<br />
tempo nos seus caixas para serem aplicados nos títulos públicos e aproveitar o maná<br />
<strong>de</strong> juros oferecido pelo BC. De qualquer modo, entravam nas contas dos então exempresários<br />
nacionais que, em muitos casos, passaram a viver <strong>de</strong> rendas em títulos<br />
públicos e da especulação financeira.<br />
E, pior que tudo, o cenário internacional róseo pintado por Gustavo Franco não<br />
prevaleceu. A partir <strong>de</strong> 1995, a expansão do capitalismo global começou a se dar aos<br />
solavancos. Para o Brasil, a entrada <strong>de</strong> dinheiro pela conta <strong>de</strong> capitais, que significava<br />
gran<strong>de</strong>s compromissos para o futuro, mas, a curto prazo, fechava o balanço <strong>de</strong><br />
pagamentos, começou a minguar.<br />
O primeiro gran<strong>de</strong> golpe nas teorias dos financistas do Plano Real foi a quebra do<br />
México, que ocorreu antes mesmo <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> tomar posse, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1994. Os<br />
reflexos <strong>de</strong>ssa crise no Brasil foram quase imediatos. Em março, o movimento líquido<br />
<strong>de</strong> capitais em direção ao Brasil, que vinha sendo sempre positivo, sempre maior que 1<br />
bilhão <strong>de</strong> dólares por mês, tornou-se negativo, em 2 bilhões <strong>de</strong> dólares. O Banco<br />
Central fez o que faz sempre: elevou <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scomunal os juros, para uma taxa<br />
anual perto <strong>de</strong> 60% reais <strong>–</strong> ou seja, <strong>de</strong>scontada a inflação. Essa taxa se manteve por<br />
muitos dias. Depois, caiu. Mas não muito: permanecendo acima <strong>de</strong> 40% <strong>de</strong> juros reais<br />
ao ano. Manteve-se nesse patamar até meados do ano. E o dinheiro <strong>de</strong> fora começou<br />
a voltar. As reservas internacionais do país, que tinham caído quase <strong>de</strong>z bilhões <strong>de</strong><br />
dólares entre <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 94 e abril <strong>de</strong> 95, voltaram a subir, para mais <strong>de</strong> 40 bilhões<br />
<strong>de</strong> dólares, em julho. A crise, <strong>de</strong> qualquer modo, provocou <strong>de</strong>sentendimentos <strong>de</strong>ntro da<br />
equipe econômica, que levariam à saída <strong>de</strong> Pérsio Arida da presidência do Banco<br />
Central, em junho. Em outubro, após um interregno em que o presi<strong>de</strong>nte do banco foi<br />
Gustavo Loyola, ascen<strong>de</strong>u Gustavo Franco, o financista mais radical.<br />
Entre julho <strong>de</strong> 95 e <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1996, as coisas pareciam ter-se ajeitado e o plano<br />
dos financistas finalmente dado certo. O governo montou um gran<strong>de</strong> esquema <strong>de</strong><br />
incentivos para as montadoras <strong>de</strong> automóveis internacionais e também para seus<br />
fornecedores externos. Inúmeras indústrias <strong>de</strong> autopeças nacionais foram compradas<br />
pelos estrangeiros que vieram para o país. O governo facilitou também a captação <strong>de</strong>
dinheiro externo pelos bancos das montadoras ou aqueles ligados a elas. Foram<br />
tomados uns bilhões <strong>de</strong> dólares <strong>de</strong> empréstimos no exterior para financiar alguns<br />
investimentos e a compra <strong>de</strong> carros fabricados no país ou importados.<br />
Isso provocou uma espécie <strong>de</strong> novo milagre brasileiro. O anterior, ocorrido entre<br />
1968 e 1973, sob o governo dos militares, teve como uma <strong>de</strong> suas características<br />
essenciais o crescimento da produção e do consumo <strong>de</strong> automóveis. Sob os militares,<br />
o Brasil, que fabricava menos <strong>de</strong> 100 mil automóveis por ano, passou a produzir mais<br />
<strong>de</strong> 1 milhão. Com Fernando Henrique, também em pouco tempo a produção <strong>de</strong> carros<br />
duplicou. E passou a haver muito mais opções <strong>–</strong> não só praticamente todas as gran<strong>de</strong>s<br />
montadoras internacionais passaram a receber terrenos e benefícios para se instalar<br />
no país como a importação <strong>de</strong> carros novos se ampliou.<br />
A estabilida<strong>de</strong> interna da moeda brasileira provocou um outro efeito <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />
repercussão popular: o restabelecimento do crédito que tinha <strong>de</strong>saparecido quase que<br />
totalmente com a inflação galopante.<br />
Esses milagres mantiveram alto o prestígio <strong>de</strong> Fernando Henrique perante a<br />
opinião pública até sua reeleição em 1998. Ele tinha se elegido em 1994 <strong>de</strong>rrotando<br />
Lula já no primeiro turno, com 54% dos votos. E se reelegeu, em 1998, da mesma<br />
forma, com 53% dos votos, na primeira votação.<br />
A reeleição foi uma violação das regras republicanas do país. Há suspeitas graves<br />
<strong>de</strong> que <strong>de</strong>putados ven<strong>de</strong>ram seus votos (artigo nas páginas <strong>de</strong> 22 a 25). Mas nada<br />
disso parecia ter muita importância naquela conjuntura.<br />
A burguesia traída<br />
Já no final <strong>de</strong> 1996, no entanto, o milagre <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> começava a falhar. Em<br />
<strong>de</strong>zembro daquele ano, as reservas brasileiras começaram a cair novamente. Em<br />
janeiro <strong>de</strong> 1997, houve nova crise no mercado <strong>de</strong> capitais global, a chamada Crise da<br />
Ásia. E o movimento líquido <strong>de</strong> capitais para o Brasil voltou a ficar negativo: menos 350<br />
milhões <strong>de</strong> dólares. O Banco Central tornou a receitar a medicina <strong>de</strong> sempre: mais<br />
juros. E o governo passou a incentivar ainda mais a tomada <strong>de</strong> dinheiro no exterior. A<br />
análise da privatização da Vale do Rio Doce, ocorrida em maio <strong>de</strong> 1997, ajuda a<br />
compreen<strong>de</strong>r essa conjuntura.
O governo <strong>de</strong>cidiu ven<strong>de</strong>r o controle da Vale por 3,2 bilhões <strong>de</strong> dólares. Dois<br />
grupos foram incentivados a fazer o negócio, o <strong>de</strong> Antônio Ermírio <strong>de</strong> Morais, dono da<br />
Votorantim, e o <strong>de</strong> Benjamin Steinbruch, que já havia comprado a Companhia<br />
Si<strong>de</strong>rúrgica Nacional. No fundo, ganhava quem conseguisse trazer mais moeda<br />
estrangeira. Ganhou Steinbruch, que conseguiu trazer para o país 1,6 bilhão <strong>de</strong> dólares<br />
<strong>–</strong> 1,2 bilhão que tomou emprestado do Nations Bank (hoje Bank of America) e mais 400<br />
milhões <strong>de</strong> dólares que conseguiu <strong>de</strong> sócios para o negócio. Entre esses parceiros<br />
estavam George Soros <strong>–</strong> representado por Armínio Fraga, seu operador para os países<br />
emergentes <strong>–</strong>, o próprio Nations e duas gran<strong>de</strong>s casas financeiras <strong>de</strong> Wall Street,<br />
Goldman Sachs e a Lehman Brothers. Para assegurar que Steinbruch tivesse o<br />
controle da companhia, o governo fez com que o BNDES e a Previ, o fundo <strong>de</strong> pensão<br />
dos funcionários do Banco do Brasil, manobrado pelo Palácio do Planalto,<br />
mantivessem fora da Valepar, a companhia criada por Steinbruch para controlar a Vale,<br />
parte das ações ordinárias que tinham na empresa e que, juntas, dariam ao Estado<br />
mais <strong>de</strong> 50% do controle do capital da companhia. Até hoje esse esquema se mantêm:<br />
embora tenha maioria das ações ordinárias <strong>–</strong> <strong>de</strong> controle <strong>–</strong> da Vale, o governo<br />
transfere sua direção para a iniciativa privada.<br />
Outra história sintomática <strong>de</strong>sse período <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero por dólares é contada pelo<br />
ex-banqueiro José Eduardo Andra<strong>de</strong> Vieira, que se sente traído por Fernando Henrique<br />
no episódio da venda <strong>de</strong> seu banco, o Bamerindus, aos ingleses do Hong Kong and<br />
Shanghai Banking Corporation, em 1997. Andra<strong>de</strong> Vieira foi um dos primeiros a<br />
acreditar em <strong>FHC</strong>. No início da sua primeira campanha para presi<strong>de</strong>nte, o então<br />
senador estava lá embaixo nas pesquisas. Lula tinha gran<strong>de</strong> vantagem e <strong>FHC</strong> não<br />
encontrava doadores. Seu escritório político ficou ameaçado <strong>de</strong> fechamento, porque<br />
não tinha dinheiro sequer para pagar as secretárias. O banqueiro garantiu a<br />
sobrevivência da candidatura doando a <strong>FHC</strong> 800 mil reais.<br />
Em 1997, a crise financeira levou à liquidação e à venda <strong>de</strong> sete bancos brasileiros<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte <strong>–</strong> Bamerindus, Excel-Econômico, Banco Geral <strong>de</strong> Comércio, Noroeste,<br />
América do Sul e Real. Andra<strong>de</strong> Vieira, na época, procurou Fernando Henrique junto<br />
com um banqueiro brasileiro com o qual iria associar-se na perspectiva <strong>de</strong> salvar o<br />
Bamerindus. O presi<strong>de</strong>nte disse-lhe, no entanto, que nada po<strong>de</strong>ria fazer. De fato, <strong>FHC</strong><br />
não aceitou a proposta <strong>de</strong> salvar o Bamerindus com capital nacional porque a<br />
priorida<strong>de</strong> oficial era ven<strong>de</strong>r empresas estatais e empresas privadas nacionais ao<br />
capital estrangeiro, e não aos nacionais, para que entrassem dólares no país para<br />
cobrir os buracos do balanço <strong>de</strong> pagamentos.<br />
Essa política explica um dos mais curiosos traços do governo <strong>FHC</strong>: embora tenha<br />
sido eleito duas vezes como o homem da burguesia brasileira que iria salvar o país das<br />
ameaças representadas pelo candidato dos trabalhadores, Lula, <strong>de</strong> certo modo ele<br />
traiu a burguesia nacional.
Sabe-se que o Regime Militar <strong>–</strong> 1964-1984 <strong>–</strong> levou ao po<strong>de</strong>r grupos ligados ao<br />
capital estrangeiro que conspiravam contra o getulismo nacionalista <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 40.<br />
Esses grupos militares eram francamente favoráveis à elevação da participação do<br />
capital estrangeiro na economia do país. O primeiro surto <strong>de</strong> crescimento econômico<br />
sob os militares (1968-1974), aliás, <strong>de</strong>u-se em boa parte graças ao investimento direto<br />
estrangeiro. Os militares, além disso, embora <strong>de</strong> início tenham criado uma multidão <strong>de</strong><br />
estatais, após a quebra do país, em 1982, começaram a <strong>de</strong>smantelar o setor estatal e<br />
a promover um crescimento da participação estrangeira.<br />
A traição <strong>de</strong> <strong>FHC</strong><br />
A novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fernando Henrique, portanto, não é a continuação do<br />
<strong>de</strong>smantelamento do setor produtivo estatal e o favorecimento aos grupos estrangeiros.<br />
A verda<strong>de</strong>ira novida<strong>de</strong> dos anos <strong>FHC</strong> é o <strong>de</strong>smantelamento do setor privado da<br />
economia nacional, com a venda <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empresas <strong>de</strong> capitalistas nacionais ao<br />
capital estrangeiro. Dizia-se <strong>de</strong> Getúlio que ele tinha sido o pai dos pobres e a mãe dos<br />
ricos. Salvo algumas exceções, como Antônio Ermírio <strong>de</strong> Moraes que ficou com<br />
Fernando Henrique até o fim e foi um dos poucos e explícitos apoiadores <strong>de</strong> José Serra<br />
nas eleições passadas, a burguesia brasileira, com <strong>FHC</strong>, ficou sem pai e sem mãe.<br />
No final <strong>de</strong> 1997, o Brasil começou a quebrar. Em setembro daquele ano, o<br />
movimento <strong>de</strong> capitais para o Brasil refluiu em função da chamada Crise da Rússia:<br />
houve uma saída líquida do país <strong>de</strong> 4,5 bilhões <strong>de</strong> dólares. O governo apelou para o<br />
remédio <strong>de</strong> sempre: por alguns meses, puxou os juros para além <strong>de</strong> 30% reais ao ano.<br />
De novembro <strong>de</strong> 97 a abril <strong>de</strong> 1998, a receita funcionou. A entrada líquida <strong>de</strong> capitais<br />
foi <strong>de</strong> 2 bilhões <strong>de</strong> dólares, em novembro, para 12 bilhões em março e 10 bilhões <strong>de</strong><br />
dólares em abril. Em maio, no entanto, começou uma sangria <strong>de</strong>satada que iria levar<br />
para fora do Brasil, em setembro, um saldo líquido <strong>de</strong> 17 bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />
Para injetar dólares na economia que se esvaía, o governo radicalizou na<br />
privatização. Mudou as regras que anunciara para a privatização da Telebrás. <strong>Sérgio</strong><br />
Motta, o ministro das Comunicações e braço direito <strong>de</strong> Fernando Henrique, falava em<br />
manter o controle nacional. Com a crise, a consigna mudou: ven<strong>de</strong>r tudo,<br />
preferencialmente para o capital estrangeiro. O discurso ressaltava que somente os<br />
estrangeiros po<strong>de</strong>riam mo<strong>de</strong>rnizar nossas telecomunicações. De fato, buscava-se<br />
<strong>de</strong>sesperadamente dólares para fechar o vazamento gigante do nosso balanço <strong>de</strong><br />
pagamentos.
Em agosto <strong>de</strong> 1998, Stanley Fischer, então diretor-gerente do FMI, visitou o<br />
presi<strong>de</strong>nte no Palácio do Planalto. Quem contou o episódio, recentemente, foi o próprio<br />
Fernando Henrique numa entrevista à imprensa. O presi<strong>de</strong>nte e o homem do FMI<br />
examinaram o quadro político. Haveria eleições em poucos meses. Fernando Henrique<br />
era candidato à reeleição contra Lula. Só que o país estava praticamente falido. A<br />
avaliação <strong>de</strong> Fischer, segundo <strong>FHC</strong>, é <strong>de</strong> que o país po<strong>de</strong>ria quebrar antes das<br />
eleições, em setembro.<br />
<strong>FHC</strong> não contou até hoje e dificilmente contará as negociações que fez para se<br />
reeleger nessa conjuntura. Há indicações claras, no entanto, <strong>de</strong> que nessa época se<br />
<strong>de</strong>senvolveu uma das histórias políticas mais vergonhosas <strong>de</strong> seus dois mandatos,<br />
envolvendo o seu alto comando financeiro. Eles começaram a negociar secretamente,<br />
com o Tesouro dos EUA e com o FMI, um acordo que foi barganhado por novas regras<br />
<strong>de</strong> funcionamento do governo brasileiro. Essencialmente, ficou acertado que sairia um<br />
gran<strong>de</strong> empréstimo logo após as eleições, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>FHC</strong>, antes do pleito, anunciasse<br />
formalmente as novas normas para o gasto do dinheiro público. Foi planejada, assim, a<br />
Lei <strong>de</strong> Responsabilida<strong>de</strong> Fiscal (LRF), que o presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>lineou em um discurso no<br />
Itamaraty, em 23 <strong>de</strong> setembro. A LRF estabelece, basicamente, que o orçamento<br />
público passa a ter uma priorida<strong>de</strong>: o superávit entre receitas e <strong>de</strong>spesas, <strong>de</strong>stinado ao<br />
pagamento dos credores.<br />
A essa altura, meados <strong>de</strong> 1998, grupos nacionais <strong>de</strong>scontentes com a política <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>pendência do capital externo estavam gravando secretamente as conversas do<br />
presi<strong>de</strong>nte do BNDES, André Lara Resen<strong>de</strong>. Essas gravações, ao que tudo indica,<br />
estão em <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> fitas. Muitas <strong>de</strong>las ainda não foram reveladas. As gravações<br />
foram feitas por participantes do leilão das empresas do Sistema Telebrás, que foi<br />
conduzido pelo BNDES. O conteúdo das gravações que foram divulgadas até agora<br />
mostra, nitidamente, que o ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça <strong>de</strong><br />
Barros, o presi<strong>de</strong>nte do BNDES, e mesmo o presi<strong>de</strong>nte da República, tinham<br />
preferência pela vitória dos grupos estrangeiros no leilão.<br />
Graças a essas revelações se soube, por exemplo, que Malan disse a Resen<strong>de</strong>,<br />
que redigiu o discurso <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> no Itamaraty, no dia 23 <strong>de</strong> setembro, que dirigentes do<br />
FMI e do Tesouro dos Estados Unidos queriam ver o discurso. Resen<strong>de</strong> diz na<br />
gravação que ia falar com Stanley Fischer, diretor-adjunto do FMI. E Malan lhe explica:<br />
“Eles estão, tanto o Fundo quanto o Tesouro, dizendo, pedindo, assim, quase que<br />
dizendo: 'Nos <strong>de</strong>ixem ler antes ...'. Porque a idéia é que eles saiam com expressão <strong>de</strong><br />
apoio. Eles querem ter acesso antes ... Para po<strong>de</strong>r expressar apoio”, diz Malan.<br />
No seu discurso, Fernando Henrique anuncia um ajuste rápido, para o país voltar a<br />
crescer aos níveis a<strong>de</strong>quados, o mais cedo possível. Quase dois meses <strong>de</strong>pois, no dia<br />
13 <strong>de</strong> novembro, Malan anunciou o acordo com o Fundo <strong>de</strong> 41,5 bilhões <strong>de</strong> dólares,
que previa que o país economizaria, para pagar juros e evitar que a dívida crescesse e<br />
se tornasse impagável, o equivalente a 2,6% do PIB em 1999, 2,8% em 2000, e 3,0%<br />
em 2001. Com isso, afirmavam, a dívida pública ficaria estabilizada em 44,5% do PIB.<br />
A <strong>de</strong>cadência<br />
Mas, apesar <strong>de</strong> ter passado a governar em parceria com o Fundo, o ajuste<br />
anunciado por <strong>FHC</strong> em 1998 não bastou. No início <strong>de</strong> 1999, o governo tentou organizar<br />
uma retirada or<strong>de</strong>nada da política cambial anterior, que consistia em manter o real<br />
valorizado. Trocou Gustavo Franco por Chico Lopes na presidência do Banco Central e<br />
anunciou uma política cambial <strong>de</strong> <strong>de</strong>svalorização controlada da moeda brasileira. Os<br />
mercados atropelaram os planos do novo presi<strong>de</strong>nte do BC e o real foi <strong>de</strong>svalorizado<br />
abruptamente, à força, <strong>de</strong> 1,3 por dólar para mais <strong>de</strong> 2 reais por dólar. Chico Lopes<br />
caiu sem sequer ter sido sabatinado pelo Senado para se confirmar no cargo. Sabe-se<br />
hoje, também pela fitas gravadas com conversas do presi<strong>de</strong>nte do BNDES, André Lara<br />
Resen<strong>de</strong>, que Lopes não agradava ao FMI e aos americanos. Depois, ele seria<br />
envolvido em <strong>de</strong>núncias espetaculares <strong>de</strong> corrupção. Para o seu lugar veio Armínio<br />
Fraga, diretamente <strong>de</strong> Wall Street.<br />
As fitas do BNDES, com sinais visíveis das operações dos mais altos dirigentes do<br />
governo para favorecer grupos estrangeiros no leilão da Telebrás e da trama feita com<br />
o FMI para a reeleição <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, fortaleceram, na oposição, o plano <strong>de</strong> afastar o<br />
presi<strong>de</strong>nte por meio da mobilização popular, como se havia feito na campanha do “Fora<br />
Collor”, em 1992. Desenvolveu-se então a campanha do “Fora <strong>FHC</strong>”, que pedia o seu<br />
impeachment e acabou realizando, em agosto <strong>de</strong> 1999, uma Marcha a Brasília, com<br />
cerca <strong>de</strong> 100 mil pessoas.<br />
O governo, no entanto, resistiu. E a partir do final <strong>de</strong> 1999, o PT, reunido em<br />
Congresso, <strong>de</strong>cidiu afastar-se da li<strong>de</strong>rança da campanha do “Fora <strong>FHC</strong>”, que aos<br />
poucos se extinguiu.<br />
Houve uma relativa estabilida<strong>de</strong> monetária internacional entre o segundo trimestre<br />
<strong>de</strong> 1999 e o terceiro trimestre <strong>de</strong> 2000. Foram feitas algumas gran<strong>de</strong>s privatizações<br />
pelos governos estaduais: a do Banespa, o banco oficial do governo <strong>de</strong> São Paulo,<br />
vendido ao Santan<strong>de</strong>r; a do Banestado, do governo do Estado do Paraná, vendido ao<br />
Itaú; a da Eletropaulo, distribuidora <strong>de</strong> energia elétrica <strong>de</strong> São Paulo, vendida à<br />
americana AES.
A partir do final do ano 2000, no entanto, as crises na periferia do império<br />
americano, que vinham <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1995 e que pareciam problemas internos das economias<br />
emergentes, se revelaram parte <strong>de</strong> algo maior, muito mais perturbador e perigoso: o<br />
fim <strong>de</strong> um ciclo <strong>de</strong> expansão do sistema capitalista, centrado na economia dos EUA. A<br />
economia americana, como toda economia capitalista, evolui por ciclos, com altos e<br />
baixos <strong>–</strong> períodos <strong>de</strong> expansão e <strong>de</strong> contração. Entre um ciclo e outro há recessões,<br />
períodos em que a produção anual cai em relação ao ano anterior. Isso é assim <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
que o capitalismo surgiu. De 1920 para cá, por exemplo, a economia dos Estados<br />
Unidos teve 15 ciclos, mediados por recessões. O fato que entusiasmava os<br />
neoliberais mais radicais do governo <strong>de</strong> Fernando Henrique era, no entanto, ver que,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>de</strong> 1992, a economia americana vinha se expandindo sem parar. Entre o<br />
início <strong>de</strong> 1991, logo <strong>de</strong>pois da Guerra do Golfo, e o final <strong>de</strong> 1999, a Bolsa <strong>de</strong> Nova<br />
Iorque teve o seu período histórico <strong>de</strong> maior crescimento. O valor total dos papéis<br />
negociados elevou-se <strong>de</strong> forma inédita: foi <strong>de</strong> 3 trilhões <strong>de</strong> dólares para 15 trilhões <strong>de</strong><br />
dólares. Des<strong>de</strong> 1999, essa expansão estava paralisada e o índice da Bolsa parecia<br />
estagnado, em torno <strong>de</strong> 11.000 pontos. No último trimestre do ano 2000, esse índice<br />
<strong>de</strong>sabou. Na crise, começou a cair drasticamente o movimento <strong>de</strong> capitais para o<br />
Brasil. O dólar, que entre 1999 e 2000 esteve estacionado na casa <strong>de</strong> 2 reais, começou<br />
a subir.<br />
No plano político, os neoliberais terminaram 2000 <strong>de</strong>rrotados por um amplo<br />
crescimento do PT nas eleições municipais. Alguns analistas compararam esse feito<br />
com a vitória oposicionista no Senado em 1974, quando, logo após o “milagre<br />
econômico” dos anos 1968-73, começou a ser abalada a ditadura militar. Assim como<br />
em 1974 o povo escolheu o MDB, o partido do movimento <strong>de</strong>mocrático brasileiro, como<br />
canal para extravasar seu <strong>de</strong>scontentamento, em 2000, nas eleições municipais das<br />
gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> o pleito se dá em dois turnos, o povo escolheu o PT para<br />
<strong>de</strong>rrotar os candidatos da frente governista. O PT saiu das eleições municipais com as<br />
prefeituras <strong>de</strong> São Paulo, Porto Alegre, Recife, Goiânia e Belém, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong><br />
outras, e em condições <strong>de</strong> ser a viga-mestra da articulação oposicionista para eleger<br />
um presi<strong>de</strong>nte da República em 2002.<br />
No começo <strong>de</strong> 2001, o governo sofreria outro golpe político institucional ao tentar<br />
rearticular-se para as eleições <strong>de</strong> 2002. Antônio Carlos Magalhães, talvez o mais<br />
<strong>de</strong>stacado lí<strong>de</strong>r do PFL, que ajudara Fernando Henrique <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua primeira eleição em<br />
1994 e se tornara uma espécie <strong>de</strong> co-piloto do governo, abandonou o barco,<br />
disparando contra o presi<strong>de</strong>nte e seus principais assessores. ACM era presi<strong>de</strong>nte do<br />
Senado e viu seu tapete puxado quando o PSDB formou uma aliança com o PMDB,<br />
visando às eleições <strong>de</strong> 2002. No período 2001-2002, um dos caciques peeme<strong>de</strong>bistas,<br />
Ja<strong>de</strong>r Barbalho, do Pará, assumiria a presidência do Senado e o peesse<strong>de</strong>bista Aécio<br />
Neves a presidência da Câmara, <strong>de</strong>ixando o PFL <strong>de</strong> fora do comando do Congresso.
ACM não caiu sozinho. Renunciou para não ser cassado <strong>–</strong> manobrou para conhecer a<br />
votação nominal <strong>de</strong> senadores na sessão secreta <strong>de</strong> cassação do senador Luiz<br />
Estevão <strong>–</strong>, mas disparou contra Ja<strong>de</strong>r uma bateria <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> corrupção que<br />
acabaram acuando o peeme<strong>de</strong>bista, que também se viu obrigado a renunciar para não<br />
ser cassado.<br />
No final <strong>de</strong> 2001, o campo governista era uma espécie <strong>de</strong> terra arrasada, dividido<br />
em facções, sem um candidato a presi<strong>de</strong>nte forte, capaz <strong>de</strong> reuni-las. Para agravar as<br />
coisas, a Argentina, on<strong>de</strong> as teses neoliberais tinham atingido o paroxismo com o<br />
estabelecimento na Constituição do país da parida<strong>de</strong> entre o dólar e o peso, começou<br />
a <strong>de</strong>smoronar.<br />
Para agravar a situação, num setor essencial, o <strong>de</strong> energia elétrica, as mudanças<br />
introduzidas com as privatizações produziram um <strong>de</strong>sastre nacional: o primeiro<br />
racionamento nacional da história mo<strong>de</strong>rna da energia elétrica no Brasil. A privatização<br />
do setor visava, na opinião <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>fensores, criar um ambiente <strong>de</strong> competição entre<br />
os preços <strong>de</strong> compra e venda <strong>de</strong> eletricida<strong>de</strong>, liberando-os e estabelecendo um<br />
mercado, em que a lei da oferta e da procura se encarregaria <strong>de</strong> fixar as tarifas a<br />
serem praticadas. Os investimentos para expandir o setor, diziam, viriam como<br />
conseqüência natural do novo mo<strong>de</strong>lo.<br />
Porém, o resultado foi exatamente o contrário: os investimentos externos não<br />
chegaram, a expansão do sistema não foi feita e o país teve <strong>de</strong> racionar energia a<br />
partir do segundo semestre <strong>de</strong> 2001. Com as sucessivas crises econômicas e sem<br />
apoio popular o mo<strong>de</strong>lo não po<strong>de</strong>ria sobreviver sem a co-gestão do FMI para dar<br />
credibilida<strong>de</strong> ao governo junto aos credores.<br />
Em 3 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2001, o Ministério da Fazenda anunciava novo acordo com o<br />
Fundo. O FMI subiu à cabine <strong>de</strong> comando da economia brasileira, on<strong>de</strong> ainda<br />
permanece. O compromisso, em troca <strong>de</strong> um empréstimo <strong>de</strong> 15 bilhões <strong>de</strong> dólares, era<br />
com superávits maiores: <strong>de</strong> 3,35% do PIB em 2001 e 3,5% em 2002. Em 2001, a dívida<br />
pública estava em 51% do PIB.<br />
Mesmo isso não bastou. Um terceiro acordo foi feito no dia 4 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2002,<br />
nas vésperas da eleição <strong>de</strong> Lula: um empréstimo <strong>de</strong> 30 bilhões <strong>de</strong> dólares, com o<br />
compromisso <strong>de</strong> um superávit primário <strong>de</strong> 3,88% do PIB em 2002 e <strong>de</strong> 3,75% do PIB<br />
em 2003, 2004 e 2005.
Uma guerra social que mata a juventu<strong>de</strong> pobre do<br />
país<br />
O crescimento da violência é um forte indício da <strong>de</strong>gradação social. O preço mais caro<br />
pela <strong>de</strong>sestruturação social tem sido pago pela juventu<strong>de</strong> pobre das periferias dos gran<strong>de</strong>s<br />
centros urbanos.<br />
Antônio Nascimento trabalha há 10 meses como porteiro no posto <strong>de</strong> uma central<br />
sindical no bairro operário <strong>de</strong> Santo Amaro, zona sul da capital paulista. Há 8 anos não<br />
consegue trabalho para exercer seu ofício <strong>de</strong> fresador, função especializada na<br />
metalurgia que lhe ren<strong>de</strong>u empregos na Bosh, na empresa <strong>de</strong> autopeças UPT, na<br />
fábrica <strong>de</strong> bicicletas Caloi e na fábrica <strong>de</strong> armas Taurus. Na última década, a Taurus<br />
<strong>de</strong>ixou a zona sul <strong>de</strong> São Paulo, a UPT faliu, as outras empresas <strong>de</strong>mitiram. “Isso tudo<br />
graças ao sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que fechou o país”, diz Antônio. “E<br />
você viu ele lá fora outro dia, recebendo o 'prêmio nobel da paz'? Que vergonha! Com<br />
aquela comitiva <strong>de</strong>le! Com a família! Até a com Regina Duarte! Representar o país lá<br />
fora, ganhar prêmio? E a gente aqui?”<br />
O prêmio a que Antônio se refere não é o Nobel da Paz, mas o Mahbub ul Haq,<br />
recém-instituído pelas Nações Unidas para con<strong>de</strong>corar personalida<strong>de</strong>s públicas que<br />
promovam a questão social na agenda política dos países. A premiação <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, em 9<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2002, em Nova York, seria merecida pelos supostos méritos dos<br />
programas sociais <strong>de</strong> seu governo.<br />
Antônio po<strong>de</strong> até se embaralhar sobre as con<strong>de</strong>corações recebidas pelo expresi<strong>de</strong>nte,<br />
mas ele sente o pulso da situação social do país. Recebe diariamente uma<br />
legião <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados na porta da central sindical, todos ansiosos por se<br />
cadastrarem nas listas da agência <strong>de</strong> emprego da entida<strong>de</strong>. Todos os dias aparecem<br />
mais <strong>de</strong> mil pessoas, mas Antônio tem apenas 600 senhas para distribuir a partir das 5<br />
horas da manhã, quando já tem gente dormindo na fila.<br />
Mahbub ul Haq, o título do prêmio dado a <strong>FHC</strong>, é o nome do economista<br />
paquistanês que criou o Índice <strong>de</strong> Desenvolvimento Humano (IDH) empregado pela<br />
ONU para medir a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no mundo e que é calculado a partir <strong>de</strong> um<br />
cruzamento <strong>de</strong> dados <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (a esperança <strong>de</strong> vida ao nascer), <strong>de</strong> educação (uma<br />
combinação <strong>de</strong> taxas <strong>de</strong> matrícula e <strong>de</strong> alfabetização) e da renda per capita <strong>de</strong> um<br />
país. Mais <strong>de</strong> uma vez durante os seus mandatos, <strong>FHC</strong> argumentou que todo o esforço<br />
<strong>de</strong> privatização e busca da estabilida<strong>de</strong> tinha por objetivo liberar a máquina estatal para<br />
tratar melhor das questões sociais. A questão central, porém, é: melhorou, <strong>de</strong> fato, a
situação social do país? Pela medição do IDH a resposta é, sim. De fato, o IDH<br />
brasileiro passou <strong>de</strong> 0,737 em 1995, para 0,757, no ano 2000. Mas essa melhoria, <strong>de</strong><br />
0,2, não é diferente, aliás é ligeiramente inferior, da que houve <strong>de</strong> 1985 para 1990,<br />
quando o índice foi <strong>de</strong> 0,692 para 0,713 <strong>–</strong> melhoria <strong>de</strong> 0,21 <strong>–</strong> e da que houve <strong>de</strong> 1990<br />
para 1995, quando o índice passou <strong>de</strong> 0,713 para 0,737 <strong>–</strong> melhoria <strong>de</strong> 0,24. Ou seja:<br />
na área social <strong>FHC</strong> nada fez <strong>de</strong> diferente <strong>de</strong> José Sarney ou <strong>de</strong> Fernando Collor e<br />
Itamar Franco.<br />
A fórmula para o cálculo do IDH foi revista em 1999 para dar menos peso à renda<br />
per capita. A renda per capita, como se sabe, mascara as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais pois<br />
divi<strong>de</strong> as riquezas produzidas no país pelo número <strong>de</strong> habitantes, como se todos as<br />
pessoas da nação ganhassem exatamente o mesmo quinhão ao final <strong>de</strong> um ano. A<br />
mudança no cálculo fez com que países mais pobres, mas com maiores cuidados com<br />
educação e saú<strong>de</strong>, como Cuba, evoluíssem para posições melhores no ranking do IDH.<br />
Do posto 85, o país <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l Castro foi alçado para o posto 58. Já o Brasil passou do<br />
posto 62 numa fila <strong>de</strong> 173 países, para o posto 79, 17 lugares para trás. É claro que o<br />
fato <strong>de</strong> ter havido uma mudança nos critérios <strong>de</strong> classificação não significa que o país<br />
piorou. Mesmo assim, o rearranjo metodológico foi alvo <strong>de</strong> críticas oficiais do governo<br />
brasileiro. O presi<strong>de</strong>nte do Instituto <strong>de</strong> Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na época,<br />
Roberto Martins, reagiu com grosseria: “Esse informe é in<strong>de</strong>fensável do ponto <strong>de</strong> vista<br />
lógico. Há algo muito errado nele, pois não se enten<strong>de</strong> como países miseráveis como a<br />
Índia, o Paquistão e o Lesoto tenham evoluído para o grupo médio enquanto o Brasil foi<br />
rebaixado. Não é sem razão que o inspirador <strong>de</strong>ssas mudanças, o dr. Sen [Amartya<br />
Sen, prêmio Nobel <strong>de</strong> Economia] seja um indiano”. O fato é que, com fórmula velha ou<br />
fórmula nova, o IDH brasileiro continuou vários pontos abaixo do da Argentina <strong>–</strong> que<br />
está na 39ª posição, com IDH 0,827 <strong>–</strong> e mesmo da média da América Latina e do<br />
Caribe, que foi <strong>de</strong> 0,767 no ano 2000.<br />
Provavelmente os cinco jurados escolhidos pela ONU para selecionar o lí<strong>de</strong>r<br />
mundial ou chefe <strong>de</strong> nação que receberia o Mahbub ul Haq consi<strong>de</strong>raram louváveis a<br />
chamada re<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteção social que <strong>FHC</strong> freqüentemente <strong>de</strong>staca em seus<br />
pronunciamentos. Fernando Henrique refere-se a um conjunto <strong>de</strong> 11 programas sociais<br />
que teriam sido <strong>de</strong>senvolvidos nos seus oito anos <strong>de</strong> governo. Oito <strong>de</strong>les faziam parte<br />
da Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Proteção Social. O Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Programa <strong>de</strong><br />
Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), Agente Jovem e Auxílio-Gás são programas <strong>de</strong><br />
transferência direta <strong>de</strong> renda por meio do chamado Cartão do Cidadão, que permite às<br />
famílias cadastradas sacarem o benefício diretamente nos bancos autorizados.
90% eram obrigação<br />
Os valores dos repasses para o Bolsa-Escola são <strong>de</strong> 15 reais mensais. Segundo<br />
relatório do governo, o programa atingiu 10,2 milhões <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong> 6 a 15 anos, com<br />
freqüência escolar acima <strong>de</strong> 85%. O mesmo vai para os inscritos no Bolsa Alimentação<br />
<strong>–</strong> cedida a 1,6 milhão <strong>de</strong> gestantes, mães lactantes e crianças com risco nutricional <strong>de</strong><br />
até 6 anos e 11 meses. O Auxílio-Gás paga 15 reais a cada 2 meses para a família<br />
selecionada <strong>–</strong> a previsão era aten<strong>de</strong>r 9,3 milhões famílias em 2002. As crianças entre 7<br />
e 14 anos beneficiadas pelo Peti <strong>–</strong> 810 mil contabilizados <strong>–</strong> recebem mensalmente 25<br />
reais se <strong>de</strong>ixarem o trabalho no campo e 40 reais se pararem <strong>de</strong> trabalhar na cida<strong>de</strong>. O<br />
Programa Agente Jovem paga 65 reais por mês a jovens entre 15 e 17 anos (100 mil<br />
registrados) que prestam serviços à comunida<strong>de</strong>.<br />
Ainda na Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Proteção Social estão três programas, que pagam um salário<br />
mínimo mensal, com recursos da Segurida<strong>de</strong> Social. O Benefício <strong>de</strong> Prestação<br />
Continuada é <strong>de</strong>stinado a <strong>de</strong>ficientes físicos e idosos com mais <strong>de</strong> 67 anos que<br />
pertençam a famílias cuja renda per capita mensal seja menor do que ¼ do salário<br />
mínimo <strong>–</strong> 1,5 milhão beneficiados. A Renda Mensal Vitalícia é para idosos acima <strong>de</strong> 70<br />
anos e inválidos <strong>–</strong> 724 mil contemplados. E a Aposentadoria Rural <strong>de</strong>stina-se a<br />
trabalhadores e trabalhadoras rurais com mais <strong>de</strong> 60 e 55 anos, respectivamente <strong>–</strong> 6,4<br />
milhões atendidos. Os dois últimos são pagos pelo Instituto Nacional <strong>de</strong> Segurida<strong>de</strong><br />
Social (INSS).<br />
O governo consi<strong>de</strong>ra também benefício social programas para os <strong>de</strong>sempregados<br />
que <strong>de</strong>pendam dos recursos do Fundo <strong>de</strong> Amparo ao Trabalhador (FAT), que tem a<br />
maior parte <strong>de</strong> sua receita originada no recolhimento do PIS-PASEP. O Abono Salarial<br />
garante um salário mínimo anual a trabalhadores que têm média salarial anual <strong>de</strong> até 2<br />
salários mínimos <strong>–</strong> 5,2 milhões <strong>de</strong> beneficiados. O Bolsa-Qualificação é pago a<br />
trabalhadores que têm contrato <strong>de</strong> trabalho suspenso temporariamente <strong>–</strong> 10,4 mil<br />
beneficiados. E o Seguro-Desemprego é entregue àqueles que tenham trabalhado<br />
formalmente 6 meses seguidos <strong>–</strong> foram 4,4 milhões beneficiados. É bom lembrar que<br />
para gozar os benefícios dos três programas sociais o cidadão precisa ter tido emprego<br />
formal, com registro na carteira, condição <strong>de</strong> apenas 47% dos trabalhadores do país.<br />
Gran<strong>de</strong> foi a publicida<strong>de</strong> governamental sobre o crescimento dos recursos<br />
<strong>de</strong>stinados aos programas sociais. Entretanto, é preciso <strong>de</strong>stacar que 90,3% dos<br />
recursos <strong>de</strong>dicados ao “social” são vinculados a direitos assegurados pela Constituição<br />
<strong>de</strong> 1988, como a aposentadoria rural, por exemplo. Ao contrário do que afirma o<br />
governo passado, não resultam da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, que ainda os restringiu.
O crescimento <strong>de</strong> recursos foi <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 20% nos 8 anos do Plano Real. No<br />
mesmo período, a receita do governo fe<strong>de</strong>ral subiu 31% e a participação dos gastos<br />
sociais nas <strong>de</strong>spesas correntes caiu <strong>de</strong> 60% para 55%, <strong>de</strong> 1995 a 2001.<br />
Um estudo do Ipea, com base na Pesquisa Nacional <strong>de</strong> Amostra por Domicílios<br />
(Pnad) <strong>de</strong> 2001, aponta a existência <strong>de</strong> 24,73 milhões <strong>de</strong> brasileiros vivendo na<br />
miséria, ao final <strong>de</strong> 2001, com renda inferior a 55 reais por mês <strong>–</strong> menos <strong>de</strong> 2 reais por<br />
dia, quantia consi<strong>de</strong>rada insuficiente para suprir as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alimentação. A<br />
proporção <strong>de</strong> miseráveis teria subido <strong>de</strong> 14,51% em 2000 para 14,60% em 2001.<br />
Esses miseráveis fazem parte dos 54 milhões <strong>de</strong> pessoas consi<strong>de</strong>radas pobres,<br />
integrantes <strong>de</strong> famílias que têm renda mensal média per capita menor do que ½ salário<br />
mínimo. Isso correspon<strong>de</strong> a 32,1% da população. Esses números surgem <strong>de</strong> um<br />
relatório feito pelo IBGE para o Fundo das Nações Unidas para a População, também<br />
com dados da Pnad.<br />
Pela soma do número <strong>de</strong> beneficiados listados, tirando o Vale-Gás, que paga a<br />
média <strong>de</strong> 7,5 reais por mês às famílias e é bem recente, os programas alar<strong>de</strong>ados por<br />
<strong>FHC</strong> teriam atingido 30.954.400 <strong>de</strong> pessoas. O que se vê, portanto, é que, em oito<br />
anos <strong>de</strong> ação social con<strong>de</strong>corada, o governo fe<strong>de</strong>ral conseguiu aten<strong>de</strong>r, muitas vezes<br />
com a mo<strong>de</strong>sta quantia <strong>de</strong> 15 reais mensais, apenas 57,2% da população carente.<br />
Entre os indicadores sociais do governo Fernando Henrique <strong>de</strong>veria ser inserido o<br />
que mostra a situação do <strong>de</strong>semprego no país. De um total <strong>de</strong> 108 nações<br />
selecionadas, o Brasil foi da 10ª pior posição em 1985 para a sexta pior em 1995 e<br />
para a segunda, em 2000, com 11, 4 milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados. O <strong>de</strong>semprego na<br />
região metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte em 1996 (quando o Dieese começou a coletar<br />
dados sobre o assunto na cida<strong>de</strong>) era <strong>de</strong> 12,7% da PEA (População Economicamente<br />
Ativa). Em 2001, esse índice saltou para 18,3% <strong>–</strong> ver texto nas páginas <strong>de</strong> 40 a 43.<br />
Além da <strong>de</strong>struição do emprego no país, o trabalhador que ainda encontra ocupação<br />
sofre, agora, com o que tem sido consi<strong>de</strong>rado seu pior momento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a implantação<br />
do Plano Real. Segundo o Ipea, o rendimento médio do trabalhador brasileiro vai<br />
chegar ao fim <strong>de</strong> 2002 com perda estimada <strong>de</strong> 0,74% durante os oito anos do Real. Os<br />
ganhos obtidos nos anos 93 a 95, quando o país saiu da gran<strong>de</strong> recessão <strong>de</strong> 90 a 92,<br />
foram sendo progressivamente corroídos. No final <strong>de</strong> 1994, o salário médio do<br />
trabalhador no Brasil era <strong>de</strong> 664,93 reais e, no fim <strong>de</strong> 2002, terá chegado a 660 reais,<br />
em valores <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2000.<br />
Pela fila <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados atendidos por Antônio na porta da central sindical em<br />
Santo Amaro, São Paulo, um salário <strong>de</strong> 660 reais é um sonho. Os salários e vagas<br />
publicados nos classificados do jornal distribuído pelo sindicato não são nada<br />
animadores. A melhor renda oferecida era <strong>de</strong> 2 mil reais, para diplomados em medicina
que se candidatassem à vaga <strong>de</strong> médico do trabalho. Os outros salários eram <strong>de</strong> 300<br />
reais para uma costureira <strong>de</strong> máquina reta; 200 reais, a um borracheiro; 350 reais para<br />
balconista <strong>de</strong> papelaria; 467 reais para manobrista; 730 reais <strong>de</strong>stinados a mecânico<br />
<strong>de</strong> refrigeração; 282 reais a um auxiliar <strong>de</strong> limpeza; 400 reais para um açougueiro; 640<br />
reais para vigilante. Dasilton, um dos operários atendidos, diz que uma vaga <strong>de</strong><br />
vigilante seria bem vinda.<br />
Dasilton é chefe <strong>de</strong> família e sua filha é beneficiada com os 15 reais mensais do<br />
programa Bolsa-Escola. Mas o que segura as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> casa, incluindo o aluguel <strong>de</strong><br />
200 reais, é a pensão <strong>de</strong> 400 reais que sua mulher recebe por estar sofrendo <strong>de</strong><br />
tendinite <strong>de</strong>vido a seu trabalho <strong>de</strong> frentista em posto <strong>de</strong> gasolina. Dasilton sabe que<br />
po<strong>de</strong> ser preterido pelos candidatos que fizeram algum curso para a função. Ele não<br />
po<strong>de</strong> fazer um curso assim. “Os cursos <strong>de</strong> 15 dias custam 300 reais, mais a condução,<br />
um lanche... Ali você apren<strong>de</strong> a usar uma arma, <strong>de</strong>fesa pessoal, mas para quem está<br />
<strong>de</strong>sempregado, como vai arrumar quase 500 reais? E o curso não garante que você vai<br />
ganhar a vaga”.<br />
Desemprego<br />
Desemprego e baixo rendimento salarial sem dúvida marcaram a última década,<br />
sobretudo no interior do país e nas periferias das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s. A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />
Paulo, responsável por 15% do PIB nacional, sentiu o baque da abertura da economia,<br />
das políticas <strong>de</strong> incentivo fiscal e da estagnação no ritmo <strong>de</strong> crescimento. A taxa <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>semprego na cida<strong>de</strong> passou <strong>de</strong> 8,9% em 1989 para 17,6% em 2001. O número <strong>de</strong><br />
domicílios pobres paulistanos subiu 19,6%. Uma visita à chamada “Zona Sul 2” <strong>de</strong> São<br />
Paulo ajuda a enten<strong>de</strong>r a questão social no país. A região abriga bairros sempre<br />
pontilhados <strong>de</strong> favelas, mas consi<strong>de</strong>rados <strong>de</strong> classe média e remediados. E reúne<br />
também distritos como Parelheiros, Jardim Ângela, Capão Redondo, Grajaú, Jardim<br />
São Luís e outros on<strong>de</strong> o aumento do número <strong>de</strong> domicílios pobres entre 1991 e 2000<br />
foi maior do que o aumento médio na cida<strong>de</strong>. No Jardim Ângela, por exemplo, o<br />
número <strong>de</strong> domicílios pobres cresceu 103% <strong>–</strong> <strong>de</strong> 9.940, em 1991, para 20.173, em<br />
2000 <strong>–</strong> e o aumento populacional no período foi <strong>de</strong> apenas 36,7%. Em Parelheiros, o<br />
aumento do número <strong>de</strong> lares pobres foi <strong>de</strong> 167,7% (<strong>de</strong> 3.418 para 9.148) e o<br />
crescimento da população <strong>de</strong> 84,4%. Capão Redondo teve 42,1% <strong>de</strong> aumento no<br />
número <strong>de</strong> lares pobres e o Jardim São Luís, 51,5%, com crescimento populacional no<br />
mesmo período, entre 1991 e 2000, <strong>de</strong> 25,3% e 16%, respectivamente.
A Associação dos Moradores do Jardim Comercial (AMJC), no Capão Redondo,<br />
representa a tábua <strong>de</strong> salvação para muitas famílias do bairro. A Associação concentra<br />
ações sociais e a distribuição <strong>de</strong> benefícios dos governos estadual e municipal. Do<br />
governo fe<strong>de</strong>ral, a diretoria da Associação conseguiu apenas uma bolsa do Peti. Em<br />
conjunto com a prefeitura, a Associação abriga o Espaço Gente Jovem, que oferece<br />
recreação e alimentação para cerca <strong>de</strong> 250 crianças, <strong>de</strong> 6 a 15 anos. A creche,<br />
também em convênio com a prefeitura, aten<strong>de</strong> 60 crianças. Cerca <strong>de</strong> 80% dos meninos<br />
e meninas matriculadas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m completamente das refeições na creche. A<br />
Associação faz também a distribuição do programa Leve Leite da prefeitura (2 litros <strong>de</strong><br />
leite, distribuídos duas vezes por semana, para 300 famílias) e da cesta básica, do<br />
governo estadual <strong>–</strong> 100 famílias. A AMJC cadastrou a população que pleiteava receber<br />
os benefícios sociais. É claro que a <strong>de</strong>manda foi bem maior do que a oferta e muita<br />
gente ficou <strong>de</strong> fora.<br />
Guerra Social<br />
A família <strong>de</strong> José Joaquim da Silva é uma das que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da ajuda<br />
governamental. O motivo principal da penúria é o <strong>de</strong>semprego. Falta emprego para<br />
José e para sua mulher, Ana. Há mais <strong>de</strong> 12 anos, ele não tem a carteira <strong>de</strong> trabalho<br />
assinada. Antes teve registro <strong>de</strong> empregos na construção civil e em restaurantes. José<br />
Joaquim chegou no Jardim Comercial em 1987, quando a favela on<strong>de</strong> mora estava<br />
sendo formada, sobre um terreno que minava água. O povo foi fazendo aterros,<br />
levantando os barracos e hoje a casa <strong>de</strong> alvenaria <strong>de</strong> poucos cômodos abriga ele, a<br />
mulher e 4 filhos <strong>de</strong> 5 a 14 anos. A família é beneficiada com cerca <strong>de</strong> 200 reais do<br />
programa Renda Mínima da prefeitura municipal, que exige a freqüência das crianças<br />
na escola. Dona Ana também recebe o Leve Leite <strong>–</strong> a filha Jaiane ainda tem 5 anos.<br />
Devido à gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>manda, as famílias po<strong>de</strong>m per<strong>de</strong>r a ajuda quando houver uma nova<br />
avaliação dos programas ou quando as crianças ultrapassarem a ida<strong>de</strong> limite. “Quando<br />
acabar, acabou”, diz José Joaquim, que sabe que a única saída é encontrar trabalho,<br />
pelo menos uns bicos com mais assiduida<strong>de</strong>. “Trabalho em construção por aí durante<br />
um mês, ganho uns 300 reais, mas <strong>de</strong>pois fico dois parados. Pego a bicicleta e vou até<br />
Santo Amaro, Pinheiros, buscando serviço. No caminho fico fazendo muito parafuso<br />
que não cabe em nenhuma porca: você sabe, muito pensamento para nenhuma<br />
solução”.<br />
O cemitério municipal São Luís, que aten<strong>de</strong> toda a periferia sul da cida<strong>de</strong>,<br />
representa uma cicatriz da violência na região. Gran<strong>de</strong> parte das vítimas <strong>de</strong> homicídios,
que marcaram os bairros do entorno na última década, jaz naquele local. Não há<br />
números exatos, estatísticas precisas, mas estimativas <strong>de</strong> funcionários indicam que o<br />
serviço funerário público já chegou a realizar <strong>de</strong> 40 a 50 sepultamentos por dia <strong>–</strong> mais<br />
da meta<strong>de</strong>, vítimas <strong>de</strong> mortes violentas. Há também relatos <strong>de</strong> histórias<br />
impressionantes acontecidas <strong>de</strong>ntro dos muros do cemitério, como a invasão <strong>de</strong> um<br />
velório por um bando para confirmar o <strong>de</strong>stino do rival morto. Para não haver dúvidas,<br />
um revólver foi <strong>de</strong>scarregado sobre o caixão. Entre a população dos bairros próximos<br />
corre a história <strong>de</strong> que bandidos pe<strong>de</strong>m às famílias para não serem enterrados ali, caso<br />
venha a fatalida<strong>de</strong>. Dizem que mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morto, o cidadão não tem <strong>de</strong>scanso<br />
naquele cemitério, vulnerável à ação <strong>de</strong> bandidos e vândalos.<br />
O estigma do cemitério já chegou às “pessoas <strong>de</strong> bem”. No portão <strong>de</strong> entrada do<br />
cemitério, Evelyn se empenha para ven<strong>de</strong>r túmulos aos visitantes. Os jazigos à venda,<br />
por meio <strong>de</strong> plano funerário com prestações comparáveis às <strong>de</strong> um plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />
simples, são <strong>de</strong> um cemitério particular não muito longe dali. Segundo a ven<strong>de</strong>dora, as<br />
famílias <strong>de</strong> mortos enterrados no São Luís não têm sossego. “Quando chove tem até<br />
risco dos ossos serem levados pela enxurrada. Além disso, sempre po<strong>de</strong> entrar alguém<br />
e fazer mais uma malda<strong>de</strong> ao morto”, diz. Seu próprio pai esteve enterrado ali, também<br />
vítima <strong>de</strong> “morte matada”, em 1995. “Foi morto quando chegava em casa em uma noite<br />
<strong>de</strong> carnaval”. Evelyn, evangélica, dá graças a Deus que sua família conseguiu comprar<br />
um jazigo e removeu os restos do pai e <strong>de</strong> sua avó para o cemitério particular.<br />
Hoje, afirmam os administradores do São Luís, o local está mais bem cuidado e o<br />
número <strong>de</strong> enterros caiu muito, variando <strong>de</strong> 10 a 15 por dia. Mesmo assim, a meta<strong>de</strong><br />
continua sendo <strong>de</strong> enterros <strong>de</strong> vítimas por morte violenta. Muitos moradores preferem<br />
creditar a diminuição dos enterros à diminuição da violência na região. A população faz<br />
questão <strong>de</strong> dizer que há muita imprecisão no noticiário que insiste em apontar os<br />
distritos <strong>de</strong> Jardim Ângela, Jardim São Luís, Capão Redondo, Parelheiros como os<br />
mais violentos da cida<strong>de</strong>. No caso do Capão Redondo e em outros 4 distritos da “Zona<br />
Sul 2” realmente os números <strong>de</strong> mortes violentas variou para baixo, se comparado<br />
1991 com 2000. No Capão foram <strong>de</strong> 180 mortes a 173. No distrito <strong>de</strong> Campo Limpo, o<br />
número coincidiu em 116 nos dois anos. No entanto, em outros 8 distritos da região<br />
houve a alta nesse índice e a soma total das estatísticas <strong>de</strong> mortes violentas no total <strong>de</strong><br />
14 distritos resulta em 1.469 mortes em 1991 e 1.781 em 2000.<br />
Ausência <strong>de</strong> Estado
Nesse período, São Paulo passou <strong>de</strong> 6.209 mortes violentas para 7.147. A taxa <strong>de</strong><br />
homicídios geral no país subiu <strong>de</strong> 21 mortes para 100 mil habitantes em 1990 para 27<br />
mortes por 100 mil habitantes em 2000. Em Minas Gerais, a explosão da violência foi<br />
ainda mais significativa. Entre 1991 e 2000, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> homicídios aumentou<br />
76%, passando <strong>de</strong> 1.227 para 2.165 assassinatos por ano. Do total <strong>de</strong> crimes violentos<br />
ocorridos no Estado em 1991, a região metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte respondia por<br />
44%. Em 2000, a capital passou a sediar 61% dos homicídios mineiros.<br />
No mesmo período houve sobretudo o aumento da vitimização <strong>de</strong> jovens e<br />
adolescentes. No Brasil, no ano 2000, foram assassinados 17.662 jovens entre 15 a 25<br />
anos. A mortalida<strong>de</strong> média nacional para os jovens nessa faixa <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> foi <strong>de</strong> 52 por<br />
100 mil. A média da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, foi <strong>de</strong> 139 mortes por 100 mil jovens. Mas<br />
como as mortes não atingem <strong>de</strong> modo igual as diversas camadas sociais, na Vila<br />
Mariana, bairro <strong>de</strong> classe média da capital paulista, a média foi <strong>de</strong> 22 para 100 mil<br />
jovens; em Capão Redondo, foi <strong>de</strong> 298; e na cida<strong>de</strong> Dutra, outro bairro pobre da capital<br />
paulista, foi <strong>de</strong> 441 <strong>–</strong> taxa quatro vezes a média paulistana, quase <strong>de</strong>z vezes a média<br />
nacional e 20 vezes maior que a taxa da Vila Mariana.<br />
Em todo o país a mortalida<strong>de</strong> entre os jovens disparou <strong>de</strong> 35 mil para 52 mil entre<br />
1990 e 2000, um aumento <strong>de</strong> quase 50%, que levou o Brasil a subir para a condição <strong>de</strong><br />
terceiro pior país do mundo nesse aspecto <strong>–</strong> acima do Brasil estão apenas a Colômbia<br />
e Porto Rico.<br />
A ausência do Estado na periferia, po<strong>de</strong>-se dizer, é uma das causas centrais da<br />
violência. A falta <strong>de</strong> acesso à saú<strong>de</strong>, ao lazer, à cultura e ao trabalho faz aumentar a<br />
violência, particularmente entre os adolescentes, que atravessam o período da vida <strong>de</strong><br />
maior turbulência e são mais propensos a se envolver com a vida breve, mas com<br />
algum dinheiro, oferecida pelo narcotráfico.<br />
Levantamento feito pelo Centro <strong>de</strong> Estudos <strong>de</strong> Criminalida<strong>de</strong> e Segurança Pública<br />
(Crisp), órgão da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais (UFMG), indica que quase<br />
25% dos crimes violentos ocorridos em vilas e favelas estão ligados ao tráfico <strong>de</strong><br />
drogas e seus conseqüentes “acertos <strong>de</strong> contas”. Nas seis favelas mais violentas <strong>de</strong><br />
Belo Horizonte, as taxas <strong>de</strong> homicídios chegam a ser sete vezes maior que em um<br />
bairro <strong>de</strong> classe média. No Morro das Pedras, por exemplo, entre março e julho <strong>de</strong><br />
2002, ocorreram 99,72 homicídios por 100 mil habitantes. Na cida<strong>de</strong>, exlcuindo-se os<br />
crimes das seis regiões dominadas pelo narcotráfico, o índice foi <strong>de</strong> 12,08 no mesmo<br />
período.<br />
O governo <strong>FHC</strong>, é claro, não criou esse problema. Entre 1980 e 1990 esses índices<br />
também cresceram. Mas em ritmo menos acelerado: a mortalida<strong>de</strong> por homicídio entre<br />
os jovens no período, por exemplo, foi <strong>de</strong> 30 para 35 para cada grupo <strong>de</strong> 100 mil. Mas
a responsabilida<strong>de</strong> dos dois governos <strong>FHC</strong> fica evi<strong>de</strong>nte diante <strong>de</strong> um estudo feito pela<br />
Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidarieda<strong>de</strong> da Prefeitura <strong>de</strong> São Paulo,<br />
que <strong>de</strong>monstra que a violência acompanhou <strong>de</strong> perto o aumento da pobreza. A<br />
variação média anual no número <strong>de</strong> mortes violentas na cida<strong>de</strong> foi <strong>de</strong> 2,4%, entre 1994<br />
e 2000, enquanto a variação média anual na quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> chefes <strong>de</strong> domicílios<br />
pobres esteve em 2% entre 1991 e 2000.<br />
Há sete anos, uma procissão no dia <strong>de</strong> finados reúne milhares <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> toda<br />
zonal sul <strong>de</strong> São Paulo que convergem em caminhada até o Cemitério São Luís. A<br />
Caminhada da Paz, organizada pelo Fórum <strong>de</strong> Defesa da Vida, formado por vários<br />
movimentos sociais da zona sul, foi um jeito que a população encontrou para expressar<br />
sua dor e indignação com os altos índices <strong>de</strong> violência e, porque não, com os altos<br />
índices <strong>de</strong> exclusão social. É justo que as comunida<strong>de</strong>s queiram se livrar do estigma da<br />
violência e, sobretudo, da violência <strong>de</strong>corrente da exclusão. Os distritos da região sul<br />
concentram mais <strong>de</strong> 400 entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> moradores organizados num sinal inequívoco da<br />
vonta<strong>de</strong> das comunida<strong>de</strong>s. No entanto, como afirma Vera Neves, do Centro <strong>de</strong> Direitos<br />
Humanos e Educação Popular <strong>de</strong> Campo Limpo <strong>–</strong> que tem entre suas ativida<strong>de</strong>s a<br />
missão <strong>de</strong> formar e orientar li<strong>de</strong>ranças comunitárias <strong>–</strong>, por mais que a população se<br />
organize, por mais que os governos dêem programas sociais como esmolas aos<br />
pobres, o ritmo acelerado com que a exclusão vem englobando as famílias já<br />
empobrecidas é o que vai <strong>de</strong>terminar o agravamento da verda<strong>de</strong>ira guerra social que<br />
dizima a juventu<strong>de</strong> pobre <strong>de</strong> extensas áreas urbanas do país.<br />
E se Fernando Henrique não é o responsável pelo surgimento <strong>de</strong>sse problema, foi<br />
nos seus dois governos que se viu o agravamento <strong>de</strong>ssa guerra social, que dizima a<br />
juventu<strong>de</strong> pobre, sem que nenhuma gran<strong>de</strong> iniciativa fosse feita para combatê-la. Não<br />
se trata <strong>de</strong> um problema <strong>de</strong> fácil solução. A consolidação da pobreza, da violência e da<br />
<strong>de</strong>sesperança dos jovens em extensas áreas pobres dos maiores centros urbanos é,<br />
com certeza, uma das maiores dificulda<strong>de</strong>s para um novo governo que queira<br />
efetivamente mudar o país.<br />
Democracia plena, para o gran<strong>de</strong> capital<br />
<strong>FHC</strong> foi responsável por 34 alterações na Constituição e assinou 5.300 Medidas Provisórias. O<br />
paralelo com os <strong>de</strong>cretos-lei dos militares é inevitável.
O chanceler alemão Otto von Bismarck disse que os cidadãos não po<strong>de</strong>riam<br />
dormir tranqüilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis. No Brasil, a<br />
afirmação proce<strong>de</strong>, pois gran<strong>de</strong> parte da legislação tem sido elaborada por um método<br />
prussiano, por meio <strong>de</strong> Medidas Provisórias <strong>–</strong> semelhantes aos <strong>de</strong>cretos-lei dos<br />
militares, que têm valor legal a partir da data <strong>de</strong> sua edição e, até setembro <strong>de</strong> 2001,<br />
podiam ser reeditadas quantas vezes fossem necessárias para aten<strong>de</strong>r à vonta<strong>de</strong> do<br />
presi<strong>de</strong>nte da República.<br />
Quando foram <strong>de</strong>lineadas na Constituinte <strong>de</strong> 1988, as Medidas Provisórias eram<br />
vistas como instrumentos excepcionalíssimos, a serem usados em situações <strong>de</strong><br />
extrema gravida<strong>de</strong>. A Constituição colocou como requisitos à sua edição a urgência e a<br />
relevância da matéria. A banalização <strong>de</strong>ssas Medidas tirou qualquer significado a<br />
esses requisitos. “Urgente” e “relevante” passou a ser o que o chefe do Executivo<br />
quisesse. Para completar, o Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral endossou essa interpretação.<br />
O abuso na edição <strong>de</strong> MPs foi tal que, em fins <strong>de</strong> 2001, as regras foram<br />
mudadas para coibir sua proliferação. Des<strong>de</strong> sua criação, em 1988, até 11 <strong>de</strong> setembro<br />
<strong>de</strong> 2001, data da promulgação da Emenda Constitucional (EC) nº 32, que alterou as<br />
regras <strong>de</strong> emissão, foram editadas 700 MPs originais e feitas 5.572 reedições. Algumas<br />
MPs foram revalidadas mais <strong>de</strong> 70 vezes, como é o caso da MP 2.074-73, que<br />
complementa dispositivos do Plano Real. Como praticamente toda reedição mudava a<br />
anterior, <strong>de</strong>ve-se contabilizar para cada presi<strong>de</strong>nte suas edições e reedições.<br />
Comparando as médias mensais <strong>de</strong> MPs e suas reedições, <strong>FHC</strong> é, <strong>de</strong> longe, o<br />
campeão no seu uso e abuso: José Sarney editou 6,13 por mês; Fernando Collor, 5,22;<br />
Itamar Franco, 18,8; Fernando Henrique, no primeiro mandato, 38,74 e, no segundo,<br />
81,51 medidas por mês.<br />
Edições sucessivas<br />
Até a EC-32, o presi<strong>de</strong>nte da República podia editar MPs para legislar sobre<br />
qualquer assunto. Se não fossem votadas no prazo <strong>de</strong> 30 dias, po<strong>de</strong>riam ser<br />
reeditadas in<strong>de</strong>finidamente, com as mudanças que o presi<strong>de</strong>nte quisesse,<br />
configurando, assim, um sistema legiferante completamente extravagante e<br />
praticamente à margem do Congresso Nacional. Um exemplo disso é a MP 1.669, <strong>de</strong><br />
19 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1998. Ela foi editada com a seguinte ementa: “altera a Lei 9.649, <strong>de</strong>
maio <strong>de</strong> 1998, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos<br />
Ministérios, e dá outras providências”.<br />
A MP foi reeditada sucessivamente, com um novo número a cada 30 dias. A<br />
alteração na sistemática das MPs fez com que passassem a ser reeditadas com o<br />
mesmo número, seguidas <strong>de</strong> dígitos informando a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reedições. Nessa<br />
nova sistemática, a MP 1.669 mudou para o número 2.225 e foi reeditada 45 vezes<br />
(2.225-45) antes <strong>de</strong> ser convertida em lei. A regra <strong>de</strong>veria ser a reedição nos mesmos<br />
termos do texto original, apenas com as alterações necessárias ao <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> tempo.<br />
No entanto, não foi isso que aconteceu. Nessas sucessivas reedições, a medida foi<br />
profundamente alterada.<br />
No original, a MP 1.669 criava órgãos <strong>de</strong> prevenção e repressão ao narcotráfico<br />
e ao tráfico <strong>de</strong> outras substâncias ilícitas e organizava o Sistema Nacional Antidrogas.<br />
Numa <strong>de</strong> suas reedições foi incluída, <strong>de</strong> contrabando, matéria sobre os servidores<br />
públicos em geral. A MP 1.669 continha sete artigos, na sua última reedição, como MP<br />
2.225-45, trazia 15, mais do que o dobro.<br />
Em suas sucessivas reedições, além do Sistema Antidrogas, regulou também a<br />
reversão <strong>de</strong> servidores aposentados à ativida<strong>de</strong>, débitos, reposições e in<strong>de</strong>nizações <strong>de</strong><br />
servidores ao erário, licenças para trato <strong>de</strong> interesse particular, vantagens pessoais,<br />
normas processuais relativas à ação <strong>de</strong> improbida<strong>de</strong> administrativa nos tribunais,<br />
quarentena <strong>de</strong> ministros e <strong>de</strong> servidores <strong>de</strong> Direção e Assessoramento Superior (DAS),<br />
reajuste <strong>de</strong> vencimentos <strong>de</strong> servidores e outros.<br />
É sintomático que a maioria <strong>de</strong>ssas normas restringiam direitos tradicionais dos<br />
servidores públicos. Na última reedição, por exemplo, a MP revogou o art. 26 da lei<br />
8.112/90, extinguindo o adicional por tempo <strong>de</strong> serviço, <strong>de</strong>vido à razão <strong>de</strong> 1% por ano<br />
<strong>de</strong> exercício do serviço público e incorporado a cada cinco anos à remuneração dos<br />
servidores. Essa alteração não po<strong>de</strong>ria sequer ser feita por MP, uma vez que o art. 246<br />
da Constituição Fe<strong>de</strong>ral veda a regulamentação por meio <strong>de</strong> medida provisória <strong>de</strong><br />
matéria que tenha sido alterada por Emenda Constitucional. Foi o caso dos arts. 37 e<br />
39 da Constituição, alterados pela EC-19. Os dois artigos dispõem sobre o sistema<br />
remuneratório dos servidores públicos, do qual é parte o adicional <strong>de</strong> tempo <strong>de</strong> serviço.<br />
Portanto, na época em que foi reeditada, posterior à EC-19, a MP não po<strong>de</strong>ria sequer<br />
tratar <strong>de</strong>sse adicional.<br />
Outro efeito daninho das medidas provisórias foi o caos jurídico. A cada mês, a<br />
reedição trazia novida<strong>de</strong>s em relação à sua versão anterior. Como no caso citado,<br />
algumas alterações implicavam no acréscimo <strong>de</strong> assuntos que não guardavam a menor<br />
relação com o texto original. Isso aconteceu também com a esdrúxula MP 2.077, <strong>de</strong><br />
2001, que reeditava matéria sobre auxílio-transporte e, <strong>de</strong> quebra, alterou a data <strong>de</strong>
pagamento dos servidores para o primeiro dia do mês seguinte <strong>–</strong> a intenção foi<br />
repassar a folha <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro para o outro exercício financeiro e garantir um superávit<br />
primário nominal.<br />
Foi por MP, também, que o governo <strong>FHC</strong> tentou, por duas vezes, implantar a<br />
inconstitucional e vergonhosa cobrança previ<strong>de</strong>nciária inci<strong>de</strong>nte sobre os proventos<br />
dos aposentados, matéria que foi <strong>de</strong>rrotada judicialmente e, excepcionalmente,<br />
também no Congresso.<br />
As medidas provisórias impuseram ao Congresso Nacional a pauta do<br />
Executivo. Tornou-se comum o atropelo da tramitação <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> lei, pela<br />
superveniência <strong>de</strong> medida provisória sobre o mesmo tema. O governo tornou-se o<br />
gran<strong>de</strong> legislador, usurpando as funções do parlamento.<br />
Para os operadores do direito, juízes, membros do Ministério Público e<br />
advogados, tornava-se cada vez mais difícil acompanhar a verborragia legislativa do<br />
Executivo. Era praticamente impossível dizer que normas estavam em vigor, quais<br />
novos institutos jurídicos tinham passado a valer e quais diplomas legais tinham sido<br />
revogados. Para a população, isso significava a falta <strong>de</strong> segurança das relações<br />
jurídicas, que é um dos valores fundamentais do direito.<br />
O mundo jurídico brasileiro da era <strong>FHC</strong> tornou-se um caos e o paraíso das<br />
gran<strong>de</strong>s bancas <strong>de</strong> advocacia, especialmente em matéria tributária. Os novos limites<br />
<strong>de</strong>finidos para as MPs não são suficientes para constituir a “<strong>de</strong>mocracia plena” que<br />
Fernando Henrique diz ter <strong>de</strong>ixado.<br />
Entulhando o STF<br />
O governo <strong>FHC</strong> foi também o autor <strong>de</strong> um dilúvio <strong>de</strong> <strong>de</strong>cretos regulamentadores,<br />
<strong>de</strong> portarias, editais e normas da Presidência, ministérios e do Banco Central.<br />
Foi também o governo responsável por inundar o Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral e<br />
outros tribunais superiores com uma enxurrada <strong>de</strong> processos, muitas vezes meramente<br />
protelatórios. No Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça (STJ), nos anos 92-94, foram recebidos<br />
cerca <strong>de</strong> 35 mil processos. Somente no primeiro ano <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> já chegavam a quase 70<br />
mil, disparando para 185 mil em 2001.
O Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, no mesmo período, 1992 a 1994, recebeu, em<br />
média, 25 mil processos por ano. No governo <strong>FHC</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um crescimento<br />
progressivo, ano após ano, o STF registrou mais <strong>de</strong> 110 mil processos em 2001. O<br />
Supremo <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> atualizar os números que <strong>de</strong>talhavam a origem <strong>de</strong>sses processos.<br />
Mas, pelas informações disponíveis até 1996, sabe-se que mais <strong>de</strong> 50% <strong>de</strong>sses são<br />
proce<strong>de</strong>ntes do governo fe<strong>de</strong>ral. Em boa parte, foram ações do po<strong>de</strong>r Executivo <strong>de</strong><br />
caráter meramente protelatório: sempre que vencido em uma ação judicial, mesmo que<br />
a jurisprudência contrária às suas pretensões fosse avassaladora, mesmo quando a<br />
apelação era contraproducente do ponto <strong>de</strong> vista financeiro por implicar em encargos<br />
cada vez maiores, o governo recorria. Isso também se insere na lógica <strong>de</strong> assegurar<br />
superávits primários a curto prazo e ao viés, sempre presente na ação <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, <strong>de</strong> não<br />
reconhecer ou retardar ao máximo o reconhecimento <strong>de</strong> direitos sociais.<br />
Tudo foi objeto <strong>de</strong> MP<br />
Não há ramo do direito brasileiro que não tenha sofrido com a fúria legiferante<br />
<strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, que dispôs, com força <strong>de</strong> lei, sobre tudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a liquidação extrajudicial <strong>de</strong><br />
instituições financeiras até a meia-entrada para estudantes. É verda<strong>de</strong> que isso foi<br />
facilitado pela docilida<strong>de</strong> com que o Congresso aceitou <strong>de</strong>sempenhar um papel<br />
secundário e, em alguns momentos, até subserviente, amoldando-se a uma função<br />
meramente homologatória, em <strong>de</strong>corrência da folgada maioria governista entre os<br />
parlamentares. Essa subserviência ficou muito nítida no episódio da votação da<br />
proposta <strong>de</strong> instituir a reeleição, cuja vitória continua associada a <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> que o<br />
governo teria instalado um verda<strong>de</strong>iro “balcão <strong>de</strong> negócios”, em que teriam sido<br />
trocados votos <strong>de</strong> parlamentares por vantagens e até por dinheiro em espécie.<br />
De acordo com gravações obtidas pela Folha <strong>de</strong> S. Paulo, a votação da Emenda<br />
Constitucional que permitiu a reeleição <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, datada <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1996, foi<br />
precedida por uma gran<strong>de</strong> operação <strong>de</strong> aliciamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>putados por parte dos<br />
governistas no Congresso. Segundo as gravações, feitas com os <strong>de</strong>putados João Maia<br />
e Ronivon Santiago, ambos do PFL do Acre, foi montado um esquema que envolvia o<br />
<strong>de</strong>putado Pau<strong>de</strong>rney Avelino, na época da votação filiado ao PPB do Amazonas e,<br />
<strong>de</strong>pois, ao PFL, o ministro das Comunicações <strong>Sérgio</strong> Motta, do PSDB, o presi<strong>de</strong>nte da<br />
Câmara dos Deputados, Luís Eduardo Magalhães, do PFL, e os governadores do<br />
Amazonas, Amazonino Men<strong>de</strong>s, e o do Acre, Orleir Cameli. “Esse dinheiro é do<br />
Amazonino. Promessa do Pau<strong>de</strong>rney aqui. No nosso corredor aqui, falou em 200 paus,<br />
via Serjão,” disse Maia na gravação.
Os <strong>de</strong>putados dizem nas fitas que a barganha pelo voto previa o recebimento <strong>de</strong><br />
200 mil reais do governo fe<strong>de</strong>ral e <strong>de</strong> outros 200 mil reais do governo do Acre. “Pelo<br />
que eu sei bem é o seguinte: eram os 200 [mil reais] do Serjão, via Amazonino, que era<br />
a cota fe<strong>de</strong>ral, aí do acordo ...”, diz Maia. Ronivon Santiago diz que os 200 mil reais<br />
pagos pelo voto a favor da emenda da reeleição foram distribuídos amplamente. Afirma<br />
que o dinheiro vinha do “outro lado”, sugerindo que seria do ministro das<br />
Comunicações, <strong>Sérgio</strong> Motta. “Todo mundo pegou na faixa <strong>de</strong> 200, 300... Todo mundo<br />
pegou... Teve gente que negociou pagamento <strong>de</strong> banco, negociou todo <strong>de</strong>putado aí...<br />
Todo mundo”, diz Ronivon. O <strong>de</strong>putado acreano concluiu com um frase emblemática,<br />
porque parece fazer uma crítica ao esquema do qual participou e foi beneficiário: “É<br />
uma barbárie isso aí”.<br />
Blindagem<br />
O governo <strong>FHC</strong> impediu a apuração <strong>de</strong>ssa e <strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>núncias<br />
semelhantes, que davam conta <strong>de</strong> que o avassalamento do Po<strong>de</strong>r Legislativo teria sido<br />
conseguido com a prática generalizada <strong>de</strong> tráfico <strong>de</strong> influência e propinas,<br />
amesquinhando e <strong>de</strong>turpando a vida política no país. Assim, a maioria governista no<br />
Congresso, aten<strong>de</strong>ndo aos interesses <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, impediu a instalação da CPI da<br />
Reeleição e da CPI da Corrupção, usando todas as manobras possíveis para<br />
inviabilizá-las, apesar dos fortes indícios <strong>de</strong> ilicitu<strong>de</strong>s veiculados pela imprensa.<br />
Fernando Henrique foi ainda o presi<strong>de</strong>nte que praticamente <strong>de</strong>smontou a Carta<br />
Magna feita pela Assembléia Constituinte que re<strong>de</strong>mocratizou o país, em 1988. Hoje, a<br />
Constituição é uma colcha <strong>de</strong> retalhos, com 38 Emendas, 34 <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>. Foram alterados<br />
77 artigos constitucionais (alguns, alterados mais <strong>de</strong> uma vez), acrescidos 16 novos e<br />
revogados outros dois. Cerca <strong>de</strong> um terço do texto original foi, portanto, alterado, fruto<br />
da revisão neoliberal. Ou seja: a Constituição foi esquartejada e praticamente reescrita<br />
à imagem e semelhança <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> e seu governo.<br />
Para eles, os interesses <strong>de</strong> mercado sempre estiveram em primeiro lugar. É isso<br />
que significa a chamada “blindagem institucional” que retirou po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> “políticos” para<br />
entregar a “técnicos”, com ligações estreitas com mercado. Para isso foram criadas as<br />
agências <strong>de</strong> fiscalização (Anatel, Aneel, ANA etc) e se programou a autonomia do<br />
Banco Central, como se a in<strong>de</strong>pendência que já goza hoje não fosse suficiente. O<br />
significado, em todos esses casos, é sempre subtrair do Estado po<strong>de</strong>r político e<br />
aumentar o do mercado.
As alterações na Constituição visavam, obsessivamente, a suprimir direitos<br />
sociais ou a abrir caminho para a supressão <strong>de</strong>sses direitos por leis infraconstitucionais<br />
(ou mesmo medidas provisórias), quando não tinham por objetivo enfraquecer a<br />
soberania nacional ou entregar nosso patrimônio. Quase sempre foi este o conteúdo<br />
daquelas emendas: anti-social, antinacional e privatizante.<br />
O sentido <strong>de</strong>ssas alterações foi, em geral, o contrário do pretendido pelo<br />
constituinte originário. Não é sem razão que um dos nossos maiores juristas<br />
contemporâneos, Celso Antônio Ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Mello, representando a consciência<br />
jurídica progressista, disse que a Constituição <strong>de</strong> 1988, “<strong>de</strong> um lado, sofreu um<br />
processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfiguração por via <strong>de</strong> emendas que lhe subtraíram características<br />
básicas, amputando aspectos fundamentais <strong>de</strong> seu projeto. De outro, foi<br />
sistematicamente afrontada no que tinha <strong>de</strong> mais elementar; isto é, em seu<br />
comprometimento com os valores <strong>de</strong>mocráticos substanciados na tripartição do<br />
exercício do po<strong>de</strong>r. Ou seja: as normas que consagravam essa noção rudimentar,<br />
própria do Estado <strong>de</strong> Direito, sofreram e vêm sofrendo, diuturnamente, as mais<br />
<strong>de</strong>sabridas e rotineiras afrontas”. E conclui: “sem embargo, o que realmente se está a<br />
assistir são seus discretos funerais” .<br />
O estilo concentrador e autoritário <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> foi o responsável, também, por outra<br />
vítima: o pacto fe<strong>de</strong>rativo. O governo fe<strong>de</strong>ral concentrou, <strong>de</strong> forma maciça, a<br />
arrecadação tributária e os po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão em todos os assuntos relevantes, em<br />
<strong>de</strong>trimento dos estados e municípios, dando passos largos para um Estado, <strong>de</strong> fato,<br />
unitário, em que os as unida<strong>de</strong>s fe<strong>de</strong>radas tornar-se-iam meras divisões<br />
administrativas da União.<br />
Estado mínimo para o povo e máximo para o<br />
gran<strong>de</strong> capital<br />
O Estado brasileiro foi <strong>de</strong>sestruturado e reduzido com as privatizações, o aumento do<br />
endividamento e a diminuição nos gastos sociais. Já as <strong>de</strong>spesas com juros e serviços da dívida<br />
foram ampliadas.
Os orçamentos são excelentes instrumentos para mostrar a natureza do Estado.<br />
Neles po<strong>de</strong>-se ver <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem e para on<strong>de</strong> vai o dinheiro; quem paga a conta e quem<br />
se beneficia dos recursos públicos; quais são as priorida<strong>de</strong>s e quais são os interesses<br />
das forças que dominam a ação política.<br />
Como são elaboradas e como são controladas as contas <strong>de</strong> um Estado diz muito<br />
também sobre a natureza do processo <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> um país. Antes, as contas<br />
estatais eram tarefa do monarca. Com as revoluções burguesas, com a <strong>de</strong>rrota total ou<br />
parcial dos regimes monárquicos e o estabelecimento dos regimes republicanos ou das<br />
monarquias constitucionais, parlamentos eleitos passaram a votar as contas <strong>de</strong><br />
governo, estabelecer os tributos e limitar as <strong>de</strong>spesas.<br />
As revoluções socialistas do século 20 procuraram criar Estados <strong>de</strong> natureza<br />
diferente, que controlassem também o planejamento e os principais ramos da geração<br />
<strong>de</strong> riqueza <strong>de</strong> um país, com as empresas públicas. E com parlamentos diferentes <strong>–</strong> não<br />
<strong>de</strong> políticos profissionais, mas formados por trabalhadores comuns, convocados<br />
periodicamente para a tarefa <strong>de</strong> legislar e aprovar o orçamento. É o caso, ainda hoje,<br />
por exemplo, <strong>de</strong> Cuba ou da China. A Assembléia Nacional Popular da China, que se<br />
reúne no próximo mês <strong>de</strong> março, por exemplo, discute um orçamento público que inclui<br />
não apenas as <strong>de</strong>spesas e receitas dos ministérios tradicionais como da Educação,<br />
Saú<strong>de</strong> e outros; mas também o controle <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> empresas<br />
estatais fe<strong>de</strong>rais <strong>–</strong> a China tem, além <strong>de</strong>ssas, mais algumas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong><br />
empresas estatais estaduais e municipais.<br />
Nas economias <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do Terceiro Mundo, <strong>de</strong>pois da gran<strong>de</strong> crise<br />
capitalista dos anos 30, surgiram Estados burgueses com gran<strong>de</strong> presença na<br />
economia, com um número expressivo <strong>de</strong> empresas estatais no setor produtivo. Carlos<br />
Sobral, coor<strong>de</strong>nador do estudo do IBGE sobre as estatais brasileiras divulgado no final<br />
do ano passado, relembrou, na ocasião, que o país já teve cerca <strong>de</strong> 800 estatais, que<br />
eram responsáveis por mais ou menos 50% do investimento no país.<br />
O Orçamento Geral da União (OGU) compõe-se <strong>de</strong> três orçamentos e reflete,<br />
ainda hoje, essa característica <strong>de</strong> nosso Estado: um dos orçamentos é o dos<br />
investimentos das estatais. Os outros dois são o da Segurida<strong>de</strong> Social, em que estão<br />
as <strong>de</strong>spesas da previdência, saú<strong>de</strong> e da assistência social; e o orçamento fiscal, que<br />
trata das <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>spesas do Executivo (em que estão outros ministérios), do<br />
Legislativo e do Judiciário.<br />
Fernando Henrique, no seu propósito <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir aspectos essenciais da<br />
chamada Era Vargas <strong>–</strong>, dos governos iniciados com a Revolução <strong>de</strong> 30 e que, a<br />
<strong>de</strong>speito <strong>de</strong> interrupções, <strong>de</strong>terminaram a natureza do sistema econômico brasileiro até
ecentemente <strong>–</strong> empenhou-se, explicitamente, em acabar com as empresas estatais do<br />
setor produtivo. Mesmo assim, o país ainda tem 320 empresas estatais, nos três níveis<br />
da fe<strong>de</strong>ração. O orçamento <strong>de</strong> investimentos das estatais fe<strong>de</strong>rais brasileiras <strong>de</strong> 2003 é<br />
<strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 27 bilhões <strong>de</strong> reais, muito maior do que o investimento previsto nos<br />
orçamentos fiscal e da segurida<strong>de</strong>. Isso, porque nele ainda estão, por exemplo, duas<br />
gigantes da economia do país: a Petrobrás, a maior empresa brasileira, e a Eletrobrás,<br />
a holding que agrupa as gran<strong>de</strong>s geradoras <strong>de</strong> eletricida<strong>de</strong>, que são ainda, em sua<br />
maioria, públicas. No auge da crise <strong>de</strong> energia brasileira, Fernando Henrique, a<br />
<strong>de</strong>speito <strong>de</strong> toda sua aversão às estatais, criou mais uma: a CBCE <strong>–</strong> Companhia<br />
<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> Comercialização <strong>de</strong> Energia. Estado novo<br />
<strong>FHC</strong> prometeu fazer uma revolução no Estado brasileiro. Con<strong>de</strong>nou, não só sua<br />
intervenção direta na produção, como também o seu papel <strong>de</strong> planejamento. A ação<br />
direta do Estado na economia e o dirigismo estatal, dizia ele, eram entraves ao<br />
<strong>de</strong>senvolvimento do Brasil. Os mercados seriam mais ágeis e por meio <strong>de</strong>les o país<br />
teria novas tecnologias, mais investimentos e menos corrupção. Melhor ainda, estaria<br />
livre das funções <strong>de</strong> produzir ou planejar a ação econômica, concentrado no que<br />
seriam seus serviços essenciais: educação, saú<strong>de</strong>, assistência social <strong>–</strong> o Estado seria<br />
mais eficiente e o povo estaria mais bem atendido. É essencial, portanto, fazer um<br />
balanço do que ele fez e que tipo <strong>de</strong> Estado, transformado, ele <strong>de</strong>ixou. Cinco<br />
observações po<strong>de</strong>m ser feitas:<br />
1) A primeira já foi apresentada: <strong>FHC</strong> reduziu bastante a ação econômica do Estado.<br />
No seu governo, segundo o IBGE, entre 1995 e 2000, foram privatizadas 134 empresas<br />
<strong>–</strong> 52 financeiras e 82 não-financeiras. Em 1995, ao votar o orçamento <strong>de</strong> investimento<br />
das empresas estatais, o Congresso <strong>de</strong>cidia sobre 10,7% do total <strong>de</strong> investimentos da<br />
economia brasileira. Em 2000, esse valor era mais ou menos a meta<strong>de</strong> disso, 5,8%,<br />
segundo os dados <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro do IBGE (veja box na próxima página).<br />
2) A segunda gran<strong>de</strong> mudança po<strong>de</strong>-se ver pela parte financeira do orçamento, não a<br />
que trata dos impostos e contribuições e nem das <strong>de</strong>spesas mais visíveis, como os<br />
gastos com pessoal, investimentos e custeio dos ministérios; mas a que trata da dívida<br />
do Estado, <strong>de</strong> sua amortização e do pagamento <strong>de</strong> seus juros. Essa parte agora é<br />
muito maior: o país paga e arrecada muito mais com a emissão <strong>de</strong> títulos públicos do<br />
que antes. Não porque a arrecadação <strong>de</strong> impostos e contribuições tenha sido pequena<br />
no governo <strong>FHC</strong>. Ao contrário: ele promoveu uma verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>rrama fe<strong>de</strong>ral. Depois<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>duzidas as transferências constitucionais, o governo central ficará com cerca <strong>de</strong><br />
20% do produto nacional nas previsões do orçamento <strong>de</strong> 2003. Em valores, um
crescimento <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 50% em relação a 1995. Mas essa sangria não foi suficiente<br />
para cobrir nem mesmo os juros da dívida, que, em termos absolutos e valores<br />
relativos, disparou no período <strong>FHC</strong>.<br />
3) Na parte do orçamento que trata dos serviços públicos, Fernando Henrique <strong>de</strong>ixa<br />
para Lula um orçamento <strong>de</strong>sigual <strong>–</strong> bem maior do que o que encontrou em 1995 em<br />
algumas áreas, menor em outras e, no geral, com gastos bem inferiores àqueles que<br />
se esperaria em <strong>de</strong>corrência do gran<strong>de</strong> aumento da arrecadação. A receita <strong>de</strong><br />
impostos e contribuições, entre o realizado em 1995 e o estimado para 2003, irá<br />
aumentar 82%; mas as <strong>de</strong>spesas com saú<strong>de</strong>, por exemplo, cujos gastos são<br />
protegidos constitucionalmente, crescerá apenas 70%, ficando em 28 bilhões <strong>de</strong> reais.<br />
As verbas para a educação crescerão menos da meta<strong>de</strong> do incremento das receitas,<br />
em 39%, chegando a 14,6 bilhões <strong>de</strong> reais. As verbas para a <strong>de</strong>fesa e segurança<br />
variaram menos ainda, 34%. As verbas para o trabalho, que inclui geração <strong>de</strong> emprego<br />
e renda, ao contrário, <strong>de</strong>cresceram 4% em 2003, comparado a 1995.<br />
4) Um outro item do orçamento que se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>stacar é o das <strong>de</strong>spesas<br />
previ<strong>de</strong>nciárias, que ficam no Orçamento da Segurida<strong>de</strong> Social e cresceram<br />
expressivamente no orçamento <strong>de</strong>ixado para Lula. Para 2003, estão programados<br />
131,8 bilhões <strong>de</strong> reais nessas <strong>de</strong>spesas. O crescimento dos gastos com a previdência<br />
é freqüentemente atribuído por <strong>FHC</strong> à chamada re<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteção social <strong>–</strong> que inclui<br />
diversos tipos <strong>de</strong> programas para as pessoas <strong>de</strong> baixa renda, ver matéria nas páginas<br />
<strong>de</strong> 12 a 17 <strong>–</strong> que seu governo teria criado e cujas verbas teriam aumentado muito. De<br />
fato, os gastos com a previdência são a gran<strong>de</strong> fatia <strong>de</strong>ssa re<strong>de</strong> e os principais<br />
responsáveis por seu efetivo crescimento entre 1995 e 2003. Mas não é verda<strong>de</strong> que<br />
<strong>FHC</strong> tenha criado, nem aumentado os gastos previ<strong>de</strong>nciários. A sua parte mais<br />
expressiva é <strong>de</strong> obrigações estabelecidas na época do Regime Militar e na<br />
Constituição re<strong>de</strong>mocratizadora <strong>de</strong> 1988, como o direito a um salário mínimo para os<br />
trabalhadores que se aposentam no campo, por exemplo. <strong>FHC</strong>, ao contrário, ao longo<br />
<strong>de</strong> seu governo, lutou muito para reduzir os gastos com a previdência, conseguindo,<br />
em duas reformas no Estado brasileiro, diminuir o valor das aposentadorias dos setores<br />
público e privado. Além disso, preten<strong>de</strong>u <strong>de</strong>ixar escrito na agenda do próximo governo<br />
a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mais uma reforma previ<strong>de</strong>nciária. Recentemente, o diretor gerente<br />
do FMI esteve em visita ao Brasil e, em conversas com banqueiros em São Paulo,<br />
disse que a meta para o Brasil <strong>de</strong>ve ser a <strong>de</strong> redução do chamado déficit<br />
previ<strong>de</strong>nciário, que estaria em aproximadamente 5% do PIB, e que isso, para o novo<br />
governo, seria mais importante do que aumentar o superávit primário que será cobrado<br />
do governo Lula neste seu primeiro ano <strong>de</strong> mandato, 3,75% do PIB.
5) O quinto aspecto a <strong>de</strong>stacar nas contas do Estado recriado por <strong>FHC</strong> não está no<br />
Orçamento, mas na chamada Conta Única do Tesouro Nacional. Em 1997, o Tesouro<br />
Nacional iniciou o ano com 17 bilhões <strong>de</strong> reais em caixa, um dinheiro que por força da<br />
Constituição fica <strong>de</strong>positado no Banco Central. Ao final <strong>de</strong> 2002, esse saldo<br />
ultrapassava a casa <strong>de</strong> 99 bilhões <strong>de</strong> reais, quase 6 vezes mais.<br />
Por que o governo insiste em cortar gastos na saú<strong>de</strong>, educação e segurança<br />
com tantos bilhões em caixa? Por que continua se endividando mais e mais e pagando<br />
juros ao mesmo tempo que mantém tanto dinheiro parado? Por que não salda pelo<br />
menos uma parcela da sua colossal dívida? Esse dinheiro, em parte, <strong>de</strong>corre <strong>de</strong><br />
recursos <strong>de</strong> impostos e contribuições que não foram gastos. Outra parte significativa<br />
veio do lançamento <strong>de</strong> títulos da dívida em quantida<strong>de</strong>s muito acima das necessida<strong>de</strong>s<br />
do governo <strong>–</strong> mesmo se consi<strong>de</strong>rarmos os enormes gastos com rolagem e juros <strong>de</strong><br />
dívida. Na verda<strong>de</strong>, o Banco Central utilizou esse excesso <strong>de</strong> endividamento<br />
(lançamentos extras) para retirar dinheiro <strong>de</strong> circulação, manter os juros muito altos,<br />
cortar o crédito e as ativida<strong>de</strong>s produtivas, congelando o país numa política recessiva.<br />
Fez isso pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atrair dólares para o país, em função da <strong>de</strong>pendência<br />
externa, que marcou a economia brasileira ao longo <strong>de</strong> todo seu governo. O custo<br />
<strong>de</strong>ssa política, <strong>herança</strong> <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> para Lula, é muito alto.<br />
<strong>FHC</strong> <strong>de</strong>ixa para Lula uma montanha <strong>de</strong> juros e amortizações a pagar. O<br />
pagamento <strong>de</strong> juros registrado no orçamento crescerá 266%, <strong>de</strong> 25,5 bilhões <strong>de</strong> reais,<br />
em 1995, para 93,6 bilhões, para 2003. As amortizações da dívida externa subirão<br />
609%, <strong>de</strong> 5 bilhões <strong>de</strong> reais para 35 bilhões <strong>de</strong> reais; e as da dívida interna vão <strong>de</strong> 155<br />
bilhões <strong>de</strong> reais para 546 bilhões <strong>de</strong> reais, mais 252%. É preciso ressaltar que as<br />
<strong>de</strong>spesas com a dívida serão ainda maiores, pois o orçamento para 2003 foi construído<br />
em meados <strong>de</strong> 2002, prevendo, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2002, dólar a 2,73 reais e juros <strong>de</strong><br />
18,3% ao ano. Longe, portanto, da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um dólar a 3,5 reais e <strong>de</strong> juros a 25%<br />
ao ano.<br />
Estado máximo<br />
Lula também terá <strong>de</strong> produzir um gran<strong>de</strong> superávit primário, o conceito chave<br />
nos acordos do Brasil com o FMI. Para enten<strong>de</strong>r esse conceito <strong>de</strong>ve-se fazer uma
conta. A arrecadação <strong>de</strong> impostos e contribuições, aproximadamente 350 bilhões <strong>de</strong><br />
reais, é insuficiente para amortizar 500 bilhões <strong>de</strong> reais <strong>de</strong> dívida interna e pagar mais<br />
100 bilhões <strong>de</strong> reais <strong>de</strong> juros <strong>–</strong> só daria para cerca <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> da dívida, sem contar as<br />
<strong>de</strong>spesas do ano. Para pagar quase tudo o que <strong>de</strong>ve, mostra o orçamento <strong>de</strong> 2003, o<br />
governo Lula emitirá títulos da dívida pública. O governo amortizará os 500 bilhões da<br />
dívida interna realizando o que se chama <strong>de</strong> rolagem da dívida: vai emitir novos títulos<br />
para pagar os que forem vencendo. E vai rolar também gran<strong>de</strong> parte dos juros, com a<br />
emissão <strong>de</strong> títulos. Mas vai pagar uma parte da dívida, para impedir que a dívida<br />
cresça <strong>de</strong>mais. Para isso é que existe o superávit primário, uma parte <strong>de</strong> impostos e<br />
contribuições que ficam reservados para as <strong>de</strong>spesas financeiras.<br />
O governo <strong>FHC</strong> sempre <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u e pôs em prática uma política <strong>de</strong> gerar<br />
superávits primários. Mas houve uma mudança essencial no seu segundo mandato.<br />
Entre 1995 e 1998, os superávits primários do governo ficaram em menos <strong>de</strong> 0,5% do<br />
PIB, quantias equivalentes a um quinto ou um sexto dos orçamentos da saú<strong>de</strong>. A partir<br />
<strong>de</strong> 1999, em função dos acordos com o FMI feitos por Fernando Henrique e legados ao<br />
governo Lula, os superávits passaram a ser <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 2,5% do PIB, e cada vez<br />
maiores, sempre maiores que o orçamento da saú<strong>de</strong>, por exemplo. No último semestre<br />
<strong>de</strong> 2002, o governo fe<strong>de</strong>ral acertou com o FMI <strong>–</strong> e cumpriu <strong>–</strong> um superávit <strong>de</strong> 3,88% do<br />
PIB. Para 2003, Lula <strong>de</strong>ve garantir um superávit <strong>de</strong> 33,7 bilhões <strong>de</strong> reais (o orçamento<br />
da saú<strong>de</strong> é <strong>de</strong> 28 bilhões <strong>de</strong> reais).<br />
A evolução da dívida pública é uma expressão viva do compromisso do Estado<br />
brasileiro, sob os mandatos <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, com os interesses do gran<strong>de</strong> capital. <strong>FHC</strong> sempre<br />
afirmou que a dívida cresce porque o Estado gasta muito mais do que arrecada. Mas a<br />
dívida pública tem muitas outras finalida<strong>de</strong>s, a menor <strong>de</strong>las é custear as <strong>de</strong>spesas da<br />
administração, os gastos não-financeiros.<br />
Com o real mantido em torno <strong>de</strong> um dólar, os altos juros internos levaram as<br />
empresas com crédito lá fora a tomar dinheiro no exterior. O gráfico ao lado mostra<br />
esse fato. Ele apresenta a dívida externa do país dividida em duas partes, a do Estado<br />
e a das empresas particulares. E mostra também a dívida interna pública. Pelo gráfico,<br />
se percebe a relação entre esses três endividamentos. Na fase entre 1994 e começo<br />
<strong>de</strong> 1998, os particulares foram ao exterior e tomaram cerca <strong>de</strong> 150 bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />
A dívida interna cresceu porque gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>sses dólares foram comprados pelo<br />
Estado, que acumulou gran<strong>de</strong>s reservas para garantir o Plano Real. A partir <strong>de</strong> maio <strong>de</strong><br />
1998, o Brasil começa a quebrar e o crédito para os particulares passa a ser mais<br />
difícil. Eles começam apenas a rolar suas dívidas lá fora, sem aumentá-las, chegando<br />
mesmo a amortizá-las. Mas a dívida continuou aumentando porque, então, é o Estado<br />
brasileiro que saiu para tomar dólares <strong>–</strong> foram mais <strong>de</strong> 80 bilhões <strong>de</strong> dólares nos três<br />
empréstimos <strong>de</strong>sse período com o FMI e outras agências internacionais.
Além dos juros, outro aspecto que levou ao incremento da dívida interna pública<br />
é a proteção do Estado aos gran<strong>de</strong>s capitalistas que estavam endividados no exterior.<br />
A proteção <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>via em dólares está em títulos da dívida pública interna que,<br />
além <strong>de</strong> pagar juros, são in<strong>de</strong>xados à moeda dos EUA. Ou seja, quem tem um título<br />
<strong>de</strong>sses, além <strong>de</strong> ganhar juros, mantém o seu valor em dólar qualquer que seja a<br />
<strong>de</strong>svalorização da moeda americana. Em janeiro <strong>de</strong> 1999, às vésperas da<br />
<strong>de</strong>svalorização do real <strong>–</strong> que chegou a valer mais <strong>de</strong> um dólar e passou a valer cerca<br />
<strong>de</strong> meio dólar <strong>–</strong>, o governo fe<strong>de</strong>ral tinha 113 bilhões <strong>de</strong> reais nesses títulos cambiais,<br />
30% <strong>de</strong> sua dívida mobiliária interna. Apenas um mês antes, esse percentual era <strong>de</strong><br />
21%. Fato similar ocorreu a partir <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2002, quando novamente o dólar se<br />
valorizou, indo <strong>de</strong>sta vez da casa <strong>de</strong> 2,5 reais para perto <strong>de</strong> 4 reais. Títulos fe<strong>de</strong>rais e<br />
contratos do BC, ao final <strong>de</strong> agosto, protegiam então 217 bilhões <strong>de</strong> reais.<br />
Em conseqüência <strong>de</strong>ssa política <strong>de</strong> proteção do gran<strong>de</strong> capital, a dívida pública<br />
líquida explodiu. De 1994 a 1998, como po<strong>de</strong>-se ver no gráfico, a dívida interna bruta<br />
vinha crescendo. Mas o governo tinha dólares <strong>de</strong> reservas que compensavam esse<br />
crescimento. Em maio <strong>de</strong> 1997, a dívida pública líquida atingiu o mais baixo patamar<br />
dos anos noventa, ficou em 27% do PIB. Mas, a partir <strong>de</strong> então cresce<br />
espetacularmente. O efeito dos altos juros e a queda das reservas internacionais<br />
fizeram aparecer um problema que <strong>FHC</strong> pretendia manter longe dos olhares do povo,<br />
que se preparava para ir às urnas. Já em <strong>de</strong>zembro daquele ano, a dívida líquida do<br />
setor público chegou a 33,2%, e cresceu ano a ano para em setembro <strong>de</strong> 2002<br />
estourar a casa <strong>de</strong> 63% <strong>de</strong> todas as riquezas produzidas pelo país.<br />
O problema da dívida não se resume ao seu tamanho. Diversos países têm um<br />
grau <strong>de</strong> endividamento muito maior. Mas poucos têm uma dívida tão cara e com<br />
vencimento tão concentrado. Para se ter noção do custo <strong>de</strong>ssa política <strong>de</strong> proteção do<br />
gran<strong>de</strong> capital basta verificar o relatório com o Resultado do Tesouro Nacional. Ele<br />
aponta que o custo médio da dívida mobiliária fe<strong>de</strong>ral (juros, <strong>de</strong>svalorização e outros<br />
encargos) em 2002 foi <strong>de</strong> 49% para o período janeiro-novembro.<br />
Estado mínimo<br />
Outro dado que <strong>de</strong>monstra que a dívida cresce para proteger o gran<strong>de</strong> capital é<br />
o saldo da conta única do Tesouro Nacional. Como já foi citado, esse saldo cresceu<br />
quase 6 vezes entre o início <strong>de</strong> 1997 e o final <strong>de</strong> 2002. Isso significa, como mostramos,<br />
que o governo emitiu muito mais títulos do que o necessário para pagar todas as suas
contas, mesmo incluindo as colossais <strong>de</strong>spesas com a dívida. Os títulos<br />
correspon<strong>de</strong>ntes aos reais não utilizados são usados pelo Banco Central para executar<br />
sua política monetária e cambial. A partir <strong>de</strong> 1998, além <strong>de</strong> proteger os gran<strong>de</strong>s<br />
capitalistas que tinham tomado empréstimos no exterior <strong>–</strong> entre os quais muitas<br />
multinacionais que usaram o dinheiro para a compra <strong>de</strong> estatais <strong>–</strong> as políticas<br />
monetária e cambial foram usadas para conter o consumo interno e gerar um saldo<br />
comercial alto para obter dólares e pagar os gran<strong>de</strong>s credores externos.<br />
Mas nem todo dinheiro do superávit po<strong>de</strong> ser utilizado para pagamentos da<br />
dívida. O primeiro, por uma questão legal. Uma parcela significativa dos superávits vem<br />
sendo produzida com recursos que a Constituição só permite que sejam gastos com<br />
outras <strong>de</strong>spesas. Em 2001, por exemplo, o superávit foi <strong>de</strong> 21,9 bilhões reais. Dois<br />
bilhões correspondiam no orçamento a recursos do Fundo da Pobreza, que gastou<br />
menos <strong>de</strong> 300 milhões ao longo do ano; outro bilhão pertencia à CPMF; 1,2 bilhão à<br />
educação; mais 1 bilhão à universalização das telecomunicações, para computadores e<br />
Internet que nunca chegaram às escolas e aos postos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. O orçamento<br />
preparado para Lula, nesse sentido, vai além. Do superávit <strong>de</strong> 33 bilhões para 2003,<br />
quase 15 bilhões <strong>de</strong> reais, 44%, são <strong>de</strong> recursos vinculados. São verbas que não<br />
po<strong>de</strong>m ser simplesmente alocadas em pagamentos da dívida.<br />
A questão legal nunca foi um impedimento para <strong>FHC</strong>. De tempos em tempos, o<br />
governo editava medidas provisórias para <strong>de</strong>svincular os recursos <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>stinações<br />
legais e vinculá-las à dívida ou outra <strong>de</strong>spesa financeira (a última foi em agosto <strong>de</strong><br />
2002).<br />
O maior constrangimento para o pagamento da dívida é mesmo econômico.<br />
Num cenário recessivo, toda a ação da política monetária tem sido para diminuir a<br />
moeda em circulação, um efeito contrário ao que ocorre quando o Tesouro libera<br />
recursos para gastos sociais ou para liquidação da sua dívida. Sob a ótica monetarista,<br />
que dirige os rumos do país, pagar a dívida exigiria crescimento econômico <strong>–</strong><br />
crescimento que o Real não permite.<br />
Os sucessivos prejuízos do Banco Central, em sua política <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa do gran<strong>de</strong><br />
capital, tornaram-se tão significativos que, em 1997, por medida provisória, <strong>FHC</strong><br />
resolveu que, a partir <strong>de</strong> então, eles seriam assumidos integralmente pelo Tesouro. E,<br />
naturalmente, <strong>de</strong>veriam ser corrigidos antes <strong>de</strong> serem pagos. Em 30 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />
1998, o Tesouro arcou com 51,5 bilhões reais, a preços <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2002. No<br />
período posterior, na gestão Armínio Fraga, <strong>de</strong> 1999 até novembro <strong>de</strong> 2002, eles já<br />
custaram outros 42,4 bilhões <strong>de</strong> reais ao Tesouro (em reais <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2002).<br />
Segundo o relatório que o BC apresentou ao Congresso, no segundo semestre<br />
<strong>de</strong> 2002, a dívida do setor público foi <strong>de</strong> 41,7% do PIB, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1998, para
58,1%, em junho <strong>de</strong> 2002. O pagamento <strong>de</strong> juros reais e a variação cambial são<br />
responsáveis por 86% <strong>de</strong>sse crescimento.<br />
Como vimos, no orçamento para 2003, os gastos com a dívida estão<br />
visivelmente subestimados. Dificilmente o dólar cairá ao nível fixado e os juros<br />
acompanharão a queda sugerida na lei orçamentária. Se o governo Lula for proteger os<br />
<strong>de</strong>vedores em dólar e manter a política <strong>de</strong> forjar o superávit primário a qualquer custo,<br />
como <strong>FHC</strong>, o que terá <strong>de</strong> fazer? Deverá fazer o mesmo que <strong>FHC</strong> praticou no fim do<br />
ano que passou. Um balanço realizado em meados <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro mostra que gran<strong>de</strong><br />
parte dos programas previstos no orçamento <strong>de</strong> 2002 não havia saído do papel. De um<br />
total <strong>de</strong> 26 bilhões <strong>de</strong> reais autorizados para a saú<strong>de</strong>, apenas 22 bilhões foram<br />
liberados. Na educação, em que a proteção constitucional é menor, os cortes foram<br />
mais significativos: um quarto dos recursos programados ficou retido. O governo é<br />
obrigado a gastar 4 bilhões <strong>de</strong> reais por ano do Fundo da Pobreza, que recebe 21% da<br />
CPMF arrecadada. No final <strong>de</strong> 2000, essas receitas somavam 4,2 bilhões reais e<br />
apenas 2,1 bilhões haviam sido liberados. Nem mesmo o crescimento da violência<br />
comoveu o governo: os programas <strong>de</strong> segurança pública somente utilizaram 63% do<br />
previsto. O <strong>de</strong>semprego também não mudou a política <strong>de</strong> cortes. Geração <strong>de</strong> emprego<br />
e renda, erradicação do trabalho escravo e formação profissional receberam 69% do<br />
total imaginado. Programas sem proteção constitucional foram literalmente<br />
<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rados por <strong>FHC</strong>. Os <strong>de</strong> saneamento liberaram apenas 2,26% das verbas<br />
previstas; os <strong>de</strong> infra-estrutura urbana, só 6,71%. Dessa forma, o Tesouro acabou por<br />
apresentar um resultado recor<strong>de</strong>. O superávit primário acumulado até novembro foi <strong>de</strong><br />
34,6 bilhões <strong>de</strong> reais.<br />
Mas algumas <strong>de</strong>spesas não po<strong>de</strong>m ser simplesmente cortadas. O governo não<br />
po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pagar uma aposentadoria já concedida, nem se esquecer <strong>de</strong> fazer um<br />
repasse obrigatório a um município. Essas <strong>de</strong>spesas precisam ser controladas antes<br />
<strong>de</strong> se formarem esses direitos. Entram em cena leis e medidas provisórias para<br />
diminuir direitos, restringir acessos... e gastar menos. Nas universida<strong>de</strong>s públicas, a<br />
falta <strong>de</strong> substituição dos professores que aposentaram e o corte sistemático <strong>de</strong> verbas,<br />
criaram uma situação <strong>de</strong> penúria. Baixos salários levaram pessoas com gran<strong>de</strong><br />
qualificação para os inúmeros cursos particulares que o governo licenciou sem a menor<br />
preocupação com a qualida<strong>de</strong>. No ensino fundamental, parte dos recursos vem do<br />
Fundo <strong>de</strong> Valorização do Magistério, <strong>de</strong> dinheiro público rateado entre estados e<br />
municípios <strong>de</strong> acordo com o número <strong>de</strong> alunos matriculados no ensino fundamental.<br />
Graças a uma manipulação no cálculo do valor mínimo por aluno, que <strong>de</strong>ve ser<br />
complementado pela União, o governo reduziu sua contribuição a menos <strong>de</strong> 1,4% do<br />
total <strong>de</strong> recursos.<br />
Na saú<strong>de</strong>, a aprovação da Emenda Constitucional nº 29, que <strong>de</strong>termina o<br />
mínimo <strong>de</strong> recursos mínimos a serem aplicados no setor, não solucionou o problema.
Antes <strong>de</strong> a Emenda surtir efeito, <strong>FHC</strong> referendou um parecer da Advocacia Geral da<br />
União que diminuiu os recursos para o setor em cerca <strong>de</strong> 2 bilhões <strong>de</strong> reais em 2003 e<br />
mais <strong>de</strong> 5 bilhões acumulados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2000.<br />
As <strong>de</strong>ficiências na saú<strong>de</strong> pública serviram para favorecer os serviços e os<br />
planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> privada. Na previdência, ocorreu o mesmo. Na reforma da<br />
previdência, por exemplo, o governo <strong>FHC</strong> inseriu no texto constitucional um teto para<br />
os benefícios previ<strong>de</strong>nciários, com um valor fixado em reais, na época, 10 salários<br />
mínimos. Decorridos apenas 4 anos, esse valor representa pouco mais <strong>de</strong> 7 salários<br />
mínimos. As limitações a direitos e a certeza <strong>de</strong> que esse valor vai se <strong>de</strong>teriorar ainda<br />
mais fizeram florescer os planos privados <strong>de</strong> previdência. São ações dirigidas com o<br />
nítido propósito <strong>de</strong> criar público cativo, refém dos interesses privados.<br />
Hoje quase 50 milhões <strong>de</strong> brasileiros trabalham sem registro, são autônomos,<br />
cooperativados ou <strong>de</strong>sempregados. Estão excluídos da cobertura previ<strong>de</strong>nciária e não<br />
têm como prover o próprio sustento quando forem obrigados pela velhice ou pelo<br />
<strong>de</strong>semprego a pararem <strong>de</strong> trabalhar.<br />
Reformas neoliberais<br />
No caso da previdência social, gran<strong>de</strong> parte do enorme déficit <strong>de</strong> hoje <strong>de</strong>ve-se<br />
ao elevado e crescente <strong>de</strong>semprego e a um número cada vez menor <strong>de</strong> contribuintes<br />
para os fundos públicos <strong>de</strong> previdência <strong>–</strong> nítida expressão do fracasso na política <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento econômico prometida por <strong>FHC</strong>. No seu governo, o país registrou as<br />
menores taxas <strong>de</strong> crescimento econômico e as maiores taxas <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego <strong>de</strong> sua<br />
história.<br />
O gran<strong>de</strong> contrato social prometido por <strong>FHC</strong> em seu discurso <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1994 no Senado <strong>–</strong> menos Estado, mais liberda<strong>de</strong> para o capital, mais<br />
<strong>de</strong>senvolvimento, tecnologia e melhores condições sociais <strong>–</strong> fracassou.<br />
O “príncipe dos sociólogos” fez sua escolha sobre quais contratos <strong>de</strong>veriam ser<br />
cumpridos integralmente. Enquanto insiste na completa manutenção dos contratos das<br />
dívidas interna e externa, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> alteração nos contratos anteriores ao seu governo<br />
que garantem aos trabalhadores direito a aposentadorias e pensões dignas, garantidas<br />
pelo Estado. A opção <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> foi pelo gran<strong>de</strong> capital.
Telecomunicações diante do oligopólio estrangeiro<br />
A privatização no setor <strong>de</strong> telecomunicações provocou gran<strong>de</strong>s perdas para o país: o nosso<br />
déficit comercial no setor explodiu e a pesquisa e o <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico foram<br />
<strong>de</strong>struídos.<br />
Qualquer brasileiro mais ou menos informado já ouviu dizer mais <strong>de</strong> uma vez<br />
que a venda do sistema <strong>de</strong> empresas da Telebrás, que correspon<strong>de</strong> à privatização das<br />
telecomunicações no Brasil, foi um sucesso. E que a prova do sucesso da privatização<br />
das telecomunicações brasileiras é o fato <strong>de</strong> que ela ampliou o número <strong>de</strong> telefones no<br />
país <strong>de</strong> 20 para 48 milhões. Verda<strong>de</strong> ou mentira? Mentira, que por ser tantas vezes<br />
repetida, é aceita como verda<strong>de</strong>.<br />
O Brasil tinha 48 milhões <strong>de</strong> linhas telefônicas fixas instaladas no início <strong>de</strong> 2002,<br />
mas 11,5 milhões <strong>de</strong>ssas linhas não correspondiam a telefones fixos efetivamente<br />
instalados nas casas das pessoas, nos escritórios, nas empresas. Isso porque a re<strong>de</strong><br />
telefônica é construída por centrais <strong>de</strong> comutação, com suas linhas <strong>de</strong> acesso, mas<br />
nem sempre esses acessos correspon<strong>de</strong>m a linhas telefônicas efetivas, a cabos<br />
conectados a aparelhos <strong>de</strong> usuários. Como se po<strong>de</strong> ver pelos números oficiais, as<br />
companhias telefônicas privadas investiram na implantação <strong>de</strong> centrais <strong>de</strong> comutação<br />
mas não investiram nas mesmas proporções na instalação <strong>de</strong> cabos, fios e terminais<br />
que fizessem funcionar a capacida<strong>de</strong> disponível.<br />
O motivo para a ociosida<strong>de</strong> das linhas é a falta <strong>de</strong> mercado <strong>–</strong> no fundo, a<br />
baixíssima renda do povo brasileiro. Em 2001, por exemplo, a Telemar anunciou ter<br />
conectado 3 milhões <strong>de</strong> linhas telefônicas novas. Não anunciou, no entanto, que, no<br />
mesmo período, cortou 2,3 milhões <strong>de</strong> linhas por falta <strong>de</strong> pagamento. Para o conjunto<br />
das operadoras, apenas 30% das linhas são lucrativas; as outras 70% mal empatam as<br />
receitas das contas telefônicas com as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> operação e manutenção. Como os<br />
preços da telefonia são muito altos, as pessoas não po<strong>de</strong>m usá-las. Quando <strong>FHC</strong><br />
assumiu, a tarifa da assinatura resi<strong>de</strong>ncial era <strong>de</strong> 44 centavos <strong>de</strong> real. Em fins <strong>de</strong> 2001,
era <strong>de</strong> 14,11 reais <strong>–</strong> um aumento <strong>de</strong> quase 1.500%! O pulso resi<strong>de</strong>ncial era <strong>de</strong> 2<br />
centavos <strong>de</strong> real; passou a 6,6 centavos <strong>de</strong> real, 3,3 vezes mais. Déficit comercial<br />
As telecomunicações privatizadas provocaram além disso um gran<strong>de</strong> déficit no<br />
comércio externo do país por trazerem a maior parte dos seus equipamentos e<br />
tecnologias <strong>de</strong> maior valor do exterior. A Telebrás estatal, <strong>de</strong> meados dos anos 70 até<br />
os anos 90, graças ao seu gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra e a uma política industrial <strong>de</strong>finida,<br />
tinha incentivado a formação <strong>de</strong> uma indústria brasileira <strong>de</strong> equipamentos, que<br />
empregava cerca <strong>de</strong> 100 mil pessoas e tinha faturamento em torno dos 300 milhões <strong>de</strong><br />
dólares anuais. Desenvolvera inclusive, no seu centro <strong>de</strong> pesquisa, o CPqD em<br />
Campinas (on<strong>de</strong> tinha 1.800 pesquisadores), uma tecnologia original: as centrais<br />
Trópico <strong>de</strong> comutação digital.<br />
A liquidação da Telebrás arrasou o CPqD, hoje com menos <strong>de</strong> um terço <strong>de</strong> seus<br />
pesquisadores, que sobrevive com pequenos serviços para as operadoras que aqui se<br />
instalaram. Em conseqüência, o déficit comercial do setor voltou à casa dos 700<br />
milhões <strong>de</strong> dólares em valores <strong>de</strong> 1999 <strong>–</strong> que correspon<strong>de</strong> ao déficit <strong>de</strong> meados dos<br />
anos 70, quando o país importava praticamente <strong>de</strong> tudo.<br />
Essa política <strong>de</strong> abertura comercial <strong>de</strong>scontrolada do setor teve outras<br />
implicações. O país passou a importar praticamente um novo tipo <strong>de</strong> bem <strong>de</strong> consumo,<br />
o telefone celular, que não tem mais que 5% <strong>de</strong> seus componentes fabricados aqui. O<br />
Brasil não dispõe <strong>de</strong> nenhuma fábrica dos eletro-eletrônicos indispensáveis aos<br />
celulares e a praticamente todos os equipamentos industriais mo<strong>de</strong>rnos. O nossos<br />
déficit comercial nesse setor chegou a 8 bilhões <strong>de</strong> dólares em 2000 e só passou a cair<br />
em função da crise na área <strong>de</strong> telecomunicações.<br />
As empresas que compraram os pedaços do sistema Telebrás usaram em boa<br />
parte dólares emprestados. A MCI, americana, por exemplo, que comprou a Embratel,<br />
tomou no exterior perto <strong>de</strong> 1 bilhão <strong>de</strong> dólares, na época em que a moeda americana<br />
estava barata, valendo cerca <strong>de</strong> um real. Hoje, com o dólar a 3,5 reais, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
reais necessários para pagar os dólares emprestados mais que triplicou e praticamente<br />
quebrou a empresa, que já está falida também no exterior.<br />
Sem concorrência (*)
A concorrência que se prometeu no setor também nunca existiu. As chamadas<br />
empresas-espelho das três gran<strong>de</strong>s operadoras <strong>de</strong> telefonia fixa confessam que se<br />
dispõem apenas a oferecer serviços sofisticados para famílias ricas e empresas em<br />
algumas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s brasileiras. A Vésper, por exemplo, que seria a concorrente<br />
da Telemar nos 3.052 municípios em que a fixa opera, está presente apenas em 112<br />
cida<strong>de</strong>s.<br />
O investimento no setor atualmente não é maior do que antes da privatização.<br />
Entre 1994 e 1995, com a Telebrás, os investimentos cresceram 38%. Entre 1995 e<br />
1996, cresceram 47%. Em 1997, já preparando a privatização e sob gran<strong>de</strong> pressão<br />
dos credores externos, o governo <strong>FHC</strong> limitou os investimentos da Telebrás em 7<br />
bilhões <strong>de</strong> dólares. As empresas privadas só registraram crescimento significativo <strong>de</strong><br />
seus investimentos, <strong>de</strong> 35%, <strong>de</strong> 1999 para 2000. De 2000 para 2001 o crescimento já<br />
foi menor e em 2002 houve uma queda no montante dos investimentos. O número <strong>de</strong><br />
empregos na área <strong>de</strong> telecomunicações também <strong>de</strong>sabou: mais <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> dos 83 mil<br />
trabalhadores contratados quando o sistema era estatal foi <strong>de</strong>mitida.<br />
A quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> telefones instalados cresceu após a privatização, embora a um<br />
ritmo não muito superior ao havido, por exemplo, entre 1994 e 1998, sob a Telebrás <strong>–</strong> o<br />
número <strong>de</strong> celulares, por exemplo, foi <strong>de</strong> 800 mil para 7,4 milhões nesse período; e <strong>de</strong><br />
7,4 milhões para 28,7 milhões entre 1978 e 2001. Mas os serviços continuaram<br />
praticamente tão concentrados como estavam antes. A média <strong>de</strong> telefones fixos por<br />
100 habitantes no país é <strong>de</strong> 21, contra 12 telefones por 100 habitantes antes da<br />
privatização. Entretanto, mais <strong>de</strong> 90% dos municípios estão abaixo <strong>de</strong>ssa média e<br />
perto <strong>de</strong> 20% tem menos <strong>de</strong> 6 telefones por 100 habitantes, entre esses, alguns<br />
municípios das gran<strong>de</strong>s regiões metropolitanas. A maior parte do país ainda não conta<br />
com serviços <strong>de</strong> telefonia celular.<br />
Hoje, os próprios empresários <strong>de</strong> telecomunicações sustentam que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento que a privatização implantou no setor precisa ser revisto. De um<br />
modo geral, falam em reduzir o número <strong>de</strong> operadoras, das cerca <strong>de</strong> 50 atuais para<br />
menos <strong>de</strong> meia dúzia. Ou seja, que o mo<strong>de</strong>lo propagan<strong>de</strong>ado como a gran<strong>de</strong><br />
realização das privatizações brasileiras fracassou e precisa ser substituído por outro.<br />
* Este texto foi feito com base no folheto O Sucesso do Fracasso, produzido pelo Comitê<br />
<strong>de</strong> Telecomunicações do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, sob coor<strong>de</strong>nação dos engenheiros Brígido<br />
Ramos, José Guimarães Neto e Nilberto <strong>Miranda</strong>. E com a consultoria do professor<br />
Marcos Dantas.
O gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sastre da privatização do setor elétrico<br />
A privatização no setor foi um fiasco, provocou um racionamento <strong>de</strong> sete meses e<br />
<strong>de</strong>sorganizou um sistema <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> energia barata e limpa, sem paralelo no mundo.<br />
O Mercado Atacadista <strong>de</strong> Energia (MAE) era para ter sido a peça-chave da<br />
política <strong>de</strong> privatização adotada pelo governo Fernando Henrique para o setor <strong>de</strong><br />
energia elétrica. Depois <strong>de</strong> privatizadas todas as empresas, o Mercado regularia o<br />
preço e os investimentos do setor: com a falta ou a perspectiva <strong>de</strong> escassez <strong>de</strong><br />
energia, os preços subiriam e os investimentos seriam atraídos para a área. Com<br />
sobra, os preços caíram e os investimentos seriam contidos.<br />
Po<strong>de</strong>-se contar o fracasso <strong>de</strong>ssa política por quatro fatos:<br />
1) houve o apagão nacional e um racionamento <strong>de</strong> energia por sete meses, a partir <strong>de</strong><br />
junho <strong>de</strong> 2001;<br />
2) anunciou-se a extinção do MAE e a criação <strong>de</strong> um MBE (Mercado Brasileiro <strong>de</strong><br />
Energia), não mais livre, mas regulado;<br />
3) em 7 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2002, o MAE foi recriado com nova direção, sem duas <strong>de</strong>zenas<br />
<strong>de</strong> empresários que supostamente lhe dariam o caráter autônomo;<br />
4) por último, no final <strong>de</strong> 2002, as geradoras <strong>de</strong> energia, as distribuidoras, o governo<br />
que saiu e o que entrou fizeram acordo para acertar parte das contas <strong>de</strong> parcela das<br />
operações feitas no MAE, graças, essencialmente, a uma verba <strong>de</strong> 2,3 bilhões <strong>de</strong> reais<br />
do BNDES, que já havia liberado 5,2 bilhões <strong>de</strong> reais com propósito semelhante. O<br />
restante da bagunça do MAE foi <strong>de</strong>ixado para o próximo governo resolver, no começo<br />
<strong>de</strong> 2003, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma auditoria.<br />
Os problemas atuais do setor elétrico são, em gran<strong>de</strong> parte, responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>FHC</strong>. O sistema estatal <strong>de</strong> energia já havia sido <strong>de</strong>bilitado, a partir do final dos anos 70<br />
e começo dos 80, por uma <strong>de</strong>scabida política <strong>de</strong> preços e <strong>de</strong> captação <strong>de</strong> recursos<br />
externos. Mas foi <strong>FHC</strong> que promoveu o gran<strong>de</strong> salto para o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mercado. Em 14<br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1994, ao <strong>de</strong>spedir-se do Senado, já presi<strong>de</strong>nte eleito, Fernando Henrique
prometera “dividir com capitais privados os pesados investimentos na expansão da<br />
infra-estrutura econômica. Numa estimativa conservadora do crescimento da<br />
economia, o Brasil terá <strong>de</strong> investir 20 bilhões <strong>de</strong> reais por ano nos próximos quatro<br />
anos, para que não surjam gargalos na oferta <strong>de</strong> energia, transportes e<br />
telecomunicações”. A entrega do setor à iniciativa privada, afirmava, atrairia novos<br />
investimentos, que o Estado não po<strong>de</strong>ria fazer. As tarifas seriam reduzidas pela<br />
concorrência.<br />
No primeiro ano do governo <strong>FHC</strong> dois <strong>de</strong>cretos cassaram 33 concessões <strong>de</strong><br />
hidrelétricas concedidas a estatais fe<strong>de</strong>rais e estaduais. A seguir, ainda em 1995, viria<br />
o Decreto nº 1.503 possibilitando a privatização <strong>de</strong> Furnas, Chesf, Eletrosul e<br />
Eletronorte. A maioria das distribuidoras era formada por empresas estaduais. Os<br />
estados, endividados, sofreram pressão do governo, que começou a privatização por<br />
essas empresas, em troca <strong>de</strong> empréstimos e facilida<strong>de</strong>s.<br />
Depois <strong>de</strong> começar a ven<strong>de</strong>r, o governo <strong>de</strong>cidiu fazer a mo<strong>de</strong>lagem do setor.<br />
Em 1996, foi contratado o consórcio li<strong>de</strong>rado pela inglesa Coopers & Lybrand<br />
Consultant Ltd para elaborar o novo mo<strong>de</strong>lo. Apresentado em junho <strong>de</strong> 1997, tinha a<br />
proposta do MAE como uma <strong>de</strong> suas peças centrais. Des<strong>de</strong> 1997, no entanto, havia<br />
um agravamento das contas do governo <strong>–</strong> que, como se sabe, quebrou em meados <strong>de</strong><br />
1998 e foi socorrido pelo FMI no final daquele ano. Por esse motivo, as estatais tiveram<br />
seus investimentos contidos. Depois do acordo com o Fundo, a contenção foi ainda<br />
mais ampla.<br />
Nesse contexto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>de</strong> 1999, começou a surgir a perspectiva <strong>de</strong> falta<br />
<strong>de</strong> energia. Em 2000, o governo apresentou uma proposta <strong>de</strong> emergência, o Programa<br />
Prioritário <strong>de</strong> Termeletricida<strong>de</strong> (PPT), que previa a construção <strong>de</strong> 53 usinas térmicas,<br />
que gerariam energia uns 40% mais cara que a do sistema existente, 95% baseado em<br />
hidrelétricas, mas que <strong>de</strong>veriam entrar em funcionamento rapidamente, para prevenir o<br />
<strong>de</strong>sastre <strong>–</strong> hoje, o plano tem apenas 25 usinas, nove em operação, cinco em fase <strong>de</strong><br />
testes e 11 em construção.<br />
Apesar <strong>de</strong> todos os indicadores <strong>de</strong> esvaziamento dos reservatórios das<br />
hidréletricas, <strong>FHC</strong> e seu governo negariam até fevereiro <strong>de</strong> 2001 que a crise que se<br />
avizinhava. Resultado: um racionamento que durou <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2001 a fevereiro <strong>de</strong><br />
2002 e que só havia sido registrado no país à época da Segunda Guerra.<br />
O sistema brasileiro <strong>de</strong> empresas estatais <strong>de</strong> energia elétrica, que <strong>FHC</strong><br />
preten<strong>de</strong>u <strong>de</strong>smontar, e em parte o fez, é uma conquista <strong>de</strong> muitos anos. O projeto da<br />
Eletrobrás foi enviado ao Congresso por Getúlio Vargas em 1954, mas somente sete<br />
anos <strong>de</strong>pois, já no governo Jânio Quadros, com o apoio da Frente Parlamentar<br />
Nacionalista, a estatal foi criada. Mesmo assim, foi preciso esperar o governo João
Goulart para, em 6 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1962, instituir, <strong>de</strong> fato, a empresa que iniciou sua<br />
função <strong>de</strong> holding das estatais fe<strong>de</strong>rais que já existiam: Furnas e Chesf. Foi na ditadura<br />
militar, ao longo da década <strong>de</strong> 1960, que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão do setor elétrico brasileiro<br />
<strong>de</strong>slanchou: o planejamento central foi aprimorado, a estrutura fortalecida, novas<br />
tecnologias <strong>de</strong>senvolvidas e o esquema <strong>de</strong> financiamento foi mais bem organizado.<br />
Cláusulas secretas<br />
Em 1962 a capacida<strong>de</strong> geradora do país alcançava 5.728.800 KW, sendo 3,5<br />
milhões KW <strong>de</strong> origem privada, que já atuava no país há 60 anos. Em 1995,<br />
gerávamos 60 milhões KW. Em 33 anos, o Estado brasileiro gerou 15 vezes mais do<br />
que a iniciativa privada em 60 anos.<br />
O governo <strong>de</strong> Collor <strong>de</strong> Melo, por meio da Lei 8.031, <strong>de</strong> 1990, já havia criado o<br />
Plano Nacional <strong>de</strong> Desestatização. Com o impeachment <strong>de</strong> Collor, Itamar Franco<br />
resistiu à privatização do setor. Mais tar<strong>de</strong>, como governador <strong>de</strong> Minas Gerais, Itamar<br />
iria enfrentar a americana AES na Justiça para retomar o controle acionário da Cemig<br />
para o estado. Com a venda da Escelsa (ES) e da Light (RJ), no começo <strong>de</strong> seu<br />
governo, <strong>FHC</strong> <strong>de</strong>u início à privatização das distribuidoras.<br />
O MAE começou a operar em setembro <strong>de</strong> 2000, na conjuntura <strong>de</strong> pré-apagão.<br />
Os seus preços dispararam com o racionamento e estavam em 684 reais por MWh em<br />
junho <strong>de</strong> 2001, quando o governo foi obrigado a intervir, congelando o valor da tarifa.<br />
Além disso, a administração do MAE estava <strong>de</strong>smoralizada em função <strong>de</strong> gastos<br />
abusivos, entre eles <strong>de</strong>spesas com salários e assessorias.<br />
Somente com o racionamento tornou-se amplamente conhecida a cláusula dos<br />
contratos da privatização que garantia lucros às distribuidoras no caso da falta <strong>de</strong><br />
energia. Todos eles têm um Anexo V que prevê que as geradoras (97% estatais)<br />
<strong>de</strong>veriam pagar às distribuidoras (privatizadas), a preços do MAE, a energia contratada<br />
que <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> ser fornecida. Como as quantias envolvidas ficavam na casa <strong>de</strong> duas<br />
<strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> bilhões <strong>de</strong> reais e quebrariam as geradoras, foi feito um acordo entre as<br />
empresas e o governo. Criou-se uma tarifa extra <strong>de</strong> energia que cobriria o montante a<br />
ser pago às distribuidoras ao longo <strong>de</strong> alguns anos. E o BNDES foi escalado para<br />
adiantar o dinheiro aos <strong>de</strong>vedores. A Medida Provisória 14, editada pelo governo <strong>FHC</strong><br />
para socorrer as distribuidoras <strong>de</strong> energia elétrica, gerou condições para transferir dos<br />
consumidores às concessionárias <strong>de</strong> energia até 24 bilhões reais.
As medidas provisórias 59 e 60, aprovadas em 15 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2002, também<br />
foram usadas para beneficiar as elétricas. Sete bilhões <strong>de</strong> reais foram retirados do<br />
superávit primário <strong>de</strong> 2001, <strong>de</strong>svinculando recursos das mais diversas fontes, para<br />
favorecê-las.<br />
Embora o principal argumento apresentado pelo governo para justificar o seguro<br />
antiapagão seja compensar as empresas do setor por presumíveis perdas, causadas<br />
pelo racionamento do ano passado, quase todas tiveram seus balanços publicados<br />
com lucros. Segundo o Banco Central, entre janeiro e julho <strong>de</strong> 2002, as distribuidoras e<br />
geradoras privadas enviaram ao exterior, para suas controladoras, um total <strong>de</strong> 918<br />
milhões <strong>de</strong> dólares contra 99 milhões <strong>de</strong> dólares no primeiro semestre <strong>de</strong> 2001.<br />
Por enquanto, a ameaça <strong>de</strong> um novo racionamento está afastada pela queda do<br />
consumo. No final <strong>de</strong> 2002, a Eletrobrás estimou que o consumo resi<strong>de</strong>ncial <strong>de</strong> energia<br />
elétrica anterior ao apagão somente será retomado em 2008. Em 2000, antes do<br />
racionamento, cada consumidor resi<strong>de</strong>ncial gastava em média 173 KWh por mês. Hoje,<br />
a média <strong>de</strong> consumo mensal é 22,5% menor <strong>–</strong> 134 KWh por mês. Os hábitos<br />
mudaram, mas foi principalmente o preço proibitivo das tarifas que impediu a retomada<br />
do consumo. O exemplo da Light é significativo: na faixa <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong> baixa renda,<br />
<strong>de</strong> zero a 30 KWh, a variação da tarifa entre janeiro <strong>de</strong> 1995 e setembro <strong>de</strong> 2002 foi <strong>de</strong><br />
1.104,41%. Quem consome menos foi mais penalizado. De 31 a 100 KWh a elevação<br />
foi <strong>de</strong> 404,17%. Na faixa <strong>de</strong> 0 a 100 KWh houve um aumento médio <strong>de</strong> 752,5%, contra<br />
uma inflação (IPC-FIPE) <strong>de</strong> 75,99%.<br />
Reduzir beneficios e favorecer a previdência<br />
privada<br />
A reforma da previdência <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> tinha dois objetivos: reduzir gastos, cortando direitos, e<br />
favorecer o o gran<strong>de</strong> capital, liberando clientes para a previdência privada.<br />
Analisar a reforma da previdência <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> é importante para se <strong>de</strong>svendar sua<br />
política e suas reais priorida<strong>de</strong>s. Alterar as regras <strong>de</strong> um sistema previ<strong>de</strong>nciário não é<br />
tarefa simples. Para que uma reforma liberal fosse feita com apoio <strong>de</strong> setores<br />
importantes da socieda<strong>de</strong> foi preciso distorcer informações, <strong>de</strong>sacreditar o sistema
vigente e transformar o sonho <strong>de</strong> várias gerações em incertezas. Essa ameaça ao<br />
futuro é que estigmatizou a previdência pública como algo inviável. Assim, as reformas<br />
parecem inevitáveis.<br />
A propaganda oficial, com o apoio sistemático dos meios <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong><br />
setores da intelectualida<strong>de</strong>, utilizou-se <strong>de</strong> dados da crise do sistema, mas escamoteou<br />
o <strong>de</strong>bate e produziu supostas verda<strong>de</strong>s sem que os reais problemas tenham sido<br />
abordados.<br />
A reforma, portanto, tinha objetivo certo e sabido. Por <strong>de</strong>trás da crise, mais do<br />
que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> resolver os problemas da previdência estiveram os compromissos do<br />
governo <strong>FHC</strong> <strong>de</strong> entregar ao gran<strong>de</strong> capital financeiro os trabalhadores que têm renda<br />
suficiente para arcar com os custos da previdência privada. Pretendia-se ainda reduzir<br />
os gastos, cortando direitos. O <strong>de</strong>bate ficou restrito à questão fiscal. Foi abandonado o<br />
papel histórico da previdência, cobrir riscos <strong>de</strong> longo e curto prazos (velhice, morte,<br />
invali<strong>de</strong>z, <strong>de</strong>semprego, doenças, maternida<strong>de</strong> e aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trabalho).<br />
Toda a questão social, em que se sustenta numa proposta <strong>de</strong> previdência<br />
pública, redistributiva e solidária foi relegada para prevalecer apenas o <strong>de</strong>bate fiscal.<br />
Foi, assim, esquecida sua função fundamental <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> renda para os setores<br />
mais pobre do campo e das cida<strong>de</strong>s, que têm garantido o recebimento <strong>de</strong> um salário<br />
mínimo.<br />
A ausência do <strong>de</strong>bate e a pesada campanha i<strong>de</strong>ologizada em torno do tema,<br />
levou a um cenário <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinformação, que escon<strong>de</strong>u as razões maiores da crise. Em<br />
particular, a perversa conjugação da queda da renda média do brasileiro, com o<br />
<strong>de</strong>semprego, a precarização das relações <strong>de</strong> trabalho, o incremento da informalida<strong>de</strong><br />
da economia e as renúncias, isenções fiscais e facilida<strong>de</strong>s concedidas a sonegadores e<br />
fraudadores <strong>de</strong> receitas da previdência.<br />
Apoiado na insegurança gerada pela campanha contra a previdência pública,<br />
<strong>FHC</strong> passou a editar uma série <strong>de</strong> medidas provisórias cortando direitos e ampliando<br />
exigências para a obtenção <strong>de</strong> benefícios, o que dificultou e retardou a aposentadoria<br />
<strong>de</strong> muitos. Já no começo <strong>de</strong> seu primeiro mandato, enviou ao Congresso uma emenda<br />
constitucional para modificar mais profundamente o mo<strong>de</strong>lo previ<strong>de</strong>nciário brasileiro,<br />
abrangendo a previdência dos trabalhadores do setor privado e a dos servidores<br />
públicos. Durante os seus 8 anos <strong>de</strong> governo, ocorreram muitas modificações, sempre<br />
para viabilizar a previdência privada e reduzir gastos sociais.<br />
Sob a orientação do Banco Mundial, diversos países da América Latina<br />
realizaram, com variações específicas, profundas mudanças nos sistemas <strong>de</strong><br />
segurida<strong>de</strong> social. A reforma pioneira foi implementada na ditadura <strong>de</strong> Pinochet, no<br />
Chile <strong>–</strong> a mais radical das alterações. Muitas nações mudaram <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo público
em direção a outro privado, <strong>de</strong> contribuição <strong>de</strong>finida. Assim fizeram países como<br />
Argentina, Bolívia, Colômbia, Peru, Uruguai. Na imensa maioria das vezes o alvo<br />
<strong>de</strong>clarado foi o <strong>de</strong> equacionar problemas fiscais, afirmando que uma nova realida<strong>de</strong><br />
econômica e <strong>de</strong>mográfica resultava em escassas fontes <strong>de</strong> financiamento para<br />
sustentar um alegado excesso <strong>de</strong> benefícios. Ocultavam também o real sentido das<br />
reformas, que era a privatização do sistema.<br />
Seguindo esse mol<strong>de</strong> <strong>de</strong> reformulação, no Brasil <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> todos os direitos<br />
ficaram sujeitos ao pressuposto do equilíbrio financeiro e atuarial. Um <strong>de</strong>staque <strong>de</strong>ssa<br />
mudança foi a introdução do fator previ<strong>de</strong>nciário, que rebaixa as aposentadorias<br />
daqueles que buscam esse benefício antes dos 60 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Atingir esse<br />
equilíbrio entre receitas e <strong>de</strong>spesas passou a ser a principal diretriz. Mas, pouco ou<br />
quase nada se disse sobre as causas <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sequilíbrio, nem muito menos sobre<br />
quais receitas e <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong>veriam ser levadas em conta para apuração do resultado.<br />
Para viabilizar a privatização da cobertura previ<strong>de</strong>nciária, as reformas buscavam<br />
criar um mercado cativo para os fundos <strong>de</strong> previdência complementar. A previdência<br />
existe para satisfazer uma necessida<strong>de</strong> futura e é preciso acreditar que ela proverá o<br />
sustento na ida<strong>de</strong> avançada ou diante <strong>de</strong> infortúnio. Assim, reafirmou-se<br />
continuadamente a falência da previdência social, colocando em dúvida a capacida<strong>de</strong><br />
do sistema <strong>de</strong> assegurar o futuro, ao mesmo tempo em que medidas concretas<br />
levaram a previdência pública a um <strong>de</strong>scrédito. Alteraram-se as regras, <strong>de</strong>srespeitando<br />
direitos e frustando a expectativa <strong>de</strong> milhões; os aposentados viram seus recursos<br />
minguarem diante <strong>de</strong> reajustes insuficientes para manter seu po<strong>de</strong>r aquisitivo,<br />
principalmente os que ganham mais do que o salário mínimo. O texto constitucional,<br />
modificado, passou a registrar, em moeda corrente, um valor máximo para os<br />
benefícios. Em escassos 60 meses os 10 salários mínimos iniciais foram reduzidos<br />
para pouco mais <strong>de</strong> 7 mínimos. Levando, assim, o teto a se aproximar do mínimo. Essa<br />
realida<strong>de</strong> induz àqueles que querem e po<strong>de</strong>m buscar segurança em um benefício<br />
previ<strong>de</strong>nciário maior a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da a<strong>de</strong>são aos fundos <strong>de</strong> pensão. Tendência privatista<br />
Mas, para aprofundar a tendência privatista, o mercado <strong>de</strong> previdência privada<br />
precisava também atingir os servidores públicos. Os trabalhadores do setor privado,<br />
quer seja pela baixa média <strong>de</strong> renda ou pela alta rotativida<strong>de</strong>, não asseguram os lucros<br />
que as seguradoras preten<strong>de</strong>m. Foi preciso então que toda a incerteza e a afronta aos<br />
direitos atingissem os servidores públicos, em especial os <strong>de</strong> maior renda. A EC nº 20<br />
possibilita que o teto <strong>de</strong> benefícios do regime geral seja estendido aos servidores,<br />
acabando com a integralida<strong>de</strong> e a parida<strong>de</strong>. Assim, o governo enviou um projeto <strong>de</strong> lei<br />
complementar (PLP nº 9, <strong>de</strong> 1999) para implementar essa diretriz. Mas, como esse teto<br />
apenas atinge os novos servidores, <strong>FHC</strong> <strong>de</strong>ixou na agenda do próximo governo a<br />
continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas reformas. Por isso, o acordo com o FMI <strong>de</strong> fins <strong>de</strong> 2002 intima os<br />
candidatos a continuarem a reforma <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>.
O governo Lula retoma a ban<strong>de</strong>ira da reforma da previdência. A socieda<strong>de</strong>, que<br />
alimentou e ainda nutre o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mudanças, precisa mobilizar-se para impor uma<br />
nova pauta, fugindo das reformas ditadas pelos interesses do gran<strong>de</strong> capital. É preciso<br />
re<strong>de</strong>scobrir sua própria agenda <strong>de</strong> mudanças, voltada para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
econômico e social, para a repartição da renda, a valorização do trabalho e a dignida<strong>de</strong><br />
humana.<br />
A previdência precisa <strong>de</strong> mudanças sim. Mas sob novo signo. Mudanças que<br />
resgatem o seu prestígio e restabeleçam a confiança do trabalhador no seu sistema <strong>de</strong><br />
proteção social. Um aspecto fundamental é <strong>de</strong>sconstruir gran<strong>de</strong> parte das mudanças<br />
introduzidas por <strong>FHC</strong>. Mudar <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> é estabelecer um teto <strong>de</strong> benefícios que,<br />
expresso em salários mínimos, dê ao trabalhador a segurança <strong>de</strong> uma aposentadoria<br />
digna; é recuperar o valor das aposentadorias; é assegurar a cobertura a 60% dos<br />
trabalhadores do setor privado, que, hoje, pelo <strong>de</strong>semprego, informalida<strong>de</strong> ou<br />
<strong>de</strong>sconfiança, estão afastados da cobertura previ<strong>de</strong>nciária.<br />
Para regimes próprios da previdência, é necessário fugir da lógica insana <strong>de</strong><br />
Collor e <strong>FHC</strong> <strong>–</strong> eles nas costas dos servidores todos os males do Esta do nacional. É<br />
preciso, sim, corrigir distorções <strong>de</strong>sses regimes previ<strong>de</strong>nciários e respeitar as<br />
diferenças entre as relações que o trabalhador mantém com a empresa privada e<br />
aquelas que existe entre o servidor e a administração pública.<br />
Estamos convencidos <strong>de</strong> que é na mobilização popular, no <strong>de</strong>spertar da força<br />
criadora do povo brasileiro que resi<strong>de</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> êxito do governo <strong>de</strong> Lula.<br />
Cabe ao movimento social influenciar executivo, legislativo e judiciário, exigir reformas<br />
afinadas com os interesses populares. Nesse caminho, o <strong>de</strong> colocar em marcha novos<br />
i<strong>de</strong>ários, uma importante tarefa é <strong>de</strong>smitificar as mentiras, levar ao movimento social<br />
organizado uma visão que <strong>de</strong>sconstitua dogmas e estigmas impostos pela hegemonia<br />
i<strong>de</strong>ológica e política dos mercados e dos interesses do gran<strong>de</strong> capital.<br />
Abertura <strong>de</strong>scontrolada e <strong>de</strong>pendência externa<br />
A dívida interna cresceu seis vezes e a externa saiu <strong>de</strong> 100 bilhões para 250 bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />
Setores inteiros foram <strong>de</strong>snacionalizados e o país ficou completamente vulnerável.
No último ano, o oitavo, o “mercado” e os financistas <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> espalharam o<br />
terror com o argumento <strong>de</strong> que a única alternativa ao caos seria a continuida<strong>de</strong> da<br />
política econômica.<br />
A crescente <strong>de</strong>pendência externa da economia do país é uma das gran<strong>de</strong>s<br />
<strong>herança</strong>s do governo <strong>de</strong> Fernando Henrique Cardoso. Essa <strong>de</strong>pendência está<br />
diretamente ligada a uma estratégia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, baseada nos capitais<br />
externos e nas empresas transnacionais, e à forma <strong>de</strong>scontrolada <strong>de</strong> inserção <strong>de</strong><br />
nossa economia na chamada globalização, seja no seu aspecto comercial ou<br />
financeiro.<br />
A abertura comercial, por um lado, aumentou o consumo interno <strong>de</strong> bens<br />
importados. No período <strong>de</strong> 1994 a 1998 <strong>–</strong> quando o real ficou muito valorizado frente<br />
ao dólar <strong>–</strong> a abertura comercial foi mais prejudicial, porque produtos importados<br />
passaram a ficar artificialmente mais baratos do que os produzidos internamente, o que<br />
levou ao fechamento <strong>de</strong> inúmeras pequenas e médias indústrias nacionais. Até 1998, o<br />
déficit comercial foi crescente, tendo acumulado, entre 1995 e 2001, um saldo negativo<br />
<strong>de</strong> 25,4 bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />
Mas a abertura comercial também fez com que parte significativa da produção<br />
intermediária <strong>de</strong> bens (insumos e matérias-primas), fosse substituída por importações.<br />
Isso mudou a matriz produtiva da economia. Os produtos industriais feitos aqui<br />
começaram a ter crescente participação <strong>de</strong> matérias-primas, insumos e tecnologias<br />
estrangeiras. Um bom exemplo é o setor automobilístico, o único setor industrial que,<br />
po<strong>de</strong>-se dizer, teve uma política específica, que vigorou <strong>de</strong> 1996 a 2000, o regime<br />
automotivo. Regulamentado pela Lei 9.449 e pelo Decreto 2.072, o seu objetivo foi<br />
incentivar as montadoras já instaladas no país e atrair investimentos das que ainda não<br />
estavam aqui.<br />
Graças a esses incentivos, novas montadoras vieram para o Brasil e ainda<br />
trouxeram parte <strong>de</strong> seus fornecedores tradicionais <strong>de</strong> autopeças, aos quais foram<br />
estendidos os benefícios. Segundo o economista João Alberto <strong>de</strong> Negri, do Instituto <strong>de</strong><br />
Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), em trabalho intitulado Avaliação do Regime<br />
Automotivo Brasileiro, essa política engordou o lucro das montadoras, ajudou a acabar<br />
com a indústria nacional <strong>de</strong> autopeças e resultou em aumento <strong>de</strong> 25% dos preços reais<br />
médios dos veículos nos dois primeiros anos <strong>de</strong> vigência . As indústrias com controle<br />
acionário nacional, que respondiam por 45,35% das vendas domésticas <strong>de</strong><br />
equipamentos <strong>de</strong> direção, transmissão, sistemas elétricos, eletrônica embarcada e<br />
freios, passaram a apenas 26% em 1997. As gran<strong>de</strong>s multinacionais do setor<br />
compraram as principais empresas brasileiras e o número <strong>de</strong> firmas caiu <strong>de</strong> 1.500 em<br />
1990 para 800 em 1998.
Após a <strong>de</strong>svalorização do real, em 1999, a <strong>de</strong>snacionalização, como o exemplo<br />
do setor automotivo, passou a ter outro componente negativo: qualquer crescimento da<br />
economia sempre significou o incremento <strong>de</strong>sproporcional das importações, gerando<br />
déficit e <strong>de</strong>sequilíbrio nas contas externas. Nossa economia passou a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r, então,<br />
cada vez mais do financiamento externo, em um círculo vicioso. Essa <strong>de</strong>pendência é<br />
um dos empecilhos ao <strong>de</strong>senvolvimento e foi o que fez a economia crescer tão pouco<br />
durante os anos <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>. Ampliá-la, levaria à elevação do déficit externo e a uma crise<br />
<strong>de</strong> “credibilida<strong>de</strong> externa”.<br />
Antes da abertura comercial <strong>de</strong>scontrolada, no entanto, o Brasil fez outra<br />
abertura, <strong>de</strong> conseqüências talvez até mais dramáticas para a economia do país: a<br />
financeira. As regras <strong>de</strong> entrada e saída <strong>de</strong> capitais foram liberalizadas e as operações<br />
<strong>de</strong> compra e venda interna <strong>de</strong> dólares foram facilitadas a partir da gestão dos<br />
financistas Marcílio Marques Moreira, no ministério da Economia, Francisco Gros, no<br />
Banco Central, e Armínio Fraga, na diretoria da área externa do banco, em meados <strong>de</strong><br />
1992.<br />
O marco inicial <strong>de</strong>ssa liberação foi a vulgarização das chamadas contas CC-5,<br />
que se baseiam numa legislação <strong>de</strong> 1957. Naquele tempo não existiam as transações<br />
eletrônicas e as facilida<strong>de</strong>s para a movimentação internacional <strong>de</strong> capitais. CC-5 <strong>–</strong><br />
Carta Circular número 5 <strong>–</strong> era uma instrução das autorida<strong>de</strong>s monetárias brasileiras,<br />
que dizia que os não resi<strong>de</strong>ntes no país <strong>–</strong> pessoas e empresas <strong>–</strong> que trouxessem<br />
dólares para cá tinham o direito <strong>de</strong> repatriá-los, quando quisessem, sem autorização<br />
prévia. Tudo o mais que não fosse moeda estrangeira trazida para o país, dizia a lei,<br />
precisaria <strong>de</strong> autorização prévia para ser convertida em moeda estrangeira para envio<br />
ao exterior.<br />
Em 1992, ainda no governo Collor, portanto, com Armínio Fraga na área externa<br />
do BC, passou-se a interpretar a CC-5 <strong>de</strong> um modo muito mais amplo: qualquer nãoresi<strong>de</strong>nte<br />
no país, pessoa física ou empresa, po<strong>de</strong>ria optar por ter seus haveres<br />
financeiros em reais ou em dólar. Ou seja, po<strong>de</strong>ria enviar para o exterior, sem aviso<br />
prévio ao BC, o equivalente em dólares a todos os reais que tivesse no sistema<br />
financeiro do país.<br />
CC-5, dreno externo<br />
Com isso, a legislação original das CC-5, que era muito restritiva, tornou-se<br />
completamente permissiva. E essas contas se transformaram no principal instrumento<br />
<strong>de</strong> drenagem <strong>de</strong> dinheiro para fora do país. A mudança estava articulada com outros
instrumentos da abertura financeira. Entre esses, <strong>de</strong>stacam-se os chamados “anexos”<br />
do Banco Central. Por esses regulamentos, permitiu-se que fundos estrangeiros<br />
fizessem aplicações aqui <strong>–</strong> na bolsa <strong>de</strong> valores, em fundos financeiros <strong>de</strong> investimento<br />
e em fundos para leilões das estatais. Com isso, se buscava não só atrair capital <strong>de</strong><br />
empresas e investidores estrangeiros, como também trazer <strong>de</strong> volta os recursos <strong>de</strong><br />
brasileiros que tinham levado dinheiro para o exterior ilegalmente. Des<strong>de</strong> que as<br />
aplicações fossem feitas a partir <strong>de</strong> fundos externos e em outros localizados no país,<br />
as pessoas físicas que estavam por trás <strong>de</strong>ssas instituições não precisavam aparecer.<br />
Fez parte da abertura financeira também a mudança nas regras <strong>de</strong> remessa <strong>de</strong> lucros,<br />
divi<strong>de</strong>ndos e royalties. As remessas foram liberalizadas pela Lei nº 8.383, <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1991, que extinguiu o adicional <strong>de</strong> imposto <strong>de</strong> renda que incidia sobre<br />
elas.<br />
Com tudo isso se objetivava atrair o capital externo que, supunha-se, iria<br />
financiar nosso <strong>de</strong>senvolvimento e mo<strong>de</strong>rnizar a estrutura produtiva nacional. Na<br />
verda<strong>de</strong>, até 1994, essa liberação serviu pouco para a mo<strong>de</strong>rnização e muito para que<br />
brasileiros repatriassem parte dos seus fundos no exterior, aproveitando as altas taxas<br />
<strong>de</strong> juros da dívida pública praticadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>de</strong> 1991, e outras oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
ganhos financeiros. Estima-se que no início da década <strong>de</strong> 90, empresas e brasileiros<br />
ricos dispunham <strong>de</strong> um saldo <strong>de</strong> 60 bilhões <strong>de</strong> dólares no exterior, retirados<br />
ilegalmente do país e mantidos em paraísos fiscais. De 1992 a 1994, entraram<br />
liquidamente no país, por meio das CC-5, mais <strong>de</strong> 23 bilhões <strong>de</strong> dólares. Essa<br />
“repatriação” foi feita também para adquirir as primeiras estatais privatizadas.<br />
Só após 1994, com a renegociação da dívida externa e a implantação do real,<br />
começaram a chegar <strong>de</strong> fato investimentos estrangeiros. Nos primeiros anos da<br />
década passada houve uma gran<strong>de</strong> oferta <strong>de</strong> empréstimos externos a custos muito<br />
baixos. Essa situação mudou em 1994: no segundo semestre, o banco central dos EUA<br />
duplicou a taxa <strong>de</strong> juros básica, gerando a crise do México. Em 19 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />
1994, o peso foi <strong>de</strong>svalorizado em 15% e, em poucos dias, investidores mexicanos e<br />
americanos per<strong>de</strong>ram mais <strong>de</strong> 10 bilhões <strong>de</strong> dólares. As reservas mexicanas, que<br />
estiveram em 25 bilhões <strong>de</strong> dólares no início <strong>de</strong> 1994, caíram para menos <strong>de</strong> seis<br />
bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />
A partir daí, os fluxos <strong>de</strong> empréstimos diminuíram para os mercados emergentes<br />
e os empréstimos ficaram caros. Como só em 1994 o Brasil chegou a um acordo sobre<br />
a dívida herdada da década <strong>de</strong> 70, do tempo do milagre dos militares, a economia<br />
brasileira chegou tar<strong>de</strong> ao mercado financeiro internacional, quando as condições <strong>de</strong><br />
financiamento passaram a ser mais seletivas e os juros elevados. Já na euforia dos<br />
primeiros seis meses <strong>de</strong> Plano Real, portanto, a taxa <strong>de</strong> juros externa estava<br />
começando a fazer com que o sonho <strong>de</strong> um novo milagre brasileiro, financiado com<br />
capitais externos, se esvaísse.
Mesmo assim, o governo <strong>FHC</strong> continuou a apostar no financiamento externo e<br />
nosso déficit não parou <strong>de</strong> crescer. Por isso, ao mesmo tempo em que entravam os<br />
investimentos e empréstimos externos, as remessas das rendas do capital (juros,<br />
lucros e royalties) aumentavam espetacularmente: <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> oito bilhões <strong>de</strong> dólares<br />
em 1991, saltaram para perto <strong>de</strong> 12 bilhões <strong>de</strong> dólares em 1996 e para mais <strong>de</strong> 16<br />
bilhões <strong>de</strong> dólares em 2001.<br />
No dia 2 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1997, o Banco da Tailândia anunciava a entrada do baht, a<br />
moeda local, num regime <strong>de</strong> taxa flutuante administrada e pedia assistência técnica ao<br />
FMI. Tem início a chamada crise da Ásia. Em 23 <strong>de</strong> agosto, o primeiro ministro da<br />
Malásia, Mahatir Bin Mohamad, que <strong>de</strong>pois imporia medidas restritivas à<br />
movimentação <strong>de</strong> capitais, acusou o megaespeculador George Soros <strong>de</strong> estar por<br />
<strong>de</strong>trás dos ataques especulativos às moedas da região.<br />
No final <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1998, havia uma gran<strong>de</strong> euforia pela conclusão do processo<br />
<strong>de</strong> privatização do sistema Telebrás. Agosto, entretanto, reservava surpresas. No dia<br />
17, a Rússia <strong>de</strong>clarou moratória no pagamento das suas dívidas interna e externa e<br />
<strong>de</strong>svalorizou o rublo. O Índice Ibovespa acusou uma queda <strong>de</strong> 40% e os 10 bilhões <strong>de</strong><br />
dólares que saíram do país anularam o efeito da entrada <strong>de</strong> divisas (cerca <strong>de</strong> 4 bilhões<br />
<strong>de</strong> dólares) pelo pagamento <strong>de</strong> parcela da Telebrás, adquirida por investidores<br />
estrangeiros.<br />
Com essas duas crises, o fluxo externo <strong>de</strong> capitais diminuiu, o Brasil foi pego no<br />
contrapé e quebrou. Houve uma intensa fuga <strong>de</strong> capitais. Em plena campanha eleitoral,<br />
na surdina, <strong>FHC</strong> costurou um acordo com o FMI, que passou a ser co-gestor da<br />
economia nacional. O país teve que se submeter a um longo programa <strong>de</strong> três anos<br />
para executar o ajuste externo e fiscal.<br />
Em janeiro <strong>de</strong> 1999, o real foi <strong>de</strong>svalorizado. Muitos que tinham dívidas em dólar<br />
haviam comprado papéis do Tesouro Nacional, que lhes garantiam, além <strong>de</strong> juros,<br />
correção correspon<strong>de</strong>nte à <strong>de</strong>svalorização da moeda brasileira frente ao dólar. Assim,<br />
com a <strong>de</strong>svalorização, o Tesouro levou um prejuízo <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 60 bilhões <strong>de</strong> reais por<br />
ter assumido o risco cambial <strong>de</strong> investidores e gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vedores.<br />
Investimentos
De 1999 em diante, com o real barato e as empresas brasileiras em dificulda<strong>de</strong>s,<br />
houve um gran<strong>de</strong> aumento no fluxo <strong>de</strong> investimentos diretos. Não para criar<br />
empreendimentos novos, mas para comprar as empresas nacionais na bacia das<br />
almas. Uma parcela importante das principais empresas privadas e <strong>de</strong> estatais<br />
nacionais foi adquirida por capitais externos. Os estrangeiros passaram a atuar em<br />
diversas áreas em que não tinham presença alguma ou nas quais sua participação era<br />
muito pequena. Na si<strong>de</strong>rurgia e metalurgia, entre os anos <strong>de</strong> 1994 e 1999, a<br />
participação estrangeira saiu <strong>de</strong> quase nada para 34%. No comércio varejista, em<br />
1994, os estrangeiros controlavam apenas 7,1% dos negócios. E os gran<strong>de</strong>s eram<br />
brasileiros. Hoje, o capital estrangeiro controla cerca <strong>de</strong> 60% do setor. Em 2000, o<br />
capital estrangeiro já controlava 90% do setor eletro-eletrônico; 86% do setor <strong>de</strong><br />
higiene, limpeza e cosméticos; 77% do setor <strong>de</strong> computação; 74% das<br />
telecomunicações; 74% do setor farmacêutico, 68% da indústria mecânica, 58% do<br />
setor <strong>de</strong> alimentos e 54% do setor <strong>de</strong> plásticos e borracha.<br />
Alguns exemplos ilustram esse movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>snacionalização. A Metal Leve<br />
<strong>de</strong> José Mindlin foi comprada pela Cofap em associação com a Mahle, da Alemanha.<br />
Em abril <strong>de</strong> 97, a própria Cofap, ainda sob o comando do brasileiro Abraham Kasinski,<br />
foi engolida pela Magneti Marelli, do grupo italiano Fiat. A Freios Varga, outra gigante<br />
brasileira do setor <strong>de</strong> autopeças, passou para o controle da inglesa Luca Varity. A<br />
Brasmotor foi transferida à antiga sócia norte-americana Whirpool. A Phelps, dos<br />
Estados Unidos, <strong>de</strong>sembolsou em torno <strong>de</strong> 200 milhões <strong>de</strong> dólares para levar a<br />
Ciopebrás, principal empresa brasileira na produção <strong>de</strong> negro-<strong>de</strong>-fumo, matéria-prima<br />
utilizada na fabricação <strong>de</strong> pneus e componentes para a indústria automobilística. A<br />
Dana Coporation (EUA), uma das maiores do mundo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> montar 14 fábricas no<br />
Brasil, passou a comprar concorrentes nacionais aproximando-se <strong>de</strong> um controle do<br />
mercado. Por intermédio <strong>de</strong> uma compra internacional da também norte-americana<br />
Echilin, a Dana levou o tradicional fabricante <strong>de</strong> carburadores Brosol. Depois, ainda<br />
adquiriu a Nakata, que produzia amortecedores e escapamentos. Assim, o setor<br />
automotivo, que tinha uma significativa presença nacional, passou a ter 89% <strong>de</strong><br />
presença estrangeira.<br />
Outros setores viveram o mesmo problema com empresas tradicionais engolidas<br />
pelo capital estrangeiro: a Lacta foi comprada pela Philip Morris; a Peixe pela Italiana<br />
Cirio; a Adria pela americana Quaker; a Petroquímica União pela americana Union<br />
Carbi<strong>de</strong>; a Arno pela francesa SEB; a gaúcha Frangosul, classificada entre as cinco<br />
maiores do Brasil, ficou com o grupo francês Doux, maior exportador <strong>de</strong> aves da<br />
Europa e principal concorrente das empresas nacionais no mercado internacional;<br />
parte da Gradiente foi para a Ericsson; a Café do Ponto passou para a norte-americana<br />
Sara Lee; a Etti e a Batavo ficaram com italiana Parmalat.
A partir <strong>de</strong> 1999 o país não tinha mais fôlego para crescer. Não havia mais<br />
dólares para financiar uma economia que só po<strong>de</strong>ria crescer criando um buraco nas<br />
contas externas, seja pelo aumento das importações, seja pela elevação das remessas<br />
das rendas <strong>de</strong> capital. Como as regras <strong>de</strong> entrada e saída <strong>de</strong> dólares não foram<br />
mudadas, os <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> dólares e os gran<strong>de</strong>s empresários nacionais e<br />
internacionais passaram a ter um gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r sobre a economia. Qualquer flutuação<br />
nos mercados financeiros internacionais imediatamente impacta a economia, mantendo<br />
elevada a taxa <strong>de</strong> juros interna ou provocando fuga <strong>de</strong> dólares. Esse é o mecanismo<br />
que cria a instabilida<strong>de</strong> na taxa <strong>de</strong> câmbio e vem ameaçando <strong>de</strong>ixar o país sem<br />
reservas internacionais.<br />
Sempre mais juros<br />
Des<strong>de</strong> a crise do México, o governo vem mantendo a estratégia <strong>de</strong> inserção<br />
externa, sempre na esperança <strong>de</strong> que as coisas melhorem e voltemos às “boas<br />
condições” <strong>de</strong> financiamento farto e barato dos primeiros anos da década <strong>de</strong> 90. Mas a<br />
realida<strong>de</strong> vem sempre contrariando essas expectativas, o que vem custando muito caro<br />
ao Brasil.<br />
Com queda acentuada das bolsas <strong>de</strong> Nova Iorque a partir do final <strong>de</strong> 2000, a<br />
crise mundial se agravou ainda mais, e o governo <strong>FHC</strong> passou a se aplicar mais nos<br />
esforços <strong>de</strong> obter uma melhoria <strong>de</strong> suas contas externas, principalmente com<br />
incentivos às exportações.<br />
Sem financiamento externo a<strong>de</strong>quado, não há como o país continuar pagando<br />
os compromissos financeiros, a amortização das dívidas e as remessas <strong>de</strong> juros, lucros<br />
e royalties. Muito menos po<strong>de</strong>rá continuar a garantir a livre saída <strong>de</strong> dólares por<br />
“repatriação” <strong>de</strong> investimentos. Por isso, o governo <strong>FHC</strong> voltou, como na crise da<br />
dívida <strong>de</strong> 1982, a incentivar as exportações para angariar dólares, mantendo a<br />
economia interna estagnada e sob pressão inflacionária pela <strong>de</strong>svalorização do real<br />
frente ao dólar. Não para diminuir a nossa <strong>de</strong>pendência externa, mas para manter os<br />
compromissos financeiros em dia.<br />
Manter saldos comerciais elevados durante longos períodos, <strong>de</strong>ixando<br />
inalterados o volume e as condições dos compromissos externos, não significa<br />
necessariamente resolver o problema da vulnerabilida<strong>de</strong> externa. Ao contrário, po<strong>de</strong><br />
apenas agravá-la mais. Assim como aconteceu na década <strong>de</strong> 80, alcançar um
superávit comercial, rapidamente e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> monta, só po<strong>de</strong> ser feito às custas da<br />
constante <strong>de</strong>svalorização da moeda nacional, da diminuição da receita tributária com<br />
incentivos aos exportadores e pela manutenção da economia interna estagnada. E<br />
assim como aconteceu também após o fim do milagre dos generais, esse superávit<br />
comercial fará com que volte a inflação ou que os governos fe<strong>de</strong>ral e estaduais<br />
quebrem, per<strong>de</strong>ndo receita e se endividando ainda mais <strong>–</strong> ou mesmo as duas coisas<br />
ao mesmo tempo.<br />
Por isso, a solução para o equilíbrio <strong>de</strong> nossas contas externas não po<strong>de</strong> ser<br />
outra vez o apelo à velha fórmula, sempre repetida, do aumento das exportações e da<br />
estagnação da economia. É preciso levar em consi<strong>de</strong>ração que nossos credores e<br />
investidores também fazem parte do problema e que as condições atuais da dívida<br />
externa, bem como das regras vigentes <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimento <strong>de</strong> capitais,<br />
também po<strong>de</strong>m ser renegociadas e revistas. Diminuindo o montante <strong>de</strong> nossas<br />
obrigações externas, po<strong>de</strong>remos equilibrar melhor a condição <strong>de</strong> gerar superávit<br />
comercial, sem ter que <strong>de</strong>primir o consumo interno, o emprego e as condições <strong>de</strong> vida<br />
dos brasileiros. Esse é um gran<strong>de</strong> problema herdado e que o governo <strong>de</strong> Lula terá que<br />
enfrentar mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>.<br />
A fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossas contas externas <strong>de</strong>corre, portanto, não apenas do<br />
enorme passivo externo acumulado durante o Plano Real, mas também da<br />
continuida<strong>de</strong> das regras liberais <strong>de</strong> entrada e saída <strong>de</strong> dólares. Os compromissos<br />
internacionais e o controle que o capital forasteiro tem sobre a economia tornaram o<br />
país cada vez mais vulnerável às flutuações externas.<br />
Mas é a continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> regras que permitem a saída quase livre <strong>de</strong> dólares que<br />
faz com que a população e o próprio governo tornem-se reféns da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
pequeno número <strong>de</strong> empresas que movimentam gigantescas massas <strong>de</strong> dinheiro e<br />
tentam preservar a qualquer custo o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do país. Promovendo<br />
a fuga <strong>de</strong> dólares ou especulando com a taxa <strong>de</strong> câmbio e com os títulos da dívida<br />
pública, eles <strong>de</strong>sestabilizam a economia e pressionam o governo para manter as<br />
políticas e as regras que lhe são favoráveis.<br />
Trabalho precário, emprego em queda, renda<br />
achatada
<strong>FHC</strong> patrocinou uma campanha contra os direitos trabalhistas, ampliou a informalida<strong>de</strong> na<br />
economia e levou o Brasil para o segundo lugar em <strong>de</strong>sempregados no mundo.<br />
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Carteira <strong>de</strong> Trabalho são os<br />
gran<strong>de</strong>s emblemas da <strong>herança</strong> Vargas, que Fernando Henrique Cardoso i<strong>de</strong>ntificava<br />
como o Estado intervencionista.<br />
Uma das principais contribuições <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> na área social <strong>–</strong> uma contribuição<br />
muito negativa <strong>–</strong> foi ter utilizado toda a sua autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> sociólogo em uma<br />
campanha particular, teórica e prática, contra a legislação trabalhista. Nessa<br />
campanha, procurou atribuir o gran<strong>de</strong> crescimento do <strong>de</strong>semprego, nos anos <strong>de</strong><br />
neoliberalismo, à resistência dos partidos <strong>de</strong> esquerda e do movimento sindical à<br />
chamada flexibilização das leis trabalhistas.<br />
A legislação trabalhista é antiga, complexa e merece uma revisão. Mas <strong>FHC</strong> não<br />
apresentou nenhum plano, nenhum estudo merecedor do nome que procurasse dar<br />
nova forma, organizar e mo<strong>de</strong>rnizar o conjunto <strong>de</strong>ssas leis. Quem diz isso é uma das<br />
maiores autorida<strong>de</strong>s brasileiras no assunto, Márcio Pochmann. Secretário do Trabalho<br />
e Solidarieda<strong>de</strong> da prefeitura <strong>de</strong> São Paulo, coor<strong>de</strong>na o que é possivelmente o maior<br />
programa municipal <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> renda diretamente à população pobre, que ele<br />
mesmo consi<strong>de</strong>ra apenas uma forma <strong>de</strong> minimizar os efeitos do gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego<br />
no país. Pochmann foi ainda consultor da Organização Internacional do Trabalho no<br />
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e tem oito livros publicados<br />
sobre trabalho e emprego. Ele diz que <strong>FHC</strong> tratou do problema do país com a retórica<br />
neoliberal. Falou mal <strong>de</strong> Getúlio Vargas e da CLT para insinuar que tinha um plano<br />
para o emprego no país, coisa que não tinha.<br />
Posteriormente, já na campanha eleitoral <strong>de</strong> 2002, quando seu candidato José<br />
Serra assumiu como ban<strong>de</strong>ira central <strong>de</strong> seu programa a criação <strong>de</strong> empregos <strong>–</strong><br />
<strong>de</strong>sajeitadamente, como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, para um candidato do governo <strong>–</strong>,<br />
Fernando Henrique disse que o <strong>de</strong>semprego tinha crescido no mundo todo em função<br />
<strong>de</strong> problemas estruturais do <strong>de</strong>senvolvimento. Não seria, portanto, um <strong>de</strong>feito<br />
específico <strong>de</strong> seu governo.<br />
Pochmann prova que não. O <strong>de</strong>semprego não atingiu todos os países <strong>de</strong> modo<br />
igual. O Brasil, em 1980, tinha 2,6% da População Economicamente Ativa (PEA) e<br />
apenas 1,7% dos <strong>de</strong>sempregados globais. No ano 2000, sua participação na PEA tinha<br />
crescido para 3%, mas seu porcentual do <strong>de</strong>semprego global tinha mais que<br />
quadruplicado (7,1%).
De 108 nações selecionadas*, o Brasil estava em nono lugar em valores<br />
absolutos <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego aberto em 1980. Em 1985, ficou no 10º posto. Em 1990,<br />
ocupava a 6ª posição, com 2,3 milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados. Quando <strong>FHC</strong> assumiu, em<br />
1995, já era o 5º, com 4,5 milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados. Em 2000, 5 anos <strong>de</strong>pois, <strong>FHC</strong> e<br />
suas políticas tinham levado o país para o posto <strong>de</strong> segundo pior do mundo, com 11,4<br />
milhões <strong>de</strong> pessoas sem emprego. Com uma população 175 milhões, o Brasil tem<br />
quase o dobro do número <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados da China (5,9 milhões), que tem mais <strong>de</strong><br />
sete vezes o seu número <strong>de</strong> habitantes (1,3 bilhão). O país <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> só per<strong>de</strong> para a<br />
Índia, a primeira colocada. Supera a Rússia (3ª), a Indonésia (5ª) e os EUA (6ª), que<br />
estiveram em segundo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1980.<br />
Em termos porcentuais**, o país também piorou com <strong>FHC</strong>: em 1980 o Brasil era<br />
o 91º país com maior índice <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego, com 2,2%. Em 1990, com 3% <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>semprego, ocupava a 78ª posição. Com <strong>FHC</strong>, em 2000, a taxa <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego foi <strong>de</strong><br />
15% e o país “subiu” para o 23º lugar.<br />
Como se vê, o <strong>de</strong>semprego não começou a crescer no governo <strong>FHC</strong>. O que seu<br />
governo fez foi multiplicar por três o <strong>de</strong>semprego no país: <strong>de</strong> 4,5 milhões <strong>de</strong> pessoas<br />
para 11,5 milhões <strong>–</strong> na média, um milhão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados a mais por ano <strong>de</strong><br />
mandato. Com o crescimento medíocre da economia, o aumento do emprego não<br />
acompanhou a taxa a evolução da, que é <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 2% <strong>–</strong> o que significa, a cada ano,<br />
um incremento <strong>de</strong> 1,5 milhão <strong>de</strong> novas pessoas procurando trabalho.<br />
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), apenas um em cada<br />
três brasileiros é assalariado com registro formal. Das 76,5 milhões <strong>de</strong> pessoas que<br />
compõem a PEA brasileira, somente 24 milhões possuem algum tipo <strong>de</strong> proteção social<br />
e trabalhista. O restante está <strong>de</strong>sempregada ou integra o mercado informal**. Diversos<br />
outros trabalhos fazem a mesma constatação. Um estudo*** do Departamento<br />
Intersindical <strong>de</strong> Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) mostra que, além das<br />
mudanças na forma <strong>de</strong> contratação da força <strong>de</strong> trabalho pelos setores privado e<br />
público, registrou-se redução generalizada do peso do trabalho assalariado no total dos<br />
postos <strong>de</strong> trabalho gerados. Cresceram as formas <strong>de</strong> contratação <strong>de</strong> trabalhadores<br />
consi<strong>de</strong>radas alternativas e tradicionalmente mais precárias e instáveis, associadas a<br />
ativida<strong>de</strong>s menos produtivas, com menores rendimentos, sem proteção social ou<br />
condições <strong>de</strong> trabalho a<strong>de</strong>quadas e, em alguns casos, até mesmo clan<strong>de</strong>stinas. A<br />
Flexibilização<br />
No mesmo trabalho citado, o Dieese i<strong>de</strong>ntifica como a primeira forma da<br />
chamada flexibilização a contratação do trabalhador diretamente pela empresa como<br />
assalariado sem carteira <strong>de</strong> trabalho assinada. A seguir, a flexibilização aparece na<br />
generalização do assalariamento indireto, em <strong>de</strong>corrência da terceirização <strong>de</strong> serviços.<br />
“A contratação do trabalhador como [trabalhador por] conta própria ou autônomo
continua crescendo e é maior que a terceirização <strong>de</strong> serviços, na maioria das regiões<br />
metropolitanas”. O aumento <strong>de</strong> jornadas <strong>de</strong> trabalho acima das 44 horas semanais,<br />
legais entre os trabalhadores informais, é outro aspecto da flexibilização.<br />
O Mapa do Trabalho Informal**, elaborado pela Central Única dos Trabalhadores<br />
(CUT) na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, indicou uma jornada média <strong>de</strong> 76 horas semanais entre<br />
os entrevistados. A conclusão foi enfática: “a gran<strong>de</strong> maioria dos informais exerce<br />
ativida<strong>de</strong>s precárias, quase todas sujeitas à repressão policial, o que torna os ganhos<br />
extremamente instáveis e incertos”.<br />
Até os anos 1980, a informalida<strong>de</strong> complementava o trabalho nacional e cumpria<br />
o papel <strong>de</strong> criar um “colchão” que amortecia os efeitos do <strong>de</strong>semprego na socieda<strong>de</strong>. A<br />
marca central do trabalho no Brasil era o assalariamento formal: <strong>de</strong> cada <strong>de</strong>z postos <strong>de</strong><br />
trabalho criados, oito eram empregos assalariados, sete com carteira assinada. Na<br />
década <strong>de</strong> 1990, <strong>de</strong> cada <strong>de</strong>z empregos criados somente dois são assalariados e ainda<br />
sem registro em carteira.<br />
A <strong>de</strong>fesa da flexibilização foi a forma <strong>de</strong> o governo cumprir o compromisso<br />
firmado com o Fundo Monetário Nacional (FMI) em 1998. Está escrito no item 33 do<br />
Memorando Técnico <strong>de</strong> Entendimento: “embora o mercado <strong>de</strong> trabalho brasileiro não<br />
seja perseguido por nenhuma rigi<strong>de</strong>z grave, <strong>de</strong>terminadas regulamentações e políticas<br />
do mercado <strong>de</strong> trabalho po<strong>de</strong>m contribuir para uma maior flexibilida<strong>de</strong>”.<br />
A gran<strong>de</strong> e última tentativa <strong>de</strong> flexibilização, já aprovada na Câmara dos<br />
Deputados, aguarda votação no Senado. Altera o art. 618 da CLT e seria um<br />
importante golpe nos direitos dos trabalhadores: os acordos coletivos ganhariam peso<br />
maior do que a lei, permitindo a flexibilização <strong>de</strong> direitos históricos, como, por exemplo,<br />
os 30 dias <strong>de</strong> férias anuais, prevalecendo “o negociado sobre o legislado”.<br />
Dentre a inúmeras modificações da CLT promovidas por <strong>FHC</strong> <strong>de</strong>stacam-se o<br />
impedimento <strong>de</strong> autuação das empresas por <strong>de</strong>srespeito às convenções e acordos<br />
trabalhistas; a retirada do direito brasileiro da limitação à <strong>de</strong>missão imotivada; a<br />
participação nos lucros e resultados, o contrato temporário e o banco <strong>de</strong> horas. Tudo<br />
contribuindo para enfraquecer os direitos dos trabalhadores e aumentar a exploração<br />
do trabalho.<br />
O conjunto das mudanças recentes na forma do trabalho na economia nacional<br />
se refletiu no perfil do <strong>de</strong>sempregado. Se até a década <strong>de</strong> 1980 o <strong>de</strong>semprego atingia<br />
linearmente os trabalhadores menos qualificados, agora é diferente. O novo perfil do<br />
<strong>de</strong>semprego no Brasil, escreve Marcio Pochmann, “refere-se aos trabalhadores com<br />
mais <strong>de</strong> oito anos <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>; com ida<strong>de</strong> mais avançada (mais <strong>de</strong> 49 anos); do<br />
sexo feminino; chefes <strong>de</strong> família; brancas; que buscam o reemprego e que resi<strong>de</strong>m na<br />
Região Su<strong>de</strong>ste”*. Segundo pesquisa do Dieese, obter recolocação no mercado <strong>de</strong>
trabalho, nos anos 90, também ficou mais difícil. Em algumas regiões, como o Distrito<br />
Fe<strong>de</strong>ral e Salvador, a busca por emprego chegou a levar um ano ou mais.<br />
Renda<br />
Os resultados da política <strong>de</strong> flexibilização na distribuição <strong>de</strong> renda e na<br />
qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida do brasileiro foram imediatas. Escreve Pochmann: “A partir <strong>de</strong> 1995,<br />
o fim do período hiperinflacionário não veio acompanhado da elevação real do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
compra dos trabalhadores. A ausência do crescimento econômico sustentado,<br />
combinada com a expansão do <strong>de</strong>semprego e a maior escolarização e qualificação da<br />
oferta <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra, geraram ainda maior concorrência no interior das classes<br />
trabalhadoras, o que levou à piora da parcela salarial na renda nacional”*.<br />
Ao final dos anos 90, o cenário <strong>de</strong> altas taxas <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego, queda dos<br />
salários médios, estagnação do emprego e aumento do nível <strong>de</strong> ocupação inferior ao<br />
crescimento da PEA provocou a redução <strong>de</strong> 17,6% da massa <strong>de</strong> salários da região<br />
metropolitana <strong>de</strong> São Paulo**** .<br />
As perdas na renda do brasileiro no período <strong>de</strong> 1990 até o ano 2000<br />
impressionam. A participação da remuneração do trabalho na renda nacional<br />
<strong>de</strong>cresceu <strong>de</strong> 53,48%, em 1990, para 42,4%, em 2000. Essa queda <strong>de</strong> 11 pontos<br />
reflete a redução da participação da remuneração do trabalho no setor privado: <strong>de</strong><br />
37,25%, em 1990, para 27,38%, em 2000. O comportamento do setor público é variado<br />
e registra uma queda <strong>de</strong> um ponto porcentual na renda nacional.<br />
A distribuição da renda também sofreu mudanças. <strong>FHC</strong> fez um rearranjo da<br />
escassez. Pelos dados do Dieese, os 10% mais pobres em São Paulo, <strong>de</strong> 1995 até<br />
agora, viram seu salário cair 19,3% e os 10% mais bem remunerados per<strong>de</strong>ram 33,1%<br />
na renda do seu trabalho. Todos per<strong>de</strong>ram renda, mas per<strong>de</strong>u mais quem ganha mais.<br />
Segundo números do Ipea, órgão <strong>de</strong> pesquisa oficial do Ministério do<br />
Planejamento, o rendimento médio do trabalhador vai chegar ao fim <strong>de</strong> 2002 com<br />
perda estimada <strong>de</strong> 0,74% durante os oito anos do Real. Ao fim <strong>de</strong> 1994, o trabalhador<br />
ganhava 664,93 reais e chegará ao fim <strong>de</strong> 2002 recebendo em média 660 reais, em<br />
valores <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2000.
Enquanto a participação da renda do trabalho <strong>de</strong>crescia na renda nacional, a<br />
produtivida<strong>de</strong> do trabalho crescia vertiginosamente. De 1990 até 1999, cresceu 24%,<br />
mas foi com o governo <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> que os índices explodiram, chegando a mais do que<br />
dobrar, saltando <strong>de</strong> 10% para 24%. Dessa fatia, nada foi repassado aos trabalhadores.<br />
A produtivida<strong>de</strong> da indústria ultrapassou os 40%.<br />
Os trabalhadores passaram a ser também remunerados <strong>de</strong> formas novas (por<br />
exemplo, porcentual sobre lucros e/ou resultado das empresas). Nada disso, no<br />
entanto, foi incorporado <strong>de</strong>finitivamente aos salários. Apenas <strong>de</strong>u mais flexibilida<strong>de</strong> às<br />
empresas na <strong>de</strong>terminação do custo do trabalho. Diz o Dieese: “em São Paulo, em<br />
valores absolutos, os rendimentos auferidos pelos contratados <strong>de</strong> forma flexibilizada<br />
foram significativamente inferiores aos contratados <strong>de</strong> forma padrão, constatação<br />
válida para todas as regiões pesquisadas”. E ainda: “a facilida<strong>de</strong> encontrada pelas<br />
empresas na contratação <strong>de</strong> autônomos garantiu aumento do número <strong>de</strong> contratos <strong>de</strong><br />
forma flexibilizada, vantajosa para as empresas, uma vez que, além <strong>de</strong> se eximirem do<br />
recolhimentos <strong>de</strong> encargos sociais, podiam pagar salários menores do que os que<br />
seriam pagos mediante contratação padrão”.<br />
Tudo isso gerou um caldo <strong>de</strong> cultura que enfraqueceu a força dos trabalhadores<br />
e dos sindicatos, reduzindo sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> luta e resistência. É ainda do Dieese o<br />
diagnóstico sobre a redução do po<strong>de</strong>r dos sindicatos: “a expectativa do coor<strong>de</strong>nador<br />
técnico da entida<strong>de</strong> em São Paulo, Wilson Amorim, é <strong>de</strong> que a safra <strong>de</strong> acordos pelo<br />
país, que contemple a inflação, diminua para algo perto <strong>de</strong> 50%. No ano passado, ficou<br />
em 64%. “Há espaço restrito para campanha, que se concentra em reposição salarial”,<br />
afirmou. “As negociações são tensas e se prolongam além do prazo normal”. Diz o<br />
Dieese que 76% das categorias não tiveram nenhum tipo <strong>de</strong> reajuste e as <strong>de</strong>mais<br />
conseguiram aumentos entre 10% e 50%. O instituto não contabiliza, nesse cálculo, as<br />
gratificações, que consi<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> uma política “arbitrária e clientelista”.<br />
<strong>FHC</strong>, já no início <strong>de</strong> seu governo, em maio <strong>de</strong> 1995, <strong>de</strong>monstrou sua disposição<br />
para com o movimento sindical. De forma emblemática, acionou o Exército contra a<br />
greve dos petroleiros e aplicou multas às entida<strong>de</strong>s da categoria. O número <strong>de</strong> greves<br />
no país reduziu drasticamente.<br />
O funcionalismo público foi particularmente atingido e ficou quase oito anos com<br />
o seu salário congelado. Pesquisa recente divulgada pelo Instituto Brasileiro <strong>de</strong><br />
Geografia e Estatística (IBGE) indica que os gastos com pessoal das empresas<br />
públicas encolheram <strong>de</strong> 13,9%, em 1995, para 6,45%, em 2000.<br />
Durante a primeira meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1990, o salário mínimo <strong>–</strong> importante<br />
fator <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> renda <strong>–</strong> continuou a per<strong>de</strong>r po<strong>de</strong>r aquisitivo e alcançou seu<br />
menor valor real no início em 1995. O reajuste <strong>de</strong> 42,86%, concedido em maio daquele
ano, e os sucessivos aumentos reais nos anos seguintes repuseram parte <strong>de</strong>ssa perda.<br />
Mesmo assim, em 1999, o salário mínimo correspondia a somente 2/3 do seu valor em<br />
1989.<br />
A in<strong>de</strong>xação do salário mínimo sempre foi rechaçada como elemento<br />
inflacionário, entretanto, o governo não teve o menor constrangimento <strong>de</strong> in<strong>de</strong>xar<br />
tarifas públicas como, por exemplo, a <strong>de</strong> energia elétrica. Em 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1995, a<br />
Lei 9.069, em seu art. 70, já <strong>de</strong>terminava que “o reajuste e a revisão dos preços<br />
públicos e das tarifas <strong>de</strong> serviços públicos far-se-ão conforme atos, normas e critérios a<br />
serem fixados pelo Ministro da Fazenda”. A política a cargo do ministro Malan elevou<br />
as tarifas telefônicas em quase 4.000%; na energia elétrica, o brasileiro paga o<br />
“imposto do apagão” por ter reduzido seu consumo e impedido a falta <strong>de</strong> energia.<br />
O discurso oficial para reduzir progressivamente os aumentos reais do mínimo<br />
sempre recorreu ao déficit da previdência como álibi, pois o aumento do salário-mínimo<br />
reflete-se diretamente nos gastos da previdência. As dificulda<strong>de</strong>s da previdência,<br />
entretanto, estão vinculadas à própria política <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> emprego. A redução do<br />
número <strong>de</strong> trabalhadores com carteira assinada e no pleno exercício <strong>de</strong> seus direitos e<br />
o aumento da informalida<strong>de</strong> do trabalho levaram a uma redução significativa do<br />
recolhimento para a previdência. Por outro lado, a previdência tem um gran<strong>de</strong> papel <strong>de</strong><br />
redistribuição <strong>de</strong> renda e não po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada somente do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>spesa.<br />
Não bastassem todas as perdas salariais acumuladas nos oito anos <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, os<br />
trabalhadores assistem agora à retomada da inflação. Em novembro, segundo o<br />
economista Ricardo Braule, <strong>de</strong> uma equipe do governo que estuda mudanças no Índice<br />
<strong>de</strong> Preços ao Consumidor Amplo, o IPCA, o aumento dos preços foi “explosivo e<br />
generalizado”. Pela primeira vez <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do Plano Real, em 1994, o chamado<br />
núcleo da inflação, que exclui as tarifas públicas, passou <strong>de</strong> 2% ao mês. O IPCA<br />
acumulou 10,22% <strong>de</strong> janeiro a novembro e po<strong>de</strong> chegar próximo <strong>de</strong> 13%, com a alta <strong>de</strong><br />
2,5% esperada para <strong>de</strong>zembro.<br />
* Globalização e <strong>de</strong>semprego: breve balanço da inserção brasileira - Marcio<br />
Pochmann - São Paulo - Maio <strong>de</strong> 2002 - Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e<br />
Solidarieda<strong>de</strong> da Prefeitura do Município <strong>de</strong> SP<br />
** In A regressão do trabalho na Era <strong>FHC</strong> - Altamiro Borges<br />
*** Mercado <strong>de</strong> Trabalho no Brasil - Dieese<br />
**** Os Rendimentos do Trabalho no Brasil - Dieese
A cultura legada por <strong>FHC</strong>: mais para Cabral do que<br />
para índio<br />
A política cultural dos tucanos, que pretendia acabar com o dirigismo estatal, fortaleceu o<br />
marketing e o dirigismo empresarial. <strong>Cultura</strong>, disse o minitro Weffort, tem que dar lucro.<br />
Em março <strong>de</strong> 1995, pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tomar posse, o ministro Francisco Weffort,<br />
ao anunciar mudanças na Lei Rouanet, que passaria a permitir a participação <strong>de</strong><br />
agentes culturais e empresários na intermediação <strong>de</strong> recursos, ganhando comissões,<br />
lançou a máxima: “cultura tem <strong>de</strong> dar lucro”. Também em março <strong>de</strong> 1995, em entrevista<br />
ao Jornal da USP, afastava qualquer pretensão <strong>de</strong> “política dirigista em relação à<br />
cultura”.<br />
O ministério seria, assim, uma espécie <strong>de</strong> gerente na alocação dos recursos. Na<br />
entrevista ao Jornal da USP, essa política era <strong>de</strong>finida com clareza ao propor uma nova<br />
visão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional: “não como um critério nacionalista, no sentido tradicional.<br />
Mas <strong>de</strong> estímulo às instituições, às pessoas e aos grupos para que eles <strong>de</strong>senvolvam a<br />
sua criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> expressão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da nação, da <strong>de</strong>mocracia e da<br />
cidadania”.<br />
Essa postura, <strong>de</strong> subordinação ao mercado, não foi uma novida<strong>de</strong> no panorama<br />
da política cultural brasileira, mas a consolidação <strong>de</strong> tendências que vinham <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
final da ditadura e que já haviam sido manifestadas no próprio governo do general João<br />
Figueiredo, cujo ministro, Eduardo Portella, pretendia, já em 1979, “trazer o produto<br />
cultural para participar das estruturas <strong>de</strong> mercado como os <strong>de</strong>mais produtos”. A adoção<br />
da Lei Sarney, em 1986, foi mais um passo nesse rumo, com o apoio <strong>de</strong> artistas como<br />
o ator <strong>Sérgio</strong> Brito, para quem “só os empresários salvarão a cultura nesse país”. Ou<br />
<strong>de</strong> produtoras culturais como Ana Lúcia Magalhães Pinto, diretora do Banco Nacional e<br />
financiadora do filme Quilombo dos Palmares, <strong>de</strong> Cacá Dieguez, que <strong>de</strong>stacava a<br />
importância da nova lei para o marketing das empresas: “o que importa é a afirmação<br />
da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da empresa, <strong>de</strong> sua presença junto à comunida<strong>de</strong>”.
Ainda nesse ponto <strong>FHC</strong> não foi um neoliberal <strong>de</strong> primeira hora. O marco da<br />
invasão da área da cultura pelo mercado foi o governo Collor, <strong>de</strong> 1990 a 1992, que<br />
acabou com a Embrafilmes, a Funarte, a Fundação Nacional do Cinema e a Fundacen,<br />
sob o pretexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong> recursos públicos. Com isso, <strong>de</strong>ixou a cultura fora da<br />
ação do Estado, tendo acabado inclusive com o Ministério da <strong>Cultura</strong>. Depois,<br />
substituiu a Lei Sarney pela Lei Rouanet, criando condições para passar o<br />
financiamento das ativida<strong>de</strong>s culturais para o âmbito das empresas privadas. Tudo<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um princípio que o autor da lei, <strong>Sérgio</strong> Paulo Rouanet, <strong>de</strong>finiu com ru<strong>de</strong><br />
clareza: “cultura, só com lucro”.<br />
Outro instrumento para o financiamento da cultura foi criado pelo governo <strong>de</strong><br />
Itamar Franco, a Lei do Audiovisual, <strong>de</strong> 1993, permitindo às empresas financiarem a<br />
produção <strong>de</strong> filmes.<br />
Ação direta<br />
A ação direta do governo ocorreu principalmente em áreas como o patrimônio<br />
histórico e cultural (com apoio da Unesco e do Banco Mundial), a compra <strong>de</strong> livros para<br />
bibliotecas públicas ou a distribuição <strong>de</strong> kits para bandas <strong>de</strong> música do interior. O<br />
governo fez também megasexposições, como a Mostra do Re<strong>de</strong>scobrimento Brasil +<br />
500, <strong>de</strong> comemoração dos 500 anos <strong>de</strong> chegada dos portugueses, ou a exposição<br />
realizada no Petit Palais, em Paris, sobre o barroco brasileiro <strong>–</strong> ambas subordinadas ao<br />
marketing do governo. Como o ministro Weffort confessou: “as coisas da cultura têm<br />
custo baixo e rendimento em visibilida<strong>de</strong> alto”.<br />
O balanço dos oito anos do tucanato à frente da cultura mostra números<br />
gigantes, que correspon<strong>de</strong>m ao tamanho do país, à diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua cultura e, como<br />
seria <strong>de</strong> se esperar, à dimensão <strong>de</strong> seu mercado. Nesse período, o número <strong>de</strong><br />
empresas que aplicaram recursos em marketing cultural com base nas leis fe<strong>de</strong>rais <strong>de</strong><br />
incentivo à cultura cresceu mais <strong>de</strong> oito vezes. Passou <strong>de</strong> 350, em 1994, para mais <strong>de</strong><br />
3.000, em 2001. Em 2000, o setor mais beneficiado foi o musical (57,4 milhões <strong>de</strong><br />
reais), <strong>de</strong>pois as artes cênicas (56,4 milhões <strong>de</strong> reais) e as artes integradas, que<br />
envolvem mais <strong>de</strong> uma área cultural num mesmo projeto (37,3 milhões <strong>de</strong> reais). Em<br />
2001, as empresas empregaram 376,3 milhões <strong>de</strong> reais, em 1.224 projetos <strong>–</strong> <strong>de</strong>sse<br />
valor, 260 milhões <strong>de</strong> reais são <strong>de</strong> renúncia fiscal. Os principais investidores foram<br />
empresas estatais <strong>–</strong> a campeã foi a Petrobrás (111 milhões <strong>de</strong> reais, 30 % do total).
Em seguida vieram a Eletrobrás, com 18 milhões <strong>de</strong> reais; o BEMG, com 14 milhões; e<br />
o Grupo Pão <strong>de</strong> Açúcar, que investiu 13 milhões <strong>de</strong> reais.<br />
O volume <strong>de</strong> recursos ajudou a criar uma indústria: transformou a ativida<strong>de</strong><br />
cultural no principal setor da criação <strong>de</strong> empregos no país, comparado com outros<br />
ramos da indústria. Citando dados da Fundação João Pinheiro, o critico literário José<br />
Castelo diz que, já em 1998, elas “criaram mais empregos do que qualquer setor<br />
industrial consi<strong>de</strong>rado isoladamente”. A retomada da produção do cinema brasileiro<br />
talvez seja a vitrine mais visível e brilhante <strong>de</strong>sse período. Em 1993, só foram lançados<br />
três filmes, o fundo do poço da <strong>de</strong>sorganização que veio da era Collor. Em 2002, um<br />
balanço do governo comemorou a realização <strong>de</strong> 1.199 filmes entre 1995 e 2002. Foram<br />
190 longas, 669 curtas e 340 documentários. O investimento foi <strong>de</strong> 646 milhões <strong>de</strong><br />
reais <strong>–</strong> 75 milhões do governo e o resto <strong>de</strong> renúncia fiscal, que se traduziram em filmes<br />
como Carlota Joaquina, princesa do Brasil, <strong>de</strong> Carla Camurati, que revela o <strong>de</strong>sapreço<br />
pela história do país, típico <strong>de</strong>sse período, ou O Que É Isso Companheiro, que<br />
preten<strong>de</strong> ser uma avaliação crítica da luta contra a ditadura militar. Ou em filmes que<br />
“po<strong>de</strong>riam” agradar Hollywood e conquistar o Oscar, como O quatrilho, <strong>de</strong> 1995, ou<br />
Central do Brasil, <strong>de</strong> 1998. O governo criou, em 2001, a Agência Nacional do Cinema<br />
(Ancine), para apoiar os produtores cinematográficos.<br />
Menos visível que o cinema, o setor <strong>de</strong> livros também traduz-se em números<br />
enormes. Em 2000, foram 45 mil títulos (entre novas edições e reedições) e 329<br />
milhões <strong>de</strong> exemplares. Menos <strong>de</strong> 2 livros por habitante <strong>–</strong> menos ainda se<br />
consi<strong>de</strong>rarmos que, daquele total, 198 milhões (isto é, 60%) foram livros didáticos. Mas<br />
que tornam o país, diz Elmer Corrêa Barbosa, da Biblioteca Nacional, “o maior produtor<br />
<strong>de</strong> livros em toda a América Latina e [que] ganha da América Latina somada a<br />
Portugal. Só per<strong>de</strong> para a Espanha”.<br />
Um dos projetos <strong>de</strong> Weffort era dotar cada município brasileiro <strong>de</strong> uma biblioteca<br />
pública. Quando assumiu, cerca <strong>de</strong> 3.000 dos 5.800 municípios brasileiros (mais da<br />
meta<strong>de</strong>) não tinha nenhuma. Até 2001, o governo ajudou a criar 1.200 bibliotecas e<br />
comprou cerca <strong>de</strong> 2.600 livros para cada nova biblioteca. Nestes oito anos <strong>de</strong> governo,<br />
as compras do governo (Minstério da Educação e MinC) injetaram 4 bilhões <strong>de</strong> reais no<br />
mercado do livro, eqüivalendo a 25% do faturamento do setor <strong>–</strong> foram distribuídos<br />
cerca <strong>de</strong> 1 bilhão <strong>de</strong> livros. O Estado brasileiro é “o maior comprador <strong>de</strong> livros do<br />
mundo”, diz Weffort.<br />
No mundo da música, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da ação do governo, ocorreu uma<br />
gran<strong>de</strong> mudança tecnológica. Em 1989, ven<strong>de</strong>ram-se 56 milhões <strong>de</strong> LPs (vinil), contra<br />
2,1 milhões <strong>de</strong> CDs. Em 1995, os números praticamente se inverteram: a venda <strong>de</strong> LPs<br />
caiu para 7,3 milhões e a dos CDs alcançou 56,8 milhões. Hoje, cerca <strong>de</strong> 100 milhões<br />
<strong>de</strong> CDs são vendidos por ano e a produção <strong>de</strong> vinil <strong>de</strong>sapareceu. A mudança
tecnológica teve repercussões na qualida<strong>de</strong> das produções, com a generalização <strong>de</strong><br />
reedições <strong>de</strong> sucessos do passado, <strong>de</strong> antologias populares, que passaram a<br />
concorrer com os artistas atuais. Além disso, a facilida<strong>de</strong> técnica das gravações e da<br />
reprodução dos discos (com investimentos significativamente mais baixos do que na<br />
produção em vinil), permitiu também o surgimento <strong>de</strong> inúmeras gravadoras<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.<br />
Assim, a ação do governo voltou-se para o apoio às orquestras sinfônicas e às<br />
bandas <strong>de</strong> música em projetos <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong> pautas e gravação <strong>de</strong> música erudita<br />
colonial.<br />
Um exemplo é o apoio ao projeto Acervo da Música <strong>Brasileira</strong> <strong>–</strong> Restauração e<br />
Difusão <strong>de</strong> Partituras, sob patrocínio da Petrobrás, baseado no Museu <strong>de</strong> Música <strong>de</strong><br />
Mariana (MG), voltado à restauração das obras dos mestres capelas das igrejas<br />
coloniais, esquecidas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos imemoriais nos arquivos das sacristias. O projeto<br />
prevê o lançamento <strong>de</strong> nove discos até o final <strong>de</strong> 2003. Outro projeto, nessa linha, foi a<br />
História da Música <strong>Brasileira</strong>, dirigido por Ricardo Kanji e por Ricardo Maranhão, para<br />
mapear o período que vai da Colônia a nossos dias.<br />
Mas o gran<strong>de</strong> volume <strong>de</strong> investimentos nesta área, o prato <strong>de</strong> resistência da<br />
ação do ministério, foi a distribuição <strong>de</strong> kits <strong>de</strong> instrumentos para bandas <strong>de</strong> música <strong>–</strong><br />
foram 300 por ano, ao preço <strong>de</strong> 17.500 reais, enviados principalmente a cida<strong>de</strong>s do<br />
interior. Foi gasto mais dinheiro com bandas <strong>de</strong> música do que com orquestras<br />
sinfônicas. O Ministério da <strong>Cultura</strong> voltou-se também para a restauração, recuperação<br />
e conservação <strong>de</strong> sítios e cida<strong>de</strong>s históricas, por meio do Projeto Monumenta, com<br />
apoio do Banco Mundial e da Unesco.<br />
Dirigismo<br />
O balanço da ação cultural do governo, examinado <strong>de</strong>sse ângulo, dos números,<br />
escon<strong>de</strong>, na verda<strong>de</strong>, problemas graves. As empresas passaram a intervir na área<br />
cultural <strong>–</strong> não o governo. Nestes oito anos, as empresas particulares investiram três<br />
vezes mais que o governo, segundo o relatório da equipe <strong>de</strong> transição do presi<strong>de</strong>nte<br />
eleito, Luís Inácio Lula da Silva. Na gestão tucana, foram captados 2 bilhões <strong>de</strong> reais<br />
por meio das leis <strong>de</strong> incentivos à cultura, enquanto o governo só investiu 746 milhões<br />
<strong>de</strong> reais. “É importante <strong>de</strong>stacar que os recursos da renúncia fiscal, na sua maior parte,
são provenientes das empresas estatais, portanto, duplamente públicos”, diz o<br />
relatório.<br />
São opções que revelam, na verda<strong>de</strong>, a falta <strong>de</strong> uma política cultural, raiz dos<br />
problemas que os críticos assinalam. A recusa ao dirigismo estatal é apresentada como<br />
uma ação cultural <strong>de</strong>mocrática, reforçada pela livre ação do mercado. Nada mais<br />
enganoso: a omissão do governo foi substituída nessa área sensível pelo dirigismo<br />
empresarial. Esse dirigismo teve duas conseqüências nefastas: a concentração dos<br />
recursos nas áreas mais ricas e uma mo<strong>de</strong>lação da elaboração cultural pelo mercado.<br />
Deixado ao sabor das <strong>de</strong>cisões das empresas doadoras <strong>de</strong> recursos, a captação<br />
<strong>de</strong> dinheiro ficou concentrada na região su<strong>de</strong>ste (50% no Rio e 28% em São Paulo). O<br />
maestro Júlio Medaglia diz que os sete estados mais ricos ficaram com 92% das<br />
dotações na sua área, enquanto aos sete mais pobres coube apenas 0,5%. Isto seria o<br />
mesmo, diz o maestro, que distribuir comida <strong>de</strong> graça na Avenida Paulista e <strong>de</strong>ixar o<br />
sertanejo da caatinga morrer <strong>de</strong> fome.<br />
O outro problema é o surgimento <strong>de</strong> uma “cultura do marketing”, uma estética<br />
ditada não por um governo autoritário “mas pelos <strong>de</strong>partamentos <strong>de</strong> marketing,<br />
publicida<strong>de</strong> e promoções das empresas”, diz o crítico José Castelo.<br />
“A questão central não era tanto a origem do dinheiro, uma vez que no incentivo<br />
fiscal ele é também, em última instância, público, mas sim a ausência <strong>de</strong> uma política<br />
que gerenciasse seu uso”, diz ele. Os <strong>de</strong>partamentos <strong>de</strong> marketing, eventos e<br />
promoções das empresas passaram a dominar a área e, numa “perversão grave”,<br />
como diz ele, muitos artistas e produtores culturais teriam passado a arquitetar projetos<br />
que viessem a mostrar sintonia com as políticas empresariais”, que “<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m quais<br />
projetos merecem vir à luz ou não”, diz o crítico.<br />
É uma “cultura <strong>de</strong> resultados”, bem ao gosto da i<strong>de</strong>ologia gerencial dominante, e<br />
que se revela seja no cândido otimismo do ministro Weffort, seja na crítica ácida dos<br />
artistas. Weffort comemorou o aumento do número <strong>de</strong> expectadores do cinema<br />
brasileiro: <strong>de</strong> 36 mil, em 1992, para sete milhões <strong>de</strong> espectadores, em 2001. Um ano<br />
inteiro <strong>de</strong> expectadores não chega ao número que o cinema estrangeiro registra em um<br />
mês <strong>–</strong> aliás, a contrário do que diz o governo, entre 1991 e 2001, o público <strong>de</strong> filmes <strong>de</strong><br />
fora do país cresceram <strong>de</strong> 7,6 milhões, ao mês, para 7,8 milhões.<br />
Pouco antes <strong>de</strong> falecer, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2001, a cantora Cassia Eller queixavase<br />
da estética do lucro: “Não consigo mais me relacionar com ninguém. Só sirvo para<br />
ganhar dinheiro”. Para o dramaturgo <strong>Sérgio</strong> <strong>de</strong> Carvalho, da Companhia do Latão, o<br />
caminho para a cultura do país está noutra direção: “o dramaturgo assim como todo<br />
artista tem <strong>de</strong> pensar em si mesmo como uma força social útil”. Em 1999, artistas <strong>de</strong><br />
teatro lançaram o manifesto Arte contra a Barbárie, <strong>de</strong>nunciando a política cultural
tucana. Atacando a cultura do marketing, <strong>de</strong>nunciavam que as empresas premiavam<br />
apenas uma “política <strong>de</strong> eventos”. Os manifestantes diziam recusar a visão<br />
mercadológica <strong>de</strong> transformar a arte em “produto cultural”. O que se chama <strong>de</strong><br />
mercado <strong>de</strong> artes, dizia o manifesto, não passa <strong>de</strong> uma indústria <strong>de</strong> diversão <strong>–</strong> a<br />
responsabilida<strong>de</strong> dos artistas é criar “bens simbólicos” e não produtos, concluíam.<br />
As críticas vieram mesmo <strong>de</strong> empresários do setor. Um <strong>de</strong>les é <strong>Sérgio</strong> Reis,<br />
diretor do Grupo Positivo (que produz, entre outras coisas, livros didáticos). Para ele,<br />
“quem faz cultura pelo incentivo fiscal não comprou a cultura, não percebeu sua<br />
importância na formação <strong>de</strong> imagem. É só um mercantilista e <strong>de</strong>predador, do tipo que<br />
pega a jabuticaba no pé, arrebenta os galhos e vai embora”. O incentivo fiscal <strong>de</strong>via ser<br />
apenas um <strong>de</strong>talhe, diz. Mas o que domina hoje é “amor pago, é prostituição”.<br />
Por outro lado, os incentivos não <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ter um viés político, ao que tudo<br />
indica. O relatório da equipe <strong>de</strong> transição do governo Lula <strong>de</strong>nuncia que o projeto<br />
Monumenta, que teve um orçamento <strong>de</strong> 200 milhões <strong>de</strong> dólares e atuou nas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Olinda, Recife, Salvador, Ouro Preto, São Luís, Rio e São Paulo, excluiu cida<strong>de</strong>s<br />
históricas, como Belém (PA) e São Luís (MA), por serem governadas por partidos <strong>de</strong><br />
oposição, o PT e o PDT. A política geral do governo, <strong>de</strong> corte dos gastos públicos para<br />
geração do superavit primário exigido pelo FMI, também prejudicou o projeto para a<br />
criação <strong>de</strong> bibliotecas municipais. O ministério programou gastos <strong>de</strong> 13,4 milhões <strong>de</strong><br />
reais naquele programa, mas só teve dinheiro para pagar 2,2 milhões <strong>de</strong> reais (16,6%<br />
do total).<br />
A passagem tucana pelo governo <strong>de</strong>ixa alguns símbolos reveladores. Um eles é<br />
a contradição entre a valorização da arte barroca colonial, mostrada fora <strong>de</strong> seu<br />
contexto em exposições monumentais, e a falência dos municípios brasileiros <strong>–</strong> que se<br />
traduz, neste particular, na <strong>de</strong>generação <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s históricas, entre elas a Capital do<br />
Barroco, Ouro Preto, ameaçada pela Unesco <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o título <strong>de</strong> Patrimônio <strong>Cultura</strong>l<br />
da Humanida<strong>de</strong>.<br />
Outro símbolo foram as comemorações oficiais dos 500 anos do Brasil. A festa<br />
oficial <strong>de</strong> Porto Seguro, no dia 22 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2000, repetiu, em palco e momento<br />
privilegiados, sob os olhos do mundo, o reiterado fiasco da relação colonizada e<br />
subalterna dos setores conservadores da classe dominante brasileira com os centros<br />
<strong>de</strong> comando estrangeiros. Nela, o homenageado foi, como sempre, o colonizador,<br />
presente na figura do presi<strong>de</strong>nte português Jorge Sampaio. O povo foi alijado pelo forte<br />
aparato policial militar, mobilizado para manter, a pelo menos 60 quilômetros <strong>de</strong><br />
distância, índios, negros, sem-terra, trabalhadores, oposicionistas, <strong>de</strong>mocratas, forças<br />
sociais e políticas.
Outro símbolo, significativo, <strong>de</strong>ssa mentalida<strong>de</strong> colonizada foi a gafe <strong>de</strong> <strong>FHC</strong><br />
num jantar com cerca <strong>de</strong> 100 empresários coreanos, em Seul, em janeiro <strong>de</strong> 2001.<br />
Desmerecendo o cargo e seu povo, o presi<strong>de</strong>nte falou em inglês. Advertido <strong>de</strong> que não<br />
era entendido e que seu discurso precisava ser traduzido ao coreano, <strong>de</strong>srespeitou<br />
também seus anfitriões, que não são obrigados, em seu próprio país, a falar um idioma<br />
estrangeiro. O presi<strong>de</strong>nte poliglota saiu-se com esta: “imaginei que o inglês fosse uma<br />
língua mais familiar na Coréia”.<br />
Se as épocas históricas <strong>de</strong>ixam o registro literário significativo <strong>de</strong> suas<br />
contradições e realizações, qual seria o escritor ou o romance que representa a década<br />
<strong>de</strong> 1990, o predomínio do tucanato? Ele não está à vista. Por isso, o historiador do<br />
futuro, que olhar para esta época e tentar encontrar seu signo literário, terá que se<br />
contentar com os livros <strong>de</strong> Paulo Coelho, o fast food da literatura e duplo perfeito <strong>de</strong><br />
<strong>FHC</strong>: tiveram origem no mesmo campo progressista e <strong>de</strong>mocrático (ele foi o autor <strong>de</strong><br />
algumas letras geniais cantadas por Raul Seixas), mas passaram para o outro campo,<br />
o campo dominado pelo mercado, pela pobreza teórica e cultural, e pela avaliação das<br />
obras, <strong>de</strong> arte ou <strong>de</strong> outro tipo, pelo <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> suas vendas.<br />
Como o “mercado” procurou amarrar o novo presi<strong>de</strong>nte<br />
No último ano, o oitavo, o “mercado” e os financistas <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> espalharam o terror com o<br />
argumento <strong>de</strong> que a única alternativa ao caos seria a continuida<strong>de</strong> da política econômica.<br />
O ano <strong>de</strong> 2002 começou relativamente bem, com a queda do dólar, que recuou<br />
<strong>de</strong> perto <strong>de</strong> 2,75 reais para menos <strong>de</strong> 2,50 reais. A economia americana, que ficara em<br />
recessão por quase um ano, entre o final <strong>de</strong> 2000 e <strong>de</strong> 2001, começou uma mo<strong>de</strong>sta<br />
recuperação. Logo no seu início, a candidatura <strong>de</strong> Roseana Sarney à presidência da<br />
República, que representava um golpe para o grupo palaciano que <strong>de</strong>finira apoio a<br />
José Serra, veio abaixo, no escândalo provocado pela exibição, no Jornal Nacional, do<br />
dinheiro encontrado na se<strong>de</strong> da empresa da governadora e <strong>de</strong> seu marido. E José<br />
Serra começou a subir nas pesquisas <strong>de</strong> intenção <strong>de</strong> voto para presi<strong>de</strong>nte.
Tudo indicava que no último ano <strong>de</strong> seu governo, o oitavo ano, Fernando<br />
Henrique e sua equipe conseguiriam fazer seu sucessor. E apostaram todas as cartas<br />
na continuida<strong>de</strong>.<br />
Com o mês <strong>de</strong> maio, no entanto, vieram as incertezas. A candidatura <strong>de</strong> Serra<br />
começou a ser atropelada pela <strong>de</strong> Ciro Gomes, do PPS mas com gran<strong>de</strong> apoio no PFL<br />
<strong>–</strong> um sinal <strong>de</strong> que o dissenso rondava o bloco governista. A recuperação da economia<br />
americana se mostrou tímida, o que indicava que a crise no centro do sistema<br />
capitalista não havia sido <strong>de</strong>belada. E, pela primeira vez em muitos anos, o Brasil<br />
começou a enfrentar dificulda<strong>de</strong>s para rolar sua dívida interna. O Banco Central já<br />
havia inventado uma série <strong>de</strong> fórmulas para proteger os <strong>de</strong>vedores em dólar da<br />
escalada da moeda americana no ano anterior. Quando o dólar disparou <strong>de</strong> novo, em<br />
maio <strong>de</strong> 2002, a caixa <strong>de</strong> truques do BC estava vazia e os que carregavam títulos do<br />
Tesouro do Brasil começaram a ver seus papéis <strong>de</strong>svalorizados, dificultando a rolagem<br />
da dívida.<br />
Nesse contexto, a candidatura <strong>de</strong> Lula começou a subir nas pesquisas. E portavozes<br />
do governo e do chamado mercado começaram a multiplicar <strong>de</strong>clarações sobre<br />
o caos que viria com a vitória da oposição. Cobravam <strong>de</strong> todos os eventuais<br />
sucessores <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> um compromisso público com a manutenção da política<br />
econômica.<br />
A pressão maior recaiu sobre Lula. E, na medida que ele foi-se distanciando dos<br />
outros, as pressões foram aumentando. As cobranças eram bem claras: garantias <strong>de</strong><br />
continuida<strong>de</strong> das atuais políticas monetária e fiscal e do regime <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e<br />
flutuação do câmbio, bem como <strong>de</strong> cumprimento dos contratos da dívida pública<br />
interna e externa.<br />
A instabilida<strong>de</strong> cambial era causada pela recusa dos gran<strong>de</strong>s credores (bancos<br />
e fundos <strong>de</strong> investimento) <strong>de</strong> continuarem comprando novos títulos do governo quando<br />
os antigos venciam. Essas gran<strong>de</strong>s instituições passaram a comprar dólares entre si, o<br />
que fez com que rapidamente a taxa <strong>de</strong> câmbio subisse. Logo, muitos outros estavam<br />
fazendo a mesma coisa e iniciou-se uma gran<strong>de</strong> fuga <strong>de</strong> dólares para o estrangeiro,<br />
principalmente por meio das CC-5, que permitiram a evasão, até outubro <strong>de</strong> 2002, <strong>de</strong><br />
8,5 bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />
Frente à instabilida<strong>de</strong> e às pressões dos gran<strong>de</strong>s financistas, a atitu<strong>de</strong> do<br />
governo <strong>FHC</strong> foi sempre <strong>de</strong> leniência. O Banco Central ten<strong>de</strong>u a aceitar os altos juros<br />
pedidos pela rolagem da dívida, nada fez e nada faz para diminuir o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> barganha<br />
dos gran<strong>de</strong>s bancos. Essa omissão das autorida<strong>de</strong>s ajudou a criar o clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastre<br />
iminente.
Assim surgiu o axioma que constrangeu a socieda<strong>de</strong> e manietou os candidatos:<br />
os mercados precisavam ser tranqüilizados. O próprio governo <strong>FHC</strong>, por meio <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>clarações do ministro da Fazenda e do presi<strong>de</strong>nte do Banco Central, juntou-se à<br />
pressão do setor financeiro no sentido <strong>de</strong> que os candidatos <strong>de</strong>ssem as “garantias”<br />
pleiteadas.<br />
Ao final <strong>de</strong> junho, os quatro principais candidatos começaram a <strong>de</strong>clarar, <strong>de</strong><br />
diferentes formas, sua a<strong>de</strong>são à pauta do “mercado”, assegurando o respeito aos<br />
contratos e garantindo a continuida<strong>de</strong> do câmbio flutuante, das metas <strong>de</strong> inflação e da<br />
política <strong>de</strong> superávits fiscais. Lula <strong>de</strong>clarou um compromisso parcial <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são a essa<br />
pauta com a chamada Carta ao Povo Brasileiro, em 22 <strong>de</strong> junho: “nosso povo constata<br />
com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a<br />
soberania do país ficou em gran<strong>de</strong> parte comprometida, a corrupção continua alta e,<br />
principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras. (...) O<br />
sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o <strong>de</strong> que o<br />
atual mo<strong>de</strong>lo esgotou-se. Por isso, o país não po<strong>de</strong> insistir nesse caminho, sob pena<br />
<strong>de</strong> ficar numa estagnação crônica, ou até mesmo <strong>de</strong> sofrer, mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>,<br />
um colapso econômico, social e moral.”<br />
Mais à frente, no entanto, a Carta explicita: “vamos preservar o superávit<br />
primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e <strong>de</strong>strua a<br />
confiança na capacida<strong>de</strong> do governo <strong>de</strong> honrar seus compromissos. (...)A estabilida<strong>de</strong><br />
e o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio <strong>de</strong> todos os<br />
brasileiros” e continua citando explicitamente a garantia dos contratos e o cumprimento<br />
dos acordos já firmados, as metas inflacionárias e a preservação dos superávits fiscais.<br />
A Continuida<strong>de</strong><br />
Mas a pretensão dos gran<strong>de</strong>s capitalistas nacionais e internacionais <strong>–</strong> e da<br />
própria equipe econômica <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> <strong>–</strong> <strong>de</strong> influenciar no programa do próximo presi<strong>de</strong>nte<br />
da República ia além das simples <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> intenção e dos compromissos<br />
públicos. Exigia também a assunção <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s institucionais que <strong>de</strong>ssem<br />
segurança <strong>de</strong> cumprimento das promessas anunciadas. Incluíam a aceitação <strong>de</strong> um<br />
Banco Central in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos po<strong>de</strong>res Executivo e Legislativo que pu<strong>de</strong>sse operar<br />
“tecnicamente”, sem estar sujeito à “pressão política” <strong>–</strong> o que passou a ser chamado<br />
autonomia do Banco Central; <strong>de</strong> uma política monetária “responsável”, que garantisse<br />
a “estabilida<strong>de</strong> monetária” e da assinatura <strong>de</strong> um novo acordo com o FMI, assegurando<br />
o monitoramento da ação do novo governo, pelo menos no seu primeiro ano.<br />
Assim nasceu o novo acordo com o Fundo, assinado em 4 <strong>de</strong> setembro, que diz<br />
textualmente que seu objetivo é “garantir a estabilida<strong>de</strong> econômica e proporcionar um<br />
arcabouço para a continuida<strong>de</strong> das principais políticas macroeconômicas no ano<br />
vindouro [2003]”. O acordo também traz como parte das metas <strong>de</strong> “<strong>de</strong>sempenho
estrutural” a obrigação para o governo brasileiro <strong>de</strong> aprovar, até <strong>de</strong>zembro próximo, a<br />
Proposta <strong>de</strong> Emenda à Constituição nº 53, <strong>de</strong> 1999, que altera o artigo 192 da<br />
Constituição, o que permitirá “ao próximo governo, submeter ao Congresso uma<br />
proposta <strong>de</strong> autonomia operacional do Banco Central do Brasil”.<br />
Vencidas as eleições, os representantes do novo governo reafirmaram os<br />
compromissos assumidos durante as turbulências anteriores ao primeiro turno. E essas<br />
medidas, evi<strong>de</strong>ntemente, representam limitações adicionais para o necessário<br />
enfrentamento <strong>de</strong> outras restrições herdadas do governo Fernando Henrique<br />
Aceitar a permanência <strong>de</strong> metas inflacionárias como único objetivo para a<br />
política monetária, significa manter uma política monetária apenas comprometida com<br />
a <strong>de</strong>svalorização da moeda e não com o crescimento, com uma política que restringe o<br />
crédito bancário e mantém os juros elevados. A manutenção da meta do superávit<br />
primário também representa problemas adicionais. A dívida cresceu por causa dos<br />
juros altos e da <strong>de</strong>svalorização do real. Comprometer-se a conseguir gran<strong>de</strong>s<br />
superávits, ao tempo em que se tem que manter uma política monetária <strong>de</strong> juros altos e<br />
uma política <strong>de</strong> câmbio flutuante, significa assumir um gran<strong>de</strong> risco <strong>de</strong> não conseguir<br />
aten<strong>de</strong>r ao maior anseio dos brasileiros: retomar o <strong>de</strong>senvolvimento econômico.<br />
A concessão <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência do Banco Central permitirá que uma diretoria<br />
com mandato fixo, que só po<strong>de</strong>rá ser <strong>de</strong>stituída por <strong>de</strong>cisão da maioria do Senado,<br />
seja escolhida para levar a cabo uma <strong>de</strong>terminada política monetária, cambial e<br />
financeira. No caso atual, um Banco Central “in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte” significará, certamente, o<br />
compromisso <strong>de</strong> continuar praticando a atual política monetária <strong>de</strong> metas inflacionárias<br />
<strong>–</strong> às custas <strong>de</strong> taxas <strong>de</strong> juros elevados e <strong>de</strong> restrição ao financiamento bancário <strong>–</strong> e a<br />
política <strong>de</strong> ampla liberda<strong>de</strong> para a movimentação <strong>de</strong> capitais, o que <strong>de</strong>ixa o país refém<br />
das oscilações do mercado financeiro mundial. Em especial, porque os <strong>de</strong>fensores da<br />
“in<strong>de</strong>pendência”, inclusive o FMI, enten<strong>de</strong>m que a ela só serve se for para o BC agir<br />
“tecnicamente”, sem mais pressões políticas “in<strong>de</strong>vidas” por parte do governo e do<br />
Congresso Nacional. E, para essas instituições, agir tecnicamente significa executar<br />
uma política monetária e cambial que mantenha, no fundamental, as mesmas<br />
características das existentes até 2002. Uma política que esteja <strong>de</strong> acordo com o<br />
figurino “técnico” em vigor.<br />
Des<strong>de</strong> o início do Plano Real até 1998, o que se consi<strong>de</strong>rava um bom regime<br />
cambial era aquele que mantinha a moeda nacional estável em relação ao dólar,<br />
fazendo com que a taxa <strong>de</strong> juros da economia fosse mantida elevada. O país podia<br />
ficar estagnado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a moeda não se <strong>de</strong>svalorizasse. Após levar o país à<br />
insolvência em 1998, a política cambial recomendada, a melhor “tecnicamente”, passou<br />
a ser a da livre flutuação do dólar. Agora eles querem que permaneça o livre câmbio,
mesmo que haja fuga <strong>de</strong> capitais e o país viva sempre na incerteza e na instabilida<strong>de</strong><br />
cambial.<br />
Um Banco Central atuando <strong>de</strong> modo “in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte” do governo fe<strong>de</strong>ral traz<br />
uma enorme limitação à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> implementar políticas econômicas diferentes<br />
das atuais, que, não por coincidência, são tão <strong>de</strong> agrado do “mercado”. Por exemplo,<br />
será impossível retomar a política <strong>de</strong> aumento do investimento estatal se a política<br />
monetária mantiver a taxa <strong>de</strong> juros elevada ou não permitir o aumento da concessão <strong>de</strong><br />
créditos por parte do sistema bancário. Também não será possível qualquer medida<br />
mais efetiva <strong>de</strong> renegociação da dívida externa se o BC sustentar a taxa <strong>de</strong> câmbio<br />
flutuante e continuar no comando exclusivo das reservas <strong>de</strong> divisas. O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
barganha do país, como <strong>de</strong>vedor soberano, será diminuído.<br />
Bacen in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
Na prática, o Banco Central “in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte” se constituirá em um governo a<br />
parte, que limitará a política econômica do novo presi<strong>de</strong>nte eleito; inclusive sua política<br />
fiscal, ou seja, a tributação e o gasto público. Com isso, o novo governo ficará<br />
“enquadrado”, limitado às mesmas condicionantes das políticas monetárias e cambiais<br />
atuais.<br />
É claro que leis po<strong>de</strong>m ser mudadas ou mesmo uma diretoria do Banco Central<br />
po<strong>de</strong>rá ser <strong>de</strong>mitida. Mas isso não po<strong>de</strong>rá ser feito sem um custo político altíssimo e<br />
nem po<strong>de</strong>rá ser <strong>de</strong>cidido com a necessária surpresa. Com o enorme po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
retaliação que o capital financeiro passou a ter no país a partir do governo <strong>FHC</strong>, uma<br />
mudança na direção do Bacen dará oportunida<strong>de</strong> à especulação para levar o país à<br />
bancarrota antes que o governo possa adotar medidas <strong>de</strong> proteção à economia<br />
nacional e aos interesses do povo.<br />
Mudanças no Banco Central sem dúvida terão que ser feitas. Mas, ao contrário<br />
do que preten<strong>de</strong> o FMI e os banqueiros, essas mudanças <strong>de</strong>vem ser para restringir a<br />
atual in<strong>de</strong>pendência com que age o Banco Central. Sem ter nenhuma limitação para<br />
gastar, só na gestão <strong>de</strong> Armínio Fraga, o Banco Central já acumulou prejuízos, em<br />
valores corrigidos, <strong>de</strong> 35 bilhões <strong>de</strong> reais, que foram integralmente repassados ao<br />
Tesouro Nacional e ao contribuinte. O prejuízo do Bacen é maior do que o déficit que<br />
dizem existir na Previdência Social.
Para executar a política a<strong>de</strong>quada ao “mercado”, emitem títulos, assumem<br />
imensos riscos <strong>de</strong> <strong>de</strong>svalorização cambial, sem se preocupar com a existência <strong>de</strong><br />
recursos no orçamento ou com a capacida<strong>de</strong> do Tesouro <strong>de</strong> suportar tais custos.<br />
Enquanto financistas e outros gran<strong>de</strong>s capitalistas são salvos ou enriquecem com sua<br />
política, o Banco Central continua reclamando <strong>de</strong> mais austerida<strong>de</strong> nos gastos<br />
públicos, recomendando que se cortem <strong>de</strong>spesas nos serviços públicos e que os<br />
reajustes nos benefícios da Previdência sejam limitados, reduzindo cada vez mais os já<br />
mo<strong>de</strong>stos rendimentos <strong>de</strong> aposentados e pensionistas.<br />
A reforma necessária ao BC, aquela que vai ensejar a mudança expressa na<br />
eleição <strong>de</strong> Luiz Inácio Lula da Silva, <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>, como qualquer outra autorida<strong>de</strong>, ter<br />
limites para seu endividamento e gasto. Sua ação, embora muito importante, <strong>de</strong>ve ser<br />
coor<strong>de</strong>nada com a política fiscal; o que se precisa, é fazer chegar ao Banco Central a<br />
responsabilida<strong>de</strong> fiscal. Antes <strong>de</strong> 1994, dizia-se que o Tesouro Nacional vivia com<br />
receitas inflacionárias geradas no Banco Central e que se <strong>de</strong>via separar as duas<br />
contas. Depois, o BC ficou tão in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte que submeteu o erário à sua autorida<strong>de</strong>,<br />
endividando-se e mandando a conta para o Tesouro. Agora, o que o país precisa é<br />
libertar o Tesouro do Banco Central e <strong>de</strong> seus financistas. Ao contrário <strong>de</strong> mais<br />
“autonomia”, o Bacen <strong>de</strong>ve submeter-se à política econômica do governo e não ter<br />
mais liberda<strong>de</strong> para, enfim, ser o próprio formulador da política governamental,<br />
seguindo os interesses do mercado e não necessariamente os do país e seu povo.<br />
Publicação do gabinete do <strong>de</strong>putado <strong>Sérgio</strong> <strong>Miranda</strong> <strong>–</strong> PcdoB-MG