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O REALISMO NA OBRA DE ABIGAIL DE ANDRADE: INTENÇÃO E ...

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O <strong>REALISMO</strong> <strong>NA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>DE</strong> <strong>ABIGAIL</strong> <strong>DE</strong> ANDRA<strong>DE</strong>: <strong>INTENÇÃO</strong> E<br />

CONTEXTO CULTURAL NO FAZER DA HISTÓRIA DA ARTE<br />

Viviane Viana de Souza<br />

Mestranda PPGAV/UFRJ<br />

Professora SME-RJ<br />

O campo artístico oitocentista foi ocupado por aqueles que buscavam<br />

aprimoramento no principal centro de formação e influências artísticas, a<br />

Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), onde se imbuíam então das<br />

ferramentas necessárias para atuarem e se destacarem no meio.<br />

Será somente no fim do século XIX que as mulheres poderão entrar na<br />

instituição como alunas regulares. Então, apesar de haver a demanda do<br />

desejo por um ensino artístico pelas mulheres, estas eram impossibilitadas de<br />

consegui-lo através da AIBA, o que fará com que os professores particulares,<br />

inclusive alguns deles ligados justamente à instituição, sejam a principal, se<br />

não a única fonte do ensino artístico voltado às mulheres no decorrer da<br />

segunda metade do século XIX.<br />

A aceitação dessa forma de ensino artístico voltado para as mulheres<br />

adequava-se no padrão social da época esperado da mulher, que via no<br />

domínio da aquarela e do desenho adendos à formação cultural das moças de<br />

boa família, que podiam usar essas práticas para ornar e embelezar a casa,<br />

além de outros conhecimentos, habilidades que as limitam ao espaço do lar,<br />

reiterando a vivência social da rua destinada aos homens.<br />

A presença dos professores particulares até então não incomodava esse<br />

paradigma, pois, para a sociedade, colaborava com esta formação das<br />

mulheres, apresentando a elas as naturezas-mortas, paisagens e cópias, de<br />

pequenas proporções, realizadas em pastéis, lápis e aquarelas, delicadas e<br />

femininas, próprias ao espírito da mulher.<br />

Hoje podemos apontar a existência e as qualidades estéticas, técnicas e<br />

estilísticas dessas obras, contudo seus nomes são desconhecidos, não estão<br />

nos livros de arte brasileira ou na escrita da história da arte que remete ao<br />

século XIX. Poderíamos nos perguntar ainda, se hoje, na posição em que<br />

estamos como historiadores da arte, poderíamos ainda continuar a contribuir<br />

ou aceitar a exclusão de um conjunto de obras realizadas por um segmento


específico, sem, contudo conhecer, entender e questionar os critérios que<br />

vigeram essas escolhas? Proporemos-nos então essa discussão, tomando<br />

como estudo de caso a produção da pintora oitocentista Abigail de Andrade,<br />

buscando compreender e colocar em questão sua atuação e produção.<br />

Ao nos depararmos com a produção da pintora, logo esta chama a<br />

atenção por se diferenciar das obras de suas colegas pela temática realista que<br />

apresenta, se distanciando das famigeradas naturezas mortas, cópias e<br />

paisagens. A vassourense nascida em 1864 vem para o Rio de Janeiro em<br />

1882 em busca de aprimoramento artístico, não só se destaca pela escolha<br />

temática, mas também por receber a 1ª medalha de ouro na EGBA do ano de<br />

1884, maior premiação que uma mulher poderia alcançar.<br />

A obra de Abigail se destacaria também devido às críticas positivas que<br />

recebia na imprensa. Gonzaga Duque, e também Angelo Agostini, seu mestre,<br />

apontariam as qualidades da pintora. Assim notamos uma diferente recepção<br />

da obra da também “amadora”, entre as demais expositoras presentes nas<br />

Exposições Gerais. O termo amador era destinado àqueles que não possuíam<br />

formação artística pela AIBA. Foi usado extensivamente para denominar as<br />

mulheres, com um sentido pejorativo, já que nunca deixariam de ser amadoras,<br />

devido à impossibilidade de seu acesso à instituição<br />

Observando sua formação, a pintora percorreu os mesmos caminhos<br />

trilhados pelas demais aspirantes ao ambiente artístico: dada a impossibilidade<br />

de matricular-se na Academia, Abigail, que já havia iniciado seus estudos em<br />

sua cidade natal, após sua chegada ao Rio de Janeiro se torna aluna de<br />

Angelo Agostini, pintor e caricaturista, que apesar de não estar ligado à<br />

Academia goza de certo prestígio devido a seus desenhos e caricaturas<br />

publicados na Revista Illustrada, por ele dirigida. Abigail expõe nas Exposições<br />

Gerais, no Liceu de Artes e Ofícios e na Sociedade Propagadora das Belas<br />

Artes.<br />

Apesar de ter uma formação semelhante à das demais mulheres do<br />

período, a pintora opta por uma linguagem muito distinta a das demais obras<br />

femininas. Ao invés de pintar flores ou paisagens na aquarela, a artista escolhe<br />

o óleo para retratar cenas de gênero, cotidianas, tarefas corriqueiras de<br />

pessoas simples, chegando a realizar também autorretratos, algo incomum<br />

entre as artistas.


Na utilização desse realismo por Abigail não buscamos descobrir sua<br />

intenção primeira, mas certa:<br />

[...] lógica interna da instituição ou das condutas que<br />

contribuíram para essa predisposição e das quais o indivíduo<br />

talvez não tivesse consciência no momento em que produziu<br />

determinado objeto.(BAXANDALL,2006, p. 81)<br />

Usando este conceito de intenção do teórico Michael Baxandall, que<br />

acredita que “[...] aplica-se mais aos quadros do que aos pintores. [E que] Em<br />

determinados casos, é uma construção mental que descreve a relação de um<br />

quadro com seu contexto” (BAXANDALL, 2006, p. 81.), podemos inferir<br />

somente quais diretrizes no contexto vivenciado pela pintora agiram para<br />

determinar suas escolhas.<br />

Tomando simplesmente a vinda da artista para o Rio de Janeiro, na<br />

busca de aprimoramento artístico, já evidencia a importância que tais<br />

conhecimentos teriam para Abigail. Usando as ferramentas criadas por<br />

Baxandall, poderíamos afirmar que o encargo, isto é um certo sentido geral da<br />

ação da artista, motivação genuína do fazer artístico de Abigail seria<br />

justamente aprimorar-se e galgar a oportunidade de se destacar.<br />

A escolha de Angelo Agostini como professor não é compreensível por<br />

esse ponto, já que apesar de atuante no cenário artístico carioca, Agostini não<br />

atuava de forma próxima à Academia, e sim fortemente na imprensa, onde<br />

criava ilustrações e caricaturas satirizando as questões do Império e até<br />

mesmo as Exposições Gerais, alunos e professores da AIBA. O fato é que<br />

Abigail se liga a Agostini e irá compartilhar, de certo modo, o olhar voltado para<br />

a sociedade de seu tempo.<br />

Sendo seu intuito a busca pelo conhecimento artístico, a pintora em um<br />

espaço de tempo relativamente pequeno já alcança um avanço técnico<br />

considerável, como podemos observar comparando as obras No ateliê de<br />

1881(Ilustração 1), e Amolando faca de 1887 (Ilustração 2):


Na obra Amolando Faca (Ilustração 2) observamos o tratamento realista<br />

das figuras, a paleta de tons terrosos e o detalhismo dos objetos, todos<br />

conforme os moldes acadêmicos, que, mesmo não sendo alunos da Academia,<br />

os “amadores” deveriam seguir. Esta obra se assemelha na temática com<br />

outras obras do período, como a realizada por pintores como Almeida Junior e<br />

Belmiro de Almeida. Para além da influência que poderíamos afirmar que<br />

Abigail tenha sofrido pelos artistas citados, preferimos defender que a pintora<br />

estava inserida dentro daquele determinado contexto artístico, histórico e<br />

social, onde naquele momento suas questões, suas demandas ou diretrizes<br />

seriam melhor resolvidas utilizando esta temática e solução estética dentro do<br />

repertório existente. Segundo Baxandall, as “Diretrizes“ no trabalho do artista<br />

surgem como questões mais urgentes e específicas, não necessariamente<br />

conscientes, na realização da obra em que o artista se vê envolvido e que o<br />

impele resolver. (BAXANDALL, 2006, p. 84)<br />

A palavra “influência” é uma das pragas da crítica de arte.<br />

Antes de mais nada, o termo já contém um viés gramatical que<br />

decide indevidamente sobre o sentido da relação, isto é, quem<br />

age e quem sofre a ação da influência, parece inverter a<br />

relação ativo/passivo que o ator histórico vivencia e que o<br />

observador, apoiado unicamente em suas inferências, deseja<br />

levar em conta. (BAXANDALL, 2006, p. 101-102)<br />

Relativizarmos a questão de influência na arte é importante, pois permite<br />

também desconfiarmos, por assim dizer, de algumas afirmações ou verdades<br />

tidas como absoluta pela crítica e pela história da arte, ao passo que toda e<br />

qualquer classificação ou agrupamento estilístico ou temático é realizado a<br />

posteriori.<br />

Percorrer o caminho do Realismo sem dúvida deu a Abigail notoriedade,<br />

principalmente após participar da Exposição Geral de 1884, ocasião em que<br />

apresentou as obras O cesto de compras e Um canto do meu ateliê. Como<br />

visto anteriormente, a pintora recebeu boas críticas sobre suas obras na<br />

imprensa, sendo O cesto de compras (Ilustração 3) reproduzido e ilustrado na


crítica de Angelo Agotini sobre a exposição daquele ano. As suas obras foram<br />

também indicadas a serem compradas pela Academia para integrar sua<br />

pinacoteca, compra que foi recusada pela artista (150 anos, p. 263). Sua<br />

carreira, interrompida de forma abrupta por sua conturbada vida pessoal e sua<br />

morte precoce, prometia ser de sucesso, nas próprias palavras de Gonzaga<br />

Duque “O talento da Sra. Abigail nos faz confiar em futuras obras” (ESTRADA,<br />

1995, p. 231).<br />

Esta reavaliação da obra de Abigail se enquadra em um cenário<br />

mais amplo de redescoberta de todo o período oitocentista, iniciado a partir dos<br />

anos 1980. Ao nos posicionarmos de modo diferente e olharmos novamente<br />

para a produção do período, a qual foi alvo de uma grande sorte de<br />

generalizações pelas gerações que a seguiram, podemos reconsiderar e<br />

duvidar dessas afirmações. Contudo, da mesma forma que esta mesma<br />

geração olhou para a produção oitocentista a partir de seus próprios critérios<br />

artísticos e estéticos, nós também podemos nos colocar em outro lugar para<br />

reobservar sua produção sob nova ótica, pois:<br />

[...] sobre o que queremos fazer história quando fazemos<br />

história da arte e de que ponto de vista fazemos esta história,<br />

vale dizer, onde nos situamos no momento em que a fazemos,<br />

já que a percepção de uma paisagem muda conforme a<br />

olhamos de baixo, do alto ou a meia altura. Devemos perceber<br />

que para fazer história, e, portanto, história da arte, devemos<br />

situar nós mesmos e o objeto da investigação. (CASTELNUOVO,<br />

2006. p. 127)<br />

Fato importante também é a sobrevivência de poucas obras da artista, o<br />

que limita o conhecimento que podemos ter hoje sobre sua produção, estudos<br />

e aprendizagem artística. Tal fato poderia estar ligado não só a sua posição<br />

como amadora e mulher, mas também às circunstancias de seu afastamento<br />

do Rio de Janeiro.<br />

Portanto, partindo desse princípio, podemos ampliar nossas próprias<br />

considerações não só sobre a pintora, mas também sobre outros e outras


artistas, pertencente aos oitocentos brasileiro ou aos demais períodos,<br />

movimentos e produções.<br />

A produção da pintora Abigail de Andrade, esquecida e desconhecida<br />

durante muito tempo, ganha importância no recente processo de se posicionar<br />

sob um novo ponto de vista sobre a produção do século XIX. Processo este<br />

que procura desmistificar sua produção, buscando olhá-la a partir da obra de<br />

arte, fruto de determinado contexto histórico e social, que não deve ser<br />

contaminado com nossas próprias convicções e parâmetros. Esta nova<br />

abordagem que permite conhecer melhor a obra de Abigail nos revela<br />

semelhanças de tema, técnica e cor com seus contemporâneos. Assim<br />

observamos a sintonia existente entre os artistas da época com as mesmas<br />

questões estéticas, envolvidos em um mesmo ambiente social e cultural, que<br />

se mostra tão importante de um lado quanto às limitações impostas ao gênero<br />

de Abigail. Embora estas não possam ser de forma alguma ignoradas, devem<br />

também ser avaliadas sob um novo prisma, buscando não repetir ou perpetuar<br />

o mesmo discurso usado para aprisioná-las no esquecimento ou em um local<br />

diferenciado, como amadora ou feminina.<br />

Entender a aprendizagem artística e a sua fixação no meio como suas<br />

maiores motivações transporta a artista ao mesmo patamar que seus<br />

companheiros do XIX, que também buscavam o reconhecimento através do<br />

seu trabalho e nos mostra como o período necessita e é merecedor de ser<br />

revisto, afim de desvelar novos sentidos, significados e valores de sua<br />

produção.

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