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A memória ao alcance das mãos

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Nesta edição, a Continuum adentra o<br />

universo dos colecionadores.<br />

REVISTA<br />

Em entrevista, Tadeu Chiarelli<br />

conta os planos para a<br />

nova sede do MAC/USP no<br />

Ibirapuera, São Paulo.<br />

ITAÚ CULTURAL 29<br />

A <strong>memória</strong><br />

<strong>ao</strong> <strong>alcance</strong><br />

<strong>das</strong> <strong>mãos</strong><br />

E mais:<br />

Conheça o colecionador de histórias Liêdo Maranhão,<br />

o Joe Gould brasileiro.<br />

Na fotorreportagem, objetos que perderam sua utilidade<br />

formam coleção relegada <strong>ao</strong> sótão <strong>das</strong> casas.<br />

O trabalho de museus para guardar e exibir coleções.<br />

itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias


A arte de unir os iguais<br />

A primeira Continuum de 2011 traz <strong>ao</strong> leitor o universo dos colecionadores, pessoas que, por hobby, paixão,<br />

obsessão, interesse pessoal ou coletivo, se dedicam a acumular objetos, sejam eles artísticos ou não. As histórias<br />

que envolvem a conquista de cada item – sim, porque em muitos casos a aquisição de uma peça se parece<br />

com uma batalha a ser vencida –, as diferentes modalidades de coleção – de ciências, palavras, obras de arte,<br />

brinquedos e moda, entre tantas possibilidades – e as questões que tratam da manutenção desse ato, que<br />

remonta à pré-história, permeiam as páginas para mostrar<br />

que colecionar é dar vida longa às coisas. Em outras palavras,<br />

é preservar a <strong>memória</strong>.<br />

No ensaio fotográfico que abre a edição, objetos que um<br />

dia estiveram no centro <strong>das</strong> atenções nas residências formam<br />

uma estranha coleção <strong>ao</strong> ser relegados <strong>ao</strong> sótão <strong>das</strong><br />

casas. Ser enterrado com dois dos quadros mais caros do<br />

mundo: esse foi o desejo de um colecionador, o que deixou<br />

a comunidade artística em polvorosa. Conheça na reportagem<br />

“Colecionar é contar histórias” esses e outros causos, não tão excêntricos, mas que mostram que uma<br />

coleção pode ter vários destinos, a depender de seus donos. Que o diga Liêdo Maranhão, cuja história você vai<br />

conhecer em Perfil. Além dos mais variados objetos, ele é colecionador de narrativas orais, coleta<strong>das</strong> nas ruas<br />

do Recife e registra<strong>das</strong> em diários que renderam 13 livros.<br />

Os museus, instituições que por tradição se ocupam de cuidar de coleções e exibi-las, ganham destaque<br />

tanto na matéria sobre os bastidores de grandes instituições internacionais, como MoMA, Malba e<br />

Reina Sofía, quanto na entrevista especial com Tadeu Chiarelli, diretor do paulistano MAC/USP, que,<br />

no limiar dos 50 anos, está prestes a se tornar o maior museu do país em espaço.<br />

E, se você coleciona a Continuum, prepare-se! A edição de março-abril virá<br />

diferente, com mais seções e um projeto gráfico renovado. Saiba qual<br />

será o tema do próximo número e como você pode participar da<br />

revista, enviando trabalhos artísticos e textos, no site<br />

itaucultural.org.br/continuum.<br />

2 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 3<br />

Ilustração Leandro Lima<br />

Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Design gráfico Thiago Lacaz Edição Marco Aurélio Fiochi Redação André Seiti, Carlos<br />

Costa, Roberta Dezan Produção editorial Maria Clara Matos Revisão Denise Costa, Polyana Lima Colaboraram nesta edição Augusto Paim,<br />

Cynthia Gyuru, Fernanda Castello Branco, Guilherme Kramer, Leandro Lima, Luana Fischer, Marcelo Rampazzo, Mariana Lacerda, Mariana Sgarioni,<br />

Maurício Arruda Mendonça, Micheliny Verunschk, Renan Magalhães, Renata Penzani, Ricardo Labastier, Rodrigo Garcia Lopes, Sergio Crusco,<br />

Silvia Bessa, Tatiana Diniz Agradecimento Ana Farinha (MAC/USP), Empório Carol Martini (São Paulo), IEB/USP<br />

capa foto: Luana Fischer<br />

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)<br />

Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminha<strong>das</strong> <strong>ao</strong> Núcleo de Comunicação e Relacionamento<br />

continuum@itaucultural.org.br. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554<br />

Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.


Entrevista<br />

20. Um museu de grandes novidades<br />

O diretor do MAC/USP, crítico e historiador da arte Tadeu Chiarelli fala sobre<br />

as novas instalações do museu e dos aspectos simbólicos dessa mudança.<br />

Reportagem<br />

12. Colecionar é contar histórias<br />

Entre o egoísmo e o prazer de compartilhar.<br />

16. Debaixo da ponta do iceberg<br />

Há muito mais trabalho em exposições do que os<br />

olhos do público conseguem ver.<br />

36. Um tesouro natural<br />

Fragmentos do mundo prontos para responder perguntas<br />

sobre o funcionamento da vida.<br />

40. De coletores a colecionadores<br />

Descubra por que o ato de colecionar ultrapassa o<br />

mero acúmulo de objetos.<br />

44. Várias pessoas, a mesma mania<br />

Algumas coleções, de tão comuns, reúnem em grupos<br />

e associações pessoas com os mesmos gostos,<br />

manias e interesses.<br />

48. Sequências e (in)consequências<br />

A execução seriada de obras marca a arte de todos<br />

os tempos.<br />

52. Ordem no c<strong>ao</strong>s<br />

Regras básicas de conservação e catalogação dão outro<br />

status a acervos e coleções.<br />

56. Vestir o presente com a <strong>memória</strong> do passado<br />

A moda como um dos mais confiáveis e importantes<br />

documentos para desvendar o espírito de cada tempo.<br />

60. Quem dá mais?<br />

As listas de favoritos ganham força com as mídias sociais.<br />

4 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 5<br />

2010|29<br />

44<br />

Perfil<br />

64. O memorialista do povão<br />

Liêdo Maranhão, ouvinte e devoto dos costumes e<br />

expressões populares.<br />

Fotorreportagem<br />

6. O não lugar<br />

Objetos que antes faziam parte da vida cotidiana agora<br />

habitam um espaço onde nem o tempo passa.<br />

56<br />

Balaio<br />

26. Coletânea de dicas<br />

Ideias para você se tornar um colecionador.<br />

Ficção<br />

64<br />

32. A paixão pelos livros<br />

Em texto inédito de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício<br />

Arruda Mendonça, a história de um homem que pretendia<br />

formar a maior coleção de livros da América Latina.<br />

Espaço do Leitor<br />

Deadline<br />

28. Acervo feito de gente<br />

O paulistano Museu da Pessoa ajuda a bordar a emaranhada<br />

teia da <strong>memória</strong> social.


O não lugar<br />

Fotos Luana Fischer [luanafischer.com]<br />

Um toca-discos do começo do século passado, guardado com<br />

cuidado, <strong>ao</strong> lado de discos de 72 rotações sem nenhum risco.<br />

Um retrato de família, protegido da ameaça da luz, mostra às<br />

paredes escuras rostos maquiados à moda antiga. Um rolo<br />

musical – que antes se acoplava a um órgão – deitado no<br />

chão, cuidadosamente, não faz nenhum ruído. Bonecas vesti<strong>das</strong>,<br />

com seus óculos e chapéus, sorriem eternamente.<br />

Debaixo da mesma camada de poeira, descansam coleções<br />

de objetos de diferentes tempos, origens e utilidades. Um<br />

dia, fizeram parte da vida cotidiana. Hoje, vivem no não lugar<br />

<strong>das</strong> casas: sótãos e porões onde o tempo não passa.<br />

Por que tanto esmero em guardá-los? Por que ainda são<br />

importantes ou por que foram? Ao não encontrar seu papel<br />

nas salas de estar ilumina<strong>das</strong> da atualidade, eles devem subir<br />

<strong>ao</strong> não lugar, limbo da história privada no qual o que foi colecionável<br />

deixa de sê-lo, ainda que sem deixar de existir.<br />

fotorreportagem<br />

6 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 7


8 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 9


10 Continuum Itaú Cultural<br />

Participe com suas ideias 11


Colecionar é contar histórias<br />

reportagem<br />

Colecionadores constroem possibilidades de convivência com a arte e narrativas<br />

sobre a história do mundo.<br />

Por Sergio Crusco | Ilustração Marcelo Rampazzo<br />

No começo dos anos 1980, o então fotógrafo Eduardo Brandão ouviu de uma marchande estrangeira que o<br />

principal problema da arte contemporânea brasileira era a carência de registro e de catalogação. Munido de<br />

câmera, rolos de filme e equipamento de iluminação, Brandão decidiu desbravar esse território pouco explorado.<br />

Propôs a artistas plásticos amigos fotografar sua produção recente e, por falta de verba (antes da fotografia<br />

digital, os processos de revelação e ampliação tornavam tudo mais custoso), receber em troca obras de arte. “A<br />

preocupação dos artistas, na época, era vender uma obra e pagar o aluguel. Portanto, minha coleção começou<br />

na base do escambo”, lembra ele, hoje curador e galerista, proprietário da Galeria Vermelho, em São Paulo.<br />

Nascia, descompromissadamente, uma <strong>das</strong> mais importantes coletâneas particulares de arte abrangendo a produção<br />

nacional dos anos 1980 e 1990 – trabalhos de Leonilson, Beatriz Milhazes, Leda Catunda, Geraldo de<br />

Barros, Tunga, Sandra Cinto, Lenora de Barros, Luiz Zerbini, Edgard de Souza e tantos outros. Brandão se deu conta<br />

de que o que cobria as paredes de sua casa havia tomado um vulto mais expressivo do que imaginaria nos idos<br />

em que trocava telas e esculturas por cliques, e se viu diante da necessidade de catalogar as peças e conservá-las.<br />

Mais do que uma coleção, as cerca de 300 obras que arrebanhara <strong>ao</strong> longo dos anos formavam um acervo.<br />

Provido de um saudável desprendimento, Brandão possibilitou o acesso do público a esse acervo cedendo,<br />

em regime de comodato, boa parte <strong>das</strong> aquisições <strong>ao</strong> MAM/SP. As novas peças ajudaram o museu a<br />

enriquecer a coleção à medida que dialogavam com obras dos mesmos artistas existentes no acervo. O<br />

galerista, que nos seus tempos de professor de fotografia na Faap, São Paulo, já possibilitava o acesso dos<br />

alunos à sua coleção, diz ter tomado uma decisão coerente com a maneira pela qual entende e vive a arte.<br />

“Colecionar não é apenas acumular objetos, mas construir um lugar onde a convivência com a arte seja<br />

importante e poderosa, e é essa relação que prezo.”<br />

Há outros exemplos fundamentais<br />

de coleções particulares que ganharam<br />

vida pública na América do Sul.<br />

Uma delas é a de Gilberto Chateaubriand, proprietário<br />

de cerca de 7 mil obras representativas<br />

da arte brasileira do início do século XX até o novo<br />

milênio – e que igualmente foi cedida em comodato<br />

<strong>ao</strong> MAM/RJ, onde ganhou espaço exclusivo. Na<br />

Argentina, a coleção de Eduardo Costantini originou<br />

o Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires<br />

(Malba) – onde residem Autorretrato com Macaco<br />

e Papagaio, de Frida Kahlo, e Abaporu, de Tarsila do<br />

Amaral, duas <strong>das</strong> obras latino-americanas mais valiosas,<br />

arremata<strong>das</strong> pelo empresário em leilões.<br />

sejo de ser cremado com o Van Gogh e o Renoir tão<br />

estimados. A declaração, que colocou o mundo da<br />

arte de cabelos em pé, foi explicada mais tarde pelo<br />

próprio magnata nipônico como piada, brincadeirinha<br />

– e, obviamente, as telas não viraram cinza. Até<br />

hoje, porém, é desconhecido o paradeiro <strong>das</strong> duas<br />

obras. Há apenas especulações sobre quem as teria<br />

arrematado após sua morte.<br />

A notícia, que soaria anedótica não fosse assustadora,<br />

ilustra a atitude egoísta de certos colecionadores:<br />

amealhar, reter, ocultar – traço de personalidade<br />

envelopado pela psicologia na categoria dos transtornos<br />

compulsivos. Ora, uma coleção deve con-<br />

O empresário japonês Ryoei Saito, comprador, na década<br />

de 1990, de duas telas que ainda hoje figuram na lista <strong>das</strong><br />

dez mais caras do mundo, chocou a sociedade <strong>ao</strong> expressar<br />

o fúnebre desejo de ser cremado com as obras.<br />

Nem todo colecionador, no entanto, tem o prazer,<br />

exercitado por Brandão, Chateaubriand e Costantini,<br />

de compartilhar. É notório o caso do empresário japonês<br />

Ryoei Saito, comprador de duas telas que ainda<br />

hoje figuram na lista <strong>das</strong> dez mais caras do mundo:<br />

Retrato do Dr. Gachet, de Van Gogh, e Bal du Moulin<br />

de la Galette, de Renoir – arrematados em 1990 por<br />

82,5 milhões de dólares e 78,1 milhões de dólares,<br />

respectivamente. Saito, que morreria seis anos mais<br />

tarde, chocou a sociedade <strong>ao</strong> expressar o fúnebre de-<br />

tar uma, ou melhor, diversas histórias – como a de<br />

Chateaubriand, que narra a evolução da arte brasileira<br />

nos últimos cem anos, e a do Museu do Vaticano,<br />

que relata a da própria igreja católica. No Museu do<br />

Louvre, um dos fios que podemos perseguir é o da<br />

expansão do império napoleônico por meio <strong>das</strong><br />

apropriações feitas pelo conquistador sobre o espólio<br />

dos povos subjugados. Estão lá a Vênus de Milo e a<br />

Vitória de Samotrácia como testamento desse poder.<br />

A sete chaves, essa história nunca seria lida.<br />

12 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 13


O caráter narrativo da coleção – e suas inúmeras possibilidades<br />

de “roteiro” – atiça colecionadores e curadores.<br />

A razão se faz como discurso<br />

No ensaio “Epistemologias Históricas do Colecionismo”<br />

(publicado na revista Episteme, em 2005), o historiador<br />

gaúcho Francisco Marshall, da UFRGS, analisa<br />

a semântica da palavra coleção: “Colecionar, do latim<br />

collectio, possui em seu núcleo semântico a raiz leg, de<br />

alta relevância em todos os falares indo-europeus [...].<br />

No grego clássico, em seu grau ‘o’, produz o morfema<br />

log, avizinhado, em seu grau ‘e’, de leg, ambos repletos<br />

de derivados. Nesta família linguística, aparece o núcleo<br />

semântico e significativo do colecionismo: uma<br />

relação entre pôr em ordem – raciocinar – (logeín) e<br />

discursar (legeín), onde o sentido de falar é derivado<br />

do de coletar: a razão se faz como discurso”.<br />

É esse caráter narrativo da coleção – e suas inúmeras<br />

possibilidades de “roteiro” – que atiça colecionadores<br />

e curadores. Segundo Brandão, o dado encantador<br />

de uma coleção é a possibilidade de criar recortes,<br />

ordenar as peças de modo a construir as tais narrativas.<br />

“Quando minha coleção estava em casa, um dos<br />

meus prazeres era fazer curadorias para mim, para os<br />

amigos e para os alunos”, diz.<br />

Livros, selos, brinquedos, caixas<br />

de fósforos, revistas, cartões-postais,<br />

fotografias, mapas, roupas, discos, embalagens<br />

de produtos industrializados, cartazes<br />

– toda coleção, quando representativa e bem organizada,<br />

pode conter essa mesma força prosódica.<br />

Para tomar um exemplo, não foi a partir dos arquivos<br />

<strong>das</strong> gravadoras brasileiras que o músico Charles<br />

Gavin organizou um dos mais belos compêndios sobre<br />

a arte gráfica brasileira dos anos 1960. A fonte para<br />

a feitura do livro Bossa Nova e Outras Bossas – A Arte e<br />

o Design <strong>das</strong> Capas dos LPs (editado em 2008 pela organização<br />

não governamental Viva Rio) foi a coleção<br />

do carioca Caetano Rodrigues (falecido em 2010), que<br />

garimpou to<strong>das</strong> as gravações da bossa desde os tempos<br />

em que frequentava o Beco <strong>das</strong> Garrafas, reduto<br />

dos músicos de samba-jazz, até o advento do CD.<br />

A internet abre novos caminhos e perspectivas para<br />

o público interessado em “ler” as histórias conta<strong>das</strong><br />

pelas coleções – o áudio de diversos álbuns de<br />

Rodrigues, sobretudo os mais raros e alguns jamais<br />

reeditados, foi disponibilizado pelo blogueiro Loronix<br />

em seu site (loronix.blogspot.com). E, embora o ato<br />

de admirar uma obra de arte ou um objeto sempre se<br />

faça de maneira mais satisfatória <strong>ao</strong> vivo, hoje é possível<br />

percorrer o acervo de grandes instituições ou de<br />

particulares que já digitalizaram sua coleção.<br />

O trânsito tem mão dupla: a instituição também se<br />

beneficia da ampla exposição cibernética. É o caso<br />

do Masp, que tem seu acervo digitalizado e de acesso<br />

bem simplificado em seu site oficial. “O museu não<br />

só divulga como recebe muita informação relevante<br />

por meio da internet. Pesquisadores estrangeiros que<br />

consultam nosso acervo eletronicamente nos fornecem<br />

dados sobre peças da coleção, o que amplia o<br />

conhecimento da própria instituição sobre determina<strong>das</strong><br />

obras”, diz Eunice Sophia, coordenadora do<br />

acervo que reúne a mais importante coleção de arte<br />

europeia do Hemisfério Sul, criada pelo empresário<br />

Assis Chateubriand e seu colaborador Pietro Maria<br />

Bardi na década de 1940.<br />

Segundo Eunice, o que diferencia a simples coleção<br />

particular de um acervo é sua catalogação, seu registro.<br />

A coleção é meramente a reunião de objetos que se<br />

assemelham por categoria, formato, período histórico<br />

ou temática. O acervo é a coleção institucionalizada,<br />

por assim dizer, e não raro tombada pelo patrimônio<br />

histórico, caso do acervo do Masp (que contém pintura,<br />

escultura, desenho, gravura, fotografia, vestuário,<br />

mobiliário, tapeçaria, objetos, instrumentos<br />

musicais, design, cerâmicas). “Todo acervo é<br />

uma coleção, mas nem toda coleção é<br />

um acervo”, esclarece.<br />

14 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 15


Visitantes na abertura da exposição Convivências – Fundação Iberê Camargo | foto: Cristiano Sant’Anna<br />

Debaixo da ponta do iceberg<br />

reportagem<br />

Antes e depois de qualquer exposição, há sempre um imenso trabalho que<br />

não aparece <strong>ao</strong> público. Conheça os bastidores de museus como Reina Sofía,<br />

Malba e MoMA e da Fundação Iberê Camargo.<br />

Por Augusto Paim<br />

Diz-se que o jornalismo é a arte de sujar os sapatos. O repórter que enfrentou a chuvosa Porto Alegre de 9 de<br />

novembro de 2010 há, no entanto, de contradizer: o jornalismo é a arte de molhar os sapatos.<br />

Na galeria da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, do Instituto de Artes da UFRGS, o repórter encontrou<br />

abrigo contra a chuva. Enquanto a entrevistada Ana Maria Albani de Carvalho, pesquisadora e professora do<br />

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, resolvia algumas pendências, ele observava o ambiente <strong>ao</strong><br />

redor. Uma exposição de gravuras seria inaugurada em dois dias; em razão disso, alunos equilibravam-se em<br />

esca<strong>das</strong> pendurando quadros, martelos martelavam – tap-tap-tap – e pregos afundavam na madeira – tumtum-tum.<br />

Junto a uma mesa, uma estudante montava cada moldura numa colagem com espuma branca.<br />

O repórter não sabia, mas sua reportagem começava ali.<br />

A informatização dos museus – processo buscado e recomendado<br />

pelo Ministério da Cultura através do Sistema Nacional de<br />

Museus –, quando aplicada no caso específico do acervo, não<br />

resolve a questão da falta de espaço. Pois quem jogaria fora<br />

um original de Picasso depois de ele ter sido digitalizado?<br />

Nas catacumbas dos museus<br />

Todo jornalista, quando se debruça sobre um tema novo,<br />

precisa estudá-lo até estar em condições de contar uma<br />

história. Para esta reportagem, o repórter aprendeu, entre<br />

outras coisas, quais são as partes que compõem um museu.<br />

Isso não aparece no texto final da reportagem, mas,<br />

para escrevê-lo, o repórter precisou desses conceitos.<br />

Assim como nos bastidores do jornalismo, nos museus<br />

há um imenso trabalho de sustentação e infraestrutura<br />

que permite o funcionamento <strong>das</strong> instituições. No<br />

Reina Sofía, de Madri, trabalham mais de 600 profissionais.<br />

Arianne Vellosillo, restauradora do museu, explica<br />

que o departamento de conservação e restauro<br />

ocupa sozinho aproximadamente 600 m². “Somos 21<br />

pessoas nesse setor, quase todos restauradores, mas<br />

há também o assistente do chefe do departamento,<br />

um fotógrafo, um especialista em imagens, um gestor<br />

cultural e uma química.” A dimensão dos bastidores é<br />

tão grande que ultrapassa em muito a área de exposição.<br />

Só a reserva técnica (espaço onde fica armazenado<br />

o acervo), com suas 18 mil obras, ocupa vários<br />

andares no sótão do Reina Sofía.<br />

O Malba (Museu de Arte Latino-<br />

Americano de Buenos Aires) tem um<br />

acervo de apenas 500 peças, mas já enfrenta<br />

problemas de espaço por não ter uma reserva<br />

técnica. Serviços como conservação e restauro<br />

são terceirizados. Jim Coddington, chefe do departamento<br />

de conservação do Museu de Arte Moderna<br />

de Nova York (MoMA), relata outro problema: “Um dos<br />

maiores desafios na conservação de arte contemporânea<br />

é o grande leque de materiais que os artistas estão<br />

usando para construir seus trabalhos”. Cintia Mezza,<br />

administradora da coleção permanente do Malba, comenta:<br />

“O que mais nos dá trabalho são as obras cinéticas<br />

ou as que têm mecanismos para os quais o perfil<br />

do restaurador convencional não é suficiente”. Afinal,<br />

o que fazer com uma obra de 20 anos que usava um<br />

aparelho de vídeo com fita VHS? Apenas passar o material<br />

para DVD não resolve, pois nessa transposição se<br />

perdem características importantes, como a cor. Por<br />

isso, museus que trabalham com novas mídias têm<br />

optado por conservar o suporte original, <strong>ao</strong> mesmo<br />

tempo que o convertem em outro formato. A obra,<br />

portanto, duplica-se, duplicando também o problema<br />

do espaço: onde guardar isso tudo?<br />

16 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 17


Vista do pátio do Reina Sofía | foto: Joaquín Cortés Visitantes observam obra exposta no Malba | foto: divulgação<br />

Antes de tudo isso, no entanto,<br />

há a aquisição da obra. Em 2004, a<br />

política de aquisições do Malba focou-se<br />

em fotografia contemporânea. Nos museus,<br />

porém, assim como na vida de qualquer um de<br />

nós, o orçamento disponível é critério fundamental.<br />

“Comprar obras de contemporâneos do Brasil ou<br />

da Colômbia está muito complicado no momento,<br />

pois esses artistas estão muito valorizados”, comenta<br />

Cintia. Já a Fundação Iberê Camargo dificilmente adquire<br />

obras. Há o setor de documentação e pesquisa,<br />

que faz a catalogação de trabalhos que não se encontram<br />

no acervo, mas o objetivo é apenas registrar seus<br />

atuais endereços e proprietários, não comprá-los.<br />

Vista interna da Fundação Iberê Camargo | foto: Mathias Cramer<br />

A informatização dos museus – processo buscado e<br />

recomendado pelo Ministério da Cultura através do<br />

Sistema Nacional de Museus –, quando aplicada no<br />

caso específico do acervo, não resolve a questão da<br />

falta de espaço. Pois quem jogaria fora um original de<br />

Picasso depois de ele ter sido digitalizado? Outro problema<br />

vem <strong>das</strong> novas instalações da arte contemporânea,<br />

que excedem os espaços tradicionais para guardar<br />

obras. “Recentemente chegou <strong>ao</strong> Malba uma obra<br />

de 2 metros de altura por 2 metros de largura”, relata<br />

Cintia. É um problema que não existe, por exemplo, na<br />

Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. “O artista<br />

plástico Iberê Camargo pintou, gravou e desenhou<br />

num formato convencional”, comenta Fábio Coutinho,<br />

superintendente cultural da instituição. Em razão disso,<br />

apesar de o acervo contar com mais de 5 mil obras,<br />

uma pequena reserva técnica dá conta do recado.<br />

Como uma obra vai parar dentro do museu?<br />

O perfil de cada instituição revela-se no trabalho da<br />

curadoria – que tanto pode ser para uma exposição<br />

específica quanto para decidir que obras devem ser<br />

adquiri<strong>das</strong>. Um museu pode trabalhar apenas com<br />

gravuras e pinturas, ou esculturas (que já exigem um<br />

cuidado diferenciado para conservação e armazenamento),<br />

ou com a imprevisível arte contemporânea,<br />

ou, ainda, com arte eletrônica. Se uma instituição<br />

concentra-se na obra de determinado artista ou estilo,<br />

diminui o problema da superlotação da reserva<br />

técnica, e a instituição tende a centrar suas atividades<br />

em esforços de pesquisa e catalogação, além de<br />

formas de exposição e interação com o público. Esse<br />

último caso é o que acontece na Fundação Iberê<br />

Camargo, que não é exatamente um museu, mas<br />

uma instituição que pesquisa, cataloga, armazena e<br />

expõe a obra do artista.<br />

O trabalho da mediação com os visitantes também<br />

é fundamental. Os museus contemporâneos têm<br />

um cuidado com a pluralidade do público, propondo<br />

mediações que satisfaçam tanto leigos quanto<br />

especialistas. Algumas exposições prezam mais o<br />

lúdico e a interatividade, como é o caso <strong>das</strong> realiza<strong>das</strong><br />

nos museus científicos. Outras instituições<br />

se preocupam mais com o trabalho<br />

formativo, desenvolvendo programas<br />

de arte-educação.<br />

Quem escreve o texto <strong>das</strong> etiquetas?<br />

Antes e depois de cada exposição, acontece muito<br />

mais coisa do que se imagina. A jornalista Luísa<br />

Fedrizzi diz que, às vezes, se um dos três andares de<br />

exposição da Fundação Iberê Camargo estiver fechado,<br />

há pessoas que reclamam, mandando e-mails do<br />

tipo: “Por que não montam as exposições na segunda,<br />

quando o museu não abre <strong>ao</strong> público?”.<br />

Quando uma exposição chega, as obras precisam ficar<br />

em quarentena para não haver nenhum problema<br />

com mudanças bruscas de temperatura e umidade.<br />

Depois, as caixas de transporte são abertas e tudo é<br />

fotografado e catalogado. Só então vem a montagem,<br />

que muitas vezes tem desafios à parte. Depois<br />

de passar pelo MoMA e pelo Reina Sofía, a obra On<strong>das</strong><br />

Para<strong>das</strong> de Probabilidade, de Mira Schendel, chegou à<br />

Fundação Iberê Camargo. A peça tem 27.500 fios de<br />

náilon, que pendem do teto. Ok, mas pendem como?<br />

Aí é que está o problema. Para montar o trabalho, a<br />

equipe de produção teve de conseguir 27.500 pequenos<br />

ganchos. Depois de arranjar um fornecedor, que<br />

não honrou o compromisso da entrega, o material<br />

foi comprado às pressas direto do fabricante. No fim,<br />

após cinco dias de montagem, a obra ficou pronta.<br />

E então a exposição acaba. A exposição, não o trabalho.<br />

Fedrizzi conta que “sempre depois de uma<br />

exposição vem uma equipe que repara o espaço,<br />

deixando-o zerado para o próximo curador”. Em se<br />

tratando de arte contemporânea, nem sempre são<br />

reparos simples. Em novembro de 2010, por exemplo,<br />

a obra Ixodidae, do artista plástico Cadu, furava sem<br />

cessar uma <strong>das</strong> paredes da Fundação como componente<br />

do processo artístico.<br />

Mesmo em obras convencionais, há de se perguntar:<br />

quem fornece as molduras? Quem escreve o texto <strong>das</strong><br />

etiquetas? “Em geral, achamos que as obras nasceram<br />

com as etiquetas”, comenta Ana Carvalho, citada no<br />

início desta reportagem. “O que se vê, quando se visita<br />

uma exposição, é a ponta do iceberg”, diz ela. É como<br />

os estudantes da UFRGS, cujo trabalho de montar a<br />

exposição, na chuvosa Porto Alegre de 9 de novembro<br />

de 2010, não ficou aparente dois dias depois. Ou<br />

como o trabalho do jornalista, cujos sapatos, molhados<br />

no processo de fazer a reportagem, dificilmente<br />

aparecem no texto final.<br />

18 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 19


O edifício do antigo Detran, projetado por Oscar<br />

Niemeyer, prepara-se para receber o novo MAC<br />

Um museu de grandes novidades<br />

Por Marco Aurélio Fiochi | Fotos André Seiti<br />

O tempo não para, e depois de 48 anos o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo<br />

(MAC/USP), um dos mais importantes da capital paulista, está prestes a mudar de casa. Ele passa, ainda<br />

neste primeiro semestre, a ocupar o prédio do antigo Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo<br />

(Detran), integrante do conjunto arquitetônico do Parque do Ibirapuera, porém apartado deste pela Avenida<br />

23 de Maio. A mudança é audaciosa. Para tanto, o imponente edifício de 29,9 mil m2, projetado por Oscar<br />

Niemeyer num terreno de mais de 44,3 mil m2 e inaugurado em 1954, enfrentou mais de dois anos de reforma,<br />

bancada pela Secretaria de Estado da Cultura. Na nova sede, segundo o diretor da instituição, o crítico<br />

e historiador da arte Tadeu Chiarelli, será possível mostrar de forma permanente quase todo o acervo, que<br />

conta com cerca de 10 mil obras, de vários formatos, dos períodos moderno e contemporâneo no Brasil e no<br />

exterior. Curador de renome na arte brasileira e professor titular da universidade, Chiarelli fala, nesta entrevista,<br />

concedida no canteiro de obras, do futuro do museu e ressalta o aspecto simbólico da mudança: “Vamos<br />

devolver <strong>ao</strong> público aquilo que é público. O MAC hoje só mostra 1% de sua coleção. Serão seis andares de<br />

arte e um anexo, um espaço magnífico”.<br />

20 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 21<br />

entrevista


Para sua carreira, o que representa ser nomeado<br />

diretor do MAC? Como se deu esse processo?<br />

Existe uma norma na USP na qual só podem ser diretores<br />

dos museus da universidade os professores titulares,<br />

profissionais que já teriam percorrido toda a trajetória<br />

universitária. Na época da nomeação [em abril de 2010,<br />

para um período de quatro anos] eu havia acabado de<br />

fazer o exame de titularidade. O profissional que segue<br />

a carreira acadêmica é fundamentalmente um servidor<br />

público e deve se preparar para assumir as atribuições<br />

que vão aparecendo. Assumir o MAC é a responsabilidade<br />

máxima de um professor ligado à história e à crítica<br />

da arte. Mesmo se tivesse outros planos, não poderia me<br />

furtar a aceitar. Ainda mais num momento tão crucial<br />

quanto este. Tenho a honra de ter colegas que desenvolvem<br />

seu trabalho há muitos anos, como as docentes<br />

Cristina Freire [vice-diretora], Helouise Costa [coordenadora<br />

da Divisão de Pesquisa em Arte – Teoria e Crítica]<br />

e Ana Magalhães [membro do Conselho Deliberativo],<br />

entre outros. É uma equipe de altíssima qualidade, o que<br />

aumenta meu compromisso. Tem sido importante conviver<br />

com esses profissionais e discutir os rumos do museu.<br />

Uma experiência que vai ter frutos significativos.<br />

O MAC está dividido em três espaços [dois na USP<br />

e um na Fundação Bienal]. Com a mudança para<br />

o novo prédio, o que significa reunir esse museu<br />

fragmentado?<br />

Com a vinda para a nova sede, espera-se que o museu<br />

possa, em primeiro lugar, mostrar o acervo que reúne.<br />

Na sede atual, só é possível mostrar 1% da coleção<br />

[que conta com cerca de 10 mil obras]. Não é possível<br />

apresentá-lo em sua totalidade nem com o potencial<br />

que ele tem para a interpretação da arte moderna<br />

e contemporânea. Termos um espaço definitivo<br />

e tão amplo é fundamental para que a instituição<br />

dê prosseguimento à sua missão:<br />

com foco no acervo,<br />

produzir exposições e desenvolver um trabalho consistente<br />

e duradouro com o público. De fato, a fragmentação<br />

prejudica muito seu cotidiano. Mas a mudança não<br />

significa que o MAC deixará a universidade. Não podemos<br />

perder a interlocução com o campus. Manteremos<br />

o edifício maior, em frente à reitoria, para aulas e exposições<br />

específicas. A outra sala no campus, de menor<br />

tamanho, será devolvida à administração, bem como<br />

o ambiente no prédio da Fundação Bienal. A sede na<br />

Cidade Universitária será o MAC acadêmico. As disciplinas<br />

de graduação e pós-graduação [ofereci<strong>das</strong> como<br />

optativas <strong>ao</strong>s alunos da USP], além <strong>das</strong> atividades nitidamente<br />

pedagógicas, serão manti<strong>das</strong> naquele lugar.<br />

O único autorretrato que Modigliani pintou é do MAC.<br />

Esse quadro tem de estar à disposição para que as pessoas<br />

o vejam quantas vezes desejarem.<br />

Como será o novo espaço?<br />

Serão seis andares de arte [as áreas expositivas vão do segundo<br />

<strong>ao</strong> sétimo piso]. No primeiro andar, vai haver um<br />

auditório e a parte administrativa. No oitavo, um mirante<br />

e um restaurante. Quatro andares serão destinados à exposição<br />

permanente do acervo e dois a exposições temporárias.<br />

Uma parte, perto dos elevadores, abrigará salas<br />

especiais, para exposições monográficas de artistas bem<br />

representados na coleção, como Di Cavalcanti, Yolanda<br />

Mohalyi. Há outro edifício, o Anexo, também parte do<br />

projeto original [com 3.284 m2], um dos mais generosos<br />

que existem para a exibição de obras de arte contemporânea.<br />

Os artistas vão deitar e rolar! No Anexo, faremos<br />

exposições de artistas contemporâneos vivos, que vão<br />

produzir para o museu. Ou seja, o conjunto do espaço<br />

expositivo é magnífico [com mais de 11,1 mil m2].<br />

O cronograma de exposições sofrerá alterações?<br />

As obras do acervo ficarão no mínimo um ano expostas,<br />

com mudanças pontuais, devido a pesquisas dos<br />

curadores. É o que chamamos de exposição de longa<br />

duração. A ideia é que a coleção fique à disposição do<br />

público. Nos anos 1970, quando fui aluno de Walter<br />

Zanini, ele falava: “Todo cidadão de São Paulo tem o<br />

direito de entrar na Pinacoteca do Estado para ver o<br />

Chiarelli: “A mudança se deve <strong>ao</strong> desejo de devolver <strong>ao</strong> público o que é público”<br />

Caipira Picando Fumo [pintura de Almeida Júnior, de<br />

1893] quando quiser, pois é um patrimônio público”.<br />

O único autorretrato que Modigliani pintou é do MAC.<br />

Sei que há muitos cidadãos que adoram essa obra e a<br />

veem pouco. Quero voltar a fazer o que Zanini fazia na<br />

direção do MAC: o quadro do Modigliani tem de estar<br />

à disposição para que as pessoas o vejam quantas<br />

vezes desejarem. O museu tem de cumprir a função<br />

de devolver <strong>ao</strong> público o que é público. No tocante<br />

às exposições temporárias, elas não terão menos que<br />

seis meses. Não acredito que se consiga fazer um bom<br />

trabalho de formação de público em exposições que<br />

duram 40 dias. Como é um museu universitário, o foco<br />

na formação do público é visceral. A instituição não<br />

tem necessidade de acelerar exposições, não faz parte<br />

de seu perfil. Portanto, pode trabalhar a potencialidade<br />

<strong>das</strong> obras. Não vou expor um artista porque tenho<br />

espaço, mas, sim, aquele que o conselho do museu<br />

considerar importante, sobretudo, <strong>ao</strong> acervo.<br />

Qual é sua percepção da reação de outras instituições<br />

culturais da cidade à ampliação do MAC?<br />

Os colegas na direção de outras instituições paulistanas,<br />

que admiro profissionalmente, além de ser<br />

meus amigos, como Jorge Schwartz (do Museu Lasar<br />

Segall), Teixeira Coelho (do Masp) e Marcelo Araújo (da<br />

Pinacoteca), estão bastante entusiasmados.<br />

Faz-me muito bem contar<br />

com o apoio deles, pois todos, direta ou<br />

indiretamente, estão ou estiveram ligados <strong>ao</strong><br />

MAC. Se pensarmos no circuito como um todo,<br />

as pessoas têm muita expectativa sobre o MAC,<br />

pois nos anos 1960 e 1970, com a direção do Zanini,<br />

o museu tinha uma presença muito significativa na<br />

cena cultural e artística da cidade. Artistas e curadores<br />

têm um grande carinho pelo museu e imaginam<br />

visitas <strong>ao</strong> acervo para rever obras que há tempos não<br />

são apresenta<strong>das</strong>. As pessoas em geral, quando são<br />

informa<strong>das</strong> de que o prédio do antigo Detran vai ser<br />

um museu, se admiram. É um espaço muito importante<br />

para a cidade e foi tão malcuidado. A população<br />

sente que é uma devolução, pelo poder público, de<br />

um patrimônio que estava vilipendiado.<br />

Fale sobre a formação do acervo do MAC.<br />

O acervo do MAC é brilhante, um dos melhores de<br />

arte moderna e contemporânea da América Latina.<br />

O núcleo original vem da coleção doada por Ciccillo<br />

Matarazzo e Yolanda Penteado [fundadores do MAM/<br />

SP, em 1948] e dos prêmios aquisição <strong>das</strong> edições da<br />

Bienal de São Paulo que foram realiza<strong>das</strong> até 1962.<br />

Nele, há obras extremamente significativas: uma <strong>das</strong><br />

22 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 23


maiores coleções de arte italiana do período entreguerras,<br />

fora da Itália, está no MAC. A obra mais antiga<br />

é de Giacomo Balla, uma pintura de 1906, e há obras<br />

fundamentais de Modigliani, entre outros. A parte<br />

modernista internacional do acervo está muito bem<br />

representada, bem como a modernista nacional da primeira<br />

metade do século XX, com Tarsila, Di Cavalcanti e<br />

Portinari, que estabelecem um diálogo muito potente.<br />

Outra parte importante é a coleção de arte dos anos<br />

1960 e 1970. Walter Zanini [diretor entre 1963 e 1978]<br />

foi fundamental <strong>ao</strong> museu, pois trabalhou as vertentes<br />

conceituais do acervo. Ele comprava ou ganhava<br />

obras que são disputa<strong>das</strong> por museus internacionais.<br />

Mas o público não conhece aprofundadamente esse<br />

núcleo, fundamental para entender a arte contemporânea.<br />

Temos outro segmento muito importante, de<br />

arte dos anos 1980, que foi configurado com Aracy<br />

Amaral [membro do Conselho Administrativo de 1980<br />

a 1982]. Cada diretor do museu cuidou de diferentes<br />

aspectos dessa grande coleção. Outras bastante significativas,<br />

como parte da Cid Collection, a coleção do<br />

extinto Banco Santos, está sob a guarda do museu.<br />

Como você vê esse acervo no futuro?<br />

Eu e os curadores já começamos a mapear as lacunas<br />

e a projetar a expansão da vertente contemporânea. É<br />

um museu de arte contemporânea, então tem de dialogar<br />

intensamente com a produção atual. Na inaugu-<br />

A previsão é que o novo museu seja inaugurado no primeiro semestre deste ano<br />

ração, junto com a exposição do acervo, faremos uma<br />

com artistas brasileiros muito jovens, para demonstrar<br />

que, além de trabalhar seu acervo, o museu não deixa<br />

de pensar nas obras mais recentes que quer adquirir.<br />

O museu não está aberto a ofertas. Vamos escolher<br />

aquilo que interessa para expandir e referenciar a coleção.<br />

Essa é a política de aquisições.<br />

O que está sendo planejado para as áreas técnicas<br />

do museu?<br />

O MAC sempre primou pela qualidade e sofisticação<br />

do trabalho que desenvolve na conservação e no restauro<br />

de suas obras. Na sede do campus há um laboratório<br />

em que trabalham especialistas. São salas<br />

projeta<strong>das</strong> para guarda, preservação, estudo e restauro<br />

<strong>das</strong> peças. Isso será reproduzido na nova sede.<br />

Além da reforma, está sendo construído um edifício<br />

defronte <strong>ao</strong> Anexo, para abrigar as áreas técnicas [que<br />

compreendem reservas e laboratórios de conservação,<br />

em um espaço de 3.983 m²] e manter a qualidade<br />

da sede atual. Apenas parte do mobiliário será<br />

transferida para esse prédio, pois cerca de 90% dos<br />

equipamentos serão comprados para manter o padrão<br />

e para que se trabalhe com tecnologia mais<br />

avançada. Na reserva técnica laboratorial será<br />

possível ministrar aulas, e os alunos dos<br />

cursos do MAC terão um contato mais<br />

próximo com as obras.<br />

Homens em obras: reforma do edifício consumiu mais de dois anos de trabalho<br />

O museu não está aberto a ofertas. Vamos escolher aquilo<br />

que interessa para expandir e referenciar a coleção. Essa é<br />

a política de aquisições.<br />

Há algum estudo para facilitar a chegada do público<br />

<strong>ao</strong> museu? A entrada passará a ser cobrada?<br />

Manteremos a gratuidade da visita. Quanto à acessibilidade,<br />

ela já foi pensada. Há três entra<strong>das</strong> para o edifício.<br />

Quando inaugurado, o público poderá entrar pela<br />

passarela [Ciccillo Matarazzo, que atravessa a Avenida<br />

23 de Maio, ligando o parque <strong>ao</strong> edifício], que será reformada.<br />

Nesse caso, a pessoa que estiver passeando<br />

no Ibirapuera poderá atravessar a passarela e visitar o<br />

museu. Será possível entrar e sair do espaço como se<br />

a pessoa estivesse num parque, numa praça pública.<br />

A ideia é integrar <strong>ao</strong> máximo o MAC <strong>ao</strong> Ibirapuera.<br />

Haverá um jardim de esculturas no entorno do<br />

prédio [com cerca de 16 mil m²] em que o visitante<br />

pode passear, descansar. O estacionamento<br />

[na Rua Dante Pazzanese] será<br />

outra entrada. A terceira entrada será<br />

pela Avenida 23 de Maio.<br />

Como você vê a inserção do MAC no circuito dos<br />

grandes museus latino-americanos?<br />

O edifício do novo MAC não foi pensado para ser museu<br />

[o Palácio da Agricultura foi construído para abrigar<br />

a secretaria estadual voltada a esse setor]. Ele está sendo<br />

adaptado. Mas não é qualquer construção. É um prédio<br />

projetado por Oscar Niemeyer no melhor momento de<br />

sua arquitetura e também da produção arquitetônica<br />

brasileira, o início da década de 1950. Isso é muito simbólico.<br />

A construção é um grande monumento. Esse é<br />

o primeiro diferencial do museu. Ele já vem imantado<br />

pela excelência do autor do projeto e pela qualidade<br />

do resultado. Dessa forma, uma <strong>das</strong> principais obras do<br />

MAC é o edifício em que será implantado. Acho que<br />

quando o novo MAC estiver operando se igualará a museus<br />

como o Malba, o Masp e a Pinacoteca do Estado.<br />

No tocante à coleção internacional, ele ombreia o Masp,<br />

embora este tenha mais obras e peças mais antigas. O<br />

Malba tem mais artistas latino-americanos, porém o<br />

MAC não está limitado a essa região. Ele está no mesmo<br />

patamar de qualidade dos museus do continente.<br />

24 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 25


Coletânea de dicas<br />

Sugestões de filme, livros, site e música para colecionar na <strong>memória</strong>.<br />

Por André Seiti | Fotos divulgação<br />

INTERNET<br />

Arquivo World Press Photo<br />

(archive.worldpressphoto.org)<br />

O mais famoso prêmio de fotojornalismo do mundo<br />

disponibilizou recentemente na internet seu acervo<br />

com imagens contempla<strong>das</strong> nas diversas categorias do<br />

concurso. São mais de 10 mil fotos laurea<strong>das</strong> <strong>ao</strong> longo<br />

de 54 anos, entre elas as de nove brasileiros: André<br />

Vieira, Carlos Humberto TDC, Eraldo Peres, J. F. Diório,<br />

João Kehl, Luiz Vasconcelos, Marcos Prado, Orlando<br />

Brito e Sebastião Salgado.<br />

CINEMA<br />

balaio<br />

Uma Vida Iluminada, de Liev Schreiber (Warner<br />

Home Video, 2005)<br />

Jonathan é um ávido colecionador de objetos que remetem<br />

à história de sua família: fotos, medalhas, punhados<br />

de terra, dentaduras... Mas há uma história em particular<br />

que não possui objetos suficientes para ser contada: a<br />

de seu avô. Empenhado em descobrir mais sobre ele,<br />

o personagem parte para a Ucrânia em busca de uma<br />

mulher que, supostamente, teria salvado o ancião da<br />

perseguição nazista durante a Segunda Guerra.<br />

LITERATURA<br />

Ficções, de Jorge Luis Borges<br />

(Companhia <strong>das</strong> Letras, 2007)<br />

Este livro reúne alguns dos mais notórios contos do escritor<br />

argentino falecido em 1986. Estão lá: “Pierre Menard,<br />

Autor do Quixote”, “As Ruínas Circulares”, “O Jardim de<br />

Caminhos Que Se Bifurcam”, “Funes, o Memorioso” e “A<br />

Biblioteca de Babel”. Esses dois últimos, de certa forma,<br />

assemelham-se por tratar – com dose de pessimismo<br />

– de duas espécies de coleções grandiosas: a <strong>memória</strong><br />

e o conhecimento.<br />

26 Continuum Itaú Cultural<br />

Participe com suas ideias 27<br />

MÚSICA<br />

Coleção Chico Buarque (Abril Coleções, 2010)<br />

A obra e a carreira do cantor e compositor Chico Buarque<br />

são revisita<strong>das</strong> em 20 volumes que trazem 240 músicas.<br />

A coleção é acompanhada de livretos com notas de<br />

bastidores e histórias que contextualizam a produção<br />

dos discos. Vale lembrar que a coletânea conta também<br />

com álbuns raros, como Calabar, trilha sonora da peça<br />

homônima, que foi censurada durante a ditadura.<br />

Não Contem com o Fim do Livro, de Jean-Claude<br />

Carrière e Umberto Eco (Record, 2010)<br />

Quando se discute sobre o fim do livro de papel, geralmente<br />

se esquece de que ele é uma experiência para<br />

os sentidos. Muitos colecionadores falam do prazer de<br />

folhear, ou do perfume <strong>das</strong> páginas, ou ainda da soma<br />

dessas sensações <strong>ao</strong> sentimento de posse de um exemplar<br />

único ou raro em algum aspecto. Partindo dessa premissa,<br />

os bibliófilos Umberto Eco e Jean-Claude Carrière discutem<br />

a perenidade desse suporte. O livro dá voltas sobre<br />

temas que vão desde a censura a escritores, passando<br />

pela preservação da <strong>memória</strong>, até a pergunta: “O que<br />

fazer da sua biblioteca depois de sua morte?”.


Acervo feito de gente<br />

O Museu da Pessoa coleciona histórias para contar a história.<br />

Por Renata Penzani | Fotos André Seiti<br />

deadline<br />

Colecionar selos, moe<strong>das</strong>, cartas, tampinhas de garrafa. A necessidade de preservar coisas significativas é<br />

natural do ser humano. Mas nem só de numismática, filatelia e outros quiprocós semânticos é feito o colecionismo.<br />

Esses que são apenas nomes complicados para denominar uma mesma vontade não conseguem<br />

suprir uma necessidade mais incisiva: a construção de uma <strong>memória</strong> social. Foi dessa preocupação que<br />

surgiu, em 1991, o Museu da Pessoa – acervo virtual de narrativas – para pontuar que a vida é passageira e<br />

que é preciso reter se não a história inteira <strong>ao</strong> menos alguns pedaços importantes que a compõem.<br />

Desde a Idade Média, quando surgiram os primeiros museus, o homem constrói sua identidade com base<br />

nas lembranças. Mais do que áreas de preservação, os museus são testemunha do que aconteceu e ancoradouro<br />

do que irá ocorrer. Nesse sentido, o que pode ser mais decisivo para a construção da grande história<br />

do que as pequenas narrativas? Histórias simples, como a de Ana Maria Pupo, de 67 anos, que tinha uma<br />

galinha chamada Miss Brasil, ou a de Mestre Alagoinha [Geraldo Prado, pesquisador do Instituto Brasileiro<br />

de Informação em Ciência e Tecnologia], que construiu a duras penas uma <strong>das</strong> maiores bibliotecas rurais do<br />

Brasil, em Paiaiá, povoado pertencente <strong>ao</strong> município de Nova Soure, no sertão da Bahia. Criada em 2004, ela<br />

abriga mais de 50 mil volumes. “Não há nada mais precioso para entender o mundo que ouvir as pessoas.<br />

É muito simples: toda história de vida é importante, desde a do porteiro até a do presidente da República”,<br />

observa a historiadora Karen Worcman, fundadora do museu e maior entusiasta de sua metodologia. Ela<br />

define a instituição em palavras simples: “Uma metáfora do mundo narrada pelas próprias pessoas”. É sob a<br />

complexa responsabilidade de resguardar anônimas narrativas sociais, no entanto, que funciona o museu;<br />

hoje, ele preserva um acervo de aproximadamente 12 mil depoimentos, 72 mil fotos e documentos e 168<br />

projetos nas áreas de educação, comunicação, <strong>memória</strong> institucional e desenvolvimento social.<br />

Apesar de seus arquivos serem<br />

virtuais, o Museu da Pessoa tem sede<br />

em São Paulo. A metodologia do projeto<br />

inspirou outros países, e hoje há mais três núcleos:<br />

Portugal, Canadá e Estados Unidos. O do<br />

Brasil foi o primeiro. É de um sobrado modesto da<br />

Vila Madalena que saem certezas de que a emaranhada<br />

teia da <strong>memória</strong> social está sendo bordada<br />

a pontos pequenos. Ao entrar lá, podemos sentir o<br />

peso da <strong>memória</strong>. Nos quadros, nas fotos, nos livros e<br />

nos documentos do acervo estão fatos que os jornais<br />

nunca noticiaram. As paredes, cheias de lembranças,<br />

poderiam contar sozinhas fragmentos da trajetória do<br />

país. O museu é aberto a todo mundo, e seu estúdio<br />

de gravação fica disponível para qualquer pessoa que<br />

queira contar algo – basta agendar um horário. Sabrina<br />

Campos, de 22 anos, que cuida da limpeza do museu,<br />

faz questão de frisar, num sorriso de orelha a orelha:<br />

“Quem sabe um dia eu também conto a minha?”.<br />

É de um sobrado modesto da Vila Madalena que saem<br />

certezas de que a emaranhada teia da <strong>memória</strong> social está<br />

sendo bordada a pontos pequenos.<br />

O escritor Rubem Braga dizia que “os jornais noticiam<br />

tudo, mas esquecem algo fundamental que acontece<br />

todos os dias: a vida”. Talvez nem todo mundo dê<br />

valor a isso, mas é desse material humano que compõe<br />

a narrativa única da qual todos fazemos parte<br />

que é feito o museu. Histórias comuns de gente anônima,<br />

que não precisa de nenhuma notoriedade para<br />

integrar a <strong>memória</strong> social.<br />

O museu prima pelo escorregadio da vida, por aquilo<br />

que as lembranças têm de intangível. Afinal, o que<br />

leva as pessoas a querer contar suas histórias? Para<br />

Gustavo Ribeiro Sanchez, responsável pelo acervo há<br />

três anos e meio, um dos motivos é a “efemeridade da<br />

existência humana, a agonia de sermos passageiros”.<br />

Desejo de se eternizar, urgência de reflexão sobre o<br />

passado, nostalgia: são incontáveis os porquês e, no<br />

Museu da Pessoa, essas interrogações são reduzi<strong>das</strong> a<br />

uma certeza: todos eles são importantes.<br />

É impossível ignorar, porém, que a história seja uma<br />

ação que se dá no presente. Por isso, os documentos,<br />

as fotos, os depoimentos em vídeo e os textos transcritos<br />

do museu não são – ainda bem! – capazes de<br />

abarcar a <strong>memória</strong> inteira. Pedaços dela ficam elípticos<br />

num olhar cabisbaixo, num estalar de dedos, em<br />

toda uma conotação corporal que fala mais do que a<br />

oralidade. “Memória não é lembrar tudo, ela é muito<br />

mais esquecimento”, opina Sanchez.<br />

28 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 29


Dona Neuza conta suas histórias <strong>ao</strong> museu há 13 anos<br />

O que lembro tenho<br />

“Mais lembranças tenho eu do que todos os homens<br />

tiveram desde que o mundo é mundo.” Assim se define<br />

Irineo Funes, personagem do conto “Funes, o<br />

Memorioso”, de Jorge Luis Borges, que narra a agonia<br />

de um homem que se lembra de absolutamente tudo.<br />

Se o esquecimento é uma defesa para que não enlouqueçamos<br />

com nossas próprias <strong>memória</strong>s, não é por<br />

esse receio que dona Neuza, depoente do museu há<br />

mais de dez anos, deixa de relembrar suas histórias.<br />

Neuza Guerreiro de Carvalho – “Neuza-com-zê-guerreiro-de-carvalho.<br />

Gosto que escrevam completinho.<br />

Meu nome é minha identidade” – tem 80 anos e conta<br />

coisas de sua vida <strong>ao</strong> museu desde 1997. Ela começou<br />

por causa de um presente de família: um diário do avô<br />

de seu marido, datado de 1872, fez surgir a vontade<br />

de escrever a história da família. “Fui escrevendo, escrevendo,<br />

mas nunca me preocupei com o que aquilo<br />

iria virar. Para mim, era só um registro que queria deixar<br />

para os meus filhos.”<br />

De 1997 pra cá, dona Neuza acumulou mais de 15 pastas<br />

– “dessas grossonas, sabe?”, ela faz questão de frisar<br />

– só sobre sua vida, sem contar a dos parentes todos,<br />

entre avós, ir<strong>mãos</strong>, primos e agregados: registros de<br />

uma vida inteira passada a limpo. No Museu da Pessoa,<br />

ela tem dezenas de textos transcritos, fotos, documentos<br />

e um vídeo unitário sobre sua vida com duração de<br />

quatro horas. Além de banco de dados da família, esse<br />

material se transformou em documento de pesquisa<br />

histórica: “Acabei me tornando um repositório de registros.<br />

Por eles, dá para perceber quanto evoluiu ou involuiu<br />

a sociedade”. Ela conta com os olhos brilhando<br />

de satisfação que os netos, quando arrumam nova<br />

namorada, vão fuçar as pastas para impressionar<br />

a garota. “Sinto que eles têm orgulho.” O sentimento<br />

é perfeitamente justificável, afinal,<br />

quantas coisas durarão para além do<br />

nosso esquecimento?<br />

Dona Neuza afirma que não é saudosista – “As pessoas<br />

dizem que antes era melhor. Era nada!” – e quando<br />

questionada sobre o porquê de todo esse resgate ela<br />

responde: “A identidade da gente fica reparada. É uma<br />

maneira de eu me sentir enraizada”. E quando sugiro<br />

que utilize as plataformas digitais para armazenar suas<br />

histórias e livrar as tais 15 pastas do peso de uma vida<br />

inteira ela é incisiva: “Prefiro manusear”.<br />

Pode ser por necessidade, vontade, orgulho e – por<br />

que não? – um pouquinho de medo que o homem<br />

tenha criado diferentes maneiras de guardar suas<br />

lembranças. Não importa se representa<strong>das</strong> por tampinhas<br />

de garrafa amontoa<strong>das</strong> numa caixa de sapatos<br />

ou por uma imensa indumentária de guerra preservada<br />

em um museu, o homem é feito de tudo aquilo<br />

que tem para lembrar.<br />

Seja como for, o desejo de reter partes significativas<br />

de um período histórico ou contexto social, <strong>ao</strong> menos<br />

entre as paredes do Museu da Pessoa, continuará<br />

resguardado nas sagas dos Josés, <strong>das</strong> Marias e dos<br />

Raimundos de um Brasil que acontece todos os dias.<br />

Não é por acaso que Riobaldo Tartarana, personagem<br />

de Guimarães Rosa, atordoado com a urgência<br />

de possuir sua própria história, diz, em um trecho de<br />

Grande Sertão: Vere<strong>das</strong>: “O que lembro, tenho”. Essa frase<br />

deixa escapar a ideia de que lembrança guardada<br />

é posse e, além disso, não é melancolia de um passado<br />

encerrado, mas uma <strong>memória</strong> contínua, uma<br />

vida que se recobra na lembrança e, por isso mesmo,<br />

é viva. Cada fato que compõe a história é um mundo<br />

que revela outros mundos. Esse é o movimento que<br />

faz o universo girar. Como diria dona Neuza, “a história<br />

é uma coisa progressiva; enquanto eu não morrer, ela<br />

vai continuar a ser escrita”.<br />

Renata Penzani, 22 anos, é estudante do 3º ano do<br />

curso de jornalismo da Universidade Estadual Paulista<br />

(Unesp), em Bauru. Mantém o blog Furtacores em<br />

furtacores.tumblr.com.<br />

30 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 31


A paixão pelos livros<br />

Crime e castigo na trajetória de uma coleção.<br />

Por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça | Ilustração Renan Magalhães<br />

Nenhuma manhã mais cinza do que esta sobre o lago de Lucerna. Estou no deque de um café e escrevo<br />

neste diário de capa florida que acabo de comprar. Pena. Em poucos minutos toda a beleza dos Alpes se<br />

apagará de meus olhos. Acabei de ingerir a última cápsula. Mesmo assim, aspirando o ar dessas montanhas<br />

cujos topos são páginas em branco gigantescas, estou em paz com minha consciência e meu sangue.<br />

Mal posso crer que há dois dias estava em São Paulo, fugindo para o Aeroporto Internacional de Guarulhos.<br />

Mal posso crer que acertei contas com um senhor chamado Jayme de León. Agora todos sabem que, por<br />

trás da máscara de bibliófilo e benemérito, escondia-se um homem vil, ambicioso e capaz de matar para<br />

atingir seu objetivo: formar a maior coleção particular de livros raros da América Latina. Agora que minha<br />

hora se aproxima, quero registrar neste diário a verdade de como tudo aconteceu.<br />

1.<br />

Fui uma menina cercada por uma floresta de livros. Olhando para o alto, estantes eram montanhas de papel<br />

que ameaçavam degelar a qualquer instante. Quase não via minha mãe. Ela vivia trancada no quarto de sua<br />

melancolia. Meu jovem pai, Giorgos Xenakis, era um amante dos livros e um dos maiores colecionadores<br />

do Brasil. Depois do divórcio de meus pais, nossa biblioteca encheu-se de luz. Filha única, meus dias eram<br />

povoados por histórias fantásticas e personagens enigmáticos. Eu e papai vivíamos solitários num mundo<br />

à parte. Organizávamos os livros interminavelmente, numa tranquila rotina quebrada apenas pela visita dos<br />

compradores. Era uma legião. Eu os odiava.<br />

32 Continuum Itaú Cultural<br />

ficção<br />

O senhor Jayme de León era um dos mais assíduos frequentadores<br />

de nossa casa no Jardim Europa. Meu pai<br />

o admirava. Não raras vezes eu os flagrava conversando<br />

sobre livros e mulheres. Recordo-me bem de sua figura<br />

esguia, seus olhos azul-Van Gogh devorando cada<br />

centímetro de meu corpo em flor. Como tudo aconteceu?<br />

Eu tinha apenas 13 anos. Numa noite de maio de<br />

1990, o senhor de León veio à nossa mansão para tentar<br />

convencer papai – mais uma vez – a vender-lhe os<br />

12 volumes de As Mil e Uma Noites, na célebre tradução<br />

de Antoine Galland, publicados entre 1704 e 1717.<br />

Eu estava em meu quarto no andar superior. Ouvi vozes<br />

ríspi<strong>das</strong> e tive medo. De repente, silêncio. Chamei<br />

por meu pai. Não houve resposta. Então o encontrei<br />

caído com a cabeça arrebentada sobre uma poça de<br />

sangue. Na porta que dava para a rua, vi o olhar atônito<br />

que De León me lançou antes de fugir. Numa <strong>das</strong><br />

estantes, um vazio. A coleção de Galland havia sido<br />

roubada. Mas o que o criminoso não sabia era que<br />

Giorgos havia esquecido em meu quarto, quando<br />

veio ler para mim na cama, o último tomo<br />

de As Mil e Uma Noites. O mesmo que apertei<br />

contra meu peito quando ouvi os<br />

gritos de horror.<br />

Participe com suas ideias 33


A dor e o choque da perda de<br />

meu pai provocaram lacunas em minha<br />

<strong>memória</strong>. A família me enviou para um<br />

colégio interno na Suíça. Mais tarde, já mulher<br />

feita, fui para o Rio de Janeiro e me especializei<br />

em restauração de livros na Biblioteca Nacional.<br />

Três anos depois, quando já era uma profissional<br />

destacada em minha área, recebi um convite irrecusável:<br />

trabalhar na restauração de um importante<br />

arquivo particular em São Paulo. O Instituto ***, um<br />

dos acervos particulares mais fascinantes do país,<br />

era um caixote cinza na Rua Monte Alegre, próximo<br />

à casa onde morou o poeta Haroldo de Campos. Por<br />

fora, face austera. Por dentro, o luxo de um palácio demonstrava<br />

a riqueza de seu proprietário. O salário era<br />

bom. Nossa equipe era formada por seis mulheres.<br />

Ocupávamos mesas compri<strong>das</strong> e trabalhávamos<br />

com jalecos e luvas brancas. No começo, eu me extasiei<br />

com as primeiras edições que fariam a alegria<br />

de qualquer alfarrabista. A grande biblioteca era composta<br />

de 20 mil títulos. Edições raras de Hans Staden,<br />

Jean de Léry, Machado de Assis e Guimarães Rosa e<br />

incontáveis manuscritos. Nas horas do café, nós nos<br />

perguntávamos quando, afinal, o rico colecionador<br />

apareceria para avaliar nosso trabalho.<br />

Certa tarde de inverno, eu preparava os livros do século<br />

XVII que iriam seguir para um leilão da Sotheby’s<br />

quando uma colega chamou minha atenção para uma<br />

descoberta que fizera <strong>ao</strong> resgatar os livros de uma estante<br />

que havia caído. Senti uma fria onda de arrepios<br />

quando meus olhos depararam com a familiar lombada<br />

azul puída de As Mil e Uma Noites, de Galland.<br />

34 Continuum Itaú Cultural<br />

Uma coleção que valeria, segundo minha colega, 1<br />

milhão de dólares. Valeria, não fosse por um detalhe,<br />

ela disse: a ausência do último volume. Abri um dos<br />

livros e corri meus dedos à página 13, onde tateei, no<br />

canto inferior esquerdo, as letras G e X em alto-relevo.<br />

Senti uma forte náusea. Foi assim que me vi dentro da<br />

biblioteca roubada de Jayme de León. Foi assim que<br />

deparei com a coleção que havia sido arrancada de<br />

meu pai, na última página de sua vida.<br />

2.<br />

Fomos surpreendi<strong>das</strong> num final de tarde com a chegada<br />

de De León <strong>ao</strong> Instituto ***. Os leilões europeus<br />

haviam sido lucrativos, sobretudo a venda dos manuscritos<br />

de Stephan Zweig conseguidos junto à coleção<br />

do uruguaio Dubuffet. De León queria cumprimentar<br />

sua nova equipe. Logo no primeiro encontro seus<br />

olhos azuis folhearam meu rosto, meus cabelos cautelosamente<br />

tingidos de negro. Convidou a to<strong>das</strong> para<br />

uma ceia. Uma vez no restaurante, evitei seus olhos<br />

colocando meus óculos de grau. Em nenhum momento<br />

ele suspeitou de mim. Eu já havia mudado meu<br />

sobrenome legalmente para Brand, da parte de minha<br />

mãe suíça. Pouco tempo depois, ele me convidou para<br />

jantar num restaurante grego. Aos 60 anos, ainda era<br />

um homem atraente. Limitei <strong>ao</strong> máximo informações<br />

sobre minha vida particular e meu passado. Durante<br />

nossas conversas, tal qual uma Sherazade, eu deleitava<br />

o colecionador com minhas histórias e conhecimentos<br />

sobre livros antigos e o mercado livreiro, e também<br />

com minha facilidade com línguas. Ele passou a me<br />

visitar to<strong>das</strong> as tardes no Instituto ***. No 11º encontro,<br />

confessou que estava louco por mim.<br />

Foi fácil. Atraí sua cobiça contando que ele possuía um<br />

último tesouro que poderia salvar o Instituto ***. Foi assim<br />

que o esperei ficar exatamente onde eu queria, diante da<br />

gigantesca muralha de livros no fim do corredor.<br />

3.<br />

Foi então que iniciei a segunda parte de meu plano.<br />

Apagar da existência o senhor Jayme de León, página<br />

por página.<br />

Não contarei como, anonimamente, destruí seu casamento<br />

em poucos meses, enviando fotos dele com to<strong>das</strong><br />

as garotas do Instituto ***, inclusive eu mesma; não<br />

contarei como, em sua embriaguez, gravei a confissão<br />

de seus muitos crimes e a enviei à polícia. Não contarei<br />

como ele teve de se desfazer de seus livros mais valiosos<br />

para pagar a divisão dos bens, as dívi<strong>das</strong> e os advogados.<br />

Apenas contarei que, numa noite, eu o levei <strong>ao</strong><br />

mais escuro dos corredores de sua biblioteca.<br />

Foi fácil. Atraí sua cobiça contando que ele possuía um<br />

último tesouro que poderia salvar o Instituto ***. Sua<br />

salvação estava bem ali, <strong>ao</strong> <strong>alcance</strong> de suas <strong>mãos</strong>. Foi<br />

assim que o esperei ficar exatamente onde eu queria,<br />

diante da gigantesca muralha de livros no fim do<br />

corredor. De León, agora pálida sombra decadente,<br />

perguntou-me o motivo de tanto mistério. Eu<br />

me virei e apontei para uma antiga coleção.<br />

Ele deu um sorriso, reconhecendo os<br />

volumes de As Mil e Uma<br />

Noites, e acariciou as lomba<strong>das</strong>, balançando a cabeça.<br />

Comentou que, por faltar o último volume, aquilo lhe<br />

custara uma bagatela. Quando seus olhos se voltaram<br />

para mim, empalideceram <strong>ao</strong> ver surgir, em minha mão<br />

trêmula, o último volume perdido de sua coleção. Então<br />

lhe revelei quem eu era. Sua face crispou.<br />

E a última coisa de que me lembro, antes de entrar naquele<br />

avião, são os sons horríveis de seus ossos sendo esmagados<br />

por uma avalanche de centenas de volumes.<br />

* * *<br />

Redijo estas linhas porque sei que ninguém acreditará<br />

em minha história. Os jornais brasileiros mataram<br />

minha reputação, dizendo que eu seria a assassina de<br />

meu próprio pai, e que o crime teria sido testemunhado<br />

pelo livreiro Jayme de León há exatos 20 anos. Isso<br />

é completamente inverídico. Eu, Sonya Xenakis, amava<br />

meu pai.<br />

Rodrigo Garcia Lopes é tradutor e autor de Nômada<br />

(Lamparina, 2004) e Visibilia (Travessa dos Editores,<br />

2004), e mais 11 títulos.<br />

Maurício Arruda Mendonça é poeta e dramaturgo.<br />

Participe com suas ideias 35


Um tesouro natural<br />

reportagem<br />

Coleções de ciência, <strong>ao</strong> longo da história, ajudam o homem a entender a<br />

natureza e a preservar o passado.<br />

Por Mariana Lacerda | Ilustração Cynthia Gyuru<br />

Vitor Osmar Becker nasceu em Brusque, Santa Catarina, há 66 anos. Primogênito de 17 ir<strong>mãos</strong> em uma família<br />

de pequenos agricultores, cursou o ensino fundamental em sua terra natal, onde também concluiu o curso<br />

de contabilidade. Durante os estudos, aproveitava o tempo que sobrava para ajudar seus pais na lavoura.<br />

Mais tarde, trabalhou como balconista e entregador de compras da pequena mercearia que a família havia<br />

adquirido na periferia de Brusque para, conta Becker <strong>ao</strong> se lembrar do pai, “facilitar os estudos <strong>das</strong> crianças”.<br />

Hoje, Becker é pesquisador do Departamento de Zoologia da UnB, do Museu Nacional de História Natural<br />

em Washington, DC (Smithsonian Institution) e do Museu Carnegie, em Pittsburgh, Pensilvânia, nos Estados<br />

Unidos. Ao longo dos anos de trabalho, organizou uma <strong>das</strong> melhores coleções do mundo de mariposas e<br />

borboletas (lepidópteros) noturnas da região da América Tropical e uma <strong>das</strong> mais importantes bibliotecas<br />

sobre esses espécimes. A coleção é constituída por aproximadamente 250 mil exemplares, representando<br />

25 mil espécies. A biblioteca dispõe de cerca de 5 mil títulos sobre lepidópteros, além de centenas de outros<br />

sobre áreas da biologia. Ao observar, coletar e analisar mariposas, Becker escreveu mais de cem trabalhos<br />

científicos sobre elas. A maior parte da sua produção foi publicada em revistas internacionais.<br />

Coleções de animais, plantas, artefatos, sons, línguas<br />

e dialetos são fragmentos do mundo que, guardados<br />

em ambientes organizados, devem estar prontos para<br />

responder a perguntas sobre seu funcionamento.<br />

“Para poder conhecer a vida, o homem começou a<br />

reunir em um espaço controlado fragmentos dela.<br />

Uma coleção de ciência é uma tentativa de pôr em<br />

ordem o c<strong>ao</strong>s que é característico do mundo natural”,<br />

diz o pesquisador Nelson Sanjad, coordenador de<br />

comunicação e extensão do Museu Paraense Emílio<br />

Goeldi. Localizada em Belém, a instituição é guardiã<br />

de 4,5 milhões de itens tombados, entre os acervos<br />

zoológico, botânico e geológico – além, claro, dos<br />

registros etnológicos e arqueológicos, “esses últimos<br />

sempre de caráter único e insubstituível”, diz Sanjad.<br />

O funcionamento do mundo<br />

A história <strong>das</strong> ciências e <strong>das</strong> ideias encontra entre os<br />

séculos XVII e XVIII uma nova metodologia: a da observação<br />

e, consequentemente, da comparação e da<br />

classificação. Vem desse período – o Renascimento –<br />

a noção de que fragmentos da natureza armazenados<br />

em vidros, gavetas e exsicatas [amostras de planta seca<br />

fixada em cartolina, cuja etiqueta<br />

contém informações para estudos<br />

botânicos] podem nos indicar o funcionamento<br />

do mundo, resultando em novos fármacos<br />

ou nos levando a entender a geografia<br />

<strong>das</strong> plantas – e, com ela, as possibilidades para a<br />

aclimatação de vegetais e, logo, a agricultura.<br />

Nem sempre foi assim. Antes, muito antes, colecionar<br />

animais e plantas, explica Sanjad, estava relacionado<br />

a poder e status. “Quanto mais diferente e exótica<br />

pudesse ser a coleção, mais valor ela teria.” Viajantes<br />

e desbravadores de novas terras, então, ocupavam-se<br />

de trazer <strong>ao</strong>s pés de seus reis e rainhas os mais encantadores<br />

rabos de sereia, os mais encaracolados chifres<br />

de unicórnio. Sábios, por sua vez, preenchiam compêndios<br />

com seres como a mandrágora, planta cuja<br />

raiz teria feições humanas e que, contam os relatos,<br />

chorava quando arrancada do solo.<br />

Sereias e unicórnios não foram extintos da natureza.<br />

O próprio homem, <strong>ao</strong> longo de sua existência<br />

e à custa de suas coleções, deu conta de dar sentido<br />

<strong>ao</strong> que a imaginação tinha como inexplicável: o<br />

canto que Cristóvão Colombo, <strong>ao</strong> singrar os mares,<br />

Coleções de animais, plantas, artefatos, sons, línguas e dialetos<br />

são fragmentos do mundo que, guardados em ambientes<br />

organizados, devem estar prontos para responder<br />

a perguntas sobre seu funcionamento.<br />

36 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 37


elatou ser o de uma sereia era,<br />

na verdade, o rugir de um peixe-boi.<br />

Unicórnios nunca existiram, mas sabe-se<br />

que o dente esquerdo de um macho de baleia<br />

narval cresce em formato de espiral.<br />

A partir do século XVII, nossos olhos começaram a<br />

ver o que corações e mentes resistiram por séculos a<br />

crer. O mundo, quando posto em pequenos pedaços<br />

lado a lado, não é feito de magia. Nosso olhar em relação<br />

<strong>ao</strong> universo não mudou de um dia para o outro,<br />

claro. Tampouco resultou, necessariamente, de um<br />

acréscimo de conhecimentos.<br />

Aprendemos a perceber o mundo por causa de<br />

uma ruptura (que não se deu de repente) entre o<br />

que se vê, o que os outros viam ou contavam (como<br />

Colombo que acreditou ter visto uma sereia <strong>ao</strong> cruzar<br />

o Atlântico) e aquilo que se podia imaginar. Cada vez<br />

mais, os relatos sobre as coisas da natureza passaram<br />

a se aproximar do sentido da visão. As coleções de ciência,<br />

com seus milhares de seres postos lado a lado,<br />

contribuíram enormemente para isso.<br />

Notícias de além-mar<br />

Esse percurso esteve vinculado <strong>ao</strong>s debates que aconteciam<br />

dentro da própria história natural, mas contava<br />

ainda com um fato importante: o mundo já não era o<br />

mesmo, ganhara novos contornos e dimensões.<br />

E era do outro lado do mar que chegava uma quantidade<br />

razoável de coisas e de notícias. Elas vinham<br />

<strong>das</strong> terras recém-alcança<strong>das</strong> pelos navegadores europeus.<br />

Terras que, <strong>ao</strong>s olhos dos forasteiros, se derramavam<br />

em flora exuberante, povo gentil e fauna diversa.<br />

Entender o mundo novo e o que de bom ele podia<br />

trazer em medicamentos, alimentos, ouro e prata se<br />

tornou tarefa imprescindível.<br />

Bichos e plantas passaram a fazer parte do acervo de<br />

colecionadores ricos, fascinados pelas novidades. Nos<br />

textos dos primeiros cronistas que escreveram sobre<br />

o Brasil, por exemplo, é comum a menção do envio de<br />

um ou outro exemplar de bichinho, pena ou planta <strong>ao</strong><br />

Velho Mundo. Jean de Léry, missionário francês que<br />

aqui permaneceu entre 1556 e 1558, menciona um<br />

sagui, em seu escrito intitulado Viagem à Terra do Brasil<br />

(Edusp, 1972), como “algum desses animaizinhos” que<br />

já se veem na Europa.<br />

Por outro lado, naturalistas tentaram pôr ordem no<br />

que viam e pegavam nas <strong>mãos</strong>. Caixas e mais caixas<br />

desembarcavam na Europa para que seu conteúdo se<br />

tornasse objeto de estudo. Nesse período surgiu, por<br />

assim dizer, o “viajante de gabinete”, aquele que conheceu<br />

terras e mares apenas colecionando os relatos<br />

e os objetos que chegavam <strong>das</strong> expedições e, a partir<br />

deles, formulou teorias de ciência.<br />

É nessa confusão de<br />

quereres, entre moda e ciência, que se<br />

vê surgir, no século XVII, o verbete “Cabinet<br />

d´Histoire Naturelle”, escrito por Diderot em sua<br />

Enciclopédie – um dos documentos mais representativos<br />

do pensamento no período. “O que significa<br />

uma coleção de seres naturais sem o mérito da<br />

ordem? A esses naturalistas que não têm gosto nem<br />

gênio, eu vos direi, devolveis to<strong>das</strong> as suas conchas <strong>ao</strong><br />

mar, restituais à terra suas plantas e sementes [...]. Um<br />

gabinete de história natural foi feito para instruir; [...] devemos<br />

encontrar detalhadamente e em ordem aquilo<br />

que o universo apresenta em bloco”, defendeu Diderot.<br />

Agora, sim, a natureza podia ser confinada pelo homem,<br />

e então se tornava possível observá-la sistematicamente.<br />

“E, na riqueza um pouco confusa da<br />

representação, [o mundo] pode ser analisado, reconhecido<br />

por todos e receber, assim, um nome que<br />

cada qual poderá entender”, escreveu Michel Foucault<br />

em seu livro As Palavras e as Coisas (Martins Fontes,<br />

2000) sobre a criação de Lineu, a taxonomia, ciência<br />

que descreve, identifica e classifica os organismos.<br />

Testemunho sobre o passado<br />

Hoje, uma coleção de ciência é mais do que uma<br />

tentativa de pôr em ordem e entender aquilo que<br />

pertence <strong>ao</strong> c<strong>ao</strong>s. Ela pode representar também um<br />

testemunho sobre o passado <strong>ao</strong> guardar espécies de<br />

animais e plantas que não existem mais e <strong>ao</strong> preservar<br />

artefatos de etnias e civilizações que estão desaparecendo<br />

ou já se extinguiram.<br />

Os índios caiapós, por exemplo, recorreram <strong>ao</strong> Museu<br />

Emílio Goeldi em busca de seus antigos artefatos que<br />

não são mais produzidos. O objetivo era recuperar as<br />

feições daquilo que, <strong>ao</strong> longo dos anos, ficou perdido.<br />

Becker viajou boa parte do Brasil em busca de borboletas<br />

e mariposas. Ao fazê-lo, pôde testemunhar a<br />

redução, de mais a mais, de nossas matas. “De pouco<br />

adianta guardar amostras de animais e plantas, empalhados<br />

ou secos, se nada for feito para preservá-los, vivos,<br />

na natureza”, observa. Foi assim que, em 1998, ele<br />

e sua esposa, Clemira, resolveram iniciar sua mais nova<br />

coleção: um trecho de Mata Atlântica, com mais de mil<br />

hectares de área, localizado <strong>ao</strong> sul da Bahia. Comprado<br />

com to<strong>das</strong> as economias do casal, o local constitui<br />

uma Reserva Particular do Patrimônio Natural.<br />

É lá que vivem hoje: um lugar que recebeu o nome de<br />

Instituto Uiraçu. As portas estão abertas para receber<br />

pesquisadores, que podem contar com o apoio de seis<br />

laboratórios de estudos, uma biblioteca e uma incrível<br />

coleção de mariposas e borboletas. Ela está disponível<br />

para quem desejar entender o mundo – organizado<br />

em gavetas e caixinhas nada secretas, mas também<br />

livres na mata <strong>ao</strong> redor.<br />

38 Participe com suas ideias 39


De coletores a colecionadores<br />

reportagem<br />

Conheça homens movidos pelo sentimento de preservação da <strong>memória</strong> de<br />

quem somos e do que apreciamos.<br />

Por Micheliny Verunschk | Ilustração Guilherme Kramer<br />

Tudo começou há cerca de 20 mil anos. Coletar para nossos antepassados mais distantes, os primeiros hominídeos,<br />

era sinônimo de sobreviver, pois, <strong>ao</strong> recolher sementes, moluscos, raízes e tudo o que de comestível<br />

aparecesse pela frente, os grupos nômades subsistiam, garantiam que a espécie se multiplicasse e, <strong>ao</strong> modo<br />

bíblico, povoasse o mundo. Também chamados de coletores-caçadores, seus abrigos eram fruto do trabalho<br />

de “colher” o que a natureza disponibilizava. Mal sabiam eles, aqueles avós arqueológicos, que do seu ato<br />

surgiria outro, obsessivo, dinâmico e extremamente seletivo, o ato de colecionar.<br />

Todo museu é, de fato, um monumento erigido à cata compulsiva de objetos. Há quem colecione brinquedos,<br />

fotografias, pedaços de vela. Há quem colecione canetas e cadernetas de viagem. Há quem colecione<br />

livros, histórias, imagens e palavras. E são esses colecionadores que nos interessam no momento. Esse recorte,<br />

a seu modo, não deixa de ser uma espécie de coleção, pois colecionar significa também categorizar,<br />

emoldurar numa escolha pessoal as coisas que nem sempre à primeira vista se alinham.<br />

O ato de colecionar do escritor paulistano Mário de Andrade era um exemplo de como a atividade é multifacetada.<br />

Revistas, jornais, manuscritos, obras de arte, gravuras, recortes e fotografias, entre outras coisas,<br />

se configuraram num acervo afetivo que tanto fala da sensibilidade estética do escritor quanto da atuação<br />

como protagonista no cenário cultural de sua época. Os múltiplos objetos que Mário colecionou em vida<br />

parecem gritar o sentimento de infinitude que ele anunciou em poema, além de, quem sabe, traduzir a<br />

ambição de multiplicidade de todo colecionador: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cincoenta...”. [Leia mais<br />

sobre a coleção formada pelo escritor no artigo “Na mala do turista aprendiz”, publicado no site.]<br />

40 Continuum Itaú Cultural<br />

Ao colecionismo se atrela a criação de um método. Colecionadores<br />

de livros fazem da leitura de catálogos de<br />

leilões uma obrigação, e bookdealers procuram os livros<br />

que lhes interessam.<br />

Homem de livros<br />

O bibliófilo brasileiro José Mindlin, falecido no ano<br />

passado, começou a colecionar palavras ainda criança:<br />

<strong>ao</strong>s 13 anos adquiriu uma edição rara do livro Discours<br />

sur L’Histoire Universelle, de Jacques-Bénigne Bossuet,<br />

um dos principais teóricos do absolutismo francês.<br />

Ao final da vida, Mindlin havia reunido um fantástico<br />

acervo de cerca de 40 mil obras, incluindo livros, manuscritos,<br />

relatos e iconografia, entre outros.<br />

Segundo Cristina Antunes, curadora da Biblioteca<br />

José e Guita Mindlin, em São Paulo, desde 1980, para<br />

o bibliófilo colecionar livros era uma paixão que decorria<br />

do prazer e do amor à leitura. Ela relembra<br />

que “Mindlin costumava classificar a biblioteca<br />

de indisciplinada, uma vez que muitos dos<br />

livros chegaram até lá em decorrência do<br />

gosto literário de seu dono. O processo<br />

da busca pelo livro<br />

certamente lhe era mais excitante do que ver o livro<br />

nas estantes de sua casa-biblioteca. Ainda assim, não<br />

ter determinado livro não era coisa que lhe tirasse o<br />

sono, de modo que essa obsessão se resume no que<br />

ele classificava de ‘loucura mansa’ ”.<br />

Ao colecionismo se atrela quase que automaticamente<br />

a criação de um método. E cada colecionador tem<br />

o seu: colecionadores de livros geralmente fazem da<br />

leitura de catálogos de leilões e de livreiros uma obrigação<br />

e muitos têm acordos com bookdealers para<br />

que estes procurem os livros que lhes interessam.<br />

Cristina Antunes sinaliza que esse não era o caso de<br />

Mindlin: “Ele mesmo procurava pelos livros que queria<br />

adquirir. Mas, pelo fato de ser mundialmente conhecido<br />

como colecionador, recebia informações e ofertas<br />

de livreiros, outros colecionadores ou proprietários de<br />

obras raras e especiais oriundos de todos os países.<br />

Mindlin costumava dizer que ‘você procura o livro e o<br />

livro procura você’ ”, conta ela.<br />

Participe com suas ideias 41


42<br />

Objeto não sacralizado<br />

O poeta paulistano Haroldo de Campos colecionava<br />

livros, bengalas e gibis do personagem Asterix.<br />

Quem conta é a pesquisadora Gênese Andrade,<br />

responsável pelo Centro de Referência Haroldo<br />

de Campos, situado na Casa <strong>das</strong> Rosas – Espaço<br />

Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em São<br />

Paulo: “Haroldo era acima de tudo um leitor. Então<br />

eu diria que era um leitor-colecionador. Ocorre que<br />

não reuniu livros para mantê-los como objetos intocáveis.<br />

Ele adquiria aqueles que lhe interessavam<br />

para suas pesquisas e reflexões. Mesmo livros raros,<br />

primeiras edições e obras artesanais eram<br />

tratados como material de trabalho, e carregavam<br />

suas anotações, demonstrando<br />

ter sido manuseados como os livros<br />

mais corriqueiros”.<br />

A biblioteca e o acervo de Campos residem na mesma<br />

instituição e são coordenados por Rahile Escaleira.<br />

A biblioteca caracteriza-se pela variedade e pelas marcas<br />

de leitura que os documentos trazem. São cerca<br />

de 20 mil volumes – a maioria deles lidos –, compostos<br />

de livros, periódicos, separatas, catálogos e guias,<br />

entre outros, além de coleções completas, caso de<br />

Signos, Debates e Estudos, to<strong>das</strong> da Editora Perspectiva,<br />

da qual o poeta foi colaborador.<br />

Gênese demonstra que o valor de uma coleção extrapola<br />

o simples objeto físico que a constitui: “Há um<br />

sabor especial em consultar os exemplares que pertenceram<br />

a Haroldo, ver o que destacou, como reagiu<br />

perante algumas obras. Suas marcas em papéis encontrados<br />

dentro dessas obras constituem marcas do<br />

tempo e do espaço em que ocorreu a leitura ou em<br />

que a obra foi adquirida”.<br />

Colecionando o abstrato<br />

Quem pensa que colecionar é matéria apenas para<br />

quem lida com o concreto deve se lembrar de que<br />

escritores colecionam palavras, imagens, histórias. É<br />

certo que para guardá-las, muitas vezes, colecionam<br />

cadernos, cadernetas, agen<strong>das</strong>. Mas nem sempre.<br />

Escritores colecionam outros escritores e escrever um<br />

poema ou um romance significa mergulhar de cabeça<br />

numa coleção abstrata feita de referências e escolhas<br />

adquiri<strong>das</strong> <strong>ao</strong> longo de uma vida.<br />

O poeta, ensaísta e editor gaúcho, radicado em São<br />

Paulo, André Dick nunca colecionou objetos no sentido<br />

estrito do termo. Autor dos livros Grafias (Instituto<br />

Estadual do Livro e Corag, 2002) e Papéis de Parede<br />

(7Letras/Funalfa Edições, 2004), ele pondera: “Nunca<br />

cheguei a exatamente colecionar ou fazer listas de<br />

imagens – no entanto, de algum modo, é uma coleção<br />

delas que acaba sustentando qualquer poesia.<br />

Creio que, de algum modo, todos os poemas sejam<br />

fragmentos de um grande poema”.<br />

O método de escrita do poeta, no entanto, revela organização,<br />

seleção e, por que não, persistência de um<br />

franco colecionador: “Costumo escrever em cadernos.<br />

Por meio de diversos fragmentos e rascunhos<br />

acabo concentrando material para selecionar<br />

o que seria interessante para algum escrito.<br />

Desse modo, os poemas ficam um tanto<br />

híbridos: não se sabe onde cada um<br />

começa ou termina”.<br />

Dick aproxima ainda o olhar colecionista do escritor<br />

<strong>ao</strong> do editor: “O escritor procura selecionar uma tradição,<br />

ou seja busca autores que possam lhe transmitir<br />

conhecimento. Com o editor, o caminho é parecido:<br />

escolher um texto consiste justamente em abrir caminhos<br />

de percepção não apenas para si mas para<br />

o leitor, que está interessado em descobrir autores<br />

e escolhas. Assim, o editor pode ser considerado um<br />

colecionador de histórias. E, nesse sentido, ele acaba<br />

sendo um criador”, conclui.<br />

Nossos antepassados certamente nunca imaginariam<br />

que ponto de refinamento a coleta de objetos alcançaria.<br />

No entanto, creio que aquilo que os movia e<br />

aquilo que nos move seja talvez a mesmíssima coisa:<br />

um sentimento de preservação, seja da <strong>memória</strong> <strong>das</strong><br />

coisas e dos lugares, seja de nós mesmos, da nossa<br />

vida, de quem somos e do que apreciamos.<br />

Participe com suas ideias 43


Encontro de colecionadores de postais publicitários, em São Paulo<br />

Várias pessoas, a mesma mania<br />

Colecionar sozinho ou em grupo? Algumas coleções têm em comum a<br />

tendência de gerar clubes e associações de colecionadores.<br />

Por Fernanda Castello Branco | Fotos André Seiti<br />

reportagem<br />

O homem coleciona desde a pré-história, quando começou a acumular objetos. O que era feito de forma<br />

solitária, por uma necessidade de sobrevivência, virou um hobby. E esse hobby pode unir em clubes ou<br />

associações pessoas com a mesma mania de juntar determinados objetos.<br />

Há quem prefira nem chamar de clube os grupos mais informais <strong>ao</strong>s quais pertence. “Somos apenas pessoas<br />

que têm a mesma afinidade por coleções”, explica Raquel Belchior, moradora de São Paulo, dona de 20 mil<br />

postais publicitários.<br />

Ela integra um grupo de colecionadores de postais, que costumava se reunir a cada três meses, mas atualmente<br />

se vê apenas uma vez por ano. “Participam de 30 a 35 pessoas, inclusive de outros estados”, conta<br />

Raquel, que organiza os eventos. “No começo, realizávamos no Centro Cultural São Paulo, mas depois fiz<br />

contato com umas lanchonetes. O mais legal é que é bem provável que se veja um garotinho de 8 anos<br />

trocando postais com um senhor de 70”, completa.<br />

Para a psicologia, essa cena é perfeitamente entendida. “A mania de colecionar é normal, comum a determina<strong>das</strong><br />

fases de desenvolvimento. Por exemplo: crianças colecionam papéis de carta, conchinhas, tampinhas<br />

de garrafa, álbuns de adesivos. Ao crescer, elas mudam os interesses: figurinhas, latinhas de cerveja<br />

de diferentes países, postais, caixinhas decora<strong>das</strong>, selos. Esse é um comportamento que pode perdurar ou<br />

modificar-se de uma hora para outra, sem problemas”, analisa Marina Vasconcellos, psicóloga formada pela<br />

PUC/SP, com especialização em psicodrama terapêutico.<br />

O problema não é a idade e sim<br />

saber diferenciar mania de colecionar<br />

de colecionismo. “Colecionismo ou compulsão<br />

por armazenamento é um dos sintomas<br />

do TOC (transtorno obsessivo compulsivo),<br />

em que a pessoa guarda coisas que, para os outros,<br />

parecem absolutamente dispensáveis e sem qualquer<br />

utilidade”, explica Marina.<br />

Unidos em nome da arte<br />

Uma forma de incentivar o surgimento de colecionadores<br />

é proposta pelo MAM, tanto no Rio de Janeiro<br />

quanto em São Paulo. Na capital paulista, seus clubes<br />

de colecionadores começaram nos anos 1980.<br />

Atualmente, o museu tem clubes de gravura, fotografia<br />

e design. Os sócios pagam uma anuidade que vai<br />

de 3 mil reais (fotografia e design) a 3.400 reais (gravura)<br />

e recebem, a cada ano, cinco obras concebi<strong>das</strong> por<br />

artistas selecionados pelos curadores. Os trabalhos<br />

saem com tiragens de cem exemplares e passam a<br />

integrar o acervo do museu.<br />

No total, são 275 sócios: 100 de fotografia, 100 de gravura<br />

e 75 de design, clube criado em 2010. Como o<br />

número de sócios é limitado a cem – e eles têm preferência<br />

na hora de renovar sua participação anual –,<br />

desde 2009 há uma fila de espera com 160 nomes.<br />

Sobre o perfil dos colecionadores, Fátima Pinheiro,<br />

coordenadora dos clubes, conta que é variado.<br />

“Geralmente, as pessoas têm um nível social e cultural<br />

elevado ou em ascensão, mas as profissões são<br />

diversas: médicos, advogados, fotógrafos, arquitetos,<br />

jornalistas, adidos culturais etc.”, conta. “Em relação à<br />

idade, temos sócios de 23 a 70 anos. E temos homens<br />

e mulheres na mesma proporção”, completa.<br />

Cauê Alves, curador do clube de gravura, o mais antigo,<br />

ressalta que a confiança dos sócios nos curadores é<br />

grande. “Eles não opinam sobre os artistas a ser escolhidos.<br />

Sugestões sempre chegam, mas eles confiam no<br />

museu”, explica. “Nossa função é fazer com que cada<br />

integrante do clube, tendo contato com o sistema,<br />

passe a se interessar por adquirir mais obras”, afirma.<br />

“Colecionismo ou compulsão por armazenamento é um<br />

dos sintomas do TOC, em que a pessoa guarda coisas que,<br />

para os outros, parecem absolutamente dispensáveis e sem<br />

qualquer utilidade.” (Marina Vasconcellos)<br />

Rachel Belchior, com alguns de seus 20 mil postais, e Lelê Mak<strong>ao</strong>, segurando uma de suas 700 Hello Kitty<br />

44 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 45


Parte da coleção de Lelê Nak<strong>ao</strong> integrou, no ano passado, uma exposição da marca criadora da Hello Kitty<br />

A empresária Lelê Nak<strong>ao</strong> se apaixonou pela Hello Kitty em<br />

1996. Foi apelando para a internet que ela começou uma<br />

busca que durou três anos: um protetor de orelha com a<br />

carinha da personagem.<br />

Mantendo a tradição<br />

Enquanto uns preferem definir seus grupos como algo<br />

menos formal, há clubes de colecionadores que têm<br />

eleição de diretoria e estatuto. É o caso do Clube para<br />

Colecionadores de Veículos em Miniatura (CPCVM),<br />

criado em 2007 e com eleição de presidente a cada dois<br />

anos. “Temos 380 sócios e eles não pagam anuidade”,<br />

explica Alexandre Bruno, diretor financeiro da associação.<br />

“O que fazemos é apurar os custos dos encontros<br />

para poder ratear entre os participantes”, completa.<br />

Como esses encontros não acontecem sempre, os<br />

integrantes do CPCVM têm uma chance semanal de<br />

falar sobre suas coleções. Toda terça-feira, <strong>das</strong> 19h<br />

às 23h, acontece o Autoshow, no Anhembi, em São<br />

Paulo – evento para colecionadores de veículos em<br />

tamanho normal e em miniaturas. “Esse encontro é<br />

religioso”, conta Bruno. “Mantemos um jargão, que é<br />

‘família CPCVM´. Somos como uma família, unida pelo<br />

hobby”, define.<br />

Quando se fala em coleção, a filatelia é quase sinônimo.<br />

As coleções de selo ainda fazem nascer grupos<br />

tradicionais, organizados em sociedades e federações. A<br />

Sociedade Philatélica Paulista (SPP) existe desde 1919 e<br />

conta com 500 sócios, que pagam anuidade de 60 reais a<br />

300 reais. Eles se reúnem em uma palestra mensal, no último<br />

sábado de cada mês, e também em dois leilões por<br />

mês. “Nos sábados em que não temos evento, nós nos<br />

reunimos para o nosso bate-papo filatélico”, diz Reinaldo<br />

Basile Júnior, diretor administrativo da entidade.<br />

Com sede no Rio de Janeiro e foro administrativo<br />

em Brasília, a Federação Brasileira de Filatelia (Febraf )<br />

existe desde 1976 e reúne 44 clubes e associações<br />

filatélicas de todo o país. “Não podemos ser considerados<br />

um agrupamento de clubes, mas, sim,<br />

representantes dos interesses dos clubes e associações<br />

filiados que, por sua vez, representam<br />

os interesses dos filatelistas associados a<br />

eles”, define Marcelo Studart, presidente<br />

da Federação.<br />

Protetor de orelha<br />

Muito mais que facilitar a comunicação entre colecionadores,<br />

a internet gera clubes virtuais, causando uma<br />

mudança significativa na forma pela qual os colecionadores<br />

se agrupam a pessoas com o mesmo hobby.<br />

O professor Alfredo Manhães, de Macaé (RJ), coleciona<br />

brinquedos antigos nacionais e estrangeiros. E os<br />

grupos dos quais faz parte são todos virtuais. “Integro<br />

vários grupos on-line, fóruns e sites nacionais e estrangeiros”,<br />

diz. Apesar de participar deles, Alfredo também<br />

gosta de trocar informações com pessoas que não são<br />

associa<strong>das</strong>. “Nem todos usam a internet”, ressalta.<br />

A rede é tão útil para conectar colecionadores que atrai<br />

até quem optou por manter sua coleção de forma mais<br />

solitária, sem pertencer a grupo ou clube. A empresária<br />

Lelê Nak<strong>ao</strong> se apaixonou pela Hello Kitty em 1996 e, de<br />

lá para cá, acumulou cerca de 700 peças relaciona<strong>das</strong><br />

à personagem. E foi apelando para a internet que ela<br />

começou uma busca que durou três anos.<br />

“Levei todo esse tempo para encontrar um protetor de<br />

orelha com a carinha da Hello Kitty. Nesses três anos,<br />

Wando e sua coleção<br />

“coletiva”<br />

Provavelmente, a coleção mais popular do Brasil<br />

seja a de Wando. Ela começou, de certa forma, de<br />

uma ideia alheia: o cantor não faz parte de um<br />

grupo, mas é um grupo de fãs que alimenta o<br />

seu tão badalado acervo de calcinhas.<br />

As 17 mil calcinhas começaram a ser coleta<strong>das</strong><br />

depois do disco Tenda dos Prazeres, de 1990.<br />

“Uma calcinha parece uma tenda e, no lançamento<br />

do disco, distribuí algumas peças com<br />

meu nome gravado. Era uma ideia apenas para<br />

envolvi várias pessoas na busca e<br />

ficava horas na internet”, lembra Lelê,<br />

que acabou achando a tão sonhada peça em<br />

uma loja em Nova York, durante uma viagem.<br />

Fã-clube sem sede<br />

Se há um lugar que pode ser considerado a casa dos<br />

colecionadores, ele se chama fã-clube. E até mesmo o<br />

mais renomado fã-clube brasileiro, da banda mais famosa<br />

de todos os tempos, tem recorrido à internet para<br />

continuar na ativa. O Revolution, que tem um ca<strong>das</strong>tro<br />

de 9 mil fãs dos Beatles, além de um mailing geral com<br />

60 mil nomes, usa o e-mail para conectar os fãs.<br />

“Por causa <strong>das</strong> constantes viagens que faço para a<br />

Inglaterra, o Revolution não tem mais uma sede”, explica<br />

Marco Antônio Mallagoli, que criou o grupo em<br />

1979. “É a internet que facilita o contato com os sócios.”<br />

Mallagoli usa o e-mail para avisar os sócios sobre<br />

shows de ban<strong>das</strong> cover dos Beatles que considera<br />

boas. “O fã-clube não cobra anuidade nem mensalidade.<br />

O que fazemos é dar descontos nesses shows e<br />

eventos para quem tem ca<strong>das</strong>tro no site”, diz ele.<br />

promover o disco. Comecei a brincar dizendo<br />

que trocava uma nova por uma usada e passei a<br />

receber um número muito grande”, relembra.<br />

As calcinhas ficam guarda<strong>das</strong> no escritório do<br />

cantor e ele não se deixa fotografar com o acervo<br />

completo. “Pretendo fazer um show com to<strong>das</strong><br />

elas no cenário. Se isso for mostrado agora, perde<br />

o encanto e a curiosidade”, justifica.<br />

No cenário, sim. Como grife, não. “Se eu fizesse<br />

isso, perderia a fantasia”, diz o cantor que, a cada<br />

show, distribui cerca de 15 peças. Mesmo sem o<br />

projeto de montar uma grife, ele arrisca definir<br />

quanto vale disputar uma peça íntima com seu<br />

nome: “A mulher que não tem uma calcinha do<br />

Wando provavelmente não passou pela vida.”<br />

46 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 47


Série Encontros Inusitados, fotopinturas de Franklin Lacerda | imagens: acervo do artista<br />

Sequências e (in)consequências<br />

Produção seriada reforça vínculo entre artista e obra, além de estimular e<br />

facilitar a fruição dos trabalhos.<br />

Por Tatiana Diniz<br />

reportagem<br />

Quando a ilustradora Mariana Belém deu à luz, os seres em seus desenhos ganharam asas. Nasciam duas séries<br />

paralelas, Pássaros de Gente e Mulheres Ala<strong>das</strong>, com as quais, há três anos, a artista vem expressando os altos<br />

e baixos da experiência feminina. “São o reflexo da minha vida, da perda de liberdade que a maternidade me<br />

trouxe. Finquei os pés no chão, criei raízes, mas a cabeça e o desejo de liberdade voam no papel”, comenta.<br />

Com cores quentes, luz e força, Mariana faz eco à diversidade e à intensidade dos seus sentimentos. “Em apenas<br />

uma obra não conseguiria sintetizar o que vem aflorando em mim durante esse processo”, diz. Até hoje<br />

são mais de 20 desenhos, expostos pela primeira vez em setembro passado na coletiva 3 Lugares Diferentes,<br />

que aconteceu no Espaço Muda, no Recife.<br />

Sequência. Variação. Semelhança. Continuidade. Das pré-históricas cenas eróticas repeti<strong>das</strong> nas pinturas rupestres<br />

nordestinas às sete telas de girassóis pinta<strong>das</strong> pelo pós-impressionista holandês Vincent van Gogh, a execução<br />

seriada de obras marcou e marca as artes de todos os tempos. E se por um lado permite <strong>ao</strong> artista um envolvimento<br />

continuado com determinado estímulo criativo, por outro desperta a atenção dos colecionadores, que<br />

nas séries enxergam verdadeiros conjuntos de objetos de desejo. Mas nem tudo se resume à ideia de coleções.<br />

“A noção de objeto ‘colecionável’<br />

qualifica um resultado que alguns<br />

artistas rejeitam”, ressalta Luiz Guilherme<br />

Vergara, coordenador do curso de graduação<br />

em produção cultural do Departamento de<br />

Arte da Universidade Federal Fluminense, cofundador<br />

do Instituto Mesa e coordenador do Núcleo<br />

Experimental de Educação e Arte do MAM/RJ. De<br />

acordo com o especialista, a abordagem pode contribuir<br />

para a fruição. “As séries são jogos em que o próprio<br />

artista está construindo e desconstruindo uma<br />

gramática estética e cognitiva”, analisa. Ele lembra, porém,<br />

que há vários sentidos para a produção seriada e<br />

observa que ela se tornou constante na arte contemporânea.<br />

“Hoje, a maioria dos artistas desenvolve seus<br />

trabalhos como se fosse uma fluência criativa, com<br />

início, meio e fim. Muitas vezes, o início é bastante experimental,<br />

como algo ainda não gestado, sem que<br />

eles realmente saibam o que vai surgir”, descreve.<br />

“Entre as pulsações da criação, temos a oportunidade<br />

de ‘saltar’ de uma possibilidade a outra.” O comentário<br />

do artista visual Leopold Kunrath, de Porto Alegre,<br />

sobre sua série DesAparecido dialoga com o processo<br />

descrito por Vergara. No trabalho de Kunrath,<br />

o rosto de uma criança acompanhado da palavra<br />

“DesAparecido” é o ícone empregado no projeto seriado<br />

de ações artísticas.<br />

Ao mesclar técnicas como estêncil, colagem, ilustração,<br />

videoarte e intervenção urbana, Kunrath leva às ruas uma<br />

produção alinhada a conceitos emprestados da física<br />

quântica: “Para existir, toda matéria deve desaparecer por<br />

milionésimos de centésimos de segundo e reaparecer<br />

reorganizada”. Como “elétrons”, explica, seus trabalhos assumem<br />

“espaços intermediários do universo”. As imagens<br />

leva<strong>das</strong> a espaços públicos trazem em comum o ícone<br />

descrito acima, reproduzido em aplicações diversas.<br />

Bólides, bichos, naves<br />

Arte em série, no entanto, não deve ser necessariamente<br />

encarada como sinônimo de potencial artístico.<br />

“A busca pode ser desenvolvida em várias obras<br />

até que o artista descubra e dê por concluída aquela<br />

‘série’. Outros continuam reelaborando composições<br />

e novas estruturas que alimentam o vínculo criativo<br />

entre artista e produção: série, mas não produção em<br />

série”, enfatiza Vergara, para quem o risco <strong>das</strong> sequências<br />

é gerar acomodação, “fórmulas de sucesso”.<br />

Das cenas eróticas repeti<strong>das</strong> nas pinturas rupestres nordestinas<br />

às sete telas de girassóis pinta<strong>das</strong> por Van Gogh,<br />

a execução seriada de obras marcou e marca as artes de<br />

todos os tempos.<br />

Série DesAparecido, de Leopold Kunrath, técnica mista | imagens: acervo do artista<br />

48 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 49


Ainda assim, ele não<br />

tem dificuldades em apontar as séries<br />

que mais admira na arte contemporânea:<br />

“No Brasil, os cinecromáticos e as progressões<br />

de Abraham Palatnik; os bólides, de Oiticica; a série<br />

de bichos de Lygia Clark; os estudos sobre as<br />

rotações do quadrado, de Almir Mavignier; as monotipias<br />

sobre a boca de forno, de Carlos Vergara; as<br />

Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles; os<br />

dobráveis Des-mov-em, de Paulo Roberto Leal; a série<br />

de lonas de caminhão, de José Bechara; as naves<br />

de Ernesto Neto; e os plasmatios e sudários de José<br />

Rufino”, lista. Na cena internacional, “os autorretratos<br />

e retratos de Rembrandt; as cadeiras elétricas e as<br />

pinturas <strong>das</strong> sombras, de Andy Warhol; as diferentes<br />

variações conceituais de Sol Lewitt; e os quadrados de<br />

Joseph Albers”, completa.<br />

Baixe as calças!<br />

O deslocamento geográfico de uma ideia também<br />

alimenta a produção continuada. Barcelona, Berlim,<br />

Estocolmo, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Aix en<br />

Provence, Milão e Varsóvia são destinos para os quais<br />

Renata Faccenda já levou seu projeto En Bragas –<br />

performance itinerante e interativa na qual voluntários<br />

entram em uma cabine montada em espaço<br />

público para fazer uma foto polaroide de seu corpo.<br />

O enquadramento vai do umbigo à coxa e apenas<br />

uma condição é imposta pela artista <strong>ao</strong>s participantes:<br />

baixar as calças.<br />

Circulando pelo mundo com a cabine desde 2001,<br />

Renata gerou uma coleção com mais de 500 fotos. A<br />

série então passou de obra a matéria-prima, e outros<br />

produtos foram gerados. O primeiro foi um jogo da<br />

<strong>memória</strong> criado a partir de uma seleção de 25 imagens<br />

(também disponível em renatafaccenda.com/<br />

enbragas/bajate.html).<br />

Atualmente, a artista desenvolve a série inédita Casais<br />

Alheios: “São ampliações de pares imaginários, alheios<br />

entre si, unidos somente pela observação <strong>das</strong> fotos,<br />

por traços comuns ou totalmente díspares no tempo<br />

e no espaço”, conta. O trabalho de Renata ilustra o potencial<br />

de renovação implícito na produção seriada.<br />

Talvez por isso o formato chegue a ser adotado de forma<br />

deliberada e até conceitual por opção artística.<br />

Série En Bragas, fotografias de Renata Faccenda | imagens:<br />

acervo do artista<br />

Séries Pássaros de Gente e Mulheres Ala<strong>das</strong>, ilustrações de Mariana Belém | imagens: acervo do artista<br />

Para o pintor Rinaldo, esse potencial é evidente e capaz<br />

de otimizar os resultados. “Os desenhos e pinturas<br />

dentro do contexto seriado organizam meu potencial<br />

criador e definem melhor os objetivos da mostra”, comenta.<br />

A partir dessa percepção, há dois anos, ele desenvolve<br />

a série O Olhar Contorcido pela Úmida Razão.<br />

A abordagem vai bem além da prática sequencial,<br />

gerando uma espécie de “série de séries”: “A cada cinco<br />

desenhos em técnica mista sobre papelão, realizo<br />

uma pintura de 200 cm x 150 cm”, conta. Toda série é<br />

composta de 11 pinturas e 55 desenhos e deverá ser<br />

exposta em breve.<br />

Em alguns casos, a experimentação em torno de determinado<br />

suporte ou material é o fio condutor do surgimento<br />

de uma sequência de peças. Leda Catunda,<br />

por exemplo, concebeu obras com base em uma série<br />

de camisetas brancas, enquanto Vik Muniz dedicou<br />

parte de sua obra a uma série feita com sucata. Outras<br />

vezes, um estímulo imagético se torna a força geradora<br />

de várias peças. Foi o caso de Louise Bourgeois, que<br />

espalhou pelo mundo esculturas de aranhas gigantes,<br />

a maior delas com 9 metros de altura. Os trabalhos homenageavam<br />

a mãe da artista, por ela descrita como<br />

inteligente e protetora, e o ofício da tapeçaria transmitido<br />

por gerações como negócio da família.<br />

Encontros inusitados<br />

No sertão do Cariri cearense, uma investigação<br />

realizada por Franklin Lacerda em torno<br />

da tradicional atividade de fotopintura de retratos<br />

desvendou <strong>ao</strong> artista um universo ainda pouco<br />

conhecido. “Percebi que existe uma forte presença<br />

do imaginário local no processo de elaboração dos<br />

retratos pintados. Muitas vezes, o produto final corresponde<br />

a desejos não realizados dos retratados”, conta.<br />

Com esse mote, o artista resolveu explorar a fotopintura<br />

como “magia” capaz de realizar desejos. Há dois anos,<br />

ele desenvolve uma série de “fotografias-encontros”<br />

reunindo personagens que nunca se encontrariam<br />

na realidade. Absurdos à primeira vista, os retratos do<br />

impossível fazem parte da tradição local do Cariri: “Os<br />

clientes sempre buscaram os fotopintores na tentativa<br />

de recriar encontros com entes queridos ou com o<br />

Padre Cícero, por exemplo”, explica Franklin.<br />

Para ele, a série não tem prazo de validade: “Ainda tem<br />

muito pano pra manga”, observa. A importância da<br />

continuidade reside em assumir que o trabalho está<br />

em constante transformação. “Técnicas tão rústicas e<br />

em processo de desaparecimento por causa <strong>das</strong> novas<br />

tecnologias se renovam por esses fatores. A semelhança<br />

entre o que faço e o que os retratistas populares fazem<br />

está exatamente nesse exercício de busca pelo aprimoramento<br />

da imagem. E acaba aí também”, conclui.<br />

50 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 51


Mais de 12 mil brinquedos guardados em um apartamento na Vila Mariana, em São Paulo<br />

Ordem no c<strong>ao</strong>s<br />

Para valorizar e preservar uma coleção, seja do que for, há regras básicas<br />

como conservação e catalogação.<br />

Por Carlos Costa | Fotos André Seiti<br />

reportagem<br />

Uma coleção organizada adquire outro status. Seja de selos, brinquedos ou arte. Catalogação, conservação,<br />

prevenção do manuseio danoso, restauração dos itens danificados. Essas são algumas <strong>das</strong> diretrizes que o colecionador<br />

deve seguir se pretende que sua coleção tenha vida longa e seja valorizada. Estabelecer um recorte,<br />

desenvolver uma curadoria, perceber similaridades e mensagens entre os componentes do acervo e primar<br />

pela estética na hora de expô-los são outras normas importantes. Mas como cumprir essas determinações?<br />

Nos museus, equipes de profissionais desempenham essas funções. Restauradores, curadores e museólogos<br />

– profissionais especializados em catalogar, pesquisar, reparar e conservar – garantem que as coleções<br />

tenham valor histórico, credibilidade, consigam sobreviver à ação contínua do tempo e, por meio de publicações<br />

e exposições, possam chegar a novos olhos.<br />

Atualmente, diversos desses profissionais ampliaram a área de atuação e organizam e mantêm coleções particulares.<br />

São as leis de oferta e procura do mercado, que já deram até nome a esses conselheiros pessoais<br />

de coleções, os personal collectors.<br />

Aida Cordeiro é personal collector<br />

e atua exclusivamente como conselheira<br />

e mantenedora de coleções priva<strong>das</strong><br />

há cerca de dez anos. O trabalho nasceu da<br />

experiência em museus. Na década de 1980, ela<br />

catalogou as obras do MAC/USP. Era o momento<br />

anterior à revolução digital. Nos anos 1990, digitalizou<br />

o acervo do MAM/SP.<br />

As experiências permitiram que a profissional repetisse<br />

a tarefa em outras coleções, e, enquanto pesquisava<br />

sobre o pintor Alfredo Volpi para um catálogo, surgiu<br />

seu primeiro cliente. Assim como os que se sucederam,<br />

era uma pessoa de alta condição social que, <strong>ao</strong> longo<br />

dos anos, foi acumulando obras de arte e, em um dado<br />

momento, se viu perdido em meio à coleção. Não sabia<br />

mais o que possuía, onde estava e em que condições.<br />

Para ordenar o c<strong>ao</strong>s, Aida usou a fórmula dos museus<br />

e o primeiro passo foi fazer um inventário. Identificar,<br />

medir, fotografar, examinar e organizar a coleção em<br />

um catálogo. “Trato tudo como um objeto. Meço altura<br />

e largura, pesquiso sobre a obra em livros e catálogos, e<br />

confirmo informações sobre autoria, data, procedência.”<br />

Aida voltou às grandes instituições, convidada para<br />

informatizar a Coleção Nemirovsky, da qual algumas<br />

peças têm exibição permanente na Pinacoteca do<br />

Estado de São Paulo, e a coleção de arte da Fundação<br />

Padre Anchieta. E os clientes não paravam.<br />

Assim, ficou conhecida no circuito fechado dos colecionadores<br />

e passou a se dedicar exclusivamente a eles.<br />

Mantém atualmente uma dezena de clientes. Trabalha<br />

apenas com uma auxiliar e uma fotógrafa e desconversa<br />

sobre o valor do trabalho. “Os grandes colecionadores<br />

de arte não vivem na nossa realidade. É outro<br />

mundo. Por exemplo, os catálogos que faço para eles<br />

têm um modelo cujo álbum de couro custa 2 mil reais<br />

e cada folha impressa em papel fotográfico sai por 10<br />

reais. Há obras que valem mais que um apartamento.”<br />

Além de obras de arte, catalogou para seus clientes<br />

relógios, prataria, louça, tapetes, objetos de decoração<br />

antigos. Uma coleção, comenta, começa a existir a partir<br />

do 51º item. Mas desde o início a catalogação é importante.<br />

Assim como a conservação: deve-se sempre<br />

estar ciente de que os grandes inimigos dos objetos<br />

são a luz direta – natural ou artificial – e a umidade.<br />

Atualmente, diversos profissionais ampliaram a área de atuação<br />

e organizam e mantêm coleções particulares. São as leis de<br />

oferta e procura do mercado, que já deram até nome a esses<br />

conselheiros pessoais de coleções, os personal collectors.<br />

Para ordenar uma coleção, usa-se a mesma fórmula dos museus. O primeiro passo é um inventário<br />

52 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 53


A manutenção consome diariamente horas de trabalho: um artesanato constante Dicas de conservação não são simples. O conselho é manter objetos em boas condições<br />

No processo de catalogação, passa<br />

um pente-fino na coleção e avalia molduras,<br />

armazenamento, exposição. Pouco a<br />

pouco, peça a peça, identifica tudo. Obras em<br />

más condições são envia<strong>das</strong> para restauro. As que<br />

estão em situação de risco seguem para uma melhor<br />

condição de armazenamento. As compras passam a<br />

ser registra<strong>das</strong>, com todos os dados importantes, e a<br />

arrumação da coleção recebe atenção especial.<br />

Assim, a personal collector ensina sobre artistas, movimentos<br />

e estilos e aconselha a valorização da coleção por<br />

meio de aquisição de peças importantes para o recorte<br />

do acervo, além da democratização do acesso às obras<br />

por meio de exposições, catálogos e aparições em revistas,<br />

livros. “A circulação da obra de arte valoriza seu preço<br />

e é muito importante. Tento mostrar isso <strong>ao</strong>s colecionadores.<br />

Também cuido da parte de seguro, embalagem e<br />

transporte, para garantir que não ocorram danos.”<br />

Coletânea de brinquedos<br />

Jean Scuto coleciona brinquedos há 12 anos. Segundo<br />

a esposa, Jane, o hábito começou por prescrição médica.<br />

Scuto era um publicitário estressado e com úlcera,<br />

por isso seu médico o aconselhou a encontrar um hobby.<br />

Ele pensou sobre o tema alguns dias, até se deparar<br />

com um carro de brinquedo, de lata, fabricação japonesa,<br />

preto e no modelo dos carros de polícia de filmes, à<br />

venda. Era o mesmo modelo que tinha amado em sua<br />

infância. Comprou e descobriu um mundo mágico, de<br />

lembranças e emoções; a infância não estava perdida.<br />

Conheceu outras pessoas que colecionavam brinquedos,<br />

que buscavam em desespero algum item antigo.<br />

Especializou-se no tema. Ensinou o hobby à esposa,<br />

alugou um apartamento para guardar as peças e deixou<br />

a publicidade para viver da e para a coleção.<br />

Hoje, em um andar de um edifício na Vila Mariana,<br />

em São Paulo, guarda mais de 12 mil brinquedos.<br />

Algumas bonecas vende por mil reais. Sabe de cor<br />

ano, fabricante, modelo. Discorre sobre história contemporânea<br />

relacionando os materiais da indústria de<br />

brinquedos, os mais vendidos, os jogos, a roupa <strong>das</strong><br />

bonecas. Scuto aluga peças para gravações de filmes<br />

e propagan<strong>das</strong>; monta exposições e sonha, um dia,<br />

poder dar à coleção um local digno de exposição: “O<br />

museu de brinquedos que a cidade ainda não tem”.<br />

E a manutenção do acervo consome, diariamente, horas<br />

de trabalho. Lavar bonecas, refazer penteados, cuidar<br />

dos olhos, <strong>das</strong> roupas. Consertar mecanismos de<br />

movimentos e emissão de sons. Um artesanato constante.<br />

Dessa forma, a loja é também um hospital. O<br />

casal desenvolveu técnicas específicas e faz com que<br />

bonecas voltem à vida e carrinhos a andar. E, como<br />

regra para manutenção, apontam dois conselhos que<br />

todo adulto deve ter ouvido na infância: não molhe<br />

nem guarde com as pilhas.<br />

Restauro e conservação<br />

Sílvia Ferreira é restauradora de obras de arte. Trabalha<br />

para instituições e colecionadores privados há mais<br />

de 20 anos. Atualmente, observa que as coleções priva<strong>das</strong><br />

demandam mais trabalho. “Os colecionadores,<br />

geralmente, têm maior poder aquisitivo e podem investir<br />

em mais manutenção.”<br />

Segundo ela, o restauro implica a educação do colecionador.<br />

Depois de ver uma obra restaurada e receber<br />

os laudos que descrevem o processo, o colecionador<br />

abre os olhos para uma série de detalhes. “Aprende<br />

o que é abaloamento e craquelê, a olhar o verso <strong>das</strong><br />

pinturas, a perceber as intervenções.”<br />

Dicas de conservação não são simples de prescrever.<br />

Segundo Sílvia, cada caso merece atenção específica.<br />

“Não adianta dizer que uma tela deve ser limpa com<br />

um objeto macio, como um pincel, porque, se tem ranhuras,<br />

mesmo um pincel seco pode causar danos.<br />

Meu conselho é que conservem em boas condições,<br />

em local seguro, e chamem um profissional para avaliar<br />

o estado da obra, sempre que necessário.”<br />

Sílvia explica que estar atento <strong>ao</strong> armazenamento<br />

evita diversos acidentes, frequentes com<br />

quadros que ficam atrás de uma porta ou<br />

na altura de um móvel, como uma cadeira,<br />

que, <strong>ao</strong> encostar-se<br />

à obra, arranha ou mesmo rasga a tela. Outra dica é<br />

estar seguro de que o suporte na parede é apropriado<br />

<strong>ao</strong> peso e às dimensões da tela ou a escultura não<br />

está na passagem, sujeita a tromba<strong>das</strong> dos transeuntes.<br />

Em outras palavras, bom senso.<br />

Uma lenda que combate é que o restauro desvaloriza<br />

a obra. Segundo ela, o restauro bem feito tem efeito<br />

contrário. Por exemplo, acaba de restaurar uma tela<br />

comprada num leilão na Inglaterra que estava coberta<br />

por verniz e tinha interferências que escondiam o<br />

nome do autor. Na limpeza, retirando cama<strong>das</strong> e recuperando<br />

cores, ela resgatou a assinatura e deu à tela<br />

novo valor de mercado.<br />

Ela traz na trajetória outras histórias de resgate arqueológico,<br />

como um quadro de Lasar Segall em que<br />

conseguiu restabelecer a data original e uma pintura<br />

da escola cusquenha, em que percebeu uma intervenção<br />

para cobrir um buraco na tela, interferindo<br />

na obra original. “Desenharam um crânio onde havia<br />

apenas uma parte de uma caveira. Mudaram a obra,<br />

que pude resgatar por meio de pesquisa.”<br />

O trabalho de restauro tem duração e valor relativos,<br />

de acordo com as condições da obra. Pode durar meses<br />

e valer mais que o quadro ou ser breve e custar<br />

pouco em relação <strong>ao</strong> valor da obra. Por exemplo, a<br />

tela do leilão inglês, que tinha lance inicial de 50 mil<br />

libras, teve restauro de 4 mil reais.<br />

54 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 55


Vestir o presente com a<br />

<strong>memória</strong> do passado<br />

Roupas, sapatos e acessórios podem significar muito mais do que<br />

objetos colecionáveis. Eles são farto material para análise histórica.<br />

Por Roberta Dezan<br />

O ato de colecionar é tão velho quanto o homem. Ele atende à sua necessidade de, através do inventário,<br />

do registro, arquivamento, catalogação e outras práticas análogas, ordenar a realidade excessivamente<br />

dispersa do mundo, e, no limite desse esforço ordenador, dar um sentido à própria existência.<br />

Frederico Morais, O Colecionismo no Sistema da Arte (Soraia Cals, 2003)<br />

A moda mantém relações diretas e distintas com a palavra “coleção”. O termo pode ser empregado para determinar<br />

o conjunto de peças de vestuário e acessórios acumulados no decorrer do tempo, com a intenção<br />

de preservar a história de uma época, deixar um legado para as gerações posteriores, ou até mesmo por<br />

razões unicamente afetivas, acaso, impulso repentino ou gosto pessoal. Alguns estudiosos do colecionismo<br />

chegam a falar em obsessão, ansiedade, sublimação, compensação autogratificante e coisas do gênero.<br />

Outra interseção entre os termos talvez soe mais interessante. Hoje, quando nos referimos <strong>ao</strong> conjunto de<br />

peças cria<strong>das</strong> por um designer para determinada estação, com variações de um mesmo tema, utilizamos a<br />

palavra “coleção” para designá-lo. Essa relação elucida a inserção de um modo coletivo de trajar e diz muito<br />

sobre a sociedade e os hábitos de consumo, como os conhecemos atualmente.<br />

56 Continuum Itaú Cultural<br />

reportagem<br />

Imagem da exposição Flávio de Carvalho Desveste a Moda Brasileira da Cabeça <strong>ao</strong>s Pés – MuBE | foto: Gustavo Zylbersztajn<br />

“As roupas dançam nos cabides e depois envolvem os corpos<br />

humanos num balé que aproxima, afasta e se recria todos<br />

os dias para embalar nosso modo de vida em direção <strong>ao</strong><br />

futuro.” (Carol Garcia e Ana Paula de Miranda)<br />

A coleção de moda é um fenômeno recente e surgiu<br />

somente com o estabelecimento dos costureiros em<br />

maisons. Com a chegada da máquina de costura, em<br />

1870, as casas puderam produzir mais rapidamente e<br />

oferecer uma “coleção de modelos” ainda inéditos. “A<br />

função do costureiro, em sua natureza, era apresentar<br />

algo à elite diferente do que havia caído no gosto<br />

popular. O objetivo era distinguir os privilegiados tradicionais<br />

daqueles novos ricos, emergentes. Hoje em<br />

dia a coisa é mais complexa, e há estilos cuja intenção<br />

é exatamente uniformizar. Sendo assim, analisar uma<br />

coleção de moda nos dá a ideia de conflitos de classes,<br />

de costumes. Falar de moda não é falar exclusivamente<br />

de roupas”, explica a especialista em autonomia da<br />

moda em espaços culturais Priscila Rezende.<br />

Instrumento de documentação<br />

Se a moda, como pensa o jornalista especializado no<br />

assunto Ricardo Oliveros, “é um dos mais importantes<br />

e confiáveis documentos para entender o espírito de<br />

cada tempo”, ilustrações, registros fotográficos, croquis,<br />

vídeos, catálogos e revistas e coleções de roupa<br />

e complemento desempenham a função fundamental<br />

de atuar como materiais históricos.<br />

Esses instrumentos documentais nos permitem analisar,<br />

refletir e entender melhor as rupturas sociais e<br />

estéticas que nos trouxeram até aqui. Dessa forma,<br />

podemos compreender com mais clareza e senso<br />

crítico o que passou, a realidade de hoje e o que<br />

ainda está por vir. “As roupas dançam nos cabides<br />

e depois envolvem os corpos humanos num balé<br />

que aproxima, afasta e se recria todos os dias para<br />

embalar nosso modo de vida em direção <strong>ao</strong> futuro”,<br />

observam Carol Garcia e Ana Paula de Miranda, em<br />

Moda É Comunicação: Experiências, Memórias, Vínculos<br />

(Anhembi Morumbi, 2005).<br />

Colecionismo x consumismo<br />

A consultora de moda Gloria Kalil reforça a importância<br />

de diferenciar colecionismo de consumismo.<br />

“Normalmente colecionadores de moda são profissionais<br />

da área, pois têm como intenção primordial<br />

conservar peças representativas, símbolos de vira<strong>das</strong><br />

históricas, de transições, como no caso dos<br />

tailleurs de jérsei de Coco Chanel e de peças de<br />

Yves Saint Laurent. Uma mulher que compra<br />

cem pares de sapatos numa única<br />

temporada está mais para<br />

Participe com suas ideias 57


consumista do que para colecionadora”, enfatiza. O autor<br />

e professor de história da moda João Braga dá outro<br />

direcionamento à questão <strong>ao</strong> dizer que “com certeza<br />

existe uma diferença entre alguém que compra diversos<br />

pares de sapatos para consumir numa estação e um<br />

colecionador convencional. Mas se essa pessoa guarda<br />

esses sapatos com o intuito de criar uma <strong>memória</strong> já<br />

podemos falar em colecionismo, e caso ela nem os use<br />

temos o colecionismo propriamente dito”, acredita.<br />

Para Adolpho Leirner, que soma <strong>ao</strong> seu acervo diversas<br />

obras de arte de alto valor cultural e agregado, “todo<br />

colecionador reúne, em doses iguais, amor, paixão, descobertas,<br />

procura incessante, critério e racionalidade”.<br />

Colecionar é um prazer individual, uma relação de afetividade<br />

com determinados objetos. Prazer que se amplia<br />

e se renova enormemente cada vez que a coleção<br />

é exposta. “O ato de colecionar está ligado a uma conduta,<br />

a uma postura do universo do luxo, independentemente<br />

da natureza da coleção, pois está relacionado<br />

sempre <strong>ao</strong> desejo e não à necessidade. Ele envolve<br />

também um aspecto de raridade, de escassez, pois o<br />

colecionador sai à caça e costuma gastar um dinheiro<br />

considerável por aquilo que deseja”, completa Braga.<br />

Imagem da exposição Flávio de Carvalho Desveste a Moda<br />

Brasileira da Cabeça <strong>ao</strong>s Pés – MuBE | foto: Thelma Vilas Boas<br />

Para além da coleção<br />

Apesar de sua coleção não se enquadrar como algo<br />

que será fruto de estudos e análises complexas daqui a<br />

alguns anos, a mestra em ecologia e voraz consumidora<br />

de esmaltes Camila Zatz encontrou uma maneira de<br />

expor e tornar seu hobby relevante para outras pessoas:<br />

começou a escrever no blog Loucas por Esmalte.<br />

Com aproximadamente 12 mil acessos únicos por dia,<br />

o blog é escrito por Camila e mais duas colaboradoras,<br />

que testam produtos, mostram novas técnicas, discutem<br />

tendências e, claro, mostram suas coleções. As<br />

novas tecnologias possibilitaram às práticas individuais<br />

uma mudança de caráter e dimensão, tornando-as<br />

muito mais abrangentes. O veículo permitiu às colecionadoras,<br />

que juntas somam mais de 2 mil vidrinhos<br />

coloridos, dividir com o leitor algo, até o momento,<br />

estritamente particular.<br />

Compartilhar suas descobertas lhes possibilitou conhecer<br />

diversas pessoas com os mesmos interesses e<br />

até lhes rendeu consultorias para marcas de cosméticos.<br />

“As empresas percebem que temos credibilidade<br />

como consumidoras e que nossas opiniões são leva<strong>das</strong><br />

em consideração por um grande público. Sendo<br />

assim, elas acabaram criando uma maneira de entrar<br />

em contato direto com seus clientes. Algumas<br />

mandam produtos para avaliarmos, outras nos<br />

convocam para participar de pesquisas internas<br />

ou até mesmo para bate-papos informais<br />

sobre o que gostaríamos de ver<br />

no mercado”, diz Camila.<br />

Capas da publicação francesa L’Officiel – exposição L’Officiel: 90 Anos de História da Moda – Espaço Iguatemi<br />

A blogueira acredita que, apesar<br />

de a moda mudar a cada estação, algumas<br />

pessoas têm essa vontade de colecionar<br />

(ou consumir em larga escala) peças<br />

voláteis e efêmeras, sem valor documental expressivo,<br />

pois “os modismos passam mais rápido<br />

que alguns gostos pessoais”. De fato, a moda é um<br />

poderoso instrumento de inserção humana no contexto<br />

cultural e amplia as possibilidades corpóreas para<br />

além dessas peças, pelo uso de roupas e adornos que<br />

o vento não leva e o tempo não consegue apagar.<br />

Moda de museu<br />

Os museus são o desdobramento lógico <strong>das</strong> coleções<br />

de arte. À medida que crescem, elas passam a exigir<br />

espaços cada vez maiores e tecnicamente adequados<br />

e pessoal especializado, além de recursos humanos<br />

e financeiros que já não podem ser suportados e/ou<br />

administrados por seus proprietários.<br />

As roupas podem exigir mais empenho para a conservação<br />

do que muitas obras de arte – com exceção de algumas<br />

contemporâneas cria<strong>das</strong> com materiais diversos<br />

–, pois tecidos são perecíveis e não costumam resistir<br />

tão bem à ação do tempo. “O segredo do colecionismo<br />

é ter e manter, e ainda não há técnicas adequa<strong>das</strong> para<br />

conservar algumas peças de vestuário. As feitas de elastano,<br />

por exemplo, muito usa<strong>das</strong> nos anos 1980, possuem<br />

borracha na composição. Com o tempo o tecido<br />

endurece e vira pó. Ainda não se sabe <strong>ao</strong> certo como<br />

preservar essas roupas”, observa o professor Braga.<br />

Mesmo inspirando muitos cuidados e dividindo a opinião<br />

de especialistas, que divergem quanto <strong>ao</strong> fato de<br />

a moda poder ou não ser encarada como arte – devido<br />

à sua relação indissociável com o mercado –, esse<br />

tipo de coleção está gradualmente figurando no centro<br />

de alguns museus e galerias, mesmo não havendo<br />

políticas públicas adequa<strong>das</strong> com o compromisso de<br />

preservação da <strong>memória</strong> dos vestíveis.<br />

No mês de novembro de 2010, em São Paulo, três<br />

exposições com focos diferentes, porém complementares,<br />

foram a prova de que a moda está finalmente<br />

sendo entendida como cultura. A intenção comum<br />

era demonstrar por meio de capas de revista (L’Officiel:<br />

90 Anos de História da Moda), vídeos, croquis e figurinos<br />

(individual do estilista Conrado Segreto), fotografias<br />

de Bob Wolfenson, Gui Paganini e Klaus Mitteldorf,<br />

e de estudos pioneiros de Flávio de Carvalho (Flávio de<br />

Carvalho Desveste a Moda Brasileira da Cabeça <strong>ao</strong>s Pés)<br />

o transitório, o efêmero, o contingente capaz de gerar<br />

grandes inovações, impor novas exigências, mudar a<br />

direção do olhar coletivo.<br />

É sempre possível reabrir algumas portas da arte de<br />

um passado recente ou remoto e, feito isso, estabelecer<br />

a continuidade entre o que aparentemente deixou<br />

de ser e o que ainda não é. A moda tem o poder<br />

de desempenhar papel semelhante, mas, “para se legitimar<br />

como cultura, ela precisa quebrar paradigmas,<br />

assumir uma importância, um campo cultural próprio<br />

e estabelecer suas relações com o todo, não apenas<br />

com o mercado”, conclui Priscila Rezende.<br />

58 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 59


Quem dá mais?<br />

As listas de favoritos ganham força e a brincadeira de hierarquizar as coisas<br />

cresce com as redes sociais. Tem gente que passa o dia pensando nos 5<br />

melhores filmes, nas 10 melhores músicas e nos 15 melhores romances. De<br />

onde vem essa mania?<br />

Por Mariana Sgarioni<br />

reportagem<br />

Responda rápido: quais os cinco filmes que mudaram sua vida? Os cinco melhores guitarristas de todos os<br />

tempos? Os cinco principais bordões de novela que caíram na boca do povo? Os cinco livros que mais prenderam<br />

sua atenção? E as cinco pessoas que mais fizeram você sofrer? Dá para passar o dia inteiro listando<br />

os cinco melhores e os cinco piores. Os “especialistas” na brincadeira garantem que a partir de um tempo é<br />

inevitável sair dos “top five” e passar para os 10 mais, até chegar à incrível marca dos 15. “É como um vício. De<br />

repente, você se pega listando até os cinco melhores entregadores de pizza dos últimos três meses”, brinca<br />

o publicitário carioca José Gomes Navarro, 42 anos, um listeiro convicto.<br />

O hábito – que se tornou mania compulsiva – começou, segundo Gomes, quando leu o livro Alta Fidelidade<br />

(Rocco, 1998), do inglês Nick Hornby, lá pelos idos de 1999. O personagem principal, Rob Fleming, é dono<br />

de uma loja decadente de discos em Londres e tem obsessão por listas. Ele acaba de tomar um fora da namorada,<br />

Laura, e logo no início do livro já despeja sua primeira lista, em que consta o nome <strong>das</strong> cinco ex-namora<strong>das</strong><br />

que mais o fizeram sofrer – lembrando que Laura não significava tanto assim para ele, portanto não<br />

merecia entrar nas cinco mais. Fleming se tornou um ícone pop de uma década, tanto que sua história virou<br />

filme e, mais tarde, no Brasil, tornou-se uma peça de teatro (A Vida É Cheia de Som e Fúria, 2000). “Muita gente<br />

diz que essas escolhas, listas e tais são coisas de americano, sempre querendo competir, mas, estranhamente,<br />

o livro que mais celebra a cultura pop em geral, e listas em particular, Alta Fidelidade, foi escrito por um inglês”,<br />

lembra Marcelo Costa, editor do site de música Scream & Yell (screamyell.com.br) e fã de Fleming.<br />

foto: André Seiti<br />

Formadores de opinião<br />

Mais de uma década depois, os seguidores de Fleming<br />

não deixaram sua história morrer. Se ele aparecesse hoje,<br />

certamente seria blogueiro e se ocuparia de listas virtuais<br />

– embora o autor Nick Hornby já tenha declarado que<br />

seria impossível escrever esse mesmo livro ambientado<br />

nos dias atuais, uma vez que as lojas de discos como a<br />

do personagem praticamente não existem mais.<br />

“É como um vício. De repente, você se pega listando até<br />

os cinco melhores entregadores de pizza dos últimos três<br />

meses.” (José Gomes Navarro)<br />

Isso porque a internet é campo fértil para a hierarquização<br />

de nossos gostos e desgostos – começando<br />

pelo ícone Favoritos <strong>das</strong> páginas dos navegadores.<br />

Nas redes sociais, a todo momento aparecem correntes<br />

na linha dos “mais” da temporada. Atualmente,<br />

uma corrente tomou conta do Facebook, por exemplo.<br />

O texto é sempre o mesmo, só variam os itens,<br />

como livros, filmes, músicas etc.:<br />

“Não demore muito para pensar sobre isso. Quinze<br />

livros que vão sempre estar com você. Liste os primeiros<br />

quinze que você lembra em não mais do que<br />

quinze minutos. Eles não têm que estar em ordem<br />

de importância. Marque quinze amigos, incluindo eu,<br />

porque eu estou interessado em ver quais livros meus<br />

amigos escolheram.”<br />

Como usuária do Facebook, recebi alguns desses convites.<br />

Confesso que achei tão difícil que não me animei.<br />

Costa, do Scream & Yell, explica essa dificuldade:<br />

“quase todo mundo se complica quando tem de relacionar<br />

numa ordem de importância aquilo de que<br />

mais gosta. É fácil entender. Afinal, listar os melhores<br />

quer dizer que algo ou alguém será preterido, o<br />

que é chato e, na maioria <strong>das</strong> vezes, inaceitável.<br />

E, principalmente, é difícil porque as coisas são<br />

diferentes umas <strong>das</strong> outras, o que nos faz<br />

olhar cada coisa do seu jeito, e não<br />

como concorrentes”.<br />

Frame do filme Alta<br />

Fidelidade, adaptado do livro<br />

homônimo, originalmente<br />

publicado em 1995<br />

60 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 61


No caso do convite do Facebook,<br />

eu me interessei em conferir a lista<br />

alheia, em busca de boas dicas culturais,<br />

mais do que em fazer a minha própria.<br />

Portanto, além de colocar as preferências em ordem,<br />

os listeiros acabam, de certa maneira, agindo<br />

como formadores de opinião. Sobretudo quando o<br />

ambiente é uma rede social – só no Brasil, as redes<br />

atraem 29 milhões de pessoas por mês, o que quer<br />

dizer que oito em cada dez brasileiros com acesso à<br />

internet estão em algum desses sites, como Facebook<br />

ou Orkut. “Tecnologicamente, um blog tem o mesmo<br />

poder comunicativo que a CNN”, lembra o sociólogo<br />

italiano Massimo di Felice, especialista em mídias digitais<br />

e professor da ECA/USP.<br />

O multimídia Marcelo Tas é um desses formadores de<br />

opinião que não escondem seu gosto em elencar os<br />

acontecimentos. Muita gente aguarda com ansiedade<br />

suas listas. No CQC, programa comandado por ele<br />

na TV Bandeirantes, sua trupe arranca gargalha<strong>das</strong><br />

com o quadro “Top Five”, que pinça, semanalmente,<br />

a dedo, as cinco escorregadelas mais diverti<strong>das</strong> exibi<strong>das</strong><br />

na televisão. Já entraram para essa disputada lista<br />

uma repórter entrevistando pombos e a apresentadora<br />

Hebe Camargo caindo do sofá. Recentemente,<br />

Marcelo Tas elegeu as dez piores manca<strong>das</strong> do Twitter.<br />

Entre elas, o tweet de Sasha, filha de Xuxa, em que<br />

ela escreveu “sena”, em vez de “cena”, e as palavras da<br />

cantora Sandy dizendo que as vítimas do terremoto<br />

no Haiti podiam esperar, uma vez que em terras brasileiras<br />

as coisas não iam tão bem. No sentido inverso,<br />

neste ano, Tas foi incluído na lista dos cinco humoristas<br />

mais influentes do mundo, elaborada pela revista<br />

americana Foreign Policy, especializada em política.<br />

Marcelo Tas apresenta<br />

o quadro “Top Five” do<br />

programa CQC | foto:<br />

divulgação<br />

Mas que mania é essa?<br />

Muitos dos listeiros juram que esse hábito surgiu<br />

bem antes de Rob Fleming. O relações-públicas<br />

Denis Pacheco, de 27 anos, autor do blog Topismos<br />

(topismos.blogspot.com), diz que foi influenciado,<br />

sim, pelo personagem, mas que sempre teve esse<br />

hobby. “Sempre tive o hábito de fazer listas, não necessariamente<br />

listas públicas. Usava-as como forma<br />

de me organizar para ver filmes e séries, ouvir discos<br />

ou hierarquizar que livros ia ler primeiro. Anotava em<br />

bloco de notas ou agen<strong>das</strong>, somente como forma de<br />

controle”, afirma. O estudante de engenharia Daniel<br />

Souza, que pretende lançar nos próximos meses um<br />

blog só com suas listas, concorda: “Desde criança eu<br />

arrumava minhas coleções numa ordem com os itens<br />

que mais gosto em cima da pilha”.<br />

Todo listeiro que se preze tem regras para incluir (ou excluir)<br />

algo de sua lista. A maioria diz que os critérios são<br />

principalmente emocionais – o item deve ter alguma<br />

ligação com sua história de vida e sua maneira de ver o<br />

mundo. “É preciso ter uma ligação emocional comigo.<br />

Nem sempre é fácil mensurar relevância, ainda mais<br />

quando se trata de cultura pop, por isso, como assino a<br />

lista, o maior critério que utilizo é mesmo minha relação<br />

Denis Pacheco, autor do blog Topismos: listas<br />

como forma de controle | foto: André Seiti<br />

com cada um dos objetos ali mencionados. Além do<br />

critério emocional, às vezes utilizo regras mais simples<br />

como cronologia ou ordem alfabética”, explica Pacheco.<br />

Segundo o listeiro José Navarro, esses critérios são tão<br />

rígidos que, em geral, uma lista demora dias (ou meses)<br />

para ser finalizada. “Outro dia me pediram para fazer a<br />

lista <strong>das</strong> dez melhores ban<strong>das</strong> dos anos 1990, no melhor<br />

estilo Rob Fleming. Pior: tive só uma semana para<br />

entregar. Passei dias sem dormir, incluindo e excluindo<br />

itens”, lembra ele, um fanático por rock. “Cheguei à conclusão<br />

de que dez era muito pouco para uma década.<br />

Quando terminei, já fui logo avisando: tenho certeza<br />

que vou querer mudar isso mais tarde.”<br />

Os amigos dos listeiros, como esse que pediu a seleção<br />

a Navarro, já estão acostumados e acabam entendendo<br />

esse estado volúvel constante, assim como essa mania<br />

de hierarquizar tudo o tempo inteiro. “Já fui chamado<br />

de obcecado algumas (várias) vezes. Costumava andar<br />

com uma planilha de Excel no celular onde listo os filmes<br />

a que assisti, os livros que queria ler e os discos<br />

que mais gostei no último ano”, resume Pacheco.<br />

Ele acredita que depois de tantos anos passou a<br />

ser mais compreendido por amigos e familiares.<br />

“Ou então eles aprenderam a fingir<br />

muito bem”, diverte-se.<br />

62 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 63


O “dentista e desdentado” Liêdo Maranhão<br />

O memorialista do povão<br />

Liêdo Maranhão: um dentista desdentado que, <strong>ao</strong> longo de 40 anos, reuniu<br />

uma coleção de mais de 30 mil peças e histórias do povo.<br />

Por Silvia Bessa | Fotos Ricardo Labastier<br />

perfil<br />

Tem dezenas de missais em brochura austeros; réplicas de livros de catequese com sacanagens. Recordatórios<br />

de mais de mil pessoas mortas, centenas de cartões-postais, um sem-número de cordéis, assim como uma<br />

máquina enorme de madeira rústica e pesada para fabricar os tais folhetos. Edições do almanaque publicitário<br />

Biotônico Fontoura, da década de 1940, com a deliciosa narrativa do caboclo Jeca Tatuzinho, inspirado em<br />

personagem criado por Monteiro Lobato, para prevenir a doença do amarelão. Tem. “Se você reunir todos os<br />

best-sellers do Brasil, para mim, não dá um exemplar desse”, diz o proprietário do relicário, Liêdo Maranhão<br />

– dentista por formação; colecionador de objetos, expressões e costumes populares por devoção. “É uma<br />

beleza...”, admira o senhor de 85 anos. Parece saborear o patrimônio enquanto repete a frase preferida, seguida<br />

por uma sonora risada que mostra a boca banguela.<br />

“Sou dentista e desdentado. É meu marketing”, explica Liêdo, o memorialista do povão. A imagem do doutor<br />

banguela ficou mais próxima daqueles que, <strong>ao</strong> longo de 40 anos, lhe ensinaram e estimularam a preservar<br />

nas estantes e nas paredes as lembranças do tempo e de quem nele esteve. Sua coleção acumula 30 mil<br />

itens, com personalidade e passado notáveis.<br />

Amostras da Revista do Rádio<br />

dos anos 1950, com Emilinha Borba<br />

e Nelson Gonçalves formosos como nunca,<br />

ele também tem. Calendários da folhinha<br />

dos idos de 1967, panfletos com a programação<br />

do extinto cinema Art Palácio, no Recife (PE), fotografias<br />

do galã Tyrone Power tem. “Esse rapaz era o<br />

‘ai, Jesus’ <strong>das</strong> mulheres. Eu levava a namorada para<br />

o cinema e tinha de ir uma acompanhante. Chegava<br />

lá, a moça ficava com ‘ai, Jesus’ por Tyrone. Não levei<br />

mais.” E livros de receitas afrodisíacas para melhorar a<br />

potência masculina e fórmulas de remédios fitoterápicos<br />

para dezenas de enfermidades tem também.<br />

De tudo, a mais original: a coleção da história oral do<br />

povo nordestino. Registrada pelo ainda pesquisador,<br />

fotógrafo, escultor e antropólogo formado pela rotina<br />

da persistência, Liêdo Maranhão, em 31 diários. Foram<br />

escritos a próprio punho, com relatos garimpados depois<br />

de praticar a ouvidoria nas ruas durante dez anos.<br />

A história oral do Nordeste só Liêdo tem.<br />

Joe Gould brasileiro<br />

Com essa coletânea de diários, ele concretizou o sonho<br />

que o americano Joe Gould não conseguiu realizar.<br />

Conhecido boêmio de Nova York dos anos 1930 e<br />

1940, foi personagem do livro O Segredo de Joe Gould,<br />

de Joseph Mitchell (Cia. <strong>das</strong> Letras, 2003). Joe passou<br />

a vida tentando colher fragmentos do cotidiano – “a<br />

maior e mais importante história oral da humanidade”,<br />

prometia, orgulhoso.<br />

Liêdo perambulou diariamente pelo bairro de São José,<br />

no Recife, entre os anos 1960 e 1970. Tornou-se amigo<br />

de camelôs, prostitutas, cantadores, ambulantes vendedores<br />

de remédios, de ervas. Prestava atenção nas<br />

frases, decorava-as, corria para um lugar reservado, a<br />

Igreja da Penha, ali pertinho, e as colocava no papel.<br />

Amostras da coleção que conta com mais de 30 mil itens<br />

“Gosto de andar como merda na cheia, sem fazer planos”,<br />

revela. “Fico observando uma coisa, outra, ouvindo<br />

pedaços de conversas e, às vezes, faço entrevistas.<br />

Quando iniciei esse negócio, começou um boato do<br />

povo de que estava ca<strong>das</strong>trando o pessoal para mandar<br />

para as obras da Transamazônica”, lembra o homem de<br />

ouvidos e olhos indiscretos. Liêdo permanece na ativa:<br />

“Há pouco, ouvi alguém dizendo, de gozação, que o<br />

pastor estava comendo a aleluia da irmã. São expressões<br />

que marcam uma época. Não é uma beleza?!”<br />

Como Gould, Liêdo andava (e ainda anda) para cima<br />

e para baixo ouvindo o povo da cidade dele. O pernambucano<br />

escreveu à mão, com caneta, quase 4 mil<br />

linhas. A partir dos “diários de campo” – como ele os<br />

rotula – publicou 13 livros. Tudo o que colheu nas ruas,<br />

de palavras àquilo que seria quinquilharia no parecer<br />

do desinteressado, está no seu acervo. Ele guarda os<br />

diários com outras dezenas de coleções num espaço<br />

bem cuidado nos fundos da sua residência em Bairro<br />

Novo, Olinda, onde mora há 50 anos. O ambiente se<br />

64 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 65


transformou em algo entre museu e galeria de arte<br />

(sim, ele possui ainda muitos quadros de pintores famosos<br />

de Pernambuco, a exemplo de João Câmara,<br />

Bajado e José Cláudio). Lá, funciona o Memorial da<br />

Cultura Popular. Dos 30 mil itens, há 15 mil cópias de<br />

fotografias. A maioria clicada por Liêdo: “Fui fazendo<br />

<strong>ao</strong>s poucos quando via alguém ou alguma coisa interessante.<br />

Só ando a pé ou de ônibus. Encostei o carro<br />

porque ele individualiza muito as pessoas”.<br />

“A coleção dele é única”, afirma Marcos Galindo Lima,<br />

doutor em história, professor da UFPE, biblioteconomista<br />

e responsável pelo projeto de digitalização do<br />

acervo de Liêdo. Ele lança uma previsão: “Ainda servirá<br />

para muitos estudos sociológicos e antropológicos”.<br />

Oitenta por cento do trabalho de digitalização já foi<br />

concluído, com recursos obtidos na Petrobras. “O que<br />

caracteriza e diferencia a coleção de Liêdo é que ele<br />

faz um registro <strong>das</strong> pessoas. Por isso, o título de ‘escriba<br />

do povo’ é a melhor definição que deram a ele”,<br />

considera Marcos Galindo.<br />

Para Liêdo não faltam adjetivos. “É a maior autoridade <strong>das</strong><br />

ruas do Recife”, já disse o diretor do Centro de Pesquisa<br />

Luso-Brasileira da Universidade de Sorbonne, em Paris,<br />

Raymond Catel. “Liêdo Maranhão é um dos maiores conhecedores<br />

da literatura de cordel do Nordeste”, avaliza<br />

o romancista Ariano Suassuna: “Com uma particularidade:<br />

enquanto todos nós, estudiosos como Diéges<br />

Júnior ou simples curiosos como eu, conhecemos ou<br />

vemos os folhetos como um bando de eruditos de gabinete,<br />

Liêdo vive e convive com todo o seu estranho,<br />

pobre, vaticinante, mágico e duro mundo”.<br />

Assim foi o princípio<br />

A paixão e a coletânea dos folhetos literários populares<br />

tiveram início em 1967, quando ele se embrenhou<br />

pelas estra<strong>das</strong> do Nordeste para conhecer mais o cangaço.<br />

O dentista quis fazer o que considerava ainda<br />

por ser feito no Brasil, no Nordeste, em Pernambuco,<br />

no Recife. A ideia de se misturar com o povo e colecionar<br />

tudo o que era pouco valorizado ou excluído<br />

surgiu numa viagem à Espanha. Na década de 1960,<br />

graduado em odontologia e comunista ligado <strong>ao</strong><br />

Movimento de Cultura Popular, resolveu viajar pela<br />

Europa. Percorreu 11 países em<br />

três anos – de carona. Passou pelo<br />

Palácio de Alhambra, em Granada, e soube<br />

do impulso que o americano Washington<br />

Irving (1783-1859), visionário que escreveu a novela<br />

Cuentos de la Alhambra, em 1829, após uma<br />

imersão na região, havia dado para ajudar a transformar<br />

o palácio numa atração turística. “Quando você<br />

volta, fica mais brasileiro. Vi que estava tudo por fazer”,<br />

conta. Mãos à obra. “Quando cheguei à praça do<br />

Mercado São José, vi meu Palácio de Alhambra”.<br />

A partir daí, vieram as visitas rotineiras à região do mercado,<br />

os diários, o garimpo de relatos, a observação<br />

dos hábitos e a coleta de objetos: da caixa de fósforos<br />

coberta por crochê cor-de-rosa <strong>ao</strong> pedaço de ferro<br />

contorcido. Porque até ferro-velho, colhido no centro<br />

do Recife, ele resolveu colecionar. “Para preservar a<br />

<strong>memória</strong> arquitetônica”, argumenta. “Visitava tudo que<br />

era ferro-velho. Gostava muito do de seu João, na Rua<br />

<strong>das</strong> Águas Verdes. Depois ele inflacionou porque um<br />

dia levei um catálogo de um prêmio que ganhei. Seu<br />

João, sabido que só, soltou esta”, conta Liêdo com sorriso<br />

no rosto: “Perguntei a ele quanto custava tal peça.<br />

Ele olhou para mim e disse: ‘Na mão do senhor, sei não.<br />

Não quero nem dar preço’ ”. Liêdo conta e, logo em<br />

seguida, ri de si mesmo. Ou dos outros. Ou dos dois.<br />

Cada peça de ferro-velho, quadro afixado na parede,<br />

fotografia, postal, xilogravura, revista ou folheto de<br />

Liêdo Maranhão tem uma história para contar. E ele é<br />

bom quando as conta porque parece se divertir antes<br />

mesmo de terminar. Há um monte de relatos dos amigos<br />

da Praça do Sebo, onde se vendem livros usados,<br />

que ajudou a fundar no centro do Recife, em 1981. Os<br />

amigos selecionavam as preciosidades. “Uma vez fui à<br />

praça e um vendedor chamado Jaime disse pra mim:<br />

‘Doutor, hoje não tem nada do gênero’. Olhei para ele,<br />

ri porque falar ‘nada do gênero’ é muito bom, mas insisti<br />

em procurar. Aí achei um livro que me interessei.<br />

Ele, então, percebeu e se adiantou: ‘Esse daí guardei<br />

para o senhor’ ”, relata Liêdo. “Não é uma beleza?”<br />

Conversar com Liêdo é se perder nas histórias, viajar<br />

nas expressões e conhecer um mundo que correu e<br />

corre fora <strong>das</strong> janelas dos automóveis e mal se ouve.<br />

Cordéis que integram a coleção<br />

História digitalizada<br />

Cerca de 25 mil itens da coleção de Maranhão<br />

já podem ser consultados na internet.<br />

As expressões e o pensamento de João Antônio<br />

de Barros – o J. Barros, poeta popular e primeiro<br />

entrevistado da coleção dos diários memorialistas<br />

de Liêdo Maranhão, em 10 de julho de 1971 –, da<br />

prostituta Maria Branquinha e do ambulante apelidado<br />

de Fazendeiro, e tudo o que foi guardado<br />

pelo pernambucano durante 40 anos farão parte<br />

do futuro. Internautas já podem consultar parte<br />

do acervo e terão oportunidade de vê-lo quase<br />

por completo em alguns cliques, ainda neste ano.<br />

Os 30 mil itens do acervo de Liêdo Maranhão, para<br />

o qual não é necessário direito autoral, têm sido<br />

digitalizados pelo projeto Memorial da Cultura<br />

Popular, coordenado pelo biblioteconomista e<br />

doutor em história Marcos Galindo Lima.<br />

Galindo e equipe passaram dois anos, 2008 e 2009,<br />

debruçados sobre a recuperação, o tratamento e a<br />

organização da coleção. Estima-se que uma média<br />

de 80% do material já foi digitalizado – algo em<br />

torno de 25 mil itens. Parte do acervo já está disponível<br />

no site do projeto (memorialpopular.org).<br />

Galindo adotou um padrão internacional de catalogação,<br />

moderno e refinado, para tornar as consultas<br />

ágeis. Responsável pelo Laboratório de Tecnologia<br />

do Conhecimento do Departamento de Ciência<br />

da Informação da UFPE, o Liber, revela que foi o<br />

próprio Liêdo quem se movimentou para tornar<br />

público e preservar o que guardou por quatro déca<strong>das</strong>.<br />

O professor espera para os próximos meses<br />

o anúncio de um novo patrocínio da Petrobras para<br />

a conclusão do projeto de digitalização.<br />

Galindo viu relíquias no acervo de Liêdo que lhe<br />

impressionaram. “As fotografias, em particular,<br />

merecem um estudo específico.” Outra menção<br />

foi para o material relativo às prostitutas dos anos<br />

1920. Um dos livros de Liêdo, no prelo, foi baseado<br />

em material reunido e trata da prostituição na<br />

área portuária do Recife. Se um dia você encontrar<br />

o colecionador, pode dar o mote da conversa.<br />

Ele adora falar de sexo e de tudo o que diga<br />

respeito <strong>ao</strong> assunto. Qualquer semelhança com o<br />

gosto popular não é mera coincidência.<br />

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PROGRAMAÇÃO ESPECIAL NA RÁDIO-WEB DO ITAÚ CULTURAL<br />

Na nova série Estéreo Saci, personalidades do meio musical apresentam<br />

especiais sobre grandes nomes da música brasileira, destacando a vida,<br />

as histórias, os trabalhos e algumas curiosidades dos homenageados.<br />

A compositora pernambucana Lulina apresenta Dolores Duran, o rapper<br />

Parteum apresenta Tom Capone e o maestro Leandro Carvalho apresenta<br />

Villa-Lobos, mas a programação não para por aí.<br />

Acesse<br />

itaucultural.org.br/estereosaci

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