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antonio jorge siqueira sertão sem fronteiras - Red Latinoamericana ...

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ANTONIO JORGE SIQUEIRA<br />

SERTÃO SEM FRONTEIRAS<br />

Memórias de uma Família Sertaneja<br />

Revisão<br />

Gilvandro Paiva<br />

1


INDICE DE MATERIAS<br />

Apresentação 04<br />

Prefácio 08<br />

Posfácio 12<br />

Primeira Parte – Migrantes de nós mesmos 17<br />

José e Verônica... 19<br />

Os atalhos das lembranças... 21<br />

A caminho da Matarina... 24<br />

Moradores do alheio... 27<br />

À procura de Santa Luzia... 34<br />

A educação faz <strong>sem</strong>pre a diferença... 40<br />

Do que o amor não é capaz!... 46<br />

Uma família em diáspora... 53<br />

Nor(destinos) e Su(destinos)... 58<br />

“Ninguém se perde de volta à casa paterna”... 63<br />

A hora e a vez da Terceira Geração... 66<br />

2


Segunda Parte – A Segunda Geração – Entrevistas 79<br />

Maria Verônica dos Santos (Madia) 80<br />

Virgínia Verônica da Silva 92<br />

Maria da Conceição Siqueira Oliveira 119<br />

Anísio Jorge de Siqueira 132<br />

Antonio Jorge de Siqueira 147<br />

Elias Jorge de Siqueira 195<br />

Valdeci Jorge de Siqueira 205<br />

Doralice Alexandre de Siqueira (Dora) 214<br />

Edite Guilherme de Siqueira 228<br />

Enedina Maria de Siqueira 240<br />

Rejane Cavalcante de Siqueira 255<br />

Terceira Parte – Parentes e Amigos da Matarina e da Santa Luzia 260<br />

Terezinha Matos 261<br />

Inácia Matos 265<br />

Maria Aparecida e Genival Matos 268<br />

Severino Anastácio da Silva 272<br />

Francisca Ananias 273<br />

Eugênio Nunes 278<br />

Manoel Porfírio (Neco) 280<br />

Zacarias Neves 284<br />

Louro Caboclo 290<br />

Pedro Nunes Filho 307<br />

3


Quarta Parte – Entrevistas da Terceira Geração 316<br />

Maria Irene dos Santos 318<br />

Maria das Graças Siqueira 351<br />

Sílvio Roberto Siqueira 365<br />

José Guilherme dos Santos Filho (Jacaré) 375<br />

4


APRESENTAÇÃO<br />

Este é um trabalho que se inspira numa cultura de saudade, uma particularidade<br />

da memória, de caráter um tanto quanto transcendental, e que nos foi legada pelos abis-<br />

mos da alma lusitana. Decerto, uma maneira insólita essa de revisitar o passado palmi-<br />

lhando-se as difíceis trilhas das saudades. É bem possível que as pessoas comuns não<br />

atinem para o que seja “memória”, mais ainda no sentido de algo que tem a ver com o<br />

passado, como é o nosso caso. No entanto, ao se evocar a “saudade”, fica mais fácil se<br />

estabelecer uma relação com as vivências pretéritas fortemente marcadas nos desdo-<br />

bramentos da alma e nas fímbrias do coração. Fernando Pessoa entenderia bem o que<br />

significa estarmos falando, aqui, de saudade. É frequente o ser humano sentir-se assal-<br />

tado pela tentação do esquecimento; daí que a memória se institui como antídoto do<br />

esquecimento. Lembrar para não esquecer. Mas, lembrar é uma coisa boa, como a sau-<br />

dade; tão boa que, dizem, “recordar é viver”. Porque lembrar é, também, esquecer. Co-<br />

mo enfatiza Ecléa Bosi, frequentemente lembrar nem <strong>sem</strong>pre é reviver, mas refazer,<br />

repensar e reconstruir com imagens e ideias do tempo presente, as experiências do nosso<br />

passado. E isto é viver plenamente.<br />

Já se disse, não sei se é uma máxima, que infeliz é aquele cujo passado condena.<br />

No caso deste livro, que trata da memória de uma família sertaneja, como tantas outras<br />

famílias do <strong>sertão</strong> nordestino, o seu passado a redime, em vez de constrangê-la. Assim é<br />

que, nas suas saudades revisitadas, cada um dessa família se vê por inteiro no passado<br />

de suas memórias, representadas agora no presente. Até porque essa vivência de lutas,<br />

de sonhos, de sofrimentos, de privações e de conquistas é a saga de muitas crianças,<br />

jovens, mulheres e homens em grande parte das famílias brasileiras, em todas as regiões<br />

do Brasil, e não apenas nas famílias do <strong>sertão</strong> da caatinga nordestina, como é o caso dos<br />

Siqueira.<br />

Este livro trata da memória de uma família de agricultores, constituída de onze<br />

filhos, que, na década de trinta trabalhou, inicialmente, como meeira na Fazenda Ampa-<br />

ro, migrando depois para a Fazenda Matarina, ambas no Cariri paraibano. Na década de<br />

5


quarenta, migrariam para o Moxotó pernambucano para, finalmente, na altura dos anos<br />

cinquenta, novamente migrarem, dessa vez para o Sudeste e, de lá, para o Sul do Brasil.<br />

O livro está estruturado em quatro partes. A primeira é um ensaio intitulado “Migrante<br />

de Nós Mesmos”, onde se reconstrói a trajetória de vivências e lutas da família em torno<br />

do trabalho agrícola e da autonomia financeira da família. Focaliza a “diáspora” da fa-<br />

mília Jorge Siqueira migrando do Nordeste em direção ao Sudeste do Brasil. Trata, i-<br />

gualmente, de entender como a família, naquela dispersão, reconstrói, ressignifica e<br />

consolida a sua unidade como grupo e como família. Do mesmo modo, busca compre-<br />

ender como, na passagem da segunda para a terceira geração, prevalecem valores, con-<br />

dutas e sentimentos muito característicos dos traços transmitidos pelo pai, José Jorge, e<br />

pela mãe, Verônica. A segunda parte contém, inicialmente, as transcrições de entrevis-<br />

tas dos familiares da segunda geração, vivos. São sete pessoas, quatro homens e três<br />

mulheres. De uma prole inicial de onze filhos – sete homens e quatro mulheres -, quatro<br />

desses são atualmente falecidos. Em seguida, foram transcritas as entrevistas dos famili-<br />

ares da segunda geração, incluindo cunhados e cunhadas. Uma delas não se interessou<br />

em atender o convite para ser entrevistada. A terceira parte é constituída por textos –<br />

uma série de depoimentos -, que se originaram de entrevistas feitas com alguns familia-<br />

res do terceiro grau, amigos e contemporâneos do casal José e Verônica, bem como de<br />

mais alguns membros da família, seja na Matarina (PB), seja na Santa Luzia (PE). Na<br />

quarta parte, finalmente, temos as entrevistas dos familiares da terceira geração, os<br />

sobrinhos. No caso do falecimento de um casal da segunda geração – caso de Flora e<br />

Zeca, Manoel e Anísia -, entrevistou-se o filho(a) mais velho(a). Todas as entrevistas<br />

foram filmadas; os entrevistados, por sua vez, responderam a uma lista de questões que<br />

lhes foram submetidas. As imagens fílmicas foram utilizadas na confecção de um DVD,<br />

onde, além das entrevistas, buscamos imagens dos lugares da memória, utilizando-se<br />

principalmente do acervo de fotos da família. Todo o material será preservado para um<br />

futuro banco de memória da família. Importa esclarecer que as entrevistas foram trans-<br />

critas mantendo-se absoluta fidelidade às falas dos entrevistados. Eliminou-se apenas os<br />

vícios de locução assegurando-se estrita fidelidade ao sentido de cada uma dessas falas.<br />

Por se tratar de um trabalho focado na memória familiar, todos os entrevistados dispen-<br />

saram ulteriores consulta e aprovação ao texto resultante de suas falas, que continua<br />

disponível para consultas, a qualquer tempo e solicitação.<br />

6


Agora, perguntamos o que mantém, nos dias de hoje, a identidade familiar da<br />

família Jorge Siqueira? Não resta dúvida que são os marcos de um passado muito mar-<br />

cante em sua história. Esse tempo pretérito dá sentido ao tempo presente e contemporâ-<br />

neo da família. Com um olhar atento nos depoimentos das pessoas, podemos, então,<br />

falar de uma memória familiar que dá gosto ser lembrada e ser revisitada por cada um<br />

dos membros da família. Consequentemente, para a família Siqueira faz sentido envidar<br />

esforços, fazendo com que essas histórias sejam preservadas no tempo e não apenas<br />

episodicamente lembradas. O conjunto das entrevistas, aqui transcritas, perpassa o saldo<br />

positivo de um particular sabor de memória. Algo assim como o passado que, ao ser<br />

evocado, tem o gosto do presente e, igualmente, um sabor de futuro, como o entende<br />

Koselleck... No transcurso deste trabalho em que estivemos envolvidos com a narrativa<br />

da memória familiar, o que mais sobressaiu foi o entusiasmo das gerações mais novas<br />

da família buscando entender o passado dos seus familiares. No rastro dessa saudável<br />

busca e curiosidade, pressente-se a imensa satisfação de todos eles, sentindo-se vitorio-<br />

sos na ascendência dos seus familiares. É o caso da fala de Cláudio Santos, da quarta<br />

geração, num dos momentos em que realizava a entrevista juntamente com outros so-<br />

brinhos, alguns deles da terceira geração. Na ocasião, Cláudio pede a palavra para enfa-<br />

tizar que essa ideia de resgatar a memória da família nasceu no dia do sepultamento da<br />

vovó Verônica, em São Paulo. Nas suas palavras: “Após o sepultamento dela, nós da<br />

família, viemos aqui para o quintal da casa do pai e organizamos um churrasco. Sen-<br />

tamos junto com o Antônio, o Anísio, o Toinho e o Hélio, que também estava com a<br />

gente”. Continua Cláudio: “Eu tenho uma pasta, onde guardo toda a documentação da<br />

família, e aí não inclui apenas a família dos Guilherme, com os bodoques que eu recebi<br />

do Zé Guilherme e a planta da casa”. A pasta organizada por Cláudio nos é mostrada e,<br />

nela, está escrito: “Lampejos da Memória”. E, continua ele: “Quando acontece de al-<br />

guém falecer, anoto a data, a filiação... Tudo isso porque as pessoas vão partindo, e<br />

essa linda história da migração, das dificuldades, serve de lição e de lembranças para<br />

que não haja esquecimento dessa bela luta da família. A família <strong>sem</strong>pre se mostrou<br />

interessada, porque batalhou muito. O depoimento que o senhor [referindo-se à minha<br />

pessoa] nos deu aqui é muito interessante. É preciso sonhar? É! Mas é preciso batalhar<br />

para conseguir as coisas, como o senhor falou. Até para se conseguir realizar metade<br />

desses sonhos é preciso trabalhar muito e enfrentar muitas adversidades. São as en-<br />

chentes na casa, são outras inúmeras dificuldades. Muitas vezes as pessoas passam por<br />

7


esses problemas e acham que somente a vida delas é cheia deles. Não! Olhe para trás e<br />

verá que teve muita gente que sofreu o dobro de você. Aquele agradecimento que o se-<br />

nhor fez a Zefinha Araújo, com aqueles reflexos na vida de todos os irmãos, assim como<br />

seu exemplo de vida como professor e como estudante, isso refletiu em nós, em nossa<br />

educação e certamente refletirá também na educação dos nossos filhos. Porque o tio<br />

Antônio <strong>sem</strong>pre foi um exemplo e, assim como a Zefinha Araújo está para vocês, da<br />

segunda geração, o tio Antônio está para nós da terceira. O estudo e o exemplo se re-<br />

fletem na vida inteira. Este trabalho é um marco de lutas por parte de pessoas que en-<br />

frentaram uma vida de luta, como a vó Madia, que é um exemplo de vida e <strong>sem</strong>pre bem-<br />

humorada. Ela tem todos os motivos do mundo para ser uma pessoa mal-humorada e,<br />

no entanto, é <strong>sem</strong>pre aquela alegria e disponibilidade. Tem gente que tem tudo e não<br />

consegue ser feliz”. O reconhecimento da importância de um trabalho como esse, mate-<br />

rializado agora nas páginas deste livro, é sumamente reconfortante, especialmente<br />

quando ele brota generosamente das novas gerações da família.<br />

O presente livro contempla, portanto, uma viagem ao passado, que se traveste<br />

dos adereços da saudade. Foi concebido como um testemunho vivo que fala de nossas<br />

lembranças, de nossas vivências, de nossas frustrações e de nossas vitórias também.<br />

Seria imprudência, talvez, dizer que as histórias que aqui são narradas já se tornaram<br />

épicas e “inesquecíveis” para a parentela. Afinal, elas têm muito da lembrança dos difí-<br />

ceis começos, é certo. No entanto – e mais que isso -, elas têm tudo a ver com aquilo<br />

que o coração e a alma de cada um das gerações da família agrega às suas melhores<br />

recordações. Numa palavra, uma saudosa memória. Será que as saudades morrem em<br />

cada um de nós enquanto vivemos? E a memória, sobreviverá ela à morte inevitável?<br />

8


Perseguidores de sonhos<br />

Pedro Nunes Filho<br />

Advogado tributarista e escritor<br />

PREFÁCIO<br />

Padre Bartolomeu, formado no Seminário de Olinda, um dia resolveu apossar-se<br />

de uma vasta sesmaria, que dizia pertencer a seu pai, Custódio Alves Martins, desde<br />

1696. Com esse intento, no dia 3 de dezembro de 1740, descobriu uma localidade apra-<br />

zível a que deu o nome de Riacho do Amparo. Ali fundou um curral de gado que se<br />

transformou em fazenda, depois, numa povoação, mais tarde, em cidade.<br />

Nas terras daquela antiga sesmaria do Amparo, duzentos anos depois da incursão<br />

do português Custódio, no dia 8 de julho de 1898, veio à luz do mundo uma criança do<br />

sexo masculino, a quem os pais, João e Cândida, chamaram de José. Levado à pia ba-<br />

tismal, o vigário da paróquia de São João do Cariri batizou a criança e, em seguida, ano-<br />

tou no Livro de Batistério o nome de José Jorge de Siqueira.<br />

Como em toda família numerosa, na extensa parentela dos Siqueira, havia rami-<br />

ficações compostas de pessoas pobres, remediadas e abastadas. Numa época em que as<br />

riquezas se concentravam no campo, sendo os núcleos urbanos lugares pouco habitados<br />

e <strong>sem</strong> expressão econômica alguma, terra era um bem maior. Todos queriam possuir<br />

nem que fosse uma nesga para sair da condição de trabalhador alugado e adquirir o sta-<br />

tus de proprietário. O menino José Jorge de Siqueira nasceu desafortunado. Não herdou<br />

terras! Quando cresceu, o destino quis que conhecesse Verônica Feliciano, natural da<br />

povoação da Prata, com quem veio a se casar. Bastante jovens, os dois foram construir<br />

seu ninho na Fazenda Matarina, pertencente a Cícero Nunes de Farias, de quem se fez<br />

meeiro na produção de algodão, o ouro branco que enriquecia os proprietários de terra e<br />

rápido remediava seus moradores. Sério, trabalhador e honesto, José conquistou a con-<br />

fiança do patrão que o incentivou a comprar uma propriedade, pequena que fosse. Na-<br />

quela época, os meeiros de algodão formavam uma <strong>sem</strong>enteira de futuros proprietários<br />

rurais e produtores daquele valioso bem de exportação que tanta riqueza trouxe para o<br />

<strong>sem</strong>i-árido nordestino.<br />

9


Depois de amealhar algumas economias nas terras paraibanas da Matarina, o<br />

intrépido José Jorge comprou o sítio Santa Luzia, nas águas do Moxotó, para onde se<br />

mudou com a família. Valente diante dos desafios da vida, dotado de grande tenacidade<br />

e agora lavrando terras próprias, com os lucros de cada safra, aos poucos, foi expandin-<br />

do sua pequena propriedade. Em anos sucessivos, comprou mais quatro sítios contíguos<br />

ao seu. Para os padrões da época, ainda era um pequeno proprietário. Mas seus 600 hec-<br />

tares foram suficientes para tirá-lo da “dependência para a autonomia” e manter a famí-<br />

lia num padrão de vida relativamente confortável, ajudado pela mulher, filhos e filhas,<br />

todos habituados aos pesados labores da agricultura braçal.<br />

Com o passar dos anos, os filhos estavam todos crescidos e a mãe (toda mãe<br />

sofredora é sábia) percebeu que o futuro de sua prole não estava mais ali. Deus iluminou<br />

sua mente e Santa Luzia abriu-lhe os olhos para enxergar no Sudeste a possibilidade de<br />

um futuro melhor para todos. Verônica não hesitou em aconselhá-los a seguir outros<br />

caminhos. De um em um, de dois em dois, de três em três, os filhos foram partindo,<br />

deixando a pequena Santa Luzia mergulhada em silêncio e saudade. Despejados na Es-<br />

tação da Luz, em São Paulo, solidários entre si, ajudaram-se uns aos outros, mas cada<br />

um teve que percorrer seu itinerário de buscas e “garimpar empregos, qualificação,<br />

rompendo um determinismo cultural e atávico do amor incondicional que o sertanejo<br />

tem por seu torrão natal.” Mantendo a tradição de honradez e trabalho herdados dos<br />

pais, lá se fixaram para <strong>sem</strong>pre e progrediram, graças à tenacidade e à têmpera que o<br />

patriarca, disciplinador rigoroso, havia imprimido com ferro e fogo na alma de cada um<br />

de seus filhos migrantes.<br />

De repente chega-me às mãos para eu prefaciar as memórias de Antônio, irmãos<br />

e irmãs, com o título SERTÕES SEM FRONTEIRAS, que poderia também se chamar<br />

Perseguidores de Sonhos, Almas Guerreiras, Histórias de Buscas, ou simplesmente<br />

José e Verônica. São muitos os títulos que poderiam ser extraídos das falas dos próprios<br />

personagens que povoam, dão vida, emoção e conteúdo a esse conjunto de folhas bran-<br />

cas, salpicadas de dores, sofrimentos, saudades e, ao mesmo tempo, de fé, alegria, reali-<br />

zação pessoal e felicidade. Tamanha resiliência é prova de que crianças nascidas em<br />

ambientes adversos tornam-se adultos de almas inquebrantáveis, que tendem a superar<br />

todos os percalços sofridos e, quando não chegam a ocupar posições de grande destaque<br />

na vida, mesmo em anonimato humilde, tornam-se pessoas equilibradas e muito felizes.<br />

10


Estives<strong>sem</strong> vivos, José e Verônica iriam cobrir-se de lágrimas pela incontida<br />

alegria e felicidade de verem tão bem retratada por seu filho Antônio, o Segundo — que<br />

o primeiro morreu ainda anjinho — a epopéia e sucesso de seus filhos e filhas, mais que<br />

migrantes da terra, migrantes de si mesmos. Sim! Largar tudo e partir para terras distan-<br />

tes, lugares de costumes estranhos e gente desconhecida, exigia grande esforço. Migrar<br />

de si mesmos era um ato heróico. Significava deixar o aconchego da casa paterna, o<br />

sabor das comidas feitas em panelas de barro, as veredas por onde encurtavam os per-<br />

cursos, as sombras onde se abrigavam do sol, as redes onde dormiam e a água da ca-<br />

cimba cavada no leito do riacho seco e esfriada em pote de barro.<br />

O autor, Jorge Siqueira, nasceu em 1942, numa casinha de taipa, com traseira<br />

virada para a Serra da Matarina, lá onde a mãe e as irmãs iam bem cedinho lavar roupas<br />

no Tanque da Ventania. A casa tinha os olhos voltados para a Serra Preta, pontilhada de<br />

esculturas de pedras e tanques que, até hoje, guardam preguiças-gigantes fossilizadas,<br />

encobertas pela erosão eólica milenar.<br />

Além dos fortes depoimentos de seus irmãos e irmãs, todos dotados de almas<br />

guerreiras, me impressiona muito a trajetória do menino Jorge. Nascido dentro de um<br />

teatro de serras, no meio das quais a criatura “busca entrada onde não existe porta e ten-<br />

ta saída por onde só existe entrada”, Jorge fez-se garoto alado e conseguiu sair dos pa-<br />

redões que o aprisionavam. Estudou, ilustrou-se, aprendeu as línguas clássicas e foi con-<br />

templar os esplendores do Velho Mundo. Mesmo voando alto, suas asas não derreteram,<br />

porque não eram feitas de cera nem de penas, como as de Ícaro, o filho de Dédalo, per-<br />

sonagem emblemático da mitologia grega. As asas do garoto Jorge, feitas de sonho e de<br />

esperança, foram tecidas com o afeto da mãe e untadas com os rigores do pai. Por isso,<br />

mantiveram-se intactas. “Mais que uma simples migração do passado”, Jorge fez mes-<br />

mo foi “uma fantástica viagem em busca do futuro.” Depois de cursar Filosofia, estudou<br />

quatro anos de Teologia na Suíça, graduou-se em Sociologia na Sorbonne e nunca es-<br />

queceu seus pagos, porque ser sertanejo é um estilo de vida interior que se mantém vivo<br />

onde quer que a pessoa esteja ou more.<br />

O texto de Jorge, escrito em linguagem primorosa, pleno de sabedoria, é com-<br />

plementado pelos depoimentos realistas e emocionantes de seus irmãos e irmãs. Ao or-<br />

ganizar este livro, o autor procurou sair do lugar comum. Fugiu dos roteiros genealógi-<br />

cos que cansam e pouco contribuem, despidos que são de elementos culturais. Mais que<br />

11


depoimentos de pessoas simples, este livro possui rico conteúdo sociológico nas entreli-<br />

nhas das falas dos depoentes, pessoas valorosas, que migraram <strong>sem</strong> perder a essência.<br />

Impressionado com o realismo dos depoimentos, quase mudo, algumas vezes<br />

parei para refletir sobre a têmpera e a força moral dessa família de migrantes. Além dis-<br />

so, ao longo das falas, uma após outra, vão renascendo pessoas antigas, atores da histó-<br />

ria local que iam e vinham nas veredas e caminhos que cortavam em pedacinhos meu<br />

pequeno mundo de criança. Reencontrei-me com um negro velho chamado Brasil. Pre-<br />

to, alto, magro, filho de escravos, trabalhador incansável, deixou um pomar de fruteiras<br />

na várzea da Barra, lugar onde morava numa casa de taipa arrumada e <strong>sem</strong>pre limpa.<br />

Para ele, natureza e vida confundiam-se. Com a demarcação das terras herdadas por<br />

Cícero e Pedro Nunes, Brasil juntou os poucos bens que possuía e, <strong>sem</strong> reclamar ne-<br />

nhum direito pelas benfeitorias deixadas, partiu de mãos vazias, para onde não sei...<br />

Talvez para sua última morada, já que era pessoa muita idosa, pouco remediada e des-<br />

provida de qualquer reserva que pudesse garantir-lhe a sobrevivência fora daquele para-<br />

íso ecológico que construiu para viver, como se dele nunca houvesse de ser arrancado.<br />

Além de Brasil, encontrei-me com os Ananias, os Prata, os Porfírio e os Matos, cujos<br />

descendentes, da mesma forma que os Siqueira, mantêm a tradição de dignidade e hon-<br />

radez dos pais e avós.<br />

Lendo este livro, fiz trajetória de viajante e mais uma vez convenci-me que ape-<br />

nas passamos de passagem por esses esquisitos sertões, onde a vida é breve, mas dura o<br />

suficiente para ensinar as pessoas os caminhos da retidão, da fé e o mais profundo amor<br />

à família e à terra.<br />

12


POSFÁCIO<br />

13<br />

Claudio Roberto dos Santos<br />

Trineto de Filomena Antônia de Jesus (Mena) e José Feliciano dos Santos,<br />

bisneto de José Jorge de Siqueira e Verônica Filomena de Siqueira;<br />

neto de Maria Verônica dos Santos e José Guilherme dos Santos.<br />

Filho de Givaldo Guilherme dos Santos e Maria Teresa da Silva Santos;<br />

pai de Giovanna Mateus Santos, tataraneta de Mena.<br />

Advogado e Sonhador.<br />

Inicio esta singela contribuição vendo realizar-se, por meio da obra representada<br />

neste livro, um antigo sonho pessoal. Desde a mais tenra idade gostava de ouvir as his-<br />

tórias da família, suas lutas, superações e tristezas. Nunca vi essas pessoas perderem a<br />

grande alegria de viver. Em mim, a recordação mais remota data do final da década de<br />

80, quando então ouvia as histórias que meus avós, tios-avós e bisavós contavam. Já<br />

naquele momento, eu guardava comigo um vivo interesse de anotar e guardar em uma<br />

pasta algumas dessas histórias e relatos de memória.<br />

Orgulho-me de meus antepassados porque, a despeito de eles serem pessoas nas-<br />

cidas em berço humilde, isso não foi impedimento para serem forjados numa têmpera de<br />

muita fé, seriedade, retidão, honestidade, solidariedade e união. São pessoas afeitas ao<br />

trabalho, de exemplar resistência física e de cultivada educação moral, além de muito<br />

perseverantes diante de todas as vicissitudes que se apresentaram em suas vidas, man-<br />

tendo a fundamental virtude de jamais terem perdido o espírito alegre e festeiro que lhes<br />

caracteriza.<br />

Dissertar sobre a Família Siqueira, cuja história, hoje, é entrelaçada de vínculos<br />

afetivos com várias outras famílias – e duas delas, Guilherme e Torres, me são particu-<br />

larmente caras -, leva-me a afirmar que a dimensão desse legado afetivo me daria o di-<br />

reito de nomeá-la, <strong>sem</strong> nenhum exagero, “Os Titãs do Sertão”. Na mitologia grega, sa-<br />

bemos, os Titãs formavam uma família de gigantes, filhos do Céu (Uranos) e da Terra<br />

(Gaia) e se distinguiam pelo ânimo guerreiro implacável. A comparação da família com


essas divindades é pertinente, se aferida a magnitude dos desafios enfrentados e supera-<br />

dos por esses gigantes no período que vai do inicio da década de 30 até o final do século<br />

XX.<br />

Se tivesse que falar dos meus antepassados, sintetizando sua história a um desco-<br />

nhecido - se isso fosse possível, repito -, utilizaria como introdução a composição de<br />

Geraldo Vandré, “Disparada”, disponibilizando o texto na sequência seguinte: “Prepa-<br />

re o seu coração,// Pras coisas que eu vou contar,// Eu venho lá do <strong>sertão</strong>,// Eu venho<br />

lá do <strong>sertão</strong>,// Eu venho lá do <strong>sertão</strong>,// E posso não lhe agradar...”. Em seguida, eu<br />

faria uso da composição “Asa Branca”, de H. Teixeira e Luiz Gonzaga, e, por fim, lan-<br />

çaria mão dos versos da música “A Triste Partida”, de Patativa do Assaré, magistral-<br />

mente interpretada, também, por Luiz Gonzaga. O conjunto dessas composições traduz<br />

com maestria as vicissitudes e os sofrimentos do êxodo nordestino para outras regiões.<br />

Com a expansão da industrialização do País, no final da década de 1950, a migração<br />

nordestina para a Região Sudeste, em especial ao Estado de São Paulo, tornou-a uma<br />

terra de oportunidades para se fugir do flagelo da seca. O rádio era, na época, o meio de<br />

comunicação mais difundido entre os brasileiros. Ele muito colaborou para a fama da<br />

capital paulistana, devido ao grande sucesso da música “São Paulo da Garoa”, interpre-<br />

tada pela dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho. Alguns imigrantes não se adaptavam<br />

à vida urbana e ao trabalho nas indústrias; migravam para as plantações de café, na regi-<br />

ão Noroeste do Estado do Paraná. No entanto, o clima frio e as grandes geadas que asso-<br />

laram as colheitas no inicio dos anos 60 e a queda na cotação da saca de café tornaram<br />

aquela região pouco atrativa à migração nordestina.<br />

A relevância deste livro está no levantamento das histórias familiares, de difícil e<br />

complicada elaboração, mas de grande satisfação quando, finalmente, começam a apa-<br />

recer os primeiros resultados. Está em andamento um trabalho visando à ordenação de<br />

nomes, o salvamento de dados contidos em velhos manuscritos, em fotos amareladas<br />

pelo tempo, em documentos oficiais ligados à família e, principalmente, a preservação<br />

das informações orais. É, portanto, a reconstrução de um passado destinada à identifica-<br />

ção e preservação dos troncos familiares.<br />

Afinal, como seres humanos pensantes não temos como prescindir de nossas me-<br />

mórias e de nossos sonhos. Muitas vezes, ignorar fatos de nosso passado e de nossas<br />

14


origens pode nos trazer certas inquietações. O homem sábio é aquele que aprende com<br />

as experiências de seus <strong>sem</strong>elhantes, para que possa reproduzir as que tiveram êxito,<br />

evitando incidir nos mesmos erros e equívocos do passado.<br />

Nesse diapasão, o grande valor desta obra é demonstrar como atitudes que toma-<br />

mos em nossas vidas e na vida de nossos filhos reverberam, no tempo e no espaço, co-<br />

mo uma pedra atirada na água, cujo reflexo da onda se propaga muito além do ponto<br />

onde ela caiu. Um desses exemplos foi a atitude do casal José e Verônica Siqueira em<br />

contratar a professora Zefinha Araújo para alfabetizar seus filhos e filhas, numa época<br />

em que mulher não tinha quase nenhum direito. Isso é verdade, na medida em que na<br />

mentalidade da época era desnecessária a alfabetização das mulheres, vez que eram cri-<br />

adas para casar, ter filhos e cuidar da casa. Pela atitude à frente de seu tempo, ficam<br />

consignadas, aqui, nossas homenagens a esse casal, pois, graças a essa atitude - como o<br />

reflexo da pedra jogada na água -, essa valorização pela educação refletiu em seus fi-<br />

lhos. Temos aqui o bom exemplo do autor desta obra, que conseguiu ir muito além do<br />

impensável, considerando sua origem. E se tornou inspiração e referência na educação e<br />

nos estudos para toda a família, influenciando exemplarmente na mentalidade dos netos,<br />

bisnetos e trinetos de Zé Jorge e Verônica.<br />

Esta obra apresenta também uma linda e verdadeira história de amor, cujos prota-<br />

gonistas foram José Batista Torres (Zeca) e Florisa Verônica Tôrres (Flora). Além de<br />

terem sido os facilitadores da diáspora, exerceram um papel preponderante, ora como<br />

suporte, ora como auxilio indispensável nos tempos da migração da família para São<br />

Paulo. Pela linda história de amor e pela generosidade deste casal, já falecido, ficam<br />

também registradas aqui nossas eternas homenagens.<br />

A lição que a história da família nos deixa é que, assim como os acertos, os erros<br />

também se repetem. Lembrar e apontar esses fatos faz com que o objetivo desse apon-<br />

tamento seja, sobretudo, didático de tal modo que os erros não se repitam. Jamais para<br />

julgar quem quer que seja, como a censura que José Jorge fez ao casamento de Flora e<br />

Zeca. A memória familiar mostra, pois, como essa atitude se refletiu de maneira mar-<br />

cante quando do enlace da filha Irene Batista com seu primo José Guilherme dos Santos<br />

Filho. E, novamente, terá seu reflexo na filha desse casal. Patrícia dos Santos casaria,<br />

muitos anos depois, em circunstâncias <strong>sem</strong>elhantes. Que tais reverberações sirvam de<br />

15


exemplo e de reflexão para que esse ciclo de desilusão seja definitivamente interrompi-<br />

do e não atinja a quarta geração. Ressalto que, nos dias de hoje, os valores da sociedade,<br />

assim como os valores familiares, pessoais, religiosos e as necessidades pessoais, trans-<br />

formaram-se radicalmente em relação àqueles da época em que a Família Siqueira vi-<br />

venciou. Por isso mesmo, esta obra tem sua relevância e seu valor histórico.<br />

Falar da Família Siqueira é evocar várias lembranças que não posso deixar de<br />

mencionar. A casa da Matarina, na fazenda de Cícero Nunes; a Fazenda Santa Luzia e,<br />

nela, o Sítio Riacho Queimado; a Serra do Jabitacá, o queijo de coalho, a pamonha e o<br />

café torrado com rapadura. Inúmeras outras coisas, como pescar lambari com alfinete de<br />

costura para vender na feira, dia de sábado, em Sertânia; os cachimbos abastecidos com<br />

fumo de corda, alçapão para caçar nhambu, ave de arribaçã, preá, calango, bodoque<br />

feito de sipaúba, 1 plantio e colheita do algodão e milho; roça de feijão de corda, colher<br />

folhas na época da seca para alimentar o gado leiteiro; rapadura, xerém de milho, fruta<br />

de palma, fruta-do-conde, manga, umbu, canto do inhambu; engordar tatu dentro um<br />

tambor e comer buchada de bode; caçadas de raposa, feitas por Manoel e caçadas de<br />

tatu, do José Barbeiro; forró pé-de-serra e colocar fogo no roçado; o açude do Estado, os<br />

barreiros, as cacimbas, as cisternas, respingar tiro de cartucheira no companheiro de<br />

caçada, por engano; as piadas e causos de Manoel, o rádio de pilha de Zé Jorge presen-<br />

teado por Zeca; a rabeca de José Guilherme, pai; as colchas de retalhos, as festas juni-<br />

nas, os carrinhos feitos de pedaços de pau, as bonecas feitas de palha de milho, as casas<br />

de telhas <strong>sem</strong> forro, as cortinas de tecido separando os cômodos, ao invés de portas in-<br />

ternas; as cadeiras de balanço na varanda, o vento frio das noites juninas do <strong>sertão</strong>, as<br />

caçadas de estilingue, o tanger do gado, o pastorear das cabras e carneiros; a paisagem<br />

seca, a miséria absoluta do povoado de Pernambuquinho contrastando com a esperança<br />

e a alegria de viver dos sertanejos; viajar de pau-de-arara, de Pernambuco a São Paulo,<br />

em 17 dias; o flagelo do alto índice de mortalidade infantil, a memória da perda de vá-<br />

rios filhos na infância; residir em um barraco, na chegada a São Paulo, na Vila Carioca 2 ;<br />

garoa diária, fina e gelada, de São Paulo; ruas de barro, <strong>sem</strong> água encanada; casas abas-<br />

1 Instrumento de caça indígena, que consiste em um arco de madeira, usado não para<br />

atirar flechas, e sim seixos ou esferas de barro cozido.<br />

2 No bairro do Ipiranga, é a região de várzea dos córregos Moinho Velho e Mooca, ambos aflu-<br />

entes do Rio Tamanduateí.<br />

16


tecidas por poços caseiros, furados nos quintais das casas; os primeiros lotes da Vila<br />

Ema, de Lençóis Paulista, de Sapopemba e do Parque Bristol. O vocabulário da época:<br />

“gota serena”; “cabra da peste”; “não sou cabrito para comer mato(verdura)”; “tá cá<br />

bixiga”; tô aperreado”; “ fulano é muito arengueiro”... Esta compilação assegura que a<br />

memória remota da Família Siqueira não estará mais dispersa nas lápides tumulares, em<br />

igrejas, cartórios e cemitérios; nem a memória oral poderá mais sofrer modificações<br />

com o decorrer do tempo, algo que seria visto até mesmo como natural, pelo distancia-<br />

mento dos fatos. Esta obra tem a finalidade de resgatar tais memórias, algumas ressur-<br />

gidas nas entrevistas, outras ordenadas no decorrer do tempo, outras tantas concatenadas<br />

até mesmo no simples manuseio de velhas fotografias. Com certeza elas passam a pul-<br />

sar nas veias das recordações, fazendo lembrar os dias idos e vividos de antepassados,<br />

formadores dos seus troncos familiares, que, em registros, não mais poderão permanecer<br />

“mortos”, mas sim como memória viva e exemplar.<br />

Cabe ressaltar que, atualmente, há noticias de parentes - consanguíneos ou não - e<br />

descendentes dispersos pela Paraíba, Pernambuco, São Paulo, Paraná e Mato Grosso do<br />

Sul. Aos antepassados, nossas eternas homenagens pelo sacrifício pessoal despendido e<br />

pelo trabalho árduo que realizaram para que nós, os descendentes, pudés<strong>sem</strong>os, atual-<br />

mente, colher os frutos de todo esse esforço. Não fora isso, talvez eu mesmo poderia<br />

estar neste momento em algum lugar do <strong>sertão</strong> pernambucano carregando lata d´água na<br />

cabeça e sofrendo as agruras da seca. Conclamo os descendentes para que não parem de<br />

sonhar, pois esta história familiar não termina aqui. Lembro que uma das últimas frases<br />

de meu saudoso pai foi que “a vida vale a pena ser vivida, principalmente se seguirmos<br />

as lições de nossos antepassados, enfrentando-a com seriedade, retidão, honestidade,<br />

solidariedade, união e muito trabalho”. Essas lições de educação, moral, fé e perseve-<br />

rança deverão ser cultivadas, sobretudo como valores familiares, <strong>sem</strong> nunca perder de<br />

vista a alegria de viver!!!<br />

17


PRIMEIRA PARTE<br />

OOOOOOO<br />

MIGRANTES DE NÓS MESMOS 3<br />

18<br />

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas,<br />

que já tem a forma do nosso corpo,<br />

e esquecer os nossos caminhos, que nos levam <strong>sem</strong>pre aos mesmos lugares.<br />

É o tempo da travessia: e se não ousarmos fazê-la,<br />

teremos ficado, para <strong>sem</strong>pre, à margem de nós mesmos”.<br />

(Citação apocrifamente atribuída ao poeta Fernando Pessoa)<br />

3 Antonio Jorge Siqueira – Ofereço o capítulo inicial deste livro à memória de meu pai, José Jorge,<br />

minha mãe, Verônica e de minha esposa Edilnete; de minha irmã, Flora, e dos manos, Manoel, José e<br />

Severino, cujas ausências significam um modo especial de estar presente e me inspiram permanentes<br />

lembranças... A meus sobrinhos e sobrinhas, Zé Preto, Chico de Assis, Givaldo, Jacaré e Marlene, as<br />

ternas saudades que, em mim, gostaria fos<strong>sem</strong> apenas ternura.


Residência do casal José e Verônica, na Fazenda Matarina, onde nasceram nove dos<br />

onze filhos da Família Siqueira. A casa foi destruída pelos atuais proprietários da Ma-<br />

tarina. (Foto do ano de 1973, pertencente ao acervo da família)<br />

19


JOSÉ E VERÔNICA...<br />

O carro em que viajava do Recife para Sertânia, via Campina Grande, teve que<br />

frear muito forte por conta de uma lombada mal sinalizada, na BR 412. Era a única en-<br />

trada da cidade paraibana, denominada São João do Cariri. Nesse momento eu descobri<br />

que o nome daquela localidade não me era estranho. E a memória de meu pai e de meu<br />

avô me veio de modo inopinado e fulgurante. Eu sabia que aquela localidade e região<br />

tinham a ver com histórias que nos foram contadas desde meninos. E aquilo tinha tudo<br />

a ver com certo legado de memória em que, nela, os familiares se vêem como numa<br />

fotografia de corpo inteiro. Mesmo que sobrevivesse como mero vestígio do passado.<br />

No dizer de Koselleck, “Quando o historiador mergulha no passado, ultrapassando<br />

suas próprias vivências e recordações, conduzido por perguntas, mas também por dese-<br />

jos, esperanças e inquietudes, ele se confronta primeiramente com vestígios, que se<br />

conservaram até hoje, e que em maior ou menor número chegaram até nós”. 4 Vamos<br />

nos deter nos personagens protagonistas dessa memória familiar.<br />

Na localidade de Amparo – não sei se era fazenda ou um lugarejo rural - José<br />

Jorge de Siqueira nasceu no dia oito de julho de 1898, e foi registrado no município de<br />

São João do Cariri, sul do Estado da Paraíba. O nome desta cidade já demonstra que ela<br />

está localizada na região do Cariri paraibano, também chamada de Cariri Velho, que,<br />

nos dias de hoje, congrega 31 municípios no sul oriental da Paraíba. Uma região muito<br />

característica do <strong>sem</strong>iárido nordestino, onde predominam, além da caatinga sertaneja,<br />

uma inconfundível paisagem com planícies e discretas ondulações de serras. São João<br />

do Cariri é o berço de um dos lugares da memória de nossa família. Ao passar ali, fui<br />

tomado de certa emoção, a emoção de quem revolve o passado, que, dizem, é uma via-<br />

gem <strong>sem</strong> volta. Lembrando Ricoeur, aquele sentimento dos “tempos da memória” me<br />

impactava 5 . Os pais de José foram João Jorge de Siqueira e Cândida Maria dos Praze-<br />

4 Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à <strong>sem</strong>ântica dos tempos históricos - Rio de<br />

Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, p. 305.<br />

5 “No que concerne, particularmente ao tempo da memória, o ‘outrora’ do passado rememorado inscrevese,<br />

doravante, no interior do ‘antes que’ do passado datado; simetricamente, o ‘mais tarde’ da espera<br />

torna-se o ‘no momento em que’, marcando a coincidência de um acontecimento esperado com a grade<br />

20


es, que veio a falecer antes do meu avô João Jorge, e por isso eu não a conheci. Mas<br />

cheguei a conhecer de perto o meu avô João Jorge.<br />

Abrindo-se o mapa do Estado da Paraíba, observa-se que São João do Cariri lo-<br />

caliza-se na microrregião do Cariri Oriental, ocupando uma área de 702 km 2 , na conflu-<br />

ência da BR 412 e das PB 148 e 216. Além de São João do Cariri, outras cidades na<br />

região se destacam: Sumé, Monteiro, Serra Branca, Taperoá e Cabaceiras, que, juntas,<br />

perfazem uma população de 160 mil pessoas. Durante o ano, predomina a baixa ocor-<br />

rência de chuvas na região, e a luz solar é superior a duas mil e oitocentas horas anuais.<br />

Bota calor nisso!<br />

A família João Jorge de Siqueira viveu de atividades agrícolas de sobrevivência,<br />

cuja característica é de pouca fartura, vivendo-se do que os roçados produzem em anos<br />

que se alternam entre chuvosos, medianamente invernosos e outros simplesmente secos.<br />

Além da agricultura de subsistência, o cultivo do algodão foi marcante, já no século<br />

XIX, bem como a predominância da pecuária bovina e caprina. Nos anos de seca, ape-<br />

lava-se para as frentes de trabalho, geralmente patrocinadas pelos governos do Estado e<br />

federal, em parceria com os municípios.<br />

Foi num desses anos de seca que o garoto José Jorge, com 12 anos de idade, na<br />

busca de emprego temporário, foi parar em uma dessas frentes de trabalho, no Estado do<br />

Rio Grande do Norte, na cidade de Equador, juntamente com dois outros irmãos, Pedro<br />

das datas por vir”. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento – Campinas, SP: Editora da<br />

UNICAMP, 2007. p. 164.<br />

21


e Terto, além de outros rapazes de sua idade e conterrâneos do Cariri paraibano, con-<br />

forme relata um dos amigos de juventude, Severino Anastácio.<br />

A família João Jorge de Siqueira, no final do século XIX, vai fixar residência no<br />

distrito da Prata, que, juntamente com outros distritos daquela época, como Boi Velho,<br />

São Tomé, São João do Tigre, Camalaú e São Sebastião do Umbuzeiro, se integrava no<br />

município agora mais importante da região, Alagoa do Monteiro. Hoje, esses distritos se<br />

emanciparam e, com o passar do tempo, se tornaram cidades independentes e progres-<br />

sistas do Cariri paraibano.<br />

Na Prata, José Jorge travou conhecimento com a família José Feliciano e foi aí<br />

que ele conheceu Verônica, filha mais nova de José Feliciano e de sua esposa, Filomena<br />

de Jesus. Verônica era a filha caçula da família José Feliciano, de doze filhos, sendo<br />

quatro mulheres e oito homens. Além de Verônica, existiam: Maria Paulino, a mais ve-<br />

lha, que morava na localidade de São Francisco; Júlia, que morou no Caxingó, e Josefi-<br />

na, que chegou a morar no Mugiqui e, depois, na vila da Prata. Os homens, <strong>sem</strong> ordem<br />

de nascimento, foram: Feliciano, Manoel, Umbelino, Antônio, Luís, Marcelino, Joa-<br />

quim e Moisés.<br />

Quando José e Verônica constituíram família, a convivência dos filhos e filhas<br />

com os avós maternos e paternos ficou praticamente reduzida ao avô paterno João Jorge<br />

– chamado por nós de “Tí João” - e à avó materna, Filomena de Jesus – a quem sim-<br />

plesmente chamávamos de “Mena” -, posto que ambos terminariam os seus dias viven-<br />

do em nossa casa, na Santa Luzia, em Sertânia. Apenas os irmãos mais velhos, nascidos<br />

na Paraíba, em Matarina, tiveram uma convivência mais aproximada com o avô mater-<br />

no, chamado por meus irmãos de “Padim Veio”, e a avó paterna, “Tia Candinha”. Inte-<br />

ressante como os netos, em nossa família, subvertem a terminologia da árvore genealó-<br />

gica, passando a denominar os avós, ora como “tios”, como aconteceu com nossos avós<br />

paternos, ora como “padrinho”, no caso de nosso avô materno.<br />

Os atalhos da lembrança...<br />

Saindo de São João do Cariri na direção de Monteiro, naquele dia alcancei logo<br />

a seguir as cidades de Serra Branca e Sumé. Já antes mesmo de Sumé, o Cariri muda a<br />

22


paisagem. Os imensos descampados que se perdem do alcance da vista são substituídos<br />

por indícios da Borborema, que salpica a paisagem com lindas formas geométricas de<br />

pedras, umas atrás das outras. A localidade de Sumé, por exemplo, se esconde por trás<br />

de uma grande montanha de serrotes. E, depois dela, a flora transmuda-se e passa-se a<br />

viajar numa planície cheia de baixios muito aptos para a pecuária e para a agricultura.<br />

Decidi adiar minha chegada em Sertânia para o dia seguinte e seguir até à cidade<br />

de Prata, onde meus pais viveram e eu mesmo havia nascido, juntamente com a maior<br />

parte dos meus irmãos. Teria que entrevistar umas velhas primas para cruzar nossas<br />

lembranças e recordações. Estava ansioso porque ali estariam não apenas as raízes de<br />

uma memória familiar, mas, especialmente, a memória de minha família. No meio de<br />

uma longa reta no asfalto da BR 412, uma placa sinaliza a estrada asfaltada para onde<br />

eu me dirigia buscando revisitar os lugares da memória. Estava contente e muito feliz de<br />

voltar aos meus lugares da memória. Queria fazer deles todos os registros fotográficos e<br />

filmográficos possíveis. Entretanto, o registro mais importante era ver e rever os lugares<br />

com os meus próprios olhos 6 . Prata é um lugar emblemático para nossa memória famili-<br />

ar. Em sua obra magistral, Ecléa Bosi afirma a propósito da memória, que “<strong>sem</strong>pre fica”<br />

aquilo que significa. E, segundo ela, fica não do mesmo modo: às vezes quase intacto,<br />

outras profundamente alterado 7 .<br />

Chegou-me a ideia de desistir de entrar na Prata por aquele caminho de asfalto.<br />

Afinal, ele é um atalho muito recente. Decidi seguir em frente, na direção de Monteiro e<br />

chegar a Prata por outro caminho mais antigo. Explico-me: saindo de Monteiro, na altu-<br />

ra do quilômetro quinze da BR 412, na direção de Campina Grande, há a entrada de<br />

uma variante, que é a velha estrada de barro que dava acesso a Prata e às fazendas tradi-<br />

cionais daquela redondeza, antes do novo acesso asfaltado. Eu aprendi que a memória<br />

tem diversos caminhos e, quando se está em pleno <strong>sertão</strong>, eles surgem onde a gente me-<br />

nos espera, como diria Guimarães Rosa.<br />

6 De minha parte, um voluntarismo inconsequente, com certeza, pois, como nos ensinou W. Benjamin, “A<br />

verdadeira imagem do passado perpassa veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja<br />

irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”. Cf. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas:<br />

magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 224.<br />

7 Cf. BOSI, E. Memória e sociedade – lembranças de velhos. p. 88 et passim.<br />

23


Meus avós nasceram, se criaram e constituíram suas famílias nas circunvizi-<br />

nhanças da localidade de Prata, que, como os demais lugarejos da região, era naqueles<br />

tempos, e é ainda hoje, uma povoação típica do <strong>sertão</strong> paraibano do Cariri. Persiste uma<br />

história marcada pelos tradicionais nomes de famílias de grandes proprietários, cujas<br />

fazendas com suas casas-grandes ainda continuam demarcando o entorno da paisagem<br />

na região. É longa a lista dessas fazendas naquele Cariri, que vai da Prata a Monteiro e,<br />

dentre elas, podemos citar: Riachão, Jatobá, Boa Vista dos Nunes, Firmeza, Carnaúba,<br />

Areal, Santa Catarina, Matarina, Mugiqui, Santana, Serrote Agudo, Paraguai, Formi-<br />

gueira, Carrapateira, Amparo, Camaleão, Olho d’Água do Cunha, São Paulo dos Dan-<br />

tas, Mocó, Almas, Caxingó etc. E, além dessas fazendas, existe uma muito organizada,<br />

que merece ser visitada: Fazenda Feijão, de Sizenando Rafael. Nela se destaca uma ca-<br />

pela, com pinturas do artista plástico da região de nome Miguel Guilherme, que, além<br />

dela, pintou os afrescos das igrejas do Sagrado Coração, de Sertânia, e de Nossa Senho-<br />

ra das Dores, de Monteiro. Falar dessas fazendas é lembrar, inclusive, a importância das<br />

famílias na configuração social, econômica e política da memória histórica local. Como<br />

já informei, Prata, na época dos meus avós, era apenas um distrito de Monteiro.<br />

A história de Monteiro e de todo o Cariri é essencialmente ligada ao gado, onde,<br />

no século XVIII, Custódio Alves Martins e João Pereira de Melo estabeleceram um cur-<br />

ral cuja localização evoluiria, mais tarde, para a denominação de Alagoa do Monteiro.<br />

Esse nome está vinculado historicamente ao fazendeiro Manuel Monteiro do Nascimen-<br />

to, proprietário da Fazenda Lagoa do Periperi, que dela desmembrou meia légua de terra<br />

para erigir a capela em homenagem a Nossa Senhora das Dores. Isso aconteceu no iní-<br />

cio do século XIX. 8<br />

O cenário dessas memórias, assim como de nossa recordação familiar, é, portan-<br />

to, o <strong>sertão</strong> nordestino e paraibano, ensolarado, abrasado pelo calor dos trópicos e varri-<br />

do pelos ventos que sopram da Borborema. Fazendeiros, almocreves, tangerinos de re-<br />

banhos, pequenos sitiantes, arrendatários, moradores de aluguel, é entre eles que se lo-<br />

8 Para informações mais completas sugiro os trabalhos de Pedro Nunes Filho, Guerreiro Togado: fatos<br />

históricos de Alagoa do Monteiro, Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, especialmente as informações<br />

contidas na p. 61. Igualmente, do autor, o livro mais recente, Cariris Velhos: passando de passagem.<br />

Recife: Liber, 2008.<br />

24


calizam as famílias Siqueira e Feliciano. Foram moradores de algumas dessas fazendas<br />

e sobreviventes do duro trabalho braçal, anos a fio.<br />

A caminho da Matarina...<br />

Naquele dia, eu terminei finalmente chegando à cidade da Prata, já de noitinha.<br />

Não pelo acesso asfaltado que liga a perimetral à cidadezinha, conforme já informei.<br />

Percorri, sim, um caminho ondulado, tortuoso, poeirento, ladeado de cercas de arame<br />

farpado e salpicado de pequenas casas de porta e janela. Voltava a trilhar o velho cami-<br />

nho que foi a variante dos tempos passados, ligando Monteiro com o vilarejo da Prata.<br />

O caminho que meu pai percorreu tantas vezes em lombo de burro nas suas idas e vin-<br />

das a Monteiro e Sumé para vender fumo nos dias de feira dessas povoações. Naquela<br />

época, não havia automóvel, e homens e mulheres se deslocavam a cavalo. As mulheres<br />

usavam “sião”, nomenclatura que sequer existe no Dicionário Huaiss, mas que existia<br />

na língua do povo. Era uma sela especial que facilitava às mulheres montar e andar a<br />

cavalo, permitindo-lhes cavalgar confortavelmente, em vez de ficarem escanchadas no<br />

lombo do animal. Minha mãe fazia uso desse tipo de sela quando ia para Monteiro.<br />

O sol daquele dia era escaldante. No horizonte, pouco a pouco o desenho da pai-<br />

sagem é tomado de uma rara beleza. Serras aparecem ao longe; serrotes, mais próximos.<br />

O caminho é ladeado de pedras polidas pelo tempo, que lhes deu formas delicadas como<br />

se fos<strong>sem</strong> esculpidas pela mão do homem. Algumas parecem que desafiam a força da<br />

gravidade. Eu estava percorrendo com redobrada emoção um caminho que havia percor-<br />

rido, poucos anos atrás, em companhia de um amigo da região, morador do Recife, que<br />

eu conhecera não fazia muito tempo. Mas já se tornara uma pessoa de sólida amizade,<br />

Pedro Nunes. Da família Nunes, em cuja fazenda – a Matarina - meu pai foi trabalhador,<br />

na época em que Cícero Nunes, o proprietário, era vivo. Nos idos de 1997, Pedro me<br />

havia conduzido àquelas paragens da infância de família que eu não via há mais de qua-<br />

renta anos 9 . Naquele momento, eu ficara maravilhado com o reencontro dos lugares da<br />

9 Para este tema do olhar – o olho como marca da enunciação –, consultar a brilhante contribuição de<br />

Hartog. Cf. HARTOG, François. Le Miroir d’Hérodote: essai sur la représentation de l’autre – Paris:<br />

Galimard, 2001., especialmente o capítulo 2: “L’oeil et l’oreille”, p. 395-459.<br />

25


lembrança. Agora, eu estava sozinho e, metro por metro, avançava nos lugares que antes<br />

só me vinham pelas asas da lembrança. Um tipo de lembrança que alegra e faz doer.<br />

Valendo-me de Ecléa Bosi, reportando-me a este pretérito de lembranças, cabe dizer<br />

que “quando o sujeito os evoca, não vem o reforço, o apoio contínuo dos outros: é co-<br />

mo se ele estivesse sonhando ou imaginando.” 10<br />

Essa viagem e esses atalhos, na verdade, me propiciariam visitar lugares especi-<br />

ais de minhas memórias de família, onde certamente Prata era o mais importante deles.<br />

Essas memórias se entrecruzavam com outras memórias, como a das tradicionais famí-<br />

lias fazendeiras: Santa Cruz, Dantas, Nunes, etc. Aquela estrada sinuosa também me<br />

proporcionava um cruzamento de memórias e uma bifurcação de recordações, como as<br />

da Fazenda Santa Catarina, por exemplo. Nela viveram vários tios meus, filhos de José<br />

Feliciano e Filomena, cujos nomes já enumerei. Nessa estrada da Prata, vinha, logo em<br />

seguida, a Fazenda Matarina, da família Nunes, onde meus pais, a partir dos anos vinte<br />

do século passado, iniciaram sua vida de casados e nos trouxeram ao mundo. Nessa<br />

mesma estrada, antes da Fazenda Matarina, antes também da Prata, junto a um frondoso<br />

pé de mulungu que ainda hoje existe lá, está o lugar da nossa antiga casa de taipa, marco<br />

<strong>sem</strong>inal da nossa memória familiar. Destruída que foi a velha casa, dela só restam al-<br />

guns tijolos e bolos de barro petrificados pelo tempo. E, comigo, guardo uma fotografia<br />

em preto e branco que foi tirada há quarenta anos atrás, nos idos dos anos setenta. Uma<br />

verdadeira relíquia.<br />

Como disse antes, não tinha ali ninguém com quem falar; a não ser com os fia-<br />

pos de minhas lembranças, especialmente de meu pai, de minha mãe e de meus irmãos<br />

mais velhos. Naquele momento fiquei ruminando com minha solidão que a memória<br />

pode até ser um coletivo de recordações, mas ela se opera através da interioridade da<br />

alma de cada sujeito. Contada, narrada, ela se torna a representação de um sujeito ape-<br />

nas. 11 Confesso que tergiversei nessa viagem ao íntimo da alma, experiência impar de<br />

que fala Santo Agostinho nas suas Confissões. E esse era um desafio que me levaria à<br />

Matarina, lugar privilegiado das recordações de minha família, repito. E recordar é mui-<br />

10 BOSI, E., Memória e sociedade, p. 67.<br />

11 Pergunta axial: “qual a forma predominante de memória de um dado indivíduo? O único modo correto<br />

de sabê-lo é levar o sujeito a fazer sua autobiografia. A narração da própria vida é o testemunho mais<br />

eloquente dos modos que a pessoa tem de lembrar”. BOSI, E., Memória e sociedade, p. 68.<br />

26


to mais do que viver, sobretudo quando se torna uma viagem para o recôndito da alma<br />

humana.<br />

O diálogo da memória com o presente de nossas vidas nos induz a tirar lições<br />

que são fundamentais. Uma delas, que a História aliás nos ensina, é que ninguém revisi-<br />

ta do mesmo modo os lugares da memória. Isso também me aconteceu naquela ocasião.<br />

Diferentemente daquele passeio feito na companhia de Pedro, agora eu vagava na minha<br />

solidão e duvidava que estivesse sozinho quando evocava a figura do meu pai, de minha<br />

mãe e de meus irmãos. Principalmente, quando me vinham à memória todas as histórias<br />

que foram contadas pelos mais velhos em torno dos lugares: da casa, do açude, do ar-<br />

mazém de alvenaria, do terreiro, da cozinha de taipa, da Serra da Matarina, da Serra<br />

Preta e dos Tanques da Viúva. Ou sobre as pessoas do círculo de amizade mais próxi-<br />

mo: o negro Brasil, Antônio Terêncio, José Porfírio, Ageu, Fortunato Prata, Severino<br />

Belo, Severino Bananeiras, Josefa Vitorina, Antônio Nicolau. Acho que o mesmo acon-<br />

teceu com todos os demais quando foram entrevistados e deixarem falar a voz de sua<br />

alma, reverberando suas turvas e, às vezes, vivas recordações. Havia reminiscências em<br />

torno do que se havia experienciado na vida, em seu dia-a-dia; e também se falava dos<br />

sonhos de infância, que se transmudariam depois em projetos de vida 12 .<br />

A Matarina é um caminho <strong>sem</strong> volta, aquele mesmo que Pedro Nunes me fez tri-<br />

lhar um dia, por instantes. Para a família Siqueira, esse lugar se tornou uma permanente<br />

representação do passado na narrativa de cada um de nós da família. Os atalhos das nos-<br />

sas lembranças passam por ali. A perenidade representacional dessas memórias faria<br />

com que a Matarina dos Nunes se transformasse ad aeternum, na posterior Santa Luzia,<br />

dos Siqueira; na Vila Carioca, da Flora e do Zeca; na Vila Ema, do Anísio, da Enedina,<br />

de Zé Guilherme, da Madia, do Severino, do Elias e do José Barbeiro; e, por fim, na<br />

Paranaguá, da Flora, do Zeca, do Zé Guilherme, da Madia, de Jacaré e de Irene; no Ma-<br />

to Grosso do Sul, do Anísio e de Madia, novamente. Lugares marcantes e <strong>sem</strong>pre <strong>sem</strong>i-<br />

nais para a nossa memória. Uma vereda caleidoscópica, em permanente movimento,<br />

com turbilhões de formas e formatos, em infinitude de espaços e eternidade de tempos,<br />

que nos transformam a todos e cada um em fugazes e efêmeros migrantes de nós mes-<br />

12 Koselleck, ao tratar da importância e significado dos dois conceitos axiais para a consideração do tempo<br />

histórico afirma que “Todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas<br />

das pessoas que atuam ou que sofrem”. KOSELLECH, R. op. cit. 2006. p. 306. [grifos meus]<br />

27


mos. Não posso, aqui, esquecer Guimarães Rosa que ao escrever Grande Sertão: Vere-<br />

das concebeu o Sertão como miríade de lugares. Desse modo ele induzia o leitor, o<br />

tempo todo, a trilhar atalhos, veredas e novos caminhos plenos de subjetividade. Quem<br />

tem familiaridade com o Sertão sabe que as trilhas, os atalhos e as veredas, inopinada-<br />

mente, podem nos oferecer grandes surpresas. E logo voltarei a falar de uma delas, que<br />

me aconteceu naquele mesmo dia.<br />

Moradores do alheio...<br />

Afinal, naquela viagem, terminei chegando à cidade de Prata, à tardinha, e fui<br />

bem recebido pelas minhas primas, que não se negaram a falar delas e de nós. Iniciamos<br />

evocando as recordações acerca do casal José Jorge e Verônica Filomena. O ano de ca-<br />

samento deles foi 1925 e, segundo elas, a partir dessa união matrimonial, a memória<br />

histórica das famílias Siqueira e Feliciano gravitaria em torno das circunvizinhanças do<br />

distrito da Prata – Matarina - e, por extensão, da cidade de Sumé e Monteiro.<br />

Embrenhamo-nos - eu e elas - nas trilhas de nossa memória familiar. Logo que<br />

casou, José Jorge foi morar na Fazenda Amparo, de propriedade de Franco Dantas. Nes-<br />

se período, a região passou por relativa prosperidade, por conta da cultura do algodão,<br />

que, por motivo da queda na produção americana, foi beneficiada pelos incentivos in-<br />

gleses para suprir suas demandas. Parte dessa produção algodoeira era exportada para a<br />

Inglaterra, tendo como entreposto Campina Grande. Outra parte atendia ao consumo<br />

interno, e Recife tornou-se um polo beneficiador da fibra por intermédio de uma de suas<br />

grandes fábricas: a Fiação e Tecidos de Pernambuco, depois conhecida por Fábrica da<br />

Torre. 13 O algodão se tornaria o “ouro branco” dos sertões nordestinos.<br />

Nem a família de José Jorge e tampouco a de Verônica Filomena eram proprietá-<br />

rias de terras. Em virtude disso, inicialmente, o casal teve que buscar na boa vontade de<br />

fazendeiros a oportunidade para trabalhar, sustentar a família e viver como arrendatá-<br />

13 Cf. Pedro Nunes Filho, Guerreiro Togado, op. cit.<br />

28


ios. Depois de mais de um ano como casados, deixam essa fazenda Amparo, do Dr.<br />

Dantas, e empreendem uma primeira migração para as vizinhanças de Prata, ocasião em<br />

que José Jorge passa a ser morador da Fazenda Matarina, de propriedade de Cícero Nu-<br />

nes, casado com uma senhora a quem chamavam de dona Isabel. Meu pai <strong>sem</strong>pre falou<br />

bem de Cícero Nunes, um patrão justo e generoso. Segundo nos contava, êle o incenti-<br />

vou muito a lutar para adquirir o seu próprio pedaço de terra, onde trabalharia para si<br />

próprio. Meu pai segurou essa possibilidade e, ao final dos anos quarenta, já era dono de<br />

uma nesga de terra em Pernambuco. Cícero Nunes era, portanto, um proprietário dife-<br />

rente dos demais daquele Cariri. A aquisição em Pernambuco do Sítio Santa Luzia por<br />

José Jorge, como veremos adiante, iniciará a sequência de uma longa trajetória de mi-<br />

grações da família Siqueira no sentido de garimpar melhorias de vida.<br />

No Cariri paraibano, de maneira geral, a relação entre arrendatários, moradores e<br />

trabalhadores avulsos das fazendas sertanejas com os seus donos não era nada fácil. Na<br />

maioria das vezes era uma convivência difícil, onde imperava a prepotência do mando<br />

desses fazendeiros, chefes políticos e atrabiliários coronéis que se valiam da tradição<br />

familiar para dar continuidade ao seu poderio. Meu pai nos contava, por exemplo, quão<br />

atrabiliário era o Dr. Franco Dantas na sua relação com os seus dependentes. Felizmen-<br />

te, nem todos os proprietários eram assim. Foi o caso do Cícero Nunes, onde José Jorge<br />

e Verônica viveriam os primeiros anos da vida de casados. O jovem casal, no ano de<br />

1927, passa a morar nos cômodos de uma tosca casa de taipa - o que era comum naque-<br />

les tempos –, situada nos fundos da Fazenda Matarina, dos Nunes, próxima das vazantes<br />

do açude da propriedade, no sopé da bela serra da Matarina recoberta de pedras, à mar-<br />

gem da estrada que vinha de Monteiro, meio caminho entre a Santa Catarina e a vila da<br />

Prata.<br />

Morando na Matarina, na fazenda de Cícero Nunes, José Jorge e Verônica prati-<br />

camente consolidaram o tamanho da família. Com efeito, na Fazenda Amparo nascia<br />

apenas a filha mais velha da família, Maria Verônica, que acompanhou os pais na sua<br />

mudança para Matarina. Dos onze filhos restantes, nove deles nascerão na Matarina, a<br />

saber: Florisa, Manoel, Virgínia, José Jorge Filho, Maria da Conceição, Severino, Aní-<br />

sio, Antônio – que veio a falecer aos dois anos – e, novamente, outro filho chamado<br />

Antônio, que escreve estas linhas. Dois outros filhos – Elias e Valdeci – nasceriam em<br />

Pernambuco. José Jorge, como paraibano nato, <strong>sem</strong>pre demonstrou orgulho dessa sua<br />

29


paraibanidade. Tanto que, quando queria reclamar de malfeitos eventualmente pratica-<br />

dos por um dos dois filhos pernambucanos, dizia <strong>sem</strong>pre: “Você, por último, é filho do<br />

Moxotó!”. Esse sentimento paraibano de pertença identitária se manteve durante toda a<br />

vida e passou para todos nós da família.<br />

Foi, portanto, ali, na Matarina, que a família Siqueira forjou as bases de sua es-<br />

trutura familiar, construindo amizades sólidas, consolidando laços de parentesco e re-<br />

forçando as estratégias na busca de uma autonomia patrimonial e financeira. Essa última<br />

empreitada, como já assinalei, não teria sido possível se atingir não fora a generosidade<br />

de Cícero Nunes, proprietário da Fazenda Matarina. Facilitou-lhe a venda do algodão,<br />

com a qual José Jorge adquiriria uma gleba de terra no município de Alagoa de Baixo,<br />

que depois se chamaria Sertânia, região do Moxotó pernambucano.<br />

Os depoimentos da família que integram o presente livro, tanto da segunda,<br />

quanto da terceira geração, estão muito marcados pela periodização, que separa, inici-<br />

almente, a casa da Matarina (PB), daquela de Santa Luzia (PE), e, finalmente, no Sudes-<br />

te, as cidades de São Paulo (SP), Três Lagoas (MS) e Paranaguá (PR) como destinos de<br />

migração da família. Os dois períodos iniciais (PB + PE) são percebidos pelos familia-<br />

res como algo do passado, ao passo que o presente é assumido como tal, nas vivências e<br />

experiências de vida em São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul. Sobre essas periodi-<br />

zações no trabalho da historiografia, de acordo com M. de Certeau, “inicialmente a his-<br />

toriografia separa seu presente de um passado. Porém, repete <strong>sem</strong>pre o gesto de divi-<br />

dir”. 14 Isso ressalta a importância de uma memória sedimentada como marco <strong>sem</strong>inal<br />

para o presente, passado e futuro da família.<br />

Antes de trabalhar o marco inicial dessa periodização da memória familiar,<br />

mormente quando a família se torna proprietária do seu quinhão, cabe ainda prospectar<br />

as lembranças do difícil começo desses dias, na Matarina. Até porque esses dias foram<br />

marcantes e decisivos para a memória familiar dos Siqueira tanto na Paraíba quanto em<br />

Pernambuco, como veremos. O regime de trabalho vigente entre os moradores e o pro-<br />

14 “Assim sendo, sua cronologia se compõe de ‘períodos’ (por exemplo, Idade Média, História Moderna,<br />

História contemporânea) entre os quais se indica <strong>sem</strong>pre a decisão de ser outro ou de não ser mais o que<br />

havia sido até então (o Renascimento, a Revolução). Por sua vez cada tempo ‘novo’ deu lugar a um discurso<br />

que considera ‘morto’ aquilo que o precedeu, recebendo um ‘passado’ já marcado pelas rupturas<br />

anteriores”. Cf. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. – 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária,<br />

2002, p. 15.<br />

30


prietário da Matarina - caso de José Jorge e Cícero Nunes – permitia que o agregado<br />

arrendasse as terras para o cultivo de uma agricultura de sobrevivência e sazonal e o<br />

criatório de algumas poucas cabeças de gado para o suprimento de leite da casa. O re-<br />

gime de arrendamento permitia, também, que o arrendatário vendesse os cereais e, tam-<br />

bém, o algodão, este último de muita valia na época. José Jorge e Verônica tinham a<br />

moradia localizada nas proximidades das terras vazantes do açude da Fazenda Matarina,<br />

o que lhes permitia plantar e colher todo tipo de verduras e hortaliças, mesmo em épo-<br />

cas de estiagens e secas prolongadas. Isso também permitia à família comida abundante<br />

e mesa farta, durante o ano inteiro. Não há registro de que a família tenha passado por<br />

apuros quanto à sua alimentação e sobrevivência. Tudo o que se produzia durante o ano<br />

servia para o sustento da família e pouca coisa sobrava para venda das colheitas ao pro-<br />

prietário, ou nas feiras da Prata.<br />

A vila da Prata era o lugar mais próximo da Matarina e era <strong>sem</strong>pre lá onde se fa-<br />

zia a feira <strong>sem</strong>anal e se abastecia dos mantimentos necessários à casa. Mesmo em al-<br />

guns anos de secas prolongadas, como em 1932, o sustento da família não esteve a peri-<br />

go e, por conta disso, segundo relato dos filhos mais velhos, Verônica não precisou lan-<br />

çar mão de alternativas radicais para o mínimo necessário à alimentação da família. De<br />

maneira geral, no período em que viveu na Matarina, o casal José e Verônica tinha o<br />

suficiente para a sobrevivência. Mas, como éramos pobres, a vida não seria tão fácil,<br />

levando em consideração os magros recursos financeiros de que se dispunha para educar<br />

os filhos, vesti-los e garantir-lhes condições dignas de saúde e sobrevivência. Nesse<br />

período de estada na Matarina, durante uns três ou quatro anos, José Jorge teve de nego-<br />

ciar fumo na feira da Prata, em sociedade com o seu grande amigo e compadre José<br />

Porfírio, para garantir uma renda sobressalente. As filhas mais velhas também tentariam<br />

o fabrico artesanal de vasilhame de barro para um comércio incipiente que acudisse a<br />

renda familiar, o que, no entanto, não prosperou.<br />

Esse período de vida da família 15 é caracterizado por uma memória onde os de-<br />

poimentos das pessoas expõem a experiência de dureza da vida no seu dia-a-dia, a in-<br />

15 O depoimento das pessoas, tanto da segunda quanto da terceira geração, está muito marcado por uma<br />

periodização que separa, inicialmente, a casa da Matarina (PB), da Santa Luzia (PE) e, finalmente, no<br />

Sudeste, as cidades de São Paulo (SP) e Paranaguá (PR). Os dois períodos (PB + PE) são percebidos<br />

como algo do passado, ao passo que o presente se assume como tal nas vivências e experiências de vida<br />

em São Paulo.<br />

31


cansável luta pela sobrevivência e a tenacidade na busca de alternativas, sobretudo ali-<br />

mentares, no sentido de garantir o sustento da família. Não se permitiam luxos no uso<br />

de roupas, calçados, adornos, utensílios domésticos, etc. Comumente, o almoço e os<br />

lanches eram levados por Verônica ou os filhos mais crescidos para os próprios roçados,<br />

locais de trabalhos na agricultura. O xerém de milho, o cuscuz, o feijão de corda e a<br />

farinha de milho eram a base alimentar. As roças de milho, feijão e algodão eram ge-<br />

ralmente longe da casa da Matarina. Os locais revezados para o gado leiteiro e os ani-<br />

mais de tração ficavam a uma boa distância da sede principal da Fazenda Matarina. Os<br />

depoimentos dos familiares mais velhos falam muito da Serra Preta como um desses<br />

sítios utilizados por José Jorge, onde cultivava aproximadamente de três a quatro qua-<br />

dros de terra agricultável, uma paragem erma, distante e de difícil acesso. Por isso<br />

mesmo, um local muito apropriado para caças, especialmente de mocós, bastante apre-<br />

ciada na região, naqueles tempos. O suprimento de água para a casa era feito diariamen-<br />

te e de maneira muito precária, fazendo-se uso de vasilhames de barro e latas de quero-<br />

sene vazias que eram transportados na cabeça, em cima de rodilhas de pano. Essa água<br />

para consumo da casa era buscada no açude da fazenda, a uma boa distância da casa de<br />

moradia da família e era de boa qualidade. Quais as lembranças que dão conta das rela-<br />

ções interpessoais no seio da família?<br />

Nos depoimentos fica claro que esse dia-a-dia da família, na Matarina, e depois<br />

em Santa Luzia, foi marcante para consolidar uma vida austera, onde imperava o olhar<br />

vigilante e igualmente severo dos pais, principalmente do pai. A divisão doméstica da<br />

família nas tarefas da casa e da agricultura era relativamente simplificada pelo que cabia<br />

às mulheres e aos homens, às meninas e aos meninos, aos adultos e às crianças. Mas<br />

todos nós da casa, de todas as idades, vivíamos em função de suprir a mão-de-obra ne-<br />

cessária à lida doméstica, o cuidado com o gado e a labuta do roçado. O tamanho da<br />

família estava em função da obrigação de o casal ter filhos e da necessidade em dispor<br />

de braços suficientes para essas tarefas da vida doméstica. Como a agricultura sertaneja<br />

tem épocas sazonais de colheitas, com tempo limitado para tanto, era muito comum às<br />

mulheres realizar tarefas típicas nos roçados que, normalmente, eram reservadas aos<br />

homens, tais como: colher milho e feijão, catar algodão, etc. Aos meninos cabia tanger o<br />

gado para os revezamentos, levar e trazê-lo para beber e tirar o leite e ele também ajudar<br />

na limpeza do mato para crescimento da lavoura, manejando a enxada. E, por fim, traba-<br />

32


lhar na colheita de algodão, de milho e de feijão, ajudar, de igual modo, no descaroça-<br />

mento do milho e do feijão, realizar as tarefas pesadas da casa no preparo da alimenta-<br />

ção: ralar milho para suprimento da farinha, do cuscuz e do xerém, todos os dias, e pro-<br />

ver a cozinha da lenha suficiente para cozimento dos alimentos. As mulheres se encar-<br />

regavam de preparar a comida, lavar e passar a roupa, varrer e limpar a casa, os terrei-<br />

ros, lavar pratos e panelas, costurar, remendar peças de pano, pregar botões e cerzir ca-<br />

sas. Também elas dividiam tarefas com os homens, dependendo da urgência e necessi-<br />

dade, tais como: buscar água para a casa, colher e transportar os lucros dos roçados.<br />

Tanto na Matarina, da Paraíba, quanto, futuramente, na Santa Luzia, em Per-<br />

nambuco, a maior parte do tempo disponível da família era para uma labuta diária no<br />

amaino da casa. Não existia tempo livre para o lúdico. A rotina de tarefas tomava todas<br />

as horas do dia e só se parava para almoçar, jantar e dormir. E, nalguns períodos do ano,<br />

na Matarina, deixava-se o trabalho da casa e do roçado para frequentar a escola de mes-<br />

tre Gonçalo e de Antônia Ananias, por algumas horas e de modo muito irregular. O la-<br />

zer para as meninas e moças era praticado a contrapelo da azáfama <strong>sem</strong>anal do trabalho<br />

e se confundia com as meras relações de vizinhança. Caçar e pescar, para os meninos e<br />

rapazes, eram tarefas que se situavam a meio caminho do uso produtivo do tempo e de<br />

um fugaz exercício prazeroso, associado ao tempo livre. Outras formas de ludicidades,<br />

como jogos de bola, de cartas, ou mesmo práticas esportivas em geral não foram viven-<br />

ciadas pelos garotos da família. Eram, aliás, muito pouco toleradas por nosso pai. Era<br />

até mesmo difícil debutar nas artimanhas da caça, no uso e manuseio das armas. Engaio-<br />

lar passarinhos, por exemplo, era considerado por José Jorge como o suprassumo da<br />

vadiagem. Ele não tolerava ver pessoas com uma gaiola na mão, transportando passari-<br />

nhos aprisionados, estrada acima e estrada a baixo. “Essa gente não tem o que fazer”,<br />

dizia ele. Já sinalizamos que as estradas têm surpresas...<br />

Quais representações essas lembranças pretéritas trazem na caracterização das<br />

relações interpessoais da família? O que, aqui, se esboça como representação de um<br />

passado, é a importância que o próprio trabalho assumia na vida das pessoas, como va-<br />

lor propugnado pela representação máxima da autoridade familiar. Naquele momento, o<br />

trabalho tornava a vida, no <strong>sertão</strong>, uma dureza estafante, antes mesmo de se tornar a<br />

referência cultural por excelência, como veremos logo adiante. Nenhuma novidade nis-<br />

so, pois que o historiador, aqui, se propõe à dura tarefa representacional, viajando ao<br />

33


passado que, como diria W. Benjamin, não se deixa facilmente perceber. Ou, como dirá<br />

M. Certeau, “a historiografia tende a provar que o lugar onde ela se produz é capaz de<br />

compreender o passado...” 16 . No entanto, transitando nesses labirintos da memória, es-<br />

tamos bem cônscios de que visitamos o passado de nossa família no tempo presente de<br />

nossas vidas. Se assim é, nunca esse passado será o mesmo em sua inteireza. Mas nem<br />

por isso deixará de ser representado. A família, agora, partia em busca de sua autonomia<br />

nas ribeiras do Moxotó pernambucano. E, doravante, a Matarina se tornará uma referên-<br />

cia na memória da família Siqueira...<br />

Casal José e Verônica Siqueira em foto datada de março de 1970, na Fa-<br />

zenda Santa Luzia -–(Sertânia) - PE<br />

À procura de Santa Luzia...<br />

16 “... estranho procedimento, que apresenta a morte, corte <strong>sem</strong>pre repetido no discurso, e que nega a<br />

perda, fingindo no presente o privilégio de recapitular o passado num saber. Trabalho de morte e contra a<br />

morte”. CERTEAU, M. op. cit., p. 17<br />

34


Eu falava das surpresas com que nos deparamos quando adentramos os cami-<br />

nhos e atalhos do <strong>sertão</strong>. Naquele dia da minha viagem à Prata, passando por Santa Ca-<br />

tarina e Matarina, antes mesmo de entrar no meu carro, após uma rápida parada para<br />

tirar fotos e fazer filmagens do exato lugar de nossa primeira choupana de taipa, deparei<br />

com um jovem vaqueiro que andava cambaleante pela estrada que vinha da Prata em<br />

direção à Matarina, no sentido contrário ao trajeto que eu estava fazendo. Vestido de<br />

gibão de couro com os adereços de vaqueiro, embriagado de cachaça, resmungou à mi-<br />

nha saudação dizendo que a égua de sua montaria tinha-o abandonado. Fiquei <strong>sem</strong> en-<br />

tender nada. Afinal, era a primeira vez que eu via um vaqueiro naquela situação, a pé,<br />

estrada afora, perguntando pelo seu cavalo de montaria. De qualquer maneira, daquele<br />

fato inusitado não consegui me esquecer durante meses e meses. Eu também estava nu-<br />

ma estrada que me levaria a algum lugar e no qual eu identificava a memória das mi-<br />

nhas origens familiares. Não muito diferente daquele vaqueiro, talvez, caminhando<br />

meio a esmo e migrando pelos atalhos da lembrança para distantes lugares de uma vaga<br />

memória. A surpresa do encontro com o vaqueiro fotografava então um instante de mi-<br />

nha tergiversação. “Na sua forma mais elementar, escrever é construir uma frase, per-<br />

correndo um lugar supostamente em branco, a página. Mas a atividade que re-começa<br />

a partir de um tempo novo separado dos antigos, e que se encarrega da construção de<br />

uma razão neste presente, não é ela a historiografia?” 17 No branco da página das lem-<br />

branças inscreve-se o novo momento da família, em Pernambuco. A Matarina parece<br />

página virada. Apenas parece.<br />

Em Santa Luzia de Alagoa de Baixo, o futuro da minha família se construiria<br />

com a mesma persistência do pesado trabalho e a busca da autonomia patrimonial. Esse<br />

fora o legado de nossa experiência de vida. Era preciso trabalhar duro para garantir um<br />

futuro mais promissor. José Jorge e Verônica se mostraram tenazes perseguidores des-<br />

ses sonhos de dias melhores. Toda a família Siqueira se empenhou com denodo na bus-<br />

ca desse objetivo. Neste sentido, portanto, cabe dizer que no interior da família havia<br />

uma classificação assumida com certa naturalidade pelos seus membros, segundo a qual<br />

alguns membros da família eram bons trabalhadores, e outros, preguiçosos disfarçados.<br />

E isso valia tanto para os meninos quanto para as meninas, já desde pequenos. Mas, o<br />

que era pior é que se valorizava o caráter supostamente “diligente e laborioso” de alguns<br />

17 CERTEAU, M. id. Ib.<br />

35


e censurava-se aquele supostamente “indolente” de outros. José Jorge, já no final da<br />

vida, em Pernambuco, referindo-se a um dos filhos que conseguira se formar, dizia:<br />

“fulano não deu pra nada na vida; só deu mesmo para o estudo”. Era o meu caso. Ro-<br />

land Barthes, referindo-se ao “acontecido da história”, nos relatos da linguagem intimis-<br />

ta, entende que os discursos das crônicas de memórias se articulam em torno de um real,<br />

que parece ter-se perdido. No entanto, esses mesmos discursos, também, reintroduzem a<br />

realidade que se exilou da linguagem como autênticas relíquias da memória e das recor-<br />

dações.<br />

Na Paraíba, seguindo à risca os conselhos do patrão fazendeiro da Matarina, José<br />

Jorge lançou-se ao trabalho nos seus roçados de milho e de algodão com o objetivo de<br />

amealhar um lucro que lhe garantisse a compra de uma gleba de terra no Moxotó per-<br />

nambucano, bem próximo da divisa do Estado de Pernambuco com a Paraíba. José Jor-<br />

ge terminou comprando uma pequena propriedade, na localidade denominada Santa<br />

Luzia, que distava apenas seis quilômetros de Alagoa de Baixo, e viria a se chamar Ser-<br />

tânia. Isso aconteceu no período que vai de 1936 a 1937. Terra boa para a agricultura, a<br />

propriedade possuía grande área de baixios banhados pelas nascentes do rio Moxotó.<br />

Próxima da divisa com a Paraíba, ela era cortada pela estrada de rodagem que ligava<br />

Petrolândia, nas margens do São Francisco, na divisa com a Bahia, com a cidade de<br />

Campina Grande, na Paraíba. Na margem da estrada de rodagem, que viria no futuro a<br />

ser a BR-110, situava-se a nossa nova casa de moradia. Era uma antiga e precária casa<br />

de taipa, muito <strong>sem</strong>elhante à da Matarina.<br />

Nesse Sítio denominado Santa Luzia, José Jorge adquire, aos três de fevereiro de<br />

1937, a primeira parcela de terra de um senhor conhecido pelo nome “Bila”, que corres-<br />

ponde a Sebastião Pereira Leal. Em seguida, em janeiro do ano seguinte, adquire a gleba<br />

vizinha, de propriedade de Maximiano Frazão, conforme consta nas Escrituras Públicas<br />

lavradas no Cartório do 2º Ofício, de Sertânia. No ano de 1942, negocia com o velho<br />

Raimundo Traquinada, casado com Josefa, um pequeno pedaço de terra na localidade<br />

do Riacho Queimado, nos limites da propriedade do vizinho João Felipe. Nós da família<br />

crescemos ouvindo muitas histórias fantasiosas de que o velho Maximiano Frazão teria<br />

enterrado no terreiro de sua casa botijas cheias de dinheiro. Igualmente, outras histórias<br />

contavam que o marido de Josefa Traquinada, o velho Raimundo, comia com toda natu-<br />

ralidade carne de animais mortos por picada de cobra e por diversas outras causas. No<br />

36


terreno adquirido a Bila já existia uma casa de taipa que acolheu por longos anos a nos-<br />

sa família. Também nos foi contado a história de que, ali mesmo na porta da casa, fora<br />

assassinado uma pessoa por desavenças amorosas. Eu mesmo cheguei a conhecer a viú-<br />

va Josefa Traquinada e, realmente, era uma pessoa muito esquisita. Após meu pai com-<br />

prar a gleba de terra do casal, foi dado permissão para que eles continuas<strong>sem</strong> morando<br />

na sua tosca casinha, no Riacho Queimado, até os últimos dias de sua vida, o que, de<br />

fato, aconteceu. Todos nós da família nos divertíamos bastante com as excentricidades<br />

da velha Josefa Traquinada, dona de um temperamento irascível e muito pouco sociável.<br />

Com o remembramento dessas três glebas José Jorge passou a dispor de sufici-<br />

ente terra para trabalhar a agricultura e impulsionar um criatório incipiente de gado,<br />

cabras e ovelhas. Quase dez anos depois, adquiríamos em agosto de 1951, uma quarta<br />

propriedade de nossa vizinhança: as terras de José Bernardo. Uma bela aquisição, pois<br />

que nessa gleba havia água permanente e, mais que isso, era um excelente terreno de<br />

várzeas agricultáveis. No final do ano de 1959, terminamos comprando uma última par-<br />

cela, que seria incorporada à nossa propriedade, dando-lhe o formato atual. Tratava-se<br />

de outro terreno vizinho às nossas terras, cujo proprietário era o senhor Francisco Félix.<br />

Esse terreno, nos idos dos anos trinta do século passado, fora propriedade de Epami-<br />

nondas Moraes, comerciante de Sertânia, que ganhou muito dinheiro explorando a ma-<br />

deira de lei daquelas cercanias sertanejas para vender à Greet Western na implantação<br />

da ferrovia que demandava o interior de Pernambuco. Praticamente fechamos a proprie-<br />

dade, restando nela, até hoje, apenas o miolo de terras que <strong>sem</strong>pre pertenceu aos Neves,<br />

nossos vizinhos de primeira hora. 18 Nunca a família Neves foi pressionada para negoci-<br />

ar a sua gleba, verdadeiro enclave no formato de nossa propriedade. O velho “Caria”<br />

[Zacarias], hoje, é o emblema vivo dessa vizinhança de benquerença.<br />

O trabalho da família em Santa Luzia, agora capitaneado por José Jorge e dona<br />

Verônica, redobrou em ritmo e intensidade. Ele, em Alagoa de Baixo, encaminhando os<br />

18 Com o falecimento de Zé Jorge, em julho de 1972, Verônica fez o Inventário e partilha dos bens da<br />

família, tendo doado a cada filho a sua parte. Naquela ocasião, com o remembramento dos cinco terrenos<br />

adquiridos no transcurso que vai de 1937 a 1960, a propriedade foi cadastrada no INCRA com a área<br />

retificada para um total de 600 hectares. Na ocasião não se verificou nenhuma contestação da parte dos<br />

herdeiros, o que demonstra uma família unida em torno do pai e da mãe. Zé Jorge foi vitimado de um<br />

câncer intestinal que teve efeito devastador na sua saúde, vindo a falecer menos de seis meses após o<br />

diagnóstico conclusivo. Fez questão de morrer em casa, cercado do carinho da esposa, Verônica, e dos<br />

filhos que se deslocaram do Sudeste para dele se despedirem.<br />

37


serviços nas propriedades recentemente adquiridas; ela, cuidando do encaminhamento<br />

das tarefas familiares e dos serviços de <strong>sem</strong>pre, nos roçados, lá na Matarina. E a memó-<br />

ria que ficou dessa gestão substitutiva de Verônica, na Matarina, é marcada por sua im-<br />

pecável eficiência no de<strong>sem</strong>penho das novas funções. José Jorge, na sua ausência, des-<br />

cobrira uma companheira decidida e muito eficiente. Enquanto ele cuidava dos traba-<br />

lhadores na sua nova posse, Verônica, sozinha, durante meses, providenciava a mudan-<br />

ça da família para o quinhão de sua plena propriedade, o que aconteceu em dezembro de<br />

1944. A família deixava de ser dependente de patrões e fazendeiros e passava a ser dona<br />

dos seus haveres. Migrava-se da dependência para a autonomia. Mais do que a simples<br />

migração de um passado, foi uma fantástica viagem em busca do futuro. A família Si-<br />

queira empreendia, portanto, uma viagem rumo à sua autossuficiência patrimonial, fa-<br />

zendo valer o suor do seu denodado trabalho. Até que, novamente, os horizontes dessa<br />

realização se tornas<strong>sem</strong> limitados e voltas<strong>sem</strong> a se ampliar, como inicialmente foi o<br />

trajeto da Matarina para Santa Luzia e como prazerosa foi a viagem do Cariri paraibano<br />

para o Moxotó pernambucano 19 . Retornemos aos primeiros anos da chegada da família<br />

ao Sítio Santa Luzia.<br />

A cultura da vida em família, em Santa Luzia, seguiria os parâmetros da cultura<br />

familiar nordestina e sertaneja daqueles tempos. Nesse aspecto, pouca coisa mudaria da<br />

Matarina para Pernambuco. Avaliando, hoje, na distancia do tempo, os da segunda ge-<br />

ração apontam que entre pais e filhos havia uma enorme distância afetiva. Mais ainda<br />

em se tratando do pai, Zé Jorge, com relação aos filhos do que mesmo às filhas. No caso<br />

dessa relação em questão, a mãe, Verônica, <strong>sem</strong>pre foi mais afetiva e acessível aos fi-<br />

lhos e filhas. Por conta disso, também, a imagem que nós, os filhos e filhas, guardaría-<br />

mos do pai, foi indiscutivelmente marcada pela rudeza, pela severidade, pela dureza e,<br />

não raro, por uma excessiva brutalidade no trato com os familiares, especialmente os<br />

filhos homens. Essa é uma memória que perpassa os depoimentos de todos os filhos e<br />

filhas, dos mais velhos aos mais jovens, e até dos netos e bisnetos que o conheceram.<br />

Destaque para Verônica, que é vista como a grande provedora da casa. Aquela que cul-<br />

tivava um toque afetivo na relação com os filhos, sobretudo em horas de descontração.<br />

No romance familiar, ela distribuía afetos com generosidade e discrição <strong>sem</strong>, no entan-<br />

19 “É o vestígio dos atos que modificam uma ordem recebida e uma visão social”. CERTEAU, M. op. cit.,<br />

p. 81 [grifos do autor]<br />

38


to, conseguir esconder sua predileção pelo filho mais velho, Manoel. De igual modo<br />

José Jorge também agia com a filha Florisa, ou Flora, como era chamada pelos irmãos.<br />

Resumindo: José Jorge mandava na família. Verônica conciliava, mas também<br />

discordava dele. José Jorge não conciliava, cedia; e quando assim agia, era a contragos-<br />

to. José Jorge era carrancudo e cultivava carrancismo. Verônica era leve e transpirava<br />

maternidade. José Jorge era um pai que impunha respeito, medo e timidez. Por sua vez,<br />

Verônica não se impunha, mas conquistava confiança. Interessante é que, muito tempo<br />

depois, o traço dessa imagem paterna de Zé Jorge em todas as falas e depoimento dos<br />

filhos tem um reverso de admiração e de profunda tolerância da parte de todos os fami-<br />

liares de todas as gerações. Sobretudo dos mais jovens. Sempre viram no pai, no avô e<br />

bisavô a coerência, a retidão moral e uma intrépida dedicação à família, colocando-a<br />

acima de tudo. Já Verônica é vista como o baluarte da família, a grande mãe, a mãe su-<br />

ficientemente boa 20 . Uma mulher decidida e pragmática. José Jorge é a representação da<br />

lei, associada à retidão moral. A imagem de Verônica é marcante na cena e no romance<br />

familiar. Essa memória da imagem parental é algo que passou de filho para netos e bis-<br />

netos.<br />

Pouco ou nada na vida mudaria para a família que, agora, morava em Pernambu-<br />

co, salvo a satisfação de trabalhar no que era de sua propriedade e poder amealhar mais<br />

recursos provenientes do rendimento da agricultura e da pecuária incipientes. As condi-<br />

ções de trabalho na propriedade de Santa Luzia ficavam mais fáceis. O que mais fez<br />

diferença com relação à Paraíba foi a tepidez da água de cacimba do Moxotó, de gosto<br />

acentuadamente salobro. A água que se consumia em Matarina era de melhor qualidade,<br />

comparando-se com a salinidade do rio Moxotó, em Pernambuco. Isso gerou uma difi-<br />

culdade muito grande, inicialmente. A água, apesar de abundante, era pesada não apenas<br />

para beber e cozinhar; mas, sobretudo, para lavagem de roupa.<br />

Outra novidade, nesses novos tempos da autonomia patrimonial, era dispor de<br />

mão-de-obra suficiente para os pesados serviços da lavoura, a cada ano que passava.<br />

José Jorge passou a contratar trabalhadores, garantindo-lhes salário, alimentação, roupa<br />

lavada e engomada. Para muitos, foi disponibilizada até mesmo moradia. A família pas-<br />

20 “A figura materna é alvo de uma apreensão de traços espirituais, não físicos, também, como acontece<br />

com a figura materna”. Cf. BOSI, E., Memória e sociedade. p. 428.<br />

39


sou a contar com mais de dez agregados, a quem se dava toda atenção, incluindo ali-<br />

mentação. O trabalho da casa com esses trabalhadores mais que triplicou, implicando<br />

comida, roupa lavada e engomada. Isso terminou sendo fonte de muitos aborrecimentos<br />

para a família, e Verônica teve que ser dura em alguns momentos. O mesmo aconteceu<br />

com as filhas, a quem incumbia pesadas tarefas para além daquela da família.<br />

Da Matarina, José e Verônica trouxeram nove filhos. A filha mais velha, Maria,<br />

no ano seguinte à chegada em Sertânia, casar-se-ia com José Guilherme, cuja família –<br />

mãe e irmãos - nos acompanhou na vinda para Alagoa de Baixo e passou a morar em<br />

nossa propriedade. José Guilherme terminaria sendo a pessoa de maior confiança de<br />

meu pai e, logo após o casamento, passou a morar no lugar denominado na propriedade<br />

como Riacho Queimado, terra essa que meu pai havia adquirido de uma senhora - Jose-<br />

fa Traquinada -, após a sua chegada a Santa Luzia. Após mudar para Alagoa de Baixo,<br />

veio o nascimento dos dois últimos filhos da família Siqueira: Elias, nascido em abril de<br />

1945, e o caçula, Valdeci, em janeiro de 1947.<br />

Entre os Siqueira aquele problema do relacionamento opaco entre os pais e os fi-<br />

lhos e, de certa maneira, entre os próprios irmãos pode ser aquilatado pelo tabu que cer-<br />

tos assuntos representava, no seio da família, no dia-a-dia de sua convivência, especial-<br />

mente na relação dos pais com os filhos e entre os irmãos. É o caso dos assuntos rela-<br />

cionados ao namoro, ao sexo e à gravidez, numa família como a nossa com tantos fi-<br />

lhos. Dispomos de alguns relatos minudentes sobre esses assuntos, especialmente no<br />

que concernia às moças, e que são altamente reveladores da prevalência de uma cultura<br />

sertaneja fechada para a afetividade, para o desenvolvimento do corpo, para a sexuali-<br />

dade, o namoro, o lúdico e os prazeres da vida em geral. Sobre esses assuntos, nem nós,<br />

os filhos, conversávamos com nosso pai e muito menos as filhas com a mãe. Ora, leve-<br />

se em consideração que a frequência à escola e a oportunidade de nela aprender lições<br />

que o cotidiano da casa não repassava aos filhos era de uma tremenda precariedade,<br />

mormente para quem morava na zona rural das municipalidades. É nesse exato momen-<br />

to que entra na memória familiar dos Siqueira, em Santa Luzia, o diferencial da Escola<br />

de uma professora como Zefinha Araújo.<br />

A educação <strong>sem</strong>pre faz a diferença...<br />

40


Acho que vale a pena uma imersão na memória como esta que estamos fazendo<br />

nos tempos pretéritos das lembranças, mesmo correndo o risco de atropelar a cronologia<br />

dos acontecimentos. É verdade, como já se assinalou, que nenhuma narrativa, nenhuma<br />

recordação, nenhuma lembrança devolve o passado por inteiro. Como diria Ecléa Bosi,<br />

de nossas recordações somos mera testemunha que, às vezes, não crê em seus próprios<br />

olhos e, por isso, apela constantemente ao outro para que confirme a nossa visão. 21 Nes-<br />

sa viagem do presente ao passado, meio cambaleantes, nós apenas trilhamos atalhos,<br />

posto que nunca seremos detentores do seguro caminho que nos leva à totalidade dos<br />

fatos pretéritos da história. Vale lembrar, igualmente, que o tempo passado tem suas<br />

artimanhas, como dirá M. Certeau. Para ele “o discurso se situa fora da experiência que<br />

lhe confere crédito; ele se dissocia do tempo que passa, esquece o escoamento dos tra-<br />

balhos e dos dias, para fornecer ‘modelos’ no quadro ‘fictício’ do tempo passado.” 22<br />

Fica a questão: seria possível já vislumbrar algumas constantes de <strong>sem</strong>elhante trajetória<br />

familiar? É a indagação que me coloco nesta altura de uma viagem no tempo, em busca<br />

da memória identitária de nossa família sertaneja. Volto à cena daquele vaqueiro nas<br />

veredas da Matarina, cambaleante de embriaguês, à procura de sua montaria...<br />

Muitos meses após deparar com a situação inusitada daquele vaqueiro paraibano,<br />

sentado diante do meu computador e tentando colocar em ordem as desordens de mi-<br />

nhas recordações, vislumbrei melhor o que significava meu desapontamento quando do<br />

encontro com aquela figura estranha e singular de um vaqueiro a pé cambaleando pelas<br />

veredas do <strong>sertão</strong> à procura do seu cavalo. Como já antecipei, senti-me como o próprio<br />

vaqueiro, perdido nos labirintos dessa vasta memória familiar, buscando entradas onde<br />

não existem portas e tentando saídas por onde só existem entradas. A este respeito, Oc-<br />

tavio Paz dirá que “não existem portas, e sim espelhos”. É o que me acontece agora<br />

quando me sinto instado a dissecar algumas lembranças minhas, dos meus irmãos e dos<br />

familiares acerca das figuras humanas marcantes de nossa vida. E esse reconhecimento<br />

vem a propósito da Escola de Zefinha Araújo, em Santa Luzia. Através dela, meus pais<br />

ofereceram à família o que de melhor eles nos poderiam legar, a saber, a oportunidade<br />

da educação escolar e da instrução.<br />

21 Cf. BOSI, E., Memória e sociedade, p. 406.<br />

22 CERTEAU, M. op. cit. p. 95.<br />

41


Já disse que José Jorge, certamente, foi um pai que mantinha um duro relacio-<br />

namento com os filhos, a despeito de ser bastante afável com os estranhos da casa e à<br />

casa. Mas todos nós reconhecemos que, à sua maneira de ser, ele buscou ser um pai<br />

exemplar para os filhos no que diz respeito à moralidade de costumes, à seriedade nos<br />

negócios e no respeito com as pessoas. Um homem rude, às vezes bruto e turrão; mas<br />

que <strong>sem</strong>pre esteve buscando o melhor para os seus. Juntamente com minha mãe, ofere-<br />

ceu e repartiu o que de melhor podia oferecer e legar aos filhos, a saber, o respeito aos<br />

outros, a educação doméstica e a importância do trabalho. Decerto que isso não foi obra<br />

do acaso. Ao contrário, insere-se no contexto de sua experiência pessoal e história de<br />

vida, como veremos.<br />

Logo que casou, José Jorge desenvolveu um esforço enorme para se autoalfabe-<br />

tizar, contando, para isso, com uma pequena ajuda de um parente distante, Manoel Ana-<br />

nias. À noite, após os pesados dias de trabalho na roça, ele lançava mão da carta de A-<br />

B-C de Laudelino Rocha e exercitava pacientemente o desenho de cada letra, a compo-<br />

sição das sílabas e a formação das palavras. Depois de muito esforço, terminou lendo<br />

com relativa facilidade e possuía uma vistosa caligrafia. Lia os folhetos de cordel, de<br />

João Mathias de Athayde, que proliferavam na época. Gostava muito de ler a Bíblia. Já<br />

Verônica era uma mulher analfabeta e mal desenhava o seu nome. Foi uma esposa que,<br />

durante a vida toda, buscou viver de acordo com o marido, mesmo <strong>sem</strong> demonstrar-lhe<br />

subserviência. Na família, era ela quem pensava antes de executar as coisas. E <strong>sem</strong>pre<br />

foi ela que mais preocupação demonstrou com relação ao futuro dos filhos na família.<br />

Como as mulheres sertanejas de sua época, viveu para se casar, ter filhos, alimentá-los,<br />

cuidar da casa e ser fiel ao marido. Era de temperamento amável, como já disse, e tenta-<br />

va se contrapor ao temperamento turrão e carrancudo do marido. Mas não teve o direito<br />

de frequentar uma escola ou mesmo de se autoalfabetizar como o marido.<br />

Nós, os filhos, tivemos escola, sim. Era de esperar que a escola nos desse um<br />

pouco dos conteúdos educacionais que nos faltavam em casa. Nesse aspecto ela foi uma<br />

escola importante para a educação da família. E também a professora era competente.<br />

Apesar de muito sisuda e muito fria no relacionamento com os alunos e com as pessoas<br />

de sua convivialidade, Zefinha Araújo foi nossa professora e nossa Mona Lisa. O nosso<br />

irmão mais velho, Manoel, logo cedo, desistiu de frequentar a escola. Morreu analfabe-<br />

to. E isso meu pai nunca aceitou. Foi também um mau exemplo para outro irmão, José,<br />

42


que também permaneceu <strong>sem</strong>ianalfabeto até falecer. Possivelmente a rudeza de José<br />

Jorge cobrando-lhes aproveitamento na escola tenha sido responsável por tal decisão<br />

dos filhos mais velhos da família. A escola de Zefinha Araújo foi um marco na nossa<br />

memória familiar.<br />

Em Santa Luzia, ao final dos anos quarenta e início dos cinquenta, José Jorge<br />

decide contratar uma professora leiga, de Alagoa de Baixo, Josefa Araújo, também co-<br />

nhecida como Zefinha. Era uma mulher severa e reservada no trato. Raramente ria. Mas<br />

era dotada de muita competência e de muita disciplina no exercício da docência. A fa-<br />

mília Siqueira custeou a escola da Santa Luzia às suas próprias expensas. Dona Zefinha<br />

vinha de Sertânia para Santa Luzia, toda segunda-feira, a pé, vencendo a distância de<br />

seis quilômetros que separavam o sítio, da cidade de Sertânia. Ficava hospedada na nos-<br />

sa casa, onde dormia e se alimentava. Para ela reservava-se o melhor quarto, a melhor<br />

comida e o melhor tratamento. Um relacionamento diferenciadamente respeitoso. A<br />

escola era frequentada pelos familiares e dependentes de José Jorge bem como pelas<br />

demais crianças da redondeza, <strong>sem</strong> custo algum para quem quer que fosse. Nos últimos<br />

anos de existência dessa escola, houve a colaboração pecuniária da Paróquia de Sertâ-<br />

nia, mediante os bons ofícios do seu vigário, monsenhor Urbano de Carvalho. Só isso.<br />

Durante mais de dez anos ela funcionou graças à perseverança e determinação do velho<br />

José Jorge. Nisso aí ele foi um pai que fez a diferença, é bom que se diga.<br />

A escola de Zefinha Araújo também fez a diferença nas nossas vidas porque, a-<br />

pesar de não ter o apoio oficial, enquanto escola particular, foi uma autêntica promotora<br />

de instrução e civilidade. Na escola de dona Zefinha, estudou a maioria dos filhos me-<br />

nores da nossa família: Conceição, Severino, Anísio e Antônio. Dela não participaram<br />

os filhos mais velhos: Maria, Madia, José, Virgínia, Florisa e Manoel. É que alguns de-<br />

les já tinham sido escolarizados na Paraíba, na escola do mestre Gonçalo e de Antônia<br />

Ananias. Os dois mais novos nascidos em Pernambuco, Elias e Valdeci, frequentaram a<br />

escola pública em Sertânia, quando não mais existia a escola de Zefinha Araújo, na San-<br />

ta Luzia. Os conteúdos de conhecimentos que eram repassados por ela eram, antes de<br />

tudo, de natureza religiosa e de conhecimentos gerais: pontos doutrinários do catecismo<br />

católico, bem como noções de higiene pessoal. Anualmente, os alunos eram preparados<br />

para a primeira comunhão, que geralmente acontecia no dia 8 de dezembro, festa de<br />

Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade. Esse era um grande acontecimento<br />

43


em nossas vidas de meninos e meninas. Em seguida, vinham rudimentos de matemática<br />

– as quatro operações –, de gramática e de leitura. A professora fazia o “ditado” para<br />

treinamento da escrita e também avaliava os conhecimentos por meio dos famigerados<br />

“argumentos”, ocasião em que se fazia uso da palmatória para castigo de quem não a-<br />

certasse as perguntas que eram feitas pela professora. A disciplina era mantida a ferro e<br />

fogo e, além da palmatória, existia também uma régua de madeira, que era comumente<br />

utilizada na repreensão e no castigo físico aos alunos recalcitrantes e malcomportados.<br />

Frequentava a escola de dona Zefinha a maioria das crianças das redondezas da Santa<br />

Luzia, algo em torno de 30 a quarenta alunos. O dia 7 de setembro era o grande dia de<br />

festa para a escola. Havia declamação de poesias e principalmente, o inesquecível “que-<br />

bra-panela”. Nele, a garotada e os adultos desfilavam, um a um, com o rosto vendado,<br />

terreiro afora, em frente à escola, tentando quebrar com uma paulada a panela toda en-<br />

feitada de papéis crepom e recheada de confeitos. Ela ficava dependurada numa corda<br />

que ia de um lado a outro do terreiro. Era um grande dia de alegria para a meninada.<br />

Isso quebrava a rotina de trabalho no roçado e do tanger do gado para os pastos e para a<br />

bebida. Como em toda escola, havia alguns alunos que apresentavam muita dificuldade<br />

no aprendizado e outros nem tanto. De maneira geral, era um momento muito importan-<br />

te para a meninada brincar, na hora do recreio e, até mesmo exercitar muitas trelas ca-<br />

racterísticas da idade de criança.<br />

José Jorge estimulou muito os filhos a se aperfeiçoarem na educação escolar.<br />

Sempre foi um entusiasta da instrução e, particularmente, da boa leitura e da caligrafia<br />

caprichadas. Na instrução via a chave do futuro de todos e de cada um dos filhos. Repe-<br />

tia-nos que um homem analfabeto equivalia a um homem cego. Dotado de aguda sensi-<br />

bilidade e grande interesse para com a educação dos filhos, essa grandeza de sentimento<br />

contrastava, como já assinalamos, com a rigidez e aspereza no seu modo de se relacio-<br />

nar conosco, especialmente quando se tratava da aplicação de castigos. José Jorge tinha<br />

um método demasiadamente autoritário e severo de castigar os filhos e não necessitava<br />

de muitas trelas para aplicar-lhes desmedidas surras, pancadarias, bolos de palmatória<br />

etc. Numa dessas surras em um dos meus irmãos, que me ficou na memória pela bruta-<br />

lidade com que o castigava, presenciei minha mãe se intrometer e gritar com ele, dizen-<br />

do que castigar era uma coisa e matar o filho era outra bem diferente. E tenho a impres-<br />

são que, a despeito de tudo, meu pai ouvia muito minha mãe. Até à idade de cinco anos,<br />

44


não vi meu pai bater em nenhum de nós. Pelo contrário, tinha gestos de afetividade com<br />

os pequenos, colocando-os no colo, mordiscando-lhes a orelha, prendendo-os com o<br />

dedão do pé, apertando-lhes o peito, como se estivesse a tocar uma concertina. Mas, a<br />

partir de sete anos e até a idade adulta, meninos e meninas – sobretudo eles –, todos<br />

sofriam com a sua brutalidade excessiva no ato de castigar e corrigir os filhos. Tinha o<br />

hábito de nos avisar três vezes, antes de castigar. Eram as surras anunciadas. Todos os<br />

filhos se referem à memória familiar onde, por conta disso, faltava uma boa e saudável<br />

relação entre o pai e os filhos. José Jorge, sobretudo, não conversava amavelmente com<br />

os filhos. Lamentava-se mais que conversava. Havia conselhos para a vida, mas rispidez<br />

no trato. Não se tinha a orientação para certas fazes da vida como sexualidade adoles-<br />

cente e adulta, desenvolvimento do corpo, vida afetiva, namoro, casamento etc. Claro<br />

que estas são características de uma cultura familiar sertaneja, e não há como ignorar<br />

que na nossa família também isso não seria diferente. Isso, no entanto, tinha um impacto<br />

marcante mais para as moças do que para os rapazes. O sangramento das primeiras re-<br />

gras, por exemplo, era uma verdadeira tragédia para o despreparo das meninas com re-<br />

lação à sua condição feminina. Mais ainda com relação a cortejar e namorar rapazes.<br />

Imperava o moralismo e a dissimulação do fingimento ou até mesmo da hipocrisia na<br />

medida em que todos, rapazes e moças, terminariam namorando, casando e procriando<br />

filhos. E muitos, por sinal. Que o digam Zé Jorge e a própria dona Verônica. Esse fe-<br />

chamento ao diálogo e à relação afetiva no universo familiar da família Siqueira deixou<br />

as suas sequelas em cada um dos irmãos. Todos, uma vez casados, com raras exceções,<br />

buscaram no relacionamento com suas esposas e os seus filhos agir de modo diferente<br />

da educação que tiveram na infância e que receberam em casa. Apesar das críticas, tem-<br />

se muito respeito e carinho com a figura do nosso pai e da nossa mãe.<br />

Os rudimentos de uma educação elementar recebida na escola de Dona Zefinha<br />

produziriam frutos. Era de se esperar que alguns de nós cultivás<strong>sem</strong>os o gosto e o inte-<br />

resse pelos estudos. Foi o meu caso, o único na família, que decidiu buscar os caminhos<br />

do aprimoramento da instrução, saindo da trilha ocupacional da roça, buscando palmi-<br />

lhar novos caminhos, desenvolvendo novas experiências e novas expectativas de futuro.<br />

Aos doze anos de idade, eu decidi continuar meus estudos no Seminário Diocesano de<br />

45


Pesqueira, aí entrando no dia 7 de março de 1954 23 . Pretendia, naqueles tempos, orde-<br />

nar-me padre católico. Zé Jorge e Verônica acederam ao desejo do garoto que tinha me-<br />

nos de doze anos de idade. Fizeram o que estava ao seu alcance para garantir-me o en-<br />

xoval, já que o ensino no <strong>sem</strong>inário era gratuito. E o fizeram com certa dificuldade, mas<br />

com enorme felicidade e satisfação por ver o filho trilhar um caminho diferente daquele<br />

da roça. Nenhum outro irmão, na minha idade, se aventuraria a isso, nem a sair da Santa<br />

Luzia, muito menos para estudar.<br />

Casa sede de propriedade da Família Jorge Siqueira, em Santa Luzia (Sertânia – PE), que<br />

continua em mãos da família até hoje. (Foto da década de sessenta, pertencente ao acervo da família)<br />

23 Antônio T. Montenegro fez um levantamento exaustivo da história de vida e memórias do bispo de<br />

Cratéus, Dom Antônio Fragoso, filho de agricultores pobres da Paraíba, e que viu no <strong>sem</strong>inário a oportunidade<br />

de uma educação aprimorada, “como muitas crianças e adolescentes nordestinos”, conforme ressalta<br />

o pesquisador. Cf. MONTENEGRO, Antonio Torres. “Arquiteto da memória: nas trilhas dos sertões<br />

de Crateús”, in GOMES, Angela de Castro – Escrita de Si, Escrita da História, Rio de Janeiro: Editora da<br />

FGV, 2004.<br />

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Do que o amor não é capaz?...<br />

Pensando naquele vaqueiro paraibano entendo que, montado ou a pé, ele conti-<br />

nuará trilhando as veredas da caatinga, <strong>sem</strong>pre à procura e buscando incansavelmente<br />

sua prenda perdida. Até porque, uma rês presa no curral não necessita do vaqueiro. O<br />

boi perdido define o essencial do ser vaqueiro. Koselleck tem razão quando fala da im-<br />

portância do futuro onde residem as substancialidades de nossas utopias, saturadas de<br />

nossas experiências do presente. “Navegar é preciso”... A vida em Santa Luzia tinha o<br />

seu ritmo de normalidade naqueles anos iniciais de década de cinquenta. Mas agora já<br />

havia nuvens carregadas no céu da família. Já se havia passado mais de dez anos de<br />

nossa migração da Paraíba para Pernambuco. As filhas e os filhos mais velhos agora<br />

eram adultos bem vividos. Como Madia, que já havia casado, os demais rapazes e mo-<br />

ças da família em idade adulta faziam a corte buscando encontrar futuras esposas e ma-<br />

ridos. Já não eram implumes para alçar voo do ninho referencial da família onde impe-<br />

rava a vontade absoluta de Zé Jorge em busca de outras paragens para expandir a famí-<br />

lia. A família Siqueira passa pelo seu primeiro sobressalto.<br />

São cinco horas da tarde de um dia de muito calor, ali em Santa Luzia. José Jor-<br />

ge tinha saído lá pelas três horas da tarde para ver umas ovelhas no cercado próximo à<br />

casa que foi da velha Josefa Traquinada. Manoel tinha ido cortar uns pés de aveloz que<br />

estavam sombreando o caminho que levava o gado para os pastos do roçado, lá na serra<br />

do fio de telégrafo, próximo do Riacho Queimado. Anísio e Severino tinham saído de-<br />

pois do almoço para catar algodão na várzea próxima ao Juazeiro do Carro. José tinha<br />

ido para Monteiro tirar uns documentos para a sua carteira de identidade. Verônica, co-<br />

mo fazia todos os dias, cuidava de tanger as galinhas para o poleiro e separar os pintos<br />

mais novos dos mais velhos para que não dormis<strong>sem</strong> ao relento. Conceição engomava<br />

umas calças brancas do trabalhador que tinha o nome de Luís Pituta. Elias, Valdeci e eu<br />

providenciávamos palma para o chiqueiro dos porcos, que têm o hábito de comer muito,<br />

inclusive de noite. Virgínia trabalhava em Sertânia, na loja de tecidos do irmão de Ene-<br />

dina, Severino Caminhão. A casa estava praticamente vazia.<br />

47


Na nossa casa, Duda, irmão de Zé Guilherme e de Edite, vai até à janela da sala<br />

da frente, que era a única que estava fechada naquelas horas. Tira-lhe a taramela, escan-<br />

cara e se debruça para fora, olhando em direção ao poente, de onde se avistava a roda-<br />

gem de barro por onde escoava o trânsito que vinha de Sertânia e seguia em direção a<br />

Monteiro, na Paraíba. Só ele sabe de um segredo, àquela altura dos acontecimentos. E<br />

ele sabe que alguma coisa ligada àquele segredo está prestes a acontecer. Depois de<br />

alguns minutos, ele percebe o barulho de um carro de passeio que vem de Sertânia, des-<br />

ce pela rodagem, aproxima-se da Santa Luzia e - detalhe curioso! - o carro acende e<br />

apaga os faróis várias vezes. É o pleno por-do-sol e as luzes daqueles faróis se confun-<br />

dem com os últimos raios no zênite sertanejo daquela tarde. Duda tinha certeza de que<br />

aquilo era a senha para o segredo que estava prestes a deixar de ser segredo. E não deu<br />

outra. O carro se aproxima da casa, diminui a velocidade, depois acelera e, de repente,<br />

some no silêncio das paragens do lusco-fusco da noite cadente do Moxotó pernambuca-<br />

no. Duda vai até o armazém, vizinho à casa, pega uma maleta, envolve-a num saco de<br />

algodão vazio e sai disfarçado em direção à estrada de rodagem. Zeca estava sinalizando<br />

para Flora que viera buscá-la. Logo em seguida, o carro retorna, para e, em meio minu-<br />

to, alguém entra nele, que dá partida em direção de Sertânia, retornando. Alguns minu-<br />

tos depois, Verônica procura falar com Flora...<br />

insiste:<br />

- “Ô ‘Fuloriza’, vem esquentar o xerém pra botar o jantar na mesa!”<br />

Flora, obviamente, não responde porque não está em casa. De novo, Verônica<br />

- “Onde é que está ‘Fulorisa’ que demora tanto?”<br />

Volta a insistir:<br />

- “Vocês viram a Fuloriza?”<br />

Ninguém viu, ninguém sabe a não ser Duda, irmão de Edite, mas Floriza fugiu.<br />

Flora, como nós a chamávamos na intimidade, fugiu pra casar com Zéca. Zeca “roubou”<br />

Flora e foi morar com ela em São Paulo. Há uma explicação para esse roubo ousado, me<br />

parece. Pedida em casamento por um pretendente conhecido da família, José Batista<br />

Torres, havia alguns anos, Zé Jorge negou-se entregar a sua filha para Zeca, como nós o<br />

chamávamos. E assim o fez porque simplesmente não gostava do pretendente, antigo<br />

48


trabalhador braçal da Santa Luzia, desde o início dos anos ciquenta. Zeca não desistiu.<br />

Logo depois de ser preterido, viajou para São Paulo e em seguida conseguiu se empre-<br />

gar. Passados dois anos, tratou de dar o bote naquela que era o seu grande amor e a filha<br />

predileta do velho Zé Jorge...<br />

Eram os primeiros anos da década de cinquenta. O mundo veio abaixo na Santa<br />

Luzia daquela noite... Naquele momento, eu deveria ter uns dez anos de idade. Mas,<br />

lembro bem que foi a primeira vez que vi o meu pai ser “desacatado” em suas vontades.<br />

E não foi uma coisa fácil para o seu modo de ser que, já dis<strong>sem</strong>os, era turrão e inflexí-<br />

vel. No entanto, o que mais lhe doía naquele acontecimento, era porque se tratava da<br />

Flora, a filha mais querida dele. Não precisava muita perspicácia de nossa parte para<br />

perceber que ele tinha por ela uma predileção especial, como dona Verônica tinha a<br />

predileção dela pelo irmão Manoel. Fazer o quê? Parece que esse “romance familiar”<br />

acontece em todas as famílias... O fato é que nós todos, os irmãos, ficamos desorienta-<br />

dos pelo acontecido.<br />

Nas horas que se seguiram ao quiproquó, meu pai tratou de convencer o vigário<br />

de Sertânia, seu conhecido e amigo monsenhor Urbano Carvalho, a não celebrar o ca-<br />

samento. Era o pedido de um pai ofendido. O vigário fingiu que ouviu, mas terminou<br />

informando que o bispo Dom Adelmo Machado, naquele momento, estava na desobriga<br />

da paróquia e, na qualidade de bispo da diocese, tinha jurisdição para administrar qual-<br />

quer sacramento, inclusive o matrimônio, onde e quando quisesse. Zé Jorge deu meia<br />

volta e, contra a sua vontade, Flora casaria no dia seguinte, na cidade de Arcoverde. Zé<br />

Jorge perdeu a parada para o nosso Zeca, que mandara correr os proclamas em outra<br />

jurisdição paroquial. Verônica e Zé Jorge resolveram esquecer que tiveram uma filha<br />

chamada Floriza, e que agora assinava o nome Batista Torres, em vez de Verônica de<br />

Siqueira. Mas, esquecer até quando? É a pergunta que não cala...<br />

49


Primeira foto do casal Florisa (Flora) e José Batista (Zeca), após sua chegada à capital<br />

paulista<br />

No transcurso daqueles anos, vivia-se um período marcado por longas e prolon-<br />

gadas estiagens nos sertões do Nordeste. Nessa década, em especial, tivemos três anos<br />

praticamente ininterruptos de estiagem: 1951, 1952 e 1953. A família Siqueira, no en-<br />

tanto, já havia consolidado o incremento da propriedade de Santa Luzia, adquirindo por<br />

compra algumas terras vizinhas e fazendo benfeitorias em novas áreas agricultáveis.<br />

Garantia-se, apesar das secas, a pastagem para o gado de leite e o rebanho de ovelhas. A<br />

base da produção anual ainda era palma, milho, feijão e o cultivo do algodão. Os cereais<br />

colhidos no meio do ano eram envazados em grandes tonéis de zinco, guardados no<br />

armazém e, desse modo, não apenas garantiam o consumo doméstico como eram co-<br />

mercializados nos bons momentos em que tinham melhor valor de mercado. O algodão,<br />

por seu turno, tinha que ser ensacado e vendido de imediato para não perder peso. E era<br />

a cultura com que ele saldava suas dívidas que se acumulavam no decorrer do ano, es-<br />

pecialmente nos meses de seca. Não foram muito raras as ocasiões em que José Jorge<br />

vendeu a safra de algodão, utilizando todo o lucro para saldar dívidas contraídas, <strong>sem</strong><br />

lhe sobrar absolutamente nada. A fibra do algodão beneficiado era vendida aos grandes<br />

compradores da praça algodoeira de Sertânia, que eram: Boxwel, Feliciano Morais,<br />

Francisco Pinheiro, Raul Guimarães, Anderson Clayton e SANBRA, além de outros<br />

compradores menores da terra.<br />

50


A memória da família é unânime em afirmar que aquele momento fora particu-<br />

larmente um dos mais difíceis para a família, a despeito de ela já poder ser classificada<br />

como “remediada”, em termos de bens, situação bem diferente daquela da Matarina.<br />

Mas havia novas dificuldades porque além das estiagens prolongadas, o algodão agora<br />

sofria com o assédio das pragas e a fibra da variedade de algodão “mocó” começava a<br />

declinar em sua aceitação de mercado. Não que a família chegasse a passar fome ou<br />

necessidades alimentares. É que <strong>sem</strong>pre se teve o leite, os derivados do milho e o feijão<br />

de corda para garantia da mesa, além de uma parca mistura de carne, ovos e derivados<br />

do leite. Mas era um período difícil no sentido de se garantir o suprimento alimentar<br />

para uma casa cheia: onze filhos, dez trabalhadores e agregados diversos. Foi nesse pe-<br />

ríodo que Verônica se afirmou como a grande provedora. Todos os estranhos à família,<br />

falando daqueles tempos difíceis, ressaltam a generosidade dela, nunca negando um<br />

prato de comida para muitos filhos dos agregados e moradores que não tinham uma me-<br />

sa farta. A dieta que mais nos faz lembrar as “penúrias” desses tempos difíceis das se-<br />

cas, no período, é o feijão de corda, com farinha de milho, ou mesmo o xerém, cozido<br />

com água e sal. Até ovo era luxo. Com o toucinho do porco se fazia milagres... Na hora<br />

da mesa, José Jorge exigia que todos estives<strong>sem</strong> presentes. Verônica costumava dizer<br />

que “comida repartida não rende”. E, na hora das refeições, era ela mesma quem distri-<br />

buía a “mistura” de carne nos pratos de cada comensal. Aqui e ali privilegiava um filho<br />

em detrimento dos outros, com um melhor ou maior pedaço de carne. Quanto aos crité-<br />

rios dessa distribuição ela nunca se sentiu instada a torná-los público. Manoel, que, ape-<br />

sar de casado, praticamente vivia o tempo todo em casa dos pais, quando das refeições<br />

escondia os pedaços de mistura dentro do próprio prato, tentando mostrar que o mesmo<br />

estava vazio, e isso irritava, e muito, dona Verônica. Além da família restrita, dos mora-<br />

dores e dos trabalhadores agregados, aumentava a parentela. Madia, que havia casado<br />

com José Guilherme, e que morava no Riacho Queimado da Santa Luzia, tinha contri-<br />

buído com seis netos, que muito dependiam da provisão e dos cuidados de Verônica e<br />

de José Jorge, repartindo com eles o que tinham e podiam. Zé Guilherme saíra da antiga<br />

casa de taipa e, com a ajuda de José Jorge, levantou uma nova casa de alvenaria, bem<br />

mais ampla e confortável. Manoel, casado com Anísia Florindo, tinha quatro filhos.<br />

Morou inicialmente numa casa vizinha à nossa primeira casa da Santa Luzia. Tempos<br />

depois, com a compra das propriedades vizinhas de José Bernardo e de Francisco Félix,<br />

51


ele passou a morar na casa grande dos Félix. Passava o dia todo conosco e, apenas à<br />

noite, ia dormir com sua família.<br />

Nesse mesmo período, e pela primeira vez, a família Siqueira descobriu que a<br />

agricultura familiar não era suficiente para fazer face às demandas da vida doméstica,<br />

somadas às outras necessidades, como vestuário, saúde, custeio dos estudos, etc. Verô-<br />

nica, que até então contara com ajuda da Flora, tinha uma boa prática de costura de rou-<br />

pa para a família e decide costurar de “carregação”, como se dizia na época. Recebiam o<br />

tecido para calça e camisa, em consignação; cortavam, costuravam e entregavam a rou-<br />

pa pronta e engomada. Costuravam de vinte a trinta peças por <strong>sem</strong>ana. Ao final da se-<br />

mana, levavam a Sertânia para serem entregues ao vendedor. E esse trabalho era feito<br />

apenas com uma máquina de costura manual. Foi esse mesmo trabalho que permitiu um<br />

ganho extra, possibilitando à família alternativas de renda para enfrentar as demandas<br />

crescentes.<br />

Talvez pela mágoa, não curada, do casamento extemporâneo da Flora, foi, i-<br />

gualmente, nesse período que os rapazes e moças da família mais enfrentaram a cultura<br />

de resistência de José Jorge, privando-os das atividades de lazer, de saída à cidade, de<br />

festas e pequenos bailes na vizinhança e até da frequência à missa dominical. Sair de<br />

casa para qualquer lugar ou finalidade tinha que ter a permissão do patriarca. Verônica,<br />

porém, nesse mister, revelava-se muito mais flexível e até algumas vezes cúmplice das<br />

filhas. Para os rapazes, o problema maior não era sair de casa, e sim chegar de volta, nas<br />

caladas da noite. José Jorge nutria uma empedernida má vontade com essas frivolidades<br />

lúdicas dos filhos. Das filhas, nem falar. Quando elas pediam permissão para ir à missa<br />

aos domingos, ele via aí uma duplicidade de intenções. E resistia, a despeito das contra-<br />

riedades de Verônica. Os bailes mais frequentados - quando permitidos – eram na casa<br />

do Tio Umbelino, irmão de minha mãe, bem próximo à nossa casa. Foi lá que se inicia-<br />

ram também os namoricos dos filhos e das filhas com moças e rapazes da vizinhança e<br />

até mesmo trabalhadores da casa, como foi o caso de Zeca com quem a Flora terminaria<br />

casando. Que reboliço, repito!<br />

É bem verdade que, lá pelo final dos anos quarenta, e início dos cinquenta do sé-<br />

culo passado, a situação financeira da família evoluiu positivamente, superando as ad-<br />

versidades dos tempos anteriores da Matarina. Isso permitiu uma pequena folga finan-<br />

52


ceira, que passou a ser aplicada na compra de terras vizinhas – caso de Zé Bernardo e<br />

Francisco Félix – e, especialmente, na construção de uma mais confortável casa de al-<br />

venaria, em local não muito distante da primeira casa de morada. Nessa nova residência<br />

a família viveu a maior parte dos anos e, nela também, José Jorge viveu os seus últimos<br />

dias de vida quando, no ano de 1972, faleceu, aos 74 anos de idade. Era uma casa com<br />

ampla sala (“de fora”), arejada, com cinco janelas, voltada para o poente; dois quartos<br />

de dormir, outra grande sala (“de dentro”), com duas janelas, onde se faziam as refei-<br />

ções. Toda ela rebocada com argamassa à base de cal. Um pequeno corredor levava à<br />

cozinha, ampla, com fogão de lenha e chaminé; um pequeno quarto que servia de des-<br />

pensa; fechado, só tinha uma porta, que Verônica fechava a chave e guardava no bolso,<br />

garantindo draconianamente o suprimento da família. Interessante é que os quartos de<br />

dormida – dos pais e das moças – não tinham janelas para fora, apenas uma porta de<br />

entrada. O piso era de tijoleira artesanal. O telhado era de madeira tirada da propriedade<br />

e coberta com telhas canal. Ao lado da casa, José Jorge construiu um imenso armazém<br />

para guardar os mantimentos. Posteriormente, construiu mais um pequeno armazém,<br />

com piso cimentado, telhado reforçado para, segundo ele, valer-lhe de refúgio quando<br />

em noites de chuvas movidas a relâmpago e trovões, coisa de que ela tinha muito medo,<br />

argumentando que “a natureza tinha muitos caprichos”. Dois anos após levantar a nova<br />

casa, teve a brilhante ideia de construir uma cisterna para armazenar água doce, com<br />

capacidade para 150.000 litros captados com imensa facilidade no telhado da casa. Des-<br />

de que foi feita essa cisterna, nunca faltou água doce para suprimento da casa, inclusive<br />

para os banhos de canecos, nos finais de <strong>sem</strong>ana.<br />

Apesar das dificuldades, esse padrão de vida descrito acima garantia à família<br />

viver de modo “remediado”, meio estágio entre pobreza e riqueza; jamais miséria e pri-<br />

vações. Mas, José Jorge e, sobretudo, Verônica, viam ameaçado o futuro dos filhos.<br />

Viam o Nordeste minguando em possibilidades de oferecer aos filhos um padrão de<br />

vida menos suado do que o do <strong>sertão</strong> de Santa Luzia. O êxodo do Nordeste se fazia mais<br />

intenso, a cada ano. São Paulo era uma miragem nesse deserto nordestino. Verônica não<br />

teve dúvidas, apontou em direção do Sudeste e disse que aquela era a hora de cada um<br />

procurar seus novos meios de vida. A experiência estava sendo posta à prova pelas no-<br />

vas expectativas de futuro. Mais uma vez, na história da família, o futuro mudava de<br />

cores e reluzia nas sombras do presente. Verônica percebeu e expressou isso muito bem.<br />

53


Uma família em diáspora...<br />

Lentamente, José Jorge vê os filhos migrarem para São Paulo em busca de um futuro<br />

mais promissor que o da Santa Luzia<br />

Ao final dos anos cinquenta, São Paulo crescia a olhos vistos e virou a locomoti-<br />

va do Brasil. “São Paulo não pode parar”, era o lema da embriaguez do crescimento<br />

acelerado da metrópole sudestina. Não apenas São Paulo, mas, em menor escala, o Rio<br />

de Janeiro. O êxodo de braços do Nordeste, servindo como mão-de-obra em São Paulo e<br />

em Brasília tornou-se algo que, dificilmente, seguraria os jovens em seu lugar de ori-<br />

gem. E, como já assinalamos, em Santa Luzia, Verônica, - mais uma vez Verônica –<br />

bradou alto e em bom som que o futuro não estava mais ali, em Sertânia; com certeza,<br />

estava fora, não sabia ao certo onde. Afinal, até “Fulorisa”, a filha querida, havia se<br />

mandado de casa para São Paulo, onde o marido Zeca ganhava bem a vida com ela.<br />

54


Começa o ano de 1956 no Moxotó pernambucano, um ano de seca, também, em<br />

Santa Luzia. O espectro das estiagens prolongadas minava a coragem das pessoas para o<br />

trabalho. Trabalhar na lavoura, no Nordeste, era remar contra a maré do futuro. Por isso<br />

mesmo, Verônica exortara que os filhos saís<strong>sem</strong> à procura de dias melhores e esqueces-<br />

<strong>sem</strong> a labuta na lavoura sertaneja. Quem decidisse viajar para São Paulo e outros luga-<br />

res teria a sua bênção e o seu incentivo. José Jorge era mais precavido, mas mesmo as-<br />

sim concordava com a esposa. Naqueles anos, em Santa Luzia, já era comum os filhos<br />

mais velhos, especialmente aqueles mais dedicados ao trabalho, botarem os seus roça-<br />

dos com o objetivo de buscar uma autonomia de renda, preparando-se para um casa-<br />

mento ou outros sonhos da idade. Anísio foi um deles e, naquele ano de 1956, botou<br />

uma roça de seis quadros de terra; por conta da seca perdeu tudo, não lucrou nada. Esse<br />

fato foi decisivo para dar razão à mãe, Verônica, e ele resolveu migrar para São Paulo,<br />

seguindo os seus conselhos. Juntamente com ele, viajaram também o irmão José e a<br />

mana Virgínia, ambos mais velhos que o próprio Anísio. Foi dado a largada para uma<br />

diáspora da família. Uma viagem <strong>sem</strong> retorno, diga-se de passagem. A duras penas a-<br />

prendíamos que migrar do Nordeste para o Sudeste, do <strong>sertão</strong> para a cidade, significava<br />

que cada um era migrante de si mesmo em busca de turvos sonhos de dias melhores,<br />

mas <strong>sem</strong>pre sonhos.<br />

Essa característica de migrar em busca do futuro mais promissor para cada um<br />

passou a ser o novo momento da história e da memória familiar dos Siqueira. Eu mesmo<br />

fui o primeiro a deixar o ninho familiar, em 1954, buscando o meu futuro nas conquistas<br />

do aprimoramento educacional acalentando o desejo de me tornar padre. Os demais<br />

irmãos que migrariam para o Sudeste buscavam também a melhoria do seu futuro, ga-<br />

rimpando empregos, novas ocupações e especialmente a qualificação técnica de que<br />

precisavam em substituição às tarefas da roça sertaneja. Precisava-se, sobretudo, de<br />

muita coragem, arrojo e determinação para conquistar o horizonte desse futuro, mal<br />

desenhado no seu formato, porém muito desejado nos seus desdobramentos e virtuali-<br />

dades.<br />

Evidente que em São Paulo já existiam muitos imigrantes nordestinos, entre eles<br />

a figura guerreira da Flora, que teve a coragem de contrariar o velho Zé Jorge para obe-<br />

decer as razões do coração. Coragem de afrontar o carrancismo do pai e, ainda mais<br />

coragem, quando escolheu viver no Sudeste, antes de qualquer pessoa da família, antes<br />

55


mesmo de qualquer um dos irmãos. Flora e seu marido, Zeca, seriam o grande suporte e<br />

o decisivo apoio que incentivariam os irmãos a migrarem e se juntarem a ela para deli-<br />

near um futuro mais promissor do que o dia-a-dia de Santa Luzia do Moxotó pernambu-<br />

cano. A acolhida e a ajuda que o casal deu à família nesse momento é algo crucialmente<br />

decisivo e muito enraizado nas recordações e memórias de todos da família que tenham<br />

viajado para S. Paulo. Fugindo com Zeca para se casar contra a vontade dos pais, Flora<br />

foi para São Paulo, onde Zeca já trabalhava. Passaram a morar na Vila Carioca, num<br />

precário barraco de madeira, na Rua Brás de Pina. O casal, naqueles anos seguintes,<br />

abriu as portas do barraco e do coração sertanejo para acolher a família Siqueira, que, a<br />

partir daqueles anos, protagonizaria um novo ciclo de migração, rompendo com um<br />

determinismo cultural e atávico do amor incondicional que o sertanejo tem com o seu<br />

torrão natal. A partir daquele instante, a família Jorge Siqueira deixava claro que o amor<br />

à terra não é um elemento insuperável e impeditivo para se perseguir um futuro melhor<br />

e instituir uma história de buscas.<br />

Não se tratava apenas de mais uma viagem para outros mundos novos e desafia-<br />

dores. Era uma viagem penosa o trajeto que separava o Nordeste da cidade de São Pau-<br />

lo. Uma longa viagem, que demorava mais de dez dias. Com estradas precárias, como a<br />

Rio-Bahia, cheia de buracos, lama e precipícios que colocavam em risco a vida dos que<br />

nela se aventuravam, mesmo que se viajasse de ônibus, como foi o caso de Anísio e dos<br />

demais irmãos. A maioria dos nordestinos viajava de caminhão, e foi nessa época e nes-<br />

sas condições que proliferou a figura maldita do pau-de-arara, de triste memória. Cabe<br />

frisar que todos os familiares de Jorge Siqueira, parentes ou aderentes, falaram com<br />

muita clareza em seus depoimentos quão precárias e sofridas foram todas as viagens de<br />

deslocamento do interior do Nordeste para a cidade de São Paulo. Esse é, talvez, o traço<br />

mais marcante de todos os depoimentos colhidos.<br />

56


Na memória da família, no entanto, nenhuma das viagens para São Paulo teve o<br />

sofrimento e a gravidade daquela que a mana Madia fez com os seus seis filhos, em<br />

1959, viajando de Sertânia para São Paulo e, daí, para o Paraná, a fim de juntar-se a Zé<br />

Guilherme. A viagem dela, com sete filhos, em cima de um pau-de-arara, tem todas as<br />

características de uma quase tragédia, ou, dadas às circunstancias da própria viagem,<br />

uma tragédia anunciada. O caminhão que levava as famílias, entre elas Madia com os<br />

filhos, abandona os migrantes ao seu próprio destino ainda em Salgueiro, Pernambuco.<br />

A polícia precisou intervir, obrigando os donos do caminhão a retomar a viagem. No-<br />

vamente, em Vitória da Conquista, Bahia, o caminhão some e deixa as famílias à mín-<br />

gua, sofrendo fome, enfrentando doenças e completamente desassistida. Conseguiram<br />

ser levados até Governador Valadares, Minas Gerais, e lá Madia e umas amigas de via-<br />

gem juntaram os seus esforços e trocados e pagaram um caminhão da Fabrica Nacional<br />

de Motores – os populares “fenemês” da década de cinquenta – que os deixaria em São<br />

Paulo. Em Tucano, por pouco um dos filhos de Madia, Osvaldo não morreria de uma<br />

queda em que sumiu numa boca de lobo da sarjeta pública. O caminhão “fenemê” que<br />

os leva a São Paulo, finalmente, despeja os migrantes na Estação da Luz, como mendi-<br />

gos entregues aos cuidados públicos e como maltrapilhos da caridade cristã. As crian-<br />

ças, em sua maioria, estavam doentes, algumas em fase terminal, por conta de diarreias.<br />

Foi o caso de um dos filhos de Madia, Erasmo, que foi salvo graças à caridade de uma<br />

cafetina da Rua da Aurora, que orientou-a a levar a criança para os cuidados da Santa<br />

Casa de São Paulo. A memória que a própria Madia narra dessa trágica aventura chega a<br />

ser comovente. Juntaram os tostões que restavam e foram amontoados numa pensão<br />

57


infecta do bairro paulistano da Luz. A saga da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da<br />

Silva para São Paulo e o protagonismo de sua intrépida mãe, dona Lindu, não é única no<br />

heroísmo dos seus sofrimentos nem a última nos seus significados e desdobramentos, na<br />

memória dos nordestinos. A história da viagem de Madia que o diga.<br />

A despeito dessa tragédia, a viagem dela com os filhos para o Paraná seria tam-<br />

bém mais uma das viagens dos filhos e filhas da família Siqueira, que empreenderiam<br />

uma diáspora rumo aos incertos horizontes do futuro, obedecendo aos conselhos de Ve-<br />

rônica. Difíceis decisões aquelas de sair de casa. Todos, absolutamente todos os filhos e<br />

filhas, migraram na busca desses horizontes futurosos. Óbvio quem nem todos saíram<br />

de uma vez, deixando os velhos sozinhos. Mas a Santa Luzia lentamente foi se esvazi-<br />

ando.<br />

A primeira a deixar o seio da família, como vimos, foi Flora, contra a vontade<br />

dos pais, fugindo para São Paulo e para casar; isso nos idos de 1952. Em seguida, fui eu,<br />

que saí de casa para o <strong>sem</strong>inário de Pesqueira, em 1954, onde concluiria o primário e<br />

depois o ginasial. Em seguida, viajaria para o <strong>sem</strong>inário de João Pessoa, em 1958, onde<br />

deveria cursar o curso clássico, após o que peguei o caminho para o Seminário de Via-<br />

mão, na grande Porto Alegre, no ano de 1962, a fim de cursar filosofia e, em 1964, via-<br />

jaria para a Europa, Fribourg, na Suíça, concluindo os estudos de teologia para então me<br />

ordenar padre; o que não aconteceu. Terminei desistindo da ordenação, para frustração<br />

dos pais, e fui estudar na França, em Paris, nas cinzas de maio de 1968, retornando ao<br />

Brasil somente no início dos anos setenta. Em 1957, reiteramos, foi a vez de Anísio, de<br />

Virgínia e de José, que arrumaram os trapos e seguiram em direção a São Paulo, aten-<br />

dendo aos apelos de Flora e Zeca, que, uma vez mais, os acolheria não apenas como<br />

irmãos, mas como filhos, em sua casa. Flora, entre os irmãos, em questão de tempera-<br />

mento, foi aquela que mais se as<strong>sem</strong>elhou ao nosso pai: na determinação, no pavio cur-<br />

to, na rigidez, na retidão de caráter e no senso de justiça.<br />

Nor(destinos) e Su(destinos)...<br />

Pretendo falar da cidade de São Paulo – na verdade, a sua periferia - focada na<br />

ótica da família nordestina e sertaneja, caso de minha família. E, para ser fiel e coerente,<br />

58


também com as falas dos familiares entrevistados. São Paulo passaria a ter a reverbera-<br />

ção de um ambiente de parentela muito peculiar à tradição e cultura da família Siqueira<br />

e, igualmente, do <strong>sertão</strong> nordestino, caracteristicamente rural. Após a chegada a São<br />

Paulo, de Anísio, José e Virgínia, seguiram-se as viagens de Severino, Manoel, Concei-<br />

ção e, por fim, de Elias e de Valdeci. Em São Paulo, Manoel demora pouco tempo e,<br />

antes mesmo dos anos sessenta, ele volta para o Nordeste. Foi dos únicos que não se<br />

adaptaram à cidade e ao sistema fabril de São Paulo. No intervalo de 1968 a 1969, Aní-<br />

sio e Severino, já casados, retornam com a família para Santa Luzia, pensando reviver<br />

parte do que foi a experiência de vida, anteriormente à ida para São Paulo. Foi um perí-<br />

odo de longas e intermináveis dificuldades e, novamente, a liderança de Flora se impôs<br />

e reconduziu os dois para o lugar de onde não deviam ter saído, segundo ela. Ela <strong>sem</strong>pre<br />

repetia que, voltar ao Nordeste para rever as pessoas e matar saudades da terra era uma<br />

coisa; voltar para ficar era outra bem diferente, o que ela jamais faria na vida, como de<br />

fato não o fez. A Madia, entretempo, foi se encontrar com José Guilherme, no Paraná, e<br />

passou de passagem por São Paulo, conforme narramos em sua sofrida aventura. A<br />

família Siqueira mergulharia agora nas vivências urbanas de uma megalópole que ape-<br />

nas lhes sorria com oportunidades de emprego e direitos trabalhistas inerentes ao mundo<br />

da fábrica.<br />

59


Reunião das Famílias Jorge Siqueira e Batista Torres que, sob liderança de Flora e Zéca,<br />

migraram para São Paulo, na década de cinquenta. Foto em frente ao barraco-residência<br />

do casal, na Rua Brás de Pina, na Vila Carioca. (Foto do acervo das famílias)<br />

Uma vez estabelecida em São Paulo, a segunda geração da família Siqueira, - no<br />

caso, os filhos -, fixou algumas prioridades de objetivos, nesse clima de diáspora serta-<br />

neja e familiar, do campo para a cidade, do Nordeste para o Sudeste. Começaria apon-<br />

tando a primeira dessas prioridades. Ouvindo os depoimentos, percebe-se que a grande<br />

adversidade com que os familiares se defrontariam na chegada a São Paulo consistiu<br />

numa lenta e difícil adaptação com a cidade grande, especialmente uma metrópole com<br />

o clima adverso como o de São Paulo: frio e garoa, nos meses de inverno; calor sufo-<br />

cante, na época de verão. Morando na periferia paulistana - Vila Carioca - em condições<br />

precárias, os da família estariam mal apetrechados para o rigor dos meses de inverno de<br />

São Paulo, pelo menos no início, logo ao chegarem ao Sudeste. O próprio fato de vive-<br />

rem nas vilas e subúrbios de São Paulo - Vila Carioca, Vila Ema, Sapopemba, Vila Car-<br />

rão -, dificultava a adaptação à cidade, na medida em que grande parte de sua população<br />

era migrante do Nordeste, especialmente da Bahia e de Minas Gerais. A cidade que os<br />

acolhia, portanto, não era a São Paulo, paulistana. As amizades e interações que se efe-<br />

60


tivavam no dia-a-dia ainda referiam-se a persistente reverberação de uma cultura nor-<br />

destina, bem distinta da cultura paulista e sudestina. Mais ainda no caso da família Si-<br />

queira, que, sob a liderança de Flora e Zeca, se mantinha como um clã, muito unida en-<br />

tre si, relativamente fechada e pouco preparada para uma mudança de visão e percepção<br />

de mundo diferente daquele do <strong>sertão</strong> nordestino. Saíram do Nordeste, mas nele ainda<br />

continuavam. Para além do padrão cultural-comportamental, isso também se refletia no<br />

padrão alimentar da família que, vivendo em São Paulo, abastecendo-se nas feiras da<br />

capital, alimentavam-se quase do mesmo modo que no Nordeste pernambucano. O<br />

mesmo acontecia com os oriundos da Bahia, de Minas, do Ceará etc.<br />

A segunda dificuldade com que os migrantes nordestinos de Santa Luzia se de-<br />

frontavam era a batalha do emprego. Para uma população migrante, habituada e habili-<br />

tada no dia-a-dia do trabalho na agricultura sertaneja e no manejo de uma pecuária inci-<br />

piente, assumir o emprego numa fábrica nunca foi uma fácil tarefa. Dada a abundância<br />

de oferta de emprego naquela época, a maioria dos irmãos assumiu postos de trabalhos<br />

com maquinaria industrial, <strong>sem</strong> a menor capacitação profissional. No entanto, os salá-<br />

rios eram compensadores, mormente para quem nunca fora assalariado, como era o caso<br />

dos nossos sertanejos. A maioria dos irmãos buscou a formação profissional, frequen-<br />

tando à noite e com muitas dificuldades as escolas do SENAI. E, apesar disso, o mi-<br />

grante nordestino <strong>sem</strong>pre deu prova de uma grande capacidade de aprendizado e adap-<br />

tação em novas funções no mundo do trabalho. Tivemos na nossa família plainadores<br />

mecânicos, frezadores, soldadores e outras profissões de relativa complexidade técnica<br />

para as tecnologias daquela época. O mundo da fábrica tem suas enormes diferenças<br />

com relação ao mundo da roça. Um abismo de cultura, de competências e novas deman-<br />

das os separa. A distância das fábricas, as difíceis condições de trabalho e a precarieda-<br />

de nos transportes da capital paulistana eram adversidades que deveriam também ser<br />

suplantadas, após a batalha do emprego. De qualquer modo, o grande sonho de cada um<br />

dos membros da família que migraram do <strong>sertão</strong> para São Paulo era ter um emprego e<br />

receber o primeiro salário. Na memória de cada um dos da segunda geração, o item em-<br />

prego e salário é visto como o farol sinalizador de um mundo novo, com novas perspec-<br />

tivas de vida. Essa realidade concreta do emprego passava agora uma esponja nas ad-<br />

versidades da vida em Santa Luzia, nas lembranças dos percalços da viagem para São<br />

61


Paulo e na inclemência fustigante da garoa paulistana. O <strong>sertão</strong> pernambucano agora<br />

passaria a ser uma grande e renitente saudade.<br />

Um terceiro objetivo prioritário da família, na cidade grande, passa a ser a luta<br />

pela aquisição da moradia - a casa -, cuja centralidade é sublinhada nos depoimentos<br />

dados pelos membros de toda a família Siqueira. Essa conquista da moradia começava<br />

pela aquisição de um lote de terreno, o primeiro degrau nessa escala de prioridades. São<br />

Paulo crescia a olhos vistos. E os loteamentos disponíveis e ao alcance das possibilida-<br />

des financeiras da população de baixa renda, em sua maior parte, se localizavam na pe-<br />

riferia da cidade. Nessa época, proliferavam as inúmeras vilas que hoje povoam a zona<br />

leste e norte de São Paulo. Para além da Vila Prudente, localizavam-se os loteamentos<br />

da Vila Ema, Vila Diva, Parque São Lucas, Vila Alpina etc. Fato emblemático dos laços<br />

de parentesco, a família Siqueira, quase toda, comprou terreno na Vila Ema, até mesmo<br />

os sobrinhos. E a Vila Ema mais parecia um pedaço do Nordeste do que mesmo um<br />

bairro da capital paulistana, coisa muito comum numa cidade como São Paulo. Adquiri-<br />

dos os lotes, agora se impunha levantar as casas. E a família, muito unida e solidária,<br />

passou a fazer <strong>sem</strong>analmente mutirões de construção: alguns como chefes de obras,<br />

outros como simples pedreiros e a grande maioria como ajudante de construção. Levan-<br />

taram mais de dez casas. Cada mutirão era um domingo de festa bem nordestina, com<br />

muita comida e bom humor. A precariedade de infraestrutura daquelas vilas, nos pri-<br />

mórdios de seu surgimento, era algo de doer no coração. Terrenos demasiadamente pe-<br />

quenos e estreitos. Casas coladas umas às outras e <strong>sem</strong> recuo para a rua. Inexistência de<br />

rede de esgoto e de captação de águas pluviais. Tudo isso tornava as ruas dessas vilas<br />

um imenso atoleiro de lama constituída de um barro vermelho que tingia os sapatos e a<br />

roupa. Tudo era comercializado em quitandas improvisadas. No decorrer da década de<br />

1960, o que imperou na periferia da zona leste de São Paulo foi essa precariedade lega-<br />

da por sucessivas administrações que não planejaram o crescimento e a expansão da<br />

metrópole. Nesse caso, os Siqueira foram protagonistas de um pioneirismo na luta pelo<br />

chão e pela construção da sua moradia em São Paulo, uma comprovação de que, mesmo<br />

em condições adversas, a família não perdeu sua coesão e pertença identitárias. A luta<br />

por empregos duráveis e dignos tinha a contraface da moeda: levantar a casa como um<br />

importante marco patrimonial. Emprego, família e moradia, esse foi o trinômio da famí-<br />

lia sertaneja em sua nova forma de dispersão e busca de sobrevivência longe dos parâ-<br />

62


metros do solo sertanejo e nordestino. Entretanto, no caso de nossa família,uma terceira<br />

geração já estava a caminho, e a migração de Santa Luzia, do Nordeste, se consumava e<br />

se consolidava como diáspora <strong>sem</strong>, no entanto, perder a identidade familiar, sertaneja e<br />

nordestina.<br />

Vem, agora, um quarto e último objetivo nas aspirações dos sertanejos de Santa<br />

Luzia, na “terra da garoa”. Vivendo em São Paulo, onde o dinheiro corria solto, os ser-<br />

tanejos nordestinos vivenciavam o ritmo veloz da modernidade urbana da sociedade<br />

capitalista de consumo. São Paulo da “garoa” se desenhava com um novo horizonte na<br />

estabilidade dos empregos, já vimos. Tudo isso era um contraponto à vida sofrida do<br />

Nordeste. Com todos esses ingredientes, outro objetivo importante passava então a in-<br />

fluir nos corações e mentes dos filhos e filhas de Seu Zé Jorge e de dona Verônica. Era<br />

casar com uma moça – de preferência nordestina – e constituir família. Creio não ser<br />

exagero declarar que todos os irmãos homens da família Jorge Siqueira casaram com<br />

moças oriundas do Nordeste. Somente a mana Virgínia é que foi exceção a essa regra,<br />

desposando Aldir, um carioca radicado em São Paulo, operário de fábrica. E essa endo-<br />

gamia regional e sertaneja perdura ainda hoje nos familiares da terceira geração de São<br />

Paulo. Um claro sinal de que os laços culturais sobrevivem com grande força e que a<br />

parentela sertaneja é uma instituição forte como cultura que não se deixa moldar facil-<br />

mente no tempo e no espaço. Não esqueçamos que Zé Jorge e Verônica tinham rifado a<br />

filha Florisa do convívio familiar. Na família, haveria novos desdobramentos em cima<br />

daquelas feridas ou mesmo dessas cicatrizes. Estava aberto o caminho da reconciliação,<br />

onde o tempo, como se diz, talvez tenha atuado como “senhor da razão”.<br />

“Ninguém se perde, de volta à casa paterna" 24 ...<br />

24 Frase atribuída a José Américo de Almeida, renomado escritor paraibano e ator político de relevante<br />

atuação nos desdobramentos políticos da Revolução de 30, no Nordeste.<br />

63


Chega o mês de dezembro do ano de 1959, em Santa Luzia, um dia de sábado.<br />

Fim de ano no <strong>sertão</strong> do Nordeste é <strong>sem</strong>pre um tempo de festas, usando-se dos parcos<br />

lucros da venda dos cereais e principalmente do algodão. Época de sol escaldante, que,<br />

de tão quente, provoca as primeiras trovoadas. Mas, há quanto tempo já não se tinha<br />

notícia de trovoadas no Moxotó, no mês de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de<br />

Sertânia?! Logo de manhã, o velho Zé Jorge veste o seu terno de linho branco, põe na<br />

cabeça o seu infalível chapéu de massa, marca Prada. Toma um transporte e segue para<br />

a cidade a fim de encontrar alguns velhos amigos, prosear, falar dos políticos, queixar-<br />

se das prolongadas faltas de inverno... Lá chegando, não é difícil encontrar Caboclo<br />

Lulu, Mundico, Seu Pule, Morais e o compadre Zé Antônio, todos habituados a bebe-<br />

rem juntos uma cerveja Antarctica, geladinha, geladinha... O pai beber com os filhos é<br />

falta de respeito, opinava Zé Jorge, do mesmo modo que o filho fumar na vista do pai é<br />

falta de vergonha. Beber e fumar com os de fora, não.<br />

As obrigações da feira, deixasse que Verônica tomaria conta delas, e muito<br />

bem. Havia até uns dinheiros pra receber de uns comerciantes de carne que lhe compra-<br />

ram dois carneiros medianamente gordos. Zé Jorge jamais gostou de negociar com mar-<br />

chantes. Roubam no peso, no preço e choram na hora do pagamento, queixava-se. Ve-<br />

rônica é quem sabia muito bem lidar e encarar aquela corja. Não pagou, ela leva a carne<br />

e fica pago. Está certa ela! Só à tardinha ela voltaria para o sítio. Tinha ainda umas co-<br />

madres para visitar.<br />

O tempo passou rapidamente, e Zé Jorge se deu conta de que já eram quatro ho-<br />

ras da tarde. Tinha bebido <strong>sem</strong> almoçar. Não estava bêbado, apenas um pouco “mela-<br />

do”. Em casa estavam Antônio, o <strong>sem</strong>inarista, que viera passar férias de fim de ano,<br />

assim como Elias e Valdeci. De repente, o silêncio do casarão de Santa Luzia é quebra-<br />

do com o barulho do motor Mercedes Benz de um ônibus que fazia a linha de São Paulo<br />

a Campina Grande e que estaciona no terreiro da casa. De dentro, sai sorridente Irene,<br />

filha da Flora, na época apenas uma garotinha sapeca de uns nove anos idade. Em se-<br />

guida, Anísio, bastante tenso, bem-vestido e acompanhado de Flora e de Zeca. Não sa-<br />

biam que Zé Jorge estava em Sertânia, muito menos tomando uma cervejinha. Flora e<br />

Zeca logo entram no clima de quem volta à casa paterna: apreensivos, mas felizes. Nada<br />

64


tinham do que se penitenciar, a não ser ter causado tanto desgosto aos pais. Mas ela só<br />

casaria com quem ela quisesse como de fato casou. E não tinha arrependimento.<br />

Quatro e meia da tarde. O sol começava já a declinar no céu sertanejo de sábado<br />

daquele mês de dezembro. Na rodagem um carro de passeio, modelo Mercury, de cor<br />

preta, para, e Zé Jorge logo se despede do velho e conhecido motorista Severino Henri-<br />

que. Anísio vai ao seu encontro, e o velho demonstra toda a felicidade de pai que não<br />

via o filho há anos. Inicia-se uma longa caminhada, num curto caminho que ia da mar-<br />

gem da rodovia até o terreiro da casa.<br />

- Pai, tenho a alegria de lhe comunicar que vim para casar com Enedina.<br />

- Muito bem, Anísio, tem a minha bênção e esteja certo de que receberei os ami-<br />

gos na nossa casa.<br />

- Mas, é o seguinte, pai, convidei Flora e Zeca para serem meus padrinhos de ca-<br />

samento. Eles vieram, estão aí e eu gostaria que o Senhor os recebesse, selando a paz na<br />

família...<br />

Zé Jorge baixou a cabeça, escondendo o rosto sob o chapéu de massa cinza escu-<br />

ro. Respirou fundo. Mas não teve tempo de altercar com o filho.<br />

- Pai, é hora de acabar com essa inimizade. Zeca e Flora não merecem isso de<br />

sua parte nem da de mãe. É hora de celebrar a paz, faz tanto tempo que isso aconteceu!<br />

E eu lhe sou franco: se o senhor não receber Flora e Zeca, eu não caso, vou embora e<br />

não volto mais aqui.<br />

Mais uma vez, fugindo ao seu estilo autoritário, inflexível e durão, Zé Jorge bai-<br />

xa a cabeça; pensa, pensa e, de repente, começa a chorar um choro copioso. Eram, tal-<br />

vez, as lágrimas e o choro que ficaram engasgados desde que a filha predileta se fora.<br />

Foi a primeira vez que a gente viu nosso pai chorar. Eu lembrei a sua tristeza<br />

quando do casamento estapafúrdio da Flora. Agora, uma coisa se ligava à outra. Mas,<br />

tudo tem seu tempo, canta o Eclesiastes. Anísio ficou em silêncio esperando a resposta<br />

do velho.<br />

- É, diz ele, quem não perdoa neste mundo não merece ser perdoado no outro!<br />

65


Ao dizer isso, saiu dali e foi se agachar na parte traseira da cisterna da casa, que<br />

ele construíra há vinte anos. E então chorou, chorou todas as mágoas e derramou todas<br />

as suas lágrimas de mais de quinze anos, desde que Flora se fora. Uma hora depois, vol-<br />

ta até à sala, dá um abraço em Flora e outro em Zeca, em silêncio. Olha longamente<br />

para sua neta, Irene. Aquele silêncio falava tudo. Sua face se iluminou de alegria, e a<br />

casa ficou em festa, que só fez aumentar com a chegada de Verônica da cidade, ela que<br />

nunca deixou de querer bem a sua filha e a seu genro. A festa do casamento começava<br />

ali naquele gesto de paz e de perdão. A família Siqueira se recompunha de uma ferida<br />

de mais de quinze anos. E Zeca passou a ser um genro muito querido por José e Verôni-<br />

ca. A estima pela filha Flora cresceu. Anísio e Enedina casaram. Foi uma grande festa.<br />

Depois de casados, voltaram para o dia-a-dia de São Paulo, que esperava os migrantes<br />

da família Siqueira para mais uma tarefa que eles mesmos se impuseram: lutar, a partir<br />

dali, por uma moradia decente.<br />

Podemos, portanto, inferir algumas considerações tiradas desse conjunto de prio-<br />

ridades que os familiares se impuseram no espaço adverso da cidade grande, e que lhes<br />

marcou fortemente sua experiência de vida. Olhando a trajetória dessas experiências de<br />

vida e do cotidiano, no interior da família Siqueira, em suas novas interações e relações<br />

sociais urbanas e, sobretudo, fabris, podemos constatar algo emblemático. Ao migrar<br />

para um ambiente urbano, a família desenvolve uma prática cotidiana saturada daquelas<br />

experiências anteriores, que, podemos enumerar: fortes laços de pertença identitária;<br />

submissão continuada ao controle familiar exercido por alguns dos irmãos; laços de<br />

solidariedade plasmados na afinidade familiar, como um irmão socorrer um irmão nas<br />

necessidades do outro; liderança tacitamente aceita de um dos membros da família, em<br />

continuidade ao mando do “pater familias”. Essas características me parecem de grande<br />

evidência. Trabalhando a lembrança de velhos, Ecléa Bosi já se havia perguntado: “De<br />

onde vem, ao grupo familiar, tal força de coesão?” E ela responde: “Em nenhum outro<br />

espaço social o lugar do indivíduo é tão fortemente destinado. Um homem pode mudar<br />

de país; se brasileiro, naturalizar-se finlandês; se leigo, pode tornar-se padre; se sol-<br />

teiro, tornar-se casado; se filho, tornar-se pai; se patrão, tornar-se criado. Mas o vín-<br />

culo que o ata à sua família é irreversível; será <strong>sem</strong>pre filho da Antônia, o João do<br />

Pedro, o ‘meu Francisco’ para a mãe”. 25 Voltando à família Siqueira, já agora em São<br />

25 BOSI, E., Memória e sociedade, p. 425.<br />

66


Paulo, o que move essas pessoas é o desejo de um futuro mais promissor que o de hoje,<br />

onde se joga as fichas no futuro e se olha para o horizonte distante, em vez de olhar a-<br />

penas para trás. O futuro estaria no “hoje” de cada um daqueles momentos. Algo que, a<br />

meu ver, corresponde ao conceito de Koselleck sobre “expectativa” enquanto “esperan-<br />

ça e medo, desejo e vontade” 26 . Significa, pois, que as expectativas quanto ao futuro são<br />

fortemente moldadas pela experiência e que, pouco ou nada, nessas novas relações, têm<br />

de “modernidade”, no sentido de uma nova postura familiar e pessoal, substitutiva de<br />

um padrão cultural anterior. Nas palavras do autor, “Nossa tese dizia que, na moderni-<br />

dade, a diferença entre experiência e expectativa não para de crescer, ou melhor, que a<br />

modernidade só pôde ser concebida como um novo tempo depois que as expectativas se<br />

distanciaram de todas as experiências anteriores”. 27 Essa constatação poderá ser me-<br />

lhor analisada nos desdobramentos da memória dos familiares, em sua nova e subse-<br />

quente geração. É o que buscaremos na progressão das falas recolhidas em nossa pes-<br />

quisa.<br />

A Hora e a Vez da Terceira Geração...<br />

ceu!”<br />

O bilhete de Irene para Jacaré tinha apenas uma frase: “Graças a Deus, Zé, des-<br />

Zeca estava trabalhando numa fábrica que produzia correntes, no bairro paulis-<br />

tano do Brás. Era uma terça-feira, e minha irmã Flora, sozinha em casa, lavava a roupa<br />

no tanque, naquela manhã esbaforida do calor paulistano do mês de fevereiro. Um calor<br />

sufocante, pior que o do Nordeste, no verão. Ela separa cuidadosamente as roupas de<br />

cor das peças brancas, com o cuidado de não manchá-las. Molha no tanque peça por<br />

peça, antes de ensaboá-las. Uma delas, a blusa vermelha da filha Irene, de 15 anos de<br />

idade, tem algo diferente no bolso: um pedaço de papel, dobrado em quatro partes. Flo-<br />

ra abre e vê que era um bilhete com a assinatura de Irene. Foi aí que a mãe se deu conta<br />

26 Nas suas palavras, “Algo <strong>sem</strong>elhante se pode dizer da expectativa: também ela é ao mesmo tempo<br />

ligada à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para<br />

o ainda não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto”. KOSELLECK, R. Op. cit,<br />

p. 310.<br />

27 KOSELLECK, Reinhardt. Id. p. 322. [Os grifos são nossos]<br />

67


de que a filha tinha avançado o sinal no namoro com o primo José Guilherme Filho,<br />

apelidado na família por “Jacaré”. O garoto não tinha mais do que 17 anos de idade,<br />

enquanto ela, 15. Flora não acreditou no que viu e no que acabava de ler.<br />

Irene não se encontrava em casa naquele momento, tinha ido à casa da tia Madi-<br />

a, mãe de Jacaré. Dona Flor, a mãe, naquele exato momento, encarnou o espírito do pai,<br />

o opinioso Zé Jorge, que não alisava a cabeça de ninguém nas horas de contrariedade.<br />

Irene não sabia, também, o que lhe esperava na volta para a casa, lá pelas cinco<br />

horas da tarde... Como disse, era a terça-feira de um mês de fevereiro. Esse ano de 1971<br />

era a época dos anos de chumbo da ditadura militar. O Brasil da ditadura, sob o governo<br />

de Garrastazu Médici, “bombava” na produtividade industrial. São Paulo virara uma<br />

megalópole. Não faltava trabalho na indústria e nos serviços. A grande cidade já se con-<br />

solidara para a família como o lugar de garantia do futuro. O Nordeste, Sertânia, Santa<br />

Luzia, eram lugares das saudades, das lembranças de um tempo pretérito de memórias<br />

sofridas, mas gostosas na evocação delas. O doce e acre sabor das recordações.<br />

A família de Zé Jorge e dona Verônica, praticamente toda, se encontrava em São<br />

Paulo. Anísio e Enedina, como também Severino e Erotides foram recambiados por<br />

Flora para São Paulo, em 1970, depois de uma desastrada tentativa de se fixar no Nor-<br />

deste. Tinha-se agora a certeza de que Santa Luzia não serviria mais para viver nem<br />

morar, e sim para se visitar. Em Pernambuco, restava apenas Manoel, que vivia com os<br />

velhos em Santa Luzia. E, além dele, eu mesmo que estava começando a vida no Recife,<br />

após minha chegada da Europa no início do ano anterior. Os demais nove filhos – cinco<br />

homens e quatro mulheres – se encontravam todos em São Paulo. Dois ainda solteiros,<br />

Elias e Valdeci.<br />

Os sobrinhos mais velhos da família - a terceira geração - eram Irene, de Flora e<br />

Zeca, cujo irmão era Edson. Antes de eles nascerem, vieram os filhos de Madia e de Zé<br />

Guilherme, lá em Santa Luzia: Maria, Givaldo, Jacaré, Toinho, Osvaldo, Geni e os de-<br />

mais. Agora estavam todos em São Paulo, na Vila Ema. José e Edite tinham a filha mais<br />

velha, Ezenilda, com a idade de 15 anos, que fazia pernas com a Irene; o garoto Zenildo<br />

e a filha mais nova, Aparecida. Severino e Erotides tinham quatro filhos, cujo mais ve-<br />

lho era Sílvio, um garoto da idade da filha mais velha do Anísio e da Enedina, Célia, e<br />

de Edson, da Flora. Além do Sílvio, Severino tinha Sônia, Silvestre e Edilson. Anísio<br />

68


tinha Hélio e Daniel. A Virginia, casada com Aldir, tinha duas filhas pequenas: Débora<br />

e Rosângela. Conceição, casada com Laurindo, já tinha duas filhas: Marli e Marlene e<br />

mais outras duas chegariam. Os filhos mais velhos de Manoel e de Anísia, que continu-<br />

avam em Santa Luzia, eram José Carlos - carinhosamente chamado de Zé Preto, que não<br />

tinha nada de preto –, Reginaldo, Maria das Graças, Marlene, Margarida, Francisco,<br />

Fátima e o caçula, Edinaldo, que nascera naquele ano de 1970. Essa era a terceira gera-<br />

ção da família Siqueira.<br />

O que acontecia de novo, nesse cenário da São Paulo da década de setenta, com<br />

relação à família é que ela, lentamente, perdia contacto com a mundividência do <strong>sertão</strong><br />

nordestino. Com a terceira geração, Santa Luzia passa a ser apenas uma doce lembrança<br />

das conversas dos da segunda geração. <strong>Red</strong>uzia-se lentamente a uma memória de “ouvir<br />

dizer”. Mas, apesar disso, uma lembrança muito cara especialmente para os dessa tercei-<br />

ra geração. Por que isso?<br />

Duas variáveis importantes se delineiam na consolidação dessa memória nordes-<br />

tina e sertaneja de Santa Luzia, em São Paulo. Em primeiro lugar, os da segunda gera-<br />

ção souberam transmitir aos filhos e sobrinhos o essencial das vivências do Nordeste,<br />

que, a despeito das agruras e dificuldades, continuava sendo o lugar das origens, o co-<br />

meço de muitas coisas, inclusive da coragem para buscar a vida nova que levavam dis-<br />

tante do torrão natal. O <strong>sertão</strong> se tornou, então, um palco de recordações e lembranças<br />

que eram evocadas constantemente na relação entre pais e filhos, a maioria deles natural<br />

do Sudeste. A memória, nesse caso, se consolida como identidade, na qual as pessoas se<br />

veem e da qual não se envergonham. Essa é uma variável explicativa da pertinência e da<br />

persistência da memória familiar e sertaneja. Em segundo lugar, cabe analisar, igual-<br />

mente, que os laços parentais dos Siqueira, mesmo se redefinindo e se ressignificando,<br />

seja na distância, seja no tempo e na nova cultura urbana, no trabalho ou no lazer, eles<br />

se mantiveram suficientemente preservados e emblemáticos para a coesão dos laços de<br />

parentesco e a manutenção dos laços da cultura e da consanguinidade. Isso equivale<br />

dizer que alguns deram continuidade ao papel aglutinador, legitimador e disciplinador<br />

dos pais, Zé Jorge e Verônica. Tanto isso é verdade que, para os da terceira geração, a<br />

imagem marcante de cada um deles no seu modo de ver e falar é sublimar a pessoa de<br />

Zé Jorge – o emblema patriarcal - como reserva e esteio moral da família e a de Verôni-<br />

ca como a provedora de alegria, carinho e afetividade suficientemente boa. Essa foi uma<br />

69


imagem <strong>sem</strong>inal que os da terceira geração assimilaram dos avós. E, com certeza, Flora<br />

e os demais da família contribuíram para essa modelagem de memória. Os laços de fa-<br />

mília, mesmo redefinidos e ressignificados, continuariam fundantes na postura compor-<br />

tamental e interativa, como laços familiares marcantes e identitários da família Siqueira,<br />

num cenário bastante urbano como a capital paulista.<br />

Volto a Irene e Jacaré para enfatizar que eles foram envolvidos nas malhas desse<br />

clânico controle familiar marcado pela moralidade da família e, particularmente, pela<br />

rigidez da mãe. Digo da mãe porque, durante toda essa confusão, o pai, Zeca, nunca<br />

deixou de lamentar a situação, mantendo, no entanto, uma postura de afeto e compreen-<br />

são com a filha, diferentemente da mãe. E isso foi filtrado e bem enfatizado pela filha<br />

em seu relato de memória.<br />

Lá pelas cinco da tarde, está ela de volta da casa da tia Madia e encontra Flora<br />

com a cara amarrada. Mostrando-lhe o bilhete que encontrara nas suas roupas, pergun-<br />

tou-lhe a mãe o que significava aquilo. Antes que a filha respondesse alguma coisa, a<br />

mãe logo lhe adiantou que aquilo era a prova suficiente e inconteste de uma <strong>sem</strong>-<br />

vergonhice <strong>sem</strong> tamanho, da parte dela e do “cachorro” do seu primo. Não esperava<br />

nunca que a filha tivesse <strong>sem</strong>elhante atitude, traindo-a e ao pai, eles que lhe propicia-<br />

vam tudo na vida. E avisava que já estava decido que ela deveria casar para reparar ta-<br />

manha falta de vergonha na cara, desmerecendo os pais e toda a família. Ficasse Irene<br />

certa de que, com a chegada do pai do trabalho, iriam marcar a data do casamento e lhe<br />

garantia que não ia perder tempo em fazer isso. Pouco se interessou em ouvir o que a<br />

filha tinha a dizer. Já bastava tamanha safadeza...<br />

No dia 30 de outubro de 2009, trinta e nove anos depois, em São Paulo, na Vila<br />

Ema, na longa entrevista que tivemos com Irene e Jacaré –, vinte e oito dias antes do<br />

trágico falecimento dele, em Paranaguá –, foi possível ouvir a versão dos dois sobre<br />

esse affair familiar que os envolveu, cheio de desencontros e também de ressentimentos<br />

pela rigidez da mãe; traço, aliás, característico da família Siqueira. Mesmo tendo sido<br />

entrevistados em separado, a versão dos dois é absolutamente coincidente quanto às<br />

origens e às consequência dos fatos que precipitaram o seu namoro e abreviaram o seu<br />

casamento.<br />

70


Naqueles idos do início dos anos setenta, entre os moradores das vilas periféricas<br />

da cidade de São Paulo, como Vila Diva, Vila Adelina, Vila Ema etc., predominava a<br />

juventude. Jacaré e Irene, por sua vez, se comportavam como os jovens de sua idade,<br />

principalmente em função da cultura e da proveniência de suas famílias. Frequentavam<br />

a escola, onde já se iniciavam numa educação sexual rudimentar. A escola abria espaço<br />

para se falar do corpo, do seu desenvolvimento diferenciado para meninos e meninas. A<br />

própria Irene confessa que já estava suficientemente informada sobre a chegada da<br />

menstruação e o que ela implicava para a sua condição de menina-moça. Tanto que ela<br />

desejava muito que esse momento chegasse na sua vida. Confirma que mesmo a mens-<br />

truação, e daí em diante, nunca foi algo doloroso para ela e nunca lhe causou qualquer<br />

tipo de transtornos, tão comuns às moças nesses momentos. Jacaré, recém-chegado do<br />

Paraná, frequentava também a escola, à noite, e até se empolgava com o seu progresso<br />

escolar. Trabalhava durante o dia. Ambos curtiam as músicas da época, marcadas pelos<br />

sucessos de Roberto Carlos, da Jovem Guarda, dos festivais de San Remo e da TV Re-<br />

cord. Os jovens eram cabeludos e se vestiam com calças boca de sino, também chama-<br />

das de estilo San Remo. Essa moda ele sequer chegou a adotar porque não tinha condi-<br />

ções financeiras. Na sua condição, com as namoradinhas, frequentava os “bailinhos de<br />

fundo de garagem”, muito praticados naquela época, nos mesmos bairros onde mora-<br />

vam. Os dois não tinham condições de frequentar as boates da cidade. E, com a idade da<br />

época, entre quinze e dezessete anos, já se arriscavam a alguns beijos mais prolongados,<br />

em lugar de simples beijinhos. Já se permitiam afagos e toques, no embalo do calor da<br />

idade. Irene foi uma das namoradas de Jacaré, do mesmo modo que Jacaré também foi<br />

um dos namorados de Irene. Ela era mais vidrada nele, o primo. Ele não tinha tantas<br />

simpatias por ela. Mas o amor apaixonado desfez essas distâncias e os aproximou. E os<br />

dois se encontraram e se gostaram. Logo cedo, Flora começou a se intrometer no rela-<br />

cionamento da filha com o primo. Dizia-lhe que não gostava daquele namoro porque<br />

José (Jacaré) era feio, beiçola, cabeçudo e um grande preguiçoso. Irene pouco ligou para<br />

as opiniões da mãe. Afinal, o namorado era dela, feio ou bonito. O relacionamento amo-<br />

roso dos dois evoluía no tempo e nas circunstâncias descritas. Como os traços afetivos<br />

entre as pessoas, também o namoro dos jovens comporta certas cumplicidades na inti-<br />

midade dos namorados. Foi o que terminou acontecendo com os jovens namorados.<br />

Mas, segundo eles, nada além de beijos e “amassos”, decerto alguns mais intensos do<br />

que outros. E jamais uma relação sexual, seja ela completa ou incompleta. O fato é que<br />

71


Irene, naquele mês de fevereiro, teve atraso de dias na sua menstruação. Em razão da<br />

desinformação e de preconceitos dos dois, o fato é que a luz amarela se acendeu na rela-<br />

ção do jovem casal de primos. Depois de alguns dias de ansiosa espera, Irene mandava<br />

um bilhete para Jacaré, que infelizmente não chegou a receber e muito menos ler. Dona<br />

Flor foi lavar roupa exatamente naquele dia em que a namorada esqueceu no bolso de<br />

sua blusa uma simples prova ou, talvez, uma de suas maiores provas de amor para com<br />

seu namorado. Ela interceptou a mensagem e isso provocou ruídos, como veremos mais<br />

adiante.<br />

A família Siqueira, em São Paulo, desde o início da chegada dos primeiros da<br />

família vindos do Nordeste, exercitou grande empenho em ajudar todos os irmãos e so-<br />

brinhos que chegavam de lá “<strong>sem</strong> eira nem beira”. Assim fizeram Flora e Zeca, aco-<br />

lhendo em sua humilde casa Anísio, Severino, Manoel, José, Virgínia... Evidentemente,<br />

nem todos aportaram na capital paulista de uma só vez. Mas todos tiveram o apoio ne-<br />

cessário para se lançar na vida. Flora exerceu um papel protagonístico de mãe, e Zeca,<br />

de um pai; pai amoroso, diga-se, a bem da verdade. Depois, foi a casa de Anísio que<br />

acolheu irmãos e sobrinhos. Mais tarde, foi a casa de Virgínia, dando guarida aos ir-<br />

mãos Elias e Valdeci. Madia e Zé Guilherme, literalmente, “adotaram” Reginaldo, filho<br />

do Manoel, que veio de Santa Luzia, garotinho ainda e que saiu da casa dela rapaz feito,<br />

escolarizado e profissionalizado. Flora, mais tarde, novamente acolheria três filhas de<br />

Manoel, do mesmo modo que “adotara” Givaldo, da Madia, no começo, a quem consi-<br />

deravam como filho; ele também <strong>sem</strong>pre os tratou como pais, até o final da vida deles.<br />

Os filhos de Manoel acolhem os irmãos, Francisco e Edinaldo. José e Edite trazem a<br />

sogra e mãe, dona Maria Guilherme, para dentro da sua casa, onde ela viveu seus últi-<br />

mos dias. A família, portanto, naquele clima de diáspora, se aglutinou e reforçou a sua<br />

pertença parentesca. Abriam a porta da casa aos que chegavam, ensinavam o caminho<br />

da escola aos mais jovens e, para os recém-chegados, batiam na porta das fábricas na<br />

busca de um primeiro emprego. Cotizavam-se no pagamento de um ou outro lote de<br />

terreno e faziam mutirão para levantar as casas. Sempre se juntavam, ao final do ano, na<br />

felicidade de pegar a estrada rumo a Pernambuco para matar as saudades e abraçar Zé<br />

Jorge e dona Verônica, enquanto vida os dois tiveram. José Jorge faleceu em julho de<br />

1972, em Santa Luzia, após a visita de todos os filhos que estavam em São Paulo. Verô-<br />

72


nica só veio a expirar em 2004, em São Paulo. Fechou os olhos no mesmo lugar para<br />

onde desejou que os filhos migras<strong>sem</strong>, como de fato aconteceu.<br />

A vida de cada um de nós nem <strong>sem</strong>pre segue as trilhas que os outros nos traça-<br />

ram; no entanto, essas sinalizações conseguem balizar em muito as veredas da existên-<br />

cia. Jacaré e Irene casaram no dia 12 de junho de 1971, conforme “exigiu” a parentela.<br />

Após determinar o casamento da filha, Flora e Zeca convocam os irmãos Anísio, Elias,<br />

Valdeci, Virgínia e Madia para uma reunião de família, onde puseram os noivos diante<br />

da parede. Segundo Irene, os tios pegaram pesado. Os dois negaram qualquer intercurso<br />

sexual entre eles. Em vão. Tiveram que casar, para alegria de Irene, pois esse já era seu<br />

sonho e desejo. Mas os dois não tinham a menor condição financeira de manter uma<br />

casa. Iniciaram a vida com a cara e a coragem, <strong>sem</strong> mesmo ter na cozinha um botijão de<br />

gás para fazer a comida. No dia seguinte à noite de núpcias, Irene exibe para a mãe a<br />

mancha de sangue nos lençóis brancos da sua virgindade de menina-moça. Queria pro-<br />

var-lhe que não mentiram.<br />

Dois anos depois, o jovem casal tem a primeira filha, Patrícia; quatro anos após,<br />

vem Fábio, o segundo filho. Segundo seus relatos de memória, os primeiros anos de<br />

casamento foram extremamente difíceis para os dois. Jacaré teve que parar os estudos,<br />

voltando a trabalhar em fábrica, fazendo longos períodos de horas extras, geralmente à<br />

noite. Irene conseguiu emprego de doméstica e, alguns anos mais tarde, os dois inicia-<br />

ram uma sociedade de corte e costura com dona Flor. Por razões de incompatibilidade<br />

de gênio, logo se desfez a sociedade, e o casal, por conta própria, levou adiante o seu<br />

próprio negócio, o que lhes melhorou em muito a situação financeira. Mas continuaram<br />

morando com Flora e Zeca na mesma casa e no mesmo bairro.<br />

Essa longa incursão na trajetória de vida e de recordações da família Siqueira, de<br />

um lado formula as dimensões de um passado e também de um futuro como algo interi-<br />

orizado, percebido e narrado pelas duas gerações. Mas, por outro lado, aponta, sobretu-<br />

do, para uma categoria conceitual do cotidiano desse tempo histórico, tal qual foi for-<br />

mulada por Koselleck, que nos chama a atenção para o seguinte: “Quem busca encon-<br />

trar o cotidiano do tempo histórico deve contemplar as rugas no rosto de um homem,<br />

ou então as cicatrizes nas quais se delineiam as marcas de um destino já vivido. Ou<br />

ainda, deve evocar na memória a presença, lado a lado, de prédios em ruínas e cons-<br />

73


truções recentes, vislumbrando assim a notável transformação de estilo que empresta<br />

uma profunda dimensão temporal a uma simples fileira de casas”. 28 O tempo é desgas-<br />

tador da memória e, sabemos, tal desgaste induz ao esquecimento, que pode ser um si-<br />

nônimo de morte. A família Siqueira, nas recordações do seu cotidiano, em diferentes<br />

lugares e espaços que vão do Nordeste ao Sudeste, dos confins do <strong>sertão</strong> brabo ao espa-<br />

ço urbanizado da metrópole - nesses lugares, repetimos - os seus familiares revisitam<br />

em suas lembranças as diferentes memórias dos espaços de sua experiência, e isso tem<br />

tudo a ver com as perspectivas de futuro das velhas e novas gerações. Koselleck, portan-<br />

to, enfatiza a importância desses paradigmas conceituais no entendimento do que ele<br />

denomina de “cotidiano do tempo histórico”. Nas suas palavras, “por fim, que contem-<br />

ple a sucessão das gerações dentro da própria família, assim como no mundo do traba-<br />

lho, lugares nos quais se dá a justaposição de diferentes espaços da experiência e o<br />

entrelaçamento de distintas perspectivas de futuro, ao lado de conflitos ainda em ger-<br />

me”. 29<br />

Outro aspecto a ser reforçado, lendo atentamente as falas e auscultando as recor-<br />

dações dos familiares de segunda e terceira geração da família, é que existem diferentes<br />

tempos com distintas durações entre uma e outra gerações. Um tempo mais lento para<br />

uns, mais longo para outros; em nosso caso, um tempo menos sincopado quando se trata<br />

das recordações ligadas aos lugares da Matarina e da Santa Luzia do Nordeste. Já no<br />

caso do Sudeste, especialmente para os da terceira geração, o mundo do trabalho, do<br />

ritmo da fábrica, da impessoalidade da empresa e do estresse da cultura urbana, o tempo<br />

aí está imbricado na formatação industrial e técnica e, neste sentido, parece ser marcado,<br />

como disse Koselleck, referindo-se à “experiência” e ao “futuro”, por “períodos de tem-<br />

po cada vez mais breves para que [cada um] possa assimilar novas experiências, adap-<br />

tando-se assim a alterações que se dão de maneira cada vez mais rápida” 30 .<br />

A diáspora da família Siqueira, novamente, irá passar por um novo processo de<br />

resignificação em sua trajetória histórica que merece uma reflexão. A partir da metade<br />

dos anos oitenta, os mais velhos, que até então tinham vivenciado a longa experiência<br />

28 KOSELLECK, Reinhart. Op. cit., p. 14.<br />

29 Id. Ib.<br />

30 KOSELLECK, Reinhart. Op. cit. p. 16.<br />

74


de vida na cidade grande e no mundo do trabalho, redefinem um novo percurso, que os<br />

levará a migrar para novos lugares, fugindo daquela experiência de vida da diáspora do<br />

<strong>sertão</strong> nordestino em direção ao Sudeste. Flora e Zeca, os pais da Irene, decidem fixar<br />

residência no Paraná; em Paranaguá, mais precisamente. Zeca, agora, estava na condi-<br />

ção de aposentado e isso, certamente, pesou na sua decisão de sair de São Paulo, ele que<br />

fora o pioneiro dessa experiência marcante de migrar para o Sudeste, ainda nos anos<br />

cinquenta. É bem verdade que em Paranaguá viviam, há décadas, vários dos irmãos e<br />

irmãs de Zeca, a maioria deles trabalhando no ramo da industrialização do pão. Zeca,<br />

portanto, estava buscando uma nova experiência de vida para o seu tempo de aposenta-<br />

do do trabalho. Sua decisão de sair de São Paulo logo será seguida, também, por outros<br />

da família como Madia e Zé Guilherme. Para todos eles, tratava-se ainda de viver no-<br />

vas experiências, seguindo as aspirações de um futuro também diferente. Estamos, por-<br />

tanto, reinaugurando um novo ciclo de vivências, que será determinante para definição<br />

de novas expectativas de futuro. Algo emblemático se desenhava nessa nova busca e<br />

nesse novo formato de experiência familiar, qual seja recuperar algumas vivências do<br />

tempo pretérito (da Matarina e da Santa Luzia) tanto quanto fosse possível. Vejamos<br />

como se operou a suposta ressignificação daquela diáspora inicial.<br />

75


1979 - Casal Jacaré e Irene com a filha Patrícia e o filho Fábio (foto do acervo familiar)<br />

Alguns anos após, o casal Irene e Jacaré decidiu acompanhar Zeca e Flora na sua<br />

mudança para o Paraná e, na cidade de Paranaguá, iniciam a vida trabalhando no fabrico<br />

de pães, juntamente com Edson, seu primo. Mais tarde envidam esforços com vistas a<br />

levar Madia e Zé Guilherme a morarem com eles, em Paranaguá. Passaram anos difíceis<br />

com a crise sazonal do Porto de Paranaguá, o que incidia na comercialização do pão.<br />

Continuariam convivendo com grandes saudades que perpetuavam duas recordações:<br />

Santa Luzia, de Pernambuco, e São Paulo, de São Paulo. A família Torres - Siqueira<br />

continuaria muito unida, a despeito da distância do espaço entre São Paulo e Paranaguá.<br />

Anísio, tão logo conseguiu a sua aposentadoria, decidiu com enorme força de<br />

vontade e determinação sair definitivamente de São Paulo em direção ao Mato Grosso<br />

do Sul. Naquele tempo ainda era apenas o Sul de Mato Grosso, não longe da fronteira<br />

com o Estado de São Paulo. Passou a morar em Arapuá, um distrito de Três Lagoas.<br />

Havia adquirido, a duras penas, uma pequena área de terra onde apenas existia um casa<br />

em ruínas e bastante pasto para gado de corte e de leite. E, além disso, muita caça e<br />

muita pesca. Anísio convenceu a Enedina, sua esposa, a morarem juntos, <strong>sem</strong> os três<br />

filhos, nas paragens distantes do Sudoeste brasileiro.<br />

A conclusão que podemos inferir dessa nova experiência e expectativa de vida<br />

da família é que, primeiramente, como já sugerimos, iniciava-se um novo ciclo de mi-<br />

gração e, em consequência disso, verificava-se a retomada da diáspora familiar iniciada<br />

no Nordeste da Santa Luzia. Só que, agora, um sentido novo movia as aspirações de<br />

vida e, portanto, novos objetivos passavam a serem perseguidos e entre eles a busca da<br />

qualidade de vida. Em segundo lugar, povoavam as aspirações de vida desses familiares<br />

o desejo de fugir ao anonimato, ao estresse da cidade grande e à fadiga física e mental<br />

do mundo da fábrica. Um sonho e uma expectativa de vida nem tão desconhecidos de-<br />

les, na medida em que aquelas experiências sertanejas de Santa Luzia e da Matarina lhes<br />

foram marcantes em uma fase também decisiva de suas vidas. Viver no mato, criar bois,<br />

vacas, cabras, caçar, pescar, plantar e colher, isso tudo foi uma experiência fundante,<br />

que, certamente, não teria sido apagada das recônditas lembranças de cada uma das pes-<br />

soas da família. Afinal, era exatamente isso o que Anísio buscava no seu “exílio” mato-<br />

76


grossense. A megalópole, com os seus transtornos da vida, da moradia, da violência<br />

urbana etc., teria o seu antídoto na cidade pacata do interior; na nova dimensão da mo-<br />

radia urbana, com seus imensos quintais, onde era possível plantar e colher em peque-<br />

nas quantidades que dispensam as grandes roças. Assim é que Flora, Zeca e os familia-<br />

res vivenciaram, em Paranaguá, as vantagens que haviam perdido na cidade grande. O<br />

comércio, aí, podia ser praticado em novas dimensões sociais e interacionais, onde to-<br />

dos conhecem todos. Com certeza, nessa diáspora ressignificada, buscava-se recriar as<br />

condições de vida e as experiências anteriormente praticadas na Matarina e na Santa<br />

Luzia. E que foram preteridas na cidade grande e no dia-a-dia do mundo da fábrica. O<br />

<strong>sertão</strong>, portanto, poderia ser vivido e praticado em qualquer lugar do Brasil, na medida<br />

em que “ele está e <strong>sem</strong>pre esteve nas pessoas”, como nos ensina magistralmente Guima-<br />

rães Rosa. As experiências de vida da família Siqueira demonstram que as sucessivas<br />

gerações fazem o novo, incorporam o novo, vivenciam o novo. Novidades essas cujo<br />

significado é traduzido e apropriado pelo universo de expectativas das pessoas de cada<br />

geração. É o horizonte de desejos, tão bem definidor dos tempos da história, como nos<br />

mostra Koselleck. No entanto, as experiências vivenciadas não deixam de ser marcantes<br />

e decisivas, plasmando o tempo passado das recordações e da história da família. As<br />

dispersões – diásporas – da família não conseguem apagar o legado dessas vivências<br />

como práticas, como valores, cultura e, sobretudo, como pertencimento identitário, de-<br />

finidor dos fortes laços da parentela, como se vê nas falas dos entrevistados. Esses “tó-<br />

poi”, essas dimensões de “novo” e “velho”, que acabamos de ressaltar, não nos autori-<br />

zam a dizer que a História se repete porque, sabe-se, a vida, além do seu dinamismo, é<br />

uma eterna caixa de surpresas...<br />

Em Paranaguá, Patrícia e o Fábio, filhos de Irene e Jacaré, cresciam em idade e<br />

sabedoria. Fábio como adolescente, ela como mocinha; ambos jovens, inexperientes.<br />

Uma boa relação entre eles e os pais, apesar da impaciência dos mesmos com os arrou-<br />

bos da juventude dos filhos. Jacaré e Irene são tributários de uma tradição familiar dos<br />

Siqueira ancorada em fortes valores morais e que se retemperou através dos Guilherme<br />

e dos Torres. Nunca negaram ter muita afinidade com o pertencimento “clânico” dos<br />

Siqueira. Afinal, ela, Irene, era filha de Florisa, e ele, Jacaré, era filho de Maria Verôni-<br />

ca. As suas experiências de vida são marcadas emblematicamente pela rigidez moral e<br />

77


pelos traços “clânicos” dessa parentela sertaneja, especialmente quando ela se sente<br />

acuada ou mesmo desafiada...<br />

- “Infelizmente, a gente fez com ela a mesma cagada que fizeram com a Irene e<br />

comigo!”. Essa foi a resposta que Jacaré nos deu durante a sua última entrevista, quando<br />

perguntamos pelo conturbado casamento da sua filha Patrícia com o namorado Elói, um<br />

capixaba que a filha conheceu em Paranaguá. Como acontecera com a Flora, agora se<br />

repetia com a Irene que, também, soube através de um bilhete, que a filha tinha engravi-<br />

dado. Aquele era, sim, um bilhete que a Patrícia deixara cair em algum lugar, informan-<br />

do para o namorado que tinha ido ao médico, naquela manhã, e que recebera dele a con-<br />

firmação que estava grávida.<br />

Virando-se para Flora, após ter lido aquele bilhete, a Irene diz:<br />

- “É, mãe, a história se repete!”.<br />

Como no caso da sua mãe, a Patrícia, também, tinha muita vontade de casar. Ja-<br />

caré e Irene decretaram, então, que a filha teria que casar. E repetiram para Patrícia o<br />

mesmo discurso que Flora e Zeca tinham feito para os dois...<br />

Bem, estamos falando, nesta altura, de Patrícia, filha de Irene e de Jacaré, quarta<br />

geração da família Siqueira. Mesmo admitindo que a Patrícia tenha direito à sua versão,<br />

como Irene e Jacaré tiveram a sua, não me proponho realizar esta tarefa. Passo a palavra<br />

aos da terceira geração para que eles continuem narrando a memória da família Siquei-<br />

ra, fazendo com que essa história não caia nos desvãos do esquecimento.<br />

78


SEGUNDA PARTE<br />

ooooooo<br />

79


Entrevistas da Segunda Geração<br />

80


Maria Verônica dos Santos 31<br />

Antônio – Madia, o que você mais lembra da sua infância, lá na Matarina?<br />

Madia – Eu lembro a companhia com os meus pais, com os meus irmãos, com os meus<br />

vizinhos – José Porfírio, Fortunato Prata, Antônio Terêncio com a família, Severino<br />

Belo, Josefa Vitorino, Antônio Nicolau com toda família e Severino Bananeiras. Esses<br />

aí eram os vizinhos mais próximos. Lembro bem de todos. Éramos amigos e nunca ti-<br />

31 Madia, assim chamada pelos da família, é viúva de José Guilherme dos Santos (apelidado de Zé Guilé).<br />

Nasceu no dia 26 de maio de 1926. Esta entrevista foi concedida no dia 26 de dezembro de 2008, na loca-<br />

lidade de Arapuá, Três Lagoas (MS), onde atualmente mora a Madia com sua filha mais velha, Maria<br />

(apelidada carinhosamente de Guirra). A foto foi tirada em maio de 2006, na festa dos seus oitenta anos.<br />

Madia veio a falecer no ano de 2011, tendo estado presente no lançamento deste livro.<br />

81


vemos aborrecimento entre nós. Cheguei lá na Matarina com dois anos de idade e saí<br />

com dezoito anos. Depois de casar, com a mudança de pai, fomos também morar em<br />

Sertânia, onde vivi quinze anos e depois vim embora com a família aqui para o Sul do<br />

país. Hoje, estou viúva e tenho nove filhos; aliás, eram nove, porque hoje tenho só oito.<br />

O mais velho dos homens, que era Givaldo, Deus levou. Então, estou feliz com os meus<br />

filhos, vivo também aqui em Mato Grosso do Sul, perto do meu irmão, e me sinto muito<br />

contente e me considero realizada. Às vezes, tenho saudades, mas vivo alegre, graças a<br />

Deus. Estou satisfeita com a minha convivência com todos. É isso o que eu tenho a di-<br />

zer até o momento.<br />

Antônio - Você falou de todas essas pessoas com as quais você conviveu na Matari-<br />

na, onde você passou 12 anos. Como era o dia-a-dia de sua infância e de sua juven-<br />

tude?<br />

Madia – Relativo a esse tempo de 12 anos, quando era criança, eu vivia em casa, aju-<br />

dando mãe no dia-a-dia. Depois que fomos crescendo, a gente trabalhava em casa e tra-<br />

balhava também no roçado. Nossa vida e nossa convivência eram muito pacatas. Não<br />

passeávamos muito, era uma vida de luta. Depois de casar, continuei morando no sítio.<br />

Casei com José Guilherme, que conheci lá em Matarina no ano de 1941. A família dele<br />

veio de mudança para Matarina, e a gente não se conhecia. Ele era noivo de uma prima<br />

minha. Quando foi em 1942, nós começamos a namorar e logo ficamos noivos e casa-<br />

mos no ano de 1945. Depois de morar 15 anos em Pernambuco, em 1958 viemos para o<br />

Sul, onde estamos completando cinquenta anos de mudança. Até hoje, <strong>sem</strong>pre morei<br />

aqui e não tenho planos de sair daqui do Sudeste do país.<br />

Antônio – Dos seus dois aos dezesseis anos de idade, nossa família morou na Mata-<br />

rina. Aí nasceu a maioria dos nossos irmãos e irmãs. Você pode falar deles e como<br />

era a relação sua com eles.<br />

Madia – Nós brincávamos entre nós. Aliás, você sabe que pai não admitia de modo<br />

algum brigas ente nós; por conta disso, havia uma união muito grande entre nós e brin-<br />

cávamos muito. Vou falar a idade e o nascimento deles por ordem. Eu era a mais velha,<br />

nascida em 26 de maio de 1926. A Florisa (a gente chamava de Flora) era mais nova do<br />

que eu dois anos. Nasceu no dia 25 de abril de 1928. O terceiro foi Manoel, que nasceu<br />

no ano de 1929 e não lembro o dia nem o mês de nascimento dele. Em quarto lugar vem<br />

82


Virgínia, que nasceu no ano de 1931, no mês de abril, se não estou enganada. O quinto<br />

irmão foi José, que nasceu no ano de 1933, no mês de maio e, igualmente, não lembro a<br />

data de nascimento. Depois de José, nasceu a Conceição, no dia oito de dezembro de<br />

1934. Depois veio Severino, nascido no ano de 1936, no dia dois de abril. Depois do<br />

Severino vem o Anísio, que nasceu no dia oito de maio de 1938. Agora vem você, que<br />

nasceu no dia quatro de março de 1942. O Elias é o décimo irmão e nasceu no dia 25 de<br />

abril de 1945. Finalmente, veio o Valdeci, o caçula, no dia 20 de janeiro de 1947. Aí<br />

termina a enumeração da idade dos manos e das manas.<br />

Antônio – Madia, a gente estava falando dos irmãos. Você, por acaso, lembra de<br />

algum fato ou acontecimento marcante ligado aos irmãos mais velhos?<br />

Madia – Não, Antônio! Não lembro algum acontecimento assim marcante entre nós.<br />

Não lembro. Creio que isso se deve ao fato de não ter acontecido coisas nem interessan-<br />

tes nem desordens maiores. A gente vivia brincando, depois íamos trabalhar; também<br />

íamos para a Escola. O primeiro professor que nos ensinou a carta de ABC foi pai, que<br />

nos ensinou direitinho o que ele sabia. A segunda professora foi tua madrinha, Antônia<br />

Ananias; e o terceiro foi mestre Gonçalo, tio de nossa cunhada Enedina. Eu lembro bem<br />

que só frequentei quarenta dias da escola dele, pelo fato de ter adoecido de inflamação<br />

numa das pernas. Mas recordo que foi uma experiência tão boa aquela da escola dele,<br />

porque ele explicava tudo direitinho... Mas tive que deixar a escola para me tratar. Já as<br />

meninas e os outros irmãos, sim, frequentaram os cinco meses em que ele foi professor<br />

da escola. Foi bom. Depois, por causa de alguns problemas, ele teve que deixar a escola.<br />

Das presepadas dos irmãos, ouvi falar de uma em que Manoel e Flora resolveram voar<br />

como os passarinhos. Mas não sei contar em detalhes. Só sei dizer que o Manoel caiu e<br />

se ralou todo (risos).<br />

Antônio - A mana Flora, hoje falecida, contava o seguinte: ela e o Manoel se encan-<br />

taram com o voo dos passarinhos. Para imitá-los nessa façanha, costuraram umas<br />

asas com palha de coqueiro e teriam subido numa serra próxima, no tanque da<br />

viúva, e de lá saltaram no abismo serra abaixo, resultando em ferimentos, princi-<br />

palmente no rosto do Manoel.<br />

Madia - Desse período, lembro que tive de passar mais de dois meses na vila da Prata<br />

para tratar daquela enfermidade na minha perna. Sei que isso foi em 1941 e, possivel-<br />

83


mente, deve ter sido nessa minha ausência que os dois aprontaram essa aventura. Aliás,<br />

o Manoel e a Flora eram chegados a fazer muitas trelas. Uma vez decidiram juntar raí-<br />

zes de uma planta, que se chamava malva, para fazer pólvora para vender. Mas não deu<br />

certo essa experiência. De outra vez, a Flora mandou Manoel comprar um pouco de<br />

açúcar para fazerem um doce. Aconteceu que o doce não deu o ponto e tiveram que<br />

amargar prejuízo. Isto tudo foi armação dos dois, mas <strong>sem</strong> dar certo. Disso eu lembro<br />

muito bem.<br />

Antônio - Como é que as moças e os rapazes de sua idade se divertiam naquele<br />

tempo...<br />

Madia – Ah, isso aí era nada fácil. Pai tinha muitos ciúmes em deixar a gente sair. Só<br />

tinha uma comadre nossa em quem ele tinha confiança pra deixar sair, ou então com<br />

mãe. Por isso mesmo, não gozei nada da minha vida de solteira. Vivia muito presa e não<br />

tinha liberdade. Pai não confiava em nós, era ciumento e por isso não gozei nada da vida<br />

de solteira. Mas, tá bom! Casei com 18 anos e não me arrependo também disso.<br />

Antônio – Como é que você conheceu Zé Guilherme?<br />

Madia – Ele veio morar lá na Matarina, vindo de Sumé, lá do sítio Bananeiras. O pai<br />

dele tinha comprado uma casa, na Matarina, e foi aí que a gente se conheceu e começou<br />

a se gostar. Foi com Letícia, de tia Júlia, que ele chegou a namorar antes de mim.<br />

Antônio – Você não teve nenhum namorado antes de conhecer Zé Guilherme?<br />

Madia – Tinha uns namorinhos simples... Tinha um moreno, filho de Joaquim Cabral,<br />

que eu gostava muito dele. Mas mãe era muito racista, e aí já começou a dizer que eu<br />

gostava de namorar aquele “moleque” filho de Joaquim Cabral... Eu gostava muito do<br />

garotinho; era Antônio o nome dele. Também logo, logo, eu desisti dele. Tinha o Ageu,<br />

que era louco para namorar comigo; mas eu gostava dele só como amigo. Mas pra na-<br />

moro eu não gostava não. Ageu era muito bonzinho, era afilhado de pai, uma pessoa boa<br />

e que gostava muito da gente. Mas, eu não gostava muito dele não, muito menos para<br />

namorar. E foi assim. O primeiro namorado firme foi o José. Só, no momento, é o de<br />

que eu lembro...<br />

Antônio – Fale do seu relacionamento com mãe e com pai.<br />

84


Madia – Sobre namoro, os dois não tinham discordância. O que pai gostava ou discor-<br />

dava mãe aceitava também. Mãe era muito certa, só queria o bem de nós todos. Sempre<br />

nos aconselhava a cumprir com os deveres, a fazer o que pai queria. Com pai, o que eu<br />

queria falar eu falava, e ele <strong>sem</strong>pre obedecia à gente naquilo que a gente queria como<br />

certo. Você sabe que pai não gostava de nada errado. Então, o que ele pedia pra nós não<br />

fazer a gente não fazia. Por exemplo: andar pelas casas dos outros, andar com certas<br />

pessoas em quem ele não confiava. Ele <strong>sem</strong>pre dizia que a gente devia fazer-se acom-<br />

panhar de pessoas melhores do que a gente. Então, a gente já tinha ciência do que ele<br />

gostava e não gostava, e assim buscava agir. Tenho impressão que ele era mais tolerante<br />

com nós mulheres. Ele implicava, e era mais duro, sobretudo com Manoel. Mas ele era<br />

meio traquina também. Virgínia era que tinha umas respostinhas, e ele exortava que ela<br />

parasse com aquele jeito; senão ele teria que cortar dela a ponta da língua... Mas era só<br />

disso que ele reclamava dela: “Virgínia, tu paras com essas respostas!” (risos).<br />

Antônio – Como é que foi tomada a decisão da família de morar em Pernambuco?<br />

Madia – Pai comprou um terreninho em Santa Luzia, parece-me que no ano de 1936,<br />

não lembro bem. Então, ele ficou dividido, trabalhando na Paraíba e em Pernambuco.<br />

Ficava mesmo mais tempo em Pernambuco do que na Paraíba. Mãe é que cuidava das<br />

coisas na Matarina. Quando ele decidiu pela mudança, que aconteceu em dezembro de<br />

1944, ele veio na frente com a mudança e mãe ficou comigo, a Virgínia e os menores,<br />

na Paraíba. Em dezembro, nós viemos para Sertânia, naquele tempo Alagoa de Baixo.<br />

Lembro que eu vim primeiro do que mãe com a mudança, no caminhão de um motorista<br />

que era conhecido da gente. Depois que mãe terminou de arrumar as coisas por lá, ela<br />

veio com comadre Maria (mãe de Zé Guilherme). Você era pequeno, estava com dois<br />

anos. Comadre Maria contava uma história que você, na saída, viu uma mulher já de<br />

idade, meio feia e começou a rir com a boca da mulher, mostrando para mãe, que ria<br />

muito também... E comadre Maria confirmou que ela realmente tinha a boca muito<br />

grande. E você chamava a atenção de mãe rindo dela...<br />

Antônio – Como é que foram os primeiros anos em Pernambuco?<br />

Madia - A mesma vida que nós levávamos quando se morava lá na Matarina. Era o<br />

trabalho da roça e o detalhe da água, que era muito ruim (salobra). Mãe tinha muita rai-<br />

va da água de Santa Luzia, especialmente na hora de lavar roupa. Lutava-se com traba-<br />

85


lhadores, apesar de pai demonstrar intenções de não depender tanto de mão-de-obra fora<br />

da família. Mas tinha uns trabalhadores antigos, de mais de dez anos de morada, que<br />

davam um enorme trabalho e custo para a casa, com comida, roupa lavada e engoma-<br />

da... O trabalho de muitos desses não rendia nada. Mãe decidiu, com pai, mandar embo-<br />

ra a maioria deles e adotar outra modalidade de trabalho, como a empreitada, por exem-<br />

plo. Mãe, aos poucos, foi tomando decisões no lugar de pai com relação a trabalhos e<br />

empreitadas porque era preciso ter muita firmeza, e pai já não aguentava mais isso.<br />

Antônio – Você constituiu família em Pernambuco e no Paraná...<br />

Madia – Em Pernambuco, vivi quinze anos do meu casamento com Zé Guilherme. Foi<br />

lá que eu tive sete filhos. A Maria foi a primeira que nasceu. O segundo foi Givaldo. O<br />

terceiro foi José e a quarta foi uma menina, Verônica, que logo morreu. Ai então nasceu<br />

o Antônio, depois o Osvaldo e uma menina – Geni –, que também morreu; depois veio a<br />

atual Geni, e o último nascido lá, foi Erasmo. Saí com ele para São Paulo com um ano e<br />

seis meses e os outros restantes. Vindo para o Paraná, em Pérola, eu tive uma menina,<br />

que nasceu morta; depois, veio o Reginaldo; em seguida, o Inaldo; e, na última gravi-<br />

dez, eu tive um aborto. Aí encerrou.<br />

Antônio – Você poderia contar como foi essa viagem sua com as crianças para o<br />

Sul?<br />

Madia – Foi complicada, porque eu vim para o Sul <strong>sem</strong> a ordem de José Guilherme.<br />

Escrevi uma carta pra ele avisando que vinha. Um senhor que tinha vindo com ele me<br />

contou como era o Paraná e falou também de São Paulo. José Guilherme tinha me escri-<br />

to uma carta quando eu ainda não tinha comunicado a ele que viajaria. Nessa carta, ele<br />

dizia que tinha passado pelo Paraná e que depois iria comprar um terreno, em São Pau-<br />

lo, para nós morar. Já faziam quase uns seis meses que ele tinha vindo. Esse senhor que<br />

viajara com ele para o Paraná me informou que o lugar era muito bom, tinha lucro duas<br />

vezes no ano; dava de tudo, muito algodão, que naquele tempo era uma riqueza no Pa-<br />

raná. Aí eu pedi a mãe, dizendo: “Mãe, eu vou embora para onde está José”. Eu queria<br />

aproveitar a vinda de um conhecido nosso, José de Melo, que ia voltar com a família<br />

para o Paraná. Aí ela disse: “Vá, minha filha, aqui vocês não têm resultado de nada. O<br />

que é de vocês, nós tomamos conta”. A gente tinha um gadinho, umas ovelhas. Eu ven-<br />

di só o que José deixou, porque ele dizia que só saía de casa quando pensasse que não<br />

86


estava faltando nada, poderia durar até um ano. Eu então vendi uns borregos e uma vaca<br />

que ele tinha deixado pra vender... Você devia conhecer, era aquela vaca pequenininha<br />

que pai tinha dado aos meninos. Eu sei que vendi um bocado de coisas que davam pra<br />

eu viajar. Acontece que o velho Zé de Melo era um velho muito simplório. Não conhe-<br />

cia bem das coisas e já estava debilitado. Iludiu-se com os contratantes do transporte,<br />

que prometiam nos levar num pau-de-arara até o Paraná; uma viagem que deveria du-<br />

rar dez dias. Nessa época pai estava em Paulo Afonso e, quando ele chegou, eu contei a<br />

ele. Ele pensou assim um pouco e depois disse: “Eu só deixo você ir porque você vai<br />

para onde está o seu marido. Mas você vai ver o que é sofrimento. Pense bem no que é<br />

você sair num pau-de-arara com sete filhos”. Apesar de que as pessoas eram, na maiori-<br />

a, conhecidos, como Liro, que morava com a gente lá em Sertânia. De fato, foi verdade,<br />

a gente sofreu muito. Acertamos a viagem e viemos. Na véspera da viagem, que seria no<br />

dia 13 de setembro, o Anísio escreve uma carta a pai pedindo para não me deixar viajar.<br />

Antes, eu li aquela carta, e tive vontade de não mostrar a ele. Aí eu disse, “Eu não vou<br />

mentir”. Já tinha vendido as coisas. Tio Umbelino era um dos que davam a maior força:<br />

“Vá embora para onde está o seu marido”, dizia ele... Eu ainda cheguei a desistir quan-<br />

do fui conversar com o velho confirmando que vinha. O velho ainda me aconselhou a<br />

não vir e escrever uma carta a Zé Guilherme. Ele mesmo confessou que não gostou da<br />

história da gente comprar um terreno e vir morar em São Paulo. “A senhora não vá,<br />

não”, disse ele. Eu, então, saí da casa do velho, lá em Sertânia, desiludida; certa de que<br />

não iria mais viajar. Depois disso tudo, fui falar para o tio Umbelino a minha decisão, e<br />

ele voltou a insistir: “Vá embora para junto do seu marido, deixe de se iludir com a<br />

conversa dos outros”... Aí eu decidi, nessa hora, vender os meus mantimentos. Vendi<br />

milho, vendi feijão; apurei naquele tempo oito contos. Aí, com o dinheiro que era da<br />

vaca (rindo), comprei roupa de homem para vender; comprei rede, porque diziam que<br />

aqui isso tudo era muito caro. Empatei tudo na viagem. Eu sei, meu filho, que arruma-<br />

mos tudo pra vir embora. Quando chegamos em Salgueiro (PE), no primeiro dia que<br />

saímos de Sertânia, ficamos cinco dias parados, somente gastando, meu filho. Gastando<br />

todo o dinheiro que trazia, e eles, enquanto isso, foram para o Ceará buscar outro boca-<br />

do de gente. E ficaram farreando. Eram dois rapazes do Rio de Janeiro que eram donos<br />

do caminhão e um tal de Valdeci, que era um testa-de-ferro do empreiteiro da viagem,<br />

lá de Arcoverde. Ao cabo de cinco dias, nós retomamos a estrada. Ao chegarmos em<br />

Feira de Santana (BA), ele largou o pessoal lá e fugiu de volta com o caminhão. Os pas-<br />

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sageiros homens, que vinham, foram até a Polícia, deram parte deles, que logo foram<br />

encontrados em Serrinha (BA). Uns caras bem forçudos da Polícia deram-lhes uma pisa<br />

da boa e os obrigaram a voltar e levar adiante o pessoal. Dessa feita eles nos levaram até<br />

Governador Valadares (MG). Ali, de novo, eles deixaram o pessoal. Quem tinha dinhei-<br />

ro viajou sozinho, e quem não tinha ficou. Nós também ficamos. De nós, só quem tinha<br />

um resto de dinheiro era eu e Celeste, que era a esposa de Leonel e que estava com José<br />

Guilherme no Paraná. Aí nós ficamos durante uns cinco dias <strong>sem</strong> meio de transporte<br />

nenhum que nos trouxesse ao Sul. Eu falei então pra Celeste que nós teríamos de conse-<br />

guir um resto de dinheiro, senão a gente não chegaria em São Paulo. Ela, apesar de mui-<br />

to segura, arrumou o dinheiro suficiente para a gente chegar em São Paulo. Chegando<br />

em São Paulo, Anísio tomou conta. José de Melo tinha pedido emprestado a Flora um<br />

dinheiro para vir embora para o Norte; a quantia era seis mil cruzeiros, naquela época.<br />

Flora disse que não dispunha daquela quantia e ia ver o que poderia fazer. O Severino ia<br />

vender a camionete dele no dia seguinte. Foi quando, na noite do dia seguinte, ela foi lá<br />

com o Severino e trouxeram a minha família da pensão em que estávamos alojados para<br />

a casa dela. Nessa ocasião o Erasmo quase morreu. Naquele dia foi que eu senti e vi de<br />

perto, meu filho, o que pai tinha dito, que seria muito sofrimento aquela viagem. Foi<br />

sofrimento naquele dia; eu vendo que meu filho ia morrer... Tinha um remédio, Antô-<br />

nio, chamado Aeromicina; esse remédio já saiu de linha -, era como se fosse um Toddy,<br />

ele até cheirava a Toddy... Eu fui à farmácia comprar aquele remédio e, como estava<br />

<strong>sem</strong> dinheiro, pedi ao farmacêutico. Nesse instante, chega uma senhora forte, de cor,<br />

que disse para mim: “Devolva este remédio ao homem e vamos com seu filho para a<br />

Santa Casa, que você não gasta nada, e o seu filho vai sarar”. Tinha também comadre<br />

Antônia, que era mulher do Terto e que estava com uma menina nas mesmas condições<br />

do Erasmo. Eu perguntei para essa senhora se era longe; ela disse que era perto e dava<br />

para ir a pé. Eu pedi a ela para passar na pensão e, chegando lá, comadre Antônia não<br />

quis ir. Ela é dessas coitadas que, se o marido não estiver por perto, não decide nada. Eu<br />

falei, vamos comadre Antônia, a mulher aqui está dizendo que o hospital ali é bom... Aí<br />

eu fui com ela; chegando lá, ele foi internado e, no outro dia, eu vi que o que Erasmo<br />

estava sentindo era resultado de uma epidemia de diarreia e de desidratação que acome-<br />

tia a maioria das crianças. Vi lá crianças fortes e nutridas internadas do mesmo mal que<br />

ele. Enquanto isso, estávamos na pensão <strong>sem</strong> a menor condição de pagar. Foi quando lá<br />

chegaram a Flora e o Severino. Maria e Givaldo estavam na porta da pensão e viram<br />

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quando passaram Flora e Severino. Então gritaram: “padrinho Severino!” Severino era<br />

padrinho dele de crisma. Logo a Flora e o Severino “salivaram” os dois para que não<br />

falas<strong>sem</strong> em “padrinhos” e “tios”, porque, como estranhos, seria mais fácil de tornar as<br />

dívidas mais baratas. (ri...). A minha dormida, a janta e o almoço custaram setecentos<br />

cruzeiros, lembro bem. Foi Manoel que tirou essa conta. A Flora então levou a tropa e,<br />

quando eu cheguei, estava aquele maior silêncio. Eu disse: “parece que viajaram”. Que<br />

nada! Eles continuavam tudo lá naquela pensão. É então o momento em que chega o<br />

Anísio e me diz: “Vai tu agora para o Paraná <strong>sem</strong> a ordem de Zé Guilherme!” Eu disse:<br />

“Eu não vou porque não tenho dinheiro, se tivesse eu iria”... Ele era solteiro nessa época<br />

e estava vestido num terno azul, parecia um doutor. Aí ele tomou conta dos outros que<br />

não eram da minha família; levou todo mundo para a Imigração. Eu fiquei no Hospital<br />

da Santa Casa durante três dias e, depois, o Erasmo teve alta. Como eu tinha o endereço<br />

da Flora, peguei um táxi e fui pra lá. Com uns dois dias depois José chegou e aí nós<br />

ficamos uma <strong>sem</strong>ana com os irmãos em São Paulo e depois fomos para o Paraná. A<br />

partir daí, tudo deu certo. Ficamos seis anos trabalhando lá. Hoje, nós temos a nossa<br />

casinha em São Paulo, que foi tirada de lá, e eu estou contente. Meus filhos aprenderam<br />

uma profissão que dá pra eles viverem; cada um tem seu ranchinho e, assim, criei minha<br />

família e estou satisfeita com o que Deus fez. Devo muito favor a Zé de Melo, que foi<br />

quem botou na minha cabeça para eu vir. Outro dia eu estava conversando com Givaldo,<br />

que, se não fosse Zé de Melo, a gente não teria vindo para cá. Ele disse: “Não mãe, eu<br />

não ia ficar lá”. Mas José veio e ele gostou mais de São Paulo. Ele veio porque não gos-<br />

tava do Paraná. Mas o Paraná foi gostoso. O problema era que nossa chacrinha era pe-<br />

quena, e a família, grande. O que se lucrava tinha que vender, e assim não podia prospe-<br />

rar. Naquela época, Antônio, quem podia comprar gado comprava e podia ficar bem. A<br />

terra dava de tudo, era sadia, era uma beleza. E é assim, meu filho...<br />

89


Após curta temporada no Paraná, a família Guilherme (Madia e Zé Guilherme) voltam de<br />

vez para São Paulo. (foto do acervo de família)<br />

Antônio – Madia, depois do relato dessa grande aventura eu pergunto: qual foi a<br />

sua maior alegria e, já adianto também, qual foi a maior tristeza?<br />

Madia – (pensa longamente) A tristeza maior que eu tive foi quando pai morreu.<br />

(Muito emocionada) Nunca tinha sofrido tanta tristeza assim, meu filho. Mas sou mui-<br />

to franca a lhe falar: sou conformada com o que Deus fez por mim. Não tenho tristeza<br />

para contar. Realmente não tenho. Alegria, sim. Viver com minha família. Tenho muita<br />

alegria de viver com todos, graças a Deus. Então, eu vivo contente. Estou realizada na<br />

minha vida. Não tenho mágoas a lamentar. Gosto de todos os meus irmãos e de todos os<br />

meus parentes. O que eu quero para um quero pra todos. Não tenho tristeza não.<br />

Antônio – Fale de uma lembrança importante que você tenha de pai e de mãe...<br />

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Madia – A lembrança de mãe é quando ela ficou internada em Pesqueira e, depois de<br />

quatro meses, voltou para casa boa e com saúde, até o momento em que ela morreu.<br />

Morreu com idade avançada, aos noventa e seis anos. E de pai, igualmente, quando ele<br />

ficou curado daquela doença forte, que precisou ir para o Recife se tratar. Foi a maior<br />

alegria quando eu o vi voltar completamente sarado daquela doença. São esses dois<br />

momentos ligados à saúde deles dois que julgo importantes. No mais, o que eu pedi a<br />

Deus ele fez para mim. Tinha muito medo de ver mãe morrer, pai casar novamente, e eu<br />

vir a ser criada por uma madrasta. Então o vi morrer antes dela, com setenta e quatro<br />

anos, e ela com noventa e seis. Mas nós sabemos que não vivemos aqui para <strong>sem</strong>pre e<br />

temos um dia que ir embora e então eu me sinto realizada, como já falei. Vou fazer oi-<br />

tenta e três anos<br />

Antônio - Então vai ter uma festa!<br />

Madia - Não tenho mais tanta alegria para festas, não.<br />

Antônio – Pelo menos uma festinha?<br />

Madia - Só uma festinha, uma coisinha, porque não tenho mais tanta disposição. Você<br />

vê que foram embora as pessoas mais “chegadonas”, vamos falar assim. Pai, mãe, meu<br />

filho. Dói-me muito a ausência do Givaldo. É doído, Antônio! (chora). Você só tem<br />

um, meu filho, e Deus te abençoe que teu filho viva bem. Mas quando a gente perde um<br />

filho, é doído, Antônio! Mas, o que vamos fazer? Temos que ter paciência, meu filho.<br />

Uma das coisas que eu não tenho coragem é ver descer à sepultura alguém da minha<br />

família. Nunca quis assistir. O primeiro que eu vi morrer foi pai, a Flora teve coragem<br />

de acompanhá-lo à sepultura, eu não. O mesmo aconteceu com Severino e com José.<br />

Não tive coragem. E não vou não. Até aquela última despedida não gosto de fazer, não<br />

tenho coragem, meu filho.<br />

Antônio – Você acha que o presente é melhor do que o passado que você viveu?<br />

Madia – O presente (hoje) está melhor do que o passado. As condições são melhores,<br />

em tudo por tudo. O passado era muito pequenininho pra nós. Você sabe que o alimento<br />

nunca faltou na nossa modesta casinha. Mas era algo assim muito sofrido. Tinha-se que<br />

trabalhar em anos ruins, outros bons. E a gente via o esforço de nosso pai, que <strong>sem</strong>pre<br />

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lutou. Hoje está folgado. Está tudo mais fácil. No caso dos meus filhos, vejo que ricos<br />

não são, mas têm ao menos o bocado para comer. Acho que o presente está mais fácil.<br />

Antônio – E o Nordeste, ainda quer voltar lá?<br />

Madia – A passeio, sim! Se eu não adoecer, eu tenho vontade de ir lá. A gente fica mui-<br />

to triste porque hoje, lá, da nossa família, somente tem Valdeci. E a gente chegando<br />

naquele cantinho, <strong>sem</strong> ver os entes queridos que você sabe que não voltam mais, não é<br />

nada fácil. Mas, se aparecer uma oportunidade, como o Osvaldo fala de me levar, eu<br />

estando boa, tenho intenção de ir. Se Deus quiser, estando boa de saúde... Eu estou bem<br />

de saúde, minha pressão está controlada, me sinto bem. Apenas o corpo não é mais a-<br />

quele, não tenho mais aquela força. Ao descer do carro do Hélio, ontem à noite, foi pre-<br />

ciso o Daniel me ajudar (risos). Não deu mais, as pernas não têm mais aquela força e a<br />

camionete dele é alta... (ri muito). Na do Anísio até que eu me viro bem, tem um jeiti-<br />

nho... Mas a do Hélio já é moderna, muito moderna, sabe? Precisa de uma ajudinha. O<br />

Daniel foi me ajudar (rindo muito), pegou aqui assim e começou fazendo cócegas - eu<br />

tenho uma cócega medonha -; dei pra rir e disse a ele: vamos parar e procurar outro<br />

meio (rindo).<br />

Antônio – Madia, que mensagem você deixa para os filhos, netos, bisnetos e sobri-<br />

nhos, essa garotada nova da nossa grande família?<br />

Madia – Eu peço, primeiramente, a Deus que lhes dê muita felicidade. Que eles cres-<br />

çam felizes; eles com seus pais, todos eles, dos pequenininhos aos grandes (pede um<br />

lenço para enxugar os olhos). Que eles obedeçam aos seus pais, seguindo o caminho<br />

certo e fazendo o gosto dos pais. Dirijo-me às minhas netas, que já estão ficando moci-<br />

nhas e outras que já estão moças formadas, que elas vejam e pen<strong>sem</strong> bem com quem<br />

elas vão se casar. Porque não é bom casar com uma pessoa com quem não se tem ami-<br />

zade; casando só por casar. Não façam isso, não. Tem que ver se gostam um do outro<br />

para fazerem um lar feliz, <strong>sem</strong> tristeza e sofrimento. É a mensagem que eu deixo para<br />

todos eles.<br />

92


Virgínia Verônica da Silva 32<br />

Antônio – Virgínia, o que você lembra de sua infância, na Fazenda Matarina, na<br />

Paraíba?<br />

32 Casada com Aldir Silva, nasceu no dia 13 de abril de 1931. Tem duas filhas: Débora e Rosângela. A<br />

presente entrevista foi feita no Recife, aos 11 de junho de 2009, na residência de Antônio Jorge Siqueira.<br />

Desde a década de cinquenta do século findo que Virgínia mora em São Paulo. Só retorna ao Nordeste<br />

para passeios.<br />

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Virgínia - Ah, Antônio, eu lembro que a gente convivia com os filhos de comadre Qui-<br />

téria Prata e meus os irmãos que eram Madia, Flora, Manoel José, Conceição, Severino,<br />

Anísio e você, que o era menor. Lembro de Margarida Cabral e Terezinha Cabral. Os<br />

mais aproximados da gente e que a gente gostava mesmo eram da família de mãe. Tam-<br />

bém recordo de comadre Quitéria Prata; a gente ia passear com ela e aí a gente buscava<br />

arrumar namorado. Eu namorava Ageu, a Flora, Antônio Cabral, e a Madia, Zé Gui-<br />

lherme. Nós íamos às festas na Prata, ou então em Monteiro. A gente não tinha dinheiro<br />

e para o lanche nós comprávamos um “taco” de pão, pão doce [rindo...]. A gente saía<br />

comendo por dentro dos matos, pois Monteiro era muito longe e as distâncias chama-<br />

vam-se léguas. Então, a gente comia os pães lá no escuro. Nós saíamos daqueles matos<br />

e passávamos a noite nas festas, para cima e para baixo; <strong>sem</strong> ter dinheiro para nada, <strong>sem</strong><br />

poder ao menos comprar uma xícara de café... Quando era de madrugadinha, a gente<br />

vinha embora para casa, a pé. Chegava todo mundo cansado. A gente dava uma deitadi-<br />

nha, e logo cedo mãe dizia: “Acorda, vão buscar água!”. Ah! Quantos potes de água eu<br />

quebrava. Caía pra trás, <strong>sem</strong> a coluna aguentar; é por isso que eu hoje tenho a coluna<br />

avariada [rindo muito!]. Quando já estava mais crescidinha, pegava a lata d’água e<br />

colocava numa barreira para puxar para a rodilha que estava na cabeça. Chamávamos<br />

“rodia” (rodilha): um pano bem dobrado que se colocava na cabeça para amortecer o<br />

peso das vasilhas. Aquilo caía e prejudicava a coluna da gente.<br />

Antônio – Você falou em namoros. Conte como eram esses namoros de vocês...<br />

Virgínia – Os namorados? Eles não podiam nem chegar perto, porque não podiam<br />

mesmo. Do contrário, mãe dizia que a “honra descia de perna abaixo” [rindo muito!].<br />

É, caía de perna abaixo. Não podia, não podia chegar perto. Receber um beijo? Isso era<br />

a coisa mais feia do mundo. Era coisa de “puta”. Hoje não, hoje é tudo moderno. Na-<br />

quele tempo, quando se começava a namorar, o rapaz tinha que ficar distante uns três ou<br />

quatro metros. Ele ficava lá, e a gente ficava sentada, de longe. Não se tinha assunto<br />

não, não se falava nada, era tudo bobeira... Quanto às festas e às diversões, pai não dei-<br />

xava a gente frequentar, para evitar que se arrumasse namorado. Pai não deixava. A<br />

nossa vida era essa. Agora, quando chegava a segunda-feira, vinham homens de todos<br />

os lados, e nós íamos para o roçado com todos eles plantar milho, apanhar algodão, a-<br />

panhar feijão, quebrar milho, pegar aqueles lençóis cheios de milho, de feijão, de me-<br />

lancia, de jerimum; amarrava e botava na cabeça aqueles lençóis, atravessava três a qua-<br />

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tro “passadores” (passagens por sobre as cercas de madeira). Essa foi a nossa infância.<br />

Convivência com as nossas primas por parte de mãe? Era difícil, porque elas moravam<br />

longe, no sítio chamado de São Francisco. Era tudo mato, e a gente pouco se via e não<br />

tínhamos tanta amizade. Além do mais, pai não deixava a gente sair, tinha muito ciúme<br />

da gente.<br />

Antônio – E a escola?<br />

Virgínia – A escola, a gente frequentava. Nós íamos para a escola e geralmente tínha-<br />

mos que levantar em torno de duas horas da madrugada. Eu, Flora, Manoel e José, ía-<br />

mos buscar capim, lá num lugar chamado “Coqueiro”. Cheio de cobra, de escamas de<br />

cobra, e a gente pisava em cima delas. Deus é tão bom que nunca a gente ficou doente,<br />

apenas com os pés cheios de espinhos. Nós íamos buscar capim para dar comer às va-<br />

cas. Quando se chegava em casa, o lanche era cuscuz com bem pouquinho leite. O leite<br />

era para dar a um bocado de moleques lá de Santa Catarina; isso era ordem de mãe. Cla-<br />

ro, o leite era pouco. O lanche da gente era aquele cuscuz seco. No almoço, muitas ve-<br />

zes não tínhamos leite para comer com o “xerém” de milho e feijão, que era “feijão de<br />

corda”. Às vezes, o feijão estava tão bichado que quando se botava na panela para fer-<br />

ver, era um caroço em cima e outro embaixo, no fundo da panela, a maioria podre. Vol-<br />

tando ao assunto da escola, minha primeira professora foi a Antônia Ananias, tua ma-<br />

drinha. Depois de Antônia, foi mestre Gonçalo. Lembro que ele era da família da mãe<br />

de Enedina. Era um professor maravilhoso. Ele sofria de paralisia; era paralítico das<br />

pernas. Diziam que ele havia quebrado uma garrafa de querosene nas pernas e, por con-<br />

ta disso, teria ficado paralítico. Ele era professor da gente, um bom professor. Isso tudo<br />

foi em Matarina. Depois, a gente estudou também com Manoel Clementino. A minha<br />

leitura, até hoje, infelizmente, é esta: eu falo errado, escrevo errado e leio errado. Por<br />

quê? Naquele tempo, os nossos professores que ensinavam nos sítios não corrigiam os<br />

erros dos alunos. Então, eles eram isso aí. O meu estudo foi esse. Quando pequena, meu<br />

sonho era ser balconista de loja. Depois de adulta, realmente eu comecei a trabalhar na<br />

loja de Severino Caminhão, irmão falecido da Enedina. Isso foi inicialmente em Sertâ-<br />

nia e, depois, em São Paulo.<br />

Antônio – Continuando essas lembranças da sua infância, fale agora de seu rela-<br />

cionamento com os irmãos: Madia, Flora, Manoel, Conceição, José...<br />

95


Virgínia – Ah, o negócio era brabo. A gente brigava muito, principalmente com a Ma-<br />

dia. Pai tinha um rebanho de gado e, à noite, as vacas eram todas soltas no curral e fazi-<br />

am cocô no terreiro de casa, cheio de terra. A Flora e a Madia tinham de varrer aquelas<br />

tuias de merda e me chamavam pra varrer também. Eu não ia e, por isso, me chamavam<br />

de preguiçosa. Diziam que eu era podre de preguiça. E, também por isso, eu apanhava<br />

[rindo!] e apanhava muito. A Madia puxava os meus cabelos e eu caía no choro, chora-<br />

va muito. Por isso mesmo, eu chamava Madia de “gota serena” [rindo muito!]. Na<br />

maioria das vezes, eu dizia: “Não vou, não vou apanhar! E você, dane-se, sua gota”! A<br />

Madia batia, eu chorava era muito, e mãe <strong>sem</strong>pre dizia pra Madia: “bem feito!” Voltan-<br />

do ao assunto, aconteceu de mãe ter juntado alguns panos velhos e fez alguma coisa<br />

assim como uns sacos velhos, dizendo que eram travesseiros. Ela então mandou que eu<br />

fosse catar capim para encher os tais travesseiros. Eu não sabia para que servia aquilo.<br />

Danei-me a juntar tudo o que tinha pelo terreiro: chinelo velho, tudo, uns podres e ou-<br />

tros velhos. Juntava pedra, pedaços de tijolo, enchi aquele saco e, chegando junto dela,<br />

disse: “Tá aqui, mãe, o que a senhora pediu para os travesseiros”... [ri muito!]. Era as-<br />

sim a nossa infância.<br />

Antônio – Quem era o mais bagunceiro dos irmãos?<br />

Virgínia – O mais bagunceiro era o Manoel. Ele ia “roubar” melancia lá no roçado de<br />

Antônio Terêncio, e pai tinha muita raiva disso. Ele se juntava com um colega dele<br />

chamado Agostinho e ia comer as melancias dos roçados dos vizinhos. Pegava uma fa-<br />

ca, furava o fundo das melancias do roçado de Antônio Terêncio e ia embora. O roçado<br />

de Antônio Terêncio ficava num caminho que levava para a vazante do açude, e ele fa-<br />

zia um caminho cortando as palmas miúdas. Nesse caminho, tinha muitas cobras, ai<br />

meu Deus! Nessa vazante, a gente plantava tomate, feijão e milho. Aconteceu de apare-<br />

cer até oito ou sete pés de milho e feijão nas covas, e pai logo, logo achou que era eu,<br />

porque plantava as covas com preguiça. Num desses dias, tivemos que fazer uma re-<br />

planta que consistia em replantar as covas que falhavam na germinação das <strong>sem</strong>entes.<br />

Lá, pai encontrou muitas pedras e então me acusou de ter feito aquilo, dizendo que eu<br />

era “cu de preguiça”. Mas não era eu que fazia aquilo, porque eu plantava direito e sabia<br />

muito bem contar os caroços. Numa dessas replantas, pra me vingar das acusações dele,<br />

eu disse: “se pedra nasce, agora eu vou plantar pedra”. Porque, se eu planto milho e pai<br />

diz que nasce pedra, agora vai ser pedra mesmo. E assim fiz, era pedra carreira acima, e<br />

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pedra, carreira abaixo, e tome pedra. Era isso, afinal eu já tinha preguiça, e ele me cha-<br />

mava “cu de preguiça”... O Manoel também era preguiçoso e safado. A Flora é que era<br />

trabalhadora. Pegava a enxada e ia mesmo ao trabalho. “Tadinha da Flora!”, ela traba-<br />

lhava muito. Tudo o que ela fazia era bem feito e ela tinha muita coragem. Manoel era<br />

quem fazia parelha com ela, diziam que eu era “cu de preguiça”, mas também eu nem<br />

ligava. Quando ia limpar mato, eu chegava junto a umas touceiras de café brabo - uma<br />

erva resistente e dura e de uma folha bem verde -, danava a enxada naquelas touceiras e<br />

logo elas desacunhavam. O Manoel ia acunhar a enxada e, enquanto ele acunhava, eu<br />

ficava sentada, descansando, veja só! Minha infância foi essa. Eu <strong>sem</strong>pre reneguei o<br />

roçado. Nunca tive coragem de trabalhar na roça. Eu ia apanhar algodão com a Flora -<br />

ela era danada de rápida em apanhar algodão –, e tinha uns buracos no roçado. Eu olha-<br />

va para aquele sol quente e ali mesmo dormia. A Flora continuava trabalhando e, bem<br />

mais tarde, ela dizia: “Virgínia, Virgínia, acorda!” Quando eu acordava não tinha um<br />

capucho de algodão dentro do saco, que nós chamávamos “seio de algodão”. Eu era<br />

assim.<br />

Antônio – Vocês, meninas, na puberdade e adolescência, conversavam com mãe<br />

sobre o desenvolvimento do corpo...<br />

Virgínia – Não! Era feio! Ave Maria, era a coisa mais feia do mundo. Os nenês, nossos<br />

irmãos recém-nascidos, a gente só sabia que mãe ia ter quando escutava o choro, no<br />

momento do parto assistido pela parteira. Mãe passava de dois a três dias sofrendo e,<br />

naquele tempo, não se contava com a assistência dos médicos, porque não existia isso.<br />

Tudo era assistido pela parteira e mãe sofria muito. Quando a gente via mãe fazendo<br />

aqueles chapeuzinhos com rendas, aquelas roupinhas, nós já sabíamos que ela esperava<br />

nenê. As fraldas, sabe o que eram? Eram bandas de saia de mãe e da gente. Por ali, nós<br />

ficávamos sabendo que ela ia ganhar nenê. E nós tínhamos muita alegria, porque sabía-<br />

mos que ia nascer mais um irmão ou irmãzinha. Quanto ao conforto da gente, é isso que<br />

eu te falei. Era pouco. Lá, na Paraíba, a gente ia apanhar algodão na roça: eu, Flora,<br />

Manoel, José e mãe ia levar o lanche da gente. Sabe o que era? Era milho torrado e não<br />

era com aquela pipoca bonita; era aquele milho torrado dentro da cinza, em panela de<br />

barro. Com aquilo, o caroço de milho não crescia não [rindo muito!]. E a gente comia<br />

assim mesmo. Pai era uma pessoa que gostava muito de plantar tomate e batata. Nós<br />

íamos arrancar batata com os trabalhadores, e eu gostava muito de comer batata crua.<br />

97


Eu tinha uns dentes bonitos, mas dizem que o leite da batata era muito ruim para os den-<br />

tes. Eu ficava com os lábios, - nós chamávamos de “beiço” - todos grudentos [ri mui-<br />

to!].<br />

Antônio – Voltando àquele assunto da puberdade das meninas. Vocês não conver-<br />

savam com mãe, mas conversavam entre vocês, amigas e irmãs?<br />

Virgínia – A menstruação era chamada de “Chico” [ri muito!]. E lembro que a primei-<br />

ra vez que chegou a minha menstruação, eu tinha ido fazer xixi lá pelos matos, e quando<br />

menos me dei conta, estava toda ensanguentada. Então, eu pensei que tinha me furado<br />

em algum toco de madeira, um toco de marmeleiro [ri muito]. Perto, tinha um barreiro<br />

cheio d’água. Manoel era quem fazia esses barreiros. Eu, então, entrei barreiro adentro,<br />

tomei banho e quanto mais eu tomava banho, mais escorria aquele sangue. Por conta<br />

disso, cheguei em casa toda desconfiada, dizendo comigo mesma: “Mas meu Deus, o<br />

que é isso?” A Flora já tinha visto a minha calcinha manchada de sangue, coisa que eu<br />

ainda nem tinha notado. Ela falou pra mim: “Eita, o Chico veio”. Eu fiquei braba e cho-<br />

rei foi muito. Fiquei muito triste e com vergonha. A nossa infância foi assim... E você<br />

sabe Antônio, apesar de tudo isso, a gente era feliz e não sabia.<br />

Antônio – Dessa época da infância, qual a imagem que você guarda de nosso pai?<br />

Como é ele na sua lembrança?<br />

Virgínia – Pai era uma pessoa muito seca e não tinha carinho nenhum com a gente.<br />

Caso acontecesse da gente fazer uma coisa errada, pai batia e batia muito, principalmen-<br />

te no Manoel. Mais nos meninos do que nas meninas. Um dia, ele juntou a mim e Flora<br />

para nos bater; mas não mais era época de bater na gente. Ele veio nos bater por conta<br />

de cigarro que eu me habituava a fumar. Mãe pedia para eu fazer cigarros de palha para<br />

ela, e eu estava me habituando a fumar. Numa dessas ocasiões, eu percebi um cachimbo<br />

de barro e resolvi fumar. Terminei ficando tonta, rapaz! Ensinaram-me que lama de<br />

fundo de pote era bom para tonteira de fumo e eu fui experimentar daquela gosma. Ao<br />

retirar o pote, embaixo havia uma cobra enroscada. Era uma malha de cascavel e quase<br />

que ela me morde. Mas ela não me mordeu, porque Deus foi grande. Eu cheirei aquele<br />

barro e dormi. Pai chegou e eu dei logo uma carreira para o quarto dele, e ele me pegou<br />

para bater. Quando ele me pegou, de medo eu já tinha feito xixi na roupa; porque ele era<br />

muito estúpido, muito bruto. Mesmo assim, ele bateu em mim, dando-me três golpes de<br />

98


palmatória em cada uma das mãos. Aquilo foi uma das maiores dores que eu senti. Os<br />

castigos dele eram assim, muito duros. Ele não era um pai calmo e educado. Pai não<br />

sabia dar uma educação de carinho para a gente. Mãe era também um pouco grossa. Ela<br />

não queria que a gente namorasse. Mas era uma pessoa muito inteligente. Não foi à es-<br />

cola e não aprendeu a ler, porque o pai dela dizia que ela não precisava saber ler e es-<br />

crever para não mandar bilhetes para os namorados. Por isso mesmo, mãe nunca apren-<br />

deu a ler, mas era muito inteligente. Ela nos dava bons conselhos, cuidava da gente e até<br />

chegava a nos dar carinho. Com ela, a gente conseguia brincar, rir, gracejar; ela era ca-<br />

rinhosa, ao contrário de pai, que nunca nos passava carinho. Ele exigia que nós traba-<br />

lhás<strong>sem</strong>os na roça como os homens trabalhavam. Como eu já disse, não nasci para tra-<br />

balhar na roça. Eu ia porque era obrigada. Nós sofremos muito na infância, e mesmo<br />

assim, no fundo, no fundo, com os meus setenta e oito anos de hoje, eu tenho muitas<br />

saudades do passado, muitas recordações dos tempos em que vivemos juntos com os<br />

irmãos...<br />

Antônio – Dando continuidade a essas lembranças da infância, você recorda das<br />

amizades de nossos pais e de vocês, ali na Matarina?<br />

Virgínia – José Porfírio era um grande amigo nosso; Também Cícero Nunes, que era o<br />

dono da propriedade Matarina. Cícero Nunes era uma pessoa maravilhosa e de um cora-<br />

ção muito bom. Ele tinha muita cabeça de gado. Cada ano em que mãe ganhava um fi-<br />

lho – e os nossos irmãos nasciam de dois em dois anos -, ele nos dava uma vaca para<br />

garantir o leite para aquela criança. Ele tinha um bom coração. Somente depois que pai<br />

fazia a colheita do algodão é que ele botava o gado dentro da roça. Ele nunca foi um<br />

patrão ruim, mas pai não gostava muito dele. Mas eu, ainda como criança, já sentia que<br />

Cícero Nunes era uma pessoa maravilhosa. É tanto que a gente saiu da propriedade dele<br />

e foi morar em Santa Luzia - Sertânia -, Estado de Pernambuco. Significa dizer que a<br />

gente saiu da terra dele, de Cícero Nunes, para o que era da gente. Não foi, portanto, um<br />

patrão ruim, porque pai trabalhou muito e com o dinheirinho que juntou lá deu para<br />

comprar alguns pedaços de terra. Eram pequenas as terras que, no início, pai comprou<br />

em Pernambuco. Juntando as compras de um e outro, a gente conseguiu fazer a proprie-<br />

dade de Santa Luzia.<br />

Antônio – Você falou em Zé Porfírio, Cícero Nunes... Que outras pessoas mais?<br />

99


Virgínia – Tinha os Ananias. Manoel Ananias era primo de pai. Tio Ananias era o pai<br />

de Manoel. Depois, tinha comadre Antônia, que foi nossa professora, Laura e Francisca.<br />

Era uma família chegada a nós, porque eram primos de pai. Inclusive os irmãos de mãe,<br />

nossos tios. Tio Feliciano, Tio Umbelino, - que grande tio era ele, deve estar no céu!<br />

Tinha titio Moisés, tio Joaquim, - que era uma pessoa maravilhosa, e eu queria muito<br />

bem a ele; titio Manoel, titio José e titio Antônio. As mulheres: titia Júlia, titia Maria...<br />

(que mãe chamava de “Maria penca verde”, porque ela era muito somítica. O marido<br />

dela fazia rapadura, e ela às vezes levava lá pra nossa casa e nós comíamos. Eram umas<br />

rapaduras velhas, pretas...). Titia Júlia era uma pessoa maravilhosa. A gente queria mui-<br />

to bem a tia Júlia, que era a mãe de Firmo Batista, o poeta cantador. Além de Firmo,<br />

tinha João e Dezinho. Esse era doido, doido. Ah rapaz! Tem a história de Brasil, o negro<br />

velho Brasil. Ele era da Paraíba; que pessoa linda! Todos os dias, às cinco horas da ma-<br />

nhã, Madia ia atrás de Brasil, na casa de comadre Lia, que era também muito amiga da<br />

gente; ela era mulher de Severino Belo. Ia atrás dele para levar galão d’água lá pra casa<br />

e ralar o milho. Ele era doido por Madia; e quando ela bulia com ele, ele dizia: “Mari-<br />

quinha, isso é lá conversa! Isso é hora de uma mulher vir atrás de homem! Você aí nos<br />

roçados, nas cacimbas, vá embora pra casa Mariquinha. Isso é feio!” [ri muito!]. E Ma-<br />

dia o chamava pra ralar o milho, e era assim. Nós queríamos muito bem a Brasil. Ele já<br />

morreu. Contavam-nos que os pais dele tinham sido escravos, no tempo antigo. Era bem<br />

preto. Uma pessoa de grande respeito. É, tinha também os filhos de tia Josefina: Terezi-<br />

nha, Inácia, Manoel e Maria. Moravam em São Francisco, pertinho da família da Enedi-<br />

na que tinha como mãe, Margarida e Zé Caminhão, como pai. Também lembro muito<br />

dos pais de mãe, nossos avós maternos: Mena (Filomena) e Padim (padrinho) Velho.<br />

Lembro que lá, na Paraíba, e até mesmo aqui, em Pernambuco, eu e Flora, a gente ia<br />

apanhar algodão e eles iam conosco. Nós ficávamos debaixo daquele juazeiro com a-<br />

quele monte de algodão. Padim Velho contava pra nós, falando assim: “Quando chegas-<br />

se a era de sessenta, pai ia desconhecer filho e filho ia desconhecer pai. E haveria muitas<br />

cabeças e poucos rastros”. Era assim que ele falava pra gente. Ele era muito bonzinho<br />

com Mena e não era ciumento.<br />

Antônio – Vamos fechar essa etapa da Paraíba e abrir outra, que é a da mudança e<br />

a permanência em Santa Luzia, no Moxotó pernambucano. Você lembra alguma<br />

coisa dessa mudança?<br />

100


Virgínia – Claro que sim! Foi em janeiro de 1945. Em 1945, foi também o ano em que<br />

Elias nasceu. A vida que a gente passou a viver em Santa Luzia era a mesma da Paraíba:<br />

a gente <strong>sem</strong>pre trabalhando na roça. A mudança dos pertences, eu acho que foi num<br />

caminhão. Os móveis, rapaz! [rindo muito!] A cama de mãe, era de corda. Não, era de<br />

couro; só não sei se era de vaca ou de boi. Era um couro estampado. Parecia a zabumba<br />

do diabo. A gente batia e dizia que era a zabumba, e mãe se danava com a gente: eu,<br />

Flora e o Manoel [rindo muito]. Ah, rapaz! Eu esqueci uma passagem. Por falar em<br />

cama, na Paraíba eu dormia numa rede que só tinha uma banda. Sabe o que é a banda de<br />

uma rede, não? A corda era amarrada numa vara de marmeleiro. Eu dormia com o Aní-<br />

sio. Ele era pequenininho, e era eu quem cuidava do Anísio; dava banho nele, dava co-<br />

mida, praticamente ele dormia nos meus braços. Quando foi uma noite, eu caí no chão,<br />

despenquei da rede [ri muito!]. Caímos os dois. O Anísio chorou foi muito, e eu ficava<br />

com muita dó dele. Isso aconteceu quando ele era pequenininho. Depois, a gente passou<br />

a ter uma cama; isso já era mais moderno, era de corda, aliás, de corda, não! Era de las-<br />

tro. Lastro eram tábuas que, de noite, batiam mais que uma zabumba, rapaz. Era tábua<br />

velha pra lá, tábua velha pra cá, inclusive aquilo empenava tudo com o calor. Eu era<br />

vaidosa, era moleca, mas já era vaidosa; como meu cabelo era comprido, ele enchia de<br />

piolhos e lêndeas. Aquilo coçava muito durante a noite e precisava ver o quanto inco-<br />

modava. E pai não consentia que nem eu, nem Flora, nem Madia, nem mãe cortás<strong>sem</strong>os<br />

os cabelos. Tinham que ficar longos. Eu, então, cortava papel e enrolava os cabelos na-<br />

queles papéis. E a Madia e a Flora, muito <strong>sem</strong>-vergonhas, à noite, pegavam um candeei-<br />

ro velho com querosene e um pavio de algodão dentro dele; acendiam o fogo e, devaga-<br />

rinho, tiravam os papéis do meu cabelo. Quando eu acordava chamava-as de “gota sere-<br />

na” e muitos outros nomes. Eu tinha uns cabelos lisos e queria que eles ficas<strong>sem</strong> cache-<br />

ados. Eu já era vaidosa mesmo.<br />

Antônio – Virgínia, parece que você e Flora tentaram ser fabricantes e comercian-<br />

tes de louça de barro, lá na Matarina, é verdade?<br />

Virgínia – Foi. Isso foi lá, na Matarina. A gente começou isso lá na Paraíba, onde a-<br />

prendemos a fazer louça de barro com comadre Lia e comadre Dina. Dina era uma moça<br />

do Agreste, e Lia era a esposa de Severino Belo, que ela chamava de “doutor”, porque<br />

ela não queria que a gente fizesse barulho. E quando ele se aproximava ela dizia: “Lá<br />

vem o doutor!”. Nós ríamos e nos divertíamos com aquilo. Dona Lia morria de medo<br />

101


do Severino Belo, mesmo ele não sendo brabo com ela. E nós, então, começamos a fa-<br />

zer louça para vender. A Flora era caprichosa, eu não. Eu não sabia fazer direito, e cada<br />

fundo de panela, de pote e de alguidar que eu fazia ficava com uma espessura muito<br />

grossa e quando ia queimar no forno, rachava e quebrava tudo. Manoel e pai riam muito<br />

dessa nossa fabricação, e eu ficava louca e chorava muito. Ia lá, no tabuleiro dos matos<br />

e quebrava a maior parte de minha fabricação. Tinha um senhor idoso que era compadre<br />

de Zé Guilherme - eu esqueci o nome dele –, ele comprou oito contos de réis de panelas<br />

e não pagou, rapaz! Nessa ocasião, eu peguei uma briga danada com Luzia e o marido<br />

dela, que não lembro o nome agora. A Madia deve lembrar. Eu fiquei doida da vida<br />

porque lutei tanto fazendo aquelas panelas velhas de barro e aparece alguém e leva tudo<br />

de graça, <strong>sem</strong> nunca me pagar. Era assim o nosso comércio, não entrava dinheiro não.<br />

Eu, mais a Flora, já em Pernambuco, a gente ia catar mamona, enchia os terreiros de<br />

mamona para secar e depois vender. Só assim a gente pegava algum dinheirinho para<br />

comprar um sabonete, uma caixa de pó, comprar algum perfume... Sabe como era o<br />

nome do perfume que a gente comprava? Era “Dirce” [ri muito]. Era um tipo de óleo<br />

velho, fedorento, mas aquilo pra nós era o melhor perfume do mundo. O sabonete era<br />

sabão da terra para o banho. Um dia, eu fiz uma decoada. Sabe o que era decoada? Era a<br />

cinza que a gente colocava com água dentro de uma bacia e deixava decantar. Pegava<br />

aquela água decantada no fundo da bacia e com ela lavava roupa. Era uma química mui-<br />

to forte. E, um dia desses, eu <strong>sem</strong> saber, juntei tudo e fui lavar o cabelo e tomar um ba-<br />

nho. Olha, não prestou nada, o cabelo ficou durinho. Madia via aquilo com mãe e as<br />

duas ficavam doidas de dar risadas. Era assim a nossa infância.<br />

Antônio – E os primeiros anos em Pernambuco mudaram alguma coisa em relação<br />

com a Paraíba?<br />

Virgínia – Mudaram, porque a gente estava crescendo, a gente já ia à missa, a gente<br />

tinha muitos afilhados, mais que mesmo na Paraíba. Íamos assistir à procissão eu, Flora,<br />

Madia – que logo casou, já no ano de 1945. Não sei dizer se a Madia casou em casa ou<br />

em Sertânia... O vestido dela era branco, era lindo; foi muito bem feito o vestido da<br />

Madia. Mas não sei dizer onde ela casou. A gente ia para Sertânia a pé, <strong>sem</strong>pre a pé,<br />

seis quilômetros a pé, ida e volta, o que somava doze quilômetros. Nós trabalhávamos o<br />

ano inteiro para comprar três vestidos, um para a festa de Nossa Senhora da Conceição e<br />

os outros dois para as festas de Natal e Ano Novo. O nosso dia-a-dia com as obrigações<br />

102


de casa e do roçado era muito duro. Tínhamos, por exemplo, que lavar a roupa da famí-<br />

lia e dos demais trabalhadores. E é aqui que entra a história de um deles, chamado Luís<br />

Pituta. “Ah cachorro da mulesta”! Coitado, já morreu o bichinho! Como eu dizia, a gen-<br />

te não tinha direito a uma caixa de pó. E, além dos onze irmãos e da família, tinha sete<br />

trabalhadores para quem tínhamos que lavar, passar e fazer a comida. Mãe ficava lou-<br />

ca... E tinha um tal de Alcides, com quem eu um dia quebrei um pau danado. Começou<br />

pelo Luís Pituta... E tinha também Sebastião, que nem conseguia enxergar direito. Du-<br />

rante a <strong>sem</strong>ana a gente passava o tempo todo trabalhando com eles. Sebastião doido<br />

para namorar comigo e Flora. Quando era no domingo, na hora em que a gente tava na<br />

mesa com ele tomando café, ele botava os braços escorados na mesa e ficava olhando<br />

com um olho bem comprido para mim e Flora. Aqueles olhos “bonitos”, doido para<br />

namorar. Ai eu chegava assim junto da Flora e dizia: “Home, vai cheirar teu... Quem<br />

quer namorar com uma desgraça dessas...? O diabo passa a <strong>sem</strong>ana trabalhando junto,<br />

no roçado, e no domingo fica se enxerindo pra gente”. Nessas horas, eu a Flora ríamos<br />

de não aguentar. Quando foi num domingo, Manoel chegou lá em casa. Ele era muito<br />

<strong>sem</strong>-vergonha e só vivia lá em casa. Casou, mas só vivia lá em casa e <strong>sem</strong>pre ele estava<br />

no meio dessas histórias. Naquele tempo, os homens usavam vestir umas calças de linho<br />

branco, bem clarinho. O Luís Pituta, com toda essa trabalheira, nunca foi capaz de nos<br />

dar uma caixa de pó ou um sabonete sequer. Na sexta e no sábado, eram dias da gente<br />

lavar aquele monte de roupa. Botava aquela trouxa de roupa na cabeça e íamos procurar<br />

água boa de lavar roupa, cedida pelo nosso vizinho Sinésio, no Rodeador. Sinésio era<br />

uma pessoa muito boa, juntamente com Paisinho Remígio, nossos vizinhos. Inclusive,<br />

Antônio, lembro que você era meu amigão e que era quem <strong>sem</strong>pre levava o almoço para<br />

mim lá nos tanques de José Antônio, lembra? O almoço que mãe preparava era na base<br />

de xerém com leite e um pedacinho de carne. Algumas vezes um pouco de cuscuz. Ela<br />

misturava tudo e mandava você levar lá para eu almoçar. Eu lavava a roupa daqueles<br />

trabalhadores, inclusive as cuecas velhas encardidas de Sebastião. Ele mijava naquelas<br />

cuecas velhas, e elas ficavam encardidas. Um dia, eu fui lavar a roupa na barragem de<br />

Paisinho e lá estavam aquelas calças e cuecas nojentas de Sebastião. Eu não tive dúvida:<br />

joguei aquelas calças na lama, mijei em cima e botei no arame para enxugar. Nisso,<br />

chegando em casa, eu chamei Manoel e contei tudo pra ele. Manoel estava em todas e<br />

sabia de tudo. Foi a pior viagem essa de contar pra ele. Aquele “cachorro da gota” ria<br />

que chorava. Quando ele encontrou Sebastião, foi logo dizendo: “Sebastião, vem ver a<br />

103


tua calça como é que está! Vem ver!” Estava toda preta. Ele, Sebastião, ficou louco da<br />

vida. Manoel, então, disse: “foi Vrigina” - ele me chamava assim. Diz ele pra mim:<br />

“Conta a verdade, tu mijaste ou não na calça de Sebastião?” Eu respondi: “Foi isso<br />

mesmo!” Aí passou o tempo e, claro, ele ficou mordido. Voltando à história de Pituta,<br />

num daqueles domingos eu já estava queimada de raiva quando apareceu Luíz Pituta,<br />

que era bem baixinho. E me disse: “Virgínia, eu quero hoje minha roupa passada”. Os<br />

ferros de engomar daquela época eram na base da brasa viva e esquentavam demais o<br />

fundo, queimando muitas vezes a mão da gente. Era um sofrimento engomar roupa com<br />

aquela desgraça, rapaz! Eu então comecei passando a roupa dele. Joguei pra lá, empur-<br />

rei pra cá e disse comigo mesma: “Cachorro da gota, hoje você me paga”! Ele, então,<br />

foi vestir a roupa e me disse: “Ô Virgínia, vem cá! Essa calça está muito malpassada”.<br />

Eu, então, disse: “Vá pro inferno, seu cachorro da mulesta, seu gota serena... Você nun-<br />

ca me deu nada, e eu aí, durante a <strong>sem</strong>ana toda, lavando e passando roupa pra você, e<br />

você ainda reclama de roupa malpassada! Vai pedir à p... que te pariu pra passar a tua<br />

roupa, infeliz!” E, nisso, rapaz, ele foi embora lá de casa. Eu então disse: “O negócio<br />

agora aqui é meu, não é mais nem de pai, nem de mãe”. Era trabalho demais, Antônio!<br />

Alcides, ia esquecendo também do Alcides, Antônio! Alcides era um dos nossos traba-<br />

lhadores e tinha uma namorada lá num sítio daqueles, na Queimada do Milho. Ele tinha<br />

uma irmã que morava em Sertânia e, apesar disso, a roupa dele era eu que lavava e pas-<br />

sava. Depois eu quebrei o pau e terminei não lavando mais a roupa dele. Ele chegou<br />

numa segunda-feira e neste dia não tinha lenha nem carvão algum para a gente cozinhar.<br />

Aí eu juntei lá uma “maravalha”, que eram uns pedaços de lenha tirada da cerca, sei lá,<br />

a fim de cozinhar o xerém. Pai e mãe tinham ido para a roça junto com os trabalhadores.<br />

Eles chegavam cedo para almoçar e, por volta das dez horas, todos já estavam em casa<br />

esperando o almoço. Onze horas era o máximo. O Alcides chegou cedo do trabalho da<br />

roça dele, onde colhia milho, jerimum, melancia etc. Ele levava tudo para a cidade. E eu<br />

fazendo comida prá ele em nossa casa! Lavar roupa, não, que eu já tinha brigado com<br />

ele. Quando ele chegou, eu pus a comida para ele, e ele me falou que o xerém estava cru<br />

[ri!]. Perguntei a ele: “O xerém ta cru, Alcides?” Ele disse que estava. Aí eu disse: “Vai<br />

comer xerém cozido no inferno, na casa do diabo, eu vou contar pra pai quando ele che-<br />

gar aqui”. Aí ele disse: “Não! Pelo amor de Deus, não faça isso não”! Aí eu disse: “Tu<br />

vais ver”! Ele saiu dali e foi para o armazém velho, que era onde ele dormia. Foi quando<br />

pai chegou e eu servi o xerém para ele e os demais e falei a ele, contando o acontecido.<br />

104


Pai disse “espere aí”. E pedi a ele para não falar coisas demais, porque eu já havia re-<br />

clamado tudo a ele. Pai, então, disse que ele podia catar tudo o que ele tinha lucrado na<br />

roça e “desse no pé”, mandando-o embora. Foi, mandou-o embora.<br />

Antonio – Virgínia, não sei se você lembra que eu fui o último dos irmãos a nascer<br />

na Paraíba, em 1942. Antes de mim, houve um irmão que faleceu e tinha o nome<br />

também de Antônio, não?<br />

Virgínia – Lembro. Os padrinhos dele eram Antônia e Manoel Ananias. Ele tinha nove<br />

meses, e eu lembro bem, ele era bem bonitinho, bem branquinho. Mãe cozinhava batata,<br />

e quando elas estavam cozidas ela botava aquelas batatinhas numa bacia. Ele saia se<br />

arrastando e ia comendo aquelas batatinhas. Depois, apareceu nele uma doença chama-<br />

da “crupe”, que os médicos ainda não sabiam curar. E também não tinha médico para<br />

tratar, tinha apenas um enfermeiro, chamado Alcelino, que morava na Prata. Mas não se<br />

tinha médico que tratasse os doentes naqueles sítios, naquelas fazendas, não existia<br />

mesmo. Aquela doença o atacou, ele morreu, morreu <strong>sem</strong> poder respirar. Morreu muito<br />

rápido, infelizmente. Ele era a coisa mais linda. Foi um desgosto muito grande que a<br />

gente passou. Depois da morte, mãe chorava muito por ele. Quando foi uma noite, ela<br />

sonhou com ele todo molhadinho. Naquele tempo, quando as crianças morriam eram<br />

sepultadas num caixãozinho cheio de papel verde, branco, rosa e vermelho, todo enfei-<br />

tadinho. Mãe sonhava que naquela tarde estava chovendo muito, e ela, saindo assim<br />

pelo canto da casa, onde tinha um pé de mulungu, o encontrava chorando. Aí ela per-<br />

guntou: “Porque meu filho está chorando?” Ele, então, respondia: “Estou chorando por-<br />

que mãe vive chorando muito por mim. Por isso mesmo, eu estou todo molhadinho”.<br />

Nessa hora, mãe acordou muito aflita, chorando muito. A partir dali, ela jurou a Deus<br />

que não ia chorar mais por aquele menino e não mais chorou. Logo após a morte dele,<br />

mãe ficou grávida de você, Antônio. E, quando você nasceu, ela tomou os mesmos pa-<br />

drinhos. O motivo foi que ela gostava muito deles e ela ficou muito triste que o filho<br />

tivesse morrido. Por isso, tomou os mesmos padrinhos. E eu sei que ela não se arrepen-<br />

deu, porque em seguida você veio. De todos os nossos irmãos, você <strong>sem</strong>pre foi muito<br />

inteligente, usou muito sua cabeça. E Deus lhe deu essa inteligência, e você hoje é feliz.<br />

Você, quando era pequeno, queria ser padre. Isso para todos nós, principalmente pai e<br />

mãe, era a maior felicidade. A primeira professora sua foi Zefinha Çula, filha de mestre<br />

Çula, uma família de Sertânia; ele foi o mestre de obra de nossa cisterna, que ainda hoje<br />

105


existe. Com um mês de escola, D. Zefinha falou pra pai que você era muito inteligente e<br />

que já imitava a caligrafia da professora. Lembra? [eu respondo que não!]. Depois,<br />

você botou na cabeça que queria ser padre. Você lembra de uma vez que nós fizemos<br />

uma viagem por aquelas cidades ali do Agreste de Pernambuco - Pedra e Alagoinha-,<br />

arrecadando dinheiro para suas despesas no <strong>sem</strong>inário? 33 Houve a festa da padroeira da<br />

cidade de Pedra, onde pertinho, num sítio, morava o Tio Pedro, irmão de pai. Oh, que<br />

tio querido e estimado! Eu queria muito bem a ele. Você foi comigo e como eu nunca<br />

tive vergonha de certas coisas, eu via que você ficava muito tímido, mas eu nem ligava<br />

para aquilo. Para mim, eu estava realizando um sonho, estava sonhando muito alto. Eu<br />

disse: “vou pedir esmola dentro de Pesqueira para eu doar esse dinheiro para o Antô-<br />

nio”. Naquele tempo, você ainda não usava batina, não queria ir de forma nenhuma, mas<br />

rendeu um pouco de dinheiro.<br />

Antônio – Vamos voltar a Sertânia, ao Sítio Santa Luzia. Durante muitos anos, pai<br />

manteve às nossas custas a professora D. Zefinha Araújo, que ensinava na propri-<br />

edade a todos os alunos da vizinhança. Você lembra esse passado?<br />

Virgínia – Lembro, ela chamava Anísio de “cara lisa”. Ela vivia lá em casa. Passava<br />

toda a <strong>sem</strong>ana e, na sexta-feira, ia de volta para Sertânia. Ela era uma boa professora e<br />

falava que você, Antônio, era uma pessoa muito inteligente. Morreu quase toda essa<br />

família.<br />

Antônio – Virgínia, nessa época, com as proibições de pai para ir a Sertânia, tio<br />

Umbelino era o grande quebrador de galho de vocês, com festinhas e danças de<br />

viola, não?!<br />

Virgínia – Ah, eu vou contar! Ele tocava viola, e nós organizávamos o baile. Isso para<br />

pai era uma coisa do outro mundo. Mãe nem ligava. Lembro bem que tinha uma cerca<br />

que passava bem em frente de nossa casa, lembra? Eu e Flora, a gente ficava em cima<br />

33 Eu respondo a Virgínia que lembro e, já naquela época, achei aquilo uma coisa horrorosa. Sentia muita<br />

vergonha de andar pedindo dinheiro nas feiras daquelas cidades do interior. Inclusive, o reitor do Seminário,<br />

naquele tempo, monsenhor Augusto Carvalho, ficou sabendo daquilo e, na volta das minhas férias,<br />

perguntou se fora eu mesmo que estava pedindo esmolas pelas cidades. Eu me fiz de desentendido, fingindo<br />

que não sabia de nada. Foi melhor do que negar categoricamente. Mas jurei comigo que não faria<br />

mais aquilo. E, tem mais: fui porque me obrigaram: pai, mãe e Dona Virgínia, minha entrevistada. Que<br />

fique este registro para a memória da família!<br />

106


da cerca e pai ia dormir e mãe é que ficava acordada. Por conta dessa situação, a gente<br />

começava a dar risadas. Numa dessas noites, pai acorda e pergunta: “Oh Verônica,<br />

quem diabo é que está dando tanta risada?!” Mãe, então, dizia “Sei lá, José!”. Tu lem-<br />

bras? Acontece que nós estávamos esperando pai dormir para pular a cerca e ir para o<br />

baile na casa de tio Umbelino. Quem eram as damas e os cavalheiros, também? As da-<br />

mas eram: eu, Conceição, a Flora, Isabel, de tio Umbelino, e Edite Guilherme. Às vezes<br />

Celina, esposa de tio Umbelino, e Miúda, mulher de João Garcês. Os cavalheiros eram:<br />

José, meu irmão, lembra? O Manoel, Duda Guilherme e Carlos, de Maria Gomes, espo-<br />

sa de João Manoel. Esses eram os cavalheiros. E pai, um dia, teve uma discussão com<br />

tio Umbelino, dizendo que ele estava inventando um cabaré na casa dele [ri muito!]. E<br />

mãe, <strong>sem</strong>pre tentando livrar a situação da gente, dizia: “Que cabaré que nada, José!” Ela<br />

sabia que aquilo era uma brincadeira sadia, na casa do irmão dela, além do que ele era<br />

uma pessoa maravilhosa. Tenho muita saudade do meu Umbelino! Aquilo era um passa-<br />

tempo que fazíamos no fim de <strong>sem</strong>ana, e era muito gostoso. Lembro que ele tocava to-<br />

das as músicas de Luiz Gonzaga, principalmente “Asa Branca”. Não tinha comida nem<br />

bebida, porque a gente já ia pro baile “comido” [dá risada!]. Esses são os fatos de nos-<br />

sa vida de infância.<br />

Antonio – E os namorados de vocês em Pernambuco?<br />

Virgínia – [rindo muito]. A Flora teve um namorado da Queimada do Milho, chamado<br />

Leonel. Ela namorava e queria casar com Zeca, mas pai não aprovou o namoro dela<br />

com Zeca. Para tapiar essa proibição do namoro com Zeca, ela consentiu em oficializar<br />

o casamento com Leonel. Já de alianças, ela pegou um dia a aliança e jogou dentro do<br />

barreiro. A Isabel, do tio Umbelino, então, disse: “Você é louca, Flora? Como é que<br />

você vai achar essa aliança dentro do barreiro?” Ela queria era se livrar daquele com-<br />

promisso. Um dia de domingo, a gente ia para a missa em Sertânia, e ele vinha com um<br />

feixe de capim bem grande que escondia toda a cabeça. Nessa hora, a Flora olhou assim<br />

e disse: “Espia como vem aquela gota serena... eu vou lá casar com aquele caipira da<br />

peste, coisa nenhuma!” Você nem imagina o feixe de palha de milho que só tinha tama-<br />

nho. A Flora via aquilo e não se aguentava. Ele nem assistia à missa. Arrumava-se todo,<br />

nós já estávamos na missa, e ele chegava com um quilo de balas, que também chama-<br />

vam de “confeito”. Eu chupava todas as balas. Eu chupava balas, de Sertânia até o nosso<br />

sítio. No final, ela desmanchou o namoro com Leonel e ficou namorando escondido o<br />

107


Zeca. E foi a felicidade dela, porque ela gostava muito do Zeca e o Zeca também gosta-<br />

va muito dela. Já a Madia namorou e casou com o Zé Guilherme e foi morar lá no Ria-<br />

cho Queimado. A lua-de-mel dela foi lá no Riacho Queimado, dentro de uma rede de<br />

varanda. Logo em seguida, Zé Guilherme fez uma cama confortável, de corda! Não ti-<br />

nha colchão não! Era na corda. Ela teve os filhos, filhos maravilhosos; muitos filhos<br />

teve a Madia. Eu acho que sofreram muito também. Depois, eu já estava em São Paulo e<br />

foi quando eles mudaram para o Paraná. Novamente foi muito sofrimento quando a<br />

Madia foi para o Paraná.<br />

Antônio – Em Sertânia, nós tínhamos uma grande vizinhança. Entre eles, a velha<br />

Josefa Traquinada, os Neves, Zacarias... Você lembra desses vizinhos?<br />

Virgínia – E como lembro, rapaz! Caria... (Zacarias) é um deles... Pai tinha um roçado<br />

que fazia divisa com a terra dos Neves. Perto da divisa, tinha um bom umbuzeiro. Eu<br />

gostava muito de catar os umbus desse umbuzeiro. Um dia, eu chego ao umbuzeiro, e<br />

advinha quem estava passando a cerca, já tendo catado todos os umbus? Caria! [rindo<br />

muito!], Mas eu dei-lhe aquela “botada”: “Logo você, abrindo a cerca de pai; eu vou<br />

contar pra ele”. Ele ficou louco: “Não faça isso! Pelo amor de Deus, não vá avisar isso<br />

pra seu Zé Jorge”. Eu ficava danada quando ele catava os umbus antes de mim. Eu di-<br />

zia: “Eu vou falar pra pai, danado!”. Os nossos vizinhos eram, portanto, José das Neves,<br />

o Sebastião, irmão dele, João Manoel, que era o marido de Maria Gomes... Eu <strong>sem</strong>pre<br />

gostei muito de chupar umbu. Um dia, num daqueles pés de umbu perto de casa, fui<br />

catar umbu e subi para pegar os umbus, bem no alto do olho do umbuzeiro. Quando<br />

cheguei lá em cima, lá estava uma cobra chamada ”cobra-de-cipó”. A carreira foi muito<br />

grande. Já pensou o sacrifício de subir um umbuzeiro, que tem aqueles espinhos, e, che-<br />

gando ao topo, a gente dá de cara com uma cobra?<br />

Antônio – E durante esse tempo, você teve alguns namorados ou alguns pretenden-<br />

tes, além de Sebastião?<br />

Virgínia – Tive, tive alguns namorados. Num dia de sexta-feira da Paixão, eu namorei o<br />

Zeca, antes do namora da Flora. Com oito dias depois, eu marquei pra me encontrar<br />

com ele. Nesse dia, ele acordou bem cedinho, tomou banho, se arrumou e foi pra cidade.<br />

Nesse dia, eu não fui, e ele ficou doido. O que aconteceu? Tudo é prometido por Deus,<br />

porque quem casou com Zeca foi a Flora. Eu tive outros namorados [pensando...]. Eu<br />

108


tive um namorado que morava lá junto da família da Dora do Elias. Não lembro o nome<br />

do lugar... Era um namorado de lá. Mas ele não podia ficar perto de mim. A gente prati-<br />

camente não tinha ocasião de namorar coisa nenhuma. Aí eu namorei o irmão de Zefi-<br />

nha Çula, mas somente depois eu tive o grande amor de minha vida: Manoel, de José<br />

Antônio, teu padrinho. Amei loucamente o Manoel. Amei, mas não fui amada. E você<br />

mesmo foi um grande amigo meu nesse caso, nunca ficou contra o nosso namoro. O<br />

Severino é que era contra esse namoro, por ciúme. Você, não. Não deu certo com Ma-<br />

noel porque Deus não quis. Ele me prezava muito, mas também não ia além disso. Na-<br />

quele tempo de namoro indeciso, eu trabalhava em Sertânia e, quando viajei com Anísio<br />

para São Paulo para dar um rumo na minha vida, o Manoel, faltando dois dias para a<br />

minha viagem, foi embora de Sertânia para Lajedo e de lá para Caruaru, onde comprou<br />

um caminhão. Foram cinco anos de ilusão. E nunca mais veio morar em Sertânia. Ter-<br />

minou casando com a Iva, filha de Caboclo Lulu.<br />

Antônio – Vou pedir para você contar em miúdos a história do “roubo” da Flora<br />

pelo Zeca para casamento.<br />

Virgínia – [rindo muito!]. Pai tinha proibido o casamento da Flora com o Zeca. Ele<br />

viajou para São Paulo; passou lá, acho que um ano e meio e, depois disso, com o apoio<br />

da Naninha, irmã dele, num dia de domingo, cedinho da noite, veio num carro para le-<br />

var Flora. A Flora, avistando o carro, saiu de casa e o Duda Guilherme que estava con-<br />

versando com ela na janela viu tudo e ficou disfarçando a saída dela. Quando eu che-<br />

guei, perguntei pra ele: “Cadê a Flora”? Ele disse: “Não sei!”. Mais tarde, nós soubemos<br />

que o Zeca tinha levado a Flora para casar. A partir daí, pai sentiu muito e, juntamente<br />

com mãe, ficou louco da vida...<br />

Antônio – Flora nunca lhe havia falado sobre esse assunto?<br />

Virgínia – Não. Quando o Zeca estava em S. Paulo, eu recebia carta de uma pessoa<br />

intermediária entre ele e a Flora, uma mulher de Sertânia. Certo dia, eu fui passando, e<br />

ela me perguntou: “Você é irmã da Flora?” Eu respondi que sim. Aí ela me disse: “Eu<br />

tenho aqui uma carta de José Batista, namorado dela”. Eu peguei a carta e guardei co-<br />

migo. Eu guardava comigo certa mágoa da Flora. Veio do seguinte. Naquele tempo em<br />

que eu lavava roupa, com todo aquele sacrifício e naquelas condições, não era possível<br />

fazer o serviço de lavagem e engomado da melhor qualidade. Muitas vezes, faltava sa-<br />

109


ão e com pouco sabão não havia condições de deixar aquela roupa em perfeito estado.<br />

O serviço não era perfeito. Um dia, a Flora pegou uma daquelas peças de roupa e veio<br />

reclamar de mim que o serviço estava malfeito ou feito pela metade. Eu respondi pra ela<br />

que, se ela quisesse uma roupa bem lavada e com perfeição, que ela mesma fosse lavar.<br />

Ela não gostou e me deu um tapa na cara. Mãe perguntou a ela por que ela havia feito<br />

aquilo comigo. Ela simplesmente disse que eu era malcriada. Eu fiquei muito magoada<br />

com aquilo. Na hora em que aquela mulher me entregou aquela carta, me veio a lem-<br />

brança do que Flora tinha feito comigo. Eu, então, abri a carta, li e contei tudo pra mãe.<br />

A Flora ficou muito braba e já avisou ao Zeca para não entregar correspondência àquela<br />

senhora e resolveu ir embora morar em Sertânia, na casa de Chiquinha Bernardo, mu-<br />

lher de Antônio Jerônimo, de cujo filho eu era madrinha. A partir daí, mãe passou a<br />

saber que Flora estava namorando. Terminou ela voltando para casa, mas o ambiente já<br />

estava muito pesado. Logo depois, foi quando ela fugiu, e foi a felicidade dela e dele.<br />

Foram muitos anos de mágoas tanto da parte de pai quanto de mãe. Pai, simplesmente,<br />

passou a nem sequer falar o nome dela. Acontece que mãe adoeceu, e eu tive que vir de<br />

São Paulo para dar uma assistência a ela. Levei-a para o Recife e fomos acolhidos por<br />

Zezinho Gomes de Sá, que era deputado e era dono daquela Fazenda São Francisco,<br />

onde depois Caboclo Lulu passou a morar. Que homem de bem era o Zezinho! Grande<br />

homem, casa cheia. Que Deus o tenha em bom lugar. Pessoa maravilhosa. Deu-nos todo<br />

apoio no Recife. Eu, então, levei mãe para se tratar em São Paulo e, lá chegando, levei-a<br />

para a casa de Flora e Zeca, onde ela encontrou todas as portas abertas e foi recebida<br />

com carinho e toda alegria do mundo pelos dois. Pai soube disso tudo, soube que eu ia<br />

levá-la para São Paulo, ficou calado e consentiu. Fui eu que fiz as pazes entre elas duas:<br />

mãe e Flora. Lá, em São Paulo, ela foi operada, e o médico tratou muito bem dela, que<br />

voltou para o Nordeste com muita saúde. Anos depois, Zeca voltou para Sertânia, jun-<br />

tamente com Flora, para o casamento de Enedina, e foram muito bem recebidos na casa<br />

dos meus pais. E, de lá para cá, todos os anos Flora vinha a Pernambuco, com o Zeca,<br />

Severino e a Irene, que, sendo paulista, acho que é mais pernambucana que mesmo pau-<br />

lista.<br />

Antônio – Voltando no tempo, fale sobre a sua motivação de viajar em definitivo<br />

para São Paulo. Foi desilusão de amor? Ou outra coisa?<br />

110


Virgínia – Não foi desilusão de amor. Acontece que naquela época, quando eu pegava<br />

qualquer pedaço de jornal, eles se referiam a São Paulo como “a grande capital do Bra-<br />

sil”. Eu, mesmo sendo uma pessoa que nunca teve estudo, tinha certeza de que, uma vez<br />

chegando a São Paulo, teria grandes oportunidades para melhorar a minha vida. Eu iria<br />

ser alguém na minha vida. Eu afirmo que eu tenho hoje muito prazer em minha vida.<br />

Digo que aprendi muita coisa boa em São Paulo. Viajei com o Anísio pela primeira vez<br />

e, hoje, com setenta e oito anos de idade, ainda aprendo boas coisas em minha vida. Ao<br />

chegar a São Paulo, ficamos na Vila Carioca, numa casinha bastante humilde, mas casa<br />

cheia. Lá encontrei o Zeca, pessoa maravilhosa, juntamente com a Flora, que foi uma<br />

pessoa que lutou muito na vida. O coração muito grande. Você sabe bem que a Flora<br />

acolheu todos da nossa família. Onde ela estiver com o Zeca, Deus dê o reino da felici-<br />

dade para os dois. Comecei trabalhando na venda de cortes de pano, juntamente com a<br />

Naninha, a irmã do Zeca. Mas o que eu queria mesmo era comércio e me decidi traba-<br />

lhar na cidade. Lembro bem que ao chegar à Avenida da Liberdade, vendo tantos carros<br />

passando, não sabia qual era a cor do farol que me dava direito de atravessar a avenida.<br />

Eu disse comigo: “Isso eu tenho que aprender”. E logo aprendi que o verde dava ao pe-<br />

destre a condição de atravessar <strong>sem</strong> medo. Naquela mesma avenida complicada, encon-<br />

trei o meu primeiro emprego, nas “Casas Morais”. Era uma firma de filhos de espa-<br />

nhóis, e aí eu aprendi a trabalhar com tecidos. Foi aí mesmo que você, quando ia estudar<br />

em Viamão, no Rio Grande do Sul, preparando-se para o frio do Sul, ganhou de presen-<br />

te meu um cobertor que era o melhor da loja e chamava-se “Cobertor Tognato”, lembra?<br />

Dali, eu mudei de loja, fui para a do irmão dele, que ficava na Rua do Arouche. Lembra<br />

daquela cantora chamada Edite Veiga? Ela era nossa freguesa. Depois voltei a trabalhar<br />

na Praça João Mendes, no centro de São Paulo, bem pertinho do Fórum de Justiça, que<br />

ainda hoje existe. Pertinho também da Catedral da Sé, da Rua Direita. Na loja de Seu<br />

Morais, o meu apelido era Calculé. Eu tinha uma técnica toda especial de chamar os<br />

fregueses. Ia ao outro lado da rua buscar os fregueses, e eu era quem mais vendia. Cheio<br />

de títulos para pagar no banco, muitas vezes o patrão apelava para eu ir buscar fregueses<br />

defronte, pois havia muita dívida na loja dele. No final do ano, ele dava para cada em-<br />

pregado um corte de pano. A mim, ele chamava à parte e me dava dois cortes para ves-<br />

tido e um enxoval. Na loja do Bom Retiro, eu tinha muitos fregueses do Rio de Janeiro,<br />

do interior de São Paulo e do Paraná. Esses do Paraná compravam muitas colchas de<br />

pele de coelho. Tinha um freguês da Bolívia que fazia compras com a gente para vender<br />

111


na Bolívia. Certa vez, ele me deu uma cantada, perguntando se eu não queria casar com<br />

ele e ir morar na Bolívia. Eu disse logo que não. Tinha também um freguês de Vacaria,<br />

no Rio Grande do Sul. Era uma pessoa muito fina, dono de caminhões que trafegavam<br />

de Vacaria ao Rio de Janeiro. Um dia, ele chegou à loja com dois sapatos, ou botas,<br />

diferentes, uma em cada pé; uma roupa amarrotada de barro da viagem e uma bolsa sur-<br />

rada de lado. Ele entrou e, quando chegou na vez dele, as balconistas não o atenderam<br />

bem. Eu cheguei junto dele e me dispus a atendê-lo. Ele ficou muito contente e me dis-<br />

se: “Mostre-me a Valisère”. Naquela época, a Valisère fabricava muita coisa para os<br />

homens - a camisa de nylon “volta ao mundo” - por exemplo. Além disso, muitas peças<br />

íntimas para a mulher, jogos de camisola, lindos, lindos! Aí descobri que ele era um<br />

grande freguês. Comprava caixas e caixas de mercadorias finas e caras. Cada vez que<br />

ele vinha, trazia litros e litros de vinho para mim, de presente. Ficou sendo meu freguês.<br />

Antônio – Na época em que eu estava saindo do Rio Grande do Sul para estudar<br />

na Suíça, você me levou para almoçar no convento de umas freiras. Naquela época,<br />

você queria ser freira?<br />

Virgínia – Isso aí era quando eu trabalhava na Rua do Arouche. Olhe, eu sou católica,<br />

apostólica e romana. Mas a gente ainda vê muita coisa errada dentro da Igreja. Eu traba-<br />

lhava no centro de São Paulo, e a Flora, morava na Vila Carioca. E ficava muito longe<br />

para eu ir e voltar do trabalho de ônibus. Aí eu decidi morar num pensionato de freira. A<br />

chefa do pensionato era irmã Ema, você lembra, aquela que lhe recebeu pro almoço e<br />

lhe tratou muito bem, lembra? Pois bem, tinha lá uma empregada chamada Rute. Ela era<br />

até de Caruaru, uma morena. A irmã mandava que ela colocasse numa marmita, às cin-<br />

co horas da tarde, feijão, arroz e pé de galinha. E couve. Até hoje, eu não suporto o fe-<br />

dor de couve [ri]. Ora, eu chegava da loja lá pelas 9:00 e às vezes 9:30 da noite e esta<br />

comida já estava na mesa desde as cinco horas. Numa dessas noites, eu não aguentei<br />

aquilo e virei o prato com o fundo para cima e a comida para baixo. Não foi pecado,<br />

porque eu não joguei no chão. No dia seguinte, ih rapaz! A Rute, que era a copeira, nem<br />

sequer aguentava olhar na minha cara. Aí chegou a irmã Ema e eu disse: “Irmã, eu che-<br />

go aqui às nove da noite, e essa comida está aqui desde as cinco da tarde? Pode uma<br />

coisa dessas?” Eu sofri ali. Muitas vezes fui dormir com fome, porque não aguentava a<br />

comida daquelas freiras. Eu venci tudo aquilo. Depois, terminei saindo de lá para outro<br />

112


canto. Agradeço muito a Deus a saúde que eu tenho e a coragem que Deus me deu. E<br />

também aquela educação que pai e mãe deram para nós, os filhos.<br />

Antônio – Pois é, eu fui estudar na Europa, em outubro de 1964 e tempos depois<br />

você conheceu o Aldir. Como foi isso?<br />

Virgínia – Ah rapaz! Eu fui apresentada a ele; aliás, me apresentaram. Virgem, será que<br />

esta história não vai chegar ao bico dele? Foi o Paraíba, colega dele, que me apresentou<br />

e, no primeiro dia do nosso encontro, fomos visitar Nossa Senhora Aparecida. Saímos<br />

para a viagem. Ele levou um frango assado. Em Sertânia, frango é outra coisa, o nome é<br />

galeto. Mas em São Paulo é frango mesmo! A primeira coisa que ele perguntou para<br />

mim foi se eu sabia cuidar de casa e fazer a comida. Eu respondi que sabia, e muito<br />

bem. Aí saí dando exemplo de como eu fazia: “Quando eu vou lavar a casa, eu pego a<br />

água suja e jogo em cima das paredes com sabão, com cândida e com tudo. A comida eu<br />

queimo tudo. Lavando os móveis, eu molho tudo. Eu aprendi assim, e faço assim”. E<br />

por que respondi assim? Porque isso não é pergunta que o namorado faça pela primeira<br />

vez, querendo conquistar uma namorada. O cara sai logo com uma conversa dessa.[ri<br />

muito!]. Você sabe, Antônio, toda a vida eu fui pobre, mas <strong>sem</strong>pre gostei de uma coisi-<br />

nha diferente. O sonho de minha vida, Antônio, era casar com um rapaz alto, moreno,<br />

todo social. A Madia se lembra disso e ri que não se aguenta. Eu e o Aldir namoramos<br />

um ano e meio. Ele toda a vida foi daquele jeito. Um sábado, quando eu morava com<br />

Edite, na Vila Ema, eu o esperava chegar, e ela tinha preparado uma bacia para dar ba-<br />

nho no Zenildo. Ele chegou e se jogou dentro da bacia, com terno e tudo, molhando-se<br />

todinho... Quando casamos, passei mais de um ano para engravidar. Vou falar uma coi-<br />

sa pra você: a gente amar <strong>sem</strong> ser amado é uma perda de tempo. Naquele tempo, uma<br />

moça para ser mãe, ela tinha que casar. Se ela aprontasse, ela não teria valor, ela torna-<br />

va-se a pior prostituta, e você sabe que isso caía logo nos ouvidos do mundo. Pai nos<br />

passou isso. Sempre existiu em mim esse temor que a gente tinha por ele. O meu sonho<br />

era casar e ter uma filha, e essa filha já tinha um nome: Débora Verônica. Eu nunca fui<br />

amada por ninguém. Mas eu amava. Amei muito um filho de Caboclo Teixeira, Zé Tei-<br />

xeira, o pai de Daniel. Amei muito também aquele rapaz. E eu me casei para ter uma<br />

filha e se eu não tivesse uma filha eu morreria de desgosto. Eu queria bem a ele, mas<br />

amor, amor, nunca existiu. Sofri muito pela minha casa, trabalhei muito nas feiras, nas<br />

festas no interior de São Paulo, Minas, Mato Grosso... Eu tive duas filhas maravilhosas<br />

113


e, portanto, realizei meu sonho: Débora Verônica e Rosângela. Eu sou feliz. Se eu me<br />

relaciono bem com elas? Sim, sim! Rosângela tem um geniozinho meio forte, mas... [aí<br />

eu digo que puxou a ela; ao que ela responde: pode ser!]. A Débora é muito meiga.<br />

Antônio – Você foi uma lutadora em São Paulo. Trabalhou como comerciária e<br />

depois como marreteira, nas feiras livres...<br />

Virgínia – Ah, rapaz! Arrumei muito dinheiro. Fiz a minha casa. Mas era difícil enfren-<br />

tar aqueles fiscais da prefeitura de São Paulo. Aquele Paulo Maluf, aquilo é um <strong>sem</strong>-<br />

vergonha, ladrão, safado. Jogava comandos fortes nas feiras. Arranjou até um doutorzi-<br />

nho, rapaz! Todo vestido de branco e jogou na feira. Um dia eu vendia na feira da Vila<br />

Industrial, e esse doutorzinho chegou e me perguntou: “O que é isto aqui?” Eu falei:<br />

“São panos, doutor!” E ele perguntou: “De quem são?” Eu disse: “São meus”. Aí ele<br />

perguntou de novo: “Por que você trabalha nas feiras, você não sabe que é proibido?”<br />

Aí eu respondi pra ele: “Proibido é roubar. Eu estou trabalhando honestamente para<br />

ganhar o meu pão. Os feirantes aqui todos são amigos da gente. Se tem alguém aqui que<br />

não goste que se venda roupa, no entanto, o mundo é grande e o sol nasceu para todos.<br />

Com a idade que eu tenho, não vou conseguir emprego. É melhor eu estar honestamente<br />

trabalhando aqui do que estar roubando”. Isso aí tudo foi armado por Paulo Maluf, a-<br />

quele <strong>sem</strong>-vergonha e safado.<br />

Antônio – Durante esses anos todos que você “marretou” em São Paulo. O que vo-<br />

cê vendia e onde você se abastecia de mercadorias?<br />

Virgínia – Eu trabalhei durante uns vinte e três anos. Eu comprava coisa boa, mas ga-<br />

nhava pouca coisa. Mas com aquele pouco que ganhava, fui feliz, graças a Deus. Eu<br />

vendia coisa boa, vendia “Duloren”, “Triumph”, “Hope” e muitos jogos de camisola de<br />

uma fábrica que, quando eu comecei a vender, era a Fábrica “Dois Maninhos”. Inclusi-<br />

ve, eu dei a Edilnete um desses jogos de camisola, você lembra? Um dia, quando vocês<br />

estavam em São Paulo, vocês foram almoçar lá em casa. Eu peguei uma caixa, fiz uma<br />

embalagem e disse pra ela: “Dil, quando você for para o interior, ou mesmo quando<br />

estiver fazendo muito calor no Recife, use esta camisola e lembre-se de mim”. Aí, ela<br />

disse: “Jorge, olha o que a Virgínia me deu de presente!”, lembra? Essas mercadorias eu<br />

comprava na Silva Teles e na maior parte daquelas ruas de São Paulo. Na Mendes Jú-<br />

nior, na Concórdia, no Brás inteiro... O Brás era o lugar das pessoas procurarem coisas<br />

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mais baratas. Tinha-se que ir no dia em que faziam promoções maravilhosas. Mas tinha<br />

que ser no dia. Geralmente, eu comprava à vista e apenas em uma das lojas eu conse-<br />

guia comprar em consignação. Que Deus o abençoe, era Gaio Brás. A mesma loja mu-<br />

dou para o fim da Rua Oriente. Mas continua a mesma loja. Nas feiras, a gente tinha os<br />

clientes que <strong>sem</strong>pre compravam. Mas eu os cativava. Desfilava vestida em jogos de<br />

camisola pelo meio das feiras. Você sabe que eu <strong>sem</strong>pre fui popular. Toda vida, sou sua<br />

irmã, e você não esqueça. Eu me vestia de camisola e as crianças diziam pras mães: “Oh<br />

mãe, vamos à feira para a gente ver aquela doidinha, mãe!” [ri]. Os meus conterrâneos –<br />

e olha que têm muitos deles em São Paulo –, ao passar por mim diziam: “Muito bem,<br />

dona Maria, tem que ser assim! Se todos fizes<strong>sem</strong> como a senhora faz, transmitindo<br />

essa alegria toda, o mundo seria bem melhor!”. Tinha uma música linda de Roberto Car-<br />

los, que já esqueci, muito linda por sinal. Eu cantava essa música, toda vestida de cami-<br />

solas. O povo dava risadas. Mas não riam de maldade, não. Era pela minha alegria. Mui-<br />

tos dos meus sobrinhos, inclusive o Valdeci, me ajudaram a marretar na feira. Eu vendia<br />

também no Paraná, em Paranaguá. Foi numa dessas viagens para o Paraná que o Valde-<br />

ci se acidentou. Ele era mocinho, tinha dezessete ou dezoito anos, e fomos ao Paraná.<br />

Ele arranjou uma namorada em Morretes. Mas quem era louca para casar com ele era a<br />

Fátima de comadre Naninha. Louca por ele. Ele gostava dela, mas não para casamento.<br />

Alguns anos depois ele resolveu voltar para o Nordeste. Pai e mãe estavam sozinhos, e<br />

ele veio dar uma ajuda a eles. Acho que ele chegou na hora certa porque, logo depois,<br />

pai adoeceu de câncer e terminou morrendo, infelizmente. Você deve lembrar muito<br />

bem disso.<br />

Antônio – Anos depois chegam a São Paulo Conceição, Elias... Vocês em São Paulo<br />

viviam do trabalho, e como é que se divertiam? Nos finais de <strong>sem</strong>ana ficavam <strong>sem</strong>-<br />

pre na Vila Carioca ou saiam para conhecer um pouco da cidade de São Paulo?<br />

Virgínia – Não tinha diversão nenhuma. A gente só viva mesmo para o trabalho. Não<br />

tinha dinheiro suficiente para a gente passear. Quando muito, a gente ia ao Museu do<br />

Ipiranga. Lembro que eu e a Conceição morávamos ali, na Vila Carioca, numa daquelas<br />

travessinhas - Auriverde com a Lício de Miranda. Aí, numa tarde daquelas, ela falou<br />

assim: “Virgínia, vamos visitar o museu para ver se a gente arruma um namorado”. Eu<br />

disse pra ela: “Conceição, o que dois museus velhos vão buscar num museu?! No museu<br />

não tem mais lugar!”. Nós riamos muito com essas conversas. A Conceição, em São<br />

115


Paulo, namorou só o Laurindo. Ela chegou a gostar muito de Valdemar, de Donana.<br />

Mas a Enedina chegou mesmo a falar com a Conceição que aquele cara não era de ca-<br />

samento não. Conceição é uma pessoa que até hoje consegue ser muito simples. É uma<br />

pessoa muito humilde e não tem nada de orgulho. Muito sofredora. Conceição é uma<br />

pessoa que sofreu muito e, até hoje, ela ainda sofre. Mas nunca largou a casinha dela<br />

com as filhas. Perdeu o marido muito cedo e enfrentou uma barra muito pesada. Bem<br />

pouco tempo atrás, a caçula dela teve um filho, e eu falei pra ela que aquilo não era nada<br />

demais, dei conselho pr ela e lembrei que esse filho que estava vindo, talvez viesse a ser<br />

a alegria dela. De fato, é um menino muito lindo.<br />

Antônio – Você sabe que a viagem de Madia com os filhos para o Paraná foi prati-<br />

camente uma tragédia. O que você lembra disso?<br />

Virgínia – Eu acho que Madia se ocupou em buscar boas coisas para o futuro dos filhos<br />

dela, e ela conseguiu. O Erasmo, durante um tempo, foi feliz com o casamento dele.<br />

Não sei hoje. Com o passar do tempo, ficou a família pra lá e ele pra cá. Acho que isso<br />

aí acontece com qualquer casal, em qualquer lugar. A viagem da Madia foi muito aci-<br />

dentada, e ela sofreu muito com todos aqueles filhos pequenos. Imagine viajar em cima<br />

de um caminhão, apenas coberto, mas era um caminhão. Quando eu fui pra São Paulo,<br />

naquela época, fui de ônibus, que gastou quase seis dias com seis noites. Você imagine<br />

uma mãe com tantos filhos, em cima de um pau-de-arara, <strong>sem</strong> ter dinheiro para alimen-<br />

tar aqueles filhos. Mas Deus foi muito bom, e Ele vê tudo. Quando você desistiu de es-<br />

tudar para padre, escreveu aquela carta, dizendo que estava desistindo de ser padre. Es-<br />

tava bem perto de se ordenar e sabia que pai e mãe iam ficar muito tristes. Você deve<br />

lembrar muito bem a carta que eu mandei pra você, onde eu dizia que para servir a Deus<br />

você não era obrigado a ser padre. Você iria casar, construir o seu lar e, desse modo,<br />

com sua esposa e com os seus filhos, já estava servindo a Deus. O homem pra servir a<br />

Deus, não é obrigado a ser padre. Não foi assim que eu falei pra você?<br />

Antônio – Virgínia, fale de seus sentimentos com relação à nossa família.<br />

Virgínia – Nós somos uma família unida. Tudo bem, isso de família “limpa” não existe.<br />

Mas também tem família que não tem um pingo de respeito, de consideração a um ir-<br />

mão, uma irmã, um cunhado; é briga, é olho grande nas coisas que algumas pessoas<br />

têm... Por exemplo, quando um compra um carro bonito, ou uma casa... A nossa família<br />

116


não é e nunca foi assim. Eu acho muito bonito quando a gente reúne todos. Para mim, a<br />

coisa mais linda e mais importante é estar reunida com a minha família. Quando estou<br />

reunida com minha família, não me importa de “falar bobeira”. Quem quiser reparar<br />

pode reparar, não estou nem aí! Repito, a coisa mais importante é a minha família.<br />

Antônio – Em São Paulo, você <strong>sem</strong>pre recebe em sua casa...<br />

Virgínia – “Magina”! Se eu pudesse, na minha vida, todo ano eu faria a maior festa,<br />

reuniria toda a minha família. Meus sobrinhos são meus filhos. Eu brinco com meus<br />

sobrinhos como se fos<strong>sem</strong> meus filhos. Tenho por eles muito respeito e muito carinho;<br />

seja criança, seja adulto, como o Erasmo. Ele é para mim uma pessoa muito fina. O<br />

mesmo digo de Osvaldo. Claro, todo mundo tem seus defeitos, não existe pessoa <strong>sem</strong><br />

defeitos. Eu quero muito bem ao Osvaldo, ele ocupa-se muito da família. Eu gosto da<br />

minha família. O que eu tenho a dizer da minha família é isso. É tanto que quando eu<br />

estou junto da minha família eu tenho uma alegria tão grande, porque isso me deixa<br />

feliz. Nessas horas, pouco me incomoda falar bobeira; quem me quiser olhar que olhe,<br />

não estou ai... Isso não tem importância nenhuma: sou assim, <strong>sem</strong>pre fui assim e assim<br />

eu vou morrer. Sou feliz junto da minha família e, se eu pudesse, todo ano reuniria to-<br />

dos em minha casa.<br />

Antônio – E o <strong>sertão</strong> paraibano da Matarina...<br />

Virgínia – Eu já falei pra você: nunca pense em sair de nossa terra. Eu sou da Paraíba e<br />

considero tanto a Paraíba como Pernambuco uma coisa só. É uma terra muito gostosa, é<br />

boa demais. Tanto que eu considero vocês e os amigos de vocês, meus conterrâneos,<br />

como minha família. Eu gosto do <strong>sertão</strong>; o <strong>sertão</strong> é gostoso, Antônio. Com tudo nele<br />

você se distrai, principalmente em cidades consideradas pequenas. Não falo das capitais,<br />

das cidades grandes, porque a vida aí está demais...<br />

Antônio – Pouco tempo atrás, você fez um passeio, matando as saudades ali pela<br />

Matarina...<br />

Virgínia – Puxa! Aquilo ali foi bom demais, ali eu realizei meus sonhos, foi bom de-<br />

mais. Lá em cima, na serra, naquele “tanque da viúva”, quantas lembranças me vieram...<br />

Lembrei muito de mãe e das surras que levei ali. Porque ela me pedia para ir buscar<br />

água no tanque e eu não ia buscar... Em vez de buscar água, eu ia era chupar umbu, a-<br />

117


queles umbus velhos verdes, lá debaixo do umbuzeiro. Aquilo tudo azedo, embotava os<br />

dentes. Levei muita surra. Quando mãe ia lavar roupa, levava o lanche para comer. Sabe<br />

qual era o lanche, Antônio? Rapadura com farinha. Quando não tinha “farinha de roça”,<br />

que era gostosa, então a gente comia com farinha de milho, ou mesmo o cuscuz com o<br />

feijão de corda. Antônio, mãe sofreu muito, nossa mãezinha sofreu muito. Você, que já<br />

fez o seu lar, foi feliz na vida, hoje você continua feliz por um lado, por outro... tudo<br />

isso pertence a Deus. Vieram suas netinhas para dar alegria a você. O seu filho, é um<br />

homem trabalhador, caprichoso, honesto. Que homem você tem! Quando os pais têm<br />

seus filhos como homens de bem e que nunca fizeram vergonha, tem-se que agradecer<br />

muito a Deus. Porque hoje em dia existem muitos pais que vivem na maior tristeza por<br />

conta das drogas, do crime, do dinheiro, da vida fácil. Colocam em primeiro lugar o<br />

dinheiro. A droga está comandando tudo. Por mais que o governo trabalhe para evitar,<br />

para diminuir, eu não vejo resultado, para mim continua tudo a mesma coisa. Isso é<br />

muito triste.<br />

Antônio – Virgínia, você hoje tem a idade de setenta e oito anos. Qual é o maior<br />

desejo de sua vida, quais são os seus sonhos?<br />

Virgínia – Não tenho mais sonhos (se emociona). Meus sonhos estão todos realizados.<br />

Melhor dizendo, eu gostaria de ver as minhas duas filhas casadas. Quando a gente chega<br />

à idade que eu tenho, eu considero que os sonhos estão todos realizados.<br />

Antônio – Sonhos realizados, sim. Os sonhos realizados nos deixam felizes, o que<br />

significa dizer que eles se transformam em novos sonhos ou que eles nunca se aca-<br />

bam. Você concorda?<br />

Virgínia – É isso mesmo. Eu lembro que a união de minha família <strong>sem</strong>pre foi um gran-<br />

de sonho. Eu recordo que, certa vez, nós todos da família jantávamos na casa do Manu-<br />

el. Eu estava junto da Edilnete e a vi levantar e dirigir umas palavras, dizendo que o que<br />

ela mais admirava em nossa família era a união de nós todos. Você estava lá, lembra?<br />

Eu acho que ainda não estou caducando não, apesar de a Rejane me dizer que eu estou<br />

perto de caducar... Mas eu nunca esqueço as palavras que ela falou. Por isso que cada<br />

vez mais eu digo: quando estou junto da minha família, eu me sinto muito feliz, como<br />

<strong>sem</strong>pre sonhei. No ano passado, em julho, quando estivemos na casa da Sandra, em Ser-<br />

tânia, juntamente com aquele casal do Recife que Ricardo levou, com a família do Ri-<br />

118


somar... Eu admiro muito a família do Risomar, são pessoas muito educadas! Eu me<br />

senti muito feliz. Gosto muito também do genro do Risomar, o marido da Vanessa, a-<br />

quela que tem o laboratório em Sertânia. São pessoas que eu admiro muito. Eu, estando<br />

com eles, os considero meus amigos. O Glauber, marido da Sandra, aquilo é um “doi-<br />

do”. Eu o admiro demais. Aquilo é um “moleque” bom , eu o admiro demais, repito! Já<br />

falei pra ele: eu ainda haverei de ver você na minha casa, em São Paulo. O pai dele é um<br />

homem sério. A gente vê que ele é um homem da sociedade, o irmão dele também. A<br />

mãe dele eu prezo muito também. Mas do Glauber, eu falo: você é meu filho. A Regina,<br />

não é por eu estar na sua presença, ela é sua nora, eu acho que ela é uma menina muito<br />

simples e muito humilde. Ela não olha certas coisas, é uma pessoa simples. É isso que<br />

eu admiro nas pessoas. Esse rapaz com quem a Luciane está casando é uma boa pessoa.<br />

Eu falei pra ele: gosto muito de você, Ramon, de sua simplicidade. Ele me chama de<br />

“tia”. Gosto muito dele, é uma pessoa inteligente, muito direita. Inclusive, ele tomou o<br />

“doidão”, filho do Rosalmo, para ser padrinho dele, o Sílvio. A Luciane merece, Antô-<br />

nio. É uma menina tão simplesinha, com aquele jeito dela, ela merece. Eu soube que a<br />

ex-mulher dele pôs o pé na barriga dele, dizendo: “Eu quero dinheiro”... Eu falei pro<br />

Valdeci: “Você não tem que ficar triste nem se lamentar de nada, porque você teve sorte<br />

com suas filhas”. Agora, infelizmente, Antônio, toda família tem altos e baixos. Não<br />

tem essa de dizer “Ah! minha família é limpa!” Não tem isso não.<br />

Antônio – Para finalizar esta entrevista, você gostaria ainda de dizer alguma coisa<br />

que não tenha falado?<br />

Virgínia – Quero falar. Eu, Virgínia, tua irmã, admiro demais a humildade e a simplici-<br />

dade das pessoas. E digo de coração: se eu tivesse bastantes anos pela frente, eu gostaria<br />

de dar <strong>sem</strong>pre alegria, muita alegria e muitas palavras doces para minha família. Porque<br />

eu admiro todos da minha família, todos os meus amigos. E agradeço a Deus o que eu<br />

sou, e amo muito a Jesus Cristo, que, com Nossa Senhora Aparecida, me concedeu tan-<br />

tas graças. Diante disso, eu só posso dizer: obrigada, meu Deus, obrigada, meu Deus!<br />

119


Maria da Conceição Siqueira Oliveira 34<br />

Antonio – Conceição, fale de sua infância na Matarina...<br />

Conceição – Quando nós migramos da Matarina (PB) para Sertânia (PE), eu acho que<br />

já tinha uns nove anos. De Matarina, eu não lembro muita coisa porque eu era muito<br />

pequena. Lembro dos moços batendo milho, feijão, essas coisas todas, com o objetivo<br />

da gente sair dali e vir para Pernambuco. Lembro que falavam para mim que se eu fosse<br />

para a rua – que era a estrada de barro em frente à nossa casa – os “papa-figos” me leva-<br />

riam. Os papa-figos eram uns homens que matavam as crianças para delas comer o fí-<br />

gado e, desse modo, evitar a morte deles. Eu chorava muito, morrendo de medo dos<br />

papa-figos. Eu ficava me divertindo vendo os homens baterem o milho e o feijão e, des-<br />

se modo, esquecia de ir para a rua. Nós, então, viajamos para Santa Luzia. Mãe, muito<br />

contente, foi para a casinha nossa, simplesinha, né? Mãe não gostou logo foi da água lá<br />

de Santa Luzia, que era de sal puro, ao contrário da água da Paraíba, que era água doce<br />

34 Nascida em 08 de dezembro de 1934, é viúva de Laurindo Vaz Oliveira. Mãe de Marli, Marlene, Márcia<br />

e Marta. Entrevista concedida no dia 11 de setembro de 2009, no Jardim Adutora, São Paulo.<br />

120


que a gente retirava dos tanques de pedra. Ou, então, do açude de Cícero Nunes, onde<br />

nós plantávamos verdura, abóbora, batata... E guardava tudo isso no armazém. As bata-<br />

tas, quando começavam a criar olhos para enramarem, aí é que elas ficavam doces. Mãe<br />

vendia muita daquelas verduras. Recordo que, na Matarina, um dia, eu perdi a chave do<br />

armazém, onde a gente guardava os cereais para vender. E toca mãe a procurar a chave<br />

para abrir o armazém para vender aos clientes. E nada de encontrar a chave... Nessas<br />

alturas, eu disse pra ela que tinha perdido a chave. Ela ficou braba e disse que pai iria<br />

me bater, como de fato bateu mesmo. Pai me deu um empurrão que eu caí no chão e bati<br />

o ouvido na parede, juntamente com a cabeça. Aí é que eu chorei de dor... Minha vida, a<br />

vida da gente, foi assim. Depois, nós viemos para Pernambuco. A Madia casou, teve as<br />

primeiras crianças dela. Eu ia muito ajudar a Madia. Fomos crescendo, crescendo, e eu<br />

ficando mocinha. Compadre José Guilherme ia para a feira e trazia uns pãezinhos doces<br />

que eu gostava muito. Nesse tempo, eu tinha uns oito ou nove anos. Botava maxixe no<br />

fogo para comer com a farinha, que eu adorava. Lembro que a Maria do João Felipe, a<br />

mãe do Paulo e do Zé, falava pra mim que eu iria ser uma boa dona de casa. Quando<br />

alguém chegava lá, estava tudo limpinho. Pegava os potes e ia buscar água lá no rio,<br />

lavava toda a roupa da Madia quando ela ganhava neném. As primeiras roupas era mãe<br />

que lavava. A gente não ignorava aquilo. Eu achava que aquilo era coisa comum da<br />

vida. Eu descia lá embaixo com o pote, pegava a lata, lavava todos os panos, estendia<br />

tudo e voltava para a casa da Madia. Pegava a vassoura e varria todos os terreiros. A-<br />

quele serviço para mim era uma beleza, eu me distraía muito. Ajudava a ela lavando os<br />

cueirinhos do Givaldo, que mãe fazia tudo na máquina, não era? Aqueles paninhos de<br />

chita. Do casamento da Madia com Zé Guilherme, eu lembro muito pouco. Sei que ela<br />

casou, não sei se foi em casa... Não tenho muita lembrança. Madia saiu lá da Matarina<br />

com dezoito anos, Antônio. Ela casou em Pernambuco. Então, fui ficando mocinha...<br />

pegava melancia nos roçados, comia. Mãe recomendava que eu não comesse melancia<br />

quente nos roçados, pois aquilo fazia mal aos meus olhos ou fazia adoecer. Eu dizia:<br />

“Tá tudo bem, mãe!”. Aí é que eu comia e como doíam e ardiam os meus olhos! Eu<br />

pegava, cortava e comia a melancia; em seguida, espremia o caldo dela nos meus olhos.<br />

E aquilo me aliviava como sendo um milagre dado por Deus.<br />

Antônio - Diga-me uma coisa, Conceição, como é que você se relacionava com as<br />

outras irmãs mais velhas: Flora. Virgínia?...<br />

121


Conceição – Ah! A gente respeitava. Apesar disso, eu brigava com a Virgínia, porque a<br />

Virgínia era demais. Com a Flora, não, eu respeitava muito. Tanto ela como a Madia.<br />

Ela lavava roupa e costurava vestidinhos para mim. E mãe, quando adoeceu da meno-<br />

pausa – e a gente não sabia nada do que era isso –, ia para o hospital se tratar e eu ficava<br />

em casa com a Flora. Respeitava muito ela. A Virgínia era meio levada. Pegava os pa-<br />

peiros e fazia uns mingauzinhos de fubá de milho <strong>sem</strong> lavar os papeiros. Mãe os pegava<br />

e jogava lá nos fundos do quintal, nervosa. Ela era assim, meio grã-fina. Toda a vida,<br />

ela gostou assim de andar meio asseada, sabe? Ela gostava de luxo, era meio vaidosa.<br />

Eu não brigava com a Flora, não. A Virgínia era trabalhadeira apenas dentro de casa,<br />

limpando, lavando. Mas para o roçado, Deus do céu, ela detestava. A Flora, também. A<br />

Virgínia pegava pedra e misturava com o milho, nas covas de plantação. Cozinhava<br />

mais ou menos. Não era muito o forte dela, não. Quem mais cozinhava era a Flora e<br />

mãe. Com os meninos, nós não brigávamos porque a gente se queria muito bem. Pai<br />

<strong>sem</strong>pre sentenciava que se nós brigás<strong>sem</strong>os entre nós, quando chegás<strong>sem</strong>os em casa era<br />

uma surra na certa. Ele batia mesmo. E ele avisava. Mas só a Virgínia é que era encren-<br />

queira, e José que brigava por conta de um dinheirinho. Já o Severino era muito nervoso<br />

e nós, só depois de certa idade, é que estamos vendo como são as pessoas. Manoel era<br />

muito <strong>sem</strong>-vergonha. Era muito brincalhão com a Flora. Só vivia brincando com a gen-<br />

te. Todos nós tínhamos muito amor a ele e, por isso, gostávamos muito dele. Tinha uma<br />

história de um bode que foi inventada por Flora e Manoel. Conversando com Mena<br />

(nossa vó materna), perguntamos se ela ainda queria casar. Ela concordou, dizendo que<br />

casaria para juntar os ovos das galinhas. Manoel e Flora disseram a ela que o bode podia<br />

ser o marido dela. E ele já estava amarrado para o casamento. O Anísio também gostava<br />

de brincar com Mena. Dizia a ela que lhe tinha visto trepada nas galhas de um pé de<br />

laranja que tinha lá em casa, tirando as laranjas para chupar. Ela ficava indignada com<br />

aquela história inventada pelo Anísio. E dizia: “Você é besta, seu cabra safado! Cabra<br />

<strong>sem</strong>-vergonha, deixe de ser mentiroso!” Eu queria muito bem a Mena; eu é quem dor-<br />

mia com ela, dava banho nela... A Virgínia corria às léguas para não dormir nem cuidar<br />

de Mena. Anos depois, mãe viu que ela estava doente e trouxe ela lá pra casa, deixando-<br />

a numa casinha que tinha lá ao lado da nossa. Com a idade, era muito difícil lidar com<br />

ela. Era grande o sacrifício para ela levantar e sair da cama... Eu lavava a roupa dela lá<br />

no rio. Mas Deus foi muito bom, porque a levou na hora certa. Eu senti muito a morte<br />

de Mena, mas acho que Deus foi bom com ela. Ela morreu num dia de segunda-feira,<br />

122


dia das almas. Ela era devota das almas. Antes dela morrer, ela abriu os olhos. Eu cha-<br />

mei mãe para vê-la, dizendo que ela ia melhorar. Podia trazer o remédio para ela melho-<br />

rar. Lembro que mãe trouxe um pouco de leite, ela tomou aquela porção, mas logo cus-<br />

piu fora. Ela levantou a cabeça e se benzeu. Isso já eram seis horas da tarde (emociona-<br />

se). Morreu como um passarinho. Eu senti muito a morte dela. Já do tio João (nosso avô<br />

paterno), eu lembro muito. Ele ia lá pra casa. Quando ele chegava, mãe logo dizia: “Ho-<br />

je é dia de tio João contar as histórias das bestas e da cachorra dele”. Ele era cego e pe-<br />

dia pra mãe fazer um chá com as flores amarelas da catingueira. Gostava de despalhar<br />

os paióis de milho... A esposa dele (nossa vó paterna) era chamada de tia Candinha<br />

(Cândida). Tio João era muito bruto com ela. Quando brigavam, jogava espiga de milho<br />

nela. Ele era muito nervoso e brabo. E pai puxou a ele e, por isso, era assim tão bruto<br />

com a gente. Mas o tio João não admitia ver pai bater nos netos de maneira nenhuma.<br />

Lembro que a última vez que pai me bateu eu tinha quinze anos, e ele me bateu porque<br />

eu cortei os cabelos. Fiquei com os cabelos curtos, coisa que ele não admitia nas mulhe-<br />

res da família. Mas pai era demais. Eu me lembro de uma vez que ele deu uma surra de<br />

palmatória nas mãos do Elias. Foi por conta de uma história de umas goiabas no terreno<br />

vizinho, de Chico Félix. O velho acusou Elias de comer as goiabas dele e mandou um<br />

bilhete para pai, denunciando o Elias. Eu tinha ido a Sertânia, mas soube que pai tran-<br />

cou Elias num quarto para ninguém socorrê-lo e deu-lhe tanto nas mãos que eu, depois,<br />

tive de levar Elias a Sertânia, ao médico, porque as mãos dele ficaram sangrando. E mãe<br />

não pôde socorrer o “Terinha” (é assim que a Conceição chama Elias) porque ele se<br />

fechou no quarto. E quando cheguei em Sertânia, tive vergonha de dizer que tinha sido<br />

por conta de uma surra de meu pai. Eu era filha e não tinha esse coração de entregar um<br />

pai aos desconhecidos. Quando perguntaram a causa, eu me esquivei, inventando umas<br />

mentiras... Ele bateu tanto que virou um calo de sangue. Manoel também apanhou mui-<br />

to. Mãe dava banho nele e em José com água de sal e vinagre. Ele também batia nos<br />

meninos com aquelas cordas feitas de couro de vaca cru. Já mãe nunca nos bateu.<br />

Quando muito, ela nos dava uns “cocorotes” (cascudos, pancadas na cabeça com o nó<br />

dos dedos) e nem mágoa nos causava. Era generosa, trazia de tudo para nós. O meu pai<br />

era demais. Ele nunca sentava à mesa para ter um diálogo com a gente, né? Quando ela<br />

veio a São Paulo fazer tratamento de saúde, eu fiquei lá, sozinha com pai. Que saudade<br />

me dava dela... Pai sozinho, sentado lá na preguiçosa dele. Um dia, eu na porta ouvi o<br />

barulho de um avião passar. Eu tive certeza que era ela. O avião aterrissou naquele<br />

123


campinho de aviação de Sertânia e, logo depois, eu vi mãe chegar na camionete de Se-<br />

verino. Logo depois disso, chegou lá em casa seu Valdevino, nosso vizinho, que veio<br />

conversar com pai. E pai, em vez de receber com alegria minha mãe, foi brigar com ela<br />

por conta lá de uns problemas.<br />

Antônio – Conceição, fale agora da escola nossa de D. Zefinha...<br />

Conceição – Ah! Eu acho que eu era meio fraca de inteligência, sabe Antônio? Eu me<br />

esforçava na matemática, em tudo. Máximo divisor comum, fração decimal, tudo...<br />

Quando chegou a quinta série, aí “deu um branco”. Lembro da geografia, onde a gente<br />

decorava os pontos cardeais, essas coisas todas. Mas os problemas de matemática eram<br />

fogo. O Anísio era bom. Eu chorava, eu procurava inteligência, mas me achava fraca de<br />

inteligência. Eu tinha vontade, mas não dava. O Severino era nervoso, e o Manoel e o<br />

José, como as meninas, não iam mais para a escola com a gente. Você era inteligente<br />

demais. Fazia casinhas de igreja, você era inteligente demais, Tita! (é assim que ela me<br />

chama). Você nunca deu trabalho na escola, não. A Márcia é como você. E como eu<br />

me lembro de Dona Zefinha, que era a nossa professora. Ela vinha da cidade, dormia lá<br />

em casa, as amigas dela lá no sítio... Ela era uma pessoa muito inteligente. E o “argu-<br />

mento” que existia na escola, santo Deus! O argumento incluía tudo: do alfabeto à tabu-<br />

ada. Então, na mesa, todos juntos, ela perguntava a um uma letra ou o resultado de uma<br />

soma. Se o menino não soubesse, perguntava ao outro. Se esse acertasse, teria que dar<br />

um bolo de palmatória naquele que não soube. E assim por diante. A gente não tinha<br />

informação nenhuma de umas tantas coisas. Menstruação, por exemplo. Não se tinha<br />

informação nenhuma; isso não existia de conversar, se informar... Nada. Quem é que ia<br />

ensinar? Mãe só conhecia um “O” porque era redondo – ela falava. Pai era uma fera.<br />

Quem explicava alguma coisa? Falar como? E a vergonha que nós tínhamos... Deus me<br />

livre! Pai não permitia que a gente fosse a uma festa. A gente se arrumava e tinha que<br />

esperar umas às outras lá embaixo, naquele barreiro, pra pai não ver a gente. Nós tínha-<br />

mos a maior cerimônia. Isso atrapalhou muito a vida e a educação da gente. Mãe costu-<br />

rava as roupinhas das menstruações e nos entregava. Quando tinha cólicas, tomava<br />

comprimidos de Cibalena e ia lá pra debaixo dos pés de juazeiro. Os namoros, quem<br />

podia falar de namoro? (rindo muito).<br />

Antônio – Mas todas vocês namoravam, não?<br />

124


Conceição – Uma vez eu arrumei um namorado, que era um moço filho de João Cabral.<br />

O nome dele era Dionísio. Ele era louco para namorar comigo, e um dia eu o conheci.<br />

Ele mandou um postal pra mim, eu nem respondi por que não tinha condições de namo-<br />

rar. Desisti. Ele terminou indo embora para o Maranhão, São Luís. Acabou mesmo. Ti-<br />

ve outro namorado também lá onde morava o tio Pedro, lá mo município de Pedra. Ele<br />

trabalhava com algodão. Era um moreno, parecia índio, gostava de mim. Mas terminou<br />

eu desgostando e não mais querendo. Quando eu estava para vir para São Paulo, apare-<br />

ceu outro, que era separada da mulher, e nessas condições eu também não queria. Em<br />

Paulo Afonso, eu conheci outro, que era sapateiro. Que sufoco para trazer esse rapaz,<br />

que era bem alto, e me deu um sapato, que ele fez, de presente. Eu tinha vinte e cinco<br />

anos e não tinha coragem de chamar esse rapaz pra casa, com medo de pai. De tudo<br />

isso, eu não esqueci nada. A situação da gente naquele tempo era igual ao da novela<br />

“Escrava Isaura”. Daquele jeito. Os namorados da Virgínia, eu não lembro não, porque<br />

ela foi trabalhar cedo, em Sertânia. Quando ela era pequena, gostava do Ageu. Madia<br />

também gostava do Ageu e do Antônio Cabral. No Norte mesmo, de namorado dela eu<br />

só lembro de Manoel, de José Antônio. Esse foi forte. Os demais eram namoricos bes-<br />

tas; pai não deixava, rapaz; como é que a gente podia estar procurando namorados? A<br />

Flora, também, a mesma coisa. Terminou namorando o compadre Zeca. Ah, da Flora<br />

lembro um que chegou a ser namorado oficial. Era um rapaz da Queimada do Milho, e o<br />

nome dele era Leonel. Mas era tudo do mesmo jeito. O namoro de Zeca com Flora<br />

(rindo muito) é um caso realmente interessante. Ele morava na Queimada do Milho,<br />

perto de onde morava a Naninha e a Dona Balbina. Eles foram trabalhar lá conosco e<br />

Flora, e eles se conheceram. Pai não queria, porque afinal Zeca era um trabalhador da<br />

gente... E, além do mais, teve uma interferência de compadre Zé Guilherme, que era<br />

uma pessoa que pai ouvia muito. Sei que pai proibiu, isto é, não deu a mão da filha em<br />

casamento. Zeca veio pra São Paulo, passou uns tempos e terminou indo ao Norte para<br />

roubar a namorada. Duda viu o carro acender e apagar os faróis. Ele já tinha combinado<br />

com ela. Ela, então, se arrumou e... Ela tinha me dito assim por cima, e eu, com medo<br />

de pai, me calei e me fiz de desentendida. Zeca fugiu com ela. Pai foi a Sertânia e pediu<br />

ao vigário, monsenhor Urbano Carvalho, que não oficiasse o casamento. Mas ficou com<br />

medo porque o bispo de Pesqueira estava fazendo uma visita à paróquia, e ele podia dar<br />

a licença ou até fazer o casamento <strong>sem</strong> problema algum. O monsenhor Urbano argu-<br />

mentou com pai se ele queria que a filha dele se prostituísse ou fosse apenas viver junta<br />

125


com um homem pelo resto da vida e <strong>sem</strong> a bênção de Deus. O bispo vinha pra Sertânia<br />

e já se encontrava em Arcoverde. O Zeca correu pra casar em Arcoverde, com a ajuda<br />

de Naninha. O bispo de Pesqueira, Dom Adelmo Machado, foi quem oficiou então o<br />

casamento. A partir daí, mãe não queria mais ouvir falar em Flora, apesar dela não ter<br />

feito nada de errado.<br />

Antônio – Conceição, como eram e quais eram as diversões de vocês ali naquele<br />

sítio?<br />

Conceição – Cala a boca, ainda outro dia eu estava falando disso aí com a Virgínia.<br />

Madia se divertia fazendo e vendendo docinhos na venda dela. A Edite chorando por<br />

causa de José que vivia nas danças, e Virgínia se divertindo com a máquina de Tó, filho<br />

de José Fortunato (rindo muito). O negócio foi o seguinte: a Virgínia fez xixi na má-<br />

quina de Tó. Era uma máquina de moer milho. Ele a deixou lá em casa enquanto foi<br />

para uma dança. E nós querendo sair e não tínhamos com quem deixar a tal máquina.<br />

Quando Tó chegou, encontrou a máquina molhada. E disse: “Mas como isso é possível?<br />

Aqui nem choveu nem tinha como molhar. Foi você, sua <strong>sem</strong>-vergonha, miserável!” A<br />

gente morria de rir com esse tipo de diversão. A grande diversão era na casa de tio Um-<br />

belino. Para pular a cerca, a gente colocava um tamborete, e tudo isso <strong>sem</strong> fazer barulho<br />

para não acordar pai e mãe. E colocava uns panos no chão, que era para limpar os pés<br />

daquele barro vermelho quando chegasse da dança... Muitas vezes, ele falou para o Ma-<br />

noel e o José que eles soubes<strong>sem</strong> que ele sabia que estavam levando as meninas para os<br />

bailes. Eu terminei dizendo pra mãe que caso ela não me consentisse namorar eu ia em-<br />

bora para São Paulo. Mas, por outro lado, reconheço que foi bom o que ele fez porque<br />

nós nos habituamos a não fazer nada de errado. Nós tínhamos um eito de trabalhadores<br />

lá em casa. Pra eles, a gente lavava roupa e fazia comida. Eram vinte trabalhadores. Pai<br />

queria que a gente lavasse toda a roupa. Mãe, não. A Virgínia pegou uma briga danada<br />

com um deles, chamado Sebastião. Mas terminamos não lavando mais as cuecas dele.<br />

Antônio – E aí? Você veio mesmo para São Paulo para poder namorar? Conte sua<br />

viagem de vinda para São Paulo.<br />

Conceição – Eu senti muita saudade do Norte, de mãe, quando cheguei aqui em São<br />

Paulo. Cheguei aqui na época da garoa: frio e chuva fina. Depois é que melhorou, né?<br />

Eu viajei junto com Severino. Vim com Severino e com a Tida. Ele tinha ido lá para<br />

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casar com ela. Veio comigo e com Zé Felipe também. Severino saiu daqui de São Paulo<br />

para casar com Tida. Ela tinha por lá um namorado, mas terminou acabando o namoro<br />

com ele para casar com o Severino. A minha vinda aconteceu depois que eu tive um<br />

sonho. Também foi muito ajudada por Chico de Nina, padrinho de Valdeci, que “aman-<br />

sou” pai no sentido dele dar a permissão para eu vir por solicitação de Flora. A viagem,<br />

nossa Senhora, foi Deus quem nos ajudou. Viemos na camionete de Severino, num mês<br />

de janeiro, com aquelas terríveis trovoadas que parecia que o mundo ia desabar sobre<br />

nossas cabeças. Cada trovão naquelas serras de Minas Gerais... Parece que a Erotides<br />

me deu uma oração, e eu rezei aquela oração para nos salvar daquele temporal. Nessa<br />

camionete, vinham eu, Severino, Erotides, Menininha, irmã de Tida, e os dois filhos.<br />

Ela veio encontrar com o marido. Chegava naquelas pensões, a gente tomava banho.<br />

Mas algumas vezes vi o feijão da panela cheio de moscas. Nossa... Eu só comia pão<br />

com banana. Chegando em São Paulo, fiquei na casa da Flora, do jeito que eu sonhei o<br />

meu sonho. O sonho foi o seguinte: chegou lá no Norte uma cigana. E pai estava na<br />

sala; ele detestava ciganos. Aí ela me pediu um copo dágua. Dei-lhe o copo dágua. Es-<br />

tava montada num belo dum cavalo. Ela, então, leu a minha mão, onde viu que eu ia<br />

casar porque eu era doida para casar com um alemão. Veja que ilusão. Adiante, na leitu-<br />

ra, ela disse que eu ia fazer uma viagem. Eu disse a ela que essa era a minha vontade,<br />

mas não a do meu pai. Ela disse que isso não importava e que eu iria fazer a minha via-<br />

gem e lá eu me casaria. De noite, eu sonhei que trabalhava num laboratório e sonhei<br />

também com a casa da Flora. No outro dia, chorei tudo o que podia chorar. Eu tinha<br />

uma grande vontade de casar e tinha medo de ficar viúva. Mas as coisas que eu sonhei,<br />

todas elas aconteceram comigo. E o meu primeiro emprego foi no Laboratório Fonseca.<br />

Flora era muito nervosa, porque ela teve aqueles problemas lá no Norte, mas era uma<br />

pessoa boa demais, demais. 35 Ela acolhia a todos nós, e ninguém faria mais por nós o<br />

35 Antonio - O que eu sei desse problema do “nervosismo” da Flora - que, aliás, foi confirmado<br />

recentemente pela Virgínia – é que, na Matarina, certa vez, meu pai foi aplicar a dosagem de um<br />

veneno conhecido como estriquinina com o objetivo de matar uns cachorros que lhe causavam<br />

incômodos, à noite. Ou seja, como se diz popularmente, “preparar uma bola”. O vento a favor<br />

fez Flora respirar um pouco do pó do citado veneno, que é facilmente absorvido pelas mucosas,<br />

vias nasais e respiratórias. Ela adoeceu gravemente e, não fosse a intervenção de minha mãe,<br />

que lhe administrou de imediato muitos litros de leite, ela teria morrido. A partir daí, a família<br />

soube que ela ficou com acesso de crises nervosas nunca diagnosticadas corretamente, ao que eu<br />

saiba.<br />

127


que ela e o compadre Zeca fizeram. Eu ficava nervosa, porque meu destino era traba-<br />

lhar. Eu queria ter minha vida.<br />

Antônio – Como é que você conheceu Laurindo aqui em São Paulo?<br />

Conceição – Foi numa cantoria na casa da Flora. E, antes disso, eu o tinha visto na fei-<br />

ra. Começamos a namorar e até falamos em casamento, mas ele disse que não estava<br />

preparado ainda. Eu disse “tá bom!” Um dia, eu já estava entrando na Fontoura para<br />

trabalhar, e ele sabia que era proveniente de uma boa família e ele não tinha condições<br />

de casar, portanto desapareceu. E eu fiquei me lamentando e chorando muito. Todo dia,<br />

eu chorava e me lamentava não poder casar, já que o primeiro namorado não tinha dado<br />

certo. Um dia, eu estava lá no Sacoman e de longe vi aquele moço que passava de bici-<br />

cleta. Ele falou comigo, e aí eu vi que era aquele moço mesmo. Ele me disse que ia ao<br />

Paraná visitar um irmão e quando voltasse, falaria comigo. Aí nos encontramos para<br />

namorar. Eu pensei assim: se for o meu destino, a gente vai casar. Alugamos um quarti-<br />

nho lá na Rua Auriverde, na Vila Carioca, e depois casamos, dando início à luta na nos-<br />

sa vida de casados. Antes de casar, houve uma reação da família ao meu namoro com<br />

Laurindo, pelo fato de ele ser mulato. Especialmente do José, da Flora e de pai... Depois<br />

que eu saí da casa da Flora e aluguei com a Virgínia uma casinha na Vila Carioca, aí,<br />

sim, nós começamos a namorar. A Virgínia começou a namorar um moreno e, por conta<br />

disso, teve uma discussão com Flora, que terminou lhe batendo na cara. Quase nessa<br />

mesma época, Flora e Zeca foram para o Norte, juntamente com o Givaldo, e lá contou<br />

a pai que eu namorava um mulato. Pai não gostou e mandou me dizer que acabasse com<br />

aquele namoro, porque lá no Norte tinha rapaz para eu namorar e casar. Eu decidi contar<br />

isso para o Laurindo mas a Madia não me deixou falar, me puxou pela roupa. Eu, sim-<br />

plesmente disse que não ia desistir; para ficar aqui sozinha, como <strong>sem</strong>pre fiquei? Não!<br />

Já chega o que eu sofri na minha vida. Algumas vezes, eu sonhava que voltava para o<br />

Nordeste e chorava muito no sonho. Quando o Anísio foi se casar, queria me levar. Eu<br />

disse “não quero de modo algum!” Eu chorava porque eu queria cuidar de mãe, mas não<br />

tinha como. Laurindo trabalhava nas feiras. Morava nuns barracos vizinhos ao João da<br />

Marlene. Compadre Zeca conheceu um tio dele. Somente compadre Zeca é que conhe-<br />

cia aqui a família do Laurindo. Antes, moravam com ele a mãe e o pai. Depois que eles<br />

morreram, ele foi cuidar da vida. Foi nessa época que eu o conheci. Era uma pessoa<br />

pobre, mas o que estragou a sua saúde é que ele era nervoso. Entre nós, ficou acertado<br />

128


que eu não queria ter muitos filhos em razão da minha idade. Somente um ou dois fi-<br />

lhos, no máximo. Só isso! Não somente eu não posso mais ter filhos, como eu não quero<br />

sofrer como minha mãe e Madia, conforme eu via lá no Norte. Ele pouco se preocupava<br />

com isso, e aí eu disse que eu me separaria dele e só não me separei porque eu já estava<br />

grávida da quarta filha. E o que eu fiz para evitar filhos? Contei para o padre e não me<br />

arrependo, porque eu não podia mais ter filhos. Eu lembro da doença dele; era chagási-<br />

co. Ele trabalhava na feira, mas não dava mais para sobreviver porque a prefeitura não<br />

autorizava ele aumentar as quantidades que vendia. Eu, então, encontrei um trabalho<br />

para ele ali perto de minha casa, onde fica o Carrefour. O chefe dele foi a minha salva-<br />

ção, e é por isso que eu tenho minha aposentadoria hoje. Só faltava um ano para ele<br />

perder tudo. E eu resolvi arranjar o dinheiro para cobrir a contribuição. Vendia uns pa-<br />

ninhos na feira, e ele ficava uma arara, ficava brabo, me xingava que só vendo... Vendo<br />

aquele meu interesse, ele dizia que eu queria que ele morresse para arrumar outro ho-<br />

mem... Ele terminou sabendo que estava doente de chagas num exame que ele fez num<br />

daqueles postos de saúde da época. O resultado foi: manchas na área cardíaca. Eu fiquei<br />

desesperada e perdi quase nove quilos. Ele, então, nem se fala. Deixou até de ir traba-<br />

lhar. Eu digo mesmo que, quando ele morreu, eu já estava mais conformada. Um dia,<br />

ele estava assim sentado, e eu disse “meu Deus, ele vai morrer hoje”. Ele decidiu ir à<br />

cidade para pagar a luz e a água. Estava pálido... brabo! Ele não era mais aquele homem<br />

que eu havia conhecido. Não era! E eu não queria transferir esse problema para a minha<br />

família. Ele foi, então, pagar a conta da luz e o carnê da menina na escola. Quando che-<br />

gou no Brás, ali perto do Bradesco, passou em Gil Gomes, tirou o chinelo e sentou. E a<br />

Márcia passou e viu ele ali, como também o marido da irmã da Maria do João. Ele che-<br />

gou junto de uma barraquinha e não sei se comprou alguma coisa. Porque o dinheiro<br />

pouco que ele tinha – uns oito cruzeiros daquela época –, roubaram. Só me entregaram a<br />

aliança e os documentos. O resto do dinheiro levaram. Ele tinha comprado num marre-<br />

teiro uma pêra. Quando, já sentado, ele deu uma mordida na pêra, ali, naquele instante,<br />

ele sofreu o derrame e morreu. Márcia, que estava passando, escutou o barulho do povo<br />

dizendo que um homem tinha morrido. Ela voltou e se apavorou. Eu sofri muito, filho.<br />

De noite, eu sonhando que ele estava entrando dentro de casa... (chora muito). Eu dizia<br />

que ia rezar, porque ele não vinha nos assustar. Elas ficaram apavoradas. E quem ajudou<br />

a elas superar essas angústias foi o Budismo.<br />

129


Antônio – E a sua vida depois que Laurindo morreu, deve ter sido muito difícil,<br />

não?<br />

Conceição – Nossa, nem me fale. O problema era eu arranjar um trabalho. Eu tive duas<br />

oportunidades. A primeira é que fui encaminhada pela Secretaria do Trabalho para me<br />

inscrever numa firma de limpeza. Essa firma estava selecionando mão-de-obra para um<br />

hospital que fica lá nuns morros de Jabaquara. Peguei o metrô e saltei na estação Con-<br />

ceição. Chegando lá, a moça me foi logo mandando pegar num rodo e numa vassoura<br />

para limpar o necrotério do hospital. Eu disse: “Pelo amor de Deus, me dê outro serviço,<br />

esse não”. Quando viram a minha reação, decidiram que eu iria para a limpeza da cozi-<br />

nha do hospital. Eu disse: “Não, aqui eu não fico, nem para limpar necrotério, nem co-<br />

zinha. Quem me garante que amanhã não me joguem na limpeza do necrotério? Deus<br />

me livre”. Nunca mais fui lá. Esse foi o primeiro. O segundo foi por intermédio de um<br />

moço que era amigo dos colegas da escola de Márcia. E eu o conheci no Zoológico da<br />

Prefeitura de São Paulo. Ele, logo depois, sofreu um terrível acidente com a namorada<br />

dele e passou muitos dias internado no Hospital de Jabaquara. Ficou com muitas difi-<br />

culdades físicas. Um dia, ele veio até minha casa, posto que ele conhecia as meninas. Eu<br />

estava acabando de chegar da Vila Ema, e ele estava deitado no sofá. Eu perguntei co-<br />

mo ele estava, e ele me disse que só não estava melhor porque não conseguia dormir.<br />

Estava não sei quanto tempo <strong>sem</strong> dormir. Eu, então, disse que iria lhe dar um remédio<br />

para ele dormir. Peguei uns maracujás e botei no liquidificador e dei a ele uma quanti-<br />

dade não muito forte. Ele tomou e caiu num sono profundo, que dormiu a tarde toda e<br />

só foi acordar no início da noite. Acordou tão feliz da vida pelo fato de ter conseguido<br />

dormir. Procurou saber qual remédio eu lhe tinha dado e disse que a partir daquele mo-<br />

mento sentia-se uma outra pessoa. E me garantiu que ia me arranjar um emprego no<br />

zoológico. Dei baixa naquele emprego do hospital e me coloquei no zoológico. Ah!<br />

Meu filho, lá foi pior no início, foi horrível. Cheio de bicho, a geladeira cheia de cabeça<br />

de bichos. Eu disse, meu Deus, estou caindo noutra pior por conta das doenças contagi-<br />

osas dos bichos. Tinha-se que enterrar os bichos quando eles morriam. Aí fui começan-<br />

do na limpeza. Tudo bem, tudo bem, passava <strong>sem</strong>pre no DP e via aqueles diretores, por<br />

sinal já morreram dois daqueles diretores. Fazendo limpeza, tudo direitinha. No início,<br />

eu não gostava porque nunca tinha trabalhado num setor de limpeza e meu trabalho na<br />

Fontoura era diferente. Agora, estava na função de limpar para a prefeitura. Mas eu di-<br />

130


zia comigo mesma: tenho que enfrentar... Logo que eu me apresentei no zoológico para<br />

fazer a seleção, fui logo aprovada. Disseram-me para voltar no dia seguinte, mas ainda<br />

<strong>sem</strong> me efetivar. Eu disse que não tinha problema, porque isso era uma questão de tem-<br />

po. E fiquei lá até me aposentar. No começo, só enfrentei porque eu estava muito preci-<br />

sada. Pedia a Deus para me aposentar e me aposentei de fato. No dia em que me apre-<br />

sentei ao DP, recebendo a minha folha para dar entrada da minha aposentadoria ao<br />

INSS, foi a maior surpresa porque ninguém entendia que eu tivesse já idade de me apo-<br />

sentar. Quando me confirmaram a aposentadoria, parece que eu estava no céu, de tanta<br />

felicidade, e voltei para a terra para viver a minha felicidade. Parece que eu tinha res-<br />

suscitado, de tão aliviada que fiquei. Chegando em casa, contei para as meninas, que<br />

também quase não acreditaram. E é disso, hoje, com que eu vivo.<br />

Antônio – Conceição, você botou um nome em cada um dos irmãos e dos sobrinhos<br />

mais chegados, nome esse que só você mesma chama. Você pode enumerar esses<br />

nomes e as pessoas a quem eles correspondem?<br />

Conceição - Ah! Pois não! Vou começar por você: Tita (Antonio/Professor); Sinane<br />

(Valdeci); Terinha (Elias/Olaia); Modinha (sobrinho Givaldo); Virgínia, José e a Flora<br />

eram as únicas que não tinham nomes. Doida Velha (Maria/Madia); Lossibois (Anísio);<br />

Cioba (Severino) Brás (Maria da Madia/Guirra); Vela Veia (Manoel); Fixó-Fichinho<br />

(Edson, da Flora); Olheiros (Irene, da Flora).<br />

Antônio – Você quer dizer ainda o que para terminar esta entrevista?<br />

Conceição – Pra terminar, gostaria de dizer algumas coisas. A pessoa de mãe é alguém<br />

que me deixa muita saudade. Foi a única e grande tristeza de ter deixado o Norte. Pela<br />

parte de pai, não. Ela só ficou na minha casa uns cinco dias. Cuidei dela lá em Mato<br />

Grosso e em outras oportunidades. E eu só não fiquei com ela em minha casa porque<br />

meu banheiro era pequeno demais. O da Virgínia, não. Virgínia tinha condições. Não se<br />

precisava pagar para os outros cuidar de mãe lá no Mato Grosso. Mas eu não tenho re-<br />

morsos. Deus levou ela, e eu pedi pra Deus que Ele tomasse conta dela. E eu chorei<br />

muito, muito, com a morte dela, porque ela era uma pessoa boa. Pai, não. Coitadinho,<br />

era nervoso. Mas meu pai e minha mãe devem estar no céu (chorando). O padre me<br />

disse que era para não ter remorso e me conformar. Eu cuidava da minha mãe e dava<br />

banho (chorando muito).<br />

131


132


Anísio Jorge de Siqueira 36<br />

Antônio - Anísio, gostaria que você falasse sobre suas lembranças na Matarina e<br />

na Santa Luzia.<br />

Anísio: A gente saiu da Matarina, da Fazenda Matarina, em 1946. Eu falei recentemente<br />

com o atual dono da Fazenda Matarina, o Eugênio Nunes, filho de Cícero Nunes, e ele<br />

me confirmou exatamente isso. Quanto à nossa infância, ela foi maravilhosa. Lembro<br />

quando a gente, em 1946, veio para Santa Luzia, onde pai havia comprado aquela pri-<br />

meira parte de terras, já em 1936, se não me engano. E a gente mudou para Santa Luzia,<br />

município de Sertânia. Em seguida, ele comprou a terra que era da velha Josefa Traqui-<br />

nada. Depois, adquiriu a propriedade que era de José Bernardo e, finalmente, a última<br />

terra que pertencia a Chico Félix, já falecido, onde Manoel morou. Foi uma infância<br />

36 Nascido aos 08 de maio do ano de 1938, Anísio é casado com Enedina Maria de Siqueira. Pai de três<br />

filhos: Célia, Hélio e Daniel. Mora no sítio São Marcos – Arapuá, distrito de Três Lagoas, MS, onde a<br />

entrevista foi feita no dia 27 de dezembro de 2008.<br />

133


ótima, você também deve lembrar. Fiquei na Santa Luzia até os dezoito anos, ocasião<br />

em que vim para São Paulo.<br />

Antônio – Nesse período de sua infância, você gostava de jogar bola... lembra de<br />

alguma trela?<br />

Anísio – Gostar de jogar bola, isso não era o meu fraco, ainda mais que, nas peladas<br />

daquela época as bolas eram de borracha e aí, já viu, levava drible e queda de todo ta-<br />

manho... Por causa de chutar longe ou furar, andei pagando varias bolas. Também tinha<br />

muita bola de meia; ainda hoje existe, acho.<br />

Antônio – E o que mais fazia, tangia gado?<br />

Anísio – Ah, sim, catava algodão, trabalhava na roça; afora fazer as tarefas normais da<br />

escola. Aliás, você foi meu companheiro nessa tarefa de tocar o gado, ir atrás de cria-<br />

ção, por sinal você xingava, uns dizem que era por preguiça, outros dizem que era por-<br />

que chupava dedo, você lembra isso aí?<br />

Antônio – Como era o dia-a-dia de menino?<br />

Anísio – Naquela época, criança trabalhava. Hoje criança não trabalha até os dezesseis<br />

anos. Eu tinha minhas tarefas: acordar cedo, tirar ração que, para alguns animais, era um<br />

feixe de palma; para outros, como os bezerros, era um feixe de palha. A gente trabalha-<br />

va muito enquanto criança. À medida que fui crescendo, lá pelos meus dez anos, eu fiz a<br />

minha primeira comunhão e <strong>sem</strong>pre tinha que cuidar da criação naqueles matos, naque-<br />

las serras. Aí é onde eu pegava bode para matar e garantir a nossa sobrevivência, porque<br />

a gente vivia daquilo, não é? Aquele era um tempo bem difícil, mas para nós não foi tão<br />

difícil, porque, graças a Deus e ao esforço de pai e mãe, foi bastante gratificante para<br />

nós. Não tínhamos tudo o que queríamos, mas tínhamos o suficiente para sobreviver.<br />

Antônio – Nós sabemos que você <strong>sem</strong>pre foi um grande caçador e um grande pes-<br />

cador. Você lembra sua primeira caçada?<br />

Anísio – Eu comecei a caçar com estilingue – lá, no Nordeste, nos chamávamos de “ba-<br />

liadeira” – e lembro bem que tínhamos de andar com ela por debaixo da camisa, porque<br />

se pai nos pegasse com aquilo ele nos dava surra. Quando eu apenas começava a caçar<br />

de espingarda, certo dia cheguei da escola de Dona Zefinha, que foi minha professora,<br />

134


sua, de Conceição e do Severino... Essa professora sei que Deus já a levou. Eu senti<br />

muito não a ter visitado nas vezes que voltei a Sertânia. Então, eu tinha acabado de che-<br />

gar da escola e, no quarto onde a gente trocava de roupa para cuidar das obrigações,<br />

havia uma espingarda que Manoel tinha comprado. Eu peguei aquela espingarda que<br />

estava carregada e comecei a mirar em direção à cumeeira da casa... Daqui a pouco,<br />

apertei o gatilho e foi aquele estampido. As buchas começaram a pegar fogo e caíram<br />

em cima de um paiol de algodão. Naquele dia, não teve perdão, levei uma surra de pai.<br />

A minha sorte foi padrinho Umbelino, mãe e Mena, nossa avó, que intervieram, dizen-<br />

do: “José, espera aí; compadre José, não exagere!” Só sei que foi um trabalho danado<br />

para apagar o fogo; terminaram apagando. Só que, depois, eu tive que pagar, no couro.<br />

Foi assim a primeira vez que peguei na espingarda. Eu lembro que, quando aconteceu<br />

aquilo, pai chegou pra mim e disse: “Cabra, se eu te pego com uma espingarda de novo,<br />

eu te quebro ela na tua cabeça!”. Eu lembro que não gostei de ouvir aquilo. E, se for<br />

pecado, Deus que me perdoe. Sei que, com oito dias passados desse acontecido, com-<br />

prei uma espingarda ao meu irmão José, o barbeiro, que era mais velho do que eu uns<br />

oito anos. Comprei a espingarda por duzentos mil réis, daquele tempo com o apurado de<br />

uma criação que eu tinha e, claro, fiquei duro... Tinha que contar a pai. Um dia, eu acor-<br />

dei cedo, cheguei à cozinha onde ele estava tomando café e fumando um cigarrinho de<br />

palha... Eu, naquela enorme ansiedade, louco para comprar munição, cheguei pra ele e<br />

contei o caso. Falei que tinha comprado uma espingarda a José, que já sabia caçar, que<br />

não ia cometer nenhuma besteira, mas precisava comprar munição. Aí ele ouviu, coçou<br />

a cabeça, enfiou a mão no bolso e me deu mil réis, uma nota vermelha, lembro bem. Eu<br />

acho que dentro de dez minutos eu fui a Sertânia e voltei. Fui comprar naquela venda de<br />

Francisquinho, você lembra? Voltei para casa muito contente e feliz e aí não aconteceu<br />

mais nada. Pai era daquele jeito, mas tinha o seu lado bom...<br />

Antônio – Você lembra alguma coisa marcante na escola de D. Zefinha?<br />

Anísio – (Rindo) Você sabe que a escola funcionava no lugar onde tinha aquele barrei-<br />

ro. Era onde morava o finado João Manoel. Depois, ela mudou para a casa onde morava<br />

a Velha Maria Guilherme, mãe de Edite, Duda e Zé Guilherme. Cada um de nós tinha<br />

uma tarefa: rezar, buscar água para encher um pote de beber... Um dia, eu fiquei encar-<br />

regado de ir buscar água no barreiro; eu e o Dejaci, filho do velho Caboclo Quida. Sei<br />

que a gente mijou dentro da lata d’água, e (rindo muito) o pior é que foi descoberto!<br />

135


Fizemos xixi dentro da lata d’água! Apesar de dizermos um para o outro que não se<br />

devia abrir a boca, terminaram descobrindo, e foi um bafafá danado...<br />

Antônio – Que lembranças você tem da professora D. Zefinha?<br />

Anísio – Ela era uma ótima professora, você sabe disso. Quando uma professora não é<br />

suficientemente rígida, não é uma boa professora, e ela foi uma boa professora.<br />

Antônio – O que você lembra da convivência com os irmãos?<br />

Anísio – É, naquela época, Antônio, os pais ignoravam o bom relacionamento com os<br />

filhos. Eu mesmo não sendo dos mais velhos sentia o quanto pai era rígido e, assim,<br />

meio ignorante no modo de falar; mas, sei lá, não tinha aquele pensamento mais franco,<br />

uma conversa assim mais livre com a gente, principalmente com o Manoel e o José. Eu<br />

discordava principalmente de certas reações dele com mãe. Uma vez mesmo, eu intervi<br />

dizendo que ele não deveria falar com mãe daqueles modos. Você sabe que mãe, duran-<br />

te vários e vários anos, costurou nossa roupa e também o fez para ajudar no arrimo da<br />

família. Chegou um momento em que ela necessitava usar óculos de precisão. Como<br />

não existia exame de vista acessível naquela época atrasada, os óculos dela provocavam<br />

tonturas e muitas queixas da parte dela. Um dia, pai incomodado com aquelas queixas<br />

de mãe, enfurecido, quebrou os óculos dela. Eu reclamei daqueles modos ignorantes<br />

dele. Como era garoto crescido, ele quis me bater, e eu disse que não adiantava ele me<br />

bater. Nós lutávamos, plantávamos palma, mas aquilo era como se fosse um “hobby”,<br />

porque não servia para o nosso gado, que chegava a passar fome. Mas ele não queria ver<br />

o gado estragar o plantio de palma nem queria que a gente cortasse a palma. Aquilo era<br />

um atraso! A palma morria de velha, ele dava para os outros, mas não nos servia. Eu<br />

não gostava daquilo. Até que, num certo dia, eu, ainda moleque, sabendo que ele tinha<br />

muitos prejuízos na venda de criação para os compradores, resolvi falar. Muitos com-<br />

pravam por um preço irrisório; outros compravam e não pagavam, ou então pagavam<br />

muito atrasado... Certo dia, cheguei ao curral da casa de Zé Guilherme, no Riacho<br />

Queimado, com uma criação que ele mandara juntar para vender. Estava ele com os<br />

compradores já fechando o negócio. Eu disse então, que, a partir daquele dia, quem ne-<br />

gociaria a criação seria eu e, graças a Deus, fui muito bem-sucedido.<br />

Antônio – Fale sobre os divertimentos, as festas. Como é que os moços se divertiam<br />

em Sertânia, nessa época?<br />

136


Anísio – Eu <strong>sem</strong>pre encontrei um jeito para isso. O Manoel é que não ia mais longe, só<br />

ali por perto de casa. Mas onde tivesse um forró, eu estava lá. Aproveitava a situação de<br />

viver praticamente fora de casa. Pegava logo a minha roupa, já me preparava uma se-<br />

mana antes. Eu morava no Riacho Queimado, com Madia, e gostava de forró. Só não<br />

frequentava aqueles que eram perigosos por conta de brigas e confusões. Sempre ia ao<br />

Açude do Estado e à Paraíba. Alguns tinham brigas; sabe, onde tem cachaça e mulher,<br />

<strong>sem</strong>pre há bate-boca, brigas, confusão... Eu, graças a Deus, frequentei muitos forrós,<br />

mas nunca me encrenquei em nenhum deles não. Mesmo em Sertânia, eu <strong>sem</strong>pre ia.<br />

Agora, o Manoel, o José, o Severino e as meninas, estes nunca saíam de casa. Você sa-<br />

be, não é? Havia aquele medo de fugir de casa...<br />

Antônio – A partir de certo momento, você decidiu vir para São Paulo. Conte co-<br />

mo foi essa decisão.<br />

Anísio – Eu não pedi a pai para viajar. Eu primeiro me preparei. Minha viagem foi em<br />

1957. Eu era jovem. Trabalhava na roça e tinha minha própria roça. Tinha mais que<br />

todos da família, mais do que Manoel e José, que não tinham quase nada. Botava gente<br />

para trabalhar, pagava, trocava dias de serviço com Paulo Felipe, Liro de Xéu, você<br />

lembra-se dele, não? Era um grande amigo da gente. No ano de 1956, eu tinha uns seis<br />

quadros de roça e perdi tudo com a seca. Vieram as primeiras chuvas de janeiro, e eu<br />

enchi tudo de palma, milho, feijão. Depois, não choveu mais nada, e aí perdi tudo. Na-<br />

quele momento, eu desanimei; encostei as ferramentas e juntei o que tinha de criação:<br />

duas vacas e duas novilhas. Vim para São Paulo e trouxe comigo o José e a Virgínia.<br />

Não vim de pau-de-arara, não. Tomamos um ônibus em Arcoverde e pegamos a estrada,<br />

numa viagem de onze dias. Tivemos sorte. Naquele tempo, as estradas para São Paulo,<br />

no caso a Rio-Bahia, eram cruéis. Mas viemos naquela vibração, e graças a Deus o que<br />

eu hoje tenho devo a essa vinda para São Paulo.<br />

Antônio – Toda a família sabe da importância de nossa irmã Flora e de Zeca, nosso<br />

cunhado, na ajuda que deram aos irmãos que foram de Sertânia para São Paulo.<br />

Gostaria que você falasse disso. Antes, porém, peço que você fale sobre o casamen-<br />

to dela com Zeca, em 1952, quando foi “roubada” e casou a caminho de São Paulo.<br />

Anísio – No dia em que Flora fugiu para casar, não caiu uma banda do mundo ou mes-<br />

mo a metade de Pernambuco, porque Deus faz as coisas bem feitas. Pai ficou muito<br />

137


nervoso, ficou muito nervoso! Você sabe que ele não alimentava a possibilidade de Flo-<br />

ra casar com o Zeca. Ele era contra esse casamento. Depois que ela casou, ele resolveu<br />

esquecê-la para <strong>sem</strong>pre, e isso fez a Flora sofrer muito. Após vários anos de tentativas<br />

por parte dela, escrevendo para ele, ele mantinha <strong>sem</strong>pre aquela ignorância. Hoje em<br />

dia, as coisas mudaram muito e se vê logo que não havia necessidade daquilo. E foi uma<br />

coisa que me marcou muito, aquela raiva que pai tinha do casamento da Flora com o<br />

Zeca. Afinal, não havia a menor necessidade disso, porque se ela gostava dele tinha que<br />

casar era com ele mesmo. É um direito da mulher casar com quem ela quiser. Eu já es-<br />

tava em São Paulo quando convidei os dois para serem meus padrinhos de casamento<br />

em Sertânia. E eles aceitaram: “vamos, sim, nós iremos para o Norte”, como se dizia. O<br />

convite foi feito um ano antes. E o tempo foi passando, passando, quando faltavam seis<br />

meses, três meses, ele (Zeca) começou se “escorando”. Dizia ele: “É, Anísio, como o<br />

velho vai me receber? Aquele velho é ignorante. Será que ele não vai tentar se vingar de<br />

mim ou tentar uma coisa pior contra mim?” Eu disse pro Zeca: “Deixa isso comigo que<br />

vai dar tudo certo”. Tomamos o ônibus para o Nordeste no dia 17 de dezembro de 1961.<br />

Pegamos o ônibus no Brás e, quando fomos nos aproximando ali de Paulo Afonso, Mo-<br />

derna, Cruzeiro do Nordeste, a apreensão aumentava... A Naninha, irmã de Zeca, nos<br />

esperava em Cruzeiro do Nordeste e, de lá, ela devia seguir para Arcoverde. Quando<br />

nos encontramos ela falou: “Anísio, você não acha mais prudente eu levar Zeca comigo<br />

para Arcoverde, e você ganhar tempo para sondar a receptividade do velho Zé Jorge?”<br />

Eu disse: “Não, de jeito nenhum! Ele e a Flora vão para casa e é comigo”. Chegamos<br />

em casa e o ônibus foi até o pátio da fazenda e nos deixou ali. Pai estava em Sertânia,<br />

porque era sábado, dia de feira. Ele andava bem arrumado, lembro, como hoje, estava<br />

de paletó, chapéu de massa, marca... Prada! E toca a demorar, demorar, demorar... E o<br />

compadre Zeca naquela impaciência! Eu, por precaução, guardei todos os “armamen-<br />

tos” (rindo muito) para evitar algum desastre, algum acidente! E fomos esperar pai ali<br />

na estrada. Quando dei fé, parou um carro. Era um carro preto, se não me engano um<br />

Mercury, de Severino Henrique. Quando ele desceu, eu me aproximei bem dele. Ali ele<br />

já desceu e disse: “Ah! é você, Anísio!” Aí nos abraçamos e tal... Começamos a cami-<br />

nhar aquele trechinho de caminho entre a estrada e a nossa casa. Compadre Zeca e Flo-<br />

ra, a essas alturas (rindo muito), não sei nem como e onde é que estavam. Mas eu esta-<br />

va confiante. Conversei com ele que o Zeca não era nada daquilo que ele pensava, era<br />

uma pessoa muito boa, etc. Aí ele foi andando devagarzinho, chegou em casa, entrou...<br />

138


Compadre Zeca e Flora se “ocultaram”. Depois os dois chegaram, e ele nada de querer<br />

falar, perdoar e muito menos abraçar os dois. Foi quando eu falei: “Pai, eu vim casar e<br />

convidei os dois para serem meus padrinhos de casamento. E eu pretendo casar aqui em<br />

casa. Se o senhor...” Você lembra, naquele tempo você era <strong>sem</strong>inarista e estava em casa<br />

com um colega seu e outro padre. Ai chegou o ponto em que eu disse: “Eu vim aqui<br />

fazer as pazes e fazer com que isso acabe”. Sei que pai era muito revoltado com coisas<br />

erradas, mas o Zeca não merecia aquilo. E eu continuei dizendo que as malas estavam<br />

prontas, e eu iria chamar um carro, iria embora e casar em qualquer lugar. “Se o senhor<br />

não aceitar eles aqui, eu não vou ficar aqui também”. Ele baixou a cabeça, chorou, cho-<br />

rou... E eu dizia pra ele: “Pode chorar, pai; é bom desabafar!” Aí, depois de certo tempo,<br />

ele ergueu a cabeça e disse: “Quem não perdoa na terra, no céu não será perdoado. Tudo<br />

bem!” Foi nessa hora que compadre Zeca chegou, abraçou-se com ele, tal e coisa... Foi<br />

só alegria a partir daí. No dia seguinte a gente foi pegar um carneiro já grandinho, no<br />

Riacho Queimado, para matar. Nessa saída, ele pegou a espingarda de cartucho 20 dele<br />

e botou nas costas. O compadre Zeca, que nos acompanhava, ficava só olhando muito<br />

desconfiado (rindo muito), dizendo pra mim: “Será que esse velho não vai me dar um<br />

tiro aqui?!” A partir desse dia para cá, foi só alegria, graças a Deus.<br />

Antônio – Voltando à pergunta, vamos para os primeiros dias seus em São Paulo.<br />

Conte aí essa sua experiência... Você foi morar onde?<br />

Anísio - Eu não fui morar com a Flora. Ela morava num barraquinho, lá na Vila Cario-<br />

ca; você conheceu, não é? Hoje, é Rua Brás de Pina. Eu tinha chegado trazendo a Virgí-<br />

nia e o José e, ainda hoje, lembro que tinha no bolso a quantia de três mil e setecentos<br />

cruzeiros daquele tempo. Flora, onde morava, tinha um terreno deles. Fui ao armazém e<br />

comprei o material e levantei um pequeno barraco onde ficamos eu, José e a Virgínia.<br />

Ficamos aí uns oito meses mais ou menos. Eu falei, então, pra Flora: “Vamos alugar<br />

uma casa; aqui tudo é muito apertado, e o Zeca bem que poderia vender a parte dele<br />

para um dos irmãos”... E assim foi feito. Ele vendeu, acho que foi para o Duda. E nós<br />

fomos morar de aluguel na Rua Lício de Miranda. Aí foi muito bom, não é Antônio? Eu<br />

que tinha chegado da roça, matriculei-me numa escola profissional, onde estudei dois<br />

anos e pouco. Era uma maravilha. Estudei no SENAI, na Escola Poliarte da Avenida<br />

Dom Pedro, no Ipiranga. Era difícil, porque eu tinha que pagar escola e ainda pagava<br />

todo o material. O que eu ganhava não era suficiente, e eu tinha que “marretar” nas vi-<br />

139


las, nas favelas; favela da Vila Prudente, favela da Mooca, Santo Amaro, eu tinha que<br />

andar por tudo aquilo lá, marretando. A essa altura, eu já trabalhava na Petersen, um<br />

emprego arrumado pelo Severino, onde trabalhei três ou quatro meses de ajudante e<br />

depois passei a ser meio oficial e, finalmente, oficial. Trabalhei nove anos na Petersen, e<br />

o curso que eu fiz foi fundamental para a minha carreira. Durante esses nove anos, fui<br />

ao Nordeste e casei em 1962. Depois voltei ao Nordeste para aquela experiência da ce-<br />

râmica, tendo feito eu mesmo todas aquelas peças.<br />

Antônio – Como e quando você conheceu Enedina?<br />

Anísio – Eu conheci Enedina em Sertânia, em 1955-56, muito antes de vir trabalhar em<br />

São Paulo. A Virgínia trabalhava com ela para o finado Severino, irmão dela. Quando<br />

vim para São Paulo, já vim noivo. Vim trabalhar para aprender uma profissão e terminei<br />

por construir aquele “castelo de areia” lá, na Vila Ema, que os meninos terminaram de<br />

modificar...<br />

Antônio – Voltando aos primeiros anos de São Paulo, como foi a vinda dos demais<br />

irmãos?<br />

Anísio – Como já disse, vim para São Paulo com o José e a Virgínia. O Severino já es-<br />

tava aqui em São Paulo. A Flora e o compadre Zeca tiveram um papel muito importan-<br />

te, tanto na vinda quanto na nossa permanência em São Paulo. Os dois foram nossos<br />

pais. Apoiaram todos nós; não somente eu, como o Severino, o José, a Virgínia e a<br />

Conceição. Durante os cinco anos que passei em São Paulo, antes do casamento, a con-<br />

vivência com os dois era uma felicidade. Eram nossos pais, repito. Como já faleceram,<br />

só nos resta hoje recomendá-los a Deus e rezar pela alma deles para que eles tenham o<br />

sossego que merecem. Logo depois, aparecem nossos sobrinhos. A Irene, do compadre<br />

Zeca, foi a primeira. Eu gostava muito e brincava muito com ela. Certa vez, tive que dar<br />

uma surrinha de leve nela, para ela aprender... Vou contar essa história. Bem, Irene era<br />

muito apegada ao pai, o compadre Zeca. Ele teve que levar Flora, certa vez, ao hospital,<br />

ao cair da noite, porque ela estava passando mal. A Irene ficou naquele berreiro infer-<br />

nal, uma “gritaiada” danada. E eu dizia: “Calma, minha filha, seu pai vai voltar logo”.<br />

Mas ela nada obedecia. Foi então que eu peguei o cordão bento lá de uma congregação<br />

de São Pedro e dei-lhe umas lapadas. Ela lembra muito bem desse acontecido (rindo).<br />

Quando os dois voltaram e já estavam entrando no quintal, ela então começou a gritar.<br />

140


Eu disse pra ela: “Você vai falar para sua mãe e seu pai por que é que eu lhe bati”. E vai<br />

contar, senão vai apanhar de novo. Ela ficou toda amuada, e Zeca e Flora perguntaram:<br />

“Minha filha, o que foi que aconteceu?” Ela só fazia soluçar... Mas não conseguiu con-<br />

tar nada. Foi muito bom pra ela... Pergunta para ela que certamente ela vai lhe contar.<br />

Antônio – Em São Paulo, a Vila Carioca, naquele tempo, como era?<br />

Anísio – Era uma beleza, era uma praia só... (ri ironicamente). Só que a areia da praia<br />

era da cor de sebo e atolava bonito! A Vila Carioca, meu Deus! No dia em que eu che-<br />

guei do Nordeste e tomei um táxi no Brás, o rapaz então disse que só me levaria até a<br />

Rua do Manifesto, no Ipiranga! “Dali pra lá, eu não levo mais”, disse. Eu falei: “Então<br />

não serve; deixar-me no meio da rua, com uma mala na cabeça, não serve”. Ele disse:<br />

“Não, entre, vamos tentar nos aproximar ao máximo do seu endereço”. Eu disse: “Só<br />

entro se me levar até o numero do meu endereço na Rua Álvaro Fragoso”. Assim era a<br />

Vila Carioca.<br />

Antônio – Como e porque vocês vieram morar na Vila Ema depois desses anos to-<br />

dos na Vila Carioca?<br />

Anísio – É o seguinte. A gente tinha interesse em comprar um lote de terreno. Falei com<br />

o José para procurar um terreno, e a gente entraria como sócios. Ele caiu em campo e<br />

encontrou vários terrenos, na Vila das Mercês, na Vila dos Quarenta, e alguns eu con-<br />

denava porque eram acidentados demais... Até que encontrou aquele terreno lá na Vila<br />

Ema. Entramos como sócios e compramos o terreno. Isso foi em 1959. Depois, a Flora e<br />

o compadre Zeca compraram outro terreno lá que foi do José Felipe e terminaram indo<br />

morar também na casa que construíram e que hoje é da Madia. Eu comprei o terreno lá,<br />

construí a minha casa e os demais também. Muitos outros depois vieram. O Givaldo<br />

também comprou, o Severino, a Madia. A Virgínia com o Aldir comprou lá no Sapo-<br />

pemba.<br />

Antônio – Anísio, fale agora sobre sua família.<br />

Anísio - A Célia nasceu em São Paulo, na maternidade da Brigadeiro Luiz Antônio. O<br />

Hélio já nasceu no Nordeste... (Áudio de um pequeno trecho da gravação prejudica-<br />

do)<br />

141


Antônio – Isso significa dizer que você estando em São Paulo tentou voltar para o<br />

Nordeste. A saudade bateu mais forte?<br />

Anísio – É, quando nós saímos de São Paulo, eu não vendi nada. Deixei a casa alugada<br />

para o finado Laurindo, marido da Conceição, nosso cunhado. Eu pedi a conta e deixei a<br />

firma, já tendo feito aquele maquinário para a cerâmica no Nordeste. Montei aquilo lá<br />

em Sertânia, mas infelizmente o comércio lá era fraco, como de fato ainda é, e não deu<br />

certo. Trabalhei muito lá, quase morro de trabalhar e, em 1969, voltei para São Paulo.<br />

Voltei para a mesma firma, onde trabalhei mais um ano e terminei pedindo a conta no-<br />

vamente. Depois, entrei numa outra firma, onde trabalhei mais de vinte anos, a Grobe,<br />

onde me aposentei.<br />

Antônio – Explique melhor a decisão de montar uma cerâmica no Nordeste...<br />

Anísio – Eu tinha trabalhado nove anos na Petersen e, você sabe, a gente tem aquela<br />

saudade da terra onde nós nascemos e nos criamos. Essa terra é o Nordeste. Também<br />

era aquela vontade de botar um comércio por conta e não ser eternamente empregado<br />

vivendo fora da terra da gente. Talvez o ramo de comércio me fosse mais garantido, eu<br />

pensei. E, às vezes, eu penso que fiz uma escolha certa por ter optado pela mecânica.<br />

Mas essa pequena indústria cerâmica não deu certo pelo seguinte: você encostava vinte<br />

a trinta mil tijolos, dez a quinze mil telhas e não chegava nenhum comprador para o<br />

comerciante principiante... A matéria-prima era da melhor qualidade. Para você ter uma<br />

idéia, eu vendi mais de um milheiro de telha para umas casas populares em Solidão<br />

(PE), cujo acesso era em estradas de terra. Em pleno inverno, com um caminhão trucado<br />

houve apenas a quebra de quinze telhas. O material era muito bom. Mas as coisas para-<br />

vam por ali. Passava quatro a cinco meses <strong>sem</strong> vender nada. Perdi dois anos de trabalho.<br />

Mas não me arrependo de nada daquilo que tentei em minha vida. Foi um tempo feliz<br />

que eu passei com pai. Lá, em Sertânia, nasceram o Hélio e o Daniel, essa dupla de ouro<br />

e prata.<br />

Antônio – A viagem a São Paulo-Paraná da Madia foi uma aventura meio compli-<br />

cada. O que você sabe disso?<br />

Anísio – Olha, a vinda da Madia foi uma decisão muito rápida. Vieram ela e a família,<br />

Zé de Melo e Liro. Primeiro veio Zé Guilherme com Manoel, que ficou em São Paulo e<br />

ele foi para o Paraná comprar um terreno. Lá, ele comprou dois alqueires de terra, um<br />

142


deles numa chacrinha acanhada e outro onde ele construiu a casa. Quando eles (a Madia<br />

e os filhos) chegaram a São Paulo, aquilo foi uma loucura. Chegaram num pau-de-arara<br />

com não sei quantas pessoas e ficaram largadas lá na Rua Aurora. Ela com as crianças e<br />

um moleque doente; a mulher de Leonel, também doente... A Madia com o Erasmo do-<br />

ente, e ele quase morre. O Osvaldo, em Governador Valadares (MG), caiu num esgoto;<br />

uma pessoa o socorreu lá, e ele não morreu por um milagre. Todo mundo doente, cheios<br />

de diarréia; aquilo lá foi uma loucura. Naquela época, quando eu cheguei lá, estavam<br />

jogados numa pensão, na Estação da Luz. A Rua Aurora era ali perto, bem pertinho da<br />

Estação da Luz. Eu soube que ela estava lá, ligaram e eu fui buscá-la e a trouxemos para<br />

casa com a molecada toda. Ficou lá a turma de Zé de Melo, era um monte de gente. Eles<br />

iam para o Paraná, para Cafeeiros. E não tinham mais dinheiro, mais nada. Eu sei que<br />

passei seis dias, mexendo para arrumar condução. Mas Deus <strong>sem</strong>pre ajuda. Eu sei que<br />

passei seis dias mexendo para arrumar condução. Mas Deus <strong>sem</strong>pre ajuda. Fui a tudo<br />

quanto é polícia, agência de governo, nada, nada! A Madia, não, ela estava lá em casa,<br />

ela viajou depois de ônibus. Ai eu paguei tudo, todas as despesas da pensão; graças a<br />

Deus não me fez falta. Eu procurei na Imigração, que era de graça, mas mesmo assim<br />

não encontrei nada. Aliás, na Imigração eu consegui para os outros, mas tive que pagar<br />

uma taxa. Tirei a mulher do Leonel do hospital, e essa é a historia da Madia, que teve<br />

esse desfecho. Foi um grande sofrimento.<br />

Antônio – Anísio, numa dessas viagens suas ao Nordeste, você sofreu um acidente<br />

de carro. Como foi isso?<br />

Anísio – Tomei o carro do Erasmo emprestado, um carro que ele tinha, um azarão –<br />

porque quando ele pegou aquele carro, fez um passeio e um cavalou espantou-se com o<br />

carro e foi em cima do capô. Saímos de São Paulo, dinheiro no bolso, eu e a velha. Saí-<br />

mos meia-noite, e, quando o dia amanheceu, eu já estava na ponte Rio-Niterói. Lá pelas<br />

sete ou oito horas, estava pertinho de Campos (RJ). Ali é muito acidentado e tinha cho-<br />

vido muito à noite. Tomei café, abasteci o carro e aí saí. Quando ultrapassei um ônibus,<br />

como tinha chovido a noite toda, a estrada estava cheia de cascalho e barro. E ali é mui-<br />

to acidentado. Peguei aquela baixada com água, escorrendo água, aí ele derrapou, e eu<br />

tentei controlar, mas quando vi já estava em cima de uma bueira. Nessa hora eu pensei<br />

assim: se não acelerar, vamos morrer eu e muita gente. Aí eu acelerei mais um pouco,<br />

passei naquele pequeno espaço da ponte e joguei a roda traseira em cima de um pé de<br />

143


eucalipto e saí rodando pelo ar. Não morri, e não morreu ninguém. A Enedina teve uma<br />

luxação no braço direito, e eu fraturei uma costela. Devolvi o carro pelo guincho e,<br />

quando chegou ali na Dutra, era para deixar o carro em cima do caminhão. O cara dei-<br />

xou o caminhão numa descida com o freio de mão <strong>sem</strong>iacionado. O reboque desceu a<br />

ladeira e bateu no muro. O caminhão do guincho era uma Mercedes nova, recém-<br />

pintada, e terminou como ferro velho, perda total. Como o carro estava no seguro, no<br />

prazo de uns vinte dias o Erasmo recebeu um carro novinho.<br />

Antônio – Depois dessa vivência em São Paulo, como foi a decisão sua de vir para<br />

Mato Grosso do Sul? Após aposentadoria na Grob?<br />

Anísio – Foi meio longa a vontade de vir morar aqui. Eu <strong>sem</strong>pre gostava de pescar, co-<br />

mo até hoje gosto; caçar, eu nunca cacei. O Idalécio, que <strong>sem</strong>pre vinha passear aqui, me<br />

falou que era assim, assim e me deu vontade de conhecer aquilo que, na época, era ape-<br />

nas o Mato Grosso. Eu tinha uma Brasília, e os moleques eram pequenos, e eu vim e<br />

gostei bastante. Comecei, então, a alimentar a ideia de comprar um sítio aqui, mas, na-<br />

quele tempo, eu não tinha condição de comprar sozinho. Aí eu acertei com seu Idio que<br />

nós dois compraríamos um terreno e, depois, nós adquiriríamos outro para cada um ficar<br />

com o seu. E não deu duas. Graças a Deus, compramos aqui e, depois, surgiu aquele<br />

outro que compramos, e continuamos contentes até hoje, com muitos sacrifícios, mas<br />

bem, graças a Deus.<br />

Antônio – Anísio, nesse sitio aqui você leva a vida que <strong>sem</strong>pre sonhou, não?<br />

Anísio – Caçar, não, que aqui não se caça mais nada. Não se caça mais hoje, no Brasil,<br />

em lugar nenhum. É a coisa melhor que pode ter acontecido para a natureza. Agora,<br />

pescar, não! Eu, para lhe ser sincero, estou no paraíso. Por sinal, hoje mesmo comemos<br />

um pintado no almoço, fruto de uma dessas pescarias. Você fotografou e pode levar<br />

para o seu filho, que diz ser pescador; desculpe, ele pode ouvir esta gravação e pode ser<br />

que ele não vá gostar! Mas, de qualquer maneira, quem sabe, a gente ainda vai um dia<br />

pescar juntos. E aqui é muito bom, você mesmo está vendo, é muito diferente do Nor-<br />

deste. Não quero comparar nem desfazer daquela terra seca onde nós nascemos. Mas<br />

aqui é bem melhor, é diferente, é campo.<br />

Antônio – Durante o tempo em que você foi peão, do ponto de vista político como é<br />

que você se posicionou?<br />

144


Anísio – Em primeiro lugar, eu tenho o exemplo a mostrar, que é o Sr. Idio, que está<br />

aqui ao lado. Ele nunca foi da esquerda, e sim da ala política conservadora. Trabalhou<br />

durante quantos anos e nunca chegou a ter resultados. Nem ele, nem ninguém, enten-<br />

dem? Pelo que trabalhei, era pra eu ter mais, alguma coisinha a mais. Ele, da mesma<br />

maneira. Hoje, do jeito em que está indo a situação em nosso país, a gente está no paraí-<br />

so. Mesmo reconhecendo que as coisas ficam cada dia mais difíceis, mas evoluem para<br />

melhor. Veja a crise que se abate sobre os Estados Unidos, e a gente não tem crise. Tem<br />

e, ao mesmo tempo, não tem crise. Agora, com aqueles dirigentes da direita, aquilo foi o<br />

atraso de tudo. Você vê o que se fez do Sarney pra cá. O que fez o Collor, o que fez o<br />

Fernando Henrique para o trabalhador? O Collor pegou a poupança e o Fundo de Garan-<br />

tia de muita gente. Quem tem dinheiro em poupança, no Brasil, é pobre; rico não tem<br />

dinheiro em poupança; ele bota é na aplicação financeira do banco. Ele aplica ali; aliás,<br />

agora não se aplica mais, acabou. Pelo que eu trabalhei, era para ter mais. Para você ter<br />

uma ideia, eu saí de São Paulo em 1991 e tinha uma Brasília velha. O Fundo de Garan-<br />

tia não dava para eu comprar um carro usado. E, hoje, a gente está nesse patamar em<br />

que há possibilidades para tudo, graças a Deus. Aquilo, para nós, foi um atraso. Quem<br />

era pobre, pobre era a vida inteira, e quem era rico ficava cada vez mais rico. Para se ter<br />

uma ideia, até bem pouco tempo atrás o fazendeiro vendia dez mil bois e tirava nota de<br />

apenas mil bois, e isso era praxe aqui. Faça agora! Faça agora! Tenha gado no pasto e<br />

não tenha um por um registrado lá no IAGRO! Tenha fêmea e não vacine contra bruce-<br />

lose! Bezerro, isso e aquilo, venda <strong>sem</strong> nota para ver o que lhe acontece! Tem que pagar<br />

imposto. E eu concordo plenamente, e é por isso que o país sofreu o que sofreu. Está ai<br />

seu Idio, que trabalhou a vida inteira. Coitado, só depois veio conseguir este sitiozinho<br />

aqui. Sofrendo, ganhando o dinheiro de uma aposentadoria de miséria daquele tempo e<br />

continua ganhando pouco. Dizem que a gente vai receber aqueles atrasados que foram<br />

descontados pelo governo federal. Portanto, <strong>sem</strong> sombra de dúvida, a gente está vivendo<br />

um novo momento na vida do país. Não pergunte para comerciante nem para fazendeiro<br />

não, porque eles querem ver o diabo na frente e não querem ver o Lula como presidente.<br />

Eram ricos, e cada vez mais ricos, e hoje pagam imposto. A gente vai numa loja e se<br />

não pedir nota fiscal eles não dão. E aquela nota fiscal é dinheiro para nossa saúde; e<br />

olhe que não precisamos pedir nada a ninguém, porque nós pagamos o certo, e assim é<br />

que tem que ser. Essa é minha maneira de pensar, não sei os demais como pensam...<br />

145


Antônio – Anísio, gostaria que você dissesse qual foi sua maior alegria e a sua mai-<br />

or tristeza na vida.<br />

Anísio – Quando eu comprei este sitio aqui, foi a realização de um sonho, não é? Fi-<br />

quei <strong>sem</strong> o meu carrinho, <strong>sem</strong> nada, e até para comprar este pequeno sitio o seu Idio<br />

teve que me ajudar, visto que ele tinha uns trocados a mais sobrando; e aquilo para mim<br />

foi umas das maiores alegrias. Outra alegria foi quando eu completei trinta anos de tra-<br />

balho e me aposentei. Aposentadoria baixa, porque aposentado por tempo de serviço,<br />

aqui no nosso país, não recebe nada. Não falo em você, porque você é um executivo;<br />

mas eu, Idio; eu não, porque fui metalúrgico; graças a Deus, ganhava bem naquela épo-<br />

ca, ganhava dez salários mínimos e aposentei com um bom salário, que depois foi cain-<br />

do, caindo... Dizem que a gente vai receber aqueles atrasados; estão falando, não é?<br />

Quando me aposentei, eu disse: “Hoje, eu não trabalho mais de empregado para nin-<br />

guém”. Posso trabalhar em outras atividades. Quanto à tristeza maior foi quando o Gi<br />

(Givaldo) se foi e, mesmo recentemente, o Manoel, o Zé Preto e, antes, a irmã dele.<br />

Sempre tem momentos de tristeza, mas são coisas prometidas por Deus; e a gente tem<br />

que se conformar. Porque a gente nasce, vive e morre. Feliz daquele que morre com<br />

certa idade, como é o meu caso, o seu também. Vamos dar graças a Deus e viver mais.<br />

Antônio – Qual é a mensagem que você deixa para seus filhos, seus sobrinhos, seus<br />

netos...<br />

Anísio – No nosso mundo de hoje em dia, a juventude judia muito de nós, os mais ve-<br />

lhos, com drogas, vícios. Especialmente, aqueles que têm mais condições se envolvem<br />

no mundo das drogas. Para meus filhos, peço <strong>sem</strong>pre a Deus e <strong>sem</strong>pre falo: “Vamos<br />

<strong>sem</strong>pre trabalhar com honestidade e cabeça erguida”. Lembro que o que eu tenho hoje<br />

<strong>sem</strong>pre pedi a Deus. Deus dá. Deus existe, e a pessoa que tem Deus no coração conse-<br />

gue tudo o que quer nessa vida. E o nosso país, para mim, é um dos melhores do mun-<br />

do. No Brasil, nós temos tudo, e que Deus ponha homens de coragem e mais honestida-<br />

de na administração do nosso país.<br />

146


147


Antonio Jorge Siqueira 37<br />

Cláudio – Bem, nós estamos aqui, na casa da minha mãe, Tereza, fazendo entrevis-<br />

ta com Antônio Jorge Siqueira. A primeira pergunta, Antônio, é onde nasceram<br />

seus pais, local, data, cidade, qual a atividade deles e onde eles moravam.<br />

Antônio – Pelo que me consta, meu pai nasceu no Estado da Paraíba, na região do Cari-<br />

ri paraibano, no sítio chamado Amparo, naquele tempo município de Monteiro, hoje<br />

37 Nascido aos 04 de março de 1942, na Matarina (PB). Estudou no Seminário de Pesqueira - PE (1954),<br />

em Viamão – RS (1962), em Fribourg – Suíça (1964), em Paris – (1968) e doutorou-se na Universidade<br />

de São Paulo – SP (1981). É professor da Universidade Federal de Pernambuco. Viúvo de Edilnete Sampaio,<br />

é pai de Ricardo. Entrevista realizada pelos sobrinhos da terceira geração (Ezenildo, Hélio e Débora).<br />

Igualmente, por Cláudio, Marcelo e William, da quarta geração, todos morando em São Paulo. A<br />

entrevista ocorreu em 13 de setembro de 2009, na Vila Ema. Dedico esta entrevista à memória de Edilnete,<br />

minha esposa, musa de eterna inspiração na minha vida e saudosamente lembrada pela Família Siqueira.<br />

Igualmente, a meu filho Ricardo, minha nora Regina e minhas netas, Beatriz e Júlia, na esperança de<br />

que tenham de mim um retrato de corpo inteiro e, se possível, da minha alma e do coração.<br />

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pertencendo ao município de Prata. 38 Minha mãe, no que garante minha memória, teria<br />

nascido em Panelas de Miranda, no Estado de Pernambuco. Acho que minha mãe, de-<br />

pois, veio para a Paraíba morar no atual município de Prata e foi aí onde ela conheceu o<br />

meu pai. Minha mãe era um ano mais nova que meu pai, e a data de nascimento dela<br />

não sei bem; mas era em julho, não muito distante da do meu pai. Quanto à ocupação e<br />

profissão deles, sei que <strong>sem</strong>pre viveram da agricultura familiar. O roçado e a agricultura<br />

foram a ocupação da família e do casal. Eram originários de famílias pobres, coisa mui-<br />

to comum no Nordeste rural daquela época. Cultivavam a terra, tinham um pequeno<br />

criatório e viviam da agricultura de subsistência. Soube, por meio dos meus irmãos mais<br />

velhos que, quando meu pai não se ocupava da agricultura, logo depois de casado, ven-<br />

dia fumo nas feiras, especialmente no lugarejo que é hoje a cidade de Prata.<br />

Cláudio – Acredito que eles moraram também num lugar chamado Boi Velho, que<br />

foi onde nasceu a Madia, a única que não nasceu na Matarina...<br />

Antônio – Cláudio, eu acho que Boi Velho foi o sítio onde o casal José Jorge e Verôni-<br />

ca morou logo depois de casados... A minha irmã Madia, na entrevista dela, descreveu<br />

com precisão maior – porque eu era muito criança quando saímos da Matarina para Per-<br />

nambuco – os lugares onde eles nasceram, viveram e moraram logo após serem casados.<br />

Dos meus avós paternos e maternos, eu só conheci meu avô paterno e minha vó mater-<br />

na. Os outros não alcancei vivos. Gostaria, então, de começar a falar sobre o meu avô<br />

paterno, João Jorge de Siqueira. Ele é um personagem muito marcante para mim e para<br />

toda a família. Porque ele era um agricultor muito simples e de uma personalidade bas-<br />

tante rude e forte. Lembro bem que ele era cego, pelo menos eu o conheci cego. Não sei<br />

qual a origem da cegueira, se catarata ou de outra doença degenerativa. A imagem dele,<br />

que perdura em minha memória, é a de um homem rude, muito centrado no passado<br />

dele, nas suas andanças, nas suas diversões, suas caçadas, seus cachorros. Como ele<br />

contava histórias e falava de seus cachorros de caça! Minha mãe ria e caçoava muito<br />

quando ele desfilava suas memórias de caçador “cachorreiro”, afogado nas suas memó-<br />

38 Depois foi verificado na carteira de identidade de José Jorge Siqueira – que hoje está em poder do sobrinho-neto<br />

Leonardo Siqueira, filho de José Carlos (Zé Preto) – que ele era filho de João Jorge de Siqueira<br />

e de Cândida Maria dos Prazeres. Nasceu no município de São João do Cariri, aos oito dias do mês<br />

de julho do ano de 1898. Sua estatura era de 1 m e 62 cent., cor branca, olhos castanhos claros e cabelo<br />

grisalho liso. Cf. Identidade nº 102.264, emitida pela SSP/PE, aos 16 de março de 1945. São os dados<br />

oficiais dos seus registros de nascimento.<br />

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ias pretéritas e no silêncio da escuridão dos seus olhos. Dos meus irmãos, o mais che-<br />

gado ao Tio João – era assim que nós o chamávamos – era Manoel. Inclusive era pare-<br />

cido com ele: galegão, vermelho e de olhos azuis... Tio João queria muito bem ao Ma-<br />

noel, mas também a todos os seus netos. Era impressionante o carinho que ele passava<br />

para cada um de nós. Esse detalhe é interessante, porque ele nos mimava, nos colocava<br />

no colo e jamais permitia que meu pai nos castigasse em sua presença. Quando meu pai<br />

ameaçava nos bater, ele virava um bicho, ficava todo vermelho, alterado e levantava<br />

uma bengala que ele usava para chamar a atenção do meu pai. E, evidentemente, meu<br />

pai não se atrevia a desobedecer-lhe. Esse traço de sua carinhosa relação com os netos<br />

eu não esqueço nunca. É a coisa mais marcante de minha memória na nossa relação com<br />

ele. Interessante é que ele fazia conosco exatamente o contrário do que fez com os filhos<br />

a vida toda, de acordo com o que meu pai contava. Segundo nos dizia meu pai, ele batia<br />

e muito nos filhos homens e era muito grosseiro e rude com minha vó paterna, que tinha<br />

o nome de Cândida dos Prazeres. Que nome lindo! Parece coisa de romance. Ou seja, na<br />

passagem da função da paternidade para o avunculato, ele mudou completamente, pas-<br />

sando da agressividade paterna para o trato afetivamente carinhoso do avô. Meu avô<br />

viveu seus últimos dias conosco, lá em Sertânia, e eu lembro que ele gostava imensa-<br />

mente de realizar algumas tarefas que eram condizentes com as suas limitações de vi-<br />

são. Uma delas era despalhar as espigas de milho para ser batido e ensacado ou guarda-<br />

do em grandes tonéis de zinco que existiam no armazém da casa da fazenda. Ele chega-<br />

va cedo ao armazém, cheio de espigas de milho, um paiol enorme, e sentava num tam-<br />

borete. Pegava espiga por espiga e ia dando conta de sua tarefa, <strong>sem</strong> conversar com nin-<br />

guém, somente parando na hora da refeição, que lhe era servida por minha mãe. Outra<br />

lembrança que eu tenho dele é que, em decorrência da cegueira, muitos lhe administra-<br />

vam remédios caseiros na esperança de que recobrasse a visão. Assim é que ele lavava<br />

os olhos com unguentos de folhas diversas, de catingueira, aroeira, juazeiro etc. Infu-<br />

sões e poções de água conservadas com rabos de tatu, de pebas... Aquele negócio mal-<br />

cheiroso, meu Deus! Meu pai construiu uma casinha para ele, onde poderia ficar mais à<br />

vontade. Era uma casinha ao lado da nossa, com um pote de água e uma cama, onde ele<br />

dormia à noite. Um cheiro de mijo, meu Deus! Como em nossa casa, naquela época, não<br />

dispunha de banheiros, nós o conduzíamos ao mato, junto da casa, para ele fazer as suas<br />

necessidades físicas. Era nessas horas que a gente conversava muito com ele. E como<br />

ele gostava. Isso é o meu avô e pai do meu pai. Você perguntou pelos meus avós. Vou<br />

150


falar agora das lembranças de minha vó materna, Filomena de Jesus. Os nomes dos<br />

meus avós são emblemáticos e bonitos, concordam? Nós a chamávamos de Mena (abre-<br />

viação de Filomena). Mena, também, é uma pessoa que me deixou vivas lembranças. Se<br />

assim foi, é porque ela foi muito especial para cada um de nós. Quais são as lembranças<br />

de Mena que me marcaram? Antes de tudo, Mena foi uma pessoa que gostava muito de<br />

viajar... Deslocava-se de São Francisco, lá junto da Prata, para Santa Catarina; de Santa<br />

Catarina para Santa Luzia, em Sertânia, onde era nossa casa, a casa da filha Verônica.<br />

Acho até que a Madia, minha irmã, é a neta que mais e melhor herdou da Mena aquele<br />

gosto, propensão e satisfação de viajar. Mena adorava subir e descer de caminhão na-<br />

quelas estradas poeirentas do <strong>sertão</strong>. E recordo que era um sacrifico enorme ela subir e<br />

descer aqueles caminhões que faziam a feira entre Monteiro e Sertânia repletos de fei-<br />

rantes. Ela vestia umas saias longas e tinha a bundinha meio empinada, coisa que muitas<br />

mulheres da família herdaram dela... Já, no final, quando ela se tornou mais idosa, ela<br />

acabava de chegar de uma dessas viagens e, dois dias depois, dizia que queria voltar<br />

porque estava com saudades de fulano, de sicrano ou que tinha negócios a resolver; ti-<br />

nha que ver ou falar com um e outro... Até que, um dia - e lembro isso como se hoje<br />

fosse! –, meu pai sentenciou: “Comadre Filomena, a senhora não sai mais daqui. Quem<br />

quiser lhe ver que venha vê-la aqui em casa, de onde não mais sairá!”. Ouvir aquilo de-<br />

ve ter-lhe causado um imenso desgosto e sofrimento. Explicou a ela que aquela decisão<br />

tomada era em função de sua idade e das condições difíceis dos transportes. Mena ado-<br />

rava fumar cachimbo. Enchia-o de fumo, botava fogo nele e ficava horas e horas puxan-<br />

do aquelas baforadas de fumaça... Ficava na janela olhando o mundo em redor, vendo<br />

de perto os seus distantes lugares da memória, creio eu. Usava um paninho enrolado na<br />

cabeça. Seus cabelos, apesar da idade, eram incrivelmente pretos e bem lisinhos. Esco-<br />

rada com os cotovelos na janela, a bundinha bem empinada, alternando entre um pé e<br />

outro como um pássaro nos galhos em sombra do meio-dia, ficava horas e horas. Tam-<br />

bém recordo de uma maldade que nós cometemos contra aquele anjo de ternura que era<br />

minha vó Mena. É o seguinte. Algumas vezes, ela se ressentia da falta de doce e ia ao<br />

pote de açúcar saciar um pouco aquela vontade incontida de glicose. Minha mãe, saben-<br />

do daquilo, lhe fez ver que o açúcar era para o café e que não era mais possível ficar<br />

comendo dele na hora em que ela bem quisesse. E lhe proibiu de “surrupiar” aquele<br />

mísero punhado de açúcar. Recordo que minha irmã Flora, em São Paulo, evocando um<br />

dia comigo as limitações da vida nossa no Nordeste, sentia remorso e se penitenciava<br />

151


dessa ordem que foi imposta à pobre velhinha Dona Filomena. E Flora tinha toda razão,<br />

porque eu também sentia remorsos. A precariedade da vida está mais em nós do que na<br />

própria limitação que a cerca. A partir de certo momento, recordo que Mena começou<br />

mais frequentemente a fantasiar coisas. Contava histórias meio cabeludas, via coisas<br />

que a gente não via, pouco ou nada compartilhava conosco do seu mundo, dos seus pla-<br />

nos e seus desejos. Começou a definhar. E terminou por “variar”, como se diz no <strong>sertão</strong>.<br />

Nós nos divertíamos, atribuindo a ela fatos, atos e atitudes com os quais ela muito se<br />

irritava. Meu irmão Anísio, por exemplo, dizia que a tinha visto trepada numa laranjei-<br />

ra, balançando-se nos galhos, à procura de laranjas maduras... Ela dizia, “Mentira, cabra<br />

<strong>sem</strong>-vergonha! Isto é história do cu dos cachorros!” E pai era dos que mais a atribula-<br />

vam com essas brincadeiras, apesar de ser um velho muito carrancudo. Recordo ainda,<br />

com remorsos, uma malvadeza que perpetramos contra ela, dessa feita a mando de mi-<br />

nha mãe. Ela, minha vó, foi acometida de uma grave bronquite e, pensando no bem da<br />

saúde dela, minha mãe resolveu que ela deveria parar de fumar. E nos ordenou jogar no<br />

mato o velho e saboroso cachimbo dela. Que maldade, Mena! Perdão, mas a culpada foi<br />

sua filha, Dona Verônica. Mas assumo a cumplicidade da sacanagem que fiz contra a<br />

senhora. É o preço de recordar o passado da gente.<br />

Cláudio – Essas violências se inscrevem como medidas que visavam proteger...<br />

Antônio – É, é verdade, Cláudio. Ainda um detalhe dessa memória a que eu me referia<br />

e que ia esquecendo. Mena, um dia, passou a morar na casinha que foi construída para<br />

Tio João, que falecera em consequência de uma bronco-pneumonia, lembro bem. Um<br />

dos remédios que lhe foram administrados tinha o nome de “Tussavento”. Também não<br />

sei de qual laboratório. Quando minha vó Mena faleceu, eu estava no <strong>sem</strong>inário, creio<br />

que era o de Pesqueira. Não a vi quando do seu falecimento. Recordo muito bem que,<br />

aos poucos, ela foi intensificando uma caduquice e, à noite, ela gritava e reclamava de<br />

dores, que pareciam fantasiosas. A gente se acostumou com aquilo. Muitas vezes, nos<br />

acordávamos à noite com aqueles gritos dela e, quando nos aproximávamos da casinha e<br />

falávamos, ela calava repentinamente como se nada tivesse acontecido antes. A mana<br />

Conceição cunhou uma frase sobre a morte dela que me parece muito adequada: “mor-<br />

reu como um passarinho”. E assim deve ter sido.<br />

152


Cláudio – De acordo com sua descrição e memória, seu avô Tio João era vermelho,<br />

olhos claros, a pele vermelha. Pergunto: lembra o tio Barbeiro?<br />

Antônio – Não, absolutamente não. Manoel é que o lembrava bastante. Talvez Severi-<br />

no, mas bem menos. Digo que era Manoel, sobretudo pela cor dos olhos. Meu avô era<br />

provavelmente descendente de portugueses. A família Siqueira é uma tradicional paren-<br />

tela ali do Moxotó pernambucano e do Cariri paraibano, mais precisamente de uma área<br />

contígua aos dois Estados. Já a minha vó era descendente de índios e, lembro bem, mi-<br />

nha mãe dizia que a vó dela, minha bisavó, tinha sido “pega a dente de cachorro”; um<br />

eufemismo utilizado para significar a procedência indígena ainda bravia e pouco acultu-<br />

rada. Muita gente gosta de citar a ascendência holandesa para pessoas louras do <strong>sertão</strong>.<br />

Eu acho isso uma grande besteira, porque não acredito que os holandeses de Pernambu-<br />

co, na segunda metade do século XVII, tives<strong>sem</strong> adentrado um interior inóspito e hostil<br />

aos seus hábitos e sua cultura, como é e <strong>sem</strong>pre foi o <strong>sertão</strong> do <strong>sem</strong>iárido. Além do<br />

mais, havia portugueses mais puxados para galegos do que mesmo apenas brancos. Essa<br />

é minha opinião, sabe? Nós sabemos que os holandeses, impulsionados pelos interesses<br />

da Companhia das Índias Ocidentais, ligadas ao comércio das especiarias do açúcar,<br />

tomaram de assalto, na primeira metade do século XVII, parte do Nordeste do Brasil,<br />

que era domínio da coroa portuguesa. E estavam interessados na produção e comerciali-<br />

zação do açúcar. Antes mesmo de serem expulsos do Brasil, não demonstraram interes-<br />

se no interior do <strong>sem</strong>iárido nordestino, totalmente voltado para a pecuária e uma agri-<br />

cultura incipiente e de subsistência. O que iriam fazer esses holandeses <strong>sertão</strong> adentro?<br />

Procurar índias para alívio sexual? De modo que eu acho isso mais fantasioso do que as<br />

próprias fantasias holandesas. Portanto, os olhos azuis, a brancura da pele e os cabelos<br />

louros de alguns irmãos meus, com certeza, estão mais para lusitanos do que para bata-<br />

vos flamengos. Não sei se respondi a sua pergunta.<br />

Cláudio – Sim, respondeu. E acho muito bom levar em consideração o que o se-<br />

nhor nos explicou, porque há na família certa crença que a vó Mena tivesse ascen-<br />

dência holandesa. Aproveito para fazer-lhe outra pergunta. Mesmo sabendo que<br />

você era muito criança quando mudou da Matarina para Santa Luzia, você lembra<br />

de alguma coisa?<br />

153


Antônio – Absolutamente não. Porque eu tinha apenas um ano e meio ou apenas dois<br />

anos quando mudamos para Pernambuco. O que eu sei é “de ouvir dizer” de minhas<br />

irmãs que são mais velhas que eu. Mas isso elas já disseram, não é mesmo?<br />

Cláudio – Concentrando-nos agora na Santa Luzia, peço-lhe que descreva como<br />

era a casa da Santa Luzia, cômodos, alimentação, atividades de lavar, passar, cozi-<br />

nhar, a água utilizada, a confecção de queijos... Como era o viver de criança na<br />

Santa Luzia?<br />

Antônio – De Santa Luzia, eu tenho lembrança de duas casas em que moramos. A pri-<br />

meira foi aquela onde nos alojamos quando de nossa vinda da Paraíba. Era uma casa de<br />

taipa, modesta e simples como a maioria das casas ali do lugar. Essa casa sofreu os des-<br />

gastes do tempo. Foi demolida e, recentemente, quando estive lá, na Santa Luzia, com<br />

Anísio e Hélio, vimos apenas o lugar onde era a casa e, dela, alguns restos de monturo,<br />

de barro pilado e tijolos velhos. A segunda foi a casa de alvenaria que meu pai construiu<br />

no início da década de cinquenta, onde fomos morar depois de vários anos de moradia<br />

na velha casa de taipa. É uma casa que atualmente fica à margem esquerda da BR-110,<br />

no sentido Sertânia - Monteiro. Fica a seis quilômetros de Sertânia. Da primeira casa,<br />

restam também as primeiras lembranças de minha infância. Elas são imprecisas, talvez,<br />

mas com certeza são lembranças. E quais são essas lembranças, atendendo ao rol de<br />

questões que você me colocou? A primeira delas é referente a um hábito muito arraiga-<br />

do em nossa família, que era estar todos juntos à mesa na hora das refeições. Meu pai<br />

era superexigente com relação a isso. Incutiu em nós o costume de achar muito feio al-<br />

guém frequentar a casa dos outros, principalmente na hora das refeições. Essa primeira<br />

lembrança, portanto, é a da mesa da família toda junta quando das refeições. A segunda<br />

lembrança é que vivíamos naqueles dias tempos muito difíceis, economicamente falan-<br />

do. E isso se refletia na pobreza de nossos utensílios, dos móveis da casa e na própria<br />

alimentação. Não que ela nos faltasse ou fosse pouca, mas era muito magra. A água era<br />

da pior qualidade, em função do alto teor de salinidade das várzeas no Moxotó, ao con-<br />

trário daquelas da Matarina. Na Santa Luzia, retirávamos água de uma cacimba de mi-<br />

nação que existia em frente à nossa casa, antes da passagem do rio Moxotó, na nossa<br />

várzea. Aquela água captada, uma vez colocada no pote para o consumo da casa, no dia<br />

seguinte, parece que ela apurava mais ainda a salinidade. Sentíamos mais o quanto a-<br />

quela água da cacimba era pesada na ocasião das primeiras chuvas, quando retirávamos<br />

154


água dos tanques de pedra que ficavam logo acima de nossa casa. Era água destilada. E,<br />

mesmo sendo de absoluta qualidade, não gostávamos dela ao primeiro gole, dado nosso<br />

costume com a água das cacimbas. Tínhamos perdido o gosto. Lembro que, no ambien-<br />

te daquela casa, a gente viu o nascimento de Valdeci, meu irmão mais novo e caçula da<br />

família. Não me lembro da chegada de Elias, que é mais velho que Valdeci e mais novo<br />

do que eu. E essa lembrança de Valdeci está marcada pela alegria e festa das minhas<br />

irmãs com a chegada dele. Um xodó para as irmãs. Dos cômodos da casa, lembro que<br />

ela tinha uma enorme cozinha, dois quartos, uma sala de refeições com uma janela à<br />

direita de quem entrava. Ali, junto àquela janela, ficava o pote d’água e a mesa no cen-<br />

tro da sala. E tinha a sala da frente, de forma retangular, ocupando toda a largura da<br />

casa. Essa sala tinha duas janelas frontais e uma porta principal. Além do mais, ela era<br />

próxima à estrada de barro que transitava de Sertânia para Campina Grande, onde exis-<br />

tia um terreiro no qual fazíamos nossas festas escolares; no dia sete de setembro, um<br />

grande e monumental quebra-panelas. Como a família era grande – sete homens e qua-<br />

tro mulheres - e tínhamos muitos trabalhadores para alimentar, as refeições se limitavam<br />

ao básico. O leite era mais para consumo da casa. Comia-se leite com xerém de milho<br />

ralado ou cuscuz. Não sobrava leite para o fabrico de queijo de coalho. O nosso rendi-<br />

mento financeiro estava dependendo da venda de cereais, que eram guardados de um<br />

ano a outro em depósitos de zinco, da venda do algodão – a principal renda – e dos ani-<br />

mais, vacas, garrotes, ovelhas e bodes. A carne para consumo provinha das galinhas que<br />

minha mãe criava no terreiro, do abate de bodes e carneiros e, mais comumente, do que<br />

era comprado no açougue da feira de Sertânia.<br />

Cláudio – E como e onde era comercializado isso?<br />

Antônio – Em Sertânia, que, naquele tempo, era um entreposto de compra de algodão<br />

situado entre o <strong>sertão</strong> de Pernambuco e Campina Grande, na Paraíba. Sertânia tinha<br />

firmas internacionais de comércio e de beneficiamento do algodão, como Americana<br />

Anderson Clayton – que depois teria o nome de SANBRA –, a Boxwell, firma inglesa, e<br />

outras nacionais e locais. Óbvio que a época em que meu pai vendia o algodão da co-<br />

lheita dele era um período menos indicado, em função de ser em plena safra, quando a<br />

oferta era máxima e, portanto, baixava o preço do produto. Muitos agricultores tinham a<br />

prática de vender o algodão na rama, “na folha”, como se dizia. Era em função da ne-<br />

cessidade do dinheiro e, nesse caso, era uma venda antecipada da produção, sujeita à<br />

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desvalorização do preço. Meu pai não usava desse costume, mas vendia na época pouco<br />

favorável. Não se tinha uma mentalidade de cooperativas bem- estruturadas, e as empre-<br />

sas se prevaleciam disso para aumentar seus lucros e dar continuidade a uma pobreza<br />

crônica no <strong>sertão</strong>.<br />

Hélio – Tio, em razão dessa pobreza, logo cedo, parece que vocês começavam a<br />

trabalhar em casa e no roçado. Era o vô quem determinava essa divisão de funções<br />

para a realização das tarefas? O que cabia aos meninos e às meninas?<br />

Antônio – É, essa questão é interessante. No <strong>sertão</strong>, o casal busca ser feliz, tendo filhos;<br />

e, com eles, prover as necessidades de mão-de-obra para a sobrevivência da família.<br />

Essa pergunta, Hélio, é interessante porque ela nos deixa claro que cada menino e meni-<br />

na não vivenciava a sua infância. Nós praticamente não brincávamos. Nossa atividade<br />

lúdica era muito cerceada, senão reprimida. À medida que íamos crescendo, iniciáva-<br />

mos o de<strong>sem</strong>penho de tarefas de cuidar do gado, tanger os rebanhos, levá-los para os<br />

bebedouros, ajudar na lida da casa transportando água etc. Sem falar nas pequenas en-<br />

xadas para limpar mato, nas pequenas foices e facões para cortar ração do gado, nos<br />

bornais para catar algodão, colher milho, feijão etc. A divisão dessas tarefas para as<br />

meninas e os meninos, à medida em que eles e elas iam crescendo, era atribuída em fun-<br />

ção do peso e do esforço que elas demandavam. Então, nunca vi as mulheres, lá em ca-<br />

sa, limpando mato, brocando roçado, etc. Isso era tarefa masculina, porque era pesada.<br />

As mulheres faziam o que lhes era compatível: cuidar da casa, lavar e engomar roupa,<br />

catar cereais, cozinhar, varrer terreiro etc. Durante muito tempo, todas essas tarefas<br />

masculinas e femininas não podiam ser supridas apenas pelos filhos e pelas filhas. Meu<br />

pai, então, contratava trabalhadores, que passavam a morar com suas famílias em nossa<br />

propriedade. Os trabalhadores solteiros viviam na casa da fazenda e nela se alimenta-<br />

vam, tendo inclusive roupa lavada e passada por minhas irmãs. Era um acúmulo de tra-<br />

balho para elas. A entrevista da Virgínia detalha muito bem essa azáfama caseira muito<br />

ingrata e muito dura. Acontecia época de ter mais de vinte pessoas, só em nossa casa, a<br />

quem cabia alimentar e cuidar deles. Depois, com o passar do tempo, isso foi minguan-<br />

do e terminou por se acabar por completo, já nas décadas finais dos anos sessenta. Mas,<br />

como crianças, a gente brincava pouco. Meu pai tinha um preconceito contra jogo de<br />

bola e contra a diversão de prender e soltar passarinhos... Por isso mesmo, nós não tí-<br />

nhamos tempo de brincar de bola. Quando jogávamos, era escondido dele e com bola de<br />

156


meia. Recordo que uma vez o meu irmão Severino perdeu, no chute de uma partida,<br />

uma rara bola de borracha que apareceu por lá. Ela foi se alojar no meio de uns pés de<br />

aveloz que tinha lá, onde nem o satanás passava por perto, dado o teor de toxidez do<br />

aveloz. Foi um sofrimento para ele resgatar a danada daquela bola, que nunca foi dele.<br />

Eu vim saber o que era brincar de bola quando entrei no <strong>sem</strong>inário; inclusive aprender a<br />

jogar outras coisas, como bola de gude, voleibol, etc.<br />

Hélio – Tio, outra coisa que o senhor comentou: a educação. Apesar dessa dificul-<br />

dade toda, o vô teve o cuidado de contratar uma professora para o ensino lá na<br />

fazenda. O senhor lembra os meninos e as meninas nessa época do aprendizado?<br />

Quem, entre os irmãos, teve maiores facilidades? O senhor, certamente, foi um<br />

deles...<br />

Antônio – Lembro e muito. E é um assunto que eu tenho muito apreço em falar, regis-<br />

trando essa memória com muito prazer e muita alegria. Meu pai teve muitos defeitos,<br />

mas teve também grandes virtudes. Uma dessas grandes virtudes dele e de minha mãe,<br />

que era analfabeta, foi o valor que eles deram à educação dos filhos. Minha mãe ficou<br />

analfabeta a vida inteira em virtude de um preconceito do pai dela, que dizia não colocar<br />

as filhas para aprender a fim de evitar que elas, sabendo ler e escrever, escreves<strong>sem</strong><br />

bilhetes para os namorados. Vejam só! Meu pai, já adulto, ainda fazia parte daquele<br />

contingente de analfabetos que povoava o <strong>sertão</strong>. Já adulto, ele sentia que o futuro esta-<br />

va para os que sabiam ler e escrever. Inclusive, ele tinha uma opinião muito bonita<br />

quando afirmava que o homem analfabeto era um homem cego. Ele tinha, portanto,<br />

compreensão de que uma pessoa <strong>sem</strong> educação tinha um mundo limitado, um mundo<br />

pequeno de horizontes, um mundo <strong>sem</strong> luz. Tanto isso é verdade que ele, já adulto, pra-<br />

ticamente se autoalfabetizou. Contou com a ajuda de um primo distante dele, – que foi,<br />

inclusive, meu padrinho de batismo. Trata-se de Manoel Ananias, que lhe ensinou os<br />

rudimentos da Carta do A-B-C de Laudelino Rocha. Quando meu pai voltava à noite do<br />

trabalho, treinava aquelas lições de aprender e soletrar letras, sílabas e vogais. Ele teve,<br />

portanto, uma força de vontade exemplar, aprendendo inclusive a escrever com uma<br />

caligrafia de qualidade. Como ele praticamente se autoalfabetizou, também passou a ser<br />

muito exigente nesse assunto em sua relação aos filhos, quando eles eventualmente ti-<br />

nham dificuldades na alfabetização, o que foi o caso do meu irmão Manoel e, depois, do<br />

José. Mas ele se empenhou em que todos frequentas<strong>sem</strong> a escola e tiras<strong>sem</strong> todo o pro-<br />

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veito da educação. Na Paraíba, meus irmãos e irmãs frequentaram duas escolas: a do<br />

Mestre Gonçalo, que era tio da Enedina e da irmã de Manoel Ananias, Antônia, minha<br />

madrinha de batismo. Contam que, quando os meninos e as meninas chegavam da esco-<br />

la, à noite, meu pai ia tomar as lições para checar o aprendizado e o avanço deles. Como<br />

meu pai não era professor, faltava-lhe a habilidade e a paciência do pedagogo. Rude,<br />

como ele <strong>sem</strong>pre foi, ao interrogar os filhos a seu modo, diante da evidência de que eles<br />

não soubes<strong>sem</strong>, ele ficava indignado e não poucas vezes surrava, como foram os casos<br />

de Manoel e de José. Tanto que Manoel, um dia desses, disse a ele: “Eu não quero mais<br />

nunca ir para a escola. Desisto de aprender a ler e escrever. O senhor pode me matar de<br />

cacete que eu não mais vou querer saber de escola”. E assim foi até o final da vida. Com<br />

essa atitude dele, querendo o melhor para os filhos, ele produziu o pior para alguns.<br />

Com o passar do tempo, os irmãos menores se beneficiaram do aprendizado e do exem-<br />

plo dos mais velhos, que aprenderam a ler e escrever. Eles já estimulavam, ensinavam,<br />

tiravam dúvidas, e isso facilitou a educação de grande parte dos irmãos. Em Santa Luzi-<br />

a, com o passar do tempo, e ele <strong>sem</strong>pre preocupado com o futuro de nossa educação,<br />

decidiu contratar e manter à custa nossa uma professora de Sertânia, professora leiga,<br />

Zefinha Araújo. E eu faço questão de declinar aqui o nome dela, porque foi de uma im-<br />

portância crucial para a minha vida, de meus irmãos e de muitos que passaram pelo seu<br />

magistério. Por ela passou toda essa geração de Severino, de Conceição, de Anísio, mi-<br />

nha, de Elias e de Valdeci. Dona Zefinha vinha de Sertânia a pé, ficava alojada na nossa<br />

casa, dava aulas numa escola que funcionava na propriedade e acolhia alunos de toda a<br />

vizinhança do lugar, <strong>sem</strong> custo e ônus algum para os pais de todos eles. Dona Zefinha<br />

era tratada em nossa casa como uma visita permanente, para quem se reservava o me-<br />

lhor do melhor de que dispúnhamos: da mesa, à deferência no trato. E acho que fizemos<br />

o que devíamos fazer. Nós, os irmãos daquela geração, tínhamos realmente o estímulo<br />

para o estudo e o aprendizado. Naturalmente que uns mais, outros menos, mas todos nós<br />

tínhamos um rendimento escolar animador. Severino era um dos que tinham certa difi-<br />

culdade; acho que também a Conceição. Mas tanto eu como Anísio, nos destacávamos<br />

dos demais. A pedagogia era a pior possível; era a pedagogia da régua e da palmatória.<br />

A professora nos batia nas costas com uma régua de madeira que, além de tudo, era uma<br />

tábua bem-fornida. Batia bolos em nossas mãos com uma palmatória de madeira que<br />

parecia ferro. Era a inclemência do castigo ao menor dos descuidos e das brincadeiras<br />

de crianças. Ou o castigo pelo não-saber, pelo não-aprender e pelo desleixo de criança.<br />

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Era a pedagogia do medo e das agressões. Eu não sei como é que eu logo me adaptei<br />

àquilo. É verdade que ela era uma professora muito competente, que sabia os conteúdos<br />

e os transmitia com clareza e destreza. Mas raramente ria. Era fria e pouco afetiva. Du-<br />

rante as aulas, ela nos repassava uma série de conteúdos de conhecimentos e de habili-<br />

dades de caráter religioso, moral, científico e gramatical, onde os conhecimentos e as<br />

habilidades eram testados em exercícios pontuais de tarefas, arguições, ditados e, prin-<br />

cipalmente, por meio dos temíveis “argumentos”. Esses argumentos eram feitos com<br />

todos os alunos cercando uma mesa. Arguia-se um a um. Se alguém não soubesse res-<br />

ponder, a professora perguntava ao aluno seguinte, que daria um bolo de palmatória na<br />

mão daquele que não soube responder. E, caso esse aluno não batesse com força e fir-<br />

meza, a professora iria ensinar-lhe como castigar de palmatória. Não era frequente, mas<br />

acontecia de um só aluno mais apto no aprendizado surrar de palmatória todos os cole-<br />

gas da mesa que se enrascaram na resposta a determinadas questões. Era, repito, a peda-<br />

gogia do medo, do terror e do sofrimento. E, modéstia à parte, eu pouco apanhei nesses<br />

macabros “argumentos” da escola de Dona Zefinha Araújo. Recordo, também, que bater<br />

nas mãos dos meninos não me causava tanto constrangimento quanto bater nas mãos<br />

delicadas das meninas minhas colegas. Voltando ainda um pouco à questão posta aqui<br />

por Hélio, gostaria de deixar registrado um testemunho muito pessoal. Na família, e<br />

entre os irmãos, eu <strong>sem</strong>pre fui considerado um dos alunos que melhor se adaptaram ao<br />

sistema de aprendizado da escola. Isso não significa nenhuma genialidade de minha<br />

parte, apenas dotes pessoais e um esforço bem-direcionado ao sentido da aprendizagem.<br />

Aprendia rapidamente, tinha boa memória, boa caligrafia, muita concentração, etc. Ou-<br />

tro dia, na entrevista de Virgínia, ela me dizia que uma vez Dona Zefinha dissera a ela e<br />

a meus pais que eu era um aluno muito aplicado e que escrevia tão bem e tão bonito<br />

quanto ela mesma. Caligrafia é a beleza da escrita: o desenho da letra e a sua harmonia<br />

no papel. Naquele tempo, a gente escrevia com um bico de pena – e vocês não sabem o<br />

que é isso! –, que era ensopado num tinteiro. Quando a gente ia escrever,forçava-o a<br />

derramar tinta no papel, mas tinha que ser feito com habilidade e leveza para não borrar<br />

o papel de toda a tinta que restava no bico da pena. Não era fácil, e tinha que se dosar.<br />

Não deixava de ser um aprendizado e uma arte. E, modéstia à parte, eu era bom nessa<br />

arte. Edite, minha cunhada, viúva do Barbeiro, nesse tempo era aluna e também tinha<br />

uma boa caligrafia. Esse é um dado da memória. Outro dado é o seguinte. Dona Zefinha<br />

foi uma pessoa importante para a minha vida, e eu sou muito grato a ela por tudo o que<br />

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ela me ensinou e me instruiu. O que sou hoje devo em parte a ela. Na minha vida públi-<br />

ca de professor de universidade e de educador, eu fiz questão de dizer isso apenas uma<br />

vez e num momento muito especial de minha vida de gestor e de educador. Quando da<br />

aposição do meu retrato na galeria dos diretores do Centro de Filosofia e Ciências Hu-<br />

manas da Universidade Federal de Pernambuco, fato acontecido há uns quatro anos. Eu<br />

fiz questão de declarar esse meu preito de gratidão num discurso que fiz naquele mo-<br />

mento. E o fiz conscientemente e com muita emoção. Pedi aos presentes que me descul-<br />

pas<strong>sem</strong>, mas, naquela ocasião, eu iria falar de mim, como o fez Drumond de Andrade.<br />

Eu queria, portanto, registrar esse sentimento de eterna gratidão. Quando meu pai me<br />

levou para o Seminário de Pesqueira, no ano de 1964 – eu tinha apenas doze anos de<br />

idade! –, o meu conhecimento naquele momento fora, todo ele, adquirido na escola de<br />

Dona Zefinha. E, claro, havia um descompasso com os conteúdos dos currículos das<br />

escolas estaduais e municipais. Ela, já dis<strong>sem</strong>os, era uma professora leiga. Nesse senti-<br />

do, havia conteúdos que nós sabíamos e que os alunos das escolas públicas não sabiam.<br />

Mas acontecia também o inverso. Ao chegar ao <strong>sem</strong>inário, meu pai e eu fomos encami-<br />

nhados para falar com o bispo da Diocese de Pesqueira, que era Dom Adelmo Machado.<br />

Lá chegando, meu pai se apresentou e disse dos motivos de sua vinda a Pesqueira em<br />

minha companhia. O bispo nos recebeu e mandou que eu sentasse numa cadeira ao lado<br />

dele. E me entregou um livro aberto, pedindo que eu lesse em voz alta. Comecei a ler e,<br />

logo nas primeiras linhas, ele mandou parar, porque viu que eu lia com desenvoltura.<br />

Em seguida, me perguntou como se chamavam as partes iguais de uma laranja cortada<br />

em quatro partes. E se a laranja fosse cortada apenas em três partes, como se chamaria a<br />

parte maior e as duas menores... E por aí foi. Eu não titubeei em momento algum. De-<br />

pois, fez algumas perguntas de cunho religioso e referentes ao credo da igreja católica.<br />

Se o que Dona Zefinha me ensinou na escola estava certo, eu devo ter acertado tudo. O<br />

fato é que fui encaminhado ao <strong>sem</strong>inário para cursar a quarta série primária. Foi o meu<br />

primeiro vestibular ao mundo de conhecimentos, fora o que o <strong>sertão</strong> de Dona Zefinha<br />

me ensinou. Quando comecei a frequentar o quarto ano primário do <strong>sem</strong>inário – que era<br />

uma escola exigente e da melhor qualidade –, eu senti uma enorme diferença do meu<br />

nível de conhecimentos. Havia muitas coisas que eu não sabia, porque não me fora en-<br />

sinado e me cobravam esse conhecimento. E havia também muitas coisas que eu sabia,<br />

mas não me perguntavam dessas minhas habilidades. Eu não tive outra escolha. Tratei<br />

de estudar com afinco para me nivelar aos demais e tirar sarro deles quando se tratasse<br />

160


de um conhecimento que só eu sabia. Máximo Divisor Comum, na época, era uma ope-<br />

ração matemática que só eu sabia na classe, e isso mediante de uma técnica diferenciada<br />

que Dona Zefinha nos passara. Aquela defasagem me estimulou muito a estudar e a me<br />

superar nas minhas limitações. Porque quem não sabia era gozado pelos demais, e eu já<br />

tinha muito amor próprio dentro de mim para me submeter àquela humilhação. Eu <strong>sem</strong>-<br />

pre dizia para comigo mesmo que tinha de saber igual aos meus colegas, mas, se che-<br />

gasse a saber um pouco mais, já seria a glória. E fiz <strong>sem</strong>pre assim na vida, até hoje. No<br />

final do ano eu fui aprovado nas matérias, penando em algumas delas, é claro, mas pas-<br />

sei para a turma do curso de Admissão ao curso ginasial. Fiz esta longa digressão para<br />

que fique claro que me seria impossível galgar aqueles degraus da minha formação de<br />

garoto e de rapaz <strong>sem</strong> a contribuição que me foi dada por Zefinha Araújo. Ela me per-<br />

mitiu perceber os horizontes da vida que podiam ser alcançados trilhando as veredas<br />

que ela nos apontou. O lado lúdico de nossa infância foi muito prejudicado. Na escola,<br />

lá em Santa Luzia, nossa maior festa era o quebra-panela, que Dona Zefinha patrocinava<br />

no dia sete de setembro. Uma panela de barro, cheia de confeitos, era dependurada nu-<br />

ma corda, que era esticada de um lado a outro do nosso terreiro. Vedavam os nossos<br />

olhos e, de cacete na mão, cada um tentava estourar a panela de ouro, o que não era na-<br />

da fácil. Quando acontecia de acertar a panela e quebrá-la, era um festival de poeira que<br />

levantava, cada um de nós catando as balas e os confeitos que podia. Mas era um dia de<br />

festa...<br />

Hélio – Tio Antônio, como o senhor já falou da importância que o vô dedicava à<br />

educação, eu pergunto se, com o passar do tempo, vocês notaram uma mudança<br />

dele no modo rude de se relacionar com vocês, ou continuou sendo <strong>sem</strong>pre a mes-<br />

ma pessoa?<br />

Antônio – Meu pai não mudou. Sempre foi a mesma pessoa dedicada à família, prove-<br />

dor do nosso sustento alimentar e das demais necessidades; mas continuou <strong>sem</strong>pre a<br />

mesma pessoa: rude, intransigente, reservado, mas só com os filhos... Ele só veio mudar<br />

quando todos e cada um de nós nos tornamos adultos, e aí, sim, houve uma inflexão na<br />

relação dele conosco. Isso se acentuaria mais ainda na medida em que os filhos saíam de<br />

casa buscando viver a sua vida, cada um a seu modo. Ao final da década de cinquenta,<br />

toda a minha família havia migrado. A maioria para o Sudeste, na direção de São Paulo,<br />

inclusive eu, que já vivia fora de casa, desde o ano de 1954 e, no final da década de cin-<br />

161


quenta, estava estudando no Rio Grande do Sul. Com essa diáspora ele começou a ser<br />

mais brando e compreensivo. Passou a se abrir mais com a gente, conversando mais,<br />

ouvindo mais, ponderando mais e não apenas dando ordens e gritos, como ele habitual-<br />

mente fazia. Quando falo do meu pai, ressalto que minha mãe era muito diferente, e<br />

essas diferenças faziam a diferença a nosso favor. Era uma pessoa doce, bem-humorada,<br />

alegre, otimista, confiante, batalhadora. E nos passava com muita facilidade o sentimen-<br />

to do benquerer aos filhos, coisa que Zé Jorge raramente fazia ou o fazia com muita<br />

dificuldade. A gente deduzia, sim, o seu amor por nós e só conseguíamos fazer isso com<br />

a idade madura. Ainda bem. Mas, sabemos que não existe uma única forma de amar<br />

nem de declarar o amor. Isso se constitui de infinitas possibilidades. O ser humano é<br />

assim mesmo. Minha mãe, quando nos castigava, usava de “cocorotes” na cabeça, mas<br />

aquilo nunca doía. Zé Jorge não abria guarda; quem, na casa, dependesse, dele tinha de<br />

trilhar as suas veredas e fazer as suas vontades. Lembro que algumas vezes, quando ele<br />

ficava contrariado com alguma coisa ou acontecimento, ele fazia o que nós, na época,<br />

chamávamos de “sermões”. Horas e horas destilando suas mágoas e preocupações. Ba-<br />

tia com o dedo indicador na mesa e dizia: “Vocês vão ver o que vai acontecer!...” Mas<br />

ele foi muito doce e paciente num momento delicado da vida dele, na fase terminal de<br />

um câncer no intestino. Lembro que todos da família vieram a Sertânia para se despedir<br />

dele e, com os filhos, veio a maioria dos netos e netas. Em determinado momento, havia<br />

certo tumulto na casa. E eu me preocupava com aquele barulho meio excessivo. Ele,<br />

então, me dizia com uma paciência inaudita: “Deixa, meu filho, deixa-os falarem, isso<br />

me faz bem!”. Esse é um sinal de que tudo na nossa vida muda, cedo ou tarde, apesar de<br />

nossas resistências.<br />

Cláudio – É, exatamente. Há uma afirmação do Anísio, no depoimento dele, que<br />

diz “pai era daquele jeito, mas tinha o seu lado bom”. Não vou nem mais pergun-<br />

tar o que ele quis afirmar com essa frase, mas fica aí o registro insuspeito do seu<br />

irmão. No seu depoimento, você falou que ele não gostava que se caçasse. Mas nós<br />

sabemos que as crianças gostam de brincar, caçar de estilingue... Você chegou a<br />

caçar passarinho alguma vez?<br />

Antônio – Não, ele não gostava que nós jogás<strong>sem</strong>os bola e desestimulava as nossas<br />

atividades lúdicas próprias da meninada naquela idade da infância. Caçar, não! Até por-<br />

que ele era um exímio caçador. É aí que eu tento responder a sua pergunta. Na nossa<br />

162


família, existiam irmãos que eram bons caçadores... 39 E havia outros que não eram ca-<br />

çadores ou eram péssimos caçadores. Eu mesmo nunca me aventurei a caçar nem mes-<br />

mo uma formiga. Também, nem tempo tive de exercitar isso, porque fui para o <strong>sem</strong>iná-<br />

rio com doze anos de idade. Os exímios caçadores eram Manoel, Anísio e, até certo<br />

ponto, José. Anísio era bom no tiro e no estilingue, que nós chamamos, lá no Nordeste,<br />

de “baleadeira” ou, simplesmente, de “baleeira”. Na entrevista de Anísio existe um<br />

pormenor relativo ao seu “début” no mundo das armas. Um quase acidente com o mau<br />

manuseio dele com uma das espingardas de meu pai. Vale conferir o depoimento hilari-<br />

ante e insuspeito dele com relação a esse acontecido. José gostava de caçar à noite, uti-<br />

lizando-se de cachorros na caça a pebas, tatus e gambás, que lá chamávamos de “tica-<br />

ca”. O mano José Barbeiro era o “cachorreiro” da família e um grande caçador notur-<br />

no. 40<br />

Cláudio – Antes de entrar nessa etapa de sua vida ligada ao <strong>sem</strong>inário, que nós<br />

iremos retomar daqui a pouco, para além desse assunto das caçadas, gostaria de<br />

saber o que significa “tanger gado”. Como exímio e errante boiadeiro do Moxotó,<br />

comente uma afirmação do seu irmão Anísio que dizia: “Aliás, você era o meu<br />

companheiro nessa tarefa de tocar o gado e ir atrás da criação. Por sinal você xin-<br />

gava; uns dizem que era por conta da preguiça, e outros pelo fato de chupar o dedo<br />

polegar”. Você lembra-se disso aí? Conta pra nós...<br />

Antônio – Lembro, lembro muito bem. Desde pequeno, adquiri o hábito de chupar de-<br />

do. Eu e José, meu irmão. Isso, Freud certamente explica muito mais do que a memória<br />

familiar. A gente sabe que a sucção de dedos aponta para uma carência, talvez a carên-<br />

cia da mamadeira e, mais ainda, do seio da mãe. Mas eu não quero me aventurar nesses<br />

39 Antonio - Nesta altura da entrevista Cláudio interrompe minha fala para me mostrar um bodoque (instrumento<br />

de caça) que lhe foi dado pelo seu avô, Zé Guilherme, esposo da Madia. O próprio Zé Guilherme<br />

foi quem confeccionou o tal bodoque, numa de suas visitas lá ao <strong>sertão</strong> de Pernambuco. E Claudio o<br />

tem como uma relíquia da memória e das habilidades do seu avô paterno.<br />

40 Cláudio interrompe para dizer que viveu a sua infância e juventude morando ao lado do tio José - o<br />

Barbeiro - e lembra que ele lhe contava muitas histórias dessas caçadas de tatus e pebas, utilizando ca-<br />

chorros amestrados nessa tarefa. Ressalta essa qualidade do tio a seu filho Ezenildo, o famoso “Cacá”, e<br />

demais sobrinhos presentes nesta entrevista.<br />

163


labirintos do meu inconsciente sertanejo. Prefiro tratar do consciente de minha memó-<br />

ria, mesmo sabendo que a nossa memória é seletiva. Quanto ao “tanger gado”, isso re-<br />

mete à pecuária que a família praticava. Nós criávamos bode, ovelha e gado leiteiro. A<br />

caprinocultura foi a primeira que meu pai abandonou, dada a vulnerabilidade do bode às<br />

doenças e, também, porque é difícil manter o bode e a cabra circunscritos a um espaço.<br />

Eles fogem com facilidade, pulando cerca, fazendo buracos nas cercas, o que muito irri-<br />

tava meu pai quando sabia que a criação dele havia invadido o terreno das pessoas vizi-<br />

nhas a nós. Optamos por criar gado e ovelha, esta última por ser mais dócil e mais fácil<br />

de manejar. Nós tínhamos as vacas de leite, com os bezerros, e o gado solteiro, que meu<br />

pai vendia com mais frequência. Não tínhamos o hábito de fazer abate de gado para<br />

consumo caseiro de carne. Eram mais os carneiros e, na época, os bodes. Manoel <strong>sem</strong>-<br />

pre foi o exímio abatedor de carneiros e bodes para o nosso consumo. Quanto ao gado,<br />

havia duas preocupações principais, aliás, três. Uma era tirar o leite, serviço pesado e<br />

que exigia apartação dos bezerros com relação às vacas leiteiras. A outra era conduzir<br />

essas vacas ao pasto, de onde deviam sair, à tardinha, para beber e serem separadas dos<br />

bezerros para serem ordenhadas na manhã seguinte. Finalmente, a terceira, era ter al-<br />

guém para tanger esse gado, seja para o pasto, seja para a bebida, seja para a apartação<br />

do leite. Acontece que o pasto do gado ficava num extremo da nossa propriedade, e o<br />

bebedouro, no outro. O pasto se fazia nos espaços de revezamento para ser poupado. O<br />

bebedouro era o único lugar da propriedade onde existia água de minação permanente.<br />

E ficava nas margens da BR 110, na vizinhança da propriedade de Chico Félix, um dos<br />

nossos vizinhos. É aqui que entra essa história de “tanger gado”. Para trazer o gado para<br />

beber, no final da tarde, era preciso ter um tangerino que retirava e retornava ao mesmo<br />

lugar do pasto. E, no dia seguinte, levava as vacas leiteiras para o lugar do pasto onde se<br />

encontrava o restante do gado. E assim, sucessivamente, dia após dia, <strong>sem</strong>ana após se-<br />

mana, mês após mês. Era uma tarefa por demais monótona para um garoto de oito ou<br />

nove anos, trilhando o mesmo caminho todos os dias... Subindo e descendo atrás de<br />

gado, naquela poeira do <strong>sertão</strong> seco e quente, naquele passo lento do gado... Aquilo<br />

nunca foi uma tarefa estimulante. Se é preguiça, não sei; sei apenas que era sacal por<br />

demais. Anísio parece que não reclamava tanto e fazia aquilo com mais tranquilidade do<br />

que eu. Fiz isso nos dias de minha infância, e digo com sinceridade: limpar mato, catar<br />

algodão e tanger gado não foram minha praia; decididamente, não era mesmo. Hoje,<br />

quando acontece de ir a Sertânia, gosto demais de rever aqueles caminhos, trilhar aque-<br />

164


las veredas que tanto me enfadavam. E fazer isso me dá muita alegria e muita saudade.<br />

Mas, hoje, o momento é outro. E ver para recordar é <strong>sem</strong>pre melhor do que fazer por<br />

obrigação, como era o meu caso.<br />

Cláudio – Ainda nos reportando à infância, gostaríamos que, se possível, o senhor<br />

nos contasse com toda riqueza de detalhes algo que o entrevistador aqui tem muito<br />

em conta, porque mexe um pouco com ele. Trata-se das festas juninas preparadas<br />

pelo vô Zé Jorge, na fazenda Santa Luzia, festas essas de que meu pai, Givaldo,<br />

falava muito e das quais ele nunca se esqueceu...<br />

Antônio – No <strong>sertão</strong> da minha memória de família, havia duas festas importantes e<br />

marcantes. Havia os festejos de São João, no mês de junho. É na época de inverno,<br />

quando a natureza se veste do verde das plantas e também é uma época de fartura, oca-<br />

sião em que, dependendo dos invernos favoráveis, havia fartura de milho verde, de can-<br />

jica, de pamonha, de melancia, jerimum, melão, feijão, etc. E era, geralmente, uma épo-<br />

ca de muito frio no <strong>sertão</strong>, se é que se pode falar de frio naquele lugar. A outra oportu-<br />

nidade de festa eram as cantorias que se faziam em cada casa grande. Meu pai adorava<br />

convidar cantadores de viola. A casa se iluminava e se enchia de convidados. Nós tive-<br />

mos um primo legítimo, Firmo Batista, filho de uma tia,irmã de minha mãe, que era um<br />

grande poeta e repentista da viola. Ele gostava de passar lá em casa para visitar minha<br />

mãe e trazia consigo grandes violeiros e poetas de cordel, como Lino Pedra Azul, Antô-<br />

nio Marinho e outros. No entanto, a grande festa era mesmo a noite junina. Naquele<br />

tempo, se festejava também São Pedro com fogueiras acesas. Mas o pobre do São Pedro<br />

ficava na rabeira do santo senhor São João. Como dizia, era a noite da fartura, da barri-<br />

ga cheia e das comidas de milho; milho cozido e, sobretudo, milho assado na brasa da<br />

fogueira. Era a noite lúdica por excelência. As pessoas tomavam-se como compadres e<br />

comadres de fogueira, invocando São João. Tentavam adivinhar o futuro de sua vida<br />

amorosa e afetiva, buscando ver na água de uma bacia, junto à fogueira, o rosto da pes-<br />

soa amada. Era a noite dos estrondos e pipocos dos fogos, dos foguetões, dos rojões e<br />

das inofensivas “chuvinhas”. Os mais comuns e acessíveis eram os “peidos-de-velha”,<br />

os “busca-pés” e as “bombas”. Todo esse material a gente comprava no fabrico de pól-<br />

vora dos irmãos Luiz e Manoel Fogueteiro, parentes da Dona Zefinha, que moravam em<br />

Sertânia, na Rua Velha, ao lado da igreja matriz. Mas, acima de tudo, a noite junina era<br />

a noite dos grandes forrós, especialmente para os mais moços. Lembro que, ainda meni-<br />

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no, antes mesmo de entrar no <strong>sem</strong>inário, acompanhei meus irmãos mais velhos em bus-<br />

ca de alguns forrós, ali pelo Sítio de São Francisco. Meu pai nunca fazia forró em nossa<br />

casa. Tinha medo de a rapaziada se exceder na cachaça. Mas, quando não as tínhamos<br />

em casa, a gente procurava. Na Serra do Jabitacá, no sítio dos Campos, tinha um forró<br />

famoso. E era o autêntico forró pé-de-serra, regado a cerveja quente, cachaça e muitas<br />

cabrochas bonitas, tendo como piso um chão de barro batido e por luminária a luz do<br />

candeeiro, além das labaredas da fogueira, naturalmente. Havia as pessoas corajosas que<br />

pisavam o braseiro da fogueira de pés descalços. A gente acreditava que era milagre de<br />

São João. Bons tempos. Esses tempos de fartura se contrapunham aos tempos de penú-<br />

rias e dificuldades do resto do ano, com certeza. Existia também a festa de fim de ano,<br />

na cidade, ou mesmo da padroeira da cidade, no dia oito de dezembro, época de primei-<br />

ra comunhão, que a nossa escola preparava sob os cuidados de Dona Zefinha. Mas,<br />

comparando com o São João, era uma festa chata: festa de cidade, celebrada à noite,<br />

onde nós nos aborrecíamos com o sono e a falta de dinheiro para nos divertir. Passáva-<br />

mos o tempo até a missa de meia-noite, ouvindo aqueles postais sonoros intermináveis.<br />

Sem esquecer que tínhamos de andar uma légua – seis quilômetros - de ida para a cida-<br />

de e outra légua de volta para casa, de noite, com sono e ressacados. Aquilo era o mun-<br />

do da cidade, não era nosso mundo. Era um mundo estranho. Festa por festa, melhor era<br />

mesmo a do São João.<br />

Cláudio – Perfeitamente. Pergunto se o senhor não chegou a conhecer aquele gru-<br />

po musical formado pelo meu bisavô, o velho Guilherme, na zabumba; pelo Duda,<br />

no pífaro, e pelo Zé Guilherme, meu avô, no triângulo? Isso, para desespero de<br />

Mãe Velha, que discordava daquela prática boêmia do marido...<br />

Antônio – Lamentavelmente, não os conheci. Conheci Duda, Zé Guilherme. Soube que<br />

seu Guilherme, o pai dele, tocava uma rabeca... Mas não os conheci como grupo musi-<br />

cal. Deviam ser os boêmios do <strong>sertão</strong> da Matarina. 41<br />

Marcelo – Tio, agora é o Marcelo que vai fazer algumas perguntas para o senhor.<br />

Lembra de alguma música marcante do seu tempo de infância?<br />

41 Na sequência da entrevista, os entrevistadores fizeram uma sonoplastia, tocando uma música da Banda<br />

de Pífanos de Caruaru, do Mestre Vitalino, importada por Cláudio pela internet.<br />

166


Antonio – Lembro, sim. Foi a música de uma daquelas noites de festa de Sertânia a que<br />

me referi; um “postal sonoro”, como se chamava na época, que tocou a noite inteira no<br />

serviço de som da cidade por encomenda de um namorado para o seu eterno amor. En-<br />

tranhou na memória minha até hoje; entre outras coisas, por ser uma música muito boni-<br />

ta e que eu ainda hoje gosto muito. Chama-se “Dez Anos”; era uma versão de Lourival<br />

Faissal, da composição original de Rafael Hernandez, e que se intitulava em espanhol<br />

“Diez Años”. Puro glamour da época. No Brasil, ela foi interpretada por Emilinha Bor-<br />

ba, e os leitores podem acessar a internet no site www.letras.mus.br que vão ouvir o<br />

original de Emilinha. Anos depois, ela foi relançada, em 1979, por Gal Costa. A letra<br />

era mais ou menos assim: “Assim se passaram dez anos, <strong>sem</strong> eu ver teu rosto, <strong>sem</strong> olhar<br />

teus olhos... Foste meu primeiro amor!” Eu acho que não é por acaso que fixei essa mú-<br />

sica em minha memória; afinal, ela trata mesmo é das minhas lembranças no tempo:<br />

“Assim se passaram dez anos”. Fala da noite, a minha noite de festa: “Recordo quando<br />

a noite abriu seu manto, e o canto daquela fonte nos envolveu”... Faz referência à mi-<br />

nha sonolência de menino enfadado: “O sono fechou meus olhos, me adormecendo” É,<br />

ela é mesmo um troféu de profundas recordações... “Recordo, junto a uma fonte nos<br />

encontramos”, cantava a música. Estou respondendo a sua pergunta. Outra música que<br />

me marcou foi a do cancioneiro de Luiz Gonzaga, que eu ouvi cantada por ele mesmo<br />

numa de suas visitas ao Seminário de Pesqueira. Chama-se “Açucena Cheirosa”. Lem-<br />

bro que foi a primeira vez que vi e ouvi Luiz Gonzaga, e isso foi lá pelos anos de 1954-<br />

55. Essa música tem, igualmente, uma letra muito poética e de grandes recordações.<br />

“Quem quiser comprar, // eu vendo açucena cheirosa do meu jardim // vendo cravo,<br />

vendo lírio // não vendo uma rosa que deram pra mim”. E, mais adiante: “há tantas<br />

estrelas no céu // nas noites de São João // há festa nesses teus olhos // há fogo no meu<br />

coração”. O velho Lua ainda era moço – não tinha tanto prestígio naquela época –, e vê-<br />

lo tocar na sua sanfona, cantar com aquela voz marcante, impressionou a minha alma de<br />

menino. Eu não passava dos doze ou treze anos. Era um pintote adolescente. Já na mi-<br />

nha juventude, as músicas de sucesso eram aquelas que a gente ouvia nas férias, porque<br />

no <strong>sem</strong>inário não se ouvia tanto músicas da época; era um ambiente bastante filtrado<br />

pelos padres para não nos desviar da vocação. Em Sertânia, faziam muito sucesso Or-<br />

lando Silva e Anísio Silva: “Quero beijar-te as mãos, minha querida”... Tinha a música<br />

“Índia” cantada pela dupla Cascatinha e Inhana... Em João Pessoa, eu já era rapazinho,<br />

ali eu lembro que se ouvia muito os sucessos de Miltinho: “Menina-Moça” e “Ninguém<br />

167


É de Ninguém”... Lá pelos finais dos anos cinquenta, existiam duas músicas que eu e<br />

minha geração ouvíamos muito: “Diana” e “Only You”, esta última do conjunto ameri-<br />

cano “The Platers”. Essas são as músicas da minha adolescência.<br />

Marcelo – E na infância e adolescência, quais eram as comidas que lhe trazem<br />

lembranças?<br />

Antônio – Na minha infância, no <strong>sertão</strong>, o que se comia era o trivial feijão, farinha de<br />

milho – farinha de mandioca era um luxo! –, xerém com leite, cuscuz de milho ralado e<br />

um pouco de mistura, que geralmente era carne, ovos fritos e galinha. Na espoca de in-<br />

verno, comia-se pamonha, canjica e milho assado e cozido, que eu gostava muito. A<br />

comida era temperada com coentro e cebolinha. Frutas, só as da nossa lavra: banana<br />

comprida, fruta de palma, no verão; manga e melancia, no inverno. Arroz só se comia<br />

nos dias de festa. Bebida, no <strong>sertão</strong>, lá em casa, era água do pote. Guaraná, quando se ia<br />

à cidade. E cerveja quente, nos dias de grandes festas na casa. Só. Já na minha adoles-<br />

cência, como eu vivia no <strong>sem</strong>inário, minha alimentação era a que o <strong>sem</strong>inário servia.<br />

Uma comida muito caseira, especialmente no Seminário de Pesqueira, feita por Dona<br />

Maria, irmã do reitor, Monsenhor Augusto Carvalho. Ao citar o nome dela, gostaria de<br />

lhe fazer uma homenagem. Ela era, no <strong>sem</strong>inário, a nossa mãe. Cozinhava para nós, nos<br />

tratava quando adoecíamos, nos administrava remédio e nos mimava com sorvetes, do-<br />

ces e frutas. Coisa de mãe de uma grande família. A cozinha de Dona Maria era, de ma-<br />

nhã, mungunzá ou papa de aveia, café com leite, uma banda de pão na manteiga. No<br />

almoço, era arroz, com bife de caçarola e uma fruta. À noite, era uma suculenta sopa,<br />

café e pão. Havia os lanches, no meio da manhã e no meio da tarde, que geralmente era<br />

banana ou um pedaço de rapadura. No Seminário de João Pessoa, a alimentação nossa<br />

era preparada por irmãs religiosas. Aí a coisa mudava completamente, porque era comi-<br />

da feita para um batalhão de pessoas e deixava muito a desejar. Mas, mesmo assim, co-<br />

mia-se decentemente. Inclusive peixe (atum), uma vez por <strong>sem</strong>ana. E havia lanche tam-<br />

bém, geralmente goiabada com biscoitos. No Seminário de Viamão, foi a minha pior<br />

fase alimentar, porque foi onde eu comi a pior alimentação. Lá no Rio Grande do Sul, a<br />

cozinha do <strong>sem</strong>inário era confiada a umas irmãs franciscanas, de origem alemã. Era<br />

uma cozinha alemã bastarda. Sabe-se que o alemão não tem na alimentação dele o forte<br />

de sua especialidade. Come-se mal. E, lá, era pior porque não era nem Alemanha e mui-<br />

to menos Brasil. O padrão alimentar era aquele das colônias alemãs do interior do Rio<br />

168


Grande. Um horror. E eu sofri com aquilo. Perdi peso, cheguei a pesar apenas cinquenta<br />

e sete quilos. Dava graças a Deus quando íamos a Porto Alegre visitar algumas famílias<br />

católicas, que nos davam um almoço na base de uma alimentação menos alemã. É o<br />

caso de Dona Hilda e Germano Ruppenthal, um casal gaúcho, de Porto Alegre, que nos<br />

acolhia com muita fidalguia. Na Suíça, em Fribourg, foi onde eu descobri que era suba-<br />

limentado e passei a comer como gente de primeiro mundo, até porque, lá, a cozinha é<br />

de tradição francesa. Aí, já viu... Engordei logo e passei a adorar batata-inglesa, que, até<br />

então, eu odiava. A batata é a base da alimentação em muitos países da Europa, caso da<br />

Alemanha e da Suíça.<br />

Marcelo – Falando em juventude, tio, teve alguma namoradinha nessa fase?<br />

Antônio – Essa é uma pergunta que, se eu responder, vou trair e decepcionar meio<br />

mundo (muitas risadas). Namorada mesmo, não. Eu estudava no <strong>sem</strong>inário, e a vigi-<br />

lância dos padres e o meu próprio “superego” eram muito fortes para fazer uso desse<br />

direito. Honestamente, eu pretendia me ordenar padre, e namorar abertamente ia de en-<br />

contro a esse ideal de vida. Até porque as pessoas iriam ficar sabendo disso. Agora, nas<br />

minhas fantasias e no meu coração, namorei algumas, afinal eu era um garoto de carne e<br />

osso. Não vou citar aqui o nome delas para não criar uma intriga e uma celeuma entre<br />

essas musas que ainda hoje devem estar vivas por este Brasil afora. Algumas delas de<br />

modo meio platônico, como se diz; outras, por correspondência, ocasião em que a gente<br />

trocava algumas delicadezas. Carta é um perigo! Era, ou pelo menos foi naquela ocasi-<br />

ão. Eu decidi namorar pra valer no momento em que desisti de me ordenar padre.<br />

Cláudio – Já que estamos falando nesse assunto de padre, poderia responder<br />

quando e por que decidiu ser padre, quanto tempo viveu em <strong>sem</strong>inários e mostei-<br />

ros, qual a ordem religiosa a que pertencia, até onde chegou nesse ideal e o que<br />

realmente o fez desistir? Tem mais. Pelos <strong>sem</strong>inários em que passou, quais as lem-<br />

branças que o remetem a lembrar de Pesqueira, de João Pessoa, Viamão e outros<br />

<strong>sem</strong>inários? E, finalmente, quando desistiu de se ordenar e como essa notícia foi<br />

recebida no seio da família?<br />

Antônio – Puxa, é meia vida! Vou tentar resumir e lhe peço que não deixe escapar al-<br />

gumas das questões que você colocou. O que me levou a querer ser padre e quando?<br />

Lembro que eu era pequeno, com nove ou dez anos, e, um dia, em Sertânia, fui levado a<br />

169


umas missões e visitas pastorais que se realizavam pela diocese na paróquia, onde era<br />

vigário o monsenhor Urbano de Carvalho. O bispo da Diocese de Pesqueira era Dom<br />

Adelmo Machado. Lembro que, naquelas missões, vendo e ouvindo os padres pregarem<br />

e celebrarem missa, a vestimenta episcopal do bispo chamou minha atenção. Uma bati-<br />

na vermelha, com uma cruz peitoral de ouro, um solidéu na cabeça e muito cortejado na<br />

cerimônia litúrgica. Eu fiquei encantado com aquilo, talvez porque todo aquele ritual<br />

fosse totalmente diferente de tudo o que eu conhecia no meu mundo de menino do ma-<br />

to. E pensei comigo: eu vou ser um padre para depois ficar bispo. Botei aquilo na cabe-<br />

ça. Acho que tudo isso está associado à minha decisão. Mesmo inconscientemente, eu<br />

estava vendo ali uma oportunidade de canalizar minha habilidade para o estudo, algo,<br />

sim, de que eu já tinha consciência. Estudando para ser padre, eu arquivaria de uma vez<br />

por todas a minha pouca inclinação para a vida do mato, que eu não gostava e que me<br />

dava a fama de ser um preguiçoso entre os irmãos. Ali se desenhava para mim uma<br />

grande oportunidade de realizar meus desejos de aprofundar os estudos, abrindo novos<br />

horizontes, mais amplos que aqueles do pequeno mundo da Santa Luzia. Recordo va-<br />

gamente que, ainda menino, isso era objeto de minhas divagações e de fantasias com<br />

relação ao meu futuro. Passei pelos diversos <strong>sem</strong>inários que frequentei nada menos que<br />

quatorze anos ininterruptos. Subsidiando um pouco mais sua pergunta, eu diria que me<br />

lembro ainda hoje do momento de minha chegada no Seminário de Pesqueira. Eu era<br />

um garoto de 12 anos de idade. No dia sete de março de 1954, eu adentrei aquele <strong>sem</strong>i-<br />

nário levado por meu pai. E, ainda hoje, recordar isso me dá muita emoção, porque foi<br />

um momento singular na minha vida. Eu saira de casa cedinho, antes do sol nascer, e fui<br />

a pé, com meu pai, a fim de tomar em Sertânia uma “Marinete” (pequeno ônibus–carro-<br />

lotação) que nos levaria a Pesqueira, onde chagamos por volta das dez horas da manhã.<br />

Dessa saída, tenho bem presente na memória minha mãe, ainda escuro, na porta da casa,<br />

com um candeeiro na mão, me vendo aos poucos desaparecer no caminho para Sertânia.<br />

Essa lembrança do olhar de mãe que vê o seu filho se afastar me marca profundamente.<br />

É como se eu estivesse me desvencilhando do mundo restrito, embora seguro, da casa e<br />

da família para um mundo desafiador, imensamente novo e diferente daquele da família.<br />

Um mundo que estava à minha mercê. Eu era igual, naquele momento, aos meninos do<br />

romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Jogado num mundo totalmente diferente,<br />

onde a realidade das coisas me era desconhecida e até certo ponto elas me pareciam<br />

misteriosas. Esse sentimento muito vivo invadiu minha alma de moleque sertanejo do<br />

170


Moxotó pernambucano. Volto à sua outra pergunta: quanto tempo e quais os <strong>sem</strong>inários<br />

e mosteiros que frequentei. O primeiro deles foi o <strong>sem</strong>inário de Pesqueira, efetivamente<br />

um momento de grande impacto para um garoto que <strong>sem</strong>pre viveu na roça, junto dos<br />

pais, com uma família muito unida. Lá me encontrava sozinho, junto de outros meninos,<br />

longe de minha mãe e dos meus irmãos. Um mundo onde o cotidiano era rígido e bem-<br />

demarcado. Hora para deitar, hora para levantar, hora de asseios, de banho, de jogos, de<br />

engraxar sapatos, de assistir aulas, de recreação, de rezar e, sobretudo, hora de estudar,<br />

que subentendia momentos de absoluto silêncio. Andávamos em filas indianas no inte-<br />

rior do <strong>sem</strong>inário para o refeitório, para a capela, para o dormitório e para as salas de<br />

aula. Os menores à frente, e os maiores atrás. No final do <strong>sem</strong>estre, antes da partida para<br />

as férias e quando da volta das mesmas, havia o Retiro Espiritual. Era uma coisa por<br />

demais estranha. Três dias de pregações, de intensas meditações pessoais e de absoluto<br />

silêncio. Aquilo para mim era um suplício. Ninguém podia dirigir a palavra a ninguém.<br />

Só o pregador falava. Somente ao final do retiro, quando o padre fazia uma oração, nós<br />

respondíamos “Deo Gratias!” [Graças a Deus!] e aí é que podíamos falar. Era uma<br />

zorra de falação nessa hora. Aquilo me impactou porque eu não era acostumado à aque-<br />

la situação. Mas, logo assimilei aquele modo de vida. Confesso que havia ganhos nessa<br />

nova vivência inaugural de <strong>sem</strong>inário. Foi onde assimilei hábitos civilizados. Hábitos de<br />

higiene diária do corpo, de utilização de banheiros, de banhos de chuveiro, de sentar e<br />

levantar da mesa de refeições, de comer educadamente, de usar adequadamente garfo e<br />

faca, de não cuspir no chão etc. Nesse ponto, o <strong>sem</strong>inário foi para mim uma escola de<br />

civilização e de cidadania. E não me envergonho de dizer e enumerar esses ganhos, que<br />

são balizadores dos códigos de uma sociedade minimamente civilizada e cujos rudimen-<br />

tos devem começar em casa, na educação doméstica. Em Pesqueira, eu fiquei até 1958,<br />

tendo cursado do 4º ano primário ao terceiro ano do ginasial. Sem nenhuma modéstia,<br />

fui um dos alunos que se destacaram. Era bom latinista, bom aluno de História, bom<br />

orador e ensaísta de teatro, naquelas peças piegas que encenávamos. Não era bom joga-<br />

dor de bola. Era muito ruim nesse mister. Fui transferido para estudar, em 1959, no Se-<br />

minário de João Pessoa. Viajei de Pesqueira para o Recife e, de lá, para João Pessoa. Aí<br />

o mundo começava a ficar maior e mais complexo. Era uma capital, uma cidade grande<br />

e um <strong>sem</strong>inário que ordenava padres. Os bispos só mandavam os seus <strong>sem</strong>inaristas dar<br />

continuidade aos estudos em <strong>sem</strong>inários de referência e de qualidade. Naquele momen-<br />

to, o Seminário de João Pessoa era um dos mais cotados, inclusive muito evoluído em<br />

171


termos de formação de alunos <strong>sem</strong>inaristas e na abertura para uma pastoral que respon-<br />

desse aos desafios dos problemas do Brasil e do mundo naquele momento de eferves-<br />

cência da vida nacional. Final do governo Juscelino, começa o de Jânio Quadros, e e-<br />

clodiu a revolução cubana. No Brasil, muita turbulência no campo, e os americanos a-<br />

medrontados com a possibilidade de o Nordeste reeditar a experiência de Cuba. A maio-<br />

ria dos superiores do Seminário de João Pessoa havia estudado em Roma e eram ho-<br />

mens cultos e avançados para a época. Quanto à minha pertinência religiosa, eu estava<br />

ligado – caso me ordenasse - ao clero secular, ou padres diocesanos, que são aqueles<br />

curas de paróquias ligadas a uma diocese, dedicados diretamente para à chamada “cura<br />

das almas” e que, nas suas paróquias, substituem o bispo nessa função. Daí o seu nome<br />

de curas ou vigários; eles de<strong>sem</strong>penham uma função vicaria, em lugar de alguém, no<br />

caso, do bispo diocesano. Aquela turbulência nacional e internacional com a abertura<br />

dos padres da Paraíba para uma formação atualizada - secundada pela convocação do<br />

Concílio Vaticano II pelo papa João XXIII –, aquele momento, repito, me impactou, e<br />

eu me abri para uma vida além dos muros do <strong>sem</strong>inário. Nessa época, existiam também<br />

em João Pessoa alguns padres vindos da Bélgica para servir na Arquidiocese da Paraíba,<br />

caso de René Vandersand, Eduardo Hoornaert e o padre Joseph, não sei das quantas.<br />

Falavam francês e, certamente isso me ajudou a gostar de aprender línguas outras que<br />

não o português; o inglês, o francês, os clássicos latinos e uma erudição cultural, musi-<br />

cal, sobretudo. Tornei-me um cabra afinado, como se diz. Cabeça feita. Com forte sen-<br />

sibilidade para o social, <strong>sem</strong> nunca ter lido Marx, no entanto. Eu não tinha mais do que<br />

dezessete anos, e foi o empurrão que eu precisava 42 . Outra experiência marcante desse<br />

momento é que, em João Pessoa, durante os três anos que lá frequentei, os padres depo-<br />

sitaram em mim uma grande confiança que corresponderia a uma também enorme res-<br />

ponsabilidade, que era de exercer a função de “suplente”. Suplente era aquele que supria<br />

os superiores ante os alunos. Mas nós éramos praticamente da mesma geração, da mes-<br />

ma idade dos dirigidos. E ele, o suplente, tinha que ser uma pessoa de confiança, equili-<br />

42 Neste momento da entrevista, Cláudio me passa um pequeno breviário latino-português, com as horas<br />

canônicas, que eu havia adquirido em João Pessoa, datado e assinado por mim. Era com esse livreto que<br />

nós recitávamos as horas canônicas nos dias de domingo, antes da missa, e nos períodos de retiro espiritual.<br />

Esse breviário fora dado a Cláudio pela Madia, retirado que foi de uma pequena estante de livros que<br />

eu havia deixado lá em Sertânia, quando de minha ida para o Rio Grande do Sul. Óbvio que fiz meus<br />

comentários, expliquei o conteúdo do livro e matei a curiosidade dos entrevistados, que me surpreenderam<br />

com um livro meu que eu não via há mais de cinquenta anos.<br />

172


ado, competente, estudioso e exemplar para os demais. O que o suplente levava aos<br />

superiores era indiscutível. Tinham, inclusive, o direito de reclamar, chamar a atenção<br />

dos alunos e, até mesmo, impor castigos, se necessário fosse. O que me incomodava era<br />

que todos ficavam de olho no suplente; não lhe era dado o direito de fazer besteiras. E<br />

nós sabemos que as besteiras fazem parte da vida dos jovens. Foi aí que eu aprendi a<br />

dirigir, a administrar, gerenciar e ser exigente comigo e com os demais e ter uma defini-<br />

ção de caráter. No mínimo, passei mais de dois anos nessa função de liderança. Senti<br />

também que fui um pouco explorado, no bom sentido. Fui suplente dos alunos menores,<br />

dos adolescentes e não sei se também dos maiores de idade. Como falei, acho também<br />

que essa função de liderança e de “espelho” para os demais me tolheu um pouco de meu<br />

direito de ser moleque e exercitar também a “molequice” e as trelas próprias da idade de<br />

transição. É nesse sentido que falo de “exploração” pelos padres. Mas eu nunca falei<br />

disso a ninguém. É a primeira vez. Vocês merecem esse voto de minha confiança. Bem,<br />

agora vou falar de minha vivência em outro <strong>sem</strong>inário, o de Viamão, na grande Porto<br />

Alegre. Fui para lá no ano de 1962, a mando do bispo Dom Severino Mariano de Agui-<br />

ar, bispo de Pesqueira, que sucedeu a Dom Adelmo Machado. Dom Mariano era uma<br />

pessoa fora de série. Simples, amável, atencioso, mas também irônico e gozador. Um<br />

grande amigo. Foi também outra pessoa muito importante na minha vida. E o Seminário<br />

de Viamão era a menina dos olhos de Dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre,<br />

de origem alemã, uma pessoa de muito prestígio no episcopado gaúcho. O bispo de<br />

Pesqueira mandava para grandes <strong>sem</strong>inários, incluindo a Europa, aqueles alunos que se<br />

destacavam no bom exemplo, no estudo e na saúde. Para lá, foram mandados Inocêncio<br />

Lima e Francisco Moura, que eram um pouco mais adiantados do que eu. Quando che-<br />

guei lá, já encontrei tudo resolvido e organizado por eles no sentido de facilitar minha<br />

adaptação e bom de<strong>sem</strong>penho. Lá iniciei o curso de Filosofia, inaugurando a minha no-<br />

va fase de educação do terceiro grau. Era uma faculdade reconhecida pelo governo fede-<br />

ral e tinha um bom nível de ensino na filosofia tomista e escolástica. Recordo que, nas<br />

férias, antes de viajar para Porto Alegre, fui informar minha mãe que eu iria viajar para<br />

estudar em Viamão. Ela estava na sala, costurando numa máquina manual, e me disse:<br />

“Mas meu filho, precisava ser tão longe? Não tem um lugar mais perto?” Eu me lem-<br />

brei, naquele exato instante, do momento de minha saída de casa para Pesqueira, na<br />

aurora daquelas primeiras horas do dia sete de março de 1954. Foi e continuava uma<br />

viagem <strong>sem</strong> volta. Em Viamão, fiquei durante os anos de 1962, 1963 e 1964. Foram<br />

173


anos trepidantes de minha vida. Eu já não era mais adolescente, mas jovem universitá-<br />

rio. Tudo mudava na minha vida. E foi como entrar numa espiral, <strong>sem</strong> tempo para tomar<br />

fôlego. Fui admitido no curso de Filosofia e tornei-me atuante na política estudantil de<br />

Porto Alegre naquele período conturbado que antecedeu o golpe militar de sessenta e<br />

quatro. Fui eleito presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia do se-<br />

minário de Viamão. E, modestamente, acho que isso já significava a consolidação dos<br />

meus traços de liderança em meio aos meus colegas, vencendo preconceitos que o Sul<br />

do Brasil destilava contra o pessoal do Norte e, mais ainda, do Nordeste. Isso significou<br />

o meu passaporte para a consciência política, que se iniciava na área acadêmica e estu-<br />

dantil. E me abriu as portas para a grande experiência de conviver com as lideranças<br />

estudantis de Porto Alegre, os intelectuais da cidade, os movimentos sociais organiza-<br />

dos e os partidos políticos que tinham o seu braço na academia, como o velho PCB. Foi<br />

aí que aprendi as mumunhas que os “comunas” punham em prática para ganhar as vota-<br />

ções na política estudantil: vencer pelo cansaço, noite adentro. Filosofia foi o curso mais<br />

importante que eu fiz na minha vida acadêmica, até hoje, a despeito do ranço escolástico<br />

e tomista dessa filosofia que lá se ensinava. Aprendi a pensar e a gostar de pensar. Tí-<br />

nhamos um grande professor de História da Filosofia, um argentino de Mendoza, pro-<br />

fessor Norberto Espinoza, que acabara de chegar da Alemanha, tendo sido aluno de<br />

Heidegger, na Universidade de Freiburg in Breisgau. Foi um dos grandes professores<br />

que tive em minha vida. Eu deveria ficar em Viamão até julho de 1964, quando termina-<br />

ria a Filosofia e viajaria para a Suíça, Universidade de Fribourg, para dar início ao curso<br />

de Teologia. Caiu, então, sobre nossas cabeças o golpe militar no final de março. Tem-<br />

pos sombrios e difíceis para quem nutria tantas esperanças de mudanças sociais no Bra-<br />

sil. Até meados do ano de 64, ficamos assustados com o direcionamento político do<br />

país. Em junho, fui selecionado pela AUI (Associação Universitária Interamericana)<br />

como integrante do grupo de universitários do Rio Grande do Sul que viajaria aos Esta-<br />

dos Unidos para frequentar o <strong>sem</strong>inário de um mês de duração, nas universidades de<br />

Harvard e de Columbia, versando sobre “Vida e Instituições Americanas”. Tratava-se<br />

de uma experiência muito interessante, de iniciativa de empresários americanos ligados<br />

ao Partido Democrata e que tinha como escopo vencer as barreiras culturais, ideológicas<br />

e políticas entre os Estados Unidos e a América Latina. Passamos uma <strong>sem</strong>ana convi-<br />

vendo com uma família americana média; uma <strong>sem</strong>ana em Harvard com palestras de<br />

grandes intelectuais americanos; outra <strong>sem</strong>ana em Washington, conhecendo a estrutura<br />

174


de governo dos EUA, ocasião em que fomos recebidos por Bob Kennedy, então minis-<br />

tro da Justiça; a última <strong>sem</strong>ana seria em New York, onde conhecemos a Columbia Uni-<br />

versity e visitamos a Expo Mundial, que naquele ano se realizava lá. Tudo pago, e a<br />

viagem feita em aviões fretados para o grupo. Essa viagem abria-nos a possibilidade de<br />

melhor conhecer a sociedade americana, ouvir a nata dos seus intelectuais, dos políticos,<br />

de suas lideranças e poder tirar as lições com relação ao futuro do Brasil e da América<br />

Latina. A senhora Mildred Sage foi a grande idealista desse Programa e, posteriormente<br />

teria muitas dificuldades com a repressão política brasileira no sentido de dar continui-<br />

dade a essa experiência inédita de anualmente levar centenas de lideres estudantis brasi-<br />

leiros, de todo o Brasil, para conhecer um país como os EUA, permitindo que eles<br />

mesmos pudes<strong>sem</strong> tirar suas conclusões. Vou voltar ainda à memória do Seminário de<br />

Viamão. Voltei dos estados Unidos no final de agosto e já desci no Recife, porque em<br />

outubro eu deveria viajar para a Europa, Suíça, para iniciar em Fribourg o meu curso de<br />

Teologia, que era a etapa final de minha formação antes de me ordenar padre católico.<br />

Eu tinha muita vontade de conhecer a Suíça, por tudo o que dela se dizia e se sabia, in-<br />

clusive pela beleza de suas paisagens, de suas cidades e de sua cultura organizacional.<br />

Eu vibrei com a ida à Suíça, em vez de Roma, onde a Pontifícia Universidade Gregoria-<br />

na me parecia excessivamente conservadora.<br />

Cláudio – Lamento interrompê-lo, mas tenho que lhe perguntar como é ser um<br />

sertanejo do Moxotó num país gelado como a Suíça?<br />

Antônio – Vou lhe responder. Mas deixe-me só terminar um detalhe da pergunta ante-<br />

rior, acrescentando um fato que tem tudo a ver com a minha vida universitária no Rio<br />

Grande do Sul. É que eu viajei para a Europa no dia 10 de outubro de 1964, a bordo de<br />

um transatlântico luxuoso, na época, que era o “Federico C”, da Companhia Italiana<br />

“Linea C”. Onze dias de viagem até Gênova; de Gênova, fui para Roma, onde reencon-<br />

trei Inocêncio Lima e Osvaldo Oliveira, colegas de <strong>sem</strong>inário e de diocese. De Roma,<br />

fui diretamente para Fribourg, de trem, já no final do mês de outubro, no ocaso do ou-<br />

tono helvético. O fato a que me reportava é que, nesse ínterim da viagem entre o Brasil<br />

e a Europa, o DOPS andou à minha procura em Porto Alegre para me prender. Era acu-<br />

sado de subversão. Besteira, eu nada tinha de subversivo e nunca fui uma liderança polí-<br />

tica extremista. Mas, como era um da geração da “esquerda festiva”, e apenas isso, por<br />

muito pouco não vi o sol quadrado. Quando a polícia me procurou em Viamão, o reitor,<br />

175


que era o então Monsenhor Ivo Lorscheiter, avisou que eu já estava longe... Escapei por<br />

pouco. Quando retornei, em 1970, ao de<strong>sem</strong>barcar no porto do Rio de Janeiro eu estava<br />

me cagando de medo. Mas não houve nada.<br />

Cláudio – Voltando a esse caso da Polícia Federal à sua cata, coisa que nenhum de<br />

nós aqui sabia, eu pergunto: será que a ordem do bispo, mandando-lhe estudar na<br />

Europa, já não era um indício de que ele sabia desse pormenor e foi uma tentativa<br />

de livrá-lo desse incômodo?<br />

Antônio – Não, não acredito que o bispo soubesse e tivesse se antecipado à repressão<br />

da polícia. Eles (bispo e reitor) pouco ligavam para esse tipo de atuação que desenvolví-<br />

amos como estudantes universitários. E, até mesmo porque essa atividade não era para<br />

ser caso de polícia e merecer dela a repressão. Creio que era apenas uma informação a<br />

ser checada. Só isso. Eu chego, finalmente, à Suíça, um país <strong>sem</strong> a inflação que tanto<br />

infernizava a vida dos brasileiros, com uma moeda forte e estabilíssima, e o nível de<br />

vida da população nos píncaros, <strong>sem</strong> falar de uma alimentação ultrassaudável... Eu era<br />

magríssimo na época, um espanador da lua, pesava apenas cinquenta e sete quilos. Pen-<br />

sei até que vocês fos<strong>sem</strong> cascavilhar alguma foto minha de Viamão, onde eu apareço<br />

magro como um fiapo. Como já afirmei, na Suíça eu descobri que era minimamente<br />

subalimentado. Aprendi a gostar de batata, tomar leite e comer muito chocolate. Logo<br />

fui diretamente aceito como aluno regular do curso de Teologia na Universidade de Fri-<br />

bourg. Naquele tempo, a língua predominante do cantão de Fribourg era o francês. Ho-<br />

je, já está meio a meio: francês e alemão. E foi um momento também muito especial<br />

para mim, porque, àquelas alturas, eu me considerava um cidadão do mundo, incorpo-<br />

rando na minha vida pessoal e profissional o que de melhor se oferecia em termos de<br />

conteúdos e condições de aprimoramento. Aí, de novo, eu me lembrava de Zefinha Ara-<br />

újo, com quem tudo começou e em cuja escola brotaram em mim as possibilidades de<br />

sonhos. E ali, naquele momento, naquele lugar, eu estava realizando sonhos reais e não<br />

meramente possíveis. Eu me sentia privilegiado, e esse privilégio tinha-me sabor de<br />

responsabilidade para com meus pais por tudo que fizeram para minha educação; com<br />

minha diocese também, que me ensejava oportunidades ímpares de formação de quali-<br />

dade como aquela que eu desfrutava. Naquela época, existiam em Fribourg uns quatro<br />

brasileiros, não mais. A maioria teólogos. Com o passar do tempo, fui assediado pela<br />

saudade e o isolamento dos colegas mais chegados que tinham ficado no Brasil. Com o<br />

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consentimento deles, consegui bolsas de estudos financiadas por paróquias católicas<br />

suíças. Foi nessa condição que vieram para Fribourg, um ano depois de minha chegada,<br />

os colegas Valmon de Oliveira, da Diocese de Aracaju, que estudara comigo em Via-<br />

mão. Idem, Francisco de Luís Brito, que nós apelidávamos de Chico Pó, cearense do<br />

Crato. Logo em seguida, Geraldo Castelli, da Diocese de Caxias, no Rio Grande de Sul.<br />

Cláudio Ruaro, foi logo estudar em Paris, mas vinha frequentemente a Fribourg nos<br />

visitar. E vieram outros alunos de dioceses de Santa Catarina, como Gentil Soares,<br />

Luís Facchini e Gervásio, de quem não lembro o sobrenome. Pouco a pouco, fomos<br />

formando uma comunidade de estudantes brasileiros na medida em que outros alunos,<br />

de outros cursos, foram também chegando para cursar a universidade, como Paulo Ra-<br />

ad, do Rio de Janeiro, Gabriel Barbosa, de Minas; os gêmeos Américo e Vicente No-<br />

gueira, de Campos, Celso e Nadja, também do Rio de Janeiro. O Chico Pó terminou<br />

falecendo em Fribourg, no inicio de 1969, o que foi um choque para o grupo. Nessa<br />

época, eu já havia abandonado o <strong>sem</strong>inário e estudava em Paris. Esse grupo de brasilei-<br />

ros foi muito bom para todos nós. Era uma vida muito fraterna e nos juntávamos <strong>sem</strong>-<br />

pre, brincando e recordando o Brasil. Volto a falar daquele sentimento de gratidão a<br />

Dona Zefinha, meus pais e meus irmãos. Hoje, quando trabalho para recuperar e preser-<br />

var a memória de minha família é assim como um preito de gratidão e reconhecimento<br />

pelo muito que dela recebi, o que certamente não foi dado aos outros irmãos para me<br />

beneficiar. E acredito que uma maneira de me dizer agradecido por tudo o que dela re-<br />

cebi é investir num trabalho como este, que busca recuperar a identidade de uma família<br />

lutadora, onde todos e cada um têm e terão o seu lugar preservado para que nossos fi-<br />

lhos e os filhos dos nossos filhos saibam e não deixem cair no esquecimento as nossas<br />

lutas e aquilo que foi nosso sonho de dias melhores. A amnésia é uma perigosa e insidi-<br />

osa espécie de morte 43 . Minha estada na Suíça foi toda ela custeada por um casal de<br />

suíços da cidadezinha alpina Saas-Fee, do cantão do Valais (Wallis), região alemã. Tra-<br />

ta-se de Werner e Ida Imseng-Zurbriggen, hoje com mais de oitenta anos de idade. Eles<br />

me pagaram os custos do alojamento no Foyer St. Justin, onde eu estive alojado, e as<br />

demais despesas mensais. Nas férias, me acolhiam na casa deles como filho. Tanto que<br />

43 A entrevista é suspensa no momento em que Cláudio passa às minhas mãos um cartão-postal dos Alpes<br />

da Suíça, sob pesada neve do inverno, que fora por mim mesmo endereçado aos manos Elias e Valdeci,<br />

no ano de 1968, época em que eu estava deixando Fribourg para estudar em Paris e praticamente já havia<br />

desistido de me ordenar padre.<br />

177


eu os considero meus segundos pais. Nunca me negaram nada. Sempre que vou á Euro-<br />

pa, eu os visito e, cada vez, sou recebido da mesma maneira e com o mesmo carinho.<br />

Para a minha ordenação de padre, reservaram, na época, a quantia de cinco mil francos<br />

suíços, o que é uma soma considerável. Quando os informei que havia desistido de me<br />

ordenar, eles entenderam perfeitamente e me apoiaram bastante na decisão. E o casal<br />

fez questão de me repassar a quantia aludida, dizendo-me que eu a usasse como bem<br />

quisesse. Quando fui para Paris, utilizei essa soma para me manter lá pelo espaço de um<br />

ano. Era o momento em que eu redirecionava minha formação acadêmica para atuar no<br />

Brasil como profissional ligado às áreas de docência e pesquisa acadêmica. Fiquei em<br />

Paris até fevereiro de 1970, onde cursei o equivalente ao mestrado, na Ecole Pratique de<br />

Hautes Etudes, sob a orientação do professor Henri Desroche. No período, cursei, de<br />

igual modo, o IRFED – Institut de Recherche et Formation en vue du Développement<br />

Harmonisé, um instituto criado pelo padre francês Lebret, que atuou muito no Brasil e<br />

que trabalhava na ótica da “Economia e Humanismo”.<br />

Cláudio – Retomando aquela pergunta anterior, fale-nos de sua desistência de ser<br />

padre; quando foi que tomou essa decisão e como a família recebeu essa notícia?<br />

Antônio – Certo, vamos lá. Por que não me ordenar, uma vez que eu já tinha comigo<br />

um documento lavrado nos arquivos da Diocese, dando permissão a qualquer bispo da<br />

comunhão católica, de qualquer parte do mundo, para me ordenar? Ainda hoje, guardo<br />

esse documento comigo com muito carinho. Quem sabe se um dia ele não virá a ser<br />

usado? (rindo). A primeira razão de minha desistência é que aquele momento era o fi-<br />

nal do Concílio Vaticano II. Ele foi um Concílio muito importante, porque permitiu à<br />

Igreja Católica dialogar com o mundo, com os seus impasses, seus problemas, seus an-<br />

seios. E levou a Igreja a se voltar também para o interior dela mesma, à medida que se<br />

abria para fora de si, para o mundo no qual ela estava inserida. Havia uma crise interna<br />

na Igreja gerada pela necessidade de ela se adaptar e responder aos novos ares dos tem-<br />

pos, necessidade de um “aggiornamento”, como se dizia na época. Uma dessas deman-<br />

das era o fim do celibato. O celibato sacerdotal é uma determinação disciplinar da Igre-<br />

ja, não é matéria doutrinária. O papa, ouvindo os bispos, pode abolir a exigência do ce-<br />

libato na hora em que ele bem quiser. E o sentimento da maioria dos padres e dos futu-<br />

ros padres naquele final de concílio era que aquilo não fazia mais sentido. Defendíamos<br />

que padres e pastores de almas vives<strong>sem</strong> a vida de cada um de maneira plena que permi-<br />

178


tisse a sua realização como homem e como filho de Deus. Ao se entender que o celibato<br />

era uma hipocrisia e uma caricatura da plena dedicação a Deus e da sublimação das ca-<br />

rências afetivas, sobretudo da importância da complementaridade entre o homem e a<br />

mulher, outro caminho não restava senão abandonar o ministério, pedindo licença para<br />

casar, a bem da coerência ética e da moralidade. Quem não foi ordenado padre percebeu<br />

que o celibato era um barco furado. E ninguém queria embarcar naquela canoa furada.<br />

Foi o meu caso. Em 1968, tomei a decisão de não mais me ordenar e fiz uma carta longa<br />

ao meu bispo, Dom Mariano de Aguiar, informando de minha decisão e de minhas ra-<br />

zões. Fiz também uma carta bem-pensada para comunicar essa decisão a meus pais. Eu<br />

sei que isso foi uma notícia que lhes causou muita frustração; afinal, tinham passado<br />

vinte anos acalentando o sonho de ver um de seus filhos padre da Igreja. E aí foram<br />

buscar uma culpada - <strong>sem</strong>pre a mulher – para jogar sobre ela a frustração e a raiva. Cla-<br />

ro que isso nunca me foi dito dessa maneira nem a mim e muito menos a Edilnete.<br />

Sempre deixei claro para quem quisesse saber que a decisão de não me ordenar foi mi-<br />

nha e só minha. E tem mais: eu nunca me ordenaria para fazer a vontade de pai, de mãe,<br />

de irmãos, de tios ou de quem quisesse... A decisão de entrar foi minha e a de sair tam-<br />

bém. Que fique isso muito claro.<br />

Marcelo – Tio, você estudou com vários colegas lá. Todos eles chegaram a se orde-<br />

nar?<br />

Antônio – Olha, Marcelo, boa pergunta! A maioria dos meus colegas e companheiros<br />

da geração, a maioria debandou; com certeza, 95% deles deu no pé (risos). Foi uma<br />

debandada geral. Ninguém se aventurou entrar na canoa furada. E tem mais: esses 5%<br />

que continuaram no barco, depois caíram fora também. Não falo de quem quis se orde-<br />

nar.<br />

Débora – Tio, foi nesse momento que você conheceu Edilnete?<br />

Antônio – É verdade, Débora. Chegando a Paris, logo que escrevi e comuniquei a meus<br />

pais e ao meu bispo que eu não mais ia me ordenar, eu abri geral para as namoradas.<br />

Ainda mais estando em Paris. Decidi recuperar meu tempo; afinal, eu tinha naquele<br />

momento vinte e seis anos de idade. Tava na hora de ir à caça, não é? Era meio beato,<br />

meio piegas; ainda tinha aquele tique de <strong>sem</strong>inarista, meio arisco, meio desconfiado,<br />

inseguro. Mas era um mistério para as mulheres, podem crer. E as mulheres gostam de<br />

179


mistérios. “Quem é ele?” “Quem sabe o que é ele?” Óbvio que as mulheres de Paris,<br />

todas elas se encantaram comigo (risos). A minha primeira namorada veio a ser uma<br />

baiana de nome de Arlete. Grande pessoa. Mas não deu certo, ela deve ter visto que eu<br />

não era o que ela queria, sei lá. E eu queria viver a minha vida livre, leve e solta, que eu<br />

não tinha vivenciado até então. Recolhi o meu time. E o que era Paris, para mim, naque-<br />

le exato momento? Era o lugar romântico por excelência, lindos lugares para a corte,<br />

para namorar; vivia-se os tempos da minissaia, da liberação da pílula, da era de Aquari-<br />

us, do cigarrinho... Paris era a cidade tolerante com os hábitos amorosos. Paris, aliás,<br />

nunca perdeu o seu glamour. Foi nesse clima que nos conhecemos, eu e a Edilnete.<br />

Cláudio – Como?<br />

Antônio – Foi relativamente simples e inusitado como sói acontecer com o amor. Nós<br />

morávamos na Cité Universitaire de Paris; ela, na casa do Brasil, e eu, na casa da Suí-<br />

ça; as duas, aliás, projetadas pelo mesmo arquiteto, Le Corbusier. São hoje duas casas<br />

tombadas como patrimônio da arquitetura mundial. Cada país tinha na Cité uma casa de<br />

acolhimento dos estudantes desses respectivos países: Espanha, México, Irã, Portugal,<br />

Alemanha, Suíça e Brasil. A gente circulava pelas casas da Cité e, claro, como brasilei-<br />

ro, ia com frequência à casa do Brasil. Eu cheguei lá em outubro e lembro bem que,<br />

numa noite já de dezembro, nós saímos juntos no carro de um médico psiquiatra per-<br />

nambucano que fazia estágio em Paris, Abílio Guerra. Conosco, foi a Edilnete para co-<br />

nhecer a iluminação dos Champs Elysées, na data em que os franceses comemoravam a<br />

liberação da França do domínio nazista. Foi aí que eu conheci aquela moça brasileira,<br />

pernambucana, psicóloga... Bonita, bem apessoada, alta e simpática. Foi meio caminho<br />

andado. Não sei o que ela viu em mim, além de minha beleza olímpica. Conhecemo-<br />

nos, e só. Até porque ela já namorava um gaúcho, que era amigo meu, conhecido lá de<br />

Porto Alegre, Lourival Possani. Depois, já em abril, nós fomos de carro ao Marrocos:<br />

Cláudio Ruaro, Golias Silva, Edilnete, eu e Lúcia, uma brasileira capixaba, cujo sobre-<br />

nome era Lobato. Nesse momento eu já sabia, mediante confidências de Lourival, que o<br />

namoro deles não ia lá tão bem. Ele, com aquela simplicidade de gaúcho meio chucro,<br />

sabendo que eu era pernambucano, como ela, me dizia: “É pra ti, Siqueira! Eu e a Edil-<br />

nete não nos entendemos”, dizia ele. “Vai, Che!” Eu dizia: “Sim, Louri, e eu sei lá quem<br />

ela quer! E se ela prefere você a mim, como é que fica?” Lourival estudava e pesquisava<br />

na área de biociências. Só tinha tempo para o seu labor acadêmico e seus papers. Eu,<br />

180


não. Estava numa condição de malandragem. Fizemos aquela viagem ao Marrocos e<br />

acho que a química entre nós ficou mais evidente. Na volta, ela desfez o namoro com<br />

Possani, e nós começamos a nos cortejar e ser felizes. Assim se iniciou nossa Love<br />

Story. Foi um grande e gratificante momento em nossas vidas, à margem do Sena, na-<br />

quele clima de jovens estudantes que se amavam freneticamente. Forjamos aí as bases<br />

sólidas de um companheirismo que durou enquanto a vida dela durou. Logo em ju-<br />

lho/agosto de 1969, ela voltou ao Brasil, pois tinha terminado o prazo do estágio dela,<br />

que era funcionária federal de nossa universidade. Eu fiquei lá preparando a defesa da<br />

minha dissertação e só pude voltar ao Brasil no ano seguinte, no final de janeiro.<br />

Marcelo – E o primeiro beijo?<br />

Antônio – Ah! O primeiro beijo garanto que não foi em Paris. Também, pudera! So-<br />

mente um beijo? Eu conheci uma garota belga, que passava as férias de inverno lá na<br />

cidade dos meus benfeitores suíços, em Saas-Fee. Nós conversávamos muito, nos en-<br />

contrávamos com frequência num daqueles cafés da cidadezinha, um pouco longe dos<br />

olhares dos Imsengs e da família dele. Era janeiro e fazia um frio muito grande. A gen-<br />

te, para se aquecer, sabe, fomos gostando de nos conhecer, apenas nos conhecer. Como<br />

ela teve que voltar logo para a Bélgica, nós, ao final de um de nossos encontros, uma<br />

vez só, nos beijamos carinhosamente, acidentalmente, <strong>sem</strong> maiores arroubos. Algo mais<br />

do que um simples selo, mas nada comparado a um beijo às margens do Sena.<br />

Cláudio – E o namoro com Edilnete no Brasil, como é que foi, como prosperou?<br />

Antônio – Ela voltou em julho/agosto de 69, e eu, em fevereiro do ano seguinte. Voltei<br />

de navio, onze longos dias de viagem. Muita diversão no navio, onde dancei muito e me<br />

diverti, pois formamos no navio um grupo muito seleto e amável na volta ao Brasil. Um<br />

grupo de paulistas. Um deles era parente de Olavo Setúbal, banqueiro dono do banco<br />

que, naquele tempo se chamava Itaú-Lorena, acho que era isso. Era um casal altamente<br />

simpático: Jota e Lídia, não lembro os sobrenomes. O nome dele era Joaquim e o dela...<br />

não lembro mais. Foi uma linda viagem. De<strong>sem</strong>barquei no Rio de Janeiro em plena se-<br />

gunda-feira de carnaval. Um calor dos diabos e eu com aquela roupa da Europa, quente,<br />

quente, santo Deus, como sofri! Um daqueles colegas meus de Fribourg, que já havia<br />

voltado ao Brasil, foi nos receber e me levou para o apartamento dele, que ficava em<br />

Ipanema. Foi ele quem me descolou uma grana para eu viajar a São Paulo e encontrar a<br />

181


parentela. Naquele ano, a Escola de Samba do Rio que ganhou o desfile foi a Portela,<br />

com o samba-enredo de Paulinho da Viola: “Foi um Rio que passou na minha vida // e<br />

meu coração se deixou levar!”... Foi bom, porque eu mergulhei na volta ao Brasil pelo<br />

carnaval. Acho que tinha que ser assim mesmo (risos). Despachei minha bagagem para<br />

o Recife e vim de ônibus reencontrar vocês aqui. Na noite em que cheguei à Vila Ema,<br />

tomei uma cervejada com Anísio, Jacaré, Valdeci e não sei mais quem... Eu lembro que,<br />

no dia seguinte, mesmo <strong>sem</strong> eu pedir, Flora pediu a Valdeci para me acompanhar até a<br />

Mooca ou ao Brás para comprar roupas adaptadas ao Brasil. E foi ele quem pagou pra<br />

mim todas aquelas camisas e calças, bem mais leves e de mais bom gosto do que as da<br />

Europa. Na volta ao Brasil, eu me vesti de Brasil às custas de Valdeci. Eu <strong>sem</strong>pre vou<br />

agradecer a ele, que também comprou meu bilhete de ônibus para o Nordeste numa em-<br />

presa safada de Guarabira, na Paraíba, chamada Viação Planalto. O ônibus levava de<br />

volta, metade dele, famílias que estavam voltando para o Norte. Mais da metade de to-<br />

dos esses tinham conjuntivite. Santo Deus, que viagem! Logo que cheguei do Rio, fui<br />

direto para a casa de Virgínia e de Aldir, que moravam na Vila Carioca, na Rua Brás de<br />

Pina, juntamente com Anísio, que acabara de chegar do Norte. Lembro que Aldir, na-<br />

quela simplicidade generosa dele, abriu um uísque nacional para festejar a minha che-<br />

gada. Foi o pior uísque que eu tomei na vida. O Botinha que me perdoe! Mas ele e Vir-<br />

gínia se desdobraram na recepção. Aqui, na Vila Ema, todo mundo era jovem, novi-<br />

nhos, cabeludos, com calças-boca-de sino, tipo San Remo. Roberto Carlos era da mo-<br />

da... Os cabelos meio compridos eram a moda geral. Todo mundo zen. Voltando para o<br />

Nordeste naquele ônibus infectado, eu fui lentamente sentindo a ficha cair. Era na reali-<br />

dade uma viagem de volta. Seria talvez a continuação da minha viagem inicial, lem-<br />

bram? Emociono-me falando disso agora. A viagem durou de quatro a cinco dias. Eu<br />

tinha voltado com a minha dentição em petição de miséria. Os dentistas suíços e euro-<br />

peus maltrataram meus dentes. Não conseguia comer carne de sol nem coisa mais con-<br />

sistente. O ônibus parava nos piores apoios, <strong>sem</strong> direito a banho, comida precária e cara.<br />

Pra variar, o ônibus, a certa altura da viagem, furou o pneu, e não tinham sequer pneu de<br />

suporte. Acho que eu, na minha volta da Europa, reeditava a saga de sofrimentos de<br />

todos da família quando de sua vinda para São Paulo. Lembro bem que cheguei à Santa<br />

Luzia de madrugada. Bati na porta e acordei seu Zé Jorge, igual a Luiz Gonzaga quando<br />

acordou o velho Januário na sua volta do Rio de Janeiro para Exu... Lembram? Encon-<br />

trei meu pai e minha mãe sozinhos naquela casa imensa da Santa Luzia. Ávidos por<br />

182


saber como é que eu estava e também ansiosos por me contar tudo o que aconteceu na-<br />

quele lapso de tempo de minha ausência de quase seis anos. Emendamos a conversa<br />

pela manhã e fomos até à tarde. De manhã cedo, chega Manoel com a alegria de <strong>sem</strong>-<br />

pre. A mesma pessoa; meu pai o mesmo; minha mãe a mesma. Pouca coisa mudou. As<br />

pessoas dificilmente mudam. Foram dois dias de conversas e de histórias para neutrali-<br />

zar o tempo da ausência. Eu informei a eles que tinha muita pressa em manter contatos<br />

com o Recife para definir meu futuro profissional. Dizia-lhes que tinha de começar a<br />

minha vida profissional. E, efetivamente, meu futuro estava no Recife.<br />

Hélio – Tio, quanto tempo o senhor esteve separado da Edilnete depois da volta<br />

dela ao Brasil?<br />

Antônio – Nada mais do que seis ou sete meses. Antes, porém, tem um detalhe pitores-<br />

co desse tempo que marcou a separação forçada entre a Edilnete e eu. Edilnete estando<br />

no Recife, e eu, em Paris, nós mantínhamos o namoro através de cartas. Na minha vinda<br />

para o Brasil, acertamos que ela deveria endereçar a correspondência para um endereço<br />

de São Paulo, onde eu teria que me encontrar com os parentes. E caí na besteira de dar o<br />

endereço de minha irmã Virgínia, que morava na Vila Carioca. Edilnete mandou não sei<br />

quantas cartas, tamanha era a paixão. Quando eu chego à casa de Aldir e de Virgínia,<br />

bisbilhoteira, fofoqueira e intrometida como ela <strong>sem</strong>pre foi (risos), ela logo me pergun-<br />

tou “Quem é essa quenga que lhe manda tantas cartas? Deve ser a puta <strong>sem</strong>-vergonha<br />

que lhe tirou do <strong>sem</strong>inário, não é”? (risos). Eu fechei a cara e não abri a guarda; apenas<br />

disse a ela que eu tinha deixado o <strong>sem</strong>inário por decisão minha e que agora iria, sim, ter<br />

mulher na minha vida; namorar era o caminho certo para me casar. Hoje, ela conta outra<br />

história, viva como ela <strong>sem</strong>pre foi! Ela nunca engoliu a Edilnete. Ela não diz isso, mas<br />

eu sei que ela nunca gostou dela. Voltando ao fio da história da minha volta ao Brasil,<br />

logo depois de chegar a Sertânia, viajei para o Recife para me encontrar com Edilnete e<br />

ver quais eram as perspectivas de trabalho que existiam para mim. E eu não conhecia<br />

ninguém no Recife. Tinha apenas um ou dois nomes de pessoas indicadas por amigos e<br />

colegas de Paris. E nada mais. Tudo era incerteza.<br />

Marcelo – O senhor estava nessa época com vinte e oito anos, não? Cláudio – E foi<br />

ficar onde, no Recife? Logo você, que chegou <strong>sem</strong> eira nem beira...<br />

183


Antônio – Rapaz, essa pergunta de vocês é importante. Estou vendo que vocês andaram<br />

por ai vasculhando minha vida pretérita, não? Chegando ao Recife, fui procurar Edilne-<br />

te, óbvio. Ela, de maneira ousada para os padrões da época, me convidou para ficar hos-<br />

pedado na casa da família dela, onde vivia a mãe dela, Dona Antonieta; um irmão, Neil-<br />

ton, médico; e uma irmã dela, recém-casada, Edinilze. O pai dela já havia falecido há<br />

anos 44 . Aquilo foi um escândalo na rua dela. Afinal, chegava o namorado de Edilnete da<br />

Europa e já se aboletava na casa dela. Negócio complicado. E eu e ela pouco ligando<br />

para o que as pessoas da rua achavam daquilo. Fiquei hospedado lá até que a gente se<br />

casasse. Casamos em dezembro de 1971; e, nesse meio tempo, noivamos com pedido de<br />

casamento e troca de alianças e tudo mais para calar a boca dos bestas. Foi na casa da<br />

Edilnete que eu assisti aos jogos da Copa do Mundo de 1970, no México.<br />

Débora – E sua sogra, como ela reagiu a tudo isso?<br />

Antônio – Olha, Débora, justiça se faça, eu não falo mal de minha sogra. Pelo menos<br />

minha sogra não é nem nunca foi o demônio que os genros geralmente pintam. Minha<br />

sogra era uma pessoa adorável, amabilíssima e me tratou com muito carinho e deferên-<br />

cia. Depositou toda confiança em mim, abrindo a porta principal da casa. Sempre me<br />

tratou como filho. Falar dela nesses termos é o mesmo que lhe prestar uma devida ho-<br />

menagem a ela. Não só a ela, mas ao filho e à irmã de Edilnete também.<br />

Hélio – Durante esse período em que o senhor esteve acomodado na casa da Edil, o<br />

que o senhor fez profissionalmente para se manter?<br />

Antônio – Quando eu cheguei ao Brasil, era um período politicamente dificílimo. Plena<br />

vigência do AI-5, da repressão do Garrastazu Médici, o período do “Ame-o ou Deixe-<br />

o”... A gente pensava mais no que não devia dizer do que mesmo no que devia dizer.<br />

Isso foi muito ruim e limitante para o meu começo de vida profissional, que, obviamen-<br />

te, estava mais direcionada para o ensino superior, que era uma área extremamente vigi-<br />

ada e patrulhada pelos órgãos de repressão. Como eu portava o título acadêmico euro-<br />

peu de Mestre - e naquele tempo eram raras as pessoas de minha idade assim qualifica-<br />

das -, isso facilitou em parte a minha profissionalização. Logo me ofereceram uma ca-<br />

deira de Antropologia Social na Escola Superior de Relações Públicas do Recife. Eu<br />

44 A galera faz hum...<br />

184


não era antropólogo, mas, depois de fazer curso de filosofia, teologia e ciências sociais,<br />

ensinaria até o cão a chupar manga. E é o que fiz. Meti a cara e aceitei. Foi o meu pri-<br />

meiro emprego, que não era bem-remunerado mas, como se diz, dava para uma lavagem<br />

de roupa. Nessa altura da minha volta, eu sofri um pouco com a perda da minha fluência<br />

na língua portuguesa, por conta do período de cinco anos fora do Brasil falando francês.<br />

Não que eu não fosse capaz de falar e entender o português. Mas eu não conseguia falar<br />

com fluência e com a elegância que se requer de alguém que fala em público, seja como<br />

orador, seja como professor. E aquilo me incomodava demais. Aos poucos, fui reto-<br />

mando esse ritmo de falar bem e com naturalidade. Nesse mesmo período, fui convida-<br />

do a ser coordenador regional da CNEC = Campanha Nacional das Escolas da Comuni-<br />

dade, secção de Pernambuco. Um trabalho difícil, pela minha falta de experiência e pe-<br />

las limitações da própria instituição, que sobrevivia de dotações irregulares e pontuais.<br />

E era difícil se trabalhar na área socioeducacional, por conta da repressão política. Mas<br />

não deu certo, por conta de minha falta de experiência; e não posso me queixar e muito<br />

menos acusar alguém. O salário era baixinho, baixinho. Meses depois do ano de 1972,<br />

entreguei o cargo e fiquei me dedicando a algumas aulas episódicas na Universidade<br />

Federal de Pernambuco, no Ciclo Geral da Área I, que havia pouco havia tinha sido<br />

implantado pelo MEC. Foi meu vestibular de docente na UFPE, acumulando com a ca-<br />

deira de Antropologia Social na ESURP (Escola Superior de Relações Públicas). Foi<br />

com o salário da ESURP e da CNEC que eu pude amealhar os meus proventos para<br />

comprar alguns móveis para o nosso casamento e também garantir o aluguel de uma<br />

casa. Porque a geladeira, eu já havia comprado com o dinheiro de um curso de especia-<br />

lização que eu ministrei no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais sobre Messi-<br />

anismo no Nordeste do Brasil, em maio/junho de 1970. Recordo que nesse curso eu<br />

morria de medo de falar, com medo da repressão política. Foi Mauro Mota quem me<br />

conseguiu esse curso no IJNPS da época, hoje Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco).<br />

Cláudio – Tio, devido ao adiantado da hora, vou pedir para ser direto nas respos-<br />

tas, porque ainda faltam muitas questões. Por exemplo, o convívio com Edilnete, o<br />

casamento, o nascimento de Ricardo, o casamento de Ricardo, as netas, o faleci-<br />

mento da Edil, a doença dela, de que forma foi, a decisão de não comunicar à famí-<br />

lia, como reagiu à perda dela e como está sendo sua vida depois da perda da Edil-<br />

nete...<br />

185


Antônio – Vou mesmo tentar resumir trinta anos em alguns minutos, dado o avançado<br />

da noite. Casei com Edilnete em dezembro de 1970. Ricardo nasceu em março de 1972.<br />

No mês de julho, morreu meu pai. No final do mês de março de 1971, eu fui admitido<br />

como professor na Universidade Federal de Pernambuco por meio de um concurso in-<br />

terno. Até meados de 1972, nós moramos numa casa alugada, no bairro do Cordeiro,<br />

junto onde morava a mãe da Edilnete. Em abril/maio desse ano, conseguimos comprar<br />

um terreno em Casa Forte e depois construímos a casa onde moramos até hoje. Fizemos<br />

um empréstimo no Sistema Financeiro da Habitação por intermédio do Banco Nacional<br />

do Norte (Banorte), e levantamos a casa mediante o contrato com uma construtora, a<br />

Lemos e Grimaldi. Em março de 1973, passamos a morar em Casa Forte, onde mora-<br />

mos até hoje. Foi aí onde Ricardo cresceu e evoluiu até o casamento. Logo no início,<br />

Edilnete conseguiu consolidar uma clientela ligadaàa aplicação de testes de personali-<br />

dade; depois, psicoterapia e, mais tarde, psicanálise. Foi aí, nesse período, que constru-<br />

ímos o nosso patrimônio, graças, sobretudo, ao trabalho bem-remunerado dela, muito<br />

mais que o meu, da universidade. Em 1975, já morando em Casa Forte, fomos vítimas<br />

de uma cheia no Recife que inundou nossa casa até a altura de 1,40, fazendo com que a<br />

gente perdesse praticamente tudo, inclusive documentos e acervo valioso de fotos nos-<br />

sas da Europa. Em 1976, eu iniciei meu curso de doutorado na Universidade de São<br />

Paulo (USP), tendo sido um dos primeiros da minha área, de Pernambuco, a se doutorar<br />

na USP. Algo inédito, posto que ela não mantinha vínculos com o MEC e a CAPES.<br />

Aqui, em São Paulo, eu conhecia poucos professores e lembro que fui contatar alguns<br />

deles para orientação, tendo ido com Zeca até o campus do Butantã. Em março de 1977,<br />

eu iniciei meus estudos na USP, onde fui acolhido e tornei-me orientando da Dra. Maria<br />

Regina Simões de Paula, tendo defendido a minha tese em agosto de 1981. Nesse perío-<br />

do, passei a viver em São Paulo durante o tempo em que cursava algumas disciplinas na<br />

universidade. Inicialmente, fiquei aqui na Vila Ema, na casa de Dona Flor e seu Zeca.<br />

Depois, como era muito longe do campus da USP, terminei alugando um quarto na casa<br />

de um casal de austríacos, na Teodoro Sampaio, o que facilitava em muito o meu rápido<br />

acesso à universidade. Esse foi um período muito interessante e rico para mim, pelo<br />

convívio que eu mantive com meus familiares aqui da zona leste paulistana. Nos finais<br />

de <strong>sem</strong>ana, vinha para a Vila Ema e fazíamos encontros e almoços periódicos na casa de<br />

uns e outros. Tenho muitas fotografias que retratam esses momentos. Vocês eram todos<br />

garotos de quatro e cinco anos. Ainda hoje cultivo a amizade com muitos professores<br />

186


meus da USP, daquela época, que atualmente são meus colegas de universidade. Um<br />

deles é o casal Dilu (Maria de Lourdes) e Aldo Janotti, lá da Rua Pedralva, no Alto do<br />

Sumaré, pessoal esse que Cacareco conhece muito bem, porque já me levou lá várias<br />

vezes para almoços e jantares quando de minhas vindas a São Paulo. Nesse período em<br />

que fazia o meu doutorado, consegui também construir minha casa de praia em Taman-<br />

daré, no litoral sul de Pernambuco, dessa vez financiada pela CEF. Mas fui eu que ad-<br />

ministrei a construção. No ano de 1982, quando de nosso veraneio em Tamandaré, E-<br />

dilnete teve ciência de que tinha um minúsculo nódulo no seio direito. Procurou o seu<br />

ginecologista, que a examinou e disse que aquilo que ela detectava não era nada e que<br />

ela simplesmente esquecesse. Um ano depois, mesmo <strong>sem</strong> sentir nada, um colega dela<br />

do Departamento de Neuro Psiquiatria da UFPE, nosso grande amigo Cheops Teixeira<br />

Cavalcante, insistiu que ela procurasse um mastologista para checar a natureza daquele<br />

nódulo, o que ela efetivamente fez e descobriu por intermédio desse médico que era<br />

uma neoplasia maligna ainda não muito evoluída. Foi um susto muito grande para nós, e<br />

principalmente para ela. Naquele momento, ela fez uma mastectomia, retirando o seio e,<br />

um ano após fez uma cirurgia plástica de restauração da mama. Um sucesso. A com-<br />

pleição física ficou perfeita. E, a partir daí, ela passou a fazer os exames periódicos de<br />

avaliação, até dez anos depois da mastectomia. Após isso, passou a fazer apenas anual-<br />

mente e, depois de quinze anos, foi dado como curada. Ela viveu dezessete anos <strong>sem</strong><br />

nenhuma recidiva do câncer e, por isso, foi dada como curada. Logo que descobrimos<br />

que ela era portadora de um câncer, após o susto, ela tomou a decisão de não divulgar a<br />

ninguém o seu câncer de mama. Uma decisão dela. Nem Ricardo nem a família dela<br />

ficaram sabendo. Sabia apenas um reduzidíssimo grupo de pessoas muito ligadas a ela<br />

por laços profissionais e afetivos. Alguns anos mais tarde, ela decidiu comunicar o fato<br />

à irmã dela no sentido de que as sobrinhas mulheres fos<strong>sem</strong> informadas da doença para<br />

futura prevenção. Foi nessa hora que comunicamos a Ricardo. Conversamos longamen-<br />

te com ele, e, mesmo assustado, ele compreendeu o silêncio da mãe. Após dezessete<br />

anos, Ricardo já casado, aparece nela uma tosse muito insistente e, depois de acurados<br />

exames médicos, descobre-se que ela era portadora de uma metástase do câncer de ma-<br />

ma, atingindo agora a pleura. O choque foi ainda maior, e tudo então se complicou. Mas<br />

ela <strong>sem</strong>pre demonstrou muita vontade de viver e manter a sua saúde. Apesar do susto,<br />

ela não se abateu. Durante todos esses anos de expectativas e sofrimentos, nossa relação<br />

sofreu muito. Era muito pesado guardar aquele silêncio e acompanhar de perto as apre-<br />

187


ensões dela como paciente. Mas <strong>sem</strong>pre ajudei como podia e fui buscar forças não sei<br />

onde para transmitir-lhe otimismo e apoio incondicional. Mas foi duro, foi dificílimo.<br />

Logo que foi sabedora da metástase, ela iniciou as sessões de quimioterapia, que, sabe-<br />

se, é um tratamento agressivo e que deixa o paciente em petição de miséria. Além de<br />

tudo, ver a lenta queda do cabelo, para a mulher ou qualquer um, é um sofrimento. Não<br />

há autoestima que suporte isso. É dramático e doloroso. Mas a esperança é <strong>sem</strong>pre a<br />

última que morre. Da descoberta da metástase até o falecimento dela, passaram-se seis<br />

anos. Foi uma resistência brava. Os médicos ficaram impressionados. E ela morreu vi-<br />

vendo, até o último suspiro de sua vida. Durante esse tempo, não deixou de clinicar e<br />

não desmarcou clientes. Tanto que, com o falecimento dela, fui eu quem informou aos<br />

clientes do desfecho. A doença, na sua fase terminal, não a maltratou tanto. Ela não se<br />

queixava de dores nem teve atrofias orgânicas. Faleceu no dia cinco de janeiro de 2005.<br />

Eu, pessoalmente, não concordava com esse silêncio que ela impôs por vontade e deci-<br />

são dela. Mas <strong>sem</strong>pre achei que era um direito dela, e ela era a paciente. E ponto final.<br />

Volto agora à sua pergunta para falar das minhas netas. Confesso que tenho muito orgu-<br />

lho do meu filho, que, juntamente com Regina, nos deu duas netas. Pensávamos ter dois<br />

filhos quando casamos. Mas, por um problema ginecológico, foi muita sorte nossa a<br />

Edilnete engravidar. Deus foi muito generoso conosco. Nasceu o Ricardo, que <strong>sem</strong>pre<br />

foi um filho que nos deu alegrias na vida, na nossa relação com ele. E ele casou com<br />

uma moça que é um primor de gente e de pessoa, a Regina. Nós <strong>sem</strong>pre aprovamos com<br />

muito gosto o casamento dele. Regina engravidou depois de uns três anos de casada e<br />

logo ficamos sabendo que era uma menina. Foi a suprema alegria de Edilnete; aquilo<br />

encheu-lhe a vida de felicidades porque ela sonhava demais ter uma neta. Antes de Bea-<br />

triz nascer ela, talvez temendo que a morte tragasse o prazer e a ventura de ver a neta,<br />

escreveu do próprio punho uma carta para Beatriz ler quando se alfabetizasse. E entre-<br />

gou essa carta a Regina. É uma linda declaração de amor de uma avó para com sua neta.<br />

E veio Beatriz, que é uma boneca. Muito parecida com Ricardo, é a cara dele. E posso<br />

garantir que a Edil morreu na alegria e na felicidade de ter visto nascer uma neta mu-<br />

lher. Ela faleceu no dia cinco de janeiro e, ainda no dia 26 de dezembro, data do seu<br />

último aniversário, fizemos uma comemoração íntima em razão da indisposição dela.<br />

As fotos são significativas desse transbordamento de alegria dela com a neta, partindo o<br />

bolo, distribuindo bolo, abraçando um a um dos parentes que vieram ao aniversário de-<br />

la. Oito dias depois ela morreria. Mas tenho certeza de que morreu vivendo e morreu<br />

188


feliz pela neta que viu nascer e pela vida que levamos como casal. Quatro anos após,<br />

nasce a segunda neta, Júlia. Essa ultima neta, infelizmente, a avó não viu nascer. Mas<br />

posso dizer que é outra princesa. É a cara de Regina. Muito viva e muito sapeca. Sinto-<br />

me plenamente gratificado, porque elas me chamam de “vovozinho”. O que mais quero?<br />

Cláudio – Há pouco, falando da gravidez de Edilnete, o senhor falou que “Deus foi<br />

muito generoso conosco”. Como é que ficou essa questão da sua fé depois que de-<br />

sistiu de ser padre?<br />

Antônio – Rapidamente, em função do tempo e para ser objetivo. Minha formação filo-<br />

sófica e teológica foi <strong>sem</strong>pre marcada pelo signo da racionalidade. De modo que eu<br />

busco ser um pouco como Santo Agostinho: “fides quaerens intellectum” 45 . Eu <strong>sem</strong>pre<br />

procurei acreditar em coisas que tives<strong>sem</strong> uma conotação de racionalidade para alimen-<br />

tar a minha credibilidade, tendo em vista que acreditar pela fé é uma coisa e provar pela<br />

razão é outra. Insisto que não é a pura racionalidade que me satisfaz, mas também a<br />

irracionalidade me aborrece. Não sei se me fiz entender. A razão, para mim, é a infinita<br />

abertura do humano, inclusive para o mistério da vida, da morte, da felicidade... Viver,<br />

para mim, é interagir. Daí vem meu gosto e minha vocação para a história. A história é<br />

diálogo, é abertura e sintonia com o outro como permanente interlocutor. Por isso mes-<br />

mo, o que mais me encantou no meu curso de teologia foram os estudos bíblicos que<br />

cursei na universidade de Fribourg com alguns eminentes exegetas dominicanos de lá:<br />

Barthélemy e Spicq. A Bíblia é poesia, é história, tradição, narrativa. A história de vi-<br />

vências da aliança entre Deus e seu povo eleito, Israel. Depois que abandonei a ideia de<br />

ser padre, deixei também de ir à igreja aos domingos para assistir missa, fazer confissão<br />

dos pecados, etc. Não seria eu, portanto, um exemplo de bom católico, se isso que falei<br />

é o que caracteriza o bom católico. Acho que minha fé em Deus e minha prática religio-<br />

sa têm e adquirem consistência na medida em que eu consiga ver Deus como bondade,<br />

misericórdia, magnanimidade. Ele é muito mais perdão e justiça; e muito menos castigo<br />

com a vingança e a cólera. Se Deus existe – e eu acredito que ele existe –, ele é bom. E,<br />

sendo bom, eu tenho que viver como alguém que acredita em Deus sendo bom também<br />

com aqueles com os quais reparto minha vida, meu trabalho, minha casa, minha pátria.<br />

45 “A fé dialogando com a razão”...<br />

189


É desse modo que eu tento demonstrar que sou religioso, temente a Deus e cristão. Até<br />

porque religião para mim não é apenas crença é, sobretudo, prática.<br />

Cláudio – Complete as afirmações seguintes:<br />

O meu sonho era: ser padre<br />

O meu sonho é: ser um bom educador.<br />

Família: é a sociedade em miniatura, é o suporte da pessoa.<br />

A maior alegria: é ter visto meu filho nascer. No dia em que ele nasceu, acordei todos<br />

os meus amigos, que ainda hoje me xingam.<br />

A maior tristeza: foi perder minha companheira de trinta e quatro anos de convivência.<br />

Chorei feito um bezerro desmamado.<br />

William – Tio, gostaria que explicasse de onde veio essa paixão pelo Santa Cruz,<br />

qual o primeiro dia em que foi ao estádio do Arruda e com quem?<br />

Antônio – Eu agradeço a você, William, ter feito essa pergunta, pois, do contrário, eu<br />

iria sair daqui frustrado. Mas ainda bem que você não me perguntou por que eu não sou<br />

Santista! (risos). O Santa Cruz é um time de massa. E eu <strong>sem</strong>pre prefiro o povo. Em<br />

Pernambuco, tem três times: o Clube Náutico Capibaribe, que é o mais antigo e tem<br />

uma história marcada como clube de elite, aristocracia, “pó-de-arroz”, como era o Flu-<br />

minense no Rio de Janeiro. E eram mesmo racistas, porque, durante muito tempo, se-<br />

quer admitiam jogadores negros no seu elenco. Claro, isso é passado. As cores do clube<br />

são vermelho e branco. Eu não iria ser alvirrubro por essas razões. Tem o Sport Club do<br />

Recife, que reúne pessoas do povo e da classe média; mas só as pessoas chatas e agres-<br />

sivas. As cores são vermelho e preto. Claro, eu, que não sou chato nem agressivo, tam-<br />

bém não seria rubro-negro. Finalmente, tem o Santa Cruz, cujas cores são vermelho,<br />

preto e branco; é a nação tricolor. É a síntese dos dois clubes anteriores nas cores e na<br />

torcida, porque tem as cores mais bonitas – a síntese; só tem as pessoas de bem do po-<br />

vão, da classe média e da elite. Por isso, eu sou tricolor, com muito orgulho e paixão,<br />

como você mesmo disse. A primeira vez que vi a camisa do Santa Cruz foi em Pesquei-<br />

ra e eu achei linda, muito bonita. Mas não morria de paixão como torcedor. Lá, em Pa-<br />

ris, conhecendo Edilnete, que era uma alvirrubra de quatro costados, demarquei logo<br />

190


meu espaço, declarando-me tricolor. A primeira vez que fui ao Arruda – naquele tempo<br />

era um estádio mirrado, pequeno – foi em 1972, num clássico entre Santa e Náutico, e<br />

Givanildo já jogava no time. O apelido dele era “Topogigio”, porque ele era aparentado<br />

com aquele boneco da televisão dos anos setenta. Vi o Santa ganhar com um gol do<br />

lateral Gena, que fez o gol <strong>sem</strong> querer. Mas vibrei muito. Quanto a Ricardo, fizemos um<br />

pacto civilizado em casa, eu e Edilnete: ele escolheria, por ele mesmo, o time pelo qual<br />

torceria. Eu fiquei na torcida pelo “santinha” e ela pelo “nautiquinho”. Ricardo balançou<br />

na corda bamba, mas como o pai é o herói para o filho, decidiu-se pelo Santa. Após essa<br />

decisão eu o levei várias vezes ao Arruda, já reformado, e ele ia mais para comer salsi-<br />

cha e chupar picolé do que mesmo para torcer pelo time do coração. Hoje, não.<br />

Hélio – Tio como está sendo para você estar realizando este trabalho da memória<br />

da família? O que o levou a isso?<br />

Antônio – Está sendo um trabalho por demais gratificante. A gente está voltando no<br />

tempo, o tempo da recordação, da memória. Voltar no tempo significa fazer uma via-<br />

gem. Como sói acontecer com as viagens, esta aqui é ao mesmo tempo prazerosa e de<br />

muita responsabilidade. É difícil voltar ao passado e falar da sua memória <strong>sem</strong> que isso<br />

não bula no afetivo. Por isso mesmo, a gente se emociona quando recorda. Cada uma<br />

dessas pessoas que eu entrevisto - como vocês fazem aqui comigo –, eu as levo nessa<br />

viagem e à possibilidade de interpelar a sua emoção. Repito, este trabalho está sendo<br />

muito gratificante, porque vocês são a motivação dele. Eu confesso que não teria inicia-<br />

do este trabalho se não tivesse sentido em vocês, quando de algumas viagens que eu fiz<br />

aqui a São Paulo, o interesse pela história da família, pela memória dos momentos difí-<br />

ceis que tiveram de superar, como aquela viagem de Madia para o Paraná. Recordo,<br />

emocionado, que ouvi Anísio contar com detalhes a epopeia que foi essa viagem dela e,<br />

mais ainda, o interesse de vocês em ouvir aquela história pontilhada de sofrimento, de<br />

bravura e de esperança em dias melhores. Enquanto Anísio narrava a aventura, havia da<br />

parte de vocês um respeito religioso, um silêncio religioso. E vocês são a terceira gera-<br />

ção. Vocês são os filhos dos nossos filhos. Eu sonho que vocês transmitam essa memó-<br />

ria aos filhos de vocês com o mesmo carinho que vocês a recebem de nós da segunda<br />

geração. Por isso tudo, este trabalho está sendo algo extremamente gratificante, em que<br />

pese ao ônus da tarefa, até certo ponto penoso. Cada vez mais, sinto o peso da responsa-<br />

bilidade, porque acho que daqui deste ponto em que estamos não haverá mais volta. E<br />

191


sinto que a cruz está pesando e peço a ajuda de vocês porque não é fácil. Mas acho que<br />

o que ficar como resultado deste trabalho será um marco indestrutível da nossa memó-<br />

ria. Por isso mesmo, temos de registrá-la de duas maneiras: em texto e em imagens.<br />

Marcelo – Tio, diante de todos esses dados que nos foram relatados aqui, em sua<br />

entrevista, narrando sua viagem para a Europa, sua vida profissional e sua educa-<br />

ção, que mensagem o senhor deixaria agora para o seu filho, sua nora, suas netas,<br />

seus sobrinhos e primos?<br />

Antônio – Minha mensagem é uma só. Nós somos movidos por sonhos e desejos. Tudo<br />

o que eu consegui na minha vida é porque eu sonhei muito, para realizar talvez pouco.<br />

Se não fos<strong>sem</strong> meus sonhos de menino, lá em Sertânia, querendo ser padre; se não fos-<br />

<strong>sem</strong> meus sonhos de estudante universitário, pretendendo fazer política estudantil; se<br />

não fos<strong>sem</strong> meus sonhos de brasileiro e nordestino de buscar na Europa a base sólida<br />

de um conhecimento, buscando o aperfeiçoamento cultural e civilizatório; se, depois de<br />

atingir todos esses objetivos, eu não tivesse sonhado fazer um doutorado, buscando o<br />

coroamento de uma vida de estudos e de pesquisa, superando mil sacrifícios com a au-<br />

sência de minha casa, de minha mulher e do meu filho, repito, se eu não tivesse tido<br />

essa ousadia de sonhos e de desejos, eu não seria nada na vida. Ninguém será nada na<br />

vida se não sonhar, se não desejar. Na hora em que a gente se recusa a desejar, a gente<br />

se nega não apenas como cidadão, mas também como humanos que somos todos. Não<br />

podemos deixar de sonhar. Somente os mesquinhos e pobres de espírito é que não so-<br />

nham. E, digo mais: é preciso sonhar muito para realizar um pouco daquilo que se faz<br />

com alegria e generosidade. Já que os sonhos e desejos são ilimitados, por que a gente<br />

não pode sonhar nem que seja um pouco?<br />

Marcelo – Gostaria de acrescentar algo ao seu depoimento que considera relevan-<br />

te?<br />

Antônio – Eu gostaria de registrar o meu agradecimento ante a receptividade e o cari-<br />

nho que vocês tiveram neste trabalho da entrevista. Afinal, tudo isso implica reuniões,<br />

seleção de perguntas, conchavos, estudo e pesquisa dos dados relevantes do entrevista-<br />

do. Registro aqui para a posteridade que fui entrevistado por Cacareco, sobrinho queri-<br />

do. Cacareco é o apelido carinhoso de Ezenildo, segundo filho do mano José e de Edite.<br />

Ele foi o competente contrarregra de iluminação da sala, esta luminosidade que nos ilu-<br />

192


mina. Participou também ativamente da entrevista o Cláudio, meu sobrinho mais velho,<br />

filho de Givaldo. Foi ele quem deu o pontapé inicial para que este trabalho de memória<br />

acontecesse. E tem sido o incansável membro da família que vem trabalhando noutras<br />

frentes de memória, como fichas de registro de nomes, de falecimentos e de árvore ge-<br />

nealógica. Que os frutos apareçam, Cláudio. No aniversário dos oitenta anos da Madia,<br />

ele provou que era possível fazer um registro da memória de uma família que não tem<br />

vergonha de si mesma, porque é vitoriosa na vida e na felicidade. Muito obrigado,<br />

Claudio, eu queria lhe agradecer 46 . Muito obrigado, Cláudio, eu concordo inteiramente<br />

com você 47 . Não, foi um lindo testemunho, não há pelo que se desculpar. Eu gostaria de<br />

dar continuidade a meus agradecimentos. Desta vez, é a William, que, antes de tudo,<br />

disponibilizou o quarto dele para esta entrevista. Este quarto é o ninho dele e nunca vi o<br />

quarto dele tão arrumado (risos). Zenildo montou este feixe de luz e, <strong>sem</strong> ele, a qualida-<br />

de do vídeo talvez tivesse ficado comprometida. William ofereceu com grande compe-<br />

tência a assessoria no processamento das imagens. Agradeço a Hélio por ter compareci-<br />

do a esta entrevista depois ter feito mais de uma reunião para organizar esse roteiro de<br />

questões, trazendo a contribuição dele. Hélio é filho de Anísio e é um dos sobrinhos de<br />

46 Cláudio pede a palavra para dizer que essa ideia de resgatar a memória da família nasceu no dia do<br />

sepultamento da vovó Verônica. “Após o sepultamento dela, nós da família, viemos aqui para o quintal da<br />

casa do pai dele e organizamos um churrasco. Sentamos junto com o Anísio, o Toinho e o Hélio, que<br />

também estava com a gente”. Naquele momento, ele começou a falar desse seu desejo de lidar com a<br />

memória. Afirma ele: “Eu tenho uma pasta, onde eu guardo toda a documentação da família e aí não<br />

inclui apenas a família dos Guilherme, com os bodoques que eu recebi do Zé Guilherme e a planta da<br />

casa”. A pasta organizada por Cláudio nos é mostrada, e nela está escrito “Lampejos da Memória”. E<br />

continua ele: “Quando acontece de alguém falecer, anoto a data, a filiação... Tudo isso porque as pessoas<br />

vão partindo, e essa linda história da migração, das dificuldades, serve de lição e de lembranças para que<br />

não haja esquecimento dessa bela luta da família. A família <strong>sem</strong>pre se mostrou interessada, porque batalhou<br />

muito. O depoimento que o senhor nos deu aqui é muito interessante. É preciso sonhar? É! Mas é<br />

preciso batalhar para conseguir as coisas, como o senhor falou. Até para se conseguir realizar metade<br />

desses sonhos é preciso trabalhar muito e enfrentar muitas adversidades. São as enchentes na casa, são<br />

outras inúmeras dificuldades. Muitas vezes as pessoas passam por esses problemas e acham que somente<br />

a vida delas é cheia deles. Não! Olhe para trás e verá que teve muita gente que sofreu o dobro de você.<br />

Aquele agradecimento que o senhor fez a Zefinha Araújo, com aqueles reflexos na vida de todos os irmãos,<br />

assim como seu exemplo de vida como professor e como estudante, isso refletiu em nós, em nossa<br />

educação e certamente refletirá também na educação dos nossos filhos. Porque o tio Antônio <strong>sem</strong>pre foi<br />

um exemplo e, assim como a Zefinha Araújo está para vocês, da segunda geração, o tio Antônio está para<br />

nós da terceira. O estudo e o exemplo se refletem na vida inteira. Este trabalho é um marco de lutas por<br />

parte de pessoas que enfrentaram uma vida de luta, como a vó Madia, que é um exemplo de vida e <strong>sem</strong>pre<br />

bem-humorada. Ela tem todos os motivos do mundo para ser uma pessoa mal-humorada e, no entanto, é<br />

<strong>sem</strong>pre aquela alegria e disponibilidade. Tem gente que tem tudo e não consegue ser feliz”.<br />

47 Cláudio: “Desculpe, foi só um desabafo”!<br />

193


primeira hora envolvido nesta aventura do resgate da memória da família. Lembro que,<br />

naqueles momentos iniciais, mencionados por vocês há pouco, relembrando a família,<br />

nós estávamos reagindo à morte dos que se foram, evitando cair no esquecimento, tor-<br />

nando-os permanentemente presentes, e não tragados pelo passado. Naquele momento,<br />

Hélio, eu lembro que você estava muito atento e prestava muita atenção ao que seu pai e<br />

nós outros dizíamos. Você, inclusive, me incentivou a escrever aquilo que se falava ali<br />

de viva voz. Marcelo, segundo estou sabendo, após a morte do Givaldo ele tem sido<br />

muito presente. Principalmente no sentido de viabilizar todas as condições para a união<br />

dos irmãos em torno da mãe e demonstrar o quanto se deve permanecer fiel ao bom e-<br />

xemplo que Givaldo lhes deu. Tenho certeza de que amanhã você fará com a memória<br />

de seu pai aos seus filhos o que nós aqui estamos fazendo para os nossos. Lá atrás, estou<br />

vendo minha querida Débora, a filha de Virgínia e de Botinha, ela que trabalha em ban-<br />

co, longe de casa, que sai para o trabalho bem cedinho e, até uma hora como esta (mais<br />

de meia-noite) continua ali, paciente e firme. Veio participar da entrevista e colocar suas<br />

questões muito importantes, como uma prova de muito apreço e carinho. Finalmente, a<br />

distinta plateia composta de Isabel, esposa de Marcelo e da Tereza, viúva de Givaldo e<br />

mãe destes três marmanjos. Vi e observei que, mesmo não tendo colocado nenhuma<br />

pergunta, ficaram muito atentas e ouviram pacientemente o que tive a honra de ouvir e<br />

responder. A vocês todos, agradeço a improvisação deste estúdio de gravação. Acho<br />

mesmo que somente vocês seriam capazes de me propiciar esta alegria e me dar a honra<br />

de ser entrevistado. Muito obrigado.<br />

Marcelo – Nós é que agradecemos ao senhor por nos ter contado essas histórias<br />

maravilhosas de sua vida e da vida da família.<br />

Tereza – Foi bom conhecer um pouco mais sobre você, de sua vida, de Ricardo, da E-<br />

dil, de todos vocês.<br />

Cláudio – Em suma, obrigado pela franqueza (palmas).<br />

Débora – Só para fechar aqui, oh! E nós provamos que somos mesmo sobrinhos da<br />

Virgínia: bisbilhoteiros e fofoqueiros.<br />

194


Elias Jorge de Siqueira 48<br />

Antônio – Elias, você foi o primeiro dos nossos irmãos que nasceu no Moxóto per-<br />

nambucano – cidade de Sertânia - o que lhe lembra essa história do Moxotó de<br />

Pernambuco?<br />

Elias – A única coisa que eu me lembro desse negócio do Moxotó é que pai falava que<br />

quem nascia no Moxotó era preguiçoso. Eu não concordo com isso, porque, no nosso<br />

caso, nós <strong>sem</strong>pre cuidávamos do gado, íamos buscar de manhã cedo no roçado, ao mei-<br />

o-dia íamos novamente buscar para dar água; nós estudávamos, eu e Valdeci; e quando<br />

chegávamos da escola, a primeira coisa que fazíamos era buscar o gado para dar água.<br />

Antônio – Além desse trabalho de lidar com o gado, o que vocês faziam?<br />

48 Entrevista com Elias Jorge de Siqueira, em São Paulo (Jardim Adutora), esposo de Doralice Alexandre<br />

de Siqueira (Dora), feita em data de 11 de setembro de 2009. Pai de Eduardo e Luciana. Elias Jorge nasceu<br />

no dia 25 de abril de 1945 e veio a falecer em outubro de 2011.<br />

195


Elias – Olha, depois disso aí a gente ia caçar, matar passarinho, e eu, como era mais<br />

velho do que o Valdeci, <strong>sem</strong>pre me preocupava em ir atrás do gado; e o Valdeci, já na-<br />

quele tempo, era muito safado e não se preocupava em ir atrás do gado nem de nada. E<br />

outra coisa, quando a gente chegava à porteira e via o gado ou as ovelhas, concluía que<br />

quem estivesse na porteira estava com sede e o resto que não estivesse a gente não ia<br />

buscar coisa nenhuma. Portanto, quem não estava com sede não estava com nada. quele<br />

gado que estava na porteira a gente levava pra beber água lá nos poços do Moxotó.<br />

Antônio – E vocês, além de caçar e de matar passarinhos, de que brincavam?<br />

Elias – De vez em quando, a gente jogava uma bola de meia (rindo). Eu lembro muito<br />

bem que, uma vez, fizemos uma bola e, na hora de chutar, chutei uma pedra. Meu ami-<br />

go, a cabeça do dedo foi pro saco!<br />

Antônio – E pai, ele não se opunha a esse tipo de brincadeira?<br />

Elias - Não, o que ele detestava era uma peteca, também conhecida como estilingue,<br />

que lá chamava-se de “baleadeira” ou mesmo “baleeira” . Não gostava mesmo. Mas era<br />

uma diversão, não? Era eu, Valdeci e o Givaldo (Geová).<br />

Antônio – Além dos meninos da Madia, com quais outros vocês se relacionavam?<br />

Elias – Eram o Geová, o Severino (Liro) e depois vem Bia, de Valdevino, e o Caria<br />

(Zacarias). Essa era a turminha dos vizinhos, ali. Não tínhamos mais outros vizinhos.<br />

Antônio – Então, era cuidar do gado, caçar passarinho, um joguinho de bola aqui e<br />

ali... Você lembra alguma trela que vocês praticaram como meninos?<br />

Elias – Lembro uma vez, do velho Chico Félix, aquele f.d.p., onde nós, às vezes, pegá-<br />

vamos goiaba dele. Ele acusou a gente de ter subido no pé de goiaba dele. Avisou a pai<br />

que nós tínhamos entrado no roçado dele e, subindo nos pés de goiabas dele, tínhamos<br />

feito o maior estrago, comido e descascado as goiabas... Por conta disso, pai me deu<br />

uma surra grande. Valdeci, não. Motivado por isso, Luiz Gomes, sabendo do aconteci-<br />

do, ficou a nosso favor. E Paulo Felipe ficou tão revoltado que queria matar o pé de<br />

goiaba. Manoel então aconselhou não fazer mais aquilo, dizendo ele que, no final, se<br />

matás<strong>sem</strong>os o pé de goiaba, terminariam por saber que fomos nós. Terminamos deixan-<br />

do os pés de goiaba pra lá e ficou nisso mesmo. O tempo foi passando, pá, pá, pá... Chi-<br />

196


co Felix ficou doente e Anísio teve que ir tirar o leite das vacas dele. A velha Neném,<br />

esposa de Chico Félix, disse para o velho ir verificar se o Anísio não estava bebendo o<br />

leite (rindo...). Acontece que eu escutei o papo da velha e fui direto contar pro Anísio.<br />

O Anísio virou e derramou o balde de leite, foi embora e ficou por isso mesmo. O ve-<br />

lho, que já estava com o pressentimento de que a gente roubava as goiabas, acreditou na<br />

conversa da velha de que agora o Anísio estava também bebendo o leite que ele tirava<br />

das vacas.<br />

Antônio – Você lembra alguma presepada de Valdeci?<br />

Elias – Não, de Valdeci, não. Aliás, lembro só que, uma vez, eu e o Geová fomos bus-<br />

car uma lata d’água lá num barreiro de José Antônio e, na volta, Geová acertou a lata<br />

com uma pedra de “baleadeira” e furou a lata d’água, terminando por derramar toda a<br />

água pelo furo da lata. Madia, então, chegou e disse: “Mas quem foi que fez essa des-<br />

graça?” E o Givaldo ficou todo calado... Essas eram as presepadas de moleques, nós<br />

éramos todos moleques.<br />

Antônio – Elias, você lembra a escola da professora Dona Zefinha? Você estudou<br />

nela?<br />

Elias – Estudei! Lembro que todo final de ano tinha lá aquele negócio de fazer umas<br />

perguntas...<br />

Antônio – O “Argumento”.<br />

Elias, - Exatamente, “Argumento”. O Anísio era bom em matemática. Faziam aquela<br />

roda de meninos, e ele era doido para bater de palmatória em todo mundo. Numa dessas<br />

vezes, o Severino (Juca), nosso irmão já falecido, não quis entrar no “Argumento”. D.<br />

Zefinha, então, anotou num caderno que ele se recusara a participar da tarefa e mandou<br />

para pai. O Severino, então, no meio do caminho para casa, pegou o caderno, rasgou em<br />

quatro pedaços e jogou em cima de uma cerca de aveloz que tinha perto da escola (rin-<br />

do muito). E o Anísio ficou doido, porque o que ele queria mesmo era bater com a pal-<br />

matória em todo mundo. Ela sabia mesmo.<br />

Antônio – Como era Dona Zefinha?<br />

197


Elias – Era braba. Era muito severa. Chegava e intimava mesmo para se fazer as coisas<br />

dentro do certo. Era rigorosa nesse tipo de coisa. E, outra coisa, eu lembro que você,<br />

mesmo quando estudava pra padre, com o fim da escola lá no sítio, nós fomos estudar<br />

em Sertânia. Você chegou e fez umas perguntas, escreveu um negócio de religião cató-<br />

lica e eu respondi. Você, então, disse que nós já podíamos entrar na segunda série. Aí,<br />

então, fomos eu e o Valdeci estudar em Sertânia. Valdeci tinha jeito de bobo, eu o cha-<br />

mava de bobo. É que ele nem <strong>sem</strong>pre gravava muito as coisas, não estava nem aí... Eu é<br />

que chamava a atenção para as coisas. Nós entramos, então, para o ginásio. O tempo foi<br />

passando, nós estudando, um ano, dois anos... A escola era... Grupo Escolar Jorge Me-<br />

nezes, onde nós ficamos lá estudando. Depois, no final do ano, nós entramos no Ginásio<br />

Olavo Bilac, onde ficamos dois anos, eu e ele. Nós íamos a pé. Depois passamos a ir de<br />

jegue (rindo...). Nós tínhamos um jegue que pai tinha botado o nome dele de “Muafo”.<br />

Íamos no jegue e o deixávamos lá na padaria de Zezinho Moraes. Nós deixávamos o<br />

jegue e, de lá, subíamos e íamos para a escola. Com o passar do tempo, deixamos o je-<br />

gue pra trás e compramos uma bicicleta a José Antônio. Aí nós já estávamos bem, ía-<br />

mos de bicicleta, tal, beleza pura. Fizemos o ginásio, e a partir daí pai passou a pagar<br />

uma escola particular. Aí já era o curso de admissão, um negócio mais para frente. Era a<br />

escola de Dona Zila, a mulher do Ziro. Ela era funcionária do Correio. E aí o tempo<br />

passou, acabou e tal... E, então, nós viemos para São Paulo.<br />

Antônio – E a história de um saco de açúcar?<br />

Elias – Ah, sim! No caminho de casa para a escola em Sertânia, passou por nós, na es-<br />

trada, um caminhão carregado de açúcar e tinha um saco dependurado de um lado da<br />

carga. Caiu o saco de açúcar. A gente, que vinha de jegue, pegamos o saco de açúcar,<br />

botamos em cima do jerico... E tome pra casa. Nessa época, mãe estava aqui em São<br />

Paulo. Ela veio fazer uns exames. Quem ficou lá foi eu, Valdeci, Conceição e pai. Ele<br />

viu a gente chegar com o saco de açúcar e disse: pronto, vocês agora podem comer açú-<br />

car à vontade... A gente tinha um cachorro, e o nome dele era “Parrudo”. Todas as vezes<br />

que nós vínhamos da escola, à noite, “Parrudo” vinha nos encontrar, com uma alegria<br />

danada. Aí o tempo passou e nós viemos para São Paulo. Esse foi o passado nosso, meu<br />

e do Valdeci, no período em que nós éramos pequenos. Você estudava, na época; estu-<br />

dava no Rio Grande do Sul. Antes, você estudava em Pesqueira, depois em João Pessoa,<br />

198


depois foi pra Viamão, no Rio Grande do Sul e, depois para a Europa, na Suíça, onde<br />

passou cinco anos e meio.<br />

Antônio – Gostaria que você falasse das lembranças de sua convivência com os<br />

demais irmãos e irmãs...<br />

Elias – Olha, eu lembro bem que a Virgínia trabalhava em Sertânia com Genival Farias;<br />

trabalhou também com Severino, irmão da Enedina. Depois ela veio embora para São<br />

Paulo com o Juca (Severino). Ficamos eu, Valdeci e Conceição. Ela foi a última que<br />

veio, antes de nós, para São Paulo. O Manuel ficou um tempão no sítio, casou, ficou<br />

outro tempão, depois veio para São Paulo, mas só passou um ano e pouco em São Pau-<br />

lo. Voltou para o Nordeste, onde permaneceu até falecer. O Barbeiro (José) veio junto<br />

com Severino e o Anísio. O Severino veio um tempo para São Paulo, voltou para o<br />

Nordeste, casou, veio novamente para São Paulo, depois voltou de novo pra lá. Nessa<br />

época, eu estava lá sozinho, porque o Valdeci tinha vindo para São Paulo. Em seguida,<br />

veio o Juca, veio o Anísio e eu estava lá. Na época que o Anísio esteve lá, no Nordeste,<br />

na última vez, ele botou comigo o negócio de uma olaria, que não deu certo. Foi nessa<br />

época que eu comecei a namorar a Dora.<br />

Antônio – O que você se lembra do relacionamento de pai e de mãe com vocês? Os<br />

dois eram iguais ou diferentes? Em quê?<br />

Elias – Pai <strong>sem</strong>pre foi bruto. Era algo assim como um carrancismo. Tudo tinha que ser<br />

daquele modo que ele queria e porque ele queria. Quando ele via a gente com certas<br />

brincadeiras, ele ficava “muito macho”. Com mãe, ele <strong>sem</strong>pre foi muito bruto. Eu lem-<br />

bro bem que um dia mãe foi fazer um exame de vista em Campina Grande, e ele foi<br />

junto com ela. Ficamos em casa eu e o Manoel. O Manoel, aliás, mesmo depois de ca-<br />

sado <strong>sem</strong>pre ficava lá em casa direto. Amanhecia o dia e Manoel chegava lá em casa e<br />

só saía pra casa dele de noite. Zé Preto ficava lá em casa direto. Mãe, então, dividia o<br />

que ela tinha com eles. Nós tirávamos leite, fazia-se um queijinho; mãe vendia, ia para<br />

Sertânia com Zé Preto, no ônibus da empresa Realeza. No sábado, fazia as compras da<br />

feira e dividia com Manoel. Eu lembro bem disso aí. Ela e a Virgínia trabalharam muito<br />

costurando aquelas roupas de “carregação”. Virgínia costurou muito. Fazia negócio de<br />

“carregação” para Zé Vicente. Eu era moleque e lembro muito bem, eu e o Valdeci. E<br />

você estudando. Pai, aliás, deu muito apoio para você e o Juca. Dos irmãos, foi quem<br />

199


mais pai ajudou. Eu lembro muito bem que pai comprou dez garrotes magros, engor-<br />

dou-os, viraram boi, touros; pai vendeu e deu um carro pro Juca. Comprou um Mave-<br />

rick, um carro velho, e deu pro Juca. Eu lembro bem daquele pacote de notas, embru-<br />

lhado em papel de jornal... Ele ajudou. O tempo foi passando, não é, Antonio?<br />

Antônio – Então, você considera que ele ajudou muito mais ao Juca e a mim do<br />

que aos demais irmãos?<br />

Elias – Exato. Não dizer assim, nós éramos os caçulas. Mas, para Manoel, José e Anísio<br />

ele ajudava assim... Mas ele deu mais importância... (filmagem interrompida por moti-<br />

vos alheios à nossa vontade).<br />

Antônio – Voltando às suas lembranças, você considera que mãe era mais doce na<br />

sua relação com os filhos e filhas e, ao seu modo, ela conseguia equilibrar um pou-<br />

co o temperamento de pai?<br />

Elias – Exatamente! Ah, sim! Voltando àquela consulta que ela foi fazer em companhia<br />

dele em Campina Grande, ela fez a consulta, tirou os óculos etc. Aí, lá em casa, depois<br />

da janta, estava eu, Manoel - ele todo dia jantava lá em casa, à noite -, Anísio... Sei lá,<br />

eles tiveram uma discussão e pai pegou os óculos e quebrou, pisando em cima. O Ma-<br />

noel se intrometeu, e então eu cheguei junto e falei, falei certo, que ele não devia ter<br />

feito aquilo, tal, tal, tal... Ele também ficou quieto. Eu disse: “Mãe fez um exame, o se-<br />

nhor pagou <strong>sem</strong> discutir. Aí o senhor quebra os óculos, mãe fica <strong>sem</strong> eles, e agora?”<br />

Também ele ficou quieto e não falou mais nada. Mãe também falou umas coisas lá... eu<br />

lembro isso como se fosse agora. Fiquei chateado. Aí passou...<br />

Antônio – Você lembra a história do casamento de Flora, quando Zeca roubou<br />

Flora para casar?<br />

Elias – Eu escutei. Eu era pequeno e escutei, só. Não recordo de nada disso aí nem lem-<br />

bro quando Flora saiu, muito menos se ela namorava, nem com quem namorava. Eu<br />

lembro, sim, da Virgínia, que namorava o Manoel, de José Antônio. Também disso não<br />

lembro nada do final. Lembro quando se reuniram Anísio, Virgínia, Duda e Zé Filipe<br />

com o intuito de vir para São Paulo - isso foi em 1958. Ainda em 1957, o Anísio botou<br />

um roçado, viu? Quando eu era moleque, lembro que tinha a casa de Dona Joana, que<br />

era a mãe de Zeca. A gente estava lá, eu, Valdeci e Givaldo, fazendo uma peteca (esti-<br />

200


lingue) e Zé Guilherme chegou lá e cortou as borrachas das petecas. Aí nós “ficamos<br />

macho”. Outra coisa também que eu lembro quando era moleque é que Liro um dia bo-<br />

tou fogo ali pertinho da casa de Zeca, de Dona Joana. Eu cheguei de noite, e lembro que<br />

Manoel, de Zé Antônio, estava lá em casa. Pai, então, disse que nós tínhamos botado<br />

fogo. Eu falei que não havia sido nós que botamos fogo no capim. Ele bateu a perna,<br />

dizendo que tinha sido nós. Nessa hora, Liro ouviu a questão e disse prá pai: “Seu José,<br />

quem botou fogo lá no capim foi eu”. Outra vez - foi a última que ele me bateu -, eu e o<br />

Valdeci pegamos uma briga na cozinha. Ele chegou, me pegou e deu uma surra conde-<br />

nada. O fato é que eu apanhei; eu e o Valdeci, ele bateu em nós dois. No dia seguinte,<br />

amanheceu o dia - ele estava tomando café, - eu disse: “Pai é a última vez que o senhor<br />

me bateu. Daqui pra frente, se o senhor me bater, eu vou embora de casa”. E ele reagiu;<br />

“Cabra safado, você está me desafiando?” Eu disse: “Estou falando a verdade”. Tam-<br />

bém, a partir desse dia foi a última vez que ele me bateu.<br />

Antônio – Quando pai aplicava essas surras, qual era a reação de mãe vendo aqui-<br />

lo tudo?<br />

Elias – Mãe não aprovava nem gostava daquilo (emociona-se).<br />

Antônio – Caso você concorde, vamos encerrar este capítulo de memórias das mo-<br />

lecadas de Sertânia. Vamos agora falar de sua relação com Doralice. Quando e<br />

onde você a conheceu?<br />

Elias – Foi em Sertânia, aliás, em Pernambuquinho, num sítiozinho de José Laurindo.<br />

Num casamento lá, que fomos eu, Manoel, Bia - filho do velho Valdevino -, Antônio<br />

Feliciano. Nós fomos num jipe alugado. Chegamos lá e tal, não é? À noite, depois do<br />

casamento, começou um forró. Eu gostava de forró, não sabia dançar nada. Nessas ho-<br />

ras, o Manoel dizia: “Aprende, f.d.p!” (rindo muito). Nessa época, Manoel tomava uma<br />

cachaça da bexiga! Chegamos lá, começamos a tomar umas pingas, introduziram um<br />

“chapéu” e todo mundo ficou cheio das cachaças. O motorista do jipe, Ziro, veio nos<br />

buscar pra nos levar... (interrupção momentânea da filmagem por motivos alheios a<br />

nossa vontade). Aí, eu e Dora ficamos, continuamos nos namorando mais ou menos um<br />

ano - isso era em junho de 1966 -, todos os finais de <strong>sem</strong>ana; todo sábado e domingo, a<br />

gente se via. Ela era professora, lá no Sítio Catolé, na Paraíba, perto de Pernambuqui-<br />

nho. Lá no Nordeste, eu sentia que não tinha futuro nenhum, nada, nem de profissão,<br />

201


nada. Terminei por acabar o namoro. Aliás, vim aqui para São Paulo. Passei um tempo<br />

<strong>sem</strong> arranjar nada de emprego e depois achei que não fazia sentido continuar namoran-<br />

do e acabei o namoro. Depois, ela veio aqui para São Paulo, nós nos encontramos de<br />

novo, começamos novamente a namorar e terminamos casando.<br />

Antônio – Gostaria, agora, de saber quando e como foi a sua decisão de deixar o<br />

Nordeste e migrar para São Paulo?<br />

Elias – Tanto eu quanto o Valdeci, nós já tínhamos tido a experiência de viver em São<br />

Paulo. Eu mesmo, inicialmente, vim para São Paulo com doze anos de idade. Vou con-<br />

tar isso. Eu estava terminando o segundo ano ginasial, e pai teve a ideia de nos mandar<br />

para São Paulo. Obviamente que nós viemos contando com a Flora, que morava com<br />

Zeca na Vila Carioca. Nessa mesma época, o Valdeci foi morar com a Virgínia e a Con-<br />

ceição, que já estavam aqui. Ficaram os três morando lá na casa deles. Eu vim morar na<br />

Vila Ema, com o Anísio. Isso foi em 1959-1960... O Anísio casou em 1959... É, ele ca-<br />

sou lá em casa, em 1959. Ele já morava em São Paulo, na Vila Ema, e eu então vim<br />

morar na casa do Anísio. Aí fiquei na casa do Anísio. A partir daí, continuei a estudar,<br />

fiz curso de desenho. Nesse tempo, a Flora saiu da Vila Carioca e, como tinha comprado<br />

um terreno na Vila Ema, veio morar nela. Eu então passei a morar com a Flora. Aliás,<br />

eu estou antecipando as coisas. Antes de casar... (rememora) Olha, eu morei na Vila<br />

Ema, com a Flora, juntamente com o Geová e, a partir daí, é que eu voltei para o Nor-<br />

deste. Depois, então, que eu fui para o Norte é que comecei a namorar a Dora. Veja que<br />

eu fiz uma antecipação da história que estou lhe contando.<br />

Antônio – Então, você vem para São Paulo, mora na Vila Ema com Anísio e depois<br />

com Flora, faz curso de desenho, volta para o Nordeste... E o trabalho, quando<br />

começou a trabalhar aqui em São Paulo?<br />

Elias – Aqui em São Paulo, eu fiz o curso de soldador no SENAI. Nessas alturas, quan-<br />

do eu entrei no SENAI já estava namorando Dora. Esse curso foi muito bom e impor-<br />

tante. Através dele eu arrumei uma profissão, arrumei emprego em São Caetano, casei,<br />

comprei um terreno aqui, onde moro até hoje. Saí da firma em São Caetano e arrumei<br />

emprego em outra, em Diadema. Ao casar, fiquei morando ao lado da casa do Anísio<br />

durante sete anos. Depois, como já tinha comprado um terreno, construí aqui. Em Dia-<br />

dema, arrumei outra firma, saí dela e arrumei mais outra em São Bernardo, onde traba-<br />

202


lhei durante onze anos e terminei me aposentando. O nome das firmas era HETERA, a<br />

TOPEMA e a APV, de onde saí aposentado, em 1994.<br />

Antônio – Fale agora um pouco dos seus filhos...<br />

Elias – A Luciana e o Eduardo nasceram quando eu morava na Vila Ema. Ela nasceu<br />

em 1974, e o Eduardo em 1976. A Luciana teve um caso aí com um cara e arranjou uma<br />

filha, que é a minha neta e que mora comigo hoje. Arranjou outro namorado e também<br />

não deu certo; terminou arranjando outro namorado e casou; hoje, é casada. O Eduardo<br />

casou; mora comigo e... Estamos aí. O Eduardo trabalha, aliás, ele trabalhou numas fir-<br />

mas aí e foi mandado embora, trabalhou nas Pernambucanas. Já arrumou outro trabalho<br />

e vai começar na segunda-feira. A firma fica localizada em Guarulhos. A Luciana com o<br />

esposo estão parados; estão entregando currículos e correndo atrás de trabalho.<br />

Antônio – Elias, aqui em São Paulo vocês tiveram um apoio muito grande de Flora<br />

e de Zeca, não?<br />

Elias – Muito! A Flora, tanto para mim quanto para os meus irmãos - você sabe muito<br />

bem disso -, <strong>sem</strong>pre tomou a linha de frente. Quando ela via que o negócio estava erra-<br />

do, ela chegava e metia a boca. E ai daquele que não aceitasse o conselho dela. Era igual<br />

a pai e mãe. Sempre apoiava, agora tinha uma coisa: não pisasse em cima da bola - você<br />

sabe muito bem! A Virgínia apoiou e ajudou meio mundo de nossos irmãos. A Concei-<br />

ção casou com Laurindo, que, infelizmente, faleceu muito cedo. É outra batalhadora.<br />

Tem as filhas, mora lá na Vila das Mercês. Vive uma vida difícil, pois as meninas não<br />

casaram; uma delas também viveu uma aventura, teve um filho... É uma batalhadora.<br />

Está sobrevivendo com muita dificuldade com a pequena aposentadoria dela. A Virgí-<br />

nia, sabe como é que é, aquele negócio dela. Têm as meninas, a Débora e a Rosângela<br />

que não casam e já faz tanto tempo que Rosângela namora... Comprou uma bela casa,<br />

reformou e no ano que vem promete se casar. A Débora se formou, não teve auxílio de<br />

nada e trabalha hoje no banco, e acho que é o sustento da casa. O Aldir, nós conhece-<br />

mos muito bem como ele é. Senhor Anísio, como dizia Seu Valdevino, está lá no Mato<br />

Grosso do Sul do jeito que ele quer, não é? Tem muita coisa pra pescar, pra caçar, as<br />

cobras comendo os cachorros dele. Ele que se cuide, porque o IBAMA também está na<br />

parada, sabe como é que é... Ele tem tudo o que quer por lá. Tem uma aposentadoria<br />

boa, a nega também é aposentada, recebe o salário dela. Estão aí, tocando o barco. O<br />

203


Juca, coitado, infelizmente faleceu, cavou muito. A mulher mora hoje lá pro lado de<br />

Batatais, no interior paulista. Os filhos vão levando como podem. A Sônia teve o mari-<br />

do assassinado de bobeira. O José, coitado, faleceu. É assim a vida, Antônio.<br />

204


Valdeci Jorge de Siqueira 49<br />

Antônio – Valdeci, fale sobre as suas lembranças de infância...<br />

Valdeci – Pois é, professor! O que eu gostaria de lembrar sobre a minha infância, desde<br />

criança e desde quando eu me lembre, é o seguinte: na minha infância, quem convivia<br />

mais de perto comigo era o Elias, o Givaldo, enfim, os meninos de Zé Guilherme; aque-<br />

les que foram se tornando rapazinhos, mocinhos e por aí começou a nossa vida, a nossa<br />

infância, a nossa temporada. Veja bem, eu lembro que a gente estudava aqui com a<br />

49 Valdeci Jorge Siqueira, nascido aos 20 de janeiro de 1947. Casado com Rejane Cavalcante, é pai de<br />

Wagner, Sandreane e Luciana. Entrevista feita aos 12 de maio de 2009, em Sertânia, na Fazenda Santa<br />

Luzia, herança da família, onde reside.<br />

205


Dona Zefinha, aliás, eu não, vocês. Efetivamente, eu comecei na escola do São Francis-<br />

co, a escola de Dona Izaura, esposa de Seu Lino. Para a escola, daqui saia eu, Elias, o<br />

filho do finado Amaro, Suely, de Chico Félix, enfim, as meninas de Zé Antônio: Edite e<br />

aquela outra, que eu agora esqueço o nome dela... Edileuza! Então, durante uns certos<br />

anos nós estudamos no São Francisco. A gente ia para a escola na parte da manhã, e<br />

depois, na parte da tarde, a gente cuidava das ovelhas, que geralmente ficavam aos cui-<br />

dados meus e do Elias, <strong>sem</strong> esquecer que contávamos também com a ajuda do Givaldo<br />

e dos meninos de Zé Guilherme. Então, foi assim que levamos aquela vida até à idade<br />

de doze anos, mais ou menos, onze, dez anos... Estudamos mais um certo tempo com<br />

João Cabral [aponta para a frente], depois a gente foi estudar em Sertânia, começando<br />

no Jorge Menezes e, depois, fomos para o colégio Olavo Bilac, onde cursamos até a<br />

segunda série. Mas, enquanto isso, a Madia já tinha ido embora para São Paulo, e a gen-<br />

te não contava mais com a companhia do Givaldo e dos meninos. Então, eu e o Elias<br />

ficamos sós aqui. Durante esse tempo de infância, o que eu lembro bem é aquela amiza-<br />

de que a gente tinha como criança com os meninos Severino, Liro, que passaram aque-<br />

les tempos todos com a gente. Isso com a idade de até quatorze ou quinze anos. A partir<br />

daí, nós fomos para São Paulo, eu e o Elias. Pai resolveu... não sei! Acho que foi a Flora<br />

que pediu que a gente fosse para São Paulo e, então, a gente teve essa chance de viajar<br />

para São Paulo. Saímos daqui e fomos para a casa dela. Só que, aqui, ficaram apenas<br />

pai, mãe e Manoel. Passei aqueles anos todos em São Paulo, de 1962 a 1970. Nesse en-<br />

tretempo, saí da firma, depois fui para o Exército, onde passei mais de um ano, depois<br />

voltei para a mesma firma, fiz um acordo. Nessa firma, comecei trabalhando em “servi-<br />

ços gerais”, e como a firma tinha umas maquininhas que selecionavam a qualificação de<br />

alguns operários, então passei a trabalhar naquelas máquinas. Mas aquilo não represen-<br />

tava um meio de conseguir uma profissão. É tanto que, como trabalhador em São Paulo,<br />

eu não tive a chance de me firmar numa profissão. Não trabalharia em firmas se não<br />

tivesse feito um curso. Você bem sabe que, em São Paulo, as pessoas começavam a tra-<br />

balhar numa firma e, depois, se tornavam profissionais <strong>sem</strong> nunca ter estudado numa<br />

escola. Eu fiz um curso, de dois anos, de mecânica de automóvel e, a partir daí, e com<br />

essa pequena experiência, eu passei a ter a possibilidade de dirigir um carro; isso me<br />

despertou muito. Fiquei praticamente uns dois anos, dois anos e meio, com a Virgínia,<br />

vendendo roupa lá no Paraná. Em seguida, voltei para São Paulo, lá nos idos dos anos<br />

206


setenta. Foi em seguida que vim aqui ao Nordeste fazer uma visitinha a pai e a mãe,<br />

pois já fazia praticamente oito anos que eu vivia fora daqui. Então, vim para cá.<br />

Antônio – Você, em São Paulo, teve a experiência de servir ao Exército. Acho<br />

mesmo que foi o único da família a ter servido ao Exército. Fale dessa sua experi-<br />

ência de quartel...<br />

Valdeci – O que eu guardo desse pouco tempo em que servi no Exército é que ele é uma<br />

boa escola, sabe? No Exercito, se ensina de tudo, e o cara aprende de tudo, digo: dentro<br />

das possibilidades e do interesse de cada um. Se, por exemplo, ele tiver um certo conhe-<br />

cimento, é claro que, no futuro, vai adquirir uma certa posição, não é isso, professor? E<br />

aquele que não tem, ele sai como soldado mas, de qualquer maneira, tendo a sua reser-<br />

vista de primeira categoria. Isso dentro do conhecimento e do comportamento de cada<br />

um que fique lá um ano e saia na primeira baixa. Ai eu, voltando a São Paulo, tive a<br />

oportunidade de adquirir conhecimento em relação à vivência e convivência em São<br />

Paulo, na vida com todo mundo, não é? Durante o tempo que eu passei no Exército,<br />

observava que eles exploravam a capacidade de cada um daqueles que ali serviam. Foi<br />

aí que eu levei ao conhecimento deles que, além do bom comportamento que eu tive, eu<br />

possuía uma capacidade de atirador. Em função disso, eu passei a competir com outros<br />

que também tinham a função de atirador e passei a me destacar. Essa foi uma graduação<br />

que eu tive durante o tempo em que servi ao Exército. Sempre tive um bom comporta-<br />

mento, nunca pratiquei coisas que não deveria. Saí na primeira baixa, e tudo bem. Sain-<br />

do do Exército, voltei à firma e, como já falei, fiz um acordo, recebi um dinheirinho que<br />

serviu de capital inicial para, juntamente com a Virgínia, tornar-me feirante em São<br />

Paulo. O Elias fez um curso de mecânica, no SENAI, coisa que eu não fiz. Cursei algo<br />

ligado à profissão de automóvel. O Elias é que teve a chance de fazer um curso que lhe<br />

deu uma especialização profissional que hoje é a garantia da sobrevivência dele. Isso ele<br />

deve ao curso que fez no SENAI. Nesses oito anos em que vivi em São Paulo, a gente<br />

passeou muito, se divertiu muito, porque lá era o centro da família e, foi muito bom.<br />

Depois disso, eu vim embora e, aqui chegando, só tinha pai, só tinha mãe, os dois já<br />

com uma certa idade, você sabe. “Seu Manoel”, dono de casa, morando na casinha de-<br />

le... Então, eu fiquei porque não tinha mais condições de voltar para São Paulo ausen-<br />

tando-me de pai e mãe. Fiquei aqui setenta e um, setenta e dois; no final de setenta e<br />

dois, pai adoeceu. Fez uma cirurgia de hérnia, em Arcoverde, e chegou a melhorar da<br />

207


hérnia. Mas, não foi o suficiente para garantir a saúde e sobrevivência dele, não é pro-<br />

fessor?! Por trás de tudo aquilo, ele tinha um outro incômodo que o fez sofrer, sofreu<br />

dois a três meses, um sofrimento muito grande até que veio a falecer. Então, eu fiquei<br />

com mãe, depois a Flora veio aqui e levou mãe para São Paulo; ela ficou aquela época<br />

em São Paulo, depois voltou, voltou de novo para São Paulo, e eu fiquei em definitivo.<br />

Antes da primeira ida de mãe, eu conheci a Dona Rejane. Começamos a namorar e pas-<br />

samos três, não, quatro anos e foi quando em pensei em me casar. Casei-me, mãe foi<br />

para São Paulo. Nós ficamos aqui, e depois nasceu o primeiro filho, Wagner, depois de<br />

dois anos de casados, não é mesmo, Dona Rejane? Depois, veio a Sandreane e, depois,<br />

veio Luciane. São três os filhos. Bem, enquanto isso, depois que pai faleceu e fizemos o<br />

inventário da propriedade, eu pensei em encontrar mais um meio de vida para nós a-<br />

companhar aquilo que já vínhamos tendo na agricultura e criando uns bichinhos e tal...<br />

Foi quando comprei o meu primeiro tratorzinho. Comprei o primeiro trator, e aquilo foi<br />

muito bom porque, naquela época, a gente pôde plantar mais, produzir mais, não é? É<br />

tanto que, até hoje, ainda tenho o trator, que está com trinta e tantos anos, e o tratorzi-<br />

nho ainda continua do lado, sabe, professor! Portanto, essa é a história minha, aqui, du-<br />

rante todo o tempo que estive aqui e não me arrependo. Continuo morando aqui, preten-<br />

do morar ainda, não é? Só que, agora, nós sabemos que foi embora parte da família:<br />

faleceu pai, faleceu mãe, nossa irmã Flora, Severino, José, Manoel, Marlene, Zé Preto,<br />

Chico, Edilnete, enfim, diminuiu muito a nossa família. Mas, eu continuo aqui, rece-<br />

bendo alguém que vem de São Paulo, que vem passear, inclusive o professor, que <strong>sem</strong>-<br />

pre está aqui junto com a gente. Vivemos criando galinhas, tipo essas que estão aqui<br />

cantando. Enfim, professor, é a vida. Finalmente, queria deixar isso claro, como um<br />

retrato de minha infância.<br />

Antônio – Gostaria que você falasse da sua convivência com os irmãos, o dia-a-dia<br />

de vocês, as brincadeiras, as caçadas, a diversão, o passa-tempo...<br />

Valdeci – Veja bem, o costume sertanejo com relação a caçar no mato, geralmente, a<br />

gente aprende com os da família. Os nossos pais e os nossos irmãos é que passaram isso<br />

para a gente. Eu cacei muito pouco, aqui. No entanto, pai, Manoel, o Anísio e o Barbei-<br />

ro, na época em que eles viviam aqui, eles <strong>sem</strong>pre caçavam. O Barbeiro, por exemplo,<br />

era especialista em caçar com cachorro. Todo e qualquer cachorro para ele tornava-se<br />

208


um cão de raça. Ele tinha assim uma espécie de jeito, de ímã, que fazia com que o ca-<br />

chorro se adaptasse a ele muito bem como caçador.<br />

Antônio – Acho até que ele, Barbeiro, herdou esta qualidade do nosso tio Pedro,<br />

irmão de nosso pai.<br />

Valdeci - Exatamente, o tio Pedro era especialista nessa técnica desportiva. O “Senhor<br />

Anísio”, [era assim que um vizinho nosso de Santa Luzia, seu Valdevino, referia-se<br />

a Anísio e, mais tarde, essa expressão foi adotada por Givaldo] na época em que a<br />

gente era solteiro, era pescador e um grande caçador. Caçava de espingarda e gostava<br />

muito de pescar. É tanto que, quando ele se foi ao Mato Grosso do Sul, ele já levava a<br />

profissão de pescador e caçador como certa. Isso ele não aprendeu lá em São Paulo,<br />

nem no Mato Grosso. Ele já levou daqui as experiências que ele tinha no mato, caçando,<br />

a noite, de espingarda, matando as coisas de noite, como a paca, por exemplo. E na pes-<br />

caria ele pôde pescar muitos peixes naqueles grandes rios de São Paulo e do Mato Gros-<br />

so. É tanto que hoje ele se encontra lá, no Mato Grosso, invadindo as águas daquele<br />

Paranazão. O Manoel caçava muito, mas de espingarda, tá entendendo? O Elias, aliás,<br />

eu tive uma infância brilhante com o Elias, aqui, na nossa fazenda, como também com o<br />

Givaldo. No período em que Givaldo morava aqui, a gente brincou muito por esses al-<br />

tos, a gente tirou muito mel de abelha de “inxu”, e isso ficou como uma infância muito<br />

boa, sabe? Uma infância que a gente nunca esquece, não é?<br />

Antônio – Essa longa experiência de cuidar sozinho da fazenda, ao lado da compa-<br />

nhia do Manoel, lhe marcou muito?<br />

Valdeci – É, depois de tudo isso aí, mãe terminou indo para São Paulo e ficamos eu e o<br />

Manoel. E o professor lá no Recife. Seu Manoel ficava aqui com a gente e tomava conta<br />

do gado, naquele período em que eu me ausentava para trabalhar no trator com Zé Pre-<br />

to, fazendo aração de terras dos vizinhos. Na época da colheita, era a mesma coisa, fazí-<br />

amos a colheita na região e passamos o tempo levando a vida assim. Depois disso, foi<br />

quando Seu Manoel adoeceu, dois anos atrás. A partir daí, ele não permaneceu mais<br />

junto da gente e terminou falecendo, seguindo-se da morte de Zé Preto, de Chico e, ago-<br />

ra, com a doença grave de Anísia, em São Paulo. Ou seja, a Fazenda Santa Luzia, além<br />

dos nossos pais, perdeu o seu mastro. Mas, a vida continua e nós não podemos dispor da<br />

convivência com todos para <strong>sem</strong>pre...<br />

209


Antônio – Você recorda de alguma aventura do tempo de escola, em Sertânia, onde<br />

você e Elias estudavam?<br />

Valdecí – Ah, sim! No tempo em que eu e o Elias estudávamos em Sertânia, nós íamos<br />

para a escola em lombo de jumento. Certa vez, voltando para casa, deparamos com um<br />

volume na estrada. E descobrimos que aquilo era um saco de açúcar que teria caído da<br />

carga de um caminhão. Tivemos uma certa dificuldade de colocá-lo na lua da sela. Mas<br />

encontramos um jeitinho, colocamos em cima e trouxemos o saco de açúcar para casa.<br />

Aqui chegando, pai e mãe ficaram muito alegres com a quantidade de açúcar e eu lem-<br />

bro que pai disse o seguinte: a partir daquele dia, nós teríamos toda liberdade em fazer<br />

garapa, pois havia muito açúcar, Isso tudo são coisas que a gente não esquece e ficou<br />

marcado na nossa lembrança de menino.<br />

Antônio – Quando você estava no Sul, houve um acidente com você em Paranaguá,<br />

não?<br />

Valdeci – Nessa época, eu vendia roupa com a Virgínia em Paranaguá e, no dia 25 de<br />

dezembro de 1967, não esqueço mais essa data, eu, junto com o Branco, um sobrinho do<br />

Zéca, que tinha uma venda, fomos a uma cidade próxima buscar uma provisão de bebi-<br />

das. Não tivemos muita sorte, porque, no caminho, sofremos uma virada da caminhone-<br />

te. Nessa virada, eu fui parar no barranco da estrada, lá embaixo. E, com isso aí, eu qua-<br />

se que ia, quase morri, não é? Levei uma pancada na cabeça, sangrou muito, e eu fiquei<br />

desacordado por uns tempos. Mas fui recuperando devagarzinho e melhorei. Falando<br />

em acidente, lembrei de um que, recentemente, aconteceu comigo aqui, nesta BR-110.<br />

Outro acidente, e esse foi horrível. No Paraná, o acidente foi com uma caminhonete, e<br />

aqui foi com uma carreta que transportava milho do Paraná; eu acredito que era do Pa-<br />

raná. Como você vê, o Paraná nunca me esqueceu. Há uns quatro anos, a gente saiu para<br />

fazer uma caminhada, não foi, Rejane? Eu <strong>sem</strong>pre fazia umas caminhadas. Acordei ce-<br />

do, vesti um short e fui fazer a tal caminhada pela BR-110, aqui ao lado, saindo daqui<br />

para o São Francisco, que era o percurso que eu fazia todos os dias. Quando passei ali<br />

pela ponte, já um pouquinho mais em cima, ouvi, pelo barulho, que se aproximava uma<br />

carreta no sentido Sertânia-Monteiro. Exatamente nessa subida aí que leva à casa do Seu<br />

Manoel, onde eu estava passando, a estrada tinha muitos buracos e, não sei como nem<br />

por que, a carreta fez um movimento brusco que chegou a se chocar com um carro que<br />

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vinha em sentido contrário. O fato é que a carreta bateu no carro, tombou no barranco, e<br />

uma parte da carga do milho - era uma carga a granel - caiu por cima de mim, jogando-<br />

me lá embaixo, de uma boa altura. Mas, mesmo assim, eu pude me levantar, tonto com<br />

aquele barulho todo e com uma poeira imensa da carreta que se arrastava pela ribanceira<br />

do barranco. Eu fiquei meio doido, pensando que a carreta iria passar por cima de mim.<br />

Graças a Deus, tive sorte, saí com pequenos arranhões, porém <strong>sem</strong> maior gravidade.<br />

Antônio – Valdeci, você tem algum sentimento marcante com relação aos parentes<br />

nossos?<br />

Valdeci – Olha, para todos nós, a lembrança que... Foram várias, não é, Antônio?! A<br />

Flora e o Zeca acolheram todos nós em São Paulo, desde os anos cinquenta. E a nossa<br />

convivência com Flora e Zeca foi marcante, porque eu acho que todos os dias nós tí-<br />

nhamos alegria na casa do Zeca. Houve alguns momentos difíceis com relação a empre-<br />

go, salário, dificuldades porque sabemos que todos eles eram assalariados... Mas a casa<br />

da Flora nunca foi uma casa de desprezo. Era <strong>sem</strong>pre uma casa cheia. Uma casa onde o<br />

que tinha em termos de alimentação e bondade sobrava. Eles se foram de São Paulo<br />

para o Paraná e se deram muito bem. Saíram de São Paulo por conta do casamento da<br />

Irene, que decidiu morar no Paraná, e eles quiseram acompanhá-la com o Jacaré, sobre-<br />

tudo buscando a companhia da família, que já morava lá. Por isso mesmo, passaram<br />

uma temporada ausente da família que vivia em São Paulo. Mas isso não impedia de<br />

muitos irem ao Paraná ou eles virem a São Paulo. Quer dizer, em relação a dias marcan-<br />

tes é isso mesmo que eu acabei de dizer. Toda vez, todos os dias, eram dias marcantes<br />

na casa da Flora. Com relação a Manoel, aqui pra gente, o que mais marca é você... Por<br />

exemplo, você... [chora]. Travou agora! O que muito marca a vida da gente aqui é você<br />

ver, por exemplo, numa noite de lua, você ver aqui ao lado da casa do Manoel... [cho-<br />

ra]. Manoel era brincalhão, fez tudo aquilo que nós sabemos, mas o que marca é você<br />

sair uma hora da noite, ver uma lua clara, ver esse alto aqui e o que vem em minha lem-<br />

brança e prende logo minha imaginação é saber que Manoel não existe mais. Você sai<br />

ali na várzea de Zé Bernardo, como a gente viu hoje, toda ela se “destiorando” [estio-<br />

lando]; uma várzea daquela, toda cheia de mato e que nunca foi daquele jeito... E aquilo<br />

ali foi toda a história de Seu Manoel. E, no mais, professor, infelizmente é isso. Quanto<br />

ao José... O Barbeiro, com toda aquela calma dele, saiu daqui para São Paulo, em 1957.<br />

O Barbeiro também foi outra pessoa que fez muita falta para a gente com a ausência<br />

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dele. Sofreu muito. Morou durante muito tempo naquela casinha, embora o terreno fos-<br />

se dele; mas ele passou boa parte da vida em São Paulo, morando naquela casinha pobre<br />

e humilde. Mas, mesmo assim, tinha muita alegria. Depois ele comprou aquele terreno<br />

com o Givaldo e pôde construir a casa dele, com o salão de barbeiro livre, não é? E ali<br />

foi onde ele arrumou o pão, com a Edite trabalhando. Uma das coisas que me marcam<br />

muito sobre o Barbeiro, aqui, no <strong>sertão</strong>, na fazenda, no nosso terreno, era ver como o<br />

José era caçador. Uma vez, ali no açude, na várzea do açude, ele conseguiu arrancar de<br />

uma vez quatro pebas de um buraco. E a história desses pebas ele contava <strong>sem</strong>pre. Até<br />

que, coitado, vindo de São Paulo, entendeu de fazer uma caçada aqui, à noite, e saiu ali<br />

na serra, na frente da casa de Seu Manoel, ali perto daquele barreiro. E, por sinal, era<br />

uma época de inverno, como agora, e o barreiro estava cheio. O Barbeiro vinha de noite<br />

e pisou lá em falso na beirada do barreiro e caiu lá dentro. Ele pensou que ia morrer,<br />

sabe, com aquele susto que ele teve. Molhou-se todo. Isso são coisas que marcam. Co-<br />

mo uma daquelas viagens que o Barbeiro fazia de São Paulo para cá. Quando a gente<br />

menos esperava estava o Barbeiro por aqui. Sem contar uma dessas viagens que ele fez<br />

em companhia do Severino, saindo do Recife para São Paulo. Aliás, eles vieram para o<br />

Recife e lá o Severino comprou um Volks. Eles, então, vieram de carro para cá e, daqui,<br />

voltariam para São Paulo. Passaram uns dias por cá, o Juca [apelido do Severino] todo<br />

satisfeito, arrumando o carrinho dele, esperando que chegasse o dia dele voltar para São<br />

Paulo. Então, foram para São Paulo, levando o carro. Naquela época, eles estavam com<br />

pouco dinheiro e, já chegando em São Paulo, faltou gasolina. Tiveram que vender o<br />

pneu de suporte do carro para agar a gasolina. Foi um verdadeiro sufoco para eles, sabe?<br />

Aliás, as viagens do Barbeiro <strong>sem</strong>pre tinham certos atropelos que davam ocasião dele<br />

poder contar as histórias dele... Quanto ao Severino, vivia aqui na época de solteiro,<br />

comprou com pai aquela caminhonete em Caruaru. Lembrando bem, acho que aquilo foi<br />

um sofrimento, um aprendizado para ele, mas não deixou de ser um sofrimento. Porque<br />

ele começou com um carrinho que não tinha condições de nada, professor. Aí foi pra<br />

São Paulo com ele, sofreu muito com ele aqui porque o carro quebrava demais. Inven-<br />

tou de ir para São Paulo levando uma carreada de jerimum daqui, que era para apurar<br />

dinheiro e fazer um capital. Chegando em São Paulo, passou uma época com esse carro,<br />

depois voltou com ele aqui. Regularizou alguns documentos dele que estavam irregula-<br />

res e depois voltou com ele, já tendo vendido esse carro. O Juca <strong>sem</strong>pre teve uma vida,<br />

uma longa vida de muito trabalho, muito sacrifício, não é?<br />

212


Antônio – Fale de você e de Rejane, de sua vida de família...<br />

Valdeci – É, professor, a gente... eu sou feliz. Embora que a Dona Rejane esteja ali pre-<br />

sente, ela vai ter de me ouvir o que eu vou contar e vou confessar. Graças a Deus, eu<br />

posso dizer que vivo feliz e fiz um bom casamento. Construí uma família e gosto muito<br />

dos meus filhos e estamos aí na luta, estamos vivendo. Durante todo esse tempo, Dona<br />

Rejane tem sido uma senhora dona de casa. Hoje ela está com uma dorzinha numa per-<br />

na, mas isso é coisa do dia-a-dia, não é, professor? São trinta e três anos de uma boa<br />

convivência, sabe, e eu espero que isso aí continue mais trinta e três vezes três, sabe? E<br />

os meninos estão aí. O gordo está aqui com a gente, saiu de João Pessoa; a Sandra é<br />

casada, como todos sabem. Luciane está para se casar este ano. Termina também o cur-<br />

so dela este ano. Pretendo viver muitos anos aqui com eles e com alguém da família que<br />

<strong>sem</strong>pre nos procura, por muitos e muitos tempos.<br />

Antônio – Valdeci, você gostaria de deixar uma mensagem para a família, os netos<br />

e os sobrinhos?<br />

Valdeci – Eu acho o seguinte: para os meus sobrinhos, professor, se eles seguirem os<br />

exemplos que nós, hoje, os mais velhos da família deixamos, esse jeitinho nosso, acho<br />

que eles terão um futuro pela frente, em termos assim de convivência, de querer bem à<br />

família, enfim, de viverem felizes. É o que eu posso dizer. Que eles nunca esqueçam a<br />

gente, desde o começo da nossa história que é justamente o que você está passando aqui<br />

pra eles, e que possam viver <strong>sem</strong>pre bem, viver unidos, <strong>sem</strong>pre levando em considera-<br />

ção esse bom exemplo que acho que nós demos e que continua.<br />

213


Doralice Alexandre de Siqueira 50<br />

Dora – Eu sou nordestina, filha de pais nordestinos e paraibanos. Fiquei na minha terra<br />

natal até os dezenove anos. Antes de vir para São Paulo, a minha infância foi toda ela no<br />

Nordeste. Comecei a frequentar a escola aos meus sete anos de idade. Fui alfabetizada<br />

num grupo escolar da Paraíba, num lugar chamado de Queimadas. Depois, fui para a<br />

cidade de Sertânia, que já fica em Pernambuco. Foi ali onde terminei o primário e lá<br />

acabara de ser fundado um colégio chamado de Nossa Senhora da Conceição, colégio<br />

das freiras franciscanas. O patrono era o pároco da cidade, monsenhor Urbano de Car-<br />

valho. Fomos nós que inauguramos aquele colégio das freiras. Naquela época a gente<br />

fez o admissão, digo, o programa de admissão; depois dele, a gente estava preparado<br />

para fazer o curso ginasial. Mas aí, em virtude das condições financeiras dos meus pais,<br />

não foi possível começar o ginasial. Então, eu só fiz o admissão e voltei para o sítio.<br />

Nessa altura, eu já estava sendo criada por meus avós. Porque com meu pai eu fiquei<br />

pouco tempo, pois quando eu tinha cinco anos de idade ele se separou da minha mãe, e<br />

50 Doralice A. Siqueira (Dora) esposa da Elias Jorge Siqueira. Entrevista feita em 11 de setembro de<br />

2009, Jardim Adutora – São Paulo.<br />

214


eu então fui criada por meus avós. Quando eu fui para Sertânia, para o colégio, fazer o<br />

meu curso de admissão, eu já estava sendo criada por meus avós. Então, eu não pude<br />

dar prosseguimento aos meus estudos, Antonio. Eu tinha muita vontade de estudar; o<br />

meu maior desejo era estudar, mas não consegui dar continuidade; voltei para o sítio e<br />

fiquei na roça. Mas eu não gostava daquela vida da roça. Eu tinha vontade, sim, de ir<br />

para a cidade, tinha vontade de ir para um lugar onde pudesse evoluir, né! Um lugar<br />

onde eu pudesse estudar e trabalhar. Nessas alturas, foi quando eu conheci o Elias. Eu<br />

tinha feito dezesseis anos quando eu conheci o Elias. Quando eu conheci o Elias, eu já<br />

estava morando com uma família lá da Paraíba. Naquele tempo, os prefeitos das cidades<br />

pequenas, como era o caso de Monteiro, convidavam aquelas moças para alfabetizar as<br />

crianças nos sítios das fazendas, né? Eu então fui convidada para ser uma dessas profes-<br />

soras, vamos dizer leigas, né? Eu fui, então, alfabetizar crianças numa casa cujo dono se<br />

chamava José Laurindo e a esposa chamava-se Laura; e foi aí que eu conheci o Elias,<br />

numa festa de casamento. Conheci o Elias e começamos a namorar. A cada quinze dias,<br />

eu vinha na casa dos meus avós. Eu levei ao conhecimento deles que eu tinha conhecido<br />

esse moço e o Elias era filho do Seu Zé Jorge, que tinha sido um amigo do meu avô.<br />

Meu avô chamava-se José Alexandre de Souza, morava na Paraíba, perto de Monteiro,<br />

no lugar chamado Queimadas. Eu levei ao conhecimento do meu avô que tinha conhe-<br />

cido esse moço, e ele ficou satisfeito porque sabia quem era o pai dele, uma família as-<br />

sim de renome. Eu sei que o namoro foi bem aceito. Aí nós ficamos namorados por uns<br />

meses, e eu tinha um grande sonho de vir aqui para São Paulo. O Elias falava pra mim<br />

que já tinha vindo aqui pra São Paulo na época em que ele era adolescente. Eu falava<br />

prá ele: “Quem sabe, a gente casa e acaba indo morar em São Paulo”. Ele contava pra<br />

mim que havia muita ilusão com São Paulo, que não era fácil chegar aqui e conseguir as<br />

coisas. São Paulo era muito difícil. Mas ele falava: “Quem sabe, não é?”. Eu sei que,<br />

passados alguns meses de namoro, eu já estava conhecendo a família dele, porque eu<br />

ainda não conhecia ninguém. Só por nome, assim, porque meu avô falava... Mamãe<br />

tinha sido muito amiga das meninas, também, e falava muito no nome dessas moças,<br />

que tinham sido amigas dela. Então, eu sei que foi bem aceito o namoro. Passados al-<br />

guns meses, o Elias tomou a decisão de vir embora aqui para São Paulo. Levou ao co-<br />

nhecimento do meu avô que precisava vir porque ele estava namorando e queria casar<br />

comigo, mas para tal precisava vir a São Paulo para arrumar a vida, né? Naquele tempo,<br />

acontecia muito dos moços virem aqui pra São Paulo e as moças ficavam lá, guardando<br />

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aquela fidelidade aos moços. Assim se deu com a gente. Ele veio e arrumou um empre-<br />

go, mas, logo de início, ele não foi bem-sucedido, né? Ele obedecia muito à Flora, e a<br />

gente já se considerava um casal de namorados comprometidos, não? Tínhamos respon-<br />

sabilidade de futuramente assumir um casamento. Eu só sei que a Flora, muito preocu-<br />

pada, depois o aconselhou a desistir daquele namoro, rompendo praticamente com a<br />

possibilidade de casamento, não é, Antônio? Eu tinha ficado com o anel de compromis-<br />

so e naquela satisfação imensa, e a família também. Meus avós, que me criavam, ma-<br />

mãe também que morava comigo, junto do meu avô externavam essa alegria. Ele cuida-<br />

va de mamãe e cuidava da gente. O Elias e eu ficamos nos correspondendo; uma vez<br />

por mês, ele mandava uma carta e vice-versa. Depois de certo tempo, ele estacionou na<br />

correspondência. Eu escrevia e não recebia resposta. Aquilo me causou preocupação no<br />

sentido de saber o porquê de meu noivo não mais estar me escrevendo. Nesse clima,<br />

quando eu menos espero chega uma carta pra mim. E eu, com aquela felicidade imensa,<br />

ao abrir a carta fiquei consciente de que não estava sendo bem-sucedida. Tive uma sur-<br />

presa muito desagradável, porque ele estava rompendo com a possibilidade de casamen-<br />

to. Ainda mais porque eu estava com um anel de compromisso; certo que não era uma<br />

aliança de ouro, mas a gente considerava já um futuro casamento. Na carta, ele me fala-<br />

va que não estava preparado, que a situação estava muito difícil e, para não tomar mais<br />

o meu tempo, ele achava por bem desistir, e eu estava livre para partir para outro. Então,<br />

aquilo foi um sentimento grande que eu tive, e minha família também. Eu fiquei muito<br />

magoada, porque eu não esperava aquela surpresa tão desagradável. Isso foi em 1968,<br />

junho de 1968. Passaram-se alguns meses, e eu meio decepcionada porque sabia que<br />

não havia motivo para que aquilo viesse acontecer... Eu, que já tinha aquele desejo i-<br />

menso de vir aqui para São Paulo, depois daquele acontecido aumentou em mim mais<br />

ainda a vontade de vir embora. Naquela região, eu olhava assim para todos os lados e só<br />

via lugares muito escassos, atrasados; a situação financeira das pessoas era cada uma<br />

pior que outra... Eu dizia: meu Deus do céu, eu não tenho condições de estudar para me<br />

preparar. Aqui, por qualquer coisa, basta a gente olhar para um moço que ele já quer<br />

casar. Naquela época, qualquer coisa que viesse manchar a honra de uma moça denegria<br />

a imagem de toda a família, não é, Antônio? Então, a gente procurava se preservar o<br />

mais que pudesse para ter o nome da gente honrado, o nome da família e tudo... Eu fi-<br />

quei com muito sentimento, porque eu me lembrava do Elias, que eu considerava de<br />

uma família nobre. Eu também era de uma família de renome, mas o Elias era de uma<br />

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família nobre, e eu perdi aquele partido. Eu, com os meus dezoito anos, fiquei muito<br />

decepcionada. Eu <strong>sem</strong>pre tinha vontade de vencer e dizia: se eu olhar para qualquer<br />

moço, aqui, logicamente ele vai se interessar por mim e mais depressa ele vai querer<br />

casar comigo. Mas eu não quero casar para ficar aqui nessas fazendas, nesses lugares<br />

atrasados, onde os moços nada têm para me oferecer; e eu, então, disse: eu vou embora<br />

para São Paulo. Agora havia um motivo maior. Eu não dispunha de meios financeiros<br />

para a viagem. Isso foi no mês de junho de 1968. Terminou o ano, e quando foi em ju-<br />

lho do ano seguinte chegou um casal de São Paulo, que era vizinho nosso e tinha vindo<br />

para o Recife. Ele era camioneiro e fazia viagens de São Paulo para o Recife, fazendo o<br />

transporte de móveis. E eu nunca tinha visto aqueles caminhões fechados, tipo baú.<br />

Quando aquele caminhão baú chegou a Sertânia, justamente naquela <strong>sem</strong>ana, também<br />

eu tinha saído do sítio para Sertânia. Na cidade, havia um comentário geral que tinha<br />

chegado um camioneiro de São Paulo com um caminhão todo fechado. E aquilo foi uma<br />

coisa assim um tanto quanto assustadora. Mas tratava-se daquele casal vizinho nosso<br />

que estava morando em São Paulo e que fizera aquela viagem para o Nordeste. De Ser-<br />

tânia, eles foram até a casa dos pais deles, que eram nossos vizinhos lá no Jabitacá, na<br />

Paraíba. Meu avô fez um café pra eles com macaxeira - que aqui, em São Paulo, a gente<br />

chama de mandioca, né! Aquele café era tudo de bom que ele tinha de oferecer àquele<br />

casal. Quando eles chegaram à casa do meu avô e foram tomar aquele café, naquele dia<br />

de manhã, eu estava ralando o milho. Ela, então, passou a contar para minha mãe que<br />

queria levar para São Paulo a irmãzinha dela, aproveitando a oportunidade que ela esta-<br />

va com aquele caminhão. Nele, tinha muito espaço, vinham outras famílias, e ela queria<br />

trazer a irmãzinha dela... Só que a mãe dela não aceitou. Eu, ralando aquele milho, fi-<br />

quei pensando assim: bem que eu poderia ir embora com aquela família... Ela, então,<br />

perguntou a mim: “Tu não queres, Dora, ir com a gente?” Eu então respondi: “Só que<br />

mamãe não deixa”. Ela, então, dirigindo-se à minha mãe, pergunta: “Tu não deixas não,<br />

Severina”? Só que, quem comandava a gente, quem dava ordens era o meu avô, não é,<br />

Antônio? Era ele quem cuidava de minha mãe; a gente recebia todas as ordens era do<br />

meu avô. Aí mamãe baixou a cabeça e disse assim: “Pai não deixa!”. Ela, então, res-<br />

pondeu: “Se seu Zé Alexandre deixar, você concordaria?” Ela disse “É, eu não ia achar<br />

muito bom, mas se pai deixar e ela quiser ir”... Eu só sei que fui depressa lá na roça,<br />

onde minha avó estava trabalhando, pedi pra ela, e ela falou pra meu avô e ele abriu<br />

mão. Não foi assim algo aceito com muita boa-vontade, mas como eles tinham muita<br />

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vontade que nós viés<strong>sem</strong>os arrumar a vida e trabalhar para alcançar nossos objetivos,<br />

ele abriu mão e aceitou que eu fizesse a viagem, não é, Antonio? Isso foi assim entre<br />

dez e onze e meia do dia. Preparei-me, e o casal devia sair de lá por volta das quatro e<br />

meia daquele dia pra ir para Sertânia. Eu lembro que minha avó pegou um franguinho,<br />

matou aquele frango, fizemos aquela farofa, como os nordestinos costumam fazer; a-<br />

quele frango, bem torradinho, ela colocou numa mochila. Não é como hoje, que a gente<br />

tem “tuperware”, tijelas, não, nada disso. Ela pôs aquilo numa mochila, e eu muito bem<br />

satisfeita. Mas, antes de tudo aquilo, eu peguei duas peças de roupa, uma saia e um ves-<br />

tido, fui lavar e colocar numa mala para completar a minha bagagem de viagem. E as-<br />

sim foi. Quando foi às duas horas da tarde, eu saí da casa do meu avô com destino a<br />

Sertânia. Aí eles alugaram um jeep, aquele casal. E aquilo pra mim foi uma felicidade<br />

muito grande, só com o fato de saber que ia sair dali do pé da serra com destino a Sertâ-<br />

nia, de jeep. Viemos para Sertânia e, quando foi assim por volta das oito horas, a gente<br />

entrou dentro daquele caminhão baú, onde já tinha muita gente. Muitos paraibanos, ca-<br />

sais, todos preparados, alguns com malas; aqueles que não tinham malas tinham sacos.<br />

Ele colocou todo aquele pessoal dentro do baú e viemos para São Paulo. Nós dormimos<br />

na localidade chamada “Placas”, numa parada lá, e, no outro dia, prosseguimos a via-<br />

gem e levamos de nove a dez dias pra chegar aqui em São Paulo, dentro daquele baú.<br />

Entre os “passageiros”, vinha até uma mulher gestante. Aqueles que eram mais grã-<br />

finos traziam redes, armavam a rede dentro do baú. Num daqueles dias eu comecei a<br />

passar mal naquele ambiente fechado. Quando a gente necessitava parar por alguma<br />

coisa, a gente batia na parede do baú e o motorista buscava saber qual era a necessidade;<br />

e viram que eu estava passando mal. Passamos a fazer um revezamento. Durante certo<br />

tempo, eu viajava na cabine e depois voltava para dentro do baú. Dentro dele, também,<br />

era transportado jerimum, muitas espigas de milho verde, que eles traziam, e vinham até<br />

uns espinhos, que a gente lá no Nordeste chama de “coroa de frade”. De noite, quando a<br />

gente queria dormir, era preciso afastar aquilo ali, evitando que a gente se espinhasse ou<br />

se maltratasse. Eu sei, Antônio, que foi com muita dificuldade que eu cheguei aqui. Fo-<br />

ram nove dias de viagem que a gente levou. De Sertânia para a Bahia, parece que a gen-<br />

te levou uns três dias, andando só em estrada de terra. Depois desses três dias é que se<br />

pegou o asfalto. Quando ele parava na estrada, ele abria aquele caminhão, a gente descia<br />

e ia tomar banho naquelas minas. Quando eu via o asfalto naquelas estradas, era como<br />

se eu estivesse nos Estados Unidos, com aqueles lugares e aquelas coisas todas diferen-<br />

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tes. Aí já me batia uma saudade muito grande de casa. Ao mesmo tempo, eu tinha aque-<br />

la esperança de que eu ia conseguir algo de melhor pra mim. Cheguei aqui em São Pau-<br />

lo e fui morar na Vila Industrial, que é um bairro que fica aqui perto. Nessa vila, já tinha<br />

muitos nordestinos, inclusive uns primos meus. Eu fui muito bem-recebida, muito bem-<br />

aceita. Por outro lado, eu via as dificuldades de uma boa parte dos conterrâneos nossos,<br />

mas nunca eu desanimei em hipótese alguma. Mas eu via aquelas dificuldades de pesso-<br />

as morando num porão, famílias com crianças dormindo todos num só cômodo. Mesmo<br />

assim, eu não perdia as esperanças. Eu sabia que eu estava em São Paulo, que eu iria<br />

enfrentar as dificuldades e terminaria por vencer. E o meu maior sonho era encontrar o<br />

Elias. Daqui de São Paulo, eu pouco conhecia os bairros e só sabia o nome de alguns<br />

por conta das cartas que ele me mandava; mas não conhecia nada até então. Logo, den-<br />

tro dos trinta dias, arranjei emprego. Depois, apareciam aqueles nordestinos, moços<br />

conhecidos, solteiros, interessados em namorar comigo. É bem possível que eu tenha<br />

tido algumas paqueras, mas eu ficava assim muito reservada. Quando foi um dia, eu<br />

encontrei aqui um conhecido lá de Sertânia, que já era amigo e estava namorando uma<br />

amiga minha. Ele, então, disse pra mim: “Porque é que todas as meninas que vieram lá<br />

do Nordeste, cada uma tem seu namorado, estão todas interessadas em casar, e você<br />

parece que não tem nenhum interesse em casamento? Tem aqui alguém que você gosta<br />

ou você deixou algum pretendente lá em Sertânia?” Eu, então, respondi pra ele que não<br />

e, depois, contei pra minha amiga, que era namorada dele, que eu tinha tido esse noivo,<br />

que ainda gostava dele e que tinha esperança de encontrá-lo aqui em São Paulo. Ela<br />

contou pra ele e, aí, eu não sei se ele aproveitou da situação, mas ele disse pra mim que<br />

tinha visto o Elias num determinado lugar. Nesse tempo, eu ainda era católica, e ele<br />

também era muito católico e religioso. Mas aí eu logo percebi que era brincadeira, que<br />

não era verdade, e fiquei bem na minha. Eu já tinha arrumado serviço e então fui traba-<br />

lhar. Eu tinha chegado aqui em julho, no final de julho de 1969. Trabalhei até o final do<br />

ano e, quando foi em abril de 1970 eu já estava trabalhando numa metalúrgica que fica-<br />

va lá no Cambuci, uma firma boa. Eu me considerava bem-empregada. Num desses<br />

dias, eu cheguei em casa, vindo do serviço, e então minha irmã disse assim pra mim:<br />

“Eu tenho uma notícia muito triste pra te dar”. Aí eu fiquei assustada e perguntei: “Nos-<br />

sa, o que foi que aconteceu, mamãe morreu? Foi carta que veio do Norte?” Ela disse:<br />

“Não, não foi isso, mas é uma coisa que vai te entristecer muito. O Elias casou-se”. Aí<br />

eu disse: “Puxa vida, Nina! A gente não tem notícia dele, não se sabe onde ele mora...<br />

219


Quem te deu essa notícia do Elias?” Ela, então, me perguntou por que eu me interessava<br />

tanto por ele, inclusive buscando saber onde ele morava... E ela, então, me contou toda a<br />

história. Eu tomei banho, jantei, me deitei. Quando eu deitei, fiquei pensando assim...<br />

Depois do meu emprego, tudo o que eu queria era encontrar com o Elias e tentar ver se<br />

a gente renovava o namoro. Naquele tempo, a gente falava “renovar o namoro”, não é?<br />

E caso a gente voltasse a namorar, quem sabe, daria certo o casamento. Afinal, eu já<br />

estava em São Paulo, trabalhando; ele certamente estaria também trabalhando... Mas,<br />

agora, que ele está casado, eu vou mudar de ideia. Vou partir para outra, vou continuar<br />

trabalhando e pode ser que um dia apareça um “baiano”, né? Uma pessoa direita, lá do<br />

Norte, igual ao Elias. Então, eu me caso. Mas, agora, só me resta trabalhar, trabalhar.<br />

Aí, Antônio, quando passou um prazo de uns quinze dias que eu tinha recebido aquela<br />

notícia, eu estava indo para o meu trabalho no Cambuci. Num ponto de ônibus antes do<br />

que eu devia descer, eu olho assim pra dentro de um bar, e quem eu vi dentro daquele<br />

bar? Lá estava o Elias. Eram quinze para as sete da manhã. O Elias estava dentro do bar<br />

tomando um cafezinho... Já fazia três anos que nosso namoro tinha terminado, lá no<br />

Nordeste. Ele estava vestindo uma camisa vermelha – ele <strong>sem</strong>pre gostou da cor verme-<br />

lha! Ele estava diferente, estava mais bonito. Tinha engordado mais, estava bem arru-<br />

madinho, com uma pele mais bonita, não aquela pele queimada do sol do Nordeste...<br />

Ele estava tomando café, e eu ia descer um ponto depois. Quando eu o vi dentro do bar,<br />

não pensei duas vezes, desci junto com os passageiros daquele ponto. É preciso dizer<br />

que eu não tinha a mínima ideia de onde ele morava aqui em São Paulo. Eu desci ali<br />

naquele ponto com minha bolsinha, a marmita... Eu passei - ele que jamais sabia onde<br />

eu estava -, olhei e disse assim comigo: eu tenho que falar com ele, não posso perder<br />

essa oportunidade. Sei lá o que está se passando, o que ele está fazendo aqui... Eu sei<br />

que eu estou indo trabalhar, mas ele, eu não sei... Mas eu tenho que me apresentar. Eu<br />

voltei. E os caras que estavam com ele, os amigos, eram espertos e ficaram de olho.<br />

Muito lentamente, eu estou voltando, não queria perder aquela oportunidade, porque era<br />

muito preciosa. Eu estou voltando, contando os passos – interessante a coragem que eu<br />

tive de ficar assim encarando ele. Quando eu fui passando, ele me viu a aí eu percebi<br />

que ele levou um susto. “Oi!”, eu falei. “Oi”, ele respondeu. Ele tinha dito para os ami-<br />

gos que já me vira passando quando da primeira vez e que me conhecia. E os colegas<br />

dele teriam dito que já era a segunda vez que eu passava e que estava encarando ele.<br />

“Acompanha ela – disseram! Ele disse: ”Não, rapaz, eu não posso”. Ele <strong>sem</strong>pre foi mui-<br />

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to reservado. Eu era mais atirada. Eu, então, parei e logo que parei, olhei assim e disse:<br />

“Moço, fala pra esse moço aí de blusa vermelha que eu quero falar com ele”. Nossa, ele<br />

não quis pensar duas vezes, saiu com roda nos pés. Aí o Elias chegou dando risadas,<br />

como se nada tivesse acontecido. Aí disse: “Puxa vida, eu não acredito; é você, Do-<br />

ra?”Aí eu disse: “Sou eu!”. Ele disse: “Mas o que é que você está fazendo aqui?” Aí eu<br />

respondi: “Sou eu que pergunto: o que você está fazendo aqui?” Ele, então, disse: “Eu<br />

vou trabalhar”. Ao que eu respondi: “Eu também estou indo trabalhar”. Aí ele pergun-<br />

tou: “Que horas você entra no serviço?”Eu disse: “Sete e meia”. Mas eu estava com<br />

mais tempo, porque a essas alturas eram quase cinco para as sete. Ele, então, propôs<br />

marcar um encontro. Aí marcamos um encontro. Quando eu saí do serviço, ele já tava<br />

no ponto de encontro onde a gente marcou. Aí a gente foi conversando até o ponto de<br />

ônibus; quando nós chegamos ao ponto do ônibus, eu perguntei pra ele se ele não iria<br />

comigo até a casa da minha irmã, na Vila Industrial, onde eu estou morando. Ele foi<br />

comigo até a Vila Industrial. Chegando lá, eu chamei meu cunhado, apresentei o Elias a<br />

ele. Meu cunhado já sabia mais ou menos de tudo o que tinha se dado...<br />

Antônio – Mas aí você já sabia que ele não tinha casado?<br />

Dora – Naquele momento do encontro lá no bar, eu o “apertei” um pouquinho, e ele<br />

disse que não, querendo me provar com os documentos e tudo mais... que não estava<br />

casado. Aí ele fez questão de me acompanhar e também de me mostrar que não estava<br />

casado. Aí meu cunhado gostou e falou pra ele que eu estava ali morando com ele na-<br />

quela situação um tanto difícil... Mas, se fosse para ter namoro mesmo, era para ter ca-<br />

samento. Eu só sei que, com poucos meses, ele me trouxe até a casa da Flora, na Vila<br />

Ema. Foi quando eu fiquei em paz, fiquei tranquila. Fui muito bem-recebida quando<br />

cheguei à casa da Flora, né? Tanto ela como o Zeca me receberam muito bem. O Zeca<br />

era quem recebia as minhas cartas, né, as minhas correspondências. Assim foi, Antônio.<br />

Ao todo, foram mais três anos de namoro. Como, de fato, ele lhe contou, realmente du-<br />

rante esse tempo ele esteve frequentando o SENAI e falou pra mim que não estava pre-<br />

parado para casar antes de aprender uma profissão. Falou que eu tivesse um pouco de<br />

paciência, mas que nós íamos namorar pra casar. Graças a Deus, eu recebi o maior a-<br />

poio da família. Quando todos me conheceram, nossa! Cada um era melhor do que o<br />

outro. Eu fiquei muito satisfeita e escrevi para o meu avô. Mandei uma carta pra ele<br />

contando toda a história e ele ficou bem satisfeito, lá no Nordeste. Só sei que foram três<br />

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anos de namoro e noivado, até que aconteceu o casamento. Eu agradeço muito a Deus,<br />

Antônio. Foram três coisas muito boas que Deus me concedeu aqui nesta vida: meu<br />

casamento, meus pais e meus filhos. Sou muito grata a Deus e me considero uma pessoa<br />

muito feliz. Fizemos com muita luta, com muito esforço e muito sacrifício. Comecei<br />

preparando meu enxoval. A Flora me ensinou muito. Ela me orientou e me passou mui-<br />

tas experiências boas e bonitas. Eu <strong>sem</strong>pre via nela aquela simplicidade na vida, sabe?<br />

Uma mulher de muita fibra, entendeu, Antônio? O Zeca, nossa! Era muito mais do que<br />

um amigo. Aquela simpatia, aquela coisa assim tão maravilhosa. A gente chegava à casa<br />

deles e eu era tão bem-recebida. Em São Paulo, naquele tempo, as coisas não são como<br />

hoje. As moças viviam fazendo plano no intuito de casamento. A gente via naquelas<br />

firmas elas falando de enxoval para o casamento. Eu também buscava copiar aquelas<br />

coisas. Naquele tempo, a gente não ganhava muito. Emprego tinha muito, mas os salá-<br />

rios eram baixos. Quem enriquecia eram os empresários. Já os funcionários, o que ga-<br />

nhavam nem dava se vestir bem nem para calçar bem e muito menos ter uma boa ali-<br />

mentação. Mas o meu dinheirinho era um dinheiro tão abençoado!... A Flora me orien-<br />

tava muito. Eu chegava à casa dela, e ela me falava assim: “Dora, não copia muito coi-<br />

sas aqui das mocinhas, que elas gostam muito de se endividar, de fazer muitas dívidas.<br />

Você faz aquilo que estiver dentro de suas posses. Os turcos vendiam muito a prestação.<br />

O Elias também não tinha assim muitos calçados e agasalhos. As roupas nossas eram<br />

poucas. Eu mesma passei muito frio aqui em São Paulo, porque duas blusas dessas aqui<br />

eram muito. As geladeiras, naqueles tempos, eram muito mais para pessoas de posse. A<br />

marmita, quando eu ia trabalhar, a mistura, na maioria das vezes, era um pouco de feijão<br />

com arroz e normalmente era acompanhado de um ovo frito. Colocava aquele ovo na<br />

marmita e, quando destampava, na firma, na hora do almoço, ele estava azul. Muitas<br />

vezes a comida ficava estragada, porque a gente não tinha direito de usar geladeiras. Já<br />

a casa da Flora, ela era assim bem montada, tudo muito bem organizado. A Flora era<br />

muito equilibrada e muito econômica. Nos finais de <strong>sem</strong>ana, da quinta para a sexta-feira<br />

eu vinha pra casa dela, e aí ela arrumava uma marmita para mim. Era uma comida mais<br />

reforçada, mais saborosa... Eu chegava, então, na casa dela e dizia: “Flora, eu nem faço<br />

tanta questão de você me dar a janta, contanto que você me dê a marmit”a. Ela dava<br />

risada e dizia: “Não, tem a janta pra você e tem sua marmita pra você levar amanhã”. Eu<br />

sei que ela me orientava muito, Antônio.<br />

222


Antônio - Dora, gostaria que você falasse de sua vida de casada, sua nova família...<br />

Como você se sentiu acolhida na família do Elias?<br />

Dora – Eu me senti bem-acolhida. É bem verdade que aqui em São Paulo, naquela épo-<br />

ca, tinha-se muito preconceito com nordestinos. Chamavam a gente de “baiano”. Mas<br />

eu nunca permiti, com os meus vinte anos de vida, que alguém me “pisasse”, eu não<br />

permitia isso. Havia aqueles colegas de fábrica que diziam: “Doralice está namorando<br />

um baiano com calça larga!”. Naquele tempo era moda usar calça justa, com boca de<br />

sino, cabelo comprido, era o tempo de Roberto Carlos... E a Flora me orientava e falava<br />

pra minhas amigas pra respeitar. Quando elas me viam no ponto de ônibus com o meu<br />

namorado, diziam: “Eu vi Doralice lá no ponto de ônibus com o namorado dela. Ele é o<br />

‘calça-larga’.” Aí eu dizia pra elas que o meu namorado era um calça-larga, mas era um<br />

moço decente. Era de uma família de nordestinos decentes, um pessoal de muita classe.<br />

E eu vou casar com ele, porque sei que ele é um moço que tem condições de me dar<br />

uma vida boa e que pode até ser que eu venha a trabalhar, mas eu espero que eu não<br />

precise acordar cedo, fechar uma marmita e vir trabalhar, porque eu sei que ele tem<br />

condições de me sustentar. Ele é de uma família boa. E assim foi, fui me preparando, a<br />

Flora ajudando no enxoval, tudo, né? Eu era totalmente administrada pela Flora. Já a<br />

Virgínia vendia confecções nas feiras livres de São Paulo, era “marreteira”. Ela vendia<br />

calcinhas, camisolas, tudo... Ela chegava à casa da Flora com aquelas mercadorias, e eu<br />

ficava com vontade de comprar para o meu enxoval. Mas eu tinha vergonha, porque eu<br />

não tinha dinheiro... Ficava olhando assim e dizia: “Virgínia, quanto que custa essa ca-<br />

misola?” Ela então dizia: Prá quem não tem dinheiro, essa camisola custa tanto”... Aí eu<br />

dizia: “Filha da mãe, por que ela me faz tanta vergonha, né?” Aí ela dizia: “Toma, besta<br />

velha...” Às vezes ela nem cobrava. Aquilo era satisfatório para mim, não é, Antônio?<br />

Eu me sentia bem-acolhida no meio de uma família, né?<br />

Antônio – Dora, você pode falar da vida de casados de vocês? E os filhos? O que<br />

isso significou para vocês como casal?<br />

Dora – Quando nós casamos, eu tinha muito interesse em dar continuidade ao meu em-<br />

prego, porque àquelas alturas eu que trabalhava numa metalúrgica, já estava substituin-<br />

do a telefonista da firma... Os donos dessa metalúrgica – Indústria de Etiquetas Cobra -<br />

eram italianos, e a telefonista, sendo parente deles e por ser já uma senhora de idade, às<br />

223


vezes necessitava tirar folga para descansar. Hoje, essa firma está na cidade de Itu. Eu,<br />

então, quando substituía aquela senhora procurava fazer o serviço com muito afinco.<br />

Eles, então, percebiam que eu era muito eficiente para aquela função. Assim casei, fi-<br />

quei trabalhando e não pretendia ter filhos logo. Eu tinha seis meses de casamento e não<br />

queria engravidar. Queria continuar com o meu emprego. Mesmo que o Elias já se con-<br />

siderasse bem-empregado, eu tendo o meu emprego, poderíamos arranjar bem a nossa<br />

vida. Nós já havíamos comprado esse terreno onde construímos esta casa, estávamos<br />

pagando o terreno, ainda morando de aluguel. Mas eu pensava: a gente vai arranjar a<br />

nossa vida, vamos construir a nossa casa e não precisamos arrumar filhos agora. Eu só<br />

sei que com seis meses de casamento eu já estava grávida, não é? No momento em que<br />

eu suspeitei que pudesse estar grávida, para mim não foi assim tão agradável, ou seja,<br />

não foi tão aceito o fato daquela gravidez.<br />

Antônio – E, naquele tempo, não era prática muito comum a mulher usar métodos<br />

anticoncepcionais para evitar gravidez, não?!<br />

Dora – Evitava-se, tomava-se anticoncepcionais, mas não era igual a hoje. Aí eu fiquei<br />

meio preocupada, sabe... Cheguei a conversar com a minha amiga lá da firma, que era<br />

telefonista. Ela, então, me aconselhou a ir ao médico e fazer um exame para ver se esta-<br />

va grávida. Ela disse: “Se você estiver grávida, você aceita a sua gravidez. Pelo que a<br />

gente está vendo, você casou muito bem... Aceite seu filhinho e, quando você ganhar<br />

seu filho, se é que você está grávida, você arruma uma creche boa, deixe o seu filho na<br />

creche e você volta ao seu emprego”. Eu, então, fiz o exame e constou que eu estava<br />

grávida. Nessa hora, eu conversei com o Elias e pensei comigo: se o Elias aceitar bem<br />

esse filho, então vai me dar assim um grande prazer. Foi aí que eu contei pra ele e vi<br />

que foi bem-aceito. Eu disse pra ele: “A gente está casado mesmo, estamos os dois bem-<br />

empregados, estamos pagando o terreno, tudo... Então, acho que não vai atrapalhar a<br />

nossa vida”. Mas minha preocupação era que eu sabia que iria perder aquele emprego e<br />

que eu não queria perder. Eu sei que fiquei trabalhando grávida, mas muito bem-aceita<br />

lá na firma. Quando eu estava de cinco meses, digo, de quatro meses de gestação, eles<br />

me deram férias. Naquela época, fazia cinco anos que eu estava aqui em São Paulo e<br />

ainda não havia retornado ao Nordeste. Elias ia pegar férias também. Ele disse que, caso<br />

tivesse férias, nós dois iríamos viajar ao Nordeste. E eu fiquei toda feliz. Dizia comigo:<br />

vou voltar para minha terra, vou fazer um passeio, vou chegar lá muito bem casada, né?<br />

224


Já estou até grávida... E nós dois empregados... Que coisa “chic”, não é? Quando tudo<br />

estava preparado para fazer essa viagem, a firma do Elias avisou pra ele que não iria<br />

mais dar as férias dele. Eu só sei que, para resumir essa parte, no lugar do Elias ele co-<br />

locou a minha mãe, que já estava aqui em São Paulo com a gente. Mamãe não tinha<br />

condições financeiras nenhuma, pra nada, coitada! Ela ainda não morava com a gente,<br />

só morávamos nós, o casal. O Elias, então, comprou a passagem e deu pra mamãe, que<br />

recebeu aquilo como um presente grande. Viajamos, então, para Sertânia, para Campina<br />

Grande, onde fiquei uma <strong>sem</strong>ana com a minha família, e de lá voltamos para a casa da<br />

Dona Verônica – a mãe do Elias -, e ela se mostrou muito feliz e satisfeita com aquela<br />

nora, sabe? Aquela coisa boa, nossa! Uma coisa muito bonita! Nesse tempo, eu não co-<br />

nhecia ainda o Valdeci, também não lhe conhecia, né? Eu, antes, pensava assim... Eu<br />

vou chegar lá no Nordeste e conhecer esses dois cunhados, que eu nunca vi... No entan-<br />

to, quando eu cheguei lá, não tive a felicidade de conhecer vocês dois. O Valdeci estava<br />

trabalhando acho que na Bahia, em Sobradinho, e você lá pro Recife. Eu sei que eu e a<br />

mamãe ficamos cerca de uma <strong>sem</strong>ana com a Dona Verônica. Eu continuava grávida da<br />

Luciana e quando cheguei aqui em São Paulo retornei ao meu emprego para trabalhar.<br />

Quando faltavam dois meses para ganhar a Luciana, o Elias tirou férias e foi passear em<br />

Sertânia, e eu fiquei. Só sei que quando eles me deram a licença pra ganhar a Luciana,<br />

fiquei em casa, tudo... E foi aí que ela nasceu. A gente com aquela felicidade, o primeiro<br />

filho; a gente com aquela alegria, aquela coisa tão boa. Elias e o Anísio... Anísio era<br />

assim muito machista. A gente era muito manipulada, já não era tanto com a Flora. Di-<br />

minuiu a carga da Flora e passou pro Anísio. Quem mais administrava a gente era o<br />

Anísio. A Luciana era muito bonita. A gente tomou o Anísio e a Enedina como padri-<br />

nhos. O Anísio, então, falou pro Elias que eu não iria mais trabalhar para ficar cuidando<br />

do nenê. Disse que o Elias estava trabalhando e podia muito bem cuidar da família,<br />

manter sua mulher e sua filha <strong>sem</strong> que a Dora precisasse trabalhar. Impôs aquela ordem,<br />

e eu então deixei o emprego para cuidar da Luciana. Quando cheguei, falei para a minha<br />

patroa, que era de uma família italiana, e ela disse pra mim que eu era uma menina de<br />

muita responsabilidade e muito ativa e que eu fosse cuidar do meu nenê. Quando eu<br />

encontrasse uma pessoa de muita responsabilidade para cuidar do nenê, eu podia voltar<br />

que a firma ficava esperando pela minha volta. Quando a Luciana estava com um ano e<br />

sete meses, o Eduardo nasceu. Aí que o Anísio não deixou, né? Nessas alturas, Antônio,<br />

a gente já não estava mais morando naqueles dois cômodos de aluguel. Fomos morar<br />

225


naquela casa da frente do terreno do Anísio. O Anísio era quem administrava tudo. Tu-<br />

do. Ele até intervinha na nossa vida particular Chegava até ao ponto de quando aconte-<br />

cia eu conversar com Enedina que a minha menstruação tinha atrasado... ele chegava<br />

pro Elias e dizia: “Cuidado, vocês não vão se encher de filhos, não!” Eu me sentia assim<br />

muito segura, eu tinha muita confiança na família, e o apoio que eles da família me da-<br />

vam era o meu verdadeiro amparo. Eu, então, não me importava de eles me manipula-<br />

rem, entendeu? Não sei se era simplicidade minha, não sei. Sei que eu era assim. E as-<br />

sim levamos a nossa vida. Moramos com o Anísio sete anos. Teve uma época que o<br />

Elias ficou de<strong>sem</strong>pregado cinco meses. Naquele tempo era difícil alguém ficar de<strong>sem</strong>-<br />

pregado, mas aconteceu isso com o Elias. Nesse período o Anísio chegava mesmo a<br />

pagar conta de água, conta de luz e até mesmo um empréstimo que o Elias fez no banco<br />

para custear material de construção de nossa casa, que já iniciávamos a construir. O<br />

Elias não tinha condições de pagar aquela conta no banco e o Anísio chegou e pagou.<br />

Nós, então, tínhamos eles como os pais da gente, sabe Antônio, era assim. Tanto a Lu-<br />

ciana quanto o Eduardo, até hoje, têm o casal como pais. E, outro dia, eu escutei o Da-<br />

niel falar que tem a eles como irmãos. E eu procurei <strong>sem</strong>pre mostrar para os meus filhos<br />

a importância desse lado da família. Eu, que vivi praticamente criada <strong>sem</strong> pai e com o<br />

apoio do meu avô, eu sabia o quanto aquilo me foi difícil. Tanto que prometi mostrar<br />

pra eles o quanto era importante ter o apoio de uma família, tanto do meu lado quanto<br />

do lado do pai deles, no caso, da família do Elias. Hoje, eu estou convivendo com ela e<br />

precisando dela. E reconheço toda a ajuda que eu recebi da parte deles. E <strong>sem</strong>pre falei<br />

para os meus filhos: “Esse é o seu tio, essa é a sua tia. Considerem eles, tenham respeito<br />

a eles, à avó, Dona Verônica, porque é uma coisa muito boa a gente ter uma família”. A<br />

ponto de hoje eles terem muito apreço. Outro dia, eu ouvia de Luciana que ela admirava<br />

muito a família do pai dela, porque era muito unida. Claro, não é, Antônio? Tem seus<br />

altos e baixos, porque ninguém é perfeito e não existe perfeição. Mas a Luciana me di-<br />

zia o quanto ela gosta da família do pai dela. Em qualquer situação, eles chegam junto e<br />

os mais novos a gente vê que eles herdaram as lições dos antigos e, por isso, têm uma<br />

cabeça boa. E eu <strong>sem</strong>pre lutei por isso, Antônio. E isso me deixa muito feliz, muito fe-<br />

liz, Antônio. E para ser sincera – e não é por estar aqui falando em sua presença –, eu<br />

tinha tanta vontade de conversar com você! Eu desejava ter uma oportunidade de con-<br />

versar com o meu cunhado, né? Para que possa passar pra ele o que eu sinto por ele.<br />

226


Antônio – Nós temos - particularmente eu - muito apreço pelos nossos cunhados e<br />

nossas cunhadas, afeição essa que se desdobra no carinho que igualmente temos<br />

para com os nossos sobrinhos, caso da Luciana e do Eduardo. Alguns desses cu-<br />

nhados e sobrinhos já faleceram. E no caso dos seus dois filhos, tenho certeza,<br />

também, que esse benquerer que eles devotam à família é fruto do exemplo do que<br />

vocês, como casal, como pais, foram capazes de passar para eles.<br />

Dora – Muito obrigado, Antônio.<br />

Antônio – Para finalizar esta entrevista, gostaria que você deixasse uma mensagem<br />

para a família e para o futuro dos seus filhos, uma palavra muito sua...<br />

Dora – A mensagem que eu deixo para os meus filhos é que eles saibam tirar lições de<br />

toda a minha experiência de vida, da vida que eu vivi. Eu <strong>sem</strong>pre falo pra eles que, na<br />

medida do possível, tenho procurado passar pra eles as experiências boas. E, caso eles<br />

façam da forma que eu lhes tenho ensinado - como igualmente o pai deles, não é? -,<br />

uma pessoa de responsabilidade, de caráter, que gosta mais de pagar do que comprar eu<br />

acho que eles podem se beneficiar desse exemplo. Dele e meu também, e, vivendo as-<br />

sim, eles não irão se arrepender. Graças a Deus que eu tenho visto que eles buscam<br />

copiar as coisas boas, tanto do pai quanto da mãe. Para a família do meu marido, o que<br />

eu tenho a dizer é que sou muito grata a vocês. Muito grata por tudo que vocês fizeram<br />

por mim. E sou muito agradecida, porque até hoje vejo que na vida de cada um o trata-<br />

mento que vocês me dispensam é algo assim de coração, coisa sincera e que nada tem<br />

de hipocrisia nem da falsidade. São muito sinceros no que dizem, no que fazem e no<br />

que falam, né? Sou muito bem-aceita todos os momentos em que chego à casa de cada<br />

um da família do meu marido. Muito bem-recebida. Por isso, sou muito agradecida a<br />

vocês por essa consideração tão grande.<br />

227


Edite Guilherme de Siqueira 51<br />

Antônio – Edite, fale de sua infância, do lugar onde você nasceu e das pessoas com<br />

quem você conviveu enquanto criança.<br />

Edite – Eu convivi com a família de vocês lá na Matarina. Nós convivemos enquanto<br />

crianças e depois como adolescentes. Quem era dessa época? Eram o Manoel, a Flora, a<br />

Virgínia; o José era menor. Depois nasceram o Severino e o Anísio. Nós éramos todos<br />

crianças. Eu morava ali na Matarina, não muito longe de vocês, perto de onde tinha um<br />

mata-burro na estrada que ia da Prata para Santa Catarina. A minha casa tinha uma sala,<br />

um quarto só, escuro e <strong>sem</strong> janela... Depois disso, tinha a cozinha. Banheiro não tinha,<br />

51 Edite Guilherme de Siqueira – viúva de José Jorge de Siqueira Filho. Entrevista feita na Vila Ema - São<br />

Paulo, aos 11 de setembro de 2009.<br />

228


não é? O banheiro era o mato. Em frente à minha casa, nunca esqueci, Antônio, tinha<br />

um pé de juá, bem grande, em frente à porta principal de entrada da casa. Aí moravam<br />

meu pai e minha mãe, o finado Leobino, José Guilherme, Duda e eu. A Maria, minha<br />

irmã, já era casada e morava em Bananeira, perto da Prata, na Paraíba. O Leobino era<br />

meu irmão e tinha vinte anos quando morreu afogado. Ele trabalhava de cortar cana no<br />

sítio de Cícero Nunes. Ele era mais velho do que o Duda. Tinha lá um time de futebol,<br />

na Matarina, e nele jogavam Duda, o Ageu, o Manoelzinho, de Seu Feliciano, e o Age-<br />

nor, irmão do Ageu. Nós morávamos numa casa que pertencia à Matarina, de Cícero<br />

Nunes. Ele era uma pessoa muito boa, um bom patrão. Cada um daqueles trabalhadores<br />

dele tinha uma casa no sítio. Junto da casa da fazenda, tinha um açude onde se plantava<br />

batata, verduras. A Virgínia deve lembrar isso. O Leobino morreu afogado nesse mesmo<br />

açude. Todas as tardes, após o dia de trabalho no corte da cana, eles tomavam banho<br />

naquele açude. O Leobino nadava muito bem. Ele atravessava o açude e voltava. Numa<br />

parte da ribanceira do açude, tinha uma descida; era ali que o gado tomava água e onde<br />

eles entravam no açude. Eu lembro muito bem que era uma tarde de sábado, o dia em<br />

que ele faleceu. Eu era bem pequena. Minha mãe contava que ela estava varrendo o<br />

terreiro, e eu estava com ela brincando ali debaixo do pé de juá. No dia e na hora em<br />

que ele morreu, ela contou que apareceu aquele redemoinho, levantando as folhas de-<br />

baixo daquele juazeiro (chora). E ela perguntava “O que será que está acontecendo?”<br />

Aonde ela ia, ele ia atrás. Exatamente na hora em que o Leobino morreu. Aí vieram dois<br />

moços em direção à minha mãe, eu nunca esqueci, e contaram para ela que ele tinha<br />

falecido. Contaram que estavam vendo que ele vinha voltando da travessia do açude e,<br />

de repente, viram que ele botava a cabeça fora d’água e gemia e pensaram que ele esti-<br />

vesse brincando. Mas ele não estava brincando, ele estava sentindo alguma dor no peito.<br />

Logo depois disso, viram que ele desceu de uma vez – eram uns trinta metros de fundu-<br />

ra – e não subiu mais. Eles chamaram umas pessoas para ajudar, mas quem mergulhou e<br />

tirou foi meu pai. Ele mergulhou com roupa e tudo e o retirou de dentro. Puseram-no de<br />

cabeça para baixo para ver se ele soltava água, mas ele não conseguiu, sinal de que não<br />

encheu os pulmões d’água. O velório dele foi lá, na casa da fazenda do seu Cícero Nu-<br />

nes. A mãe, coitada, ficou num estado de nervos que não sabia o que fazer. E eu lembro<br />

que quando ele estava no caixão - ou não sei mesmo se era rede -, ele perdia muito san-<br />

gue. É sinal de que, nos esforços dele ao nadar, houve algum derrame. Deve ter sido<br />

isso.<br />

229


Antônio – Edite, fale de seu pai e de sua mãe...<br />

Edite – Meu pai separou de minha mãe ainda quando a gente morava ali na Matarina.<br />

Ele nos largou a todos. Meu pai bebia muito, era mulherengo e estúpido com minha<br />

mãe. Minha mãe não escondia isso, ela nos falava. Ele bebia, gostava muito de farra, já<br />

quando a gente morava no Sítio Bananeira. Ele criava gado e às vezes matava boi. Uma<br />

vez, ele correu atrás de um porco com uma faca para matá-lo. Olha que brutalidade, né?<br />

Quando ele jogou a faca, não sei o que aconteceu, minha mãe vinha saindo e aquela faca<br />

resvalou e bateu nela, tendo sangrado muito, depois. Ela nos contava isso e dava uma<br />

ideia de como ele era bruto. Quando ele separou de nós, já estávamos morando na Mata-<br />

rina. Um dia, ele sumiu e foi embora, desapareceu. Arrumou uma mulher e colocou uma<br />

bodega ali bem perto de Santa Catarina. E passou a morar com essa mulher. Mãe ficou<br />

sozinha com todos nós, trabalhando na roça para nos dar o sustento. Eu e Duda éramos<br />

pequenos. O Zé Guilherme conheceu a Madia e depois terminou casando com ela, indo<br />

morar onde teu pai morava, em Pernambuco. Foi através dele que a gente foi morar lá<br />

com vocês, em Sertânia, entendeu? Porque, até então, a gente morava sozinhos na Mata-<br />

rina. Eu não lembro o namoro da Madia com o Zé Guilherme. Eu ainda era pequena.<br />

Mas lembro muito de tua mãe, Dona Verônica, que nos ajudou muito. A gente não tinha<br />

praticamente o que comer, e ela nos ajudava. A gente, juntamente com a Virgínia e a<br />

Flora, íamos catar algodão, feijão, milho... E a gente brincava e se divertia muito. Minha<br />

mãe era muito brincalhona. Nós trabalhávamos na roça. Lá também tinha o tio Umbeli-<br />

no. E eu lembro que brincava muito com os filhos da Teodósia, que era irmã de Celina,<br />

esposa de tio Umbelino. Nós íamos tomar banho no açude, toda aquela meninada. Nin-<br />

guém mexia com a gente. É tão diferente de hoje, não? Em Pernambuco, foi o período<br />

de nossa adolescência.<br />

Antônio – Como era a vida de vocês nessa época?<br />

Edite – Era uma vida de simplicidade. A gente praticamente não se divertia, mas, ape-<br />

sar disso, a gente era feliz, sabe, Antônio? Nossas bonecas eram feitas de pano e de<br />

pau. Nós não tínhamos brinquedos. Queríamos comer um doce e não tínhamos. Quando<br />

a gente queria comer um doce, nós pegávamos açúcar da lata para comer. E a mãe fica-<br />

va tão braba... (rindo muito). Quem fazia uns docinhos era Maria Gomes. Lá na Paraí-<br />

ba, eu estudei na escola de Manoel Clementino. Ia a pé, uma distância enorme. A Madia<br />

230


estudou com ele... E, nessa época, eu lembro que ele fazia uns docinhos de açúcar. Ele<br />

mexia o açúcar e fazia um tipo de cocadinha que a gente comprava. Nunca esqueci isso.<br />

Aí eu voltava da escola sozinha, brincando... Pulava nas pedras, subia nas árvores, nos<br />

pés de umbu. Era gostoso. A vida nossa era essa e era assim. Depois, mesmo em Per-<br />

nambuco, a gente costumava ir às festinhas que o tio Umbelino organizava. Eu, a Virgí-<br />

nia e a Conceição íamos escondidas. Se teu pai soubesse, meu Deus! Ele terminava ba-<br />

tendo. Nós íamos e brincávamos com os meninos: Carlos Gomes, Manoel, José... O<br />

Severino ainda era molecão e também ele não gostava disso não. Tinha o finado Nelson<br />

e o povo de Maria Gomes. Às vezes, a gente ia para Sertânia, e o dinheiro que a gente<br />

tinha era dos ovos de galinha que tua e minha mãe vendiam. A gente ia de pé para a<br />

cidade. Chegando lá, <strong>sem</strong> dinheiro, a gente via todas aquelas barracas com tanta coisa,<br />

mas nós só fazíamos olhar. Quando era uma hora da manhã, depois da missa, tua mãe<br />

comprava uma enorme tábua de pão doce (rindo muito) e nós vínhamos comendo pelo<br />

caminho, de volta para casa. E o frio? Sabe o que nós fazíamos? Levantava a saia até os<br />

ombros para cobrir os braços, protegendo do frio (rindo). A gente olhava aqueles car-<br />

rosséis, <strong>sem</strong> poder brincar, batia um sono... Nossos namorados... Meu primeiro namora-<br />

do foi Nelson, um primo de vocês, filho da finada tua tia, acho que era Sinforosa. Foi<br />

um namoro só de piscar o olho, porque naquele tempo nem pegar na mão da noiva era<br />

permitido. Uma vez, eu morava naquela casinha lá da escola onde Dona Zefinha dava<br />

aula, ali na sala de nossa casa. A casa tinha uma sala grande onde se dava a aula, en-<br />

trando tinha um corredorzinho e, ao lado, a cozinha e um quartinho. Só, mais nada. Do<br />

lado esquerdo, tinha um pé de canafistula. Todo mundo sabia que a Miúda, esposa de<br />

João Garcez, gostava muito de conversar com a Dona Zefinha (rindo muito). Eu apron-<br />

tei cada uma nessa época, que só vendo... A gente subia num fogão de barro que tinha<br />

na casa e por ele a gente olhava as duas pela fresta das telhas. Elas, claro, não consegui-<br />

am nos ver. As duas tinham uma conversa, bem baixinha... A gente doida para saber o<br />

que elas conversavam e não conseguíamos entender nada! Nós ríamos tanto, tanto! A<br />

Virgínia era a mais <strong>sem</strong>-vergonha. Uma vez, nesse tempo eu já namorava José, à noiti-<br />

nha ele veio lá em casa, chamou-me na porta e eu fui e abri a porta. Ele me abraçou e<br />

me beijou. Tua mãe viu aquela cena amorosa e ficou tiririca com ele. “Cabra <strong>sem</strong>-<br />

vergonha... (rindo muito). Que modos são esses de beijar moça, você não tem vergonha<br />

na cara?” Eu fiquei tão <strong>sem</strong> jeito, meu Deus! Quase morri de vergonha, Antônio. E fi-<br />

quei meio desconfiada, né? Pois é, a gente era inocente demais. O que acontecia quando<br />

231


a gente tinha as primeiras menstruações? Era um Deus nos acuda, porque nós não sabí-<br />

amos do que se tratava. Ninguém, nem nossas mães conversavam conosco o que era<br />

aquilo. Um dia, eu estava com uma dor de barriga danada. Falei pra Virgínia que estava<br />

com aquela dor que não passava, não passava de jeito nenhum. Perguntei a ela o que era<br />

aquilo. Depois, vieram as regras. E aí eu disse pra Virgínia que estava toda me lavando<br />

em sangue (rindo muito). Veja a inocência da gente, Antônio. Comparando com os<br />

dias de hoje?! Foi aí que a Virgínia veio me explicar ao modo dela. Nunca as mães da<br />

gente nos ensinaram qualquer coisa. Às vezes, entravam as comadres para conversar e a<br />

gente não escutava nada; elas brigavam conosco para a gente não ficar ali, junto delas,<br />

ouvindo aquele papo. E era ruim para nós essa ignorância. Uma coisa da vida, da natu-<br />

reza...<br />

Antônio – E o que você lembra sobre a vida na escola, lembra os colegas?<br />

Edite – Meu tempo de escola, a maior parte do tempo foi ali na escola de Dona Zefinha,<br />

com vocês todos. Ali vinham as meninas e os meninos todos. O José é que tinha pregui-<br />

ça de estudar. Eu tinha uma caligrafia muito bonita. Lembro de Isabel, a tua prima, filha<br />

do Seu Umbelino. Tinha aquelas cantorias todas, ou seja, a obrigação de ler aquela car-<br />

tilha cantando em voz alta, cantando as operações de matemática... Cantava até apren-<br />

der, da primeira página até a última. Dona Zefinha era braba e muito dura. Nessa época,<br />

na casa de vocês, eu lembro que tinha um mundo de trabalhadores. E Dona Verônica<br />

costurava um mundo de roupa, no sistema de carregação. Ela pegava aquela imensa<br />

trouxa de roupa e levava para entregar em Sertânia. Era um trabalho enorme. E a Flora<br />

ajudou muito nisso também. Como era trabalhadora a Flora! Trabalhou até a última ho-<br />

ra. Mas esse foi um tempo maravilhoso. Casei naquela igreja matriz de Sertânia. Meu<br />

padrinho foi Severino Caminhão, irmão da Enedina. Depois do casamento, deram um<br />

almoço na casa da fazenda. Foi só pra gente mesmo, para os padrinhos e uns vizinhos.<br />

Na nossa casa, morávamos eu, Duda e minha mãe. Duda, depois, veio para São Paulo. E<br />

lembro que por esses mesmos anos o José viajou para Minas Gerais com aquele pessoal<br />

do seu Paizinho, os Remígio. Nós casamos e ficamos uns anos naquela casinha, lá junto<br />

de vocês. Quando nós viemos para São Paulo, a Ezenilda tinha já mais de dois anos de<br />

idade. Depois, veio o Zenildo, que nasceu também na nossa casinha lá de Santa Luzia.<br />

Antes de vir pra cá, o José trabalhou de barbeiro um tempo, em Sertânia, no salão do<br />

Lula Barbeiro, lembra? E nós alugamos uma casinha ali perto da Rua do Buraco, na<br />

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saída de Sertânia para Monteiro. A Ezenilda nasceu aí. Você passou uns dias na nossa<br />

casa, lembra? A Ezenilda chorava, meu Deus, como ela chorava! Lembro que a casa<br />

não tinha banheiro, e a gente fazia as necessidades, embrulhava em jornais e jogava<br />

fora. Como aquilo não prosperou, o José resolveu vir para São Paulo. Ele veio na frente<br />

e ficou na casa de Flora, na Rua Lício de Miranda, na Vila Carioca. Chegou um certo<br />

tempo, e Dona Verônica me aconselhou a viajar para São Paulo a fim de ficar junto do<br />

meu marido. E ela disse-me nessa ocasião: “Homem é bicho ruim, vá embora! Onde<br />

estiver o homem, tem que estar a mulher!” Eu lembro que ela ajeitou e veio eu, a minha<br />

mãe e o Severino. Ele me ajudou muito. Sem dinheiro, <strong>sem</strong> fralda; lembro que tive de<br />

rasgar não sei quantos lençóis velhos para fazer fraldas para os meninos. Logo que che-<br />

guei aqui em São Paulo, passei tanto frio! Pensa que tínhamos roupa? A viagem da vin-<br />

da para São Paulo foi outro Deus nos acuda. Pegamos um daqueles ônibus velhos clan-<br />

destinos e tomamos a estrada para São Paulo. Mas, graças a Deus, não aconteceu nada.<br />

Chegamos aqui esbagaçados, mortos, com duas crianças a tiracolo. E a mãe veio comi-<br />

go.<br />

Antônio – Novo momento de sua vida em São Paulo, não foi?<br />

Edite – Foi um sufoco, porque o José estava morando com a Flora. Todo mundo dentro<br />

da casinha dela lá na Vila Carioca. Não sei como cabia, mas coube. Ele já havia com-<br />

prado um terreno aqui na Vila Ema. Ele vendeu uma vaca que ele tinha no Norte e deu<br />

de entrada aqui num terreno junto com o Anísio. Aí nesse terreno ele levantou um bar-<br />

raco de madeira. Mas como fazia frio! E quando nós chegamos aqui, naquele tempo,<br />

havia uma garoa gelada com um frio intenso. O mundo ficava que parecia gelo. E, como<br />

lhe disse, nós não tínhamos roupa; nem meias, nem agasalhos... E logo, logo, eu fiquei<br />

grávida de Aparecida. A Ezenilda é do dia 12 de novembro de 1956, o Zenildo é do dia<br />

24 de fevereiro de 1958. A Aparecida é do dia 29 de maio de 1960. Eu só comecei a<br />

trabalhar no Hospital da Cruzada no dia 18 de janeiro de 1961. Vou falar sobre a minha<br />

vida de profissional aqui em São Paulo. Comecei a trabalhar aqui em casa de família.<br />

No primeiro emprego, eu ia de pé até uns prédios altos que ficam ali na Santa Clara.<br />

Comecei a trabalhar lá, e era na casa de uma mulher boazinha. Ela me dava verdura, me<br />

dava leite, mas não deu certo continuar porque eu tinha que ir e voltar a pé, e era longe.<br />

A Flora arranjou lá na Silva Bueno a casa de uma síria para eu trabalhar. A mulher era<br />

ruim e miserável, era pão-duro que só vendo. Ela tinha uma loja ali na Silva Bueno, mas<br />

233


era uma sujeira desgraçada a casa dela. Quando eu cheguei, deparei com um monte de<br />

roupa suja para eu lavar. Eu ia de pé até a Vila Prudente e lá pegava aquele bonde bran-<br />

co, aberto, que existia nessa época, para poder chegar lá à casa dessa mulher. Eu limpa-<br />

va a sujeira da casa e da roupa da mulher. Um dia, após esse esforço todo, já com muita<br />

fome, fui à padaria comprar a quantidade de pão que ela me pedia todos os dias. Eu não<br />

sabia que o pão tinha aumentado. Devolvi o troco a ela <strong>sem</strong> conferir se estava igual às<br />

outras vezes. Ela achou que o dinheiro estava pouco e não entendeu, porque não sabia<br />

que o pão e o leite tinham aumentado. Eu fiquei chateada com aquilo, porque ela imagi-<br />

nava que eu tivesse ficado com parte do dinheiro do troco... Quando fui ver o meu al-<br />

moço, vi que era um ovo, uma verdurinha e tudo bem pouquinho, feijão e arroz. Um<br />

dia, eu lavei uma trouxa de roupa, tão suja, Antônio, tão suja que eu nunca esqueci.<br />

Quando as crianças viram aquela roupa lavada, disseram: “Olha que limpas estão as<br />

nossas roupas, mãe!”. Eu decidi sair de lá, porque não me compensava o trabalho e o<br />

esforço. Era muito trabalho, e ela me pagava uma miséria, além da fome a que era sub-<br />

metida. E quem trabalha no pesado tem fome, não é? Eu decidi ir embora. Saí de lá e<br />

nem o dinheiro do dia fui receber. Quanto ao emprego do hospital, a história aconteceu<br />

da maneira seguinte. O José, nesse tempo, trabalhava no Estado, na limpeza pública,<br />

com esgotos de rua. Eles usavam umas botas de borracha e tomavam vacinas para evitar<br />

doenças. Depois de algum tempo, mandaram-no trabalhar no Hospital da Cruzada. E lá<br />

tinha uma senhora, Dona Olga, que era a chefe do escritório. Era uma solteirona, mas<br />

era uma senhora muito bondosa. Ele falou com ela se não estavam precisando de al-<br />

guém para trabalhar no hospital, não sei o que mais. E tinha um tal Senhor Sílvio que<br />

era o chefe dele, e José gostava muito de brincar com ele. Eles tinham que fazer faxina<br />

nos corredores do hospital. Um dia, ela me chamou e fui lá. Antes, porém, eu tive que<br />

dar baixa num emprego que eu arranjei lá na Vila Prudente, na casa de uma senhora<br />

boazinha, que se chamava dona Elisa; eu nunca esqueci o nome dela. Ela já estava gos-<br />

tando de mim e tinha pegado confiança. Ela tinha um filho que estudava na faculdade<br />

pra médico. Eu tive que pedir as contas. Falei pra ela que tinha arranjado uma vaga num<br />

hospital para fazer um trabalho que eu gostava e que lá eu ia ter estabilidade e os meus<br />

direitos trabalhistas garantidos. Ela lamentou muito, mas entendeu minha atitude. De lá,<br />

eu fui para o hospital.<br />

Antônio - E aí, nesse novo momento, o que você fez e o que mudou em sua vida?<br />

234


Edite – Eu iniciei lá fazendo faxina. Eu não sabia fazer nada. Antônio, foi a mão de<br />

Deus, não foi outra coisa, foi a mão de Deus. Logo que eu entrei lá, frequentei um curso<br />

que o SESI ofereceu para atendente e, depois disso, eu entrei trabalhando para a pedia-<br />

tria com as crianças; trabalhei no berçário, trabalhei na pediatria com as crianças doen-<br />

tes, trabalhei com os prematuros, cujo médico chefe era o Dr. David e que era uma pes-<br />

soa muito boa, uma pessoa de idade e muito gentil. Levava as crianças pra mamar,<br />

transportava no carrinho com a maior responsabilidade. Cuidar do nome deles, o nome<br />

das mães, o número da cama. E as crianças pareciam aqueles pacotinhos de gente... Le-<br />

vava pra mamar e depois ia deixá-las nos diferentes andares do prédio. Era um serviço<br />

gostoso. Depois, peguei a amizade e consegui trabalhar nos andares das pacientes até a<br />

época em que me jogaram para trabalhar no centro obstétrico, após a mudança da antiga<br />

chefia. Meu horário de trabalho era o seguinte: no primeiro mês, eu entrava das três às<br />

onze horas da noite. E, naquele tempo, os ônibus eram uma tristeza, Antônio. Eu andava<br />

do hospital até ali à Praça João Mendes para pegar o ônibus da Vila Ema. Eu chegava<br />

em casa uma hora da manhã. Descia onde hoje existe aquela padaria, na esquina com a<br />

Rua Herveck, e subia essa ladeira todinha. Era uma casa aqui e outra bem longe. Sentia<br />

um medo que só vendo, apesar de, naquela época, não ter os assaltos e perigos que te-<br />

mos hoje em dia. Saía correndo, e a marmita chacoalhando: xek, xek, xek... Um dia, um<br />

motorista do ônibus me perguntou se eu não tinha medo de andar pelas ruas numa hora<br />

daquelas. Eu falei para ele que, se eu precisava trabalhar, iria fazer o quê? E olha que eu<br />

andava até onde morava o Anísio. Era muito longe. Isso durou um ano, mais ou menos.<br />

Depois, me mudaram de horário. Eu passei a trabalhar, entrando às sete e largando às<br />

quinze horas, ou seja, três da tarde. Aí melhorou para mim. Outra época, eles modifica-<br />

ram os horários, e ainda ficou melhor para mim. Começava às sete da manhã e ia até às<br />

sete da noite, sendo um dia sim e outro não. Aí melhorou ainda mais. E houve uma épo-<br />

ca em que o hospital entrou em crise e começou a cair o atendimento. Foi nessa época<br />

que o pagamento saía atrasado. Mas eu continuei lá como todos os demais que precisa-<br />

vam do salário. Depois, o hospital melhorou a administração e entrou nos eixos. Houve<br />

uma época em que minha chefe se chamava Dona Elza; aquilo era uma mulher ruim...<br />

Tinha as fofoqueiras, que viviam falando mal de você, tinham as puxa-saco... Mas eu<br />

tinha lá minhas pessoas boas, que me ensinavam, me orientavam. Havia dias em que se<br />

uma não tivesse dinheiro para levar o lanche as outras dividiam com essa colega. Eu<br />

<strong>sem</strong>pre exerci a mesma função de auxiliar de enfermagem. Não tinha condições de mu-<br />

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dar, não estudei. Eu tinha vontade, mas como ascender? O José <strong>sem</strong>pre foi um homem<br />

que não me ajudava nem incentivava nada. Se eu fosse outra pessoa, eu o teria deixado<br />

há muito tempo. Mas eu gostava do teu irmão. Foi o que eu falei para ele antes dele<br />

morrer. “Você foi o único homem que eu amei. Homem nenhum tocou em mim, você<br />

foi o primeiro e você não me valoriza!” Eu falei pra ele isso. Quando eu chegava em<br />

casa do trabalho, encontrava José jogando bilhar, em vez de estar trabalhando. Eu che-<br />

gava e não tinha nada pra botar no fogo e aquilo me revoltava, Antônio. Ele mandava<br />

Zenilda comprar um quilo de feijão lá no bar do fiteiro. Ele passava o dia em casa e<br />

ainda a mandava comprar essa mesquinharia. Isso não é humilhação? É. Tinha dias que<br />

só tinha um ovo. Houve época em que Virgínia ficou com a gente lá. Nós só tínhamos<br />

um quarto para dormir. Isso é vida? Nossa, eu sofri muito. Tenho a cabeça no lugar,<br />

porque Deus é bom. Houve época em que a chefe me jogou sozinha num andar. Antô-<br />

nio, eu cheguei a fazer parto! Claro, foi em situação de emergência, porque não tinha<br />

ninguém para atender. Mas tinha que ter um auxiliar, porque o auxiliar mandava mais.<br />

Eu tinha de fazer injeção, <strong>sem</strong> saber, eu tinha que ligar o soro dos pacientes – ainda bem<br />

que elas tinham me ensinado –, o que não é o mesmo, mas Deus me ajudou. Às vezes,<br />

as mulheres estavam para ganhar neném e eu tinha de as colocar na mesa, abrir todo o<br />

material para não contaminar... Eu corria no telefone para chamar os médicos que esta-<br />

vam lá embaixo, não sei o que estavam fazendo, deviam estar tomando cafezinho, sei lá.<br />

E, aí, o que acontecia era eu sozinha num andar pra tudo. Eu fazia ficha, eu fazia pulsei-<br />

rinha dos nenéns, olha que responsabilidade! O neném nascia, eu mostrava o sexo à<br />

mãe, falava o nome, perguntava o nome dela, e o médico cuidando dela lá. Punha tudo à<br />

disposição dele, porque eu mesma não podia. Punha no ressuscitador e aspirava os ne-<br />

ném, limpava, embrulhava e colocava no cestinho, levava lá embaixo para pesar. Ia lá<br />

ao berçário, fazia a papelada, preenchia... Às vezes, as colegas tinham dó de mim e se<br />

encarregavam de encontrar alguém que levasse aquele papel no berçário, que era para<br />

ser entregue à família quando chegasse alguém. Eu entrei nesse hospital em 1961 e saí<br />

em 1989. Saí aposentada. E foi para mim uma vitória. Foi lá, quando eu trabalhava no<br />

hospital, que descobri que era chagásica. Eles me encaminharam para o Dante Pasanelli<br />

para fazer o tratamento. Naquele tempo eu integrava o grupo de controle do tratamento<br />

de Chagas com aqueles barbeirinhos pequeninos para picar em quatro partes dos meus<br />

braços. Hoje, eles não fazem mais. Todo mês, eu tinha que ir lá para os barbeiros chupar<br />

o meu sangue. Eles administraram remédios que me eram repassados. O remédio vinha<br />

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dos Estados Unidos. O médico era nervoso... Era o Dr. Elias. Ele terminou morrendo de<br />

câncer. Tinha gente que, como efeito colateral do remédio, caía até a pele do pé. E ele<br />

dizia: “Tem de tomar!” Outros passavam mal, e ele: “Tem de tomar!” Eu dizia: “Ai meu<br />

Deus do céu!”. Graças a Deus, eu não tive nenhuma reação. Depois disso, eu fiquei fa-<br />

zendo controles periódicos e acho que, se afetou o coração, deve ter regredido. Depois<br />

da morte de José é que eu tive uma arritmia. Mas foi por conta dos problemas que eu<br />

tive, não é, Antônio? Com quatro meses após a morte de José, morreu Duda. Na luta<br />

com José, tinha dia que o meu corpo tremia de cansaço, Teresa é testemunha disso. Mas<br />

estou bem. Fiz exames recentes e deu tudo bem. Quando eu me aposentei, achei ruim<br />

ficar o tempo todo em casa. Mas logo acostumei.<br />

Antônio – Edite, fale-me de José Barbeiro, seu marido. Ele melhorou a situação<br />

dele depois que chegou a São Paulo?<br />

Edite – Que nada! Eu era o homem e a mulher da casa. Praticamente, José não traba-<br />

lhava, e o que ganhava na barbearia era uma mixaria. E ele tinha outra mania, que você<br />

deve lembrar, é que, quando ele decidia ir pro Norte, sequer me avisava; já chegava de<br />

passagem na mão. Aquilo me doía, porque eu era a mulher dele, e isso não se faz nem<br />

com uma vagabunda, sou sincera em falar. Quanto mais eu, que <strong>sem</strong>pre o respeitei; até<br />

hoje, ainda o respeito. Onde ele estiver, ele é o mesmo, entendeu? Não foram poucas as<br />

vezes que ele decidiu viajar e, quando ficava faltando um dia, ele falava: “Arruma as<br />

coisas que eu vou pro Norte”. Eu ficava trabalhando, e ele no mundo. Não me deixava<br />

despesa, dinheiro, não deixava nada. Eu é que tinha de quebrar a cabeça, eu mesma, e<br />

resolver a minha vida. Compreendeu?<br />

Antônio – Como é que José era pai, e qual era a relação dele com o filho e as fi-<br />

lhas?<br />

Edite – Olha, quando eles mereciam, eu é quem os castigava com um tapinha. Sempre<br />

ia trabalhar preocupada, como eu mesma falava para a Zenilda, que era a mais velha dos<br />

meninos. Eu avisava a ela que tinha feijão, arroz e carne, e ela é quem cuidava dos mais<br />

novos, Zenildo e a Aparecida. Ela era quem os levava à escola e ela contava que, quan-<br />

do os deixava lá, vinha chorando com saudade deles. Eu não tinha tempo de ir numa<br />

reunião de escola, e o José nunca foi. Ele quase não trabalhava. Você sabe o que ele<br />

fazia quando não tinha ninguém? Ele ia jogar bilhar num bar durante duas, três e quatro<br />

237


horas. Eu discutia, às vezes, com ele. E ele tinha um medo danado de mim, quando per-<br />

cebia que eu o flagrava nessa jogatina (rindo muito). Ele se escondia de mim. Durante<br />

a doença, ele sofreu muito, e aquilo me dava uma imensa dó dele, apesar dele me xin-<br />

gar, mas eu acho que era por conta da doença avançada. O problema principal da saúde<br />

dele, que o levou à morte, foi o rim e isso porque ele tinha pressão alta e nunca se preo-<br />

cupou em tratar. Esse foi o diagnóstico. Ele <strong>sem</strong>pre teve pressão alta. Há uns trinta anos<br />

que ele sofria de pressão alta, mas nunca quis ir a um médico se tratar. Esse quadro clí-<br />

nico de problemas decorrentes de pressão alta é familiar. Manoel tinha pressão alta,<br />

Flora, Severino, José... A Marlene, de Manoel, tinha pressão altíssima. Voltando à per-<br />

gunta sua, a relação dele com os filhos era mais ou menos. Mas não era boa. Ele era<br />

muito encrenqueiro e teimoso, e isso <strong>sem</strong>pre aborreceu os filhos e, especialmente, a<br />

mim.<br />

Antônio – E sua relação com os irmãos: Maria, Duda e Zé Guilherme?<br />

Edite – A Maria já faleceu há muito tempo lá no Norte, em decorrência de uma queda<br />

que ela levou. O Zé Camilo, marido dela, não sei se morreu ou se ainda vive. Os filhos<br />

dela abandonaram e se mandaram para as bandas de Mato Grosso. Nunca mais ouvi<br />

falar deles. O resto morreu; o último foi Duda. Eu gostava de todos eles. Uma vez, Zé<br />

Guilherme ficou um ano <strong>sem</strong> falar comigo. Pelo seguinte. Num desses finais de ano, eu<br />

me juntei aqui com o José e os meninos e fomos à casa dele e da Madia para almoçar<br />

com eles naquele dia de festa. Chegando lá, encontrei o maior rebuliço. Zé Guilherme<br />

tinha brigado com Madia. O motivo: ciúmes. Acho que ele ciumava daqueles colegui-<br />

nhas dos meninos que <strong>sem</strong>pre iam a casa brincar e conversar. Ele estava todo emburra-<br />

do. Aí eu falei pra ele acabar com aquilo, não fazia sentido ciumar da coitada da Madia,<br />

que só tinha filhos. Aquilo era absurdo da parte dele, e ele não tinha razão de acusá-la<br />

de nada. Ele ficou danado comigo e passou mais de um ano <strong>sem</strong> falar comigo e <strong>sem</strong> vir<br />

aqui em casa. Eu falei pra ele que aquilo fazia vergonha. Zé Guilherme herdou o gênio<br />

difícil do pai. O Duda era calmo. Ele foi bom pai, bom marido, bom amigo de todos.<br />

Todos vocês têm uma relação especial com Duda. Ele ficou muito preocupado comigo<br />

quando o José morreu. Com quatro meses depois, ele falece. Ele tinha feito uma cirurgia<br />

do coração e correu tudo bem, uma maravilha. Fez a cirurgia em Curitiba e foi operado<br />

por um cirurgião dos Estados Unidos que visitava Curitiba na época da operação dele.<br />

Mas, de repente...<br />

238


Antônio - Edite, fale de sua maior tristeza e de sua maior alegria.<br />

Edite - Minha maior alegria era quando todos nós estávamos juntos, quando éramos<br />

pequenos. A gente, praticamente, não tinha nada, mas nós nos sentíamos felizes. E falo<br />

de coração: amei muito seu pai, todos vocês (chora muito). São pessoas muito especi-<br />

ais para mim. Sou feliz por ter os meus filhos e os netos que eu tenho. Mas tem dias que<br />

me acho sozinha. Eu nunca esperei ficar sozinha. A minha guia aqui é Tereza. Tudo é<br />

ela quem me ajuda. Minhas tristezas são decorrentes dessas coisas. Gostaria de ver mi-<br />

nha família mais unida, na paz, sabe? Porque nós não levamos nada da nossa vida. Nós<br />

deixamos tudo aí. José lutou, eu lutei, todo mundo luta. Você vê a tristeza da gente ter<br />

perdido o Givaldo, uma pessoa boa, maravilhosa, aconchegante, especial. Nós fomos<br />

criados todos juntos. Os meus netos me alegram. Tenho netos e bisnetos; hoje, nasceu<br />

um deles. Isso já me basta.<br />

239


Enedina Maria de Siqueira 52<br />

Antônio – Enedina, qual a sua idade? Diga o nome dos seus pais, seus irmãos, onde<br />

você nasceu e morou.<br />

Enedina – Eu tenho setenta e três anos. Sempre fui muito fã do meu pai, e nós nos de-<br />

mos bem em toda a minha vida. Com minha mãe, também. Você sabe que em todas as<br />

famílias existem desavenças, mas na nossa família tudo foi controlado. Eu nasci e me<br />

criei no Nordeste, lá na velha Paraíba cheia de coisas. Durante muito tempo, trabalhei<br />

com meus pais ajudando a eles. Quando cheguei à idade de estudar, tive oportunidade<br />

de estudar, pedindo muito a eles, porque você sabe que, naquela época, a gente vivia<br />

para ajudar a nossa família, que trabalhava na roça e não se tinha mentalidade de ter<br />

todo o tempo para estudar. O tempo de estudo era muito pouco. Quando eu tinha a idade<br />

de doze anos eu falei para o meu pai que iria ajudá-lo naquilo que fosse possível, inclu-<br />

sive trabalhar na roça. Mas, dizia eu, peço-lhe que me deixe estudar. Ele concordou, ao<br />

contrário de muitos pais que, no Nordeste, achavam que a mulher não deveria estudar<br />

para melhor se dedicar às tarefas de dona de casa. Mas ele não usou esse tipo de argu-<br />

mento. Minha mãe também era uma pessoa compreensível, graças a Deus. E, até certa<br />

52 Enedina Siqueira, casada com Anísio Jorge Siqueira, mora em Arapuá, Três Lagoas, MS. Entrevista<br />

feita no dia 12 de setembro de 2009, na Vila Ema, São Paulo.<br />

240


idade, a gente foi crescendo juntos. Quando eu tinha a idade de quatorze anos, meu ir-<br />

mão Severino comprou uma lojinha, e eu fui com ele para aprender a trabalhar no co-<br />

mércio. No prazo de um ano e meio, trabalhei para aprender, antes mesmo de me ocupar<br />

de outras coisas.<br />

Antônio – Desculpe voltar ao início da entrevista. Quem eram seus irmãos? Você<br />

ocupava que posição na família?<br />

Enedina – Alguns dos meus irmãos e irmãs faleceram. Nós éramos quatorze irmãos.<br />

Maria do Carmo, Maria Rita... Essas irmãs morreram antes de eu nascer, por isso tenho<br />

dificuldade de memória com relação a elas, porque eu não as conheci. Também morreu<br />

o caçula, que se chamava José Everaldo e, além dele, tivemos Maria ..... (inaudível),<br />

Maria José, Maria do Carmo e Quitéria. Já os meus irmãos foram Severino, Manoel,<br />

Francisco e Expedito. De irmão vivo, agora eu só tenho o Expedito. E das irmãs, eu<br />

tenho a Tida (Erotides), a Maria do Carmo e a Quitéria. Nós morávamos na Paraíba, no<br />

Sítio São Francisco, perto da atual cidade da Prata. Nós todos, como já disse, vivíamos<br />

na roça e da roça. Como a vida da roça é muito difícil, e você sabe bem o que é isso, a<br />

gente, na medida em que ia completando a idade de doze, treze e quatorze anos, saía<br />

para buscar outros meios de sobrevivência. A maioria dos homens saiu e ficamos sós,<br />

eu e minhas irmãs. As mulheres, pouco a pouco, foram casando, outras buscando os<br />

seus namorados; foram saindo uma a uma. Os velhos ficaram sós. E logo entenderam<br />

que viver sozinhos naquele fim de mundo não lhes dava futuro. E aí resolveram vender<br />

o sítio lá da Paraíba e compraram outro sítio na divisa do Estado de Pernambuco com a<br />

Paraíba, perto do vilarejo de Pernambuquinho. Ali meus pais ficaram muito tempo e<br />

terminaram vendendo. Compraram uma casa em Petrolina, onde passaram a morar na<br />

cidade. Lá chegando, ele começou a negociar com fumo. Meu pai era uma pessoa muito<br />

boa e não negava as coisas para ninguém. Até que, por ser tão bom de coração, termi-<br />

nou levando um prejuízo relativamente grande, sabe? Chegava a época de fim de ano, e<br />

meu pai comprava caminhões inteiros de fumo. A turma foi vendo aquele homem hu-<br />

milde, que prosperava e não negava nada a ninguém, procurando fazer favor a todo<br />

mundo. Certas pessoas começaram a pedir emprestado dinheiro, mercadoria e outros<br />

bens. Terminavam indo embora <strong>sem</strong> pagar um centavo. Resultou que meu pai teve um<br />

enorme prejuízo. Chegou a um ponto em que ele deixou de fazer negócio e foi viver<br />

com a aposentadoria.<br />

241


Antônio – Voltando um pouquinho ao início de suas memórias, quando você teve o<br />

consentimento de seus pais para frequentar a escola, quem foi sua professora e<br />

qual escola você frequentou?<br />

Enedina – Meu primeiro professor foi uma mulher, que se chamava de Neném. O se-<br />

gundo professor era chamado de professor Raul. A escola era lá em São Francisco, e<br />

esse professor era maravilhoso. Era parente de Cazuza Nunes, era irmão dele. Depois<br />

que eu mudei dessa primeira escola para a outra da divisa com os Estados, estudei com<br />

outras pessoas e foram outros os meus professores. Mas não lembro mais os nomes de-<br />

les.<br />

Antônio – As minhas irmãs, quando moravam lá na Matarina, que é vizinha ao<br />

São Francisco, falavam todas que tinham tido um professor maravilhoso, cujo no-<br />

me era Mestre Gonçalo e que era teu tio...<br />

Enedina – É verdade, só que eu não cheguei a estudar com ele, porque eu não tinha<br />

idade. Apenas lembro que, quando ele dava as aulas, eu ficava ali junto dele, com uma<br />

vontade louca de ir aprender, mas eu não tinha idade para isso. Eu ficava só olhando o<br />

que ele fazia e falava para os outros alunos. Houve um momento em que ele falou para<br />

minha mãe: “Olha, Margarida, sua filha é muito inteligente, e a gente tá vendo como ela<br />

é interessada. É alguém que, se tiver uma oportunidade de estudar, ela vai pra frente”.<br />

Minha mãe ficou naquela... Quando eu completei sete anos, fui pra escola. Aprendi as<br />

primeiras letras, e tudo o mais, quase sozinha, porque os pais da gente nunca consegui-<br />

am nos ajudar. Com a idade de uns doze anos, eu vim com os meus pais morar na divisa<br />

com Pernambuco. Ainda passei uns quatro anos trabalhando com ele ali no sítio. Depois<br />

é que surgiu a lojinha do meu irmão, e eu parti para trabalhar com ele na cidade. Nessa<br />

idade da minha adolescência, eu tinha minhas amiguinhas com quem conviva e brinca-<br />

va. A maioria eram minhas primas, e era com elas que eu ficava a maior parte do tempo.<br />

Elas eram filhas do meu tio, Fortunato Ângelo. Conversavam ali e tal, mas tinham ou-<br />

tras pessoas que eram amigas da gente. Mas faz tanto tempo que a gente se viu que, com<br />

essa passagem do tempo, a gente termina esquecendo. Mas eu tive uma infância e uma<br />

adolescência boa. A minha, foi porque eu nunca fui maltratada, nunca fui humilhada e<br />

meu pai e minha mãe me adoravam. Só que havia as trelas, enquanto meninas, e vez por<br />

outra fizemos por merecer umas palmadas na bunda. Lembro bem que, às vezes, mamãe<br />

242


me deixava tomando conta dos meninos, e eu começava a fazer uns carrinhos para eles<br />

brincarem e terminava por esquecer as panelas no fogo, deixando queimar a comida.<br />

Um dia, ela foi apanhar um algodão e recomendou que eu olhasse as panelas, cuidando<br />

em não deixá-las queimar. Eu fui fazer uns brinquedos para os meninos, e a panela de<br />

xerém terminou esturricando... Ela vinha voltando com uma lata de água na cabeça e<br />

quando chegou sentiu o cheiro daquela panela queimando. Foi logo dizendo: “Espera aí,<br />

cabrita!” Ela não chamava nome com a gente de modo algum. “Espera aí, cabrita, que<br />

eu vou lhe ensinar”. Aí ela pegou uma corda e, quando eu vi que ela ia me bater, eu dei<br />

uma carreira tão grande... Você sabe que as portas das casas no Nordeste têm uma divi-<br />

são no meio e que geralmente só fica aberta a parte superior, ficando a outra fechada<br />

permanentemente. Quando eu corri, vi que a porta de baixo estava fechada e só tinha<br />

uma saída, era saltar de um pulo só. Só que, quando eu pulei, caí no chão; nessa hora,<br />

minha mãe já estava em cima de mim para dar as bordoadas. Eu fiquei com desgosto<br />

porque tinha apanhado, mas fazia parte da nossa vida de meninos. Meu pai nunca foi de<br />

bater em nós. Mesmo com minha mãe, a gente não vivia apanhando à toa. Ele dava mui-<br />

to era conselhos, ensinando que não fizés<strong>sem</strong>os assim e assim. Umas palmadinhas, vez<br />

por outra, mas não era de bater como carrasco e estúpido; não era. O nosso dia-a-dia era<br />

uma vida dedicada à roça, onde passávamos a maior parte do nosso tempo. A gente se<br />

sentia bem, apesar do calor inclemente daquele sol de verão. Quando chegávamos a<br />

casa tomávamos banho e ficávamos ali naquelas janelas... Eu e minhas irmãs botávamos<br />

pra cantar... Cantávamos tudo o que aparecia na vida. A gente decorava e cantava. A<br />

minha irmã Tida era muito danada e <strong>sem</strong>pre foi brincalhona. Ficava botando fogo na<br />

gente e íamos até a madrugada dando gargalhadas. Minha mãe dizia: “Minhas filhas,<br />

vão dormir que amanhã é dia de serviço e vocês têm de acordar cedo!” Chegava ao<br />

quarto, e a gente não tinha sono. Ficávamos conversando bem baixinho, cochichando...<br />

Era boa a minha vida de infância. Nunca passamos apuros de ter fome, necessidades,<br />

não. Meu pai <strong>sem</strong>pre foi um homem cuidadoso e buscou mesmo como pobre manter<br />

bem a sua família. Um pobre que nunca deixou faltar o nosso pão. Namorar... Era a coi-<br />

sa mais difícil. Eu não tinha namorado não. O primeiro namoro meu foi uma graça. Foi<br />

numa festa de novena. Olha, eu dei risadas pra caramba quando as meninas descobri-<br />

ram. Eu vou contar. As minhas irmãs tinham lá os namorados delas. Eu ficava mais de<br />

fora. Fui à festa e lá vi um rapaz bonito, morenão, alto... A gente se olhou de longe,<br />

porque o namoro naquele tempo era mesmo a distância. Não é, absolutamente, como<br />

243


nos dias de hoje. Eu sei que quando o rapaz veio para perto de nós, em público, se fazer<br />

anunciar, nessa hora eu vi que ele tinha um pescoço maior do que o normal das pessoas.<br />

Olha, as meninas depois me gozaram o quanto puderam, perguntando se eu estava na-<br />

morando um rapaz ou um ganso (ri muito). Olha, Antônio, a partir daquele momento<br />

acabou-se o encantamento, algo como um pavão que mostra os pés. Foi uma ducha de<br />

água fria. Acabou a novena, e nós fomos embora. No caminho, foi uma gozação só com<br />

a minha cara. A nossa vida era aquela, de roçado, de brincadeiras, de cantar... A minha<br />

saída da roça para a cidade foi mais ou menos assim. Meu pai aceitou que eu saísse,<br />

porque já naquelas alturas eu tinha feito a quinta série primária. Eu <strong>sem</strong>pre escrevi e<br />

sabia contar muito bem, <strong>sem</strong> nenhum problema. Fui trabalhar junto com meu irmão,<br />

aprendi a trabalhar na loja dele por cinco anos – o ramo dele era comércio de tecidos.<br />

Eu fazia de tudo na loja: contas, metragem, vendas; conhecia todos os tipos de tecidos.<br />

Sabia o que era de algodão, o que era seda, o que era “laquê”, todos os tipos de coberto-<br />

res, do mais barato ao mais caro, etc. Em Sertânia, tinha muita gente orgulhosa, que<br />

fazia questão de aparecer, e essas mulheres ai de Sertânia compravam coisas boas, se-<br />

das, crepes, linhos... Os homens compravam brim, linho, caque. Teu pai era meu fre-<br />

guês. E era um freguês bom, porque ele gostava de roupa boa: linho, caque... Quando<br />

chegavam aquelas peças de tecidos de qualidade, eu oferecia a ele, e ele <strong>sem</strong>pre levava<br />

do melhor. Eu já tinha certo conhecimento e intimidade com ele para poder abordar e<br />

oferecer a mercadoria. Ao final do ano, eu e ele fazíamos o balanço da loja. Algum<br />

tempo depois, a sua irmã Virgínia passou a trabalhar conosco. Veio outra menina, que<br />

se chamava de Bernadete. A gente viajava para aqueles povoados mais distantes com<br />

tecidos para serem vendidos, e lá se passava a tarde inteira vendendo roupa naquelas<br />

barracas. Voltando a minha família, como eu lhe dizia, meus irmãos foram saindo aos<br />

poucos e também minhas irmãs, seja por opção, seja por casamento. Meus pais decidi-<br />

ram vender o sítio quando se viram sozinhos. Foi para Petrolina, onde já tinha Francis-<br />

co, meu irmão, e minha irmã Quitéria morando. Minha irmã Leda foi morar em Alago-<br />

as. Eu, depois da experiência com a lojinha do meu irmão, fui trabalhar em Arcoverde,<br />

onde já morava minha vó e meu tio Firmino, irmão de minha mãe. Tinha lá Fortunato,<br />

Firmino, Feliciano, Domingos e Geraldo, todos meus tios, irmãos de minha mãe. Minha<br />

vó congregou lá os cinco filhos dela e as quatro filhas. A história é a seguinte. Minha vó<br />

teve um primeiro casamento, no qual teve nove filhos; logo em seguida ocorreu o fale-<br />

cimento desse marido, que deixou cinco filhos, todos muito pequeninos. Minha vó, co-<br />

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mo era uma mulher muito séria e conservadora, não quis casar de novo. Decidiu traba-<br />

lhar para ela mesma criar aqueles filhos. E não arranjou outro homem na vida dela. Cri-<br />

ou mamãe, minhas tias... Criou todos eles <strong>sem</strong> se desfazer da família. Quando os filhos<br />

tomaram conta de si, decidiram “voar”, como a gente diz quando os filhos saem de casa<br />

para ganhar a vida. A maioria foi embora e depois levaram a velhinha para junto deles.<br />

Olhavam para ela com muito carinho. Eu mesma cheguei a morar com minha vó; passei<br />

pouco tempo com ela, e logo depois ela veio a falecer.<br />

Antônio – Foi nesse tempo de Arcoverde que você conheceu Anísio?<br />

Enedina – Eu conheci o Anísio em Sertânia, na época em que eu trabalhava com sua<br />

irmã, Virgínia. De vocês, eu conhecia o Severino, o Manoel, mas não conhecia o Valde-<br />

ci, nem os outros... Nem você. Você era muito jovem, era um “crianção” ainda. Só de-<br />

pois que eu tive o contato com Virgínia é que eu fui conhecendo os demais. O Anísio já<br />

era rapaz. Você estava estudando fora. Eu, então, conheci o Elias, o José Barbeiro, o<br />

Valdeci e o último da família que eu realmente cheguei a conhecer foi o Anísio.<br />

Antônio – E aí, como é que isso se transformou num namoro? Foi você quem jogou<br />

o laço, ou foi ele?<br />

Enedina – Ah, não! Foi ele, e foi tão engraçado. Eu tinha um namorado. E acho que foi<br />

o primeiro namorado mais sério com quem eu tive um compromisso. Chegou por lá, um<br />

dia, um primo meu e me contou que esse cara estava de sacanagem comigo, não é? Aí<br />

eu disse comigo mesma que seria o fim. Peguei a aliança velha de compromisso, joguei<br />

dentro de um envelope e mandei-o andar. Fiquei livre e desimpedida. Era época de fes-<br />

tas de São João, de todas aquelas festas juninas que têm lá... Época em que as moças<br />

casamenteiras se divertiam dizendo que iriam encontrar um namorado. Então, eu conhe-<br />

cia o Anísio de pouco tempo. Mas ele já andava me “espiando”, me procurando; um dia,<br />

até jogou uma piada para mim. E, nessa época, eu ainda tinha o compromisso com o tal<br />

rapaz. Ele me falou pra jogar fora aquela coisa velha, que ele em troca me daria uma<br />

aliança de ouro. Ele se referia à minha aliança de compromisso (rindo muito). Aí eu<br />

fiquei quieta, né? Eu nem o conhecia direito. Sabia apenas que ele era filho de Seu Zé<br />

Jorge com Dona Verônica, irmão de Severino. O Severino foi o primeiro dos seus ir-<br />

mãos que se tornou meu amigo. Era com ele que eu mantinha mais contato, sabe? Mas<br />

quando ele me falou aquele negócio assim... Antônio, você sabe que eu sou uma pessoa<br />

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que, quando eu gosto das pessoas, gosto por sinceridade. Não sou uma pessoa falsa nem<br />

gosto de falsidade. Então, quando aquele rapaz chegou pra mim e falou isso, a primeira<br />

reação minha foi perguntar a ele se era sério aquilo que ele estava me falando... Porque<br />

eu não vou querer ficar servindo de capacho para ninguém não. Quando eu peguei a<br />

aliança de compromisso e entreguei ao cara, mandei-o embora de uma vez. Eu estava,<br />

portanto, livre e desimpedida só a partir daquele momento. Isso aconteceu no início do<br />

ano. No meio do ano é que acontecem as festas juninas. É um momento muito festivo,<br />

onde a gente reúne todos os primos e parentes, com muita fartura, fogueira etc. Eu falei<br />

assim “puxa, eu estou <strong>sem</strong> namorado e tenho que arranjar um para passar pelo menos o<br />

São João” (rindo). Eu trabalhava com a Virgínia e ela, sendo daquele jeito desinibido<br />

que é, disse-me assim: “Eu tenho um irmão bonito e vou te apresentar”. Ela me apresen-<br />

tou, e então ficamos um pouco conversando por ali até que ele teve que sair até a casa<br />

de vocês para arranjar lá uma sanfona para animar a dança do São João, da fogueira. E o<br />

Anísio se foi. Eu sei que a gente começou a conversar e tudo... Eu disse pra Tida que<br />

tinha arranjado um namorado e certamente não iria passar o São João sozinha. Mas eu<br />

não tinha intenções de dar continuidade àquele namoro. Aquilo era apenas um momen-<br />

to. Com a continuação, eu tive que me mudar para Arcoverde para dar continuidade ao<br />

meu trabalho, e o Anísio ficou. Na oportunidade de um nosso encontro na casa dele,<br />

naquela casinha dali da beira da rodagem, que era onde a gente mais namorava, ele me<br />

falou numa hora dessas que iria viajar para São Paulo. Ele tinha trabalhado o ano inteiro<br />

numa roça que havia preparado, onde plantou de um tudo e tudo se perdeu com falta de<br />

chuva. Ele, raivoso, pegou uma daquelas enxadas e disse que tinha fé em Deus que nun-<br />

ca mais pegaria numa peste daquela para sobreviver. “Eu vou embora”, disse. Quando<br />

ele me falou isso, eu disse que estava bom. Ele poderia viajar. Porque eu já estava com<br />

minha vidinha mais ou menos arranjada, ganhando meu salarinho, tendo minha vida<br />

normal, né? Quando ele me falou que não tinha outro meio de vida de arranjar alguma<br />

coisa, eu o apoiei para ele viajar pra São Paulo. Em São Paulo, você vai ter condições<br />

melhores para constituir sua vida, né? Quando ele tomou a decisão de viajar, falou para<br />

o pai dele que queria viajar. E, como gostava de mim, iria pedir-me em casamento. Foi<br />

quando ele resolveu me pedir em casamento a meu pai. Mas, antes dele me falar em<br />

casamento, eu decidi falar pra ele que ele ia <strong>sem</strong> compromisso e eu ficava também <strong>sem</strong><br />

compromisso. Depois disso é que ele falou que iria noivar. Eu dizia que não via sentido<br />

em ficar com um namoro em que eu não sabia se iria para frente ou iria ficar na situação<br />

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em que me encontrava antes de conhecê-lo. Eu tinha a minha vida livre, e ele podia<br />

também ter a vida dele livre, <strong>sem</strong> compromisso nenhum. Mas ele não aceitou. Foi ai<br />

quando ele decidiu me pedir em casamento. Nessa oportunidade, mesma ele me afirmou<br />

que somente iria casar quando ele comprasse o chãozinho dele e aprontasse a casinha<br />

para morar, mesmo sendo de dois cômodos. Eu aceitei ali. Falei que iríamos trabalhar;<br />

eu ia aprontar o meu enxovalzinho de casamento, comprar minhas coisas, porque eu<br />

tinha minhas economias também. E a gente ficou assim. Ao final de quatro anos e pou-<br />

cos meses, ele voltou, e a gente casou. Viemos para São Paulo naqueles paus-de-arara,<br />

não; naqueles velhos ônibus. Passamos sete dias na estrada. Oh, Antônio, que viagem<br />

horrível! Eu tinha a impressão de nunca na minha vida chegar a esse lugar, que era São<br />

Paulo. Uma <strong>sem</strong>ana inteira na estrada. E era uma estrada de terra... Eu dizia pro Anísio:<br />

“Nós não vamos chegar não?” Daqui de São Paulo, a comadre Flora e o compadre Zeca<br />

foram os meus padrinhos. Aproveitaram a viagem ao Norte para fazer as pazes com<br />

seus pais e serviram de padrinhos. Eu já conhecia os seus irmãos, meus cunhados todos<br />

que estavam aqui em São Paulo. A Flora é que eu não conhecia. Foi a última da família<br />

que eu conheci.<br />

Antônio – E a vida de casados aqui em São Paulo, como foi? Logo engravidou e<br />

teve filhos?<br />

Enedina - A primeira filha que eu tive foi a Célia. Ela nasceu aqui em São Paulo. Eu<br />

havia casado no dia nove de janeiro de 1962, e a Célia veio nascer em dezembro do<br />

mesmo ano, no dia 11 de dezembro. Eu a tive no mesmo ano em que casei, só que não<br />

foi assim seguido ao casamento. Eu vim ter o Hélio em 1968, lá no Nordeste. Depois de<br />

casarmos, viemos para São Paulo e aqui passamos quatro anos. Depois disso, o Anísio<br />

resolveu voltar para o Nordeste. Ele tinha o intuito de montar lá uma olaria. Aquilo ali<br />

não deu em nada e foi um momento muito difícil na nossa vida.<br />

Antônio – Conte quais as dificuldades que vocês tiveram de encarar...<br />

Enedina – Foi difícil porque, no começo, ele chegou a montar aquela olaria toda e ini-<br />

ciou a fabricação das telhas. Como ele não sabia fazer, teve de arranjar uma pessoa que<br />

sabia fazer para dar andamento àquilo ali. O Anísio é um cara que manda alguém fazer<br />

uma coisa e deixa, não vai verificar se essa pessoa está fazendo ou não. Ele é muito con-<br />

fiante nas pessoas. O fato é que esse contratado ia fazendo aquelas telhas, e elas iam se<br />

247


desmoronando, rachando e, finalmente, nem serviam para vender. E a gente começou a<br />

amargar prejuízo. Nessa época, eu tive que fazer uma rápida cirurgia, e a partir daí nós<br />

começamos a nos endividar, devendo pagar o dinheiro que havíamos pedido ao tio Fir-<br />

mino para a cirurgia. E ficamos <strong>sem</strong> conseguir pegar um centavo daquilo ali. Era so-<br />

mente pagando, tirando do bolso para pagar o rapaz que sabia fazer as telhas e nunca se<br />

vendia nada. Nunca vendemos cem telhas daquela fabricação. Olha, aquilo foi a pior<br />

coisa que já fiz na minha vida. E o Anísio, você sabe que ele gosta de pescar, de caçar...<br />

Saía com Seu Zé Jorge e ia fazer aquelas caçadas por lá. Eu, que estava convalescendo<br />

da cirurgia, é que me encarregava de pagar toda sexta-feira aquele dinheirinho, que nós<br />

tirávamos não sei de onde para pagar aquele contratado. Numa dessas sextas-feiras, eu<br />

cheguei devagarzinho lá na olaria e percebi que, das cem telhas que tives<strong>sem</strong> lá, não se<br />

encontraria cinco boas; todas rachadas. Aquilo me deu uma raiva... A gente tirando di-<br />

nheiro não se sabe de onde... Dinheiro do seu pai, certamente, que nos ajudou muito.<br />

Chegando lá, eu fui olhar aquela telha toda quebrada, e o cara já tinha levado o dinheiro<br />

dele que recebia na sexta e só recomeçava a trabalhar na segunda-feira. Anísio chegou<br />

da caçada. Fiz um café e disse pra ele: “Anísio, hoje você vai resolver uma coisa”. Eu já<br />

estava saturada, né? Eu nunca fui de ficar brigando com ninguém. Mas chega um mo-<br />

mento em que a gente tem mais é que abrir os olhos daquela pessoa que estava sendo<br />

iludida. Anísio estava <strong>sem</strong> vontade de deixar aquele negócio e vir embora para São Pau-<br />

lo. Ele preferia ficar ali, naquela vida <strong>sem</strong> futuro. E a gente continuava tendo família. Já<br />

tinha nascido a Célia e depois vieram o Hélio e o Daniel. E eu me perguntava como é<br />

que eu iria educar os meus filhos numa situação daquela? Olhava-se para um lado e para<br />

o outro, para frente e para trás e não se via um horizonte, né? Então, logo depois que ele<br />

tomou aquele café eu falei pra ele que tinha entregado o dinheiro da <strong>sem</strong>ana para o olei-<br />

ro. E olha que o oleiro, além desse pagamento <strong>sem</strong>anal, já estava nos devendo uma<br />

quantia a mais. Eu disse que achava que ele deveria ir lá e, primeiramente, desse uma<br />

olhada na produção <strong>sem</strong>anal dele e daí poder concluir se o que eu estou falando é sério<br />

ou não. Ele foi e constatou que as telhas estavam todas quebradas. Nesse momento, ele<br />

foi falar com o tal oleiro, que se chamava Vicente. Seu Zé Jorge falou logo assim: “Bem<br />

que eu te falei, Anísio, se isso tivesse futuro eu já tinha iniciado há muito tempo!” Afi-<br />

nal, você bem sabe que o barro de lá é um barro bom, bom mesmo. Nessa hora, eu su-<br />

geri a ele que desistisse daquilo, porque a gente já estava endividando. Desista disso e<br />

faça aquele cara lá nos pagar o dinheiro que nos deve e reformar uma casinha que tinha<br />

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lá perto do Manoel, para que nela possa morar com você e meus filhos. Nós vivíamos<br />

na casa do nosso sogro, e aquilo não era normal nem justo. Nós ficamos bastante tempo<br />

morando com Dona Verônica. Olha, Antônio, quando a gente casa, quer casa. Não pos-<br />

so falar que morar aquele tempo com minha sogra foi ruim, não. Mas quando a gente<br />

casa e passa a ter filhos, a gente deve ficar no nosso cantinho, porque nele a gente educa<br />

os nossos filhos do jeito que a gente pode. Do contrário, é incomodar e não devemos<br />

fazer isso. Eles eram duas pessoas de idade, com a família toda criada e dona de si...<br />

Ficar agora aturando choro de menino pequeno, zuindo no ouvido do meu sogro à noite,<br />

na hora de dormir? Eu disse que aquilo estava errado. Pedi que ele pegasse aquele di-<br />

nheiro, mandasse o cara dar uma melhorada naquela casa, dividisse em quarto, sala e<br />

cozinha... Pra eu viver, não precisava de mais nada. Eu falava aquilo pra ele, mas con-<br />

fesso que tinha um sentimento dentro de mim de que, mesmo aquilo, não tinha futuro<br />

nenhum. Mas, mesmo assim, eu ainda preferia ficar no que era meu. Como, de fato,<br />

aconteceu. Procedeu-se à reforma. Não tínhamos nada, nem mesa, nem guarda-roupa,<br />

nem móveis, apenas a cama de dormir. Era aquela pobreza... Só tínhamos a cama e uma<br />

rede na sala para se descansar depois de um dia de trabalho. Mas eu gostei, gostei de<br />

ficar: ficava ali naquela vida, dormia, levantava, fazia tudo o que eu queria. Porque na<br />

casa de minha sogra eu me sentia à vontade, até certo ponto. De outro lado, eu não me<br />

sentia bem, porque se eu tivesse vontade de fazer alguma coisa não tomava essa decisão<br />

por minha conta. Eu tinha que me comunicar com ela. E, às vezes, a pessoa falava que<br />

não era possível fazer aquilo ou aquela coisa. E aí, nesse caso, a gente fica com aquele<br />

sentimento de querer e não poder fazer as coisas. E isso é ruim. Mas, mesmo assim, eu<br />

não me queixo, pois meu sogro e minha sogra foram muito bons comigo. Com meus<br />

cunhados, minhas cunhadas, eu me dou bem com todos eles; com todo mundo, e consi-<br />

dero muito a todos. Sua família, a família do meu marido, eu a considero como meus<br />

irmãos. Para mim, foram todos ótima gente, e eu tenho a maior consideração. Nunca<br />

tive nada contra nenhum deles, não é? Mas, Antônio, a gente quer viver cada um a sua<br />

vida, na sua casa. A partir desse momento em que nos desfizemos da olaria, ficamos<br />

ainda muito tempo em Santa Luzia, <strong>sem</strong> ter nada, absolutamente nada. Até que um dia<br />

eu perguntei para o Anísio o que a gente construiria na vida se continuás<strong>sem</strong>os a viver<br />

aquela vida ali. Até ali, não se tinha produzido nada. E logo ele que, em São Paulo, ti-<br />

nha aprendido uma especialização e tinha praticado uma profissão rendosa... Uma pro-<br />

fissão que ele aprendera a viver dela... E agora, ficar ali jogado naquele lugar que não<br />

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tinha vida? Nem vida nem futuro nenhum? Ele não gostou daqueles meus conselhos,<br />

porque o gosto dele era ficar por lá mesmo. E aí foi indo, foi indo, o tempo foi passando<br />

e eu queria que ele resolvesse alguma coisa da vida, porque afinal ele era o dono da ca-<br />

sa. Nós estávamos nos privando das coisas de primeira necessidade, Antônio. Algo co-<br />

mo roupa, calçado e até mesmo alimentação, tudo isso. Eu não via futuro naquela vida<br />

e, <strong>sem</strong>pre que eu voltava a tocar nesse assunto, ele ficava enraivecido comigo. Ele me<br />

dizia que tinha a impressão que eu estava louca para que ele fosse embora dali, apenas<br />

por ir embora... Foi quando eu disse que desejava muito que ele procurasse condições<br />

de viver <strong>sem</strong> estar à custa do pai e da mãe dele. Afinal, aquilo não era justo, porque a<br />

nossa família estava crescendo e não era certo que se continuasse vivendo à custa do pai<br />

e da mãe. Aquele assunto passou, e eu não voltei mais a comentar. O tempo também foi<br />

passando. Até que, finalmente, um dia a Flora e o Zeca foram ao Norte fazer uma visita<br />

à família e viram de perto aquela situação. Eu tinha deixado a minha casinha em São<br />

Paulo, onde tinha de um tudo, toda arrumadinha. Quando minha comadre Flora viu a<br />

minha situação naquela casinha tosca, ela começou a chorar. Ela lamentava nos ver nu-<br />

ma situação daquela <strong>sem</strong> necessidade nenhuma. Afinal, Anísio não era um pobre coita-<br />

do que nunca tinha tido nada na vida. Com ele era diferente, porque ele teve condições<br />

de crescer na vida. Era jovem, inteligente, estudou, aprendeu uma profissão boa pra ele<br />

que, até hoje, conseguiu viver dela... Ela me sondou da possibilidade de ela, com a aju-<br />

da do Zeca, convencer o Anísio a voltar com eles para São Paulo. Eu informei que vol-<br />

tar para São Paulo não era mais a vontade dele. No entanto, ela, como irmã, podia con-<br />

versar com ele sobre essa possibilidade. Eu é que não falaria mais a ele da necessidade<br />

de sair dali de Sertânia para São Paulo. A comadre Flora e o Zeca, o marido dela, eram<br />

pessoas boas, maravilhosas. Ela me perguntou se, caso ela convencesse o Anísio a vol-<br />

tar, eu concordaria. Eu respondi que era a coisa que eu mais desejava na vida. E que eu<br />

não tinha medo nenhum de ficar sozinha. Eu estava grávida de Daniel naquele momen-<br />

to. Disse pra ela que, caso ela conseguisse dele essa decisão de viajar, eu nunca pagaria<br />

a ela esse favor que ela nos prestava; a mim, a ele e a meus filhos. Eu sei que os dois<br />

conversaram com ele e chegaram ao ponto de convencê-lo da viagem de volta. Ele che-<br />

gou lá em casa dizendo prá mim: “Velha – é assim que ele me chama ainda hoje! –, a<br />

Flora e o Zeca estão querendo me levar para São Paulo, o que você acha? Você está<br />

grávida, esperando nenê, o que é que eu faço?” Eu respondi pra ele que gravidez não era<br />

doença e que eu estava grávida, mas não estava doente. E caso ele decidisse acompa-<br />

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nhar os dois para São Paulo, ele não devia se preocupar comigo coisa alguma. Eu aqui<br />

me virava. Ele se mostrou preocupado em me deixar sozinha, mas eu o tranqüilizei,<br />

dizendo que não teria problema nenhum. Ele resolveu ir embora, e eu fiquei. Mas fiquei<br />

pouco tempo, porque eu tive meu filho em abril e, logo depois de uns cinco meses, já<br />

viajava para São Paulo, juntando-me a ele.<br />

Antônio – Eu lembro, Enedina, que logo nos primeiros dias de minha chegada da<br />

Europa, em 1970, nas conversas com meu pai, ele me falava desses momentos difí-<br />

ceis que vocês todos passaram, especialmente com o peso das três famílias para ele<br />

e minha mãe: da sua, do Severino e do Manoel. Segundo ele contava, foram mo-<br />

mentos de muito apuro e dificuldades...<br />

Enedina – Antônio, eu lembro muito bem dessa situação tão ruim em que se encontra-<br />

vam seu pai e sua mãe, garantindo o sustento de três famílias. Porque é preciso lembrar<br />

que, quando nós estávamos naquela penúria de vida lá em Sertânia, num certo dia, che-<br />

gam o Severino e a minha irmã Erotides com os meninos. E chegaram lá para ficar.<br />

Venderam a casa que tinham adquirido aqui em São Paulo. Severino se demitiu do em-<br />

prego e se mandou para o Nordeste, de uma vez por todas. Eu lembro que lhes perguntei<br />

se tinham ido passear, e eles me responderam que tinham ido para morar lá, de vez. Na-<br />

quela hora, eu tive tanta raiva... Porque eu percebi que a opção daquelas pessoas já fei-<br />

tas na vida era voltar agora aos tempos de uma vida em que dependiam em tudo do pai e<br />

da mãe. Eles que criaram os filhos com tantos sacrifícios, orientaram para a vida, todos<br />

ficaram donos de si mesmos e, naquele momento, voltavam a ser dependentes, onerando<br />

a velhice de duas pessoas que não mais mereciam aquele peso. Eu via todos os dias mi-<br />

nha sogra fazendo aqueles queijinhos dela, daquele leite mirrado, vendendo em Sertânia<br />

para nos sustentar com aquele dinheirinho... Logo, logo, começou a desunião do Severi-<br />

no com a Erotides; chegaram mesmo a se separar. Minha irmã ficou muito atacada de<br />

depressão profunda, tendo que se internar no Recife. Portanto, tudo isso começou a<br />

mudar com a viagem da Flora, do Zeca e do finado Givaldo, quando decidiram trazer<br />

Anísio de volta para São Paulo. A Flora e o Givaldo foram ao Recife visitar a Tida e viu<br />

que a situação era crítica. É preciso lembrar que, enquanto era apenas minha família e a<br />

do compadre Manoel, as coisas já iam ruim. Mas, com a chegada da Tida e do Severino,<br />

as coisas foram se fechando. Afinal, eram quatro famílias - contando com o seu pai e<br />

sua mãe - que deveriam ser sustentadas. A coisa foi se fechando e, nessa hora, eu senti<br />

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muita pena do meu sogro, lhe confesso. Porque até então eu <strong>sem</strong>pre o vi ter um cafezi-<br />

nho reforçado, onde não faltava um pedacinho de queijo, uma mistura variada, uma coa-<br />

lhada matinal, etc. Mas, à medida que a coisa foi apertando, aquilo foi diminuindo, foi<br />

sumindo, foi desaparecendo para suprir a manutenção das famílias. Eu via que aquilo<br />

não era possível, era demais... Ver os filhos depois de casados voltarem ao ninho da<br />

proteção dos pais... Quando foi um dia desses, eu cheguei lá para buscar uma lata de<br />

água doce da cisterna e vi seu pai muito nervoso. Nervoso como nunca eu o tinha visto<br />

até então. Quando eu cheguei, lá estava o Severino. Nesse dia, era sábado, e Dona Ve-<br />

rônica tinha ido fazer a feira. Eu, então, fiz um café rápido, um café simples e o colo-<br />

quei sobre a mesa. Naquele momento, ele começou a dizer umas verdades que eu acha-<br />

va que ele tinha total e absoluta razão de nos dizer aquilo, tanto para mim como para os<br />

outros. AÍ ele começou e falou assim: “Vou falar uma coisa pra vocês, agora. Eu já criei<br />

vocês, cada um é dono de si. Hoje eu tenho pouco, estou ficando velho e vai chegar a<br />

doença. O que eu tenho aqui é para nos manter na nossa velhice, nas nossas necessida-<br />

des. De modo que cada um procure o seu caminho”. Ele não tinha mais condições de<br />

nos segurar. Eu gostei quando ele disse aquilo, porque eu achava que ele tinha razão.<br />

Mostrou que aquilo que acontecia ali não era bom nem ideal para qualquer um de nós.<br />

Nem para ele nem para nós. Aquilo me chocou, porque eu sabia que meu marido tinha<br />

condições de levar uma vida melhor e, portanto, naquele momento, merecia aquela re-<br />

primenda do pai. Botei aquela lata de água na minha cabeça e chorei todo o caminho de<br />

volta até à minha casa. Eu me perguntava por que estava numa situação daquela. O Aní-<br />

sio sendo uma pessoa jovem, um bom profissional, por que aceitava ficar numa situação<br />

daquela? Eu não precisava passar por uma situação daquela. Deixei a minha casinha em<br />

São Paulo e vim para essa situação de penúria. E me senti mal, não pelo que ele falou,<br />

porque ele tinha toda razão da vida. Quando eu via seu pai se privando daquelas coisi-<br />

nhas melhores que ele tinha direito de ter, aquilo me doía na alma. Eu não falava muito,<br />

Antônio, porque eu não sou uma pessoa de ficar me lamentando e me maldizendo. Mas<br />

eu sofria com aquilo.<br />

Antônio – Como é que as coisas evoluíram com a vinda de Anísio para São Paulo?<br />

Enedina – Depois que ele viajou, eu fiquei lá, meu sogro me deu todo apoio, tomou<br />

conta de mim, minha sogra tomou conta de mim e me ajudaram no momento em que eu<br />

precisei. Tive meu filho com o apoio de todos eles. Saí de lá, vindo para São Paulo, <strong>sem</strong><br />

252


mágoas de nada e de ninguém, de jeito nenhum. Mas me senti muito bem e feliz quando<br />

saí de lá e vim para minha casa, ficar junto de minha família. E de lá até hoje, garanti o<br />

meu futuro. Claro, nós não tivemos tantos recursos, mas aprumamos a nossa vida, e não<br />

posso me queixar de modo algum. Com a volta do Anísio, ele se empregou de novo e<br />

nunca mais faltou nada para a gente. Graças a Deus, eu sou uma mulher controlada e<br />

por nunca ter sido extravagante... Continuamos trabalhando e construindo as condições<br />

de criar os nossos filhos.<br />

Antônio – Eu <strong>sem</strong>pre soube que Anísio tinha um sonho na cabeça que, com a apo-<br />

sentadoria dele, não ficaria em São Paulo para morar num lugar de mato, no inte-<br />

rior. Você concordava com isso?<br />

Enedina - Eu <strong>sem</strong>pre soube que ele desejava alguma coisa assim. Além do mais, antes<br />

dele se aposentar eu fui conhecer aquele sítio que ele terminaria comprando lá no Mato<br />

Grosso; e eu gostei daquele lugar lá. Era um ar puro, um ar gostoso, um ar livre, mas<br />

não tinha intenção, naquele tempo, de ficar morando ali. Com a aposentadoria, o Anísio<br />

tomou a decisão de que não ficaria mais morando em São Paulo e decidiu ir morar ali<br />

naquele sítio que ele já conhecia. E logo, logo, ele decidiu comprar aquele pedacinho de<br />

terra. Tudo bem. Agora tem o seguinte: na hora em que ele tomou a decisão de ir embo-<br />

ra, eu estranhei. É que eu tinha aqui a minha casa, meus filhos e não sou como o Anísio,<br />

que adora viver no mato, nas brenhas. Além do mais, lá não tinha praticamente nada e<br />

tínhamos que construir tudo, como de fato, construímos. Fui, e, com o passar do tempo,<br />

minha família foi toda ficando independente de nós, tomando conta de sua vida, dos<br />

seus afazeres e do seu trabalho. Nessa situação, eu não achava que era necessário ficar<br />

com eles em São Paulo. Entreguei a eles tudo o que tinha, deixei que eles tomas<strong>sem</strong><br />

conta da casa onde a gente morava e fui acompanhar o meu marido. Fiquei lá em defini-<br />

tivo. Acho que foi uma boa opção, pelo fato de morar num lugar onde temos tudo, uma<br />

casa boa, construída por nós e aquela natureza verde... Estou feliz lá também, porque os<br />

meus filhos estão felizes aqui. O que nós tínhamos é deles. Neste exato momento, esta-<br />

mos tramitando a documentação de legalizar para eles a transferência do que nós temos<br />

aqui de imóveis. Vai ser deles por direito. Nem eu nem o Anísio queremos deixar pro-<br />

blemas para os nossos filhos. A gente <strong>sem</strong>pre trabalhou para os nossos filhos. O que nós<br />

temos é deles. E sou feliz em tudo e não me queixo de nada. Adoro minha família, ado-<br />

ro meus cunhados, adoro todo mundo e sou feliz da vida.<br />

253


254


Rejane Cavalcante de Siqueira 53<br />

Antônio – Rejane, fale do seu sentimento de integrar a família Siqueira...<br />

Rejane – Sentimento de amor e de agradecimento. Eu agradeço muito a todos da famí-<br />

lia Siqueira, porque me acolheram, me aceitaram como eu era, como eu sou, e pra mim<br />

é como se já há muito tempo fizesse parte da família. Fui acolhida de braços abertos.<br />

Deram-me muito carinho e muita compreensão. O que eu transmito para todos é que<br />

continuem <strong>sem</strong>pre com essa compreensão e esse sentimento de amor que têm uns pelos<br />

outros. Que continuem com essa amizade, que <strong>sem</strong>pre transmite segurança, e não dei-<br />

xem de dar seus bons conselhos que <strong>sem</strong>pre nos são repassados. A própria Virgínia,<br />

mesmo sendo daquele jeito esquentado, não deixa de ser uma pessoa maravilhosa e que<br />

tem bons sentimentos. O mesmo digo da Madia, como de todos os demais. Manoel era<br />

também esquentado, porém aquelas coisas que ele dizia, é importante que a gente deixe<br />

53 Rejane Cavalcante, esposa de Valdeci Jorge Siqueira foi entrevista na Fazenda Santa Luzia, em Sertâ-<br />

nia, onde reside, na data de 11 de maio de 2009.<br />

255


passar... Finalmente, todo o pessoal da família, incluindo Anísio e Flora, que, além de<br />

minha cunhada, era minha comadre; e, além de tudo, uma pessoa maravilhosa. Uma<br />

pessoa bacana, tanto ela quanto Zeca, e eu não tenho palavras para definir o quanto a-<br />

mável eles eram. Porque ela era tudo, era o esteio de toda a família. Senti muito por<br />

todos quanto se foram. Gostaria que todos que virão por aí, netos, bisnetos, que eles<br />

continuem com essa garra que os Siqueira têm.<br />

Antônio – Como é que você e o Valdeci se conheceram...<br />

Rejane – Você sabe que tanto meu pai quanto minha mãe gostavam muito de vir jogar<br />

sueca por aqui. Eu sabia que eles vinham <strong>sem</strong>pre à noite jogar sueca com Seu Zé Jorge,<br />

com Dona Verônica, mas eu nunca tinha vindo com eles. Aconteceu que, na festa de<br />

uma noite de São João, eles nos convidaram para vir comer pamonha, aqui na Fazenda.<br />

Nessa tal pamonha, Valdeci estava aqui e ficava <strong>sem</strong>pre olhando para mim... Em Sertâ-<br />

nia, tinha uma pracinha em frente ao cinema e à prefeitura, onde as moças, à noite, fica-<br />

vam dando umas voltinhas. Ele, então, ficava <strong>sem</strong>pre ali, frente à prefeitura, olhando<br />

para mim, fazendo aquela paquera. Quando foi um dia, ele chegou lá em nossa casa e<br />

me disse: você é filha de Dona Raimunda, e eu não sabia. Daquele dia em diante, ele<br />

então ficou <strong>sem</strong>pre encontrando e conversando comigo. Passamos ainda quase um ano<br />

para namorar e começamos a namorar num dia em que Seu Zé Jorge, estando doente,<br />

ele, Valdeci, foi levar Anísio e Elias ao ônibus que os traria de volta a São Paulo, após a<br />

visita a seu pai. Nessa oportunidade, eu estava vindo da escola, a gente se encontrou e<br />

voltamos conversando. Foi essa a nossa primeira noite de namoro. Passamos um bom<br />

tempo namorando e, nesse momento, passei a conhecer a família dele mais de perto;<br />

isso demorou um ano e três meses e aproveitamos para nos conhecer melhor. Dona Ve-<br />

rônica tinha aquele preconceito dela contra mim e, inicialmente, se opôs ao casamento,<br />

dizendo que eu era uma menina de cidade e que convinha mais a ele casar com uma<br />

pessoa do sítio... Por isso ela não queria o casamento. Quando veio a turma de São Pau-<br />

lo, próximo ao meu casamento, eles conseguiram “domar” D. Verônica, e foi nessa oca-<br />

sião em que “fizemos as pazes”. Em fevereiro de 1973, nós casamos. Foi um casamento<br />

muito bonito, com a presença de alguns da família...<br />

Antônio – A partir daí, você passou a ter uma boa relação com Verônica, não?!<br />

256


Rejane – Tinha, nós passamos a ficar muito amigas. No casamento, ela conseguiu levar<br />

Valdeci ao altar, o que nunca tinha acontecido na família com filho nenhum. Foi o pri-<br />

meiro e único filho que ela levou ao altar. Tivemos uma relação muito boa. Ela ficou<br />

morando aqui mesmo na fazenda, e eu morava ali, pertinho dela. Ao nascer Wagner, foi<br />

a maior alegria para ela e para todo mundo. Ela gostava muito dele e, sobretudo a partir<br />

daí, ela passou a dar muito carinho e ficou totalmente diferente do que fora no início do<br />

nosso namoro. Depois, nasceu Sandreane e Dona Verônica apegou-se muito a ela. Gos-<br />

tava de trazê-la para esta casa. Eu tive a terceira filha, e ela <strong>sem</strong>pre aqui morando com a<br />

gente. Depois, na medida em que ia ficando mais velha começou a dar um pouquinho de<br />

trabalho. Por esse motivo, ela viajou para São Paulo para ter um maior cuidado das fi-<br />

lhas, inclusive depois de ter ficado uns tempos com Manoel e Anísia. Com a saída de<br />

Dona Verônica, eu fiquei aqui com Valdeci, lutando para melhorar as coisas aqui, por-<br />

que aqui <strong>sem</strong>pre foi o esteio de todos. É o lugar que lembra seu pai e a gente queria que<br />

isto aqui nunca caísse; ao contrário, subisse para melhor. Passados esses anos, Dona<br />

Verônica foi embora, ficamos muito tristes com a idade dela, pois ela deixou muita sau-<br />

dade pra gente. Mas sabíamos que ela foi para um lugar bom e que estava muito bem<br />

tratada, que foi o que <strong>sem</strong>pre qui<strong>sem</strong>os para ela. Nós ficamos aqui e, <strong>sem</strong>pre que podí-<br />

amos, íamos visitar ela em São Paulo, no Paraná. Numa dessas visitas, a gente se despe-<br />

diu dela, pois que, um mês e meio depois, ela veio a falecer. Durante esses últimos anos,<br />

nós temos uma convivência boa com a família. Para cá, vieram Virgínia, Anísio... eu me<br />

relaciono muito bem com todos eles e acho que nenhum deles tem queixa de mim. Eu<br />

gosto muito de todos eles, acho uma família muito bacana. Minha família gosta muito<br />

de Valdeci, que mantém uma relação muito boa com todos os meus irmãos. Meus pais<br />

gostavam muito, muito dele; eram amigos de caça, de tudo. Hoje, não mais tenho os<br />

meus pais. Acho que foi uma coisa muito bacana entrar nesta família. Tanto que hoje<br />

em dia, quando morre um deles, a gente sofre muito. Foi assim com o falecimento de<br />

Dona Verônica, de Marlene – que foi uma experiência muito triste, exatamente por ter<br />

sido umas das primeiras -, de Severino, que vivia <strong>sem</strong>pre aqui com a gente. Depois veio<br />

Zeca, Flora, José, Edilnete, no Recife; depois veio a morte de Manoel, Zé Preto, Chico...<br />

Tudo isso deixou a gente muito triste. Mas sentimos que não se pode mudar a vontade<br />

Deus, e se Ele quis assim...<br />

Antônio – Fale um pouco dos seus três filhos e de sua relação com eles...<br />

257


Rejane – Wagner, que está comigo, é o meu xodó e tenho por ele um grande amor, tal-<br />

vez por ser o único homem dos filhos... Tem Sandreane, que já é casada e tem um neti-<br />

nho, que é o Felipe, a coisa mais fofa que existe. Caduco muito com ele, é o meu outro<br />

xodó. Tenho Luciane, que está estudando em João Pessoa e que se forma neste ano em<br />

Fisioterapia. Ela tem um noivo e pretende casar em julho. Vai morar no Rio, e eu já<br />

estou pensando como é que vou me separar dela, já que somos uma família que vive<br />

muito unida. Já estou pensando como vou me separar dela. Mas entendo que cada um<br />

tem que seguir seu rumo e seguir sua vida. Finalmente, devo dizer que tudo foi bom<br />

demais e não tenho nem palavras para definir essas coisas boas da vida, né? Wagner,<br />

atualmente, mora comigo agora e já começa a substituir o pai nalgumas coisas, já que<br />

ele está com uma idade um pouco mais avançada. O pai entende que já deve passar al-<br />

gumas coisas para ele, é mais novo, tem boa cabeça, porém <strong>sem</strong>pre sob a supervisão e<br />

os conselhos do pai. Eles se comunicam bem um com o outro e, assim, acredita que ele<br />

pode muito bem definir certas coisas. Sandreane mora na cidade, e tudo ela combina<br />

comigo. Nós somos como duas irmãs. Luciane também, tudo o que fui passei para eles<br />

como exemplo. Nunca modifiquei meu jeito de ser. Sempre fui uma pessoa simples,<br />

gosto de trabalhar, toda a vida gostei e ensinei isso a eles. Graças a Deus, nunca eles me<br />

deram trabalho, até hoje. São uns filhos maravilhosos. Felipe é o meu xodozinho, e es-<br />

pero que apareçam outros para continuar os Siqueira e Siqueira Cavalcante. Finalmente,<br />

tem o meu xodó velho, que está agora olhando para mim, ali, um pouco preguiçoso para<br />

botar milho para as galinhas, mas vai levando a vida e, aqui e ali, uns gritos para fazer<br />

melhor...<br />

Antônio – Você falou no netinho Felipe como sendo seu xodozinho. E os seus gatos,<br />

o que são para você?<br />

Rejane – Olhe, é o seguinte: se eu hoje fosse estudar, como fiz antigamente, eu iria fa-<br />

zer o curso de veterinária porque gosto muito de animais. Tenho os meus gatos, que<br />

também são o meu xodó. Tenho Fred, tenho a Galega, o Negão e agora tem o Branqui-<br />

nho, que é o meu xodozinho pequeno. Eu os trato muito bem, são muito bem tratados.<br />

Tenho também o meu cachorro de estimação que se chama Flay, que é outro dos meus<br />

xodós e com todas as criações eu gosto de mexer, com bode, ovelha, cabras... Apesar de<br />

eu ser uma “menina de rua”, como dizia Dona Verônica, eu nasci num sitio em São<br />

Bento do Uma, onde vivi até os meus doze anos. Depois disso, vim para Sertânia e aí<br />

258


passei a morar em rua, né? Mas era um pouco rua e um pouco sítio, né? E toda a vida eu<br />

gostei do sítio. Mas Dona Vera não acreditava que eu fosse me adaptar à vida do sítio.<br />

Mas ela se enganou e depois terminou pedindo desculpa. Ela gostava muito de mim e<br />

nos dávamos muito bem. Ela dizia a mim que eu era a nora que ela gostava. O resto é<br />

que vem aí pela frente.<br />

Antônio – Uma mensagem para a nossa família, que também é sua família...<br />

Rejane – Meu desejo é que as famílias Siqueira e Cavalcante fos<strong>sem</strong> como uma única<br />

família. Que sigam em frente, <strong>sem</strong>pre pensando no bom exemplo da família. Que lem-<br />

brem <strong>sem</strong>pre do exemplo dos pais e, desse modo, ao ficar velhos também, lembrem<br />

<strong>sem</strong>pre dos que se foram. Desejo um futuro que lembre <strong>sem</strong>pre do passado, que é o da<br />

gente, hoje. Pensando no que já passou, eles poderão ter um futuro melhor. Afinal, eles<br />

tiveram um bom exemplo.<br />

259


TERCEIRA PARTE<br />

oooooooo<br />

ENTREVISTAS<br />

Parentes e Amigos da Matarina e de Santa Luzia<br />

260


Terezinha Matos 54<br />

Valdeci – Pois é, Terezinha, neste mês estive conversando em Sertânia com Cesari-<br />

na.<br />

Terezinha – Pois é, ela está pros lados de Sertânia. A comadre Maria Mora aqui. Inácia<br />

mora aqui também.<br />

Antônio – Firmo Batista era seu irmão, não?<br />

54 Terezinha Rodrigues de Matos é uma das nossas primas da Prata que foi entrevistada. Filha da tia<br />

Josefina, esposa de Sebastião Matos, mais conhecido na redondeza por Sebastião do Mato. Segundo Pe-<br />

dro Nunes me informou, ele era um grande cerqueiro (que levanta cercas) e o pai dele chegou a ser can-<br />

gaceiro e homem de confiança do Dr. Santa Cruz, da Santa Catarina. Terezinha tem a idade de 75 anos;<br />

ciquenta anos de casada - só no religioso, diz ela! - com José Clemente da Silva. São seus filhos: Maria<br />

dos Anjos, José Benício, Adeilcio (vulgo Boleza), Aparecida, Sônia (falecida, morreu com quarenta e sete<br />

anos), Maria de Nazaré, Ângela, Maria Filomena e Ana Celeste. Informa que teve treze filhos; três deles<br />

morreram.<br />

261


Terezinha – Não, ele era filho da tia Júlia, que morava aqui na Prata, na região do Ca-<br />

xingó. Tia Julia tinha como filhos Firmo e João Batista. A família matriz da mãe Josefi-<br />

na e das irmãs, que incluía Verônica, era Filomena do Espírito Santo (chamada de Me-<br />

na) e José Feliciano (chamado de “Pai Velho” e também de “Padim Velho” – assim<br />

diziam os filhos de Verônica e José Jorge). As filhas do casal Filomena e José Feliciano<br />

eram as seguintes, por ordem de idade: Maria Paulino, a mais velha, que morava no<br />

Sítio São Francisco, tia Júlia, que morava no Caxingó e Josefina – sua mãe, também<br />

chamada de Zefinha -, que morou na Prata e morreu com 69 anos, após uma trombose<br />

que lhe causou uma paralisia de quatro meses. Verônica, que morou na Matarina e de-<br />

pois em Santa Luzia (PE), era a mais nova das filhas e foi também a última a falecer aos<br />

97 anos de idade. Os homens, filhos de Mena e Pai Velho, <strong>sem</strong> ordem de idade, eram os<br />

seguintes: Feliciano, Manoel, Umbelino, Antônio, Luís, Marcelino, Joaquim e Moisés.<br />

Conforme eu me lembre, seriam. Portanto, esses os nomes das mulheres e dos homens,<br />

conforme também minha mãe me falava direitinho. Eu cheguei a conhecer vários, al-<br />

guns eu nunca conheci...<br />

Antônio – E tia Júlia, quais eram os filhos dela?<br />

Terezinha - Os filhos de Júlia são estes: João Batista, Firmo e Dezinho... As filhas e<br />

filhos de Josefina: Terezinha, Cesarina, Maria, Inácia, - a mais velha, todas vivas; Vital<br />

– foi assassinado em Afogados da Ingazeira, Manoel, José e Genival. A família de Ge-<br />

nival, incluindo três filhos e a esposa, que já faleceu, moravam em Afogados. O casal<br />

tinha três filhos: Lurdinha, Cícero e Genilson. Cícero saiu uma época à procura de ser-<br />

viço e nunca mais apareceu. O marido de Josefina chamava-se Sebastião Matos, vulgo<br />

Sebastião do Mato. A família de Josefina viveu no entorno da hoje cidade de Prata. Uns<br />

tempos na Fazenda Matarina, outros no Sítio São Francisco, outros no Mogiqui – onde<br />

nasceu Terezinha e onde a família viveu quarenta e cinco anos. Naquele tempo, a Fa-<br />

zenda Mogiqui era propriedade de Cícero Nunes, também dono da Matarina. Lembro<br />

que José Jorge e Umbelino moravam naquela região da Matarina; não estou segura se o<br />

seu tio Antônio também morava na Matarina e também o tio José. Este último tinha<br />

duas filhas, uma delas – Letícia – mora em Triunfo (PE) e a outra – Quitéria –, que mo-<br />

rava em São Paulo, faleceu. Terezinha lembra muito das primas de Matarina, filhas da<br />

tia Verônica: Maria (Madia), Flora e principalmente Conceição, com quem fazia pernas.<br />

“Aquilo não era qualidade de gente. Hoje eu tenho uma filha que parece muito com e-<br />

262


la”. Tenho muita lembrança da Virgínia, com quem a gente <strong>sem</strong>pre se encontrava – ela<br />

vinha para o São Francisco, e nós íamos lá, na Santa Catarina – época de festa; maio era<br />

um mês de alegria, era festa mesmo. Na Casa Grande do Dr. Artur Santa Cruz, tinha<br />

tudo o que era bom, especialmente nos dias de feira e nos dias de domingo. Mas eu não<br />

esqueço as farras de Conceição, a parte dela eu acho que é a minha. Já Maria (Madia),<br />

que era a mais velha, a gente tinha um certo respeito. “Flora (Florisa) era a Inacinha de<br />

comadre Inácia, em vida, toda desenvolvida para tudo”. “Virgínia, a gente se gostava<br />

muito”. Guardo na lembrança todas as coisas da nossa vida de criança. Brincávamos<br />

todas as qualidades de brincadeiras. Eram festas e mais festas. Damião se encarregava<br />

daquelas coisas bonitas, só aproximadamente a padre; só para rezar no mato, levar flo-<br />

res. E a gente só fazia mangar e ficar junto. Falando de Manoel Jorge, ela lembra muito<br />

bem. Tem muita saudade dele e relembra muito as coisas que conversaram quando da<br />

última vez que se encontraram. Lembra que ele quando fez uma visita a tia Josefina<br />

contou a história de uns passarinhos que ele caçou. As histórias dele faziam todo mundo<br />

morrer de rir. Lembra que somente veio a saber do falecimento dele após passar uns<br />

dias na casa de Cesarina, em Sertânia. De Verônica, ela diz que se lembra muito: “A-<br />

quela velhinha loira, tão bonita – toda vida ela foi bonita – bem educada, paciente e per-<br />

severante ante tudo no mundo. Quando a gente ia à casa dela conversar, tudo virava<br />

festa. Era uma pessoa viva e trabalhadora. Não vou esquecer nunca dela”. Já com a tia<br />

Júlia ela tinha pouca aproximação; apesar dela morar perto, mas se viram poucas vezes.<br />

O mesmo não foi o caso das tias Maria e Verônica. De José Jorge, ela lembra um pouco<br />

apenas. Era amoroso e paciente, comparando com aqueles moradores que tinham desa-<br />

venças com os patrões. Ela lembra que ele ficava <strong>sem</strong>pre calado e, como seu pai Sebas-<br />

tião, os dois sentiam muito as injustiças que padeciam aqueles pais de famílias. Mas não<br />

quiseram entrar em briga pela posse definitiva deles nas propriedades onde moravam e<br />

trabalhavam, apesar de insistentes pedidos de outras pessoas. É o caso de Cazuza Velho,<br />

que fez tudo para o pai dela registrar em Monteiro o seu pedido de integração e posse,<br />

depois de quarenta anos de trabalho na propriedade onde vivia. E ele resistiu. E ela lem-<br />

bra que, tanto José Jorge quanto Sebastião do Mato, ambos tinham uma condição espe-<br />

cial na propriedade onde trabalhavam não só em agricultura, como em criatório de gado.<br />

Ambos terminaram comprando um terreninho fora dessas fazendas, onde construíram o<br />

futuro <strong>sem</strong> querelas com os parentes dos fazendeiros. Lembra a esse propósito o quão<br />

diferente dos outros fazendeiros era Cícero Nunes: uma pessoa boa, atenciosa e amável,<br />

263


tanto ele quanto sua esposa, D. Isabel. Estimulava que os seus moradores plantas<strong>sem</strong> e<br />

colhes<strong>sem</strong>. È o caso de sua família, que tinha muito milho, batata etc. Ela não lembra<br />

detalhes da morte de Cícero Nunes,– que teve uma morte súbita em Campina Grande, e<br />

de Dona Isabel, que antes de morrer passou muito tempo hospitalizada. Recorda de<br />

Francisco Nunes, filho de Cícero Nunes, da mesma idade dela. Recorda que, após a saí-<br />

da da família Siqueira para Santa Luzia, eles raramente se encontravam, pela distância e<br />

pelas dificuldades de locomoção. Tinham que andar a cavalo longas distâncias. Mas isto<br />

não impediu que ela visitasse a tia, algumas vezes. Uma delas recorda bem que tio Um-<br />

belino estava doente. Falou que a imagem dos tios é muito boa, pessoas amáveis e, so-<br />

bretudo brincalhonas. Recorda o caso de tio Feliciano, que gostava de jogar umas parti-<br />

das de baralho e, contra a vontade de Padre Damião, fazia escondido, até que o filho<br />

padre o flagrou na mentira e na jogatina. Inquirido, respondeu que o companheiro dele<br />

de jogo era o culpado, pois induzira-o ao jogo. [Saímos para conversar com Inácia,<br />

irmã de Terezinha, ocasião em que as duas ficam lado a lado].<br />

264


Inácia Rodrigues Matos 55<br />

Antônio – Inácia, quais as lembranças que você guarda da família de nossas mães.<br />

Inácia – Lembro muito bem de tia Verônica. Ela era assim uma pessoa magra, alta, ca-<br />

belo louro, ela era muito bonita... Na época que eu a vi, ela era ainda uma mulher meio<br />

madura. Depois, num certo tempo, nós fomos a Sertânia e passamos na casa dela. Mi-<br />

nha mãe e meu pai eram muito unidos a tia Verônica, mas depois que ela mudou para<br />

Sertânia ficou tudo muito difícil, uns foram morrendo, hoje morreram todos, pronto!<br />

(voltando-se para Terezinha, ao lado). Eu acho que não tenho mais tios. Tio Umbeli-<br />

no morreu, tio Joaquim morreu... Tio Feliciano. Inclusive aquele que era bem alvinho,<br />

quem era... Marcelino e tia Júlia...<br />

Antônio – Um deles teve a ver com o negócio de um crime na casa grande da Santa<br />

Catarina, não?<br />

55 Inácia Rodrigues de Matos, filha de tia Josefina. A entrevista foi concedida na Prata, no dia 23 de no-<br />

vembro de 2008. Mãe de Maria José, Maria Inácia, Maria das Graças e Maria Aparecida.<br />

265


Inácia - Teve, sim. (Alguém cita o nome de tio Manoel).<br />

Terezinha – Eu acho que era tio Antônio... Eles comentavam... Mas faz muito tempo;<br />

isso é dos tempos de antigamente...<br />

Antônio – Inácia, você lembra de alguns dos meus irmãos e irmãs, seus primos, na<br />

Matarina?<br />

Inácia – Lembro. Uma delas fazia muito tempo que eu tinha visto. Eu ia para Sertânia,<br />

não, nós íamos para São Paulo. Em Monteiro, passamos na casa de tio Feliciano. Quan-<br />

do eu cheguei lá, vi aquela mulher, ela conversando, lá na cozinha. Ela voltava e entrava<br />

no quarto. Aí eu disse: aquela mulher é Maria (Madia), de tia Verônica. Aí eu falei:<br />

quem é você? Ela disse: e você? Eu disse: eu sou Inácia e acho que você é Maria. É!<br />

Virgem Maria! Mas as outras eu não tenho visto não. Ainda são vivas?<br />

Antônio – Das minhas irmãs, só a Flora faleceu. (Terezinha, falando para Inácia:<br />

eu acho que ela era madrinha de Inacinha). Dos meus irmãos, Manoel faleceu. Não<br />

sei se você soube...<br />

Inácia – Não soube não!<br />

Antônio – José e Severino também faleceram. A Madia – a mais velha – claro, está<br />

viva. Está com oitenta e dois anos, bastante lúcida. Recentemente, ela perdeu o<br />

filho mais velho, o Givaldo, e ela foi muito forte, aguentou um tranco muito duro e<br />

difícil. Pouco mudou. Continua a mesma pessoa. Era casada com Zé Guilherme –<br />

que também faleceu. Inácia, você lembra de meu pai?<br />

Inácia – Lembro, lembro! Tinha feições finas, alto, magro, cabeça branca... Meu Deus<br />

do céu, a gente imagina assim... (Entra o genro de Inácia, marido de Maria Apareci-<br />

da, que senta ao lado dela).<br />

Antônio – Eu gostaria, agora, de saber quais as lembranças mais vivas, mais mar-<br />

cantes que você guardou de tia Josefina e de seu pai, Sebastião.<br />

Inácia – É, eu tenho assim uma saudade... Quando eu vejo uma pessoa assim meio pa-<br />

recida com mãe eu recordo dela, né? Mãe era uma mulher magra, mas de estatura meio<br />

baixa, morena, uma morena clara, os cabelos ralos, meia afilada. Depois, quando ela<br />

ficou mais velha engordou mais, não foi comadre Terezinha? Logo antes de falecer, ela<br />

266


tinha um “corpão”, ficou forte. Meu pai, toda a vida, foi baixo, moreno (Nesse momen-<br />

to comparam Manoel – um dos irmãos – ao pai. Ela discorda, acha um pouco pa-<br />

recido apenas com seu jeito de olhar, de conversar, mas as feições do pai eram<br />

muito mais bonitas e, enfim, não há nada de parecido).<br />

Antônio - E da tia Maria, a mais velha, você lembra?<br />

Inácia – Ah, sim! Era “xôxinha”.<br />

Antônio – E de Mena, nossa avó, você lembra?<br />

Inácia – Ela tinha uma garupa bem alta... Nos finais de <strong>sem</strong>ana, sábados e domingo,<br />

eram os dias das palestras das moças e das mulheres que ainda eram novas. Tinha um<br />

negócio de acender umas fogueiras, e nós íamos brincar de roda. Pai Velho tinha ciú-<br />

mes, porque imaginava que Mãe Velha estava também se divertindo, acho que era isso.<br />

Ele, então, pegava um canivete velho de mola, que mal fechava, e dizia que ia matar<br />

Mãe Velha. Ela, então, só passava a mão na cabeça, que tinha quatro cabelinhos louros,<br />

e dizia: “José, José, que história é essa?!” Mãe <strong>sem</strong>pre tomava a frente, e ele então re-<br />

clamava: saia daí!<br />

[Fomos para a casa de Maria Aparecida, a terceira irmã de Terezinha, onde lá en-<br />

contramos Genival, outro irmão das três]<br />

267


Maria Aparecida e Genival Matos 56<br />

Maria Aparecida Rodrigues de Matos e Genival Rodrigues de Matos<br />

Antônio – Gostaria de saber quais as lembranças e recordações que vocês têm da<br />

família de tia Josefina, mãe de vocês. Verônica, por exemplo...<br />

Maria Aparecida – Eu me lembro dela assim, das feições dela; que era galega, alegre,<br />

tia Verônica era muito alegre com a gente.<br />

Genival – Toda vez que a gente se encontrava com ela era aquela alegria maior do<br />

mundo. A gente conversava muito. Quer dizer, eu mesmo tive pouco tempo para con-<br />

versar com ela. Ela, algumas vezes vinha aqui, outras vezes a gente ia lá, na casa de tio<br />

Feliciano, e então a gente se encontrava, mas era pouco tempo. Costumava ir mais para<br />

um joguinho de futebol e era pouco tempo para se frequentar. Mas, igual a ela (refere-<br />

se a tia Maria) eu tenho lembranças dela. Tinha aquele jeito dela, assim, na minha<br />

56 Entrevista concedida no dia 03 de novembro de 2008, na cidade de Prata. Os dois são filhos da Tia<br />

Josefina, irmãos de Terezinha e Inácia Matos.<br />

268


mente ela era muito parecida com mãe, além de serem irmãs, eram bem parecidas. Pron-<br />

to, a maior lembrança que eu tenho é essa que lhe contei (e Maria Aparecida acrescen-<br />

ta: eu também!).<br />

Maria Aparecida – Já faz tempo. Comadre Terezinha é que bota tudo na memória, eu<br />

nunca vi. Já comigo acontece assim de eu hoje estar vendo vocês aqui e amanhã não<br />

lembrar mais nada do jeito de vocês. Agora, vocês eu vi todos pequenos. Algumas ve-<br />

zes, eu ia à casa de tia Verônica e eles estavam todos na calçada. A casa dela ficava num<br />

lado e, no outro lado, a de tio Umbelino. A gente via vocês, todos pequenos, mas todos<br />

nós também éramos pequenos e nem dá pra lembrar essas coisas todas não. O que eu<br />

lembro mais é disso aí... Nós chegávamos lá, éramos muito bem recebidas por titia, seu<br />

Zé Jorge; vocês também iam brincar com a gente ali pelas calçadas, íamos para a vár-<br />

zea, onde tinha uns pés de manga, de coco, de fruteiras. E só isso mesmo, meu filho. Eu<br />

lembro, era tudo tão alegre. Mãe gostava de ir. Quando ela podia, ia por lá, não é coma-<br />

dre Terezinha? Sei lá, meu Deus, acabou-se.<br />

Antônio – Fale como era a vida de vocês, entre irmãos...<br />

Maria Aparecida (rindo e abraçando Terezinha) Mas toda vida nós...<br />

Terezinha – Graças a Deus, eu só enxergo terra onde meus irmãos pisam.<br />

Antônio – Tia Josefina falava dos irmãos dela?<br />

Maria Aparecida – Ave Maria, era só do que ela falava... (Boleza intervém e diz que<br />

a conversa dela para todo assunto que puxava era de um irmão!).<br />

Terezinha – Tia Verônica e tio Feliciano puxaram a Mãe Velha. [trata-se de Filome-<br />

na, a Mena, nossa avó, mãe de nossa mãe e que faleceu com mais de noventa anos<br />

de idade]. No final, Mãe Velha ficou na casa de tia Verônica, lá em Sertânia. Já minha<br />

mãe puxou ao Pai Velho, nós chamávamos assim mesmo, Pai Velho brigava muito com<br />

Mãe Velha por ciúme. Ela, então, gostava muito de ir lá à casa de mãe. O Pai Velho não<br />

podia andar e queria conversar com ela, queria a presença e a atenção dela. Mas ela<br />

<strong>sem</strong>pre teimava em sair e ia à casa de tia Maria também. Ele, deitado na cama, com uma<br />

faca na mão, dizia: “Ô, Filomena – ela tinha os cabelinhos bem ralos e amarelinhos –<br />

você quer ir, é? Você diz que quer sair daqui de casa?” Nessa hora, mãe se intrometia<br />

entre os dois e dizia: “Mãe, vocês dois estão de novo brigando?”. E, realmente, a velhi-<br />

269


nha ficava com medo. Dizia: “José, José!” A bundinha dela era alta! Mãe dizia: “Papai,<br />

que é isso, pra que essa faca?” E ele: “É porque esta mulher não quer me atender de<br />

jeito nenhum”. Ou seja, ele estava era com ciúme da velha. Terminou ela indo várias<br />

vezes para a casa de tia Verônica, e foi lá mesmo que ela morreu. Ela tinha um cachim-<br />

bo. Eu achava lindo ver ela fumar... Um dia, eu roubei o cachimbo dela, taquei fumo e<br />

fui para uma casinha e fumei, fumei. Quando eu pensei que não, o mundo estava rodan-<br />

do. Tentei me levantar, não aguentei. Aí eu disse: não vou dizer que fumei, senão pai<br />

vai me dar uma pisa. Ali mesmo caí, vomitei, vomitei... Depois chegou alguém, que<br />

tinha ido comigo, procurando por mim. Disseram, então, que eu estava doente. Pergun-<br />

taram: “O que foi isso?” Não demoraram e descobriram que eu tinha fumado cachimbo,<br />

no cachimbo de Mãe Velha. Mas que eu fumei, fumei, até matar a vontade. Nunca es-<br />

queci disso. Mas eu achava tão bonito ver ela fumar. Acendia o cachimbo e ficava<br />

“puf”, “puf”!<br />

Maria Aparecida – E Pai Velho também fumava no cachimbo. Ele disse um dia a Mãe:<br />

“Minha filha, eu estou com fome”. Ao que ela respondeu: “Está com fome papai?” Aí<br />

ela foi buscar uma comidinha, e não tinha mistura nesse dia. Aí ela pegou feijão, ajei-<br />

tou, fez um molho de cebola e botou pimenta. Ele disse: “Isso aqui é a comida, minha<br />

filha?” Ela disse: “É, e se tiver ardido me diga para eu botar mais pimenta”. Ele respon-<br />

deu: “Minha filha, você botando mais pimenta vai me matar sufocado”. Ela, então, res-<br />

pondeu: “Não, papai, eu boto mais carne!”<br />

Antônio – Genival, Firmo Batista, nosso primo, foi um cantador de muita fama<br />

neste <strong>sertão</strong> do Cariri paraibano. Você chegou a conhecê-lo?<br />

Genival – Claro. De Firmo Batista, lembro bem de uma cantoria dele com outro canta-<br />

dor, cujo nome eu não me lembro. Os dois estavam de viola na mão, no terreiro; a fo-<br />

gueira acesa, e eis que lá vem passando uma procissão. E os caras estavam todos com<br />

bacamarte na mão para que, quando a santa chegasse, fosse feito o festejado. Nessas<br />

alturas, um devoto solta um foguetão, que espalhou fogo e passou bem perto, quase<br />

chamuscando a santa. Um cara, então, se dirige a Firmo Batista pedindo que ele fizesse<br />

um verso de improviso com aquele acontecido. E o nosso primo poeta mandou brasa:<br />

“Eu fui uma festa na roça // na casa de um sertanejo //Achei bonito o festejo // No ter-<br />

reiro da paróquia // Mas que a festa era de Nossa // Senhora da Conceição// Detonou<br />

270


um foguetão // Quase joga a santa fora // Valei-me Nossa Senhora // Com o bacamarte<br />

na mão” (aplausos). Lembro de uma provocação que certa vez Firmo Batista armou pra<br />

cima de Pinto do Monteiro: “Eu não sei o que tem Pinto // que só canta nesta esquina”.<br />

Na bucha, devolvendo a provocação, Pinto responde: “Isto é minha oficina // Faço, con-<br />

serto e remendo // Se o ferro for comprido, eu forjo // Se for pequeno, eu emendo // Se<br />

faltar ferro, eu lhe compro // Se sobrar ferro, eu lhe vendo”. Pinto matava na unha<br />

quem o desafiasse. Lembro de memória uma resposta de Pinto a um cantador que ter-<br />

minou sua estrofe jogando-o contra sua mulher, de nome Carmelita. Dizia ele: “Pra<br />

apertar Pinto Velho// é bastante Carmelita”. Pinto retrucou: “Aperto de mulher nova //<br />

Aceito perfeitamente // Sendo ela mulher nova// Faz o velho ficar quente // De oito pra<br />

nove meses // O padre batiza gente”. De Firmo Batista, lembro bem ainda de um im-<br />

proviso dele em cima da variação de um mote sobre bebedeira, que lhe foi passado. Co-<br />

nhecia-se um mote famoso que dizia: “Quem vê o que o bêbado faz // Bebendo não tem<br />

vergonha”. O novo mote é diferente e diz: “Quem vê o que o ébrio faz // Não bebe,<br />

preste atenção”. E o primo poeta improvisou: “Lampião no Ceará // Um ébrio chega-se<br />

a ele // Pegou no bigode dele // Puxou pra lá e pra cá // Disse: agora vá // Sem nenhu-<br />

ma alteração // Diga a seu comboio ladrão // que você viu o satanás //Quem vê o que o<br />

ébrio faz // não bebe, presta atenção” (aplausos).<br />

271


Severino Anastácio da Silva 57<br />

Antônio – Severino Anastácio, você conheceu Cícero Nunes?<br />

Severino – Gente muito fina. Cícero Nunes era um homem importante. Ele nunca per-<br />

seguiu ninguém. Era assim meio estridente. O cabra ruim, com ele, não se arranjava<br />

não. Homem importante é homem de caráter, porque caráter não só vem em cima de<br />

gente rica, vem em cima de pobre também. Tem pobre que tem caráter. Cícero Nunes<br />

<strong>sem</strong>pre foi bom com aquelas pessoas que eram moradores e eram boas pessoas, do tipo<br />

Zé Jorge, Zé Porfírio e mais uns que, mesmo pobrezinhos, conviveram com ele traba-<br />

lhando. Uma pessoa que morava ali perto de Boa Vista, ele era... Estou esquecido do<br />

nome dele! Vivia em definitivo trabalhando na fazenda dele. Uma fazenda, quando tem<br />

condições, não falta o que fazer, não é?! De forma que eu, enquanto criança, <strong>sem</strong> co-<br />

57 Severino Anastácio é primo legítimo de Enedina, esposa do Anísio. Foi contemporâneo de José Jorge,<br />

na juventude. Atualmente tema idade de 89 anos e é proprietário da Fazenda Porteiras, em Sertânia, onde<br />

concedeu a entrevista na data de 24 de novembro de 2008.<br />

272


nhecimento de Cícero Nunes e uma tia dele, chamada Teca – por sinal ele era meu pa-<br />

drinho. Essa aí era uma criatura santa. Aliás, meu pai, muito pobrezinho e <strong>sem</strong> conhe-<br />

cimento, também, porque era analfabeto de pai e mãe, tomou eles por meus padrinhos.<br />

E eu tenho orgulho de ter tido um padrinho como Cícero Nunes, um homem importante<br />

e que me serviu muito em momentos de grandes necessidades. Eu digo que mais ou<br />

menos ele me admirava, só por saber de onde eu vim. Eu comprei uma primeira garra de<br />

terra lá, por dois mil e quinhentos contos, naquele tempo era assim que chamava. Aí<br />

surgiu outra que foi comprada através de sacrifício, tremendo sacrifício. Eu fiz dois car-<br />

ros-de-boi. Vendi um a Antônio, Antônio... Santos. Ele me comprou o carro e nós só<br />

ficamos com os dois garrotes do carro. Depois que fizemos outro carro-de-boi, surgiu<br />

essa garra de terra e eu comprei. Logo, logo, surgiu outra e eu fiquei doido para pegar,<br />

tudo ligadinho; hoje é uma propriedade só. Aí eu pensei assim: o que é que eu faço?! Eu<br />

tinha umas três ou quatro reses, vendi e apurei uns dois mil e poucos contos. Faltou o<br />

resto e tinha umas resinhas ali com Fortunato e que terminei vendendo a Fortunato<br />

mesmo. Aí eu saí de Tuparetama e disse: “Vou ver Cícero Nunes”. Eu tinha um cavalo<br />

bom. Cheguei lá na fazenda, parecia uma feira, tanta gente tinha na casa dele, uns tantos<br />

como eu, atrás de dinheiro. Eu disse: “Eu tava passando por aqui e vim lhe visitar, vim<br />

lhe ocupar. Fiz um negócio lá numa garrinha de terra, e minhas condições não me per-<br />

mitiram pagar tudo, tanto para uma primeira terra, quanto para uma segunda também.<br />

Não deu para pagar, e eu estou precisando de mil cruzeiros; naquele tempo, era “mil<br />

reis”, que chamavam também de ‘contos’.” Eu senti que ele teve prazer em me servir. E<br />

me disse: meu filho, você não leva hoje, eu estou <strong>sem</strong> dinheiro aqui; o que tinha aqui já<br />

foi distribuído para o povo, mas, na segunda-feira, eu mando por compadre... (não lem-<br />

bro agora o nome, porque faz tantos anos, e a gente esquece o nome do povo. Ele era<br />

um compadre dele, de muita confiança; um comerciante de tecido e morava em Montei-<br />

ro) Euclides!!! Eu mando por ele. Então eu agradeci e disse: está bom demais! Na se-<br />

gunda-feira, eu cheguei primeiro do que ele, porque eu tava num trabalho que me toma-<br />

va todo tempo da feira, até o final. Eu cheguei lá e ele tava por ali, me procurando...<br />

Pronto, olhe aqui o dinheiro que Cícero Nunes lhe mandou. Recebi o dinheiro, paguei<br />

os compromissos e fiquei satisfeito demais. E satisfeito também porque ele me atendeu<br />

de uma maneira clara, com gosto de servir. Eu admirava Cícero Nunes não somente por<br />

isso, mas por muitas outras coisas que ele fazia com o povo por ali. Homem muito bom,<br />

273


om, bom! E tudo isso bem ao contrário dos Dantas, que eram homens muito violentos,<br />

hi!...<br />

Valdeci – Severino, já ouvi dizer que você quando jovem trabalhou junto com meu<br />

pai na construção de uma estrada, no RN?<br />

Severino – Trabalhei, sim. A gente era solteiro. Eu era menino, tinha 13 anos de idade,<br />

não tinha nem treze completos.<br />

Valdeci – Qual foi o trecho da estrada em que trabalharam? Foi mesmo no RN?<br />

Severino – Eu acho que já era no Rio Grande do Norte, numa cidadezinha que antiga-<br />

mente tinha o nome de Badalo. Na época, chamava-se de Equador. Trabalhamos um<br />

magote de meses eu, Pedro, Firmino, Zé Jorge e uma turma da Prata. O feitor era da<br />

Prata, mas não estou mais lembrado como era o nome dele. Além de nós, tinha mais<br />

outros que eu não me lembro mais. Sei que ele era feitor dessa turma da Prata. Durante<br />

este período de trabalho, adoeceram Zé Jorge e Firmino. Era uma febre danada. A firma<br />

pagava os casados com um preço e os solteiros com outro. Pedro entrou como casado.<br />

Ganhava abaixo de dois mil e quinhentos contos. Eu, que era um guri, o meu ordenado<br />

era mil e oitocentos contos. Mas eu só recebia uns mil e quatrocentos, porque o resto<br />

ficava para um tal de Montepio, que não era Barracão. O Barracão recebia o dinheiro<br />

logo do feitor e pagava de acordo com os descontos do fornecimento. O trabalho era a<br />

picareta e carrinho-de-mão. Então, na casa em que a gente ficava, estavam doentes Zé<br />

Jorge, num canto, e Firmino, no outro. Zé Jorge gritava: “Firmino, ô Firmino! Tu queres<br />

uma “vorva” assada?” (risos... “vorva” queria dizer flatulência, bufa, peido). Aquele<br />

tempo era um tempo ruim, quer dizer, tinha um lado bom porque não tinha essas violên-<br />

cias de hoje. Mas... governo? Só tem governo para receber o imposto do território, que é<br />

o INCRA. Tem governo não, essa administração... e, note-se, surgiu aquele lá que era<br />

José... Américo de Almeida. Esse aí conseguiu esta verba para lá, e ali se trabalhava.<br />

Eram oito horas por dia, <strong>sem</strong> falhar hora nenhuma. Hoje, não. O trabalhador chega na<br />

hora que quer. Mas, naquele tempo, num serviço publico como o nosso, chegava-se às<br />

7:00 e saía às 11:00 e voltava-se às 13:00, largando somente às 17:00.<br />

Antônio – Severino, você lembra o ano em que meu pai adquiriu a propriedade em<br />

Santa Luzia?<br />

274


Severino – Lembro não. Eu fiquei muito afastado, indo de Arcoverde para Tuparetama,<br />

muito ocupado com minhas atividades. Quem ficou muito entrosado foi compadre Fir-<br />

mino. Gostava muito de vocês e foi ele que estava por lá.<br />

Antônio – Margarida e Zé Caminhão foram os pais da Enedina, minha cunhada. E<br />

eles moraram <strong>sem</strong>pre ali, perto de Pernambuquinho?<br />

Severino – É, moraram em Pernambuquinho, mas eles moraram também em São Fran-<br />

cisco, junto da Prata. Por sinal, a garrinha de terra que tocava para meu pai era uma mi-<br />

xariazinha de terra, e eu, morando já ali no Pajeu e os meus pais comigo, botei na cabe-<br />

ça que já tinha terra demais e deixei pra lá para os jumentos passarem por cima. Ele<br />

morou lá muitos anos e criou quase toda a família lá, o Zé Caminhão. Era conhecido por<br />

Zé Caminhão. Eu nem me lembro do nome legítimo dele. Houve um caso com ele, lá<br />

em Caruaru, quando ele era bem mocinho, numa festa ou algo assim. Disparou um ba-<br />

camarte numa pessoa e matou. Ele, então, correu para ali, ficou um tempo escondido e,<br />

nessa ocasião, trocou o nome por José. José Caminhão, por que esse nome? Eu soube<br />

que ele, já depois de casado - é bem verdade que não houve perseguição a ele lá e pres-<br />

creveu o tempo –, ele tinha uma égua, uma égua grande danada, e ele era meio doidão.<br />

Vinha de Boi Velho e correu na frente de um caminhão até perto de São Francisco. Por<br />

isso botaram o nome dele de Zé Caminhão. Montado numa égua, correu adiante de um<br />

caminhão. Era uma pessoa boa. Gostava muito dele.<br />

275


Francisca Ananias 58<br />

Francisca [irmã de Laura, Antonia e Manoel Ananias]<br />

Antônio – A família Ananias era muito ligada à nossa família?<br />

Francisca – Eu tinha um genro que <strong>sem</strong>pre viajava num cavalo para Sertânia. E eu per-<br />

guntava a ele por compadre Zé Jorge e comadre Verônica. Ele não entendia a nossa li-<br />

gação de amizade, e tratei logo de explicar a ele: eu tenho muita coisa a ver com eles.<br />

Somos primos, nascemos e nos criamos todos juntos, num bolo só. Quando compadre<br />

Zé Jorge estava bem doente, eu fui lá visitar ele. Ele, mesmo doente, reconheceu a gen-<br />

te. Ainda me deu um abraço, abraçou comadre Laura, mas tão pesaroso. Quando a gente<br />

esteve lá, conversei muito com comadre Verônica. Ela fazendo queijo, e eu de lado,<br />

olhando. Ela contando as histórias. Aí Manoel chegou e ficou com a gente também.<br />

Enquanto a gente esteve lá, ele ficou conosco. Aí nós viemos embora e não deu mais<br />

58 Francisca faz parte da Família Ananias que tem parentesco conosco do lado da família de nosso pai.<br />

Além disso, <strong>sem</strong>pre foram pessoas de grande apreço e estima da parte de José Jorge e Dona Verônica.<br />

Francisca é madrinha do Anísio. Seu irmão, Manoel e sua irmã, Antônia, (falecidos) foram meus padrinhos.<br />

Tem outra irmã, Laura, também muito amiga da nossa família. Tem 89 anos de idade e mora nas<br />

terras da Fazenda Santa Catarina, onde concedeu esta entrevista, no dia 03 de novembro de 2008. Bastante<br />

lúcida e bem-humorada.<br />

276


para a gente ir ver ele de novo. Naquele tempo, a gente tinha muitas obrigações, tinha<br />

casa de negócio, tudo...<br />

Valedeci – Francisca, quantos filhos você tem?<br />

Francisca – Eu só arrumei dez filhos. Destes, morreram três e tem sete vivos. O padre<br />

frei Damião certa vez me confessou e adivinhou tudo o que eu tinha na minha cabeça<br />

(risos). Quando eu conto essa história, as meninas dizem que é mentira. Então o frei<br />

Damião disse que Jesus tinha marcado para eu ter vinte filhos. O frade disse: “Minha<br />

filha tá marcado para você ter vinte filhos, mas vou lhe fazer um apelo para só ter dez<br />

filhos”. Ai eu disse: “Graças a Deus, Frei Damião”. E, realmente, só tive os dez filhos e<br />

criei todos, agora, depois, morreram alguns, já de grande. Morreu uma moça com dezes-<br />

sete anos. Teve papeira e pegou um peso... o que eu gastei com esta menina, indo de<br />

Arcoverde a Campina Grande, onde passei trinta e tantos dias. Os médicos <strong>sem</strong>pre dizi-<br />

am que ela escapava, mas eu tinha certeza que ela não escapava não, como de fato.<br />

Antônio – Francisca, você é mais velha do que sua irmã Laura, não?<br />

Francisca – Sou! Tenho 89 anos, e comadre Laura é a caçula.<br />

Antônio – E os demais irmãos?<br />

Francisca – Comadre Antônia morreu com noventa e uns quebrados, não sei se é três<br />

ou é cinco. Manoel Ananias morreu com noventa e um anos. Comadre Antônia demo-<br />

rou a morrer, morreu velhinha...<br />

Antônio – E sua saúde, como está?<br />

Francisca – Eu não tenho saúde não, meu filho. É doente... com reumatismo, olha o<br />

meu joelho. Laura é pior do que eu. Tem dia em que as pernas de Laura parecem um<br />

pau de tanger boi (risos). Mas ela também se encolhe demais, eu não me encolho não.<br />

Eu varro terreiro, lavo minha roupa; a roupa grande, não porque não tenho mais força.<br />

Eu passo na casa da minha sobrinha, e ela diz <strong>sem</strong>pre: “Também madrinha Chica não se<br />

assenta, só é para riba e para baixo...”. Outra sobrinha me disse: “Ô, titia, se assentar<br />

encolhe, e estando mexendo pra lá e pra cá melhora”. Eu disse: “É mesmo assim que eu<br />

faço”.<br />

277


Eugênio Nunes 59<br />

Antônio – Eugênio, você é um dos filhos de Cícero Nunes. Que lembranças de sua<br />

infância você guarda de seu pai?<br />

Eugênio – A lembrança maior que eu tenho do meu pai é quando ele selava a burra para<br />

ir à feira da Prata. Isso acontecia toda terça-feira. Nas quartas-feiras, era para Boi Velho.<br />

Eu era quem ia sustentar a burra para ele montar. Naquele tempo, eu era menino.<br />

Antônio – Seu pai lhe encaminhou para os estudos?<br />

Eugênio – Me botou para estudar em Patos...<br />

Antônio – Aonde?<br />

Eugênio – Em Patos. Eu morava na casa de um tio meu, chamado tio Tonheira. Ele era<br />

promotor, e meu pai me botou lá, na casa dele. Eu estudava no colégio diocesano de<br />

Patos, cujo nome era Colégio Padre Vieira. Tempos depois, eu não quis estudar e só<br />

queria voltar para casa, para a vida do campo, e terminei fugindo do colégio. Andei um<br />

bocado a pé e outro de caminhão até Sumé, digo, até Monteiro, e depois cheguei em<br />

casa. Depois de tomar um bocado de grito de meu pai eu disse: “eu não vou mais não,<br />

meu pai, eu vou ficar aqui com o senhor”. E fiquei. Depois que papai morreu, vim em-<br />

bora para cá.<br />

59 Eugênio Nunes é o filho mais novo de Cícero e D. Isabel Nunes, proprietário da Fazenda Matarina,<br />

próxima da localidade da Prata, onde José Jorge foi arrendatário até meados da década de trinta.<br />

278


Antônio – Eugênio, eu gostaria de registrar aqui a imensa gratidão e profundo<br />

respeito e admiração de minha família por Cícero Nunes, seu pai. Nossa família foi<br />

moradora da Matarina e, graças a ele, meu pai conseguiu comprar um pedaço de<br />

terra, no Moxotó pernambucano, onde nós crescemos. Meu pai dizia <strong>sem</strong>pre que<br />

Cícero Nunes era manso e justo de coração, bem ao contrário de tantos outros fa-<br />

zendeiros-coronéis deste Cariri paraibano.<br />

Eugênio – Eu acho até que eles eram compadres. Papai falava muito no nome dele: “a-<br />

quilo ali é um homem de confiança!”, dizia ele.<br />

279


Neco (Manoel) Porfírio 60<br />

Antônio – Neco, que lembrança você tem da família de Verônica e Zé Jorge?<br />

Neco – A gente nasceu e se criou junto. Por isso, <strong>sem</strong>pre fomos visitados aqui pela fa-<br />

mília de vocês. Lembro de uma dessas visitas, meu pai ainda era vivo. Lembro que a<br />

primeira vez que você veio aqui vieram também José, Severino e Carlinhos, de Maria<br />

Gomes. Lembro até que vocês vieram numa camionete que Severino deixou na casa de<br />

Bento, lembra? Então, nesse tempo, carro não vinha até aqui, e por isso deixaram a ca-<br />

mionete na casa do finado Bento, em Santa Catarina. Nessa época, Carlos, de Maria<br />

Gomes, era casado de pouco. Isso já faz muito tempo, muitos anos... Eu já vou comple-<br />

tar 69 anos, agora em junho do próximo ano.<br />

Antônio – Neco, uma coisa que eu lembro e que meu pai falava muito era a amiza-<br />

de que ele tinha por vocês, especialmente o seu pai, José Porfírio...<br />

60 Neco é um dos filhos mais novos de José Porfírio e que foi um dos grandes amigos de Zé<br />

Jorge. Ele morava no Sítio do Cachorro Morto, não muito longe da Matarina. Esta entrevista foi<br />

fita no dia 23 de novembro de 2008<br />

280


Neco – É mesmo. Eles eram compadre duas vezes. Pai foi padrinho de Conceição, sua<br />

irmã; e o finado José Jorge, padrinho de meu irmão Zezé. Foram compadre duas vezes.<br />

Mas, quem diria, ver Antônio aparecer aqui... Eu soube que Virgínia esteve aqui, passou<br />

pela casa do finado Zé Jorge, tirou fotografias e me disseram que ela chorou pra se aca-<br />

bar (dirigindo-se a Valdeci). Taí, você também veio, não foi? Aí me contaram tudo. As<br />

vezes, a gente tem vontade de ir lá em Sertânia. Eu até tenho um carro aí, mas não tenho<br />

a habilitação e tenho medo de enfrentar a “Operação Manzuá” 61 . Não sabia que já aca-<br />

baram com essa Operação em Monteiro. Porque é pertinho. Às vezes, eu digo: tô com<br />

vontade de ir na casa de Valdeci, mas...<br />

Valdeci – Me informaram que quem passou por lá foi Antônio...<br />

Neco – Foi, ele falou que passou por lá uma vez. Antônio andou por aqui ontem. Ele<br />

mora em Sumé, mas tem um pedacinho de terra aqui.<br />

Valdeci – Por sinal, eu soube, informado por alguém daqui, que Antônio tinha fa-<br />

lecido...<br />

Neco – Não! Quem faleceu foi o mais novo, Severino, que chamavam de Biga. Foi esse<br />

que faleceu. Qualquer dia, quando você menos esperar, eu tomo um transporte particu-<br />

lar e vou bater lá na sua casa (Valdeci informa que as portas estão e <strong>sem</strong>pre estive-<br />

ram abertas).<br />

Antônio – Você lembra de meu pai?<br />

Neco – Demais! Vou contar uma história agora. Antônio não estava em casa nessa oca-<br />

sião, mas pode até ele lembrar. Quando o finado Sebastião Paulino comprou aquele ter-<br />

reno que foi de Chico Felix, ali encostado a vocês, ele passou a falar de vender. Aí o<br />

finado Zé Jorge, numa vez que ele veio aqui, disse que compraria aquele terreno. Mas<br />

ele não disse que tinha vindo para comprar. Ele chegou aqui em casa, e pai tinha ido<br />

para a várzea. Ele falou a minha mãe: “Ô comadre, onde está o compadre José Porfí-<br />

rio?” Minha mãe respondeu: “Ele tá lá na várzea, compadre. Você não quer ir lá não?”<br />

61 Trata-se de uma operação de vigilância policial, posta em prática por diversos governos da Paraíba.<br />

Essa operação se praticava nas <strong>fronteiras</strong> da Paraíba com os demais Estados do Nordeste, onde se tentava<br />

controlar a saída de carros de passeio e de cargas. A palavra “manzuá”, na região, significa espécie de<br />

armadilha utilizada na pesca da lagosta...<br />

281


Ele disse: “Não, comadre, eu quero é que você me dê esse menino para eu ir com ele na<br />

casa de Sebastião Paulino, na Lapa”. Ele não me chamava de Neco. Só meu pai e minha<br />

mãe é que me chamavam de Manoel, o resto só me conhecia por Neco. Aí ele disse: “Eu<br />

vou ver se compro aquele terreno, mas não vou dizer que vou comprar, só que vou<br />

comprar um pasto”. E nós saímos daqui, eu que nunca tinha ido na casa de Sebastião...<br />

eu sabia onde era a Lapa, mas a casa dele, não. Aí rodeamos umas brenhas, uma caatin-<br />

ga de uma manga enorme. Mas terminamos saindo na casa dele. Aí, tendo ele falado<br />

que queria comprar um pasto, Sebastião mandou que ele fosse olhar por lá... Nós volta-<br />

mos por um caminho onde eu nunca tinha andado, mas saímos no Sitio do Meio. Foi<br />

dessa vez que o finado Zé Jorge veio aqui. Depois disso eu o vi umas duas ou três ve-<br />

zes. Ele deve ter vindo aqui na década de sessenta [A entrevista sai do foco das pesso-<br />

as de Zé Jorge e de Zé Porfírio].<br />

Neco – Ô, Antônio, agora eu vou perguntar uma coisa a você, continuando aquela con-<br />

versa que iniciamos. Quando Severino morreu, depois que Severino morreu, aí morreu o<br />

Manoel? [Informei a ordem de falecimento de Severino, de Florisa, de Manoel e de<br />

José. Nessa hora ele informa que soube do falecimento do filho homem mais velho<br />

de José Guilherme, o Givaldo, segundo informações repassadas por Norma]. Maria<br />

de José Guilherme morreu também? [Informamos que não]. Norma tinha me dito que<br />

ela tinha morrido também, eu já estava mentindo por aí.<br />

Antônio – Neco, você lembra de alguma presepada de vocês, meninos, ali na Mata-<br />

rina, algo como a do Manoel e da Flora, que subiram na Serra Preta com asas de<br />

palhas de coqueiro, imitando passarinhos, e se ralaram nas pedras?<br />

Neco – Com Manoel e Floral, não. Agora, tinha um filho do finado Faustino Figueira<br />

(pergunta a alguém se lembra de João Figueira, aquele boiadeiro que comprava<br />

gado; tinha um sobrinho dele que tem até o apelido de Capuxu); ele chegava no<br />

velho Luís e subia para roubar coco. Quando o velho chegava, ele já estava pronto com<br />

aquelas palhas de coco. Um dia, caiu em cima das pedras e cortou a cara todinha. Aque-<br />

le pé de cajueiro, ali de Antônio Terêncio, lembram dele? Levei muitas carreiras ali da<br />

velha Joana... E aquele cajueiro ainda é vivo, rapaz!<br />

Valdeci – Neco qual é a sua idade?<br />

Neco – Vou fazer sessenta e nove anos de idade em julho próximo...<br />

282


Valdeci – Manoel dizia que roubava muita melancia com você, aí pelos roçados...<br />

Neco – Manoel Jorge? Era Expedito, meu tio. Ainda é vivo e mora em São Paulo. Ele<br />

mora, se não mudou, ele mora ali perto da igreja do Rudge Ramos? Não tem a Avenida<br />

Senador Vergueiro, saindo do Rudge Ramos como quem vai para São Bernardo? Val-<br />

deci morou ali pertinho e conhece... Tem a Rua Quinze de Setembro, ali perto da Ave-<br />

nida Caminho do Mar, se ele não mudou ainda mora lá. Aqueles trechos ali eu mexi em<br />

tudo, conheço tudo. Se ele não mudou, esse é o endereço dele...<br />

Anônio – Nesta altura da conversa a entrevista terminou porque tivemos que visitar<br />

outro irmão mais velho de Neco, Zezinho Porfírio, que morava alguns quilômetros adi-<br />

ante. Lamentavelmente não tivemos condições de entrevistá-lo.<br />

283


Zacarias Neves 62<br />

Antônio – Zacarias, a nossa irmã Virgínia fala <strong>sem</strong>pre de uma visita a um umbu-<br />

zeiro, onde você teria chegado primeiro do que ela e chupado todos os umbus.<br />

Conte essa história...<br />

Zacarias – Eu possuía uma “baliadeira” com um saquinho de balas no lado esquerdo.<br />

Com a mão direita, pegava o cabo da “baliadeira” e me preparava para atirar. Quando<br />

cheguei lá no pé de umbu, eu não esqueço nunca, uma juriti voou e eu aí atirei. A bala<br />

pegou mesmo o pé do ouvido da juriti. E tinha uns umbus no chão. Ai eu disse, vou<br />

apanhar depressa, que com pouco mais ela (a Virgínia) vem. Eu chegava na cerca e fa-<br />

zia assim (faz o sinal de abrir) e as varas era só pra lá e pra cá e eu, “zupt”, entrei. Ela<br />

chegou e foi logo dizendo: “Já estás ai, não é?” Eu disse: “É, perna de sabiá!” Ela e-<br />

mendou: “Deixa que eu vou contar pra pai, cabritinho ruim, viu! Olha, desaba daqui”.<br />

Aí eu disse: “É já, só vim pegar uma juriti que caiu aqui no chão”. E ela: “Quá-quá-quá!<br />

mas eu vou <strong>sem</strong>pre dizer a pai”. E ficou lá com uma vara, derrubando os umbus. Era o<br />

pé de umbu do finado Antônio Grilo, aquele que trabalhou para o teu pai, o finado Zé<br />

62 Zacarias, ou “Caria” como é carinhosamente chamado pela nossa família é vizinho nosso, desde os<br />

primeiros momentos da aquisição de nossa posse de terra, em Sertânia. Filho adotivo de José ou de Sebastião<br />

das Neves, que desde cedo o acolheram na pequena propriedade deles, junto à nossa Santa Luzia.<br />

Pessoa muito querida pela nossa família. Entrevista concedida a mim e a Valdeci na Fazenda Santa Luzia,<br />

aos 05 de novembro de 2008.<br />

284


Jorge. Ele tinha um rancho naquele serrote acolá (aponta), no pé de umbu. Uma feita,<br />

chegaram a botar fogo no rancho dele, queimaram rede, queimaram tudo.<br />

Valdeci – Ele era de onde, Carias?<br />

Zacarias – Antônio Grilo era daqui do lado de Afogados da Ingazeira. Voltando a esse<br />

caso do incêndio no rancho ele <strong>sem</strong>pre vinha aqui jogar sueca com o finado Zé Jorge.<br />

Não sei quem foi dos trabalhadores logo viu e avisou: “Eita, seu Antônio, lá pra suas<br />

bandas tá ardendo de fogo. Olha o clarão!” A gente pegou uma foice e uma espingarda -<br />

uma espingardinha curta -, até era preta, estou bem lembrado, eu era menino. Aí quando<br />

a gente chegou lá, menino, só tava o chão. Aí o pai de vocês, Zé Jorge, disse: “O senhor<br />

vem por aqui e - eu conto isso com certeza, perante Jesus Cristo! – Eu vou lá na rua<br />

comprar umas coisas pro senhor”. Quando chegou lá, um homem disse: “Ah, ele pegou<br />

um caminhão aqui e arrancou-se lá para o lado de Afogados”. Quando ele veio aparecer<br />

foi com uns quatro meses depois. Vocês não sabiam não, porque vocês eram meninotes,<br />

mas o finado Zé Jorge deu-lhe uns trocos medonhos. Disse-lhe que ele estava morando<br />

com um homem. Ele respondeu: “Nada, foi que, mais, mais”... Seu pai, ainda assim, foi<br />

comprar as coisas, aí ele disse que não queria mais. Parece-me que ele tinha assim -<br />

Deus que me perdoe, o homem já morreu! – aquela soberba...<br />

Valdeci – Zacarias, você chegou aqui com quantos anos?<br />

Zacarias – Três anos. Tá lá meu retrato ampliado que eu guardei. O retrato que minha<br />

mãe tirou tá lá, eu mandei ampliar o que ela mandou fazer.<br />

Valdeci – Você lembra o ano?<br />

Zacarias – O ano foi de... quarenta e um. Não, não, não, minto! Foi ao terminar o ano de<br />

1939. Eu sou do dia 25 de dezembro de 1939.<br />

Antônio – Zacarias, você lembra como é que pai iniciou as compras de terras dessa<br />

propriedade Santa Luzia?<br />

Zacarias – Teu pai chegou da Paraíba. Nós já morávamos ali. Mas nós não tínhamos<br />

condições de comprar isto aqui. Nós não... eu era menino! Aí teu pai foi e comprou, ela<br />

morava naquela casa ali, de taipa. Tinha um quarto detrás onde teu pai dormia quando<br />

ele vinha da Paraíba. Ele não queria se misturar com o povo lá dentro da casa, esse pes-<br />

285


soal antigo, sabe como é, Deus lhe perdoe... Logo teu pai, que era meio cismado! Ele<br />

vinha com um tal de Zé... Zé Capim, o apelido de um trabalhador que era lá da Paraíba.<br />

Era um baixinho, meio moreno, que vinha com teu pai. Trabalhador que era medonho.<br />

Aí veio e... Zé Florindo era quem tomava conta dessa propriedade e tudo de teu pai pas-<br />

sou a ser com Zé Florindo, o tio de Anísia, tua cunhada. Aí ela foi e vendeu a teu pai.<br />

Ficou a terra da velha Josefa Traquinada lá pra dentro. Foi tempo que teu cunhado José<br />

Guilherme casou com tua irmã e ficou morando lá. Depois, chegou aquele menino aí,<br />

filho de Otaviano, irmão de comadre Lauriza, dizendo que tinha um pedaço de terra na<br />

propriedade. Zé Jorge, então, mandou: “Vá ao juiz, que o juiz é quem consegue definir<br />

isso aí, não sou eu não”. Foi assim mesmo. E ele nunca mais veio procurar nada. Era um<br />

galeguinho...<br />

Antônio – Zacarias, e a agricultura daqui, o que é que se plantava?<br />

Zacarias – O primeiro roçado que o finado José plantou foi esse aqui da ponte. Antes, a<br />

estrada era aqui desse lado (aponta). Ele plantou até a beira do rio e depois ele começo<br />

a trabalhar para o lado do açude que ele mandou fazer. Ele gostava muito de plantar. O<br />

que ele mais gostava de plantar era feijão de arranca. E ele tinha sorte com o feijão de<br />

arranca, pode confirmar que era verdade mesmo. Depois, o segundo roçado quem botou<br />

foi Zé Guilherme, cobrindo aquela chapa de serra todinha. Foi um fogão bonito! E lu-<br />

crou todinho. O finado Givaldo era pequenininho na época, mas era quem ajudava a<br />

limpar mato com ele. Lucrou todo mundo.<br />

Antônio – Zacarias, você lembra da construção daquele açude ali do Riacho Quei-<br />

mado?<br />

Zacarias – Não senhor! Na época da construção daquele açude, arrastava-se terra num<br />

coro de boi. Era, num couro de boi; ou boi ou vaca, né? Amarrava o couro numa canga<br />

e se puxava para a parede, onde se aplainava para lá e para cá, para lá e para cá!<br />

Antônio – Zacarias, na nossa propriedade tinha uma escola, não era? E você che-<br />

gou a estudar nessa escola?<br />

Zacarias – A professora era Zefa Çula, não era? A escola era... ela começou a ensinar na<br />

casa que foi de Manoel, seu irmão. Depois, à noite, iam todos lá pra nossa casa, ensi-<br />

nando a gente lá em casa. Eu aprendi a assinar o nome com ela, a finada Josefa, que já<br />

286


morreu. Aprendi eu e as meninas todas... Depois, ela passou a escola para essa casinha<br />

aqui. Ela tinha uma amiga chamada Miúda. Miúda era irmã da finada Isabel, sogra de<br />

teu tio Umbelino. Era uma senhora gordinha e baixa. Depois disso, o tempo foi “afra-<br />

cando” e ela deixou de ensinar a todos nós.<br />

Antônio – Zacarias, naquela época de tantos trabalhadores aqui, tinha muita festa<br />

e diversão?<br />

Zacarias – Trabalhador tinha muito, agora o ganho era fraco. Mas, naquele tempo, tudo<br />

era barato. Quinhentos réis, “deztões” 63 , era dinheiro! Tinha as pratas de “doistões”, de<br />

cruzado, de tostão, era até um dinheiro branco, ainda me lembro. Não atalhando a con-<br />

versa do senhor, amigo velho, apareceu a nota de “deztões”.<br />

Antônio – Pai <strong>sem</strong>pre se deu bem com vocês da família Neves, não é verdade?<br />

Zacarias – Sempre se deu bem. Quando ele chegou aqui da Paraíba, o finado Manoel<br />

seu irmão já era grandinho, veio ai trazendo umas cabras, umas ovelhas. Agora eu não<br />

estou lembrado... ninguém tinha conhecimento lá pro lado da Paraíba, né, só se conhecia<br />

Monteiro onde se ia à feira algumas vezes. E ia-se e voltava a pé, porque não se tinha<br />

dinheiro para pagar o transporte do caminhão... agora me lembrei, de Cícero Bezerra.<br />

Era um caminhão meio azulado. Ele dizia “Me dê tanto que eu levo vocês”. Aí deixava<br />

a gente ali. Já seu pai, o pai de vocês, ele vinha montado nos animais. Ele tinha uns a-<br />

nimais bons, forçosos. Saía da Matarina, não é? Porque a feira dele era em Prata de Boi<br />

Velho, parece que era. E pra Monteiro acho que ficava um pouco mais distante pra vir<br />

para cá. Aí ele foi criando, e Dona Verônica mais as meninas criavam muitas galinhas.<br />

A família foi morar ali numa casa de taipa, que era uma “casona” grande. Hoje em dia,<br />

ainda tem um pé de frejó ali, né? E na porteira da várzea, ainda estou lembrado, tinha<br />

um pé de chorão. Essa várzea daqui da frente (aponta), que dividia com a nossa, era só<br />

mato e não tinha cerca não, mas ninguém atravessava de um lado pra outro não. Tam-<br />

bém os roçados eram aqueles “cuirrimboques” de nada. Pois bem, a raposa largou a<br />

comer galinha, tanto a de vocês como as nossas. Aí Zé Jorge foi lá em casa e disse: “Seu<br />

Sebastião e José Neves, eu vou fazer umas tocaias acolá porque a raposa está acabando<br />

as galinhas. Sebastião disse, então: “Ô seu José, faça aí o que o senhor quiser, aqui nós<br />

63 Corruptela de dez tostões.<br />

287


somos vizinhos e não vamos criar dificuldade não. Ele fez então uma tocaia lá dentro do<br />

rio. Aí tinha um bebedouro onde os bichos da gente bebia, dentro do rio. Aí ele disse<br />

pra avisar ao Daria e Chico – irmão de Manoelzinho, que casou com a finada Joana,<br />

casamento esse feito pelo pai de vocês pois Manoelzinho ia dar no pé! Aí, quando nós<br />

demos fé, ouvimos foi um tiro, por volta das quatro horas. O pé de quixaba por debaixo<br />

do qual passava nosso caminha, na beira do rio, era preto. O finado Zé Jorge matou u-<br />

mas quatro raposas lá. E ali, naquela porteira (apontando), ele matou umas duas. Aí ele<br />

ainda ensinou a Manoel e Zé das Neves que era meu irmão a armar o monde para pegar<br />

o gato. Ele matou uma porção de gatos vermelhos, vários casais de gatos, e aí foi desa-<br />

parecendo lentamente até acabar...<br />

Valdeci – Conta aí a história do casamento de Manoelzinho com Joana que pai<br />

teve de apressar...<br />

Zacarias – Zé Jorge tinha sabido por cima do desmantelo entre ela e Manoelzinho, que<br />

queria fugir para não casar. Ele chegou lá em casa e foi logo perguntando: “O que é que<br />

está acontecendo aqui?” Desculpe, mas eu estava escutando a história. A minha mãe<br />

então contou todo o acontecido. Ele disse: “O quê? Com Joaninha, logo minha “fazedei-<br />

ra” de café?” Porque era ela que fazia o café que ele gostava; e ele tava <strong>sem</strong> entender<br />

por que ela não tinha vindo trazer o café... Zé Jorge gostava de um café meio chegado<br />

no pó e que não era tanto açúcar, não é? Era um café médio. Quando ele tomava aquele<br />

café, aí subia a vontade do cigarro dele. Falou: “Cadê ela?” Minha mãe respondeu: “Es-<br />

tá lá dentro”. “Então, chame ela aqui. Ela deve sair, porque está enfurnada aí no quar-<br />

to!” Ela, então, veio e contou tudo como foi. Ele disse: “Olha, meninada, eu vou tomar<br />

conta porque ela é de menor. Zé das Neves me acompanhe. Amanhã bem cedo vá mais<br />

Seu Caria lá na casa de Zefa Traquinada, pegue um carneiro e um bode e traga. Você,<br />

Souza, venha ajudar a matar e tirar o couro, que nós vamos fazer o casamento. Vamos<br />

levar o cabra para fazer o casamento. Podem logo matar esses bichos que eu vou avisar<br />

por aqui pra nós dar de comer a todos na festa do casamento dela”. Daqui a pouco se vê<br />

ele botando uma calça e uma camisa que eu não esqueço nunca – remendada aqui em<br />

cima da pá –, era uma roupa que chamavam de pólvora com farinha. Ela tinha uma lista<br />

amarela com uma branca na altura da “orela” (orelha) do tecido, no pano. “Ah, mas eu<br />

não posso casar, vou-me embora para São Paulo trabalhar e quando eu arrumar lá um<br />

dinheiro eu venho casar”. Zé Jorge disse: “Você vai casar com essa roupa aí. Quando<br />

288


foi pra bulir com a menina, você não se importou nem com roupa nem com calçado,<br />

agora vai assim. E não tente escapulir não!” O finado Sousa disse: “Se escapulir, eu<br />

passo-lhe a espingarda. Mesmo assim, foi! Estou contando com fé mesmo. Aí Zé Jorge<br />

disse: “Não! Pode deixar comigo, Sousa, o que é que há? Se você fizer isso você está<br />

prejudicado comigo, porque ele mora comigo, ele é meu trabalhador, viu?”. Tou lhe<br />

dizendo. Quando se viu, ele tava por trás tentando escapulir. O finado Zé Jorge ficou tão<br />

desconfiado que atravancou as portas aqui e armou a rede aí na sala. Fizeram o casa-<br />

mento, não é? Depois chegou um tempo meio ruim, e ele inventou de trabalhar num<br />

serviço pro lado de João Pessoa, na construção de uma estrada. José das Neves foi com<br />

ele, chegou lá passou oito dias e tinha um homem chamado Seu Doca. Nesse tempo,<br />

não era tempo de ônibus, era sopa. Depois, pegaram a dizer que sopa era coisa de ali-<br />

mento, por isso botaram esse nome de ônibus e com ônibus ficou até hoje. Agora mes-<br />

mo com essas veraneios falam em carro de lotação. Aí deixou ela por lá e veio embora,<br />

dizendo: “Quando eu chegar lá, comadre Joana, eu peço para Sebastião escrever uma<br />

carta, mandando dizer mãe como é que vai. De noite Sebastião escreveu a carta dizendo<br />

tudo certinho, mandou logo pois a estrada estava aí na porta. Aí seu Doca disse: “Ama-<br />

nhã você escreve a carta da menina que eu levo”. Escreveu a carta e, às oito horas, o<br />

ônibus passava cheinho de gente, e ele foi com a carta. Chegando na rua, ele encontrou-<br />

se logo na feira do preá – lado tem a feira onde se vende os bichos –, isso lá em João<br />

Pessoa. Topou logo com aquele menino que matou o finado Cícero ali, o primo de Aní-<br />

sia, Roberto. Era igual ao finado Zé Preto, sobrinho de vocês, um era escrito o outro.<br />

“Oh, Roberto, você por aqui?! Estou por aqui. Zé, tu me dás licença que eu vou fazer<br />

minha feira, depois eu venho aqui pra tu ir comigo tomar um café e nós conversarmos<br />

para tu saber como andam as coisas por lá. Oxente, deu foi no pé... [Zacarias teve de<br />

interromper a entrevista, chamado que foi à sua casa].<br />

289


Louro Caboclo 64<br />

Antônio – Louro, é o seguinte: você conviveu durante vários anos e foi amigo de<br />

muitos de nossa família, lá em Sertânia. Você conheceu bem de perto meu pai e os<br />

irmãos Manoel, Anísio... Anísio lhe tinha tanto apreço que tomou você e dona Nena<br />

como padrinho e madrinha de Hélio. Que lembranças ficaram na sua memória das<br />

pessoas e daquele tempo?<br />

Louro – Perfeitamente, jogamos muitas suecas, noites e noites. Eu lembro tempos bons<br />

que passaram entre vocês e a gente. Para mim, foi uma honra ter aquela família como<br />

amigos. Como, de fato, até hoje somos amigos. Principalmente, a amizade entre meu<br />

64 Louro é um dos filhos de Caboclo Lulu (falecido), fazendeiro vizinho, proprietário da Fazenda São<br />

Francisco e que foi um dos maiores amigos de Zé Jorge. Adorava caçar nos sertões de Pernambuco. Anualmente<br />

organizavam caçadas nas quais, infalivelmente, Louro Caboclo, o velho Caboclo Lulu, José e<br />

Manoel Jorge <strong>sem</strong>pre compareciam. Esta entrevista foi feita em Gravatá por mim e por Ricardo, aos 16 de<br />

janeiro de 2010, onde atualmente Louro reside com sua família.<br />

290


pai e o seu. Eles demonstravam serem amigos íntimos e de muita confiança entre eles;<br />

de tal modo que bastava um olhar para o outro e se comunicavam. Isso se refere aos<br />

nossos pais, mas, igualmente, com os mais novos, como é o caso do Anísio, Manoel,<br />

Enedina... Você, não, porque você viveu mais tempo fora, estudando, do que mesmo<br />

morando lá. Eu vou lembrar...<br />

Ricardo – Você é da mesma faixa etária do tio Manoel?<br />

Louro – Eu sou mais velho do que Anísio um ano, um mês e um dia. Como eu estava<br />

lhe dizendo, eu vou lembrar uma passagem que se deu com você e meu pai. Foi na Fa-<br />

zenda São Francisco, e você estava pertinho de se formar. Chegando lá, na fazenda,<br />

você foi visitar meu pai, que já estava acamado. Você estava com papai no quarto. Eu<br />

chegando, peço licença e entro no quarto. Papai me dirigiu a palavra me perguntando:<br />

“Terminou o curral, meu filho?”. Você se vira pra mim e me pergunta: “Você estava<br />

fazendo um curral?”. Eu disse, “Não, Antônio, eu estava tirando o leite”. Lembra dessa<br />

passagem? E, assim, foram várias e várias vezes. Tudo passou! (silêncio). Tem outra<br />

passagem de Zé Jorge que eu nunca esqueci. Lembro que ele chegou lá na minha casa à<br />

noite. Eu tomei um susto grande porque eu não esperava ver Zé Jorge naquela hora em<br />

minha casa. Eram mais de sete ou sete e meia, quando eu ouço alguém bater à porta:<br />

“tóc, tóc!” Eu pergunto: “Quem é?” Ele logo responde: “É Zé Jorge de Siqueira”. Eu<br />

abri a porta e mandei que ele entrasse. Ele foi logo me dizendo que a demora seria pe-<br />

quena. Ao que eu respondi que, mesmo que fosse pequena, ele entrasse e dissesse o que<br />

tinha acontecido; porque vê-lo àquela hora da noite fora da casa dele deveria ter aconte-<br />

cido alguma coisa. Ele, então, me disse que vinha me fazer um pedido para pegar a be-<br />

zerra nova de uma vaca que tinha morrido atolada no açude do Riacho Queimado. E ele<br />

temia que a bezerra fosse morrer de fome. Eu garanti a ele que iria, <strong>sem</strong> o menor pro-<br />

blema. Apenas não garantia ir cedinho da manhã porque tinha de tirar o leite das vacas;<br />

mas logo em seguida eu estaria lá, na Santa Luzia. Ele foi embora, e eu, de manhã, após<br />

fazer as obrigações, fui prá lá. Lá encontrei Valdeci, Lassi, meu sobrinho... Juntaram-se<br />

a outros que, a pé, trataram de procurar a tal bezerra. Depois de muita procura, já com o<br />

dia bem alto e até depois do meio dia, não encontramos nada. Já estávamos desaniman-<br />

do porque a busca era inútil. De repente, eu avistei a bezerra, que estava deitada já no<br />

final do açude, em direção ao Riacho Queimado, debaixo de uma jurema preta. Eu a<br />

avistei de longe e tirei o cavalo para o lado de cá e, nessa hora, chamei os meninos lá<br />

291


fora. Toquei o búzio, eles chegaram e eu apontei a direção onde tinha visto a bezerra.<br />

Você sabe que a gente correr atrás de um boi grande num mato serrado já é difícil, ima-<br />

gine correr atrás de um bezerro novo, com apenas um mês de nascido... Combinamos<br />

que alguns iriam a pé, por cima do lugar onde estava a bezerra no intuito de fazer um<br />

cerco e trazê-la voltando na direção do riacho. Tudo isso para evitar que ela corresse,<br />

subindo em direção àquele serrote lá do antigo fio de telégrafo. Eu dizia que, caso ela<br />

subisse naquela direção, não haveria condições da gente acompanhar. Dito e feio.<br />

Quando os meninos foram se aproximando, a bezerra correu em direção do tal serrote.<br />

Eu soltei-lhe o cavalo atrás; e a bezerra vai em cima, vai em baixo... Na passagem do<br />

caminho, a gente pegou a bezerra. Pegamos a bezerra, falei com Valdeci, ele me agra-<br />

deceu e vim embora <strong>sem</strong> encontrar mais com Seu José Jorge. Acabou. Quando é um<br />

belo dia, chega Seu José na minha porta, dizendo que tinha trazido um pequeno presente<br />

para me entregar. Eu disse: “Tá certo, Seu José, muito obrigado!” Era um lindo corte de<br />

tecido, do bom, para eu fazer um paletó e uma calça. Esse terno veio comigo aqui pra<br />

Gravatá.<br />

Antônio – Louro, consta que todos os anos vocês se organizavam e faziam viagem<br />

para uma grande caçada. Conte aí como eram essas caçadas...<br />

Louro – Todo ano a gente fazia uma caçada, e era em Ourimamã, no alto <strong>sertão</strong> de Per-<br />

nambuco, na região do submédio São Francisco. Era na fazenda de um senhor que se<br />

chamava Seu Luís, porém não sei o sobrenome do homem.<br />

Ricardo – E tinha uma data certa para essas caçadas?<br />

Louro - Era no mês de setembro. Porque lá, na região, em setembro, o tempo é mais<br />

quente do que na nossa região do Moxotó. E para a gente que caçava veado, cotia e e-<br />

ma, era mais fácil, porque com o calor do sol o bicho vai procurar uma sombra, um<br />

“malhador”, para se proteger do sol inclemente do verão sertanejo. De modo que <strong>sem</strong>-<br />

pre era no mês de setembro; no começo, na segunda e, às vezes, até na terceira <strong>sem</strong>ana.<br />

Dependia lá do homem também. A gente caçava de cachorro. E, nessa mesma época, eu<br />

achava que era gente e caçava de dia e de noite. Manoel caçava menos, mas ele gostava<br />

de caçar mais durante o dia que à noite. Seu Zé Jorge só caçava durante o dia; já meu<br />

pai caçava de noite. E assim a gente organizava a caçada, né?<br />

Antônio – Quem é que organizava e ficava à frente dessas caçadas?<br />

292


Louro – Quem organizava isso era o meu irmão mais velho, Zuza (mostra uma foto<br />

com todos os caçadores e aponta o seu irmão). Nesta foto, vocês também podem ver<br />

esse velho que era chofer do velho Chevrolet 1946. Então, Zuza e Seu João, que era o<br />

dono do carro e morava em Pesqueira, é quem organizavam a caçada. Nós fomos umas<br />

duas ou três vezes nesse mesmo carro. Esse velho que está aqui na foto com uma mala<br />

na cabeça é o único do grupo que não é caçador. Nesse dia, ele tinha pedido uma carona<br />

a Seu Júlio, de Pesqueira para Serra Talhada. Na hora da foto, eu lembro que ele disse<br />

que não era ajudante do carro, mas ia sair na foto para ficar como lembrança. Resumin-<br />

do, Seu Júlio trocava as ideias com Zuza, depois ia lá para o São Francisco e, lá, se en-<br />

tendia com papai. Logo, logo, papai corria pra casa de Zé Jorge ou o mandava chamar,<br />

faziam os acertos e davam como certa a caçada daquele ano. Zuza vinha pra São Bento<br />

do Una e, lá, comunicava e se acertava com alguns outros caçadores interessados. De-<br />

pois do acerto, fazia-se o planejamento da caçada com o custo dos mantimentos e da<br />

gasolina, ida e vinda. As despesas do caminhão, meu pai é quem assumia. Na véspera<br />

de voltar, juntava todo mundo debaixo do pé de umbu, onde a gente se arranchava. So-<br />

mavam-se todas as despesas e dividia-se pelo número de caçadores. No caso da gasoli-<br />

na, a mesma quantidade que se consumiu na ida colocava-se na volta. As comidas fica-<br />

vam dentro de uns caixões. O que sobrasse, cada um podia levar quanto quisesse. Meu<br />

pai <strong>sem</strong>pre levava uma pessoa que ficava encarregada de cozinhar a comida do grupo.<br />

Antônio – Uma vez chegando ao local da caçada, como é que vocês se organizavam<br />

e qual era a rotina?<br />

Louro – Nós, chegando ao local, antes de tirar os troços de cima do caminhão, nos a-<br />

presentávamos ao dono da fazenda, esse tal de Seu Luís, cuja casa ficava a uns cem me-<br />

tros do nosso caminho. Meu pai nunca passou por lá <strong>sem</strong> primeiro se apresentar ao dono<br />

da fazenda. Em uma dessas caçadas, passamos por lá, e Seu Luís tinha ido para Petroli-<br />

na. Meu pai avisou a esposa dele, Dona Mariquinha. No dia seguinte, quando menos<br />

esperávamos, Seu Luís foi nos encontrar lá no rancho, debaixo do pé de Umbu. Lá che-<br />

gando, ele dava boa tarde a papai e Seu Zé Jorge. Papai, então, de lá, gritava ou pra<br />

mim, ou pra Lula, pedindo que levás<strong>sem</strong>os um café para os três. Numa dessas visitas de<br />

Seu Luís regadas a café, conversando entre os três, meu pai perguntou-lhe se por acaso<br />

havia chegado ao curral dele alguma rês com ferimento provocado por cachorros. Seu<br />

Luís respondeu que não viu nem sabia disso. Meu pai, então, o informou que um dos<br />

293


seus cachorros tinha acuado um bezerro novo e que a vaca veio se defender do cachorro,<br />

provocando uma correria do gado em direção ao curral da fazenda. Seu Luís confirmou<br />

que não viu nenhuma rês ou bezerro ferido por cachorro. Nessa hora meu pai comunica<br />

a Seu Luiz que já havia matado o tal cachorro, porque ele e os demais não tinham vindo<br />

ali para dar prejuízo ao amigo, e sim se divertirem. Seu Luiz agradeceu e disse que a<br />

fazenda dele estava à disposição nossa e, quando tivermos pegado o último tatu da fa-<br />

zenda, ele nos levará à fazenda vizinha de um amigo dele, cheia de tatus. Isso foi uma<br />

conversa entre meu pai, Zé Jorge e o proprietário. Voltando ao ponto da conversa no<br />

tocante ao cachorro, saímos numa noite para caçar, eu, Manoel e papai. Nós estávamos<br />

no pé de umbu e saímos em direção ao mato. Lá, na frente, mais perto da lagoa, papai<br />

parou e, nessa hora, vimos que o gado estava um pouco mais adiante. Foi aí que o ca-<br />

chorro correu, conforme já lhe contei. Eram quatro cachorros e o que puxava na frente<br />

os demais era o cachorro maior. Papai se aperreou e deixou os cachorros voltarem.<br />

Quando esse cachorro grande chegou, papai disse a mim: “Arreda um pouco daqui de<br />

junto de mim”. Nessa hora, ele deu um tiro e matou o cachorro. Mandou que eu o jogas-<br />

se numas touceiras de macambira ali perto. Isso foi presenciado por mim e Manoel Jor-<br />

ge. Papai, então, ordenou que não falás<strong>sem</strong>os nada daquilo na barraca enquanto ele não<br />

conversasse com Seu Luís. Bem entendido, nossa barraca era o umbuzeiro. Tá bem. Só<br />

tinha eu e o Manoel para descobrir o segredo, porque ele mesmo não contaria a nin-<br />

guém. E nós ficamos todos de bico calado. Foi, então, que naquela hora do café, na bar-<br />

raca, ele perguntou a Seu Luís se algum cachorro tinha maltratado as vacas dele. Quan-<br />

do nós jogamos o cachorro na macambira após papai ter atirado nele, Manoel disse as-<br />

sim a mim: “Sabe quem vai descobrir isso aqui? É pai, quando ele vier amanhã cedinho<br />

pra caçada dele...” E Manoel repetiu: “Se ele vier para o lado de cá, vai descobrir...” É<br />

que, às vezes, a gente ia em direção ao sul, outras para o nascente, etc. Não deu outra.<br />

Logo cedinho, Zé Jorge tomou o café dele, pegou a espingarda calibre vinte e se man-<br />

dou. Nesse momento, Manoel piscou o olho para mim, vendo que ele ia em direção ao<br />

banco de macambira. Lá pelas onze horas, onze e meia ou meio dia, chegava Zé Jorge;<br />

vinha vermelho de sol voltando da caçada. Um sol quente que encandeava aquela areia<br />

branca! Ele chegou e tirou logo a camisa. Olha, ver Zé Jorge tirar a camisa na vista do<br />

povo era algo muito difícil. Ele tirou a camisa, se abanou, e eu então perguntei: “Ô Seu<br />

Zé, quer comer um feijãozinho?” Ele respondeu que não queria e preferia tomar um<br />

cafezinho. Servi o café, ele tomou, acendeu o cigarro... E estava louco para saber se ele<br />

294


tinha ido em direção ao Serrote <strong>Red</strong>ondo... Mas, calei (rindo). Aí, então, ele disse as-<br />

sim: “Ô, meninos, tem um cachorro morto lá dentro da macambira; por acaso é de al-<br />

gum de vocês?” (rindo muito). Eu olhei para Manoel, baixei a cabeça... Meu pai, Ca-<br />

boclo Lulu, não ouviu isso porque ele estava lá no outro pé de umbu. Nós ficamos ali<br />

<strong>sem</strong> ter o que responder e dis<strong>sem</strong>os logo que não era nosso. Quando papai encontrou<br />

Seu Luís e falou a ele tudo sobre o cachorro, ele queria ter certeza de que o cachorro<br />

tinha ou não estragado o gado do homem. Mas não aconteceu isso.<br />

Antônio – Louro, durante as caçadas como é que vocês se orientavam naqueles<br />

ermos do <strong>sertão</strong>? Alguns de vocês nunca se perderam na imensidão daquelas ter-<br />

ras despovoadas?<br />

Louro – Não, não havia isso não. Manoel andava muito, a verdade seja dita. Antônio,<br />

no meu pouco entendimento, ele não precisava andar aquilo tudo. Bastaria ficar um<br />

pouco mais perto, e ele ou qualquer outro do grupo conseguiria caçar veado <strong>sem</strong> preci-<br />

sar andar aquilo tudo que ele andava. Um dia, ele deu uma desgarrada e, pelo que Seu<br />

Luis contou como proprietário, ele andou mais ou menos umas três léguas, o que equi-<br />

vale a uns dezoito quilômetros do nosso rancho. Antônio, ele saiu de manhã, logo de-<br />

pois de tomar café, e já pelas três horas da tarde Manoel não aparecia de volta da caça-<br />

da. A essas alturas, a gente já estava muito preocupado com o que tinha acontecido com<br />

Manoel. Lá pelas tantas, vimos um vulto que se aproximava e, felizmente, era Manoel<br />

que chegava em paz, graças a Deus. Como se deu isso? Aconteceu de Seu Luís estar<br />

conosco no momento em que ele chegou. Manoel, então, contou que andou até umas<br />

alturas em que ouviu um motor desfibrando caroá. Seu Luís perguntou se Manoel tinha<br />

chegado até o local do motor do caroá. Manoel respondeu que não foi até o local, mas<br />

chegou muito perto. Pela zoada do motor, ele concluiu que o rancho era na direção con-<br />

trária. Foi, então, que ele conseguiu encontrar o caminho da volta. Depois de muito an-<br />

dar, avistou, de longe, a Serra Grande, que ficava ao sul de nosso rancho. Duas serras se<br />

encontravam e, nesse encontro, formavam um boqueirão. Esse boqueirão era o nosso<br />

ponto de orientação. A gente podia andar por onde quisesse; avistando o boqueirão, a<br />

gente sabia onde estava. Por esse motivo, ninguém se perdia por lá, e quem chegou mais<br />

perto de se perder foi Manoel, devido ao motivo que eu lhe expliquei.<br />

Antônio – Louro, vamos falar dos bichos que vocês caçavam por lá nessa época.<br />

295


Louro – A gente caçava veado, ema, cutia, gato, tatu, porco-do-mato... Seu pai matou,<br />

numa caçada só, um porco-do-mato e uma cutia. A essa caçada eu não compareci; quem<br />

acompanhou foi aquele meu cunhado, irmão de Nena. Contou ele que Zé Jorge chegou<br />

com a caça nas costas e o ombro dele já estava em carne viva. Acontece o seguinte.<br />

Quando se mata um animal como porco, veado, seja lá o que for, o caçador tem que<br />

prender o animal apenas pelas mãos e amarrá-las de corda de tal maneira que possa<br />

suspendê-lo nas costas, deixando livre os dois braços para qualquer defesa. Distribuir,<br />

portanto, o peso por igual. O que fez Seu Zé Jorge? Amarrou os pés do porco e juntou<br />

com as mãos, fazendo aquela bola, e enfiou um pau na corda dependurando no ombro<br />

dele. Deu no que deu.<br />

Ricardo – Louro, tinha onças lá pelo <strong>sertão</strong> daquele tempo?<br />

Louro – Ricardo, em nossas caçadas nem a gente viu e nunca o proprietário falou em<br />

onça por lá. Aconteceu uma cena que, até hoje, eu, que estou vivo, nunca vi nada igual.<br />

Manoel, parece que dessa vez não estava por lá (traz uma foto das caçadas). Esse ca-<br />

chorro daqui (mostra o retrato) pertencia a meu pai, juntamente com esse outro preti-<br />

nho. Na noite desse acontecido, eu estava com papai. Foge-me da memória o nome do<br />

outro colega que estava com a gente. Não era Manoel, era outro. Nós estávamos cami-<br />

nhando em direção ao Boqueirão das Serras, na direção sul. Aproximadamente a uns<br />

quinhentos metros do nosso rancho, tinha um riacho. Nós íamos cruzar o riacho. Quan-<br />

do chegamos à margem do riacho, o cachorro passou por nós e atravessou o rio. Ao al-<br />

cançar a outra margem, ele dá um ganido, só um ganido rápido. Pronto, foi a última vez<br />

que nós vimos e ouvimos esse cachorro, até a data de hoje. Se fosse no Mato Grosso, a<br />

gente ia dizer que foi uma cobra sucuri. Mas era no <strong>sertão</strong>. Depois, a gente contou a Seu<br />

Luis essa história, e ele nos tranqüilizou dizendo que o pessoal dali da região mora lon-<br />

ge uns dos outros, mas trazem <strong>sem</strong>pre as informações para repassar nos dias de feira. E,<br />

caso houvesse qualquer sinal do cachorro, a notícia lhes seria repassada. E assegurou<br />

que, da parte do pessoal que ele conhecia por ali, estivesse o cachorro onde estivesse,<br />

ele garantia a volta dele para as nossas mãos. Até a data de hoje, nunca apareceu um<br />

caçador que desse notícia do cachorro, e perdemos por completo o paradeiro dele. Lá<br />

tinha gato-do-mato, mas não se pode confundir o gato-do-mato com uma onça. Nunca<br />

ouvi falar de onça por lá.<br />

296


Antônio – Louro, o que vocês faziam da carne dos animais nessas caçadas? Vocês<br />

salgavam e comiam lá? Ou traziam pra casa?<br />

Louro – A gente tratava a carne, salgava, comia assada, guisada; comia de todo jeito.<br />

Lembro que eram dez ou doze homens almoçando e jantando; portanto, comia-se à von-<br />

tade; o que sobrava trazia-se pra casa... Algumas vezes, a carne chegava estragada. Ma-<br />

noel, seu irmão, numa dessas caçadas, no dia de viajar de volta, com todas as coisas já<br />

em cima do caminhão, era o único que não aparecia. Todo mundo de roupa trocada e lá<br />

vai passando o tempo... Nada de Manoel chegar. Daqui a pouco lá vem chegando Ma-<br />

noel com uma ema nas costas. “Mas Manoel?!”, dis<strong>sem</strong>os. Fazer o quê? Uma carne<br />

ruim como é a da ema! O que tem ela de grande, tem de ruim. Eu sei que Manoel pediu<br />

que fôs<strong>sem</strong>os tirando o couro da ema enquanto ele passava água nos braços e sugeriu<br />

que se colocasse a carne da ema dentro de uma lata,. Como a lata era aberta, ele acredi-<br />

tava que a carne continuaria arejada até a chegada na casa dele. Ah! Que ilusão! Assim<br />

fizeram. Manoel trocou de roupa, botaram a carne dentro da lata e pé na estrada. Quan-<br />

do chegou à Santa Luzia, em Sertânia, logo que parou o carro, era um cheiro de carniça<br />

de juntar urubu. Perdeu-se a ema com lata e tudo; até a lata teve que ser jogada no mato.<br />

A ema era uma carne perdida. Eles lá, Manoel com os outros meninos, mataram várias<br />

emas; mas eu, não. Matei veado, atirei em gato, mas ele foi embora; estava numa dis-<br />

tância razoável.<br />

Ricardo – Você voltou mais recentemente a esses lugares onde fizeram essas caça-<br />

das?<br />

Louro – Voltei, sim, uns seis anos depois, e isso hoje deve fazer uns vinte ou vinte e um<br />

anos que eu lá estive. Quando eu estive lá, o antigo proprietário e nosso amigo, Seu Lu-<br />

ís, não era mais vivo. Estava como dono um sobrinho dele. Quando chegamos lá, fala-<br />

mos com ele, e ele se negou a permitir que nós passás<strong>sem</strong>os para o nosso rancho no pé<br />

de umbu, onde estávamos acostumados ir todo ano, entendeu? Nesse momento, eu tirei<br />

uma foto do bolso e apresentei a ele. Nela, aparecia papai, Seu Luís e Dr. Valdemar<br />

Lins, que, nessa época, era um alto escalão do governo aqui no Recife. Era secretário<br />

não sei de que... Tinha uma função pública aqui no Recife. Ele, então, permitiu que a<br />

gente fosse para o pé de umbu. Mas a fazenda estava em quarenta por cento do que foi<br />

naquela época passada. O pessoal já transitava de bicicleta por dentro daquelas matas.<br />

297


Antônio – Tem uma história de rabos de tatus... Que história é essa?<br />

Louro – Tem umas histórias de rabo de tatu, porque quem fala muito como eu é menti-<br />

roso. (Rindo muito) Esse Zuza aqui (mostrando a foto) é o Zuza Caboclo, cujo nome<br />

era José; mas era conhecido apenas como Zuza. Ele era louco para prender uns pebas e<br />

trazer pra casa no intuito de criá-los. Acontece que ele era preguiçoso por demais. Zé<br />

Jorge sai um dia de manhã para caçar e volta de tarde morrendo de fome (rindo). Vinha<br />

com as bochechas vermelhas, em tempo de estourar o rosto. Aquela pele branca, fina,<br />

naquele sol quente... Tomou um gole de água, depois café. Aí o Zuza perguntou a ele<br />

como tinha sido a caçada. Ele disse que “tinha visto alguns pebas por ali”. Foi nessa<br />

hora que Zuza disse que estava louco para pegar uns dois pebas a fim de levar pra casa<br />

para criar. Zé Jorge disse que isso era bem possível porque tinha um bom número deles<br />

ali. Zuza ficou admirado, porque ele mesmo já tinha dado tantas voltas e não havia con-<br />

seguido nada de peba. Zé Jorge disse-lhe, então, que tinha visto no mínimo uns oito<br />

pebas na caçada daquele dia. Zuza admirou e disse que não acreditava naquilo que ele<br />

estava lhe dizendo. Zé Jorge virou-se de lado, pegou o bisaco dele e foi tirando a ponti-<br />

nha da cauda que cortou de cada um dos pebas e foi contando: um, dois, três, quatro,<br />

cinco, seis, sete e oito. E mostrou a Zuza, dizendo: “Quando um homem que é homem<br />

lhe contar uma história, é verdade”. Zuza teve tanta vergonha que saiu de perto dele e<br />

foi embora. Mas não foi bem feito? Ele podia ter ouvido a história e ficar calado ou a-<br />

penas se informar onde é que poderia pegar um ou outro peba... Mas, não! O que o seu e<br />

meu pai gostavam era de contar uma história e você ir atrás e poder comprovar que a-<br />

quilo foi verdade mesmo. Aqui mesmo, em Gravatá, contei uma história a um rapaz, e<br />

ele não acreditou. Eu mandei vir de Serra Talhada um livro no qual você mesmo parti-<br />

cipa como colaborador quando foi entrevistar um pesquisador de lá. Pois bem, a exata<br />

história que eu contei a ele eu mostrei no livro, inclusive indiquei a página onde consta-<br />

va o que eu tinha dito a ele. E o mandei ler. Seu pai e o meu tinham vergonha de contar<br />

uma história para a gente ir atrás e não confirmar.<br />

Antônio – Louro, pediria para você falar do seu pai: a imagem que tem dele, as<br />

lembranças mais fortes...<br />

Louro – Um homem rude, honesto, trabalhador, homem de palavra e um bom pai. For-<br />

mou duas famílias e terminou já na terceira, onde não teve filhos. Dessa terceira, criou<br />

298


um filho adotivo (mostrando a sua perna). Ele morreu recostado nesta perna aqui, eu<br />

que sou da segunda família. Da primeira família, teve cinco filhos, entre eles esse Zuza<br />

da caçada, do qual já falamos. Enquanto precisaram dele, lhes foi dado alimento até os<br />

vinte anos de idade. Em casa, convivendo com ele, nunca o vi bater em nenhum filho,<br />

nunca o vi maltratar minha mãe. Essa é a imagem que tenho e que guardo de meu pai.<br />

Antônio – Vocês eram originariamente da região do Agreste pernambucano, não?<br />

Louro – Eu nasci no município de Pesqueira. Papai morou trinta anos em terra dos ou-<br />

tros. É o caso da propriedade em Pesqueira, Fazenda Cachoeira, cujo proprietário cha-<br />

mava-se Elias Cordeiro. Essa propriedade ficava localizada entre os municípios de São<br />

Bento do Una e Pesqueira, mas pendendo mais para o lado de Pesqueira. Foi aí nesse<br />

torrão que eu nasci, já na segunda família. A primeira família também foi no município<br />

de Pesqueira. Muitas pessoas entendidas em leis e familiarizadas com os cartórios da-<br />

quela época aconselhavam meu pai a não sair mais de Cachoeira, tendo em vista que ele<br />

morava aí por mais de trinta anos. Diziam que a Cachoeira era dele, porque ele tinha<br />

mais de trinta anos de serviços ali dentro. Mas ele <strong>sem</strong>pre respondia que a Cachoeira<br />

pertencia à família de Elísio Cordeiro. Meu avô, pai de meu pai, tinha um terreninho ali,<br />

entre Sanharó e Pesqueira, por nome de Sítio Nazara. Com a morte de meu avô, meu pai<br />

herdou aquele sítio. Meu pai vendeu Nazara a Zuza. Zuza, então, falou com o sogro dele<br />

no sentido de levantar o dinheiro que seria pago a meu pai. Meu pai, então, compra o<br />

Sítio Primavera, já no município de São Bento do Uma. No ano de 1952, nós mudamos<br />

para o Sítio Primavera e, em 1958, mudamos para Sertânia, Fazenda São Francisco. Eu<br />

casei em março de 1957 e, em janeiro de 1958, a gente mudou para Sertânia. A aquisi-<br />

ção dessa fazenda, em Sertânia, foi toda intermediada por Felino Cavalcante, pai de<br />

Rosalmo, de Robério e de Rejane, sua cunhada. Foi ele quem fez tudo. Foi ele quem<br />

levou papai para conhecer a São Francisco e conversar com o proprietário dela. O nome<br />

dele era Feliciano Morais, que já havia sido prefeito da cidade. Por meio dessas inter-<br />

mediações, papai veio, gostou do lugar e fechou negócio, de boca, como se dizia. De-<br />

pois da conversa, meu pai perguntou se o negócio estava fechado e se poderia desfazer-<br />

se das coisas que ele tinha em São Bento. Seu Morais, então, disse que o negócio estava<br />

fechado e que ele podia vender o que possuía. E assim foi. Vendeu o Sítio Primavera ao<br />

vizinho dele, Joaquim Gabriel, e nós viemos para o <strong>sertão</strong>. Foi um tempo bom esse que<br />

vivemos em Sertânia. Na chegada, eu achei muito ruim. Nós chegamos em janeiro de<br />

299


1958, que foi um ano de seca na região e, em 1959, houve umas chuvinhas muito pou-<br />

cas. Tanto que, naquele sufoco inicial, eu ameacei voltar para São Bento. Falei com meu<br />

pai, e ele me perguntou o que eu iria fazer por lá. Eu respondi que ia viver em qualquer<br />

pedaço de terra dos outros. Meu pai aconselhou que eu esfriasse a cabeça e botasse um<br />

roçado maior do que eu havia feito naquele ano de 1959. Dizia ele que nem todos os<br />

anos ali seriam de seca. Em alguns anos, a chuva chegava. Eu botei o roçado para o ano<br />

de 1960 e, daí até o ano de 1970, quando o bicudo infestou os algodoais do <strong>sertão</strong>, pos-<br />

so dizer que foi um tempo bom. A fonte do <strong>sertão</strong> foi o algodão, enquanto não deu o<br />

bicudo, que veio da Paraíba para lá. Naqueles tempos, em Sertânia, tinha três indústrias<br />

ligadas ao algodão. Quando chegava o mês de maio, os corretores estavam batendo nas<br />

portas, distribuindo dinheiro. Ali ganhavam dinheiro o apanhador de algodão, o cami-<br />

nhão que transportava o algodão, o dono do hotel que hospedava os produtores e os<br />

vendedores... Hoje, não tem mais nada. Das três indústrias que havia, resta apenas o<br />

lugar onde cada uma delas existia.<br />

Antônio – Fale dos seus irmãos, especialmente da segunda família.<br />

Louro – A irmã mais velha tinha o nome de Lídia, e você não a conheceu. A segunda<br />

era Alaíde, que era esposa de Abdoral, que morou aqui em São Bento do Uma. Eu, Lí-<br />

dio, fui o terceiro filho. O nome de Louro foi por causa do f.d.p. de um gangarra que a<br />

mamãe criava lá em casa (rindo). Ela me botava num braço e, no outro, o louro; e fica-<br />

va dizendo: “Olha os dois lourinhos da mamãe!” Pronto, aí ficou esse nome de Louro<br />

(rindo muito). Ah, Antônio, tu mexeste lá longe, e agora eu me perdi todinho... Ah,<br />

sim, os nomes dos irmãos. Lídia, Alaíde, eu e Iva. Depois, vieram Inaldo, Rubem, Gil-<br />

berto (Mano), Suely e Selma. Éramos sete mulheres e quatro homens. Exatamente o<br />

inverso da sua família, que tinha onze filhos, sendo sete homens e quatro mulheres. Na<br />

nossa família, duas dessas mulheres já morreram.<br />

Antônio – Como é que se deu a aproximação da família de Caboclo Lulu com a de<br />

Jorge Siqueira?<br />

Louro – A aproximação maior se deu quando papai procurou Seu Zé Jorge para com-<br />

prar palma a ele para o gado. Você lembra que seu pai tinha aqueles roçados lá pro lado<br />

do Riacho Queimado, nos quais ninguém conseguia ver uma rês dentro dele; fosse<br />

mesmo dez, cinquenta ou fosse o que fosse... Num desses anos, botou tanta fruta de<br />

300


palma, que o mundo ficou amarelo. Então foi através dessa compra da palma que nós<br />

nos conhecemos e nos aproximamos. Quando meu pai falou a Seu Zé Jorge a compra da<br />

palma seu pai respondeu que não tinha palma para vender. Que ele, meu pai, trouxesse o<br />

gado dele e soltasse no roçado. Meu pai agradeceu, mas não aceitou a oferta do seu pai.<br />

Terminaram conversando e, arreda e vai, chegaram a um acordo. Nessa ocasião, eu su-<br />

geri a meu pai que cada um de nós – eu, ele, Inaldo e Lula, que era o marido de minha<br />

irmã Lídia, sendo nós primos, porque eu casei com Nena, que é irmã do Lula, tá enten-<br />

dendo? – cada um de nós daria a Seu Zé Jorge uma garrota, uma novilhota para ele fazer<br />

<strong>sem</strong>ente de gado pra ele. Porque já estava claro que ele não queria receber o dinheiro da<br />

palma. Meu pai concordou e disse que iria falar com ele para ver se ele aceitaria essa<br />

proposta. Falou com ele, e ele disse que trouxesse o gado. Meu pai disse que traria o<br />

gado nessa condição de lhe dar as quatro garrotas. E, de fato, deu as quatro novilhas pra<br />

ele. A que pertencia a meu pai - para ser bem sincero - era a maior delas. A minha, de<br />

Inaldo e a de Lula eram medianas. Mas foram as quatro que a gente prometeu. Daí co-<br />

meçou a aproximação da gente pra lá, pra cá... Anísio nos ajudou muito. Chegou mesmo<br />

a limpar a nossa casa velha e brincava <strong>sem</strong>pre com papai. E assim se fortaleceu a nossa<br />

amizade, que dura até hoje, graças a Deus.<br />

Ricardo – Voltando ao assunto da caça, você não falou no nome do tio Anísio. E<br />

olha que ele era o grande caçador da família...<br />

Louro – Olha, Ricardo, Anísio nunca foi com a gente para as caçadas de Ourimamã.<br />

Acredita nisso? Claro, nesses anos ele esteve grande parte do tempo em São Paulo. A-<br />

gora, de Anísio, eu posso falar uma coisa de caçada que lembro bem. Aconteceu ali nas<br />

serras de Izauro Torres, que você deve lembrar. Ele chegou pra mim – ele me chamava<br />

de Nego! – e me convidou para matar uns mocós. Eu disse: vamos! Combinamos de ir<br />

lá pra minha casa a fim de sairmos bem cedinho para a caça. Ele chegou e fomos dor-<br />

mir. Mais tarde, ele começou dizendo: “Ô veia!” Eu disse: “A ‘veia’ daqui só tem a mi-<br />

nha!” (rindo). É que ele chamava Enedina, mulher dele, de “Veia”. Ele, então, pediu<br />

mil desculpas, na maior brincadeira, imagina (rindo). Então, partimos nós pra uma des-<br />

sas caçadas em Izauro Torres. Saímos os dois de jumento. O dele era um jumento que<br />

vocês chamavam de “Muafo”; lembra de Muafo? O meu era “Carretel”, um jumentinho<br />

pequeno. Cada um no seu jumento. Saímos ali pelos Damião, pelos Pocinhos e subimos<br />

a serra. Quando se descambava no outro lado da serra dos Torres, primeiro encontrava-<br />

301


se uns tanques, que chamavam de Tanques da Mariquinha, e, depois, se via um olho<br />

d’água que tinha lá embaixo. Numa dessas caçadas com Anísio, foi aí que ficamos. O<br />

caminho na serra era muito difícil. A gente tinha que descer do jumento e tangê-los pela<br />

trilha, que era muito íngreme. Chegou a noite, e fomos caçar tatu. Saímos, demos uma<br />

volta, e logo o cachorro acuou um [inaudível] numa raiz de barriguda; pegamos a caça<br />

e viemos embora. Na chegada, ficamos nos perguntando onde íamos esconder a caça.<br />

Eu sugeri que a deixás<strong>sem</strong>os dependurada dentro do aió. Terminamos cavando um bu-<br />

raco e a deixamos enterrada com o aió e tudo. Quando chegamos de manhã, encontra-<br />

mos apenas o aió com um rombo deste tamanho (rindo). “Mas nego, o que foi isso?!”<br />

Logo depois disso ele me falou que ia sair pra matar uns mocós, mas que eu devia ficar<br />

ali naquele lugar, <strong>sem</strong> sair pra muito longe, porque enquanto ele conhecia ali pedra por<br />

pedra, eu não conhecia nada. Pediu para ter cuidado com os bicos de pedras que eram<br />

perigosos e poderiam nos ferir. Eu fiquei ali sozinho, num esquisito que só vendo. Pra<br />

todo lugar que eu olhava e botava o pé, estava vendo uma cascavel. Isso só na imagina-<br />

ção, porque não havia nada disso. Ele saiu para a caçada de mocó. Deu nove horas, dez,<br />

onze, meio-dia, uma hora da tarde, e eu pensando comigo: “Minha nossa senhora, onde<br />

é que está o Anísio?” Como é que eu saberia para onde ele foi? Como poderia rastejar<br />

num lugar que só tinha pedra? Na terra, todo mundo rasteja, mas lá só tinha mesmo pe-<br />

dras e serrotes. Eu já estava me desesperando. Porque, de qualquer maneira, estando<br />

sós, nós dois, eu teria de dar notícia de Anísio. Foi quando, com a ajuda de Deus, eu me<br />

abaixei e pude perceber que era ele que se aproximava. Chegou com um bisaco de mocó<br />

deste tamanho... Eu disse: “Mas Anísio!...” Ele perguntou se tinha café. Eu disse que<br />

sim. Danei lenha no fogo e quando estava aquela labareda terminei o café e acabamos<br />

de almoçar. Ele pegou o saco de mocó, tirou todos e passou cada um no borralho. A<br />

gente, primeiro molha e depois passa o bicho naquela cinza quente... Enquanto eu trata-<br />

va um, ele tratava quatro, cinco... Logo tratamos todos eles, dependuramos no sal e no<br />

outro dia viemos embora. Caçar com Anísio foi muito pouco e, quando acontecia, a<br />

gente ia lá para os Torres. Aquelas caçadas de Urimamã ele não foi a nenhuma delas.<br />

Fiz outra caçada com Anísio – quando encontrar com ele, certamente ele lembrará pra<br />

você – na Fazenda Jerimataia, entre os municípios de Sertânia e Custódia, propriedade<br />

de Tércio Rafael. Aconteceu algo ali que até hoje não sei o porquê nem como foi; não vi<br />

nada e vi tudo ao mesmo tempo. Fui caçar tatu com o Anísio. Lá pela madrugada, a gen-<br />

te vinha voltando em direção à casa que o velho nos cedeu para nos arranchar. Eu na<br />

302


frente e, atrás de mim, vinha o Anísio. Nesse instante, desceu uma tocha clara diante de<br />

mim. Uma luz avermelhada que desceu de uma vez e eu parei espantado, ali, parado.<br />

Quando eu levanto os olhos e olho, não vejo mais nada. A gente caçava à noite com luz<br />

de um candeeiro aceso, e não com lanternas, como hoje. Nesse instante, a luz do cande-<br />

eiro ficou amarela como gema de ovo. Depois de caminhar uns cinquenta ou sessenta<br />

metros, nós paramos e eu disse: “Mas Nêgo, o que foi aquilo?” Nem eu nem ele sabía-<br />

mos. Não senti calor, não senti frio, não senti nada. Apenas aquela luz que desceu ali,<br />

naquele momento exato. Não tinha trovão, não tinha relâmpago, não tinha nada. Até<br />

hoje, não sei explicar o que foi aquilo. Nem mesmo chegou a apagar a luz do candeeiro,<br />

nada. Em outra caçada de Urimamã, não sei se foi nessa ou em outra, seu pai estava<br />

com a gente; quer dizer, comigo e com Lula. Ao passar pela casa de Seu Luís, ele nos<br />

entregou a chave de uma casa velha, insistindo que fos<strong>sem</strong>os para lá porque, segundo<br />

ele, o tempo estava de chuvas. E uma noite de trovoadas naquele <strong>sertão</strong> poderia nos<br />

colocar em risco. E, de fato, fomos para a dita casa. Era um casarão meio abandonado,<br />

mas as telhas ofereciam proteção da chuva. De noite, saímos para caçar, nós três. Seu<br />

José dificilmente saía à noite para caçar. Saindo da casa, logo adiante a gente pegava o<br />

caminho do serrote. Lá vai, lá vai, quando a gente chegou ao topo, passamos por baixo<br />

de um pé de umbu. O cachorro, nesse momento, acuou um peba no sentido do nosso<br />

lado direito. Nós puxamos pra lá. Ao chegar junto do cachorro, pudemos ver o relâmpa-<br />

go que estava “cortando” no lado do nascente. Nós começamos a cavar o buraco, o tem-<br />

po passando, o buraco afundando e o relâmpago vindo em nossa direção. A gente já<br />

ouvia o ronco do trovão. E o peba se enfiando no buraco. Lula insistia para a gente não<br />

desanimar, a despeito de todos os demais quererem voltar. “Nós vamos tirar essa gota<br />

daqui”, dizia ele. E, de fato, conseguimos tirar o peba. Nessa hora, os pingos grossos da<br />

chuva já nos molhavam. A gente tinha subido pela direita do serrote. Quando Lula tirou<br />

o peba, ele e Seu Zé Jorge queriam voltar pela esquerda. E quem convencia essas duas<br />

criaturas do equívoco deles? Teimosos! Uns diziam “é pra cá”, outros “é pra lá”... Eu<br />

disse: “Seu José, o senhor está aí com seu relógio”? Ele disse “Sim, estou”. Eu propus a<br />

ele um acordo segundo o qual ele me acompanharia durante dez minutos, findo os<br />

quais, deveríamos chegar ao pé de umbu. Caso não alcançás<strong>sem</strong>os o pé de umbu nesse<br />

período de tempo, eu então acompanharia ele a noite inteira, aonde quer que ele fosse...<br />

Ele olhou para Lula e concordou, convidando-o para me seguir. Antes dos dez minutos<br />

de caminhada, nós chegamos ao pé de umbu. Eu disse, “Seu Zé, esse é o pé de umbu,<br />

303


esse é o caminho!” Ele disse “Tá certo, você tem razão”. Nessa altura do campeonato,<br />

nossas camisas já estavam ensopadas e coladas no corpo, e lá vamos nós descendo para<br />

a casa. A chuva arrochou. Eu voltava na frente, Seu José no meio e Lula atrás, num ca-<br />

minho só. De repente, deu um relâmpago, seguido de um trovão, na minha frente. Eu<br />

estava com um enxadeco debaixo do braço, e quando deu aquele relâmpago eu fui joga-<br />

do para a frente e caí com o rosto na lama da chuva. Eles me levantaram, me balança-<br />

ram e foram me chamando. Eu comecei a ouvi-los como se estives<strong>sem</strong> falando lá da<br />

Prefeitura. Pegamos o enxadeco e jogamos no mato; no outro dia, fomos atrás dele. E<br />

foi um susto horroroso.<br />

Antônio – Voltando um pouco atrás na entrevista, assim como você respondeu qual<br />

a imagem que guardava de seu pai, gostaria que dissesse qual a imagem que guar-<br />

da do meu pai, Zé Jorge.<br />

Louro – Ah! Muito boa pessoa. Honesto, sincero, trabalhador, homem de respeito e<br />

bom colega de caçada. Um bom colega de viagem, um cidadão de bem... Jogamos mui-<br />

tas cartas, muita sueca. Agora, ele era como meu pai em busca do caminho certo; pau é<br />

pau, pedra é pedra e acabou-se. Foi um grande amigo de meu pai. De tal maneira que,<br />

quando do falecimento de Zé Jorge, foi muito difícil convencer meu pai do acontecido.<br />

Foi difícil, estou lhe dizendo. Nesse tempo, meu pai já estava paralítico, em cima de<br />

uma cama. A toda hora perguntava por Zé Jorge, por que ele não aparecia para lhe fazer<br />

uma visita... Olha que tristeza. Eu não podia dizer nada. Tinha que alinhavar umas his-<br />

tórias de que ele tinha viajado etc. Acredito que meu pai tenha vivido uns quatro anos<br />

após o falecimento de Zé Jorge. Não é data firme, não; é aproximado.<br />

Ricardo – Seu pai morreu lúcido?<br />

Louro – Morreu. Não tão lúcido quanto se possa dizer; também nem tão “desorientado”<br />

como se pode falar. Ele me pedia para levá-lo para o curral. Nós, então, o carregávamos<br />

na preguiçosa e colocávamos na sombra. Daqui a pouco, ele pedia para voltar para casa<br />

e a gente fazia o caminho de volta, trazendo-o para o quarto dele. Durante esses quatro<br />

anos em que ele ficou paralítico, houve apenas um dia no qual ele insistiu comigo que o<br />

gado havia ido embora. E ele alegava isso, afirmando que tinha ouvido o chocalho do<br />

gado. Eu fiz ver a ele que aquilo não havia acontecido e que o gado se encontrava todo<br />

no curral. Ele não acreditava no que eu dizia. Foi só nessa ocasião. Durante esse tempo<br />

304


da paralisia dele, eu largava meus dois filhos com Nena e ia dormir com ele, lá na casa<br />

dele. A minha mãe, com aquele corpão que só podia com ela mesma, nada podia fazer.<br />

Durante esses quatro anos, meu pai só me impediu de dormir uma única noite. Nessa<br />

noite, ele me pedia para virá-lo de lado, e eu, após atendê-lo, sentava na minha cama,<br />

em frente à dele. Aí ele pedia: “Louro, me vire aqui”. Eu virava, desvirava, virava, des-<br />

virava... Assim passei a noite toda. Essa foi uma única noite em que não dormi. No<br />

mais, dormia a noite toda. Algumas vezes, dava banho, limpando-o. Mas nada mais que<br />

uma ou outra vez.<br />

Ricardo – Louro, qual a lembrança que você tem de vó Verônica?<br />

Louro – Ave Maria! Era mesmo que mãe para a gente. Ela tinha uma consideração à<br />

gente que era demais. E nós a ela. Ela brincava muito com João Mateus (mostra a figu-<br />

ra dele no retrato da caçada). Sabe o que ela pediu a ele, certa vez? Que ele adquirisse<br />

uma peça de corda fina e, quando eles chegas<strong>sem</strong> ao rancho do umbuzeiro, ele amarras-<br />

se com essa corda meu pai e Zé Jorge, pelo mocotó. E o curioso é que ele realmente<br />

levou a corda e amarrou os dois. (Risos) Bem entendido, de brincadeira e no bom senti-<br />

do. Pediu licença a um e outro e os amarrou pelo mocotó. A minha admiração por Dona<br />

Verônica é muito forte. Ave Maria!<br />

Ricardo – E Manoel Jorge?<br />

Louro – Era boa pessoa, também. Manoel Jorge era doido varrido, mas era gente muito<br />

cara. O mesmo digo de Severino e Anísio. Manoel passava lá várias vezes, vindo do<br />

mato, e tal e coisa. Era gaiato demais e gente muito fina. Gostava de dançar forró e era<br />

meu parceiro de sueca.<br />

Antonio – A diversão de vocês naqueles sítios era só jogar sueca?<br />

Louro – A principal diversão era jogar sueca. E tanto a gente gostava que, quando Aní-<br />

sio fez uma operação de hemorróida, eu tive que paralisar um pé por conta de uma es-<br />

trepada. E o pior era sair pra Santa Luzia, de noite, em pleno escuro, pisando com um pé<br />

e aliviando o outro: “Vinte e nove, trinta! Vinte e nove, trinta! (risos). Uma vez, nessas<br />

idas, eu vi um lobisomem na estrada, maior do que essa casa. Vocês sabem o que era?<br />

Eu vi aquilo e disse comigo: correr eu não posso. Estava estropiado do pé. Se ficar, o<br />

bicho me pega. O que é que eu faço? Aí tive a ideia de me abaixar e olhar por baixo o<br />

305


que diabo era aquilo. Era uma jumenta comendo capim na escuridão da noite, na beira<br />

da estrada (risos). Antônio, eu tenho saudades daqueles tempos. Tem que ter. Há mo-<br />

mentos que a gente não pode esquecer, ao contrário de outros, que a gente dá graças a<br />

Deus para não lembrar. São os momentos mais difíceis que a gente atravessa na vida.<br />

Mas outros, não. A gente tem que lembrar. E relembrar é viver.<br />

Antônio – Você conheceu o padrinho meu, Zé Antônio?<br />

Louro – Demais. Dei tantas carreiras atrás de bode do Zé Antônio naquelas serras, que<br />

só vendo. Eram boas pessoas; vieram do agreste pernambucano, de Lajedo. Lembro<br />

bem de Dona Ester...<br />

Antônio – Louro, como é que você veio parar aqui em Gravatá? Atrás de peba e de<br />

tatu, não foi!...<br />

Louro – Foi atrás da minha boia e da dos meus filhos. Antônio, você morar num setor –<br />

e não vou botar a culpa só no setor! – mas também na época. E a época ruim de lá co-<br />

meçou com a praga do bicudo no algodão, conforme lhe falei há pouco. Antônio, não é<br />

fácil você ver chegar um dia de sábado e saber que sua renda é apenas dois quilos de<br />

queijo coalho. E eu com dois filhos e minha esposa, Nena, além de três sobrinhos que<br />

eu me encarreguei de criar com a morte de minha irmã... Com dois quilos de queijo dá<br />

pra você fazer uma feira? Agora, tinha ainda no terreiro, cachorro, porco, galinha, gado;<br />

tudo isso pra comer da feira. E como o Louro ia fazer essa feira com dois quilos de<br />

queijo? Chegou a um ponto em que esse meu irmão mais novo, formado em engenharia,<br />

Gilberto – que nós chamamos de Mano –, foi quem me segurou. Porque nós não tínha-<br />

mos mais palma nem mandacaru e nós passamos a viver muitas dificuldades. Não de-<br />

morou chegar o momento em que o próprio Mano me mandou vender aqueles possuídos<br />

de lá e confiamos que Deus não iria permitir que morrês<strong>sem</strong>os de fome. Nesse entre-<br />

tempo, Lenildo, meu filho mais velho, me avisou que Lucilo tinha uma casa pra vender<br />

aqui em Gravatá. Acertamos e, com a ajuda de Mano, terminei comprando isto aqui.<br />

Espero ter respondido o que você me pediu...<br />

306


Pedro Nunes Filho 65<br />

Antônio – Pedro, você pode falar daqueles sertões do Cariri da nossa Paraíba?<br />

Pedro Nunes – Sou fascinado pela história dos nossos sertões e, mais ainda, pela histó-<br />

ria dos nossos Cariris Velhos. Por isso, há alguns anos, comecei a ler e pesquisar sobre<br />

o <strong>sertão</strong> da Paraíba. É uma região que começou a ser povoada a partir de 1690; bem<br />

tardiamente, sabendo-se que o Brasil foi descoberto em 1500. Antes da chegada do<br />

branco, o Cariri já era povoado pelos índios tarairius, nação indígena formada por di-<br />

versas etnias, entre elas os sucurus que habitavam o território que vai da Serra do Tei-<br />

xeira, passa por Sumé e se estende até Monteiro. Eles eram os verdadeiros donos daque-<br />

las terras todas. Essa gente primitiva veio provavelmente dos sertões do São Francisco<br />

caçar. Como se tratava de uma terra muito boa, parte daqueles caçadores acabou ficando<br />

na região.<br />

Na época, havia uma Lei colonial proibia criar gado no litoral, para não competir<br />

com a cultura da cana-de-açúcar, que era produto de exportação. Foi então que os cria-<br />

65 Pedro Nunes, advogado e tributarista, é um consagrado escritor do Cariri paraibano. Integra a Família<br />

Nunes, onde a Família Siqueira viveu como arrendatários na Fazenda Matarina, de Cícero Nunes. Entrevista<br />

realizada no dia 26 de agosto de 2010, em Boa Viagem, Recife, onde mora.<br />

307


dores de gado começaram a penetrar nos sertões para criar. Cada um partia com sua<br />

<strong>sem</strong>ente de gado, meia dúzia de vacas, um touro, etc. Eram pessoas que tinham posses.<br />

Traziam consigo alguns serviçais e índios-mansos, porque era muito difícil penetrar<br />

naqueles sertões sozinho, enfrentando os nativos arredios, onças bravias, cobras perigo-<br />

sas e, sobretudo, desconhecendo os caminhos primitivos que encurtavam as distâncias.<br />

Não há dúvidas de que a ocupação dos nossos sertões foi uma epopéia marcada por<br />

muitos lances de bravura. É lamentável a crueldade utilizada contra as populações indí-<br />

genas. Os colonizadores vinham andando a pé, geralmente seguindo o leito de rios, se-<br />

cos na sua maioria. Quando encontravam terras que lhes caíam no agrado, geralmente<br />

na beira de rios ou de riachos onde pudes<strong>sem</strong> dispor de água para beber e matar a sede<br />

dos animais, aí, eles se instalavam e começavam a construção do que historicamente<br />

passou a se chamar curral-de-gado. Era um conjunto de casas de taipa, que abrigavam<br />

os donos e os serviçais, além de compartimentos feitos de cerca pau-a-pique para tran-<br />

car o gado. No <strong>sertão</strong>, existem três tipos de cerca: rabiada, que é cerca deitada; faxina,<br />

onde as varas ficam em pé; e pau-a-pique, que é feita com toras grossas de madeira en-<br />

terradas no chão. Esta última é a mais resistente para trancar gado. A partir dos currais-<br />

de-gado, os povoadores iniciaram suas fazendas. Alguns chegavam de Portugal pobres.<br />

Em menos de uma década, passavam a ser donos de vastas propriedades. Após o decur-<br />

so de três anos, requeriam aquelas terras à Coroa portuguesa, por intermédio do Capi-<br />

tão-Mor, autoridade que representava o rei de Portugal. Para receber uma sesmaria, bas-<br />

tava argumentar que as ditas terras eram habitadas por gentios brabos e que o requerente<br />

delas precisava para criar gado e aumentar os lucros da Coroa. Não demorava aqueles<br />

valentes desbravadores tornarem-se donos de grandes fazendas e rebanhos de gado tão<br />

numeroso que era difícil até contar. Os índios atrapalhavam o processo de ocupação,<br />

porque não trabalhavam na agricultura braçal, nem sabiam lidar com animais. Eram<br />

andarilhos, não tinham habilidade de montar em cavalos, nem se sujeitavam a trabalhos<br />

pesados. Só sabiam caçar e pescar, vivendo em liberdade. Era assim a cultura deles.<br />

Como não se submetiam ao branco povoador, estes começaram a enxotá-los, porque<br />

eram um elemento atrapalhador do progresso. Os colonizadores espantavam os índios a<br />

dente de cachorro e com tiros de mosquetes, que os amedrontavam, porque aquela po-<br />

pulação nativa desconhecia a pólvora e ficava assustada com os estragos que as armas<br />

dos brancos faziam. Uma parte dos índios fugiu para lugares distantes, outros resistiram<br />

e sucumbiram. Outros tantos se renderam ao poder do branco, tiveram que aprender<br />

308


ofícios para os quais não tinham vocação e, enfim, foram escravizados. Os brancos que<br />

penetraram nos sertões normalmente eram solteiros e começaram a casar com as índias.<br />

A partir desses acasalamentos, aconteceu a mistura do branco com o elemento indígena,<br />

resultando daí a civilização dos vaqueiros, de que nós todos somos descendentes. Houve<br />

também miscigenação do índio com o negro que para lá era levado e vendido como es-<br />

cravo. Nos sertões, a relação do branco com o negro era branda, o que não ocorria na<br />

zona canavieira do litoral, onde a violência e a tortura imperavam sob o estatuto da es-<br />

cravidão. No <strong>sertão</strong>, essa relação era diferente, porque lá o negro sentava à mesa com o<br />

patrão e saía com ele para campear. Meu tataravô era português e foi caçar mocó na<br />

Serra do Jabre. Lá, seu cachorro correu em perseguição a um vivente. Quando ele se<br />

aproximou, viu que se tratava de uma indiazinha de apenas doze anos. Ela estava em<br />

cima de uma árvore. Ao retirá-la à força, ela urinou-se com medo. Ele tomou-a pela<br />

mão, levou para casa, amarrou no pé de uma mesa, amansou-a e, depois de batizada,<br />

com ela se casou. É de lá que vem a descendência de todos os Nunes de Farias. Histó-<br />

rias assim aconteceram com muitas outras famílias. Foi desse jeito que aconteceu o po-<br />

voamento do nosso Cariri paraibano.<br />

Antônio – Pedro, fale da memória dos lugares de sua infância...<br />

Pedro Nunes – Eu nasci em 1944, na Fazenda Bonfim, município de São José do Egito,<br />

nas águas do Pajeú. A Fazenda Bonfim era do meu avô, Antônio Nunes de Farias, que<br />

era dono, também, das fazendas Boa Vista, Matarina, Mugiqui, Barra e Duas Barras,<br />

esta última em Pernambuco. Com a morte de Antônio Nunes, em 1943, as propriedades<br />

foram divididas entre os herdeiros. As fazendas Boa Vista e Matarina ficaram para meu<br />

tio Cícero Nunes de Farias. Mugiqui ficou para meu pai, Pedro Nunes de Farias; a Bar-<br />

ra, para Luiz Nunes de Farias. A Fazenda Bonfim, para um tio meu, Dr. Tonheira, que<br />

era promotor público. A Fazenda Duas Barras ficou para minha tia Maria do Carmo,<br />

casada com Antônio de Souza. Minha tia Teonas, casada com Tércio Rafael, herdou<br />

terras que vendeu. Com a morte de Cícero Nunes, a Fazenda Matarina foi herdada por<br />

Eugênio Nunes de Farias, que é meu primo carnal e é casado com minha irmã Priscili-<br />

nha. Eles moram lá na Matarina desde a década de 50, quando casaram.<br />

Antônio – Pedro, gostaria que você nos falasse como eram as relações de trabalho<br />

naquelas fazendas do Cariri paraibano na primeira metade do século passado.<br />

309


Pedro – As relações de trabalho se davam da seguinte maneira: Os moradores pediam<br />

morada e se instalavam numa determinada fazenda. O patrão oferecia casa para morada<br />

e roçado extenso para plantar algodão, milho e feijão. O regime trabalhista era muito<br />

informal, porque não existia naquela época nem a CLT, nem salário mínimo. O patrão<br />

fazia um empréstimo no Banco do Brasil, a juros subsidiados, e, <strong>sem</strong>analmente, adian-<br />

tava ao agregado o valor para as despesas de sua feira. Adiantava, adiantava... E ia ano-<br />

tando numa caderneta. No final do ano, depois de o trabalhador apanhar e ensacar o<br />

algodão, este era vendido e, do apurado da venda, metade era do patrão e a outra metade<br />

do morador, posto que era meeiro. Daquela metade do morador, o patrão descontava o<br />

que havia adiantado no transcorrer do ano. O milho e o feijão eram lucros do morador e<br />

descareciam de partilha. Depois de acertar as contas, o morador ficava com uma boa<br />

soma de dinheiro que, amealhado, findava sendo suficiente para ele comprar sua própria<br />

terra. Naquele sistema, o morador era um sócio do patrão; de certa forma, era um regi-<br />

me de trabalho mais adiantado do que o de hoje. Os vaqueiros das fazendas de gado<br />

tinham participação: de três crias, eles tinham uma e o patrão, duas. Dessa forma, mora-<br />

dores e vaqueiros transformavam-se em <strong>sem</strong>enteira de futuros fazendeiros. Toda aquela<br />

riqueza provinha do algodão, que era um bem maior, o “ouro branco”, que azeitava o<br />

comércio e dava sustentação à economia da região.<br />

Antônio – Fale um pouco de sua família...<br />

Pedro Nunes – Minha família era grande. Nasceram 17. Três deles morreram ainda<br />

“anjinhos”, como se diz. Mas com o benefício do batismo; porque quando acontecia<br />

uma criança morrer <strong>sem</strong> ser ungida com os santos óleos era enterrada na própria zona<br />

rural. Nós éramos, portanto, quatorze irmãos, e eu era um dos mais novos, o quarto, de<br />

baixo para cima. Hoje eu tenho sessenta e sete anos de idade. A maior parte de meus<br />

irmãos e irmãs casaram com primos e primas. A endogamia existente lá no <strong>sertão</strong> era<br />

uma herança judaica.<br />

Minha família, como já falei, havia se mudado para a Fazenda Mugiqui. Os ir-<br />

mãos mais velhos casaram, e os mais novos ficaram lá em casa morando com meus<br />

pais, Pedro Nunes de Farias e Priscila Nunes de Farias. Minha mãe era filha de Valen-<br />

tim Monteiro, um almocreve que saiu de Gravatá de Bezerros e, em companhia de ami-<br />

gos, foi almocrevar na região do Cariri paraibano. Lá, conheceu Priscila Virtusosa do<br />

310


Espírito Santa, filha de um fazendeiro dono da Fazenda Ipueira do Poço, perto de São<br />

Tomé. Casaram-se, compraram as terras onde hoje fica a cidade da Prata, e lá geraram<br />

extensa parentela: os Monteiro, os Neri, os Nunes e os Aleixo. Pelo que sei a avó de<br />

vocês pertencia à família Feliciano, da Prata. Ela casou-se com José Jorge, um moço<br />

nascido e criado no Amparo. Casados, foram morar na Fazenda Matarina, que pertencia<br />

ao meu tio Cícero Nunes de Farias.<br />

Antonio – Fale agora de suas lembranças da Fazenda Mugiqui e da Matarina<br />

Pedro – Como eu já lhe falei, meu pai herdou a Fazenda Mugiqui e se mudou para lá no<br />

ano de 1944. Quando eu abri os olhos para a existência, estava contemplando os céus<br />

azuis do município de Alagoa do Monteiro. Na época, a fazenda pertencia a Monteiro;<br />

Prata era apenas distrito de Monteiro. Nessa fazenda, eu vivi uma infância muito feliz<br />

no meio de passarinhos, tomando banho de açude, sentindo cheiro de terra molhada,<br />

mato verde, ouvindo riachos gemendo e vendo céus azuis... Coisas assim, maravilhosas.<br />

A época mais feliz de minha vida foi na simplicidade daquela fazenda. Com quatorze<br />

anos de idade, fui estudar no <strong>sem</strong>inário diocesano de Campina Grande. Mas, nas férias,<br />

eu <strong>sem</strong>pre voltava para o Mugiqui e lá revivia os quadros de minha infância. Ainda<br />

hoje, depois de tanto tempo, quando eu chego lá é como se eu voltasse à minha infância.<br />

As fazendas Mugiqui e Matarina são contíguas.<br />

Respondendo sua pergunta, as lembranças que eu tenho da Fazenda Matarina<br />

são também as melhores possíveis. Eu lembro que a Matarina tinha cerca de 50 morado-<br />

res, ao todo, quase 200 almas. Era, portanto, uma fazenda densamente povoada, com<br />

moradores muito operosos, todos vivendo do cultivo do algodão. Eu me lembro muito<br />

bem de Seu Bento, Seu Preto, Amaro Galdino, Otaviano e Brasil, que era um dos mora-<br />

dores mais antigos. Ele morava num sítio chamado Barra. Na frente da casa, tinha uma<br />

várzea muito bonita plantada de fruteiras. Ele era um negro, alto, magro, trabalhador e<br />

muito direito. Na divisão das terras, ele saiu de lá e não sei que destino tomou. Todos<br />

aqueles moradores da Matarina me trazem muitas lembranças. Lembro-me da família<br />

Porfírio, que era do Cachorro Morto e de Sebastião do Mato, cerqueiro de primeira qua-<br />

lidade. Ele era filho de Manoel do Mato, que foi cabra e homem de confiança do Dr.<br />

Augusto Santa Cruz. Além de valente, gozava de muita confiança do Doutor, porque era<br />

direito e muito religioso. Andava <strong>sem</strong>pre com um rosário dependurado no pescoço. Ho-<br />

311


je, os descendentes dele moram na Prata. Realmente, a Fazenda Matarina me traz lem-<br />

branças e recordações muito antigas. Dessas lembranças, recordo uma história, contada<br />

por meu pai. Ele dizia que, em 1915, ano de seca terrível, seu pai, Antônio Nunes, botou<br />

uma retirada de gado para a Fazenda Matarina, que havia sido comprada por ele ao Dr.<br />

Santa Cruz, naquele mesmo ano. Aconteceu que um dia uma onça pegou um garrote, ali<br />

onde hoje é o açude, e arrastou o bovino para cima daquela serra grande e alta. No meio<br />

do trajeto um casco do garrote ficou enganchado numa fresta de pedra. A onça puxou o<br />

animal com tamanha força e violência, que desprendeu o casco do garrote, e ela termi-<br />

nou levando a sua presa para o alto da serra, onde a devorou. A Matarina é um lugar<br />

lindo, pontilhado de esculturas de pedras gigantes. No coração da terra tem preguiças<br />

gigantes, fossilizadas, e isso é uma coisa que me fascina muito. Meu pai contava outra<br />

história, segundo a qual um morador de tio Cícero foi escavar um tanque numa pedra<br />

para ajuntar água. Na escavação, o morador encontrou um enorme osso do fêmur de um<br />

animal; o osso era tão grande que ele o levou para casa, e dele fez um pilão. Essa histó-<br />

ria me fascinou. Um dia, eu e meus irmãos saímos à procura dos vestígios desses ani-<br />

mais e, efetivamente, no lugar denominado Balanço, a gente encontrou um desses tan-<br />

ques que haviam sido cavados por trabalhadores e nele encontraram ossos de uma pre-<br />

guiça fossilizados. Ageu também encontrou a ossada inteira de uma preguiça gigante.<br />

Elas iam beber água naqueles tanques, caíam dentro e terminavam morrendo afogadas;<br />

com o passar dos séculos, ficaram fossilizadas, isso há quinze mil anos.<br />

Antônio - Nessa altura da entrevista, eu pergunto a Pedro se ele tem conhecimento<br />

do nome de alguns tanques e de serras na Matarina que comumente são nomeados<br />

pelos mais velhos de minha família, como Serra Preta, Tanque da Viúva, etc...<br />

Pedro Nunes – Na Serra da Matarina, tem o Tanque da Ventania. Sua irmã Virgínia<br />

refere-se a Tanque da Viúva, mas creio que é o Tanque da Ventania. É um lugar muito<br />

bom para lavar roupas, porque nunca seca e tem muitos lajeiros bons para botar as rou-<br />

pas para quarar e enxugar. Temos também a Serra Preta, que fica defronte da casa onde<br />

vocês moraram. É um conjunto de serras muito fechadas. Lá em cima é muito bonito.<br />

Tem uma lagoa no topo da serra e, muitos tanques, também. Tem madeiras de lei: ce-<br />

dros, pereiros, umburanas, cumarus etc. E lá de cima se descortina aos olhos do visitan-<br />

te uma paisagem belíssima que se estende para o Norte. Lá, nessa serra, tem muita caça:<br />

gato maracajá, mocó, preás, pebas, tatus, veados... O que não mais existe lá são as on-<br />

312


ças. Quando falo da Matarina, me vêm à mente todas essas recordações maravilhosas<br />

dos tempos passados, que eu vivi apenas em parte, porque somente a partir de 1950 é<br />

que comecei a andar pela Matarina, época em que minha irmã Priscilinha casou. Ela tem<br />

nove filhos. São sobrinhos que eu adoro.<br />

Antônio – Pedro, gostaria que você me falasse do seu amor pelo <strong>sertão</strong> e pelo ho-<br />

mem do <strong>sertão</strong>, especialmente daquelas paragens do Cariri paraibano, seu e nos-<br />

so...<br />

Pedro Nunes – Eu tenho um profundo amor pelo <strong>sertão</strong>. É uma terra muito rica cultu-<br />

ralmente. Celeiro de poetas, de cantadores, violeiros, cordelistas famosos, como Lean-<br />

dro Gomes de Barros, Chagas Batista – esses os maiores –, que faziam os seus folhetos<br />

de cordel e os distribuíam para serem vendidos nas feiras. As pessoas liam os folhetos e<br />

por meio deles se informavam de tudo porque os poetas-cordelistas faziam uma verda-<br />

deira cobertura jornalística do que acontecia na região: brigas políticas dos coronéis,<br />

refregas entre polícia e cangaceiros, histórias de amor, de traições, pegas de bois brabos,<br />

vaquejadas, apartações e festas religiosas... Tudo eles descreviam nos folhetos de cor-<br />

del, que eram lidos pela população, porque naquela época não chegavam às mãos do<br />

povo nem livros, nem revistas e muito menos jornais. As notícias chegavam mesmo era<br />

pelos folhetos de cordel. Por isso, a população nasceu e cresceu com a musicalidade nos<br />

ouvidos. É por isso que hoje as pessoas da região têm uma capacidade muito grande de<br />

versejar. Elas falam com ritmo e cadência. Têm alma poética. Os exemplos são muitos:<br />

Zé Marcolino, compositor nascido em Sumé e criado na Prata. Compôs para Luiz Gon-<br />

zaga. É tão bom quanto Humberto Teixeira e José Dantas. Pinto do Monteiro, a cascavel<br />

do repente... Firmo Batista, que eu nem sabia que era primo dos Siqueira! Firmo escre-<br />

veu muitas coisas bonitas sobre a Serra do Jabitacá, onde nasce o Rio Paraíba. Terra de<br />

um povo trabalhador, corajoso, valente, determinado, honesto, cujas histórias me encan-<br />

tam. É uma região de clima excepcional, terras boas, de água escassa, mas de qualidade.<br />

Lá, o gado chegava arrepiado, cheio de carrapatos, vindo das zonas canavieiras e, em<br />

pouco tempo, comendo ramas de mororó, aroeira e outras forragens protéicas que exis-<br />

tem em abundância na região, de repente, os carrapatos caíam, afinavam o pelo, come-<br />

çavam a agradecer e reproduzir-se em quantidade. Região muito boa para o criatório<br />

aquela! O gado vivia solto nas terras de ninguém, haja vista que as fazendas não tinham<br />

cerca como temos hoje. Uma fazenda fazia divisa com a outra, <strong>sem</strong> cerca, apenas mar-<br />

313


cos de pedras indicavam os limites. O gado vivia solto, e os vaqueiros campeavam para<br />

tomar conta dos rebanhos. Pinto do Monteiro tem um verso bonito, que diz assim: “O<br />

gado brabo bebia//No olho d’água do Cunha//Descia devagarinho//Bem na pontinha<br />

da unha//Descia, mas não bebia//Quando notava que havia//Vaqueiro por testemunha”.<br />

Os vaqueiros ficavam nos olhos d’água esperando o gado chegar para beber. Era o mo-<br />

mento em que eles olhavam se tudo estava bem com os animais de sua vaqueirice. A<br />

certa altura do ano, quando o sol começava a dourar as folhas do marmeleiro, nos meses<br />

de agosto, setembro e outubro, os vaqueiros se juntavam para fazer a “festa de aparta-<br />

ção”. Em que consistia a festa? Matava-se um ou dois bois e a festa rolava com dança,<br />

muita comida e bebida. Na oportunidade, os vaqueiros ferravam os bezerros. Cada pa-<br />

trão tinha um ferro. Depois de ferrados os bezerros eram soltos nas caatingas. Por falar<br />

em ferro, quando um animal se perdia ninguém se apossava do animal. Existia o ferro<br />

da família e um segundo ferro, que era do dono daquela fazenda específica. Por exem-<br />

plo, a rês trazia o ferro da família Nunes que era um S e logo abaixo o ferro das fazen-<br />

das, ou Boa Vista, ou Mugiqui, ou Matarina, ou Bonfim. Quando acontecia de um ani-<br />

mal se perder, facilmente era localizado. O ferro era anotado num livro de registro, na<br />

Prefeitura do município. Era uma coisa muito bem organizada. Todo mundo respeitava<br />

o alheio e ninguém ficava com animal de ninguém.<br />

Antônio – Para terminar nossa entrevista, gostaria de saber se, entre as suas lem-<br />

branças da Matarina, você tem alguma relativa à casa [de taipa] onde nossa famí-<br />

lia morou na qualidade de agregados de seu tio Cícero Nunes...<br />

Pedro - Quando eu comecei a andar na Fazenda Matarina, os Siqueira não moravam<br />

mais lá. Por isso mesmo, eu não recordo de nenhum de vocês, nem também dos nomes<br />

dos seus pais, Seu José Jorge e Dona Verônica. Mas a casa existia, e eu me lembro de-<br />

mais dela. Ficava na beira da estrada. Outras pessoas devem ter morado lá depois que<br />

vocês saíram. Eu vi tantas vezes aquela casa de taipa e não sabia que ali tinha morado<br />

uma família que deixou uma história de coragem, bravura, exemplo de luta e de enfren-<br />

tamento dos revezes da vida. Uma família que migrou para o Sul, e todos os filhos ven-<br />

ceram na vida. Uma família que se destacou com você, Jorge, que é orgulho dos irmãos.<br />

Eu não sabia que aquela casa tinha abrigado pessoas com uma história tão bonita, retra-<br />

tada neste livro que está sendo organizado com muita sabedoria. É uma história de emo-<br />

ção. Logo que comecei a folhear o livro, tive vontade de contar a história de minha fa-<br />

314


mília, mas confesso que não tenho coragem. Meus irmãos e minhas irmãs não consegui-<br />

riam dar depoimentos como esses de suas irmãs e irmãos. São testemunhos que cortam<br />

a alma da gente, esses que foram dados pelos filhos de Jorge e Verônica. São narrativas<br />

muito fortes, muito verdadeiras... Algo que emociona e engrandece. Não sei como con-<br />

seguiram falar de suas vidas. É um trabalho que exige coragem, porque mexe muito<br />

com o passado e com as emoções. Atrás dessas emoções de vocês e do choro de cada<br />

um, eu percebo, também, um sentimento felicidade em cada um. São pessoas que sofre-<br />

ram e hoje são felizes. Vocês saíram de uma situação de pobreza, lutaram e venceram.<br />

A pobreza não os tornou infelizes; ao contrário, os fez pessoas fortes e generosas. Na<br />

vida, todos lutam para vencer, e a maior vitória do ser humano é a felicidade.<br />

315


QUARTA PARTE<br />

000000000<br />

ENTREVISTAS<br />

DA<br />

TERCEIRA GERAÇÃO<br />

316


Encontro natalino de parte da Família Siqueira na residência de Anísio e Enedina, no<br />

Sítio São Marcos (Arapuá - MS) (Foto do acervo da Família)<br />

317


Maria Irene dos Santos 66<br />

Antônio – Irene, por gentileza, seu nome completo, lugar, data de nascimento e as<br />

lembranças de sua infância.<br />

Irene – Maria Irene dos Santos, nasci no dia 1º de maio de 1955, aqui em São Paulo.<br />

Minha infância foi muito feliz. Fui criada junto com meus primos na Vila Carioca, que<br />

eram os filhos dos irmãos dos meus pais. É o caso de Donizete, e lembro assim que a<br />

mãe trabalhava e me deixava na casa da vó paterna, vó Joana. Eu ficava lá no período<br />

da manhã e, na parte da tarde, a mãe saía da firma – ela trabalhava na Talheres Radio, e<br />

ela me buscava. Essa infância que eu tive no período em que eu ficava na casa da vó,<br />

era num cortiço, onde toda a família morava junto. Esse período foi muito bom porque<br />

era uma união de família. E a vó Joana era uma vó especial. Ela juntava todos nós numa<br />

66 Maria Irene dos Santos, filha de José Batista Torres (Zeca) e Floriza Verônica Torres (Flora). Viúva de<br />

José Guilherme dos Santos Filho (Jacaré), vinte e oito dias após dar esta entrevista na Vila Ema, em São<br />

Paulo, aos 30 de novembro de 2009. Jacaré era seu primo legítimo e faleceu em Paranaguá, após trágico<br />

acidente que envolveu a própria Irene.<br />

318


mesinha dela, levando em conta que era uma casinha bem pequena, e então ela fazia<br />

aquele mingau de farinha de trigo e nos servia naqueles pratinhos de ferro. Eu lembro<br />

que era muito gostoso. E ela ficava de pé, olhando a gente comer. Então eu tenho isso<br />

na minha lembrança e não apagou nunca. Eu também era muito travessa, judiava dos<br />

meus primos (rindo). Minha mãe contava que eu era muito maldosa, derrubava os pri-<br />

mos na lama, sujava todos eles. Ela me vestia como uma bonequinha, e quando eu re-<br />

tornava pra casa voltava toda preta de lama de brejo (rindo muito). Nesse período, eu<br />

deveria ter uns três ou quatro anos, deveria ser algo assim. Depois disso, nós fomos mo-<br />

rar em outro cortiço, na Rua Lício de Miranda, que já era de outro nível. Não era aquele<br />

barraquinho da vó Joana. Lá eu fui crescendo e, já com a idade de uns cinco seis anos,<br />

eu lembro realmente de muitas e diferentes coisas. Lá eu tinha minhas amiguinhas, e o<br />

pai gostava de convidar aqueles repentistas do Nordeste que vinham a São Paulo, e foi<br />

nesse ambiente que aprendi a gostar desse tipo de música naquele tempo. Ele juntava<br />

aqueles vizinhos, cuja maioria era de nordestinos, e os repentistas ficavam cantando a<br />

tarde toda. Eu pegava uma cadeirinha e ficava ali observando aquele movimento. Não<br />

lembro bem o nome desses repentistas, mas Firmo Batista, que era nosso primo, ele veio<br />

cantar algumas dessas vezes. E tinham outros que eram convidados, e eu nem sei onde o<br />

pai encontrava aqueles repentistas. Isso era aos domingos, e era uma festa. A família se<br />

juntava, todos os irmãos da mãe eram solteiros. A minha vida de estudante começou<br />

numa escola que ficava na Rua Silva Bueno, ali perto do morro do Ipiranga. Foi a mi-<br />

nha primeira escola. Era meio longe, a mãe era quem me levava, e o nome da minha<br />

primeira professora era Maria. A gente passava no bar que ficava na esquina da rua de<br />

nossa casa, levava um sanduíche de mortadela com guaraná para servir de lance na es-<br />

cola. Lembro que, algumas vezes, o guaraná derramava e se misturava com o lanche...<br />

(rindo). E não era nada agradável comer aquele lanche todo molhado. Você acredita<br />

que, até hoje, eu sinto o cheiro daquele lanche! Mas a mortadela era muito boa. Como<br />

disse, a mãe era quem me levava à escola. Sempre muito atenciosa. Recordo que, numa<br />

dessas vezes que ela me levou - nessa época ela estava grávida do Edson –, ela engan-<br />

chou os pés numa correia que estava no chão e levou um grande tombo. E lembro, as-<br />

sim, ela caída na rua, reclamando. Minha infância foi isso aí, até os seis ou sete anos. A<br />

casa na Lício de Miranda era uma casa boazinha, nossa! Era uma casa alegre. Os primos<br />

da mãe: o Zé Maria, o Nane, o João Feliciano, toda essa turma ia lá pra casa; e no sába-<br />

do e domingo era uma festa. Isso me marcou muito. A tia Virgínia, a Conceição, o Se-<br />

319


verino, Anísio, todos eram solteiros. Foi uma infância vivida no meio dos meus tios, e<br />

eu não esqueço nunca 67 . Logo em seguida, nós viemos morar na Vila Ema. Havíamos<br />

adquirido um terreno. Uma grande dificuldade porque tivemos que construir a nossa<br />

casa, e a mãe passou a ser marreteira nas feiras livres. Nesse período, 1962-1964, ela<br />

costurava aquelas gravatinhas de escolas de antigamente. Eu ajudava ela, colocando<br />

colchetes e acompanhando-a nas feiras. E foi assim que ela começou a construir a casi-<br />

nha dela, a nossa casa. Mas eu <strong>sem</strong>pre estava ali com ela e vendia aquelas toalhinhas de<br />

plástico; eu estava metida no comércio. Ela até que era liberal comigo: deixava-me<br />

brincar com minhas amiguinhas; mas, primeiro, precisava arrumar a casa (rindo mui-<br />

to!). Primeiro a obrigação, depois a diversão. Na Vila Ema, eu tinha muitas amiguinhas<br />

e muitos amigos. Mas até jogava bola, participando da brincadeira dos meninos. Empi-<br />

nava pipas, e quando a minha pipa era “cortada” os outros meninos iam buscar pra mim<br />

(ri muito).<br />

Antônio – Irene, diga-me uma coisa. Anísio conta uma história que, talvez, um<br />

pouco antes dessa época, Flora o teria deixado tomando conta de você. E, segundo<br />

ele, você desabou num choro incontrolável, e ele teve de lhe bater com uns cordões<br />

bentos... Você lembra isso?<br />

Irene – Era, ele era um pouco malvado comigo. A história é a seguinte. A mãe tinha um<br />

“tique-tique nervoso”. Isso era na Lício de Miranda. Um dia minha mãe teve uma crise<br />

dessas. E o pai foi levá-la no hospital para ser medicada. O tio Anísio chegou cansado<br />

67 Nesta altura da entrevista eu pedi licença a Irene para recordar que, nessa casa da Lício de Miranda, foi<br />

onde eu fiquei hospedado quando de minha primeira viagem a São Paulo, nos finais da década de cinquenta.<br />

Lá encontrei minha mãe, que veio a São Paulo fazer um tratamento da vista... E recordo que<br />

quando Flora e Zeca iam para o trabalho, em casa ficávamos eu, Verônica e ela, Irene. As casas desse<br />

“cortiço de luxo” eram de alvenaria e dividiam parede e meia com outros moradores. Flora e Zeca dividiam<br />

a casa deles com uma senhora italiana (Irene ri muito!) e essa senhora passava o dia todo ouvindo as<br />

radionovelas da época, na Radio Nacional, Tupi de São Paulo, etc... E ouvia numa altura incomum. Aquilo<br />

me aborrecia por demais. Só resolvi esse problema quando um dia descobri que o chuveiro elétrico do<br />

nosso banheiro estava ligado na mesma rede elétrica que alimentava as duas casas. E quando se ligava o<br />

chuveiro a interferência nos aparelhos elétricos era imediata. Não se ouvia mais nada até que o chuveiro<br />

fosse desligado. Tão logo as radionovelas iniciavam, eu então plugava e desplugava a tomada do chuveiro.<br />

Era uma interferência desgraçada. A velha italiana ficava uma arara de irritada, no outro lado. E esbravejava<br />

pra todo lado, dando tapas no aparelho de rádio, julgando ser mau contato das válvulas. E <strong>sem</strong>pre<br />

reclamava que o rádio só fazia aquilo no começo das novelas dela... Mas logo, logo ela desistia de<br />

ouvir porque simplesmente era impossível continuar ouvindo. Era o meu sossego. Flora via aquilo e ficava<br />

meio cabreira. Zeca é que dava risadas e mais risadas... Isso é apenas um detalhe da memória ligada à<br />

casa da Rua Lício de Miranda, na Vila Carioca.<br />

320


do trabalho, como era de se esperar. E eu queria porque queria ir junto com o pai e a<br />

mãe. Como não deu pra ir, tive que ficar na companhia do tio. Caí num berreiro <strong>sem</strong><br />

tamanho. E o tio logo fechou a porta, dizendo: “Cale a boca, minha filha, cale a boca...<br />

Sua mãe logo volta”... Aí é que eu chorava, gritava e esperneava. Não tinha jeito. Ele,<br />

então, pegou um cordão da Ordem Terceira de São Francisco que tinha dependurado lá<br />

na parede e me deu umas lapadas muito das boas (rindo muito). Aí eu tive mesmo que<br />

ficar quietinha. Quando meus pais voltaram, ele então disse pra mim: “Conte a história,<br />

minha filha, diga a eles o que foi que aconteceu”... Eu só fazia choramingar, não conse-<br />

guia contar nada. E hoje ele conta isso com muita graça, porque na realidade ele nunca<br />

esqueceu isso aí. Mas o tio Anísio é também muito especial pra mim.<br />

Antônio – Você tinha uma relação muito especial com Zeca, não? Ele lhe mimava<br />

muito? E sua relação com Flora?<br />

Irene – Com meu pai, eu tinha uma relação muito especial. Ele era o “paizão” mesmo.<br />

Ele trazia o chocolate todas as noites. Colocava-me no colo, me beijava na hora de dor-<br />

mir, contava aquelas histórias dele; ensinou-me matemática, ajudando a somar, subtrair<br />

e multiplicar. Ele foi meu primeiro professor. Tinha uma paciência enorme. Meu pai era<br />

muito querido, era um pai verdadeiro. Sabia educar, sabia amar, sabia corrigir na hora<br />

certa; <strong>sem</strong> bater. Era uma pessoa que tinha a palavra certa na hora certa. Ele foi <strong>sem</strong>pre<br />

assim. Já com a mãe, as coisas mudavam. Ela era mais rigorosa. A mãe era mais “capi-<br />

tão”, “sargentona” (rindo muito). “Sem vergonha, tu tás fazendo isso?” Mas a maneira<br />

dela ser “sargentona” é que me fez ser gente. Era a maneira dela de educar, ensinando o<br />

que era o certo e o que era errado e como se deveria fazer. A mãe também foi uma<br />

“mãezona”. 68 É, tio, o pai queria <strong>sem</strong>pre ajudar. Ele não media esforços. Sempre era<br />

68 Antônio - Novamente eu peço permissão a Irene para testemunhar meu profundo reconhecimento desse<br />

papel de exemplar conduta e enorme desprendimento de<strong>sem</strong>penhado por Flora e Zeca para nós, os irmãos<br />

mais novos e, enfim, para todos da nossa família. Lembro que, naqueles anos, eu estudava filosofia no<br />

Seminário de Viamão, preparando-me para me ordenar padre católico. E eles <strong>sem</strong>pre me deram o apoio<br />

afetivo e material de que eu tanto necessitava. Sempre me receberam com carinho nas ocasiões de minhas<br />

férias quando eu vinha de Porto Alegre para São Paulo. A maneira acolhedora como recebiam meus colegas<br />

de <strong>sem</strong>inário. Sobretudo fornecendo roupa e outros apetrechos para eu poder enfrentar aquele frio<br />

duro do inverno sul riograndense. Dava-me a impressão de que eles tiravam do que não tinham para nos<br />

ajudar. E, no entanto, eu nunca vi Zeca fazer cara feia pelas decisões de Flora em ajudar alguns dos irmãos,<br />

irmãs e sobrinhos. Fico comovido quando me lembro dessas coisas. Que isso sirva de exemplo para<br />

as novas gerações da família. E que esse seja um testemunho que fique para <strong>sem</strong>pre na memória de nossas<br />

famílias. Um testemunho de gratidão e de solidariedade humana e familiar. Virgínia, a despeito das “doidices”<br />

dela, foi outra que muito ajudou a família e <strong>sem</strong>pre foi muito generosa com os irmãos e sobrinhos.<br />

321


uma casa cheia, onde havia <strong>sem</strong>pre uma cama para alguém que chegasse. Nunca fecha-<br />

va a porta aos da família e apoiou todos. Então, eu acho que os dois foram um exemplo<br />

de vida para todos nós, principalmente para mim como filha. Aprendi muito com eles a<br />

receber as pessoas em minha casa, a dividir o que possuo e a ser honesta. E isso veio<br />

deles. Eu lembro que era pequena e via a mãe costurando para ajudar em casa, comprar<br />

uma mistura, com uma enorme dificuldade. Eu lembro mesmo ela costurando, e eu ali<br />

no pé daquela máquina, vendo-a ouvir a música da dupla Cascatinha e Inhana... Isso é<br />

um detalhe que eu não vou esquecer. Ela <strong>sem</strong>pre foi costureira. Mas o ganho era muito<br />

pouco; é o caso das gravatinhas de uniforme de escola que a gente vendia nas feiras.<br />

Muitas vezes, o ganho dessa costura só dava pra comprar banana e, por conta disso, não<br />

foram poucas as vezes que nossa refeição era arroz, feijão e banana. Mas nunca faltava<br />

o essencial, e ela nunca desanimava. Com esse dinheirinho curto assim, ela construiu a<br />

casa, ajudava os irmãos que vinham pedir um trocado. Ela <strong>sem</strong>pre tinha o trocadinho<br />

dela de reserva.<br />

Antônio – Retomemos, então, a chegada de vocês na Vila Ema. Como isso influiu<br />

na sua vida, na escola, por exemplo.<br />

Irene – Na Vila Ema, eu frequentei uma escolinha particular. A escola do prof. José,<br />

onde frequentei até o quarto ano primário. De lá, eu sai para uma escola do Parque São<br />

Lucas, uma escola da rede estadual. Naquela escola particular, a mãe é que tinha de pa-<br />

gar. Uma escola muito boa, por sinal. Da minha convivência na escola, não consigo<br />

mais lembrar o nome dos coleguinhas e das coleguinhas. Mas lembro que, numa festa<br />

de São João, a mãe fez um vestido pra mim, a coisa mais linda. Um vestido rodado e eu<br />

era a pessoa mais satisfeita do mundo. Já para o ensaio da quadrilha, eu fui com esse<br />

vestido novo. E a mãe já estava me prevenindo que eu não fosse com aquele vestido<br />

novo para não sujar ou mesmo rasgar. Eu insisti em ir com o tal vestido. No ensaio,<br />

numa dessas brincadeiras, uma menina veio com força, puxou meu vestido e terminou<br />

rasgando. Mas rasgou mesmo (rindo muito). E a preocupação minha de chegar com o<br />

vestido rasgado em casa. Cheguei e contei a ela o acontecido: tinha rasgado o meu ves-<br />

tido. “Eu não te falei, danada, que era para tu não ir com esse vestido pro ensaio”? (rin-<br />

do muito). Aí ela remendou e deu um jeitinho de ficar novo.<br />

322


Antônio – E a Vila Ema daquele tempo, como era? Era asfaltada? Como vocês<br />

brincavam?<br />

Irene – Naquele tempo, a Vila Ema era só barro. Asfalto não existia. As sandálias fica-<br />

vam cheias de um quilo de barro. As nossas brincadeiras na época foram como eu ex-<br />

pliquei. Eu brincava muito de brincadeira de menino: quadrado, bolinha e, à noite, nós<br />

brincávamos de esconde-esconde. Em frente à nossa casa, tinha um terreno baldio e<br />

tinha mato e ali era onde a gente se escondia. Ali a gente ficava até às nove, dez horas,<br />

não tinha violência naquela época e era uma brincadeira saudável. Ou, então, nós brin-<br />

cávamos de bicicleta. Lembro que um meu vizinho tinha uma bicicleta, e essa bicicleta<br />

era para todos. Cada um dava uma voltinha, e era assim... A minha infância foi muito<br />

boa, minha juventude, minhas colegas eram todas muito sadias e não tinha esse proble-<br />

ma de drogas. Nós fazíamos as tarefas juntas, cada dia era em casa de uma amiga e a-<br />

prendíamos juntos. Minhas colegas eram Lisa, Regina, Nena, Vera, Ezenilda... Essas aí<br />

me acompanharam toda a juventude. Da adolescência, eu quase não aproveitei porque<br />

eu comecei a namorar o Zé; tinha muita vontade de ir aos bailinhos... Quer dizer, tive<br />

namoradinhos antes do Zé (rindo). Um deles foi meu vizinho Rui. Apaixonei-me por<br />

ele aos nove anos... Aliás, o Zé sabe dessa história! (rindo muito). Não é novidade, não<br />

é segredo. Aos nove anos, achava que estava apaixonada e escrevi uma carta bem gran-<br />

de, que era pra entregar pra ele, não é? Namoro antigamente era assim. Peguei essa carta<br />

e pus aqui, no elástico da calcinha. De noite, fui ao banheiro fazer xixi, e o que aconte-<br />

ceu? A carta caiu. E quem a encontrou? Dona Flor! (Flora) (rindo muito). De manhã,<br />

logo que acordei, ela me perguntou: “Irene, tu tás de namorado?” E eu: “Não, mãe!” E<br />

ela: “E essa carta aqui, <strong>sem</strong>-vergonha? Com dez anos, tu ainda mijando na cama e já<br />

falando em namorado?” E foi aquela briga. Esse namorado tinha uns quatro anos mais<br />

que eu, que tinha nove ou dez anos. Eu queria pedir permissão ao pai para nos deixar<br />

namorar em casa. Eu e o pai íamos assistir filmes na casa do tio Anísio e voltávamos as<br />

dez, onze horas. No caminho de volta, aquela ideia vinha e palpitava no meu coração,<br />

porque, afinal, eu queria era conversar com o meu namorado, né? Um dia, eu criei cora-<br />

gem e falei. Ele, então, muito educado, aquele paizão, disse assim pra mim: “Minha<br />

filha, está muito cedo; você é muito nova, você é uma criança, não pense em namoro!<br />

Não faça isso, filha, você está começando agora e vai estragar o seu estudo!” Pois é,<br />

esse foi o meu primeiro namorado. Essa paixão durou um bocado de tempo, até que o<br />

323


Zé apareceu. Mas eu ainda tive umas paquerinhas no colégio, alguns caras queriam bei-<br />

jar, né? Dava uns beijos escondidos, <strong>sem</strong> dona Flora saber (rindo). Foi muito bom. A<br />

mãe não abria a guarda. Eu tinha vontade de conversar com ela sobre essas coisas de<br />

namoro, de sexo, mas ela não queria. Era um assunto que a gente não podia falar. Ter-<br />

minava conversando isso com as colegas, que, por sua vez, tinham os mesmos proble-<br />

mas. Muitas vezes, eu queria me abrir com minha mãe, mas ela me negava esse espaço.<br />

Ela se fechava mesmo. Muitas vezes, eu conversava com o pai. Essas coisas de primei-<br />

ras regras foram normais, porque no colégio já se ensinava isso, e nós, meninas sabía-<br />

mos e ficávamos até mesmo numa certa ansiedade esperando a menstruação. De tal mo-<br />

do que, quando veio, eu fiquei muito feliz porque sabia que já tinha ficado mocinha.<br />

Falei pra mãe e ela disse que eu, a partir daquele momento, me cuidasse. Tivesse cuida-<br />

do, porque todos os meses aquilo viria, e eu tinha que me manter limpa, não sujar a rou-<br />

pa... Isso aí ela me passou. Essa coisa da menstruação foi uma coisa tão boa e desejada<br />

que, quando ela vinha, eu me acalmava e ficava bem relaxada, uma tranquilidade. Eu<br />

gostava muito. Não era como muitas mulheres que tinham problemas de cólicas, de do-<br />

res de cabeça, nada! O segundo dia, então, pra mim era maravilhoso.<br />

William – Você falava que brincava com os meninos, de soltar pipa, etc. Como era<br />

sua relação com Edson? Ele brincava com você nessa época?<br />

Irene - Ele não brincava comigo porque ele era muito de menor, enquanto a minha ida-<br />

de era de doze a treze anos. Ele era pequenininho nessa época. Eu era a “mãezona” dele<br />

e cuidava dele. Eu lembro que uma vez ele me xingou, e eu então peguei a sandália e<br />

agi como mãe. A minha amiga Nena estava vendo isso do portão e comentou que eu<br />

agia igual à mãe do Edson. Eu, então, disse o motivo: ele não tinha o direito de me xin-<br />

gar, ainda mais naquele tempo. Nós fomos criados assim, a mãe não permitia o uso de<br />

palavrão, especialmente de um irmão com outro. E só passei a tomar liberdade com o<br />

Edson depois dele casado. Antes, a gente não costumava usar maiores palavrões... Antes<br />

disso, era o maior respeito. Então, com o Edson era assim. Era mesmo a mãezona dele:<br />

dava banho, ia buscar na escola, ia buscar na rua, e ele não participava de minha brinca-<br />

deira não. Eu o enrolava nessa história de ensinar a soltar pipa. Era assim: minha mãe<br />

me mandava comprar cândida (água sanitária) numa vendinha próxima. No caminho, eu<br />

o encontrava empinando pipa. Eu, então, mandava-o ir comprar a cândida e ficava “to-<br />

mando conta da pipa dele”, veja só! Ele ficava furioso e louco da vida com isso.<br />

324


Antônio – Voltando aos namoricos da Vila Ema, vem a pergunta: como foi o na-<br />

moro com Jacaré?<br />

Irene – O namoro com Zé foi o seguinte. Como eu gostava de namorar, o primeiro que<br />

me aparecia na paquera (rindo) eu enfrentava. Ele morou com a gente e aí começou<br />

esse namorico bobo de criança, e terminei me apaixonando por ele. Apaixonei-me, e a<br />

gente começou a namorar, embora o pai e a mãe não aprovas<strong>sem</strong> o namoro. Eles alega-<br />

vam que ele era primo e, sobretudo, porque ele era preguiçoso e feio. Perguntavam co-<br />

mo era possível eu namorar um tipo como Jacaré, “um cara com aqueles ‘beições’!”<br />

Mas eu não me importei com aquilo, gostei dele e me apaixonei; foi um namoro meio<br />

atropelado, porque as tias e os tios não queriam mesmo. No entanto, sabe-se que, quanto<br />

mais proibido, aí é que a gente enfrenta. Só sei dizer que meu namoro com ele foi muito<br />

gostoso e foi bom mesmo. Um namoro saudável. A gente saía pra cinema, pra bailinhos,<br />

aprontava... O cinema era no Ipiranga, e o nome da sala era “Cine Anchieta”. Os filmes<br />

que a gente assistia eram Mazzaropi, esses filmes inocentes. Aliás, a gente nem assistia,<br />

ficava era namorando (rindo muito). A gente nem assistia... O tio Elias, também ia com<br />

a Dora e a gente para o cinema, aos domingos. Só pra namorar. A gente não ia pra esses<br />

ambientes de inferninho; era proibido. Nem nos bailes a gente podia entrar, porque éra-<br />

mos menores de idade. A gente ia pra esses bailinhos de área, de casa de família, fundo<br />

de garage. Eram bailes da moda da época. Por falar nisso, a modo da época era minis-<br />

saia, calça boca-de-sino, boné, tipo Roberto Carlos. Pulseira, tipo “jovem-guarda”: calça<br />

branca ou jeans com camisa branca. Essa era a roupa da época. Dinheiro no bolso, ne-<br />

nhum. Não tinha nada de dinheiro. Aquela dureza. Tanto é que tanto eu quanto o Zé<br />

nunca fomos a um restaurante ou uma lanchonete. Nós não tínhamos dinheiro. Nossos<br />

passeios eram assim... Bailinhos, visita à casa da família, à casa da tia Virgínia, na Vila<br />

Carioca... Aí eu adorava, saía com o meu namorado, era muito bom. A reação do lado<br />

da família do Zé foi um pouco diferente. A tia Madia foi muito sincera e, um dia, ela me<br />

perguntou se eu ia namorar mesmo com o Jacaré. Porque, em caso positivo, eu tinha<br />

que me preparar. Dizia ela que ele não era muito de trabalhar, gostava de bailes, adorava<br />

beber... Se eu fosse casar com ele, eu tinha de saber como era ele. Quanto ao tio José<br />

Guilherme, ele nunca foi assim de me falar alguma coisa, apenas disse pra mãe o se-<br />

guinte: “Segure sua cabrita que o meu bode está solto”! (rindo muito). Mas eu fiquei<br />

danada da vida com essa afirmação, porque de fato ele pegou pesado. Mas a tia Madia<br />

325


apenas me fez esse alerta. Mas a gente, quando quer, enfrenta. Porque foi exatamente<br />

como ela disse, mas a gente superou isso.<br />

William – E os primos, o que eles falavam?<br />

Irene – Os primos não eram contra, afinal a gente namorava todos juntos, aquela pane-<br />

linha, sabe? E aquilo era gostoso. Nos finais de <strong>sem</strong>ana, a gente reunia na casa da tia<br />

Madia todos os da nossa idade, e ficávamos ali na rua conversando horas e horas... Era<br />

muito bom, uma conversa gostosa, <strong>sem</strong> perigo de assalto, todos éramos amigos, e nin-<br />

guém tinha malícias. Essa foi a nossa juventude, e as coisas correram dessa forma.<br />

Antônio – Irene, parece que o casamento de vocês foi mais turbulento que o namo-<br />

ro, não?!<br />

Irene – Foi. O casamento foi o seguinte. Eu já tinha quinze anos e queria casar. Eu que-<br />

ria ter minha casa; sonhava em ter a minha casa. Esse era mesmo um sonho meu. Acon-<br />

teceu que, durante o carnaval, no mês de fevereiro, a minha menstruação atrasou. Só<br />

que eu e o Zé, a gente “brincava”, né? Sentar na perninha... Eu tomei conhecimento de<br />

que, por conta disso, podia-se engravidar. Não precisava ter relações sexuais completas.<br />

Eu encuquei com aquilo. Como aquele era um mês de vinte e oito dias e minha mens-<br />

truação era certinha e não atrasava, óbvio que nesse mês atípico ela atrasaria, como de<br />

fato atrasou uns três ou quatro dias. Eu me apavorei e pensei que estivesse grávida. Fi-<br />

quei desesperada. Como eu e o Zé nos comunicávamos através de bilhetes – o pombo-<br />

correio era o Erasmo (rindo), porque ele trabalhava perto de casa e trazia os bilhetes do<br />

Zé pra mim e levava minhas cartas -, eu fiz um bilhete pra Zé com o seguinte dizer:<br />

“Graças a Deus, Zé, desceu”! Eu peguei aquele bilhete e coloquei no bolso de uma blu-<br />

sinha vermelha que eu tinha. Dona Flora foi passar a roupa e (rindo muito) sentiu que<br />

aquele bolso tinha alguma coisa de diferente... (rindo muito). Isso foi no sábado, e eu<br />

estava namorando lá na casa do Zé, né? E ela encontrou aquele bilhete. Quando eu che-<br />

guei de volta, lá pelas cinco horas da tarde, encontrei-a braba, braba, transtornada... “I-<br />

rene, o que quer dizer isso aqui?”. Aí eu me apavorei e disse pra ela que aquilo não era<br />

nada... “Nada o que, sua <strong>sem</strong>-vergonha! Tu vai casar!” Ora, era exatamente isso o que<br />

eu queria, né? (ri muito), “Tu vai casar! Vamos juntar todo mundo pra marcar o dia do<br />

casamento!” A minha preocupação não era nem com minha mãe, e sim com o meu pai.<br />

Nossa! Eu senti demais. Eu sabia que ele iria sofrer. A mãe eu nem liguei muito, mas o<br />

326


pai... Ele trabalhava de hora extra aos sábados e vinha <strong>sem</strong>pre com aquele buquezinho<br />

de flor. Nesse dia, ele chegou lá pelas seis da tarde. A mãe já tinha ido lá à casa do tio<br />

José com a Madia, né? Fez aquele bafafá, dizendo pra eu voltar logo pra casa por conta<br />

da “<strong>sem</strong>-vergonhice”. Quando o pai chegou, eu estava sofrendo; como eu estava arre-<br />

pendida! Eu sabia que ele ia ter uma decepção muito grande. Enquanto isso, já sabiam a<br />

tia Enedina, a tia Virgínia e a Maria, que morava lá embaixo, no térreo... Ela era recém-<br />

casada. A mãe já havia contado, e ficou no ar aquele clima pesado. Quando o pai che-<br />

gou, ai meu Deus, aí eu sofri! Ele chegou com aquele botão de rosa e disse: “Olha, filha,<br />

o que eu trouxe pra você!” E me deu também os docinhos, porque ele <strong>sem</strong>pre me trazia<br />

chocolates. E eu sofrendo com a decepção que ele teria ao saber do acontecido. A mãe<br />

terminou contando pra ele; ele ficou triste. E me perguntou por que eu tinha feito isso...<br />

Disse que eu tinha estragado a minha vida. Foi então feita uma reunião com os tios. Era<br />

o Valdeci, o Elias, o tio Anísio – este pegava pesado, e me dá vontade de esganá-lo até<br />

hoje! – tia Virgínia, a Maria. A, então, puseram-me no meu quarto, fizeram uma mesa<br />

redonda pra eu contar o que fazia com o Zé. O que eu ia contar? Nunca que eu ia falar.<br />

E o Zé junto. Eu apenas falava que a gente tinha brincado e só falava isso. Então, se<br />

decidiu que o casamento seria realizado no dia 12 de junho, e nós estávamos mais ou<br />

menos nos meados de abril. O Zé não gostou muito porque o apertaram muito, né? Foi<br />

realmente uma situação bem desagradável. Marcou-se o casamento, e eu já tinha minhas<br />

pecinhas de enxoval dentro de uma caixa de papelão. Todos os dias, eu olhava aquele<br />

enxoval imaginando como eu iria arrumar meu quarto, usando aqueles “baby-dolls”,<br />

nossa! Era muito bom. O Zé foi pego de surpresa e ficou meio assim... Porque a gente<br />

estava só namorando e, de repente, ter de casar em quatro meses. Eu tive que parar de<br />

estudar e expliquei pro meu diretor, Luís. Muito amigo, conversou comigo que se eu<br />

fosse casar, tudo bem; mas que não parasse de estudar. Mas estava difícil, porque onde<br />

eu ia morar ficava muito longe desse colégio. Marcado o casamento no prazo de feve-<br />

reiro pra junho, no dia 12 de junho de 1971, uma decisão rápida e tudo muito corrido. E<br />

há uma coisa que me magoou mais ainda. É que, a partir daquele momento, minha mãe<br />

passou a me olhar de um modo diferente. Simplesmente ela me desprezou. Toda a mi-<br />

nha vida eu a ajudei a fazer as coisas em casa e nem precisava ela me mandar fazer as<br />

coisas. Ela, então, passou a dizer que, por conta de minha vagabundice, a partir daquele<br />

momento ela me pagaria para eu fazer os serviços da casa, a fim de comprar as minhas<br />

coisas do casamento. Aquilo pegou pesado, e eu engoli a seco. No dia do meu casamen-<br />

327


to, eu estava me arrumando no quarto, onde tinha um espelho bem grande. Eu estava<br />

toda arrumada e meu pai chegou, ficou atrás de mim, muito triste, e chorou. Eu tive que<br />

me arrumar sozinha, e minha mãe não me ajudou em nada. Mas eu estava tão feliz, por-<br />

que a coisa que eu mais queria era me casar. E eu me realizei mesmo, vendo a possibili-<br />

dade de arrumar a minha casa com o maior prazer, o quarto da noiva... Aquela cena do<br />

pai me deixou triste, porque eu sabia que ele estava sofrendo. Ele não queria aquilo para<br />

mim, e sim que eu estudasse, fosse alguém na vida – conforme ele mesmo dizia – <strong>sem</strong>-<br />

pre. Que ele me dava todas as oportunidades e eu iria jogar fora e estragar a minha vida.<br />

Outra coisa que me marcou foi quando eu fui tomar o banho para a minha lua-de-mel.<br />

Meu pai ficava só me olhando e não dizia nada. Naquele momento, antes do meu banho,<br />

ele apenas chegou, me deu um abraço e saiu. Eu fui para a lua-de-mel, e era a pé. Eu e o<br />

noivo na frente, tia Edite, Maria – e eu não lembro se tia Madia estava junto -, só sei que<br />

tinha mais uma mulher. Nós íamos a pé, e elas atrás. Íamos para a nossa casa, onde ha-<br />

veria a lua-de-mel. Não tinha carro, não tinha táxi, era a pé. Não tínhamos botijão de<br />

gás. A casa ficava ali perto da casa da tia Madia, na Rua Gomes Pinto. A gente pagava<br />

aluguel por uma casa que era apenas quarto e cozinha. Era pintada de azul, os móveis<br />

azuis, o rádio vermelho... Os primos deram presentes: liquidificador - dirigindo-se a<br />

William: teu pai nos deu um relógio, faqueiro, etc. Presentes eu ganhei muito. E eu ar-<br />

rumava meu quarto do modo que ficava realizada. Não sei se o Zé estava realizado; eu<br />

sei que ele não estava realizado porque muitos dos sonhos dele foram podados ali. Eu,<br />

como mulher, estava realizando os meus sonhos. Com relação à nossa lua-de-mel, vesti<br />

a camisola do dia; toda satisfeita, esvaziamos a cama dos presentes – olha o sacrifício! –<br />

, aí eu fui pro quarto me arrumar e o noivo ficou na cozinha. Afinal, nossa casa era<br />

quarto e cozinha. Eu, então, falei: “Pode vir” (rindo muito!). Um detalhe: eu casei vir-<br />

gem! Eu era virgem! Num desses dias, eu cheguei junto da Madia e disse que tinha ca-<br />

sado virgem, eu e o Jacaré, a gente só brincava. Não tinha acontecido nada. Ela ainda<br />

ficava olhando pra mim meio desconfiada. A minha noite de mel foi muito boa, o Zé foi<br />

muito calmo. Nossa, nesse ponto o Zé foi dez. Eu é que era afoita. E ele dizia: “Calma!”<br />

A gente levou um mês para ter um relacionamento completo. Nisso aí ele foi um mari-<br />

dão mesmo. Foi companheiro, amoroso, namorado. Então valeu a pena. 69<br />

69 Nessa altura da entrevista, ela faz uma longa pausa e pergunta: “e agora”?...<br />

328


Antônio – Nós estamos muito atentos ao seu relato, Irene. Acho que ele fecha um<br />

ciclo importante em sua vida, onde ficam evidentes as fortíssimas amarras da es-<br />

trutura familiar, a falta de adequação aos padrões do tempo numa cidade como<br />

São Paulo e no que concerne aos padrões afetivos e de relacionamento amoroso dos<br />

jovens. E, de igual modo, a precariedade da vida de vocês, na maior e mais rica<br />

cidade do Brasil, <strong>sem</strong> um táxi para conduzir vocês ao ninho de uma noite de lua-<br />

de-mel, uma cozinha onde nem sequer havia um botijão de gás... Acho que esse seu<br />

relato fecha um ciclo importante na sua história. Um período eloquente para se<br />

resgatar a memória das vivências de uma geração da família e as condições em que<br />

elas foram gestadas. E a coragem e raça de vocês dois.<br />

Irene – Eu concordo, tio. Naquela época, a moça que não mais fosse virgem era taxada<br />

de “<strong>sem</strong>-vergonha”, alguém que “não valia mais nada”. Essas eram as expressões de<br />

que se fazia uso na época. Ela “não valia mais nada”, porque ela “se entregou” a um<br />

homem. Esse, pelo menos, era o conceito de minha mãe. Um detalhe, apenas voltando<br />

ao início do nosso namoro. O Zé, no início, era muito “<strong>sem</strong>-vergonhinha”. Às vezes, eu<br />

dormia na casa dele. Numa mesma cama, dormíamos eu e a Ezenilda. E, muitas vezes,<br />

de noite, ele vinha namorar, ele vinha “bulir” (rindo muito). Era o bode de Zé Gui-<br />

lherme com a cabrita que estava ali. Quanto à Ezenilda, não sei se viu; mas o fato é que<br />

ele vinha com aquela mãozinha boba, me pegando... E eu deixando... Mas era bom e,<br />

olha, não me arrependo de nada, foi uma época muito gostosa.<br />

William – Voltando a retomar o novo ciclo do pós-casamento, como é que foi esse<br />

período para vocês? Um período tão sonhado por você!<br />

Irene – Nesse período, o Zé trabalhava, eu não; parei de estudar. O que passou a acon-<br />

tecer? Eu dormia até tarde, não tinha o que fazer; com a casa arrumada, aquilo foi fican-<br />

do meio vazio pra mim. Dormir até nove, dez horas... Almoçar, às vezes nem almoçar,<br />

porque ficava sozinha... Detalhe: no início, não tinha nem um botijão de gás e eu ia al-<br />

moçar lá na casa da tia Madia. Nem faca tinha. A tia Madia me deu uma faquinha que<br />

eu tenho até hoje. Uma faquinha pequena, de sobremesa. Essa era a faca da casa. Eu<br />

afiava essa faquinha no cimento da entrada e fazia as compras fiadas na venda do seu<br />

Ariston. Fazia uma compra e pagava no outro mês. O Zé chegava do serviço às sete ou<br />

329


sete e meia. Eu, como dona de casa – nessa época, já tínhamos comprado o botijão –,<br />

preparava aquela jantinha caprichada... Não tínhamos televisão, só o rádio. A gente jan-<br />

tava e ficava na mesa batendo um papo e ia dormir lá pelas oito e meia, nove horas da<br />

noite. E foram assim os primeiros meses de nossa vida de casados. A partir daí, fomos<br />

crescendo. Ele saiu da firma onde trabalhava para outra onde ganhava mais. Nessa épo-<br />

ca, a Maria morava com os meus pais, e eu morava de aluguel nessa casa junto da tia<br />

Madia. Resolvemos trocar as casas, porque a tia Madia podia tomar conta dos filhos da<br />

Maria, e eu já passava a não mais pagar aluguel, não é? Então, já começava a sobrar o<br />

dinheiro que era do aluguel. O Zé ainda trabalhou uns dois ou três anos e ele resolveu<br />

montar uma oficina de costura, e foi aí quando eu comecei a trabalhar. Nessa altura, eu<br />

já tinha engravidado. Depois do casamento, passei dois meses <strong>sem</strong> engravidar porque<br />

nós fomos seguir aquela tabelinha; eu coloquei errado o ciclo menstrual ali e terminei<br />

engravidando. Também terminei por perder a gravidez de seis meses, de uma menina<br />

que iria ser chamada de Tânia. Eu já tinha o enxovalzinho encomendado. Eu perdi, e<br />

nessa época a mãe teve que viajar para Pernambuco porque o vô Zé Jorge ficou grave-<br />

mente doente. Ela viajou quando eu tinha abortado; quando ela voltou, eu já estava grá-<br />

vida de novo. Ela ficou muito braba. “Sem-vergonha, grávida de novo? Tu não tem jei-<br />

to, acabaste de perder uma menina e já está buchuda de novo?” Aquilo me deixou meio<br />

apagada, meio <strong>sem</strong> jeito, porque eu não tinha muita experiência. O que acontecia é que<br />

minha mãe tinha uma visão de gravidez diferente. Eu não sei se ela tinha vergonha...<br />

Parece que ela tinha vergonha porque coincidia com o ditado popular que diz assim:<br />

“trepou, tá grávida!” Passava essa impressão. Para se ter uma ideia, aquelas toalhinhas<br />

higiênicas ela escondia, ela não gostava de mostrar. Quando a gente tinha relação e la-<br />

vava aquela toalha, colocando-a no varal, todo mundo sabia que a gente tinha tido uma<br />

relação sexual. E ela via aquilo ali, e eu observava que ela ficava danada da vida. Como<br />

mãe, eu tinha perdido uma menina e, logo em seguida, eu engravidar? Eu entendo um<br />

pouco a preocupação dela. Mas depois veio a Patrícia, muito branquinha, bonitinha, e<br />

era a segunda filha. A mãe já viu com outros olhos, era a neta. Logo que nasceu, era<br />

bem pretinha, parecia uma bonequinha. E eu ficava admirando assim a mãe, o modo<br />

como ela me olhava. Algo assim que talvez passasse pela cabeça dela: “será que ela vai<br />

mesmo saber criar?” Eu percebia esse detalhe, assim... Quando eu estava amamentando,<br />

ela me olhava, <strong>sem</strong> comentar nada, ela não era de falar. Mas eu tinha comigo que ela<br />

estava se perguntando se eu saberia criar a minha filha. E com certeza era isso. Mas eu<br />

330


já tinha consciência de que eu queria ser mãe, como eu disse; eu desejava casar, portan-<br />

to, minimamente eu já estava preparada, não e? Nessa época, eu tinha dezoito anos e, de<br />

casada, eu já tinha um ano e meio, porque tinha que contar com o aborto de seis meses<br />

que eu tive. Mas a gravidez foi uma experiência muito boa, muito linda, eu sentia a Pa-<br />

trícia bulir na barriga... Quando nasceu, que coisa gostosa sentir o filho da gente nos<br />

braços. O parto foi normal, ela nasceu às nove horas da noite. O Fábio é que nasceu na<br />

parte da tarde. Quando ela nasceu, meu pai é quem mais ficava encantado e dizia: ela é<br />

linda, é uma bonequinha... Eu acho que ele lembrava os tempos em que eu fui bebê, não<br />

era? Deve ter voltado aquela memória dele. Eu amamentei pouco tempo, uns quatro<br />

meses só. E isso mesmo por falta de experiência. Porque a mãe dizia que o meu leite era<br />

fraco e, mesmo eu tendo muito leite, o peito vazando leite, ela fazia com que eu substi-<br />

tuísse o seio por mamadeira. E Patrícia se alimentava bem. Quando o Fábio nasceu, a<br />

mãe continuava dizendo que o meu leite não amamentava. E eu me via obrigada a tirar<br />

o leite do peito e jogar fora, de tanto leite que eu tinha... E muitas vezes eu tirava do<br />

meu seio o leite e dava para as crianças de algumas mães a quem faltava leite. Leva para<br />

elas, dizia eu.<br />

Antônio – Irene, posteriormente a gente pode voltar a essa experiência sua da ma-<br />

ternidade – que você julga como muito positiva em sua vida. Retomando um pouco<br />

a vida do casal, Jacaré deixou a fábrica e veio trabalhar na confecção. Você come-<br />

çou também a trabalhar nessa época?<br />

Irene – Isso, ele saiu da fábrica, onde pediu as contas, e nós montamos a oficina de con-<br />

fecção. Eu não tinha experiência de trabalhar com ele nesse ramo. Mas nós começamos<br />

a trabalhar de sociedade com a mãe, posto que ela já tivesse muita experiência. Com-<br />

pramos uma máquina, começamos, e eu aprendi a trabalhar no “overloac”. Ficamos<br />

juntos com a mãe durante mais de um ano e pouco, e a partir daí passamos a trabalhar<br />

por conta, só nós dois mesmos. Minha mãe começava no serviço às seis horas da manhã<br />

e queria que a gente estivesse lá no batente. Batia na laje para nós acordarmos, não fazia<br />

horário de pausa para almoço. Você sabe que trabalhar era com ela mesma. Não dava<br />

mesmo, porque ela ficava bastante aborrecida. A gente já tinha condições de colocar<br />

alguns funcionários. A mãe continuou sozinha na confecção dela. Nessa confecção, nós<br />

passamos um bocado de anos, não me lembro bem quantos. Lembro apenas que, quando<br />

vendemos as nossas máquinas foi com o intuito de ir para Paranaguá, em 1986. Por essa<br />

331


época, nós já tínhamos bastante máquinas. Nós trabalhávamos lá embaixo, no porão. E<br />

minha mãe em cima, na casa dela. Nesse momento, nós já tínhamos nosso dinheiro,<br />

tínhamos estabilizado a nossa vida própria, o que era muito bom, não é? Nós éramos<br />

quem mandava em nosso dinheiro. Com a mãe era diferente.<br />

William – Um detalhe, eu era bem pequeno e lembro que por essa época havia<br />

muitas festas. Numa dessas, no Natal, apareceu um Papai Noel. Pergunto se ele era<br />

você mesma. Porque, naquele momento, ficou em nós a maior dúvida: será mesmo<br />

Papai Noel?<br />

Irene – Ah, é, tem razão! Festeiros, todos nós fomos, não é, William? Foi muito bom.<br />

Eu <strong>sem</strong>pre gostei de ter muita gente em minha casa. Aprendi isso com o pai e a mãe.<br />

Isso aí eu vou levar pro resto da minha vida e passo para os meus filhos. O Felipe, meu<br />

neto, <strong>sem</strong>pre comenta para a gente fazer festa... É sinal de que está havendo continuida-<br />

de, não é? Naquela festa que você comentou, surgiu a ideia de nos vestir de Papai Noel,<br />

compramos uns presentinhos bem baratinhos... Tinha muitas crianças, todos vocês eram<br />

muito crianças! E o Zé foi o Papai Noel.<br />

William – Vamos falar do Fábio. Em que ano ele veio e como foi essa sua segunda<br />

gravidez?<br />

Irene – O Fábio foi programado. A Patrícia tinha seis anos, e ele veio em 1976. A gente<br />

não queria que houvesse uma diferença de idade muito alongada. O Fábio veio de oito<br />

meses, e eu, mesmo grávida continuei trabalhando. Quando senti as dores do parto, as<br />

contrações, eu estava na máquina. Fui levada para a maternidade e lá fiquei por mais de<br />

uma hora. O médico disse que não era a hora e me mandou para casa. Voltei e retomei o<br />

trabalho. No outro dia, o Fábio nasceu. Nossa, muito bonitinho; foi aquela alegria, por-<br />

que se tratava de um menino, e nós já tínhamos a Patrícia. Entã, completou, ne? Ele<br />

nasceu com problemas de respiração, foi posto na incubadora. Sendo de oito meses,<br />

ainda não tinha completinho o pulmão dele, né? Com três dias, ele foi para casa. Aí foi<br />

bom demais. Eu queria porque queria colocar ele no meu colo. Nós já tínhamos aquele<br />

fusca verde, e ele veio nele, no fusca; o pai é quem foi buscá-lo na maternidade. Depois<br />

de seis meses, apareceu nele aquele problema nos olhos, ficou de olho trocado (rindo<br />

muito). Fábio foi dez como bebê, era lindo, gordinho. Você lembra, não é, tio? Uma<br />

vez, eu o deixei no berço e fui trabalhar. Na volta, encontrei Fábio todo cagado; tinha<br />

332


feito cocô e se lambuzou todo de merda, na boca, no rosto, na cortina, no berço, olha, só<br />

vendo... E você estava com a gente e viu esse espetáculo todo. De repente, o senhor<br />

disse pra mim que aquilo era bom e importante para a saúde psíquica dele. E eu fiquei<br />

me perguntando: como é que é bom tanta merda espalhada? (rindo muito). Era merda<br />

pra todo lado, e não sei que cagada danada de grande foi aquela, pois ele espalhou mer-<br />

da pra todo lado. Portanto, acho que esse momento de nossa vida foi muito bom porque<br />

nós tínhamos autonomia e éramos donos de nossas vidas. Viajava quando queríamos,<br />

Foi uma época em que viajamos para o Nordeste num sacrifício, viajando de fuscão, de<br />

Brasília, de ônibus, de todo jeito. Mas foi muito bom.<br />

William – Por que escolheram morar em Paranaguá?<br />

Irene – Porque o pai e a mãe foram morar lá em 1979; creio eu e eu fiquei aqui com a<br />

turma. E eu sentia muita falta deles. Acho que foi em 1982, porque, quando o senhor<br />

defendeu sua tese de doutorado na USP, eles estavam aqui em São Paulo, e lembra que<br />

fizemos uma festinha, com bolo? O pai quis ir pra lá porque ele tinha a família dele em<br />

Paranaguá, e eu resolvi também ir com o Zé tentar a vida lá. O Zé teve a oportunidade<br />

do Branco oferecer a padaria dele para nós. Mas, justamente naquela <strong>sem</strong>ana que ele<br />

nos ofereceu a padaria, nós havíamos comprado um sobradinho na Vila Formosa, bem<br />

perto da casa do Erasmo. Era pra mim a coisa mais linda. Só tive tempo de ir lá, lavá-lo<br />

e limpá-lo. Quando a gente já estava para nos mudar, o Branco ligou oferecendo a pada-<br />

ria. Foi uma coisa que aconteceu assim de modo muito rápido. Nós vendemos em pouco<br />

tempo as máquinas, o nosso sobradinho para dar o dinheiro de entrada no negócio da<br />

padaria. Foi assim que nós decidimos mudar, porque gostaria de morar com os meus<br />

pais, que tinham ido pra lá. Eu sentia muita falta deles e do Edson, que já tinha ido em-<br />

bora com eles. E deu certo, não é? O Edson ficou como sócio, foi muito bom, a gente<br />

vendia muito pão naquela época. Ganhamos muito dinheiro e até fomos a um congresso<br />

de padeiros em Natal, naquela época. Ficamos dez dias num hotel, em Natal, chamado<br />

Hotel Jacumã, comendo carne seca, dentro de uma piscina, água batendo na bunda...<br />

Isso era vida de marajá, né? Mas a nossa vida em Paranaguá não foi fácil. Não vou dizer<br />

que fui cem por cento feliz lá, não! Não fui. Porque a vida de panificador é só trabalho:<br />

levantar cedo, trabalhar o dia inteiro... Mas eu sou muito grata porque com a padaria nós<br />

formamos o Fábio, a Patrícia... Não foi uma luta em vão, né? Temos hoje um prédio<br />

nosso, que é fruto desse nosso trabalho, aprendi a conhecer muitas pessoas, sou muito<br />

333


enquista na cidade de Paranaguá, onde temos muitos contatos. O serviço é dificultoso,<br />

mas tem também suas vantagens. E agora nós estamos pensando parar com a padaria; se<br />

Deus quiser, vamos parar; vender, para com isso vivermos mais com a nossa família.<br />

Para poder passear, estar juntos na comemoração da festa de um parente. E a gente não<br />

pode curtir isso porque tem que trabalhar. Agora mesmo, a gente vindo para cá, a Patrí-<br />

cia teve que ficar no nosso lugar; e, num feriado como este, era para ela estar descan-<br />

sando. Mas a padaria prende e exige que toda a família trabalhe. Queira ou não queira,<br />

todo mundo se envolve. Até o Felipe também está ajudando. Hoje, trouxe para o Willi-<br />

am o pão “bundinha” da nossa padaria. O meu sonho em termos de uma padaria era ter<br />

algo assim igual às de São Paulo. As de lá são mais simples, e as daqui são lindas. Sem-<br />

pre pensei montar uma padaria bem bonita, moderna; não deu, e estou encerrando mi-<br />

nha carreira por aqui.<br />

Antônio – Irene, com que idade Patrícia e Fábio chegaram a Paranaguá?<br />

Irene – A Patrícia tinha algo assim como treze anos e o Fábio tinha três anos a menos.<br />

Eles sofreram com a mudança, porque lá é bem diferente no modo de vida; as pessoas<br />

falam bem diferente e, até que eles formas<strong>sem</strong> outras amizades, eles sofreram. Eles ti-<br />

nham muita saudade daqui. Patrícia teve um namoro aqui quase igual ao meu. Como<br />

você vê, a história se repete, não é? (rindo). Ela conheceu o Elói, que é um capixaba, de<br />

uma família muito grande e numerosa, que mora em Paranaguá e em Matinhos há muito<br />

tempo. Ela começou a namorar o Elói. Ele se apresentava como um executivo, e aquilo<br />

chamou a atenção dela. Ela começou o namoro com ele aos quinze anos e logo engravi-<br />

dou; e aí eu repeti a mesma história que fizeram comigo. Eu disse pra ela que ela tinha<br />

de casar. Incrível, né? Eu não sei se agi bem ou mal, porque o que hoje eu tenho são os<br />

meus netos: o Tiago e o Felipe. Eu acho que eu interrompi a vida dela, pois ela ia muito<br />

bem no estudo. E é interessante que nós soubemos também através de um bilhete que<br />

ela escreveu e caiu na casa da tia Madia. Num dia de domingo, a gente estava lá almo-<br />

çando, e eu peguei esse papel e não imaginava nada do que fosse e, nele, ela dizia que<br />

estava grávida. Ela dizia pra mim que estava com dores nos rins e eu nunca que imagi-<br />

nava que Patrícia estivesse grávida. Eu, com minha experiência, não imaginava isso.<br />

Porque ela <strong>sem</strong>pre foi magrinha e me dizia que estava com dores nas costas, não sabia<br />

se era nos rins. Eu, então, disse pra ela que devíamos passar no médico. Fomos ao mé-<br />

dico, e ela entrou sozinha, e aí o médico falou pra ela que ela estava grávida. Mas eu<br />

334


notei que, assim que o médico olhou pra mim, olhou pra ela também. Eu fiquei cismada<br />

e perguntei: “Está tudo bem, Patrícia”? Ela disse que sim e que o médico tinha pedido<br />

uns exames. Nesse negócio de exames foi quando nós fomos almoçar na tia, e ela levou<br />

esse bilhete, dizendo pro Elói que estava grávida. E a mãe estava ao meu lado na hora<br />

que eu li o bilhete. Eu, então, disse pra ela: “É mãe, a história se repetiu”. Ela disse:<br />

“Repetiu o quê?” Eu contei, então, que a Patrícia estava grávida. Ah, ela mudou... Tan-<br />

to que, a partir daí ela desprezou a Patrícia e ficou muito revoltada. Eu cheguei mesmo a<br />

discutir, dizendo-lhe que ela não podia agir daquela forma, desprezando a Patrícia. Eu<br />

falei pra ela que a Patrícia era minha filha.<br />

Antônio – Se eu entendo bem, você reagiu igual a Flora fez com você, obrigando<br />

Patrícia a casar, apenas nisso; mas não desenvolveu um sentimento que ela teve<br />

com relação a você, de desprezo, não?<br />

Irene – Exatamente. Quando eu soube, logo perguntei para a Patrícia se ela amava o<br />

Elói e queria casar. Ela disse que sim, então eu confirmei: “Você vai casar”. Caso ela<br />

dissesse que não, eu não iria forçá-la a casar com ele. Isso foi um choque muito grande<br />

e desagradável. O Zé, igualmente a mim, ficou triste. Quando nós decidimos que ela iria<br />

casar, eu disse pra ela que ela mesma iria em São Paulo informar a turma que estava<br />

grávida e iria casar; porque eu mesma não iria de jeito nenhum. Você aproveita e com-<br />

pra seu enxoval, disse eu. O cara não tinha nada, nem emprego, nada. Só tinha mentira.<br />

Por causa disso, a gente não tinha com ele uma relação muito boa, e fiquei decepciona-<br />

da com ela por esse lado. Eu digo que o simples fato de ela ter engravidado, isso não<br />

representava o fim do mundo. Mas o problema era com quem ela iria se casar. Eu já<br />

tinha visto que o cara era um mentiroso. Uma vez, em nossa casa, eu o fiz sentar no sofá<br />

e passei pra ele como era a nossa família. Que não era de mentira, ao contrário dele, que<br />

era mentiroso. Ele engravidou Patrícia e não tinha como assumir a responsabilidade<br />

dele, porque nem emprego tinha. Eu disse pra ele nessa ocasião que o cara que mente<br />

também mata e rouba, porque ele não tem vergonha nem tem caráter. Ele dizia que não,<br />

não era assim... Aquele cara tem uma lábia que só vendo! Eu disse pro Zé que a Patrícia<br />

ia casar, mas que iria se dar mal. Eu e o Zé viemos aqui pra São Paulo e compramos<br />

todo o enxoval dela; naquela época, a gente estava em condições razoáveis, né? Com-<br />

pramos os móveis, a despeito do Elói dizer que tinha uma casa de seis peças [cômodos],<br />

toda montada e que morava na Avenida Costeira. Um dia, de tarde, eu decidi ir ver onde<br />

335


era essa casa. Meu Deus, lá chegando vi que a casa era um barraco... Foi nessa oportu-<br />

nidade que eu o chamei de mentiroso. Eu perguntei, então, para a Patrícia se a casa em<br />

que ela iria morar era naquele barraco. Se aquilo ali eram as seis peças que o Elói dizia<br />

ser. Eu disse que aquilo era um barraco. Ela, então, alegava que ele jurava que iria sair<br />

um dinheiro do porto... Eu voltei a insistir que aquela conversa era fiada, porque de fato<br />

ele não tinha era nada. Fizemos o casamento, tudo direitinho. A casa dela ficou boniti-<br />

nha... Uma casinha que ele construiu através de um empréstimo feito ao pai e à mãe. A<br />

casa ficou bonitinha. Como ele é muito grande, a cama que eu comprei não acomodava<br />

ele direito, e os pés ficavam fora da cama, <strong>sem</strong> caber direito (rindo). Eu falei: “Patrícia,<br />

acho que teu marido vai ficar com os pés fora da cama” (rindo). Sei que casaram. A<br />

nossa família de São Paulo todinha foi lá pro casamento... Foi uma festa boa, não foi,<br />

William? Mas eu sentia que Patrícia não estava feliz. Veio o Tiago, um menino muito<br />

saudável até hoje. Um menino lindo. Tanto eu quanto o Zé nos apegamos muito a ele,<br />

porque ser avô é bom demais... O amor da gente com os netos é diferente; não sei se é<br />

porque a gente tem mais tempo, mas acho diferente. Foi passando o tempo. O Elói nun-<br />

ca trabalhou. Depois dessa casa em que eles moraram, eles foram morar lá no barraqui-<br />

nho da mãe, lá onde ela tinha a lojinha, até porque ali eles não pagavam aluguel. E a<br />

situação era a mesma, ele não arranjava nada, não mudava em nada, e eu e o Zé ajudan-<br />

do em tudo, roupa, comida, escola... Ela ficou casada com ele quatorze anos, até que um<br />

dia ela se decidiu separar. Eu nunca disse pra ela largar dele, apesar de eu desejar muito<br />

isso. Mas achava que seria ela quem devia decidir, como de fato aconteceu. O que acon-<br />

tece é que a gente chegava lá e não a via feliz, vivia deprimida. Ora, ela era uma menina<br />

que estudava e teve que parar de estudar. Depois do primeiro filho, engravida de novo,<br />

como foi o caso do Felipe. Com dois filhos para criar, <strong>sem</strong> viajar, <strong>sem</strong> passear... Depen-<br />

dia do que eu e o Zé levás<strong>sem</strong>os pra ela: alimentação, roupa... Só tinha um salário que a<br />

mãe dava pra ela pela ajuda que ela dava na lojinha. Diante disso, ela decidiu separar do<br />

Elói. Quando ela me confidenciou que iria separar dele, eu perguntei se ela estava segu-<br />

ra do que estava fazendo. Ela disse que sim e ponto final. Perguntou se poderia morar<br />

comigo. Nessa época, a gente estava construindo um primeiro andar em cima da padari-<br />

a, para onde fomos, saindo de uma casinha que a gente tinha nos fundos. Fábio já mora-<br />

va ali, antes da gente terminar. Ciente de que era isso o que ela queria, nós fomos buscar<br />

a mudança dela. Foi uma decisão em que ela acertou na hora exata. Logo que ela sepa-<br />

rou, voltou a estudar, terminou a faculdade dela. Quando ela nos disse de sua decisão de<br />

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estudar, nós apoiamos, dizendo que achávamos que naqueles quatorze anos passados ela<br />

não tinha aproveitado nada. Fora os dois filhos, que são uma bênção e que fazem a ale-<br />

gria de nossa vida de avós, o resto foi regresso. Ela se formou, hoje trabalha e ajuda o<br />

Fábio. O sonho da vida dela, que foi realizado, também foi o nosso sonho. Hoje, eu vejo<br />

Patrícia de outra forma: feliz, aberta... A Patrícia não sorria mais, ela vivia trancada,<br />

deprimida, ela não sabia mais sorrir. Era aquele sorriso preso, que não saía pra fora.<br />

Hoje, ela tem outra visão e está muito ajudando o Fábio. Quanto ao neto mais velho,<br />

filho da Patrícia, o Tiago, este nós tivemos uns probleminhas com ele. Quando a Patrí-<br />

cia se separou, e até hoje, ele acha que ela é a culpada disso, dizendo que ela não segu-<br />

rou o casamento, que mandou o pai dele ir embora etc. Como é que ele se vingava? Ele<br />

queria ter o tênis mais caro, as roupas todas de marca... E é obvio que a gente não podia<br />

fazer todos os caprichos dele. Era mesmo impossível. Aí o Zé achou por bem mandá-lo<br />

morar com o pai dele. Ele ficou com o pai, e a Patrícia com o Felipe, lá em casa. Mas,<br />

hoje, ele já está melhorando o relacionamento com a mãe e a gente percebe que está<br />

havendo uma mudança. Mas, no início, ele ficou bem revoltado. Eu dei uma boa surra<br />

nele e não me arrependo (ri). Por quê? A gente fala com um diabinho desses... “Não dá,<br />

Tiago, não dá pra comprar... Você espere, pois você já tem um tênis novo”... E ele insis-<br />

tindo. E você sabe qual era uma coisa que me irritava? É que eu trabalho na padaria e,<br />

como sou eu que cozinho, eu fazia tudo correndo: macarrão, arroz, feijão, essas coisas.<br />

Ele chegava do colégio – e já pra me atingir -, levantava a tampa da panela e dizia: “Só<br />

tem essa merda pra comer? Vó, você só sabe fazer isso? Vó, você está manchando a<br />

minha roupa quando a lava no tanque!”... Eu respondi que ele parasse com aquilo e,<br />

caso não quisesse comer, ele ia ficar com fome. Um dia desses, num bate-boca comigo,<br />

ele falou mais alto e mais veemente do que falava no normal; falou que eu não sabia<br />

fazer nada, só sabia fazer aquela merda de comida... Aí eu me irritei. Peguei um cabo de<br />

vassoura e dei um pé de carreira atrás dele e terminamos correndo pelo corredor que<br />

leva para a produção da padaria. Aí eu bati com gosto. Dei pelo que ele fazia com a<br />

mãe, pelas palavras com que ele se referia a minhas comidas... Hoje, ele me obedece.<br />

Olha, valeu a pena. Mas dei com vontade. Até que o meu padeiro pediu para que eu<br />

parasse. Afinal, tudo tem limites. A gente explica porque não pode comprar isso e aqui-<br />

lo , no entanto, ele partia prá esse lado? Tome cacetadas! Eu acho que foi educativo,<br />

porque hoje eu brinco com ele, bato na perna dele... Ele é muito lindo. Eu pergunto: “E<br />

aí, cara, tá tudo bem? O que é que você tem pra me contar” E ele: “Pô, vó, o que é que<br />

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você quer saber?”, ele fala assim... Eu digo: “Conta alguma coisa...” Ele diz que não<br />

está a fim de falar nada. “Tá bom”, digo eu! Hoje, ele chega na padaria, ele vai se abrin-<br />

do, vai conversando. Eu sei que hoje posso lidar com ele e ele aprendeu a me obedecer.<br />

William – E a relação com a sua família, lá em Paranaguá, seu pai, sua mãe? Eu<br />

lembro que Seu Zeca gostava de ir de bicicleta até a padaria e aí ficava fazendo o<br />

jogo do bicho. Batia um papo, especialmente com o tio Severino quando ele esteve<br />

lá. Gostaria que você comentasse um pouco das relações com o Duda, a Naninha, o<br />

Branco...<br />

Irene – O pai e a mãe foram as minhas pérolas. É até difícil falar deles, porque eles fo-<br />

ram tudo de bom. Eles representam experiência, amor, responsabilidade, educação, ho-<br />

nestidade, esforço, exemplo e trabalho. Eles foram tudo isso. O pai <strong>sem</strong>pre foi o ami-<br />

gão. Nas horas difíceis, ele <strong>sem</strong>pre tinha aquela palavra amiga. Sabia falar, sabia cha-<br />

mar a atenção, não se alterava, não gritava nem falava palavrão. E, olhando assim, ele<br />

foi um exemplo de homem para toda a família. Do meu ponto de vista, eu acho que ele<br />

foi o pai de todos os que estão aqui. É o que eu creio e vejo do meu lado. Meu pai apoi-<br />

ou e aconchegou todos em casa. O que ele tinha dividia e nunca foi mesquinho, escon-<br />

dendo algo ou mesmo proibindo minha mãe de agir desse ou daquele modo, não! Ao<br />

contrário, ele trazia do bom e do melhor que ele podia. Eu lembro mesmo dessa passa-<br />

gem do pai pela padaria, como você acenou. Ele falava pra mim no sentido de eu com-<br />

prar uma bicicleta, porque ele adorava fazer umas caminhadas comigo. Ele era meu<br />

companheiro. E até lembrava que eu estava meio gordinha e que necessitava dar umas<br />

pedaladas por aí para emagrecer... (rindo). Eu terminei comprando essa bicicleta. Mas,<br />

tio, ele inventou de ir até o sítio do Branco, que era muito longe. E eu estava <strong>sem</strong> trei-<br />

namento e experiência de pedalar... Lá pelas tantas, eu disse pra ele que não estava a-<br />

guentando mais e que a bunda estava doendo muito (rindo muito). E ele respondia que<br />

não era nada e que logo chegaríamos. Esse “chegar logo” dele equivalia a uma hora de<br />

pedalada. Ele tinha dessas travessuras. Com relação ao jogo, ele chegava dizendo:<br />

“Vamos ganhar hoje na Loteria! Risca aí teu joguinho que eu vou pagar”. Eu dizia pra<br />

ele entrar com o pé direito na lotérica, e ele logo rebatia dizendo que ia entrar com os<br />

dois pés. Ia entrar num pulo só (rindo muito). Outra coisa que ele gostava de fazer era<br />

comer pão escondido, porque ele era diabético. Então, de vez em quando ele sumia... E<br />

chegava em casa limpando a boca. Mas deixa que tinha farofa até o canto da boca (ri).<br />

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E a gente dizia: “Pai, o que é que você está comendo?” E a boca dele toda melada de<br />

farofa... Ele costumava ir lá para minha casa, pegava a laranja e dividia em quatro par-<br />

tes, igual o jeito que tio Severino também fazia. Aí ele sujava pia, sujava chão, se sujava<br />

todo e saia batendo as mãos. Comia laranja e banana, tudo isso escondido. No almoço –<br />

e ele gostava muito de almoçar lá em casa –, quando comia uma macarronada, ele suja-<br />

va o nariz, a boca e o queixo. Ficava feliz da vida quando a gente chamava a atenção<br />

dele que a cara estava toda cheia de molho. Ele pegava um garfo e fazia dele guardana-<br />

po, esfregando de um canto a outro da boca. Nessas horas minha mãe falava que ele era<br />

<strong>sem</strong> jeito e parecia nunca ter visto comida na vida. Quanto a dona Flora, esta foi uma<br />

guerreira. A mãe chegava assim de mansinho e me perguntava se eu queria dinheiro.<br />

Muitas vezes eu estava precisando, mas respondia que não precisava. E ela insistia para<br />

que eu pegasse trezentos, quinhentos reais. Eu <strong>sem</strong>pre resistia, dizendo que tudo estava<br />

certinho comigo. Mas ela não se contentava. Ela ganhava o dinheirinho dela com as<br />

costuras. Uma bainha de vestido custava apenas um real. Mas você chegava lá no final<br />

do dia e tinha trinta ou quarenta reparos terminados. Ela também fazia venda de roupas<br />

novas, além de consertos. Certa vez, eu presenciei uma cena lá na lojinha dela. Chegou<br />

uma freguesa com uma sacola e perguntou se ela reformaria aquele conjunto de peças.<br />

Ela abriu a sacola, olhou as roupas, tirou as medidas e despachou a cliente. Quando essa<br />

freguesa saiu, ela pegou a sacola com as roupas e disse assim: “Essa gota serena”... E<br />

zupt... Jogou a sacola lá no canto da parede. Apesar de eu ter dito que não entendia a-<br />

quela reação dela depois de ter atendido tão bem a freguesa, ela disse, “Aquela puta de<br />

seiscentos diabos me traz uma sacola de roupa dessa qualidade; deixa essa porcaria aí...”<br />

Alguns dias depois, eu voltei lá e perguntei pelas roupas da freguesa. Ele me respondeu<br />

que já tinha feito o serviço, e ela já tinha ido embora. Era assim que ela agia para em-<br />

bolsar o dinheiro dela. Mas a mãe era mãe mesmo. Nunca faltava nada. Lembro muito<br />

bem que aqui em São Paulo, às vezes, o tio Anísio não tinha uma moeda para ir traba-<br />

lhar. Ele e todos os demais estavam duros. Nessas horas, ela dizia: “Espera aí um pouco<br />

que eu vou ver o que tenho”. Mas ela <strong>sem</strong>pre tinha as economias dela. Ela dizia que o<br />

dinheiro dela era abençoado. E como rendia! Quando o pai faleceu, depois de ter dado<br />

entrada no INSS, ela foi receber os meses da pensão dele e, junto, o décimo terceiro. Ela<br />

queria que com esse dinheiro eu desse entrada para comprar um carro pra mim, porque<br />

naquele momento nós estávamos <strong>sem</strong> carro. Eu me recusei a aceitar, dizendo que ela é<br />

que tinha direito a ter aquele dinheiro, e eu não queria de modo algum. Ela insistiu para<br />

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eu ficar ao menos com trezentos reais, o que também eu não aceitei. Eu sentia nessas<br />

iniciativas dela muito amor, dizendo <strong>sem</strong>pre que de modo algum aquilo iria fazer falta a<br />

ela... Ela ajudava todo mundo. Quando o pai ficou doente, tudo ficou difícil para nós.<br />

Veio um câncer e judiou muito dele. Tanto eu quanto o Edson tínhamos que correr a<br />

qualquer hora para Curitiba, atendendo chamados dele. Ele dizia que nós éramos os<br />

anjos da guarda dele. Eu falei mesmo pra ele que, se eu pudesse dar uma parte do meu<br />

corpo para ele melhorar, eu ia dividir. Mas, é o que Deus quer, não é?! Nós nada pode-<br />

mos fazer. Mas o pai foi exemplo de alegria. Lembro aquelas viagens que a gente fazia<br />

pro Nordeste, esses momentos eram maravilhosos. Aquelas brincadeiras dele, com uma<br />

batata escondida, e quando se afirmava qualquer coisa ele mostrava aquela batata, di-<br />

zendo: “Na batata!”, ou “Que pena!” quando se tratava de uma reclamação qualquer...<br />

Na viagem, chegando em Minas, ele comprava aquelas barras de queijo, afinal era aque-<br />

la fartura. A faca dele cortar o pão e colocar aquelas lascas de queijo eram os quatro<br />

dedos da mão dele... (rindo). Fazia aqueles sanduíches e depois entregava um por um a<br />

todos nós. Mas ele fazia aquilo com tanto humor que a gente comia com mais prazer<br />

ainda aquele pão com queijo preparado por ele. A gente levava frango com farinha –<br />

que piquenique, aquele! –, e ele, muito “delicadamente”, metia mão no saco de farofa<br />

e... “zupt”, levava à boca aquele bom bocado de frango cheiroso. Óbvio que a mãe pe-<br />

gava no pé dele e, às vezes, pegava pesado, porque ele era meio extravagante. Lembro<br />

que uma vez ele resolveu pintar a casa e comprou um garrafão de vinho São Roque, de<br />

cinco litros. Ah, aqueles garrafões de vinho dele deram em muita confusão com a mãe.<br />

Tomou uns tantos goles e, na hora de misturar a tinta para aplicar na parede, ficou aque-<br />

la coisa horrorosa. Minha mãe ficou braba, dizendo que a parede tinha ficado igual à cor<br />

de burro quando foge (rindo muito). Aí ela dizia: “Tu já tás, não é, Zeca, tu já tás en-<br />

chendo o rabo de vinho, não é?!” E ele respondia: “Nada, velha, é só um aperitivo”! É<br />

claro que os dois brigavam às vezes, mas se amavam muito. No final, depois da morte<br />

dele, é que me dei conta como a mãe amava o pai. Ela sentiu demais. Quando ela prepa-<br />

rava a comida, colocava o prato dele na mesa e conversava com ele. Eu não sabia, mas<br />

as vizinhas dela é que me contaram isso. Chamava o pai para a mesa, dizendo que o<br />

almoço ou o jantar já estava pronto. Dizia frequentemente que gostaria de ter “ido” com<br />

o Zeca. Foi aí que a gente viu que aquele amor era verdadeiro, especialmente depois de<br />

tanta luta que vivenciaram. Foi um casamento que durou cinquenta e dois anos. Foi um<br />

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casamento muito lindo. Olhando o exemplo deles é que nós estamos seguindo no nosso<br />

casamento. Na tolerância que aprendemos com os dois.<br />

Antônio – Durante esses anos de Paranaguá, vocês eram visitados pelos parentes<br />

de São Paulo, não? Sua vó Verônica também passou uma temporada lá, com Flora,<br />

não? Eu soube que foram tempos difíceis. É verdade?<br />

Irene – Foi difícil, mas foi gostoso. Foi muito bom, porque a vó era aquela bonequinha<br />

cheirosa, né? Com a vó a gente curtiu muito. Logo no início da ida dela, ela era normal,<br />

não tinha ainda aquele problema do esquecimento dela. Ela fazia a comida, era quem<br />

preparava a comida dos padeiros, fazia a marmita... Ela era ativa mesmo. Ela tinha mui-<br />

to dó do nosso trabalho, reclamando que nós trabalhávamos demais. Sempre nos esti-<br />

mulava a economizar, a guardar para não faltar mais adiante. Tinha uma nítida preocu-<br />

pação de ver a gente com um “pé de meia” para comprar a nossa casinha... Eram esses<br />

os conselhos que ela nos dava. A vó ficou boa de saúde com a gente durante muitos<br />

anos. Depois que ela ficou “caduquinha”, aí ficou mais gostoso porque a gente brincava<br />

com ela. Eu brincava muito com ela. Ela podia estar muito malhumorada com as pesso-<br />

as, mas logo que eu chegava ela dava aquele sorriso. Eu dizia: “Como vai, Dona Catôca<br />

[era assim que o Severino a chamava!], tudo bem?” Ela dizia: “Tudo bem, minha fi-<br />

lha! Deus te abençoe, minha filha!” Muitas vezes minha mãe chegava e falava com ela<br />

de maneira seca. E ela ficava com a cara meio emburrada. Aí eu entrava na conversa e a<br />

entretinha para tomar o leitinho dela, com a mão dela mesma. Ela segurava a canequi-<br />

nha, dava aquela mexidinha no copo e tomava direitinho. Ficava toda satisfeita. Todo<br />

mundo gostava da vó, é interessante. A vó foi muito especial, ela também foi uma guer-<br />

reira. Com a minha vó eu aprendi a levantar cedo, me organizar na minha casa, organi-<br />

zar o horário, incluindo a comida. Se a gente não organiza bem o horário da casa, o dia<br />

fica todo atropelado. E a Dona “Catôca” era um exemplo dessa organização no dia-a-dia<br />

da casa dela. Cedo ela levantava, já ia cuidar dos bichos, pegava o feijão e colocava de<br />

molho... Hoje, em minha casa, eu sigo o exemplo dela. As minhas coisas rendem, a co-<br />

mida sai rápido - como a vó fazia. Ela passou muito do exemplo de vida para a gente.<br />

Eu posso dizer hoje que a vó foi aquela mulher perfeita, na preocupação dela em educar<br />

os filhos, em não jogar nada fora, em ser uma boa administradora.<br />

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Antônio – Lá em Paranaguá, estava também a família de Zeca, a mãe, Dona Joana,<br />

a irmã, Naninha... Você lembra essas pessoas?<br />

Irene – E como lembro! Vó Joana era a “vozona” que acolhia todos os netos junto dela.<br />

Como eu e meus primos éramos todos da mesma faixa de idade – acho que nós éramos<br />

oito –, ela juntava nós todos, dividia a comida com todos, bem certinha... Era muito<br />

carinhosa, o tipo da vó que todo mundo deseja ter. Sem falar do amor que os filhos ti-<br />

nham por ela. Quando ela morreu, lembro que foi mesmo um luto sério, uma tristeza<br />

profunda. A vó Joana me propiciou uma alegria. Quando eu fui a Pernambuco, numa<br />

dessas viagens eu tinha muita vontade de visitar e conhecer o lugar onde ela viveu, na<br />

Paraíba, criando os filhos todos. E eu sabia que a vida dela tinha sido de muitas priva-<br />

ções. O lugar lá se chamava Mocó. Tinha o Mocó de Baixo, do Meio e de Cima. Ela<br />

morava no do Meio. Eu implorava ao pai para me levar lá nesse lugar, mas o pai nunca<br />

me deu essa chance. Certa vez, lá em Pernambuco, eu pedi a tio Valdeci, que me levou<br />

lá no Mocó do Meio, onde ela viveu. Fui com Rejane e tia Virgínia. Propus ao tio pagar<br />

a gasolina, contanto que ele me proporcionasse essa alegria. O tio Valdeci estranhou<br />

esse interesse meu em visitar o Mocó: “Que diabo tu vais fazer lá nesses lugares?” Eu<br />

disse: “Tem muita importância, sim. São as minhas raízes, a história do lugar onde vi-<br />

veu a minha vó”. Eu fui e realizei o meu sonho. Lá, é só morro e pedra. Quando eu che-<br />

guei lá, encontrei uns parentes, uns primos meus, que moram no Mocó de Baixo. Fui lá<br />

onde era a casa da vó e trouxe um pedaço do tijolo do fogão da vó, que eu ainda hoje<br />

tenho lá em casa. Um tijolo de barro, grosso, meio tosco. Vi onde era o lugar do fogão-<br />

zinho dela. Nessa viagem, eu tive o sentimento de eu mesma ter vivido aquela época, de<br />

tanto ouvir o pai falar. De maneira que eu realizei esse sonho. Vi a árvore onde ela cos-<br />

turava. Era um umbuzeiro muito antigo, meio torto. Os vizinhos de lá me informaram<br />

que era debaixo daquele umbuzeiro que ela costurava. Tirei fotos do lugar e ainda hoje<br />

tenho essas fotos. Tirei a foto da porteira da casa deles [dos filhos], que ainda hoje exis-<br />

tem. A casinha não existe mais, já derrubaram tudo. Vi uma prima minha que ainda não<br />

conhecia. Soube que ela faleceu no ano passado. Eu vivi a época do meu pai quando ele<br />

e os irmãos eram criança, passando aquelas dificuldades que mal tinham o que comer.<br />

Meu pai contava que a grande alegria deles era comer um pão doce, nos sábados. Eu<br />

falava pra ele que aquilo me doía, vendo hoje tantos pães fabricados por nós, a mesma<br />

comida que lhes faltava na mesa. O pai deles faleceu muito cedo, e toda a família pas-<br />

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sou fome, mal comendo feijão e farinha, <strong>sem</strong> mistura, <strong>sem</strong> nada. Voltando a Paranaguá,<br />

lembro que nossa convivência com os primos era muito gostosa. Eu <strong>sem</strong>pre fui muito<br />

festeira, e os Natais foram <strong>sem</strong>pre lá na nossa casa. Era um momento em que nos reuní-<br />

amos todos. Vizinhos, primos; era uma festança de mais de trinta pessoas. Na casa da<br />

tia Naninha, tinha também muita festa: final de ano, almoços, aniversários etc. Naquela<br />

época, todos eram vivos, a família era muito grande. Tio Duda já era uma festa. Ele<br />

chegava e logo a gente começava a tirar um sarro dele. O Zé falava besteira comigo, e<br />

ele me defendia: “Tenha vergonha, não fale isso com a bichinha!” (rindo muito). Olha,<br />

tio, foi uma época de muita festa boa e que deixou muitas recordações. Tenho muitas<br />

fotografias, que o senhor depois vai ver e ficará certo de quanta gente se reunia lá em<br />

casa. Nesses momentos, a mãe e o pai se realizavam. A tia Naninha <strong>sem</strong>pre participou<br />

muito e me ajudava a preparar a mesa. Ela chegava <strong>sem</strong>pre às quatro ou cinco horas da<br />

tarde para ajudar na decoração. Igualmente, compareciam o Branco, o pai dele, tio João<br />

Calado, as meninas do tio Duda... Cada um levava um pratinho e compunha aquela me-<br />

sa completa de comida. Era muito amor um pelo outro, e eu lutei muito por isso, porque<br />

eles não tinham o hábito de se juntar. Geralmente, curtiam mais a praia. Eu sou muito<br />

família, gosto do abraço, do beijo, do olho no olho. Isso tudo aconchega a gente, não é?<br />

Antônio – E a sua relação com seu irmão Edson em Paranaguá?<br />

Irene – Não foi fácil não. Edson é uma pessoa difícil. Ele é muito mais materialista; eu<br />

não sou. Eu não me apego a carro, a casa; o Edson, não. Então, a maioria de nossas dis-<br />

cussões tem-se originado nisso. Quando do falecimento do meu pai e, logo depois, da<br />

minha mãe, eu sugeri a ele que ficasse com a casa da mãe e a lojinha, onde existia um<br />

terreno bem grande. Em troca, ficaria encerrada a sociedade nossa na padaria, que pas-<br />

saria a me pertencer. Eu levei desvantagem, indo para a ponta da caneta. Eu propus ele<br />

ter um tempo para pensar e, caso concordasse, estaria tudo certo. Ele pensou e depois<br />

falou pra mim que eu ia perder. Mas eu disse que isso não era importante para mim.<br />

Não estava preocupada nem com ganhos nem com perdas. O que eu queria mesmo eram<br />

a separação e o fim da sociedade. Era uma coisa difícil, porém, com o acontecido da<br />

morte do pai e da mãe, eu achei que este era o momento de resolver isso e foi resolvido<br />

dessa maneira. Ele também é um lutador. E a esposa, Bernadete, essa, sim, é uma guer-<br />

reira, e eu bato palmas para ela. Adoro-a. É uma mulher disposta, enfrenta aquela pada-<br />

ria... Ela é mais corajosa do que eu. Eu <strong>sem</strong>pre falo para ela que ela é uma guerreira.<br />

343


Têm uma casinha na praia; ele me disse que agora vai me dar uma cópia da chave para<br />

eu ir à hora em que queira ir. Eu e ela nos damos muito bem. Nunca tivemos nenhum<br />

problema. Ela é uma guerreira. A filha deles, a Priscila, minha sobrinha, também teve<br />

uns probleminhas. Aprontou uma, que só vendo. Arranjou um pilantrinha, adolescente<br />

também. O Edson não gostou dele, e foi uma briga feia. Ela saiu de casa e foi morar<br />

num barraco, bem longe... Logo ela, que tinha uma vida de princesa e jogou tudo fora.<br />

Mas, também, como a madrinha, ela tinha o sonho dela de casar e brigou por isso. Eles<br />

montaram uma primeira padaria, que não deu certo. Montaram a segunda, e está indo<br />

bem. Mas, hoje, o Edson está mais maneiro com o genro. Teve que se adaptar; se ela<br />

quis assim, vai-se fazer o quê? Tem mais é que quebrar a cara e aprender. Eu muitas<br />

vezes falei pra ele que não podia desprezar a Bernadete; ela é sua filha, dizia eu. É uma<br />

fase dela e deverá passar, sei lá.<br />

William – Irene, eu gostaria que você falasse do Severino; do tempo que ele passou<br />

lá com vocês, trabalhando, morando com você, nos almoços, naquela cozinha atrás<br />

da padaria...<br />

Irene – Falar do Juquinha... (fica em silêncio e os olhos marejam). O Juquinha repre-<br />

sentava assim o amor que tenho por todos vocês, meus tios. Ele tinha um carinho espe-<br />

cial por mim (chora). Desde que eu era criança, ele me pôs esse apelido com que ele me<br />

chamava: “Expressinho Satélite” (rindo). Chamava assim porque eu não parava em<br />

momento algum. Eu era elétrica. Numa hora, eu estava na casa do tio Anísio, dali a<br />

pouco me procuravam e eu já estava na casa da tia Madia, daqui a pouco eu já estava<br />

empinando pipa... E essas coisas, essa atividade, ele estava vendo, não era? Eu, como<br />

moleca que era, nem percebia que fazia isso. Por isso, ele me batizou de “Expressinho<br />

Satélite”, porque não parava. Olha, o Juca nunca me respondeu nada, nunca foi agressi-<br />

vo, nunca alterou o tom de voz comigo; toda a vida foi carinhoso. E eu, toda a vida,<br />

amei demais a ele. Coitado, ele <strong>sem</strong>pre foi um homem muito sofrido e eu ajudava muito<br />

a ele e ajudava por amor. O que eu tinha eu dividia com ele. Naquela situação que ele<br />

viveu com a Tida (Erotides), muitas vezes ele chegava lá em casa com aquela marmiti-<br />

nha seca, apenas com arroz e feijão. Aquilo me cortava o coração. Como na minha casa<br />

<strong>sem</strong>pre sobrava da janta para o almoço, graças a Deus nunca me faltou, eu enchia a<br />

marmita dele. Nessas frias e imensas avenidas de São Paulo, na hora do almoço, ele<br />

parava e dizia que ia comer a comida de “Expressinho Satélite”. Eu perguntava a ele: “E<br />

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a comida tava boa, Juca”, ao que ele respondia com a maior alegria: “Tava boa de-<br />

mais!”. Na hora do lanche, eu caprichava e fazia com o maior carinho. Fritava um ovo<br />

com um ou dois pães, e ele se fartava. Eu tinha muita pena do tio, porque ele não conse-<br />

guia vencer e subir na vida. Logo ele, que era um homem trabalhador, honesto... Em<br />

matéria de honestidade, então, eu acho que ninguém consegue ultrapassá-lo. Eu me<br />

lembro dele fuçando naqueles carros velhos, sujos de graxa, e ele com aquela paciência.<br />

Com aqueles dedos bem grossos que ele tinha, catava aqueles parafuzinhos bem peque-<br />

nos, com os óculos levantados na cabeça, já que ele não enxergava de perto com os ócu-<br />

los... Eu me impressionava como ele tinha paciência, limpando aquelas peças... E ele<br />

trabalhava com tanto prazer naqueles carros velhos de nossa padaria. Quando ele arru-<br />

mava – e normalmente dava certo, porque ele era um bom mecânico –, nossa! Ele ficava<br />

numa alegria imensa. Ele dizia: “Graças a Deus deu certo!”. “Liga a chave aí, Expressi-<br />

nho”... Há uma passagem que aconteceu com a gente, lá em Paranaguá, e que eu nunca<br />

esqueço. Nós fomos fazer umas cobranças numa daquelas Kombi velhas, a diesel. Era<br />

uma Kombi velha improvisada que tinha lá (rindo muito). E nós fomos fazer a cobran-<br />

ça. A danada da Kombi velha danou-se prá fumaçar. E ele então dizia: “Expressinho,<br />

ela vai pegar fogo!” (rindo muito). E não é que quase pegou fogo mesmo! No desespe-<br />

ro, eu disse pra ele encostar-se à ciclovia. Ele parou, mas não interrompeu o espaço para<br />

os ciclistas passarem; havia espaço suficiente. Nós estávamos naquele sufoco de correr<br />

e pegar água, abrindo a tampa de trás e jogando água no motor quando acontece de pas-<br />

sar uma senhora e reclamou, chamando a nossa atenção que aquilo ali era uma ciclovia.<br />

Eu, praticamente, explodindo de raiva falei prá ela: “Vai tomar na tua ciclovia!” (rindo<br />

muito). O Juca quase morreu de rir e dizia: “Expressinho, como é que pode? Você<br />

mandou a mulher tomar na ciclovia dela!...” Que coisa, a gente numa agonia daquela, e<br />

a mulher atrás de encher o nosso saco. Olha, nunca mais o Juca esqueceu aquilo. Con-<br />

seguimos botar água na Kombi, que esfriou, e nós então partimos. Juca tinha essas his-<br />

tórias cheias de graças. De manhã, ele me pedia para fazer o lanche dele. O lanche era<br />

uns três pães picotadinhos, que ele colocava num prato e enchia de leite até as bordas do<br />

prato. O leite era bem quente. Daqui a pouco, ele dizia, “Danou-se, Expressinho! Deu<br />

um calor de repente!” (rindo muito). E a madeira para a padaria? Ele saía naquelas<br />

Kombi velhas, que só de uma acelerada saía um chumaço de fumaça. Ele saía para bus-<br />

car lenha. Quando acontecia de ele encontrar uma lenha boa, ele voltava todo entusias-<br />

mado, dizendo a Jacaré: “Jucurés, achei filé mignon!” (rindo muito). Ele nos ajudou<br />

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muito lá em Paranaguá. Mas depois ele se cansou e ficou estressado, dizendo a toda<br />

hora: “Vou-me embora para São Paulo”. Como ele era nosso assalariado, nós juntamos<br />

uns troquinhos e ele se mandou. Ele morava com a mãe. E a mãe e o pai tiveram umas<br />

desavenças com ele. Porque ele era muito sistemático. Tinha hora de dormir: às oito<br />

horas da noite. Ora, essa era a hora que meu pai queria ver o Jornal Nacional. Como ele<br />

não conseguia dormir com o barulho, olha aí o tamanho da encrenca. Terminou voltan-<br />

do para São Paulo, e ficou lá um vazio imenso, porque ele era de grande ajuda para nós.<br />

Ele fazia falta, realmente. Pegava ventilador sujo da poeira danada que tem por lá e dei-<br />

xava aquilo zerinho. Limpava, limpava e tinha que mostrar o serviço dele: “Vem ver se<br />

tá bom! Olha, ficou brilhando!” O Juca foi, assim, um tio exemplar.<br />

William – Em poucas palavras, do começo ao fim, como foi o Givaldo?<br />

Irene – O Gi... Ele é o segundo Juca, ou o primeiro, sei lá... O Givaldo, quando ele saiu<br />

do Paraná e veio morar com a mãe e o pai, naquele tempo eu era bem moleca e ele mo-<br />

lecão, gostava de jogar futebol. A mãe me fazia ir ao campo das peladas para chamá-lo.<br />

Lá ia eu chamar o Givaldo ou pra almoçar ou outra qualquer coisa. Isso era no tempo<br />

em que moramos na Vila Carioca. Alguns anos depois, o Gi morou conosco na Vila<br />

Ema, num quartinho ali ao lado da escada. Nessa época, ele pegou uma caxumba e teve<br />

que ficar uns dias de repouso. Nessa época, ele já tinha começado a trabalhar e já ga-<br />

nhava alguns trocados. O Givaldo era batalhador e não conseguia ficar parado. Ajudava<br />

o pai e a mãe nuns troquinhos. O Givaldo foi, assim, um irmão para mim, e eu tinha um<br />

carinho especial por ele. O Gi era assim... No começo eu tinha medo dele. Ele pegava<br />

pesado. Não gostava de brincadeiras, não falava palavrões, ele era bem sério e a gente<br />

ficava assim com certo receio. A gente tinha que saber o que falar, e ai de nós se falás-<br />

<strong>sem</strong>os uma brincadeira. Ele não ria, ficava sério. E com isso travava, não é? Com esse aí<br />

não tem jeito, a gente dizia. Mas, o tempo foi passando e ele foi frequentando mais o<br />

nosso meio e ficou sendo “<strong>sem</strong>-vergonhinha”. Ele foi se soltando, e eu disse: “Givaldo,<br />

tu tás ficando tão safadinho, né?” A partir de certo tempo, a gente <strong>sem</strong>pre saía junto:<br />

restaurante, churrascaria, pizzaria, era uma festa. A Vila Ema, ali embaixo tornou-se o<br />

nosso passeio, não é, William? Certa vez, saímos eu e o Zé, a Vera e o Erasmo, o Gi-<br />

valdo e a Tereza. Fomos jantar fora e depois resolvemos parar num motel. Isso foi o<br />

meu segundo motel, porque o primeiro foi aqui embaixo, na Vila Ema. Nessa noite, nós<br />

procuramos um outro aqui na Sapopemba – o Jumbão. E Givaldo nunca tinha ido a um<br />

346


motel. O Erasmo era <strong>sem</strong>-vergonha e era ele quem nos levava para o “mau caminho”.<br />

Ele era o “pilantrão”, e a gente o “inocentão”. “Vamos ao motel”? A Tereza ficou toda<br />

envergonhada, o Gi também, afinal era a primeira vez. E entramos. No outro dia, na<br />

saída (rindo muito) – a cama era redonda –, aí o Givaldo, muito do <strong>sem</strong>-vergonha, con-<br />

tou que a Tereza deitou e pensou que ele ia ficar rodando do mesmo jeito que a cama<br />

(rindo muito). Aí o Givaldo disse pro Zé: “Jacaré, você acredita que a Tereza pensou<br />

que eu ia ficar com ela rodando na cama?!”. No mais, não vou falar exatamente como<br />

ele falou. E ela toda envergonhada... “Mas Tereza, você queria rodar no pino, era?” Isso<br />

foi uma alegria muito grande. O Gi era muito sério, depois é que ele ficou mais leve... O<br />

Givaldo era exatamente como o Seu Zeca e Dona Flora: “Está precisando de alguma<br />

coisa”? Ele nem precisava saber a resposta da gente. Simplesmente ele deixava o di-<br />

nheiro embaixo de uma toalhinha, às vezes um cheque... Quando ele chegava a casa,<br />

telefonava e perguntava a Jacaré se tinha encontrado alguma coisa em algum lugar. Ele<br />

ajudou toda a família, seguindo assim o exemplo de seu Zeca e de Dona Flora. E está<br />

aí... Ele foi embora e, ontem, nessa festa maravilhosa, todo mundo se juntou, mas falta-<br />

va ele, né? O Givaldo é assim um exemplo de caráter, de superação...<br />

Antônio – Irene, não ouvi você falar numa pessoa que nem sei se você lembra dele<br />

ou se o viu alguma vez: o vô Zé Jorge.<br />

Irene – Lembro. Recordo de uma vez que fomos ao Norte, por sinal, a primeira viagem<br />

em que os dois (mãe e pai) fizeram de volta, após o casamento “fugido”. Na saída, a<br />

mãe me fez mil recomendações. “Você não vai fazer bagunça na casa de seu avô porque<br />

ele é brabo”. Eu já fiquei com medo. “Você não passe na frente dele <strong>sem</strong> pedir licença,<br />

você não vai invadir a mesa...” Mas eram tantas recomendações que eu me disse: vou<br />

encontrar uma fera, não é? Chegando lá, que nada! O vô tão amoroso! Ele dizia: “Venha<br />

aqui”! E com aquele dedão do pé prendia e beliscava. A gente ficava presa nos dedos<br />

dele. Na primeira vez, eu ficava assim com medo; não é medo, é respeito. Eu me lembro<br />

dele sentado na cabeceira da mesa, toda arrumadinha, com os pratos que a vó colocava<br />

para o almoço, com muito xerém. Foi aí que me ambientei e aprendi a comer a comida<br />

do Norte. Parece que na outra geração eu já era nordestina. Afinal, eu nunca estranhei a<br />

comida da vó. Aquele xerém gostoso... Dava-me a impressão de que ele ficava bem<br />

satisfeito vendo aquela mesa posta e cheia de gente. Havia disciplina. Todos tinham que<br />

sentar à mesa juntos, nada de comer sozinho. E a conversa dele... Eu observava o respei-<br />

347


to que todos os filhos tinham pelo vô. Numa dessas viagens, eu lembro que meu pai<br />

levou um rádio de pilha para o vô, acho que foi na primeira vez. Nossa, ele ouvindo<br />

aquelas cantorias... Ninguém ousava fazer bagunça nessas horas. Eu gostava daquilo e<br />

fui me habituando a gostar dessas coisas do Nordeste, da comida principalmente. Na<br />

segunda viagem, eu já estava mocinha, e o vô me vestia naquelas roupas, não sei se era<br />

matulão... Era de couro. Gibão de couro. Eu ia pro mato com tio Valdeci pegar carneiro,<br />

com tio Elias, com tio Manoel – muito especial também! Êta cabrinha bom! O vô fica-<br />

va satisfeito em me ver vestida naquela roupa. Ele recomendava que eu levasse água no<br />

cantil e me ajeitava toda, recomendando cuidados ao montar no cavalo. Pena que eu<br />

tenha convivido com ele poucos dias dessas viagens. O tio sabe do carinho e do benque-<br />

rer que o vô Zé Jorge tinha com o meu pai, especialmente depois da reaproximação dele<br />

e da vó Verônica com a mãe e o pai. Logo o meu pai, que fez a primeira viagem mor-<br />

rendo de medo de levar um tiro do velho... Eu acho isso interessante. Eu vejo neles – no<br />

vô e na vó – um esteio para a família. Graças a eles a gente está aqui, hoje, dando se-<br />

quência a esse modo de viver. Eu passei isso para os meus filhos e meus netos. E acho<br />

que todos somos beneficiários dessa educação dos avós. O modo como eles dividiram<br />

tudo aquilo e como administraram todas as pendências. Eles acolheram em Santa Luzia<br />

todos os Guilhermes, todos os Torres, e é preciso que se diga que eram famílias enor-<br />

mes.<br />

Antônio e William – Irene, só para terminar, você gostaria de falar de alguma coi-<br />

sa que não lhe foi perguntado? Ou mesmo alguma consideração final para esta<br />

entrevista?<br />

Irene – Gostaria de falar um pouco de tio Manoel. Ele se foi e deixou muita saudade,<br />

principalmente alegria. A marca dele era a alegria. Não tinha tristeza com ele. Quando<br />

ele pegava aqueles carneiros para matar, a gente ficava ali ao lado dele aprendendo, e eu<br />

sentia que ele fazia aquilo com enorme prazer de nos servir e agradar. Tio Manoel dei-<br />

xou também muita saudade. Sem-vergonha! Numa daquelas viagens ao Norte, ele fica-<br />

va me vigiando se eu tinha feito “rampa” (expressão dele) com o Zé... Olhava minha<br />

roupa e dizia: “Tu fosse no mato fazer rampa, não é?” (rindo muito). Então, tio Manoel<br />

é mesmo muito especial, como todos vocês, meus tios, são muito importantes na minha<br />

vida. Adoro vocês de paixão e agradeço a Deus por vocês existirem. Vocês são exem-<br />

plos mesmo de família, de luta. A gente venceu graças ao exemplo de vocês. Quanto às<br />

348


consideração finais, eu gostaria de lhe agradecer por esse seu trabalho lindo que está<br />

fazendo. Meus netos e meus bisnetos vão ler esse livro e ver essas imagens. O que acon-<br />

tece é que nós, muitas vezes, nessa loucura da vida, não contamos nossa história para<br />

eles. E é uma história bonita. O Felipe, meu neto mais novo, de vez em quando pergun-<br />

ta, e ele se interessa. Mas a gente nem pensa em contar nossa história para eles. E esse<br />

trabalho registra toda a nossa vida, toda a nossa árvore familiar, cujos frutos estão aí. E<br />

espero que todos aqueles que vão ler o livro e ver as imagens no futuro, que serão nos-<br />

sos netos e bisnetos, deem continuidade a essa união de família e que isso não acabe,<br />

tendo a família como exemplo. Gostaria de agradecer e dizer meu muito obrigada. Ali-<br />

ás, voltando um pouquinho no ritmo da entrevista, gostaria de lembrar a Edilnete. Eu<br />

tenho muitas saudades da Edil (emociona-se). A Edil, tio Antônio, representa para mim<br />

a festa de Natal. E sabe por que o Natal? Eu a vejo, hoje ainda, linda do jeito que ela<br />

era. Com a Edil, eu aprendi a me vestir. Eu observava como ela se vestia e achava lindo,<br />

especialmente com aqueles detalhes dela; simples, <strong>sem</strong> luxo, mas onde tudo combinava.<br />

Uma saia com um brinco e com uma pulseira. Ela era uma mulher muito bonita. E o<br />

Natal, todo Natal, pode ter certeza, eu lembro a Edil. Dela, eu lembro a festa, a organi-<br />

zação, o capricho que ela tinha em embalar aqueles presentes. Na primeira vez que nós<br />

fomos lá pelo fim do ano, o Fábio e a Patrícia eram pequenos. Eu lembro uma decora-<br />

ção que vocês fizeram com uma cesta no meio da sala, composta de três peneiras sobre-<br />

postas. É tão marcante que nem Patrícia nem o Fábio esquecem. Então, a Edil é tão es-<br />

pecial quanto o Natal. Onde a Edil estiver, Jesus esteja com ela, porque ela nos deixou a<br />

imagem da alegria. Ela nos deixou o bom gosto na decoração de pratos, o sabor da<br />

combinação entre o doce e o salgado, que eu não sabia, e até mesmo o jeito dela de se-<br />

gurar os copos. A Edil não é realmente especial? Uma mulher fina, <strong>sem</strong> ser afetada, e<br />

muito natural. E eu observava tudo isso na Edil e aprendi muito com ela. Posso dizer<br />

que ela faz parte de nossa vida, da nossa família. Ela foi tudo isso para mim. Que no<br />

futuro todos tenham nas mãos esse livro, e com muito carinho, para que o leiam e pas-<br />

<strong>sem</strong> adiante essa memória familiar. Não adquiram apenas para colocar na prateleira. Aí,<br />

afinal, está a nossa vida. Para encerrar com chave de ouro, deixe-me falar um pouqui-<br />

nho de você também. Olha tio, o seu exemplo para mim é diferente. O seu exemplo é de<br />

estudo e crescimento, de seriedade. Quando você cruza os braços e olha assim, sai de<br />

perto! Nesse instante, você está observando... Aquele tempo que você passou lá em ca-<br />

sa, eu o vivi com o maior carinho e era o que me de melhor eu podia lhe oferecer. Eu<br />

349


lhe via estudando e eu dizia pra mim: eu tenho um tio professor. E eu falo até hoje, o<br />

meu tio professor ele mora em Recife. Olhe, eu falo com orgulho, porque vindo de onde<br />

você vem e sendo o que é você hoje, respeitado, isso para nós é um orgulho imenso,<br />

pode ter certeza. Eu te vejo assim com amor. Você é lindo. Lindo por fora e lindo por<br />

dentro. Esse é o meu tio Jorge. Você é muito especial.<br />

350


Maria das Graças Siqueira 70<br />

Antônio – Gracinha, vamos começar falando de sua infância.<br />

Gracinha – Eu nasci em 1956 e o que eu lembro é a partir de 1962. O que eu lembro é<br />

que nós tínhamos uma vida boa, uma vida de sítio, né? Então, nossa infância, acho que<br />

ela foi muito saudável. Embora a gente não tenha tido o pai e a mãe como pessoas que<br />

nos orientas<strong>sem</strong> do modo que precisávamos, mesmo assim nós tivemos na vó Verônica<br />

70 Maria das Graças Siqueira (Gracinha) – Filha de Manoel Jorge Siqueira e Anísia Florindo Siqueira,<br />

ambos falecidos. Com a morte dos pais e de mais três membros da família – uma irmã, (Marlene) dois<br />

irmãos, (José Carlos [o mais velho dos irmãos] e Francisco de Assis) – coube a ela representar a família<br />

nesta entrevista feita na Vila Ema, em São Paulo, na data de 12 de setembro de 2009.<br />

351


e no vô José Jorge, que, na época, nos acompanharam de perto na nossa infância, lá em<br />

Sertânia, todo apoio necessário. E eles foram muito bons, eles foram verdadeiros pais<br />

para nós. Eles nos orientavam e nos davam muito carinho. Por isso mesmo, para mim,<br />

eles são muito especiais. A mãe <strong>sem</strong>pre foi uma pessoa que nunca teve uma força mai-<br />

or, uma firme determinação no sentido de fazer o melhor para a gente. E o meu pai tam-<br />

bém, né? O pai, no entanto, <strong>sem</strong>pre teve aquele jeito dele de ser. A vó Verônica, em<br />

1968, época em que eu tinha dezoito anos, deu muita força para que eu viajasse pra São<br />

Paulo e ficar morando com a Tia Virgínia. Isso foi muito bom para mim também. A<br />

partir daí, e através dessa iniciativa, vieram os outros meus irmãos. A tia Madia trouxe o<br />

Reginaldo, todos eles adolescentes.<br />

Antônio – Logo mais a gente retoma essa saga da vinda de vocês para São Paulo.<br />

Gostaria que voltás<strong>sem</strong>os ao início da entrevista para você falar mais um pouco<br />

dos seus irmãos, especialmente da idade cronológica deles.<br />

Gracinha – Justo. O mais velho era o Zé Carlos. Ele era muito sapeca e não gostava de<br />

estudar. Se hoje ele estivesse vivo, iria completar cinquenta e quatro anos. A gente ia<br />

pra escola lá no Sítio São Francisco, mas ele não gostava de estudar. E o pai exigia mui-<br />

to isso dele. Entretanto, ele nunca conseguiu aprender a ler e a escrever. Quem se dedi-<br />

cava mais aplicadamente ao estudo era eu, a Marlene, o Reginaldo, exatamente os mais<br />

velhos. Quando nós vivíamos lá no sítio, não nos incomodava de vencer uma grande<br />

distância para ir à escola. Aquilo era muito gostoso e foi algo maravilhoso. E o Zé Car-<br />

los, talvez imitando o exemplo de Seu Manoel (o pai), terminou <strong>sem</strong> aprender a ler e a<br />

escrever. Ele tinha um pouco a cabeça de Seu Manoel. Mas foi uma infância muito boa<br />

e maravilhosa, tio, sabe? A gente brincava ali naquela ponte que existia perto de nossa<br />

casa; nós pescávamos naquele rio e curtíamos muito aqueles pés de manga, aqueles pés<br />

de frutas que o vô Zé Jorge plantou e que existem até hoje. Especialmente aqueles co-<br />

queiros e os pés de manga. E a gente curtia muito, pulava na ponte, brincava na areia.<br />

Foi um período muito bom. Então, retomando a ordem de idade: das mulheres, a mais<br />

velha fui eu, depois a Marlene, depois a Margarida e, finalmente, a Fátima. Quanto aos<br />

homens, o primeiro foi Zé Carlos, depois o Reginaldo, logo após o Francisco e o mais<br />

novo deles foi Edinaldo. Na ordem de nascimento da família: nasceu primeiro Zé Car-<br />

los, depois eu; em seguida, vieram a Marlene, o Reginaldo, a Margarida, o Francisco, a<br />

Fátima e o Edinaldo. O nosso relacionamento <strong>sem</strong>pre foi saudável entre nós. Nós nos<br />

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gostávamos como irmãos, como, aliás, até hoje. Nós gostávamos muito de estar na casa<br />

de vó Verônica e do vô Zé Jorge. Não fazíamos diferença com a nossa casa. As duas<br />

casas eram uma só. E isto nos fazia felizes. O pai, infelizmente, ele praticamente não<br />

ficava na nossa casa; ele ficava direto na casa da vó Verônica. Hoje, a gente consegue<br />

perceber que isso se dava porque a vó o apoiava muito lá. Isso estragou bastante, e ele<br />

deixou de ser um pai mais presente e especial pra gente. Isso gerou transtornos porque<br />

algumas vezes ele chegou mesmo a maltratar não a mim, porque eu saí de lá muito ce-<br />

do, mas ele maltratou muito o Francisco e o Zé Carlos, né? Então, isso aí pra mim foi<br />

uma coisa marcante e jamais eu vou esquecer, né? É possível que o Francisco já tivesse<br />

seus problemas e, naquelas condições de lá, não havia possibilidade dele ser encami-<br />

nhado para uma orientação ou mesmo um tratamento. Mas creio que a falta de carinho<br />

na relação com ele certamente deve ter sido um agravante para as dificuldades de rela-<br />

cionamento dele com os pais, irmãos e todo mundo. E olha que não faltava quem o aler-<br />

tasse (a meu pai) contra aquele hábito e aquela atitude dele de ser um dono de casa o-<br />

misso e ausente. O vô Zé Jorge, por exemplo, inúmeras vezes chamou a atenção para as<br />

responsabilidades dele como pai, marido e dono de casa. Inclusive para o trabalho, as-<br />

pecto que o pai pouco ligava e incomodava demais o vô Zé Jorge. Já a vó Verônica não<br />

se incomodava muito com isso; ela <strong>sem</strong>pre o apoiava muito, fazia muito do que ele que-<br />

ria. Por conta disso, ele ia pra casa quando bem queria e deixava de ir quando não que-<br />

ria. O pai tinha assim um ar de moleque irresponsável. Mas, apesar disso, eu <strong>sem</strong>pre o<br />

considerei como meu pai. O que acontece é que as pessoas se habituaram a esse jeito<br />

dele, e desse modo ele não teve como mudar. Mostrou para todo mundo, não apenas<br />

para os pais dele, que ele não tinha como mudar. Na realidade, durante toda a vida, ele<br />

<strong>sem</strong>pre gostou de viver um estilo de vida moleque, palhaço... Ele viveu setenta e seis<br />

anos assim. Como dizemos <strong>sem</strong>pre, ele era o “palhacinho da família”.<br />

Antônio – E sua mãe, Anísia...<br />

Gracinha – Eu acho, assim, que a mãe era uma pessoa sofredora, sabe? Ela não tinha<br />

uma atitude para reagir contra o marido, Manoel Jorge. Ele <strong>sem</strong>pre foi uma pessoa mui-<br />

to frágil nesse lado das coisas. Ela não o conseguiu conquistar para uma forma de con-<br />

vivência que caberia melhor para uma mulher, uma mãe e uma dona de casa. Ela não<br />

conseguiu isso dele. Então, no meu julgamento, ele teve o domínio da situação contra<br />

ela. Ela foi, de certo modo, dominada a vida toda, não somente por ele como pelos ou-<br />

353


tros. Ela não tinha uma atitude pra nada, nem na casa dela para ser a dona da casa, co-<br />

mandando e organizando a família, como cabe a uma esposa e mãe. Apesar disso, ela<br />

era muito carinhosa e foi uma pessoa muito especial para a gente. E, até hoje, isso em<br />

nada mudou na vida dela. Além do mais, ela nunca deixou de cuidar da gente da forma<br />

que ela podia. O que estava ao seu alcance ela fazia pra gente. Ela nunca nos desprezou.<br />

E acho mesmo que a gente só veio para São Paulo porque não tínhamos condições de<br />

ficar lá.<br />

Antônio – E alguma trela de vocês, lembra?<br />

Gracinha – Olha, tio, eu só apanhei uma única vez, porque eu, o Zé Carlos, a Marlene e<br />

o Reginaldo pegamos um monte de papel e fizemos cigarros e fomos fumar. Meu pai<br />

botou a gente numa fila e deu um bolo de palmatória em cada um. Ele contou que viu<br />

um monte de papéis queimados e cada um de nós com a cara bem pálida... O Zé Carlos<br />

e o Francisco devem ter feito muita trela, porque apanharam muito. O Reginaldo, muito<br />

pouco, porque ele logo veio para São Paulo. O meu vô Jorge até podia ser uma pessoa<br />

muito rígida, mas adorava a nós, os netos, que vivíamos ali no sítio. Ele <strong>sem</strong>pre foi mui-<br />

to carinhoso com a gente e nunca nos desprezou. Gostava demais do Zé Carlos. Ele<br />

nunca nos castigou; e quando ele não queria uma coisa bastava um olhar. E olha que eu<br />

fiquei um bom tempo com os dois lá, você sabia? Foi numa época em que os dois fica-<br />

ram sozinhos, e eu fui lá pra casa deles para dar uma assistência. Especialmente, ajudar<br />

a vó Verônica que naquele tempo já estava ficando idosa e precisava carregar lata<br />

d’água. Eu saí da casa da vó Verônica quando eu vim para São Paulo. No meu lugar,<br />

ficaram as meninas: Marlene e Margarida. Aí o senhor lembra, não? Elas contavam que<br />

quando o Ricardo, que era pequeno, ia lá para o sítio com vocês, elas contavam histori-<br />

nhas para ele dormir. Eu lembro disso...<br />

Antônio – Como foi a decisão de vir para São Paulo? E a viagem?<br />

Gracinha – Eu fui a primeira a vir para São Paulo. A tia Virgínia é quem me trouxe.<br />

Numa viagem que ela fez lá ao Nordeste, vendo a nossa situação precária por lá, <strong>sem</strong><br />

perspectivas de melhoras, ela decidiu trazer-me para ficar com ela e me oferecer um<br />

futuro melhor em São Paulo. A vó foi quem tomou a iniciativa de que eu viesse. A tia<br />

Virgínia se ofereceu para me trazer. Eu vim com ela. Ficamos seis dias dentro de um<br />

ônibus, numas estradas todas esburacadas, tio. Eu passei muito mal nessa viagem e che-<br />

354


guei toda sapecada (rindo). Era um banco só para duas pessoas, porque o pai comprou a<br />

minha passagem e eu a perdi. Quando eu cheguei aqui fui muito bem-recebida. Na épo-<br />

ca em que eu saí para cá, lá ficaram o tio Severino e o tio Anísio. Aqui, em São Paulo,<br />

estavam a tia Virgínia, a tia Madia, a tia Flora e a tia Conceição. Dos homens, estavam<br />

tio Barbeiro, tio Elias e tio Valdeci. Essas pessoas todas foram muito maravilhosas co-<br />

migo e me acolheram bem, especialmente a tia Virgínia com o Aldir. Fiquei morando<br />

com eles e recebi deles mais do que recebia em minha casa. Colocaram-me na escola e<br />

me deram, da parte deles, do bom e do melhor que eles podiam e tinham para me dar. A<br />

tia Virgínia nesse tempo trabalhava muito e eu ficava na casa dela cuidando das meni-<br />

nas, a Débora e a Rosângela. Ainda hoje, eu as considero como minhas irmãs. Inclusive<br />

quando eu fui morar com a tia; ela ainda não tinha tido nenhuma das filhas. Por isso,<br />

falam que eu sou a primeira filha deles. E esse carinho que eu tenho por elas jamais será<br />

esquecido. Tanto à Débora como à Rosângela, porque elas têm também muito carinho<br />

comigo e com meus filhos. Do mesmo modo, a tia Flora foi uma pessoa maravilhosa;<br />

ela ajudou muito a mim e à minha mãe, em todos os sentidos, apoiando no trabalho, no<br />

estudo, em trazer os outros irmãos para cá. Com a ajuda dela, eu consegui arranjar um<br />

emprego. Foi a partir daí que eu tive a iniciativa de chamar a Guida e a Marlene, porque<br />

o Reginaldo já estava aqui com a tia Madia. Nós, então, alugamos uma casa e ficamos<br />

morando em quatro, não é? Essa casa ficava aqui no Parque São Lucas, próximo da Vila<br />

Ema. Meu primeiro emprego registrado foi nas Linhas Corrente, e isso permitiu que a<br />

gente pudesse morar vários anos nessa casa alugada. Lá consegui emprego para Marga-<br />

rida e Marlene, que ficaram áli até o casamento. Eu, igualmente, fiquei até meu casa-<br />

mento, e foi lá que eu conheci o Volneci. Ele trabalhava à noite e eu durante o dia. A<br />

vinda do Reginaldo aconteceu com uma ida lá ao Norte da Madia. Ela foi lá e puxou<br />

Reginaldo para morar com ela. Ele praticamente se criou lá na casa dela. Ela arranjou<br />

escola, emprego. Foi a Tereza quem arranjou o primeiro emprego para o Reginaldo. E<br />

essa tia Madia é também uma pessoa maravilhosa. É outra mãe. Para ele, a Madia e o Zé<br />

Guilherme foram seus pais; e os filhos da Madia, primos dele, ele os considera como<br />

irmãos. Ele tem um amor muito puro por eles. Eles <strong>sem</strong>pre se deram muito bem e foram<br />

muito especiais para o Reginaldo. Jamais ele esquece isso. Quanto ao Edinaldo, tio, foi<br />

assim. Eu era casada de pouco tempo quando ele veio para São Paulo. O Zé Carlos tinha<br />

acabado também de casar lá em Pernambuco. A vó mandou o Edinaldo para São Paulo,<br />

ele tendo a idade de oito anos. A mãe, nesse período, estava aqui em São Paulo, e ela<br />

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não queria deixá-lo aqui; o desejo dela era levá-lo de volta. Ela ficou muito destruída e<br />

chorou muito. Mas, depois, percebeu que, dentro do coração dela, levá-lo para o Nor-<br />

deste não seria o melhor para ele. Naquele momento, ela nos viu todos aqui trabalhando,<br />

com um salário, boas condições de vida... Ela achou por bem deixá-lo aqui. Mas eu sen-<br />

ti que ela lamentava muito a falta dele por ser ainda muito criança, né? O Edinaldo veio<br />

e a gente foi buscá-lo lá na Rodoviária do Glicério. Chegou mancando, igual a um pas-<br />

sarinho com a perna avariada. Veio com a Severina e o Zé Carlos. Oito anos de idade<br />

apenas. Ele ficou morando conosco. As irmãs é que cuidamos dele. Ficou o tempo todo<br />

na minha casa e só saiu de lá quando casou. E está aí, hoje tem os filhos dele... O Fran-<br />

cisco, na época em que ele veio, a gente deu o maior apoio a ele. Logo o Aldir arranjou<br />

um emprego pra ele e começou a trabalhar. Estava indo muito bem. Mas, depois, deci-<br />

diu não ficar mais em São Paulo. Foi morar sozinho numa pensão e arrumou um colega<br />

lá que roubou todas as coisas que ele tinha. Ele comprou uma passagem de volta para o<br />

Norte, onde viveu até oito meses passados, ocasião em que ele faleceu. Viveu trinta<br />

anos lá em Pernambuco, com a mãe e o pai. Não quis mais saber daqui de São Paulo. Eu<br />

senti muito, porque se ele estivesse aqui creio que tinha se dado melhor. O Zé Carlos é<br />

outro que migrou para cá. Logo que ele casou, meu pai vendeu umas vacas por lá e deu<br />

um certo dinheiro a ele. Veio para cá com a Severina e alugaram uma casa, compraram<br />

uns móveis. Mas, antes disso, logo que ele chegou aqui ficou morando um tempo com<br />

as minhas irmãs solteiras, Fátima, Margarida e Marlene. Demoraram um ano até arru-<br />

mar um serviço e depois que a Severina e ele arrumaram um emprego eles alugaram a<br />

casa. Nesse tempo, a Severina teve o Zé Carlos e o Leonardo. A Severina <strong>sem</strong>pre se<br />

revelou muito trabalhadora e esforçada. Só que Zé Carlos complicou a vida de trabalho<br />

dele, porque se meteu a beber demais. Ele já bebia muito lá no Nordeste. E o sr. sabe<br />

que quando as pessoas se viciam começam por perder o emprego. A vida dele não mais<br />

deu certo,até que um dia eles não tinham mais dinheiro para pagar o aluguel da casa<br />

deles. A Severina conseguiu o favor de um conhecido, botou todas as coisas dela em<br />

cima de um caminhão e foi embora para Sertânia, de onde havia saído. Até hoje, depois<br />

de dezessete anos da volta dela, prá mim e pra nós isso foi muito triste porque se ele<br />

tivesse tido a disposição e a força de vontade dela, <strong>sem</strong> se deixar vencer pelo alcoolis-<br />

mo, certamente hoje eles estariam muito bem aqui.<br />

356


Antônio – Como era a vida de vocês fora do trabalho? Vocês se divertiam, tinham<br />

namorados?<br />

Gracinha – Não, tio. Os nossos tios tinham muito ciúme da gente. Quando nós aluga-<br />

mos a nossa casa, nós tínhamos muito cuidado de não nos aventurar em namoros com<br />

rapazes que a gente não conhecesse. O fato é que nós vivíamos para o trabalho e não<br />

aproveitamos bem a nossa juventude como devia ser. Na chegada do nosso trabalho, nós<br />

íamos cuidar da nossa casa. Eu, por exemplo, nos finais de <strong>sem</strong>ana cuidava da cozinha,<br />

a Guida limpava a casa e a Marlene lavava a roupa. Praticamente, a gente não saía nem<br />

passeava. Nós, infelizmente, não curtimos nossa juventude, tio. O Volneci foi o meu<br />

primeiro namorado, com o qual estou casada há trinta anos (rindo). A Marlene teve um<br />

namorado que não deu certo. Aí ela arranjou outro, o João, com quem casou e, infeliz-<br />

mente, ela teve muitos problemas com ele por conta de alcoolismo. Viveu vinte e três<br />

anos com ele e teve dois filhos. Eles conseguiram viver bem até o ponto em que ele<br />

mergulhou no alcoolismo. Aí o casamento deles foi destruído. Ela passou a ter uma vida<br />

muito estressada, e creio mesmo que isso tenha contribuído para o enfarte que a vitimou<br />

de morte. A morte dela foi uma das maiores dores que eu senti na minha vida. A perda<br />

da minha irmã me doeu muito. A Marlene era uma pessoa maravilhosa, e digo isso não<br />

pelo fato de ela ter morrido. Quando morávamos solteiras, nós nos dávamos muito bem.<br />

Nunca discutimos e nos dávamos maravilhosamente. Mesmo depois de casadas, nunca<br />

faltou esse carinho entre nós. Sempre nos visitávamos. A Guida casou e foi morar lon-<br />

ge. Separou do primeiro marido, porque realmente não deu certo. Arrumou um segundo<br />

casamento e, igualmente, também não deu certo. Agora ela já arranjou um terceiro e<br />

parece que agora está dando certo. Ela teve três filhos: George, que foi do primeiro ma-<br />

rido,Justino, meu cunhado, irmão do Volneci; tem o Jefferson e a Shirlei, que foi do<br />

segundo marido, cujo nome é Osvaldo. O terceiro marido chama-se Paulo e eles moram<br />

em Campinas. Interessante, os filhos da Marlene não eram muito chegados a nos visitar<br />

e a ir em nossa casa. Mas depois que a Marlene faleceu, eles já foram umas três vezes<br />

em nossa casa. Quando um deles, o Alexandre, casou, nos convidou para o casamento.<br />

Convidou-nos também para a festa de aniversario do filho dele. Quem nos frequenta<br />

mais é o George, filho da Margarida. Ele <strong>sem</strong>pre vai lá em casa. O Volneci mais os dois<br />

irmãos, os três, casaram com três irmãs. Porque a Fátima é casada com um irmão dele, o<br />

Joel. E tem o Reginaldo, que casou com uma prima de Volneci. É quase um caso de<br />

357


incesto familiar. Os nossos primeiros anos de casados foi difícil, tanto no relacionamen-<br />

to como no trabalho de sobrevivência. Mas, com o passar do tempo, a gente foi apren-<br />

dendo a aceitar as situações com que a gente se defronta, não é? Depois que vêm os<br />

filhos, o casal tem o amadurecimento e outro olhar sobre a vida. Foi difícil, porque nós<br />

não tivemos tempo de estudar. A gente <strong>sem</strong>pre trabalhou em fábrica para ter um salário<br />

e, com ele, o dinheiro da casa, do aluguel, do carrinho. Quando, na década de oitenta,<br />

nós fomos dispensados das Linhas Corrente, pegamos o dinheiro da indenização e com-<br />

pramos um terreninho. Com o meu dinheiro, dei início à construção da minha atual ca-<br />

sa, em Diadema. Fiz dois cômodos e deu para pagar o pedreiro. Depois que saí da fábri-<br />

ca, fui cuidar dos meus filhos, que eram pequenos, e ele foi trabalhar na Mercedes, onde<br />

ficou nove anos. Conseguimos construir um sobrado muito bom lá em Diadema. Nosso<br />

primeiro carro foi uma Brasília, na época; uma Brasília amarela (rindo muito). Mas<br />

tudo isso foi maravilhoso. Foi um esforço muito grande de nossa parte. Depois, com-<br />

pramos outro terreno, onde construímos a casa em estamos hoje, e montamos ali uma<br />

doçaria, que é hoje o comércio de nossa sobrevivência. Isso tudo é muito bom, não é,<br />

tio? Estamos terminando de construir nossa casa, em Diadema, e compramos um bom<br />

terreno em São Bernardo, onde a gente vai construir outra casa.<br />

Antônio – Fale de seus filhos.<br />

Gracinha – Depois de dois anos de casada, eu engravidei. O primeiro filho foi o Ronal-<br />

do. Logo que eu engravidei, tive que sair do serviço para cuidar dele, pois naquele tem-<br />

po não existia estrutura de creches como hoje em dia, né? E eu queria cuidar do meu<br />

filho, acompanhar o crescimento dele até um determinado tempo. Isso foi uma coisa que<br />

eu tive como propósito dentro de mim, ou seja: cuidar dos meus filhos, na infância deles<br />

até certa idade. Depois de um ano, eu engravidei da Fabiana. E foi a mesma coisa em<br />

termos de disponibilidade para o crescimento dela. Quando eles já tinham uns seis anos,<br />

eu comecei a trabalhar num bar que adquirimos como comércio, e eles ficavam juntos<br />

vendendo balinhas. Depois, evoluímos para uma doçaria, e eles <strong>sem</strong>pre estavam conos-<br />

co nos ajudando. Eu queria que eles sentis<strong>sem</strong> que a vida é dura e não é tão fácil como<br />

se possa imaginar. Isso pra eles foi muito bom, e pra mim também. Depois de dez anos,<br />

eu engravidei de Rafael, que também é um amor de garoto. Agora mesmo, minha mãe<br />

teve um AVC e, como eu necessitava de um tempo para cuidar dela, ele se ofereceu<br />

para ajudar o Volneci em meu lugar. Então, eu o acho um filho maravilhoso, não é? O<br />

358


Ronaldo estudou até a sétima série e parou de estudar. Ele, hoje, só trabalha. Está com<br />

vinte e oito anos e é meio cabeça dura; não quis dar continuidade aos estudos. A Fabia-<br />

na, só ela se dedicou a estudar. Cursou a faculdade, formando-se em matemática. Fez<br />

recentemente pós-graduação e, agora, está dando mais um tempo, trabalhando para<br />

comprar o carrinho dela. Ronaldo está construindo a casa dele. O Rafael está estudando,<br />

mas ele ainda não está definido com relação ao curso que pretende estudar. São três<br />

filhos, tio, mas cada um com uma cabeça diferente. A Fabiana tem um namorado, Ale-<br />

xandre. Mas ela não quer ouvir falar em casamento. Primeiro, ela quer estabilizar a vida<br />

dela, comprar o carro dela, o apartamento... Vou abrir um parêntese para falar de meu<br />

irmão Edinaldo. Ele chegou aqui em São Paulo, morou muitos anos comigo e casou<br />

ainda muito moleque, muito novo. Ele tinha dezoito anos quando casou. No início, ele<br />

estava muito bem, porque quando ele morava comigo só bebia água e refrigerante, né?<br />

Casou e viveu uns treze anos com a esposa; teve dois filhos: o Caíque e Felipe, duas<br />

crianças maravilhosas. Arrumou um amigo e começou a trabalhar por conta dele. Foi<br />

nessa época que ele começou a beber, e isso interferiu no casamento dele, terminando<br />

por separar. O vício tomou conta do Edinaldo e ele separou da mulher. Os filhos dele<br />

vão muito em minha casa e nos adoram. Ao passo que uma vez na vida é que Edinaldo<br />

vai lá em casa. O vício dele o impede de ir. A gente fala para que ele venha ver a mãe, e<br />

quando ele vem está geralmente alcoolizado. Ele se dedica mais à bebida do que à famí-<br />

lia. Ele tem uma mulher, chamada Mila, que vive atualmente com ele. Ela tem cinquen-<br />

ta e poucos anos. Ele mora com ela num apartamento, em São Bernardo, que não fica<br />

longe de mim. Ela vive reclamando dele a mim, dizendo que ele não está muito bem. Eu<br />

o internei duas vezes numa clínica de tratamento, mas não resolveu nada. Profissional-<br />

mente, ele é eletricista de automóveis. Um profissional de mão cheia, todos os clientes<br />

gostam dele, mas o alcoolismo já está afetando seu de<strong>sem</strong>penho profissional. É uma<br />

pena, porque as coisas se repetem na família. O Zé Carlos era um exímio profissional<br />

soldador mecânico, muito trabalhador, mas infelizmente morreu dominado pelo alcoo-<br />

lismo. Parece que o Edinaldo copia o irmão nesse aspecto.<br />

Antônio – Gracinha, eu tenho uma boa notícia para lhe dar. É que Severina conse-<br />

guiu a pensão de Zé Carlos na Justiça do Trabalho.<br />

Gracinha – É mesmo? Que bom, tio! Olha, que maravilha! Ela merece, porque <strong>sem</strong>pre<br />

cuidou muito bem dos filhos. Por causa do vício, também o Zé Carlos foi igual ao pai.<br />

359


Não foi um pai carinhoso e atencioso com os filhos. O que os filhos dele precisaram na<br />

infância ele não deu. Inclusive eu gostaria de registrar aqui o carinho que o senhor teve<br />

com relação a eles. Isso é uma coisa que o pai não deu, e eles encontraram no tio Antô-<br />

nio. E eu agradeço muito essa atenção e esse carinho. Eles são meus sobrinhos, e eu os<br />

tenho como meus filhos também. Eu amo meus primos. Então, eu agradeço muito esses<br />

favores que foram prestados a eles. A Severina foi uma mãe exemplar pra eles; ela foi<br />

uma excelente mãe, e pai também.<br />

Antônio – E Reginaldo? Como é que está ele? Você não falou dele...<br />

Gracinha – O Reginaldo, tio, logo cedo conheceu a Lina, que é prima do Volneci. Na-<br />

moraram doze anos e (rindo) terminaram casando, e assim continuam até hoje muito<br />

bem. Reginaldo foi uma pessoa que trabalhou muito e <strong>sem</strong>pre foi uma pessoa maravi-<br />

lhosa. O Reginaldo, tio, é um dos irmãos que eu tenho como maravilhoso. Ele é um ir-<br />

mão que eu não tenho nada de mal a falar dele; só tenho a falar de bem. O Reginaldo é<br />

uma moça (rindo). Se eu falar mal dele, eu estou pecando; por aí, o senhor vê. O Regi-<br />

naldo, depois que saiu da casa da tia Madia, veio morar junto com a gente. E ele nunca<br />

maltratou a nós. Sempre nos ajudava e contribuía em todos os sentidos, sobretudo para a<br />

casa. O Reginaldo casou e também teve que enfrentar transtornos. Ele trabalhou muitos<br />

anos de empregado, como torneiro mecânico, e iniciou e terminou a construção da casa<br />

dele. Depois vendeu a casa, passou a pagar aluguel e ficou numa situação muito difícil.<br />

Montou uma padaria, formando uma sociedade. Perdeu tudo o que tinha. Não teve mais<br />

emprego e foi o Seu Justo, o sogro dele, que lhe deu uma oportunidade. Como ele tinha<br />

um bufê na casa dele, o Reginaldo foi trabalhar lá. Depois disso, eles decidiram montar<br />

um restaurante, e ele passou a contar com a colaboração da Lina, que, mesmo <strong>sem</strong> ser<br />

cozinheira, teve que aprender na marra. Eles abriram um restaurante. Ela começou a<br />

fazer comida e, assim, eles conseguiram novamente ter a casa deles. Hoje eles estão<br />

muito bem e têm uma linda casa construída com o esforço dos dois. Os filhos deles são<br />

muito lindos<br />

Antônio – Dizem as más línguas da família que, quando você se junta com o Regi-<br />

naldo, ninguém mais fala e ninguém mais ouve ninguém... É verdade isso?<br />

Gracinha – Olha, tio (rindo), eu conheci um homem, no Nordeste, que se chamava<br />

meu pai, e o apelido dele era Mané Badalo. Contam que, quando da construção daquela<br />

360


BR 110, que passa lá na propriedade, o pai deu pouso aos operários, e eles ficaram lá no<br />

nosso sítio, à beira da estrada em construção. E o pai também foi contratado para traba-<br />

lhar. Naquela oportunidade, ele foi apelidado pelos peões como Mané Badalo, porque<br />

falava <strong>sem</strong> parar. O Reginaldo e a Gracinha não podem deixar de serem filhos de Ma-<br />

noel Jorge. E são uns badalos, obviamente. Mas, assim mesmo, o Reginaldo toda <strong>sem</strong>a-<br />

na vai na minha casa, e a gente <strong>sem</strong>pre inventa um churrasquinho ou qualquer coisa<br />

para se encontrar. Eu sinto que ele gosta muito de mim. É um querer muito especial. É<br />

uma pessoa que não ofende ninguém e tem um coração puro, o Reginaldo.<br />

Antônio – Fale um pouco do sentimento e das lembranças que você tem com rela-<br />

ção aos familiares da sua mãe.<br />

Gracinha – Tio, você tem uma cabeça boa, lembra de todo mundo. E uma pessoa inte-<br />

ligente! Os irmãos da mãe são muito boa gente. Eles <strong>sem</strong>pre demonstraram gostar de<br />

mim e dos demais irmãos e irmãs. Quando eu morava em Diadema, eles <strong>sem</strong>pre iam à<br />

minha casa. Eu sinto, hoje, muita falta deles. Ontem mesmo, o tio João, com oitenta e<br />

dois anos, esteve na minha casa. Lúcido, lúcido... O senhor pode perguntar o que quiser<br />

pra ele que ele lhe responde. Com toda essa idade, vem lá do outro lado da cidade de<br />

São Paulo, toma não sei quantos ônibus e tróleibus, mas chega na minha casa <strong>sem</strong>pre.<br />

Só que ele, hoje, anda igual a Emiliano. O senhor lembra do Emiliano? (rindo muito).<br />

Tio, eu vou ter que falar. Anda igual ao Emiliano, com aquela cabecinha assim, aquelas<br />

pernas meio cambaleantes... Pelo menos duas vezes por mês, ele vem à minha casa. Ele<br />

anda muito junto com o tio Júlio. Esse aí tem oitenta anos, mas já não está muito legal.<br />

O tio Júlio bebeu muito quando era mais jovem – até hoje ele ainda toma algumas bica-<br />

das –, ele não parece muito legal para acompanhá-lo. Ele não tem mais a disposição de<br />

sair, igual à do tio João. Quando eu fui lá ao Nordeste, eu vi o tio Elísio, que também já<br />

esteve na minha casa com o tio Otacílio. Só quem faleceu foi o tio José, que morava em<br />

Cubatão. Um doce de pessoa. Eu adorava aquele tio; ele gostava muito de juntar a famí-<br />

lia na casa dele. Ele faleceu de enfarto, faz dez anos. Inclusive o pai e a mãe estavam<br />

aqui quando do falecimento dele. Faleceu também a tia Maria, irmã da mãe. Ela era<br />

doente de chagas e faleceu lá em Pernambuco. Tem ainda a tia Quitéria, que tem oitenta<br />

e cinco anos e recentemente também sofreu derrame, como minha mãe. Um mês após<br />

ter visitado minha mãe com o derrame, ela também teve a mesma coisa. Só que ela não<br />

foi muito afetada. Ela anda bem de bengalinha e não sofreu nada na cabeça. Tem tam-<br />

361


ém outra irmã, chamada Irene, que mora em Pernambuco; e, aqui em São Paulo, a tia<br />

Quitéria, conforme lhe falei. Com os meus primos aqui de São Paulo, a gente mantém<br />

contatos, mas é mais por telefone. Mas, na <strong>sem</strong>ana passada, eles estiveram em minha<br />

casa em visita a minha mãe. Os sobrinhos da mãe são também maravilhosos e adoram a<br />

mãe. Eu tenho dois primos que moram próximos de nós: o filho do Elísio e o do Otací-<br />

lio. Na <strong>sem</strong>ana passada vieram quatro primos, entre eles a Rosilda, filha da tia Maria, e<br />

também uma cunhada de tio Elísio. Foi uma turma boa, tio. Toda <strong>sem</strong>ana temos paren-<br />

tes de minha mãe lá em casa. Daqueles irmãos que moravam lá em Pernambuco, no<br />

sítio da família, são o Otacílio e o Elísio. Dizem que eles têm mais de oitenta e um anos<br />

e eles ainda pegam da enxada e vão trabalhar na roça. Só dois moram lá, e o Otacílio<br />

ficou viúvo. Já a mulher do tio Elísio mora em Sertânia. Ah, tem lá em Pernambuco<br />

também a Irene, que era a irmã caçula da mãe, não sei se o senhor já ouviu falar. Ouvi<br />

dizer que o marido dela também está muito mal, com um câncer de próstata.<br />

Antônio – Gracinha, logo antes de Manoel falecer você se deslocou até Pernambu-<br />

co para dar assistência a seu pai. O que ficou na sua cabeça desse período?<br />

Gracinha – Apesar de eu ter falado que ele não foi o pai ideal para nós no período da<br />

infância, eu não guardei nenhuma mágoa disso aí. Eu fui lá porque, acima de tudo, eu<br />

amava meu pai e <strong>sem</strong>pre o tive como pai no meu coração. Eu fui cuidar dele, porque as<br />

coisas muito especiais que eu tive na minha vida foram o meu pai e minha mãe. E, num<br />

momento como aquele, jamais eu, como filha, poderia faltar com ele. E aqui, neste mo-<br />

mento, eu queria mais uma vez agradecer a sua ajuda. Embora fosse seu irmão, agrade-<br />

ço muito o seu carinho por ter recebido ele lá junto comigo. Naquele momento, eu pro-<br />

curei ser muito forte, né? Depois que caiu a ficha, eu fiquei um pouco fraca, com pro-<br />

blemas de depressão. Tinha havido a perda da Marlene e, em seguida, a dele. Então,<br />

isso mexeu muito comigo. Mas eu tenho dentro de mim que todos aqueles momentos<br />

que aconteceram foram marcantes para <strong>sem</strong>pre. Ele morreu nos meus braços. Na hora<br />

que o senhor tinha saído, eu percebi que ele teve a hemorragia e gritei por socorro, so-<br />

corro. E ele estava tão lúcido que olhava para a porta a fim de ver se vinha alguém para<br />

socorrê-lo. Até o momento em que faltou sangue no cérebro, ele parou e ficou com os<br />

olhos abertos, parecendo um bonequinho, e eu com ele em meus braços. Esse momento,<br />

para mim, é inesquecível, e eu não vou esquecer nunca. Não só para mim, mas para<br />

muitas pessoas ele foi maravilhoso. Naquele velório del, compareceu tanta gente que eu<br />

362


nunca vi na minha vida. Tinha muita gente jovem, inclusive uma moça do posto de saú-<br />

de que cuidava dele lá no sítio. Ela me disse que nunca tinha visto e conhecido uma<br />

pessoa como meu pai. E ela chorava muito. Tinha gente de todas as idades, e isso me<br />

emocionou muito. Tinha gente conhecida, aquelas moças parentes do Caboclo Lulu,<br />

todas homenageando o pai... Ele teve muito boas amizades e foi uma espécie de palha-<br />

cinho, no bom sentido. Eu acho que ele viveu uma vida boa, uma vida feliz, ele viveu a<br />

vida que ele gostava. Eu dizia pra ele não fumar, porque tinha passado a hora dele fu-<br />

mar e aquilo matava. E ele me respondia que, a partir dos setenta anos, as horas eram<br />

“extras”, e ele estava fazendo hora-extra. Quando eu fui a Sertânia para cuidar dele, na<br />

hora em que cheguei e disse que chegava para vê-lo, ele me disse assim: “Gracinha,<br />

tanto que você falava prá mim, não era? Agora, veja como estou!”. Eu respondi que não<br />

era mais hora de lastimar. Mas eu vi que ele sentiu<br />

Antônio – A morte de Zé Preto e de Chico, como repercutiu em vocês, irmãos?<br />

Gracinha – Tio, há momentos assim em que as tragédias e perdas se sucedem uma em<br />

cima da outra. Nós éramos dez e praticamente eu perdi quase a metade, entre meus pais,<br />

irmãos e praticamente a minha mãe. E isso em seguida, um próximo do outro. Isso me-<br />

xeu muito comigo e com o resto dos irmãos. Em poucos mese, eu perdi o Chico e a<br />

mãe, porque ela não morreu por milagre e vive uma vida vegetativa. A Fátima sofreu<br />

muito e ficou muito mal. E ainda continua mal, porque ela era muito apegada com Fran-<br />

cisco. Ela fazia perna com ele quando eram pequenos. O mesmo se passou com a Guida.<br />

Se o pai tivesse tido um pouco mais de cuidado, ele poderia ainda estar vivo. O Zé Car-<br />

los, a mesma coisa. A morte existe, mas tem gente que morre antes da hora. O Francisco<br />

era outro que nunca cuidou da saúde dele. Mais ainda, além das perdas na minha família<br />

restrita, houve no resto da família de vó Verônica toda uma série de perdas que nos dei-<br />

xaram tontos. Foi a vó, o tio Severino, a tia Flora, a Edilnete, o tio Zeca, o tio José, o<br />

Givaldo... São muitas perdas numa família que absolutamente não tinha a experiência<br />

de óbitos durante décadas e décadas... Isso mexeu com todos nós que estamos vivos.<br />

Antônio - Gracinha, você teve muitas alegrias e muitas tristezas, não?!<br />

Gracinha – Olha, tio, uma das grandes alegrias de minha vida foi ser mãe, foi poder ter<br />

os meus filhos. Essa foi a maior alegria. Eu os adoro, não os deixo por nada, e eles são<br />

maravilhosos pra mim. Por isso que eu sou assim, alegre, porque fomos criados no meio<br />

363


de muita gente, uma família imensa como a dos Jorge. E a minha maior tristeza foi a<br />

perda dos meus parentes, todos e cada um deles, incluindo primos, tios e tias.<br />

Antônio – Para terminar, pergunto se você gostaria de dizer algo que ainda não<br />

lhe foi perguntado.<br />

Gracinha – Ah, sim! Gostaria de dizer que todo este trabalho que você está fazendo<br />

sobre a família vai ser também trabalho inesquecível. Ele vai ficar pro resto da vida. Vai<br />

ficar para a memória de todos, sobretudo dos que vão vir. É um dos trabalhos mais be-<br />

los e lindos que o meu Tio Jorge vai deixar para a família. Eu gostei, adorei. Eu amo<br />

essa família, tio.<br />

364


Sílvio Roberto Siqueira 71<br />

Antônio – Sílvio, gostaria que você falasse das lembranças que você tem de seu pai,<br />

principalmente aquelas lembranças mais antigas...<br />

Sílvio – Meu pai, lembro-me dele quando eu me entendi por gente, principalmente nos<br />

momentos em que nós fizemos algumas viagens a Pernambuco, e algumas dessas via-<br />

gens foram muito difíceis. Numa dessas, a madrinha Virgínia veio com a gente. Ela<br />

gosta muito de mim. Meu avô paterno também gostava muito. Essas viagens também<br />

eram divertidas. As passagens que me lembro do meu pai, quando ele estava junto com<br />

a gente, é que ele gostava de unir a família. Ele andava com a gente, passeava com a<br />

gente de carro... Não só conosco, mas também com a tia Enedina e com os filhos dela,<br />

meus primos. Isso era muito gostoso. Em todo lugar que ele levava a família, ele com-<br />

partilhava também com a família da tia Enedina, o que era muito bom. Muitas vezes,<br />

nós participamos assim de reuniões da família com os outros familiares, e olha que a<br />

71 Sílvio Roberto Siqueira – filho mais velho de Severino Jorge Siqueira (falecido) e Erotides da Silva. Em<br />

razão da morte do pai e da ausência da mãe, Sílvio foi entrevistado em Tamandaré - PE –, na data de 13<br />

de fevereiro de 2009.<br />

365


nossa família era muito grande. No entanto, de algum tempo para cá, ela se espalhou.<br />

Mas meu pai continuou fazendo aquelas visitas e nos levava para visitar outros parentes.<br />

Era muito bom, eu gostava muito dessa parte. Tanto que hoje, eu gosto de cultivar esse<br />

hábito. Quanto à lembrança de criança, ela se refere ao momento em que nós viemos<br />

morar em Sertânia. Lembro que eram situações muito difíceis e também recordo que o<br />

vô gostava muito de mim, e ele fazia tudo por nós e gostava também de estar junto do<br />

pessoal. Pena que meu avô morreu cedo, para mim... Mas a lembrança que eu guardo<br />

dele é muito boa. E quando eu tinha mais ou menos a idade de doze anos, eu vim para<br />

Pernambuco, juntamente com a minha tia, digo, com a minha madrinha. E lembro que<br />

meu avô pagou a minha passagem, porque queria que queria que eu viesse. E isso eu<br />

achei muito interessante. Tão logo aqui cheguei, ele me deu uma bezerra de presente.<br />

Lembro bem que era uma bezerra muito bonita, e ela se destacava por ter uma cara<br />

branca. E eu gostava muito dela. Quem a criou foi o tio Manoel. Ele não se desfez dessa<br />

novilha, que se tornou vaca, enquanto eu não o autorizasse dela se desfazer. E isso para<br />

mim foi muito gratificante, muito gratificante mesmo. Lembro também que, algumas<br />

vezes, houve desentendimento entre mim e meus primos. Meu avô gostava muito de<br />

mim, da minha pessoa. Eu gostava muito dos momentos em que ele brincava – e brin-<br />

cava muito! – comigo. Mais tarde, nós tivemos que sair de Sertânia, indo morar em Ca-<br />

ruaru. Nesse momento, houve algumas separações entre meu pai e minha mãe. Mas<br />

<strong>sem</strong>pre meu pai tentando reconciliar e juntar a família. Daí, voltamos a morar em São<br />

Paulo novamente. Morávamos perto da casa de tia Virgínia. Lembro também que a tia<br />

nos ajudou muito nesse retorno...<br />

Antônio – Como é que o Severino se relacionava com vocês, seus filhos...<br />

Sílvio – Para mim, meu pai às vezes se comportava como um bom pai, mas às vezes<br />

passava a ser muito duro e até mesmo carrasco. Por algumas vezes, levei algumas surras<br />

não merecidas! – outras merecidas. Lembro de uma vez em que eu brincava com Zenil-<br />

do, com o Inaldo e o Hélio e, nessa brincadeira, um dos meus primos me deu um tapa e<br />

eu revidei com uma tijolada na cabeça dele. Por conta disso, ele me bateu, e bateu de-<br />

mais. Mas eu <strong>sem</strong>pre gostei de meu pai, <strong>sem</strong>pre gostei. Também sentia que isso era re-<br />

cíproco da parte dele comigo e, ao longo do tempo, como eu casei, ele passou a me dar<br />

a maior força. Aceitou a condição em que eu estava, me ajudou...<br />

366


Antônio – Como é que foi esse casamento?<br />

Sílvio – Foi meio apressado, eu “adiantei” as coisas, não é? Mas, graças a Deus, num<br />

curto período eu consegui casar, ter a minha primeira filha, muito bonita, por sinal, e<br />

meu pai me auxiliou até que eu tivesse o meu apartamento, onde moro até hoje. Tive<br />

auxílio dele com algumas coisas para a casa. Sempre visitava meu pai, e ele ia também<br />

ia à minha casa... foi bom. Muito bom. Gostava muito dele e da presença de meu pai em<br />

casa. Às vezes, ele vinha para almoçar, outras vezes eu ia à casa dele. Preparava um<br />

frango que ele gostava muito. Eu preparava um frango bem cozido, e aí ele chupava até<br />

os ossos. Puxa vida, isso era uma coisa que eu tinha a maior satisfação de fazer para o<br />

meu pai. Com o Edilson e a Sônia, também. Ele gostava muito de ir à casa da Sônia<br />

quando ela passou a morar na COHAB-2. Ela <strong>sem</strong>pre o convidava, e ele participava<br />

<strong>sem</strong>pre. Já nos últimos anos da vida, ele passou a conviver mais com a Sônia. Mas teve<br />

dias em que ele foi até a minha casa e conversamos muito. Nessa oportunidade, eu repe-<br />

li algumas ações dele, avaliando algumas ações dele...<br />

Antônio – E os últimos dias da vida dele, como vocês viveram?<br />

Sílvio – Para mim, meu pai <strong>sem</strong>pre foi um grande homem. Sinto saudades. Com aquela<br />

animação dele, começou a fazer visita aos parentes. Também estava sozinho e por isso<br />

foi morar com a Sônia, lá em Lençóis Paulista... Eu sinto saudades! [se emociona]. O<br />

desfecho da morte de meu pai foi muito repentino. Lembro que tinha trabalhado à noite<br />

e, por volta das treze horas, recebemos uma notícia de Lençóis Paulista, por meio de<br />

minha irmã. E, de pronto, eu senti que tinha de ir lá prestar um socorro, dar um auxílio.<br />

Ao contrário do meu pensamento, o meu irmão fez que tudo isso não acontecesse. Eu<br />

estava muito cansado do trabalho. Fui para casa dormir. E naquele dia choveu muito.<br />

Insisti várias vezes com meu irmão para irmos até lá. Até que Edilson, meu irmão, por<br />

volta de meia-noite ligou falando que ele estava ruim. Eu continuei insistindo para que<br />

nós fôs<strong>sem</strong>os buscá-lo para oferecer um melhor socorro médico. Mas meu irmão não se<br />

interessou muito. Saiu para a balada... Quando foi na parte da manhã, eu ainda insisti<br />

com ele para vir me buscar para a gente poder ir para lá. Saímos de carro por volta de<br />

sete horas da manhã; peguei o carro lá na marginal. Ficamos com o celular ligado, espe-<br />

rando alguma notícia. Quando estávamos chegando a Sorocaba, tivemos notícia de mi-<br />

nha irmã confirmando que ele estava ruim. Mais à frente, chegando a Porto Feliz, rece-<br />

367


emos a notícia de que ele tinha falecido. Para mim, foi um grande choque, um grande<br />

choque mesmo, porque não esperava que aquilo fosse acontecer com o meu pai, de mo-<br />

do tão rápido, de maneira tão repentina. Aquilo, para mim, foi brutal. Edilson e minha<br />

sobrinha começaram a chorar em desespero, <strong>sem</strong> saber o que fazer. Eu, naquele momen-<br />

to, fiquei sereno, procurando aceitar aquele baque muito grande. Chegamos a Lençóis<br />

Paulista, meu irmão já foi brigando com todo mundo, brigando com as enfermeiras,<br />

com os médicos, acusando-os de terem maltratado meu pai, acusando que meu pai tinha<br />

uma doença e que eles haviam tratado de outra. Acusou o médico, dizendo que ia pro-<br />

testar civilmente. Falava que não ia aceitar aquela situação; fez um verdadeiro carnaval.<br />

Nessa hora, eu procurei ver com a enfermeira o que poderia ser feito. Fui ver o corpo do<br />

meu pai - ainda quente! -, e naquele momento, com um minuto apenas de reflexão que<br />

tive sobre a vida e a morte, o corpo do meu pai esfriou. Foi aí que eu percebi que não<br />

haveria mais vida. Providenciamos o enterro e o retorno do corpo para São Paulo. Na-<br />

quelas circunstâncias, reuniu-se a família, mas para mim ficou aquela impressão de algo<br />

muito repentino [emocionado].<br />

Antônio – Voltando um pouco à vida do seu pai, como lhe marcou a vida profissio-<br />

nal dele?<br />

Sílvio – Olha, o que eu mais gostei de meu pai como profissional do volante foi quando<br />

ele colocou dezessete pessoas dentro de sua Kombi e, contrariamente ao pensamento<br />

dos demais familiares que pensavam que nós iríamos para Peruíbe, nós viemos para o<br />

Norte, para Pernambuco. Puxa vida, que situação! Era gente dormindo no chão, era gen-<br />

te dormindo em cima das malas. Lembro bem que meu tio, o Máximo, combinava com<br />

um e outro, trocava ideias, fazendo de tudo para não se dormir e tornar a viagem rápida,<br />

alegre e prazerosa. Era muita gente, mas foi prazeroso. Quando nós chegamos a Sertâ-<br />

nia, foi muito bom. O Máximo foi até a casa de minha vó, como se não conhecesse nin-<br />

guém, mas já conhecia todo mundo. Só que o pessoal que estava lá não o conhecia mui-<br />

to bem, pois já fazia muito tempo que ele tinha ido lá. Chegando lá, ele especulou e fa-<br />

lou que estava todo mundo esperando na Kombi. Ah... ao chegar na casa foi aquela fes-<br />

ta! O que aconteceu foi o seguinte: o pessoal de Sertânia aguardava os parentes que vi-<br />

nham de São Paulo. Era a tia Flora, que vinha de ônibus, o Jacaré e a Irene, que vinham<br />

de carro, o Givaldo com a Tereza... Esse pessoal de São Paulo sabia que a gente tinha<br />

viajado para Peruíbe e, agora, <strong>sem</strong> que soubes<strong>sem</strong> de nada, estávamos em Sertânia espe-<br />

368


ando por eles. Ah... quando eles chegaram foi uma correria danada. E a Célia, que es-<br />

tava conosco, sobrou na hora de se esconder; ficou meio perdida no corredor da casa.<br />

Quando a madrinha Flora chegou e percebeu a Célia no corredor, ela quase desmaiou.<br />

Mas aí todos nós saímos dando as caras e foi aquela festa maravilhosa. Foi bom demais!<br />

Meu pai gostava e adorava essa situação de estar com a família. Para mim ele foi <strong>sem</strong>-<br />

pre um ótimo motorista. Hoje, eu sou o que ele não conseguiu ser. É que cheguei ao<br />

auge da minha carreira como motorista profissional. Ele, mesmo tendo muita habilida-<br />

de, não conseguiu ter carteira assinada em empresa de transporte. Mas eu <strong>sem</strong>pre me<br />

espelhei nele. Ele era muito bom motorista, atencioso, gostava demais do carro dele e<br />

<strong>sem</strong>pre tratou muito bem da Kombi para a gente fazer essas viagens. Meu pai passou<br />

muito tempo em São Paulo, fazendo entregas. Era um serviço duro. Durante muito tem-<br />

po entregava resmas de papel e, algumas vezes, tanto eu quanto Daniel fomos fazer en-<br />

trega juntamente com ele. Meu irmão também. Só que ele tinha uma vergonha danada.<br />

Quando ele estava comendo as marmitas dele lá na Kombi, meu irmão colocava uns<br />

papelões para esconder o almoço. Mas era muito bom, eu gostava de ajudar o meu pai,<br />

eu gostava... Meu pai era uma pessoa muito alegre. Adorava botar apelidos e, assim,<br />

chamar as pessoas. Era ele e a tia Conceição, gostavam muito de colocar apelido. Eu<br />

acho até que o único que escapou foi o Ricardo, por não ter tido apelido. Mas o resto da<br />

família, todos eles têm um apelido colocado pelo meu pai: é Jacaré, Cacareco, Expressi-<br />

nho Foguete, Hélio Húlio, Compadre Parreira, Dr. Sujeira... Todos esses apelidos foi<br />

meu pai que colocou. Eu gostava muito de o ver fazer isso. E achava muito divertido,<br />

muito divertido. A tia Conceição tem essa mania também, ah tem, a velhinha gosta mui-<br />

to quando a gente vai lá na casa dela e ela trata cada um com um apelido. Eu acho isso<br />

interessante.<br />

Antônio – Sílvio, fale da relação de Severino e Erotides. Parece que foi um casa-<br />

mento meio difícil, não?<br />

Sílvio – Muito conturbado. Eu nunca entendi aquela relação entre meu pai e minha mãe.<br />

Era difícil. Minha mãe acusava meu pai de alguma coisa; por outro lado, meu pai re-<br />

clamava muito da minha mãe. O fato é que eu nunca entendi muito bem a relação deles.<br />

Houve algumas separações, alguns anos de separações, mas <strong>sem</strong>pre se tentava unir a<br />

família. Algumas vezes, meu pai deixou a gente e foi viver em São Paulo, atrás de ser-<br />

viço; outra vez, minha mãe puxou a gente com o tio Inácio, que tinha um caminhão.<br />

369


Isso no tempo em que a gente morava em Caruaru. Ela jogou as coisas em cima do ca-<br />

minhão e fomos para Petrolina, morar lá. E meu pai ficou em Caruaru e logo seguiu<br />

para São Paulo. Passados alguns anos, ele voltou a Petrolina e conseguiu levar a gente<br />

para São Paulo, novamente. Essa época foi meio complicada, porque nós chegamos lá<br />

praticamente com uma mão na frente e outra atrás, buscando recomeçar a vida, não é?<br />

Mas... conseguimos.<br />

Antônio – Severino gostava muito de, repentinamente, viajar para o “Norte” (Nor-<br />

deste). Você lembra alguma história que ele tenha contado desse tipo de viagem-<br />

aventura?<br />

Sílvio – Olha, eu lembro bem que, em 1996, nós viemos para o Norte, de novo. Aí já<br />

viemos eu, minha mãe, o Edilson, a Sônia mais o marido dela e o Edinaldo, de tio Ma-<br />

noel. Essa viagem foi muito boa com a vinda para cá. Nós ficamos na casa do tio Val-<br />

deci, e a Sônia ficou na casa do tio Manoel. Eu sei que ele gostava muito de estar naque-<br />

le ambiente. Gostava de passear e comer uns doces, tomar leite, comer cuscuz com lei-<br />

te... Gostava demais de ficar nesse ambiente daqui do Nordeste. Eu sei também que nes-<br />

sa viagem houve um desentendimento entre mim e o marido de Sônia, o José Carlos, e<br />

meu pai ficou brabo com isso. Nós estávamos na casa do tio Manoel. Minha sobrinha<br />

pequena dava um certo trabalho, junto com a minha filha. Eu sei que houve um desen-<br />

tendimento com a Sônia por causa da menina, e o Zé Carlos tomou as dores. Aí saímos<br />

na porrada (ri...). Meu pai ficou revoltado com essa situação e resolveu viajar de volta.<br />

Pegou as coisas, jogou na Kombi e não teve conversa, tivemos que vir embora. Mas,<br />

mesmo acontecendo isso, foi muito boa a nossa vinda aqui porque tivemos a oportuni-<br />

dade de recordar algumas coisas e vimos a situação do povo daqui, muito acolhedor, e o<br />

pessoal que veio com a gente não entendia muito bem o que é família junto com outra<br />

família. Isso para mim foi marcante.<br />

Antônio – Gostaria que você falasse de sua relação com os seus irmãos: Sônia, E-<br />

dilson e Silvestre...<br />

Sílvio – A relação minha com meu pai foi muito boa. Com a Sônia, também. A Sônia,<br />

até no momento de dor, esteve <strong>sem</strong>pre ao lado dele. Fez tudo por ele. Inclusive ela se<br />

encontra meio adoentada, hoje, por esse motivo. Ela gostava muito dele, e ele gostava<br />

demais das netas: da Ellen, Thais, Gustavo, ele gostava muito. O Silvestre teve uma<br />

370


elação muito conturbada com o meu pai. Mais ou menos no ano de 1978, a casa onde a<br />

gente morava, na Vila Ema, era o fundo de uma casa, cujo proprietário morava na fren-<br />

te. Mas a nossa morada era muito conturbada; muita inveja, promiscuidade e intromis-<br />

são com as coisas que a gente tinha. Era turbulento, porque esse pessoal, proprietário,<br />

não deixava a gente em paz. Nós morávamos numa casa de dois cômodos e tínhamos<br />

que dividir um quarto com todo mundo. Era uma dormida meio sofrida. Mas era muito<br />

boa, pena que o pessoal da frente às vezes conturbava o ambiente e, por algumas vezes,<br />

minha mãe teve atrito com a mulher do proprietário da casa. Numa dessas vezes, a mu-<br />

lher tentou matar minha mãe, jogando-a lá de cima da lage de cobertura. Eu não fiquei<br />

sabendo ao certo o que aconteceu, mas resolvemos sair de lá, pois a situação estava in-<br />

sustentável. Saímos de lá e fomos morar em Itaquera. A relação entre pai e filhos era<br />

boa, só com o Silvestre é que tinha alguns problemas. Com o Edilson, não. Nos últimos<br />

anos de vida de meu pai, Edilson o acolheu bem, cuidou bem dele e, algumas vezes,<br />

levou-o a um posto de saúde porque ficou sabendo que ele sofria de arritmia, ou sopro<br />

no coração. E ele começou a tratar do meu pai, levando-o aos médicos, ao posto. Meu<br />

pai gostava de ficar com o Edilson. Agora, com o Silvestre, a relação era por demais<br />

complicada, e eu não entendia o porquê, mas nos últimos anos de vida de meu pai ele<br />

conseguiu obter o perdão. E houve esse perdão entre eles. Eu acredito até que, depois<br />

disso, a relação ficou boa. Mas foi muito repentina a perda do pai.<br />

Antônio – Sílvio, fale de sua família. Você é casado há quanto tempo, tem filhos?<br />

Sílvio – Ah, sim! Sou casado... a minha filha nasceu antes de acontecer o casamento.<br />

Ela agora vai fazer 23 anos. Tenho três filhos, que nasceram um após o outro. O mais<br />

novo, Vinícius, vai ser pai agora. A garota com quem namora é muito bacana; aliás,<br />

nem sei se estão namorando agora. Tem o filho do meio, que é o Renan, e para mim ele<br />

é uma bênção. É um filho dedicado, está na igreja evangélica que eu frequento, toca<br />

baixo, toca guitarra, toca bateria, e isso para mim, é gratificante porque ele não me dá<br />

trabalho. Já o Vinicius me dá um pouco de trabalho, mas agora ele está trabalhando no<br />

SENAC e acredito que em algumas horas eu tenho que puxar o freio dele porque ele é<br />

atirado a fazer as coisas, né... Mas, finalmente, é muito boa a relação entre eles e mim.<br />

Gosto muito deles e procuro dar assistência a eles naquilo que eu posso. Pelo lado da<br />

mãe, eles também têm muito aconselhamento e respeitam a nossa autoridade. Quanto à<br />

Erica, está para casar. Ela namora um policial, e eu gosto muito dele, do Leandro, da<br />

371


Lea e da Carol... gosto muito deles. Não há uma relação de aparência, eu gosto de fato<br />

muito deles. Essa é a minha família.<br />

Antônio – Para terminar, gostaria que você falasse de sua mãe, Erotides.<br />

Sílvio – A minha mãe, devido a ela ter tido essa relação conturbada com meu pai, por<br />

algumas vezes ela nos abandonou. Mas, <strong>sem</strong>pre que havia uma conversa, ela se retrata-<br />

va e nos tratava muito bem. Foi muito batalhadora, trabalhei junto com ela de “marretei-<br />

ro”, corremos muito do comando da prefeitura. Minha mãe <strong>sem</strong>pre nos ajudou. Hoje,<br />

ela mora em Batatais e está satisfeita com a casa que ela adquiriu junto com o Edilson.<br />

Gosta muito do local, está muito bem. Eu acho muito gratificante o envelhecimento<br />

dela, afinal ela está com saúde, come que é uma beleza, come bem... Pra comer, a velhi-<br />

nha é terrível. Quando nós vamos lá, ela nos trata muito bem, faz uma festa com os ne-<br />

tos... faz uma festa formidável. Gosta de um forró que não é mole. No ano retrasado, eu<br />

estive aqui no Nordeste. Passei lá na casa dela e, a peguei, juntamente com um velho<br />

com quem ela estava lá e viemos para o Nordeste. Chegamos aqui e fizemos uma farra<br />

danada. Um dia ficava na casa de um, no dia seguinte ficava combinado de ir à casa de<br />

outro, e assim foi. O velho gostou também muito do lugar. Só que, na volta, quase que<br />

ele morre. Foi muito sofrida a volta do homem, ele quase morreu. Mas minha mãe gos-<br />

tou demais de ter vindo aqui. Pena que não houve mais tempo para a gente poder visitar<br />

o resto dos parentes, tanto da parte do meu pai quanto da parte dela. Tenho uma tia, es-<br />

posa do tio Anísio, que é a tia Enedina. Gosto muito da tia Enedina, como também gos-<br />

to muito do tio Anísio. No ano passado estive lá com eles, no Mato Grosso do Sul. Foi<br />

também uma viagem repentina. Peguei o ônibus em São Paulo, chegamos lá, em Arapu-<br />

á, tomei uma chuva danada até encontrar um rapaz que tinha lá uma casinha na beira da<br />

estrada e que nos serviu um café. Aí eu liguei para a tia e ela avisou para o tio vir nos<br />

buscar, o que ele fez. A gente ficou esperando na beira da estrada. Gosto muito da mi-<br />

nha tia, gosto muito mesmo, gosto mesmo de verdade. Ela é minha segunda mãe. Ela<br />

também gosta muito dos meus filhos. É a madrinha do Vinícius. Gosto do tio Anísio,<br />

um grande pescador. Nós fomos pescar por lá; ele larga tudo para fazer uma pescaria e<br />

uma caçada. Larga tudo, esquece que tem filho, esquece que tem mulher, só pra fazer<br />

essa parte aí que toca muito a ele. A nossa relação de tio e sobrinho é muito boa.<br />

Antônio – E sua relação e lembranças com os demais tios e parentes?<br />

372


Sílvio – Eu gostava muito de tio Barbeiro, que era outro que apreciava muito colocar<br />

apelido. Ele me botou um apelido e me chamava de “o santo”. “Fala, santo”! Esse era o<br />

modo dele falar comigo. Eu <strong>sem</strong>pre gostei do tio Barbeiro. Era ele quem cortava o meu<br />

cabelo. Gosto também do Zenildo. Da tia Conceição, gosto demais dela. Ela se sente<br />

muito bem e feliz quando nós vamos lá visitá-la, eu com os meus filhos. Da madrinha<br />

Virgínia, também, gosto muito. Só que está faltando tempo para rever os parentes, e é<br />

uma coisa de que eu gosto <strong>sem</strong>pre. Ainda tem o pessoal que mora na Vila Ema, tem o<br />

Givaldo, aliás, tem agora a casa do Givaldo, tem os filhos dele, a esposa. Tem o Elias e<br />

tenho ido à casa dele. Estive no casamento da filha dele, minha prima, recentemente, e<br />

foi muito bom e muito bonito... Só que o tio está deixando a desejar com a saúde dele.<br />

Ele não está se cuidando, apesar do pessoal cuidar muito bem dele. Tratam dele muito<br />

bem, mas ele não está se cuidando. Está deixando a saúde se debilitar cada vez mais. A<br />

tia Madia, de vez em quando eu vou à casa dela; a Maria, da tia Madia, também. Ela<br />

mora relativamente perto lá da gente. Outro dia, estive lá com o meu filho mais novo, o<br />

Vinícius. È uma relação muito boa, e gosto <strong>sem</strong>pre de estar visitando os meus parentes.<br />

Quanto aos demais parentes do Nordeste, tenho aqui o Senhor e, agora, só o tio Valdeci.<br />

Estive aqui no ano retrasado e larguei tudo para trás com o objetivo de ver o tio Valdeci,<br />

tia Nieta, o Chico... Gostei muito de ter vindo e achei tudo muito diferente do que era<br />

antes. O Zé Preto tinha falecido, havia pouco tempo. Ficamos, uma parte na casa do Tio<br />

Valdeci, e outra, na casa da tia Anísia. Mas, lá na casa do tio Manoel, achamos tudo<br />

muito abandonado, a casa caindo, mal-cuidada... O Chico não cuidava bem nem da casa<br />

nem da tia. Diferentemente de quando o tio Manoel era vivo, tudo era cuidado lá, o ma-<br />

to em volta da casa era cortado. Hoje, está tudo abandonado, lá. A casa do tio Valdeci,<br />

ele reformou e nos recebeu muito bem. Tá tudo muito bem-cuidado. Mas achei meio<br />

solitário, sentindo a falta de todo aquele pessoal lá, que vivia e convivia ao redor da<br />

casa. Muito solitário. Mas eu tinha que vir aqui e matar essa saudade. Eu gosto muito<br />

disso.<br />

Antonio – E você agora, neste momento?<br />

Sílvio – Eu estou gostando muito de estar nessa situação de poder viajar para onde eu<br />

tenha de fazer o meu trabalho. Nesta oportunidade, eu tinha que vir aqui à casa do tio<br />

Antônio. Não conhecia o Recife, nem o bairro dele, não conhecida a cidade. Mas eu<br />

tinha de vir na casa do tio nem que fosse por algumas horas. Estou muito bem recepcio-<br />

373


nado. Eu também quero conhecer o Ricardo, que eu não conheço. Quando o vi, ele tinha<br />

a idade de doze anos, me parece; lembro que ele tinha um cabelo loiro, liso. Mas não o<br />

conheço. Hoje, estou sabendo que ele tem família, tem duas filhas, e eu o quero conhe-<br />

cer. Eu estou aqui de passagem, mas, esta oportunidade não quero que passe em branco.<br />

374


José Guilherme dos Santos Filho (Jacaré)<br />

72<br />

Antônio – Jacaré, aqui estamos fazendo um trabalho para resgate da memória da<br />

família Siqueira. E isso deverá ficar como um tributo aos nossos filhos e netos. Seu<br />

nome completo...<br />

Jacaré – José Guilherme dos Santos Filho, filho de Maria Verônica dos Santos e de<br />

José Guilherme dos Santos. Atualmente, tenho cinquenta e nove anos e nasci no dia 21<br />

de outubro de 1950. Na família, eu sou o terceiro. A primeira que nasceu foi Maria<br />

(Guirra), depois o Givaldo (Giva) e, antes de mim, houve uma irmã mais velha do que<br />

eu, que faleceu; o nome dela era... (busca lembrar). Deixa pra lá, logo mais eu lembro.<br />

Depois, fui eu. Depois de mim, vieram o Toinho, o Osvaldo, o Erasmo, a Geni. Não, tio<br />

72 José Guilherme dos Santos Filho (Jacaré), filho de José Guilherme dos Santos (Zé Guilé, falecido) e<br />

Maria Verônica dos Santos (Madia). Vinte e oito dias após conceder esta entrevista o mesmo veio a falecer<br />

em consequência de trágico acidente em Paranaguá, onde residia. A decisão de entrevistar o Jacaré se<br />

deu em razão do mesmo ter uma prodigiosa memória e se apresentar como um grande narrador dos casos,<br />

fatos e acontecimentos da família. Especialmente no período bastante turvo dos anos sessenta e setenta no<br />

Brasil. Foi uma rara felicidade entrevistá-lo dias antes do seu falecimento, copiosamente pranteado por<br />

todos da família.<br />

375


Antônio, estou confundindo as coisas. A primeira foi Maria, depois Giva, eu, Toinho,<br />

Osvaldo, Geni, Erasmo, Reginaldo e Inaldo. Esses foram os vivos, porque teve umas<br />

perdas no caminho aí, algumas das meninas faleceram.<br />

Antônio – Jacaré, gostaria que você falasse de suas lembranças da infância lá no<br />

Riacho Queimado. Não precisa nem chegar até Santa Luzia...<br />

Jacaré – Não lembro muitas coisas, mas lembro que eu e o Toinho íamos buscar água.<br />

Era num jeguinho, a gente colocava o caçuá neles com quatro latas cheias de água, duas<br />

de cada lado e nós íamos pegar água lá na cacimba da avó, ali na Santa Luzia. Isso eu<br />

lembro que nós fazíamos. No mais, eu e o Toinho, a gente já botava comida pro gado,<br />

pegava berdoega... [tipo de erva sertaneja que brota nas várzeas durante o inverno<br />

e que serve de alimento para os animais]. Lembro bem que a avó Onca (Verônica,<br />

avó materna) pegava aquele queijinho dela e, naquela situação difícil, ela dividia tudo<br />

com a mãe. Lembro bem de vê-la na mesa dividindo o queijinho; retirava um pouco de<br />

leite e mandava a gente levar para a nossa casa. Isso aí eu lembro bem. E depois que a<br />

gente veio morar ali onde morou a velha Traquinada e a Mãe Velha (avó paterna, Ma-<br />

ria Guilherme), a gente (eu o Toinho) tinha como incumbência buscar o gado lá no<br />

Riacho Queimado, especialmente quando o Givaldo não podia fazer esse trabalho. Nós<br />

tínhamos umas cabecinhas de gado. Pai, nessa época, acho que já não estava mais lá e já<br />

tinha vindo para cá. De fato, eu não tenho uma lembrança firme de pai, ali no momento<br />

em que nós morávamos naquela casinha da Santa Luzia. Minha lembrança é um pouco<br />

vaga. Com relação a nossas casas, nós tivemos uma de taipa, ali no pé da serra, junto da<br />

várzea do açude. Aí acho que eu nem era nascido. A outra casa é a que pai construiu,<br />

uma casa de tijolo, lá no Riacho Queimado. É daí que tenho lembranças, de buscar á-<br />

gua... Eu acho que nasci ali naquela casa. Era para essa casa que eu e o Toinho carregá-<br />

vamos água no jumentinho.<br />

Antônio – Nessa época da casa do Riacho Queimado, você e Toinho faziam pernas<br />

com Elias e Valdeci?<br />

Jacaré – Eles já eram uns meninos maiores do que eu, né? Eles já eram mais “troncudi-<br />

nhos” do que a gente; eram maiores do que eu. O Givaldo, que era mais velho, fazia<br />

companhia com os dois, Elias e Valdeci. Eu apenas os acompanhava e ia atrás deles...<br />

Levava a pior. Pra matar corôca [nome popular das lagartixas no <strong>sertão</strong> de Pernam-<br />

376


uco], eles mandavam a mim. “Vai, mata ali, vai tu, vai tu...” Eu subia em cima de uma<br />

cerca e via aquelas bichonas balançando a cabeça; eu aí, “póf” na cabeça delas! No dia<br />

seguinte, a gente abria aquelas bocas na borracha do estilingue para marcar quantas co-<br />

rocas nós tínhamos matado...<br />

Antônio – Jacaré, você lembra algumas trelas que Givaldo tenha feito por lá, nessa<br />

época, com vocês?<br />

Jacaré – Olha, uma trela de Giva comigo eu não lembro. Não tenho lembrança de ele<br />

ter brigado ou judiado da gente. A única passagem dele, uma arte braba dele, foi botar<br />

fogo numa cerca. Isso está na minha lembrança, e eu fiquei com muita pena dele, sabe?<br />

O coitado ficou isolado, teve que fugir com a cara toda cheia de carvão... Ele tentou<br />

apagar o fogo e não conseguiu. Com certeza, ficou com medo de pai, da reação dele. E<br />

se amoitou lá na vizinhança, eu me lembro disso. E lembro que fiquei com dó dele, mas<br />

foi um sufoco para apagar o fogo. Pois é, tio, o que a gente fazia lá no Norte quando<br />

pequeno era carregar água, matar passarinho, juntava aqueles ossos de bois; eles eram o<br />

nosso brinquedo. Brincava de boi, de fazer curral. Quando chovia, o que era raro, os<br />

açudes enchiam e aí era aquela alegria, vinha muito peixe, o pessoal vinha tomar banho,<br />

era aquela alegria danada, não era? Antes da chuva, apareciam aqueles insetos da bunda<br />

grande, como é que elas eram chamadas? As tanajuras... Lembro que o pessoal gostava<br />

de comer aquilo como tira-gosto. Torravam, botavam sal e tomavam com cachaça. Isso<br />

eu lembro, o pessoal fazendo aquela festa...<br />

Antônio – Como era a relação de Zé Guilherme com vocês? Ele era muito rude,<br />

brabo e bruto com vocês?<br />

Jacaré – Não, pai não era uma pessoa, um pai bruto com a gente. Somente quando a<br />

gente aprontava algumas trelas. Mas era um homem justo, e eu não tenho nenhuma má-<br />

goa assim... Briguei com ele, assim, alguma coisa, mas lá no Paraná. Não tenho nenhu-<br />

ma lembrança de judiação de pai com a gente, não. Nunca vi maus tratos dele com a<br />

gente e nunca vi também pai brigar com mãe lá, no Nordeste... De jeito algum! Eles se<br />

davam bem. Quanto à relação de mãe com a gente, não tenho nem o que falar. Era uma<br />

pessoa muito paciente, vivia <strong>sem</strong>pre ajeitando a gente... Largava uma bronquinha na<br />

gente, mas era bronca de mãe mesmo. Uma pessoa muito maravilhosa.<br />

Antônio – O que você lembra do seu avô Zé Jorge?<br />

377


Jacaré – Do vô, eu tenho assim uma vaga lembrança. Mas lembro que era uma pessoa<br />

que a gente respeitava muito. Por isso, a gente tinha até certa timidez de nos aproximar<br />

dele. Mas eu gostava dele. Era aquele respeito por alguém meio sisudo, mas eu gostava<br />

dele. Ele era uma pessoa que estava acima da gente. Mas não me parecia ser um homem<br />

mau; eu não achava. Ele gostava muito de brincar comigo: “Venha cá, caboclo!” Ele,<br />

então, estendia a perna e abria aqueles dedões do pé, prendia o dedo da mão da gente e<br />

dizia: “Agora, escape!” A gente puxava, puxava e nada de escapar. E ele ria muito com<br />

aquilo. Ele tinha essa brincadeira comigo. A gente tinha um respeito meio “amedronta-<br />

do” por ele e procurávamos não desagradá-lo.<br />

Antônio – E da vó “Onca”?<br />

Jacaré - Nossa, nem me fale dela [emociona-se]. “Onca”, para mim, era mãe duas ve-<br />

zes. Não consigo nem lembrar as broncas que ela dava na gente. Se for, foi insignifican-<br />

te... [emociona-se...].<br />

Antônio – E a escolarização de vocês? Onde se deu e quem era a professora?<br />

Jacaré – Ah, tio, eu lembro muito vagamente que a gente ia lá, ao Vicente, como era<br />

mesmo o sobrenome dele? Vicente... Cabral, não?! Eu cheguei mesmo a frequentar a-<br />

quela escola dele, que ficava lá em cima, perto do açude do Estado. Mas como eu era<br />

muito pequeno, eu tenho apenas vaga lembrança. O que aconteceu é que eu comecei a<br />

estudar e, logo em seguida, nós mudamos para o Sul do país. Quando eu saí de Pernam-<br />

buco, eu não tinha sete anos completos. Apenas começávamos a estudar, e por isso não<br />

lembro de alguma professora assim que tenha me marcado. A única coisa que me mar-<br />

cou a lembrança é que, um dia, nós estávamos voltando da escola e vinha com a gente,<br />

eu e o Elias, um dos filhos do velho Valdevino, o mais novo deles; era Bia. Nós vínha-<br />

mos voltando e aí a gente correu até uma pedrinha que tinha no caminho, onde <strong>sem</strong>pre a<br />

gente aproveitava para descansar. Só sei que uma cobra jararaca pegou na mão dele e<br />

picou. Lembro que ele a levantou, assim, ainda dependurada no dedo dele. Ele, então,<br />

passou mal... Danaram leite nele, só sei que ele escapou do veneno da bicha, mas o coi-<br />

tado passou feio. Escapou de morrer por pouco. Pois é, da escola tenho uma vaga lem-<br />

brança, porque apenas eu começava a frequentar. Eu acho, tio, que naquela época a gen-<br />

te começava a frequentar a escola com a idade de sete anos, não era?<br />

378


Antônio – Se você tivesse a possibilidade de desenhar ou descrever hoje uma foto-<br />

grafia do Riacho Queimado, fale de três coisas que você colocaria nela...<br />

Jacaré – O que eu colocaria em primeiro, talvez porque isso me marcou muito, seria pai<br />

vendo o fogo que Givaldo ateou à cerca. Eu não sabia onde estava o Givaldo e só lem-<br />

bro o pai na porta de casa olhando aquele fogo arder... A segunda coisa que eu colocaria<br />

na foto é a imagem de uma irmã minha, morta, em cima da mesa. Isso me marcou mui-<br />

to, vendo aquele corpinho dela ali. A terceira coisa, tio, é a gente passando por aquele<br />

caminho perto de onde a mãe velha morava, ali perto da casa da velha Traquinada. Mãe<br />

Velha morou ali, não? Eu lembro que a gente passava ali, pedia água pra ela e me mar-<br />

cou muito. Recordo que, antes de chegar à casa dela, tinha uma árvore – não sei se era<br />

aroeira - e nela tinha um ninho de “casaca-de-couro” [ave passeriforme da família dos<br />

furnariídeos (Pseudoseisura cristata), encontrada no Brasil (NE e C-O), Paraguai e<br />

Bolívia; com cerca de 21 cm de comprimento, topete alto, olhos amarelos e colori-<br />

dos ferrugíneo-claros uniforme; carrega-madeira-do-<strong>sertão</strong>, carrega-madeira-<br />

grande], e o canto deles ficou na minha mente até hoje, acredita? A gente chegava à<br />

tardinha e, lá da porta de casa, víamos quando elas disparavam a cantar. Essas são as<br />

três coisas mais marcantes que eu consigo lembrar. Depois que a gente veio morar ali,<br />

na Santa Luzia, lembro que eu e o Toinho fomos buscar o gado lá no Riacho Queimado,<br />

e quando a gente estava ali naquela manguinha do fio do telégrafo, verificamos que uma<br />

novilha tinha dado cria e tinha furado a cerca. Rapaz, essa novilha não queria se juntar<br />

ao gado e bem nesse local estava o “f. d. p.” do carneiro Malaquias. Brabo, que nem o<br />

satanás. Ah, miserável! E quando eu e o Toinho tentávamos juntar a novilha com o ga-<br />

do, lá vinha ele e, nessa hora, nós tínhamos que correr e subir em cima da cerca. Pode<br />

um negócio desses? E o danado do carneiro rodeando, a hora passando e a noite che-<br />

gando. Olha que sacrifício. Eu sei que nós tivemos de ir embora, deixando a vaca lá e<br />

trazendo a outra do Barbeiro que tinha tido cria. É aí que passamos ali pela casa da ve-<br />

lha Traquinada, que morou lá no Riacho Queimado e, como já era noite, ela nos deu um<br />

facheiro para a gente voltar até o bebedouro ali de Zé Bernardo, pertinho da casa do tio<br />

Manoel. Ali, naquele corredorzinho da estrada, antes da ponte do Tio Manoel, o bezerro<br />

da vaca do Barbeiro escapou. A vaca também era braba que só a peste. Daqui a pouco,<br />

lá vem a vaca atrás do bezerro, e aí eu tive que subir numa cerca e o Toinho ficou es-<br />

condido atrás de uma touceira de ariú [rindo muito]. Um sufoco danado. Nisso, vem o<br />

379


Givaldo e o Valdeci e nos ajudaram. Era um escuro danado! E a gente era tudo uns ca-<br />

beçudinhos, uns sambudos.<br />

Antônio – Vocês saíram lá do Riacho Queimado e vieram pra Santa Luzia morar<br />

ali naquela casinha da bodega que o Zé Guilherme construiu?<br />

Jacaré – A gente morava ali naquela casinha de baixo e tocava a bodega. Foi a nossa<br />

última morada lá em Sertânia. Mãe era quem tocava a bodeguinha e lá ela vendia pão,<br />

não sei quem era o padeiro em Sertânia, não sei se era Zé Morais. Ela vendia uns pães e<br />

também uns docinhos pequenos, umas “mariolas”. Eu dormia com mãe para evitar rou-<br />

bo à noite. Logo que ela dormia, eu roubava aqueles docinhos e também um pão bem<br />

grande, que era feito de massa de péssima qualidade, meio trigo, meio xerém. E eu ia<br />

comer aquilo escondido lá longe no curral [rindo muito]. Eu roubava aquilo da coitada.<br />

E o pior era que, no dia seguinte, ela perguntava: “Tu não mexestes nisso aqui?” Eu<br />

dizia: “Não mãe, eu não mexi não!”. Só sei que num dia desses ela foi viajar e a Mãe<br />

Velha ficou tomando conta da bodega. Eu não sei se Mãe Velha morava com a gente ou<br />

morava na casa que foi do Barbeiro. Eu sei que ela ficou tomando conta da bodega. Eu<br />

lembro, então, que num certo dia ventou bastante e apagou a lamparina, né? [rindo<br />

muito]. Aí eu vi o tempo de roubar... Mãe Velha rodando os braços e gritando “Sai da-<br />

qui, cabra safado”! E ficou com as mãos em cima do balaio... [rindo muito] Eu acho<br />

que Deus me ajudou a aprender a fazer pão, mas não tinha explicação. A Mãe Velha<br />

preocupada com a lamparina apagada para que não se roubasse o pão da padaria.<br />

Antônio – Jacaré, o que você lembra dos seus tios mais velhos que Elias e Valdeci...<br />

Porque tinha acima deles eu, Anísio, Severino, Conceição... Que tipo de lembrança<br />

você tem de nós?<br />

Jacaré – De vocês todos eu tenho pouca lembrança, do Anísio, por exemplo. Do senhor<br />

eu lembro quando ia estudar. Lembro que ia e voltava, era uma festa, muito gostoso<br />

quando o senhor voltava, era grande a alegria do pessoal. Isso eu lembro. Eu lembro<br />

também daquelas colheitas que o vô fazia, naquele tempo, acho que era de algodão, né?<br />

Tenho também uma lembrança de Conconha (Conceição) tentando namorar não sei<br />

quem diabo era. Só sei que era uma paquera. Ela ficava ali naquela janelinha da sala, e<br />

os caras pesando algodão, aquelas arrobas de algodão e ela na paquera. Mas não lembro<br />

o cara que ela tentava paquerar. Não sei se era Luís Gomes, filho de Maria Gomes. Luís<br />

380


Gomes foi meu padrinho. Lembro que um irmão dele roubou um sapato. Sei que esse<br />

irmão de Luís Gomes roubou um par de sapatos em Sertânia e o irmão dele ficou puto<br />

da vida com o cara. O vô, então, ficou indignado. E esse cara terminou se amoitando ali<br />

naquela manga que fica lá pro lado de tio Manoel; como era que se chamava? Zé Ber-<br />

nardo. Era Zé Bernardo. Eu sei que o cara se amoitou lá nos pés de bananeira, e a polí-<br />

cia veio catar ele e catou. A Virgínia deve se lembrar disso. E certamente deve lembrar<br />

a paquera da Conconha. Do tio Anísio, eu não lembro as danadas das caçadas que ele<br />

fazia nem das pescarias... Não tenho nem vaga lembrança, assim, dessas coisas. Do<br />

Barbeiro, eu lembro assim com a tia Edite. E do senhor, eu lembro quando vinha para as<br />

férias. Era uma festa, era muito animado quando o senhor vinha. Do Juca (Severino), eu<br />

lembro quando ele chegava com a camionete dele, aquele cheirinho gostoso de carro a<br />

gasolina. Era um zelo danado que ele tinha com aquele carro dele.<br />

Antônio – Bem, aqui a gente encerra essa fase de sua infância lá em Sertânia; você<br />

era apenas um garoto com a idade de sete anos incompletos. Muito novo para lem-<br />

brar tanta coisa como as que lembrou. Agora, vem a pergunta: e depois disso?<br />

Jacaré – Agora vem a viagem para o Sul.<br />

William – Jacaré, uma curiosidade minha: o que aconteceu no dia em que vocês<br />

souberam que vinham embora para o Sul? Como vocês receberam essa notícia?<br />

Jacaré – Eu tenho assim uma vaga lembrança que a mãe falou para o vô que queria vir<br />

embora para cá. E pai já estava certo de voltar do Sul para o Nordeste. Quando a mãe<br />

soube da notícia que ele estava para voltar, aí ela apressou a viagem da gente. Ela falou<br />

para o vô, e ele não impediu ela de viajar. Disse “Você é quem sabe!”. Nessas alturas,<br />

eu e os outros ficamos muito alegres. Primeiro, pela viagem, pensou? Sabia que íamos<br />

de pau-de-arara, mas nem pressentíamos o sofrimento que iríamos enfrentar. Minha mãe<br />

se juntou com Zé... Zé Miguel, sei lá, juntou uma turma lá... Não me lembro de ter fica-<br />

do com pena de ter deixado amigos e colegas. Fiquei, sim, com pena de ter de deixar o<br />

vô e a vó. Isso aí a gente sentia muito. Mas, enfim, o normal era que você, enquanto<br />

criança, diante da possibilidade de uma viagem... A gente ficava era excitado.<br />

Antônio – Dessa viagem, o que ficou em sua memória desde o primeiro dia em que<br />

vocês saíram lá da Santa Luzia?<br />

381


Jacaré – Sofrimento teve muito. Agora, enquanto criança a gente não consegue enten-<br />

der a extensão desses sofrimentos... Eu lembro que, no primeiro dia, ou no segundo - e<br />

não sei qual o local onde a gente estava –, os bancos do pau-de-arara começaram a se<br />

quebrar. Quebrou um e ralou o couro do meu pé, aqui [aponta o local no calcanhar].<br />

Eu estava no lado, assim, do lastro do caminhão e um cara escarrou de lá e veio me pe-<br />

gar aquela patoca de catarro. Aí começaram os sofrimentos. Rodamos, rodamos e ter-<br />

minamos parando num lugar lá da Bahia, não sei qual era o lugar, só sei que era mesmo<br />

na estrada. O negrinho Liro, que vinha com a gente, juntou-se com outros homens lá e<br />

foram pegar um bode pra gente comer. Entraram lá na caatinga e cataram dois bodes.<br />

Eu lembro que, em Tucano, na Bahia, nós comemos esses bodes em praça pública, no<br />

meio da rua. Foi montada lá uma tenda num dos caminhões, e aí nós comemos esses<br />

bodes. Eu acho que foi em Tucano. A viagem continuou e, antes de chegar a Minas Ge-<br />

rais, tinha na viagem um moleque que fumava que só a gota serena e ele começou a<br />

judiar de mim. Ele me bateu e aí eu contei para o Giva. O Giva, então, lhe deu uma “en-<br />

costada” boa, e ele parou de me incomodar. O bicho era marrudinho, mais forte do que<br />

eu, e acho que ele me deu um soco. Em Minas Gerais, eu lembro que nós paramos, e<br />

mãe não tinha mais dinheiro. Ela tinha um bauzinho, uma mala pequena. Ela, então,<br />

vendeu essa mala para pegar um dinheirinho e comprar comida pra gente. Eu sei que era<br />

uma lama danada. Muitos dormiam em umas redes armadas no caminhão... Ali, nós<br />

comemos farinha e cebola, aquele pirão, sabe, tio? Eu me lembro que nós comemos isso<br />

aí. Eu sei que foi um sufoco danado a partir daí. Tivemos que sair à noite atrás de um<br />

caminhão para nos levar até o final da viagem, na Imigração. Os caras do pau-de-arara<br />

nos abandonaram, não sei em qual lugar. A polícia, então, foi atrás deles e os obrigaram<br />

a nos trazer até Vitória da Conquista ou Governador Valadares, em Minas, acho. Aí<br />

nesse lugar é que o Osvaldo, que estava brincando com outros meninos, caiu dentro de<br />

uma boca-de-lobo. A mãe de seu Terto puxou, então, o Osvaldo pensando que era o<br />

filho dela, e mãe só percebeu que era o Osvaldo quando foi lavar aquela lama preta de<br />

esgoto que melou ele todo... “Não é o teu filho, não, mulher! É o meu mesmo!” Dali,<br />

chegando a São Paulo, nós fomos pegar um transporte, creio que era o setor da Imigra-<br />

ção. Essa viagem que fizemos do Norte até São Paulo foi feita num velho caminhão<br />

FNM (abreviação da Fábrica Nacional de Motores). Foi aí que o Givaldo adoeceu e<br />

ficou morrendo de febre. Deitou-se na porta de um bar abandonado, que estava fechada,<br />

e ele ficou lá, dormindo. Depois de andar um bom pedaço, a gente se deu conta de que o<br />

382


Givaldo não estava mais com a gente. “Cadê o Givaldo, cadê o Givaldo”... Tivemos que<br />

voltar, e o encontramos deitadinho ali na porta do bar. Em São Paulo, a lembrança que<br />

tenho é que nós chegamos à rodoviária. Aquela luminosidade, aquela claridade! Aí já<br />

não vimos mais mãe. “Cadê mãe?” O fato é que o Erasmo vinha mais do que ruinzinho<br />

de saúde, e aí uma cafetina, vendo aquela preocupação de mãe, pegou um taxi e a levou<br />

com o Erasmo para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Nós ficamos alojados lá<br />

numa pensão... Um pernilongo do satanás, né? Gente tossindo, outros com caganeira,<br />

um calor infernal... Logo que a gente chegou à Estação da Luz, acho que nos deram<br />

melancia. A gente era muito pequeno e não sabia que decisão tomar, não era? Quem<br />

ficou mexendo no primeiro dia foi Zé de Melo. Lembro que, no segundo dia, acho, vi<br />

uma camionete passar e dentro dela estavam o tio Severino e o tio Anísio. Foi aquela<br />

alegria!<br />

Antônio – A partir desse momento, o que você consegue lembrar na sequencia des-<br />

sa sofrida viagem?<br />

Jacaré – Nós fomos trazidos para a casa da tia Flora, na Vila Carioca. E ali nós ficamos<br />

por uns dois ou três dias; talvez uma <strong>sem</strong>ana, tio. Acho que ficamos aí uma <strong>sem</strong>ana.<br />

Lembro também que nos fundos da casa tinha assim uma água, muita lama de esgoto,<br />

uma terra preta onde a gente passou a jogar bola e ficamos brincando ali. Lembro de<br />

nessa ocasião ter visto o Branco e o Sebinha, filhos da tia Naninha, irmã de Zeca. Eles<br />

também eram pequenos, e a gente ficava ali junto, conversando e brincando naquela<br />

água. Só isso, o que lembro é só isso. Dali, lembro da nossa saída no trem da Imigração.<br />

Aí o pai já tinha vindo nos buscar, e eu o lembro viajando com a gente no trem, indo<br />

para o interior do Paraná, até Maringá, acho. Daí em diante, não me lembro como che-<br />

gamos ao lugar onde iríamos morar, Cafeeiros.<br />

Antônio – Vamos nos concentrar agora no oeste do Paraná, em Cafeeiros. Como<br />

foi a infância ali? Vocês frequentavam a escola? O que se lembra dessa época da<br />

escola?<br />

Jacaré – Eu lembro que a gente trabalhava e ia ali para aquela escolinha. Tinha um se-<br />

nhor que possuía como patrimônio uma fazenda de café. E pai recebeu um pequeno<br />

pedaço de terra para plantar e colher café. E nós nos danávamos a cultivar e colher café.<br />

Depois de certo tempo - não sei quanto –, lembro que a tia Flora foi até lá nos visitar.<br />

383


Ela ficou uns dias com a gente, conversou com mãe e levou o Givaldo com ela para São<br />

Paulo. Isso aí depois que conversaram um pouco entre eles, meu pai, mãe e tia Flora; a<br />

gente não sabia do que se tratava, nós éramos ainda molecotes. Nós não ficamos muito<br />

tempo ali em Cafeeiros, acho que ficamos apenas um ano e meio, dois anos quando<br />

muito. Nosso trabalho ali era rastelar café: eu, Toinho e mãe. Mãe apanhava o café e<br />

depois limpava o café na urupema. Com aqueles saquinhos de café, fomos economizan-<br />

do e juntamos um pouco de dinheiro. Pai trabalhou muito ali. Daí saímos de lá para Pé-<br />

rola. Ele comprou um sitiozinho lá, que distava uns trinta quilômetros de Cafeeiros. Em<br />

Pérola, o sítio ficava no meio de uma mata virgem. Conosco, foi para lá também o Liro<br />

de Xéu. Aí eles fizeram uma derrubada de um hectare e vinte e pai fez uma casinha de<br />

madeira, inclusive as telhas eram de cedro e de peroba. E foi pai quem fez. Daí eu lem-<br />

bro que nós mudamos de Cafeeiros para esta casa em Pérola. As condições eram difí-<br />

ceis. Toco por tudo quanto é lado, roça nova, não é? Foi um sufoco danado. Frio pra<br />

cacete; a gente ia a pé para a escola, numa distância de seis quilômetros, eu e o Toinho.<br />

Era frio mesmo, e a gente vestido naquele guarda-pozinho do cacete... Numa distância<br />

de seis quilômetros pra ir e seis prá voltar. Minhas professoras, puxa vida, tio! Eram<br />

pessoas maravilhosas. Uma era Maria Helena, e a outra, gorda, já de idade. Estou ten-<br />

tando lembrar o nome dela. Era... Esqueci o nome dela... Até um ano e meio atrás, eu<br />

fui lá com Irene visitar Pérola e perguntei por ela e me disseram que ainda era viva. Ma-<br />

ria Helena e outra... Japonesa. Eram muito boas essas professoras. A escola era uma<br />

casa de madeira, um nível de escolaridade muito bom no Paraná daquela época. Nei<br />

Braga era o governador do Estado. Uma escola muito boa. Aprendi bastante lá. Lembro<br />

que foi lá, onde tinha uma igreja ao lado da escola, que uns irmãos coadjutores que vie-<br />

ram de Minas Gerais procuraram saber quem é que tinha vocação para ser padre. Eu não<br />

tinha vocação. Minha mãe, então, falou: “Meu filho, você topa ir para o <strong>sem</strong>inário?” Eu<br />

respondi: “Eu topo, mãe; nem que seja pra pegar estudo, eu vou”. Ela foi, então, conver-<br />

sar com aqueles padres, e eles deram uma listinha do que era necessário. Sabendo das<br />

nossas dificuldades, eles sugeriram meu pai vender um porco para adquirir aqueles ob-<br />

jetos. Não sei se pai, ou por covardia, ou mesmo com medo de me perder, eu sei que ele<br />

não quis ir adiante. Era para estudar em Minas Gerais. Mas eu tinha vontade de enfren-<br />

tar aquilo, afinal eu queria estudar, né? O dia-a-dia da gente era acordar cedo; algo as-<br />

sim como às seis horas a gente tinha que levantar. Geada, frio pra cacete... Você via<br />

aquela graminha, assim, coberta de gelo, mas gelo mesmo... As orelhas queimavam, os<br />

384


eiços rachavam. Às sete horas, a gente ia para a escola. O caminho da escola era um<br />

areião danado. Um dia, eu e o Toinho estávamos no caminho da escola e ainda faltava<br />

muito pra chegar. E aí vimos um ônibus de empresa Garcia. Eu, então, fiz sinal para o<br />

ônibus e ele parou. Nós entramos de porta adentro. Ai o motorista falou prá nós: “Vocês<br />

têm dinheiro para a passagem?” “Não, senhor!” “E como é que vocês para um ônibus<br />

para viajar <strong>sem</strong> ter dinheiro?” (rindo muito). A gente, então, disse prá ele: “Tá muito<br />

frio, a gente não aguenta mais esse frio”. Ele disse: “Tá bem, dessa vez eu vou perdoar,<br />

mas na próxima vez não façam mais isso” (rindo muito). Só sei que nos levou até per-<br />

tinho da escola... Tá louco, como fazia frio naquele dia! As aulas acabavam às onze, as<br />

onze e meia... A gente com uma fome daquelas e <strong>sem</strong> um tostão. Lembro que a gente<br />

passava defronte de um restaurante, ainda lembro o nome: “Tio Barole”. Aquele cheiro<br />

de comida, e a gente ainda tinha que andar seis quilômetros a pé. Areião, sol quente. No<br />

caminho da volta, tinha uma mata e no meio dela tinha jatobá. A gente comia jatobá e<br />

chegávamos a casa por volta de uma hora e meia. Comíamos aquela comidinha e aí, por<br />

volta de duas e meia, três horas, tínhamos que ir para a roça. Nós ficávamos lá até o<br />

“polvinha” atacar a gente. Era um mosquitinho bem pequeno que entrava na orelha da<br />

gente; ele entra onde tiver buraco e morde. Era um inferno, tio! Nossas brincadeiras era<br />

jogar bola, com bola de meia, caçar passarinho, tomar banho numas cachoeirinhas que<br />

tinha lá perto, cuidar dos porcos. Essa era a nossa vida no dia-a-dia do Paraná.<br />

Antônio – Jacaré, nesse mesmo período a que você se refere, recordo que numa de<br />

minhas férias de fim de ano – eu estudava no <strong>sem</strong>inário de Viamão, na grande Por-<br />

to Alegre, creio mesmo que era em dezembro de 1961 – eu, Duda e Givaldo fomos<br />

de São Paulo a Pérola fazer uma visita a vocês. O que você lembra dessa visita?<br />

Jacaré – Lembro, Nossa Senhora, foi um dos melhores acontecimentos tidos por lá.<br />

Antônio – Nessa ocasião, lembro bem que o calor era insuportável. E nós tínhamos<br />

a opção de nos banhar numas cachoeiras lá perto - eu, Duda e Givaldo. Lembro<br />

também que nós dormíamos num quartinho lá na casa onde Zé Guilherme guar-<br />

dava feijão em vagem, seco e, à noite, os guabirus vinham comer do feijão, passan-<br />

do por cima de nós, das camas... Duda ficava todo crispado com aqueles ratões<br />

passando por cima dele, e eu dizia que ele estava era com saudades de Terezinha.<br />

Ele, então, respondia: “Ôxe, ôxe, ôxe”... Lembro também que Madia estava com<br />

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uma ferida braba na perna que teimava em não sarar. Aquilo me encheu de pena<br />

dela. Fui à farmácia, comprei água oxigenada, um pó cicatrizante, - acho que era<br />

de nome “Anaseptil” -, esparadrapo etc. Dei a ela. Não sei se você recorda disso...<br />

Jacaré – Lembro, lembro bem disso tudo... Inclusive, falando desse quartinho onde pai<br />

guardava cereais, lembro que tinha rato pra cacete. Os guabirus subiam no telhado, des-<br />

ciam pelo caibro e ficavam em cima da parede comendo o cereal. Um dia, eu disse prá<br />

mim: vou pegar este “f.d.p.” Era cada catitão... Um escuro, meu. E eu ficava só na espe-<br />

ra que ele passasse. Numa dessas horas, fechei as mãos e catei o catito velho, crau!... O<br />

lazarento danou-me o dente no dedo, cortou, assim a ponta do dedo. Eu, então, esma-<br />

guei o condenado e terminei enforcando o miserável (rindo muito). Era um catitão da<br />

gota de grande.<br />

Antônio – Numa dessas vezes em que Zeca e Flora foram a Pérola, Zeca parece<br />

que matou uns frangos de Madia imaginando que estivesse vendo jacus...<br />

Jacaré – (rindo muito). Essa tragédia aconteceu em Pérola, onde você nos visitou. Foi<br />

aí que ele perpetrou essa tragédia. De manhã cedo, acho que nós estávamos colhendo<br />

milho e mãe fazendo o café. Lembro que ele falou assim pra mãe: “Eu vou matar uns<br />

jacus. Não vou nem lavar a boca e escovar os dentes para ir com todo o veneno”... (rin-<br />

do muito). De fato, naquelas matas tinha muito jacu. Eu o lembro contando que chegou<br />

assim no aceiro do mato e viu aquele pássaro preto... Disse, então: “É um jacu”. Nesse<br />

meio tempo, viu que tinha outro. Ele, então, contou que ia esperar para emparelhar os<br />

dois num só tiro (dá risada). Eu sei que ele sapecou fogo e matou os dois frangos de<br />

mãe. Voltou pra casa e, ao chegar com aqueles dois frangos, foi logo contando pra mãe:<br />

“Madia, olha aqui o que eu matei de um tiro só...” E a mãe: “Cabra safado, tu mataste<br />

meus frangos que eu estava deixando pra galo, que diabo de jacu que nada...” Foi uma<br />

bagunça e uma festa da gente, dando muitas risadas. O seu Zeca era cheio de arte, de<br />

vez em quando ele aprontava cada uma, que só vendo.<br />

Antônio – Como é que foi essa coisa de deixar o Paraná e vir aqui para São Paulo?<br />

O Givaldo já estava aqui, não?<br />

Jacaré – Olha, tio, nesse meio tempo em que estivemos no Paraná o vô Guilherme nos<br />

procurou lá, não sei de onde ele estava vindo, parece que de São Paulo ou mesmo do<br />

norte do Paraná. Eu lembro a imagem dele: uma camisinha suja, surrada... E foi muito<br />

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oa a estada dele lá com a gente. Ele ficou conosco um bom tempo, até que o pai conse-<br />

guiu um sítio do vizinho para ele tomar conta, e ele ficava ali, na casinha do vizinho.<br />

Gostava de futebol. Nos domingos, se mandava para Pérola e ficava o dia todinho lá, só<br />

voltando de noitinha. Foi uma passagem boa do velhinho na casa nossa lá. De noite, ele<br />

nos chamava para jogar baralho, truque. Eu lembro que eu e o Toinho corríamos lá, e<br />

pai, chegando a casa, <strong>sem</strong> ver a gente, o pai ia até o roçado e gritava:“Toinho”?! Ele não<br />

gostava que a gente pisasse na bola. Aí o vô dizia: “Vão embora, o pai de vocês está<br />

chamando”. A gente parava o truque e corria prá roça. O vô naquela época, creio que<br />

tinha uns cinquenta e poucos anos. Era fortinho o danado. Lembro que ia para os jo-<br />

gos... Certa feita, ele veio jantar lá em casa e comumente ele já vinha chutado de vinho.<br />

Ele tomava <strong>sem</strong>pre um vinhozinho. Por causa disso, ele danava-se a cochilar. Mãe, en-<br />

tão, dizia: “Pia, pia...” E a baba do vô pingava... (rindo). Eu adorava ver ele comer. Ele<br />

comia aqueles pratões de comida e ia comendo pelas bordas do prato, arrumando a co-<br />

mida bem arrumadinha... Ele chegava a esconder vinho no mato pra mãe não ver. O fato<br />

é que ele chegava bonzinho em casa e, de repente, ficava meio chumbado. Acho que ele<br />

tomava aquele copão. Nessas horas, mãe dizia: “Pia, o danado deve ter enterrado vinho<br />

nessas beiradas de mato por aí”... Mas foi muito bom a passagem dele com a gente lá.<br />

Nesse intervalo, pai comprou uma chácara perto, chamada Santa Elisa, distante uns seis<br />

quilômetros da nossa. A gente ia a pé até lá e, às vezes, ficávamos uma <strong>sem</strong>ana toda lá.<br />

Pai plantava arroz, e no rancho eu fazia a comida. O rancho ficava na beira da mata e<br />

tinha muita onça por lá. Pai construiu umas tarimbinhas, e a gente dormia em cima des-<br />

sas tarimbas. Eu ficava com ele por lá e já devia ter uns dez anos de idade. Terminei<br />

vindo aqui para São Paulo com treze anos.<br />

Antônio – Jacaré, seu sobrinho Cláudio lamentou muito não poder vir para parti-<br />

cipar dessa entrevista, onde ele gostaria de lhe fazer algumas perguntas. Por conta<br />

dos afazeres profissionais dele, não pôde comparecer, mas organizou aqui uma<br />

lista de questões que mandou pela internet para o Williams colocar para você no<br />

lugar dele. Lê aí, Williams, a primeira dessas questões que Cláudio lhe dirige...<br />

Williams – Algumas questões já foram colocadas. Outras, não sei. Aqui vai uma<br />

primeira pergunta: o que você sabe sobre a fazenda Matarina ou algumas histórias<br />

referentes às famílias Guilherme, Batista Torres e Siqueira?<br />

387


Jacaré – Da Matarina, sei poucas coisas, a não ser o que comentam mãe, tia Virgínia,<br />

tia Conceição. Eu <strong>sem</strong>pre soube que, enquanto estiveram lá, tiveram uma vida dura.<br />

Mas eu nunca fui lá, nem de visita. Dos Guilherme, não sei nada. Dos Batista Torres, sei<br />

o que Seu Zeca comentava, que a família trabalhava lá na Paraíba para um coronel e que<br />

a vida lá também tinha sido muito difícil. Eles perderam o pai deles lá e viveram uma<br />

situação muito difícil. O Seba, sendo o mais velho, tomou conta dos irmãos e irmãs, já<br />

como moradores do vô, em Sertânia.<br />

William – Tio, outra pergunta: quem foram os seus padrinhos e onde o Sr, foi bati-<br />

zado?<br />

Jacaré – Devo ter sido batizado em Sertânia. Os meus padrinhos de batismo foram tio<br />

Umbelino e madrinha Celina; o de crisma foi Carlos Gomes, filho de Maria Gomes e<br />

João Manoel, que moravam com o vô em Santa Luzia.<br />

William – Você sabe dizer em que igreja seus pais casaram e quando?<br />

Jacaré – Não sei. (Antônio: Jacaré sabe lá disso coisa nenhuma! A Virgínia é quem<br />

deve saber. Na entrevista, ela falou que Madia e Zé Guilherme casaram em Sertâ-<br />

nia, inclusive disse que lembrava que o vestido de casamento dela, da Madia, era<br />

muito bonito. Mas acredito que Madia pouco tenha comentado sobre esse assunto<br />

para os filhos. Acho que é isso que o Cláudio queria saber, não?)<br />

William – Tio Antônio, vamos retomar a memória dele sobre o Paraná. O Senhor<br />

encerra as suas perguntas e eu vou vendo o que Cláudio colocou aqui sobre o Pa-<br />

raná que ainda não foi abordado...<br />

Antônio – Ok. Tá certo. Jacaré, você gostaria ainda de falar algo sobre o Paraná,<br />

nesse período em que você estava em trânsito para São Paulo? Seu Guilherme, por<br />

exemplo, onde ele ficou? Teria vindo com vocês para São Paulo?<br />

Jacaré – Ele veio com a gente para São Paulo. Como ele era separado de Mãe Velha,<br />

eles se viram aqui; mas como eles nunca se “bicaram”, ela ficou morando com o Barbei-<br />

ro e ele com a gente. Mas separados. Lembro que ele ficou um bom tempo com a gente.<br />

Ocupava-se em vender pipoca num carrinho que ele tinha. A gente até roubava uma<br />

pipoquinha dele e ele então dizia: “Cabra <strong>sem</strong>-vergonha...” Ele era brincalhão com a<br />

gente. Ele pegou uma pneumonia dupla e foi internado no Hospital São Paulo, onde<br />

388


veio a falecer. Tanto a vó quanto o vô eram muito amorosos para com a gente. Eu, pelo<br />

menos, tive muita sorte com meus avós. Não tenho de que reclamar.<br />

Antônio – Como é que foi a sua vinda para São Paulo? Vocês saíram do Paraná,<br />

por quê? Como é que foi a viagem? (William: novamente, uma boa notícia: vamos<br />

viajar!... Lembra do dia? [todos riem])<br />

Jacaré – Acho que mãe <strong>sem</strong>pre foi uma mulher iluminada. Ela veio a São Paulo fazer<br />

uma visita a tia Flora – que era o carro-chefe da família – e possivelmente a tia aconse-<br />

lhou ela a migrar para São Paulo. Givaldo já estava em São Paulo, trazido pelas mãos da<br />

tia Flora e do Seu Zeca. Mãe voltou para o Paraná e voltou encantada com as coisas que<br />

viu por aqui. Ela contava que os caipiras que nós tanto gostávamos de ouvir e tínhamos<br />

de andar até a casa de uma comadre dela, à noite, no escuro de cinco quilômetros para<br />

ouvi-los pelo rádio, em São Paulo - dizia ela -, a gente podia ver e ouvi-los ao vivo. A<br />

gente ficou deslumbrado. Um mundo novo e diferente. Chegou decidida a ir embora<br />

para São Paulo e logo falou pro pai: “Vamos vender isso aqui e vamos embora para São<br />

Paulo, porque aqui nós não temos futuro, esses meninos não têm futuro”. Eu sei que ela<br />

fez a cabeça do pai, e nesse intermédio apareceu um problema no meu pé que rachava e<br />

sangrava, doendo muito. Por isso, foi antecipada minha vinda. Vim e fiquei morando na<br />

casa da tia Virgínia, morando juntamente com o Valdeci e a tia Conconha, ali no Ipiran-<br />

ga. Tão logo cheguei, a Conconha me levou lá no Hospital das Clínicas, e os estagiários<br />

de medicina me tomaram como um estudo de caso, receitaram uma pomada, e sei que<br />

logo fiquei sarado, me curaram. Nesse espaço de tempo, fiquei com a Conconha, naque-<br />

la rua... Auriverde. Era eu, o Chico (Valdeci), Conconha e a tia Virgínia. Dali eu fui<br />

ficar com tio Duda, na Rua Brás de Pina. Fiquei um tempinho ali com ele. Ele <strong>sem</strong>pre<br />

vinha trabalhando ali na Petersen. Tanto ele quanto a Terezinha me acolheram muito<br />

bem. Nesse intermédio, pai conseguiu vender lá o sitio e vieram embora para São Paulo.<br />

Aí foi mais uma luta danada, né? Pai conseguiu vender lá, e nós terminamos comprando<br />

aquele terreninho ali no Jardim Tealha, na Vila Ema. Não lembro o dinheirinho que ele<br />

tinha, não tinha a menor noção, apesar de já estar com treze anos, né? Eu e Givaldo - ele<br />

já morava com a tia Flora, e eu me juntei a ele - começamos a trabalhar juntos na firma<br />

dele. Nós dormíamos naquele porãozinho, ali embaixo da descida da escada da casa de<br />

Seu Zeca.<br />

389


William – Em algum momento, você ficou na casa do Anísio enquanto a casa de<br />

vocês ficava pronta?<br />

Jacaré – Acho que ficamos, sim. Logo que chegou a mudança, ficamos. Estávamos<br />

com a tia Flora, eu e o Givaldo. E, quando da vinda do pai, nós ficamos ali no quintal do<br />

Anísio, sim. Entre a casa do Anísio, que morava na frente, e a do Barbeiro, que ficava<br />

nos fundos do terreno.<br />

Antonio – Qual era o sentimento de vocês, os irmãos menores, ao saberem que o<br />

Givaldo já estava em São Paulo, como rapazinho, trabalhando, jogando futebol,<br />

bem-vestido... Qual era a sua sensação?<br />

Jacaré – Quando você foi lá com ele, no Paraná, meu Deus, a saudade dele era grande,<br />

e nós sonhávamos vir morar numa cidade grande. Quando alguém ia lá, a gente tinha a<br />

sensação de uma eternidade de tempo que não passava. A gente sonhando com alguém<br />

que voltasse lá. A nossa esperança era de um dia vir embora para São Paulo. Foi ai que<br />

mãe teve essa ideia. Sair daquela vida lá e, como falava-se bem da cidade grande, nosso<br />

sonho era sair de lá.<br />

Antônio – Jacaré, Givaldo falava a vocês de algum sentimento dele com relação a<br />

Flora e Zeca?<br />

Jacaré – Para ele, eram pai e mãe. Tinha que respeitá-los. A tia para ele, então, era mãe,<br />

era amiga, era tudo. Deram-lhe escola, trabalho, tudo. Ele tinha muito respeito também<br />

pelo Seu Zeca. Também ele era um cara disciplinado, não é, tio? Cuidava de mim. Foi<br />

ele quem um dia comprou aquela brilhantina de nome Glostora e passou na minha ca-<br />

beça, tentando botar os meus cabelos para trás. Eu dizia: “Meu Deus, tá doendo no co-<br />

co...” E ele: “Aguenta, eles têm que ir pra trás...” (rindo). Givaldo foi muito especial<br />

(enche os olhos de lágrimas).<br />

William – Você lembra o dia em que mudaram para a casa nova, lá no Jardim Te-<br />

alha?<br />

Jacaré – Olha, eu lembro que o tio Anísio – ele era um guerreiro danado, Givaldo tam-<br />

bém, e ate nós que já ajudávamos – estava à frente de tudo. Foi uma trabalheira danada.<br />

Quando nós mudamos, eu lembro que não tinha vitrô nas janelas, não tinha nada. Nós<br />

cobrimos aquilo com papelão, o chão era de cimentado rústico. Mas, fazer o quê? Nós<br />

mudamos. Com o tempo, nós todos, meninos, fomos cada um para o seu cantinho, né?<br />

Não tínhamos televisão e a gente, para assistir, tínhamos de ir lá, no Jarita (tio Anísio),<br />

390


incomodando a Nega (Enedina). Precisava ver nos dias de chuva, aquele barro vermelho<br />

nos sapatos; acredito que a Nega não gostava nada daquilo (rindo). A gente querendo<br />

ver aqueles filmes de guerra, de combate, enquanto a tia Enedina tinha aqueles progra-<br />

mas de auditório dela, da Hebe, não sei mais quem... Mas ela colocava os nossos pro-<br />

gramas para a gente poder assistir. Um barro danado... “Menino, limpa esses pés...” E<br />

nós todos, aqueles cabeçudos. Ai começou nova fase na vida da gente.<br />

Antônio – Com a chegada de vocês a São Paulo, vocês foram colocados na escola?<br />

Jacaré – Colocou, sim. Eu já vinha com um nível relativamente bom, não sei se era o<br />

quarto ano primário. Meu nível era tão bom, tio, que eles me colocaram no Ciclo Operá-<br />

rio, algo assim como um Supletivo, sei lá... Algo de início, até organizar as coisas. Eu<br />

até ajudava a minha professora, porque ela sabia menos matemática do que eu. Aí eu já<br />

tinha minhas amizades e comecei a fazer os meus amigos, né?<br />

William – São perguntas do Cláudio, que pede para o Senhor falar dos amigos, de<br />

como foi sua adolescência na Vila Ema, na escola, das namoradas... (todos rindo<br />

muito). Fale da sua geração.<br />

Jacaré – Na escola onde fiz o admissão, era aqui na Vila Diva, eu fui muito bem. Sem-<br />

pre fui muito dedicado e tinha muita vontade de estudar. O problema era conciliar o<br />

trabalho com o tempo da escola. Terminei o admissão, iniciei o Ginasial e, quando fal-<br />

tava um ano, casei com Bisaco (Irene). Tive, então, que me danar a fazer horas extras e<br />

terminei não dando mais conta dos meus estudos. Quanto às namoradas, eu era meio<br />

tímido. Na época do ginásio, tio, a gente se sentia assim meio pra baixo por causa da<br />

roupa, da situação financeira. A gente via chegar aquelas meninas bem-cuidadas, aque-<br />

les jovens vestidos com camisas de gola olímpica, de carro... Tudo isso botava a gente<br />

meio pra baixo. Na minha idade, a gente se divertia nos bailinhos dos fundos de quintal.<br />

A gente se reunia e fazia aqueles bailinhos, comia aquelas batatinhas não sei com que,<br />

aqueles ponchezinhos. O sucesso na época era o Elvis, Golden Boys, então, Roberto<br />

Carlos... Tinha o sucesso de umas musiquinhas francesas que eu já começava a dançar.<br />

Era a época também das músicas italianas do festival de San Remo. Eu curti muito os<br />

bailinhos. Eu trabalhava na Regan e já tinha dezesseis anos. A moda naquele tempo<br />

(rindo muito) era meio ridícula: cabelo longo, calças carrapeta e boca-de-sino. E, no<br />

caso da gente, uma lama danada, que sujava o sapato e até a boca do embainhado da<br />

391


calça... (rindo muito). Era a coisa mais horrível do mundo. Eu lembro que roupa era o<br />

que menos a gente tinha. Eu tinha duas mudas, para falar a verdade. Com uma eu traba-<br />

lhava a <strong>sem</strong>ana inteira e deixava a outra para o final de <strong>sem</strong>ana. Mãe, então, lavava a-<br />

quela com a qual eu ia aos bailinhos. Calçava aquele sapato... Um barro da gota serena!<br />

Imagine transitar dentro dos ônibus, passando aquele sapato na perna do povo, melando<br />

a roupa das pessoas, as mulheres reclamando... Era um sufoco. Não sei se por falta de<br />

experiência da mãe ou mesmo da gente, eu ia trabalhar e levava a marmita minha e do<br />

Giva, porque muitas vezes o Giva dormia na firma, onde ficava fazendo horas-extras.<br />

Eu, então, de manhã, levava a minha marmita e a do Giva embrulhadas em jornal. Lem-<br />

bro que, num dia de chuva, eu tomei o ônibus da Estrada de Vila Ema. Chovia muito e<br />

então o barro campeava. Caíram as duas marmita no corredor dentro do ônibus, que<br />

estava entupido de gente. Eu peguei as duas marmitas e empurrei para debaixo do as-<br />

sento do ônibus. Eu tinha dezesseis anos, e olha a vergonha que eu tive de pegar essas<br />

marmitas no chão, debaixo das cadeiras, e passar nas roletas com elas embrulhadas em<br />

jornal... Mas eu disse comigo: não vou deixar aí nossa comida. Eu passava muita vergo-<br />

nha. Não tinha sequer a iniciativa de arranjar uma pasta para levá-las dentro. Era pobre<br />

até de inteligência na época. Eram as dificuldades.<br />

William – Como era essa vida em família numa casa com sala, dois quartos, cozi-<br />

nha e banheiro para onze pessoas? Cláudio gostaria de saber isso em detalhes.<br />

Jacaré – (rindo). Não era fácil a vida da gente, mas... Tinha assim as encrenquinhas<br />

entre irmãos, mas tolerava-se. Eu dormia numa cama com Giva. Nós <strong>sem</strong>pre fomos par-<br />

ceiros de cama, <strong>sem</strong>pre dormimos juntos. Eu chegava da escola às onze e meia, ou mei-<br />

a-noite, e ele já estava dormindo porque ele chegava do trabalho lá pelas nove ou dez<br />

horas. Eu me lembro que, às vezes, eu estava duro de dinheiro e <strong>sem</strong> um cigarro. E ele<br />

fumava uma marca chamada Capri. Eu ia até o criado mudo e roubava uns cigarrinhos<br />

dele. Algumas vezes, quando eu estava pegando o cigarro ele dizia bem baixinho: “Seu<br />

ladrão <strong>sem</strong> vergonha!” Mas ele não se importava com isso. De manhã, a gente acordava<br />

logo cedo e ia trabalhar na Regan. No quarto, eu e o Giva dormíamos na cama de casal.<br />

Tinha um beliche onde dormiam mais três; sei que no nosso quarto dormiam cinco. Os<br />

demais dormiam na sala. E éramos bastante felizes. Tinha bastante harmonia na casa;<br />

mãe conseguia disciplinar a todos nós. É claro que às vezes havia aquela ciumeira de<br />

irmãos com briguinhas e ciúmes. Eu mesmo cheguei a ter ciúmes da Maria e do Giva,<br />

porque eles, por serem mais velhos, eu achava que mãe cuidava melhor deles. Até na<br />

392


mistura, né? (rindo muito. Eu às vezes ficava revoltado, porque na minha marmita ti-<br />

nha apenas um ovo, enquanto na do Givaldo e da Maria tinha carne. Aí, então, eu rou-<br />

bava o pedaço de carne (rindo muito). Eu confesso que fui o jovem de casa um pouco<br />

revoltado com a mãe, mas muito por culpa dela. Lembro que, nalguns finais de <strong>sem</strong>ana,<br />

ela lavava nossa roupa, e eu só tinha aquela roupa de sair e trabalhar. Num desses finais<br />

de <strong>sem</strong>ana, eu falei pra ela não esquecer a lavagem da minha roupa de sair. Ela não la-<br />

vou e passou a roupa suja. Eu fiquei brabo! Eu brigava às vezes com ela por causa dis-<br />

so, mas nada assim de ficar com mágoas.<br />

Antônio – Como é que Irene apareceu no seu caminho e na sua vida?<br />

Jacaré – Eu tive algumas namoradas antes dela. Mas algo assim passageiro, namoradi-<br />

nhas, bailinhos... A Irene, eu não gostava dela, eu até tinha raiva da Irene. Ela era chata,<br />

a gente estava assim em pé e ela empurrava; ela era danada, né? Pra falar a verdade, o<br />

que me despertou em mim por parte da Irene é que, um dia, ela estava lavando roupa, e<br />

eu vi as coxas dela (ri). Aí aquilo me chamou a atenção, mas passou. Ela tinha os namo-<br />

radinhos dela. Com o passar do tempo, a gente começou a frequentar os mesmos baili-<br />

nhos, e aquilo favoreceu o aumento da intimidade entre a gente. E aí eu passei a gostar<br />

dela.<br />

William – E quando começou esse namoro, qual foi a reação da família?<br />

Jacaré – Não foi boa a reação, devido ao que aconteceu, né? Não que eu tenha avança-<br />

do o sinal. O que houve é que, nas nossas intimidades, aconteceram os primeiros toques<br />

entre nós, e aí a Ezenilda entregou. Foi assim que a tia Flora e o Seu Zeca ficaram sa-<br />

bendo. Óbvio que eles vieram em cima, não é? Pai ficou na dele, mãe também. Ela deu<br />

aquelas broncas; agora, o Seu Zeca foi mais duro, né? Não era nem o caso de nos fazer<br />

casar, porque eu não tinha a menor condição de casar. Eu pensei, pensei muito preocu-<br />

pado com ela. Naquela época, em casos como esses, se a menina não casasse ficava<br />

“malfalada” no meio da família. Eu me deixei levar por esse lado, e o Givaldo também<br />

me apoiou nesse aspecto, ou seja: assumir, né?<br />

Antônio – Mas vocês se sentiram tão pressionados assim, Jacaré? Você mesmo dis-<br />

se que não houve nada demais entre vocês...<br />

Jacaré – Houve, houve muita pressão, Seu Zeca fez muita pressão: “Você vai ter que<br />

casar com minha filha!...” Tanto eu como a Irene, nós insistimos que não aconteceu<br />

nada, ela mesma disse que eu não tinha feito nada com ela, mas a pressão continuou e<br />

393


foi muito forte. Por outro lado, acho que ela também gostou do fato de eu aceitar e... Aí<br />

não tive como recuar. A tia Flora, Virgem Maria! A reação da tia foi muito mais violen-<br />

ta do que a de Seu Zeca. Ele era maneiro... Mas a tia, santo Deus! Naquela época, eu<br />

tinha dezenove anos, e a Irene quinze para dezesseis anos. A Ezenilda falou pra tia Ene-<br />

dina que a gente tinha transado e acho que fez isso com ciumeiras. Tia Enedina deu o<br />

sinal de alerta e passou o “acontecido” para tia Flora, e aí, já viu... Durou esse negócio<br />

mais ou menos um ano e, como nós não tínhamos condições, eles ajudaram no casa-<br />

mento. Logo que casamos, fomos morar bem perto da casa da mãe, numa casa alugada.<br />

Aluguei a casa, pintei, e a tia Flora, Zeca, mãe, todos ajudaram. Eu já trabalhava nessa<br />

época. Mas, quando fomos morar, não tínhamos nem botijão de gás. A gente não tinha o<br />

que comer e íamos comer lá na casa de mãe (rindo). Foi um período meio danado. A-<br />

cho que faltou mais juízo, porque, a gente bem que podia assumir o compromisso de<br />

casar, porém <strong>sem</strong> interromper os estudos e arrumar as condições de manter uma família.<br />

Com certeza, não havia como prejudicá-la. Talvez tenha havido a pressão da estrutura<br />

da família. É tanto que, na nossa noite de núpcias, ocasião em que ela perdeu a virgin-<br />

dade, ela levou o lençol manchado de sangue para mostrar à tia Flora, que ficou quieta e<br />

passou a fazer outro julgamento dela. Aquilo havia marcado muito ela. A tia não aceitou<br />

a nossa versão dos fatos. Dizia pra Irene: “Você é isso, você é aquilo”... Foi realmente<br />

falta de experiência dos dois, não é tio? A gente sabe que os jovens, nessa idade, o fogo<br />

é demais, e eu nem os condeno quando acontece alguma coisa. Mas, no caso da gente,<br />

nem isso. Eu recordo que um dia eu ia acompanhando Irene e “alguém” da minha famí-<br />

lia seguia logo na frente com tia Flora. Essa pessoa diz pra tia: “Aí, comadre Flora, mais<br />

um na família pra tu sustentar”. Foi bom que essa pessoa tenha falado isso, sabe? Eu<br />

disse comigo: “Tu vais ver, ‘f.d.p.’ vai ser muito diferente do que tu tás dizendo”. Até<br />

hoje eu nunca esqueci, sabe? Mas aquilo me serviu de alento e mexeu com meus brios.<br />

Ajuda eu <strong>sem</strong>pre precisei, mas ser sustentado a vida inteira pela tia, não! Graças a Deus,<br />

acho que não foi mesmo preciso.<br />

Antônio – Jacaré, deixando um pouco de lado esse capítulo Irene X Jacaré, vamos<br />

falar do restante de tua parentela, em São Paulo. Você tinha meio mundo de pa-<br />

rentes, de tios aqui, não? Como era sua relação com eles e o que você lembra de-<br />

les?<br />

394


Jacaré – Eu tenho muitas lembranças dos meus tios: Anísio, Juquinha (Severino), Bar-<br />

beiro (José), <strong>sem</strong>pre foram muito bons comigo. E você! Lembro que, logo depois do<br />

meu casamento, você veio fazer o doutorado aqui em São Paulo. Aquela foi uma fase<br />

muito boa. Logo após o casamento, continuamos trabalhando muito. A Irene foi empre-<br />

gada doméstica; eu, que já trabalhava, parei meus estudos, talvez por falta de experiên-<br />

cia e maturidade. Mas eu precisava fazer horasextras e lembro que somente em um mês<br />

eu cheguei a fazer mais de duzentas e quarenta horasextras. Isso equivale a trabalhar<br />

dois meses dentro de um. Eu começava às sete da manhã e saía mais de dez horas da<br />

firma, e durante um mês inteiro, incluindo sábado e domingo. Tudo isso pra gente poder<br />

ter alguma coisinha, e a Irene chegou a trabalhar como doméstica nessa época. Tam-<br />

bém, nesse período de dificuldade, eu comecei a me relacionar melhor com tio Anísio e<br />

com Givaldo. Esses aí foram pessoas que a gente seguiu de perto pelo exemplo de vida<br />

deles. Eles foram uma luz, um guia seguro, que só nos mostrava o melhor. Afinal, eu<br />

queria trabalhar, assumir as minhas responsabilidades, e eles foram muito importantes<br />

para nós; pra mim, com certeza.<br />

Antônio – Com o casamento, você se separou da sua família: de Maria, dos meni-<br />

nos, seus irmãos...<br />

Jacaré – É, eu casei, aliás, nem sei se a Maria ainda era solteira... O primeiro que casou<br />

fui eu, e o Givaldo casou um mês depois. A Maria foi a terceira, ela casou com Pedro.<br />

Aí ficaram em casa o Osvaldo, a Geni... Eu fui tocar o meu barquinho. Trabalhei junto<br />

com eles, né, tio?<br />

Antônio – Quando eu cheguei a São Paulo, no ano de 1977, para cursar o meu dou-<br />

torado na USP, me dava impressão que a família morava apenas na Zona Leste de<br />

São Paulo e, mais ainda, na Vila Ema. Não se podia dizer que morava em São Pau-<br />

lo, uma cidade quase desconhecida para vocês, não?<br />

Jacaré – Ah, sim! A gente não tinha a menor noção do que era aquele mundo ali da<br />

Avenida Paulista, da Consolação... Também nós não tínhamos a menor condição de<br />

conhecer melhor e usufruir de uma cidade como São Paulo, indo a um teatro, por exem-<br />

plo. Condições financeiras curtas. O nosso dinheiro nem nos permitia tomar cerveja. Era<br />

uma vida dura. O que nos restava era tomar cachaça, pinga. Em razão disso, o nosso<br />

lazer era pescar. O Anísio adorava pescar e tanto me chamava para pescar com ele que<br />

395


terminou motivando brigas de Irene comigo por conta dos convites do tio. Íamos pescar<br />

na Chimboca, de ônibus, ninguém tinha carro, nada! Levava umas panelas velhas para<br />

fazer o pirão, o Anísio era terrível. Acompanhar ele era um divertimento. Muitas vezes<br />

fomos caçar tatu. Frequentar a noite de São Paulo, ninguém tinha condições, de modo<br />

algum. A gente, praticamente, convivia com os parentes. Na juventude, tínhamos uns<br />

poucos amiguinhos, Idalécio, poucos... Quando rapazinhos, com Idalécio, a gente pas-<br />

sava as noites jogando baralho e só depois íamos para uns bailinhos. Nosso divertimen-<br />

to era esse. Mas devo dizer que São Paulo foi importante na minha vida, porque me a-<br />

briu bastante a minha mente. Logo aprendi que, não tendo muita instrução, a minha saí-<br />

da era enfrentar os desafios do comércio. Comecei, então, a buscar daqui e dali o que eu<br />

poderia fazer. Como eu tinha aprendido a profissão de frezador, fiquei mudando de em-<br />

prego aqui e ali e até que ganhava um dinheirinho a mais. Foi quando, então, surgir a<br />

possibilidade de fazer uma sociedade com a tia Flora numa oficina de costura. Ela <strong>sem</strong>-<br />

pre gostou de fazer costura. Como o Idalécio tinha uma oficina de costura, eu me inte-<br />

ressei pelo trabalho e fui lá conversar e aprender com ele. Eu disse pra tia Flora que<br />

gostaria de deixar de ser empregado e queria ter meu próprio negócio. Compramos u-<br />

mas máquinas e, então, começamos: eu, Irene e ela. A Irene era muito jovem, meio ca-<br />

beça dura, mas eu não a condeno por isso aí. O problema mesmo começou na dificulda-<br />

de que a gente tinha em pagar as prestações das máquinas. Em razão disso, deixei a Ire-<br />

ne trabalhando na costura e voltei a trabalhar no meu antigo ramo de metalúrgica. Foi<br />

assim que conseguimos pagar as prestações e, então, voltei de novo para a oficina de<br />

costura. Retomamos o trabalho. Só que com a tia Flora não era fácil de acompanhar o<br />

ritmo de trabalho dela. Tanto eu como a Irene, novos que éramos, muitas vezes a gente<br />

queria dar uma saidinha, descansar um pouco de manhã... Enquanto isso, ela, tia Flora,<br />

às cinco horas da manhã já estava no batente, diante das máquinas. Nós dois, muito jo-<br />

vens, começamos a chegar ao trabalho lá pelas sete e meia. E a tia Flora já não estava<br />

gostando daquela folga e começou a ficar de cara feia. Mas, tio, a Flora chegava à ofici-<br />

na às cinco horas e só saía às onze horas da noite. Pode?! Ninguém a acompanhava não<br />

(rindo muito). Lembro que, num desses dias, decidimos ir pra Santos. Não sei se foi<br />

com o Tião ou a Iolanda, do Idalécio... Fomos num sábado e voltamos num domingo.<br />

Aí, pronto, a sociedade foi pro pau, terminou (rindo muito). Nós, então, fizemos um<br />

racha na sociedade. Eu disse pra ela ficar com algumas máquinas que eu ficaria com<br />

outras. Ela tocou o barquinho dela, no ritmo dela, e eu montei a oficina, separado dela.<br />

396


Aí eu trabalhei bastante. Ganhava um dinheirinho bom. Comprei um carro, viajava pra<br />

Recife, passando trinta dias de férias. Que momentos gostosos aqueles que passamos<br />

juntos lá no Nordeste. Ainda hoje, lembro aquelas musiquinhas do Ray Coniff. Ah, meu<br />

Deus! Pouco a pouco, fomos nos habituando à sua influência de nos levar à zona sul,<br />

frequentar algumas churrascarias, ouvir uns chorinhos, frequentar uns barzinhos... Já<br />

estávamos ficando malandrinhos! Você nos ensinou o caminho de umas boas coisas.<br />

Vez por outra, um teatro, que nos fazia muito bem. Vou lhe dizer: foi para nós uma épo-<br />

ca de ouro, aquela de conhecer com você outro lado da cidade. Isso é inesquecível e nos<br />

ajudou bastante. O Givaldo, quando era vivo, comentava com a gente a importância da<br />

convivência com vocês naquela época. Porque nós não tínhamos a experiência que vo-<br />

cês tinham e, com relação a nós, você era uma pessoa que tinha uma experiência lá na<br />

frente. Com certeza isto influenciou e nos ajudou muito, passando a ideia do que era<br />

bom, do que era importante. Ajudou bastante.<br />

Antônio – E Juca (Severino)?<br />

Jacaré – Ah, o Juca era aquele cara assim muito especial. Sabe, eu não sei nem como<br />

descrever o Juca. Faz-me muita falta, sabe? Com toda aquela truculência dele, sabe?<br />

Mas era um tio... (enche os olhos de lágrima). Ele era... Com aquela simplicidade de-<br />

le... Ele era tão respeitador da gente, tio! Era de um temperamento difícil, como o da tia<br />

Flora. Algumas horas eles até faziam a gente ficar com uma raivinha deles, não era?<br />

Mas passava.<br />

Antônio – E Jara (derivativo de Jarita – como a Madia chama Anísio)?<br />

Jacaré – Nossa! Ele é muito especial. É tio, é irmão, é pai... Inteligentíssimo, um cara<br />

que vê lá na frente. É um cara que sabe o que é o valor de família, de como ajudar. Veja<br />

quantas casas aqui foram construídas por ele, não é? O Jarita foi uma lição de vida pra<br />

gente aqui e de fundamental importância. Gostava de cachaça, mas nunca extrapolou os<br />

limites. Nunca a cachaça o impediu de trabalhar. Quando bebíamos com ele, a gente às<br />

vezes exagerava, e muitas vezes ele recomendava: “Cara não é assim, manéra, cuida-<br />

do!” Sempre aquele alerta dele. Dele e do Givaldo. Para mim, os dois foram fundamen-<br />

tais. Já o Balba (José, o Barbeiro, como os sobrinhos passaram a chamá-lo) teve o seu<br />

relevante papel. Foi um cara que <strong>sem</strong>pre gostou de mim, e eu <strong>sem</strong>pre o respeitei. Tinha<br />

397


as limitações dele, mas para mim o importante era que ele me respeitava. Foi um cara<br />

que teve o seu peso também.<br />

Hélio – Eu gostaria de destacar aquele momento em que você e a Irene saíram de<br />

São Paulo e foram para Paranaguá. Acho mesmo que foi o momento da dispersão<br />

da família, cada um buscando o seu espaço. Eu era moleque naquela época e senti<br />

muito a ausência sua e da Irene. Afinal, a gente no final do ano <strong>sem</strong>pre se encon-<br />

trava e, com a saída de vocês, ficou certo vazio. Nós imaginando como é que vocês<br />

estavam por lá, <strong>sem</strong> nos ver com frequência, pois naquela época era bem mais difí-<br />

cil viajar do que hoje...<br />

Jacaré – Foi, foi bem difícil aquele período. Nós sentimos muito naquele período. Acho<br />

que a dispersão começou com a tia Flora, que, juntamente com o Zeca, foram os primei-<br />

ros a sair de São Paulo. E a Irene começou a querer ir pra lá. Surgiu o Branco, que pre-<br />

tendia vender a padaria. Ele precisava de dinheiro, e aí Seu Zeca me sugeriu comprar.<br />

Eu disse pra ele que achava difícil, pois eu não tinha o dinheiro... O Edson estava lá,<br />

<strong>sem</strong> emprego, <strong>sem</strong> ocupação e com a vidinha dele por lá. Isso incomodava muito Seu<br />

Zeca. Eu, então, sugeri a ele que eu iria e me juntaria com o Edson num negócio lá, con-<br />

tanto que ele vendesse a casa deles aqui na Vila Ema. Ele concordou em vender e pas-<br />

sou a procurar comprador. Nesse meio tempo, eu falei para o pai, buscando saber se ele<br />

não queria vender a casa... Quando Deus põe a mão, as coisas vêm rápido. Aí eu disse:<br />

“O senhor dando cento e vinte mil cruzeiros pela casa de Seu Zeca já vale um bom ne-<br />

gócio. Veja se consegue pelo menos uns oitenta mil cruzeiros na sua casa. A gente passa<br />

esse dinheiro pro Seu Zeca e o resto se completa depois. Em menos de um mês, conse-<br />

guimos vender aquela casa ali. Com o dinheiro, comprou a casa de Seu Zeca e foi com<br />

esse dinheiro que nós começamos. Ele emprestou metade pro Edson, e eu consegui ven-<br />

der minhas máquinas, as roupinhas que eu tinha; vendi também um sobradinho que eu<br />

tinha lá na Vila Formosa. Levantei a minha parte e começamos a montar a padaria lá em<br />

Paranaguá. Tia Flora e o Seu Zeca já moravam muito tempo lá em Paranaguá. Eu paga-<br />

va aqui um aluguelzinho pra ele, e assim eles começaram a construir lá a casinha deles<br />

também. E assim foi nossa ida para junto deles em Paranaguá. Nós compramos a pada-<br />

ria do Branco, a que era dele. Nossa ida foi pra acompanhar eles também. Lá chegando,<br />

tivemos muito trabalho, mas foi compensador, né? É pena que a gente foi tarde pra lá,<br />

pois naquela época o pãozinho ainda dava um bom lucro. Se tivés<strong>sem</strong>os ido mais cedo<br />

398


teríamos nos dado bem melhor. No início, tivemos que vencer muitas dificuldades; a<br />

convivência com o Edson não foi nada fácil, enfim, foi aquela luta danada. Mas foi uma<br />

boa coisa, e ao final a gente não pode reclamar dos resultados, né?<br />

Antônio – Voltando um pouco no tempo, você casou e como é que foi o nascimento<br />

de Patrícia e de Fábio? Vocês planejavam ter filhos logo no início do casamento?<br />

Jacaré – A Irene engravidou e teve a Pretinha (Patrícia), em 1973. Já o Fábio nasceu<br />

em 1976. Não sei se a gente estava preparado, mas o fato é que vieram, né? Nós nem<br />

tínhamos intenção de ter filhos logo após o casamento. Mas o fato é que vieram e acho<br />

que não nos atrapalharam não.<br />

Hélio – Jacaré, uma curiosidade, o seu relacionamento com a Irene, posto que vo-<br />

cês são primos, causou algum tipo de reação na família?<br />

Jacaré – Causou... E causou bastante... A tia Flora, Seu Zeca, a tia Virgínia, o pessoal<br />

acho que não gostou não. Não aceitaram facilmente, o que não deixa de ser normal, né?<br />

Hoje, com a distância no tempo, a gente vê que é normal para a época, não é, tio? Quan-<br />

to aos irmãos e primos, houve mesmo alguns que me parabenizaram pelo fato de eu ter<br />

decidido casar com a Irene, assumindo minhas responsabilidades. Mas, com certeza, a<br />

família não gostou não.<br />

William – O Zé Guilherme foi para Paranaguá e lá ficou morando com a vó. Você<br />

lembra em que ano ele foi? Como era o convívio de vocês lá?<br />

Jacaré – William, o ano eu não sei bem não. O ponto de partida da ida dele foi um de-<br />

sejo meu, sabendo que ele estava aqui em São Paulo com mãe, meio sozinhos. Nós<br />

compramos aquele terreninho lá nos fundos da padaria e adquirimos outro terreno com<br />

uma casinha. Nós combinamos com o Edson qual terreno e casa ele queria. Ele escolheu<br />

o terreno onde hoje ele tem a casa dele. Eu pensei, então, em trazer pai pra perto de<br />

mim, tirando-o de São Paulo, e fazer uma casinha naquele terreno que nos sobrou da<br />

partilha com o Edson. Com muito carinho mesmo, fiz aquilo ali, e o Reginaldo me aju-<br />

dou a comprar os móveis. Daí ele foi pra lá e foi muito feliz por lá... Plantava o milho,<br />

as verduras e as frutas dele, curtiu bastante. O Edson comprou uma chacrinha, e ele gos-<br />

tava muito de ir com Seu Zeca e Duda para a chácara. O tio Duda, lá nesse terreno de<br />

Edson, plantou uma roça ao lado da roça de pai. Nasceu um pé de jerimum. Duda, en-<br />

399


tão, puxava a rama do jerimum que ultrapassava o terreno dele para o de pai, temendo<br />

que as abóboras nasces<strong>sem</strong> no terreno alheio (rindo muito). De certo modo, foi uma<br />

virada de cento e oitenta graus na vida da gente, saindo de São Paulo para morar em<br />

Paranaguá. Meu Deus do céu... Mesmo sabendo que estava tocando a vida por minha<br />

conta, fazendo o que eu queria, mas a saudade... Eu chorava, tio! Eu chorava com sau-<br />

dade da família, dos meus irmãos, de Giva. No final de <strong>sem</strong>ana, então, era um tédio do<br />

cacete, e o coração apertava mesmo. Fui me adaptando aos poucos, fui, fui... Um sono<br />

da peste, dado que a cidade fica ao nível do mar, a mil metros da serra. Saía pereba,<br />

dava coceiras, eu não dormia direito, olha não foi fácil. Um calor do cacete. A gente<br />

dormia num biombinho – o Givaldo ria prá cacete quando ia lá e via aquilo! De noite,<br />

quando dava vontade de mijar eu colocava o pinto num buraco que havia na tábua, no<br />

biombo, e mijava... (rindo muito). Tinha pulga e pernilongo que só a desgraça. Peguei<br />

uma infecção no dedo de um daqueles bichos-de-pé e tive que ir ao médico para me<br />

tratar. Sei não! Agora essa situação melhorou, porque aqueles bairros cresceram, fica-<br />

ram <strong>sem</strong> menos água empoçadas, foram saneados... Mas outro dia, ali perto da padaria<br />

eu fui acertar com a mulher a questão das escrituras para vender o terreno e tive que<br />

correr de lá, cara! Os pernilongos picando os braços, por cima da roupa; tá louco, cara!<br />

Mas, foi sofrido, tio. Hoje eu sei que Paranaguá está melhor e eu não troco Paranaguá<br />

por São Paulo. São Paulo mudou para pior. A qualidade de vida, nem se discute. Hoje,<br />

estou tendo a possibilidade de desfrutar melhor de Paranaguá. Hoje, tenho condições de<br />

sair pra ilha para pescar; vou de dia e volto, a natureza é de uma rara beleza, fantástica,<br />

muito bonita e a gente tem hoje muitas amizades.<br />

Antônio – Então, Jacaré, fique à vontade para falar. Mas eu pergunto se a socieda-<br />

de com Edson deu certo ou não deu...<br />

Jacaré – Deu certo enquanto durou. Não digo que não deu certo, porque afinal vivo até<br />

hoje com meu negócio, e ele continuou também a vida dele, está criando os filhos dele.<br />

Deu certo até enquanto durou. Mas o relacionamento foi difícil no começo. Hoje, nós<br />

estamos bem. Até porque sociedade para dar certo é uma coisa difícil. Sociedade é um<br />

casamento. O Fábio, hoje, está montando a sociedade dele. Eu disse a ele que era com-<br />

plicado; sociedade é como um casamento. Você tem que ser muito claro e não deixar<br />

dúvida nenhuma. Se houver uma dúvida, tem que sentar e conversar, pois do contrário,<br />

lá na frente, estoura.<br />

400


Antônio – Jacaré, na sua vida de família, você tem dois filhos. Um é advogado, a<br />

outra é administradora, todos formados e encaminhados na vida. O que isso repre-<br />

senta para você como pai?<br />

Jacaré – Uma vitória. É muito importante. Faz bem ao meu ego pelas dificuldades que<br />

nós passamos. Ainda hoje, estou atravessando dificuldades, mas está tudo caminhando<br />

para elas terminarem. Mas, para mim, foi uma vitória. A vitória do meu filho representa<br />

a vitória que eu não consegui, sabe? Foi um período muito difícil; mas, graças a Deus,<br />

cheguei ao final e me faz muito bem. Sinto-me como sendo eu mesmo. O Fábio está<br />

indo muito bem. Tem um “q.i.” que eu não conhecia. Graças a Deus, está sendo muito<br />

abençoado o trabalho dele. As portas estão se abrindo assim... E que Deus continue com<br />

a bênção dele. Eu esperava o sucesso do Fábio aí nos dois ou três anos, sabe tio, e ele<br />

está conseguindo as coisas antes de um ano. Está maravilhoso.<br />

William – O que representam os seus netos?<br />

Jacaré – É um sentimento assim... Eu me sinto um cara realizado humanamente, por<br />

estar deixando uma herança de seres humanos que não vão atrapalhar a sociedade. Eu<br />

acho até que vão mais contribuir com algumas coisas boas. Então, eles representam<br />

muita coisa boa para mim.<br />

Antônio – O casamento de Patrícia foi meio tumultuado...<br />

Jacaré – Infelizmente, a gente fez com ela a mesma cagada que fizeram comigo e a<br />

Irene (rindo muito!). Sabe, a mesma coisa, tio. Eu ainda falei pra minha filha: “Olha<br />

Patrícia, não foi tão perdido o que aconteceu com você porque pelo menos tem dois<br />

seres humanos maravilhosos aí. Mas você perdeu muito tempo na sua vida”. Mas ela<br />

está agora acordando para a vida, inclusive ela está querendo agora fazer o curso de<br />

Direito. Eu disse: “Faça, minha filha, você é uma menina nova, está em parceria com<br />

seu irmão aí”... Mas ela é uma menina feliz, graças a Deus. Às vezes, ela fala que não<br />

quer mais casar, no entanto eu digo <strong>sem</strong>pre que ela, por ser uma menina tão jovem, trin-<br />

ta e poucos anos, não deve desesperar que um dia virá. Às vezes, ela saía para bailinhos,<br />

para baladas... eu dei uma freada, aconselhando que ela desse uma seguradinha. Afinal,<br />

não via como boa coisa ela chegar das festas às cinco ou seis horas... Aproveite, vá es-<br />

tudar... Mas ela é uma menina muito dócil. Meus netos são Felipe e Tiago. O Tiago so-<br />

freu muito com a separação dos dois e se tornou um menino assim muito arredio. Inclu-<br />

401


sive, eu tive que mandá-lo para a casa do pai dele, não é? Quando houve a separação, os<br />

três foram lá para casa. O Tiago, então, passou a ser muito marrudo, batendo no irmão,<br />

reclamando da comida da vó, exigente com roupa... Eu falei: “Carinha, vai ficar com o<br />

teu pai”. E dei um castigo, olhe que nós ficamos quatro anos <strong>sem</strong> conversar com o Tia-<br />

go. Agora, que ele entrou para a faculdade, ele falou pra vó se a gente não permitia que<br />

ele nos desse uma ajuda na padaria para ele ganhar uns trocos e ajudar a pagar a facul-<br />

dade. Aí eu disse: “Pode, claro!” A partir daí, ele passou a ser o neto que eu queria que<br />

ele fosse. O Felipe, o Felipe é dócil. É um molequinho interessado e tem futuro, porque<br />

hoje já faz dois cursos e estuda muito, está na oitava série e quer crescer. Não incomoda<br />

a mãe, adora a mãe. A vó, então, nem se fala. Ele é muito dócil e educadinho. Ele puxou<br />

mais para o lado dos Guilherme e quer ser advogado também (rindo muito).<br />

Antônio – Jacaré, e a morte de Zeca e de Flora? O que representaram para você<br />

essas perdas?<br />

Jacaré – Nossa! Foi terrível pra nós. Meu Deus! A morte é uma coisa inevitável, não é,<br />

tio? Mas a perda deles nos deixou num vazio em Paranaguá, inclusive porque para nós<br />

eles eram pessoas mestras. Principalmente para a família, porque depois que eles parti-<br />

ram ninguém mais vai lá em Paranaguá. É raro o pessoal ir por lá. Por aí a gente entende<br />

o valor deles. Não há uma festinha onde a gente esteja que eu não os lembre. Foi real-<br />

mente uma perda muito grande para a gente. Tia Flora era uma pessoa muito especial e<br />

morreu trabalhando. Parece que ela estava se despedindo. Ela saiu daqui de São Paulo<br />

animada, chegou a Paranaguá e jantou na nossa casa aí pelas oito horas da noite e, en-<br />

tão, chamou mãe para ir com ela para a casa dela. A mãe deu uma desculpa e disse que<br />

não podia ir. Até hoje, ela se arrepende de não tê-la acompanhado. Tia Flora disse que<br />

ia preparar uma rabada. Coitadinha, começou a preparar essa rabada, não conseguiu<br />

terminar. Depois, a gente comeu essa rabada que ela começou a preparar. E deu aquele<br />

negócio nela e ela foi embora. Não sei se tivés<strong>sem</strong>os levado em outro lugar... Mas acho<br />

que não, tio. É a hora. Esse aneurisma na vida dela foi fulminante. Acho que era a hori-<br />

nha dela. Aliás, ela já estava pedindo. Na morte do Seu Zeca, me surpreendeu a reação<br />

da tia. Ela era uma mulher forte, e nós pensávamos que ela ia tocar a vida como mãe<br />

que continuou na dela depois da morte do pai. Já com ela foi o contrário. Vivia dizendo<br />

“meu amor, meu amor, porque você me deixou”? Vivia pedindo para que Deus a levas-<br />

402


se, então... Ela desistiu da vida. Era uma mulher tão cheia de vida, de luta, de garra, né?<br />

De muita moral.<br />

William – E a perda do seu irmão?<br />

Jacaré – Ah! Falar do Giva não é fácil... É como eu te disse, eu dividia com Giva até a<br />

cama. Givaldo foi pai, irmão... Giva era muito especial (muito emocionado). Não tenho<br />

palavras.<br />

Nesta altura da entrevista, falou-se da sucessão de perdas na família, o que tem<br />

causado muita tristeza e sofrimento. Recordou que nesses sete anos perdemos Zé<br />

Guilherme, a nossa sobrinha e prima, Marlene (filha de Anísia e de Manoel), de-<br />

pois Severino, a matriarca Verônica, Zeca, Edilnete [esposa de Antônio], Flora,<br />

Manuel, Zé Preto [filho de Manoel], José Barbeiro, Givaldo e Chico [filho de Ma-<br />

noel]. Sem falar em pessoas quase da família, como Duda [irmão de Zé Guilher-<br />

me]. E chamou-se a atenção que isso representa muita dor, considerando-se que na<br />

nossa família praticamente não se lamentava óbitos há décadas e décadas... Diante<br />

dessas considerações, Jacaré concordava com a tristeza de cada uma dessas per-<br />

das, dizendo:<br />

“Vem sendo muito forte para a gente da família, né? Lembro que o Duda, quando a gen-<br />

te ia à casa dele, ele não sabia o que fazer... Era um ser humano legal pra caramba. Res-<br />

peitador ao extremo, né? Um exemplo de pessoa, de pai, de tio, de amigo”.<br />

____________________________<br />

Não sabíamos, obviamente, que essa estaria sendo a última entre-<br />

vista de Jacaré que, infelizmente, menos de um mês depois, seria<br />

vitimado por um grave acidente que lhe roubou a vida em Para-<br />

naguá causando imensa e profunda tristeza em nós todos da fa-<br />

mília. Descanso e repouso para você, Jacaré! Que a unção das nos-<br />

sas lágrimas transforme as saudades em um sono de paz, e sua a-<br />

403


legria contagiante exale um bálsamo para nossa dor de mortais e<br />

humanos, como você!<br />

404<br />

_____________________________<br />

Antônio – Então, Jacaré, essa é uma trajetória de memória que se inicia no Riacho<br />

Queimado e termina no porto de Paranaguá. Uma longa trajetória. Uma longa<br />

viagem. O que ela representa para os seus filhos e seus netos?<br />

Jacaré – É uma viagem e que representa assim o lugar de onde viemos e as dificuldades<br />

que passamos. E que sirva de exemplo para os nossos primos, sobrinhos e netos. A nos-<br />

sa família, Siqueira e Guilherme, são uma família exemplar, muito exemplar. Isso vem<br />

de nossos avós, que foram pessoas sérias e de rara integridade moral. Claro que aqui e<br />

acolá tem algumas exceções, mas elas são mínimas como exceções. Eu me orgulho mui-<br />

to, muito mesmo, disso, dessa competência. Então, eu deixo alguma coisinha aí, uma<br />

<strong>sem</strong>ente que plantei aí na sequencia desse exemplo de família. Espero que meus netos<br />

sigam o exemplo. É tanto que sinceramente eu procuro inscrever no nome dos meus<br />

filhos e netos o nome “Guilherme” para que ele não se apague. Acrescentem, mas não<br />

apaguem o nome “Guilherme” (enche os olhos de lágrimas). O meu vô paterno, que<br />

você não conheceu, era uma pessoa boa; era boêmio, mas era uma pessoa dócil. Ele até<br />

tinha traços do ator falecido Antony Quinn.<br />

Antônio, William e Hélio – Jacaré, para terminar esta entrevista, você gostaria de<br />

dizer alguma coisa mais sobre algo que não lhe foi perguntado?<br />

Jacaré – (Depois de muito pensar...) Ah, tio, eu queria agradecer. Agradecer a Deus<br />

por estar inserido nessa família. Acho que essa família, sabendo-se de onde ela veio e<br />

onde ela chegou... Hoje, nós temos nela professores, já temos doutores. Nós viemos do<br />

pó. Eu terminaria agradecendo a Deus pela família onde ele me colocou. Acho que é<br />

isso. (William encerra declarando que agradece tudo quanto ele ensina como pa-<br />

drinho... Ao que Jacaré respondeu: “É tão pouco!”.)


Bibliografia de Referência...<br />

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte de política. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1985<br />

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HARTOG, François. Le Miroir d’Hérodote – Paris: Gallimard, 2001.<br />

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RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da<br />

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ções – vol. 22, nº 44, 2002, p. 425-438.<br />

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