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Uma Perspectiva Cultural Sobre o 11 de Setembro

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<strong>Uma</strong> <strong>Perspectiva</strong> <strong>Cultural</strong> <strong>Sobre</strong> o <strong>11</strong> <strong>de</strong> <strong>Setembro</strong> <strong>de</strong> 2001:<br />

Solidarieda<strong>de</strong>, Anti-Corporativismo e Violência Criativa<br />

1 - Introdução<br />

Foi com surpresa, embora sob a acusação <strong>de</strong> prazer, que<br />

presenciei a exploração minimal e exaustiva da imagem <strong>de</strong> um avião<br />

<strong>de</strong>struindo os símbolos, duplamente fálicos, do po<strong>de</strong>r mono cultural<br />

que o “norte atlântico” (para usar uma expressão do filósofo norte<br />

americano Richard Rorty) tem sobre o resto do mundo. Foi, também,<br />

com a perplexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma gargalhada que vi as mesmas imagens<br />

serem apresentadas – em várias ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> televisão – lado a lado<br />

com manifestações <strong>de</strong> regozijo que ecoaram em vários países do<br />

mundo islâmico (algumas vindo a ser provadas como falsas,<br />

nomeadamente as que correspon<strong>de</strong>ram à divisão maniqueísta dos<br />

ecrãs em dois: <strong>de</strong> um lado os aviões e as torres; do outro o regozijo<br />

das crianças palestinianas). Foi, ainda, com o sorriso cínico da<br />

suspeita, que observei as vozes dissonantes (ou seja, aquelas que não<br />

falavam monocordicamente em “vingança” ou “retaliação” mas que,<br />

pura e simplesmente, tentavam “perceber”) serem afastadas,<br />

invariavelmente por “razões técnicas” ou por “questões <strong>de</strong> tempo”,<br />

dos espaços noticiosos que davam cobertura sensacionalista à<br />

“terceira guerra mundial” ou à “batalha contra o terrorismo” (para<br />

citar apenas dois dos nomes mais usados). Finalmente, e já com a<br />

1


face tolhida por alguma revolta, presenciei a escolha quase unânime<br />

do suspeito oficial e a consequente mobilização <strong>de</strong> uma guerra<br />

absolutamente espectacular contra um dos mais pobres países do<br />

mundo 1 . Devo, portanto, e em função da invasão informada (talvez<br />

“<strong>de</strong>sinformada”) que me atingiu, <strong>de</strong>clarar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já a posição em que<br />

este ensaio se coloca para <strong>de</strong>pois, ao longo <strong>de</strong>le, tentar explicar as<br />

razões da mesma. Assim, não estando a favor dos ataques <strong>de</strong> <strong>11</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Setembro</strong>, encontro-me, no entanto, solidarizado com todos os<br />

oprimidos que perante eles se regozijaram. Estando nessa posição,<br />

estou também – e pelas mesmas razões – tanto contra o po<strong>de</strong>r<br />

daqueles que os perpetraram como contra o po<strong>de</strong>r daqueles que os<br />

aproveitaram para testar arsenais em batalhas <strong>de</strong> retaliação. Estou<br />

assim numa relação <strong>de</strong> empatia com uma perspectiva que vê, nesse<br />

momento fulcral do “nosso” início <strong>de</strong> século 2 , uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

pensar, para nós, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma abertura positiva a partir da<br />

violência, encarando-a portanto como pretexto para uma criativida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>slocada do artificialismo com o qual o nosso mundo oci<strong>de</strong>ntal se<br />

tem vindo a constituir. Porque, <strong>de</strong> facto, é a partir <strong>de</strong>sse mundo que<br />

falo, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma legitimação que parte da premissa segundo a<br />

1 Guerra essa que, segundo as estatísticas (dos próprios americanos) – sempre uma forma <strong>de</strong><br />

manipulação bem polida pela razão – já matou mais pessoas entre os civis afegãos do que o número<br />

oficial <strong>de</strong> mortos em Nova Iorque.<br />

2 Não querendo esquecer que apenas um quinto da população mundial vive <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta contagem,<br />

embora a imponha economicamente aos outros.<br />

2


qual só a partir do espaço-tempo em que estamos situados é que<br />

po<strong>de</strong>mos falar: isto evita qualquer tentativa <strong>de</strong> reduzir o “outro” ao<br />

“mesmo”, assim como evita também a posição hipócrita que toma<br />

esse outro a partir <strong>de</strong> um híbrido criado para nosso consumo,<br />

i<strong>de</strong>ntificando-o, por isso, com a ilusão <strong>de</strong> um “outro” domesticado e,<br />

em virtu<strong>de</strong> disso, apropriável. Assim, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, assumo a posição <strong>de</strong><br />

que a alterida<strong>de</strong> é irreconciliável com um discurso que não é seu e<br />

que, portanto, não preten<strong>de</strong> ter a ilusão <strong>de</strong> que é.<br />

do Desespero<br />

2 – <strong>Uma</strong> história: Da Dominação Corporativa à Construção<br />

Em função do que acaba <strong>de</strong> ser dito importa, então, tentar<br />

perceber algumas razões históricas pelas quais os oprimidos se<br />

regozijaram, num sentimento que ultrapassa o circunscrito “anti-<br />

americanismo” para ser, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, uma posição assumidamente<br />

anti-oci<strong>de</strong>ntal. Não só a Palestina, como também quase todo o Islão,<br />

na sua história <strong>de</strong> confrontação com o Oci<strong>de</strong>nte – a nível<br />

contemporâneo – nunca escolheu apenas os Estados Unidos 3 mas<br />

também outras potências cujas estratégias <strong>de</strong> dominação seriam<br />

similares, po<strong>de</strong>ndo até ser consi<strong>de</strong>radas “simétricas”, como diz Brian<br />

3 Convém lembrar, também, os acontecimentos que ocorreram nos Jogos Olímpicos <strong>de</strong> 1972, ou, ainda,<br />

a guerra na Chechénia.<br />

3


Hanrahan 4 . De facto, a questão do Islão não é a América em si, mas a<br />

forma como a cultura do “norte atlântico” não lhe permite viver<br />

condignamente, do ponto <strong>de</strong> vista da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural 5 , e é contra<br />

isso que as vozes se erguem, em apoio ao ataque a símbolos do<br />

capitalismo corporativo imperial. Por outro lado, falar apenas em<br />

“anti-americanismo” é colocar uma questão datada, uma vez que as<br />

formas <strong>de</strong> exploração actuais não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do chamado estado<br />

nação. Colocando a questão ao contrário, diríamos que quem sofre,<br />

quer com os ataques <strong>de</strong> <strong>11</strong> <strong>de</strong> <strong>Setembro</strong>, quer com a vingança<br />

americana e oci<strong>de</strong>ntal (não po<strong>de</strong>mos esquecer a presença dos ingleses<br />

e, agora, <strong>de</strong> uma intitulada “força <strong>de</strong> manutenção <strong>de</strong> paz” 6 )<br />

raramente são os po<strong>de</strong>rosos. O maior número <strong>de</strong> mortos nas torres<br />

do WTC resi<strong>de</strong> exactamente entre numerosos estrangeiros, muitos<br />

<strong>de</strong>les imigrantes com trabalho precário, para além <strong>de</strong> (como já ficou<br />

dito) os ataques oci<strong>de</strong>ntais já terem igualado – até ultrapassado – em<br />

4 “These two superpowers – the Americans and the Russians – ma<strong>de</strong> strangely symmetrical enemies.<br />

The Russians, like the Americans, fitted the world into an i<strong>de</strong>ological frame. They both based their<br />

long-term strategy on belief: for the Americans it was <strong>de</strong>mocracy and capitalism, for the Russians it<br />

was communism. Both were prepared to take blows to their immediate interests to further what they<br />

believed was right. Both were big, powerful nations, able to absorb setbacks. They were both intolerant<br />

of other nations that didn’t share their objectives – but willing to overlook faults on those who did.<br />

They <strong>de</strong>man<strong>de</strong>d their allies accept that they were inspired by the belief that their i<strong>de</strong>ology would make<br />

the world a better place.”<br />

Brian Hanrahan, “America The Unloved”, Jenny Baxter and Malcolm Downing (Eds.), The Day That<br />

Shook The World: Un<strong>de</strong>rstanding September <strong>11</strong> th (London: BBC Worldwi<strong>de</strong>, 2001), p. 45.<br />

5 Oiçamos o que diz o pensador Edward W. Said:<br />

“(Colonialism and Imperialism) are supported and perhaps even impelled by impressive i<strong>de</strong>ological<br />

formations that inclu<strong>de</strong> notions that certain territories and people require and beseech domination, as<br />

well as forms of knowledge affiliated with domination.”<br />

Edward W. Said, Culture and Imperialism (London: Vintage, 1994), p. 8.<br />

6 Des<strong>de</strong> que cheguei a Timor que tenho vindo a duvidar, cada vez mais, do mercenarismo das “Nações<br />

Unidas” e da sua capacida<strong>de</strong> para lidar com os oprimidos <strong>de</strong> guerra.<br />

4


número <strong>de</strong> vítimas afegãs o número <strong>de</strong> mortos dos ataques a Nova<br />

Iorque e Washington. Assim, a política da “paz oci<strong>de</strong>ntal”, ao<br />

continuar, <strong>de</strong> modo camuflado, uma guerra dissimulada, não faz<br />

mais do que proporcionar a continuida<strong>de</strong> da disseminação imperial<br />

<strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r opressivo. Ao disseminar-se como política – nos<br />

discursos pretensamente legitimadores <strong>de</strong> G. W. Bush ou Tony Blair<br />

– a guerra, cujo processo <strong>de</strong> manipulação não é o estado nação mas<br />

quem o compra, ou seja, o capitalismo corporativo global (<strong>de</strong> certa<br />

forma, antes <strong>de</strong> perguntarmos quem é o presi<strong>de</strong>nte dos Estados<br />

Unidos, é preciso perguntar quanto custa comprar um presi<strong>de</strong>nte),<br />

<strong>de</strong>smistificou a noção <strong>de</strong> “soberania” 7 . Hoje esta é substituída por<br />

formas <strong>de</strong> controlo que são exercidas <strong>de</strong> modo corporativo (o dólar),<br />

<strong>de</strong> modo terrorista (o petróleo) e, ainda, <strong>de</strong> modo privado (através do<br />

alastrar perigoso da noção <strong>de</strong> “segurança”). Antes <strong>de</strong> falar da<br />

explosiva história da relação entre o dólar e o petróleo, gostaria ainda<br />

<strong>de</strong> dizer algo sobre esta privatização da “segurança”. Na minha<br />

perspectiva, o que a torna perigosa é o facto <strong>de</strong> ela acontecer, a nível<br />

do mundo oci<strong>de</strong>ntal, numa época <strong>de</strong> neutralização política, ou seja, o<br />

aumento das instituições <strong>de</strong> controlo sobre a cidadania correspon<strong>de</strong> a<br />

uma redução afectiva da cidadania em relação ao exercício <strong>de</strong> si<br />

própria. Assim, a “segurança” surge imposta como uma forma <strong>de</strong><br />

7 <strong>Sobre</strong> esta questão, ver:<br />

Michael Hardt e Antonio Negri, Empire (Cambridge: Harvard University Press, 2001).<br />

5


legitimação, paranóica e unidimensional, que explora um medo<br />

construído mediaticamente. Tal construção – sob a forma <strong>de</strong> uma<br />

expansão informativa do terror em relação ao <strong>de</strong>sconhecido 8 – é<br />

paralela a uma globalização da “segurança” como única or<strong>de</strong>m<br />

política planetária, uma vez que a escala da guerra aumentou com a<br />

escala da velocida<strong>de</strong> informativa. Tal guerra toma a sua forma mais<br />

expressiva na dimensão urbana, que surge <strong>de</strong>sinvestida do seu<br />

sentido <strong>de</strong> espaço público, ou seja, não só as pessoas que vivem nas<br />

cida<strong>de</strong>s são “convidadas” a ter medo <strong>de</strong>ssas cida<strong>de</strong>s – conjuradas<br />

como espaços <strong>de</strong> violência e <strong>de</strong>linquência – como, ainda, as cida<strong>de</strong>s<br />

em si tomaram a forma simultânea <strong>de</strong> uma guerra anti-urbana, uma<br />

vez que os símbolos “erectos” do seu po<strong>de</strong>r são também símbolos<br />

globais da or<strong>de</strong>m corporativa 9 .<br />

No entanto, como reinvestimento catastrófico do seu próprio<br />

po<strong>de</strong>r, essa mesma or<strong>de</strong>m corporativa, simbolizada nas torres, gerou,<br />

historicamente, os mecanismos diacrónicos que se centram no<br />

<strong>de</strong>sespero <strong>de</strong>sejante da sua <strong>de</strong>struição. Por outro lado, essa mesma<br />

<strong>de</strong>struição é aproveitada pela razão oci<strong>de</strong>ntal (associada à culpa, na<br />

sua dupla matriz judaico-cristã e greco-latina) para tomar a “<strong>de</strong>ixa”<br />

8 E esse <strong>de</strong>sconhecido tanto po<strong>de</strong> estar no Afeganistão como num gueto minoritário (muitas minorias<br />

fazem multidões <strong>de</strong> negligenciados ...) <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> capital terciarizada e europeia ou americana.<br />

9 Quanto à perda da dimensão pública – e crítica – dos espaços, privatizados pelo “marketing”<br />

corporativo e pela sua venda <strong>de</strong> imagens, ver:<br />

Naomi Klein, No Logo (London: Flamingo, 2001), pp. 27-85.<br />

6


das vidas perdidas como estratégia da vítima. Esta leva, não só à<br />

guerra <strong>de</strong> vingança, mas também ao escalar da xenofobia 10 , à<br />

<strong>de</strong>monização dos movimentos que criticam a globalização (o que é<br />

bem aproveitado pelas corporações) e a uma maior restrição às<br />

liberda<strong>de</strong>s civis: veja-se on<strong>de</strong> chega hoje a paranóia, através da<br />

criação <strong>de</strong> uma máquina que “me<strong>de</strong>” mentiras na temperatura da<br />

face. A esta questão, no entanto, voltarei mais tar<strong>de</strong> quando, através<br />

da utilização do pensamento nietzscheano, fizer uma diferenciação<br />

entre niilismo positivo e – o que, em parte, acabei <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver –<br />

niilismo negativo. Passemos então à geração histórica, por parte do<br />

capitalismo corporativo imperial, <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição.<br />

O enclausuramento económico que o Oci<strong>de</strong>nte perpetrou no<br />

“outro” (ou seja, aquele que não é oci<strong>de</strong>ntal, que resiste à<br />

incorporação) po<strong>de</strong>, para os efeitos <strong>de</strong>ste trabalho <strong>11</strong> , ser datado em<br />

relação ao empobrecimento corporativo do operariado em toda a<br />

Ásia e no Médio Oriente (graças à subcontratação multinacional e<br />

aos subsídios às máfias do jogo e da prostituição) e ainda às políticas<br />

<strong>de</strong> ajustamento estrutural, causadas pela liberalização da importação<br />

que se segue à crise do petróleo nas anos setenta. Outro elemento <strong>de</strong><br />

10 “When I visited a friend on New York’s Upper East Si<strong>de</strong>, virtually the first thing she said after we<br />

greeted each other was ‘Are you okay?’ I didn’t un<strong>de</strong>rstand the question; she had to explain. I am Sri<br />

Lankan-born but I could be mistaken for an Arab. That’s what she feared.”<br />

George Alagiah, “Shaking the Foundations”, Jenny Baxter and Malcolm Downing, Op. Cit., p. 41.<br />

<strong>11</strong> Não querendo, portanto, avançar para trás em direcção ao imperialismo colonial, inclusivamente o do<br />

século <strong>de</strong>zanove ou, ainda mais para trás, para as questões da escravatura, das chamadas “<strong>de</strong>scobertas”<br />

ou, até das cruzadas.<br />

7


opressão tem sido o modo constantemente hipócrita através do qual<br />

foi sempre tratada a questão palestiniana e, ainda, o financiamento<br />

<strong>de</strong> monarquias “fantoches”, nomeadamente pelos interesses<br />

económicos americanos, que têm sido responsáveis pelo aumento <strong>de</strong><br />

uma faixa <strong>de</strong> resistência cada vez mais a pen<strong>de</strong>r para posições<br />

fundamentalistas 12 . Estas posições, em todo o seu radicalismo, são<br />

vistas por muitos árabes como a única saída possível contra a venda<br />

<strong>de</strong>scarada das suas culturas e das suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s pelas elites. Estas<br />

são mantidas no po<strong>de</strong>r pela força das armas oci<strong>de</strong>ntais: bons<br />

exemplos são a Arábia Saudita e o Kwait 13 .<br />

<strong>Uma</strong> das gran<strong>de</strong>s contradições <strong>de</strong>ste sistema resi<strong>de</strong> no facto <strong>de</strong><br />

que muitas das elites, treinadas pelo Oci<strong>de</strong>nte para manter um po<strong>de</strong>r<br />

“amigável”, usam esse treino para encontrar apoios rebel<strong>de</strong>s junto<br />

das massas populares: é o caso da “Al Qaeda”, uma vez que aqueles<br />

que “Bush Júnior” intitula <strong>de</strong> terroristas foram treinados durante a<br />

administração do pai para combater a União Soviética no<br />

Afeganistão. Assim, em certo sentido, para além do terrorismo<br />

(digamos, o terrorismo dos “talibans” do petróleo contra os<br />

12 “Before September <strong>11</strong>th the United States was <strong>de</strong>eply unpopular in the Arab world. The root cause of<br />

this was its support for Israel. Opinion polls taken among the Palestinians show an overwhelming<br />

belief that the United States acted only to protect Israel.”<br />

Brian Hanrahan, “America the Unloved”, Jenny Baxter and Malcolm Downing (Eds.), Op. Cit., p. 46.<br />

13 “Since the 1970s, the growing influence of the West on the Arabian peninsula had become a source<br />

of discontent as the penetration of Western culture that accompanied the oil boom disrupted traditional<br />

Islamic culture, with little of the new wealth trickling down to ordinary people.”<br />

Gordon Corera, “Insi<strong>de</strong> the Terror Network”, Jenny Baxter and Malcolm Downing (Eds.), Op. Cit., p.<br />

69.<br />

8


“talibans” do dólar), o ataque <strong>de</strong> <strong>11</strong> <strong>de</strong> <strong>Setembro</strong> é visto pelos seus<br />

entusiastas nos países árabes com o regozijo do <strong>de</strong>sespero, um<br />

<strong>de</strong>sespero que vem da pressão capitalista globalizante, da hipocrisia<br />

perante a questão palestiniana 14 e das guerras do petróleo. Estas<br />

começam, <strong>de</strong> facto, em 1975 com a nacionalização do petróleo pela<br />

elite po<strong>de</strong>rosa da Arábia Saudita – sob pressão do Oci<strong>de</strong>nte e com o<br />

pretexto <strong>de</strong> combater a especulação – a qual autoriza, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, a<br />

participação <strong>de</strong> investimento externo no processo <strong>de</strong> refinação. Essa<br />

participação é posteriormente alargada à exploração, à redução nas<br />

taxas sobre lucros (o que coinci<strong>de</strong> com a administração Reagan e a<br />

sua medida proteccionista <strong>de</strong> cobrança sobre as importações para os<br />

Estados Unidos) e à autorização <strong>de</strong> compra <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> (em plena<br />

Arábia Saudita, ou seja, em terra sagrada do Islão, junto a Meca) por<br />

parte das gran<strong>de</strong>s corporações do “petrodólar”. O aumento da<br />

fluência <strong>de</strong> capital para fora do povo árabe foi <strong>de</strong> tal forma que, já<br />

em 2001, uma economia saudita completamente globalizada em<br />

termos <strong>de</strong> petróleo <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ter po<strong>de</strong>r sobre os seus recursos<br />

naturais, com gran<strong>de</strong>s lucros para a elite reinante e para <strong>de</strong>sespero e<br />

fome das gran<strong>de</strong>s camadas da população. Este processo <strong>de</strong> completa<br />

venda ao Oci<strong>de</strong>nte corporativo, com o consequente apoio<br />

14 “ (...) After September <strong>11</strong>th observers in Cairo and Beirut reported that, along with the genuine<br />

sympathy for the victims of the suici<strong>de</strong> attacks, there was a feeling that now the people of the United<br />

States knew what it felt like to be attacked by forces that couldn’t be reasoned with.”<br />

Brian Hanrahan, “America the Unloved”, Jenny Baxter and Malcolm Downing (Eds.), Op. Cit., p. 47.<br />

9


(inflacionado) <strong>de</strong>ste às monarquias reinantes, criou, em países como a<br />

Arábia Saudita, Oman e os Emiratos Árabes Unidos 15 , um crescendo<br />

<strong>de</strong> resistência entre as camadas negligenciadas da população – a<br />

maioria – que acabaram por ver no fundamentalismo o “amigo”<br />

(obviamente traiçoeiro) que os retiraria da sua situação <strong>de</strong><br />

indigência, mediante a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> hostilização do principal<br />

criador <strong>de</strong> miséria: o Oci<strong>de</strong>nte capitalista 16 . Assim, nesta perspectiva,<br />

os eventos <strong>de</strong> <strong>11</strong> <strong>de</strong> <strong>Setembro</strong> funcionam para o fundamentalismo –<br />

na sua tentativa <strong>de</strong> ganhar apoio – como um “efeito colateral” 17 da<br />

luta dos oprimidos contra o Oci<strong>de</strong>nte, da mesma maneira que os<br />

mortos do Afeganistão são, para os “polícias do mundo”, os “efeitos<br />

colaterais” da sua vingança, mascarada retoricamente em luta contra<br />

o terrorismo. Os dois acontecimentos acabam, no entanto, por servir<br />

os interesses daqueles que preten<strong>de</strong>m – como estratégia <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r –<br />

cercear as liberda<strong>de</strong>s individuais: em certo sentido, são um pretexto<br />

para o aumento da “segurança”. No entanto, <strong>de</strong>vem servir também<br />

como pretexto para o pensamento, um pensamento que se ergue<br />

15 Não é apenas na península arábica que este processo <strong>de</strong> simpatia com o fundamentalismo está a<br />

crescer: a Nigéria é um bom exemplo na África oci<strong>de</strong>ntal, também por questões relacionadas com o<br />

petróleo.<br />

16 <strong>Sobre</strong> esta questão histórica, ver:<br />

Gawdat Bahgat, “Managing <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nce: American-Saudi Oil Relations”, Arab Studies Quarterly (S/L:<br />

Vol. 23, Issue 1, 2001), pp. 1-14.<br />

17 A expressão foi muito usada pelos americanos nos seus relatórios sobre a guerra do golfo. Mais<br />

tar<strong>de</strong>, Timothy MacVeigh – um ex-combatente <strong>de</strong>ssa guerra que perpetrou o atentado contra o edifício<br />

do <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> estado em Oklahoma, como forma <strong>de</strong> protesto contra a chacina do FBI sobre uma<br />

seita religiosa em Waco, no Texas – viria a usá-la para referir as suas vítimas na relação com o<br />

propósito da sua acção.<br />

10


como voz da consciência crítica, que se manifesta contra a<br />

disseminação do po<strong>de</strong>r opressivo globalizado. Um pensamento que,<br />

ao ser crítico dos “talibans” do dinheiro, bem como dos do petróleo,<br />

se constitui como criação <strong>de</strong> uma força niilista positiva, erguida a<br />

partir dos eventos. Ou seja, a violência, enquanto imposição da<br />

realida<strong>de</strong> sobre a abstracção racional, <strong>de</strong>ve ser uma oportunida<strong>de</strong><br />

para pensar – e este pensar é um pensar “contrafactual”: é um<br />

pensar que vai contra – <strong>de</strong>nuncia – a estratégia do Oci<strong>de</strong>nte<br />

capitalista corporativo 18 ; é um pensar que <strong>de</strong>nuncia a ilegitimida<strong>de</strong><br />

do governo do mundo por instituições que não são capazes <strong>de</strong> reduzir<br />

a miséria e que ainda se constituem como incentivos ao caciquismo<br />

pró-oci<strong>de</strong>ntal, o qual é pago, por exemplo, em “petro-dólares” ou em<br />

“dólares-diamantes”. Tal caciquismo correspon<strong>de</strong>, por um lado, ao<br />

surgimento do primeiro mundo no terceiro: exemplos disso são os<br />

lí<strong>de</strong>res que enriquecem com favores do oci<strong>de</strong>nte e com o<br />

empobrecimento das populações. Por outro lado correspon<strong>de</strong> ao<br />

surgimento do terceiro mundo no primeiro: é o caso das pessoas que<br />

per<strong>de</strong>m os seus trabalhos nos Estados Unidos ou na Europa,<br />

simplesmente porque sai mais barato às corporações contratar<br />

18 Apraz-me incluir aqui esta voz crítica:<br />

“(...) O mercado, jurídica e politicamente abstracto, impôs (...) que tudo é legítimo incluindo a<br />

multiplicação das legiões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados, socialmente excluídos, (...) a manipulação científica dos<br />

impulsos do cidadão consumidor (e) (...) a utilização <strong>de</strong> produtos transgénicos (...).”<br />

José Manuel Barata-Feyo, “Gran<strong>de</strong> Reportagem: 12º Aniversário”, Gran<strong>de</strong> Reportagem, Nº 129, 2ª<br />

Série, Dezembro <strong>de</strong> 2001, p. 68.<br />

<strong>11</strong>


trabalho “semi-escravo” na África ou na Ásia, com o consentimento<br />

dos caciques locais 19 .<br />

3 – Violência Criativa: Por um Niilismo Positivo<br />

O pensador Fre<strong>de</strong>rico Nietzsche distingue, nos seus escritos, o<br />

conceito <strong>de</strong> niilismo positivo do conceito <strong>de</strong> niilismo negativo. Para<br />

explicar que sentido têm estes dois conceitos no contexto da<br />

interpretação que estou a fazer, preciso <strong>de</strong> explicar primeiro em que<br />

posição me situo perante os escritos nietzscheanos, para po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>pois<br />

chegar à questão da violência. Como a escrita nietzscheana possui um<br />

carácter aforístico é quase um truísmo dizer que existem tantos<br />

“Nietzsches” quantos os seus intérpretes. O próprio Nietzsche aboliu<br />

qualquer carácter factual na abordagem discursiva ao dizer que não<br />

existem factos, apenas interpretações. Assim, o “meu” Nietzsche –<br />

<strong>de</strong>sculpando-me <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já pela arrogância do possessivo que nem<br />

sequer me é original – vem por via do anti-humanismo<br />

hei<strong>de</strong>ggeriano, nomeadamente do chamado “segundo” Hei<strong>de</strong>gger na<br />

sua crítica à “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”, da discursivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconstrutiva <strong>de</strong><br />

Derrida e da crítica à esquizofrenia capitalista, inerente ao<br />

nomadismo conceptual <strong>de</strong> Deleuze. Como a explicação do que<br />

significam estas linhas seria, por si só, assunto <strong>de</strong> um capítulo inteiro,<br />

que não cabe nas páginas <strong>de</strong> um pequeno ensaio, concretizarei a<br />

19 Ver:<br />

Naomi Klein, Op. Cit., pp. 195-229.<br />

12


abordagem na opção por um niilismo positivo, contra o niilismo<br />

negativo que, na minha perspectiva, é aquilo em que o próprio<br />

Nietzsche cai, ao erguer na “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r” uma nova metafísica<br />

conceptual coerente com a logomaquia oci<strong>de</strong>ntal que ele tanto<br />

criticou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> A Origem da Tragédia 20 . Para mim, a opção por um<br />

niilismo positivo está bem consubstanciada numa expressão do<br />

pensador francês Alain Badiou, que utilizarei aqui, e que é a “paixão<br />

do real”.<br />

No sentido em que tomo a expressão anteriormente<br />

mencionada, direi que as socieda<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais ditas “avançadas” se<br />

pautam por dois processos concomitantes: por um lado elas<br />

afastaram-se da realida<strong>de</strong> (assumindo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, no entanto, que esta é<br />

impossível <strong>de</strong> perceber ou apropriar enquanto tal) e, por outro,<br />

perpetuaram formas ilegítimas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r patriarcal. Nesse sentido,<br />

po<strong>de</strong>mos dizer que elas vivem num niilismo negativo artificializado<br />

que é coadjuvante a uma dança esquizofrénica e invisível da opressão<br />

enquanto “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”. De facto, não é uma novida<strong>de</strong> dizer-se<br />

que vivemos num mundo digitalizado, virtual, artificial, manipulável.<br />

Este é correspon<strong>de</strong>nte à vivência <strong>de</strong> uma “coisa sem substância”, isto<br />

20 “Before postmo<strong>de</strong>rnism and poststructuralism, Nietzsche provi<strong>de</strong>d a virulent and comprehensive<br />

critique of the Enlightenment. The attack on Enlightenment is a thread that runs through his entire<br />

corpus. An examination of his work makes it clear, however, that Nietzsche was unable to overcome<br />

this pervasive, intractable tradition. Despite his best efforts, Nietzsche’s work contains persistent<br />

elements of Enlightenment.”<br />

Lewis Call, “Nietzsche as Critic and Captive of Enlightenment”, page 1 of 132,<br />

<br />

13


é, à escravidão <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> sem realida<strong>de</strong>, uma realida<strong>de</strong><br />

absolutamente regulada e interior a uma ca<strong>de</strong>ia corporativa<br />

discriminatória, produtora da morte interior do pensamento em<br />

função <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res disseminados. Esta é, para mim, a dança da<br />

“vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”, a “dança da meretriz” 21 (no dizer <strong>de</strong> Charles<br />

Bukowski) ou a “dialéctica porcina” 22 (usando a expressão tão cara<br />

ao nosso verrinoso Luís Pacheco), inerente a um niilismo negativo<br />

que é preciso <strong>de</strong>nunciar, aniquilar pela infâmia que lhe é inerente,<br />

quer esta se faça sentir pelo uso ilegítimo do po<strong>de</strong>r nas instituições –<br />

por exemplo, através do tráfico <strong>de</strong> influências – pelas execuções<br />

públicas na China ou no Afeganistão (no seu sentido já não cultural<br />

<strong>de</strong> negações da vida) ou, ainda, pelas tácticas neo-burguesas e novas-<br />

ricas da conquista do “outro” pela sedução imagético-retórica;<br />

também po<strong>de</strong>mos situar esta “dança”, esta “dialéctica”, no controlo<br />

dos recursos naturais que é feito por algumas companhias, na<br />

chantagem feita aos palestinianos, nas marcas “franchisadas” que<br />

abundam no mercado, ou na recusa <strong>de</strong> terras (aproveitadas para fins<br />

corporativos) a um crescendo <strong>de</strong> populações migrantes que não têm<br />

21<br />

O que acaba por ser um eufemismo, uma vez que, para caracterizar esta opressão, Charles Bukowski<br />

usa mesmo uma expressão mais forte.<br />

22<br />

Outro eufemismo, uma vez que Luís Pacheco vai bastante mais longe. A propósito disso, ouçamos o<br />

poeta José Alberto Oliveira (no poema “A Dialéctica nas Margens do Reno”) e o seu <strong>de</strong>sencanto pela<br />

forma como a dialéctica con<strong>de</strong>na a vida:<br />

“(...) tenho sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tais tempos em que <strong>de</strong>spontavam as mamas em raparigas acossadas pelo acne e<br />

pela <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za.”<br />

José Alberto Oliveira, O Que Vai Acontecer? (Lisboa: Assírio e Alvim, 1997), p. 76.<br />

14


on<strong>de</strong> viver. Este universo do niilismo negativo, artificializado e<br />

apresentado como “pós-político” (no sentido em que se tem a<br />

sensação <strong>de</strong> que existe um pacto social segundo o qual as <strong>de</strong>cisões<br />

mais fundamentais, sobre as nossas socieda<strong>de</strong>s contemporâneas, não<br />

são discutidas como <strong>de</strong>cisões políticas), contrapõe-se um pensamento<br />

do niilismo positivo, que <strong>de</strong>nuncia a ilegitimida<strong>de</strong> patriarcal dos<br />

po<strong>de</strong>res, isto é, um niilismo que vai contra a gestão administrativa do<br />

“bom senso” institucional, inerente à <strong>de</strong>mocracia tolerante 23 do<br />

capitalismo global. Este niilismo surge, então como uma contra-<br />

tendência, isto é, como uma paixão violenta pelo real, exactamente<br />

porque o universo da mencionada “dança” ou da tal “dialéctica” é<br />

um universo artificial, isto é, um universo <strong>de</strong> convenções mortas,<br />

institucionalizadas, cristalizadas. Contra tal universo, a resposta<br />

autêntica tem que ser violenta, isto é, é uma resposta que simpatiza<br />

com a guerra <strong>de</strong> guerrilha que impõe a realida<strong>de</strong> à abstracção<br />

racional, que enten<strong>de</strong>, por exemplo, na compaixão, o sexo masoquista<br />

ou o voyeurismo. Em certo sentido, é necessária a violência para<br />

reencontrar a autenticida<strong>de</strong>, mas uma violência interior, assente na<br />

auto-<strong>de</strong>struição social activa, baseada nessa passionalida<strong>de</strong> 24 . Por<br />

23 <strong>Uma</strong> tolerância obviamente her<strong>de</strong>ira do pensamento ilustrado.<br />

24 Ouçamos o que diz Michel Houellebecq, no final do seu último romance, no qual a personagem<br />

principal se dilui como vazio, apenas para reencontrar no turismo sexual o espelho contundido dos<br />

valores sociais on<strong>de</strong> cresceu:<br />

15


outras palavras, para viver plenamente e autenticamente é necessária<br />

uma auto-<strong>de</strong>struição que arrase o niilismo passivo, estúpido e auto-<br />

satisfeito inerente à dança da negativida<strong>de</strong>.<br />

No fundo, trata-se <strong>de</strong> reinventar a subjectivida<strong>de</strong>, isto é, <strong>de</strong><br />

re<strong>de</strong>fini-la <strong>de</strong> acordo com o espaço, o tempo, e a dor do religamento<br />

ao real que anula o sentimento <strong>de</strong> irrealida<strong>de</strong> provocado por um<br />

vazio digitalizado 25 . No entanto, esta reinvenção da subjectivida<strong>de</strong><br />

não cai sob o signo da or<strong>de</strong>m mo<strong>de</strong>rna, cartesiana: ela é uma<br />

reinvenção pós-mo<strong>de</strong>rna (no sentido do nomadismo conceptual, do<br />

“rizoma” <strong>de</strong> Deleuze) <strong>de</strong> um sujeito eminentemente político, não<br />

enraizado na substância e situado <strong>de</strong> forma aberta num entrecruzar<br />

<strong>de</strong> paradoxos que não oferecem saída. É por isso que esta reinvenção<br />

da subjectivida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser pensada <strong>de</strong> acordo com a ilusória<br />

“tradição do novo” 26 . O trauma <strong>de</strong>ssa questão não é a novida<strong>de</strong> em si,<br />

mas o facto <strong>de</strong> a tradição mo<strong>de</strong>rna – quer a das vanguardas<br />

artísticas, quer a da ciência e do cálculo – nunca ter pensado a<br />

novida<strong>de</strong> na aceitação <strong>de</strong> um diálogo com o passado, mas, sim, <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> uma dialéctica finalista e teleológica <strong>de</strong> ruptura, subjacente à<br />

“Pour l’Occi<strong>de</strong>nt je n’éprouve pas <strong>de</strong> haine, tout a plus un immense mépris. Je sais seulement que, tout<br />

autant que nous sommes, nous puons l’égoïsme, le masochisme et la mort. Nous avons créé un système<br />

dans lequel il est <strong>de</strong>venu simplement impossible <strong>de</strong> vivre ; et, <strong>de</strong> plus, nous continuons à l’exporter. »<br />

Michel Houellebecq, Plateforme (Paris : Flammarion, 2001), p. 369.<br />

25 Não se trata, obviamente, <strong>de</strong> criticar a digitalização em si (ela po<strong>de</strong> ser um enorme instrumento <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia) mas a i<strong>de</strong>ia segundo a qual ela é neutra, isto é, não manipulável. Essa<br />

tendência faz parte <strong>de</strong> uma das estratégias mais mascaradas do consenso liberal: a estratégia da<br />

reificação da linguagem.<br />

26 Expressão cara ao pensador Charles Jencks.<br />

16


ilusão <strong>de</strong> progresso. No fundo, isso criou uma forma <strong>de</strong><br />

conservadorismo, <strong>de</strong> manutenção da or<strong>de</strong>m e do po<strong>de</strong>r patriarcais,<br />

juntamente com uma constante artificialização e “monetarização”<br />

das relações: é que pensar em “mudanças <strong>de</strong> paradigma” (mantendo<br />

um sentido teleológico) significa conservar a ilusão da alteração, num<br />

mundo que trabalha por recombinatórias (por exemplo, não posso<br />

pensar no “fluxo” em Deleuze se não pensar a transitorieda<strong>de</strong> em<br />

Heraclito). Nesse sentido, e exemplificando, o sadomasoquismo po<strong>de</strong><br />

ser visto como um “tecno-primitivismo”, isto é, uma busca da<br />

natureza em diálogo com o passado. Esta questão surge também no<br />

último romance do escritor francês Michel Houellebecq, não só um<br />

gran<strong>de</strong> crítico do vazio humanista oci<strong>de</strong>ntal (com as suas hipocrisias)<br />

– ou seja, do vazio do conceito <strong>de</strong> “humano” – como também um<br />

admirador confesso <strong>de</strong> certas práticas <strong>de</strong> uso do corpo 27 .<br />

“Escombros”<br />

4 – (In)Conclusão: <strong>Uma</strong> “Poético-Política dos “Restos” e<br />

O que nos resta, então, na visão niilista positiva, após os<br />

acontecimentos <strong>de</strong> <strong>11</strong> <strong>de</strong> <strong>Setembro</strong>? Tudo, mas – e isso sim – um<br />

“tudo” que é criativo a partir <strong>de</strong> um pensamento violento, um<br />

27 A propósito do esvaziamento “humano”:<br />

“Lorsque la vie amoureuse est terminée, c’est la vie dan son ensemble qui acquiert quelque chose d’un<br />

peu conventionnel et forcée. On mantient une forme humaine, <strong>de</strong>s comportements habituels, une<br />

espèce <strong>de</strong> structure ; mais le cœur, comme on dit, n’y est plus. »<br />

Michel Houellebecq, Op. Cit., pp. 367-8.<br />

17


pensamento cuja autenticida<strong>de</strong> se faz sobre os “escombros” do WTC,<br />

que não são mais do que a face visível da nossa civilização morta. É<br />

este, portanto, um pensamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia, que <strong>de</strong>nuncia<br />

exactamente aqueles que não foram capazes <strong>de</strong> parar para pensar. É<br />

que, <strong>de</strong> facto, a vingança oci<strong>de</strong>ntal – e não apenas americana, uma<br />

vez que os oprimidos são tanto os afegãos como os simples operários,<br />

americanos e não só, que trabalhavam nas torres (muitos <strong>de</strong>les em<br />

condições <strong>de</strong> trabalho precário e casual) – faz-me lembrar uma<br />

piada: aquela em que o marido per<strong>de</strong> as chaves <strong>de</strong> casa no quintal e,<br />

quando a esposa chega, ele está a procurá-las no jardim da frente.<br />

Interrogado sobre se não estaria a procurá-las no lugar errado, e<br />

após anuir, o marido acaba por dizer que é mais fácil procurá-las ali.<br />

De facto, é mais fácil construir bo<strong>de</strong>s expiatórios, como Osama Bin<br />

La<strong>de</strong>n, ou atacar países pobres, como a Somália ou o Afeganistão, ou<br />

ainda inventar teorias sobre a inevitável superiorida<strong>de</strong> do Oci<strong>de</strong>nte,<br />

como faz David Lan<strong>de</strong>s, do que interrogar o problema do que se<br />

passa connosco, isto é, procurar a chave no nosso próprio quintal.<br />

Em certo sentido, o evitar <strong>de</strong>ssa questão é inerente a toda a gama <strong>de</strong><br />

hipocrisias artificiais e teóricas que criamos. É mais fácil construir<br />

discussões académicas sobre questões <strong>de</strong> “representação” do que<br />

questionar a própria venda da aca<strong>de</strong>mia ao capital 28 . É mais fácil<br />

28 Vejamos a conclusão <strong>de</strong> Naomi Klein sobre as “guerras da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>” nas universida<strong>de</strong>s<br />

18


estigmatizar os negros sul-africanos como “assassinos <strong>de</strong><br />

comerciantes portugueses” e gerar sensacionalismo que ven<strong>de</strong> como<br />

se fosse notícia, do que ver que o problema da violência nessa<br />

socieda<strong>de</strong> é mais complexo do que um puro racismo dualista. É mais<br />

fácil construir o racismo hipócrita das atitu<strong>de</strong>s politicamente<br />

correctas que passam pelo hibridismo, do que aceitar o “outro” em<br />

toda a sua irreconciliável diferença.<br />

Assim, regressar à realida<strong>de</strong> não é – na minha perspectiva –<br />

regressar a um novo substancialismo, mas, isso sim, reinventar pela<br />

<strong>de</strong>núncia uma narrativa da proximida<strong>de</strong>, mas uma proximida<strong>de</strong><br />

aberta: ou seja, é precisamente porque há diferenças culturais que os<br />

modos <strong>de</strong> relação com (o que quer que seja) a natureza são<br />

diferentes. O que é perigoso – e é preciso <strong>de</strong>nunciar – é o hibridismo<br />

hipócrita <strong>de</strong> algum multiculturalismo que não passa da imposição<br />

global <strong>de</strong> um modo unidimensional <strong>de</strong> interacção cultural e que nega,<br />

por isso, a diversida<strong>de</strong> das “versões” <strong>de</strong> aproximação à natureza.<br />

Negar a diversida<strong>de</strong> do “outro” é criar um multiculturalismo falso,<br />

colonialista. Ou seja, eu só aceito o “outro” se ele se passear pelos<br />

parâmetros axiológicos da minha própria negociação cultural. Nesse<br />

americanas, no início dos anos 90, e como essas lutas acabaram por servir os interesses corporativos,<br />

apesar <strong>de</strong> terem sido importantes:<br />

“(...) politics of image, not action. (…) We were too busy analyzing the pictures being projected on the<br />

wall to notice that the wall itself had been sold.”<br />

Naomi Klein, Op. Cit., p. 124.<br />

19


sentido – que é o que acontece no “império” da globalização<br />

corporativa – o “outro” só é aceite quando se manifesta <strong>de</strong>ntro do<br />

“mesmo”, ou seja, quando aceita ser domesticado 29 . Tal visão do<br />

multiculturalismo é uma visão que não sai do mo<strong>de</strong>lo cultural da<br />

tolerância mo<strong>de</strong>rna, que não é mais do que uma falta <strong>de</strong> respeito pela<br />

diferença. Tolerar o “outro” é pensar, arrogantemente, a sua vida<br />

reduzida aos meus “escombros”, aos nossos “restos”; é pensar o<br />

multiculturalismo como um conceito dialéctico, isto é, como se a<br />

incorporação do “outro” domesticado fosse uma forma <strong>de</strong> progresso<br />

para uma qualquer síntese final 30 : tão híbridos e civilizados que<br />

somos!<br />

Ora, se se retirar a essa interpretação o seu traço teleológico,<br />

não precisamos <strong>de</strong> apresentar esse “outro” reduzido, isto é, não<br />

precisamos <strong>de</strong> tomar o híbrido pela realida<strong>de</strong> do “outro” e po<strong>de</strong>mos<br />

– aí sim – ver o outro como radicalmente “outro” e respeitá-lo como<br />

tal. No entanto, é a partir dos “escombros” que precisamos<br />

<strong>de</strong>nunciar o facto <strong>de</strong> o Oci<strong>de</strong>nte não respeitar o que não consegue<br />

enten<strong>de</strong>r, ou seja, primeiro precisa <strong>de</strong> incorporar e quando passa à<br />

noção <strong>de</strong> respeito apenas está a tolerar a ficção do “outro” que criou<br />

29 Tenho encontrado um exemplo engraçado para isto nas apresentadoras da “MTV Asia”: Todas elas<br />

oci<strong>de</strong>ntalmente vestidas por diversas marcas (ou corporações) e, invariavelmente, com sotaque<br />

americano.<br />

30 Como o absoluto hegeliano ou a ditadura do proletariado marxista ou, ainda, a socieda<strong>de</strong> liberal <strong>de</strong><br />

Fukuyama: formas concretas <strong>de</strong> imperialismo teórico.<br />

20


para consumo próprio 31 . É isto que leva ao discurso da vítima, isto é,<br />

ao discurso das gran<strong>de</strong>s organizações internacionais que paralisam o<br />

“outro” enquanto “outro” (embora isto seja uma extensão, ao nível<br />

institucional, do que acontece a nível das relações interpessoais). O<br />

que acontece nesta forma <strong>de</strong> colonialismo é que o “outro” passa a ser<br />

transformado num parasita do “mesmo” que somos nós e que é cada<br />

um <strong>de</strong> nós, simplesmente porque se assume – no excesso <strong>de</strong> zelo que<br />

caracteriza a malfadada “dança” – que o que o “outro” precisa é o<br />

que nós achamos que ele precisa, em vez <strong>de</strong> se pensar na sua própria<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construção da dignida<strong>de</strong> e que é – enfatizemo-lo –<br />

irredutível a nós 32 . Com isto – e ainda no plano da poético-política da<br />

<strong>de</strong>núncia – não se consegue mais do que um racismo invertido,<br />

enquanto que pensar em termos verda<strong>de</strong>iramente multiculturais é<br />

pensar no plano <strong>de</strong> uma diferença irredutível, não colonizável nem<br />

pela hipocrisia nem pelo dinheiro.<br />

31<br />

<strong>Sobre</strong> a maneira como o Oci<strong>de</strong>nte se confundiu com a totalida<strong>de</strong> do globo, a propósito do <strong>11</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Setembro</strong>:<br />

“People began to say that these <strong>de</strong>aths had changed everything, that the world could never be the same<br />

again. What they meant, of course, was that life in the wealthy Western world would never be the<br />

same. This easy conflation of the fate of the rich world with the fate of all mankind is part of the<br />

arrogance that so many in the poor world railed against, and still do.”<br />

George Alagiah, “Shaking the Foundations”, Jenny Baxter and Malcolm Downing (Eds.), Op. Cit., p.<br />

39.<br />

32<br />

Um bom exemplo <strong>de</strong> reducionismo cultural é o que acontece com os “bem intencionados” guias <strong>de</strong><br />

viagem como é o caso do famoso “Lonely Planet”. Encontrei uma crítica bastante irónica a propósito<br />

da rua <strong>de</strong> Bangkok mais frequentada por oci<strong>de</strong>ntais:<br />

“You Know, Richard, one of these days I’m going to find one of those Lonely Planet writers and I’m<br />

going to ask him, what’s so fucking lonely about the Kao San Road?”<br />

Alex Garland, The Beach (London: Penguin Books, 1997), p. 194.<br />

21


Por aqui se constitui também uma poética universalista, mas<br />

<strong>de</strong> um universalismo que cresce a partir da base e que não se coloca<br />

como um “a priori” fundamental <strong>de</strong> tipo kantiano e ilustrado. É a<br />

noção <strong>de</strong> luta pelo reconhecimento da diferença que se constitui como<br />

a verda<strong>de</strong>ira solidarieda<strong>de</strong> universal – que me une aos oprimidos que<br />

se regozijaram com o <strong>11</strong> <strong>de</strong> <strong>Setembro</strong>. Essa solidarieda<strong>de</strong> universal é<br />

hoje mascarada pelo consenso liberal e corporativo cuja tendência é<br />

para o compromisso na negociação e para um unanimismo que reduz<br />

a liberda<strong>de</strong> a uma experiência da maioria: é essa máscara, atacada<br />

nas torres do WTC e no pentágono, é esse “resto” que urge repensar,<br />

que urge abrir e <strong>de</strong>sconstruir a partir da lição da violência. Tudo isto<br />

porque a <strong>de</strong>mocracia dos consensos não produz mais do que injustiça<br />

e opressão: é o caso do trabalho precário, vendido como experiência<br />

<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> (o po<strong>de</strong>r da reinvenção pessoal no final <strong>de</strong> cada prazo)<br />

quando, no fundo, é uma experiência <strong>de</strong> escravidão na qual a<br />

dignida<strong>de</strong> da permanência sobrevivente não é garantida 33 .<br />

Por outro lado, a cultura da vitimização (a cultura que reduz<br />

o “outro” ao “mesmo”) opera ao contrário quando se trata <strong>de</strong> pensar<br />

o “mesmo” enquanto “outro”, tornando-o impossível: assim como o<br />

“outro” é visto como vítima, o “mesmo” também o é e, por isso, trata-<br />

se <strong>de</strong> legitimar em si, enquanto vítima, o direito a uma violência auto-<br />

33 Naomi Klein, Op. Cit., pp. 231-257.<br />

22


justificada (“retaliação” foi a palavra mais usada) em vez <strong>de</strong><br />

perceber a violência infligida como uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

solidarieda<strong>de</strong>, na diferença, e <strong>de</strong> regeneração nos “escombros” e<br />

“restos” <strong>de</strong>ssa mesma violência, uma regeneração que passará<br />

inevitavelmente – e aqui na senda <strong>de</strong> Michel Foucault – por uma<br />

<strong>de</strong>núncia <strong>de</strong>ssa globalização que assenta sobre po<strong>de</strong>res disciplinares<br />

<strong>de</strong> isolamento, clausura, territorialização, “segurança”, isto é, um<br />

panopticismo regulado economicamente 34 .<br />

Francisco Nazareth<br />

Díli, Janeiro <strong>de</strong> 2002<br />

Referências 35 Fundamentais:<br />

Arab Studies Quarterly, S/L: Vol. 23, Issue 1, 2001.<br />

Baxter, Jenny e Malcolm Downing (Eds.), The Day That<br />

Shook The World: Un<strong>de</strong>rstanding September <strong>11</strong>th, London: BBC<br />

Worldwi<strong>de</strong>, 2001.<br />

Klein, Naomi, No Logo, London: Flamingo, 2001.<br />

Referências Secundárias:<br />

34 A propósito do panóptico como estratégia <strong>de</strong> vigilância:<br />

“Foucault illuminates the connection between the Panopticon and mo<strong>de</strong>rnity by showing that it forms<br />

the watershed between punitive and reforming practices. Enlightenment reason, concerned with<br />

empirical observation and classification, and related to the rational reproducing of social or<strong>de</strong>r, is<br />

neatly expressed here.”<br />

David Lyon, “From Big Brother to Electronic Panopticon”, Page 4 of 15,<br />

<br />

35 Estas limitam-se, obviamente, ao que disponho comigo no momento da escrita <strong>de</strong>ste trabalho. Outras<br />

serão acrescentadas no futuro, em caso <strong>de</strong> publicação.<br />

23


Call, Lewis, «Nietzsche as Critic and Captive of<br />

Enlightenment»,<br />

<br />

Garland, Alex, The Beach, London: Penguin Books, 1997.<br />

Gran<strong>de</strong> Reportagem, Nº 129, 2ª Série, Dezembro <strong>de</strong> 2001.<br />

Hardt, Michael e Antonio Negri, Empire, Cambridge:<br />

Harvard University Press, 2001.<br />

l><br />

Houellebecq, Michel, Plateforme, Paris : Flammarion, 2001.<br />

Lyon, David, « From Big Brother to Electronic Panopticon »,<br />

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