comunicação - Provedoria da Cultura
comunicação - Provedoria da Cultura
comunicação - Provedoria da Cultura
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
A Medicina a Literatura e a Poesia<br />
É convicção geral que os médicos são atreitos às letras. Nomes, vultos <strong>da</strong> medicina e <strong>da</strong><br />
literatura, provam esta ligação, Fernando Namora, Garcia de Horta, Miguel Torga, mas há<br />
outra lista, infinita, de vultos <strong>da</strong> literatura que, nem de perto nem de longe, se relacionaram<br />
com a medicina, Eça, Camões, Pessoa.<br />
Admitindo aquela ligação como ver<strong>da</strong>deira pode justificar-se pela condição médica. Explico:<br />
repeti<strong>da</strong>mente, os médicos enfrentam a decisão em solidão, são eles e o problema, inúmeras<br />
vezes, dia após dia, semana a seguir a semana, em contacto íntimo com o sofrimento, com os<br />
sentimentos que gera, a ira, o desespero, o medo. A contemplação do fim eminente, evitável,<br />
por vezes sim, por vezes não. Ficam com a certeza <strong>da</strong> efemeri<strong>da</strong>de. Percebem o precipício<br />
onde os outros veem o caminho, infinito, solarengo, afirmam alegremente que o caminho se<br />
descobre caminhando quando a ver<strong>da</strong>de é outra, o caminho está lá desde sempre, farto de ser<br />
caminhado. Na<strong>da</strong> a descobrir, na<strong>da</strong> de novo. A vagui<strong>da</strong>de levará alguns médicos a suplantar-se<br />
na literatura, na poesia, a contar com beleza o que dela foge. Um poema por ca<strong>da</strong> dor, uma<br />
história por ca<strong>da</strong> morte, o pe<strong>da</strong>ço de céu por ca<strong>da</strong> cura.<br />
Júlio Dinis<br />
A loucura é inseparável do homem; umas vezes toma-lhe a cabeça e deixa-lhe em paz o<br />
coração, que nunca se empenha no desvairar a que ela é arrasta<strong>da</strong>; outras vezes há na<br />
cabeça a frieza <strong>da</strong> razão e ao coração desce a loucura para o perturbar com afectos."
Armando Pinheiro<br />
O amor<br />
Tens a frescura duma flor silvestre,<br />
Com quem a minha secura me consolas,<br />
Vem de ti a espontanei<strong>da</strong>de agreste,<br />
Que há num campo de rúbi<strong>da</strong>s papoulas.<br />
A morte/ Deus<br />
Tenho de crer em ti,<br />
Que fazes parte de tudo o que se cria,<br />
Nasce, embala<br />
E de esperar que venhas revelar-te<br />
Quando meu corpo for descido à vala.<br />
Pé ante pé, virei depois sentar-me<br />
junto de ti a conversar contigo,<br />
e a tua boca poderá beijar-me<br />
como agora que sou um corpo vivo.<br />
E, docemente, poderás contar-me<br />
de ti, dos filhos. E o que eu te digo<br />
irás na mesma ouvindo, sem alarme,<br />
e quase julgarás estar comigo.<br />
Serei tua visita nas lembranças,<br />
nos móveis, nos objectos, nas crianças,<br />
nos pássaros, nas árvores, nos versos.<br />
Tu, como quem arruma a casa, calma,<br />
saberás encontrar a minha alma<br />
reunindo os fragmentos mais dispersos.
FERNANDO NAMORA<br />
Por ele:<br />
…Tenho investido na arte uma experiência existencial e não uma simples elaboração<br />
cerebral, a escrita impregna-se de uma atmosfera afectiva – mesmo quando os meus<br />
livros reflectem uma vinca<strong>da</strong> preocupação social.<br />
Confesso não ter vergonha de acreditar naquilo em que acredito: no ca<strong>da</strong> vez mais raro<br />
companheirismo, por exemplo; na dedicação a pessoas ou na fideli<strong>da</strong>de a objectivos.<br />
Alheamento<br />
Meu corpo estiraçado, lânguido, ao logo do leito.<br />
O cigarro vago azulando os meus dedos.<br />
O rádio... a música...<br />
A tua presença que esvoaça<br />
em torno do cigarro, do ar, <strong>da</strong> música...<br />
Ausência!, minha doce fuga!<br />
Estranha coisa esta, a poesia,<br />
que vai entornando mágoa nas horas<br />
como um orvalho de lágrimas, escorrendo dos vidros<br />
duma janela,<br />
numa tarde vaga, vaga...<br />
in 'Mar de Sargaços'<br />
Metade <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> é uma Perdulária Expectativa<br />
Vou fazendo horas - metade <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é uma perdulária expectativa. E tonta. E ansiosa. E<br />
inútil. Como quem se sentou numa gare de caminho-de-ferro, à espera de um comboio<br />
que não se sabe quando passará e qual o seu destino. Certeza, e relativa, está apenas no<br />
local de espera. E às vezes na própria espera. Se chegamos a concretizar a viagem, o<br />
lugar aonde o comboio nos levou, desilude-nos. Isso, porém, não impede que tudo<br />
venha a repetir-se. Desperdiça-se o instante real e concreto, mas que, como areia, se nos<br />
escapa <strong>da</strong>s mãos, em favor de uma ilusória vez seguinte.
Miguel Miran<strong>da</strong><br />
Leonardo limpou com vagar meticuloso os óculos embaciados pelo vapor do suor. Ca<strong>da</strong><br />
vez se cansava mais nas aulas dos cursos nocturnos. Ensinar matemática a estu<strong>da</strong>ntes<br />
trabalhadores de cabeça dura, com a paciência meia gasta pela jorna e os sentidos<br />
embotados pelo adiantado <strong>da</strong> hora, era tarefa árdua e demasiado desgastante. Este ano,<br />
jurara a si próprio, seria a última vez que aceitava o horário nocturno do Externato<br />
Fernando Pessoa.<br />
….<br />
Tinha sido um aluno fulgurante na facul<strong>da</strong>de de ciências, média de dezoito, arrasara as<br />
escalas to<strong>da</strong>s até à sua formação em Matemáticas. Um pequeno génio à solta no<br />
ver<strong>da</strong>deiro sentido do termo, pois Leonardo não media mais de um metro e cinco,<br />
encolhido no seu físico com que a natureza caprichosa o tinha dotado.<br />
………………………………………………………………….<br />
Amélia abocanhou a garrafa mais uma vez. As bochechas mirra<strong>da</strong>s encolhiam em ritmo<br />
de guelras, aspirando o vinho barato. Aquele líquido morno aquecia-lhe as entranhas e<br />
entorpecia-lhe a mente, aju<strong>da</strong>va a esquecer, Amélia queria esquecer, esquecer tudo.<br />
Esquecer o quê? Já não se lembrava bem, era tudo uma confusão baça. A sua vi<strong>da</strong> era<br />
como uma vidraça fosca e verde, como o vidro <strong>da</strong>quela garrafa.<br />
…<br />
Passava os dias à espera, à espera de na<strong>da</strong>. Os dias sempre iguais, naquela cave abafa<strong>da</strong><br />
e bafienta <strong>da</strong> rua <strong>da</strong> Alegria.
José Alves<br />
O céu passou de preto a cinzento escuro, as estrelas pagaram-se uma a uma, as menos<br />
brilhantes primeiro, as mais luzentes depois, os vultos <strong>da</strong>s árvores e <strong>da</strong>s fragas<br />
começaram a recortar-se contra a tími<strong>da</strong> clari<strong>da</strong>de que, a nascente, prometia um dia<br />
claro, o céu tingiu-se de amarelo, lá onde o sol se anunciava, os vultos mostraram-se<br />
todos brancos, tudo estava coberto por uma fina cama<strong>da</strong> de gelo branco, tudo, a erva, o<br />
chão, as pedras, as árvores sem folhas, ca<strong>da</strong> um dos galhos, o céu passou de amarelo a<br />
vermelho, rosa e a azul, claro, límpido. Ao longe aparecia a paisagem. Acor<strong>da</strong>va envolta<br />
em névoa cobrindo os sonhos <strong>da</strong>quela terra. O sol subiu no horizonte, o gelo brilhava<br />
um pouco antes de desaparecer feito gotas de água, pérolas de cor.<br />
…<br />
A paisagem é uma força <strong>da</strong> natureza! O granito brota do chão, <strong>da</strong>s urzes, dos carvalhais<br />
e, imponente, grita o nosso nome…<br />
Levantamo-nos, fomos para o rio, perdidos nos azuis matizados de<br />
cinzento, prata e oiro, nas on<strong>da</strong>s que o vento desenhava, nas sombras<br />
céleres <strong>da</strong>s nuvens, nas garças, nos mergulhões, nos patos, nas<br />
tainhas, nos barcos, nas canas dos pescadores, cais de esperança para<br />
os homens muito mais que de desespero para os peixes. Aqueles<br />
pescadores fazem parte <strong>da</strong> paisagem, nunca apanharam nenhum<br />
peixe, duvido mesmo que a cana tenha fio ou anzol, vão para ali<br />
pensar, seguram a cana para se diferençarem dos que vão para ali,<br />
como nós, para se perderem. Estávamos felizes. Se insistissem,<br />
sempre vos diria que um homem precisa de ter filhos para se sentir<br />
mais homem. A principal razão de sermos é continuar a ser, nos<br />
filhos, nos genes, nos fantasmas.
ANTÓNIO LOBO ANTUNES<br />
Sobre os livros<br />
"Não tenho pensamentos abstractos quando estou a escrever. Estou tão preocupado a<br />
fazer o livro que nem sequer me pergunto o que é que isto quer dizer, nem sequer<br />
pergunto o que estou a escrever. Às vezes nem sequer sabemos se estamos a acertar no<br />
papel. Só quando se começa a trabalhar é que se vê se acertámos ou não."<br />
"O livro é um organismo que vive independente e surpreende-nos a ca<strong>da</strong> passo. Um<br />
livro não se faz com ideias, faz-se com palavras. São as palavras que se geram umas às<br />
outras. E com trabalho."<br />
"Aprende-se a escrever, lendo. E também é necessária uma grande humil<strong>da</strong>de face ao<br />
material <strong>da</strong> escrita. É a mão que escreve. A nossa mão é mais inteligente do que nós.<br />
Não é o autor que tem de ser inteligente, é a obra. O autor não escreve tão bem quanto<br />
os livros."<br />
"Nós não inventamos na<strong>da</strong>. Quando estamos a fazer um livro estamos a falar de nós<br />
mesmos. "<br />
Sobre outros livros<br />
"Sinto uma consideração quase nula pelo que, em Portugal, se publica. Desgosta-me a<br />
infini<strong>da</strong>de de romances desonestos, entendendo por desonesti<strong>da</strong>de não a falta de valor<br />
intrínseco óbvio (isso existe em to<strong>da</strong> a parte) mas a rede de lucro rápido através <strong>da</strong><br />
banalização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Livros reles de autores reles."<br />
"O nível médio <strong>da</strong>quilo que se publica, seja onde for, é muito baixo. Esta é a ver<strong>da</strong>de<br />
em todo o mundo. As pessoas compram coisas que falam sobre o hoje e quando o hoje<br />
se tornar ontem já ninguém vai ler aquilo."<br />
Sobre ele<br />
"Por que é que havia de me sentir sozinho? Raras vezes na minha vi<strong>da</strong>, desde que me<br />
lembro de mim, tive um sentimento de solidão. E não me sinto mal na minha<br />
companhia, divertimo-nos muito os dois, eu e eu. Não me aborreço."<br />
Sobre o amor<br />
"Uma coisa é o amor, outra é a relação. Não sei se, quando duas pessoas estão na cama,<br />
não estarão, de facto, quatro: as duas que estão mais as duas que um e outro imaginam."<br />
"Teria dificul<strong>da</strong>de em viver com uma mulher que escrevesse. Eu nunca seria o mais<br />
importante na vi<strong>da</strong> dela, viria sempre depois dos livros."
A GRIPE E OS HOMENS ...<br />
Pachos na testa, terço na mão,<br />
Uma botija, chá de limão,<br />
Zaragatoas, vinho com mel,<br />
Três aspirinas, creme na pele<br />
Grito de medo, chamo a mulher.<br />
Ai Lurdes que vou morrer.<br />
Mede-me a febre, olha-me a goela,<br />
Cala os miúdos, fecha a janela,<br />
Não quero canja, nem a sala<strong>da</strong>,<br />
Ai Lurdes, Lurdes, não vales na<strong>da</strong>.<br />
Se tu sonhasses como me sinto,<br />
vejo a morte nunca te minto,<br />
Já vejo o inferno, chamas, diabos,<br />
anjos estranhos, cornos e rabos,<br />
Vejo demónios nas suas <strong>da</strong>nças<br />
Tigres sem listras, bodes sem tranças<br />
Choros de coruja, risos de grilo<br />
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo<br />
Não é o pingo de uma torneira,<br />
Põe-me a Santinha à cabeceira,<br />
Compõe-me a colcha,<br />
Fala ao prior,<br />
Pousa o Jesus no cobertor.<br />
Chama o Doutor, passa a chama<strong>da</strong>,<br />
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por na<strong>da</strong>.<br />
Faz-me tisanas e pão de ló,<br />
Não te levantes que fico só,<br />
Aqui sozinho a apodrecer,<br />
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer
Miguel Torga<br />
SÚPLICA<br />
Agora que o silêncio é um mar sem on<strong>da</strong>s,<br />
E que nele posso navegar sem rumo,<br />
Não respon<strong>da</strong>s<br />
Às urgentes perguntas<br />
Que te fiz.<br />
Deixa-me ser feliz<br />
Assim,<br />
Já tão longe de ti como de mim.<br />
Perde-se a vi<strong>da</strong> a desejá-la tanto.<br />
Só soubemos sofrer, enquanto<br />
O nosso amor<br />
Durou.<br />
Mas o tempo passou,<br />
Há calmaria...<br />
Não perturbes a paz que me foi <strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />
Ouvir de novo a tua voz seria<br />
Matar a sede com água salga<strong>da</strong>.<br />
NATAL<br />
Outro natal,<br />
Outra compri<strong>da</strong> noite<br />
De consoa<strong>da</strong><br />
Fria,<br />
Vazia,<br />
Bonita só de ser imagina<strong>da</strong>.<br />
Que fique dela, ao menos,<br />
Mais um poema breve<br />
Recitado<br />
Pela neve<br />
A cair, ao de leve,<br />
No telhado.<br />
SEGREDO<br />
Sei um ninho.<br />
E o ninho tem um ovo.<br />
E o ovo, redondinho,<br />
Tem lá dentro um passarinho<br />
Novo.<br />
Mas escusam de me atentar:<br />
Nem o tiro, nem o ensino.<br />
Quero ser um bom menino<br />
E guar<strong>da</strong>r
Este segredo comigo.<br />
E ter depois um amigo<br />
Que faça o pino<br />
A voar...<br />
HORA DE AMOR<br />
Vem.<br />
Adormece encosta<strong>da</strong> a este braço<br />
Mais débil do que o teu.<br />
Entrega te despi<strong>da</strong><br />
Nas mãos dum homem solitário<br />
Que a maldição não deixa<br />
Que possa nem sequer lutar por ti.<br />
Vem,<br />
Sem que eu te chame, ou te prometa a vi<strong>da</strong>.<br />
E sente que ninguém,<br />
No descampado deste mundo, tem<br />
A alma mais guar<strong>da</strong><strong>da</strong> e protegi<strong>da</strong>.<br />
SAGRES<br />
Vinha de longe o mar...<br />
Vinha de longe, dos confins do medo...<br />
Mas vinha azul e brando, a murmurar<br />
Aos ouvidos <strong>da</strong> terra um cósmico segredo.<br />
E a terra ouvia, de perfil agudo,<br />
A confidencial revelação<br />
Que iluminava tudo<br />
Que fora bruma na imaginação.<br />
Era o resto do mundo que faltava<br />
(Porque faltava mundo!).<br />
E o agudo perfil mais se aguçava,<br />
E o mar jurava ca<strong>da</strong> vez mais fundo.<br />
Sagres sagrou então a descoberta<br />
Por descobrir:<br />
As duas margens de certeza incerta<br />
Teriam de se unir!
INSTANTE<br />
A cena é mu<strong>da</strong> e breve:<br />
Num lameiro,<br />
Um cordeiro<br />
A pastar ao de leve;<br />
Embeveci<strong>da</strong>,<br />
A mãe ovelha deixa de remoer;<br />
E a vi<strong>da</strong><br />
Pára também, a ver.