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Nelson Rodrigues por Décio Almeida Prado. Análise das críticas ...

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FACULDADE CÁSPER LÍBERO<br />

CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA<br />

NELSON RODRIGUES POR DÉCIO DE ALMEIDA PRADO<br />

<strong>Análise</strong> <strong>das</strong> <strong>críticas</strong> teatrais sobre o dramaturgo<br />

publica<strong>das</strong> pelo crítico em O Estado de S.Paulo<br />

Pesquisador: Kauanna Costa de Morais Navarro<br />

São Paulo, 2010


FACULDADE CÁSPER LÍBERO<br />

CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA<br />

NELSON RODRIGUES POR DÉCIO DE ALMEIDA PRADO<br />

<strong>Análise</strong> <strong>das</strong> <strong>críticas</strong> teatrais sobre o dramaturgo<br />

publica<strong>das</strong> pelo crítico em O Estado de S.Paulo<br />

Pesquisador: Kauanna Costa de Morais Navarro<br />

Professor orientador: Welington Andrade<br />

São Paulo, 2010<br />

2


Sumário<br />

1 Introdução 04<br />

1.1 Objetivos 07<br />

2. <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> e sua obra 08<br />

3. A formação do crítico <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> 24<br />

4. <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> <strong>por</strong> <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> 37<br />

4.1 Vestido de noiva (1947) 38<br />

4.2 A mulher sem pecado (1952) 40<br />

4.3 A falecida (1953) 41<br />

4.4 Vestido de noiva (1958) 43<br />

4.5 Boca de ouro (1960) 45<br />

4.6 Toda nudez será castigada (1965) 46<br />

4.7 Viúva, <strong>por</strong>ém honesta (1968) 47<br />

5. Considerações Finais 49<br />

6. Anexos 50<br />

A censura e o teatro 51<br />

Censura e o “Estado” 55<br />

7. Bibliografia 59<br />

3


1. Introdução<br />

A proposta deste trabalho é estudar as peças teatrais de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong><br />

a partir da ótica do crítico <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>. A escolha desses nomes foi<br />

baseada no fato de que ambos têm uma im<strong>por</strong>tância fundamental na formação<br />

do teatro brasileiro moderno.<br />

<strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> foi um conceituado crítico e historiador do teatro<br />

brasileiro, que amadureceu ao mesmo tempo em que o a modernidade<br />

chegava aos palcos do Brasil. Como define a enciclopédia do Itaú Cultural, ele<br />

foi “O mais influente crítico teatral paulista ao longo de todo o seu exercício<br />

profissional, que se inicia em meados da década de 1940 e segue até fins dos<br />

anos 1960”. 1<br />

<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> entra neste cenário como um dramaturgo polêmico,<br />

considerado o fundador do teatro moderno brasileiro com a obra Vestido de<br />

Noiva.<br />

Ao estrear, em 1943, na memorável encenação de<br />

Ziembinski com o grupo Os Comediantes, Vestido de noiva foi<br />

saudado como a introdução da modernidade no teatro<br />

brasileiro, abrindo para o nosso palco a quarta parede da<br />

contem<strong>por</strong>aneidade. Vinda num momento de estagnação da<br />

expressividade cênica, a montagem de Os Comediantes<br />

acabou propiciando uma série de iniciativas que, aos poucos,<br />

foi modificando o nosso fazer teatral, integrando-o no diálogo<br />

com o seu tempo. 2<br />

Ao olhar as <strong>críticas</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> sobre as obras de <strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong>, pode-se pro<strong>por</strong> a seguinte questão para a pesquisa:<br />

Como <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> percebia a dramaturgia de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong><br />

e como a visão desta dramaturgia foi modificada ao longo dos anos, tomando<br />

como fonte principal as <strong>críticas</strong> publica<strong>das</strong> no jornal O Estado de S. Paulo entre<br />

os anos de 1947 a 1968, e hoje edita<strong>das</strong> em coletânea nos livros Apresentação<br />

1 Enciclopédia Itaú Cultural:<br />

http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=personalidpers_biog<br />

rafia&cd_verbete=728, acessado em 20-11-2009.<br />

2 MOSTAÇO, E. Costuras de um vestido in RODRIGUES, 2003:204.<br />

4


do teatro brasileiro moderno (1947 - 1955), Teatro em progresso (1955-1964) e<br />

Exercício Findo (1964-1968)?<br />

A escolha pela crítica teatral se deve ao fato de o teatro ainda ser uma <strong>das</strong><br />

poucas artes que conseguem manter a maneira “artesanal” de execução. E a<br />

crítica, neste contexto, seria fundamental para completar a ligação entre o leitor<br />

e o artista. A crítica, assim como o teatro, inexiste se não houver a interação<br />

entre o público e os artistas. <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> ganhou notoriedade em<br />

um momento crucial para a cultura brasileira: o surgimento do teatro moderno -<br />

<strong>por</strong> esta razão, a escolha de trabalhar a sua produção.<br />

As <strong>críticas</strong> sobre as peças de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> serão o objeto de análise<br />

do presente projeto. Este autor não apenas abriu as <strong>por</strong>tas da modernidade<br />

com os três planos de O vestido de noiva – realidade, alucinação e memória –,<br />

<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> teve obras que exploraram a mítica e foi mestre ao reger<br />

tragédias hoje consagra<strong>das</strong>.<br />

O próprio <strong>Nelson</strong> confessou: “Vestido de noiva teve o tipo<br />

de sucesso que cretiniza um autor. Parti para Álbum de família,<br />

que é um anti-Vestido de noiva. O teatro é mesmo dilacerante,<br />

um abscesso. Teatro não tem que ser bombom com licor.”<br />

Com Álbum de família (1945), o dramaturgo ingressou no<br />

território mítico. Depois do subconsciente cabia sondar o<br />

inconsciente primitivo (MAGALDI, 1993:22)<br />

Para a pesquisadora Maria Cecília Garcia, a crítica teatral é “um texto em<br />

estado de latência, aquele que jamais se concluiu ou jamais adquire uma forma<br />

acabada e completa” (GARCIA, 2004:26).<br />

A crítica, de maneira geral, parece ter algo a dizer sobre a produção cultural<br />

da sociedade na qual atua. Para o crítico inglês Terry Eagleton, o texto crítico<br />

é:<br />

[…] alvo <strong>das</strong> atenções gerais quando, no ato de manifestar-<br />

se sobre a literatura, emite uma mensagem colateral sobre a<br />

forma e o destino de uma cultura. A crítica só pôde reivindicar<br />

seriamente o direito de existir, quando a “cultura” se tornou um<br />

projeto político premente, a “poesia” passou a constituir uma<br />

metáfora da qualidade da vida social, e a linguagem se<br />

5


converteu num paradigma no conjunto de práticas sociais.<br />

(EAGLETON, 2007:99-100)<br />

Esta atividade varia de acordo com a época e também com o produtor do<br />

texto. É im<strong>por</strong>tante lembrar que há uma variação dos conceitos do próprio<br />

escritor ao longo de sua produção. Sendo assim, a crítica não só depende do<br />

objeto da sua análise, mas também de quem a produz e da sociedade da qual<br />

fala.<br />

Este trabalho estuda os textos de <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> originalmente<br />

publicados no jornal O Estado de S. Paulo, no qual também dirigiu o<br />

Suplemento literário <strong>por</strong> dez anos (1956-1966). Por meio da análise <strong>das</strong> <strong>críticas</strong><br />

escritas <strong>por</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>, é possível entender qual foi a im<strong>por</strong>tância da sua<br />

crítica durante a formação do teatro moderno brasileiro. Na dissertação “Do<br />

artístico ao jornalístico: vida e morte de um suplemento – Suplemento Literário<br />

de O Estado de S. Paulo (1956 a 1974)”, da jornalista Elizabeth de Souza<br />

Lorenzotti, é dito que para <strong>Décio</strong>:<br />

Sempre existiu a incompatibilidade entre jornalismo e<br />

literatura, e seu Suplemento foi criticado <strong>por</strong> não ser<br />

jornalístico. Claro o jornalismo ocupa-se do momento,<br />

enquanto a literatura a arte, querem ser eternas<br />

(LORENZOTTI, 2002:98)<br />

Neste trabalho, a arte também será entendida como eterna, bem como a<br />

crítica feita <strong>por</strong> <strong>Décio</strong>. Como o próprio <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> defende na introdução do<br />

livro Apresentação do teatro brasileiro moderno, temos de lembrar as <strong>críticas</strong><br />

teatrais <strong>por</strong>que:<br />

O nosso teatro [brasileiro] ainda está em fase de pensar na<br />

posteridade, não adquiriu ainda o direito de se enxergar como<br />

documento histórico. Estamos no momento da construção,<br />

vivemos no presente e para o presente. Ora, o problema <strong>por</strong><br />

ventura mais cruciante entre nós é o da criação de uma<br />

consciência teatral, essa qualquer coisa vaga e indeterminada<br />

que antecede e prepara a ação, compreendendo, <strong>por</strong> exemplo,<br />

desde o conhecimento preciso de como se ilumina um palco<br />

até a discussão a respeito da natureza estética do fenômeno<br />

teatral. (PRADO, 2001:XVIII)<br />

6


Os textos que serão estudados ao decorrer deste trabalho são: Vestido de<br />

Noiva, A mulher sem pecado e A falecida, presentes na coletânea<br />

Apresentação do teatro brasileiro moderno (1947-1955); Vestido de noiva (nova<br />

crítica) e Boca de ouro do livro Teatro em progresso (1955-1964) e Toda nudez<br />

será castigada e Viúva, <strong>por</strong>ém honesta, retira<strong>das</strong> do livro Teatro findo (1964-<br />

1968).<br />

Ao estudar a relevância de <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> no período em que<br />

escreveu para o jornal O Estado de S. Paulo, pode-se compreender não só<br />

qual era o papel da crítica, mas também a atuação da dramaturgia brasileira.<br />

Como a formação do teatro moderno e as obras de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> se<br />

confundem, nada mais acertado do que escolher os textos de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>,<br />

sobre a obra deste dramaturgo, como estudo de caso. A crítica e o teatro se<br />

completavam, um ajudou a construir o outro e, <strong>por</strong> meio desta cumplicidade,<br />

este projeto tem como proposta pensar melhor todo um período do jornalismo<br />

cultural.<br />

1.1 Objetivos<br />

Este trabalho tem o objetivo de delinear o conceito de teatro “bom” em<br />

<strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>. E, a partir deste delineamento de seus principais<br />

critérios de julgamento estético, analisar a forma e conteúdo de suas <strong>críticas</strong><br />

sobre as peças de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> produzi<strong>das</strong> entre 1947 e 1968,<br />

originalmente publica<strong>das</strong> em O Estado de S. Paulo.<br />

O presente projeto tenciona demonstrar como os ideais de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong><br />

estavam presentes ao longo da sua crítica. Para ele, o texto literário era a base<br />

da peça e não poderia ser relegado a segundo plano. Sobre o que era ser<br />

crítico, o próprio <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> escreveu no prefácio do livro Exercício Findo:<br />

Buscava a objetividade, fugia tanto quanto me era possível<br />

de implicâncias, de preconceitos humanos e artísticos, mas<br />

sabendo que no fundo, bem no fundo, as minhas opções não<br />

escapavam ao pessoal. O que, para ser sincero, me libertava.<br />

Se eu enfrentasse a página em branco achando-me na<br />

obrigação de só ver verdades absolutas, váli<strong>das</strong> para todos,<br />

7


sentir-me-ia terrivelmente inibido, com um peso demasiado<br />

sobre os ombros. (PRADO, 1987:26)<br />

A partir da leitura dos textos produzidos <strong>por</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>, o presente<br />

projeto pretende fazer uma leitura crítica e detalhada dos textos selecionados.<br />

2. <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> e sua obra<br />

Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura.<br />

Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o<br />

buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista.<br />

Sou (e sempre fui) um anjo <strong>por</strong>nográfico.<br />

8<br />

<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong><br />

O presente trabalho analisará a produção crítica de <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong><br />

sobre as peças teatrais de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>. Contudo, não poderíamos levar a<br />

iniciativa adiante sem traçar um panorama geral da obra teatral deste escritor e<br />

jornalista. Nascido em 1912 em Recife e criado no Rio de Janeiro, <strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong> começou a trabalhar como jornalista muito cedo (mais precisamente,<br />

aos 13 anos), advinda da infância sua paixão <strong>por</strong> escrever. No entanto, sua<br />

carreira de autor teatral iniciar-se-ia apenas em 1939, quando escreveu a<br />

primeira peça, A mulher sem pecado, drama em três atos.<br />

Os temas desta primeira experiência dramatúrgica de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> são<br />

o ciúme e a obsessão. A trama gira em torno de um homem acometido pela<br />

paralisia (Olegário), obcecado pela esposa e pelo tema da traição, e que, ao<br />

longo da história, fará de tudo para provar que sua esposa é "honesta". O final<br />

da peça, inesperado, é característica marcante em toda a obra rodriguiana:<br />

Olegário revela que se fingiu de paralítico para testar a fidelidade da mulher e,<br />

assim, acaba jogando-a nos braços de outro homem. Lídia, a esposa em<br />

questão, cansada <strong>das</strong> loucuras do marido, acaba fugindo com Umberto,<br />

motorista da casa. A Olegário, então, resta o suicídio.<br />

Sobre essa primeira peça, escreveria anos mais tarde Sábato Magaldi no<br />

livro Teatro da obsessão: <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>:


A matéria de A mulher sem pecado, como se vê, não se<br />

constitui de especial transcendência. Está-se próximo do fait<br />

divers, do quase anedótico. Uma <strong>das</strong> numerosas histórias de<br />

que <strong>Nelson</strong> nutriria, mais tarde, a coluna diária da imprensa<br />

sob o título "A Vida Como Ela É"… (MAGALDI, 2004:12)<br />

A carreira dramatúrgica de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> foi marcada <strong>por</strong> tensões. A<br />

sua primeira peça, Mulher sem pecado, já reflete um clima de opressão do<br />

Estado Novo:<br />

[…] A análise introspectiva de A mulher sem pecado poderia<br />

ser a única saída criadora permitida a <strong>Nelson</strong> pela ditadura de<br />

Getúlio Vargas. E a fuga da atmosfera opressiva, empreendida<br />

<strong>por</strong> Lígia, e o suicídio de Olegário, mergulhado na loucura que<br />

ele mesmo forjou, já seriam a antecipação do desfecho trágico<br />

do Estado Novo, embora na fase mais amena da segunda<br />

subida do ditador ao poder, pelo voto democrático. (MAGALDI,<br />

Sábato, 2004:17)<br />

A mulher sem pecado não obteve sucesso junto ao público, tanto que<br />

<strong>Nelson</strong>, após a estreia desanimadora, já começava a pensar em algo que<br />

pudesse ser mais forte e inovador. Surge, assim, a ideia de escrever Vestido<br />

de Noiva, drama em três atos que seria um marco não só na carreira<br />

dramatúrgica do autor, mas também no teatro moderno brasileiro. Composta<br />

<strong>por</strong> três planos: o da realidade, o da alucinação e o da memória, a trama<br />

explora a história de uma mulher que tenta reconstituir os acontecimentos do<br />

passado. A personagem é Alaíde e, dentro de sua mente desagregada,<br />

memória e alucinação se confundem. O leitor descobre que Alaíde roubou o<br />

namorado da irmã, Lúcia, e casou-se com ele. O desfecho, mais uma vez,<br />

surpreendente mostra que, após a morte de Alaíde, Lúcia acaba se casando<br />

com o viúvo, Pedro. Nesta trama há a presença de uma figura curiosa,<br />

madame Clessi, uma espécie de encarnação do desejo daquilo que Alaíde<br />

gostaria de ter sido, uma prostituta, assassinada <strong>por</strong> um amante mais jovem. É<br />

desta peça a famosa fala "Tão branco – dezessete anos – as mulheres só<br />

deveriam amar meninos de dezessete anos!". A tragédia, dividida em três atos,<br />

é considerada a fundadora do teatro brasileiro moderno.<br />

9


O diretor polonês Ziembinski com suas técnicas tão inovadoras e o texto de<br />

<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, que possibilitava novos experimentos, marcaram a história<br />

do teatro brasileiro indelevelmente. Muitas foram as conquistas da montagem<br />

de 1943, mas a mais im<strong>por</strong>tante delas foi a inauguração da modernidade<br />

teatral no País.<br />

Com Vestido de noiva, <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> inaugurou o teatro brasileiro<br />

moderno. O sucesso da peça não seria repetido nas posteriores. Embora não<br />

tenha sido um sucesso de público, Álbum de família traz em si a tendência do<br />

pós-guerra: a universalidade:<br />

O próprio <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, tão estranhamente carioca,<br />

não permaneceu de todo imune à tentação universalizante. As<br />

peças que denominou "tragédias", escritas muitas delas em<br />

sucessão imediata a Vestido de noiva, inspiravam-se no<br />

modelo supremo com que tantas vezes lhe acenara a crítica - o<br />

teatro grego, de Ésquilo, de Sófocles, de Eurípedes. (PRADO,<br />

2009:51)<br />

Para Dias Gomes, em depoimento sobre o inicio da modernidade no teatro<br />

brasileiro, os anos quarenta foram um marco. Neste período começou a<br />

revalorização do espetáculo. Para ele, a vinda de diretores europeus foi o que<br />

mais incentivou a inovação nos palcos. O próprio Ziembinski é exemplo disso,<br />

ele havia chegado ao Brasil em 1941 e, em 1942, já encenava Vestido de<br />

noiva. Dias Gomes diz ainda, no mesmo depoimento, que até os anos 40 o<br />

teatro brasileiro era ainda de improvisação, com espetáculos que quase nunca<br />

duravam mais de quinze dias. O ensaio não era uma prática recorrente neste<br />

momento, e o teatro ainda se apoiava em poucos nomes de grandes astros e<br />

estrelas. Para Dias Gomes, “o nosso teatro estava atrasado uns vinte ou trinta<br />

anos na comparação com o resto do mundo”. 3 No livro Censura em cena, de<br />

Cristina Costa, são relatados alguns fatos que pro<strong>por</strong>cionaram o surgimento do<br />

teatro moderno brasileiro. O Teatro de Brinquedo, grupo do Rio de Janeiro, já<br />

3 Depoimentos V, 1981, Serviço Nacional de Teatro, p.37 apud COSTA,<br />

2006:128.<br />

10


incentivava autores brasileiros, colocando em cena peças de Oduvaldo Vianna.<br />

Outra iniciativa de grande im<strong>por</strong>tância é o Teatro do Estudante, que introduziu,<br />

entre outras coisas, a prática da dispensa do ponto, utilizado para passar o<br />

texto para os atores, a valorização da cenografia e do figurino e a firmeza da<br />

direção, como forma de dar unicidade ao espetáculo.<br />

Segundo <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>, neste período a dramaturgia brasileira<br />

seguia duas fortes tendências: uma que girava em torno de conceitos e<br />

abstrações (influências de peças vin<strong>das</strong> da França, de Sartre e Camus), na<br />

qual essência e existência viraram palavras de ordem. Era um engajamento<br />

filosófico que, talvez, antecipasse o futuro engajamento político. A outra, vinda<br />

dos Estados Unidos, conservava do naturalismo o interesse pelo indivíduo, a<br />

busca pelas raízes da personalidade humana. Nas peças de Tennessee<br />

Williams e de Arthur Miller fundia-se presente e passado, e fatos reais eram<br />

misturados com digressões afetivas. Não se negava o realismo, contudo<br />

transcendia-o. (PRADO, 2009:49).<br />

No final da década de 40 surge o TBC, Teatro Brasileiro de Comédia, em<br />

São Paulo. Este seria sinônimo de "bom teatro" nos anos posteriores, com<br />

peças bem feitas e espetáculos ricos e caprichados. No livro Cem anos de<br />

teatro em São Paulo, escrito <strong>por</strong> Sábato Magadi e Maria Thereza Vargas, é<br />

ressaltada a im<strong>por</strong>tância da companhia para o teatro nacional. Segundo os<br />

autores, o TBC “constituiu-se num padrão, que os mais jovens procuram<br />

igualar”. (MAGALDI; VARGAS, 2000: 247). O TBC surgiu em São Paulo em um<br />

momento no qual a falta de salas de teatro preocupava a crítica. Pelo palco do<br />

TBC passaram artistas como Cacilda Becker, Nydia Licia, Paulo Autran e<br />

Sérgio Cardoso. O teatro paulista desenvolve-se, no sentido técnico, após a<br />

criação do TBC. Artistas plásticos eram contratados para a elaboração dos<br />

cenários e diretores estrangeiros eram procurados para renovar as montagens<br />

e encenar textos contem<strong>por</strong>âneos. Em depoimento à autora Cristina Costa, no<br />

livro Censura em cena, Nydia Licia disse:<br />

Com a vinda do Celli [Adolfo Celli era um encenador<br />

formado em Roma], aos poucos o teatro foi se<br />

profissionalizando, aí vieram os outros diretores e nós<br />

passamos a ser atores profissionais. Então isso foi o começo<br />

de tudo em São Paulo. (COSTA, 2006:13)<br />

11


Em meio à renovação no teatro brasileiro, <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> escreve, em<br />

1945, sua terceira peça, Álbum de família, tragédia em três atos que somente<br />

seria encenada em 1967, devido à censura sofrida em 1946. O tema deixa<br />

claro o <strong>por</strong>quê disto ter ocorrido: incestos, traições, pedofilia e assassinatos<br />

são as palavras que resumem o conteúdo da trama. Em Álbum de família,<br />

<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> aborda, de maneira direta, assuntos considerados tabus.<br />

Sua preferência pela moldura da tragédia fica cada vez mais clara. Os temas<br />

da morte e do adultério também se firmam como recorrentes na dramaturgia do<br />

autor.<br />

No ano seguinte surge mais uma peça: Anjo Negro, outra tragédia em três<br />

atos. Desta vez é introduzida uma nova temática à dramaturgia rodriguiana: o<br />

racismo. A história central resume-se a um homem negro, Ismael, que <strong>por</strong> odiar<br />

a própria etnia, violenta uma mulher branca, Virgínia, e se casa com ela. O<br />

casal nutre uma relação de amor e ódio. A mulher mata cada um dos filhos,<br />

todos homens, que tem com Ismael, pelo fato de não querer conceber filhos<br />

negros. Como de costume na obra rodriguiana, há também o adultério. Neste<br />

caso, é Virgínia a adúltera que trai o marido com seu próprio irmão de criação,<br />

Elias, um homem branco. Desta relação nasce uma menina, Ana Maria,<br />

poupada da morte. Mas tanto a menina quanto Elias são cegados <strong>por</strong> Ismael.<br />

Atraído pela enteada, Ismael procura fazê-la acreditar que ele é o único homem<br />

branco da casa vivendo entre negros detestáveis – o que não impede que Ana<br />

Maria também seja assassinada. Interessante ressaltar que a primeira<br />

encenação da peça traria um homem branco pintado de negro ao palco, fato<br />

que <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> não aceitava.<br />

Senhora dos afogados será a peça seguinte a Anjo negro. Desta vez,<br />

<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> conta a saga da família Drummond, estabelecendo vários<br />

paralelos com a história narrada em Álbum de família. Escrita em 1947, a peça<br />

é uma tragédia em três atos e seis quadros. Vingança e destino são as<br />

palavras que movem a trama. <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> busca inspiração na tragédia<br />

grega Electra para traçar o emaranhado quadro narrativo que envolve os<br />

membros da família Drummond.<br />

12


Em 1949, <strong>Nelson</strong> escreve Dorotéia, que ele mesmo classifica como "farsa<br />

irresponsável em três atos". Sobre este fato, Carlos Castello Branco escreve<br />

em texto publicado na fortuna crítica de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> - Teatro Completo:<br />

Dorotéia, que o autor classifica como farsa, é a mais<br />

realizada <strong>das</strong> suas tragédias, no sentido que nelas são<br />

preserva<strong>das</strong> com maior propriedade as características<br />

clássicas do gênero, se bem seja exagero procurar distinções<br />

rígi<strong>das</strong> na obra de um autor que habilmente lança mão de<br />

todos os recursos, de expressão teatral, da tragédia, da<br />

comédia, do drama, da farsa, etc, e mais de processos afins,<br />

desde que lhe permitam traduzir sua concepção complexa do<br />

drama humano.<br />

A tragédia, quando não é expressa, está implícita em to<strong>das</strong><br />

as peças de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, mas a verdade é que, em<br />

nenhuma delas, a linguagem, que é o elemento mais sensível<br />

de uma experiência literária, seja ela qual for, adquire essa<br />

gravidade, essa limpidez solene, que, em si mesma, nos<br />

predispõe o irremediável, quanto nas cenas-chave de Dorotéia.<br />

4<br />

Assim, a peça contará a história de Dorotéia, uma mulher que foge com um<br />

paraguaio e volta para casa na condição de mulher "perdida" da família. As<br />

primas de Dorotéia cultivam uma espécie de repúdio ao pecado. Como é<br />

comum nas peças de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, a contradição é elemento presente.<br />

Ao mesmo tempo em que há a recusa ao pecado, há também o fascínio <strong>por</strong><br />

ele. Na trama sobressaem alguns elementos fantásticos: as mulheres da<br />

família não podem enxergar os homens, a personagem Das Dores nasce morta<br />

e depois volta ao útero materno. A peça não obteve sucesso junto ao público e<br />

poucos críticos entenderam o texto. Com elementos do teatro do absurdo,<br />

como homens sendo representados <strong>por</strong> botinas e jarros, o texto era carregado<br />

de poesia. <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> havia escrito Dorotéia para sua amante, Eleonor<br />

Bruno, a “Nonoca”.<br />

No ano de 1951, <strong>Nelson</strong> escreve a peça Valsa nº 6, em que conta a história<br />

de uma menina, Sônia, assassinada aos 15 anos. O drama em dois atos é um<br />

monólogo e, <strong>por</strong> meio de devaneios e lembranças, a menina reconstitui o que<br />

4 BRANCO, Carlos Castello. Dorotéia in RODRIGUES, 2003:147<br />

13


ocorreu em sua vida. Ao final o espectador descobre que a garota é<br />

assassinada no momento em que está executando a valsa nº 6, de Chopin.<br />

Na década de 1960, afirma-se na Europa o chamado "teatro do absurdo"<br />

(surgido na década anterior), nomenclatura que tentava classificar um estilo<br />

que não tinha muitos compromissos com a realidade. Esta tendência<br />

influenciou alguns autores brasileiros, entre eles <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>:<br />

Ionesco começou a metamorfosear homens em animais<br />

(Rhinocéros, de 1960) ou fazê-los voar (Le Piéton de l'Air, de<br />

1963). O que parecera antes tolice, na melhor <strong>das</strong> hipóteses,<br />

ou loucura mansa, na pior, passou a ser encarado como<br />

presciência histórica, sensibilidade para adivinhar de que lado<br />

o teatro moderno se expandiria. A dramaturgia do absurdo, ao<br />

criar no palco um espaço com leis próprias, diferentes <strong>das</strong><br />

nossas, justificava em retrospecção os piores excessos<br />

imaginativos cometidos <strong>por</strong> <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, nessa [Dorotéia,<br />

1949] e em outras peças. Estávamos perante um São João<br />

Batista, anunciador dos Messias que não tardariam a tomar<br />

conta do teatro, não de um fanático privado da razão. (PRADO,<br />

2009:109)<br />

Mais uma vez <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> antecipava uma tendência nas artes<br />

dramáticas.<br />

Na transição da década de 1940 para a de 1950, começa a se delinear um<br />

instinto de nacionalismo na dramaturgia brasileira. Em 1955, ex-alunos da<br />

Escola de Arte Dramática (EAD) de São Paulo fundam o Teatro de Arena.<br />

Inicialmente o grupo pretendia fazer espetáculos com o mesmo cuidado<br />

artístico do TBC, mas sem utilizar o que chamavam de “ilusionismo do cenário”.<br />

Em entrevista a Sábato Magaldi, o diretor José Renato Pécora, afirma:<br />

“No teatro de arena preocupamo-nos com um espetáculo<br />

mais puro. Sua verdadeira vedeta é o texto. Com a ausência de<br />

cenários e a proximidade do palco, toda a atenção se<br />

concentra sobre a peça e o desempenho”. (MAGALDI, Teatro<br />

Brasileiro, 1956, p.27, apud GUINSBURG e outros, 2009:38)<br />

Em 1956, após uma montagem de Escola de maridos, de Molière, o Teatro<br />

de Arena inicia uma parceria com o Teatro Paulista do Estudante, grupo<br />

14


amador simpatizante do Partido Comunista Brasileiro. Com essa parceria e<br />

também com a entrada de Augusto Boal para o grupo, o Teatro de Arena aos<br />

poucos vai modificando a sua proposta e passa a ser considerado um lugar<br />

privilegiado para <strong>por</strong> em foco as classes populares. No livro Dicionário do teatro<br />

brasileiro, as novas tendências do Teatro de Arena são explica<strong>das</strong>, citando a<br />

disposição cênica:<br />

Na perspectiva dos teóricos do grupo, a simplicidade do<br />

aparato cênico emula a escassez em que vivem os operários e<br />

camponeses. Igualmente a disposição circular dos<br />

espectadores, <strong>por</strong> eliminar o “ponto de vista do rei” e equalizar<br />

a visibilidade, torna-se metáfora da democratização do<br />

espetáculo. A arena torna-se palco emblemático do teatro<br />

popular. (GUINSBURG e outros, 2009:38)<br />

Em 1958, é encenada no Teatro de Arena a montagem de Eles não usam<br />

Black-Tie, escrita <strong>por</strong> Gianfrancesco Guarnieri. Em 1960, nascem as peças O<br />

pagador de promessas, de Dias Gomes e Revolução na América do Sul, de<br />

Augusto Boal. O Teatro de Arena havia surgido com o intuito de dar vazão à<br />

produção teatral brasileira, usando um formato de arena adotado como<br />

alternativa à cena italiana e com o intuito de renovar a linguagem cênica. Com<br />

o tempo, este lugar virou reduto de peças com conteúdo político e social.<br />

Passaram <strong>por</strong> este palco: Ju<strong>das</strong> em Sábado de Aleluia, de Martins Pena, com<br />

direção de Sergio Britto, e Arena Conta Zumbi, de Boal e Guarnieri. Esta<br />

última, contava a revolução de escravos contra o domínio <strong>por</strong>tuguês, e surgia o<br />

sistema cênico-interpretativo: o coringa. Todos os atores interpretavam todos<br />

os papéis. <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> odiava o teatro de “protesto” pregado pelo Arena,<br />

na opinião dele, a proposta deste tipo de dramaturgia coletivizava os artistas e<br />

desumanizava o teatro.<br />

O Teatro de Arena influenciou espetáculos nos vintes anos seguidos ao<br />

golpe militar de 1964. A potencialidade do palco em arena de acolher teses<br />

“revolucionárias” se expande <strong>por</strong> meio de Augusto Boal e Oduvaldo Vianna<br />

Filho.<br />

Alheio às teses da dramaturgia de protesto, <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> escreve<br />

neste período A falecida. O espetáculo foi escrito após uma sucessão de<br />

fracassos de público, embora tenha havido certo reconhecimento da crítica.<br />

15


Classificada como tragédia carioca em três atos, A falecida seria a primeira do<br />

gênero escrita <strong>por</strong> <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> e que faria muito sucesso. A história é<br />

aparentemente banal: um casal pobre, Zulmira e Tuninho, vive na Zona Norte<br />

do Rio de Janeiro. A mulher sofre de uma doença nos pulmões (que será<br />

revelada mais tarde como tuberculose) e o homem tem verdadeira fixação <strong>por</strong><br />

futebol, ou melhor, pelo Vasco. O marido está desempregado e passa o dia em<br />

atividades triviais; a mulher doente carrega a culpa de um adultério e de ter<br />

sido descoberta pela prima carola, Glorinha. Mais uma vez na temática<br />

rodriguiana está presente o adultério e, desta vez, a vingança. Zulmira quer se<br />

vingar de Glorinha (em parte <strong>por</strong> inveja da prima, em parte <strong>por</strong> ela tê-la visto<br />

com o amante e, assim, ter destruído sua diversão) e, ao final, Tuninho quer se<br />

vingar da esposa <strong>por</strong> conta da traição descoberta. O sonho de Zulmira é ter um<br />

enterro que "marcasse a história" e, apesar da pobreza, ela tem um plano:<br />

pede ao marido que ele vá buscar dinheiro com um homem rico, Pimentel.<br />

Após a morte de Zulmira, ele descobre que Pimentel era o amante da mulher e<br />

o chantageia. Obtido o dinheiro, sua vingança é pagar pelo enterro mais pobre<br />

possível para a esposa e gastar a quantia arrecadada em apostas no jogo de<br />

futebol. Desfecho surpreendente e inusitadamente bem-humorado no âmbito<br />

da dramaturgia rodriguiana.<br />

A peça Perdoa-me <strong>por</strong> me traíres seria um marco na carreira de <strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong>, já que ele atuou também como ator em sua primeira montagem. No<br />

final da apresentação de estreia, houve vaias e xingamentos, resultado de<br />

temas polêmicos e sentimentos reprimidos pela sociedade veiculados pela<br />

obra. Sobre o "fracasso" da estreia, <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> comenta no livro<br />

Reacionário: memórias e confissões:<br />

Ali, não se tratava de gostar ou não gostar. Quem não<br />

gosta, simplesmente não gosta, vai para casa mais cedo, sai<br />

no primeiro intervalo. Mas se as damas subiam pelas paredes<br />

como lagartixas profissionais; se outras sapateavam como<br />

bailarinas espanholas; e se os cavalheiros queriam invadir a<br />

cena - aquilo tinha de ser algo mais profundo, inexorável e vital.<br />

Perdoa-me <strong>por</strong> me traíres forçara na plateia um pavoroso fluxo<br />

de consciência. E eu posso dizer, sem nenhuma pose, que,<br />

para minha sensibilidade autoral, a verdadeira apoteose é a<br />

vaia. (O reacionário apud MAGALDI, 2004:107)<br />

16


A tragédia de costumes em três atos explora temas como aborto, traição,<br />

ciúme, vingança, obsessão e, mais uma vez, incesto. A personagem Raul,<br />

interpretada <strong>por</strong> <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, nutre uma paixão pela cunhada Judite, uma<br />

adúltera que o rejeitou. Gilberto, irmão de Raul, descobre as traições da<br />

mulher, mas reconhece em si alguma deficiência que fez a esposa procurar<br />

outros homens. Judite é assassinada pelo cunhado <strong>por</strong> vingança e, de certa<br />

forma, <strong>por</strong> punição. Raul cria a sobrinha, Glorinha, nutrindo <strong>por</strong> ela o desejo<br />

que sentia pela mãe – que, no entanto, nunca será consumado, já que Raul se<br />

suicida. Glorinha entra na prostituição, como se este fosse seu fim inevitável.<br />

No mesmo ano, <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> escreve Viúva, <strong>por</strong>ém honesta, farsa<br />

irresponsável em três atos. Na obra, o autor parece querer se vingar <strong>das</strong><br />

reações dos críticos sobre suas peças. "No Brasil, o bom gosto nunca foi<br />

qualidade de homem! Repare que certos críticos da nova geração: são como o<br />

nosso Dorothy Dalton [homossexual]". Esta é uma <strong>das</strong> referências que o texto<br />

faz aos críticos contem<strong>por</strong>âneos à montagem. Contudo, é mais provável que o<br />

dramaturgo apenas se divertisse com essas insinuações e não tentasse<br />

vingança. Viúva, <strong>por</strong>ém honesta traz bom humor e acontecimentos que não<br />

demonstram o menor comprometimento com a realidade. É um texto mais leve<br />

e carregado de ironias. A trama apresenta uma história banal, na qual a forma<br />

é mais interessante do que o conteúdo. O texto tratará de uma mulher que,<br />

inconsolável com sua viuvez, não quer mais sentar de maneira alguma.<br />

Quando casada, traía o marido. Agora, viúva, decide tornar-se honesta.<br />

Em 1958, é a vez de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> publicar Os sete gatinhos, peça em<br />

três atos e quatro quadros classificada como "divina comédia", em alusão<br />

paródica à obra de Dante Alighieri. Na verdade, a peça assemelha-se mais a<br />

uma tragédia, na qual os destinos são inevitáveis. Trata-se da história de uma<br />

família pobre que não mede esforços para que a caçula, Silene, case-se e não<br />

precise se prostituir como as irmãs. No decorrer da trama, descobre-se que<br />

Silene não é mais virgem e, <strong>por</strong>tanto, é uma "perdida" que carrega no ventre a<br />

prova de sua impureza. Sobre o texto de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, Paulo Mendes<br />

Campos comenta:<br />

Por habituado que estivesse aos assuntos, à construção e à<br />

linguagem de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, espantou-me, quando li Os<br />

sete gatinhos, a extraordinária fluência (poemática) <strong>das</strong> falas,<br />

17


espantou-me a modulação <strong>das</strong> vozes; a dissonância e o<br />

concerto dramático dos conflitos; a pungência de seu quadro; a<br />

observação genial e compadecida da humanidade, transposta<br />

esta para termos (a nossa época) e no espaço (o Rio de<br />

Janeiro); espantou-me ainda a sua linguagem: adéqua gíria<br />

como recurso poético/dramático; espantou-me o terrível<br />

moralismo, um moralismo em estado bruto. (CAMPOS, Paulo<br />

Mendes. Os sete gatinhos in RODRIGUES, 2003:153)<br />

Boca de Ouro, tragédia carioca em três atos, foi escrita em 1959. O gênero<br />

já havia sido explorado anos antes em A falecida. Nesta peça, realidade e<br />

imaginação se confundem. O primeiro ato começa com a construção do mito<br />

Boca de Ouro. Em seguida, surge a redação do jornal O sol, e o espectador é<br />

informado da morte do bicheiro charmoso: Boca de Ouro. A partir daí a história<br />

se passará na casa de Dona Guigui, ex-amante de Boca, que contará três<br />

versões sobre um fato ocorrido com o amante. Um ponto que une as histórias é<br />

que Boca de Ouro sempre é apresentado como dono de certa instabilidade<br />

emocional e megalomania. <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> critica a imprensa, retomando o<br />

que já fizera em Viúva, <strong>por</strong>ém honesta, mas, desta vez, ele põe em xeque a<br />

objetividade jornalística. Antes de realizar a matéria sobre a morte de Boca de<br />

Ouro, o repórter verifica se deve falar bem ou mal do falecido.<br />

No ano seguinte é escrita a peça Beijo no asfalto, mais uma tragédia<br />

carioca em três atos. <strong>Nelson</strong> conta a história de um homem que, ao ser<br />

atropelado, pede um beijo à pessoa que lhe presta socorro. A única coisa que o<br />

acidentado quer é um beijo antes de morrer. Quem atende ao desejo é Arandir,<br />

que terá uma série de problemas pela sua “boa ação”, sendo explorado à<br />

exaustão pela imprensa sensacionalista. Mais uma vez, <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong><br />

provocaria polêmica. Na estreia da peça maridos revoltados saem da<br />

apresentação puxando pelos braços as esposas. A revolta é causada, como<br />

conta Ruy Castro na biografia Anjo <strong>por</strong>nográfico, <strong>por</strong> conta de uma fala da<br />

personagem Selminha que ao defender o seu marido de insinuações de<br />

homossexualidade diz:<br />

“– Ou o senhor não entende quê? Eu conheço muitas que é uma vez <strong>por</strong><br />

semana, duas e, até, quinze em quinze dias. Mas meu marido todo o dia! Todo<br />

o dia! Todo o dia! Meu marido é homem! Homem!”. (RODRIGUES, 2003:977)<br />

18


A fala provocou a indignação dos maridos presentes que saíram<br />

inconformados. Contudo, apesar da estreia conturbada, a primeira tem<strong>por</strong>ada<br />

de Beijo no Asfalto foi um sucesso.<br />

Ainda na década de 1960 surge no Brasil o Teatro Oficina, que lançaria o<br />

movimento do Tropicalismo no teatro brasileiro com a estreia, em 1967, de O<br />

rei e a vela, de Oswald de Andrade. Para o mentor do grupo Oficina, José<br />

Celso Martinez Corrêa, a peça de Oswald "ficou sendo uma revolução de forma<br />

e conteúdo para exprimir uma não-revolução". (ANDRADE, O. O rei e a vela,<br />

São Paulo, Difusão Européia do livro, 1967, p. 64 apud PRADO, 2009:113) O<br />

Oficina propunha um distanciamento do aburguesamento teatral proposto pelo<br />

TBC e também do nacionalismo trazido pelo Teatro de Arena. Sobre o Oficina,<br />

fala <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>:<br />

É o teatro que se declara independente ou alternativo,<br />

firmando já nesses rótulos o intuito de se contra<strong>por</strong> ao<br />

chamado teatrão do seu ponto central - o sistema de produção.<br />

Em vez de desmembramento de funções de qualquer empresa<br />

comercial bem organizada,estes conjuntos propõem-se a criar<br />

coletivamente,durante os ensaios, ao sabor <strong>das</strong> improvisações<br />

de cada intérprete. Texto e espetáculo nascem assim lado a<br />

lado, produtos do mesmo impulso gerador, enunciando não<br />

experiências ou emoções alheias, mas vivências específicas do<br />

grupo. O encenador, em tal caso, é menos mestre que agente<br />

catalítico, nada impedindo que seja auxiliado <strong>por</strong> um escritor,<br />

desde que esse renuncie a seus antigos privilégios, aceitando<br />

a trabalhar em equipe e para a equipe. (PRADO, 2009:129)<br />

Em 1962, <strong>Nelson</strong> escreve Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária,<br />

drama em três atos. No título, <strong>Nelson</strong> faz uma brincadeira com seu amigo e<br />

jornalista Otto Lara Resende, o rapaz odiava essas menções ao seu nome na<br />

obras de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>. A trama conta a história de Edgar, rapaz de origem<br />

humilde que recebe a proposta de se casar com Maria Cecília, filha de um<br />

milionário, que teria sido violentada. Edgar aceita a proposta <strong>por</strong> dinheiro,<br />

levando em conta uma frase dita <strong>por</strong> Otto “o mineiro só é solidário no câncer”,<br />

mas nutre um desejo <strong>por</strong> outra mulher. <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> aborda de novo a<br />

questão da compra do “amor verdadeiro". Embora Edgar aceite casar-se <strong>por</strong><br />

dinheiro, ele arrepende-se e rasga o cheque para poder viver com quem de<br />

19


fato ama: Ritinha. Há a impressão de que o final é feliz. Contudo, não podemos<br />

nos esquecer de que este casal está condenado à miséria, já que Edgar será<br />

forçado a abandonar o emprego (seu futuro genro é o dono da empresa em<br />

que ele trabalhava) e Ritinha, prostituta de luxo também terá de procurar outra<br />

ocupação.<br />

Toda nudez será castigada é a peça que foi escrita em 1965, classificada<br />

como obsessão em três atos. Em flashback a história é contada <strong>por</strong> Geni, a ex-<br />

prostituta que se casa com o viúvo Herculano. Nesta peça, questões como<br />

repressão sexual e obsessão são coloca<strong>das</strong> em pauta. O mais reprimido de<br />

todos é o filho de Herculano, Serginho, que acredita que o sexo é algo sujo e<br />

imoral. O rapaz parece se transformar após ser violentado na prisão <strong>por</strong> um<br />

assaltante boliviano – o que o torna mais forte. Serginho é, na maior parte do<br />

tempo, manipulado pelo tio Odésio. A vingança é o que move as intenções do<br />

tio, que guarda muitas mágoas do irmão. Neste ciclo de acontecimentos<br />

estranhos, Geni apaixona-se <strong>por</strong> Serginho e este foge com o assaltante<br />

colombiano. Herculano acaba sozinho, sem filho e sem esposa, pois esta se<br />

mata depois de ser abandonada pelo enteado. A obsessão e a vingança são os<br />

motes que movem as ações na trama.<br />

Depois de Toda nudez será castigada, <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> voltaria a escrever<br />

uma peça apenas em 1973: O Anti-<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, drama em três atos.<br />

Sobre o curioso título escreve Sábato Magaldi:<br />

Creio que o título nasceu principalmente do happy end, tão<br />

diferente da esmagadora maioria <strong>das</strong> outras obras. Mortes,<br />

suicídios, crimes selam, em geral, o desfecho da dramaturgia<br />

rodriguiana. Uma efetiva conclusão rósea só existiu em<br />

Bonitinha, mas ordinária, com a qual, aliás, Anti-<strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong> tem outros pontos de contato. A visão da realidade,<br />

sempre brutal e ignominiosa, não permitiria ao dramaturgo<br />

julgar rodriguiano um final feliz. Mas, no horror que lhe inspirou<br />

a queda paradisíaca, responsável <strong>por</strong> toda a escuridão<br />

humana, <strong>Nelson</strong> mostra o seu anseio de pureza e de absoluto.<br />

(MAGALDI, 2004:40)<br />

20


Na peça com happy end, <strong>Nelson</strong> vai contar a história de Oswaldinho, rapaz<br />

rico que mantém uma relação de ódio com o pai e de vantagens com a mãe.<br />

Trata-se de um típico playboy, que acaba se apaixonando <strong>por</strong> uma mulher "que<br />

o dinheiro não pode comprar". Ao final da peça, o espectador fica com a<br />

impressão de que o amor é capaz de salvar até mesmo aqueles que parecem<br />

irrecuperáveis.<br />

A última peça de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> foi escrita em 1978. A serpente, drama<br />

de único ato, trata de um triângulo amoroso: Lígia, Paulo e Guida. As mulheres<br />

são irmãs e Paulo é marido de Guida. Com o intuito de salvar a irmã de um<br />

suicídio, após o término do casamento dela com <strong>Décio</strong>, Guida oferece o marido<br />

para uma noite de amor com Lígia. Este fato desencadeia o triângulo amoroso<br />

que termina com Guida sendo assassinada <strong>por</strong> Paulo. Com esta peça <strong>Nelson</strong><br />

fecha o ciclo de obras teatrais.<br />

<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> não se encaixa propriamente em nenhuma tendência<br />

específica do teatro brasileiro. Sábato Magaldi chega a fazer uma divisão <strong>por</strong><br />

categorias, classificando to<strong>das</strong> as peças do autor:<br />

Psicológicas: obras que trabalham com a tensão do consciente e<br />

subconsciente. As personagens misturam realidade e alucinação/imaginação.<br />

A mulher sem pecado;<br />

Vestido de noiva;<br />

Valsa nº 6;<br />

Viúva, <strong>por</strong>ém honesta;<br />

Anti-<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>.<br />

Míticas: seguem uma temática que as aproximam dos mitos ancestrais,<br />

do inconsciente primitivo e dos arquétipos.<br />

Álbum de família,<br />

Anjo negro;<br />

Senhora dos afogados;<br />

Dorotéia.<br />

Tragédias cariocas: peças que trazem elementos <strong>das</strong> tragédias gregas<br />

para a sociedade moderna do Rio de Janeiro.<br />

A falecida;<br />

21


Perdoa-me <strong>por</strong> me traíres;<br />

Os sete gatinhos;<br />

Boca de Ouro;<br />

Beijo no asfalto;<br />

Bonitinha, mas ordinária;<br />

Toda nudez será castigada;<br />

A serpente.<br />

É claro que estas categorias não são "puras", elas se misturam.<br />

Contudo, pode-se perceber uma predominância de uma ou outra categoria em<br />

determinada peça, o que facilita a análise. O conhecimento geral da obra de<br />

<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> permitirá uma leitura mais embasada da obra crítica de<br />

<strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> sobre este autor.<br />

22


Mulher<br />

sem<br />

pecado -<br />

drama<br />

Obra teatral de <strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong><br />

1939 1943 1945 1946 1947 1949 1951 1953 1957 1957 1958 1959 1960 1962 1965 1973 1978<br />

Vestido<br />

de noiva -<br />

tragédia<br />

Álbum<br />

de<br />

família-<br />

tragédia<br />

Anjo<br />

negro -<br />

tragédia<br />

Senhora<br />

dos<br />

afogados-<br />

tragédia<br />

Dorotéia -<br />

farsa<br />

irresponsável<br />

Valsa nº 6<br />

- drama<br />

A falecida<br />

- tragédia<br />

carioca<br />

Perdoa-me<br />

<strong>por</strong> me traíres<br />

- tragédia de<br />

costumes<br />

Viúva, <strong>por</strong>ém<br />

honesta - farsa<br />

irresponsável<br />

Os sete<br />

gatinhos-<br />

divina<br />

comédia<br />

Boca de<br />

Ouro -<br />

tragédia<br />

carioca<br />

Beijo no<br />

asfalto-<br />

tragédia<br />

Otto Lara<br />

Resende ou<br />

Bonitinha, mas<br />

ordinária -<br />

tragédia<br />

Toda<br />

nudez será<br />

castigada<br />

- obsessão<br />

Anti-<br />

<strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong> -<br />

tragédia<br />

A serpente<br />

- tragédia<br />

23


3. A formação do crítico <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong><br />

[…] <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> é o meu grande modelo; o nosso<br />

“abridor” de estrada da crítica, ao lado de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, outro<br />

“abridor” de estrada. Considerando-os os dois maiores homens de<br />

teatro moderno brasileiro e, do ponto de vista ético, <strong>Décio</strong> é modelo<br />

para os jornalistas e para todos nós.<br />

24<br />

Antunes Filho 5<br />

<strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> nasceu em 1917, filho de Zilda Junqueira e Antonio de<br />

<strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>, médico e professor. Do pai ele viria a herdar o gosto pela<br />

dramaturgia, literatura e ópera. Quando tinha dez anos, o pai o levou pela primeira<br />

vez ao teatro para assistir a O castagnaro da festa, de Oduvaldo Vianna, encenado<br />

pela companhia de Raul Roulien. A atuação de Roulien deixou o garoto<br />

entusiasmado pelo teatro.<br />

Na adolescência, durante o período em que estudou no Liceu Nacional Rio<br />

Branco (1929-1933), <strong>Décio</strong> organizou com Paulo Emílio Salles Gomes vários<br />

jornaizinhos, entre eles D. Quixote, no qual <strong>Décio</strong> escreveu uma conferência sobre o<br />

poeta Vicente de Carvalho. Em 1935 é criada a revista Movimento, projeto de Salles<br />

Gomes, Paulo Affonso de Mesquita Sampaio e <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>, que faria<br />

resenha de livros. O lema da publicação era “A revista do presente que enxerga o<br />

futuro, um órgão dos moços paulistas que estudam, trabalham e lutam”.<br />

(BERNSTEIN, 2005:67) A empreitada teve apenas um número, que contou com a<br />

colaboração de Anita Malfatti, de Mário de Andrade e de Flávio de Carvalho. Apesar<br />

da breve duração, serviu para aproximar <strong>Décio</strong> dos modernistas de 1922,<br />

especialmente Mario e Oswald de Andrade.<br />

Após tentar ingressar <strong>por</strong> duas vezes no curso de Medicina, provavelmente<br />

inspirado pelo pai, <strong>Décio</strong> entra para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da<br />

Universidade de São Paulo (USP) em 1936. A entidade ainda engatinhava, havia<br />

sido criada em 1934 <strong>por</strong> iniciativa de Mesquita Filho, tendo o pai de <strong>Décio</strong> como<br />

diretor.<br />

5 FILHO, Antunes. “Um intelectual exemplar” in FARIA. 1997:18


No livro A crítica cúmplice, a autora Ana Bernstein fala da im<strong>por</strong>tância da USP<br />

para a cultura de São Paulo:<br />

Se fatores externos contribuíram para o aquecimento do<br />

movimento cultural nas principais cidades do país, internamente<br />

muito se deve à Universidade de São Paulo, criada em 1934, e para<br />

qual vieram professores estrangeiros – notadamente franceses –<br />

como Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide e Jean Maugüé. Podemos<br />

afirmar que sua infância foi decisiva para a formação de toda uma<br />

geração de críticos, entre os quais se encontram aqueles da<br />

chamada geração Clima – revista criada em 1941, na qual <strong>Décio</strong> de<br />

<strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> publicará seus primeiros textos sobre teatro.<br />

(BERNSTEIN, 2005:55)<br />

É na Faculdade de Filosofia que <strong>Décio</strong> e seus amigos montam a revista Clima, a<br />

qual será tratada com mais detalhes adiante. É também neste período que <strong>Décio</strong><br />

passa pela experiência da atuação. Em 1937, o professor Georges Raeders o<br />

convida para participar do Teatro Universitário, e <strong>Décio</strong> estreia como ator na peça A<br />

luva, de Júlio Dantas, no Teatro Municipal de São Paulo.<br />

Ainda em 1937, <strong>Décio</strong> começa a Faculdade de Direito também na USP,<br />

paralelamente às aulas de Filosofia, que apesar de ter concluído em 1938, ele<br />

continua frequentando as aulas de Jean Maugüé.<br />

A influência do professor francês é grande para os garotos que montaram a<br />

revista Clima. As discussões sobre artes associa<strong>das</strong> com reflexões filosóficas<br />

fizeram com que os chato-boys utilizassem a filosofia como ponto de partida para<br />

análises culturais.<br />

Outro francês que contribuiu positivamente para a formação da geração Clima foi<br />

o filósofo Claude Lévi-Strauss, que lecionou na USP entre os anos 1936 e 1937. Em<br />

entrevista a pesquisadora Ana Bernstein, <strong>Décio</strong> chega a afirmar que a ideia de<br />

evolução defendida <strong>por</strong> Lévi-Strauss exerceu influência sobre a sua forma de<br />

enxergar o teatro. “Nunca empreguei o método de comparação para poder elogiar<br />

um ator contra outro ator. Quando fazia uma comparação, era mais para esclarecer<br />

o que é um, o que é outro. Eu procurei sempre estudar cada tipo de teatro como ele<br />

é”. (BERNSTEIN, 2005:296)<br />

25


Viagens também contribuíram para a formação do repertório de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>.<br />

Especialmente duas delas: uma em 1939 para a França e outra em 1941 para os<br />

Estados Unidos. A primeira foi uma visita ao amigo Paulo Emilio que estava exilado<br />

em Paris, após fugir da prisão em 1937. Durante esta viagem <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> pode<br />

assistir a espetáculos da Commedie Française e também peças dos membros do<br />

grupo conhecido como Cartel: Louis Jouvet, Charles Dullin, Gaston Baty e George<br />

Pitöeff. Estes diretores buscaram transformar a cena francesa no período entre as<br />

duas guerras mundiais. O Cartel foi uma associação de ideias e princípios comuns<br />

dos diretores que o formavam. A primeira crítica de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> publicada na<br />

revista Clima foi exatamente sobre a companhia de Louis Jouvet, O teatro de “Louis<br />

Jouvet” em São Paulo”. É <strong>por</strong> meio de Jouvet que <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> toma um contatou<br />

maior com as ideias de Jacques Copeau, crítico literário, fundador e diretor da<br />

Nouvelle Revue Française. No livro Reflexões sobre a crítica teatral nos jornais a<br />

pesquisadora Maria Cecília Garcia afirma que o contato com o pesando de Copeau<br />

foi marcante e decisivo na formação <strong>das</strong> ideias de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>:<br />

O sentido da “revolução” levada a cabo <strong>por</strong> Copeau era<br />

exatamente aquele que <strong>Décio</strong> pedia para o teatro brasileiro naqueles<br />

anos de passagem para um teatro moderno. O Vieux-Colombier<br />

[teatro em que Copeau exibia as peças da Nouvelle Revue<br />

Française] empenhava-se em ressuscitar um teatro que estava<br />

submerso pelas velhas convenções, <strong>por</strong> estrelismos de todo o tipo,<br />

que escondiam, ou pior, deturpavam, o sentido do texto dramático.<br />

[...] Essas ideias foram totalmente compartilha<strong>das</strong> <strong>por</strong> <strong>Décio</strong> e<br />

serviram de esteio para a definição de suas balizas estéticas. É o<br />

que explica, <strong>por</strong> exemplo, o fato de sua crítica sempre partir do texto<br />

dramático. (GARCIA, 2004:157-159)<br />

Em 1941, <strong>Décio</strong> vai fazer um curso de filosofia na Universidade da Carolina do<br />

Norte, ele aproveita a o<strong>por</strong>tunidade e passa uma semana em Nova York, onde teve<br />

a o<strong>por</strong>tunidade de conhecer os espetáculos da Brodway, entre eles, The corn is<br />

green, do escritor Emlyn Williams, com a atriz Ethel Barrymore, Twelfth Night, com<br />

Helen Hayes e o ator Maurice Evans. <strong>Décio</strong> também teve a chance de assistir a<br />

atuação de Gertrude Lawrence e Katherine Cornell. Esta experiência com as peças<br />

da Brodway foi interessante para a elaboração do texto publicado no quarto volume<br />

26


da revista Clima em setembro de 1941, O homem que veio jantar. A crítica era<br />

sobre a montagem novaiorquina em São Paulo (The man Who came to dinner).<br />

<strong>Décio</strong> havia assistido ao original e pôde fazer um texto com as comparações entre<br />

as montagens.<br />

O ano de 1941 foi de extrema im<strong>por</strong>tância para a carreira de <strong>Décio</strong> na crítica<br />

teatral. É neste momento que ele e seus amigos da Faculdade de Filosofia criam a<br />

revista Clima. Os fundadores e mantenedores do projeto foram: Antonio Candido,<br />

Paulo Emilio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Galvão de Andrada<br />

Coelho, Gilda de Mello e Souza e o próprio <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>. A casa de<br />

<strong>Décio</strong> e de sua esposa, Ruth Alcântara, chegaria a servir de sede da publicação.<br />

Estes jovens, com a ajuda de Alfredo Mesquita, foram responsáveis pela criação da<br />

revista que ficaria conhecida como referência de crítica cultural.<br />

É na revista Clima que, pela primeira vez, <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> se coloca na<br />

posição de crítico teatral. Em entrevista à pesquisadora Heloisa Pontes, <strong>Décio</strong> fala<br />

como a publicação foi decisiva na carreira dele e de seus amigos:<br />

[...] nós estávamos no começo quase que absoluto. Eu, <strong>por</strong><br />

exemplo, não pretendia ser crítico de teatro; pretendia primeiro ser<br />

escritor, depois professor de filosofia (que fui durante muito tempo).. 6<br />

Ruy Coelho diria mais tarde, em entrevista à pesquisadora Maria Cavalcante,<br />

“Nós nos tornamos conhecidos com Clima. De certa maneira, não fomos nós que<br />

fizemos Clima, foi Clima que nos fez. Isso nós sentimos bem”. 7<br />

Os textos publicados na Clima renderam aos jovens acadêmicos da USP o<br />

apelido dado <strong>por</strong> Oswald de Andrade de “chato-boys”. Oswald acreditava que a<br />

publicação tinha um tom excessivamente sério, <strong>por</strong>que eles privilegiavam mais o ato<br />

de pesquisar do que o de concluir. (BERNSTEIN, 2005:71)<br />

Paralelamente à experiência da revista Clima, <strong>Décio</strong> dirige o Grupo Universitário<br />

de Teatro (GUT), criado <strong>por</strong> ele e <strong>por</strong> Lourival Gomes Machado. O GUT contou com<br />

a ajuda de outros integrantes da revista: Ruy Coelho, Maria de Lourdes dos Santos<br />

Machado (esposa de Lourival), Antonio Candido, Ruth de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> e Paulo<br />

6 Entrevista concedida a Heloisa Pontes em junho de 1995 in idem, pag. 98<br />

7 Entrevista concedida a Maria N. Cavalcante em 1978 apud Heloisa Pontes in FARIA. 1997:115<br />

27


Emilio Salles Gomes. O primeiro espetáculo encenado pelo grupo era uma reunião<br />

de três peças: O auto da barca do inferno, de Gil Vicente, Os irmãos <strong>das</strong> almas, de<br />

Martins Pena, e Pequenos serviços em casa de casal, de Mário Neme.<br />

A atividade de grupo teatral vai até 1948, neste período o GUT contou com a<br />

participação de Cacilda Becker, a única com alguma experiência profissional a<br />

integrar o grupo. As peças eram apresenta<strong>das</strong> no Teatro Municipal, e o segundo<br />

espetáculo reuniu outro texto de Gil Vicente, A farsa de Inês Pereira e do escudeiro,<br />

e o texto de Carlos Lacerda, Amapá.<br />

É na revista Clima que <strong>Décio</strong> faz, pela primeira vez, a crítica da peça Vestido de<br />

noiva, de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, com a direção de Ziembinski. O texto saiu na edição de<br />

número 13, em agosto de 1944. O entusiasmo do crítico com a montagem é notável:<br />

Causa mesmo espanto ver surgir do nada que é o nosso teatro,<br />

quase <strong>por</strong> um milagre de geração espontânea, um autor com tanta<br />

audácia, que procura, logo nas primeiras tentativas teatrais, dominar<br />

virtuosisticamente o meio de expressão artística que escolheu. […]<br />

Ele procurou as dificuldades, como que para mostrar os próprios<br />

recursos, preferindo, em lugar de uma construção simples e linear,<br />

construir sua peça seguindo as tortuosidades do delírio de uma<br />

mulher de psicologia complexa, e que, além disso, sofreu um choque<br />

e está às <strong>por</strong>tas da morte. 8<br />

<strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> ressalta a im<strong>por</strong>tância do autor nessa “revolução” teatral, não<br />

somente da técnica. Para ele, o texto também apresentava características muito<br />

avança<strong>das</strong> para o período dramatúrgico brasileiro. <strong>Décio</strong> vê, com especial atenção,<br />

o conteúdo psicológico da trama, destacando a associação entre a vida de madame<br />

Clessy e Alayde, uma relação que, segundo as palavras do crítico, ajuda a explicar<br />

psicologicamente certos acontecimentos do drama principal.<br />

Contudo, <strong>Décio</strong> também enxerga problemas na trama. Destacando, entre outras<br />

coisas, que faltava ao texto mais vigor dramático no diálogo e que a construção<br />

complicada do enredo dificulta o envolvimento do público que concentra-se em<br />

compreender o que passa no palco.<br />

8 PRADO, <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong>, “Os Comediantes” em São Paulo, Revista Clima, n. 13, agosto de 1944<br />

28


A crítica da peça do jovem <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> é publicada em agosto de 1944.<br />

Em novembro do mesmo ano a revista Clima chegaria ao seu último número. Os<br />

garotos preocupados com a “formação” cultural do Brasil já tinham suas vi<strong>das</strong><br />

profissionais marca<strong>das</strong> pelos primeiros passos pro<strong>por</strong>cionados pela Clima.<br />

E foi com o grupo Clima que estas questões começaram a nascer. Em 1946,<br />

<strong>Décio</strong> é convidado a exercer a função de crítico teatral em O Estado de São Paulo,<br />

tornando-se responsável pela coluna “Palcos e Circos”. No texto Em torno de Julio<br />

de Mesquita Filho, publicado em fevereiro de 2000, <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> conta como a<br />

crítica de Vestido de noiva havia sido decisiva na decisão do jornal de contratá-lo:<br />

[...] exercera a função de crítico na revista Clima, fundada com<br />

meia dúzia de amigos, naqueles anos inaugurais, à volta de 1943,<br />

em que o modernismo da Semana de 22 começava finalmente a<br />

penetrar nos palcos brasileiros, com a ajuda providencial de <strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong> e Ziembinski. Foi essa colaboração, acredito, que chamou<br />

a atenção do diretor de O Estado de S. Paulo. [...] O dr. Julio deu-nos<br />

a honra, a Lourival Gomes Machado e a mim, de nos convidar para<br />

ingressar no corpo de redatores <strong>por</strong> ele dirigido. 9<br />

Assim, é na coluna “Palcos e Circos” que oficialmente <strong>Décio</strong> se torna crítico<br />

teatral. O título sugeria mais do que apenas teatro e, nesta época, de fato havia<br />

espaço para se falar de outras artes performáticas, como patinação no gelo e o<br />

próprio circo. Quando <strong>Décio</strong> escrevia sobre estes espetáculos mais performáticos, a<br />

descrição predominava e o texto era mais poético:<br />

Quando a função [apresentação do circo] começa, a própria<br />

rigidez do ritual, em que cada gesto de apresentação ou<br />

agradecimento mostra ter sido trabalhado pacientemente <strong>por</strong><br />

dezenas de gerações, adverte-nos de que estamos em presença de<br />

uma cerimônia grave, quase religiosa. E, na verdade, somos pouco a<br />

pouco trans<strong>por</strong>tados para um mundo diverso e mais perfeito do que o<br />

nosso. […] Toda exibição de força deve ser feita com músculos<br />

inconfessáveis, insuspeitados. Um chapéu só pode ser logicamente<br />

sustentado na ponta do nariz, uma cadeira equilibra-se num único<br />

9 PRADO, <strong>Décio</strong> de A. Em torno de Julio de Mesquita Filho, artigo póstumo publicado no jornal O Estado de S.<br />

Paulo, em fevereiro de 2000 in BERNSTEIN. 2004:339<br />

29


pé, as mãos foram feitas para segurar cinco objetos ao mesmo<br />

tempo, e, já que tocamos no assunto, não há motivo nenhum para<br />

que tais operações não sejam realiza<strong>das</strong> sobre um fio de arame<br />

suspenso a alguns metros do solo. (PRADO, 2001:362)<br />

No período em que <strong>Décio</strong> começou a sua carreira crítica no Estadão havia pouco<br />

movimento teatral em São Paulo, e isto lhe permitia aprofundar as suas análises do<br />

espetáculo. As suas crônicas, como ele denominava seus textos, ensinavam o<br />

público, tinham um caráter inegavelmente didático. <strong>Décio</strong> admite isto na introdução<br />

do livro Apresentação do teatro brasileiro moderno, dizendo que nem sempre deixou<br />

subtendi<strong>das</strong> noções que críticos estrangeiros poderiam dar <strong>por</strong> conheci<strong>das</strong>. Essa<br />

característica é perceptível principalmente nas primeiras crônicas. <strong>Décio</strong> declara<br />

ainda que, em vez de criticar, explicava a peça, situava o autor, servindo de<br />

intérprete junto ao público. (PRADO. 2001:XXI)<br />

A experiência no Estadão que o consolidou como crítico teatral: “Foi no Estadão,<br />

sem ninguém olhando <strong>por</strong> cima de meu ombro, que me preparei para ser crítico e<br />

professor de teatro, deixando para trás a filosofia, que não permaneceu em mim, a<br />

não ser como curiosidade ocasional”. (BERNSTEIN. 2004: 340).<br />

Em 1956, o “Suplemento literário” de O Estado de S. Paulo começa a circular.<br />

Idealizado <strong>por</strong> Antonio Candido, a publicação seria dirigida <strong>por</strong> <strong>Décio</strong> até 1967. O<br />

caderno foi o modelo de todos os que vieram posteriormente. A crítica, a análise e a<br />

reflexão eram os principais objetivos. No período em que <strong>Décio</strong> dirigiu o suplemento<br />

passaram <strong>por</strong> lá nomes de peso, entre eles: Sérgio Buarque de Holanda, Brito<br />

Broca, Alfredo Bosi, Carlos Drummond Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de<br />

Melo Neto, Vinicius de Moraes e Mira Schendel.<br />

Foi durante os anos em que trabalhou para o Estadão que <strong>Décio</strong> se tornou<br />

verdadeiramente conhecido <strong>por</strong> escrever <strong>críticas</strong>. A forma com a qual estruturava o<br />

texto lhe rendeu muitos admiradores, inclusive da classe artística. Para Antunes<br />

Filho, ele foi “um exemplo do intelectual e da integridade moral diante do cotidiano e<br />

dos momentos mais aguçados de crises políticas no Brasil; nosso “Papa”, que<br />

inaugurou e sistematizou em termos universitários a cultura crítica teatral.” 10<br />

10 FILHO, Antunes. “Um intelectual exemplar” in FARIA. 1997:18<br />

30


<strong>Décio</strong> defendia, de certa maneira, o teatro em nas <strong>críticas</strong> que escrevia. O<br />

jornalista Alberto Guzik diz que, nos textos de <strong>Décio</strong>, há sempre o cuidado de<br />

“seduzir o leitor”, “A atração dá-se <strong>por</strong> meio da clareza. [...] A linguagem, as<br />

imagens muitas vezes inusita<strong>das</strong>, matiza<strong>das</strong>, e a reinvenção de frases através do<br />

deslocamento de palavras tornam a crítica de <strong>Décio</strong> uma aventura estilística” 11 . O<br />

jornalista percebe que <strong>Décio</strong> tenta conquistar o leitor, e o intuito é fazer com que<br />

este vá ao teatro, o, uma arte que dava os seus primeiros passos no Brasil.<br />

Ao empregar a palavra crônica, Guzik remete ao fato de que as <strong>críticas</strong> de <strong>Décio</strong><br />

eram mais do que <strong>críticas</strong>. Os textos dialogavam com fatos cotidianos,<br />

contextualizavam a análise do espetáculo em relação à época. O pesquisador<br />

Sábato Magaldi defende que é preciso considerar que para “a realização artística do<br />

crítico [é necessária] a consonância dos seus ideais estéticos com os do momento<br />

histórico da militância <strong>por</strong> ele exercida”. 12 Para Magaldi, <strong>Décio</strong> se formou no<br />

amadorismo. Na década de 1940, os que se denominavam “amadores” não<br />

aceitavam a hegemonia do antigo astro, cujo brilho supunha o sacrifício do conjunto<br />

do espetáculo. Outro fato ressaltado <strong>por</strong> Magaldi, as premissas utiliza<strong>das</strong> <strong>por</strong> <strong>Décio</strong><br />

para dirigir o Grupo Universitário de Teatro eram pareci<strong>das</strong> com às do elenco de Os<br />

Comediantes e do Grupo de Teatro Experimental de Alfredo Mesquita: trazer aos<br />

palcos brasileiros revoluções modernas.<br />

O amadorismo tão valorizado <strong>por</strong> <strong>Décio</strong> era aquele que mais representava as<br />

inovações trazi<strong>das</strong> pelo teatro moderno, em oposição à mesmice atribuída ao teatro<br />

comercial (companhias de profissionais).<br />

Em junho de 1968 a classe teatral de São Paulo entra em greve para protestar<br />

contra a censura. Neste mês estava programada a estreia da I Feira Paulista de<br />

Opinião. Integrava a feira o espetáculo O que pensa você do Brasil hoje?, e foi essa<br />

peça o motivo do protesto. Os artistas estavam indignados com a demora dos<br />

censores em dar um parecer sobre o texto. De acordo com nota publicada no jornal<br />

Folha de S. Paulo, no dia 8 de junho de 1968, o tempo previsto pela lei para que a<br />

censura se posicionasse a respeito de um espetáculo era de cinco a dez dias.<br />

11 GUZIK, Alberto. “<strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> ou elegância e estilo” in ibidem pag.224<br />

12 MAGALDI, Sábato. “Um crítico à frente do teatro brasileiro” in FARIA. 1997:85<br />

31


Quando os artistas decidiram pelo protesto já fazia dois meses que os textos<br />

estavam em posse dos censores.<br />

Essa indecisão da censura provocou manifestações contrárias <strong>por</strong><br />

parte da classe teatral de São Paulo e, na madrugada de ontem,<br />

decidiu-se <strong>por</strong> uma assembleia geral para saber da necessidade ou<br />

não de outra greve.<br />

Depois da apresentação da peça, em caráter de ensaio geral, a<br />

assembleia se reuniu e decidiu que <strong>por</strong> um revezamento toda a<br />

classe permaneça no Teatro Ruth Escobar, <strong>por</strong> tempo<br />

indeterminado, até que a censura se manifeste com soluções<br />

plausíveis. O espetáculo, que foi liberado <strong>por</strong> telefonema de Brasília,<br />

o que se deu <strong>por</strong> volta de 1 hora de ontem, mas com vários cortes,<br />

provocou novas manifestações, ficando deliberado, finalmente, que<br />

será levado normalmente, e no caso de a Polícia fechar o Ruth<br />

Escobar, o espetáculo será encenado em outro teatro e assim<br />

sucessivamente.<br />

[...] Ficou decidido que a censura será doravante ignorada nas<br />

suas decisões. 13<br />

Em meio a essa confusão, o Estado de S. Paulo publica, no dia 11 de junho de<br />

1968, um editorial sobre a censura e o teatro. O texto fazia menção a um<br />

pronunciamento do deputado Aurelio Campos envolvido com a censura de trechos<br />

de peças da Primeira Feira da Opinião de São Paulo. Aí se inicia o episódio que<br />

seria um estopim para <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> deixar a carreira de crítico teatral. O<br />

editorial em questão começa elogiando a atitude do deputado e depois faz <strong>críticas</strong><br />

ao conteúdo dos espetáculos teatrais. Abaixo alguns trechos do artigo:<br />

[…] O que na censura geralmente se vê é uma ameaça à<br />

liberdade, o que assume feição particularmente antipática quando a<br />

liberdade é ameaçada é a artística. Carra<strong>das</strong> de razão, entretanto,<br />

teve o parlamentar acima referido, ao assinalar a propósito da peça<br />

teatral a cuja representação assistira, que a censura, longe de se<br />

mostrar rigorosa no escoimá-la de seus exageros escandalosos, o<br />

que revelou foi uma complacência que não pode deixar de ser<br />

13 O teatro vai ignorar a censura, Folha de São Paulo, 8 de junho de 1968, p. 3<br />

32


severamente criticada. Não só tratava, de fato, no caso, de restringir<br />

a liberdade artística, mas de coibir a mais reles e agressiva <strong>das</strong><br />

licenciosidades, e o que da aludida peça teatral disse o sr. Aurelio<br />

Campos aplica-se com justiça a muitas outras que vêm chocando,<br />

com seus propósitos de subversão moral, os que de espírito<br />

desprevenido a elas assistem. […] E dignas de reflexão seriam as<br />

obras artísticas que refletissem, com honestidade e grandeza, a sorte<br />

<strong>das</strong> atuais preocupações humanas. Não é esse, <strong>por</strong>ém, e<br />

infelizmente, o caso <strong>das</strong> produções teatrais que o público tem<br />

criticado pelas suas imoralidades. Não se trata, realmente, de obras<br />

de pensamento, nelas nenhuma tese se defende, com elas não se<br />

busca a beleza, longes estão de poderem ser considera<strong>das</strong> obras de<br />

arte. O que com elas se pretende é “épater les bourgeois”, chocá-los<br />

com o que geralmente passa de meras grosserias e, paralelamente,<br />

excitar o que há de menos incontrolável na área instintiva dos<br />

malformados de espírito.<br />

Na literatura, no romance sobretudo, já atravessamos uma fase<br />

parecida, triste fase mas, felizmente, passageira. Não havia, de fato,<br />

anos atrás, mau escritor que não convencesse do êxito editorial de<br />

suas pobres obrinhas, desde que as enchesse de palavrões,<br />

particularmente se estes escapassem da boca de mocinhas em<br />

horas de confidências amorosas. Passou o triste período para o<br />

romance, mas nele entrou agora o teatro, e como nas peças teatrais<br />

a palavra é apenas um entre vários outros elementos, à<br />

licenciosidade verbal correspondem exageros semelhantes em todos<br />

os gestos e, em especial, na representação de cenas íntimas,<br />

expostas com doentia crueza.<br />

Há peças, do gênero, de insu<strong>por</strong>tável mau gosto, e como o mau<br />

gosto é deseducativo, só <strong>por</strong> isso se justificaria a intervenção da<br />

censura. Mas não é esse o pior aspecto de tais espetáculos teatrais.<br />

Mais censuráveis são os seus objetivos, ou seja, levar ao paroxismo<br />

os anormais que se comprazem com cenas de doentio amoralismo<br />

sexual. Não compreendemos como possa haver artistas realmente<br />

dignos desse nome, que, dotados de faculdades, de sensibilidade, de<br />

psicologia normais e, <strong>por</strong>tanto, equilibra<strong>das</strong>, não trepidem em<br />

defender a livre representação, perante públicos irrestritos, de obras<br />

dessa baixa categoria. […]<br />

33


Como é inegável a influencia do teatro não só na educação<br />

artística do povo, mas também no aprimoramento dos seus<br />

costumes, deve-se concluir igualmente que o mau teatro exerce<br />

função negativa, e demolidora mesmo, em ambos os domínios.<br />

Assim, tanto quanto é desejável o estímulo, pelos poderes públicos,<br />

<strong>das</strong> atividades teatrais dignas desse nome, é indispensável que os<br />

mesmos poderes públicos não hesitem na adoção de medi<strong>das</strong> contra<br />

os que, movidos <strong>por</strong> torpes intenções, <strong>por</strong> aí vivem a deturpar e a<br />

envilecer a nobre arte. […] 14<br />

Após a publicação deste editorial, membros da classe teatral, como Fernanda<br />

Montenegro, Walmor Chagas, Augusto Boal, Cacilda Becker, entre outros,<br />

decidiram devolver os prêmios “Sacis”, premiação do jornal O Estado de S. Paulo a<br />

autores, atores e diretores teatrais. Vale ressaltar que os premiados eram<br />

escolhidos <strong>por</strong> uma comissão, e não pela diretoria do jornal. No pronunciamento de<br />

Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro, falaram em nome da classe<br />

teatral, eles ressaltaram que o protesto era unicamente contra o jornal, e não contra<br />

os críticos que outorgavam o prêmio, mencionando Sábato Magaldi e <strong>Décio</strong> de<br />

<strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>. Apesar do pronunciamento, <strong>Décio</strong> sentiu-se pessoalmente atingido<br />

e no dia 19 de junho de 1968 publicou o seu último texto como crítico teatral do<br />

Estado de S. Paulo.<br />

14 Grifos do autor da monografia<br />

[…] O que eles [os responsáveis pelo movimento contra a<br />

censura] desejam, segundo tudo indica, é apenas re<strong>por</strong>tarem-se<br />

diretamente ao público, na suposição de que os padrões<br />

governamentais são sempre retardatários, sobretudo em épocas<br />

como a nossa, de crise de valores, em que a moralidade, a própria<br />

noção do que seja obsceno, evolui dia a dia. Temo, entretanto, que<br />

alguns estejam sonhando confusamente com uma liberdade total que<br />

sociedade alguma lhes poderá oferecer – e as autoritárias ainda<br />

menos que as democráticas – a não ser que se realize magicamente,<br />

<strong>por</strong> um passe de violência que não se explica bem qual seja, aquela<br />

velha utopia acalentada secretamente <strong>por</strong> todos nós de uma<br />

sociedade se governo, sem sanções, na qual os nossos oponentes<br />

O teatro e a censura, O Estado de S. Paulo, 11 de junho de 1968, p. 3<br />

34


se eva<strong>por</strong>arão como <strong>por</strong> milagre e o nosso individualismo latente<br />

possa se expandir ao infinito.<br />

Só assim, <strong>por</strong> um revolucionarismo teatral e romântico, é que me<br />

explico, na falta de explicação melhor, a dramática resolução da<br />

classe teatral de devolver os “Sacis” distribuídos <strong>por</strong> este jornal. O<br />

ponto de partida, o pretexto, foi um editorial do “Estado”, julgado<br />

injusto e mesmo ofensivo em seus termos. Muito bem. Mas razões<br />

respondem-se com razões, palavras com palavras. Pelo menos<br />

parece se esta a famosa teoria do diálogo, tão decantada <strong>por</strong> suas<br />

virtudes democráticas. Não vejo em que auxilie a solução do<br />

problema da censura o fato de se cortar o contato com todos os que<br />

pensam diferentemente, nem de que modo o nosso teatro ainda<br />

incipiente, possa dispensar o auxílio de qualquer órgão de imprensa.<br />

Auxílio que este jornal, posso testemunhar, foi sempre generoso em<br />

conceder. Para aqui vim como crítico de teatro em 1946, quando a<br />

bem dizer nem havia o que criticar, tão raras eram as<br />

representações, profissionais ou amadoras. Servi de intermediário<br />

quando alguns empresários solicitaram, em nome da classe, redução<br />

substancial nos anúncios de teatro, no que foram prontamente<br />

atendidos, não como um favor feito, mas como um benefício<br />

prestado prazerosamente à cultura do País. Assisti ao nascimento do<br />

“Saci”, o primeiro da longa série de prêmios teatrais instituídos em<br />

São Paulo. Posso dizer, com pleno conhecimento de causa, da<br />

liberdade de opinião outorgada pela direção aos seus críticos de<br />

teatro, <strong>por</strong>que somos três, como não se ignora: um, para o noticiário,<br />

um segundo para a crítica do dia, um terceiro para as reflexões<br />

subsequentes. Toda esta atenção especial dedicada ao teatro foi<br />

esquecida, jogada fora, através de um gesto de desafio que só pode<br />

significar – se é que tem algum sentido que não seja o de um simples<br />

desabafo emocional – um rompimento definitivo. A classe teatral, ao<br />

fazê-lo, teve a gentileza de ressalvar o meu nome. Agradeço mas<br />

não aceito a exclusão. As ideias que tenho e <strong>por</strong>ventura possa vir a<br />

ter sobre a censura ou sobre o teatro paulista em nada se alterarão<br />

com o incidente. Mas não quero me omitir em assunto de tal<br />

delicadeza. No dia em que os atores e autores depositarem os seus<br />

“Sacis” à <strong>por</strong>ta deste jornal, aproveitarei a o<strong>por</strong>tunidade para<br />

35


depositar também a minha função de crítico de teatro. Se não<br />

querem saber de nós, o que é que podemos fazer? 15<br />

Sobre o fato <strong>Décio</strong> esclarece que “[...] eu fiquei meio atingido <strong>por</strong>que, afinal de<br />

contas, tinha participado do prêmio desde o primeiro até o último. Sempre fui uma<br />

espécie de presidente. Quem fazia o discurso no jornal era eu [...], então estava<br />

muito relacionado” 16<br />

Após a saída do jornal Estadão, <strong>Décio</strong> passa dedicar a sua vida à carreira<br />

acadêmica. Em 1971, defende a sua tese de doutorado sobre João Caetano na<br />

Universidade de São Paulo. Neste mesmo ano é promovido a professor assistente<br />

doutor de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,<br />

da USP. Até o ano de sua morte, 2000, <strong>Décio</strong> continua a escrever diversos livros<br />

sobre o teatro brasileiro e sua história. Passa a dedicar-se ao estudo da formação<br />

do nosso teatro. Os textos de <strong>Décio</strong> servem hoje como uma im<strong>por</strong>tante fonte de<br />

estudo para o pesquisador de teatro e também para aquele quer entender os<br />

primeiros passos da cultura brasileira.<br />

15 PRADO, <strong>Almeida</strong>. Censura teatral e o “Estado”, O Estado de S. Paulo, 19 de junho de 1968, p.7<br />

16 Entrevista cedida à pesquisadora Ana Bernstein em 20 de maio de 1994 in BERNSTEIN, Ana A crítica<br />

cúmplice – <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> e a formação do teatro brasileiro moderno, pag. 320.<br />

36


4. <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> <strong>por</strong> <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong><br />

<strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> e <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> têm caminhos que convergem para<br />

a formação do teatro moderno brasileiro. <strong>Décio</strong> trouxe para a crítica cultural,<br />

especialmente a teatral, objetividade e clareza, sem deixar de transmitir de forma<br />

também clara opiniões pessoais.<br />

As <strong>críticas</strong>, ou crônicas, de <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> dão ao leitor um resumo<br />

geral do que foi a encenação. <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> comentava sobre o enredo, a atuação,<br />

a direção, enfim, procurava situar o leitor antes de apresentar mais diretamente<br />

seus juízos de valores.<br />

Para embasar as <strong>críticas</strong>, <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> utilizava um repertório teatral e<br />

extrateatral e, muitas vezes, usava comparações para dar ao leitor elementos para<br />

compreender o espetáculo em questão. As sensações transmiti<strong>das</strong> <strong>por</strong> uma<br />

encenação também eram im<strong>por</strong>tantes no momento de escrever o texto a ser<br />

publicado: “Sempre achei […] que para escrever uma crítica o que era trabalhoso<br />

era eu perceber bem o que eu tinha sentido em face do espetáculo. Porque no<br />

fundo é uma autoanálise”. (BERNSTEIN, 2005:313)<br />

Uma <strong>das</strong> características da análise de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> era a valorização do texto<br />

teatral. A encenação era im<strong>por</strong>tante, mas o texto e a intenção do autor, também. Em<br />

entrevista à pesquisadora Bernstein, <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> contou que se preparava antes<br />

de assistir ao espetáculo, lia a peça antes e também pesquisava sobre o autor.<br />

Assim, comentários do tipo “a encenação se afastou do texto”, eram comuns. Muito<br />

influenciado pelo pensamento de Jacques Copeau, <strong>Décio</strong> buscava na encenação as<br />

marcas que mostrassem o que o autor queria transmitir.<br />

Nem sempre as crônicas sobre as peças de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> eram tão<br />

entusiasma<strong>das</strong> quanto a que <strong>Décio</strong> escreveu sobre a obra marco do teatro brasileiro<br />

moderno, Vestido de Noiva. Crítico e dramaturgo nem sempre falavam a mesma<br />

língua. “[…] escrevi que o crítico ficava um pouco desarmado perante o <strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong>, não sabia exatamente se ele é um gênio ou não, ou o que era, <strong>por</strong>que<br />

eu acho que o <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> propõe esses problemas para a gente”.<br />

(BERNSTEIN; 2005: 314)<br />

37


A pesquisadora Maria Cecília Garcia lembra um conceito de Roland Barthes para<br />

comentar as crônicas de <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>. “[…] no seio da obra crítica se<br />

estabelece o diálogo de duas histórias e de duas subjetividades, as do autor e as do<br />

crítico” (GARCIA, 2004:167)<br />

A seguir uma análise mais detalhada dos textos de <strong>Décio</strong> sobre as obras de<br />

<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> que foram republica<strong>das</strong> nas coletâneas: Apresentação do teatro<br />

brasileiro moderno, Teatro em progresso e Exercício findo.<br />

4.1 Vestido de noiva (1947)<br />

Na primeira crítica de <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> sobre o Vestido de noiva para o<br />

jornal Estado de S. Paulo, presente no livro Apresentação do teatro brasileiro<br />

moderno, ele faz uma análise mais literária da obra. A técnica, embora<br />

revolucionária, já havia sido exaustivamente comentada pela crítica. O texto foi<br />

escrito originalmente em 1947 e a direção do espetáculo era do polonês Ziembinski.<br />

<strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> utiliza um variado repertório extrateatral para analisar o conteúdo<br />

do espetáculo. Logo no início, o crítico cita o escritor Jorge Amado para esclarecer o<br />

sentido que <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> dava ao sexo na trama: “É uma peça carregada de<br />

sexo, mas não simplesmente atração forte e direta como nos romances de Jorge<br />

Amado”. (PRADO, 2001:03) Ainda de maneira didática, <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> compara<br />

Vestido de noiva à poesia moderna de Charles-Pierre Baudelaire, dizendo haver na<br />

peça o mesmo “amor voluptuoso pelo mal”, a mesma “beleza mórbida” que nas<br />

poesias do francês. Desta maneira, <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> utiliza um vasto repertório<br />

cultural para embasar suas opiniões a respeito do conteúdo de Vestido de noiva.<br />

Ele lembra o livro O crime do padre Amaro, de Eça de Queiros, ao falar da<br />

vulgaridade na trama de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>. Apesar de ambos falarem de<br />

vulgaridade, não são vulgares. O poeta moderno Carlos Drummond de Andrade<br />

também não é esquecido na análise. O crítico diz que ambos souberam transformar<br />

pessimismo, decepção, sentimento extremado de impureza em imperecível poesia.<br />

O repertório extrateatral não é apenas sobre literatura. Até mesmo o artista<br />

plástico Honoré-Victorien Daumier é utilizado como base de comparação. <strong>Décio</strong> via<br />

semelhança entre a peça de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> e a beleza amarga <strong>das</strong> caricaturas<br />

cruéis de Damier.<br />

38


Vestido de noiva seria, mais tarde, classificada <strong>por</strong> Sábato Magaldi como uma<br />

peça psicológica, e nesta crítica <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> já percebe essa caraterística,<br />

dizendo que há na peça um fundo psicológico como aquele analisado pelo<br />

psicanalista Sigmund Freud.<br />

O repertório teatral utilizado neste texto para analisar a obra marco de <strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong> também é grande. Para falar do pessimismo na literatura moderna, que<br />

<strong>Décio</strong> acredita ser <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> o maior representante, uma frase da peça<br />

Macbeth, de Wiliam Shakespeare é transcrita: “life is a tale, told by an idiot, full of<br />

sound and fury, signifiying nothing...”.<br />

Um comentário sobre a encenação demonstra como <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> era<br />

influenciado pelas ideias de Copeau. Ele diz que em nenhuma outra peça<br />

Ziembinski havia sido tão feliz na encenação como em Vestido de noiva, <strong>por</strong>que as<br />

intenções do autor haviam sido manti<strong>das</strong>. A encenação tinha sido subordinada<br />

estritamente ao texto, ao contrário da montagem de Ziembinski de Desejo, peça de<br />

Eugene O’Neill. Ainda sobre a direção, Ziembinski é elogiado <strong>por</strong> conseguir,<br />

acompanhado <strong>por</strong> um bom elenco, que algumas cenas alcancem o nível do grande<br />

cômico, assim como as comédias do dramaturgo francês Jean Molière e do ator e<br />

diretor inglês Charles Chaplin.<br />

Os movimentos culturais são usados para situar o leitor sobre como a peça é<br />

estruturada. <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> via no plano da alucinação cenas expressionistas que,<br />

para ele, estavam para alcançar um efeito plástico, violando a realidade. Por outro<br />

lado, no plano da realidade havia um naturalismo perfeito.<br />

<strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> aponta, nesta crítica, como ponto forte do texto de <strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong> a ação dramática que, para o crítico, foi enquadrada numa moldura de<br />

pessoas indiferentes, como ocorre na vida real.<br />

Outro ponto forte ressaltado no texto é o modo como a vulgaridade é utilizada,<br />

detalhes desagradáveis, como alusões a varizes, navalha<strong>das</strong> e pessoas que<br />

transpiram, são apresentados num coro sui generis. “[…] a vulgaridade talvez seja<br />

uma consequência inevitável da sua filosofia amarga e sardônica”. (PRADO,<br />

2001:05)<br />

4.2 A mulher sem pecado (1952)<br />

39


Em 1952, <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> publica sua crônica sobre a peça A mulher<br />

sem pecado, presente no livro Apresentação do teatro brasileiro moderno, com<br />

direção de Graça Melo. Ao contrário do que o crítico havia notado em o Vestido de<br />

noiva, a “obsessão pela sexualidade” deste texto é vista de maneira negativa, ou,<br />

para usar as palavras do crítico, “menos aceitável artisticamente”. <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong><br />

percebe como fundamento do teatro de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> essa obsessão, que é<br />

utilizada para purgar um sentimento de culpa, a perversão do amor. O ponto<br />

negativo, aponta <strong>Décio</strong>, é que a obsessão pela sexualidade é apresentada de<br />

maneira larvar e ingênua.<br />

Outro ponto apontado pelo crítico como fraco é o fato da obra ser linear e<br />

primária. Para ele, são usados “pseudo-surpresas”, com o suicídio final, uma saída<br />

“fácil” para terminar a trama.<br />

Todos os detalhes eram observados <strong>por</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>. A interpretação de<br />

Graça Melo, <strong>por</strong> exemplo, deveria ter mais concentração psicológica e maior vida<br />

interior. Sobre Lídia Vani, <strong>Décio</strong> comenta que ela tinha tiques do teatro profissional,<br />

como a preocupação com beleza e dicção. Aqui podemos notar uma referência<br />

implícita do que era conhecido na época como “teatrão”, termo que remete a uma<br />

montagem cuja produção é bem feita e tem um elenco considerado bom, contudo<br />

concebido de maneira tradicional, sem maior imaginação e sem uma pesquisa<br />

formal criativa. (GUINSBURG e outros, 2009:309) O crítico avalia que à atriz falta a<br />

percepção de que a arte é feita com emoções de todos os dias. Na visão dele, esse<br />

é o verdadeiro caráter do teatro. Em relação à direção, Graça Melo é elogiado. Para<br />

<strong>Décio</strong>, a escolha de não usar técnicas de “teatro revolucionário”, mantendo os<br />

atores dentro dos limites de um naturalismo reduzido ao essencial, foi a melhor<br />

possível.<br />

<strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> observa até mesmo o cenário. Ele elogia a técnica do cenógrafo<br />

Luciano Maurício, que soube explorar as três dimensões do palco do teatro Cultura<br />

Artística.<br />

No texto também há um repertório extrateatral, no qual é feita uma referência ao<br />

livro A Náusea de Jean-Paul Sartre. <strong>Décio</strong> acreditava que <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> tinha a<br />

necessidade de purgar-se moralmente, mas não no sentido metafísico de Sartre,<br />

nem no sentido de pecado cristão.<br />

40


De várias maneiras, tenta-se situar o sentido da sexualidade na peça, seja<br />

utilizando comparações de semelhanças ou de oposições. E é neste segundo<br />

sentido que o escritor inglês David Herbert Lawrence é citado. Para <strong>Décio</strong>, <strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong> não utilizava a obsessão pela sexualidade da mesma maneira positiva<br />

que Lawrence.<br />

A teatralidade é apontada como a melhor característica dramaturga de <strong>Nelson</strong><br />

<strong>Rodrigues</strong>. O autor sabe comunicar-se, sabe fazer o público interessar-se pelo<br />

enredo, participar da ação. No Dicionário de teatro, Patrice Pavis cita que teatral é<br />

“um texto que não pode se privar da representação” (PAVIS, 2008: 373).<br />

4.3 A falecida (1953)<br />

O texto de análise de A falecida, publicado em 1953, e também republicado no<br />

livro Apresentação do teatro brasileiro moderno, salienta mais uma vez a<br />

teatralidade de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>. <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> o define como “um<br />

homem de teatro” que sabe se comunicar e o compara ao dramaturgo Silveira<br />

Sampaio. Ambos possuem uma forma teatral direta, com diálogo que “vive”<br />

incor<strong>por</strong>ando a gíria na linguagem do palco, sem artificialismo.<br />

A direção desta peça foi de José Maria Monteiro. <strong>Décio</strong> cita que a encenação foi<br />

criticada no Rio de Janeiro <strong>por</strong> utilizar um tratamento expressionista em um tema<br />

próximo do realismo. Ao analisar o texto, parece que o crítico não concorda com<br />

essa observação, para ele a encenação é trabalhada, rica de imaginação, embora<br />

não faça mais do que acompanhar o texto na sua tentativa de envolver<br />

acontecimentos triviais numa “atmosfera poética”.<br />

Ele compara <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> ao romancista francês Alexandre Dumas, pai, <strong>por</strong><br />

não se vender para o teatro “comercial”, mas utilizar o jornalismo para sobreviver. O<br />

crítico chega a mencionar o pseudônimo que <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> usava para escrever<br />

em folhetins publicados nos jornais de Assis Chateaubriand. “Suzana Flag se vende<br />

para que <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> não seja obrigado a se vender”.<br />

Por outro lado, o jornalismo acaba <strong>por</strong> exercer uma interferência indevida na<br />

produção teatral de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, já que o dramaturgo passa utilizar verdades<br />

“desnecessárias” apenas para escandalizar. “É verdade que os homens têm<br />

ocasionalmente dores de barriga, que existem espinhas e mesmo cânceres, que os<br />

41


cavalos nem sempre se com<strong>por</strong>tam com limpeza nos enterros de luxo. Mas o que<br />

isso prova?”. A pesquisadora Maria Cecília Garcia acredita que questões como<br />

essa, presentes nas <strong>críticas</strong> sobre a dramaturgia rodriguiana, demonstram como<br />

<strong>Almeida</strong> prado sofria um “choque de realismo-expressionismo” provocado pelo<br />

espetáculo que não podia ser definido como pertencente a somente uma escola<br />

artística.<br />

Para <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>, <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> utiliza em suas peças toda a variedade<br />

de coisas que os homens consideram normalmente mesquinhas e desprezíveis,<br />

havia aí uma contemplação do desagradável. O problema, na visão do crítico, é que<br />

o dramaturgo, “julgando-se o indivíduo mais livre de preconceitos é, na verdade, o<br />

mais preso, o mais tolhido, ligado que está à necessidade de se afirmar, estética e<br />

moralmente, pela oposição, contando o valor de uma obra de arte pelo grau de mal-<br />

estar que provoca nos outros”. (PRADO, 2001:11)<br />

<strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> também compara as obras de um mesmo autor para com<strong>por</strong> suas<br />

<strong>críticas</strong> teatrais. No texto em questão, ele relaciona A falecida com Álbum de família,<br />

que era o incesto em massa, a morbidez primitiva, “bíblica grandiosa”; já A falecida<br />

é morbidez, reles, destituída de magnitude. Vale lembra que até 1953 Álbum de<br />

família ainda não havia sido encenada, <strong>por</strong>tanto, <strong>Décio</strong> só conhecia o texto do<br />

espetáculo. Para o crítico, o que <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> procurou desta vez foi a poesia e<br />

a tragicomédia <strong>das</strong> vi<strong>das</strong> suburbanas. “Cada cena [...] é um instantâneo cômico ou<br />

trágico, impressionando às vezes <strong>por</strong> uma espécie de negra poesia ou, mais<br />

frequentemente, <strong>por</strong> uma ferocidade cômica, uma força sarcástica e corrosiva, cujo<br />

equivalente procuraríamos em vão em outros escritores nacionais”. (PRADO,<br />

2001:12) Outro ponto considerado forte pelo crítico é a encenação. O interessante é<br />

que ele acha a encenação foi boa, <strong>por</strong>que na peça os atores pouco ou nada<br />

significam.<br />

<strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> faz comentários específicos sobre o texto. Para ele, a ação da<br />

peça caminha, mas não cresce, a impressão é de que a história foi contada, <strong>por</strong>ém<br />

os temas permanecem em estado larvar.<br />

Nesta crítica também é dada maior atenção para o texto do dramaturgo do que<br />

para a interpretação. “Não criticamos, pois, o <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> teatrólogo, mas<br />

antes o <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> escritor, isto é, alguém que deve ter alguma coisa a dizer<br />

42


sobre os homens – alguma coisa que não seja a simples verificação de que existem<br />

muitos assuntos desagradáveis, ou apenas insignificantes, sobre os quais todo<br />

mundo, de comum acordo, prefere silenciar”. (PRADO, 2001:12)<br />

4.4 Vestido de noiva (1958)<br />

Na coletânea Teatro em progresso <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> selecionou outra<br />

crítica de o Vestido de noiva. Desta vez, a peça é de 1958, com direção de Sérgio<br />

Cardoso. Nesta crítica, ao contrário da maioria citada aqui, a atenção é voltada para<br />

a montagem. O texto de Vestido de noiva já havia sido exaustivamente analisado<br />

desde a sua primeira encenação em 1943.<br />

<strong>Décio</strong> começa o texto fazendo um elogio a Sérgio Cardoso <strong>por</strong> enfrentar uma<br />

peça que, para ele, é tão desafiador como Hamlet, de William Shakespeare.<br />

Comparações com a encenação de Ziembinski eram praticamente inevitáveis, no<br />

entanto <strong>Décio</strong> ressalta acreditar ser a essência do encenador saber auscultar e<br />

fazer as palavras falarem, e que isto pode produzir várias versões de uma mesma<br />

peça.<br />

Neste ponto, <strong>Décio</strong> lembra que Ziembinski utilizou a estética expressionista para<br />

levar o texto ao palco. Já Sérgio Cardoso preferiu a perspectiva estética teatral.<br />

Cardoso utilizou novas técnicas teatrais, aproveitando os dispositivos cênicos de<br />

Jean Vilar e do Teatro Nacional Popular. Mas nem tudo agradou o crítico, para ele a<br />

encenação ficou puramente estética, o público sente menos comunicação humana.<br />

Neste texto, <strong>Décio</strong> menciona quatro espetáculos que estavam em cartaz em São<br />

Paulo e, na visão dele, representavam a geração do teatro moderno brasileiro: Eles<br />

não usam Black-tie, dirigida <strong>por</strong> José Renato, O diário de Anne Frank, de Antunes<br />

Filho, e Vestido de noiva, de Sérgio Cardoso.<br />

O repertório extrateatral também é utilizado como recurso de análise. <strong>Almeida</strong><br />

<strong>Prado</strong> compara a trama de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> a um grande quebra-cabeça,<br />

assemelhando-se a um romance policial. Também faz uma breve avaliação<br />

psicanalítica, o acidente em que Alaíde morre seria uma forma inconsciente de<br />

suicídio. <strong>Décio</strong> vê nesta peça um mal disfarçado de predileção, ele chama de<br />

imediações morais do crime, resultado do fundo psicológico contido no texto.<br />

43


Mais uma vez o poeta Baudelaire é usado como base de comparação para<br />

descrever Vestido de noiva. Ambos exploram desordenada e febrilmente tudo o que<br />

é turvo no homem. Aqui <strong>Décio</strong> cita um trecho da poesia Ao leitor : “E adoráveis<br />

remorsos sempre nos saciam, / Como o mendigo exibe a sua sordidez”. 17 <strong>Décio</strong><br />

acredita que a dramaturgia de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> traz ao palco esses sentimentos<br />

obscuros, o culto ao pecado de forma tão caricatural (exagerada). A trama perde o<br />

senso de medida, perdendo o contato com a realidade, inclusive a realidade<br />

psicológica, uma característica expressionista.<br />

<strong>Décio</strong> resume a obra de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> em dois pilares: um teatral, no qual o<br />

texto adapta-se bem às exigências do jogo cênico e conta a história de um modo a<br />

prender o espectador. E também “penetra num certo mundo obscuro, de<br />

sentimentos inconfessados, que nem <strong>por</strong> ser menos nobre deixa de representar um<br />

dos aspectos essenciais da personalidade humana”. (PRADO, 2002:78) Para <strong>Décio</strong>,<br />

toda a obra posterior de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> seguiria essas duas características. Para<br />

ele, as peças rodriguianas tentam fugir do realismo. A dramaturgia do autor é<br />

repleta de fatos fictícios e arbitrários, o mais im<strong>por</strong>tante não são as falas, mas o que<br />

as personagens são dramaticamente. O crítico interpreta isso como sendo uma<br />

busca pelo “teatro puro”, ou seja, um teatro que não tivesse outro objeto a não ser a<br />

realidade do palco.<br />

17 Originalmente, a citação foi feita em francês Et nous alimentons nos aimables remords, / Comme les<br />

mendiants nourissent leur vermine.<br />

44


4.5 Boca de ouro (1960)<br />

Boca de ouro foi interpretada pela primeira vez em 1960 sob a direção de<br />

Ziembinski, e é sobre essa encenação o texto publicado <strong>por</strong> de <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong><br />

<strong>Prado</strong> no livro Teatro em progresso.<br />

Já no início do texto faz-se uma comparação com a estrutura narrativa presente<br />

no filme japonês Rashomon 18 (1950), dirigido <strong>por</strong> Akira Kurosawa. A fita ficou<br />

famosa <strong>por</strong> possuir uma forma de narração que sugere a impossibilidade de obter a<br />

verdade sobre um evento quando há conflitos de pontos de vista. <strong>Décio</strong> vê a<br />

proximidade do texto do dramaturgo com o processo narrativo de Kurosawa de<br />

maneira negativa. Para ele, o que foi proposto pelo filme não foi uma nova técnica e,<br />

sim, um “achado”, o que não convém ser repetido. Outro ponto negativo é que na<br />

trama japonesa os vários pontos de vista são reproduzidos <strong>por</strong> pessoas diferentes,<br />

já na tragédia de <strong>Nelson</strong> é apenas a personagem D. Guigui que modifica o seu<br />

depoimento o tempo todo.<br />

<strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> transcreve uma rubrica no terceiro ato: “a personagem pertence<br />

muito mais a uma mitologia suburbana do que à realidade normal da Zona Norte”<br />

(PRADO, 2002:179), isso demonstra a leitura da peça antes da crítica ser escrita e<br />

provavelmente antes de ter assistido a encenação. Sobre a rubrica, o <strong>Décio</strong><br />

comenta a ausência da mitologia na trama, consequência da falta de outras fontes<br />

narrativas além de D. Guigui. A maior falha do texto do dramaturgo foi não saber o<br />

que fazer com as três versões conta<strong>das</strong> durante o enredo, o que torna a peça clara<br />

em suas partes (em cada versão), mas confusa na soma final. <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong><br />

propõe uma questão para <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>: “Qual parte é verdade, qual parte é<br />

estilização?” <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> também acha que o espetáculo não foi satisfatório no<br />

sentido de dar uma visão global do subúrbio carioca; para ele, A falecida fez isso<br />

com melhor resultado.<br />

A personagem principal da trama “Boca de ouro” é interpretada pelo próprio<br />

Ziembinski. Na crítica em questão <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> salienta o fato desta personagem<br />

ter sido descrita no texto como um “rasputin suburbano”. Para ele, Ziembinski<br />

conseguiu passar para o público o lado maligno, vulgarmente sensual do rasputin,<br />

18 Na psicologia, existe o termo Efeito Rashamon, que é inspirado no filme.<br />

45


contudo o lado suburbano ficou a desejar. Faltava ao polonês a graça autêntica do<br />

herói de Madureira - as gírias não saíam de sua boca sem que houvesse os<br />

resquícios de autoconsciência. A direção de Ziembinski também é vista de maneira<br />

negativa <strong>por</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>. Ele acreditava que o espetáculo não convencia <strong>por</strong><br />

completo, <strong>por</strong>que Ziembinski nunca soube encontrar o meio termo entre a farsa e<br />

tragédia, entre a naturalidade e a estilização, entre o mito e a realidade suburbana<br />

carioca.<br />

<strong>Décio</strong> vê Boca de ouro, juntamente com A falecida, como um processo de<br />

readaptação à realidade. Apesar de estas peças terem como base a violência, a<br />

extorsão, o assassínio, assim como Vestido de Noiva, Anjo negro, Álbum de família<br />

e Senhora dos afogados, elas apresentam um “nojo” pela baixa condição terrena<br />

(pobreza, abandono da sociedade), e não mais pelo homem como indivíduo. O<br />

crítico analisa essa mudança como uma consequência do amadurecimento de<br />

<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, que, ao se aproximar dos 50 anos, apresenta-se mais sereno,<br />

mais apaziguado interiormente.<br />

4.6 Toda nudez será castigada (1965)<br />

A crítica sobre a peça Toda nudez será castigada foi escrita em 1965 e está na<br />

coletânea de <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>, Exercício Findo. O texto inicia-se com uma<br />

observação curiosa. “O ponto de partida de Toda nudez será castigada é aquela<br />

velha ideia da psicanálise de que as reações humanas escondem geralmente em<br />

seu bojo o contrário do que pretendem exprimir” (PRADO, 1987:109). <strong>Décio</strong> acredita<br />

estar aí o que há de mais marcante na peça: a dialética do contrário, o que para ele<br />

também está em toda dramaturgia de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, ambivalências de<br />

amor/ódio, atração/repulsão. Para o crítico, o dramaturgo volta para o seu grande<br />

tema: o puritanismo.<br />

O crítico enxerga no tema da peça um casto com atração <strong>por</strong> uma prostituta,<br />

uma aproximação com o conto Chuva, de William Somerset Maugham, que também<br />

trata da paixão entre o puritano e a prostituta. Aqui ele faz uma ressalva: as<br />

situações são semelhantes, <strong>por</strong>ém, artisticamente, as obras nada têm em comum.<br />

<strong>Décio</strong> comenta que o texto dramático parece estar se “divertindo” com as<br />

personagens, mas a prostituta se rebela contra o autor com uma força que transpõe<br />

46


a noção de bem e mal. O crítico acredita que a dialética do contrário é mal utilizada.<br />

Ao invés de se apresentar como um aprofundamento psicológico, torna-se um jogo<br />

do melodrama, e a peça desfaz-se em peripécias para exprimir nada. <strong>Décio</strong><br />

comenta que o teatro moderno dá grande liberdade para o autor, <strong>por</strong>ém isso não o<br />

dispensa de organizar o seu material, o que, na visão de <strong>Décio</strong>, <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong><br />

não havia feito. “<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, em suas últimas peças, não parece estar<br />

pensando em termos de teatro: limita-se a contar a história, como se o palco não<br />

exigisse o mínimo de concentração dramática”. (PRADO, 1987:110)<br />

Sobre a encenação, novamente de Ziembinski, <strong>Décio</strong> comenta que o diretor<br />

perdeu o tempo da peça, utilizando menos rotações do que deveria. Nas palavras<br />

do crítico, o texto trabalha com “instantâneos” e o encenador com “poses”.<br />

4.7 Viúva, <strong>por</strong>ém honesta (1968)<br />

A crítica da peça Viúva, <strong>por</strong>ém honesta, sobre a peça dirigida <strong>por</strong> Líbero Rípoli<br />

Filho, foi escrita em 1968 (ano que <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> abandona a posição de<br />

crítico do jornal O Estado de S. Paulo) e está no livro Exercício findo. Já no início do<br />

texto, <strong>Décio</strong> deixa claro que não gostou da proposta do espetáculo. De forma<br />

irônica, ele diz que o teatro de vanguarda parece ter chegado à conclusão tardia de<br />

que o Brasil é o país do carnaval, coisa que Jorge Amado já havia descoberto havia<br />

muito tempo 19 .<br />

O crítico analisa como sendo as bases do espetáculo o futebol e o carnaval, mas<br />

sem os gols de Pelé e a embriaguez do lança-perfume. <strong>Décio</strong> cita a peça como um<br />

exemplo da “comicidade burlesco-patética de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>” e que serve como<br />

laxativo psicológico. Para o encenador Rípoli Filho, serve para liberar as suas<br />

aspirações secretas, como dirigir e interpretar o papel principal (ele interpreta o<br />

dono do “El gran circo Brasil”, onde, supostamente, é encenada a peça) e sambas e<br />

marchinhas que gosta. Já para <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>, serve como meio de liberar suas<br />

obsessões, dentre elas a irritação causada pelas <strong>críticas</strong> que dramaturgos estavam<br />

recebendo no Rio de Janeiro. No texto há algumas referências aos críticos teatrais<br />

da “nova geração”, todo tempo sugere-se que esses seriam despreparados e<br />

19 Referência ao romance de Jorge Amado O País do carnaval, de 1930.<br />

47


afeminados. Visivelmente <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> tentava vingar-se ou, quem sabe<br />

divertir-se, de <strong>críticas</strong> <strong>das</strong> quais ele discordava.<br />

<strong>Décio</strong> segue o texto de maneira negativa, dizendo que o espetáculo é cheio de<br />

som e fúria, talvez significando nada. Ele evoca o conceito de obras abertas,<br />

definido <strong>por</strong> Humberto Eco para embasar essa opinião. <strong>Décio</strong> diz que, apesar do<br />

teatro moderno permitir as tais obras abertas, com a participação do público no<br />

espetáculo, o Viúva, <strong>por</strong>ém honesta faz isso de maneira infeliz. Não é a corajosa<br />

abertura para o desvario surrealista, mistura o teatro de revista, mas sem<br />

espontaneidade. É como se fosse o programa de auditório, faltando a ingenuidade<br />

autêntica do meio; o show estudantil de final de ano, estando ausentes as diverti<strong>das</strong><br />

alusões a professores; a torcida de futebol, sem a euforia dos gols; e a apoteose<br />

carnavalesca, não contando com a diversão do lança-perfume.<br />

Sobre a direção, <strong>Décio</strong> classifica a encenação como sendo o que psicólogos<br />

americanos chamariam de “tentativa e erro, acerto acidental”. A direção de Rípoli<br />

não iria além da comicidade forçada ou da euforia pré-fabricada.<br />

<strong>Décio</strong> afirma que a sua visão negativa da peça não advém da questão do bom<br />

gosto, coisa que para ele já não existia mais e o texto ironizava de maneira esperta,<br />

mas sim do mau gosto criativo e engraçado. Em Viúva, <strong>por</strong>ém honesta o bom gosto<br />

era simplesmente eliminado, mas sem trazer um mau gosto original e sem eliminar<br />

os problemas estéticos.<br />

Para <strong>Décio</strong>, a peça não chegava ser teatro e, muito menos <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>.<br />

48


5. Considerações finais<br />

Durante toda a sua carreira, <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> procurou valorizar os textos<br />

<strong>das</strong> peças que analisava. Com <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> não foi diferente, aliás o que ele<br />

mais admirava na obra deste dramaturgo eram as indicações específicas deixa<strong>das</strong><br />

para o encenador da peça. Frequentemente, <strong>Décio</strong> lia a peça antes de ver a<br />

encenação e tentava analisar se a “intenção” do autor foi trans<strong>por</strong>tada para o palco<br />

de forma satisfatória.<br />

Ao ler as <strong>críticas</strong> de <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>, pode-se notar que o crítico não<br />

pode ser considerado avesso a inovações. Logo de início, percebeu como <strong>Nelson</strong><br />

trabalhava com a obsessão, o obsceno e o desagradável, às vezes elogiando, às<br />

vezes depreciando as escolhas do autor. Para <strong>Décio</strong>, detalhes como dores de<br />

barriga eram completamente dispensáveis na construção geral da peça. Contudo,<br />

quando os detalhes “desagradáveis”, aos olhos do crítico, contribuíam para o<br />

enredo, estes eram aplaudidos e exaltados.<br />

<strong>Décio</strong> acompanhou a evolução de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> no teatro, nem sempre<br />

compreendendo, ou aceitando, as escolhas do dramaturgo. Mas sempre registrando<br />

como a forma peculiar de <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong> lidar com o teatro contribuía para a<br />

formação da modernidade em nossos palcos. O conceito da teatralidade, no sentido<br />

do potencial que o texto dramático tem no palco, sempre foi, ao ver de <strong>Décio</strong>, uma<br />

<strong>das</strong> coisas mais fortes em <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>. O autor do desagradável foi feito para<br />

os palcos, sem dúvida alguma e, nisso, concordo plenamente com <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>.<br />

Não foi só a modernidade o legado que <strong>Nelson</strong> deixou para os palcos, a<br />

espontaneidade nos diálogos foi outro ganho imensurável. E <strong>Décio</strong>, de maneira<br />

honesta e sempre utilizando a contextualização para salvá-lo da tão condenada<br />

parcialidade, teve a sensibilidade de notar as mudanças no calor dos<br />

acontecimentos e ressaltar a im<strong>por</strong>tância delas para a história dos palcos<br />

brasileiros.<br />

49


6. Anexos<br />

Editorial do estadão que provocou a devolução dos prêmios “Sacis”<br />

50


A censura e o teatro<br />

Foi uma o<strong>por</strong>tuna manifestação a que se registrou recentemente na Assembleia<br />

Legislativa, pela palavra do deputado Aurelio Campos, sobre os excessos que se<br />

têm verificado em apresentações teatrais no terreno do desrespeito aos mais<br />

comezinhos preceitos morais. O mundo teatral – tanto os atores e atrizes como os<br />

autores – vêm movendo uma campanha sistemática contra a censura, e como esta<br />

nem sempre é exercida <strong>por</strong> autoridades à altura de tão graves e, às vezes, tão<br />

delica<strong>das</strong> questões, a tendência de muitos é para cerrar fileiras entre os que a<br />

combatem. O que na censura geralmente se vê é uma ameaça à liberdade, o que<br />

assume feição particularmente antipática quando a liberdade é ameaçada é a<br />

artística. Carra<strong>das</strong> de razão, entretanto, teve o parlamentar acima referido, ao<br />

assinalar a propósito da peça teatral a cuja representação assistira, que a censura,<br />

longe de se mostrar rigorosa no escoimá-la de seus exageros escandalosos, o que<br />

revelou foi uma complacência que não pode deixar de ser severamente criticada.<br />

Não só tratava, de fato, no caso, de restringir a liberdade artística, mas de coibir a<br />

mais reles e agressiva <strong>das</strong> licenciosidades, e o que da aludida peça teatral disse o<br />

sr. Aurelio Campos aplica-se com justiça a muitas outras que vêm chocando, com<br />

seus propósitos de subversão moral, os que de espírito desprevenido a elas<br />

assistem. Não se poderia esperar, numa fase tão generalizada, e profundamente<br />

revolucionária como esta que põe em estado de perplexidade o mundo, que<br />

permanecesse imutável em seus velhos preceitos e mandamentos a moral, sujeita<br />

também a transformações – boas ou más – como tudo o que é transitório <strong>por</strong> ser<br />

produto do mutável espírito humano. É esta uma <strong>das</strong> mais graves questões que<br />

hoje se deparam aos que pendem em meditações sobre os dias de transição que<br />

vivemos. E dignas de reflexão seriam as obras artísticas que refletissem, com<br />

honestidade e grandeza, esta sorte <strong>das</strong> atuais preocupações humanas. Não é esse,<br />

<strong>por</strong>ém, e infelizmente, o caso <strong>das</strong> produções teatrais que o público tem criticado<br />

pelas suas imoralidades. Não se trata, realmente, de obras de pensamento, nelas<br />

nenhuma tese se defende, com elas não se busca a beleza, longes estão de<br />

poderem ser considera<strong>das</strong> obras de arte. O que com elas se pretende é “épater les<br />

bourgeois”, chocá-los com o que geralmente passa de meras grosserias e,<br />

51


paralelamente, excitar o que há de menos incontrolável na área instintiva dos<br />

malformados de espírito.<br />

Na literatura, no romance sobretudo, já atravessamos uma fase parecida, triste<br />

fase mas, felizmente, passageira. Não havia, de fato, anos atrás, mau escritor que<br />

não convencesse do êxito editorial de suas pobres obrinhas, desde que as<br />

enchesse de palavrões, particularmente se estes escapassem da boca de mocinhas<br />

em horas de confidências amorosas. Passou o triste período para o romance, mas<br />

nele entrou agora o teatro, e como nas peças teatrais a palavra é apenas um entre<br />

vários outros elementos, à licenciosidade verbal correspondem exageros<br />

semelhantes em todos os gestos e, em especial, na representação de cenas<br />

íntimas, expostas com doentia crueza.<br />

Há peças, do gênero, de insu<strong>por</strong>tável mau gosto, e como o mau gosto é<br />

deseducativo, só <strong>por</strong> isso se justificaria a intervenção da censura. Mas não é esse o<br />

pior aspecto de tais espetáculos teatrais. Mais censuráveis são os seus objetivos,<br />

ou seja, levar ao paroxismo os anormais que se comprazem com cenas de doentio<br />

amoralismo sexual. Não compreendemos como possa haver artistas realmente<br />

dignos desse nome, que, dotados de faculdades, de sensibilidade, de psicologia<br />

normais e, <strong>por</strong>tanto, equilibra<strong>das</strong>, não trepidem em defender a livre representação,<br />

perante públicos irrestritos, de obras dessa baixa categoria. Não compreendemos,<br />

sobretudo, que certos autores tenham a desfaçatez de defender não só como obras<br />

de arte, mas também como obras de pensamento, o que muitas vezes não passa de<br />

mera catalogação <strong>por</strong>nográfica.<br />

Como é inegável a influencia do teatro não só na educação artística do povo,<br />

mas também no aprimoramento dos seus costumes, deve-se concluir igualmente<br />

que o mau teatro exerce função negativa, e demolidora mesmo, em ambos os<br />

domínios. Assim, tanto quanto é desejável o estímulo, pelos poderes públicos, <strong>das</strong><br />

atividades teatrais dignas desse nome, é indispensável que os mesmos poderes<br />

públicos não hesitem na adoção de medi<strong>das</strong> contra os que, movidos <strong>por</strong> torpes<br />

intenções, <strong>por</strong> aí vivem a deturpar e a envilecer a nobre arte. Daí, os aplausos que<br />

daqui dirigimos ao deputado Aurelio Campos, pela atitude que a respeito assumiu,<br />

com discurso proferido da tribuna parlamentar. Tão o<strong>por</strong>tuna e justa nos pareceu<br />

essa oração, que esperamos outras se profiram com o mesmo fim, para que se<br />

52


firme, nesse terreno, a posição da Assembleia Legislativa do Estado, sensibilizando<br />

<strong>por</strong> uma questão de tanta im<strong>por</strong>tância as autoridades públicas e contribuindo para<br />

que artistas e autores, refletindo melhor sobre o que deles todos desejam e<br />

esperam, formem entre os que se esforçam pelo alevantamento do nível da arte<br />

cênica em nossa terra.<br />

53


Texto de despedida de <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> do Estado de S. Paulo<br />

54


Censura teatral e o “Estado”<br />

Por <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong><br />

A luta da classe teatral contra a censura, tanto em São Paulo como no Rio, já<br />

extravasou para o domínio público, chegando inclusive até a Assembleia Estadual.<br />

Como fui chamado mais de uma vez ao debate, não me furto de trazer aqui o meu<br />

depoimento, concebido dentro do espírito da maior objetividade e serenidade que<br />

me é possível. Não o faço como jurista, sociólogo ou moralista, que nunca fui, mas<br />

apenas como crítico de teatro que, no exercício de sua profissão, viu-se obrigado a<br />

pensar algumas vezes sobre o assunto.<br />

Comecemos pelo aspecto menos passível de controvérsia. A censura, <strong>por</strong> ser<br />

desempenhada geralmente com pouquíssimo conhecimento do que seja arte,<br />

jamais funcionou a contento. Agora então, federalizada, centralizada em Brasília, a<br />

alguns mil quilômetros dos centros teatrais, num país de comunicações difíceis e<br />

custosas como o nosso, emperrou de uma vez. A lei estabelece um prazo para que<br />

cada original seja julgado, verificando-se a interdição ou a liberação. Mas a censura,<br />

<strong>por</strong> má vontade, descaso, ou formalismo burocrático, raramente obedece a esses<br />

prazos. Tergiversa, adia, promete e não cumpre, libera oralmente e proíbe <strong>por</strong><br />

escrito, só comunicando as suas decisões aos interessados tardiamente, quando o<br />

espetáculo já está montado e as despesas feitas. Esta desobediência aos prazos<br />

legais, motivo principal da liminar concedida ao mandado de segurança impetrado a<br />

favor da I Feira Paulista de Opinião, acabou <strong>por</strong> unir contra a censura toda a classe<br />

a classe teatral carioca e paulista, sem diferenças de pensamento político ou de<br />

orientação estética. O Ministro da Justiça, sentindo a gravidade e a propriedade <strong>das</strong><br />

reivindicações, nomeou uma comissão, integrada <strong>por</strong> intelectuais e homens de<br />

teatro, para examinar o problema e encaminhar soluções.<br />

A classe teatral, no entanto, já não se contenta com corrigir estes aspectos<br />

burocráticos: encorajada com a própria unidade, vai além, exigindo não a<br />

liberalização ou o aperfeiçoamento do mecanismo da censura mas a sua própria<br />

extinção (salvo, queremos parecer, nos casos previstos pela Constituição:<br />

incitamento à guerra e às distinções raciais). Deseja que subsistiram apenas as<br />

55


proibições <strong>por</strong> critério de idade. Acima dos 18 anos, ou mesmo dos 21, receberia o<br />

cidadão, com o direito de votar, o de escolher <strong>por</strong> si mesmo os espetáculos que<br />

deseja assistir, dispensando-se a tutela governamental. É a ele, não ao Estado, que<br />

compete manifestar a sua concordância ou discordância com o que se exibe no<br />

palco.<br />

Que semelhante proposição nada tem de absurdo ou de subversivo, provam-no<br />

dois fatos: é o sistema adotado pelos Estados Unidos; é a tese da Comissão<br />

nomeada pelo próprio governo para assessorar o ministro da Justiça. Também não<br />

significa, como parecem pensar alguns, a permissão da licenciosidade. Se não<br />

existe censura prévia, nem <strong>por</strong> isso ficam os responsáveis <strong>por</strong> qualquer espetáculo<br />

isentos de serem processados <strong>por</strong> todos os crimes catalogados no Código Penal:<br />

atentado ao pudor público, etc. A liberdade, <strong>por</strong>tanto, é uma faca de dois gumes: <strong>por</strong><br />

um lado, libera o artista em relação ao poder executivo, submetendo-o ao judiciário;<br />

<strong>por</strong> outro lado, retira-lhe uma espécie de indenidade propiciada pela censura. Larry<br />

Bruce, comediante norte-americano, esteve preso durante vários anos <strong>por</strong> terem<br />

sido julgados obscenos alguns de seus monólogos cômicos. Talvez não tenham<br />

motivo para tanto entusiasmo combativo os atores e dramaturgos – e para tanto<br />

temor e indignação os defensores da moralidade pública.<br />

A dificuldade de resolver satisfatoriamente o problema está no caráter dual da<br />

obra de arte, que é ao mesmo tempo criação e comunicação. Como ato criador só<br />

pode ser livre. O artista sempre reivindicou para si, sobretudo a partir do<br />

romantismo, o direito de estabelecer o que é e o que não é obra de arte. Sendo esta<br />

uma emanação da sua personalidade, não admite ele, <strong>por</strong> princípio, <strong>por</strong> uma<br />

questão de integridade, qualquer interferência em seu trabalho criador, seja<br />

econômica, religiosa, política, moral ou filosófica. De fato, a evolução da literatura<br />

nos últimos cento e cinquenta anos está ligada a uma série de vitórias obti<strong>das</strong><br />

contra a repressão social, representada pela censura ou pelo Poder Judiciário. “As<br />

flores do mal”, de Baudelaire, “Mme Bovary”, de Flaubert, “O amante da Lady<br />

Chatterley”, de Lawrence, “Ulysses”, de Joyce, são alguns destes marcos mais<br />

representativos, <strong>por</strong> terem sido alvos de processos e condenações rumorosas,<br />

antes de passarem à categoria de tranquilas obras-primas. Cada uma de tais<br />

batalhas judiciárias acabaram efetivamente <strong>por</strong> alargar os limites da arte, que os<br />

56


artistas pretendem seja tão amplo quanto o da ciência. Tudo é objeto de arte,<br />

mesmo o obsceno, mesmo o repugnante, como tudo é objeto de ciência, já que<br />

ambas, cada uma a seu modo, dizem respeito ao conhecimento do homem.<br />

Mas arte é também comunicação, e comunicação coletiva no caso específico do<br />

teatro. Dumas Filho, embora vítima frequente da censura, desde “A dama <strong>das</strong><br />

Camélias”, enunciou este caráter digamos social do teatro à maneira leve e<br />

espirituosa do século dezenove: “Il y a, dans la vie réelle, de chose qu’on dit quand<br />

on est deux et qu’on ne dit pas quand on est trois. On au théâtre, on est toujours<br />

trois”. Segue-se que a presença do público restringe forçosamente a liberdade do<br />

artista ao integrá-lo numa determinada coletividade. Podemos abolir a censura do<br />

governo mas não a censura social, de que ela é supostamente representante. Esse<br />

é um dos “facts of life” com que o dramaturgo e o comediógrafo tem de aprender a<br />

conviver. Suprindo a censura, surgirão fatalmente em seu lugar as Ligas da<br />

Decência, as Sociedades de Defesa da Família, exprimindo o que lhes parece ser<br />

os interesses morais da coletividade. Um dos censores mais fervorosos e estreitos<br />

do nosso tempo, no mundo ocidental, foi o do “Hays Office”, criado pela própria<br />

indústria cinematográfica norte-americana em resposta a grupos de pressão.<br />

Tais considerações terão sido certamente feitas pelos responsáveis pelo atual<br />

movimento contra a censura. O que eles desejam, segundo tudo indica, é apenas<br />

re<strong>por</strong>tarem-se diretamente ao público, na suposição de que os padrões<br />

governamentais são sempre retardatários, sobretudo em épocas como a nossa, de<br />

crise de valores, em que a moralidade, a própria noção do que seja obsceno, evolui<br />

dia a dia. Temo, entretanto, que alguns estejam sonhando confusamente com uma<br />

liberdade total que sociedade alguma lhes poderá oferecer – e as autoritárias ainda<br />

menos que as democráticas – a não ser que se realize magicamente, <strong>por</strong> um passe<br />

de violência que não se explica bem qual seja, aquela velha utopia acalentada<br />

secretamente <strong>por</strong> todos nós de uma sociedade sem governo, sem sanções, na qual<br />

os nossos oponentes se eva<strong>por</strong>arão como <strong>por</strong> milagre e o nosso individualismo<br />

latente possa se expandir ao infinito.<br />

Só assim, <strong>por</strong> um revolucionarismo teatral e romântico é que me explico, na falta<br />

de explicação melhor, a dramática resolução da classe teatral de devolver os “Sacis”<br />

distribuídos <strong>por</strong> este jornal. O ponto de partida, o pretexto, foi um editorial do<br />

57


“Estado”, julgado injusto e mesmo ofensivo em seus termos. Muito bem. Mas razões<br />

respondem-se com razões, palavras com palavras. Pelo menos parece ser essa a<br />

famosa teoria do diálogo, tão decantada <strong>por</strong> suas virtudes democráticas. Não vejo<br />

em que auxilie a solução do problema da censura o fato de se cortar contato com<br />

todos os que pensam diferentemente, nem de que modo o nosso teatro, ainda tão<br />

incipiente, possa dispensar o auxílio de qualquer órgão de imprensa. Auxílio que<br />

este jornal, posso testemunhar, foi sempre generoso em conceder. Para aqui vim<br />

como crítico de teatro em 1946, quando a bem dizer nem havia o que criticar, tão<br />

raras eram as representações, profissionais ou amadoras. Serei de intermediário<br />

quando alguns empresários solicitaram, em nome da classe, redução substancial<br />

nos anúncios de teatro, no que foram prontamente atendidos, não como um favor<br />

feito, mas como um benefício prestado prazerosamente à cultura do País. Assisti ao<br />

nascimento do “Saci”, o primeiro da longa série de prêmios teatrais instituídos em<br />

São Paulo. Posso dizer, com pleno conhecimento de causa, da liberdade de opinião<br />

outorgada pela direção nos seus críticos de teatro, <strong>por</strong>que somos três, como não se<br />

ignora: um, para o noticiário, um segundo para a crítica do dia, um terceiro para<br />

reflexões subsequentes. Toda esta atenção especial dedicada ao teatro foi<br />

esquecida, jogada fora, através de um gesto de desafio que só pode significar – se<br />

é que tem algum sentido que não seja o de um simples desabafo emocional – um<br />

rompimento definitivo. A classe teatral, ao fazê-lo, teve a gentileza de ressalvar o<br />

meu nome. Agradeço mas não aceito a exclusão. As ideias que tenho e <strong>por</strong>ventura<br />

possa vir a ter sobre a censura ou sobre o teatro paulista em nada se alterarão com<br />

o incidente. Mas não quero me omitir em assunto de tal delicadeza. No dia em que<br />

os atores e autores depositarem os seus “Sacis” à <strong>por</strong>ta deste jornal, aproveitarei a<br />

o<strong>por</strong>tunidade para depositar também a minha função de crítico de teatro. Se não<br />

querem saber de nós, o que podemos fazer?<br />

58


7. Bibliografia<br />

Livros, dissertações e teses<br />

BERNSTEIN, ANA. A crítica cúmplice - <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong> e a formação do teatro<br />

brasileiro moderno. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2005.<br />

COSTA, Cristina. Censura em cena. São Paulo: EDUSP e Imprensa Oficial, 2006.<br />

EAGLETON, Terry. A função da crítica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1991.<br />

FARIA. João Roberto. <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>: um homem de teatro. São Paulo:<br />

EDUSP, 1997.<br />

FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contem<strong>por</strong>âneas. São Paulo: Editora Perspectiva,<br />

2010.<br />

GARCIA, Maria Cecília. Reflexões sobre a crítica teatral nos jornais: <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong><br />

<strong>Prado</strong> e o problema da apreciação da obra artística no jornalismo cultural. São Paulo:<br />

Editora Mackenzie, 2004.<br />

GUINSBURG, J, FARIA, João Roberto e LIMA, Mariangela Alves de Lima. Dicionário do<br />

teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Editora Perspectiva e Edições<br />

SESC SP, 2009.<br />

HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: O breve século XX 1914- 1991. 2ed. São Paulo:<br />

Editora Companhia <strong>das</strong> letras, 2007.<br />

LORENZOTTI, Elizabeth de Souza. Do artístico ao jornalístico: vida e morte de um<br />

suplemento – Suplemento literário de O Estado de S. Paulo (1956 a 1974). São Paulo:<br />

Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2002. Dissertação de<br />

Mestrado em Jornalismo.<br />

MAGALDI, Sábato. Depois do espetáculo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.<br />

Perspectiva, 2010.<br />

. Moderna dramaturgia brasileira. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010.<br />

.<strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>: dramaturgia e encenações. São Paulo. Editora<br />

59


.O texto no teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008.<br />

MAGALDI, Sábato e VARGAS, Maria Thereza. Cem anos de teatro em São Paulo. São<br />

Paulo: Editora Senac, 2001.<br />

MAGNO, Maria Ignês Carlos. Revista clima: a crítica num tempo de homens partidos.<br />

São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 1992. Dissertação de mestrado em história.<br />

MARTINS, Maria Helena (org.). Rumos da crítica. 2 ed. São Paulo: Editora Senac, 2000.<br />

RODRIGUES, <strong>Nelson</strong>. <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>: Teatro completo – volume único; organização<br />

geral e prefácio Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993.<br />

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008.<br />

PIZA, Daniel. Jornalismo cultural. 2 ed. São Paulo: Editora Contexto, 2004.<br />

PONTES, Heloísa. Destinos mistos. São Paulo: Companhia <strong>das</strong> letras, 1998.<br />

PRADO, <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong>. Apresentação do teatro brasileiro moderno. São Paulo:<br />

Editora Perspectiva, 2001.<br />

Artigos<br />

. Exercício findo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.<br />

. História concisa do teatro brasileiro: 1570-1908. São Paulo: EDUSP, 2003.<br />

. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.<br />

. Teatro em progresso. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.<br />

ARÊAS, Vilma. A crítica viva de <strong>Décio</strong> de <strong>Almeida</strong> <strong>Prado</strong>. Revista USP, São Paulo,<br />

n. 30, p. 308 a 312, junho/agosto 1996.<br />

BRANCO, Carlos Castello. Dorotéia in <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>: teatro completo. Rio de<br />

Janeiro: Editora Nova Aguillar, 2003.<br />

CANDIDO, Antonio. A aprendizagem do crítico. Folha de S. Paulo. São Paulo,<br />

Caderno Mais!, p. 13, 17 de fevereiro 2002.<br />

60


FERNANDES, Michel. A crítica teatral jornalística: qual seu papel? Jornal de teatro,<br />

São Paulo, n. 11, p. 13, 15 a 30 de setembro de 2009.<br />

MOSTAÇO, E. Costuras de um vestido in <strong>Nelson</strong> <strong>Rodrigues</strong>: teatro completo. Rio<br />

de Janeiro: Editora Nova Aguillar, 2003.<br />

61

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