Resenha Revista Arquipélago – por Felipe Pimentel - Mario & Diana ...
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Psicanálise na Terra do Nunca <strong>–</strong> <strong>Diana</strong> e Mário Corso<br />
<strong>por</strong> <strong>Felipe</strong> Garrafiel <strong>Pimentel</strong><br />
O debate central em torno da teoria do conhecimento é a forma como acessamos a realidade. Milhares de<br />
debates são travados desde os gregos entre os “realistas” e os “céticos”, nos quais os primeiros defendiam<br />
nosso acesso imediato e límpido ao real, enquanto os últimos duvidavam desta possibilidade. Em tempos<br />
mais recentes, surgiram os “idealistas” defendendo que construímos a realidade e seus defensores tímidos, os<br />
“perspectivistas”.<br />
O mais interessante é que o assunto parece aborrecido e pernóstico (ainda mais se incluíssemos o termo<br />
“epistemologia”), mas é fato cotidiano e premente. Desde fundamentações científicas, passando <strong>por</strong> debates<br />
sobre o trânsito e chegando a discussões de casais ou amigos, os impasses sobre nosso acesso à realidade se<br />
colocam.<br />
Na área das ciências da mente, poucas vezes vemos este debate ser travado. Mas ela é premissa para a<br />
fundamentação de todo o restante de uma teoria psicológica. Para os psicólogos cognitivistas, nossas<br />
emoções e outras coisas se atravessam na frente da realidade e a podem deturpar, mas isso pode ser<br />
rearranjado. São crenças disfuncionais à realidade. Ou seja, em última instância, se acredita poder ordenar<br />
uma compreensão adequada do real.<br />
Para os psicanalistas, a realidade não corresponde à realidade psíquica. A diferença em relação aos<br />
cognitivistas é que a realidade efetiva não interessa, tampouco devemos adequar a psíquica àquela, i.e.,<br />
fantasiamos sobre a realidade: é algo que está interposto entre o indivíduo e o real. Ela deforma, corrige,<br />
entorta, organiza e bagunça todos os eventos da realidade dentro de uma lógica possível muitas vezes irreal<br />
(os eventos da realidade não são encadeados) ou através de substituição de elementos (as coisas não<br />
representam efetivamente nada senão elas mesmas). Este processo define quais são as funções do<br />
inconsciente: traçar uma narrativa de encadeamento ou substituição dos objetos, das pessoas e dos fatos do<br />
mundo. Toda narrativa é fantasiosa, não somente <strong>por</strong>que a vida é randômica, mas <strong>por</strong>que é impossível traçar<br />
todos os fatos envolvidos numa história humana. É engraçado perceber como os ditos obsessivos se<br />
aborrecem em tentar retraçar todos os mínimos detalhes de uma história a fim de serem mais verídicos. Eis<br />
<strong>por</strong> que o Dr. Freud ouvia seus pacientes para, através de suas narrativas fantasiosas, desvendar as tramas de<br />
seus inconscientes. Juntando as premissas apresentadas, descobrimos que, para os psicanalistas, estamos<br />
fantasiando boa parte da vida. Quer dizer, o que é tomado na Filosofia como verdade (ou seja, acesso ao<br />
real), para os psicanalistas tem estrutura de ficção. As “verdadeiras” ficções presentes na literatura e nas artes<br />
em geral tornam-se um lugar de reconhecimento para todos nós que nos identificamos com personagens com<br />
determinados papéis (rígidos ou difusos) e histórias mais ou menos encadeadas que determinam seu destino,<br />
de forma que o pressuposto para nos identificarmos a eles seja que eles dizem algo de nós <strong>–</strong> suas angústias,<br />
afetos e frustrações <strong>–</strong> que pode ser compartilhado. Isto é a base na qual se assenta a psicanálise, todas as<br />
outras concepções na área possuem diferentes formulações entre as diversas correntes.<br />
É assim que devemos receber o livro “Psicanálise na Terra do Nunca”, de <strong>Mario</strong> Corso e <strong>Diana</strong> Corso.<br />
Psicanalistas reconhecidos, primeiramente, <strong>por</strong> sua sólida experiência clínica e também <strong>por</strong> seu trabalho na<br />
“formação” de estudantes e analistas na Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), e,<br />
posteriormente, <strong>por</strong> seu livro intitulado “Fadas no Divã”. Após estudarem o imaginário majoritariamente<br />
infantil (se é que essa distinção pode ser feita em Psicanálise) em Fadas no divã, Psicanálise na Terra do<br />
Nunca se dedica à análise do imaginário contem<strong>por</strong>âneo mais variado representado na literatura, no cinema e<br />
na televisão.<br />
Os autores atravessam com muita coragem, criatividade e, acima de tudo, singeleza desde os<br />
recentes Shrek, Os Incríveis e Simpsons, passando pelos já consolidados Mary Poppins, História sem<br />
fim e Rei Leão, atingindo os clássicos Frankenstein e O apanhador no campo de centeio. Ainda sobre espaço<br />
para analisar Virginia Woolf, filmes de terror adolescentes, vampiros crepusculares e até propagandas de<br />
“família-margarina1”. Privilegiando problemáticas típicas à Psicologia e à Psicanálise, como a família, a<br />
maternidade e a paternidade, <strong>Diana</strong> e Mário Corso desvendam os simbolismos subjacentes aos personagens e<br />
tramas, e interpretam os traços nos quais nos identificamos com estas histórias.<br />
A escolha da terra do nunca como título é também um mote: entre todos os mundos fantasiosos criados,<br />
alertam-nos os autores na Introdução, há uma série de regras estabelecidas que ofereceria certa<br />
“verossimilhança interna” ao mundo criado, ainda que fantasioso. Na Terra do Nunca não: ela possui a<br />
característica de ser um mundo fantasioso sem leis e cenários pré-estabelecidos e construída singularmente.<br />
No texto: “A terra do nunca (...) como lugar imaginário (...) é de caráter pessoal e intransferível, pois cada<br />
criança tem a sua.” A maleabilidade da terra do nunca é a maleabilidade da fantasia própria de cada um.
Uma dezena de autores vem contribuir: além dos óbvios Freud, Winnicott e Lacan, antropólogos como Lévi-<br />
Strauss e Geertz, psicólogos como Spitz e Piaget, sociólogos como Norbert Elias e Lipovetsky, literatos<br />
como Ricardo Piglia e Tolkien , os historiadores são Hobsbawm e Darnton, mitólogos como Mircea Eliade, e<br />
até ícones do feminismo como Simone de Beauvoir e Betty Friedan <strong>–</strong> tudo isso, sem esquecer de Bruno<br />
Bettelheim, o inovador autor de Psicanálise dos contos de fadas.<br />
A bibliografia, vê-se, é extensa, e ainda que não haja grandes surpresas nela, visto que não aparecem autores<br />
muito distantes dos esperados, eles não são repetidos em suas interpretações, mas servem mais para<br />
instrumentalizá-los nas interpretações propostas. Melhor: nenhum dos célebres jargões é utilizado, tampouco<br />
a insistente obscuridade de muitos textos psicanalíticos.<br />
Temas da ordem do dia na área são tratados, mesmo os mais clichês, com inventividade ou profundidade<br />
psicológica: a desorganização da família, a reconfiguração da masculinidade, a demanda contem<strong>por</strong>ânea da<br />
feminilidade, entre outros. Há de se marcar que a visão dos autores diante destes fatos, majoritária em nossos<br />
tempos, é progressista (veja-se que até Betty Friedan vem para alicerçar em alguns casos).<br />
Não suficiente, a edição (seguindo uma trilha nas últimas edições da ArtMed na área) é belíssima, cuidadosa<br />
e delicada; a escrita é fluida, clara, mas ao mesmo tempo profunda; e há a possibilidade de degustá-lo aos<br />
poucos com a leitura aleatória de capítulos (2).<br />
O ponto alto do livro é a originalidade e audácia das interpretações, especialmente vindo de psicanalistas:<br />
todos aqueles tradicionais equívocos de “psicanalisar” autores ou definir tudo em termos de um só conceito<br />
freudiano ficaram de fora, cedendo lugar a análises polissêmicas do que podem representar estes personagens<br />
tão diferentes. Assim, configura-se o livro como uma obra muito acima das tradicionais publicações em<br />
Psicologia e Psicanálise no Brasil. É um desafio, e também um estímulo.<br />
Mais ainda, para além de oferecer ferramentas psicológicas ou psicanalíticas para interpretar a literatura ou o<br />
cinema, <strong>Diana</strong> e Mário Corso traçam caminhos e descaminhos nos quais podemos, ao interpretar o que nos<br />
toca e rodeia, desvelar um tanto de nós mesmos. Pois como diria Descartes <strong>–</strong> logo ele, o racionalista <strong>–</strong><br />
também há “essências fictícias”.<br />
1 No livro, famílias-maionese.<br />
2 Não quando se tem o dever de resenhá-lo.<br />
<strong>Resenha</strong> Publicada na <strong>Revista</strong> Norte (Editora <strong>Arquipélago</strong>, 2011)