Pesquisa e organização: Prof. Coord. Elizabete Herling ... - forpedi
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Ilustração: Ionit Ziberma<br />
<strong>Pesquisa</strong> e <strong>organização</strong>: <strong>Prof</strong>. <strong>Coord</strong>. <strong>Elizabete</strong> <strong>Herling</strong><br />
1
Caixinha Mágica<br />
Roseana Murray<br />
Fabrico uma caixa mágica<br />
para guardar o que não<br />
cabe em nenhum lugar:<br />
Vampi & O Presente Mágico<br />
Regina Drummond<br />
a minha sombra<br />
em dias de muito sol,<br />
o amarelo que sobra<br />
do girassol,<br />
um suspiro de beija-flor,<br />
invisíveis lágrimas de amor.<br />
Fabrico a caixa com vento,<br />
palavras e desequilíbrio<br />
e, para fechá-la<br />
com tudo o que leva dentro,<br />
basta uma gota de tempo.<br />
O que é que você quer<br />
esconder na minha caixa?<br />
Roseana Murray, autora deste poema, já<br />
escreveu mais de 40 livros, entre eles Receitas de<br />
Olhar (Ed. FTD) e Kira (Ed. Abacatte).<br />
Vampi, a vampira chique e cheia de imaginação, morava numa casinha em cima de uma árvore. Um dia, ela<br />
ganhou de presente um carro conversível rosa-choque.<br />
Vampi montou, acelerou com força e buzinou forte - Fon-fon!<br />
O carro furou o ar e sumiu pelo mundo afora.<br />
Vampi viu um trem grande e comprido, viu ônibus pequenos e curtos.<br />
Viu prédios cinzentos, viu casas coloridas.<br />
Viu ruas com gente apressada e becos onde só tinha fantasma, uh...<br />
Viu gente, bicho, planta.<br />
Redondo, quadrado, oval e retangular.<br />
Viu o céu, viu o mar, viu a montanha.<br />
Azul e violeta, laranja e vermelho, verde em mil tons.<br />
Viu nuvens brancas, apertou um botão e voou.<br />
Os pássaros passavam pertinho e tudo era pequenininho, lá embaixo...<br />
Vampi só ria, fazendo bi-bi, fon-fon e pedalando, pedindo passagem para as estrelas, que eram maiores do<br />
que ela, vejam só!<br />
De olho na volta, procurou um lugar para aterrissar, mas, ao ajeitar o cabelo, errou o alvo e caiu no mar.<br />
Opa! Apertou outro botão, o carrinhoavião virou navio, flutuou, começou a afundar e já era um submarino,<br />
2
quase um peixe, nadando no meio das algas e dos corais...<br />
Um peixe olhou para ela, dois peixes, três, quatro, cinco, mil, um cardume inteiro, quantos peixes são?<br />
Nem deu tempo de contar. Devagarinho, o submarino subiu, virou navio, flutuou, virou avião, pousou e<br />
virou carrinho outra vez, parando ao pé da sua árvore. Na mesma hora, nasceram seis patas no lugar das<br />
rodas, e ele virou uma aranha, que subiu pelo tronco até alcançar os altos galhos cheios de folhas...<br />
Atravessando-os como se fosse um fantasma, levou Vampi de volta para casa.<br />
"Puxa, meu carro é mágico!" - disse ela, encantada, saindo por cima, sem abrir a porta. Mas logo mudou de<br />
ideia: sentando-se outra vez no seu carrinho rosa-choque, Vampi riu, sonhando com a próxima aventura.<br />
Regina Drummond, autora deste conto, é escritora de livros infanto-juvenis, tradutora e contadora de<br />
histórias. Escreveu Sete Histórias do Mundo Mágico (Ed. Devir), Eu, Bruxa (Ed. Saraiva) e Andersen e Suas<br />
Estórias (Ed. Ave Maria), entre outras obras.<br />
Dona Cotinha, Tom e Gato Joca<br />
Cléo Busatto<br />
Em frente à minha casa tem outra casa, pequena, de madeira, azul com janelas brancas. Está no fim de um<br />
terreno enorme com muitas árvores. Para mim aquilo é o que chamam de floresta. Tom diz que é um quintal.<br />
Ali mora dona Cotinha, uma velhinha que tem cabelos lilás e dirige um Fusquinha vermelho. Esse passou a<br />
ser meu esconderijo. Dona Cotinha sempre aparece com um prato de comida. Diz:<br />
- Vem, gatinho. Olha só o que eu trouxe para você.<br />
Sou premiado com sardinha fresca, atum, macarrão. Tenho engordado além da conta. Dia desses estava<br />
tomando sol e ouvi o Tom me chamar. O danado sentiu meu cheiro e descobriu meu segredo. Ele estava no<br />
portão quando chegou dona Cotinha, no seu Fusquinha.<br />
- Bom dia, menino - disse ela. Já que está em frente à minha casa, faça uma gentileza e abra o portão.<br />
Tom obedeceu. Dona Cotinha afagou minha cabeça e perguntou:<br />
- Este gatinho é seu?<br />
- Sim, senhora.<br />
- Ele é muito educado.<br />
- Obrigado - disse eu, na minha voz de gato.<br />
- No primeiro dia que o vi por aqui, ele entrou na casa e cheirou tudo. Agora, sempre deixo uma comidinha<br />
para ele!<br />
- Ah! Mas o Joca não come comida de gente, não, senhora. Só come ração - disse o Tom.<br />
- Come, sim, meu filho. E come de tudo.<br />
Dona Cotinha acabava de denunciar minha gula e o aumento de peso. Continuou:<br />
- Passe aqui no fim da tarde. Faço um bolo de fubá com cobertura de chocolate que é de dar água na boca.<br />
Com água na boca fiquei eu. Naquela tarde voltamos à casa de dona Cotinha. Ela foi logo mostrando pro<br />
Tom uma coleção de carrinhos antigos. Era do filho dela, que morreu bem pequeno. Depois nos levou para<br />
uma sala repleta de livros. Tom ficou de boca aberta e perguntou:<br />
3
- A senhora já leu todos esses livros?<br />
- Praticamente todos. Ler foi minha diversão, meu bom vício. Infelizmente meus olhos não ajudam mais.<br />
Essa pilha que você está vendo aqui ainda nem foi tocada.<br />
Tom começou a ler em voz alta, e sua voz encheu a sala de seres fantásticos. O tempo parou.<br />
Desse dia em diante, à tardinha, eu e Tom tínhamos uma missão. Abrir os livros de dona Cotinha e deixar os<br />
personagens passearem pela casa mágica, no meio da floresta da cidade de pedra.<br />
Cléo Busatto, autora deste conto, é escritora e contadora de histórias.<br />
Viva a Paz!<br />
Tatiana Belinky<br />
Dois gatinhos assanhados<br />
se atracaram, enfezados.<br />
A dona se irritou<br />
e a vassoura agarrou!<br />
E apesar do frio, na hora,<br />
os varreu porta afora,<br />
bem no meio do inverno,<br />
com um frio "do inferno"!<br />
Os gatinhos, assustados,<br />
se encolheram, já gelados,<br />
junto à porta, no jardim,<br />
aguardando o triste fim!<br />
De terror acovardados,<br />
os dois gatinhos, coitados,<br />
não puderam nem miar,<br />
lamentando tanto azar!<br />
Sem ouvir nenhum miado,<br />
a dona, por seu lado,<br />
dos gatinhos teve dó,<br />
e a porta abriu de uma vez só!<br />
Mesmo estando tão gelados,<br />
os dois gatinhos arrepiados<br />
Zás! Bem junto do fogão<br />
surgem, sem reclamação!<br />
E a dona comentou:<br />
tanto faz quem começou!<br />
Uma encrenca boba assim<br />
bom é que tenha logo um fim!<br />
E ela acrescentou, então,<br />
não querem brigar mais, não?<br />
E os gatinhos, enroscados,<br />
esqueceram da briga, aliviados.<br />
Confortados, no quentinho,<br />
com sossego e com carinho,<br />
dormem bem, bichos queridos,<br />
já da briga esquecidos.<br />
Tatiana Belinky, adaptadora desta cancão<br />
popular inglesa, é escritora e tradutora. Tem mais<br />
de 100 livros publicados. Em 1989, ganhou o<br />
Prêmio Jabuti por sua trajetória literária.<br />
4
Bruxas não existem<br />
Moacyr Scliar<br />
Quando eu era garoto, acreditava em bruxas, mulheres malvadas que passavam o tempo todo maquinando<br />
coisas perversas. Os meus amigos também acreditavam nisso. A prova para nós era uma mulher muito<br />
velha, uma solteirona que morava numa casinha caindo aos pedaços no fim de nossa rua. Seu nome era Ana<br />
Custódio, mas nós só a chamávamos de "bruxa".<br />
Era muito feia, ela; gorda, enorme, os cabelos pareciam palha, o nariz era comprido, ela tinha uma enorme<br />
verruga no queixo. E estava sempre falando sozinha. Nunca tínhamos entrado na casa, mas tínhamos a<br />
certeza de que, se fizéssemos isso, nós a encontraríamos preparando venenos num grande caldeirão.<br />
Nossa diversão predileta era incomodá-la. Volta e meia invadíamos o pequeno pátio para dali roubar frutas e<br />
quando, por acaso, a velha saía à rua para fazer compras no pequeno armazém ali perto, corríamos atrás dela<br />
gritando "bruxa, bruxa!".<br />
Um dia encontramos, no meio da rua, um bode morto. A quem pertencera esse animal nós não sabíamos,<br />
mas logo descobrimos o que fazer com ele: jogá-lo na casa da bruxa. O que seria fácil. Ao contrário do que<br />
sempre acontecia, naquela manhã, e talvez por esquecimento, ela deixara aberta a janela da frente. Sob<br />
comando do João Pedro, que era o nosso líder, levantamos o bicho, que era grande e pesava bastante, e com<br />
muito esforço nós o levamos até a janela. Tentamos empurrá-lo para dentro, mas aí os chifres ficaram presos<br />
na cortina.<br />
- Vamos logo - gritava o João Pedro -, antes que a bruxa apareça. E ela apareceu. No momento exato em<br />
que, finalmente, conseguíamos introduzir o bode pela janela, a porta se abriu e ali estava ela, a bruxa,<br />
empunhando um cabo de vassoura. Rindo, saímos correndo. Eu, gordinho, era o último.<br />
E então aconteceu. De repente, enfiei o pé num buraco e caí. De imediato senti uma dor terrível na perna e<br />
não tive dúvida: estava quebrada. Gemendo, tentei me levantar, mas não consegui. E a bruxa, caminhando<br />
com dificuldade, mas com o cabo de vassoura na mão, aproximava-se. Àquela altura a turma estava longe,<br />
ninguém poderia me ajudar. E a mulher sem dúvida descarregaria em mim sua fúria.<br />
Em um momento, ela estava junto a mim, transtornada de raiva. Mas aí viu a minha perna, e<br />
instantaneamente mudou. Agachou-se junto a mim e começou a examiná-la com uma habilidade<br />
surpreendente.<br />
- Está quebrada - disse por fim. - Mas podemos dar um jeito. Não se preocupe, sei fazer isso. Fui enfermeira<br />
muitos anos, trabalhei em hospital. Confie em mim.<br />
Dividiu o cabo de vassoura em três pedaços e com eles, e com seu cinto de pano, improvisou uma tala,<br />
imobilizando-me a perna. A dor diminuiu muito e, amparado nela, fui até minha casa. "Chame uma<br />
ambulância", disse a mulher à minha mãe. Sorriu.<br />
Tudo ficou bem. Levaram-me para o hospital, o médico engessou minha perna e em poucas semanas eu<br />
estava recuperado. Desde então, deixei de acreditar em bruxas. E tornei-me grande amigo de uma senhora<br />
que morava em minha rua, uma senhora muito boa que se chamava Ana Custódio.<br />
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Moacyr Scliar, autor desta crônica, é escritor e tem mais de 70 livros publicados. Ganhou o Prêmio Jabuti<br />
quatro vezes e é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).<br />
Um problema difícil<br />
Pedro Bandeira<br />
Era um problema dos grandes. A turminha reuniu-se para discuti-lo e Xexéu voltou para casa preocupado.<br />
Por mais que pensas se, não atinava com uma solução. Afinal, o que poderia ele fazer para resolver aquilo?<br />
Era apenas um menino!<br />
Xexéu decidiu falar com o pai e explicar direitinho o que estava acontecendo. O pai ouviu calado, muito<br />
sério, compreendendo a gravidade da questão. Depois que o garoto saiu da sala, o pai pensou um longo<br />
tempo. Era mesmo preciso enfrentar o problema. Não estava em suas mãos, porém, resolver um caso tão<br />
difícil.<br />
Procurou o guarda do quarteirão, um sujeito muito amigo que já era conhecido de todos e costumava sempre<br />
dar uma paradinha para aceitar um cafezinho oferecido por algum dos moradores.<br />
O guarda ouviu com a maior das atenções. Correu depois para a delegacia e expôs ao delegado tudo o que<br />
estava acontecendo.<br />
O delegado balançou a cabeça, concordando. Sim, alguma coisa precisava ser feita, e logo! Na mesma hora,<br />
o delegado passou a mão no telefone e ligou para um vereador, que costumava sensibilizar-se com os<br />
problemas da comunidade.<br />
Do outro lado da linha, o vereador ouviu sem interromper um só instante. Foi para a prefeitura e pediu uma<br />
audiência ao prefeito. Contou tudo, tintim por tintim. O prefeito ouviu todos os tintins e foi procurar um<br />
deputado estadual do mesmo partido para contar o que havia.<br />
O deputado estadual não era desses políticos que só se lembram dos problemas da comunidade na hora de<br />
pedir votos. Ligou para um deputado federal, pedindo uma providência urgente. O deputado federal ligou<br />
para o governador do estado, que interrompeu uma conferência para ouvi-lo.<br />
O problema era mesmo grave, e o governador voou até Brasília para pedir uma audiência ao ministro.<br />
O ministro ouviu tudinho e, como já tinha reunião marcada com o presidente, aproveitou e relatou-lhe o<br />
problema.<br />
O presidente compreendeu a gravidade da situação e convocou uma reunião ministerial. O assunto foi<br />
debatido e, depois de ouvir todos os argumentos, o presidente baixou um decreto para resolver a questão de<br />
uma vez por todas.<br />
Aliviado, o ministro procurou o governador e contou-lhe a solução. O governador então ligou para o<br />
deputado federal, que ficou muito satisfeito. Falou com o deputado estadual, que, na mesma hora, contou<br />
tudo para o prefeito. O prefeito mandou chamar o vereador e mostrou-lhe que a solução já tinha sido<br />
encontrada.<br />
O vereador foi até a delegacia e disse a providência ao delegado. O delegado, contente com aquilo, chamou<br />
o guarda e expôs a solução do problema. O guarda, na mesma hora, voltou para a casa do pai do Xexéu e,<br />
depois de aceitar um café, relatou-lhe satisfeito que o problema estava resolvido.<br />
O pai do Xexéu ficou alegríssimo e chamou o filho.<br />
6
Depois de ouvir tudo, o menino arregalou os olhos:<br />
- Aquele problema? Ora, papai, a gente já resolveu há muito tempo!<br />
Pedro Bandeira, autor deste conto, é escritor. Ganhou o Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro Infantil<br />
em 1986 com O Fantástico Mistério de Feiurinha (Ed. FTD).<br />
Se Eu Fosse Esqueleto<br />
Ricardo Azevedo<br />
Se eu fosse esqueleto não ia poder tomar água nem suco porque ia vazar tudo e molhar a casa inteira.<br />
Tirando isso, ia acordar e pular da cama feliz como um passarinho.<br />
É que ser uma caveira de verdade deve ser muito divertido.<br />
Por exemplo. Faz de conta que um banco está sendo assaltado. Aqueles bandidões nojentões, mauzões,<br />
armados até os dentões, berrando:<br />
- Na moral! Cadê a grana?<br />
Se eu fosse esqueleto, entrava no banco e gritava: bu!<br />
Bastaria um simples bu e aquela bandidagem ia cair dura no chão, com as calças molhadas de úmido pavor.<br />
O gerente e os clientes do banco iam agradecer e até me abraçar, só um pouco, mas tenho certeza de que<br />
iam.<br />
Se eu fosse caveira, de repente vai ver que eu ia ser considerado um grande herói.<br />
Fora isso, um esqueleto perambulando na rua em plena luz do dia causaria uma baita confusão. O povo<br />
correndo sem saber para onde, sirenes gemendo, gente que nunca rezou rezando, o Exército batendo em<br />
retirada, aquele mundaréu desesperado e eu lá, todo contente, assobiando na calçada.<br />
Um repórter de TV, segurando o microfone, até podia chegar para me entrevistar:<br />
- Quem é você?<br />
E eu:<br />
- Sou um esqueleto.<br />
E o repórter:<br />
- O senhor fugiu do cemitério?<br />
Aí eu fingia que era surdo:<br />
- Ser mistério?<br />
E o repórter, de novo, mais alto:<br />
- O senhor fugiu do cemitério?<br />
- Assumiu no magistério?<br />
- Cemitério!<br />
- Fala sério? Quem?<br />
Aí o repórter perdia a paciência:<br />
- O senhor é surdo?<br />
7
E eu:<br />
- Claro que sou! Não está vendo que não tenho nem orelha?<br />
Se eu fosse esqueleto talvez me levassem para a aula de Biologia de alguma escola. Já imagino eu lá parado<br />
e o professor tentando me explicar osso por osso, dente por dente, dizendo que os esqueletos são uma<br />
espécie de estrutura que segura nossas carnes, órgãos, nervos e músculos.<br />
Fico pensando nas perguntas e nos comentários dos alunos:<br />
- Como ele se chamava?<br />
- É macho ou fêmea?<br />
- Quantos anos ele tem?<br />
- Tem ou tinha?<br />
- Magrinho, não?<br />
- O cara sabia ler ou era analfabeto?<br />
- E a família dele?<br />
- Era rico ou pobre?<br />
- O coitado está rindo de quê?<br />
E ainda:<br />
- <strong>Prof</strong>essor, ele era careca?<br />
Enquanto isso, eu lá, no meio da aula, com aquela cara de caveira, sem falar nada para não assustar os<br />
alunos e matar o professor do coração.<br />
Uma coisa é certa. Deve ser muito bom ser esqueleto quando chega o Carnaval. Aí a gente nem precisa se<br />
fantasiar. Pode sair de casa numa boa, cair no samba, virar folião e seguir pela rua dançando, brincando e<br />
sacudindo os ossos. Parece mentira, mas, no Carnaval, porque é tudo brincadeira, a gente sempre acaba<br />
sendo do jeito que a gente é de verdade.<br />
Se eu fosse esqueleto, quando chegasse o Carnaval, ia sair cantando:<br />
Quando eu morrer<br />
Não quero choro nem vela<br />
Quero uma fita amarela<br />
Gravada com o nome dela<br />
Todo mundo sabe que o maior amigo do homem é o cachorro.<br />
O que a maioria infelizmente desconhece e a ciência moderna esqueceu de pesquisar é que o pior inimigo do<br />
esqueleto late, morde, abana o rabo, carrega pulgas e aprecia fazer xixi no poste.<br />
E se eu fosse esqueleto e por acaso um vira-lata me visse na rua, corresse atrás de mim e fugisse com algum<br />
osso dos meus?<br />
Ricardo Azevedo, autor deste conto, é escritor e ilustrador. Já escreveu mais de 100 livros para crianças e<br />
jovens, entre eles Trezentos Parafusos a Menos (Ed. Companhia das Letrinhas) e Contos de Espanto e<br />
Alumbramento (Ed. Scipione). É ganhador de vários prêmios, entre eles o Jabuti, que venceu cinco vezes.<br />
Acontece para quem acredita - Edy Lima<br />
Ilustração: Joana Lira<br />
8
Era um jovem pescador muito pobre, que vivia sozinho numa praia distante. Tinha um pequeno barco em<br />
que saía à noite para pescar e, no dia seguinte, vendia os peixes no povoado mais próximo. Certa vez uma<br />
onda enorme tragou o barquinho, mas, na manhã seguinte, acordou em sua cabana miserável e viu que tudo<br />
era como sempre tinha sido. Veio à sua lembrança uma bela moça que o socorrera em meio às águas e o<br />
carregara para seu palácio no fundo do mar. Nesse momento, riu de si mesmo e disse alto:<br />
- Você sonhou com a Mãe D’Água. Foi só.<br />
Levantou-se para ir tomar água, sua garganta queimava de sede. Quando ergueu a caneca para beber viu um<br />
anel brilhando em seu dedo.<br />
- Que é isso?<br />
De repente se lembrou de uma cerimônia em que ele recebera aquele anel, no palácio no fundo do mar.<br />
Uma coisa dessas não podia ter acontecido. Mas o anel continuava um mistério.<br />
Em seguida sentiu uma dúvida terrível: e se estivesse morto?<br />
O jeito era se olhar no espelho, pois ouvira contar que fantasmas não refletem imagem. Claro que era tão<br />
pobre que nem tinha espelho em casa.<br />
E se quando fosse vender o peixe no povoado, se olhasse no espelho da barbearia?<br />
Será que tinha pescado alguma coisa? Só se lembrava daquela onda gigante que engolira seu barco. Correu<br />
até a praia e não viu o barco. Quem estava lá era a linda moça que o salvara na hora do naufrágio.<br />
Ela sorriu e disse:<br />
- Você não quis ficar na minha casa, vim morar na sua, afinal agora somos casados. Disse isso e estendeu a<br />
mão para ele.<br />
Ele viu então que ela usava um anel igual ao que brilhava em seu dedo.<br />
Respondeu:<br />
- Venha.<br />
Caminharam abraçados e, ao chegarem ao lugar onde ficava a cabana, ela não existia mais. Lá, agora,<br />
erguia-se um palácio e havia gente entrando e saindo.<br />
A moça disse:<br />
- É o meu povo das águas.<br />
De repente, ele notou que estava vestido com roupas luxuosas em vez dos trapos de antes.<br />
Sem dúvida a Mãe D’Água o escolhera para marido e não havia força humana que pudesse mudar isso.<br />
Viveram felizes por algum tempo. Mas, se ele não tinha gostado de morar no palácio no fundo do mar, ela<br />
começou a se cansar de viver em terra firme.<br />
Ficava horas diante do mar rodeada por seu povo das águas. O palácio permanecia abandonado. Ninguém<br />
cuidava de nada, tudo era deixado na maior desordem.<br />
Um dia ele pronunciou as palavras fatais que ela o proibira de dizer em qualquer circunstância.<br />
- Arrenego o povo do mar!<br />
Era o que todos esperavam para voltar às profundezas do oceano. Suas palavras valeram como sinal para a<br />
9
debandada.<br />
A moça e todos os serviçais foram cantando para dentro do mar e sumiram nas águas.<br />
O pescador olhou para si mesmo e viu que suas roupas de luxo também tinham sumido. Estava outra vez<br />
vestido de trapos. Quando voltou para casa, só encontrou o casebre de antes, não havia nem rastro de algum<br />
palácio.<br />
Ao entardecer, sentiu saudades da Mãe D’Água e foi até a beira da praia. Lá estava seu velho barquinho,<br />
antes desaparecido. O pescador entrou nele e tomou o rumo do quebra-mar.<br />
De repente uma grande onda o envolveu e seu pensamento foi:<br />
- Será que tudo vai acontecer de novo?<br />
Conto de Edy Lima, ilustrado por Joana Lira<br />
Aconteceu na caatinga<br />
Clotilde Tavares<br />
Ilustração: Flavio Morais<br />
Era meio-dia e a caatinga brilhava à luz incandescente do Sol. O pequeno Calango deslizou rápido sobre o<br />
solo seco, cheio de gravetos e pedras, parando na frente do majestoso Mandacaru, que apontava para o céu<br />
seus espinhos, os grandes braços abertos em cruz.<br />
- Mandacaru! Mandacaru! Eu ouvi os homens conversando lá adiante e eles estavam dizendo que, como a<br />
caatinga está muito seca e cor de cinza, vão trazer do estrangeiro umas árvores que ficam sempre verdes<br />
quando crescem e estão sempre cheias de folhas.<br />
- Mas que novidade é essa? - falou a Jurema.<br />
- Coisa de gente besta - disse o Cardeiro, fazendo um muxoxo irritado e atirando espinhos para todo lado.<br />
- Eu é que não acredito nessas novidades - sussurrou o pequeno e tímido Preá.<br />
A velha Cobra, cheia de escamas de vidro e da idade do mundo, só fez balançar a cabeça de um lado para o<br />
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outro e, como se achasse que não valia a pena falar, ficou em silêncio.<br />
E no outro dia, bem cedinho, os homens já haviam plantado centenas de arvorezinhas muito agitadas,<br />
serelepes e faceiras, que falavam todas ao mesmo tempo na língua lá delas, reclamando de tudo: do Sol, da<br />
poeira, dos bichos e das plantas nativas, que elas achavam pobres, feias e espinhentas. Enquanto falavam,<br />
farfalhavam e balançavam os pequenos galhos, que iam crescendo, ganhando folhas e ficando cada vez mais<br />
fortes.<br />
Enquanto isso, as plantas da caatinga, acostumadas a viver com pouca água, começaram a notar que essa<br />
água estava cada vez mais difícil de encontrar. As raízes do Mandacaru, da Jurema e do Cardeiro cavavam,<br />
cavavam e só encontravam a terra seca e esturricada.<br />
O Calango então se reuniu com os outros bichos e plantas para encontrar uma solução. E foi a velha Cobra<br />
quem matou a charada:<br />
- Quem está causando a seca são essas plantinhas importadas e metidas a besta! Eu me arrastei por debaixo<br />
da terra e vi o que elas fazem: bebem toda a nossa água e não deixam nada para a gente.<br />
- Oxente! - gritou o Calango. - Então vou contar isso aos homens e pedir uma solução.<br />
Mas logo o Calango voltou, triste e decepcionado.<br />
- Os homens não me deram atenção - disse. - Falaram que eu não tenho instrução, não fiz universidade e que<br />
eu estou atrapalhando o progresso da caatinga.<br />
E todos os bichos e plantas ficaram tristes, mas estavam com tanta sede que nem sequer puderam chorar:<br />
não havia água para fabricar as lágrimas. Por muitos dias ficaram assim e quando estavam à beira da morte<br />
houve um movimento: era o Preá, que levantou o narizinho, farejou o ar e, esquecendo a timidez, gritou:<br />
- Estou sentindo cheiro de água!<br />
- É mesmo! - gritaram todos.<br />
- O que será que aconteceu? - perguntou a Jurema.<br />
- Eu vou ver o que foi - e o Calango saiu veloz, espalhando poeira para todos os lados.<br />
O Mandacaru estirou os braços, espreguiçou-se e sorriu:<br />
- Estou recebendo água de novo! Hum... É muito bom! Mas vejam! O Calango está de volta com novidades!<br />
E espichando meio palmo de língua de fora, morto de cansado pela carreira, o Calango contou tudo.<br />
- As pequenas bandidas verdes, depois de beber quase toda a água da caatinga, estavam ameaçando a água<br />
dos rios e dos açudes perto das cidades. Os homens então viram o perigo e deram fim a todas elas. Estamos<br />
salvos!<br />
E todos ficaram alegres, sentindo a água subir pelas raízes. Olharam para o céu azul da caatinga, aquele céu<br />
claro, o Sol brilhante, olharam uns para os outros e viram que eram irmãos, na mesma natureza, no mesmo<br />
tempo, na mesma Terra.<br />
E a velha Cobra, desenroscando-se toda lentamente, piscou o olho e concluiu:<br />
- É como dizia minha avó: cada macaco no seu galho!<br />
Conto de Clotilde Tavares, ilustrado por Flavio Morais<br />
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A gata apaixonada<br />
Ivan Jaf<br />
Ilustração: Andrea Ebert<br />
Quando perguntam como é que eu consegui sair com a Carla, eu respondo que foi por causa do Aldemir<br />
Martins. O pintor famoso.<br />
Eu estava, tranqüilo, estudando. Juro. Lá pelas 3 da tarde o telefone tocou. Era ela, a vizinha da casa 3.<br />
A mãe morreu há uns quatro anos. O pai é superciumento, não a deixa satir de casa nunca.<br />
- Oi, Rodrigo... Você tem um gato grande, malhado?<br />
- Tenho. O nome dele é Sorvete.<br />
- Sorvete?<br />
- Quando a gente encosta a mão, ele se derrete todo.<br />
- Ele briga com a minha gata, a Tati. Já aconteceu várias vezes. Acho que é ciúme.<br />
- De outro gato?<br />
- Não. De um quadro. Uma pintura. Do Aldemir Martins.<br />
Dez minutos depois eu estava na sala da casa dela. Só nós dois.<br />
- Você vai ver - ela disse.<br />
- É sempre na mesma hora. Já ouviu falar do Aldemir Martins?<br />
- Já. É um pintor famoso pra caramba. Mora aqui em São Paulo.<br />
- Morava. Morreu há pouco tempo. Minha mãe era apaixonada pela pintura dele. Ele ilustrava livros,<br />
revistas, jornais... Pintava cangaceiros, galos, passarinhos, peixes...<br />
12
- Tô sabendo. Desenhava até rótulos de maionese, de vinho...<br />
- Minha mãe comprava tudo que podia. A gente comia em pratos desenhados por ele, tinha lençóis, tapetes,<br />
cortina de banheiro...<br />
Carla me levou pra um canto da sala. Em cima de uma imitação de lareira, havia uma tela do Aldemir<br />
Martins, pequena, com o desenho de um gato. Um gato gordo, vermelho e azul, um focinho enorme,<br />
mostrando as garras, sedutor, os olhos verdes calmos, hipnóticos.<br />
- Minha mãe adorava esse quadro.<br />
Então ela me puxou pra trás de uma cortina pesada, que cobria a vidraça que dava pro jardim.<br />
Tati entrou na sala. Pulou pro beiral da falsa lareira e parou em frente ao quadro, olhando pro gato pintado.<br />
Ficamos assim uns 20 minutos, escondidos, calados. Até que ele apareceu. O velho Sorvete. O gato mais<br />
descolado do pedaço. Veio gingando, passou entre os móveis, parou na frente da lareira, olhou pro alto e não<br />
gostou nada do que viu.<br />
Carla segurou no meu braço.<br />
Sorvete pulou pro beiral.<br />
Briga de gato é mais rápido que videogame. Tati pulou, atravessou uma janela aberta e fugiu pro jardim,<br />
com o Sorvete atrás.<br />
- Minha mãe dizia que um artista é capaz de recriar a vida. Se Deus existe, com certeza é um artista. Mas<br />
acho que você vai ter de trancar o Sorvete em casa, Rodrigo. Não gostei daquilo.<br />
- Não, Carla. A gente encontra outro jeito. Pra mim as pessoas, os bichos, qualquer coisa que se mexa... têm<br />
de ter liberdade. Têm de ter uma janela aberta.<br />
- Mas o Sorvete é meio selvagem...<br />
- Isso. É assim que eu gosto dele. Eu também sou meio selvagem. Sabe o que eu faço? Eu como o tomate<br />
inteiro. Eu não fico esperando a minha mãe partir e colocar na salada!<br />
Ela riu. Não sei de onde eu tirei essa história do tomate. Aí me empolguei, e ia dar mais exemplos de como<br />
eu era selvagem, mas a cortina se abriu de repente e o pai dela apareceu.<br />
O cara ficou nervoso, quase chamou a polícia, mas depois a gente explicou, ele se arrependeu e acabou até<br />
deixando a filha sair comigo.<br />
Eu e a Carla estamos namorando. Juro.<br />
Conto de Ivan Jaf, ilustrado por Andrea Ebert<br />
13
A luva<br />
Foi nos tempos distantes do amor cortês. No reino medieval do rei Franz era dia de festa, e o ponto alto das<br />
festividades era a exibição de feras selvagens, trazidas de terras distantes, na arena do grande castelo. Em<br />
volta da arena erguiam-se as arquibancadas, encimadas por altos balcões onde brilhavam os nobres da corte,<br />
ao lado das belas damas faiscantes de jóias. Entre elas se destacava a donzela Cunegundes, tão rica e<br />
formosa quanto orgulhosa, e de pé ao seu lado estava o seu apaixonado adorador, o jovem cavaleiro<br />
Delorges, cujo amor ela desdenhava, distante e fria.<br />
Chegou a hora do início da função. A um sinal do rei, abriu-se a porta da primeira jaula, da qual saiu,<br />
majestoso, um feroz leão africano e, sacudindo a juba dourada, deitou-se na areia, preguiçoso. Abriu-se a<br />
segunda jaula, liberando um terrível tigre de Bengala, que encarou o leão com olhos ameaçadores e deitou-<br />
se também, tenso, como quem prepara um bote mortal. Em seguida, abriu-se a terceira jaula, da qual<br />
saltaram, quais enormes gatos negros, duas panteras de dentes arreganhados, deitando-se agachados e<br />
aumentando a tensão do ambiente.<br />
Fez-se um silêncio no público: todos aguardavam ansiosos um pavoroso embate mortal entre os quatro<br />
monstros felinos... E neste momento, como que sem querer, a donzela Cunegundes deixou cair, do alto do<br />
balcão, sua branca luva, bem no centro da arena, entre as quatro feras assustadoras. E dirigindo-se com um<br />
sorriso irônico ao seu cavaleiro adorador, falou, afetada:<br />
"Cavaleiro Delorges, se de fato me amais como viveis repetindo, provai-o, indo buscar e me devolver a<br />
minha luva."<br />
O cavaleiro Delorges não respondeu nada e sem titubear, desceu rápido do balcão e com passos decididos<br />
pisou na arena, entre as fauces hiantes e as presas arreganhadas das quatro feras. Calmo e firme ele apanhou<br />
a luva, e sem olhar para trás e sem apressar o passo, voltou para o balcão, sob os sussurros de espanto e<br />
14
admiração de todo o público presente.<br />
A donzela Cunegundes estendeu a mão num gesto faceiro para receber a luva e com um sorriso cheio de<br />
promessas, falou:<br />
"Ganhaste a minha gratidão, cavaleiro Delorges."<br />
Mas em vez de entregar-lhe a luva, o cavaleiro Delorges atirou-a no belo rosto da dama cruel e orgulhosa:<br />
"Dispenso a vossa gratidão, senhora!", ele disse.<br />
E voltando-lhe as costas, o cavaleiro Delorges foi embora para sempre.<br />
Recontado de um poema de Schiller por Tatiana Belinky<br />
Ilustrado por Maria Eliana Delarissa<br />
A menina e o sapo<br />
Marcia Paganini Cavéquia<br />
Ilustração: Renato Ventura.<br />
Nina, menina airosa, formosa como ela só.<br />
Bonito era ver Nina correr.<br />
Ora corria rápido, feito tufão, ora devagar, parecendo brisa.<br />
Nina corria pelo jardim.<br />
Nina caía no gramado.<br />
Nina fazia folia. E ria.<br />
À noite, cansada das travessuras do dia, a menina dormia.<br />
Certa vez, enquanto passeava pelo jardim, Nina viu um sapo.<br />
Sapo também viu Nina.<br />
"Será que, se Nina beijar o sapo, sapo vira príncipe?"<br />
Nina não sabia, mas ficava imaginando como isso seria.<br />
Nina beijou o sapo.<br />
Sapo continuou sapo.<br />
15
Não virou príncipe.<br />
Mas se apaixonou por Nina.<br />
Agora, onde Nina está, lá se vê o sapo apaixonado suspirando pela menina.<br />
Na cabeça do sapo, Nina é uma princesa-sapa, transformada em menina por uma terrível feiticeira.<br />
Marcia Paganini Cavéquia, autora deste conto, é pós-graduada em Metodologia do Ensino pela<br />
Universidade Estadual de Londrina (UEL).<br />
Amplexo<br />
Mãe, me dá um amplexo?<br />
A pergunta pega Cinira desprevenida. Antes que possa retrucar, ela nota o dicionário na<br />
mão do filho, que completa o pedido:<br />
- E um ósculo também.<br />
Ainda surpresa, a mulher procura no livro a definição das duas estranhas palavras. E encontra. Mateus quer<br />
apenas um abraço e um beijo.<br />
Conversa vai, conversa vem, Cinira finalmente se dá conta de que o garoto, recém-apresentado às classes<br />
gramaticais nas aulas de Português, brinca com os sinônimos. "O que vai ser de mim quando esse tiquinho<br />
de gente cismar com parônimos, homônimos, heterônimos e pseudônimos?", pensa ela, misturando as<br />
estações. "Valha-me, Santo Antônimo!" E emenda:<br />
- Pára com essa bobagem, menino!<br />
- Ah, mãe, o que é que tem? Você nunca chamou cachorro de cão? E casa de residência? E carro de<br />
automóvel?<br />
- É verdade, mas...<br />
Mas a verdade é que Cinira não tem uma boa resposta.<br />
- E meu nome é Mateus - continua o rapaz. - Só que você me chama de Matusquela.<br />
16
- Ei, isso não vale. Matusquela é apelido carinhoso.<br />
- Sei, sei. Tudo bem se eu usar nosocômio e cogitabundo em vez de hospital e pensativo?<br />
E criptobrânquio no lugar de mutabílio?<br />
- Mutabílio? O que é que é isso?<br />
- O mesmo que derotremado, ora. Tá aqui no Aurélio.<br />
Está mesmo. É um bichinho. Mas pouco importa. A mãe questiona a opção do menino por vocábulos<br />
incomuns. Mateus sai-se com esta:<br />
- A professora disse que aprender palavras é como ganhar roupas e guardar numa gaveta. Quando a gente<br />
precisa delas, tira de lá e usa. Cada uma serve para uma ocasião, por mais esquisita que pareça. Igual à<br />
querê-querê roxa que você me deu no último aniversário. Lembra?<br />
Como esquecer? Cinira nem se dá ao trabalho de consultar o dicionário. Sabe que a explicação para essa<br />
última provocação está no verbete camiseta.<br />
Quem é quem<br />
Marcelo Alencar, autor deste conto, já trabalhou como cartunista e editor de<br />
histórias em quadrinhos. Jornalista, é editor de NOVA ESCOLA<br />
Marcelo Cipis, pintor e desenhista que ilustrou estas páginas, é autor de<br />
O Livro do Alfabeto, Era uma Vez um Livro e 530 Gramas de Ilustrações.<br />
A Origem das Revespécies - Maria Amália Camargo<br />
Ilustração: Renato Faccini<br />
Você já deve ter quebrado muito a cabeça pra responder aquela velha pergunta sobre o ovo e a galinha...<br />
Ora, convenhamos, desde que os cientistas anunciaram o parentesco entre a dita cuja e os dinossauros, não é<br />
preciso ser nenhum Charles Darwin pra matar essa charada...<br />
Por um capricho da natureza, ficou decidido que os dinossauros pulariam de grandalhões para a categoria<br />
peso-pena, passariam a acordar com as galinhas e seriam bichos muito bons de bico. Daí, foi só uma<br />
17
tiranossauro botar um ovo com um pintinho dentro, para dar início à era das galináceas no planeta. Pronto, o<br />
ovo veio primeiro!<br />
E já que estamos falando sobre as transformações no reino animal, é bom lembrar que a evolução não é<br />
privilégio apenas das cocoriquentas. Tempos depois de um cavalo amarelo-malhado ter tomado chá de<br />
trepadeira e ficado com as folhas entaladas na garganta, transformou-se numa girafa. Quando um<br />
camundongo gigante cansou de levar seus filhos a tiracolo e amarrou uma bolsa na barriga, virou um<br />
canguru. Já a gelatina, que teve a sorte de ser resgatada do mar Morto por um salva-vidas, ah, virou uma<br />
água-viva!<br />
E os reveses nas espécies não param por aí. Tem exemplo de revespécie pra dar e vender. Veja só:<br />
Quem já era devagar quase parando virou preguiça.<br />
Quem tinha samba no pé, uma cuíca.<br />
Virou solitária quem vivia jogada às traças.<br />
Um tremendo furão, quem nunca dava o ar da graça.<br />
Quem era bicho-papão ficou barrigudo.<br />
Quem era cheio de pneuzinhos, borrachudo.<br />
Quem não conseguiu pegar jacaré virou mergulhão.<br />
Quem era nervosinho pacas, um zangão!<br />
Quem gostava de madeira virou bicho-carpinteiro.<br />
Quem dirigia mal pra burro, barbeiro!<br />
Quem não comprava no atacado, virou varejeira.<br />
Quem lavava roupa suja em casa, lavadeira.<br />
Virou quero-quero quem era pidão.<br />
E serelepe, um mexilhão.<br />
Virou maria-fedida quem vivia cheia de craca.<br />
Quem não entrava em barca furada, uma fragata.<br />
O calombo na cachola virou galo.<br />
E quem vivia enrabichado, namorado.<br />
Virou beija-flor quem namorou a rosa no quintal.<br />
Quem pisou na concha acústica, um coral.<br />
Virou truta aquele camarada, grande amigo.<br />
Quem soltava fogo pelas ventas, maçarico.<br />
Virou centopeia o cheio de dedos.<br />
Mas quem vivia pregado continuou percevejo!<br />
Maria Amália Camargo, autora deste conto, é formada em Letras.<br />
18
Apenas uma ponte<br />
Chegara, enfim, o último dia de aula. Havia sido uma longa trajetória até ali. Mas, agora, o professor<br />
observava com ternura os alunos à sua frente, cada um voltado para seu caderno, fazendo a lição que<br />
colocaria ponto final no ano letivo. Então, agarrado à calmaria daquela hora, ele se recordou do primeiro<br />
encontro com o grupo. Todos o miravam com curiosidade, ansiosos por apanhar, como uma fruta, o<br />
conhecimento que imaginavam lhe pertencia. Nem tinham idéia de que aprenderiam por si mesmos, e que<br />
ele, mestre, não era a árvore da sabedoria, mas apenas uma ponte que os levaria à sua copa frondosa.<br />
Naquele dia, experimentara outra vez a emoção de se deparar com uma nova turma, e o que o motivava a<br />
ensinar, com tanta generosidade, era justamente o desafio de enfrentar esse mistério. Sim, uma ponte. Uma<br />
ponte por onde transitassem os sonhos daquelas crianças, o movimento incessante de seus desejos, o ir e vir<br />
de suas dúvidas, o vaivém do aprendizado em constante algaravia.<br />
Lembrou-se da dificuldade da Julinha nas operações de multiplicar. O resultado correto era um território que<br />
ela nem sempre conseguia atingir. Mas, agora, a garota estava lá, segura da direção que deveria tomar. Ele<br />
fizera a ponte. O que dizer da distância entre o José e o Augusto no início do ano, ambos se temendo em<br />
silêncio, deixando de desfrutar da aventura de uma grande amizade? Com paciência, ele os unira. Desde<br />
então, não se desgrudavam. Podia vê-los dali, de sua mesa, um ao lado do outro, concentrados em fazer a<br />
tarefa. Já a Maria Sílvia, dona de uma letra redondinha, ainda há pouco lhe dera um sorriso. Antes, contudo,<br />
vivia irritada, a letra sem apuro, só garranchos. Fizera a ponte para ela. Mateus, à sua frente, detestava<br />
Ciências e fugia das aulas no laboratório. Talvez porque só via dificuldade na travessia e não as maravilhas<br />
que o esperavam no outro extremo. O professor estendera-lhe a mão e o conduzira, até que, subitamente, ele<br />
se tornara o melhor aluno naquela matéria. Tinha também a Alessandra, tão silenciosa e tímida. Ia bem nos<br />
primeiros meses e, depois, o rendimento caíra. Ele descobrira que os pais dela viviam em conflito. Alertara-<br />
os para que dessem mais afeto à filha, e eis que ela florescera, voltando a ser uma boa aluna.<br />
E lá estava, nas últimas fileiras, o Luís Fábio. Notara suas limitações e construíra uma ponte especial para<br />
ele, mas o menino não conseguira atravessá-la. Era assim: para alguns, bastavam uns passos; para outros, o<br />
percurso se encompridava.<br />
19
O professor suspirou. Fizera o seu melhor. Lembrou-se das palavras de Guimarães Rosa: "Ensinar é, de<br />
repente, aprender".<br />
Sim, aprendera muito com seus alunos. Inclusive aprendera sobre si mesmo. Aquelas crianças haviam,<br />
igualmente, ligado pontos em sua vida. Agora, seguiriam novos rumos. Haveriam de encontrar<br />
outras pontes para superar os abismos do caminho.<br />
Ele permaneceria ali, pronto para levar uma nova classe até a outra margem. E o tempo, como um viaduto,<br />
haveria de conduzi-lo à emoção desse novo mistério.<br />
Conto de João Anzanello Carrascoza<br />
Ilustrado por Milton Trajano<br />
Casa de Vô<br />
Beatriz Vichessi<br />
Ilustração: Mateus Rios<br />
Todo avô toma remédio, usa dentadura e tira soneca depois do almoço. O meu, não.<br />
Não toma pílula nem xarope. E, à tarde, fica acordado, brincando comigo. Dentadura? Isso ele usa. Mas, de<br />
resto, é diferente.<br />
Minha avó também não é igual as outras. Enquanto toda avó borda e faz bolo de chocolate, ela só costura<br />
para fazer remendos nas roupas e só cozinha no fim de semana. E quase nunca está em casa. De calça<br />
comprida (enquanto todas as avós do mundo usam saia), sai cedinho para trabalhar e nos deixa sozinhos.<br />
Daí, o guarda-roupa dela vira elevador. Basta eu entrar e me sentar nas caixas de sapatos para vovô encostar<br />
as portas e, como ascensorista, anunciar:<br />
- Primeiro andar! Roupas e bonecas. Segundo andar! Balas de goma, móveis e crianças perdidas...<br />
A parede da sala é transformada em galeria de arte com pinturas emolduradas em fita crepe e, o tapete, em<br />
20
tablado de exposição de botões raros, que jamais combinariam com qualquer roupa normal.<br />
Ao cair da tarde, na garagem vazia, enquanto o papagaio e os cachorros conversam misturando latidos, uivos<br />
e risadas, ele espalha alguns pedacinhos de papel pelo chão. É a brincadeira do Pisei.<br />
- Hã? Como assim?, pergunto. Essa é nova.<br />
Vovô explica sua invenção:<br />
- Memorize onde estão os papéis. Feche os olhos e comece a caminhar. Tente pisar em cima deles. Pode ir<br />
perguntando "Pisei?" para facilitar. Ganha o jogo quem pisar em mais pedaços.<br />
Eu começo.<br />
- Pisei?, pergunto, dando o primeiro passo, apertando os olhos.<br />
- Não!<br />
- Pisei?, insisto mais uma vez, depois de caminhar um tiquinho.<br />
- Não!<br />
Ouço um barulho de chaves. Vovó chega, cansada, do trabalho. Diz "Oi". Sei que é para mim, mas não<br />
posso abrir os olhos para responder. É quebra de regra.<br />
- Tudo bem, vó? Quer brincar de Pisei?, convido.<br />
- Agora, não, minha riqueza. Vovó vai descansar.<br />
Vovô continua a me guiar, já sentado na cadeira de praia, lendo o jornal. Não vi, mas escutei o barulho dela<br />
sendo armada e das folhas nas mãos dele.<br />
Sigo.<br />
- Pisei?<br />
- Pisei?<br />
- Pisei?<br />
E nada.<br />
Sinto meus pés tropeçarem em algo. Abro os olhos. Vovô, a minha frente, de braços abertos, pronto para um<br />
abraço de vitória.<br />
- Mas eu não pisei em nenhum papelzinho, vô, digo, meio desanimada, mas já engalfinhada e feliz, nos<br />
braços dele.<br />
- O vento foi levando tudo para o cantinho do portão, ele explica, sorrindo.<br />
- E por que o senhor não me avisou? A gente poderia ter colado os pedacinhos no chão e recomeçado...<br />
- Porque eu queria que a brincadeira terminasse com você perto de mim.<br />
Beatriz Vichessi, autora deste conto, é editora-assistente de NOVA ESCOLA.<br />
21
Aprendizagem<br />
- Mãe, cabelo demora quanto tempo pra crescer?<br />
- Hã?<br />
- Se eu cortar meu cabelo hoje, quando é que ele vai crescer de novo?<br />
- Cabelo está sempre crescendo, Beatriz. É que nem unha.<br />
A comparação deixa a menina meio confusa. Ela não está preocupada com unhas.<br />
- Todo dia, mãe?<br />
- É, só que a gente não repara.<br />
- Por quê?<br />
- Porque as pessoas têm mais o que fazer, não acha?<br />
A menina não sabe se essa é uma pergunta do tipo que precisa ser respondida ou é daquelas que a gente<br />
ouve e pronto. Prefere não responder.<br />
- Você é muito ocupada, não é, mãe?<br />
- Hã?<br />
- Nada, não.<br />
A mãe termina de passar a roupa e vai guardando tudo no armário.<br />
Enquanto isso, Beatriz corre até o quartinho de costura, pega a fita métrica e mede novamente o cabelo da<br />
boneca. Ela tinha cortado aquele cabelo com todo o cuidado do mundo, pra ficar parecido com o da mãe,<br />
mas a verdade é que ficou meio torto.<br />
"Nada, não cresceu nada", ela conclui, guardando a fita. E já tem uma semana!<br />
Depois volta para onde está a mãe, que agora lustra os móveis.<br />
- Mãe, existe alguma doença que faz o cabelo da gente não crescer?<br />
22
- Mas de novo essa conversa de cabelo! Não tem outra coisa pra pensar não, criatura?<br />
Sobre essa pergunta não há dúvida: é do tipo que você não deve responder.<br />
A mãe continua trabalhando. Precisa se apressar. Dali a pouco a patroa chega da rua e o almoço nem está<br />
pronto ainda.<br />
- Mãe!<br />
- O que foi?<br />
- É que eu estava aqui pensando.<br />
- Pensando o quê?<br />
Beatriz não responde. Espera um pouco, tentando achar as palavras certas.<br />
- Vai, fala logo.<br />
- Quando a gente faz uma coisa, sabe, e não dá mais para voltar atrás, entendeu?<br />
- Não, não entendi.<br />
Ela abaixa a cabeça, dá um tempinho e resolve arriscar:<br />
- Então, se você não entendeu, posso continuar perguntando sobre cabelo?<br />
- Ai, meu Deus!<br />
Beatriz deixa a mãe trabalhando e vai procurar de novo sua boneca.<br />
Pega a boneca no colo e diz no ouvido dela:<br />
- Não liga, não. Cabelo de boneca é assim mesmo, cresce devagar, viu?<br />
E com um carinho:<br />
- Foi minha mãe que me ensinou.<br />
Flávio Carneiro, autor deste conto, é roteirista, ensaísta e professor de Literatura. Tem 11 livros publicados,<br />
dentre eles, A Distância das Coisas (Editora SM), vencedor do III Prêmio Barco a Vapor.<br />
Ilustração: Eva Uviedo<br />
Dona Licinha<br />
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A senhora não me conhece. Faz tanto tempo e me lembro de detalhes do seu jeito, sua voz, seu penteado e<br />
roupas... A senhora ensinava na 3a série B e eu era aluna da 3ª série C no Grupo Escolar do Tatuapé...<br />
Passava no corredor fazendo figa para mudar de classe, pra minha professora viajar e nunca mais voltar, pra<br />
diretora implicar e me mandar pra 3a B... Nunca tive tanta inveja na minha vida como tive das crianças da<br />
série B...<br />
Lembro que na sua sala se ouviam risadas quase o tempo todo. Maior gostosura! De vez em quando, um<br />
enorme silêncio quebrado por uma voz suave...era hora de contar histórias. Suspirando, eu grudava na janela<br />
e escutava o que podia... Também muitos piques e hurras, brincadeiras correndo solto. Esconde-esconde,<br />
telefone sem fio, campeonato de Geografia. Tanto fazia a aprontação inventada. Importava era sentir a<br />
redonda contenteza dos alunos.<br />
A sua sala era colorida com desenhos das crianças, um painel com recortes de revistas e jornais, figurinhas<br />
bailando em fios pendurados, mapas e fotos... Uma lindeza rodopiante mudada toda semana! Vi pela janela<br />
seus alunos fantasiados, pintados, emperucados, representando cenas da História do Brasil! Maior<br />
maravilhamento! Demorei, entendi. Quem nunca entendeu foi a minha professora... Seu segredo era ensinar<br />
brincando. Na descoberta! Na contenteza!<br />
Nunca ouvi berros, um "Cala boca", "Aqui quem manda sou eu" e outras mansidões que a minha professora<br />
dizia sem cansar. Não escutei ameaças de provas de sopetão, castigos, dobro da lição de casa, chamar a<br />
diretora, com que a minha professora me aterrorizava o tempo todo...<br />
Dona Licinha, eu quis tanto ser sua aluna quando fiz a 3a série. Não fui... Hoje, tanto tempo depois, sou<br />
professora. Também duma 3a série. Agora sou sua colega... Só não esqueço que queria estar na sua classe,<br />
seguir suas aulas risonhas, sem cobranças, sem chateações, sem forçar barras, sem fazer engolir o<br />
desinteressante. Numa sala colorida, iluminada, bailante. Também quero ser uma professora assim. Do seu<br />
jeito abraçante.<br />
Hoje, vi uma garotinha me espiando pela janela. Arrepiei. Senti que estava chegando num jeito legal de estar<br />
numa sala de aula... Por isso resolvi escrever para a senhora. Vontadona engolida por décadas. Tinha que<br />
dizer que continuo querendo muito ser aluna da Dona Licinha. Agora, aluna de como ser professora.<br />
Fazendo meus alunos viverem surpresas inventivas.<br />
Um abraço apertado, cheinho de gostosuras, da Ciça<br />
Conto de fanny Abramovich<br />
Ilustrado por Carlo Giovani<br />
Foto de Leo Feltran<br />
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É Siri, É Bebê, É Corda<br />
Milu Leite<br />
Ilustração Yumi Fujita<br />
Lá em casa mora um siri. Não fui eu que trouxe, não.<br />
Ele veio me seguindo pela praia. Atravessou a rua, desviou dos carros. Eu só espiava. Ele vinha atrás.<br />
O siri não tem cama. Dorme na tigela de comida do cachorro.<br />
E o cachorro tem medo do siri porque já levou um beliscão no focinho.<br />
Eu não sei o que o siri come, nem o que ele bebe.<br />
Mas ele continua vivo e mora nessa casa faz tempo. Acho até que engordou.<br />
Minha mãe também engordou.<br />
Eu perguntei para minha mãe:<br />
- O que tem aí dentro da sua barriga?<br />
Ela respondeu com uma cara toda feliz:<br />
- Um bebê. Seu irmão.<br />
Eu fiquei lembrando do siri e fiz outra pergunta:<br />
- Será que o siri também tem um bebê na barriga?<br />
Minha mãe fez cara de quem não sabia o que dizer. Mas disse:<br />
- Ah, siri não. Siri põe ovo.<br />
- E você não põe?<br />
- Claro que não!<br />
- Você tem certeza que o bebê tá dentro da sua barriga, mãe?<br />
- Tenho, filho.<br />
- E por que você comeu ele?<br />
Minha mãe deu uma gargalhada. Me abraçou bem comprido e disse que ia me explicar tudo, tintim por<br />
tintim, mais tarde.<br />
Ela falou assim: tintim por tintim.<br />
Então, eu me esqueci do siri, do bebê e só pensei:<br />
"Tintim é o barulho que os copos fazem quando os adultos batem um contra o outro em dia de festa!" Aí<br />
comecei a lembrar do meu aniversário...<br />
Por que será que meu pensamento pensa desse jeito?<br />
Quer dizer, por que ele fica pulando de uma idéia para outra sem parar?<br />
Aliás, por falar em pular...<br />
Alguém quer pular corda comigo?<br />
Quem é quem<br />
Milu Leite, autora deste conto, é jornalista. Nasceu em São Paulo e mora em Florianópolis desde 1999.<br />
Estreou na literatura com o livro O Dia em Que Felipe Sumiu (80 págs., Ed. CosacNaify, tel. [11] 3218-<br />
1444, 30 reais), que lhe valeu o terceiro lugar no Prêmio Jabuti 2006 na categoria juvenil.<br />
25
Yumi Fujita Taminato, que ilustrou esta página, nasceu em Itatiaiuçu (MG) e mora em São Paulo há sete<br />
anos. Formada em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais, cursou especialização em escultura na<br />
Universidade de São Paulo.<br />
E vem o Sol<br />
João Anzanello Carrascoza<br />
Ilustração: Odilon Moraes<br />
Tinham acabado de se mudar para aquela cidade. Passaram o primeiro dia ajeitando tudo. Mas, no segundo<br />
dia, o homem foi trabalhar, a mulher quis conhecer a vizinha. O menino, para não ficar só num espaço que<br />
ainda não sentia seu, a acompanhou.<br />
Entrou na casa atrás da mãe, sem esperança de ser feliz. Estava cheio de sombras, sem os companheiros.<br />
Mas logo o verde de seus olhos se refrescou com as coisas novas: a mulher suave, os quadros coloridos, o<br />
relógio cuco na parede. E, de repente, o susto de algo a se enovelar em sua perna: o gato. Reagiu, afastando-<br />
se. O bichano, contudo, se aproximou de novo, a maciez do pêlo agradando. E a mão desceu numa carícia.<br />
O menino experimentou de fininho uma alegria, como sopro de vento no rosto. Já se sentia menos solitário.<br />
Não vigorava mais nele, unicamente, a satisfação do passado. A nova companhia o avivava. E era apenas o<br />
começo. Porque seu olhar apanhou, como fruta na árvore, uma bola no canto da sala. Havia mais surpresas<br />
ali. Ouviu um som familiar: os pirilins do videogame. E, em seguida, uma voz que gargalhava. Reconhecia o<br />
26
momento da jogada emocionante. Vinha lá do fundo da casa o convite. O gato continuava afofando-se nas<br />
suas pernas. Mas elas queriam o corredor. E, na leveza de um pássaro, o menino se desprendeu da mãe. Ela<br />
não percebeu, nem a dona da casa. Só ele sabia que avançava, tanta a sua lentidão: assim é o imperceptível<br />
dos milagres.<br />
Enfiou-se pelo corredor silencioso, farejando a descoberta. Deteve-se um instante. O ruído lúdico novamente<br />
atraiu o menino. A voz o chamava sem saber seu nome.<br />
Então chegou à porta do quarto - e lá estava o outro menino, que logo se virou ao dar pela sua presença.<br />
Miraram-se, os olhos secos da diferença. Mas já se molhando por dentro, se amolecendo. O outro não lhe<br />
perguntou quem era nem de onde vinha. Disse apenas: quer brincar? Queria. O Sol renasceu nele. Há tanto<br />
tempo precisava desse novo amigo.<br />
Conto de João Anzanello Carrascoza, ilustrado por Odilon Moraes<br />
Folhas Secas<br />
Francisco Marques (Chico dos Bonecos)<br />
Ilustração: Ivan Zigg<br />
Eu estava dando uma aula de Matemática e todos os alunos acompanhavam atentamente.<br />
Todos?<br />
Quase. Carolina equilibrava o apontador na ponta da régua, Lucas recolhia as borrachas dos vizinhos e<br />
construía um prédio, Renata conferia as canetas e os lápis do seu estojo vermelhíssimo e Hélder olhava para<br />
o pátio.<br />
O pátio? O que acontecia no pátio?<br />
27
Após o recreio, dona Natália varria calmamente as folhas secas e amontoava e guardava tudo dentro de um<br />
enorme saco plástico azul. Terminando o varre-varre, dona Natália amarrou a boca do saco plástico e<br />
estacionou aquele bafuá de folhas secas perto do portão. Hélder observava atentamente. E eu observava a<br />
observação de Hélder - sem descuidar<br />
da minha aula de Matemática. De repente, Hélder foi arregalando os olhos e franzindo a testa.<br />
Qual o motivo do espanto?<br />
Hélder percebeu alguma coisa no meio das folhas movendo-se deseperadamente, com aflição, sufoco, falta<br />
de ar. Hélder buscava interpretações para a cena, analisava possibilidades, mas o perfil do passarinho já se<br />
delineava na transparência azul do plástico.<br />
Um pássaro novo caiu do ninho e foi confundido com as folhas secas e foi varrido e agora lutava pela<br />
liberdade.<br />
- Ele tá preso!<br />
O grito de Hélder interrompeu o final da multiplicação de 15 por 127. Todos os alunos olharam para o pátio.<br />
E todos nós concordamos, sem palavras: o bico do passarinho tentava romper aquela estranha pele azul.<br />
Hélder saiu da sala e nós fomos atrás. E antes<br />
que eu pudesse pronunciar a primeira sílaba da palavra "calma", o saco plástico simplesmente explodiu, as<br />
folhas voaram e as crianças pularam de alegria.<br />
Alguns alunos dizem que havia dois passarinhos presos. Outros viram três passarinhos voando felizes e<br />
agradecidos. Lucas diz que era um beija-flor. Renata insiste que era uma cigarra. Eu, sinceramente, só vi<br />
folhas secas voando.<br />
Para concluir esta inesquecível aula de Matemática, pegamos vassouras, pás e sacos plásticos e fomos varrer<br />
novamente o pátio.<br />
Conto de Francisco Marques (Chico dos Bonecos), ilustrado por Ivan Zigg.<br />
28
Lado a lado, bem bolado<br />
Pedro Bandeira<br />
Ilustração: Daniel Bueno<br />
Ricardinho andava sem sorte. Acho até que, se ele fosse jogar cara-ou-coroa ou par-ou-ímpar dez vezes<br />
seguidas, perderia todas.<br />
O caso é que ele tinha aprendido que "em cima" se escreve separado e "embaixo" se escreve junto. Mas, na<br />
hora de escrever suas redações, ele seeeeempre se confundia e acabava fazendo tudo ao contrário.<br />
Foi queixar-se pra Vovó. Afinal, a Vovó tinha sido professora a vida inteira e sabia tudo, tudinho mesmo de<br />
todas as coisas.<br />
- É fácil, Ricardinho - ensinou a Vovó. - Levante a mão esquerda, bem aberta.<br />
- Assim?<br />
- Não. Essa é a direita.<br />
- Então é essa?<br />
- É claro, você só tem duas, não é? A mão esquerda é a que fica do lado do coração.<br />
- E de que lado fica o coração?<br />
- Do lado dessa pintinha que você tem no rosto.<br />
- Ah, ficou fácil! Mas o que tem a ver mão esquerda levantada com "em cima" e "embaixo"?<br />
- Veja, querido: seus dedos, "em cima", estão separados e, "embaixo", eles estão juntos, grudados na palma,<br />
não estão? Quando você ficar em dúvida, é só levantar a mão aberta, que você nunca mais vai errar! "Em<br />
cima" é sempre separado e "embaixo" é sempre junto!<br />
Ricardinho achou genial a idéia da Vovó. No dia seguinte, na escola, tratou logo de contar o novo truque<br />
29
para o Adriano, seu melhor amigo na 1ª série.<br />
- Tá vendo, Adriano? É só levantar a mão esquerda e...<br />
- Não vai dar certo - respondeu o amigo.<br />
- Por que não?<br />
- Porque, se eu levantar a mão esquerda, como é que eu vou escrever? Eu sou canhoto!<br />
- Bom, então levante a direita, que dá no mesmo.<br />
- E como é que eu sei qual é a direita?<br />
- É fácil. Eu, por exemplo, sei que a minha mão esquerda é esta, que está do lado da pintinha que eu tenho<br />
na cara.<br />
- Mas eu não tenho pintinha nenhuma na cara - discordou o Adriano.<br />
Ricardinho chegou a sugerir que o Adriano pintasse uma pinta na cara com a caneta, mas Adriano acabou<br />
achando mais fácil saber que a mão esquerda era aquela com que ele escrevia e desenhava e a direita era...<br />
bom, era a outra!<br />
Conto de Pedro Bandeira, ilustrado por Daniel Bueno<br />
Lépida<br />
Carla Caruso<br />
Ilustração: Beto e Andréa<br />
Tudo lento, parado, paralisado.<br />
- Maldição! - dizia um homem que tinha sido o melhor corredor daquele lugar.<br />
- Que tristeza a minha - lamentava uma pequena bailarina, olhando para as suas sapatilhas cor-de-rosa.<br />
Assim estava Lépida, uma cidade muito alegre que no passado fora reconhecida pela leveza e agilidade de<br />
seus habitantes. Todos muito fortes, andavam, corriam e nadavam pelos seus limpos canais.<br />
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Até que chegou um terrível pirata à procura da riqueza do lugar. Para dominar Lépida, roubou de um mago<br />
um elixir paralisante e despejou no principal rio. Após beberem a água, os habitantes ficaram muito lentos,<br />
tão lentos que não conseguiram impedir a maldade do terrível pirata. Seu povo nunca mais foi o mesmo.<br />
Lépida foi roubada em seu maior tesouro e permaneceu estagnada por muitos anos.<br />
Um dia nasceu um menino, que foi chamado de Zim. O único entre tantos que ficou livre da maldição que<br />
passara de geração em geração. Diferente de todos, era muito ágil e, ao crescer, saiu em busca de uma<br />
solução. Encontrou pelo caminho bruxas de olhar feroz, gigantes de três, cinco e sete cabeças, noites<br />
escuras, dias de chuva, sol intenso. Zim tudo enfrentou.<br />
E numa noite morna, ao deitar-se em sua cama de folhas, viu ao seu lado um velho de olhos amarelos e<br />
brilhantes. Era o mago que havia sido roubado pelo pirata muitos anos antes. Zim ficou apreensivo. Mas o<br />
velho mago (que tudo sabia) deu-lhe um frasco. Nele havia um antídoto e Zim compreendeu o que deveria<br />
fazer. Despejou o líquido no rio de sua cidade.<br />
Lépida despertou diferente naquela manhã. Um copo de água aqui, um banho ali e eram novamente braços<br />
que se mexiam, pernas que corriam, saltos e sorrisos. E a dança das sapatilhas cor-de-rosa.<br />
Conto de Carla Caruso, ilustrado por Beto e Andréa<br />
Memórias de uma infância química<br />
Oliver Sacks<br />
Ilustração: Marcelo Hardt<br />
Muitas das minhas lembranças da infância têm relação com metais: eles parecem ter exercido poder sobre<br />
mim desde o início. Destacavam-se em meio à heterogeneidade do mundo por seu brilho e cintilação, pelos<br />
tons prateados, pela uniformidade e peso. Eram frios ao toque, retiniam quando golpeados.<br />
31
Eu adorava o amarelo do ouro, seu peso. Minha mãe tirava a aliança do dedo e me deixava pegá-la um<br />
pouco, comentando que aquele material se mantinha sempre puro e nunca perdia o brilho. "Está sentindo<br />
como é pesado?", ela acrescentava. "Mais pesado até do que o chumbo". Eu sabia o que era chumbo, pois já<br />
segurara os canos pesados e maleáveis que o encanador uma vez esquecera lá em casa. O ouro também era<br />
maleável, minha mãe explicou, por isso, em geral, o combinavam com outro material para torná-lo mais<br />
duro.<br />
O mesmo acontecia com o bronze. Bronze! - a palavra em si já me soava como um clarim, pois uma batalha<br />
era o choque valente de bronze contra bronze, espadas de bronze em escudos de bronze, o grande escudo de<br />
Aquiles. O cobre também podia ser combinado com zinco para produzir latão, acrescentou minha mãe.<br />
Todos nós - minha mãe, meus irmãos e eu - tínhamos nosso menorá de bronze para o Hanucá. (O de meu pai<br />
era de prata.)<br />
Eu conhecia o cobre - a reluzente cor rósea do grande caldeirão em nossa cozinha era cobre; o caldeirão era<br />
tirado do armário só uma vez por ano, quando os marmelos e as maçãs ácidas amadureciam no pomar e<br />
minha mãe fazia geléias com eles.<br />
Eu conhecia o zinco - o pequeno chafariz fosco e levemente azulado onde os pássaros se banhavam no<br />
jardim era feito de zinco; e o estanho - a pesada folha-deflandres em que eram embalados os sanduíches para<br />
piquenique. Minha mãe me mostrou que, quando se dobrava estanho ou zinco, eles emitiam um "grito"<br />
espacial". "Isso é devido à deformação da estrutura cristalina", ela explicou, esquecendo que eu tinha 5 anos<br />
e por isso não a compreendia - mas ainda assim suas palavras me fascinavam, faziam-me querer saber mais.<br />
Havia um enorme rolo compressor de ferro fundido no jardim - pesava mais de 200 quilos, meu pai contou.<br />
Nós, crianças, mal conseguíamos movê-lo, mas meu pai era fortíssimo e conseguia erguê-lo do chão. O rolo<br />
estava sempre um pouco enferrujado, e isso me afligia - a ferrugem descascava, deixando pequenas<br />
cavidades e escamas -, porque eu temia que o rolo inteiro algum dia se esfarelasse pela corrosão, se<br />
reduzisse a uma massa de pó e flocos avermelhados. Eu tinha necessidade de ver os metais como estáveis,<br />
como é o ouro - capazes de resistir aos danos e estragos do tempo.<br />
Trecho do livro Tio Tungstênio - Memórias de uma Infância Química, de Oliver Sacks (Ed. Companhia<br />
das Letras, 2002), ilustrado por Marcelo Hardt<br />
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Minha chupeta virou estrela<br />
Januária Alves<br />
Ilustração: Ionit Ziberman<br />
Eu me chamo Pedro e tenho 7 anos. Eu tenho uma estrela, sabe?<br />
Uma estrelona, linda, que está lá no céu, brilhando, todos os dias.<br />
Quando eu tinha 3 anos, para salvar meu dente da frente que ficou mole porque eu caí de boca brincando na<br />
gangorra da escola, minha dentista me disse que... EU TERIA QUE PARAR DE USAR A MINHA<br />
QUERIDA CHUPETA VERDE!<br />
- A chupeta ou o dente! - ela me mandou escolher.<br />
Bom, eu nem quis ouvir direito essa proposta tão maluca! A doutora Virgínia e a minha mãe tentaram<br />
conversar comigo, explicar por que era importante eu não perder um dente tão cedo e... nada. Eu só olhava<br />
com o olho mais comprido do mundo para a chupeta verde, minha companheira do sono mais gostoso do<br />
mundo! Como dormir sem ela?<br />
Na primeira noite em que fiquei sem a minha querida chupeta, só lembro de sentir o cheiro da minha mãe,<br />
que me carregou no colo enquanto papai dirigia nosso carro, passeando em frente ao meu parque preferido<br />
pra ver se eu enfim conseguia pegar no sono...<br />
No dia seguinte fui com minha mãe e meu irmão ao parque e levei pão para dar aos patos que moram num<br />
lago bem bonito que tem lá. Um pato maior e mais cinza que os outros me chamou a atenção. Ele veio várias<br />
vezes comer pão na minha mão e eu gostei dele. Parecia o patinho feio da história que meu pai sempre<br />
33
contava antes de eu dormir.<br />
Mamãe chegou perto de nós e disse que aquele era mesmo um pato especial. Ele costumava tomar conta das<br />
chupetas de alguns meninos. E fazia isso muito bem: ele transformava todas em estrelas! Superlegal!<br />
Pus o nome naquele pato de Pato Pão. Eu não queria perder nem o meu dente nem a minha chupeta... Talvez<br />
o Pato Pão fosse a solução para o meu problema! Então... resolvi dar a minha chupeta verde para ele. Ele<br />
pegou minha chupeta verde com o bico e atirou longe, no lago. Eu fiquei olhando para ela boiando,<br />
boiando... até desaparecer... Na hora de entregar a minha chupeta verde, mesmo para um pato tão especial<br />
como o Pato Pão, eu segurei bem forte a mão da minha mãe e a do meu irmão!<br />
Enquanto a minha chupeta verde ia embora no lago, pensei que naquela noite ela não ia estar embaixo do<br />
meu travesseiro. Eu teria que ir até a janela se quisesse dar uma espiada nela.<br />
Quando a noite apareceu, meu pai chegou do trabalho e se deitou na cama comigo, olhando pro céu,<br />
procurando a minha estrela-chupeta verde. Eu vi primeiro e nós dois batemos palmas pra ela! Aí eu só me<br />
lembro de adormecer com aquele brilho de estrela no meu olho e a sensação do abraço enorme do meu pai.<br />
Todas as vezes em que penso na minha chupeta, olho pro céu, procurando a estrela-chupeta verde. Agora, a<br />
saudade, em vez de crescer como eu, fica menor a cada noite. Deve ser porque meninos grandes gostam<br />
mais de estrelas no céu do que de chupetas, eu acho.<br />
Conto de Januária Alves, ilustrado por Ionit Ziberman<br />
Moinho de Sonhos<br />
João Anzanello Carrascoza<br />
Ilustração: Martha Werneck.<br />
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A mulher e o menino iam montados no cavalo; o homem ia ao lado, a pé. Andavam sem rumo havia<br />
semanas, até que deram numa aldeia à beira de um rio, onde as oliveiras vicejavam.<br />
Fizeram uma pausa e, como a gente ali era hospitaleira e a oferta de serviço abundante, resolveram ficar. O<br />
homem arranjou emprego num moinho próximo à aldeia. A mulher se juntou a outras que colhiam azeitonas<br />
em terras ao redor de um castelo. Levou consigo o menino que, no meio do caminho, achou um velho cabo<br />
de vassoura e fez dele o seu cavalo. Deu-lhe o nome de Rocinante.<br />
Ao chegar aos olivais, o pequeno encontrou o filho de outra colhedeira - um garoto que se exibia com um<br />
escudo e uma espada de pau.<br />
Os dois se observaram à distância. Cada um se manteve junto à sua mãe, sem saber como se libertar dela.<br />
Vigiavam-se. Era preciso coragem para se acercar. Mas meninos são assim: se há abismos, inventam pontes.<br />
De súbito, estavam frente a frente. Puseram-se a conversar, embora um e outro continuassem na sua. Logo<br />
esse já sabia o nome daquele: o menino recém-chegado se chamava Alonso; o outro, Sancho.<br />
Começaram a se misturar:<br />
- Deixa eu brincar com seu cavalo?, pediu Sancho.<br />
- Só se você me emprestar sua espada, respondeu Alonso.<br />
Iam se entendendo, apesar de assustados com a felicidade da nova companhia.<br />
Avançaram na entrega:<br />
- Tá vendo aquele moinho gigante?, apontou Alonso. Meu pai sozinho é que faz ele girar.<br />
- Seu pai deve ter braços enormes, disse Sancho.<br />
- Tem! Mas nem precisava, respondeu Alonso. Ele move o moinho com um sopro.<br />
Sancho achou graça. Também tinha uma proeza a contar:<br />
- Tá vendo o castelo ali?, apontou. Meu pai disse que o dono tem tanta terra que o céu não dá para cobrir ela<br />
toda.<br />
- E se a gente esticasse o céu como uma lona e cobrisse o que está faltando?, propôs Alonso.<br />
- Seria legal, disse Sancho. Mas ia dar um trabalhão.<br />
- Temos de crescer primeiro.<br />
- Bom, enquanto a gente cresce, vamos pensar num jeito de subir até o céu! - disse Alonso.<br />
- Vamos!, concordou Sancho.<br />
Sentaram-se na relva. O cavalo, a espada e o escudo entre os dois. Um sopro de vento passou por eles.<br />
Já eram amigos: moviam juntos o mesmo sonho.<br />
João Anzanello Carrascoza<br />
Autor deste conto, é publicitário, professor da Universidade de São Paulo (USP)<br />
e autor de livros infantis, entre eles, Aprendiz de Inventor (Ed. Ática).<br />
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Não somos figurinhas<br />
Claudia Werneck<br />
Ilustração: Orlando<br />
Uma menina muito ressabiada. Era como se tivesse medo de gente. Família, padrinhos, vizinhos e<br />
professores não conseguiam entender o que a impedia de viver em paz com seus iguais.<br />
"Mas o problema é justamente esse", gesticulava ela, amaciando com seus dedinhos o pêlo macio de seu<br />
gato magro, branco e preto - o Bandidão. "Não somos iguais, não somos iguais, é tudo mentira. Eu olho para<br />
a Pati, o Ivan, o Ademir, a Tatá e só vejo diferenças."<br />
Os adultos se entreolhavam desanimados e pediam mais explicações. "Como diferentes, minha filha? Somos<br />
seres humanos, gente igual a você, iguais entre nós: duas pernas, dois bracinhos, dois olhos, uma língua, um<br />
cérebro, dez dedos na mão, dez no pé..."<br />
Bandidão não estava nem aí para aquela conversa sempre tão óbvia. Entediado, deu um pinote, abandonando<br />
o colo de sua dona. Mas, ainda no ar, enquanto preparava suas patas para uma aterrissagem em segurança,<br />
ouviu sair dos lábios dela, também como um pinote, algo que a garota nunca havia dito: "E quem não tem<br />
duas pernas? Ou não escuta? Ou tem dois olhos, mas um é de vidro? Ou é muito feio? Aí não é gente? Para<br />
ser gente não basta nascer? E os bebês, não são diferentes? Por que vocês insistem em me convencer de que<br />
somos iguais? Gente não é como figurinha, que nós arrumamos em fila, deixando de lado as amassadas e as<br />
rasgadas para decidir o que fazer com elas depois".<br />
Bandidão estava emocionado. Entendera tudo, ora pois pois. A menina não tinha medo de gente. Acuada,<br />
sofria por outras razões. Faltava-lhe era coragem para discordar do pensamento dos adultos.<br />
Confiante por ter conseguido, enfim, explicar sua angústia para os pais, ela experimentou uma sensação<br />
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nova: sentiu pressa, muita pressa de ir para a escola. Pela primeira vez, sentia prazer em ser gente. Dedicou<br />
um último olhar de amor para Bandidão e seguiu pela rua.<br />
Conto de Claudia Werneck, ilustrado por Orlando<br />
Nem Tudo O Que Seu Mestre Mandar!<br />
Rosane Pamplona<br />
Ilustração: Cris Burger.<br />
Xang era um sábio chinês. Seus alunos aceitavam seus ensinamentos sem pestanejar:<br />
- Sim, mestre!<br />
- Eu ouço e obedeço, mestre!<br />
Um dia, Xang resolveu fazer uma viagem com três dos seus fiéis alunos. Instalaram-se numa carroça puxada<br />
por dois burrinhos e lá se foram: nhec, nhec. Xang, já velhinho, logo sentiu sono. Tirou as sandálias e pediu<br />
aos jovens:<br />
- Por favor, me deixem dormir! Fiquem bem quietos!<br />
Dali a pouco roncava. Na primeira curva do caminho, as sandálias dele rolaram pela estrada. Os discípulos<br />
nem se mexeram. Quando o mestre acordou, logo as procurou.<br />
- Rolaram pela estrada - disseram.<br />
- E vocês não pararam a carroça? Não fizeram nada?<br />
- Fizemos sim, senhor. Obedecemos: ficamos bem quietos.<br />
- Ai, está bem - conformou-se o mestre. Mas se eu cochilar de novo prestem atenção se alguma coisa cair da<br />
carroça, ouviram?<br />
- Ouvimos e obedecemos!<br />
Xang cobriu os pés com uma coberta e adormeceu. Entretanto, no balançar da carroça, a coberta deslizou e<br />
lá se foi. O mestre acordou com frio. Mas cadê a coberta? Será que...<br />
- Escorregou pela estrada - confirmaram os três.<br />
- E o que vocês fizeram?<br />
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- Fizemos só que o mestre mandou. Prestamos atenção.<br />
- Não! - esbravejou Xang. Vocês tinham de pegar a coberta de volta! Atenção: se eu dormir e alguma coisa<br />
cair da carroça, peçam para parar e PONHAM-O-QUE-CAIU-DE-VOLTA-NA-CARROÇA, entendido?<br />
- PERFEITAMENTE!<br />
E a viagem continuou: nhec, nhec. O mestre foi cabeceando e cochilou. Dali a pouco, os jumentos sentiram<br />
necessidade de fazer... suas necessidades. Ploft, ploft, ploft, caíram os cocozinhos pelo caminho. Os<br />
discípulos mandaram parar a carroça e, com muito cuidado, foram pondo os fedidos pelotinhos para dentro.<br />
Aquela agitação fez Xang acordar. Nossa, que cheirinho!<br />
- Esperem! O que estão fazendo?<br />
- Apenas obedecendo! - juraramos três. - Pondo de volta o que caiu da carroça.<br />
- Não, mas isso não!<br />
Ai, com aqueles cabeças-duras, só mesmo muita paciência:<br />
- Está bem, vamos começar de novo. Vou fazer uma lista de tudo o que há na carroça. Se algo cair,<br />
verifiquem se está nela. Se não estiver, não peguem de volta, certo?<br />
- Somos pura obediência, ó, mestre!<br />
Xang escreveu a lista. Que canseira! Mas agora podia dormir tranquilo... E a carroça subiu uma estradinha<br />
íngreme. Numa curva mais fechada, ops, quem é que caiu dessa vez? O mestre! Ele escorregou e se foi<br />
ribanceira abaixo.<br />
- Socorro! - gritou - Venham me pegar!<br />
Graças aos céus ele conseguiu se agarrar numa raiz do barranco.<br />
- Ei, o que estão esperando? Me ajudem! - chamou.<br />
Mas os discípulos, imperturbáveis, consultavam a lista.<br />
- Seu nome não está escrito aqui - explicaram. - Não podemos pegá-lo, ó, mestre!<br />
Não teve jeito: Xang, com muito esforço, subiu o barranco e voltou para a carroça. Mas não dormiu mais...<br />
Rosane Pamplona, autora deste conto, é contadora de histórias e professora de Língua Portuguesa.<br />
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O amigo de Juliana<br />
Eva Furnari<br />
Ilustração: Eva Furnari<br />
Juliana tinha um amigo chamado Fungo. Ele morava na casa de bonecas<br />
e conseguia até ajeitar-se bem nas pequenas cadeiras e na caminha azul, apesar de ser mais gordo que elas.<br />
Fungo era talentoso. Escrevia poemas, histórias e desejava ser um grande escritor, porém sentia falta de um<br />
mestre. Juliana, definitivamente, não podia ser esse mestre, pois prendera a escrever havia pouco tempo.<br />
Além do mais, ultimamente a amizade deles andava estremecida, porque Juliana dava mais atenção às<br />
bonecas que a ele. Fungo não entendia qual era a graça que ela via naquelas bonecas mudas, sem cultura e<br />
sem entimentos. Fungo suspeitava que fossem mesmo burras, principalmente aquele boneco Tob, que<br />
parecia uma montanha de músculos inúteis, pois nem se trocar sozinho ele sabia. Era uma dependência total,<br />
um vexame, e Juliana é que precisava trocá-lo toda vez.<br />
Numa certa madrugada, em que Fungo estava sem sono, viu jogado no chão o caderno de Juliana com uma<br />
redação assim:<br />
39
Fungo leu e achou pobre, mal escrito, com cinco erros de português, além da falta de estilo. Num ato de<br />
ousadia arrancou a página e reescreveu a redação do jeito que ele achava que ficava melhor:<br />
Fungo foi dormir orgulhosíssimo de sua redação, feliz com a chance de receber comentários da professora<br />
de Português de Juliana, essa, sim, uma verdadeira mestra.<br />
No dia seguinte, a amiga voltou furiosa da escola e proibiu Fungo de escrever uma linha que fosse em seus<br />
cadernos, pois os colegas da classe tinham achado que ela estava maluca por escrever tais bobagens.<br />
Chateado, Fungo recolheu-se à sua casinha e esperou anoitecer.<br />
Quando Juliana finalmente adormeceu, ele foi silenciosamente até a mochila, apanhou o caderno da menina<br />
e leu o comentário da professora:<br />
Redação muito criativa, cheia de imaginação e bem escrita, precisa apenas caprichar mais na letra. Nota dez.<br />
Fungo adorou, achou o máximo e pensou até em entrar para a escola. Claro, só quando a Juliana se<br />
acalmasse. Talvez pudesse ficar na classe dentro da mochila, já que os adultos com certeza não iriam<br />
entender um monstro culto como ele querendo assistir aula.<br />
Conto de Eva Furnari, ilustrado pela autora.<br />
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Nino quer um amigo<br />
Katia Canton<br />
Ilustração: Sérgio Ramos<br />
Nino, por que você está sempre tão sério e cabisbaixo?<br />
Nino vivia triste. Ele se sentia sozinho. Ninguém queria ser amigo dele.<br />
Pobre Nino.<br />
Um dia, na praia, ele ficou esperançoso de encontrar um amigo.<br />
- Ah, um menino. Quem sabe..., e tentou chegar perto dele.<br />
Mas o menino virou para o lado, cavou um buraco.<br />
E ainda jogou areia no Nino.<br />
Coitado dele.<br />
Outro dia, na escola, ele tentou puxar conversa com uma colega de turma. Olhou para a menina, que era toda<br />
sardenta, uma graça. Esboçou um sorriso e tentou puxar assunto.<br />
Mas estava tão acostumado a ficar calado e sério que as palavras demoraram a sair de sua boca.<br />
A menina bonitinha desistiu de esperar que ele dissesse alguma coisa. Virou-se de costas e foi brincar com<br />
uma amiga.<br />
Tadinho do Nino.<br />
Nem os animais pareciam querer ser seus amigos.<br />
Uma tarde, Nino viu um menino com um cão passeando na praça.<br />
41
Ficou com vontade de agradar o cachorro, mas ficou com medo de que ele mordesse.<br />
Fez um agrado bem tímido.<br />
O cão nem aí para ele.<br />
Que pena, Nino.<br />
Até que um dia, ele tinha desistido de procurar.<br />
Pensando em por que, quanto mais tentava encontrar um amigo, mais sozinho se sentia...<br />
Ficou distraído, pensando, e adormeceu.<br />
Quando acordou, olhou-se no espelho.<br />
Enquanto escovava os dentes, percebeu que fazia muitas caretas.<br />
Achou engraçado. Enxaguou a boca e continuou brincando com o espelho.<br />
Era riso daqui, riso de lá. Era língua do Nino e língua do espelho. Piscadela aqui, piscadela ali. Começou ali<br />
uma verdadeira folia. Era um jogo de reconhecimento entre Nino e sua imagem no espelho. E não é que<br />
Nino era bem engraçadinho? Ele mesmo nunca tinha reparado nisso antes.<br />
Que cara legal era o Nino.<br />
Que garoto charmoso, bem-humorado!<br />
Nino ficou encantado com seu espelho.<br />
Fez-se ali uma grande amizade.<br />
E depois dessa amizade surgiram muitas outras.<br />
Nino hoje é um cara cheio de grandes amigos. Incluindo ele mesmo.<br />
Valeu, Nino.<br />
Conto de Katia Canton, ilustrado por Sérgio Ramos<br />
O amigo secreto - Regina Chamlian<br />
Ilustração: Alexandre Dubiela<br />
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A turma reuniu-se na sala enfeitada. Martinha carregava um pacote enorme, cheio de laços. Suzana e<br />
Antônio conversavam animados. Mariana pediu para Juju começar a brincadeira. Cada um devia explicar<br />
antes por que escolhera o presente para seu amigo secreto.<br />
Quando Juju terminou de falar, um tênis, que mais parecia uma nave espacial, foi parar nas mãos de Felipe.<br />
Este contou por que comprou o CD importado para o Luís. Que explicou por que escolheu a bermuda de<br />
surfista para o Bruno.<br />
— Bruno! — a turma gritou. — Agora é você!<br />
Bruno pôs-se a falar:<br />
— Bom, pessoal, é o seguinte: na primeira semana de dezembro, já tarde da noite, lá em casa, ouvimos um<br />
grito de filme de terror.<br />
Todo mundo saltou da cama: "O que foi? O que foi?"<br />
Minha mãe apontou, soluçando: "A ge-la-de-dei-ra! Ela que-que-brou!"<br />
"O técnico avisou que, se ela enguiçasse de novo, já era", disse meu pai.<br />
"Não faço questão de geladeira", minha irmã falou. "O que não dá é ficar sem computador."<br />
Aí, minha mãe disse: "Se a gente fosse esquimó, jogava a caça sobre a neve, cobria com gravetos pros lobos<br />
não roubarem e pronto. Mas, em pleno verão brasileiro, geladeira é prioridade. Precisamos comprar uma<br />
nova imediatamente".<br />
"E daí?", minha irmã perguntou.<br />
"E daí que o mesmo dinheiro não sai da mesma carteira duas vezes", disse meu pai.<br />
"Então o computador dançou?!", eu perguntei.<br />
Meu pai respondeu: "O computador e outras coisinhas. Nossa geladeira é dúplex, custa mais".<br />
"E o presente do amigo secreto", minha irmã lembrou mais que depressa.<br />
"Bolem um presente criativo e que não custe nada", falou meu pai.<br />
— Foi aí que eu tive a idéia — continuou Bruno, abrindo a mochila e tirando de lá um pequeno pacote.<br />
— Espero que meu amigo secreto goste. Ele é o Rafa.<br />
— Aí, Rafa! Vai lá! — gritou a turma.<br />
Rafa começou a abrir o pacote. O silêncio era total.<br />
— Não acredito que você guardou esta foto, cara! Que idade a gente tinha?<br />
— Mostra! Mostra!<br />
E a foto emoldurada de Bruno e de Rafa, quando tinham 6 anos de idade, foi passando de mão em mão. O<br />
maior sucesso.<br />
— Puxa, Bruno. Só faltou uma coisa — disse Rafa.<br />
— O quê?<br />
— Um abraço, cara. Gosto de você! Bom fim de ano!<br />
Conto de Regina Chamlian, ilustrado por Alexandre Dubiela<br />
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O baú secreto da vovó<br />
Heloisa Prieto<br />
Ilustração: Daniel Bueno<br />
Quando eu era menina e sentia medo, no lugar de chorar, ficava com raiva.<br />
Na noite em que descobri o baú de minha avó, eu estava em Santos. Trovejava muito. Apavorada, comecei a<br />
gritar que odiava o mar. Foi quando minha avó me chamou e disse.<br />
- Minha neta, você sabia que eu tenho um baú cheio de segredos?<br />
- Como assim? Onde?<br />
- Lá no fundo da garagem.<br />
Pronto. Nada como a curiosidade para espantar o medo. Na garagem, vovó o abriu e retirou de dentro dele<br />
uma espécie de régua.<br />
- Você sabe o que é isso?<br />
- Uma régua esquisita - respondi.<br />
- Não, isso é uma palmatória. Quem errasse na escola levava uma batida na palma da mão.<br />
- Não acredito! E por que a senhora guardou este treco horrível?<br />
- Pra lembrar que a gente precisa ser mais forte do que as injustiças. Olhe... meu dedal preferido. Foi com<br />
ele que eu costurei esta roupa - e ela me mostrou um vestidinho com uma espécie de short por baixo.<br />
- Você jogava tênis, vovó?<br />
- Não, isso é um maiô!<br />
- Você nadava de vestido?<br />
- Sim, e era considerada atrevida. Mas foi assim que conquistei seu avô.<br />
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- Nadando de roupa?<br />
- Eu vinha de uma família pobre. Seu avô, não. Ele lia, gostava de dançar.<br />
- E de nadar também?<br />
- Sim, e por isso fiz este maiozinho. Corri até a praia de chapéu. Seu avô estava tomando sol. Fingi que tinha<br />
perdido o chapéu no mar. Ele, como era um cavalheiro, veio me ajudar. O chapéu foi parar no fundo. Então<br />
apostamos uma corrida para ver quem o apanhava. Ele gostou da minha ousadia.<br />
- Foi assim que vocês começaram a namorar?<br />
- E logo me casei. Guardei o dedal pra lembrar que a gente precisa tecer a felicidade, e o maiô, porque um<br />
pouco de coragem não faz mal a ninguém. Olhe esta caixinha de música. Seu avô me deu quando você<br />
nasceu. Não é linda?<br />
Vovó mostrou para mim outros objetos e assim fui descobrindo que se não fosse o mar, que eu temia, não<br />
haveria o encontro de meus avós e que viver é saber perder o medo de tudo o que a gente nunca espera e<br />
nunca vai conseguir controlar.<br />
Conto de Heloisa Prieto, ilustrado por Daniel Bueno<br />
O caso do espelho<br />
Ilustração: Alarcão<br />
Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da<br />
mata.<br />
Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O<br />
homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos:<br />
- Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?<br />
- Isso é um espelho - explicou o dono da loja.<br />
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- Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai.<br />
Os olhos do homem ficaram molhados.<br />
- O senhor... conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante.<br />
O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de<br />
madeira.<br />
- É não! - respondeu o outro. - Isso é o retrato do meu pai. É ele, sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o<br />
cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?<br />
O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho<br />
Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadoso, o<br />
espelho embrulhado na gaveta da penteadeira.<br />
A mulher ficou só olhando.<br />
No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira,<br />
desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em<br />
seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.<br />
- Ah, meu Deus! - gritava ela desnorteada. - É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de<br />
mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes<br />
mais bonita e mais moça do que eu!<br />
- Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no<br />
chão, não tinha feito nem a comida.<br />
- Que foi isso, mulher?<br />
- Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?<br />
- Que retrato? - perguntou o marido, surpreso.<br />
- Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!<br />
O homem não estava entendendo nada.<br />
- Mas aquilo é o retrato do meu pai! Indignada, a mulher colocou as mãos no peito:<br />
- Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um velho lazarento e uma<br />
jabiraca safada e horrorosa?<br />
A discussão fervia feito água na chaleira.<br />
- Velho lazarento coisa nenhuma! - gritou o homem, ofendido.<br />
A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha<br />
chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar pra casa.<br />
- Que é isso, menina?<br />
- Aquele cafajeste arranjou outra!<br />
- Ela ficou maluca - berrou o homem, de cara amarrada.<br />
- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o<br />
que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!<br />
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A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato.<br />
Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo.<br />
Soltou uma sonora gargalhada.<br />
- Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha,<br />
arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu já vi até hoje!<br />
E completou, feliz, abraçando a filha:<br />
- Fica tranqüila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!<br />
Conto popular recontado por Ricardo Azevedo, ilustrado por Alarcão<br />
O dicionário de formas<br />
Ilustração: Patricia Lima. Foto: Eduardo Delfim<br />
Era uma vez eu, Zé Sorveteiro, que me apaixonei por uma princesa que acabara de chegar do outro lado da<br />
Terra. Bolei para ela um dicionário de quatro palavras: bola, quadrado, retângulo, triângulo. Japonês se<br />
escreve com desenhos. Com desenhos a princesa aprenderia português!<br />
Não demorou, ela estava arrasando. Ia até meu carrinho e pedia, desenhando no ar:<br />
- Triângulo-bola.<br />
Sorvete na casquinha! O dicionário funcionava às maravilhas.<br />
Eu? Mandava bilhetes. Desenhava um quadrado com um triângulo em cima e escrevia: casa!!! Caprichava<br />
nos pontos de exclamação. Casa!!! Casa!!! Fácil de entender: casa comigo.<br />
Mas toda princesa tem uma fera para encontrar bilhetes. Uma hora a fera mandou me chamar. Aí…<br />
Aí eu transformei ponto de exclamação em sinal de aguaceiro:<br />
- Um traço com um pingo é chuva. Três - !!! - muita chuva. Casa, chuva, chuva, chuva. Estou só avisando…<br />
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Cuidado com goteiras.<br />
Acabei subindo e limpando as calhas do telhado do futuro sogro e as de cada um de seus amigos e parentes.<br />
Hoje, 60 anos depois, repito, valeu a pena. E lá vou eu apanhar uns triângulos vermelhos para a minha<br />
rainha arrumar no triângulo do retângulo do quadrado da frente. Perfeito. Daqui a pouco a jarra da mesa da<br />
sala estará toda perfumada com os… Como é mesmo? Vá lá! Com os triângulos vermelhos.<br />
Conto de Angela Lago, ilustrado por Patricia Lima. Foto de Eduardo Delfim<br />
O Grande Encontro<br />
Silvana Tavano<br />
Ilustração: Sandro Castelli<br />
Era uma vez um Autor com uma vaga ideia para uma nova história. E como nessa história tinha vaga de<br />
verdade para um grande Personagem, pensou em começar sua busca colocando um anúncio no jornal.<br />
"Procura-se um Personagem disposto a viver aventuras eletrizantes. Não é necessário ter experiência no<br />
tema, mas algumas características serão especialmente consideradas: um certo preparo físico, raciocínio<br />
rápido e personalidade carismática."<br />
O primeiro candidato a se apresentar foi logo dizendo:<br />
- Participei de passagens importantes de muitos livros famosos, imortalizados por personagens estrelados.<br />
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- Ah, parabéns! O senhor tem razão. Os grandes personagens não envelhecem. Mas, se entendi bem, o<br />
senhor nunca foi o protagonista desses enredos, certo? Enfim... É uma pena, mas um coadjuvante de idade<br />
avançada não é o que busco. Desculpe!<br />
Dois dias e muitas páginas amassadas depois, o Autor recebe outro candidato - um tipo muito sincero, mas<br />
bastante imaturo.<br />
-Já passei por muitas imaginações, mas...<br />
- Mas?<br />
-Nunca cheguei ao papel...<br />
- Ah...<br />
- Tenho muito potencial, mas...<br />
- Mas?<br />
- Preciso de alguém que acredite em mim, que me decifre e me revele com todas as letras, entende?<br />
- Você é muito interessante. Mas...<br />
Na semana seguinte, com a cabeça embaralhada e ainda sem um herói à vista, o Autor começa a pensar em<br />
outras possibilidades e, repentinamente, tem uma grande ideia: e se o narrador transformasse a própria<br />
aventura em Personagem? Animado, ele já ia colocar o texto em ação quando o telefone toca.<br />
- Bom dia. Posso falar com o Autor?<br />
- E o senhor é...?<br />
- O Personagem.<br />
- Ah, claro, o anúncio...<br />
- Exato, o anúncio. Muito bem escrito, por sinal.<br />
- ...?<br />
- Quantos livros o senhor publicou?<br />
- ... !?!<br />
- Alô? Alô, o senhor está na linha?<br />
- Sim... Claro, estou ouvindo... Continue, por favor!<br />
- Desculpe! Espero que não me leve a mal, mas preciso saber um pouco mais sobre o seu estilo, como é o<br />
seu processo criativo, quais gêneros o senhor domina, se tem livros premiados... É que não me encaixo com<br />
naturalidade em qualquer texto. Tenho que sentir alguma consistência literária, entende?<br />
O Autor experimentou vários estados de espírito. No início, ficou atônito. Mais que isso, catatônico! Depois,<br />
a palavra certa seria "irritado". Mas, pouco a pouco, foi se sentindo, como dizer?, impressionado! Pois, à<br />
medida em que respondia às perguntas do Personagem, foi se surpreendendo mais e mais com suas próprias<br />
palavras.<br />
No dia seguinte, conversaram de novo. E no outro, outra vez.<br />
Trocaram ideias durante tanto tempo que acabaram se tornando grandes amigos. Anos depois, eram tão<br />
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íntimos que um logo adivinhava o que o outro tinha acabado de pensar e, juntos, inventaram histórias<br />
fabulosas.<br />
Silvana Tavano, autora deste conto, é jornalista, autora de livros infantis e juvenis e escreve no<br />
O pobre cocozinho<br />
Rosane Pamplona<br />
Ilustração: Biry Sarkis<br />
Era uma vez um cocô. Um cocozinho feio e fedidinho, jogado no pasto de uma fazenda.<br />
Coitado do cocô! Desde que veio ao mundo, ele vinha tentando conversar com alguém, fazer amigos, mas<br />
quem passava por ali não queria saber dele:<br />
- Hum! Que coisa fedida! - diziam as crianças.<br />
- Cuidado! Não encostem na sujeira! - avisavam os adultos.<br />
E o cocozinho, sozinho, passava o tempo cantando, triste:<br />
Sou um pobre cocozinho<br />
Tão feinho, fedidinho<br />
Eu não sirvo para nada<br />
Ninguém quer saber de mim...<br />
De vez em quando ele via uma criança e torcia para que ela chegasse perto dele, mas era sempre a mesma<br />
coisa:<br />
- Olha a porcaria! - repetiam todos.<br />
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Não restava nada para o cocô fazer, a não ser cantar baixinho:<br />
Sou um pobre cocozinho<br />
Tão feinho, fedidinho...<br />
Um dia ele viu que um homem se aproximava. Já imaginando o que ia acontecer, o cocozinho se encolheu.<br />
"Mais um que vai me xingar", pensou. Mas... Oh! Surpresa! O homem foi chegando, abrindo um sorriso, e<br />
seu rosto se iluminou:<br />
- Mas que maravilha! Que belo cocô! Era exatamente disso que eu precisava.<br />
O cocô nem acreditava no que estava ouvindo. Maravilha, ele? Precisando?<br />
Aquele homem devia ser maluco!<br />
Pois aquele homem não era maluco, não. Era um jardineiro.<br />
E, usando uma pá, com todo o cuidado, ele levou o cocozinho para um lindo jardim.<br />
Ali, acomodou-o na terra, ao pé de uma roseira. E, depois de alguns dias, o cocozinho percebeu, feliz e<br />
orgulhoso, que, graças a sua força, a roseira tinha feito brotar uma magnífica rosa vermelha, bela e<br />
perfumada.<br />
Conto de Rosane Pamplona, ilustrado por Biry Sarkis<br />
O Sol Azul<br />
Ilustração: Jaca<br />
A professora pediu para todo mundo fazer um desenho. O Beto abriu o caderno, cheinho de folhas brancas.<br />
Bateu o olho no giz de cera azul, pegou e fez um Sol. E o sol pode ser azul?<br />
Claro! E sabe o que mais? Também pode ser verde, rosa, vermelho e até cinza com bolinhas roxas. No céu<br />
de verdade, o Sol parece que é amarelo, mas isso é no céu de verdade! No papel, pode de todo jeito.<br />
O que não pode é ter preguiça de imaginar.<br />
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Na imaginação, o Sol pode ser diferente. A menina também. Ela pode ter laço de fita ou chapéu na cabeça.<br />
Pode ter cabelo comprido, curto, solto ou preso - e até ser careca! O menino pode ser grande ou pequeno,<br />
sério ou risonho, colorido por dentro ou levar só um contorno de lápis preto.<br />
A imaginação não dá muita bola para a realidade, não. Ela é mais amiga da fantasia, da liberdade, da arte e<br />
da vontade!<br />
O Beto aproveitou o sol azul e fez uma árvore amarela. Ele achou que ficou bonito. E não é que ficou<br />
mesmo? Lembra até o quadro que tem na casa da tia dele. Para você que não viu o quadro, vou contar<br />
como é.<br />
Tinha o desenho de uma mulher - mas que mulher esquisita aquela! Além de amarela, ela voava! Mas espere<br />
um pouco: não era uma mulher, era um quadro. O quadro que ficava na casa da tia do Beto, lembra? E<br />
quadro é que nem papel que a gente usa para desenhar: pode ter as coisas do jeitinho que a gente costuma<br />
ver. Mas também vale ter gente amarela e que voa!<br />
O Beto olhou para o papel: ele tinha agora um sol azul, uma árvore amarela e até uma nuvem em forma de<br />
flor. A nuvem parecia voar no caderno, mas ela voava na cabeça do Beto, onde cabia muito mais.<br />
- <strong>Prof</strong>essora, o Beto fez um sol azul! - gritou o João do fundo da sala.<br />
O Beto então contou para o João que já tinha visto um quadro com uma mulher amarela e que voava.<br />
Quando a professora chegou até os dois, o João tinha desenhado uma montanha listrada. Aposto que você<br />
nunca viu uma montanha listrada. Mas o João, na cabeça dele, já.<br />
Liliane Prata, autora deste conto, é jornalista e escreve no blog Lili Prata. Em 2003, lançou o primeiro<br />
livro, O Diário de Débora (Editora Marco Zero).<br />
O temporal no Amazonas<br />
Thiago de Mello<br />
Ilustração: Ciça Fittipaldi<br />
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Passamos o dia em Ponta Alegre, aldeia dos índios Maués, banhada pelo rio Andirá. Muito<br />
aprendi com o jovem tuchaua, conhecedor de ervas mágicas e amigo das estrelas. Ao entardecer, saímos de<br />
canoa com motor de popa, ao rumo da Freguesia, pequenina comunidade no coração da floresta. Era tempo<br />
de cheia. Soprava de leve o vento geral. Éramos quatro a bordo. Viajávamos rente à margem abarrancada, já<br />
na metade do percurso, quando, de repente, o temporal desabou.<br />
"Este vai ser dos medonhos", disse sereno, lá na popa, onde manejava o motor, Morón, um índio meu amigo.<br />
Junto a ele, no chão da canoa, o seu filho menino, todo encolhido de frio. Lembro-me de que, antes de<br />
escurecer totalmente, do banco da frente onde eu viajava, virei-me e vi o brilho intenso dos seus olhos<br />
enormes. Era o pavor. Na proa, sem camisa, o<br />
cabloco Jari, morador da Freguesia.<br />
Enfrentamos o temporal em silêncio, solidários. A correnteza crescia, a canoa se balançava na alta crista das<br />
ondas, depois se despencava com fragor. A chuva nos vergastava por todos os lados. Houve um momento<br />
em que não vimos mais nada. Repetidas vezes a<br />
proa tocava num tronco. O baque surdo, a canoa parecia que ia virar. Morón inclinava o motor para a frente,<br />
de jeito que a hélice ficasse fora da água.<br />
Só os relâmpagos nos ajudavam, cortando o céu de um lado a outro: a luz fugaz nos mostrava um tronco<br />
enorme, um pedaço de árvore ainda com ramos frescos, já quase em cima de nós. O índio, ágil e calado,<br />
desviava a canoa num golpe de leme. A escuridão era tanta que eu sequer enxergava a minha mão aberta a<br />
centímetros do meu rosto. Mesmo assim, em alguns instantes, tive a certeza de que o piloto conseguia<br />
distinguir, dentro da treva espessa, alguma coisa das águas e das margens. Um filho da floresta.<br />
A tempestade cessou pouco antes de chegarmos à Freguesia. E duas coisas aconteceram que eu preciso<br />
contar. A primeira é que, de repente, demos com várias canoas vindo em nossa direção. Eram homens e<br />
mulheres daquele pedaço verde do mundo, certos de que deveríamos chegar no começo da noite e nossa<br />
tardança já era tanta, nos sabiam surpreendidos pelo temporal e decidiram ir ao nosso encontro, para nos<br />
salvar. Quando nos viram, foi um imenso e prolongado grito de alegria, saído de todas as bocas. Do<br />
coração solidário. A segunda coisa é que depois do temporal o céu acendeu as suas estrelas, perdão, todas as<br />
suas estrelas, que brilhavam enormes, pairando soltas no campo da noite.<br />
Conto de Thiago de Mello, ilustrado por Ciça Fitipaldi<br />
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O tesouro no quintal<br />
Moacyr Scliar<br />
Ilustração: Alexandre Camanho<br />
Era uma família grande, a nossa: pai, mãe, cinco filhos. Grande e pobre. Papai, pedreiro, mal conseguia nos<br />
sustentar. Mamãe ajudava como podia, fazendo faxinas e costurando para fora, mas mesmo assim a vida era<br />
bastante difícil. Papai vivia bolando formas de reforçar nosso orçamento doméstico ou de, pelo menos,<br />
diminuir as despesas. Foi assim que lhe ocorreu a idéia da horta.<br />
Morávamos numa minúscula casa de subúrbio, não longe de uma bela praia, que, contudo, raramente<br />
freqüentávamos: era lugar de ricos. Casa pobre, a nossa, sem nenhum conforto. Mas, por alguma razão, tinha<br />
um quintal bastante grande. Do qual, para dizer a verdade, não cuidávamos. O capim ali crescia viçoso e no<br />
meio dele jaziam, abandonados, pneus velhos, latas, pedaços de tijolos e telhas. Papai olhava para aquilo,<br />
pesaroso: parecia-lhe um desperdício de espaço e de terra. Um dia chamou os dois filhos mais velhos, meu<br />
irmão Pedro e eu próprio, e anunciou: vamos fazer uma horta neste quintal.<br />
Proposta mais do que adequada. Nós quase não comíamos legumes e verduras, porque eram muito caros.<br />
Mas, se plantássemos ali tomate, alface, agrião, cenoura, teríamos uma fonte extra de alimento - e o mais<br />
importante, sem custo.<br />
Sem custo, mas não sem trabalho. Para começar, teríamos de capinar aquilo tudo e revirar a terra para depois<br />
plantar e colher. Meu pai não hesitou: vocês dois, que são os mais velhos, vão fazer isso.<br />
Não gostamos muito da determinação. Não éramos preguiçosos, mas preparar a terra para fazer uma horta<br />
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não era bem o nosso sonho e representaria um grande esforço. Contudo, não tínhamos alternativa. Quando<br />
papai dava uma ordem, era para valer. E, no caso, ele tinha o decidido apoio da mamãe, que era de uma<br />
família de agricultores e gostava de plantar.<br />
Quem prepararia a terra? Foi a pergunta que fiz ao Pedro, que, além de mais velho, era o líder entre os<br />
irmãos. Pergunta para a qual ele já tinha a resposta:<br />
- Isso é coisa para o Antônio.<br />
Antônio era o irmão do meio. Com 9 anos, era um menino quieto, sonhador. Mas não era muito do batente,<br />
de modo que fiquei em dúvida: como convencê-lo a fazer o trabalho?<br />
- Deixa comigo - disse Pedro, que se considerava muito esperto. - Eu sei como convencer o cara.<br />
E sabia mesmo. Porque Pedro era dono de uma lábia fantástica, argumentava como ninguém. Ah, sim, e<br />
sabia contar histórias - inventadas por ele, claro. Era com uma história que pretendia motivar o Antônio a<br />
capinar o pátio.<br />
Eu estava junto, quando ele contou a tal história. Era uma boa história: segundo um famoso professor,<br />
séculos antes piratas franceses haviam andado pela nossa região<br />
e ali haviam enterrado um tesouro. Expulsos pelos portugueses, nunca mais tinham retornado, de modo que<br />
a arca com jóias e moedas de ouro ainda estava no mesmo lugar,<br />
que podia ser o pátio de nossa casa.<br />
- O tesouro será a nossa salvação - concluiu Pedro , entusiasmado.<br />
Antônio estava impressionado. Se havia coisa em que acreditava, era em histórias. Aliás, estava sempre<br />
lendo - era o maior freqüentador da biblioteca do colégio.<br />
- Quem sabe procuramos esse tesouro? - perguntou ele.<br />
Era exatamente o que Pedro queria ouvir.<br />
- Se você está disposto, eu lhe arranjo uma enxada...<br />
Antônio mostrava-se mais do que disposto. No dia seguinte, um feriado, lá estava ele, enxada em punho,<br />
cavando a terra, diante do olhar admirado da família. Papai até perguntou o que tinha acontecido.<br />
- Ele se ofereceu para fazer o trabalho - disse Pedro, dando de ombros.<br />
Para encurtar a história: tesouro algum apareceu, mas, um mês depois, tínhamos uma horta no quintal.<br />
Antônio acabou descobrindo a trama de Pedro, mas não ficou zangado. Inspirado pelo acontecimento,<br />
escreveu uma história, com a qual ganhou um prêmio literário da prefeitura. Uma boa grana, que ele usou<br />
para comprar livros. Hoje é um conhecido jornalista e escritor. Acho que ele acabou, mesmo, encontrando o<br />
tesouro.<br />
Conto de Moacyr Scliar, ilustrado por Alexandre Camanho<br />
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O Trem das Águas<br />
Bem lá dentro da Floresta Amazônica, onde as árvores são tão altas que chegam nas<br />
nuvens e as folhas da mata são tão grandes que poderíamos morar embaixo delas, vivia uma cobra gigante<br />
chamada Cobra Gil. Quando caía a noite, os insetos faziam tanto barulho que Cobra Gil acordava. Saía de<br />
seu buraco-casa, espichava todo o corpo e dava um bocejo tão comprido, soltando um som tão grosso, que<br />
todos os bichos ficavam quietinhos de medo. Até a onça se encolhia em sua toca, apavorada. E Cobra Gil,<br />
cansada de dormir, saía para dar seu rotineiro passeio noturno.<br />
Quando os bichos percebiam que era Cobra Gil - a maior da floresta - que estava saindo para nadar, pediam<br />
para subir nas suas costas. Então ela nadava rio acima parecendo um trem, pois carregava pássaros,<br />
macacos, tucanos, sapos, besouros, cigarras, formigas e lagartos. Na cabeça iam os vaga-lumes iluminando o<br />
caminho. Os jacarés e os pescadores, quando viam aquele monstro com a cabeça iluminada e o corpo que<br />
piava, gritava, zumbia e coachava, diziam:<br />
- Fujam! Fujam todos! Vem chegando o trem da assombração com a cabeça de fogo!<br />
Quem é<br />
Fernando Vilela, autor e ilustrador deste conto, é artista plástico, designer e<br />
professor de Arte em São Paulo. Lampião & Lancelote (52 págs., Ed. CosacNaify, seu livro mais recente,<br />
levou o Prêmio Jabuti de 2007 em três categorias. Seu trabalho pode ser visto em<br />
www.fernandovilela.com.br.<br />
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Para contar estrelas<br />
Dieter Mandarin<br />
-Pai, como é que a gente conta estrelas do céu?, perguntou Lelê. O pai, baixando o jornal, foi logo fazendo<br />
pose de explicação.<br />
- Bem, existem equipamentos especiais para isso. Eles tiram fotos do céu e fazem medições. E tem o<br />
Hubble, que é o bambambã dos telescópios! Mas só os cientistas podem usá-lo. Então, cada um conta com o<br />
que tem à mão.<br />
- Ah!, disse Lelê com admiração, mesmo sem ter entendido muito bem (ele ainda estava no segundo ano).<br />
A mãe o chamou na cozinha para um lanche. Ele se sentou à mesa pensando ainda no que o pai tinha dito.<br />
Decidiu perguntar para ela também.<br />
- Isso seu pai deve saber. Por que não pergunta para ele?<br />
- Já perguntei. Ele falou várias coisas, mas não entendi direito: o que cada um tem nas mãos e...<br />
- Ora, nas mãos a gente tem dedos! Por que você não conta nos dedos?, disse a mãe, que era bem mais<br />
esperta que o pai nos assuntos práticos.<br />
- Hum..., pensou Lelê. Assim eu sei! E foi logo devorando o sanduíche.<br />
Uns minutinhos depois, Lelê já estava no quintal. Olhava para o alto, bem fundo no céu de estrelas. Para<br />
começar, mirou a mais brilhante e passou a contar em voz alta: Um... Dois... Três..., recolhendo um dedo de<br />
cada vez. Chegou até dez. Olhou para as mãos, olhou para o céu.<br />
Suspirou. O problema é que ele tinha só dez dedos, e o céu tinha muito mais estrelas.<br />
Desanimado, sentou-se na varanda, apoiando o queixo nas mãos.<br />
Sua avó, que sempre observava tudo bem quietinha, foi lá falar com ele.<br />
- O que foi, filho?<br />
- Nada...<br />
- Hum. Sabe, eu conheço um jeito de fazer caber todas as estrelas na mão, de uma só vez.<br />
Lelê olhou desconfiado, mas ficou atento, esperando o resto da história.<br />
- Está vendo as estrelas lá em cima? São tão pequenininhas, não é mesmo? Pois então. Basta você olhar bem<br />
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para elas, como se fossem grãozinhos de areia. Daí você passa a mão, assim, por todo o céu, como se<br />
estivesse varrendo, e fecha de uma vez no fi nal! Depois, chacoalha bem e põe em cima do coração, pegando<br />
emprestado um pouco da luz delas.<br />
Ela deu então uma piscadela e foi se levantando para entrar em casa.<br />
Lelê percebeu uma emoção estranha no peito, sentiu uma saudade imensa da avó, queria que ela morasse<br />
com ele para sempre.<br />
Desde então, sempre que tinha vontade, Lelê contava todas as estrelas do céu. E num punhado só.<br />
Dieter Mandarin, autor deste conto, é psicanalista, professor da Faculdade Horizontes, em São Paulo, SP, e<br />
criador do blog dietermandarin.blogspot.com.<br />
Ilustrado por Alexandre Camanho.<br />
Paradoxos<br />
Patrícia Engel Secco<br />
Ilustração: Clouds<br />
A vida parecia cada vez mais complicada para Alberto. Não ruim, pelo contrário, mas cada vez mais difícil.<br />
Há alguns anos, ele não tinha com o que se preocupar... Bastava se entregar aos estudos e às descobertas.<br />
Ah! Como ele estava seguro em meio aos seres invertebrados, aos redemoinhos, às constelações, aos tubos<br />
de ensaio e aos elementos químicos...<br />
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A cada dia que passava, Alberto compreendia mais e mais as razões e o funcionamento de tudo no mundo.<br />
Tudo.<br />
A formação do Universo, estrelas anãs e gigantes brancas, buracos negros, novos planetas e até mesmo um<br />
novo anel em algum planeta conhecido... Nada passava despercebido para Alberto, que, sem ter muito tempo<br />
para atividades que não levassem a alguma conclusão científica, não participava dos jogos do recreio e não<br />
usava, de maneira nenhuma, a internet para o lazer e para o diletantismo, atitude que ele considerava<br />
simplesmente ultrajante!<br />
Então por que dentre todos os jovens da escola justamente ele tinha sido o escolhido pela mais linda e<br />
encantadora menina do grupo?<br />
A vida parecia, sim, mais estranha para Alberto, que, sem entender o porquê de seu comportamento, ficou<br />
quase duas horas tentando montar uma imagem real da atmosfera de Saturno, que, recentemente,<br />
descobriram ser colorida devido aos gases que a compõem. Uma imagem bela o suficiente para tocar o<br />
coração de qualquer menina!<br />
Duas horas perdidas tentando montar uma foto enquanto o mundo científico estava em polvorosa com o<br />
registro de uma colisão de galáxias! E ele ainda assim tinha certeza de que o tempo perdido tinha valido a<br />
pena!<br />
Alberto guardou com carinho a fotografia em uma pasta e seguiu o caminho da escola, pensando em uma<br />
deliciosa frase de seu ídolo maior, Einstein, que naquele momento lhe servia de consolo: "A verdade<br />
científica é sempre um paradoxo se julgada pela experiência cotidiana, que se agarra à aparência efêmera<br />
das coisas".<br />
De acordo com Einstein, são paradoxos a Terra se mover em torno do Sol e a água ser constituída por dois<br />
gases altamente inflamáveis...<br />
Quem sabe decifrar paradoxos tão grandes como este que ele está vivenciando: saber que tudo o que lhe<br />
interessa na vida são as explicações científicas e que não existe explicação científica para o que mais lhe<br />
interessa neste momento, o amor.<br />
Conto de Patrícia Engel Secco, ilustrado por Clouds<br />
59
Perdidos na excursão<br />
Fanny Abramovich<br />
Ilustração: Biry<br />
Marquito desabou na poltrona. Completamente moído. Exausto! Agarrou o telefone, ligou pro Tiagão. Dos<br />
dois lados do fio, só queixas e reclamações. E altos xingos.<br />
Bocas raivosas, por nada ter dado certo. Só confusão durante a excursão inteira.<br />
Marquito relembrou a saída orgulhosa. Um final de semana ecológico-aventureiro. Certeza de voltar<br />
triunfantes! Muito pra contar e pra exibir. Turma animada e a fim de descobrir o esconderijo-paraíso dos<br />
micos-leões-dourados. Tiagão ouvia rindo. Logo enfezou. Lembrou da primeira desviada. Um caminho<br />
lindo que deu numa cachoeira despencante. Puladas, procuras, nadadas, volta estropiada pra estrada<br />
arrebentada... Depois, só mancadas... A chuva desviante da trilha. A paralisada hesitante se era pra virar à<br />
direita ou à esquerda. Os em-frente-marche dando em barreiras fechadas, sem brecha pra passagem. As<br />
voltas, semivoltas, voltas inteiras. A parada pra comilança quase dentro duma fazenda murada e o dono<br />
surgindo com as armas em punho... Horror total!!<br />
Marquito parou de sorrir. Partiu pros desabafos gritados. A armação das tendas no escuro e a descoberta<br />
rápida de o lindo lugar estar cercado de cobras... Berros desesperados! O dar de cara com uma margem do<br />
rio sem nenhuma ponte para cruzar... O medaço de se afogar atravessando a pé.<br />
Tiagão espirrou. Gripou bravo. Desligou avisando que foi a primeira e última excursão ecológica. Pra ele,<br />
fim de papo. Marquito resmungou enfezado. Jurou jurado. Outra, só sabendo antes por onde ia pisar.<br />
Chegava de perder tempo, perder a paciência, perder o ânimo.<br />
Conto de Fanny Abramovich, ilustrado por Biry<br />
60
Pontos de vista<br />
João Anzanello Carrascoza<br />
Ilustração: Biry<br />
Os sinais de pontuação estavam quietos dentro do livro de Português quando estourou a discussão.<br />
- Esta história já começou com um erro - disse a Vírgula.<br />
- Ora, por quê? - perguntou o Ponto de Interrogação.<br />
- Deveriam me colocar antes da palavra "quando" - respondeu a Vírgula.<br />
- Concordo! - disse o Ponto de Exclamação. - O certo seria: "Os sinais de pontuação estavam quietos dentro<br />
do livro de Português, quando estourou a discussão".<br />
- Viram como eu sou importante? - disse a Vírgula.<br />
- E eu também - comentou o Travessão. - Eu logo apareci para o leitor saber que você estava falando.<br />
- E nós? - protestaram as Aspas. - Somos tão importantes quanto vocês. Tanto que, para chamar a atenção, já<br />
nos puseram duas vezes neste diálogo.<br />
- O mesmo digo eu - comentou o Dois Pontos. - Apareço sempre antes das Aspas e do Travessão.<br />
- Estamos todos a serviço da boa escrita! - disse o Ponto de Exclamação. - Nossa missão é dar clareza aos<br />
textos. Se não nos colocarem corretamente, vira uma confusão como agora!<br />
- Às vezes podemos alterar todo o sentido de uma frase - disseram as Reticências. - Ou dar margem para<br />
outras interpretações...<br />
- É verdade - disse o Ponto. - Uma pontuação errada muda tudo.<br />
- Se eu aparecer depois da frase "a guerra começou" - disse o Ponto de Interrogação - é apenas uma<br />
pergunta, certo?<br />
- Mas se eu aparecer no seu lugar - disse o Ponto de Exclamação - é uma certeza: "A guerra começou!"<br />
- Olha nós aí de novo - disseram as Aspas.<br />
61
- Pois eu estou presente desde o comecinho - disse o Travessão.<br />
- Tem hora em que, para evitar conflitos, não basta um Ponto, nem uma Vírgula, é preciso os dois - disse o<br />
Ponto e Vírgula. - E aí entro eu.<br />
- O melhor mesmo é nos chamarem para trazer paz - disse a Vírgula.<br />
- Então, que nos usem direito! - disse o Ponto Final. E pôs fim à discussão.<br />
Conto de João Anzanello Carrascoza, ilustrado por Biry<br />
Recado de fantasma<br />
Flavia Muniz<br />
Ilustração: Rogério Nunes<br />
Tudo começou quando nos mudamos para aquela casa. Era um antigo sobrado, com<br />
uma grande varanda envidraçada e um jardim. Eu me sentia tão feliz em morar num lugar espaçoso como<br />
aquele, que nem dei atenção aos comentários dos vizinhos, com quem fui fazendo amizade. Eles diziam que<br />
a casa era mal-assombrada. Alguns afirmavam ouvir alguém cantando por lá às sextas-feiras.<br />
- Deve ser coisa de fantasma! - falavam.<br />
- Se existe, nunca vi! - E então contava a eles que as casas antigas, como aquela, com revestimentos e<br />
assoalho de madeira, estalam por causa das mudanças de temperatura. Isso é um fenômeno natural,<br />
conforme meu pai havia me explicado. Mas meus amigos não se convenciam facilmente. Apostavam que<br />
mais dia menos dia eu levaria o maior susto.<br />
62
Certa noite, três anos atrás, aconteceu algo impressionante. Meus pais haviam saído e eu fiquei em casa com<br />
minha irmã, Beth. Depois do jantar, fui para o quarto montar um quebra-cabeça de 500 peças, desses bem<br />
difíceis. Faltava um quarto para a meia-noite. Eu andava à procura de uma peça para terminar a metade do<br />
cenário quando senti um ar gelado bem perto de mim. As peças espalhadas pelo chão começaram a tremer.<br />
Vi, arrepiado, cinco delas flutuarem e depois se encaixarem bem no lugar certo. Fiquei tão assustado que<br />
nem consegui me mexer. Só quando tive a impressão de ouvir passos se afastando é que pude gritar e sair<br />
correndo escada abaixo. Minha irmã tentou me acalmar, dizendo que tudo não passava de imaginação, mas<br />
eu insisti e implorei que ela viesse até o quarto comigo. Uma segunda surpresa me esperava: o quebra-<br />
cabeça estava montado, formando a imagem de uma casa com um jardim bem florido. No entanto, meu jogo<br />
formava o cenário de uma guerra espacial, eu tinha certeza!<br />
No dia seguinte, fui até a biblioteca pesquisar o tema. Eu e Beth encontramos dúzias de livros que tratavam<br />
de fatos extraordinários e aparições. E a explicação para eventos desse tipo foi a seguinte:<br />
------------------------------------ -----------------------------<br />
*<br />
-----------------------------------------------------------------<br />
Hoje minha casa tem o jardim mais bonito da rua. Centenas de lindas margaridas brancas florescem a maior<br />
parte do ano (para total espanto da vizinhança). O fantasma? Nunca mais vi. Decerto passeia feliz pelo<br />
jardim, nas noites de lua cheia.<br />
*Espaço reservado para a imaginação da turminha<br />
Conto de Flavia Muniz, ilustrado por Rogério Nunes<br />
63
Rota de colisão<br />
Tatiana Belinky<br />
Ilustração: Odilon Moraes<br />
Naquela sexta-feira 13, à meia-noite, teria lugar a 13ª Convenção Internacional das Bruxas, numa ilha super-<br />
remota no Centro do Umbigo do Mundo, muito, muito longe.<br />
Os preparativos para a grande reunião iam adiantados. A maioria das bruxas participantes já se encontrava<br />
no local - cada qual mais feia e assustadora que a outra, representando seu país de origem. Todas estavam<br />
muito alvoroçadas, ou quase todas, porque ainda faltavam duas, das mais prestigiadas: a Witch inglesa e a<br />
Baba-Yagá russa.<br />
Estavam atrasadas de tanto se enfeiarem para o evento. Quando se deram conta da demora, alarmadíssimas,<br />
dispararam a toda, cada uma em seu veículo particular, para o distante conclave. A noite era tempestuosa,<br />
escura como breu, com raios e trovões em festival desenfreado.<br />
Naquela pressa toda, à luz instantânea de formidável relâmpago, as bruxas afobadas perceberam de súbito<br />
que estavam em rota de colisão, em perigo iminente de se chocarem em pleno vôo! Um impacto que seria<br />
pior do que a erupção de 13 vulcões! E então, na última fração de segundo antes da batida fatal, as duas<br />
frearam violentamente seus veículos! Mas tão de repente que a possante vassoura de Witch se assustou e<br />
empinou como um cavalo xucro, quase derrubando sua dona. Enquanto isso, a Baba-Yagá conseguiu desviar<br />
seu famoso pilão para um vôo rasante, por pouco não raspando o chão!<br />
Mal refeitas do susto, as duas "pilotas" bruxais se encararam raivosas:<br />
64
- Bruaca irresponsável! Quase causas um estrago com o excesso de velocidade da tua estúpida vassoura!<br />
- Estúpido é o teu tosco pilão "trambolhudo", incompetente!<br />
E o bate-boca já ia esquentar perigosamente quando um morcego notívago guinchou, irônico:<br />
- Cuidado, gracinhas desastradas! Vão perder a hora! E será bem feito. Voar no escuro é coisa de morcego,<br />
não de bruxas bobas em seus veículos rústicos, e ainda por cima, sem radar!<br />
As bruxas caíram em si e, esquecendo a briga, saíram chispando, agora na mesma direção.<br />
Foram para o local do grande conclave, onde conseguiram aterrissar em cimíssima da última hora, tendo<br />
apenas de agüentar uma humilhante e rápida repreensão - só com o rabo em ponta de flecha - do Demônio<br />
Chifrudo, presidente do evento.<br />
E a Convenção Internacional das Bruxas começou sem atraso, superagitada, cheia de som e de fúria, para<br />
show de rock nenhum botar defeito.<br />
E terminou em... Mas não dá para relatar como terminou - porque nenhuma das participantes concordou em<br />
conceder entrevista a esta repórter especial, Anaitat Yknileb.<br />
Conto de Tatiana Belinky, ilustrado por Odilon Moraes<br />
Se assim é, assim será?<br />
Silvinha Meirelles<br />
Ilustração: Ana Raquel<br />
65
Tudo era bem normal lá em Santantônio da Lamparina.<br />
As crianças iam para a escola enquanto os pais trabalhavam. Todos riam, se divertiam e às vezes ficavam<br />
bem tristes também. Tomavam banho, soltavam pum e tinham coceira no pé, como toda gente em qualquer<br />
parte.<br />
Só tinha um detalhe, mínimo, insignificante, que deixava tudo com cara de esquisito e diferente: lá, o dia era<br />
escuro como a noite, e quando era noite era noite também.<br />
Os moradores estavam acostumados. Viviam à sombra da Lua, estudavam à luz de abajur, sabiam<br />
brincadeiras de escuro: gato-mia, cabra-cega, detetive...<br />
Os mais velhos diziam que lá sempre foi assim e que, se é assim, assim será até o fim. Sentiam-se cansados<br />
de imaginar como seria viver num lugar claro e diferente. Os mais jovens sonhavam e diziam que conhecer<br />
o Sol era o maior desejo que tinham no mundo, no universo. Um desejo infinito.<br />
Por que ninguém pensava em se mudar dali? Porque lá havia o mais lindo luar e o mais delicioso banho de<br />
mar e um povo com um sonho em comum. Às vezes, coisas assim são suficientes para nos fazer ficar.<br />
Num dia noite, chegou um, chegaram dois e mais três ou cinco equilibristas. Era uma família de artistas!<br />
Enquanto uns tocavam, os outros faziam lances incríveis, coisa de especialista!<br />
Há muito tempo o vilarejo não recebia visita tão animada. Os equilibristas estavam acostumados a se<br />
apresentar até o Sol raiar e estranharam: já se sentiam cansados e nada de o dia clarear.<br />
- O Sol não vai aparecer?<br />
E foi assim que souberam que em Santantônio da Lamparina o dia era tão escuro como a noite e que já<br />
estavam acordados fazia dois dias e meio.<br />
- Daí o nome da cidade?<br />
- Daí o nome.<br />
- Mas por que é assim?<br />
- Diz meu avô que o avô dele dizia que o seu tataravô ensinou que é assim porque sempre foi assim e assim<br />
será até o fim!<br />
Os artistas acharam aquela explicação meio fraquinha, de quem já cansou de procurar solução. Avisaram<br />
que por cinco dias escuros e quatro noites noites treinariam um novo número exclusivo e então voltariam<br />
para o espetáculo de despedida!<br />
Voltaram.<br />
Voltaram com o número mais arriscado e sensacional de equilíbrio, coragem e precisão já visto em toda a<br />
história da humanidade!<br />
Precisaram de muita concentração. Foram subindo, um sobre o outro e sobre o outro e sobre o outro e sobre<br />
outro ainda... Até que o menino equilibrista mais levinho e muito craque, com o braço bem esticado, atingiu<br />
o céu. Com a ponta do dedo fez um picote. Um pequeno rasgo no céu, por onde passou um facho de luz.<br />
Era mínimo, mas suficiente para iluminar de alegria e expectativa cada santantonio-lamparinense. Podiam<br />
saber como era o Sol, a luz e o calor que vinham do céu.<br />
66
Devagar o rasgo foi aumentando, sozinho, como furo de meia velha, que vai crescendo até virar um rombo...<br />
E um dia, Santantônio da Lamparina amanheceu toda e completamente iluminada! Os moradores, que nem<br />
tinham venezianas e cortinas, acordaram sobressaltados com tanta luz.<br />
Festejaram até o Sol raiar outra vez.<br />
Até hoje, não se cansam de ver o Sol nascer e depois o Sol se pôr e de novo o Sol nascer e mais uma vez o<br />
Sol se pôr. Acham graça, agradecidos.<br />
Conto de Silvinha Meirelles, ilustrado por Ana Raquel<br />
Se a terra não existisse, a gente pisava onde?<br />
Ricardo Azevedo<br />
Tênis é de lona e<br />
borracha. Cueca é de<br />
pano e elástico.<br />
Caderno é de arame e<br />
folha de papel.<br />
Televisão é de plástico<br />
com uma antena em<br />
cima e uma tela na<br />
frente.<br />
Casa é feita de telhado,<br />
parede, piso, porta e<br />
janela. Vaca é de couro,<br />
chifre e quatro tetas<br />
pingando leite. Cachorro é um ônibus peludo cheio de pulgas. Ser humano é feito de carne, osso, coração e<br />
idéias na cabeça.<br />
E o mundo em que vivemos?<br />
O mundo é um monte de terra cercada de água por todos os lados.<br />
A água é o mar, o rio, o lago, a chuva, a poça, a lágrima e o cuspe.<br />
A terra é a terra mesmo.<br />
Tem gente que pensa que terra só serve para cavar buraco no chão, para ser hotel de minhoca, para enfiar<br />
poste de luz ou então para sujar o pé de lama em dia de chuva, mas não é nada disso.<br />
Se não fosse a terra, a gente pisava onde?<br />
Se não fosse a terra, a gente construía nossa casa onde?<br />
67
E as cidades? E as estradas? E os campinhos de futebol?<br />
Sem a terra a gente não ia jogar bola nunca mais!<br />
Uma vez eu tive um sonho. Sonhei que estava dormindo com vontade de fazer xixi. Continuei sonhando e<br />
pulei da cama. Pobre de mim! Quando pisei no chão, descobri que naquele sonho não existia chão. Lá fui eu<br />
caindo, despencando, voando, esvoaçando. O mundo ali era um lugar sem terra, por isso tudo vivia boiando<br />
no ar. Saí do quarto, fui voejando, passei pela sala cheia de cadeiras, móveis e mesas voando e cheguei no<br />
banheiro. Lá dentro, o chuveiro, a pia e a privada pareciam umas coisas brancas flutuando no espaço. Fui<br />
tentar fazer xixi, mas a privada não parava quieta. A vontade apertava cada vez mais. Tentei fazer pontaria,<br />
caprichei na mira, mas não deu. No fim, o sonho acabou. Acordei todo molhado com meu irmão, lá<br />
embaixo, gritando socorro. Acontece que a gente dorme em cama beliche, eu em cima e ele embaixo.<br />
Meu irmão me xingou de tudo quanto foi nome. Expliquei a ele que se não fosse a terra firme o beliche<br />
estaria voando e aí, sim, ia ser muito pior.<br />
Pensando bem, a terra é a coisa mais importante do mundo em que vivemos. Ela é o solo, o chão, a gleba, o<br />
piso, o porto, o lugar onde a gente fica em pé e constrói a vida.<br />
Para falar a verdade, a terra é uma espécie de mãe. A mãe de todos nós.<br />
De onde vêm as árvores para dar sombra e segurança? Da terra.<br />
De onde vêm as frutas para a gente chupar? Da terra.<br />
De onde vem a nascente do rio? E a flor? E o passarinho? E a onça? E a tartaruga? E a borboleta? E o<br />
macaco? E o besourinho? E todos os bichos do mundo inteiro menos os peixes e as estrelas-do-mar?<br />
Sem a terra, não ia ter nem milho, laranja, caqui, jabuticaba, banana, pêra, uva, cacau, pitanga, mexerica,<br />
romã, maçã, abacate, melancia, abacaxi, nem amendoim nem nada.<br />
O mundo ia ser só um monte de coisa nenhuma cercado de água para todos os lados.<br />
Mas a terra tem seus truques. Ela não gosta de ser maltratada, não senhor!<br />
Quando fazem queimadas ou destroem o mato ou enchem o chão de lixo e porcaria a terra fica triste vira<br />
deserto, corpo árido, seco, estéril, que não dá mais nada.<br />
Ela, que era generosa, formosa, úmida, florida, risonha, fofa, macia, fértil, cheia de sombra, cheia de<br />
perfume, cheia de riachinhos, borboletas, besourinhos, bichinhos e bichões, de repente fica tão dura e<br />
rachada que só consegue inventar pó, areia e desolação.<br />
Se a terra fosse um deserto ia ter chão, mas como a gente ia ficar?<br />
Conto de Ricardo Azevedo, (extraído do livro Você Me Chamou de Feio, Sou Feio mas Sou Dengoso,<br />
publicado pela Fundação Cargill), ilustrado por Roger Mello<br />
68
Sebastião e Danilo<br />
Enquanto no resto do mundo os sapos comiam os grilos e os grilos fugiam dos sapos, os dois viviam muito<br />
bem, obrigado, e eram felizes.<br />
A verdade é que Sebastião e Danilo eram amigos com muitas coisas em comum. Os dois eram verdes. Os<br />
dois viviam saltando. Os dois adoravam plantas de folhas largas. Os dois viviam na beira da mesma lagoa.<br />
Os dois adoravam cantar à noite.<br />
Aliás, foi essa história de soltar a voz que fez os dois ficarem famosos.<br />
Em noite de lua clara, vinha a bicharada toda para ouvir a cantoria. A coruja lá no alto da árvore, os<br />
peixinhos dentro da lagoa. Os bois bem grandes e fortes, os mosquitinhos pequenininhos. A lesma bem<br />
devagar e os coelhinhos correndo, correndo.<br />
Só que o sucesso era tanto que logo começou a confusão. Teve uma noite em que as libélulas, apaixonadas<br />
pelo grilo, começaram a gritar: "Danilo! Danilo! Danilo!"<br />
Os jacarés, que eram fãs do sapo, ficaram com muita raiva daquilo e logo puxaram o coro: "Sebastião!<br />
Sebastião! Sebastião!"<br />
A coisa foi esquentando e logo os bichos estavam divididos. Meio a meio, um tanto de cada lado. De uma<br />
hora pra outra começou a briga.<br />
Era pena voando daqui, água espirrando dali, miados, mugidos, piados, latidos, rosnados, tudo numa<br />
bagunça tão grande que ninguém escutava mais a música.<br />
No meio daquilo tudo, Sebastião e Danilo saíram de mansinho e nunca mais voltaram àquela lagoa, para a<br />
tristeza da bicharada.<br />
Mas se você for com cuidado, sem fazer nenhum barulho, em um certo brejo não muito longe dali, vai ouvir<br />
bem baixinho, quase um sussurro, a música mais bonita daquela região. Sem público, nem confusão, os dois<br />
continuam juntos, amigos, uma dupla de verdade. Cantando sempre, só mesmo porque cantar é muito bom.<br />
Maurilo Andreas,<br />
autor deste conto, é redator publicitário e criador do blog Pastelzinho.<br />
69
Sobrou pra mim<br />
Ilustração: Suppa<br />
Quando eu tinha uns 8 anos, mais ou menos, eu morava com minha avó e com a irmã dela, tia Emília. Nossa<br />
rua era sossegada, quase não passava carro nem caminhão.<br />
Eu ia à escola de manhã e de tarde eu fazia minhas lições e ia pra rua brincar com meus amigos.<br />
Às cinco e meia em ponto minha avó me chamava para tomar banho e rezar, minha avó e minha tia rezavam<br />
todas as tardes às seis horas.<br />
Depois do jantar ficávamos na sala, eu, lendo, minha avó e minha tia bordando ou costurando.<br />
Televisão a gente só via uma vez ou outra. Minha avó me deixava ver jogos de futebol ou basquete, mas<br />
tinha horror a novelas e a programas de auditório. Era chato de matar!<br />
A luz era muito pouca, que a minha avó tinha mania de fazer economia, ela dizia que não era sócia da Light.<br />
Então eu cansava de ler e ficava inventando outras coisas pra fazer. Eu ficava desenhando, ficava enchendo<br />
os ós do jornal, brincava com as minhas joaninhas…<br />
Uma vez eu amarrei um fio de linha na perna de um besouro e quando ele voou, com o fio pendurado, minha<br />
tia levou o maior susto.<br />
Uma outra vez, eu inventei uma coisa legal! Enquanto minha avó e minha tia ficavam rezando, às seis horas,<br />
eu amarrei um fio de linha na perna da cadeira de balanço. Depois do jantar nós fomos para a sala. Então, de<br />
vez em quando, eu puxava o fio e a cadeira dava uma balançadinha.<br />
No começo elas não viram nada. Até que tia Emília, muito assustada, chamou a atenção da vovó.<br />
- Ó, Amélia - minha avó se chamava Amélia - Ó, Amélia, você não viu a cadeira balançar?<br />
Minha avó não ligou muito. Mas tia Emília ficou de olho. Daí a pouco ela cutucou minha avó:<br />
- Olha só, Amélia, ainda está balançando. Minha avó olhou e ficou desconfiada.<br />
As duas se olharam e fizeram sinais para não assustar o menino…<br />
70
Naquele dia, eu não mexi mais na cadeira. Mas no dia seguinte, eu fiz tudo de novo, só a minha tia é que viu<br />
a cadeira balançar. Ela estava apavorada!<br />
Então eu deixei passar uns dois dias e de novo dei uma balançadinha na cadeira. E dessa vez as duas velhas<br />
viram! Gente, que susto que elas tomaram! Me agarraram pela mão e correram para o oratório para rezar.<br />
Até aí eu estava me divertindo! Mas o que eu não podia imaginar é que no dia seguinte, na hora em que eu<br />
costumava ir para a rua brincar, minha avó me chamou, me mandou tomar banho, me vestir e me levou para<br />
a igreja.<br />
Nove segundas-feiras eu tive que ir à igreja com minha vó e minha tia para rezar pelas almas do purgatório!<br />
Conto de Ruth Rocha, ilustrado por Suppa<br />
Sonhos<br />
Edith Modesto<br />
Ilustração: Renato Mariconi<br />
Finalmente os computadores chegaram à escola. Os alunos olhavam para eles com orgulho,<br />
curiosidade e respeito.<br />
Naquela noite, Marilena foi dormir feliz. Muito romântica, sonhava com um príncipe encantado e, para ela,<br />
o computador era como um super-herói. Acreditava que ele transformaria sua vida.<br />
71
"Mas como? Não entendo nada de computação..." — pensou, insegura. E, para espantar a preocupação,<br />
virou-se na cama.<br />
De repente, ouviu um ruído estranho. Olhou para o canto do quarto e... iluminado por uma luz azulada, lá<br />
estava ele: o computador. Intrigada, a menina levantouse, aproximou-se, pé ante pé, e qual não foi seu<br />
espanto quando surgiu na tela do monitor um jovem simpático<br />
que foi se apresentando:<br />
— Oi, Marilena! Prazer, eu sou o S.O.<br />
— Oi! - respondeu ela, bastante surpresa. E pensou: "S.O.? Só espero que não seja de Serapiano<br />
Osmundo..."<br />
Como se tivesse adivinhado, o rapaz explicou:<br />
— S.O., de "Sistema Operacional", viu? E foi você mesma quem me escolheu...<br />
Sorrindo ao perceber o olhar de espanto da garota, S.O. completou: - ...para coordenar os trabalhos aqui.<br />
A menina sorriu encabulada e tentou fingir que sabia da existência de outros "sistemas operacionais" e da<br />
possibilidade de escolher entre eles. Depois, resolveu confessar:<br />
— É, é... que eu nunca tive um - gaguejou ela.<br />
E comentou, preocupada:<br />
— Computador... parece só para homem...<br />
Aí foi a vez de S.O. ficar admirado:<br />
— Para homem? Você nunca ouviu falar de Ada Lovelace?<br />
Em meados do século 19, Ada criou o primeiro programa de computador. Ela foi a primeira programadora<br />
do mundo!<br />
— Nessa época já existia computador? - perguntou a menina, surpresa.<br />
— Bem, computador, computador... - hesitou ele. - Os programas de Ada eram pra ser usados num avô dos<br />
micros... um precursor do computador, planejado por Charles Babbage, um matemático e cientista meio<br />
maluco.<br />
72
E o rapaz acrescentou com um olhar sedutor:<br />
— Dizem que eles eram apaixonados.<br />
Para Marilena, descortinaram-se novas perspectivas.<br />
E ela sorriu.<br />
Conto de Edith Modesto, ilustrado por Renato Mariconi<br />
Tadeu X Maria Angélica<br />
José Roberto Torero<br />
Ilustração: Fido Nesti<br />
À primeira vista, Tadeu e Maria Angélica formavam um casal normal. Gostavam de cinema, de música e de<br />
viagens. Mas, acima de tudo, amavam o futebol. Só que, infelizmente, torciam para times rivais.<br />
No começo, isso não era um grande problema. Maria Angélica não se importava quando Tadeu comemorava<br />
as vitórias do time dele e Tadeu até dava parabéns para Maria Angélica quando o clube dela vencia. Mas<br />
talvez isso só acontecesse porque, na verdade, os dois times eram muito ruins, e as vitórias, muito raras.<br />
Então, no campeonato deste ano, as coisas mudaram. Novos reforços foram apresentados, técnicos foram<br />
73
contratados, as equipes melhoraram e as torcidas começaram a ter esperanças.<br />
As coisas mudaram tanto que os dois times chegaram à final do torneio. Tadeu comprou um uniforme azul e<br />
amarelo para ir ao estádio. Maria Angélica foi com uma enorme bandeira verde e branca.<br />
Os dois sentaram lado a lado durante a partida. Para evitar brigas, tentavam não vibrar demais quando seus<br />
times acertavam um lance, nem zombar do outro quando a equipe adversária cometia algum erro.<br />
O zero a zero vinha mantendo a paz do casal, porém, no último lance do jogo, quando o time de Tadeu<br />
marcou o gol da vitória, ele não se conteve e gritou: "Gooooooooool!"<br />
E assim mesmo, com dez letras "o".<br />
Mas ele não parou por aí. Começou a dançar em volta de Maria Angélica enquanto cantava "Ê, ô, ê, ô, o<br />
meu time é um terror, ê, ô, ê, ô, o seu time é perdedor".<br />
Maria Angélica ficou verde de ódio. Então disparou:<br />
- Tadeu, você passou dos limites. Cartão vermelho!<br />
- Como assim, Maria Angélica, você está me expulsando de campo?<br />
- E do casamento. Você pisou na bola!<br />
- Tá, eu exagerei, mas também não precisa entrar de sola.<br />
- Agora é tarde. Você chutou nosso amor para escanteio!<br />
- Calma, eu não quero tirar o time de campo. Vamos tentar um segundo tempo...<br />
- Não, senhor. Você já estava na marca do pênalti. Pode ir para o chuveiro!<br />
- Quem sabe uma prorrogação?<br />
- Não. Fim de jogo.<br />
Tadeu sentou na arquibancada, apoiou a cabeça nas mãos e disse:<br />
- Tudo bem, Maria Angélica, se você quer que eu pendure as chuteiras, é assim que vai ser. Mas isso me<br />
deixa muito triste porque a gente fazia uma tabelinha e tanto. Eu acho que você bate um bolão e sempre que<br />
eu chegava em casa corria para o abraço. Sabe, eu vestia a camisa do nosso casamento... Eu jogava por<br />
amor...<br />
Aquela declaração deixou os olhos de Maria Angélica encharcados como um Maracanã sem drenagem.<br />
Então ela jogou longe sua bandeira e pulou sobre Tadeu como se ele tivesse marcado um gol decisivo.<br />
Tadeu olhou fundo nos olhos de Maria Angélica e, com voz emocionada, cantou: "Ê, ô, ê, ô, nosso amor é<br />
um terror!"<br />
- Tadeu, foi a coisa mais linda que alguém já me disse. Então os dois beijaram-se, fizeram as pazes e<br />
viveram felizes para sempre.<br />
Ou, pelo menos, até a próxima final de campeonato.<br />
Conto de José Roberto Torero, ilustrado por Fido Nesti<br />
74
Traços Traçados<br />
Januária Cristina Alves<br />
Ilustração: Rubens LP.<br />
Era uma vez um traço. E era uma outra vez outro traço.<br />
Os dois foram traçados por um menino que gostava muito de desenhar trecos com muitas tramas.<br />
A transação dos traços deu uma trança.<br />
E essa trança, trançada com outros tantos traços, deu 'trocentos' troços traçados!<br />
"Trocentos troços traçados fazem muitas trocas", ele pensou, já tonto com tantos tês e 'trs'.<br />
Então, no meio de tantos traços e tantas letras, sem travas nem trapaças, o menino fez uma descoberta<br />
transcendental!<br />
Foi assim, entre traços entrelaçados e letras tresloucadas, que ele descobriu que é assim que se fazem...<br />
Os livros.<br />
Januária Cristina Alves, é jornalista e consultora em Comunicação e Educação. Escreveu este conto em<br />
parceria com o filho André Bollos, 7 anos.<br />
Um Dia e Tanto<br />
75
Paulinho levou um susto. Quase deu um pulo da cama. Diante dele estava um cavaleiro medieval. Armadura<br />
reluzente, espada em punho e um grande escudo.<br />
Esfregou os olhos para ter certeza e foi puxado pelo braço.<br />
- Vamos! Não temos muito tempo. Há dragões em toda parte! Preciso da sua ajuda.<br />
- Mas quem é você?<br />
- Sou o Rei Artur. Rápido, os dragões vêm logo ali!<br />
- Na sala?<br />
- Proteja-se, cavaleiro! Aqui, atrás desse esconderijo secreto.<br />
- Mas isso é o sofá.<br />
Paulinho e Artur esperaram a passagem dos dragões. Quando tudo parecia tranqüilo, ouviram tiros. Um<br />
vaqueiro típico do Velho Oeste salta para trás do sofá.<br />
- Olá, desculpem invadir o esconderijo de vocês, senhores. Sou Billy e fujo de bandidos malvados,<br />
assaltantes de banco, ladrões de gado.<br />
- Tenha calma, nobre fidalgo. Eu sou Artur e estamos seguros com a liderança de Sir Paulinho, cavaleiro da<br />
Távola Redonda.<br />
- A seu dispor, xerife Paulinho.<br />
Após alguns momentos, os três espiaram do lado de fora e os perigos já haviam passado. Saíram do<br />
esconderijo quando explodiu o primeiro tiro de canhão.<br />
- Essa não! Piratas! - disse Paulinho - Fujam, marujos! Vamos para o meu barco. Ele está logo ali, no rio<br />
Amazonas.<br />
Desceram o rio em meio a botos-cor-de-rosa, grandes macacos que pulavam de galho em galho, sucuris do<br />
tamanho do barco e animais de todas as espécies. Desceram em terra firme para reconhecer o terreno.<br />
- Dinossauros! Corram! Dois tiranossauros iam em direção aos nossos heróis. De repente, um raio atingiu os<br />
três e os levou a uma nave espacial.<br />
- Seja bem-vindo, comandante Paulinho. Nossa nave está em missão de defesa da Terra e só um ótimo piloto<br />
como você pode nos ajudar - disse um dos tripulantes. E continuou:<br />
- Estamos cercados por discos voadores, comandante. O senhor precisa nos tirar daqui!<br />
Paulinho assumiu o comando.<br />
- Ativar velocidade da luz, manobra de fuga evasiva, manter escudo de proteção, aumentar campo de força...<br />
Nesse ponto, fechou o livro. No dia seguinte ia continuar a leitura, seu passatempo preferido.<br />
Quem é quem<br />
Carlos Fialho, autor deste conto, é jornalista, publicitário e mora em Natal. Junto com outros escritores,<br />
mantém o site www.jovensescribas.com.br Walter Vasconcelos, que ilustrou estas páginas, é de Olinda e<br />
mora no Rio Janeiro. Seus trabalhos podem ser conferidos em www.illoz.com/vasconcelos<br />
76
Um encontro fantástico<br />
Ilustração: Ivan Zigg<br />
Todos os anos eles se reuniam na floresta, à beira de um rio, para ver a quantas andava a sua fama. Eram<br />
criaturas fantásticas e cada uma vinha de um canto do Brasil. O Saci-Pererê chegou primeiro. Moleque<br />
pretinho, de uma perna só, barrete vermelho na cabeça, veio manquitolando, sentou-se numa pedra e<br />
acendeu seu cachimbo. Logo apontou no céu a Serpente Emplumada e aterrissou aos seus pés. Do meio das<br />
folhagens, saltou o Lobisomem, a cara toda peluda, os dentes afiados, enormes. Não tardou, o tropel de um<br />
cavalo anunciou o Negrinho do Pastoreio montado em pêlo no seu baio.<br />
- Só falta o Boto - disse o Saci, impaciente.<br />
- Se tivesse alguma moça aqui, ele já teria chegado para seduzi-la - comentou a Serpente Emplumada.<br />
- Também acho - concordou o Lobisomem. - Só que eu já a teria apavorado.<br />
Ouviram nesse instante um rumor à margem do rio. Era o Boto saindo das águas na forma de um belo rapaz.<br />
- Agora estamos todos - disse o Negrinho do Pastoreio.<br />
- E então? - perguntou o Boto, saudando o grupo. - Como estão as coisas?<br />
- Difíceis - respondeu o Saci e soltou uma baforada. - Não assustei muita gente nesta temporada.<br />
- Eu também não - emendou a Serpente Emplumada. - Parece que as pessoas lá no Nordeste não têm mais<br />
tanto medo de mim.<br />
- Lá no Norte se dá o mesmo - disse o Boto. - Em alguns locais, ainda atraio as mulheres, mas em outros elas<br />
nem ligam.<br />
- Comigo acontece igual - disse o Negrinho do Pastoreio. - Vivo a achar coisas que as pessoas perdem no<br />
Sul. Mas não atendi muitos pedidos este ano.<br />
- Seu caso é diferente - disse o Lobisomem. - Você não é assustador como eu, o Saci e a Serpente<br />
77
Emplumada. Você é um herói.<br />
- Mas a dificuldade é a mesma - discordou o Negrinho do Pastoreio.<br />
- Acho que é a concorrência - disse o Boto. - Andam aparecendo muitos heróis e vilões novos.<br />
- Pois é - resmungou a Serpente Emplumada. - Até bruxas andam importando. Tem monstros demais por<br />
aí...<br />
- São todos produzidos por homens de negócios - disse o Saci. - É moda. Vai passar...<br />
- Espero - disse o Lobisomem. - Bons aqueles tempos em que eu reinava no país inteiro, não só no cerrado.<br />
- A diferença é que somos autênticos - disse o Negrinho do Pastoreio. - Nós nascemos do povo.<br />
- É verdade - disse o Boto. - Mas temos de refrescar a sua memória.<br />
- Se pegarmos no pé de uns escritores, a coisa pode melhorar - disse a Serpente Emplumada.<br />
- Eu conheço um - disse o Saci. - Vamos juntos atrás dele! - E foi o primeiro a se mandar, a mil por hora, em<br />
uma perna só.<br />
Conto de João Anzanello Carrascoza, ilustrado por Ivan Zigg<br />
Voltando da escola pra casa<br />
Ricardo Azevedo<br />
Ilustração: Paladino<br />
O menino estava voltando a pé da escola. A vida para ele parecia uma coisa sempre igual. Chegar em casa,<br />
comer, fazer lição, brincar, tomar banho, jantar, dormir, acordar. No dia seguinte, tudo a mesma coisa outra<br />
vez.<br />
78
Um ruído veio de um terreno baldio. Parecia uma voz. Por entre as folhagens, o menino viu um cachorro<br />
cobrindo o focinho com as patas. O bicho, de repente, resmungou:<br />
- Isso não podia ter acontecido!<br />
O cabelo do menino ficou duro feito arame. Saiu correndo, mas parou. Onde já se viu cachorro falar? Deu<br />
risada de si mesmo. Já estava quase na 4a série. Sabia escrever, ler e fazer contas. Aquilo só podia ser<br />
alguma confusão.<br />
Deu meia-volta e passou de novo pelo terreno baldio. O cachorro agora estava andando de um lado para o<br />
outro dizendo:<br />
- Não, não e não!<br />
Quase sem respirar, o menino chegou mais perto.<br />
Foi quando o animal gritou:<br />
- É a pior desgraça que podia ter acontecido em minha vida!<br />
O menino sabia que aquilo era impossível. Mesmo assim, sentiu pena do cachorro, um bicho não muito<br />
grande com o focinho sujo de terra.<br />
O animal soltou um uivo tão sem esperança que o menino entrou no mato e perguntou se ele estava<br />
precisando de alguma coisa.<br />
Dois olhos surpresos examinaram o menino de alto a baixo. Depois, o bicho encolheu-se, escondendo o<br />
rosto com as patas. O menino sentou-se e acariciou aquela cabeça peluda.<br />
- Se eu contar o que acabo de descobrir hoje - disse o animal -, você não vai acreditar.<br />
E continuou falando devagarinho:<br />
- Faz tempo, conheci uma cachorra linda. Eu estava fazendo xixi num poste. Ela passou. Abanei o rabo. Ela<br />
também. Foi amor à primeira vista.<br />
O menino não conseguia piscar os olhos.<br />
- No fim - continuou ele - a gente acabou se casando.<br />
A cachorra era viúva e tinha uma filha já grandinha. Cuidei dela como se fosse minha própria filha. Um dia,<br />
meu pai veio me visitar. Ele também era viúvo. Só sei que os dois gostaram um do outro, namoraram e<br />
casaram.<br />
O menino queria fugir e ficar.<br />
- Do casamento de meu pai com minha filha - contou o animal - nasceu uma ninhada de três cachorrinhos<br />
que, ao mesmo tempo, são meus netos, pois são filhos de minha filha, e meus irmãos, pois são filhos do meu<br />
pai. Eu também tive três filhotinhos. Eles passaram a ser irmãos da minha madrasta, a filha da minha<br />
mulher. Portanto, além de meus filhos, são meus tios.<br />
As lágrimas esguichavam dos olhos do cachorro.<br />
- Meu pai é casado com minha filha, ou seja, minha madrasta é também minha filha. Por outro lado, sou pai<br />
dos irmãos do meu pai, logo, pai de meu próprio pai. E como o pai do pai de alguém é avô desse alguém… -<br />
e aí o cachorro agitou-se -, descobri que sou avô de mim mesmo!<br />
79
O queixo do menino balançava debaixo da boca.<br />
- É duro ser avô da gente mesmo! - exclamou o cachorro em prantos.<br />
Abraçado com o menino, o animal chorou ainda durante um bom tempo. Depois, enxugou as lágrimas, pediu<br />
desculpas, despediu-se e, com ar agradecido, sumiu no matagal. Naquele dia, o menino chegou em casa mais<br />
tarde, almoçou e foi para o quarto. Deitado na cama, ficou só pensando. Como a vida pode ser uma coisa<br />
rica, complicada, meio louca, bonita, espantosa e cheia de surpresas!<br />
Conto de Ricardo Azevedo (extraído do livro Não Tenho Medo de Homem, nem do Ronco, publicado<br />
pela Fundação Cargill), ilustrado por Paladino<br />
De cima para baixo<br />
Artur Azevedo<br />
Ilustração Mauricio Paraguassu<br />
Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete e imediatamente mandou chamar o diretor<br />
geral da Secretaria.<br />
Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de Sua<br />
80
Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão.<br />
- Estou furioso! - exclamou o conselheiro. - Por sua causa passei por uma vergonha diante de Sua Majestade<br />
o Imperador!<br />
- Por minha causa? - perguntou o diretor-geral, abrindo muito os olhos e batendo nos peitos.<br />
- O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado!<br />
- Que me está dizendo, Excelentíssimo?...<br />
E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores, quão arrogante e autoritário com os<br />
subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e,<br />
depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida:<br />
- É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi...<br />
- É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de<br />
ser submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o seu<br />
oficial-de-gabinete!<br />
E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:<br />
- Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos<br />
augustos lábios de Sua Majestade que dei a minha demissão!...<br />
- Oh!...<br />
- Sua Majestade não o aceitou...<br />
- Naturalmente; fez Sua Majestade muito bem.<br />
- Não a aceitou porque me considera muito e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um<br />
decreto mal copiado.<br />
- Peço mil perdões a Vossa Excelência - protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela palavra<br />
demissão. - O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa<br />
Excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta<br />
natureza.<br />
O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo:<br />
- Bom! Mande reformar essa porcaria!<br />
O diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3ª<br />
seção, que o encontrou fulo de cólera.<br />
- Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Ministro!<br />
- Por minha causa?<br />
- O senhor mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado!<br />
E atirou-lhe o papel, que caiu no chão.<br />
O chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou:<br />
- Queira Vossa Senhoria desculpar-me, Sr. Diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e todo<br />
tão urgente!...<br />
81
- O Sr. Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a<br />
afabilidade, mas notei que estava fora de si!<br />
- Não era caso para tanto.<br />
- Não era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que<br />
me mandou isto na pasta!<br />
- Eu... Vossa Senhoria...<br />
- Não o suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento.<br />
- Eu... Vossa Senhoria.<br />
- Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se e mande reformar essa porcaria!<br />
O chefe da 3ª seção retirou-se confundido e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto:<br />
- Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Diretor-geral!<br />
- Por minha causa?<br />
- O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do<br />
funcionário nomeado!<br />
E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.<br />
- Eu devia propor a sua suspensão por 15 dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo, na forma do<br />
regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr. Diretor-geral me não tratasse com tanto respeito e<br />
consideração!<br />
- O expediente foi tanto que não tive tempo de reler o que escrevi...<br />
- Ainda o confessa!<br />
- Fiei-me em que o sr. chefe passasse os olhos...<br />
- Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!...<br />
- Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta...<br />
- Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!...<br />
O amanuense obedeceu.<br />
Acabado o serviço, tocou a campainha. Apareceu um contínuo.<br />
- Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção!<br />
- Por minha causa?<br />
- Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial<br />
que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado!<br />
- Foi porque...<br />
- Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava<br />
suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se!<br />
- Mas...<br />
- Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você!...<br />
O contínuo saiu dali e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da Secretaria.<br />
82
- Estou furioso! Por sua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas!<br />
- Por minha causa?<br />
- Sim. Quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste<br />
tanto?<br />
- Porque...<br />
- Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? - Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao<br />
porteiro estás no olho da rua. Serventes não faltam!...<br />
O preto não redargüiu.<br />
O pobre-diabo não tinha ninguém abaixo de si em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo;<br />
entretanto, quando depois do jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu<br />
um tremendo pontapé no seu cão.<br />
O mísero animal, que vinha, alegre, dar-lhe as boasvindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe<br />
humildemente os pés.<br />
O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da seção, pelo diretor-geral e pelo<br />
ministro!...<br />
Dois velhinhos<br />
Dalton Trevisan<br />
Ilustração Omar Grassetti<br />
83
Dois inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.<br />
Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um consegue espiar lá fora.<br />
Junto à porta, no fundo da cama, para o outro é a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz.<br />
Com inveja, pergunta o que acontece. Deslumbrado, anuncia o primeiro:<br />
- Um cachorro ergue a perninha no poste.<br />
Mais tarde:<br />
- Uma menina de vestido branco pulando corda.<br />
Ou ainda:<br />
- Agora é um enterro de luxo.<br />
Sem nada ver, o amigo remorde-se no seu canto. O mais velho acaba morrendo, para alegria do segundo,<br />
instalado afinal debaixo da janela.<br />
Não dorme, antegozando a manhã. O outro, maldito, lhe roubara todo esse tempo o circo mágico do<br />
cachorro, da menina, do enterro de rico.<br />
Cochila um instante - é dia. Senta-se na cama, com dores espicha o pescoço: no beco, muros em ruína, um<br />
monte de lixo.<br />
Conto publicado no livro Mistérios de Curitiba, Ed. Record<br />
Restos do carnaval, de Clarice Lispector<br />
Clarice Lispector<br />
Ilustração Ana Raquel<br />
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as<br />
quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra<br />
84
eata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao<br />
carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima<br />
que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as<br />
ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim<br />
cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.<br />
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam<br />
fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do<br />
sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e<br />
economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se<br />
tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me<br />
agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina<br />
feliz.<br />
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais<br />
profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de<br />
escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo<br />
interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até<br />
meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.<br />
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para<br />
carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me<br />
causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por<br />
ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia<br />
esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também<br />
ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.<br />
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me<br />
fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e<br />
o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa,<br />
com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à<br />
fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu<br />
pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.<br />
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha<br />
amiga - talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade,<br />
já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material.<br />
Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu<br />
mesma.<br />
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente,<br />
85
minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a<br />
fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - à idéia de uma chuva que de repente<br />
nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de<br />
vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa<br />
das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho, que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o<br />
destino me dava de esmola.<br />
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo<br />
no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos<br />
não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar<br />
o papel, eu me vesti de rosa.<br />
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer<br />
entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel<br />
crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito<br />
piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um<br />
remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que<br />
cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas,<br />
confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.<br />
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma<br />
coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e<br />
desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina.<br />
Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha<br />
fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de<br />
minha mãe e de novo eu morria.<br />
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar.<br />
Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de<br />
mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos, já lisos, de<br />
confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos,<br />
considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.<br />
Conto publicado no livro Felicidade Clandestina, Ed. Rocco<br />
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Uma galinha<br />
Clarice Lispector<br />
Ilustração Ana Raquel<br />
Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.<br />
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém<br />
olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam<br />
dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.<br />
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances,<br />
alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou - o tempo da cozinheira dar um grito - e em breve<br />
estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno<br />
deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o<br />
almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer<br />
esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o<br />
itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com<br />
urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um<br />
quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma<br />
os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por<br />
mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.<br />
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Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava<br />
ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer<br />
por um momento. E então parecia tão livre.<br />
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que<br />
fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela<br />
própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que<br />
morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.<br />
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi<br />
presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com<br />
certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que<br />
aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas<br />
logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e<br />
assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava<br />
e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e<br />
assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e<br />
saiu aos gritos:<br />
- Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!<br />
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não<br />
era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum<br />
sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento<br />
qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:<br />
- Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!<br />
- Eu também! - jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.<br />
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do<br />
colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se<br />
lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos,<br />
menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de<br />
apatia e a do sobressalto.<br />
Mas, quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem,<br />
resquícios da grande fuga - e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num<br />
campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já<br />
mecanizado.<br />
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira<br />
do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse<br />
dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a<br />
expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho - era<br />
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uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.<br />
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.<br />
Conto publicado no livro Laços de Família, Ed. Rocco<br />
Uma vela para Dario<br />
Dalton Trevisan<br />
Ilustração Omar Grassetti<br />
Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo até<br />
parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na<br />
pedra o cachimbo.<br />
Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não se ouve<br />
resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.<br />
Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede aos<br />
outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram<br />
os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.<br />
Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua conversam de uma<br />
porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada,<br />
soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guardachuva na parede. Ma não se vê guarda-chuva ou<br />
cachimbo a seu lado.<br />
A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina. Já no<br />
carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a ambulância.<br />
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Dario conduzido de volta e recostado à parede - não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.<br />
Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do<br />
quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem<br />
o rosto, sem que façam um gesto para espantá-las.<br />
Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozam as<br />
delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.<br />
Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados<br />
sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O endereço na carteira é de outra<br />
cidade.<br />
Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as calçadas: é a polícia.<br />
O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes.<br />
O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo - os bolsos vazios. Resta na mão esquerda a aliança<br />
de ouro, que ele próprio - quando vivo - só destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar o<br />
rabecão.<br />
A última boca repete - Ele morreu, ele morreu. A gente começa a se dispersar. Dario levou duas horas para<br />
morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto.<br />
Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não consegue<br />
fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem morto e a multidão se espalha, as mesas do<br />
café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.<br />
Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver. Parece morto há muitos<br />
anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.<br />
Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na<br />
pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta<br />
a cair.<br />
Conto publicado no livro 33 Contos Escolhidos, Ed. Record<br />
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CRÔNICAS<br />
A <strong>Prof</strong>essora de Desenho<br />
Marcelo Coelho<br />
Ilustração: Luiz Maia.<br />
Falando a verdade, escola é uma chatice. Pelo menos a minha era uma chatice. Essa história de aprender<br />
tabuada, fazer prova, lição de casa... eu não gostava. Ficava feliz quando aparecia uma gripe. Existe coisa<br />
melhor? Eu juntava todos os brinquedos em cima da cama. Traziam revistinhas. Chocolates. Televisão no<br />
quarto. Era ótimo.<br />
Disse que a escola era muito chata, mas esqueci de uma coisa: as aulas de desenho. Essas eram legais.<br />
Toda sexta-feira, depois do recreio, a dona Marisa (naquele tempo a gente não chamava a professora de<br />
"tia", nem usava só o nome dela, sem nada, assim: "Marisa"; tinha de ser "dona Marisa") - enfim, a dona<br />
Marisa saía da sala, e entrava a professora de desenho. A dona Andréia.<br />
A dona Marisa era meio gorducha, usava coque no cabelo e se pintava feito louca. Batom. Sombra azul nos<br />
olhos. Meio perua. Eu não gostava da dona Marisa.<br />
Mas aí entrava a professora de desenho. A dona Andréia era mocinha. Tinha cabelos castanhos. Lisos e<br />
compridos.<br />
A aula de desenho era uma farra. A gente abria os cadernos, que não tinham linhas, só folhas de papel em<br />
branco, para a gente fazer o que quisesse. Podia. Dona Andréia deixava.<br />
Ela era linda.<br />
Um dia, ela se atrasou. O tempo ia passando, e ela não chegava. Todo mundo estava louco para ter aula de<br />
desenho.<br />
Por que será que ela estava atrasada?<br />
91
Nessa idade, a gente sabe muito pouco da vida dos adultos. Talvez a dona Andréia tivesse brigado com o<br />
namorado. Pode ser que o diretor da escola tivesse dado uma bronca nela. Vai ver que tinha alguém doente<br />
na família.<br />
Mas a gente não queria saber de nada. Só queria ter aula de desenho.<br />
Foi quando a dona Andréia apareceu. Todos nós ficamos contentes.<br />
Não foi só contente. Foi uma espécie de alegria total, de gritaria, de explosão.<br />
Ela entrou na classe.<br />
Alguém gritou:<br />
- É a Andréia!<br />
Não era o jeito certo de falar. Tinha de dizer "dona Andréia". Mas àquela altura ninguém estava ligando.<br />
Todo mundo começou a gritar:<br />
- É a Andréia! É a Andréia!<br />
O berreiro foi ganhando ritmo. Como se fosse torcida de futebol.<br />
- AN-DRÉ-IA! AN-DRÉ-IA!<br />
Parecia um jogador entrando em campo. Ou um cantor de rock.<br />
- AN-DRÉ-IA! AN-DRÉ-IA!<br />
Ela começou ficando alegre com a zoeira. Deu um sorriso. O sorriso dela era lindo.<br />
- AN-DRÉ-IA!<br />
Depois, ela ficou um pouco assustada. Não estava entendendo a bagunça.<br />
- AN-DRÉ-IA!<br />
Foi então que eu vi. Ela começou a chorar.<br />
E saiu da sala.<br />
Na hora, não entendi.<br />
Fiquei pensando.<br />
Quem sabe ela se assustou muito. Talvez não imaginasse que a gente gostava tanto dela.<br />
E, às vezes, muito amor assusta as pessoas.<br />
Pode ser que ela tivesse ficado brava. Tínhamos de dizer "dona Andréia", e não dissemos. Era meio<br />
chocante só dizer "Andréia", como se ela fosse irmã da gente, ou apresentadora de televisão, ou empregada.<br />
Ela também pode ter chorado por outro motivo qualquer. Estava triste com o namorado, ou com alguma<br />
doença da família, e toda aquela alegria da gente atrapalhando os sentimentos dela.<br />
A Andréia nunca mais voltou.<br />
As aulas de desenho acabaram. Comecei a perceber uma coisa.<br />
É que às vezes, quando a gente gosta demais de uma pessoa, não dá certo. Dá uma bobeira na gente. A gente<br />
começa a gritar:<br />
92
- Andréia! Andréia!<br />
E a Andréia fica sem jeito. Não sabe o que fazer. Se assusta. Se enche.<br />
Ouça este conselho.<br />
Se você gosta muito de alguém, tome cuidado antes de fazer escândalo. Não fique gritando "Andréia!<br />
Andréia!". Finja que você só está achando a pessoa legal, nada mais. Senão a Andréia sai correndo.<br />
Quando a gente gosta de alguém, tem de fazer como sorvete. Dá uma mordidinha. Mas não enfia o nariz e a<br />
boca na massa de morango. Senão, vão achar que a gente é idiota.<br />
As pessoas da minha classe gostavam tanto da Andréia, que ela foi embora. Se a gente fosse mais esperto<br />
fingia que não gostava tanto.<br />
Crônica para dona Nicota<br />
Tatiana Belinky<br />
Ilustração: Cris e Jean<br />
Foi nos anos finais da década de 40. (Há tanto tempo!) Meu primogênito Ricardo completara 6 anos de<br />
idade, e resolvemos matriculá-lo no primeiro ano primário da Escola Americana, do já então tradicional<br />
Mackenzie College, que ficava a três quadras da nossa casa. E Ricardinho, que era uma criança tímida e um<br />
tanto ensimesmada, não gostou nem um pouco da experiência de ficar "abandonado" num lugar estranho, no<br />
meio de gente desconhecida — uma coisa para ele muito assustadora. E não houve jeito de fazê- lo aceitar<br />
93
tão insólita situação. Ele se recusava até mesmo a entrar na sala: ficava na porta, "fincava o pé", sem chorar<br />
mas também sem ceder... Eu já estava a ponto de desistir da empreitada, quando a professora da classe, dona<br />
Nicota, se levantou e veio falar conosco. E todo o jeito dela, a maneira como ela olhou para o Ricardinho, o<br />
timbre e o tom da sua voz, a expressão do seu rosto e até a sua figurinha baixinha, meio rechonchuda, não<br />
jovem demais, muito simples e despojada, causaram imediatamente uma sensível impressão no menino. A<br />
tensão sumiu do seu rostinho, seu corpo relaxou, e - ora vejam! - ele respondeu com um sorriso ao sorriso da<br />
dona Nicota!<br />
- Vem ficar aqui comigo - ela disse. - Você vai gostar. - E acrescentou, para minha surpresa, - Eu mesma<br />
vou levar você para a sua casa. E amanhã cedo, eu mesma vou buscar você, para vir à escola comigo.<br />
Eu não sabia como agradecer. E nem foi preciso — o que dona Nicota disse, ela cumpriu. E durante vários<br />
dias, até semanas, ela passou pela nossa casa, pouco antes do início das aulas, e levou o Ricardinho pela<br />
mão, a pé, até a escola e a sua sala. E o trouxe de volta, da mesma maneira. E até quando, certo dia, o<br />
menino estava adoentado e não pôde ir à escola, ela voltou para lhe dar uma "aula particular", em casa —<br />
para ele não se atrasar no programa. Tudo isso na maior simplicidade, como se fosse a coisa mais natural do<br />
mundo...<br />
O Ricardinho adorava a dona Nicota - e não era para menos. Dona Nicota era a mais perfeita e linda<br />
encarnação da "professora primária" ideal - a mais nobre e fundamental das profissões: a de ser a primeira a<br />
preparar uma criança pequena nas suas primeiras incursões na vida real - com competência, dedicação,<br />
compreensão, paciência e carinho. E a consciência plena de estar dando à criança uma verdadeira base para<br />
o futuro cidadão.<br />
Por que estou contando tudo isso a vocês, hoje? Porque, no Dia do <strong>Prof</strong>essor, eu senti que não poderia<br />
prestar maior homenagem a todos os "mestres-escolas" do Brasil do que incluí-los nesta "crônica-tributo" a<br />
dona Nicota, exemplo e paradigma de uma modesta e maravilhosa professora "montessoriana" e um grande<br />
ser humano.<br />
Ricardo saiu de sob a asa de dona Nicota lendo e escrevendo. E hoje, jornalista, tradutor e escritor, esse avô<br />
de três netos continua se lembrando de dona Nicota, com carinho e gratidão.<br />
Essa dona Nicota que a estas horas deve estar dando aulas montessorianas aos anjinhos do céu.<br />
Crônica de Tatiana Belinky, ilustrada por Cris e Jean<br />
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Escorrendo<br />
Aos 5 anos de idade o mundo é esmagadoramente mais forte do que a gente. (Aos 30 também, mas<br />
aprendemos umas manhas que, se não anulam a desproporção, ao menos disfarçam nossa pequenez.)<br />
A ignorância não é uma bênção, é uma condenação: compreender a origem dos nossos incômodos faz uma<br />
grande diferença. Mas como, com tão poucas palavras ao nosso dispor? Palavras são ferramentas que<br />
usamos para desmontar o mundo e remontá-lo dentro da nossa cabeça. Sem as ferramentas precisas, ficamos<br />
a espanar parafusos com pontas de facas, a destruir porcas com alicates.<br />
Com 2 anos, meu nariz escorria sem parar na sala de aula. Eu não sabia assoar, nem sequer sabia que existia<br />
isso: assoar. Apenas enxugava o que descia na manga do uniforme, conformado, até ficar com o nariz<br />
assado.<br />
Lembro-me bem da sensação da meia sendo comida pela galocha enquanto eu andava. A cada passo, ela ia<br />
se engruvinhando mais e mais na frente do pé, faltando no calcanhar, e eu aceitava o infortúnio como se<br />
fosse uma praga rogada pelos deuses, uma sina. Não passava pela minha cabeça trocar de meia, desistir da<br />
galocha, pedir ajuda aos adultos: a vida era assim, não havia o que fazer.<br />
Numas férias, meu pai apareceu antes do combinado para pegar minha irmã e eu na casa dos meus avós.<br />
Durante 400 quilômetros, falou que existiam pessoas boas e pessoas más, que aconteciam coisas que a gente<br />
não conseguia entender, que mesmo as pessoas más podiam fazer coisas boas e as pessoas boas, coisas más.<br />
Já quase chegando a São Paulo, contou que nosso vizinho, de 6 anos, tinha levado um tiro.<br />
Naquela noite, enquanto as crianças da rua brincavam - mais quietas do que o habitual, sob um véu<br />
inominável -, um dos garotos disse: "Bem-feito! Ele é muito chato".<br />
Hoje, penso que pode ter sido sua maneira de lidar com uma realidade esmagadoramente<br />
mais forte do que ele.<br />
Meu vizinho, felizmente, sobreviveu. Nossa ingenuidade é que não: ficou ali, estirada entre amendoeiras e<br />
paralelepípedos, sendo iluminada pela lâmpada intermitente de mercúrio, depois que todas as crianças<br />
voltaram para suas casas.<br />
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Quem é quem<br />
Antonio Prata, autor desta crônica, também escreveu o livro O Inferno Atrás da Pia.<br />
Thais Beltrame, autora desta ilustração, é ilustradora e artista plástica.<br />
O dia em que a caça consolou o caçador no Pacaembu<br />
Dois alvinegros, Santos e Botafogo, faziam os grandes jogos dos anos 60. Pelé x Garrincha, fora outros<br />
gigantes dos dois timaços.<br />
Num desses jogos, em São Paulo, os cariocas fizeram uma exibição inesquecível e, estranhamente, pouco<br />
badalada nos embates entre os dois melhores times do país naquela época. Aliás, sempre que se fazem<br />
referências aos jogos entre Botafogo e Santos daqueles tempos, só são lembradas as vitórias santistas, as<br />
goleadas de Pelé & Cia. Pois o Pacaembu estava lotado para ver mais uma.<br />
Pelé e Mané estavam em campo, mas o diabo estava era no corpo que vestia a camisa sete, não a dez. O<br />
lateral-esquerdo Dalmo, do Santos, viveu uma tarde de terror. Garrincha pegava a bola e, andando, levava<br />
Dalmo até dentro da grande área, onde o zagueiro não podia fazer falta.<br />
O Pacaembu não acreditava no que via: um ponta andar desde a intermediária até a área sem que o lateral<br />
tentasse tirar a bola, temeroso do drible desmoralizante. Até que Dalmo percebeu que tinha virado motivo de<br />
chacota dos torcedores, muitos dos quais nem santistas eram, mas que iam ao campo na certeza do<br />
espetáculo.<br />
E Dalmo resolveu bater antes de chegar à grande área. Bateu uma vez, Garrincha caiu, o árbitro marcou a<br />
falta e repreendeu o paulista. Bateu outra vez, Garrincha voltou ao chão, o árbitro marcou a falta e ameaçou<br />
Dalmo de expulsão, porque naquele tempo o cartão amarelo não existia.<br />
A terceira falta de Dalmo foi a mais violenta, como se ele estivesse pensando: "Arrebento essa peste, sou<br />
expulso, mas ele não joga mais".<br />
Pensado e feito. Enquanto o gênio das pernas tortas estava estirado no bico direito da área dos portões<br />
principais do Pacaembu, o árbitro determinava a expulsão de Dalmo, cercado por botafoguenses justamente<br />
irados com seu gesto.<br />
Eis que, como um acrobata, Garrincha levanta-se, afasta seus companheiros, bota o braço esquerdo no<br />
ombro de Dalmo e o acompanha até a descida da escada para o vestiário, que, então, ficava daquele lado.<br />
Saíram conversando, como se Garrincha justificasse a atitude, entendesse que, para pará-lo, não havia<br />
mesmo outro jeito.<br />
O Botafogo ganhou de 3 a 0 e saiu aplaudido do estádio. Tinha visto uma autêntica exibição do Carlitos do<br />
futebol, digna mesmo de Charles Chaplin, divertida, anárquica, humana, sensível, solidária.<br />
Crônica do jornalista Juca Kfouri publicada na revista Lance a Mais (em 9/9/2000),<br />
ilustrada por Andrés Sandoval<br />
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O sucesso da Mala<br />
Cybele Meyer<br />
Ilustração: Ana dos Anjos.<br />
Respiro ofegante. Trago nas mãos uma pequena mala e uma agenda tinindo de nova. É meu primeiro dia de<br />
aula. Venho substituir uma professora que teve que se ausentar "por motivo de força maior". Entro<br />
timidamente na sala dos professores e sou encarada por todos. Uma das colegas, tentando me deixar mais à<br />
vontade, pergunta:<br />
- É você que veio substituir a Edith?<br />
- Sim - respondo num fio de voz.<br />
- Fala forte, querida, caso contrário vai ser tragada pelos alunos - e morre de rir.<br />
- Ela nem imagina o que a espera, não é mesmo? - e a equipe toda se diverte com a minha cara.<br />
Convidada a me sentar, aceito para não parecer antipática. Eles continuam a conversar como se eu não<br />
estivesse ali. Até que, finalmente, toca o sinal. É hora de começar a aula. Pego meu material e percebo que<br />
me olham curiosos para saber o que tenho dentro da mala. Antes que me perguntem, acelero o passo e sigo<br />
para a sala de aula. Entro e vejo um montão de olhinhos curiosos a me analisar que, em seguida, se voltam<br />
para a maleta. Eu a coloco em cima da mesa e a abro sem deixar que vejam o que há lá dentro.<br />
- O que tem aí, professora?<br />
- Em breve vocês saberão.<br />
No fim do dia, fecho a mala, junto minhas coisas e saio. No dia seguinte, me comporto da mesma maneira, e<br />
no outro e no noutro... As aulas correm bem e sinto que conquistei a classe, que participa com muito<br />
interesse. Os professores já não me encaram. A mala, porém, continua sendo alvo de olhares curiosos.<br />
Chego à escola no meu último dia de aula. A titular da turma voltará na semana seguinte. Na sala dos<br />
professores ouço a pergunta guardada há tantos dias:<br />
- Afinal, o que você guarda de tão mágico dentro dessa mala que conseguiu modificar a sala em tão pouco<br />
tempo?<br />
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- Podem olhar - respondo, abrindo o fecho.<br />
- Mas não tem nada aí! - comentam.<br />
- O essencial é invisível aos olhos. Aqui guardo o meu melhor.<br />
Todos ficam me olhando. Parecem estar pensando no que eu disse. Pego meu material, me despeço e saio.<br />
Papagaio congelado<br />
Ricardo Azevedo<br />
Ilustração: Heitor Yida<br />
Um dia, um sujeito ganhou de presente um papagaio.<br />
O bicho era uma praga. Não demorou muito, logo se espalhou pela casa.<br />
Atendia telefone.<br />
Gritava e falava sozinho nas horas mais inesperadas.<br />
Dava palpite nas conversas dos outros.<br />
Discutia futebol.<br />
Fumava charuto.<br />
Pedia café, tomava, cuspia, arregalava os olhos, esparramava semente de girassol e cocô por todo lado,<br />
gargalhava e ainda gritava para o dono de casa: "Ô seu doutor, vê se não torra faz favor!"<br />
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Uma noite, a família recebeu uma visita para jantar.<br />
O papagaio não gostou da cara do visitante e berrou: "Vai embora, ratazana!" e começou a falar cada<br />
palavrão cabeludo que dava medo.<br />
Depois que a visita foi embora, o dono da casa foi até o poleiro. Estava furioso:<br />
— Seu mal-educado, sem-vergonha de uma figa! Estou cheio! Agora você vai ver o que é bom pra tosse.<br />
Agarrou o papagaio pelo cangote e atirou dentro da geladeira:<br />
— Vai passar a noite aí de castigo!<br />
Depois, fechou a porta e foi dormir.<br />
No dia seguinte, saiu atrasado para o trabalho e esqueceu o coitado preso dentro da geladeira.<br />
Só foi lembrar do bicho à noite, quando voltou para casa.<br />
Foi correndo abrir a geladeira.<br />
O papagaio saiu trêmulo e cabisbaixo, com cara arrependida, cheio de pó gelado na cabeça.<br />
Ficou de joelhos.<br />
Botou as duas asas na cabeça.<br />
Rezou.<br />
Disse pelo amor de Deus.<br />
Reconheceu que estava errado.<br />
Pediu perdão.<br />
Disse que nunca mais ia fazer aquilo.<br />
Jurou que nunca mais ia fazer coisa errada, que nunca mais ia atender telefone e interromper conversa, nem<br />
xingar nenhuma visita.<br />
Jurou que nunca mais ia dizer palavrão nem "vai embora, ratazana".<br />
Depois, examinando o homem com os olhos arregalados, espiou dentro da geladeira e perguntou:<br />
— Queria saber só uma coisa: o que é que aquele franguinho pelado, deitado ali no prato, fez?<br />
Anedota contada por Ricardo Azevedo, ilustrada por Heitor Yida<br />
99
Pechada<br />
Luis Fernando Veríssimo<br />
Ilustração: Santiago<br />
O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de "Gaúcho".<br />
Porque era gaúcho. Recém-chegado do Rio Grande do Sul, com um sotaque carregado.<br />
— Aí, Gaúcho!<br />
— Fala, Gaúcho!<br />
Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada região<br />
tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam português.<br />
Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que num país do<br />
tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações?<br />
— Mas o Gaúcho fala "tu"! — disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato.<br />
— E fala certo — disse a professora. — Pode-se dizer "tu" e pode-se dizer "você". Os dois estão certos. Os<br />
dois são português.<br />
O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara.<br />
Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera.<br />
— O pai atravessou a sinaleira e pechou.<br />
— O que?<br />
— O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.<br />
A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara uma<br />
sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado. Com pedaços<br />
de sinaleira sendo retirados do seu corpo.<br />
100
— O que foi que ele disse, tia? — quis saber o gordo Jorge.<br />
— Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.<br />
— E o que é isso?<br />
— Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.<br />
— Nós vinha...<br />
— Nós vínhamos.<br />
— Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada noutro<br />
auto.<br />
A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo, procurava<br />
uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo Jorge rindo<br />
daquele jeito.<br />
"Sinaleira", obviamente, era sinal, semáforo. "Auto" era automóvel, carro. Mas "pechar" o que era? Bater,<br />
claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra? Só muitos dias depois a professora descobriu que "pechar"<br />
vinha do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar para convencer o gordo<br />
Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já ganhara outro apelido: Pechada.<br />
— Aí, Pechada!<br />
— Fala, Pechada!<br />
Crônica de Luis Fernando Verissimo, ilustrada por Santiago<br />
Ponta da Língua<br />
Cheia de graça é a nossa língua, portuguesa.<br />
Você nem precisa aprender o á-bê-cê para rir com ela.<br />
101
Desde pequeno já ouve dizer que mentira tem pernas curtas.<br />
E mentira tem pernas?<br />
E a verdade? A verdade tem pernas longas?<br />
E quando dói a barriga da perna?<br />
Ou quando ficamos de orelha em pé?<br />
O que a barriga tem a ver com a perna, e orelha com o pé?<br />
Pra ser divertido, não leve nada ao pé da letra!<br />
Até porque letra não tem pé. Ou tem?<br />
Pé-de-meia é o dinheiro que a gente economiza.<br />
Pé-de-moleque, doce de amendoim.<br />
Dedo de prosa é papo rápido.<br />
Dedo-duro é traidor.<br />
Pão-duro, pessoa egoísta.<br />
E boca da noite? E céu da boca?<br />
É uma brincadeira atrás da outra!<br />
Cabeça de cebola, dente de alho, braço de mar.<br />
Com a nossa língua, a gente pode pegar a vida pela mão.<br />
Pode abrir o coração. Pode fechar a tristeza.<br />
A gente pode morrer de medo e, ao mesmo tempo, estar vivinho da silva.<br />
Pode fazer coisas sem pé nem cabeça.<br />
Mas brincar com palavras também é coisa séria.<br />
Basta errar o tom e você vai parar no olho do furacão.<br />
Então, divirta-se. Cuidado só para não morder a língua portuguesa!<br />
Quem é quem<br />
João Anzanello Carrascoza, autor desta crônica, é redator de propaganda<br />
e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.<br />
Clouds, autora desta ilustração, é formada em design gráfico pela Universidade Federal do Paraná e<br />
colabora com revistas da Editora Abril.<br />
102
Qualidades do <strong>Prof</strong>essor<br />
Cecília Meireles<br />
Se há uma criatura que tenha necessidade de formar e manter constantemente firme uma personalidade<br />
segura e complexa, essa é o professor.<br />
Destinado a pôr-se em contato com a infância e a adolescência, nas suas mais várias e incoerentes<br />
modalidades, tendo de compreender as inquietações da criança e do jovem, para bem os orientar e satisfazer<br />
sua vida, deve ser também um contínuo aperfeiçoamento, uma concentração permanente de energias que<br />
sirvam de base e assegurem a sua possibilidade, variando sobre si mesmo, chegar a apreender cada<br />
fenômeno circunstante, conciliando todos os desacordos aparentes, todas as variações humanas nessa visão<br />
total indispensável aos educadores.<br />
É, certamente, uma grande obra chegar a consolidar-se numa personalidade assim. Ser ao mesmo tempo um<br />
resultado — como todos somos — da época, do meio, da família, com características próprias, enérgicas,<br />
pessoais, e poder ser o que é cada aluno, descer à sua alma, feita de mil complexidades, também, para se<br />
poder pôr em contato com ela, e estimular-lhe o poder vital e a capacidade de evolução.<br />
E ter o coração para se emocionar diante de cada temperamento.<br />
E ter imaginação para sugerir.<br />
E ter conhecimentos para enriquecer os caminhos transitados.<br />
E saber ir e vir em redor desse mistério que existe em cada criatura, fornecendo-lhe cores luminosas para se<br />
103
definir, vibratilidades ardentes para se manifestar, força profunda para se erguer até o máximo, sem<br />
vacilações nem perigos. Saber ser poeta para inspirar. Quando a mocidade procura um rumo para a sua vida,<br />
leva consigo, no mais íntimo do peito, um exemplo guardado, que lhe serve de ideal.<br />
Quantas vezes, entre esse ideal e o professor, se abrem enormes precipícios, de onde se originam os mais<br />
tristes desenganos e as dúvidas mais dolorosas!<br />
Como seria admirável se o professor pudesse ser tão perfeito que constituísse, ele mesmo, o exemplo amado<br />
de seus alunos!<br />
E, depois de ter vivido diante dos seus olhos, dirigindo uma classe, pudesse morar para sempre na sua vida,<br />
orientando-a e fortalecendo-a com a inesgotável fecundidade da sua recordação.<br />
Texto de Cecília Meireles, extraído do livro Crônicas de Educação 3<br />
Ilustrado por Laurabeatriz<br />
Uma lição inesperada<br />
João Anzanello Carrascoza<br />
No último dia de férias, Lilico nem dormiu direito. Não via a hora de voltar à escola e rever os amigos.<br />
Acordou feliz da vida, tomou o café da manhã às pressas, pegou sua mochila e foi ao encontro deles.<br />
Abraçou-os à entrada da escola, mostrou o relógio que ganhara de Natal, contou sobre sua viagem ao litoral.<br />
Depois ouviu as histórias dos amigos e divertiu-se com eles, o coração latejando de alegria. Aos poucos, foi<br />
matando a saudade das descobertas que fazia ali, das meninas ruidosas, do azul e branco dos uniformes,<br />
daquele burburinho à beira do portão. Sentia-se como um peixe de volta ao mar. Mas, quando o sino<br />
anunciou o início das aulas, Lilico descobriu que caíra numa classe onde não havia nenhum de seus amigos.<br />
Encontrou lá só gente estranha, que o observava dos pés à cabeça, em silêncio. Viu-se perdido e o sorriso<br />
que iluminava seu rosto se apagou. Antes de começar, a professora pediu que cada aluno se apresentasse.<br />
Aborrecido, Lilico estudava seus novos companheiros. Tinha um japonês de cabelos espetados com jeito de<br />
nerd. Uma garota de olhos azuis, vinda do Sul, pareceu-lhe fria e arrogante. Um menino alto, que quase<br />
bateu no teto quando se ergueu, dava toda a pinta de ser um bobo. E a menina que morava no sítio? A<br />
coitada comia palavras, olhava-os assustada, igual a um bicho-do-mato. O mulato, filho de pescador, falava<br />
arrastado, estalando a língua, com sotaque de malandro. E havia uns garotos com tatuagens umas meninas<br />
usando óculos de lentes grossas, todos esquisitos aos olhos de Lilico. A professora? Tão diferente das que<br />
ele conhecera... Logo que soou o sinal para o recreio, Lilico saiu a mil por hora, à procura de seus antigos<br />
colegas. Surpreendeu-se ao vê-los em roda, animados, junto aos estudantes que haviam conhecido horas<br />
antes. De volta à sala de aula, a professora passou uma tarefa em grupo. Lilico caiu com o japonês, a menina<br />
gaúcha, o mulato e o grandalhão. Começaram a conversar cheios de cautela, mas paulatinamente foram se<br />
104
soltando, a ponto de, ao fim do exercício, parecer que se conheciam há anos. Lilico descobriu que o japonês<br />
não era nerd, não: era ótimo em Matemática, mas tinha dificuldade em Português. A gaúcha, que lhe<br />
parecera tão metida, era gentil e o mirava ternamente com seus lindos olhos azuis. O mulato era um caiçara<br />
responsável, ajudava o pai desde criança e prometeu ensinar a todos os segredos de uma boa pescaria. O<br />
grandalhão não tinha nada de bobo. Raciocinava rapidamente e, com aquele tamanho, seria legal jogar<br />
basquete no time dele. Lilico descobriu mais. Inclusive que o haviam achado mal-humorado quando ele se<br />
apresentara, mas já não pensavam assim. Então, mirou a menina do sítio e pensou no quanto seria bom<br />
conhecê-la. Devia saber tudo de passarinhos. Sim, justamente porque eram diferentes havia encanto nas<br />
pessoas. Se ele descobrira aquilo no primeiro dia de aula, quantas descobertas não haveria de fazer no ano<br />
inteiro? E, como um lápis deslizando numa folha de papel, um sorriso se desenhou novamente no rosto de<br />
Lilico.<br />
Crônica de João Anzanello Carrascoza, ilustrada por Daisy Sartori<br />
POESIA<br />
A Chuva<br />
A chuva derrubou as pontes. A chuva transbordou os rios.<br />
A chuva molhou os transeuntes. A chuva encharcou as<br />
praças. A chuva enferrujou as máquinas. A chuva enfureceu<br />
as marés. A chuva e seu cheiro de terra. A chuva com sua<br />
cabeleira. A chuva esburacou as pedras. A chuva alagou a<br />
favela. A chuva de canivetes. A chuva enxugou a sede. A<br />
chuva anoiteceu de tarde. A chuva e seu brilho prateado. A<br />
chuva de retas paralelas sobre a terra curva. A chuva<br />
105
destroçou os guarda-chuvas. A chuva durou muitos dias. A<br />
chuva apagou o incêndio. A chuva caiu. A chuva<br />
derramou-se. A chuva murmurou meu nome. A chuva ligou o<br />
pára-brisa. A chuva acendeu os faróis. A chuva tocou a<br />
sirene. A chuva com a sua crina. A chuva encheu a piscina.<br />
A chuva com as gotas grossas. A chuva de pingos pretos.<br />
A chuva açoitando as plantas. A chuva senhora da lama. A<br />
chuva sem pena. A chuva apenas. A chuva empenou os<br />
móveis. A chuva amarelou os livros. A chuva corroeu as<br />
cercas. A chuva e seu baque seco. A chuva e seu ruído de<br />
vidro. A chuva inchou o brejo. A chuva pingou pelo teto. A<br />
chuva multiplicando insetos. A chuva sobre os varais. A<br />
chuva derrubando raios. A chuva acabou a luz. A chuva<br />
molhou os cigarros. A chuva mijou no telhado. A chuva<br />
regou o gramado. A chuva arrepiou os poros. A chuva fez<br />
muitas poças. A chuva secou ao sol.<br />
Poema de Arnaldo Antunes, ilustrado por Nina.<br />
Andarilhos - Francisco Marques (Chico dos Bonecos)<br />
Ilustração: Ivan Zigg<br />
106
Andava pela estrada, sozinho. Um sol de rachar e os dois andando, sem parar. E andando, resolvidos, iam os<br />
três desenxabidos.<br />
Os quatro não andavam à toa: buscavam uma terra boa.<br />
Com os pés doendo de tanto andar, os cinco pararam para descansar.<br />
E os seis se deitaram, dormiram, sonharam...<br />
No meio da noite, os sete acordaram e se arrepiaram.<br />
Dezesseis olhos arregalados, brilhando, viram o rio iluminado, o chão iluminando.<br />
Cavando a terra, dezoito mãos traziam, com a respiração ofegante, dezenas de pedrinhas brilhantes.<br />
Depois de muito cavar, contar e reunir, os dez começaram a discutir.<br />
O centro da discussão era este: onze andarilhos podem suportar tantos brilhos?<br />
Uma dúzia de idéias diferentes, uma ou outra interessante, mas nenhuma idéia brilhante.<br />
Com as palavras doendo de tanto falar, os treze resolveram si-len-ci-ar.<br />
Deitados, silenciosos, os catorze buscavam uma nova rima, quando olharam para cima...<br />
Boquiabertos, ao som de quinze admirações, descobriram estrelas candentes, candentes em grandes porções<br />
e proporções.<br />
E aquelas dezesseis imaginações tropeçaram nas mesmas conclusões...<br />
"As pedras são farelos de estrelas", dezessete vezes pensaram e dezessete vozes exclamaram.<br />
E declararam os dezoito andarilhos, acostumados a vagar de déu em déu: "Essa terra tem parentesco com o<br />
céu".<br />
E dezenove caminheiros decidiram fincar o pé e se estabelecer: "De agora em diante, aqui vamos morar,<br />
aqui vamos viver".<br />
Vinte vezes festejaram, quando uma voz desfestejou: "Continuarei caminhando. Adeus. Já vou".<br />
E deste que se foi, ligeirinho!, posso dizer apenas que ele.<br />
Andava pela estrada, sozinho.<br />
Prosa poética de Francisco Marques (Chico dos Bonecos), ilustrada por Ivan Zigg<br />
107
A seca e o inverno<br />
Patativa do Assaré<br />
Ilustração: Joana Lira<br />
Na seca inclemente no nosso Nordeste<br />
O sol é mais quente e o céu, mais azul<br />
E o povo se achando sem chão e sem veste<br />
Viaja à procura das terras do Sul<br />
Porém quando chove tudo é riso e festa<br />
O campo e a floresta prometem fartura<br />
Escutam-se as notas alegres e graves<br />
Dos cantos das aves louvando a natura<br />
Alegre esvoaça e gargalha o jacu<br />
Apita a nambu e geme a juriti<br />
E a brisa farfalha por entre os verdores<br />
Beijando os primores do meu Cariri<br />
De noite notamos as graças eternas<br />
Nas lindas lanternas de mil vaga-lumes<br />
Na copa da mata os ramos embalam<br />
E as flores exalam suaves perfumes<br />
Se o dia desponta vem nova alegria<br />
A gente aprecia o mais lindo compasso<br />
Além do balido das lindas ovelhas<br />
Enxames de abelhas zumbindo no espaço<br />
E o forte caboclo da sua palhoça<br />
No rumo da roça de marcha apressada<br />
Vai cheio de vida sorrindo e contente<br />
Lançar a semente na terra molhada<br />
Das mãos deste bravo caboclo roceiro<br />
Fiel prazenteiro modesto e feliz<br />
É que o ouro branco sai para o processo<br />
Fazer o progresso do nosso país<br />
Cordel de Patativa do Assaré, ilustrado por<br />
Joana Lira<br />
108
Confusões do Seu José<br />
Lidia Izecson de Carvalho<br />
Ilustração Victor Malta<br />
Seu José foi ao mercado<br />
Comprar pra semana inteira<br />
Pegou de tudo um pouco<br />
Até uma enorme peneira<br />
Sem pensar como pagar<br />
Continuou a gastança<br />
Abacaxi, melancia e morango<br />
Não era hora de fazer poupança<br />
Chegou na fila do caixa<br />
Já meio de cabeça baixa<br />
Não sabia onde estava o dinheiro<br />
Teria esquecido no banheiro?<br />
Procurou por todo lado<br />
Remexeu daqui e dali<br />
Do bolso saiu tanta coisa<br />
Pandeiro, alicate e jabuti<br />
Mas onde estava o dinheiro<br />
Isso todos queriam saber<br />
De repente ele lembrou<br />
Assim meio sem querer<br />
Deu um sorriso amarelo<br />
E levantou o boné<br />
Sabia que tinha o dinheiro<br />
Não era nenhum caloteiro<br />
O que ninguém esperava<br />
Foi o que se viu então<br />
Tinha dez notas dobradas<br />
Somando quase 1 milhão<br />
Com tanto ladrão por aí<br />
Foi logo explicando o José<br />
O melhor é se prevenir<br />
Guardar na careca ou no pé<br />
Lidia Izecson de Carvalho, autora deste poema,<br />
é pedagoga, mestre em Educação e mora em São<br />
Paulo. Escreveu diversos livros infantis, como<br />
Cadê o Meu Avô. Em 2006, recebeu o prêmio<br />
Jabuti de melhor obra paradidática.<br />
109
Emas<br />
É sempre era uma vez<br />
Elias José<br />
Ilustração: Marcello Araújo<br />
Elas ficavam flanando, as emas.<br />
Nos pátios da fazenda.<br />
A gente sabia que as emas<br />
comem vidros, latas de sardinha, sabonetes,<br />
cobras, pregos.<br />
Falavam que elas têm moelas de alicate.<br />
Nossa mãe tinha medo que as emas comessem<br />
nossas cobertas de dormir e os vidros de<br />
arnica da avó.<br />
Eu tinha vontade de botar cabresto na ema<br />
e sair pelos campos montado nela.<br />
A gente sabia<br />
que a ema quase voa no correr.<br />
E que quase dobra o vento no correr.<br />
Eu tinha vontade de dobrar o vento no correr.<br />
Poema de Manoel Barros, Ilustrado por Siron<br />
Franco<br />
110
Era uma vez uma cachorrinha muito alegre e assanhadinha.<br />
Era uma vez um tal Marcelo que se achava muito belo.<br />
Era uma vez um tal João que comia sorvete com feijão.<br />
Era uma vez um cachorrão, enjoado, latidor e folgadão.<br />
Era uma vez um palhaço, que só levava tombaço.<br />
Era uma vez um sacristão, que tocava sino com o dedão.<br />
Era uma vez uma professora, que teimava em ser cantora.<br />
Era uma vez um safado prefeito, que dizia: Não tenho defeito!<br />
Era uma vez um meu colega, que levou uma boa esfrega.<br />
Era uma vez um músico italiano, que, com pé, tocava o seu piano.<br />
Era uma vez um aloprado cientista, que passava xixi na vista.<br />
Era uma vez um feioso estudante, que se dizia muito belo e elegante.<br />
Era uma vez uma desajeitada menina, que misturava perfume com gasolina.<br />
Era uma vez o famoso Chico Peão, que contou vantagem e foi pro chão.<br />
Era uma vez uma tal dona Inês, que tinha cão listrado e gato xadrez.<br />
E eu quero saber agora o resto destas histórias.<br />
Conte de uma só vez, quando chegar a sua vez.<br />
Poema de Elias José, ilustrado por Marcello Araújo<br />
Meu amigo dinossauro<br />
Ruth Rocha<br />
Ilustração: Alarcão<br />
111
Um pequeno dinossauro<br />
Apareceu no jardim<br />
Educado, inteligente,<br />
O seu nome era Joaquim.<br />
Nunca consegui saber<br />
De onde foi que ele saiu<br />
Quando a gente perguntou<br />
Disfarçou e até sorriu...<br />
Ficou muito nosso amigo<br />
Fez tudo que é brincadeira.<br />
Levou o Miguel pra escola<br />
Levou a mamãe pra feira.<br />
As pessoas espiavam<br />
Estranhavam um pouquinho<br />
Onde será que arranjaram<br />
Este dinossaurosinho?<br />
Nessa tarde o papai trouxe<br />
Um amigo bem distinto<br />
Que se espantou e exclamou:<br />
— Mas este bicho está extinto!<br />
Há muitos milhões de anos<br />
Ele já virou petróleo!<br />
Ou já virou gasolina,<br />
Ou algum tipo de óleo.<br />
Meu dinossauro sorriu<br />
— Estou vivo, "podes crer"!<br />
Eu não virei querosene<br />
Como o senhor pode ver!<br />
Antigamente diziam<br />
Que o petróleo era formado<br />
Por montes de dinossauros<br />
Um sobre o outro empilhados.<br />
Mas isso não é verdade!<br />
Foram plantas e outros bichos<br />
Que ficaram bem fechados<br />
Entre buracos e nichos.<br />
Sofreram muita pressão<br />
Por muitos milhões de anos<br />
Sofreram muito calor<br />
No fundo dos oceanos.<br />
— Mas então por que o petróleo<br />
Até parece cigano?<br />
Ora aparece na Terra,<br />
Ora debaixo do oceano!<br />
É porque o planeta Terra<br />
Esteve sempre a mudar<br />
Depois de milhões de anos<br />
Tudo mudou de lugar.<br />
Todos ficaram espantados<br />
De tanta sabedoria<br />
E perguntavam: — Que mais<br />
Sabe Vossa Senhoria?<br />
— Sei ainda muitas coisas<br />
Disse o amigo Joaquim<br />
Para que serve o petróleo<br />
E outras coisas assim.<br />
Petróleo move automóvel,<br />
Navio, trem, avião,<br />
112
Ônibus e motocicleta,<br />
Helicóptero e caminhão.<br />
Com petróleo se faz pano,<br />
Brinquedo, bolsas e mala,<br />
Pele pra fazer salsicha,<br />
Copos, pratos, nem se fala.<br />
Se faz tinta, faz garrafa,<br />
Material de construção,<br />
Se fazem peças de automóvel<br />
E se faz tubulação.<br />
Morada do inventor<br />
Elias José<br />
Ilustração: Alessandra Kalko. Foto: Marcelo Guarnieri<br />
A professora pedia e a gente levava,<br />
achando loucura ou monte de lixo:<br />
latas vazias de bebidas, caixas de fósforo,<br />
pedaços de papel de embrulho, fitas,<br />
brinquedos quebrados, xícaras sem asa,<br />
— Tenho mais uma coisinha<br />
Pra dizer. - Pois então diga!<br />
E o dinossauro puxou<br />
O fecho em sua barriga.<br />
E saíram lá de dentro<br />
O Pedro mais o Raimundo<br />
— Nós não somos dinossauro,<br />
Enganamos todo mundo!<br />
Poema de Ruth Rocha, ilustrado por Alarcão<br />
113
ecortes e bichos, pessoas, luas e estrelas,<br />
revistas e jornais lidos, retalhos de tecido,<br />
rendas, linhas, penas de aves, cascas de ovo,<br />
pedaços de madeira, de ferro ou de plástico.<br />
Um dia, a professora deu a partida<br />
e transformamos, colamos e colorimos.<br />
E surgiram bonecos esquisitos,<br />
bichos de outros planetas, bruxas<br />
e coisas malucas que Deus não inventou.<br />
Tudo o que nascia ganhava nome, pais,<br />
casa, amigos, parentes e país.<br />
E nasceram histórias de rir ou de arrepiar!…<br />
E a escola virou morada de inventor!<br />
Poema de Elias José, ilustrado por Alessandra Kalko. Foto de Marcelo Guarnieri<br />
O espelho e a perua<br />
Ilustração: Ionit<br />
A confusão começou<br />
Certa vez, no galinheiro,<br />
Quando as aves encontraram<br />
Um espelho no terreiro.<br />
114
Uma galinha vaidosa<br />
Logo quis contar vantagem:<br />
- Com licença, galináceas,<br />
Vim conferir minha imagem!<br />
A pata, torcendo o bico,<br />
Comentou com a vizinha:<br />
- Não vale arrancar as penas<br />
Pra parecer mais magrinha!<br />
E qual não foi a surpresa<br />
Das aves estabanadas:<br />
No reflexo do espelho<br />
Só tinha coisas erradas!<br />
Quem era alta e bela<br />
Viu-se feiosa e baixinha.<br />
Quem era gorda e forte<br />
Ficou magrela e fraquinha.<br />
- Credo! - grasnou o marreco.<br />
- Cruzes! - o pinto piou.<br />
- Incrível! - cantou o galo.<br />
E o papagaio berrou.<br />
A galinha carijó<br />
Foi quem depressa falou:<br />
- Este espelho tem feitiço...<br />
Foi a bruxa que o mandou!<br />
- Mentira! - disse a perua,<br />
Balançando as pulseiras.<br />
- Li esse conto de fadas,<br />
Vocês só dizem besteiras!<br />
Estufou-se, bem danada,<br />
Mostrando o papo vermelho.<br />
E com pose de malvada<br />
Fez a pergunta ao espelho:<br />
- Espelho, espelho meu!<br />
Responda se há no mundo<br />
Outra ave mais bonita,<br />
Mais charmosa e elegante,<br />
Mais esperta e fascinante,<br />
Mais incrível e imponente,<br />
Mais formosa do que eu?<br />
Diga logo, espelho meu!!<br />
Os bichos, impressionados,<br />
Ouviram com atenção<br />
A resposta do espelho<br />
A tamanha pretensão:<br />
- Se você quer a verdade,<br />
Vou dizê-la, nua e crua.<br />
E mostrar a realidade<br />
Para uma simples perua.<br />
Você disse que é esperta,<br />
Imponente e charmosa.<br />
Mas parece antipática,<br />
Falando assim, toda prosa.<br />
Desfila o ano inteiro<br />
Como se fosse a tal.<br />
Mas foge do cozinheiro<br />
Quando chega o Natal!<br />
Poema de Flávia Muniz, ilustrado por Ionit<br />
115
O que é, o que é?<br />
Ilustração: Vilmar<br />
O que é, o que é?<br />
Bola de ouro<br />
Correndo, sem choro,<br />
Na ponta do pé.<br />
O que é, o que é?<br />
Bola de prata<br />
Quicando, sensata,<br />
No peito do pé.<br />
O que é, o que é?<br />
Bola de meia<br />
Caindo sem peia<br />
No pio do pé.<br />
O que é, o que é?<br />
Bola de neve<br />
Roçando de leve<br />
A planta do pé.<br />
O que é, o que é?<br />
Bola de fogo<br />
Ardendo no jogo<br />
De pé contrapé.<br />
O que é, o que é?<br />
Bola de cera,<br />
Chegando matreira,<br />
De pé-ante-pé.<br />
O que é, o que é?<br />
Bola fagueira<br />
Saindo certeira<br />
Do arco do pé.<br />
É gol de Pelé.<br />
Poema de Armando Nogueira, (extraído do<br />
livro O Homem e a Bola, publicado pela Ed.<br />
Mitavaí), ilustrado por Vilmar<br />
116
Paisagem de Brodósqui<br />
Fátima Miguez<br />
Ilustração: Ivan Zigg<br />
Paisagem de Brodósqui,<br />
a terra manjedoura,<br />
roxeada, avermelhada,<br />
matriz duradoura<br />
do menino Candinho.<br />
Poeta dos pintores,<br />
escreveu em cores<br />
momentos da infância<br />
na tela acordada.<br />
Um baú de histórias coloridas<br />
na lembrança, reunidas<br />
no quadro, imagens<br />
recorridas.<br />
O papagaio de papel<br />
no imenso azul do céu...<br />
O descanso de um boizinho<br />
num pacato povoado.<br />
Um especial bauzinho<br />
na areia depositado.<br />
Um cavalo apressado<br />
Por um homem montado.<br />
Uma modesta igrejinha,<br />
num vilarejo, abençoada<br />
pelas mãos pintoras<br />
do Candido menino,<br />
Portinari consagrado,<br />
estrela a brilhar<br />
no cenário da pintura<br />
universal, brasileira.<br />
Poema de Fátima Miguez (extraído do livro<br />
Paisagens Brasileiras, publicado pela Ed.<br />
DCL), ilustrado por Ivan Zigg<br />
117
Picasso<br />
Adriana Abujamra Aith<br />
Ilustração: Biry<br />
Picasso<br />
Desde pequeno<br />
Fazia troça<br />
Com traços<br />
Parece piada,<br />
Mas dizem que é pura verdade<br />
A primeira palavra que disse foi:<br />
"Lápis"<br />
E zapt!<br />
Não parou mais<br />
Desenhava as touradas da<br />
Espanha,<br />
Cavalos, bonecas<br />
Menino levado<br />
Cresceu,<br />
Foi pra Paris<br />
Impressionado com a cidade,<br />
Registrou tudo que viu<br />
Mas um grande amigo partiu<br />
E com ele as cores<br />
Sobrou o azul<br />
Quadros de dores<br />
Logo conheceu uma moça<br />
Na tela branca<br />
A paixão vermelha<br />
Corou de rosa sua paleta<br />
Mas a fase mais engraçada<br />
Foi a cubista<br />
Picasso embaralhou as formas<br />
Brincou com as normas<br />
Cubismo<br />
118
Mosaicos<br />
Caquinhos<br />
Pedaços<br />
Na época<br />
Foi aquele estardalhaço<br />
Desenhou perfil de frente<br />
Pôs bumbum no lugar dos braços<br />
Fez tudo diferente<br />
Poema para Dalí<br />
Kátia Can<br />
Ilustração: André Davino<br />
Era uma vez<br />
Um sonho de menino.<br />
Estranho,<br />
Versátil,<br />
Arte não é fotografia<br />
Que registra o modelo real<br />
tal e qual<br />
Na tela<br />
A imagem que fica<br />
É Picasso e<br />
Não tem igual<br />
Poema de Adriana Abujamra Aith, ilustrado<br />
por Biry<br />
Admirável.<br />
De repente, o tempo não existia mais.<br />
Tinha parado,<br />
119
Congelado,<br />
Suspendido.<br />
O relógio começou a escorregar por entre as suas<br />
mãos<br />
E o tempo foi derretendo.<br />
O menino então falou comigo:<br />
"Eu penso, eu digo e falo<br />
O que vem na mente.<br />
E você sente".<br />
Juntos, escrevemos automaticamente<br />
Tudo o que vem à cabeça<br />
Sem censura<br />
Nem suspiro.<br />
A gente se entende.<br />
As imagens que surgem do texto são bonitas.<br />
Surgem Dalí e daqui.<br />
Têm sol, têm mar, têm casas e árvores<br />
E têm gente estranha.<br />
Quadrilha da sujeira<br />
Ilustração: Nika Santos<br />
As cenas são improváveis<br />
E o ritmo é de um sincopado que não existe,<br />
Nem nas mais exóticas músicas que ouvimos.<br />
Apenas sonho de meninos?<br />
Se eu fosse um artista<br />
Surrealista<br />
Eu também sonharia assim.<br />
Perguntaria teu nome<br />
E no meio da fome<br />
Pediria pra você ficar e pintar comigo.<br />
Eu iria me nutrir da tua mão de chocolate<br />
E da tua pele de pêssego.<br />
Juntos, iríamos passar tinta, comemorar<br />
E colorir todos os sonhos do mundo.<br />
Poema de Kátia Canton, ilustrado por André<br />
Davino<br />
120
João joga um palitinho de sorvete na<br />
rua de Teresa que joga uma latinha de<br />
refrigerante na rua de Raimundo que<br />
joga um saquinho plástico na rua de<br />
Joaquim que joga uma garrafinha<br />
velha na rua de Lili.<br />
Lili joga um pedacinho de isopor na<br />
rua de João que joga uma embalagenzinha<br />
de não sei o que na rua de Teresa que<br />
joga um lencinho de papel na rua de<br />
Quem tem medo de dizer não?<br />
Ruth Rocha<br />
A gente vive aprendendo<br />
A ser bonzinho, legal,<br />
A dizer que sim pra tudo,<br />
A ser sempre cordial...<br />
A concordar, a ceder,<br />
A não causar confusão,<br />
A ser vaca-de-presépio<br />
Que não sabe dizer não!<br />
Acontece todo dia,<br />
Raimundo que joga uma tampinha de<br />
refrigerante na rua de Joaquim que joga<br />
um papelzinho de bala na rua de J. Pinto<br />
Fernandes que ainda nem tinha<br />
entrado na história.<br />
Poema de Ricardo Azevedo (extraído do livro<br />
Você Diz que Sabe Muito, Borboleta Sabe Mais,<br />
publicado pela Fundação Cargill), ilustrado<br />
por Nika Santos<br />
Pois eu mesma não escapo.<br />
De tanto ser boazinha,<br />
Tô sempre engolindo sapo...<br />
Como coisas que não gosto,<br />
Faço coisas que não quero...<br />
Deste jeito, minha gente,<br />
Qualquer dia eu desespero...<br />
Já comi pamonha e angu,<br />
Comi até dobradinha...<br />
Ilustração: Ivan Zigg<br />
121
Comi mingau de sagu<br />
Na casa de uma vizinha...<br />
Comi fígado e espinafre,<br />
De medo de dizer não.<br />
Qualquer dia, sem querer,<br />
Vou ter de comer sabão!<br />
Eu não sei me recusar,<br />
Quando me pedem um favor.<br />
Eu sei que não vou dar conta,<br />
Mas dizer não é um horror!<br />
E no fim não faço nada<br />
E perco toda razão.<br />
Fico mal com todo mundo,<br />
Só consigo amolação.<br />
Quando eu estudo a lição<br />
E o companheiro não estuda,<br />
Na hora da prova pede<br />
Que eu dê a ele uma ajuda<br />
Embora ache desaforo,<br />
Eu não consigo negar...<br />
Meu Deus, como sou boazinha...<br />
Vivo só para ajudar...<br />
Se alguém me pede que empreste<br />
O disco do meu agrado,<br />
Sabendo que não devolvem<br />
Ou que devolvem riscado...<br />
Sou incapaz de negar,<br />
Mas fico muito infeliz...<br />
Qualquer um, se tiver jeito,<br />
Me leva pelo nariz...<br />
Depois que eu estou na fila<br />
Pra pagar o supermercado,<br />
Já estou lá há muito tempo...<br />
Aparece um engraçado...<br />
Seja jovem, seja velho,<br />
Se mete na minha frente,<br />
Mas eu nunca digo nada...<br />
Embora eu fique doente!<br />
A gente sempre demora<br />
A entender esta questão.<br />
Às vezes custa um bocado<br />
Dizer simplesmente não!<br />
Mas depois que você disse<br />
Você fica aliviada<br />
E o outro que lhe pediu<br />
É que fica atrapalhado...<br />
Mas não vamos esquecer<br />
Que existe o "por outro lado"...<br />
Tudo tem direito e avesso,<br />
Que é meio desencontrado...<br />
Quero saber dizer NÃO.<br />
Acho que é bom para mim.<br />
Mas não quero ser do contra...<br />
Também quero dizer SIM!<br />
Poema de Ruth Rocha, ilustrado por Ivan Zigg<br />
122
Sozinha<br />
Ilustração: Fábio Cobiaco<br />
Sozinha, coitada.<br />
Nunca estava acompanhada.<br />
Pega-pega, sozinha não tinha.<br />
Queimada, sozinha não dava.<br />
Então, ela sentava a pensar.<br />
Mas estava tão sozinha que<br />
nem pensamento vinha.<br />
Se Sozinha assim estava,<br />
mais sozinha ia ficar,<br />
Porque o S da Sozinha resolveu<br />
se mandar.<br />
Mal Ozinha se deu conta, o O<br />
aproveitou o embalo e saiu rolando.<br />
Desolada, sentia-se uma zinha qualquer.<br />
"Ô, Zinha", disse o Z.<br />
E zapt, fugiu ligeiro, deixando<br />
Inha para trás.<br />
"Inha, Inha, inhaaaá!" Desandava a chorar.<br />
Chorava, chorava até a lágrima secar.<br />
E agora, o que fazer?<br />
Olhou para um lado.<br />
Olhou para o outro.<br />
Para lá, para cá.<br />
Até que seu pé se animou. Levantou<br />
a Inha e se pôs a sambar.<br />
Ali de cima, os olhos de<br />
Inha observavam o seu pé,<br />
que sacudia e sacudia.<br />
E sacudindo contagiou o joelho,<br />
que remexeu a coxa e fez<br />
o bumbum rebolar.<br />
Do bumbum para a barriga<br />
foi um estalo.<br />
Os ombros, que não são bobos,<br />
entraram logo no embalo.<br />
Quando Inha percebeu, do pescoço<br />
para baixo estava um grande alvoroço.<br />
Só faltava a cabeça. Então a boca disse:<br />
"Entre na dança." Êba! Vamos lá!<br />
A alegria era tanta que atraiu muita<br />
123
gente. E todos os pés ali presentes<br />
convenceram seus donos a participar.<br />
Inha estava contente, mas tão contente,<br />
que nem se lembrava mais do tempo<br />
em que tinha um S, um O e um Z,<br />
que a deixavam Sozinha.<br />
Deles queria distância. Mas não<br />
Eu, hein!<br />
Ivan Zigg<br />
Ilustração: Ivan Zigg<br />
Eu não sei, mas isso é sério<br />
Meia noite no cemitério<br />
Um esqueleto vestindo sunga<br />
Batuca na sua tumba<br />
Eu, hein!<br />
Eu, hein!<br />
Batuca na sua tumba<br />
entendam mal. O S para um samba,<br />
o O num oi e o Z para um ziriguidum<br />
seriam sempre bem-vindos.<br />
Poema de Adriana Abujamra Aith e Ieda<br />
Abbud, ilustrado por Fábio Cobiaco<br />
Eu não sei, mas ouvi falar<br />
Meia-noite em algum lugar<br />
Uma múmia dançando rumba<br />
Batuca na catacumba<br />
Eu, hein!<br />
Eu, hein!<br />
124
Batuca na catacumba<br />
Eu não sei, mas ouvi dizer<br />
Aquele esqueleto se parece com você<br />
E como dizia a minha tia Petúnia<br />
Tu és a cara daquela múmia!<br />
Lado bom<br />
Eu, hein!<br />
Eu, hein!<br />
Tu és a cara daquela múmia!<br />
Ilustração com Grafite de Jana Joana e Vitché. Foto Rogério Albuquerque<br />
Periferia tem seu lado bom<br />
Manos, vielas e futebol no campão<br />
Meninas com bonecas e não com filhos<br />
Planejando assim um futuro positivo<br />
Sua paz é você que define<br />
Longe do álcool, longe do crime<br />
A escola é o caminho do sucesso<br />
Pro pobre honrar desde o começo<br />
E dizer bem alto que somos a herança<br />
De um país que não promoveu as mudanças<br />
Sem atrasar ninguém, rapaz<br />
Fazendo sua vida se adiantar na paz<br />
Canção e ilustração de Ivan Zigg<br />
Jogando bolinha, jogando peão<br />
Vi nos olhos da criança a revolução<br />
Que solta a pipa pensando em voar<br />
Para não ver o barraco que era o seu lar<br />
Periferia lado bom o que você me diz<br />
Alguns motivos pra te deixar feliz<br />
Longe do álcool, longe do crime<br />
Sua paz é você que define<br />
(*)E nessa pipa no céu eu vi planar<br />
A paz necessária para se avançar<br />
Ânimo, positividade em ação<br />
Hip hop cultura de rua e Educação<br />
125
Foi assim que criaram e assim que tem que ser<br />
O mestre-de-cerimônia rimando pra você<br />
Enquanto o DJ troca as bases<br />
O grafiteiro pinta todo o contraste<br />
Da favela pro mundo<br />
O caminho do rap pelo estudo<br />
Por isso eu não me iludo<br />
Roupa de marca não é meu escudo<br />
Detentos, já te disse no começo<br />
E estudar do sucesso é o preço<br />
Porque a fama não cabe num coração pequeno<br />
Então positividade pra vencer, vai vendo<br />
Longe do crime, longe da dor,<br />
Devemos dar valor ao professor<br />
Vamos planejar um futuro positivo<br />
Para desarmar todo o povo sofrido<br />
Canção de Ferréz, ilustrada com grafite de Jana Joana e Vitché<br />
Na casa do cozinheiro - Hélio Ziskind<br />
Armas no chão, flores nas mãos<br />
União para salvar uma nação<br />
Se liga no que eu vou te falar<br />
No mundo das drogas não pode entrar<br />
Se liga no que eu vou te dizer<br />
Pra depois você não se arrepender<br />
O teu fim não pode ser assim<br />
A rima que eu faço faz parte de mim<br />
O estudo é o escudo, já disse tudo<br />
Valorizar as minas no próximo futuro<br />
Armas no chão, flores nas mãos<br />
União pra salvar uma nação<br />
(*) Na segunda parte desse rap, o autor se inspirou<br />
nas idéias enviadas por estudantes de escolas de<br />
todo o pais, principalmente da Escola Municipal<br />
Madre Maria Viganó, em Castanhal (PA)<br />
Ilustração: Ionit Zilberman<br />
126
Panelinha<br />
Panelão<br />
Panelinha<br />
Panelão<br />
Panelinha pim pim<br />
Panelão pão pão pão<br />
Vivo entre panelas<br />
Pim piririm pampam<br />
Frigideiras e tigelas<br />
Pão pão pim<br />
Quem sou?<br />
Quem sou?<br />
O cozinheiro, acertou!<br />
Minha casa é muito musical<br />
Panelinha agudinha<br />
Pim pim pim piririm pim pim<br />
Panelão gravão<br />
Pão pão pão pararão pão pão<br />
Minha filha maior<br />
Toca o instrumento maior<br />
Enquanto o feijão cozinha<br />
Minha filha menor<br />
Toca um instrumento menor<br />
Lá no andar de cima<br />
Pepino com caramelo<br />
Violino com violoncelo<br />
Pepino com caramelo<br />
Violino com violoncelo<br />
Uôu uôu<br />
A panela de pressão assobiou!<br />
Pss psss<br />
Pss psss<br />
Panelinha linha<br />
Panelão nelão<br />
Panelinha linha<br />
Panelão<br />
Violino lino lino<br />
Violoncelo celo celo<br />
Violino lino lino<br />
Violoncelo celo celo<br />
Canção de Hélio Ziskind, ilustrado por Ionit<br />
Zilberman<br />
127
Samba do Approach<br />
Mostre como nosso vocabulário incorpora expressões originárias de outros idiomas<br />
Saiba que eu tenho approach<br />
Na hora do lunch<br />
Eu ando de ferryboat<br />
Eu tenho savoir-faire<br />
Meu temperamento é light<br />
Minha casa é hi-tech<br />
Toda hora rola um insight<br />
Já fui fã do Jethro Tull<br />
Hoje eu me amarro no Slash<br />
Minha vida agora é cool<br />
Meu passado é que foi trash<br />
Fica ligada no link<br />
Que eu vou confessar, my love<br />
Depois do décimo drink<br />
Só um bom e velho engov<br />
Eu tirei meu green card<br />
E fui pra Miami Beach<br />
Posso não ser um pop star<br />
Mas já sou um nouveau riche<br />
Eu tenho sex appeal<br />
Saca só meu background<br />
Veloz como Damon Hill<br />
Tenaz como Fittipaldi<br />
Não dispenso um happy end<br />
Quero jogar no dream team<br />
De dia um macho man<br />
E de noite drag queen<br />
Letra de Zeca Baleiro, ilustrada por Fido Nesti<br />
128
LENDAS E FABULAS<br />
A dança do arco-íris<br />
João Anzanello Carrascoza<br />
Ilustração: Alarcão<br />
Há muito e muito tempo, vivia sobre uma planície de nuvens uma tribo muito feliz. Como não havia solo<br />
para plantar, só um emaranhado de fios branquinhos e fofos como algodão-doce, as pessoas se alimentavam<br />
da carne de aves abatidas com flechas, que faziam amarrando em feixe uma porção dos fios que formavam o<br />
chão. De vez em quando, o chão dava umas sacudidelas, a planície inteira corcoveava e diminuía de<br />
tamanho, como se alguém abocanhasse parte dela.<br />
Certa vez, tentando alvejar uma ave, um caçador errou a pontaria e a flecha se cravou no chão. Ao arrancá-<br />
la, ele viu que se abrira uma fenda, através da qual pôde ver que lá embaixo havia outro mundo.<br />
Espantado, o caçador tampou o buraco e foi embora. Não contou sua descoberta a ninguém.<br />
Na manhã seguinte, voltou ao local da passagem, trançou uma longa corda com os fios do chão e desceu até<br />
o outro mundo. Foi parar no meio de uma aldeia onde uma linda índia lhe deu as boas-vindas, tão surpresa<br />
em vê-lo descer do céu quanto ele de encontrar criatura tão bela e amável. Conversaram longo tempo e o<br />
caçador soube que a região onde ele vivia era conhecida por ela e seu povo como "o mundo das nuvens",<br />
formado pelas águas que evaporavam dos rios, lagos e oceanos da terra. As águas caíam de volta como uma<br />
cortina líquida, que eles chamavam de chuva. "Vai ver, é por isso que o chão lá de cima treme e encolhe",<br />
ele pensou. Ao fim da tarde, o caçador despediu-se da moça, agarrou-se à corda e subiu de volta para casa.<br />
Dali em diante, todos os dias ele escapava para encontrar-se com a jovem. Ela descreveu<br />
para ele os animais ferozes que havia lá embaixo. Ele disse a ela que lá no alto as coisas materiais não<br />
129
tinham valor nenhum.<br />
Um dia, a jovem deu ao caçador um cristal que havia achado perto de uma cachoeira. E pediu para visitar o<br />
mundo dele. O rapaz a ajudou a subir pela corda. Mal tinham chegado lá nas alturas, descobriram que<br />
haviam sido seguidos pelos parentes dela, curiosos para ver como se vivia tão perto do céu.<br />
Foram todos recebidos com uma grande festa, que selou a amizade entre as duas nações. A partir de então,<br />
começou um grande sobe-e-desce entre céu e terra. A corda não resistiu a tanto trânsito e se partiu. Uma<br />
larga escada foi então construída e o movimento se tornou ainda mais intenso. O povo lá de baixo, indo a<br />
toda a hora divertir-se nas nuvens, deixou de lavrar a terra e de cuidar do gado. Os habitantes lá de cima<br />
pararam de caçar pássaros e começaram a se apegar às coisas que as pessoas de baixo lhes levavam de<br />
presente ou que eles mesmos desciam para buscar.<br />
Vendo a desarmonia instalar-se entre sua gente, o caçador destruiu a escada e fechou a passagem entre os<br />
dois mundos. Aos poucos, as coisas foram voltando ao normal, tanto na terra como nas nuvens. Mas a jovem<br />
índia, que ficara lá em cima com seu amado, tinha saudade de sua família e de seu mundo Sem poder vê-los,<br />
começou a ficar cada vez mais triste. Aborrecido, o caçador fazia tudo para alegrá-la. Só não concordava em<br />
reabrir a comunicação entre os dois mundos: o sobe-e-desce recomeçaria e a sobrevivência de todos estaria<br />
ameaçada.<br />
Certa tarde, o caçador brincava com o cristal que ganhara da mulher. As nuvens começaram a sacudir sob<br />
seus pés, sinal de que lá embaixo estava chovendo. De repente, um raio de sol passou pelo cristal e se abriu<br />
num maravilhoso arco-íris que ligava o céu e a terra. Trocando o cristal de uma mão para outra, o rapaz viu<br />
que o arco-íris mudava de lugar.<br />
- Iuupii! - gritou ele. - Descobri a solução para meus problemas!<br />
Daquele dia em diante, quando aparecia o sol depois da chuva, sua jovem mulher escorregava pelo arco-íris<br />
abaixo e ia matar a saudade de sua gente. Se alguém lá de baixo se metia a querer visitar o mundo das<br />
nuvens, o caçador mudava a posição do cristal e o arco-íris saltava para outro lado. Até hoje, ele só permite<br />
a subida de sua amada. Que sempre volta, feliz, para seus braços.<br />
Lenda indígena recontada por João Anzanello Carrascoza, ilustrada por Alarcão<br />
130
A lenda do preguiçoso<br />
Giba Pedroza<br />
Ilustração: Orlando<br />
Diz que era uma vez um homem que era o mais preguiçoso que já se viu debaixo do céu e acima da terra. Ao<br />
nascer nem chorou, e se pudesse falar teria dito:<br />
"Choro não. Depois eu choro".<br />
Também a culpa não era do pobre. Foi o pai que fez pouco caso quando a parteira ralhou com ele: "Não<br />
cruze as pernas, moço. Não presta! Atrasa o menino pra nascer e ele pode crescer na preguiça, manhoso".<br />
E a sina se cumpriu. Cresceu o menino na maior preguiça e fastio. Nada de roça, nada de lida, tanto que um<br />
dia o moço se viu sozinho no pequeno sítio da família onde já não se plantava nada. O mato foi crescendo<br />
em volta da casa e ele já não tinha o que comer. Vai então que ele chama o vizinho, que era também seu<br />
compadre, e pede pra ser enterrado ainda vivo. O outro, no começo, não queria atender ao estranho pedido,<br />
mas quando se lembrou de que negar favor e desejo de compadre dá sete anos de azar...<br />
E lá se foi o cortejo. Ia carregado por alguns poucos, nos braços de Josefina, sua rede de estimação. Quando<br />
passou diante da casa do fazendeiro mais rico da cidade, este tirou o chapéu, em sinal de respeito, e<br />
perguntou:<br />
"Quem é que vai aí? Que Deus o tenha!"<br />
"Deus não tem ainda, não, moço. Tá vivo."<br />
E quando o fazendeiro soube que era porque não tinha mais o que comer, ofereceu dez sacas de arroz. O<br />
preguiçoso levantou a aba do chapéu e ainda da rede cochichou no ouvido do homem:<br />
"Moço, esse seu arroz tá escolhidinho, limpinho e fritinho?"<br />
"Tá não."<br />
131
"Então toque o enterro, pessoal."<br />
E é por isso que se diz que é preciso prestar atenção nas crendices e superstições da ciência popular.<br />
Lenda recontada por Giba Pedroza, ilustrada por Orlando<br />
De Bem com a Vida<br />
Nye Ribeiro<br />
Filó, a joaninha, acordou cedo.<br />
- Que lindo dia! Vou aproveitar para visitar minha tia.<br />
- Alô, tia Matilde. Posso ir aí hoje?<br />
- Venha, Filó. Vou fazer um almoço bem gostoso.<br />
Filó colocou seu vestido amarelo de bolinhas pretas, passou batom cor-de-rosa, calçou os sapatinhos de<br />
verniz, pegou o guarda-chuva preto e saiu pela floresta: plecht, plecht...<br />
Andou, andou... e logo encontrou Loreta, a borboleta.<br />
- Que lindo dia!<br />
- E pra que esse guarda-chuva preto, Filó?<br />
- É mesmo! - pensou a joaninha. E foi para casa deixar o guarda-chuva.<br />
De volta à floresta:<br />
- Sapatinhos de verniz? Que exagero! - Disse o sapo Tatá. Hoje nem tem festa na floresta.<br />
- É mesmo! - pensou a joaninha. E foi para casa trocar os sapatinhos.<br />
De volta à floresta:<br />
- Batom cor-de-rosa? Que esquisito! - disse Téo, o grilo falante.<br />
- É mesmo! - disse a joaninha. E foi para casa tirar o batom.<br />
132
- Vestido amarelo com bolinhas pretas? Que feio! Por que não usa o vermelho? - disse a aranha Filomena.<br />
- É mesmo! - pensou Filó. E foi para casa trocar de vestido.<br />
Cansada da tanto ir e voltar, Filó resmungava pelo caminho. O sol estava tão quente que a joaninha resolveu<br />
desistir do passeio.<br />
Chegando em casa, ligou para tia Matilde.<br />
- Titia, vou deixar a visita para outro dia.<br />
- O que aconteceu, Filó? - Ah! Tia Matilde! Acordei cedo, me arrumei bem bonita e saí andando pela<br />
floresta. Mas no caminho...<br />
- Lembre-se, Filozinha... gosto de você do jeitinho que você é. Venha amanhã, estarei te esperando com um<br />
almoço bem gostoso.<br />
No dia seguinte, Filó acordou de bem com a vida. Colocou seu vestido amarelo de bolinhas pretas, amarrou<br />
a fita na cabeça, passou batom cor-de-rosa, calçou seus sapatinhos de verniz, pegou o guarda-chuva preto,<br />
saiu andando apressadinha pela floresta, plecht, plecht, plecht... e só parou para descansar no colo gostoso da<br />
tia Matilde.<br />
Quem é quem<br />
Nye Ribeiro, autora desta fábula, é educadora e jornalista e já escreveu mais de 30 livros. Seus últimos<br />
lançamentos são Boi Zambu e o Musquitim de Direção (24 págs., Ed. Roda e Cia.) e Colorina, a Árvore da<br />
Vida (24 págs., Ed. Roda e Cia.). Para saber sobre ela, acesse www.nyeribeiro.com.br e<br />
www.rodaecia.com.br.<br />
Nina Moraes, que ilustrou este conto com desenhos e colagens em tecido, é gaúcha de Porto Alegre.<br />
Jornalista e ilustradora, colabora com revistas como Bravo e Saúde!, da Editora Abril, além de participar de<br />
projetos editoriais e publicitários.<br />
Guilherme Tell - Tatiana Belinky<br />
Ilustração: Ivan Zigg<br />
133
Há muitos anos, antes de ser um país livre e soberano, a Suíça era governada por um regente autoritário<br />
chamado Gessler. Todo mundo tinha medo dele, porque quem desobedecesse às suas ordens era<br />
impiedosamente castigado. A única pessoa que não o temia era o bravo caçador das montanhas de nome<br />
Guilherme Tell, respeitado pelos seus conterrâneos por ser, além de homem de bem, um exímio arqueiro.<br />
Ninguém o superava na pontaria certeira com o arco e a flecha.<br />
O tirano Gessler, arrogante e vaidoso, gostava de aterrorizar a gente do povo. Por isso, mandou erguer na<br />
praça principal um poste no qual fez pendurar o seu chapéu. Diante desse ridículo símbolo de autoridade,<br />
todos os passantes deveriam se curvar. E todos obedeciam, de medo de ser cruelmente punidos. Todos,<br />
menos Guilherme Tell, que não se submetia àquela humilhação por considerá-la abaixo de sua dignidade.<br />
Até que um dia aconteceu de o próprio Gessler estar na praça quando Tell passou por ali com seu filho de 8<br />
anos.<br />
Vendo que o caçador não se curvara diante do chapéu, Gessler ficou furioso e mandou que seus soldados o<br />
agarrassem, gritando:<br />
- Tell, tu me desafiaste, e quem me desafia morre. Mas tu podes escapar da morte se fizeres o que eu te<br />
ordeno.<br />
E o poderoso Gessler mandou que encostassem o filho do caçador ao poste com uma maçã sobre a cabeça.<br />
Então, continuou:<br />
- Agora, Tell, terás de provar a tua fama de grande arqueiro acertando a maçã na cabeça do teu filho com<br />
uma única flechada. Se acertares, o que duvido, sairás livre. Mas, se errares, serás executado aqui, na frente<br />
de todo este povo.<br />
E Guilherme Tell foi colocado no ponto mais distante da praça, com o seu arco e uma flecha.<br />
- Cumpra-se a minha ordem!, bradou Gessler.<br />
- Atire, meu pai, disse o menino. Eu não tenho medo.<br />
Com o coração apertado, Guilherme Tell levantou o arco, apontou a flecha, esticou a corda e, de dentes<br />
cerrados, mirou em direção ao alvo. Zummmm! A flecha zuniu no ar, rapidíssima, e rachou ao meio a maçã<br />
sobre a cabeça da criança.<br />
Um suspiro de alívio subiu da multidão, que assistia horrorizada àquele cruel espetáculo.<br />
Nesse momento, Gessler viu a ponta de uma outra flecha escondida debaixo do gibão do arqueiro.<br />
- Para que a segunda flecha, se tinhas direito a um só arremesso?, urrou o tirano.<br />
Guilherme Tell respondeu, em alto e bom som:<br />
- A segunda flecha era para varar o teu coração, Gessler, se eu tivesse ferido o meu filho.<br />
E, pegando o menino pela mão, Guilherme Tell deu as costas ao tirano e foi embora.<br />
Anos mais tarde, o arqueiro foi um valoroso combatente pela independência da sua terra e pela liberdade de<br />
seu povo.<br />
Lenda popular suíça recontada por Tatiana Belinky, ilustrada por Ivan Zigg<br />
134
No tempo em que os bichos falavam<br />
Adriana Abujamra Aith e Ieda Abbud<br />
Ilustração: Evandro Luiz<br />
Houve um tempo em que os bichos falavam, e eles falavam tanto que Esopo resolveu recolher e contar as<br />
histórias deles para todo mundo.<br />
Esopo era escravo de um rei da Grécia e divertia-se inventando uma moral para as histórias que ouvia dos<br />
animais.<br />
Na verdade, nem todos os moradores do país eram capazes de entender a linguagem dos animais, mas Esopo<br />
era. Sobretudo dos pequeninos, que falavam muito baixinho, como por exemplo os ratinhos que moravam<br />
num buraco da parede da cozinha do palácio.<br />
Um dia, quando limpava o chão da cozinha, Esopo ouviu uns ruídos que vinham de dentro do buraquinho.<br />
Os ratinhos estavam muito agitados e preocupados, pois o rei havia colocado um gato grande e forte para<br />
tomar conta dos petiscos reais e o tal gato não era de brincar em serviço, já tinha devorado vários ratos.<br />
Esopo apurou os ouvidos e pôde ouvir tudo o que os ratinhos diziam. Um deles, muito espevitado, parecia<br />
ser o líder e, de cima de uma caixa de fósforos, discursava:<br />
- Meus amigos, assim não é mais possível, não temos mais paz e tudo porque o rei resolveu trazer aquela<br />
fera para cá. Precisamos fazer alguma coisa, e logo, porque senão esse gato vai acabar com a nossa raça!<br />
Era uma assembléia de ratos e todos estavam muito empenhados em solucionar o problema que os afligia:<br />
um gato, grande e forte, que o rei havia mandado colocar na cozinha.<br />
Já tinham perdido vários amigos nos dentes afiados da fera: o Provolone, o Roquefort, o Camembert e o<br />
pobre Tatá, o mais amado de todos.<br />
Planejaram, planejaram e não conseguiram chegar a nenhuma conclusão que agradasse a todos. Precisavam<br />
135
de estratégias eficazes e seguras.<br />
Uns achavam que deveriam matar o tal gato; outros diziam que era impossível: "Como matar uma fera<br />
daquelas?"<br />
Horácio estava quase convencido de que a sina de seu povo era morrer entre os dentes do gato. Com<br />
lágrimas nos olhos, já ia descendo da caixa de fósforos quando Frederico, um ratinho muito tímido que<br />
nunca falava, resolveu dar sua opinião:<br />
- Como vocês sabem, eu não gosto muito de falar, por isso serei rápido, mas antes vocês vão responder a<br />
uma pergunta: Por que esse gato é tão perigoso para nós, se somos tão ágeis e espertos?<br />
E Horácio respondeu:<br />
- Ora, Frederico, esse gato é silencioso, não faz nenhum barulho. Como é que vamos saber quando ele se<br />
aproxima?<br />
- Exatamente como eu pensei. Me perdoem a modéstia, mas acho que a idéia que tive é a melhor de todas as<br />
que ouvi aqui. Vejam só, é simples: Vamos arrumar um guizo, pode ser até aquele que pegamos da roupa do<br />
bobo da corte. Lembram? Aquele que achamos bonitinho e que faz um barulho enorme.<br />
Os ratos não estavam entendendo nada, para que serviria um guizo?<br />
Frederico tratou de explicar:<br />
- A gente pega o guizo e coloca no pescoço do gato. Quando ele se aproximar, vamos ouvir o barulho e<br />
fugir. Não é simples?<br />
Todos adoraram a idéia. Era só colocar o guizo que todos ouviriam o gato se aproximar.<br />
Todos os ratos foram abraçar Frederico e estavam na maior euforia quando, de repente, um ratinho, que não<br />
parava de roer um apetitoso pedaço de queijo, resolveu perguntar:<br />
- Mas quem é que vai colocar o guizo no pescoço do gato?<br />
Todos saíram cabisbaixos. Como não haviam pensado naquilo antes?<br />
Era o fim da euforia dos ratinhos. Para Esopo, a moral da história era a seguinte: "Não adianta ter boas<br />
idéias se não temos quem as coloque em prática". Ou ainda: "Inventar é uma coisa, colocar em prática é<br />
outra".<br />
Fábula de Esopo recontada por Georgina Martins, ilustrada por Evandro Luiz<br />
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O céu ameaça a terra<br />
Betty Mindlin<br />
Ilustração: Joana Lira<br />
Meninos e meninas do povo ikolen-gavião, de Rondônia, sentam-se à noite ao redor da fogueira e olham o<br />
céu estrelado. Estão maravilhados, mas têm medo: um velho pajé acaba de contar como, antigamente, o céu<br />
quase esmagou a Terra.<br />
Era muito antes dos avós dos avós dos meninos, era no começo dos tempos. A humanidade esteve por um<br />
fio: podia ser o fim do mundo. Nessa época, o céu ficava muito longe da Terra, mal dava para ver seu azul.<br />
Um dia, ouviu-se trovejar, com estrondo ensurdecedor. O céu começou a tremer e, bem devagarinho, foi<br />
caindo, caindo. Homens, mulheres e crianças mal conseguiam ficar em pé e fugiam apavorados para debaixo<br />
das árvores ou para dentro de tocas. Só coqueiros e mamoeiros seguravam o céu, servindo de esteios,<br />
impedindo-o de colar-se à Terra. Talvez as pessoas, apesar do medo, estivessem experimentando tocar o céu<br />
com as mãos...<br />
Nisso, um menino de 5 anos pegou algumas penas de nambu, "mawir" na língua tupi-mondé dos índios<br />
ikolens, e fez flechas. Crianças dos ikolens não podem comer essa espécie de nambu, senão ficam aleijadas.<br />
Era um nambu redondinho, como a abóbada celeste.<br />
O céu era duríssimo, mas o menino esperto atirou suas flechas adornadas com plumas de mawir. Espanto e<br />
alívio! A cada flechada do garotinho, o céu subia um bom pedaço. Foram três, até o céu ficar como é hoje.<br />
Em muitos outros povos indígenas, do Brasil e do mundo, há narrativas parecidas ou diferentes sobre o<br />
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mesmo assunto. Fazem-nos pensar por que céu e Terra estão separados agora... O povo tupari, de Rondônia,<br />
por exemplo, conta que era a árvore do amendoim que segurava o céu. (Bem antigamente, dizem, o<br />
amendoim crescia em árvore, em vez de ser planta rasteira.)<br />
Antes de o céu subir para bem longe, os ikolens podiam deixar a Terra e ir morar no alto. Iam sempre que<br />
ficavam aborrecidos com alguém, ou brigavam entre si, e subiam por uma escada de cipó. Gorá, o criador da<br />
humanidade, cansou de ver tanta gente indo embora e cortou o cipó, para a Terra não se esvaziar demais.<br />
Lenda contada por Betty Mindlin, ilustrada por Joana Lira<br />
O nascimento do mundo<br />
Maria de la Luz<br />
Ilustração: Kipper<br />
No início só havia Kore, a energia, vagando na escuridão do espaço infinito. Então, veio a luz e surgiram<br />
Ranginui, o Pai Céu, e Papatuanuku, a Mãe Terra. Rangi e Papa tiveram muitos filhos: Tangaroa, deus das<br />
águas; Tane, deus das florestas; Tawhirmatea, deus dos ventos; Tumatauenga, deus da guerra, que deu<br />
origem aos seres humanos; e Uru, que não era deus de nada.<br />
Rangi e Papa viviam num perpétuo abraço de amantes. Acontece que esse enlace apaixonado não deixava a<br />
luz penetrar entre seus corpos, onde ficavam os filhos. Obrigados a viver apertados e sempre no escuro, os<br />
jovens resolveram dar um basta na situação.<br />
- Vamos matar Rangi e Papa e ficar livres deles! - disse Tumatauenga.<br />
- Não! - disse Tane. - Vamos apenas separálos, empurrando um para cima e deixando o outro embaixo.<br />
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Assim sobrará espaço para nós e a luz vai poder entrar.<br />
Todos acharam a idéia excelente.<br />
Tane, que era o mais forte de todos, firmou bem os pés em Papa, encaixou os ombros no corpo de Rangi e o<br />
empurrou para cima com toda a força.<br />
Os pais se separaram, mas - oh, decepção! - só um pouco de luz chegou ao mundo dos filhos. Além disso,<br />
Rangi e Papa estavam nus e, longe um do outro, sentiam muito frio.<br />
Comovido com a situação, Tane abrigou o pai com o negro manto da noite.<br />
Para a mãe fez um vestido com as mais verdes e tenras folhas e as flores mais coloridas. Em torno dela fez<br />
ondular as águas azuis dos mares e rios de Tangaroa. Os ventos de Tawhirmatea sopravam suavemente seus<br />
cabelos. Os filhos de Tumatauenga já começavam a povoar o mundo recém-criado.<br />
Olhando lá de cima os lindos trajes da mulher e sua participação no novo mundo, Ranginui ficou doente de<br />
inveja. Sua dor cobriu o mundo com uma névoa úmida e cinzenta.<br />
Refugiado em uma dobra do manto paterno, Uru chorava e chorava por não ter sido útil em nada aos pais e<br />
aos irmãos. Para que ninguém percebesse suas lágrimas, escondia-as em cestas e mais cestas. Mas Tane tudo<br />
percebera:<br />
-Uru, meu irmão, preciso de sua ajuda!<br />
- Nada tenho para dar, você bem sabe!<br />
- Ora, Uru, você tem tantas cestas...<br />
Surpreso e com medo de ser descoberto em sua fraqueza, Uru abaixou a cabeça: - Não tem nada dentro<br />
delas, irmão.<br />
Tane avançou e destampou uma das cestas. Dela voaram luzes faiscantes e risonhas para todos os lados. As<br />
lágrimas de Uru haviam se transformado em crianças-luz (para nós, estrelas)!<br />
- Uru, será que você podia me ceder duas de suas cestas? Seus filhos poderiam enfeitar e iluminar a morada<br />
de nosso pai... Uru concordou. As duas cestas foram passadas para Te Waka o Tamareriti, uma canoa muito<br />
especial. Tane conduziu a canoa até o céu, espalhando sobre o manto de Rangi milhares de estrelinhas que<br />
riam e piscavam umas para as outras o tempo todo.<br />
Quando Tane ia pegar a segunda cesta, esta tombou e se abriu, deixando as estrelas se espalharem numa<br />
grande faixa chamada Ikaroa, que cruzou o céu de lado a lado (para nós, a Via Láctea). Tane deixou Ikaroa e<br />
Waka o Tamareriti (que é a "cauda" da nossa constelação do Escorpião) no espaço celeste, onde se tornaram<br />
os guardiões das estrelas.<br />
Lenda maori recontada por Maria de la Luz, ilustrada por Kipper<br />
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Pégaso e Andrômeda, a princesa acorrentada<br />
Walmir Cardoso<br />
Ilustração: Ivan Zigg<br />
Diz a lenda que muito tempo atrás, num distante país do Oriente, havia um rei chamado Cefeu, casado com a<br />
linda rainha Cassiopéia. Tal era a fama de sua beleza, que as pessoas vinham em caravana dos lugares mais<br />
remotos apenas para contemplá-la. Com o passar do tempo, a rainha começou a se considerar a mulher mais<br />
bonita do mundo. Foi nessa época que cometeu um grande erro. Diante de uma multidão que a aclamava,<br />
ousou dizer que era mais bela que as Nereidas. Essas ninfas, para infelicidade da rainha, eram protegidas<br />
pelo poderoso deus dos mares - Posêidon -, que ficou irado com a comparação. Num acesso de fúria,<br />
ergueu-se das águas segurando o tridente, seu enorme cetro de três pontas, e lançou uma maldição sobre o<br />
reino. O nível do mar subiu rapidamente e inundou grande parte do país. Ainda insatisfeito, o deus dos<br />
oceanos enviou um monstro marinho para devorar qualquer criatura que se aproximasse do reino pela região<br />
costeira.<br />
Os pescadores não se atreviam mais a sair de casa. Os navios estrangeiros que costumavam trazer preciosas<br />
mercadorias, não podendo atracar, nem saíam mais de seus portos. E o rei Cefeu foi aconselhado a realizar<br />
um sacrifício para aplacar a ira do deus ofendido. A vítima escolhida foi a princesa Andrômeda, sua filha.<br />
Deveriam amarrá-la aos rochedos para ser devorada por Cetus, o monstro que aterrorizava a costa.<br />
Andrômeda, que além de linda era muito corajosa, resolveu apresentar-se ao sacrifício para salvar o reino. E<br />
assim foi amarrada aos rochedos e ficou esperando o monstro.<br />
Enquanto isso, longe dali, um jovem herói cumpria certa profecia. O belo Perseu, filho de Zeus - deus da<br />
terra e do céu, que habitava o monte Olimpo - e da princesa Danae, havia recebido três presentes muito<br />
especiais: o manto da invisibilidade, sandálias com asas e um escudo de metal tão polido que mais parecia<br />
um espelho. Sua incumbência era matar a Medusa, um monstro em forma de mulher, cujos cabelos eram<br />
serpentes vivas. Todos os seres que a Medusa olhava se transformavam imediatamente em pedra. Usando<br />
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seu manto e voando com as sandálias mágicas, Perseu conseguiu se aproximar da Medusa enquanto esta<br />
dormia. Quando ela pressentiu a presença de alguém, despertou, mas viu apenas sua própria imagem<br />
refletida no escudo polido do nosso herói. Antes que petrificasse, ele cortou-lhe a cabeça e colocou- a dentro<br />
de uma bolsa mágica de couro.<br />
Quando voltava dessa arriscada missão, o jovem encontrou Andrômeda acorrentada nos rochedos e ambos<br />
ficaram perdidamente apaixonados. Mas, no exato instante em que eles se olharam, o monstro Cetus<br />
apareceu. Foi só então que Perseu se lembrou que trazia consigo a cabeça da Medusa. E não pestanejou.<br />
Aproximouse o mais que pôde e mostrou os olhos petrificantes da Medusa para Cetus, que imediatamente se<br />
transformou em pedra e caiu no fundo do oceano. Quando tudo parecia terminado, Perseu aproximou-se de<br />
Andrômeda para soltá-la, mas nesse exato instante uma gota de sangue da Medusa, que restara na bolsa, caiu<br />
no mar. Posêidon era apaixonado pela Medusa, mas nunca tinha conseguido tocá-la. Essa única gota de<br />
sangue em contato com a água provocou um estrondo e uma abundante espuma branca, da qual emergiu um<br />
belíssimo cavalo alado chamado Pégaso. E assim, ao ver o filho de sua amada, Posêidon abandonou a idéia<br />
de vingança.<br />
Muitas lutas o herói Perseu precisou vencer para chegar à felicidade e casar-se com Andrômeda. E propagou<br />
essa vitória ao mundo, mostrando a todos a cabeça decepada da inimiga. Por fim, livrou-se dela ofertando-a<br />
à deusa Atena, sua protetora.<br />
Segundo a lenda, Pégaso foi recebido no monte Olimpo, morada dos deuses gregos, e, tempos depois,<br />
transformou-se numa das constelações mais representativas da primavera - estação do ano que começa entre<br />
21 e 23 de setembro no hemisfério sul.<br />
Lenda grega recontada por Walmir Cardoso, ilustrada por Ivan Zigg<br />
Viola no saco - Tatiana Belinky<br />
Ilustração: Rogério Borges<br />
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Vocês sabem por que quando alguém perde uma discussão, ou coisa assim, e tem de se calar, se diz que<br />
"fulano meteu a viola no saco"? Pois eu vou contar.<br />
Há muito tempo, quando os bichos falavam e muitas coisas eram diferentes, havia muita festança no mundo.<br />
Um dia houve uma festa no céu e todos os bichos foram convidados. Entre eles, um dos mais esperados era<br />
o Urubu, porque as danças dependiam das músicas que ele tocava na viola.<br />
No dia da festa, o Urubu enfiou sua viola no saco e, antes de iniciar a viagem, foi beber água na lagoa. Lá<br />
encontrou o Sapo Cururu, que se secava ao sol. Enquanto o Urubu bebia, o espertalhão do Cururu, que<br />
também queria ir à festa, se escondeu dentro da viola para viajar de carona.<br />
Quando o Urubu chegou ao céu, foi muito bem recebido, pois todos esperavam por ele para começar a<br />
dançar o cateretê e a quadrilha. Mas antes o chamaram para beber umas e outras.<br />
O Urubu foi, deixando a viola encostada num canto. O Cururu aproveitou para pular da viola sem ser visto e<br />
foi se empanturrar com os quitutes da festa. O Urubu também comeu e bebeu até não poder mais e não viu<br />
que o Cururu, aproveitando uma distração sua, se escondera de novo dentro da viola para tornar a tirar uma<br />
carona na volta para a terra.<br />
Quando chegou a hora de voltar, o Urubu guardou a viola no saco e saiu voando de volta para casa. Durante<br />
o vôo, estranhou que a viola estivesse tão pesada. "Na vinda foi fácil, mas na volta está difícil. Será que<br />
fiquei fraco de tanto comer e beber?", pensou ele. Por via das dúvidas, examinou o saco com a viola e<br />
acabou descobrindo o malandro do Sapo Cururu agachado lá dentro. Furioso por ser usado desse jeito, o<br />
Urubu começou a sacudir o saco com a viola, para despejar o Cururu lá do alto e se ver livre dele.<br />
O Cururu, com medo de se esborrachar no chão pedregoso lá em baixo, recorreu à sua proverbial esperteza e<br />
começou a gritar: "Urubu, Urubu, me jogue sobre uma pedra, não me jogue na água, que eu morro<br />
afogado!".<br />
O Urubu, tolo, querendo se vingar do Sapo, viu lá de cima uma lagoa e tratou logo de despejar o Sapo dentro<br />
d’água, que era pra ele se afogar. O espertalhão do Cururu, que só queria era isso mesmo, saiu nadando, feliz<br />
da vida. O bobão do Urubu só não ficou "a ver navios" porque não havia navios naquela lagoa. E é por isso<br />
que, quando alguém perde a partida e tem de sair quieto e calado, dizem que "fulano teve de meter a viola no<br />
saco"...<br />
Fábula recontada por Tatiana Belinky, ilustrada por Rogério Borges<br />
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