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Jimi Joe<br />
Tem coisas que você não<br />
esquece, especialmente<br />
quando você é um adolescente<br />
bastante impressionável,<br />
o que – por destino ou coincidência<br />
– calhava de ser meu<br />
caso lá pelo início dos anos 70.<br />
Guri chegado de Pedro Osório<br />
lá por 1967 – sem sequer imaginar<br />
que havia um tal de Verão<br />
do Amor acontecendo em alguns<br />
lugares do mundo, embora<br />
já fosse fã dos Beatles<br />
e desconhecesse basicamente tudo sobre os Rolling Stones, demorei muito<br />
para me “enturmar” – como se dizia então – na capital. Enquanto não achava<br />
minha turma – e nem estava procurando muito, pra dizer a verdade – começava<br />
a arranhar um violão comprado pela minha irmã que logo se deu conta de que eu<br />
era canhoto e lascou um taxativo “não me vira essas cordas!”. Sem turma, talvez<br />
com lenço mas sem documento – só pra citar Caetano en passant, sonhava em tocar<br />
no violão todas aquelas músicas da Tropicália, da Jovem Guarda e, claro, dos<br />
Beatles que eu ouvia num velho rádio Philips valvulado, herança do avô materno.<br />
Aprendendo a tocar violão “pelo avesso” – porque eu nunca fui desses canhotos<br />
que se acovardam na hora do “vamo vê!” e se bandeiam pro lado da imensa<br />
maioria destra, - aprendi também a cantar, de cabo a rabo, o repertório da época<br />
de Chico Buarque de Hollanda em dueto com minha irmã – a dona do violão<br />
que eu insistia em aprender arrevesadamente – que era fã de carteirinha (outra<br />
expressão da época...) do Chico. Quando os anos 70 bateram à porta e a ditadura<br />
recrudesceu com o tal de general Médici, gaúcho de Bagé (espero que eles<br />
não tenham orgulho dele por lá...), minha irmã passou num concurso do Banco do<br />
Brasil e acabou dando com os costados lá pelo Rio de Janeiro por uns dois anos,<br />
levada por um tio, irmão caçula da minha mãe, que já era gerente do BB nas plagas<br />
cariocas. Com a guardiã do violão distante – ah, sim, acho que cabe mencionar<br />
que o tal violão era um maravilhoso Bungi construído bravamente na rua<br />
Andaraí, bairro do Passo D’Areia, em Porto Alegre – entrei no clima subversivo familiar<br />
e inverti as cordas do fabuloso instrumento. Quanta diferença! Agora tinha<br />
ficado mais fácil de tocar e eu até mesmo me arrisquei a começar a fazer umas<br />
cançonetas. Aí já era 1972 e eu estava começando o segundo grau – que agora se<br />
chamava Colegial com a unificação do Clássico e do Científico – e, maravilha das<br />
maravilhas, começando a me enturmar e até mesmo a querer namorar apesar de<br />
“O de 12!”<br />
todas as toneladas da minha gigantesca timidez. E claro, todo mundo<br />
sabe, nessa hora, um violãozinho bem tocado e as canções certas fazem<br />
milagres. Bom, agora estamos quase chegando onde quero chegar.<br />
Pois na minha turma do Colegial tinha uma garota que cantava (e cantava<br />
muito bem!), Élbia Regina. A essa altura eu já tinha visto shows<br />
de Chico Buarque, Quarteto em Cy, MPB-4 e não lembro mais quem no<br />
Ginásio do União, deixei escapar a passagem dos Herman Hermits por<br />
Porto Alegre, mas peguei Mutantes fazendo playback no programa do<br />
Ivan Castro no Ginásio da Brigada Militar e vi Roberto Carlos desfilar<br />
em carro aberto no centro da capital na volta vitoriosa do Festival de<br />
San Remo. Mas a gente nunca sabe tudo nem nunca vai saber, como dizem<br />
os verdadeiros sábios. Pois foi ali por 1972 que a Élbia me convidou<br />
para ouvir ela cantando (desnecessário dizer que a essa altura eu<br />
já estava apaixonado, né?) num show chamado Porta dos Fundos, no<br />
recém inaugurado Teatro de Câmara (que ainda não se chamava Túlio<br />
Piva, até porque o Túlio ainda estava bem vivo e ativo). Não vou lembrar,<br />
além da Élbia e de um cabeludo muito cabeludo chamado Tuca,<br />
quem mais fazia parte da banda. Mas vou lembrar sempre que antes<br />
da banda foi anunciado algo como um número de abertura. Entrou no<br />
palco um cidadão chamado <strong>Bebeto</strong> Nunes <strong>Alves</strong> com um flamante violão<br />
de 12 cordas e cantou uma canção singela chamada De Manhãzinha<br />
(“as galinhas vão cantar lá no quintal...”). Chapei na hora, não sei exatamente<br />
se pelo violão de 12 em si, pelo som do bicho ou, bem mais<br />
provável – pela força, carisma e coragem daquele sujeito que entrou<br />
no palco sozinho usando como defesa tão somente um violão e sua voz.<br />
Lembrei, na hora, de uma propaganda da Giannini no Pasquim, na época<br />
do Festival de Woodstock: uma foto de Ritchie Havens e a frase: “O cara<br />
que cantou a liberdade em Woodstock não tinha dentes. Mas tinha um<br />
violão.” Sinceramente não lembro muito do show do Porta dos Fundos<br />
que se seguiu – a não ser que Élbia cantou Golden Slumbers, dos Beatles,<br />
lindamente, mas afinal eu estava apaixonado. A imagem de <strong>Bebeto</strong><br />
com seu violão de 12 cordas enfrentando a platéia ficou para sempre.<br />
Um tempo depois, quando minha irmã exigiu a devolução do velho<br />
violão Bungi com as cordas ajeitadas para destros, ela me levou até a<br />
imensa loja Mesbla, que vendia instrumentos musicais – ali onde hoje é<br />
a Ulbra, na Voluntários da Pátria – e disse: “Escolhe um pra ti.” Com os<br />
olhos grudados num DiGiorgio de 12 cordas, eu só consegui perguntar:<br />
“Qualquer um?” Ela disse “sim” e eu, sem pestanejar, falei: “O de 12!”<br />
bebeto alves • Pág. 5