ficções do ciclo da borracha lucilene gomes lima - Entretextos
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FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA<br />
A selva, Beiradão e O amante <strong>da</strong>s amazonas<br />
LUCILENE GOMES LIMA<br />
1
Ao meu companheiro Isaac,<br />
Pela compreensão, paciência<br />
e auxílio nas ativi<strong>da</strong>des <strong>do</strong> dia-a-dia<br />
para que me fosse possível realizar este estu<strong>do</strong>.<br />
2
A G R A D E C I M E N T O S<br />
Ao Professor Dr. Sílvio Holan<strong>da</strong>, pelas orientações valiosas que me propiciou no<br />
desenvolvimento deste estu<strong>do</strong>.<br />
à Sra. Maria <strong>da</strong> Glória Sarmento <strong>da</strong> Costa, encarrega<strong>da</strong> <strong>do</strong> Setor de Obras Raras, <strong>da</strong><br />
Biblioteca Pública Estadual <strong>do</strong> Amazonas, pela atenção que me dispensou e auxílio que<br />
prestou na localização <strong>da</strong>s obras solicita<strong>da</strong>s.<br />
3
SUMÁRIO<br />
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 5<br />
INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 8<br />
1.A TEMÁTICA HISTÓRICADO CICLO DABORRACHA.................................................. 13<br />
2. A ABORDADGEM DO CICLO DA BORRACHA NA FICÇÃO AMAZONENSE .......... 35<br />
3. A DIVERSIFICAÇÃO DA ABORDAGEM FICCIONAL DO CICLO DA<br />
BORRACHA NAS OBRAS: A selva Beiradão e O amazonas <strong>da</strong>s amazonas.................. 61<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................................137<br />
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................................148<br />
4
APRESENTAÇÃO<br />
OS ROMANCES DA BORRACHA<br />
A maioria <strong>do</strong>s congressistas reuni<strong>do</strong>s em Oliveira de Azeméis (Portugal), em 2005,<br />
em comemoração aos setenta e cinco anos de publicação de A selva, de Ferreira de Castro,<br />
destacou, em suas prédicas, o infernismo amazônico e a relação conflituosa entre<br />
seringueiros e seringalistas. As capas <strong>da</strong>s edições em língua estrangeira, assunto de um <strong>do</strong>s<br />
palestrantes, incluíam, entre outros exotismos, feras <strong>da</strong>s savanas africanas, o que leva à<br />
suposição que o ilustra<strong>do</strong>r não leu o romance ou propositalmente extrapolou as fronteiras<br />
imaginárias geográficas. Ambas as hipóteses recaem na projeção individualiza<strong>da</strong> ou mesmo<br />
coletiva de uma utópica Amazônia.<br />
A <strong>borracha</strong>, realmente, lançou a Amazônia internacionalmente, ain<strong>da</strong> que sua<br />
economia houvesse si<strong>do</strong> instituí<strong>da</strong> com as drogas <strong>do</strong> sertão pelos coloniza<strong>do</strong>res portugueses<br />
no século XVIII. Tema recorrente nas publicações em prosa de ficção, o látex estimulou<br />
historia<strong>do</strong>res e economistas em análises muitas vezes contraditórias. Críticos literários<br />
também opinaram. O roubo <strong>da</strong>s sementes <strong>da</strong> hévea foi um ponto discuti<strong>do</strong> por estudiosos<br />
de procedências diversas de conhecimento, com estu<strong>do</strong>s nem sempre confluentes.<br />
Permaneceu e ain<strong>da</strong> é relembra<strong>da</strong> a “belle époque”, perío<strong>do</strong> que elevou Manaus de tapera à<br />
grande metrópole no passa<strong>do</strong>. Na atuali<strong>da</strong>de, a Manaus, apeli<strong>da</strong><strong>da</strong> de “Paris <strong>do</strong>s trópicos”<br />
existe nas lembranças como a primeira capital a ter iluminação pública com lâmpa<strong>da</strong>s<br />
elétricas, calçamento com paralelepípe<strong>do</strong>s de <strong>borracha</strong> para amortecer o barulho <strong>do</strong>s<br />
veículos no entorno <strong>do</strong> Teatro Amazonas, palacetes imponentes, alguns com telha<strong>do</strong>s<br />
copia<strong>do</strong>s de construções européias, acentua<strong>da</strong>mente inclina<strong>do</strong>s a fim de evitar o acúmulo de<br />
neve. O orgulho ain<strong>da</strong> é estimula<strong>do</strong> pela ci<strong>da</strong>de abrigar o Merca<strong>do</strong> Municipal, o Les Halles<br />
caboclo, cujos produtos perecíveis eram banha<strong>do</strong>s ao final <strong>do</strong> dia com creolina, cui<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
leva<strong>do</strong> ao extremo pelo serviço sanitário, obrigan<strong>do</strong>, inclusive, a queima<strong>da</strong> de lixo<br />
5
acumula<strong>do</strong> nos fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s quintais pelos locatários de imóveis inseri<strong>do</strong>s no círculo<br />
forma<strong>do</strong> pela linha inglesa de bondes, baliza<strong>do</strong>ra <strong>da</strong>quele perímetro urbano asséptico, livre<br />
de contaminações que impedissem o avanço <strong>do</strong> capital internacional. Permanece a<br />
justificativa <strong>da</strong> derroca<strong>da</strong> <strong>do</strong> fausto <strong>da</strong>quela ci<strong>da</strong>de mumifica<strong>da</strong> pelos sau<strong>do</strong>sistas à<br />
rapinagem <strong>da</strong>s sementes <strong>da</strong> hévea feita por Henry Wickham. Nesse passa<strong>do</strong>, dificilmente, é<br />
relembra<strong>da</strong> a mais-valia extorqui<strong>da</strong> <strong>da</strong> força de trabalho interiorana, que lumpenizou grande<br />
contingente <strong>do</strong>s, posteriormente, apeli<strong>da</strong><strong>do</strong>s “sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”. Os outrora excluí<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> círculo livre de sujeiras, inclusive pelo tratamento de esgotos – os operários que<br />
ergueram a Paris <strong>do</strong>s trópicos – passaram a dividir o mesmo espaço de pobreza com<br />
professoras-quituteiras na ven<strong>da</strong> de <strong>do</strong>ces que suprissem os salários atrasa<strong>do</strong>s depois que<br />
Wall Street passou a explorar merca<strong>do</strong>s mais promissores, com lucros mais seivosos.<br />
Tem-se, então, a figura de uma pirâmide que pode ilustrar as relações econômicas<br />
estabeleci<strong>da</strong>s entres casas bancárias, casas avia<strong>do</strong>ras, seringalistas e seringueiros, estes<br />
últimos eram os que menos recebiam por sua força de trabalho, sustentáculo para a<br />
produção <strong>da</strong> mais valia de capitais ingleses e norte-americanos. Esse é um <strong>do</strong>s pontos de<br />
parti<strong>da</strong> de Lucilene Gomes Lima, no seu livro Ficções <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>: A selva,<br />
Beiradão e O amante <strong>da</strong>s amazonas, ao selecionar e analisar essas obras que considera<br />
exemplares para abor<strong>da</strong>r o referi<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> econômico. Um outro tópico dissertativo ateve-<br />
se à experiência de ca<strong>da</strong> autor seleciona<strong>do</strong>, direta ou indiretamente, ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal.<br />
Nessa garimpagem, entram obras de menor valor estético ou com mais densi<strong>da</strong>de narrativa,<br />
as quais são rapi<strong>da</strong>mente examina<strong>da</strong>s ou recebem um tratamento mais alenta<strong>do</strong>, estratégia<br />
que permitirá o confronto, a comparação, a justificação <strong>da</strong> escolha de A selva, <strong>do</strong> português<br />
Ferreira de Castro; Beiradão, <strong>do</strong> humaitaense Álvaro Maia e O amante <strong>da</strong>s amazonas, <strong>do</strong><br />
manauense Rogel Samuel.<br />
Exaustivamente analisa<strong>do</strong> pelos aficciona<strong>do</strong>s, o romance A selva recebe, neste<br />
trabalho, um aprofun<strong>da</strong>mento que engrandece a obra ao incluir as relações econômicas na<br />
manipulação <strong>da</strong> economia regional, ao eliminar a tendência homogeneiza<strong>do</strong>ra de livros de<br />
ficção na apresentação maniqueísta <strong>do</strong> vilão e <strong>do</strong> explora<strong>do</strong>, ao relacionar dialeticamente a<br />
margem e o centro, locais de experiência <strong>da</strong> personagem Alberto no seringal Paraíso.<br />
Igualmente opõe-se criticamente àqueles historia<strong>do</strong>res, economistas ou críticos que<br />
6
abor<strong>da</strong>ram o <strong>ciclo</strong> gomífero, objetivamente, com a segurança <strong>do</strong> respal<strong>do</strong> histórico e<br />
literário.<br />
Com relação ao romance Beiradão, a autora apresenta os pontos de rompimento de<br />
Álvaro Maia com outros ficcionistas que se debruçaram sobre o mesmo tema, focalizan<strong>do</strong><br />
ain<strong>da</strong> a vivência <strong>do</strong> autor no seringal paterno e sua trajetória política como subsídios<br />
analíticos.<br />
Ain<strong>da</strong> que Lucilene afirme que O amante <strong>da</strong>s amazonas necessite de “um estu<strong>do</strong><br />
vertical pela gama de senti<strong>do</strong>s que agrega (filosófico, psicanalítico, lingüístico e histórico)”,<br />
sua análise surpreende pela acui<strong>da</strong>de, conhecimento teórico e objetivi<strong>da</strong>de. Romance<br />
ímpar, difícil, poético, enxuto, destaca-se tanto pelo rompimento <strong>do</strong> lugar-comum, <strong>do</strong><br />
clichê, tão ao gosto <strong>da</strong> enorme maioria de ficcionistas locais sobre uma economia que tinha<br />
na <strong>borracha</strong> seu principal produto, quanto pela inclusão <strong>do</strong> nativo (caxinauá e numa),<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe a relevância de personagem que, embora não sen<strong>do</strong> protagonista, sua exclusão<br />
afetaria a narrativa por estar cola<strong>do</strong> à trama já em sua concepção. Sem interlocutores com<br />
quem pudesse dialogar ou divergir, a autora conduz o estu<strong>do</strong> sobre o A amante <strong>da</strong>s<br />
amazonas, principalmente ao trabalhar os narra<strong>do</strong>res, o tempo e o enre<strong>do</strong>, com a mesma<br />
segurança com que discor<strong>do</strong>u de autores renoma<strong>do</strong>s que trataram <strong>do</strong> mesmo tema.<br />
Manaus, abril de 2007.<br />
Neide Gondim<br />
7
I N T R O D U Ç Ã O<br />
As primeiras palavras sobre este livro, que resulta <strong>da</strong> dissertação de Mestra<strong>do</strong><br />
“Ficções <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> : estu<strong>do</strong> comparativo <strong>do</strong>s romances A selva, Beiradão e O<br />
amante <strong>da</strong>s amazonas”, defendi<strong>da</strong> no Centro de Letras e Artes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>do</strong><br />
Pará, em 2006, não podem deixar à parte algumas considerações sobre o termo “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong>” e sua implicação na economia amazonense e amazônica, de mo<strong>do</strong> geral.<br />
Primeiramente, é preciso chamar a atenção para o fato de que a historiografia<br />
moderna esboça uma preferência pelo uso <strong>do</strong> termo “economia <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”. Neste estu<strong>do</strong>,<br />
fizemos uso <strong>do</strong> termo “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” na acepção que caracteriza uma determina<strong>da</strong><br />
ativi<strong>da</strong>de econômica com um perío<strong>do</strong> de expansão, segui<strong>do</strong> por outro de contração, o que é<br />
plenamente verificável no perío<strong>do</strong> aqui estu<strong>da</strong><strong>do</strong>, compreendi<strong>do</strong> entre o final <strong>do</strong> século<br />
XIX e as duas primeiras déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> século XX. O “<strong>ciclo</strong>” não deve ser toma<strong>do</strong> apenas<br />
enquanto a exploração de um produto, mas como um complexo de relações que se implanta<br />
e desenvolve a partir de um produto fomenta<strong>do</strong>r de to<strong>da</strong> uma economia em diversos<br />
setores, <strong>do</strong> extrativo ao de serviços. Tal complexo de relações se desmantelou com a crise<br />
causa<strong>da</strong> pela vertiginosa que<strong>da</strong> <strong>do</strong> preço <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> no merca<strong>do</strong> internacional e com a<br />
conseqüente falência <strong>do</strong>s segmentos envolvi<strong>do</strong>s no processo.<br />
As esperanças de retoma<strong>da</strong> <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> de alta lucrativi<strong>da</strong>de resultaram inúteis, as<br />
tentativas de modificação <strong>do</strong> processo de extração não surtiram efeito em face <strong>da</strong> baixa<br />
cotação <strong>do</strong> produto. O negócio <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, por mais que recebesse um alento com a<br />
produção volta<strong>da</strong> para o atendimento <strong>da</strong> deman<strong>da</strong> bélica norte-americana, durante a<br />
Segun<strong>da</strong> Guerra, não voltou a se desenvolver como antes e nem a seringa tornou a ser o<br />
“produto rei” <strong>da</strong> economia amazônica. Embora a extração <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> continuasse a ser<br />
8
feita no Amazonas, Pará e Acre, registran<strong>do</strong> uma ativi<strong>da</strong>de econômica, o perío<strong>do</strong> marca<strong>do</strong><br />
por uma intensa movimentação de capital, interna e externamente, ficou como parte <strong>da</strong><br />
História e fez-se também parte <strong>do</strong> imaginário característico de uma era.<br />
A prosa em torno de <strong>ciclo</strong>s econômicos é bastante representativa na literatura<br />
brasileira. A partir <strong>do</strong> movimento romântico, alguns romances de caráter regionalista ou<br />
sertanista já abor<strong>da</strong>m as temáticas em torno <strong>do</strong>s <strong>ciclo</strong>s econômicos, entre eles, podemos<br />
citar O garimpeiro, de Bernar<strong>do</strong> Guimarães, em que o <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> mineração é subsidiário <strong>da</strong><br />
temática amorosa.<br />
Não obstante, a abor<strong>da</strong>gem literária em torno <strong>do</strong>s <strong>ciclo</strong>s econômicos ganhou maior<br />
expressão com os denomina<strong>do</strong>s romances de 1930, em que não apenas <strong>ciclo</strong>s econômicos,<br />
como o <strong>do</strong> cacau e <strong>da</strong> cana-de-açúcar são abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s num maior número de obras, como<br />
também fenômenos de calami<strong>da</strong>de geográfica, a exemplo <strong>da</strong> seca na região <strong>do</strong> Nordeste<br />
brasileiro.<br />
O <strong>ciclo</strong> econômico <strong>do</strong> cacau propiciou destaque, principalmente, para a literatura de<br />
Jorge Ama<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> Terras <strong>do</strong> sem fim (1942) um <strong>do</strong>s seus romances mais representativos<br />
sobre essa temática. Em torno <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> cana-de-açúcar, destacam-se as obras de José<br />
Lins <strong>do</strong> Rego: Menino <strong>do</strong> engenho (1932), Doidinho (1933), Moleque Ricar<strong>do</strong> (1935),<br />
Usina (1936) e Fogo morto (1943). O <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong>s secas motivou igualmente a produção de<br />
várias obras: O quinze (1930), de Raquel de Queiroz; A bagaceira (1928), de José Américo<br />
de Almei<strong>da</strong>, e Vi<strong>da</strong>s secas (1938), de Graciliano Ramos.<br />
Especialmente nos romances <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong>s secas, desenvolveu-se um discurso<br />
literário peculiar e, às vezes, linear, em torno de alguns aspectos como a atuação <strong>da</strong> seca no<br />
ambiente e suas conseqüências para os agrupamentos humanos. Desse mo<strong>do</strong>, em torno<br />
desse tema, tornaram-se comuns imagens <strong>da</strong> vegetação esturrica<strong>da</strong> e <strong>do</strong> solo fendi<strong>do</strong> pelo<br />
sol inclemente, <strong>do</strong> céu límpi<strong>do</strong> e sem nuvens e <strong>da</strong>s aves de arribação. Outra imagem<br />
comum é a peregrinação <strong>do</strong> retirante que aban<strong>do</strong>na a sua terra em busca de condições de<br />
sobrevivência. Esse momento <strong>do</strong> êxo<strong>do</strong> <strong>do</strong> flagela<strong>do</strong> <strong>da</strong> seca estabelece uma relação com<br />
outro <strong>ciclo</strong> econômico, amplamente explora<strong>do</strong> ficcionalmente, o “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”.<br />
No Amazonas, desenvolveu-se uma literatura que abor<strong>do</strong>u o <strong>ciclo</strong> econômico <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong>. Uma <strong>da</strong>s primeiras obras sobre este tema, O paroara (1899), de Ro<strong>do</strong>lfo Teófilo,<br />
9
faz a mediação entre o <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> seca e o <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, uma vez que trata <strong>do</strong> deslocamento<br />
<strong>do</strong>s nordestinos até a Amazônia para trabalharem nos seringais.<br />
Consideran<strong>do</strong>-se como marco inicial O paroara, a ficção sobre o “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong>” completou um século de produção. Podemos afirmar que a abor<strong>da</strong>gem teve uma<br />
continui<strong>da</strong>de ao longo desse século, pois ca<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> apresenta pelo menos uma obra.<br />
Nesse contínuo, evidenciamos uma constância de abor<strong>da</strong>gem em termos de um tratamento<br />
maniqueísta, em que o explora<strong>do</strong>r (o seringalista) aparece como um ser vilanesco sem que<br />
sejam enfoca<strong>da</strong>s as determinações históricas mais profun<strong>da</strong>s <strong>do</strong> processo econômico. A<br />
recorrência à História aparece apenas como suporte <strong>do</strong>cumental para várias obras que<br />
procedem a enumeração e descrição de alguns tópicos (vi<strong>da</strong> no barracão e nos centros de<br />
extração, carência sexual <strong>do</strong>s seringueiros, truculência <strong>do</strong> patrão seringalista, entre outros).<br />
A fim de compreendermos o conjunto de abor<strong>da</strong>gem em torno <strong>do</strong> tema, procedemos<br />
a uma divisão de fases nas quais, pudemos constatar características mais específicas, entre<br />
elas o epigonismo, a partir <strong>da</strong> reprodução <strong>do</strong>s estilos de Euclides <strong>da</strong> Cunha e de Alberto<br />
Rangel. Localizamos as obras que apresentam essa característica na primeira fase, que<br />
compreende as primeiras publicações a partir de O paroara até A selva, de Ferreira de<br />
Castro. Após a publicação de A selva, a tendência epigônica não mais se verifica e as obras<br />
passam a apresentar estilos diversos.<br />
Verificamos na maioria <strong>da</strong>s obras <strong>da</strong> primeira e <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> fase, a manutenção <strong>da</strong><br />
constância em torno <strong>do</strong> tratamento maniqueísta. Na terceira fase, apontamos a obra O<br />
amante <strong>da</strong>s amazonas (1992), de Rogel Samuel, que promove uma diversificação mais<br />
profun<strong>da</strong> em relação à constância de abor<strong>da</strong>gem referi<strong>da</strong>. Na primeira e segun<strong>da</strong> fases,<br />
fizemos um recorte de outras duas obras, A selva (1930), menciona<strong>da</strong> acima, e Beiradão<br />
(1958), de Álvaro Maia, por considerarmos que essas obras também promovem uma<br />
diversificação na abor<strong>da</strong>gem ficcional. As três obras que englobam o recorte de<br />
diversificação na abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> foram seleciona<strong>da</strong>s também ten<strong>do</strong> em vista o fato de<br />
que apresentam uma ligação de seus autores com o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal. Paralelamente,<br />
também consideramos que essa experiência é perpassa<strong>da</strong> por três visões distintas <strong>do</strong>s<br />
autores; a <strong>do</strong> escritor imigrante, Ferreira de Castro; a <strong>do</strong> escritor político, Álvaro Maia; e a<br />
<strong>do</strong> escritor analista literário, Rogel Samuel.<br />
10
Nosso estu<strong>do</strong> encontra-se dividi<strong>do</strong> em quatro momentos ou partes. Procedemos<br />
inicialmente a um apanha<strong>do</strong> <strong>do</strong>s fatores históricos caracteriza<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>. Esse<br />
levantamento teve como objetivo apresentar as determinações econômicas <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> como<br />
forma de situar as obras nesse contexto. Na segun<strong>da</strong> parte <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>, apresentamos um<br />
apanha<strong>do</strong> <strong>do</strong> universo de obras <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” na literatura amazonense a fim de<br />
identificarmos a constância <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem. Na terceira parte <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>, apresentamos as<br />
obras que constituem o recorte em torno <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong> diversificação e<br />
desenvolvemos uma análise particular de ca<strong>da</strong> uma delas. Encerramos o estu<strong>do</strong>,<br />
proceden<strong>do</strong> a interligação entre as três obras e os seus respectivos autores, fazen<strong>do</strong> uma<br />
análise comparativa em que procuramos apontar tanto os pontos de contato quanto os de<br />
afastamento entre os autores e as obras.<br />
O referencial teórico que dá suporte ao nosso estu<strong>do</strong> concentra-se principalmente no<br />
argumento que Mário Ypiranga Monteiro desenvolve em Fatos <strong>da</strong> literatura amazonense, a<br />
saber: a literatura amazonense em torno <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” não apresenta diversificação<br />
em relação ao tratamento <strong>do</strong> tema. Nessa carência, o autor aponta como exceção o romance<br />
A selva, de Ferreira de Castro. A selva é igualmente aponta<strong>da</strong> por Márcio Souza em A<br />
expressão amazonense como o único romance que conseguiu desfazer o círculo de<br />
ostentação <strong>da</strong>s letras amazonenses, basea<strong>do</strong> numa retórica vazia e acrítica. Segun<strong>do</strong> o autor,<br />
a obra desvela realisticamente o processo <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”.<br />
Empreenden<strong>do</strong> a análise de A selva, apontamos detalha<strong>da</strong>mente a coerência <strong>da</strong><br />
organização estrutural <strong>do</strong> romance em relação à abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong> tema. Acrescentamos,<br />
to<strong>da</strong>via, as nossas considerações acerca <strong>do</strong> determinismo acentua<strong>do</strong> na obra, o qual<br />
prejudicou a sua construção crítica sobre o <strong>ciclo</strong>.<br />
Na abor<strong>da</strong>gem de Beiradão, consideramos e dialogamos com o estu<strong>do</strong> empreendi<strong>do</strong><br />
por Neide Gondim em Simá, Beiradão, Galvez, impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Acre: ficção e história.<br />
Especialmente a assertiva de que Beiradão rompeu com o protótipo <strong>do</strong> coronel de barranco<br />
foi de valia para o nosso estu<strong>do</strong> que se pauta pela ocorrência de diversificação nas obras <strong>do</strong><br />
<strong>ciclo</strong>. Consideramos e nos apoiamos também no estu<strong>do</strong> de Heloína Monteiro <strong>do</strong>s Santos:<br />
Uma liderança política cabocla – Álvaro Maia - apontan<strong>do</strong> a ideologia subjacente no<br />
posicionamento político <strong>do</strong> autor.<br />
11
Por fim, a análise que procedemos em relação à obra O amante <strong>da</strong>s amazonas teve<br />
como suporte teórico o texto Crítica <strong>da</strong> escrita, <strong>do</strong> próprio autor, mediante o qual podemos<br />
compreender as concepções estéticas explicita<strong>da</strong>s na criação de sua obra ficcional.<br />
12
1<br />
A TEMÁTICA HISTÓRICA DO CICLO DA BORRACHA<br />
ORIGEM E EXPLORAÇÃO DA HÉVEA<br />
O “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” é um evento na história econômica <strong>da</strong> Amazônia que enseja farta<br />
matéria de estu<strong>do</strong>. Da ativi<strong>da</strong>de extrativa <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> decorrem também outros fatos<br />
históricos como a conquista <strong>do</strong> Acre 1 e a construção <strong>da</strong> ferrovia Madeira-Mamoré 2 . Em<br />
virtude desses fatos, as fronteiras amazônicas foram alarga<strong>da</strong>s, surgin<strong>do</strong> novos esta<strong>do</strong>s:<br />
Acre e Rondônia. A seca nas zonas agrestes <strong>do</strong> sertão <strong>do</strong> Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio<br />
Grande <strong>do</strong> Norte e outros esta<strong>do</strong>s nordestinos também está estreitamente liga<strong>da</strong> ao <strong>ciclo</strong> 3 à<br />
1 Leandro Tocantins é enfático sobre a criação <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Acre e sua relação com o <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>: “[...]<br />
Acre e <strong>borracha</strong> confundem-se no mesmo processo histórico. Sem <strong>borracha</strong> o Acre não seria brasileiro, a<br />
menos que surgisse outro produto-rei capaz de emprestar à terra a mesma fascinação econômica [...]”<br />
(Formação histórica <strong>do</strong> Acre, v.1, p. 31).<br />
2 O trata<strong>do</strong> de Petrópolis, de 1903, assina<strong>do</strong> pelo Brasil e a Bolívia, estabelecia o direito brasileiro sobre os<br />
190.000km2 que compreendiam o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Acre e também continha uma cláusula preven<strong>do</strong> a construção <strong>da</strong><br />
ferrovia Madeira-Mamoré. A ferrovia seguiria às margens <strong>do</strong> rio Madeira e possibilitaria uma ligação com a<br />
região onde foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> a povoação de Porto Velho, solucionan<strong>do</strong> o problema de transpor o trecho por via<br />
marítima, uma vez que uma seqüência de vinte cachoeiras impossibilitava a navegabili<strong>da</strong>de desse trecho.<br />
Através <strong>da</strong> ferrovia, a Bolívia pretendia atingir um trecho navegável, alcançan<strong>do</strong> o Oceano Atlântico. A<br />
construção <strong>da</strong> ferrovia seria um negócio rentável para o americano Percival Farquhar que conseguiu <strong>do</strong><br />
governo brasileiro a concessão <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> por sessenta anos e a autorização para explorar os seringais<br />
localiza<strong>do</strong>s próximos ao eixo <strong>da</strong> ferrovia. (Cf. Violeta R. LOUREIRO, Estu<strong>do</strong>s e problemas amazônicos, p.<br />
33-4).<br />
3 A ficção <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong>s secas estabelece relações com a ficção <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”. Num trecho <strong>do</strong> romance<br />
O quinze, de Rachel de Queiroz, a personagem Chico Bento revela o anseio de uma vi<strong>da</strong> melhor que<br />
caracterizou a vin<strong>da</strong> de muitos nordestinos para a Amazônia: “A voz lenta e cansa<strong>da</strong> vibrava, erguia-se,<br />
parecia outra, abarcan<strong>do</strong> projetos e ambições. E a imaginação esperançosa aplanava as estra<strong>da</strong>s difíceis,<br />
13
medi<strong>da</strong> que os milhares de nordestinos 4 bani<strong>do</strong>s por esse flagelo formaram o grande<br />
contingente de trabalha<strong>do</strong>res nos seringais <strong>do</strong> Pará, Amazonas e Acre.<br />
A espécie que possibilitou a exploração extrativa e o decorrente fastígio econômico na<br />
Amazônia já era conheci<strong>da</strong> pelos povos americanos com os quais os coloniza<strong>do</strong>res<br />
europeus tiveram contato. Reis 5 informa que Cristóvão Colombo, na segun<strong>da</strong> viagem que<br />
fez à América, viu a goma sen<strong>do</strong> utiliza<strong>da</strong> pelos índios <strong>do</strong> Haiti. Por outro la<strong>do</strong>, de acor<strong>do</strong><br />
com Rodrigues, a goma já era conheci<strong>da</strong> por antigos povos <strong>do</strong> México – os Mayás e os<br />
Nauhás. Além <strong>do</strong> emprego para necessi<strong>da</strong>de própria, eles estabeleciam o comércio <strong>da</strong> goma<br />
elástica com outros povos, chegan<strong>do</strong> a promover exportação em grande quanti<strong>da</strong>de.<br />
Segun<strong>do</strong> o autor:<br />
[...] As ci<strong>da</strong>des <strong>do</strong> Golpho <strong>do</strong> Mexico, pagavam aos Astecas, annualmente,<br />
entre outros, um tributo de 16.000 cargas de gomma elastica, segun<strong>do</strong> os<br />
melhores historia<strong>do</strong>res. Entre outros empregos, que lhes <strong>da</strong>vam, figuravam as<br />
bolas para o seu jogo <strong>da</strong> péla, que se estendeu, entre algumas <strong>da</strong>s nossas tribus<br />
indigenas, até ao sul <strong>do</strong> Brazil 6 .<br />
Ain<strong>da</strong> segun<strong>do</strong> Rodrigues 7 , entre os povos que se espalharam pela América <strong>do</strong> Sul,<br />
uma <strong>da</strong>s subdivisões <strong>da</strong> tribo <strong>do</strong>s Nauhás que desceu para o rio Amazonas difundiu o uso<br />
<strong>da</strong> goma elástica. Esse grupo tornou-se conheci<strong>do</strong> como a tribo <strong>do</strong>s Omáguas. A forma<br />
como os Omáguas extraíam e preparavam a goma elástica era desconheci<strong>da</strong> até o século<br />
XVI. Quan<strong>do</strong> as missões portuguesas, em fins <strong>do</strong> século XVII, começaram a ter contato<br />
com as tribos amazônicas, obtiveram com essas tribos os produtos que foram envia<strong>do</strong>s para<br />
a Europa. Entre esses produtos estavam os objetos feitos de goma.<br />
As denominações seringueira e <strong>borracha</strong> surgiram por um acaso lingüístico. A<br />
primeira deveu-se a uma relação metonímica, uma vez que a seringa sempre aparecia entre<br />
esquecia sau<strong>da</strong>des, fome e angústias, penetrava na sombra verde <strong>do</strong> Amazonas, vencia a natureza bruta,<br />
<strong>do</strong>minava as feras e as visagens, fazia dele rico e vence<strong>do</strong>r” (s.d., p. 30).<br />
4 Samuel Benchimol informa que a Amazônia recebeu, no perío<strong>do</strong> de 1877 a 1920, 300.000 imigrantes<br />
nordestinos (Amazônia: formação social e cultural, 1999, p. 136). Antônio Loureiro, entretanto, observa que<br />
esse número poderá ser ultrapassa<strong>do</strong> através de novos estu<strong>do</strong>s (Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000<br />
anos, p. 167).<br />
5 Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 80.<br />
6 João B. RODRIGUES, As heveas ou seringueiras: informações, p. 7-8.<br />
7 Ibid., p. 7-8.<br />
14
os utensílios fabrica<strong>do</strong>s com o látex, levan<strong>do</strong> os portugueses a denominarem a árvore que<br />
produzia esse leite de seringueira. Quanto à segun<strong>da</strong> denominação, surgiu <strong>da</strong> associação<br />
que os portugueses fizeram em relação aos vasos feitos de goma elástica pelos índios, os<br />
quais lhes pareceram semelhantes aos objetos de couro que utilizavam e denominavam de<br />
<strong>borracha</strong>. Por extensão de significa<strong>do</strong>, <strong>borracha</strong> passou a denominar a substância de que<br />
eram feitos os objetos de látex pelos índios.<br />
Os índios trocavam, com os missionários portugueses, bolas, seringas ou <strong>borracha</strong>s<br />
por bugigangas. Os missionários haviam descoberto que a goma era útil para proteger seus<br />
pés <strong>da</strong> umi<strong>da</strong>de excessiva e cobriam os sapatos com ela. Posteriormente, passaram a<br />
confeccionar os próprios sapatos <strong>da</strong> goma. Já em 1755, os calça<strong>do</strong>s de <strong>borracha</strong> eram<br />
utiliza<strong>do</strong>s no Pará e em Lisboa. Aproveitou-se também a capaci<strong>da</strong>de impermeável <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong> para confeccionar mochilas para os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s portugueses. Após Charles Marie de<br />
La Con<strong>da</strong>mine enviar para a França a primeira amostra <strong>da</strong> goma elástica, em 1735, iniciou-<br />
se o emprego industrial <strong>da</strong> goma na Europa. As exportações de sapatos e seringas pelo Pará<br />
<strong>da</strong>tam de 1850. Além de objetos manufatura<strong>do</strong>s, exportava-se também a <strong>borracha</strong> bruta.<br />
Para que a goma pudesse oferecer o máximo de rentabili<strong>da</strong>de à indústria, foi<br />
necessário descobrir uma forma de torná-la resistente ao calor e ao frio e manter sua<br />
elastici<strong>da</strong>de inaltera<strong>da</strong>. Através <strong>do</strong> processo de vulcanização, desenvolvi<strong>do</strong><br />
simultaneamente pelo inglês Thomas Hancook e pelo americano Charles Goodyear em<br />
1844 8 , isso se tornou possível. A partir <strong>da</strong>í, a <strong>borracha</strong> deixa de representar um pequeno<br />
comércio de manufatura, existente desde os tempos <strong>da</strong> colônia, e passa a ser uma matéria-<br />
prima requisita<strong>da</strong> pelo comércio mundial como informa Reis:<br />
A procura intensiva que os merca<strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res <strong>da</strong> Europa e <strong>da</strong> América<br />
passaram a fazer <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> silvestre, ante a utilização ca<strong>da</strong> vez maior por que<br />
ela se apresentava aos industriais, animan<strong>do</strong> as solicitações pela alta <strong>do</strong>s preços<br />
que pagavam , deu um alento fora <strong>do</strong> comum à ativi<strong>da</strong>de coletora. Onde existia<br />
árvore produtora de látex, registrou-se a aventura. Nas Américas e na África. Ora,<br />
de to<strong>da</strong>s as áreas onde se operava a exploração <strong>da</strong> floresta com aquele objetivo, a<br />
Amazônia era a que oferecia mais seguras e amplas possibili<strong>da</strong>des pela<br />
quanti<strong>da</strong>de de seringueiras que parecia fabulosa pela riqueza que as árvores<br />
15
apresentavam em látex. A busca às seringueiras pareceu, em conseqüência, sem<br />
fim e negócio de possibili<strong>da</strong>des ilimita<strong>da</strong>s [...] 9 .<br />
Os preços em alta <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> no merca<strong>do</strong> internacional atraíram uma corri<strong>da</strong> à<br />
extração <strong>do</strong> “ouro negro”. As terras agrárias foram sen<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong>s 10 em função <strong>da</strong><br />
extração <strong>do</strong> leite <strong>da</strong>s seringueiras nas regiões <strong>do</strong> Marajó, Xingu, Jary, Guamá, Acará, Moju,<br />
Madeira, Solimões, Purus. A extração <strong>do</strong> látex também se deu em terras <strong>da</strong> Bolívia, Peru,<br />
Equa<strong>do</strong>r, Colômbia e Venezuela.<br />
A falta de estabili<strong>da</strong>de na terra, o espírito aventureiro e arrivista que caracterizaram<br />
as relações econômicas no “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” são, muitas vezes, aponta<strong>do</strong>s como falhas<br />
que levaram esse sistema extrativista <strong>da</strong> prosperi<strong>da</strong>de econômica à derroca<strong>da</strong>. As bases que<br />
fun<strong>da</strong>mentavam a lógica desse sistema, entretanto, não se apoiavam numa economia fixa e<br />
sim de transplante. A própria estrutura física <strong>do</strong>s seringais demonstrava que o negócio <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong> exigia apenas uma infra-estrutura primária que possibilitasse ao patrão ou<br />
seringalista dirigir o processo de extração <strong>do</strong> látex basea<strong>do</strong> numa contabili<strong>da</strong>de que atava o<br />
seringueiro ao trabalho. As condições de moradia <strong>do</strong> seringalista e <strong>do</strong> seringueiro eram<br />
improvisa<strong>da</strong>s de mo<strong>do</strong> que cumprissem seu papel no sistema extrativista. O tapiri <strong>do</strong><br />
seringueiro não era exatamente uma moradia, mas o local de trabalho onde ele<br />
transformava, num processo rudimentar, o látex extraí<strong>do</strong> <strong>da</strong>s seringueiras em pélas de<br />
<strong>borracha</strong>. O fato de que o sistema não promoveu uma fixação à terra está na razão de seu<br />
funcionamento 11 , pois se tivesse promovi<strong>do</strong> essa fixação não teria se realiza<strong>do</strong> <strong>da</strong> forma<br />
que se realizou e os próprios elementos que o integravam não teriam ti<strong>do</strong> na pirâmide <strong>do</strong><br />
sistema extrativo a posição que tiveram. Passaremos a explicitar essas posições a seguir.<br />
8 CF. Leandro TOCANTINS, Amazônia: natureza, homem e tempo, p. 98.<br />
9 Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 104-5.<br />
10 Sobre esse aspecto, Arthur Reis comenta: “[...] To<strong>da</strong>s as energias se deslocaram <strong>da</strong>s tarefas agropecuárias<br />
para a extração <strong>do</strong> látex <strong>da</strong>s héveas, num regresso vertiginoso à etapa por que se iniciara o processo<br />
econômico <strong>da</strong> região [...]” (Ibid., p. 41). Samuel Benchimol ressalta que, em virtude <strong>da</strong> febre <strong>do</strong><br />
enriquecimento fácil, o <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> não poderia promover estabili<strong>da</strong>de na terra: “[...] Homens à procura<br />
de fortuna, não à procura de terra. Daí a instabili<strong>da</strong>de, nervosismo, palpitação. É a <strong>borracha</strong> na sua função<br />
atrativa, fazen<strong>do</strong> „foco de apelos‟ ou antes, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> „apetite de seringa‟, na gíria <strong>do</strong> imigrante [...] (Romanceiro<br />
<strong>da</strong> batalha <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, p. 38).<br />
11 “As condições de acumulação e crescimento <strong>do</strong> capital na economia <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> não foram potencializa<strong>da</strong>s<br />
de mo<strong>do</strong> a permitir um avanço <strong>da</strong> divisão social e técnica <strong>da</strong> produção. Esta, limita<strong>da</strong> pela concentração de<br />
interesses na monoprodução e pelo sistema de aviamento, apresentava-se num quadro insignificante e incapaz<br />
de transformar qualitativamente o padrão econômico [...]” (Eloína M. <strong>do</strong>s SANTOS, A rebelião de 1924 em<br />
Manaus, p. 31)<br />
16
AS FIRMAS IMPORTADORAS-EXPORTADORAS E AS CASAS AVIADORAS<br />
As bases <strong>do</strong> sistema extrativista <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> compunham uma pirâmide em que no<br />
topo estavam as firmas importa<strong>do</strong>ras-exporta<strong>do</strong>ras, representantes <strong>do</strong> capital estrangeiro,<br />
mais especificamente <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Grã-Bretanha, França e Alemanha. Essas firmas<br />
movimentavam o capital de giro <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, não permitin<strong>do</strong> nenhuma base sóli<strong>da</strong> à economia<br />
local, como ressalta Antônio Loureiro:<br />
As firmas exporta<strong>do</strong>ras eram, na reali<strong>da</strong>de, as detentoras <strong>do</strong> capital<br />
movimenta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, que poderia ser retira<strong>do</strong> de circulação, em tempo<br />
relativamente rápi<strong>do</strong>, como ocorreu, pois suas transações abrangiam, apenas, a<br />
compra <strong>da</strong> matéria-prima e a sua ven<strong>da</strong> em merca<strong>do</strong> certo, sempre em alta. A<br />
qualquer sinal de crise, o que podia ser previsto com antecedência, por não terem<br />
capital imobiliza<strong>do</strong>, sairiam <strong>da</strong> região com relativa rapidez. Os lucros eram<br />
investi<strong>do</strong>s no exterior, ou em companhias de melhoramentos urbanos, garanti<strong>do</strong>s<br />
pelo País. 12<br />
As casas avia<strong>do</strong>ras eram estabelecimentos comerciais que despachavam<br />
merca<strong>do</strong>rias aos seringais mediante pagamento em pélas de <strong>borracha</strong> 13 . Eram financia<strong>da</strong>s<br />
pelas firmas exporta<strong>do</strong>ras. Funcionavam, a princípio, exclusivamente, em Belém e depois<br />
passaram a se estabelecer em Manaus, quan<strong>do</strong> o governo <strong>do</strong> Amazonas decretou o<br />
beneficiamento <strong>do</strong> látex nessa ci<strong>da</strong>de. Benchimol denomina o perío<strong>do</strong> em que os <strong>do</strong>nos de<br />
casas avia<strong>do</strong>ras estavam estabeleci<strong>do</strong>s e prósperos em Manaus de “era <strong>do</strong>s Jotas” numa<br />
alusão ao fato de que a maioria desses avia<strong>do</strong>res chamavam-se Josés, Joaquins e Joões. O<br />
autor relata que era comum os avia<strong>do</strong>res receberem o título honorífico de comen<strong>da</strong><strong>do</strong>r<br />
como forma de o governo português conferir prestígio àqueles ci<strong>da</strong>dãos que haviam<br />
12 Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000 anos, p. 172-3.<br />
13 Segun<strong>do</strong> Manoel J. de Miran<strong>da</strong> Neto, “[...] dá-se o aviamento quan<strong>do</strong> „A‟ (avia<strong>do</strong>r) fornece a „B‟ (avia<strong>do</strong>)<br />
certa quanti<strong>da</strong>de de merca<strong>do</strong>rias (bens de consumo e alguns instrumentos de trabalho) fican<strong>do</strong> „B‟ de resgatar<br />
a dívi<strong>da</strong> com produtos agrícolas ou extrativos <strong>da</strong> próxima safra, em espécie; haven<strong>do</strong> sal<strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r, „B‟ recebe<br />
dinheiro; se o sal<strong>do</strong> é deve<strong>do</strong>r, „B‟ fica debita<strong>do</strong> até a safra seguinte. Mas „B‟, uma vez avia<strong>do</strong>, pode tornar-se<br />
avia<strong>do</strong>r de „C‟, e assim por diante; o único avia<strong>do</strong> que não pode ser avia<strong>do</strong>r é o produtor, isto é, o lavra<strong>do</strong>r ou<br />
o extrator que trabalha na terra ou colhe os produtos <strong>da</strong> floresta e que é obriga<strong>do</strong> a vendê-los a um só<br />
compra<strong>do</strong>r (monopsônio).” (O dilema <strong>da</strong> Amazônia, p. 54).<br />
17
consegui<strong>do</strong> enriquecer fora de sua terra. O título era concedi<strong>do</strong> pelo governo português e<br />
também pelo Vaticano.<br />
Em alguns casos, a comen<strong>da</strong> que não havia si<strong>do</strong> concedi<strong>da</strong> oficialmente tornava-se<br />
corruptela para o comerciante português rico. 14 De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, o status <strong>do</strong>s avia<strong>do</strong>res tinha<br />
como base real os seus recursos financeiros que se mediam pelos bens que conseguiam<br />
amealhar, entre eles barcos para transportar as merca<strong>do</strong>rias para os seringais, indústrias de<br />
alimentos, fazen<strong>da</strong>s de criação. A importância <strong>do</strong>s avia<strong>do</strong>res baseava-se na dependência<br />
em que mantinham os seringalistas . Sem os aviamentos, os seringais não funcionavam. A<br />
relação entre os avia<strong>do</strong>res e os seringalistas era, em grande parte, de troca de produtos –<br />
produtos industrializa<strong>do</strong>s pelo produto <strong>da</strong> natureza – apesar de os seringalistas também<br />
receberem em dinheiro o sal<strong>do</strong> <strong>da</strong> transação. A relação de troca repetia-se entre os<br />
seringalistas e os seringueiros. Reproduzia-se, entre o avia<strong>do</strong>r e o seringalista e entre o<br />
seringalista e o seringueiro, a majoração excessiva <strong>do</strong> valor <strong>do</strong>s produtos. O avia<strong>do</strong>r<br />
também fornecia aos seringalistas produtos vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s europeus, os quais, mais<br />
que encarecer os aviamentos, destoavam <strong>do</strong>s hábitos alimentares locais. Leandro Tocantins<br />
refere alguns <strong>do</strong>s alimentos em conserva que constituíam a alimentação nos seringais e que<br />
contribuíam para o enfraquecimento <strong>do</strong> organismo por falta de vitaminas e sais minerais:<br />
[...] Ao esmiuçar-se as notas de fornecimento para os seringais, há uma<br />
revelação surpreendente, que é a numerosa lista de alimentos em conserva:<br />
carne de bife, carne-seca, salmão, sardinhas portuguesas, toucinho, chouriço,<br />
atum, ervilhas, <strong>do</strong>ces enlata<strong>do</strong>s, leite condensa<strong>do</strong>, camarões em conserva,<br />
queijos <strong>da</strong> Holan<strong>da</strong>, manteiga francesa, bacalhau português [...] 15<br />
O historia<strong>do</strong>r Arthur Reis cita uma extensa lista de produtos que eram despacha<strong>do</strong>s<br />
nos aviamentos, <strong>do</strong>s mais necessários ao trabalho de extração e para sobrevivência no meio<br />
<strong>da</strong> floresta, como as tigelinhas onde se aparava o látex e as armas para defesa, aos<br />
requisita<strong>do</strong>s para outras necessi<strong>da</strong>des, entre elas, o entretenimento, como é o caso <strong>do</strong><br />
gramofone. Reis chama a atenção de que os custos <strong>do</strong>s aviamentos dependiam <strong>da</strong><br />
importância <strong>do</strong>s seringais. Os que possuíam mais estra<strong>da</strong>s e que, em virtude disso,<br />
14 Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural, p. 73-74.<br />
15 Leandro TOCANTINS, Amazônia: natureza, homem e tempo, p. 110.<br />
18
produziam maior quanti<strong>da</strong>de de látex, recebiam tratamento prioritário em relação aos<br />
seringais menores. Ressalta também que o custo <strong>do</strong>s aviamentos tornava-se mais caro para<br />
aqueles seringais que se localizavam em áreas de difícil acesso, como as <strong>do</strong>s altos rios ou<br />
<strong>do</strong>s rios encachoeira<strong>do</strong>s. Reis também destaca que “[...] vezes e mais vezes o seringalista<br />
era deve<strong>do</strong>r e não cre<strong>do</strong>r [...].” 16 Isso se <strong>da</strong>va porque o comércio <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> era de risco e<br />
<strong>da</strong>í avia<strong>do</strong>res e seringalistas estarem sempre preocupa<strong>do</strong>s com a oscilação <strong>do</strong> preço <strong>do</strong><br />
produto, especialmente com a que<strong>da</strong> excessiva <strong>do</strong> preço que poderia significar a ruína<br />
financeira, o que de fato ocorreu.<br />
SERINGALISTAS OU CORONÉIS DA BORRACHA<br />
Os seringalistas constituem precisamente o elo intermediário na pirâmide <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong><br />
extrativo <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>. Ligam-se ao avia<strong>do</strong>r, compra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> produto internamente, e ao<br />
produtor ou extrator, o seringueiro. A imagem clássica <strong>do</strong> seringalista é a <strong>do</strong> homem<br />
poderoso, de origem quase sempre nordestina, trajan<strong>do</strong> terno de linho branco “HJ”, chapéu-<br />
chile, utilizan<strong>do</strong> bengala e relógio de algibeira. Tornou-se também comum a imagem <strong>do</strong>s<br />
seringalistas como homens rudes e incultos, prestigia<strong>do</strong>s apenas por seu poder econômico.<br />
O historia<strong>do</strong>r Arthur Reis destaca que havia seringalistas que fugiam a esse padrão,<br />
possuin<strong>do</strong> escolarização e boas maneiras, adquirin<strong>do</strong> comportamento requinta<strong>do</strong> através<br />
<strong>da</strong>s viagens que faziam, o qual se ostentava nos ricos palacetes que man<strong>da</strong>vam construir na<br />
ci<strong>da</strong>de. 17 Pesa também sobre os seringalistas a fama de esbanja<strong>do</strong>res. Assim, tem-se a<br />
imagem de seringalistas que acendiam charutos cubanos com notas de quinhentos mil<br />
réis. 18 Os seringalistas tornavam-se senhores em seus <strong>do</strong>mínios em função <strong>do</strong> sistema de<br />
exploração a que estavam manieta<strong>do</strong>s. 19 O débito <strong>do</strong>s seringueiros lhes <strong>da</strong>va amplos<br />
poderes sobre eles, inclusive de caçá-los em fuga e recebê-los de volta com auxílio <strong>do</strong><br />
poder público. Como forma de reforçar seu status, os seringalistas obtinham, por meio de<br />
16<br />
Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 174.<br />
17<br />
Ibid., p. 224.<br />
18<br />
Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural, p. 142.<br />
19<br />
Enlaça<strong>do</strong>s por um sistema em que se tornavam dependentes <strong>do</strong>s avia<strong>do</strong>res e esses, por sua vez, <strong>do</strong>s<br />
importa<strong>do</strong>res-exporta<strong>do</strong>res, cabia aos seringalistas relacionarem-se diretamente com o extrator <strong>do</strong> látex. Os<br />
seringalistas mantinham o seringueiro sob sua rígi<strong>da</strong> dependência. Para alcançar sua posição, este precisaria<br />
passar por uma longa experiência nos seringais, em muitos casos atravessan<strong>do</strong> gra<strong>da</strong>tivamente as posições de<br />
19
elações políticas, a compra de patentes <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong> Nacional. Desse mo<strong>do</strong>, surgiram os<br />
“coronéis de barranco”. Semelhantemente ao que ocorria com os avia<strong>do</strong>res, em relação à<br />
comen<strong>da</strong>, a patente <strong>do</strong>s coronéis era atribuí<strong>da</strong> por força <strong>do</strong> hábito de se considerá-los<br />
homens importantes, mesmo que não a tivessem recebi<strong>do</strong> oficialmente. Atuan<strong>do</strong> como<br />
potenta<strong>do</strong>s, os seringalistas exerciam força moral, política e mesmo policial em seus<br />
<strong>do</strong>mínios, estabelecen<strong>do</strong> vínculos de compadres e afilha<strong>do</strong>s, fazen<strong>do</strong> conchavos e acor<strong>do</strong>s<br />
para apoiar candi<strong>da</strong>tos às eleições municipais e estaduais, resolven<strong>do</strong> brigas, combaten<strong>do</strong><br />
as invasões de seringais vizinhos, justiçan<strong>do</strong> criminosos e exercen<strong>do</strong> poder para prender e<br />
punir seringueiros que fugissem de seu seringal.<br />
A situação social <strong>do</strong> seringalista estava sustenta<strong>da</strong> em uma fraqueza econômica: o<br />
capital fictício. Os seringalistas não possuíam ver<strong>da</strong>deiramente capital, dependiam <strong>do</strong><br />
financiamento de merca<strong>do</strong>rias <strong>da</strong>s casas avia<strong>do</strong>ras. Sem essas merca<strong>do</strong>rias, não possuíam<br />
uma forma de manter o vínculo empregatício com o seringueiro, arruinan<strong>do</strong> o seu<br />
empreendimento. Para obter lucro num negócio tão instável, lançavam mão <strong>da</strong> sobretaxa de<br />
preços nas merca<strong>do</strong>rias que repassavam aos seringueiros. O lucro que obtinham dessa<br />
sobretaxa era investi<strong>do</strong> na compra de residências nas ci<strong>da</strong>des de Belém ou Manaus, em<br />
tratamentos de saúde, em viagens e em gastos supérfluos.<br />
Mesmo não existin<strong>do</strong> um vínculo empregatício legal entre o seringalista e o<br />
seringueiro, o primeiro impunha ao segun<strong>do</strong> um regulamento, determinan<strong>do</strong> os seus<br />
direitos e deveres. Deve-se ressaltar que a obediência ao regulamento também se estendia<br />
aos gerentes de depósitos, guar<strong>da</strong>-livros, encarrega<strong>do</strong>s de escrita, emprega<strong>do</strong>s de balcão,<br />
comboieiros, fiscais, emprega<strong>do</strong>s de campo, diaristas. Um regulamento de 1934, <strong>do</strong>s<br />
seringais de Octávio Reis, transcrito por Samuel Benchimol em seu livro Romanceiro <strong>da</strong><br />
batalha <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, esclarece, na abertura, a necessi<strong>da</strong>de de sua existência.<br />
„To<strong>da</strong> a nação tem as suas leis para por ellas reger-se, e se, estas leis não são<br />
obedeci<strong>da</strong>s por seus habitantes será uma nação em completa desorganização,<br />
onde não poderá haver garantias para os que nella vivem, nem para quem com<br />
ella mantiver negócios.<br />
seringueiro, mateiro, comboieiro, pesa<strong>do</strong>r, classifica<strong>do</strong>r, capataz, auxiliar de escrita, gerente de balcão,<br />
arren<strong>da</strong>tário de estra<strong>da</strong>s e colocações.<br />
20
Sucede o mesmo com to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de que tem os seus estatutos para por elles<br />
regerem-se os seus sócios, e se não se obedece a elles será uma socie<strong>da</strong>de<br />
desbarata<strong>da</strong> e sem duração. Até nas casas de famílias, para serem bem<br />
organiza<strong>da</strong>s, teem que obedecer a uma ordem, sem a qual virá logo a<br />
desorganização, e <strong>da</strong>hi os resultantes desgostos de família, que infelizmente é o<br />
que mais acontece.<br />
Como, pelo que vemos, tu<strong>do</strong> precisa de organização e ordem. Um Seringal, por<br />
exemplo, onde habitam centenas e centenas de almas, com diversos costumes,<br />
sexos diversos, e até nacionali<strong>da</strong>des diversas, não póde deixar de ter o seu<br />
regulamento, pelo qual to<strong>do</strong>s os seus habitantes possam orientar-se de seus<br />
deveres de acor<strong>do</strong> com as posições e trabalho de ca<strong>da</strong> um‟. 20<br />
O caráter mercantil <strong>do</strong> seringal é substituí<strong>do</strong> em determina<strong>da</strong> passagem <strong>do</strong><br />
regulamento pelo conceito de família. “[...] Precisamos notar que no seringal somos uma só<br />
família no cumprimento de nossos deveres, sem excepção de raça, crença religiosa,<br />
nacionali<strong>da</strong>de e posição [...].” 21 Nos deveres <strong>do</strong>s gerentes encarrega<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s depósitos, o<br />
regulamento prescreve na linha “h” a exata importância <strong>do</strong> freguês ou seringueiro nas<br />
relações “familiares” <strong>do</strong> seringal: “[...] o freguez só é amigo e cumpri<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s seus deveres<br />
quan<strong>do</strong> tem sal<strong>do</strong>.” 22 A lógica mercantil <strong>do</strong> lucro é ressalta<strong>da</strong> na linha “c”, componente <strong>do</strong>s<br />
deveres <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>s de balcão:<br />
[...] o productor perde <strong>do</strong>is ou treis dias para vir <strong>do</strong> centro reclamar uma caixa<br />
de fósforo que lhe saia por engano a mais na sua conta, deixan<strong>do</strong> de produzir<br />
muitas vezes por este pequeno engano, <strong>borracha</strong> que lhe <strong>da</strong>ria para comprar<br />
uma lata, fican<strong>do</strong> por este facto mal visto tanto o emprega<strong>do</strong> <strong>do</strong> balcão como o<br />
guar<strong>da</strong>-livros que forneceu a nota, e por muitos são ain<strong>da</strong> considera<strong>do</strong>s de<br />
ladrões. Portanto é preciso a maxima attenção para não se enganar nem a favor<br />
nem contra a casa. 23<br />
20 Samuel BENCHIMOL, Romanceiro <strong>da</strong> batalha <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, p. 97.<br />
21 Ibid., p. 97.<br />
22 Ibid., p. 98.<br />
23 Ibid., p. 99.<br />
21
Nos deveres <strong>do</strong> extrator, é explicita<strong>da</strong> a sua exclusiva condição de trabalho: “[...]<br />
Deve ter em consideração que quan<strong>do</strong> vem para os seringaes e se colloca como extractor, é<br />
para produzir <strong>borracha</strong> [...]” 24 e de negociação <strong>do</strong> produto de seu trabalho: “(e) fazer as suas<br />
transacções somente com o deposito onde trabalha para engrandecimento deste, e não o<br />
fazer com outro deposito, mesmo que seja <strong>da</strong> mesma firma, muito menos com pessoas<br />
extranhas à casa [...] 25 .<br />
Na visão <strong>do</strong> seringalista, a seringueira, fonte <strong>da</strong> riqueza, “hévea-ouro”, requer o<br />
carinho e o respeito <strong>do</strong> seringueiro, pois, diferentemente <strong>do</strong> que parece explicitar o<br />
regulamento, ela o transforma em homem livre, apesar de sua ignorância o prender<br />
unicamente ao trabalho de extração:<br />
[...] Portanto, devemos ter carinho para com a seringueira que nos proporciona<br />
tantos dias felizes e não sejaes ingratos, senhores extractores, para com a árvore<br />
bendita que vos proporciona um trabalho remunera<strong>do</strong>r, que vos livra <strong>do</strong><br />
chichote <strong>do</strong> capataz, que faz <strong>do</strong> extractor senhor de si proprio, <strong>do</strong>no de sua<br />
casa, saben<strong>do</strong> a que horas que come e que <strong>do</strong>rme, viven<strong>do</strong> em contacto diario<br />
com a sua familia, ten<strong>do</strong> o conceito de to<strong>do</strong>s, merecen<strong>do</strong> a estima <strong>do</strong> patrão que<br />
trata o bom productor como um de seus melhores amigos. Pensem e reflictam<br />
que não há outro mister que favoreça ao homem inculto tantas vantagens, - digo<br />
inculto porque para cortar seringa não precisa ser forma<strong>do</strong> em cousa alguma,<br />
basta somente ter caracter e vergonha para ser um bom seringueiro. 26<br />
Num regulamento como esse, que Benchimol ajuíza não ter si<strong>do</strong> determina<strong>do</strong> por<br />
um seringalista desumano, apesar de admitir que os tiranos existiam, é possível perceber<br />
que os seringueiros tinham mais deveres <strong>do</strong> que direitos. As situações que prenderam o<br />
seringueiro ao seringalista na condição de semi-escravo deram margem à expressão<br />
vilanesca <strong>da</strong> figura <strong>do</strong> seringalista na prosa de ficção, como adiante se verá.<br />
24 Samuel BENCHIMOL, p. 102.<br />
25 Ibid., p. 102.<br />
26 Ibid., p. 103-4<br />
22
OS SERINGUEIROS<br />
Os nordestinos chegaram em grandes levas à Amazônia, bani<strong>do</strong>s por perío<strong>do</strong>s de<br />
seca inclemente ocorri<strong>do</strong>s no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1870. 27 A vin<strong>da</strong> <strong>do</strong>s imigrantes nordestinos<br />
constituía uma dupla solução para os governos <strong>do</strong> Norte e Nordeste: aumentava a oferta de<br />
mão-de-obra nos seringais amazônicos e diminuía o excedente populacional no Nordeste,<br />
que aumentara com o desenvolvimento <strong>da</strong> economia algo<strong>do</strong>eira no início <strong>do</strong> século XIX. O<br />
interesse <strong>do</strong>s governos amazônicos nessa mão-de-obra, com o fito de aumentar a extração<br />
<strong>do</strong> látex, levou-os a organizarem um serviço de propagan<strong>da</strong> e a promoverem a concessão de<br />
subsídios para gastos de transporte. Desde 1852, a Companhia de Navegação e Comércio<br />
<strong>do</strong> Amazonas, cria<strong>da</strong> pelo Barão de Mauá, iniciara uma linha regular de transportes que<br />
favoreceria o transporte de merca<strong>do</strong>rias e também <strong>do</strong>s milhares de nordestinos<br />
arrebanha<strong>do</strong>s para o trabalho de coleta <strong>do</strong> látex.<br />
O deslocamento de pessoas para o trabalho nos seringais já ocorria antes <strong>da</strong><br />
imigração nordestina. Segun<strong>do</strong> nos informa Rodrigues, os seringalistas pioneiros que<br />
descobriam uma área rica em seringueiras passavam a explorá-la e convi<strong>da</strong>vam famílias<br />
tapuias a trabalharem nesses incipientes seringais, oferecen<strong>do</strong>-lhes “avulta<strong>do</strong>s lucros”. Tal<br />
como ocorreria mais tarde com os nordestinos, essas famílias recebiam um adiantamento<br />
em merca<strong>do</strong>rias, roupas e munições para ser pago com seringa. Os que aceitavam a oferta<br />
aban<strong>do</strong>navam suas criações e lavouras e acompanhavam o patrão. Ressalta o autor que<br />
desse mo<strong>do</strong> “seguiam familias e extinguiram-se povoações inteiras”. 28 Apesar desse<br />
quadro, foi o deslocamento <strong>do</strong>s nordestinos que transformou radicalmente o contingente de<br />
mão-de-obra nos seringais e alterou a formação populacional <strong>da</strong> Amazônia no século<br />
XIX. 29<br />
27 Antônio J. S. Loureiro registra que os primeiros imigrantes cearenses e maranhenses chegaram ao baixo<br />
Purus e à Co<strong>da</strong>jás na segun<strong>da</strong> metade <strong>do</strong> século XIX. O município de Lábrea foi atingi<strong>do</strong> em 1871 pelos<br />
imigrantes nordestinos, segui<strong>do</strong> de Canutama em 1874, Boca <strong>do</strong> Acre e Antimari em 1878. Em 1882, os<br />
nordestinos já estavam no Acre boliviano onde fun<strong>da</strong>ram o seringal Empresa que <strong>da</strong>ria origem a Rio Branco,<br />
configuran<strong>do</strong> a ocupação <strong>do</strong> território por brasileiros. A penetração no rio Juruá atingiu Carauari e Eirunepé<br />
em 1890; Cruzeiro <strong>do</strong> Sul em 1904; Feijó em 1906 e Tarauacá em 1907 (Amazônia: 10.000 anos, p. 167).<br />
28 João B. RODRIGUES, As heveas ou seringueiras: informações, p. 34.<br />
29 Antônio J. S. Loureiro destaca que com o advento <strong>da</strong> imigração nordestina “a cultura amazônica colonial<br />
transformou-se na cultura amazônico-nordestina, resultante <strong>do</strong> equilíbrio entre o elemento nativo e o migrante<br />
nordestino, que se a<strong>da</strong>ptava e se incorporava à região, a ponto de serem raros os habitantes <strong>do</strong> Amazonas, que<br />
não possuam sangue „cearense‟ em suas veias” (Amazônia: 10.000 anos, p. 156).<br />
23
Há quase uma unanimi<strong>da</strong>de no motivo que levou o nordestino a aban<strong>do</strong>nar sua terra<br />
e rumar para a Amazônia para trabalhar nos seringais. A seca e, em decorrência dela, a falta<br />
de condições de sobrevivência, justifica a maioria <strong>do</strong>s casos. Há, porém algumas situações<br />
em que o êxo<strong>do</strong> foi motiva<strong>do</strong> pelo gosto <strong>da</strong> aventura e/ou pelo desejo de fazer fortuna,<br />
sen<strong>do</strong> que o último motivo, na maioria <strong>da</strong>s vezes, está consorcia<strong>do</strong> com a condição de<br />
flagela<strong>do</strong> <strong>do</strong> imigrante, conforme se nota nesse depoimento de um agricultor, colhi<strong>do</strong> no<br />
livro Romanceiro <strong>da</strong> batalha <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, de Samuel Benchimol:<br />
„Vim mode conhecer isso aqui. To<strong>do</strong>s me diziam que o Amazonas era uma<br />
terra de bon<strong>da</strong>de. Se ajuntava dinheiro com cisca<strong>do</strong>r. Era só apanhar dinheiro<br />
com as mãos e voltar. Então, eu disse comigo, que eu ain<strong>da</strong> hei de conhecer<br />
essa terra. Gosto <strong>do</strong> inverno, sem comparação. Eu estava em União. A mo<strong>da</strong> lá<br />
é vir pro Amazonas. É só o que se fala por lá. A animação no Ceará é grande.<br />
Só se fala no Amazonas, nas suas riquezas, nas suas facili<strong>da</strong>des. As coisas por<br />
lá an<strong>da</strong>m mesmo ruim. A terra an<strong>da</strong> viran<strong>do</strong> pó. Está tão seca que nem língua<br />
de papagaio. Não há ninguém que poden<strong>do</strong> vir não vem.<br />
Sempre tive vontade de conhecer isto aqui. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> me falava nela. Eu<br />
vim antes que fosse tarde demais. Dois anos que faz seca. Estamos entran<strong>do</strong> no<br />
terceiro. Lá é assim: um ano só verão, no outro não há inverno. Não há quem<br />
possa viver. 30<br />
Esse depoimento foi obti<strong>do</strong>, de acor<strong>do</strong> com o que informa o autor, no perío<strong>do</strong> de<br />
1942 a 1944, quan<strong>do</strong> o <strong>ciclo</strong> já atravessara a crise que levara a que<strong>da</strong> vertiginosa <strong>do</strong> preço<br />
<strong>da</strong> <strong>borracha</strong>. Ain<strong>da</strong> assim, permanecem significativos no relato os mesmos motivos que<br />
levaram à imigração a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade <strong>do</strong> século XIX.<br />
No auge <strong>da</strong> imigração, compreendi<strong>do</strong> no triênio 1898/1900, a reali<strong>da</strong>de com que o<br />
transumante se deparava, a começar pela viagem que o levaria aos seringais, era<br />
desanima<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s sonhos de riqueza e <strong>da</strong>s promessas de facili<strong>da</strong>de na região amazônica.<br />
Viajavam nos porões <strong>do</strong>s barcos conheci<strong>do</strong>s como gaiolas ou vaticanos e chatas. 31 A<br />
30 Samuel BENCHIMOL, Romanceiro <strong>da</strong> batalha <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, p. 141.<br />
31 Segun<strong>do</strong> Arthur C. F. Reis, os gaiolas eram navios a vapor construí<strong>do</strong>s na Inglaterra, Holan<strong>da</strong>, Dinamarca e<br />
Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Apropria<strong>do</strong>s para a navegação na região amazônica, possuíam as laterais abertas para<br />
possibilitar o arejamento. O nome desses barcos viera <strong>do</strong> hábito de os passageiros amarrarem redes uma por<br />
cima <strong>da</strong>s outras semelhan<strong>do</strong> uma gaiola. Os vaticanos eram gaiolas de maior porte que lembravam aos<br />
24
passagem, segun<strong>do</strong> o que lhes informavam quan<strong>do</strong> eram recruta<strong>do</strong>s, seria paga pelo<br />
governo. Ao chegarem aos seringais, os brabos, 32 aspirantes a seringueiros, descobriam que<br />
a passagem assim como as despesas de viagem, as ferramentas necessárias à extração <strong>do</strong><br />
látex e os mantimentos para sobrevivência eram o primeiro débito que contraíam para o<br />
trabalho nos seringais. A saga, muitas vezes inglória, <strong>do</strong> nordestino na Amazônia, seduzi<strong>do</strong><br />
por um el<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> que existia na sua fantasia e não na reali<strong>da</strong>de, é sintetiza<strong>da</strong> por Miran<strong>da</strong><br />
Neto:<br />
O nordestino na Amazônia começava sempre a trabalhar endivi<strong>da</strong><strong>do</strong>, pois via<br />
de regra obrigavam-no a reembolsar os gastos com a totali<strong>da</strong>de ou parte <strong>da</strong><br />
viagem, com os instrumentos de trabalho e outras despesas de instalação. Para<br />
alimentar-se dependia <strong>do</strong> suprimento que, em regime de estrito monopólio,<br />
realizava o mesmo empresário com o qual estava endivi<strong>da</strong><strong>do</strong> e que lhe<br />
comprava o produto. As grandes distâncias e a precarie<strong>da</strong>de de sua situação<br />
financeira reduziam-no a um regime de servidão. Entre as longas caminha<strong>da</strong>s<br />
na floresta e a solidão <strong>da</strong>s cabanas rudimentares onde habitava, esgotava-se sua<br />
vi<strong>da</strong>, num isolamento que talvez nenhum outro sistema econômico haja<br />
imposto ao homem. Demais, os perigos <strong>da</strong> floresta e a insalubri<strong>da</strong>de <strong>do</strong> meio<br />
encurtavam sua vi<strong>da</strong> de trabalho. 33<br />
Convém ressaltar que as <strong>do</strong>enças que vitimaram milhares de nordestinos, entre elas<br />
o beribéri, advieram <strong>da</strong> própria quali<strong>da</strong>de de sua alimentação – geralmente produtos<br />
enlata<strong>do</strong>s e pobres em proteínas. A dependência dessa alimentação que fazia parte <strong>do</strong>s<br />
produtos avia<strong>do</strong>s pelos seringalistas não era uma decisão voluntária <strong>do</strong> seringueiro,<br />
constituía, na ver<strong>da</strong>de, peça-chave no funcionamento <strong>do</strong> sistema de extração implanta<strong>do</strong><br />
nos seringais, uma vez que se os seringueiros passassem a se dedicar à agricultura de<br />
subsistência, à caça ou à pesca reduziriam o trabalho de coleta e beneficiamento primário<br />
seringueiros, pelo porte, a residência papal e <strong>da</strong>í receberem essa denominação. Ao gaiola que possuía fun<strong>do</strong><br />
chato, <strong>da</strong>va-se o nome de “chata” ou “chatinha” quan<strong>do</strong> possuía menor porte. O autor observa que os porões,<br />
onde viajavam os passageiros de terceira classe, cheiravam mal e ostentavam “uma promiscui<strong>da</strong>de aterra<strong>do</strong>ra<br />
[...]” (O seringal e o seringueiro, p. 198-99).<br />
32 “Brabo” era a alcunha que recebia o nordestino inexperiente na operação de coleta <strong>do</strong> látex e<br />
desconhece<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s particulari<strong>da</strong>des <strong>do</strong> meio em que era recém-chega<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong>, enfim, <strong>do</strong>minava as técnicas<br />
<strong>do</strong> trabalho e adquiria independência para se movimentar no meio, reconhecen<strong>do</strong>-lhe os perigos e os segre<strong>do</strong>s,<br />
o nordestino passava a receber a alcunha de “manso” e já podia ser considera<strong>do</strong> seringueiro.<br />
25
<strong>do</strong> látex que deveriam cumprir rigorosamente na rotina de um dia de trabalho, ocasionan<strong>do</strong>,<br />
portanto, menor produção de <strong>borracha</strong>.<br />
O historia<strong>do</strong>r Arthur Reis acredita que as condições a que estava sujeito o<br />
seringueiro se justificam por um processo natural e não como fruto de uma exploração<br />
econômica inescrupulosa:<br />
Tais relações [...] devem ser explica<strong>da</strong>s pela barbaria <strong>do</strong> meio-natureza e <strong>do</strong><br />
meio-socie<strong>da</strong>de em formação. Porque, se o avia<strong>do</strong>r e o seringalista exploram o<br />
seringueiro, este não se comporta melhor. Vinga-se com as armas de que dispõe<br />
e de acor<strong>do</strong> com o primarismo de sua inteligência, <strong>da</strong>s coisas e <strong>do</strong>s homens.<br />
Assim é que negocia às escondi<strong>da</strong>s a produção de sua safra, lesan<strong>do</strong> o<br />
seringalista, entrega-se à madraçaria, diminuin<strong>do</strong> a produção ou extrain<strong>do</strong><br />
látex por processo proibi<strong>do</strong> para aumentar a purgação e dispor de safra maior<br />
que lhe garantirá sal<strong>do</strong>-cre<strong>do</strong>r. 34<br />
As relações que procedem de um processo de espoliação econômica transformam-<br />
se, nessa percepção, num jogo de vingança. A suspeição sobre a honesti<strong>da</strong>de <strong>do</strong> seringalista<br />
ao lançar a dívi<strong>da</strong> <strong>do</strong> seringueiro nos livros mercantis foi, por outro la<strong>do</strong>, levanta<strong>da</strong> pelo<br />
historia<strong>do</strong>r, ao ressaltar que havia a possibili<strong>da</strong>de de os seringalistas usarem de expedientes<br />
desonestos para manterem os seringueiros sempre deven<strong>do</strong> e, em virtude disso, trabalhan<strong>do</strong><br />
para eles.<br />
O seringueiro, mais <strong>do</strong> que expropria<strong>do</strong> <strong>do</strong> justo valor <strong>do</strong> seu trabalho, sofre, na<br />
maioria <strong>do</strong>s casos, a expropriação <strong>do</strong> direito de constituir família. Para muitos seringalistas,<br />
mulheres e filhos, tal como a agricultura de subsistência, significavam redução de produção<br />
nos seringais. Daí o ser feminino tornar-se escasso no momento de alta exploração <strong>do</strong>s<br />
seringais, em oposição às famílias caboclas que caracterizavam os primeiros tempos de<br />
exploração. A imagem de solidão <strong>do</strong> seringueiro e as histórias de seus desregramentos<br />
sexuais têm como fonte de inspiração a ausência ou escassez <strong>da</strong> mulher no meio onde se<br />
constituíam os seringais.<br />
33 Manoel José de MIRANDA NETO, O dilema <strong>da</strong> Amazônia, p. 45-6.<br />
34 Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 178.<br />
26
O AUGE E A DECADÊNCIA DO CICLO ECONÔMICO DA BORRACHA<br />
Em 1901, a produção de <strong>borracha</strong> na Amazônia atingia 29.971 tonela<strong>da</strong>s, quase o<br />
<strong>do</strong>bro <strong>do</strong> número atingi<strong>do</strong> em 1891, que fora de 17.790 tonela<strong>da</strong>s. A partir <strong>da</strong>í, ocorreu uma<br />
produção crescente até 1911, quan<strong>do</strong> se registrou o ponto mais alto – 44.296 tonela<strong>da</strong>s. 35 A<br />
quanti<strong>da</strong>de de <strong>borracha</strong> produzi<strong>da</strong> não oculta os sinais de que<strong>da</strong> nos preços ocorri<strong>da</strong> de<br />
forma mais intensa principalmente de 1913 em diante, mas é indica<strong>do</strong>ra de que o merca<strong>do</strong><br />
amazônico era, até então, o maior merca<strong>do</strong> produtor de <strong>borracha</strong> natural fina.<br />
A fase áurea <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> foi caracteriza<strong>da</strong> pela presença <strong>do</strong> capital internacional,<br />
nota<strong>da</strong>mente inglês, nas capitais amazônicas. A comprovação de que os ingleses faziam a<br />
linha de frente na comercialização <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> ostentava-se na instalação de uma agência<br />
<strong>do</strong> Lon<strong>do</strong>n Bank of South America em Manaus.<br />
Alguns acontecimentos ocorri<strong>do</strong>s a partir de 1850, como a criação <strong>da</strong> Província <strong>do</strong><br />
Amazonas (1850), a introdução <strong>da</strong> navegação a vapor (1852) e o decreto imperial que abriu<br />
a navegação <strong>do</strong> rio Amazonas ao comércio estrangeiro (1871) já prenunciavam os anos de<br />
riqueza promovi<strong>do</strong>s pela exploração <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>. Segun<strong>do</strong> Daou, “[...] entre 1898 e 1900, a<br />
<strong>borracha</strong> foi responsável por 25,7% <strong>do</strong>s valores <strong>da</strong>s exportações brasileiras, sen<strong>do</strong> supera<strong>da</strong><br />
apenas pelo café (52,7%) ” 36<br />
O <strong>ciclo</strong> ocasionou um processo de transformação urbana durante a segun<strong>da</strong> metade<br />
<strong>do</strong> século XIX nas capitais <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Pará e <strong>do</strong> Amazonas. Esse processo configurou-<br />
se a partir <strong>do</strong> modelo de moderni<strong>da</strong>de européia. No tocante à capital paraense, Sarges<br />
comenta:<br />
Guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as devi<strong>da</strong>s diferenças em relação às ci<strong>da</strong>des <strong>do</strong> Rio de Janeiro e São<br />
Paulo, a ci<strong>da</strong>de de Belém <strong>do</strong> Pará, apresentaria, assim, a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />
metade <strong>do</strong> século XIX, tentativas de a<strong>da</strong>ptação aos modernos costumes<br />
europeus, num profun<strong>do</strong> contraste com a reali<strong>da</strong>de amazônica, além <strong>da</strong>s tensões<br />
sociais gera<strong>da</strong>s por uma nova ordem social capitalista emergente. 37<br />
35 Os números estão divulga<strong>do</strong>s em Arhtur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 111.<br />
36 Ana Maria DAOU, A belle époque amazônica, p. 23.<br />
37 Maria de Nazaré SARGES, Belém: riquezas produzin<strong>do</strong> a belle-époque (1870-1912), p. 21.<br />
27
Sarges pondera que a iniciativa de modernização ocorri<strong>da</strong> na ci<strong>da</strong>de de Belém<br />
decorria de uma exigência <strong>do</strong>s grupos que enriqueciam em função <strong>do</strong> comércio <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong>, representa<strong>do</strong>s por seringalistas, comerciantes e financistas. 38 As obras realiza<strong>da</strong>s<br />
durante o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong>s grandes lucros com a <strong>borracha</strong>: imponentes edifícios, 39<br />
transformação <strong>da</strong> parte subterrânea <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de através <strong>da</strong> construção de redes de esgotos, de<br />
distribuição de água e gás representavam a “expressão de poder” <strong>da</strong>s classes em ascensão.<br />
O capital que proporcionava altos rendimentos ao erário público e que patrocinava as<br />
mu<strong>da</strong>nças estruturais na ci<strong>da</strong>de, incluin<strong>do</strong> uma luxuosa e dispendiosa rede de<br />
entretenimento em que se contavam numerosas casas, como o Café Chic, Café <strong>da</strong> Paz,<br />
Molin Rouge, Chat Noir, Café Madri e Café Riche e as companhias artísticas vin<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
França, Rio de Janeiro, São Paulo, que proporcionavam grande número de espetáculos no<br />
Teatro <strong>da</strong> Paz para a socie<strong>da</strong>de paraense, vinha <strong>da</strong> “formação de um excedente econômico<br />
na região, resultante <strong>da</strong> extorsão <strong>do</strong> seringueiro, <strong>do</strong>s lucros obti<strong>do</strong>s pelos „avia<strong>do</strong>res‟ e<br />
seringalistas [...]” e <strong>da</strong> “inversão de capitais (giro e fixo) por pessoas não residentes na<br />
região [...].” 40<br />
Além de atender às necessi<strong>da</strong>des de conforto e bem-estar <strong>do</strong>s grupos enriqueci<strong>do</strong>s<br />
com o comércio <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, as transformações urbanísticas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Belém faziam-se<br />
necessárias em razão <strong>do</strong> fluxo de imigrantes nordestinos que não se deslocavam para os<br />
seringais e contribuíam para o aumento populacional na ci<strong>da</strong>de e no esta<strong>do</strong> como um to<strong>do</strong>.<br />
No perío<strong>do</strong> de 1872 a 1920, a população <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> passou de 257.237 habitantes para<br />
983.507. O fluxo e a permanência de estrangeiros na capital também exigiram mu<strong>da</strong>nças<br />
estruturais e urbanísticas, entre elas, a criação de cemitérios, consula<strong>do</strong>s.<br />
O processo intensivo de urbanização <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Belém deu-se em grande parte<br />
durante a intendência de Antônio Lemos. Em sua administração, a ci<strong>da</strong>de ganhou<br />
pavimentação de ruas, construção de praças e jardins, usina de incineração de lixo, limpeza<br />
38<br />
Maria de Nazaré SARGES, Belém: riquezas produzin<strong>do</strong> a belle-époque (1870-1912), p. 21.<br />
39<br />
Entre essas obras, estão o Teatro <strong>da</strong> Paz, o Merca<strong>do</strong> Municipal <strong>do</strong> Ver-o Peso, o Palacete Bolonha, o<br />
Palacete Pinho.<br />
40<br />
Maria de Nazaré SARGES, Belém: riquezas produzin<strong>do</strong> a belle-époque (1870-1912), p. 83.<br />
28
urbana e um código de posturas que prescrevia a correta utilização e manutenção <strong>do</strong> espaço<br />
urbano reestrutura<strong>do</strong>. 41<br />
O padrão de urbani<strong>da</strong>de que caracterizava as reformas promovi<strong>da</strong>s por Lemos<br />
refletia os gastos <strong>do</strong>s novos ricos <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> que se pretendiam habitantes de uma ci<strong>da</strong>de<br />
com ares europeus, preferencialmente franceses. Em sua obra Galvez, impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Acre,<br />
Márcio Souza satiriza os hábitos desses novos ricos, contrastantes com suas origens locais:<br />
Já se disse que Dona Irene era uma espécie de folclore familiar de Belém.<br />
Vinha de uma família humilde e tomara o coração <strong>do</strong> prefeito com suas ancas<br />
largas, muita vivaci<strong>da</strong>de e mais de cem quilos de paixão. Ela procurava se<br />
prevenir contra as falhas de sua infância pobre, mas quase sempre isso não era<br />
possível. Mas era uma criatura necessária à socie<strong>da</strong>de paraense que assim podia<br />
medir por ela o padrão de suas boas maneiras. Mulher simples e filha <strong>do</strong> rio<br />
Madeira, tinha se casa<strong>do</strong> com o prefeito quan<strong>do</strong> este ain<strong>da</strong> era um jovem<br />
estu<strong>da</strong>nte de Direito. Casaram escondi<strong>do</strong> e a família, para evitar um escân<strong>da</strong>lo,<br />
embarcou os <strong>do</strong>is enamora<strong>do</strong>s para o Rio de Janeiro, onde mantiveram Dona<br />
Irene prisioneira por três anos, aos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de um preceptor francês e uma<br />
governanta alemã. Saiu essa força <strong>da</strong> natureza que cheirava a patchuli e<br />
pensava que o cometa de Halley era um número de circo. Mas colecionava<br />
queijos raros que era a paixão de sua governanta de Pots<strong>da</strong>m. 42<br />
Assim como Belém, Manaus, capital <strong>do</strong> Amazonas, também passou por um<br />
processo de reestruturação durante o perío<strong>do</strong> áureo <strong>da</strong> economia <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
radicalmente seu traça<strong>do</strong>. Sobre o aspecto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de até 1880, antes de sofrer essa<br />
reestruturação, Daou comenta:<br />
41 Apesar de essas mu<strong>da</strong>nças indicarem que a ci<strong>da</strong>de passava a ter melhores condições de higiene e a desfrutar<br />
de mais opções de lazer, Maria de N. Sarges destaca que “a expressão moderniza<strong>do</strong>ra de Belém subordina-se<br />
mais às necessi<strong>da</strong>des econômicas <strong>do</strong> que aos objetivos práticos, ou seja, ao atendimento <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des<br />
básicas <strong>da</strong> população” (Ibid., p. 138). Acentuan<strong>do</strong> que as medi<strong>da</strong>s sanea<strong>do</strong>ras e remodela<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> espaço<br />
urbano visavam atender principalmente aos grupos enriqueci<strong>do</strong>s pelos lucros <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, a autora ressalta:<br />
“[...] Entretanto, to<strong>do</strong> esse „progresso‟ era localiza<strong>do</strong> e dirigi<strong>do</strong> à área central <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, onde habitava a elite<br />
local e parte <strong>da</strong> classe média nascente” (Ibid., p. 142).<br />
42 Márcio SOUZA, Galvez, impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Acre, p. 32-3.<br />
29
Era marcante a precarie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ruas estreitas entrecorta<strong>da</strong>s por igarapés, a<br />
simplici<strong>da</strong>de <strong>do</strong> casario e a exclusivi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> pequeno comércio. A morfologia<br />
social era marca<strong>da</strong> pelo caráter disperso <strong>da</strong> população que permanecia boa<br />
parte <strong>do</strong> ano pelas matas, dedica<strong>da</strong> às ativi<strong>da</strong>des de coleta, caça e pesca [...].” 43<br />
Foi durante o governo de Eduar<strong>do</strong> Ribeiro, 44 a exemplo <strong>do</strong> que ocorreu em Belém<br />
com Antônio Lemos, que Manaus ganhou ares de ci<strong>da</strong>de moderna, passan<strong>do</strong> a ser<br />
considera<strong>da</strong> a „capital <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>‟. A ci<strong>da</strong>de sofreu uma planificação, igarapés foram<br />
aterra<strong>do</strong>s, as ruas foram modifica<strong>da</strong>s para facilitar o trânsito. A água foi canaliza<strong>da</strong> e um<br />
reservatório de água construí<strong>do</strong>. Houve também a conclusão de obras monumentais, como<br />
o Teatro Amazonas, o Palácio <strong>da</strong> Justiça, além <strong>da</strong> construção de escolas, pontes. Em 1893,<br />
a ci<strong>da</strong>de passa a ter seu Código Municipal para restringir os comportamentos indeseja<strong>do</strong>s e<br />
estimular os comportamentos apropria<strong>do</strong>s a uma ci<strong>da</strong>de moderna. Como ocorrera com<br />
Belém, “Manaus moderniza<strong>da</strong> atendia particularmente aos interesses <strong>da</strong> burguesia e <strong>da</strong> elite<br />
„tradicional‟, vincula<strong>da</strong> às ativi<strong>da</strong>des administrativas e burocráticas [...].” 45<br />
É preciso não perder de vista que o “crescimento” <strong>da</strong>s duas capitais amazônicas<br />
significou o transplante de uma idéia de progresso, fomenta<strong>da</strong> com o <strong>ciclo</strong>, e que não<br />
alterou a face colonial <strong>da</strong> economia amazônica, dependente <strong>da</strong>s contingências <strong>do</strong> merca<strong>do</strong><br />
internacional. Urbani<strong>da</strong>de, civilização, progresso, tu<strong>do</strong> isso parece não se coadunar com<br />
trabalho semi-escravo, condição de vi<strong>da</strong> indigna e animaliza<strong>da</strong> nas estra<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s seringais e<br />
castigos físicos e morais para os que se recusassem a aceitar as regras <strong>do</strong> trabalho, como<br />
lembra Souza:<br />
[...] A face oficial <strong>do</strong> látex era a paisagem urbana, a capital coruscante de luz<br />
elétrica, a fortuna de Manaus, e Belém, onde imensas somas de dinheiro<br />
corriam livremente. O outro la<strong>do</strong>, o la<strong>do</strong> terrível, as estra<strong>da</strong>s secretas, estavam<br />
bem protegi<strong>da</strong>s, escondi<strong>da</strong>s no infinito emaranha<strong>do</strong> de rios, longe <strong>da</strong>s capitais.<br />
O la<strong>do</strong> festivo, urbano, civiliza<strong>do</strong>, que procurou soterrar as grandes<br />
43 Ana Maria DAOU, A belle époque amazônica, p. 34.<br />
44 Eduar<strong>do</strong> Ribeiro assumiu o governo provisório em 1890, quan<strong>do</strong> Augusto Ximenes de Villeroy teve de se<br />
afastar por motivo de <strong>do</strong>ença de sua esposa. Já em 1891, Eduar<strong>do</strong> Ribeiro é exonera<strong>do</strong> <strong>do</strong> cargo. Em 1892,<br />
volta ao governo para um perío<strong>do</strong> de administração que irá até 1896. É nesse perío<strong>do</strong> que Ribeiro realiza as<br />
obras que iriam transformar a vila em ci<strong>da</strong>de (Cf. Agnelo BITTENCOURT, Dicionário amazonense de<br />
biografias: vultos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, p. 194-196).<br />
30
monstruosi<strong>da</strong>des cometi<strong>da</strong>s nos <strong>do</strong>mínios perdi<strong>do</strong>s, poucas vezes foi<br />
perturba<strong>do</strong> durante a sua vigência no poder [...]. 46<br />
O aspecto <strong>da</strong> transformação urbana por que passou Manaus foi estu<strong>da</strong><strong>do</strong> por Ednea<br />
Mascarenhas Dias, em A ilusão <strong>do</strong> fausto. Esta pesquisa<strong>do</strong>ra realizou um criterioso estu<strong>do</strong><br />
sobre a condição de alijamento a que foram submeti<strong>do</strong>s os trabalha<strong>do</strong>res e a classe pobre no<br />
processo de reestruturação <strong>da</strong> aldeia em ci<strong>da</strong>de, demonstran<strong>do</strong> que o discurso construí<strong>do</strong><br />
sobre esse processo partiu <strong>do</strong> ponto de vista <strong>da</strong>s classes conserva<strong>do</strong>ras, as quais exaltam o<br />
progresso e a moderni<strong>da</strong>de <strong>do</strong> novo espaço urbano, omitin<strong>do</strong> as conseqüências irreversíveis<br />
(desagregação cultural, per<strong>da</strong> <strong>do</strong> livre arbítrio, marginalização) para a cama<strong>da</strong> pobre <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de que, <strong>da</strong> mesma forma como não participou <strong>do</strong>s grandes lucros <strong>do</strong> processo de<br />
exploração <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, também não usufruiu <strong>do</strong>s privilégios advin<strong>do</strong>s dessa riqueza. A<br />
seguinte passagem <strong>do</strong> livro constitui uma síntese dessa situação:<br />
Seguramente o projeto de urbanização de Manaus <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XIX e início<br />
<strong>do</strong> século XX excluiu a classe trabalha<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s benefícios <strong>da</strong> modernização<br />
causan<strong>do</strong>-lhes grandes prejuízos nas condições de viver, de morar e de trabalhar,<br />
no saneamento, em transportes, saúde e abastecimento. As coisas públicas, isto é,<br />
aquilo a que to<strong>do</strong>s deveriam ter acesso, tornam-se privilégios de poucos. 47<br />
A decadência <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> econômico <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> está inevitavelmente associa<strong>da</strong> ao<br />
crescimento <strong>da</strong> produção <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> na Ásia (Malásia, Ceilão, Índia e In<strong>do</strong>nésia),<br />
resultante <strong>da</strong> introdução <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>s de seringueiras leva<strong>da</strong>s para aquele continente pelos<br />
ingleses, desenvolven<strong>do</strong> ali um sistema de plantação racional e não mais apenas natural,<br />
como ocorria na Amazônia. A produção de <strong>borracha</strong> amazônica, que era a maior até então,<br />
passou a sofrer a concorrência <strong>da</strong> produção asiática, não resistin<strong>do</strong> e entran<strong>do</strong> em colapso.<br />
Apesar <strong>do</strong> otimismo por parte de alguns explora<strong>do</strong>res e investi<strong>do</strong>res em relação à produção<br />
<strong>da</strong> <strong>borracha</strong> amazônica, ela era, na ver<strong>da</strong>de, insuficiente para atender a deman<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
merca<strong>do</strong> mundial, o que ocasionava seu alto preço. A experiência <strong>da</strong> plantação na Ásia<br />
levou mais de vinte e cinco anos para se desenvolver satisfatoriamente, mas quan<strong>do</strong>, enfim,<br />
45 Ana Maria DAOU, A belle époque amazônica, p. 36.<br />
46 Márcio SOUZA, Breve história <strong>da</strong> Amazônia, p. 139-140.<br />
31
a produção se iniciou em 1898 com uma tonela<strong>da</strong> e manteve um nível de produção<br />
crescente até atingir 47.618 tonela<strong>da</strong>s em 1913, superan<strong>do</strong> a produção amazônica, esses<br />
resulta<strong>do</strong>s compensaram o investimento nas técnicas de melhoramento <strong>do</strong> plantio e<br />
ofereceram ao merca<strong>do</strong> mundial abundância <strong>do</strong> produto a um baixo custo.<br />
O quadro ofereci<strong>do</strong> pela produção asiática desmantelou o sistema de exploração<br />
monta<strong>do</strong> na Amazônia. Os investi<strong>do</strong>res aban<strong>do</strong>naram a região, levan<strong>do</strong> o capital que<br />
movimentava a economia gomífera, capital que mesmo no perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> alta cotação <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong> amazônica já era drena<strong>do</strong> para fora <strong>da</strong> região. A esse respeito, Antõnio Loureiro<br />
informa que três grupos se beneficiaram com a comercialização <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, sem<br />
precisarem se responsabilizar pelos custos <strong>da</strong> sua produção: o aparelho estatal que<br />
arreca<strong>do</strong>u 25% de impostos; os exporta<strong>do</strong>res que compravam a <strong>borracha</strong> <strong>do</strong>s avia<strong>do</strong>res para<br />
revendê-la no merca<strong>do</strong> exterior e os intermediários, especula<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s bolsas de Nova<br />
Iorque e Londres. 48 Esses lucros reverteram em benefício de outras regiões brasileiras,<br />
ampararam a produção cafeeira <strong>do</strong> sudeste, serviram para desenvolver as empresas de<br />
plantação asiática.<br />
A decadência <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” e a conseqüente crise em que entraram os<br />
esta<strong>do</strong>s que concorreram para aumentar os sal<strong>do</strong>s de divisas <strong>do</strong> país 49 são vistas por alguns<br />
estudiosos <strong>da</strong> história econômica <strong>da</strong> Amazônia como uma incapaci<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s governantes<br />
locais de gerirem competentemente os recursos <strong>da</strong> região, reverten<strong>do</strong>-os para o seu<br />
desenvolvimento. Para Ferreira Filho, essa constatação não deve ser desvia<strong>da</strong> para outras<br />
justificativas de menor importância, como, por exemplo, o episódio <strong>da</strong> transplantação <strong>da</strong>s<br />
sementes <strong>da</strong> hevea brasiliensis pelo inglês Henry Wickham: 50<br />
[...] Não creio que tenha havi<strong>do</strong> escritor, jornalista de profissão ou simples<br />
comentarista ocasional que, ao relembrar o episódio <strong>do</strong> deslocamento <strong>da</strong><br />
produção de <strong>borracha</strong> para terras asiáticas, não se demore em sovar e malsinar<br />
o tal senhor Henry Wickmam, acusan<strong>do</strong>-o de imper<strong>do</strong>ável crime de haver<br />
furta<strong>do</strong> as sementes <strong>da</strong> „hevea brasiliensis‟ para servir aos interesses de sua<br />
47 Ednea Mascarenhas DIAS, A ilusão <strong>do</strong> Fausto (Manaus – 1890-1920), p. 49.<br />
48 Antônio J. S. LOUREIRO, A grande crise (1908-1916), p. 15.<br />
49 É digno de destaque o fato de que em 1910 ca<strong>da</strong> habitante <strong>da</strong> Amazônia produzia 14 vezes mais divisas <strong>do</strong><br />
que os demais brasileiros (Cf. Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000 anos, p. 177).<br />
32
majestade britânica. Essas carpideiras ain<strong>da</strong> não compreenderam que, ten<strong>do</strong> a<br />
<strong>borracha</strong> se converti<strong>do</strong> em matéria-prima essencial ao bem-estar <strong>da</strong><br />
humani<strong>da</strong>de, não poderia o mun<strong>do</strong> ficar escraviza<strong>do</strong> à limita<strong>da</strong> e imperfeita<br />
produção <strong>do</strong>s seringais nativos <strong>da</strong> Amazônia. E que, por meios pacíficos ou<br />
violentos, mais tarde ou mais ce<strong>do</strong>, as nações industrializa<strong>da</strong>s que a utilizavam<br />
teriam de apoderar-se de suas matrizes. O que deve ser prantea<strong>do</strong> é a nossa<br />
incúria e falta de iniciativa, deixan<strong>do</strong> de formar grandes plantações de<br />
seringueiras para neutralizar a tremen<strong>da</strong> competição que, cinqüenta anos mais<br />
tarde, viria arrasar a economia extrativa <strong>da</strong> Amazônia [...]. 51<br />
Benchimol também questiona se o fato <strong>da</strong> transplantação <strong>da</strong> hévea é realmente<br />
essencial para justificar a derroca<strong>da</strong> <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>. O autor argumenta que apesar de o amazôni<strong>da</strong><br />
cultivar ressentimento desse fato, a <strong>borracha</strong> não foi o único produto natural transplanta<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tropical amazônico para outros países e particularmente para o sudeste asiático.<br />
Cita uma extensa lista de outros produtos, como cacau, milho, batata, tabaco, abacaxi, caju,<br />
goiaba, maracujá, mandioca, macaxeira, açaí, guaraná e pupunha, além de plantas<br />
medicinais, como quinino, chinchona, ipeca, jaborandi e o capim-santo. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
lembra que a Amazônia brasileira e países <strong>da</strong> América tropical também receberam uma<br />
grande varie<strong>da</strong>de de produtos <strong>da</strong> Ásia e <strong>da</strong> África, tais como manga, jaca, café, arroz, cana-<br />
de-açúcar, banana, entre outros. Assim, segun<strong>do</strong> o autor,<br />
[...] os produtos <strong>da</strong> flora e <strong>da</strong> fauna tropical sofreram intenso processo de<br />
transplante e migração entre continentes e países, a partir <strong>do</strong>s séculos XV e<br />
XVI, durante e após o <strong>ciclo</strong> <strong>do</strong>s grandes descobrimentos. Os coloniza<strong>do</strong>res<br />
portugueses, espanhóis, ingleses, franceses, belgas e holandeses tiveram papel<br />
importante na difusão e propagação <strong>do</strong>s produtos tropicais entre os povos e<br />
países <strong>da</strong> Ásia, Oceania, África e América. Troca e intercâmbio, que muito<br />
contribuíram para aju<strong>da</strong>r os países tropicais a enriquecer e buscar alternativas<br />
de desenvolvimento, graças ao seu diversifica<strong>do</strong> patrimônio biológico e<br />
50 Optamos pela grafia Wickham por ser a mais freqüente nos textos pesquisa<strong>do</strong>s. Dentre esses textos, a grafia<br />
Wickmam é emprega<strong>da</strong> por Arthur Cezar Ferreira Reis, Cosme Ferreira Filho e Samuel Benchimol.<br />
51 Cosme FERREIRA FILHO, Amazônia em novas dimensões, p. 155.<br />
33
genético e pela ac<strong>lima</strong>tação de novas espécies e cultivares de híbri<strong>do</strong>s mais<br />
resistentes às pragas. 52<br />
Benchimol conclui que Henry Wickham não pode ser condena<strong>do</strong> por ter leva<strong>do</strong> as<br />
sementes de seringueiras sem que se condene também Francisco de Melo Palheta que, à<br />
semelhança <strong>do</strong> que fez o inglês, também teve de esconder as plantinhas de rubiáceas (café),<br />
trazen<strong>do</strong>-as de Caiena para as plantações <strong>do</strong> Pará e Amazonas, sen<strong>do</strong> que o café<br />
posteriormente seria transplanta<strong>do</strong> para São Paulo e outros esta<strong>do</strong>s.<br />
Os <strong>do</strong>is autores – Ferreira Filho e Benchimol – vêem naturali<strong>da</strong>de no episódio <strong>da</strong><br />
transplantação <strong>da</strong> hévea pelos ingleses. O primeiro considera legítima a ação imperialista<br />
inglesa de apoderar-se <strong>da</strong>s sementes <strong>da</strong> hévea para auferir monopólio sobre ela. Não parece<br />
considerar, ao referir-se à escravidão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> à <strong>borracha</strong> amazônica, que os ingleses se<br />
beneficiavam com essa escravidão tanto na comercialização <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> quanto na ven<strong>da</strong><br />
de seus produtos aos consumi<strong>do</strong>res amazônicos. Portanto, não se tratava simplesmente de<br />
acabar com a escravidão <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de à produção de <strong>borracha</strong> amazônica, mas sim de<br />
obter um meio de exploração ain<strong>da</strong> mais lucrativo. O segun<strong>do</strong>, por sua vez, encara a<br />
transplantação <strong>da</strong> hévea pelo prisma <strong>da</strong> inevitabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> transmigração de espécies<br />
vegetais e animais entre os continentes. Na generali<strong>da</strong>de, pode-se dizer que o processo<br />
ocorri<strong>do</strong> com a hévea é o mesmo, mas quan<strong>do</strong> ocorre a sua transplantação, ela já é um<br />
produto natural largamente explora<strong>do</strong> e de importância crescente para o merca<strong>do</strong> mundial.<br />
Mais que transplante, levar a semente <strong>da</strong> hévea significou assenhorear-se completamente <strong>do</strong><br />
monopólio de extração, uma vez que o capital inglês já era um <strong>do</strong>s principais financia<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong> negócio <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, mas ain<strong>da</strong> não tinha o completo <strong>do</strong>mínio de sua fonte de produção<br />
ou de extração na natureza.<br />
52 Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural, p. 218-219.<br />
34
2<br />
A ABORDAGEM DO CICLO DA BORRACHA NA FICÇÃO AMAZONENSE<br />
O veio aberto pela pesquisa histórica sobre o “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” foi também<br />
amplamente explora<strong>do</strong> pela ficção amazônica e amazonense, em particular. Do final <strong>do</strong><br />
século XIX, passan<strong>do</strong> por to<strong>da</strong>s as déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> século XX, foram escritas obras que<br />
abor<strong>da</strong>ram integralmente ou fizeram referência parcial ao <strong>ciclo</strong>. O paroara (1899), de<br />
Ro<strong>do</strong>lfo Teófilo, é uma <strong>da</strong>s primeiras obras a abor<strong>da</strong>r o <strong>ciclo</strong> através <strong>da</strong> aventura de um<br />
imigrante cearense na selva amazônica. Seguem-lhe Inferno verde, especialmente o conto<br />
“Maiby” (1908), de Alberto Rangel; o conto “Ju<strong>da</strong>s- Asvero” , em À margem <strong>da</strong> história<br />
(1909), de Euclides <strong>da</strong> Cunha; Deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s (1921), de Carlos de Vasconcelos; A selva<br />
(1930), de Ferreira de Castro; Amazônia que ninguém sabe (1932) 1 , de Abguar Bastos;<br />
Terra de ninguém (1934), de Francisco Galvão; Marupiara (1935), de Lauro Palhano; Um<br />
punha<strong>do</strong> de vi<strong>da</strong>s (1949), de Aristófanes Castro; No circo sem teto <strong>da</strong> Amazônia (1955), de<br />
Ramayana de Chevalier; Beiradão (1958), de Álvaro Maia; Arapixi (1963), de A<strong>da</strong>ucto de<br />
Alencar Fernandes; Dos ditos passa<strong>do</strong>s nos acerca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Cassianã (1969), de Paulo Jacob;<br />
Terra firme (1970), de Antisthenes Pinto; Coronel de barranco (1970), de Cláudio Araújo<br />
Lima; Regime <strong>da</strong>s águas (1985), de Francisco Vasconcelos; O amante <strong>da</strong>s Amazonas<br />
(1992), de Rogel Samuel e “Três histórias <strong>da</strong> terra”, em O toca<strong>do</strong>r de charamela (1995), de<br />
Erasmo Linhares.<br />
Através dessas obras, o “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” e, mais especificamente, o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
seringal, desfilou na ficção, tornan<strong>do</strong>-se um tema comezinho abor<strong>da</strong><strong>do</strong> na literatura<br />
1 Esse romance foi publica<strong>do</strong> posteriormente (1934) com o título de Terra de Icamiaba.<br />
35
amazonense. Surgiu, desse mo<strong>do</strong>, um ambiente comum à ficção composto pela margem,<br />
onde se localiza o barracão com as ativi<strong>da</strong>des que lhe são peculiares, e pelo centro, o local<br />
onde se move o seringueiro e se desenrolam acontecimentos a ele liga<strong>do</strong>s. Geralmente, o<br />
enfoque <strong>da</strong>s obras acentua mais um ambiente <strong>do</strong> que o outro ou, ain<strong>da</strong>, os <strong>do</strong>is têm pouco<br />
destaque no senti<strong>do</strong> de serem trata<strong>do</strong>s sem detalhamento. Nesse último caso, importa aos<br />
ficcionistas explorar imagens estereotipa<strong>da</strong>s em torno <strong>do</strong> seringalista e <strong>do</strong> seringueiro,<br />
personagens centrais na ficção sobre a <strong>borracha</strong>. Em romances como A selva e Coronel de<br />
barranco, entretanto, os ficcionistas expõem em detalhes o funcionamento <strong>do</strong> seringal e o<br />
processo econômico <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>. Em A selva, tanto a margem quanto o centro recebem um<br />
enfoque didático. Alberto, o protagonista <strong>do</strong> romance, inicia uma ação romanesca que vai<br />
desde o recrutamento para o trabalho no seringal até a sua integração nele, conhecen<strong>do</strong>-o<br />
em profundi<strong>da</strong>de. Inicialmente, Alberto observa e analisa a viagem no vapor, o tratamento<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong> ao nordestino, depois conhece o funcionamento <strong>do</strong> seringal e sua ingerência na vi<strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>s seringueiros. In<strong>do</strong> para o centro, é guia<strong>do</strong> pela personagem Firmino, seringueiro manso<br />
que lhe ensina pacientemente a técnica de coleta <strong>do</strong> látex e os conhecimentos necessários<br />
para sobreviver na selva. Esse aprendiza<strong>do</strong> é explicita<strong>do</strong> nos seguintes trechos:<br />
Isto são as tigelinhas. Se espeta elas na seringueira, pelas bor<strong>da</strong>s. Assim... É<br />
preciso ter cui<strong>da</strong><strong>do</strong> para que a folha fique bem segura, se não a tigelinha cai e o<br />
leite escorre to<strong>do</strong> para fora. Está compreenden<strong>do</strong>?<br />
[...]<br />
- Ca<strong>da</strong> seringueira leva tantas tigelinhas conforme for a grossura dela. Uma<br />
valente, como aquele piquiá que você está ven<strong>do</strong> ali, pode levar sete. Uma<br />
assim como esta leva cinco ou quatro, se estiver fraca. Corta-se de cima para<br />
baixo e, quan<strong>do</strong> se chega a baixo o machadinho volta acima, porque a madeira<br />
já descansou. Seringueiro malandro faz mutá, mas aqui é proibi<strong>do</strong>.<br />
- Que é isso?<br />
- Vamos an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> que eu já lhe explico. Mutá é fazer um girau com galho de<br />
árvore e ir cortar a seringueira lá em cima, junto à folha. A princípio dá mais<br />
leite, mas depois morre. 2<br />
.............................................................................................................................<br />
2 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 117.<br />
36
- Não lhe toque seu Alberto!<br />
- Porquê?<br />
- Vai ver...<br />
Despiu a blusa, numa <strong>da</strong>s mangas envolveu o cabo <strong>do</strong> seu facão e com a lâmina<br />
roçou de leve o <strong>do</strong>rso <strong>do</strong> puraqué.<br />
- Agora toque aqui... Mas só com um de<strong>do</strong> – e indicava o espigão <strong>do</strong> terça<strong>do</strong>,<br />
que aparecia na extremi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> madeira. Alberto obedeceu e logo se sentiu<br />
percorri<strong>do</strong> por um forte choque elétrico.<br />
Firmino sorria e explicava:<br />
- Esse bicho é assim. Se um homem tem o coração fraco e lhe toca dentro de<br />
água, pode ir para o outro mun<strong>do</strong>... 3<br />
O romance Coronel de barranco centra-se mais na margem e expõe o sistema<br />
extrativista <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> através <strong>da</strong> personagem Cipriano, seringalista rude que desconhece<br />
as determinações econômicas <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> e ignora os riscos a que está exposto, confian<strong>do</strong><br />
apenas na exploração <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> nativa. Como A selva, o romance tem o objetivo claro de<br />
ensinamento conforme se nota nessa passagem em que a personagem Matias eluci<strong>da</strong> para a<br />
personagem Cipriano o sistema de funcionamento econômico <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>:<br />
- Veja bem, coronel. To<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mingos, os seus seringueiros chegam aqui no<br />
armazém, para se aviar, levam tu<strong>do</strong> que precisam, a comi<strong>da</strong>, a cachaça, o<br />
querosene, alguma ferramenta, remédios, uma peça de roupa...<br />
- Levam tu<strong>do</strong> que precisam. Está aqui o besta velho pra <strong>da</strong>r tu<strong>do</strong> que eles<br />
querem, fia<strong>do</strong>.<br />
- Exatamente. Eles não pagam ao senhor, não é ver<strong>da</strong>de? Tu<strong>do</strong> fia<strong>do</strong>, não é<br />
ver<strong>da</strong>de? A Casa Flores man<strong>da</strong> os vapores carrega<strong>do</strong>s de aviamentos...<br />
- Man<strong>da</strong>, não. Man<strong>da</strong>va.<br />
- Sempre man<strong>do</strong>u, Coronel. Mas, bem. A Casa Flores lhe man<strong>da</strong> tu<strong>do</strong> que o<br />
senhor pedir e até o que não pedir. Cobra <strong>do</strong> senhor à vista? Algum dia marcou<br />
<strong>da</strong>ta certa para o senhor pagar?<br />
- Mas a minha seringa está lá no armazém deles.<br />
3 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 138-9.<br />
37
- Perfeitamente. Chegaremos lá. E como a Casa Flores compra essas<br />
merca<strong>do</strong>rias, to<strong>da</strong>s importa<strong>da</strong>s <strong>do</strong> [sic] outros Esta<strong>do</strong>s ou <strong>do</strong> estrangeiro?<br />
Sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong> estrangeiro. Onde ela vai buscar o dinheiro, se o dinheiro só<br />
pode entrar depois que a seringa for vendi<strong>da</strong>?<br />
- Pra que é que eles têm a burra cheia de dinheiro?<br />
- Que burra cheia de dinheiro, Coronel? O dinheiro eles vão sempre buscar nos<br />
bancos, Coronel. E em que bancos? Nos bancos estrangeiros. E como é que se<br />
pagam os bancos, Coronel? Não é como o seu seringueiro para o senhor, quer<br />
dizer, quan<strong>do</strong> puder, quan<strong>do</strong> Deus aju<strong>da</strong>r.<br />
- Quan<strong>do</strong> paga. E se o cabra foge? Ou morre? Ou leva o diabo?<br />
- Também não é assim que o senhor paga a Casa Flores?<br />
- Nunca deixei de pagar.<br />
- Claro. Mas paga quan<strong>do</strong> chega a Manaus. Quan<strong>do</strong> a <strong>borracha</strong> já foi vendi<strong>da</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> o senhor chega lá para acertar as contas, sem <strong>da</strong>ta certa, porque o<br />
senhor tem crédito.<br />
- Tenho porque mereço.<br />
- E como é que a Casa Flores paga o banco?<br />
- Quan<strong>do</strong> quiser? Só quan<strong>do</strong> puder? Não senhor, Coronel. Numa <strong>da</strong>ta certa,<br />
num prazo fixo. E quan<strong>do</strong> chega o fim desse prazo, se não tiver dinheiro, a<br />
Casa Flores tem de reformar a dívi<strong>da</strong>, <strong>da</strong>r um tanto por conta, para os juros,<br />
para esperar vender a <strong>borracha</strong> que o senhor man<strong>do</strong>u e ver entrar o dinheiro.<br />
Quer dizer, no fim <strong>da</strong> safra.<br />
- Então? Que novi<strong>da</strong>de, seu Albuquerque.<br />
- Pois bem. Agora, Coronel, neste ano fatídico de 1914, nesta hora em que se<br />
está esperan<strong>do</strong> uma guerra na Europa, uma guerra em que a Inglaterra terá<br />
também de entrar...<br />
- Entrar pra quê? Besteira de guerra.<br />
- Nesta hora difícil, Coronel, as matrizes <strong>do</strong>s bancos de lá man<strong>da</strong>m ordens às<br />
suas filiais de Manaus para não reformarem os títulos; querem o dinheiro na<br />
<strong>da</strong>ta marca<strong>da</strong>, no prazo fixa<strong>do</strong>. Compreendeu agora, Coronel? Se a Casa Flores<br />
não paga, o banco pede a falência <strong>da</strong> Casa Flores.<br />
- E por que o filho <strong>do</strong> Comen<strong>da</strong><strong>do</strong>r, homem moço, não vai lá no banco <strong>do</strong>s<br />
bifes e quebra o focinho <strong>do</strong> gerente? Se fosse comigo, era assim. Ou um tiro<br />
nas ventas.<br />
38
- Para não falir, a Casa Flores consegue a muito custo um último prazo, e pede<br />
ao senhor que pague a ela as merca<strong>do</strong>rias que lhe man<strong>do</strong>u a crédito durante o<br />
ano inteiro. Pergunto agora, o senhor pode obrigar o seu seringueiro a lhe pagar<br />
o que o senhor vendeu a ele fia<strong>do</strong>? O resto o senhor já sabe. E não se esqueça<br />
que citei a Casa Flores só para <strong>da</strong>r um exemplo. To<strong>da</strong>s as casas avia<strong>do</strong>ras estão<br />
viven<strong>do</strong> a mesma situação, igualzinha, ou até pior. Compreendeu agora o<br />
funcionamento <strong>da</strong> máquina, Coronel? Compreendeu a situação? 4<br />
A presença constante <strong>do</strong> tema <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” na ficção amazonense levou<br />
Mário Ypiranga Monteiro, em Fatos <strong>da</strong> literatura amazonense, a criticar o filão em torno<br />
desse tema, observan<strong>do</strong>: “[...] lamentavelmente to<strong>do</strong> contista que se inicia ou mesmo<br />
romancista já experimenta<strong>do</strong> se deixa seduzir pelo denomina<strong>do</strong>r comum <strong>da</strong> economia <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong> [...]. 5 Para o autor, o tema <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> é o principal motivo <strong>do</strong> infernismo literário, o<br />
qual consiste em escan<strong>da</strong>lizar a paisagem e explorar a tragédia em torno <strong>da</strong> figura opressora<br />
<strong>do</strong> coronel <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> e <strong>da</strong> conseqüente submissão <strong>do</strong> seringueiro. A ficção <strong>da</strong> <strong>borracha</strong><br />
padeceria, segun<strong>do</strong> sua avaliação, de um tautologismo ao repetir desgasta<strong>da</strong>mente sempre<br />
os mesmos aspectos.<br />
Opon<strong>do</strong> o infernismo <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” ao edenismo <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>do</strong> cacau,<br />
Monteiro demonstra as diferenças fun<strong>da</strong>mentais entre esses <strong>ciclo</strong>s. Observa que o <strong>ciclo</strong> <strong>do</strong><br />
cacau promoveu a fixação à terra, criou condições para que se estabelecesse uma cultura<br />
expressiva <strong>do</strong> sedentarismo burguês. A própria estrutura arquitetônica <strong>da</strong> casa-grande <strong>do</strong><br />
<strong>ciclo</strong> econômico <strong>do</strong> cacau ostentava permanência, comodi<strong>da</strong>de, com sua varie<strong>da</strong>de de<br />
janelas, seus quartos amplos, suas salas de jantar e de estar, seus móveis em estilo clássico<br />
e as redes arma<strong>da</strong>s nas salas de jantar ou à sombra <strong>do</strong>s cacauais. Já o “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”<br />
apresentou um panorama social bastante diverso. Sen<strong>do</strong> economia de transplantação, suas<br />
características eram as relações de desconfiança entre patrão e freguês, suas moradias<br />
ostentavam o aspecto <strong>da</strong> improvisação <strong>do</strong>s que não tomavam assento definitivo à terra. Nas<br />
palavras de Monteiro, a socie<strong>da</strong>de econômica <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong><br />
4 Cláudio de Araújo LIMA, Coronel de barranco, p. 311-315.<br />
5 Mário Ypiranga MONTEIRO, Fatos <strong>da</strong> literatura amazonense, p. 297.<br />
39
[...] conduz os trabalha<strong>do</strong>res <strong>da</strong> „margem‟ para o „centro‟, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de para a<br />
reclusão, isola-os, explora-os, escravíza-os ao regime <strong>da</strong> conta sem-fim,<br />
animalíza-os, brutalíza-os, inutilíza-os até para a satisfação sexual, instauran<strong>do</strong><br />
um quadro de renúncia força<strong>da</strong> aos acenos ambiciosos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, um estatuto de<br />
anacoretismo em que parece mais evidente o contexto <strong>da</strong> sabe<strong>do</strong>ria popular:<br />
mente desocupa<strong>da</strong> é oficina de satanás. A ausência <strong>da</strong> fêmea, nutrin<strong>do</strong> a<br />
preocupação <strong>do</strong>s machos famintos de associação e presença, é supri<strong>da</strong> pela<br />
imaginação sofre<strong>do</strong>ra e urgentiza a paródia, a busca de soluções desespera<strong>da</strong>s.<br />
Daí para os conflitos sangrentos é um passo.<br />
Nasce o infernismo literário, produto <strong>da</strong> economia pre<strong>da</strong>tória e <strong>da</strong> paixão<br />
solitária. 6<br />
Monteiro aponta um tratamento superficial <strong>da</strong><strong>do</strong> pela maioria <strong>do</strong>s escritores às obras<br />
<strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> ao afirmar que tanto os antigos quanto os modernos deixaram de perceber o mun<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> seringal por uma via ver<strong>da</strong>deiramente sociológica que penetrasse a sua engrenagem<br />
internamente e optaram pelo aspecto externo <strong>da</strong> tragédia fácil. 7 Para Monteiro, as<br />
características <strong>da</strong> economia de transplantação geraram as formas de abor<strong>da</strong>gem que<br />
enfatizam a negativi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> meio, os comportamentos humanos aberrativos.<br />
A ficção em torno <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> explorou abun<strong>da</strong>ntemente imagens <strong>da</strong> solidão <strong>do</strong><br />
seringueiro na selva, solidão que, na maioria <strong>da</strong>s vezes, é o degre<strong>do</strong> <strong>do</strong> nordestino retirante,<br />
viven<strong>do</strong> o estranhamento de uma ambiente que lhe é desconheci<strong>do</strong> e hostil. A relação<br />
inamistosa <strong>do</strong> seringueiro com os índios que habitavam as grandes extensões de terras <strong>do</strong>s<br />
seringais é também um tópico quase sempre abor<strong>da</strong><strong>do</strong> nas obras <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>. Via de regra, o<br />
indígena aparece como um ser sanguinário, ameaça ao trabalho <strong>do</strong> seringueiro, pavor que<br />
faz o dia-a-dia nas estra<strong>da</strong>s de corte de seringa um perigo constante. Além desses tópicos<br />
que geralmente se apresentam nas obras <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, ocorre a constância de alguns aspectos,<br />
muitas vezes estrutura<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s enre<strong>do</strong>s, que se relacionam diretamente às características<br />
<strong>da</strong>s relações de trabalho estabeleci<strong>da</strong>s em função <strong>da</strong> extração <strong>do</strong> látex. O relacionamento <strong>do</strong><br />
patrão seringalista com o seringueiro ou freguês motivou a maior parte <strong>da</strong>s abor<strong>da</strong>gens <strong>da</strong>s<br />
obras. Os <strong>da</strong><strong>do</strong>s históricos que informam as condições nem sempre justas <strong>do</strong> vínculo de<br />
6 Mário Ypiranga MONTEIRO, Fatos <strong>da</strong> literatura amazonense, p. 41.<br />
7 Ibid., p. 47.<br />
40
trabalho estabeleci<strong>do</strong> entre o freguês e o patrão serviram de corolário à criação <strong>do</strong>s<br />
ficcionistas, abrin<strong>do</strong> um caminho que foi percorri<strong>do</strong> diversas vezes. Passaremos a analisar,<br />
a seguir, a constância desses aspectos nas obras <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”.<br />
A DICOTOMIA EXPLORADOR-EXPLORADO<br />
Seringalistas e seringueiros são, na maioria <strong>do</strong>s romances <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, as<br />
personagens centraliza<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s enre<strong>do</strong>s ou, se considerarmos outro aspecto <strong>da</strong> narrativa,<br />
personagens sob as quais recai a focalização. 8 As demais figuras presentes nas ativi<strong>da</strong>des<br />
<strong>do</strong> seringal, entre elas gerentes, guar<strong>da</strong>-livros ou aquelas atrela<strong>da</strong>s ao processo <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, tais<br />
como avia<strong>do</strong>res, exporta<strong>do</strong>res não têm presença de destaque na prosa <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong>”. Não se tem a visão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal senão através <strong>do</strong> seringalista, que<br />
configura o explora<strong>do</strong>r e <strong>do</strong> seringueiro, o explora<strong>do</strong>.<br />
A condição <strong>do</strong> seringalista como explora<strong>do</strong>r <strong>da</strong> força de trabalho <strong>do</strong> seringueiro<br />
possibilitou a criação de um estereótipo <strong>do</strong> patrão truculento. O en<strong>do</strong>sso dessa imagem veio<br />
<strong>da</strong>s próprias relações de trabalho estabeleci<strong>da</strong>s nos seringais. Ao criar o contrato de<br />
trabalho, o patrão seringalista submetia o freguês seringueiro a um regulamento que<br />
estabelecia mais vantagens ao patrão <strong>do</strong> que ao freguês. Além <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s que o seringueiro<br />
tinha com a cobrança de um débito que se iniciava pelo preço de sua passagem ao seringal<br />
e acrescia-se com o preço <strong>da</strong>s ferramentas de trabalho, também era obriga<strong>do</strong> a se submeter<br />
a uma ração alimentar que meramente o mantinha vivo para o trabalho. No romance A<br />
selva, a percepção <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r põe-se frontalmente em oposição ao seringalista,<br />
esclarecen<strong>do</strong> a condição de servidão <strong>do</strong> seringueiro, vítima <strong>da</strong> má fé e <strong>da</strong> extorsão:<br />
Aquele era sempre o „talão grande‟ onde se juntavam as despesas <strong>da</strong> viagem e<br />
mais empréstimos, que prendiam por muitos anos ao seringal, em trabalho de<br />
pagamento, o sertanejo ingênuo.<br />
8 De acor<strong>do</strong> com Carlos Reis e Ana C.M. Lopes, a “focalização pode ser defini<strong>da</strong> como a representação <strong>da</strong><br />
informação diegética que se encontra ao alcance de um determina<strong>do</strong> campo de consciência, quer seja o de<br />
uma personagem <strong>da</strong> história, quer o <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r heterodiegético, conseqüentemente, a focalização além de<br />
condicionar a quanti<strong>da</strong>de de informação veicula<strong>da</strong> (eventos, personagens, espaços etc) atinge a sua quali<strong>da</strong>de,<br />
por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação [...]”<br />
(Dicionário de teoria <strong>da</strong> narrativa, p. 246).<br />
41
Alberto viu-se com o seu na mão – setecentos e vinte mil réis parcela<strong>do</strong>s por<br />
seis ou oito linhas – e depois, sobre o balcão, meia dúzias de coisas que lhe<br />
pareceram não valer um pataco. Atribuiu a engano a soma alarmante, mas o<br />
rabo <strong>do</strong> olho, atira<strong>do</strong> à nota <strong>do</strong> vizinho, descobriu nela uma quantia igual,<br />
repeti<strong>da</strong> em quantos papéis se estendiam para Bin<strong>da</strong>. 9<br />
Em Terra de ninguém, romance de Francisco Galvão, o narra<strong>do</strong>r também demonstra<br />
aversão pela personagem <strong>do</strong> coronel seringalista. Identifican<strong>do</strong>-se com os seringueiros, esse<br />
narra<strong>do</strong>r critica o enriquecimento <strong>do</strong> seringalista, os privilégios que aufere às expensas <strong>do</strong><br />
trabalho <strong>do</strong>s seringueiros. No contexto <strong>do</strong> romance, a possibili<strong>da</strong>de de sal<strong>do</strong> para os<br />
seringueiros é taxativamente nega<strong>da</strong>:<br />
A vi<strong>da</strong> corria monótona para os quinhentos homens que amealhavam a fortuna<br />
<strong>do</strong> <strong>do</strong>no <strong>do</strong> seringal. To<strong>do</strong>s lutavam com o mesmo esforço, como polias<br />
impulsionan<strong>do</strong> a mesma máquina. As estra<strong>da</strong>s contribuíam, com o suor<br />
humano, para que ele possuísse na firma J. G. de Araújo, grandes reservas<br />
monetárias.<br />
[...]<br />
Mil braços se estorciam aju<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a engor<strong>da</strong> pacífica e mansa desse homem, na<br />
selva bárbara, onde a esperança de libertação desaparecia ao tempo em que<br />
aumentava o débito <strong>da</strong> conta corrente pela desapreciação <strong>do</strong> preço <strong>da</strong>s gomas.<br />
O que se atrevesse a falar em sal<strong>do</strong>, no desejo natural <strong>da</strong> volta ao nordeste,<br />
arriscava-se a desaparecer, para sempre, à curva de uma estra<strong>da</strong>, morto à tocaia<br />
man<strong>da</strong><strong>da</strong> fazer pelo Antônio. 10<br />
Ain<strong>da</strong> que prepondere nas obras a desdita <strong>do</strong> seringueiro que vem para o seringal<br />
com o sonho de enriquecer e encontra apenas trabalho árduo, condições de sobrevivência<br />
precárias e risco de vi<strong>da</strong>, há alguma referência a seringueiros enriqueci<strong>do</strong>s com o trabalho<br />
de extração como nesta passagem <strong>do</strong> romance Dos ditos passa<strong>do</strong>s nos acerca<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
Cassianã:<br />
9 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 101.<br />
10 Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 89.<br />
42
[...] Deveras que muito seringueiro teve de sua sorte. Ganhou dinheiro a valer.<br />
Se não gastou nas safadezas na capital, voltou rico. José Francisco foi um <strong>do</strong>s<br />
agracia<strong>do</strong>s. Com o saldão recebi<strong>do</strong>, tornou ao Ceará. Montou comércio em<br />
Fortaleza, vive hoje de como que quer. Saber-se de outros, compran<strong>do</strong> fazen<strong>da</strong><br />
de criação, engenho, grandes porções de terras no sertão. Uma dessas se <strong>da</strong>n<strong>do</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> a <strong>borracha</strong> vai longe. De tirar sal<strong>do</strong> de não ter onde guar<strong>da</strong>r [...] 11<br />
A História que, no aspecto geral, serve de base para as <strong>ficções</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, registra<br />
que muitos seringueiros conseguiram enviar dinheiro para suas famílias no nordeste, 12<br />
muito embora o quadro apresenta<strong>do</strong> por Euclides <strong>da</strong> Cunha não demonstre uma avaliação<br />
otimista <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de o seringueiro enriquecer através <strong>do</strong> sistema escorchante <strong>do</strong><br />
aviamento:<br />
Admitamos agora uma série de condições favoráveis, que jamais concorrem; a)<br />
Que seja solteiro; b) Que chegue à barraca em maio, quan<strong>do</strong> começa o corte; c)<br />
Que não a<strong>do</strong>eça e seja conduzi<strong>do</strong> ao barracão, subordina<strong>do</strong> a uma despesa de<br />
10$000 diários; d) Que na<strong>da</strong> compre além <strong>da</strong>queles víveres – e que seja sóbrio,<br />
tenaz, incorruptível; um estóico firmemente lança<strong>do</strong> no caminho <strong>da</strong> fortuna<br />
arrostan<strong>do</strong> uma penitência <strong>do</strong>lorosa e longa. Vamos além – admitamos que,<br />
malgra<strong>do</strong> a sua inexperiência, consiga tirar logo 350 quilos de <strong>borracha</strong> fina e<br />
100 de sernambi; por ano, o que é difícil, ao menos no Purus.<br />
Pois bem, ultima<strong>da</strong> a safra este tenaz, este estóico, este indivíduo raro ali, ain<strong>da</strong><br />
deve. O patrão é, conforme o contrato mais geral, quem lhe diz o preço <strong>da</strong><br />
fazen<strong>da</strong> e lhe escritura as contas. Os 350 quilos remunera<strong>do</strong>s hoje a 5$000<br />
rendem-lhe 1.750$000; os 100 de sernambi, a 2$500, 250$000. Total<br />
2:000$000.<br />
É ain<strong>da</strong> deve<strong>do</strong>r e raro deixa de o ser. No ano seguinte já é manso; conhece os<br />
segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> serviço e pode tirar de 600 a 700 quilos. Mas considere-se que<br />
permaneceu inativo durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> enchente, de novembro a maio –<br />
sete meses em que a simples subsistência lhe acarreta um excesso superior ao<br />
11 JACOB, Paulo Herban Maciell, Dos ditos passa<strong>do</strong>s nos acerca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Cassianã, p. 37-8<br />
12 Segun<strong>do</strong> pesquisa de Ro<strong>do</strong>lfo Teófilo, até 1910, os nordestinos (seringalistas e seringueiros) enviaram<br />
cerca de 30.000 contos de réis para suas famílias. O nordestino que voltava para sua terra enriqueci<strong>do</strong> era<br />
chama<strong>do</strong> paroara Cf. Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural, p. 145.<br />
43
duplo <strong>do</strong> que trouxe em víveres, ou seja, em números re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>s, 1:500$000 –<br />
admitin<strong>do</strong>-se ain<strong>da</strong> que não precise renovar uma só peça de ferramenta ou de<br />
roupa e que não teve a mais passageira enfermi<strong>da</strong>de. É evidente que, mesmo<br />
neste caso especialíssimo, raro é o seringueiro capaz de emancipar-se pela<br />
fortuna. 13<br />
Em decorrência <strong>do</strong>s <strong>da</strong><strong>do</strong>s desabona<strong>do</strong>res sobre a conduta <strong>do</strong>s seringalistas<br />
aponta<strong>do</strong>s na pesquisa histórica e atesta<strong>do</strong>s pelos próprios regulamentos <strong>do</strong> trabalho no<br />
seringal, ganhou livre curso nas <strong>ficções</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> a figura vilanesca deste agente<br />
econômico em função <strong>do</strong> qual o seringal se organizava. Não raro ele é pinta<strong>do</strong> com cores<br />
fortes que lhe acentuam o caráter perverso, a exemplo dessa descrição no romance “Terra<br />
de ninguém”: “homem de poucas palavras, sibilino. Profun<strong>da</strong>mente tacanho e mau, somente<br />
disfarçava a fisionomia moral e se (sic) avistava com algum lêmure político <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de” 14<br />
Na obra No circo sem teto <strong>da</strong> Amazônia, o traço de vileza atinge o paroxismo por<br />
conta <strong>da</strong> caracterização grotesca que dá à personagem ares teatrais e pelas comparações<br />
grandiosas e a adjetivação abun<strong>da</strong>nte:<br />
Jacinto Gazela é um desses repulsivos queirópteros que riem.<br />
O seu estalão moral se baliza no limo pegajoso <strong>do</strong>s barreiros.<br />
O seu ideal é irmão–siamês <strong>do</strong> amplexo mortificante <strong>do</strong> apuizeiro.<br />
Alto, forte, espa<strong>da</strong>ú<strong>do</strong>, pela caraça insondável rastreiam estigmas variólicos. A<br />
dentuça patina<strong>da</strong> de sarro como o tecla<strong>do</strong> a<strong>do</strong>rmecente de um piano antigo, é<br />
defendi<strong>da</strong> aqui e ali pela cárie fagedênica <strong>do</strong> fumo.<br />
Gazela é um vulto mórbi<strong>do</strong> e rapace de Alighieri, que o tesourão metapsíquico<br />
de um gênio recortou de um capítulo <strong>da</strong> Divina Comédia, para grudá-lo depois,<br />
numa folha verde <strong>do</strong> álbum a<strong>do</strong>lescente <strong>da</strong> Amazônia.<br />
To<strong>da</strong>s as torpitudes, to<strong>da</strong>s as macabras idealizações de um cérebro <strong>do</strong>entio,<br />
alienan<strong>do</strong> rechãs e deturpan<strong>do</strong> honras e riquezas, residem no âmago <strong>da</strong>quele<br />
bruto.<br />
O seu seringal “Nova Vi<strong>da</strong>” é um burgo medieval cheio de tiriricas e mucuins.<br />
É ele, com pompa e majestade, um senhor de baraço e cutelo.<br />
13 Euclides <strong>da</strong> CUNHA, Amazônia: um paraíso perdi<strong>do</strong>, p. 52-3.<br />
14 Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 83.<br />
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O baraço que manieta o indefeso trabalha<strong>do</strong>r, o cutelo que o estripa nas<br />
tentaculares escroquerias <strong>da</strong>s contas e <strong>do</strong>s sal<strong>do</strong>s.<br />
Como as flores carnívoras é o seu sorriso. Desfia<strong>do</strong> em traquitanas de<br />
hipócritas oblatas, ele se seduz pelo aspecto sereno <strong>do</strong>s seus verticilos morais.<br />
Caí<strong>da</strong> a presa na fascinação <strong>da</strong> oferen<strong>da</strong> inocente, fecha-se a corola na<br />
constrição putrívora. E o ser incauto e bom, parece estrangi<strong>do</strong> e exânime, ao<br />
beijo inenarrável <strong>do</strong> monstro, cujos esgares semelham os instantes nauseosos<br />
<strong>da</strong> digestão <strong>do</strong>s reptis.<br />
O seu olhar se alarga no telescópio ambicioso <strong>da</strong> conquista.<br />
E lambe os escaninhos <strong>da</strong> Terra, arrastan<strong>do</strong> na ânsia inconti<strong>da</strong>, os pequenos<br />
trabalha<strong>do</strong>res e os humildes industriais. Seu coração é uma víscera metálica,<br />
obediente às imposições de um ritmo mecânico e rapace. Os ga<strong>da</strong>nhos <strong>do</strong>s seus<br />
senti<strong>do</strong>s solertes farejam, no amplo cenário <strong>da</strong> natureza em festa, os vestígios<br />
de azinhave <strong>da</strong>s cafurnas. O sol é de ouro. O rio é uma áurea corrente. Os<br />
vegetais só interessam ao amanhecer e ao sol-posto, quan<strong>do</strong> a luz, em vertigem,<br />
nos últimos acenos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a se extinguir, distende as mãos actínicas para<br />
chapear de ouro a coma <strong>da</strong>s samaúmas e o <strong>do</strong>rso floral <strong>do</strong>s acapus. 15<br />
Outro exemplo de personagem seringalista perverso figura num encaixe 16 conti<strong>do</strong><br />
no romance Um punha<strong>do</strong> de vi<strong>da</strong>s, em que um seringueiro com sal<strong>do</strong> decide partir <strong>do</strong><br />
seringal e para tanto reivindica o valor que lhe é devi<strong>do</strong>. Em resposta, o seringalista propõe-<br />
lhe que vá caçar vea<strong>do</strong> antes de partir para não esquecer <strong>do</strong> seringal no qual trabalhou<br />
tantos anos. O seringueiro fica intriga<strong>do</strong> com a proposta e é informa<strong>do</strong> por outra<br />
personagem que a caça se tratava de uma cila<strong>da</strong> arma<strong>da</strong> para os seringueiros com sal<strong>do</strong>.<br />
Mesmo desistin<strong>do</strong> de cobrar o sal<strong>do</strong> e apenas manifestan<strong>do</strong> o desejo de ir embora, o<br />
seringueiro é mais uma vez intimi<strong>da</strong><strong>do</strong> pelo patrão que, para lhe provar <strong>do</strong> que é capaz,<br />
mata um emprega<strong>do</strong> em sua presença como se abatesse um bicho. 17<br />
As demonstrações <strong>da</strong> vileza <strong>do</strong> caráter <strong>do</strong> seringalista se configuram nos castigos<br />
que infringe aos seringueiros que desobedecem suas ordens diretas ou os preceitos <strong>do</strong><br />
15 Ramayana de CHEVALIER, No circo sem teto <strong>da</strong> Amazônia, p. 69-70.<br />
16 Em teoria <strong>da</strong> narrativa, dá-se o nome de encaixe a uma seqüência inseri<strong>da</strong> no interior <strong>da</strong> narrativa principal,<br />
compon<strong>do</strong> uma uni<strong>da</strong>de autônoma, mas não independente, uma vez que guar<strong>da</strong> relação temática com essa.<br />
(Cf. Carlos REIS e Ana M. LOPES, Dicionário de teoria <strong>da</strong> narrativa, p. 156).<br />
17 Aristófanes CASTRO, Um punha<strong>do</strong> de vi<strong>da</strong>s: romance <strong>do</strong> “sol<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”, p. 72-4.<br />
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egulamento. No romance Coronel de barranco, o seringalista pune um seringueiro que<br />
desobedece a ordem de não cultivar horta nem caçar ou pescar a fim de promover outra<br />
forma de sobrevivência além <strong>da</strong>quela obti<strong>da</strong> através <strong>do</strong>s aviamentos, pon<strong>do</strong> fogo na<br />
pequena plantação que esse seringueiro havia cultiva<strong>do</strong> às escondi<strong>da</strong>s nas horas que lhe<br />
sobravam <strong>do</strong> trabalho de extração e defumação <strong>do</strong> látex. 18 O romance Terra de ninguém,<br />
por outro la<strong>do</strong>, apresenta um seringueiro castiga<strong>do</strong> com o aprisionamento no tronco por ter<br />
reclama<strong>do</strong> <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sabão que recebera no aviamento. 19<br />
Em Regime <strong>da</strong>s águas, o instrumento descrito na prática de tortura é uma palmatória<br />
chama<strong>da</strong> “melindrosa”. A cena em que o seringalista é intima<strong>do</strong> a <strong>da</strong>r esclarecimento ao<br />
juiz sobre o objeto ressalta a empáfia <strong>da</strong>quele, cônscio de que é a lei em seus <strong>do</strong>mínios:<br />
[...] O juiz, moço novo ain<strong>da</strong>, com ares de muita importância, foi logo entran<strong>do</strong><br />
no assunto, sem <strong>da</strong>r tempo a qualquer conversa. Queria saber que história era<br />
aquela de uma palmatória de <strong>do</strong>is quilos que, segun<strong>do</strong> denúncia recebi<strong>da</strong>,<br />
costumava usar no seringal, judian<strong>do</strong> <strong>da</strong>quela pobre gente indefesa. Seria<br />
ver<strong>da</strong>de tamanho absur<strong>do</strong>?<br />
- Mas foi aí que o homem <strong>da</strong> lei se enganou – dizia João Firmino, com senti<strong>do</strong><br />
orgulho <strong>da</strong> coragem <strong>do</strong> patrão. – Então pensava ele que ia o homem amofinar,<br />
meter o rabo entre as pernas e arranjar uma desculpa qualquer para sair <strong>da</strong><br />
encrenca? Na<strong>da</strong> disso! O patrão era cabra macho, homem de vergonha e de<br />
muita firmeza. E comentava com largo sorriso a resposta que, sem qualquer<br />
demora, dera o patrão à interpelação <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>:<br />
- Dois quilos não, seu juiz! Quase três. Esse, com to<strong>do</strong> respeito à pessoa <strong>do</strong><br />
Doutor Juiz, o peso <strong>da</strong> melindrosa. E digo mais, seu Doutor, ela só serve<br />
mesmo para corrigir cabra safa<strong>do</strong> e mulher fuxiqueira. 20<br />
Desse mo<strong>do</strong>, punições e castigos físicos são circunstâncias comuns na ficção sobre a<br />
<strong>borracha</strong>. Exercer algum tipo de violência sobre o seringueiro é uma forma de o seringalista<br />
expressar sua autori<strong>da</strong>de e fazer-se respeita<strong>do</strong>. Expressan<strong>do</strong> esse poder sem limites<br />
estabeleci<strong>do</strong> no seringal, o narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> romance memorialista Arapixi comenta: “O patrão<br />
18 Cláudio Araújo LIMA, Coronel de barranco, p. 243-247.<br />
19 Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 84.<br />
20 Francisco VASCONCELOS, Regime <strong>da</strong>s águas, p. 24-5.<br />
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se faz respeitar e obedecer por sua menor ou maior perversi<strong>da</strong>de, pela grandeza de seu<br />
coração, por sua autori<strong>da</strong>de moral, por sua bon<strong>da</strong>de de alma, por seus sentimentos<br />
humanos, pela grandeza de seus gestos, ou pelo horror de sua ação sanguinária. É um<br />
homem que na planície varia na conformi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> „centro‟ na vulgari<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s hábitos, na<br />
conduta <strong>da</strong> freguesia, sem peias, sem escrúpulos, sem formali<strong>da</strong>des”. 21<br />
Dos instrumentos utiliza<strong>do</strong>s pelo seringalista como forma de punição, o tronco<br />
figura como o mais referi<strong>do</strong> e o mais abominável tanto que leva o negro Tiago, personagem<br />
de A selva, a pôr fogo no barracão como ato de revolta contra o patrão que usara desse<br />
expediente de tortura contra os seringueiros que haviam tenta<strong>do</strong> fugir <strong>do</strong> seringal. 22<br />
A utilização <strong>do</strong> tronco nos seringais estabelece uma curiosa relação <strong>do</strong>s hábitos <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal com os <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de patriarcal escravista. Para Tocantins, ambos os<br />
contextos se assemelham, a começar pela economia basea<strong>da</strong> na monocultura, com a<br />
diferenciação de uma ser agrícola e a outra extrativa. O patriarca, representa<strong>do</strong> na figura <strong>do</strong><br />
seringalista, seria outro ponto de contato. Também o barracão <strong>do</strong> seringal, apesar de<br />
apresentar aspecto mais tosco, guar<strong>da</strong>ria semelhança com as casas-grandes <strong>do</strong>s engenhos de<br />
açúcar <strong>do</strong> Nordeste. Sobre o <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> cana de açúcar e o <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, o autor pondera: “[...]<br />
Dessemelhantes em forma e grau, mas semelhantes na essência comum <strong>do</strong> patriarcalismo, a<br />
civilização <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> aproveitou muitas <strong>da</strong>s constantes culturais <strong>da</strong>quela, naturalmente<br />
a<strong>da</strong>ptan<strong>do</strong>-as às reali<strong>da</strong>des <strong>do</strong> meio amazônico, num interessante experimento de<br />
assimilação”. 23<br />
Associam-se nas <strong>ficções</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> o caráter perverso <strong>do</strong> seringalista e a sua<br />
ignorância a ponto de ser ele um tipo aliena<strong>do</strong> <strong>do</strong> que ocorre no mun<strong>do</strong>, como o coronel<br />
Cipriano, <strong>do</strong> romance Coronel de barranco, que não acredita na possibili<strong>da</strong>de de haver<br />
concorrência <strong>da</strong> produção de <strong>borracha</strong> asiática com a amazônica até sofrer as conseqüências<br />
desastrosas <strong>da</strong> baixa de preço. Cipriano encarna a figura de um bronco enriqueci<strong>do</strong> que,<br />
apesar de receber merca<strong>do</strong>rias finas nos aviamentos, desconhece a procedência e o valor<br />
delas. Desconhece também o contexto histórico local e mundial de sua época, julgan<strong>do</strong><br />
tolice se interessar por qualquer coisa que não seja produzir <strong>borracha</strong> em seu seringal.<br />
Menos caricata é a figura <strong>do</strong> seringalista de A selva, mas talha<strong>da</strong> pelo mesmo estigma de<br />
21 A<strong>da</strong>ucto de Alencar FERNANDES, Arapixi: cenas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> amazônica, p. 229.<br />
22 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 304-305.<br />
23 Leandro TOCANTINS, Formação histórica <strong>do</strong> Acre, v. 1, p. 156.<br />
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homem rude, conforme fica aduzi<strong>do</strong> nessa passagem <strong>do</strong> romance em que ele manifesta<br />
inveja <strong>do</strong> guar<strong>da</strong>-livros por este possuir mo<strong>do</strong>s diferentes <strong>do</strong> seu, expressivos de polidez e<br />
educação:<br />
Apenas aos sába<strong>do</strong>s o jantar e as noita<strong>da</strong>s se animavam, mercê <strong>da</strong> presença de<br />
Bin<strong>da</strong>, Caetano e Balbino. Corpos modela<strong>do</strong>s no mesmo barro, veias <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
curso ao mesmo sangue, Juca Tristão compreendia-os totalmente. Imperava<br />
sorri<strong>do</strong>so, e deixava-se adular. Podia beber em liber<strong>da</strong>de, dizer o que lhe<br />
aprouvesse, ser completamente ele, sem sentir a enervante noção duma vaga<br />
inferiori<strong>da</strong>de, como lhe sucedia quan<strong>do</strong> estava ao la<strong>do</strong> de Guerreiro. Passara a<br />
irritar-se, intimamente, com as falas mansas <strong>do</strong> guar<strong>da</strong>-livros e sua cortesia<br />
bon<strong>do</strong>sa, pelo respeito que inoculavam. Sentira, pouco depois de voltar, que a<br />
simpatia <strong>do</strong>s seringueiros ia mais para o guar<strong>da</strong>-livros <strong>do</strong> que para ele; e essa<br />
verificação despeitava-o e exalava vastas suspeições. Quem sabia lá o que<br />
Guerreiro lhes havia insinua<strong>do</strong>! Também a ele seria fácil mostrar-se generoso e<br />
simpático, se administrasse fazen<strong>da</strong> alheia. De tu<strong>do</strong> quanto fosse mau se<br />
sacudia a chuva e só o bom se chamava a si; tratava-se com mo<strong>do</strong>s <strong>do</strong>ces uns<br />
safa<strong>do</strong>s que não trabalhavam, vendia-se mais <strong>do</strong> que se devia vender, não se<br />
castigava o preguiçoso e desculpava-se o que não tinha desculpa nenhuma,<br />
porque quem perdia e quem pagava era o patrão, era o tolo, que já tinha i<strong>da</strong>de<br />
para ter juízo! 24<br />
Esse trecho também é ilustrativo de que o seringalista justifica sua rudeza de caráter<br />
como algo inevitável no papel patronal que exerce. A mesma justificativa é <strong>da</strong><strong>da</strong> em<br />
Regime <strong>da</strong>s águas pela personagem de um fiscal de barracão: “[...] A lei, na selva, não<br />
podia ser outra que não aquela dita<strong>da</strong> pelo patrão. Só ele, a partir de seus propósitos e<br />
interesses sabia o que estava certo ou erra<strong>do</strong> [...]”. 25<br />
Em virtude <strong>do</strong> constante decalque no perfil mau, grosseiro e injusto <strong>do</strong> seringalista,<br />
desponta nas <strong>ficções</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> uma galeria de nomes que se tornam sempre destaca<strong>do</strong>s<br />
tão logo se enunciam os enre<strong>do</strong>s: “Manuel Lobo”, de Terra de ninguém; “Juca Tristão”, de<br />
A selva; “Jacinto Gazela”, de No circo sem teto <strong>da</strong> Amazônia; “Cipriano”, de Coronel de<br />
24 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A Selva, p. 272.<br />
25 Francisco VASCONCELOS, Regime <strong>da</strong>s águas, p. 28.<br />
48
arranco, “Macário Gomes”, de Dos ditos passa<strong>do</strong>s nos acerca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Cassianã, entre<br />
outros. Os nomes <strong>do</strong>s seringais, considera<strong>do</strong>s feu<strong>do</strong>s desses “coronéis” <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>,<br />
compõem uma curiosa toponímia para os conflitos que ali se dão: “Remanso”, “Paraíso”,<br />
“Vi<strong>da</strong> Nova”, “Fé em Deus”.<br />
As personagens seringueiros, por seu turno, não apresentam traços tão marca<strong>do</strong>s<br />
quanto as <strong>do</strong>s seringalistas, são mais coletivas <strong>do</strong> que individuais. As personagens<br />
“Firmino”, de A selva; “Zé Vicente”, de Terra de ninguém e “Joca”, de Coronel de<br />
barranco, típicos imigrantes nordestinos que poderiam realizar protagonistas seringueiros,<br />
são secundárias nas narrativas. Cabe destacar que nesses três romances, os protagonistas<br />
são homens que vêm para o seringal por aventura, como “Anatólio”, de Terra de ninguém,<br />
que ten<strong>do</strong> cresci<strong>do</strong> num ambiente de abastança, decide conhecer “[...]a selva enorme,<br />
eriça<strong>da</strong> de mistérios, grávi<strong>da</strong> de perigos, onde melhor aprenderia a conhecer os segre<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
Vi<strong>da</strong>”, 26 “Matias”, de Coronel de barranco, que após aventurar-se na Europa por trinta<br />
anos, decide “ruminar o ideal de viver isola<strong>do</strong> num pe<strong>da</strong>ço de mata, compon<strong>do</strong> e<br />
escreven<strong>do</strong> os versos que já planejara em silêncio” 27 e “Alberto”, de A selva, imigrante<br />
português que vai para o seringal quase acidentalmente, sem supor que o destino seria ser<br />
seringueiro.<br />
Assim como a imagem <strong>do</strong> seringalista nas <strong>ficções</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> parece fa<strong>da</strong><strong>da</strong> à<br />
vilania, a <strong>do</strong> seringueiro liga-se à sujeição. A sua condição de subjuga<strong>do</strong> é ressalta<strong>da</strong> na<br />
descrição de homens tristes, cabisbaixos, apáticos. Freqüentemente, os seringueiros são<br />
compara<strong>do</strong>s a escravos e as suas condições de recrutamento os põem, não raro, abaixo <strong>da</strong><br />
condição humana: “Cinqüenta homens na proa. Seu Isidro vinha sempre à tardezinha ver<br />
como íamos passan<strong>do</strong>. Contava-nos como se fôssemos animais [...]” 28<br />
Apesar de não ser a tônica <strong>da</strong>s obras sobre o <strong>ciclo</strong>, 29 a revolta <strong>do</strong>s seringueiros é<br />
abor<strong>da</strong><strong>da</strong> em algumas obras. Entre elas, Beiradão, onde é narra<strong>da</strong> a vingança <strong>do</strong>s<br />
seringueiros contra o proprietário <strong>do</strong> seringal “Boa-Vi<strong>da</strong>”, um patrão cujo caráter sórdi<strong>do</strong><br />
leva os fregueses a lhe retribuírem na mesma moe<strong>da</strong>:<br />
26 Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 59.<br />
27 Cláudio de Araújo LIMA, Coronel de barranco, p. 94.<br />
28 Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 66.<br />
49
Deu-se, então, a tragédia. Aguar<strong>da</strong>ram a saí<strong>da</strong> <strong>do</strong> motor que deixara<br />
merca<strong>do</strong>rias para o verão inteiro, cercaram armazéns e o barracão, pela<br />
madruga<strong>da</strong>. O coronel não podia reagir, pois os emprega<strong>do</strong>s haviam retira<strong>do</strong> as<br />
armas, durante a noite.<br />
Amarraram-no primeiramente, amarram a mulher, a cozinheira, as três filhas<br />
menores. Cevaram-se nas quatro, banquetearam-se em frente <strong>da</strong>s vítimas to<strong>da</strong>s<br />
despi<strong>da</strong>s, cunhatãs foram pisotea<strong>da</strong>s, após o geral [...] 30<br />
As sevícias sexuais são também a forma de vingança <strong>do</strong>s seringueiros no romance<br />
Terra firme, que obrigam o emprega<strong>do</strong> a violentar o patrão seringalista. Nesse romance, o<br />
mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal não absorve a narrativa integralmente, mas o encaixe conti<strong>do</strong> no<br />
segun<strong>do</strong> capítulo, constituin<strong>do</strong> a história <strong>do</strong> seringueiro nordestino Creto, narra<strong>da</strong> por ele<br />
próprio, abrange sua vin<strong>da</strong> para o seringal, o aban<strong>do</strong>no <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> de corte de seringueiras e<br />
a formação de um grupo de seringueiros e caucheiros <strong>do</strong> qual passa a ser o chefe. Suas<br />
an<strong>da</strong>nças com esse grupo de homens pela mata lembram as de um chefe de cangaço. Ao<br />
final dessa narrativa, a vingança contra o coronel seringalista é, como nos outros casos,<br />
violenta. 31<br />
O motivo que enseja o conto “Ju<strong>da</strong>s-Asvero” é igualmente uma revolta <strong>do</strong>s<br />
seringueiros, porém não tem como alvo o seringalista. Nesse conto, os seringueiros voltam-<br />
se contra si mesmos, construin<strong>do</strong> no sába<strong>do</strong> de aleluia um Ju<strong>da</strong>s a sua própria imagem para<br />
depois destruí-lo. Tal qual ocorre em outras obras, os seringueiros são vistos como seres<br />
martiriza<strong>do</strong>s, com “[...] existência imóvel, feita de idênticos dias de penúria, os meios-<br />
jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável Sexta-<br />
feira <strong>da</strong> Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefini<strong>da</strong> pelo ano to<strong>do</strong> afora.” 32 Apesar<br />
disso, não se revoltam ante o desamparo por deus: “[...] não se rebelam, ou blasfemam. O<br />
seringueiro rude, ao revés <strong>do</strong> italiano artista, não abusa <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de de seu deus<br />
desman<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se em convícios. É mais forte; é mais digno. Resignou-se à desdita [...]. 33<br />
Sem representar uma indignação direta contra o seringalista, o conto detém-se em uma<br />
29<br />
Dos romances amazônicos sobre o <strong>ciclo</strong>, Terra encharca<strong>da</strong>, <strong>do</strong> escritor acreano Jarbas Passarinho, é o<br />
único a transformar a revolta <strong>do</strong>s seringueiros na trama central <strong>da</strong> história.<br />
30<br />
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 120.<br />
31<br />
Antísthenes PINTO, Terra firme, p. 17-47.<br />
32<br />
Euclides <strong>da</strong> CUNHA, Amazônia: um paraíso perdi<strong>do</strong>, p. 117-118.<br />
33 Ibid, p. 118-119.<br />
50
evolta interioriza<strong>da</strong>, em uma autopunição: “[...] só lhe é lícito punir-se <strong>da</strong> ambição maldita<br />
que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo, maniata<strong>do</strong> e escravo, aos traficantes<br />
impunes que o iludem – e este peca<strong>do</strong> é o seu próprio castigo, transmu<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe a vi<strong>da</strong><br />
numa interminável penitência [...]”. 34 Ao mesmo tempo em que o Ju<strong>da</strong>s representa o<br />
sofrimento <strong>do</strong> seringueiro, acarretan<strong>do</strong> pie<strong>da</strong>de por sua condição, é também uma figura que<br />
desperta me<strong>do</strong>: “[...] À medi<strong>da</strong> que avança, o espantalho errante vai espalhan<strong>do</strong> em ro<strong>da</strong> a<br />
desolação e o terror: as aves retransi<strong>da</strong>s de me<strong>do</strong>, acolhem-se, mu<strong>da</strong>s, ao recesso <strong>da</strong>s<br />
frondes; os pesa<strong>do</strong>s anfíbios mergulham, cautos, nas profunduras, espavori<strong>do</strong>s por aquela<br />
sombra que ao cair <strong>da</strong>s tardes e ao subir <strong>da</strong>s manhãs se desata estiran<strong>do</strong>-se, lutuosamente,<br />
pela superfície <strong>do</strong> rio; os homens correm às armas e numa fúria recorta<strong>da</strong> de espantos,<br />
fazen<strong>do</strong> o „pelo sinal‟ e aperran<strong>do</strong> os gatilhos, alvejam-no desapie<strong>da</strong><strong>da</strong>mente.” 35 A imagem<br />
final <strong>do</strong> conto, os Ju<strong>da</strong>s–espantalhos que vão descen<strong>do</strong> o rio, juntan<strong>do</strong>-se num festival<br />
fantasmagórico, metaforiza a condição <strong>do</strong>s seringueiros recruta<strong>do</strong>s, embarca<strong>do</strong>s e<br />
despeja<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong>s rios onde se instalam os seringais:<br />
E vai descen<strong>do</strong>, descen<strong>do</strong>... Por fim não segue mais isola<strong>do</strong>. Aliam-se-lhe na<br />
estra<strong>da</strong> <strong>do</strong>lorosa outros sócios de infortúnio; outros aleijões apavorantes sobre<br />
as mesmas janga<strong>da</strong>s diminutas entregues ao acaso <strong>da</strong>s correntes, surgin<strong>do</strong> de<br />
to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, vários no aspeito e nos gestos: ora muito rijos, amarra<strong>do</strong>s aos<br />
postes que os sustentam; ora em desengonços, desequilibran<strong>do</strong>-se aos menores<br />
balanços, atrapalha<strong>da</strong>mente, como ébrios; ou fatídicos, braços alça<strong>do</strong>s,<br />
ameaça<strong>do</strong>res, amaldiçoan<strong>do</strong>; outros humílimos, acurva<strong>do</strong>s num<br />
acabrunhamento profun<strong>do</strong>; e por vezes, mais deploráveis, os que se divisam à<br />
ponta de uma cor<strong>da</strong> amarra<strong>da</strong> no extremo <strong>do</strong> mastro esguio e recurvo, a<br />
balouçarem, enforca<strong>do</strong>s... 36<br />
34 Euclides <strong>da</strong> CUNHA, Amazônia: um paraiso perdi<strong>do</strong>. p. 119.<br />
35 Ibid., p. 124.<br />
36 Ibid., p. 125.<br />
51
A ESCASSEZ E A AUSÊNCIA DO SER FEMININO NO SERINGAL<br />
O segun<strong>do</strong> aspecto que aparece com maior freqüência nas <strong>ficções</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> é a<br />
escassez ou mesmo ausência <strong>da</strong> mulher no ambiente <strong>do</strong> seringal. 37 Sobre o des<strong>do</strong>bramento<br />
que o problema <strong>da</strong> escassez <strong>da</strong> mulher teve e poderia ter na ficção, Benchimol observa:<br />
A grande angústia <strong>do</strong> tapiri era a solidão. E solidão é falta de mulher e amor.<br />
Isso até já se tornou tema comum e obrigatório em to<strong>do</strong> romance sobre a<br />
Amazônia. O seringueiro <strong>da</strong>queles tempos, e ain<strong>da</strong> hoje, com intensi<strong>da</strong>de já<br />
muito diminuí<strong>da</strong> pela imigração <strong>do</strong> elemento feminino que passou a<br />
acompanhar o homem, ou era um homossexual ou um onanista. Há ain<strong>da</strong><br />
análise minuciosa a ser feita entre o sexo e a seringa, entre a mulher, o tapiri e a<br />
„urbs‟. Talvez resi<strong>da</strong> numa bem estu<strong>da</strong><strong>da</strong> psicanálise <strong>da</strong> seringa, as origens<br />
<strong>da</strong>quelas alucinações <strong>do</strong>s „aureos tempos <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>‟[...]. 38<br />
A escassez <strong>da</strong> mulher no seringal possibilita aos ficcionistas enfoques em permutas,<br />
violências sexuais contra mulheres de i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong> ou meninas impúberes e ain<strong>da</strong><br />
violência contra os companheiros de mulheres que são ataca<strong>do</strong>s e mortos por outros<br />
seringueiros desejosos de as possuírem. A ausência <strong>da</strong> mulher possibilita enfocar a prática<br />
<strong>do</strong> bestialismo, através <strong>do</strong> qual o seringueiro procura satisfazer o instinto sexual com<br />
fêmeas animais, entre elas a fêmea <strong>do</strong> boto e a égua.<br />
A transferência <strong>da</strong> mulher de um seringueiro deve<strong>do</strong>r para outro seringueiro é<br />
assunto <strong>do</strong> conto “Maiby”, conti<strong>do</strong> no livro Inferno verde, de Alberto Rangel. Ao se iniciar<br />
o conto, o narra<strong>do</strong>r esclarece que o pagamento de dívi<strong>da</strong>, ten<strong>do</strong> como objeto de quitação a<br />
mulher era negócio como outro qualquer no seringal: “[...] O Sabino devia ao patrão sete<br />
contos e duzentos, que a tanto montava a addição <strong>da</strong>s parcellas de divi<strong>da</strong>s de quatro annos<br />
atraz, e cedia a mulher a um outro freguez <strong>do</strong> seringal, o Sérgio, que por sua vez assumia a<br />
37 No caso de algumas narrativas, esse aspecto chega a ser central. Não obstante, a escassez e a ausência <strong>da</strong><br />
mulher no seringal são abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s na maioria <strong>da</strong>s obras referentes ao <strong>ciclo</strong>. É necessário ressaltar que o<br />
aspecto abor<strong>da</strong><strong>do</strong> anteriormente – a dicotomia explora<strong>do</strong>r–explora<strong>do</strong> – está relaciona<strong>do</strong> ao problema <strong>da</strong><br />
ausência <strong>da</strong> mulher à medi<strong>da</strong> que é em razão <strong>da</strong> forma de exploração estabeleci<strong>da</strong> pelos patrões, através <strong>do</strong>s<br />
regulamentos, que a presença <strong>da</strong> mulher é proibi<strong>da</strong> ou limita<strong>da</strong>. Ou seja, a ganância <strong>do</strong> patrão impede a<br />
constituição <strong>da</strong> família a fim de que o freguês, viven<strong>do</strong> exclusivamente para a extração <strong>do</strong> látex, possa<br />
produzir mais.<br />
38 Samuel BENCHIMOL, Romanceiro <strong>da</strong> batalha <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, p. 53.<br />
52
esponsabili<strong>da</strong>de de sal<strong>da</strong>r essa divi<strong>da</strong>. O mais comum <strong>do</strong>s arranjos commerciaes, essa<br />
transferencia de debito, com o assentimento <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r, por sal<strong>do</strong> de contas”. 39<br />
O conto demonstra que uma mulher pode se tornar dispendiosa para um seringueiro.<br />
Sabino, a personagem que dá a mulher em pagamento <strong>da</strong> dívi<strong>da</strong>, o faz porque apesar de<br />
querê-la em sua companhia para amenizar a solidão, tem a dívi<strong>da</strong> em muito aumenta<strong>da</strong><br />
depois de se unir a ela. Uma vez que a dívi<strong>da</strong> inviabiliza a sua liber<strong>da</strong>de, ele opta por se<br />
desfazer <strong>da</strong> mulher. “Maiby” atesta que no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal, onde negociar merca<strong>do</strong>rias<br />
tem importância vital, a mulher torna-se também merca<strong>do</strong>ria. Quan<strong>do</strong> não ocorre uma troca<br />
como a que é narra<strong>da</strong> no conto, a mulher é encomen<strong>da</strong><strong>da</strong> entre os itens <strong>do</strong>s aviamentos. 40<br />
O desfecho <strong>da</strong><strong>do</strong> ao conto possibilita estabelecer a relação entre a mulher e a<br />
seringueira, uma vez que Maiby, a cabocla de proprie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> seringueiro Sabino e depois<br />
transferi<strong>da</strong> ao seringueiro Sérgio, é uni<strong>da</strong> à árvore num amplexo mortal. Sabino negocia a<br />
troca <strong>da</strong> mulher pelo débito, mas não consegue se resignar com a negociação e<br />
impulsiona<strong>do</strong> pelo descontrole mental de não superar a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> mulher, sacrifica-a,<br />
amarran<strong>do</strong>-a à árvore e extrain<strong>do</strong> seu sangue que é apara<strong>do</strong> em tigelinhas, tal como se<br />
apara o leite <strong>da</strong> seringueira. No conto, os significa<strong>do</strong>s <strong>da</strong> mulher e <strong>da</strong> seringueira para o<br />
seringueiro aproximam-se em vários pontos. Como a seringueira, a mulher não pertence ao<br />
seringueiro, é um bem <strong>do</strong> qual só pode usufruir quem sobre ele adquire direito. Maiby<br />
passa a ser proprie<strong>da</strong>de de Sérgio porque ele possui condições de tê-la. A seringueira, por<br />
sua vez, pertence ao patrão que <strong>do</strong>mina os meios de produção <strong>do</strong> seringal. Sabino tem a<br />
ilusão de que a seringueira lhe pertence porque é o extrator de sua riqueza, assim como<br />
ilude-se que a mulher lhe pertence quan<strong>do</strong>, de fato, ela pertence a quem pode pagar por ela.<br />
As posses mal realiza<strong>da</strong>s <strong>da</strong> seringueira e <strong>da</strong> mulher só podem ser compensa<strong>da</strong>s com as<br />
mortes de ambas. Cortar a seringueira para extrair seu leite é uma forma de matá-la, sangrar<br />
a mulher até que se esvaia to<strong>do</strong> o seu sangue, também. A cena final expõe os <strong>do</strong>is seres<br />
mais explora<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seringal e é extensiva, como faz notar o narra<strong>do</strong>r, <strong>do</strong> processo<br />
pre<strong>da</strong>tório <strong>da</strong> natureza como um to<strong>do</strong>:<br />
39 Alberto RANGEL, “Maybi” In: Inferno verde, p. 244-5.<br />
40 Segun<strong>do</strong> Arthur Cézar F. Reis, os seringueiros encomen<strong>da</strong>vam mulheres aos patrões <strong>da</strong> mesma forma que<br />
encomen<strong>da</strong>vam gêneros alimentícios, utensílios e roupas. Essas „encomen<strong>da</strong>s‟ entravam na contabili<strong>da</strong>de feita<br />
pelo guar<strong>da</strong>-livros como as outras merca<strong>do</strong>rias (O seringal e o seringueiro, p. 241). Márcio Souza critica a<br />
mentali<strong>da</strong>de utilitarista em relação à mulher nos seringais, notan<strong>do</strong> que ela passa a figurar como item precioso<br />
53
O martyrio de Maiby, com a sua vi<strong>da</strong> a escoar-se nas tigelinhas <strong>do</strong> seringueiro,<br />
seria ain<strong>da</strong> assim bem menor que o <strong>do</strong> Amazonas, offerecen<strong>do</strong>-se em pasto de<br />
uma industria que o exgota. A vingança <strong>do</strong> seringueiro, com intenção diversa,<br />
esculpira a imagem imponente e flagrante de sua sacrifica<strong>do</strong>ra exploração.<br />
Havia uma aureola de obração n‟esse ca<strong>da</strong>ver, que dir-se-ia representar, em<br />
miniatura, um crime maior, não commeti<strong>do</strong> pelo Amor, n‟um coração<br />
desvaira<strong>do</strong>, mas pela Ambição collectiva de milhares d‟almas, en<strong>do</strong>udeci<strong>da</strong>s na<br />
cobiça universal. 41<br />
O romance Coronel de barranco também apresenta um caso de negociação <strong>da</strong><br />
mulher, sen<strong>do</strong> que, desta vez, ela é uma merca<strong>do</strong>ria trazi<strong>da</strong> pelo regatão. Este é um <strong>do</strong>s<br />
poucos romances <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> em que o seringalista é solteiro e leva a vi<strong>da</strong> a divertir-se<br />
com prostitutas estrangeiras nas viagens que faz a Manaus. As obras, em geral, apresentam<br />
seringalistas casa<strong>do</strong>s que aproveitam as viagens para aventuras extraconjugais. Cipriano, a<br />
personagem seringalista, em Coronel de barranco, permanece sem mulher no barracão, até<br />
que recebe <strong>do</strong> regatão uma merca<strong>do</strong>ria que lhe custa um punha<strong>do</strong> de notas de quinhentos<br />
réis. A chega<strong>da</strong> dessa merca<strong>do</strong>ria é assim descrita pela personagem Matias: “[...] de braço<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong> com Cipriano vi a „encomen<strong>da</strong>‟ chegan<strong>do</strong> ao barracão, com chapéu de plumas,<br />
deixan<strong>do</strong> pelo caminho forte o<strong>do</strong>r de perfume francês, falan<strong>do</strong> com um sotaque que me deu<br />
a impressão de ser eslavo”. 42<br />
A chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> mulher, para o seringalista, causa impacto, uma vez que no seu<br />
seringal a presença de mulheres é proibi<strong>da</strong> pelo regulamento: “[...] a seringueira<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a<br />
„imaginava‟. À sua maneira, é claro. Com a imaginação superaqueci<strong>da</strong> pela influência <strong>da</strong><br />
prolonga<strong>da</strong> abstinência carnal, que ia aos poucos temperan<strong>do</strong> a reali<strong>da</strong>de. Transforman<strong>do</strong> a<br />
velha meretriz aposenta<strong>da</strong> num ver<strong>da</strong>deiro mito. Quase uma deusa, inspira<strong>do</strong>ra de sonhos<br />
lascivos e de excessos masturbatórios que confessavam sem a menor cerimônia”. 43 O<br />
privilégio de ter uma mulher que a personagem seringalista pode auferir não fica sem<br />
castigo no romance, pois mesmo possibilitan<strong>do</strong> luxo e conforto à prostituta negocia<strong>da</strong> pelo<br />
na lista de merca<strong>do</strong>rias. O tratamento <strong>da</strong> mulher como merca<strong>do</strong>ria é para o autor tão aberrante quanto o<br />
sistema de exploração <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> seringueiro (Breve história <strong>da</strong> Amazônia, p. 139).<br />
41 Alberto RANGEL, “Maybi” In: Inferno verde, p. 266.<br />
42 Cláudio de Araújo LIMA, Coronel de barranco, p. 255.<br />
54
egatão, tornan<strong>do</strong>-a a „senhora‟ <strong>do</strong> seringal, Cipriano é traí<strong>do</strong> por ela e por seu emprega<strong>do</strong><br />
de confiança, que fogem juntos. A mulher, mais uma vez, acarreta um desfecho trágico na<br />
ficção <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>: a personagem seringalista vinga-se <strong>da</strong> traição com um duplo<br />
assassinato; é presa, condena<strong>da</strong> e ain<strong>da</strong> sofre a ruína econômica em virtude <strong>da</strong> baixa de<br />
preço <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>.<br />
Dentre as obras referi<strong>da</strong>s nesse capítulo, Deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s é aquela que mais se concentra<br />
no aspecto <strong>da</strong> escassez e ausência <strong>da</strong> mulher no ambiente <strong>do</strong> seringal. Nos seus quinze<br />
capítulos, o livro abor<strong>da</strong> várias circunstâncias revela<strong>do</strong>ras tanto <strong>do</strong>s conflitos causa<strong>do</strong>s pela<br />
presença limita<strong>da</strong> <strong>da</strong> mulher quanto <strong>da</strong>s alternativas extremas de que lançam mão os<br />
seringueiros para verem seu instinto sexual sacia<strong>do</strong>. O episódio <strong>da</strong> disputa de uma mulher<br />
por <strong>do</strong>is seringueiros marca um <strong>do</strong>s momentos mais violentos <strong>da</strong> narrativa. Sugerin<strong>do</strong><br />
precisamente que o ser feminino é disputa<strong>do</strong> como uma presa, esse capítulo <strong>da</strong> luta feroz<br />
entre os seringueiros intitula-se “Caça á femea”. Como a luta não tem vence<strong>do</strong>r, fican<strong>do</strong> os<br />
<strong>do</strong>is conten<strong>do</strong>res mortos, a mulher é aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong> à sorte e ensandece pela per<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
companheiro e pela per<strong>da</strong> <strong>do</strong> que haviam construí<strong>do</strong> juntos, a barraca incendia<strong>da</strong> durante a<br />
luta. A disputa pela mulher, entretanto, não termina com a cena sangrenta entre os <strong>do</strong>is<br />
seringueiros. Apesar de ela ter um i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong> e ter perdi<strong>do</strong> a lucidez, os seringueiros<br />
ain<strong>da</strong> a vêem como um possível usufruto:<br />
Outro seringueiro famelico chamou de la<strong>do</strong> o patrão e em segre<strong>do</strong> lhe propôz a<br />
posse <strong>da</strong> virago imbeciliza<strong>da</strong>, sob a recompensa de pagar-lhe a elle as divi<strong>da</strong>s<br />
por ventura contraí<strong>da</strong>s “por ambos” os freguezes assassina<strong>do</strong>s. Mas quan<strong>do</strong> em<br />
sua companhía, chegou ao local trajico, já outro lascivo havía tira<strong>do</strong> partí<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
irrezistencia <strong>da</strong> idiota e a conduzíra alhures, pelo labirinto <strong>da</strong> mata com o<br />
rafeiro, para uma outra cena horripilante que a contijencia <strong>do</strong> viver alí sujería e<br />
punha em pratica: a conjugação nojenta de uma carcaça repulsíva de mais de<br />
meio século de uzo com a seivoza compleição de um mance<strong>do</strong> de vínte e<br />
poucos anos nos estertores morbi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> brutali<strong>da</strong>de antropoidesca <strong>da</strong> posse, sob<br />
a ramaría umbrosa, num leito de folhas e de líchens...<br />
43 Cláudio de Araújo LIMA., Coronel de barranco, p. 257.<br />
55
Ordena<strong>do</strong> pelo patrão sequiozo <strong>do</strong> sal<strong>do</strong> <strong>do</strong> melhor licitante, ía começar a<br />
emocionante caça á femea cretína, que outro famulento levava para a solitude<br />
florestal, á satisfação infrene <strong>do</strong>s instintos, á violência brutal <strong>da</strong> satiríaze... 44<br />
O seringueiro, sentin<strong>do</strong>-se lesa<strong>do</strong> por ter negocia<strong>do</strong> uma “merca<strong>do</strong>ria” que lhe foi<br />
rouba<strong>da</strong> antes <strong>da</strong> posse, cobra <strong>do</strong> patrão a entrega. O diálogo é expressivo <strong>da</strong> condição de<br />
objeto <strong>da</strong> mulher:<br />
- Pensa Você que eu devia pegar a mulher e botal-a em sua rêde, ou apenas<br />
consentir em V. leval-a em paz para a sua barraca? Quan<strong>do</strong> V. vem aquí<br />
comprar-me um paneiro de farinha, não faço eu apenas abrír a porta <strong>do</strong><br />
armazem para deixar que V. o tíre? Algum dia eu lhe metí nas mãos a saca de<br />
sal ou o cunhete de balas, ou foi você que os foi escolher no depozito ?<br />
E completou, sereno, com sua lojica:<br />
- O cazo é idêntico. Eu apenas lhe dei o direito de levar a mulher e a V. cabia ir<br />
buscal-a, tal como a um paneiro de farinha <strong>do</strong> armazém...<br />
- Entonce o patrão me amostre o almazem ín quí a sua „merca<strong>do</strong>ría‟ stá. P‟lo<br />
menos eu tenho quí vê sí a coiza istá bôa, num é? 45<br />
A necessi<strong>da</strong>de de possuir uma mulher em qualquer condição, demonstra<strong>da</strong> no<br />
episódio de Deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s, é ressalta<strong>da</strong> também em outra obra <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, No circo sem teto <strong>da</strong><br />
Amazônia: “Só a mulher é rara. Só a mulher é difícil e por isso, lin<strong>da</strong> ou horren<strong>da</strong>, quente<br />
ou anestesia<strong>da</strong>, voluptuosa ou fria, limpa ou nauseabun<strong>da</strong>, é ela a bússola que orienta a<br />
hor<strong>da</strong> <strong>do</strong>s explora<strong>do</strong>res <strong>da</strong> jângala.” 46<br />
Constituin<strong>do</strong> aberrações, na maioria <strong>da</strong>s vezes, essa relação difícil <strong>do</strong> seringueiro<br />
com a mulher tem no extremo oposto <strong>da</strong> mulher velha, a menina em i<strong>da</strong>de precoce para o<br />
sexo que é possuí<strong>da</strong> através <strong>do</strong> estupro ou <strong>do</strong> aliciamento. Obras como Deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s, Dos<br />
ditos passa<strong>do</strong>s nos acerca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Cassianã e Beiradão contêm passagens representativas<br />
dessa situação. Na última, a descrição <strong>do</strong> amasiamento de um seringueiro com três meninas<br />
demonstra que a escassez se transforma em excesso: “José Arru<strong>da</strong>, lá <strong>do</strong> alto, desgraçou<br />
44<br />
Carlos de VASCONCELOS, Deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s, p. 180.<br />
45<br />
Ibid., p. 199-200.<br />
46<br />
Ramayana de CHEVALIER, No circo sem teto <strong>da</strong> Amazônia., p. 75.<br />
56
três pobrezinhas – uma de 9, a segun<strong>da</strong> de 10, outra de 12 anos. Viviam juntinhos, na<br />
mesma barraca. O delega<strong>do</strong> meteu a peia no bruto, botou no tronco e conversou com as<br />
cunhãs. Pois to<strong>da</strong>s defenderam José Arru<strong>da</strong>, que lhes <strong>da</strong>va bóia e roupa. Pareciam<br />
cobrinhas assanha<strong>da</strong>s.” 47<br />
Enquanto algumas narrativas apenas sugerem, num “causo” ou noutro conta<strong>do</strong> pelos<br />
seringueiros, o bestialismo como a forma de superar a ausência <strong>da</strong> mulher, Deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
ostenta num capítulo intitula<strong>do</strong> “Aos azares <strong>da</strong> sorte” uma descrição <strong>da</strong> prática de sexo com<br />
animal. Na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> seringal, essa prática não se torna exclusiva de seringueiros, mas<br />
também de outros homens envolvi<strong>do</strong>s nas diversas ativi<strong>da</strong>des paralelas à extração, que<br />
também compartilham <strong>do</strong> regime recluso. Mateus, um comboieiro, é a personagem<br />
protagoniza<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> capítulo de Deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s que se sente obriga<strong>da</strong> a se satisfazer<br />
sexualmente com fêmeas não humanas. Pressiona<strong>do</strong> pela falta de mulher, ele passa a<br />
observar libidinosamente as fêmeas <strong>do</strong>s bichos e a desejá-las:<br />
De uma feita surpreendera os amores <strong>da</strong>nozamente lubricos de duas onças e<br />
escitara-se ao estremo de alvejar a femea para tel-a na posse, numa impropria<br />
substituição <strong>do</strong> felíno; de outra uzara uma anta abati<strong>da</strong>, em espasmos<br />
baixíssimos de necrofilo ultra-degenera<strong>do</strong>. Os macacos que se amavam em<br />
digressões pela ramaría, ou os jabotís que se faziam <strong>do</strong>s mais tonantes<br />
genezístas <strong>do</strong> orbe biolojico, levaram-no aos paroxísmos <strong>da</strong> sedução sexual: e<br />
como lhe faltasse humana companheira, Mateus vía–se na continjencia ingrata<br />
de tomar uma inferior <strong>da</strong>s garras <strong>do</strong> macho, á bala, ou de uzal-a ao limiar <strong>da</strong><br />
morte com a veemencia dejenerativa <strong>do</strong>s enfuria<strong>do</strong>s. 48<br />
O comboieiro encontra na mula “Faceira” a satisfação <strong>do</strong> desejo que o punha em<br />
constante inquietude, mas após servir-se <strong>da</strong> mula com constância, nota que ela se habituara<br />
a esperá-lo sempre no mesmo lugar e a indicar com gestos característicos o desejo de que<br />
ele consumasse a ação. Essa atitude <strong>do</strong> animal passa a enojá-lo e ele se dá conta de que se<br />
47 Álvaro MAIA, Beiradão, p. 256.<br />
48 Carlos de VASCONCELOS, Deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s, p. 147-8.<br />
57
tornara “[...] apenas um sordi<strong>do</strong> instrumento para a<strong>lima</strong>rías insatisfeitas..” 49 Da repulsa, ele<br />
passa ao ódio e executa uma vingança sádica contra a mula:<br />
A “Faceira” fez-lhe de pezadelo-mór. E ele , por vingança, certo dia deparan<strong>do</strong><br />
na estra<strong>da</strong> um pe<strong>da</strong>ço de muiratínga, desse arbusto singular cujos ramos, em<br />
secan<strong>do</strong>, se bipartem em cem numero de falus, perfeitos com a morfolojía<br />
masculina, meteu um deles sob o braço e esperou sofrego, a para<strong>da</strong> <strong>da</strong> Faceira<br />
no ponto costumeiro. Era mais uma baixeza de sua psiquoze. Ensebou o troço<br />
imitativo. Esse admirável cazo de simbioze vegetal, e incrustou com bruteza na<br />
estrutura antes uza<strong>da</strong> com delícia... 50<br />
No livro de contos O toca<strong>do</strong>r de charamela, o aspecto <strong>da</strong> ausência <strong>da</strong> mulher faz-se<br />
presente através <strong>da</strong> tríade “Três histórias <strong>da</strong> terra”. Os contos deixam de la<strong>do</strong> o aspecto<br />
grotesco explora<strong>do</strong> em Os deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Em “Tio Antunes”, a solidão <strong>do</strong> homem no seringal<br />
é enfoca<strong>da</strong> de uma forma pungente através <strong>do</strong> velho que espera indefini<strong>da</strong>mente a chega<strong>da</strong><br />
de uma mulher e fin<strong>da</strong> por enlouquecer. Por outro la<strong>do</strong>, há também uma abor<strong>da</strong>gem bem<br />
humora<strong>da</strong> em “Zeca-Dama”, um seringueiro que ameniza a ausência de mulheres nas<br />
festas, <strong>da</strong>nçan<strong>do</strong> com outros seringueiros e em “João Carioca: mandão e famão – Juiz de<br />
Paz”, o seringalista que resolve o problema <strong>da</strong> falta de mulheres em seus seringais, trazen<strong>do</strong><br />
prostitutas <strong>do</strong> Ceará e casan<strong>do</strong>-as com seus seringueiros. 51<br />
Se, por um la<strong>do</strong>, a ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong> pela ficção nos comportamentos sexuais aberrativos<br />
tem como principal motivo a solidão <strong>do</strong>s seringueiros e de outros trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> seringal,<br />
solidão que os leva, segun<strong>do</strong> a narrativa de A<strong>da</strong>ucto Fernandes, em Arapixi, a se<br />
animalizarem: “[...] São homens que não vivem. Vegetam segrega<strong>do</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de que os<br />
brutaliza e explora. São sêres humanos no aspecto e alimárias estranhas na mata [...] 52 ,<br />
algumas obras demonstram também que os desregramentos sexuais não são exclusivos <strong>do</strong>s<br />
seringueiros que não têm contato com mulheres e que vivem isola<strong>do</strong>s na mata. Nessas<br />
obras, os coronéis seringalistas, mesmo casa<strong>do</strong>s e poden<strong>do</strong> também se afastar <strong>do</strong>s seringais<br />
para se divertirem com prostitutas nas capitais, cometem violações contra entea<strong>da</strong>s e<br />
49<br />
Carlos de VASCONCELOS, Deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s, p. 154.<br />
50<br />
Ibid., p. 155.<br />
51<br />
Erasmo LINHARES, O toca<strong>do</strong>r de charamela, p. 95-110.<br />
52<br />
A<strong>da</strong>ucto de Alencar FERNANDES, Arapixi: cenas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> amazônica, p. 60.<br />
58
sobrinhas. Diferentemente <strong>do</strong> castigo sofri<strong>do</strong> pelo seringueiro amasia<strong>do</strong> com três meninas,<br />
apresenta<strong>do</strong> em Beiradão, esses seringalistas não sofrem qualquer punição ou advertência<br />
<strong>da</strong> justiça e continuam a exercer autori<strong>da</strong>de para determinar a conduta correta de seus<br />
subordina<strong>do</strong>s.<br />
Na constância <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong> ser feminino como coisa rara, escassa ou<br />
inexistente no seringal, resulta um apagamento, na maioria <strong>da</strong>s obras <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, <strong>da</strong><br />
personagem feminina enquanto realiza<strong>do</strong>ra de uma ação ficcional efetiva. As personagens<br />
femininas não possuem individuali<strong>da</strong>de nas narrativas, não têm pensamento ou atos<br />
descritos que lhes possam <strong>da</strong>r um caráter próprio. Aparecem como merca<strong>do</strong>ria, como<br />
objeto de disputa tal como a cabocla Maiby, <strong>do</strong> conto homônimo, ou a prostituta Conchita,<br />
de Coronel de barranco. Quan<strong>do</strong> esposas de seringalistas, recebem atenção na narrativa em<br />
virtude <strong>do</strong> desejo que despertam nos homens premi<strong>do</strong>s pelo clamor sexual, como a<br />
personagem-esposa <strong>do</strong> guar<strong>da</strong>-livros, de A selva, cobiça<strong>da</strong> pela personagem Alberto nos<br />
momentos de volúpia causa<strong>do</strong>s pela abstinência prolonga<strong>da</strong>.<br />
A exceção à falta de delineamento <strong>da</strong> personagem feminina faz-se em Terra de<br />
ninguém, em que a personagem Nadesca, filha <strong>do</strong> seringalista, constitui o oposto <strong>da</strong>s<br />
personagens <strong>da</strong>s demais narrativas, mostran<strong>do</strong>-se voluntariosa e <strong>do</strong>na de suas ações. Para<br />
delinear essa personagem que possui independência, o narra<strong>do</strong>r comenta que ela falou-lhe<br />
“[...] <strong>do</strong> desejo que alimentava de viver livre, como as águas, barulhentas <strong>da</strong> corredeira;<br />
como os pássaros alígeros que voavam lá em cima; como as corças selvagens que não<br />
encontravam limites nem perspectivas marca<strong>da</strong>s”. 53 Nadesca não apenas tem voz, critica a<br />
exploração <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res no seringal <strong>do</strong> pai e a truculência <strong>da</strong>s ações deste, como<br />
participa, no final <strong>do</strong> romance, <strong>da</strong> revolta <strong>do</strong>s seringueiros. De ares revolucionários a ponto<br />
de se tornar uma caricatura, essa personagem é uma <strong>da</strong>s responsáveis pela acusação que se<br />
faz a Francisco Galvão de criar um romance com situações e personagens inverossímeis. 54<br />
53 Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 153.<br />
54 Márcio Souza aponta inverossimilhança no romance por este implantar ideais libertários em personagens<br />
elitiza<strong>da</strong>s (A expressão amazonense: <strong>do</strong> colonialismo ao neo-colonialismo, p. 224).<br />
59
3<br />
A DIVERSIFICAÇÃO DA ABORDAGEM FICCIONAL DO CICLO DA BORRACHA<br />
NAS OBRAS A selva, Beiradão e O amante <strong>da</strong>s amazonas.<br />
Conforme demonstramos, as obras que abor<strong>da</strong>ram o “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” retomaram,<br />
em sua maioria, os aspectos em torno <strong>do</strong> comportamento truculento <strong>do</strong>s seringalistas e as<br />
conseqüências <strong>da</strong> ausência <strong>da</strong> mulher no seringal. Sobre a constância <strong>do</strong> primeiro aspecto,<br />
Mário Ypiranga Monteiro destacou a insistência <strong>do</strong>s autores em transformar o nordestino<br />
no que denomina “arquétipo <strong>do</strong> patrão seringalista mau e ganancioso, analfabeto e<br />
bronco.” 1<br />
É preciso distinguir, to<strong>da</strong>via, o papel tirânico <strong>do</strong> seringalista reitera<strong>do</strong> na ficção e a<br />
presença <strong>do</strong> explora<strong>do</strong>r como elemento verossímil no contexto em que se desenvolveu o<br />
<strong>ciclo</strong> econômico de exploração <strong>do</strong> látex. Tornamos a lembrar que a existência <strong>do</strong><br />
seringalista como explora<strong>do</strong>r origina-se em virtude <strong>da</strong> estrutura implanta<strong>da</strong> nos seringais,<br />
na qual ele constitui o elemento detentor <strong>do</strong>s meios de produção que efetivamente explora a<br />
riqueza natural através <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> extrator.<br />
De mo<strong>do</strong> geral, a ficção sobre o <strong>ciclo</strong> hipertrofiou a presença <strong>do</strong> explora<strong>do</strong>r,<br />
forjan<strong>do</strong> um tipo com características que muitas vezes excediam as que a reali<strong>da</strong>de<br />
oferecia. A abor<strong>da</strong>gem sobre o <strong>ciclo</strong> limitou-se a forjar esse decalque <strong>do</strong> explora<strong>do</strong>r,<br />
apresentan<strong>do</strong> pouca variação.<br />
A diversificação que a partir desse capítulo apontaremos na abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong>s obras<br />
ficcionais tem como base o aprofun<strong>da</strong>mento e a renovação <strong>da</strong> temática e <strong>da</strong> estrutura<br />
narrativa. Antes, porém, de nos determos nas três obras sobre as quais empreenderemos a<br />
1 Critican<strong>do</strong> a pecha <strong>do</strong> mau seringalista reitera<strong>da</strong> pelos ficcionistas, o autor impreca contra essa limitação,<br />
observan<strong>do</strong> que ela “cria uma sensação de vagui<strong>da</strong>de, de sensaboria, de <strong>ciclo</strong> vicioso, de lugar-comum na<br />
sociologia <strong>do</strong>s seringais [...]” (Fatos <strong>da</strong> literatura amazonense, p. 79).<br />
60
análise – A selva, Beiradão e O amante <strong>da</strong>s amazonas – é necessário mencionar obras que<br />
compõem o <strong>ciclo</strong> de <strong>ficções</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> cujo conteú<strong>do</strong> e cuja estrutura narrativa<br />
apresentam alguma diversificação na abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong> tema.<br />
O perfil quase unânime <strong>do</strong> seringalista cruel sofre uma alteração em Dos ditos<br />
passa<strong>do</strong>s nos acerca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Cassianã, romance de Paulo Jacob, publica<strong>do</strong> em 1969.<br />
Anastácio Trajano, a personagem seringalista, foge em mais de um ponto ao tipo<br />
inescrupuloso, determina<strong>do</strong> em outras obras, pois cumpre as obrigações patronais, inclusive<br />
o pagamento <strong>do</strong> sal<strong>do</strong> aos seringueiros, não os submete aos castigos físicos usuais e não se<br />
nega a ajudá-los quan<strong>do</strong> necessitam de seus favores. O romancista não deixa, to<strong>da</strong>via, de<br />
expor o caráter <strong>do</strong> seringalista perverso em outra personagem <strong>do</strong> romance, Macário Gomes,<br />
antítese de Anastácio Trajano. Macário , através de sua ín<strong>do</strong>le sórdi<strong>da</strong>, é que, na ver<strong>da</strong>de,<br />
<strong>do</strong>mina a ação <strong>da</strong> narrativa <strong>da</strong> metade até o final. O romance não promove uma oposição<br />
dura<strong>do</strong>ura entre as personagens que representam o bom e o mau seringalista. Sain<strong>do</strong><br />
Anastácio Trajano de cena, o vil Macário Gomes pre<strong>do</strong>mina, à semelhança <strong>do</strong>s tipos<br />
característicos de outras obras. Em virtude disso, a presença no romance <strong>do</strong> seringalista que<br />
foge ao tipo corriqueiro não leva a uma completa diversificação, apaga-se como se tivesse<br />
apenas o objetivo de apresentar um exemplo de bom seringalista. Explicita-se que o<br />
romancista não tencionava levar a cabo uma luta <strong>do</strong> bem contra o mal, o desaparecimento<br />
<strong>da</strong> personagem Anastácio Trajano não possibilita que essa luta seja o desfecho <strong>do</strong> romance.<br />
O fim <strong>do</strong> seringalista mau é sela<strong>do</strong> por seus próprios capangas, que se cansam de seus atos<br />
perversos e o assassinam.<br />
É também numa outra obra de Paulo Jacob, O gaiola tirante rumo ao rio <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong> que a abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> se afasta <strong>do</strong> usual binômio margem/centro para se<br />
localizar inteiramente a bor<strong>do</strong> de um barco, o gaiola “Rio Curuçá”. Aí se movem os tipos<br />
peculiares ao tema, sen<strong>do</strong> que a personagem <strong>do</strong> coman<strong>da</strong>nte <strong>do</strong> barco, secundária em outras<br />
obras, aparece com maior destaque. Não constituin<strong>do</strong> necessariamente uma obra que<br />
apresente aprofun<strong>da</strong>mento <strong>do</strong> tema, é uma demonstração de criativi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> romancista que<br />
cria uma imagem <strong>do</strong> gaiola representan<strong>do</strong> o próprio <strong>ciclo</strong> e faz coincidir a ruína e o<br />
desmantelamento <strong>do</strong> barco com o declínio <strong>da</strong> exploração <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> amazônica.<br />
Antes <strong>da</strong>s obras de Paulo Jacob, o romance Terra de ninguém, publica<strong>do</strong> em 1934<br />
por Francisco Galvão, trouxe algumas inovações, apesar de ain<strong>da</strong> não se registrar um<br />
61
número expressivo de obras em que fosse possível identificar uma constância de<br />
abor<strong>da</strong>gem. Já haviam, porém, si<strong>do</strong> publica<strong>do</strong>s O paroara (1899), Inferno verde (1908),<br />
Deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s (1921) e A selva (1930).<br />
Primeiramente, cabe destacar a contenção narrativa <strong>do</strong> romance que, divergin<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
obras que o antecederam, não se derrama em descrições, nem se excede no preciosismo <strong>do</strong>s<br />
vocábulos ou no rebuscamento <strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s. Essa contenção revela que o autor buscava<br />
inovar em sua narrativa, atestan<strong>do</strong> sua filiação ao ideário modernista. 2 Márcio Souza, no<br />
comentário sucinto que fez sobre a obra, tratou-a como uma “ver<strong>da</strong>deira floração estranha<br />
no interior de uma ficção comporta<strong>da</strong>” 3 e apontou a sua inconsistência pela<br />
inverossimilhança ideológica. Djalma Batista, no ensaio “Letras <strong>da</strong> Amazônia”, 4 publica<strong>do</strong><br />
em 1938, já apontara o livro como inverossímil sem maiores comentários. Para Souza, a<br />
falta de verossimilhança consiste em personagens membros de uma classe abasta<strong>da</strong><br />
defenderem ideais contrários a essa classe. Nessa observação, o autor talvez não leve em<br />
conta que não é totalmente improvável um membro de uma classe abasta<strong>da</strong> se indignar com<br />
as injustiças sociais promovi<strong>da</strong>s por essa classe. Acreditamos que a inverossimilhança em<br />
Terra de ninguém resi<strong>da</strong> mais justamente em outro ponto. O de o autor tentar produzir um<br />
romance de tese sem o devi<strong>do</strong> adensamento. Buscan<strong>do</strong> veicular idéias feministas e<br />
socialistas através de suas personagens, o romance soçobra por carência de<br />
desenvolvimento <strong>da</strong> matéria romanesca e de consistência <strong>da</strong>s personagens. Nadesca, uma<br />
<strong>da</strong>s protagonistas, é incoerente não por ser membro de uma classe abasta<strong>da</strong> e ter ideais de<br />
justiça social, mas porque se mantém usufruin<strong>do</strong> <strong>da</strong>s benesses que o pai lhe oferece<br />
praticamente sem conflito até o final <strong>do</strong> romance, quan<strong>do</strong> enfim assume uma atitude de<br />
revolta. Até então, ela, que propala idéias socialistas, comporta-se como uma turista<br />
passean<strong>do</strong> pelo mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal, notan<strong>do</strong> seus problemas sem se envolver. Manifesta<br />
querer conhecer a forma simples de vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s seringueiros, suas dificul<strong>da</strong>des, manten<strong>do</strong>-se<br />
na posição de abastança. Não há, no romance, ver<strong>da</strong>deiro conflito de Nadesca que a revele<br />
como uma personagem complexa. Feitas essas considerações, não se pode negar ao<br />
2 Francisco Galvão levantou no seu “Manifesto <strong>da</strong> beleza”, publica<strong>do</strong> na revista Belém Nova, em 1923, a<br />
bandeira de uma arte nova, sem compromisso com o passadismo, livre <strong>da</strong> imitação <strong>da</strong>s tendências européias,<br />
uma arte renova<strong>da</strong>. No entanto, era ele próprio um ano antes dessa publicação um praticante dessa arte que<br />
passou a repudiar e atribuir aos “bufarinheiros <strong>do</strong> ofício.”<br />
3 Márcio SOUZA, A expressão amazonense: <strong>do</strong> colonialismo ao neo-colonialismo, p. 224.<br />
4 Djalma BATISTA, Letras <strong>da</strong> Amazônia In: Amazônia: Cultura e socie<strong>da</strong>de, p. 32<br />
62
omance de Galvão a tentativa inusita<strong>da</strong> de trazer a mulher para a cena central <strong>da</strong> narrativa<br />
<strong>do</strong> seringal na qual ela sempre figura como um objeto de disputa parcamente delinea<strong>do</strong>.<br />
Terra de ninguém, sen<strong>do</strong> um romance publica<strong>do</strong> entre as déca<strong>da</strong>s de 1930 e 1940, traz a<br />
marca <strong>do</strong> idealismo revolucionário de um perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> história brasileira. 5 O subtítulo <strong>do</strong><br />
romance – romance social <strong>do</strong> Amazonas – e o seu conteú<strong>do</strong>, que inclui o desfecho com<br />
uma revolta <strong>do</strong>s seringueiros, levaram à consideração de que ele seria pioneiro na criação<br />
de uma prosa amazonense de cunho social. Consideração que não é de fato justa, se se levar<br />
em conta que em Inferno verde, obra de Alberto Rangel publica<strong>da</strong> em 1908, a temática<br />
social já é trata<strong>da</strong> no conto “Obstinação” que enfoca a revolta interioriza<strong>da</strong> de um<br />
personagem caboclo o qual pratica o suicídio enterran<strong>do</strong>-se vivo na terra que lhe é toma<strong>da</strong><br />
por um latifundiário, descrito como um apuiseiro social. 6<br />
A utopia de fun<strong>da</strong>r uma socie<strong>da</strong>de mais justa alimenta<strong>da</strong> nas déca<strong>da</strong>s de 1930 e<br />
1940 sob o influxo <strong>da</strong>s idéias socialistas aparece delinea<strong>da</strong> em Terra de ninguém e em<br />
outras obras <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. Amazônia que ninguém sabe, romance 7 de Abguar Bastos<br />
publica<strong>do</strong> em 1932 e depois rebatiza<strong>do</strong> na segun<strong>da</strong> edição, em 1934, de Terra de Icamiaba,<br />
projeta na personagem Bepe um herói socialista amazônico. Bepe sintetiza a busca de um<br />
líder nacional autêntico. A criação de uma nova arte nacional através <strong>do</strong> repúdio à velha<br />
arte <strong>da</strong> cópia <strong>do</strong> modelo europeu que Francisco Galvão propõe, no “Manifesto <strong>da</strong> beleza”, é<br />
igualmente encampa<strong>da</strong> por Bastos em passagem que a narrativa de Terra de Icamiaba dá<br />
lugar ao manifesto 8 . Apesar <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong>des nas concepções estéticas entre Abguar Bastos e<br />
Francisco Galvão e de suas obras terem si<strong>do</strong> escritas em perío<strong>do</strong>s próximos, assemelhan<strong>do</strong>-<br />
se até no paralelismo <strong>do</strong>s títulos, o primeiro escreve uma obra diversa <strong>da</strong> temática usual <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong>. Ain<strong>da</strong> que o narra<strong>do</strong>r profira críticas diretas às falhas <strong>do</strong> sistema extrativista <strong>da</strong><br />
5<br />
Lúcia Lippi Oliveira assim comenta sobre a contribuição desse perío<strong>do</strong>: “Os anos 30 são, sobremaneira,<br />
fecun<strong>do</strong>s. Abrem amplas possibili<strong>da</strong>des para o debate de idéias e propostas, assim como permitem a<br />
implementação de experiências políticas inéditas na vi<strong>da</strong> brasileira [...]” (O romance e o pensamento político<br />
nos anos 30 In: PORTELLA et alii., O romance de 30 no Nordeste, p. 144).<br />
6<br />
Alberto RANGEL, “Obstinação” In: Inferno verde, p. 181-207.<br />
7<br />
Nuno Vieira, que escreveu em 1932 um posfácio para a primeira edição <strong>da</strong> obra, considera-a não um<br />
romance, mas uma alegoria.<br />
8<br />
Destacamos, a propósito, alguns trechos: “Brasil <strong>do</strong>s copistas, Brasil rococó, claudicante, impudico e meloso.<br />
Brasil <strong>do</strong> avesso, que a tristeza <strong>do</strong> luso estragou. Brasil sentimental, que gastou nos sambas <strong>da</strong> prosa, to<strong>do</strong> o<br />
dinheiro <strong>da</strong> família. Brasil incapaz de pagar o inglês e de fazer ditadura. Este não presta. O outro, sim. É que é<br />
o bom e o indivisível. O moderno. O que é ingênuo para simplificar-se. O que transforma a riqueza, o amor e<br />
a saúde, em reservas, para socorrer-se e administrar-se, por si e para si.” (Abguar BASTOS, Terra de<br />
Icamiaba, p. 125).<br />
63
orracha, não se detém na pintura <strong>do</strong> seringal, de seus tipos e de seus conflitos.<br />
Diferentemente de outras obras, esta não realiza a estrutura convencional <strong>do</strong> romance<br />
realista, sua construção aproxima-se <strong>do</strong> discurso poético. Sem um desenvolvimento preciso<br />
de enre<strong>do</strong>, atrai mais pelas imagens <strong>do</strong> que por uma trama. 9<br />
Neste trabalho, optamos por uma análise detalha<strong>da</strong> <strong>da</strong>s obras A selva, Beiradão e O<br />
amante <strong>da</strong>s amazonas por serem essas três obras as mais representativas <strong>do</strong><br />
aprofun<strong>da</strong>mento e diversificação <strong>do</strong> tema <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” dentro de uma extensa<br />
trajetória ficcional. Para efeito de estu<strong>do</strong>, dividimos essa trajetória em três fases. A primeira<br />
compreenden<strong>do</strong> as publicações de O paroara, em 1899, até A selva, em 1930; a segun<strong>da</strong>, a<br />
partir <strong>da</strong> publicação de Terra de Icamiaba, em 1934, até Coronel de barranco, em 1970; e<br />
a terceira, a partir <strong>da</strong> publicação de O amante <strong>da</strong>s amazonas, em 1992. Nosso critério de<br />
divisão dessas fases orienta-se não apenas por uma periodici<strong>da</strong>de temporal. Consideramos o<br />
conteú<strong>do</strong> <strong>da</strong>s obras e a sua forma de abor<strong>da</strong>gem. Na primeira fase, o tema é abor<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
dentro de uma seqüência epigônica desencadea<strong>da</strong> por Euclides <strong>da</strong> Cunha com À margem <strong>da</strong><br />
história, obra em que denuncia a espoliação sofri<strong>da</strong> pelo seringueiro. Apesar de ter si<strong>do</strong><br />
publica<strong>da</strong> em 1909, sen<strong>do</strong>, portanto, posterior a Inferno verde (1908), de Alberto Rangel, é<br />
possível perceber a identificação de estilo e de idéias entre os autores e considerar Rangel<br />
segui<strong>do</strong>r de Cunha. 10<br />
Cunha e Rangel inspiraram, por sua vez, Carlos de Vasconcelos, em Deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
(1921) que copia-lhes a opulência <strong>da</strong> linguagem. Desta tendência epigônica, fica à margem<br />
Ferreira de Castro, autor português que abor<strong>do</strong>u o tema motiva<strong>do</strong> por <strong>do</strong>cumentar sua<br />
própria experiência no seringal.<br />
As obras <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> fase, ao contrário <strong>da</strong>s <strong>da</strong> primeira, não se delineiam pela<br />
continui<strong>da</strong>de de um estilo. Mesmo algumas delas possuin<strong>do</strong> uma <strong>do</strong>se de pensamento<br />
9 As descrições primam por criar um senti<strong>do</strong> poético: “As árvores estão com febre e deixam cair suas flores<br />
faiscantes sobre o chão recama<strong>do</strong> de sombras”(Ibid., p. 99). “As flores amarelas <strong>do</strong> pau d‟arco jogam conféti<br />
no poente.” (Ibid., p. 38).<br />
10 Hélio Viana, em conferência realiza<strong>da</strong> em 1971 no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro por ocasião<br />
<strong>do</strong> centenário de nascimento de Alberto Rangel, defende a originali<strong>da</strong>de de estilo deste autor, alegan<strong>do</strong><br />
principalmente que seus estu<strong>do</strong>s amazônicos foram anteriores aos de Euclides <strong>da</strong> Cunha, uma vez que este foi<br />
à Amazônia, comissiona<strong>do</strong> pelo Ministério <strong>da</strong> Relações Exteriores, em missão de demarcação de limites, em<br />
1905, quan<strong>do</strong> Rangel já ali se encontrava. Na ver<strong>da</strong>de, a aproximação que existe entre as obras desses autores<br />
não se limita à discussão de quem teve precedência na chega<strong>da</strong> à região amazônica, nem na <strong>da</strong>ta de<br />
publicação <strong>da</strong>s obras. Sobre este último fato, basta destacar que À margem <strong>da</strong> história foi publica<strong>da</strong><br />
postumamente. As obras de Cunha e de Rangel aproximam-se porque professam em sintonia o discurso<br />
positivista sobre o meio amazônico.<br />
64
social reforma<strong>do</strong>r, como Terra de Icamiaba, Terra de ninguém, Um punha<strong>do</strong> de vi<strong>da</strong>s,<br />
apresentam autores com estilos diversos. Nessa fase, portanto, as obras representam mais<br />
uma experiência de ca<strong>da</strong> autor <strong>do</strong> que a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> tradição de um estilo. A exceção<br />
ocorre em No circo sem teto <strong>da</strong> Amazônia (1955) que ain<strong>da</strong> traz o descritivismo e a<br />
linguagem carrega<strong>da</strong> à semelhança <strong>do</strong>s estilos de Euclides <strong>da</strong> Cunha e de Alberto Rangel.<br />
Incluímos na terceira fase apenas a obra O amante <strong>da</strong>s amazonas, omitin<strong>do</strong> as<br />
abor<strong>da</strong>gens episódicas <strong>do</strong> tema em parte <strong>do</strong>s romances Terra firme e Regime <strong>da</strong>s águas e<br />
nos contos incluí<strong>do</strong>s em O toca<strong>do</strong>r de charamela por entendermos que o romance Coronel<br />
de barranco é um marco que baliza a segun<strong>da</strong> fase e que a abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong> tema nessas obras<br />
posteriores é menos uma continui<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> ficcional <strong>do</strong> que recorrência isola<strong>da</strong>.<br />
Apontamos a terceira fase em O amante <strong>da</strong>s amazonas por essa obra atestar um novo<br />
estágio de abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong> tema <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> em que tanto o tema se renova quanto a estrutura<br />
narrativa sofre uma acentua<strong>da</strong> reorganização.<br />
A selva, Beiradão e O amante <strong>da</strong>s amazonas, abrangen<strong>do</strong> as três fases, expressam<br />
diferenciais de abor<strong>da</strong>gem em ca<strong>da</strong> uma delas. As três obras são representativas de três<br />
percepções sobre o <strong>ciclo</strong>, a <strong>do</strong> escritor estrangeiro, <strong>do</strong> escritor político e <strong>do</strong> escritor<br />
estudioso <strong>da</strong> literatura. Nessas três percepções, um ponto em comum: a experiência, direta e<br />
indireta, <strong>do</strong> seringal. Direta, em Ferreira de Castro e Álvaro Maia, que o conheceram<br />
pessoalmente. Indireta, em Rogel Samuel que o reconstitui pelo caminho <strong>da</strong> memória <strong>do</strong><br />
avô, um rico comerciante <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>. Passamos a analisar as três percepções e os<br />
consecutivos delineamentos que deram às obras.<br />
A SELVA: A VISÃO DE UM IMIGRANTE PORTUGUÊS SOBRE O CICLO DA BORRACHA<br />
Ao escolher a Amazônia como espaço de representação de seu romance, Ferreira de<br />
Castro não o fez como um absentista 11 , baseou-se na própria vivência de quatro anos num<br />
11 Na definição de Mário Ypriranga Monteiro, o absentismo se caracteriza pela falta de vivência que tem o<br />
autor <strong>do</strong> meio que enfoca em sua obra. Dessa forma, ele cria através <strong>do</strong> talento ou <strong>da</strong> imaginação ou basea<strong>do</strong><br />
em conhecimentos que não os <strong>da</strong> experiência direta. O autor absentista pode ser total ou parcial, sen<strong>do</strong> o<br />
último aquele que, apesar de ter esta<strong>do</strong> no meio que retrata, conheceu-o superficialmente. Monteiro chama a<br />
atenção de que o autor absentista também pode criar uma falsa percepção <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Não condena o<br />
trabalho de criação <strong>do</strong> absentista total, mas faz notar “que to<strong>do</strong> aquele que escreve, mesmo tratan<strong>do</strong>-se de<br />
65
seringal localiza<strong>do</strong> no rio Madeira que, coincidentemente com o topônimo <strong>da</strong><strong>do</strong> ao local na<br />
ficção, também se chamava Paraíso. No Pórtico de abertura <strong>do</strong> romance, o autor declara:<br />
“Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática que é a selva amazônica,<br />
pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos <strong>da</strong> minha a<strong>do</strong>lescência e pela coragem<br />
que me deu para o resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> [...]” 12 . A edição comemorativa <strong>do</strong>s vinte e cinco anos de<br />
publicação <strong>da</strong> obra, em 1955, traz em “Pequena história de A selva” uma configuração<br />
maior <strong>do</strong> tom confessional que o romancista dá à criação <strong>do</strong> romance. Nesse texto, que é<br />
uma contribuição ao estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> formação de um escritor, Ferreira de Castro expõe o quanto<br />
o contato e a experiência com a natureza amazônica impressionaram o seu espírito,<br />
impelin<strong>do</strong>-o a transformar em matéria ficcional to<strong>da</strong>s as sensações de um mun<strong>do</strong> que não<br />
conseguia esquecer. Ao mesmo tempo, revela também um temor de registrar essas<br />
sensações e assim revivê-las:<br />
[...] durante muitos anos tive me<strong>do</strong> de revivê-la literariamente. Me<strong>do</strong> de reabrir,<br />
com a pena, as minhas feri<strong>da</strong>s, como os homens lá avivavam, com pequenos<br />
macha<strong>do</strong>s, no mistério <strong>da</strong> grande floresta, as chagas <strong>da</strong>s seringueiras. Um me<strong>do</strong><br />
frio, que ain<strong>da</strong> hoje sinto, quan<strong>do</strong> amigos e até desconheci<strong>do</strong>s me incitam a<br />
escrever memórias, uma larga confissão, uma existência exposta ao sol, que eu<br />
próprio julgo seria útil às juventudes que se encontrassem em situações<br />
idênticas às que vivi. 13<br />
Não obstante a recriação literária <strong>do</strong> ambiente amazônico significasse para o<br />
romancista rememorar uma experiência traumática <strong>do</strong> seu segun<strong>do</strong> decênio de vi<strong>da</strong>, ele<br />
tinha convicção de que essa recriação só poderia se realizar a partir de um compromisso de<br />
fideli<strong>da</strong>de:<br />
ficção, arca com a responsabili<strong>da</strong>de de transmitir informações, de ilustrar, ou de recriar esta<strong>do</strong>s sociais, de<br />
manter-se numa posição de respeito à fideli<strong>da</strong>de de um compromisso não escrito mas aberto às sanções de<br />
fato (e até de direito, não raro), compromisso esse que se espera contenha apreciável volume de interesse<br />
honesto em permutar com o leitor, usuário que espera por sua vez encontrar na obra-de-arte um motivo<br />
estético ou algo mais que isso, componente satisfatória , uma terapêutica [...]” (Fatos <strong>da</strong> literatura<br />
amazonense, p. 65).<br />
12 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 21.<br />
13 Ibid., A selva, p. 26.<br />
66
As selvas, fechassem elas o seu mistério nas vastidões sul-americanas ou<br />
verdejassem, mais permeáveis à luz solar, na Ásia, na África, na Oceania,<br />
representavam desde há muito, um assunto macula<strong>do</strong> literariamente. Macula<strong>do</strong><br />
por milhentos romances de aventuras, onde a imaginação <strong>do</strong>s seus autores, para<br />
lisonjear os leitores fáceis, se permitira to<strong>da</strong>s as inverossimilhanças, to<strong>da</strong>s as<br />
incongruências.<br />
Eu pretendera fugir à regra. Pretendera realizar um livro de argumento muito<br />
simples, tão possível, tão natural que não se sentisse mesmo o argumento. Um<br />
livro monótono porventura, se não pudesse <strong>da</strong>r-lhe colori<strong>do</strong> e vibração, mas<br />
honesto, onde o próprio cenário em vez de nos impelir para o sonho<br />
aventuroso, nos induzisse ao exame e, mais <strong>do</strong> que um grande pano de fun<strong>do</strong>,<br />
fosse uma personagem de primeiro plano, viva e contraditória ao mesmo tempo<br />
admirável e temível, como são as de carne, sangue e osso. A selva, os homens<br />
que nela viviam, o seu drama interdependente, uma plena autentici<strong>da</strong>de e<br />
nenhum efeito fácil – era essa minha ambição. 14<br />
A verossimilhança que procurou manter em relação a um mun<strong>do</strong> que fez parte de<br />
sua experiência de vi<strong>da</strong> deu a Ferreira de Castro a possibili<strong>da</strong>de de ser defendi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong><br />
foi acusa<strong>do</strong> de detratar a reali<strong>da</strong>de amazônica. 15<br />
O cosmopolitismo de Ferreira de Castro, as viagens que empreendeu a começar pela<br />
saí<strong>da</strong> de Portugal ain<strong>da</strong> menino, a chega<strong>da</strong> a Belém <strong>do</strong> Pará e depois a parti<strong>da</strong> para o rio<br />
Madeira, a viagem de volta ao mun<strong>do</strong> na i<strong>da</strong>de adulta deram-lhe a possibili<strong>da</strong>de de<br />
conhecer diferentes países. Daí a sua obra apresentar expressões culturais tão diversas: <strong>do</strong><br />
Brasil, e nele é preciso abrir um parêntese para a Amazônia, <strong>da</strong> Espanha, <strong>da</strong> França e de<br />
Portugal, sua terra de nascimento. Podemos deduzir que a experiência de viajante foi<br />
fun<strong>da</strong>mental na construção <strong>da</strong> obra <strong>do</strong> romancista. Jaime Brasil, biógrafo <strong>do</strong> romancista,<br />
enfatiza que “[...] sem a i<strong>da</strong> ao Brasil, na i<strong>da</strong>de e nas circunstâncias em que o fez, Ferreira<br />
de Castro, embora viesse a ser um grande escritor, não teria escrito A selva [...].” 16 Para<br />
14 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 29-30.<br />
15 Em “Um romance amazônico”, Humberto de Campos aponta a originali<strong>da</strong>de de A selva justamente pelo<br />
fato de o romance ter si<strong>do</strong> escrito por um autor que viveu no seringal. Para Campos, somente a vivência neste<br />
poderia resultar na sua justa expressão. Comprova a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> escrita de Ferreira de Castro e absolve-o<br />
<strong>da</strong>s críticas de ter si<strong>do</strong> autor de inver<strong>da</strong>des, recorren<strong>do</strong> a exemplos presencia<strong>do</strong>s por ele próprio como gerente<br />
de seringal, demonstran<strong>do</strong> que Ferreira de Castro não expressou exageros em sua obra (1962, p. 427-467).<br />
16 Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem, p. 21.<br />
67
Magalhães Júnior, A selva é um romance brasileiro pelo seu tema. 17 Ferreira de Castro é um<br />
autor que desafia as fronteiras literárias e enseja a discussão que envolve nacionali<strong>da</strong>de e<br />
tema na literatura. 18<br />
A nomeação <strong>do</strong> romance como amazônico parte <strong>do</strong> fato de que o ambiente em que<br />
se passa e a sua temática estão volta<strong>do</strong>s para essa região, mas um outro fato que também<br />
deve ser leva<strong>do</strong> em consideração é que esse romance tem um cria<strong>do</strong>r e um protagonista de<br />
nacionali<strong>da</strong>de portuguesa. Nesse ponto, a experiência de vi<strong>da</strong> e a criação estão liga<strong>da</strong>s. Se,<br />
por um la<strong>do</strong>, não há impossibili<strong>da</strong>de de um romancista escrever um livro sobre um mun<strong>do</strong><br />
que não conheceu pessoalmente, por outro, há também uma necessi<strong>da</strong>de que o compele a<br />
escrever sobre um mun<strong>do</strong> que faz parte de sua experiência. Ao criar para o romance um<br />
protagonista português, a intenção <strong>do</strong> autor, portanto, era enfocar o ambiente amazônico<br />
pelo prisma de um imigrante. Convém destacar que o romance é <strong>do</strong>cumental no senti<strong>do</strong> de<br />
que o autor registrou aquilo que de fato observou , <strong>da</strong>n<strong>do</strong> azo à criação <strong>do</strong> romance, não é,<br />
porém, um romance autobiográfico, pois contém mais distanciamento <strong>do</strong> que aproximação<br />
entre autor e protagonista. Um comentário <strong>do</strong> autor é esclarece<strong>do</strong>r a esse respeito: “Se é<br />
ver<strong>da</strong>de que nesse romance a intriga tantas vezes se afasta <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong>, não é menos<br />
ver<strong>da</strong>deiro também que a ficção se tece sobre um fun<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> dramaticamente pelo seu<br />
autor[...]” 19 . Como Alberto, o protagonista, Ferreira de Castro foi envia<strong>do</strong> para o seringal.<br />
As condições que motivaram as viagens de ambos coincidem em alguns pontos, mas<br />
também se diferenciam. Foram envia<strong>do</strong>s ao seringal porque tornaram-se dispendiosos,<br />
Alberto para o tio, Ferreira de Castro para o seu protetor. Alberto era um homem com<br />
convicções forma<strong>da</strong>s, participara em Portugal <strong>da</strong> revolta monarquista. Ferreira de Castro,<br />
um menino pobre com intenção de escrever textos literários. Quan<strong>do</strong> se trata <strong>da</strong><br />
17 MAGALHÃES JÚNIOR Apud Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem, p. 95.<br />
18 Abor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> os problemas que envolvem a nacionali<strong>da</strong>de na literatura brasileira, Lúcia Miguel Pereira<br />
questiona a sua existência, notan<strong>do</strong> que as reali<strong>da</strong>des brasileiras não podem apresentar uma feição<br />
homogênea: “[...] a brasili<strong>da</strong>de totalitária é um mito, uma len<strong>da</strong>, um tabu a que se apega a nossa vai<strong>da</strong>de. Não<br />
existe, nem poderia existir, ao menos no senti<strong>do</strong> em que o queremos tomar, de feitio moral especificamente<br />
brasileiro, igualan<strong>do</strong> os homens <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul, e os diferencian<strong>do</strong> <strong>do</strong>s outros povos [...]”<br />
(Regionalismo e espírito Nacional In: A leitora e seus personagens: seleta de textos publica<strong>do</strong>s em periódicos<br />
(1931-1943) e em livros, p. 39). Quanto a Ferreira de Castro ser um escritor estrangeiro cujo romance trata<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de amazônica, a autora faz a seguinte apreciação: “[...] É mesmo de notar que um <strong>do</strong>s grandes<br />
romances sobre o Brasil (ou sobre a Amazônia?) seja de um estrangeiro. Ao fato acidental de ter nasci<strong>do</strong> em<br />
Portugal o Sr. Ferreira de Castro devemos não se ter o „espírito brasileiro‟ encarna<strong>do</strong> num seringueiro.” (Ibid,<br />
p. 39).<br />
68
personali<strong>da</strong>de, nota-se uma franca oposição. Ferreira de Castro foi um humanista que não<br />
se filiou a facções políticas 20 Na ficção, Alberto é um monarquista que como tal defende<br />
os privilégios dessa classe, despreza os humildes. Na terceira classe <strong>do</strong> barco onde vem a<br />
se encontrar pelas contingências <strong>da</strong> sorte a caminho <strong>do</strong> seringal, não quer se misturar aos<br />
nordestinos porque considera a natureza destes inferior. Despreza a democracia e a<br />
igual<strong>da</strong>de humana. Após um longo caminho de humilhações, sofrimento e resignação é que<br />
Alberto passa a ver a vi<strong>da</strong> e os seres humanos de mo<strong>do</strong> diferente, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong>, no final <strong>da</strong><br />
narrativa, os princípios monarquistas. A evolução por que passa o protagonista foi preferi<strong>da</strong><br />
pelo romancista que declara ter aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> os planos de criar uma personagem estática:<br />
“[...] A personagem assim apresenta<strong>da</strong> tinha idéias já forma<strong>da</strong>s sobre a injusta organização<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em que vivia e, naturalmente, veria o mun<strong>do</strong> em que ia viver com uma atitude<br />
moral preconcebi<strong>da</strong>, com um espírito apenas de confirmação, o que diminuiria, para quem<br />
não aceitasse as cores <strong>do</strong> seu horizonte, o sentimento de ver<strong>da</strong>de naquilo mesmo que era<br />
ver<strong>da</strong>deiro. Preferi, portanto, uma figura evolutiva [...] 21 .<br />
O enre<strong>do</strong> de A selva começa focalizan<strong>do</strong> o imigrante português Alberto,<br />
desemprega<strong>do</strong>, viven<strong>do</strong> às custas <strong>do</strong> tio em Belém. A situação que envolve o desconforto<br />
<strong>do</strong> protagonista por saber-se dispendioso e incômo<strong>do</strong> não demora a se alterar, pois o tio<br />
logo lhe expõe a oportuni<strong>da</strong>de que se apresenta de ele partir para o seringal em busca de<br />
trabalho. Sem condições de recusar a quase imposição, Alberto se resigna, saben<strong>do</strong> de<br />
antemão que se punha numa situação de risco, destacan<strong>do</strong>-se para uma região desconheci<strong>da</strong><br />
e perigosa. O tio, cujo único objetivo é convencê-lo, alardeia uma chance promissora de<br />
fortuna:<br />
19<br />
José Maria FERREIRA DE CASTRO. Pequena história de A selva. In: José Maria FERREIRA DE<br />
CASTRO. A selva, 1972, p. 27.<br />
20<br />
Jaime Brasil faz notar que o romancista, enquanto homem independente, “detesta a política e as suas baixas<br />
manobras, mas ama a liber<strong>da</strong>de com fervor religioso.” (Ferreira de Castro: a obra e o homem, p. 52). A<br />
feição humanista <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de de Ferreira de Castro é ressalta<strong>da</strong> na mensagem que lhe é entregue em<br />
Portugal por vários intelectuais em 20 de junho de 1953, subscrita por milhares de ci<strong>da</strong>dãos portugueses: “[...]<br />
To<strong>do</strong>s aqueles que conhecem Ferreira de Castro sabem que a pie<strong>da</strong>de humana, que vibra em ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s<br />
suas páginas, não é um simples processo literário e muito menos um artifício <strong>do</strong> seu talento de escritor; esse<br />
mesmo amor e compreensão vivem no romancista, são a sua força, a sua riqueza e tormento, o traço mais<br />
fun<strong>do</strong> na sua personali<strong>da</strong>de, são ele mesmo debruça<strong>do</strong> sobre a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Dificilmente se encontrará outro<br />
escritor cuja obra seja, tão fielmente, a expressão <strong>da</strong> sua própria alma. (Apud Jaime BRASIL, Ferreira de<br />
Castro: a obra e o homem, p. 76).<br />
21<br />
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 30.<br />
69
- Para o Madeira, disse o tio?<br />
- É o seringal chama-se o Paraíso.<br />
- Rio Madeira... Rio Madeira... Não é lá que há muitas febres?<br />
- No Madeira...<br />
- É; em to<strong>do</strong>s os seringais há muitas febres... - interrompeu-o, finalmente,<br />
Alberto.<br />
[..]<br />
- Que é que eu iria fazer lá?<br />
- O que iria fazer?... Não sei. Cortar seringa, talvez não, porque é duro. Mas os<br />
seringais têm sempre um escritório, um armazém... Vamos a ver. Vamos a ver<br />
o que se arranja. E não te aborreças, pois aquilo, para quem tem saúde e juízo,<br />
são terras onde se enriquece em pouco tempo [...]. 22<br />
As considerações <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r sobre o futuro que se afigura temerário para Alberto<br />
expõem o círculo que se constitui em torno <strong>da</strong> extração <strong>do</strong> látex: emprega<strong>do</strong>s de comércio,<br />
retirantes, oportunistas, buscan<strong>do</strong> uma chance de fazer fortuna. Uma passagem <strong>do</strong> romance<br />
ilustra como se dá a riqueza de alguns e a miséria de outros:<br />
Fora assim que o tio enriquecera e tinha já duas quintas em Portugal; fora assim<br />
que pobretões sem eira nem beira se transformaram, dum instante para o outro,<br />
em <strong>do</strong>nos de „casas avia<strong>do</strong>ras‟ tão poderosas que sustentavam no dé<strong>da</strong>lo fluvial<br />
grande frota de „gaiolas‟. Aos que desbastavam a saúde e a vi<strong>da</strong> no centro <strong>da</strong><br />
floresta, vendiam por cinqüenta aquilo que custava dez e compravam-lhes por<br />
dez o que valia cinqüenta. E quan<strong>do</strong> o ingênuo conseguia triunfar de to<strong>da</strong> essa<br />
espoliação e descia, sorridente e perturba<strong>do</strong> pelo contacto com o mun<strong>do</strong><br />
urbano, a caminho <strong>da</strong> terra nativa, nos confins <strong>do</strong> maranhão ou <strong>do</strong> Ceará, lá<br />
estava Mace<strong>do</strong> com os colegas e as suas hospe<strong>da</strong>rias, que o haviam explora<strong>do</strong><br />
na subi<strong>da</strong> e agora o exploravam muito mais ain<strong>da</strong>, com uma intérmina série de<br />
ardis, que ia <strong>da</strong> „vermelinha‟ onde se começava por ganhar muito e se acabava<br />
por perder tu<strong>do</strong>, até, o latrocínio, executa<strong>do</strong> sob a proteção <strong>do</strong> álcool. 23<br />
22 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 39-40.<br />
23 Ibid. p. 41-2.<br />
70
Alberto embarca rumo ao seringal e, ao se encontrar na terceira classe <strong>do</strong> “Justo<br />
Chermont”, depara-se com uma reali<strong>da</strong>de que custa a aceitar. O convés úmi<strong>do</strong> e<br />
escorregadio exala mau cheiro; os seres humanos que ali se encontram aglomeram-se numa<br />
promiscui<strong>da</strong>de de animais. Ele se põe intranqüilo com a situação mas tem esperanças de<br />
receber tratamento distinto. Sabe-se posto ao nível <strong>do</strong>s outros pelas contingências mas<br />
embasa<strong>do</strong> em seus princípios monarquistas, acredita-se moralmente superior:<br />
Magoava-o a facili<strong>da</strong>de com que outros recruta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>rmiam tranqüilamente um<br />
sono que era, para o egoísmo dele, quase uma afronta.<br />
E sorria, depreciativamente, ao pensar no apostola<strong>do</strong> <strong>da</strong> democracia, nos<br />
defensores <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de humana que ele combatera e o haviam atira<strong>do</strong> para o<br />
exílio. „Retóricos, retóricos perniciosos! Queria vê-los ali, ao seu la<strong>do</strong>, para<br />
lhes perguntar se era com aquela humani<strong>da</strong>de primária que pretendiam<br />
restaurar o Mun<strong>do</strong> [...] Ele e os seus, declara<strong>do</strong>s inimigos <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de,<br />
defensores de elites, eram bem mais amigos dessa pobre gente que os outros, os<br />
que a ludibriavam com a idéia duma fraterni<strong>da</strong>de e dum bem-estar que não lhe<br />
<strong>da</strong>vam nem lhe podiam <strong>da</strong>r. Só as seleções e as castas, com direitos<br />
hereditários, tesouros <strong>da</strong>s famílias privilegia<strong>da</strong>s, longamente evoluí<strong>da</strong>s,<br />
poderiam levar o povo a um mais alto estádio. Mas tu<strong>do</strong> isso só se faria com<br />
autori<strong>da</strong>de inquebrantável – um rei e os seus ministros a man<strong>da</strong>rem e to<strong>do</strong>s os<br />
demais a obedecer [...] 24<br />
As esperanças de Alberto se desvanecem, não lhe é <strong>da</strong><strong>do</strong> tratamento especial a<br />
bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> vapor, sua última ação de recusa a aceitar o esta<strong>do</strong> de subserviência igual ao <strong>do</strong>s<br />
outros recruta<strong>do</strong>s é contrariar as ordens de Balbino, o agencia<strong>do</strong>r, desembarcan<strong>do</strong> em<br />
Manaus e recorren<strong>do</strong> a uma tentativa de escapar ao seringal. Assim, resolve fazer um<br />
pedi<strong>do</strong> de emprego a um rico comerciante, mas o emprego é-lhe nega<strong>do</strong> e a sua humilhação<br />
se acentua com a constatação de que o distinto comen<strong>da</strong><strong>do</strong>r a quem recorre, um conterrâneo<br />
no qual supunha encontrar soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, haja vista também ter passa<strong>do</strong> por dificul<strong>da</strong>de<br />
antes de enriquecer, trata-o como um pedinte, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe uma esmola a fim de se livrar de<br />
sua presença incômo<strong>da</strong>.<br />
24 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 54-55<br />
71
O aprendiza<strong>do</strong> de Alberto rumo à mu<strong>da</strong>nça de suas convicções políticas terá<br />
prosseguimento no seringal, onde, como brabo, primeiramente será submeti<strong>do</strong> ao trabalho<br />
árduo de extração <strong>do</strong> látex, trabalho que não suportaria não fosse a aju<strong>da</strong> de um seringueiro<br />
experiente, Firmino, que torna menos penosa a sua li<strong>da</strong> diária nas estra<strong>da</strong>s. Firmino passa a<br />
ser mais que um seringueiro manso, guia de um seringueiro brabo, demonstra afeição de<br />
amigo por Alberto, poupan<strong>do</strong>-o ou defenden<strong>do</strong>-o <strong>do</strong>s ataques de Balbino e Caetano, os<br />
fiscais <strong>do</strong> trabalho de extração que não acreditam na capaci<strong>da</strong>de de Alberto, por ser<br />
estrangeiro, e procuram desmoralizá-lo numa competição que travam entre si para ganhar a<br />
confiança e a preferência <strong>do</strong> patrão.<br />
Isola<strong>do</strong> na monotonia <strong>da</strong> selva, oprimi<strong>do</strong> pelo mun<strong>do</strong> verde, resta a Alberto apenas a<br />
certeza de ser impotente para mu<strong>da</strong>r sua situação. A perspectiva <strong>da</strong> sucessão <strong>do</strong>s anos<br />
apresenta-se, então, como uma sentença que ele terá de cumprir tal qual os outros<br />
seringueiros. Um lance de sorte, porém, altera o que lhe parecia irremediável. O emprega<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> barracão que faz o despacho <strong>da</strong>s merca<strong>do</strong>rias é remaneja<strong>do</strong> para o trabalho de<br />
fiscalização <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s e Alberto é chama<strong>do</strong> para substituí-lo. Com isso, o duro<br />
aprendiza<strong>do</strong> interrompe-se. A i<strong>da</strong> para o barracão parece conferir-lhe uma distinção que lhe<br />
era atribuí<strong>da</strong> inclusive pelo amigo Firmino: “ – Eu tenho pena de seu Alberto. O seringal<br />
não é para um homem de sua pele [...]” 25 .<br />
A experiência na estra<strong>da</strong> <strong>do</strong> seringal, a impressão assombrosa que lhe causa a selva,<br />
o perigo <strong>do</strong>s ataques <strong>do</strong>s índios, que o punha sempre em esta<strong>do</strong> de pavor, o trabalho para o<br />
qual não possuía habili<strong>da</strong>de, a humilhação que lhe haviam feito passar os emprega<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
seringal e também o patrão seringalista ao apontá-lo como inepto deram a Alberto uma<br />
nova dimensão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e também <strong>do</strong>s sofrimentos alheios. Ao se despedir de Firmino, a<br />
caminho de seu novo trabalho no barracão, ele já não demonstra a indiferença e o desprezo<br />
pela condição <strong>do</strong> outro que antes considerava de humani<strong>da</strong>de inferior. O sofrimento <strong>do</strong><br />
outro compunge-o:<br />
Alberto estremeceu. Sim, era ver<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>li em diante Firmino seria a única<br />
existência humana na clareira de To<strong>do</strong>s-os-Santos noites e dias a sós consigo,<br />
sepulta<strong>do</strong> na solidão, sem ninguém que o distraísse, sem ninguém partilhan<strong>do</strong> a<br />
25 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 125.<br />
72
mesma vi<strong>da</strong>, os mesmos perigos, sozinho e remoen<strong>do</strong> sempre os mesmos<br />
pensamentos, em condena e persistência de <strong>do</strong>i<strong>do</strong> varri<strong>do</strong>. Teria de falar alto<br />
para ele somente se quisesse certificar-se de que não perdera a voz; e, por<br />
companheira, possuiria apenas a selva inquietante, que se debruçava quase<br />
sobre a barraca, a atestar o seu <strong>do</strong>mínio. A selva e a possibili<strong>da</strong>de de os índios o<br />
surpreenderem isola<strong>do</strong>. 26<br />
Ain<strong>da</strong> restará, mesmo após a dura experiência na estra<strong>da</strong> de corte, parte <strong>do</strong> orgulho<br />
monarquista refleti<strong>do</strong> no desejo de receber tratamento especial, de ser reconheci<strong>do</strong> como<br />
alguém que possui estu<strong>do</strong> e não como um bronco. Por isso, Alberto se sente satisfeito em<br />
aprender o trabalho contábil, mostran<strong>do</strong>-se lépi<strong>do</strong> e diligente ao exercer uma ativi<strong>da</strong>de que<br />
não lhe parece humilhante, mas se indispõe intimamente com o trabalho de lavar e encher<br />
as garrafas de bebi<strong>da</strong>s para o patrão, sob as ordens de Bin<strong>da</strong>, a quem substitui. Ao ser<br />
chama<strong>do</strong> pelo cozinheiro para almoçar na cozinha e perceber que não lhe cabe lugar na<br />
mesa principal, onde comem o patrão seringalista, o guar<strong>da</strong>-livros e a sua esposa, reacende-<br />
lhe o sentimento de revolta por sentir-se desconsidera<strong>do</strong> tal como na terceira classe <strong>do</strong><br />
barco que o levara para ali. Tivera que se contentar com o mesmo tratamento <strong>da</strong><strong>do</strong> aos<br />
retirantes porque a primeira classe lhe era interdita. Agora, corroía-se e perdia a fome ao<br />
pensar no privilégio que também lhe era nega<strong>do</strong>: “A mesa, que adivinhava lá dentro, com<br />
toalha branca, cristais e vinhos, enquanto ele comia na cozinha, ain<strong>da</strong> de mãos engelha<strong>da</strong>s<br />
pela água onde lavava as garrafas, provocava-lhe nova humilhação. 27<br />
A situação de se ver como inferior leva-o a pensar na cria<strong>da</strong> de sua família, em<br />
Portugal, fazen<strong>do</strong>-o refletir no tratamento que a família lhe dispensava como um “ser à<br />
parte”. Dá-se conta de que ele próprio assim a considerava e sente-se incomo<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />
Recobra, porém, o orgulho quan<strong>do</strong> percebe que seu sofrimento e resignação lhe renderam<br />
uma “humil<strong>da</strong>de postiça” que diante <strong>da</strong> digni<strong>da</strong>de recupera<strong>da</strong> não tem razão de ser: “[...] À<br />
medi<strong>da</strong> que crescia no lugar ia regressan<strong>do</strong> a si mesmo, de novo sentin<strong>do</strong>-se merece<strong>do</strong>r de<br />
tu<strong>do</strong> quanto de agradável lhe faziam: <strong>da</strong> deferência <strong>do</strong> senhor Guerreiro, <strong>da</strong> recente<br />
bonomia de Caetano e de Balbino – e de muito mais ain<strong>da</strong>.” 28<br />
26 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 193.<br />
27 Ibid., p. 204.<br />
28 Ibid., p. 247.<br />
73
É também na mu<strong>da</strong>nça para o barracão que Alberto constata a sua fraqueza moral<br />
perante os desejos carnais. Se no centro havia reprova<strong>do</strong> as alternativas <strong>do</strong>s companheiros<br />
Agostinho e Firmino para satisfazer o desejo sexual, consideran<strong>do</strong>-as ignominiosas, no<br />
barracão, à margem, onde parecia estar menos afasta<strong>do</strong> <strong>da</strong> civilização tanto pelas condições<br />
de vi<strong>da</strong>, quanto pela possibili<strong>da</strong>de de um dia tomar um barco para deixar definitivamente o<br />
seringal, sente, para roubar a tranqüili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele pequeno conforto que conquistara, o<br />
clamor sexual assomar incontrolavelmente, toman<strong>do</strong> conta <strong>da</strong> mente e <strong>do</strong> corpo. A esposa<br />
<strong>do</strong> guar<strong>da</strong>-livros, <strong>do</strong>na Yayá, é a principal causa<strong>do</strong>ra de seus delírios lúbricos. A obsessão<br />
de possuí-la leva-o a cogitar a morte <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, mas uma estima que passa a ter por este,<br />
reconhecen<strong>do</strong> o tratamento digno que lhe dá, livra-o de cometer o ato criminoso quan<strong>do</strong><br />
tem a oportuni<strong>da</strong>de de executá-lo durante uma caça<strong>da</strong> <strong>da</strong> qual ambos participam.<br />
Não poden<strong>do</strong> ter <strong>do</strong>na Yayá, Alberto volta-se para a prática que mais considerara<br />
aviltante quan<strong>do</strong> dela tomara conhecimento ain<strong>da</strong> no centro:<br />
Sentin<strong>do</strong>-se ele próprio, com mo<strong>do</strong>s de autômato, dirigiu-se ao alpendre onde<br />
se guar<strong>da</strong>vam os laços. Palpou as cor<strong>da</strong>s na obscuri<strong>da</strong>de, com os de<strong>do</strong>s<br />
escolheu uma, e cá fora ensaiou-a, abrin<strong>do</strong>-a e atiran<strong>do</strong>-a várias vezes para um<br />
quadrúpede imaginário. E de novo se fundiu na noite morna e cúmplice.<br />
Quan<strong>do</strong> voltou, já se havia desvaneci<strong>do</strong> no seu espírito a ígnea imagem de <strong>do</strong>na<br />
Yayá. Mas ele cravava as unhas nas palmas <strong>da</strong>s mãos, salivava constantemente<br />
e falava sozinho como nunca lhe acontecera:<br />
- Bolas! Bolas! Não está certo!<br />
Despiu-se logo que chegou ao quarto, pôs a toalha no ombro e, atravessan<strong>do</strong> o<br />
pequeno quintal, colocou-se ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s barris. Esgotou to<strong>da</strong> a água no banho<br />
longo e persistente mas não conseguiu lavar-se <strong>da</strong> imensa repugnância que<br />
tinha por si mesmo. 29<br />
O arrependimento não impede que ele seja toma<strong>do</strong> novamente pelo impulso de<br />
satisfação, investin<strong>do</strong> contra nhá Vitória, uma <strong>da</strong>s raras mulheres no seringal, que presta o<br />
serviço de lavar sua roupa. A mulher ressente-se de seu ato desrespeitoso, que não lhe<br />
considera sequer a i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong>, e denuncia-o ao guar<strong>da</strong>-livros Guerreiro. Esse vexame<br />
29 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 236-7.<br />
74
cai-lhe como um balde de água fria e dá-lhe força para suportar a abstenção que, devi<strong>do</strong> à<br />
carta <strong>da</strong> mãe, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> notícia <strong>da</strong> anistia aos monarquistas revoltosos, promete ser temporária.<br />
A possibili<strong>da</strong>de de deixar o seringal torna-se viável por fim com a aju<strong>da</strong> em dinheiro que a<br />
mãe lhe remete e com o sal<strong>do</strong> que o patrão considera quita<strong>do</strong> pelo salário de balconista,<br />
abrevian<strong>do</strong> em alguns meses a sua espera. O romance caminha, então, para o seu desfecho,<br />
a trajetória de Alberto, constituí<strong>da</strong> por um processo de evolução de sua personali<strong>da</strong>de e<br />
transformação de seus princípios chega ao fim.<br />
A transformação <strong>da</strong> consciência e a luta contra o instinto são os principais motivos<br />
que perpassam a estadia de Alberto no centro. O processo <strong>da</strong> transformação <strong>da</strong> consciência<br />
vai se <strong>da</strong>n<strong>do</strong> de forma sutil, ora sua percepção avança, ora recua:<br />
Melhor eluci<strong>da</strong><strong>do</strong>, via agora a situação <strong>do</strong>s ex-companheiros com maior<br />
amplitude crítica <strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> moirejava no mesmo plano deles; uma<br />
situação que lhe ocorria diariamente no próprio escritório onde seu âmago se<br />
encontrava. E nas horas de solidão, em que a austeri<strong>da</strong>de e a fantasia tanto<br />
gostam de alternar, distribuía mentalmente justiça a to<strong>do</strong>s eles, muitas vezes<br />
ofenden<strong>do</strong> durante esse devaneio, as suas idéias autocráticas, sem <strong>da</strong> agressão<br />
que lhes fazia se <strong>da</strong>r conta. Se as incoerências se denunciavam, que<strong>da</strong>va-se<br />
perplexo, to<strong>do</strong> confuso perante a nova inclinação que sentia e lhe provocava<br />
amargo conflito em lugar de uma consciência apazigua<strong>da</strong>. E então, buscan<strong>do</strong> o<br />
equilíbrio que se lhe negava, discorria que naquela natureza o homem pertencia<br />
menos a si próprio <strong>do</strong> que em qualquer outra parte. 30<br />
Esse esta<strong>do</strong> de oscilação é freqüente na consciência de Alberto. Beneficia<strong>do</strong> pela<br />
inespera<strong>da</strong> generosi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> patrão, ele se questiona sobre sua contradição interior e a<br />
contradição como parte <strong>da</strong> própria relação entre os seres humanos, decorri<strong>da</strong> de seus<br />
interesses e <strong>da</strong>s posições que eles ocupam na socie<strong>da</strong>de:<br />
[...] „Seria ele quem mereceria mais a legítima restituição? E os outros? Os<br />
outros? Os que haviam esgota<strong>do</strong>, no cativeiro <strong>da</strong> selva, muitos mais anos <strong>do</strong><br />
que ele, to<strong>da</strong> a moci<strong>da</strong>de, to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, as ambições e as quimeras? E se ele não<br />
30 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 217-8.<br />
75
fosse branco, se não tivesse a simpatia <strong>do</strong> senhor Guerreiro, se não se<br />
encontrasse apto para desempenhar o cargo de Bin<strong>da</strong>, que as circunstâncias lhe<br />
abriram subitamente? Se em vez de estar ali, em contato com Juca, se em vez<br />
de jogar o solo com ele, de comer ultimamente a mesma mesa, estivesse em<br />
To<strong>do</strong>s-os-Santos, simples seringueiro como Firmino, como to<strong>do</strong>s os outros que<br />
mantinham o seringal, que <strong>da</strong>vam a vi<strong>da</strong> por uma riqueza que não<br />
aproveitavam, a dívi<strong>da</strong> ser-lhe-ia também per<strong>do</strong>a<strong>da</strong>? Não, com certeza não!<br />
Era certo que os homens são bons ou maus conforme a posição em que se<br />
encontram perante nós e nós perante eles; e falso o indivíduo-bloco, o<br />
indivíduo sem nenhuma contradição, sempre, sempre igual no seu<br />
procedimento‟. 31<br />
A rendição ao instinto e o reconhecimento <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de <strong>da</strong>queles que não<br />
compartilhavam <strong>do</strong>s privilégios monárquicos ou os defendiam são interdependentes à<br />
medi<strong>da</strong> que Alberto só reconhece essa humani<strong>da</strong>de após passar pela mesma degra<strong>da</strong>ção por<br />
que passaram os outros. Como os outros seringueiros, ele é <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo instinto, sua<br />
natureza superior sucumbe <strong>da</strong> mesma forma que a natureza <strong>do</strong>s outros por ele considera<strong>da</strong><br />
inferior: “ „Sou um miserável e um porcalhão como os outros‟ ” 32<br />
Cabe notar que a personagem atribui a vitória <strong>do</strong> instinto ao meio. Ante o meio<br />
bárbaro, de na<strong>da</strong> adianta ao homem lutar, sua rendição é inevitável:<br />
[...] Afirmava a si mesmo que a responsabili<strong>da</strong>de não era dele, era <strong>do</strong> meio, era<br />
essencialmente <strong>da</strong> Natureza, [...] Um instante, às suas faces, agora<br />
freqüentemente barbea<strong>da</strong>s pelo filho de nhá Vitória, sobrepuseram-se as faces<br />
sujas de barba que ele e os outros seringueiros traziam, desmoraliza<strong>da</strong>mente,<br />
em To<strong>do</strong>s-os-Santos, durante a semana inteira, por vezes durante semanas a fio.<br />
„E para quê o contrário, se to<strong>do</strong>s eles eram vítimas, se não havia ali presenças<br />
femininas a estimularem a presunção <strong>do</strong>s homens, se não havia exemplos a<br />
seguir, para quê se lentamente a selva impunha o regresso à negligência, o<br />
31 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 277.<br />
32 Ibid., p. 232.<br />
76
etrocesso <strong>do</strong>s civiliza<strong>do</strong>s, como se estivesse empenha<strong>da</strong> em reincorporá-los na<br />
selvageria de onde se tinham evadi<strong>do</strong>?‟ 33<br />
É a selva também a responsável pela truculência humana, o patrão se alia a ela para<br />
executar sua obra de escravidão. Nesse ponto, a reflexão de Alberto nega que a injustiça<br />
decorra <strong>da</strong> relação entre os seres humanos e a atribui ao papel implacável <strong>do</strong> meio que<br />
degenera o humano, fazen<strong>do</strong> com que não se pertença nem se <strong>do</strong>mine.<br />
O processo de aprendizagem de Alberto, compreenden<strong>do</strong> a sua toma<strong>da</strong> de<br />
consciência sobre o sistema de injustiça em que está calca<strong>do</strong> o funcionamento <strong>do</strong> seringal, a<br />
reavaliação de suas convicções políticas, mostra-se concretiza<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> o principal motivo<br />
que o infelicita cessa. Poden<strong>do</strong> deixar o seringal e a selva, ele se permite uma nova<br />
mentali<strong>da</strong>de. Não mais acredita que a evolução <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de depen<strong>da</strong> <strong>da</strong>s velhas castas e<br />
de seus direitos adquiri<strong>do</strong>s, visualiza que a vi<strong>da</strong> humana só transporá o simples rastejar, se<br />
os “velhos processos” forem aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s e novas experiências tenta<strong>da</strong>s: “[...]„Não era,<br />
decerto, no que estava feito, era no que estava por fazer, que o homem viria a encontrar,<br />
talvez, o melhor de si próprio‟ ”. 34<br />
No diálogo que mantém com Juca Tristão, sente-se à vontade para admitir que não<br />
se considera mais nem monárquico nem republicano e que almeja “justiça para to<strong>do</strong>s”. Faz<br />
um prognóstico que o patrão não entende, comunican<strong>do</strong> que sonha com a evolução <strong>do</strong> ser<br />
humano mas que acredita ser a evolução lenta e a sede de justiça mais profícua.<br />
A transformação de Alberto, compreenden<strong>do</strong> uma reflexão e uma prática não é<br />
completa, seu individualismo se sobrepõe ao seu senso de justiça social. A decisão de<br />
aju<strong>da</strong>r Firmino a fugir <strong>do</strong> seringal, fornecen<strong>do</strong> a <strong>lima</strong> para cortar as correntes <strong>da</strong> canoa na<br />
qual ele pretende fugir, revela-se um ato temerário, uma vez que considera justo que ele<br />
deseje a liber<strong>da</strong>de, mas teme se comprometer, arriscan<strong>do</strong> seu futuro. Quan<strong>do</strong> Firmino e os<br />
demais seringueiros fugitivos são captura<strong>do</strong>s, vem-lhe o receio de que se descubra que ele<br />
teve participação na fuga. Ao tomar conhecimento <strong>do</strong> castigo imposto aos fugitivos, ele se<br />
horroriza, mas se cala. Não defende os seringueiros, apesar de estar convicto de que eles<br />
na<strong>da</strong> devem, não ousa questionar o patrão. Sabe que reagir significará perder a chance de<br />
partir, de recomeçar sua vi<strong>da</strong> em Portugal e terminar seus estu<strong>do</strong>s.<br />
33 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 249.<br />
77
Seu comportamento em defesa <strong>da</strong> monarquia fora diferente. Pelos princípios<br />
monárquicos, arriscara-se, exilara-se, afastara-se <strong>da</strong> mãe, <strong>da</strong> pátria. Como o pai, que não<br />
traíra esses princípios nem mesmo para ter uma vi<strong>da</strong> mais cômo<strong>da</strong>, aceitan<strong>do</strong> cargos<br />
ofereci<strong>do</strong>s pelos republicanos em troca de adesão, ele defendeu a monarquia<br />
veementemente.<br />
A mu<strong>da</strong>nça de mentali<strong>da</strong>de ocorri<strong>da</strong> no seringal não leva de fato a uma ação em<br />
favor <strong>da</strong> justiça social, <strong>da</strong> “justiça para to<strong>do</strong>s”, aspiração que ele revela ao patrão. Existem<br />
motivos que justificam a omissão de Alberto. Não há condições objetivas para que ele<br />
possa reagir contra as injustiças que presencia no seringal. Está totalmente isola<strong>do</strong>, não tem<br />
apoio de ninguém. Na revolta de Monsanto, ele contava com o apoio de outros que<br />
pensavam como ele, jovens dispostos a se insurgir contra o regime republicano. O enre<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> romance demonstra que Alberto não encontra apoio nem no guar<strong>da</strong>-livros nem no seu<br />
substituto de balcão. O primeiro parece-lhe também insatisfeito com a tortura <strong>do</strong>s<br />
seringueiros, mas como ele, teme se envolver; o segun<strong>do</strong> age como um capacho <strong>do</strong> patrão.<br />
Ao final <strong>do</strong> romance, a justiça será feita pela personagem menos provável de<br />
praticá-la: o negro Tiago, submisso a Juca Tristão a ponto de oferecer a cabeça como<br />
suporte para o objeto com o qual ele pratica o tiro ao alvo, mas não capaz de tolerar no<br />
seringal as práticas de tortura emprega<strong>da</strong>s durante a escravidão negra. O fogo atea<strong>do</strong> por<br />
Tiago tem como principal objetivo atingir Juca Tristão, pois tranca as portas <strong>do</strong> barracão,<br />
impedin<strong>do</strong> que o seringalista possa sair. Desse mo<strong>do</strong>, a destruição se faz pela via mítica <strong>do</strong><br />
fogo e atinge a fonte <strong>da</strong> injustiça. 35<br />
O resumo <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> de A selva informa o assunto e a conseqüente organização <strong>do</strong><br />
romance. De acor<strong>do</strong> com o que expusemos, A selva faz a abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong>s principais tópicos<br />
de um romance <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”. Grosso mo<strong>do</strong>, temos conhecimento <strong>da</strong> saga de uma<br />
personagem recruta<strong>da</strong> para o seringal e o detalhamento <strong>da</strong>s condições de viagem, comum a<br />
muitas obras, a passagem pelo centro e depois pela margem. No centro, são abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
assuntos como o trabalho <strong>do</strong> seringueiro, sua vi<strong>da</strong> e suas privações, principalmente a<br />
privação sexual, as ameaças <strong>do</strong> meio assombroso e <strong>do</strong>s seus habitantes selvagens; na<br />
margem, focalizam-se os motivos que geram o sofrimento e a escravidão <strong>do</strong>s seringueiros,<br />
34 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 244.<br />
35 Em seu livro Amazônia, mito e literatura, Marcos Frederico Krüger salienta: “o fogo como elemento de<br />
destruição é, tal como o <strong>do</strong>s duplos, motivo mitológico bastante utiliza<strong>do</strong> na produção literária [...]” ( p. 177).<br />
78
trabalha<strong>do</strong>res que não progridem: a extorsão através <strong>do</strong> aviamento, o poder <strong>do</strong> seringalista<br />
que controla com mão de ferro o dia-a-dia no seringal, o seu enriquecimento, em contraste<br />
com a pauperização <strong>do</strong>s seringueiros.<br />
Numa consideração inicial, em termos de conteú<strong>do</strong>, A selva não apresenta uma<br />
abor<strong>da</strong>gem diferencia<strong>da</strong> quanto às obras <strong>da</strong> primeira fase <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> nem quanto às análises<br />
empreendi<strong>da</strong>s por alguns autores em obras não ficcionais. O escorchante sistema extrativo<br />
já havia si<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong> por Euclides <strong>da</strong> Cunha em À margem <strong>da</strong> história; os problemas <strong>da</strong><br />
escassez <strong>da</strong> mulher e <strong>da</strong> sua conseqüente negociação foram expostos por Alberto Rangel e<br />
Carlos de Vasconcelos. Através <strong>da</strong> escritura desses autores, <strong>da</strong>s passagens literárias às mais<br />
informacionais, tinham si<strong>do</strong> expostos os principais aspectos que iriam caracterizar a<br />
abor<strong>da</strong>gem sobre o <strong>ciclo</strong>. Salientamos que, apesar disso, A selva atinge uma maior<br />
compreensão e aprofun<strong>da</strong>mento <strong>do</strong> caráter <strong>do</strong>cumental e histórico <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>. Dentro <strong>da</strong><br />
temática histórica, é a obra que melhor contempla to<strong>do</strong>s os aspectos. Da viagem <strong>do</strong><br />
recruta<strong>do</strong> à revolta representa<strong>da</strong> individualmente pela personagem Tiago, A selva fornece<br />
um amplo painel para entendimento <strong>do</strong> processo econômico <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> através <strong>do</strong> discurso<br />
romanesco. A obra apresenta os principais atores envolvi<strong>do</strong>s nesse processo. Os tipos,<br />
como o tio Mace<strong>do</strong>, que se comunicam com o migrante ain<strong>da</strong> antes de ser seringueiro e que<br />
também o extorquem quan<strong>do</strong> ele consegue ganhar algum dinheiro e volta à ci<strong>da</strong>de; o<br />
avia<strong>do</strong>r, representa<strong>do</strong> pela personagem <strong>do</strong> Comen<strong>da</strong><strong>do</strong>r Aragão, aventureiro português que<br />
faz fortuna; o seringueiro nordestino (Firmino, Agostinho); o seringalista (Juca Tristão);<br />
seus auxiliares (Balbino, Caetano, Bin<strong>da</strong>); o filho <strong>do</strong> seringalista (Juquinha); o agrega<strong>do</strong><br />
(Tiago), que não participa <strong>do</strong> processo de extração, mas tem importância na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
seringal 36 ; o caboclo (Lourenço), que no romance é o contraponto para os arrivistas, pois<br />
não é movi<strong>do</strong> pelo desejo de ganhar dinheiro; o guar<strong>da</strong>-livros (Guerreiro), uma personagem<br />
bem delinea<strong>da</strong>, e o estrangeiro, protagonista (Alberto) e personagem secundária (Elias),<br />
apareci<strong>da</strong> já no fim <strong>do</strong> romance.<br />
A preocupação de Ferreira de Castro de <strong>da</strong>r ao romance um plano verossímil e bem<br />
arquiteta<strong>do</strong> aproxima-o <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentário. Nas palavras de Márcio Souza, o romance atinge<br />
36 O agrega<strong>do</strong> é personagem recorrente na ficção <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>. No romance Terra de ninguém, é Epifânio, negro<br />
que atua como feiticeiro no seringal; em Dos ditos passa<strong>do</strong>s nos acerca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Cassianã, é o índio Pacatuba,<br />
afilha<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringalista; em Coronel de barranco, Inácio, caboclo que vem parar no seringal após lutar junto a<br />
79
a mesma precisão de um “relatório crítico” e consegue resumir “os trinta anos de loucuras<br />
nos seringais”. 37<br />
Em relação ao epigonismo característico <strong>da</strong> primeira fase, ao qual já nos referimos<br />
na introdução desse capítulo, A selva dele se afasta, haja vista o autor Ferreira de Castro<br />
não estar inseri<strong>do</strong> num mesmo contexto de produção, tal como Cunha, Rangel e<br />
Vasconcelos. Desse mo<strong>do</strong>, a criação romanesca de Ferreira de Castro se origina<br />
fun<strong>da</strong>mentalmente <strong>do</strong> fato de necessitar pôr em cena o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal, fruto de sua<br />
vivência, como ele próprio informa. Para que Ferreira de Castro desse continui<strong>da</strong>de a um<br />
discurso literário, seria necessário que representasse o trabalho continua<strong>do</strong> de vários<br />
romancistas num mesmo contexto de produção, fosse esse trabalho de caráter semelhante<br />
ou antagônico. 38 O que não significa, por outro la<strong>do</strong>, que a obra A selva não possua<br />
expressão amazônica. Contexto de produção deve ser entendi<strong>do</strong> como as condições e as<br />
motivações que levam o autor a criar, que se distinguem de ambiente que ele efetivamente<br />
enfoca.<br />
Um <strong>do</strong>s diferenciais que apontamos na obra de Ferreira de Castro quanto à produção<br />
desses outros autores é a linguagem. A selva é escrita num estilo límpi<strong>do</strong>, preciso e<br />
objetivo. Algumas passagens descritivas <strong>do</strong> romance ostentam a preocupação com o<br />
detalhe, mas não transmitem informações através de torneios sintáticos característicos a<br />
Cunha e Rangel. A clareza de linguagem apresenta<strong>da</strong> por Ferreira de Castro distingue-se<br />
mesmo em comparação aos outros autores portugueses. Para Brasil, a sua escrita despoja-se<br />
<strong>da</strong> herança de escritores como Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Eça de<br />
Queiroz, Fialho de Almei<strong>da</strong>, pois opta por não explorar a opulência verbal ou o<br />
vernaculismo, preferin<strong>do</strong> um estilo “rico <strong>da</strong> seiva <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sem artificialismo.” 39<br />
Num plano, porém, a expressão lingüística de Ferreira de Castro e de Euclides <strong>da</strong><br />
Cunha e seus epígonos confluem: na criação de um discurso volta<strong>do</strong> para as<br />
excentrici<strong>da</strong>des <strong>do</strong> meio amazônico. 40 Embora sem a grandiloqüência destes, Ferreira de<br />
Castro expressa os mesmos espasmos diante <strong>da</strong> natureza assombrosa, de sua fantasmagoria<br />
Pláci<strong>do</strong> de Castro. Geralmente aparecem como rebotalhos devota<strong>do</strong>s e fiéis, mas em romances como A selva e<br />
Dos ditos passa<strong>do</strong>s nos acerca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Cassianã revoltam-se e atentam contra a vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> patrão.<br />
37<br />
Márcio SOUZA, A expressão amazonense: <strong>do</strong> colonialismo ao neo-colonialismo, p. 137.<br />
38<br />
Essa premissa para criação de uma novelística é exposta por Alejo Carpentier em Literatura e consciência<br />
política na América Latina ( p. 10).<br />
39<br />
Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem, p. 47.<br />
80
de luzes e sombras, seus silêncios inquietantes e seus ruí<strong>do</strong>s assusta<strong>do</strong>res, suas árvores<br />
portentosas e seu entrança<strong>do</strong> de cipós traiçoeiros, tu<strong>do</strong> concorren<strong>do</strong> para a tese apresenta<strong>da</strong><br />
no romance de que o ambiente amazônico animaliza o ser humano: “[...] o homem, simples<br />
transeunte no flanco <strong>do</strong> enigma, via-se obriga<strong>do</strong> a entregar o seu destino aquele<br />
despotismo. O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na<br />
solidão reinante, forçoso se lhe tornava vestir pele de fera [...]”. 41<br />
A selva distingue-se <strong>da</strong>s obras <strong>da</strong> primeira fase como distinguir-se-á também de<br />
obras <strong>da</strong> fase posterior por apresentar um plano narrativo que não se detém no decalque de<br />
um aspecto <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, abor<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-o superficialmente. O patrão seringalista articula-se num<br />
grupo econômico, possibilitan<strong>do</strong> a compreensão <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> de seu papel nesse grupo.<br />
Apresenta-se para além <strong>do</strong> estereótipo de um homem mau; é a representação de um homem<br />
enriqueci<strong>do</strong> pela superexploração <strong>do</strong> trabalho de outros; é o patrão que defende a sua<br />
riqueza acumula<strong>da</strong> e não pode prescindir de sua fonte gera<strong>do</strong>ra, tal qual depreende-se deste<br />
trecho <strong>do</strong> romance em que encoleriza<strong>do</strong> com a fuga <strong>do</strong>s seringueiros, Juca Tristão toma<br />
conhecimento <strong>da</strong>s suas “dívi<strong>da</strong>s” acumula<strong>da</strong>s:<br />
Inclina<strong>do</strong> sobre o „contas-correntes‟, Alberto eluci<strong>do</strong>u:<br />
- O Manduca devia um conto e setecentos e vinte e três... O Firmino um conto e<br />
duzentos... Quem eram os outros?<br />
- O Romual<strong>do</strong> e o Aniceto – comunicou Balbino.<br />
Alberto folheou de novo:<br />
- O Romual<strong>do</strong>, <strong>do</strong>is contos e seiscentos e quarenta...<br />
Juca voltou a exaltar-se:<br />
- Dois contos e seiscentos! Cachorro! Cachorro! E eu a ter pena dele! Sou tolo<br />
mesmo! Vinha chorar para o pé de mim e, só em pílulas para a febre, lhe vendi<br />
uma fortuna! Que morresse, que fosse para o inferno! Mas eu fui tolo e ele<br />
agora me paga assim!<br />
Ao pequeno silêncio sucedeu a voz de Alberto:<br />
- O Aniceto devia oitocentos e noventa...<br />
- Oitocentos e noventa... – Um conto! Com <strong>do</strong>is e seiscentos <strong>do</strong> outro, quase<br />
quatro. Quanto devia o Manduca?<br />
40 Sobre as fontes <strong>da</strong> engendração desse discurso, ver: Neide GONDIM, A invenção <strong>da</strong> Amazônia, 1994.<br />
81
- Um conto e setecentos...<br />
- Cinco contos e tal! E o Firmino?<br />
- Um conto e duzentos...<br />
- Seis contos! Quase sete contos por água a baixo! Eu aqui a sacrificar-me<br />
longe <strong>da</strong> minha mulher e <strong>do</strong> meu filho, para que esses cachorros me roubem<br />
assim! Porque é um roubo! É um roubo! E eu que podia estar mesmo<br />
descansa<strong>do</strong> na minha fazen<strong>da</strong> <strong>do</strong> Marajó! Se os apanho!... 42<br />
Aponta<strong>do</strong> por Djalma Batista como romance social, A selva atinge essa perspectiva<br />
ao apresentar as contradições <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal. A passagem <strong>do</strong> romance em que os<br />
seringueiros fugitivos são captura<strong>do</strong>s por outros seringueiros demonstra uma dessas<br />
contradições, que é refleti<strong>da</strong> pelo protagonista nos seguintes termos: “[...] „Como podia ser,<br />
como podia ser que as vítimas saboreassem também o papel de algoz? De que sórdi<strong>da</strong><br />
matéria era forma<strong>da</strong> a alma de alguns homens, que gozavam em castigar a desgraça alheia,<br />
mesmo quan<strong>do</strong> era igual à deles?‟ ” 43<br />
Por outro la<strong>do</strong>, a contradição também constitui o plano ideológico <strong>do</strong> romance que<br />
propaga a tese <strong>do</strong> meio como responsável pelos desajustes humanos. De acor<strong>do</strong> com Lucas,<br />
o romance de tese costuma aplicar o méto<strong>do</strong> dedutivo para exame <strong>do</strong>s problemas sociais,<br />
significan<strong>do</strong> que o conceito antecede a reali<strong>da</strong>de. 44 Analisan<strong>do</strong> o determinismo <strong>do</strong> meio<br />
esboça<strong>do</strong> em A selva, é essa precisamente a noção – ante um meio estabeleci<strong>do</strong> como<br />
bárbaro, to<strong>do</strong>s os indivíduos se barbarizam.<br />
O ficcionista e ensaísta Jorge Tufic, ao fazer um levantamento <strong>da</strong> produção ficcional<br />
sobre o “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”, declara que A selva e La voragine, obra <strong>do</strong> romancista José<br />
Eustásio Rivera, encerrariam essa produção e destaca que as obras <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> não atingiram<br />
“um vago contorno geral <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de em causa”. 45 Há, na avaliação <strong>do</strong> autor,<br />
primeiramente, uma falha ao não considerar um veio de produção que continuou aberto<br />
para a temática <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> e, em segun<strong>do</strong> lugar, um juízo precoce sobre o grau de<br />
aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s obras.<br />
41<br />
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 114.<br />
42<br />
Ibid., A selva, p. 281.<br />
43<br />
Ibid., p. 291.<br />
44<br />
Fábio LUCAS, O caráter social <strong>da</strong> ficção <strong>do</strong> Brasil,, p. 17.<br />
45<br />
Jorge TUFIC, Existe uma literatura amazonense?, p. 21.<br />
82
Ao destacarmos A selva como um romance que, seguin<strong>do</strong> a linha <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem<br />
histórica <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, propicia uma compreensão abrangente <strong>do</strong> tema, não desconsideramos<br />
que em outros romances, como, por exemplo, Coronel de barranco, ocorra também uma<br />
construção ficcional contundente. O tratamento <strong>da</strong><strong>do</strong> à obra em relação ao <strong>ciclo</strong> recebe o<br />
mesmo detalhamento didático de A selva. A selva e Coronel de barranco são, por isso, <strong>do</strong>is<br />
romances em que a reali<strong>da</strong>de em causa – “o <strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” – é trata<strong>da</strong> com<br />
aprofun<strong>da</strong>mento. Entretanto a obra de Ferreira de Castro apresenta um diferencial em<br />
relação à de Araújo Lima que nos levou a elegê-la como recorte para esse estu<strong>do</strong>. Seu<br />
protagonista é partícipe e analista no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal, enquanto Matias, de Coronel de<br />
barranco, é basicamente analista. O fato de ser Alberto um protagonista que vive as<br />
próprias situações que analisa confere densi<strong>da</strong>de à narrativa através <strong>do</strong> embate que se cria<br />
entre sua consciência e o sistema com o qual se depara.<br />
Tufic também observa que o romance La voragine diverge de A selva por possuir<br />
um caráter de libelo ou revolta enquanto o último somente relataria os dramas vivi<strong>do</strong>s no<br />
seringal. Embora não possa se assemelhar a um libelo, a abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong> romance A selva<br />
denuncia a extorsão e a escravidão num seringal amazônico e seu desfecho propõe uma<br />
destruição desse sistema injusto, determinan<strong>do</strong> também um senti<strong>do</strong> de revolta. Revolta que<br />
não é arquiteta<strong>da</strong> nem pratica<strong>da</strong> por seringueiros indigna<strong>do</strong>s. O fato de essa revolta ser<br />
pratica<strong>da</strong> por uma personagem negra demonstra que a visão de mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> autor, expressa<br />
pelas suas palavras de que em seu espírito sobrepõe-se “[...]„uma causa mais forte, uma<br />
razão maior: a <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de‟ ” 46 , não tem como objetivo pôr em evidência apenas uma<br />
forma de injustiça. O negro Tiago, despojo de outro processo de espoliação, é, por isso, o<br />
escolhi<strong>do</strong> para pôr fim ao local que representa a injustiça (o barracão) e o elemento humano<br />
que a executa (o seringalista). Suas palavras de justificativa <strong>do</strong> ato que pratica surtem o<br />
efeito de uma sentença: “O homem é livre.” 47 A destruição não é eficiente, uma vez que o<br />
seringalista é apenas um elo, e inclusive não o mais poderoso, <strong>da</strong> grande cadeia de<br />
espoliação monta<strong>da</strong> em vista <strong>da</strong> extração <strong>do</strong> látex, mas é a destruição que o romancista<br />
elege como possível no contexto em que se desenvolve o romance.<br />
46<br />
José Maria FERREIRA DE CASTRO Apud Humberto de CAMPOS, Um romance amazônico. In:.Crítica,<br />
p. 432.<br />
47<br />
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 306.<br />
83
Apesar de possuir características em consonância com o romance neo-realista<br />
português o qual recebe influência <strong>da</strong> ficção sócio-realista brasileira <strong>do</strong>s anos 1930 48 , A<br />
selva apresenta os pontos básicos <strong>do</strong> que Alfre<strong>do</strong> Bosi considera um romance de tensão<br />
crítica em oposição a um romance de tensão mínima, mais em acorde com a prosa neo-<br />
realista. Segun<strong>do</strong> o autor, o romance de tensão crítica alcança “uma ver<strong>da</strong>de histórica muito<br />
mais profun<strong>da</strong>”, não se restringin<strong>do</strong> apenas a enfocar a cor local ou <strong>da</strong>tar os fatos. 49<br />
É, pois, A selva um romance que não se limita à perspectiva de enfocar fatos<br />
isola<strong>do</strong>s característicos <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> e que procura concentrá-los e organizá-los sistematizan<strong>do</strong>-<br />
os. Abrangen<strong>do</strong> tanto o centro quanto a margem, a narrativa demonstra o nexo causal entre<br />
eles. Não aleatoriamente, Alberto vive antes a experiência <strong>do</strong> centro e depois a <strong>da</strong> margem.<br />
Quan<strong>do</strong> vem a se instalar na margem, já não é mais possível considerá-la sem a outra<br />
experiência. A manipulação <strong>do</strong> contas-correntes <strong>do</strong> seringal o põe a par de uma ver<strong>da</strong>de<br />
que suspeitara ao receber a nota de seu aviamento e compará-la com a <strong>do</strong>s outros<br />
seringueiros no tempo em que ain<strong>da</strong> era um brabo como eles. As faturas lança<strong>da</strong>s<br />
evidenciam que os débitos <strong>do</strong>s seringueiros e o conseqüente crédito para Juca Tristão<br />
resultam de uma cobrança extorsiva <strong>do</strong> preço <strong>da</strong> merca<strong>do</strong>ria avia<strong>da</strong> e de um pagamento<br />
ínfimo pela produção <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, depois vendi<strong>da</strong> a um alto preço. Paralelamente, toma<br />
conhecimento de que o trabalho não pago <strong>do</strong>s seringueiros proporciona as altas despesas <strong>do</strong><br />
seringalista:<br />
Estavam ali as faturas, venden<strong>do</strong> a Juca Tristão por cinco o que ele entregava<br />
ao seringueiro por quinze e muitas vezes até por vinte. Estavam as notas <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong>, que se comprava ali por <strong>do</strong>is e se vendia por cinco e seis na praça de<br />
Manaus.<br />
Alberto sentia uma curiosi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>lorosa ao ler to<strong>da</strong> essa papela<strong>da</strong>,<br />
confrontan<strong>do</strong> algarismos e inventarian<strong>do</strong> o tempo que ca<strong>da</strong> um trabalhava a<br />
mais em proveito <strong>do</strong> amo. Depois, chama<strong>do</strong> pelas dispari<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s situações,<br />
48 FERREIRA DE CASTRO estu<strong>da</strong>va a produção <strong>do</strong>s autores brasileiros <strong>da</strong> geração de 30, conforme se<br />
evidencia por artigo que publica em 1934, intitula<strong>do</strong> “Literatura social brasileira”. O autor é considera<strong>do</strong> um<br />
precursor <strong>do</strong> neo-realismo português, embora o termo tenha si<strong>do</strong> efetivamente emprega<strong>do</strong> por Joaquim<br />
Namora<strong>do</strong>, no artigo “Do neo-realismo, Aman<strong>do</strong> Fontes”, em 1938. Um <strong>do</strong>s principais postula<strong>do</strong>s <strong>do</strong> neorealismo<br />
constitui a denúncia social, especialmente <strong>da</strong> injustiça pratica<strong>da</strong> contra os humildes. (Cf. Massaud<br />
MOISÉS, Neo-Realismo In: Dicionário de literatura portuguesa, p. 244).<br />
49 Alfre<strong>do</strong> BOSI, História concisa <strong>da</strong> literatura brasileira, p. 443.<br />
84
que<strong>da</strong>va-se absorto sobre as cifras <strong>da</strong> mesa<strong>da</strong> que Juca enviava à mulher – três<br />
contos de réis que significavam o preço <strong>do</strong>s muitos anos que um seringueiro<br />
necessitava para o seu resgate. Alberto juntava aquilo às viagens <strong>do</strong> patrão a<br />
Belém, sempre marca<strong>da</strong>s por grandes quantias recebi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> „casa avia<strong>do</strong>ra‟, as<br />
maiores que se viam em to<strong>do</strong>s os lançamentos verifica<strong>do</strong>s – e ficava mais<br />
pensativo ain<strong>da</strong>. Doíam-lhe essas descobertas, esses números e contrastes.<br />
Poder absoluto, por herança ou outro conceito estabeleci<strong>do</strong>, em prol dum só<br />
to<strong>do</strong>s os demais se sacrificavam. Confirmava-se, assim, tu<strong>do</strong> quanto se dizia<br />
sobre a vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s seringais, desde o Pará à Bolívia e <strong>do</strong> Ceará distante às<br />
fronteiras <strong>do</strong> Peru, onde a sorte <strong>do</strong>s párias não seria melhor. 50<br />
Além <strong>do</strong> sistema de aviamento, base de sustentação econômica <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, o romance<br />
expõe as conseqüências que a saga <strong>da</strong> extração traz para a população humana,<br />
transforman<strong>do</strong> o encontro <strong>do</strong> migrante nordestino e <strong>do</strong> nativo amazônico num desfecho<br />
traumático através <strong>do</strong> assassinato <strong>do</strong> caboclo Lourenço pelo seringueiro Agostinho. O<br />
motivo causa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> assassinato não é a riqueza <strong>da</strong> terra, mas o segun<strong>do</strong> motivo de cobiça<br />
no seringal, a mulher. Agostinho pratica a vingança sangrenta contra Lourenço porque este<br />
não lhe concede em casamento a filha ain<strong>da</strong> criança. No romance, Lourenço é o símbolo <strong>do</strong><br />
homem nativo. Indiferente à sede de enriquecimento, sua existência se orienta apenas pela<br />
posse de “uma barraca, uma mulher e uma canoa.” Os homens nordestinos que vêm<br />
desbravar a selva, atraí<strong>do</strong>s pela promessa de enriquecer, despertam-lhe pie<strong>da</strong>de, pois ele os<br />
vê sucumbirem venci<strong>do</strong>s pelo meio que lhes é adverso. A vi<strong>da</strong> na selva só é fácil para ele<br />
que “letargicamente” aceita viver sem ambições. O processo de exploração <strong>da</strong> riqueza<br />
natural, trazen<strong>do</strong> com ele o ádvena e, conseqüentemente, a cobiça, as necessi<strong>da</strong>des<br />
inconti<strong>da</strong>s, aniquila o ritmo de vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s habitantes cor<strong>da</strong>tos e hospitaleiros como Lourenço.<br />
A repercussão mundial que alcançou o romance A selva, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> traduzi<strong>do</strong> na<br />
Alemanha, Bélgica, Bulgária, Tchecoslováquia, França, Holan<strong>da</strong>, Inglaterra, Espanha,<br />
Iugoslávia, Itália, Noruega, Romênia, Suécia, Suíça, Canadá, Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, ampliou<br />
conseqüentemente o seu leque de estu<strong>do</strong>s.<br />
Uma parte <strong>da</strong> crítica estrangeira enfatiza a grande capaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> obra de evocar o<br />
exotismo <strong>da</strong> natureza amazônica. Em prefácio escrito em 1932 para a tradução alemã , o<br />
50 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 212-13.<br />
85
tradutor Richard Bermann refere-se à selva como o inferno verde e à capaci<strong>da</strong>de de Ferreira<br />
de Castro de descrever a sua “trágica beleza” 51<br />
Para o crítico italiano Alberto Viviani, a novi<strong>da</strong>de na obra de Ferreira de Castro<br />
acha-se no ambiente ou, mais precisamente, no poder atribuí<strong>do</strong> à natureza, soberana em<br />
relação ao ser humano. Põe, por isso, a natureza no papel de protagonista <strong>do</strong> romance: “[...]<br />
tu<strong>do</strong> o mais não passa de complemento necessário [...] tu<strong>do</strong> está subordina<strong>do</strong> à vastidão<br />
primitiva <strong>da</strong> selva que hostiliza e aniquila”. 52<br />
A crítica estrangeira, que não nos cabe detalhar nesse trabalho, é por nós enfoca<strong>da</strong> à<br />
medi<strong>da</strong> em que sua percepção <strong>do</strong> meio amazônico ressalta<strong>da</strong> pela leitura <strong>do</strong> romance se<br />
articula com a percepção <strong>da</strong> crítica brasileira.<br />
A Amazônia, defini<strong>da</strong> por Euclides <strong>da</strong> Cunha como a “última página ain<strong>da</strong> a<br />
escrever-se <strong>do</strong> Gênesis”, 53 é um referencial geográfico e literário difundi<strong>do</strong> amplamente no<br />
Brasil. Exótica para os próprios brasileiros, é caracteriza<strong>da</strong> <strong>da</strong> seguinte maneira por<br />
Peregrino Júnior:<br />
O homem que penetra a Amazônia – o mistério, o terror, ou se se quiser, o<br />
deslumbramento <strong>da</strong> Amazônia – escuta desde logo uma voz melancólica: a voz<br />
<strong>da</strong> terra. Aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> na vastidão potâmica <strong>da</strong>s águas fun<strong>da</strong>s, <strong>do</strong>s igarapés e<br />
igapós paludiais, <strong>da</strong>s ásperas florestas compactas, perdi<strong>do</strong> naquele estranho<br />
mun<strong>do</strong> de assombração, acossa<strong>do</strong> pelo desconforto <strong>do</strong> calor sem pausa e pela<br />
agressão <strong>da</strong> mata insidiosa, com seus bichos, suas febres, suas sombras, seus<br />
duendes, êle logo de entra<strong>da</strong> recebe um golpe terrível, e desde então trava a luta<br />
mais trágica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, que é a <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação ao meio cósmico. As fôrças que o<br />
esmagam – fôrças telúricas de aparência in<strong>do</strong>mável – são um convite<br />
permanente à retira<strong>da</strong> e ao regresso. Paraíso <strong>do</strong>s aventureiros, <strong>do</strong>s charlatães,<br />
<strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>res e <strong>do</strong>s flibusteiros, a Amazônia em geral não retém ninguém,<br />
expulsa os seus desbrava<strong>do</strong>res, que dela, no entanto, se recor<strong>da</strong>m sempre com<br />
temor e nostalgia ao mesmo tempo. Daí o destino nômade <strong>do</strong>s seus habitantes,<br />
51 Richard BERMANN apud Jaime BRASIL, Ferreira de Castro : a obra e o homem, p. 198.<br />
52 Alberto VIVIANI apud Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: A obra e o homem, p. 112.<br />
53 A frase encontra-se no prefácio escrito por Euclides <strong>da</strong> Cunha para a obra Inferno verde, de Alberto Rangel<br />
(Euclides <strong>da</strong> CUNHA In: Alberto RANGEL, p. 10). As considerações de Euclides <strong>da</strong> Cunha sobre o caráter<br />
desconheci<strong>do</strong> e fabuloso <strong>da</strong> região amazônica são teci<strong>da</strong>s ao longo desse prefácio e de outras obras suas,<br />
como, por exemplo, À margem <strong>da</strong> história.<br />
86
que dificilmente ali se fixam e permanecem. O homem é, na selva, o intruso<br />
descrito por Euclides, sempre insatisfeito e instável, esperan<strong>do</strong> a hora de<br />
enriquecer para voltar, para fugir, para se libertar em suma... Afinal de contas<br />
só o caboclo – fatalista, taciturno e triste, - na inércia <strong>do</strong> seu conformismo<br />
congênito, ali fica, e não quer sair. O homem <strong>da</strong>quele mun<strong>do</strong> é assim um „ser<br />
destina<strong>do</strong> ao terror e à humilhação diante <strong>da</strong> natureza‟. To<strong>do</strong>s, de resto, nativos<br />
e adventícios, vivem lá num esta<strong>do</strong> permanente de perplexi<strong>da</strong>de, que explica a<br />
atitude literária de quantos viram de perto a Amazônia [...]. 54<br />
Peregrino Júnior veicula essa concepção em 1955, demonstran<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> o mesmo<br />
referencial exposto por Euclides <strong>da</strong> Cunha, em 1908, no prefácio de Inferno verde ou em<br />
1909, em À margem <strong>da</strong> história. De forma significativa, na expressão crítica brasileira, o<br />
tema <strong>do</strong> ambiente aparece como subsidiário ao tema <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> na análise de A selva. Um <strong>do</strong>s<br />
textos que mais se destaca como estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> romance foi escrito por Humberto de Campos<br />
sob o título “Um romance amazônico”. Neste texto, Campos toma a defesa <strong>do</strong> romancista<br />
português em virtude <strong>da</strong> acusação que lhe foi feita por setores <strong>da</strong> crítica brasileira de ter o<br />
escritor enuncia<strong>do</strong> inver<strong>da</strong>des sobre a reali<strong>da</strong>de amazônica.<br />
Campos ressalta que o ver<strong>da</strong>deiro conhecimento sobre a Amazônia foi revela<strong>do</strong> a<br />
partir <strong>da</strong> escrita de Ferreira de Castro, respal<strong>da</strong><strong>da</strong> pela experiência, esta, segun<strong>do</strong> ele,<br />
imprescindível para conhecer a fun<strong>do</strong> o seringal. A ver<strong>da</strong>deira dimensão <strong>do</strong> assunto teria<br />
si<strong>do</strong> ignora<strong>da</strong> ou não compreendi<strong>da</strong> pelos outros autores que tentaram expressá-lo porque o<br />
perceberam externamente, apenas como visitantes. Neste assunto, Campos faz <strong>do</strong> homem o<br />
foco central: “[...] o que interessa, na Amazônia, à literatura, é o homem, e,<br />
particularmente, o seringueiro e a sua tragédia”. 55<br />
Conquanto ponha na linha de frente <strong>da</strong> expressão amazônica a aventura <strong>do</strong> homem<br />
como desbrava<strong>do</strong>r, a natureza não deixa de figurar com um poder grandioso, a ponto de a<br />
luta que o homem contra ela travou se assemelhar para o autor como o “combate de<br />
Siegfre<strong>do</strong> contra o dragão”. A seu ver, essa heróica luta em que a natureza saíra vence<strong>do</strong>ra,<br />
fazen<strong>do</strong> milhares de vítimas não tinha encontra<strong>do</strong> a justa expressão antes de A selva.<br />
Campos também se deixou fascinar pela espécie de “retórica <strong>do</strong> assombro”, expressa tanto<br />
54 João <strong>da</strong> Rocha Fagundes PEREGRINO JÚNIOR, Grupo nortista. In: Afrânio COUTINHO (Dir.). A<br />
literatura no Brasil, p. 153.<br />
87
pelos críticos quanto pelos ficcionistas. Uma passagem de um conto de sua autoria,<br />
intitula<strong>do</strong> “O furto: um conto amazônico” , exemplifica-o:<br />
Na quietude <strong>da</strong>quela hora de assombros, afugentan<strong>do</strong> ou convocan<strong>do</strong> os<br />
demônios <strong>da</strong> terra, coaxavam os sapos, martelan<strong>do</strong>, monótonos na bigorna <strong>do</strong><br />
silêncio nas moitas húmi<strong>da</strong>s de onde partiam, confundin<strong>do</strong>-se, tantas vozes<br />
anônimas, os pirilampos eram como a centelha dessa oficina monstruosa, onde<br />
os batráquios batiam, talvez, a couraça de ouro <strong>do</strong> sol. 56<br />
O enfoque no exotismo já não se faz presente na análise empreendi<strong>da</strong> por Márcio<br />
Souza em seu ensaio A expressão amazonense. Numa severa avaliação <strong>da</strong> produção<br />
literária amazonense, o autor aponta a sua inconsistência por não criar uma representação<br />
autêntica <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de amazônica, isolan<strong>do</strong>-se na ostentação e proporcionan<strong>do</strong> apenas<br />
desfrute para alguns pares de literatos que não almejavam atingir um público abrangente e<br />
sim uma pequena elite interessa<strong>da</strong> na literatura como um ornamento. Para Souza, durante o<br />
“<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”, essa tendência atingiu o ápice:<br />
Não há nenhum escritor <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”, com exceção de Ferreira de<br />
Castro, marca<strong>do</strong> com a tarefa de escrever como um escritor. Eram to<strong>do</strong>s<br />
bacharéis que escreviam e a literatura algo de não desmesura<strong>da</strong>mente perigoso.<br />
O bacharel que escrevia tinha um público especializa<strong>do</strong>, <strong>da</strong> mesma forma que<br />
as diversas quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> possuíam seus compra<strong>do</strong>res determina<strong>do</strong>s.<br />
Raramente publicavam um livro, eles tinham os jornais. O livro já pressupunha<br />
uma universali<strong>da</strong>de, um alcance que não interessava. O jornal satisfazia pela<br />
postulação <strong>do</strong> indefini<strong>do</strong>, <strong>do</strong> punha<strong>do</strong> de leitores fiéis e seleciona<strong>do</strong>s que iriam<br />
escolher os poemas entre o noticiário e o reclamo. 57<br />
Souza aponta em A selva o desmascaramento <strong>da</strong> ostentação. A face que a<br />
prosperi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> oculta por intermédio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de com sua parte economicamente<br />
prestigia<strong>da</strong> <strong>da</strong> população é revela<strong>da</strong> pelo discurso literário de Ferreira de Castro: “[...]<br />
55 Humberto de CAMPOS, Um romance amazônico. In: Humberto de CAMPOS, Crítica, p. 429.<br />
56 Humberto de CAMPOS, O furto. In: Humberto de CAMPOS, O monstro e outros contos, p. 89.<br />
57 Márcio SOUZA, A expressão amazonense: <strong>do</strong> colonialismo ao neo-colonialismo, p. 125.<br />
88
Mostran<strong>do</strong> o reverso <strong>da</strong> ostentação, ele sentiu a vertigem dessa natureza submeti<strong>da</strong> e a sorte<br />
<strong>do</strong>s miseráveis errantes. A selva possui o discurso exato, diariamente sofri<strong>do</strong>, onde a<br />
reali<strong>da</strong>de não era uma aparência incômo<strong>da</strong>, obrigan<strong>do</strong> a literatura a se tornar uma boêmia<br />
perdi<strong>da</strong>.” 58<br />
Ferreira de Castro realizou a expressão lúci<strong>da</strong> <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”, distingui<strong>da</strong><br />
por Souza, como um autor à margem <strong>do</strong> processo de produção literária amazonense. A<br />
visão <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> que logrou romper o marasmo de uma literatura provinciana, sen<strong>do</strong> o<br />
romance, nas palavras de Souza, o primeiro a marcar encontro público com os leitores <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, possui o acento <strong>do</strong> escritor estrangeiro que mantém uma concepção de mun<strong>do</strong><br />
eurocêntrica. Em algumas passagens <strong>do</strong> romance, isto pode ser observa<strong>do</strong> através de uma<br />
negativi<strong>da</strong>de na descrição <strong>da</strong> natureza amazônica em relação a uma positivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
natureza européia:<br />
[...] A árvore solitária que bor<strong>da</strong> melancolicamente campos e regatos na<br />
Europa, perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgin<strong>do</strong> em brenha<br />
inquietante, impunha-se como inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os<br />
monstros fabulosos, mil olhos ameaça<strong>do</strong>res, que espiavam de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s.<br />
Na<strong>da</strong> a assemelhava às últimas florestas <strong>do</strong> velho mun<strong>do</strong>, onde o espírito busca<br />
enlevo e o corpo frescura [...]. 59<br />
Ferreira de Castro retoma o discurso de viajantes, cronistas e cientistas sobre a<br />
Amazônia à medi<strong>da</strong> que os motivos que compõem a trajetória <strong>do</strong> protagonista Alberto no<br />
seringal são os <strong>da</strong> confrontação com o meio bárbaro. O enre<strong>do</strong> <strong>do</strong> romance termina com a<br />
destruição <strong>da</strong> fonte de injustiça mas também com a possibili<strong>da</strong>de de Alberto deixar o meio<br />
que poderia levá-lo à condição de fera.<br />
To<strong>da</strong> a constituição <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> se volta para a aprendizagem subordina<strong>da</strong> à<br />
libertação <strong>do</strong> meio. Alberto perde a soberba ao passar pela experiência <strong>do</strong> seringal,<br />
constatar o sistema de espoliação <strong>do</strong> trabalho humano ali implanta<strong>do</strong>, mas o mesmo meio<br />
que o faz descobrir a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de para com os homens humildes que consomem a vi<strong>da</strong><br />
num trabalho de que não tiram proveito se torna o algoz de to<strong>do</strong>s esses homens e dele<br />
58 José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva p. 140.<br />
59 Ibid., A selva, p. 114-115.<br />
89
próprio. Dan<strong>do</strong> este contorno à obra, o ficcionista segue uma tendência <strong>do</strong> romance<br />
naturalista, destaca<strong>da</strong> por Brayner:<br />
Reduzin<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os homens a uma mesma fórmula – criaturas <strong>do</strong>mina<strong>da</strong>s pelo<br />
meio, raça e momento – o romancista naturalista parte sempre <strong>do</strong> princípio<br />
mestre que to<strong>do</strong>s os homens são fun<strong>da</strong>mentalmente iguais. Não importa a<br />
classe social a que pertençam e nem mesmo o grau de cultura a que se liguem;<br />
submeti<strong>do</strong>s ao ambiente e às paixões instintivas, agem to<strong>do</strong>s de forma idêntica<br />
[...]. 60<br />
A selva significa essa redução <strong>da</strong> personagem protagonista que chega ao meio<br />
desconheci<strong>do</strong> como um ser distinto perante os outros. É estu<strong>da</strong>nte de direito enquanto os<br />
demais recruta<strong>do</strong>s não possuem instrução; leva para a barraca livros entre seus pertences ao<br />
passo que os demais muitas vezes além <strong>da</strong>s roupas <strong>do</strong> corpo levam apenas as ferramentas<br />
básicas avia<strong>da</strong>s pelo seringalista; é moço fino, não a<strong>da</strong>pta<strong>do</strong> para o trabalho grosseiro de<br />
penetração na mata e corte <strong>da</strong>s seringueiras e os outros, seres rudes <strong>do</strong>s quais se espera<br />
a<strong>da</strong>ptação ao meio. Entretanto, o meio irá igualar o protagonista no decorrer <strong>da</strong> narrativa<br />
aos outros. O cerne desse momento se estampa na passagem <strong>do</strong> romance em que o<br />
protagonista, ao se olhar no espelho, não vê sua fisionomia atual, mas o mesmo rosto<br />
embruteci<strong>do</strong>, animaliza<strong>do</strong> <strong>do</strong>s homens com os quais labutou outrora nas estra<strong>da</strong>s de corte.<br />
A única chance que se apresenta à não capitulação ao meio é deixá-lo, fugir de sua barbaria<br />
em busca <strong>da</strong> civilização. Essa é a ambigüi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> realização social <strong>do</strong> romance:<br />
<strong>do</strong>cumentar as relações econômicas que promovem o <strong>ciclo</strong> e, ao mesmo tempo, apresentar<br />
uma justificativa determinista, fatalista, para essas relações.<br />
BEIRADÃO: A PERCEPÇÃO DE UM ESCRITOR NATIVO SOBRE O CICLO<br />
A prerrogativa de escrever sobre o “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> testemunha ou<br />
partícipe <strong>do</strong> processo, dá-se com alguns escritores. Entre eles, incluem-se Ferreira de<br />
Castro, Humberto de Campos, Alberto Rangel, Carlos de Vasconcelos e Álvaro Maia. As<br />
experiências de Ferreira de Castro e Humberto de Campos os situam no barracão,<br />
90
executan<strong>do</strong> as tarefas <strong>do</strong> dia-a-dia que ali se faziam necessárias. O primeiro fazia pequenos<br />
serviços não ten<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> Jaime Brasil, trabalha<strong>do</strong> na estra<strong>da</strong> de corte por ser ain<strong>da</strong><br />
muito jovem. O segun<strong>do</strong> foi gerente de seringal. Quanto a Alberto Rangel e Carlos de<br />
Vasconcelos, executaram como engenheiros serviços de demarcação de terras, o que lhes<br />
possibilitou também um contato com os seringais.<br />
A particulari<strong>da</strong>de que cabe a Álvaro Maia é ter conheci<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal não<br />
como alguém que vem de fora, mas que nasceu nele. O cenário de seu nascimento é o sítio-<br />
seringal Goiabal, localiza<strong>do</strong> à margem esquer<strong>da</strong> <strong>do</strong> rio Madeira, no município de Humaitá.<br />
Seu pai foi um imigrante <strong>da</strong> região cearense <strong>do</strong> Crato, descendente de família próspera que,<br />
como outros, veio para a Amazônia, seduzi<strong>do</strong> pela possibili<strong>da</strong>de de ganhar dinheiro com a<br />
<strong>borracha</strong>, e a mãe, uma amazonense, herdeira de proprietário de seringais no rio Madeira,<br />
que estu<strong>do</strong>u em internato religioso. Em sua obra Beiradão, esses traços <strong>da</strong> família são<br />
reproduzi<strong>do</strong>s através <strong>da</strong>s personagens Fábio e sua esposa. Maia fez os primeiros estu<strong>do</strong>s<br />
com a mãe, que o alfabetizou, e depois, seguin<strong>do</strong> um roteiro comum à condição de filho de<br />
seringalista, completou os estu<strong>do</strong>s fora <strong>do</strong> Amazonas. Primeiramente, em Fortaleza e<br />
depois no Rio de Janeiro onde se bacharelou em Direito na Facul<strong>da</strong>de Livre de Ciências<br />
Jurídicas e Sociais.<br />
Conforme ressalta Santos, 61 Álvaro Maia veio a tornar-se uma liderança política<br />
estadual, quan<strong>do</strong> regressou <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s, por fazer parte ou ser oriun<strong>do</strong> de um grupo<br />
<strong>do</strong>minante local que lhe possibilitou, primeiramente, ocupar cargos públicos, como re<strong>da</strong>tor<br />
<strong>da</strong> Assembléia Legislativa, auditor <strong>da</strong> Força Policial <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Amazonas, Secretário <strong>da</strong><br />
Superintendência <strong>do</strong> Território Federal <strong>do</strong> Guaporé, Secretário <strong>da</strong> Comissão de Propagan<strong>da</strong><br />
e Organização <strong>do</strong> Centenário <strong>da</strong> Independência, Secretário <strong>da</strong> Municipali<strong>da</strong>de de Manaus,<br />
Diretor <strong>da</strong> Imprensa Pública.<br />
Contan<strong>do</strong> com apoio de setores tradicionais <strong>da</strong> economia local, liga<strong>do</strong>s ao comércio<br />
e ao extrativismo, Álvaro Maia é nomea<strong>do</strong> por Getúlio Vargas interventor federal <strong>do</strong><br />
Amazonas em 1930, sob a indicação de Juarez Távora, delega<strong>do</strong> federal <strong>do</strong> Norte. Essa<br />
interventoria foi exerci<strong>da</strong> apenas até 1931, quan<strong>do</strong> Maia foi exonera<strong>do</strong> por Vargas em<br />
virtude de ter dissolvi<strong>do</strong> o Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Amazonas, causan<strong>do</strong> descontentamento<br />
60 Sônia BRAYNER, Labirinto <strong>do</strong> espaço romanesco, p. 29.<br />
61 Eloína Monteiro <strong>do</strong>s SANTOS, Uma liderança política cabocla: Álvaro Maia, p. 22-3.<br />
91
entre a classe <strong>do</strong>s juízes, que recorreram a Vargas. Maia retorna ao poder em 1934,<br />
elegen<strong>do</strong>-se indiretamente governa<strong>do</strong>r constitucional <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Amazonas. Graças à<br />
formação de um secretaria<strong>do</strong> constituí<strong>do</strong> por parentes e coopta<strong>do</strong>s políticos, mantém-se no<br />
cargo. Em virtude <strong>do</strong> golpe político <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, em 1937, torna-se interventor federal<br />
e governa até a que<strong>da</strong> de Vargas, em 1945. Em 1946, é eleito sena<strong>do</strong>r constituinte. Por<br />
intermédio de eleições diretas, volta ao governo <strong>do</strong> Amazonas em 1951 e, em 1954, é<br />
derrota<strong>do</strong> em nova campanha política. Só consegue retornar ao cenário político em 1966,<br />
elegen<strong>do</strong>-se sena<strong>do</strong>r pela Aliança Renova<strong>do</strong>ra Nacional (ARENA).<br />
O elo com o seringal e a carreira política marcam a obra <strong>do</strong> escritor Álvaro Maia,<br />
sen<strong>do</strong> que o ambiente <strong>do</strong> seringal dá-lhe o conteú<strong>do</strong> e a política o delineamento ideológico.<br />
É o escritor amazonense que mais se voltou para os motivos enseja<strong>do</strong>s pela vi<strong>da</strong> no seringal<br />
e os motivos correlatos a ela. A maioria <strong>da</strong> produção abor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o seringal foi publica<strong>da</strong> a<br />
partir <strong>do</strong>s anos 1950, durante o retorno à literatura após as derrotas políticas. 62 Em 1956, é<br />
edita<strong>do</strong> Gente <strong>do</strong>s seringais; em 1958, Beiradão e Buzina <strong>do</strong>s Paranás; em 1963, Banco de<br />
Canoa; em 1966, Defuma<strong>do</strong>res e Porongas. Buzina <strong>do</strong>s Paranás destaca-se nessa série de<br />
narrativas por ser um livro de poemas, mas os motivos <strong>do</strong> seringal trabalha<strong>do</strong>s nos outros<br />
livros não estão ausentes, uma vez que o autor dedica também poemas à seringueira e a<br />
assuntos abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s nas demais obras, como, por exemplo, a figura <strong>da</strong> parintitin Narcisa,<br />
mãe de leite índia, ou aos aviões “Catalinas” que transportavam passageiros e cargas e<br />
levavam auxílio médico aos seringueiros.<br />
Existe uma continui<strong>da</strong>de nos assuntos abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s em Beiradão e nas demais obras.<br />
Uma vez que sua publicação é anterior à maioria delas, entendemos que o autor pretendeu<br />
des<strong>do</strong>brar o seu conteú<strong>do</strong> através <strong>do</strong>s outros livros. Aproveitan<strong>do</strong> um título que o escritor<br />
dá à quarta parte <strong>do</strong> livro Banco de canoa, podemos dizer que as narrativas conti<strong>da</strong>s em<br />
Beiradão e nas outras obras são “histórias que se repetem.”<br />
62 A estréia de Álvaro Maia no mun<strong>do</strong> <strong>da</strong>s letras se deu em 1904, aos onze anos, quan<strong>do</strong> foi publica<strong>do</strong> num<br />
jornal infantil o poema “Cabelos negros”, de sua autoria. Em 1925, foi escolhi<strong>do</strong> príncipe <strong>do</strong>s poetas<br />
amazonenses no concurso promovi<strong>do</strong> pela revista Redenção. Ten<strong>do</strong> ti<strong>do</strong> seus textos poéticos publica<strong>do</strong>s em<br />
jornais, só veio a reuni-los em livro em 1958, sob o título Buzina <strong>do</strong>s paranás. Durante as déca<strong>da</strong>s de 1950 e<br />
1960, publica os livros conten<strong>do</strong> narrativas e o romance Beiradão. O autor colaborou com a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />
Socie<strong>da</strong>de Amazonense de Letras, posteriormente denomina<strong>da</strong> Academia Amazonense de Letras.<br />
92
Conten<strong>do</strong> crônicas sobre acontecimentos e pessoas liga<strong>da</strong>s ao desbravamento de<br />
regiões às margens <strong>do</strong>s rios amazônicos 63 e histórias prosaicas sobre situações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
interiorana e <strong>do</strong>s seringais, as figuras que aparecem nas narrativas são quase sempre as<br />
mesmas: pobres, figurões poderosos, religiosos. A vi<strong>da</strong> no interior é registra<strong>da</strong> através de<br />
manobras políticas, apadrinhamento, vinganças passionais, disputa e abuso de poder. O<br />
autor também procura captar aspectos culturais como crenças, seres lendários. Há nas<br />
histórias abor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> as relações políticas interioranas a preponderância <strong>da</strong> noção de que a<br />
não aderência a um grupo político pode resultar em perseguições e enxovalhamentos. Já as<br />
histórias envolven<strong>do</strong> religiosos geralmente abor<strong>da</strong>m sua casti<strong>da</strong>de, honesti<strong>da</strong>de ou<br />
desonesti<strong>da</strong>de.<br />
A identificação entre Beiradão e as demais obras dá-se também por intermédio de<br />
personagens comuns. Fabrício e velho Unias são os conta<strong>do</strong>res de histórias; velha Romana,<br />
Zé <strong>do</strong>s Espíritos, os curandeiros; Narcisa, a ama de leite índia. Personagens como Fábio,<br />
Sega<strong>da</strong>is e padre Silveira constituem uma síntese de personagens de outras obras à medi<strong>da</strong><br />
que representam respectivamente o bom pioneiro, o arrivista e o missionário.<br />
Álvaro Maia atribui uma autoria coletiva às narrativas conti<strong>da</strong>s em obras como<br />
Gente <strong>do</strong>s seringais, Beiradão, Banco de canoa e Defuma<strong>do</strong>r,es e porongas. Em Gente <strong>do</strong>s<br />
seringais, informa que reduziu narrativas ouvi<strong>da</strong>s de seringueiros e hinterlandinos a textos<br />
escritos que pudessem ser compreendi<strong>do</strong>s pelos próprios narra<strong>do</strong>res. Para tanto, amol<strong>do</strong>u-as<br />
à “[...] tessitura ductil <strong>do</strong>s narra<strong>do</strong>res, fugin<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> possível, ao „latim <strong>do</strong> padre e <strong>do</strong><br />
advoga<strong>do</strong>‟[...].” 64 Entretanto, declara ter modifica<strong>do</strong> o “colori<strong>do</strong> <strong>da</strong>s tragédias passionais”<br />
que pudessem se apresentar como obscenas. Eximin<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> autoria, considera-se um<br />
“mero compila<strong>do</strong>r”. Nas demais obras, repetem-se as mesmas justificativas no senti<strong>do</strong> de<br />
atribuir as narrativas à imaginação popular. A veraci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s obras é outro ponto sempre<br />
destaca<strong>do</strong>.<br />
A intenção <strong>do</strong> autor de atribuir a autoria <strong>da</strong>s narrativas a uma coletivi<strong>da</strong>de explicita<br />
uma preocupação de não se colocar como cria<strong>do</strong>r de acontecimentos que, segun<strong>do</strong> sua<br />
percepção, devem-se ao barbarismo <strong>do</strong> início <strong>do</strong> processo de desbravamento:<br />
63 Em Gente <strong>do</strong>s seringais, Álvaro Maia esclarece que as narrativas que compõem o livro se passam na região<br />
<strong>do</strong> Médio Madeira na confrontação com os rios Maici, Macha<strong>do</strong> e Jamari, à margem direita, e com os rios<br />
menores como o Puruzinho e o Mucuim, à margem esquer<strong>da</strong>. Depreende-se nas demais obras a mesma<br />
localização.<br />
93
Certas narrações prendem-se aos tormentos sexuais nas selvas, quan<strong>do</strong><br />
povoa<strong>da</strong>s exclusivamente por homens, sem refrigeração de mulheres. Surgiram<br />
tremen<strong>da</strong>s crises, - raptos e crimes sangrentos, assunto exauri<strong>do</strong> pelos<br />
estudiosos. Evoquei alguns instantes de intenso realismo, revivescen<strong>do</strong>, em<br />
tintas escassas, e sem colori<strong>do</strong> descritivo, os dramas e os imprevistos<br />
patológicos, raros após a incipiente formação geo-social dêstes últimos tempos,<br />
na hiléia fragmenta<strong>da</strong> pelas ânsias de estruturação. 65<br />
O autor, dessa forma, demonstra uma consciência <strong>do</strong> impacto <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>da</strong> obra<br />
e, por isso, torna-se um media<strong>do</strong>r entre sua produção e o público. Conforme observa Sartre,<br />
a mediação reflexiva <strong>do</strong> autor remonta ao fim <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média e se acentua no romance<br />
burguês <strong>do</strong> século XIX. Anteriormente, o autor limitava-se ao ato de narrar e não procedia<br />
uma reflexão sobre a sua função de autor, “[...] os temas de seus relatos eram quase to<strong>do</strong>s<br />
de origem folclórica, ou ao menos coletiva, e ele se limitava a utilizá-los [...]. 66 Ain<strong>da</strong> que<br />
Maia ponha-se como um mero compila<strong>do</strong>r <strong>da</strong> imaginação popular, é possível identificar em<br />
suas narrativas uma ponderação de autor instruí<strong>do</strong> sobre o conteú<strong>do</strong> de cunho não culto que<br />
afirma compilar. A inserção de suas convicções políticas em muitas dessas narrativas atesta<br />
que procedeu um trabalho de elaboração consciente.<br />
Sartre aponta o momento em que o conteú<strong>do</strong> <strong>da</strong> narrativa, suas palavras, era ti<strong>do</strong><br />
como as próprias coisas que designava como de um “realismo objetivo e metafísico” e o<br />
distingue <strong>do</strong> “idealismo literário” em que a substância <strong>do</strong> relato é a subjetivi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> autor.<br />
Neste último, “[...] a história que se oferece ao público tem como característica principal o<br />
fato de já estar pensa<strong>da</strong>, isto é, classifica<strong>da</strong>, ordena<strong>da</strong>, po<strong>da</strong><strong>da</strong>, esclareci<strong>da</strong> [...]. 67<br />
Beiradão realiza-se intermediariamente entre a feição <strong>do</strong> romance burguês e a<br />
narrativa. A distinção entre essas categorias é posta por Walter Benjamin ao apontar a<br />
procedência <strong>da</strong> narrativa <strong>da</strong> tradição oral ou <strong>da</strong> experiência relata<strong>da</strong> por terceiros e a<br />
limitação <strong>do</strong> romance ao indivíduo isola<strong>do</strong>. 68<br />
64<br />
Álvaro MAIA. Introdução, In: Gente <strong>do</strong>s seringais, p. 14.<br />
65<br />
Ibid., p. 15.<br />
66<br />
Jean-Paul SARTRE, O que é literatura?, p. 104.<br />
67<br />
Ibid., p.105.<br />
68<br />
Walter BENJAMIN, O narra<strong>do</strong>r: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:Walter BENJAMIN,<br />
Magia e técnica, arte e política (ensaios sobre literatura e história <strong>da</strong> cultura), p. 201.<br />
94
Destacamos que Álvaro Maia atribui a origem <strong>da</strong>s narrativas aos seringueiros e<br />
mora<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s margens <strong>do</strong>s rios, colocan<strong>do</strong>-se como o compila<strong>do</strong>r que reduziu a textos<br />
escritos esse repertório de histórias transmiti<strong>da</strong>s oralmente. Beiradão apresenta uma<br />
quanti<strong>da</strong>de expressiva de pequenas histórias cujos assuntos muitas vezes não se limitam aos<br />
tópicos correntes sobre o seringal. Nelas, o fabulário nordestino soma-se ao caboclo. Os<br />
assuntos inerentes ao dia-a-dia <strong>do</strong> seringal se tornam menos exclusivos, o que não impede<br />
que o romance realize uma visão sobre o “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”.<br />
A uni<strong>da</strong>de que dá ao mosaico de narrativas uma constituição de romance é<br />
estabeleci<strong>da</strong> pelo protagonista Fábio e sua trajetória de retirante a seringalista. Ao mesmo<br />
tempo que possui uma história independente, Fábio também é o elo de condução <strong>da</strong>s<br />
narrativas paralelas, exercen<strong>do</strong> o papel de um ouvinte.<br />
Beiradão é organiza<strong>do</strong> em três partes: Bamburral, Serras e Centros e Beiradão.<br />
Segun<strong>do</strong> o autor, em nota preambular, o beiradão caracteriza “[...] a margem <strong>do</strong>s rios<br />
principais, onde se fixaram os primeiros desbrava<strong>do</strong>res e permaneceram os seus<br />
descendentes”. 69 O bamburral é descrito no decorrer <strong>do</strong> romance através de uma analogia:<br />
“A socie<strong>da</strong>de em formação imitava aqueles bamburrais. Na aparência, era serena, como<br />
uma orquestração de sanhaços, mas, por outro la<strong>do</strong>, oscilavam em ousadias e ambições. 70<br />
Essa divisão espacial <strong>do</strong> romance remete a uma divisão temporal <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, ten<strong>do</strong> em vista<br />
que a primeira parte trata <strong>do</strong> início <strong>do</strong> desbravamento através <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> de pioneiros,<br />
entre eles, as personagens de Fábio, Sega<strong>da</strong>is e Padre Silveira. Serras e Centros representa<br />
o perío<strong>do</strong> intermediário, abor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o auge e o princípio <strong>do</strong> declínio <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>. Enquanto, na<br />
primeira parte, o protagonista Fábio deixa o Amazonas após ter acumula<strong>do</strong> algum dinheiro,<br />
trabalhan<strong>do</strong> como recensea<strong>do</strong>r para um coronel seringalista e volta ao Ceará, a Segun<strong>da</strong><br />
parte marca o seu retorno e estabelecimento definitivo no Amazonas, tornan<strong>do</strong>-se pequeno<br />
proprietário de seringal. O romance demonstra que, por ser pequeno proprietário e investir<br />
em meios alternativos, como a agricultura e a pequena criação, Fábio resiste e não se<br />
arruína totalmente com a crise.<br />
A terceira parte <strong>do</strong> livro apresenta o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal pós-crise. O bamburral e o<br />
beiradão especificam ain<strong>da</strong> a ín<strong>do</strong>le <strong>do</strong>s desbrava<strong>do</strong>res. Aqueles que se alocaram nos<br />
69 Álvaro MAIA, Beiradão, p. 23.<br />
70 Ibid., p. 161.<br />
95
amburrais exploraram a terra sem com ela criar vínculos, já aqueles que se instalaram nos<br />
beiradões tornaram-se os elementos que se fixaram na terra e nela permaneceram mesmo<br />
quan<strong>do</strong> se desencadeou a crise.<br />
Apesar de a fun<strong>da</strong>mentação <strong>do</strong> romance estar calca<strong>da</strong> na figura de Fábio e de sua<br />
atuação dentro <strong>do</strong> que representa o <strong>ciclo</strong>, o enre<strong>do</strong> se inicia com a personagem Sega<strong>da</strong>is.<br />
Estu<strong>da</strong>nte de direito, mais interessa<strong>do</strong> em ganhar dinheiro <strong>do</strong> que em seguir o rumo traça<strong>do</strong><br />
pelo professor de “levar justiça às massas desampara<strong>da</strong>s”, Sega<strong>da</strong>is se ajusta aos<br />
procedimentos dita<strong>do</strong>s pelos poderosos coronéis de barranco, consciente de que dessa<br />
atitude depende o êxito de sua carreira:<br />
Nas sedes municipais, o profissional tinha de reagir à politicagem, filian<strong>do</strong>-se,<br />
sem entusiasmo, às hostes <strong>do</strong> governo, representa<strong>da</strong>s pelo coronel barranqueiro,<br />
cuja autori<strong>da</strong>de pairava acima <strong>do</strong> superintendente.<br />
Sega<strong>da</strong>is resistiu, mas teve, ante a inutili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s esforços, de babujar no<br />
cocho, onde babujavam o médico, o dentista e o vigário [...]<br />
Diabo! Não viera tomar banhos salga<strong>do</strong>s nos altos rios <strong>do</strong> inferno e sim arranjar<br />
dinheiro, supremo sonho <strong>do</strong> bacharel pobre no pouco movimenta<strong>do</strong> foro<br />
local. 71<br />
Sega<strong>da</strong>is é o emblema de profissionais (engenheiros, advoga<strong>do</strong>s, médicos) que,<br />
recém-forma<strong>do</strong>s, vêm tentar carreira fora <strong>do</strong>s grandes centros e fin<strong>da</strong>m por ter de se<br />
submeter ao jugo <strong>do</strong> poder local, mas, como seringueiros, comerciantes, almejam acumular<br />
riqueza. Não ten<strong>do</strong> o destino ata<strong>do</strong> à escravidão <strong>do</strong> seringal, valem-se <strong>do</strong> oportunismo,<br />
casan<strong>do</strong>-se com a filha de algum potenta<strong>do</strong> ou partem, como Sega<strong>da</strong>is, para outras<br />
alternativas, “[...] enganan<strong>do</strong> bolivianos, transpon<strong>do</strong> cachoeiras nas janga<strong>da</strong>s, imaginan<strong>do</strong><br />
diversões para os seringueiros, centralizan<strong>do</strong>-os em torno às la<strong>da</strong>inhas.” 72 Fica, assim,<br />
caracteriza<strong>da</strong> essa personagem como o arrivista. Move-o o desejo de ganhar dinheiro e não<br />
o espírito de estabili<strong>da</strong>de. Mas, conforme é demonstra<strong>do</strong> nas obras de Álvaro Maia através<br />
de outras personagens, Sega<strong>da</strong>is também é afeta<strong>do</strong> pelo “banzo <strong>da</strong> floresta”. No romance,<br />
essa situação é descrita como um esta<strong>do</strong> em que aqueles que retornavam as suas terras<br />
71 Álvaro MAIA, Beiradão, p. 28-29.<br />
72 Ibid., p. 90.<br />
96
[...] enfermavam <strong>da</strong> alma. Ouviam o murmúrio <strong>da</strong>s selvas brutas, o bater <strong>do</strong><br />
vento nas praias ondula<strong>da</strong>s, em cujos baixios os peixes se empilhavam aos<br />
cardumes, as chuvas sem-fim [...] A mesma nostalgia <strong>do</strong> marujo que não se<br />
acostuma à terra firme, e <strong>do</strong> catequista, que retorna às malocas ameaça<strong>do</strong> de ser<br />
morto pelos índios. 73<br />
Paralelamente ao perfil aventureiro de Sega<strong>da</strong>is, está a persongagem Padre Silveira,<br />
representan<strong>do</strong> a presença religiosa no processo de desbravamento desencadea<strong>do</strong> pela<br />
extração <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>. Gondim destaca que as figuras <strong>do</strong> aventureiro, <strong>do</strong> missionário e <strong>do</strong><br />
abnega<strong>do</strong> são comuns ao processo de conquista <strong>da</strong> Amazônia. 74 Padre Silveira, por seu<br />
turno, acumula o papel duplo <strong>do</strong> missionário e <strong>do</strong> aventureiro no senti<strong>do</strong> de que o motiva o<br />
mesmo senso de oportunismo de Sega<strong>da</strong>is, levan<strong>do</strong>-o a aproveitar-se <strong>do</strong> sacerdócio para<br />
amealhar recursos em proveito próprio. A principal causa que se apresenta no romance para<br />
os desvios <strong>do</strong> padre, que flerta com as mulheres casa<strong>da</strong>s e aproveita-se <strong>da</strong> boa fé <strong>do</strong>s<br />
seringueiros e <strong>da</strong> população interiorana, são os efeitos <strong>do</strong> meio, os quais o levam a agir de<br />
maneira diferencia<strong>da</strong>:<br />
[...] Fábio sustentava que a honesti<strong>da</strong>de, até nos sacer<strong>do</strong>tes, depende <strong>do</strong><br />
ambiente. Fácil a comparação: Padre Silveira, como vigário na serra,<br />
espalhan<strong>do</strong> confissões em seu cavalo chouta<strong>do</strong>r, beben<strong>do</strong> copos de leite<br />
mugi<strong>do</strong>, e Padre Silveira nos seringais, comen<strong>do</strong> tambaquis com pimenta,<br />
senta<strong>do</strong> em rede macia de Zefa Mixira, enquanto o pesca<strong>do</strong>r estava no lago e os<br />
curumins na roça. Não há dúvi<strong>da</strong>s: a honesti<strong>da</strong>de depende também <strong>do</strong><br />
ambiente. 75<br />
Nos trabalhos de desobriga pelo Amazonas, instalan<strong>do</strong> o altar portátil onde for<br />
conveniente para batizar pagãos, dizer missa, sacramentar uniões, Padre Silveira demonstra<br />
serie<strong>da</strong>de, usan<strong>do</strong> a batina e a coroa. Fin<strong>da</strong>s as obrigações <strong>do</strong> sacerdócio, trata de<br />
comercializar clandestinamente com os regatões a <strong>borracha</strong> e os demais produtos recebi<strong>do</strong>s<br />
73 Álvaro MAIA, Beiradão, p. 72.<br />
74 Neide GONDIM. Dos bamburrais aos beiradões. In: Álvaro MAIA, Beiradão, p. 19.<br />
75 Álvaro MAIA, Beiradão, p. 174.<br />
97
em <strong>do</strong>ação pelos fiéis. O lucro sobrepõe-se aos escrúpulos sacer<strong>do</strong>tais; quan<strong>do</strong> estão em<br />
jogo os seus ganhos, os peca<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s fiéis diminuem de importância. A sua noção de peca<strong>do</strong><br />
distingue os de menor e maior gravi<strong>da</strong>de, esses últimos os ver<strong>da</strong>deiros. Entre os peca<strong>do</strong>s<br />
ver<strong>da</strong>deiros, está o adultério que ele próprio aju<strong>da</strong> as mulheres a praticarem. Não teme,<br />
porém, confessá-lo ao Monsenhor, confiante na justificativa de que o ambiente é o<br />
responsável pelos excessos.<br />
Tanto Padre Silveira quanto Sega<strong>da</strong>is opõem-se à personagem Fábio Moura. Essas<br />
três personagens recebem um tratamento individualiza<strong>do</strong> no romance, que é entrecorta<strong>do</strong><br />
por episódios em que surgem dezenas de personagens em casos diretamente relaciona<strong>do</strong>s<br />
ao seringal ou à vi<strong>da</strong> interiorana. A história principal <strong>do</strong> romance é protagoniza<strong>da</strong> por Fábio<br />
e refere-se desde a sua migração até o perío<strong>do</strong> pós-crise que enfrenta como seringalista.<br />
No que diz respeito à história principal vivi<strong>da</strong> pela personagem Fábio, o enre<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
romance não segue uma ordenação rigorosamente linear. O início <strong>da</strong> narrativa apresenta<br />
Fábio inseri<strong>do</strong> no trabalho de recenseamento e fiscalização <strong>do</strong>s seringais <strong>do</strong> coronel<br />
Francisco Moreira, viajan<strong>do</strong> a bor<strong>do</strong> de batelões ao longo <strong>do</strong>s rios. A partir <strong>da</strong> seção “D”<br />
desta primeira parte, a é interrompi<strong>da</strong> e conta-se a história pregressa de Fábio. No Crato,<br />
sua carreira de seminarista determina<strong>da</strong> pelo pai é interrompi<strong>da</strong> em virtude <strong>da</strong> rigorosa seca<br />
<strong>do</strong> fim <strong>do</strong> século XIX. Ele tem, então, dezoito anos. Após esses esclarecimentos sobre sua<br />
origem, aspectos culturais de seu ambiente familiar e sobre sua decisão de aban<strong>do</strong>nar o<br />
Ceará, a narrativa torna ao momento em que Fábio se acha trabalhan<strong>do</strong> para o coronel<br />
Moreira. Mais adiante, ain<strong>da</strong> na segun<strong>da</strong> parte <strong>do</strong> romance, colhe-se uma sumarização <strong>do</strong><br />
roteiro de vi<strong>da</strong> segui<strong>do</strong> por Fábio depois de aban<strong>do</strong>nar o seminário e partir de sua terra:<br />
Fábio Moura coletava observações curiosas, que lhe feriam a vi<strong>da</strong> acidenta<strong>da</strong><br />
de vinte e <strong>do</strong>is anos. Viera de longe, cortara os primórdios <strong>da</strong> educação<br />
seminária, palmeara caminhos sertanejos, com aglomerações amontoa<strong>da</strong>s de<br />
retirantes, hospe<strong>da</strong>rias de Fortaleza e Belém, cabeças-de-porco de Manaus,<br />
viagens em cargueiros <strong>do</strong> Lóide, nos gaiolas, motores, batelões, canoas e ubás.<br />
Campos, terra firme, alagações, águas cristalinas <strong>da</strong>s chuvas, águas escuras <strong>do</strong><br />
Macha<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s igarapés, águas <strong>do</strong>s igapós e charcos, águas <strong>do</strong> Madeira. 76<br />
98
Ao fim <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> parte <strong>do</strong> romance, Fábio viaja de retorno ao Ceará, ten<strong>do</strong><br />
acumula<strong>do</strong> uma considerável experiência nos bamburrais através <strong>do</strong> trabalho de<br />
recenseamento. Conhecera a reali<strong>da</strong>de, muitas vezes grotesca, <strong>do</strong>s centros onde famílias<br />
morriam à míngua ataca<strong>da</strong>s pelas febres, permanecen<strong>do</strong> os corpos aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s nas<br />
barracas para banquete <strong>da</strong>s varejeiras, mucuras e urubus; acompanhara a saga de pioneiros<br />
no desbravamento <strong>da</strong>s áreas inóspitas e admirava os que se tornavam proprietários às custas<br />
<strong>do</strong> próprio suor; conhecera a selva além <strong>do</strong> registro nos livros e, ao contrário <strong>do</strong> que lera<br />
sobre o seu a<strong>do</strong>rmecimento, descobrira que ela jamais <strong>do</strong>rmia; ouvira histórias escabrosas<br />
de crimes passionais e de vinganças e histórias sobre extorsão, fuga e revolta nos seringais;<br />
acompanhara as ingerências políticas abusivas <strong>do</strong>s coronéis no trato com os adversários e<br />
os eleitores.<br />
Em sua terra, apercebe-se de que, mesmo ten<strong>do</strong> ali nasci<strong>do</strong>, cursa<strong>do</strong> o seminário e<br />
possuin<strong>do</strong> terras que lhe foram deixa<strong>da</strong>s de herança para administrar, os bamburrais o<br />
haviam seduzi<strong>do</strong> e o chamavam de volta. Teria de cumprir a missão de “[...] desbravar o<br />
Amazonas, incorporar os seringais ao movimento econômico <strong>do</strong> Vale [...].” 77 Imbuí<strong>do</strong><br />
dessa missão e também afeta<strong>do</strong> pelo banzo <strong>da</strong> floresta, Fábio retorna para, desta vez,<br />
instalar-se definitivamente. Casa-se com a filha de um seringalista e com ela divide a<br />
abnega<strong>da</strong> dedicação à terra, fun<strong>da</strong>n<strong>do</strong> uma escola que recebe gratuitamente os alunos. Só<br />
não consegue manter-se isola<strong>do</strong> <strong>do</strong> jogo político local. O quadro em que o indivíduo se<br />
sente encurrala<strong>do</strong> e é obriga<strong>do</strong> a aderir às hostes políticas locais é reiterativo nas narrativas<br />
de Álvaro Maia. Em Beiradão, ilustra-o a seguinte passagem:<br />
76<br />
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 160.<br />
77<br />
Ibid., p. 171.<br />
[...] A politicagem era um retiário: os venci<strong>do</strong>s lhes caíam nas malhas, que se<br />
apertavam mais e mais, até a asfixia e o estrangulamento. Improvisavam-se<br />
imaginários crimes, perseguiam-nos em qualquer empresa que exercessem,<br />
demiti<strong>do</strong>s de funções públicas, calunia<strong>do</strong>s na vi<strong>da</strong> pública e priva<strong>da</strong>, e, ao fim,<br />
não escapavam de sovas e exílios disfarça<strong>do</strong>s, impostos por implacáveis<br />
perseguições. Não podiam resistir à deban<strong>da</strong><strong>da</strong> nas ci<strong>da</strong>des às vinditas<br />
tributárias e comerciais. Multiplicavam-se os impostos; executavam-se os<br />
atrasa<strong>do</strong>s, em prazos sumários; as embarcações, por precaução, não lhes<br />
99
100<br />
tocavam nos portos. Nas vilas, se comerciantes, sofriam bloqueio oficial, e<br />
poucos lhes compravam as merca<strong>do</strong>rias.<br />
- O chefe não quer!<br />
Procuravam-nos à noite, passan<strong>do</strong> ao longe sem pagar as dívi<strong>da</strong>s. Se residiam<br />
num seringal, sofriam também feroz assédio. O camara<strong>da</strong> resistia algum tempo,<br />
mas não poderia ficar nesse crescente prejuízo e cedia. Transferia-se ao parti<strong>do</strong><br />
situacionista, assinan<strong>do</strong>-lhe uma ficha, e tu<strong>do</strong> se modificava. Impostos<br />
reduzi<strong>do</strong>s, taxações desclassifica<strong>da</strong>s, recomen<strong>da</strong>ções ao coletor, silêncio ou<br />
elogios nos jornais. Perdia as fumaças de rebeldia, calava-se renden<strong>do</strong> graças<br />
por não ser surra<strong>do</strong> ou expulso de sua proprie<strong>da</strong>de. 78<br />
Fábio mantém seu seringal, procuran<strong>do</strong> não criar desafetos. Para tanto, equilibra-se<br />
entre a vi<strong>da</strong> de pequeno proprietário rural e a execução de algumas funções públicas que as<br />
relações políticas lhe impõem e não lhe é conveniente recusar. O seu entendimento sobre a<br />
distorção <strong>da</strong> política, a politicagem, no entanto, está estabeleci<strong>do</strong>: “[...] Servia-a para servir<br />
a amigos; suportava-a para não querer parecer melhor que os outros [...].” 79 Fechan<strong>do</strong> os<br />
olhos para as hipocrisias políticas, vai tocan<strong>do</strong> sua pequena proprie<strong>da</strong>de. A missão de<br />
educar os filhos preocupa-o mais que a obtenção de lucros. Com a pouca produção de<br />
<strong>borracha</strong>, cobre as despesas essenciais, o que demonstra lhe bastar, apesar <strong>da</strong>s críticas feitas<br />
por Sega<strong>da</strong>is e Padre Silveira, apontan<strong>do</strong> sua falta de ambição.<br />
A feição diferencia<strong>da</strong> de seringalista apresenta<strong>da</strong> por Fábio é destaca<strong>da</strong><br />
ironicamente pelo narra<strong>do</strong>r que o qualifica com jeito de pai de santo ao invés de<br />
comerciante. Seu procedimento de receber to<strong>do</strong>s que lhe batem à porta, corrigin<strong>do</strong> contas,<br />
len<strong>do</strong> e responden<strong>do</strong> cartas e ouvin<strong>do</strong> histórias, dá-lhe ares de conselheiro.<br />
Precaven<strong>do</strong>-se contra tempos difíceis, Fábio constrói um pomar em que mistura<br />
espécies locais às <strong>do</strong> Pará e Nordeste e completa a sua defesa econômica com um pequeno<br />
rebanho. Nesta fase em que seu seringal prospera, surge uma epidemia de varíola nos<br />
seringais, levan<strong>do</strong>-o a enfrentá-la com a família. Com a atenuante de já terem ele e a<br />
mulher apanha<strong>do</strong> a <strong>do</strong>ença quan<strong>do</strong> crianças, conseguem isolar os filhos e prestam auxílio<br />
aos enfermos. À epidemia, sucede uma outra calami<strong>da</strong>de: a economia <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> entra em<br />
78 Álvaro MAIA, Beiradão, p. 178-9.<br />
79 Ibid., p. 181.
crise devi<strong>do</strong> às plantações no Oriente. Contu<strong>do</strong>, Fábio e outros pequenos proprietários<br />
unem-se para enfrentar a crise, recorren<strong>do</strong> às alternativas de sustentação econômica que<br />
haviam cria<strong>do</strong>. Já “[...] os grandes seringalistas não se haviam preocupa<strong>do</strong> com a lavoura e<br />
a pecuária: importavam sempre, porque a <strong>borracha</strong> <strong>da</strong>va para tu<strong>do</strong> [...].” 80 A lição tira<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
crise é o endivi<strong>da</strong>mento e a ruína <strong>do</strong>s grandes proprietários, que sofrem também a pressão<br />
<strong>do</strong>s seringueiros, os quais ameaçam revoltar-se devi<strong>do</strong> à suspensão de fornecimento de<br />
merca<strong>do</strong>rias. Inicia-se o êxo<strong>do</strong> de seringueiros principalmente nas regiões de seringais mais<br />
ricos, os <strong>do</strong>s rios <strong>do</strong> Alto: Macha<strong>do</strong>, Jamari e Preto. Nos seringais mais pobres, <strong>do</strong>s<br />
beiradões, onde os seringueiros haviam feito roças, há uma tendência a permanecerem na<br />
terra apesar <strong>da</strong> crise. O aventureiro, como Sega<strong>da</strong>is, novamente se prepara para partir, desta<br />
vez, tangi<strong>do</strong> pela falta de perspectiva na terra onde buscava recursos de forma imediatista:<br />
“[...] ninguém tinha a loucura de morrer sem proteção, sem amparo, sem financiamento,<br />
num Vale que retornava às condições primitivas <strong>do</strong> descobrimento [...]. 81 O romance<br />
acentua os posicionamentos opostos de Sega<strong>da</strong>is e de Fábio no momento <strong>da</strong> crise,<br />
determinan<strong>do</strong> o espírito arrivista de um e os princípios idealistas <strong>do</strong> outro:<br />
101<br />
Fábio amava as florestas e as águas. Alguém teria de ficar, porque aquele<br />
mun<strong>do</strong> verde não desapareceria, somente porque diminuía o preço de um<br />
produto. Outros produtos existiriam; outras explorações teriam de nascer;<br />
agitan<strong>do</strong> indústrias e industriais. O futuro não seria para <strong>da</strong>qui a cem anos; era<br />
um futuro que se desenhava bem perto, teci<strong>do</strong> no presente. A crise parecia uma<br />
seca; voltaria o inverno nordestino, limpan<strong>do</strong> o horizonte. Regressariam os<br />
fugitivos e encontrariam de pé, embora alquebra<strong>do</strong>s, os vultos que não se<br />
arre<strong>da</strong>ram <strong>do</strong>s portos bombardea<strong>do</strong>s, como alavancas de resistência. O<br />
comerciante não é o homem <strong>do</strong> imediatismo, mas um idealista na ação que<br />
desenvolve. Nem to<strong>do</strong>s se esforçam somente para ganhar dinheiro: abrem o<br />
caminho, como pioneiros, e milhares marcharão cantan<strong>do</strong> [...]. 82<br />
Temperamentos opostos têm também os seringueiros <strong>do</strong>s rios <strong>do</strong> Alto e os <strong>do</strong>s<br />
beiradões na relação com os patrões durante a crise. O primeiro caso é ilustra<strong>do</strong> na situação<br />
80 Álvaro MAIA, Beiradão, p. 223.<br />
81 Ibid., p. 266.<br />
82 Ibid., p. 266.
<strong>da</strong> personagem Coronel Moreira, o rico potenta<strong>do</strong> que perde o poder e o respeito que<br />
impunha aos seus trabalha<strong>do</strong>res. No segun<strong>do</strong> caso, está o seringalista representa<strong>do</strong> pela<br />
personagem Fábio, que consegue manter uma relação cordial com seus trabalha<strong>do</strong>res.<br />
Enquanto Fábio precisa intervir como media<strong>do</strong>r junto aos seringueiros <strong>do</strong> coronel para que<br />
não tomem de assalto o seringal deste, atentan<strong>do</strong> contra sua vi<strong>da</strong>; com os seus seringueiros,<br />
pode conversar francamente, revelan<strong>do</strong>-lhes a gravi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> situação “[...] porque ali tu<strong>do</strong><br />
era de to<strong>do</strong>s [...].” 83 Assim, os seus seringueiros, ao invés de exigirem pagamento e<br />
aban<strong>do</strong>narem o seringal, decidem permanecer ali mesmo, como o patrão, enfrentan<strong>do</strong> os<br />
tempos difíceis. Quan<strong>do</strong> a escassez de merca<strong>do</strong>rias se acentua, dificultan<strong>do</strong> a obtenção de<br />
produtos básicos para a sobrevivência, o aparecimento <strong>do</strong> regatão se registra como uma<br />
tábua de salvação para os náufragos que decidiram permanecer. Desse mo<strong>do</strong>, o narra<strong>do</strong>r<br />
destaca: “[...] fugiram os avia<strong>do</strong>res, os seringalistas, mas, na hora difícil, o tão amaldiçoa<strong>do</strong><br />
regatão vinha salvá-los [...]”. 84 Na consideração <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, essa era a ver<strong>da</strong>deira fase <strong>do</strong>s<br />
regatões, pois poderiam negociar com os pequenos seringalistas sem serem persegui<strong>do</strong>s e<br />
sem sofrerem fiscalização. Para o narra<strong>do</strong>r, portanto, os regatões, através de seu comércio<br />
ambulante, prestaram uma aju<strong>da</strong> aos hinterlandinos, evitan<strong>do</strong> a morte por <strong>do</strong>enças, uma vez<br />
que não lhes chegava qualquer assistência oficial.<br />
O enre<strong>do</strong> <strong>do</strong> romance prossegue arrolan<strong>do</strong> as conseqüências <strong>da</strong> crise na capital e nas<br />
regiões <strong>do</strong>s seringais de que são significativas as seguintes passagens:<br />
102<br />
Na capital em torpor, sacudi<strong>da</strong> pelo temporal, desapareceram os dias faustosos<br />
<strong>da</strong> queima de cédulas para acender cigarros: os comerciantes lutavam,<br />
desespera<strong>do</strong>s de receber os sal<strong>do</strong>s espalha<strong>do</strong>s no interior, pela simples razão de<br />
que, sem merca<strong>do</strong>rias, esse interior não poderia lutar. As sedes municipais eram<br />
uma cópia empobreci<strong>da</strong> <strong>da</strong> capital. 85<br />
..............................................................................................................................<br />
[...] Seringais, campos, embarcações, casas-de-farinha, engenhocas respondiam<br />
pelas dívi<strong>da</strong>s; agricultores perdiam as posses, onde lutaram anos e anos,<br />
tentativas de pequenas indústrias caseiras cediam aos impostos excessivos[...]<br />
[...]<br />
83<br />
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 288.<br />
84<br />
Ibid., p. 293.
103<br />
Choviam as execuções criminosas, sem uma providência aleatória e salva<strong>do</strong>ra.<br />
Seringais tornavam a florestas, sem ativi<strong>da</strong>de lucrativa, pois não encontravam<br />
novos explora<strong>do</strong>res; barracões desabavam, barracas emaranhavam-se nas<br />
trepadeiras; a capoeira <strong>do</strong>minava. Surgia o imprevisível: seringalistas, outrora<br />
prósperos, pediam um emprego aos mais abasta<strong>do</strong>s, ou ocupavam um pe<strong>da</strong>ço<br />
alagadiço <strong>da</strong> ilha para defender a vi<strong>da</strong> – derrubar a mata, plantar roça<strong>do</strong>s... 86<br />
Durante esse perío<strong>do</strong>, Fábio permanece em seu sítio seringal, sobreviven<strong>do</strong> às<br />
custas de sua cautela. À insistência de Padre Silveira de que deve aban<strong>do</strong>nar o Amazonas e<br />
voltar ao Ceará para <strong>da</strong>r educação completa aos filhos, argumenta a leal<strong>da</strong>de para com os<br />
que também decidiram ficar, seguin<strong>do</strong> seu exemplo. Partir, deixan<strong>do</strong>-os sós na dificul<strong>da</strong>de<br />
seria, para ele, traição. Diante de um convite que recebe para o filho estu<strong>da</strong>r num<br />
seminário, Fábio titubeia ao refletir que o menino, acostuma<strong>do</strong> a viver nas brenhas, não se<br />
amol<strong>da</strong>ria à missão eclesiástica, não possuiria a vocação necessária para ser um sacer<strong>do</strong>te<br />
virtuoso. Ademais, o próprio filho resiste a seguir esse caminho. O ambiente amazônico<br />
onde fora cria<strong>do</strong> é ti<strong>do</strong> como o principal fator negativo para a sua conversão. Entretanto,<br />
Fábio deseja que o filho tenha uma educação integral e por isso o menino segue com uma<br />
tia para a capital a fim de realizar os estu<strong>do</strong>s que apenas iniciara com as lições primárias <strong>da</strong><br />
mãe. Posteriormente, Fábio também se questiona sobre sua própria parti<strong>da</strong> para a ci<strong>da</strong>de e,<br />
consultan<strong>do</strong> a esposa, obtém dela a mesma convicção que sempre tiveram de permanecer<br />
no beiradão até o fim de suas vi<strong>da</strong>s.<br />
Quase ao fim <strong>do</strong> romance, o beiradão começa a <strong>da</strong>r sinais de recuperação <strong>da</strong> crise,<br />
atestan<strong>do</strong> um incipiente restabelecimento. Não é mais a extração <strong>da</strong> riqueza encontra<strong>da</strong><br />
abun<strong>da</strong>ntemente na natureza, especialmente o látex, que anuncia o soerguimento:<br />
85 Álvaro MAIA, Beiradão, p. 291-2.<br />
86 Ibid., p. 304-5.<br />
O beiradão povoava-se, povoaram-se as terras marginais às linhas telegráficas.<br />
Seringais em aban<strong>do</strong>no começaram a ser procura<strong>do</strong>s. Velhos seringueiros,<br />
fatiga<strong>do</strong>s de esforços an<strong>da</strong>rilheiros, apelavam também para a agricultura;<br />
tabaquistas e farinheiros, desiludiam-se <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s e se aboletavam nas terras
104<br />
férteis <strong>da</strong>s ilhas vizinhas. Notava-se diferença entre o ilheiro, independente em<br />
suas roças e bananais, e o seringueiro, verga<strong>do</strong> ao encarceramento <strong>da</strong>s matas. 87<br />
Seguin<strong>do</strong> essa perspectiva de restabelecimento, o sítio de Fábio também atinge uma<br />
prosperi<strong>da</strong>de, atestan<strong>do</strong> que “[...] havia tranqüili<strong>da</strong>de na pobreza, a fartura na relativi<strong>da</strong>de, a<br />
comprovação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no interior verde, afastan<strong>do</strong> o tabu <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> unicamente apega<strong>da</strong> ao<br />
extrativismo [...]”. 88 As ações de Fábio na administração de sua proprie<strong>da</strong>de comprovam<br />
ain<strong>da</strong> um planejamento racional, à medi<strong>da</strong> que não somente busca outras alternativas<br />
econômicas, mas também se previne de surpresas que possam ser causa<strong>da</strong>s pelos acidentes<br />
naturais próprios <strong>da</strong> estrutura geológica <strong>da</strong> região, plantan<strong>do</strong> cacauais em restingas altas,<br />
longe, portanto, <strong>da</strong>s margens afeta<strong>da</strong>s pelo fenômeno <strong>da</strong>s terras caí<strong>da</strong>s.<br />
Redenção é a palavra que resume o desfecho <strong>do</strong> romance, haja vista que a socie<strong>da</strong>de<br />
ressurgi<strong>da</strong> após a crise está “galvaniza<strong>da</strong> pelo sofrimento.” É também uma socie<strong>da</strong>de com a<br />
marca <strong>da</strong> hibri<strong>da</strong>ção, um Amazonas “cearensiza<strong>do</strong>” cujo casal representativo é Fábio e sua<br />
esposa.<br />
Beiradão é um romance que abrange integralmente o <strong>ciclo</strong> econômico <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>,<br />
<strong>da</strong> fase áurea à derroca<strong>da</strong>. Como as demais <strong>ficções</strong> <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, aponta a ilusão <strong>do</strong>s<br />
seringueiros com o processo de extração <strong>do</strong> látex, que os leva muitas vezes a consumir a<br />
vi<strong>da</strong> nas estra<strong>da</strong>s de corte e depois dissipar o sal<strong>do</strong> que, por ventura, tirem com gastos fúteis<br />
na ci<strong>da</strong>de, deixan<strong>do</strong> escapar a possibili<strong>da</strong>de de retornarem a sua terra; o endivi<strong>da</strong>mento<br />
inevitável com as despesas de viagem, instrumentos de trabalho e alimentação,<br />
comprometen<strong>do</strong> a possibili<strong>da</strong>de de sal<strong>do</strong> no primeiro ano de produção; a dura reali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />
centros, onde encontram a morte pelas febres; a disputa pelo sexo feminino; o bloqueio<br />
tropical, expressão utiliza<strong>da</strong> pelo narra<strong>do</strong>r para caracterizar a impossibili<strong>da</strong>de de fuga <strong>do</strong>s<br />
seringais, seja pelas barreiras impostas pelo ambiente, seja pelo consórcio <strong>do</strong>s patrões que<br />
se irmanavam na perseguição e captura <strong>do</strong>s foragi<strong>do</strong>s com o apoio <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des locais; e,<br />
conseqüente ao poder conjuga<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seringalistas, o desamparo e a submissão <strong>do</strong><br />
seringueiro que “[...] sente me<strong>do</strong> de autori<strong>da</strong>de. Olha-a, como quem olha uma fera,<br />
abestalha<strong>do</strong> e sem arma [...].” 89 Com isto, no romance, confirma-se “o man<strong>do</strong> indiscutível<br />
87<br />
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 344.<br />
88<br />
Ibid., p. 364.<br />
89<br />
Ibid., p. 152.
<strong>do</strong>s patrões”, especialmente aqueles que se estabeleceram nos rios Jamari, Macha<strong>do</strong> e<br />
afluentes <strong>do</strong> rio Madeira. A luta <strong>do</strong>s explora<strong>do</strong>res contra os índios é, por fim, outro aspecto<br />
reitera<strong>do</strong> em Beiradão.<br />
Entretanto, ao mesmo tempo em que o romance abor<strong>da</strong> os aspectos convencionais<br />
em torno <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, renova algumas <strong>da</strong>s suas tradicionais abor<strong>da</strong>gens literárias. Assim sen<strong>do</strong>,<br />
uma <strong>da</strong>s principais inovações apresenta<strong>da</strong>s é o rompimento <strong>do</strong> anátema que recai sobre o<br />
seringalista. A personagem Fábio sintetiza esse rompimento. Comparan<strong>do</strong>-a com modelos<br />
de seringalistas rudes, sem visão e tacanhos, cria<strong>do</strong>s em outras obras, é possível perceber o<br />
quanto diferem. Divergin<strong>do</strong> mesmo <strong>do</strong> tipo de explora<strong>do</strong>r que caracterizou o <strong>ciclo</strong>, Fábio<br />
não almeja tão somente obter lucro <strong>da</strong> terra, mas ocupá-la, implantan<strong>do</strong> uma forma de<br />
economia dura<strong>do</strong>ura, numa palavra, seu objetivo é criar raízes.<br />
A formação que irá possibilitar o perfil diferencia<strong>do</strong> à personagem Fábio é também<br />
oposta à <strong>da</strong>s demais personagens de seringalistas. Antes de se tornar um imigrante bani<strong>do</strong><br />
pela seca, foi seminarista o que lhe possibilitou se instruir: “Fábio deixara o internato em<br />
tempos rigorosos de catecismo e latim. Lia os seus clássicos, abeberava-se em História e<br />
Filosofia [...].” 90<br />
Mais <strong>do</strong> que um bom seringalista, a personagem Fábio encarna o pioneiro que se<br />
tornou proprietário, manten<strong>do</strong> uma posição arrazoa<strong>da</strong> sobre a exploração <strong>da</strong> terra,<br />
trabalhan<strong>do</strong> não apenas para extrair benefícios num momento presente, mas fazen<strong>do</strong> uma<br />
previsão para os dias futuros, <strong>da</strong> qual proprietários apoia<strong>do</strong>s na monocultura chegam a fazer<br />
pouco caso: “[...] Fábio esquematizou a sua resistência contra o temporal que se<br />
aproximava, - plantações de café, cacau, árvores frutíferas e roças, criação de ga<strong>do</strong>, suínos<br />
e galinhas. Alguns, julgan<strong>do</strong>-se mais atila<strong>do</strong>s, gracejavam dessas ativi<strong>da</strong>des sertanejas –<br />
seria melhor envere<strong>da</strong>r pelo Macha<strong>do</strong>, arren<strong>da</strong>r seringais e voltar rico [...]. 91<br />
Fábio também possui a faceta de abnega<strong>do</strong>, enfatiza<strong>da</strong> por sua postura de estar<br />
preocupa<strong>do</strong> em <strong>da</strong>r ganho aos outros ao invés de ganhar, de não saber cobrar nem valorizar<br />
os seus próprios esforços. O idealismo que manifesta, por sua vez, é efusivamente otimista,<br />
como quan<strong>do</strong> fala aos seus seringueiros, pedin<strong>do</strong>-lhes paciência nos momentos de crise:<br />
90 Álvaro MAIA, Beiradão, p. 180.<br />
91 Ibid., p. 200.<br />
105
“- Devem ter calma e esperança. Daqui a 50 anos, tu<strong>do</strong> mu<strong>da</strong>rá. Preparam esse tempo para<br />
nossos filhos, que terão liber<strong>da</strong>de, assistência médica, escolas.” 92 Essa percepção <strong>da</strong><br />
personagem harmoniza-se com o pensamento político de Álvaro Maia, o que pode ser<br />
observa<strong>do</strong> já através <strong>do</strong> discurso intitula<strong>do</strong> “Canção de fé e esperança”, proferi<strong>do</strong> em 1923,<br />
enseja<strong>do</strong> pela <strong>da</strong>ta comemorativa <strong>do</strong> centenário <strong>da</strong> adesão <strong>do</strong> Amazonas à Independência<br />
Nacional, ocorri<strong>da</strong> em 1823. Referin<strong>do</strong>-se ao amor que devota ao Esta<strong>do</strong>, declara:<br />
106<br />
[...] É esse amor que nos faz prever o Amazonas de <strong>do</strong>is mil e vinte e três,<br />
como uma pátria em que milhares de homens, uni<strong>do</strong>s pelo mesmo afeto,<br />
celebram uma nova era, sustentan<strong>do</strong>, por seu poder financeiro, uma potência<br />
econômica formidável, cujas cariátides serão as fábricas planta<strong>da</strong>s nos campos,<br />
os armazéns com incalculáveis valores, as ci<strong>da</strong>des debruça<strong>da</strong>s à margem <strong>do</strong>s<br />
rios nervosos e barrentos. As estra<strong>da</strong>s de ferro comunicarão os afluentes entre<br />
si e porão em contato os reservatórios de riquezas, que se prolongam <strong>do</strong> Rio<br />
Branco aos campos-gerais <strong>do</strong> Madeira [...] 93<br />
As críticas que Álvaro Maia empreende no mesmo discurso à falta de um trabalho<br />
efetivo de cultivo <strong>da</strong> terra são assinala<strong>da</strong>s também pelo narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> romance ao destacar<br />
uma “[...] terra em que não se plantava, não se criava, importan<strong>do</strong>-se sempre e destruin<strong>do</strong><br />
as reservas naturais.” 94 Outros pontos de confluência que também podemos notar é a<br />
exaltação <strong>do</strong> nordestino, o “nobre bandeirante <strong>do</strong> nordeste”, aponta<strong>do</strong> como herói <strong>do</strong><br />
desbravamento, e a denúncia <strong>do</strong> descaso governamental em relação ao Esta<strong>do</strong>. Tanto a<br />
crítica quanto a exaltação presentes no discurso justificam plenamente a arquitetura de uma<br />
personagem como Fábio, um nordestino que demonstra amor à terra para a qual se<br />
transplantou, que constrói e administra sua proprie<strong>da</strong>de com base na racionali<strong>da</strong>de, que ao<br />
invés de inimigo se transforma num parceiro <strong>da</strong>queles que para ele trabalham. A idéia <strong>da</strong><br />
cooperação entre patrões e emprega<strong>do</strong>s que podemos depreender <strong>da</strong> postura de Fábio,<br />
patrão que se soli<strong>da</strong>riza com seus trabalha<strong>do</strong>res, está em afinação com a política trabalhista<br />
92 Álvaro MAIA., Beiradão, p. 199.<br />
93 Álvaro MAIA, Canção de fé e esperança. In: Revista UBE-Amazonas (Álvaro Maia – Poliantéia), p. 150.<br />
94 Idem, Beiradão, p. 193.
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo que, como lembra Santos, postulava “a ausência <strong>do</strong>s conflitos entre patrões<br />
e trabalha<strong>do</strong>res [...].” 95<br />
Figuran<strong>do</strong> sempre como oponente, o seringalista não teve na ficção <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> o status<br />
de protagonista. A nomeação de protagonista em relação à personagem Fábio deve ser<br />
estabeleci<strong>da</strong> a partir de algumas considerações. Ela pode ser toma<strong>da</strong> como uma figura<br />
central por ter destaque em relação às demais personagens, especialmente no que diz<br />
respeito à história principal, sen<strong>do</strong> Beiradão uma narrativa que se divide em muitas<br />
histórias paralelas. No que diz respeito ao herói como um ser problemático que enfrenta<br />
adversi<strong>da</strong>des e busca entender-se no mun<strong>do</strong> ou numa socie<strong>da</strong>de de que faz parte, Fábio<br />
representa uma categoria e não um ser individualiza<strong>do</strong>, pois não enfrenta situações que o<br />
ponham em choque com forças opostas as suas e não ostenta maiores transformações de sua<br />
personali<strong>da</strong>de. Sen<strong>do</strong> assim, não tem oponentes mas contrapontos como Sega<strong>da</strong>is e Padre<br />
Silveira, personagens com posturas diferentes <strong>da</strong> sua, mas com as quais não entra em<br />
conflito. Mesmo em relação aos seringalistas de papel oposto ao seu, não se cria um<br />
antagonismo, uma vez que admira sua função de desbrava<strong>do</strong>res. Em síntese, Fábio é um<br />
modelo ideal de seringalista em contraponto a um modelo cruel ou bruto. Desde o princípio<br />
<strong>do</strong> romance, sua personali<strong>da</strong>de já está traça<strong>da</strong> para atender a esse modelo.<br />
A criação de Fábio como um modelo ideal de seringalista não leva a uma tendência<br />
generaliza<strong>da</strong> <strong>da</strong> bonomia de to<strong>do</strong>s os seringalistas apresenta<strong>do</strong>s no romance. O autor não<br />
assume uma defesa intransigente <strong>do</strong> seringalista, propõe uma faceta alternativa para o<br />
patrão <strong>do</strong>s seringais.<br />
A indicação <strong>da</strong><strong>da</strong> no romance de que o seringalista rude, sem visão e planejamento,<br />
é responsável pelo fracasso <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> econômico, torna claro o papel alternativo<br />
desempenha<strong>do</strong> por Fábio e está exemplifica<strong>da</strong> na personagem <strong>do</strong> coronel Moreira,<br />
endivi<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se e não preven<strong>do</strong> a crise ou em Valério Liras,<br />
107<br />
[...] exporta<strong>do</strong>r de tonela<strong>da</strong>s de <strong>borracha</strong> e centenas de hectolitros de castanha,<br />
sem uma escola, uma assistência médica, sem educar um filho de seringueiro.<br />
Viagens, luxo, larguezas, mesa com vinhos, e na<strong>da</strong> para os pobres. Somente<br />
sol, frio, nudez, barraca escura. Len<strong>do</strong> pouco, tivera coragem, faro canino para<br />
95 Eloína Monteiro <strong>do</strong>s SANTOS, Uma liderança política cabocla: Álvaro Maia, p. 114.
108<br />
negócios e pouco ligava à defesa <strong>da</strong> terra. Não incentivava roça<strong>do</strong>s, agricultura,<br />
porque lhe prejudicava os lucros nas compras de farinha <strong>do</strong> Pará. Dava-lhe o<br />
dinheiro influência política, e as autori<strong>da</strong>des locais se curvavam aos seus<br />
arrotos de mandão. 96<br />
O seringalista cruel não desaparece no romance e o seu perfil vingativo e, por vezes,<br />
sádico é ressalta<strong>do</strong> em tipos como Arsênico, que queima vivo o seringueiro causa<strong>do</strong>r de<br />
prejuízo, ou de caciques políticos, como o coronel Moreira, capaz de pôr em prática<br />
vingança sumária contra os seus desafetos. Na posição posta no romance sobre o<br />
seringalista, há distinção entre o mau e o bom, evitan<strong>do</strong> generalização, conforme se nota<br />
neste diálogo entre Fábio e Padre Silveira, em que o primeiro busca um consenso e o<br />
segun<strong>do</strong> não acredita numa recompensa à postura justa <strong>do</strong> explora<strong>do</strong>r:<br />
- Quer dizer que você estabelece diferenças entre eles?<br />
- Sim, como em to<strong>do</strong>s os perío<strong>do</strong>s de conquista. Bons e maus latifundiários,<br />
bons e maus pioneiros e seringueiros. Os pioneiros <strong>da</strong>s selvas, vamos dizer<br />
assim, impunham a sua vontade com um 44 à ilharga. Se fraquejassem,<br />
estariam mortos. Rezavam a Deus e levavam o demônio por dentro. Sorriam<br />
uns para os outros, pensan<strong>do</strong> que tinham uma quicé à ilharga. Também se<br />
arrojavam às cachoeiras para salvar um trabalha<strong>do</strong>r, expon<strong>do</strong> a própria vi<strong>da</strong>. 97<br />
Conquanto o romance esteja volta<strong>do</strong> para a temática <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, notamos uma<br />
descentralização <strong>do</strong>s tópicos torna<strong>do</strong>s exclusivos em outras obras. O mapeamento<br />
detalha<strong>do</strong> <strong>do</strong> dia-a-dia <strong>do</strong> seringal, com suas situações peculiares, sofre um desvio que<br />
favorece um leque maior de sub-temas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> interiorana. As relações políticas figuram<br />
como um desses acréscimos, fornecen<strong>do</strong> uma visão às vezes irônica como a <strong>do</strong>s eleitores<br />
famintos, <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> crise, que prometem votos a candi<strong>da</strong>tos adversários a fim de<br />
melhor lucrarem com o banquete ofereci<strong>do</strong> em virtude <strong>da</strong> eleição:<br />
96 Álvaro MAIA, Beiradão, p. 329.<br />
- Dizem que vai haver carne na eleição de outubro. Vem um homem oferecer<br />
boi e vinho pra votar no <strong>do</strong>utor de Manaus, que fala bonito. Mas o coronel tem
109<br />
espia. A gente não diz na<strong>da</strong>, vota no coronel, que é de casa e come a carne <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s. 98<br />
As críticas que o autor faz no romance em relação ao governo são fruto de sua<br />
ativi<strong>da</strong>de política. Mesmo sen<strong>do</strong> um político conserva<strong>do</strong>r, liga<strong>do</strong> ao Esta<strong>do</strong> Novo, Álvaro<br />
Maia não contém o tom de denúncia, apontan<strong>do</strong> o descaso e a falta de assistência<br />
governamental. É preciso destacar, no entanto, que o romance foi escrito em 1958, no<br />
perío<strong>do</strong> em que esteve desliga<strong>do</strong> <strong>do</strong>s cargos públicos, retira<strong>do</strong> em sua residência no seringal<br />
“Goiabal” e que como político enfrentou denúncias em relação ao recrutamento e<br />
assistência aos nordestinos na campanha <strong>da</strong> batalha <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>, realiza<strong>da</strong> durante sua<br />
interventoria, sob os desígnios <strong>da</strong> política <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo. O episódio é comenta<strong>do</strong> por<br />
Santos:<br />
Após 1946, proliferaram as críticas <strong>do</strong>s adversários de Álvaro Maia, no Diário<br />
<strong>da</strong> Tarde, formula<strong>da</strong>s contra a “batalha <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” e a desorganização <strong>da</strong><br />
imigração de nordestinos para os seringais. Nesse empreendimento, a<br />
interventoria de Álvaro Maia consumiu enormes esforços, o que acarretou um<br />
desgaste político ao Parti<strong>do</strong> Social Democrático e seus líderes. O esquema<br />
institucional monta<strong>do</strong> durante o Esta<strong>do</strong> Novo para implementar a “batalha <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong>”, recebeu denúncias na imprensa local e nacional em decorrência de<br />
sua improvisação, carência organizacional e desordem administrativa. 99<br />
A utilização de motivos à margem <strong>do</strong>s tópicos abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s na ficção <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>,<br />
empreendi<strong>da</strong> por Álvaro Maia em Beiradão, também se origina <strong>do</strong> viés político. As<br />
narrativas colhi<strong>da</strong>s nos repertórios nordestino e caboclo, propicia<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> conjunto de<br />
histórias paralelas ao enre<strong>do</strong> principal <strong>do</strong> romance, e que, nas palavras de André Araújo,<br />
dão a conhecer a “[...] gleba, a estra<strong>da</strong>, a dietética, os hábitos, o lendário, o místico, a vi<strong>da</strong><br />
social, a criminologia, as revoltas, as fugas de dentro <strong>da</strong>s florestas, a fé, o amor, as técnicas,<br />
97<br />
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 330.<br />
98<br />
Ibid., p. 337.<br />
99<br />
Eloína Monteiro <strong>do</strong>s SANTOS, Uma liderança política cabocla: Álvaro Maia, p. 130.
o trabalho, a medicina caseira, o caça<strong>do</strong>r, o regatão, o banditismo, a politicagem [...]”, 100<br />
configuram o enfoque que o autor dá aos textos produzi<strong>do</strong>s durante o afastamento <strong>da</strong><br />
política e que já estava caracteriza<strong>do</strong> em seus discursos, artigos e conferências publica<strong>do</strong>s<br />
na déca<strong>da</strong> de 1920, os quais tinham ressonância no movimento denomina<strong>do</strong> glebarismo,<br />
através <strong>do</strong> qual eram defendi<strong>da</strong>s idéias regionalistas. 101<br />
Desse mo<strong>do</strong>, Álvaro Maia apresenta-se, desde o início de sua carreira política e de<br />
sua ativi<strong>da</strong>de no magistério, como um defensor <strong>da</strong> glória <strong>do</strong>s heróis <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, o que se<br />
constata em sua conferência “Pela glória de Ajuricaba” na qual eleva essa personagem<br />
histórica a símbolo <strong>do</strong> Amazonas. No artigo intitula<strong>do</strong> “O elogio <strong>do</strong> caboclo”, Maia<br />
procura, por sua vez, desmistificar o perfil negativo em relação a esse ser, acusa<strong>do</strong> de<br />
in<strong>do</strong>lência e covardia, e o aponta como o guia ideal <strong>do</strong>s pioneiros e desbrava<strong>do</strong>res, estes<br />
também alça<strong>do</strong>s à categoria de heróis:<br />
110<br />
Esses homens rudes, que sentem no espírito a adustão de seus sertões e a<br />
agitação de seus males, transmu<strong>da</strong>m-se em valentes, ao contato sarcástico <strong>do</strong>s<br />
caboclos, desven<strong>da</strong>m o labirinto de nossas terras e, no momento preciso, se<br />
metamorfoseiam em sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s para morrer ou vencer, cantan<strong>do</strong> pelo orgulho de<br />
sua pátria. Velos-eis, em Porto-Acre, peleja<strong>do</strong>res em nome <strong>do</strong> Amazonas e <strong>do</strong><br />
Brasil, contra um exército, bater uma nação: velos-eis enfrentar, em fronteiras<br />
indefesas, invasores imprudentes; velos-eis no Rio Branco e no Madeira, no<br />
Javari e no Negro, como sentinelas, conservan<strong>do</strong> no coração o culto <strong>da</strong> terra e<br />
<strong>da</strong> gente [...] 102<br />
Além <strong>do</strong> enfoque no elemento humano que, a exemplo <strong>do</strong>s textos menciona<strong>do</strong>s,<br />
também se dá em Beiradão, o romance apresenta uma percepção <strong>do</strong> ambiente amazônico<br />
distinta <strong>da</strong>quela <strong>da</strong>s obras <strong>da</strong> primeira fase <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> ficcional. Ain<strong>da</strong> que Beiradão evoque o<br />
determinismo <strong>do</strong> meio em personagens como Padre Silveira, o qual tem o comportamento<br />
altera<strong>do</strong> pelo ambiente amazônico, levan<strong>do</strong>-o à concupiscência, a natureza não é retrata<strong>da</strong><br />
100<br />
André ARAÚJO, Traços de uma sociologia na obra de Álvaro Maia. In: Revista <strong>da</strong> UBE–Amazonas<br />
(Álvaro Maia – Poliantéia), p. 69.<br />
101<br />
A esse respeito, Eloína Monteiro <strong>do</strong>s Santos destaca: “[...] As idéias regionalistas defendi<strong>da</strong>s pelo<br />
glebarismo nesse momento articulam-se com aquelas peculiares às <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Revisionista [...]” (Uma<br />
liderança política cabocla: Álvaro Maia, p. 40).
pelo estigma <strong>do</strong> “infernismo” que caracterizou, segun<strong>do</strong> Mário Ypiranga Monteiro, a<br />
produção ficcional em torno <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”. Importa mencionar que Álvaro Maia<br />
reprovou, em carta aberta ao presidente Washington Luís sob o título “Em Nome <strong>do</strong>s<br />
Amazôni<strong>da</strong>s”, a denominação “inferno verde”, estampa<strong>da</strong> no livro de Alberto Rangel e<br />
propôs, ao invés, a expressão “Paraíso verde”.<br />
Os desequilíbrios no ambiente expressos em Beiradão são <strong>da</strong><strong>do</strong>s como resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
processo de desbravamento o que se pode notar por esta passagem <strong>do</strong> romance:<br />
111<br />
Redimiam-se os seringalistas <strong>da</strong> triste fama de criminosos, explicável pela<br />
violência <strong>do</strong>s pioneiros, na arranca<strong>da</strong> para vencer o índio e <strong>do</strong>minar o<br />
desconheci<strong>do</strong>, uma pequena parte desse desconheci<strong>do</strong> [...] A conquista<br />
prosseguia em capítulos verídicos, inscreven<strong>do</strong> os nomes <strong>da</strong>queles homens<br />
au<strong>da</strong>zes entre os que empurraram o Amazonas para a frente, espalhan<strong>do</strong><br />
barracas e caminhos, cadáveres e heroísmos nos meridianos coloniais [...] 103<br />
A justificativa apresenta<strong>da</strong> no romance de que a violência e a espoliação são<br />
conseqüências de uma “socie<strong>da</strong>de em formação” afina-se com a concepção <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r<br />
amazonense Arthur Cezar Ferreira Reis, para quem esses mesmos fatores são resulta<strong>do</strong>s<br />
naturais de um processo de colonização ou de um “meio-socie<strong>da</strong>de em formação”. A<br />
redenção é também destaca<strong>da</strong> pelo historia<strong>do</strong>r: “[...] Os anos de rigor, <strong>da</strong> fase de<br />
decadência <strong>do</strong>s seringais, ferin<strong>do</strong> seringalistas, avia<strong>do</strong>res e seringueiros, tiraram-lhes muito<br />
<strong>da</strong>quele sentimento de voraci<strong>da</strong>de, de apetite insofri<strong>do</strong> que os levou àqueles excessos por<br />
demais lamentáveis.” 104<br />
Nesse diapasão, os “pecadilhos” de Padre Silveira são postos como per<strong>do</strong>áveis<br />
porque ele realiza a tarefa pioneira de oferecer assistência religiosa aos interioranos. Padre<br />
Silveira e Fábio são <strong>do</strong>is exemplos de que a carreira sacer<strong>do</strong>tal sofre um abalo numa<br />
natureza virgem, o primeiro, ten<strong>do</strong> chega<strong>do</strong> ordena<strong>do</strong> ao Amazonas, exerce o sacerdócio<br />
pela metade e o segun<strong>do</strong>, ao se deparar novamente com o seminário na volta ao Ceará,<br />
perde a vocação em virtude <strong>da</strong> esta<strong>da</strong> nos bamburrais amazônicos.<br />
102<br />
Álvaro MAIA, “Canção de fé e esperança”. In: Revista <strong>da</strong> UBE-Amazonas (Álvaro Maia – Polianteia), p.<br />
153.<br />
103<br />
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 369.<br />
104<br />
Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 178.
A natureza em Beiradão seduz e deixa na alma <strong>do</strong> pioneiro uma marca indelével:<br />
“[...] Estas margens, estes aguaceiros, estes sofrimentos gravam-se na gente para sempre e<br />
cozinham os dias em sau<strong>da</strong>de permanente.” 105 No romance, a atração exerci<strong>da</strong> pelo meio<br />
ocorre de forma extensiva, atingin<strong>do</strong> o arrivista e o abnega<strong>do</strong>.<br />
O que motivou a diversificação na abor<strong>da</strong>gem de Beiradão quanto ao papel <strong>do</strong><br />
seringalista foi menos um diálogo com os ficcionistas <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> <strong>do</strong> que uma proposta<br />
política de alternativa econômica para a região. Durante a déca<strong>da</strong> de 1930, quan<strong>do</strong><br />
governava em sua primeira interventoria, Álvaro Maia já pedia providências ao governo<br />
federal para minimizar a crise e sugeria o amparo à lavoura, através <strong>da</strong> divisão de terras<br />
pertencentes ao Esta<strong>do</strong> entre pequenos proprietários, como forma de conter o êxo<strong>do</strong> rural<br />
ocorri<strong>do</strong> com a desvalorização <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>. Por outro la<strong>do</strong>, Santos observa que, como<br />
interventor, Maia não aban<strong>do</strong>na a idéia <strong>da</strong> valorização <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> e que tanto essa<br />
valorização quanto o apelo à implantação de um meio econômico alternativo atendiam aos<br />
interesses <strong>da</strong>s classes conserva<strong>do</strong>ras amazonenses e <strong>da</strong>s populações interioranas. 106 A<br />
cooperação entre o proprietário e o extrator, a necessi<strong>da</strong>de de fixação <strong>do</strong> homem à terra que<br />
marcam o procedimento <strong>da</strong> personagem Fábio, em Beiradão, faziam parte <strong>do</strong> programa<br />
populista desenvolvi<strong>do</strong> por Vargas e igualmente assumi<strong>do</strong> por Álvaro Maia.<br />
Vemos que a percepção <strong>do</strong> escritor no romance pouco diverge <strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s<br />
políticos que defendeu to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, que podem ser mapea<strong>do</strong>s em seus artigos, discursos e<br />
conferências, mesmo ten<strong>do</strong> o romance si<strong>do</strong> escrito durante a fase de afastamento <strong>da</strong><br />
política.<br />
O AMANTE DAS AMAZONAS: O CICLO SOB O OLHAR DE UM ANALISTA-AUTOR<br />
Rogel Samuel, autor de O amante <strong>da</strong>s amazonas, agrega duas características<br />
relevantes para nosso estu<strong>do</strong> sobre as obras literárias <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”. A primeira<br />
delas é a experiência que, em seu caso, não é direta, vem de reminiscências lega<strong>da</strong>s pela<br />
memória de antepassa<strong>do</strong>s, como o avô, um alsaciano enriqueci<strong>do</strong> pelos lucros <strong>da</strong> <strong>borracha</strong><br />
105 Álvaro MAIA, Beiradão, p. 148.<br />
112
amazônica, no início <strong>do</strong> século XX. A segun<strong>da</strong> característica motiva<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> desse<br />
romance surge <strong>do</strong> fato de o autor ser analista literário, ativi<strong>da</strong>de resultante de sua carreira<br />
no magistério. 107<br />
Entendemos ser a ativi<strong>da</strong>de de analista empreendi<strong>da</strong> por Rogel Samuel a promotora<br />
<strong>da</strong> diversificação de abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong> romance O amante <strong>da</strong>s amazonas. Não o nomeamos,<br />
contu<strong>do</strong>, um escritor-crítico, conforme concebe Leyla Perrone-Moisés 108 por entendermos<br />
que o autor exerce a ativi<strong>da</strong>de de analista paralelamente a de escritor e por considerarmos<br />
que tanto a sua produção teórica quanto a sua produção ficcional não alcançaram a extensão<br />
e o nível de sistematização necessários à qualificação de escritor-crítico, como o estabelece<br />
o estu<strong>do</strong> de Perrone-Moisés. Uma vez que Samuel não pratica a análise <strong>do</strong> texto ficcional<br />
como corolário de sua ativi<strong>da</strong>de de escritor, podemos considerar o oposto: que sua<br />
ativi<strong>da</strong>de de professor e analista possibilitou a expressão de ficcionista, expressão essa que<br />
marcará a renovação <strong>da</strong> terceira fase ficcional <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>.<br />
O amante <strong>da</strong>s Amazonas realiza a brevi<strong>da</strong>de que, segun<strong>do</strong> lembra o narra<strong>do</strong>r de um<br />
romance de Ítalo Calvino, é necessária aos romances modernos: “[...] Hoje em dia, escrever<br />
romances longos é um contra-senso: a dimensão <strong>do</strong> tempo foi estilhaça<strong>da</strong>, não conseguimos<br />
viver nem pensar senão em fragmentos de tempo que se afastam, seguin<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> qual sua<br />
própria trajetória e logo desaparecem [...].” 109 Dessa forma, o romance se divide em 23<br />
capítulos curtos: Viagem, Palácio, Numas, Paxiúba, Ferreira, Júlia, Desaparece, Ratos, Frei<br />
Lothar, Perdi<strong>da</strong>, Ribamar, Manaus, Conversas, O leque, A livraria, Benito, Rua <strong>da</strong>s Flores,<br />
Encontro, Mistério, Noite, O pórtico, Jornal, Fim. São capítulos que, por sua vez, não<br />
106 Eloína Monteiro <strong>do</strong>s SANTOS, Uma liderança política cabocla: Álvaro Maia, p. 87-90.<br />
107 Gradua<strong>do</strong> em Ciência <strong>da</strong> literatura pela Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>do</strong> Rio de Janeiro, Rogel Samuel exerce<br />
nessa universi<strong>da</strong>de a função de professor <strong>do</strong>utor adjunto à época <strong>da</strong> publicação de O amante <strong>da</strong>s amazonas<br />
(1992). Como analista literário, publicou Crítica <strong>da</strong> escrita (1979), organizou e colaborou na publicação de<br />
Literatura básica (1985) e Como curtir o livro: o que é teolit? (1986). No campo ficcional, o autor produziu<br />
prosa e poesia. Publicou, em 1991, 120 poemas.<br />
108 De acor<strong>do</strong> com a autora, os escritores-críticos caracterizam-se essencialmente como escritores<br />
(ficcionistas) que tomaram a si o papel de escrever crítica em razão de um descontentamento com a atuação<br />
<strong>da</strong> crítica profissional: “[...] Os ataques e as chacotas <strong>do</strong>s escritores contra os críticos literários constituem um<br />
vasto repertório, capaz de preencher vários volumes. Na ausência de uma instância superior que regulasse o<br />
dissenso, e no descontentamento com as instâncias „inferiores‟ que se arrogavam o direito de os julgar, os<br />
cria<strong>do</strong>res puseram-se a praticar uma espécie de contra-crítica, estima<strong>da</strong> por eles como mais competente, ou<br />
pelo menos mais eficiente, por estar liga<strong>da</strong> à própria experiência cria<strong>do</strong>ra.”(Leyla PERRONE-MOISÉS. Altas<br />
literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos, p. 143).<br />
109 Ítalo CALVINO, Se um viajante numa noite de inverno, p. 16.<br />
113
estabelecem uma continui<strong>da</strong>de linear <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, alguns deles basicamente introduzem<br />
personagens, o que reforça a característica fragmentária <strong>da</strong> narrativa.<br />
Fragmenta<strong>do</strong> é ain<strong>da</strong> o narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> romance. Divide-se entre primeira e terceira<br />
pessoas. Em primeira pessoa, narra Ribamar, retirante <strong>do</strong> povoa<strong>do</strong> de Patos, em<br />
Pernambuco, vin<strong>do</strong> para a Amazônia em 1897. Já a voz que narra alternan<strong>do</strong> a primeira e<br />
terceira pessoas tece comentários, dialoga com o leitor, insere digressões e se assume como<br />
ser ficcional: “[...]sei, e de antemão o digo, que esta é apenas uma obra de ficção, e portanto<br />
mentirosa, dentre as várias que há na literatura amazonense, e espere o leitor e a leitora o<br />
surpreender-se como, apesar disso, o fio <strong>do</strong> destino <strong>do</strong> que vai descobrir é correto. To<strong>do</strong>s os<br />
fatos, aqui expostos, foram reali<strong>da</strong>des notáveis e aconteceram realmente para a minha<br />
imaginação [...].” 110<br />
As narrações em primeira e terceira pessoas, portanto, não se apresentam como<br />
instâncias independentes. Por vezes, a forma indireta <strong>da</strong> terceira pessoa se personaliza.<br />
Expressa-o o fato de que o romance se inicia com a narração em primeira pessoa <strong>da</strong><br />
personagem Ribamar para, posteriormente, no capítulo dez, ser atribuí<strong>da</strong> ao narra<strong>do</strong>r em<br />
terceira pessoa, que destaca: “O Manixi naquela época agonizava, improdutivo. Fazia <strong>do</strong>is<br />
anos que o próprio Ferreira não aparecia, e a sede, depois <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> Capitão João Beleza,<br />
ficara sob as ordens de um Ribamar (d‟Aguirre) de Souza, oriun<strong>do</strong> de Patos, Pernambuco,<br />
conforme o primeiro capítulo desta minha narrativa.” 111<br />
Depreendemos que a impessoali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terceira pessoa transforma-se em diversos<br />
momentos <strong>da</strong> narrativa em uma voz paralela à <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r-personagem Ribamar. Essa outra<br />
voz que também fala em primeira pessoa (minha narrativa/Eu, o narra<strong>do</strong>r) e se assume<br />
como narra<strong>do</strong>r, concomitantemente cria uma noção de veraci<strong>da</strong>de extratextual, entretanto,<br />
há aí também um artifício ficcional: “[...] <strong>do</strong> que pude conseguir de jornais <strong>da</strong> época e de<br />
cartas de familiares, o desaparecimento de Zequinha Batelão nas margens <strong>do</strong> Igarapé <strong>do</strong><br />
Inferno se deu em janeiro de 1912. Não fosse essa uma obra de ficção e poderia citar, em<br />
notas de pé de página, as fontes de onde obtive tal informação [...]” 112<br />
110 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 51. To<strong>da</strong>s as notas apresenta<strong>da</strong>s <strong>do</strong>ravante pertencem a<br />
primeira edição <strong>do</strong> romance, de 1992, com a qual trabalhamos desde 2003, no início deste estu<strong>do</strong>. A segun<strong>da</strong><br />
edição, publica<strong>da</strong> em 2005, contém alterações realiza<strong>da</strong>s pelo autor.<br />
111 Ibid., p. 59.<br />
112 Rogel Samuel, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 51.<br />
114
A abertura <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> capítulo <strong>do</strong> romance apresenta-se como um <strong>do</strong>s momentos<br />
em que narra<strong>do</strong>r-personagem e narra<strong>do</strong>r analista se fundem. Essa passagem norteia a<br />
própria leitura que devemos fazer <strong>do</strong> romance, pois a ficção se auto-define:<br />
115<br />
[...] esta narrativa-paródia de romance histórico que define com boa precisão<br />
esta minha tardia confissão - vai-lhe revelar a vi<strong>da</strong> tão surpreendente de<br />
Ribamar de Souza, aquele a<strong>do</strong>lescente que eu era apareci<strong>do</strong> num inespera<strong>do</strong> dia<br />
de inverno <strong>da</strong> Amazônia dentro <strong>da</strong> chuva compacta de um ostinato<br />
extremamente percussivo em coman<strong>do</strong>s de improvisação de uma partitura<br />
imaginária, ecológica, de acordes politonais sobre o que senta<strong>do</strong> estava num<br />
banco de madeira no alpendre <strong>do</strong> tapiri ao som <strong>do</strong> suporte de compassos 5/4 <strong>do</strong><br />
Igarapé <strong>do</strong> Inferno, que sai no Igarapé Bom Jardim que sai no Rio Jordão, que<br />
sai no Rio Tarauacá, que sai no Rio Juruá, afluente <strong>do</strong> Rio Amazonas, o<br />
Solimões, aonde estamos retornan<strong>do</strong>. 113<br />
O entendimento <strong>do</strong> caráter parodístico atribuí<strong>do</strong> pelo narra<strong>do</strong>r ao romance requer<br />
algumas considerações sobre a especifici<strong>da</strong>de desse tipo de discurso. Em seu estu<strong>do</strong> acerca<br />
<strong>da</strong> tipologia <strong>do</strong> discurso na prosa, Bakhtin 114 argumenta que o procedimento parodístico <strong>do</strong><br />
discurso se caracteriza não somente por uma remissão ao objeto referencial <strong>da</strong> fala, como<br />
também a um segun<strong>do</strong> contexto, um ato de fala de outro emissor, sen<strong>do</strong> por isso um<br />
discurso duplamente orienta<strong>do</strong> ou de duas vozes. Bakhtin estabelece também a diferença<br />
entre a paródia e a imitação, fazen<strong>do</strong> notar que enquanto aquela cria um antagonismo em<br />
relação à voz na qual se aloja, essa torna própria a palavra <strong>do</strong> outro, fundin<strong>do</strong>-se a ela.<br />
Outra peculiari<strong>da</strong>de que deve ser considera<strong>da</strong>, segun<strong>do</strong> o autor, é que a fala parodia<strong>da</strong> é<br />
apenas subentendi<strong>da</strong>. Bakhtin destaca que o campo de possibili<strong>da</strong>des <strong>do</strong> discurso<br />
parodístico é bastante amplo, pode lançar mão de um estilo enquanto estilo, de mo<strong>do</strong>s<br />
típicos de pensar social ou individualmente. A construção parodística pode se limitar a<br />
níveis <strong>da</strong> superfície verbal ou atingir níveis mais profun<strong>do</strong>s. O uso parodístico <strong>da</strong> palavra<br />
<strong>do</strong> outro, lembra o autor, não se dá apenas no campo literário, ele ocorre sempre que há<br />
intenção de pôr um acento irônico nas palavras de um outro emissor, crian<strong>do</strong> uma<br />
113 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 9.<br />
114 Mikhail BAKHTIN, A tipologia <strong>do</strong> discurso na prosa. In: Luiz COSTA LIMA (org.), Teoria <strong>da</strong> literatura<br />
em suas fontes, p. 489-509.
ambivalência em relação a essas palavras: “[...] Em nossa fala cotidiana, é extremamente<br />
comum este uso <strong>da</strong>s palavras <strong>do</strong> outro, especialmente no diálogo em que, freqüentemente<br />
um interlocutor repete de mo<strong>do</strong> textual a afirmação de outro interlocutor, investin<strong>do</strong>-a de<br />
outra intenção e enuncian<strong>do</strong>-a a seu próprio mo<strong>do</strong>: com uma expressão de dúvi<strong>da</strong>, de<br />
indignação, de ironia, de zombaria, de troça ou algo semelhante.” 115<br />
Sen<strong>do</strong> O amante <strong>da</strong>s amazonas defini<strong>do</strong> por seu narra<strong>do</strong>r como uma paródia de<br />
romance histórico, é necessário chamar a atenção para o fato de que a maioria <strong>da</strong> produção<br />
ficcional sobre o <strong>ciclo</strong> pode ser considera<strong>da</strong> de enfoque histórico, haja vista essa ficção ter<br />
abor<strong>da</strong><strong>do</strong> aspectos em consonância com os <strong>da</strong><strong>do</strong>s históricos sobre o evento. Desse mo<strong>do</strong>, os<br />
principais fatores que envolvem a história econômica <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> são retoma<strong>do</strong>s pelos<br />
ficcionistas. A ficção geralmente faz recortes desses fatores através de cenas que são<br />
comuns a muitas obras. O processo de transumância <strong>do</strong> nordestino, compreenden<strong>do</strong> os fatos<br />
antecedentes, como o sofrimento causa<strong>do</strong> pela seca, a falta de perspectiva na terra natal até<br />
a decisão <strong>da</strong> parti<strong>da</strong>, enfrentan<strong>do</strong> a longa jorna<strong>da</strong> <strong>do</strong> Nordeste ao Norte, atinge o cerne na<br />
ficção através <strong>da</strong> descrição <strong>da</strong> viagem. Nessa descrição, geralmente são enfoca<strong>do</strong>s o esta<strong>do</strong><br />
de submissão <strong>do</strong>s recruta<strong>do</strong>s no seringal; as condições <strong>do</strong> transporte, onde são trata<strong>do</strong>s<br />
como passageiros de terceira categoria, sem direito a dignas condições de higiene e à<br />
privaci<strong>da</strong>de.<br />
Em O amante <strong>da</strong>s amazonas, as descrições <strong>do</strong> barco e <strong>da</strong> viagem recebem um novo<br />
tratamento por meio de uma construção parodística que acrescenta um tom irônico ao<br />
tradicional tom de denúncia de outras obras:<br />
116<br />
[...] Navio dentro <strong>do</strong> qual não cabia mais único engra<strong>da</strong><strong>do</strong> de porcos, alojan<strong>do</strong><br />
aquela hor<strong>da</strong> que fedia podre, de suor, esterco de ga<strong>do</strong> e urina – redes se<br />
entrecruzan<strong>do</strong> e houve roubo, bebedeira, estupro, briga, faca<strong>da</strong> e morte – um<br />
pai esfolou um macho surpreendi<strong>do</strong> com sua filha num vão de esterco; outro,<br />
bêba<strong>do</strong>, mijava ali no chão enquanto escorria até onde <strong>do</strong>rmiam muitos, no<br />
chão; sobre um garajau de galinhas um homem sacou de si e se aliviou sob a<br />
luz de um candeeiro amarelo cheio de moscas. Era um sol<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />
115 Mikhail BAKHTIN, A tipologia <strong>do</strong> discurso na prosa In: Luiz COSTA LIMA (Org.) Teoria <strong>da</strong> literatura<br />
em suas fontes, p. 500.
117<br />
Passamos <strong>do</strong> Farol de Acaraú ain<strong>da</strong> dentro <strong>da</strong>quele porão e paramos em<br />
Amarração para largar um cadáver, o preso e <strong>do</strong>is passageiros cobertos de<br />
varíola. Mas não tocamos em Tutóia, aportan<strong>do</strong> em São Luís onde o Alfre<strong>do</strong><br />
foi dentro d‟água cerca<strong>do</strong> por botes, catraias e se transformou em gigantesca<br />
fera [sic] flutuante, lá subin<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s para bor<strong>do</strong> os vende<strong>do</strong>res de camarão frito,<br />
<strong>do</strong>ces e frutas. Pois não foi uma viagem maravilhosa? [...] 116<br />
A linguagem em que a descrição é posta formula-se através de uma sintaxe não<br />
convencional que inclui cortes de conectivos, geran<strong>do</strong> um caráter sintético peculiar à<br />
linguagem coloquial (aquela hor<strong>da</strong> que fedia podre). A sintaxe <strong>do</strong> texto também apresenta<br />
uma disposição de orações que possibilita a interposição de informações e torna<br />
significativa a desordem espacial no barco e as relações conturba<strong>da</strong>s entre os passageiros<br />
(redes se entrecruzan<strong>do</strong> e houve roubo, bebedeira, estupro, briga, faca<strong>da</strong> e morte). A<br />
escolha de verbos e substantivo característicos <strong>da</strong> linguagem chula (esfolar, mijar, macho)<br />
demonstra a aplicação <strong>do</strong>s níveis de linguagem, o que permite que a condição <strong>do</strong>s<br />
passageiros se expresse com mais rudeza. Com a frase interrogativa no final <strong>do</strong> trecho, o<br />
senti<strong>do</strong> irônico se estabelece.<br />
Um <strong>do</strong>s pontos mais marcantes nos estu<strong>do</strong>s históricos e na ficção <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, o<br />
elemento que se caracteriza como o explora<strong>do</strong>r, é retoma<strong>do</strong> em O amante <strong>da</strong>s amazonas<br />
sob um olhar distinto <strong>da</strong>quele que se convencionou na maioria <strong>da</strong>s obras ficcionais. O que<br />
se torna central no romance não é a abor<strong>da</strong>gem maniqueísta em torno desse elemento, mas<br />
sua relação com um processo econômico mais abrangente <strong>do</strong> que a monocultura local. No<br />
romance, a personagem Pierre Bataillon, proprietário <strong>do</strong> seringal Manixi, em na<strong>da</strong> se<br />
assemelha às tradicionais personagens de seringalistas. Divergin<strong>do</strong> dessas personagens,<br />
Pierre representa uma linhagem “[...] nobre, neto de Duque de Cellis, uma <strong>da</strong>s mais nobres<br />
famílias de Espanha, que vinha <strong>da</strong> antiga Roma, inteligente, culto, falan<strong>do</strong> fluentemente<br />
várias línguas [...]”, 117 viven<strong>do</strong> como um “[...] fi<strong>da</strong>lgo engasta<strong>do</strong> na floresta, cerca<strong>do</strong> de<br />
to<strong>do</strong> o luxo e de muitos livros [...]”. 118 Pierre não significa apenas o oposto <strong>do</strong> arrivista<br />
bronco enriqueci<strong>do</strong>, seus hábitos e o palácio que constrói no meio <strong>da</strong> selva sintetizam o<br />
116 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 5-6.<br />
117 Ibid., p. 16.<br />
118 Ibid., p. 16.
aspecto voraz <strong>do</strong> capital internacional e <strong>da</strong> cultura estrangeira, impon<strong>do</strong> sua hegemonia<br />
sobre a cultura local através de uma ostentação delirante e esquizofrênica:<br />
118<br />
[...] O palácio era imagem em busca de sua natureza profun<strong>da</strong>. Ali se dispunha<br />
de uma sala de música onde se ouvia principalmente Beethoven, com um piano<br />
Pleyel, a vitrine onde Pierre Bataillon ostentava sua coleção de violinos (o<br />
Guarnerius, o Begonzi, o Klotz, o Vuillaume), as gravuras representan<strong>do</strong><br />
Viotti, Baillot, David, Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim; a máscara mortuária de<br />
Beethoven, laurea<strong>do</strong> em bronze, de Stiasny. A biblioteca, em que alguém uma<br />
noite leu em voz alta versos de Lamartine. E salas e salas se interrogan<strong>do</strong> para<br />
quê, salões e galerias e cômo<strong>do</strong>s se intercomunican<strong>do</strong> por portas sucessivas que<br />
se abriam em galerias e corre<strong>do</strong>res restritos, que se fechavam em si mesmos, ao<br />
som <strong>do</strong> piano de Pierre Bataillon [...] no silêncio rigoroso <strong>do</strong> gabinete inglês;<br />
na dinâmica, na morfologia prostituta <strong>do</strong> divã de Delanois; na uni<strong>da</strong>de e<br />
variante elíptica <strong>do</strong> canapé – e nos cipós, íris, car<strong>do</strong>s, insetos estiliza<strong>do</strong>s,<br />
poliformes, incorporan<strong>do</strong>-se aos móveis e às linhas <strong>do</strong>s painéis franceses num<br />
delírio neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins,<br />
rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas <strong>do</strong>s balcões simbolizan<strong>do</strong> a<br />
energia, a ontologia e o desejo <strong>do</strong> capitalismo de tu<strong>do</strong> consumir, de tu<strong>do</strong> gastar,<br />
de tu<strong>do</strong> produzir, de tu<strong>do</strong> poupar e de tu<strong>do</strong> faltar e apropriar-se, transbor<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
e abortan<strong>do</strong> na loucura, na miséria e na morte – cariátides, capitéis, folhagens<br />
<strong>da</strong> selva ...[...] 119<br />
O palácio, edifício “[...] encapsula<strong>do</strong> de civilização <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de européia [...]”, 120<br />
localiza<strong>do</strong> no meio <strong>da</strong> selva, opõe-se à moradia convencional <strong>do</strong> seringalista na ficção, o<br />
barracão tosco, que se harmoniza com o caráter rude de seu proprietário. Nas <strong>ficções</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>ciclo</strong>, a selva e a civilização sempre estiveram separa<strong>da</strong>s. Os coronéis seringalistas<br />
coman<strong>da</strong>vam o seringal em sua moradia improvisa<strong>da</strong> na selva e construíam palacetes na<br />
ci<strong>da</strong>de como forma de usufruírem <strong>do</strong> luxo e ostentação proporciona<strong>do</strong>s pelos lucros <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong>. O espaço <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de era adequa<strong>do</strong> à fruição <strong>do</strong>s prazeres copia<strong>do</strong>s à cultura<br />
119 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 10-11.<br />
120 Ibid., p. 32.
européia, representativos <strong>da</strong> Belle-époque: palacetes art-nouveaux, móveis franceses e to<strong>da</strong><br />
uma gama de objetos de usos varia<strong>do</strong>s, importa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s europeus.<br />
As duas faces <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, civilização e mun<strong>do</strong> selvagem, não se apresentam<br />
dicotomiza<strong>da</strong>s em O amante <strong>da</strong>s amazonas. Civilização e selva se chocam, se confrontam e<br />
se mesclam. A obra faz a ligação entre os opostos. Aquilo que a civilização significou em<br />
termos de progresso e vi<strong>da</strong> moderna se defronta com a força rústica <strong>da</strong> natureza. Num<br />
caminho de duas mãos, a ostentação invade a floresta e a floresta invade a ostentação. O<br />
tratamento parodístico <strong>da</strong><strong>do</strong> ao romance se evidencia também por essa confrontação de <strong>do</strong>is<br />
mun<strong>do</strong>s antagônicos:<br />
119<br />
[...] No meio <strong>da</strong> noite Pierre toca piano, lê, caminha dentro <strong>da</strong> casa <strong>do</strong> fim <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>. As noites são soturnas, lúgubres, envolvem o Palácio em demônios que<br />
saem <strong>da</strong> escuridão. Pierre, indiferente, an<strong>da</strong> e seus passos se fazem ouvir ao<br />
longo a galeria <strong>da</strong>s portas e janelas. Ele contempla os quadros, segue a fileira<br />
<strong>da</strong>s janelas de folhas duplas fecha<strong>da</strong>s até o chão, pesa<strong>da</strong>s, almofa<strong>da</strong><strong>da</strong>s,<br />
bandeiras guarneci<strong>da</strong>s de cortina<strong>do</strong>s franzi<strong>do</strong>s de filó. No galpão, o viveiro <strong>do</strong>s<br />
patos com que se protege o Palácio de cobras, aranhas e escorpiões. A lâmina<br />
d‟água tenta impedir a invasão <strong>da</strong>s formigas. Mas sempre se encontra uma<br />
aranha pelu<strong>da</strong> em cima <strong>da</strong> cama, ou se surpreende um escorpião atravessan<strong>do</strong><br />
por debaixo <strong>da</strong> mesa de jantar, ou se depara com uma cobra, colean<strong>do</strong> no vão<br />
<strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r. Ao cair <strong>da</strong> noite se fecham portas e janelas. Em turíbulos<br />
espalha<strong>do</strong>s pela casa, se começa a queimar uma mistura de bosta de vaca e óleo<br />
de anta, para repelir insetos, cheiro que impregna e caracteriza o paço. Mesmo<br />
assim o prédio é assedia<strong>do</strong> à noite por nuvens de insetos voa<strong>do</strong>res, que querem<br />
entrar, atraí<strong>do</strong>s pelas luzes [...] 121<br />
No processo de instalação de seu “império”, Pierre Bataillon se depara com <strong>do</strong>is<br />
povos indígenas: os Caxinauás e os Numas. O contato <strong>do</strong>s explora<strong>do</strong>res com os índios<br />
sempre foi apresenta<strong>do</strong> como conflituoso na ficção <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> e em O amante <strong>da</strong>s<br />
amazonas não deixa de o ser, mas o romance acentua um posicionamento duplo <strong>do</strong>s índios<br />
em relação ao invasor <strong>do</strong> espaço por eles habita<strong>do</strong>. Logo que chega ao Igarapé <strong>do</strong> Inferno,<br />
121 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 43.
Pierre encontra apenas os Caxinauás e como estes não ostentam resistência a sua invasão,<br />
mostram-se pacíficos, ele os <strong>do</strong>mina com facili<strong>da</strong>de e implanta ali sua soberania. Impõe,<br />
como homem branco civiliza<strong>do</strong>, a paz e a ordem entre os Caxinauás, desconsideran<strong>do</strong> que<br />
eles pudessem ter qualquer organização social. Em nome <strong>do</strong> progresso, Pierre promove a<br />
castração <strong>da</strong> cultura Caxinauá. Ten<strong>do</strong> a identi<strong>da</strong>de nega<strong>da</strong>, os Caxinauás se submetem<br />
“quase alegres”, ironiza o narra<strong>do</strong>r, e são transforma<strong>do</strong>s em objetos <strong>do</strong> seringal Manixi,<br />
reduzin<strong>do</strong>-se, após enfrentarem <strong>do</strong>enças como tifo, malária, sarampo, sífilis e uma<br />
epidemia de gripe, “[...] a 84 viventes agricultores, servos <strong>da</strong> gleba <strong>do</strong> Coronel.” 122<br />
Enquanto os Caxinauás se submetem à <strong>do</strong>minação, os Numas demonstram<br />
comportamento oposto. Nômades, arredios, impõem-se como resistência, insistem em ser,<br />
em não se negar. Diferentemente <strong>do</strong> que ocorrera com os Caxinauás, que tiveram seu<br />
espaço restringi<strong>do</strong>, os Numas, seres que se deslocam na rapidez de um sopro, que se<br />
movimentam com facili<strong>da</strong>de na noite, que quase não são vistos, cercam o seringal e<br />
impedem sua expansão. Usan<strong>do</strong> de estratégias para conquistá-los, Pierre deixa, nos limites<br />
<strong>do</strong> seringal, presentes nos quais eles não tocam, impossibilitan<strong>do</strong> um canal de<br />
comunicação. Diante <strong>do</strong> comportamento <strong>do</strong>s Numas, a voz parodística <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r<br />
interroga, instalan<strong>do</strong> uma problemática: “Onde há resistência, há poder?” 123<br />
As obras <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, em geral, apresentam o índio como elemento hostil e cruel.<br />
Poucas vezes, é acentua<strong>do</strong> que o seu comportamento violento resulta de uma reação a uma<br />
violência, a invasão. Divergin<strong>do</strong> <strong>do</strong> tratamento omisso ou pelo menos parcial, haja vista<br />
que em algumas obras destaca-se a figura sanguinária <strong>do</strong> indígena e de vítima <strong>do</strong> invasor,<br />
no romance O amante <strong>da</strong>s amazonas há uma declaração enfática sobre o extermínio<br />
indígena. Essa declaração, posta através de uma imagem alegórica, permite ouvir, por<br />
intermédio <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, a voz sufoca<strong>da</strong> de Maria Caxinauá, que é também uma voz<br />
coletiva:<br />
120<br />
OS ásperos, compri<strong>do</strong>s cabelos ensombravam a face com a figura <strong>da</strong> morte. As<br />
pupilas eram <strong>da</strong><strong>da</strong>s por incompreensível aura branca, um espantoso horror.<br />
Nariz aquilino, cigano. Pele bronze escuro queima<strong>do</strong> e fosco, amassa<strong>do</strong> como<br />
papel. Sujo, longo vesti<strong>do</strong> azul, rasga<strong>do</strong> num flanco, sem cintura, arrastan<strong>do</strong>-se<br />
122 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 14.
121<br />
no chão como uma louca num hospício. Observa<strong>da</strong> à distância, era a<br />
concentração <strong>do</strong> Ódio. De perto, era o Me<strong>do</strong>, o incontrolável Pavor, olhos bem<br />
abertos. As faces murchas indicavam que perdera to<strong>do</strong>s os dentes, as<br />
sobrancelhas eram ralas. Mas aquela mulher não era uma velha! Subitamente se<br />
deixava ver! A face tem arrogância, desprezo, desafio, o olhar perigo, o<br />
veneno, pensou Ferreira, apertan<strong>do</strong> o laço <strong>da</strong> gravata. Hostil, aquela existência<br />
silenciosa e animal concentrava-se em si mesma, refluía em si, como serpente.<br />
Desde aquela noite Ferreira a teme. Vê a inimiga. Pois a Caxinauá é vingança<br />
acumula<strong>da</strong>, petrifica<strong>da</strong>. To<strong>da</strong> a multidão inumerável de índios massacra<strong>do</strong>s<br />
reterritorializava-se naquele corpo. To<strong>do</strong>s os tortura<strong>do</strong>s, os bani<strong>do</strong>s, os<br />
extermina<strong>do</strong>s pela humani<strong>da</strong>de européia, os saquea<strong>do</strong>s, descultura<strong>do</strong>s,<br />
reduzi<strong>do</strong>s a ruínas se cartografam ali, na pessoa física e individual de Maria<br />
Caxinauá. São raças inteiras espolia<strong>da</strong>s, traumatiza<strong>da</strong>s, despossuí<strong>da</strong>s de seus<br />
deuses e de suas riquezas construí<strong>da</strong>s durante séculos, sangra<strong>da</strong>s em<br />
hecatombes, liqui<strong>da</strong><strong>da</strong>s para sempre. Contamina<strong>da</strong>s de <strong>do</strong>enças, escraviza<strong>da</strong>s e<br />
corrompi<strong>da</strong>s, submeti<strong>da</strong>s ao trabalho escravo que consumiu o sangue de<br />
milhões de pessoas desprovi<strong>da</strong>s de suas economias de subsistência,<br />
tragicamente transforma<strong>da</strong>s em exércitos de massas proletárias – vinte milhões<br />
de índios massacra<strong>do</strong>s no Brasil se corporificavam ali, no gesto cego de Maria<br />
Caxinauá. 124<br />
Nesta passagem, está implícita a paródia ao conto “A decana <strong>do</strong>s Muras”, de<br />
Alberto Rangel. O tom inicial <strong>da</strong> descrição de Maria Caxinauá segue paralelo à<br />
caracterização assombrosa e torpe <strong>da</strong> decana para apresentar ao leitor o texto parodia<strong>do</strong>,<br />
mas, num segun<strong>do</strong> momento, surge o distanciamento ou a oposição parodística a partir <strong>da</strong><br />
negação de senili<strong>da</strong>de à índia Caxinauá – aquela mulher não era uma velha! – e ao invés de<br />
impor comiseração pelo esta<strong>do</strong> de rebotalhamento <strong>da</strong> índia, alça-a à condição de um ser<br />
terrível, forte e ameaça<strong>do</strong>r. Em “A decana <strong>do</strong>s Muras”, ao contrário, o narra<strong>do</strong>r, após<br />
apresentar o aspecto assombroso <strong>da</strong> velha índia, tenta suavizar-lhe o aspecto, atribuin<strong>do</strong>-lhe<br />
uma <strong>do</strong>cili<strong>da</strong>de na juventude perdi<strong>da</strong>. O texto parodístico traz, por fim, a denúncia <strong>do</strong><br />
massacre <strong>da</strong> cultura indígena que o texto parodia<strong>do</strong> não acentua. Destacamos que o texto<br />
123 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 14.<br />
124 Ibid., p. 38-39.
parodístico atinge um nível profun<strong>do</strong> em relação ao texto parodia<strong>do</strong>. A determinação<br />
ideológica que preside o discurso <strong>do</strong> autor Alberto Rangel, assenta<strong>da</strong> na visão ambivalente<br />
sobre o extermínio autóctone, à medi<strong>da</strong> em que comunga <strong>do</strong> coro depreciativo <strong>do</strong><br />
coloniza<strong>do</strong>r, não poden<strong>do</strong> ocultar sua repugnância e rejeição pelo ser que representa o<br />
outro, é desoculta<strong>da</strong>.<br />
O império <strong>do</strong> látex, emblema<strong>do</strong> em Pierre Bataillon e seu palácio excêntrico e<br />
anacrônico no meio <strong>da</strong> selva, ressurge no final <strong>do</strong> romance numa alegoria fantasmagórica.<br />
Nas ruínas <strong>do</strong> palácio saquea<strong>do</strong>, resta apenas o piano de cau<strong>da</strong> Pleyel, objeto sufoca<strong>do</strong> em<br />
seu aspecto nobre e fáustico como se silencia<strong>do</strong> após o encerramento de um concerto. O<br />
palácio, congela<strong>do</strong> no tempo, é povoa<strong>do</strong> por fantasmas <strong>da</strong> História, abriga os espectros <strong>da</strong><br />
ostentação que passam “[...] arrastan<strong>do</strong> longos e pesa<strong>do</strong>s vesti<strong>do</strong>s de velu<strong>do</strong> verde,<br />
envergan<strong>do</strong> reluzentes casacas [...]”, 125 esquáli<strong>do</strong>s, saí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> “sepulcro <strong>do</strong> luxo” para expiar<br />
suas “culpas mortas”. Pierre também ali se encontra transforma<strong>do</strong> numa negação <strong>do</strong> que<br />
fora outrora:<br />
122<br />
E à noite a figura <strong>do</strong> antigo e descarna<strong>do</strong> <strong>do</strong>no poderia ser vista, através <strong>da</strong>s<br />
janelas, como se o iluminasse uma catedral, mostran<strong>do</strong>-lhe a face horrível e<br />
desespera<strong>da</strong>, os olhos mergulha<strong>do</strong>s no escuro, à procura de algo, à procura <strong>do</strong><br />
tempo, à procura de si – e passan<strong>do</strong> sem que ninguém o visse na sua infinita<br />
miséria. E to<strong>do</strong> o esplen<strong>do</strong>r <strong>da</strong>quele luxo antigo era uma torturação<br />
sinistramente mergulha<strong>da</strong> na destruição de um império ali por fim silencia<strong>do</strong>. 126<br />
A narrativa de O amante <strong>da</strong>s amazonas focaliza, além <strong>da</strong> personagem Pierre<br />
Bataillon, evoca<strong>do</strong>ra de um passa<strong>do</strong> que o narra<strong>do</strong>r insere fragmentariamente na história, as<br />
personagens Juca <strong>da</strong>s Neves e Ribamar de Souza que se ligam às fases de decadência e de<br />
mu<strong>da</strong>nça de perspectiva econômica. A fase de decadência, em que muitos avia<strong>do</strong>res se<br />
arruinaram, concentra-se em Juca <strong>da</strong>s Neves, <strong>do</strong>no <strong>do</strong> fali<strong>do</strong> “Armazém <strong>da</strong>s Novi<strong>da</strong>des”,<br />
ain<strong>da</strong> manti<strong>do</strong> aberto quan<strong>do</strong> a abastança já não mais existe e Manaus é uma “ci<strong>da</strong>de-<br />
fantasma”. A indicação de que o “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” está encerra<strong>do</strong> e de que as estruturas<br />
social e econômica apresentam ares de mu<strong>da</strong>nça, estampa-se no mobiliário discreto, na<br />
125 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 89.<br />
126 Ibid., p. 89.
decoração que já evoca o modern style descritos na casa <strong>do</strong> comen<strong>da</strong><strong>do</strong>r Gabriel Gonçalves<br />
<strong>da</strong> Cunha, personagem histórica recria<strong>da</strong> na ficção. Ribamar de Souza transforma-se no<br />
herdeiro <strong>do</strong> fali<strong>do</strong> império <strong>do</strong> látex, compra o armazém de Juca <strong>da</strong>s Neves e o moderniza,<br />
tornan<strong>do</strong>-se um novo-rico: “Ribamar, com auxílio de Juca <strong>da</strong>s Neves, modernizou o<br />
Armazém <strong>da</strong>s Novi<strong>da</strong>des, passan<strong>do</strong> a representar vários produtos norte-americanos, como<br />
as máquinas de costura Singer – de enorme populari<strong>da</strong>de. Ribamar expandiu os negócios e<br />
começou a ameaçar o império comercial <strong>da</strong> poderosa família Gonçalves <strong>da</strong> Cunha [...]”. 127<br />
O amante <strong>da</strong>s amazonas promove um olhar abrangente e profun<strong>do</strong> sobre o <strong>ciclo</strong><br />
econômico <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> que se seria no texto como um to<strong>do</strong> e também condensa-se em<br />
trechos <strong>do</strong> romance. A capaci<strong>da</strong>de de condensação, segun<strong>do</strong> Perrone-Moisés, 128 é um <strong>do</strong>s<br />
valores aponta<strong>do</strong>s pelos escritores-críticos no texto moderno, na medi<strong>da</strong> em que permite<br />
“dizer muito em poucas palavras”. A autora destaca que a condensação, mais <strong>do</strong> que uma<br />
síntese, importa numa saturação de senti<strong>do</strong>s. Um trecho de O amante <strong>da</strong>s amazonas realiza<br />
uma condensação que retoma to<strong>da</strong> a História <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, engloban<strong>do</strong> o processo que<br />
deslanchou a alta cotação <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> no merca<strong>do</strong> internacional e os efeitos locais desse<br />
processo, estampa<strong>do</strong>s na circulação de riqueza na capital amazonense e na a<strong>do</strong>ção de to<strong>do</strong><br />
um modus vivendi à reboque <strong>da</strong> cultura européia. O narra<strong>do</strong>r acrescenta aos fatos e aspectos<br />
históricos, enumera<strong>do</strong>s em frases curtas, comentários irônicos e críticos, caracterizan<strong>do</strong> o<br />
tratamento parodístico:<br />
123<br />
[...] A cotação <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> amazonense sobe na Bolsa de Londres. Aumenta a<br />
produção <strong>do</strong>s pneumáticos. O Amazonas, único produtor de látex <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Manaus rica, copia Paris. Comerciantes enriquecem. Ostenta o Teatro<br />
Amazonas os seus espelhos de cristal. Os milionários jogam cartas com<br />
anela<strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s pesa<strong>do</strong>s de diamantes, arriscan<strong>do</strong> fortunas no Hotel Cassina, no<br />
Alcazar, no Éden, no Cassino Julieta. Telhas de Marselha ao luar na Rua <strong>do</strong>s<br />
Remédios, na Rua <strong>da</strong> Glória. Arquitetura art-nouveau <strong>do</strong> palácio de Ernest<br />
Scholtz – depois Palácio Rio Negro, sede <strong>do</strong> governo. Arandelas, bandeiras,<br />
implúvio. Intercolúnio. O cunhal, o lambrequim, a voluta, o capitel, a cornija.<br />
Arquitrave. Barrete de clérigo, adufa, muxarabi, água-furta<strong>da</strong>, muiraquitã,<br />
127 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 82.
124<br />
envasadura, aleta, estípite. O enxalso, o frontão de cartela. Galilé. Pequena<br />
Manaus, grande Paris!.[...] Um prédio importa<strong>do</strong>, peça por peça, <strong>da</strong> Inglaterra:<br />
a Alfândega, monta<strong>da</strong> aqui. Outro, projeto <strong>do</strong> próprio Gustavo Eiffel, de ferro:<br />
o Merca<strong>do</strong> Municipal. Um Serviço Telefônico serve a ci<strong>da</strong>de. A eletrici<strong>da</strong>de<br />
ilumina as ruas de Manaus no início <strong>do</strong> Século, talvez <strong>da</strong>s primeiras ci<strong>da</strong>des<br />
brasileiras a ter este serviço [...] Óperas, óperas, óperas. Diariamente.<br />
Prostitutas importa<strong>da</strong>s. A Cervejaria Miran<strong>da</strong> Correia. A Praça <strong>da</strong> Sau<strong>da</strong>de. O<br />
Roadway, o Trapiche. Sífilis. Malária [...] 126 navios trafegam no interior <strong>do</strong><br />
Amazonas. Vaticanos, gaiolas e chatas. Inaugura-se, às custas de 3,3 milhões<br />
de dólares, o Teatro Amazonas, em 1896 – a mais cara e inútil obra faraônica<br />
<strong>da</strong> História <strong>do</strong> Brasil, milionária e importa<strong>da</strong>, com painéis, centenas de lustres<br />
de cristal venezianos, colunas de mármore de várias cores, estátuas de bronze<br />
assina<strong>da</strong>s por grandes mestres, espelhos de cristal visota<strong>do</strong>s, jarrões de<br />
porcelana <strong>da</strong> altura de um homem, tapetes persas – tu<strong>do</strong> o que, aliás, em 1912<br />
desapareceu, esvazian<strong>do</strong>-se o Teatro para transformá-lo num depósito de<br />
<strong>borracha</strong> de uma firma americana. Ali o erário público foi enterra<strong>do</strong> em 10 mil<br />
contos de réis: o Teatro Amazonas custou o preço de 5 mil casas luxuosas. O<br />
dólar a 3 mil réis. Por 900 contos de réis se constrói o Palácio <strong>da</strong> Justiça. E por<br />
1 mil e seiscentos contos de réis se constrói o Palácio <strong>do</strong> Governo; nunca<br />
concluí<strong>do</strong>. O Teatro custou 10 mil vi<strong>da</strong>s. Sim: Em 1919 no Amazonas já<br />
tinham chega<strong>do</strong> 150 mil emigrantes. A <strong>borracha</strong> naqueles anos foi tão<br />
importante quanto o café. O Amazonas exportou 200 mil contos de réis em<br />
<strong>borracha</strong>, contra 300 mil contos <strong>do</strong> café paulista na mesma época. Em 1908 é<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong> a mais antiga universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Brasil, em Manaus, com cursos de<br />
Direito (o único que sobreviveu), Engenharia, Obstetrícia, O<strong>do</strong>ntologia,<br />
Farmácia. Agronomia, Ciências e Letras. Nessa época 12 milhões de francos<br />
franceses sumiram, rouba<strong>do</strong>s no Governo de Constantino Nery. Encampa-se,<br />
fraudulenta e inutilmente, a Manaos Improvements, por 10.500 contos de réis<br />
– o preço <strong>do</strong> Teatro Amazonas. A história <strong>do</strong> Amazonas é um acúmulo de<br />
loucuras corruptas. 129<br />
128<br />
Leyla PERRONE-MOISÉS, Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos, p.<br />
156.<br />
129<br />
Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 33-5.
A diversificação apresenta<strong>da</strong> no romance O amante <strong>da</strong>s amazonas em relação às<br />
demais obras ficcionais <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” refere-se tanto a um tratamento mais<br />
aprofun<strong>da</strong><strong>do</strong> e crítico sobre o tema quanto a uma renovação <strong>do</strong> código lingüístico-literário.<br />
Através <strong>do</strong> procedimento parodístico, aspectos muitas vezes trata<strong>do</strong>s superficialmente<br />
ganham uma nova interpretação como já demonstramos no que diz respeito à versão <strong>do</strong><br />
relacionamento <strong>do</strong> autóctone com o explora<strong>do</strong>r e à colocação <strong>do</strong> seringalista em um<br />
contexto mais amplo <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>.<br />
Ao mesmo tempo, imagens desgasta<strong>da</strong>s são acresci<strong>da</strong>s de novos conteú<strong>do</strong>s como,<br />
por exemplo, a <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de solidão <strong>do</strong>s seringueiros, isola<strong>do</strong>s na selva. Geralmente postos<br />
em um nível animal, que também o romance destaca (“tinham vira<strong>do</strong> bichos”), recebem,<br />
por outro la<strong>do</strong>, o perfil de seres mecânicos, “[...] movi<strong>do</strong>s por um interno aparelho de cor<strong>da</strong><br />
[...]” 130 , que significa pôr em evidência a negação de sua existência como seres vivos e<br />
demonstrar a condição de objetos em que se transformaram.<br />
A espoliação <strong>do</strong>s seringueiros é destaca<strong>da</strong>, mesmo sem a enumeração <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />
diárias <strong>do</strong> seringal. A discussão sobre o sistema exploratório dá-se por meio de frases curtas<br />
que podem ser toma<strong>da</strong>s como fragmentos de discursos, revelan<strong>do</strong> o antagonismo de duas<br />
visões de mun<strong>do</strong>: a <strong>do</strong> explora<strong>do</strong>r, calca<strong>da</strong> no lucro, e a <strong>do</strong> nativo, basea<strong>da</strong> na subsistência.<br />
Assim também se acentua a paródia que toma o discurso <strong>do</strong> outro sob forma de pergunta<br />
para problematizá-lo: “[...] O leite se tornava negro, ao meu contato. A agricultura não casa<br />
com a seringa? Produz o que consome? [...]”. 131<br />
Em categorias <strong>da</strong> narrativa, como o foco narrativo, o tempo, o enre<strong>do</strong> e as<br />
personagens, está concentra<strong>da</strong> a renovação <strong>do</strong> plano de expressão de O amante <strong>da</strong>s<br />
amazonas. Sobre o foco narrativo (narra<strong>do</strong>r), já fizemos considerações. O tempo e o<br />
enre<strong>do</strong>, por sua vez, são categorias interdependentes, a mu<strong>da</strong>nça numa, acarreta<br />
conseqüentemente mu<strong>da</strong>nça na outra. Comprovan<strong>do</strong> uma orientação que norteia to<strong>do</strong> o<br />
romance, a auto-explicação, o enre<strong>do</strong> pode ser melhor entendi<strong>do</strong> se tomarmos um trecho<br />
em que a personagem Frei Lothar rememora os saraus promovi<strong>do</strong>s por Pierre Bataillon, nos<br />
quais o Frei tocava violino, atrasan<strong>do</strong> o movimento, e Pierre, piano: “[...] Aquela sonata<br />
tem um módulo que se repete, e sobre esse par de notas Beethoven vai construin<strong>do</strong> a<br />
130 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 8.<br />
131 Ibid., p. 8.<br />
125
intriga, uma trama de perguntas e respostas, in<strong>da</strong>gações, uma seriação de questões<br />
amorosas, apaixona<strong>da</strong>mente transcendentes que o violino pega e alonga, desenvolven<strong>do</strong>,<br />
em diálogo com o piano, em rápi<strong>da</strong>s e fortes frases... O segun<strong>do</strong> movimento conta uma<br />
história curta e simples, conseqüência <strong>da</strong> anterior, que o violino repete, reconta, reforça,<br />
concor<strong>da</strong>, apoia e retoma. O violino entra com alma...” 132 Esse trecho detalha a construção<br />
<strong>do</strong> enre<strong>do</strong> <strong>do</strong> romance. O primeiro movimento <strong>da</strong> sonata refere-se à primeira parte <strong>da</strong><br />
história em que o narra<strong>do</strong>r evoca o fastigioso império de Pierre Bataillon e as personagens<br />
que estão a sua volta; o segun<strong>do</strong> movimento, conseqüentemente, refere-se à segun<strong>da</strong> parte<br />
<strong>da</strong> história em que ruí<strong>do</strong> o império <strong>do</strong> látex, a narrativa passa a enfocar Manaus em seu<br />
esta<strong>do</strong> de decadência física e humana. São sintomas dessa decadência o arruina<strong>do</strong> avia<strong>do</strong>r<br />
Juca <strong>da</strong>s Neves e sua mulher, D. Constança. Como o an<strong>da</strong>mento <strong>do</strong> piano de Pierre e <strong>do</strong><br />
violino de Frei Lothar que não se desenvolvem no mesmo compasso, essas duas partes <strong>da</strong><br />
história, apesar de interliga<strong>da</strong>s pelos aspectos apogeu e decadência <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, seguem uma<br />
estruturação diferente. O universo mítico evoca<strong>do</strong> em capítulos como “Numas” e “Ratos”,<br />
na primeira parte <strong>da</strong> história, não encontra lugar na ci<strong>da</strong>de, o espaço <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pretendi<strong>da</strong><br />
racional. É de se notar que na segun<strong>da</strong> parte os acontecimentos <strong>da</strong> narrativa se apresentam<br />
de forma menos desordena<strong>da</strong> e fragmentária <strong>do</strong> que na primeira parte, marca<strong>da</strong> não<br />
somente pela quebra <strong>da</strong> relação causal entre os capítulos como também pela<br />
descontinui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ações <strong>da</strong>s personagens ou <strong>da</strong> seqüência de acontecimentos. Em relação<br />
ao enre<strong>do</strong>, portanto, o romance não tece seqüencialmente as ações como ocorre no romance<br />
tradicional. A atração que esse enre<strong>do</strong> exerce não é, por conseguinte, pelos encadeamentos<br />
de episódios que caminham para a solução de um ou mais conflitos, mas justamente pelo<br />
estranhamento <strong>da</strong> disposição estrutural <strong>da</strong> narrativa. 133<br />
A categoria tempo implica<strong>da</strong> na disposição <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> é igualmente trata<strong>da</strong> sob uma<br />
perspectiva inusita<strong>da</strong> no romance. Primeiramente, devemos ressaltar que o tempo <strong>do</strong><br />
romance tem um caráter psicológico porque é tempo <strong>da</strong> memória, <strong>da</strong> lembrança, e <strong>da</strong>í a<br />
fragmentação <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> em virtude <strong>do</strong> que o narra<strong>do</strong>r pode e quer lembrar. Quan<strong>do</strong> o<br />
narra<strong>do</strong>r enuncia, na abertura <strong>do</strong> primeiro capítulo: “Nós nos despedimos na Cancela sob a<br />
132 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 84.<br />
133 Leyla Perrone-Moisés comenta que a novi<strong>da</strong>de também é um valor preza<strong>do</strong> pelos escritores-críticos: “[...]<br />
A novi<strong>da</strong>de valoriza<strong>da</strong> pelos escritores críticos modernos é principalmente uma novi<strong>da</strong>de de expressão que<br />
126
primeira luz <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong> <strong>do</strong> Natal de 1897 – eu e minha mãe, nunca mais a vi - na<br />
presença de to<strong>do</strong>s que ali estavam e de quem me não quero lembrar no povoa<strong>do</strong> de Patos<br />
em Pernambuco, de onde parti com duas mu<strong>da</strong>s de roupa na mala [...]” 134 , temos<br />
preliminarmente a noção de que os fatos a serem narra<strong>do</strong>s pertencem ao passa<strong>do</strong> pela<br />
indicação <strong>do</strong>s verbos no tempo pretérito e pela referência à condição de lembrança.<br />
O tempo pretérito, contu<strong>do</strong>, como indica<strong>do</strong>r de uma ação decorri<strong>da</strong>, deve ser<br />
toma<strong>do</strong> com cautela no plano ficcional. Nunes alerta, basea<strong>do</strong> em argumentos de Kate<br />
Hamburger e Harald Weinrich, que “[...] na ficção criamos personagens, Eus fictícios<br />
originais, que se movem num plano de existência estética, relativamente ao qual as<br />
enunciações perdem o alcance factual de registros <strong>da</strong> experiência [...]. 135 Desse mo<strong>do</strong>, a<br />
ficção não se guia pela mesma lógica <strong>da</strong> gramática, que é a lógica <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real. O uso <strong>do</strong><br />
tempo pretérito não indicaria uma ação passa<strong>da</strong>, mas uma ação conta<strong>da</strong>: “[...] O pretérito<br />
assinala que há narrativa e não o fato de que esta se realiza para trás no tempo que<br />
passou.” 136 Como exemplo de que não se narra necessariamente aquilo que já ocorreu estão<br />
as obras de ficção científica que também empregam o tempo pretérito e, por outro la<strong>do</strong>,<br />
situações ficcionais em que, mesmo utilizan<strong>do</strong> o pretérito, indica-se que uma ação está se<br />
processan<strong>do</strong>.<br />
O narra<strong>do</strong>r narra um tempo passa<strong>do</strong>, atualizan<strong>do</strong>-o no ato <strong>da</strong> enunciação. Não fala<br />
de um passa<strong>do</strong> de forma distancia<strong>da</strong>, mas se põe em seu momento mesmo. A primeira<br />
pessoa <strong>do</strong> plural inclui narra<strong>do</strong>r e leitor: “[...] Nós retornávamos à elaboração <strong>do</strong> nosso<br />
faustoso passa<strong>do</strong>, nós chegávamos naquela brusca tarde de ouro sem senti<strong>do</strong> e sem valor<br />
em que o Palácio ocupava na sua singulari<strong>da</strong>de to<strong>do</strong>s os detalhes de um aspecto de<br />
deslumbrante luz [...].” 137 Trata-se de uma situação mais complexa <strong>do</strong> que o recurso <strong>da</strong><br />
retrospecção por meio <strong>da</strong> analepse em que o recuo narrativo “[...] é feito numa exposição<br />
separa<strong>da</strong>, interrompen<strong>do</strong> a ação principal, que volta ao seu curso quan<strong>do</strong> aquela termina<br />
[...]”. 138 O narra<strong>do</strong>r aproveita-se <strong>do</strong> tempo lingüístico em que dialoga com o leitor a partir<br />
rompe com os velhos hábitos e surpreende o leitor [...]” (Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de<br />
escritores modernos, p. 171).<br />
134<br />
Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 5.<br />
135<br />
Benedito NUNES, O tempo na narrativa, p. 38.<br />
136<br />
Ibid., p. 40.<br />
137<br />
Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 9<br />
138<br />
Benedito NUNES, o tempo na narrativa, p. 32.<br />
127
de um agora para <strong>da</strong>r ao passa<strong>do</strong> um caráter de ubiqüi<strong>da</strong>de; fazê-lo acontecer como<br />
presente ficcional.<br />
A personagem é uma categoria narrativa que tem particular importância em O<br />
amante <strong>da</strong>s amazonas e por isso não podemos deixar de considerar a concepção que Rogel<br />
Samuel expressa sobre ela em seu texto teórico Crítica <strong>da</strong> escrita: “[...] o próprio <strong>da</strong><br />
natureza narrativa não é a ação (há romances sem „ação‟, ou de ação reduzi<strong>da</strong> [...] o próprio<br />
<strong>da</strong> natureza narrativa não é a ação, mas o personagem como nome (o „pai‟, a „Capitu‟, o<br />
„Peri‟, a „Ceci‟) como material sêmico desta moldura catalogável de rótulos, deste fichário<br />
<strong>do</strong> dito sobre o personagem”. 139 Na própria seleção <strong>do</strong>s capítulos <strong>do</strong> romance, estampa-se a<br />
proeminência que têm as personagens, uma vez que <strong>do</strong>s 23 capítulos que compõem o<br />
romance, 6 levam como título nomes de personagens (Paxiúba, Ferreira, Júlia, Frei Lothar,<br />
Ribamar, Benito). Ademais, os capítulos “O leque” e “Rua <strong>da</strong>s Flores” podem ser<br />
considera<strong>do</strong>s como enuncia<strong>do</strong>res de personagens, pois detêm-se quase que exclusivamente<br />
nelas e não numa ação.<br />
A menção feita por Samuel à personagem como material sêmico remete à<br />
terminologia proposta por A. J. Greimas, em seu livro Semantique Structurale (1965), 140<br />
calca<strong>da</strong> na concepção semiológica, significativa de um rompimento com a noção de<br />
personagem como imitação <strong>do</strong> ser humano, conceben<strong>do</strong>-a como signo. 141 Samuel destaca<br />
que o texto ficcional é constituí<strong>do</strong> de logros e que o seu logro fun<strong>da</strong>mental é ocultar sua<br />
própria condição fictícia. Jogan<strong>do</strong> com uma forma de exposição <strong>da</strong> personagem oposta a<br />
dessa ocultação, o narra<strong>do</strong>r de O amante <strong>da</strong>s amazonas revela o seu caráter ilusório:<br />
“Paxiúba na montaria, espetáculo bom de ver, veja-o que ele é de papel, literário [...].” 142<br />
As personagens, em O amante <strong>da</strong>s amazonas, são emblemáticas tanto em relação ao<br />
<strong>ciclo</strong> quanto ao processo de colonização <strong>da</strong> Amazônia como um to<strong>do</strong>. O narra<strong>do</strong>r anuncia<br />
essa condição através <strong>da</strong> personagem Paxiúba, quan<strong>do</strong> a refere como “[...] emblema <strong>da</strong><br />
139 Rogel SAMUEL, Crítica <strong>da</strong> escrita, p. 47. (O “pai” constitui uma personagem <strong>do</strong> conto “A terceira<br />
margem <strong>do</strong> rio”, analisa<strong>do</strong> pelo autor na primeira parte desse livro).<br />
140 É preciso não perder de vista, to<strong>da</strong>via, que Samuel explicita a concepção de Roland Barthes desse<br />
conota<strong>do</strong>r: “Os semas [...] são considera<strong>do</strong>s por Barthes, como a voz <strong>da</strong> pessoa, <strong>do</strong>s lugares e <strong>do</strong>s objetos: o<br />
sema é o conota<strong>do</strong>r, por um entusiasmo <strong>do</strong> texto <strong>da</strong> configuração de caráter destes elementos, define uma<br />
interpretação ideológica [..]” (Rogel SAMUEL, Crítica <strong>da</strong> escrita, p. 47).<br />
141 A esse respeito, é oportuna a complementação de Beth Brait: “Ao encarar a personagem como ser fictício,<br />
com forma própria de existir, os autores situam a personagem dentro <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de <strong>do</strong> texto, consideran<strong>do</strong><br />
a sua complexi<strong>da</strong>de e alcance <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s utiliza<strong>do</strong>s para apreendê-la. (A personagem, p. 51).<br />
142 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 21.<br />
128
Amazônia amontoa<strong>da</strong> e brutal, sombria, desconheci<strong>da</strong> e nociva [...]. 143 Paxiúba carrega a<br />
marca de um ser híbri<strong>do</strong>, filho de um negro barbadiano e de uma índia Caxinauá. Nele se<br />
personaliza um duplo: Com os seres que estão no seu mesmo plano, libera taras sexuais:<br />
Zil<strong>da</strong>, mulher <strong>do</strong> seringueiro Laurie Costa é estupra<strong>da</strong> e a investi<strong>da</strong> se repete com Maria<br />
Caxinauá. Com Zequinha Bataillon, seu senhor, transforma-se num animal <strong>do</strong>ma<strong>do</strong>,<br />
<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> a seus pés:<br />
129<br />
[...] Paxiúba era <strong>da</strong> confiança de Zequinha, <strong>do</strong>rmia na sua cama, cria<strong>do</strong> desde<br />
criança junto dele, a<strong>do</strong>ran<strong>do</strong>-o, como um cão [...] 144<br />
...............................................................................................................................<br />
[...] ele era personali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Palácio, chefe <strong>do</strong> aparelho policial <strong>do</strong> Seringal,<br />
guar<strong>da</strong> de Zequinha Bataillon, diziam amigo que <strong>do</strong>rmia com o menino,<br />
importância capital de bicho. Sen<strong>do</strong> que Paxiúba arma<strong>do</strong> assassino, com águia<br />
e serpente, eliminava quem devia de ser, na sua função de coagir e de matar<br />
[...] 145<br />
Pierre Bataillon é outra personagem emblemática e indicial 146 pela significação que<br />
acumula de uma cultura hegemônica, assim como também o é Maria Caxinauá pelo que<br />
representa de oposição a essa cultura. Engloba a submissão <strong>do</strong>s Caxinauás, mas também é<br />
uma imagem <strong>da</strong> reação.<br />
Se o romance apresenta a imponência em Pierre Bataillon, não deixa de vasculhar o<br />
fun<strong>do</strong> de mediocri<strong>da</strong>de e mesquinhez que a ostentação oculta através <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de<br />
neurótica de D. Constança:<br />
D. CONSTANÇA tinha si<strong>do</strong> educa<strong>da</strong> para ser uma boneca inútil. Exagerara e<br />
ficou louca [...] D. Constança se abanava com o leque, como se a queimasse um<br />
fogo interior. E tinha péssimo caráter, bastava a pessoa <strong>da</strong>r as costas para que<br />
ela começasse a retaliação. Voz fina, língua viperina. Olhar de fuzilante ódio.<br />
Os seres <strong>da</strong>s classes inferiores eram „gentinha‟, não existiam [...]<br />
143 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 22.<br />
144 Ibid., p. 77<br />
145 Ibid., p. 23.
130<br />
[...] Nunca teve uma amiga. Começava a falar de to<strong>da</strong>s logo que fechava a porta<br />
<strong>da</strong> rua. Falava para Juca <strong>da</strong>s Neves, falava muito rapi<strong>da</strong>mente, a voz nervosa,<br />
fina, angustia<strong>da</strong>. Passava horas e horas em fofocas, maledicências, esconden<strong>do</strong>-<br />
se atrás de portas para ouvir, entreabrin<strong>do</strong> janelas para espiar. Vestia as pessoas<br />
com tu<strong>do</strong> o que pensava a respeito, a to<strong>do</strong>s nutrin<strong>do</strong> um ódio que a corrompia<br />
por dentro [...]<br />
[...] à medi<strong>da</strong> que foi envelhecen<strong>do</strong> foi fican<strong>do</strong> pior. Começou a falar e abanar-<br />
se sozinha, senta<strong>da</strong> na cadeira de balanço onde se abanava e falava até tarde <strong>da</strong><br />
noite. E sozinha falan<strong>do</strong>, falan<strong>do</strong>, e abanan<strong>do</strong>-se, abanan<strong>do</strong>-se, os olhos se<br />
fixaram numa característica sua, que era o “rabo <strong>do</strong> olho”, como ela dizia, já<br />
não olhan<strong>do</strong> de frente para ninguém, não encaran<strong>do</strong> ninguém, o olhar fixo nos<br />
la<strong>do</strong>s e cantos <strong>da</strong>s órbitas como se sempre procurasse ver e ouvir algo que se<br />
passava pelos la<strong>do</strong>s e atrás, um olhar congela<strong>do</strong> numa expressão de ódio, e até<br />
hoje me lembro dela assim senta<strong>da</strong>, olhan<strong>do</strong> para os la<strong>do</strong>s e para trás, como<br />
cerca<strong>da</strong> de inimigos, abanan<strong>do</strong>-se frenética e falan<strong>do</strong> aflita, falan<strong>do</strong> mal de<br />
seres imaginários, de pessoas que já tinham morri<strong>do</strong> há muito e muito tempo, e<br />
sozinha, esqueci<strong>da</strong>... 147<br />
Por outro la<strong>do</strong>, o romance ilustra na personagem Benito Botelho o elemento que se<br />
recusa a aderir à cultura <strong>da</strong> ostentação e, por isso, torna-se marginaliza<strong>do</strong>. Na contramão<br />
<strong>do</strong>s hábitos sofistica<strong>do</strong>s, ele an<strong>da</strong> mal vesti<strong>do</strong>, tem os dentes estraga<strong>do</strong>s e esboça uma<br />
palidez <strong>do</strong>entia. A sua ironia “[...] contra os poderosos e contra o tacanho e conserva<strong>do</strong>r<br />
meio em que vivia [...]” 148 não lhe rendia mais <strong>do</strong> que o insignificante cargo de revisor <strong>do</strong><br />
Jornal Amazonas Comercial. No entanto, a sua cultura não era postiça, como poeta e<br />
poliglota “[...] lia e falava francês, inglês, alemão e italiano, além de sóli<strong>do</strong>s conhecimentos<br />
de grego e de latim. Autodi<strong>da</strong>ta, construíra o seu saber: “[...] Conhece<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s,<br />
seu <strong>do</strong>mínio ia <strong>da</strong> Filosofia à literatura, <strong>da</strong> História à Filologia [...]”. 149 Apesar disso, e<br />
talvez por isso mesmo, to<strong>do</strong>s o desprezavam. Contrastan<strong>do</strong> com a simplici<strong>da</strong>de e o<br />
ver<strong>da</strong>deiro interesse pelo conhecimento de Benito, que não se importava nem com as<br />
146 Sobre o índice, Donald Schüler informa: “[...] Os índices remetem ao caráter <strong>da</strong>s personagens, à atmosfera,<br />
dizem respeito ao significa<strong>do</strong>, em contraste com as funções que se restringem ao desenrolar <strong>do</strong>s<br />
acontecimentos” (Teoria <strong>do</strong> romance, p. 54).<br />
147 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 67-68.<br />
148 Ibid., p. 69.
condições precárias em que morava, com as águas <strong>da</strong> enchente baten<strong>do</strong> à soleira <strong>da</strong> porta<br />
<strong>do</strong> tapiri chama<strong>do</strong> de casa, onde empilhava livros, estavam os “[...] beletristas <strong>da</strong><br />
Academia, os homens de letras, juristas de óculos no nariz e paletó impecável, <strong>do</strong>utores,<br />
jurisconsultos, magistra<strong>do</strong>s, desembarga<strong>do</strong>res [...].” 150 A Benito, porém, como opositor<br />
nato a tu<strong>do</strong> o que significavam, era nega<strong>do</strong> o emprego na biblioteca municipal. O narra<strong>do</strong>r<br />
destaca o isolamento de Benito na razão direta de sua rebeldia:<br />
131<br />
[...] Ele era a única voz de oposição naquela socie<strong>da</strong>de louvaminheira,<br />
lau<strong>da</strong>tória, servil, risonha e patriarcal [...] Ele era o inimigo <strong>da</strong> elite de quem<br />
Eudócia fora alia<strong>da</strong> e escrava – ela, porém, grata à patroa, que considerava uma<br />
espécie de benção, não compreendia o ódio <strong>do</strong> sobrinho, ódio de que, por isso,<br />
também era vítima. 151<br />
Frei Lothar que, a exemplo de Benito Botelho, dá nome ao capítulo, constitui<br />
personagem que recebe especial atenção no romance. Como missionário, acumula um<br />
diálogo com as demais obras <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> que quase unanimemente se voltam à representação<br />
dessa personagem e está rigorosamente liga<strong>do</strong> ao processo de colonização <strong>da</strong> Amazônia.<br />
Essa personagem se choca com o papel histórico que Arthur Cezar Ferreira REIS<br />
atribui aos missionários na Amazônia:<br />
Empresa de titãs, a conquista espiritual <strong>da</strong> Amazônia empreendi<strong>da</strong> pelos<br />
franciscanos de Santo Antônio, Salezianos, beneditinos, padres <strong>do</strong> Espírito<br />
Santo, agostinianos, <strong>do</strong>minicanos, padres servos de Maria, capuchinos,<br />
barnabitas, padres <strong>do</strong> Preciosíssimo Sangue, está constituin<strong>do</strong> um capítulo <strong>do</strong>s<br />
mais memoráveis e dignifica<strong>do</strong>res <strong>da</strong> espécie humana na história <strong>da</strong> civilização<br />
contemporânea. 152<br />
A disposição de um titã seria o aspecto mais improvável a se atribuir à personagem<br />
Frei Lothar. No capítulo dedica<strong>do</strong> a ela, o primeiro destaque é a sua triste figura. Sem<br />
149<br />
Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 70.<br />
150<br />
Ibid., p. 70.<br />
151<br />
Ibid., p. 72.<br />
152<br />
Arthur Cezar Ferreira REIS, A conquista espiritual <strong>da</strong> Amazônia, p. 113.
deno<strong>do</strong> algum, o frei encontra-se venci<strong>do</strong> pelo cansaço de uma tarefa inglória: “[...] Oh,<br />
meu Amazonas! Deus é grande mas a Floresta é maior, e eu já não sou o mesmo.” 153 A<br />
conquista espiritual que teria o Frei de empreender, por sua vez, acha-se ameaça<strong>da</strong> pelo<br />
abalo <strong>da</strong>s convicções religiosas e pela enumeração de fatos contingenciais que perturbam a<br />
sua missão: “[...] O Frei perdera a fé, falava grosso, cuspia no chão, an<strong>da</strong>va arma<strong>do</strong>, tinha<br />
mau humor e mau cheiro [...].” 154<br />
Frei Lothar e Benito Botelho se aproximam enquanto seres ina<strong>da</strong>pta<strong>do</strong>s num<br />
espaço. Tal como Benito, Frei Lothar é repudia<strong>do</strong>, execra<strong>do</strong> porque abomina a socie<strong>da</strong>de<br />
onde vive, os seus mo<strong>do</strong>s requinta<strong>do</strong>s, mas sem autentici<strong>da</strong>de. É o oposto desse requinte,<br />
tem maus mo<strong>do</strong>s, escarra no chão, fala palavrões e age com rebeldia, odian<strong>do</strong> a classe<br />
<strong>do</strong>minante, a religião, a fé porque não as vê produzirem na<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deiramente útil para a<br />
vi<strong>da</strong>. Como religioso, o que viu to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> “[...] não foi Deus: Foi a <strong>do</strong>r, a <strong>do</strong>r e a morte, a<br />
miséria e a desolação [...].” 155 Frei Lothar só encontra prazer na música, como Benito só<br />
pode encontrá-lo nos livros:<br />
132<br />
[...] Frei Lothar se levantou com esforço, saiu <strong>da</strong>li e foi ao camarote de onde<br />
veio com o violino. Sentou-se. Ia estu<strong>da</strong>r até o sono chegar. Era a Segun<strong>da</strong><br />
Partitura de Bach, que sabia de cor, mas nunca conseguia superar certas<br />
dificul<strong>da</strong>des. Tocava sem a partitura. Estu<strong>da</strong>va sem a partitura, no escuro,<br />
dentro <strong>do</strong> vento veloz. Sozinho. Sem partitura e sem luz, sem ninguém. Oh! No<br />
Amazonas era assim. O Amazonas não tinha partitura, não tinha luz, nem<br />
ninguém. O Amazonas era uma imensa planície de miséria [...] 156<br />
Frei Lothar e Benito são duas personagens que remetem à degra<strong>da</strong>ção. Não em<br />
virtude <strong>da</strong> derroca<strong>da</strong> econômica <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, mas por uma inadequação a um mo<strong>do</strong> de vi<strong>da</strong><br />
basea<strong>do</strong> num simulacro: um desenvolvimento econômico ilusório, um projeto fictício de<br />
civilização.<br />
153 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 54.<br />
154 Ibid., p. 54.<br />
155 Ibid. , p. 57.<br />
156 Ibid. , p. 57.
O relevo que têm as personagens em O amante <strong>da</strong>s amazonas aparece destaca<strong>do</strong> no<br />
final <strong>do</strong> romance, que ao invés de remeter para um desfecho <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, faz um<br />
encadeamento de personagens no tom <strong>do</strong>s antigos narra<strong>do</strong>res:<br />
133<br />
[...] não se esqueça dessa história tão bonita <strong>do</strong> amante <strong>da</strong>s amazonas. A<br />
Amazônia é um certo lugar fantástico que também está no fim, mas quan<strong>do</strong><br />
sonhar sonhe com o Igarapé <strong>do</strong> Inferno se in<strong>do</strong> por dentro <strong>da</strong>quele pântano,<br />
passan<strong>do</strong> pelo Palácio Manixi de grande memória, com o jovem Zequinha<br />
Bataillon. Lembre-se de Maria Caxinauá, <strong>do</strong> bugre Paxiúba, de Benito Botelho,<br />
de Pierre Bataillon ao piano e de sua Ifigênia Vellarde. Não se esqueça de<br />
Antônio Ferreira, <strong>da</strong> maacu Ivete, <strong>da</strong> Conchita Del Carmen, de Juca <strong>da</strong>s Neves<br />
e D. Constança, sua mulher, e <strong>do</strong> Comen<strong>da</strong><strong>do</strong>r Gabriel Gonçalves <strong>da</strong> Cunha.<br />
Mas de Frei Lothar e de Ribamar de Souza, que assim se vai nesse vosso<br />
Narra<strong>do</strong>r que desaparece, neste ponto. 157<br />
O comentário <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r Arthur Cezar Ferreira Reis sobre a conquista espiritual<br />
<strong>da</strong> Amazônia apresenta-se menos contundente para entendermos a participação <strong>do</strong><br />
missionário na Amazônia <strong>do</strong> que o ser de papel que é Frei Lothar. Vemos que a missão de<br />
Frei Lothar não depende apenas de um arroja<strong>do</strong> pioneirismo, ele luta com os empecilhos<br />
naturais, a lama, o calor, os mosquitos e com a própria inviabili<strong>da</strong>de de justificação <strong>da</strong><br />
conquista porque não crê nela. Por intermédio <strong>do</strong> discurso ficcional, portanto, promove-se<br />
uma percepção mais autêntica <strong>do</strong> real, para a qual chama atenção Samuel, basea<strong>do</strong> na tese<br />
de Jean-Paul Sartre em A imaginação: “A literatura fala <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, através de uma imagem<br />
que é outro mun<strong>do</strong>. Só apreendemos o real se sairmos <strong>do</strong> real, pela imaginação [...]” 158 Por<br />
outro la<strong>do</strong>, a visão <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r Arthur Cezar Ferreira Reis é ideologicamente<br />
convincente, transmite um discurso oficializa<strong>do</strong> pelos conquista<strong>do</strong>res na Amazônia, que a<br />
literatura tem a capaci<strong>da</strong>de de desmontar.<br />
Samuel explicita que sair <strong>do</strong> real pela imaginação não significa se pôr além <strong>do</strong> real<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong> no mun<strong>do</strong>, ao destacar que o discurso não se separa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, “[...] o discurso só<br />
pode falar de uma única coisa: Do mun<strong>do</strong> [...].” 159<br />
157 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 95.<br />
158 Rogel SAMUEL, Crítica <strong>da</strong> escrita, p. 65.<br />
159 Ibid., p. 80.
A postulação que Samuel apresenta em Crítica <strong>da</strong> escrita é coerentemente realiza<strong>da</strong><br />
em O amante <strong>da</strong>s amazonas à medi<strong>da</strong> que se verifica a apresentação <strong>do</strong> discurso literário<br />
como arte imaginativa, revela<strong>da</strong>, metalingüisticamente, através <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r que se anuncia<br />
como fingi<strong>do</strong>; <strong>do</strong> caráter irreal (ficcional) <strong>da</strong>s personagens apresenta<strong>do</strong> no próprio texto e<br />
<strong>do</strong> nível simbólico <strong>do</strong> texto que apresenta relações solicita<strong>do</strong>ras <strong>da</strong> busca <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> que<br />
não está explicitamente dito. Por esses caminhos, o romance atinge um nível de critici<strong>da</strong>de<br />
na abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong> evento histórico <strong>do</strong> “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>”.<br />
134
135
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Alejo Carpentier argumenta que quan<strong>do</strong> não há experimentação, diversificação, uma<br />
novelística não evolui. 1 Essa constatação pode ser toma<strong>da</strong> como váli<strong>da</strong> para o conjunto de<br />
obras ficcionais sobre o <strong>ciclo</strong> econômico <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> no Amazonas. Durante um século, a<br />
maioria <strong>da</strong>s obras apresentou pouca inovação. Entretanto, mesmo sob uma constância de<br />
abor<strong>da</strong>gem, algumas obras realizaram um grau de diversificação, seja pelo teor de<br />
aprofun<strong>da</strong>mento que conseguiram desenvolver em relação às demais, seja pela quebra de<br />
estereótipos sempre retoma<strong>do</strong>s, seja por uma renovação profun<strong>da</strong> no tratamento<br />
conteúdístico <strong>do</strong> tema e no tratamento estético.<br />
Com base nessa diversificação, propusemo-nos a estu<strong>da</strong>r três obras que reúnem<br />
características afins: A selva, de Ferreira de Castro; Beiradão, de Álvaro Maia, e O amante<br />
<strong>da</strong>s amazonas, de Rogel Samuel. A primeira dessas características é o contato e a<br />
experiência <strong>do</strong> escritor no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal, que tomamos não como negação de trabalho<br />
inventivo <strong>do</strong> escritor, mas como possibili<strong>da</strong>de de verificação <strong>da</strong>s determinações dessa<br />
condição de experiência em ca<strong>da</strong> obra.<br />
Proceden<strong>do</strong> a divisão de três fases em que foram produzi<strong>da</strong>s as obras menciona<strong>da</strong>s,<br />
obtivemos um indica<strong>do</strong>r que permitiu a dedução de que as obras <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> apresentam uma<br />
característica temporal, ligan<strong>do</strong>-se a manifestações estéticas de sua época. Ain<strong>da</strong> assim, à<br />
exceção <strong>da</strong> terceira fase, ocorreu um contínuo de abor<strong>da</strong>gem: o enfoque maniqueísta, o que<br />
evidencia que as obras, mesmo distancian<strong>do</strong>-se no tempo, mantiveram uma aproximação.<br />
Consideramos, portanto, que o tempo influiu menos <strong>do</strong> que a repetição <strong>do</strong>s estereótipos<br />
para a não diversificação <strong>da</strong>s obras.<br />
136<br />
Não é o tempo em que são publica<strong>da</strong>s as obras um critério de fun<strong>da</strong>mental<br />
importância para a diversificação temática e estética. A obra de Ferreira de Castro,<br />
enquanto representante <strong>da</strong> primeira fase, por se situar num determina<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> de<br />
1 Alejo Carpentier, Literatura e consciência política na América Latina, p. 9-34.
publicação, extrapola o critério temporal e as limitações dessa fase por apresentar um<br />
conjunto <strong>do</strong>cumental bem constituí<strong>do</strong>. O tempo também não significa que uma obra<br />
publica<strong>da</strong> praticamente no século XXI torne-se moderna em relação ao tema que abor<strong>da</strong> ou<br />
demonstre um trabalho de re-elaboração <strong>da</strong> expressão narrativa. Esclarecen<strong>do</strong> essa<br />
observação, está o romance Látex, de Marco A<strong>do</strong>lfs (2000) que, apesar de não se<br />
centralizar nos estereótipos comuns a outras obras, não realiza uma criação ficcional<br />
contundente.<br />
A primeira característica – a experiência - a partir <strong>da</strong> qual selecionamos as três obras<br />
tem um fator decisivo para suas criações. Ferreira de Castro produziu A selva, compeli<strong>do</strong><br />
pela emergência de registrar a sua experiência no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal. Essa experiência<br />
difícil e inusita<strong>da</strong> para o escritor em sua a<strong>do</strong>lescência só se amenizou como um fantasma de<br />
sua lembrança quan<strong>do</strong> pôde extravasá-la sob a forma de criação ficcional, mas o autor<br />
destacou, em prefácio ao romance, que a vivência no seringal, motiva<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> obra, não<br />
significou reprodução de sua vi<strong>da</strong> particular.<br />
Álvaro Maia foi igualmente impulsiona<strong>do</strong> pela experiência de vi<strong>da</strong> que compreende<br />
o nascimento e a vivência durante a infância no seringal na criação de Beiradão. Os <strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
de sua vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> representação ficcional de sua obra estão tão próximos que se pode<br />
seqüênciá-los. A saga de Fábio, personagem central de Beiradão, é a mesma <strong>do</strong> pai de<br />
Álvaro Maia, com suas características peculiares, como o rompimento <strong>do</strong> sacerdócio, a<br />
vin<strong>da</strong> para o Amazonas bani<strong>do</strong> pela seca, o casamento com a filha de um seringalista<br />
também oriun<strong>da</strong> de educação religiosa. O filho desse casal vem a ser a representação <strong>do</strong><br />
próprio autor. Pode-se dizer que o autor inseriu na obra os seus <strong>da</strong><strong>do</strong>s familiares, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-<br />
lhes nomes fictícios. Além <strong>da</strong> experiência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal, Álvaro Maia introduziu na<br />
ficção a sua experiência na política. Essas, portanto, são as bases em que se assentam a<br />
criação ficcional de Álvaro Maia.<br />
Rogel Samuel teve também a experiência como ponto de parti<strong>da</strong> para a sua criação.<br />
Não se verifica, nesse caso, uma experiência direta, mas o lega<strong>do</strong> <strong>da</strong> memória familiar, <strong>do</strong><br />
pai, Albert Samuel, que reuniu relatos <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> econômico em Jaguareté, o guerreiro, e <strong>do</strong><br />
avô, M. Samuel, rico comerciante <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> proprietário <strong>do</strong> barco A<strong>da</strong>mastor, referi<strong>do</strong> na<br />
ficção e reproduzi<strong>do</strong> através de foto na capa e contracapa <strong>do</strong> romance, num acréscimo<br />
fotográfico que compõe uma ambientação extra-textual para o romance. O trabalho de<br />
137
invenção a partir <strong>da</strong> memória é destaca<strong>do</strong> no comentário de apresentação <strong>do</strong> romance,<br />
cercean<strong>do</strong> a análise apenas biográfica <strong>da</strong> obra: os <strong>da</strong><strong>do</strong>s ficcionais que coincidem com os<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong>s biográficos são, ain<strong>da</strong>, “mera coincidência”.<br />
Na reali<strong>da</strong>de, as três obras estão significativamente liga<strong>da</strong>s à memória como ponto<br />
de parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> criação ficcional. A memória <strong>do</strong> escritor, como ser real, sempre se imprime<br />
nas obras, o que varia é sua menor ou maior intensi<strong>da</strong>de. Agregan<strong>do</strong> essa memória à<br />
invenção ficcional, consciente ou inconscientemente, os escritores deixam em suas obras<br />
fragmentos <strong>do</strong> que é infinitamente intenso. 2<br />
É preciso ressaltar que um fator distintivo na obra de Ferreira de Castro é a<br />
proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> experiência no seringal ao trabalho de criação <strong>da</strong> obra. O autor viveu no<br />
seringal Paraíso de 1912 a 1913 e escreveu A selva em 1929, dezesseis anos depois,<br />
portanto, de sua esta<strong>da</strong> no seringal. Como ele próprio informa, as sensações que lhe<br />
imprimiram essa experiência estavam vívi<strong>da</strong>s em sua lembrança e os momentos de<br />
dificul<strong>da</strong>des que passou em Portugal, antes de escrever a obra, tornaram-na mais presentes:<br />
138<br />
Foi esse momento tão extraordinariamente grave para meu espírito, que desde<br />
então não corre uma única semana sem eu sonhar que regresso à selva, como,<br />
após a evasão frustra<strong>da</strong>, se volta, de cabeça baixa e braços caí<strong>do</strong>s, a um<br />
presídio. E quan<strong>do</strong> o terrível pesadelo me faz acor<strong>da</strong>r, cheio de aflição, tenho<br />
de acender a luz e de olhar o quarto até me convencer de que sonho apenas [...] 3<br />
O seringal, para Álvaro Maia, está marca<strong>do</strong> pela experiência de seus pais e essa<br />
talvez seja a principal causa de reproduzir os <strong>da</strong><strong>do</strong>s biográficos deles em Beiradão. Maia<br />
deixa o seringal ain<strong>da</strong> jovem para fazer os estu<strong>do</strong>s em Manaus e depois no Rio de Janeiro e,<br />
quan<strong>do</strong> retorna, praticamente já ingressa na carreira política que o manterá afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
seringal, enquanto ambiente. Essa situação justifica o enre<strong>do</strong> de Beiradão se construir<br />
quase to<strong>do</strong> em torno de Fábio, representação ficcional <strong>do</strong> pai <strong>do</strong> autor, e só focalizar no fim<br />
<strong>do</strong> romance o filho <strong>da</strong> personagem Fábio, que corresponde ficcionalmente a Álvaro Maia.<br />
Entretanto, não se deve perder de vista que as concepções <strong>da</strong> personagem Fábio estão<br />
2<br />
“A memória é um cabe<strong>da</strong>l infinito <strong>do</strong> qual só registramos um fragmento [...]” (Ecléa BOSI, Memória e<br />
socie<strong>da</strong>de: lembrança de velhos, p. 39.<br />
3<br />
José Maria FERREIRA DE CASTRO, Pórtico. In: José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 25.
imbuí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> visão política de Álvaro Maia. Outro fato a ser considera<strong>do</strong> é que embora<br />
Álvaro Maia não tenha permaneci<strong>do</strong> a maior parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no ambiente <strong>do</strong> seringal, uma<br />
vez que os cargos políticos exigiam sua presença na ci<strong>da</strong>de, o tema <strong>do</strong> seringal é constante<br />
em tu<strong>do</strong> o que escreveu. Por outro la<strong>do</strong>, sua proposta de alternativa econômica ao<br />
extrativismo <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> e a construção ficcional <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong> perfil <strong>do</strong> seringalista têm<br />
menos apoio na vivência <strong>do</strong> seringal <strong>do</strong> que na plataforma política esta<strong>do</strong>-novista.<br />
Os três autores escreveram após o declínio <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, mas tanto Ferreira de Castro<br />
quanto Álvaro Maia têm próxima a significação <strong>do</strong> processo econômico. Maia escreveu<br />
Beiradão em 1958, quan<strong>do</strong> a Campanha <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> promoveu um fugaz interesse pela<br />
extração <strong>do</strong> produto.<br />
O contexto histórico de ca<strong>da</strong> autor deu o matiz de suas obras. Com Ferreira de<br />
Castro, esse contexto histórico-literário é o Neo-realismo português e a defesa <strong>do</strong>s<br />
postula<strong>do</strong>s de justiça social claramente declara<strong>do</strong>s pelo engajamento <strong>do</strong>s neo-realistas. O<br />
desfecho <strong>da</strong> obra aponta para esse desejo de justiça , de eliminação <strong>da</strong> opressão. Entretanto,<br />
os ideais socialistas subjacentes na obra de Ferreira de Castro apresentam uma contradição<br />
na sua visão sobre o meio amazônico, acentua<strong>da</strong> no determinismo com que avalia as<br />
injustiças sociais deflagra<strong>da</strong>s no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal, em que tanto o explora<strong>do</strong>r quanto o<br />
explora<strong>do</strong> acham-se condiciona<strong>do</strong>s pelos implacáveis ditames <strong>do</strong> meio amazônico , que os<br />
animaliza e justifica to<strong>da</strong>s as perversões <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> econômico.<br />
O perfil alternativo <strong>do</strong> seringalista descrito na personagem Fábio, em Beiradão, tem<br />
origem no posicionamento político de Álvaro Maia e, ao mesmo tempo, é uma discussão<br />
presente na época de publicação de seu romance, uma vez que nessa época setores <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de amazonense faziam uma reavaliação <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> econômico <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> , apontan<strong>do</strong><br />
as suas falhas e aventan<strong>do</strong> uma possibili<strong>da</strong>de de soerguimento <strong>da</strong> economia local.<br />
Destacamos que Álvaro Maia adere em sua obra à percepção de setores conserva<strong>do</strong>res <strong>da</strong><br />
historiografia amazonense, en<strong>do</strong>ssan<strong>do</strong> posições ideológicas, como a <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r Arthur<br />
Cezar Ferreira Reis que vê o processo de desbravamento <strong>da</strong> região amazônica e a<br />
espoliação promovi<strong>da</strong> pela estrutura econômica <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> como naturais ou como<br />
conseqüência <strong>do</strong> barbarismo <strong>do</strong> meio ambiente.<br />
139
A opção por contar um tempo <strong>da</strong> memória é condizente com a época em que Rogel<br />
Samuel escreve seu romance. Em 1992, o “<strong>ciclo</strong> <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>” faz parte de uma memória<br />
em ruína. No romance, a voz <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r destaca essa condição <strong>da</strong> memória perdi<strong>da</strong>: “[...] a<br />
minha descrição corresponde ao que era o Palácio há muitos anos na minha moci<strong>da</strong>de e na<br />
proliferação <strong>da</strong> minha memória perdi<strong>da</strong>, ah, sim, porque estou velho mas não estou louco, e<br />
as ruínas no meio <strong>da</strong> floresta lá estão como cultura e substância ain<strong>da</strong> para confirmar a<br />
existência e elaboração [...]” 4<br />
O amante <strong>da</strong>s amazonas rompe com o determinismo enfoca<strong>do</strong> pela estética<br />
naturalista , verifica<strong>do</strong> em A selva e Beiradão, desvelan<strong>do</strong> as reais condições sobre as quais<br />
se assenta o processo de exploração econômica <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>: a emergência <strong>do</strong> capital<br />
internacional de conquistar novos merca<strong>do</strong>s para torná-los subsidiários <strong>do</strong>s grandes<br />
merca<strong>do</strong>s, a ver<strong>da</strong>deira determinante <strong>da</strong>s relações econômicas <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>. A obra de Rogel<br />
Samuel acumula to<strong>da</strong> uma herança de percepções e interpretações ficcionais sobre o <strong>ciclo</strong> e<br />
por isso se confronta com as obras de Ferreira de Castro e Álvaro Maia.<br />
Em termos de conteú<strong>do</strong> e de estruturação, os romances A selva, Beiradão e O<br />
amante <strong>da</strong>s amazonas representam uma diversificação gradual <strong>do</strong> tema <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> na ficção<br />
amazonense. A selva atinge essa diversificação por se constituir numa narrativa bem<br />
realiza<strong>da</strong> sobre o processo econômico, reunin<strong>do</strong> e organizan<strong>do</strong> os seus principais fatores. E,<br />
até o ponto em que não incorre na contradição aqui aponta<strong>da</strong>, evidencia a dialética desse<br />
processo.<br />
Beiradão, discutin<strong>do</strong> o papel <strong>do</strong> seringalista, faz um corte na caracterização<br />
maniqueísta que se tornou habitual nas obras que o antecederam e que ain<strong>da</strong> é acentua<strong>da</strong><br />
em algumas obras posteriores. O romance não contribui criticamente para o entendimento<br />
profun<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> econômico em virtude de promover uma diversificação que está<br />
subordina<strong>da</strong> a um posicionamento político <strong>do</strong> autor e não a uma proposta de reavaliação <strong>do</strong><br />
discurso literário em torno <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>. Conquanto não realize plenamente essa reavaliação,<br />
contribui com alguma matéria nova em torno <strong>do</strong> tema através <strong>do</strong> acréscimo de sub-temas <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> interiorana amazonense.<br />
4 Rogel SAMUEL, O amante <strong>da</strong>s amazonas, p. 10.<br />
140
Ain<strong>da</strong> que as três obras se encontrem distancia<strong>da</strong>s no universo de produção<br />
ficcional <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, há um diálogo entre os autores. Esse diálogo tem uma certa pessoali<strong>da</strong>de<br />
entre Ferreira de Castro e Álvaro Maia, que se comunicam para uma troca de amabili<strong>da</strong>des.<br />
Álvaro Maia faz referência ao romance de Ferreira de Castro em seu livro de<br />
narrativas, Gente <strong>do</strong>s seringais, envian<strong>do</strong>-lhe um exemplar. Ferreira de Castro lhe responde<br />
com uma carta escrita em Lisboa, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 20 de dezembro de 1956, agradecen<strong>do</strong> a<br />
referência a sua obra e a sua pessoa e também fazen<strong>do</strong> elogios ao livro de Álvaro Maia,<br />
consideran<strong>do</strong>-o de grande beleza formal e, principalmente, evoca<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seringal,<br />
que Ferreira de Castro consegue reviver através <strong>da</strong> obra. 5<br />
Rogel Samuel, por sua vez, empreende um diálogo ficcional com Álvaro Maia, pois<br />
a personagem Abraão Gadelha, de O amante <strong>da</strong>s amazonas, faz lembrar a própria trajetória<br />
política <strong>do</strong> autor de Beiradão, numa crítica irônica às relações políticas amazonenses. O<br />
diálogo que empreende é, assim, de caráter parodístico.<br />
Além <strong>do</strong> diálogo extratextual, engendra-se também um diálogo intratextual em que<br />
personagens como o arrivista e o missionário se apresentam em confronto nas três obras.<br />
A obra de Álvaro Maia desconstrói o anátema ficcional em torno <strong>do</strong> patrão<br />
truculento, o que estabelece uma diversificação com a maioria <strong>da</strong>s <strong>ficções</strong> <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>. Por<br />
outro la<strong>do</strong>, a obra de Rogel Samuel não apenas distancia-se <strong>da</strong> reprodução desse<br />
estereótipo, mas também <strong>da</strong> própria recriação ficcional através de um estereótipo, bom ou<br />
mau. A hegemonia cultural européia que mol<strong>do</strong>u ideologicamente a feição urbana e as<br />
relações sociais de ci<strong>da</strong>des como Manaus e Belém durante o apogeu <strong>da</strong> exploração <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong> aparece na personagem Pierre Bataillon de forma patente, um homem de<br />
formação cultural erudita que tem na ambição o antí<strong>do</strong>to para o tédio amazônico. Pierre não<br />
é um estereótipo, mas uma metáfora <strong>da</strong> economia <strong>da</strong> <strong>borracha</strong>. Ele é a civilização que se<br />
confronta com o primitivo, em decorrência <strong>do</strong> processo de expansão <strong>do</strong> capital<br />
internacional.<br />
Também em A selva um conflito cultural amplo faz parte <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, pois o<br />
confronto cultural não é apenas interno, <strong>do</strong> nordestino com o caboclo amazônico, como<br />
também de ambos com o europeu, protagoniza<strong>do</strong> pelo português Alberto. O romance não<br />
5 A carta de Ferreira de Castro é reproduzi<strong>da</strong> por Álvaro Maia na primeira edição <strong>do</strong> romance Beiradão, de<br />
1958.<br />
141
atinge, ain<strong>da</strong> assim, maior profundi<strong>da</strong>de no enfoque desse confronto por sucumbir à visão<br />
determinista. A personagem Alberto não se revela abertamente como um ser que rejeita o<br />
espaço <strong>do</strong> outro, mas como um ser que é recebi<strong>do</strong> por um espaço tirânico. O maniqueísmo<br />
nesse romance não é tanto em relação aos seres humanos, que de resto são joguetes, e sim<br />
ao espaço que não se coaduna com uma visão pré-estabeleci<strong>da</strong> de civilização.<br />
Beiradão e O amante <strong>da</strong>s amazonas trazem como ponto de contato a figura <strong>do</strong><br />
missionário. Essa figura surge em muitas obras <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> como um ser que participa <strong>do</strong><br />
sistema espolia<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s seringais, auferin<strong>do</strong> lucros em benefício próprio graças a posição<br />
sacer<strong>do</strong>tal que exerce. Na maioria <strong>da</strong>s vezes, está a<strong>da</strong>pta<strong>do</strong> aos costumes como a<br />
personagem Padre Silveira, de Beiradão. Em O amante <strong>da</strong>s amazonas, a personagem <strong>do</strong><br />
missionário é exatamente o oposto desse ser a<strong>da</strong>pta<strong>do</strong> ao meio. Frei Lothar é ele mesmo o<br />
fracasso de uma missão religiosa na Amazônia: „[...] oh, meu Amazonas!, Deus é grande<br />
mas a Floresta é maior [...]” 6 É, em síntese, um ser exótico não apenas pelo contraste com o<br />
meio ambiente, envergan<strong>do</strong> uma grossa batina quan<strong>do</strong> mais lhe agra<strong>da</strong>ria banhar-se e<br />
refrescar-se livremente nas águas de um rio, mas principalmente porque, ao contrário de<br />
Padre Silveira, não participa <strong>da</strong>s manhas <strong>do</strong> poder local, <strong>da</strong>í a abjeção que atrai para si.<br />
Padre Silveira, como é comum à prosa naturalista, submete-se aos imperativos <strong>do</strong><br />
ambiente, enquanto Frei Lothar entra em choque com eles. No romance Beiradão, as<br />
relações sociais corrompi<strong>da</strong>s geram-se pelos efeitos <strong>do</strong> ambiente. Essa é a justificativa que<br />
Padre Silveira dá aos seus superiores para os peca<strong>do</strong>s que comete, sen<strong>do</strong> satisfatoriamente<br />
aceita. Frei Lothar não vive sob a complacência de nenhuma autori<strong>da</strong>de justamente porque<br />
não se corrompe, o que lhe rende calúnias e denúncias junto ao Provincial.<br />
A complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> personagem Frei Lothar é construí<strong>da</strong> no capítulo <strong>do</strong> romance<br />
que leva seu nome, especialmente na passagem em que ele se acha a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> barco Barão<br />
<strong>do</strong> Juruá, sozinho no terraço, sob a noite escura, e faz uma reflexão sobre sua vi<strong>da</strong>, fé e<br />
vocação. Nesse momento, ele e o Amazonas se fundem na solidão, incerteza e<br />
desassistência. O violino, que tenta tocar, geme la<strong>da</strong>inhas, recitações, reflexões que<br />
traduzem suas angústias até que ele experimenta um sentimento de integração em meio à<br />
imensidão <strong>do</strong> céu amazônico estrela<strong>do</strong>. Se a a<strong>da</strong>ptação de Padre Silveira o torna<br />
6 Rogel SAMUEL, Op. cit., p. 93-4.<br />
142
participante <strong>da</strong> tacanhez <strong>do</strong> meio, essa integração de Frei Lothar à natureza o faz sentir-se,<br />
pela primeira vez, depois de muitos sofrimentos e percalços, um ser completo.<br />
Na ficção <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong>, existe uma lacuna em relação ao espaço urbano. Ao destacar<br />
quase que exclusivamente a margem e o centro <strong>do</strong>s seringais através <strong>da</strong>s personagens<br />
típicas <strong>do</strong> seringalista e <strong>do</strong> seringueiro, as obras deixaram de explorar outras personagens<br />
como os trabalha<strong>do</strong>res e os habitantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, de mo<strong>do</strong> geral. Dessa forma, a ficção <strong>do</strong><br />
<strong>ciclo</strong> deteve-se mais no espaço <strong>do</strong> seringal, onde as personagens <strong>do</strong> seringalista e <strong>do</strong><br />
seringueiro desenvolviam suas principais ativi<strong>da</strong>des, e fez apenas enfoques esporádicos <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de quan<strong>do</strong> esta se ligava a alguma ação mais direta em torno <strong>do</strong> seringalista ou <strong>do</strong><br />
seringueiro.<br />
A característica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na ci<strong>da</strong>de é, assim, pouco explora<strong>da</strong>. Aparece em rápi<strong>da</strong>s<br />
pincela<strong>da</strong>s com o propósito de ser ressalta<strong>da</strong> a sua prosperi<strong>da</strong>de tal como se nota em<br />
Coronel de barranco na descrição <strong>do</strong> novo aspecto <strong>da</strong> vila que se transformara em ci<strong>da</strong>de<br />
com igarapés aterra<strong>do</strong>s, construção de largas aveni<strong>da</strong>s e de obras arquitetônicas<br />
imponentes, aquisição de bondes elétricos, aparecimento de lojas elegantes, bancos, hotéis<br />
e pensões, restaurantes, mas não no aspecto menos glorioso <strong>da</strong> progressiva exclusão <strong>da</strong><br />
classe trabalha<strong>do</strong>ra, que não auferiu as benesses <strong>do</strong>s grandes lucros com a extração <strong>da</strong><br />
<strong>borracha</strong>.<br />
Em O amante <strong>da</strong>s amazonas, a ci<strong>da</strong>de e os seus habitantes privilegia<strong>do</strong>s não são<br />
enfoca<strong>do</strong>s apenas como um índice de civilização florescente. A falsa morali<strong>da</strong>de burguesa<br />
desses habitantes é exposta através <strong>da</strong> descrição <strong>do</strong>s freqüenta<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s bordéis <strong>da</strong> Rua <strong>da</strong>s<br />
Flores (juízes, seminaristas, vigários) que para ali se deslocavam cautelosamente a fim de<br />
poderem <strong>da</strong>r vazão a seus desejos. Diferentemente <strong>do</strong>s seringueiros e seus arroubos sexuais,<br />
muitas vezes, manifesta<strong>do</strong>s abertamente, <strong>do</strong>s quais as obras fizeram assunto constante,<br />
esses homens de consciência culpa<strong>da</strong>, em virtude de sua moral duvi<strong>do</strong>sa, tentavam manter<br />
ocultos seus atos licenciosos.<br />
O romance também delineia personagens urbanos que a ficção amazonense <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong><br />
omitiu. Esses personagens acrescentam outros perfis que não apenas os <strong>do</strong> proprietário <strong>do</strong><br />
seringal e seus trabalha<strong>do</strong>res. Entre eles, estão a neurótica D. Constança, uma anomalia<br />
gera<strong>da</strong> na classe abasta<strong>da</strong>; Benito, o intelectual decadente e desloca<strong>do</strong> num espaço onde<br />
sua instrução pungente contrasta com a erudição postiça <strong>do</strong>s “beletristas <strong>da</strong> academia”;<br />
143
Eudócia,, síntese <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r nativo subserviente; a manicure Sebastiana ou Sabá<br />
Vintém, negra barbadiana, representan<strong>do</strong> um contingente de trabalha<strong>do</strong>res estrangeiros que<br />
foi expressivo durante o auge <strong>da</strong> economia <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> e personagens como o travesti De<br />
Bará e a prostituta Conchita Del Carmem, liga<strong>do</strong>s aos comércio sexual, outro aspecto<br />
urbano <strong>do</strong>s tempos de efervescência com farto imaginário a ser explora<strong>do</strong>.<br />
Através desse estu<strong>do</strong>, procedemos a uma comparação orienta<strong>da</strong> não apenas para a<br />
busca de semelhanças entre as obras. Consideramos, com Flávio Kothe, que o estu<strong>do</strong><br />
comparativo carrega identi<strong>da</strong>des e diferenciações:<br />
144<br />
A comparação é uma busca de igual<strong>da</strong>des, para acabar num encontro de<br />
desigual<strong>da</strong>des, de não-igual<strong>da</strong>des. Como busca de igual<strong>da</strong>des, enquanto<br />
identi<strong>da</strong>des abstratas, ele precisa superar-se para chegar a semelhanças e<br />
diferenças concretas. Ela parte de uma abstração : de que se pode aproximar o<br />
semelhante e o que se distancia por suas diferenças, ou que até se repele por<br />
suas semelhanças. Por outro la<strong>do</strong>, ela é propicia<strong>da</strong> por aspectos idênticos, que<br />
tendem a acabar se revelan<strong>do</strong> como diferenças e até diferenciações intencionais. 7<br />
O processo de exploração e produção <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> é, portanto, o tema que aproxima<br />
as obras em seus aspectos quejan<strong>do</strong>s, conforme foi visto. Mas, se essas <strong>ficções</strong> se unem por<br />
uma abor<strong>da</strong>gem comum, elas também se distinguem por suas visões particulares.<br />
No contínuo de produção ficcional estu<strong>da</strong><strong>do</strong>, o recorte <strong>da</strong>s três obras não restringe o<br />
objeto de estu<strong>do</strong> à condição de que pertençam a línguas e culturas diferentes. No que diz<br />
respeito ao romance A selva, a análise comparativa segue o parâmetro <strong>da</strong> diferenciação<br />
cultural, sen<strong>do</strong> que a obra de Ferreira de Castro contempla a observação feita por Brunel,<br />
Pichois e Rousseau sobre a percepção de um autor estrangeiro:<br />
É interessante estu<strong>da</strong>r a imagem que um autor compõe de um país estrangeiro, a<br />
partir de sua experiência pessoal, suas relações, suas leituras, quan<strong>do</strong> este autor é<br />
ver<strong>da</strong>deiramente representativo, quan<strong>do</strong> exerceu uma influência real sobre a<br />
literatura e sobre a opinião pública de seu país [...] 8<br />
7 Flávio KOTHE, Fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> teoria literária, p. 388.
Ferreira de Castro promoveu, na sua produção ficcional, a divulgação de uma<br />
imagem <strong>da</strong> Amazônia para o mun<strong>do</strong> europeu como se pode notar pela recepção crítica em<br />
torno de A selva. O romance enseja precisamente o problema <strong>da</strong> fronteira literária, pois se<br />
abor<strong>da</strong> o ambiente e uma problemática social amazônica é escrito por um autor português,<br />
publica<strong>do</strong> em Portugal e lá tem sua estréia e divulgação literária. A nacionali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> autor<br />
e sua percepção de mun<strong>do</strong> são tangencia<strong>da</strong>s quan<strong>do</strong> se trata de considerar o conteú<strong>do</strong> de<br />
sua obra. Parte <strong>da</strong> crítica amazonense tem inseri<strong>do</strong> Ferreira de Castro no contexto de<br />
produção <strong>da</strong> literatura amazonense sobre o <strong>ciclo</strong>, sem apreciar esses fatores.<br />
O estu<strong>do</strong> comparativo empreendi<strong>do</strong> neste trabalho, to<strong>da</strong>via, analisa também<br />
semelhanças e diferenças entre obras como Beiradão e O amante <strong>da</strong>s amazonas, inseri<strong>da</strong>s<br />
numa mesma nacionali<strong>da</strong>de e numa mesma fronteira lingüistica, o português brasileiro.<br />
Brunel, Pichois e Rousseau lembram, a propósito de uma definição que impõe a condição<br />
de que o estu<strong>do</strong> comparativo se realize a partir de várias línguas ou várias culturas, que<br />
ca<strong>da</strong> estudioso deve chegar a sua própria definição, eliminan<strong>do</strong> pontos desloca<strong>do</strong>s ou<br />
supéfluos (Op. cit., p.141), uma vez que as definições estão atrela<strong>da</strong>s a visões específicas<br />
(européia,norte-americana) <strong>da</strong> crítica comparatista.<br />
Rogel Samuel chama a atenção de que a abrangência de senti<strong>do</strong>s promove o<br />
enriquecimento <strong>do</strong> texto ficcional: “O valor <strong>do</strong> texto está em que não se lhe pode <strong>da</strong>r um<br />
senti<strong>do</strong> pleno, conclusivo, mas sim deixar falar diversas vozes numa plurali<strong>da</strong>de de<br />
discursos” 9 A obra O amante <strong>da</strong>s amazonas solicita um estu<strong>do</strong> vertical pela gama de<br />
senti<strong>do</strong>s que agrega (filosófico, psicanalítico, lingüístico e histórico). Esse estu<strong>do</strong> deverá<br />
pôr em evidência correlações que as demais obras deixam de proceder e possibilitar além<br />
de um entendimento profun<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> econômico <strong>da</strong> <strong>borracha</strong> uma melhor compreensão<br />
também <strong>do</strong> processo de colonização <strong>da</strong> Amazônia. Tal estu<strong>do</strong>, porém, não se comporta nos<br />
limites deste trabalho. Poderá ser realiza<strong>do</strong> por intermédio de uma análise exclusiva <strong>da</strong><br />
obra.<br />
8 P. BRUNEL, C. PICHOIS, A..M ROUSSEAU. Que é literatura compara<strong>da</strong>, p. 53<br />
9 Rogel Samuel, Crítica <strong>da</strong> escrita, p. 28.<br />
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