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Fragmentos do discurso cultural: por uma análise crítica das - cchla

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Durval Muniz de Albuquerque Júnior<br />

<strong>Fragmentos</strong> <strong>do</strong> <strong>discurso</strong> <strong>cultural</strong>: <strong>por</strong> <strong>uma</strong> <strong>análise</strong> <strong>crítica</strong> <strong>das</strong><br />

categorias e conceitos que embasam<br />

o <strong>discurso</strong> sobre a cultura no Brasil<br />

Durval Muniz de Albuquerque Júnior<br />

Professor da Universidade Federal <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Norte<br />

Quan<strong>do</strong> analisamos os <strong>discurso</strong>s em torno da temática da cultura no Brasil,<br />

sejam aqueles proferi<strong>do</strong>s pelos intelectuais que tratam da questão como objeto de<br />

pesquisa, sejam aqueles emiti<strong>do</strong>s pelos chama<strong>do</strong>s agentes da cultura: artistas,<br />

promotores culturais, membros de organizações da sociedade civil liga<strong>das</strong> a<br />

produção <strong>cultural</strong>, podemos encontrar o uso recorrente de alguns conceitos ou<br />

categorias que demonstram como este tema vem sen<strong>do</strong> pensa<strong>do</strong> majoritariamente<br />

em nosso país. Independente, inclusive, <strong>do</strong>s esforços feitos pelos <strong>do</strong>cumentos<br />

oficiais <strong>do</strong> Ministério da Cultura, nesta atual gestão, no senti<strong>do</strong> de mudar o<br />

vocabulário e, <strong>por</strong>tanto, alterar as concepções que embasam os <strong>discurso</strong>s e as<br />

práticas em torno da questão da cultura brasileira e independente de <strong>uma</strong> vasta<br />

produção acadêmica, no Brasil e no exterior, que vêm propon<strong>do</strong> um novo<br />

vocabulário e novas formulações conceituais para esta questão, o que vemos e<br />

ouvimos é a repetição de falas e a realização de práticas que giram em torno de<br />

alguns conceitos bastante recorrentes, que to<strong>do</strong>s parecem entender da mesma<br />

forma, que não precisam mais de explicação, <strong>por</strong> serem óbvios e, <strong>por</strong> isso, to<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> estaria de acor<strong>do</strong> sobre seus significa<strong>do</strong>s. O mais recorrente deles é sem<br />

dúvida o de identidade. Não se poderia pensar cultura sem imediatamente remetê-la<br />

para o campo da produção <strong>das</strong> identidades: sejam <strong>das</strong> identidades nacionais,<br />

regionais, étnicas, de gênero, de classe, etc. Discutirei mais detidamente o assunto<br />

mais adiante <strong>por</strong>que, antes, quero mostrar que mesmo quan<strong>do</strong> não se fala<br />

diretamente da questão da identidade, e até quan<strong>do</strong> se quer fugir dela, os <strong>discurso</strong>s<br />

em torno da cultura recorrem constantemente a <strong>uma</strong> série de noções, sem que<br />

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muitas vezes se dê conta disto, que giram em torno <strong>do</strong> princípio da identidade, o<br />

que revela mais <strong>do</strong> que um hábito lingüístico, <strong>uma</strong> forma de olhar para o mun<strong>do</strong>,<br />

<strong>uma</strong> postura epistemológica que precisa ser problematizada.<br />

Em nossos <strong>discurso</strong>s em torno da cultura e da produção <strong>cultural</strong> é recorrente<br />

o uso da noção de resgate. A promessa é de que a atividade <strong>do</strong> artista, <strong>do</strong> produtor<br />

<strong>cultural</strong>, <strong>do</strong> agente promotor da cultura local, regional ou nacional, vai resgatar<br />

alg<strong>uma</strong> prática, alg<strong>uma</strong> manifestação, alg<strong>uma</strong> concepção em torno da cultura, que<br />

estaria em vias de desaparecimento. Vivemos agora, inclusive, a curiosa onda da<br />

digitalização como forma de resgate. Sem se aperceberem da própria contradição<br />

que carrega esta prática, à medida que desloca completamente de su<strong>por</strong>te e de<br />

lugar social e estético a prática ou as matérias ou formas de expressão que<br />

pretendem resgatar, estes agentes da cultura buscam salvar o que pretensamente<br />

está morren<strong>do</strong> congelan<strong>do</strong>-o através <strong>do</strong> registro em CD-Rom, em DVD, em Cd, em<br />

fotografias digitais, etc. Poderíamos dizer que estamos diante de <strong>uma</strong> nova forma de<br />

empalhamento ou de mumificação, <strong>uma</strong> nova maneira de museologizar e folclorizar<br />

as produções culturais populares ou de grupos étncos, sociais ou <strong>cultural</strong><br />

específicos. Chegará um momento em que possivelmente estas manifestações terão<br />

desapareci<strong>do</strong> entre seus produtores tradicionais, <strong>por</strong> <strong>uma</strong> série de motivos, entre<br />

eles o próprio desenvestimento de senti<strong>do</strong> em torno desta prática, mas poderemos<br />

sentar em nossa poltrona na sala e assistirmos sau<strong>do</strong>sos e nostálgicos estes rituais,<br />

estas festas, estes cantos, fabrica<strong>do</strong>s, feitos especialmente para inglês ver e<br />

digitalizar. Longe de mim estar negan<strong>do</strong> a im<strong>por</strong>tância <strong>do</strong> registro destas atividades<br />

culturais, destas formas e matérias de expressão, mas daí a achar que isto é <strong>uma</strong><br />

forma de preservar sua pretensa lógica tradicional, seu pretenso senti<strong>do</strong> primitivo e<br />

autêntico vai <strong>uma</strong> longa distância. Convidar os Xavantes para dançar o toré e filmálo<br />

achan<strong>do</strong> que assim o resgata, é não compreender que o que se faz ali é fabricálo,<br />

reinventá-lo, como aliás fazem os próprios índios, ao longo <strong>do</strong>s anos. Pensar o<br />

registro como salvação de <strong>uma</strong> forma pretensamente original <strong>do</strong> rito, salvar a sua<br />

autenticidade, garantir a sua perpetuação sem modificações, é operar justamente a<br />

partir da lógica da identidade, de que há a possibilidade de que os eventos culturais<br />

se repitam no tempo sem mudanças de senti<strong>do</strong>, de significa<strong>do</strong>, sem deslocamentos<br />

nos próprios arranjos <strong>do</strong>s rituais, <strong>do</strong>s objetos, <strong>do</strong>s motivos, <strong>do</strong>s temas, <strong>do</strong>s próprios<br />

agentes e de lugares onde se realiza. A idéia de resgate trás embuti<strong>do</strong> em si mesmo<br />

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o mito da pureza <strong>das</strong> origens, de um tempo onde o acontecimento era idêntico a si<br />

mesmo, em que o evento é semelhança absoluta, identidade consigo mesmo,<br />

quan<strong>do</strong> isto não existe no campo <strong>cultural</strong> ou em qualquer aspecto <strong>das</strong> práticas<br />

h<strong>uma</strong>nas, onde qualquer evento, mesmo trazen<strong>do</strong> repetições, é marca<strong>do</strong> pela<br />

criação, pela invenção, pelo deslocamento de senti<strong>do</strong>s e significa<strong>do</strong>s.<br />

É comum nestes <strong>discurso</strong>s traçar-se a imagem de um tempo mítico onde tu<strong>do</strong><br />

era idêntico a si mesmo, onde a tradição, outra noção usada e abusada, prevalecia.<br />

Então surge o tempo da queda, onde a influência deletéria vinda <strong>do</strong> exterior,<br />

normalmente nomeada hoje de globalização, merca<strong>do</strong>, influência da vida urbana,<br />

veio desorganizar, destruir, alterar estas tradições, que surgem sempre<br />

naturaliza<strong>das</strong>, já que não pensa<strong>das</strong> como inventa<strong>das</strong> historicamente. Há <strong>uma</strong> certa<br />

dificuldade em pensar, <strong>por</strong> exemplo, que a indianidade, ou a identidade indígena de<br />

várias tribos <strong>do</strong> Nordeste foi elaborada faz pouco tempo, que dançar o toré foi <strong>uma</strong><br />

aquisição recente de <strong>uma</strong> prática que visa atribuir identidade indígena a um grupo<br />

de pessoas que vêem em ser índio e na conseqüente “proteção da Funai” <strong>uma</strong><br />

maneira de preservar suas terras, de ter acesso a educação, acesso a saúde, etc.<br />

As tradições são sempre invenções feitas <strong>por</strong> grupos h<strong>uma</strong>nos n<strong>uma</strong> determinada<br />

época, não há algo tradicional desde sempre e nada <strong>do</strong> que é tradicional esta isento<br />

de modificação, de transformação, a mudança <strong>cultural</strong> nem sempre necessita<br />

destes monstros externos para ocorrer. Aliás, pensar <strong>uma</strong> possível exterioridade<br />

entre o que faria os grupos culturais ditos tradicionais e a sociedade inclusiva, é<br />

mais <strong>uma</strong> vez ficar preso à lógica da identidade, que pensa esta possibilidade de<br />

fechamento de da<strong>do</strong>s grupos, manifestações culturais, espaços, tempos em torno de<br />

si mesmos, que afirma esta pretensa possibilidade de que a produção <strong>cultural</strong><br />

construa <strong>uma</strong> diferença em relação a um exterior <strong>do</strong> qual deve se proteger. Isto<br />

nunca foi possível em momento algum da história, em qualquer sociedade h<strong>uma</strong>na,<br />

o que caracteriza a produção <strong>cultural</strong> sempre foi as misturas, os hibridismos, as<br />

mestiçagens, as <strong>do</strong>minações, as hegemonias, as trocas, as antropofagias, as<br />

relações enfim. O que chamamos de cultura, conceito que <strong>por</strong> seu uso no singular já<br />

demonstra sua prisão à lógica da identidade, é na verdade um conjunto múltiplo e<br />

multidirecional de fluxos de senti<strong>do</strong>, de matérias e formas de expressão que circulam<br />

permanentemente, que nunca respeitaram fronteiras, que sempre carregam em si a<br />

potência <strong>do</strong> diferente, <strong>do</strong> criativo, <strong>do</strong> inventivo, da irrupção, <strong>do</strong> acasalamento. Na<br />

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Durval Muniz de Albuquerque Júnior<br />

verdade nunca temos cultura, temos trajetórias culturais, fluxos culturais, relações<br />

culturais, redes culturais, conexões culturais, conflitos, lutas culturais. As classes ou<br />

grupos sociais hegemônicos é que, muitas vezes, querem fazer de suas<br />

manifestações culturais, a cultura.<br />

Outra noção recorrente é a de preservação que parte de outro pressuposto<br />

identitário que é o da possibilidade de que qualquer realidade natural ou <strong>cultural</strong><br />

possa permanecer sem mudanças ao longo <strong>do</strong> tempo. Ao instituir-se <strong>uma</strong> reserva<br />

florestal pretensamente se está garantin<strong>do</strong> a preservação da floresta, ou seja, que<br />

ela continue sen<strong>do</strong> o que ela é desde o princípio. Mas o que ela é desde o princípio<br />

é um arranjo ecológico, um bioma em permanente estágio mutação, motivada pelas<br />

alterações, com tem<strong>por</strong>alidades diversas, nos arranjos entre seus múltiplos<br />

componentes. O que preservamos é justamente a possibilidade daquele bioma<br />

mudar, continuar em transformação. O mesmo ocorre com qualquer prática <strong>cultural</strong><br />

que se queira preservar, o que preservamos é sua possibilidade de existir e,<br />

<strong>por</strong>tanto, de diferir e de divergir. Preservar não é congelar n<strong>uma</strong> pose <strong>uma</strong> certa<br />

tem<strong>por</strong>alidade. Quan<strong>do</strong> se tenta preservar congelan<strong>do</strong> o tempo, como em muitas<br />

ocasiões se deu com o chama<strong>do</strong> patrimônio histórico, o que se teve foi sua<br />

progressiva ruína, <strong>por</strong>que a mudança no tempo continuou a fazer o seu trabalho de<br />

corrosão. Aquele elemento de patrimônio que não foi reinvesti<strong>do</strong> de significa<strong>do</strong> para<br />

a sociedade a que pertence, que não foi reapropria<strong>do</strong> e resignifica<strong>do</strong> pelas novas<br />

gerações tornaram-se ruínas físicas ou, pior, ruínas de senti<strong>do</strong>, como aquele lin<strong>do</strong><br />

monumento que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> circula em torno mais não se conhece a sua história ou<br />

com que senti<strong>do</strong> foi construí<strong>do</strong>, aquela estátua que serve apenas de depósito de<br />

fezes de pombos. Se queremos preservar alg<strong>uma</strong> manifestação <strong>cultural</strong>, no senti<strong>do</strong><br />

de que se mantenha fazen<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> coletivamente, temos que preservar sua<br />

capacidade de diferir, de não ser idêntica a si mesma, não a sua identidade. Porque,<br />

afinal de que identidade estamos falan<strong>do</strong>, as identidades também são fabricações<br />

sociais e históricas, as identidades não são originais, não vêm da origem, <strong>por</strong>que<br />

também teríamos que nomear e datar esta origem e descobri-la como invenção<br />

social.<br />

No Brasil o mito de origem mais agencia<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se trata de explicar a<br />

formação <strong>do</strong> que seria a cultura brasileira, aquilo que seria a nossa identidade<br />

nacional, é o famoso mito <strong>das</strong> três raças. Nossa cultura, nossos corpos, nossas<br />

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Durval Muniz de Albuquerque Júnior<br />

manifestações artísticas e literárias teriam como origem o encontro <strong>das</strong> três raças no<br />

processo de colonização e os processos de fusão, sincretismos, convivência e<br />

conflito entre as culturas e os corpos <strong>das</strong> três raças forma<strong>do</strong>ras: índios, brancos e<br />

negros. Ou seja, a nossa identidade <strong>cultural</strong> e nacional, assim como nossas varia<strong>das</strong><br />

identidades regionais e locais, teriam si<strong>do</strong> dada pela mestiçagem, não somente<br />

física, mas <strong>cultural</strong> entre estes povos. Mas como é possível <strong>uma</strong> identidade mestiça,<br />

se o mestiçamento é a própria negação da identidade. A palavra identidade significa<br />

em nossa língua permanecer ou ser idêntico a si mesmo, implican<strong>do</strong> <strong>uma</strong><br />

semelhança essencial que percorreria toda a nossa existência como sociedade ou<br />

como indivíduo. Como é possível alguém ou algo se mestiçar e permanecer idêntico,<br />

semelhante a si mesmo. A mistura nega a identidade e afirma a diferença. Como<br />

nos diz Michel Serres a mistura é a condição <strong>do</strong> ser h<strong>uma</strong>no e de to<strong>das</strong> as coisas,<br />

não apenas <strong>do</strong> brasileiro e de sua cultura. Como foi possível misturar e identificar, se<br />

a mistura é a dissolução <strong>do</strong>s idênticos e a produção de um terceiro termo, <strong>uma</strong><br />

terceira possibilidade, sempre indefinida, sempre instável, sempre em mutação,<br />

sempre potencialmente outra. Como a chamada cultura brasileira, se é que isto<br />

existe assim como unidade, o que duvi<strong>do</strong>, pois cultura brasileira é um conceito que<br />

precisa ser sempre explica<strong>do</strong> e relata<strong>do</strong> novamente, que precisa sempre que se diga<br />

a que se refere e não cessa de se redefinir, se define pela mistura, ele se definiria<br />

pela indefinição. Diz-se com orgulho que somos <strong>uma</strong> terra que acolhemos to<strong>do</strong>s os<br />

estrangeiros, onde se fusionaram formas e matérias de expressão trazi<strong>das</strong> <strong>por</strong><br />

desterra<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong>s os quadrantes, <strong>por</strong> migrantes, <strong>por</strong> imigrantes, nomadismos<br />

culturais de to<strong>das</strong> as bandeiras, pelo desterro força<strong>do</strong> de milhares de culturas<br />

africanas, pela destruição sistemática de varias formas culturais indígenas, também<br />

já produtos de migrações e trocas culturais seculares, e estranhamente isto nos<br />

daria nossa identidade. Ou seja, nossa identidade é a de sermos estrangeiros em<br />

nossa própria terra, é a de sermos estranhos a esse pretenso nós que seria a nação,<br />

produção imaginada e imaginária, que nem <strong>por</strong> isso deixa de existir como<br />

concretude. A noções de fusão ou de sincretismo <strong>cultural</strong> devem ser também<br />

problematiza<strong>das</strong>, <strong>por</strong> trazerem consigo a idéia de que a mistura pode estabelecer o<br />

desaparecimento completo <strong>das</strong> marcas anteriores <strong>do</strong> que foi mistura<strong>do</strong> ou de que<br />

esta mistura se dá de forma harmoniosa. Fundir-se não é superar a diferença<br />

interna, é afirmá-la permanentemente, é afirmá-la como condição mesma da fusão.<br />

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Durval Muniz de Albuquerque Júnior<br />

O sincretismo não é o desaparecimento da tensão entre o que se mistura, é a<br />

afirmação <strong>do</strong> conflito e da luta como a própria possibilidade <strong>do</strong> que aparece<br />

sincretiza<strong>do</strong>, em vez desta tensão ser expulsa para um pretenso exterior ou para um<br />

momento anterior <strong>do</strong> fusiona<strong>do</strong> ou <strong>do</strong> sincretiza<strong>do</strong>, ela é afirmada como elemento<br />

imanente desta forma <strong>do</strong> ser.<br />

Constantemente outra categoria que aparece nos <strong>discurso</strong>s sobre a<br />

identidade da cultura brasileira, dita com orgulho e satisfação é que ela é diversa e<br />

que devemos preservar esta diversidade. E eu pergunto como algo pode ser diverso<br />

e idêntico ao mesmo tempo. Como a diversidade pode vir a constituir <strong>uma</strong><br />

identidade. Ser diverso significa que o objeto ou o sujeito em <strong>análise</strong> trás em si<br />

mesmo a potência <strong>do</strong> divergir, a divisão e a multiplicação como constitutivo de seu<br />

próprio aparecer. A diversidade não pode ser pensada, como muitas vezes foi feita<br />

pelo <strong>discurso</strong> <strong>do</strong> folclore, como a simples justaposição ou coexistência pacificada e<br />

aproblemática entre práticas, formas e manifestações culturais, forman<strong>do</strong> <strong>uma</strong><br />

espécie de grande coleção, um bestiário de bizarrices e exotismos, <strong>uma</strong> feira de<br />

mitos. A diversidade pode ser pensada como a condição mesma da sociedade e<br />

<strong>das</strong> próprias atividades culturais h<strong>uma</strong>nas. É a potencia <strong>do</strong> divergir, <strong>do</strong> desviar, é a<br />

equivocidade <strong>do</strong> próprio ser que se afirma. Tu<strong>do</strong> que existe diverge e <strong>por</strong> isso se<br />

diversifica. A natureza se formou <strong>por</strong> diversificação, ou seja, pela efetivação de sua<br />

potencialidade para se des<strong>do</strong>brar, <strong>do</strong>brar-se, inventar o novo a partir <strong>do</strong> préexistente.<br />

Diversidade como a realização <strong>do</strong> devir que atravessa tu<strong>do</strong> aquilo feito<br />

pelos h<strong>uma</strong>nos. A diversidade, <strong>por</strong>tanto, não pode ser o que nos dá identidade, o<br />

que nos identifica, <strong>por</strong>que seria cometer <strong>uma</strong> tautologia ao afirmarmos que o que<br />

nos identifica é que não somos ou não fomos ou não seremos idênticos nunca, <strong>por</strong><br />

constantemente nos diversificar, nos tornarmos diferentes de nós mesmos, um nós<br />

mesmos que seria impossível estabelecer, <strong>por</strong>que dentro de qualquer nós<br />

habitariam eles, esta possibilidade <strong>do</strong> estranho, <strong>do</strong> outro, <strong>do</strong> que não é idêntico.<br />

Seria, <strong>por</strong> fim, necessário pro<strong>por</strong> que pensássemos até que ponto precisamos<br />

ainda de <strong>uma</strong> categoria como a de identidade para pensar as manifestações<br />

culturais que ocorrem no território brasileiro e em suas várias regiões. Se realmente<br />

precisamos ainda falar de cultura no singular, quan<strong>do</strong> vivemos afirman<strong>do</strong> que o que<br />

nos orgulha como brasileiros e como produtores culturais no Brasil, aliás quem não é<br />

produtor <strong>cultural</strong>, é o fato de que somos diversos, múltiplos, temos <strong>uma</strong> enorme<br />

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Durval Muniz de Albuquerque Júnior<br />

riqueza <strong>cultural</strong>, clichês <strong>do</strong>s clichês. Se somos ricos de manifestações culturais<br />

<strong>por</strong>que ainda somos tão pobres quan<strong>do</strong> se trata de renovar o vocabulário para<br />

apreender esta diversidade, para promover esta diversidade. Porque não pensarmos<br />

em fluxos culturais, ao invés de cultura, <strong>por</strong>que não pensarmos em construção de<br />

singularidades culturais ao invés de identidades culturais. O singular só existe na<br />

relação com aquilo <strong>do</strong> qual se singulariza, a singularidade é relacional, situacional e<br />

provisória. Para se afirmar singular é preciso ao mesmo tempo afirmar também<br />

aquilo em relação a que se singulariza. A identidade, pelo contrário pretensamente<br />

se constrói a partir de um fechamento para o diferente, para o fora. A identidade<br />

nasceria da atitude de enrolar-se sobre si mesmo, de envolver-se consigo mesmo e<br />

expulsar o estranho, o diferente como intrusão, o escavar o si mesmo até encontrar<br />

um núcleo fixo e perene para o si mesmo. A identidade nega o exterior, o hostiliza,<br />

tem me<strong>do</strong> dele, a singularidade só existe <strong>por</strong>que afirma a coexistência da diferença<br />

e faz <strong>do</strong> exterior parte de si mesmo, abrin<strong>do</strong>-se para o fora que a constitui, a é<br />

interior. Ser singular é afirmar-se na condição que o outro permaneça existin<strong>do</strong>, ser<br />

idêntico é afirmar a possibilidade de que só um si mesmo pode existir, o outro deve<br />

ser definitivamente excluí<strong>do</strong> como ameaça. A singularidade é abertura para a<br />

relação, a identidade é pensar a possibilidade <strong>do</strong> fim da relação. A singularidade é a<br />

afirmação <strong>do</strong> movimento, <strong>do</strong> devir, a identidade é o me<strong>do</strong> <strong>do</strong> devir, é a afirmação da<br />

estaticidade, da fixidez, da paralisia.<br />

Não precisamos de identidade para existir, nada na natureza ou na cultura<br />

existe na identidade, mas sim na diferença, na diversidade, na mudança, na<br />

mutação, na coalecência, na coexistência, na convivência, na mistura, na<br />

informação. Precisamos sim de nos tornarmos singular, de afirmar a diferença, de<br />

tomá-la como ponto de partida para estabelecer relações de criatividade, de<br />

invenção, de afirmação <strong>do</strong> diverso. Identidades normalmente servem ao<br />

estabelecimento de hierarquias e sustentam <strong>do</strong>minações, a singularidade<br />

normalmente se faz no questionamento de hierarquias, <strong>do</strong>minações, hegemonias e<br />

poderes. A identidade quase sempre é pacifica<strong>do</strong>ra, conserva<strong>do</strong>ra, quan<strong>do</strong> não<br />

reativa e reacionária, já que é a afirmação da continuidade e da semelhança,<br />

enquanto a singularidade só existe ao afirmar a ruptura, a mudança, o<br />

deslocamento, o deslizamentos de práticas e senti<strong>do</strong>s, não necessariamente<br />

revolucionária, mas nunca apazigua<strong>do</strong>ra, <strong>por</strong> implicar o movimento, a mutação, o<br />

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Durval Muniz de Albuquerque Júnior<br />

diferir como princípio. Mesmo aquelas identidades que historicamente em da<strong>do</strong><br />

momento se mostraram revolucionárias normalmente confluíram para a reação a<br />

medida que <strong>uma</strong> vez vence<strong>do</strong>ras tendem a se querer perpetuar sem mudanças, sem<br />

a insurreição <strong>das</strong> singularidades que as ameaçam e arruínam <strong>por</strong> dentro. A<br />

identidade esteve na base da macro-política no Ocidente moderno, inclusive as<br />

macro-políticas culturais, mas foram as singularidades que mantiveram vivas as<br />

guerrilhas cotidianas <strong>das</strong> micropolíticas, fonte <strong>do</strong> devir outro, da criatividade política<br />

que possibilitou transformações inespera<strong>das</strong> pelos profissionais da grande política e<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Os artistas e produtores de formas e matérias de expressão, muitas<br />

vezes foram guerrilheiros <strong>do</strong> cotidiano, guerrilheiros <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, que impediram a<br />

cristalização <strong>das</strong> relações de poder e <strong>do</strong>s saberes e senti<strong>do</strong>s. Precisamos pensar,<br />

<strong>por</strong>tanto, políticas culturais que dêem passagem a singularidade, que permitam a<br />

elaboração e expressão <strong>do</strong> diverso e não da identidade. A cultura como potência da<br />

criatividade, da criação incessante <strong>do</strong> divergente e não <strong>do</strong> convergente e <strong>do</strong><br />

consensual. Culturas sem identidades, feitas de singularidades afirmativas, já que o<br />

singular só existe ao se afirmar, enquanto a identidade vive de negar o outro, o devir<br />

que reside em seu interior, vive da negação e não da afirmação. Culturas no plural,<br />

constituí<strong>das</strong> pela multiplicação <strong>do</strong> singular.<br />

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