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1 O Imortal Bem Amado. A chegada de Dias Gomes à ... - UFF

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O <strong>Imortal</strong> <strong>Bem</strong> <strong>Amado</strong>. A <strong>chegada</strong> <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>à</strong> Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras ∗∗∗∗<br />

(Publicado em: Rollemberg, Denise. “O <strong>Imortal</strong> <strong>Bem</strong> <strong>Amado</strong>. A <strong>chegada</strong> <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong><br />

<strong>à</strong> Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras.” FICO, Carlos; ARAUJO, Maria Paula. (Orgs.). 1968,<br />

40 anos <strong>de</strong>pois: história e memória. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7Letras, 2009).<br />

Denise Rollemberg 1<br />

“Diferentemente do que repete o discurso<br />

comemorativo, com a maior sincerida<strong>de</strong>, a memória não<br />

é – no sentido exato – verda<strong>de</strong> do passado. Menos<br />

presença do passado que presente do passado, ela é o<br />

uso flutuante <strong>de</strong>ste passado segundo as indagações do<br />

presente, a acomodação <strong>de</strong> um ao outro. E,<br />

inevitavelmente, como tal, permeada e povoada <strong>de</strong><br />

silêncios”. Pierre Laborie. 2<br />

As pessoas juntavam-se na rua Presi<strong>de</strong>nte Wilson, no Centro do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Queriam acompanhar a posse <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> na Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Vestido<br />

no fardão ver<strong>de</strong> escuro e dourado, ia ser recebido com pompa e circunstância pelos<br />

acadêmicos, seguindo o ritual que o tornaria imortal. O povo já havia imortalizado o seu<br />

bem amado, seus personagens e histórias. Ali estavam, a Aca<strong>de</strong>mia e a rua, o Brasil em<br />

sua diversida<strong>de</strong>, que <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>, nas Letras e na televisão unia, misturava, falando das<br />

diferenças que o fortaleciam e o minavam; o Brasil que ele encarnava, atravessando<br />

limites intransponíveis <strong>de</strong> mundos que se penetravam, <strong>de</strong> mundos paralelos, intocáveis,<br />

sequer no infinito.<br />

Longe do barulho do trânsito, do assédio dos repórteres, das câmeras e das<br />

saudações dos admiradores - mortais e imortais -, foi levado para o Salão Francês. Antes<br />

∗ O presente texto insere-se num projeto mais amplo, Ditadura, Intelectuais e Socieda<strong>de</strong>: o <strong>Bem</strong>-<strong>Amado</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>, cujo objetivo é refletir sobre as relações entre intelectual, ditadura e socieda<strong>de</strong>. Agra<strong>de</strong>ço ao<br />

CNPq e a Propp e Proac (<strong>UFF</strong>) as bolsas <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> iniciação científica. Agra<strong>de</strong>ço, igualmente,<br />

aos alunos <strong>de</strong> graduação <strong>de</strong> História da <strong>UFF</strong> o trabalho e a <strong>de</strong>dicação nas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> bolsistas, em<br />

diferentes momentos: Marco Mazzillo, Giordano Bruno dos Reis Santos, Natália Scheiner, Breno Bersot,<br />

Caio Paz Nascimento, Juliana Elianay, Andréa Luysa Reis Santos e Carolina Bezerra.<br />

1 Professora <strong>de</strong> História Contemporânea da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense; pesquisadora do Núcleo <strong>de</strong><br />

Estudos Contemporâneos (NEC-<strong>UFF</strong>) e do CNPq.<br />

2 Pierre Laborie. Les Français <strong>de</strong>s années troubles. De la guerre d' Espagne <strong>à</strong> la Libération. Paris, Seuil,<br />

2003, p. 96 (publicado originalmente por Desclée <strong>de</strong> Brouwer, 2001).<br />

1


da posse, o eleito <strong>de</strong>ve, segundo o ritual, aí permanecer sozinho em reflexão. Teria<br />

pensado, então, no fundador daquela Casa? Em Machado <strong>de</strong> Assis que circulou como<br />

ninguém por mundos paralelos? Machado que, tornando-se o primeiro homem 3 , fez-se<br />

também o primeiro imortal? Machado imobilizado em broze na entrada do Petit Trianon,<br />

junto <strong>à</strong> rua e ao salão, a assistir silenciosamente, diariamente, <strong>à</strong>s pessoas que passam<br />

pelas ruas da cida<strong>de</strong>? Em que terá pensado <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>?<br />

*****<br />

<strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> chegava <strong>à</strong> ABL em 16 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1991, para ocupar a ca<strong>de</strong>ira 21 <strong>de</strong><br />

Adonias Filho. Ambos escritores e intelectuais baianos; um, militante <strong>de</strong> esquerda, filiado<br />

do PCB, <strong>de</strong> 1945 até o início da década <strong>de</strong> 1970, membro do comitê cultural, <strong>de</strong>mitido da<br />

Rádio Nacional pelo primeiro Ato Institucional, <strong>de</strong> 1964. 4 Já conhecido autor <strong>de</strong> teatro e<br />

rádio, na seqüência do AI-5, no início <strong>de</strong> 1969, <strong>de</strong>u início <strong>à</strong> sua carreira como autor <strong>de</strong><br />

novelas <strong>de</strong> televisão na Re<strong>de</strong> Globo. 5 Aí, seu trabalho tornou-se conhecido do gran<strong>de</strong><br />

público, num momento em que os meios <strong>de</strong> comunicação e, em particular a televisão,<br />

alcançavam a maior parte do território nacional e os patamares <strong>de</strong> audiência eram<br />

contabilizados em novas or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>zas. 6 Adonias Filho, escritor, crítico literário,<br />

jornalista, intelectual <strong>de</strong> direita, atuara na articulação do golpe e nos governos militares,<br />

ocupando cargos nas esferas do Estado, como gestor <strong>de</strong> políticas culturais: diretor da<br />

Biblioteca Nacional <strong>de</strong> 1961 (portanto, antes do do golpe) a 1971, membro do Conselho<br />

Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Cultura e diretor entre 1977 a 1990, diretor do Instituto do Livro e da Agência<br />

Nacional (Comunicações) do Ministério da Justiça; durante o período, esteve,<br />

igualmente, em espaços civis importantes, como a presidência da Associação Brasileira<br />

3 Albert Camus. O primeiro homem. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira, 1994.<br />

4 Na autobiografia, <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> não dá um ano preciso da saída do PCB; se refere apenas que <strong>de</strong>ixou o<br />

Partido no “início da década <strong>de</strong> 1970”. Apenas um subversivo. Autobiografia. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Bertrand<br />

Brasil, 1998, p. 268; “Em 64, eu <strong>de</strong>senvolvia intensa ativida<strong>de</strong> política em várias frentes. Mesmo assim, na<br />

virada do ano, aceitei o convite <strong>de</strong> Hemílcio Fróes, superinten<strong>de</strong>nte da Rádio Nacional, para assumir a<br />

direção artística da emissora. E no tumultuado e fatídico mês <strong>de</strong> março, por indicação da classe teatral,<br />

Jango nomeou-me diretor do Serviço Nacional do Teatro, nomeação que não chegaria a ser publicada no<br />

Diário Oficial, não tendo eu, por isso, chegado a tomar posse” (op. cit., pp. 191-2).<br />

5 “Eu já recebera convite semelhante da TV Rio poucos anos antes e não aceitara. Agora, minha situação<br />

econômica não me permitia sequer hesitar. Tinha várias peças proibidas, e as que ainda não estavam sê-loiam<br />

certamete”. Apenas um subversivo, op. cit, p. 255.<br />

6 Cf. Renato Ortiz, Sílvia H. S. Borelli e José Mário Ortiz Ramos. Telenovela. História e produção. São<br />

Paulo, Brasiliense, 1989.<br />

2


<strong>de</strong> Imprensa, <strong>de</strong> 1972 a 1974, on<strong>de</strong> já havia sido vice-presi<strong>de</strong>nte, em 1966, além da ABL,<br />

para a qual se elegera em 1965.<br />

No discurso <strong>de</strong> posse, lembrando um episódio ocorrido em 1971, “ano 7 do<br />

<strong>de</strong>sastre”, “o país mergulhado na mais negra repressão…”, <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> se refere a<br />

Adonias como caçador e ele próprio como caça; ambos separados por uma barreira<br />

intelectual: um militante <strong>de</strong> esquerda, outro, amigo dos generais; um com os<br />

perseguidores; outro, entre os perseguidos. 7<br />

Não lembra, entretanto, as oposições para opô-las. Ao contrário. O ano 7 foi<br />

lembrado para narrar o momento em que ia <strong>de</strong>por, no Cenimar, no primeiro dos sete<br />

IPMs aos quais respon<strong>de</strong>u. 8 Adonias Filho telefonou-lhe, então, para tranqüilizá-lo: nada<br />

<strong>de</strong> mau aconteceria, assegurava. Deixava o seu número <strong>de</strong> telefone. Estaria <strong>à</strong> disposição<br />

a qualquer hora, em qualquer situação.<br />

No ritual <strong>de</strong> introdução do eleito <strong>à</strong> Aca<strong>de</strong>mia, é praxe constar, no primeiro<br />

discurso dirigido aos acadêmicos, palavras generosas aos colegas <strong>de</strong>saparecidos que<br />

ocuparam anteriormente aquela ca<strong>de</strong>ira na qual se sentará, pontuando traços grandiosos<br />

<strong>de</strong> caráter e, em seguida, tecendo um panorama crítico elogiativo <strong>de</strong> suas obras. Nesse<br />

rito, a vida e a obra do último imortal ganha maior ênfase. <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> cumpriu o<br />

percurso. Analisou a obra <strong>de</strong> Adonias Filho que o alçava aos gran<strong>de</strong>s nomes da<br />

Literatura. E, na “<strong>de</strong>scida ao inferno adoniano”, ao “mergulhar em seus livros”,<br />

encontrou a “solução do mistério”: seria Adonias Filho “um homem <strong>de</strong> direita” ou “um<br />

homem direito” ou “apenas um homem?” 9<br />

Nesse mergulho, <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> voltou a 1971 – ao inquérito no Cenimar -, a 1965 -<br />

<strong>à</strong> posse <strong>de</strong> Adonias na ABL. Ao se tornar imortal, Adonias Filho batizara a ca<strong>de</strong>ira 21 <strong>de</strong><br />

Ca<strong>de</strong>ira da Liberda<strong>de</strong>: os seus ocupantes haviam pertencido a gerações que tiveram a<br />

Liberda<strong>de</strong> “mais do que uma temática”, “uma <strong>de</strong>terminação” 10 : o fundador, José do<br />

Patrocínio, e o patrono Joaquim Serra, cujas vidas estiveram marcadas pela Abolição.<br />

Mário <strong>de</strong> Alencar, Olegário Mariano e Álvaro Moreyra teriam seguido o caminho da<br />

7<br />

Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discurso <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> e discurso <strong>de</strong> recepção <strong>de</strong> Jorge <strong>Amado</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Bertrand Brasil, 1991, pp. 25 e 26.<br />

8<br />

<strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> foi indiciado em cinco IPMs, <strong>de</strong>ntre eles, o da Rádio Nacional, o do Partido Comunista, o da<br />

Imprensa Comunista. Cf. Apenas um subversivo, op. cit.<br />

9<br />

Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discurso <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>...., op cit,1991, respect., pp. 34 e 27.<br />

10<br />

Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discursos Acadêmicos. Tomo IV, 2008, “Discurso do Sr. Adonias<br />

Filho”, p. 1160. Os Discursos Acadêmicos estão, igualmente, disponíveis no site da ABL.<br />

3


liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus antecessores. Nessa linhagem, Adonias encontrava a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

escritor e <strong>de</strong> cidadão, o seu lugar na Aca<strong>de</strong>mia.<br />

Comprometido com a Liberda<strong>de</strong> da Guerra Fria e do golpe civil-militar,<br />

atualizava o sentido da palavra dita por José do Patrocínio:<br />

“….já agora como escritor do meu tempo, não posso evitar o que exigem [os<br />

escritores que o antece<strong>de</strong>ram na Ca<strong>de</strong>ira da Liberda<strong>de</strong>] no fundo mesmo da sua<br />

obra. Exigem a luta contra a censura i<strong>de</strong>ológica, contra o comando do partido<br />

único nas artes e nas ciências, contra o bloqueio cultural - …- ainda hoje<br />

oprimindo povos e humilhando o homem. Fossem eles a falar, Joaquim Serra ou<br />

José do Patrocício, e o protesto seria o mesmo, sobretudo ele, Joaquim Serra, que,<br />

no testemunho <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, ajudou o País ‘a soletrar a liberda<strong>de</strong>’”. 11<br />

Assim, <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> em 1991, voltava não somente a 1971 - aos anos <strong>de</strong><br />

Resistência -, mas também a 1965, ao discurso <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> Adonias Filho, <strong>à</strong> imagem da<br />

Ca<strong>de</strong>ira da Liberda<strong>de</strong>, que ele inventou. Da mesma forma que seu antecessor, com ela se<br />

i<strong>de</strong>ntificava. Ao lembrar a imagem, reatualizava-se a memória e com ela equacionava as<br />

contradições. Estávamos em julho <strong>de</strong> 1991, o Muro <strong>de</strong> Berlim já <strong>de</strong>smorolara, levara o<br />

socialismo, o Leste europeu, o socialismo, a Guerra Fria. No mês seguinte, a URSS<br />

<strong>de</strong>sapareceria.<br />

Se a Liberda<strong>de</strong> com a qual a geração <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> se i<strong>de</strong>ntificava era a<br />

liberda<strong>de</strong> do socialismo que, no contexto da América Latina da Guerra Fria, traduziu-se<br />

na luta contra as ditaduras das décadas <strong>de</strong> 60 a 80, ali, em 1991, a Liberda<strong>de</strong> tornava-se<br />

Resistência, resistência a qualquer forma <strong>de</strong> opressão, fosse ela exercida por um sistema<br />

escravista ou por ditaduras capitalistas ou socialistas. Aí estava o ponto <strong>de</strong> união do<br />

presente que dissolvia as contradições do passado. Esse novo significado estava sendo<br />

agregado <strong>à</strong> Ca<strong>de</strong>ira 21. Por <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>. Lado a lado, a causa da Abolição, a causa do<br />

anticomunismo da Guerra Fria e a causa da Resistência <strong>à</strong>s ditaduras militares. “Falamos<br />

todos a mesma língua, nós da ca<strong>de</strong>ira 21”. Citando o trecho acima <strong>de</strong>stacado do discusso<br />

<strong>de</strong> Adonias, conclui:<br />

“Fosse eu, <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>, a falar e não falaria <strong>de</strong> outro modo. Mais eloqüente que a<br />

minha fala, seria a minha vida, toda ela pautada por uma luta constante contra<br />

todas as formas <strong>de</strong> cerceamento da liberda<strong>de</strong>, vítima que fui, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a minha<br />

primeira peça teatral, <strong>de</strong>ssa mesma censura i<strong>de</strong>ológica que Adonias abominava.<br />

Essa censura que, por ironia do <strong>de</strong>stino, poucas semanas após o seu belo discurso<br />

11 Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discursos Acadêmicos. Op cit, 2008, p. 1168.<br />

4


<strong>de</strong> posse, em 1965, proibia O Berço do Herói e dava início a uma caça <strong>à</strong>s bruxas<br />

no teatro brasileiro que iria impedir a encenação <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> trezentas peçcas.<br />

Adonias era então diretor da Biblioteca Nacional, e eu posso avaliar os conflitos e<br />

angústias em que se <strong>de</strong>bateu.” 12 .<br />

Na reatualização da Ca<strong>de</strong>ira da Liberda<strong>de</strong> a conciliação da qual nos falou Daniel<br />

Aarão Reis, palavra-chave para a compreensão do nosso processo <strong>de</strong> transição <strong>de</strong> um<br />

regime autoritário para um regime <strong>de</strong>mocrático. 13 A conciliação que lançou mão <strong>de</strong> mitos<br />

em torno <strong>de</strong> um golpe e uma ditadura exclusivamente militares, ou seja, elaborando a<br />

memória <strong>de</strong> tal forma que a participação civil <strong>de</strong>sapareceu, negando, assim, o regime<br />

como uma construção social bem mais ampla. Aqui, nas palavras <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>, um<br />

intelectual civil articulador do golpe, figura permanente nos órgãos públicos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1964<br />

até a sua morte em 1990, portanto, permanecendo no cenário como tantos homens<br />

políticos, uma vez terminada a ditadura, aparece completamente <strong>de</strong>scompromissado da<br />

lógica exclu<strong>de</strong>nte do regime.<br />

É essa conciliação que permite <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> lembrar para esquecer, concluindo,<br />

ao final do discurso que os escritores da ca<strong>de</strong>ira 21 “foram todos homens <strong>de</strong> bem,<br />

voltados para as gran<strong>de</strong>s causas. Divergências circunstanciais, posicionamentos históricos<br />

<strong>de</strong> um ou <strong>de</strong> outro - e erros todos cometemos – não eliminam a visão comum do<br />

essencial”; que permite repetir sobre Adonias Filho, sem qualquer questionamento, o que<br />

ele próprio dizia <strong>de</strong> si: “um espécimen raro: um intelectual <strong>de</strong> direita”. 14 Terminado o<br />

período dos regimes militares, o mito da Resitência, da “exclusivida<strong>de</strong>” do intelectual <strong>de</strong><br />

esquerda consagrava-se. Estivera Adonias Filho isolado todos esses anos na ABL? Na<br />

Biblioteca Nacional? No Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Cultura? Na própria Associação Brasileira<br />

<strong>de</strong> Imprensa, entre 72 e 74, eleito pelos colegas, tendo sido já vice-presi<strong>de</strong>nte, em 66?<br />

Será que <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> acreditava que o intelectual <strong>de</strong> direita num país marcado por forças<br />

autoritárias e conservadoras – antes <strong>de</strong> 1964 e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1979 ou <strong>de</strong> 1985 -, como sua<br />

12<br />

Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discurso <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>...., op. cit., 1991, p. 36, para as duas últimas<br />

citações.<br />

13<br />

Daniel Aarão Reis. Ditadura militar, esquerdas e socieda<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Zahar, 2000; Cf. também: -<br />

------- (org.). Versões e ficções. O seqüestro da História. São Paulo, Perseu Abramo, 1999; ----- . “Amnistie<br />

ou amnésie: société et dictature au Brésil”. Tumultes, Paris, v. 14, 2000; -------. “Ditadura e socieda<strong>de</strong>: as<br />

reconstruções da memória”, in ---------; Marcelo Ri<strong>de</strong>nti; Rodrigo Patto Sá Motta (orgs.). O golpe e a<br />

ditadura militar. 40 anos <strong>de</strong>pois (1964-2004). Bauru, EDUSC, 2004;<br />

14<br />

Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discurso <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>...., op. cit., 1991, pp. 41 e 26, respectivamente.<br />

5


própria obra evi<strong>de</strong>ncia, era <strong>de</strong> fato um espécimen raro? Os pares <strong>de</strong> Adonias e da sua<br />

Liberda<strong>de</strong> certamente estavam ouvindo <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>.<br />

A Liberda<strong>de</strong> e a conciliação iam costurando o passado, recompondo épocas,<br />

mo<strong>de</strong>lando a memória <strong>de</strong> acordo com aqueles dias. <strong>Dias</strong> <strong>de</strong> conciliação que usavam o<br />

passado da resistência não como História, mas como Memória.<br />

Por ironia da História, com o <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>, em 1999, a<br />

Ca<strong>de</strong>ira da Liberda<strong>de</strong> foi ocupada por Roberto Campos, economista profundamente<br />

i<strong>de</strong>ntificado com a ditadura e o anticomunismo, eleito por seus pares. Com um discurso<br />

agressivo e acusatório, quebrou, então, o ritual <strong>de</strong> elogios ao imortal prece<strong>de</strong>nte. Hoje, a<br />

ca<strong>de</strong>ira 21 pertence ao escritor Paulo Coelho, que suce<strong>de</strong>u o ex-ministro do planejamento<br />

<strong>de</strong> Castelo Branco. 15<br />

*****<br />

O capitão encarregado do interrogatório disse-lhe:<br />

“Agora vou lhe fazer só mais uma pergunta. Se disser a verda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>rá ir em<br />

paz. Se não…As reticências <strong>de</strong>ixaram no ar uma ameaça <strong>de</strong> tortura, conta-nos<br />

<strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>. Senti a <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> adrenalina e me preparei para o pior. Quem<br />

matou Nívea? Nívea era a heroína assassinada <strong>de</strong> Assim na Terra como no Céu,<br />

uma telenovela que no momento eu estava escrevendo…”. 16<br />

A história narrada que começava por um “país mergulhado na mais negra<br />

repressão”, <strong>de</strong> “tragédia”, “tortura”, “golpe militar”, “Cenimar”, IMPs”, terminava com<br />

uma gargalhada.<br />

Ali, ao discursar para os acadêmicos em sua posse, em 1991, <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> fez uma<br />

única referência <strong>à</strong> sua produção <strong>de</strong> novelas <strong>de</strong> televisão. Como piada. A partir daí, as<br />

referências ao seu trabalho são exclusivamente <strong>à</strong> produção para teatro, ele próprio<br />

<strong>de</strong>finindo-se como “um homem <strong>de</strong> teatro”. 17<br />

Naquele país “mergulhado” na “mais negra repressão” dos anos que se iniciavam<br />

com o AI-5, o povo, que sempre foi personagem <strong>de</strong> suas peças, tornava-se também<br />

personagens das novelas escritas na Re<strong>de</strong> Globo. Além <strong>de</strong> personagem, seria agora<br />

igualmente espectador. Assim como no teatro, na tv, o povo estaria presente tanto como<br />

figuras saídas do universo popular quanto constituindo-se por si só como um personagem.<br />

15 Paulo Coelho foi eleito em 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2002, vencendo Hélio Jaguaripe (22 x 15 votos).<br />

16 Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discurso <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>...., op. cit., 1991, p. 26.<br />

17 Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discurso <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>...., op. cit., 1991, p. 38.<br />

6


<strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> representava bem a sua geração <strong>de</strong> intelectuais <strong>de</strong> esquerda e, em particular,<br />

embora não somente, do PCB, que enxergava uma essencial positiva a constituir o povo.<br />

Na ABL, silenciando sobre toda a sua produção para a tv, <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> talvez<br />

buscasse a legitimação daquele universo; talvez pessoalmente, acreditasse naquele<br />

momento que estava ali exclusivamente <strong>de</strong>vido ao teatro, daí só a ele se referia. O povo<br />

estava lá com ele, como personagem e personagens das suas peças. Algumas peças,<br />

inclusive, haviam feito o trânsito do teatro para a tv, como O <strong>Bem</strong> <strong>Amado</strong>, escrita como<br />

peça em 1962 e levada ao ar como novela em 1973. Mas como espectador, o povo<br />

celebrado por sua geração estava ausente na sua obra, nas suas palvras, no salão. Mas não<br />

foi esse que o imortalizou? Antes <strong>de</strong> tornar-se imortal na ABL, <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> já havia se<br />

tornado imortal pelo espectador <strong>de</strong> televisão que parecia ter ficado na rua, nos sertões, em<br />

casa, diante da tv.<br />

Retomando o ritual <strong>de</strong> entrada na ABL, o eleito <strong>de</strong>ve escolher um acadêmico para<br />

recebê-lo, ou seja, fazer o discurso que suce<strong>de</strong> o do iniciado, dando-lhe as boas-vindas.<br />

<strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> conce<strong>de</strong>u a honra ao amigo e compadre Jorge <strong>Amado</strong>, homenagem prestada<br />

igualmente, 1965, por Adonias Filho. Os três baianos, sendo que Jorge <strong>Amado</strong> fora<br />

amigo <strong>de</strong> infância <strong>de</strong> Adonias Filho e <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> do irmão mais velho <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>.<br />

O fio contudor encontrado por Jorge <strong>Amado</strong> para ligar Adonias Filho a <strong>Dias</strong><br />

<strong>Gomes</strong> e a si mesmo e os anos da ditadura aos <strong>de</strong> Perestroika é a luta contra o<br />

sectarismo. Para ele, o que se via naquele momento, era antes o fim <strong>de</strong> ditaduras, contra<br />

as quais ele próprio se rebelara, <strong>de</strong>nunciando o stalinismo em fins <strong>de</strong> 1955 quando <strong>de</strong>ixou<br />

o PCB. Não se tratava do fim do socialismo (“o socialismo tampouco <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser a<br />

meta almejada pela humanida<strong>de</strong>”) 18 , mas do fim da opressão <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado campo<br />

político que se apropriara <strong>de</strong> uma luta que não lhe pertencia. Não se tratava tampouco do<br />

triunfo do capitalismo, mas da <strong>de</strong>mocracia. Todos argumentos, como sabemos, usuais na<br />

época. Assim, ali estavam três intelectuais que, no fim do século, podia-se concluir<br />

haviam <strong>de</strong>dicado suas vidas <strong>à</strong> liberda<strong>de</strong>, <strong>à</strong> luta contra os sectarismos, <strong>à</strong> opressão <strong>à</strong><br />

esquerda e <strong>à</strong> direita.<br />

18 Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discurso <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> e discurso <strong>de</strong> recepção <strong>de</strong> Jorge <strong>Amado</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Bertrand Brasil, 1991, p.59.<br />

7


Se <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> nada fala sobre tv (nem sobre cinema), curiosamente, é Jorge<br />

<strong>Amado</strong> que, em seu discurso chamou a atenção para a importância <strong>de</strong> sua obra escrita<br />

para a televisão e da tv, em geral. Jorge <strong>Amado</strong> o faz ali na ABL, on<strong>de</strong> era acadêmico<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1961, logo <strong>de</strong>pois do discurso <strong>de</strong> um dos autores <strong>de</strong> novela mais conhecidos e<br />

consagrados da tv brasileira não dizer uma só linha a respeito, sequer <strong>de</strong> suas novelas. À<br />

exceção da piada.<br />

Passando da mesma forma pelos elogios <strong>à</strong> vida e <strong>à</strong> obra <strong>de</strong> Adonias Filho,<br />

percorreu generosamente a trajetória do dramaturgo <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>, para chegar <strong>à</strong> sua<br />

ativida<strong>de</strong> no cinema e, enfim <strong>à</strong> tv:<br />

“Quero fazer referência especial a outra face <strong>de</strong> vossa dramaturgia, aquela que se<br />

<strong>de</strong>stina a ser difundida pela televisão [note que a ela refere-se como dramaturgia].<br />

Sei que é <strong>de</strong> bom tom falar horrores da televisão, apontada pelo elitismo dos<br />

intelectuais como um dos males <strong>de</strong> nosso tempo.(…).<br />

No que se refere a esse aspecto <strong>de</strong> vossa dramaturgia, <strong>de</strong>vo vos dizer que eu o<br />

valorizo ao extremo, pois as séries e novelas televisivas levaram vossa<br />

proposição, vosso protesto, a um público infinitamente maior do que aquele que<br />

freqüenta as salas <strong>de</strong> espetáculos. Foi sobretudonos ví<strong>de</strong>os dos televisores que o<br />

povo se i<strong>de</strong>ntificou com vossos personagens e reconheceu o Brasil, nossa<br />

espantosa realida<strong>de</strong>, o lado podre da vida <strong>de</strong> miséria e opressão, o lado luminoso<br />

da luta e da esperança.<br />

Não aceito que se estabeleça diferença <strong>de</strong> valor entre os dois segmentos <strong>de</strong> vossa<br />

dramaturgia.” 19<br />

É Jorge <strong>Amado</strong> quem traz os personagens das novelas para se sentarem ao lado<br />

dos personagens das peças na cerimônia. Abre as portas da rua, coloca-os no salão:<br />

“Não, não são intrusos. Aqui estão <strong>de</strong> pleno direito, com convite ou sem convite,<br />

pois, para tudo dizer, direi que foram essas pessoas que vos <strong>de</strong>ram fama e<br />

honrarias, popularida<strong>de</strong>. São vossos personagens, tantos! Não posso citar todos<br />

eles, mas quem não reconhece, em meio <strong>à</strong> seleta, nobre assistência aqui presente,<br />

quem não reconhece Branca <strong>Dias</strong>, <strong>de</strong>savergonhadamente nua, o <strong>Bem</strong> <strong>Amado</strong><br />

Odorico, Porcina, Carlão, Roque Santeiro, Sinhozinho Malta, as irmãs Cajazeiras,<br />

o Senador e o <strong>Imortal</strong>, o Inquiridor e o Velho – há gente <strong>de</strong> toda espécie hoje<br />

nesta sala - , o Padre Cícero Romão Batista (…). Vejo Zeca Diabo e Chico<br />

Moleza, Zabelinha, Dirceu Borboleta, Zé das Medalhas, heróis fabulosos,<br />

pequenos figurantes, Malu, Santa e os favelados, ai tanta gente, meu Deus, não os<br />

posso citar todos, que os <strong>de</strong>mais me perdoem. No comando <strong>de</strong>ssa malta <strong>de</strong><br />

comédia e drama, ergue-se Zé do Burro com sua cruz <strong>de</strong> brasileiro.<br />

19 Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discurso <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> e discurso <strong>de</strong> recepção <strong>de</strong> Jorge <strong>Amado</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Bertrand Brasil, 1991, pp. 54-55.<br />

8


São muitos, a população que criastes, senhor <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>, gente simples e sofrida,<br />

<strong>de</strong>les é esta festa, bem a merecem.” 20<br />

A eleição <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>à</strong> ABL não se <strong>de</strong>u por ampla maioria. À ca<strong>de</strong>ira<br />

concorreu também o poeta e professor <strong>de</strong> Língua portuguesa da PUC, Gilberto Mendonça<br />

Telles. No primeiro escrutínio, o resultado foi consi<strong>de</strong>rado empate técnico, segundo as<br />

regras da instituição: 18 votos para <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> e 17 para Gilberto Telles. No segundo<br />

turno, em 11 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1991, entre 36 votantes, a vitória <strong>de</strong>u-se por 20 votos contra 15 e<br />

uma abstenção, <strong>de</strong> Ariano Suassuna. 21 Na ocasião, os acadêmicos receberam cartas<br />

anônimas, acusando <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>de</strong> comunista e <strong>de</strong> plagiar José Cândido <strong>de</strong> Carvalho (as<br />

cartas vinham assinadas por ele, já falecido), em peça O Coronel e o Lobisomem, <strong>de</strong><br />

1964, que teria dado origem a O <strong>Bem</strong> <strong>Amado</strong>, <strong>de</strong> 1962.<br />

O presi<strong>de</strong>nte da ABL, Austregésilo <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>, <strong>de</strong>finiu <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> como “um<br />

manifesto cultural, sobretudo, por seus meios eletrônicos”. 22 Ainda assim, perguntado se<br />

assistira alguma <strong>de</strong> suas novelas, respon<strong>de</strong>u: “Eu ainda nem li Shakespeare inteiro, como<br />

vou ver novela? Eu tenho 94 anos, mas não tenho tempo para ver tv nem ouvir rádio”. 23<br />

Essa <strong>de</strong>claração do presi<strong>de</strong>nte certamente po<strong>de</strong> nos servir para pensar, <strong>de</strong> um lado,<br />

o silêncio <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> e, <strong>de</strong> outro, o discurso <strong>de</strong> Jorge <strong>Amado</strong>, ou seja, a <strong>de</strong>fesa que<br />

fez ali da produção para televisão. Ele próprio, como <strong>de</strong>staca no discurso <strong>de</strong> recepção,<br />

tivera livros adaptados para tv, com enorme alcance popular. O <strong>de</strong>boche do absurdo e o<br />

absurdo do <strong>de</strong>boche ao colocar lado a lado Shakespeare e <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> são os limites e as<br />

interseções dos mundos que se encontram, se afastam, se atraem, se repulsam, se<br />

embarralham, se separam, se estranham...<br />

Jorge <strong>Amado</strong>, agora, recebia <strong>à</strong> Casa presidida por Austregésilo <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>, não<br />

somente seus personagens, mas o próprio <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>:<br />

“… são pouquíssimos os poetas e os prosadores cujas criações <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> lhes<br />

pertencer, viram domínio público, se transformam em bem <strong>de</strong> todos, patrimônio<br />

20<br />

Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discurso <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> e discurso <strong>de</strong> recepção <strong>de</strong> Jorge <strong>Amado</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Bertrand Brasil, 1991, pp. 62-63.<br />

21<br />

Mais dois escritores concorreram <strong>à</strong> Ca<strong>de</strong>ira, sem, contudo, receberem votos: Diógenes Magalhães e<br />

Francisco Ruas Filho. O Globo, 12/4/91.<br />

22 Jornal do Brasil, 16/7/91.<br />

23 Jornal do Brasil, 16/7/91.<br />

9


<strong>de</strong> cada brasileiro. Raríssimos esses eleitos, a maioria <strong>de</strong>ve contentar-se com o<br />

ruidoso ou obscuro elogio dos profissionais da crítica.<br />

Penso no claro enigma <strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, o poeta mais distante da<br />

facilida<strong>de</strong> – sua poesia, por vezes tão difícil, sempre <strong>à</strong> altura da obra-prima,<br />

<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> pertencer ao tímido vate para se tornar sentimento e condição <strong>de</strong> todos<br />

nós, brasileiros. Qual <strong>de</strong> nós não diz que havia uma pedra no meio do caminho,<br />

repetindo verso seu? Que homem do povo – quantos <strong>de</strong>les analfabetos – não se<br />

perguntou na hora da dificulda<strong>de</strong>: e agora, José?, repetindo verso seu? (…)<br />

“Idêntica apropriação aconteceu com vossa obra <strong>de</strong> dramaturgo, senhor <strong>Dias</strong><br />

<strong>Gomes</strong>: cruzamos com vossos personagens nos caminhos do sertão e nas ruas das<br />

cida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> convivem e participam, gente <strong>de</strong> carne e osso. Neles o povo se<br />

reconhece, como reconhece o Brasil, a gran<strong>de</strong>za e a miséria, os equívocos<br />

absurdos e os espantosos acertos, nas histórias que construístes no universo do<br />

palco, nas ilimitadas polegadas dos ví<strong>de</strong>os. Um privilégio único, esse que vos<br />

coube, senhor <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong>, bem poucos o alcançaram em nossa literatura”. 24<br />

24 Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Discurso <strong>de</strong> <strong>Dias</strong> <strong>Gomes</strong> e discurso <strong>de</strong> recepção <strong>de</strong> Jorge <strong>Amado</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Bertrand Brasil, 1991, pp.50-52.<br />

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