CAPÍTULO 121 Morro abaixo No fim <strong>de</strong> três meses, ia tudo à maravilha. O fluido, Sabina, os olhos da moça, os <strong>de</strong>sejos do pai, eram outros tantos impulsos que me levavam ao matrimônio. A lembrança <strong>de</strong> Virgília aparecia <strong>de</strong> quando em quando, à porta, e com ela um diabo negro, que me metia à cara um espelho, no qual eu via ao longe Virgília <strong>de</strong>sfeita em lágrimas; mas outro diabo vinha, cor-<strong>de</strong>-rosa, com outro espelho, em que se refletia a figura <strong>de</strong> Nhã-loló, terna, luminosa, angélica. Não falo dos anos. Não os sentia; acrescentarei até que os <strong>de</strong>itara fora, certo domingo, em que fui à missa na capela do Livramento. Como o Damasceno morava nos Cajueiros, eu acompanhava-os muitas vezes à missa. O morro estava ainda nu <strong>de</strong> habitações, salvo o velho palacete do alto, on<strong>de</strong> era a capela. Pois um domingo, ao <strong>de</strong>scer com Nhã-loló pelo braço, não sei que fenômeno se <strong>de</strong>u que fui <strong>de</strong>ixando aqui dois anos, ali quatro, logo adiante cinco, <strong>de</strong> maneira que, quando cheguei abaixo, estava com vinte anos apenas, tão lépidos como tinham sido. Agora, se querem saber em que circunstâncias se <strong>de</strong>u o fenômeno, basta-lhes ler este capítulo até o fim. Vínhamos da missa, ela, o pai e eu. No meio do morro achamos um grupo <strong>de</strong> homens. Damasceno, que vinha ao pé <strong>de</strong> nós, percebeu o que era e adiantou-se alvoroçado; nós fomos atrás <strong>de</strong>le. E vimos isto; homens <strong>de</strong> todas as ida<strong>de</strong>s, tamanhos e cores, uns em mangas <strong>de</strong> camisa, outros <strong>de</strong> jaqueta, outros metidos em sobrecasacas esfrangalhadas; atitu<strong>de</strong>s diversas, uns <strong>de</strong> cócoras, outros com as mãos apoiadas nos joelhos, estes sentados sem pedras, aqueles encostados ao muro, e todos com os olhos fixos no centro, e as almas <strong>de</strong>bruçadas das pupilas. — Que é? perguntou-me Nhã-loló. Fiz-lhe sinal que se calasse; abri sutilmente caminho, e todos me foram ce<strong>de</strong>ndo espaço, sem que positivamente ninguém me visse. O centro tinha-lhes atado os olhos. Era uma briga <strong>de</strong> galos. Vi os dois contendores, dois galos <strong>de</strong> esporão agudo, olho <strong>de</strong> fogo e bico afiado. Ambos agitavam as cristas em sangue; o peito <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro estava <strong>de</strong>splumado e rubro; invadia-os o cansaço. Mas lutavam ainda assim, olhos fitos nos olhos, bico abaixo, bico acima, golpe <strong>de</strong>ste, golpe daquele, vibrantes e raivosos. O Damasceno não sabia mais nada; o espetáculo eliminou para ele todo o universo. Em vão lhe disse que era tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scer: ele não respondia, não ouvia, concentrara-se no duelo. A briga <strong>de</strong> galos era uma <strong>de</strong> suas paixões. Foi nessa ocasião que Nhã-loló me puxou brandamente pelo braço, dizendo que nos fôssemos embora. Aceitei o conselho e vim com ela por ali abaixo. Já disse que o morro era então <strong>de</strong>sabitado; disse-lhes também que vínhamos da missa, e não lhes tendo dito que chovia, era claro que fazia bom tempo, um sol <strong>de</strong>licioso. E forte. Tão forte que abri logo o guarda-sol, segurei-o pelo centro do cabo, e inclinei-o por modo que ajuntei uma página à filosofia do Quincas Borba: Humanitas osculou Humanitas... Foi assim que os anos me vieram caindo pelo morro abaixo. Ao sopé <strong>de</strong>tivemo-nos alguns minutos, à espera <strong>de</strong> Damasceno; ele veio daí a pouco ro<strong>de</strong>ado dos apostadores, a comentar com eles a briga. Um <strong>de</strong>stes, tesoureiro das apostas, distribuia um velho maço <strong>de</strong> notas <strong>de</strong> <strong>de</strong>z tostões, que os vencedores recebiam duplamente alegres. Quanto aos galosvinham sobraçados pelo respectivo dono. Um <strong>de</strong>les trazia a crista tão comida e ensangüentada, que vi logo nele o vencido; mas era engano — o vencido era o outro, que não trazia crista nenhuma. Ambos tinham o bico aberto, respirando a custo, esfalfados. Os apostadores, ao contrário, vinham 150 150
alegres, sem embargo das fortes comoções da luta; biografavamos contendores, relembravam as proezas <strong>de</strong> ambos. Eu fui andando, vexado; Nhã-loló vexadíssima. 151 151
- Page 1 and 2:
Machado de Assis MEMÓRIAS PÓSTUMA
- Page 3 and 4:
pedra, e lodo, e coisa nenhuma. Mor
- Page 5 and 6:
CAPÍTULO 3 Genealogia Mas, já que
- Page 7 and 8:
CAPÍTULO 5 Em que aparece a orelha
- Page 9 and 10:
— Há de vir cá passar uns dias,
- Page 11 and 12:
folhas. O silêncio daquela região
- Page 13 and 14:
eternidade.” E fixei os olhos, e
- Page 15 and 16:
CAPÍTULO 9 Transição E vejam ago
- Page 17 and 18:
CAPÍTULO 11 O menino é pai do hom
- Page 19 and 20:
CAPÍTULO 12 Um episódio de 1814 M
- Page 21 and 22:
exclusão. Tanto bastou para que eu
- Page 23 and 24:
CAPÍTULO 14 Primeiro beijo Tinha d
- Page 25 and 26:
CAPÍTULO 15 Marcela Gastei trinta
- Page 27 and 28:
CAPÍTULO 16 Uma Reflexão Imoral O
- Page 29 and 30:
Então resolvia embarcar imediatame
- Page 31 and 32:
CAPÍTULO 19 A bordo Éramos onze p
- Page 33 and 34:
comovida deveras, e a mão trêmula
- Page 35 and 36:
CAPÍTULO 21 O almocreve Vai então
- Page 37 and 38:
CAPÍTULO 22 Volta ao Rio Jumento d
- Page 39 and 40:
CAPÍTULO 24 Curto, mas alegre Fiqu
- Page 41 and 42:
dizer depois que o Vilaça, ao morr
- Page 43 and 44:
A Arma virumque cano arma virumque
- Page 45 and 46:
CAPÍTULO 28 Contanto que... Virgí
- Page 47 and 48:
CAPÍTULO 30 A flor da moita A voz
- Page 49 and 50:
CAPÍTULO 32 Coxa de nascença Fui
- Page 51 and 52:
CAPÍTULO 34 A uma alma sensível H
- Page 53 and 54:
CAPÍTULO 36 A propósito de botas
- Page 55 and 56:
CAPÍTULO 38 A quarta edição —
- Page 57 and 58:
CAPÍTULO 39 O vizinho Enquanto eu
- Page 59 and 60:
CAPÍTULO 41 A alucinação E era v
- Page 61 and 62:
CAPÍTULO 43 Marquesa, porque eu se
- Page 63 and 64:
CAPÍTULO 45 Notas Soluços, lágri
- Page 65 and 66:
nada, nem uma colherinha. Ora, meu
- Page 67 and 68:
CAPÍTULO 48 Um primo de Virgília
- Page 69 and 70:
CAPÍTULO 50 Virgília casada — Q
- Page 71 and 72:
CAPÍTULO 52 O embrulho misterioso
- Page 73 and 74:
CAPÍTULO 53 . . . . . . . . . Virg
- Page 75 and 76:
CAPÍTULO 55 O velho diálogo de Ad
- Page 77 and 78:
CAPÍTULO 57 Destino Sim senhor, am
- Page 79 and 80:
CAPÍTULO 59 Um encontro Deve ser u
- Page 81 and 82:
CAPÍTULO 60 O abraço Cuidei que o
- Page 83 and 84:
CAPÍTULO 62 O travesseiro Fui ter
- Page 85 and 86:
capazes de grandes ações, e ele n
- Page 87 and 88:
— Que ouçam! Não me importa. Es
- Page 89 and 90:
CAPÍTULO 66 As pernas Ora, enquant
- Page 91 and 92:
CAPÍTULO 68 O vergalho Tais eram a
- Page 93 and 94:
CAPÍTULO 70 Dona Plácida Voltemos
- Page 95 and 96:
CAPÍTULO 72 O bibliômano Talvez s
- Page 97 and 98:
CAPÍTULO 74 História de Dona Plá
- Page 99 and 100: CAPÍTULO 75 Comigo Podendo acontec
- Page 101 and 102: CAPÍTULO 77 Entrevista Virgília e
- Page 103 and 104: CAPÍTULO 79 Compromisso Não acaba
- Page 105 and 106: CAPÍTULO 81 A reconciliação Cont
- Page 107 and 108: CAPÍTULO 82 Questão de botânica
- Page 109 and 110: havia treze pessoas. A casa em que
- Page 111 and 112: CAPÍTULO 85 O cimo da montanha Que
- Page 113 and 114: CAPÍTULO 87 Geologia Sucedeu por e
- Page 115 and 116: CAPÍTULO 89 In extremis — Amanh
- Page 117 and 118: CAPÍTULO 91 Uma carta extraordiná
- Page 119 and 120: CAPÍTULO 93 O jantar Que suplício
- Page 121 and 122: CAPÍTULO 95 Flores de antanho Onde
- Page 123 and 124: CAPÍTULO 97 Entre a boca e a testa
- Page 125 and 126: CAPÍTULO 99 Na platéia Na platéi
- Page 127 and 128: CAPÍTULO 101 A Revolução Dálmat
- Page 129 and 130: CAPÍTULO 103 Distração — Não,
- Page 131 and 132: CAPÍTULO 104 Era ele! Restitui o g
- Page 133 and 134: CAPÍTULO 106 Jogo perigoso Respire
- Page 135 and 136: CAPÍTULO 108 Que se não entende E
- Page 137 and 138: Que concepção mesquinha! Um poço
- Page 139 and 140: CAPÍTULO 111 O muro Não sendo meu
- Page 141 and 142: CAPÍTULO 113 A Solda A conclusão,
- Page 143 and 144: CAPÍTULO 115 O almoço Não a vi p
- Page 145 and 146: CAPÍTULO 117 O Humanitismo Duas fo
- Page 147 and 148: CAPÍTULO 118 A terceira força A t
- Page 149: CAPÍTULO 120 Compele intrare Não,
- Page 153 and 154: CAPÍTULO 123 O Verdadeiro Cotrim N
- Page 155 and 156: CAPÍTULO 125 Epitáfio EPITÁFIO
- Page 157 and 158: CAPÍTULO 127 Formalidade Grande co
- Page 159 and 160: CAPÍTULO 129 Sem remorsos Não tin
- Page 161 and 162: CAPÍTULO 131 De uma calúnia Como
- Page 163 and 164: CAPÍTULO 133 O princípio de Helve
- Page 165 and 166: CAPÍTULO 135 Oblivion E agora sint
- Page 167 and 168: CAPÍTULO 137 A barretina E daí, n
- Page 169 and 170: CAPÍTULO 138 Aum crítico Meu caro
- Page 171 and 172: CAPÍTULO 140 Que explica o anterio
- Page 173 and 174: CAPÍTULO 142 O pedido secreto Quan
- Page 175 and 176: CAPÍTULO 144 Utilidade Relativa Ma
- Page 177 and 178: CAPÍTULO 146 O programa Urgia fund
- Page 179 and 180: CAPÍTULO 148 O problema insolúvel
- Page 181 and 182: CAPÍTULO 150 Rotação e translaç
- Page 183 and 184: CAPÍTULO 152 A Moeda de Vespasiano
- Page 185 and 186: CAPITULO 154 Os navios do Pireu —
- Page 187 and 188: CAPÍTULO 156 Orgulho da servilidad
- Page 189 and 190: CAPÍTULO 158 Dois Encontros No fim
- Page 191: CAPÍTULO 160 Das negativas Entre a