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DA EVISTA CADEMIA INEIRA ETRAS - Academia Mineira de Letras

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R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong><br />

A<strong>CADEMIA</strong><br />

M<strong>INEIRA</strong><br />

DE L<strong>ETRAS</strong><br />

ANO 85º - VOLUME LI - JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO - 2009<br />

Revista Volume LI.p65 1<br />

12/5/2009, 15:29


A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Fundada em 25 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1909<br />

Rua da Bahia, 1466 – Telefax (OXX31) 3222-5764<br />

CEP 30160-011 - Belo Horizonte-MG<br />

www.aca<strong>de</strong>miamineira<strong>de</strong>letras.org.br<br />

atendimento@aca<strong>de</strong>miamineira<strong>de</strong>letras.org.br<br />

Presi<strong>de</strong>nte: Murilo Badaró<br />

1° Vice-presi<strong>de</strong>nte: Miguel Augusto<br />

Gonçalves <strong>de</strong> Souza<br />

2° Vice-presi<strong>de</strong>nte: Orlando Vaz<br />

Secretário Honorário: Oiliam José<br />

DIRETORIA AML<br />

Secretário-Geral: Aloísio Garcia<br />

1° Secretário: Fábio Doyle<br />

2° Secretário: Elizabeth Rennó<br />

Tesoureiro: Márcio Garcia Vilela<br />

1° Tesoureiro: José Henrique Santos<br />

2° Tesoureiro: Bonifácio Andrada<br />

R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Publicação trimestral<br />

Diretor: Murilo Badaró<br />

Conselho Editorial: Aluísio Pimenta, Antenor Pimenta e Eduardo Almeida Reis.<br />

Revisão: Pedro Sérgio Lozar<br />

Digitação: Marília Moura Guilherme<br />

Capa: Liu Lopes<br />

Diagramação e impressão: O Lutador<br />

Assessoria <strong>de</strong> Divulgação: Petrônio Souza Gonçalves<br />

Ficha Catalográfica<br />

Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> – Ano 85° – volume LI<br />

Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>/<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> / v. LI/ 2008<br />

Belo Horizonte: <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, 2009.<br />

janeiro/fevereiro/março <strong>de</strong> 2009.<br />

Fundada em 1922<br />

l. Literatura – Periódico. 2. Obras Literárias I. <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />

Revista Volume LI.p65 2<br />

12/5/2009, 15:29<br />

ISSN 1982-6680


ÍNDICE<br />

Apresentação ............................................................................................ 7<br />

A MEMÓRIA É UMA CONSTRUÇÃO DO FUTURO,<br />

MAIS QUE DO PASSADO<br />

Murilo Badaró .......................................................................................... 9<br />

O CENTENÁRIO <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Almir <strong>de</strong> Oliveira.................................................................................... 13<br />

MANIFESTAÇÃO EXTRAORDINÁRIA DO MISTÉRIO MINEIRO<br />

Luiz Paulo Horta .................................................................................... 19<br />

EM MINAS AS L<strong>ETRAS</strong> SEMPRE SERVIRAM À VI<strong>DA</strong><br />

Itamar Franco ........................................................................................ 23<br />

CENTENÁRIO DE FUN<strong>DA</strong>ÇÃO <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE<br />

L<strong>ETRAS</strong><br />

Leila Maria Fonseca Barbosa & Marisa Timponi Pereira Rodrigues 27<br />

AIRES: UMA RICA HISTÓRIA DE SABER E DE CULTURA<br />

José Bento Teixeira <strong>de</strong> Salles ................................................................ 33<br />

CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO PE. PEDRO MACIEL<br />

VIDIGAL<br />

Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho ............................................... 45<br />

SACERDOTE E ESCRITOR<br />

Oiliam José ............................................................................................. 65<br />

RONDON PACHECO, UM DEPOIMENTO HISTÓRICO<br />

Fábio Doyle ............................................................................................ 71<br />

Revista Volume LI.p65 3<br />

12/5/2009, 15:29


O LIVRO DE MARIL<strong>DA</strong> TROPIA DE BARROS<br />

Danilo Gomes ......................................................................................... 77<br />

ALPHONSUS FILHO, HABITANTE <strong>DA</strong> POESIA<br />

Ângelo Oswaldo <strong>de</strong> Araújo Santos ........................................................ 81<br />

O IMPERADOR DO DIVINO<br />

Milton Campos ....................................................................................... 85<br />

PROFESSOR LUIS CARLOS DE PORTILHO<br />

Aluísio Pimenta ...................................................................................... 89<br />

CI<strong>DA</strong>DÃO LUIZ CARLOS DE PORTILHO<br />

José Maria Couto Moreira .................................................................... 91<br />

Perfil acadêmico<br />

PERENE E INFINITA CONVIVÊNCIA COM A CULTURA<br />

Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles ...................................................................... 93<br />

NO MEIO DO CAMINHO: RECEPÇÃO, APROPRIAÇÃO E<br />

METÁFORA<br />

Letícia Malard ...................................................................................... 103<br />

NÓS, A OUTRA RAPAZIA<strong>DA</strong><br />

Affonso Heliodoro dos Santos.............................................................. 113<br />

ANTROPÓLOGO E HUMANISTA<br />

Zanoni Neves ........................................................................................ 117<br />

Cinema<br />

IMAGENS: REALI<strong>DA</strong>DE E FICÇÃO<br />

Paulo Augusto Gomes .......................................................................... 127<br />

Teatro<br />

O AUTOR! ONDE ESTÁ O AUTOR?<br />

Pedro Paulo Cava ................................................................................ 133<br />

Revista Volume LI.p65 4<br />

12/5/2009, 15:29


Música<br />

O PADRE JOSÉ MAURÍCIO, O ALEIJADINHO E<br />

MÁRIO DE ANDRADE<br />

Paulo Sérgio Malheiros Santos ........................................................... 137<br />

Artes Plásticas<br />

DESCOBRINDO MARTA LOUTSCH<br />

Carlos Perktold .................................................................................... 153<br />

O TEATRO PERFORMÁTICO DE HIL<strong>DA</strong> HILST<br />

É<strong>de</strong>r Rodrigues ..................................................................................... 161<br />

APRESENTAÇÃO SOBRE GUIGNARD<br />

Yara Tupynambá .................................................................................. 167<br />

GUIMARÃES ROSA E MINAS GERAIS<br />

Murilo Badaró ...................................................................................... 171<br />

ÉPICO E O DIALÉTICO EM GRANDE SERTÃO: VERE<strong>DA</strong>S<br />

Ismar Dias <strong>de</strong> Matos ............................................................................ 177<br />

ROSA, DENTRO E PROFUNDO<br />

Petrônio Souza Gonçalves ................................................................... 179<br />

Discursos acadêmicos<br />

A TRADIÇÃO ACADÊMICA<br />

Vivaldi Moreira .................................................................................... 183<br />

A VER<strong>DA</strong>DE<br />

Jorge Lasmar........................................................................................ 215<br />

ODE A UM BRASILEIRO (DOIS, EM TRÊS CAPÍTULOS)<br />

Henrique Leal ....................................................................................... 223<br />

A LITERATURA E A ARTE ALDRAVISTA<br />

Andréia Donadon Leal ......................................................................... 231<br />

Revista Volume LI.p65 5<br />

12/5/2009, 15:29


O conto mineiro<br />

A MÃE-<strong>DA</strong>-LUA<br />

Agripa Vasconcelos .............................................................................. 239<br />

REMORSO<br />

Ronaldo Guimarães.............................................................................. 243<br />

EXISTENCIALISMO<br />

Maria do Carmo Brandão ................................................................... 249<br />

Apreciação crítica<br />

UMA LEITURA CORRI<strong>DA</strong> SOBRE O LIVRO MEMÓRIAS<br />

PÓSTUMAS DE FRANCISCO BA<strong>DA</strong>RÓ, DE MURILO BA<strong>DA</strong>RÓ<br />

Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães ............................................................. 251<br />

RESENHA<br />

Onofre <strong>de</strong> Freitas ................................................................................. 263<br />

A CASA<br />

Yeda Prates Bernis ............................................................................... 269<br />

MACHADO DE ASSIS – REMEMORAR<br />

Lívia Paulini ......................................................................................... 271<br />

O AMOR<br />

João Barbosa........................................................................................ 275<br />

MINAS GERAIS O CORAÇÃO DO BRASIL<br />

Celso Ricardo <strong>de</strong> Almeida ................................................................... 277<br />

Revista Volume LI.p65 6<br />

12/5/2009, 15:29


APRESENTAÇÃO<br />

O lançamento do número da Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong> coinci<strong>de</strong> com o início das comemorações do centenário <strong>de</strong> nossa<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, que tiveram como palco a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong><br />

Fora, on<strong>de</strong> ela foi fundada.<br />

Nascida do pioneirismo <strong>de</strong> doze jornalistas e intelectuais juizforanos,<br />

sob a li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Machado Sobrinho, esse grupo <strong>de</strong> apóstolos da cultura<br />

criou no dia 25 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1909 a Instituição, a que <strong>de</strong>ram o título<br />

<strong>de</strong> mineira na previsão do futuro radioso que a aguardava.<br />

Transferida para Belo Horizonte em 1915, seguiu o roteiro traçado<br />

pelos fundadores, que previram intensa participação <strong>de</strong> seus membros na<br />

divulgação e cultivo da cultura e guarda das tradições mineiras.<br />

Se a glória <strong>de</strong> inaugurar a primeira usina hidrelétrica <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

porte na América do Sul, por si só daria à Manchester mineira motivos <strong>de</strong><br />

sobra para orgulho <strong>de</strong> seus naturais, ela ainda <strong>de</strong>u ao Brasil figuras<br />

humanas admiráveis nos mais diversos setores da ativida<strong>de</strong>.<br />

Dizia Murilo Men<strong>de</strong>s, poeta juizforano, um dos maiores nomes da<br />

poesia brasileira <strong>de</strong> todos os tempos, que “a memória é uma construção<br />

do futuro, mais que do passado” e para dar certificados <strong>de</strong> razão a essa<br />

assertiva basta recordar o momento em que novamente nos apetrechamos<br />

para comemorar com brilhantismo o centenário da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>.<br />

Além dos números <strong>de</strong> cada trimestre da edição normal, editaremos<br />

no segundo semestre uma edição especial relativa ao Centenário, pelo<br />

que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo oferecemos suas páginas aos colaboradores.<br />

Ao reconstruir o passado da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, é imperioso<br />

lançar a seu crédito o imenso acervo <strong>de</strong> realizações em prol da cultura<br />

mineira.<br />

Belo Horizonte, março <strong>de</strong> 2009<br />

Murilo Badaró – Presi<strong>de</strong>nte<br />

Revista Volume LI.p65 7<br />

12/5/2009, 15:29


8 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 8<br />

12/5/2009, 15:29


A MEMÓRIA É UMA<br />

CONSTRUÇÃO DO FUTURO,<br />

MAIS QUE DO PASSADO*<br />

Murilo Badaró**<br />

Tiveram início na noite <strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> março, em Juiz <strong>de</strong> Fora, os<br />

eventos oficiais comemorativos do centenário da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>. Fundada naquela cida<strong>de</strong> em 25 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1909, transferiuse<br />

para Belo Horizonte em 1915 por <strong>de</strong>cisão unânime <strong>de</strong> seus membros.<br />

A circunstância <strong>de</strong> ter sido em Juiz <strong>de</strong> Fora a criação do sodalício<br />

centenário encontra justificativa no pioneirismo da importante cida<strong>de</strong><br />

mineira, cuja história é assinalada por manifesta vocação pela cultura e o<br />

progresso.<br />

Des<strong>de</strong> a segunda meta<strong>de</strong> do século 19, a gran<strong>de</strong> metrópole vem<br />

experimentando intenso <strong>de</strong>senvolvimento, inicialmente reflexo da<br />

cafeicultura da Zona da Mata mineira e <strong>de</strong>pois por força da li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong><br />

Mariano Procópio, ao iniciar a construção da primeira via <strong>de</strong> transporte<br />

rodoviário com a estrada União e Indústria, transformando a cida<strong>de</strong> em<br />

símbolo perfeito do pujante empree<strong>de</strong>ndorismo que a cada nova geração<br />

* Palavras pronunciadas na 1ª solenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comemoração do centenário da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, na Câmara Municipal <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, no dia 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2009.<br />

** Escritor e homem público, presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, autor entre outros<br />

livros <strong>de</strong>: Do Jequitinhonha ao Tennessee, Reforma e Revolução, Memorial Político, Alma<br />

<strong>de</strong> Minas, O Bombardino, Vigésimo Mandamento, Floresta <strong>de</strong> Símbolos, Rondó Solitário<br />

(crônicas), José Maria Alkmim, Milton Campos, Gustavo Capanema (biografias), Memórias<br />

Póstumas <strong>de</strong> Francisco Badaró (romance histórico-biográfico).<br />

Revista Volume LI.p65 9<br />

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10 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

foi-se implantando na mentalida<strong>de</strong> dos juiz-foranos. Se com a fundação<br />

da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora tornou-se primeira na<br />

manifestação cultural, ela foi também se<strong>de</strong> do primeiro curtume<br />

industrial do país, da primeira cervejaria, da primeira estação telefônica,<br />

do primeiro grupo escolar, do primeiro transporte público em Minas<br />

Gerais e da primeira escola superior <strong>de</strong> comércio no Brasil. Se a glória <strong>de</strong><br />

inaugurar a primeira usina hidrelétrica <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte na América do Sul<br />

por si só daria à Manchester mineira motivos <strong>de</strong> sobra para orgulho <strong>de</strong><br />

seus naturais, ela ainda <strong>de</strong>u ao Brasil figuras humanas admiráveis nos<br />

mais diversos setores da ativida<strong>de</strong>.<br />

Dizia Murilo Men<strong>de</strong>s, poeta juiz-forano, um dos maiores nomes da<br />

poesia brasileira <strong>de</strong> todos os tempos, que “a memória é uma construção<br />

do futuro, mais que do passado”, e para dar certificados <strong>de</strong> razão a essa<br />

assertiva basta recordar o momento exato no dia 25 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />

1909, às 19 horas, no plenário da Câmara Municipal, quando um grupo<br />

<strong>de</strong> 12 homens, apóstolos da cultura e com os olhos no futuro, li<strong>de</strong>rados<br />

por Machado Sobrinho, Eduardo <strong>de</strong> Meneses, adiante Heitor Guimarães,<br />

Brant Horta, Amanajós <strong>de</strong> Araújo, José Rangel, Lindolfo Gomes,<br />

Belmiro Braga, Albino Esteves, Francisco Lins, Luiz <strong>de</strong> Oliveira e<br />

Dilermando Cruz, em sessão solene presidida por Antônio Carlos Ribeiro<br />

<strong>de</strong> Andrada, <strong>de</strong>clararam fundada a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> e<br />

escolheram mais 18 membros para comporem o número <strong>de</strong> 30, entre eles<br />

Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens, Mário <strong>de</strong> Lima, Diogo <strong>de</strong> Vasconcelos, para<br />

no dia 13 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1910 fazerem a instalação e convocarem outros 10<br />

para completar o número tradicional <strong>de</strong> 40.<br />

O início das comemorações da efeméri<strong>de</strong> em Juiz <strong>de</strong> Fora obe<strong>de</strong>ceu<br />

a três razões <strong>de</strong>terminantes. Em primeiro lugar, o haver sido a AML ali<br />

fundada e consolidada no tempo até sua mudança para Belo Horizonte.<br />

Depois, por ser Juiz <strong>de</strong> Fora a primeira cida<strong>de</strong> do interior a ter uma lei <strong>de</strong><br />

incentivo cultural <strong>de</strong> que resultou a Funalfa. E ainda por ser a terra <strong>de</strong><br />

Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Anna, Murilo Men<strong>de</strong>s, Belmiro Braga, Rachel<br />

Jardim, Pedro Nava e tantos outros ilustres intelectuais brasileiros.<br />

Finalmente, por ser a cida<strong>de</strong> natal do presi<strong>de</strong>nte Itamar Franco, benfeitor<br />

da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, e ainda por ele se constituir em padrão<br />

Revista Volume LI.p65 10<br />

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A memória é uma construção do futuro, mais que do passado _____________________________ Murilo Badaró 11<br />

<strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> na vida pública brasileira, motivo <strong>de</strong> honra e orgulho para<br />

os mineiros. Depois da transferência para Belo Horizonte a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

ficou instalada na rua dos Carijós, 150, em salas doadas pelo prefeito<br />

Otacílio Negrão <strong>de</strong> Lima, on<strong>de</strong> mesmo sem maior conforto serviu às<br />

finalida<strong>de</strong>s da entida<strong>de</strong>. Quando Hélio Garcia era governador do Estado,<br />

no dia em que tomei posse na ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> número 29 com sua presença,<br />

provoquei-o para que anunciasse a doação do Palacete Borges da Costa,<br />

objeto da reivindicação do presi<strong>de</strong>nte Vivaldi Moreira. Em gesto<br />

característico, Hélio Garcia surpreen<strong>de</strong> os presentes com a <strong>de</strong>terminação<br />

governamental <strong>de</strong> fazer a doação, mais tar<strong>de</strong> oficializada pelo governador<br />

Newton Cardoso em ato formal <strong>de</strong> assinatura da escritura. São credores<br />

eternos da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>.<br />

Revista Volume LI.p65 11<br />

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12 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 12<br />

12/5/2009, 15:29


O CENTENÁRIO <strong>DA</strong><br />

A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong>*<br />

Almir <strong>de</strong> Oliveira**<br />

Na noite <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1909, por iniciativa <strong>de</strong> Machado<br />

Sobrinho, reuniram-se no salão da Câmara Municipal <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora<br />

Albino Esteves, Amanajós <strong>de</strong> Araújo, Belmiro Braga, Brant Horta,<br />

Dilermando Cruz, Francisco Lins, Heitor Guimarães, José Range1,<br />

Lindolfo Gomes, Luís <strong>de</strong> Oliveira e Eduardo <strong>de</strong> Meneses. Discutiram a<br />

proposta <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> uma associação para tratar <strong>de</strong> assuntos literários.<br />

Todos eram afeitos às letras, escreviam nos jornais da cida<strong>de</strong>, e entre<br />

eles havia quem já publicara livros. No dia seguinte, fundaram a<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, inspirando-se na Brasileira, que se inspirara<br />

na Francesa. Convocaram outros afeiçoados à cultura literária. E<br />

incorporaram ao grupo fundador Estêvão <strong>de</strong> Oliveira, Bento Ernesto Jr.,<br />

Mário <strong>de</strong> Lima, Franklin <strong>de</strong> Magalhães, Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira, Aldo<br />

Delfino, Diogo <strong>de</strong> Vasconcellos, Nelson <strong>de</strong> Senna, Alphonsus <strong>de</strong><br />

Guimaraens, Joaquim da Costa Senna, Arduíno Bolivar, Carlindo Lellis,<br />

Carlos Góes, Mário <strong>de</strong> Magalhães, José Paixão, Augusto Massena e<br />

Men<strong>de</strong>s Pimentel. Este, jurista ilustre, não aceitou o ingresso sob a<br />

alegação <strong>de</strong> que não era escritor.<br />

* Discurso proferido na 1ª solenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comemoração do centenário da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>, na Câmara Municipal <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, no dia 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2009.<br />

** Acadêmico da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, resi<strong>de</strong> em Juiz <strong>de</strong> Fora. Ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 32.<br />

Revista Volume LI.p65 13<br />

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14 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

No dia 13 maio <strong>de</strong> 1910, quando da instalação da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, foram<br />

eleitos mais <strong>de</strong>z para formar o número 40, que é o padrão da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

Francesa, já adotado também pela <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira. Noutra reunião,<br />

elegeram-se Álvaro da Silveira, Avelino Fóscolo, Carmo Gama, Dom<br />

Joaquim Silvério <strong>de</strong> Souza, Olímpio <strong>de</strong> Araújo, Francisco Augusto Pinto<br />

<strong>de</strong> Moura, José Eduardo da Fonseca (que <strong>de</strong>clinou da escolha), Gustavo<br />

Pena (que também não aceitou ser acadêmico), Carvalho <strong>de</strong> Brito,<br />

Gilberto <strong>de</strong> Alencar, Navantino Santos, Paulo Brandão e Plínio Motta.<br />

Foi eleito Presi<strong>de</strong>nte o doutor Eduardo <strong>de</strong> Meneses, antes o mais idoso <strong>de</strong><br />

todos, médico ilustre, que veio a ser uma das mais expressivas figuras da<br />

história cultural <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora.<br />

Naquela data, no Teatro Municipal, presente o Presi<strong>de</strong>nte da<br />

Câmara Municipal <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, Dr. Antônio Carlos Ribeiro <strong>de</strong><br />

Andrada, que representou o Presi<strong>de</strong>nte da República – Dr. Nilo Peçanha<br />

e o Presi<strong>de</strong>nte do Estado – Dr. Wenceslau Braz, instalou-se solenemente<br />

a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> sob a presidência do Dr. Eduardo <strong>de</strong> Menezes.<br />

Discursaram o orador oficial, acadêmico Nelson <strong>de</strong> Senna, e o<br />

presi<strong>de</strong>nte Eduardo <strong>de</strong> Meneses. Longos e eruditos discursos, que<br />

revelam o elevado nível cultural <strong>de</strong> seus autores, como que a justificar a<br />

própria criação da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> naquele instante e nesta cida<strong>de</strong>. Juiz <strong>de</strong> Fora<br />

não era apenas o maior centro industrial do país, como já assinalava<br />

Lindolfo Gomes no seu “Hino a Juiz <strong>de</strong> Fora”. Era o principal centro<br />

educacional <strong>de</strong> Minas Gerais, com um respeitável número <strong>de</strong><br />

estabelecimentos <strong>de</strong> ensino nos três graus, entre os quais se distinguiam a<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> Comércio, o Instituto Granbery, os Colégios Stella<br />

Matutina e Santa Catarina, Escola <strong>de</strong> Farmácia e Odontologia e Escola <strong>de</strong><br />

Engenharia, tendo sido estas duas, mais tar<strong>de</strong>, com a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Direito, as bases da atual Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral. Sua vocação industrial<br />

<strong>de</strong>finira-se já no século <strong>de</strong>zenove, antes mesmo que Bernardo<br />

Mascarenhas criasse aqui a primeira usina hidrelétrica para alimentar as<br />

máquinas <strong>de</strong> sua fábrica <strong>de</strong> tecidos. Por influência dos alemães e seus<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, para aqui trazidos pelo mesmo Bernardo Mascarenhas, a<br />

cida<strong>de</strong> chegou a ter quatro fábricas <strong>de</strong> cerveja, que faziam a alegria <strong>de</strong><br />

muita gente...<br />

Revista Volume LI.p65 14<br />

12/5/2009, 15:29


O centenário da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> _________________________________________ Almir <strong>de</strong> Oliveira 15<br />

Essa posição econômica e social <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora incomodava Ouro<br />

Preto.<br />

Enquanto Belo Horizonte não assumia feições <strong>de</strong> rainha, a princesa<br />

<strong>de</strong> Minas cumpria seu papel <strong>de</strong> principal centro <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s econômicas,<br />

sociais e políticas. Aqui se encontravam os políticos do Estado e<br />

aqui se traçavam rumos a seguir. Mais próxima da antiga Corte, ainda<br />

cheirando a baronesas e marquesas, e aspirando a con<strong>de</strong>s e barões, que<br />

podiam trazer até seus domínios o Imperador, cida<strong>de</strong> a que sua Majesta<strong>de</strong><br />

D. Pedro II costumava vir, para passar temporada na mansão <strong>de</strong> Mariano<br />

Procópio e fazer visitas cordiais a Henrique Guilherme Halfeld, Juiz <strong>de</strong><br />

Fora invejava a capital Ouro Preto, cujos habitantes chegaram a fazer movimento<br />

<strong>de</strong> recusa aos produtos da indústria juiz-forana, incluindo-se o então<br />

prestigioso sabão-do-reino, segundo a informação <strong>de</strong> Paulino <strong>de</strong> Oliveira...<br />

Mas, Belo Horizonte seguia seu <strong>de</strong>stino: <strong>de</strong>senvolvia-se e assumia<br />

a sua condição <strong>de</strong> Capital do Estado, e, necessariamente, <strong>de</strong> representante<br />

Minas Gerais em todas as suas manifestações materiais e espirituais. Os<br />

meios culturais <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora compreen<strong>de</strong>ram a necessida<strong>de</strong> da<br />

mudança da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> para a Capital e aceitaram-na sem manifestação<br />

significativa. E a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> se mudou.<br />

Houve um significativo período <strong>de</strong> marasmo entre os juiz-foranos.<br />

Mas, aos poucos, o espírito juiz-forano começou a <strong>de</strong>spertar. Hoje temos<br />

nossas entida<strong>de</strong>s culturais, que se esforçam por fazer ressurgir aqui<br />

entusiasmo pelas artes e pelas letras. Temos <strong>de</strong> novo uma <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>, temos um Instituto Histórico e Geográfico, temos associações<br />

culturais específicas, como o Instituto Cultural Sto. Tomás <strong>de</strong> Aquino...<br />

Há entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> classe que reservam parte do tempo para coisas da<br />

cultura. A cida<strong>de</strong> espera que a Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral ainda venha a influir<br />

o seu tanto. A cida<strong>de</strong> ainda não sente sua influência...<br />

Quando me mu<strong>de</strong>i para Juiz <strong>de</strong> Fora, em 1932, ainda aqui estavam<br />

Machado Sobrinho, Belmiro Braga, João Massena, José da Paixão (ou J.<br />

Paixão), Gilberto <strong>de</strong> Alencar, Heitor Guimarães e Lindolfo Gomes.<br />

Convivência, tive-a com Lindolfo Gomes e Gilberto <strong>de</strong> Alencar.<br />

Com Lindolfo Gomes, homem generoso e bem-humorado, o<br />

convívio foi quase diário durante os últimos <strong>de</strong>z anos que ele viveu em<br />

Revista Volume LI.p65 15<br />

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16 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Juiz <strong>de</strong> Fora. Foi ele quem me estimulou a publicar meu primeiro livro –<br />

Gonzaga e a Inconfidência <strong>Mineira</strong>, que saiu em 1948 com apresentação<br />

sua.<br />

Com Gilberto <strong>de</strong> Alencar também convivi nos seus últimos anos,<br />

quando ele, já aposentado do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais, foi trabalhar como<br />

redator do Diário Mercantil, do qual eu era, então, redator-secretário. Foi<br />

uma convivência agradável, pois Gilberto era bom conversador e gostava<br />

<strong>de</strong> falar sobre literatura francesa, matéria <strong>de</strong> sua predileção. Um dia, uma<br />

editora <strong>de</strong> Belo Horizonte encomendou-lhe um livro sobre Tira<strong>de</strong>ntes.<br />

Ofereci-lhe os Autos <strong>de</strong> Devassa da Inconfidência <strong>Mineira</strong> e ele <strong>de</strong>les se<br />

serviu para levar a efeito o romance com base naquela dura realida<strong>de</strong>,<br />

temperado com bem dosada ficção.<br />

Conheci <strong>de</strong> perto Belmiro Braga, que era tio <strong>de</strong> Alencar Me<strong>de</strong>iros,<br />

em cujo estabelecimento eu trabalhava e on<strong>de</strong> o poeta comparecia todas<br />

as manhãs e dava notícia <strong>de</strong> mais alguma produção poética. Numa <strong>de</strong>ssas<br />

manhãs anunciou que estava enviando trovas para um concurso aberto no<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro. Dentre as que recitou, guar<strong>de</strong>i esta:<br />

Mulher, quando quer, eu acho<br />

que ninguém a <strong>de</strong>sanima:<br />

é água <strong>de</strong> morro-abaixo<br />

é fogo <strong>de</strong> morro-acima.<br />

E certa ocasião, eu estava na Livraria Oliveira, que ele frequentava,<br />

quando ele anunciou ao livreiro Hermano Beck: “Hermano, agora <strong>de</strong><br />

manhã já fiz quarenta malda<strong>de</strong>s”. Diante da expressão interrogativa do<br />

livreiro, ele explicou: “Fiz quarenta quadrinhas sobre os membros da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>...”<br />

Não conheci <strong>de</strong> perto Heitor Guimarães. Costumava ler seus artigos<br />

na Gazeta Comercial, na qual ele escrevia diariamente e, suponho, da<br />

qual foi o redator-chefe durante alguns anos. Era bom polemista em<br />

matéria política.<br />

Essas figuras e outras <strong>de</strong>ram a Juiz <strong>de</strong> Fora, durante certa época do<br />

século passado, um brilho intelectual que justificou a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong><br />

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O centenário da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> _________________________________________ Almir <strong>de</strong> Oliveira 17<br />

“Atenas <strong>Mineira</strong>”, que Sílvio Romero lhe <strong>de</strong>u para confrontar com a <strong>de</strong><br />

“Manchester <strong>Mineira</strong>” que outrem lhe emprestara em face <strong>de</strong> suas<br />

ativida<strong>de</strong>s industriais. E Ruy Barbosa chamou-lhe “Barcelona <strong>Mineira</strong>”<br />

também por esta segunda razão. Um mau costume, sem dúvida. Como<br />

seu habitante renitente (três vezes saí daqui e três vezes voltei...) prefiro<br />

este nome singular, embora indique ele um magistrado que aqui veio ter<br />

como foragido da própria lei a que ele acabou <strong>de</strong>sservindo e que o<br />

con<strong>de</strong>nara ao <strong>de</strong>gredo para a África. A singularida<strong>de</strong> do nome dá mais<br />

encanto a esta cida<strong>de</strong> tão orgulhosa <strong>de</strong> si mesma, como o fazem todas as<br />

mulheres bonitas e elegantes...<br />

É com muito contentamento, com algum orgulho mesmo, que nos<br />

unimos aos nossos irmãos <strong>de</strong> Belo Horizonte para comemorar o primeiro<br />

centenário da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, juiz-forana que, como muitos<br />

outros naturais daqui, hoje tem a sua se<strong>de</strong> na formosa Capital mineira.<br />

Estes sentimentos se explicam pela compreensão, que temos, <strong>de</strong> que a<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> foi criada em Juiz <strong>de</strong> Fora num momento em que esta cida<strong>de</strong><br />

exercia seguro papel <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança em Minas Gerais, tanto no terreno da<br />

economia quanto no da educação e da cultura, o que provocava certo e<br />

compreensível ciúme entre os nossos patrícios ouropretanos, pois, na<br />

realida<strong>de</strong>, a venerável Vila Rica <strong>de</strong> Nossa Senhora do Pilar do Ouro<br />

Preto era, <strong>de</strong> jure, a capital das Minas Gerais, mas, <strong>de</strong> facto, Juiz <strong>de</strong><br />

Fora era a cida<strong>de</strong>-polo já nos tempos do Brasil Monárquico. Mais<br />

próxima do Rio <strong>de</strong> Janeiro, mais acessível ao então principal porto<br />

marítimo brasileiro, situada numa região <strong>de</strong> intensa produção<br />

agropecuária e forte exportadora <strong>de</strong> café, Juiz <strong>de</strong> Fora atraía mais<br />

capitais e assim acabou por industrializar-se vigorosamente a partir<br />

dos finais do século XIX.<br />

Logo veio a ser um importante centro <strong>de</strong> educação e instrução, com<br />

estabelecimentos <strong>de</strong> ensino da melhor qualida<strong>de</strong>, e isto resultou no<br />

crescimento rápido <strong>de</strong> sua população.<br />

A instalação da primeira usina hidrelétrica da América do Sul aqui,<br />

com uma gran<strong>de</strong> fábrica <strong>de</strong> tecidos, propiciou e estimulou a multiplicação<br />

<strong>de</strong>sses estabelecimentos e provocou forte imigração <strong>de</strong> alemães e<br />

italianos, que tomaram a cida<strong>de</strong> mais populosa e mais rica.<br />

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18 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Foi nessa cida<strong>de</strong>, assim privilegiada, <strong>de</strong> estudantes, operários, e,<br />

mais adiante, também <strong>de</strong> soldados, que se fundou, em 1909, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Aconteceu, porém, o inevitável, porque natural: a transferência para<br />

Belo Horizonte. A jovem Capital, uma das poucas cida<strong>de</strong>s planejadas do<br />

mundo, florescia, atraía intelectuais <strong>de</strong> diferentes lugares, criara ambiente<br />

propício a uma respeitável ativida<strong>de</strong> intelectual, que precisava <strong>de</strong> uma<br />

entida<strong>de</strong> que os congregasse para as naturais tertúlias. Uma <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. Já<br />

havia uma no Estado, com a <strong>de</strong>nominação a<strong>de</strong>quada. E veio a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

transferir-se a <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora. Os antigos poetas e prosadores,<br />

fundadores e mantenedores da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> juiz-forana já não viviam. A<br />

ativida<strong>de</strong> intelectual da terra <strong>de</strong> Belmiro Braga como que adormecera. E<br />

a transferência da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> para a Capital se fez sem nenhuma<br />

resistência.<br />

Hoje comemoramos, com os belorizontinos, o centenário da<br />

fundação da Casa <strong>de</strong> Machado Sobrinho, que coinci<strong>de</strong> com a do gran<strong>de</strong><br />

educador e poeta que ele foi. E, por uma elegante e simpática <strong>de</strong>cisão do<br />

Presi<strong>de</strong>nte Murilo Badaró, principiamos as comemorações por Juiz <strong>de</strong><br />

Fora.<br />

Por isto, estamos aqui. Muito obrigado! E, à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>, os parabéns <strong>de</strong> todos os juiz-foranos.<br />

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MANIFESTAÇÃO<br />

EXTRAORDINÁRIA DO<br />

MISTÉRIO MINEIRO*<br />

Luiz Paulo Horta**<br />

É uma honra e uma alegria estar aqui representando a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> neste início das comemorações do centenário da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Quando da visita do Dr. Murilo Badaró,<br />

dias atrás, à ABL, foram lembrados os i<strong>de</strong>ais que nos unem. Mas, além<br />

dos i<strong>de</strong>ais – a <strong>de</strong>fesa intransigente da língua portuguesa e da cultura<br />

brasileira – também foram mencionados os gran<strong>de</strong>s nomes que<br />

aproximam essas duas aca<strong>de</strong>mias. Temos, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, cinco<br />

acadêmicos mineiros: José Murilo <strong>de</strong> Carvalho, Affonso Arinos <strong>de</strong> Mello<br />

Franco, Sábato Magaldi, Antonio Olinto e Ivo Pitanguy. Eu me permitiria<br />

lembrar os nomes <strong>de</strong> Cyro dos Anjos e Otto Lara Resen<strong>de</strong>, que já não<br />

estão entre nós, <strong>de</strong> cuja amiza<strong>de</strong> eu me orgulhava, e que representavam o<br />

espírito mineiro em toda a sua verve e sofisticação.<br />

Minas e Rio <strong>de</strong> Janeiro têm uma longa história <strong>de</strong> intercâmbios e <strong>de</strong><br />

admirações mútuas. E nesta cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, que me é tão cara,<br />

teve início a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, como expressão <strong>de</strong> uma<br />

cultura que se afirmava tanto em termos práticos como intelectuais.<br />

* Alocução feita na 1ª solenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comemoração do centenário da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>, na Câmara Municipal <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, no dia 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2009.<br />

** Acadêmico da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, representante do presi<strong>de</strong>nte Cícero Sandroni.<br />

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20 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Minas Gerais já se beneficiava, então, <strong>de</strong> tradições seculares – na<br />

vida política, na arquitetura, na música, na literatura. E Juiz <strong>de</strong> Fora<br />

aparecia como um centro extraordinariamente dinâmico, on<strong>de</strong> as<br />

ativida<strong>de</strong>s culturais andavam lado a lado como o mais sadio<br />

empreen<strong>de</strong>dorismo. Pedro Nava contou histórias <strong>de</strong>sses tempos, que eu<br />

leio com tanto mais prazer quanto a minha família, Parreiras Horta,<br />

aparece mencionada entre muitas outras. Minas já era a gran<strong>de</strong> escola <strong>de</strong><br />

política que produziria vários presi<strong>de</strong>ntes da República e figuras notáveis<br />

como Milton Campos e Tancredo Neves.<br />

Muitos mineiros, neste e em outros períodos, vieram para o Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, em busca do mar do que era então a capital da República.<br />

Mas o fascínio <strong>de</strong> Minas também se exerceu sobre o Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Ele está <strong>de</strong>scrito numa obra do mais alto calibre: Voz <strong>de</strong> Minas,<br />

<strong>de</strong> Tristão <strong>de</strong> Ataí<strong>de</strong>, pseudônimo <strong>de</strong> Alceu Amoroso Lima. Ali está a<br />

meditação sobre o que Minas Gerais representa para a nossa economia<br />

espiritual e artística – um lugar <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> discrição, <strong>de</strong><br />

persistência, <strong>de</strong> educação humanística; uma espécie <strong>de</strong> “centro”<br />

geográfico e cultural do Brasil.<br />

Alceu liga as montanhas a uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>; mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

Alceu, que não era mineiro, veio Guimarães Rosa, essa manifestação<br />

extraordinária do mistério mineiro; e com ele apren<strong>de</strong>mos a pensar no<br />

Gran<strong>de</strong> Sertão, nas vastidões habitadas por seres quase mitológicos, on<strong>de</strong><br />

Deus e o Diabo se <strong>de</strong>frontam em incontáveis prélios – simbolismo <strong>de</strong>ssa<br />

nossa vida <strong>de</strong> todos os dias, em que tanto po<strong>de</strong>mos sofrer a atração do<br />

bem como a do mal. E é <strong>de</strong>ssa Minas eterna que sentimos a contínua<br />

necessida<strong>de</strong>, a atração e o impacto.<br />

É a esse diálogo que nós, da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>,<br />

gostaríamos <strong>de</strong> dar continuida<strong>de</strong>, numa conversa permanente com os<br />

nossos confra<strong>de</strong>s mineiros. Estamos, hoje, na era da hipercomunicação,<br />

da velocida<strong>de</strong> e da superficialida<strong>de</strong> dos contatos. Mas às vezes é preciso<br />

remar contra a maré, preservar alguns valores da corrosão do tempo –<br />

valores como o hábito da reflexão, a própria solidão, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

estar sozinho, <strong>de</strong> passar um dia inteiro (por difícil que isso pareça) sem<br />

recorrer ao telefone. Ou então, a capacida<strong>de</strong> do diálogo verda<strong>de</strong>iro, que<br />

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Manifestação extraordinária do mistério mineiro ______________________________________ Luiz Paulo Horta 21<br />

se trava com pessoas vivas, e não com call centers ou mensagens<br />

eletrônicas.<br />

É isso que nós sempre esperamos <strong>de</strong> Minas – <strong>de</strong>sejando que isto se<br />

concretize neste ano tão <strong>de</strong>safiador que está à nossa frente. São os meus<br />

votos, ao mesmo tempo em que <strong>de</strong>sejo a meus confra<strong>de</strong>s e amigos<br />

sucesso em todos os seus empreendimentos.<br />

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EM MINAS AS L<strong>ETRAS</strong><br />

SEMPRE SERVIRAM À VI<strong>DA</strong><br />

Itamar Franco<br />

Na ocasião do início das comemorações do centenário da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, julgamos oportuno relembrar o<br />

discurso proferido pelo Presi<strong>de</strong>nte Itamar Franco no dia 30<br />

<strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1994, conceitos por ele repetidos no pronunciamento<br />

que fez em Juiz <strong>de</strong> Fora no dia 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2009.<br />

Sinto, nesta Casa, o espírito e as razões <strong>de</strong> Minas. Ouço, entre estas<br />

pare<strong>de</strong>s, a voz <strong>de</strong> Gonzaga, cantando a beleza <strong>de</strong> Marília e fustigando o<br />

Fanfarrão Minésio.<br />

Em Minas as letras sempre serviram ao amor e sempre serviram à<br />

Liberda<strong>de</strong>, porque sempre serviram à Vida.<br />

Recordo-me, senhor presi<strong>de</strong>nte, senhores acadêmicos, <strong>de</strong> ter Estado<br />

entre os senhores, para assistir à posse <strong>de</strong> Juscelino Kubitschek. Com a<br />

festa daquela noite os mineiros lhe disseram que aqui a glória sempre<br />

seria sua, e que nada substitui o afeto do lar, da família. Minas era a sua<br />

família e a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, naquele momento, senhor presi<strong>de</strong>nte, o oratório da<br />

casa.<br />

Eu lhes lembrava Gonzaga e o compromisso das letras mineiras<br />

com a impetuosa razão da liberda<strong>de</strong>. Há motivo para isso. Ninguém<br />

exerce com tal plenitu<strong>de</strong> a liberda<strong>de</strong> como a exercem os criadores. E a<br />

literatura é a mais autônoma das formas da arte.<br />

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24 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

A Inconfidência foi uma rebelião <strong>de</strong> todos. De soldados e<br />

mineradores, <strong>de</strong> sacerdotes e escravos. Mas foi sobretudo a rebelião <strong>de</strong><br />

homens que, sabendo pensar, sabiam querer, sabiam ousar, sabiam<br />

sonhar e, com Tira<strong>de</strong>ntes, souberam morrer. Os versos <strong>de</strong> Gonzaga e o<br />

rigoroso raciocínio do Cônego Toledo e do Padre Rolim foram os lemes<br />

da conspiração que, ao contrário <strong>de</strong> seu frustrar na traição e na repressão<br />

da Coroa, se fez vitoriosa ao legar a Minas o império da liberda<strong>de</strong> como a<br />

inarredável razão <strong>de</strong> ser e permanecer.<br />

Senhores acadêmicos,<br />

Sinto-me honrado em inaugurar esta nova <strong>de</strong>pendência da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Ela nasceu em minha cida<strong>de</strong> e emigrou para<br />

Belo Horizonte, quando se sentiu forte para a mudança. Juiz <strong>de</strong> Fora,<br />

modéstia à parte, não era apenas o gran<strong>de</strong> centro manufatureiro do Brasil,<br />

a Manchester <strong>Mineira</strong>, como então lhe chamavam, mas também o<br />

fervilhante centro intelectual, em que circulavam os parnasianos Honório<br />

Armond e Belmiro Braga, e, <strong>de</strong>pois, os escritores <strong>de</strong> vanguarda Murilo<br />

Men<strong>de</strong>s e Pedro Nava.<br />

Orgulhamo-nos, em Juiz <strong>de</strong> Fora, <strong>de</strong> ter sido o berço <strong>de</strong>sta<br />

instituição, e <strong>de</strong> a haver entregue aos cuidados <strong>de</strong> Belo Horizonte.<br />

A capital <strong>de</strong> um Estado <strong>de</strong>ve ser mais do que a se<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r<br />

político e administrativo. Deve reunir, também, em assembleias<br />

permanentes, o melhor <strong>de</strong> sua inteligência e <strong>de</strong> sua arte.<br />

Sou grato ao velho amigo Vivaldi Moreira por me convocar a este<br />

momento <strong>de</strong> alegria. Sei que este é um gran<strong>de</strong> dia para a sua vida,<br />

generosamente <strong>de</strong>dicada aos valores <strong>de</strong> Minas. Há várias décadas ele<br />

vem sendo o mais forte ânimo <strong>de</strong>ste grêmio.<br />

Coube-lhe li<strong>de</strong>rar o esforço <strong>de</strong> todos os senhores para dar a soli<strong>de</strong>z<br />

da pedra à dignida<strong>de</strong> da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. Ele vem sendo incansável militante<br />

da inteligência <strong>de</strong> Minas e seu nome estará, para todo o futuro, guardado<br />

na argamassa e no mármore imperecível <strong>de</strong>sta Casa, nesta rua da Bahia,<br />

que é a rua Direita da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Minas.<br />

Dentro <strong>de</strong> alguns meses estarei <strong>de</strong>ixando a Presidência da<br />

República e me sobrará mais tempo para o convívio com os meus<br />

conterrâneos. Espero voltar então a esta Casa, sem a pressa que as minhas<br />

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Em Minas as letras sempre serviram à vida ____________________________________________ Itamar Franco 25<br />

obrigações exigem. A cada dia mais me convenço <strong>de</strong> que o Brasil <strong>de</strong> suas<br />

águas e <strong>de</strong> suas pedras. Temos vivido, na História do País, alguns<br />

momentos em que Minas se reclui entre as montanhas, a fim <strong>de</strong><br />

aconselhar-se com sua po<strong>de</strong>rosa consciência cívica e, no passo seguinte,<br />

melhor servir ao Brasil.<br />

Porque Minas, a nossa patriazinha, conforme o gran<strong>de</strong> Guimarães<br />

Rosa, não tem a urgência dos insensatos nem a preguiça dos acomodados.<br />

Tenho procurado ser fiel ao espírito <strong>de</strong> Minas na Chefia do Estado<br />

Nacional. Na obediência aos nossos princípios e valores, guar<strong>de</strong>i os bens<br />

da República, tratei <strong>de</strong> agir com justiça, preservei a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da<br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>mocrática.<br />

Muito obrigado, mais uma vez, por me terem chamado a este<br />

encontro <strong>de</strong> mineiros.<br />

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CENTENÁRIO DE<br />

FUN<strong>DA</strong>ÇÃO <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong><br />

M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Leila Maria Fonseca Barbosa<br />

& Marisa Timponi Pereira Rodrigues*<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, do grego Aka<strong>de</strong>mía, foi, originariamente, o nome dado à<br />

escola criada por Platão, em 387 a.C., próxima a Atenas, situada nos<br />

jardins consagrados ao ateniense Aca<strong>de</strong>mos – herói ático da guerra <strong>de</strong><br />

Troia (século XII a.C.). Embora <strong>de</strong>stinada oficialmente ao culto das<br />

musas, teve intensa ativida<strong>de</strong> filosófica. Nessa escola, professava-se um<br />

ensino informal através <strong>de</strong> lições e diálogos entre os mestres e os<br />

discípulos. O filósofo pretendia reunir contribuições <strong>de</strong> diversos campos<br />

do saber como a filosofia, a matemática, a música, a astronomia e a<br />

legislação.<br />

As mais conhecidas aca<strong>de</strong>mias gregas foram a Antiga <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>,<br />

fundada por Platão; a chamada <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> do Meio, fundada pelo filósofo<br />

platônico grego Arcesilaos, e a Nova <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, fundada pelo filósofo<br />

cético grego Carnea<strong>de</strong>s. Essa tradição que <strong>de</strong>u origem a todas as aca<strong>de</strong>mias e<br />

universida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ensino superior do Oci<strong>de</strong>nte foi interrompida com o seu<br />

fechamento pelo imperador romano Justiniano, em 529 d.C.<br />

Nos séculos XIII e XIV, diversas aca<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> poetas e artistas<br />

estabeleceram-se na França e na Itália. A mais famosa da Renascença<br />

italiana foi a Acca<strong>de</strong>mia Platonica, fundada em Florença por volta <strong>de</strong><br />

1440.<br />

* Historiadora e Professora Universitária. Resi<strong>de</strong> em Juiz <strong>de</strong> Fora.<br />

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A <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Francesa – que serviu <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

Brasileira – foi fundada, em 1635, por iniciativa do Car<strong>de</strong>al Richelieu,<br />

que obteve a autorização para seu funcionamento do rei Luís XIII, com a<br />

principal finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tornar a língua francesa “pura, eloqüente, e capaz<br />

<strong>de</strong> tratar das artes e ciências.” É constituída por quarenta ca<strong>de</strong>iras, cujos<br />

ocupantes perpétuos são eleitos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> candidatarem-se a uma vaga,<br />

apresentando suas qualificações. O novo acadêmico toma posse,<br />

discursando em agra<strong>de</strong>cimento à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> e realizando o elogio <strong>de</strong> seu<br />

antecessor.<br />

Na leitura do verbete <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, do Dicionário Aurélio, tem-se um<br />

primeiro contato com a origem do termo e seus múltiplos sentidos<br />

contemporâneos. Mas o que interessa aqui é que, no Brasil, quando se<br />

refere simplesmente a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, está-se reportando à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Essa conquista na língua cotidiana, transformando a<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> por excelência, <strong>de</strong>ve-se à sua história<br />

que, ao longo dos mais <strong>de</strong> cem anos <strong>de</strong> existência, conseguiu reunir, entre<br />

os membros, autores que contribuíram para a formação da literatura<br />

brasileira, historiadores e críticos literários, cientistas sociais, jornalistas,<br />

políticos e cientistas, cujas obras e vida profissional constituem uma<br />

referência em suas respectivas áreas. A <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />

serviu <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo às diversas aca<strong>de</strong>mias regionais.<br />

Uma <strong>de</strong>las, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 2009 comemora seu<br />

centenário <strong>de</strong> fundação. Para tal, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Juiz-Forana <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, por<br />

intermédio <strong>de</strong> duas <strong>de</strong> suas integrantes, elaborou um livro-registro, a<br />

partir do álbum <strong>de</strong> recortes <strong>de</strong> jornais, coletados pelo i<strong>de</strong>alizador e<br />

primeiro secretário da entida<strong>de</strong>, o educador e escritor Machado Sobrinho.<br />

O trabalho nasceu no âmbito da amiza<strong>de</strong> e da família, por ter<br />

chegado às mãos das pesquisadoras e acadêmicas Leila Barbosa e Marisa<br />

Timponi o acervo do primeiro secretário geral da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>, professor Machado Sobrinho. Estava guardado até então por seu<br />

filho, Luiz Gonzaga Machado Sobrinho, e, posteriormente, por sua neta,<br />

Heloísa Machado Sobrinho, que o recebeu como legado cultural e<br />

familiar, <strong>de</strong>dicando-lhe cuidados especiais <strong>de</strong> preservação. Com seu<br />

falecimento, o acervo passou às mãos <strong>de</strong> outro neto, José Carlos <strong>de</strong><br />

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Centenário <strong>de</strong> fundação da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> _______ Leila M. F. Barbosa & Marisa T. P. Rodrigues 29<br />

Castro Barbosa, marido da pesquisadora Leila Barbosa, o que permitiu a<br />

proposta do projeto <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> um livro.<br />

No meio <strong>de</strong> manuscritos <strong>de</strong> livros e poemas, encontrava-se um<br />

álbum, contendo recortes dos jornais que datam da época que antece<strong>de</strong>u a<br />

criação da AML, sua permanência em Juiz <strong>de</strong> Fora até a transferência<br />

para Belo Horizonte.<br />

Aproveitando, portanto, a data comemorativa do centenário da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, as pesquisadoras – Leila Barbosa e Marisa<br />

Timponi – verificaram a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trazê-lo a público, e tiveram<br />

aprovado pelo Fundo <strong>de</strong> Cultura do Estado (FEC) da Secretaria <strong>de</strong> Estado<br />

da Cultura (SEC), com o apoio cultural do Banco <strong>de</strong> Desenvolvimento <strong>de</strong><br />

Minas Gerais (BDMG), o projeto <strong>de</strong> pesquisa, cujo produto resultará no<br />

livro marco do centenário, uma vez que se acredita ser o primeiro<br />

documento hoje existente sobre a inauguração da aca<strong>de</strong>mia. Esta<br />

pesquisa dá continuida<strong>de</strong> ao trabalho <strong>de</strong> resgate e registro das datas<br />

comemorativas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s acontecimentos artístico-culturais <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong><br />

Fora, como o livro organizado e lançado pelas autoras, em 2006,<br />

comemorando o centenário do monumento do Cristo Re<strong>de</strong>ntor.<br />

O livro <strong>de</strong> caráter documental conterá os recortes dos jornais da<br />

época, anotados por Machado Sobrinho, precedidos <strong>de</strong> um texto crítico,<br />

biobibliográfico elaborado pelas organizadoras.<br />

O objetivo geral é trazer ao público a história da fundação da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> em seu período inicial e <strong>de</strong> sua permanência<br />

em Juiz <strong>de</strong> Fora.<br />

Os específicos são recuperar a história dos escritores que<br />

compuseram o primeiro quadro dos acadêmicos, membros perpétuos da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, sua biografia e sua importância no cenário das letras; analisar<br />

as obras mais significativas dos acadêmicos para a contextualização<br />

histórico-literária da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> e elaborar o texto<br />

crítico para introdução do livro.<br />

Os intelectuais <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora foram os pioneiros na idéia da<br />

fundação <strong>de</strong> uma aca<strong>de</strong>mia mineira <strong>de</strong> letras, pois, já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final do<br />

século XIX, há notícias em jornais da cida<strong>de</strong> sobre reuniões e fundação<br />

<strong>de</strong> uma confraria composta por literatos e jornalistas. Muitos <strong>de</strong>les,<br />

Revista Volume LI.p65 29<br />

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30 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

posteriormente, junto ao principal i<strong>de</strong>alizador do projeto, Machado<br />

Sobrinho, concretizaram o sonho, fundando, no dia 25/12/1909, a<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, cuja solenida<strong>de</strong> ocorreu na Câmara<br />

Municipal da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora.<br />

No primeiro momento, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> foi composta por 12 membros<br />

e, logo após, foram eleitos mais 18 para completar o número <strong>de</strong> 30<br />

ca<strong>de</strong>iras. Foram convidados poetas, escritores e jornalistas <strong>de</strong> todo o<br />

Estado. Em 13/5/1910, no Teatro Juiz <strong>de</strong> Fora, na solenida<strong>de</strong> festiva <strong>de</strong><br />

inauguração, acrescentaram-se mais <strong>de</strong>z nomes, completando os 40,<br />

número oficial da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Francesa e da Brasileira.<br />

Em 24/1/1915, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> mudou-se para a<br />

capital do estado, Belo Horizonte.<br />

No trecho do relatório <strong>de</strong> final <strong>de</strong> um ano da existência da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, o secretário-geral reconhece que a proposta<br />

inicial <strong>de</strong> “pelas letras trabalhar para Pátria” foi cumprida brilhante e<br />

eficazmente, lema que, hoje, cem anos após a concretização do sonho<br />

mineiro, transformou-se, muito apropriadamente, em “Scribendi nullus<br />

finis”:<br />

“Penso, nobres confra<strong>de</strong>s, que vos apresentei em linhas gerais<br />

as ocorrências mais importantes passadas durante o primeiro<br />

ano <strong>de</strong> nossa vida acadêmica.<br />

A <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, lícito me seja salientar esta<br />

<strong>de</strong>claração, é um instituto literário que pertence ao Estado <strong>de</strong><br />

Minas, ao glorioso Povo Mineiro. Deste, temos nós recebido o<br />

mais carinhoso apoio que po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>sejar no início <strong>de</strong><br />

nossa vida.<br />

– Per literas pro patria laborare – é a nossa divisa, inscrita em<br />

torno do nosso distintivo solene que tem ao centro, perfulgente e<br />

radioso, o belo Cruzeiro do Sul.<br />

Minas é uma terra gloriosa.<br />

Minas é uma terra progressista.<br />

Minas é um gran<strong>de</strong> fator <strong>de</strong> evolução literária do nosso país.<br />

Minas traçou o plano das revoluções sociais para a conquista<br />

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Centenário <strong>de</strong> fundação da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> _______ Leila M. F. Barbosa & Marisa T. P. Rodrigues 31<br />

das nossas liberda<strong>de</strong>s políticas. (...)<br />

E nós, acadêmicos e patriotas em Minas, só <strong>de</strong>vemos nutrir um<br />

i<strong>de</strong>al:<br />

– Tudo pela Pátria!<br />

– Tudo por Minas!<br />

– Tudo por esta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, inspirados em nossa fórmula<br />

querida: – Per literas pro patria laborare.<br />

Tenho concluído”.<br />

Sala das Sessões da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 25 <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1910.<br />

MACHADO SOBRINHO<br />

(Secretário geral)<br />

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32 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 32<br />

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AIRES: UMA RICA HISTÓRIA DE<br />

SABER E DE CULTURA*<br />

José Bento Teixeira <strong>de</strong> Salles**<br />

Quis o <strong>de</strong>stino, por jubilosa coincidência, que o ano <strong>de</strong> 2009<br />

assinalasse o transcurso do centenário da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> e o<br />

do saudoso acadêmico Prof. Aires da Mata Machado Filho.<br />

Justificam-se plenamente os cuidados postos pelo presi<strong>de</strong>nte<br />

Murilo Badaró no sentido <strong>de</strong> assegurar todo brilhantismo às comemorações<br />

da nossa instituição.<br />

O mesmo cuidado – se me permite o ilustre presi<strong>de</strong>nte – <strong>de</strong>veria<br />

indicar voz mais autorizada <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>ste mo<strong>de</strong>sto orador, para traçar o<br />

perfil do ilustre mestre diamantinense. Não pu<strong>de</strong> recusar, porém, a<br />

incumbência <strong>de</strong> prestar, também eu, esta homenagem <strong>de</strong> respeito e<br />

admiração ao velho professor e acadêmico, não bastassem os laços <strong>de</strong><br />

fraternal amiza<strong>de</strong> que me pren<strong>de</strong>m à tradicional família dos Mata<br />

Machado.<br />

Nos seus integrantes observa-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, um traço <strong>de</strong> fino<br />

humor, com que muitas vezes criticam homens e estruturas, outras tantas<br />

amenizam as dores e <strong>de</strong>cepções da vida. Neste sentido, na manipulação<br />

do humor, cada Mata Machado é tão rico, quanto nos atributos <strong>de</strong><br />

honra<strong>de</strong>z e inteligência.<br />

* Palestra pronunciada na sessão solene, do dia 5 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2009, em comemoração do<br />

centenário <strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> Aires da Mata Machado Filho.<br />

** Jornalista e escritor. Ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 28 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

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34 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Ilustro a observação com pitoresca história, envolvendo José da<br />

Mata Machado e um seu amigo diamantinense, pinguço <strong>de</strong> marca maior –<br />

não fosse ele diamantinense. E <strong>de</strong> tanto beber, o bom homem tornou-se<br />

inoportuno e inconveniente.<br />

Certo dia, em frente à Casa Guanabara, José da Mata Machado viu<br />

aproximar-se o pinguço, já claudicando das pernas. O Mata Machado não<br />

teve dúvida: entrou na Guanabara e ficou na vitrine, imóvel, como se<br />

fosse um manequim. O homem parou, olhou, e seguiu em frente,<br />

tartamu<strong>de</strong>ando: “Puxa vida! Como aquele homem parece com o Zezé<br />

Mata Machado”.<br />

Dirão os senhores: O que o Aires tem com isso?<br />

A ele, pois. Ou melhor, antes <strong>de</strong>le, hão <strong>de</strong> me permitir, para<br />

fundamentar estas consi<strong>de</strong>rações, que projeta, na ancestralida<strong>de</strong> do<br />

homenageado <strong>de</strong> hoje, a figura emblemática do Conselheiro Mata<br />

Machado, cuja presença na História <strong>de</strong> Minas e do País ainda não recebeu o<br />

realce que merece sua trajetória política. Suas qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> caráter e<br />

in<strong>de</strong>pendência vão encontrar justa projeção na figura do mestre Aires.<br />

Recordo, com satisfação e sauda<strong>de</strong>, a viagem feita a Diamantina,<br />

há cerca <strong>de</strong> meio século, com o velho Aires, pai do ilustre mestre e<br />

acadêmico. Viagem alegre, saudável, inesquecível, o velho Aires <strong>de</strong><br />

boina preta, <strong>de</strong> espírito mais jovem do que o jovem que o acompanhava.<br />

Pretendo que fale por mim seu filho, o Prof. Aires, no transcurso do<br />

centenário <strong>de</strong> nascimento do pai: “Apren<strong>de</strong>mos com ele a religião, o<br />

amor ao trabalho, a dignida<strong>de</strong> pessoal, a noção <strong>de</strong> cumprimento dos<br />

<strong>de</strong>veres, o amor à liberda<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>sapego do po<strong>de</strong>r, a <strong>de</strong>voção afetuosa à<br />

suave companheira que Deus lhe proporcionou...”<br />

Fiel her<strong>de</strong>iro dos atributos pessoais do pai, Mestre Aires encontrou<br />

em Solange, sua esposa, a “suave companheira que Deus lhe proporcionou.”<br />

Esposa e mãe, ela se <strong>de</strong>sdobrou em atenções, carinho e amiza<strong>de</strong>,<br />

tornando-se secretaria e “ledora” do Aires, para suprir as dificulda<strong>de</strong>s<br />

visuais do marido.<br />

Não se preten<strong>de</strong> traçar aqui um estudo restritamente biográfico do<br />

Prof. Aires da Mata Machado Filho, mas certo pormenor <strong>de</strong> sua vida<br />

justifica o registro que ora enfatizo: – sua <strong>de</strong>ficiência visual.<br />

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Aires: uma rica história <strong>de</strong> saber e <strong>de</strong> cultura _______________________________ José Bento Teixeira <strong>de</strong> Salles 35<br />

Foi ela – a <strong>de</strong>ficiência visual – que fortaleceu, no mestre diamantinense,<br />

os atributos <strong>de</strong> sólida cultura que tão nitidamente assinalaram a<br />

sua vitoriosa carreira <strong>de</strong> escritor e mestre.<br />

Amenizemos, pois, as lembranças <strong>de</strong> sofrimento e tristeza, com<br />

subsídios alentadores, a começar do próprio senso <strong>de</strong> humor que<br />

constituía um verda<strong>de</strong>iro escudo, manipulado pelo inesquecível<br />

acadêmico com sábia mestria.<br />

Assim é que ele mesmo criou a história <strong>de</strong> que certa vez estava no<br />

abrigo <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>s a espera do “Santo Antônio” que o levaria para casa.<br />

Ao perceber a chegada do bon<strong>de</strong> e não conseguindo ler o nome da linha,<br />

solicitou a um homem que estava ao seu lado:<br />

– O senhor podia me informar que bon<strong>de</strong> é esse?<br />

– Infelizmente, não, pois eu também sou analfabeto – respon<strong>de</strong>ulhe<br />

o homem.<br />

Um outro episódio – este, <strong>de</strong> profundo conteúdo poético – me foi<br />

narrado pelo seu irmão Fausto. Estando ambos no Rio <strong>de</strong> Janeiro, a<br />

passeio, pediu-lhe o Aires que o levasse a um velho amigo, cujo en<strong>de</strong>reço<br />

foi entregue ao Fausto. E assim foram os dois, o Aires conhecendo o Rio<br />

melhor do que o seu fraterno guia.<br />

Lá pelas tantas, o Fausto se per<strong>de</strong> e confessa-lhe o engano.<br />

Ele respon<strong>de</strong>, com tranquilida<strong>de</strong>: “Eu percebi que você errou o<br />

caminho <strong>de</strong>pois daquela avenida. Ali então você <strong>de</strong>veria ter entrado na<br />

primeira rua.”<br />

Pasmado, indagou-lhe o irmão:<br />

– Como você percebeu que nós atravessamos uma avenida?<br />

– Pelo vento, Fausto. Pela intensida<strong>de</strong> maior da brisa que só as<br />

avenidas canalizam.<br />

Como é sublime ter sensibilida<strong>de</strong> para ouvir a acariciante voz da<br />

brisa, a gran<strong>de</strong> voz silente da natureza. Assim têm os senhores a noção<br />

exata <strong>de</strong> como essa mesma natureza supre a <strong>de</strong>ficiência <strong>de</strong> um sentido<br />

com o aprimoramento dos <strong>de</strong>mais.<br />

Para tanto, teria certamente contribuído, o curso por ele feito no<br />

Instituto Benjamin Constant, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, que sedimentou o lastro<br />

cultural que a vida lhe foi oferecendo, no correr dos anos.<br />

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36 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Concluídos os estudos, que correspondiam ao curso secundário, eilo<br />

<strong>de</strong> volta a Minas, ainda na puberda<strong>de</strong>.<br />

Sua apostolar entrega ao exercício intelectual foi, toda ela, uma rica<br />

história <strong>de</strong> estudo e <strong>de</strong> cultura. Nascido em 1909, publica seu primeiro<br />

livro, Educação dos cegos no Brasil, no início da década <strong>de</strong> 30, pela<br />

editora Os amigos do Livro.<br />

Também nesta época sai a edição da 1ª série do livro Escrever<br />

Certo, prenunciando o filólogo emérito que os anos consagrariam.<br />

Em 1936, Aires faz na Rádio Guarani um programa baseado no<br />

“Escrever Certo”, do Estado <strong>de</strong> Minas, transferindo-se um ano <strong>de</strong>pois<br />

para a recém-inaugurada Rádio Inconfidência, on<strong>de</strong> manteve um<br />

programa com o poeta e amigo Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho.<br />

Deve ser observado que as emissoras <strong>de</strong> rádio <strong>de</strong>sempenhavam<br />

então importante papel no sentido da divulgação cultural, justificando-se<br />

assim, o programa a cargo dos escritores mineiros.<br />

O já mencionado senso <strong>de</strong> humor aureolou uma formação<br />

intelectual fundamentada na inteligência brilhante e na obstinada<br />

<strong>de</strong>dicação ao estudo e ao saber. Estes méritos muito contribuíram para o<br />

seu ingresso na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, eleito que foi em outubro<br />

<strong>de</strong> 1938, com apenas 29 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.<br />

As letras, em Minas, passavam por um período <strong>de</strong> exuberante<br />

vitalida<strong>de</strong>, refletida, certamente, na composição <strong>de</strong> nossa centenária<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. Aires nela ingressou sem as naturais preocupações <strong>de</strong> envai<strong>de</strong>cimento<br />

pessoal, como era <strong>de</strong> se presumir pela ida<strong>de</strong> do postulante.<br />

Pelo contrário até. As Efeméri<strong>de</strong>s e documentos da época atestam,<br />

com realce, a presença do biografado em diversas manifestações <strong>de</strong> sua<br />

versátil formação cultural. Em três sucessivas diretorias – <strong>de</strong> 1951 a 1964<br />

– ocupou a vice-presidência e no biênio 1981-1982, integrou a Comissão<br />

da Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Merece também ser lembrada sua participação no Curso <strong>de</strong><br />

Literatura Brasileira, que a instituição promoveu durante vários anos.<br />

Sua passagem pela Casa <strong>de</strong> Alphonsus não foi apenas o exercício<br />

fugaz da colaboração consciente e proveitosa, mas a conquista plena do<br />

êxito que consagra e eterniza.<br />

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Aires: uma rica história <strong>de</strong> saber e <strong>de</strong> cultura _______________________________ José Bento Teixeira <strong>de</strong> Salles 37<br />

Eduardo Frieiro, seu fraternal amigo, em artigo publicado no<br />

ca<strong>de</strong>rno especial do “Suplemento Literário”, registra na edição <strong>de</strong> 1969<br />

que “há 40 anos saiu seu primeiro artigo assinado no Minas Gerais.”<br />

No mesmo Suplemento há um poema <strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong> que merece ser reproduzido, ainda que parcialmente:<br />

O Aires dos ares bons<br />

Aires da Mata<br />

da linguagem<br />

e do machado que não mata<br />

mas distrata e aparelha<br />

afina palavra<br />

diamantina.<br />

A partir <strong>de</strong> então, foi uma sucessiva e intensa produção literária,<br />

que ia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> lições <strong>de</strong> Português, até os ensaios e críticas, bem como as<br />

pesquisas históricas, numa diversificação <strong>de</strong> temas que tão bem<br />

caracterizava o seu múltiplo talento.<br />

Em uma simples frase, o acadêmico e poeta Alphonsus <strong>de</strong><br />

Guimaraens Filho sintetizou o retrato fiel do escritor e do homem, ao<br />

examinar, do Aires, “todos os ângulos <strong>de</strong>sse espírito rico e fecundo, ao<br />

mesmo tempo que singelo e <strong>de</strong>spretensioso.”<br />

Não bastasse a contribuição preciosa ao magistério secundário e<br />

especificamente aos temas gramaticais e da língua pátria, e já seu<br />

nome estaria inscrito na história do ensino em Minas com sua participação<br />

como professor e um dos fundadores da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia,<br />

assim como integrante <strong>de</strong> um grupo que reestruturou o Instituto São<br />

Rafael.<br />

Primeiro professor <strong>de</strong> Filologia Românica da referida Faculda<strong>de</strong>,<br />

levou para lá os ensinamentos que um paciente trabalho <strong>de</strong> pesquisa, o<br />

cre<strong>de</strong>nciavam<br />

Além <strong>de</strong> profundo conhecedor dos vários meandros da língua<br />

pátria, Aires tinha uma faceta a fortalecer seu competente saber: as<br />

convicções <strong>de</strong>mocráticas.<br />

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38 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

E estas – é forçoso reconhecer – ilustravam e enriqueciam suas<br />

sábias lições. Não foram poucas vezes que o consultei sobre dúvidas <strong>de</strong><br />

redação. Ele dava uma versão, dava outra, e concluía com a sua própria:<br />

“O povo é que faz a língua, <strong>de</strong> modo que muitas vezes a forma erudita é<br />

ultrapassada pela criativida<strong>de</strong> popular.”<br />

Nada mais compreensível da parte <strong>de</strong> um fervoroso a<strong>de</strong>pto do<br />

regime “do povo, pelo povo e para o povo.”<br />

É justo enfatizar, também sua <strong>de</strong>sinteressada participação, através<br />

do Sindicato dos Jornalistas, na luta e nas reivindicações da classe.<br />

Dou ainda testemunho <strong>de</strong> sua atuante presença no período <strong>de</strong><br />

implantação do Suplemento Literário, colaborando, com lúcidas<br />

sugestões, para que a publicação <strong>de</strong> Murilo Rubião representasse<br />

importante etapa na história do <strong>de</strong>senvolvimento cultural <strong>de</strong> Minas.<br />

Como mestre da língua portuguesa, foi substancial a contribuição<br />

do ilustre mineiro. No interessante artigo “Crítica e ensaio”, o esquecido<br />

Brito Broca sintetiza a presença do Prof. Aires: “O conhecimento<br />

profundo do idioma em lugar <strong>de</strong> embotar-lhe o espírito – como acontece<br />

com os gramatiqueiros – apurou-lhe a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> uma arte<br />

que, afinal <strong>de</strong> contas, é o próprio idioma.”<br />

Outro aspecto a ser ressaltado é a prolífera produção do festejado<br />

acadêmico, lançando sucessivamente uma série <strong>de</strong> livros, dos quais a<br />

abordagem da língua pátria se verifica com precisão, como no já referido<br />

Escrever certo e ainda em Correção na frase, Crítica <strong>de</strong> estilos,<br />

Ortografia oficial, Problemas da língua, Falar, ler e escrever, Português<br />

fora da gramática, Dicionário didático e popular, além <strong>de</strong> vasta<br />

colaboração nos principais jornais do país. É <strong>de</strong> se notar que sua atuação<br />

na imprensa foi um instrumento <strong>de</strong> aproximação do professor e <strong>de</strong> suas<br />

lições com as camadas sociais mais populares – sempre a sua preocupação<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratizar o aprendizado da língua pátria.<br />

É oportuno observar que a <strong>de</strong>ficiência visual nele funcionou como<br />

valioso incentivo ao estudo e à intensa ativida<strong>de</strong> literário.<br />

Em área na qual o texto é, quase sempre, prolixo e impenetrável,<br />

ele apresenta um estilo sóbrio, límpido e acessível, o que muito teria<br />

contribuído para o seu cre<strong>de</strong>nciado prestígio.<br />

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Aires: uma rica história <strong>de</strong> saber e <strong>de</strong> cultura _______________________________ José Bento Teixeira <strong>de</strong> Salles 39<br />

A autorizada voz da Professora Ângela Vaz Leão acentua observação<br />

feita, no sentido <strong>de</strong> que “todas as lições do livro Português fora da<br />

gramática são ministradas com simplicida<strong>de</strong>” para concluir, citando<br />

Lúcia Miguel Pereira, que o homenageado <strong>de</strong> hoje possui “a arte <strong>de</strong> ser<br />

erudito sem cair no preciosismo, apanágio dos espíritos realmente<br />

cultos”.<br />

Se compulsarmos a crítica publicada sobre o respeitado acadêmico<br />

a opinião é uma só – e aqui já se ressaltou – <strong>de</strong> louvor e exaltação aos<br />

atributos do mestre e escritor <strong>de</strong> texto erudito, mas simples, <strong>de</strong> estilo<br />

escorreito e limpo, do ensaísta perspicaz e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Assim foi<br />

retratado através <strong>de</strong> textos, além dos já mencionados, <strong>de</strong> autores como<br />

Antenor Nascentes, João Dornas Filho, Francisco Iglésias, Zilah Corrêa<br />

<strong>de</strong> Araújo, Oscar Men<strong>de</strong>s, Mário Casasanta, José Afrânio Moreira<br />

Duarte, João Etienne Filho, Moacir Andra<strong>de</strong>, José Oswaldo <strong>de</strong> Araújo,<br />

Lindolfo Gomes, toda uma galeria <strong>de</strong> ilustres escritores brasileiros.<br />

Seu nome, que já conquistara projeção nacional, ganha <strong>de</strong>pois<br />

dimensão internacional. Em artigo publicado no Suplemento Literário,<br />

em outubro do ano passado, a professora Yeda Pessoa <strong>de</strong> Castro,<br />

etimologista diplomada pela Universida<strong>de</strong> do Zaire, cita o Prof. Aires da<br />

Mata Machado Filho em seu estudo sobre problemas lingüísticos das<br />

tribos africanas na região diamantinense.<br />

Neste sentido, o livro O negro e o garimpo em Minas Gerais é<br />

consi<strong>de</strong>rado, pela crítica, a obra-prima na extensa e diversificada<br />

produção bibliográfica do mestre inesquecível.<br />

E aí resi<strong>de</strong> mais um extraordinário mérito do autor: sua incomum<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho intelectual, particularmente o etnográfico, pelo<br />

que exige <strong>de</strong> estudo e pesquisa. Este caminho, amplo, exaustivo e até<br />

certo ponto obscuro, ele perlustrou com serieda<strong>de</strong> e competência,<br />

sublimando suas pesquisas, no já mencionado O negro e o garimpo em<br />

Minas Gerais.<br />

Anote-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, que o mestre empreen<strong>de</strong>u suas pesquisas<br />

graças exclusivamente aos seus próprios esforços, pois na época, os<br />

estudos se <strong>de</strong>senvolviam sem a substancial colaboração <strong>de</strong> auxiliares, tão<br />

do gosto – e com razão – dos pesquisadores atuais.<br />

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40 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Na elaboração do seu livro pioneiro, o autor se entregou a um<br />

percuciente estudo <strong>de</strong> agrupamentos crioulos em sua terra natal, São João<br />

da Chapada e Quartel do Indaiá, distritos <strong>de</strong> Diamantina. Deteve-se,<br />

particularmente em estudo e divulgação das “cantigas <strong>de</strong> trabalho”, isto é,<br />

cantigas que garimpeiros sempre usam para tornar o árduo trabalho mais<br />

leve, mais suportável.<br />

Essas cantigas <strong>de</strong> trabalho são chamadas vissungos. O próprio<br />

autor, em entrevista publicada pelo Estado <strong>de</strong> Minas, esclareceu que<br />

vissungos é uma palavra do grupo banto, região da África <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

proce<strong>de</strong> a gran<strong>de</strong> maioria dos negros diamantinenses.<br />

Na advertência inicial do livro, o professor <strong>de</strong>staca os estudos e<br />

pesquisas feitos, acentuando que “só a salvação dos “vissungos” tem<br />

indisfarçável alcance etnográfico. Até aos compositores e musicólogos há<br />

<strong>de</strong> interessar a nossa contribuição.”<br />

O negro e o garimpo em Minas Gerais como se acentuou,<br />

circunscreve seu estudo à região <strong>de</strong> São João da Chapada, o que, <strong>de</strong> certo<br />

modo, enriquece o trabalho exatamente por concentrá-lo, geograficamente,<br />

a uma só região. Se não ganha maior amplitu<strong>de</strong>, projeta o estudo<br />

feito com mais intensida<strong>de</strong> e segurança.<br />

Não seria exagero afirmar que, no setor específico a que se propôs,<br />

o livro é realmente antológico. Divulga interessantes e fundamentadas<br />

pesquisas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m etnográfica, religiosa, antropológica, ainda mais<br />

valorizadas com vasta documentação folclórica, abrangendo então<br />

crendices populares, supertições, expressões regionais <strong>de</strong> origem<br />

africana. O próprio autor, na página 64 <strong>de</strong> seu livro esclarece: “O negro,<br />

ao começar o trabalho, pe<strong>de</strong> a Deus e a Nossa Senhora que abençoem seu<br />

serviço e sua comida.” Transcreve inclusive, o texto do solo cantado <strong>de</strong><br />

abertura da música: “Otê! Pa<strong>de</strong>-Nosso cum Ave Maria, securo camera<br />

qui t’Angananzambê, aiô...”<br />

Finalmente, complementando o precioso trabalho, há um interessante<br />

vocabulário do dialeto crioulo sanjoanense, o que reafirma a qualida<strong>de</strong> e<br />

extensão das pesquisas realizadas.<br />

A primeira edição do livro percorreu verda<strong>de</strong>ira via-crucis, até<br />

obter o Prêmio João Ribeiro, da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. A<br />

Revista Volume LI.p65 40<br />

12/5/2009, 15:29


Aires: uma rica história <strong>de</strong> saber e <strong>de</strong> cultura _______________________________ José Bento Teixeira <strong>de</strong> Salles 41<br />

publicação ganhou então crescente prestígio, com tiragem <strong>de</strong> várias<br />

edições.<br />

Apesar disso, o ilustre diamantinense confessa na entrevista já<br />

citada, em um misto <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong> e humor – tão característicos <strong>de</strong>le:<br />

“No livro, eu faço um estudo científico e até adotei um método, porque<br />

naquela época eu era mais ignorante do que hoje.”<br />

Humor e modéstia à parte, que edificante exemplo para tantos<br />

falsos gênios <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia!<br />

Mais tar<strong>de</strong>, Aires da Mata Machado Filho volta a ser homenageado<br />

pela <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, que lhe conce<strong>de</strong>u o Prêmio Machado<br />

<strong>de</strong> Assis, pelo conjunto <strong>de</strong> sua obra literária.<br />

Na oportunida<strong>de</strong>, ao saudá-lo, Abgar Renault ressaltou, em síntese,<br />

mas com absoluta precisão, a trajetória literária do Professor Aires:<br />

“Nada do que pensais e escreveis é feito a vulto: tudo nasce da pesquisa e<br />

amadurece na meditação.”<br />

A homenagem da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> representou a<br />

consagração, o reconhecimento nacional do trabalho que nós, mineiros, e,<br />

a crítica especializada já <strong>de</strong> há muito admiravamos.<br />

Além disso, é justo observar que se o primeiro prêmio projeta a<br />

importância e a dimensão do livro maior do autor, o segundo veio<br />

coroar a brilhante e fecunda carreira do autor <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 50 livros<br />

publicados.<br />

Em artigo escrito no já mencionado número especial do Suplemento<br />

Literário, Sônia Queiroz especifica os <strong>de</strong>sdobramentos dos vissungos em<br />

boiado, tirado pelo mestre cantor sem qualquer acompanhamento e o<br />

dobrado, que é a resposta dos outros garimpeiros em coro, “às vezes com<br />

acompanhamentos <strong>de</strong> ruídos e gritos com os próprios instrumentos<br />

usados na tarefa mineradora.”<br />

Quando o trabalho do Aires foi feito em São João da Chapada e em<br />

Quartel do Indaiá, subsistia, é claro, o canto vissungo na região, mas não<br />

havia ainda pesquisa sistematizada sobre o assunto. Daí, o sentido<br />

pioneiro e <strong>de</strong>sbravador <strong>de</strong> Aires da Mata Machado Filho. Hoje, quando<br />

os estudiosos folcloristas se <strong>de</strong>spertam para o tema, é que melhor se<br />

avalia sua significação e importância. Nos vissungos ressoam e<br />

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42 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

ressumbram os sentimentos e a alma dos bantos africanos, tão fortemente<br />

representados nas pesquisas precursoras do mestre Aires.<br />

A exaustiva tarefa empreendida pelo saudoso professor e<br />

acadêmico em distritos diamantinenses mostra, ainda aí, a arraigada<br />

paixão do homenageado pela sua terra natal.<br />

E não foram poucas as manifestações e pronunciamentos do Aires,<br />

fixando esse sentimento <strong>de</strong> apego à terra em sua rica e versátil<br />

bibliografia.<br />

Permito-me realçar, entre tantos outros textos, o prefácio que ele<br />

fez do livro Diamice, Diamantina <strong>de</strong> Fritz Teixeira <strong>de</strong> Salles. O prefácio<br />

é sucinto, conciso, mas <strong>de</strong> intensa força poética. Meia página, se tanto,<br />

mas tão sugestiva e vigorosa que não me furto à tentação da relembrar o<br />

comovente trecho:<br />

“Pelo menos uma vez juntamos calor e ardor da nossa esperança,<br />

no sentimento <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, sem ódios nem subterfúgios. Novamente nos<br />

irmanamos agora, graças à compreensiva generosida<strong>de</strong>”.<br />

Em tudo, o estupendo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> síntese em um texto veemente e<br />

sugestivo. A impressão que se tem é a <strong>de</strong> que o professor passeia,<br />

tranquilamente, entre as palavras, como se fossem <strong>de</strong>licadas flores a<br />

flutuarem na urdidura caprichosa do texto.<br />

Os dias se passavam na sucessão <strong>de</strong> lutas e triunfos. Na serena<br />

firmeza dos justos, e na profunda <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas forças, era <strong>de</strong> se<br />

esperar novas conquistas em sua ativida<strong>de</strong> literária.<br />

Deus assim não quis. Em agosto <strong>de</strong> 1985, chamou-o para junto <strong>de</strong><br />

si, arrebatando-o <strong>de</strong> nosso convívio no doloroso aci<strong>de</strong>nte que levou<br />

também a esposa e uma das filhas.<br />

Ainda hoje, ponho-me a recordar, velho mestre, <strong>de</strong> nossa viagem a<br />

Diamantina, para o lançamento do número especial do Suplemento<br />

Literário. Iam conosco seus admiradores e amigos Murilo Rubião,<br />

Márcio Sampaio, Humberto Werneck, Nello <strong>de</strong> Moura Rangel, Carlos<br />

Roberto Pellegrino, José Nava, Adão Ventura, tanta gente boa!<br />

Eis que nos aproximamos da cida<strong>de</strong> dos diamantes – riqueza<br />

encrustada em um coração <strong>de</strong> ouro – lá nos altiplanos diamantinos. A<br />

natureza prodigaliza a visão sublime das sempre-vivas quebrando a<br />

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Aires: uma rica história <strong>de</strong> saber e <strong>de</strong> cultura _______________________________ José Bento Teixeira <strong>de</strong> Salles 43<br />

ari<strong>de</strong>z da terra, uma leve brisa levando consigo a sauda<strong>de</strong> e fazendo<br />

curvar as flores, como se elas, as sempre-vivas, dissessem ao viageiro <strong>de</strong><br />

sonhos: “Chegue e permaneça entre nós. A cida<strong>de</strong> é sua.”<br />

Ah, imorredoura sauda<strong>de</strong> da terra das sempe-vivas do velho Aires e<br />

das lições do mestre, sempre vivas em nossas lembranças.<br />

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Revista Volume LI.p65 44<br />

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CENTENÁRIO DE<br />

NASCIMENTO DO<br />

PE. PEDRO MACIEL VIDIGAL*<br />

Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho*<br />

Honra imensa estar aqui na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> nesta<br />

rememoração <strong>de</strong> uma das figuras marcantes da História do Brasil e,<br />

peculiarmente <strong>de</strong> Minas, ao ensejo <strong>de</strong> seu centenário <strong>de</strong> nascimento,<br />

ocorrido a 18 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong>ste ano: o Deputado Pe. Pedro Maciel Vidigal,<br />

homem público <strong>de</strong> excepcionais qualida<strong>de</strong>s, respeitado e respeitável.<br />

Por méritos insofismáveis alcançou uma louvável notorieda<strong>de</strong>.<br />

Calha <strong>de</strong> maneira apropriada a homenagem prestada a este vulto<br />

que hoje se reverencia, mormente por três razões: foi um notável<br />

parlamentar, um gran<strong>de</strong> biógrafo e um brilhante literato.<br />

O PARLAMENTAR<br />

A política é a i<strong>de</strong>ia e fato, teoria e prática, lição e vida. É ciência e<br />

experiência. É uma arte grandiosa e complexa <strong>de</strong> concretizar, <strong>de</strong> cumprir<br />

i<strong>de</strong>ais a favor da socieda<strong>de</strong>.<br />

No proscênio da história política brasileira se <strong>de</strong>stacam gigantes<br />

muitos dos quais pertenceram e fazem atualmente parte <strong>de</strong>sta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

* Palestra proferida em 26 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2009 em comemoração ao centenário do Pe. Pedro<br />

Maciel Vidigal.<br />

** Professor do Seminário <strong>de</strong> Mariana. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 12.<br />

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Ao tomarmos posse na Ca<strong>de</strong>ira 12 <strong>de</strong>ste Cenáculo <strong>de</strong> Letrados, dia<br />

31 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2007, lembrávamos dois antecessores, políticos estremes,<br />

inteiriços e <strong>de</strong> bronze, <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> indiscutível e caráter sem jaça:<br />

Tancredo <strong>de</strong> Almeida Neves e Alberto Deodato Maia Barreto.<br />

Referíamo-nos, também, ao atual Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>ste sodalício, Murilo<br />

Badaró, que já exerceu importantes cargos públicos como Secretário <strong>de</strong><br />

Estado e Ministro da Indústria e Comércio, além <strong>de</strong> vários mandatos <strong>de</strong><br />

Deputado Estadual e Fe<strong>de</strong>ral, Senador da República e Prefeito da cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Minas Novas.<br />

Pe. Pedro Maciel Vidigal foi também um Político na plena acepção<br />

da palavra, por que possuiu sempre uma vonta<strong>de</strong> férrea <strong>de</strong> agir, visando<br />

unicamente o progresso social da coletivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>monstrando rara<br />

competência a serviço do bem comum.<br />

Nos seus atos não houve jamais concessões contrárias às necessida<strong>de</strong><br />

do povo e dos interesses do Brasil.<br />

Nunca <strong>de</strong>screu da potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossa gente e nunca a<br />

transformou em massa <strong>de</strong> manobra.<br />

Não fez parte da elite dominante que age preconceituosamente<br />

julgando que os menos favorecidos pela fortuna são ignorantes, ineptos e,<br />

até, impe<strong>de</strong>m por todos os meios que o senso crítico seja um patrimônio<br />

comum.<br />

Para entrar na vida política ele se inspirou nos pensamentos <strong>de</strong><br />

notáveis escritores e teólogos, como Ghandi, Pio XII e João XXIII,<br />

citados, no seu livro “Ação Política” 1 .<br />

Eis o que disse Ghandi: “Não po<strong>de</strong>ria eu levar vida religiosa se<br />

não me i<strong>de</strong>ntificasse com a humanida<strong>de</strong> inteira, e isso eu não po<strong>de</strong>ria<br />

fazer se não tomasse parte na politica. Toda a gama das ativida<strong>de</strong>s<br />

humanas constitui, hoje em dia, um todo indiviso. Não po<strong>de</strong>is dividir, em<br />

compartimentos estanques, trabalhos sociais, econômicos, políticos e<br />

puramente religiosos”. Outrossim se estribou nestas palavras <strong>de</strong> Pio XII:<br />

“É tal o domínio da Política que tem por objetivo os interesses da<br />

socieda<strong>de</strong> inteira, que, neste sentido, é o campo mais amplo da carida<strong>de</strong>,<br />

da carida<strong>de</strong> política, da carida<strong>de</strong> da cívitas, da qual se po<strong>de</strong> dizer que é<br />

superior a todas as <strong>de</strong>mais, exceto a Religião”. Nem lhe faltou o<br />

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Centenário <strong>de</strong> nascimento do Pe. Pedro Maciel Vidigal _____________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 47<br />

incentivo <strong>de</strong> João XXIII: “O bem comum concerne ao homem integral<br />

com as suas necessida<strong>de</strong>s espirituais e materiais, e envolve a totalida<strong>de</strong><br />

das condições <strong>de</strong> vida social que o homem necessita para lograr plena e<br />

facilmente sua completa perfeição pessoal”.<br />

Pô<strong>de</strong> altaneiramente <strong>de</strong>pois afirmar não ter sido um “semeador <strong>de</strong><br />

ilusões no meio do povo” nem seduziu “o eleitorado <strong>de</strong> minha Terra com<br />

promessas bonitas mas estéreis, irrealizáveis” 2 .<br />

Tinha, <strong>de</strong> fato, do Estado e do Po<strong>de</strong>r uma concepção filosófica<br />

profunda, colocando em prática tudo que hauriu no estudo dos melhores<br />

cientistas sociais.<br />

Sua cultura humanística era impressionante e isto o fez conselheiro<br />

<strong>de</strong> compatriotas famosos como o Presi<strong>de</strong>nte Juscelino Kubitschek e o<br />

governador Bias Fortes e interlocutor do Presi<strong>de</strong>nte Getúlio Vargas.<br />

Foi um lidador intimorato não conspurcando seus princípios éticos,<br />

pelo que enfrentava com coragem as forças ocultas que tramam contra a<br />

felicida<strong>de</strong> geral dos cidadãos.<br />

Sua vida foi dominada por uma coerência, uma fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, um<br />

<strong>de</strong>stemor que são comuns apenas aos gigantes do autêntico patriotismo.<br />

Lutou sempre pelas reformas sociais que beneficiam as camadas<br />

mais baixas da socieda<strong>de</strong> com uma paixão <strong>de</strong>smedida pelo progresso da<br />

nação, sobretudo dos territórios nos quais exercia sua benemérita ação<br />

política.<br />

Sua preocupação constante era transmitir otimismo, <strong>de</strong>votamento<br />

ao trabalho, respeito à coisa pública, <strong>de</strong>fesa intransigente da verda<strong>de</strong><br />

perante os caluniadores.<br />

A favor do Fundador <strong>de</strong> Brasília e seus correligionários esta<br />

censura a seus inimigos: “As palavras dos <strong>de</strong>tratores e dos difamadores<br />

<strong>de</strong> Juscelino e seus amigos não fazem consonância com a verda<strong>de</strong> e<br />

retratam o angustioso estado doentio <strong>de</strong> espírito dos que já per<strong>de</strong>ram<br />

completamente o crédito no meio do povo brasileiro”. 3<br />

Pô<strong>de</strong> afirmar <strong>de</strong> cabeça erguida que sempre procurou valorizar a<br />

pessoa humana “no seu principal Patrimônio: a saú<strong>de</strong> e a instrução. Se a<br />

saú<strong>de</strong>, dizia ele, é que lhe permite trabalhar, é a instrução que lhe<br />

permite trabalhar bem” 4 .<br />

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48 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Foi o que ele realizou em Presi<strong>de</strong>nte Bernar<strong>de</strong>s, Guaraciaba,<br />

Mariana, São Domingos do Prata, Nova Era, Santa Maria <strong>de</strong> Itabira,<br />

Jaguaraçu, Governador Valadares, Itambacuri, Resplendor e outros lugares.<br />

Ergueu não apenas prédios, mas ainda canalizou recursos para<br />

infra-estrutura <strong>de</strong> muitas cida<strong>de</strong>s e vilas, visando o conjunto das<br />

instalações necessárias às ativida<strong>de</strong>s humanas como re<strong>de</strong> <strong>de</strong> esgotos e <strong>de</strong><br />

abastecimento <strong>de</strong> água, energia elétrica, coleta <strong>de</strong> águas pluviais e<br />

diversos melhoramentos, benfeitorias que não apareciam, mas <strong>de</strong> vital<br />

importância para os cidadãos.<br />

A Política foi para ele sempre um instrumento com que trabalhou<br />

pela felicida<strong>de</strong> do povo e pela promoção do bem estar durável.<br />

Em vários <strong>de</strong> seus livros pô<strong>de</strong> estampar fotos dos seus empreendimentos<br />

a favor das populações e relatou agra<strong>de</strong>cimentos e aplausos <strong>de</strong><br />

eminentes figuras do clero e <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s civis reconhecidas pelo seu<br />

trabalho social.<br />

Por tudo isto tinha como verberar os maus homens públicos e foi<br />

mordaz ao se referir aos incompetentes que se apossam dos cargos<br />

eletivos para iludir os seus eleitores. Com coragem <strong>de</strong>nunciou: “E a cada<br />

momento, estamos assistindo o triste espetáculo <strong>de</strong> Deputados e<br />

Senadores <strong>de</strong>scendo a baixezas incríveis, a fim <strong>de</strong> verem se lhes serão<br />

oferecidos Ministérios ou Governadorias. Superestimando a sua<br />

inteligência e a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho para promover o bemcomum<br />

durável, há políticos que se julgam em condições <strong>de</strong> aceitar<br />

sobre os ombros cargas que lhe superam as forças, sobretudo as do<br />

espírito. Confiam <strong>de</strong>mais em si mesmo, esquecidos <strong>de</strong> que na confiança<br />

se há <strong>de</strong> ter tal meio que não seja pouca, que possa ser nociva ao bem<br />

público, nem tamanha que chega a ser perniciosa. Não sabem por a<br />

estimação própria em seu peso razoável. E, atrevidos, entram na área da<br />

temerida<strong>de</strong>, correndo o risco <strong>de</strong> as suas ações não saírem com o acerto<br />

<strong>de</strong>sejado 5 .<br />

Alertou contra os aventureiros que se apresentam como salvadores<br />

da pátria: “Sucessivos fiascos e malogros estão marcando a divertida<br />

existência <strong>de</strong> alguns intrometidos que, por conta própria, sempre<br />

aparecem querendo subir até on<strong>de</strong> não conseguem chegar com seus<br />

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Centenário <strong>de</strong> nascimento do Pe. Pedro Maciel Vidigal _____________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 49<br />

ignorados merecimentos. [...] Apresentam-se como competentes para os<br />

difíceis trabalhos <strong>de</strong>sse ou daquele ofício que lhes superam as forças.<br />

Andam esquecidos <strong>de</strong> que todos os arrojos do homem só serão felizes se<br />

forem governados pelos freios da razão e da prudência 6 .<br />

Vergastou sempre os oportunistas e prestidigitadores, aqueles que,<br />

uma vez eleitos, esquecem sua Região, políticos em véspera <strong>de</strong> eleição<br />

que têm seus currais eleitorais como campo predileto para aí semearem<br />

ilusões e iludirem o povo.<br />

Sobre sua atuação na Tribuna este <strong>de</strong>poimento do Deputado Pe.<br />

Nobre que foi vice-presi<strong>de</strong>nte da Câmara Fe<strong>de</strong>ral é uma síntese gloriosa:<br />

“Lá <strong>de</strong> cima, à mesa da presidência, eu me <strong>de</strong>leitava em sentir, como suas<br />

falas, todas elas enriquecidas <strong>de</strong> oportunas citações em Latim, <strong>de</strong>ixavam<br />

boa parte daquele plenário estupefata diante <strong>de</strong> tanto saber. Aliás, por<br />

oportuno, eu sempre o tive e proclamei como um dos melhores latinistas<br />

<strong>de</strong> nossa geração e como rigoroso cultor da língua pátria” 7 .<br />

O BIÓGRAFO<br />

Especializou-se o Pe. Pedro Maciel Vidigal na biografia, uma vez<br />

que na alheta <strong>de</strong> Plutarco soube traçar o perfil caracterológico e os<br />

gran<strong>de</strong>s feitos <strong>de</strong> varões ilustres.<br />

Embora tenha sido um notabilíssimo genealogista, imortalizando-se<br />

pela sua volumosa obra “Os Antepassados” 8 , encomiada com admiração<br />

pelos expertos <strong>de</strong>sta ciência, como biógrafo, contudo, foi, em nossa<br />

pátria, um dos mais brilhantes biografistas.<br />

A Biografia não po<strong>de</strong> ser uma mera narrativa factual da existência<br />

<strong>de</strong> uma pessoa, mas <strong>de</strong>ve ser também uma abordagem <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong><br />

vista crítico e não apenas historiográfico.<br />

É o que com raro talento conseguiu o Pe. Pedro Maciel Vidigal ao<br />

focalizar gênios cujo engenho engran<strong>de</strong>ceu a humanida<strong>de</strong>.<br />

Libertou-se inteiramente dos <strong>de</strong>feitos usuais <strong>de</strong>sta categoria<br />

histórica.<br />

Não foi um mero apologeta, nem divinizou os seus eleitos,<br />

transformando suas verrugas e máculas em traços <strong>de</strong> beleza e, muito<br />

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50 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

menos, foi uma biografia <strong>de</strong>pressiva, amaldiçoando simplesmente<br />

possiveis erros humanos que não precisam ser justificados, mas<br />

outrossim não <strong>de</strong>vem ser, sem razão e com sadismo, o foco principal da<br />

existência do biografado.<br />

Não tinha olhos <strong>de</strong> lince para ficar pinçando <strong>de</strong>feitos alheios, mas<br />

para diagnosticar o contributo oferecido à humanida<strong>de</strong>.<br />

Regozijava-se em exaltar o caráter impoluto daqueles que se<br />

distinguiram como benfeitores da socieda<strong>de</strong>.<br />

Seja dito, inclusive que, <strong>de</strong>sta maneira, ele acoimou a atitu<strong>de</strong><br />

daqueles que “preferem imitar a mosca que corre pelas partes sãs <strong>de</strong><br />

uma maçã, sem reparar nem achar gosto nela, porém, chegando à parte<br />

podre, ali <strong>de</strong>scansa, ali repara 9 .<br />

Eis por que assim se referiu a Benedito Valadares: “Tinha<br />

<strong>de</strong>feitos, mas a eles contrapunha gran<strong>de</strong> conjunto <strong>de</strong> belíssimas<br />

qualida<strong>de</strong>s. Uns, mais, outros, menos, todos têm os seus. Até nas maiores<br />

e mais lindas obras da natureza, vamos encontrá-los, a cada momento.<br />

Por exemplo: a rosa é a rainha das flores, e vive entre espinhos; o pavão<br />

é o rei das aves, e tem <strong>de</strong>formida<strong>de</strong>s nos pés; a baleia é a rainha dos<br />

mares, e tem a vista muito curta; o ouro é o rei dos metais, e tem as suas<br />

fezes; o sol é o rei do espaço si<strong>de</strong>ral, e tem as suas manchas!” 10<br />

Preferiu então discorrer sobre o gosto da luta e a paixão da vitória<br />

como características principais <strong>de</strong>ste seu biografado.<br />

Fustigou o Marquês <strong>de</strong> Pombal como “Despótico Ditador”,<br />

“Perseguidor dos Jesuítas”, mas <strong>de</strong>monstrou outrossim que “os requintes<br />

<strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong>s praticadas durante o seu governo não impediram Pombal<br />

<strong>de</strong> figurar entre os maiores estadistas <strong>de</strong> Portugal” 11 .<br />

Se assinalou as mazelas do Primeiro Ministro do rei Dom José I,<br />

não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> relatar os benefícios que trouxe à nação portuguesa, <strong>de</strong><br />

norte a sul, “levantando-a do marasmo em que jazia” 12 .<br />

Adite-se que, apesar <strong>de</strong> sua franqueza, em tantos <strong>de</strong> seus textos, se<br />

nota muitas vezes a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za dos irônicos adjetivos.<br />

Assim, por exemplo, ao se referir a certo Presi<strong>de</strong>nte da República,<br />

cujas qualida<strong>de</strong>s ele <strong>de</strong>stacou, mas que não era nenhuma sumida<strong>de</strong>,<br />

escreveu que este Presi<strong>de</strong>ne possuia “uma razoável cultura”.<br />

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Centenário <strong>de</strong> nascimento do Pe. Pedro Maciel Vidigal _____________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 51<br />

Aos críticos do citado Benedito Valadares ele chamou <strong>de</strong> “ligeiros<br />

analistas”.<br />

A certos homens públicos que careciam <strong>de</strong> cultura ele os<br />

caracterizava como “ligeiramente alfabetizados”.<br />

A quem era pretencioso <strong>de</strong>nominou <strong>de</strong> “vagalume que queria ser<br />

estrela”.<br />

De quem não escuta os outros proclamava: “Ele não sabia por que<br />

a natureza lhe <strong>de</strong>ra dois ouvidos”.<br />

Muitos foram os homens ilustres do Brasil que mereceram sua<br />

atenção, mas dignas <strong>de</strong> especial menção são sobretudo suas páginas sobre<br />

o Car<strong>de</strong>al Dom Carlos Carmelo <strong>de</strong> Vasconcellos Motta, os Presi<strong>de</strong>ntes<br />

Juscelino Kubitschek <strong>de</strong> Oliveira e Getúlio Dorneles Vargas, os<br />

Arcebispos D. Silvério Gomes Pimenta e Dom Oscar <strong>de</strong> Oliveira, os<br />

Bispos D. José Belvino do Nascimento, D. Francisco Barroso, Dom<br />

Sebastião Roque Rabello Men<strong>de</strong>s.<br />

No âmbito universal originalíssimo o estudo que fez dos sete sábios<br />

da Grécia: Quílon, Sólon, Bias, Pítaco, Cleóbolo, Periandro e Tales <strong>de</strong><br />

Mileto e o que escreveu sobre Virgílio, “o poeta maior da latinida<strong>de</strong>”.<br />

Entre os santos da Igreja São José e Santo Hilário <strong>de</strong> Poitiers lhe<br />

mereceram panegíricos insuperáveis.<br />

Soube fazer com proprieda<strong>de</strong> o elogio <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s oradores ao<br />

discorrer sobre a “Eloquência”. 13<br />

Em Roberto Campos <strong>de</strong>stacou a vastidão e a profundida<strong>de</strong> dos seus<br />

sérios estudos clássicos, filosóficos, políticos, financeiros, econômicos.<br />

Diz textualmente: “Com o seu talento <strong>de</strong> incomparável gran<strong>de</strong>za, ele é<br />

uma das mais po<strong>de</strong>rosas e fulgentes con<strong>de</strong>nsações da cultura no<br />

Oci<strong>de</strong>nte. [...] Nas suas palavras todos admiram sólido das suas<br />

doutrinas, a viveza do seu engenho, e a fecundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua imaginação<br />

criadora”.<br />

Sobre Juscelino Kubitschek mostrou que em seus belíssimos<br />

discursos resplan<strong>de</strong>cia a brilhante e fecunda imaginação do poeta e nele<br />

palpitava o coração do Brasil.<br />

Destacou Afonso Arinos que falava com facilida<strong>de</strong> e clareza. O<br />

segredo da sua eloqüência estava no esplendido arsenal <strong>de</strong> lógica e <strong>de</strong><br />

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52 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

erudição <strong>de</strong> que dispunha e sabia usar primorosamente. A luci<strong>de</strong>z do seu<br />

espírito e a vivacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas palavras comunicavam aos seus discursos<br />

notável força que dominava completamente qualquer auditório.<br />

Sobre Tancredo Neves disse que tinha a palavra rica <strong>de</strong> beleza e <strong>de</strong><br />

substância. Possuía dicção impecável e o gesto sóbrio e preciso. Na<br />

tribuna era simples, elegante e castiço. A audácia do pensamento e a<br />

opulência da cultura faziam <strong>de</strong>le orador muito apreciado.<br />

Não economizou elogios a San Tiago Dantas, que era claro e sabia<br />

convencer. Afirmou então que “na sua boca as palavras se convertiam<br />

em oráculos. [...] Ourives da prosa, sabia cinzelar seus primorosos<br />

pensamentos. Tinha gênio que é muito mais importante do que ter<br />

talento, visto que o homem genial vale milhares <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> talento<br />

juntos”.<br />

Milton Campos também não ficou olvidado e exclamou: “Como<br />

ele falava bem! Com serieda<strong>de</strong>. Com acerto. Com autorida<strong>de</strong>”.<br />

Até Carlos Lacerda mereceu o seu aplauso. Destacou sua<br />

fogosida<strong>de</strong>, mostrando que ele explodia, trovejava. Sua palavra era<br />

fulminante como o raio, assombrosa, metia medo a muita gente.<br />

Violentíssima provocava incêndios e terremotos. Po<strong>de</strong>rosa, abalava<br />

regimes políticos.<br />

Sua pieda<strong>de</strong> filial o levou a retratar com sumo carinho e justiça seu<br />

pai Feliciano Duarte Vidigal e sua mãe Augusta Vidigal Ferreira Maciel.<br />

Fazendo-se biógrafo, ele seguiu a <strong>de</strong>terminação bíblica: “Façamos<br />

o elogio dos homens ilustres, que são nossos antepassados, em sua<br />

linhagem” (Eclo 44,1).<br />

Deste modo prestou um inestimável benefício à História das<br />

I<strong>de</strong>ias, mesmo porque ele muito pesquisou nos Anais da Assembleia<br />

Legislativa do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais, da Câmara dos Deputados, do<br />

Senado do Império, do Senado Fe<strong>de</strong>ral e no Arquivo da Curia<br />

Metropolitana <strong>de</strong> Mariana, no Arquivo Público Mineiro, no Arquivo<br />

<strong>de</strong> várias Prefeituras, no Arquivo do Tribunal <strong>de</strong> Justiça do Estado <strong>de</strong><br />

Minas Gerais e em inúmeras coleções <strong>de</strong> Jornais, como L´Osservatore<br />

Romano, Correio da Manhã, Correio Brasiliense, Diário <strong>de</strong> S. Paulo,<br />

Estado <strong>de</strong> Minas, Folha <strong>de</strong> S. Paulo, Jornal do Brasil, O Arquidio-<br />

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Centenário <strong>de</strong> nascimento do Pe. Pedro Maciel Vidigal _____________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 53<br />

cesano <strong>de</strong> Mariana, Minas Gerais – Diário Oficial e em Livros <strong>de</strong><br />

Tombo <strong>de</strong> várias Paróquias.<br />

Adite-se que ele vasculhou os melhores autores e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> longa data,<br />

como costumava dizer, consi<strong>de</strong>rava perdido o dia em que não consagrava,<br />

algumas horas para agradável convívio com gran<strong>de</strong>s pensadores<br />

antigos e contemporâneos, em sua biblioteca. Na comemoração <strong>de</strong> seu<br />

natalício, dia 18 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2002, ao agra<strong>de</strong>cer as homenagens <strong>de</strong> que<br />

foi alvo, em comovente discurso no final da Missa <strong>de</strong> Ação <strong>de</strong> Graças,<br />

assim se expressou: “O tempo vai passando, mas nunca <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> ler e <strong>de</strong><br />

estudar, ao menos durante quatro horas por dia, a fim <strong>de</strong> mais instruirme,<br />

visto que a instrução nunca enfastia nem aborrece” 14<br />

O LITERATO<br />

Como literato se ressalte <strong>de</strong> plano ter sido ele um orador fluente<br />

culto, tocando as mentes e os corações com sua palavra imantada <strong>de</strong><br />

eloquência. Colocou, in totum, em prática o que ele mesmo escreveu:<br />

“Ser eloqüente consiste em saber achar com agu<strong>de</strong>za, em anunciar com<br />

clareza, em dispor sem confusão” 15 .<br />

Autor <strong>de</strong> vinte e três volumosos livros e inúmeros opúsculos,<br />

incluídos entre eles seus <strong>de</strong>cantados discursos parlamentares ou <strong>de</strong><br />

paraninfo, nos quais rebrilham sua vasta erudição e admirável ilustração.<br />

Neles, ao lado da beleza da forma, se admira o valor do conteúdo,<br />

sendo que não se po<strong>de</strong> escrever uma boa parte da História <strong>de</strong> Minas e do<br />

Brasil sem pesquisar nestas obras que têm subsidiado até teses<br />

universitárias <strong>de</strong> sumo valor.<br />

Márcio Garcia Vilela, dia 21 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2001, referindo-se aos<br />

escritos Pe. Pedro Maciel Vidigal assim se expressou no jornal Estado <strong>de</strong><br />

Minas: “Tudo refogado no saboroso tempero da linguagem enxuta <strong>de</strong><br />

quem realmente sabe escrever” 16 .<br />

De fato, quem faz uma análise crítica <strong>de</strong> seus livros e artigos<br />

percebe o quanto enalteceram a cultura literária brasileira.<br />

As fráguas do gênio assemelham-se às fornalhas das antigas<br />

locomotivas que iam sempre resfolgando e sacudindo chispas.<br />

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Eis por que, sobretudo ao abordar sua faceta <strong>de</strong> literato, se tentará<br />

colher algumas fagulhas <strong>de</strong>ste talentoso escritor aquecendo e justificando<br />

as assertivas que serão exaradas.<br />

Nem nas páginas <strong>de</strong> Tácito, nem nas antológicas expressões <strong>de</strong><br />

Cícero se encontram tópicos tão pulcros como este: “Uma rosa parece<br />

obra <strong>de</strong> talha, aberta com inimitável <strong>de</strong>lga<strong>de</strong>z. A açucena dá a impressão<br />

<strong>de</strong> que é composta <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> prata, estendidas ao martelo. Em outras<br />

flores encontramos várias espécies <strong>de</strong> medidas e artificiosas correspondências,<br />

figuras triangulares, quadrangulares, pentagonais, hexagonais,<br />

retilíneas, oblíquas, piramidais, cilíndricas, esféricas... todas com tão<br />

perfeita proporção, como se fossem traçadas e <strong>de</strong>lineadas com régua e<br />

compasso. Como se fosse oculto fabricante <strong>de</strong> perfumes, o jardim exala<br />

fragrâncias. Com secreto pincel, matizados são os campos na primavera.<br />

Em laboratório invisível, se <strong>de</strong>stila o orvalho das manhãs <strong>de</strong> maio e <strong>de</strong><br />

junho. Como invisível fian<strong>de</strong>ira, a aurora tece suas galas. E com nunca<br />

vista agulha, se recama <strong>de</strong> estrelas o firmamento. Todas estas<br />

maravilhas da arte <strong>de</strong> Deus são efeitos <strong>de</strong> sua ciência, que, por infinita,<br />

quanto mais se contempla, mas se admira” 17 .<br />

Suas reflexões filosóficas lembram uma sabedoria aristotélica e<br />

rivaliza com o que <strong>de</strong> mais pulcro se <strong>de</strong>para em Gregório <strong>de</strong> Nissa e em<br />

Agostinho <strong>de</strong> Hipona. Cintilante esta sua assertiva: “A tendência natural<br />

do homem é para o saber. É para saber mais, sempre mais. A sua<br />

inteligência, porém, sempre haverá <strong>de</strong> encontrar redutos inexpugnáveis e<br />

sentirá a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crer no inexplicável, no incompreensível. Ao<br />

menos, por motivo <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong> mental” 18 .<br />

Recusava veementemente o conflito entre a crença e os estudos<br />

científicos: “Longe <strong>de</strong> ser hostil ou indiferente ao progresso da Ciência<br />

a Religião o aplau<strong>de</strong>, visto que encontra, nele, força para os seus<br />

ensinamentos 19 .<br />

Proclamou peremptoriamente: “O Materialismo é uma <strong>de</strong>cadência<br />

do espírito. A Ciência seria nada se ao sábio faltasse, ao menos, a<br />

curiosida<strong>de</strong> do Infinito” 20 .<br />

Admirável seu conceito <strong>de</strong> Humanismo “O Humanismo é a<br />

valorização do Clássico estimada pela dinâmica <strong>de</strong> novas técnicas<br />

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Centenário <strong>de</strong> nascimento do Pe. Pedro Maciel Vidigal _____________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 55<br />

literárias. A conversão do Classicismo no Humanismo data dos primórdios<br />

da Renascença, com Petrarca que foi arcediago da Igreja <strong>de</strong> Parma.<br />

Para mim, o verda<strong>de</strong>iro Humanismo não opõe a Cultura à Teologia.<br />

Numerosos católicos e eclesiásticos foram gran<strong>de</strong> humanistas”. 21.<br />

Sob sua caneta, ou melhor dizendo, sob as teclas <strong>de</strong> sua antiga<br />

máquina <strong>de</strong> datilografia, a formosa Língua Pátria, era como o mármore<br />

pentélico sob o cinzel <strong>de</strong> Fídias: aviventava-se, <strong>de</strong>slumbrando os seus<br />

leitores com suas formas peregrinas e locuções surpreen<strong>de</strong>ntes.<br />

Assim, por exemplo, ao falar das ativida<strong>de</strong>s agrícolas: “Tal a<br />

excelência da agricultura que, na antiguida<strong>de</strong>, havia enxadas coroadas e<br />

arados cobertos <strong>de</strong> lauréis, quando os Imperadores <strong>de</strong> Roma e Reis da<br />

Pérsia se gloriavam <strong>de</strong> lavradores, preferindo aos brocardos dos docéis<br />

a folhagem das árvores, e às iguarias das mesas dos palácios os frutos<br />

<strong>de</strong> sua lavoura. De Plínio esta afirmação: Os campos eram cultivados<br />

pelas mãos dos próprios imperadores – Ipsorum tunc manibus<br />

imperatorum colebantur agri ...” 22<br />

Estilista esvelto, escritor adamantino, literato <strong>de</strong> raro lume na frase<br />

e fogos do pensamento, o verbo do Pe. Pedro Maciel Vidigal <strong>de</strong>spe<strong>de</strong><br />

entoações largas, antíteses, rajadas subitâneas, imagens ciclópeas,<br />

inspirações transcen<strong>de</strong>ntes que o irmanam e i<strong>de</strong>ntificam com os maiores<br />

gigantes <strong>de</strong> nossa Literatura, como neste trecho sobre a ambição: “Este<br />

vício é companheiro inseparável da soberba a qual Santo Agostinho<br />

<strong>de</strong>finiu como sendo um apetite <strong>de</strong> perversa gran<strong>de</strong>za. Tão inseparável<br />

que é mais fácil encontrar o mar sem água, e o sol sem luz, que o<br />

soberbo sem ambição [...] Por mais que se dê ao ambicioso, ele sempre<br />

vive faminto. Sem autocrítica, tudo cuida que merece, e nada julga que o<br />

satisfaça. Os maiores prêmios lhe parecem pequenos, e são consi<strong>de</strong>rados<br />

como afrontosos a seus imaginários e fantásticos merecimentos. As suas<br />

aspirações não conhecem limites, parecendo com as chamas que tanto<br />

mais crescem quanto maior é o incêndio.” 23<br />

Como se po<strong>de</strong> perceber, apesar das cintilações <strong>de</strong> seu estilo ele<br />

transmite com eficiência o seu pensamento.<br />

D. José Carlos Lima Vaz, que foi bispo <strong>de</strong> Petrópolis notou esta<br />

peculiarida<strong>de</strong> ao escrever ao Pe. Pedro Vidigal: “Aprecio muito seu estilo<br />

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trabalhado sem ser rebuscado, na melhor tradição dos escritores em que<br />

foi tão pródiga nossa terra mineira” 24 .<br />

Aliás, num <strong>de</strong> seus mais belos discursos <strong>de</strong> Paraninfo, pronunciado<br />

dia 22 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1977 ao ensejo da formatura das Turmas <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />

e Estudos Sociais, extensão da Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Minas Gerais<br />

em Mariana, ele aconselhava a seus afilhados: “Falai com naturalida<strong>de</strong>.<br />

Porque falava naturalmente, com toda a simplicida<strong>de</strong>, prezando os<br />

termos próprios, Platão mereceu dos ateniense o título <strong>de</strong> divino [...]<br />

Alertava: “Conhecemos alguns professores, cuja curiosida<strong>de</strong> sobre a<br />

sementeira das palavras próprias e nativas, semeou tanta cizânia <strong>de</strong><br />

palavras barbaramente pomposas, que o seu pensamento se per<strong>de</strong>u por<br />

afogado no meio <strong>de</strong>las” 25 . Por isto mesmo mostrou que o aprimoramento<br />

do vocabulário se obtém lendo os clássicos e colocando em prática a<br />

diretriz <strong>de</strong> dois gran<strong>de</strong>s mestres: Gautier: “Lisez le dictionnaire” e Litré:<br />

“Lisez toujours le dictionnaire”.<br />

Nesta monumental oração, por sinal, talvez pouco conhecida,<br />

publicada na revista Rua Direita, da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mariana, ele<br />

<strong>de</strong>slumbrou o auditório. O local era propício: a formatura se dava na<br />

igreja barroca <strong>de</strong> Nossa Senhora do Carmo, que ainda não havia pa<strong>de</strong>cido<br />

o <strong>de</strong>safortunado incêndio o qual mais tar<strong>de</strong> a atingiria, e, o Padre Vidigal<br />

<strong>de</strong>clarou que iria falar então sobre as “Bem-aventuranças do Saber”. Uma<br />

aplicação monumental das oito beatitu<strong>de</strong>s evangélicas à missão do<br />

Professor cuja tarefa foi patenteada magnífica e uma vivência plena do<br />

que o Rabi da Galileia proclamou ao fazer o retrato falado <strong>de</strong> seus<br />

epígonos no prólogo do Sermão da Montanha. No final todos <strong>de</strong> pé o<br />

aplaudiram e lá estavam inclusive, entre outras autorida<strong>de</strong>s, Diretores do<br />

jornal Estado <strong>de</strong> Minas que estava sendo, naquela ocasião, também<br />

homenageado pelo Arcebispo Dom Oscar <strong>de</strong> Oliveira, Presi<strong>de</strong>nte da<br />

Fundação Marianense <strong>de</strong> Educação, ao ensejo do cinquentenário <strong>de</strong>ste<br />

valoroso órgão da Imprensa <strong>Mineira</strong>.<br />

É <strong>de</strong> notar que na prosa <strong>de</strong>ste literato fulge uma fé profunda em<br />

Deus. Foi esta crença inabalável nas verda<strong>de</strong>s reveladas pelo Logos<br />

divino que veio a este mundo que o sustentou sempre nas li<strong>de</strong>s e lutas<br />

que enfrentou. Como outrora São Paulo era um apaixonado por Cristo.<br />

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Centenário <strong>de</strong> nascimento do Pe. Pedro Maciel Vidigal _____________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 57<br />

Ele mesmo afirmou ser na Fé que ele encontrava o sentido da vida,<br />

“pois somente ela é que po<strong>de</strong> elevar as almas para a Luz” 26 . Achava<br />

belíssima “aquela interessante lição <strong>de</strong> Santo Agostinho: Ter fé consiste<br />

em assinar uma folha em branco, e <strong>de</strong>ixar que Deus escreva o que<br />

quer” 27 .<br />

Eis o que disse sobre a Eucaristia: “Se não mais houver Mesa<br />

Eucarística, os fiéis ficarão em jejum do alimento da alma. E, com esta<br />

cruel abstinência, em todas as espécies <strong>de</strong> vícios a malícia humana<br />

ficará cevada. Tudo será dissoluções e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns. As paixões vencerão a<br />

razão. E, no mundo, só haverá erros e infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>s” 28 .<br />

Devotíssimo <strong>de</strong> Maria se tornou um êmulo dos mariólogos<br />

Bernardo <strong>de</strong> Claraval e Afonso <strong>de</strong> Ligório e produziu sobre a Mãe <strong>de</strong><br />

Jesus páginas maravilhosas. Destaque-se este trecho: “Em Maria, a<br />

misericórdia sempre teve todas as características da Carida<strong>de</strong> no que<br />

ela tem <strong>de</strong> mais perfeito. Por excelência, ela é a consoladora dos aflitos,<br />

dos que sofrem. Mas, não satisfeita com esta compaixão afetiva que<br />

conforta, ela tem a compaixão efetiva que ampara qualquer miséria e<br />

corre em socorro <strong>de</strong> quem a invoca. É a Mãe do perpétuo socorro. Sabe<br />

perdoar aqueles que a fazem sofrer e, o que é mais heróico, aqueles que<br />

fazem seu Divino Filho sofrer.” 29<br />

Poucos cantaram tão bem os louvores a São José. Eis um trecho<br />

esplendoroso, exaltando sua humilda<strong>de</strong>: “Aquele que não foi Precursor,<br />

nem Apóstolo, nem evangelista, nem Mártir, nem Pontífice, nem Doutor,<br />

mas conheceu, serviu e amou Jesus Cristo tanto ou mais do que eles. É o<br />

humil<strong>de</strong> Carpinteiro <strong>de</strong> Nazaret. Era tal a sua santa humilda<strong>de</strong> que os<br />

Anjos lhe faziam companhia, muitas vezes prestando-lhe bons serviços.<br />

Um Anjo tranquilizou-lhe o espírito quando Jesus estava para nascer.<br />

Outro recomendou-lhe, em sonho, que fugisse para o Egito a fim <strong>de</strong><br />

livrar o Filho <strong>de</strong> Deus da perseguição <strong>de</strong> Hero<strong>de</strong>s e guiou-lhe os passos<br />

na longa caminhada <strong>de</strong> quase trinta dias. E outro, <strong>de</strong> lá, o trouxe <strong>de</strong><br />

volta à terra <strong>de</strong> on<strong>de</strong> havia partido, com Maria e o Menino. Se São José<br />

mereceu os obséquios dos Anjos, e se mereceu o diário convívio <strong>de</strong><br />

Cristo, durante muitos anos, foi porque a humilda<strong>de</strong> fê-lo gran<strong>de</strong>, muito<br />

gran<strong>de</strong>, o maior no Reino do Céu 30 .<br />

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É <strong>de</strong> notar finalmente que muitas <strong>de</strong> suas frases merecem ser<br />

arroladas entre os mais belos apotegmas <strong>de</strong> todos os tempos. De diversas<br />

obras colhemos alguns <strong>de</strong>stes preciosos aforismos.<br />

“O silêncio é o pai da palavra e o santuário da prudência.<br />

“A glória da paciência é sofrer sem culpa”.<br />

“A vida é feita <strong>de</strong> ressurreições”.<br />

“A boa biblioteca é ótima universida<strong>de</strong>”.<br />

“O melhor alimento da alma está nos livros”.<br />

“Melhor não viver do que viver com medo”.<br />

“A cronologia é um dos pilares da História”.<br />

“Quando menos se espera a verda<strong>de</strong> chega em socorro daqueles<br />

que a <strong>de</strong>sejam.”<br />

“Os remédios para a fortuna adversa <strong>de</strong>vem ser preparados na<br />

prosperida<strong>de</strong>”.<br />

“Tormentos da alma são as paixões que perturbam a paz interior,<br />

e nestas perturbações naufraga a alma”.<br />

“A bonda<strong>de</strong> é o verda<strong>de</strong>iro distintivo da nobreza”.<br />

“A verda<strong>de</strong> ou é total ou não é verda<strong>de</strong>. Não existe a meiaverda<strong>de</strong>”.<br />

Sua penúltima obra tem uma significativa epígrafe No horizonte da<br />

imortalida<strong>de</strong>.<br />

No jornal Estado <strong>de</strong> Minas do dia 19 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2001 mereceu do<br />

Dr. Murilo Badaró um precioso comentário sob o título <strong>de</strong> “Em honra da<br />

velhice”, qualificando este estudo como “maravilhoso sob todos os<br />

aspectos” e exalta “o vigor e a notável erudição” do autor. Salienta que,<br />

“fiel ao melhor estilo plutarquiano, analisa com minúcias a vida <strong>de</strong><br />

varões mineiros e brasileiros que ultrapassaram os oitenta anos”.<br />

Fecha o atual Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> seu artigo com esta<br />

sentença lapidar: No horizonte da Imortalida<strong>de</strong> é um livro notável,<br />

produzido pelo espírito vigoroso <strong>de</strong> quem teve a sabedoria <strong>de</strong> envelhecer<br />

com dignida<strong>de</strong>” 31 .<br />

Segundo o Professor Arnaldo Niskier, que foi Presi<strong>de</strong>nte da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> esta obra é “um refrigério para aqueles que<br />

vêm na velhice uma conquista efetiva da vida” 32 .<br />

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Centenário <strong>de</strong> nascimento do Pe. Pedro Maciel Vidigal _____________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 59<br />

Sem dúvida a magistral obra No Horizonte da imortalida<strong>de</strong> será<br />

uma das melhores produções literárias, históricas, filosóficas e teológicas<br />

que marcará as letras pátrias neste século XXI.<br />

CONCLUSÃO<br />

A imortalida<strong>de</strong>, privilégio dos seres que possuem uma alma<br />

espiritual e que o nosso homenageado <strong>de</strong> hoje já alcançou no Reino <strong>de</strong><br />

Deus, mas imortalida<strong>de</strong> ainda aqui na terra, pois os feitos dos gran<strong>de</strong>s<br />

homens não po<strong>de</strong>m nunca ser olvidados e são lembrados <strong>de</strong> geração em<br />

geração.<br />

Há <strong>de</strong> palpitar sempre por toda parte sua mensagem <strong>de</strong> que a<br />

cultura <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser influente e repercussiva quando não se projeta como<br />

fator <strong>de</strong> consequências futuras a bem <strong>de</strong> todos, evitando-se um<br />

empobrecimento das esperanças sociais.<br />

Por tudo que foi aqui exposto ele revive nas sauda<strong>de</strong>s da pátria,<br />

refulge nas idéias <strong>de</strong>ixadas num rastilho <strong>de</strong> luz, no patriotismo <strong>de</strong> que foi<br />

prestimoso, útil, procurando imitar o Mestre divino fazendo o bem por<br />

on<strong>de</strong> passou.<br />

Sobre sua memória rebrilha a gratidão dos amigos, das localida<strong>de</strong>s<br />

que ele agraciou com sua operosida<strong>de</strong>, da pátria que ele honrou como<br />

parlamentar e cultor invicto <strong>de</strong>sta língua pátria que ele abrilhantou como<br />

poucos.<br />

O estilo é o homem, já dizia Buffon, e ler alguma página do Pe.<br />

Pedro Maciel Vidigal é logo i<strong>de</strong>ntificar o titã da palavra escrita e oral<br />

pela beleza do torneio das roçagantes frases, pela profundida<strong>de</strong> do<br />

pensamento, pela garra com que a tese é <strong>de</strong>fendida com tal argumentação<br />

que <strong>de</strong>ixariam Aristóteles perplexo e Tomás <strong>de</strong> Aquino exultante.<br />

Estilo <strong>de</strong>scomunal <strong>de</strong> um exímio pensador.<br />

A intuição dos gran<strong>de</strong>s problemas humanos com ele foi além do<br />

po<strong>de</strong>r lógico, frisou a idéia e tornou esta idéia um fato no espírito pela<br />

robustez da expressão.<br />

A palavra é o sinal artificial, instrumental da idéia que é o sinal<br />

natural, formal da essência da coisa na mente humana, mas nem sempre<br />

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as palavras empregadas exprimem com clareza as idéias. Para o Pe. Pedro<br />

Maciel Vidigal, porém, elas traduziram luminosamente os conceitos,<br />

mesmo porque estes lhe foram claros, distintos e a<strong>de</strong>quados e, <strong>de</strong>ste<br />

modo, ele i<strong>de</strong>alizava o concreto e concretizava o abstrato com rara<br />

maestria.<br />

Seu cérebro ostentou uma fulguração quase <strong>de</strong> um gênio e sua pena<br />

tem o talismã <strong>de</strong> um mago.<br />

Sua concepção acuminosa rivalizou com sua palavra soberana.<br />

Aquela se <strong>de</strong>sprega em vôos <strong>de</strong> um Boécio e estas em linhas <strong>de</strong> um<br />

Bramante.<br />

É que investigando, imaginando, ensinando, combatendo seu<br />

pensamento foi todo luz, e sua frase cor.<br />

Um perfeito mestre, um literato genial, in<strong>de</strong>fesso cultor da<br />

antiguida<strong>de</strong> clássica e amante ferventíssimo do Belo.<br />

Tertuliano e Agostinho, dois leões da África, se vivos, se curvariam<br />

ante o vigor intelectual <strong>de</strong>ste que hoje recebe nossas homenagens e<br />

Homero e Horácio teceriam loas a quem tanto honra o linguajar humano.<br />

Se Hei<strong>de</strong>gger afirmou que o vazio sonoro é o maior dos erros por<br />

<strong>de</strong>slustrar o que o homem, ser pensante, tem <strong>de</strong> mais característico e<br />

elevado, ele, por certo proclamaria que poucos se equipararam ao Pe.<br />

Pedro Maciel Vidigal no que tange à Teoria e à Prática da Filosofia da<br />

Linguagem por ele, <strong>de</strong>ste modo, sumamente opulentadas.<br />

A glória da língua portuguesa que tem seu cume em Camões<br />

atingiu páramos fulgurantes na riqueza literária <strong>de</strong>ste que estamos<br />

homenageando.<br />

A grandiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vieira e a ternura <strong>de</strong> Bernar<strong>de</strong>s confluem,<br />

fulgentemente, em suas páginas imorredouras.<br />

Louve a Inglaterra os méritos <strong>de</strong> Byron, a Alemanha os <strong>de</strong> Goethe,<br />

a Itália os <strong>de</strong> Manzoni, a França os <strong>de</strong> Victor Hugo, a Espanha os <strong>de</strong><br />

Cervantes, que o Brasil proclamará méritos não menos luminosos <strong>de</strong> Pe.<br />

Pedro Maciel Vidigal e, por que não dizer, a igualar a todos eles na rijeza<br />

e lume na frase e <strong>de</strong>mais arestas e fogos no pensamento.<br />

Pelo adamantino <strong>de</strong> sua escrita à guisa <strong>de</strong> condor, ascen<strong>de</strong>ndo mais<br />

e mais no vôo audacioso e olhando sempre o Sol, <strong>de</strong> fito em fito, ele<br />

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Centenário <strong>de</strong> nascimento do Pe. Pedro Maciel Vidigal _____________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 61<br />

atingiu, <strong>de</strong> fato, sua culminância na referida obra “No Horizonte da<br />

Imortalida<strong>de</strong>”, obra prima, opus magnum, o coronal <strong>de</strong> todas as obras,<br />

que ficará para sempre nos anais do mais profundo humanismo. Aí está,<br />

<strong>de</strong> fato, o homem superando a si mesmo no tempo, tão <strong>de</strong>stemido como<br />

Paulo <strong>de</strong> Tarso, tão poético como Francisco <strong>de</strong> Assis, po<strong>de</strong>ndo proclamar<br />

com Paul Clau<strong>de</strong>l: “Vivo à espera do encontro com Deus. E uma alegria<br />

inexplicável me inva<strong>de</strong> 31 .<br />

A História Eclesiástica revela, que através dos tempos, gran<strong>de</strong>s<br />

figuras do clero se serviram <strong>de</strong> seus talentos para lutar por nobres causas<br />

como políticos eméritos.<br />

As gran<strong>de</strong>s facetas do gênio, as magnas balizas da ciência, as<br />

magníficas cintilações da palavra, as luminosas culminações da glória, as<br />

estupendas personificações da solidarieda<strong>de</strong>, se contemplam nestes<br />

eclesiásticos que iluminram os parlamentos das mais diversas nações.<br />

Nas luminosas páginas da História da Igreja logo se percebe a<br />

dificulda<strong>de</strong> da escolha entre tantos nomes emblemáticos, o que revela a<br />

profusão <strong>de</strong>stes patriotas a serviço do povo.<br />

Sob seus influxos a civilização avançou, a história se iluminou, o<br />

bem centuplicou, a fé cintilou, a socieda<strong>de</strong> se opulentou, a humanida<strong>de</strong> se<br />

transfigurou, a vida humana se dignificou.<br />

Foi o que aconteceu por toda parte e, no Brasil, por exemplo, na<br />

época do Império com toda uma plêia<strong>de</strong> <strong>de</strong> bispos e sacerdotes ilustres<br />

que honraram e dignificaram o Parlamento brasileiro.<br />

Assim tem sido sempre e também imerso nesse transluzentíssimo<br />

i<strong>de</strong>al patriótico, professando a ciência, edificando a socieda<strong>de</strong> e servindo<br />

à civilização, se ergue, como figura proeminente com sua valiosíssima<br />

parcela <strong>de</strong> contribuição para a gran<strong>de</strong>za do Brasil, aquele que neste<br />

momento ren<strong>de</strong>mos nossas vibrantes homenagens.<br />

Larga folha <strong>de</strong> serviços à Igreja e à pátria o cre<strong>de</strong>ncia a tanto.<br />

Com efeito, dos bons médicos se diz que possuem um notável olho<br />

clínico. Pe. Pedro Maciel Vidigal, como político, sabia diagnosticar os<br />

acontecimentos e, por isto, sempre agiu no momento oportuno,<br />

repassando verbas a quem bem as empregaria com mãos honestas e<br />

dinâmicas.<br />

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O que superioriza o caráter <strong>de</strong> um homem é a firmeza <strong>de</strong><br />

princípios. Ser útil obriga a ser bom; ser bom, leva a ser firme; ser firme,<br />

significa ser forte. Daí vem a sabedoria: “Attingit sapientia a fine usque<br />

ad finem, et disponit omnia suaviter” – a sabedoria atinge, pois,<br />

fortemente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> uma extremida<strong>de</strong> a outra e dispõe todas as coisas com<br />

or<strong>de</strong>m.<br />

Foi assim que, por longos anos labutou Pe. Pedro Maciel Vidigal.<br />

Não sem sacrifícios, tanto é verda<strong>de</strong> que há na gentileza do caráter toda a<br />

alteza da abnegação e na alteza da abnegação toda nobreza humana que<br />

não se curva jamais diante da injustiça.<br />

Ia-lhe sempre a certeza <strong>de</strong> que a verda<strong>de</strong>ira medida do agir é a lei<br />

sabiamente aplicada: “Juste fit quod lege permittente fit”.<br />

Por isto se impôs pelo serviço aos outros, guardando sempre uma<br />

atitu<strong>de</strong> horaciana, pois do poeta é a advertência que retrata todo bom<br />

político: “Aequam memento servare mentem” – lembrai-vos que <strong>de</strong>veis<br />

guardar a alma sempre igual. Isto ocorria mesmo quando tinha que<br />

verberar veementemente falsos patriotas ou polemizar aguerridamente<br />

com os profetas da mentira, como, por exemplo, combatendo duramente<br />

o divórcio, o comunismo ateu e outros erros.<br />

Nas batalhas pela verda<strong>de</strong> soube sempre verter o melhor sangue <strong>de</strong><br />

sua alma vibrante. Uniu a energia do intelecto com a força do amor à<br />

doutrina evangélica. Então os sentimentos eram ainda mais vivazes e<br />

uma paixão indomável arrasava a falsida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>smontava calúnias e<br />

inverda<strong>de</strong>s, sobretudo se estas atingiam a santa Madre Igreja.<br />

Por vezes, sempre naquele aprumo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência com que os<br />

intelectuais mantêm intemeratos os foros <strong>de</strong> sua pujança, apelava para<br />

uma ironia lapidada, mortal para quem <strong>de</strong>la era objeto.<br />

Tudo isto, porém, atauxiava, magnificamente, a eficiência <strong>de</strong> sua<br />

conduta política. Deste modo, nunca faltou aos graves assuntos da pátria<br />

e da religião.<br />

Com mesma razão com que Horácio falava <strong>de</strong> sua obra poética,<br />

po<strong>de</strong>ria o Pe. Pedro Maciel Vidigal proclamar, aludindo a sua obra <strong>de</strong><br />

parlamentar, <strong>de</strong> historiador e <strong>de</strong> literato “Exegi monumentum aere<br />

perennius – concluí um monumento mais duradouro que o bronze” 33 .<br />

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Centenário <strong>de</strong> nascimento do Pe. Pedro Maciel Vidigal _____________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 63<br />

Com Paulo <strong>de</strong> Tarso, outrossim, pô<strong>de</strong> repetir: “Bonum certamen<br />

certavi, cursum consumavi et fi<strong>de</strong>m servavi” (2 Tm 4,7). – “Combati o<br />

bom combate (principalmente lutando contra a infiltração comunista no<br />

Brasil), terminei a minha carreira (<strong>de</strong>ixarei a Política <strong>de</strong> cabeça erguida,<br />

muito erguida), guar<strong>de</strong>i a fé (em Deus, na Democracia e no bom futuro<br />

da Nação que é nossa)” 34 .<br />

Notas<br />

1 Pedro Maciel Vidigal, Ação Política. Belo Horizonte, Imprensa<br />

Oficial, 1971, p. 41- 44.<br />

2 __________ Ibi<strong>de</strong>m, p. 47.<br />

3 __________ Esfolando uma calúnia – Discurso pronunciado em<br />

Brasília na Câmara dos Deputados, Brasília, 1961, p. 23.<br />

4 __________ Ibi<strong>de</strong>m, p. 20.<br />

5 __________ Retratos Literários, Belo Horizonte, Imprensa Oficial,<br />

1981, p. 333.<br />

6 __________ Ibi<strong>de</strong>m, p. 345.<br />

7 Apud Pedro Maciel Vidigal, Minha Terra e Minha Gente, Belo<br />

Horizonte, O Lutador, 2003, p. 541.<br />

8 Pedro Maciel Vidigal, Os Antepassados, Belo Horizonte, Imprensa<br />

Oficial, 1979 e 1980.<br />

9 __________ Esfolando uma calúnia, op. cit. p. 22.<br />

10 _________Retratos Literários, op. cit. p. 111.<br />

11 _________Religião, Política e Humanismo, Belo Horizonte, Imprensa<br />

Oficial, 1984, p. 297.<br />

12 _________Ibi<strong>de</strong>m.<br />

13 ________ Retratos Literários, op.cit. p. 383-391.<br />

14 ________ Minha Terra e Minha Gente, op. cit. p. 449.<br />

15 ________ Retratos Literários, op. cit. p. 383.<br />

16 Márcio Garcia Vilela. Um livro original in: Jornal Estado <strong>de</strong> Minas,<br />

21.7.2001, p. 7.<br />

17 Pedro Maciel Vidigal. Retratos Literários, op. cit. p. 483.<br />

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64 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

18 ________ Religião, Política e Humanimo, op. cit, p. 13.<br />

19 ________ Ibi<strong>de</strong>m, p. 14.<br />

20 ________ Ibi<strong>de</strong>m, p. 16.<br />

21 ________ Ibi<strong>de</strong>m, p. 18.<br />

22 ________ Retratos Literários, op. cit. p. 323.<br />

23 ________ Ibi<strong>de</strong>m, p. 331 e 334.<br />

24 ________ Apud Pedro Maciel Vidigal, Minha Terra e Minha Gente,<br />

op.cit. p. 509.<br />

25 ________ Discurso <strong>de</strong> Paraninfo in: Revista Rua Direita, Órgão oficial<br />

dos Cursos <strong>de</strong> Licenciatura <strong>de</strong> Mariana, n. 5, Mariana, Editora D.<br />

Viçoso, 1978.<br />

26 ________ Religião, Política e Humanismo, op. cit. p. 13.<br />

27 _________ Ibi<strong>de</strong>m, p. 34.<br />

28 ________ Ibi<strong>de</strong>m, p. 47.<br />

29 ________Ibi<strong>de</strong>m, p. 59.<br />

30 Murilo Badaró. Em honra da Velhice in: Jornal Estado <strong>de</strong> Minas,<br />

19.6.2001, p. 7.<br />

31 Apud Pedro Maciel Vidigal, Minha Terra e Minha Gente, op. cit. p 522.<br />

32 Pedro Maciel Vidigal, No Horizonte da Imortalida<strong>de</strong>. Belo Horizonte,<br />

Editora O Lutador, 2001.<br />

33 Horácio, liv. III, O<strong>de</strong> 39, v.1.<br />

34 ___________ Ação Política, op. cit., p. 463 e 467.<br />

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SACERDOTE E ESCRITOR<br />

Oiliam José*<br />

Dificilmente, conseguimos pensar, com a <strong>de</strong>vida segurança, e com<br />

antecedência, o modo que marcará nosso encontro com a morte.<br />

É verda<strong>de</strong> que o Senhor transmitiu, em formal trecho do Evangelho<br />

do apóstolo Mateus (24,36), quando Jesus Cristo nos garantiu, em relação<br />

ao fim do mundo: “Quanto àquele dia e hora, ninguém sabe nada, nem<br />

sequer os anjos dos céus, mas somente o Pai.” E nós somos alcançados<br />

por esta advertência. Mas, geralmente não sabemos, também, sequer o<br />

modo e o dia <strong>de</strong> nossa morte. Contudo, em casos especiais, Deus nos<br />

conce<strong>de</strong> exceções a essa regra.<br />

Elas alcançam criaturas privilegiadas, que recebem <strong>de</strong> Deus a graça<br />

<strong>de</strong> formular, bem antes, a maneira como <strong>de</strong>ixarão as paragens terrenas,<br />

para o glorioso encontro com o Re<strong>de</strong>ntor. São almas a quem Deus<br />

distingue, privilegiadamente, com essa antevisão, que, aos maus<br />

entristece, e, aos bons e santos, consola. Realmente, estes últimos, que<br />

po<strong>de</strong>rão ser últimos na terra, serão primeiros na eternida<strong>de</strong>.<br />

Entre estes privilegiados, ouso, merecidamente, colocar o virtuoso,<br />

culto, zeloso missionário claretiano, que viveu ente 1934 e 2008, Padre<br />

João Batista Megale. Ele, sem ter sido último, partiu para o universo<br />

celeste aos primeiros minutos <strong>de</strong> 8 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2008, justamente na<br />

Festa da Nativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora, a quem amou <strong>de</strong> modo especial e<br />

cujo culto <strong>de</strong> hiperdulia viveu com milhares <strong>de</strong> seus assistidos, em<br />

mo<strong>de</strong>lar sacerdócio, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a or<strong>de</strong>nação em 11 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1960.<br />

* Professor, historiador, escritor, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 30 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

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66 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Realmente, Pe. Megale, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito, sentia os efeitos <strong>de</strong> perturbações<br />

cardíacas, sem que elas o afastassem, <strong>de</strong> modo maior, <strong>de</strong> seu<br />

mo<strong>de</strong>lar trabalho pastoral. Após diversas cirurgias e dolorosos<br />

tratamentos médicos, chegou ao dia 3 <strong>de</strong> setembro, do referido ano e, à<br />

noite, apesar <strong>de</strong> muito pa<strong>de</strong>cer fisicamente, celebrou, na Basílica <strong>de</strong><br />

Nossa Senhora <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> Belo Horizonte, sua última Eucaristia,<br />

especialmente pela intenção da alma do recém falecido poeta e seu colega<br />

acadêmico Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho. E, após o Evangelho,<br />

pronunciou belíssima oração, em que soube unir o comentário das<br />

palavras evangélicas com a comovente exaltação dos méritos pessoais e<br />

literários <strong>de</strong> seu confra<strong>de</strong>.<br />

Pouco <strong>de</strong>pois, recolheu-se ao leito e, já em plena noite, foi, com<br />

surpresa, alcançado pela hemorragia que o levou ao internamento no<br />

Hospital Life Center, on<strong>de</strong> foi logo medicado e levado a coma induzido,<br />

<strong>de</strong> que não se beneficiou. Apesar <strong>de</strong> toda assistência <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicados<br />

médicos e do operoso pároco Welington Cardoso Brandão e <strong>de</strong> seu<br />

auxiliar Pe. Calmon Rodovalho Malta, não recuperou a normalida<strong>de</strong> do<br />

pensar, seguido da morte nos primeiros minutos do dia já conhecido e<br />

após todo o socorro sacramental, como ele administrou a tantos.<br />

Consumou-se, então, a vida <strong>de</strong> Pe. Megale, que em 2006, <strong>de</strong>ixou<br />

redigido corajoso, belo e pru<strong>de</strong>nte poema, Oração da Noite, que foi<br />

revelado pelo volume XLIX da Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>,<br />

em seu 3º trimestre <strong>de</strong> 2008, e havia chegado em nossas mãos, bem antes.<br />

Aqui o repetimos, para respeitosa homenagem àquele que previu<br />

pormenores <strong>de</strong> seu falecimento e para ele se preparou dignamente.<br />

Deixou-nos, repetimos, nesse poema tocante modo <strong>de</strong> prever pormenores<br />

<strong>de</strong> sua morte, que sem temor <strong>de</strong> erro, merece ser proclamada como a <strong>de</strong><br />

um sacerdote e escritor que serviu mo<strong>de</strong>larmente à Igreja <strong>de</strong> Deus e às<br />

almas que o Senhor colocou em sua maravilhosa caminhada sacerdotal,<br />

tão característica <strong>de</strong> louvado sacerdote claretiano.<br />

Verda<strong>de</strong>iramente, Pe. Megale teve um sacerdócio capaz <strong>de</strong> permitir<br />

que ele, três anos antes, previsse os pormenores <strong>de</strong> sua partida para<br />

o estado celestial, em que pe<strong>de</strong>, para nós, as graças <strong>de</strong> que esperamos<br />

<strong>de</strong>le!<br />

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Sacerdote e escritor ___________________________________________________________________ Oiliam José 67<br />

ORAÇÃO <strong>DA</strong> NOITE<br />

Senhor, se esta noite, ao me <strong>de</strong>itar,<br />

No meu coração houver<br />

A mágoa <strong>de</strong> uma ofensa recebida,<br />

A dor <strong>de</strong> uma partida,<br />

O tédio das horas <strong>de</strong> um dia <strong>de</strong> trabalho sem prazer,<br />

A solidão dos meus passos sem companhia<br />

E da minha ternura retida,<br />

O peso da minha consciência que não praticou o bem,<br />

O vazio da minha alma que não se elevou<br />

Na contemplação da tua beleza e da tua bonda<strong>de</strong>,<br />

O medo <strong>de</strong> fechar as pálpebras sem saber<br />

Se uma nova aurora vai surgir...<br />

Eu te peço, Senhor, que, ao <strong>de</strong>spertar amanhã,<br />

Ainda experimente a alegria <strong>de</strong> viver através<br />

Do sorriso <strong>de</strong> um rosto amigo,<br />

Da expectativa <strong>de</strong> um reencontro,<br />

Da luz do sol batendo na janela do meu quarto,<br />

Do brilho <strong>de</strong> um olhar pousando sobre meus olhos,<br />

Do propósito <strong>de</strong> amar o meu próximo,<br />

Do gesto <strong>de</strong> adoração que me une a Ti,<br />

Da confiança nos teus braços que me sustentam<br />

Na escuridão.<br />

E, se nesta noite, ao me <strong>de</strong>itar,<br />

Tudo está bem, feliz te bendigo,<br />

E em tudo e por tudo, obrigado!<br />

E boa noite, meu Senhor!<br />

Revista Volume LI.p65 67<br />

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68 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Não temos como lícito <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> recordar, pelo menos em síntese, o<br />

que foi o sacerdócio <strong>de</strong> Pe. Megale.<br />

Como religioso claretiano, souber ser fiel às normas doutrinais e<br />

religiosas estabelecidas por sua amada e missionária Congregação, que,<br />

entre suas glórias, po<strong>de</strong> apresentar ao mundo centenas <strong>de</strong> mártires que<br />

foram sacrificados por amor a Cristo e a sua Igreja, durante o domínio<br />

comunista na Espanha, na década <strong>de</strong> trinta, do século passado. Entre<br />

esses heróis, lembramo-nos especialmente dos santos mártires <strong>de</strong><br />

Barbastro, beatificados pelo venerando Papa João Paulo II, em 25 <strong>de</strong><br />

outubro <strong>de</strong> 1992. Para tornar realida<strong>de</strong> seu mo<strong>de</strong>lar sacerdócio, venceu,<br />

inclusive, as <strong>de</strong>ficiências <strong>de</strong> sua saú<strong>de</strong>, marcada por falhas que levariam<br />

ao <strong>de</strong>sânimo até apóstolos seriamente acometidos por enfermida<strong>de</strong>s. E foi<br />

<strong>de</strong>vido a essa coragem que chegou até a servir, por seis anos, sua<br />

Congregação, na Casa Generalícia em Roma, e, também, a ser Pároco <strong>de</strong><br />

Lour<strong>de</strong>s <strong>de</strong> 1968 a 1979 e <strong>de</strong> 1989 a 2000. Continuando, é <strong>de</strong> lembrar<br />

que no exercício das funções <strong>de</strong> provincial, <strong>de</strong> 1977 a 1979 e <strong>de</strong> 1980 a<br />

1987, conseguiu, com oração e disciplina firme e caridosa, evitar que<br />

colegas seus sacerdotes e seminaristas ficassem imunes aos excessos da<br />

Teologia da Libertação, quando ela agia com temida força.<br />

E, porque marcou assim sua vida sacerdotal, conseguiu estimular as<br />

almas para o bem, o amor ao próximo, à Igreja, a Deus. Aliás, como<br />

prova <strong>de</strong>sse fecundo sacerdócio, <strong>de</strong>ixou 32 preciosos volumes<br />

englobando os boletins semanais, escritos para informação e formação<br />

religiosa e moral.<br />

Nesses boletins semanais, tratava dos assuntos capazes <strong>de</strong><br />

contribuir para a formação <strong>de</strong> seus paroquianos. Não se <strong>de</strong>tinha nem<br />

diante dos temas mais <strong>de</strong>licados e capazes <strong>de</strong> gerar infundadas<br />

incompreensões e críticas. Buscava sempre promover a glória <strong>de</strong> Deus e<br />

o bem das pessoas por ele dirigidas.<br />

Verda<strong>de</strong> é que, também, encontrou dificulda<strong>de</strong>s e oposições em seu<br />

sacerdócio. Venceu-os, pela oração, pelo trabalho apostólico e porque<br />

vivia com plena aceitação o sacrificar-se pelas almas. Até resistência <strong>de</strong><br />

leigos distanciados da hierarquia foram por ele superadas. E, <strong>de</strong>sse modo,<br />

fez manifestar-se sua mo<strong>de</strong>lar fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à Igreja.<br />

Revista Volume LI.p65 68<br />

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Sacerdote e escritor ___________________________________________________________________ Oiliam José 69<br />

Passando ao campo literário <strong>de</strong> sua ação, lembramos que, na<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, durante o pouco tempo que a ela pertenceu,<br />

ocupando, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2004, a ca<strong>de</strong>ira nº 26, <strong>de</strong>u mostras<br />

<strong>de</strong> sua ampla cultura. Sempre que o convocavam, também manifestava,<br />

com profundida<strong>de</strong>, os dons indicadores <strong>de</strong> sua inteligência e da cultura<br />

adquirida em famosos centros <strong>de</strong> estudos da Igreja, no Brasil, na França e<br />

na Itália. 1 E agia assim com humilda<strong>de</strong> que, também marcou seu mo<strong>de</strong>lar<br />

sacerdócio.<br />

Padre Megale, portanto, viveu para Deus, vivendo para seus<br />

dirigidos espirituais e até para os que insistiam em viver longe <strong>de</strong>le,<br />

como sacerdote. Foi, assim, missionário na plenitu<strong>de</strong> reservada aos que<br />

beneficiam caridosamente o próximo, no qual <strong>de</strong>scobrem a semelhança<br />

com Deus. Graças a tudo isso, continua perto <strong>de</strong> nós, pela maravilha da<br />

comunhão dos santos, existente, para nossa felicida<strong>de</strong>, na igreja<br />

militante!<br />

1 Aí, no Angelicum, doutorou-se em Teologia Dogmática. E, na Congregação dos Santos,<br />

prestou fecundos serviços, inclusive no do exame <strong>de</strong> escritos reservados.<br />

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70 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 70<br />

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RONDON PACHECO,<br />

UM DEPOIMENTO HISTÓRICO<br />

Fábio Doyle*<br />

Em 636 páginas, o ex-governador Rondon Pacheco,<br />

ex-ministro, ex-<strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral e estadual, relata os<br />

mais importantes episódios da política mineira e<br />

brasileira a partir <strong>de</strong> 1940, especialmente os relacionados<br />

com o movimento <strong>de</strong> 64. O livro reproduz, com<br />

fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, o seu <strong>de</strong>poimento gravado para a Coleção<br />

Memória Política <strong>de</strong> Minas.<br />

Quem quiser conhecer a história política <strong>de</strong> Minas, especialmente a<br />

que começou pouco antes da meta<strong>de</strong> do século passado, não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<br />

<strong>de</strong> ler as 636 páginas do volume Rondon Pacheco, da Coleção Memória<br />

Política <strong>de</strong> Minas. Trata-se <strong>de</strong> uma publicação da Assembleia Legislativa<br />

do Estado, já contando com outros volumes, todos discorrendo sobre<br />

personalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na vida pública mineira, como Pio Soares<br />

Canedo, Fabrício Soares da Silva, Armando Ziller e Oscar Dias Corrêa.<br />

O livro Rondon Pacheco, como os <strong>de</strong>mais, obtido através <strong>de</strong> longo<br />

<strong>de</strong>poimento gravado pelo ex-governador, foi editado em 2003. Quem me<br />

ofereceu o livro foi o próprio ex-governador. Em janeiro, em um<br />

* Jornalista. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupa ca<strong>de</strong>ira nº 10.<br />

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72 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

encontro com ele no BDMG, comentei que <strong>de</strong>veria escrever suas<br />

memórias, pois sua vida pública confundia-se com a história <strong>de</strong> nosso<br />

estado, abrangendo épocas importantes e polêmicas. Rondon contestou<br />

rápido: “Mas já está publicada”. Há dias, em novo encontro, ganhei <strong>de</strong>le<br />

o volume.<br />

Comecei a ler <strong>de</strong> imediato. Já estou na meta<strong>de</strong> das 636 páginas.<br />

Acompanhei uma parte importante dos fatos narrados, como jornalista da<br />

área político-parlamentar do Estado <strong>de</strong> Minas, até 1962, e como redatorchefe,<br />

<strong>de</strong>pois Diretor <strong>de</strong> Redação, <strong>de</strong>pois Editor Geral do Diário da<br />

Tar<strong>de</strong>, em sucessivas promoções na carreira a que me <strong>de</strong>diquei com<br />

amor, i<strong>de</strong>alismo e entusiasmo.<br />

O livro me fez recordar diversos episódios da história política, não<br />

só <strong>de</strong> Minas, mas do país, pois <strong>de</strong>las sempre participou o advogado, ex<strong>de</strong>putado<br />

estadual e fe<strong>de</strong>ral, ex-ministro, ex-governador. Rondon é, e não<br />

lhe faço favor em afirmar isso, um dos homens públicos mais atuantes e<br />

honrados <strong>de</strong> nossa história.<br />

Eu o conheci como advogado no foro <strong>de</strong> Belo Horizonte. Eu era<br />

estudante <strong>de</strong> Direito e fui <strong>de</strong>stacado pelo então secretário <strong>de</strong> redação do<br />

Estado <strong>de</strong> Minas, Eduardo <strong>de</strong> Campos Amaral, bela figura humana, para<br />

cobrir o setor forense. Milton Campos, Pedro Aleixo, dois ícones da<br />

advocacia e da política tinham escritório no Edifício Mariana, na Afonso<br />

Pena. No mesmo prédio atuava o jovem advogado, quase sempre em<br />

recursos encaminhados por colegas seus, <strong>de</strong> Uberlândia e dos municípios<br />

vizinhos, para o Tribunal <strong>de</strong> Justiça, que era presidido pelo<br />

<strong>de</strong>sembargador Nísio Baptista <strong>de</strong> Oliveira, magistrado austero,<br />

extremamente educado, daqueles <strong>de</strong> antigamente, que só falavam “nos<br />

autos”, como eu, que cobria o setor, posso testemunhar. Tão diferente do<br />

que hoje se vê por aí, especialmente no Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, já como jornalista político, responsável, além do<br />

noticiário normal, pela coluna “Notas <strong>de</strong> um cronista parlamentar”, que<br />

<strong>de</strong>pois se transformou em “Notas <strong>de</strong> um cronista político-parlamentar”,<br />

pu<strong>de</strong> acompanhar, registrar e comentar os fatos mais importantes da<br />

política mineira e, se me permitem, brasileira também. Pois eu escrevia<br />

no maior jornal do Estado, e Minas, todos sabemos, mesmo quando fora<br />

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Rondon Pacheco, um <strong>de</strong>poimento histórico ______________________________________________ Fábio Doyle 73<br />

da presidência da República, era, e continua a ser, o ponto <strong>de</strong> referência<br />

dos homens públicos brasileiros.<br />

Reecontrei, no novo campo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> jornalística, o mesmo<br />

correto e discreto Rondon Pacheco, que conhecera, mas <strong>de</strong> longe, ele na<br />

tribuna do TJ, eu, o jovem universitário-jornalista, tomando notas que<br />

seriam transformadas em notícias no jornal. Rondon se envolveu<br />

totalmente com a política, com a UDN, para ser mais exato. Estava<br />

sempre na linha <strong>de</strong> frente das batalhas partidárias, quer como <strong>de</strong>putado<br />

estadual, quer na Câmara Fe<strong>de</strong>ral, em disputas, que fizeram história, com<br />

o PSD, outro gran<strong>de</strong> partido, li<strong>de</strong>rado por políticos que marcaram<br />

presença na vida pública brasileira, todos já falecidos, como Benedicto<br />

Valladares, Israel Pinheiro, Gustavo Capanema, Pio Canedo, Bias Fortes,<br />

José Maria Alkmim, José Augusto Ferreira Filho. Rondon era discípulo<br />

fiel <strong>de</strong> Milton Campos e <strong>de</strong> Pedro Aleixo. Melhores lí<strong>de</strong>res, pelo caráter,<br />

pela ética, pela bravura na <strong>de</strong>fesa da <strong>de</strong>mocracia, ninguém po<strong>de</strong>ria<br />

ambicionar. Foi com eles que Rondon formou sua personalida<strong>de</strong>.<br />

O seu livro, o seu <strong>de</strong>poimento, é um relato correto, isento, preciso<br />

nos <strong>de</strong>talhes, nas informações, algumas surpreen<strong>de</strong>ntes, sobre o que <strong>de</strong><br />

fato aconteceu naqueles anos, especialmente a partir <strong>de</strong> 1964, difíceis,<br />

polêmicos. Suas memórias, dos dias que antece<strong>de</strong>ram e dos anos que se<br />

seguiram ao movimento que <strong>de</strong>rrubou João Goulart, ajudam a esclarecer<br />

muitos pontos nebulosos da chamada contrarrevolução. O governador<br />

Magalhães Pinto (da UDN), os generais Gue<strong>de</strong>s, Dióscoro do Vale,<br />

Mourão Filho, que <strong>de</strong>flagraram o movimento em Minas, tinham o apoio<br />

da maioria da opinião pública, dos políticos, dos meios militares, da<br />

imprensa. O objetivo por eles anunciado seria impedir a implantação no<br />

país <strong>de</strong> uma ditadura moldada no castrismo <strong>de</strong> Cuba. Hoje, muito se<br />

discute a respeito, e muitos dos que fizeram ou apoiaram a revolução, que<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> certo tempo tomou rumos in<strong>de</strong>sejados, procuram negar o apoio<br />

dado. A vida é assim.<br />

Por tudo isso, vale a pena ler o longo e <strong>de</strong>talhado <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong><br />

Rondon Pacheco, que foi chefe da Casa Civil do presi<strong>de</strong>nte Costa e Silva,<br />

foi secretário-geral e presi<strong>de</strong>nte da Arena (partido que os generais<br />

criaram para unificar as forças favoráveis ao movimento <strong>de</strong> 64, formado<br />

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74 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

basicamente pela UDN e pelo PSD). Foi indicado pelo presi<strong>de</strong>nte Médici<br />

para governar Minas, empenhando-se em trazer para o nosso Estado, com<br />

sucesso, novas indústrias, como a Fiat, além <strong>de</strong> outras conquistas no<br />

campo do <strong>de</strong>senvolvimento econômico. Já disse, em outro oportunida<strong>de</strong>,<br />

que a Revolução <strong>de</strong> 64, mesmo no período em que se transformou em<br />

discricionária, poupou Minas e os mineiros <strong>de</strong> maus governantes. Os<br />

generais souberam conviver <strong>de</strong>mocraticamente com o governador Israel<br />

Pinheiro, eleito por expressiva votação, ainda nos primeiros tempos do<br />

novo regime. E escolheram para sucedê-lo, em mandatos <strong>de</strong> quatro anos<br />

cada um, Rondon Pacheco, Aureliano Chaves e Francelino Pereira, três<br />

homens públicos sérios, honestos, dignos da tradição republicana. Os que<br />

viveram aqueles anos certamente concordarão comigo.<br />

Nos últimos dias do governo Israel Pinheiro, com Rondon já<br />

escolhido para suce<strong>de</strong>r-lhe, os dois fizeram uma viagem ao Oriente, em<br />

busca <strong>de</strong> investimentos para o Estado. Foi uma viagem histórica, pois<br />

reuniu dois políticos <strong>de</strong> origens partidárias opostas e muitas vezes, ou<br />

quase sempre, conflitantes, um do PSD, outro da UDN. Mas perfeitamente<br />

afinados com o escopo maior, que era <strong>de</strong>senvolver Minas. O objetivo<br />

inicial era trazer investimentos japoneses, além dos já conquistados com<br />

a Usiminas <strong>de</strong> Amaro Lanari Júnior, que participou do grupo com d.<br />

Vera. A viagem começou em Los Angeles, nos EUA, <strong>de</strong>pois Tóquio, no<br />

Japão. O governador Israel Pinheiro, com d. Coracy, retornou <strong>de</strong> Tóquio<br />

ao Brasil. Rondon, com d. Marina e Francisco Noronha, prosseguiu pela<br />

Ásia, via Hong-Kong, Tailândia, <strong>de</strong>pois Grécia, Itália, on<strong>de</strong> firmou o<br />

protocolo da vinda da Fiat para Betim, encerrando o roteiro na<br />

Alemanha. Fui o único jornalista a participar da viagem, por indicação<br />

dos que dirigiam na época os <strong>de</strong>stinos dos Associados em Minas,<br />

Geraldo Teixeira da Costa e Pedro Aguinaldo Fulgêncio, ambos<br />

referências obrigatórias na história da imprensa mineira. Pu<strong>de</strong><br />

testemunhar o entrosamento, a amiza<strong>de</strong>, o respeito que existia entre os<br />

dois gran<strong>de</strong>s homens públicos mineiros, um ainda governador, o outro<br />

governador já escolhido. E do empenho com que trabalharam para<br />

transformar em realida<strong>de</strong>, primeiro no Japão, <strong>de</strong>pois na Europa, os 32<br />

projetos elaborados pelo INDI – Instituto <strong>de</strong> Desenvolvimento Industrial,<br />

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Rondon Pacheco, um <strong>de</strong>poimento histórico ______________________________________________ Fábio Doyle 75<br />

hoje com Integrado, no lugar <strong>de</strong> Industrial, criado no governo <strong>de</strong> Israel, –<br />

<strong>de</strong>stinados a dar nova dimensão à economia mineira. A Fiat, a Krupp,<br />

que instalaram suas fábricas em Minas, e tantas outras iniciativas que<br />

foram concretizadas naquela viagem, evi<strong>de</strong>nciaram que eles estavam<br />

certos.<br />

Tudo isso está nas 636 páginas do livro-<strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Rondon<br />

Pacheco. Que não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser lido pelos que se interessam pelo<br />

nosso Estado e pelos que querem conhecer uma parte importante <strong>de</strong><br />

nossa história mais recente. Não posso terminar sem, citar os cientistas<br />

políticos que fizeram a entrevista com Rondon, Odilon Vargas Toledo e<br />

Sílvia Barata <strong>de</strong> Paula Pinto. Foram exatos, inteligentes nas perguntas,<br />

insistentes, como <strong>de</strong>veriam ser, em busca <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>talhes. Uma obra que<br />

os honra e engran<strong>de</strong>ce quem, na Assembleia Legislativa, i<strong>de</strong>alizou e<br />

executou o projeto. Espero ler, ainda, os <strong>de</strong>mais volumes da série.<br />

Revista Volume LI.p65 75<br />

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76 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 76<br />

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O LIVRO DE<br />

MARIL<strong>DA</strong> TROPIA DE BARROS<br />

Danilo Gomes*<br />

Quem nasceu poeta, um dia, em geral, se revela; <strong>de</strong>mora, hesita,<br />

mas acaba retirando os poemas da gaveta e os entrega ao público; ren<strong>de</strong>se<br />

à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação. É o que aconteceu com a advogada<br />

Marilda Tropia <strong>de</strong> Barros. Na infância, fomos vizinhos em Mariana,<br />

cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> nascemos. Conheci seus pais, Sr. João Tropia e D. Tita <strong>de</strong><br />

Castro Tropia. Fui amigo <strong>de</strong> infância <strong>de</strong> seu irmão Décio, personagem <strong>de</strong><br />

seu poema elegíaco “Morte intempestiva”. A consciência da morte, da<br />

perda, da finitu<strong>de</strong> da vida permeia outros <strong>de</strong> seus poemas, reveladores <strong>de</strong><br />

aguda sensibilida<strong>de</strong>, como “A morta” (inspirado em um conto <strong>de</strong><br />

Maupassant); “Thánatos”, “A morte <strong>de</strong> Maria Verona” (a mais bela das<br />

meretrizes, musa dos boêmios), “Exéquias”, “Meus mortos”, “O suicida”,<br />

“Exorcismo”, “Perdas e danos”.<br />

Mas há os momentos solares, que tomam o lugar da melancolia e<br />

da nostalgia, e é quando o coração celebra a vida, o passado gentil e <strong>de</strong><br />

amáveis lembranças. É o caso <strong>de</strong> “A terra natal”, “Melodia, harmonia e<br />

ritmo”, “Na época do footing”, “Lembranças” (“e me veio o som<br />

pungente/ do canto gregoriano, /tão belo, tão comovente,/que ouvia<br />

antigamente.” A sauda<strong>de</strong>, aqui, quase se torna um bálsamo.<br />

* Jornalista, escritor. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 2.<br />

Revista Volume LI.p65 77<br />

12/5/2009, 15:29


78 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

O livro <strong>de</strong> Marilda, intitulado Passagem, é uma espécie <strong>de</strong> “acerto<br />

<strong>de</strong> contas” com numerosos e variados momentos <strong>de</strong> sua vida, à qual não<br />

faltam as lembranças amoráveis do nosso tempo <strong>de</strong> criança, quando<br />

frequentávamos, todos nós, meninos, moços e idosos, o Cine Theatro<br />

Central (que o pai <strong>de</strong>la dirigia), o nosso “Cinema Paradiso”.<br />

É do lacônico romancista Graciliano Ramos a frase: “A palavra<br />

não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para<br />

dizer.” Nossa poeta tem consciência plena disso – ela diz, ela se entrega,<br />

algumas vezes amarga diante <strong>de</strong> um mundo <strong>de</strong> sofrimento (seu e alheio),<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdícios, <strong>de</strong> disparates. Ela diz, e diz com elegância, economia<br />

verbal, estilo, extrema sensibilida<strong>de</strong>. Estamos diante <strong>de</strong> uma poeta<br />

(alguns ainda preferem poetisa) <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> elevada qualida<strong>de</strong><br />

estética.<br />

Sobe, para Marilda Tropia <strong>de</strong> Barros, neste livro <strong>de</strong> estreia, o pano<br />

da memória, como no teatro e no filme. O passado estufa <strong>de</strong> vento o<br />

velame das lembranças, a sauda<strong>de</strong> que se recusa a partir <strong>de</strong> nossa vida.<br />

Ora em ameno tom coloquial, ora se refinando mais para uma<br />

composição on<strong>de</strong> discretamente se refugia o erudito, ora com um toque<br />

<strong>de</strong> ternura, um laivo <strong>de</strong> ironia ou um assomo <strong>de</strong> comoção, a excelente<br />

poesia <strong>de</strong> Marilda Tropia <strong>de</strong> Barros encantará os leitores. Escreveu o<br />

gran<strong>de</strong> poeta mineiro-brasiliense An<strong>de</strong>rson Braga Horta, ganhador do<br />

Prêmio Jabuti, à pág. 59 <strong>de</strong> seu livro Sob o Signo da Poesia: “Os poetas<br />

são seres solitários, porque é na solidão que se cristaliza o poema; mas<br />

são, também, seres solidários, porque em sua solidão se cristaliza a<br />

canção dolorosa dos sofrimentos da tribo; a narração comovida <strong>de</strong> suas<br />

pugnas, ainda quando encarnadas na singularida<strong>de</strong> do narrador e<br />

sintetizadas nos seus íntimos conflitos; (...).” São palavras que se aplicam<br />

à nossa autora, amadurecida nos volteios e andanças da vida e que agora<br />

nos oferece uma antologia pessoal, memorialística e confessional, que a<br />

Mazza chancela com seu prestigioso selo editorial. Com capa <strong>de</strong> Túlio<br />

Oliveira, fotos da capa e miolo <strong>de</strong> César Tropia e diagramação <strong>de</strong><br />

An<strong>de</strong>rson Luiz Souza. Belo trabalho gráfico, refinado.<br />

Mariana é terra <strong>de</strong> poetas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Cláudio Manuel da Costa. Eles<br />

estão agora no notável jornal Aldrava. Per<strong>de</strong>mos, há dias, no Rio, o<br />

Revista Volume LI.p65 78<br />

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O livro <strong>de</strong> Marilda Tropia <strong>de</strong> Barros ___________________________________________________ Danilo Gomes 79<br />

magnífico poeta marianense Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho, aos 90<br />

anos. Um astro que se foi. Agora surge outra voz marianense, Marilda<br />

Tropia <strong>de</strong> Barros, uma estrela que a sensibilida<strong>de</strong>, o talento e a alta<br />

qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus poemas fizeram surgir no firmamento literário <strong>de</strong><br />

Minas e do Brasil. A poesia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Homero, não morre, é eterna; um<br />

poeta parte, outro surge. Marilda toma, em suas mãos, a ban<strong>de</strong>ira que foi<br />

<strong>de</strong> Alphonsus. É uma responsabilida<strong>de</strong>, uma o<strong>de</strong> à tradição, à força e<br />

encantamento da poesia. Um estado <strong>de</strong> graça que se projeta, numa catarse<br />

<strong>de</strong> luz, em direção ao futuro. Como no filme A Socieda<strong>de</strong> dos Poetas<br />

Mortos.<br />

Revista Volume LI.p65 79<br />

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80 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 80<br />

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ALPHONSUS FILHO,<br />

HABITANTE <strong>DA</strong> POESIA<br />

Angelo Oswaldo <strong>de</strong> Araújo Santos*<br />

O filho <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens po<strong>de</strong>ria ser outra coisa senão<br />

habitante da poesia? A pergunta <strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>,<br />

formulada em tom <strong>de</strong> contun<strong>de</strong>nte resposta, expressa a expectativa que<br />

podia ter perturbado, <strong>de</strong> modo inquietante, a trajetória <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong><br />

Guimaraens Filho. Foi um imenso poeta, talvez maior do que o pai,<br />

haverá <strong>de</strong> concluir quem se <strong>de</strong>bruçar, em engajamento crítico radical,<br />

sobre o legado <strong>de</strong> ambos.<br />

Membro da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, como o pai e o irmão, o<br />

contista e romancista João Alphonsus, ele morreu aos 90 anos e <strong>de</strong>ixa<br />

uma sensação <strong>de</strong> vazio na poesia brasileira, embora tenha-se mantido, em<br />

discrição imperturbável, sempre distante das efervescências do meio<br />

literário e cultural. No seu caso, a torre ebúrnea da sé primaz <strong>de</strong> Minas<br />

virou um edifício em Laranjeiras, mirante privilegiado da poesia e<br />

refúgio do poeta junto às estrelas.<br />

Nascido em Mariana, aos 3 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1918, o décimo-quarto<br />

filho do gran<strong>de</strong> simbolista faleceu em 28 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Era casado com Hymirene Papi <strong>de</strong> Guimaraens, sendo seus<br />

filhos o poeta Afonso Henriques Neto, o artista plástico Luís Alphonsus e<br />

a antropóloga Dinah <strong>de</strong> Guimaraens.<br />

* Jornalista, escritor, prefeito <strong>de</strong> Ouro Preto e membro da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupa<br />

a ca<strong>de</strong>ira n o 3.<br />

Revista Volume LI.p65 81<br />

12/5/2009, 15:29


82 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Ao longo da vida, recebeu, das mais variadas procedências, a<br />

confirmação inquestionável <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> fato lhe havia reservado,<br />

no território sem limites herdado do patriarca, uma estrada larga e<br />

luminosa. Por esse caminho, alcançou o espaço a que não se chega pela<br />

ascendência, senão pela ascensão própria <strong>de</strong> quem construiu uma das<br />

mais fascinantes manifestações da lírica brasileira. Os poetas o<br />

admiravam, singularmente, e o leram com alumbramento.<br />

Só a noite é que amanhece, volume <strong>de</strong> quase 700 páginas, veio<br />

celebrar o transcurso dos seus 85 anos e privilegiar o público ledor com<br />

uma rica e abrangente reunião dos numerosos trabalhos. O leitor<br />

certamente po<strong>de</strong> repetir, no curso das páginas, a confissão <strong>de</strong> Cecília<br />

Meireles a Alphonsus Filho, em carta <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1954, diante <strong>de</strong><br />

O mito e o criador: “Seu livro, <strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong> pureza poética, tem sido<br />

meu consolo, nesses dias torvos que estamos atravessando. Leio-o e é<br />

como se estivesse viajando num raio <strong>de</strong> lua”.<br />

A lua, que acalentou a tristeza branca e álgida do primeiro<br />

Alphonsus, nas noites mortas <strong>de</strong> Minas, acompanha o filho, entre “a<br />

angústia e a alvorada”, como signo que leva à plenitu<strong>de</strong>. Para o autor, a<br />

poesia “vem trazer-nos a luz, transfigurar-nos” (pág. 153). Toda uma<br />

tradição <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> e linguagem, como percebe José Guilherme<br />

Merquior, atinge sublime reverberação na obra <strong>de</strong> Alphonsus Filho,<br />

permitindo-lhe <strong>de</strong>sfazer as trevas, recuperar o canto, <strong>de</strong>scobrir o segredo<br />

dos pássaros, criar “a poesia <strong>de</strong> um mundo que renasce em nós<br />

perenemente” (pág. 200).<br />

O poema, para ele, é “flor que nasce em caule ausente, estrela nem<br />

mesmo entrevista, fogo a lavrar em mata oculta, canto que ninguém<br />

escuta e no entanto vibra” – “mágica, magia, mito que em carne cálida se<br />

revela, noite, o poema, noite atroz e manhã fresca, e espuma” (pág. 629).<br />

Impressiona o leitor, diz Guilhermino César, “mesmo o habituado a lidar<br />

com poemas <strong>de</strong> voo real, a distância e a altura a que chegam os poemas<br />

<strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho”. Ele está cada vez mais perto da<br />

linguagem essencial, sintetiza o “ver<strong>de</strong>” Guilhermino.<br />

A antologia, editada pela Record, abre-se com versos <strong>de</strong> Lume <strong>de</strong><br />

Estrelas, livro inaugural do fim da década <strong>de</strong> 30, cujo título virou nome<br />

Revista Volume LI.p65 82<br />

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Alphonsus Filho, habitante da poesia _________________________________ Angelo Oswaldo <strong>de</strong> Araújo Santos 83<br />

<strong>de</strong> rua no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Seguem-se Sonetos da Ausência (1940-43) e<br />

Nostalgia dos Anjos (1939-44), livro <strong>de</strong>dicado à memória do irmão João<br />

Alphonsus, notável ficcionista e poeta prematuramente falecido. O<br />

Unigênito (1946-47) e A Cida<strong>de</strong> do Sul (1944-48) são seguidos pelos<br />

poemas <strong>de</strong> O Irmão, <strong>de</strong> ar<strong>de</strong>nte misticismo cristão e <strong>de</strong>dicados a Alceu<br />

Amoroso Lima. Adiante, aparecem produções integrantes <strong>de</strong> O mito e o<br />

criador, livro que levou paz a Cecília no sombrio período da morte <strong>de</strong><br />

Vargas.<br />

Elegia <strong>de</strong> Guarapari é <strong>de</strong> 1953, ano <strong>de</strong> Uma rosa sobre o<br />

mármore, sonetos consagrados à memória do pai, quando da inauguração<br />

do mausoléu no cemitério <strong>de</strong> Sant’Ana, em Mariana, pelo governador<br />

Juscelino Kubitschek e pelo poeta Augusto Fre<strong>de</strong>rico Schmidt. Os<br />

Sonetos com <strong>de</strong>dicatória foram escritos em Guarapari, também em 53, e<br />

fixam aspectos <strong>de</strong> poetas e artistas que o autor quis homenagear.<br />

Cemitério <strong>de</strong> pescadores (1954), Aqui (1944-60), O habitante do dia<br />

(1959-63), Transeunte (1963-68) e Solilóquio do suposto atleta (1963-<br />

71) acrescentam belos trabalhos à reunião.<br />

Ao Oeste chegamos (1962-65) registra a presença pioneira do poeta<br />

em Brasília, acompanhando Juscelino Kubistchek, <strong>de</strong> quem foi auxiliar<br />

no governo <strong>de</strong> Minas e na presidência da República. Poemas da Ante-<br />

Hora (1967-70) são seguidos por “Absurda fábula” (1969-72), em que o<br />

poeta diz que “há uma luz absurda <strong>de</strong>spenhando-se,/ <strong>de</strong>spenhando-se,<br />

ferindo/ com adagas <strong>de</strong> cristal a dor da sombra”, e procura a “noite<br />

diurna” para <strong>de</strong>scobrir que Só a noite é que amanhece (1972-75).<br />

O tecelão do assombro enfeixa poemas <strong>de</strong> 1975 a 1990 e inclui o<br />

soneto dos 80 anos: “Cada década se esfaz e como pesa/ <strong>de</strong>pois, sentir o<br />

ido! O que se preza/ é algo que veio num rolar <strong>de</strong> dados”. Discurso no<br />

<strong>de</strong>serto (1975-81) confessa: “po<strong>de</strong>s <strong>de</strong>por em qualquer mesa/ tua<br />

tristeza”. “Caem sonhos já velhos como o leite/ azedo nuns canecos<br />

entortados”. Em Nó, enlaçam-se poemas <strong>de</strong> 1979 a 1981 e os fios da<br />

memória: “Em Minas me perdi, achei-me/ subitamente reconstruído”.<br />

Cantor das montanhas mineiras, é ele também “um dos nossos gran<strong>de</strong>s<br />

poetas do mar”, disse Alexei Bueno, que enaltece a sua sensibilida<strong>de</strong><br />

diante da efemerida<strong>de</strong> do tempo e da onipresença da morte.<br />

Revista Volume LI.p65 83<br />

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84 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Luz <strong>de</strong> agora, com versos <strong>de</strong> 1987 a 1990, irradia vibrante e serena<br />

luminosida<strong>de</strong>. “Já chega a hora mais tranqüila e pura/ on<strong>de</strong> a vida<br />

entreabre a polpa obscura”. “Brilhas? Parece que ainda vais brilhar”. Essa<br />

luz, clara e firme, revela as dimensões comoventes <strong>de</strong> uma obra que<br />

imprime ao efêmero da vida a marca da eternida<strong>de</strong>. E projeta Alphonsus<br />

Filho como referência singularíssima na poesia <strong>de</strong> língua portuguesa.<br />

Afonso Henriques Neto, nascido em Belo Horizonte em 1944, é<br />

autor <strong>de</strong> obra que se esten<strong>de</strong> sobre o plano mais alto da realização<br />

poética. Mantém o nome e a excelência da qualida<strong>de</strong>, o que é fato raro.<br />

Em 2008, por ocasião dos 90 anos e das seis décadas <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong><br />

criadora do pai, lançou uma seleta integrante da coleção “Melhores<br />

Poemas”, dirigida por Edla van Steen para a editora Global. Afonso<br />

Henriques Neto mostra como o gran<strong>de</strong> lírico opera, <strong>de</strong> livro para livro, e<br />

são mais <strong>de</strong> vinte, “uma série <strong>de</strong> transformações em seu caminho poético,<br />

sem jamais per<strong>de</strong>r a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> inicial”, marcada por “tempestuosa e<br />

noturna força romântica”. Oferece, assim, ao leitor mais uma<br />

oportunida<strong>de</strong> esplêndida <strong>de</strong> ouvir a voz que, segundo Drummond, “nos<br />

enriquece com sua melodia <strong>de</strong> órgão e flauta transversa, buscando<br />

conciliar os <strong>de</strong>sconcertos do mundo e abrir um caminho <strong>de</strong> céu a céu,<br />

entre sombras”.<br />

A obra <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho precisa ser divulgada e<br />

conhecida. “Como ainda aflige aquilo que eu não disse,/ como se fosse<br />

um sol que só eu visse...”. A inquietação do poeta se torna serena estesia<br />

na leitura <strong>de</strong> suas palavras. E sol resplan<strong>de</strong>cente para todos.<br />

Revista Volume LI.p65 84<br />

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O IMPERADOR DO DIVINO*<br />

Milton Campos**<br />

O critério <strong>de</strong> reeleição, que predominou na organização da chapa <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>putados fe<strong>de</strong>rais, <strong>de</strong>u a muita gente a impressão <strong>de</strong> que a política<br />

bernardista continua ainda vigente em Minas. Nada menos exato. O que<br />

resultou da reunião da comissão executiva do PRM foi justamente a<br />

consagração do presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Estado como supremo chefe e orientador da<br />

política mineira, segundo as expressões inequívocas da moção<br />

apresentada pelo próprio Sr. Artur Bernar<strong>de</strong>s. Assim, é a outras causas<br />

que se <strong>de</strong>ve atribuir a reeleição quase em massa da nossa pitoresca<br />

representação. De um lado, o ceticismo comodista do Sr. Antônio Carlos.<br />

De outro, a docilida<strong>de</strong> absoluta dos velhos representantes às <strong>de</strong>terminações<br />

presi<strong>de</strong>nciais. O Sr. Antônio Carlos <strong>de</strong>certo terá refletido que a<br />

maioria da bancada mineira constitui uma compacta massa inerte e<br />

informe, que os presi<strong>de</strong>ntes sempre têm empurrado para a direção que<br />

lhes apraz. E não será agora, com o fascinante argumento <strong>de</strong> subsídio,<br />

que os apagados burgos adquirirão a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer. Por isso<br />

não sentiu o presi<strong>de</strong>nte a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> renovar a bancada para melhor<br />

po<strong>de</strong>r reinstaurar em Minas o velho liberalismo eclipsado nas trevas dos<br />

últimos oito anos. Longe <strong>de</strong> nós aplaudir esse critério displicente da<br />

* Publicado no O Jornal do Rio <strong>de</strong> Janeiro em 22 janeiro <strong>de</strong> 1927.<br />

** Advogado e político, foi <strong>de</strong>putado estadual e fe<strong>de</strong>ral, senador, governador <strong>de</strong> Minas Gerais e<br />

ministro da Justiça. Nasceu em 16 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1900 em Ponte Nova e faleceu em Belo<br />

Horizonte, a 16 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1972. Ocupou a ca<strong>de</strong>ira nº 29 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Revista Volume LI.p65 85<br />

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86 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

reeleição. O que todo bom mineiro <strong>de</strong>sejava era ver na representação<br />

fe<strong>de</strong>ral nomes que honrassem verda<strong>de</strong>iramente o estado, pela cultura,<br />

pela dignida<strong>de</strong> pessoal, pela operosida<strong>de</strong>. Era assim antigamente. Minas<br />

mandava à Câmara pelo menos um grupo luzido <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> talento,<br />

que salvavam as tradições intelectuais do estado e intervinham nas<br />

<strong>de</strong>liberações pela força <strong>de</strong> suas autorida<strong>de</strong>s.<br />

Nesse tempo, a nossa representação não valia só pelo número...<br />

Nem tudo se per<strong>de</strong>u, é claro. Ficaram algumas figuras nobres, para<br />

consolo e sauda<strong>de</strong>. E nem se po<strong>de</strong> negar que o próprio Sr. Artur<br />

Bernar<strong>de</strong>s, quando saiu pelos campos, <strong>de</strong> cabresto na mão e bornal <strong>de</strong><br />

milho a tiracolo, para apanhar <strong>de</strong>putados, uma vez ou outra se transviou e<br />

encontrou alguns homens <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, que constituíram, durante o seu<br />

domínio, as raras e honrosas exceções confirmadoras da regra. Agora,<br />

com o Sr. Antônio Carlos, não seria <strong>de</strong> estranhar-se uma renovação<br />

integral, em que se aproveitassem valores reais, que, louvado seja Deus,<br />

não faltam entre nós. S. Exa., porém, talvez para não <strong>de</strong>terminar<br />

estremecimentos na superfície mansa e lisa da unanimida<strong>de</strong> mineira,<br />

preferiu adotar o critério da reeleição. Isso tornou odiosas as poucas<br />

exclusões havidas. Mas, incontestavelmente, <strong>de</strong>u ensanchas à inclusão <strong>de</strong><br />

algumas figuras <strong>de</strong> valor, que irão ajudar a disfarçar no Parlamento a<br />

indigência mental da maioria da bancada. E esses nomes novos vieram<br />

por indicação do Sr. Antônio Carlos. Quase todos eles vinham pleiteando<br />

as graças do PRM <strong>de</strong>s<strong>de</strong> outros tempos, e eram sempre afastados. E só as<br />

obtiveram agora, sob o novo regime. On<strong>de</strong> pois, o predomínio do expresi<strong>de</strong>nte<br />

no seio da Comissão Executiva?<br />

Ainda neste quatriênio se terá <strong>de</strong> reconstituir a Câmara Fe<strong>de</strong>ral e<br />

far-se-á mais uma renovação da bancada fe<strong>de</strong>ral. E cada vez se tornará<br />

mais patente o que já agora se começa a ver: <strong>de</strong>sapareceu do governo <strong>de</strong><br />

Minas a mentalida<strong>de</strong> ru<strong>de</strong>mente reacionária, que dava em resultado essa<br />

<strong>de</strong>plorável política <strong>de</strong> involução. Compreen<strong>de</strong>-se que não há <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>saparecer <strong>de</strong> um golpe a aparência <strong>de</strong> prestígio que, aos olhos menos<br />

agudos, ainda ro<strong>de</strong>ia o ex-presi<strong>de</strong>nte da República. Mesmo porque ele<br />

teve a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>de</strong>rir. Há pessoas que só se sentem fortes com o<br />

po<strong>de</strong>r nas mãos. Quando este lhes foge, revestem-se da mais franciscana<br />

Revista Volume LI.p65 86<br />

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O Imperador do Divino _____________________________________________________________ Milton Campos 87<br />

humilda<strong>de</strong>. O Sr. Artur Bernar<strong>de</strong>s tem visto, nos atos e nas palavras do<br />

presi<strong>de</strong>nte Antônio Carlos, que os princípios orientadores <strong>de</strong>ste são<br />

justamente opostos aos seus. Basta frisar este vivo contraste: o expresi<strong>de</strong>nte,<br />

ao <strong>de</strong>ixar o governo da República, <strong>de</strong>clarou, enfático, que<br />

colocava sua autorida<strong>de</strong> acima da lei: o Sr. Antônio Carlos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

assumiu o governo mineiro até hoje, não se tem cansado <strong>de</strong> repetir que<br />

quer ser um juiz, um rigoroso aplicador da lei. O divórcio <strong>de</strong> princípios<br />

fundamentais é manifesto. Mas o ex-presi<strong>de</strong>nte calçou as sandálias <strong>de</strong><br />

penitente, renunciou sua pregação <strong>de</strong> salvação pública e incorporou-se ao<br />

grosso das tropas liberais. Ele é um a<strong>de</strong>sista, que o Sr. Antônio Carlos<br />

po<strong>de</strong> não querer dispensar. E o que lhe resta <strong>de</strong> prestígio é pura<br />

aparência, que os homens que sabem ver consi<strong>de</strong>ram piedosamente.<br />

Ainda ontem tive ocasião <strong>de</strong> conversar com um dos mais brilhantes<br />

espíritos <strong>de</strong> Minas, que sabe sempre tecer um comentário ágil e<br />

malicioso, à margem dos acontecimentos. E ele comparava o Sr. Artur<br />

Bernar<strong>de</strong>s, na atual situação mineira, ao imperador do Divino. “O<br />

Divino” é uma festa religiosa tradicional no interior do estado. Designase<br />

o imperador e no dia da festa, lá vai ele, em procissão, <strong>de</strong>ntro do<br />

quadrado reverente, <strong>de</strong> cetro e cabeça coroada, para o palanque que serve<br />

<strong>de</strong> trono. O presi<strong>de</strong>nte da Câmara continua sancionando as posturas. O<br />

juiz é quem dá as sentenças. E o <strong>de</strong>legado quem efetua as prisões. Tudo<br />

continua como dantes. Mas, os símbolos da realeza vestem a pessoa<br />

inócua do Imperador, que ainda tem o ônus da farta mesa <strong>de</strong> doces aos<br />

cortesãos. O Sr. Artur Bernar<strong>de</strong>s é justamente isso: é o imperador do<br />

Divino da política mineira.<br />

Revista Volume LI.p65 87<br />

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88 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 88<br />

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PROFESSOR<br />

LUÍS CARLOS DE PORTILHO<br />

Aluísio Pimenta*<br />

Há poucos dias a Socieda<strong>de</strong> <strong>Mineira</strong> per<strong>de</strong>u uma <strong>de</strong> suas figuras<br />

altamente representativas, o Professor e Membro da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, o Professor aposentado da UFMG, Professor Luís Carlos <strong>de</strong><br />

Portilho. Conheci-o bem e creio que Minas Gerais lhe <strong>de</strong>ve um gran<strong>de</strong><br />

reconhecimento. Faleceu aos 99 anos, poucos meses antes <strong>de</strong> contemplar<br />

100 anos bem vividos. Ilustre Professor Universitário, lembro-me bem <strong>de</strong><br />

sua presença na cátedra, quando exerci a Reitoria da UFMG, entre 1964 e<br />

1967.<br />

Fomos companheiros no Rotary e na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Foi um cidadão muito ativo na Associação Comercial <strong>de</strong> Minas,<br />

propondo ações importantes em <strong>de</strong>fesa do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> Minas<br />

Gerais e do Brasil. Não <strong>de</strong>sejo neste artigo somente relembrar a<br />

bibliografia <strong>de</strong> um Mineiro e Brasileiro ilustre, mas preencher, a meu ver,<br />

um equivoco <strong>de</strong> não lembrarmos aos jovens a vida <strong>de</strong> cidadãos ou<br />

cidadãs que se <strong>de</strong>dicam a trabalhos a favor do <strong>de</strong>senvolvimento do país e<br />

da socieda<strong>de</strong>, especialmente aquelas pessoas que alcançaram ida<strong>de</strong>s<br />

avançadas mantendo sempre o interesse para o progresso <strong>de</strong> Minas e do<br />

Brasil. É o caso típico do Professor Luís Carlos <strong>de</strong> Portilho.<br />

* Professor, ex-ministro da Cultura, ex-reitor da UFMG, tem vários livros publicados. Ocupa a<br />

ca<strong>de</strong>ira nº 17 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Revista Volume LI.p65 89<br />

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90 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Ao falecer aos 99 anos, <strong>de</strong>ixa a todos um exemplo <strong>de</strong> trabalho,<br />

<strong>de</strong>dicação, dignida<strong>de</strong> e amor à causa pública.<br />

Formado em direito <strong>de</strong>dicou-se ao ensino na UFMG on<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sempenhou brilhante carreira na cátedra.<br />

Mas não se isolou. Foi um ativo membro da Associação Comercial<br />

<strong>de</strong> Minas, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhou importantíssimo papel em prol do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> nossa socieda<strong>de</strong> e do trabalho para o aprimoramento<br />

das ativida<strong>de</strong>s comerciais <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> em nossa jovem capital e no<br />

interior. Foi diretor do SESC. Nesta ativida<strong>de</strong> atuou na construção do<br />

Hospital Julia Kubitschek.<br />

Suas ativida<strong>de</strong>s foram muito amplas e <strong>de</strong> excelente nível. Membro<br />

ativo do Rotary Clube <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1943, <strong>de</strong>sempenhou esta ativida<strong>de</strong> com<br />

enorme frequência. Fomos companheiros na ativida<strong>de</strong> Rotariana. Exerceu<br />

a advocacia e o cargo <strong>de</strong> Juiz do Trabalho. Escritor competente, foi ativo<br />

colaborador <strong>de</strong> jornais <strong>de</strong> Belo Horizonte, <strong>de</strong> Minas em geral, bem como<br />

do Rio, <strong>de</strong> São Paulo e da Nova Capital Brasília. Sua riquíssima biografia<br />

mostra ainda ativida<strong>de</strong> na preservação <strong>de</strong> parques e jardins, tendo sido,<br />

inclusive o criador do Parque Nacional da Serra da Canastra.<br />

Foi diretor da Telemig e reconhecido por seu trabalho por vários<br />

municípios que lhe outorgaram o título <strong>de</strong> Cidadão Honorário.<br />

Devido a suas ativida<strong>de</strong>s como escritor, o Professor Portilho foi<br />

eleito membro da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Foi para mim gran<strong>de</strong> honra ser seu companheiro na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>,<br />

ativida<strong>de</strong> que exerceu com competência e dignida<strong>de</strong>.<br />

Não se po<strong>de</strong> neste final esquecer o chefe <strong>de</strong> família e principalmente<br />

o vovô <strong>de</strong> dois netinhos e o encanto <strong>de</strong> duas netinhas pelas quais<br />

foi batizado como o Vovô Bala. Fato interessante, segundo está escrito no<br />

resumo da biografia que informava aos amigos a morte do Professor<br />

Portilho. E o fato <strong>de</strong> ele ter dito que Deus podia esperar para chamar<br />

Tancredo Neves <strong>de</strong>pois que ele exercesse a Presidência da República; e<br />

os parentes e amigos também dizemos que Deus po<strong>de</strong>ria ter esperado que<br />

ele completasse os 100 anos para chamá-lo. Deus sabe o que faz e nós,<br />

ainda que sentindo, temos <strong>de</strong> concordar.<br />

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CI<strong>DA</strong>DÃO<br />

LUÍS CARLOS DE PORTILHO*<br />

José Maria Couto Moreira**<br />

Este é o título que ostentais na hora em que se encerra vossa<br />

trajetória secular entre os mortais. Detentor <strong>de</strong> tantos outros títulos, <strong>de</strong><br />

tantas honrarias outras, <strong>de</strong> tantos merecimentos e <strong>de</strong> tantos reconhecimentos,<br />

que lhe tributam os filhos, a família, a socieda<strong>de</strong>, o Estado e<br />

esta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, e vós, em apenas um, reunis todas as insígnias e todos os<br />

aplausos que vos conferem aqueles que, sob vossa firme li<strong>de</strong>rança ou sob<br />

vossa constante inspiração, produziram <strong>de</strong> perene para a vida <strong>de</strong> nosso<br />

chão. Vós fostes o arquétipo do cidadão, do citoyen, no que este termo<br />

carrega <strong>de</strong> republicano naquele comportamento francês no encontro dos<br />

<strong>de</strong>veres <strong>de</strong> cada um para com a Pátria. Com este título, que a semântica<br />

nos remete para a cida<strong>de</strong>, vós soubestes dar-lhe uma contribuição<br />

incomparável.<br />

Des<strong>de</strong> Carangola, que foi também vossa pequena pátria, vos<br />

preocupáveis com o <strong>de</strong>stino daquela urbe faceira, assim como quando<br />

vos instalastes <strong>de</strong>finitivamente, para nosso gran<strong>de</strong> proveito, em nossa<br />

Belo Horizonte, on<strong>de</strong> construistes, pela serieda<strong>de</strong> com que enfrentáveis<br />

vossas i<strong>de</strong>ias, uma figura consular, causa <strong>de</strong> vosso ingresso na Casa <strong>de</strong><br />

Alphonsus. A vós se atribui o epitáfio, e porque não o significado<br />

encantador, daquela tese que empalmastes com muito orgulho para a<br />

* Pronunciado no velório do acadêmico na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 20.12.2008.<br />

** O autor, primogênito <strong>de</strong> Vivaldi Moreira, é procurador do Estado.<br />

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família <strong>de</strong> Vivaldi, vosso irmão <strong>de</strong> berço, <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e <strong>de</strong> letras, quando,<br />

em memória <strong>de</strong>le, vós dissestes que se um dia Vivaldi precisou <strong>de</strong> Belo<br />

Horizonte, em outro, Belo Horizonte é que precisava <strong>de</strong>le. Se assim<br />

aconteceu com vosso irmão Vivaldi, os vossos sobreviventes, especialmente<br />

aqueles que honram e compõem a inteligência mineira, é que vos <strong>de</strong>volvem,<br />

com a serenida<strong>de</strong> do verda<strong>de</strong>iro, que nossa cida<strong>de</strong> sempre precisou<br />

<strong>de</strong> vós, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> vossa aportagem naquela Belo Horizonte barroca, e vos<br />

teve como seu prestante cidadão, até o momento <strong>de</strong> vossa <strong>de</strong>spedida. A<br />

história <strong>de</strong> relevantíssimos serviços prestados a esta metrópole, para cuja<br />

gran<strong>de</strong>za vós concorrestes tanto, encerra capítulo único em vossa viagem<br />

terrena. Esta é a elegia mais valorosa que é entregue em vosso regaço.<br />

Moço ainda, já se ouvia <strong>de</strong> vós a palavra equilibrada, o raciocínio<br />

fulgente, a meta objetiva, escandida em uma arquitetura cartesiana, <strong>de</strong><br />

pressupostos éticos, compostos organicamente, com a atribuição justa e<br />

pensada às <strong>de</strong>cisões que vós implementastes tanto na vida familiar<br />

quanto nas li<strong>de</strong>s associativas, às quais vós sempre estivestes comprometido<br />

em regime <strong>de</strong> entrega incondicional, sufragando nelas vosso<br />

conhecimento abrangente. Agora, e agora? Como ficarão vossos<br />

discípulos, por quem vós espargistes, sem egoísmos, o vosso conhecimento e<br />

o vosso saber? Sim, pois vós fostes, lembro-me bem, aquele ser sempre<br />

interessado em contribuir para a construção <strong>de</strong> uma benfeitoria, fosse ela<br />

para o futuro, doméstica, legislativa, <strong>de</strong> aperfeiçoamento da língua, ou<br />

fosse outra a natureza. Como advogado, perito nas questões fiscais, como<br />

jornalista, como presi<strong>de</strong>nte da Junta Comercial do Estado, competente e<br />

<strong>de</strong>dicado diretor que fôreis da Companhia Telefônica <strong>de</strong> Minas Gerais,<br />

quando dirigir uma estatal não era uma comodida<strong>de</strong> contemporânea,<br />

porque regrada por <strong>de</strong>safios e imensas dificulda<strong>de</strong>s, vós <strong>de</strong>ixastes para<br />

nós um lastro inquantificável <strong>de</strong> exemplo <strong>de</strong> conduta humana.<br />

Este vosso patrimônio imaterial, porém valiosíssimo, é que <strong>de</strong>sfalca<br />

hoje o mundo dos vivos. Sejamos nós, que agora vos cercamos, os<br />

primeiros a salvá-lo, e <strong>de</strong> que muito nobremente se encarregará vosso<br />

sucessor nesta Casa.<br />

Vós, cidadão e citadino, Luiz Carlos <strong>de</strong> Portilho, sereis por tudo<br />

isto coroado com a imortalida<strong>de</strong>.<br />

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Perfil acadêmico<br />

PERENE E INFINITA<br />

CONVIVÊNCIA COM A CULTURA<br />

Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles*<br />

Com vasta experiência na vida pública, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo<br />

ligado às artes da escrita e envolvido com a política, o<br />

ex-governador <strong>de</strong> Minas e ex-senador da República,<br />

Francelino Pereira dos Santos é, além <strong>de</strong> tudo isso, um<br />

ótimo revelador <strong>de</strong> fatos, dono <strong>de</strong> memória privilegiada.<br />

Nesta entrevista, ele relembra momentos <strong>de</strong> sua<br />

formação profissional, amigos, episódios políticos. Confira.<br />

Quais são suas impressões sobre a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />

e sua importância para o panorama intelectual do país?<br />

Revitalizada pelos escritores, seus presi<strong>de</strong>ntes, Vivaldi Moreira e<br />

Murilo Badaró, a nossa <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> adquiriu novas<br />

dimensões culturais e físicas. Naquela casa pontificaram gran<strong>de</strong>s vultos<br />

da vida republicana, cultores da literatura, tais como Cyro dos Anjos,<br />

Milton Campos, Pedro Aleixo, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves,<br />

Gustavo Capanema, Alberto Deodato, Aureliano Chaves, João Franzen<br />

* Jornalista<br />

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94 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

<strong>de</strong> Lima, Afonso Arinos, Paulo Pinheiro Chagas etc. Não há como<br />

esquecer a figura exponencial do nosso famoso oftalmologista Hilton<br />

Rocha, também cultor das letras. Agora, às favas a modéstia! Assim<br />

como os nossos antecessores, cheguei à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ocupar os cargos públicos mais honrosos que um mineiro po<strong>de</strong><br />

almejar no Estado e em Brasília, no Congresso Nacional, mantendo o<br />

fascínio pela literatura e a imprensa viva, livre.<br />

O senhor inclusive teve, entre jornalistas, um amigo fraternal, o<br />

Carlos Castelo Branco, cuja ligação começou na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Direito, não é?<br />

Agora estou mesmo reescrevendo o ensaio biográfico <strong>de</strong> Carlos<br />

Castelo Branco, mantendo o título Castelinho, o Reinventor do<br />

Jornalismo Político no Brasil. O nosso templo foi construído quando<br />

Belo Horizonte era a nova noiva da República. O tempo tudo apaga,<br />

menos este monstruoso <strong>de</strong>smonte do prédio da nossa Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Direito. Conforta-nos, agora, a reativação da entida<strong>de</strong> representativa dos<br />

estudantes, que, há mais <strong>de</strong> um século, tem o nome do primeiro mineiro<br />

que exerceu a presidência da República, Afonso Augusto Moreira Pena.<br />

O Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP) restabeleceu a plenitu<strong>de</strong> do<br />

seu <strong>de</strong>stino sob o signo "pensa o tempo, vive a história". O jovem e<br />

dinâmico Henrique Chaves é o seu novo presi<strong>de</strong>nte, com o pleno apoio<br />

do professor emérito Washington Albino e <strong>de</strong> toda a comunida<strong>de</strong><br />

acadêmica.<br />

O senhor teve importante atuação no CAAP, não é mesmo?<br />

É muito agradável pesquisar e reviver o tanto quanto possível as<br />

ativida<strong>de</strong>s do Centro Acadêmico Afonso Pena. Cabe-me revelar que parte<br />

da documentação <strong>de</strong> funcionamento do CAAP permaneceu na minha<br />

mesa <strong>de</strong> trabalho, na se<strong>de</strong> da União Democrática Nacional – UDN – no<br />

prédio da rua dos Carijós, 150, on<strong>de</strong> funcionava também, em outro andar,<br />

a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, centro da cida<strong>de</strong>. Estava concluindo os<br />

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Perene e infinita convivência com a cultura ____________________________________ Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles 95<br />

meus estudos na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito e, simultaneamente, secretariava o<br />

partido <strong>de</strong> cuja criação havia participado. Consi<strong>de</strong>rei oportuno confiar à<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> a documentação do CAAP, <strong>de</strong> 1932 a 1951. A nossa AML<br />

sempre foi consi<strong>de</strong>rada um repositório da cultura mineira e é farta a<br />

documentação que ela conserva pelos anos afora. Recentemente, na<br />

reforma do prédio, na rua da Bahia, on<strong>de</strong> funciona, parte da documentação<br />

do CAAP foi localizada entre livros e papéis do saudoso presi<strong>de</strong>nte<br />

Vivaldi Moreira.<br />

Pelos documentos, po<strong>de</strong>-se perceber que o CAAP era muito<br />

importante.<br />

Foi intensa a ativida<strong>de</strong> do CAAP na se<strong>de</strong> da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito<br />

e, entre outros espaços culturais, no prédio do Conservatório Mineiro <strong>de</strong><br />

Música, na av. Afonso Pena, realizando, além <strong>de</strong> famosos concursos <strong>de</strong><br />

oratória, júris simulados e outras ativida<strong>de</strong>s específicas. Fazíamos<br />

contato com as entida<strong>de</strong>s acadêmicas <strong>de</strong> São Paulo e <strong>de</strong> outros estados.<br />

Logo mais, manteremos entendimentos com a atual diretoria do CAAP,<br />

para receber, na se<strong>de</strong> da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, a documentação<br />

existente, das mãos do nosso querido Presi<strong>de</strong>nte Murilo Badaró.<br />

Sua paixão pela literatura e pelo jornalismo começou ainda no<br />

Piauí?<br />

No fim da década <strong>de</strong> 30 e no começo dos anos 40, éramos três os<br />

jovens estudantes do Liceu Piauiense – em Teresina (PI). Andávamos<br />

com livros, revistas e suplementos literários dos jornais do Rio e São<br />

Paulo <strong>de</strong>baixo dos braços e nos envolvíamos com o jornalismo estudantil,<br />

mas igualmente fascinados pela literatura e a política. Fomos todos<br />

leitores do romance social do Nor<strong>de</strong>ste, que muito contribuiu para a<br />

nossa formação. Carlos Castelo Branco foi o primeiro, Abdias Silva, o<br />

segundo e eu o amigo dos dois. A porta <strong>de</strong> entrada era a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Direito em Belo Horizonte, menos para Abdias, que foi para Porto<br />

Alegre, Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, convidado pelo escritor Érico Veríssimo.<br />

Revista Volume LI.p65 95<br />

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96 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Antes da Guerra Mundial, Abdias foi e venceu na imprensa com<br />

impressionante aventura. Depois, com alguns trocados no bolso, por<br />

impulso pessoal, em plena guerra, eu vim para Minas Gerais <strong>de</strong> trem e<br />

pelos rios Parnaíba (balsa) e São Francisco (vapor).<br />

Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre sua formação<br />

política.<br />

Ainda no Piauí, na minha adolescência, a rejeição a Getúlio<br />

começou quando seus sequazes pren<strong>de</strong>ram, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Amarante, o<br />

diretor do Ateneu Rui Barbosa, nosso professor Cunha e Silva, por<br />

motivação política: ele seria comunista. Nós, Olemar <strong>de</strong> Souza Castro e<br />

eu, seus alunos, imediatamente passamos a residir em Teresina, on<strong>de</strong> o<br />

nosso mestre, na prisão, nos preparou para o exame <strong>de</strong> admissão no Liceu<br />

Piauiense.<br />

Em Belo Horizonte, a nossa Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito transformou-se<br />

em escola política, <strong>de</strong> tenaz combate ao Estado Novo <strong>de</strong> Getúlio Vargas.<br />

A nossa posição foi sempre <strong>de</strong> repulsa aos agentes da ditadura, nomeados<br />

para governar Minas no Palácio da Liberda<strong>de</strong>. Eu era presi<strong>de</strong>nte do<br />

Diretório Acadêmico, eleito pelos estudantes, quando lutamos contra a<br />

posse do interventor Noraldino Lima, enfrentando a cavalaria no<br />

cruzamento da avenida Augusto <strong>de</strong> Lima com a rua da Bahia, on<strong>de</strong><br />

alguns colegas foram feridos. Já era uma atitu<strong>de</strong> aberta <strong>de</strong> enfrentamento,<br />

representada pelas oposições, inclusive pela União Democrática Nacional<br />

(UDN), que aju<strong>de</strong>i a fundar e cujo Diretório Regional, presidido por<br />

Pedro Aleixo, secretariava. Tenho, ainda comigo, cópia das<br />

correspondências <strong>de</strong> Pedro Aleixo a Otávio Mangabeira e a Wenceslau<br />

Braz, lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> expressão nacional, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nação ao<br />

regime ditatorial <strong>de</strong> Getúlio Vargas e seus asseclas.<br />

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Perene e infinita convivência com a cultura ____________________________________ Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles 97<br />

O senhor foi coor<strong>de</strong>nador do projeto e da construção do Centro<br />

Cultural do Banco do Brasil – CCBB, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. É verda<strong>de</strong><br />

que o senhor i<strong>de</strong>alizou um projeto, nos mesmos mol<strong>de</strong>s, para a Praça<br />

da Liberda<strong>de</strong>? A i<strong>de</strong>ia é o que hoje está sendo implantado pelo<br />

governador Aécio Neves no Circuito Cultural Praça da Liberda<strong>de</strong>?<br />

A criação do Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB –<br />

representa um monumento à cultura brasileira. Ele traduz, por todos os<br />

tempos, o sentimento e o orgulho do povo do Rio <strong>de</strong> Janeiro e <strong>de</strong> todo o<br />

país. Simultaneamente manifestei, com um pré-projeto que trouxe em<br />

mãos, no centenário <strong>de</strong> Belo Horizonte, ao governador Eduardo Azeredo,<br />

em audiência no Palácio da Liberda<strong>de</strong>, e ao prefeito Célio <strong>de</strong> Castro, a<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> implantarmos na capital mineira o Espaço Cultural da Liberda<strong>de</strong>.<br />

Mas coube somente ao governador Aécio Neves colocá-lo em prática, e o<br />

fez <strong>de</strong>clarando em discurso, na Praça, em março <strong>de</strong> 2007: – Por justiça,<br />

<strong>de</strong>vo registrar que este sonho, que vem <strong>de</strong> longe, ganhou forma no<br />

projeto i<strong>de</strong>alizado por um dos mais importantes lí<strong>de</strong>res políticos <strong>de</strong><br />

Minas: o governador Francelino Pereira. – A execução do projeto<br />

prossegue, com a previsão <strong>de</strong> sua conclusão no final do governo Aécio<br />

Neves, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2010. Os prédios que integram o conjunto<br />

arquitetônico da Praça da Liberda<strong>de</strong> são tombados, o que implica<br />

procedimentos específicos para a sua a<strong>de</strong>quação aos objetivos do<br />

<strong>de</strong>nominado Circuito Cultural da Liberda<strong>de</strong>. Ao mesmo tempo, o<br />

governador <strong>de</strong> Minas constrói a Cida<strong>de</strong> Administrativa – projeto <strong>de</strong><br />

Niemeyer – no Serra Ver<strong>de</strong>, região norte <strong>de</strong> Belo Horizonte. É mais um<br />

monumento à cultura <strong>de</strong> Minas.<br />

O senhor tem também forte ligação com o cinema, inclusive<br />

com o cineasta Nelson Pereira dos Santos, não é?<br />

Perene e infinita é a nossa convivência durante os <strong>de</strong>bates relativos<br />

à busca <strong>de</strong> uma das vertentes mais enriquecedoras da produção cultural: o<br />

cinema. O querido Nelson Pereira dos Santos foi pioneiro nos <strong>de</strong>bates, no<br />

cenário fe<strong>de</strong>ral, na Comissão <strong>de</strong> minha iniciativa, presidida pelo senador<br />

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98 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

José Fogaça, atual prefeito <strong>de</strong> Porto Alegre (RS), e relatada por mim no<br />

momento em que nos esforçávamos para que o filme Central do Brasil,<br />

do cineasta Walter Salles conquistasse o Oscar. Não chegamos lá, mas,<br />

com a força do povo do cinema e a participação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s cineastas e<br />

estudiosos da cinematografia no Brasil, edificamos, com o entusiasmo<br />

dos nossos colegas no Senado da República e o apoio do presi<strong>de</strong>nte<br />

Fernando Henrique Cardoso, a ANCINE (Agência Nacional <strong>de</strong> Cinema),<br />

que vem funcionando <strong>de</strong> acordo com as possibilida<strong>de</strong>s brasileiras.<br />

A recente presença em Belo Horizonte do cineasta Nelson Pereira<br />

dos Santos possibilitou o nosso econtro na Secretaria <strong>de</strong> Cultura do<br />

Governo <strong>de</strong> Minas, no Palacete Dantas, e, com os jovens belohorizontinos,<br />

no espaço Humberto Mauro, do Palácio das Artes. Nelson,<br />

ao me abraçar, felicitou-me publicamente pela criação, no Senado da<br />

República, da sonhada Agência Nacional <strong>de</strong> Cinema. Nelson integra hoje<br />

a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, o que nos permite aspirar a que o<br />

cineasta mineiro Helvécio Ratton possa participar da composição da<br />

nossa <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Quais são seus autores prediletos?<br />

Leio avidamente os livros <strong>de</strong> autores famosos, <strong>de</strong>monstrando<br />

gran<strong>de</strong> apreço aos estreantes, jovens ou não. A romancística do Nor<strong>de</strong>ste<br />

influiu bastante em meu conhecimento da situação <strong>de</strong> pobreza e <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social, agravada pela sequidão. Mantenho em vivência os<br />

escritores José Américo <strong>de</strong> Almeida, José Lins do Rego, Rachel <strong>de</strong><br />

Queiroz, Jorge Amado e o nosso insuperável Graciliano Ramos. Volto<br />

sempre aos livros <strong>de</strong> Érico Veríssimo, inclusive o sempre reeditado O<br />

tempo e o vento e, particularmente, Olhai os lírios do campo, sua<br />

primeira obra <strong>de</strong> repercussão no Brasil inteiro.<br />

Os livros <strong>de</strong> memórias, no momento, são dos escritores e homens<br />

públicos José Gregori (Sonhos que alimentam a vida) e Fernando Lyra<br />

(Daquilo que eu sei). No exterior, a <strong>de</strong>voção maior é pelo russo<br />

Dostoievski e pelo prêmio Nobel <strong>de</strong> literatura, Gabriel García Márquez.<br />

Tenho preferência pelos livros <strong>de</strong> Ernest Hemingway. Releio sempre<br />

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Perene e infinita convivência com a cultura ____________________________________ Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles 99<br />

A Arte da Política, <strong>de</strong> Fernando Henrique Cardoso. Conservo no meu<br />

escritório os 16 volumes da coletânea Palavras do Presi<strong>de</strong>nte, que<br />

contém os discursos <strong>de</strong> FHC, no exercício da Presidência da República,<br />

exatamente nos anos em que exerci o mandato <strong>de</strong> Senador, em Brasília.<br />

Como o senhor vê o atual panorama político?<br />

O panorama político do Brasil no momento é bastante in<strong>de</strong>finido.<br />

Estabelecidas as linhas mestras da eleição do novo presi<strong>de</strong>nte da<br />

República e dos governadores, em 2010, aí teremos visão mais clara para<br />

os <strong>de</strong>bates e as <strong>de</strong>cisões finais. O nosso Palácio da Liberda<strong>de</strong> será sempre<br />

o maior símbolo do Estado <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> direito no Brasil. Ali, sentamse<br />

apenas os mineiros comprometidos com uma palavra que li e ouvi do<br />

gran<strong>de</strong> intelectual mineiro Abgar Renault: – Caráter é um vocábulo<br />

nobre – .<br />

Na sua opinião, como é a postura política dos jovens <strong>de</strong> hoje?<br />

É preciso sonhar sempre. Os jovens <strong>de</strong> hoje diferem dos do passado<br />

distante. Agora, no exercício da <strong>de</strong>mocracia plena, impressionam-me o<br />

silêncio e a ausência dos jovens em todo país. A reforma política, pela<br />

qual tanto nos empenhamos no Senado da República, é fundamental para<br />

que o Brasil seja um Estado <strong>de</strong> Partidos Políticos. Atualmente temos<br />

mais <strong>de</strong> trinta partidos, todos instituídos, mas não constituídos.<br />

Dados biográficos<br />

Francelino Pereira dos Santos nasceu em Angical do Piauí, em 2 <strong>de</strong><br />

julho <strong>de</strong> 1921. É o oitavo filho – e caçula – <strong>de</strong> Venâncio Pereira dos<br />

Santos e <strong>de</strong> Maria Ana <strong>de</strong> Sousa, agricultores e criadores.<br />

Começou os estudos com professores leigos, no meio rural. Para<br />

concluir o curso primário foi estudar no Ateneu Rui Barbosa, na cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Amarante. O ginasial foi no Liceu Piauiense – hoje Colégio Estadual –<br />

Revista Volume LI.p65 99<br />

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100 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

em Teresina. Em 1943, fez o primeiro semestre do então chamado 2º ano<br />

clássico em Fortaleza (Ceará), no Colégio São João, e o segundo<br />

semestre em Teresina, no Liceu Piauiense. A conclusão do curso clássico<br />

foi no Colégio Afonso Arinos, já em Belo Horizonte, para on<strong>de</strong> se<br />

mudara em 1944.<br />

Cursou a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Minas Gerais, da UMG, hoje<br />

UFMG, entre 1945 e 1949. Um ano <strong>de</strong>pois, aos 29 anos, casou na igreja<br />

da Boa Viagem com a mineira Latife Haddad Pereira Santos, formada em<br />

Serviço Social. O casal tem três filhos: o arquiteto Luiz Márcio, a<br />

comunicadora social Maninha Pereira e o também comunicador social,<br />

Paulo França.<br />

Jornalismo e política<br />

Ainda em Teresina, durante seus estudos no Liceu Piauiense,<br />

Francelino Pereira participou da fundação e dirigiu o jornal estudantil, <strong>de</strong><br />

circulação semanal, Piauí Novo.<br />

Colaborou em revistas e outras publicações com artigos e crónicas,<br />

tornou-se leitor assíduo <strong>de</strong> romancistas, cronistas, contistas e críticos<br />

literários. Exerceu, simultaneamente, intensa ativida<strong>de</strong> política, em<br />

oposição ao regime do Estado Novo <strong>de</strong> Getúlio Vargas.<br />

Já em Belo Horizonte, no Colégio Afonso Arinos, acompanhou a<br />

efervescência política gerada pelo Manifesto dos Mineiros, em 1944. Na<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito, foi presi<strong>de</strong>nte do Centro Acadêmico Afonso Pena<br />

(1945) e do Diretório Acadêmico (1946).<br />

Participou das manifestações públicas contrárias à ditadura e aos<br />

interventores nos estados, nomeados por Getúlio Vargas. Atuou no<br />

movimento político-partidário, sendo um dos fundadores, ainda como<br />

universitário, da União Democrática Nacional – UDN – legenda criada em<br />

1945, e foi um dos primeiros secretários do Diretório Estadual em Minas.<br />

Ainda como estudante universitário, participou da campanha <strong>de</strong><br />

Milton Campos ao governo <strong>de</strong> Minas, e, em 1962, integrou a campanha<br />

para a eleição <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Magalhães Pinto, fazendo parte <strong>de</strong> seu governo,<br />

inclusive no Palácio da Liberda<strong>de</strong>.<br />

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Perene e infinita convivência com a cultura ____________________________________ Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles 101<br />

Vida profissional<br />

Graduado em Direito em 1949, Francelino Pereira advogou no<br />

foro <strong>de</strong> Belo Horizonte e em outras comarcas. Começou na vida pública<br />

como vereador na Câmara Municipal, on<strong>de</strong> foi autor do projeto <strong>de</strong> lei que<br />

criou a Escola Técnica <strong>de</strong> Comércio Municipal <strong>de</strong> Belo Horizonte, na<br />

gestão do prefeito Américo René Giannetti (1950-1955).<br />

Na administração do prefeito Celso Melo Azevedo, foi diretor da<br />

Escola Técnica <strong>de</strong> Comércio Municipal (hoje IMACO) e seu professor<br />

efetivo <strong>de</strong> Administração.<br />

Foi advogado efetivo do serviço jurídico da Prefeitura Municipal <strong>de</strong><br />

Belo Horizonte, cargo do qual se licenciou em 1962 para assumir sua<br />

ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Deputado na Câmara Fe<strong>de</strong>ral em Brasília, DF.<br />

Foi redator político da Rádio Inconfidência, do governo do Estado<br />

<strong>de</strong> Minas Gerais.<br />

Mandatos eletivos<br />

Vereador à Câmara Municipal <strong>de</strong> Belo Horizonte (1951-1955),<br />

integrando várias comissões permanentes e temporárias.<br />

Deputado fe<strong>de</strong>ral em quatro mandatos sucessivos (1963-1979), e<br />

membro da Comissão <strong>de</strong> Constituição e Justiça e <strong>de</strong> outras comissões<br />

permanentes e temporárias.<br />

Membro titular dos diretórios estaduais da União Democrática<br />

Nacional (UDN), da Aliança Renovadora Nacional (Arena), do Partido<br />

Democrático Social (PDS) e do Partido da Frente Liberal (PFL), e hoje<br />

inintegra a legenda do DEM (Democratas). Essas legendas suce<strong>de</strong>ram-se<br />

no curso do processo político brasileiro, constituindo basicamente o<br />

mesmo partido original. Na Arena, foi também seu presi<strong>de</strong>nte nacional.<br />

No PFL, presi<strong>de</strong>nte estadual.<br />

Governador <strong>de</strong> Minas Gerais pela Convenção Estadual da Arena e<br />

votado pelo Colégio Eleitoral, para o mandato <strong>de</strong> 15/3/1979 - 15/3/1983,<br />

que exerceu em sua plenitu<strong>de</strong>.<br />

Revista Volume LI.p65 101<br />

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102 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Senador por Minas Gerais para o mandato fevereiro/1995 a<br />

janeiro/2003.<br />

Cargos públicos e privados<br />

Chefe <strong>de</strong> Gabinete do secretário do Interior e Justiça, Oswaldo<br />

Pieruccetti, no governo <strong>de</strong> Magalhães Pinto; diretor geral do Departamento<br />

<strong>de</strong> Administração Geral (atual Secretaria <strong>de</strong> Planejamento e<br />

Gestão), no mesmo Governo, e também assessor-chefe da Assessoria <strong>de</strong><br />

Assuntos Municipais, órgão do Gabinete Civil daquele governador.<br />

Presi<strong>de</strong>nte da Acesita, então empresa estatal da União, sediada na<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo, no Vale do Aço, entre outubro <strong>de</strong> 1983 e agosto <strong>de</strong><br />

1984.<br />

Vice-presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Administração do Banco do Brasil, <strong>de</strong> 1985 a<br />

1990, exercendo a presidência em substituição por várias vezes.<br />

Coor<strong>de</strong>nou o projeto e a construção do Centro Cultural do Banco do<br />

Brasil – CCBB, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, e também suas primeiras<br />

programações culturais.<br />

Presi<strong>de</strong>nte regional do Partido da Frente Liberal em Minas Gerais,<br />

<strong>de</strong> (1991 a 2000), e diretor Nacional <strong>de</strong> Finanças do Instituto Tancredo<br />

Neves <strong>de</strong> Estudos Sociais e Políticos, ITN – órgão <strong>de</strong> assessoramento<br />

nacional do Partido da Frente Liberal (Brasília); primeiro vice-presi<strong>de</strong>nte<br />

da Comissão Executiva Nacional do PFL, a partir <strong>de</strong> 1999 (Brasília);<br />

atual membro efetivo do Conselho <strong>de</strong> Administração da Companhia<br />

Energética <strong>de</strong> Minas Gerais – CEMIG, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 27/3/2003. Compõe o<br />

quadro da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupando a vaga <strong>de</strong> Aureliano<br />

Chaves <strong>de</strong> Mendonça. Mantém em pleno funcionamento o seu escritório<br />

político na rua São Paulo, 1781, sala 701, bairro <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s, Belo<br />

Horizonte, on<strong>de</strong> recebe seus amigoas e companheiros <strong>de</strong> diversas<br />

ativida<strong>de</strong>s.<br />

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NO MEIO DO CAMINHO:<br />

RECEPÇÃO, APROPRIAÇÃO<br />

E METÁFORA<br />

Letícia Malard*<br />

Em 2008, o mais conhecido poema drummondiano, “No meio do<br />

caminho”, também chamado <strong>de</strong> “O poema da pedra”, completou 80<br />

anos. 1 Sua primeira publicação foi em 1928, na Revista <strong>de</strong> Antropofagia,<br />

n. 3, e a segunda no livro <strong>de</strong> estréia do poeta – Alguma Poesia – 1930. Na<br />

Revista, vinha em página ilustrada pelo mais famoso quadro do<br />

mo<strong>de</strong>rnismo brasileiro, Abaporu, <strong>de</strong> Tarsila do Amaral, hoje proprieda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um colecionador da Argentina. Esse conjunto <strong>de</strong> circunstâncias<br />

evi<strong>de</strong>ncia não só o estreito vínculo do poema com o Mo<strong>de</strong>rnismo <strong>de</strong> 22,<br />

mas também sua importância no contexto mo<strong>de</strong>rnista. Em Alguma<br />

* Professora Emérita <strong>de</strong> Literatura Brasileira da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais e<br />

crítica literária.<br />

1 Vale a pena reavivar nossa memória, reproduzindo o poema:<br />

No meio do caminho tinha uma pedra<br />

tinha uma pedra no meio do caminho<br />

tinha uma pedra<br />

no meio do caminho tinha uma pedra.<br />

Nunca me esquecerei <strong>de</strong>sse acontecimento<br />

na vida <strong>de</strong> minhas retinas tão fatigadas.<br />

Nunca me esquerecei que no meio do caminho<br />

tinha uma pedra<br />

tinha uma pedra no meio do caminho<br />

no meio do caminho tinha uma pedra.<br />

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104 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

poesia, “No meio do caminho” se estampa na companhia <strong>de</strong> outros<br />

poemas que popularizaram Drummond, tais como “Poema <strong>de</strong> sete faces”<br />

(o que fala do poeta “gauche”), “Quadrilha”, “Cida<strong>de</strong>zinha qualquer” e<br />

“Cota zero”. Todos eles comprometidos com o que havia <strong>de</strong> mais<br />

mo<strong>de</strong>rno na poesia brasileira.<br />

Recepção do poema<br />

A recepção é curiosa, polêmica, oscilante entre aplausos entusiastas<br />

e ridicularizações <strong>de</strong>molidoras. O próprio poeta escreveu um livro,<br />

tematizando o que se disse em relação ao poema. 2 Dele pinçamos alguns<br />

comentários, que irão constituir parte <strong>de</strong>ste texto. 3 A obra foi<br />

ridicularizada pelos conservadores em matéria <strong>de</strong> Literatura, causou<br />

irritação em vários intelectuais, foi incompreendida por outros e, claro,<br />

foi elogiada pelos mo<strong>de</strong>rnistas ortodoxos. Entre os críticos que a<br />

maltrataram e que partiram para uma avaliação irônico-humorística,<br />

citam-se:<br />

– Gondim da Fonseca – ao escrever que Drummond vê uma pedra<br />

no meio do caminho, coisa que todo dia acontece com todo o mundo<br />

(“ainda mais agora que as ruas da cida<strong>de</strong> inteira estão em obras”) e fica<br />

repetindo a coisa como papagaio. Acrescenta que não apareceu uma alma<br />

caridosa que pegasse essa pedra e esborrachasse com ela o crânio do<br />

poeta. 4<br />

– Agripino Grieco – ao <strong>de</strong>clarar que Drummond, nesse poema, não<br />

faz outra coisa senão atrapalhar as autorida<strong>de</strong>s, quando se insurge contra<br />

2 ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>. Uma pedra no meio do caminho: biografia <strong>de</strong> um<br />

poema. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. do Autor, 1967. 194 p.<br />

3 Este texto correspon<strong>de</strong> à palestra proferida na Fundação Cultural Carlos Drummond <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong>, em Itabira-MG, por ocasião da abertura do 34º Festival <strong>de</strong> Inverno <strong>de</strong> Itabira, em<br />

2 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2008.<br />

4 Correio da Manhã, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 9 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1938. In: ANDRADE, Carlos Drummond<br />

<strong>de</strong>. Uma pedra no meio do caminho: biografia <strong>de</strong> um poema. Op. cit., p. 32.<br />

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No meio do caminho: recepção, apropriação e metáfora ___________________________________ Letícia Malard 105<br />

a pedra no caminho, sugerindo que as estradas <strong>de</strong> Itabira ou do Rio são<br />

mal calçadas, para <strong>de</strong>sgosto das duas prefeituras. 5<br />

– Maércio – ao afirmar que todo o mundo encontra pedras no<br />

caminho e dá topadas, exceto, talvez, os aviadores, o que, aliás, não<br />

impe<strong>de</strong> que caiam sobre elas <strong>de</strong> cabeça para baixo. 6<br />

O poema também foi parodiado. Veja-se o exemplo <strong>de</strong>sse autor<br />

anônimo, caracterizado pelo grotesco que beira o escatológico:<br />

“Todo o mundo tem uma pedra <strong>de</strong>baixo do pé<br />

Debaixo do pé todo o mundo tem uma pedra<br />

Todo o mundo tem uma pedra <strong>de</strong>baixo do pé<br />

Entre a meia <strong>de</strong> seda almofadinha<br />

E a sola do pé cheia <strong>de</strong> chulé<br />

Nunca havemos <strong>de</strong> nos esquecer <strong>de</strong>ssa pedra sovela<strong>de</strong>ira<br />

Que fica <strong>de</strong>baixo do pé<br />

Entre a meia <strong>de</strong> seda almofadinha<br />

E a sola do pé cheia <strong>de</strong> chulé<br />

Todo o mundo tem uma pedrinha <strong>de</strong>baixo do pé.” 7<br />

Entre os elogios recebidos, <strong>de</strong>stacam-se os <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>,<br />

que conheceu o poema antes <strong>de</strong> ser publicado, e diz ao poeta, em cartas,<br />

que é uma obra formidável, o mais forte exemplo que conhece, mais bem<br />

frisado, mais psicológico <strong>de</strong> cansaço intelectual. O poema o irrita e o<br />

ilumina. É símbolo. 8 Comungaram com os aplausos <strong>de</strong> Mário os<br />

5 O Jornal, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 22 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1944. In: ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>.<br />

Uma pedra no meio do caminho: biografia <strong>de</strong> um poema. Op. cit., p. 38.<br />

6 O Serrano, Serra Negra [SP], 21 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1946. In: ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>.<br />

Uma pedra no meio do caminho: biografia <strong>de</strong> um poema. Op. cit., p. 39.<br />

7 “Paródia <strong>de</strong> um poema <strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Voz do Oeste, Dores do Indaiá<br />

[MG], 13 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1930. In: ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>. Uma pedra no meio do<br />

caminho: biografia <strong>de</strong> um poema. Op. cit., p. 30.<br />

8 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Cartas. In: ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>. Uma pedra no meio<br />

do caminho: biografia <strong>de</strong> um poema. Op. cit., p. 61.<br />

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106 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

escritores Cyro dos Anjos, Manuel Ban<strong>de</strong>ira, Lygia Fagun<strong>de</strong>s Telles,<br />

Wilson Martins e Haroldo <strong>de</strong> Campos, para citar os mais conhecidos.<br />

Praticamente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu aparecimento, a obra tem merecido, além<br />

<strong>de</strong> elogios, paródias e avaliações <strong>de</strong>preciativas, como vimos, muitas<br />

análises e interpretações, longas e curtas, da crítica especializada. Com o<br />

passar do tempo, foi-se compreen<strong>de</strong>ndo mais amplamente a sua<br />

importância e o seu valor. Uma das melhores análises interpretativas é a<br />

<strong>de</strong> José Américo Miranda, que comenta alguns textos sobre o poema e<br />

apresenta a sua contribuição <strong>de</strong> crítico, relacionando-o ao fotograma, ou<br />

seja, uma espécie <strong>de</strong> quadro <strong>de</strong> filme cinematográfico:<br />

“O poema, no sentido em que o interpretamos, volta-se sobre si<br />

mesmo, iconiza-se, torna-se autorreferente; nele, o poeta coinci<strong>de</strong> com a<br />

pedra, suas interiorida<strong>de</strong>s se fun<strong>de</strong>m. Este é o tecido da experiência que o<br />

poeta nos apresenta, que nos é dado a ver na estrutura do poema.” 9<br />

“No meio do caminho” foi também comentado pelo próprio autor,<br />

mencionando os codinomes que <strong>de</strong>ram a ele, autor, por causa daqueles<br />

versos: sujeito da pedra, poeta pedregoso, pétreo, Drummond Pedreira.<br />

Nosso itabirano também partiu para a ironia, dizem que para se ver livre<br />

das aporrinhações dos críticos e leitores. Afirma ele:<br />

“A referida pedra não tem sentido algum, a não ser o que lhe dão as<br />

pessoas que a atacam e com ela se irritam. É uma simples, uma pobre<br />

pedra, como tantas que há por aí, nada mais. O poema (se assim se po<strong>de</strong><br />

chamar) em que ela aparece não preten<strong>de</strong> expor nenhum fato <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />

moral, psicológica ou filosófica. Quer somente dizer o que está escrito<br />

nele, a saber, que havia uma pedra no meio do caminho, e que essa<br />

circunstância me ficou gravada na memória.” 10<br />

9 MIRAN<strong>DA</strong>, José Américo. Fotografia e poesia: leitura da forma em Carlos Drummond <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong>. Inimigo Rumor: Revista <strong>de</strong> Poesia, 7, São Paulo, 1997, p. 81.<br />

10 ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>. Carta a Laudionor A. Brasil, Rio, 29 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1944.<br />

In: ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>. Uma pedra no meio do caminho: biografia <strong>de</strong> um<br />

poema. Op. cit., p. 182.<br />

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No meio do caminho: recepção, apropriação e metáfora ___________________________________ Letícia Malard 107<br />

Um ano antes o escritor já havia dito:<br />

“[...] o poema não é meu. Trata-se da repetição, oito vezes<br />

seguidas, dos substantivos “meio”, “caminho” e “pedra”, ligados por<br />

preposições, artigos e um verbo. Não há nisto poema algum, bom ou<br />

mau. Há apenas alguns vocábulos, que po<strong>de</strong>m ser encontrados no<br />

Pequeno Dicionário <strong>de</strong> Língua Portuguesa, revisto pelo sr. Aurélio<br />

Buarque <strong>de</strong> Holanda.” 11<br />

Dez anos <strong>de</strong>pois, a Geir Campos explicou que queria dar a<br />

sensação <strong>de</strong> monotonia e chateação, a começar pelas palavras. 12<br />

Apropriação do poema<br />

No mencionado livro sobre os caminhos da sua pedra, percorridos<br />

durante 39 anos, o poeta também mostrou como ela foi apropriada em<br />

textos jornalísticos que falam dos mais diversos assuntos: administração<br />

pública, advocacia, economia, esporte, escola, moda, arte, gramática (aí<br />

corrigindo-se o “tinha”, por “havia”), literatura (poemas não só<br />

parodísticos, mas também sérios evocando o <strong>de</strong> Drummond), teatro,<br />

rádio, terra natal, confusão internacional e sobretudo política. Desta<br />

última, vejamos alguns exemplos do noticiário da imprensa:<br />

“O sr. Benedito Valadares [interventor nomeado pela ditadura<br />

getulista para Minas] é a “pedra no meio do caminho “ que impe<strong>de</strong> o<br />

congraçamento das forças políticas <strong>de</strong> Minas Gerais.” 13<br />

11 ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>. Auto-Retrato. Leitura, Rio <strong>de</strong> Janeiro, VI, 1943. In:<br />

_________. Uma pedra no meio do caminho: biografia <strong>de</strong> um poema. Op. cit., p. 181.<br />

12 Revista da Semana, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 9 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1954. In: ANDRADE, Carlos<br />

Drummond <strong>de</strong>. Uma pedra no meio do caminho: biografia <strong>de</strong> um poema. Op. cit., p. 184-5.<br />

13 O Estado <strong>de</strong> S. Paulo, São Paulo, 18 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1946. In: ANDRADE, Carlos Drummond<br />

<strong>de</strong>. Uma pedra no meio do caminho: biografia <strong>de</strong> um poema. Op. cit., p. 113.<br />

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108 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

“O sr. Cristiano Machado [candidato <strong>de</strong> oposição ao governo <strong>de</strong><br />

Minas] não será uma pedra no caminho da UDN. Será montanha.” 14<br />

“Concorrentes ainda po<strong>de</strong>m colocar uma pedra no caminho <strong>de</strong><br />

Costa e Silva. [segundo ditador do Pós-64]” 15<br />

Até o gran<strong>de</strong> poeta Fernando Pessoa, morto cinco anos após ter<br />

saído o livro <strong>de</strong> Drummond com o poema da pedra, tê-lo-ia prestigiado,<br />

com uma frase-verso citadíssima em blogues da internet: “Pedras no<br />

caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo...”<br />

Atualmente, ou seja, julho <strong>de</strong> 2008, na Re<strong>de</strong> encontramos<br />

4.500.000 sítios com o verso ou parte <strong>de</strong>le, aplicáveis às mais diversas<br />

situações, muitas <strong>de</strong>las impensáveis por Drummond. Só <strong>de</strong> imagens no<br />

Google, temos 319.000. Algumas são <strong>de</strong>notativas, ou seja, um caminho e<br />

uma pedra; outras são simbólicas, como a foto <strong>de</strong> uma mulher com uma<br />

perna engessada. De vi<strong>de</strong>os no You Tube, temos 25 com “tinha uma<br />

pedra no meio do caminho” e 375 com “no meio do caminho”.<br />

Metáforas do poema<br />

Encontramos duas gran<strong>de</strong>s metáforas na vida <strong>de</strong> Drummond –<br />

pedras no meio do seu caminho: a primeira, as difíceis e incompreendidas<br />

relações afetivas com Itabira; a segunda, as não menos difíceis relações<br />

com a mídia e os estudantes que procuravam entrevistá-lo. Assim, em<br />

sentido metafórico po<strong>de</strong>-se dizer que Itabira e entrevistadores foram duas<br />

gran<strong>de</strong>s pedras no caminho <strong>de</strong> sua vida, <strong>de</strong>pois que ele se tornou<br />

superfamoso. É claro que havia outras pedras, das quais não po<strong>de</strong>mos<br />

falar por enquanto.<br />

14 O Estado, Niterói [RJ], 21 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1950. In: ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>. Uma<br />

pedra no meio do caminho: biografia <strong>de</strong> um poema. Op. cit., p. 119.<br />

15 O Diário, Belo Horizonte [MG], 20 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1966. In: ANDRADE, Carlos<br />

Drummond <strong>de</strong>. Uma pedra no meio do caminho: biografia <strong>de</strong> um poema. Op. cit., p. 123.<br />

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No meio do caminho: recepção, apropriação e metáfora ___________________________________ Letícia Malard 109<br />

Em trabalho anterior mostramos as incompreensões entre Itabira e<br />

ele, já a partir <strong>de</strong> poemas do primeiro livro. A “vida besta” do poema<br />

“Cida<strong>de</strong>zinha qualquer” metaforizaria certa rejeição. Itabira ser apenas<br />

um retrato na pare<strong>de</strong>, doendo, em “Confidência do itabirano”, foi<br />

interpretado como <strong>de</strong>sprezo, distanciamento e indiferença do poeta em<br />

relação a sua cida<strong>de</strong>. Os poemas <strong>de</strong>nunciadores da exploração do minério<br />

pela Vale do Rio Doce no município também foram tidos por muitos<br />

como difamação da cida<strong>de</strong>, cuja economia girava em torno daquela<br />

empresa, gerando centenas <strong>de</strong> empregos para os munícipes.<br />

Chegou a haver uma época em que se noticiou ser Drummond<br />

persona non grata em sua própria terra. Lembre-se que ele a <strong>de</strong>ixou em<br />

1926 e voltou em 1954 pela última vez, tendo falecido em 1987. Justificava<br />

a ausência por questões sentimentais: iria encontrar uma cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sconhecida, que não era a dos quatro mil habitantes da sua infância –<br />

cida<strong>de</strong> essa, do passado remoto, que amava e poetizava em larga escala.<br />

Somente no início dos anos 80 esse quadro <strong>de</strong> equívocos foi<br />

repintado. Fundou-se na cida<strong>de</strong> um jornal – O Cometa Itabirano – que<br />

entrou em contato com o poeta e recebeu <strong>de</strong>le apoio e colaborações,<br />

muitas <strong>de</strong>las inéditas. A partir daí foram retomadas suas relações afetivas<br />

com a cida<strong>de</strong>, novos poemas e crônicas foram escritos tematizando-a e a<br />

seus habitantes, do passado e do presente. Nos tempos atuais, feitas as<br />

pazes, Itabira e seus habitantes se orgulham do filho ilustre, contam com<br />

uma fundação cultural que leva seu nome e um museu a céu aberto para<br />

homenageá-lo. 16 Dessa forma, a pedra do distanciamento e da indiferença<br />

foi removida do caminho.<br />

Mas, a segunda pedra metafórica permaneceu atravancando o seu<br />

caminho até à morte: o público docente e discente, estudantes <strong>de</strong> todos os<br />

níveis, o incomodavam em casa ou o cercavam na rua e nos locais que<br />

frequentava, a mando <strong>de</strong> professores, para entrevistá-lo como trabalho<br />

escolar. Como se não bastasse, muitas <strong>de</strong>ssas pessoas lhe eram<br />

16 Cf. MALARD, Letícia. No vasto mundo <strong>de</strong> Drummond. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.<br />

p. 46 e segs. Aí se <strong>de</strong>talham as relações entre Drummond e Itabira, <strong>de</strong>sfazendo-se inclusive<br />

certos equívocos interpretativos.<br />

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110 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

encaminhadas por amigos ou parentes, a quem não tinha como dizer um<br />

sonoro “Não”. Numa crônica bem-humorada, o escritor ilustra com<br />

perfeição esse incômodo. Vale a pena transcrever um trecho <strong>de</strong>la,<br />

bastante significativo para a questão:<br />

Gravação<br />

“PRONTO. Tá ligado. Posso começar?<br />

Po<strong>de</strong>.<br />

O senhor se sente realizado?<br />

Por que você quer saber isso?<br />

Nada não. O professor é que mandou lhe perguntar.<br />

O professor tem interesse em saber se eu me sinto realizado?<br />

Sei não senhor.<br />

Então diga ao professor que venha me procurar.<br />

Pra quê?<br />

Para eu lhe perguntar se ele se sente realizado.<br />

O senhor vai perguntar isso a ele?<br />

Vou.<br />

O senhor também está estudando? Nessa ida<strong>de</strong>, poxa!<br />

Quê que tem? Toda ida<strong>de</strong> é boa para estudar, a gente não acaba<br />

nunca <strong>de</strong> saber as coisas. Mas não estou estudando não.<br />

Então por que vai perguntar isso ao professor?<br />

Porque se ele quer saber se eu me sinto realizado, eu também quero<br />

saber a mesma coisa <strong>de</strong>le. Indiscrição por indiscrição.<br />

Gozado... mas se o senhor fizer isso não bota o meu nome no meio,<br />

porque vai dar grilo. Vê lá, hem?<br />

Fique <strong>de</strong>scansado. Não vou comprometer você.<br />

E o senhor só vai respon<strong>de</strong>r a minha pergunta <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> falar com<br />

ele? E se ele não respon<strong>de</strong>r? Se <strong>de</strong>morar? Tenho <strong>de</strong> entregar esta<br />

entrevista até quinta-feira.” 17<br />

17 ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>. Gravação. In: _______. De notícias & não notícias fazse<br />

a crônica. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1978. p. 97-98.<br />

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No meio do caminho: recepção, apropriação e metáfora ___________________________________ Letícia Malard 111<br />

Quanto às relações com a mídia – entrevistadores profissionais para<br />

o gran<strong>de</strong> público – a timi<strong>de</strong>z e certo tédio à controvérsia machadiano<br />

faziam <strong>de</strong> Drummond uma personalida<strong>de</strong> avessa a aparecer nos jornais,<br />

revistas, rádio e televisão. Consi<strong>de</strong>rando-se a importância <strong>de</strong> seu nome e<br />

sua fama, o acervo <strong>de</strong> entrevistas e aparições na mídia que <strong>de</strong>le ficou é<br />

ínfimo. O poema “Apelo a meus <strong>de</strong>ssemelhantes em favor da Paz” nos dá<br />

uma idéia da sua casmurrice para enfrentar os jornalistas:<br />

“Repórteres <strong>de</strong> vespertinos, não tentem entrevistá-lo.<br />

Não lhe, não me peçam opinião que é impublicável qualquer que<br />

seja o fato do dia<br />

E contraditória e louca antes <strong>de</strong> formulada.<br />

Fotógrafos: não adianta pedir pose junto ao oratório <strong>de</strong> Cocais<br />

nem folheando o álbum <strong>de</strong> Portinari<br />

nem tomando banho <strong>de</strong> chuveiro.<br />

Sou contra Niepce, Daguerre, contra principalmente<br />

minha imagem.<br />

Não quero oferecer minha cara como verônica nas revistas.<br />

Quero a paz das estepes,<br />

a paz dos <strong>de</strong>scampados<br />

a paz do Pico <strong>de</strong> Itabira quando havia Pico <strong>de</strong> Itabira<br />

a paz <strong>de</strong> cima das Agulhas Negras<br />

a paz <strong>de</strong> muito abaixo da mina mais funda e esboroada <strong>de</strong> Morro<br />

Velho<br />

a paz<br />

da Paz.” 18<br />

18 ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>. “Apelo a meus <strong>de</strong>ssemelhantes em favor da paz. In:<br />

Antologia poética. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Record, 1999. p. 271.<br />

Revista Volume LI.p65 111<br />

12/5/2009, 15:29


112 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Para finalizar, é importante dizer que, se “No meio do caminho” é o<br />

poema que funciona como cartão <strong>de</strong> visita <strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong> para o gran<strong>de</strong> público, também é fato que o conjunto poético<br />

<strong>de</strong>sse mineiro tem uma representação ínfima no mencionado poema.<br />

Entre 1928, quando o publicou, e 1987, quando faleceu tendo publicado<br />

textos até o fim da vida, Drummond se revelou um inigualável artista da<br />

palavra. E, no seu caminho <strong>de</strong> ascensão para a glória <strong>de</strong> poeta e <strong>de</strong><br />

cronista maior, nunca encontrou uma pedra no meio do caminho.<br />

Revista Volume LI.p65 112<br />

12/5/2009, 15:29


NÓS, A OUTRA RAPAZIA<strong>DA</strong><br />

Affonso Heliodoro dos Santos*<br />

Não fazíamos parte dos “<strong>de</strong>satinados”. (O Desatino da Rapaziada<br />

<strong>de</strong> Humberto Werneck. Instituto Moreira Salles. Casa <strong>de</strong> Cultura <strong>de</strong><br />

Poços <strong>de</strong> Caldas. Companhia das <strong>Letras</strong>. 1992). Éramos também classe<br />

média, porém mais mo<strong>de</strong>stamente aquinhoados. Nossa geração, que<br />

prece<strong>de</strong>u a <strong>de</strong>les, relatada no livro referido, não gozava da mesma<br />

liberda<strong>de</strong>, porque viemos alguns anos antes.<br />

O <strong>de</strong>svario nosso, bem mais comportado, realizava-se nos footings<br />

na avenida Afonso Pena, na Praça da Liberda<strong>de</strong>, na Rua Itajubá, no bairro<br />

da Floresta – famoso por suas moças bonitas – ou então, em Santa<br />

Efigênia, em frente à igreja, na Avenida Brasil. Não significa, entretanto,<br />

que participávamos apenas daquele saudável e saudoso divertimento dos<br />

jovens – moços e moças – do tempo das serenatas. Moçada muito mais<br />

mo<strong>de</strong>rada que a <strong>de</strong> hoje, nossas festas tinham ainda a dureza dos<br />

costumes éticos, morais e religiosos daquela época. Eram, porém, bem<br />

mais românticas. No footing, fosse na Avenida Afonso Pena, na Praça da<br />

Liberda<strong>de</strong>, na Floresta ou em Santa Efigênia, era a busca das namoradas,<br />

ou o simples prazer <strong>de</strong> vê-las <strong>de</strong>sfilar com seus vestidos domingueiros,<br />

seu perfume <strong>de</strong> mocida<strong>de</strong>, seu encanto <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong>. Nos bailes<br />

“assustados”, que se realizavam em casas <strong>de</strong> família – e que tinham esse<br />

nome em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> não terem sido programados – era a sensação <strong>de</strong> ter a<br />

namorada, ou a pretendida, presa entre os braços nos volteios <strong>de</strong> uma<br />

* Presi<strong>de</strong>nte do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Fe<strong>de</strong>ral.<br />

Revista Volume LI.p65 113<br />

12/5/2009, 15:29


114 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

dança bem comportada. Os “assustados” aconteciam naturalmente.<br />

Aconteciam para comemorar alguma coisa inventada por nós mesmos a<br />

partir <strong>de</strong> um motivo qualquer, para festejar um aniversário sem programa,<br />

para confirmar um namoro já autorizado pelos pais da moça, ou então,<br />

apenas para propiciar o início <strong>de</strong> um namorico novo, ainda meio<br />

escondido. O relacionamento moça/rapaz continha muito mais<br />

sentimento do que o <strong>de</strong> hoje, na base do oi, do bicho e do cara. E pior<br />

agora, do ficar.<br />

A abordagem às namoradas era bem complicada. A aproximação,<br />

meio <strong>de</strong>morada e cheia <strong>de</strong> truques. Do vaivém dos footings ao<br />

“ocasional” encontro das mãos, à conversa no portão, até, chegar ao beijo<br />

– um leve toque no rosto ou nos lábios, quando acontecia – levava um<br />

tempão danado. Havia, além do footing, do flirt e das namoradas, as<br />

escapulidas pela noite, em busca da boemia. Preferentemente na Rua dos<br />

Guaicurus e imediações, on<strong>de</strong> ficava a zona boemia, a ida aos cabarés e<br />

ren<strong>de</strong>z-vous, que os mineiros chamavam <strong>de</strong> re<strong>de</strong>vu, a visita, às<br />

escondidas, a alguma daquelas casas suspeitas, muito reservadas e que se<br />

assemelhavam às casas noturnas, tipo “luz vermelha”, dos romances <strong>de</strong><br />

Jorge Amado. Eram fugas que não chegavam a ser rotineiras, porque<br />

<strong>de</strong>pendiam do soldo e da folga. Ainda nem se sonhava com o facilitário<br />

dos atuais motéis. Que diferença! Mas o famoso Cabaré da Olímpia, o<br />

Palácio <strong>de</strong> Cristal ou o Montanhês Dancing eram também lugares <strong>de</strong> boa<br />

diversão e bem frequentados. Depois veio a natural <strong>de</strong>cadência e hoje não<br />

existem mais. Havia, naquela quadra da vida, as românticas serenatas!<br />

Muito em moda no meu tempo o tango argentino, as dolentes modinhas<br />

do nosso cancioneiro, o samba-canção, o chorinho, o bolero. Carlos<br />

Gar<strong>de</strong>l, Pedro Vargas, Francisco Alves, Noel Rosa, Orlando Silva, Sílvio<br />

Caldas, Carmen Miranda e tantos outros gran<strong>de</strong>s intérpretes que<br />

embalaram nossa juventu<strong>de</strong>. E nós, seresteiros improvisados, soltávamos<br />

nossas vozes apaixonadas ao clarão da lua, nas frias noites <strong>de</strong> junho e<br />

julho da Belo Horizonte <strong>de</strong> minha sauda<strong>de</strong>.<br />

Gemia em nossos peitos o coração mineiro trazido, principalmente,<br />

<strong>de</strong> Diamantina, Ouro Preto e Montes Claros, que disputam a autoria <strong>de</strong><br />

canções seresteiras com a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> nasceu Juscelino.<br />

Revista Volume LI.p65 114<br />

12/5/2009, 15:29


Nós, a outra rapaziada _________________________________________________ Affonso Heliodoro dos Santos 115<br />

As poéticas serenatas são costumes <strong>de</strong>ssas alegres e românticas<br />

cida<strong>de</strong>s. Diamantina, pelo seresteiro-mor que foi o nosso saudoso JK,<br />

ainda ostenta o título <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>-rainha da boa e romântica seresta. O<br />

nosso Juscelino, um pouco mais velho do que a Rapaziada <strong>de</strong> Werneck<br />

encantava-se com as noites <strong>de</strong> luar e ressentia-se <strong>de</strong> sua falta nas noites<br />

escuras <strong>de</strong> novilúnio. Noites tristes sem seresteiros, sem serenatas. Sem<br />

namoradas, sem romance.<br />

E íamos nós, cantores apaixonados, sob as janelas das namoradas,<br />

<strong>de</strong> rua em rua, <strong>de</strong> casa em casa, <strong>de</strong>rramando nossos amores, nas vozes<br />

nem sempre muito afinadas, mas enchendo <strong>de</strong> romance as noites e os<br />

corações das donzelas <strong>de</strong>spertadas no <strong>de</strong>lírio das <strong>de</strong>clarações amorosas<br />

<strong>de</strong> seus cantores noturnos. Nessa época o fox-trot e as canções<br />

americanas, trazidas pelos gran<strong>de</strong>s musicais <strong>de</strong> Hollywood, já<br />

começavam a lotar os cinemas da cida<strong>de</strong>. Jeannette MacDonald, Nelson<br />

Eddy, Martha Eggert, Fred Astaire, Ginger Rogers, Bing Crosby, Cyd<br />

Charisse, Ukulele Ike – o primeiro que interpretou a canção Cantando na<br />

Chuva num musical <strong>de</strong> 1929, mas só apresentado em BH na década <strong>de</strong> 30<br />

– transformada <strong>de</strong>pois num clássico da música americana, na magnífica<br />

interpretação <strong>de</strong> Gene Kelly, no belo filme Cantando na Chuva. As<br />

músicas cantadas por esses artistas, com versão para o português,<br />

tornaram-se, muitas <strong>de</strong>las, obrigatórias nas noites <strong>de</strong> luar inspiradoras dos<br />

amantes meio boêmios ou mesmo boêmios da cida<strong>de</strong>.<br />

Nossa condição social e <strong>de</strong> alunos <strong>de</strong> uma escola <strong>de</strong> formação<br />

militar, ca<strong>de</strong>tes que éramos, obrigava-nos ao mais rigoroso recato. Tudo<br />

era e havia <strong>de</strong> ser feito na maior moita, como se diz hoje. Bem diferente<br />

da rapaziada <strong>de</strong> Humberto Werneck. As leis, os regulamentos e a vocação<br />

para o quartel nos obrigavam a um procedimento condizente com a<br />

carreira que pretendíamos abraçar. Havia, naquele tempo, um forte rigor<br />

disciplinar e uma exemplar noção do cumprimento do <strong>de</strong>ver por parte dos<br />

homens que compunham os quadros da nossa germânica corporação.<br />

Exigências éticas e morais, sem <strong>de</strong>scurar da disciplina, eram, como ainda<br />

<strong>de</strong>vem ser hoje, a essência da boa formação militar.<br />

Havia as rodas <strong>de</strong> chope no Bar Alemão, na Rua Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

quase esquina da Avenida Amazonas, fechado por causa da II Guerra<br />

Revista Volume LI.p65 115<br />

12/5/2009, 15:29


116 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Mundial. Lá, como nas fugas noturnas, íamos à paisana, para a conversa<br />

<strong>de</strong>scontraída, as anedotas, a maionese e as salsichas, e, naturalmente, o<br />

chope bem gelado. Não havia a sofisticação dos salgadinhos e dos<br />

sanduíches <strong>de</strong> hoje. O negócio era mesmo morta<strong>de</strong>la, salame, maionese.<br />

E as noites passadas em claro, em plena rua, só para ouvir o Delê<br />

contar centenas <strong>de</strong> anedotas e morrer <strong>de</strong> rir, ele mesmo, das anedotas que<br />

contava? Essas eram noites nem <strong>de</strong> amor nem <strong>de</strong> pecado. Era só aquela<br />

coisa <strong>de</strong> ficar acordado para enamorar-se da lua e ver o sol nascer. E que<br />

espetáculo! Belo Horizonte disputa com Brasília a beleza da chegada e da<br />

<strong>de</strong>spedida do sol. Em Belo Horizonte ele vem <strong>de</strong> mansinho, <strong>de</strong>vagar,<br />

iluminando o céu e a terra antes <strong>de</strong> surgir <strong>de</strong>trás das majestosas<br />

montanhas que emolduram a cida<strong>de</strong>. Em Brasília, não. Ele explo<strong>de</strong> num<br />

enorme luzeiro, às escâncaras, logo aos primeiros momentos do<br />

alvorecer.<br />

Assim foi meu tempo <strong>de</strong> moço, que já vai bem longe.<br />

Pois bem, embora todo rigor, toda exigência, toda limitação,<br />

tínhamos, como todo jovem, o <strong>de</strong>sejo da aventura e o gosto do risco.<br />

Queríamos sentir o sabor da novida<strong>de</strong> e aquela sensação, muito própria<br />

dos moços: ver o perigo <strong>de</strong> perto. Cumpríamos nosso <strong>de</strong>ver, fazíamos<br />

também nossas farrinhas, cantávamos nossas serenatas, íamos à zona<br />

boemia, dançávamos, bebíamos, enfim, vivíamos nossa vida. Sem droga,<br />

sem violência, sem crime. Bem mais comportados que os “<strong>de</strong>satinados”<br />

<strong>de</strong> Humberto Werneck: Fernando Sabino, Otto Lara Resen<strong>de</strong>, Hélio<br />

Pelegrino, Paulo Men<strong>de</strong>s Campos e tantos outros moços das décadas <strong>de</strong><br />

30/40, que <strong>de</strong>ixaram seus nomes <strong>de</strong>stacados nas áreas em que atuaram,<br />

como a literatura, o jornalismo e outras ativida<strong>de</strong>s, por on<strong>de</strong> passaram.<br />

Revista Volume LI.p65 116<br />

12/5/2009, 15:29


ANTROPÓLOGO E HUMANISTA<br />

Franz Boas (1858-1942)<br />

Zanoni Neves*<br />

Comemora-se neste ano o sesquicentenário <strong>de</strong> nascimento do<br />

antropólogo Franz Uri Boas. Nascido em 1858 na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Min<strong>de</strong>n<br />

(Vestfália), Franz Boas pertenceu a uma família judaica. Antes <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spertar para os estudos antropológicos, formou-se em Física,<br />

<strong>de</strong>dicando-se posteriormente à Geografia.<br />

A partir da expedição aos esquimós em 1883-1884, Boas convertese<br />

à Antropologia, valorizando, em seu trabalho, a pesquisa <strong>de</strong> campo e a<br />

etnografia. Em sua formação, não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista também as<br />

fontes históricas, sobretudo os relatos <strong>de</strong> viajantes e cronistas como<br />

Heródoto, César, Tácito, Marco Polo, Ibn Batuta, Cook, etc. que<br />

<strong>de</strong>screveram padrões culturais vigentes em períodos históricos passados e<br />

em socieda<strong>de</strong>s diferentes das oci<strong>de</strong>ntais.<br />

Ao conhecer Adolf Bastian (1826-1905) com quem trabalhou no<br />

Museum für Völkerkun<strong>de</strong>, <strong>de</strong> Berlim, o jovem Boas assumiu um contato<br />

mais profundo com a Antropologia. Vale lembrar que Bastian formulou a<br />

tese da unida<strong>de</strong> psíquica da humanida<strong>de</strong> e do paralelismo cultural.<br />

A formação <strong>de</strong> Franz Boas na área <strong>de</strong> ciências exatas explica o<br />

rigor introduzido nos estudos antropológicos. Assim, por seu intermédio,<br />

a Antropologia assimilou algumas características da pesquisa científica<br />

* Mestre em Antropologia Social pela UNICAMP, membro efetivo da ABA – Associação<br />

Brasileira <strong>de</strong> Antropologia e da SBPC – Socieda<strong>de</strong> Brasileira para o Progresso da Ciência.<br />

Revista Volume LI.p65 117<br />

12/5/2009, 15:29


118 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

predominantes na física e na geografia: o interesse pela observação<br />

empírica, pelo trabalho <strong>de</strong> campo, a produção do conhecimento<br />

sistemático e objetivo, etc. Mas não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista as origens <strong>de</strong><br />

Boas, <strong>de</strong>terminantes em sua formação intelectual: ju<strong>de</strong>u vivendo na<br />

Alemanha, foi vítima <strong>de</strong> preconceito anti-semita. Experimentou,<br />

portanto, a condição <strong>de</strong> etnia minoritária submetida à discriminação<br />

racial. Essa experiência contribuiu para sua formação intelectual como<br />

antropólogo, na medida em que lhe possibilitou o estranhamento <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ologias discriminatórias, favorecendo-lhe a interpretação da realida<strong>de</strong><br />

sociocultural vivenciada por outras minorias como os negros e índios<br />

americanos, submetidos ao preconceito racial.<br />

A ciência e o exercício da crítica<br />

É importante contextualizar a época em que viveu Franz Boas;<br />

sobretudo, mencionar o estádio <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da ciência<br />

antropológica, na qual – vale lembrar – predominava o evolucionismo<br />

cultural: segundo esta orientação teórica, as socieda<strong>de</strong>s humanas<br />

passariam pelos estágios <strong>de</strong> selvageria e barbárie até alcançar a<br />

civilização. Em 1896, Boas escreveu o artigo “As limitações do método<br />

comparativo da antropologia” em que <strong>de</strong>senvolve uma crítica ao<br />

evolucionismo unilinear, argumentando em favor <strong>de</strong> estudos históricoculturais<br />

específicos para cada socieda<strong>de</strong>, cujo “processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento”<br />

<strong>de</strong>veria ser investigado:<br />

Não se po<strong>de</strong> dizer que a ocorrência do mesmo fenômeno<br />

sempre se <strong>de</strong>ve às mesmas causas, nem que ela prove que a<br />

mente humana obe<strong>de</strong>ce às mesmas leis em todos os lugares.<br />

Temos que exigir que as causas a partir das quais o fenômeno<br />

se <strong>de</strong>senvolveu sejam investigadas, e que as comparações se<br />

restrinjam àqueles fenômenos que se provem ser efeitos das<br />

mesmas causas. Devemos insistir para que essa investigação<br />

seja preliminar a todos os estudos comparativos mais<br />

amplos. (1)<br />

Revista Volume LI.p65 118<br />

12/5/2009, 15:29


Antropólogo e humanista: Franz Boas (1858-1942) ________________________________________ Zanoni Neves 119<br />

Vejamos um trecho do artigo “Os objetivos da pesquisa<br />

antropológica” (1932) em que Boas lança um forte argumento contra os<br />

exageros do difusionismo, uma das orientações teóricas predominantes<br />

em sua época:<br />

Não é um método seguro supor que todos os fenômenos<br />

culturais análogos precisem estar historicamente relacionados.<br />

Em cada caso é necessário exigir prova <strong>de</strong> relação<br />

histórica, que <strong>de</strong>ve ser tanto mais rígida quanto menos<br />

evidência houver <strong>de</strong> um contato real, seja ele recente ou<br />

antigo. (2)<br />

A “prova” nada mais é do que o material da pesquisa <strong>de</strong> campo e<br />

<strong>de</strong> relatos históricos consistentes.<br />

Os <strong>de</strong>terminismos biológico, econômico e geográfico foram por ele<br />

refutados. Neste particular, vejamos um exemplo que po<strong>de</strong> ser<br />

encontrado no artigo acima mencionado:<br />

Os geógrafos tentam <strong>de</strong>rivar todas as formas da cultura<br />

humana do ambiente geográfico no qual o homem vive. Por<br />

mais importante que possa ser esse aspecto, não temos<br />

evidência <strong>de</strong> uma força criativa do ambiente. Tudo o que<br />

sabemos é que qualquer cultura é fortemente influenciada por<br />

seu meio ambiente, e que alguns elementos <strong>de</strong> cultura não<br />

po<strong>de</strong>m se <strong>de</strong>senvolver num cenário geográfico <strong>de</strong>sfavorável,<br />

assim como outros po<strong>de</strong>m ser por ele favorecidos. Basta<br />

observar as diferenças fundamentais <strong>de</strong> cultura que se<br />

<strong>de</strong>senvolvem, uma após a outra, no mesmo ambiente, para<br />

nos fazer compreen<strong>de</strong>r as limitações das influências ambientais.<br />

(3)<br />

Posteriormente, alguns autores aprofundaram o conhecimento da<br />

relação entre natureza e cultura. Vale lembrar, por exemplo, Marshall<br />

Sahlins, para quem “a cultura age seletivamente” (...) sobre o meio<br />

Revista Volume LI.p65 119<br />

12/5/2009, 15:29


120 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

ambiente, “explorando <strong>de</strong>terminadas possibilida<strong>de</strong>s e limites ao<br />

<strong>de</strong>senvolvimento, para o qual as forças <strong>de</strong>cisivas estão na própria cultura<br />

e na história da cultura.” (4)<br />

No texto “Alguns problemas <strong>de</strong> metodologia nas ciências sociais”,<br />

<strong>de</strong> 1930, Franz Boas já abordava a questão racial:<br />

Certas linhas <strong>de</strong> investigação se <strong>de</strong>senvolveram com a<br />

finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> explicar como as complexida<strong>de</strong>s da vida<br />

cultural <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> um único conjunto <strong>de</strong> condições.<br />

Exatamente agora vem-se atribuindo gran<strong>de</strong> ênfase à raça<br />

como um <strong>de</strong>terminante da cultura. (5)<br />

E, em seguida, questiona: “Não acredito que se tenha dado até hoje<br />

qualquer prova convincente <strong>de</strong> uma relação direta entre raça e cultura.” (6)<br />

Diante das i<strong>de</strong>ologias racistas predominantes em sua época, Franz<br />

Boas pon<strong>de</strong>rou que o preconceito racial <strong>de</strong>veria ser explicado por fatores<br />

culturais e não por fatores biológicos. Vejamos a seguir uma citação do<br />

artigo “Raça e Progresso”, <strong>de</strong> 1931, no qual sua crítica torna-se mais<br />

incisiva:<br />

Acredito que o estado atual <strong>de</strong> nosso conhecimento nos<br />

autoriza a dizer que, embora os indivíduos difiram, as<br />

diferenças biológicas entre as raças são pequenas. Não há<br />

razão para acreditar que uma raça seja naturalmente mais<br />

inteligente, dotada <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> força <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>, ou<br />

emocionalmente mais estável do que outra, e que essa<br />

diferença iria influenciar significativamente sua cultura. (7)<br />

As i<strong>de</strong>ologias racistas preconizavam a superiorida<strong>de</strong> das populações<br />

caucasói<strong>de</strong>s e a inferiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outras, como as negrói<strong>de</strong>s, por<br />

exemplo, conforme terminologia amplamente utilizada naquele período<br />

histórico.<br />

O preconceito racial advém <strong>de</strong> uma visão autocentrada na cultura<br />

do grupo que discrimina: indivíduos <strong>de</strong> uma raça ou <strong>de</strong> uma etnia<br />

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Antropólogo e humanista: Franz Boas (1858-1942) ________________________________________ Zanoni Neves 121<br />

colocam-se numa posição hierárquica em frente a outros povos, dizendose<br />

superiores. Assim, justificou-se, por exemplo, a escravidão, o colonialismo<br />

e, até mesmo, o genocídio <strong>de</strong> incontáveis grupos nativos na África<br />

e nas Américas.<br />

Autor do livro Ensaio sobre a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> das raças humanas, o<br />

Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gobineau e seus discípulos, que – vale enfatizar – alimentaram<br />

a i<strong>de</strong>ologia nazista, tiveram suas teses criticadas por Franz Boas no artigo<br />

“Raça e Progresso” (1931):<br />

A questão essencial a ser respondida é se temos qualquer<br />

evidência que indique que os acasalamentos entre indivíduos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência e tipos diferentes resultariam numa prole<br />

menos vigorosa do que a <strong>de</strong> seus ancestrais. Não tivemos<br />

nenhuma oportunida<strong>de</strong> para observar qualquer <strong>de</strong>generação<br />

no homem que se <strong>de</strong>va claramente a essa causa.” (8)<br />

Gobineau argumentava que a mestiçagem enfraquecia as raças,<br />

prevendo que os brasileiros, predominantemente miscigenados, estariam<br />

con<strong>de</strong>nados ao <strong>de</strong>saparecimento. (9)<br />

No artigo acima mencionado, Boas questiona outras manifestações<br />

das i<strong>de</strong>ologias racistas, por exemplo, as tentativas <strong>de</strong> relacionar tipos <strong>de</strong><br />

personalida<strong>de</strong> às raças: “É muito mais difícil obter resultados<br />

convincentes em relação às reações emocionais nas diferentes raças.”<br />

(10) Mais adiante, esclarece: “Não há dúvida <strong>de</strong> que indivíduos diferem a<br />

esse respeito graças à sua constituição biológica. Mas é muito<br />

questionável se o mesmo po<strong>de</strong> ser dito das raças, pois em todas elas<br />

encontramos uma ampla varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> diferentes tipos <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>.”<br />

(11) E, em seguida, arremata: “A varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> respostas <strong>de</strong> grupos da<br />

mesma raça, porém culturalmente diferentes, é tão gran<strong>de</strong>, que<br />

provavelmente qualquer diferença biológica existente tem importância<br />

menor.” (12)<br />

No artigo “Os objetivos da pesquisa antropológica”, <strong>de</strong> 1932, o<br />

referido autor argumenta com base em dados <strong>de</strong> pesquisa: “Po<strong>de</strong>mos<br />

dizer com segurança que os resultados do extenso material reunido<br />

Revista Volume LI.p65 121<br />

12/5/2009, 15:29


122 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

durante os últimos cinqüenta anos não justifica a suposição <strong>de</strong> qualquer<br />

relação estreita entre tipos biológicos e forma cultural.” (13)<br />

Enfim, Boas rejeitou a visão superficial, reducionista, que<br />

caracterizava o pensamento pseudocientífico estribado no senso comum e<br />

no preconceito racial. A<strong>de</strong>mais, seus textos tornaram-se matrizes para a<br />

reflexão <strong>de</strong> diversos alunos e estudiosos que escreveram teses e livros <strong>de</strong><br />

Antropologia.<br />

Os enfoques autocentrados na cultura do pesquisador, a<br />

hierarquização <strong>de</strong> culturas são questionados na perspectiva relativizadora<br />

<strong>de</strong> Franz Boas. Vale citar sua reflexão sobre as chamadas “culturas<br />

primitivas”:<br />

“Antes <strong>de</strong> calificar <strong>de</strong> primitiva a la cultura <strong>de</strong> un pueblo en<br />

el sentido <strong>de</strong> pobreza <strong>de</strong> realizaciones culturales, es preciso<br />

respon<strong>de</strong>r a tres preguntas: primero, como se manifiesta la<br />

pobreza en diversos aspectos <strong>de</strong> la cultura; segundo, si el<br />

pueblo en masa pue<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado como una unidad<br />

respecto a sus posesiones culturales; tercero, qual es la<br />

relación <strong>de</strong> los diversos aspectos <strong>de</strong> la cultura, si<br />

obligatoriamente su <strong>de</strong>sarollo <strong>de</strong>be ser <strong>de</strong>ficiente en todos por<br />

igual, o pue<strong>de</strong>n ser algunos avanzados y otros no.” (14)<br />

O pesquisador <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>spojar-se dos valores <strong>de</strong> sua cultura para<br />

observar outras culturas. Abordagens <strong>de</strong>sta natureza estimuladas pelo<br />

pensamento <strong>de</strong> Boas permitiram aos antropólogos questionar incontáveis<br />

preconceitos enraizados no senso comum e em estudos pretensamente<br />

eruditos.<br />

A i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong> que <strong>de</strong>terminados povos estariam irremediavelmente<br />

fadados ao “atraso” foi questionada pelas ciências<br />

sociais. Associando a noção <strong>de</strong> raça ao nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

tecnológico, o colonialismo justificava a dominação sobre povos<br />

consi<strong>de</strong>rados culturalmente inferiores. Os textos <strong>de</strong> Boas e <strong>de</strong> outros<br />

autores contribuíram para <strong>de</strong>svelar a inconsistência <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong><br />

argumento.<br />

Revista Volume LI.p65 122<br />

12/5/2009, 15:29


Antropólogo e humanista: Franz Boas (1858-1942) ________________________________________ Zanoni Neves 123<br />

Muitos alunos orientados por Franz Boas, como Melville<br />

Herskovitz, <strong>de</strong>senvolveram novos conceitos para a Antropologia<br />

Cultural. Vejamos apenas um exemplo:<br />

Os aspectos da experiência da aprendizagem que distinguem<br />

o homem das outras criaturas, e através dos quais, na infância<br />

e posteriormente, ele se familiariza com sua cultura, po<strong>de</strong>m<br />

ser chamados <strong>de</strong> enculturação. Trata-se, em essência, <strong>de</strong> um<br />

processo <strong>de</strong> condicionamento consciente ou inconsciente,<br />

exercido <strong>de</strong>ntro dos limites sancionados por um <strong>de</strong>terminado<br />

complexo <strong>de</strong> costumes. (15)<br />

As novas teorias aprofundaram o conhecimento <strong>de</strong>scortinado por<br />

Franz Boas sobre a relevância da cultura na vida dos seres humanos. Mas<br />

é importante citarmos outros antropólogos <strong>de</strong> renome que foram alunos<br />

<strong>de</strong> Boas: Alfred Kroeber, Edward Sapir, Robert Lowie, Ruth Benedict,<br />

Margareth Mead, Gilberto Freyre etc. Certamente, esses gran<strong>de</strong>s<br />

expoentes da Antropologia realizaram-se profissionalmente graças à sua<br />

competência, mas <strong>de</strong>vem também sua formação ao rigor que o gran<strong>de</strong><br />

mestre <strong>de</strong>votava à ciência. Vejamos, a seguir, as observações <strong>de</strong> Abram<br />

Kardiner e Edward Preble:<br />

A sua atitu<strong>de</strong> (<strong>de</strong> Boas) em relação ao trabalho <strong>de</strong>les (dos<br />

alunos) era sempre <strong>de</strong> crítica, e o fato <strong>de</strong> ter habitualmente<br />

razão em seu julgamento não diminuía o constrangimento<br />

que experimentavam alguns <strong>de</strong>ntre eles. O seu maior talento<br />

residia na análise da teoria e do método e nenhum trabalho<br />

lhe fugia à paciente e meticulosa dissecção. (16)<br />

A visão das inter-relações entre fenômenos culturais é uma das<br />

características do método <strong>de</strong> Franz Boas. Nos estudos culturalantropológicos,<br />

<strong>de</strong>ver-se-ia captar a totalida<strong>de</strong> e as relações entre as<br />

“partes”. No texto “Os objetivos da pesquisa antropológica”, <strong>de</strong> 1932, ele<br />

ensinava: “A inter<strong>de</strong>pendência dos fenômenos culturais <strong>de</strong>ve ser um dos<br />

Revista Volume LI.p65 123<br />

12/5/2009, 15:29


124 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

temas da pesquisa antropológica, cujo material po<strong>de</strong> ser obtido por meio<br />

do estudo das socieda<strong>de</strong>s existentes.” (17) Na introdução do livro<br />

Padrões <strong>de</strong> cultura, <strong>de</strong> Ruth Benedict, Franz Boas observou: “O<br />

ocuparmo-nos <strong>de</strong> culturas vivas criou um mais forte interesse pela<br />

totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada cultura. Sente-se cada vez mais que quase nenhuma<br />

feição cultural é compreensível quando separada do conjunto <strong>de</strong> que faz<br />

parte.” (18)<br />

Debruçando-se sobre “culturas vivas”, a pesquisa <strong>de</strong> campo revelou<br />

a importância da totalida<strong>de</strong> para os estudos antropológicos contrapondose<br />

às investigações dos “antropólogos <strong>de</strong> gabinete”. Juntamente com<br />

Malinowski, Boas introduziu uma verda<strong>de</strong>ira revolução no pensamento<br />

antropológico.<br />

A prática<br />

Nos momentos cruciais da história da humanida<strong>de</strong>, Franz Boas<br />

posicionou-se claramente contra os regimes totalitários. Vejamos, a<br />

seguir, um texto <strong>de</strong> Kardiner e Preble sobre sua oposição ao Nazismo:<br />

Com o advento do racismo sob o domínio dos nazistas, antes<br />

da Segunda Guerra Mundial, foi um dos primeiros a assumir<br />

vigorosa posição pública contra Hitler. Já, então, em ida<strong>de</strong><br />

avançada, combateu a Alemanha <strong>de</strong> Hitler com todas as<br />

forças do seu gran<strong>de</strong> saber, da sua reputação e da sua<br />

personalida<strong>de</strong>. (19)<br />

Seu pensamento incomodava os <strong>de</strong>tentores do po<strong>de</strong>r discricionário.<br />

É importante citar Celso Castro na apresentação do livro Antropologia<br />

Cultural, <strong>de</strong> Franz Boas: “Quando, em 1938, a universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Hei<strong>de</strong>lberg foi invadida pelas SS nazistas, seus livros estavam entre os<br />

que foram queimados.” (20) Ainda segundo o mesmo autor, “(Boas) foi<br />

um dos fundadores, em 1939, do American Committee for Democracy<br />

and Intellectual Freedom, criado em uma época <strong>de</strong> intensa ‘caça às<br />

bruxas’ dos dois lados do Atlântico.” (21) Vale mencionar o<br />

Revista Volume LI.p65 124<br />

12/5/2009, 15:29


Antropólogo e humanista: Franz Boas (1858-1942) ________________________________________ Zanoni Neves 125<br />

macarthismo, <strong>de</strong> triste memória. Mas à opressão se contrapôs a liberda<strong>de</strong><br />

intelectual.<br />

É lícito pensar que as idéias <strong>de</strong> Boas, assimiladas por um gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> antropólogos (que se tornaram eminentes professores) e no<br />

meio estudantil dos EUA, contribuíram <strong>de</strong> alguma forma para fomentar a<br />

luta pelos direitos civis nos anos 1960. Ao longo <strong>de</strong> algumas décadas,<br />

reproduzindo-se na socieda<strong>de</strong> americana, auxiliaram na formação <strong>de</strong> um<br />

i<strong>de</strong>ário crítico sobre a discriminação racial naquele país.<br />

Notas e referências bibliográficas<br />

1. BOAS, Franz. Antropologia cultural. Org. e trad. Celso Castro. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, Coleção Antropologia Social, pp.<br />

31-32.<br />

2. Ibi<strong>de</strong>m, p. 102;<br />

3. Ibi<strong>de</strong>m, pp. 104-105;<br />

4. SAHLINS, Marshall. “A cultura e o meio ambiente: o estudo da<br />

ecologia cultural”, in: TAX, Sol (Org.). Panorama da Antropologia.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Fundo <strong>de</strong> Cultura, s./d., pp. 100-101;<br />

5. BOAS, Franz. Antropologia cultural. Org. e trad. Celso Castro. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, Coleção Antropologia Social, p.<br />

59;<br />

6. Ibi<strong>de</strong>m, p. 60;<br />

7. Ibi<strong>de</strong>m, p. 82;<br />

8. Ibi<strong>de</strong>m, p. 72;<br />

9. RAEDERS, Georges. O Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gobineau no Brasil. Trad. Rosa<br />

Freire d’Aguiar. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1997, Coleção<br />

Leitura, p. 8;<br />

10. BOAS, Franz. Antropologia cultural. Org. e trad. Celso Castro. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, Coleção Antropologia Social, p.<br />

80;<br />

11. Ibi<strong>de</strong>m, p. 81;<br />

Revista Volume LI.p65 125<br />

12/5/2009, 15:29


126 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

12. Ibi<strong>de</strong>m, i<strong>de</strong>m;<br />

13. Ibi<strong>de</strong>m, p. 97;<br />

14. BOAS, Franz. Cuestiones fundamentales <strong>de</strong> Antropología Cultural.<br />

Buenos Aires: Solar-Hachette, 1988, p. 203;<br />

15. HERSKOVITZ, Melville. Man and his Works. New York: Knopf,<br />

1948, p. 39;<br />

16. KARDINER, Abram; PREBLE, Edward. Eles estudaram o Homem.<br />

São Paulo: Cultrix, 1964, p. 140;<br />

17. BOAS, Franz. Antropologia cultural. Org. e trad. Celso Castro. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, Coleção Antropologia Social, p.<br />

103;<br />

18. _______. “Introdução”. In: BENEDICT, Ruth. Padrões <strong>de</strong> cultura.<br />

Trad. Alberto Can<strong>de</strong>ias. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”, s./d.,<br />

Coleção Vida e Cultura, p. 8;<br />

19. KARDINER, Abram; PREBLE, Edward. Eles estudaram o Homem.<br />

São Paulo: Cultrix, 1964, p. 138;<br />

20. CASTRO, Celso. “Apresentação”. In: BOAS, Franz. Antropologia<br />

cultural. Org. e trad. Celso Castro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed.,<br />

2004, Coleção Antropologia Social, p. 14;<br />

21. _______. “Apresentação”. Ibi<strong>de</strong>m, i<strong>de</strong>m.<br />

Revista Volume LI.p65 126<br />

12/5/2009, 15:29


Cinema _______________________________________________<br />

IMAGENS:<br />

REALI<strong>DA</strong>DE E FICÇÃO<br />

Paulo Augusto Gomes*<br />

É fato histórico: ao gravar as imagens <strong>de</strong> “Nanook of the North”<br />

(Nanook, o Esquimó), o filme que, em 1922, estabeleceu as raízes do<br />

gênero documentário, o cineasta e explorador Robert Flaherty interferiu<br />

abertamente na realida<strong>de</strong> que se lhe apresentava. Para mostrar o interior<br />

do iglu on<strong>de</strong> supostamente vivia o personagem, ao lado <strong>de</strong> sua família,<br />

Flaherty não apenas or<strong>de</strong>nou que fosse edificado um iglu muito maior<br />

que o usual, como também pediu que ele fosse construído pela meta<strong>de</strong>, à<br />

maneira <strong>de</strong> uma concha acústica. Não fizesse isso, não teria como<br />

mostrar a habitação por <strong>de</strong>ntro: um iglu é pequeno (<strong>de</strong> modo a manter<br />

mais facilmente o calor armazenado) e, além do mais, os filmes da época,<br />

<strong>de</strong> baixa sensibilida<strong>de</strong>, não seriam capazes <strong>de</strong> registrar imagem alguma,<br />

com a pouca luz interna. Ou seja, o documentário já nasceu falsificado.<br />

Ainda hoje, há quem acredite na “fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>” do documentário, na<br />

sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mostrar “a vida como ela é”. Isso, para não mencionar<br />

o fato <strong>de</strong> que Nanook, na verda<strong>de</strong>, nunca existiu: é só um personagem,<br />

vivido no filme por um esquimó-ator. Da mesma forma, sua família é<br />

* Cineasta, membro do Centro <strong>de</strong> Pesquisadores do Cinema Brasileiro.<br />

Revista Volume LI.p65 127<br />

12/5/2009, 15:29


128 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

inteiramente inventada. Sua esposa é vivida por uma mulher que ele mal<br />

conhecia na vida real e os filhos mostrados nunca foram seus. Ou seja,<br />

Flaherty recria em imagens uma família semelhante às muitas famílias<br />

esquimós que conheceu, um levantamento bastante verda<strong>de</strong>iro daquele<br />

mundo, elaborado a partir <strong>de</strong> premissas falsas. Vendo o filme hoje em<br />

dia, é espantoso perceber o quanto ele nos impressiona por sua<br />

“veracida<strong>de</strong>”.<br />

Se já não sabia na prática, Flaherty apren<strong>de</strong>u, ao fazer suas<br />

primeiras imagens, o quanto o cinema é fabricado. Nada mais equivocado<br />

que a célebre “objetivida<strong>de</strong>”, no que toca à criação artística. Isso não<br />

existe, <strong>de</strong>finitivamente. Ao selecionar um tema, o cineasta, por <strong>de</strong>finição,<br />

já está interferindo na realida<strong>de</strong> à sua frente. Po<strong>de</strong> ele, no máximo,<br />

apresentar “sua visão” <strong>de</strong>ssa mesma realida<strong>de</strong>, necessariamente diferente<br />

da <strong>de</strong> um colega que <strong>de</strong>cida <strong>de</strong>screver o mesmo mundo. Como ponto <strong>de</strong><br />

partida, está a famosa “bagagem cultural”, que cada um <strong>de</strong> nós possui,<br />

diferenciada da <strong>de</strong> qualquer outro ser humano. Se sou um antropólogo,<br />

minha visão da vida esquimó se focará a partir <strong>de</strong>ssa premissa; um<br />

sociólogo ou um missionário terão enfoques diferentes do meu.<br />

Do mesmo modo, a linguagem da forma <strong>de</strong> expressão por mim<br />

escolhida ditará minha maneira <strong>de</strong> narrar. A baixa sensibilida<strong>de</strong> da<br />

película obrigará a uma reconstrução do iglu em proporções inexistentes<br />

na prática e à maneira <strong>de</strong> um cenário <strong>de</strong> papelão. A quantida<strong>de</strong> limitada<br />

<strong>de</strong> filme virgem que cabe em um magazine <strong>de</strong> câmera <strong>de</strong>ixará claro que<br />

planos-sequência não serão possíveis – ou, então, serão muito<br />

poucos. Se tiver à minha disposição uma grua, po<strong>de</strong>rei fazer planos com<br />

a câmera a gran<strong>de</strong>s alturas; mas, se como é mais provável, eu não<br />

dispuser <strong>de</strong> um equipamento caro e <strong>de</strong> difícil transporte como esse, o<br />

jeito será filmar com a câmera à altura do olhar humano.<br />

Também na maneira <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver a vida cotidiana dos meus<br />

personagens estarei interferindo na realida<strong>de</strong>. Por que filmes raramente<br />

mostram personagens no banheiro, fumando um cigarro em frente à<br />

lareira ou lavando roupa no tanque? São os chamados “tempos mortos”,<br />

nos quais muito pouco ou quase nada acontece, provocando<br />

consequentemente o tédio nos espectadores. Mas tais tempos mortos não<br />

Revista Volume LI.p65 128<br />

12/5/2009, 15:29


Imagens: realida<strong>de</strong> e ficção ____________________________________________________ Paulo Augusto Gomes 129<br />

fazem parte da vida dos meus personagens? Não fazem parte das vidas <strong>de</strong><br />

todos nós? Ora, ao promover um recorte da realida<strong>de</strong>, o artista, por<br />

<strong>de</strong>finição, altera essa realida<strong>de</strong>; po<strong>de</strong> até mesmo passar a impressão <strong>de</strong><br />

que o cotidiano <strong>de</strong> alguém tem um dinamismo que, na verda<strong>de</strong>, não está<br />

lá.<br />

Não existe, por conseguinte, “a vida como ela é”. Como é a vida?<br />

Quem sabe? Existe, sim, “a vida tal como eu a vejo” – e é tudo. Toda<br />

criação artística é uma apropriação limitada, redutora, <strong>de</strong>sse fenômeno<br />

complexo a que se chama vida. Nenhuma esgota o tema, nenhuma jamais<br />

conseguirá isso. É essa a razão pela qual é inútil tentar ser abrangente e<br />

universal. Tomando o caminho inverso, ou seja, assumindo o regionalismo<br />

e a visão concentradora, teremos mais chances <strong>de</strong> ser universais e<br />

completos. A que se <strong>de</strong>ve isso? Com licença do lugar-comum, ao fato <strong>de</strong><br />

que o universo está todo contido em um grão <strong>de</strong> areia.<br />

Obras <strong>de</strong> arte são representações – não reproduções. É impossível<br />

reproduzir a natureza com papel e caneta, pincéis e tintas ou câmera e<br />

filme virgem. Temos imagens, apenas, que muitas vezes <strong>de</strong>spertam<br />

emoções e sentimentos diversificados naqueles que as veem. Tentar<br />

explicar a vida e suas manifestações é dos esforços mais inúteis que se<br />

conhecem. Há que senti-la e vivê-la; aí, a obra <strong>de</strong> arte adquire sentido e<br />

significado, como testemunho, no tempo e no espaço, <strong>de</strong>ssa vida vivida.<br />

É conhecida a anedota (ou fato real?) segundo a qual soldados<br />

alemães encontraram-se com Pablo Picasso diante do quadro Guernica,<br />

visão do artista da cida<strong>de</strong> espanhola arrasada pela aviação alemã no<br />

tempo da Guerra Civil. O oficial nazista perguntou ao pintor: “Foi o<br />

senhor que fez isso?”, ouvindo a resposta: “Não, foram os senhores”.<br />

Picasso assume, para si, o papel <strong>de</strong> antena da raça, para usar a expressão<br />

<strong>de</strong> Ezra Pound. Apenas representa, por meio <strong>de</strong> sua arte, uma tragédia <strong>de</strong><br />

proporções gigantescas. E Guernica nem ao menos é uma representação<br />

realista <strong>de</strong>ssa tragédia, com explosões e corpos espalhados. Picasso não<br />

“mostra”, não “documenta” a tragédia, apenas a recria conforme a sentiu.<br />

Isso, aliado ao seu talento próprio, faz com que a tela se apresente como<br />

um testemunho vigoroso do caos que se abateu sobre o mundo àquela<br />

época.<br />

Revista Volume LI.p65 129<br />

12/5/2009, 15:29


130 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

O cinema documentário tem, por conseguinte, uma importância<br />

relativa no que diz respeito à reprodução da realida<strong>de</strong>. Aliás, cada vez<br />

menos: hoje em dia, com os avanços da computação gráfica, é possível fazer<br />

quase tudo a partir <strong>de</strong> um software sofisticado. Já se sabia disso mesmo<br />

antes do advento <strong>de</strong>sse ferramental, como o <strong>de</strong>monstram os <strong>de</strong>saparecimentos<br />

da figura <strong>de</strong> Trotski <strong>de</strong> certas fotos feitas à época da Revolução<br />

Russa. Como alguém já disse, sempre se po<strong>de</strong> provar o contrário.<br />

Foi Jean-Luc Godard quem lembrou, certa vez, que os primitivos<br />

filmes <strong>de</strong> Louis Lumière, pequenas cenas extraídas do cotidiano,<br />

passados tantos anos, hoje mais parecem exercícios <strong>de</strong> ficção, com<br />

figuras trajando roupas estranhas e pouco à vonta<strong>de</strong> em cena, ao passo<br />

que a Viagem à Lua <strong>de</strong> Georges Méliès se aproxima agora <strong>de</strong> um<br />

documentário, até mesmo pelos caminhos que a tecnologia abriu ao ser<br />

humano.<br />

No fundo, no fundo, aproximamo-nos daquela célebre pergunta<br />

bíblica, feita por Pilatos a Cristo (e não respondida): “O que é a<br />

verda<strong>de</strong>”? A <strong>de</strong>finição perfeita da palavra escapa aos limites humanos, da<br />

mesma forma que a objetivida<strong>de</strong>. Existem aproximações: o rigor, no<br />

caso, nos retiraria a dimensão humana; ficaríamos mais próximos da<br />

condição divina. O conhecimento pleno, além <strong>de</strong> inútil, nos colocaria em<br />

uma posição imobilizadora: daí, o quê?<br />

No caso <strong>de</strong> Nanook, o Esquimó, a que serve o filme? Além <strong>de</strong><br />

transmitir informações àqueles que se mostram curiosos diante <strong>de</strong> uma<br />

realida<strong>de</strong> com poucos pontos em comum com a nossa, o documentário <strong>de</strong><br />

Flaherty só se mantém interessante para os que buscam ver nele uma<br />

reflexão sobre a condição humana. Aí, que o iglu tenha um ou <strong>de</strong>z metros<br />

<strong>de</strong> diâmetro passa a ser apenas um <strong>de</strong>talhe: fundamental é mesmo ver<br />

como seres humanos enfrentam condições <strong>de</strong> vida adversas e triunfam<br />

sobre elas.<br />

Existem experiências curiosíssimas, a exemplo da que fez um<br />

cineasta que, usando imagens extraídas da realida<strong>de</strong>, construiu um<br />

documentário absolutamente fantasioso sobre uma fictícia invasão<br />

nazista da Inglaterra. Com o uso da montagem e <strong>de</strong> uma narrativa bem<br />

construída, foi possível mostrar (e “provar”) algo que nunca aconteceu,<br />

Revista Volume LI.p65 130<br />

12/5/2009, 15:29


Imagens: realida<strong>de</strong> e ficção ____________________________________________________ Paulo Augusto Gomes 131<br />

para falar <strong>de</strong> uma possibilida<strong>de</strong> que, caso viesse a ser concretizada,<br />

abalaria os alicerces da Europa. Woody Allen, por sua vez, utilizou um<br />

filme <strong>de</strong> ficção japonês “sério” e dublou-o <strong>de</strong> modo a convertê-lo em<br />

uma comédia: agentes secretos, que originalmente buscavam segredos<br />

nucleares, passam a se <strong>de</strong>bater, na versão alleniana, em busca <strong>de</strong>...<br />

uma receita para uma salada <strong>de</strong> ovos! O visual não foi mexido; apenas o<br />

sentido da trama foi alterado.<br />

Nada é tão tênue como uma imagem. Dela se po<strong>de</strong> fazer o que se<br />

quiser, nela po<strong>de</strong> ser impregnado um sentido que originalmente não<br />

possuía – isso, para além dos valores que ela originalmente trazia em si.<br />

Tomemos um exemplo: uma imagem <strong>de</strong> Hitler produzida por Leni<br />

Riefenstahl – portanto, enaltecedora – po<strong>de</strong>, graças a artes e manhas da<br />

montagem e da banda sonora, transformar-se em crítica pesada ao ditador<br />

alemão. Basta acompanhar diariamente como as televisões tratam seu<br />

material <strong>de</strong> arquivo para se ter uma idéia do que é possível fazer.<br />

A arte não vê, tem visões. Mais interessantes elas se tornam quando<br />

o criador não tem vergonha alguma <strong>de</strong> imprimir sua marca pessoal sobre<br />

o material que filma e usa. É como se dissesse: – isso aí sou eu, é assim<br />

que vejo esse assunto, essas são minhas i<strong>de</strong>ias. Em Verda<strong>de</strong>s e Mentiras<br />

(F for Fake), Orson Welles, no início, afirma que só falará verda<strong>de</strong>s na<br />

próxima hora – mas seu filme dura mais que isso e, a partir <strong>de</strong> certo<br />

ponto que não conseguimos <strong>de</strong>terminar com exatidão, ele põe-se a<br />

inventar e mentir <strong>de</strong>scaradamente, já que também inverda<strong>de</strong>s fazem parte<br />

do seu discurso.<br />

Explorada até a exaustão, a narrativa cinematográfica atingiu um tal<br />

grau <strong>de</strong> sofisticação e dubieda<strong>de</strong> que se torna difícil confiar nela como<br />

prova do que quer que seja. Hoje, quando personagens <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho<br />

animado (ou criados por computador) interagem com atores humanos,<br />

levando à fusão <strong>de</strong> universos antes distintos, não faz mais muito sentido<br />

apostar na imagem como algo digno <strong>de</strong> fé. Talvez, aliás, nunca tenha<br />

feito. Produtos da imaginação humana, o cinema e as outras formas <strong>de</strong><br />

arte só nos trazem a verda<strong>de</strong> quando ela vem embutida na mais complexa<br />

ficção. O ciclo, então, se fecha e os extremos se tocam. É quando a arte<br />

mostra verda<strong>de</strong>iramente sua finalida<strong>de</strong> e objetivo.<br />

Revista Volume LI.p65 131<br />

12/5/2009, 15:29


132 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 132<br />

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Caricatura <strong>de</strong> Paulo Caruso, resi<strong>de</strong>nte em São Paulo<br />

Revista Volume LI.p65 133<br />

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Revista Volume LI.p65 134<br />

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Teatro _______________________________________________<br />

O AUTOR!<br />

ONDE ESTÁ O AUTOR?<br />

Pedro Paulo Cava*<br />

Dizem e apregoam que a figura do autor sumiu da cena teatral. E<br />

que já foi tar<strong>de</strong> alar<strong>de</strong>iam as más línguas. O mesmo autor que<br />

conhecemos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as tragédias gregas, comédias romanas, autos<br />

medievais, dramas renascentistas, textos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, peças políticas,<br />

tragicomédias <strong>de</strong> absurdo e outros tantos gêneros e épocas que a<br />

dramaturgia nos abriu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o teatro existe.<br />

Nomes que fazem parte do inconsciente coletivo da humanida<strong>de</strong> ou<br />

pelo menos da civilização oci<strong>de</strong>ntal: Sófocles, Eurípi<strong>de</strong>s, Ésquilo, Plauto,<br />

Terêncio, Gil Vicente, Shakespeare, Molière, Beaumarchais, Ibsen,<br />

Tchékhov, Górki, Brecht, Goldoni, Piran<strong>de</strong>llo, Genet, Ionesco, Beckett,<br />

Goethe, Schiller, Tennessee Williams, Lorca, Gógol, Miguel <strong>de</strong><br />

Unamuno, Strindberg e muitos outros, forjaram a literatura teatral ao<br />

longo dos séculos.<br />

Do meio do século <strong>de</strong>zenove aos anos noventa do século vinte,<br />

num período <strong>de</strong> quase cento e cinquenta anos, a cena mundial se dividiu<br />

entre a influência dos autores teatrais e a era dos diretores-encenadores.<br />

Mas são os autores a verda<strong>de</strong>ira mola propulsora da produção teatral,<br />

* Dramaturgo.<br />

Revista Volume LI.p65 135<br />

12/5/2009, 15:29


136 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

gatilho para a encenação e motivo para que o teatro continue vivo e<br />

fundamental na formação da cultura dos povos e da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional<br />

<strong>de</strong> tantos países.<br />

Os verda<strong>de</strong>iros autores teatrais brasileiros, por exemplo, começam<br />

a surgir com Martins Penna, França Júnior, Arthur Azevedo e rompem o<br />

século vinte trazendo aos palcos nomes como Qorpo-Santo, Nelson<br />

Rodrigues, Dias Gomes, Jorge Andra<strong>de</strong>, Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Guarnieri,<br />

Vianinha, João Bethancourt, Pedro Bloch, Oduvaldo Vianna, Chico<br />

Buarque, Millôr Fernan<strong>de</strong>s, Augusto Boal, Joracy Camargo, Paulo<br />

Pontes, Plínio Marcos, Lauro César Muniz, Bráulio Pedroso, Juca <strong>de</strong><br />

Oliveira, Naum Alves <strong>de</strong> Souza, Marcos Caruso e uma geração <strong>de</strong><br />

autoras paulistas: Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Amaral, Consuelo <strong>de</strong> Castro, Leilah<br />

Assunção, Renata Pallotini, Jandira Martini e os mais recentes: Mauro<br />

Rasi, Alcione Araújo, Caio Fernando Abreu, Paulo César Coutinho,<br />

Mário Prata, Flávio Márcio, Alci<strong>de</strong>s Nogueira, Bosco Brasil, Márcio <strong>de</strong><br />

Souza e muitos outros.<br />

Por aqui pelas Minas vemos surgir autores a partir dos anos 50:<br />

Jota Dangelo, Cleiber Andra<strong>de</strong>, José Luiz Ribeiro, Jonas Bloch, Jorge<br />

Fernando dos Santos, Walmir José, Mauro Alvim, Sérgio Abritta, Carlos<br />

Alberto Ratton, José Antônio <strong>de</strong> Souza, Antônio Domingos Franco, Aziz<br />

Bajur e o mais mineiro dos portugueses: Cunha <strong>de</strong> Leira<strong>de</strong>lla.<br />

Se misturarmos todos estes nomes aqui citados e ainda os não<br />

lembrados, num imenso cal<strong>de</strong>irão, po<strong>de</strong>remos colocar vários temperos e<br />

ingredientes estéticos, políticos, filosóficos nessa sopa, mas certamente<br />

um, apenas um, será comum a todos eles: o conhecimento do ofício da<br />

cena, sem o qual não seria possível surgir uma dramaturgia tão vigorosa<br />

nos últimos dois mil anos <strong>de</strong> teatro.<br />

A escritura teatral possui características muito próprias que a<br />

tornam diferenciada dos <strong>de</strong>mais gêneros literários. É preciso conhecer o<br />

vazio e a concretu<strong>de</strong> do espaço cênico, ter noções <strong>de</strong> arquitetura teatral,<br />

dominar o diálogo como forma e conteúdo, saber como se movimenta<br />

sobre a cena o ator/personagem, on<strong>de</strong> se encaixa a música nos momentos<br />

exatos para sublinhar as emoções e ainda saber da luz, das cores,<br />

texturas, e principalmente obter o pulo do gato: emocionar pelo riso,<br />

Revista Volume LI.p65 136<br />

12/5/2009, 15:29


O autor! On<strong>de</strong> está o autor? _______________________________________________________ Pedro Paulo Cava 137<br />

choro, pausa, silêncio, palavra o espectador que se coloca diante da sua<br />

obra.<br />

Ainda é preciso acrescentar que ao autor teatral é fundamental o<br />

<strong>de</strong>sapego da sua obra <strong>de</strong>pois que é posta em cena; saber que será alterada<br />

pelos diretores, atores, cenógrafos e sentir nisso um prazer surpreen<strong>de</strong>nte<br />

a cada nova montagem <strong>de</strong> seu texto on<strong>de</strong> quer que ela se realize.<br />

O teatro é a arte da generosida<strong>de</strong> por excelência e princípio e ela<br />

começa pela capacida<strong>de</strong> do autor em se <strong>de</strong>scolar da sua escrita <strong>de</strong>pois que<br />

esta salta do papel para a cena.<br />

Se você escreve para o teatro ou para a cena <strong>de</strong> maneira geral<br />

(cinema, tv) é preciso confiar no coletivo que escolheu sua obra para que<br />

ela ganhe vida e emoção. Por isso mesmo contistas, cronistas, poetas,<br />

romancistas quase nunca gostam das adaptações <strong>de</strong> suas obras encenadas<br />

ou filmadas. Seu ofício <strong>de</strong> escritor é solitário e seu exercício <strong>de</strong><br />

visualização ao produzir uma obra fica confinado às pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu<br />

escritório, ao contrário da escrita dramática que se obriga a visualizar as<br />

imagens cravadas sobre o papel na boca e no movimento dos atores que<br />

as interpretam.<br />

A tudo isso chamamos <strong>de</strong> “carpintaria teatral”. Por esses e outros<br />

tantos motivos aqui não alinhados é que fica difícil escrever para a cena.<br />

E assim o autor teatral vai sumindo aos poucos dos palcos do mundo e<br />

dando lugar aos adaptadores, encenadores e a um novo conceito <strong>de</strong><br />

dramaturgia que chega ao terceiro milênio assumindo o posto <strong>de</strong><br />

“ditador” da cena, mas perdido em meio a tantas vertentes experimentais<br />

que transformam o ator em verda<strong>de</strong>ira cobaia <strong>de</strong> laboratório diante do<br />

<strong>de</strong>spreparo técnico <strong>de</strong>sse novo dramaturgo.<br />

O autor teatral anda <strong>de</strong>saparecido da cena, <strong>de</strong>vorado por “processos<br />

colaborativos”, antes chamados <strong>de</strong> “criação coletiva”, on<strong>de</strong> todos são<br />

autores, encenadores, atores, cenógrafos, figurinistas, iluminadores,<br />

psicodramatistas, produtores, <strong>de</strong>senhistas, divulgadores e tantas outras<br />

funções específicas que o ofício teatral requer. Um traço também une<br />

estes novos dramaturgos pelo umbigo: falam para um pequeno público <strong>de</strong><br />

iniciados e fazem <strong>de</strong> sua individualida<strong>de</strong> o cerne do ato teatral, mesmo<br />

que chamem a isso <strong>de</strong> “colaboração entre amigos”.<br />

Revista Volume LI.p65 137<br />

12/5/2009, 15:29


138 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Este é o retrato <strong>de</strong> uma época em que o teatro se vê perdido e<br />

perplexo diante da falência das i<strong>de</strong>ologias, da falta <strong>de</strong> perspectiva, da<br />

imensa injustiça social, do ter em lugar do ser, das novas mídias que<br />

avançam vorazes e vão jogando na lata <strong>de</strong> lixo da memória qualquer<br />

coisa que não consi<strong>de</strong>rem contemporânea e on<strong>de</strong> o autor teatral é tido<br />

como um mamute em extinção.<br />

Não sei se tudo isso é bom ou péssimo, mas é o panorama atual do<br />

teatro mundial, fundado na <strong>de</strong>scrença das pessoas na política, na<br />

filosofia, na ética, no pensamento e, em especial, em qualquer coisa que<br />

pareça uma causa coletiva. Só o tempo vai dizer sobre a valida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste<br />

novo conceito <strong>de</strong> “autoria teatral”, se ele prevalecer sobre as formas<br />

convencionais da escrita cênica.<br />

Chegamos ao terceiro milênio e o teatro, apesar <strong>de</strong> tudo, consegue<br />

sobreviver a duras penas a tantas variáveis e obstáculos colocados em seu<br />

caminho, mesmo que para isso tenha que ignorar as conquistas que<br />

obteve ao longo dos séculos.<br />

É um hiato apenas? Sempre me pergunto isso quando assisto a uma<br />

<strong>de</strong>ssas encenações ditas experimentais, mas que também nós já fizemos<br />

lá pelos anos sessenta, quando as canetas vermelhas dos censores<br />

mutilavam impiedosamente as obras <strong>de</strong> arte <strong>de</strong> nossos autores. Era o<br />

ininteligível diante das circunstâncias. E quando assisto e não entendo<br />

por que o dramaturgo <strong>de</strong> plantão naquele espetáculo só consegue falar <strong>de</strong><br />

seu próprio umbigo, e isso não me atinge nem me emociona, é que<br />

pergunto: on<strong>de</strong> está o autor?<br />

Revista Volume LI.p65 138<br />

12/5/2009, 15:29


Música _____________________________________________<br />

O PADRE JOSÉ MAURÍCIO,<br />

O ALEIJADINHO E<br />

MÁRIO DE ANDRADE<br />

Paulo Sérgio Malheiros Santos<br />

Na década <strong>de</strong> 1930, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> publicou importantes artigos<br />

focalizando dois artistas brasileiros: o músico Padre José Maurício e o<br />

escultor Aleijadinho. Ambos eram mulatos e, quando esses artigos foram<br />

escritos, as questões envolvendo o antigo conceito <strong>de</strong> “raça” (hoje,<br />

científicamente ultrapassado) tomavam, principalmente a partir das três<br />

últimas décadas do século XIX, dimensões históricas e políticas graves.<br />

As discussões sobre o assunto afastavam-se <strong>de</strong> uma preocupação<br />

puramente biológica para uma perspectiva social, diversificando-se,<br />

porém, em muitas interpretações, <strong>de</strong> diálogo ou conflito.<br />

José Maurício e o Aleijadinho tiveram em comum a maestria e o<br />

domínio <strong>de</strong> seus ofícios, embora fossem muito diferentes quanto à<br />

psicologia individual. O primeiro, o músico, foi um artista dócil e<br />

submisso, atendo-se aos limites <strong>de</strong> sua época; o segundo impôs uma forte<br />

* Pianista, professor <strong>de</strong> História da Música da UEMG e doutor em Literatura pela PUC-MG.<br />

Revista Volume LI.p65 139<br />

12/5/2009, 15:29


140 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

personalida<strong>de</strong> e, sem temer o excesso <strong>de</strong> experimentalismo, <strong>de</strong>ixou<br />

profunda marca particular na arte <strong>de</strong> seu tempo.<br />

Para além do âmbito da individualida<strong>de</strong> dos artistas enfocados,<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, nos dois artigos, outra premissa <strong>de</strong> suas<br />

idéias estéticas — a <strong>de</strong> que a música, a mais coletiva das artes, mostra-se<br />

também a mais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das condições sociais do meio O poeta<br />

observa, por exemplo, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito cedo os escritores brasileiros<br />

escreveram e imprimiram livros, sem que tivéssemos tipografias,<br />

buscando-as on<strong>de</strong> elas existiam. Também os artistas plásticos po<strong>de</strong>m<br />

importar ou criar seu material <strong>de</strong> trabalho, tintas, óleos, mármore, bronze,<br />

por iniciativa própria e, às vezes, até contra a aparente vonta<strong>de</strong> da<br />

coletivida<strong>de</strong>. Uma orquestra, entretanto, sempre <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá da existência<br />

<strong>de</strong> um mecenas, seja a Igreja ou o Estado (cf. ANDRADE, Aspectos da<br />

Música brasileira: 11).<br />

Dentro <strong>de</strong>sse raciocínio, no estudo sobre o músico padre, o escritor<br />

se <strong>de</strong>terá em uma análise do ambiente musical carioca, nas possíveis<br />

influências <strong>de</strong> outros compositores (Bach, Haydn, Mozart, Beethoven),<br />

no gosto do público, nos instrumentos da época. Já no estudo sobre o<br />

escultor mineiro, Mário valorizará a criativida<strong>de</strong> e o experimentalismo do<br />

Aleijadinho diante da tradição européia herdada. O escritor reclama,<br />

inclusive, da inaptidão dos críticos estrangeiros, que, àquela época,<br />

mostraram-se incapazes <strong>de</strong> perceberem positivamente a originalida<strong>de</strong> do<br />

artista barroco.<br />

O texto do artigo Padre José Maurício, incluído em Música, doce<br />

música, exemplifica a alternância dialógica <strong>de</strong> gêneros literários, prática<br />

freqüente em Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. A ausência <strong>de</strong> critério genérico, longe<br />

<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>feito, torna-se aqui qualida<strong>de</strong>, um índice <strong>de</strong> valor. No ensaio<br />

sobre o padre compositor, Mário faz um pouco <strong>de</strong> análise musical,<br />

biografia, estudo musicológico, crítica social, além <strong>de</strong> inserir o músico<br />

em uma perspectiva histórica nacionalista. O escritor, por meio <strong>de</strong> uma<br />

orquestração bem timbrada, <strong>de</strong>ixa que gêneros e estilos dialoguem,<br />

revitalizando-se e iluminando-se uns aos outros em verda<strong>de</strong>ira polifonia<br />

discursiva. A literarieda<strong>de</strong> fun<strong>de</strong>-se, assim, aos propósitos referenciais do<br />

ensaio.<br />

Revista Volume LI.p65 140<br />

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O Padre José Maurício, o Aleijadinho e Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> __________________ Paulo Sérgio Malheiros Santos 141<br />

José Maurício conhecia bem seu ofício (dizem que possuía a<br />

melhor biblioteca musical do Brasil colônia) e, <strong>de</strong>ntro dos limites do<br />

meio carioca, certamente foi o mais bem-sucedido dos nossos músicos.<br />

Entretanto, quanto ao experimentalismo, caracterizador da inquietação do<br />

“talento individual”, o padre se mostrará pouco ousado, conformando-se<br />

ao estilo imposto pelo ambiente social. Mário nos retrata um artista<br />

submisso a seus mecenas, avesso a polêmicas, doce <strong>de</strong> temperamento. E<br />

se o padre <strong>de</strong>ixou uma marca pessoal em sua música, esta assinatura<br />

traduz, justamente, a suavida<strong>de</strong> e a gentileza <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong>: em<br />

uma música sacra corrompida pelos efeitos operísticos, o compositor<br />

manteve uma serenida<strong>de</strong> religiosa que o diferenciou entre seus pares.<br />

Escrito em 1930, por ocasião do centenário da morte do padre, o<br />

artigo inicia-se com a constatação crítica <strong>de</strong> que, diante da indiferença do<br />

país para com o seu músico, a celebração <strong>de</strong>ssa data só po<strong>de</strong>ria ser meia<br />

vaga e amarga. De fato, pouco conhecemos da vasta obra <strong>de</strong> José<br />

Maurício; além <strong>de</strong> duas missas impressas, a <strong>de</strong> Requiem e a em Si Bemol,<br />

mais algumas cópias, péssimas, <strong>de</strong> outras obras. E, mesmo esse pouco,<br />

<strong>de</strong>vemos às iniciativas particulares <strong>de</strong> escritores e, principalmente, ao<br />

músico Alberto Nepomuceno, já que nossos governos vivem seus<br />

brinquedos perigosos <strong>de</strong> política, sem beneficiar aos que nos <strong>de</strong>vem ser<br />

caros pelo que <strong>de</strong> Brasil e por nós fizeram. (ANDRADE, op. cit.: 132)<br />

O seguimento do artigo conta a infância do Pe. Maurício, e,<br />

após alguns dados biográficos (data <strong>de</strong> nascimento, nome dos pais),<br />

apoiado na documentação <strong>de</strong> cronistas da época, o escritor apresenta<br />

um panorama musical do Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> cresceu o futuro<br />

compositor:<br />

Filho <strong>de</strong> preto sabe cantar. No Rio a era das Modinhas<br />

estava se intensificando e um eco vago dos salões <strong>de</strong>via<br />

chegar até a rua da Vala on<strong>de</strong> o mulatinho nascera. De resto<br />

as ruas ressoavam com os cantos dos escravos seminus, aos<br />

grupos <strong>de</strong> <strong>de</strong>z a doze, movendo-se a compasso com os seus<br />

cantos, ou antes gritos, a carregar em gran<strong>de</strong>s varais cargas<br />

pesadas e todas as mercadorias do porto. Esse canto <strong>de</strong>via<br />

Revista Volume LI.p65 141<br />

12/5/2009, 15:29


142 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

ser impressionante porque vários cronistas se referem a ele:<br />

Foster, o príncipe Wied, Luccock.... E ainda as duas<br />

mulheres (a mãe e a tia), levavam José Maurício às festas <strong>de</strong><br />

igreja, on<strong>de</strong> o pequeno rezava ainda mal convicto, distraído<br />

com as músicas então aplaudidas do padre Manuel da Silva<br />

Rosa. (ANDRADE, op. cit.: 132)<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> introduz o parágrafo citado com um exemplo do<br />

que M. Bakhtin chama <strong>de</strong> “motivação pseudo-objetiva”. Na frase – Filho<br />

<strong>de</strong> preto sabe cantar – todos os índices formais indicam a afirmativa<br />

como do próprio Mário. Mas, na verda<strong>de</strong>, ele adota a perspectiva<br />

subjetiva da opinião corrente. O escritor apropria-se <strong>de</strong> uma opinião já<br />

sedimentada na socieda<strong>de</strong> brasileira, <strong>de</strong> tradição escravocrata, que<br />

consi<strong>de</strong>ra aptidões como a música, a dança e o esporte características da<br />

raça negra. Indiretamente, explica-se a atitu<strong>de</strong> humil<strong>de</strong> do músico padre<br />

Maurício diante da autorida<strong>de</strong> máxima, e branca, do Reino, no trecho da<br />

anedota anterior.<br />

O texto <strong>de</strong> Mário cumpre dois objetivos simultâneos. Literariamente,<br />

funciona como uma <strong>de</strong>scrição, ambientação precisa, quase<br />

fotográfica <strong>de</strong> um cenário. Musicalmente, enumera as três categorias <strong>de</strong><br />

música que chegavam até o músico menino: o eco dos salões com suas<br />

modinhas, os cantos negros e a música sacra. Delineiam-se, assim, as<br />

influências principais na formação do compositor.<br />

Na sequência do artigo, alguns outros dados biográficos traçam o<br />

perfil humano do artista: estudos, gratidão para com os benfeitores e, até,<br />

um minucioso retrato físico – “magro, alto, moreno escuro, olhar bem<br />

vivo, lábios grossos, maçãs pontudas, narinas cheias.” (ANDRADE, op.<br />

cit.: 133). Por meio <strong>de</strong> tais estratégias, a figura histórica torna-se cada vez<br />

mais personagem literário.<br />

O escritor apresenta-nos, ainda, importantes observações sobre a<br />

prática musical e os instrumentos da época. Mário, salientando “o velho<br />

preceito europeu, exigindo música nova mais que inspirada”, remete o<br />

leitor ao lado artesanal da criação musical ainda vigente no século XVIII:<br />

a quantida<strong>de</strong> assombrosa da produção religiosa <strong>de</strong> um Bach, <strong>de</strong> um<br />

Revista Volume LI.p65 142<br />

12/5/2009, 15:29


O Padre José Maurício, o Aleijadinho e Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> __________________ Paulo Sérgio Malheiros Santos 143<br />

Telemann, vários ciclos <strong>de</strong> cantatas para as festas litúrgicas, anos<br />

seguidos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> musical engavetada logo após seu uso.<br />

Curiosamente, a preocupação <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> com os<br />

instrumentos “<strong>de</strong> época”, comentados em seu artigo, antecipa uma<br />

corrente da musicologia que só mais recentemente, a partir dos anos 50,<br />

ganhou mais a<strong>de</strong>ptos entre nós: a da performance histórica. Mário <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong> propõe-se, ainda, analisar o que haveria na biblioteca musical do<br />

padre José Maurício. Procura, nas poucas composições que nos chegaram<br />

do músico, além da influência óbvia <strong>de</strong> Haydn, Mozart e dos setecentistas<br />

italianos, vestígios <strong>de</strong> Glück, e com mais reserva, do Haen<strong>de</strong>l dos<br />

oratórios. O caso <strong>de</strong> Beethoven é interessante, pois dá ao escritor paulista<br />

a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer polêmica com o musicólogo italiano Vicenzo<br />

Cernicchiaro, autor <strong>de</strong> uma Storia <strong>de</strong>lla musica nel Brasile, <strong>de</strong> 1926.<br />

Nesta obra, Cernicchiaro combate a afirmação <strong>de</strong> outro historiador,<br />

Martius. Segundo este último, o Rio <strong>de</strong> Janeiro não estava em condições<br />

<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a obra <strong>de</strong> Neukomm. O italiano, ao contrário, garante<br />

que o Rio já conhecia até Beethoven, garantindo a existência, na cida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong> primeiras edições dos Quartetos beethovenianos. E quem conhecia o<br />

Beethoven dos quartetos certamente não teria dificulda<strong>de</strong>s para enten<strong>de</strong>r<br />

Neukomm. Mário consi<strong>de</strong>ra a afirmativa <strong>de</strong> Martius “ridícula”, pois<br />

Neukomm, além <strong>de</strong> compositor medíocre, escrevia à moda do que era<br />

facilmente apreciado no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Quanto aos quartetos <strong>de</strong><br />

Beethoven, o escritor julga a prova das partituras insuficiente; <strong>de</strong><br />

qualquer forma, se José Maurício conhecia o gran<strong>de</strong> músico alemão, este<br />

não lhe fez a menor impressão. Mário recorda-nos que o próprio Bach<br />

era, então, em 1811, bastante esquecido na própria Europa e, muito<br />

provavelmente, <strong>de</strong>sconhecido do padre Maurício. E o artigo ressalta,<br />

assim, o que lhe parece o ponto mais fraco do músico padre José<br />

Maurício, a ausência quase total <strong>de</strong> processos polifônicos em sua obra.<br />

Para efeito <strong>de</strong> apreciação da obra musical do padre, o expediente<br />

justifica os processos <strong>de</strong> composição do músico brasileiro. O poeta<br />

suaviza sua crítica <strong>de</strong>slocando-a do artista para a época e o meio. A<br />

precarieda<strong>de</strong> polifônica, característica do padre José Maurício, esten<strong>de</strong>-se<br />

a todo um período dominado pelos histerismos vocais <strong>de</strong> cantores<br />

Revista Volume LI.p65 143<br />

12/5/2009, 15:29


144 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

“virtuosi”. A música religiosa virara espetáculo e os efeitos fáceis <strong>de</strong><br />

orquestração eram obrigatórios. Mário reconhece no compositor o mérito<br />

<strong>de</strong>, “<strong>de</strong>ntro das perdições daquele tempo, conservar um firme, encantado,<br />

suave sabor religioso”. (ANDRADE, op. cit.: 139)<br />

Percebe-se, também, no artigo, uma preocupação que será<br />

constante para o crítico musical: a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> situar os músicos<br />

brasileiros no panorama universal. Para tanto, vale-se da referência <strong>de</strong><br />

Kinsey no seu Portugal Illustrated, publicado em 1828, afirmando que<br />

José Maurício era “well known and even much respected at Lisbon”. (id.<br />

ibid.)<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, após um inventário geral da obra <strong>de</strong> José<br />

Maurício, ressalta a gran<strong>de</strong> doçura e a humilda<strong>de</strong> do padre, terminando o<br />

artigo numa espécie <strong>de</strong> fusão do criador com sua criação – do músico,<br />

com sua música:<br />

Gênio <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> suavida<strong>de</strong>, duma invenção melódica<br />

apropriada e elevada (...) como expressivida<strong>de</strong> geral é quase<br />

sempre doce, humil<strong>de</strong>, sem gran<strong>de</strong>s arrancadas místicas nem<br />

êxtases divinos.<br />

(...) Niti<strong>de</strong>z melódica, boa sonorida<strong>de</strong>, comedimento<br />

equilibrado, escritura eminentemente acordal, sem individualismo.<br />

Foi o maior artista da nossa música religiosa, mas<br />

não ultrapassou o que faziam no gênero os italianos do<br />

tempo. E isso, universalmente, era pouco. (ANDRADE, op.<br />

cit.: 142)<br />

O artigo, cumprida sua homenagem ao músico, termina atualizado<br />

para sua época, reconhecendo como legitimamente brasileira a música do<br />

padre, pois que, mesmo <strong>de</strong>spida <strong>de</strong> caráter étnico, mostra-se marcada por<br />

uma fatalida<strong>de</strong> cultural.<br />

Um outro artista brasileiro, do período colonial, terá gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>staque na apreciação <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> – Antônio Francisco<br />

Lisboa. Mulato, como o padre José Maurício, ao contrário <strong>de</strong>sse, o<br />

arquiteto e escultor mineiro mostrar-se-á muito pouco dócil diante do seu<br />

Revista Volume LI.p65 144<br />

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O Padre José Maurício, o Aleijadinho e Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> __________________ Paulo Sérgio Malheiros Santos 145<br />

meio e das influências européias. O Aleijadinho (1928) foi publicado em<br />

1935, encomendado para a Revista Acadêmica por Murilo Miranda.<br />

Depois passou a integrar o livro Aspectos das artes plásticas no Brasil.<br />

Os mo<strong>de</strong>rnistas, preocupados com a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, <strong>de</strong>scobriram<br />

em nosso Barroco um marco coinci<strong>de</strong>nte com suas propostas estéticas,<br />

pois o período revelava aspectos <strong>de</strong> uma arte já consi<strong>de</strong>rada caracteristicamente<br />

brasileira, tornando-se, assim, um fator constituinte do sentido<br />

<strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>. Ouro Preto, por exemplo, com seu conjunto arquitetônico,<br />

inúmeras obras <strong>de</strong> arte e acervo musical, suscitava a idéia <strong>de</strong> uma<br />

civilização brasileira preservada, projetando-se do passado no presente. O<br />

fascínio da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixou marcas na obra <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira, Carlos<br />

Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Cecília Meireles, entre outros que também<br />

contribuíram para transformá-la em símbolo nacional. Mário apresenta o<br />

Barroco, no artigo sobre o escultor mineiro, como um momento<br />

histórico-artístico complexo, <strong>de</strong> manifestações repletas <strong>de</strong> simbologia e<br />

ritualismo, sob condições sociais e políticas específicas, nas quais uma<br />

cultura diferenciada já se apresenta como resultante <strong>de</strong> uma vivência<br />

coletiva <strong>de</strong> uma nação. A Colônia começava a reverter um processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>pendência cultural, passando a influenciar a Metrópole. E Mário <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong> estabelece a relação entre a criação <strong>de</strong> uma civilização<br />

singularmente brasileira e a existência <strong>de</strong> uma estética mestiça. No caso<br />

do escultor mineiro, cobra e <strong>de</strong>nuncia a pouca percepção ou <strong>de</strong>spreparo<br />

técnico dos observadores estrangeiros (Spix, Martius, Rugendas, Burton),<br />

incapazes <strong>de</strong> admirar <strong>de</strong>vidamente a obra do Aleijadinho em sua<br />

originalida<strong>de</strong>. O escritor sustenta, com o intuito <strong>de</strong> esboçar uma imagem<br />

<strong>de</strong> nação, um enfoque positivo da mestiçagem, bem representada pelo<br />

talento dos artistas mulatos. A mestiçagem seria um elemento i<strong>de</strong>ntitário,<br />

o reconhecimento <strong>de</strong> uma diferença, <strong>de</strong> uma alterida<strong>de</strong> ao europeu.<br />

Mário questionava, assim, o pensamento evolucionista <strong>de</strong> Spencer,<br />

bastante em moda na época, adotado por alguns autores que viam a<br />

mestiçagem como um processo <strong>de</strong>generativo. Três teorias <strong>de</strong>linearam o<br />

campo da produção teórica nesse momento: o positivismo <strong>de</strong> Comte, o<br />

darwinismo social e o evolucionismo <strong>de</strong> Spencer. De certa forma, do<br />

ponto <strong>de</strong> vista político, o evolucionismo, aceitando o postulado <strong>de</strong> que o<br />

Revista Volume LI.p65 145<br />

12/5/2009, 15:29


146 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

simples evolui para o complexo, justificava um interesse capitalista — o<br />

da hegemonia da Europa (<strong>de</strong>senvolvida e complexa) sobre a simplicida<strong>de</strong><br />

dos povos primitivos. A importação <strong>de</strong> tais teorias trazia, portanto, um<br />

problema para os intelectuais brasileiros: aceitá-las implicava admitir o<br />

estágio civilizatório do país como inferior, se comparado ao alcançado<br />

pelos países europeus.<br />

A enumeração, ainda que superficial, da opinião <strong>de</strong> alguns<br />

intelectuais brasileiros da época, dá-nos a dimensão da complexida<strong>de</strong> e<br />

importância da questão racial, no começo do século XX. Sílvio Romero,<br />

por exemplo, interpreta a mestiçagem como um <strong>de</strong>stino inevitável para o<br />

país: uma espécie <strong>de</strong> luta entre “fatores internos” (representados pela raça<br />

e o meio) e “forças estranhas” (as influências viabilizadoras <strong>de</strong> uma<br />

imitação da cultura européia). Dentre os fatores internos, Sílvio<br />

privilegia, nitidamente, a raça sobre o meio.<br />

Eucli<strong>de</strong>s da Cunha e Nina Rodrigues também consi<strong>de</strong>ram a<br />

miscigenação <strong>de</strong> maneira negativa, como um processo <strong>de</strong>generativo;<br />

Oliveira Viana propõe o branqueamento da raça, sugerindo a importação<br />

<strong>de</strong> novos colonos brancos e amarelos.<br />

Gilberto Freyre, ao contrário, faz a apologia da “<strong>de</strong>mocratização<br />

racial” apresentada pela América Portuguesa, mostrando-a como<br />

exemplo <strong>de</strong> solução para os problemas advindos das relações sociais<br />

entre etnias diversas (em oposição à segregação racial <strong>de</strong> países como os<br />

Estados Unidos).<br />

Arthur Ramos, sempre preocupado com as origens das manifestações<br />

culturais, preconiza a expressão brasileira <strong>de</strong> um novo começo,<br />

baseado em novas origens, produto <strong>de</strong> uma síntese homogênia <strong>de</strong> várias<br />

etnias.<br />

O Manifesto antropófago, <strong>de</strong> Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, ao propor uma<br />

nova cultura nascida da <strong>de</strong>glutição do inimigo, opunha-se à harmonia<br />

racial pacífica sugerida por Freyre e Ramos.<br />

Para Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, a diversida<strong>de</strong> racial apresenta-se como<br />

elemento renovador da cultura, <strong>de</strong>ixando um rastro significativo no nosso<br />

passado fundacional. Este, quando marcado por alguma diferença<br />

pon<strong>de</strong>rável, mestiça, ligava-se, consequentemente, ao mesmo <strong>de</strong>sejo<br />

Revista Volume LI.p65 146<br />

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O Padre José Maurício, o Aleijadinho e Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> __________________ Paulo Sérgio Malheiros Santos 147<br />

vanguardista <strong>de</strong> <strong>de</strong>sestabilizar as velhas “fôrmas” artísticas impostas pela<br />

colonização. A nação, para Mário, só se afirmaria pela criativida<strong>de</strong>, pela<br />

invenção <strong>de</strong> uma cultura particular, cujas raízes <strong>de</strong>veríamos procurar na<br />

arte colonial, on<strong>de</strong> o Barroco ocupava um lugar privilegiado. O escritor<br />

unia-se, assim, às vanguardas latino-americanas que, no início do século<br />

XX, retomam a consciência da vocação do Continente na construção do<br />

mundo mo<strong>de</strong>rno. A América, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu <strong>de</strong>scobrimento, se ligara à i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> como o Novo Mundo – a diferença – da mesma maneira<br />

como o Oriente e a África representavam a ancestralida<strong>de</strong>. O passado<br />

colonial teve para os mo<strong>de</strong>rnistas americanos o idêntico significado <strong>de</strong><br />

novida<strong>de</strong> que a América para os europeus. Vários manifestos latinoamericanos<br />

re<strong>de</strong>scobrem, então, as já velhas e coloniais tradições como o<br />

“atual”, colocando-as ao lado do progresso tecnológico, industrial e<br />

da apologia da máquina. E é sintomático que Mário, nas poucas<br />

viagens <strong>de</strong> sua vida, troque o cosmopolitismo <strong>de</strong> sua querida São<br />

Paulo pela busca do passado “novo”. Em 1917 fora a Mariana; em<br />

1924, integra a expedição mo<strong>de</strong>rnista em visita às cida<strong>de</strong>s históricas<br />

mineiras; em 1927 vai à Amazônia; e, na virada <strong>de</strong> 1928 para 29,<br />

viaja ao Nor<strong>de</strong>ste.<br />

No artigo sobre o Aleijadinho, Mário retoma a questão da<br />

mestiçagem, sob um enfoque ampliado. O escultor mineiro seria mestiço<br />

<strong>de</strong> raça e <strong>de</strong> influências:<br />

Ele coroa, como gênio maior, o período em que a entida<strong>de</strong><br />

brasileira age sob a influência <strong>de</strong> Portugal. É a solução<br />

brasileira da Colônia. É o mestiço e é logicamente a<br />

in<strong>de</strong>pendência. (...) Mas abrasileirando a coisa lusa, lhe<br />

dando graça, <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e <strong>de</strong>ngue na arquitetura, por outro<br />

lado, mestiço, ele vagava no mundo. Ele reinventava o<br />

mundo. O Aleijadinho lembra tudo! Evoca os primitivos<br />

itálicos, bosqueja a Renascença, se afunda no gótico, quase<br />

francês por vezes, muito germânico quase sempre, espanhol<br />

no realismo místico. (...) É um mestiço, mais que um<br />

nacional. Só é brasileiro porque, meu Deus! aconteceu no<br />

Revista Volume LI.p65 147<br />

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148 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Brasil. E só é o Aleijadinho na riqueza itinerante das suas<br />

idiossincrasias. E nisto o principal é que ele profetizava<br />

americanamente o Brasil ... (ANDRADE, op. cit.: 42)<br />

O mestiço, sem raça, era mais “livre” para se apossar <strong>de</strong> influências<br />

diversas. É justamente este sincretismo <strong>de</strong>mocrático que permitirá ao<br />

Aleijadinho libertar-se <strong>de</strong> um maneirismo imitativo e acadêmico,<br />

levando-o a uma reinterpretação pessoal, mais ousada e livre, <strong>de</strong> um<br />

cânone consagrado e repetido à exaustão nos mo<strong>de</strong>los da escultura dos<br />

Setecentos. Em alguns momentos, a valorização <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>talhes<br />

anatômicos sugere o exemplo dos ex-votos populares, como no<br />

expressionismo <strong>de</strong> algumas figuras dos Passos <strong>de</strong> Congonhas.<br />

Essa associação do barroco mineiro ao expressionismo alemão será<br />

preciosa para Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, permitindo-lhe apresentar o nosso<br />

passado barroco como uma antecipação <strong>de</strong> uma estética vanguardista e<br />

européia.<br />

A associação dos dois momentos históricos consistia uma ousada<br />

inovação crítica andradiana. O talento pessoal e o experimentalismo do<br />

Aleijadinho causavam espanto e sua obra era, até então, sinônimo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sequilíbrio estético. Por exemplo, o escritor Bernardo Guimarães,<br />

nascido em Ouro Preto, em seu romance O seminarista, publicado em<br />

1872 e ambientado em Congonhas do Campo, refere-se aos Profetas<br />

como uma obra bizarra <strong>de</strong> um artista limitado por <strong>de</strong>formações físicas. O<br />

julgamento do romancista mineiro torna-se mais interessante pelo fato <strong>de</strong><br />

o escritor residir, então, em Ouro Preto e por ter sido escrito apenas<br />

cinquenta e oito anos após a morte do Aleijadinho. Bernardo Guimarães<br />

adotava, em sua crítica, os critérios plásticos do neoclassicismo imposto<br />

entre nós pela Missão Artística Francesa <strong>de</strong> 1816. De fato, o reconhecimento<br />

da arte colonial brasileira só foi possível com o final da belle époque,<br />

quando o gosto acadêmico burguês começou a fraquejar diante das<br />

investidas mo<strong>de</strong>rnistas. O artigo <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> tem, portanto, o<br />

duplo mérito <strong>de</strong> resgatar o barroco do <strong>de</strong>sdém neoclássico e <strong>de</strong> ser o<br />

primeiro ensaio <strong>de</strong> análise artística e interpretação social da obra do<br />

Aleijadinho.<br />

Revista Volume LI.p65 148<br />

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O Padre José Maurício, o Aleijadinho e Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> __________________ Paulo Sérgio Malheiros Santos 149<br />

À parte a questão racial, hoje pouco relevante, O Aleijadinho<br />

mostra-se exemplar para o entendimento dos processos críticos<br />

andradianos. Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> preocupa-se e teoriza sobre as raízes da<br />

criação, seus aspectos psicológicos e a utilização estética dos meios<br />

expressivos aliados à visão funcional da arte na socieda<strong>de</strong>. No artigo, o<br />

enfoque psicológico, por exemplo, explica o expressionismo final do<br />

escultor e arquiteto, mostrando o artista atordoado pela doença, pela dor,<br />

pela solidão e velhice. Mário mantém, entretanto, na soma final, a<br />

primazia do enfoque estético:<br />

E o Aleijadinho, <strong>de</strong> fato nada teve <strong>de</strong> anormal na sua<br />

evolução artística. Foi evoluindo gradativamente. Só <strong>de</strong>pois<br />

dos 35 anos é que se mostra na maturida<strong>de</strong> prodigiosa e<br />

ainda sã que <strong>de</strong>ixou nas duas São Francisco e nas pedras<br />

das duas Carmos, uma das elevadas expressões plásticas do<br />

gênio humano. Depois doença chegou ... E foi Congonhas. O<br />

gênio sofre fisicamente <strong>de</strong>mais, e se não <strong>de</strong>cai propriamente,<br />

doença e velhice o perturbam. A obra <strong>de</strong> Congonhas,<br />

frequentemente genial, várias vezes sublime ainda, turtuveia.<br />

É irregular, mais atormentada, mais mística, berra num<br />

sofrimento raivoso <strong>de</strong> quem sabemos que não tinha paciência<br />

muita, apesar das leituras bíblicas. (...) O aparecimento da<br />

doença divi<strong>de</strong> em duas fases nítidas a obra do Aleijadinho. A<br />

fase sã <strong>de</strong> Ouro Preto e São João d’El-Rey se caracteriza<br />

pela serenida<strong>de</strong> equilibrada, e pela clareza magistral. Na<br />

fase <strong>de</strong> Congonhas do enfermo, <strong>de</strong>saparece aquele sentimento<br />

renascente da fase sã, surge um sentimento muito mais gótico<br />

e expressionista. A <strong>de</strong>formação na fase sã é <strong>de</strong> caráter<br />

plástico. Na fase doente é <strong>de</strong> caráter expressivo. (ANDRADE,<br />

Aspectos das artes no Brasil: 36)<br />

O enfoque psicológico, tão nítido, ao mesmo tempo em que permite<br />

e fundamenta uma avaliação estética, justifica duas fases distintas da obra<br />

do Aleijadinho. O artigo contempla, ainda, o aspecto sociológico,<br />

Revista Volume LI.p65 149<br />

12/5/2009, 15:29


150 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificado primeiramente em uma <strong>de</strong>scrição da vida econômica das<br />

Minas coloniais:<br />

Mas no momento em que o Aleijadinho, ali pelos trinta anos<br />

<strong>de</strong> vida ou talvez mais, impôs o gênio <strong>de</strong>le, Minas <strong>de</strong>caía<br />

como quem <strong>de</strong>spenca. O que perseverava era apenas o brilho<br />

exterior. E este, essa tradição <strong>de</strong> fausto é que alimentou e<br />

graças-a-<strong>de</strong>us fez funcionar Antônio Francisco Lisboa, e o<br />

parceiro <strong>de</strong>le na pintura, Manuel da Costa Ataí<strong>de</strong>.<br />

(ANDRADE, op. cit.:19)<br />

Ainda sobre as condições sociais do trabalho <strong>de</strong> Antônio Francisco<br />

Lisboa, Mário observa que o escultor mineiro, adotando um conceito<br />

totalista <strong>de</strong> criação, reinventa o espírito do ateliê renascentista entre nós.<br />

É arquiteto, escultor e entalhador; e “congrega discípulos que lhe<br />

<strong>de</strong>sbastavam a pedra e esculpiam a parte menos importante da talha.”<br />

(ANDRADE, op. cit.: 17)<br />

O Aleijadinho apresenta alguns postulados artísticos andradianos:<br />

o respeito e a a<strong>de</strong>quação do criador às imposições do material a ser<br />

trabalhado são vistos como fatores “moralizantes”. A moralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve<br />

aqui ser entendida como índice <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong>. Esses fatores, enquanto<br />

condicionadores da imaginação do artista, limitam-no a uma expressão<br />

mais socializante e menos individualista. A arte <strong>de</strong> Antônio Francisco<br />

Lisboa apresenta esse mérito: “A ‘moralida<strong>de</strong>’ das esculturas <strong>de</strong>le é<br />

prodigiosa por isso. Na pedra foi um plástico intrínseco, na ma<strong>de</strong>ira um<br />

expressionista às vezes feroz.” (ANDRADE, op. cit.: 37) Mário observa<br />

que, também como arquiteto, o Aleijadinho soube valer-se do mesmo<br />

princípio <strong>de</strong> economia formal, da funcionalida<strong>de</strong> objetiva, escapando da<br />

“luxuosida<strong>de</strong> e da superfectação” características do período.<br />

Os dois artigos <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> prestam uma homenagem<br />

reconhecida a dois gran<strong>de</strong>s artistas brasileiros. Valorizando-lhes a obra, o<br />

poeta redimensiona-os segundo seus propósitos mo<strong>de</strong>rnistas.<br />

Revista Volume LI.p65 150<br />

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O Padre José Maurício, o Aleijadinho e Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> __________________ Paulo Sérgio Malheiros Santos 151<br />

Bibliografia<br />

ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Aspectos da música brasileira. Belo Horizonte:<br />

Villa Rica, 1991.<br />

____ Aspectos das artes plásticas no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte:<br />

Itatiaia, 1984.<br />

____ Música, doce música. 2 ed.. São Paulo: Martins, 1963.<br />

SANTOS, Paulo Sérgio Malheiros. Músico, doce músico. Belo<br />

Horizonte: Editora da UFMG, 2004.<br />

SOUZA, Eneida Maria <strong>de</strong>. A pedra mágica do discurso. 2 ed. rev. e<br />

ampl. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.<br />

____ A preguiça – mal <strong>de</strong> origem. In: Alceu: Revista <strong>de</strong> Comunicação,<br />

Cultura e Política. v. 1 – n. 2 . Rio <strong>de</strong> Janeiro: PUC: 2001.<br />

Revista Volume LI.p65 151<br />

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152 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 152<br />

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Artes Plásticas ________________________________________<br />

DESCOBRINDO<br />

MARTA LOUTSCH<br />

Carlos Perktold*<br />

É sabido que muitos artistas talentosos são angustiados por<br />

inúmeros e <strong>de</strong>sconhecidos motivos. Alguns são assim por causas<br />

objetivas, têm um diagnóstico psicopatológico e, neste caso, mesmo que<br />

não fossem artistas, teriam vida difícil. Há aqueles que não são<br />

contemporâneos <strong>de</strong> si mesmos ou viveram em cida<strong>de</strong>s cujos habitantes<br />

jamais tiveram idéia da importância do trabalho <strong>de</strong>les, duas razões para<br />

<strong>de</strong>primir qualquer artista sensível. De qualquer forma que se pense, há<br />

sempre o sentimento <strong>de</strong> que o mundo exterior não os compreen<strong>de</strong>u, não<br />

os aceitou e nem os valorizou como <strong>de</strong>via, contribuindo para que a vida<br />

fosse dolorosa. Além disso, fica sempre um registro entre familiares <strong>de</strong><br />

que, com outra ativida<strong>de</strong> profissional, tudo seria menos amargurado para<br />

o incompreendido. Para piorar suas vidas, na maioria dos casos<br />

<strong>de</strong>moram-se décadas para que suas obras, vistas por novas gerações,<br />

sejam valorizadas. Van Gogh é o exemplo mais lembrado e sempre<br />

citado, mas a lista é longa.<br />

* Psicanalista, da Associação Brasileira <strong>de</strong> Críticos <strong>de</strong> Arte (ABCA), da Associação<br />

Internacional <strong>de</strong> Críticos <strong>de</strong> Arte (AICA) e do Instituto Histórico e Geográfico <strong>de</strong> Minas<br />

Gerais.<br />

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154 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

A recente exposição O Olhar Mo<strong>de</strong>rnista <strong>de</strong> JK realizada em Belo<br />

Horizonte, no Palácio das Artes (<strong>de</strong> 10 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2008 a 1º <strong>de</strong><br />

março <strong>de</strong> 2009), com curadoria <strong>de</strong> Denise Mattar, trouxe várias obras <strong>de</strong><br />

artistas que participaram da “I Semana <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna” realizada em<br />

Belo Horizonte em 1944, a pedido do prefeito JK e por recomendação <strong>de</strong><br />

Rodrigo Melo Franco <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, seu gran<strong>de</strong> conselheiro. “A<br />

Semaninha”, como ficou conhecida, tinha como curadores Alberto da<br />

Veiga Guignard e J. Guimarães Menagale. O título <strong>de</strong>la remetia àquela<br />

realizada em São Paulo em 1922. Os artistas escolhidos pelos curadores<br />

eram talentosos paulistas e cariocas e <strong>de</strong> outros estados, mas viviam no<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro ou em São Paulo. Todos os participantes e seus trabalhos<br />

eram conhecidos e admirados especialmente por Guignard, que já estava<br />

em Belo Horizonte para fundar a escola que hoje leva seu nome, a pedido<br />

do futuro presi<strong>de</strong>nte e por recomendação do mesmo Rodrigo Melo<br />

Franco <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>.<br />

Como a arte é filha do tempo, alguns artistas, mesmo talentosos,<br />

foram per<strong>de</strong>ndo o élan vital da criação, pararam <strong>de</strong> pintar, ficaram<br />

esquecidos e suas obras <strong>de</strong>saparecidas com o passar dos anos. Uma certa<br />

pintora, Marta Loutsch, parece pertencer àquele grupo <strong>de</strong> pessoas que<br />

nasceram antes <strong>de</strong> seu tempo. Ela foi a única, vivendo em Minas Gerais,<br />

a integrar o grupo, na cida<strong>de</strong> que tinha Genesco Murta, Aníbal Matos,<br />

Herculano Campos, Delpino e outros. Apesar <strong>de</strong> a escolha <strong>de</strong> seu nome<br />

ter sido convite pessoal <strong>de</strong> Guignard e suas obras terem sido avalizadas<br />

por ele e, ao longo dos anos seguintes, esse aval <strong>de</strong>vesse servir <strong>de</strong><br />

garantia <strong>de</strong> perpétua qualida<strong>de</strong> artística da mais alta estirpe, po<strong>de</strong>mos<br />

acrescentá-la na lista dos artistas incompreendidos pelo gran<strong>de</strong> público e<br />

até mesmo da crítica na época. Durante meus longos anos <strong>de</strong><br />

colecionador é a primeira vez que vejo seus trabalhos. Dommage! Se<br />

apenas Menegale, Guignard e alguns poucos colegas <strong>de</strong> paleta <strong>de</strong>la<br />

compreen<strong>de</strong>ram suas obras, hoje, essa alemã, que escolheu o Brasil como<br />

sua segunda pátria, po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada uma das mais brilhantes<br />

pintoras do Brasil, do mesmo nível <strong>de</strong> Tarsila ou <strong>de</strong> Anita. Talento e<br />

qualida<strong>de</strong> nos trabalhos não lhe faltaram. Faltou um marqueteiro ou um<br />

marchand interessado e que insistisse em mostrar aos poucos<br />

Revista Volume LI.p65 154<br />

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Descobrindo Marta Loutsch ________________________________________________________ Carlos Perktold 155<br />

colecionadores da época a beleza <strong>de</strong> seus trabalhos. Denise Mattar, na<br />

medida do possível, da disponibilida<strong>de</strong> e generosida<strong>de</strong> dos colecionadores,<br />

fez uma reprise da exposição <strong>de</strong> 1944, mas compreen<strong>de</strong>u a importância<br />

<strong>de</strong> Marta e <strong>de</strong>dicou-lhe Sala Especial com doze quadros a óleo, <strong>de</strong>zessete<br />

aquarelas e alguns <strong>de</strong>senhos, técnicas nas quais ela era craque. Com essa<br />

<strong>de</strong>cisão a curadora resgata uma pintora esquecida e restaura uma injustiça<br />

que o país, Minas Gerais em particular, cometia há anos.<br />

Apesar do escancarado talento em qualquer técnica, <strong>de</strong> ter<br />

participado da Semana <strong>de</strong> 1944, <strong>de</strong> ter participado posteriormente <strong>de</strong><br />

exposições individuais em Berlin, Rio e São Paulo, a obra <strong>de</strong> Marta<br />

permanece praticamente <strong>de</strong>sconhecida pelas gerações seguintes e, se não<br />

fosse pela recente exposição, possivelmente ela continuaria nesta<br />

condição por mais cem anos. Consi<strong>de</strong>rando a beleza e a qualida<strong>de</strong> técnica<br />

<strong>de</strong> suas aquarelas, <strong>de</strong>senhos e pinturas a óleo, as explicações <strong>de</strong> ignorá-la<br />

po<strong>de</strong>m estar na sua pequena produção a circular pouquíssimo hoje; seus<br />

quadros não são apregoados em leilão; não oferecem retorno a pessoas<br />

que investem financeiramente em arte; poucas famílias mineiras,<br />

paulistas ou cariocas têm obras suas e aqueles que as possuem não as<br />

expõem, não comentam sobre Marta Loutsch e ela não é citada em<br />

publicações ou em conversas sobre arte brasileira. Todos esses são fatos<br />

lamentáveis, comprovando como tratamos mal nossos filhos ilustres. É<br />

possível que sua produção tenha sido substancial para sua época, mas<br />

pequena para se perpetuar comercialmente em um mercado que ela e<br />

seus contemporâneos jamais imaginariam existir um dia no Brasil.<br />

Acima <strong>de</strong> tudo isso, por imposição matrimonial, ela morava em<br />

Sabará, pequena cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> seu marido era o superinten<strong>de</strong>nte da<br />

usina da Cia. Si<strong>de</strong>rúrgica Belgo-<strong>Mineira</strong>. Alguém po<strong>de</strong> imaginar um<br />

belorizontino sair <strong>de</strong> nossa provinciana cida<strong>de</strong> nos anos 1930 ou<br />

1940, viajar com dificulda<strong>de</strong> até aquela cida<strong>de</strong> para somente visitar<br />

seu ateliê, ver seus trabalhos e comprar algo <strong>de</strong>la? É possível também<br />

que a pequena população local, na ocasião, não valorizasse seus<br />

quadros e os consi<strong>de</strong>rasse ousados <strong>de</strong>mais. Todo esse conjunto <strong>de</strong><br />

circunstâncias transformou-a em uma maravilhosa artista pouco<br />

conhecida.<br />

Revista Volume LI.p65 155<br />

12/5/2009, 15:29


156 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Ela é merecedora do adjetivo e ele po<strong>de</strong> ser comprovado em<br />

primeiro lugar pelo seu seguro <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> poucas linhas formando uma<br />

figura humana, pela técnica apurada e limpa das aquarelas com<br />

perspectiva <strong>de</strong> mestre, seja nas paisagens ou nas marinhas. Seus retratos<br />

<strong>de</strong> gente humil<strong>de</strong> que a cercava em Sabará <strong>de</strong>monstram visível<br />

humanismo que o mundo foi per<strong>de</strong>ndo nos anos bélicos seguintes e nas<br />

duras décadas do pós-guerra. Seus <strong>de</strong>finitivos óleos contêm tudo que se<br />

espera da pintura mo<strong>de</strong>rnista brasileira, com suas cores produzidas pelo<br />

brilho do sol tropical que ela tanto buscou e impregnadas com a força do<br />

expressionismo alemão que, certamente, conhecia bem. Sabedora da lei<br />

da razão <strong>de</strong> ouro, ela distribui os elementos da composição da natureza<br />

morta com invejável equilíbrio e enganosa simplicida<strong>de</strong>. E nem foi<br />

somente nesse gênero que recebeu a técnica dos gran<strong>de</strong>s criadores. Suas<br />

paisagens e flores são composições com ritmo, conduzindo o espectador<br />

à alegria <strong>de</strong> ver somente beleza em espaço pequeno ou em suportes <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s formatos. Nada chama atenção nos quadros, exceto a harmonia<br />

do conjunto.<br />

A antiga Vila Formosa <strong>de</strong> Sabarabuçu foi fundada no início do<br />

século 18 pelo ban<strong>de</strong>irante paulista Borba Gato, genro <strong>de</strong> Fernão Dias,<br />

dois bravos portugueses que saíram do litoral paulista à procura <strong>de</strong> ouro<br />

no <strong>de</strong>sconhecido interior brasileiro. Encontraram tanto que ali edificaram<br />

a cida<strong>de</strong> hoje conhecida como Sabará. Ela está a pouco menos <strong>de</strong> 30 km<br />

<strong>de</strong> Belo Horizonte, distância percorrida nos anos 1930 ou 1940 com<br />

dificulda<strong>de</strong> por sinuosa estrada <strong>de</strong> terra ou por estrada <strong>de</strong> ferro. Sabará<br />

está parcialmente preservada com casas coloniais, algumas igrejas<br />

barrocas e pelo Museu do Ouro, local <strong>de</strong> painel <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Marta<br />

Loutsch. A usina dirigida pelo marido está hoje <strong>de</strong>sativada.<br />

Enquanto o executivo ficava na si<strong>de</strong>rúrgica, ela <strong>de</strong>senhava, pintava<br />

a óleo e fazia aquarelas. E com que primor tudo isso era produzido!<br />

Todas as técnicas pictóricas são apresentadas <strong>de</strong> forma exuberante por<br />

alguém que, além do talento, tinha a herança cultural germânica, um<br />

DNA artístico único e a vivência do que ocorria – o casal viajava com<br />

certa frequência pela Europa – e havia ocorrido no Velho Mundo. Os<br />

resultados estão nas aquarelas, conservadas <strong>de</strong> forma exemplar, e no<br />

Revista Volume LI.p65 156<br />

12/5/2009, 15:29


Descobrindo Marta Loutsch ________________________________________________________ Carlos Perktold 157<br />

conjunto <strong>de</strong> paisagens, flores, naturezas-mortas a óleo, que <strong>de</strong>ixam este<br />

articulista perplexo com a falta <strong>de</strong> reconhecimento, pela geração que me<br />

antece<strong>de</strong>u, <strong>de</strong> uma artista que somente expunha beleza.<br />

Revista Volume LI.p65 157<br />

12/5/2009, 15:29


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Rua Dom Pedro II - Sabará/MG - OST<br />

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Revista Volume LI.p65 160<br />

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O TEATRO PERFORMÁTICO<br />

DE HIL<strong>DA</strong> HILST<br />

“Desejo tanto ir além do que me pren<strong>de</strong>”<br />

(O Rato no Muro, <strong>de</strong> Hilda Hilst)<br />

É<strong>de</strong>r Rodrigues*<br />

As teorias <strong>de</strong> performance vêm influenciando correntes <strong>de</strong><br />

pensamento nos vários âmbitos <strong>de</strong> estudo e entendimento das questões<br />

humanas. O mundo contemporâneo junto às estruturas constitutivas da<br />

linguagem performática busca uma leitura que dialogue com esta sua<br />

nova moldura <strong>de</strong> vida edificada na justaposição <strong>de</strong> informações,<br />

superdose <strong>de</strong> imagens, impulsionado por este pilar do fragmento, das<br />

simultaneida<strong>de</strong>s e dos processos <strong>de</strong> silenciamento. No âmbito literário,<br />

esta perspectiva se apresenta em escrituras incongruentes que esten<strong>de</strong>m<br />

um vocabular ao não dito, às lacunas legíveis apenas a partir <strong>de</strong> um ato<br />

que se performatiza entre o visto e o invisível que se estabelece nos<br />

terrenos ausentes do sentimento, da fronteira e das relações sociais.<br />

O teatro <strong>de</strong> Hilda Hilst é antes <strong>de</strong> tudo uma escritura dramática que<br />

esten<strong>de</strong> as problemáticas levadas ao palco a este ato <strong>de</strong> completu<strong>de</strong> junto<br />

ao leitor/espectador. O que é colocado em cena não é resumível nos<br />

tradicionais aspectos da literatura dramática e sua construção linear <strong>de</strong><br />

enredo, personagens e <strong>de</strong>sfecho. Trata-se <strong>de</strong> um teatro <strong>de</strong> resistência,<br />

ratificador das inúmeras vozes silenciadas, vítimas <strong>de</strong> opressão,<br />

* Bacharel em <strong>Letras</strong>, mestrando em Literatura pela UFMG.<br />

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162 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

personagens encarceradas no próprio corpo e que se projetam num plano<br />

cênico <strong>de</strong> posicionamento crítico diante das instituições <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, das<br />

formas <strong>de</strong> censura e hegemonia <strong>de</strong> forças que <strong>de</strong> forma concreta ou<br />

simbólica marcam gerações, povos e a história às vezes não escrita <strong>de</strong><br />

cada um.<br />

Muito mais conhecida por seus trabalhos no campo da prosa e da<br />

poesia, Hilda Hilst também <strong>de</strong>ixou uma produção dramática <strong>de</strong> forte<br />

cunho político-dialógico que se completa em oito peças escritas na<br />

década <strong>de</strong> sessenta. A possessa (1967), O rato no muro (1967), O<br />

visitante (1968), Auto da Barca do Camiri (1968), As aves da noite<br />

(1968), O novo sistema (1968), O verdugo (1969), A morte do patriarca<br />

(1969).<br />

Seu teatro soa como um silêncio interminável que provoca o ato,<br />

que simula ultimatos na frente daqueles que compartilham do contexto<br />

encenado e que a partir do seu sistema <strong>de</strong> significação – nunca<br />

estabelecido <strong>de</strong> forma estável – articula esferas <strong>de</strong> culpa e medo,<br />

metáforas da liberda<strong>de</strong> e um <strong>de</strong>sejo intenso pela subversão dos mol<strong>de</strong>s,<br />

reivindicação do próprio corpo, silêncios que se performatizam, se<br />

reconhecem e se projetam num plano comum (autora/personagens/<br />

espectador) <strong>de</strong> busca pela voz que enuncia, firma e liberta o homem das<br />

clausuras cotidianas e sociais.<br />

A literatura dramática <strong>de</strong> Hilst investe num terreno movediço que<br />

encontra melhor diálogo e interpretações junto às concepções performáticas.<br />

Um teatro <strong>de</strong> ataque às instituições manipuladoras <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e pensamento<br />

que se inscrevem a partir dos personagens que silenciam. Personagens<br />

quase nunca nomeados e que simbolicamente traçam o percurso que vai<br />

do eu ao coletivo, compartilhando memórias e igualando confidências<br />

que se sobrepõem às esferas cenográficas <strong>de</strong> cena e se inserem no espaço<br />

e tempo históricos mais amplos como os <strong>de</strong> ditadura, dos escuros do<br />

corpo, da liberda<strong>de</strong> forjada nas nossas estampas <strong>de</strong> vida. Um entrecruzar<br />

<strong>de</strong> sistemas e signos que se perdoam e se redimem em cada vírgula<br />

consumida em nome do fluxo da fala, do fluido do corpo, do mundo que<br />

se virtua e se <strong>de</strong>sconecta da ação que a autora performatiza e cobra em<br />

nome <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>/homem, <strong>de</strong> fato, libertos e possuidores <strong>de</strong> fala.<br />

Revista Volume LI.p65 162<br />

12/5/2009, 15:29


O teatro performático <strong>de</strong> Hilda Hilst _________________________________________________ É<strong>de</strong>r Rodrigues 163<br />

“A performance revela experiências que fazem o percurso do<br />

pessoal ao comunitário e vice-versa. Este trânsito está<br />

fortalecido por um impulso <strong>de</strong> resistência à dissolução <strong>de</strong><br />

componentes culturais e i<strong>de</strong>ológicos que atuam como<br />

resíduos culturais que integram pessoas a uma região, a uma<br />

paisagem, e que passam a ser pele, olhos, roupa, gestos, fala,<br />

em partituras que se percebem como restos <strong>de</strong> algo maior e<br />

irrecuperável, reproduzível e passível <strong>de</strong> ser re-escrito, mas<br />

que <strong>de</strong> alguma forma <strong>de</strong>ve ser restituído a um passado e, ao<br />

mesmo tempo, transmitido ao futuro e relido no presente.” *<br />

Ao mesmo tempo lírica e transgressora, poética e assumidamente<br />

engajada com os meandros da palavra e do teatro, Hilda Hilst cria um<br />

arsenal simbólico <strong>de</strong> personagens que circundam nossa esfera <strong>de</strong><br />

memória e esquecimento, continuida<strong>de</strong>s e rupturas. Remete ao contexto<br />

vivido por ela na época <strong>de</strong> escrita das peças (processo <strong>de</strong> ditadura no<br />

Brasil) e avança no que diz respeito às opressões e censuras ainda<br />

sentidos e vivenciados na contemporaneida<strong>de</strong> em nossos meios sociais e<br />

políticos. A interposição <strong>de</strong> fatos, planos, dito e não dito vão edificando<br />

esta teatralida<strong>de</strong> que se constrói numa dramaticida<strong>de</strong> híbrida <strong>de</strong><br />

projeções, <strong>de</strong>lírios, invisibilida<strong>de</strong>s e constante reflexão sobre a or<strong>de</strong>m<br />

social e suas imposições. Os resquícios <strong>de</strong> ação dramática às vezes são<br />

sumariamente ultrapassados em nome <strong>de</strong> um conflito que se escancara no<br />

<strong>de</strong>ntro, no <strong>de</strong>vastar do indivíduo partindo do seu interno, das forças que o<br />

impe<strong>de</strong>m, do invisível que o cala.<br />

Esta subjetivação fragmentada é o elemento protagonista do teatro<br />

hilstiano, que não estabelece eixos dramáticos plenamente i<strong>de</strong>ntificados<br />

ou apresentados, <strong>de</strong>scarta a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> começo e fim, e na flui<strong>de</strong>z<br />

do silêncio ou da palavra que sai sufocada, cobra os <strong>de</strong>sígnios da fé, da<br />

morte, da injustiça, das impossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um mundo calcado sempre<br />

* Dentre tantas importantes consi<strong>de</strong>rações sobre a performance no âmbito da escrita, é<br />

importante ressaltar estas indicações articuladas por RAVETTI, 2003, p. 34-35.<br />

Revista Volume LI.p65 163<br />

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164 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

sobre o que po<strong>de</strong>ria ter sido, e nunca o que <strong>de</strong> fato po<strong>de</strong> se fazer para que<br />

<strong>de</strong> fato seja o <strong>de</strong>sejado.<br />

Em A Possessa (1967) Hilst coloca na personificação da personagem<br />

América os recursos utilizados para se privar o ser humano da voz e<br />

consequentemente dos ímpetos da ação. A própria autora intitula a peça<br />

como “teorema seguido <strong>de</strong> inúmeros corolários. Um <strong>de</strong>les seria a<br />

re<strong>de</strong>finição que mantivesse no homem sua verda<strong>de</strong>ira extensão<br />

metafísica”. E no <strong>de</strong>senrolar <strong>de</strong>ssa “peça <strong>de</strong> advertência” temos a<br />

trajetória da jovem América que foi proibida <strong>de</strong> expor o que pensa. Em<br />

meio a planos <strong>de</strong> ilustrações que subvertem a realida<strong>de</strong> e performam<br />

numa esfera <strong>de</strong> pensamento e repressão, acompanhamos a personagem<br />

central até os últimos <strong>de</strong>sígnios pautados nesse silêncio ao qual foi<br />

submetida.<br />

Já em O rato no Muro (1967) temos um plano <strong>de</strong> ação cênica<br />

ligada a um fenômeno limítrofe que propulsiona a obra no seu percurso<br />

da não/ação. Dez freiras, das quais não sabemos os nomes, estão<br />

encarceradas e <strong>de</strong>stituídas <strong>de</strong> qualquer expressão num ambiente <strong>de</strong><br />

clausura. A monotonia que rege cotidianamente rituais <strong>de</strong> fé, salvação e<br />

vazios é modificada pela passagem <strong>de</strong> um rato num muro que cerca o<br />

local e que ninguém vê. Submerge <strong>de</strong>sse ato uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

transposição <strong>de</strong>ssa fronteira invisível e pela invisibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste elemento<br />

cênico (o muro) somos confrontados com nossas eternas e múltiplas<br />

muralhas que se erguem junto aos fragmentos suscitados pelas freiras,<br />

mas que se igualam e se esten<strong>de</strong>m em nossas proporções <strong>de</strong> medo, <strong>de</strong>sejo<br />

e infernos esculpidos mediante a concretu<strong>de</strong> <strong>de</strong> muros e forças não<br />

palpáveis.<br />

Dois exemplos <strong>de</strong> um teatro performático que, na mistura dos<br />

elementos, na captura pelo interno dos envolvimentos, na construção<br />

pautada nas lacunas e edificações invisíveis que nos formatam, na<br />

escritura que se processa <strong>de</strong> forma aberta a ser completada pelo leitor/<br />

espectador, se firma como um silêncio interminável a ser colocado em<br />

cena, iluminado com o mais potente dos holofotes para que o eco <strong>de</strong>ste<br />

silêncio ganhe projeções rumo à busca incessante por uma voz liberta <strong>de</strong><br />

amarras e engran<strong>de</strong>cida pela concretização do ato <strong>de</strong> mudar.<br />

Revista Volume LI.p65 164<br />

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O teatro performático <strong>de</strong> Hilda Hilst _________________________________________________ É<strong>de</strong>r Rodrigues 165<br />

Neste principiar <strong>de</strong> século, diante das novas perspectivas <strong>de</strong> criação<br />

e reflexão sobre a literatura dramática, os novos conceitos da pósdramaturgia<br />

que se inserem nos grupos <strong>de</strong> teatro e as estruturas híbridas<br />

<strong>de</strong> construção dramatúrgica, foco-me no teatro <strong>de</strong> Hilda Hilst a partir <strong>de</strong><br />

sua estrutura performática, a fim <strong>de</strong> estabelecer uma nova leitura e<br />

interpretação <strong>de</strong> seus textos teatrais e iluminar este teatro <strong>de</strong> extremado<br />

rigor criativo e <strong>de</strong> provocação político/artística e que ainda soa como<br />

<strong>de</strong>sconhecido e pouco representado no meio teatral.<br />

Bibliografia<br />

CARREIRA. André Luiz Antunes et al. (orgs.). Mediações performáticas<br />

latino americanas. Belo Horizonte: Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>/UFMG, 2003.<br />

HILST, Hilda. Teatro reunido volume I. São Paulo: Nankin Editorial,<br />

2000.<br />

RAVETTI, Graciela. Performances escritas: o diáfono e o opaco da<br />

experiência. In: HILDEBRANDO, Antônio; NASCIMENTO, Lylei;<br />

ROJO, Sara (orgs.). O corpo em performance. Belo Horizonte: 2003.<br />

p. 31-61.<br />

TEIXEIRA, João Gabriel, Gusmão, Rita (org.) Performance, cultura e<br />

espetacularida<strong>de</strong>. Brasília: Editora Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília, 2000.<br />

Revista Volume LI.p65 165<br />

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166 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 166<br />

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APRESENTAÇÃO<br />

SOBRE GUIGNARD<br />

Yara Tupynambá*<br />

Muito já se falou sobre a obra do artista Alberto da Veiga Guignard<br />

e <strong>de</strong> seu papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na arte brasileira, mas pouco se abordou seu<br />

papel <strong>de</strong> professor e formador <strong>de</strong> duas gerações <strong>de</strong> artistas. Estas<br />

constituem, hoje, o núcleo básico <strong>de</strong> artistas mineiros <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, pelo<br />

trabalho que <strong>de</strong>senvolveram, pelo papel <strong>de</strong> educadores que tiveram e pela<br />

participação muito forte no movimento cultural <strong>de</strong> Minas.<br />

A estas duas gerações, o professor <strong>de</strong>ixou algumas das características<br />

básicas <strong>de</strong> sua pintura que, agregadas às <strong>de</strong> seus alunos, caracterizaram o<br />

que chamamos <strong>de</strong> escola mineira ou geração Guignard.<br />

Toda escola ou tendência, em pintura, só existe quando um grupo<br />

<strong>de</strong> artistas manifesta, em seus trabalhos, características comuns, apesar <strong>de</strong><br />

abordarem temas diversos. Foi isto que vimos, por exemplo, entre os<br />

impressionistas, que usaram características semelhantes em seus quadros:<br />

pinceladas rápidas, busca da luz e empaste <strong>de</strong> massa pictórica, além do<br />

uso <strong>de</strong> temas comuns – as paisagens, figuras <strong>de</strong> trabalhadores e da<br />

pequena burguesia francesa, os salões <strong>de</strong> baile e concertos.<br />

Porém, cada um imprimiu em seu trabalho uma marca pessoal.<br />

Foi também isto que aconteceu com Guignard e seus alunos<br />

mineiros.<br />

* Artista plástica, professora.<br />

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Sua atuação como professor adveio da própria formação que teve<br />

na escola que cursou na Alemanha, on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>senho era a base <strong>de</strong> todo o<br />

trabalho. E foi isto que exigiu dos seus alunos, em primeiro lugar: olhar e<br />

<strong>de</strong>senhar, observar e <strong>de</strong>senhar, sintetizar e <strong>de</strong>senhar. Depois nos levou ao<br />

uso do lápis 6H, o que nos obrigava a olhar, a pensar e só então dar o<br />

traço no papel, pois a dureza do lápis não nos <strong>de</strong>ixava apagar com a<br />

borracha o traço dado.<br />

Somava sempre, às aulas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> objeto e mo<strong>de</strong>lo vivo, as<br />

aulas diretamente dadas entre as árvores do Parque Municipal. Ali, nos<br />

mostrava como ver e interpretar a paisagem. O parque era seu mundo<br />

encantado, no centro do qual colocava seu cavalete e tela, pintando e nos<br />

mostrando com gestos como <strong>de</strong>víamos usar o pincel, pois sua dificulda<strong>de</strong><br />

em falar, em razão <strong>de</strong> lábio leporino, fazia com que se comunicasse<br />

conosco mais através <strong>de</strong> gestos que <strong>de</strong> palavras.<br />

Seu conhecimento técnico veio, além da sua formação alemã, do<br />

encantamento que teve pelos pintores do quattrocento italiano,<br />

especialmente por Botticelli e Fra Angelico, o primeiro em razão do<br />

requinte da pincelada em superposições coloristas produzindo a<br />

transparência, e o segundo pelo precioso <strong>de</strong>corativísmo que trabalhava a<br />

linha, fazendo arabescos sobre a mancha.<br />

Estas características técnicas vão se refletir nos céus coloridos<br />

transparentes, na pele <strong>de</strong> figuras femininas, nas árvores do parque, nos<br />

vestidos bordados <strong>de</strong> suas jovens musas, nos céus cheios <strong>de</strong> luzes e balões.<br />

Tudo isto foi absorvido pelos seus alunos que, <strong>de</strong> maneira pessoal,<br />

incorporaram essas características a sua própria visão do mundo.<br />

A criação nos era estimulada através do exercício <strong>de</strong> composições,<br />

on<strong>de</strong> <strong>de</strong>slocávamos os objetos colocando-os não na sua posição real, mas<br />

on<strong>de</strong> a composição pedia. Acrescentar elementos aleatórios era outra sua<br />

pedida. Lembro-me que, para marcar estas fantasias, construiu um<br />

biombo só <strong>de</strong> colagens, on<strong>de</strong> mostrava figuras, objetos, moveis e<br />

paisagens em um mesmo espaço, biombo este lindo e que se per<strong>de</strong>u com<br />

o tempo <strong>de</strong>ntro da escola.<br />

Se a técnica foi parte importante da herança que Guignard nos<br />

<strong>de</strong>ixou, mais importantes foram alguns conceitos que nos transmitiu: uma<br />

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Apresentação sobre Guignard ______________________________________________________ Yara Tupynambá 169<br />

atitu<strong>de</strong> poética em ver a vida, um amor muito gran<strong>de</strong> à nossa terra que o<br />

fez escolher, como tema, a realida<strong>de</strong> brasileira: as visões do Rio e do<br />

Jardim Botânico, as montanhas <strong>de</strong> Minas coroadas com as igrejas<br />

barrocas, o casario das pequenas cida<strong>de</strong>s históricas, as noites <strong>de</strong> São João<br />

com suas luzes e balões.<br />

Ao <strong>de</strong>finir e privilegiar, em sua pintura, uma visão sobre nossa<br />

terra, Guignard artista, consi<strong>de</strong>ra Minas não como cenário, mas como<br />

núcleo <strong>de</strong> tradições, <strong>de</strong> certezas, <strong>de</strong> germinação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e i<strong>de</strong>ais.<br />

E foi esta certeza que nos transmitiu, como herança maior.<br />

Assim, ao ensinar disciplina e liberda<strong>de</strong>, observação e criação,<br />

técnica e busca <strong>de</strong> linguagem pessoal, ele formou uma plêia<strong>de</strong> <strong>de</strong> artistas<br />

que hoje trabalham e criam em Minas, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> linguagens absolutamente<br />

pessoais.<br />

Maria Helena Andrés e Mario Silésio, abstratos, usam a sutileza<br />

das transparências coloristicas, bem como Jarbas Juarez, Yara Tupynambá<br />

e Wil<strong>de</strong> Lacerda, figurativos oníricos. Petrônio Bax e Chanina trabalham<br />

com a linha sobre a massa, formando <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong>corativos em uma<br />

mensagem surreal. Álvaro Apocalypse, expressionista, usa as transparências,<br />

e Amílcar <strong>de</strong> Castro e Santa com a linha constroem os elementos<br />

básicos <strong>de</strong> seu trabalho.<br />

Mas o que se sente, em caminhos tão diversos tomados por seus<br />

alunos, ligados pelos laços da técnica e do conteúdo filosófico que lhes<br />

foi apresentado pelo mestre é o fio condutor da criação que permanece<br />

como a gran<strong>de</strong> herança <strong>de</strong>ixada por Guignard.<br />

Formou duas gerações <strong>de</strong> artistas, a primeira <strong>de</strong> 44 a 54, com a<br />

presença <strong>de</strong> Maria Helena Andrés, Mario Silésio, Petrônio Bax, Farnese<br />

Andra<strong>de</strong>, Amílcar <strong>de</strong> Castro, Solange Botelho e Chanina, entre outros. A<br />

segunda geração, existente entre os anos <strong>de</strong> 54 e 62, quando <strong>de</strong> sua<br />

morte, formada por Álvaro Apocalypse, Jarbas Juarez, Santa, Wil<strong>de</strong><br />

Lacerda e Yara Tupynambá, entre outros, fecha seu ciclo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s,<br />

mas a forte presença <strong>de</strong> Guignard persiste entre nós, firme e generosa, ao<br />

nos lembrarmos <strong>de</strong> quanto sua ativida<strong>de</strong> como mestre foi importante para<br />

a formação das artes plásticas <strong>de</strong> Minas.<br />

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170 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

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Senhoras e senhores<br />

GUIMARÃES ROSA<br />

E MINAS GERAIS *<br />

Murilo Badaró**<br />

Neste parlamento mineiro, <strong>de</strong> tão nobres tradições, a palavra reina<br />

<strong>de</strong> forma absoluta.<br />

Casa <strong>de</strong> discursos, breves ou longos, bons ou cansativos, e <strong>de</strong><br />

oradores tais e quais, eles não po<strong>de</strong>riam estar ausentes numa solenida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sta expressão e magnitu<strong>de</strong>, que tem a honrá-la, entre outras, as<br />

presenças do vice-governador Antonio Anastasia e dos ilustres<br />

presi<strong>de</strong>ntes das Assembleias Legislativas <strong>de</strong> São Paulo e do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul.<br />

Como estamos em tempo <strong>de</strong> Guimarães Rosa, recordo um <strong>de</strong> seus<br />

mais famosos personagens para vos prometer que este pronunciamento<br />

vai durar “um instantezinho enorme”, como falou Riobaldo Tatarana, o<br />

imortal narrador e centro <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todo o romance rosiano, para<br />

quem o “real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe pra gente é<br />

no meio da travessia”.<br />

* Discurso pronunciado na solenida<strong>de</strong> oficial <strong>de</strong> outorga da Medalha do Mérito Legislativo,<br />

realizada no Palácio das Artes no dia 24.11.2008<br />

** Escritor e homem público, presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, autor entre outros<br />

livros <strong>de</strong>: Do Jequitinhonha ao Tennessee, Reforma e Revolução, Memorial Político, Alma<br />

<strong>de</strong> Minas, O Bombardino, Vigésimo Mandamento, Floresta <strong>de</strong> Símbolos, Rondó Solitário<br />

(crônicas), José Maria Alkmim, Milton Campos, Gustavo Capanema (biografias), Memórias<br />

Póstumas <strong>de</strong> Francisco Badaró (romance histórico-biográfico).<br />

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Em se tratando <strong>de</strong> discurso, certamente, o real, tal como na<br />

travessia <strong>de</strong> Rosa, dispõe-se é no meio da oração, muito aquém do<br />

exórdio e além da peroração, cada qual a seu gosto como ensinava o<br />

professor Alberto Deodato, também <strong>de</strong>putado mineiro, para quem os<br />

oradores políticos po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>ixar dormir a plateia em meio à mais<br />

intensa verbosida<strong>de</strong> para acordá-la com excitante e ar<strong>de</strong>nte peroração a<br />

fim <strong>de</strong> merecer justos aplausos ao final apoteótico.<br />

Foi assim pensando que, muitos anos antes, assistiu razão ao Padre<br />

Antônio Vieira quando disse no Sermão da Sexagésima que “toda altura<br />

é um precipício”.<br />

Parodiando Riobaldo, dir-vos-ei: discursar é muito perigoso.<br />

Minha pronta aceitação do honroso convite do Presi<strong>de</strong>nte Alberto<br />

Pinto Coelho para saudar-vos como orador oficial <strong>de</strong>sta solenida<strong>de</strong>, ilustres e<br />

eminentes agraciados com a enobrecedora Medalha do Mérito Legislativo<br />

<strong>de</strong> Minas Gerais, foi ditada pela justaposição <strong>de</strong> duas circunstâncias.<br />

Primeira, a <strong>de</strong> ser Presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, que<br />

<strong>de</strong>stinou parte <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ste ano para exaltar João Guimarães<br />

Rosa, em cuja homenagem realizou uma semana inteira <strong>de</strong> palestras e<br />

conferências sobre a obra e o autor, todas proferidas por ilustres<br />

intelectuais mineiros e brasileiros.<br />

E também pelo muito que esta centenária e gloriosa instituição tem<br />

realizado em favor da cultura <strong>de</strong> Minas, em permanecer sempre zelosa<br />

guardiã <strong>de</strong> nossas mais caras tradições, foi que a homenageastes,<br />

agraciando-a hoje com esta Medalha do Mérito do Legislativo Mineiro<br />

A outra é a <strong>de</strong> recair a distinção num velho companheiro <strong>de</strong><br />

parlamento, a cujo prestígio e dignificação <strong>de</strong>diquei quase meio século <strong>de</strong><br />

minha vida, em especial à Assembleia Legislativa <strong>de</strong> Minas Gerais, para<br />

a qual fui eleito no ano já distante <strong>de</strong> 1958, ali permanecendo por duas<br />

legislaturas antes <strong>de</strong> seguir para a Câmara Fe<strong>de</strong>ral, o Senado da<br />

República e outros postos na vida pública.<br />

Fizestes muito bem em escolher Guimarães Rosa como patrono<br />

<strong>de</strong>ste grandioso evento.<br />

Escritor que já nasceu clássico, assim a ele se referiu Wilson<br />

Martins, seu livro Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas “caiu impiedosamente sobre a<br />

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Guimarães Rosa e Minas Gerais _____________________________________________________ Murilo Badaró 173<br />

<strong>de</strong>soladora pobreza <strong>de</strong> nossa ficção pós-mo<strong>de</strong>rnista”, como tão<br />

percucientemente assinalou o poeta e crítico mineiro Afonso Ávila.<br />

O acadêmico e intelectual Fábio Lucas enfatizou: “A linguagem <strong>de</strong><br />

Guimarães Rosa é a mesma do embuçado nas manhãs frias <strong>de</strong> Ouro<br />

Preto. Traz um segredo, a mensagem do mistério ainda in<strong>de</strong>cifrado”.<br />

Ninguém permaneceu ou permanece indiferente ou neutro diante da<br />

obra <strong>de</strong> João Guimarães Rosa, o “documento literário mais contun<strong>de</strong>nte e<br />

<strong>de</strong>finitivo sobre a realida<strong>de</strong> brasileira”, como bem assinalou o presi<strong>de</strong>nte<br />

da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, acadêmico Cícero Sandroni, na<br />

abertura da Semana Rosiana, realizada sob os auspícios da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> e<br />

por ele presidida.<br />

As múltiplas razões <strong>de</strong>sta sua eternida<strong>de</strong> e duração estão em que,<br />

no <strong>de</strong>screver das personagens e no relato das paisagens, ele soube como<br />

ninguém <strong>de</strong>finir tipos mineiros, em seus variados aspectos humanos e<br />

filosóficos e em estilo que lhes dá feição universal.<br />

Gran<strong>de</strong>s inventores como Rosa não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong>scendência, pois são<br />

verda<strong>de</strong>iros revolucionários das artes e da literatura, mesmo homens <strong>de</strong><br />

um só livro. Tal como Dante Alighieri em sua Divina Comédia ou<br />

Cervantes e o seu imortal Dom Quixote.<br />

Minas está por inteiro em sua obra, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a “Cordisburgo, pequenina<br />

terra sertaneja, trás montanhas, no meio <strong>de</strong> Minas Gerais. Só quase lugar,<br />

mas tão <strong>de</strong> repente bonito: lá se <strong>de</strong>sencerra a Gruta do Maquiné,<br />

milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos <strong>de</strong><br />

sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o <strong>de</strong>mais <strong>de</strong> estrelas,<br />

falava-se antes: “os pastos da Vista Alegre”, como à sua terra se referiu<br />

no prólogo <strong>de</strong> seu discurso <strong>de</strong> posse na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Minas está por inteiro com todo o vale do São Francisco,<br />

resvalando pelo curso do rio Paranaíba até as barrancas do Urucuia,<br />

unindo nesta vastidão o homem, o boi e o cavalo com todos os seus<br />

contrastes e semelhanças, distribuídos pelas amplas bacias do Ver<strong>de</strong> e do<br />

Sapucaí, esver<strong>de</strong>adas pelos intensos cafezais espraiados pela Zona da<br />

Mata e matas do Rio Doce, tudo confluindo para o centro aurífero que<br />

gestou a epopéia dos ban<strong>de</strong>irantes e <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou o milagre da liberda<strong>de</strong><br />

no martírio dos Inconfi<strong>de</strong>ntes.<br />

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174 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Vós, parlamentares <strong>de</strong> Minas e mineiros <strong>de</strong> todos os matizes, sois<br />

fiéis intérpretes <strong>de</strong>stas Minas que Guimarães Rosa <strong>de</strong>screveu com<br />

inigualável talento.<br />

Vós, mineiros e brasileiros agraciados <strong>de</strong> hoje, estais recebendo<br />

uma láurea profundamente vinculada a tudo que diz respeito a Minas,<br />

sempre voltada para o eterno e o permanente, eternida<strong>de</strong> que a faz<br />

contemporânea <strong>de</strong> todos os tempos.<br />

O parlamento mineiro se inclui entre aquilo que Minas tem <strong>de</strong> mais<br />

nobre e altruísta em sua formação liberal e <strong>de</strong>mocrática.<br />

Ele contribui para o <strong>de</strong>bate franco e aberto <strong>de</strong> todos os problemas<br />

do conturbado momento por que passa a socieda<strong>de</strong>, busca soluções<br />

enfrentando <strong>de</strong>safios que põem permanentemente à prova nossa<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> luta e abnegação.<br />

A inspirada e feliz <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> homenagear Guimarães Rosa neste<br />

dia em que mineiros e brasileiros das mais diversas procedências são<br />

galardoados com um título <strong>de</strong> honra e mérito, põe em relevo novamente<br />

as inspirações que <strong>de</strong>vem estar sempre presentes em tudo o quanto<br />

fizer<strong>de</strong>s em favor do povo.<br />

Senhor Presi<strong>de</strong>nte,<br />

Tal como Rosa <strong>de</strong>finiu na imortal sentença <strong>de</strong> sua lavra que “as<br />

pessoas não morrem, ficam encantadas”, a morte <strong>de</strong> João Guimarães<br />

Rosa, cujo centenário <strong>de</strong> nascimento comemoramos, serviu para mostrar<br />

que “a gente morre para provar que viveu”, ele, especialmente, que<br />

<strong>de</strong>ixou na vida mineira este admirável po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>, prisioneiro<br />

da terra, persistindo com tenacida<strong>de</strong> e paciência em busca <strong>de</strong> seu glorioso<br />

<strong>de</strong>stino.<br />

Quero concluir estas brevíssimas consi<strong>de</strong>rações convidando-vos a<br />

algumas reflexões políticas.<br />

O Brasil, a cada momento, dá renovados sinais <strong>de</strong> que sente a<br />

ausência <strong>de</strong> Minas. Como repete a cada nova oportunida<strong>de</strong> o vicepresi<strong>de</strong>nte<br />

da República, José Alencar, “o Brasil sente sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Minas”.<br />

De sua tendência para o que é permanente e eterno, <strong>de</strong> sua vocação<br />

para o senso grave da or<strong>de</strong>m e da liberda<strong>de</strong>, da constante busca do<br />

equilíbrio, <strong>de</strong> seu sentido <strong>de</strong> perenida<strong>de</strong> do belo e do justo.<br />

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Guimarães Rosa e Minas Gerais _____________________________________________________ Murilo Badaró 175<br />

Minas não se dispõe a aventuras ou projetos <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> um<br />

mínimo <strong>de</strong> senso da realida<strong>de</strong>. Daí a sensação <strong>de</strong> segurança que a todos<br />

inspira e domina quanto a tudo que parte <strong>de</strong>sta gloriosa província.<br />

Não me exce<strong>de</strong>rei ao propor-vos, neste final <strong>de</strong> solenida<strong>de</strong>, a breve<br />

lembrança da famosa proclamação <strong>de</strong> Francisco Otaviano, <strong>de</strong> 1889, que<br />

em sua palpitante atualida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser conduzida como ban<strong>de</strong>ira aos mais<br />

longínquos rincões do país:<br />

“Estrela brilhante do Sul, formosa província <strong>de</strong> Minas – por<br />

que <strong>de</strong>smaias no céu <strong>de</strong> nossa pátria, quando ela precisa que<br />

cintiles com toda sua pureza antiga?<br />

(...) Níobe das províncias brasileiras, também viste morrer os<br />

teus filhos ilustres, estes que te causavam <strong>de</strong>svanecimento e<br />

orgulho; a lousa do túmulo caiu sobre o cadáver <strong>de</strong> alguns, a<br />

mão <strong>de</strong> ferro do ostracismo comprimiu a garganta <strong>de</strong> outros.<br />

(...) Do alto daquelas montanhas <strong>de</strong>scia, não o perfume que<br />

embriaga os sentidos e amolece o corpo, mas uma brisa <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong> que nos avigorava o espírito e <strong>de</strong>spertava o bom<br />

senso e as virtu<strong>de</strong>s cívicas.<br />

(...) Formosa província <strong>de</strong> Minas, surge do abatimento, volta<br />

a ocupar a tua primazia. Ainda está vago o teu lugar nos<br />

conselhos e na tribuna: nenhuma das tuas irmãs po<strong>de</strong> usurpá-lo.<br />

(...) Formosa província <strong>de</strong> Minas, surge, surge; não te é lícito<br />

tão longo repouso”.<br />

Tem-se a impressão segura <strong>de</strong> que o Brasil inteiro está a repetir<br />

estas palavras como uma espécie <strong>de</strong> oração, em apelo <strong>de</strong> intensa<br />

dramaticida<strong>de</strong> para que Minas retome o seu lugar<br />

Minas figura perante o Brasil como o espelho <strong>de</strong> sua consciência,<br />

pela certeza e profunda crença dos brasileiros <strong>de</strong> que é sua raiz, sua âncora.<br />

Pela convicção <strong>de</strong> que Minas foi o Brasil <strong>de</strong> ontem e é o Brasil <strong>de</strong><br />

sempre, pelo seu discernimento moral, seu inabalável senso <strong>de</strong><br />

proporções e refinada noção <strong>de</strong> direitos e obrigações.<br />

Assim seja!<br />

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Revista Volume LI.p65 176<br />

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ÉPICO E O DIALÉTICO EM<br />

GRANDE SERTÃO: VERE<strong>DA</strong>S<br />

Ismar Dias <strong>de</strong> Matos*<br />

A Ilíada e a Odisseia estão entre os principais textos formadores <strong>de</strong><br />

nossa cultura oci<strong>de</strong>ntal. São dois textos épicos e, portanto, inaugurais <strong>de</strong><br />

nosso Logos cultural. Neles, o poeta, como intérprete da memória<br />

singular <strong>de</strong> seu povo, transforma-se em filósofo, coetâneo intérprete da<br />

consciência universal e da cultura. O aedo reconduz a consciência, antes<br />

dispersa na exteriorida<strong>de</strong> imediata do mundo sensível, à sua espiritualida<strong>de</strong>,<br />

com uma mensagem universal. Ele transmite não a singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas<br />

vivências, mas a dimensão espiritual da consciência realizada no ethos <strong>de</strong><br />

seu povo. A epopéia inaugura a palavra como a nova morada do homem.<br />

No mundo épico, como diria Hegel, a palavra é a mediadora entre a<br />

Natureza e o Absoluto.<br />

Po<strong>de</strong>mos dizer que o discurso épico é a exteriorização da<br />

consciência através da palavra, que <strong>de</strong>nuncia a emergência do espírito <strong>de</strong><br />

um povo para além da mítica realização do elemento divino nos<br />

elementos naturais. A elaboração do conceito, no plano consciente, é a<br />

continuação <strong>de</strong> um processo que começou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o homem balbuciou<br />

os primeiros sons. O texto épico, gestado ao longo <strong>de</strong> muitos séculos, é o<br />

elemento que harmoniza a natureza e o espírito que nela comparece como<br />

força divina.<br />

* Professor <strong>de</strong> Filosofia e Cultura Religiosa na PUC Minas, Associado-Fundador das<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>s Brasileira e <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> Hagiologia.<br />

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178 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

A beleza épica da gênese da consciência resi<strong>de</strong> no fato <strong>de</strong> que a<br />

or<strong>de</strong>nação e a unificação da realida<strong>de</strong> se processam, agora, sob a égi<strong>de</strong><br />

universalizante do mundo ético. A consciência começa a se configurar<br />

como povo, ou seja, como universalida<strong>de</strong> ética, e é neste sentido que<br />

Hegel vai falar <strong>de</strong> um retorno da consciência a si mesma.<br />

Em nossa literatura, Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, <strong>de</strong> João Guimarães<br />

Rosa, figura como um <strong>de</strong>stes textos inaugurais. Riobaldo Tatarana, o<br />

personagem-narrador, nos apresenta a singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas vivências – o<br />

contexto vivido na jagunçagem do sertão – agora universalizadas no<br />

romance, em forma <strong>de</strong> conceitos e valores recriados através <strong>de</strong> sua<br />

narrativa alegórica.<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que o texto rosiano incorpora o ethos no cosmos e é<br />

pela mediação <strong>de</strong>ste que a consciência adquire a universalida<strong>de</strong> ética. Em<br />

outras palavras: a particularida<strong>de</strong> da consciência narrativa <strong>de</strong> Riobaldo<br />

(Jagunço-narrador), inserida no contexto recriado do Cosmos-Sertão,<br />

atinge a epopéia <strong>de</strong> um Ethos Universal. O poeta-filósofo Riobaldo,<br />

vivendo o ócio <strong>de</strong> quem não “mói no asp’ro”, faz uma pausa,<br />

simbolizada pelos dois pontos [:] para contar, a partir das “Veredas”,<br />

aquilo que ele quer mostrar como “Gran<strong>de</strong> Sertão”, e que está em toda<br />

parte. O “Sertão” singular, lugar da existência contingente, torna-se<br />

“Gran<strong>de</strong> Sertão” (Cosmos, Universal), através da narrativa que reor<strong>de</strong>na<br />

e revaloriza o vivido e lhe dá sentido. Refaz-se, aqui, o movimento da<br />

dialética mostrada por Hegel, e que Guimarães Rosa muito bem<br />

simbolizou na frase que serve <strong>de</strong> epígrafe da obra: “o diabo na rua, no<br />

meio <strong>de</strong> re<strong>de</strong>moinho”.<br />

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ROSA, DENTRO E PROFUNDO...<br />

Petrônio Souza Gonçalves*<br />

João Guimarães Rosa é uma flor que não se colhe. Nasce, cresce,<br />

floresce e morre em seu próprio ministério. Está <strong>de</strong>ntro, profundo e uno<br />

em sua obra. Inteiro e indivisível. Tudo além, foge ao universo imaterial<br />

e mineral rosiano, aquele que está muito além <strong>de</strong> nós, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> quase<br />

tudo, em suas in<strong>de</strong>cifráveis palavras. Não cabe interpretação, estudo, pois<br />

a obra está nela mesma, no universo traduzido e inventado. Fonte e fim<br />

do inefável mistério, o indizível elo.<br />

Do Urucuia ao Pinhém, um voo só, <strong>de</strong> mil ventos. Nada, além do<br />

que ali está, nos leva além. O segredo é a profundida<strong>de</strong> no próprio<br />

mistério, na entrega <strong>de</strong>spojada e <strong>de</strong>sarmada, a busca do sabor <strong>de</strong>gustado e<br />

revelado, nunca traduzido. Assim foi, assim é: maior, plural, muito além<br />

<strong>de</strong> nossas várias filosofias.<br />

Para saber mais do mágico, do intransitável, poucos mergulhos não<br />

bastam. Requer um aprendizado, pois em seu balaio <strong>de</strong> carregar amor e<br />

flor, Rosa levou tudo que havia garimpado e começou a passar para o<br />

papel, em prosa e poesia, na França – segundo informações da filha,<br />

Vilma – e fez o sertão florescer mineiramente, silenciosamente, na<br />

universal Paris. Era um sertão tão grandioso, que trazia em si a dor do<br />

mundo inteiro. Tudo, encantamento puro, travessia do transcen<strong>de</strong>ntal, da<br />

imortalida<strong>de</strong> imaterial das palavras, aquelas que têm várias moradas e<br />

traduzem infindáveis sentimentos. Sentidos. No embornal do tempo, as<br />

* Jornalista e escritor.<br />

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180 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

histórias e os personagens que Joãozito guardou na memória, colhidos no<br />

balcão da venda <strong>de</strong> seu pai, o Seu Fulô. Da convivência diária, o menino<br />

<strong>de</strong> vista curta – hipermetropia – apren<strong>de</strong>u a ver e ouvir o além das<br />

palavras, das histórias, as várias texturas embutidas nos segredos <strong>de</strong> vida,<br />

as transcendências. As transcendências não são passiveis <strong>de</strong> tradução,<br />

pois elas veem do acúmulo, da entrega ao tempo, ao sentimento, um<br />

aprofundamento das várias razões que as próprias razões não ousam<br />

compreen<strong>de</strong>r, interpretar, apenas sorver o gosto impalpável do<br />

improvável instante. São assim verda<strong>de</strong>s reflexivas, vivas no sem-fim da<br />

poesia do momento. E é esse momento que Rosa apren<strong>de</strong>u a captar, a<br />

ruminar, a reinventar, a nos dar a sua forma acabada, nunca terminada.<br />

A cida<strong>de</strong>, trazia-a no coração, com seus cacos e seus casebres, tudo<br />

tão pequeno que cabia em uma só palavra: Cordisburgo. E foi aí que ele<br />

bebeu o mágico, o fantástico, o impon<strong>de</strong>rável, a dor <strong>de</strong> um pequeno<br />

universo imergido entre as casas do burgo incrustado em seu coração.<br />

Para <strong>de</strong>scortinar a profundida<strong>de</strong> impalpável embebida em uma impensável<br />

verda<strong>de</strong>, o batismo surreal em uma pia bastimal arrancada das<br />

profun<strong>de</strong>zas da Gruta <strong>de</strong> Maquiné, o princípio do início <strong>de</strong> tudo.<br />

Diadorim é o dia dourado, aquela <strong>de</strong> beleza sem fim. Nasceu assim para<br />

ser encantada, diferente, nos mostrar o que está em nós e muito acima <strong>de</strong><br />

nós. São dois lados, dois caminhos, ambos, sem fim. Intraduzíveis, vivos<br />

apenas no silêncio <strong>de</strong> sua dor, <strong>de</strong> seu conflito percebido. Basta seu<br />

silêncio rosiano para <strong>de</strong>scortinar o sofrimento <strong>de</strong> uma existência,<br />

preenchida pela dor que, talvez, floriu em Rosa.<br />

Como ousar esmiuçar algo tão intrínseco, tão fugaz, tão grandioso<br />

em sua substancial imaterialida<strong>de</strong>? O gênio se eleva para <strong>de</strong>monstrar o<br />

que ele escondia <strong>de</strong> si mesmo. É <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong>scomunal, celestial,<br />

apenas o bocejo <strong>de</strong> um insondável mistério.<br />

Rosa está em si com um livro aberto para o <strong>de</strong>sconhecido. Parece<br />

dizer, com a paz dos buritizais, que não é permitido esmiuçar o que já<br />

tanto foi repensado, ruminado, reescrito e garimpado. O mistério não é a<br />

pedra lapidada, mas o brilho dos olhos das pessoas refletido nela, aquele<br />

que foi consumido pela materialida<strong>de</strong> das coisas do nossa pequeno<br />

mundo, tão pobre <strong>de</strong> transcendências...<br />

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Rosa, <strong>de</strong>ntro e profundo... _________________________________________________ Petrônio Souza Gonçalves 181<br />

Mago, mágico, bruxo, fabuloso? Não, simplesmente grandioso,<br />

dotado <strong>de</strong> uma paixão infinita, bendita, circunscrita em seu cenário<br />

primeiro, aquele mesmo <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro. Fora dali, Rosa seria impensado, não<br />

seria um. Foi incontável em sua unida<strong>de</strong>, por isso mesmo, irrevelável.<br />

Escrever é florir, é se elevar, é se entregar, é comungar com o que<br />

não está aqui, o que foge à nossa pretensiosa e vaidosa compreensão. Não<br />

limitemos as coisas do infinito à finitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossas observações. Rosa é<br />

mais, é, sobretudo, algo que nos oferta um doce cheiro <strong>de</strong> poesia que não<br />

sabemos <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem. Escrever é revelar sem traduzir, é mergulho<br />

profundo, sem volta, é entrega absoluta e absurda. Seu sertão está no<br />

horizonte tanto na amplitu<strong>de</strong> quanto na profundida<strong>de</strong>. Não limitemos a<br />

visão apenas pela nossa. Essas coisas todas, Rosa fez, com magistral e<br />

competente doçura. Irretocável. Era mesmo um encantado, tocado pelo<br />

mundo que não está aqui.<br />

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Discursos acadêmicos<br />

A TRADIÇÃO ACADÊMICA*<br />

Vivaldi Moreira**<br />

É com profundo sentimento <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> que transponho os<br />

umbrais <strong>de</strong>sta ilustre Casa, solar da cultura, da inteligência e da<br />

sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossa querida Província.<br />

Acudi ao vosso generoso chamamento. Em reiterados momentos,<br />

venho consultando a minha consciência, nela esquadrinhando os motivos<br />

<strong>de</strong> vosso apelo e, sinceramente vos afirmo – afirmo-vos com aquela<br />

lealda<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>ve aos momentos solenes – não sei a que atribuir meu<br />

ingresso neste cenáculo, quando tantos valores expressivos permanecem<br />

fora, muito mais credores <strong>de</strong> vosso acolhimento aqui. Não consigo<br />

escon<strong>de</strong>r, porém, que esta Casa significa para mim, há muitos anos, uma<br />

espécie <strong>de</strong> Montanha das Delícias, cume <strong>de</strong> escalada difícil e <strong>de</strong> acesso<br />

penoso – símbolo daquilo a que um escritor convicto <strong>de</strong> sua missão po<strong>de</strong><br />

aspirar. A <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> é o nosso tribunal superior no domínio das letras.<br />

Compartilhar <strong>de</strong> seu recesso e fazer parte da Corte que julga, absolve ou<br />

con<strong>de</strong>na em questões literárias. Ou como disse a propósito <strong>de</strong>las o gran<strong>de</strong><br />

Eça <strong>de</strong> Queiros, que não chegou, porém, a ser acadêmico, e mais por<br />

culpa sua: – “Des<strong>de</strong> que uma <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> existe, qual é no fundo a sua<br />

missão? Evi<strong>de</strong>ntemente, constituir um Diretório intelectual que mantenha<br />

* Discurso pronunciado na Sessão Solene <strong>de</strong> Posse no dia 2 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1959.<br />

** Dados biográficos no final do discurso.<br />

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184 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

na Literatura o gosto impecável, a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, a finura do tom sóbrio, as<br />

purezas <strong>de</strong> forma, o <strong>de</strong>coroso comedimento, todas as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

distinção, <strong>de</strong> proporção e <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m.”<br />

Que fiz eu para vestir a toga praetexta, compartilhar do vosso<br />

convívio e participar <strong>de</strong> vossas <strong>de</strong>cisões irrecorríveis?<br />

Este gesto da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> calou mais fundo em mim e me sobrecarrega<br />

<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>, porque veio quando sua tradição quinquagenária já<br />

<strong>de</strong>purou os excessos <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong>, preenchendo os requisitos exigidos na<br />

feliz observação <strong>de</strong> Joaquim Nabuco: – “As <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>s como tantas<br />

outras coisas precisam <strong>de</strong> antiguida<strong>de</strong>. Uma <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> nova é como uma<br />

religião sem mistérios: falta-lhe solenida<strong>de</strong>.”<br />

Por isso, surpreendi-me, quando alguns <strong>de</strong> vós – amigos diletos –<br />

me animaram a solicitar o sufrágio dos <strong>de</strong>mais. A tradição me infundia<br />

respeito, e o apreço pelos homens que compõem este sodalício jamais o<br />

escondi. Aqui se abriga, como sempre acolheu no passado, um pugilo <strong>de</strong><br />

homens que pensam com serieda<strong>de</strong> e, sem lisonja, os que melhor<br />

manejam a língua, no Brasil, na prosa ou no verso, como romancistas,<br />

historiadores, ensaístas, críticos, cronistas, filólogos, poetas, jornalistas,<br />

magistrados, juristas, homens <strong>de</strong> Estado – plêia<strong>de</strong> eminentíssima,<br />

genuína colmeia do mais puro e luminoso humanismo <strong>de</strong> Minas Gerais.<br />

Como po<strong>de</strong>ria o insípido e <strong>de</strong>sgracioso rabiscador <strong>de</strong> bagatelas literárias<br />

preten<strong>de</strong>r transpor este limiar? Para meu ingresso aqui só encontro dois<br />

motivos: vossa generosida<strong>de</strong> sem par e a velha aspiração, que não<br />

quisestes <strong>de</strong>sapontar, no incansável trabalhador das letras, sem brilho,<br />

sem galas, sem louçanias verbais.<br />

Vós sempre po<strong>de</strong>is mais do que supomos, Senhores Acadêmicos. A<br />

tradição das <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>s é acolher, por esta ou aquela razão, aqueles que<br />

lhes são afeiçoados. Lembro-me neste instante – perdoai-me a<br />

comparação, que se não aproxima do paralelo – do celebre episódio <strong>de</strong><br />

De Lesseps, na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Francesa. As rodas sociais e certa porção da<br />

imprensa parisiense se opuseram ao ingresso na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> do engenheiro<br />

que rasgou o adusto solo africano, para ligar o Mediterrâneo ao Mar<br />

Vermelho, qual novo Moisés, fazendo jorrar as águas, canalizando a<br />

riqueza dos Continentes. Renan ao recebê-lo, no portal da imortalida<strong>de</strong><br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 185<br />

com aquela beleza helênica que ainda hoje estua nos seus períodos, <strong>de</strong>ulhe<br />

a absolvição e a resposta aos opositores, nesta apóstrofe:<br />

– Perguntaram-lhe pelas obras. Ele fez mais: porque se <strong>de</strong>dicou a<br />

corrigir a própria obra <strong>de</strong> Deus. Não há irreverência na <strong>de</strong>fesa, mas uma<br />

enunciação apodítica, pois o nosso Criador, para gran<strong>de</strong>za do próprio<br />

homem, costuma <strong>de</strong>ixar certos trechos por concluir, a fim <strong>de</strong> propiciarnos<br />

oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sermos criatura feita à Sua imagem e semelhança.<br />

O <strong>de</strong>safio constante da ciência e uma resposta às imensas ocasiões que<br />

Deus nos <strong>de</strong>stinou.<br />

UM JORNALISTA A MAIS<br />

Quisestes no vosso convívio mais um jornalista, mais um homem<br />

que escreve atabalhoadamente, procurando veicular, com a possível<br />

pressa e exatidão, o fato ainda palpitante. Com efeito, entre as ativida<strong>de</strong>s<br />

intelectuais, a que exerço com mais amor, por estar mais próxima às<br />

minhas inclinações, é o jornalismo. Dele vivi e nele aprendi o oficio <strong>de</strong><br />

cidadão. Estão se completando exatamente trinta e dois anos que vi meu<br />

primeiro trabalho impresso. E daquela data longínqua, <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1927<br />

até hoje, é sempre com emoção equivalente que lanço no papel e vejo<br />

correr mundo aquilo que compus, o mais das vezes no atropelo, não da<br />

inspiração, mas das vicissitu<strong>de</strong>s, ainda assim com carinho com as – com<br />

as veras do coração, como se diz. Um suelto, um editorial, uma noticia,<br />

uma reportagem, um artigo, tudo o que consigo elaborar, jamais o fiz <strong>de</strong><br />

maneira lúdica, mas compenetrado da importância da tarefa. Isto não<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma atitu<strong>de</strong> ingênua, sem duvida, mas respon<strong>de</strong> a uma<br />

convicção que me não abandona e constitui uma das componentes <strong>de</strong><br />

minha formação. Um <strong>de</strong> meus maiores contentamentos na vida foi<br />

quando, no Rio, um passageiro <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>, ao lado do estreante, lá por<br />

1938, lendo um suelto <strong>de</strong> sua autoria sobre o conflito <strong>de</strong> Letícia ou a paz<br />

do Chaco, exclamou: – “Eis aqui uma verda<strong>de</strong>!” O “ilustre passageiro”<br />

dos anúncios dos bon<strong>de</strong>s cariocas me ensejou uma <strong>de</strong>ssas alegrias que<br />

não há dinheiro que compre. Foi uma efusão espontânea, condicionando<br />

vonta<strong>de</strong> irreprimível <strong>de</strong> manifestar a um <strong>de</strong>sconhecido o que se lhe<br />

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186 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

afigurava ser a expressão da verda<strong>de</strong>. Tal gesto me pagou muitos<br />

dissabores, alentando o jovem periodista e reanima, até hoje, o velho<br />

confra<strong>de</strong> vosso.<br />

Cabe-me, ao ensejo, tecer louvores à nossa penosa profissão. A<br />

pecha <strong>de</strong> frivolida<strong>de</strong>, atirada à face do jornalista, não é senão uma das<br />

muitas injustiças que adquirem foros <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>. O seu enciclopedismo,<br />

sim, e que se faz necessário para o <strong>de</strong>sempenho cabal. Vejamos os<br />

gran<strong>de</strong>s exemplares <strong>de</strong> nossas li<strong>de</strong>s: é um Ramalho Ortigão, um Émile<br />

Girardin, um Assis Chateaubriand, um Macedo Soares, ou um Paul-Louis<br />

Courier, insuperável guia <strong>de</strong> todos nós.<br />

Mestre Affonso Penna Junior, em formosa oração nesta Casa,<br />

lastimava que se per<strong>de</strong>ssem, pela multiplicida<strong>de</strong> da reprodução<br />

tipográfica, tantas jóias <strong>de</strong> fino lavor literário, esbanjadas diariamente nas<br />

colunas dos jornais, que, lidos, vão, invariavelmente, à cesta. Não é,<br />

positivamente, meu caso.<br />

Guardo, porem, um valioso ensinamento <strong>de</strong> Julien Benda, ao dizer<br />

que o jornalismo, conscienciosamente exercido, não como simples<br />

profissão, mas como sacerdócio, é uma excelente pratica <strong>de</strong> filosofia. O<br />

dialogo permanentemente travado entre nossa consciência e a do próximo<br />

ten<strong>de</strong> a transformar-se numa obra <strong>de</strong> arte. E eis aí, por exemplo, o labor<br />

<strong>de</strong> um Froissart, <strong>de</strong> um Fernão Lopes, <strong>de</strong> um Voltaire e do nosso Eucli<strong>de</strong>s da<br />

Cunha, fazendo o maior livro brasileiro <strong>de</strong> suas correspondências como<br />

repórter na frente <strong>de</strong> operações.<br />

Consciente <strong>de</strong> que a letra <strong>de</strong> fôrma é um elemento civilizador, nela<br />

venho empregando <strong>de</strong>votadamente esta existência que Deus me <strong>de</strong>u.<br />

Ainda que o não saiba ou não queira, todo jornalista e, malgré lui, um<br />

professor. Destino falhado o meu, compenso-o através <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong><br />

similar. Costumo dizer que preciso sempre <strong>de</strong> uma chaminé para soltar<br />

minha fumaça cívica.<br />

Após oferecer meu concurso, como profissional da imprensa, a<br />

quase uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> diários e periódicos, em vinte anos <strong>de</strong> jornalismo,<br />

resolvi montar banca própria. A fim <strong>de</strong> exalar a fumaça particular<br />

inventei, há seis anos, um periódico sintético e aquela satisfação do<br />

jovem se renova diariamente, quando, das bibocas <strong>de</strong>ste nosso imenso e<br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 187<br />

<strong>de</strong>svalido país, me chega às mãos uma carta com referência estimulante a<br />

este ou àquele tópico.<br />

O amor à Pátria e o interesse pelo humano apelam para diversas<br />

formas <strong>de</strong> manifestação. Eles se afirmam mo<strong>de</strong>stamente, pelo cumprimento<br />

dos <strong>de</strong>veres quotidianos, pela <strong>de</strong>voção ininterrupta à causa do povo, pela<br />

filantropia – forma laica da carida<strong>de</strong> – e vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o anônimo contribuinte<br />

que resgata seus impostos até aos paroxismos <strong>de</strong> um Francisco <strong>de</strong> Assis,<br />

<strong>de</strong> um Kosciusko ou <strong>de</strong> uma Joana d’Arc. Quem sente palpitar em si essa<br />

pequena centelha, que po<strong>de</strong> incendiar nações ou construir pacíficas e<br />

po<strong>de</strong>rosas socieda<strong>de</strong>s, avalia bem o sentimento <strong>de</strong> inquietação, <strong>de</strong><br />

angústia, <strong>de</strong> frustração, <strong>de</strong> inutilida<strong>de</strong>, que oprime os entes picados pela<br />

“tzé-tzé” do civismo e não encontram meios, pela pequenez do ambiente,<br />

pela solércia e indiferentismo dos círculos po<strong>de</strong>rosos <strong>de</strong> opinião ou até –<br />

como no meu caso particular, por ausência <strong>de</strong> certos requisitos<br />

personalíssimos – ao negarem-se-lhes condições <strong>de</strong> intervir no governo<br />

da cida<strong>de</strong>. Mas não se represa a água por muito tempo. Mesmo os diques<br />

<strong>de</strong> cimento e ferro que o cálculo matemático constrói <strong>de</strong>ixam sempre os<br />

dispositivos da canalização. O excesso escoa por esse conduto. O<br />

civismo é uma energia sobressalente. Fechem-se as comportas e ele se<br />

extravasa por cima ou por baixo da represa. E o fio d’água invisível po<strong>de</strong><br />

transformar-se em caudal.<br />

Preferi, em função <strong>de</strong> meu temperamento e consultando as<br />

tendências da época, difundir a critica aos costumes através <strong>de</strong> um microjornal.<br />

Só assim po<strong>de</strong>ria manter minha liberda<strong>de</strong> relativa, sem prendê-la<br />

junto a compromissos, por vezes onerosos e vexatórios, e sem recorrer<br />

aos excessos que não são <strong>de</strong> meu feitio moral e intelectual. A propósito<br />

do medíocre, costumo citar sempre aquela máxima <strong>de</strong> Vauvenargues: –<br />

“A perfeição <strong>de</strong> um relógio não consiste em andar <strong>de</strong>pressa, mas em<br />

regular com precisão”. Escolhi, assim, uma forma medíocre – po<strong>de</strong>m<br />

asseverar – mas penosa, <strong>de</strong> pôr em pratica meu indomável sentimento<br />

cívico. Suponho não ser imodéstia irrogar-me tal atributo, numa época<br />

em que a maioria o consi<strong>de</strong>ra qualida<strong>de</strong> negativa, imprópria àqueles que<br />

querem caminhar com certa urgência. Desvaneço-me, porém, <strong>de</strong><br />

confessar, neste momento gratíssimo <strong>de</strong> minha vida, que me sinto<br />

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recompensado dos duros labores empreendidos mensalmente. Os<br />

<strong>de</strong>poimentos mais lisonjeiros <strong>de</strong> todo o país me chegam constantemente,<br />

oriundos <strong>de</strong> todas as camadas populares atingidas pelo meu pequeno<br />

periódico. São cartas que traduzem, no seu conteúdo <strong>de</strong>senvolvido, o que<br />

<strong>de</strong>ixo apenas enunciado no laconismo <strong>de</strong> uma nota rápida. Limitado por<br />

dois asteriscos, que no meu domínio valem por colunas, vibro golpes sem<br />

<strong>de</strong>ixar cicatrizes, pois não penetro além da epi<strong>de</strong>rme coriácea dos<br />

sicofantas, dos fariseus, dos ardilosos, dos embusteiros, que são a fauna<br />

uma vez em circulação as linhas microscópicas, brandidas mais como<br />

lanças garridas <strong>de</strong> um lansquenete do século XV, do que como morteiros<br />

88 <strong>de</strong> certos panfletários da atualida<strong>de</strong>, vou colhendo as missivas dos que<br />

se comprazem mais em ler nas entrelinhas, e os espíritos sibilinos são<br />

mais abundantes do que se julga...<br />

É evi<strong>de</strong>nte sinal <strong>de</strong> que todos estão atentos, estão ávidos <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong>s, ainda que elas sejam apenas sugeridas, como as que balizo, aos<br />

feixes, no curto espaço <strong>de</strong> <strong>de</strong>z centímetros <strong>de</strong> página. Surpreendo-me<br />

com as manifestações <strong>de</strong> aplausos provenientes <strong>de</strong> setores jamais<br />

suspeitados por mim anteriormente, e só isso me recompensa e testifica,<br />

que não é vão o i<strong>de</strong>alismo posto na empreitada que espontaneamente<br />

tomei.<br />

As minhas preocupações restantes consi<strong>de</strong>ro-as episódicas. O<br />

próprio <strong>de</strong>votamento às letras puras e à Sociologia – capítulos em que<br />

jamais atingiria qualquer notorieda<strong>de</strong> – eu o encaro como instrumento<br />

para me a<strong>de</strong>strar na comunicação com o povo e melhor servi-lo.<br />

Sou, portanto, o menos indicado para ocupar esta poltrona e falar<br />

dos criadores por excelência, dos <strong>de</strong>miurgos, dos inventores <strong>de</strong> mundos<br />

imaginários.<br />

A CÁTEDRA DOS POETAS<br />

Venho suce<strong>de</strong>r a um artista, homem <strong>de</strong> outra tempera, burilador <strong>de</strong><br />

frases, extrator <strong>de</strong> quintessências, para exprimir também sua emoção em<br />

face do espetáculo do mundo. Ainda bem que o poeta e o jornalista<br />

andam sempre juntos. Um comunica os segredos da alma por virtualida<strong>de</strong>s<br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 189<br />

misteriosas, somente accessíveis aos iniciados – aquela “imensa minoria”<br />

<strong>de</strong> que nos falou Juan Ramón Jiménez. O outro, através do “sermo<br />

pe<strong>de</strong>stris”, a prosa vulgar, informa os <strong>de</strong>mais dos segredos da vida. Alma<br />

e vida convergem, confun<strong>de</strong>m e completam nas páginas <strong>de</strong> um diário e<br />

nas estrofes <strong>de</strong> um poeta. Para vos dar uma rápida i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>ssa irmanda<strong>de</strong>,<br />

convido-vos a reler o Desaparecimento <strong>de</strong> Luisa Porto, do nosso Carlos<br />

Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>:<br />

Pe<strong>de</strong>-se a quem souber<br />

do para<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Luisa Porto<br />

avise sua residência<br />

à rua Santos Óleos, 48.<br />

Previna urgente<br />

Solitária mãe enferma<br />

entrevada há longos anos<br />

erma <strong>de</strong> seus cuidados, etc.<br />

Ou então o poema “Tragédia Brasileira”, <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira:<br />

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos<br />

De ida<strong>de</strong>, conheceu Maria Elvira na Lapa, etc.<br />

Quanta emoção, quanto drama, quanto pathos nestas notícias <strong>de</strong><br />

jornal que o poeta transubstanciou em palpitação e anelo!<br />

Honório Armond, a quem sucedo, foi dos primeiros <strong>de</strong>ssa grei e<br />

nela ocupou lugar principal, sendo um “príncipe” em seu sólio.<br />

Quebrastes a tradição elegendo-me para esta ca<strong>de</strong>ira 38, que é<br />

<strong>de</strong>dicada aos poetas. Seu patronato pertence a Beatriz Francisca <strong>de</strong> Assis<br />

Brandão, próxima parente <strong>de</strong> Marília, <strong>de</strong> quem cantou a morte em sentida<br />

nênia:<br />

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Foste linda, Marília, foste amável,<br />

Possuíste mil dotes agradáveis;<br />

Mas o tempo teria mergulhado<br />

Nos abismos do eterno esquecimento<br />

Todos esses encantos, se os suspiros<br />

De um vate apaixonado, mo<strong>de</strong>lados<br />

Ao patético som da acor<strong>de</strong> lira<br />

Não tivessem teu nome eternizado.<br />

Os poetas são, por natureza, os eternizadores dos momentos. O<br />

tempo passa, é irreversível no seu trânsito, mas os poetas existem para<br />

fixá-lo. A própria origem da poesia nos diz que ela surgiu para eternizar o<br />

instante fugaz. É Giambattista Vico, na sua rica e famosa Scienza Nuova<br />

quem nos fala da poesia como a primeira metafísica da humanida<strong>de</strong> em<br />

sua forma lógica e expressional. E Hol<strong>de</strong>rlin, o poeta alemão do século<br />

XIX, em frase lapidar, repetiu-o com muito mais força: – “... o que<br />

permanece, os poetas o fundam, pois poesia é a fundação do ser pela<br />

palavra e na palavra”.<br />

É precisamente este pensamento que vemos traduzido nos versos <strong>de</strong><br />

Beatriz Brandão.<br />

Os aedos distantes e os bardos <strong>de</strong> outrora transmitiam os<br />

acontecimentos <strong>de</strong> geração para geração. Foi graças a Dirceu – o imortal<br />

Tomás Antônio Gonzaga – que hoje Marília existe para nós.<br />

Cultora <strong>de</strong> Metastásio, Beatriz Brandão faz sua poesia obe<strong>de</strong>cer aos<br />

rigores do metro clássico, mas não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> apresentar cintilações sempre<br />

dignas <strong>de</strong> um estro bem dotado. Muitas <strong>de</strong> suas composições continuam,<br />

suportando as exigências da mais mo<strong>de</strong>rna análise poética.<br />

UM BILAQUIANO: PAULO BRANDÃO<br />

O primeiro ocupante <strong>de</strong>sta ca<strong>de</strong>ira foi o bilaquiano Paulo Brandão.<br />

E quem, no comércio das musas, não o era nas primeira e segunda<br />

décadas do século? Quem ousava divergir daquela amável ditadura?<br />

Tudo, no território poético, teria forçosamente que passar pelo meridiano<br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 191<br />

<strong>de</strong> Bilac, o Papa da literatura. Era uma época diferente, não sei se mais<br />

feliz que a nossa, em que os homens <strong>de</strong> inteligência e sensibilida<strong>de</strong><br />

gozavam <strong>de</strong> um prestígio singular. Basta folhearmos um só dos cronistas<br />

daquele tempo, o admirável João do Rio, para sentirmos a magistratura<br />

incontrastável do príncipe parnasiano. Abrindo as entrevistas <strong>de</strong> seu O<br />

Momento Literário, João do Rio inicia com Bilac, e nestes termos; –<br />

“Bilac chegou à perfeição – é sagrado. Não há quem o não admire, não<br />

há quem o não louve. As fadas, que são quase uma verda<strong>de</strong>, fizeram <strong>de</strong><br />

sua existência uma sinfonia <strong>de</strong>liciosa, e como o seu talento não tem<br />

<strong>de</strong>sfalecimentos e a sua ativida<strong>de</strong> é sempre fecunda, a admiração se<br />

perpetua. É o poeta da cida<strong>de</strong> como Catulo o era <strong>de</strong> Roma e como<br />

Apuleio o era <strong>de</strong> Cartago. Todos o conhecem e todos o respeitam. Aon<strong>de</strong><br />

vá, o louvor acompanha-o. A cida<strong>de</strong> ama-o. Nenhum poeta contemporâneo<br />

teve o <strong>de</strong>stino luminoso <strong>de</strong> empolgar exclusivamente! Ele é o pontífice<br />

dos artistas e dos que o não são.”<br />

Qual <strong>de</strong> nós refugiria a este magistério avassalador?<br />

Seu segundo livro, Alma Antiga, o mais trabalhado <strong>de</strong>les, Paulo<br />

Brandão <strong>de</strong>dicou-o a memória do “mestre da forma”, aquele que queria o<br />

verso “saído da oficina sem um <strong>de</strong>feito”. Sua inspiração, haurida nos<br />

parnasianos, harmoniza-se com o <strong>de</strong>sprezo pelo “vulgo municipal e<br />

espesso”, <strong>de</strong> que nos falou um dos epígonos <strong>de</strong> seu grêmio.<br />

Homem <strong>de</strong> cultura clássica, <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> humanistas, sua<br />

poesia reflete as predileções <strong>de</strong> seu espírito.<br />

Em Poentes <strong>de</strong> Inverno, o livro <strong>de</strong> estréia, <strong>de</strong> 1905, <strong>de</strong>param-se-nos<br />

traduções e paráfrases <strong>de</strong> Heredia, Bau<strong>de</strong>laire, Heine, Lecomte <strong>de</strong> Lisle,<br />

Byron, Uhland e Théophile Gautier, em alguns alexandrinos bem<br />

medidos e <strong>de</strong> jucunda inspiração.<br />

Vamos, porém, encontrar o poeta já feito, <strong>de</strong>purado pelo tempo <strong>de</strong><br />

um certo verbalismo inconsistente, do vocábulo colocado no contexto do<br />

poema como um adorno ou simples recurso para complementação da<br />

estrofe, em Alma Antiga, <strong>de</strong> 1922, livro <strong>de</strong> técnica <strong>de</strong>claradamente<br />

parnasiana, comunicando-nos a idéia <strong>de</strong> um medalhão bem cunhado, com<br />

caprichosos recortes bau<strong>de</strong>lairianos, como no soneto “Inverno”:<br />

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Inverno! Tédio imenso e mórbidos bocejos!<br />

Denso manto brumal sob o céu baixo e triste!...<br />

O coração não pulsa e, indiferente, assiste<br />

À Síncope da luz, do amor e dos <strong>de</strong>sejos...<br />

A leitura <strong>de</strong> um autor aumenta ou diminui sua dimensão, quando a<br />

fazemos sob o imperativo <strong>de</strong>ste ou daquele sentimento.<br />

Ninguém sabe, felizmente, o que guarda cada qual no segredo <strong>de</strong><br />

seu silencio. Se todos soubéssemos o segredo <strong>de</strong> todos o mundo viveria<br />

em guerra permanente. O nosso semelhante é como um cofre fechado<br />

cuja chave se per<strong>de</strong>u. Estamos uns perto dos outros, mas somos<br />

compartimentos estanques. Não existe uma alma que conheça os arcanos<br />

<strong>de</strong> outra. Vivemos como esfinges. E só mostramos uns aos outros a face<br />

superficial da personalida<strong>de</strong>. Ainda as almas chamadas irmãs guardam<br />

esse sigilo in<strong>de</strong>vassável, esse mundo íntimo, muralha intransponível,<br />

santuário que olhos profanos jamais penetrarão. Somos entes solitários<br />

por necessida<strong>de</strong>. E as criaturas aparentemente mais fáceis, são as mais<br />

complexas, as mais misteriosas nas aspirações, nos anseios, nos<br />

propósitos. Tais reflexões, cabíveis a todos nós, vieram-me à mente,<br />

quando lia alguns poemas <strong>de</strong> Paulo Brandão e os comparava a trechos <strong>de</strong><br />

sua vida, contados por aqueles que o conheceram. Foi, em certa época,<br />

um comerciante <strong>de</strong> livros e sempre um inveterado <strong>de</strong>vorador <strong>de</strong>les. O<br />

objeto <strong>de</strong> seu comércio também foi o objeto <strong>de</strong> sua veneração. Atrás do<br />

balcão <strong>de</strong> sua casa comercial, quanto sonhou e, muitas vezes, entre um<br />

freguês e outro, limava um alexandrino, buscava uma rima custosa,<br />

excogitava uma palavra esquiva com tônica apropriada, capaz <strong>de</strong> lhe<br />

permitir a métrica, ou tergiversava entre um ou outro vocábulo, para o<br />

fecho <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> um soneto em gestação. A peça com que abre seu Alma<br />

Antiga, uma espécie <strong>de</strong> artigo <strong>de</strong> fé ou confissão <strong>de</strong> artista, nos transmite<br />

a mensagem integral <strong>de</strong> sua vida, uma autêntica biografia sintética do<br />

poeta:<br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 193<br />

Marinheiros!... Meu sonho e igual ao vosso!... Sonho<br />

E busco como vos buscais nessas viagens,<br />

O encantado país das rútilas miragens.<br />

....................................................................................<br />

Vou palmilhando o espaço azul e constelado:<br />

Mas nunca, <strong>de</strong>ntre a névoa, ao meu olhar cansado<br />

Surge a terra bendita e fúlgida do Sonho!...<br />

UMA VI<strong>DA</strong> DE POESIA: HONÓRIO ARMOND<br />

Ao contrário da poesia <strong>de</strong> Armond, seu sucessor aqui, a <strong>de</strong> Paulo<br />

Brandão é um ininterrupto dia solar. Em quase todas as passagens <strong>de</strong> sua<br />

poesia, Armond só nos mostrou a vida noturna do espírito. A principio,<br />

influenciado pelo cientificismo pessimista <strong>de</strong> Augusto dos Anjos, com<br />

seu repertório verbal incan<strong>de</strong>scente, e on<strong>de</strong>, <strong>de</strong> raro em raro, <strong>de</strong>sponta<br />

alguma conotação poética. Depois, libertou-se através da influência <strong>de</strong><br />

simbolistas e parnasianos franceses e brasileiros, e da boa leitura <strong>de</strong><br />

prosadores.<br />

Esboçarei aqui a biografia <strong>de</strong> Honório Armond, à maneira <strong>de</strong><br />

Plutarco, isto é, olhando-o na alma. Todo homem possui duas vidas. A<br />

vida exterior – a vida quotidiana, e a vida interior – a vida do espírito.<br />

Como habitante da cida<strong>de</strong> terrena, foi Armond sobretudo professor.<br />

Ganhava a sua vida no magistério e o exerceu com dignida<strong>de</strong>,<br />

competência e alto senso do <strong>de</strong>ver, perambulando por esta Minas:<br />

Varginha, Muzambinho e Barbacena – seu adorado berço natal. Nessas<br />

cida<strong>de</strong>s viveu, trabalhou e amou. Foi orador <strong>de</strong> bons recursos e sempre<br />

recrutado nos monentos festivos ou dolorosos, quando era necessário um<br />

homem capaz <strong>de</strong> exprimir o contentamento ou as mágoas da coletivida<strong>de</strong>.<br />

Jornalista, enchia os semanários do interior <strong>de</strong> colaborações em prosa ou<br />

verso. Viveu sessenta e sete anos. Melhor direi: sonhou gran<strong>de</strong> parte<br />

<strong>de</strong>les, pois Honório foi, estruturalmente, um poeta e a verda<strong>de</strong>ira<br />

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194 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

atmosfera do poeta é o sonho. Ainda que se <strong>de</strong>dique a ativida<strong>de</strong>s<br />

profanas, o poeta utiliza-as como ingredientes <strong>de</strong> sua arte. Sua missão, o<br />

dom gratuito que recebeu ao nascer, não po<strong>de</strong> ser malbaratado. Os que<br />

não sentem o inefável, os que não receberam essa mensagem, raramente<br />

po<strong>de</strong>m compreen<strong>de</strong>r os eleitos que se não satisfazem somente <strong>de</strong> pão,<br />

parafraseando o Sermão da Montanha. Seria urgente penetrarmos nas<br />

almas eleitas, naquelas para quem “o mundo tal como existe não basta”,<br />

tal como nos ensinou o insigne Francisco Campos, a fim <strong>de</strong> compartilharmos<br />

<strong>de</strong> seu universo prodigioso.<br />

Contentam-se com migalhas e não se satisfazem com as mais<br />

esplendorosas dádivas. Vivem na pobreza, mas habitam a mais<br />

<strong>de</strong>slumbrante e faustosa corte: o reino da fantasia.<br />

Não possuem ceitil, mas vertem cornucópias <strong>de</strong> benesses. São<br />

pródigos <strong>de</strong> bens e bonda<strong>de</strong> e seus tesouros infungíveis, inacessíveis ao<br />

<strong>de</strong>sgaste, estão sempre a serviço <strong>de</strong> todos. Por mais obscuros sejam, os<br />

poetas têm sempre alguma oferenda. E isto espanta a maioria, causa<br />

escândalo ou escarnecimento, pois eles não procuram amealhar o<br />

perecível: seu <strong>de</strong>stino é gastar, oferecer, enriquecer o próximo para sua<br />

própria alegria. Ainda que o mundo <strong>de</strong> nossos dias, pelas suas<br />

contingências, enriqueça o poeta, sua alma é sempre mais rica ainda. Crê<br />

na perenida<strong>de</strong>. Sendo o mais inquieto dos seres quanto à criação e busca<br />

<strong>de</strong> harmonias novas e novos modos <strong>de</strong> sentir e apreen<strong>de</strong>r a riqueza<br />

cósmica é, quanto ao resto, o ser tranquilo por excelência. Enquanto nós<br />

outros pensamos sempre em amealhar, pois acreditamos não estar em<br />

casa própria e cumpre-nos adquirir a nossa, o poeta julga o mundo todo<br />

solar seu e está a vonta<strong>de</strong> em qualquer parte. Sua meta, aquilo que<br />

ambiciona aprisionar, isto é, o momento da inspiração, o sopro divino,<br />

não se adquire como os bens comuns.<br />

Os que não participamos <strong>de</strong>ste dom per<strong>de</strong>mo-nos em cogitações<br />

vãs.<br />

Positivamente, seguem, conscientes ou não, a lição do Cristo<br />

quando fala dos lírios do campo e dos pássaros do céu.<br />

Em crônica recente, Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> <strong>de</strong>finiu muito<br />

melhor Honório Armond nestas palavras: – “... pois esse poeta construiu<br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 195<br />

o seu silencio com a mesma tenacida<strong>de</strong> e perfeição com que outros<br />

constroem a sua notorieda<strong>de</strong>, ia dizer o seu foguete interplanetário.<br />

Honório Armond, que, infelizmente, não cheguei a conhecer em vida, era<br />

um aristocrata no sentido exato do termo. Com uma genealogia repleta <strong>de</strong><br />

gentes brasonadas, a começar por este curioso Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Prados, figura<br />

impressionante <strong>de</strong> cientista, barbacenense <strong>de</strong> prol, antecipando Darwin e<br />

fazendo sensação em Paris com seu Essai sur la vie, agricultor mo<strong>de</strong>rno<br />

já nos idos <strong>de</strong> 80, introduzindo a cultura da vinha em suas terra da<br />

Mantiqueira, fundador do Observatório Astronômico do Rio, Camilo<br />

Ferreira Armond, médico <strong>de</strong> larga clientela, prócer po1ítico do império,<br />

um dos brasileiros mais conspícuos do século XIX.<br />

Por outro lado <strong>de</strong> seus antepassados, é Honório Armond ligado<br />

também a Mariano Procópio, a quem Minas <strong>de</strong>ve trecho inconfundível <strong>de</strong><br />

seu progresso material. E <strong>de</strong>pois disto, ainda sobrinho do Padre Corrêa <strong>de</strong><br />

Almeida, talento dos mais peregrinos <strong>de</strong>stas Gerais.<br />

Sendo ele assim armoriado por todos os lados, o <strong>de</strong>poimento dos<br />

que conheceram Honório nos diz que foi a criatura mais <strong>de</strong>spida <strong>de</strong><br />

presunção e basófia. Para prová-lo bastam a leitura <strong>de</strong> suas obras e o<br />

conhecimento do episódio <strong>de</strong> sua sagração, pelo voto popular, como<br />

Príncipe dos Poetas Mineiros.<br />

ARMOND SAGRA-SE PRÍNCIPE<br />

Morrera na gripe espanhola Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira, o melodioso lírico<br />

e o admirável causeur, que encheu uma época na vida <strong>de</strong>sta Capital e<br />

fora o príncipe dos nossos poetas. Estava, portanto, vago o principado<br />

havia <strong>de</strong>z anos. Um jornal <strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong>, sob a tríplice conspiração dos<br />

jovens redatores Carlos Drummond, Emílio Moura e João Alphonsus,<br />

alvitrou a idéia <strong>de</strong> preencher a Sé vaga, ou melhor, o trono. E Carlos<br />

assim relata: “– O Diário <strong>de</strong> Minas era órgão do PRM, a República era<br />

velha – por aí se po<strong>de</strong> imaginar o que seria a eleição. Não me pejo <strong>de</strong><br />

admitir que terei “orientado” a vonta<strong>de</strong> popular. O príncipe não foi<br />

Augusto <strong>de</strong> Lima, <strong>de</strong>masiado fe<strong>de</strong>ral e consagrado, nem Belmiro Braga,<br />

<strong>de</strong>masiado popular, tampouco foi o nosso querido Abgar, autor <strong>de</strong><br />

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196 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

sonetos camonianos que iludiram até um camonista. Escolhendo Honório<br />

Armond, o eleitorado distinguiu um poeta <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, alheio a qualquer<br />

grupo, mo<strong>de</strong>sto e orgulhoso em seu isolamento. Se houve ligeireza no<br />

processo, não a houve no resultado.”<br />

O que aconteceu é que Honório Armond foi sagrado Príncipe dos<br />

Poetas Mineiros pela maioria esmagadora <strong>de</strong> 12.763 votos, ao passo que<br />

Belmiro Braga, o segundo colocado, obteve 8.810; Abgar, com 6.946, em<br />

terceiro, e Augusto <strong>de</strong> Lima em quinto, com 5.913. E o próprio<br />

Drummond – ó ironia dos fados! – com 227. Entre inúmeros outros, foi<br />

também muito votado o nosso ilustre e querido Martins <strong>de</strong> Oliveira,<br />

homem hábil em vários instrumentos, diligente abelha <strong>de</strong> nossa colmeia.<br />

E o trono era duplo: com príncipe e princesa. Os jornais da época,<br />

agora consultados, nos mostram esta surpresa: como princesa das<br />

poetisas – Julinda Alvim. Quem será? A ilustre Henriqueta Lisboa em<br />

segundo lugar e a gran<strong>de</strong> Cecília Meireles em quarto! Efetivamente, o<br />

plebiscito, <strong>de</strong>cantado pelo jornal que o promoveu, <strong>de</strong>spertou vivo<br />

interesse não só em Minas, mas sensibilizou outros centros intelectuais<br />

como Rio e São Paulo, projetando o nome do poeta barbacenense no<br />

cenário brasileiro. Vários jornais <strong>de</strong> maior circulação e relevo no País<br />

estamparam artigos assinados e notícias <strong>de</strong>senvolvidas sobre o novo<br />

príncipe dos poetas. Só ele não se entusiasmou com o principado e o<br />

mesmo Carlos Drummond, com discreto humorismo, nos informa: – “...<br />

não se abalou <strong>de</strong> sua Barbacena para recolher o título. Nem para recolhêlo<br />

nem para realizar outras expedições lítero-pragmáticas, seja a Belo<br />

Horizonte seja ao Rio e assim converter a láurea abstrata em comodida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

carreira civil; professor <strong>de</strong> francês entre os cravos da serra era, professor<br />

ficou. E quando lhe comunicaram a eleição, agra<strong>de</strong>ceu em temos <strong>de</strong><br />

mineiro cético e <strong>de</strong>sconfiado, assinando-se “Honório Armond, Princeps<br />

Promptorum”...<br />

Apesar <strong>de</strong> jamais haver assumido ostensivamente a “pricipalitas”,<br />

as revistas e os jornais o cumulavam <strong>de</strong> elogios e pespegavam-lhe o<br />

título a<strong>de</strong>rido ao nome. Poemas seus, artigos <strong>de</strong> crítica, notícias,<br />

nada modificou o comportamento <strong>de</strong>sse arredio e <strong>de</strong>scrente cultor do<br />

inefável.<br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 197<br />

Vemo-lo em uma expressiva caricatura <strong>de</strong> Oswaldo, num Para<br />

Todos, semanário dos mais importantes da época, <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1927,<br />

logo apos a eleição consagradora: Honório, assentado em uma pedra, na<br />

beira <strong>de</strong> um rio, com a cana <strong>de</strong> pescar nas mãos, fumando o seu<br />

in<strong>de</strong>fectível cigarro <strong>de</strong> palha, com a basta cabeleira, coroa <strong>de</strong> príncipe no<br />

cocoruto, pássaros cantando ao redor e até pousados na sua “chumbeira”<br />

<strong>de</strong> um cano. Pelo chão, a cesta <strong>de</strong> merendas, foice, facão e peixes<br />

saltitantes. Os entendidos dizem que a caricatura exprime a realida<strong>de</strong>.<br />

Príncipe foi este Honório Armond embora jamais o querendo. Foi<br />

príncipe pelo seu <strong>de</strong>sdém por tudo que não era autêntico; príncipe pelo<br />

seu <strong>de</strong>votamento à poesia; príncipe pelo <strong>de</strong>sprezo ao efêmero. A leitura<br />

da carta que dirigiu a C.D.A. revela tudo isso, revela sobretudo um<br />

caráter e vale a pena relê-la, porque é um documento <strong>de</strong> rara nobreza, tão<br />

difícil em todos os tempos: – “Agra<strong>de</strong>ço-lhe, penhoradíssimo, as suas<br />

gentilezas e tomo a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> lhe enviar, também, a expressão do meu<br />

sincero espanto por esse “Principado” que me coube e com o qual nem<br />

sonhava sequer. Não há na minha vida nada que mereça reparo. Vida<br />

escura e pobre. Tenho publicado Ignotae Deae, livro pedantesco <strong>de</strong><br />

estreante e Perante o Além, livro <strong>de</strong> dúvida e angústia. Tenho, inédito, Os<br />

caminhos da vida e do <strong>de</strong>stino, livro <strong>de</strong> confiança e fé. Escrevi mais duas<br />

pastorais, Era uma vez e Milagre das Rosas que, somadas, não valem um<br />

pataco. De coração, meu bom amigo, acho que esta eleição não<br />

representa a verda<strong>de</strong>. Isto é cabala <strong>de</strong> estudantes meus amigos e alunos, e<br />

bem sabe que o voto para nós nada significa. Entre Augusto <strong>de</strong> Lima,<br />

Abgar Renault e José Oiticica po<strong>de</strong>ria eu figurar como caudatário <strong>de</strong><br />

um <strong>de</strong>les e com isto me honraria. Só lhe posso garantir que esse<br />

principado – que não mereço, sem toleimas <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong> – é <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>sses três rútilos poetas, que admiro e que invejaria se fosse capaz <strong>de</strong><br />

invejar a alguém.”<br />

Ao finalizar sua crônica, tão referta <strong>de</strong> substância poética e<br />

humana, Dummond faz o epítome da vida <strong>de</strong> Armond, nestas palavras:<br />

“– Mesmo assim, o titulo grudou-se-lhe ao nome; ele é que não quis<br />

industrializá-lo em bens e fama. Não tinha a nimia cupiditas principatus,<br />

<strong>de</strong> que fala Cícero.”<br />

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198 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

A observação é exata. Tinha amigos po<strong>de</strong>rosos na política, nos<br />

altos conselhos, todavia jamais quis sair <strong>de</strong> Barbacena, abandonar o<br />

magistério, porque o resto nada significava para ele. O cumprimento do<br />

<strong>de</strong>ver e a arte eram os polos <strong>de</strong> atração <strong>de</strong>ssa vida mo<strong>de</strong>sta e digna <strong>de</strong> ser<br />

imitada, <strong>de</strong> <strong>de</strong>votamento a uma i<strong>de</strong>ia e <strong>de</strong> coerência consigo mesmo. “A<br />

história <strong>de</strong> nossa vida confun<strong>de</strong>-se com a história do nosso ritmo”, disse<br />

o sutil Roberto Alvim Corrêa, e disse maravilhosamente. É uma frase que<br />

serviria <strong>de</strong> epígrafe à existência <strong>de</strong> Honório.<br />

Em uma página <strong>de</strong> alguém, cujo nome não aparece e que lhe foi<br />

<strong>de</strong>dicada após o episódio, vê-se retratada a fisionomia moral <strong>de</strong> Armond:<br />

“– Tu que guardas nalma a crença azul, a fé robusta que a tudo resiste,<br />

que <strong>de</strong> tudo triunfa; tu que passas pela vida qual o doce pastor <strong>de</strong> Guerra<br />

Junqueiro, sem uma revolta, sem um queixume, tendo para todas as dores<br />

uma palavra <strong>de</strong> conforto, para todas as fraquezas um gesto <strong>de</strong> perdão; tu,<br />

meu terno amigo, cuja alma toda suavida<strong>de</strong> e doçura faz lembrar o místico<br />

perfume do incenso, a alvura imaculada do arminho; alma feita <strong>de</strong> luz e <strong>de</strong><br />

harmonias, irás com certeza estremecer <strong>de</strong> horror ante o que te vou dizer.”<br />

Conquistando o pricipado em fevereiro <strong>de</strong> 1927, Honório não<br />

aceita o título e o transfere a José Oiticica, em carta ao vespertino A<br />

Noite, do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Esse gesto provoca em Oiticica um artigo<br />

publicado no Correio da Manhã, <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1927, em forma <strong>de</strong><br />

carta a Honório, que é uma peça <strong>de</strong> picante humorismo. Vê-se pelo<br />

documento que se tratava <strong>de</strong> dois amigos muito chegados e as cartas<br />

constituíram dois floretes <strong>de</strong> graça, <strong>de</strong> ironia, e também, por que não<br />

dizer? – <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong>.<br />

INGRESSO NA A<strong>CADEMIA</strong><br />

Logo no ano seguinte, é eleito acadêmico, na vaga <strong>de</strong> Paulo<br />

Brandão. Já não é um poeta simplesmente regional. Sua fama reboa pelo<br />

País. Seus trabalhos originais e suas traduções <strong>de</strong> poetas estrangeiros<br />

chamam a atenção dos <strong>de</strong>dicados à poesia. Ele já um nome. O nosso caro<br />

Abgar Renault, em substancioso ensaio <strong>de</strong> três colunas, publicado em O<br />

Jornal <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1927, fizera uma exaustiva e penetrante análise<br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 199<br />

da obra <strong>de</strong> Armond e, com cintilações <strong>de</strong> seu reconhecido talento,<br />

<strong>de</strong>duziu certeiras antecipações. Apesar da juventu<strong>de</strong> do autor – e há<br />

espíritos que são maduros <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o alvorecer – seu longo ensaio está pleno<br />

<strong>de</strong> indicações proveitosas, redigido num estilo muito próximo do atual.<br />

Com quase vinte anos <strong>de</strong> distância <strong>de</strong> Hiroshima, fala Abgar até <strong>de</strong><br />

energia atômica, a propósito <strong>de</strong> certas passagens da obra <strong>de</strong> Armond.<br />

Ao ingressar nesta ilustre Companhia, Honório Armond já <strong>de</strong>tém<br />

uma bagagem literária festejada pela crítica mais vigilante do país. Sobre<br />

sua poesia <strong>de</strong>puseram, entre outros, Humberto <strong>de</strong> Campos, Plínio<br />

Salgado, então crítico militante, e Tristão <strong>de</strong> Ataí<strong>de</strong>. Ousamos o último<br />

<strong>de</strong>les: “– Nesse poeta em plena mocida<strong>de</strong>, nesse poeta que apenas se<br />

revela, para nos trazer, quem sabe, um pouco do que Álvares <strong>de</strong> Azevedo<br />

aos vinte anos levou para o túmulo – parece não haver simplesmente<br />

talento. Nele se pressentem centelhas <strong>de</strong>sse gênio que foi a gran<strong>de</strong>za e a<br />

maldição <strong>de</strong> Leopardi, <strong>de</strong> Poe, <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, <strong>de</strong> Antero.”<br />

IGNOTAE DEAE, EXPERIÊNCIA PROMISSORA<br />

Em Armond, o instrumento verbal <strong>de</strong> transmissibilida<strong>de</strong> emocional,<br />

em seu primeiro livro, é inteiramente subsidiário do vocabulário <strong>de</strong><br />

Augusto dos Anjos. Os vocábulos “morte”, “lama”, “podridão”,<br />

“neurastenia” e expressões como “hereditarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça” “humana<br />

estupi<strong>de</strong>z”, etc., são Leitmotiv revelando o lado escatológico da<br />

individualida<strong>de</strong> humana. São, evi<strong>de</strong>ntemente, hauridos naquele poeta do<br />

fado triste, do negrume.<br />

É claro que apesar do ambiente funéreo – o que nada tem a ver com<br />

a qualida<strong>de</strong> da poesia – notamos em muitas composições <strong>de</strong>sse livro o<br />

sopro lírico <strong>de</strong> primeira gran<strong>de</strong>za, e o técnico conhecedor das palavras –<br />

traço do parnasiano – profetizando o futuro vate:<br />

Velho relógio, amigo <strong>de</strong> outras eras,<br />

esquisito, bizarro, original,<br />

no teu ranger isócrono, que esperas?<br />

O dia <strong>de</strong> hoje ao <strong>de</strong> amanhã é igual!<br />

Revista Volume LI.p65 199<br />

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200 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

De fato, a i<strong>de</strong>ia é velha. No entanto, a disposição das palavras, em<br />

todo o quarteto, <strong>de</strong>monstra o cuidadoso compositor que se não <strong>de</strong>ixa<br />

arrastar só pelo estro. “Velho relógio, amigo <strong>de</strong> outras eras, esquisito,<br />

bizarro, original”: estes dois versos valorizam sobremaneira o soneto e<br />

nos dispõem à leitura pelo tom ameno e intimista da exposição. Dispondo<br />

os três adjetivos em sistematizada gradação: “esquisito, bizarro,<br />

original”, os três com a mesma forma expressional, mas encarreirados<br />

num verso e vindo após ao “Velho relógio, amigo <strong>de</strong> outras eras”,<br />

assumem um volume tonal e uma dimensão lírica susceptíveis <strong>de</strong> nos<br />

emocionar, para nos transportar a uma ampla sala, batida pelo sol <strong>de</strong><br />

domingo, com gran<strong>de</strong>s janelas rasgadas sobre uma praça ou rua e a nossa<br />

infância fluindo no tempo sob o comando do tic-tac <strong>de</strong> um relógio<br />

pendurado na pare<strong>de</strong> ou carrilhão preguiçoso, encostado a um dos cantos,<br />

movendo a pendula como uma almanjarra.<br />

Po<strong>de</strong>r-me-eis dizer que isto não é poesia, quer dizer, poesia pura. E<br />

por que não? Poesia me transporta, retira-me do mundo tal como é, para<br />

me atirar num mundo como eu queria que fosse. Informam a linguagem<br />

poética os valores afetivos e irracionais. Na poesia <strong>de</strong> Armond<br />

sobrelevam os valores afetivos, isto é, tropos que nos arrastam<br />

implacavelmente e dispõem nossa estesia a espreitar os horizontes<br />

escampos do sentimento. Seria difícil a qualquer parnasiano abusar dos<br />

valores irracionais, peregrinos da forma que eram. Forma quer dizer<br />

formalismo, aca<strong>de</strong>mismo. A tal “licença poética” seria o único pecado<br />

daqueles evos. O que se po<strong>de</strong> admitir talvez será a composição<br />

inconsciente – mecanismo inteiramente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> outros centos <strong>de</strong><br />

volição, até hoje <strong>de</strong>sconhecidos. A isto chamaríamos inspiração, estro,<br />

sopro poético, e este foi sempre o clima da genuína criação. A criação da<br />

obra <strong>de</strong> arte – é um truísmo afirmar – é absolutamente inconsciente.<br />

Ainda que o camartelo trabalhe posteriormente, para <strong>de</strong>sbatar e polir, o<br />

fiat original não sabemos como surgiu. É um processo inteiramente filho<br />

do subconsciente e que movem mãos ocultas. Lançados os primeiros<br />

fundamentos, o restante já é trabalho <strong>de</strong> ourives. A poesia <strong>de</strong> Armond<br />

revela-nos nitidamente o que vem da inspiração e o que vem do<br />

artesanato.<br />

Revista Volume LI.p65 200<br />

12/5/2009, 15:29


A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 201<br />

POESIA PURA E ARTESANATO<br />

NA POLÍTICA DE ARMOND<br />

Menen<strong>de</strong>z y Pelayo, que seguiu Aristóteles na sua Poética, filiado<br />

que era à preceptiva da antiguida<strong>de</strong>, estuda a teoria da inconsciência<br />

artística em seu volumoso tratado das I<strong>de</strong>as estéticas en Espanã,<br />

afirmando que po<strong>de</strong>mos reduzir os elementos poéticos à inteligência e<br />

disciplina. A nímesis, que é o conceito capital do aristotelismo, exigia<br />

uma atitu<strong>de</strong> lúcida. Ora, isto para nós já não e poética. Caímos na prosa.<br />

O fenômeno poético terá <strong>de</strong> ser buscado nas mesmas fontes da prece, da<br />

oração. Tudo que transcen<strong>de</strong> o ritmo normal da existência está<br />

entusiasmado, isto é, cheio <strong>de</strong> Deus, na acepção etimológica do vocábulo.<br />

Nosso tempo esté dominado, pois, por esse tipo <strong>de</strong> compreensão poética.<br />

A 24 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1925, Henri Brémond, em conferência na<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Francesa, abriu um <strong>de</strong>bate que se singularizou na intensa<br />

ressonância provocada pelo tema: Poesia pura. Estava iniciada uma nova<br />

forma <strong>de</strong> compreensão do fenômeno poético, quer como exercício verbal,<br />

como artesanato, como inspiração. A conferência inicial <strong>de</strong> Brémond<br />

que, como sabeis, não passa <strong>de</strong> oito páginas <strong>de</strong> livro, é tão célebre como<br />

a teoria <strong>de</strong> Einstein e, por sinal, ambas publicadas inicialmente em<br />

revista. A essência da poesia – ensinou Brémond – é o instinto, a<br />

genialida<strong>de</strong>, o encantamento musical. Um verso, pela magia do som e o<br />

mistério do ritmo, vale por um poema inteiro. Cada tentativa <strong>de</strong><br />

explicação racional, cada intervenção intelectualista, não faz senão turvar<br />

o encanto e <strong>de</strong>struir a emoção. “Impuro é, pois, tudo o que, em um poema<br />

– acrescenta o autor – ocupa ou po<strong>de</strong> ocupar imediatamente nossas<br />

ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> superfície: razão, imaginação, sensibilida<strong>de</strong>; tudo isso que o<br />

poeta parece haver querido exprimir ou exprimiu; tudo que a análise do<br />

gramático ou do filósofo separa <strong>de</strong>sse poema, tudo que uma tradução<br />

conserva. Impura é, em uma palavra, a eloquência – entendida não só<br />

como a arte <strong>de</strong> falar muito para não dizer nada, como, também, a arte <strong>de</strong><br />

falar para dizer alguma coisa. Para ensinar relatar, pintar, produzir<br />

estremecimento ou arrancar lágrimas, basta sobejamente a prosa, que faz<br />

disso seu objeto natural.”<br />

Revista Volume LI.p65 201<br />

12/5/2009, 15:29


202 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Em suma, a poesia é inefável como o momento místico. É um<br />

estado afim da prece. Esta foi a revolução que Brémond sistematizou,<br />

indo buscar os elementos em teoristas prece<strong>de</strong>ntes: Bau<strong>de</strong>laire, Poe,<br />

Mallarmé, Shelley e Valéry.<br />

Estava iniciada assim uma nova compreensão. Começou-se a<br />

valorizar o poema como coisa em si, intocável na sua estrutura verbal,<br />

ainda que nada possa traduzir que se assemelhe a outra disciplina, mas<br />

como poesia pura – categoria à parte na conceituação até ali admitida<br />

pelas regras aristotélicas. O poema nos comunica algo assim como a<br />

oração. Po<strong>de</strong> não significar coisa alguma logicamente, quando<br />

transpostos seus termos para uma proposição comum. E quereis um<br />

exemplo em Armond? Está no soneto “Sítio”:<br />

Vislumbro, além, um lago <strong>de</strong> esmeralda...<br />

e ele foge ante mim! foge aos meus brados!<br />

eu não n’o atingirei! loucura balda!<br />

Que tenho, à cruz, os membros meus pregados!<br />

Nem há nenhum lago <strong>de</strong> esmeralda, nem ele fugiria aos brados <strong>de</strong><br />

alguém, nem homem algum po<strong>de</strong>rá atingi-lo se tiver os membros presos<br />

a uma cruz. Mas, quanta beleza nos comunica a estrofe! “A poesia torna<br />

patente uma atitu<strong>de</strong> do homem ante o mundo através <strong>de</strong> sua essencial<br />

profundida<strong>de</strong>. Isto significa que a poesia “diz” mais do que “enuncia”.<br />

“Não importa o conteúdo que uma poesia nos possa oferecer, nem as<br />

i<strong>de</strong>ias que exponha, nem a i<strong>de</strong>ologia que professe. O que importa é sua<br />

realização verbal.”<br />

A linguagem poética <strong>de</strong>verá ser estudada como se suas expressões<br />

carecessem <strong>de</strong> significação e portanto, <strong>de</strong> dimensão semântica.<br />

Advertem, porém, alguns entendidos no problema que a dimensão<br />

semântica não somente não po<strong>de</strong> ser eliminada da poesia, senão que<br />

constitui sua característica principal. Significa isto que uma expressão<br />

poética, por exemplo:<br />

Revista Volume LI.p65 202<br />

12/5/2009, 15:29


A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 203<br />

Plenilúnio <strong>de</strong> maio em montanhas <strong>de</strong> Minas,<br />

ou aqueles versos da estrofe da “Morte no avião”, <strong>de</strong> Drummond;<br />

Sou vinte na máquina<br />

que suavemente respira,<br />

entre placas estelares e remotos sopros <strong>de</strong> terra, sinto-me<br />

natural a milhares <strong>de</strong> metros <strong>de</strong> altura, nem ave nem mito, etc.<br />

Em vez <strong>de</strong> não dizerem nada, exprimem, ao contrário, uma gama <strong>de</strong><br />

quase incomunicáveis sentimentos. Vejamos, agora, o absurdo transformado<br />

no mais belo repertório semântico, nesta “Canção <strong>de</strong> Muitas Marias”, <strong>de</strong><br />

Ban<strong>de</strong>ira:<br />

Uma, duas, três Marias,<br />

Tira o pé da noite escura.<br />

Se uma Maria é <strong>de</strong>mais,<br />

Duas, três, que não seria?<br />

Uma é Maria da Graça,<br />

Outra é Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>:<br />

Uma tem o pai pau-d’agua,<br />

Outra tem o pai alcai<strong>de</strong>.<br />

A terceira é tão distante<br />

Que só vendo por binóculo.<br />

Essa é Maria das Neves,<br />

Que chora e sofre do fígado<br />

Há mais Marias na terra<br />

Tantas que é um não acabar,<br />

– Mais que as estrelas do céu,<br />

Mais que as folhas na floresta,<br />

Mais que as areias do mar!<br />

Revista Volume LI.p65 203<br />

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204 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Por uma saltei <strong>de</strong> vara,<br />

Por outra estu<strong>de</strong>i tupi,<br />

Mas a melhor das Marias<br />

Foi aquela que perdi.<br />

A poesia <strong>de</strong> Armond, como a <strong>de</strong> todo parnasiano, é linear em sua<br />

compreensão. Discorre sobre um tema, uma idéia central, e a ela se<br />

agregam outras com o compromisso <strong>de</strong> não prejudicar a estrutura do<br />

poema. Seu livro <strong>de</strong> estréia, Ignotae Deae, é composto em obediência a<br />

esse Cânon.<br />

PERANTE O ALÉM E LINGUAGEM POÉTICA<br />

Em Perante o Além e os <strong>de</strong>mais livros, que não chegou a publicar,<br />

e que se conhecem só em original, já modifica <strong>de</strong> modo bastante sensível<br />

não só a temática, que se liberta das influências anteriores, mas rasga<br />

horizontes novos e começa a merecer a atenção da critica conceituada do<br />

pais.<br />

Sobre um viso escarpado <strong>de</strong> montanha<br />

on<strong>de</strong> chega o soluço, a voz estranha<br />

do Oceano arfando a luz crepuscular,<br />

para um viandante exausto... <strong>de</strong>sfalece...<br />

sobe a lua do mar, como uma prece<br />

que, para os céus, erguesse a alma do mar...<br />

Esta é a primeira sextilha do poema Perante o Além com que inicia<br />

o livro. Aqui, a beleza da estrofe sobressai, não mais das lantejoulas da<br />

frase, do verso bem medido, mas se expressa por ingredientes líricos<br />

<strong>de</strong>purados, traduzindo a verda<strong>de</strong>ira inspiração. A rima é um simples<br />

aci<strong>de</strong>nte. O poema diz tudo por si mesmo. São quarenta sextilhas que<br />

cantam um viajante, monologando com o Além sobre as indagações<br />

eternas do homem perante o Infinito:<br />

Revista Volume LI.p65 204<br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 205<br />

Aqui – da solidão aos quatro ventos –<br />

Quero viver meus últimos momentos;<br />

que a asa da Morte paira sobre mim...<br />

E, na gran<strong>de</strong> intuição que me ilumina,<br />

professo a minha Fé, clara e divina<br />

na Matéria aon<strong>de</strong> vou e don<strong>de</strong> vim...<br />

O sortilégio da palavra própria em cada frase, em cada verso, é o<br />

elemento primordial, tanto da boa prosa, como da legítima poesia. Faz-se<br />

poesia com palavras, evi<strong>de</strong>ntemente. Para exprimir o inefável, o silêncio<br />

seria o preferido. Mas ainda não po<strong>de</strong>mos atingir o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> São João da<br />

Cruz, cuja poesia é a tentativa mais feliz no sentido <strong>de</strong> nos aproximarmos<br />

<strong>de</strong>sse estado <strong>de</strong> perfeição. “No seas y serás más que todo que lo ES” – só<br />

este ensinamento <strong>de</strong> São João da Cruz resume toda sua obra, pois é o<br />

retrato do místico que se apaga ou se integra no Todo Po<strong>de</strong>roso. Para ele<br />

só o silêncio leva ao êxtase. A poesia não tem outra finalida<strong>de</strong>. Como é<br />

feita <strong>de</strong> palavras e não temos outro material à mão, gran<strong>de</strong> poeta é o que<br />

escolhe aquelas <strong>de</strong> conteúdo mágico. Há, sem dúvida, palavras<br />

privilegiadas cujo encaixe no contexto do poema emitem assim como<br />

uma súbita clarida<strong>de</strong>.<br />

Honório Armond possuiu a “técnica poética”, que, no ensinamento<br />

<strong>de</strong> Dilthey, “consiste em transformar o vivido em um todo que só existe<br />

na imaginação do ouvinte ou do leitor, que engendra ilusão e produz, pela<br />

energia sensível do complexo <strong>de</strong> imagem, um forte conteúdo emocional,<br />

um significado para o pensamento e, por outros meios menos importantes,<br />

uma satisfação duradoura”.<br />

Vale a pena, nesse sentido, lermos uma só das estâncias <strong>de</strong> um dos<br />

mais perfeitos poemas <strong>de</strong> Honório Armond, não só pela sua realização<br />

formal, mas pelo intenso drama espiritual, sua titânica luta entre o<br />

<strong>de</strong>scrente e o homem que se quer agarrar à fé: Belo-Beth.<br />

Revista Volume LI.p65 205<br />

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206 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Quando Jesus, da rua da Amargura,<br />

que perlustrava entre armas assassinas,<br />

avistou, perfilando-se na altura,<br />

do átrio Calvário as ásperas ravinas,<br />

teve se<strong>de</strong> e quis águas cristalinas...<br />

Mas alguém, <strong>de</strong>ntre a turba ingrata e ignara,<br />

que entre brados <strong>de</strong> morte o acompanhara<br />

do tenebroso Gólgota ao sopé,<br />

gritou: – “Caminha! – e lhe escarrou à cara.<br />

Disse Jesus: – “Caminha Beli-Beth!<br />

O homem filosofa precisamente para perseguir o conhecimento do<br />

ser que permanece escondido no fundo das palavras. Hei<strong>de</strong>gger repousa<br />

sua interpretação da “existência”, quer dizer, “o ser existencial” na<br />

incessante pesquisa, nos apelos da linguagem e este mergulho nas<br />

profundida<strong>de</strong>s da linguagem aspira a esclarecer e fixar aquilo que na<br />

palavra só <strong>de</strong> modo in<strong>de</strong>ciso se vislumbra. Johannes Pfeiffer, cujo<br />

penetrante ensaio sobre poesia nos cativa pela <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>, faz a distinção<br />

entre a linguagem poética e a filosófica, para asseverar que a gran<strong>de</strong><br />

tarefa da Filosofia é <strong>de</strong>terminar e precisar as palavras para convertê-las<br />

em conceitos da maior energia possível. “Na poesia, ao contrário, o<br />

essencial é viver as palavras em toda sua virginal plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentido e<br />

plasticida<strong>de</strong>; a intuição se eleva sobre a compreensão, a imagem sobre o<br />

conceito”.<br />

Só é capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r uma poesia quem penetra no mundo<br />

fictício <strong>de</strong> seus valores totais corporificados em palavras, formas e<br />

sons.<br />

HERMETISMO, SUBJETIVISMO E DEPURAÇÃO<br />

O que é incompreendido, e tão longe ainda <strong>de</strong> ser aceito, na poesia<br />

chamada impropriamente mo<strong>de</strong>rna, pela “imensa maioria”, o leitor<br />

vulgar, resi<strong>de</strong> no hermetismo, que não é senão o prejulgamento <strong>de</strong> que<br />

todos são conhecedores do subjetivismo contido na mensagem transmitida,<br />

Revista Volume LI.p65 206<br />

12/5/2009, 15:29


A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 207<br />

do mistério que o poeta preten<strong>de</strong> comunicar. A natureza e o valor <strong>de</strong> uma<br />

mensagem poética <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da iniciação <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>seja sentir, <strong>de</strong> sua<br />

preparação, <strong>de</strong> seu estado <strong>de</strong> alma – também daquela espécie <strong>de</strong> “graça<br />

poética”, <strong>de</strong> que nos falou Henri Bremond. Há dias especiais para se ler<br />

poesia, por exemplo, este fenômeno é comum até a todos nós que não<br />

temos mensagem a transmitir.<br />

Fato curioso na carreira poética <strong>de</strong> Armond é que sendo medularmente<br />

um artista, sua vida <strong>de</strong> criação foi <strong>de</strong>screvendo uma parábola, que é o<br />

inverso <strong>de</strong> vidas como as <strong>de</strong> Bilac, Ban<strong>de</strong>ira ou Drummond. À medida<br />

que caminhava no tempo, Armond, foi seguindo aquele conselho do<br />

clássico Francisco Manuel do Nascimento: – “Resfriamos com a ida<strong>de</strong><br />

acerca <strong>de</strong> versos, não porque <strong>de</strong>sprezemos a poesia, mas porque mais<br />

perfeição lhe <strong>de</strong>sejamos; porque não aturamos o medíocre, <strong>de</strong>pois que<br />

pela reflexão sentimos e pela experiência conhecemos quanta distância<br />

corre entre o medíocre e o excelente.” Ao passo que aqueles poetas<br />

produzem sempre e cada vez melhor, Armond fez quase tudo até aos<br />

vinte e oito ou trinta anos. Dessa data em diante, traduziu poetas<br />

estrangeiros, compôs ocasionalmente. Teria sido a falta <strong>de</strong> estímulo<br />

ambiente, a vida sem ressonância numa cida<strong>de</strong> do interior? Tudo, porém,<br />

nos indica que a amostra dos trinta anos era mais do que uma promessa.<br />

No exemplar <strong>de</strong> Ignotae Deae, que sua família me confiou, acha-se<br />

escrito, com sua letra, esta exclamação <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontente, datada <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />

1957: – “Meu Deus, como foi que não me jogaram no lixo quando<br />

publiquei este livro?”<br />

Bastante severa, profundamente <strong>de</strong>sarrazoada a acerba exclamação,<br />

acor<strong>de</strong>, porém, com o orgulho <strong>de</strong> Armond. Sua preocupação constante<br />

em afirmar sua <strong>de</strong>scrença, sua pobreza e, paralelamente, sua predileção<br />

pela figura do Cristo e temas cristocêntricos, põem em relevo a luta<br />

íntima que triturou essa alma condoreira. Des<strong>de</strong> o soneto “Invocação”,<br />

que ficou tristemente celebre entre os ru<strong>de</strong>s materialistas, os incréus<br />

empe<strong>de</strong>rnidos e que disso fazem galas:<br />

Eu que não creio em ti, ó Nazareno,<br />

Que a crença para mim nada traduz, etc.,<br />

Revista Volume LI.p65 207<br />

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208 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

até o final <strong>de</strong> seus dias, foi Armond um crente orgulhoso. Não é<br />

sem razão que Agripino Grieco disse ser “a blasfêmia uma oração<br />

<strong>de</strong>sesperada”. Em “Negação”, outro soneto da primeira fase, repete o<br />

refrão:<br />

Eu que não creio em Deus e nego a glória<br />

– as duas abstrações <strong>de</strong> todo o egoísmo, etc.<br />

A verda<strong>de</strong> e que ele não nutria outra crença. Armond foi um tímido<br />

e, como todo tímido, um profundo orgulhoso. Fazendo pequena<br />

concessão aos <strong>de</strong>terministas, nossa vida é quase sempre o produto <strong>de</strong> atos<br />

por cuja gênese e natureza não nos responsabilizamos. Se por qualquer<br />

eventualida<strong>de</strong> divergirmos no início, lá vão as linhas divergentes até o<br />

fim. Tanto não era um incréu, que o verda<strong>de</strong>iro materialista é indiferente<br />

a esses problemas. Nele o tema volta com a constância isocrônica. O que<br />

Armond quis ser foi um adversário do Cristo e aí o problema é diferente.<br />

Foi um filho rebelado, que não contou, infelizmente, com um mediador<br />

eficaz entre ele e o Pai. Os <strong>de</strong>safios ao Criador são ininterruptos em toda<br />

sua poesia, e tal procedimento só é próprio em quem ama ou o<strong>de</strong>ia. Ódio<br />

e amor, na escala psicológica, são irmãos, vizinhos <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>-meia – já o<br />

freudismo nos explicou.<br />

COMPLEXO EXISTENCIAL E POESIA<br />

O sedimento pessoal, a carga emotiva, as condições psicológicas, o<br />

subjetivismo, em suma, condicionam a criação estática – personalíssima<br />

por excelência – traduzindo não só o complexo <strong>de</strong> que se compõe o<br />

indivíduo, mas, também, suas reações e até sua ancestralida<strong>de</strong>, como,<br />

principalmente, o momento. O momento <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger, isto é, o espaço<br />

<strong>de</strong> tempo que nos é outorgado entre os dois limites: nascimento e morte.<br />

O lirismo é, assim, uma categoria puramente subjetiva.<br />

Vejamos <strong>de</strong> Armond esta sextilha do poema “Avatar”, que nos<br />

transmite a eclosão do momento existencial:<br />

Revista Volume LI.p65 208<br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 209<br />

Eis que agora recordo! Eis revejo e <strong>de</strong>scubro<br />

nuns restos <strong>de</strong> impressões fugitivas e vagas<br />

<strong>de</strong> um passado feliz, há milênios atrás:<br />

– um suave pôr-<strong>de</strong>-sol... um céu violeta e rubro...<br />

um manso mar cantando ao balanço das vagas<br />

e uma estrela a fulgir no horizonte lilás...<br />

O que o poeta não po<strong>de</strong> é viver divorciado da vida, do real. Eis ao<br />

que me oponho tenazmente: a <strong>de</strong>sumanização da arte, que vem assumindo<br />

proporções cada vez maiores <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o reinado <strong>de</strong> Mallarmé. Este, quando<br />

falava <strong>de</strong> uma mulher qualquer queria referir-se a “mulher nenhuma”, ou<br />

quando mencionava uma hora qualquer era “a hora ausente do<br />

quadrante.” O verso <strong>de</strong> Mallarmé, <strong>de</strong>ssa forma, se anula em ressonância<br />

vital pela força das negações intrínsecas e pelo anseio <strong>de</strong> fugir <strong>de</strong> tudo<br />

que é humano. O poeta acha-se mergulhado na realida<strong>de</strong> e sua missão é<br />

transportá-la para o plano da metáfora, está certo. Ou como afirmou o<br />

preclaro Ortega y Gasset: – “A poesia é hoje a álgebra superior das<br />

metáforas”, para prosseguir elucidando sua tese da <strong>de</strong>sumanização da<br />

arte, naquele estilo <strong>de</strong> um vigor incomparável pela clareza e esplendor<br />

verbal simultaneamente: – “É sintoma <strong>de</strong> pulcritu<strong>de</strong> mental querer<br />

estabelecer fronteiras rígidas entre as coisas. Vida é uma coisa, poesia é<br />

outra. Não as misturemos. O poeta começa on<strong>de</strong> o homem acaba. O<br />

<strong>de</strong>stino do homem e viver seu itinerário humano; a missão do poeta é<br />

inventar o que não existe. Só <strong>de</strong>sta maneira se justifica o ofício poético.<br />

O poeta aumenta o mundo, acrescentando ao real, que já está aí por si<br />

mesmo, um continente irreal. Autor vem <strong>de</strong> “auctor” – o que aumenta. Os<br />

latinos apelidavam assim ao general que ganhava para a pátria um novo<br />

território.”<br />

Todos nós estamos inseridos na vida. O poeta terá <strong>de</strong> refleti-la em<br />

sua mensagem. Só é realmente poeta aquele que consegue recriar a vida<br />

no plano da metáfora.<br />

Revista Volume LI.p65 209<br />

12/5/2009, 15:29


210 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

RE-CRIAÇÃO E IRREVERSIBILI<strong>DA</strong>DE <strong>DA</strong> POESIA<br />

Poesia é re-criação. E’ ato <strong>de</strong> criar novamente as palavras, <strong>de</strong>terminando-lhes<br />

outras funções. Um vocábulo morto po<strong>de</strong> assumir, quando<br />

colocado propositadamente no verso, uma exuberância insuspeitada.<br />

Num poema <strong>de</strong>dicado a Mário Matos, “Solvent Saecula”, sobre o<br />

qual po<strong>de</strong>ríamos arquitetar toda uma teoria geral da linguagem poética ou<br />

da metalinguagem, lemos palavras triviais, mas o conjunto resulta num<br />

belo espetáculo <strong>de</strong> som:<br />

Ó fantasmas sem cor, que traçais esta ronda,<br />

na noite em torno a mim, a que viestes vós?<br />

A beleza <strong>de</strong> um poema é intocável, pela virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua condição<br />

irreversível. Qualquer tentativa <strong>de</strong> intervenção estranha, <strong>de</strong> reversão <strong>de</strong><br />

seus termos, como na linguagem científica ou filosófica, resultaria em<br />

<strong>de</strong>composição, em dilaceração, pois os membros <strong>de</strong> um poema formam<br />

uma totalida<strong>de</strong> indivisa. A obra <strong>de</strong> arte é por isso intocável. Nasce<br />

perfeita das mãos <strong>de</strong> seu criador e só por ele po<strong>de</strong> ser manipulada. A<br />

linguagem científica, ao contrário, só mantém compromisso com a<br />

objetivida<strong>de</strong>. Difere por isso substancialmente da poética. E a poesia não<br />

existe para nos mostrar verda<strong>de</strong>s cientificas. Ocasionalmente, po<strong>de</strong> até<br />

<strong>de</strong>monstrá-las. A sugestão poética não é realizada, porém, para nos<br />

ensinar que a água é composta <strong>de</strong> hidrogênio e oxigênio, por exemplo,<br />

mas para exclamar: – “As lágrimas do céu em catadupas”... Não se trata<br />

<strong>de</strong> apurar a verda<strong>de</strong> ou o erro. Cuida-se <strong>de</strong> sentir. Não há poesia didática.<br />

Os termos se repelem. São antinomias. É o caso, entre outros, <strong>de</strong> L’Art<br />

Poétique, <strong>de</strong> Boileau, e <strong>de</strong> on<strong>de</strong> retirarei esta <strong>de</strong>claração, absolutamente<br />

verda<strong>de</strong>ira, com que abre seu poema chamado didático. Em versos, diz o<br />

poeta francês do “Setecentos”, que é tolice querer atingir o Parnaso se os<br />

astros, ao nascermos, não nos fizeram poetas, pois para os <strong>de</strong>spojados<br />

<strong>de</strong>sse dom, “Febo é surdo e Pégaso manhoso”. Po<strong>de</strong> não ser poesia, mas<br />

é a verda<strong>de</strong>.<br />

Revista Volume LI.p65 210<br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 211<br />

O EXPERIMENTO NÃO LOGRADO<br />

Outro aspecto <strong>de</strong> Armond, que <strong>de</strong>ixamos para o final, por não ter<br />

significação nenhuma, e nem acrescentar qualquer dimensão à sua figura<br />

<strong>de</strong> poeta, são as composições em francês. Apesar da conspícua autorida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> mestre Eduardo Frieiro, esses versos <strong>de</strong> Armond, bem medidos,<br />

melodiosos alguns, não passam <strong>de</strong> meros exercícios verbais. Nada<br />

faremos fora da língua que bebemos com o leite materno. A<strong>de</strong>mais,<br />

possuímos uma bela língua e nela <strong>de</strong>vemos verter nossas mágoas, nossas<br />

alegrias, nossos anelos e <strong>de</strong>silusões, como fez, aliás, Eduardo Frieiro, na<br />

crítica que <strong>de</strong>dicou a Armond sobre seu volume Les voix et les Bonheurs,<br />

e diz bem: – “Motejar dos que escrevem versos em francês, é fácil;<br />

escrevê-los é um pouco mais difícil”. De fato, é tarefa bastante ru<strong>de</strong> arcar<br />

com o peso do dicionário francês e cair no mau gosto <strong>de</strong> meter num<br />

verso, para efeito <strong>de</strong> rima, um vocábulo que poeta algum daquela língua<br />

jamais escreveria. Armond, emérito conhecedor da língua <strong>de</strong> Racine, bem<br />

sabia disso e teria praticado seu exercício para se afirmar no meio<br />

provinciano. Os que leram a obra <strong>de</strong> Arnold Toynbee conhecem agora<br />

que, tanto no plano das nações como no dos indivíduos, há a teoria do<br />

<strong>de</strong>safio e da resposta. A afirmação do valor cultural <strong>de</strong> Armond<br />

manifestar-se-ia através dos sonetos franceses que compôs. O incomparável<br />

Nabuco teve também seu momento <strong>de</strong> fraqueza compondo Les pensées<br />

<strong>de</strong>tachés. São versos bem feitos os <strong>de</strong> Les voix et les Bonheurs, mas estão<br />

longe <strong>de</strong> ombrear sequer com os <strong>de</strong> Ignotae Deae.<br />

Po<strong>de</strong>r-me-eis objetar com a poesia tutelar <strong>de</strong> José Maria <strong>de</strong><br />

Heredia, poeta cubano, francês por adoção. Acontece que Heredia foi<br />

para a França, lá viveu e ali escreveu ao Trophées. Além da ascendência<br />

francesa <strong>de</strong> sua mãe, Heredia foi cedo para o País <strong>de</strong> Victor Hugo e ali<br />

trabalhou seu estro. Diferente é o caso <strong>de</strong> Armond e <strong>de</strong> outros que, entre<br />

nós, prestam sua homenagem ao idioma que apren<strong>de</strong>mos a amar por ser o<br />

veículo <strong>de</strong> idéias peregrinas, <strong>de</strong> admiráveis versos, <strong>de</strong> teorias apaixonantes,<br />

<strong>de</strong> páginas que guardamos em nosso mais recôndito relicário. Os versos<br />

franceses <strong>de</strong> Armond po<strong>de</strong>m revelar “une qualité exquise” como<br />

asseverou o Sr. Eduardo Frieiro, porém, nada mais alem disso. Para ser<br />

Revista Volume LI.p65 211<br />

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212 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

um singular poeta brasileiro, não precisaria Armond socorrer-se <strong>de</strong> outro<br />

idioma. Ele o foi na sua língua materna, sem nenhum favor.<br />

A PERENE LIÇÃO DE WINCKELMANN<br />

Segundo a lição <strong>de</strong> Winckelmann, o esteta superado do século<br />

XVIII, a beleza grega se afirmava na nobre simplicida<strong>de</strong> e tranquila<br />

gran<strong>de</strong>za, tanto na atitu<strong>de</strong> como na expressão. Ainda que o não queiram<br />

muitos dos estetas da mo<strong>de</strong>rna inquietação, este cânon artístico é<br />

imperecível. A poesia <strong>de</strong> Armond, apesar <strong>de</strong> sombria na sua expressão,<br />

reflexo <strong>de</strong> um espírito assoberbado com os problemas do ser e do nãoser,<br />

da morte como re<strong>de</strong>ntora, <strong>de</strong>u-me a impressão <strong>de</strong> “nobre simplicida<strong>de</strong><br />

e tranquila gran<strong>de</strong>za”, como <strong>de</strong>sejava o esteta germânico.<br />

Ronald <strong>de</strong> Carvalho, um dos mais altos valores da geração <strong>de</strong><br />

Armond, proclamou: “Cria o teu ritmo livremente”; ao que Tristão <strong>de</strong><br />

Ataí<strong>de</strong>, alma <strong>de</strong> pedagogo, acrescentou: – Disciplina o seu ritmo<br />

livremente”. Com essas duas ferramentas, um bom estro po<strong>de</strong> chegar a<br />

ser um poeta como foi Honório Armond, nascido em 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong><br />

1891, em Barbacena e ali sepultado a 21 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1958. Criatura<br />

<strong>de</strong> bonda<strong>de</strong> extrema, <strong>de</strong>sambicioso <strong>de</strong> bens materiais, cético quanto as<br />

miragens do mundo, negador na or<strong>de</strong>m do espírito. Criou um clima<br />

poético <strong>de</strong> notável significado. Em sua obra aparenta um nihilista por<br />

sistema, <strong>de</strong>screvendo uma horrível paisagem interior, <strong>de</strong> morte sem<br />

remissão, do nada além da morte. Em seu tormento <strong>de</strong> artista, negou a<br />

vida, negou a glória, negou a Deus. Na existência ordinária <strong>de</strong> todos, foi<br />

um cidadão às direitas, um exemplar humano <strong>de</strong> rara nobreza. Como<br />

poeta, trouxe um mundo em si, não fosse ele o próprio criador <strong>de</strong><br />

cosmogonias.<br />

Chego ao fim com esta exclamação simples: Que gran<strong>de</strong> voz a <strong>de</strong><br />

Honório Armond! Sua obra não é numerosa, mas excelente, e nela <strong>de</strong><br />

modo cabal realizou a “Poiesis” e por que não dizer? também o “Epos” e<br />

o “Ethos”, como um miraculoso re-criador <strong>de</strong> estados <strong>de</strong> emoção e <strong>de</strong><br />

conduta. Que poeta magnífico ele o foi, sem favor.<br />

Revista Volume LI.p65 212<br />

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A tradição acadêmica _____________________________________________________________ Vivaldi Moreira 213<br />

MINAS DESCONHECI<strong>DA</strong> E PROFUN<strong>DA</strong><br />

Ainda há poucos dias, o ilustre Mário Casasanta – a quem tantos<br />

<strong>de</strong>vem tanto – me dizia que Minas não se conhece. Somos uma<br />

<strong>de</strong>scomunal força telúrica, um Anteu <strong>de</strong>sprezado, um Atlas que se não<br />

preza. – “Repare você – dizia-me ele – num pequeno trecho você<br />

encontrará uma riqueza <strong>de</strong> inteligência <strong>de</strong> amor à cultura, um grupo<br />

enfim <strong>de</strong> três ou quatro cidadãos que não fariam feio em qualquer lugar<br />

em que fossem colocados.” E, no entanto, todos fazem questão <strong>de</strong><br />

escon<strong>de</strong>r tudo. É um traço invencível <strong>de</strong> nossa psiquê coletiva. Tudo que<br />

diverge e se exibe, parece não ser mineiro. Eis um caso típico na poesia<br />

<strong>de</strong> Honório Armond – um gran<strong>de</strong>, um autentico poeta, cuja obra<br />

permanece praticamente inédita. Quando alguém fala, a surpresa e total.<br />

Meditando na vida <strong>de</strong> Armond, colhi ensinamentos salutares. E já<br />

que estou numa noite <strong>de</strong> confissão, <strong>de</strong>ixai-me concluir com mais esta:<br />

jamais uma distinção, um prêmio, uma honraria calara tão fundo em<br />

minha alma. Ainda que imerecidamente, galardoastes o que mais prezo<br />

em mim mesmo. Foi um aplauso à ativida<strong>de</strong> que consi<strong>de</strong>ro primordial em<br />

minha vida, uma apoteose <strong>de</strong>cisiva não ao meu mérito, mas à <strong>de</strong>voção<br />

que consagro à sentença contida no celebre alexandrino <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong><br />

Assis, nosso maior talento literário: – “Esta é a glória que fica, eleva,<br />

honra e consola”.<br />

<strong>DA</strong>DOS BIOGRÁFICOS<br />

Vivaldi Moreira nasceu em Tombos, Zona da Mata (MG), em<br />

1912. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais, na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Direito da Universida<strong>de</strong> do Brasil, em 1937, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong><br />

exerceu o jornalismo durante o curso superior. Advogou nas Comarcas<br />

<strong>de</strong> Aimorés (MG), Itaperuna (RJ) e Belo Horizonte, para on<strong>de</strong> se<br />

transferiu em 1940, continuando no jornalismo, redigindo a Revista<br />

Comercial e Industrial <strong>de</strong> Minas Gerais. Advogado da Associação<br />

Comercial <strong>de</strong> Minas e colaborador dos jornais O Diário, Estado <strong>de</strong><br />

Minas e Diário da Tar<strong>de</strong>. Criou o Anuário Comercial e Industrial <strong>de</strong><br />

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214 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Minas Gerais e o mensário Minas em Foco, que editou por nove anos.<br />

No Governo <strong>de</strong> Milton Campos, foi chefe <strong>de</strong> gabinete do secretário <strong>de</strong><br />

Finanças Magalhães Pinto, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saiu para exercer o cargo <strong>de</strong> Auditor<br />

do Tribunal <strong>de</strong> Contas do Estado. Em 1964 foi nomeado ministro do<br />

mesmo Tribunal, on<strong>de</strong> se aposentou como seu Presi<strong>de</strong>nte em 1980. Foi<br />

também chefe <strong>de</strong> gabinete do secretário <strong>de</strong> Justiça Martins <strong>de</strong> Oliveira,<br />

Chefe <strong>de</strong> Publicações do Ministério da Educação, Diretor da Divisão <strong>de</strong><br />

Obras Raras da Biblioteca Nacional e diretor-geral da Imprensa Oficial<br />

<strong>de</strong> Minas. Publicou vinte livros. Foi presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1975, para on<strong>de</strong> foi eleito em 1959, até seu falecimento em<br />

26 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2001. Foi casado com dona Ibrantina Brandão Couto<br />

Moreira, já falecida. Deixou cinco filhos: José Maria, procurador do<br />

Estado; o engenheiro Eduardo Vitor; o jornalista Pedro Rogério; Maria<br />

do Céu, funcionária do Estado; e Ana Cristina, também funcionária<br />

pública. Suas principais obras: Sociologia da Crise, A Frauta <strong>de</strong><br />

Mársias, Navegação <strong>de</strong> Cabotagem, Uma Passagem para Meipe,<br />

Figuras, Tempos, Formas, Daqui e Dalém, Milton Campos, Política e<br />

<strong>Letras</strong>, Volta a Meipe, O Menino da Mata e seu Cão Piloto, Perfis<br />

Contemporâneos e Outros Escritos, Doutrina e Decisões no Tribunal <strong>de</strong><br />

Contas <strong>de</strong> Minas Gerais, Memorial a Destempo, Personalida<strong>de</strong>s e<br />

Situações, O Velocino <strong>de</strong> Ouro, O Círculo dos Eleitos, Correções a<br />

Fazer e Preços a Praticar, Glossário das Gerais, Viagens, Cobras e<br />

Lagartos, Novo Glossário das Gerais.<br />

Revista Volume LI.p65 214<br />

12/5/2009, 15:29


A VER<strong>DA</strong>DE<br />

Jorge Lasmar*<br />

HONÓRIO ARMOND – “...um <strong>de</strong>stino histórico<br />

que não existe senão uma vez”.<br />

A ilustre <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> está em festa. Comemora<br />

com justiça e natural entusiasmo a passagem do seu centenário, cem anos<br />

<strong>de</strong> intensa ativida<strong>de</strong> construindo um admirável patrimônio cultural que<br />

honra Minas Gerais.<br />

Coinci<strong>de</strong>nte, comemora o centenário <strong>de</strong> Ayres da Mata Machado, o<br />

filólogo diamantinense <strong>de</strong> São João da Chapada. Ele soube bem tratar a<br />

língua portuguesa e <strong>de</strong>ixar um portentoso legado <strong>de</strong> serviços à cultura<br />

brasileira.<br />

Outros Acadêmicos serão relembrados, homenagens serão<br />

prestadas, todas merecidas, aos que se transportaram para outras vidas no<br />

Oriente Eterno.<br />

Atrevo-me a <strong>de</strong>stacar um <strong>de</strong>les: Honório <strong>de</strong> Almeida Armond, que<br />

ocupou a Ca<strong>de</strong>ira 38 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Expressão máxima<br />

da cultura <strong>de</strong> Barbacena, Armond <strong>de</strong>u sua vida ao exercício constante da<br />

fraternida<strong>de</strong> e buscou nas alturas da sua incomparável bonda<strong>de</strong> a resposta<br />

para os problemas que atormentam o homem: a verda<strong>de</strong> da vida e o<br />

mistério da morte.<br />

* Advogado, professor. Secretário Geral do Instituto Histórico e Geográfico <strong>de</strong> Minas Gerais.<br />

Revista Volume LI.p65 215<br />

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216 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

As coisas do espírito eram a sua religião; seus versos e suas<br />

palavras têm a consistência filosófica que ilumina as indagações e a<br />

procura da verda<strong>de</strong>.<br />

“Nascer, morrer, amar, ter prazer e sofrer são abordagens <strong>de</strong> suas<br />

obras fundamentadas no drama <strong>de</strong> existir”, segundo meu amigo Geraldo<br />

Ribeiro Fonseca, em belo artigo publicado em 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2003,<br />

infelizmente ainda sem a divulgação necessária, inclusive no meio da<br />

literatura maçônica, e do qual nos valeremos com a sua autorização para<br />

elaborar estas linhas, divididas em dois assuntos: o pitoresco do<br />

PRINCIPE DOS POETAS MINEIROS e a espiritualida<strong>de</strong> do Poeta.<br />

Honório Armond aliou sua vida simples, <strong>de</strong> homem que se<br />

respeitava, à inquietação do espírito que procurava, com a maravilha da<br />

inteligência, a resposta para as gran<strong>de</strong>s indagações e sabia emoldurá-las<br />

em versos admiráveis, que lhe valeram ser chamado <strong>de</strong> Príncipe dos<br />

Poetas Mineiros.<br />

I<br />

O episódio vem relatado no admirável ensaio <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Eduardo<br />

José Tollendal, Doutor em Literatura Brasileira e Professor da Universida<strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Uberlândia, publicado no excelente livro Honório Armond –<br />

O Príncipe dos Poetas Mineiros, organizado pela Doutora Zenai<strong>de</strong> Vieira<br />

Maia, Mestra em Literatura Brasileira Contemporânea e da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

Barbacenense <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, fls. 117/120, Gráfica e Editora <strong>de</strong> Barbacena.<br />

2007.<br />

Conta o ilustre Professor que, por volta <strong>de</strong> 1926, Honório foi<br />

convidado por jovens intelectuais <strong>de</strong> Belo Horizonte para uma solenida<strong>de</strong><br />

em que seria entronizado Príncipe dos Poetas Mineiros. O mentor da<br />

travessura era ninguém menos que Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. No<br />

dizer <strong>de</strong> Drummond, Honório “agra<strong>de</strong>ceu polidamente mas tirou o<br />

corpo fora. Ora, se o próprio abdicou o trono, a quem se <strong>de</strong>ve a<br />

fama <strong>de</strong> “Príncipe dos Poetas”, que lhe coube carregar por toda a<br />

existência?”<br />

Revista Volume LI.p65 216<br />

12/5/2009, 15:29


A verda<strong>de</strong> ________________________________________________________________________ Jorge Lasmar 217<br />

Na referida crônica, o Professor Tollendal conta a história, em<br />

<strong>de</strong>liciosos parágrafos. No título – O Príncipe – pergunta e respon<strong>de</strong> o que<br />

vem a ser um Príncipe dos Poetas:<br />

“Que diabos vem a ser um Príncipe dos Poetas?” – po<strong>de</strong>ria<br />

perguntar-se um personagem machadiano. “Que singular<br />

afeto po<strong>de</strong>ria haver entre os poetas e o <strong>de</strong>sprezível regime<br />

dos privilégios e da servidão para chamarem príncipe seus<br />

melhores pares?”<br />

“Certamente, a honraria <strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> os poetas, como<br />

os príncipes, terem um reino: no caso, o reino das palavras.<br />

Sem erário com que pagar seus dízimos, alimentar seus<br />

vassalos, financiar cruzadas, caçadas e torneios, resta aos<br />

príncipes poetas gozar do po<strong>de</strong>r absoluto <strong>de</strong>ntro e fora dos<br />

dicionários. Neste condado verbal, sobejam a nobreza e o<br />

clero.”<br />

É pena que o espaço não comporte a transcrição integral do<br />

admirável ensaio do Doutor Eduardo José Tollendal.<br />

O historiador Nestor Massena, em seu livro Barbacena, a terra e o<br />

homem, vol I, ed. IO-MG, 1995, págs. 154/9, escreveu: “Honório Armond,<br />

<strong>de</strong> modéstia que tocava as raias da morbi<strong>de</strong>z, figura ímpar no mundo<br />

intelectual <strong>de</strong> Barbacena, foi consagrado, em concurso da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, o príncipe dos poetas mineiros. Cre<strong>de</strong>nciaram-no a<br />

essa gloriosa investidura PERANTE O ALÉM, IGNOTAE DEAE e LES<br />

VOIX ET LES BONHEURS, além da vasta produção esparsa em vários<br />

órgãos <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong>.”<br />

Ainda, segundo Massena, Honório quis abdicar do título, <strong>de</strong>ferindo-o<br />

para José Oiticica, em carta en<strong>de</strong>reçada ao jornal A Noite. Oiticica negou<br />

a Honório Armond o direito à abdicação: “O título, por todas as leis e<br />

convenções internacionais, é intransferível. Ainda que eu fosse, na<br />

realida<strong>de</strong>, o melhor poeta mineiro, não te compete substituir tua opinião<br />

pessoal à dos teus patrícios.”<br />

Revista Volume LI.p65 217<br />

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218 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

A sua cultura era formada sob influência francesa – a França<br />

prepon<strong>de</strong>rava; ele dominava a língua, e parte <strong>de</strong> sua obra foi escrita em<br />

francês. Daí veio a intimida<strong>de</strong> com os poetas Mallarmé, Bau<strong>de</strong>laire,<br />

Rimbaud, Verlaine, Nerval e outros.<br />

A obra <strong>de</strong> Honório Armond transcen<strong>de</strong> e se projeta cada vez mais<br />

no universo do pensamento das boas letras. É clássica. Veio e ficou.<br />

De intensa vida intelectual, Honório <strong>de</strong> Almeida Armond, que<br />

também assinava Honório Ferreira Armond, nasceu no dia 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong><br />

1891 e morreu a 12 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1958. Levou às alturas o ofício <strong>de</strong><br />

ensinar. Primoroso professor, lecionou: Latim, Francês e Português,<br />

Geografia e Cosmografia, em escolas e ginásios, na Escola Preparatória<br />

<strong>de</strong> Ca<strong>de</strong>tes do Ar.<br />

II<br />

Procurou a LUZ na iniciação e no dia 8 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1940<br />

ingressou na Loja Maçônica Regeneração Barbacenense. A sua<br />

recepção, como Aprendiz, foi uma “lição <strong>de</strong> filosofia, <strong>de</strong> cultura e <strong>de</strong><br />

valorização da Or<strong>de</strong>m. Quando os seus membros souberam enten<strong>de</strong>r que<br />

aquilo que um homem diz ou escreve nem sempre reflete os seus atos no<br />

mundo e no tempo em que vive”.<br />

III<br />

É <strong>de</strong>le a frase: “TODO ORGULHO HUMANO CABE DENTRO DE<br />

UMA CAVEIRA”, inscrita na Loja Maçônica.<br />

IV<br />

Notorieda<strong>de</strong> lhe <strong>de</strong>u, entretanto, a filosofia <strong>de</strong> sua vida, a<br />

singularida<strong>de</strong> do simbolismo <strong>de</strong> sua poesia admirável<br />

Seu livro <strong>de</strong> 1921, PERANTE O ALÉM, recebeu os maiores elogios<br />

<strong>de</strong> Humberto <strong>de</strong> Campos e do feroz crítico Agripino Grieco. Pedro Nava<br />

Revista Volume LI.p65 218<br />

12/5/2009, 15:29


A verda<strong>de</strong> ________________________________________________________________________ Jorge Lasmar 219<br />

escreveu: “A linguagem armondiana é <strong>de</strong> lapidar riqueza, não só por sua<br />

incomum erudição, como pela originalida<strong>de</strong> que permeia suas criações”.<br />

Mestre do soneto, foi amigo <strong>de</strong> Tristão <strong>de</strong> Ataí<strong>de</strong>, Belmiro Braga,<br />

Abgar Renault e Drummond, e com eles se correspondia.<br />

V<br />

Muito se questionou e se questiona a respeito da crença <strong>de</strong> Honório<br />

Armond. Ateu, materialista, espírita? A verda<strong>de</strong> é que seus críticos se<br />

esforçam para uma resposta conclusiva. Dada a sua condição <strong>de</strong> Maçom<br />

(O maçom crê no PRINCÍPIO CRIADOR, invoca e glorifica o GRANDE<br />

ARQUITETO DO UNIVERSO), como maçom aproveito palavras da<br />

ilustre professora universitária Áurea Luiza Campos <strong>de</strong> Vasconcelos<br />

Grossi, no ensaio que abre o citado livro Honório Armond, folhas 11 a<br />

21, e que a gente lê com gosto e prazer, para admitir que sua obra tem<br />

muito <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong> e se afasta <strong>de</strong> um racionalismo materialista.<br />

Diz a ilustre Professora Áurea Luiza: Um outro argumento que<br />

sustenta sua profunda crença na espiritualida<strong>de</strong>, mesmo que em atitu<strong>de</strong><br />

disfarçada, se encontra em palavras simbolicamente organizadas...<br />

Desejando inquirir-vos e estudar-vos<br />

Eu vos fanei, qual <strong>de</strong>ssecassem parvos<br />

A rosa, a ver <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ella estilla o odor...<br />

(e nisso a nossa vida se resume!...)<br />

Não vos achei a fonte do perfume<br />

E entre as mãos vi morrer aroma e flor...<br />

“Não encontrar a “fonte do perfume” <strong>de</strong>ixa subentendido que<br />

acredita na sua existência e a compreen<strong>de</strong> como a essência que sempre se<br />

perpetua. É uma posição conclusiva sobre a dualida<strong>de</strong> da Vida humana: a<br />

primazia do espírito sobre matéria. Contrariando uma possível<br />

racionalida<strong>de</strong> anterior torna-se <strong>de</strong>finitivo que o que verda<strong>de</strong>iramente<br />

importa é o elemento abstrato, sobrenatural e transcen<strong>de</strong>nte.”<br />

Revista Volume LI.p65 219<br />

12/5/2009, 15:29


220 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Na verda<strong>de</strong> é um processo <strong>de</strong> fé e reconhecimento no <strong>de</strong>stino<br />

transcen<strong>de</strong>ntal. É por isto que numa <strong>de</strong>monstração espontânea <strong>de</strong> intensa<br />

e indiscutível crença num Deus, tantas vezes negado, que o final <strong>de</strong><br />

“PERANTE O ALÉM...” traduz o ápice <strong>de</strong>sta sua fé imanente essencial e<br />

imorredoura.<br />

E como um “aleluia”, canta<br />

Glória a Ti, Universo a que me entrego!<br />

O sol no céu... o vibrião no pego...<br />

usnea, estrella, Platão, Budha, Jesus<br />

Tudo segue o Nirvana a que te levas!...<br />

Tudo se originou das mesmas trevas...<br />

Tudo se integrará na mesma Luz!...<br />

“Os sentimentos que o inva<strong>de</strong>m neste encontro final o levam ao<br />

êxtase arrebatador. Compreendê-lo exige uma força suprema porque é o<br />

instante em que Deus a ele Se revela, fundindo-se na Definitiva<br />

Permanência.”<br />

“É um momento transcen<strong>de</strong>ntal... <strong>de</strong> absoluta entrega...”<br />

É admirável a lógica, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> penetração crítica, a capacida<strong>de</strong><br />

para a conclusão que a Ilustre Professora mostra possuir neste ensaio<br />

também admirável.<br />

No mesmo sentido seria Tollendal, fl. 27: “O mistério, o futuro e a<br />

morte atormentam as noites <strong>de</strong> insônia. O eu-lírico, contudo, não<br />

blasfema, nem nega a evidência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>us. Ele, apenas, não o encontra.<br />

Destaco o belíssimo soneto “Nel mezzo <strong>de</strong>l Cammin”, on<strong>de</strong> se lê “A<br />

culpa é minha se jamais culmino!”<br />

“Honório Armond foi um ser privilegiado, que recebeu da<br />

Infinita Sabedoria a missão <strong>de</strong> contestar o pensamento <strong>de</strong> sua<br />

época, para que tantos outros pu<strong>de</strong>ssem também procurar e<br />

encontrar racionalmente a verda<strong>de</strong>, se é que isso é possível”.<br />

(Lúcia Pires Amaral, Doutora em Música e docente livre da<br />

UFRJ, pág. 51)<br />

Revista Volume LI.p65 220<br />

12/5/2009, 15:29


A verda<strong>de</strong> ________________________________________________________________________ Jorge Lasmar 221<br />

A literatura brasileira aguarda quem pesquise e publique a sua obra<br />

para que ela encontre o seu lugar, o que ela mais merece.<br />

Obras publicadas: Ignotae Deae – 1917; Perante o Além – 1921; Era<br />

uma vez – 1922; Sombra e Sauda<strong>de</strong>; Sunt Voces; Milagre das Rosas; Les<br />

Voix e Les Bonheurs – 1932; Sauda<strong>de</strong>; Os caminhos da vida e do <strong>de</strong>stino<br />

(a publicar).<br />

Revista Volume LI.p65 221<br />

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ODE A UM BRASILEIRO<br />

(DOIS, EM TRÊS CAPÍTULOS)<br />

Henrique Leal*<br />

O dia 14 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2009 será muito especial para a família<br />

Afonso Penna, com a inauguração, em Santa Bárbara, Minas Gerais, do<br />

Memorial Affonso Penna, na data do centenário <strong>de</strong> morte do primeiro<br />

mineiro a assumir a Suprema Magistratura da Nação brasileira. Sobre ele,<br />

Rui Barbosa, a “Águia <strong>de</strong> Haia”, em discurso no Senado Fe<strong>de</strong>ral, assim<br />

se referiu: “Se o serviço público tem os seus mártires, nunca <strong>de</strong>ssa<br />

experiência assistimos a mais singular exemplo.” Uma referência à morte<br />

do presi<strong>de</strong>nte no Palácio do Catete, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, então se<strong>de</strong> do<br />

governo fe<strong>de</strong>ral, aos 14 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1909, vítima <strong>de</strong> colapso – dizem,<br />

por excesso <strong>de</strong> trabalho, ainda que a morte do filho Álvaro, em final <strong>de</strong> 1907,<br />

tenha ajudado bastante. A estafa por excesso <strong>de</strong> trabalho, entretanto, não é <strong>de</strong><br />

todo exagerada: nunca, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le, um presi<strong>de</strong>nte brasileiro trabalhou<br />

com tanto afinco em questões como, por exemplo, o transporte<br />

ferroviário do Brasil. Para Affonso Penna – e nenhum outro Presi<strong>de</strong>nte<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le – somente as ferrovias seriam o transporte a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong> carga<br />

e passageiros em País continental como o nosso. Argumento irrefutável até<br />

o início do século XXI, pena que constantemente vilipendiado por estradas<br />

esburacadas e gordas comissões para as empreiteiras (A Arte <strong>de</strong> Furtar, o<br />

manuscrito <strong>de</strong> 1652, sobre o qual ainda muito falaremos, continua <strong>de</strong><br />

atualida<strong>de</strong> ímpar, nas palavras do <strong>de</strong>putado Durval Ângelo, que assina o<br />

prefácio da segunda edição da obra por mim comentada).<br />

* Jornalista e escritor, autor <strong>de</strong> Uma Casa em La Mancha, A Arte <strong>de</strong> Furtar e o seu Autor, Vila<br />

Real <strong>de</strong> N. S. da Conceição <strong>de</strong> Sabarabussu, O Cabreiro <strong>de</strong> Cerveira.<br />

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Portanto, é com imensa gratidão à família Affonso Penna, por ter<br />

em mim humil<strong>de</strong> biógrafo, que dou início à árdua missão <strong>de</strong>, em três<br />

artigos sucessivos, homenagear não só o presi<strong>de</strong>nte Affonso Penna 1 ,<br />

como o filho Affonso Penna Junior, que só não virou Presi<strong>de</strong>nte do Brasil,<br />

como o pai, porque a família não permitiu. Penna Junior, sobre quem<br />

lancei Uma Casa em La Mancha, alusão à casa da Rua Aimorés, 1451,<br />

Belo Horizonte, MG, que construiu e on<strong>de</strong> viveu, foi figura <strong>de</strong> altíssima<br />

estirpe na historiografia nacional, infelizmente afeita a heróis <strong>de</strong>scartáveis<br />

e, por vezes, <strong>de</strong>simportantes. Jurista <strong>de</strong> renome internacional,<br />

chegou a ser Ministro da Justiça e imortal das <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>s <strong>Mineira</strong> e<br />

Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Sua obra máxima, A Arte <strong>de</strong> Furtar e o seu Autor,<br />

escrita após 20 árduos anos <strong>de</strong> pesquisa, o levou, sem pestanejar, à casa<br />

<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, on<strong>de</strong> ocupou ca<strong>de</strong>ira n. 7, que pertenceu a Castro<br />

Alves, passou pelas mãos do Embaixador Sérgio Corrêa da Costa (que,<br />

em extrema generosida<strong>de</strong>, assinou o prefácio da minha primeira edição<br />

comentada da obra <strong>de</strong> Penna Junior) e hoje está sob a égi<strong>de</strong> do cineasta<br />

Nélson Pereira dos Santos (outro gênio <strong>de</strong> generosida<strong>de</strong> ímpar, ao me<br />

citar em seu discurso <strong>de</strong> posse na ABL).<br />

Assim, po<strong>de</strong>mos, aos afeitos a metodologias 2 , adiantar que o<br />

primeiro capítulo <strong>de</strong>sta O<strong>de</strong> tratará do Conselheiro do Império Affonso<br />

Penna; o segundo sobre o filho Penna Junior e o terceiro sobre as obras A<br />

Arte <strong>de</strong> Furtar e A Arte <strong>de</strong> Furtar e o seu Autor. Sobre a primeira,<br />

manuscrito apócrifo <strong>de</strong> 1652, que chegou às mãos do Rei <strong>de</strong> Portugal<br />

contendo as mazelas do reino (corrupção) e a segunda, a obra-prima <strong>de</strong><br />

Penna Junior, datada <strong>de</strong> 1946 (que o levou à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>).<br />

Complicado? É sim. Basta dizer que ainda hoje discute-se em<br />

bancos escolares quem, <strong>de</strong> fato, escreveu A Arte <strong>de</strong> Furtar. Trata-se, tão<br />

somente, da pen<strong>de</strong>nga filológica mais <strong>de</strong>liciosa <strong>de</strong> que se tem notícia em<br />

língua portuguesa. Um mistério no melhor uníssono “jamais saberemos”,<br />

sobre o real autor daquelas linhas. Para Affonso Penna Junior, sem<br />

dúvida, linhas da pena do diplomata português Antônio <strong>de</strong> Sousa <strong>de</strong><br />

Macedo; para outros tantos, linhas po<strong>de</strong>rosas da verve do controvertido<br />

Padre Antônio Vieira (que não teria “oferecido” Pernambuco aos<br />

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holan<strong>de</strong>ses por motivos econômicos e sim filosóficos, na visão do<br />

<strong>de</strong>putado e professor <strong>de</strong> Teologia, Durval Ângelo, outro estudioso sobre<br />

o assunto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos do Seminário Santo Antônio).<br />

Mas vamos voltar ao início da história – toda história tem um – e o<br />

nosso se passa no final do século XVIII quando, no distrito <strong>de</strong> Brumal,<br />

em Santa Bárbara, encontrava-se certo fazen<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> nome Domingos<br />

José Teixeira Penna, “cujos parentes foram posteriormente feitos Barões<br />

<strong>de</strong> Ribeiro da Pena” 3 . Domingos José, após tentar a carreira das armas<br />

(exército) e a vocação eclesiástica (seminário), entrega-se aos encantos<br />

das novas terras. E também das mulheres: casa-se duas vezes, a segunda<br />

com Ana Moreira dos Santos que, em 30 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1847, dá à luz<br />

Affonso Augusto Moreira Penna, mais tar<strong>de</strong> o presi<strong>de</strong>nte do Brasil no<br />

período <strong>de</strong> 15/11/1906 a 14/6/1909.<br />

Não se po<strong>de</strong> dizer que Affonso Penna não tenha sido um sujeito <strong>de</strong><br />

sorte: por volta <strong>de</strong> 1874, como simples advogado em Santa Bárbara, foi<br />

procurado pela po<strong>de</strong>rosa Antonia Thomasia Figueiredo Neves, viúva do<br />

Tenente-Coronel José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, o Barão <strong>de</strong><br />

Cocais, um dos homens mais ricos <strong>de</strong> que se tem notícia na história do<br />

Brasil. O motivo não era outro: o inventário da família. Consta que a<br />

Baronesa tão contente ficou com a eficiência do jovem advogado (e já<br />

<strong>de</strong>putado pelo Partido Liberal) que <strong>de</strong>u-lhe <strong>de</strong> presente uma mina <strong>de</strong><br />

ouro, a Santa Quitéria, localizada no distrito <strong>de</strong> Barra Feliz (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1985 a<br />

Fazenda Santa Quitéria não mais pertence à família Affonso Penna; filho<br />

<strong>de</strong> Penna Junior, Gilberto, que me conce<strong>de</strong>u sua última entrevista, antes<br />

<strong>de</strong> vir a falecer no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1997, lembra que durante sua<br />

infância brincava com os lingotes <strong>de</strong> ouro produzidos pelo avô).<br />

Pulemos 1866, com Afonso Penna, aos 19 anos, partindo para São<br />

Paulo em direção à Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito (<strong>de</strong> sua turma, nomes como Rui<br />

Barbosa, Castro Alves, Joaquim Nabuco e Rodrigues Alves, mais tar<strong>de</strong><br />

também Presi<strong>de</strong>nte do Brasil). Dizem que com Castro Alves apren<strong>de</strong>u o<br />

fervor pela causa abolicionista e pela literatura, e que com Rodrigues<br />

Alves interessou-se <strong>de</strong> vez pela política. Em 1874, em carta ao pai, já<br />

eleito <strong>de</strong>putado pelo PL para o biênio 1874-5, dá conta <strong>de</strong> seu casamento<br />

com Maria Guilhermina <strong>de</strong> Oliveira, filha do Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Carandaí. Já<br />

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morando em Barbacena, para lá leva Ambrosina, uma ama-<strong>de</strong>-leite, para<br />

cuidar <strong>de</strong> sua filha Maria da Conceição. Des<strong>de</strong> então nunca mais compra<br />

escravos, e passa a contratar serviços <strong>de</strong> empregados com remuneração<br />

mensal fixa.<br />

Affonso Penna Junior, o primeiro varão do casal, viria ao mundo<br />

em 1879, nascido em Brumal, distrito <strong>de</strong> Santa Bárbara.<br />

A partir <strong>de</strong> 1878, após a instalação do Ministério Saraiva (presidido<br />

pelo Duque <strong>de</strong> Caxias), Affonso Penna passa a ser <strong>de</strong>putado na<br />

Assembléia Geral (hoje <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral) e começa a chamar a atenção<br />

<strong>de</strong> D. Pedro II, que vê naquele jovem parlamentar mineiro “um brado <strong>de</strong><br />

alerta contra quaisquer <strong>de</strong>smandos”. Pouco tempo <strong>de</strong>pois, torna-se<br />

Conselheiro do Império. E em 1882, aos 35 anos, ocupa a pasta da<br />

Guerra no Gabinete Martinho Campos; já no segundo Gabinete Saraiva,<br />

em 1885, é convocado ao cargo <strong>de</strong> Ministro da Justiça (mesmo cargo que<br />

Penna Junior viria a ocupar anos <strong>de</strong>pois), cabendo-lhe referendar a lei<br />

que concedia total liberda<strong>de</strong> aos escravos maiores <strong>de</strong> sessenta anos. E,<br />

em 1888, Affonso Penna e Rui Barbosa são encarregados <strong>de</strong> organizar o<br />

novo Código Civil Brasileiro.<br />

Eis que chega a Proclamação da República, em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong><br />

1889, e o “Conselheiro do Império” obriga-se a <strong>de</strong>ixar o cenário político.<br />

Não por muito tempo: já em 1892 é eleito <strong>de</strong>putado Constituinte por<br />

Minas Gerais, cabendo-lhe, <strong>de</strong> imediato, a presidência da Comissão. A<br />

história do Brasil e <strong>de</strong> Minas Gerais no período pós-monárquico é feita,<br />

como se sabe, <strong>de</strong> golpes e incertezas. A frustrada tentativa <strong>de</strong> golpe do<br />

Marechal Deodoro a favor da monarquia só interessava àqueles que<br />

achavam insipiente a República. Affonso Penna, não obstante seu i<strong>de</strong>ário<br />

monárquico, enten<strong>de</strong> que um novo golpe “feria a sua política <strong>de</strong> viver<br />

honestamente” e renuncia ao mandato que lhe fora conferido.<br />

Mas a “insipiente República” ainda iria reservar ao parlamentar<br />

mineiro, um <strong>de</strong>fensor da or<strong>de</strong>m e da não violação dos Direitos Humanos,<br />

novos <strong>de</strong>safios. Aos 43 anos, em 1891, com a constitucionalização<br />

imediata da Província, é elevado ao cargo <strong>de</strong> primeiro presi<strong>de</strong>nte<br />

(governador) do estado <strong>de</strong> Minas Gerais, diretamente eleito pelo povo,<br />

com 48000 votos. Em seu mandato na presidência <strong>de</strong> Minas Gerais<br />

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(1891-4), Affonso Penna assina o ato <strong>de</strong> fundação <strong>de</strong> Belo Horizonte, cria<br />

a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Minas Gerais (4/12/1892, em Ouro Preto) e,<br />

após <strong>de</strong>ixar o governo <strong>de</strong> Minas, o <strong>de</strong>stino ainda lhe prega outro golpe.<br />

Com a morte do também mineiro Silviano Brandão, vice-presi<strong>de</strong>nte<br />

eleito, não empossado, <strong>de</strong> Rodrigues Alves (1902/06), é convidado a<br />

assumir o cargo. E vale lembrar que a Coligação Partidária que se<br />

formaria em 1906 para eleger o sucessor <strong>de</strong> Rodrigues Alves encontra em<br />

Affonso Penna candidato único e unânime das forças políticas do país,<br />

tamanha era a sobrieda<strong>de</strong> do caráter do filho <strong>de</strong> Santa Bárbara.<br />

O governo Affonso Penna é consi<strong>de</strong>rado pela história como o<br />

“governo dos Magistrados”, já que entre 1907 e 1909 o mineiro enviou<br />

ao Congresso um programa administrativo, inspirado em princípios<br />

jurídicos-sociais. A nata da intelectualida<strong>de</strong> brasileira da época<br />

frequentava o Palácio do Catete: seu Ministro das Relações Exteriores foi<br />

José Maria da Silva Paranhos Junior, o Barão do Rio Branco (mantido no<br />

cargo nas presidências <strong>de</strong> Rodrigues Alves, Affonso Penna, Nilo Peçanha<br />

e Hermes da Fonseca, imbatível no cargo que era); David Campista era<br />

seu Ministro da Fazenda e para o Ministério da Guerra foi buscar,<br />

curiosamente, o ex-ajudante-<strong>de</strong>-or<strong>de</strong>ns do Con<strong>de</strong> d’Eu, Hermes<br />

Rodrigues da Fonseca, que se exoneraria do cargo para candidatar-se à<br />

presidência da República no quatriênio seguinte.<br />

Sobre Affonso Penna, fala o Barão do Rio Branco: “Todos os que o<br />

conhecemos <strong>de</strong> perto, amigos e colaboradores que ele escolhera para a<br />

tarefa <strong>de</strong> bem encaminhar o futuro nacional, todos fomos tocados por<br />

esse entusiasmo vivaz, por esse nobre e generoso alento juvenil, como a<br />

própria esperança... O Brasil inteiro, que igualmente o acompanhou<br />

nessa empresa, fez-lhe a justiça <strong>de</strong> acreditar na pureza <strong>de</strong> suas<br />

intenções, via nele um verda<strong>de</strong>iro estadista <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> assegurar-nos a<br />

paz <strong>de</strong> que tanto precisamos e precisam todos os povos”.<br />

Durante o período em que Affonso Augusto Moreira Penna<br />

governou, a malha ferroviária do Brasil dobrou <strong>de</strong> tamanho (quando<br />

Affonso Penna Junior teve seu nome cogitado para a presidência da<br />

República, também colocou como priorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua plataforma eleitoral<br />

o transporte ferroviário). Outro aspecto interessante <strong>de</strong> seu governo diz<br />

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respeito à expansão telegráfica, cabendo ao então Tenente-Coronel<br />

Cândido Rondon papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque.<br />

Chega o fatídico 14 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1909 e o colapso no Palácio do<br />

Catete; e faz-se a história, com o vice-presi<strong>de</strong>nte Nilo Peçanha<br />

assumindo provisoriamente o governo, com transmissão do cargo a<br />

Hermes da Fonseca em 15/11/1910. (Continua).<br />

Datas relativas ao Presi<strong>de</strong>nte Affonso Penna:<br />

Em 16/1/1864, término do curso no Colégio do Caraça.<br />

Em 23/10/1870, cola grau na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo, no<br />

Largo <strong>de</strong> São Francisco, hoje a USP.<br />

Em 1874 elege-se <strong>de</strong>putado provincial pelo Partido Liberal.<br />

Em 1878 elege-se <strong>de</strong>putado geral, cargo ocupado até a Proclamação<br />

da República.<br />

Em 23/1/1875 casa-se, em Barbacena / MG, com Maria<br />

Guilhermina <strong>de</strong> Oliveira Penna, filha do Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Carandaí.<br />

Em 21/1/1882 é nomeado para ocupar a pasta da Guerra no<br />

Gabinete Martinho Campos. No tempo do Império apenas 2 civis<br />

exerceram o Ministério da Guerra: Pandiá Calógeras e Affonso Penna.<br />

Em 24/5/1883 é <strong>de</strong>signado para exercer o Ministério da<br />

Agricultura, Comércio e Obras Públicas no Gabinete Lafayette.<br />

Em 6/5/1885 é convocado para ocupar a pasta <strong>de</strong> Ministro do<br />

Interior e da Justiça no Gabinete Saraiva.<br />

Em 28/9/1885 é signatário da “Lei dos Sexagenários”, que<br />

concedia liberda<strong>de</strong> aos escravos maiores <strong>de</strong> 60 anos.<br />

Em 1888 integra a comissão <strong>de</strong> organização do Código Civil<br />

brasileiro.<br />

Em 1891 é Senador Constituinte do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais.<br />

Em 15/6/1892, na sessão solene da promulgação da Constituinte<br />

<strong>Mineira</strong>, foi votada e aprovada “uma moção <strong>de</strong> louvor e reconhecimento<br />

ao congressista Affonso Penna, pelo infatigável zelo, civismo e<br />

proficiência com que se <strong>de</strong>sempenhou da árdua tarefa, cooperando tanto e<br />

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O<strong>de</strong> a um brasileiro (dois, em três capítulos) _____________________________________________ Henrique Leal 229<br />

ilustrando os <strong>de</strong>bates, para o bom êxito da missão gloriosa incumbida ao<br />

primeiro Congresso Constituinte do estado <strong>de</strong> Minas Gerais.”<br />

Em 14/7/1892 é empossado como Presi<strong>de</strong>nte (Governador) do<br />

Estado <strong>de</strong> Minas Gerais. Governa até 7/9/1894.<br />

Em 4/12/1892, juntamente com outros, funda a Faculda<strong>de</strong> Livre <strong>de</strong><br />

Ciências Jurídicas e Sociais, em Ouro Preto, da qual foi o primeiro<br />

Diretor; é professor catedrático <strong>de</strong> Economia Política e Ciência das<br />

Finanças; mesmo como Presi<strong>de</strong>nte do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais, Affonso<br />

Penna dava aulas na faculda<strong>de</strong>.<br />

Em 13/12/1893 o Congresso mineiro, reunido em Barbacena,<br />

aprova a Lei, proposta por Affonso Penna, fundando a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo<br />

Horizonte (antiga Curral <strong>de</strong>l Rey), <strong>de</strong>signada como capital no lugar <strong>de</strong><br />

Vila Rica (atual Ouro Preto).<br />

Em 1894, afastado <strong>de</strong> cargo político, é chamado pelo Governo <strong>de</strong><br />

Minas Gerais para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o estado numa disputa judicial. Após ganhar<br />

a causa, o Presi<strong>de</strong>nte do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais, Crispim Jacques Bias<br />

Fortes, pergunta-lhe sobre os honorários. Affonso Penna respon<strong>de</strong>-lhe<br />

que jamais cobraria serviços ao seu estado natal, que era seu <strong>de</strong>ver<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r Minas Gerais. O Presi<strong>de</strong>nte do estado, então, indaga sobre o<br />

valor habitual dos honorários para o serviço prestado por Affonso Penna<br />

e envia-lhe ainda assim o pagamento. Affonso Penna usa então este valor<br />

para a compra <strong>de</strong> um terreno em Belo Horizonte, doando-o para a<br />

construção da Faculda<strong>de</strong> Livre <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Minas Gerais (antiga<br />

Faculda<strong>de</strong> Livre <strong>de</strong> Ciências Jurídicas e Sociais, originalmente<br />

sediada em Ouro Preto), que é <strong>de</strong>nominada “a vetusta casa <strong>de</strong><br />

Affonso Penna”.<br />

Em 29/3/1895 <strong>de</strong>clina <strong>de</strong> convite para ser Enviado Extraordinário e<br />

Ministro Plenipotenciário em Montevidéu do Presi<strong>de</strong>nte Pru<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

Moraes.<br />

De 1895 a 1898 é Presi<strong>de</strong>nte do Banco da República (atual Banco<br />

do Brasil).<br />

De 1898 a 1900, Senador por Minas Gerais.<br />

De 1900 a 1902 presi<strong>de</strong> o Conselho Deliberativo <strong>de</strong> Belo<br />

Horizonte, cargo equivalente ao <strong>de</strong> Prefeito.<br />

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Em 18/2/1903 é eleito Vice-Presi<strong>de</strong>nte da República, tendo<br />

assumido o cargo em 19/6/1903.<br />

Em março <strong>de</strong> 1906, por eleição direta, é escolhido Presi<strong>de</strong>nte da<br />

República; é empossado em 15/11/1906, em sessão presidida pelo baiano<br />

Ruy Barbosa.<br />

Em 5/1/1907 sanciona o Decreto 1637 que, inspirado na legislação<br />

francesa, dizia: “Os sindicatos profissionais se constituem livremente,<br />

sem autorização do governo, bastando (...) <strong>de</strong>positar no cartório os<br />

documentos necessários.” O referido Decreto dispôs sobre a criação dos<br />

sindicatos profissionais e das cooperativas.<br />

Em 5/4/1909 inaugura, juntamente com seu Ministro <strong>de</strong> Viação e<br />

Obras Públicas, Miguel Calmon du Pin e Almeida, trecho ferroviário da<br />

linha Itararé-Uruguai da Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Viação Paraná – Santa Catarina.<br />

Em 14/6/1909 falece no Palácio do Catete (atual Museu da<br />

República) – Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Em 3/3/2006, o Prefeito Municipal <strong>de</strong> Santa Bárbara / MG<br />

sanciona o Decreto-Lei nº 1356/2006 criando o Memorial Affonso<br />

Penna no imóvel on<strong>de</strong> o Conselheiro nasceu e morou.<br />

Notas<br />

1 Des<strong>de</strong> já <strong>de</strong>ixo claro que existem várias grafias aceitas para nomes da<br />

família; na medida do possível, manterei as originais.<br />

2 Não é o meu caso.<br />

3 Afonso Marco Godinho, em “Conhecendo Santa Bárbara”, p. 8.<br />

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A LITERATURA E A<br />

ARTE ALDRAVISTA<br />

Movimento Mineiro do século XXI<br />

Andréia Donadon Leal*<br />

Os homens pré-históricos, numa manifestação artística intuitiva,<br />

começaram a expressar suas primeiras i<strong>de</strong>ias e criações nas famosas<br />

pinturas rupestres. Percebe-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então a ligação genuína entre arte e<br />

poética num <strong>de</strong>sejo que culminou, e culmina até hoje, na forma <strong>de</strong><br />

expressão artística, pictórica, oral ou linguística. Com esse ato criaram a<br />

noção <strong>de</strong> uma linguagem que ultrapassava os meios <strong>de</strong> comunicação da<br />

época. Dessa proposição surge o conceito <strong>de</strong> que é sempre possível<br />

inovar com a arte <strong>de</strong> utilizar a palavra para produzir i<strong>de</strong>ias, beleza e renovação<br />

do pensamento ou com o discurso artístico <strong>de</strong> conceber produtos<br />

<strong>de</strong> uma elaboração estética resultante da criativida<strong>de</strong> em objeto único.<br />

Nessa trilha <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias,<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais e <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, com o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> romper os limites da<br />

significação e do sentido, iniciou-se o Movimento Literário e Artístico na<br />

cida<strong>de</strong> mineira <strong>de</strong> Mariana em novembro <strong>de</strong> 2000, com lançamento do<br />

jornal Aldrava Cultural e o livro Aldravismo – a literatura do sujeito, em<br />

um momento em que se verificou o amadurecimento <strong>de</strong> panfletos<br />

literários, como o PoeZine (1995) e Quatro + ou – poetas (1996) e do<br />

* Bacharel em <strong>Letras</strong> e Estudos Literários. Resi<strong>de</strong> em Mariana.<br />

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Jornal Cimalha (1997), todos representantes da imaginação criadora dos<br />

poetas aldravistas da cida<strong>de</strong> mineira. A literatura inconfi<strong>de</strong>nte, um dos<br />

primeiros movimentos na direção da afirmação da pátria brasileira com<br />

insígnia “libertas quae sera tamen”, <strong>de</strong>ixada como herança pululante na<br />

história da literatura brasileira do século XVIII, serve <strong>de</strong> mola propulsora<br />

para o investimento aldravista. Uma das primeiras providências do<br />

movimento aldravista foi a <strong>de</strong> buscar, como critério <strong>de</strong> escolha para<br />

publicação, textos e obras <strong>de</strong> arte que rompessem com barreiras formais<br />

<strong>de</strong> produção, especialmente os que ousassem criar conceitos novos,<br />

partindo do pressuposto <strong>de</strong> que a arte <strong>de</strong>ve ser, antes <strong>de</strong> tudo, expressão<br />

<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>; textos gerados para um tipo <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> dispersa no<br />

ritmo acelerado do cotidiano, da geração web, com linguagem visual<br />

urbana e <strong>de</strong> experimentação. Desta assertiva abriu caminho para a<br />

percepção <strong>de</strong> que a produção artística e ou literária não é via <strong>de</strong> mão<br />

única e nem imposição do sujeito autor.<br />

Em sua concepção dicionarizada, Aldravismo vem <strong>de</strong> aldrava,<br />

termo que <strong>de</strong>signa o utensílio com o qual se bate nas portas para que<br />

sejam abertas. Trata-se <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong> divulgação <strong>de</strong><br />

cultura (literatura e artes visuais) em que o foco principal é o sujeito. O<br />

estilo trabalha com a conceituação da arte metonímica em que o sujeito<br />

[autor e leitor] é livre e heterogêneo para perceber porções daquilo que é<br />

possível, ou seja, o artista não compõe sua obra sozinho, <strong>de</strong>terminando a<br />

sua interpretação; sabe que o leitor é livre para buscar sentidos.<br />

Antigamente percebíamos que o artista era o personagem que,<br />

através do “ícone sublime”, fazia aparecer a divinda<strong>de</strong> ao público,<br />

consi<strong>de</strong>rado incapaz <strong>de</strong> coparticipar da beleza dos <strong>de</strong>uses, própria dos<br />

divinos artistas. O Aldravismo trata <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>missão do papel divino do<br />

fazedor <strong>de</strong> arte, para que caiba aos outros o papel <strong>de</strong> criadores<br />

autônomos, ou seja, da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> toda a gente participar<br />

neste duplo jogo <strong>de</strong> produzir e usufruir da arte, transpondo este passo<br />

que separa o artista do não artista. O artista transforma-se em<br />

proponente <strong>de</strong> algo a ser interpretado para ser completado pelo<br />

espectador artista.<br />

Revista Volume LI.p65 232<br />

12/5/2009, 15:29


A literatura e a arte aldravista ________________________________________________ Andréia Donadon Leal 233<br />

“ ... surge a i<strong>de</strong>ia mestra do Aldravismo: a <strong>de</strong> que é sempre<br />

possível inovar, e não há outra forma para fazê-lo <strong>de</strong><br />

maneira satisfatória, senão partindo do óbvio ululante, como<br />

diria Nelson Rodrigues. Esse eterno recomeçar, signo<br />

nietzscheano do “fracasso” humano, cobre <strong>de</strong> glória a<br />

iniciativa do Aldravismo ... Trata-se <strong>de</strong> uma manifestação<br />

poética <strong>de</strong> valor cultural inegável, que intriga pela simplicida<strong>de</strong><br />

e se <strong>de</strong>staca pela crueza com que <strong>de</strong>senha o perfil<br />

regional <strong>de</strong> Minas Gerais, <strong>de</strong> uma maneira, até, original”.<br />

(Souza Júnior, 2002). “O dicionário Aurélio ensina: aldrava:<br />

argola <strong>de</strong> metal com que se bate às portas chamando atenção<br />

<strong>de</strong> quem está <strong>de</strong>ntro. Pois vem daí um certo movimento<br />

aldravista que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2000, na histórica Mariana, vem<br />

convocando pessoas à arte. É isso que quer o Portal<br />

Arqueológico, da artista Déia Leal: dar toques, insinuar,<br />

convidar a experimentações, perspectivas, cores, reflexões e<br />

buscas. É o espectador como cúmplice, parceiro e coadjuvante<br />

da criação.” (Mirtes Helena, 2007)<br />

O aldravismo constitui, portanto, algo <strong>de</strong> mão dupla: <strong>de</strong> um lado o<br />

autor da obra <strong>de</strong> arte e <strong>de</strong> outro o autor da leitura <strong>de</strong>ssa obra. O trabalho<br />

do artista passa a exigir também do espectador <strong>de</strong>terminada atenção, um<br />

olhar que pensa. O leitor se apropria <strong>de</strong> todas as prerrogativas <strong>de</strong><br />

construtor <strong>de</strong> sentido e/ou observador reflexivo, que reage às obras, que<br />

sente, pensa e imagina com seus temas, elementos, enunciados. Nesse<br />

caminho, o Aldravismo também não tem o objetivo <strong>de</strong> mostrar<br />

totalida<strong>de</strong>s, aliás, rejeita-as para apresentar ao leitor indícios, metonímias,<br />

ou seja, nem o produtor <strong>de</strong> arte a oferece como “coisa completa”, nem o<br />

leitor a recebe como algo que tem sentido prévio indicado pelo artista.<br />

Ambos continuam livres para construir sentido a partir do ponto que<br />

julgarem pertinente no tempo e no lugar em que se expõem diante da<br />

obra <strong>de</strong> arte. Não se pren<strong>de</strong> a uma forma, molda-se a forma que melhor<br />

seja expressão <strong>de</strong> um indício, <strong>de</strong> um conteúdo.<br />

Revista Volume LI.p65 233<br />

12/5/2009, 15:29


234 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

“... a conceituação do aldravismo como a <strong>de</strong> arte metonímica<br />

– autor e leitor percebem porções daquilo que é possível. O<br />

sujeito da produção da arte metonímica é criativo quanto<br />

mais inova no quesito: o que é que somente eu vi; o leitor<br />

metonímico é aquele que busca algo que só ele viu. A<br />

liberda<strong>de</strong> e a metonímia tornam-se os pilares da arte<br />

aldravista.” (Donadon-Leal, 2002).<br />

Como aldravistas, batendo às portas dos discursos, estão alguns<br />

nomes que figuraram na poesia em Mariana como Leopoldo Comitti,<br />

com seus aldrávicos poemas em Fundo Falso e Por mares navegados;<br />

Lázaro F. Silva, com seus poemas avulsos e a sua produtiva tematização<br />

da cultura popular, L. T. Pirolla, Geraldo Reis, Hebe Rôlae e ainda<br />

figuram batendo as portas dos discursos literários e artísticos,<br />

permanecendo envolvidos e atuantes no movimento, como J. B. Donadon-<br />

Leal, Andréia Donadon Leal, Gabriel Bicalho e J. S. Ferreira. Assim, o<br />

aldravismo po<strong>de</strong> ser caracterizado pela arte que chama atenção, que<br />

insiste, que bate, bate e bate até que alguém venha abrir as portas para<br />

novas interpretações. O discurso faz, <strong>de</strong>sfaz e refaz; alimenta, realimenta<br />

e se alimenta <strong>de</strong> discursos, numa forma <strong>de</strong> antropofagia que cuida <strong>de</strong><br />

cevar a espécie, para se fartar <strong>de</strong>la.<br />

Assim é possível dar uma mostra <strong>de</strong> poetas e poemas aldravistas.<br />

Gabriel Bicalho, um dos fundadores e i<strong>de</strong>alizadores do Aldravismo,<br />

apresenta uma característica peculiar e metonímica em seu livro <strong>de</strong><br />

poesias Caravelas [re<strong>de</strong>scobrimentos]. As palavras se abrigam numa<br />

exploração sonora pungente, trazendo a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se arriscar a<br />

velejar muito além da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Ele traça a i<strong>de</strong>ia metonímica,<br />

chamando o leitor a navegar em sua caravela, aquela que ainda hoje traz<br />

a possibilida<strong>de</strong> dos re<strong>de</strong>scobrimentos, num continente on<strong>de</strong> ancoram<br />

poesias.<br />

Revista Volume LI.p65 234<br />

12/5/2009, 15:29


A literatura e a arte aldravista ________________________________________________ Andréia Donadon Leal 235<br />

marinha V<br />

era brisa<br />

marinha<br />

levando<br />

minha<br />

poesia<br />

pois ia<br />

ia<br />

(Bicalho, Gabriel, 2006)<br />

A obra do poeta J. S. Ferreira revela-se em temas marianenses<br />

como metonímias da cida<strong>de</strong> mineira, à luz do texto fotográfico e em seus<br />

narrapoemas, pequenos na forma, como o badalo do sino ou no meio da<br />

rua com sua pena garimpando a poesia na simplicida<strong>de</strong> lírica das<br />

palavras.<br />

Rua Direita<br />

Rua Direta<br />

<strong>de</strong> casas tortas:<br />

na sacada<br />

<strong>de</strong> pedra-sabão<br />

a musa<br />

perfeita<br />

e um poeta<br />

apaixonado<br />

à porta.<br />

Aleijadinho<br />

Deformadas:<br />

as mãos.<br />

Perfeitas:<br />

as obras!<br />

(Ferreira, J .S., 1996)<br />

Revista Volume LI.p65 235<br />

12/5/2009, 15:29


236 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

A cena linguística aparece soberba e feminina na obra da poeta e<br />

artista plástica Andréia Donadon Leal, em seus roteiros visuais para uma<br />

abordagem metonímica do mundo numa paixão encarnada em versos que<br />

<strong>de</strong>srespeitam <strong>de</strong>liciosamente a pontuação, criando um ritmo quase<br />

dissoluto <strong>de</strong> individualida<strong>de</strong> epifânica.<br />

Insônia<br />

Sono perdido,<br />

banheiro fedido à guimba<br />

perfumado com fragrância <strong>de</strong> mijo.<br />

Poeta <strong>de</strong> papel<br />

à noite<br />

abandono carne e osso<br />

e<br />

visto no corpo<br />

um barquinho <strong>de</strong> papel.<br />

(Leal, Andréia Donadon, 2007)<br />

J. B. Donadon-Leal, criador da sustentação metonímica da<br />

literatura e arte aldravista, com sua idéia <strong>de</strong> equilíbrio entre as percepções<br />

do escritor e do leitor. Sua poesia ten<strong>de</strong> a apresentar pequenas coisas que<br />

fazem parte do cotidiano, mas que não são mais percebidas pelo olhar<br />

automatizado, <strong>de</strong>scuidado dos olhares seduzidos pelas totalida<strong>de</strong>s.<br />

Revista Volume LI.p65 236<br />

12/5/2009, 15:29


A literatura e a arte aldravista ________________________________________________ Andréia Donadon Leal 237<br />

Descuido<br />

Sempre tive a mania<br />

<strong>de</strong> recolher<br />

se os encontro jogados por aí<br />

parafusos<br />

pregos<br />

porcas<br />

arruelas<br />

pequenos objetos que<br />

<strong>de</strong> vez em quando<br />

a gente os procura<br />

<strong>de</strong>sesperado.<br />

Nunca, porém, tive o cuidado<br />

<strong>de</strong> recolher<br />

se os encontro<br />

<strong>de</strong>scuidado<br />

olhares<br />

afagos<br />

palavrinhas<br />

pequenos carinhos que<br />

a gente necessita <strong>de</strong>sesperado.<br />

(Donadon-Leal, J. B., 1997)<br />

As manifestações literárias e artísticas <strong>de</strong>sses poetas aldrávicos –<br />

ditos como invasores <strong>de</strong> terras <strong>de</strong>volutas, são extraídas <strong>de</strong> um olhar<br />

metonímico e por isso <strong>de</strong>vem estar livres para interpretação com a i<strong>de</strong>ia<br />

da arte sem começo ou fim, partindo do pressuposto <strong>de</strong> que a arte <strong>de</strong>ve<br />

ser, antes <strong>de</strong> tudo, expressão <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, ou como diz o poeta Donadon-<br />

Leal (2002): “Abraçar, sem pudores, os discursos <strong>de</strong> todas as<br />

tendências, acreditando pio o <strong>de</strong>mônio que aquece e perverso o <strong>de</strong>us que<br />

inventou o inferno”.<br />

Revista Volume LI.p65 237<br />

12/5/2009, 15:29


238 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Referências Bibliográficas<br />

Souza Júnior, J. L. F. De “prefácio” In: Donadon-Leal, J. B. – Aldravismo<br />

– a literatura do sujeito. Mariana: Aldrava <strong>Letras</strong> e Artes, 2002.<br />

Mirtes, Helena, Hoje em Dia – BH, domingo – capa, 7/1/2007.<br />

Donadon-Leal, J. B, Aldravismo – a literatura do sujeito. Mariana:<br />

Aldrava <strong>Letras</strong> e Artes, 2002. Bicalho, Gabriel. Caravela (re<strong>de</strong>scobrimentos)<br />

Brasília – Ministério da Educação, 2006 – Prêmio Literatura<br />

para Todos – MEC.<br />

Ferreira, J. S., Bateia Lírica (temas marianenses) – 1996.<br />

Leal, Andréia Donadon – Cenário Noturno. Mariana: Aldrava <strong>Letras</strong> e<br />

Artes, 2007.<br />

Donadon-Leal, J. B., Gênese da Poesia e da Vida, 1997, Editora Livro<br />

Aberto – 1° Festival <strong>de</strong> Literatura universitário – Xérox e revista Livro<br />

Aberto.<br />

Revista Volume LI.p65 238<br />

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O Conto Mineiro<br />

A MÃE-<strong>DA</strong>-LUA<br />

(Lenda do Vale do Baixo Paraopeba)<br />

Agripa Vasconcelos*<br />

Às queridíssimas Mara, Ophir e Belkiss,<br />

sorriso, clarida<strong>de</strong> e paz <strong>de</strong> minha vida.<br />

Naquele tempo, segundo a tradição, Jesus andava pela terra,<br />

experimentando o coração dos homes. Sofrera na sua humilda<strong>de</strong> pelos<br />

pecados alheios. Vira <strong>de</strong> perto a baba corrosiva dos vícios e as<br />

reincidências mais torpes. Reconhecendo a dureza das almas e o egoísmo<br />

da carne, retirou-se, orando, para a selva.<br />

Os pássaros eram mudos e tinham todos cor uniforme da terra. Ele,<br />

que tanto se esforçara pela virtu<strong>de</strong> dos homens, quis repartir com as aves<br />

a sua misericórdia tão doce. Tingiu <strong>de</strong> um rubro alegre os canários<br />

agrestes; <strong>de</strong>u às garças a cor nívea das espumas; aos melros, o negro<br />

fechado para que fosse mais solene o seu canto heroico. Pintou as asas<br />

que vira, sendo que as aves pardas ainda hoje são aquelas que seus olhos<br />

não banharam da luz maravilhosa.<br />

* Dados biográfico no final do texto.<br />

Revista Volume LI.p65 239<br />

12/5/2009, 15:29


240 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

A todos premiou, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o corvo-rei das lapas abruptas ao noitibó<br />

dos caminhos rasos. Ensinou-lhes a tecer o ninho <strong>de</strong> úsnea e arminhos<br />

quentes. Se afiou as garras aos rapaces, seu ligeireza ao voo das<br />

andorinhas. Como antes <strong>de</strong>ra orvalho às ervas que pisara, a compensarlhes<br />

a maciez, mandara cair agora às sementes maduras para o cibo <strong>de</strong><br />

seus irmãos pássaros. Aos guaxos, tão ambicionados pela sua cor tão<br />

linda, mandou fizessem <strong>de</strong> musgos e raízes os ninhos longos, mas sempre<br />

suspensos sobre abismos e rios fundos, nos galhos pendidos, para que às<br />

mães não os roubassem. Deu pio grave às urus e jaós por que,<br />

voando pouco, não lhes fossem escutados os gemidos <strong>de</strong>ntro das<br />

matas virgens. Tendo assim adaptado as aves a uma vida tranquila,<br />

pôs-se a palmilhar os ermos on<strong>de</strong> apenas as flores da murta caíssem à sua<br />

cabeça.<br />

Certa vez sentiu se<strong>de</strong>. Descendo a uma fonte da floresta, encontrou<br />

uma mulher velha e cega, chorando com o cântaro vazio, na barranca. E<br />

contou-lhe que a filha moça fugira naquela tar<strong>de</strong> com um saltimbanco<br />

para a vida das feiras. Morta a filha sua alegria seria imensa, em vez <strong>de</strong> a<br />

saber fora <strong>de</strong> seu coração, ciganeando o brio.<br />

Só havia estrelas no côncavo do céu. Porque fosse boa a sua alma,<br />

Jesus sorriu, mostrando no alto, pois naquele instante estava a moça<br />

transformada em lua nova, longe, no azul...<br />

Jesus, não as querendo separadas, a um sopro transformou a velha<br />

em uma ave gran<strong>de</strong>. Queria alçá-la ao céu, dando-lhe às asas manchadas<br />

<strong>de</strong> negro e branco o po<strong>de</strong>r milagroso <strong>de</strong> alcançar a lua...<br />

Mas, tendo pressa <strong>de</strong> salvar um tronco do gume <strong>de</strong> um lenhador,<br />

mandou que a ave O esperasse. A Mãe-da-Lua, então, pousada num<br />

tronco, esperou pelo que partira. À noite a lua esplen<strong>de</strong>u, milionária, no<br />

azul triste. Alvoroçaram-se até as feras à sua beleza estupenda. Tigres<br />

urravam, espantados sob o clarão novo.<br />

A ave, perpetuamente estática para o céu, tonta do plenilúnio,<br />

bêbada <strong>de</strong> azul, absorta na amplidão, tem nessa atitu<strong>de</strong> misteriosa aspecto<br />

<strong>de</strong> quem vê um sonho muito ao longe, e <strong>de</strong> quem ouve chamados que não<br />

po<strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r.<br />

Alguém ven<strong>de</strong>ra, porém, o homem perfeito.<br />

Revista Volume LI.p65 240<br />

12/5/2009, 15:29


A Mãe-da-Lua (lenda do Vale do Baixo Paraopeba) __________________________________ Agripa Vasconcelos 241<br />

Serviria <strong>de</strong> escárnio, uma cana entre as mãos, e, feito rei, teria na<br />

coroa <strong>de</strong> espinhos a onipotência...<br />

E assim Jesus não mais voltou aos caminhos por on<strong>de</strong> viera.<br />

Todavia a Mãe-da-Lua espera... Se pergunta ao luar branco pelo<br />

caminhante, a si mesma repon<strong>de</strong> no <strong>de</strong>salento <strong>de</strong> um eco: “Foi! Foi,<br />

foi...”<br />

Nas noites alvas, aspergidas <strong>de</strong> luar, a ave – sozinha – procura na<br />

solidão dos campos uma árvore bem alta e geme pelo que não voltou. Em<br />

vão espraia os olhos pelas trilhas silenciosas. Depois <strong>de</strong> um apelo<br />

soluçado, espera atenta uma resposta... Voa para mais longe on<strong>de</strong> as<br />

fontes não murmurem e os ventos durmam! De novo escuta. Desmaia,<br />

porém, a lua na tremulina da manhã brumosa. Ninguém respon<strong>de</strong>... Sua<br />

voz é fraca e rouca; a lua não a vê <strong>de</strong> tão alto...<br />

Canta ainda na quietu<strong>de</strong> dos espigões! Olha se alguém passa no céu<br />

pela estrada <strong>de</strong> S. Tiago... Talvez numa <strong>de</strong>ssas noites claras a sua voz<br />

chegue, ao <strong>de</strong> leve, aos ouvidos do Peregrino...<br />

O céu é bem longe, mas a tristeza dos gemidos dilacerantes sobe<br />

<strong>de</strong>pressa pela escada do luar surpreen<strong>de</strong>nte ao sólio do mistério.<br />

Soluça e espera, MÃE-<strong>DA</strong>-LUA!<br />

<strong>DA</strong>DOS BIOGRÁFICOS<br />

Agripa <strong>de</strong> Vasconcelos nasceu em Matosinhos, Minas Gerais, em<br />

12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1896, e faleceu em Belo Horizonte, em 20 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong><br />

1969.<br />

Formou-se pela Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

<strong>de</strong>dicando toda a sua vida à Medicina, tendo trabalhado em diversas<br />

cida<strong>de</strong>s mineiras e em Recife, como médico-chefe do Banco do Brasil,<br />

até aposentar-se. Pertenceu à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, para on<strong>de</strong> foi<br />

eleito em 3 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1921, ao Instituto Histórico e Geográfico <strong>de</strong><br />

Minas Gerais e ao Instituto Histórico <strong>de</strong> Ouro Preto. Deixou seis<br />

romances, formando a coleção Sagas do País das Gerais e as obras:<br />

Silêncio, Nós e o Caminho do Destino, Suor e Sangue (Prêmio Olavo<br />

Bilac, da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>), A Morte do Escoteiro Caio,<br />

Revista Volume LI.p65 241<br />

12/5/2009, 15:29


242 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Sementeira nas Pedras, Fome em Canaã e Corpo fechado (Lendas e<br />

Contos), obra publicada em 2008, a partir <strong>de</strong> seus manuscritos, com a<br />

primeira parte já organizada e or<strong>de</strong>nada pelo autor e garimpados por sua<br />

filha Mara <strong>de</strong> Vasconcelos Mancini, editada pelo SESC-MG. É patrono<br />

da Ca<strong>de</strong>ira n.° 2 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> dos Funcionários do Banco do<br />

Brasil.<br />

Revista Volume LI.p65 242<br />

12/5/2009, 15:29


Remorso ______________________________________________________________________ Ronaldo Guimarães 243<br />

REMORSO<br />

Ronaldo Guimarães*<br />

Lindolfo é um assassino ou pelo menos acha que é. Sua mãe<br />

morreu em seu parto. Foi criado por duas tias mal-humoradas. Não lhe<br />

<strong>de</strong>ram afeto <strong>de</strong> mãe nem per<strong>de</strong>ram o sono por febres e termômetros que<br />

beiravam a quarenta graus.<br />

Rodolfo, seu irmão dois anos mais velho e duzentas vezes mais<br />

bonito foi criado pela avó, após a morte da mãe. A avó tinha suas<br />

predileções e senso <strong>de</strong> estética. Já que suas filhas solteironas não tiveram<br />

a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> arrumar nem um mísero homem, que fosse baixinho,<br />

gordo ou careca, para sustentá-las ou chamarem <strong>de</strong> seu, pelo menos<br />

cuidassem do estorvo e assassino. E cuidaram mal. Estabanadas.<br />

O pai <strong>de</strong> Lindolfo e Rodolfo, sujeito errante, vida torta, segundo<br />

grau incompleto, jogador da segunda divisão, segundo volante, segundo<br />

<strong>de</strong> uma família infeliz <strong>de</strong> treze irmãos, segundo vice-presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Escola<br />

<strong>de</strong> samba, segundo sargento da cavalaria e por isso mesmo cheirava a<br />

cavalo e, segundo as más línguas, tinha segundas intenções e uma<br />

segunda mulher quando a patroa morreu <strong>de</strong> parto. Ficou aliviado e caiu<br />

no mundo <strong>de</strong>ixando para trás Lindolfo e Rodolfo. Numa segunda-feira.<br />

Lindolfo morre <strong>de</strong> remorso. Rodolfo, nem aí. O valentino da<br />

família, bonito <strong>de</strong> doer, quando se fez homem, largou o jugo da avó e foi<br />

cheirar outros mundos e outras mulheres. Foi mais cheirado do que<br />

cheirou.<br />

* Escritor e professor.<br />

Revista Volume LI.p65 243<br />

12/5/2009, 15:29


244 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Lindolfo ficou em casa. Não conhecia outros mundos e se culpava<br />

pela ida do pai, pela ida <strong>de</strong> Rodolfo, pela ira da avó, pelo enfado das tias<br />

e pela morte da mãe. O remorso o corroía.<br />

Uma das tias, Beatriz, quarenta e poucos anos, pernas roliças, saia<br />

acima do joelho, sandália que entrelaçava o tornozelo e esmalte vermelho<br />

nas unhas dos pés, tinha o aroma que mais o sensibilizava e que traduzia<br />

o cheiro <strong>de</strong> mulher. Seu fetiche predileto. Um assombro para os<br />

anos finais da década <strong>de</strong> cinquenta. Por isso mesmo não arrumou um<br />

marido. Os homens fugiam assustados com tanta mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e<br />

arrebatamento.<br />

E, além <strong>de</strong> tudo, dirigia uma Rural Willys. Dirigia com carteira do<br />

Detran (ela e mais trinta e sete mulheres <strong>de</strong>spudoradas da cida<strong>de</strong> eram<br />

habilitadas). E usava saia acima do joelho. Heresia e das bravas. Às<br />

vezes, ela se investia <strong>de</strong> mãe e levava Lindolfo para o Grupo Escolar.<br />

Ele, ao lado, excitado com as manobras da tia. Quando ela<br />

afundava o pé <strong>de</strong> esmalte vermelho na embreagem, abrindo as pernas,<br />

dando um lance maravilhoso e mudava a marcha com mãos esmaltadas<br />

<strong>de</strong> vermelho, ele ficava vermelho.<br />

E se remoía <strong>de</strong> remorso.<br />

A vonta<strong>de</strong> era tão forte <strong>de</strong> tocar naquelas pernas, que inventou uma<br />

pergunta. Pela primeira vez, acariciou uma perna <strong>de</strong> mulher e achou que<br />

Deus escreve por linhas retas e lisas e perguntou:<br />

– Titia, on<strong>de</strong> andará o Rodolfo? Sinto tanta sauda<strong>de</strong>...<br />

A titia, mais cínica e mais excitada do que ele, não soube respon<strong>de</strong>r<br />

on<strong>de</strong> andava o Rodolfo e nem on<strong>de</strong> estava com a cabeça <strong>de</strong> ficar excitada<br />

com aquele pirralho.<br />

Os dois ficaram com remorso.<br />

Lindolfo cresceu com remorso, fez-se moço, fez-se homem e<br />

casou-se com Marta. Oito anos mais velha. Cerzi<strong>de</strong>ira.<br />

Rodolfo não <strong>de</strong>u sorte com a Beatriz, mas seduzia a meta<strong>de</strong><br />

feminina do país. Desonrou mulheres casadas e honradas, prometeu mais<br />

mundos do que fundos, enriqueceu pela bela plástica, casou e <strong>de</strong>scasou<br />

cinco vezes e acumulou riqueza por conta <strong>de</strong> mulheres apaixonadas e<br />

<strong>de</strong>savisadas. Nem lembra que Lindolfo existe. Saiu ao pai.<br />

Revista Volume LI.p65 244<br />

12/5/2009, 15:29


Remorso ______________________________________________________________________ Ronaldo Guimarães 245<br />

Lindolfo, o pacato Lindolfo, funcionário <strong>de</strong> carreira do Banco do<br />

Brasil, sem filhos e sem charme, vivia uma vida pacata num pequeno<br />

apartamento sem aparatos, na zona noroeste da cida<strong>de</strong>. De dois quartos e<br />

uma vaga <strong>de</strong> garagem que não tinha serventia. Andava <strong>de</strong> ônibus. Mas<br />

bem que servia. Alugava para o vizinho do 302. Nada, nada, dava pra<br />

salvar a feira do mês. Deus poupou-o da inveja. Admirava o vizinho do<br />

302 com seus dois carros cintilantes. O vizinho atrasava o aluguel da<br />

garagem e ele, constrangido e com remorso, batia à sua porta e<br />

reivindicava sua migalha.<br />

Saía às sete e voltava às sete. Ali, no cronômetro, sem protuberâncias<br />

e sobressaltos. De vez em quando, pensava na tia Beatriz com seu salto<br />

alto, coxas grossas e esmalte vermelho. Ela já tinha passado <strong>de</strong>sta para<br />

uma melhor há algum tempo. No caixão, os <strong>de</strong>dos das mãos entrelaçados<br />

<strong>de</strong> um vermelho Ferrari, segurava o crucifixo. Mãos brancas e sem veias<br />

azuis, contrastava com o crucifixo marrom. Ficou ao lado do caixão toda<br />

a madrugada, acariciando as mãos da tia. Gostava mais dos pés, mas a<br />

família tivera a infeliz idéia <strong>de</strong> enterrá-la com sapato fechado. Infeliz<br />

idéia.<br />

Aquele pé era <strong>de</strong>le, só <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o afundar singelo e sensual no<br />

pedal da embreagem. No meio da madrugada, velório vazio, teve ímpeto<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sabotoar o sapato e beijar os pés da tia. Conteve-se. Em vez disso,<br />

recitou, em voz baixa, um poema <strong>de</strong> Olavo Bilac, seu poeta favorito.<br />

Estava bem acompanhado com suas taras.<br />

E tome remorso.<br />

Homem <strong>de</strong> poucas palavras, muitos remorsos e algumas virtu<strong>de</strong>s:<br />

gostava dos Beatles. Tinha todos os elepês da banda. E colecionava a<br />

revista Seleções.<br />

Sentado na “ca<strong>de</strong>ira do papai”, lia a revista e trazia a esposa para o<br />

mundo:<br />

– Marta, você sabia que os esquimós, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as priscas eras, vivem<br />

da pesca e da caça <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s mamíferos como a foca, a morsa, a baleia e<br />

ainda <strong>de</strong> aves e do urso polar?<br />

Marta, que além <strong>de</strong> cerzir, pregava botões e fazia bainha, não sabia<br />

<strong>de</strong> esquimós, nem <strong>de</strong> priscas eras, mas ouvia com atenção.<br />

Revista Volume LI.p65 245<br />

12/5/2009, 15:29


246 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

E ele ficava com remorso com tamanha atenção da esposa.<br />

Mesmo assim, continuava sua aula:<br />

– Imagina você, minha querida Marta, que eles também oferecem<br />

as esposas para os visitantes? E se eles não aceitam, os esquimós ficam<br />

ofendidos?<br />

Marta quase disse “on<strong>de</strong> já se viu?”, mas não disse nada. Apenas<br />

abaixou a cabeça, constrangida, e pregou mais um botão.<br />

Num dia quente <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro, às vésperas do Natal, em que a<br />

umida<strong>de</strong> relativa do ar dava para respirar um bom ar, ele fez um presépio,<br />

para nenhum filho ver, nenhum neto apreciar, muito menos para Rodolfo<br />

pôr <strong>de</strong>feito, porque nessa hora estava estalando champagne em um<br />

Cruzeiro no Caribe. Confortável na “ca<strong>de</strong>ira do papai”, apreciando sua<br />

obra e ouvindo Let it be dos Beatles, morreu.<br />

Morreu <strong>de</strong> uma morte confortável, apreciando um presépio, que ele<br />

fazia questão <strong>de</strong> confeccionar todo santo ano. Sem Jesus na manjedoura.<br />

Morte chocha, sem qualquer aci<strong>de</strong>nte fantástico que mobilizasse a<br />

população e sem notícia no jornal. Nunca seu nome aparecera uma única<br />

vez num jornal, nem no rodapé. Rodolfo se redimiu perante o irmão e, na<br />

missa <strong>de</strong> sétimo dia, colocou o nome <strong>de</strong>le no jornal: “A família <strong>de</strong><br />

Lindolfo dos Santos Cruz convida para a missa <strong>de</strong> ressurreição, na igreja<br />

<strong>de</strong> Santa Rita <strong>de</strong> Cássia, às vinte e uma horas do dia 24 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro.<br />

Antecipa agra<strong>de</strong>cimentos...”<br />

Se, por acaso, <strong>de</strong>ssem voz e sentimento ao <strong>de</strong>funto, ele agra<strong>de</strong>ceria<br />

e beijaria <strong>de</strong> pés juntos, os pés do irmão, pela honraria <strong>de</strong> estampar seu<br />

nome num jornal <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> circulação.<br />

Rodolfo fez sua parte, ficou com a consciência tranquila, mas<br />

achou que <strong>de</strong>u milho a bo<strong>de</strong>. Seu irmão não tinha amigos, a família era<br />

pequena e ninguém leria nota <strong>de</strong> falecimento <strong>de</strong> um zero à esquerda.<br />

Concorrer, no dia <strong>de</strong> Natal, com “Missa do Galo”, com as melhores<br />

igrejas da cida<strong>de</strong>, era <strong>de</strong>mais para o anônimo Lindolfo.<br />

Igreja às moscas. Marta, na primeira fileira, luto fechado,<br />

<strong>de</strong>bulhava um terço e chorava a quatro ventos. As poucas pessoas<br />

presentes ficaram emocionadas com tanta emoção.<br />

Revista Volume LI.p65 246<br />

12/5/2009, 15:29


Remorso ______________________________________________________________________ Ronaldo Guimarães 247<br />

Lindolfo morreu com remorso, pensando na falta <strong>de</strong> filho, na falta<br />

<strong>de</strong> Jesus na manjedoura e na falta <strong>de</strong> tia Beatriz.<br />

Morreu, sem imaginar que Marta, a cerzi<strong>de</strong>ira, tinha dois amantes<br />

espetaculares. Um que lhe batia, às terças e quintas-feiras e outro, que a<br />

acariciava às quartas e sextas. Na parte da tar<strong>de</strong>. Gostava dos dois.<br />

Gostava <strong>de</strong> dor e carícias. Eles não ensinavam como vivem os esquimós,<br />

ensinavam outras coisas.<br />

Marta continua viva. Sem remorso.<br />

Revista Volume LI.p65 247<br />

12/5/2009, 15:29


248 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 248<br />

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EXISTENCIALISMO<br />

Maria do Carmo Brandão*<br />

Primeiro ele entrou casa a<strong>de</strong>ntro com uma caixa <strong>de</strong> vidro<br />

transparente, colocou-a sobre sua mesa <strong>de</strong> estudo e começou a enchê-la<br />

<strong>de</strong> água, às canecadas. Sempre na minha presença ele adaptou um<br />

cilindro à água que, ligado ao acen<strong>de</strong>dor, liberava oxigênio. Então<br />

<strong>de</strong>spejou os peixes, <strong>de</strong> tamanhos e tipos diferentes.<br />

Os peixes, nadando, ele sorriu satisfeito.<br />

Depois ele chegou com um casal <strong>de</strong> periquitos numa espaçosa<br />

gaiola cheia dos badulaques. Aconchegou-a próximo à janela e ficou<br />

olhando-os saltar <strong>de</strong> um trapézio para outro. Os periquitos, bem<br />

acomodados, ele sorriu satisfeito.<br />

O aquário pediu mais um outro e ele acrescentou um apêndice on<strong>de</strong><br />

passaram a funcionar a maternida<strong>de</strong> e a pediatria. Com pouco tempo<br />

filhotes e mais filhotes <strong>de</strong> peixes nasciam, ocupando três ou quatro<br />

aquários a mais. Um casal <strong>de</strong> canários-belgas veio fazer companhia aos<br />

passarinhos, bem como um casal <strong>de</strong> manons, em cada um dos quatro<br />

cantos do quarto... acrescido <strong>de</strong> um imponente tucano e mais um picapau,<br />

que, afinal, podiam saltitar livremente <strong>de</strong>ntro ou fora das gaiolas. A<br />

cobra, <strong>de</strong> nome Jurema, ocupou um compartimento no rodapé,<br />

eventualmente dando sinal <strong>de</strong> vida quando saía <strong>de</strong> sua casa para<br />

espairecer. Então um dia, tendo mais um novo habitante acabado <strong>de</strong><br />

chegar à reserva ecológica que se instalara <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> minha casa, resolvi<br />

* Mestre em Literatura <strong>de</strong> Língua Portuguesa, professora da PUC Minas, autora <strong>de</strong> 17 livros.<br />

Revista Volume LI.p65 249<br />

12/5/2009, 15:29


250 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

buscar meu filho, encontrando-o <strong>de</strong> quatro junto aos bichos, abanando<br />

suas orelhas <strong>de</strong> repente pontudas e caídas, o que, aliás, fazia com extrema<br />

graça e satisfação. O meu filho, filhotinho lindo, era mais um irracional<br />

que ele acabara <strong>de</strong> acrescentar ao seu zoo.<br />

NEURA<br />

Pensou em mudar as coisas <strong>de</strong> lugar. O quarto, primeiramente.<br />

Estava <strong>de</strong> saco cheio com a disposição dos móveis e estantes <strong>de</strong><br />

livros. Varreu, espanou, revirou e mexeu em tudo. Animada com a beleza<br />

do resultado, entrou casa a<strong>de</strong>ntro, escritório, sala, outro quarto, copa,<br />

cozinha e banheiro. No último ficou revoltada porque não conseguia<br />

arrancar as peças do chão. Angustiada ante a impotência, pegou o martelo<br />

e uma espécie <strong>de</strong> alavanca e pôs-se a arrancá-las. Na força. Primeiro a<br />

privada, banheira, <strong>de</strong>pois a pia e o bidê. Com as peças fora dos lugares e<br />

literalmente quebradas, saiu, largando-as jogadas no chão.<br />

Antes <strong>de</strong> fechar o apartamento por fora, lançou um olhar geral para<br />

os cômodos on<strong>de</strong> tudo – mas tudo mesmo – se encontrava na maior zona.<br />

De quem seria aquela casa tão esquisita, pensou ela, enquanto<br />

trancava a porta e jogava a chave na lixeira do corredor.<br />

Revista Volume LI.p65 250<br />

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Apreciação crítica<br />

UMA LEITURA CORRI<strong>DA</strong> –<br />

SOBRE O LIVRO<br />

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE<br />

FRANCISCO BA<strong>DA</strong>RÓ,<br />

DE MURILO BA<strong>DA</strong>RÓ.<br />

Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães*<br />

Não é fácil escrever biografias. Menos ainda, autobiografias. Foi<br />

tarefa das mais louváveis a edição (póstuma) das memórias <strong>de</strong> seu ilustre<br />

avô, guardadas em anotações e ainda extraídas da própria criação do<br />

autor.<br />

Murilo Badaró já havia <strong>de</strong>monstrado suas aptidões <strong>de</strong> excelente<br />

biógrafo, quando escreveu sobre gran<strong>de</strong>s homens públicos: Gustavo<br />

Capanema, José Maria Alkmim e Milton Campos.<br />

A faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservar e reproduzir idéias ou noções adquiridas,<br />

a recordação ou o hábito <strong>de</strong> invocar cenas e atos da vida <strong>de</strong> si próprio ou<br />

<strong>de</strong> alguém formam uma espécie <strong>de</strong> requerimento suplementar da vida –<br />

pessoal ou <strong>de</strong> outrem. Os recortes <strong>de</strong> fatos que envolveram a pessoa<br />

biografada servem como um memorial <strong>de</strong> tempo e história. O valor das<br />

ações reais ou mentais que se relacionaram ao biografado vem atestar a<br />

formação da sua personalida<strong>de</strong> e do seu caráter.<br />

* Escritora, Presi<strong>de</strong>nte Emérita da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Feminina <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Revista Volume LI.p65 251<br />

12/5/2009, 15:29


252 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Sabe-se que autobiografia é a vida <strong>de</strong> uma pessoa narrada por ela<br />

própria. Esses procedimentos literários chegam, por vezes, a <strong>de</strong>nominarse<br />

“Confissões”, como as <strong>de</strong> Santo Agostinho e Rousseau; já Lamartine<br />

preferiu chamá-los “Confidências”.<br />

Pela excelência dos trabalhos <strong>de</strong> Murilo Badaró, presume-se que<br />

ele tenha percorrido com leituras cuidadosas os livros memorialísticos <strong>de</strong><br />

Benvenuto Cellini, John Stuart Mill, Ruskin, Casanova, Goethe, e ainda a<br />

notável psicóloga Helene Deutsch, gran<strong>de</strong> estudiosa da mente e da<br />

conduta femininas; e aqui no Brasil, com nossos escritores, buscou exemplos<br />

dignificantes em Me<strong>de</strong>iros e Albuquerque, Humberto <strong>de</strong> Campos, Paulo<br />

Setúbal, Graça Aranha, e o nunca esquecido Joaquim Nabuco, com o seu<br />

Minha Formação. Mais recentes, os mineiros Afonso Arinos <strong>de</strong> Melo<br />

Franco e Paulo Pinheiro Chagas, da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

De início, sentimos um impacto ao nos <strong>de</strong>paramos com o título<br />

Memórias Póstumas... sobejamente mencionado <strong>de</strong>ntre as obras do<br />

famigerado Bruxo do Cosme Velho. E lemos no Prólogo uma justificativa<br />

para que não nos alarmemos: “Desvalido aluno, procurei seguir as lições<br />

do mestre <strong>de</strong> todos nós, o autor <strong>de</strong> Memorial <strong>de</strong> Aires, certo <strong>de</strong> que<br />

“melhor estilo é o que narra as coisas com simpleza, sem atavios<br />

carregados e inúteis”. E mais adiante, em confissão, ainda no introito das<br />

memórias, alerta-nos o autor: “Faço sinceros votos, caro leitor, não tenha<br />

você perdido o gosto pelos bons livros (...), e muito menos [venha] a me<br />

acusar <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> imaginação por estar me apropriando <strong>de</strong> um título <strong>de</strong><br />

obra famosa <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, autor jamais submetido a menoscabo<br />

por haver se inspirado na obra clássica <strong>de</strong> Chateaubriand com o mesmo<br />

título”.<br />

Todo o livro <strong>de</strong> Murilo Badaró é um trabalho árduo e, ao mesmo<br />

tempo, fascinante. O autor se dispôs à tarefa, <strong>de</strong> corpo e alma, fortemente<br />

imbuído do propósito <strong>de</strong> realizar a mais elegante e fiel biografagem do<br />

seu ilustre avô. E com certeza, valeu-se <strong>de</strong> anotações e diários<br />

cuidadosamente selecionados para a empreitada e buscou documentação<br />

arquivada no Consulado brasileiro. Narrar na primeira pessoa, em nome<br />

<strong>de</strong> outro, fatos imaginados, mas em <strong>de</strong>scrição real e facilmente<br />

comprovada em anais históricos, é esforço redobrado do escrever.<br />

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Uma leitura corrida sobre o livro Memórias póstumas <strong>de</strong> Francisco Badaró, <strong>de</strong> Murilo Badaró _________ Carmen S. Guimarães 253<br />

Uma particularida<strong>de</strong> da vida <strong>de</strong> Francisco Badaró: a sua religiosida<strong>de</strong> e<br />

a fé cristã, criteriosamente preservada pelo neto escritor, no livro. E ainda<br />

no Prólogo do trabalho, uma referência que a comprova: “No local on<strong>de</strong><br />

me encontro, vivendo a sensação da eternida<strong>de</strong> em completa beatitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um tempo sem medidas, aguardo tão somente a hora da parúsia que<br />

minha crença cristã admite: o momento final do mundo com a chegada <strong>de</strong><br />

Jesus e a ressurreição dos mortos”. Este vocábulo, Francisco o ouviu pela<br />

primeira vez, em um sermão do Padre Gabriel Duarte, em Mariana,<br />

quando se referia à Primeira Epístola <strong>de</strong> São Paulo aos Coríntios. E a<br />

magia da palavra fez com que ele passasse a meditar sobre o seu<br />

verda<strong>de</strong>iro significado, que era a vinda <strong>de</strong> Cristo no final dos tempos.<br />

Na verda<strong>de</strong>, o livro contém inúmeras confissões <strong>de</strong> fé, <strong>de</strong>talhadas<br />

pelo escritor. Além do apego ao catolicismo, suas virtu<strong>de</strong>s maiores<br />

en<strong>de</strong>reçavam-no a diferentes atuações sociais e políticas. Foi ardoroso e<br />

convicto <strong>de</strong>fensor dos escravizados, tendo participado intensamente dos<br />

movimentos abolicionistas, até mesmo em seus tempos <strong>de</strong> estudante, na<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo. Conta que ouviu a esse respeito,<br />

palestras memoráveis produzidas “por personalida<strong>de</strong>s que tiveram larga<br />

influência nos negócios públicos ainda no Império e durante a Primeira<br />

República”.<br />

No <strong>de</strong>correr da autobiografia, Francisco Badaró não se furta à<br />

referência elogiosa ao fundador, José Pedro Xavier da Veiga, <strong>de</strong> um<br />

importante jornal, A Província <strong>de</strong> Minas, no ano <strong>de</strong> 1879, em Ouro Preto.<br />

Seu amigo, em 1897, cria ainda uma corajosa publicação, em resgate à<br />

memória <strong>de</strong> Minas, que se esfalfava no tempo, e a chamou Efeméri<strong>de</strong>s<br />

<strong>Mineira</strong>s, na qual as mais importantes notícias <strong>de</strong> diferentes assuntos são<br />

encontradas: <strong>de</strong>cretos, alvarás, lendas e curiosida<strong>de</strong>s culturais, notas<br />

eclesiásticas, administrativas e biográficas. Um Almanaque que,<br />

certamente, serviu <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo a muitos outros que surgiram anos mais<br />

tar<strong>de</strong>, e alguns <strong>de</strong> seus capítulos sugeriram até seletos ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> jornais<br />

da atualida<strong>de</strong>.<br />

A veia criadora <strong>de</strong> Francisco Badaró já se havia inspirado no<br />

movimento abolicionista, quando publicou, em 1881, o Romance<br />

Fantina. O jovem bacharel, estimulado por Bernardo Guimarães e<br />

Revista Volume LI.p65 253<br />

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254 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

também pelo redator-chefe do jornal Província <strong>de</strong> Minas, resolveu<br />

publicar os estudos que havia feito sobre a poesia parnasiana, quando<br />

ainda estudante, os quais, em gran<strong>de</strong> parte, já tinham saído nas páginas<br />

do jornal <strong>de</strong> José Pedro Xavier da Veiga. Tratava-se <strong>de</strong> apreciações <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s vultos da poesia, notadamente os mineiros: Cláudio Manuel da<br />

Costa, José Basílio da Gama, João Joaquim da Silva Guimarães,<br />

Bernardo Guimarães, Antônio Augusto <strong>de</strong> Lima, Manuel Inácio da Silva<br />

Alvarenga, Frei J. <strong>de</strong> Santa Rita Durão, e muitos outros. No livro, as<br />

resenhas se suce<strong>de</strong>m muito bem elaboradas, com citações <strong>de</strong> quadras,<br />

trechos <strong>de</strong> falas biográficas dos poetas, como a que se refere a Santa Rita<br />

Durão, autor do Caramuru, com algumas ressalvas aos “(...) gongorismos;<br />

mas on<strong>de</strong> o poeta se contentou com a natureza e com a simples expressão<br />

da verda<strong>de</strong>; há oitavas belíssimas, ainda sublimes”, comenta Francisco<br />

Badaró.<br />

Com a carta <strong>de</strong> bacharel nas mãos, surgem diferentes consi<strong>de</strong>rações<br />

sobre o caminho a seguir; uma <strong>de</strong>las era a nomeação, <strong>de</strong>pois do concurso,<br />

para o cargo <strong>de</strong> promotor <strong>de</strong> justiça <strong>de</strong> Minas Novas. As leituras <strong>de</strong> Saint-<br />

Hilaire com dados preciosos sobre a gente e a geografia da terra e as<br />

notícias publicadas na A Província <strong>de</strong> Minas, que o informavam a<br />

respeito <strong>de</strong> acontecidos movimentos <strong>de</strong> aventureiros em busca do ouro<br />

explorado naquela longínqua região, <strong>de</strong>cidiram-no a aceitar o encargo.<br />

Daí por diante, a história daquele espaço <strong>de</strong> terra, a partir da junção <strong>de</strong><br />

dois pedaços da Bahia e do Jequitinhonha, vencida a serrania, os<br />

chapadões, gozando do solene espetáculo dos ribeirões, rios e riachos,<br />

vê-se coroada com a <strong>de</strong>scrição soberba do promotor da Comarca <strong>de</strong><br />

Minas Novas, o próprio autobiógrafo: “Do alto do <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro morrote,<br />

antes <strong>de</strong> chegar à vila, <strong>de</strong>scortinou-se diante <strong>de</strong> meus olhos o amplo<br />

telhado do Sobradão, já transformado em símbolo e marca registrada da<br />

cida<strong>de</strong> pela sua insólita grandiosida<strong>de</strong>”. Nele, se instalara o Fórum da<br />

cida<strong>de</strong>.<br />

O Capítulo VIII fala <strong>de</strong> Minas Novas, particularmente <strong>de</strong>pois da<br />

chegada do promotor <strong>de</strong> justiça. É a gente da terra, é o casario, são os<br />

templos religiosos, como “a igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário dos<br />

Homens Pretos, uma das mais antigas construídas ao tempo do fausto<br />

Revista Volume LI.p65 254<br />

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Uma leitura corrida sobre o livro Memórias póstumas <strong>de</strong> Francisco Badaró, <strong>de</strong> Murilo Badaró _________ Carmen S. Guimarães 255<br />

aurífero”, que o empolgam. E seguem as referências aos acontecimentos,<br />

nos quais a nação se envolvia, os gritos pela Proclamação da República,<br />

que chegavam até àquele distante território mineiro, mesmo sem água<br />

encanada e esgoto. E a parte mais importante <strong>de</strong> sua vida vinha <strong>de</strong><br />

acontecer: Francisco Badaró confessou seu amor à Sinhazinha e a pediu<br />

em casamento. O pedido foi feito ao Senhor Zebentinho e dona<br />

Candicha, pais <strong>de</strong> Luíza, logo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>finitivo sim; e o<br />

casamento se <strong>de</strong>u a 26 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1886.<br />

O promotor sentia que o bom relacionamento popular <strong>de</strong> sua<br />

mulher “estava construindo as bases <strong>de</strong> uma estrutura política forte e<br />

insuperável, alargando o círculo <strong>de</strong> influência familiar com objetivos que<br />

sua aguda inteligência percebeu, até mesmo antes <strong>de</strong> mim”.<br />

Francisco Badaró se pren<strong>de</strong> à narrativa do quotidiano, sem<br />

esquecer, porém, a dissertação dos lances mais importantes da vida<br />

brasileira. Dá-se a assinatura da Lei Áurea, pela princesa Isabel, e a<br />

consequente Proclamação da República. E as eleições foram marcadas<br />

para 15 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1890. Para Minas Gerais, ficou fixado o número<br />

<strong>de</strong> 37 parlamentares. A família <strong>de</strong> Francisco continuava crescendo,<br />

<strong>de</strong>pois da primeira filha, Laura.<br />

“As forças irracionais não po<strong>de</strong>m ser contidas quando transbordam<br />

<strong>de</strong> seu leito natural”. É assim que Francisco Badaró conta como entrou<br />

para a política: “As repercussões do dia 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1889 logo<br />

alcançaram Minas Novas, e com o grau <strong>de</strong> autonomia política que já<br />

obtivera, comecei a planejar os próximos passos: minha candidatura<br />

como <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral à Constituinte que estava convocada para o ano<br />

<strong>de</strong> 1890, com o objetivo <strong>de</strong> preparar a nova Constituição para o Brasil<br />

republicano”.<br />

Eleito pelo distrito <strong>de</strong> Minas Novas, prestou juramento no dia 15 <strong>de</strong><br />

novembro <strong>de</strong> 1890, em sessão solene presidida pelo Senador Felício dos<br />

Santos, <strong>de</strong> Minas Gerais. Foram muitas suas falas congressuais, algumas<br />

com apartes e discussões, como a que dizia respeito às relações entre o<br />

Estado e a Igreja, notadamente a questão dos Jesuítas banidos do país<br />

com a expropriação dos bens da Or<strong>de</strong>m Jesuítica em São Paulo. Os<br />

jornais <strong>de</strong> maior circulação no país estiveram sempre ao lado <strong>de</strong><br />

Revista Volume LI.p65 255<br />

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256 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Francisco Badaró: O Jornal do Commercio, o Paiz e a Gazeta <strong>de</strong><br />

Noticias, exaltando-lhe a fala e dando relevo aos seus discursos. A<br />

verda<strong>de</strong> é que a celebrida<strong>de</strong> <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia – como eram chamados os<br />

provincianos, eleitos pelo voto distrital – sentia-se realizado e feliz.<br />

O autobiógrafo assevera em seu livro que não pretendia discorrer<br />

sobre a história pátria, mas tendo sido ele um político atuante, não<br />

po<strong>de</strong>ria furtar-se às referências <strong>de</strong> fatos relevantes, especialmente os que<br />

o envolveram, <strong>de</strong> certa forma. Promulgação da Constituição <strong>de</strong> 1891 por<br />

Deodoro da Fonseca; e nem esse fato veio acalmar os ânimos: a antiga<br />

crise da monarquia reflete-se na nova República. Golpe <strong>de</strong> Estado. Daí a<br />

dissolução do Congresso. Francisco Badaró voltava <strong>de</strong> Minas Novas,<br />

quando teve todas as informações disponíveis que lhe indicavam os<br />

rumos a tomar. Floriano Peixoto era o novo presi<strong>de</strong>nte da República,<br />

dada a renúncia <strong>de</strong> Deodoro da Fonseca. Ele anula a dissolução do<br />

Congresso. As relações <strong>de</strong> Francisco Badaró com o novo Chefe <strong>de</strong><br />

Estado tinham crescido, especialmente <strong>de</strong>pois que este fora eleito vicepresi<strong>de</strong>nte<br />

e presi<strong>de</strong>nte do Senado.<br />

De volta a Minas Novas, on<strong>de</strong> sua esposa, Sinhazinha, esperava a<br />

chegada <strong>de</strong> mais um filho, que veio a nascer no dia 22 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro, e<br />

recebeu o nome <strong>de</strong> Francisco, <strong>de</strong>parou-se com um dilema: havia antes se<br />

encontrado com o Bispo <strong>de</strong> Diamantina, Dom João Antônio dos Santos, e<br />

esperava ser convocado pelo presi<strong>de</strong>nte Floriano Peixoto para chefiar a<br />

Legação da Santa Sé em Roma. A constante troca <strong>de</strong> titulares da Pasta<br />

das Relações Exteriores <strong>de</strong>notava que não cessara <strong>de</strong> todo a crise que<br />

envolvia o clero brasileiro e o governo. Houve um relativo intervalo para<br />

que ele pu<strong>de</strong>sse preparar-se para assumir tal cargo, após o convite formal<br />

do presi<strong>de</strong>nte. E em setembro <strong>de</strong> 1893, Francisco Badaró seguiu para a<br />

Itália, tendo antes, já com as cre<strong>de</strong>nciais para serem entregues ao Papa<br />

Leão XIII, visitado o presi<strong>de</strong>nte Floriano.<br />

O capítulo XII do livro trata especificamente <strong>de</strong> sua chegada à<br />

Itália, e acima <strong>de</strong> tudo, do Sumo Pontífice da Igreja Católica. Muitas<br />

páginas serviram para situar a figura <strong>de</strong> Gioacchino Pecci, nascido na<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Carpinetto, e diz Francisco que “Ao tomar o leme da Barca <strong>de</strong><br />

Pedro, Leão XIII, antes <strong>de</strong> redigir a Rerum novarum, estabeleceu regras<br />

Revista Volume LI.p65 256<br />

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Uma leitura corrida sobre o livro Memórias póstumas <strong>de</strong> Francisco Badaró, <strong>de</strong> Murilo Badaró _________ Carmen S. Guimarães 257<br />

em estilo vazado em rara nobreza, sábias e firmes, <strong>de</strong> conteúdo<br />

doutrinário”.<br />

Como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> acontecer, o relato <strong>de</strong> Francisco<br />

Badaró se pren<strong>de</strong> também à análise que fazia dos acontecimentos do<br />

Brasil. Além das notícias da política (com a Revolta da Armada) que<br />

lhe chegavam periodicamente, e que não eram nada boas, estampadas<br />

por vezes no jornal O Apóstolo, com relação a movimentos <strong>de</strong><br />

oposição ao governo <strong>de</strong> “Floriano, ditador do Brasil”, Francisco<br />

chegou a sugerir que a Legação fosse fechada “por imprestabilida<strong>de</strong> e<br />

inutilida<strong>de</strong> política”.<br />

O tempo ia seguindo seu curso, e em Roma, alguma ativida<strong>de</strong> fora<br />

das obrigações <strong>de</strong> seu posto vinha auxiliar a vida solitária do chefe da<br />

Legação, ali na bela cida<strong>de</strong> que se chamara “Capital do Mundo”. Ele<br />

visitara a suntuosida<strong>de</strong> da Capela Sistina, que o impressionara. Assistira<br />

à estréia <strong>de</strong> Enrico Caruso, no Teatro San Carlo, em Nápoles. O jovem<br />

brasileiro <strong>de</strong> Minas Gerais, nascido na Fazenda Liberda<strong>de</strong>, a 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong><br />

1860, tendo assumido a promotoria Pública em Minas Novas, eleito<br />

<strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral e agora, responsável pela representação brasileira junto<br />

à Santa Sé em Roma, acabara <strong>de</strong> completar 34 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Terminara<br />

<strong>de</strong> escrever um livro, ao qual <strong>de</strong>ra o nome <strong>de</strong> A Igreja no Império e na<br />

República, “no qual fiz um estudo paralelo do regime <strong>de</strong>caído com<br />

aquele que estabelecemos na Constituição Fe<strong>de</strong>ral”. Esse trabalho fora<br />

iniciado quando ele ainda estava no exercício do mandato <strong>de</strong> <strong>de</strong>putado<br />

fe<strong>de</strong>ral.<br />

Já no Capítulo XIV, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> larga explanação sobre suas<br />

ativida<strong>de</strong>s em Roma, a notícia que o entristeceu, do falecimento do<br />

marechal Floriano Peixoto, presi<strong>de</strong>nte do Brasil, ocorrido no dia 26 <strong>de</strong><br />

junho <strong>de</strong> 1895, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passar a presidência a Pru<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Morais.<br />

Francisco Badaró transcreve em seu livro “a carta-testamento que é um<br />

perfeito mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> e coerência”, escrita na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Divisa,<br />

on<strong>de</strong> o presi<strong>de</strong>nte tentava recuperar as forças e a saú<strong>de</strong>.<br />

Uma passagem <strong>de</strong> infelizes acontecimentos envolvendo o autobiógrafo<br />

e o senhor Carlos Magalhães <strong>de</strong> Azeredo, que trabalhou na Legação <strong>de</strong><br />

Roma, transferido da Embaixada <strong>de</strong> Montevidéu, é referida com muita<br />

Revista Volume LI.p65 257<br />

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258 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

queixa e pesar. (Até mesmo um livro das memórias <strong>de</strong>sse senhor chega a<br />

ser publicado pela <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, no qual Magalhães <strong>de</strong><br />

Azeredo faz revelações inverídicas a respeito <strong>de</strong> Francisco Badaró). O<br />

assunto causou gran<strong>de</strong> mágoa e <strong>de</strong>ixou profundo abatimento no escritor,<br />

principalmente por sentir-se caluniado, é o que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas<br />

queixas na autobiografia. O final do capítulo marca-se <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> alegria,<br />

com a chegada <strong>de</strong> Sinhazinha e os dois filhos menores: Corina e<br />

Francisco.<br />

Sinhazinha e os filhos fixaram-se em Nápoles, “cujo clima era mais<br />

saudável do que o rigoroso inverno <strong>de</strong> Roma. Era fácil o <strong>de</strong>slocamento da<br />

bela cida<strong>de</strong> da costa italiana para a capital, servida por excelente<br />

ferrovia”. Francisco sentia-se feliz com a presença dos familiares, e<br />

aproveitava os dias mais livres <strong>de</strong> trabalho para os passeios com a esposa<br />

e as crianças. Conta que os levou a conhecer Florença, “uma das jóias do<br />

Renascimento italiano”. Mostrou-lhes os <strong>de</strong>talhes do Palácio dos Medici,<br />

o Ponte Vecchio, as obras <strong>de</strong> Michelangelo, Da Vinci, além <strong>de</strong> fazer<br />

referências a Dante, Maquiavel e Galileu; seguiram até a igreja <strong>de</strong> Santa<br />

Clara “para as orações e agra<strong>de</strong>cimentos a Deus”; ainda percorreram a<br />

cida<strong>de</strong>, no justo encantamento com as obras artísticas.<br />

O chefe brasileiro da Legação da Santa Sé em Roma passou por<br />

sérias inquietações em seu posto, uma <strong>de</strong>las criada pelo que se refere à<br />

discussão, conhecida como Lei das Garantias, especialmente por “um<br />

artigo que falava da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser admitida a administração das<br />

proprieda<strong>de</strong>s eclesiásticas no reino, uma consequência natural da unida<strong>de</strong><br />

festejada, que permitiu ao governo italiano se apossar <strong>de</strong> todos os bens da<br />

igreja”; e mais outra, que trata <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>claração do governo italiano,<br />

alegando que “as igrejas são consi<strong>de</strong>radas lugar público, sempre que<br />

nelas se reunirem os fiéis para fins estranhos ao culto”, e que, com<br />

certeza, haveriam <strong>de</strong> refletir-se no Brasil. O Papa viveu momentos <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> aflição, por motivos diversos, além <strong>de</strong>sses, e justamente o chefe<br />

da Igreja Católica, que “jamais gostaria <strong>de</strong> ver seu papado envolvido<br />

numa questiúncula <strong>de</strong> natureza material”, já que vigários e bispos que<br />

recebiam estipêndio governamental posicionavam-se contra ele e o<br />

Car<strong>de</strong>al Rampolla. Houve a publicação pelo Santo Padre <strong>de</strong> uma bula que<br />

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Uma leitura corrida sobre o livro Memórias póstumas <strong>de</strong> Francisco Badaró, <strong>de</strong> Murilo Badaró _________ Carmen S. Guimarães 259<br />

reformava a Or<strong>de</strong>m dos Fra<strong>de</strong>s Franciscanos, unificando as diversas<br />

comunida<strong>de</strong>s franciscanas espalhadas pelo mundo. No livro <strong>de</strong> Badaró,<br />

ainda muito foi escrito sobre os problemas <strong>de</strong> Roma.<br />

O ano <strong>de</strong> 1898 mal começara e notícias da exoneração do secretário<br />

Dario Barreto Galvão, a quem Francisco Badaró havia elogiado por carta,<br />

serviram <strong>de</strong> aviso <strong>de</strong> que algo estava errado no Ministério das Relações<br />

Exteriores, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Recebeu o “duro e seco” telegrama do<br />

ministro general Dionísio Cerqueira, no dia 15 <strong>de</strong> janeiro, dando notícia<br />

<strong>de</strong> sua exoneração. Relata o memorialista que alguém mais se sentiu<br />

atingida pelo inesperado ato: Sinhazinha, que ao contrário, recebeu<br />

alegremente a notícia, e agra<strong>de</strong>ceu a Deus, pela volta da família a Minas<br />

Novas e a Minas Gerais.<br />

Ações da Igreja, suas or<strong>de</strong>ns religiosas, conventos e tudo quanto<br />

dizia respeito ao catolicismo no Brasil serviram às pesquisas <strong>de</strong><br />

Francisco Badaró, enquanto ministro plenipotenciário do governo<br />

brasileiro junto à Santa Sé.<br />

Badaró publicou um livro com o título Tiro ao alvo, que se<br />

constituía em um alerta ao Exército nacional. Autor ainda <strong>de</strong> um curioso<br />

tratado para quem, como ele, <strong>de</strong>dicava-se ao esporte das caçadas: O cão,<br />

por fora e por <strong>de</strong>ntro – va<strong>de</strong>mecum do caçador, trabalho firmado na<br />

observação sistemática sobre cães perdigueiros, e que chegou a alcançar<br />

algum sucesso. Alguns <strong>de</strong> seus livros achavam-se arquivados na<br />

Biblioteca Nacional, e outros, na biblioteca da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />

e no Arquivo Público do Estado <strong>de</strong> São Paulo. Na Biblioteca da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> havia uma cópia do romance Fantina, e na<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, Parnaso mineiro.<br />

Tratamos aqui das obras escritas e citadas pelo memorialista, e<br />

passamos a falar sobre o livro L´Église au Brasil pendant l´Empire et<br />

pendant La République. Houve duas críticas controversas sobre o<br />

trabalho. Uma, do famoso e acatado intelectual brasileiro, José<br />

Veríssimo, publicada no Laemmert & Cia., do Rio <strong>de</strong> Janeiro faz o elogio<br />

da obra e do autor. A segunda, do crítico Wilson Martins, que entre<br />

consi<strong>de</strong>rações diversas alega que o autor, Francisco Coelho Duarte<br />

Badaró (como a ele se refere), é um “reacionário”. Faz o estudo da<br />

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260 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

palavra, quer na área política ou no campo literário e intelectual, e o<br />

assunto se esten<strong>de</strong> por várias páginas. O autor alega que “foi dominado<br />

pela certeza <strong>de</strong> que daria boa contribuição para que fosse o Brasil mais<br />

conhecido em Roma e alhures, bem como sobre a situação da Igreja em<br />

nosso país após a proclamação da República”. Explica, <strong>de</strong>talhadamente,<br />

que a palavra empregada por Wilson Martins não <strong>de</strong>ixava claro o<br />

conceito a que submetera seu trabalho. Francisco Badaró escreveu outro<br />

livro: Les couvents au Brésil, escrito em Roma e editado em Florença,<br />

em 1897, também ofertado ao Santo Padre, e que <strong>de</strong>le mereceu caloroso<br />

elogio.<br />

De volta ao Brasil, seguiram para Minas Novas. Ainda na Europa, a<br />

família crescera com o nascimento <strong>de</strong> mais um menino, ao qual <strong>de</strong>ram o<br />

nome <strong>de</strong> José Nápoles Duarte Badaró, em homenagem à sua cida<strong>de</strong> natal.<br />

Francisco Badaró reassumira o cargo <strong>de</strong> juiz <strong>de</strong> direito da comarca <strong>de</strong><br />

Minas Novas, do qual estava licenciado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1889, quando eleito<br />

<strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral.<br />

Um fato expressivo é narrado pelo autor das Memórias Póstumas<br />

<strong>de</strong> Francisco Badaró. Fala das eleições <strong>de</strong> 1891, com o alistamento dos<br />

eleitores. Refere-se a Rui Barbosa “que já <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ra a participação das<br />

mulheres no processo político, chamando a atenção para a lei que<br />

permitiu pu<strong>de</strong>ssem votar cerca <strong>de</strong> 6 milhões <strong>de</strong> eleitoras na Inglaterra”, o<br />

que po<strong>de</strong>ria constituir no Brasil uma verda<strong>de</strong>ira heresia. Mesmo assim, o<br />

ânimo <strong>de</strong> justiça e a capacida<strong>de</strong> intelectual <strong>de</strong> Francisco fizeram com que<br />

ele <strong>de</strong>spachasse pela igualda<strong>de</strong> entre homem e mulher, fundamentado na<br />

lição bíblica. Na verda<strong>de</strong>, três conterrâneas suas chegaram a votar em<br />

alguns pleitos, mas a junta <strong>de</strong> revisão <strong>de</strong> Belo Horizonte tolheu-lhes o ato<br />

cívico. Em 1930, em Teófilo Otoni, no congresso que implantou por<br />

<strong>de</strong>finitivo o voto feminino, <strong>de</strong> posse da palavra, Francisco Badaró Junior<br />

pediu que “ficasse consignado nos Anais do Congresso Mineiro que não<br />

ao Rio Gran<strong>de</strong> do Norte, mas a Minas Gerais, coube a iniciativa <strong>de</strong><br />

conce<strong>de</strong>r o direito <strong>de</strong> cidadania à mulher brasileira”.<br />

Francisco Badaró era um batalhador. Continuou seu envolvimento<br />

com a política, e <strong>de</strong>vido à sua amiza<strong>de</strong> com Arthur Bernar<strong>de</strong>s, candidato<br />

ao governo <strong>de</strong> Minas, não se furtou <strong>de</strong> comparecer a um convite seu para<br />

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Uma leitura corrida sobre o livro Memórias póstumas <strong>de</strong> Francisco Badaró, <strong>de</strong> Murilo Badaró _________ Carmen S. Guimarães 261<br />

ir a Belo Horizonte. “Avizinhava-se o processo eleitoral e eu <strong>de</strong>veria<br />

preparar-me para disputar as eleições para o Senado Mineiro”, foi o<br />

pedido, quase imposição, do “palinuro, o chefe natural dos homens <strong>de</strong><br />

bem <strong>de</strong> Minas. Bernar<strong>de</strong>s sagrara-se presi<strong>de</strong>nte do Estado (governador) e<br />

eu conseguira eleger-me para um mandato que terminaria em 1926,<br />

apesar dos adversários cada vez mais agressivos”.<br />

Pouco tempo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> atuar como senador em Minas Gerais, já o<br />

governador Arthur Bernar<strong>de</strong>s convocava-o para novo pleito. Deveria<br />

Francisco Badaró voltar a candidatar-se, <strong>de</strong>sta vez a Deputado Fe<strong>de</strong>ral,<br />

nas eleições <strong>de</strong> 1920, sempre pelo PRM, na qual saiu mais uma vez<br />

vitorioso.<br />

Não preten<strong>de</strong>mos esten<strong>de</strong>r nossas consi<strong>de</strong>rações até os capítulos<br />

finais do livro. A narrativa atinge a sensibilida<strong>de</strong> do leitor, quando<br />

<strong>de</strong>paramos com o relato pormenorizado do drama vivido pelo<br />

autobiógrafo, ao ser fatalmente atingido por dolorosa enfermida<strong>de</strong>. As<br />

dores, e sobretudo, os <strong>de</strong>lírios provocados pela febre fazem-nos lembrar<br />

<strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s escritores, como Machado <strong>de</strong> Assis, com a<br />

epilepsia, Dostoievski e Goethe, que também usaram na literatura o<br />

mesmo tema. Em certa ocasião, ao receber da enfermeira uma dose <strong>de</strong><br />

morfina que o levou a um sono profundo, e <strong>de</strong>sta vez, agradável, viu-se<br />

Francisco transportado para sua velha casa <strong>de</strong> morada, em Minas Novas,<br />

quando dialogava com o seu antigo proprietário. O homem dizia chamarse<br />

Domingos <strong>de</strong> Abreu Vieira, que estivera comprometido com o<br />

movimento comandado por Tira<strong>de</strong>ntes. De outra feita, em seu <strong>de</strong>vaneio,<br />

provocado pela injeção que o aliviava dos tormentos da doença, viu-se<br />

em Roma e no Vaticano, diante do Papa Leão XIII, e mais tar<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>frontando-se com a corpulenta figura do secretário Car<strong>de</strong>al Rampolla,<br />

tal como havia acontecido quando fora entregar as cre<strong>de</strong>nciais <strong>de</strong> seu<br />

posto. Ao abrir os olhos, <strong>de</strong>parou-se com o visitante ilustre e amigo<br />

Arthur Bernar<strong>de</strong>s.<br />

Alguns nomes <strong>de</strong> celebrida<strong>de</strong>s também foram vítimas <strong>de</strong>ssa<br />

moléstia, entre eles, Beethoven, que se diz ter composto a Nona Sinfonia<br />

em momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírios. E ainda Shakespeare, Abraham Lincoln, Guy <strong>de</strong><br />

Maupassant, Stendhal, Bau<strong>de</strong>laire, lembra Francisco.<br />

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262 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Recolhemos suas próprias palavras, quando confessava: “Se minha<br />

consciência cristã não fosse fortemente sedimentada na crença religiosa,<br />

provavelmente as dores que me agrediam seriam transformadas em gritos<br />

<strong>de</strong> revolta”. E continuava: “A tudo suportei com estoico silêncio,<br />

confiado na fé que me fora inculcada pelas palavras dos evangelistas<br />

sobre o <strong>de</strong>stino do homem após o <strong>de</strong>senlace”.<br />

Em trechos do discurso do <strong>de</strong>putado Nelson <strong>de</strong> Senna, na<br />

Assembleia Legislativa <strong>de</strong> Minas Gerais, lemos o que disse a respeito <strong>de</strong><br />

Francisco Badaró, quando a sessão daquela casa foi suspensa no dia do<br />

seu sepultamento: “Escritor, magistrado, parlamentar, diplomata,<br />

publicista, per<strong>de</strong>mos nesse malogrado compatriota um talento <strong>de</strong> escol e<br />

um bravo legionário político que a morte prostra, em plena refrega,<br />

quando da sua ação e conselhos muito tínhamos ainda a esperar”.<br />

Cercado pelos filhos, Francisco Badaró cerrou os olhos a este<br />

mundo, no dia 14 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1921, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> receber das mãos do<br />

padre Bicalho a extrema-unção e os sacramentos preceituados pela Igreja,<br />

que tanto preservou na fé.<br />

Coube a Murilo Badaró, neto <strong>de</strong> Francisco, realizar-lhe o sonho <strong>de</strong><br />

uma vida inteira: a publicação póstuma das suas memórias, tão bem<br />

guardadas nos 87 anos <strong>de</strong> morte do mineiro, nascido na Fazenda<br />

Liberda<strong>de</strong>, no município <strong>de</strong> Piranga, às margens do afluente do rio Doce,<br />

“numa região hoje <strong>de</strong>nominada Zona Metalúrgica, lin<strong>de</strong>ira da Zona da<br />

Mata mineira”.<br />

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12/5/2009, 15:29


RESENHA<br />

BA<strong>DA</strong>RÓ, Murilo. Memórias póstumas <strong>de</strong><br />

Francisco Badaró. Belo Horizonte:<br />

Claroenigma, 2008. 297 p.<br />

Onofre <strong>de</strong> Freitas*<br />

No gênero é a primeira tentativa do autor. Um prólogo e 25<br />

capítulos contam a vida <strong>de</strong> Francisco Badaró, figura singular <strong>de</strong> homem<br />

público <strong>de</strong> Minas Novas, MG, on<strong>de</strong> atuou como promotor, juiz e prefeito,<br />

e don<strong>de</strong> esteve ausente por um longo período em que exerceu a função <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>putado e, <strong>de</strong>pois, embaixador junto à Santa Sé.<br />

A ação <strong>de</strong>corre entre 1740 e 1921, período dos mais efervescentes<br />

da nossa história, perpassando pela Inconfidência <strong>Mineira</strong>, pela Abolição<br />

da Escravidão e pela implantação da República.<br />

A narração é feita em primeira pessoa, <strong>de</strong> modo que o autorimplícito,<br />

inteiramente comprometido com a história, mais do que com o<br />

ficcional, fica por trás da personagem Francisco Badaró, a qual inicia<br />

pelo fim a narrativa <strong>de</strong> sua vida, a partir do lugar em que se encontra<br />

sepultado.<br />

Tratando-se <strong>de</strong> memórias póstumas, tem lógica e justificativa esta<br />

maneira insólita <strong>de</strong> começar um romance. Aliás, o narrador já no início<br />

confessa o plágio intencional <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, a quem elegeu por<br />

mestre.<br />

* Professor, advogado, escritor. Presi<strong>de</strong>nte do Ateneu Mineiro.<br />

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264 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Ainda no prólogo, o narrador faz consi<strong>de</strong>rações curiosas sobre a<br />

situação dos mortos: “Vivemos na solidão <strong>de</strong> um espaço em que o<br />

silêncio conduz cada um à meditação <strong>de</strong> suas ações e omissões enquanto<br />

criaturas humanas” (p. 7). Informa que faz uso “do direito <strong>de</strong> elucidar<br />

fatos e versões e restabelecer a verda<strong>de</strong> tão duramente <strong>de</strong>sfigurada pelos<br />

meus <strong>de</strong>safetos, acerca <strong>de</strong> episódios <strong>de</strong> que participei como personagem<br />

ou espectador privilegiado” (p. 7). E <strong>de</strong>clara que não o move nenhum<br />

sentimento <strong>de</strong> mágoa ou vingança. Que fatos são esses, somente se vai<br />

saber ao final, quando o narrador lembra e analisa seu relacionamento<br />

com Carlos Magalhães Azeredo, durante o período em que este foi seu<br />

subordinado na Embaixada do Brasil junto à Santa Sé (Cap. XVII, p. 222).<br />

Tratando-se, pois, <strong>de</strong> alguém que volta a este mundo, vindo do<br />

além, é natural que, no primeiro capítulo, nos fale, em <strong>de</strong>talhes, das<br />

circunstâncias e da causa <strong>de</strong> sua morte, em setembro <strong>de</strong> 1921.<br />

Explicada esta situação singular, o narrador retoma o fio da meada,<br />

<strong>de</strong>talhando a história <strong>de</strong> seu nascimento na fazenda “Liberda<strong>de</strong>”, na<br />

margem direita do rio Piranga, no município <strong>de</strong> mesmo nome.<br />

Como a explicar e justificar o nome “Liberda<strong>de</strong>” da proprieda<strong>de</strong> da<br />

família, o protagonista lembra que Francisco Coelho Duarte e Ayres<br />

Gomes viviam na Borda do Campo. O segundo foi <strong>de</strong>gredado para<br />

Moçambique como participante da Inconfidência <strong>Mineira</strong>. Sua neta,<br />

Francisca Cândida <strong>de</strong> Lima, veio a casar-se com Francisco Coelho<br />

Duarte, <strong>de</strong> quem proce<strong>de</strong> o rebento que vem ter a Minas Novas. Disso se<br />

<strong>de</strong>duz que ficou <strong>de</strong>monstrado o espírito libertário dos ascen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />

Francisco Badaró, que não os <strong>de</strong>smereceu.<br />

Ao falar mais sobre seus antepassados explica como o seu avô<br />

paterno – Francisco Coelho Duarte – acresceu ao seu nome o apelido<br />

Badaró, para homenagear a Libero Badaró, assassinado em São Paulo<br />

(1830), supostamente a mando <strong>de</strong> D. Pedro I, a cujo <strong>de</strong>spotismo fazia<br />

incômoda oposição jornalística. O fato comoveu a nação acirrou os<br />

ânimos <strong>de</strong>mocráticos, ficando o nome Badaró como símbolo <strong>de</strong><br />

liberalismo republicano.<br />

Essa a herança irrecusável que o protagonista preservou como lema<br />

<strong>de</strong> sua atuação civil e política, empenhando-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> estudante em São<br />

Revista Volume LI.p65 264<br />

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Resenha _______________________________________________________________________ Onofre <strong>de</strong> Freitas 265<br />

Paulo, até chegar à Câmara no Rio <strong>de</strong> Janeiro, para ser a voz <strong>de</strong> Minas<br />

Novas nas lutas pela afirmação da República e pela <strong>de</strong>fesa da Democracia,<br />

da Religião Católica e da Cidadania. Resta dizer que foi o primeiro a<br />

reconhecer em sentença judicial o direito <strong>de</strong> votar reclamado pelas<br />

mulheres, pelo que cabe a Minas Gerais o pioneirismo da luta pelo voto<br />

feminino.<br />

O protagonista reporta-se ainda à sua fase <strong>de</strong> estudante em São<br />

Paulo, on<strong>de</strong> recebe o diploma <strong>de</strong> bacharel em Direito das mãos do<br />

famoso Joaquim Inácio Ramalho. Em seguida volta a Ouro Preto e<br />

<strong>de</strong>pois a Minas Novas, on<strong>de</strong> atua como promotor, juiz e prefeito, sendo<br />

mais tar<strong>de</strong> eleito <strong>de</strong>putado.<br />

Des<strong>de</strong> o tempo estudantil, Francisco Badaró cruza com diversos<br />

lí<strong>de</strong>res da política nacional, cujos nomes vão surgindo e compondo a<br />

galeria <strong>de</strong> homens célebres do Império e da primeira República, cujos<br />

perfis, físicos ou morais, são <strong>de</strong>lineados com excepcional talento e<br />

fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> histórico-social-política.<br />

Figura <strong>de</strong> projeção no cenário da Câmara Fe<strong>de</strong>ral por sua<br />

inspiração religiosa e <strong>de</strong>fesa da Igreja Católica, Francisco Badaró presta à<br />

Republica relevantes serviços na controvérsia da separação entre Igreja e<br />

Estado. Por este <strong>de</strong>staque, merece receber do presi<strong>de</strong>nte Floriano Peixoto<br />

a espinhosa tarefa <strong>de</strong> representar o Brasil junto ao Vaticano, na qualida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> embaixador plenipotenciário. Neste posto, permanece longo período,<br />

com imensuráveis vantagens para o Brasil nas suas relações com a Santa<br />

Sé, porém, com indizível sacrifício para si e para a sua família, <strong>de</strong> que se<br />

vê separado. Em compensação para a sua sensibilida<strong>de</strong> religiosa, vê-se<br />

distinguido com a intimida<strong>de</strong> do Chanceler da Santa Sé, Car<strong>de</strong>al<br />

Rampolla, e a do próprio Papa, então o gran<strong>de</strong> e extraordinário Leão<br />

XIII.<br />

Não menos relevante foi a vocação literária <strong>de</strong> Francisco Badaró,<br />

que nunca <strong>de</strong>scurou o seu talento <strong>de</strong> escritor, cujas obras vão sendo<br />

catalogadas à medida que o protagonista, sem quebrar a rotina estudantil,<br />

jurídica, política ou diplomática, as vai produzindo. Conviveu com<br />

Bernardo Guimarães, seu incentivador e prefaciador do seu romance<br />

Fantina. Sua primeira obra foi este romance, evocado aos tempos da<br />

Revista Volume LI.p65 265<br />

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266 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

escravatura (Fantina, 1884); <strong>de</strong>pois, a segunda, uma importante pesquisa<br />

sobre a literatura nas Minas Gerais <strong>de</strong> que resultou uma riquíssima<br />

antologia (O parnaso mineiro, 1887). O biografado não ce<strong>de</strong> ao<br />

<strong>de</strong>sânimo. Pesquisador incansável, segue produzindo outras obras<br />

valiosas, tendo inclusive escrito e publicado mais <strong>de</strong> uma em francês,<br />

durante o tempo em que esteve em Roma como embaixador junto à Santa<br />

Sé (La République du Brésil et le Royaume <strong>de</strong> Portugal; L’ Église au<br />

Brésil pendant la République; Les Convents au Brésil; etc.) .<br />

No <strong>de</strong>sempenho do gênero narrativo, o autor Murilo Badaró não<br />

<strong>de</strong>smereceu o avô Francisco Badaró. Emprestou-lhe a voz já familiar,<br />

sendo capaz <strong>de</strong> levar e enlevar o leitor, que, envolvido nas tramas políticas<br />

assim como nas literárias, acompanha o <strong>de</strong>senrolar da história com o<br />

mesmo interesse e a expectativa <strong>de</strong> quem participa dos acontecimentos.<br />

Em meio aos fatos, bem pesquisados, documentados e ilustrados com<br />

fotos e fac-símiles, contempla-se a admirável personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Francisco<br />

Badaró, através <strong>de</strong> cujo discurso, entre poético, parlamentar e jurídico,<br />

vão sendo retratados os gran<strong>de</strong>s vultos da nossa história nos três últimos<br />

séculos, assim como as efeméri<strong>de</strong>s nacionais que assinalam o liberalismo<br />

e o republicanismo no Brasil.<br />

Daí enten<strong>de</strong>r-se como obra <strong>de</strong> valiosa contribuição para nos<br />

informar e ilustrar a respeito <strong>de</strong> importantes fatos ocorridos no cenário<br />

nacional e mineiro, no período entre os séculos <strong>de</strong>zoito e <strong>de</strong>zenove, fase<br />

<strong>de</strong> importantes acontecimentos sociais e político-religiosos.<br />

Quem quiser conhecer as mais importantes figuras da nossa<br />

primeira República, ou se informar do papel que exerceram no cenário<br />

político daquela época, po<strong>de</strong>rá recorrer aos retratos e perfis — físicos e<br />

morais — que Murilo Badaró <strong>de</strong>ixa estampados nas páginas <strong>de</strong>ste seu<br />

romance, em relato cuidadoso pelo critério da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> histórica e do<br />

julgamento político. Diante <strong>de</strong> nossos olhos vão <strong>de</strong>sfilando homens como<br />

o Irmão Lourenço (fundador do Caraça), Tira<strong>de</strong>ntes, Deodoro, Peixoto<br />

(p.136)), Rui, Felício dos Santos, e tantos outros, para só falar <strong>de</strong> alguns,<br />

e po<strong>de</strong>r lembrar personalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> projeção internacional como o Car<strong>de</strong>al<br />

Rampolla, e o tão grandioso Papa Leão XIII, cujo perfil bem traçado é o<br />

que mais realça em toda a galeria (Capítulo XII, p. 147-164).<br />

Revista Volume LI.p65 266<br />

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Resenha _______________________________________________________________________ Onofre <strong>de</strong> Freitas 267<br />

Os três capítulos finais, que <strong>de</strong>talhadamente <strong>de</strong>screvem por fora e<br />

por <strong>de</strong>ntro, no corpo e na alma, os efeitos e a progressão da doença que<br />

vitimou Francisco Badaró, ajustam-se ao que há <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar na literatura<br />

do gênero, capaz <strong>de</strong> fazer o leitor interagir. A <strong>de</strong>scrição das vertigens e<br />

dos <strong>de</strong>vaneios causados à vítima pela febre na hora vesperal, constituem<br />

peças <strong>de</strong> <strong>de</strong>licado enlevo narrativo, <strong>de</strong> comovente vivenciamento.<br />

Parecem contos. Contos <strong>de</strong> inspiração histórica, para místicas mensagens<br />

<strong>de</strong> apreço à vida. Há que interpretá-los segundo o patético das<br />

circunstâncias vividas pelo protagonista.<br />

Sem que tal venha a comprometer o valor estético da performance<br />

literária, <strong>de</strong>spontam aqui e ali alguns minúsculos anacronismos,<br />

perfeitamente releváveis pela canseira que <strong>de</strong>ve ter custado a pesquisa<br />

histórica (vê-se que não foi pequeno o esforço nesse sentido) e<br />

compreensíveis pela incidência <strong>de</strong> uma segunda voz que se intromete,<br />

casualmente, na narração. Explique-se: o narrador-personagem <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />

contar o tempo pelo fio da sua hora histórica, e salta ao futuro, referindo<br />

fatos que não foram da sua vivência... pelo menos não fizeram parte da<br />

sua existência no plano da vida encarnada. Quem sabe os mortos<br />

permanecem testemunhando os acontecimentos post-mortem? Quem<br />

sabe? O narrador, aqui e ali, diz que sim! Mas... essa é uma pergunta que<br />

não é respondida no <strong>de</strong>senvolvimento do romance <strong>de</strong> Murilo; porém fica<br />

suscitando o sentido polêmico da estrutura <strong>de</strong> “memórias póstumas”.<br />

Com certeza este é um livro polêmico. O próprio autor, a certa<br />

altura, se autoquestiona sob tal ponto <strong>de</strong> vista. E, ironicamente, elege o<br />

questionável em Machado <strong>de</strong> Assis.<br />

Revista Volume LI.p65 267<br />

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268 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 268<br />

12/5/2009, 15:29


A CASA<br />

A casa era en<strong>de</strong>reço<br />

<strong>de</strong> muito afeto e alegria<br />

Sol e Lua ali jogavam<br />

luz, calor e harmonia<br />

o céu <strong>de</strong>rramava estrelas<br />

e o telhado agra<strong>de</strong>cia.<br />

Um cheiro <strong>de</strong> pão quentinho<br />

nascia junto com o dia<br />

um aconchego surgia<br />

em passos que ali chegavam.<br />

Passarinhos conheciam<br />

bem a Nona Sinfonia.<br />

Flores contavam ao vento<br />

a sua filosofia<br />

coisa que eu conhecia.<br />

Debussy ali reinava<br />

em piano que inundava<br />

<strong>de</strong> arte, sons e magia<br />

enquanto Drummond e Borges<br />

confabulavam poesia.<br />

A casa era um navio<br />

ancorado em mar <strong>de</strong> amor.<br />

Da varanda se podia<br />

perscrutar o que se via:<br />

<strong>de</strong>ste mundo a fantasia.<br />

Era a casa en<strong>de</strong>reço<br />

<strong>de</strong> pensamento e poesia<br />

e eu bem que gostaria<br />

<strong>de</strong> voltar ali um dia,<br />

virar-me a vida ao avesso.<br />

* Poetisa. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 6.<br />

Revista Volume LI.p65 269<br />

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Yeda Prates Bernis*


270 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 270<br />

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MACHADO DE ASSIS<br />

REMEMORAR<br />

A sua estrada foi longa<br />

sempre algo a reparar<br />

ou admirar, ou elevar<br />

algo a seguir, prolongar<br />

nele se encantar<br />

pelo palco, on<strong>de</strong> aclamar<br />

pela platéia estontear<br />

personificar a <strong>de</strong>sventura<br />

dos cantos nos <strong>de</strong>sencantos,<br />

trazer flores sempre <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iras,<br />

aos raios <strong>de</strong> sol a embalar.<br />

Nos instantes <strong>de</strong> <strong>de</strong>silusão<br />

o amargo gosto se afogou<br />

porque os leitores – no seu tempo<br />

ficaram comovidos, pois<br />

ao luar os cumes refletiam<br />

cristais lançados ao ar<br />

e tambores <strong>de</strong> sua fantasia<br />

profetizaram amor dominar<br />

Lívia Paulini*<br />

* Escritora, poetisa, pintora, é presi<strong>de</strong>nte emérita da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Feminina <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Revista Volume LI.p65 271<br />

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272 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

a bruma e o enlevo festejar.<br />

Contos e “histórias sem data”<br />

encheram a plataforma acolhida<br />

e “relíquias <strong>de</strong> casa velha”<br />

iluminara-nos com o arco-íris<br />

emalada da memória.<br />

Hoje emulduramos a sua importância<br />

como se não houvesse nunca escravatura,<br />

nenhuma pedra no seu caminho<br />

nenhuma fase pessimista.<br />

Que a felicida<strong>de</strong> com sua Carolina<br />

antes e <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong>la<br />

fizesse uma fonte eterna e corrente<br />

<strong>de</strong> amor <strong>de</strong> pétalas <strong>de</strong> rosas aromatizantes,<br />

“pensamentos idos e vividos”.<br />

O passado tem seu rico enfeite<br />

guardado na terra e no céu,<br />

na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> imortais,<br />

no horizonte estrelado dia<strong>de</strong>ma <strong>de</strong> Deus.<br />

Sejam suas páginas “recolhidas”<br />

futuramente em “crisálidas” veladas,<br />

adormecidos em lindos leitos,<br />

enlevados em sonhos encantados.<br />

O futuro <strong>de</strong> suas obras,<br />

sua fama, sua busca pela atração da vida<br />

pelo seu Deus <strong>de</strong> reflexo e sabedoria<br />

toda a aventura vivida<br />

vai ser compreendida<br />

melhor do que hoje ao procurarmos<br />

preencher a nossa sabedoria<br />

com sua alma, escrita, real e irreal<br />

Revista Volume LI.p65 272<br />

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Machado <strong>de</strong> Assis – Rememorar ________________________________________________________ Lívia Paulini 273<br />

seu gentil esforço <strong>de</strong> nada embaraçar,<br />

mas acalantar a vida e as obras<br />

que refletem, que reagem à tristeza, que<br />

acumulam calor e compaixão,<br />

paz e harmonia nas trevas<br />

para aqueles que no labirinto do <strong>de</strong>stino<br />

volvem-se em seu tempo e espaço.<br />

Soubemos sobre o patrimônio que ele <strong>de</strong>ixou<br />

herança <strong>de</strong> imenso luxo literário<br />

imagens por ele vividas, seguidas<br />

os nossos corações estão empolgados.<br />

Imagem erguida, na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />

e na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />

reforçada,<br />

torna-se pontos <strong>de</strong> referência transcritos e abençoados.<br />

Revista Volume LI.p65 273<br />

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274 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Revista Volume LI.p65 274<br />

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O amor<br />

É uma essência divina,<br />

Como água cristalina,<br />

Entre as rochas nascendo.<br />

O amor<br />

É uma pequena porção<br />

Que inva<strong>de</strong> o coração,<br />

É a razão <strong>de</strong> estar vivendo.<br />

O AMOR<br />

O amor<br />

Rompe todas as barreiras;<br />

E, nas altas cordilheiras,<br />

A escalada é certa.<br />

O amor<br />

Alcança o <strong>de</strong>stino almejado,<br />

As profun<strong>de</strong>zas do coração amado,<br />

Nem que a rota seja <strong>de</strong>serta.<br />

O amor<br />

É a razão da vida;<br />

É o cuidado da mãe querida,<br />

* Poeta. Publicou A voz <strong>de</strong> um poeta, e Cantiga <strong>de</strong> poeta. Resi<strong>de</strong> em Extrema.<br />

Revista Volume LI.p65 275<br />

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João Barbosa*


276 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Ao filho inda criança.<br />

O amor<br />

É um divino sentimento.<br />

Pra quem sofre é alento,<br />

E certeza na esperança.<br />

O amor<br />

Para com o homem é carnal,<br />

Para com Deus é espiritual...<br />

É o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Suas mãos.<br />

O amor<br />

Está no ar que respiramos,<br />

Na água que tomamos,<br />

No sorriso dos irmãos.<br />

O amor<br />

Está na mãe-natureza,<br />

Que cria tudo com pureza,<br />

Com carinho e altivez.<br />

O amor...<br />

Na verda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong> crer,<br />

Está no gran<strong>de</strong> Po<strong>de</strong>r<br />

De Deus que nos fez.<br />

Revista Volume LI.p65 276<br />

12/5/2009, 15:29


MINAS GERAIS O<br />

CORAÇÃO DO BRASIL<br />

Ê Minas Gerais!<br />

Tu és entre todas a mais!<br />

Tu és o melhor estado do Brasil.<br />

Com encantos mil,<br />

Conquista até mesmo<br />

Aquele que a esmo,<br />

Se embrenha em tuas matas,<br />

A procura <strong>de</strong> sonhos e promessas ali perdidas.<br />

Com sua gente hospitaleira<br />

Que a muitos conquistou.<br />

Só com um <strong>de</strong>dinho <strong>de</strong> prosa,<br />

Que a eles prestou.<br />

Sem mencionar sua comida<br />

Que a muitos entristeceu.<br />

Pois a gula é pecado! E o regime sagrado!<br />

Mas só com o cheiro exalado<br />

Conquista o paladar <strong>de</strong> Jesus ou o Diabo!<br />

* Poeta, escritor, pesquisador. Resi<strong>de</strong> em Fervedouro.<br />

Revista Volume LI.p65 277<br />

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Celso Ricardo <strong>de</strong> Almeida*


278 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

Terras <strong>de</strong> tantas mil!<br />

Que <strong>de</strong> políticos, poetas, atletas ou tantos mil<br />

Conquistaram o coração do Brasil.<br />

E a Minas o Brasil se ren<strong>de</strong>.<br />

E respeita o prelado <strong>de</strong> seu povo sofrido.<br />

Que mesmo marginalizado,<br />

Ou até <strong>de</strong>scriminado,<br />

Conseguiu transformar o Estado no coração do Brasil.<br />

Revista Volume LI.p65 278<br />

12/5/2009, 15:29


NORMAS PARA OS<br />

COLABORADORES<br />

l – A Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> recebe colaborações,<br />

reservando-se a análise quanto à conveniência da publicação, sem data<br />

<strong>de</strong>terminada.<br />

2 – As colaborações serão enviadas ao Conselho Editorial, por correio<br />

eletrônico – atendimento@aca<strong>de</strong>miamineira<strong>de</strong>letras.org.br, ou em cd para o<br />

en<strong>de</strong>reço: <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> — Rua da Bahia, 1466 (Lour<strong>de</strong>s) –<br />

30160-011 Belo Horizonte MG. Telefax: (31) 3222-5764.<br />

3 – Os artigos <strong>de</strong>verão vir digitados na fonte Times New Roman, corpo<br />

12, em folha A4.<br />

4 – Notas <strong>de</strong> rodapé <strong>de</strong>verão constar no final do artigo, numeradas <strong>de</strong><br />

acordo com a referência no texto.<br />

5 – As referências bibliográficas trarão todas as informações, observando-se<br />

os critérios abaixo; títulos e nomes não são abreviados.<br />

VIEIRA, José Crux Rodrigues. Obra Poética I. Belo Horizonte: Editora<br />

B, 2006. 444 p.<br />

BOSCHI, Caio; MORENO, Carmen; FIGUEIREDO, Luciano. Inventário<br />

da Coleção Casa dos Contos. Belo Horizonte: Editora PUC, 2006. 560 p.<br />

IGLESIAS, Francisco. “Política Econômica do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais<br />

(1890-1930)”. In V Seminário <strong>de</strong> Estudos Mineiros. Belo Horizonte: Editora<br />

UFMG, 1982.<br />

(Observar esta or<strong>de</strong>m: sobrenome do autor em letras maiúsculas; título em<br />

itálico; tratando-se <strong>de</strong> capítulo ou parte <strong>de</strong> obra, entre aspas, ficando em itálico<br />

o título geral; cida<strong>de</strong> (dois pontos), editora, data, número <strong>de</strong> páginas (se<br />

indicado).<br />

6 – Dados pessoais:<br />

a. nome completo; pseudônimo, se houver;<br />

b. en<strong>de</strong>reço completo (logradouro, número, bairro, CEP, cida<strong>de</strong>, estado,<br />

telefone);<br />

c. títulos universitários, quando houver: graduação, área, faculda<strong>de</strong>,<br />

local, tese;<br />

Revista Volume LI.p65 279<br />

12/5/2009, 15:29


280 _______________________________________________ R<strong>EVISTA</strong> <strong>DA</strong> A<strong>CADEMIA</strong> M<strong>INEIRA</strong> DE L<strong>ETRAS</strong><br />

d. ativida<strong>de</strong> atual, natureza e local;<br />

e. obras ou trabalhos publicados: título, cida<strong>de</strong>, editora ou órgão, data.<br />

O autor <strong>de</strong> artigo receberá três exemplares do número da Revista em que<br />

for publicado.<br />

Outras informações po<strong>de</strong>rão ser solicitadas pelo telefone (31)<br />

3222-5764.<br />

Revista Volume LI.p65 280<br />

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