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AGRONEGÓCIO<br />
QUER ACABAR COM A<br />
AMAZÔNIA AMAZÔNIA AMAZÔNIA<br />
ENTREVISTA EXCLUSIVA COM<br />
MARINA SILVA<br />
PRISÃO-HOSPÍCIO<br />
ESCONDE JOVENS INFRATORES<br />
GUTO LACAZ MARILENE FELINTO GLAUCO MATTOSO ANA MIRANDA JOSÉ ARBEX JR. GILBERTO VASCONCELLOS<br />
MARCOS BAGNO JOÃO PEDRO STEDILE RENATO POMPEU TATIANA MERLINO EDUARDO SUPLICY HAMILTON<br />
OCTAVIO DE SOUZA CESAR CARDOSO JOEL RUFINO DOS SANTOS CAMILA MARTINS BRUNA BUZZO FREI BETTO<br />
GERSHON KNISPEL DANIELA BAUDOUIN ANA MARIA STRAUBE FIDEL CASTRO EMIR SADER MARCELO SALLES<br />
PLINIO TEODORO MARCOS ZIBORDI MC LEONARDO GUILHERME SCALZILLI LUCIA RODRIGUES LATUFF CLAUDIUS<br />
ano XIII número 148 julho 2009<br />
R$ 9,90<br />
FUNK CARIOCA, O PERSEGUIDO<br />
DÍVIDA<br />
PÚBLICA<br />
A FARRA DOS<br />
ESPECULADORES<br />
POR QUE A DIREITA ATACA A<br />
PETROBRAS<br />
LUIZ MOTT:<br />
“AQUI É ONDE SE MATA<br />
MAIS HOMOSSEXUAIS”<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br
CAROS AMIGOS ANO XIII 148 julhO 2009<br />
Foto de capa<br />
ROBERtO JAYME<br />
EDITORA CASA AMARELA<br />
Revistas•LivRos•<strong>se</strong>RviçoseditoRiais<br />
fundadoR:séRgiodesouza(1934-2008)<br />
diRetoRgeRaL:WagneRnabucodeaRaújo<br />
A defesa do Brasil<br />
Reunimos nesta edição da Caros Amigos algumas matérias que têm<br />
o mesmo denominador comum: a defesa dos recursos e do patrimônio<br />
do povo brasileiro.<br />
Reconhecida internacionalmente por sua luta em defesa da Amazônia,<br />
a <strong>se</strong>nadora Marina Silva (PT-AC), ex-ministra do Meio Ambiente,<br />
analisa o atual processo de desmonte dos instrumentos de proteção<br />
ambiental e os ataques mais recentes dos predadores de <strong>se</strong>mpre,<br />
que ela denomina de <strong>se</strong>tores do agronegócio.<br />
O crescimento econômico a qualquer preço, a realização de obras<br />
e atividades voltadas para a exportação (usinas hidrelétricas para<br />
empresas de extração mineral, extração da madeira, criação de gado<br />
e expansão de monoculturas da soja e da cana), estão acelerando<br />
a destruição da Amazônia, ao mesmo tempo em que proporcionam<br />
maior concentração da riqueza nas mãos de grupos empresariais nacionais<br />
e estrangeiros.<br />
A auditora federal Maria Lúcia Fattorelli – repre<strong>se</strong>ntante brasileira<br />
na auditoria da dívida pública do Equador - desvenda os vários mecanismos<br />
de transferência de recursos públicos para o <strong>se</strong>tor privado,<br />
os esquemas de especulação financeira que elevaram a dívida pública<br />
a cifras astronômicas, não apenas no Brasil, mas também em outros<br />
paí<strong>se</strong>s da América Latina.<br />
A denúncia da auditora é <strong>se</strong>ríssima. Ela deixa claro como o assalto<br />
aos cofres públicos tem sido praticado com a conivência das autoridades<br />
brasileiras e de grupos econômicos que manipulam os poderes da<br />
República em benefício próprio. A evasão provocada pela dívida pública<br />
está diretamente relacionada com o baixo investimento em educação,<br />
saúde e nas demais áreas sociais.<br />
Outra matéria da maior relevância procura esclarecer o que está<br />
por trás e quais são os reais interes<strong>se</strong>s dos grupos de direita que promovem<br />
novos ataques a Petrobras. De olho nos lucros que a exploração<br />
do petróleo do pré-sal deverá proporcionar, o capital privado<br />
nacional e internacional procura fustigar a maior empresa estatal<br />
brasileira, certamente com a ajuda de parlamentares e da grande<br />
mídia neoliberal.<br />
A revista oferece também aos leitores e leitoras reportagens sobre<br />
o assassinato de homos<strong>se</strong>xuais no Brasil, a per<strong>se</strong>guição ao movimento<br />
funk do Rio de Janeiro, a mobilização para a Conferência Nacional de<br />
Comunicação, a prisão-hospício que São Paulo construiu para jovens<br />
infratores e o conjunto de artigos e colunas do nosso time de colaboradores.<br />
Enfim, um conteúdo diferenciado, instigante, o contraponto<br />
necessário ao discurso da mídia grande neoliberal. Não deixe de ler.<br />
EDITOR: hamilton Octavio de souza EDITORa aDjunTa: Tatiana Merlino EDITOREs EsPECIaIs: josé arbex jr e Renato Pompeu EDITORa DE aRTE: Lucia Tavares assIsTEnTE DE aRTE: henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRaFIa: Walter<br />
Firmo REPÓRTER EsPECIaL: Marcos Zibordi REPÓRTEREs: Camila Martins, Felipe Lar<strong>se</strong>n, Fernando Lavieri, Luana schabib EsTaGIÁRIOs: Bruna Buzzo e Carolina Ros<strong>se</strong>tti CORREsPOnDEnTEs: Marcelo salles (Rio de janeiro), Bosco Martins<br />
(Mato Grosso do sul), Maurício Macedo (Rio Grande do sul) e aneli<strong>se</strong> sanchez (Roma) REvIsORa: Lucia Rodrigues sECRETÁRIa Da REDaÇÃO: simone alves DIRETOR DE MaRKETInG: andré herrmann PuBLICIDaDE: Melissa Rigo CIRCuLaÇÃO:<br />
Pedro nabuco de araújo RELaÇõEs InsTITuCIOnaIs: Cecília Figueira de Mello aDMInIsTRaTIvO E FInanCEIRO: Ingrid hentschel, Elisângela santana COnTROLE E PROCEssOs: Wanderley alves, Elys Regina LIvROs Casa aMaRELa: Clarice<br />
alvon síTIO: Paula Paschoalick aPOIO: Maura Carvalho, Douglas jerônimo e neidivaldo dos anjos aTEnDIMEnTO aO LEITOR: Lília Martins alves, Zélia Coelho assEssORIa juRíDICa: Marco Túlio Bottino, aton Fon Filho, juvelino strozake, Luis<br />
F. X. soares de Mello, Eduardo Gutierrez e susana Paim Figueiredo REPREsEnTanTE DE PuBLICIDaDE: BRasíLIa: joaquim Barroncas (61) 9972-0741.<br />
jORnaLIsTa REsPOnsÁvEL: haMILTOn OCTavIO DE sOuZa (MTB 11.242)<br />
DIRETOR GERaL: WaGnER naBuCO DE aRaújO<br />
CaROs aMIGOs, ano XIII, nº 148, é uma publicação mensal da Editora Casa amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de são Paulo, de acordo com a Lei de maio Imprensa. 2009 caros amigos<br />
Distribuída com exclusividade no Brasil pela DInaP s/a - Distribuidora nacional de Publicações, são Paulo. IMPREssÃO: Bangraf<br />
REDaÇÃO E aDMInIsTRaÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, são Paulo, sP<br />
sumário<br />
07 Marilene Felinto comemora o golpe de mestre da comunicação da Petrobras.<br />
08 Glauco Mattoso Porca Miséria.<br />
Gilberto Vasconcellos desvenda Silva Mello, o Karl Marx da medicina.<br />
09 José Arbex Jr. mostra como os brasileiros pagam pela falência da General Motors.<br />
10 Marcos Bagno Falar Brasileiro.<br />
Mc Leonardo fala da expansão das favelas e do Brasil politicamente incorreto.<br />
12 Entrevista Maria Lucia Fattorelli Dívida Pública faz a farra dos especuladores.<br />
16 Ivan Valente defende a instalação imediata da CPI da Dívida na Câmara Federal.<br />
17 Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo.<br />
Ana Miranda conta a história de um menino piloto que distribui cestas básicas.<br />
18 João Pedro Stedile fala sobre a cri<strong>se</strong> e a ofensiva do capital internacional.<br />
Eduardo Suplicy comenta os filmes Garapa e Ave Poesia do Patativa do Assaré.<br />
19 Hamilton Octavio de Souza Entrelinhas – A mídia como ela é.<br />
Cesar Cardoso lembra que a mente temporária apaga a memória a cada momento.<br />
20 Entrevista Luiz Mott O Brasil é o país onde mais <strong>se</strong> mata homos<strong>se</strong>xuais.<br />
22 Joel Rufino dos Santos critica o poder da televisão para eliminar o contraditório.<br />
Guilherme Scalzilli analisa a guinada da política internacional dos Estados Unidos.<br />
23 Gershon Knispel prevê um Estado de Israel binacional com mais apartheid.<br />
24 Ensaio Fotográfico Latuff Visita aos campos de palestinos na Jordânia e Líbano.<br />
26 Entrevista Marina Silva Crítica ao agronegócio pela destruição da Amazônia.<br />
31 Plínio Teodoro Desmatamento acelerado nas fazendas de Daniel Dantas no Pará.<br />
32 Frei Betto chama a atenção para a absolutização dos sistemas ideológicos.<br />
Fidel Castro comenta o caso do casal de apo<strong>se</strong>ntados acusados de espionagem.<br />
33 Daniela Baudouin analisa a ingerência da França no conflito do Sudão.<br />
34 Ana Maria Straube O que está na pauta da Conferência Nacional de Comunicação.<br />
36 Camila Martins A polêmica internação de menores infratores em unidade especial.<br />
38 Lucia Rodrigues A direita parlamentar e a mídia neoliberal atacam a Petrobras.<br />
41 Bruna Buzzo Documentário mostra a trajetória poética de Patativa do Assaré.<br />
42 Marcelo Salles Movimento funk do Rio de Janeiro: per<strong>se</strong>guição e resistência.<br />
44 Renato Pompeu Idéias de Botequim.<br />
45 Emir Sader critica a falta de ética e a mercantilização da publicidade.<br />
46 Claudius<br />
5
6<br />
Mulheres<br />
Aproveito para parabenizá-los pela edição de<br />
junho e pelas matérias impressionantes sobre o<br />
tráfico e a violência contra as mulheres. Também<br />
gostei muito de ver o trabalho do pessoal do NPC<br />
em destaque. Tive o prazer de assistir uma palestra<br />
de Vito Giannotti em 2007, e entendo que os<br />
jovens do Arraial do Cabo tenham <strong>se</strong> apaixonado<br />
pelo curso, pois os projetos que o Núcleo de<strong>se</strong>nvolve<br />
são, de fato, fascinantes.<br />
Francine de Almeida, São José do Rio Preto/ SP<br />
Brizola Neto<br />
Parabéns pela excelente entrevista do Deputado<br />
Federal Brizola Neto. É bom saber que ainda<br />
existe deputado com postura ética e leitura de um<br />
Brasil soberano, no meio de um Congresso com<br />
“alguns pilantras”, como no passado, afirmou o<br />
presidente Lula.<br />
Bruno Calderaro, Nova Friburgo/ RJ<br />
Maria rita Kehl<br />
Realmente excelente a entrevista de Maria<br />
Rita Kehl no número de maio de 2009. Algumas<br />
pequenas ob<strong>se</strong>rvações. Com o crescente compromisso<br />
da Organização Mundial da Saúde com a<br />
indústria farmacêutica, a expectativa que esta<br />
organização faz de que a depressão <strong>se</strong>rá a <strong>se</strong>gunda<br />
maior causa de comorbidade não é exatamente<br />
um exercício de previsão, mas sim uma<br />
estratégia para que isto <strong>se</strong> torne realidade. Sendo<br />
mais claro, a OMS está trabalhando para que<br />
esta meta <strong>se</strong>ja alcançada, o que repre<strong>se</strong>ntará um<br />
aumento fabuloso no consumo de antidepressivos.<br />
E como isto pode acontecer? A própria Maria<br />
Rita responde, ao demonstrar que as pessoas<br />
tendem a <strong>se</strong> identificar com as enfermidades<br />
mentais, isto é, que elas podem <strong>se</strong>r produzidas<br />
socialmente e incrementadas.<br />
Paulo Amarante, Doutor em Ciências da Saúde<br />
Marcos BagNo<br />
Na edição de maio da Caros Amigos, o lingüista<br />
Marcos Bagno mencionou, de maneira admirável,<br />
a tristeza de <strong>se</strong> viver num país emergente<br />
com uma educação submersa. Eu não pude<br />
deixar de escrever com a intenção de acrescentar<br />
uma grande indignação no que diz respeito<br />
aos cursos de licenciatura que vem forman-<br />
fale conosco<br />
assinatUras<br />
assine a revista<br />
sítio: www.carosamigos.com.br<br />
tel.: (11) 2594-0376<br />
(de <strong>se</strong>gunda a <strong>se</strong>xta-Feira,<br />
das 9 às 18h)<br />
caros amigos julho 2009<br />
Caros leitores<br />
do milhares de pessoas <strong>se</strong>m habilitações mínimas<br />
para exercer a profissão docente: inicia-<strong>se</strong> ainda<br />
em 2009 a Universidade Virtual do Estado de<br />
São Paulo – UNIVESP – que pretende formar 35<br />
mil professores através de cursos de licenciatura<br />
ministrados pela Internet! Es<strong>se</strong> programa trata-<strong>se</strong><br />
de um grande exemplo de como as clas<strong>se</strong>s<br />
dirigentes brasileiras tiram o máximo proveito<br />
do abismo social de nosso país, valendo-<strong>se</strong> des<strong>se</strong><br />
contexto por elas sustentado, para atingir o completo<br />
sucateamento da educação brasileira.<br />
Daniela Perre<br />
MarileNe FeliNto<br />
Gostaria de ressaltar que o <strong>se</strong>u artigo sobre a<br />
situação dos professores no Estado de São Paulo<br />
retratou muito bem a perversidade do tucanato<br />
no Brasil. Sou professora de história na cidade<br />
de Contagem (Grande BH) em Minas Gerais. Neste<br />
Estado a situação é a mesma, pois desde 2001<br />
trabalho como contratada. Com o governo de Aécio<br />
Neves [a situação] tornou-<strong>se</strong> pior, pois foram<br />
criadas várias resoluções em que os professores<br />
são qua<strong>se</strong> que obrigados a passar alunos que não<br />
con<strong>se</strong>guem aprender ou que possuem muita dificuldade<br />
no aprendizado. O governador <strong>se</strong> recusa<br />
a fornecer o novo piso salarial e ainda cobra demasiadamente<br />
de todos os professores<br />
Monica Valeska<br />
José arBex<br />
Só gostaria de saber <strong>se</strong> o sr. José Arbex Jr. tem<br />
alguma justificativa decente para tachar a justificativa<br />
canhestra da justiça eleitoral para caçar<br />
Jackson Lago de “ishhperrrta” (assim, nessa<br />
grafia de fonética carioca)? Sei, <strong>se</strong>i... ele quis dizer<br />
que foi uma atitude marota, metida a malandra,<br />
mas bastante vagabunda, né? Imagino que<br />
ao imitar nosso sotaque, <strong>se</strong>ja exatamente essa a<br />
mensagem que passou no texto... Não quero bancar<br />
o babaca politicamente correto, mas acredito<br />
que não sairia de <strong>se</strong>u texto nenhuma referência<br />
a alguma atitude ridiculamente pilantra e<br />
arrogante, tipicamente “paulizta”, tá me “enteindeindo”,<br />
meu? Tá “enteindeindo” porque eu não<br />
achei graça na citação? Dá próxima vez que qui<strong>se</strong>r<br />
soltar os cachorros em outro (justificadíssimo)<br />
ataque de fúria contra a injustiça do mundo,<br />
vê <strong>se</strong> toma mais cuidado pra não deixar <strong>se</strong>us pre-<br />
<strong>se</strong>rviço de atendimento<br />
ao assinante<br />
Para registrar mudança de endereço; esClareCer dúvidas<br />
sobre os Prazos de reCebimento da revista; reClamações;<br />
venCimento e renovações da assinatura<br />
emeio: atendimento@Carosamigos.Com.br<br />
novo tel.: (11) 2594-0376<br />
conceitos babacas escaparem juntos, falô merrrmão?<br />
Senão você acaba perdendo a razão.<br />
Fernando Miller<br />
caros aMigos<br />
Ao contrário do que pensa Ismael Santos Teixeira<br />
(carta publicada na edição 146) sobre a revista<br />
Caros Amigos, sou fã da maneira juvenil<br />
que a revista trata as questões, das bandeiras e<br />
camisas juvenis que apóia. Considero uma revista<br />
que <strong>se</strong> propõe de esquerda <strong>se</strong>m cair no autismo<br />
intelectual das academias, <strong>se</strong>m cair no intelectualismo<br />
excessivo. Continua e <strong>se</strong>mpre continuará<br />
apoiando <strong>se</strong>us ídolos Che, Fidel, Marighela, Lamarca<br />
e outros mais. É a única que <strong>se</strong> mantém<br />
firme naquele sonho adolescente de mudança do<br />
mundo, que mantém vivo os verdadeiros ídolos<br />
da esquerda. A única que não deixa es<strong>se</strong> sonho<br />
cair na armadilha de uma análi<strong>se</strong> mais “madura”<br />
dos fatos, de <strong>se</strong> adaptar aos novos tempos. Que<br />
novos tempos? Os tempos continuam os mesmos,<br />
guerras, fome, injustiças, capitalismo <strong>se</strong>lvagem,<br />
mundo da mercadoria, tudo isso em qualquer<br />
canto do mundo. Se mudou, mudou apenas<br />
na aparência, adquiriu um formato diferente do<br />
mesmo conteúdo. Ser juvenil é tudo. Se amadurecer<br />
significar a perda do caráter juvenil, então<br />
por favor, não amadureçam nunca.<br />
Felipe Telles<br />
errata<br />
Em atendimento ao Ofício GABPR46-ASFM/<br />
SP – 011629/2009, da procuradora da República<br />
Adriana Scordamaglia, referente à reportagem<br />
A Protogêne<strong>se</strong> da Operação Satiagraha, publicada<br />
na edição 138, de <strong>se</strong>tembro de 2008, informamos<br />
que ocorreu um equívoco no fechamento da matéria<br />
e que, em momento algum, obtivemos qualquer<br />
informação de que o juiz Alexandre Cas<strong>se</strong>tari<br />
estives<strong>se</strong> implicado com o vazamento da chamada<br />
Operação Satiagraha. Por isso, pedimos desculpas<br />
ao magistrado, ao advogado Nélio Machado,<br />
também referido na reportagem, e aos nossos<br />
leitores.<br />
A entrevista com o ator Wagner Moura (edição<br />
147) foi realizada na FR Produções, no bairro da<br />
Gávea, Rio de Janeiro e não na produtora do ator,<br />
como foi publicado.<br />
redação<br />
Comentários sobre<br />
o Conteúdo editorial, sugestões<br />
e CrítiCas a matérias.<br />
emeio: redaCao@carosamigos.com.br<br />
Fax: (11) 2594-0351<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br
Pela primeira vez os procedimentos do Estado<br />
foram mais rápidos do que o ingresso da mídia no<br />
acontecimento ou no fato. A inversão é histórica, até<br />
porque aconteceu no âmbito do esclarecimento público,<br />
da chamada transparência na divulgação da informação,<br />
no oposto mesmo da censura.<br />
Foi o que ocorreu quando do lançamento<br />
de um blog criado pela Petrobras (http://petrobrasfato<strong>se</strong>dados.wordpress.com/)<br />
em junho para divulgar<br />
em tempo real, o tempo da verdade (e não no tempo<br />
da manipulação e da mentira dos jornalões, das revistonas<br />
e dos telejornais), e na íntegra, tudo o que era<br />
perguntado à empresa pelos jornalistas entrevistadores<br />
e tudo o que era respondido a eles. Golpe de mestre da<br />
comunicação da Petrobras: a divulgação das perguntas<br />
e respostas saía antes da publicação ou veiculação<br />
nos órgãos de imprensa. A imprensa de<strong>se</strong>sperada ganiu,<br />
ferida de morte. Soltou editoriais coléricos. Tudo<br />
inútil. A lição estava dada. Ainda que a Petrobras tenha<br />
desistido depois de sair na frente da imprensa golpista.<br />
Viva o Estado (não por acaso petista), viva a Petrobras<br />
e a democracia na internet.<br />
Os comentários de apoio à ação da Petrobras<br />
explodiram em numerosos sítios, blogs e listas<br />
de esquerda: “Também são publicadas no blog as<br />
cartas enviadas aos jornais pela Petrobras, corrigindo<br />
informações erradas, interpretações equivocadas<br />
e acusações <strong>se</strong>m fundamento. Utilizando-<strong>se</strong> de toda<br />
a potencialidade da Internet, o blog esfarelou qua<strong>se</strong><br />
instantaneamente uma parte do poder de manipulação<br />
e falsificação de informações, prática comum aos<br />
jornais, revistas e redes de TV, especialmente nos últimos<br />
anos e contra o governo Lula e o PT”.<br />
A imprensa que <strong>se</strong> enxovalha a si<br />
mesma cada dia mais, toda ela sinônimo de imprensa<br />
Marilene Felinto<br />
Ferida de morte,<br />
imprensa golpista ganiu<br />
de escândalos, toda ela imprensa de <strong>se</strong>nsacionalismo<br />
e distorção, há tempos já não é de interes<strong>se</strong> público,<br />
não informa ao cidadão e nem, muito menos, substitui<br />
o debate público.<br />
A imprensa desacreditada, dos jornalões,<br />
por exemplo, que hoje em dia não escrevem <strong>se</strong>não<br />
para si próprios, amarga ainda a queda vertiginosa<br />
nas vendas. O jornalão que mais vende não atinge nem<br />
mesmo 1% da população do país. A análi<strong>se</strong> abaixo destrincha<br />
bem os números da derrocada: “Os últimos dados<br />
sobre a circulação média de jornais divulgados pelo<br />
Instituto Verificador de Circulação (IVC) para o mês de<br />
abril revelam que a Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado<br />
de S. Paulo perderam, respectivamente, 10,84%,<br />
7,75% e 16,93% de circulação média diária em abril de<br />
2009, <strong>se</strong> comparada aos números de abril de 2008. Nenhum<br />
deles atinge a circulação de 300 mil exemplares<br />
diários. Os números arredondados são, respectivamente,<br />
289 mil, 259 mil e 214 mil exemplares. Se supu<strong>se</strong>rmos<br />
que cada exemplar é lido, em média, por quatro (?) pessoas,<br />
o maior jornalão brasileiro teria hoje cerca de um<br />
milhão, 156 mil leitores/dia. Isto significa atingir potencialmente<br />
cerca de 0,604% do total estimado da população<br />
brasileira, que é de 191.231.246 habitantes (...).”<br />
(Venício de Lima, Ob<strong>se</strong>rvatório da Imprensa). O comentarista<br />
lembra ainda que, no ano 2000, a Folha tinha<br />
uma circulação média de 429.476 exemplares/dia.<br />
A imprensa da avacalhação, que, por<br />
nostalgia, ainda chama a si mesma de “grande imprensa”,<br />
amofinou-<strong>se</strong> também diante do corajoso ato do<br />
governo Lula de desconcentrar as verbas publicitárias,<br />
as quais, em governos anteriores, só <strong>se</strong> destinavam às<br />
grandes corporações de mídia. A resposta de Franklin<br />
Martins, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação<br />
Social da Presidência da República, a um jornalão de São<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
Paulo que questionava a redistribuição da verba, é lapidar:<br />
“(...) os anúncios da Secretaria de Comunicação<br />
Social da Presidência da República (Secom), até 2003<br />
concentrados em apenas 499 veículos e 182 municípios,<br />
em 2008 alcançaram 5.297 órgãos de comunicação em<br />
1.149 municípios – um aumento da ordem de 961%. As<br />
verbas publicitárias de todos os órgãos ligados ao governo<br />
federal permaneceram no mesmo patamar do governo<br />
anterior, em torno de R$ 1 bilhão ao ano. Não houve<br />
aumento de verbas. O que mudou foi a política. Em<br />
vez de concentrar anúncios num punhado de jornais, rádios<br />
e televisões, a publicidade do governo federal alcança<br />
agora o maior número possível de veículos. Pelo<br />
mesmo custo, está falando melhor e mais diretamente<br />
com mais brasileiros. Acompanhando a diversificação<br />
que está ocorrendo nos meios de comunicação.”<br />
Pela primeira vez, em duas décadas, vi jornalistas<br />
exaltarem, enfim, a ocupação corriqueiramente<br />
patética de ficar escrevendo o que (e como) o dono<br />
do jornalão manda. Eis o que dis<strong>se</strong> um deles: “Obrigado.<br />
Poucas vezes em 32 anos de profissão pude <strong>se</strong>ntir<br />
o orgulho que estou <strong>se</strong>ntindo hoje por <strong>se</strong>r jornalista,<br />
graças à iluminada idéia e a coragem de realizar o<br />
blog da Petrobras. Es<strong>se</strong> é um pequeno grande exemplo<br />
da força do caminho da democracia, da transparência,<br />
da liberdade da informação, do compromisso com os<br />
fatos e as informações corretas. O duro é que isso ainda<br />
hoje no Brasil é profundamente subversivo. É duro<br />
mas é bom: bastou um simples blog para esfarelar uma<br />
parte do poder dos oligopólios da mídia. Agora é esperar<br />
a reação, porque eles são brutos e não sabem perder.<br />
Parabéns.” (Sérgio Alli)<br />
Marilene Felinto é escritora.<br />
marilenefelinto@carosamigos.com.br<br />
junho 2009 caros amigos<br />
Ilustração: GIl BrIto<br />
7
Ilustração: Gustavo aoyaGI<br />
8<br />
Si até o Obama <strong>se</strong> rendeu ao charisma<br />
do Lula, não <strong>se</strong>rei eu, que não tenho olho<br />
azul nem visão, quem irá fazer cu doce: acho<br />
que, cri<strong>se</strong>s à parte, melhor um terceiro mandato<br />
delle que qualquer outra hypothe<strong>se</strong>.<br />
Mas Obama fez o que eu faria: ao invés de considerar<br />
a cor da pelle ou dos olhos, apertou-lhe<br />
a mão e a barriguinha para chegar a tal ob<strong>se</strong>rvação.<br />
Reconheçamos, pois, aquillo que ninguem<br />
mais nega: barriga faz parte da boa pinta,<br />
e não apenas num presidente charismatico.<br />
Emquanto enxerguei e tive alguma attracção<br />
pelas mulheres, eram as gordinhas que me<br />
captivavam. Antes de me assumir como gay,<br />
só con<strong>se</strong>gui namorar uma hipponga magra<br />
que nem a Joni Mitchell, mas meu sonho era<br />
namorar uma gorda que nem a Mama Cass.<br />
Sempre tive tesão pelas doceiras e quituteiras<br />
rechonchudas, tanto quanto tenho appetite<br />
pelas gulo<strong>se</strong>imas que ellas preparam. Minha<br />
melhor amiga na cegueira, aquella que me<br />
caros amigos julho 2009<br />
porca miséria!<br />
Glauco Mattoso<br />
Soneto para um<br />
regimen dictatorial<br />
(1781)<br />
“Balança mentirosa!”, a gorda exclama.<br />
“Só pode estar desregulada, a joça!”<br />
Amigas, condoidas de <strong>se</strong>u drama,<br />
lhe dão, para comer, o que inda possa...<br />
Cortado o sal, ja quasi nada adoça.<br />
Temperos reduziu e, a cada gramma<br />
a mais no prato, alguem <strong>se</strong> espanta: “Nossa!”<br />
Patrulham a coitada até na cama...<br />
Se queixa o namorado, outro gordão,<br />
que ja nem sobra espaço no colchão<br />
e que ella ronca feito uma leitoa...<br />
“Assim não dá! Me chamam de baleia<br />
e, emquanto não estão de pança cheia,<br />
mais alto é o ronco que, la dentro, echoa...”<br />
frictava os bolinhos de chuva, é a Bia, uma gorduchesima<br />
judia de olhos azues. Para as gorduchas<br />
fiz todo um cyclo de sonetos, coisa que não<br />
faria para as esqueleticas estrellas das passarellas.<br />
Concluo que, na politica como no cardapio, quanto<br />
menos dictatorial o regimen, mais tem a nossa<br />
cara. E só não sou tão gorducho nem tão sympathico<br />
quanto o Lula ou a Bia por causa do sangue<br />
ruim, pois, alem de cego, soffro duma prisão de<br />
ventre que prejudica minha capacidade de desfructar<br />
plenamente dessas liberdades democraticas<br />
e gastronomicas. O que não me impede de<br />
applaudir os bolinhos de chuva, nem de concordar<br />
que o Lula, como diz o Obama, é mesmo o<br />
cara... Nossa lingua é muito expressiva: a palavra<br />
“enfezado” allude a alguem que não caga direito.<br />
Emfim, não basta poder, nem saber comer,<br />
nem gostar da comida: quem não caga livremente<br />
só pode <strong>se</strong> soltar mesmo no verso.<br />
Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.<br />
Gilberto Felisberto Vasconcellos<br />
Se você comes<strong>se</strong> bosta<br />
<strong>se</strong>ria melhor<br />
De Rolim, tarimbado inteligente da editora Insular,<br />
SC, me vem a notícia de que o meu livro sobre o médico-filósofo<br />
Silva Mello está vindo a lume. O titulo é<br />
montagem da poesia de Oswald de Andrade com o samba<br />
de Nelson Cavaquinho. Eis o título do livro que escrevi<br />
durante quinze anos: Nossa Vida De Cada Dia Entre O<br />
Supermercado e a Drogaria.<br />
Você come uma comida envenenada do supermercado<br />
e vai <strong>se</strong> curar na drogaria com o remédio que<br />
não cura. Silva Mello ( 1886-1973) é o Karl Marx da medicina,<br />
embora não fos<strong>se</strong> marxista nem comunista. É que<br />
fez (e denunciou na prática médica) a anatomia da mercadoria<br />
na medicina. A formação do médico manipulado<br />
pelo monopólio do fármaco. É a saúde publicitária, na<br />
qual <strong>se</strong> coisifica a pessoa e personifica a coisa. É o que<br />
Marx chamava de fetichismo da mercadoria. Silva Mello<br />
dirigiu durante 40 anos a Revista Brasileira de Medicina<br />
e não permitiu que nela houves<strong>se</strong> anúncio.<br />
Quem produz a comida é a mesma multinacional<br />
que produz o remédio. A comida é desnaturalizada,<br />
transgênica, produzida com agrotóxico, ba<strong>se</strong>ada no petróleo.<br />
O mais louco é que as empresas alimentárias e<br />
farmacológicas são as que fabricam armas para o imperialismo,<br />
como a Monsanto que fabricava Napalm para<br />
despejar nos vietcongues. São as mesmas que financiaram<br />
a derrubada de governos progressistas na América<br />
Latina como João Goulart e Salvador Allende.<br />
Silva Mello mostrou, no corpo humano, os efeitos<br />
deletérios da aliança entre a drogaria e o supermercado,<br />
incluindo igreja e faculdade de medicina. É difícil achar<br />
um professor de medicina que tenha ouvido falar do sistemão.<br />
Trata-<strong>se</strong> de um marginal específico no Brasil. Oswald<br />
de Andrade teve uma vida conturbada, ficou pobre. Glauber<br />
Rocha, nasceu pobre, na periferia de Vitória da Conquista.<br />
Silva Mello era médico, formado em Berlim, clinicou<br />
na Suíça, onde um de <strong>se</strong>us pacientes foi Rockefeller.<br />
Fez a maior clinica de gente rica do Rio. Seu automóvel<br />
era um Buick de oito mil quilos. Passava os fins de <strong>se</strong>mana<br />
em uma datcha luxuosíssima em Petrópolis, onde escreveu<br />
<strong>se</strong>us livros. Alguns foram traduzidos em alemão e inglês.<br />
Em 1960 entrou para a Academia Brasileira de Letras.<br />
Antes foi procurado por Einstein em sua casa em Laranjeiras,<br />
onde mais tarde morou Roberto Marinho. Na feijoada,<br />
Einstein encheu a cara de caipirinha, depois quis <strong>se</strong>ntar a<br />
uma rede boliviana de dormir, qua<strong>se</strong> caiu. Silva Mello reparou:<br />
o cientista da relatividade não con<strong>se</strong>guiu <strong>se</strong> equilibrar<br />
na mecânica primitiva da rede.<br />
Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo,<br />
jornalista e escritor.
José Arbex Jr.<br />
Nem a morte de Golias<br />
acorda o Brasil<br />
Entre tantas e intermináveis cri<strong>se</strong>s,<br />
o 1º de junho <strong>se</strong>rá para <strong>se</strong>mpre marcado como o fim de<br />
uma era do capitalismo: nes<strong>se</strong> dia, a General Motors declarou-<strong>se</strong><br />
quebrada. É um fato de imensa amplitude histórica,<br />
absolutamente subestimada pelos meios de comunicação<br />
brasileiros. Por ignorância, má-fé ou – o que<br />
é mais provável – uma mistura de ambos, a mídia dos<br />
patrões preferiu abordar a nova queda de Golias como<br />
um mero desdobramento, na esfera industrial, da cri<strong>se</strong><br />
econômica mundial, ou como algo anedótico, inspirador<br />
de nostalgia. Foi muito mais do que isso: a falência da<br />
GM assinala, simbolicamente, a ruína um modelo inteiro,<br />
sobre o qual estava ancorado o “american dream”, o<br />
fantástico motor que estruturou o mercado consumidor<br />
estaduniden<strong>se</strong> e que estava na ba<strong>se</strong> do de<strong>se</strong>nvolvimento<br />
do capitalismo em escala planetária.<br />
Como contrapartida ao desastre da GM,<br />
os meios de comunicação também tentaram criar uma<br />
imagem “salvacionista” do presidente Barack Obama:<br />
ele <strong>se</strong>ria uma reedição de Franklin Delano Roo<strong>se</strong>velt,<br />
um estadista capaz de apontar a saída da cri<strong>se</strong> mediante<br />
a valorização do mundo do trabalho, em oposição ao<br />
capital financeiro. Assim, a estatização da GM (60% de<br />
suas ações passaram ao controle do Estado) assinalaria<br />
um novo período na história mundial do capitalismo,<br />
cujo <strong>se</strong>ntido <strong>se</strong>ria definido por uma estratégia supostamente<br />
neokeynesiana, de investimentos na produção,<br />
controle do mercado especulativo e benefícios as<strong>se</strong>gurados<br />
aos trabalhadores. Nada mais falso, irreal.<br />
Ao longo do século 20, a indústria automobilística<br />
moveu a economia mundial. Basta pensar<br />
no circuito do petróleo (combustíveis, pavimentação<br />
de vias, a vasta indústria de material plástico). Ou<br />
na siderurgia, com todos os <strong>se</strong>tores associados (autopeças,<br />
funilaria). Ou, ainda, no <strong>se</strong>tor da informática, com<br />
motores cada vez mais regulados por chips e microcomputadores<br />
(os bilhões gastos nas disputas de Fórmula 1<br />
têm pelo menos uma utilidade concreta: <strong>se</strong>rvem para<br />
projetar e testar equipamentos cada vez mais sofisticados,<br />
com futuro emprego na fabricação de automóveis<br />
comerciais). A indústria automobilística também mobiliza<br />
as mais avançadas tecnologias empregadas nas linhas<br />
de montagem, em total sintonia com a robótica e<br />
a indústria bélica. Em 1941, logo após a entrada dos Estados<br />
Unidos da Segunda Guerra, a GM mobilizou toda<br />
a sua linha de produção para a fabricação de tanques<br />
de guerra, blindados e peças para aviões.<br />
Para além de <strong>se</strong>u lugar na produção propriamente<br />
dita, a indústria automobilística também é associada<br />
aos sistemas de crédito que financiam e subsidiam<br />
o comércio do automóvel. Os maiores bancos do mundo<br />
– associados a fundos de pensão, a empreiteiras, aos<br />
“fundos de derivativos” (os hedge funds, responsáveis<br />
pela orgia especulativa que levou o sistema ao desastre)<br />
– empataram <strong>se</strong>us capitais nes<strong>se</strong> comércio. Estimulados<br />
por campanhas publicitárias multibilionárias, que<br />
prometem a felicidade aos compradores de determinada<br />
marca ou modelo, clientes assumem dívidas a <strong>se</strong>rem<br />
pagas em 70, 80 ou 90 me<strong>se</strong>s, a taxas de juros que, no<br />
Brasil, ultrapassam os limites da mais desavergonhada<br />
agiotagem. Os modelos são, deliberadamente, fabricados<br />
para rapidamente ficarem “velhos”, assim estimulando<br />
novas compras e o empilhamento de sucata.<br />
Pois bem, foi es<strong>se</strong> modelo, em <strong>se</strong>u conjunto,<br />
envolvendo todos os circuitos industriais e econômicos<br />
mencionados (petróleo, siderurgia, informática,<br />
publicidade, especulação e agiotagem institucionalizada)<br />
que deu sinal de esgotamento, com a falência da<br />
GM. Há, em todo o planeta, uma cri<strong>se</strong> imensa de superprodução<br />
de automóveis, num quadro em que as famílias<br />
de clas<strong>se</strong> média e de trabalhadores, em todo o mundo,<br />
já atingiram um teto de endividamento que não lhes<br />
permite mais participar da orgia do consumo.<br />
“Tomemos o exemplo do automóvel na<br />
Alemanha, país que com a Suécia é o mais dependente<br />
de <strong>se</strong>u uso. O retrocesso no <strong>se</strong>tor de produção do automóvel<br />
na Alemanha participou com 0,8% da contração<br />
do PIB alemão no quarto trimestre de 2008. Deve-<strong>se</strong> somar<br />
0,1%, com a inclusão da compressão dos <strong>se</strong>rviços<br />
ligados à venda: as concessionárias. O cálculo é simples:<br />
isso equivale a 33% da queda do PIB no último trimestre<br />
na Alemanha”, nota o economista Charles-André Udry.<br />
O tamanho da encrenca pode <strong>se</strong>r entendido quando <strong>se</strong><br />
considera que a Alemanha enfrenta hoje sua pior recessão<br />
desde o final dos anos 40, e que a indústria do automóvel<br />
emprega cerca de 860 mil trabalhadores (2,6<br />
milhões, considerando também os empregos indiretos).<br />
Nos Estados Unidos são 710 mil empregos diretos e<br />
256 mil na França. Quando <strong>se</strong> leva em consideração a<br />
proliferação das montadoras na “periferia” do capitalismo<br />
e o impacto da economia do automóvel nes<strong>se</strong>s<br />
paí<strong>se</strong>s (entre os quais, Brasil, México e Argentina, para<br />
ficar só na América Latina), a coisa toda adquire proporções<br />
ainda mais catastróficas, nem de longe ana-<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
lisadas pelos “especialistas” da mídia brasileira.<br />
Já Obama não é o novo Roo<strong>se</strong>velt. Nem poderia<br />
<strong>se</strong>r. Em primeiro lugar, Roo<strong>se</strong>velt foi “estimulado” a<br />
promover o New Deal, nos anos 30, pela vitória da Revolução<br />
de 1917 e pelo grande prestígio do socialismo<br />
entre os trabalhadores dos Estados Unidos. Havia<br />
o risco concreto de construção de um importante movimento<br />
revolucionário nas terras de Tio Sam. Hoje, o<br />
movimento sindical estaduniden<strong>se</strong> ainda é controlado<br />
por máfias associadas ao Partido Democrata, que aceitam<br />
a diminuição de garantias e de direitos trabalhistas<br />
(impostos pelo “pacote de salvação” de Obama), em<br />
nome da pre<strong>se</strong>rvação do emprego. Além disso, à época<br />
do New Deal, o capital financeiro não tinha adquirido<br />
a absoluta predominância que tem hoje: a indústria<br />
era o <strong>se</strong>tor de maior importância e poder político. O<br />
dólar não era a moeda de troca universal (passou a sêlo<br />
em 1944), o que atribui a Obama muito maior poder<br />
de jogar com a economia mundial. Nem os Estados<br />
Unidos eram a potência com a incontrastável hegemonia<br />
militar que é hoje.<br />
Os analistas da mídia ignoram estas pequenas<br />
particularidades históricas. Fingem que informam,<br />
quando desinformam. Pouco ou nenhum destaque<br />
foi dado, por exemplo, ao curioso fato de que o<br />
BNDES (entre outros bancos estatais) é um dos principais<br />
financiadores da GM do Brasil (sob condições bem<br />
mais “amenas” do que as praticadas nos Estados Unidos,<br />
<strong>se</strong>gundo os próprios dirigentes da GM brasileira). Ora,<br />
na medida em que a GM torna-<strong>se</strong> propriedade dos Estados<br />
Unidos, isso significa que nós, contribuintes, passamos<br />
a financiar, via bancos estatais, ninguém menos<br />
que o governo dos Estados Unidos. É mole? E os “especialistas”<br />
tampouco informam que a sobrevida da GM e<br />
de outras montadoras no Brasil deve-<strong>se</strong> à renúncia fiscal,<br />
que significa subtrair fundos para obras públicas,<br />
educação e saúde, além de o governo permitir a orgia<br />
de endividamento descontrolado de uma clas<strong>se</strong> média<br />
que <strong>se</strong>ntirá o baque nos próximos me<strong>se</strong>s.<br />
Em resumo, a falência da GM anuncia a falência do<br />
“american dream” e do modelo a ele associado. Enquanto<br />
isso, embalado pelo canto de <strong>se</strong>reia de uma mídia<br />
mentirosa, incompetente e comprometida até o pescoço<br />
com o capital internacional, o Brasil permanece deitado<br />
em berço esplêndido.<br />
José Arbex Jr. é jornalista.<br />
junho 2009 caros amigos<br />
9
10<br />
É mesmo uma pena que nossos melhores dicionários<br />
de referência, o Aurélio e o Houaiss, oscilem<br />
entre a tentativa de pre<strong>se</strong>rvação das prescrições<br />
tradicionais e a vontade de incorporar e<br />
abonar as formas inovadoras já consagradas no<br />
uso do português brasileiro. Digo isso porque,<br />
ao tratar do substantivo óculo(s), ambos os dicionários<br />
assumem o tom mais prescritivista e<br />
autoritário possível, em franca contradição com<br />
as análi<strong>se</strong>s mais bem feitas que encontramos em<br />
outros verbetes:<br />
Aurélio Século XXI: “No Brasil, pelo menos,<br />
diz-<strong>se</strong>, erroneamente, o óculos, este óculos, meu<br />
óculos” (verbete óculos).<br />
Houaiss: “A palavra óculos é pluralia tantum*<br />
... <strong>se</strong>ndo, portanto, erro a discordância de<br />
número (um óculos) que <strong>se</strong> tem vulgarizado no<br />
português coloquial do Brasil (formas corretas:<br />
uns óculos, meus óculos, um par de óculos)”<br />
(verbete óculo).<br />
*Pluralia tantum são as palavras que só são usadas<br />
no plural como bodas, anais, costas, férias.<br />
Como diria nosso herói Macunaíma: “Ai, que<br />
preguiça!” Por que essa insistência em achar que<br />
es<strong>se</strong> importante dispositivo para melhorar a visão<br />
(que eu uso há quarenta anos!) tem que <strong>se</strong>r<br />
considerado como um par? Por que não chamálo<br />
então de binóculo, já que também existe o<br />
monóculo?<br />
O que aconteceu com óculos foi o mesmo que<br />
aconteceu com tesouras, cuecas, calças, ceroulas,<br />
tenazes, listados pelo dicionário Houaiss no<br />
verbete pluralia tantum. Nes<strong>se</strong> verbete, a análi<strong>se</strong>,<br />
felizmente, não recorre à imposição do que<br />
é “correto” e à condenação do “erro”, <strong>se</strong>ndo,<br />
ao contrário, i<strong>se</strong>nta des<strong>se</strong>s preconceitos: pluralia<br />
tantum.<br />
Rubrica: gramática. Expressão latina com que<br />
são referidos os substantivos de uma língua cuja<br />
forma é um plural morfológico, mas que <strong>se</strong>manticamente<br />
podem denotar uma única unidade;<br />
trata-<strong>se</strong> <strong>se</strong>mpre de referentes formados de partes<br />
simetricamente duplicadas (p.ex.: tesouras, cuecas,<br />
calças, óculos, ceroulas, tenazes).<br />
Uso. Embora o emprego do pl[ural] para indicar<br />
uma só parelha <strong>se</strong>ja normal no português,<br />
registra-<strong>se</strong> uma dicotomia de tendência:<br />
de um lado, para obviar possíveis ambiguidades<br />
e explicitar a unidade, o locutor refere<strong>se</strong><br />
a um par de tesouras, de alicates, de pinças<br />
etc.; de outro, esp[ecialmente] no port[uguês]<br />
do Brasil, consuma-<strong>se</strong> o qua<strong>se</strong> geral emprego<br />
caros amigos julho 2009<br />
falar brasileiro<br />
Marcos Bagno<br />
Deixem o meu<br />
óculos em paz!<br />
do sing[ular] nos mesmos casos: uma tesoura,<br />
uma tenaz, a minha calça, a cueca.<br />
É uma pena que não <strong>se</strong> tenha mencionado<br />
também o “qua<strong>se</strong> geral emprego do singular” no<br />
caso de óculos. A razão do nosso uso de óculos<br />
no singular está nessas palavras do verbete:<br />
“substantivos cuja forma é um plural morfológico,<br />
mas que <strong>se</strong>manticamente podem denotar<br />
uma única unidade”.<br />
Pronto, gente, é só isso: é <strong>se</strong>mântica! A <strong>se</strong>mântica<br />
estuda a relação entre as palavras e as<br />
coisas do mundo que elas designam. Se nós concebemos<br />
o óculos como uma coisa só, nossa lógica<br />
linguística vai querer corresponder à nossa<br />
lógica de percepção da realidade: <strong>se</strong> o objeto<br />
é considerado como uma unidade, a palavra que<br />
o designa só pode estar no singular!<br />
Vamos parar com essa insistência boboca,<br />
deixar todo mundo usar <strong>se</strong>u óculos em paz e cuidar<br />
de coisas mais importantes? Por exemplo: somente<br />
8% das escolas com as melhores médias<br />
do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) em<br />
2009 eram públicas. Não é perdendo tempo tentando<br />
convencer os alunos de que a palavra óculos<br />
só pode <strong>se</strong>r usada no plural que nosso ensino<br />
público vai sair do fundo do poço!<br />
Marcos Bagno é linguista e escritor.<br />
www.marcosbagno.com.br<br />
Mc Leonardo<br />
Brasil,<br />
politicamente<br />
incorreto - Parte I<br />
No final dos anos 60, já assassinavam<br />
muita gente nas favelas. Existiam os assaltantes,<br />
os jogadores de ronda, e os ladrões de varal, e a<br />
maioria dos comerciantes tinha uma garrucha pra<br />
<strong>se</strong> defender. As favelas estavam crescendo e os poderes<br />
eram disputados a bala ou a facada, todo dia<br />
tinha gente morrendo. Crimes passionais, vingança,<br />
ou disputa de terra, levaram a vida de muita<br />
gente. Comparando com os dias de hoje em que a<br />
população favelada é bem maior, posso dizer que<br />
proporcionalmente morria o mesmo número que<br />
morre hoje.<br />
A imprensa estava censurada,<br />
os que morriam, muitas vezes nem documento tinham,<br />
a polícia estava atrás dos comunistas, escondiam<br />
tudo, e ninguém que vivia fora da favela<br />
sabia o que <strong>se</strong> passava ali. Além do governo norteamericano,<br />
quem financiava a polícia para capturar<br />
e torturar os tais comunistas eram os empresários,<br />
uns porque queriam aquele regime de total loucura<br />
dos militares, e outros diziam não ter escolha,<br />
pois <strong>se</strong>riam per<strong>se</strong>guidos e chamados de subversivos,<br />
mas a maioria pagava por interes<strong>se</strong>s pessoais,<br />
licitações, contratos etc... Tudo estava em jogo, era<br />
melhor financiar aquela loucura ou teriam diversos<br />
problemas em suas empresas.<br />
Até então nas favelas <strong>se</strong> comentava<br />
que “Fulano” fumava uma droga, que “Sicrano”<br />
tinha um revólver e vendia a tal droga, era<br />
o mercado de venda varejista de drogas que estava<br />
chegando com um poder que ninguém tinha ali<br />
dentro: o poder financeiro.<br />
Para os comerciantes foi um grande<br />
negócio: ninguém mata ninguém, ninguém rouba<br />
ninguém, ninguém estupra ninguém, enfim, quem<br />
decidia era o comércio da droga. “Temos nossas regras<br />
e quem não qui<strong>se</strong>r cumprir pode ir embora ou<br />
vai morrer”, diziam os vendedores de drogas.<br />
Alguns demoraram pra entender,<br />
tentaram resistir, e acabaram morrendo.<br />
(Continua)<br />
MC Leonardo é compositor, autor, com <strong>se</strong>u irmão<br />
MC Junior, de funks de protesto, como o Rap das<br />
Armas. mcleonardo@carosamigos.com.br - http://<br />
mcjunioreleonardo.wordpress.com<br />
Ilustração: Debora borba/deboraborba@gmail.com
12<br />
em entrevista exclusiva, a auditora da Receita<br />
Federal e coordenadora da Auditoria Cidadã<br />
da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, conta como<br />
foi sua participação, a convite do presidente Rafael<br />
Correa, na comissão oficial de auditoria da dívida<br />
do Equador, em 2008. Presidentes de outros paí<strong>se</strong>s,<br />
como Bolívia, Venezuela e Paraguai, demonstram a<br />
intenção de <strong>se</strong>guir o exemplo equatoriano. Para Maria<br />
Lucia, é preciso que o Brasil cumpra a Constituição<br />
Federal, que prevê a auditoria, para que a sociedade<br />
pare de pagar a conta à custa da privação de<br />
direitos sociais elementares, conta esta que a atual<br />
cri<strong>se</strong> tende a tornar ainda mais cara.<br />
Caros Amigos: Como <strong>se</strong> <strong>se</strong>ntiu ao participar<br />
da auditoria da dívida do Equador, enquanto o<br />
Brasil continua a pagar, todos os anos, milhões<br />
de reais como juros de sua dívida?<br />
caros amigos julho 2009<br />
entrevista MARIA LUCIA FATTORELLI<br />
DÍVIDA PÚBLICA<br />
faz a farra dos especuladores<br />
A auditora da Receita Federal mostra como funcionam os<br />
mecanismos que colocaram o Brasil e outros paí<strong>se</strong>s da América<br />
Latina reféns do capital financeiro Max Gimenes | Fotos Roberto Jayme<br />
Maria Lucia Fattorelli: A realização da auditoria<br />
oficial da dívida pública equatoriana foi um dos<br />
principais fatos políticos da história da América Latina,<br />
pois significa um importante passo no <strong>se</strong>ntido<br />
de nossa verdadeira independência e retomada de<br />
nossa soberania. Sem dúvida foi uma imensa honra<br />
ter sido designada pelo presidente Rafael Correa Delgado<br />
para a comissão da auditoria da dívida equatoriana,<br />
CAIC, para realizar a auditoria integral de<br />
sua dívida pública interna e externa, visando à busca<br />
da verdade sobre o endividamento público. Es<strong>se</strong><br />
trabalho repre<strong>se</strong>ntou um desafio imenso, pois o decreto<br />
presidencial determinou a realização de uma<br />
auditoria dos últimos 30 anos do processo de endividamento,<br />
envolvendo a investigação de aspectos financeiros,<br />
contábeis, jurídicos e também <strong>se</strong>us impactos<br />
sociais e ambientais. Considerando que teríamos<br />
apenas um ano para realizar essa tarefa, a comissão<br />
foi subdividida em subcomissões que <strong>se</strong> dedicaram<br />
especificamente a cada tipo de endividamento: multilateral<br />
(dívida externa contratada com FMI, Banco<br />
Mundial, Corporación Andina de Fomento e outros<br />
organismos multilaterais); bilateral (dívida entre<br />
o Equador e outros paí<strong>se</strong>s ou bancos públicos de outros<br />
paí<strong>se</strong>s); comercial (dívida contratada com bancos<br />
privados internacionais) e interna.<br />
O que foi apontado pela auditoria?<br />
O resultado de todas as subcomissões apontou<br />
impressionantes ilegalidades e ilegitimidades verificadas<br />
em processos que <strong>se</strong>mpre beneficiaram o<br />
<strong>se</strong>tor financeiro privado, as grandes corporações e<br />
empresas privadas, em detrimento do Estado equatoriano<br />
e de <strong>se</strong>u povo, carente de tantos <strong>se</strong>rviços<br />
públicos e de condições de vida digna, apesar das<br />
riquezas nacionais, como o petróleo. A sangria pro-
vocada pela dívida não permitiu que es<strong>se</strong>s recursos<br />
<strong>se</strong>rvis<strong>se</strong>m ao povo equatoriano. Uma das constatações<br />
mais importantes da comissão foi a incrível<br />
<strong>se</strong>melhança do processo de endividamento equatoriano<br />
com o brasileiro e o dos demais paí<strong>se</strong>s latino-americanos.<br />
No caso da dívida externa comercial<br />
- com bancos privados internacionais de cuja<br />
investigação participei, a dívida atual repre<strong>se</strong>ntada<br />
por títulos Bonos Global é resultado do endividamento<br />
agressivo iniciado no final da década de 70,<br />
durante a ditadura militar, majorado pela influência<br />
da elevação unilateral das taxas de juros pelo Federal<br />
Re<strong>se</strong>rve a partir de 1979, por onerosas renegociações<br />
ocorridas na década de 80, quando o Estado<br />
equatoriano assumiu inclusive dívidas privadas;<br />
<strong>se</strong>guido de renúncia à prescrição dessa dívida em<br />
1992 e sua transformação em títulos negociáveis,<br />
denominados Bonos Brady em 1995, emissões de<br />
Eurobonos e nova transformação em Bonos Global<br />
em 2000. A dívida externa comercial equatoriana<br />
atual é fruto de sucessivas conversões equivocadas<br />
de uma mesma dívida que foi crescendo em função<br />
da alta de juros internacionais, assunção de dívidas<br />
pelo Estado, por <strong>se</strong>u valor nominal integral, inclusive,<br />
dívidas privadas, processo que no Equador <strong>se</strong><br />
denominou “Sucretización”.<br />
Qual a relação com a dívida brasileira?<br />
O endividamento externo comercial do Brasil <strong>se</strong>guiu<br />
passos idênticos, verificando-<strong>se</strong> a coincidência<br />
de datas, nomes dos convênios e dos títulos da dívida,<br />
termos e condições estabelecidas nos diversos<br />
contratos, além de interferência expressa do FMI;<br />
enfim, quando analisava os documentos do endividamento<br />
equatoriano parecia que estava lendo os<br />
mesmos documentos aos quais já tivemos acesso no<br />
Brasil durante os trabalhos da Auditoria Cidadã da<br />
Dívida. Diante de tantas <strong>se</strong>melhanças, o ideal é que<br />
os demais paí<strong>se</strong>s também realizem auditoria de suas<br />
dívidas públicas, pois o endividamento tem sido um<br />
mecanismo contínuo, utilizado para sugar nossas<br />
riquezas e travar o de<strong>se</strong>nvolvimento do nosso continente.<br />
Várias iniciativas estão <strong>se</strong> conformando a<br />
partir do primeiro passo dado pelo presidente Rafael<br />
Correa: o Paraguai já está realizando uma investigação<br />
oficial sobre sua dívida externa, e na última<br />
reunião da ALBA (Alternativa Bolivariana para<br />
os Povos de Nossa América), em novembro de 2008,<br />
Venezuela e Bolívia também anunciaram a intenção<br />
de fazer a auditoria integral de suas dívidas.<br />
O Brasil poderia estar em outro patamar de justiça<br />
social e de<strong>se</strong>nvolvimento econômico <strong>se</strong> a auditoria<br />
da dívida prevista na Constituição Federal de 1988<br />
tives<strong>se</strong> sido realizada. É uma lástima que nenhum<br />
dos governos, nes<strong>se</strong>s 20 anos, tenha respeitado es<strong>se</strong><br />
preceito fundamental.<br />
O que é e como funciona na prática a auditoria<br />
de uma dívida?<br />
Auditoria da dívida, em resumo, significa a investigação<br />
de todos os processos de contratação, renegociação,<br />
troca e rolagem de dívida pública – interna<br />
ou externa. A auditoria <strong>se</strong> dá com ba<strong>se</strong> na análi<strong>se</strong><br />
de documentos oficiais (contratos, títulos e correspondências<br />
oficiais, por exemplo) e registros existentes<br />
em livros de escrituração contábil, além de dados<br />
estatísticos e outras publicações existentes. A auditoria<br />
da dívida envolve também a análi<strong>se</strong> de cifras<br />
(valores contratados/pagos; comparações entre o valor<br />
renegociado e o valor de mercado, comissões diversas,<br />
taxas de juros), estudo e análi<strong>se</strong> da legislação<br />
de regência e outras questões jurídicas aplicáveis e,<br />
adicionalmente, visa à identificação dos participantes<br />
nos diversos processos relevantes.<br />
Quais são os objetivos de uma auditoria?<br />
A auditoria deve abranger um período estabelecido<br />
e ter objetivos claros. No caso equatoriano,<br />
o prazo estabelecido foi de trinta anos – 1976 a<br />
2006 – e os principais objetivos foram os <strong>se</strong>guintes:<br />
1) Efetuar uma auditoria integral dirigida a examinar<br />
e avaliar o processo de endividamento público<br />
com a finalidade de determinar sua legitimidade, legalidade,<br />
transparência, qualidade, eficácia e eficiência,<br />
além dos impactos econômicos e sociais. 2)<br />
Efetuar periodicamente relatórios nos quais constem<br />
os avanços obtidos, com as recomendações e<br />
sugestões que considerem pertinentes, e um relatório<br />
final com conclusões, determinando as respectivas<br />
responsabilidades. 3) Propor normas e políticas<br />
públicas orientadas a fortalecer a auditoria<br />
sobre os créditos públicos como função permanente<br />
do Estado.<br />
Como foi feita a apuração da dívida<br />
do Equador?<br />
Com a finalidade de cumprir a delegação encomendada<br />
pelo presidente do Equador, a CAIC realizou<br />
exames de livros e documentos contábeis no<br />
Ministério de Finanças, Banco Central do Equador<br />
e outros registros e documentos disponíveis na Procuradoria<br />
Geral do Estado, Controladoria Geral da<br />
Nação e Congresso Nacional. Ante as graves deficiências<br />
de controle interno, a CAIC investigou também<br />
outros registros históricos existentes em livros,<br />
publicações e páginas da web, com o objetivo de<br />
buscar evidências de vinculações, conjunturas, situação<br />
de firmas e entidades financeiras envolvidas<br />
nas negociações da dívida externa equatoriana.<br />
O resumo executivo do relatório da CAIC e outros<br />
documentos sobre o processo histórico de<strong>se</strong>nvolvido<br />
no Equador estão disponíveis na página da Auditoria<br />
Cidadã da Dívida no endereço www.divida-<br />
“O acúmulo de re<strong>se</strong>rvas cambiais não significou o “fim”<br />
da dívida externa, mas a troca de dívida externa por<br />
dívida interna a juros altíssimos e prazos muito curtos”.<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
auditoriacidada.org.br. Essa experiência histórica<br />
pode <strong>se</strong>r considerada vitoriosa, pois além de já estar<br />
inspirando outras nações, está permitindo atitudes<br />
soberanas por parte do governo equatoriano,<br />
como a suspensão do pagamento dos juros dos bônos<br />
Global, repre<strong>se</strong>ntação atual da dívida externa<br />
com bancos privados internacionais, fruto de contínuas<br />
ilegalidades e até indícios veementes de práticas<br />
fraudulentas.<br />
Como a auditoria pode auxiliar na reversão da<br />
dolarização do Equador?<br />
De fato, a política econômica do Equador ficou<br />
muito restrita a partir da dolarização e da perda de<br />
sua própria moeda, o que afetou muito a soberania<br />
do país, embora ainda cumpra importante papel<br />
na execução de políticas e instrumentos econômico-financeiros.<br />
A realização da auditoria da dívida<br />
equatoriana foi um importante passo no <strong>se</strong>ntido<br />
de retomar a soberania financeira, mas para reaver<br />
sua moeda o país ainda terá que dar muitos outros<br />
passos. Historicamente o Equador teve uma clas<strong>se</strong><br />
dirigente que governou o país para interes<strong>se</strong>s externos<br />
e não para povo equatoriano, por isso chegaram<br />
a comprometer gravemente a soberania do<br />
país, como <strong>se</strong> verifica no caso da moeda, do endividamento<br />
ilegítimo e das negociações do petróleo,<br />
sua principal matéria-prima. Creio que a questão<br />
da moeda deverá <strong>se</strong>r enfrentada, até por conta da<br />
atual cri<strong>se</strong> financeira mundial e <strong>se</strong>u impacto sobre<br />
o dólar. A sociedade deverá participar des<strong>se</strong> debate,<br />
pois grande parte da população guarda recordações<br />
traumáticas do período em que o sucre (moeda<br />
equatoriana) passou por forte desvalorização,<br />
em virtude de inflação galopante, e por isso acredita<br />
que estaria mais <strong>se</strong>gura com o dólar, o que não<br />
é bem verdade.<br />
O jornal O Globo a acusou de ter participado de<br />
uma comissão que estava ajudando “a preparar<br />
a te<strong>se</strong> do calote” contra o Brasil. Depois houve<br />
um de<strong>se</strong>ntendimento entre Equador e Brasil<br />
sobre uma obra da construtora Odebrecht.<br />
Afinal, quem devia ao BNDES: o governo do<br />
Equador ou a Odebrecht?<br />
Com relação a es<strong>se</strong> fato, é interessante resgatar<br />
trecho de matéria publicada pelo jornal Folha<br />
de S.Paulo na qual a ministra Dilma Rous<strong>se</strong>ff repete<br />
afirmação do presidente Lula de que o BN-<br />
DES não fez empréstimo ao Equador: “O presidente<br />
Luiz Inácio Lula da Silva já dis<strong>se</strong> que o BNDES<br />
não tem relação com o Equador, o banco não emprestou<br />
o dinheiro para o Equador, mas para a empresa.<br />
Não vamos complicar mais a situação”. Essa<br />
mesma afirmação da ministra foi publicada também<br />
no site da BBC Brasil. Conforme amplamente divulgado<br />
pela imprensa equatoriana, a obra questionada<br />
custou mais que o dobro do previsto, e a usina<br />
hidrelétrica funcionou poucos me<strong>se</strong>s e parou, tendo<br />
apre<strong>se</strong>ntado sérios problemas técnicos e ambientais.<br />
Matéria irresponsável veiculada pelo jornal O<br />
Globo dá uma versão totalmente distorcida dos fatos,<br />
vinculando a realização da auditoria à preparação<br />
de um calote contra o Brasil que nunca existiu,<br />
pois, embora não tenha recebido os recursos e este-<br />
junho 2009 caros amigos<br />
13
14<br />
ja efetivamente enfrentando uma disputa comercial<br />
em corte de arbitragem internacional, o governo do<br />
Equador efetuou o pagamento da parcela vencida<br />
em dezembro de 2008, de US$ 28,1 milhões ao BN-<br />
DES. Além disso, a matéria distorce totalmente o<br />
trabalho que realizei no Equador, restrito à subcomissão<br />
de dívida comercial e relacionado com a investigação<br />
de dívida externa com bancos privados<br />
internacionais. A investigação relacionada ao caso<br />
Odebrecht foi objeto da subcomissão de dívida bilateral,<br />
da qual não participei.<br />
O presidente do Paraguai, Fernando Lugo, já<br />
anunciou que pretende auditar a dívida do <strong>se</strong>u<br />
país. A alegação do novo governo é a de que<br />
a dívida contraída com a construção de Itaipu<br />
é ilegítima. O que é uma dívida ilegítima?<br />
Existem várias definições sobre ilegitimidade<br />
da dívida, porém os diferentes enfoques coincidem<br />
quanto à determinação da ilegitimidade das dívidas<br />
odiosas (contraídas por ditaduras militares). Em resumo,<br />
a jurisprudência existente sobre o tema considera<br />
ilegítimas as dívidas marcadas por fraude e<br />
corrupção na origem da dívida; termos e cláusulas<br />
abusivas nos contratos de empréstimos; contratação<br />
por governos ilegítimos ou por meio de procedimentos<br />
irregulares; ausência de benefícios ou<br />
contrapartida positiva para a população. Segundo o<br />
cientista social inglês Jo<strong>se</strong>ph Hanlon, por exemplo,<br />
quatro condições caracterizam uma dívida como<br />
ilegítima: um empréstimo concedido para reforçar<br />
um regime ditatorial (empréstimo inaceitável), um<br />
empréstimo contraído com juros elevados que podem<br />
<strong>se</strong>r caracterizados como usura (condições inaceitáveis),<br />
um empréstimo concedido a um país de<br />
que <strong>se</strong> conhece a escassa capacidade de reembolso<br />
(empréstimo inadequado) e, por último, um empréstimo<br />
repleto de condições impostas pelo FMI, que<br />
geram uma situação econômica que aumente as dificuldades<br />
de reembolso (condições inadequadas).<br />
Com relação ao Paraguai, de fato, recentemente o<br />
governo anunciou sua intenção de também realizar<br />
auditoria de sua dívida externa, composta principalmente<br />
do endividamento com o Brasil, referente<br />
à construção da usina hidrelétrica de Itaipu. O mais<br />
importante com relação a es<strong>se</strong> fato é que essa auditoria<br />
deverá beneficiar também o Brasil, pois os<br />
dois paí<strong>se</strong>s estão <strong>se</strong>ndo sacrificados por um mecanismo<br />
que favorece somente os rentistas.<br />
Qual é a situação da usina de Itaipu?<br />
Itaipu é uma empresa binacional composta de<br />
50% de participação da empresa ANDE (do Paraguai)<br />
e 50% da Eletrobrás (Brasil), e tinha uma dívida<br />
de US$ 19,5 bilhões, ao final de 2007. Destes US$<br />
19,5 bilhões, 57,3% são devidos ao Tesouro Brasileiro,<br />
42,5% à Eletrobrás e 0,2% a outros emprestadores.<br />
Portanto, na prática, o Paraguai – por meio de<br />
sua participação de 50% da empresa Itaipu – possui<br />
uma dívida com o Brasil. Esta dívida tem sido paga,<br />
em última instância, pela sociedade paraguaia e brasileira,<br />
quando quita a conta de luz, cujos recursos<br />
são destinados a cobrir o custo de geração de energia<br />
de Itaipu. E o principal componente des<strong>se</strong> custo<br />
é o pagamento da dívida junto ao Brasil, refe-<br />
caros amigos julho 2009<br />
rente à construção da usina. Essa dívida de Itaipu<br />
possui muitas ilegitimidades, que devem <strong>se</strong>r investigadas<br />
pela auditoria. A primeira delas refere-<strong>se</strong> ao<br />
imenso sobrepreço da obra, inicialmente orçada em<br />
US$ 2 bilhões e que acabou custando US$ 20 bilhões,<br />
ou <strong>se</strong>ja, 10 vezes mais. Outra ilegitimidade é a alta<br />
taxa de juros e a atualização monetária que incidiu<br />
por décadas sobre o estoque dessa dívida: 7,5% ao<br />
ano mais a inflação norte-americana. Como resultado<br />
disso, até hoje Itaipu pagou de <strong>se</strong>rviço desta dívida<br />
US$ 25 bilhões, ou <strong>se</strong>ja, 12 vezes <strong>se</strong>u custo orçado<br />
inicial, e ainda assim a dívida hoje está em qua<strong>se</strong><br />
US$ 20 bilhões! Caso não <strong>se</strong> altere esta situação, Itaipu<br />
pagará ao todo US$ 63 bilhões por uma obra que<br />
deveria ter custado US$ 2 bilhões!<br />
O que deve <strong>se</strong>r feito sobre a dívida de Itaipu?<br />
A grande parte da imprensa brasileira que defende<br />
interes<strong>se</strong>s financeiros diz que no caso de uma<br />
eventual anulação da dívida de Itaipu com a Eletrobrás<br />
e o Tesouro brasileiro, “o povo brasileiro<br />
vai pagar pela dívida do Paraguai”. Es<strong>se</strong> argumento<br />
é equivocado, pois os recursos pagos por Itaipu<br />
ao Brasil são destinados, principalmente, para o pagamento<br />
da dívida interna e externa do Brasil, até<br />
hoje não auditada, como determina a Constituição<br />
Federal de 1988. Portanto, a dívida de Itaipu tem<br />
sido um mecanismo que alimenta o endividamento<br />
e que em nada beneficia o povo, mas os rentistas<br />
nacionais e internacionais. Em 2008, mais de 30%<br />
do orçamento federal brasileiro foi destinado ao pagamento<br />
da dívida, enquanto os gastos com saúde<br />
foram de 4,81%, com educação, 2,57%, e com reforma<br />
agrária, 0,27%.<br />
É correto afirmar que a questão da dívida é<br />
uma luta política em vez de econômica?<br />
Além de política e econômica, é também uma<br />
luta jurídica. De acordo com o artigo 62 da Convenção<br />
de Viena sobre o Direito dos Tratados, é<br />
permitido a qualquer país questionar um contrato,<br />
caso as condições vigentes quando de sua assinatura<br />
sofram alterações significativas. Mais ainda<br />
quando essa alteração nas condições parte de<br />
uma iniciativa dos próprios credores, que elevaram<br />
as taxas de juros de 5% ao ano (em meados<br />
dos anos 70) para até 20,5% ao ano, no início dos<br />
anos 80. Essa alta unilateral das taxas de juros<br />
provocou a multiplicação da dívida por ela mesma,<br />
provocando aumento absurdo no volume do<br />
<strong>se</strong>rviço da dívida externa de todos os paí<strong>se</strong>s que<br />
caíram na armadilha do endividamento “barato”<br />
dos anos 70, denominado “endividamento agressivo”<br />
dado o volume de empréstimos registrados no<br />
período. Portanto, é perfeitamente legítimo e legal<br />
o questionamento dessa dívida. Caso o Federal<br />
Re<strong>se</strong>rve dos EUA (cuja administração é composta<br />
dos principais bancos privados norte-americanos)<br />
não tives<strong>se</strong> promovido essa multiplicação dos juros,<br />
tanto a dívida brasileira como a equatoriana
já estariam pagas, e o que pagamos a mais nos daria<br />
um crédito maior que a dívida atual, reclamada<br />
pelos bancos privados internacionais.<br />
O governo Lula anunciou o fim do<br />
endividamento externo do Brasil, mas ocorreu<br />
um brutal crescimento do endividamento<br />
público. Como <strong>se</strong> deu es<strong>se</strong> processo de<br />
“internalização” da dívida e o que significa<br />
de fato o Brasil ter <strong>se</strong> tornado “credor<br />
internacional”?<br />
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que os dados<br />
divulgados pelo governo e pela grande mídia<br />
costumam <strong>se</strong>r manipulados, excluindo parcelas importantes<br />
das dívidas externa e interna. Ao final<br />
de 2008, a dívida interna atingiu a cifra de R$ 1,6<br />
trilhão, enquanto a dívida externa alcançou US$<br />
267 bilhões, números bem maiores que os divulgados<br />
pelo governo. O governo recentemente alegou<br />
que o país <strong>se</strong> tornou “credor externo” pelo fato de<br />
o volume das re<strong>se</strong>rvas cambiais ter superado o estoque<br />
da dívida externa pública. O que o governo<br />
não divulga é que tais re<strong>se</strong>rvas foram acumuladas<br />
ao mesmo tempo em que a dívida interna cresceu<br />
aceleradamente. Isso ocorreu porque durante o período<br />
em que o dólar <strong>se</strong> desvalorizava fortemente<br />
frente ao real, o governo brasileiro permitiu a entrada<br />
indiscriminada de dólares no país para a compra<br />
de títulos da dívida interna. Os especuladores<br />
buscavam, além da proteção contra a desvalorização<br />
do dólar, a maior remuneração por meio das<br />
taxas de juros mais elevadas do mundo, com i<strong>se</strong>nção<br />
de impostos para estrangeiros e total liberdade<br />
de movimentação. Essa combinação de fatores extremamente<br />
danosos à economia do Brasil, mas altamente<br />
rentáveis para os especuladores, provocou<br />
uma avalanche de dólares ao Brasil. Rapidamente<br />
acumulamos US$ 200 bilhões de re<strong>se</strong>rvas internacionais<br />
e a dívida interna explodiu, tendo crescido<br />
50% nos últimos três anos!<br />
Qual o custo dessa política para o Brasil?<br />
Es<strong>se</strong> acúmulo de re<strong>se</strong>rvas internacionais repre<strong>se</strong>ntou<br />
um custo altíssimo para o país, que ficou<br />
com grande quantidade de dólares (em queda!), que<br />
foram direcionados pelo Banco Central para as re<strong>se</strong>rvas<br />
internacionais, que são, em sua maioria, revertidas<br />
na compra de títulos do tesouro norte-americano,<br />
que não remuneram qua<strong>se</strong> nada. Por outro<br />
lado, só em 2007 os especuladores ganharam 30%<br />
livre de impostos em suas aplicações em títulos da<br />
dívida interna brasileira! Desta forma, o acúmulo de<br />
re<strong>se</strong>rvas cambiais não significou o “fim” da dívida<br />
externa, mas a troca de dívida externa por dívida<br />
interna a juros altíssimos e prazos muito curtos,<br />
além de um forte endividamento externo dos bancos<br />
e empresas nacionais, que especularam com o dólar<br />
e compraram títulos da dívida interna. Longe de ter<br />
virado “credor”, o país está, na realidade, proporcionando<br />
um negócio altamente rentável para os especuladores,<br />
ao mesmo tempo em que sacrifica a sociedade<br />
brasileira com a subtração da maior parte dos<br />
recursos orçamentários que têm sido destinados a financiar<br />
essa verdadeira “farra”!<br />
A atual cri<strong>se</strong> econômica escancara a<br />
precariedade do sistema monetário<br />
internacional. Poderiam <strong>se</strong>r identificadas<br />
relações diretas entre a cri<strong>se</strong> financeira e o<br />
processo de endividamento? Como a auditoria<br />
pode ajudar neste momento de cri<strong>se</strong>?<br />
A primeira relação direta que pode <strong>se</strong>r feita entre<br />
a cri<strong>se</strong> financeira e o processo de endividamento<br />
é que ambos tiveram como principais protagonistas<br />
os mesmos grandes bancos privados internacionais.<br />
A investigação que realizei no Equador, na subcomissão<br />
de auditoria da dívida externa com bancos<br />
privados internacionais, comprovou que nos 30<br />
anos analisados os bancos privados responsáveis<br />
pelas sucessivas renegociações eivadas de ilegitimidades<br />
e ilegalidades <strong>se</strong> concentraram em <strong>se</strong>is grandes<br />
instituições norte-americanas e inglesas que,<br />
com o tempo, devido a fusões entre elas, hoje <strong>se</strong> resumem<br />
a apenas três! Além disso, o ponto de partida<br />
do endividamento com es<strong>se</strong>s bancos <strong>se</strong> originou<br />
ainda na década de 70, durante a ditadura militar,<br />
quando <strong>se</strong> emitiram grandes quantidades de papéis<br />
<strong>se</strong>m lastro e extremamente desvalorizados no mercado<br />
<strong>se</strong>cundário (“pagares”). Em 1983 es<strong>se</strong>s papéis<br />
foram assumidos pelo Banco Central equatoriano<br />
por <strong>se</strong>u valor de face integral, criando uma amarra<br />
que impediu o de<strong>se</strong>nvolvimento do país desde<br />
então. A principal causa da atual cri<strong>se</strong> financeira<br />
é também a emissão de grandes quantidades de<br />
C<br />
papéis <strong>se</strong>m lastro, carinhosamente chamados pela<br />
grande imprensa de “ativos tóxicos”, que uma vez M<br />
mais estão <strong>se</strong>ndo assumidos pelo Estado para “salY<br />
var” as instituições financeiras des<strong>se</strong> prejuízo.<br />
MY<br />
E como <strong>se</strong> dá essa relação no Brasil?<br />
CY<br />
No Brasil, essa prática pode <strong>se</strong>r evidenciada por<br />
meio da recente Medida Provisória nº. 442, que perCMY<br />
mitiu que os bancos privados passas<strong>se</strong>m a depositar K<br />
garantias podres em troca de empréstimos concedidos<br />
pelo Banco Central, o que na verdade significa<br />
a transferência de prejuízos privados ao <strong>se</strong>tor público,<br />
que ao final <strong>se</strong>rão arcadas por todos nós. Isso repre<strong>se</strong>nta<br />
uma infâmia, pois nos últimos anos os lucros<br />
do <strong>se</strong>tor financeiro privado, no Brasil, atingiram<br />
níveis espantosos, e tais lucros nunca foram socializados.<br />
Por um lado, o governo salva bancos e grandes<br />
construtoras (MPs 443 e 445, além da 442 e 450),<br />
beneficia os rentistas estrangeiros (com i<strong>se</strong>nção de IR<br />
desde 2006) e os grandes aplicadores nacionais (redução<br />
de IR sobre aplicações de renda fixa) e declara<br />
que “é chique emprestar ao FMI”. Por outro lado, o<br />
governo anunciou que passará a tributar rendimentos<br />
de poupança acima de R$ 50 mil; tem reduzido os repas<strong>se</strong>s<br />
a Estados e municípios, provocando o sucateamento<br />
ainda maior dos <strong>se</strong>rviços de saúde e educação,<br />
entre outros; e sua ba<strong>se</strong> aliada no Congresso tem adiado<br />
continuamente a análi<strong>se</strong> do veto presidencial ao<br />
reajuste dos apo<strong>se</strong>ntados. Enfim, declarou que “não é<br />
hora de trabalhador pedir aumento”. Verifica-<strong>se</strong>, portanto,<br />
que os trabalhadores estão pagando a conta da<br />
cri<strong>se</strong> e os bancos protagonistas dela estão <strong>se</strong>ndo salvos<br />
e ainda levando vantagem, devido à estreita relação<br />
entre a atuação dos bancos e a contínua rolagem<br />
da dívida interna brasileira. A auditoria da dívida poderia<br />
prestar um grande <strong>se</strong>rviço neste momento, revelando<br />
toda a verdade sobre es<strong>se</strong> questionável proces-<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
CM<br />
junho 2009 caros amigos<br />
15<br />
u<strong>se</strong>acuca.com.br
16<br />
so de endividamento que tem <strong>se</strong>rvido de justificativa<br />
para medidas oficiais que beneficiam unicamente os<br />
bancos e as grandes corporações, em detrimento do<br />
conjunto da sociedade brasileira, que tem pago alto<br />
preço por essa política econômica equivocada, traduzida<br />
em de<strong>se</strong>mprego, violência, sucateamento de <strong>se</strong>rviços<br />
públicos e elevada carga tributária.<br />
Recentemente o Ministério da Fazenda<br />
anunciou a redução da meta de superávit<br />
primário, para 2009, a fim de conter os<br />
efeitos da cri<strong>se</strong>. Isso pode significar alguma<br />
possibilidade de aumento dos gastos sociais?<br />
O governo anunciou a redução da meta de superávit<br />
primário para 2009, de 3,8% para 2,5% do<br />
Produto Interno Bruto, sugerindo que haveria R$ 40<br />
bilhões a mais para gastar neste ano. Porém, na prática,<br />
tal mudança não significa que o gasto social<br />
<strong>se</strong>rá aumentado, muito menos que os gastos com a<br />
dívida <strong>se</strong>rão reduzidos. O que ocorrerá, na prática,<br />
é que o governo utilizará outras fontes de recursos<br />
para pagar a dívida, tais como a emissão de mais títulos<br />
ou o lucro do Banco Central de 2008. Ou <strong>se</strong>ja:<br />
quando o Banco Central tem prejuízo, este é coberto<br />
pelo Tesouro. E quando tem lucro, o dinheiro vai<br />
para o pagamento da dívida. Na realidade haverá a<br />
manutenção dos gastos sociais programados, já reduzidos<br />
pelos cortes orçamentários de R$ 21 bilhões<br />
feitos anteriormente. Por outro lado, os gastos com a<br />
dívida continuarão intocáveis, mesmo já tendo consumido,<br />
em 2009 mais de R$ 207 bilhões somente<br />
até 4 de abril (incluindo a chamada “rolagem”), o<br />
que repre<strong>se</strong>nta cinco vezes os gastos com <strong>se</strong>rvidores,<br />
18 vezes o gasto com a saúde, 40 vezes os gastos<br />
com a educação ou 1.210 vezes o gasto com reforma<br />
agrária. O próprio Banco Central admite que<br />
o governo con<strong>se</strong>guirá cumprir a meta de superávit<br />
primário anterior, de 3,8% do PIB, no primeiro quadrimestre<br />
de 2009.<br />
Em dezembro do ano passado foi criada a<br />
CPI da Dívida, por iniciativa do deputado<br />
federal Ivan Valente, do PSOL-SP. A CPI pode<br />
esclarecer a situação da dívida?<br />
A criação da CPI ainda não significa o cumprimento<br />
da Constituição, mas repre<strong>se</strong>nta um importante<br />
passo na investigação do processo de endividamento.<br />
Por isso, iniciamos a mobilização pela<br />
efetiva instalação da CPI da Dívida desde o Fórum<br />
Social Mundial de 2009, em Belém, num <strong>se</strong>minário<br />
que contou com a participação de mais de 500 pessoas.<br />
Para que essa CPI tenha êxito, <strong>se</strong>rá necessário<br />
que a sociedade exija dos parlamentares de cada<br />
partido a imediata indicação dos membros para sua<br />
efetiva instalação. Em <strong>se</strong>guida, que acompanhem de<br />
perto este processo, participando das reuniões da CPI<br />
e cobrando dos parlamentares a utilização de todas<br />
as suas prerrogativas de acesso a qualquer informação<br />
acerca do endividamento e de envio à Justiça<br />
das denúncias referentes às ilegalidades encontradas.<br />
O povo brasileiro, que está pagando muito caro<br />
por essa dívida, tem o direito à verdade sobre es<strong>se</strong><br />
processo e, para isso, terá que <strong>se</strong> mobilizar.<br />
Max Gimenes é estudante de Ciências Sociais.<br />
caros amigos julho 2009<br />
O gargalO<br />
Em fevereiro de 2008, apre<strong>se</strong>ntamos<br />
à Câmara Federal o pedido de Comissão Parlamentar<br />
de Inquérito (CPI) para investigar a dívida pública<br />
da União, Estados e municípios. Em dezembro<br />
do ano passado, finalmente ela foi autorizada,<br />
e só agora líderes partidários começam a indicar os<br />
nomes de parlamentares para <strong>se</strong>u funcionamento,<br />
num processo lento, que parece desconhecer a urgência<br />
e relevância da iniciativa ou tem a intenção<br />
de boicotá-la. A centralidade política desta questão,<br />
que já era clara, agora ficou superevidenciada<br />
com a impactante cri<strong>se</strong> econômica que vivemos.<br />
A dependência financeira de crédito num sistema<br />
interconectado tem como pedra angular a dívida<br />
pública. É por ela que o Brasil sofre uma hemorragia<br />
brutal nas suas finanças públicas, com o<br />
pagamento de juros, amortizações e rolagem da dívida<br />
com recursos orçamentários e a emissão de títulos<br />
públicos. Trata-<strong>se</strong> de um sistema que <strong>se</strong> retroalimenta<br />
e inviabiliza qualquer de<strong>se</strong>nvolvimento<br />
soberano, sustentável e com justiça social.<br />
Tomando como referência apenas os governos<br />
dos dois últimos presidentes brasileiros, a dívida<br />
interna aumentou 17 vezes. No começo do governo<br />
FHC (janeiro de 95), a dívida interna era de R$ 61,8<br />
bilhões. Em dezembro de 2002, estava em R$ 687,3<br />
bilhões. Em janeiro deste ano, no governo Lula, ela<br />
atingiu a cifra de R$ 1 trilhão <strong>se</strong>iscentos e oitenta<br />
e dois bilhões de reais. No tocante à dívida externa<br />
acumulada ao longo dos anos, irregularidades<br />
e uma postura submissa tornam grande parte dessa<br />
dívida ilegal. Em janeiro de 2009, <strong>se</strong>u total era<br />
de US$ 262,93 bilhões, incluindo a dívida privada<br />
(uma vez que a oferta de dólares para o <strong>se</strong>u pagamento<br />
é de responsabilidade do governo).<br />
Estes são os números brutos da dívida. Mas neste<br />
mesmo período o governo federal gastou R$ 906 bilhões<br />
com juros e R$ 879 bilhões com amortizações.<br />
Nes<strong>se</strong>s monumentais montantes não estão incluídos<br />
R$ 3,77 trilhões de refinanciamento ou rolagem da<br />
dívida através da emissão de títulos públicos. Mesmo<br />
com todos estes pagamentos e apesar do mascaramento<br />
da dívida externa pelo aumento das re<strong>se</strong>rvas<br />
internacionais do país, a dívida interna explodiu<br />
e a dívida externa continua crescendo. Somente em<br />
2008, o país de<strong>se</strong>mbolsou 30,57% de <strong>se</strong>u orçamento<br />
com juros e amortizações.<br />
Ivan Valente<br />
do de<strong>se</strong>nvolvimento no Brasil<br />
Es<strong>se</strong> quadro é esclarecedor para <strong>se</strong> entender o<br />
impacto dessa lógica na política econômica que <strong>se</strong>guiu<br />
o receituário do FMI. Para atender às exigências<br />
crescentes dos compromissos com o pagamento<br />
da dívida, o superávit já chegou a atingir 6%<br />
do PIB em um ano. Dentro dessa lógica, o país vive<br />
comprando credibilidade junto ao <strong>se</strong>tor financeiro,<br />
acenando com mais privatizações, i<strong>se</strong>nções esdrúxulas<br />
e nenhum controle sobre o fluxo de capitais.<br />
Ao mesmo tempo, os governos incorporam a<br />
lógica do encolhimento de recursos para a área social,<br />
sucateamento dos <strong>se</strong>rviços públicos e enxugamento<br />
da máquina pública. Pagar a dívida, mesmo<br />
que ilegal, ilegítima e imoral, tornou-<strong>se</strong> algo religioso,<br />
<strong>se</strong>m questionamentos.<br />
Agora, com a cri<strong>se</strong>, os lobbies econômicos partiram<br />
para um ataque aos recursos públicos. São pedidos<br />
de refinanciamento de dívidas, empréstimos<br />
subsidiados, financiamento de exportação, i<strong>se</strong>nções<br />
fiscais etc. Para fazer frente à demanda por recursos,<br />
o governo ao invés de aplicar mecanismos que<br />
estanquem o sangramento do pagamento da dívida,<br />
edita medidas provisórias liberando a emissão<br />
de títulos públicos.<br />
A instalação imediata da CPI da Dívida Pública<br />
<strong>se</strong>rá, portanto, um poderoso instrumento de esclarecimento,<br />
denúncia e propostas para superar es<strong>se</strong><br />
modelo perverso. Permitirá desmistificar tabus como<br />
a necessidade de uma auditoria da dívida, como prevê<br />
a Constituição Federal. Por outro lado, vai mostrar<br />
a ilegalidade cometida e os responsáveis por tamanha<br />
iniqüidade contra o povo brasileiro.<br />
A CPI vem no trilho do plebiscito feito nas ruas<br />
no ano 2000, pelos movimentos sociais, igreja,<br />
MST e partidos de esquerda, em que qua<strong>se</strong> <strong>se</strong>is milhões<br />
de brasileiros <strong>se</strong> pronunciaram e mais de 90%<br />
apoiaram a suspensão do pagamento da dívida. Esperamos<br />
que o funcionamento CPI <strong>se</strong>ja um gancho<br />
para mobilizações que transformem em conquista<br />
dos trabalhadores e do povo brasileiro o enfrentamento<br />
desta questão. A auditoria da dívida<br />
externa do Equador é um exemplo de como um<br />
país pode exercer sua soberania, com total apoio<br />
dos movimentos populares. É hora de o Brasil fazer<br />
o mesmo.<br />
Ivan Valente é deputado federal do PSOL-SP.
MeMórias De uM jornalista<br />
não-investigativo<br />
Renato Pompeu<br />
“Eu sou do tempo que<br />
a escritora e jornalista<br />
Patrícia Galvão (Pagu)<br />
ditava suas matérias<br />
a um datilógrafo, na<br />
Agência France-Pres<strong>se</strong>,<br />
porque naquela época<br />
não era obrigatório que<br />
o jornalista soubes<strong>se</strong><br />
escrever a máquina.”<br />
Suriname: visita<br />
ou intervenção?<br />
Em 1982-1983 trabalhei na Agência United<br />
Press International, a falecida UPI. A certa<br />
altura, a mídia em geral no Brasil publicou<br />
que uma missão militar do comando brasileiro<br />
da Amazônia estava visitando o Suriname.<br />
No entanto, a UPI distribuía no Brasil, para o<br />
Diário Popular de São Paulo (hoje Diário de<br />
São Paulo) e para um jornal de Curitiba, a coluna<br />
do jornalista americano Jack Anderson,<br />
Washington Merry Go-Round (“O Carros<strong>se</strong>l de<br />
Washington”), publicada numa cadeia de jornais,<br />
o principal deles o The Washington Post.<br />
Certo dia, numa curta nota, Anderson comunicou<br />
que tropas brasileiras tinham intervindo<br />
no Suriname e cercado a capital, Paramaribo.<br />
Não trazia mais detalhes, mas, além de enviar<br />
a coluna aos dois jornais que eram <strong>se</strong>us clientes,<br />
também comuniquei o fato a colegas dos<br />
grandes jornais de São Paulo e do Rio, para<br />
que buscas<strong>se</strong>m apurar o assunto. Não tive nenhum<br />
retorno.<br />
Pouco depois, um correspondente da Rádio<br />
da Holanda (o Suriname é a antiga Guiana Holandesa),<br />
visitou várias redações em São Paulo<br />
para saber <strong>se</strong> havia informações sobre a intervenção<br />
de tropas brasileiras no Suriname.<br />
Quando ele foi à UPI, eu o informei a respeito<br />
da nota de Jack Anderson. A coisa, que eu saiba,<br />
ficou por aí. Voltei a falar com vários colegas,<br />
já que eu mesmo, como jornalista não-investigativo,<br />
não saberia como fazer a apuração<br />
de um caso des<strong>se</strong>s.<br />
Por coincidência, alguns anos depois, fui<br />
fazer ginástica numa academia em São Paulo,<br />
e o instrutor, ao saber que eu era jornalista,<br />
me procurou e me contou que tinha <strong>se</strong>rvido<br />
o Exército na Amazônia e que participara<br />
de uma intervenção de tropas brasileiras no<br />
Suriname, <strong>se</strong>gundo ele a pedido do governo<br />
do país, para combater guerrilheiros suriname<strong>se</strong>s<br />
antigovernamentais. Contou ainda mais<br />
que tinham morrido uns 30 brasileiros nes<strong>se</strong>s<br />
combates, e como a operação era <strong>se</strong>creta, os<br />
caixões foram enviados às famílias com a informação<br />
de que cada militar tinha morrido em<br />
acidentes em manobras em diferentes regiões<br />
da Amazônia.<br />
O dono da academia, entretanto, não queria<br />
aparecer em público e eu fiquei desconfiado de<br />
que ele era um provocador. Comuniquei tudo à<br />
minha chefia na Folha de São Paulo, onde então<br />
eu trabalhava, de 1983 a 1985. Como um<br />
jornalista da cúpula da Folha ia para Washington,<br />
ficou de verificar com o Washington Post.<br />
Voltou dizendo que não encontrara nada, nem<br />
a nota do Jack Anderson.<br />
O que <strong>se</strong>rá que aconteceu?<br />
Renato Pompeu é jornalista e escritor.<br />
rrpompeu@uol.com.br<br />
novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
Ana Miranda<br />
O pequeno<br />
piloto<br />
Um menino de dez anos, a coisa mais<br />
linda, olhar meigo e inteligente, cabelinhos espetados,<br />
roupa de piloto de carro e capacete ao lado,<br />
aparece numa foto do jornal daqui, no meio de<br />
caixotes de papelão da CBA Alimentos. São cestas<br />
básicas. Ele é Anderson Lima, piloto de kart<br />
competitivo, atual líder do circuito local. No ano<br />
passado foi o vice-campeão, mesmo tendo a idade<br />
mínima da sua categoria, que é de dez a 14 anos.<br />
Sabendo que a maioria das crianças não tem as<br />
mesmas oportunidades, sonhou abrir o autódromo<br />
para que todas pudes<strong>se</strong>m acompanhar as corridas,<br />
ou <strong>se</strong>ja, queria dividir com as crianças aquilo<br />
de que ele mais gosta. As crianças iriam adorar.<br />
Mas não deu certo. Porém Anderson não desistiu,<br />
e talvez orientado por <strong>se</strong>us maravilhosos educadores,<br />
talvez movido por algum exemplo familiar,<br />
talvez por simplesmente ter nascido com essa<br />
alma generosa e boa, comovido pelas cenas de<br />
crianças de rua, crianças com fome, Anderson teve<br />
a ideia de ajudar com alimentos. E cada ponto que<br />
ele ganha em campeonato <strong>se</strong> converte numa cesta<br />
básica. Numa das etapas ganhou onze pontos,<br />
e mandou onze cestas para os refugiados das enchentes.<br />
Antes, foram nove pontos e nove cestas<br />
para crianças em um hospital. Mais onze cestas<br />
para um lar de idosos. Vencedor nato, dotado<br />
de um raro espírito público, ele declarou: “quero<br />
vencer mais para ajudar mais. Vou <strong>se</strong>mpre fazer<br />
as doações. Queria que as outras pessoas também<br />
ajudas<strong>se</strong>m.”<br />
Em meio a toda essa meninada<br />
valente do esporte, Anderson já viajou<br />
pelo Brasil disputando campeonatos, já enviou reportagem<br />
sobre o circuito de Caruaru, muito bem<br />
escrita, nem parece que foi ele. E já protagonizou<br />
um brilhante duelo na pista. Meu Deus, imagino o<br />
meu netinho de nove anos, pilotando, uma criança!<br />
Mas, pensando bem, es<strong>se</strong>s meninos devem dirigir<br />
muito melhor do que eu....<br />
Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno,<br />
Desmundo, Dias & Dias, e outros romances, editados<br />
pela Companhia das Letras. Suas crônicas estão reunidas<br />
no volume Deus-dará, da Editora Casa Amarela.<br />
amliteratura@hotmail.com<br />
junho 2009 caros amigos<br />
Ilustração: Debora borba/deboraborba@gmail.com<br />
17
18<br />
caros amigos julho 2009<br />
João Pedro Stedile<br />
A cri<strong>se</strong>, a agricultura<br />
e a ofensiva do<br />
capital internacional<br />
O mundo está vivendo mais uma cri<strong>se</strong> sistêmica do<br />
capitalismo. É a terceira, desde o surgimento do capitalismo industrial.<br />
Houve uma grande cri<strong>se</strong> nas décadas de 1870-1890 que atingiu apenas<br />
a Europa capitalista. Depois, a <strong>se</strong>gunda em 1929-45, que atingiu<br />
todo o hemisfério norte. E agora, estamos diante da terceira, que recém<br />
<strong>se</strong> inicia e atinge a todos os paí<strong>se</strong>s do mundo, na fa<strong>se</strong> do capitalismo<br />
globalizado.<br />
As cri<strong>se</strong>s sistêmicas, que abrangem todo sistema são mais<br />
prolongadas e profundas do que as cri<strong>se</strong>s cíclicas, que afetam <strong>se</strong>paradamente<br />
as economias nacionais ou determinado ramo da produção. O<br />
Brasil viveu várias cri<strong>se</strong>s cíclicas ao longo do século XX, a ultima foi no<br />
<strong>se</strong>gundo mandato do Governo FHC. Todas foram curtas e atingiam com<br />
mais força alguns <strong>se</strong>tores da economia. E faz parte da lógica das cri<strong>se</strong>s<br />
prolongadas que elas afetem de maneira diferenciada cada economia.<br />
Alguns pai<strong>se</strong>s enfrentam depressão, que é a queda brusca dos níveis de<br />
produção. Outros enfrentam a recessão, que é a queda paulatina durante<br />
anos, dos níveis de produção. E há outros que enfrentam a estagnação.<br />
Que é um movimento ondular de pequenas quedas, retomadas de<br />
crescimento e novas quedas. Parece <strong>se</strong>r o caso da economia brasileira, e<br />
também das outras grandes economias da Rússia, Índia, e China.<br />
É nos períodos de cri<strong>se</strong>, que os capitalistas voltam a defender<br />
o papel do estado. Sempre usam o estado como poder para reunir<br />
os recursos de toda população e repassar a eles. Por isso, os períodos<br />
de cri<strong>se</strong> são também de grande reconcentração da riqueza.<br />
No caso brasileiro, a produção do agronegócio subordinado<br />
às transnacionais, a taxa de lucro no campo, as vendas e os preços no<br />
mercado externo, o preço das terras agrícolas - tudo caiu. Os agrocapitalistas<br />
intensificaram as pressões para que o estado brasileiro liberas<strong>se</strong><br />
recursos. A produção pro mercado externo é totalmente dependente<br />
de crédito, do capital financeiro. Para produzir um PIB agrícola ao redor<br />
de 120 bilhões de reais, pediram e levaram ao redor de 97 bilhões<br />
de reais do governo, em financiamento. A agricultura familiar produz<br />
qua<strong>se</strong> 80 bilhões, mas vai levar apenas 9 bilhões de crédito.<br />
As transnacionais, mais agressivas, conhecem a teoria de<br />
Rosa Luxemburg, de que, com pouco trabalho humano, os recursos naturais,<br />
mercadorias de alto preço, rendem altas taxas de lucro na retomada<br />
do ciclo. Aumentaram a pressão para controlar as <strong>se</strong>mentes transgênicas<br />
e as fontes de água, a energia e os rios nas hidrelétricas, as re<strong>se</strong>rvas<br />
do pré-sal (e a CPI da Petrobras é um teatrinho para isso). As fazendas<br />
compradas pelo Banco Opportunity, do testa-de-ferro estaduniden<strong>se</strong><br />
Daniel Dantas, com <strong>se</strong>us 600 mil hectares, estão todas em cima de re<strong>se</strong>rvas<br />
minerais. Aumentaram a pressão sobre a propriedade das terras da<br />
Amazônia, com a MP 458, e o controle sobre usinas de álcool e exportação<br />
do etanol.<br />
Oxalá o povo brasileiro desperte.<br />
João Pedro Stedile, membro da coordenação nacional do MST e da via<br />
campesina Brasil.<br />
Eduardo Matarazzo Suplicy<br />
a ave poesia<br />
do Patativa do Assaré<br />
e Garapa<br />
Os filmes A Ave Poesia do Patativa do Assaré, de Ro<strong>se</strong>mberg Ariry,<br />
e Garapa, de José Padilha, são duas produções que levam o espectador a<br />
uma reflexão mais profunda sobre a pobreza e a liberdade de expressão.<br />
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aos <strong>se</strong>te anos, deixou Garanhuns com<br />
destino ao Guarujá em São Paulo, numa típica situação ob<strong>se</strong>rvada por um poeta<br />
que tão bem captou a sina dos nordestinos. Um dia, o <strong>se</strong>rtanejo Luiz Gonzaga<br />
ouviu no rádio, no interior da Paraíba, uma canção que achou muito bonita.<br />
Resolveu ir até Assaré, no Ceará, conversar com <strong>se</strong>u autor, Patativa:<br />
- “Você quer me vender essa música?”<br />
- “Meu mundo é a minha poesia, minha família e eu não vendo direito<br />
autoral por preço nenhum. Mas <strong>se</strong> você qui<strong>se</strong>r cantá-la vou ficar muito<br />
honrado”.<br />
A partir, daí Luiz Gonzaga passou a cantar Triste Partida:<br />
“Eu vendo meu burro<br />
Meu jegue, meu cavalo.<br />
Nós vamos a São Paulo<br />
Viver ou morrer<br />
Pois logo aparece<br />
Feliz fazendeiro<br />
Por pouco dinheiro<br />
Lhe compra o que tem<br />
Meu Deus, meu Deus.<br />
Faz pena o nortista,<br />
Tão forte e tão bravo,<br />
Viver como escravo,<br />
No norte ou no sul”.<br />
As músicas cantadas pelos jovens das grandes metrópoles<br />
brasileiras, a exemplo do rap O Homem na Estrada, de Mano Brown<br />
e dos Racionais, indicam que, mesmo meio século depois, o grau de liberdade<br />
dos <strong>se</strong>res humanos, para muitos, é ainda limitado.<br />
O filme Garapa, de José Padilha, mostra uma realidade que infelizmente<br />
ainda perdura em nosso país: o quotidiano de três famílias pobres<br />
no Ceará. Todas lutam, em sua batalha diária, para con<strong>se</strong>guir como <strong>se</strong><br />
alimentar diante de extrema escas<strong>se</strong>z.<br />
“A fome é um ronco no estômago, uma correria para<br />
esquentar o leite que resta para três crianças que choram, uma casa <strong>se</strong>m<br />
móveis, é uma roupa puída, um chinelo gasto, uma parede para pintar, são<br />
crianças <strong>se</strong>m escola”, como diz Padilha que, em 2005, por um mês filmou<br />
a vida destas famílias. Quando a criança acorda na rede, a mãe lhe traz a<br />
mamadeira que, em vez de leite, tem garapa quente (água com açúcar).<br />
Depois de assistir ao filme, temos que concordar com Josué<br />
de Castro, o autor de Geografia da Fome e de Geopolítica da Fome, dos<br />
anos 40 e 50. Erradicar a fome e a pobreza absoluta está inteiramente em<br />
nossas mãos. Precisamos nos empenhar muito mais para con<strong>se</strong>guir.<br />
Eduardo Matarazzo Suplicy é <strong>se</strong>nador.
entrelinhas<br />
a mídia como ela é<br />
Hamilton Octavio de Souza<br />
Cesar Cardoso<br />
Lição da Petrobras Eu sabia por que <strong>se</strong> chama ca-<br />
Constantemente atacada pela direita, em especial<br />
pela grande imprensa neoliberal, a Petrobras<br />
reagiu com inteligência: construiu um blog e<br />
passou a veicular na Internet o conteúdo integral<br />
– perguntas e respostas – das entrevistas feitas<br />
com <strong>se</strong>us diretores e funcionários. Em princípio<br />
uma medida de transparência e <strong>se</strong>ntido público,<br />
que ao mesmo tempo <strong>se</strong>rve para desmascarar as<br />
manipulações sorrateiras dos principais jornais e<br />
revistas. Claro, as empresas jornalísticas caíram<br />
de pau na Petrobras com os argumentos mais estapafúrdios<br />
do mundo. A estatal recuou, mas deixou<br />
sinalizado o que mais assusta o oligopólio<br />
da distorção.<br />
LUTA PELA TERRA<br />
Os jornalistas do Coletivo Catar<strong>se</strong>, de Porto<br />
Alegre, produziram uma excelente reportagem<br />
cinematográfica sobre os 25 anos do Movimento<br />
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra<br />
(MST), comemorados em Sarandi, no Rio Grande<br />
do Sul, onde os as<strong>se</strong>ntamentos da Fazenda<br />
Anoni <strong>se</strong> transformaram em modelos produtivos<br />
da reforma agrária. Quem tiver interes<strong>se</strong> no documentário<br />
é só entrar em contato com catar<strong>se</strong>@coletivocatar<strong>se</strong>.com.br<br />
ou pelo telefone (51)<br />
3012-5509. Vale a pena ver.<br />
FLAGRANTE DELITO<br />
O jornal Campus, da Universidade de Brasília,<br />
deu manchete de capa: o presidente do Supremo<br />
Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, costuma<br />
estacionar <strong>se</strong>u carro na vaga destinada a<br />
deficientes físicos – nos dias em que leciona Direito<br />
Constitucional naquela instituição. Os estudantes<br />
de jornalismo Sacha Brasil e Maria Scodeler,<br />
que flagraram a delinquência, procuraram<br />
a as<strong>se</strong>ssoria do STF e foram informados que o<br />
ministro abriu sindicância administrativa contra<br />
<strong>se</strong>u motorista.<br />
“LA COSA BERLUSCONI”<br />
O primeiro parágrafo do artigo de José Saramago,<br />
no jornal El País, diz tudo: “não vejo que<br />
outro nome lhe poderia dar. Uma coisa perigosamente<br />
parecida a um <strong>se</strong>r humano, uma coisa<br />
que dá festas, organiza orgias e manda em<br />
um país chamado Itália. Esta coisa, esta enfermidade,<br />
este vírus ameaça <strong>se</strong>r a causa da morte<br />
moral do país de Verdi <strong>se</strong> um vômito profundo<br />
não con<strong>se</strong>gue arrancá-lo da consciência dos<br />
italianos antes que o veneno acabe corroendo as<br />
veias e destroçando o coração de uma das mais<br />
ricas culturas européias”.<br />
INVERSÃO DOS FATOS<br />
A Polícia Militar foi chamada pela reitoria da<br />
USP, invadiu o campus da Cidade Universitária e<br />
reprimiu com violência uma manifestação legítima<br />
e democrática de estudantes, professores e<br />
funcionários da universidade. Os principais jornais,<br />
revistas e emissoras de rádio e TV deram<br />
os fatos como <strong>se</strong>ndo um “conflito” ou um “confronto”<br />
entre manifestantes e PM. Poucos jornalistas<br />
<strong>se</strong> deram ao trabalho de perguntar por que<br />
não existe diálogo dentro da instituição, todas as<br />
reivindicações da comunidade são tratadas com<br />
violência. A mídia não deveria questionar o despreparo<br />
da gestão pública?<br />
A VELHA GLOBO NO AR<br />
Uma equipe de reportagem da TV Globo reviveu,<br />
nos episódios da USP, os tempos em que<br />
a emissora apoiava a Ditadura Militar: foi expulsa<br />
de uma as<strong>se</strong>mbléia dentro da universidade.<br />
Coincidentemente voltou a circular na<br />
Internet a gravação do direito de resposta do<br />
governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola,<br />
levado ao ar no dia 15 de março de 1994.<br />
É <strong>se</strong>mpre um prazer ver o Cid Moreira fazendo<br />
críticas ao concessionário Roberto Marinho. O<br />
povo não é bobo...<br />
Hamilton Octavio de Souza é jornalista.<br />
hamilton@uol.com.br<br />
novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
Temporariamentes<br />
rioca da gema quem nasce no Rio, sabia a escalação<br />
de Fluminen<strong>se</strong> e Bangu na final de 64,<br />
sabia o que quer dizer blue moon. Mas pela manhã<br />
ao acordar fui acertar o relógio, os ponteiros<br />
me acertaram primeiro e esqueci tudo isso.<br />
Do que ainda lembro? Da emoção do primeiro<br />
caderno encapado com papel de <strong>se</strong>da azul. Ah,<br />
sim! Me lembro que o homem aprendeu a voar<br />
com Santos Dumont e a mulher com Fred Astaire.<br />
Ou terá sido ao contrário? O muro de Berlim,<br />
o império romano, as torres gêmeas, Teresinha<br />
de Jesus. Quem des<strong>se</strong>s reconheceu a queda<br />
e não desanimou? Quem levantou, sacudiu a poeira<br />
e deu a volta por cima? Que praga destruiu<br />
a primavera de Praga?<br />
Tudo tão difícil. A memória vem do latim,<br />
sim, mas vai para onde? Quantas vezes por<br />
dia é preciso morrer pra continuar vivo? Quantas<br />
memórias precisamos perder? Em que tempo?<br />
Um ano, por exemplo. O intervalo de tempo<br />
correspondente a uma revolução da terra em<br />
torno do sol. Ou bis<strong>se</strong>xto ou letivo ou lunar. Talvez<br />
o tempo de gestação das girafas, de <strong>se</strong> fechar<br />
balancetes, de <strong>se</strong> parir e embalar Mateus.<br />
Mas em alguma dobra da memória,<br />
que é o nosso tempo, existe um certo<br />
ano-luz <strong>se</strong>m nenhuma ciência que lhe dê conta.<br />
Uma revolução - não da terra – marítima, com<br />
<strong>se</strong>u ritmo que nenhum piano alcança, incabível -<br />
e como dança! E lá talvez esteja tudo que precisamos<br />
de preciso e impreciso: ligar o rádio, buscar<br />
a sintonia, o que vai ficando nos álbuns do<br />
olhar, tatuagens que não <strong>se</strong> vê, lã de vidro na<br />
ampulheta <strong>se</strong>m tampo nem fundo, escorre nos<br />
corpos - tão macia...<br />
Quanto tempo terá levado até<br />
que o primeiro homem fizes<strong>se</strong> o primeiro armário<br />
e deixas<strong>se</strong> aberta a primeira gaveta à esquerda<br />
onde <strong>se</strong> encontra - quem sabe? - um bilhete<br />
esquecido dizendo bom dia?<br />
Ventar e inventar folhinhas, memórias. O calendário<br />
vai pras calendas. Os relógios partem e<br />
<strong>se</strong> partem. Estamos com a corda toda, despertamos<br />
a madrugada e anunciamos aos galos: o<br />
ano domini!<br />
E o tempo <strong>se</strong>gue nos dominando.<br />
Cesar Cardoso perde tempo escrevendo. Ilustração: Debora borba/deboraborba@gmail.com<br />
junho 2009 caros amigos<br />
19
20<br />
o Brasil<br />
caros amigos julho 2009<br />
entrevista lUIZ MOTT<br />
Entre o cor de<br />
rosa e o vermelho<br />
sangue<br />
Fundador do Grupo Gay da<br />
Bahia, Luiz Mott denuncia os<br />
crimes de homofobia no país<br />
da maior parada gay do mundo<br />
Tatiana Merlino | Fotos Marcelo Cerqueira<br />
é o país onde mais <strong>se</strong> mata homos<strong>se</strong>xuais. Em 2008, foram registrados<br />
190 assassinatos, um a cada dois dias. Os números superam as<br />
estatísticas de 2007, quando houve 122 homicídios dessa natureza. Os<br />
dados, apre<strong>se</strong>ntados pela pesquisa do Grupo Gay da Bahia, indicam que o Brasil<br />
é o campeão mundial em crimes de homofobia, <strong>se</strong>guido pelo México – que<br />
apre<strong>se</strong>nta média de 35 crimes por ano – e Estados Unidos – com 25.<br />
As estatísticas são no mínimo estranhas para um país que <strong>se</strong>dia a maior parada<br />
gay do mundo. Em sua ultima edição, a manifestação realizada anualmente<br />
em São Paulo reuniu cerca de três milhões de pessoas.<br />
Para o antropólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, entidade<br />
mais antiga de defesa dos direitos dos homos<strong>se</strong>xuais no país, “apesar do Brasil<br />
proclamar através de suas lideranças que teve a primeira conferencia GLBT<br />
do globo e o primeiro presidente a apre<strong>se</strong>ntar um programa nacional para os<br />
gays, estamos na rabeira de outros paí<strong>se</strong>s que possuem menos organização em<br />
termos de parada”.<br />
Ou <strong>se</strong>ja, apesar da grandiosidade da parada gay brasileira, os números de assassinatos<br />
de homos<strong>se</strong>xuais vêm crescendo ano a ano. Para Mott, um dos motivos<br />
é o fato de ainda não termos uma legislação que garanta o reconhecimento<br />
da homofobia como crime.<br />
A despeito de iniciativas positivas apre<strong>se</strong>ntadas pelo governo Lula, como o programa<br />
Brasil Sem Homofobia, de 2004, e o recente Plano Nacional da Cidadania dos<br />
Direitos Humanos LGBT, de maio deste ano, “infelizmente, é muita palavra e pouca<br />
ação efetiva”. Para combater a violência, o antropólogo defende a aprovação do<br />
projeto de lei que equipara a homofobia ao racismo [PLC 122/2006].<br />
O levantamento anual dos assassinatos de homos<strong>se</strong>xuais teve inicio em<br />
1980, quando o Grupo Gay da Bahia foi criado. Desde então, até 2008, foram<br />
documentados 2.998 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no Brasil, concentrando-<strong>se</strong><br />
18% deles na década de 80, 45% nos anos 90 e 35% (1.168 casos)<br />
a partir de 2000. Quando divulgou os dados de 2008, Mott classificou o conjunto<br />
de crimes como um verdadeiro “homocausto”.<br />
Caros Amigos - Como você avalia o governo Lula no combate<br />
à homofobia. Houve avanços?<br />
Luiz Mott - O primeiro presidente da República a falar a palavra homos<strong>se</strong>xual<br />
foi o Fernando Henrique Cardoso, em 2002, e a primeira vez que um documento<br />
oficial do governo federal citou os homos<strong>se</strong>xuais foi o Programa Nacional<br />
de Direitos Humanos, em 1996. O Lula tem sido o presidente que mais tem fa-<br />
lado do assunto: participou da Conferência Nacional LGBT em Brasília, publicou<br />
o programa Brasil Sem Homofobia, propôs ações para a comunidade homos<strong>se</strong>xual,<br />
mas, infelizmente, é muita palavra e pouca ação efetiva. Das ações<br />
afirmativas propostas pelo Brasil Sem Homofobia, nem 5% saiu do papel. O que<br />
a gente espera é o que presidente Lula pressione mais essa ba<strong>se</strong> aliada em favor<br />
dos dez projetos que estão no Congresso Nacional sobre direitos humanos<br />
LGBT, para que o país deixe essa infeliz condição de campeão mundial de assassinatos<br />
de homos<strong>se</strong>xuais.<br />
Recentemente, o governo federal lançou o Plano Nacional da Cidadania<br />
dos Direitos Humanos LGBT, primeira vez que um governo <strong>se</strong> compromete<br />
com políticas específicas para combater a homofobia. Quais são<br />
suas expectativas em relação ao Plano? É possível que ele resulte em<br />
ações concretas?<br />
Pode <strong>se</strong>r que <strong>se</strong>ja o primeiro, como foi o primeiro país no planeta a convocar<br />
uma Conferência Nacional, mas o que vale são ações efetivas. Depende muito da<br />
boa vontade do próprio Lula, da sua ba<strong>se</strong> aliada e da pressão dos homos<strong>se</strong>xuais<br />
e dos simpatizantes aliados para que tantas boas intenções saiam do papel.<br />
Para que essas medidas <strong>se</strong>jam colocadas em prática não é preciso esperar<br />
a aprovação de leis no Congresso?<br />
No Brasil, o poder mais simpatizante e aliado dos direitos humanos dos homos<strong>se</strong>xuais<br />
é o Judiciário, concedendo diversas garantias, <strong>se</strong>ja no nível da família,<br />
<strong>se</strong>ja na mudança de nome para tran<strong>se</strong>xuais, na adoção, no reconhecimento<br />
de viúvos à herança. O Executivo tem manifestado boas intenções através do<br />
Programa Nacional de Direitos Humanos, o Brasil <strong>se</strong>m Homofobia etc. O Legislativo<br />
é que tem sido o mais con<strong>se</strong>rvador e o mais inerte, empurrando as nossas<br />
demandas com a barriga. Isso reflete o medo que os deputados e <strong>se</strong>nadores<br />
têm de <strong>se</strong> envolver com uma causa tão tabu.<br />
O plano pode ajudar na aprovação do projeto de união civil da Marta<br />
Suplicy, que é de 1995?<br />
Es<strong>se</strong> projeto foi considerado por ela própria [Marta Suplicy] como caduco.<br />
Ele está muito aquém das conquistas já efetivadas pelo Judiciário, como o reconhecimento<br />
da família e o direito à adoção. Na verdade, embora há mais de<br />
dez anos o movimento homos<strong>se</strong>xual brasileiro lute pela aprovação des<strong>se</strong> projeto,<br />
eu considero que o mais importante é a aprovação do projeto de lei que
equipara a homofobia ao racismo para assim diminuir o sofrimento e a morte<br />
de tantos gays como resultado da ideologia machista e homofóbica que ainda<br />
vê o homos<strong>se</strong>xual como pecador, marginal, que merece pena de morte.<br />
Como está a relação do movimento gay com as religiões? A bancada<br />
dos católicos é o maior entrave para a aprovação das reivindicações<br />
do movimento gay, não é?<br />
Infelizmente. As igrejas cristãs – católicas e protestantes, sobretudo as neopentecostais<br />
– têm as mãos sujas de sangue. Através da pregação homofóbica,<br />
intolerante, preconceituosa que pastores e padres fazem nos cultos, eles fornecem<br />
argumentos para homofóbicos que matam os homos<strong>se</strong>xuais. Há a exceção<br />
do candomblé e de uma ala do espiritismo, que têm sido mais simpatizantes<br />
aos direitos humanos. As igrejas têm que <strong>se</strong> modernizar e acompanhar o que<br />
acontece na Europa e nos Estados Unidos, onde bispos são assumidamente gays,<br />
onde há até casamentos abençoados por denominações religiosas. Essas igrejas<br />
fundamentalistas cristãs do Brasil agem como <strong>se</strong> fos<strong>se</strong>m muçulmanas, que são<br />
as mais intolerantes com os homos<strong>se</strong>xuais no mundo inteiro.<br />
Como pode <strong>se</strong> explicar a contradição do Brasil ter a maior parada gay do<br />
mundo e <strong>se</strong>r campeão em crimes de homofobia?<br />
Es<strong>se</strong> é um grande dilema que o movimento homos<strong>se</strong>xual brasileiro tem de<br />
enfrentar com apoio dos cientistas sociais e experts em cultura brasileira. O<br />
Brasil tem es<strong>se</strong> lado cor-de-rosa, a maior parada gay do mundo, a maior associação<br />
de gays, lésbicas e transgêneros da América do Sul. E tem o lado vermelho-sangue:<br />
a cada dois dias, um gay é assassinado. No Brasil, a legislação<br />
ainda não garante o reconhecimento da homofobia como crime. Essa contradição<br />
tem que <strong>se</strong>r superada a partir de quatro medidas fundamentais: a aprovação<br />
de leis que garantam a sobrevivência dos homos<strong>se</strong>xuais do mesmo modo<br />
como o racismo é penalizado como crime inafiançável; que a polícia e a Justiça<br />
<strong>se</strong>jam ágeis e <strong>se</strong>veras para punir e investigar criminosos que discriminam e<br />
violentam homos<strong>se</strong>xuais; educação <strong>se</strong>xual obrigatória em todos os níveis escolares,<br />
desde o pré-primário até os níveis de pós-graduação, para que as pessoas<br />
entendam mais sobre a diversidade <strong>se</strong>xual; e um apelo à própria comunidade<br />
homos<strong>se</strong>xual LGBT para que <strong>se</strong> assumam, que saiam do armário.<br />
“O Brasil tem es<strong>se</strong> lado cor-de-rosa, a maior parada<br />
gay do mundo, a maior associação de gays, lésbicas e<br />
transgêneros da América do Sul. E tem o lado vermelhosangue:<br />
a cada dois dias, um gay é assassinado.”<br />
A única pesquisa existente no país sobre crimes de homofobia é a do<br />
Grupo Gay da Bahia, que mostra que somos campeões mundiais em<br />
crimes homofóbicos. Es<strong>se</strong>s números vêm aumentando ano a ano. A<br />
ausência de políticas públicas é um estímulo para que isso aconteça?<br />
A pesquisa de assassinatos de homos<strong>se</strong>xuais no Brasil, coletados pelo Grupo<br />
Gay da Bahia, teve início em 1980, e é o maior acervo sobre assassinatos de<br />
gays, travestis e lésbicas do mundo, de modo que nenhum outro grupo dispõe de<br />
informações tão preciosas. Es<strong>se</strong> cadastro está <strong>se</strong>ndo digitalizado por meio de um<br />
financiamento do Ministério da Saúde e estará disponível ainda este ano para<br />
que <strong>se</strong>ja consultado. Essas informações deveriam <strong>se</strong>r divulgadas, consultadas e<br />
interpretadas pelo governo para propor políticas que erradiquem es<strong>se</strong>s crimes.<br />
Temos consciência que somos os primeiros, apesar da limitação e incompletude<br />
des<strong>se</strong>s dados. Mesmo tendo uma rede importante de informantes por todo o<br />
Brasil, muitos crimes ou são escondidos pela família, ou não <strong>se</strong> chega a revelar<br />
a verdadeira identidade da vitima. Portanto, essa avaliação de que há um assassinato<br />
a cada dois dias certamente é inferior aos números reais. No mínimo,<br />
deve haver um assassinato por dia no Brasil tendo o homos<strong>se</strong>xual como vitima<br />
da homofobia, do machismo.<br />
Por que o movimento brasileiro luta por união civil <strong>se</strong> em muitos<br />
outros paí<strong>se</strong>s <strong>se</strong> pede o direito ao casamento? Por exemplo, recentemente<br />
a Suécia, que já tinha união civil, aprovou o casamento.<br />
novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
Infelizmente, o fundamentalismo religioso no Brasil ofusca e limita as próprias<br />
aspirações dos militantes homos<strong>se</strong>xuais. A Espanha é um bom exemplo de<br />
país com tradição católica extremamente forte, mas que abandonou o projeto<br />
de parceria civil ou de pacto de solidariedade, como existe na França, para partir<br />
diretamente para o casamento, que foi aprovado <strong>se</strong>m nenhuma restrição em<br />
comparação aos casamentos heteros<strong>se</strong>xuais. Na época em que a Marta Suplicy<br />
elaborou o projeto de parceria civil, ela e o movimento gay que a ajudou acreditaram<br />
que haveria uma resistência total por parte dos deputados caso fos<strong>se</strong><br />
imediatamente proposto o casamento. Por isso, foi apre<strong>se</strong>ntado um projeto que<br />
são migalhas aos homos<strong>se</strong>xuais. A união não é um casamento, não <strong>se</strong> constitui<br />
família, não <strong>se</strong> pode adotar. E acho que temos que partir para o confronto<br />
total. Queremos que o Brasil <strong>se</strong> equipare ao que acontece de mais moderno em<br />
termos de legislação de direitos humanos na Holanda, na Bélgica, em Portugal,<br />
na Espanha. A parceria civil é um arremedo de casamento.<br />
Estamos atrasados em relação aos paí<strong>se</strong>s da América Latina?<br />
O Uruguai já tem união civil e agora o governo quer o casamento.<br />
O Equador já tem união civil.<br />
Apesar do Brasil proclamar e arrotar através de suas lideranças que teve a<br />
primeira conferencia GLBT do globo e que teve o primeiro presidente a apre<strong>se</strong>ntar<br />
um programa nacional, o Brasil está na rabeira de outros paí<strong>se</strong>s que<br />
possuem menos organização em termos de parada. A parada de Buenos Aires,<br />
por exemplo, não chega a ter 20 mil pessoas. Es<strong>se</strong>s paí<strong>se</strong>s con<strong>se</strong>guiram vitórias<br />
mais importantes, como a Colômbia e o Equador, que tinha uma Constituição<br />
que criminalizava a sodomia e a substituiu pela <strong>se</strong>gunda Constituição do mundo,<br />
depois da África do Sul, a incluir a proibição de discriminar por orientação<br />
<strong>se</strong>xual. Embora a Argentina tenha uma Igreja Católica mais con<strong>se</strong>rvadora que<br />
a do Brasil, tendo uma participação durante a ditadura militar, lá houve conquistas<br />
que os católicos espernearam mas tiveram que engolir.<br />
Pesquisa recente realizada pela Fundação Per<strong>se</strong>u Abramo revela que há<br />
altos índices de homofobia no país. Isso também influencia na dificuldade<br />
de aprovar leis?<br />
Na verdade, as estatísticas quanto ao nível de homofobia no Brasil<br />
são extremamente variáveis e contraditórias. Ainda <strong>se</strong> ouve<br />
coisas como “viado tem mais é que morrer”, ou “prefiro ter um<br />
filho ladrão do que um filho gay”, e também “prefiro ter uma filha<br />
puta do que sapatão”. Seria mais prático e econômico atingir<br />
19 milhões de homos<strong>se</strong>xuais [estima-<strong>se</strong> que pelo menos 10% da<br />
população brasileira <strong>se</strong>ja homos<strong>se</strong>xual] com campanhas voltadas<br />
para a população vitima de espancamento, por meio de outdoors<br />
com mensagens diretas, do que mudar a cabeça de 189 milhões<br />
de brasileiros potencialmente homofóbicos, As estatísticas de nú-<br />
meros de crimes de homofobia desconcertam qualquer tipo de previsão sociológica,<br />
porque variam enormemente de ano para ano no mesmo Estado. A única<br />
regularidade é que todo ano, mais de 100 homos<strong>se</strong>xuais são assassinados:<br />
mais gays que travestis, uma média de 70% de gays, 25% a 27% de travestis, e<br />
3% de lésbicas. Mas há Estados que em um ano <strong>se</strong> mata mais travesti e no outro<br />
<strong>se</strong> mata mais gay. O Nordeste continua <strong>se</strong>ndo a região mais afetada, e Pernambuco<br />
continua <strong>se</strong>ndo um dos Estados mais violentos.<br />
E o perfil das vítimas, qual é?<br />
São travestis assassinadas nas ruas, com armas de fogo. Os gays são assassinados<br />
dentro de suas casas, com armas de fogo, faca de cozinha, enforcados em<br />
fios de telefone. Isso inclui todas as clas<strong>se</strong>s sociais, predominando profissionais<br />
do <strong>se</strong>xo e cabeleireiros, que são as categorias mais vulneráveis, e muitos profissionais<br />
liberais, professores, médicos, incluindo padres e pais-de-santo.<br />
Quais são os direitos dos homos<strong>se</strong>xuais que são negados?<br />
Uma pesquisa realizada nacionalmente listou 37 direitos dos homos<strong>se</strong>xuais<br />
que são negados, como o direito a <strong>se</strong> casar, adotar crianças, declarar imposto<br />
de renda juntos, restrições de acesso à igreja, ao exército, discriminação nos<br />
planos de saúde...<br />
Tatiana Merlino é jornalista.<br />
junho 2009 caros amigos<br />
21
Ilustração: HKE>>>/subis.blogspot.com<br />
22<br />
Realidade<br />
brasileira<br />
Há alguns anos, resolvi juntar numa estante<br />
livros sobre a realidade brasileira, uma idéia<strong>se</strong>ntimento<br />
de grande circulação entre 1930 e<br />
1960, mais ou menos. Idéia por <strong>se</strong>r uma repre<strong>se</strong>ntação<br />
ideológica dos problemas do país<br />
(o atraso, a pobreza, a exploração estrangeira<br />
etc.), <strong>se</strong>ntimento por <strong>se</strong>r um modo social de<br />
sofrer aqueles problemas. Além de valer por si<br />
mesma, RB inspirou sucessivas estratégias de<br />
luta pelo poder, desde a Revolução de Trinta<br />
até o petismo dos anos 80.<br />
RB foi uma poderosa invenção ideológica<br />
que deu aos <strong>se</strong>us inventores a ilusão de verdade<br />
única. Parte insignificante da população,<br />
capaz de publicar livros, escrever em jornais e<br />
revistas, compor músicas, fazer filmes e peças<br />
de teatro apre<strong>se</strong>ntou a sua idéia-<strong>se</strong>ntimento do<br />
país como verdadeira; e es<strong>se</strong> fato – es<strong>se</strong> truque<br />
– <strong>se</strong> tornou, ele próprio, um fato histórico,<br />
capaz de gerar e guiar, até hoje, outros fatos.<br />
Realidade brasileira era parcial, embora verdadeira;<br />
ou verdadeira, embora parcial. Toda<br />
verdade é histórica e, mesmo enquanto dura,<br />
disputa e/ou convive com outras idéias-<strong>se</strong>ntimentos<br />
da realidade social. RB foi apenas “a<br />
melhor fórmula da Revolução de 1930” (Graciliano<br />
Ramos).<br />
Até que ponto uma ideologia, um método<br />
sociológico ou uma simples proposição sobre<br />
a realidade revela ou esconde a realidade? Que<br />
<strong>se</strong>ria da economia <strong>se</strong> os economistas <strong>se</strong> perguntas<strong>se</strong>m<br />
a cada análi<strong>se</strong> de mercado pelo significado<br />
universal do dinheiro? Como escrever<br />
história <strong>se</strong>m perguntar, a cada passo, pelo grau<br />
de verdade da ideologia que estamos narrando?<br />
Tomando o subjetivo, o imaginário, o fantasiado,<br />
o suposto, como fato objetivo.<br />
Sendo realidade brasileira uma fórmula para<br />
explicar o Brasil e orientar a luta organizada<br />
contra <strong>se</strong>us males históricos (o atraso, a pobreza,<br />
o latifúndio, a exploração estrangeira), foi ela<br />
própria um fato histórico: nasceu, viveu e morreu.<br />
Ao falar “Brasil” o que dizemos é diferente<br />
em cada período histórico, embora algo permaneça<br />
sob a passagem do tempo: o de Brandônio<br />
não é o dos conjurados baianos de 1798, o de<br />
Castro Alves, o de Jorge Amado, o do Chacrinha<br />
ou o do Jornal Nacional.<br />
Nenhuma idéia-<strong>se</strong>ntimento con<strong>se</strong>guira <strong>se</strong><br />
tornar totalitária, até hoje. Todas – o aliancismo,<br />
o integralismo, o populismo, o de<strong>se</strong>nvolvimentismo,<br />
o terceiro-mundismo, o ame-o<br />
caros amigos julho 2009<br />
amigos de papel<br />
Joel Rufino dos Santos<br />
ou deixe-o e tantas outras – tiveram contraditórios,<br />
mesmo quando <strong>se</strong> esconderam sob lugares<br />
comuns como “nossa história”, “minha<br />
geração”, “meu tempo”, “minha época” e tantos<br />
outros. O poder atual da publicidade-televisão<br />
parece eliminar es<strong>se</strong>s contraditórios, substituindo<br />
a história pelo pre<strong>se</strong>nte contínuo e a<br />
experiência de pensar e <strong>se</strong>ntir pelo gozo supremo<br />
de ver <strong>se</strong>m <strong>se</strong>r visto. Nes<strong>se</strong> êxta<strong>se</strong> bigbródico<br />
<strong>se</strong> entretém o telespectador – <strong>se</strong>m gosto<br />
próprio, idéia própria, desígnio próprio. O de<strong>se</strong>jo<br />
de repre<strong>se</strong>ntar toda a sociedade para toda<br />
a sociedade através de uma realidade audiovisual,<br />
parece agora saciado. Está?<br />
Joel Rufino é historiador e escritor.<br />
Guilherme Scalzilli<br />
O império<br />
derrotado<br />
Parece con<strong>se</strong>nsual que a política<br />
externa de Barack Obama repre<strong>se</strong>nta uma guinada<br />
positiva em relação ao espírito intervencionista<br />
dos governos Bush. Mesmo a frustração<br />
parcial das enormes expectativas iniciais é creditada<br />
ao gradualismo exigido por algumas radicais<br />
promessas da campanha democrata.<br />
Mas a benevolência da opinião<br />
pública internacional omite a natureza<br />
pragmática da festejada mudança de rumo.<br />
O próprio Obama admitiu que os interes<strong>se</strong>s dos<br />
EUA no restante do planeta são ameaçados pelo<br />
fracasso de sua própria diplomacia agressiva e<br />
intransigente. Considerando que o presidente<br />
questionava (e atualmente modifica) os pilares<br />
históricos do predomínio norte-americano, trata-<strong>se</strong><br />
de uma pungente confissão de derrota.<br />
E o cenário internacional demonstra<br />
que ele está certo: a potência chinesa, o predomínio<br />
regional russo (sob os desmandos de um grupo<br />
oriundo da KGB), o Irã dos aiatolás, a resistência<br />
cubana, a Líbia do eterno Kadafi, a desafiadora Coréia<br />
do Norte. As regiões dominadas militarmente<br />
pelos EUA sofrem com marionetes ditatoriais ou<br />
viraram palco de massacres injustificáveis, destruição<br />
generalizada e revolta popular.<br />
O antiamericanismo prolifera<br />
também nas populações sob regimes democráticos<br />
e liberais, como em boa parte da Europa e<br />
da América Latina – vitrines das pretensões estaduniden<strong>se</strong>s<br />
desde o início do século passado.<br />
Ademais, qua<strong>se</strong> todos os governantes em exercício<br />
no continente americano já foram combatidos<br />
pela Casa Branca, individual ou coletivamente,<br />
durante algum processo eleitoral ou<br />
revolucionário.<br />
São reve<strong>se</strong>s sérios demais para<br />
tratarmos a moderação apaziguadora dos EUA<br />
como uma novidade inofensiva. Porém, ainda<br />
que a estratégia reformulada apenas esconda a<br />
essência intocada do paradigma geopolítico, ela<br />
demonstra uma ruptura em relação às suas pretensões<br />
hegemônicas originais.<br />
Guilherme Scalzilli, historiador e escritor. Autor do<br />
romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com
Gershon Knispel<br />
Acabar com as<br />
fronteiras geográficas?<br />
“Definitivamente é preciso acabar<br />
com as fronteiras geográficas. Elas somente elas sobrevivem<br />
a <strong>se</strong>parar a humanidade”.<br />
“Creio que o melhor para palestinos<br />
e israelen<strong>se</strong>s <strong>se</strong>ria a existência de um Estado<br />
único laico e democrático, onde todos possam continuar<br />
harmoniosamente” (Georges Bourdoukan),<br />
Caros Amigos 145 e 146.<br />
No início do século 20, ou <strong>se</strong>ja, com a<br />
Revolução de Outubro, começou a <strong>se</strong> realizar não só<br />
o <strong>se</strong>u sonho, Georges, mas também o meu sonho, e de<br />
muitos outros <strong>se</strong>res humanos, de acabar com as fronteiras<br />
entre os povos, sob a palavra de ordem “Proletários<br />
de todo o mundo, uni-vos”. E que destino teve<br />
es<strong>se</strong> projeto tão grandioso? A queda da maior das<br />
revoluções, a União Soviética, que provocou também<br />
a queda dos “paí<strong>se</strong>s socialistas” da Europa Oriental<br />
em pedaços quebrados; a própria União Soviética foi<br />
quebrada em partes como a Ucrânia, Estônia, Letônia,<br />
Lituânia, Geórgia, Azerbaijão...<br />
A Tchecoslováquia foi dividida na<br />
República Tcheca e Eslováquia. A Iugoslávia <strong>se</strong> dividiu<br />
em <strong>se</strong>is: Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia, Macedônia<br />
e Montenegro. Romênia, Bulgária, Polônia,<br />
Hungria, Albânia concorrem entre si sobre quem vai<br />
<strong>se</strong>r recebido primeiro com todos os direitos na União<br />
Européia. Receberão, em <strong>se</strong>us territórios não mais<br />
soberanos, os mís<strong>se</strong>is de longo alcance.<br />
Em vez de acabar com as fronteiras, elas<br />
dobram e triplicam. E não foi o Hamas que ergueu<br />
uma fronteira entre Gaza e a Cisjordânia? Em 31 de<br />
maio de 2009, o jornal O Estado de S. Paulo publicou<br />
a notícia: “Direita deverá crescer no Parlamento<br />
Europeu. A maior cri<strong>se</strong> econômica desde a Segunda<br />
Guerra favorece discurso nacionalista e favorece a<br />
divisão entre os paí<strong>se</strong>s europeus de novo”.<br />
Depois das eleições do Parlamento Europeu,<br />
a realidade é pior: em todos os paí<strong>se</strong>s europeus<br />
a extrema direita nacionalista <strong>se</strong> fortaleceu. Isso<br />
vai com certeza tornar a União Européia um episódio<br />
fugaz. E a fala de Marx, de que “a religião é o ópio<br />
do povo”, que foi realmente a grande esperança que<br />
deu asas para a imaginação humana de libertação das<br />
religiões, qual foi o <strong>se</strong>u resultado?<br />
No início do século 21, estamos enfrentando<br />
uma situação bem contrária. O fundamentalismo<br />
muçulmano extremista pegou a idéia<br />
marxista do mundo <strong>se</strong>m fronteiras para transformá-la<br />
na revolução islâmica mundial, bem além do<br />
mundo hoje muçulmano. Em Israel, a idéia dos fundamentalistas<br />
messiânicos <strong>se</strong> tornou um con<strong>se</strong>nso<br />
nacional, com a tendência de expandir o país bem<br />
além das fronteiras de 1967, por meio do roubo das<br />
terras palestinas da Cisjordânia, que estavam destinadas<br />
a cumprir os direitos dos palestinos a um<br />
país próprio deles, em resultado das resoluções da<br />
ONU de 1947. Os cristãos fundamentalistas não ficaram<br />
atrás.<br />
Os milhares de colonos judeus <strong>se</strong><br />
instalaram para derrubar a idéia de um Estado palestino<br />
legítimo, ao lado de Israel. A provocação do<br />
11 de <strong>se</strong>tembro pela Al Qaida deu legitimação a George<br />
W. Bush e a <strong>se</strong>u governo que sofria de fundamentalismo<br />
evangélico para abrir uma cruzada<br />
contra o mundo muçulmano. Os resultados catastróficos<br />
dessa cruzada não foram só deixar o Iraque<br />
em ruínas, mas renovaram o pacto entre os xiitas<br />
que hoje dominam o Iraque e os xiitas do Irã, dando<br />
ajuda financeira e moral para o Hamas, que con<strong>se</strong>guiu<br />
expulsar o aparelho de governo da OLP em<br />
Gaza, em meio ao processo de paz com os entendimentos<br />
de Oslo em 1993 e o acordo de Camp David<br />
de 1994, dois anátemas para o Hamas e para a<br />
Frente da Negação de Israel. Os primeiros querem<br />
importar a revolução islâmica total para a Palestina<br />
e os últimos querem a Israel total, por enquanto<br />
entre o Mar Mediterrâneo e o rio Jordão.<br />
Quero lembrar que, ainda em junho de<br />
2002, foi apoiado pela direção da Caros Amigos o<br />
primeiro Projeto Portas Abertas – Dois Estados para<br />
Dois Povos, e vários eventos, como a grande exposição<br />
de 35 artistas plásticos judeus israelen<strong>se</strong>s contra<br />
a ocupação e 35 artistas plásticos brasileiros dos<br />
mais renomados, foram realizados, como o álbum<br />
feito por Oscar Niemeyer e por mim contra a ocupação.<br />
Es<strong>se</strong> princípio de dois Estados para dois povos<br />
já foi adotado como um con<strong>se</strong>nso internacional<br />
e foi o tema principal do histórico discurso recente<br />
novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
do presidente Obama na Universidade do Cairo.<br />
Pela primeira vez, um presidente americano<br />
usava as mesmas palavras nossas para descrever<br />
o caráter terrível da ocupação por Israel dos<br />
territórios palestinos. Contra ele <strong>se</strong> juntaram os<br />
fundamentalistas nacionalistas israelen<strong>se</strong>s liderados<br />
pelo primeiro-ministro Bibi Netanyahu e por<br />
Avigdor Lieberman e a liderança do Hamas, os dois<br />
lados querendo tirar da mesa o projeto de dois Estados<br />
para dois povos.<br />
Essa tendência perigosa do atual<br />
governo de Israel e a divisão provocada pelo Hamas<br />
na liderança palestina deram uma grande margem<br />
de manobra para a utilização da escalada em manter<br />
vivo o círculo vicioso. No encontro que tive no<br />
fim de abril último em Ramallah, com a liderança<br />
da OLP, o sr. Nidal, que substituiu o sr. Ja<strong>se</strong>d Abed<br />
Rabo como chefe do Comitê Palestino pela Paz, me<br />
dis<strong>se</strong> que a tendência é por na geladeira os dirigentes<br />
que estiveram à frente dos entendimentos de<br />
Oslo e trocá-los por outros.<br />
O sr. Nidal deixou claro que, apesar dos líderes<br />
europeus e da OLP que ainda aderem aos dois<br />
Estados para dois povos, o entorpecimento das negociações<br />
que chegou ao auge com a subida ao governo<br />
de Bibi Netanyahu vai resultar, enfim, num<br />
Estado binacional, em que uma nação vai pregar o<br />
apartheid contra a outra.<br />
Num artigo passado, citei o pensador<br />
Meiron Benbenischti, que num debate em Tel Aviv,<br />
uma <strong>se</strong>mana antes do início da guerra de Gaza, dis<strong>se</strong><br />
que já estamos de fato num Estado binacional,<br />
que enfim vai <strong>se</strong> tornar um Estado em que os judeus<br />
<strong>se</strong>rão uma minoria, em 10 ou 15 anos. Várias<br />
vezes me perguntaram: o que vai acontecer quando<br />
os judeus ficarem em minoria? Respondi: “O relacionamento<br />
de uma maioria árabe com a minoria<br />
judaica vai <strong>se</strong>r o mesmo que a maioria judaica tem<br />
com a minoria árabe em Israel”.<br />
À pergunta de Bourdoukan: “<strong>se</strong>rá tão difícil”<br />
um Estado binacional laico e democrático, respondo:<br />
“é muito difícil, qua<strong>se</strong> impossível”.<br />
Gershon Knispel é artista plástico.<br />
junho 2009 caros amigos<br />
23
ensaio carlos latuff<br />
A imposição de um estado judeu na Palestina em<br />
1948 produziu um contingente colossal de refugiados (a ONU estima<br />
atualmente em mais de 4 milhões e meio). As famílias palestinas que<br />
não foram simplesmente assassinadas pelo terrorismo sionista de grupos<br />
como Irgun e Haganah tiveram de fugir para paí<strong>se</strong>s limítrofes como<br />
Jordânia, Síria e Líbano, onde vivem até hoje em campos de refugiados.<br />
No ano do 61º aniversário do que os palestinos acertadamente chamam<br />
de A Catástrofe, estive no Oriente Médio, a convite da al-Hanouneh<br />
Society for Popular Culture, e visitei três destes campos: Marka/<br />
Shnillar e al-Baq’a na Jordânia, e al-Badawi no Líbano. Neles encontrei<br />
um povo marginalizado, sobrevivendo em condições muitas vezes precárias,<br />
<strong>se</strong>melhantes às favelas brasileiras, esquecido pelo Ocidente e por<br />
vezes, como no Líbano, correndo o risco de <strong>se</strong>r massacrado por milicias<br />
hostis ou mesmo pelo governo, como aconteceu no campo de Nahr al-<br />
Bared em 2007. Esta população <strong>se</strong>quer pode regressar a sua terra natal,<br />
já que <strong>se</strong>u direito de retorno é sistematicamente negado por Israel.<br />
Este ensaio é um tributo aos palestinos da diáspora.
26<br />
mulher, negra, pobre. Alfabetizada aos 16 anos. Do interior do<br />
Acre ao planalto central. De <strong>se</strong>ringueira a ministra do Meio<br />
Ambiente. As muitas lutas de Marina Silva ao longo de sua vida<br />
parecem <strong>se</strong>r pequenas <strong>se</strong> comparadas à que trava atualmente: impedir que<br />
a mentalidade predatória de de<strong>se</strong>nvolvimento que dita as regras no Brasil e<br />
no mundo não termine por destruir de vez o planeta Terra. A hoje <strong>se</strong>nadora<br />
pelo PT define a recente investida ruralista para flexibilizar a legislação ambiental<br />
do Brasil como um “conjunto de mudanças que repre<strong>se</strong>ntam um retrocesso.<br />
Está <strong>se</strong> armando uma bomba de efeito retardado que não poderá <strong>se</strong>r<br />
contida na hora em que o país voltar a crescer”. Como principal exemplo, a<br />
Medida Provisória 458, que pretende regularizar áreas de até 1500 hectares<br />
na Amazônia. Segundo Marina, a medida premiará a grilagem. “É um processo<br />
de privatização de 67 milhões de hectares de floresta”.<br />
Marcos Zibordi: Sempre começamos as nossas entrevistas pedindo ao<br />
entrevistado que conte suas lembranças mais remotas de infância.<br />
Marina Silva: Tenho muitas lembranças, guardei muitas coisas de uma idade<br />
muito tenra. Uma lembrança muito boa é da minha coleção de bonecas de<br />
pano, que a minha avó fazia. Eu tinha doze bonecas de pano, lembro o nome<br />
de algumas delas: tinha a Estefânia, que era uma boneca mais ousada, usava<br />
umas roupas menos tímidas. Tinha a Hilda, que era a matriarca do conjunto<br />
das bonecas, porque eu sou de uma família de matriarcas, do lado da minha<br />
mãe e do lado do meu pai. E a minha avó, quando fez as bonecas, já dis<strong>se</strong><br />
que a Hilda era quem comandava o clã. Tinha o Jacinto, que era um menino<br />
bem levado, e o Catifum, que era um bonequinho aleijado, e tinha todos<br />
os cuidados especiais. Fui uma criança amplamente estimulada desde a mais<br />
tenra idade até a adolescência.<br />
caros amigos julho 2009<br />
entrevista Marina Silva<br />
"o <strong>se</strong>tor<br />
mais atrasado<br />
do agronegócio<br />
quer mudar a<br />
legislação ambiental"<br />
A <strong>se</strong>nadora Marina Silva conta<br />
porque que vive um dos piores<br />
momentos de sua vida, período em<br />
que o país enfrenta uma “operação<br />
desmonte da legislação ambiental”,<br />
encabeçada pelos ruralistas<br />
Marcos Zibordi e Tatiana Merlino | Fotos Roberto Jayme<br />
Marcos Zibordi: Fora essas lembranças mais tenras, por volta de dez,<br />
doze anos, o que você já estava fazendo? O primeiro namorado?<br />
Na verdade, essa ideia de namorado veio surgir muito depois, pois desde cedo<br />
eu queria <strong>se</strong>r freira. Aprendi sobre o cristianismo com a minha avó Júlia, que era<br />
analfabeta. Foi ela quem me ensinou rudimentos do cristianismo. Ela tinha um<br />
catecismo para analfabetos, com ilustrações da Capela Sistina. Desde aquela época<br />
eu dizia à minha avó que eu queria <strong>se</strong>r freira, e ela dizia: “minha filha, freira<br />
não pode <strong>se</strong>r analfabeta”. Então, para <strong>se</strong>r freira, eu tinha que estudar.<br />
Tatiana Merlino: A família toda morava junto?<br />
Eu morava na casa da minha avó. Minha irmã morava com os meus pais.<br />
Tatiana Merlino: Por que a <strong>se</strong>nhora morava com a sua avó e não<br />
com os <strong>se</strong>us pais?<br />
Minha avó fez meu parto, em 1958, e <strong>se</strong> apegou muito a mim. Foi <strong>se</strong> criando<br />
um vínculo muito forte entre eu, minha avó e a minha tia que morava com ela.<br />
Eu passava o dia com ela, e às quatro, cinco horas da tarde, ela me trazia para<br />
dormir em casa com a minha mãe. Depois eu comecei a querer ficar dormindo<br />
lá e a insistir para a minha avó pedir para que eu fos<strong>se</strong> morar com ela. Até que<br />
um dia ela tomou coragem e foi falar com a minha mãe. E a minha mãe falou<br />
que iria falar com meu pai, e é lógico que ela queria um período para tentar me<br />
persuadir. Mas uma hora eu dis<strong>se</strong>: “quero morar com a minha avó”. Só nos <strong>se</strong>paramos<br />
quando eu fui morar na cidade, aos 16 anos.<br />
Tatiana Merlino: E como era o trabalho no <strong>se</strong>ringal?<br />
Era pesado, difícil, tinha que andar 14 quilômetros por dia, de <strong>se</strong>gunda a<br />
<strong>se</strong>xta. Meu pai trabalhava nessa atividade, e nós começamos, eu e minha irmã
mais velha, quando eu tinha dez ou onze anos, a ajudá-lo a cortar <strong>se</strong>ringa. No<br />
nosso caso, era uma mistura de trabalho, mas também com muita diversão, porque<br />
nossos pais eram muito cuidadosos. A gente não trabalhava além daquilo<br />
que agüentava. E <strong>se</strong> enquanto a gente roçava, o sol começava a ficar quente, e<br />
as abelhas e os mosquitos começavam a apavorar, a gente tinha toda liberdade<br />
de ir para debaixo de uma moita, buscar uma água fresquinha. Então, a gente<br />
nadava no igarapé, ficava lá tomando banho e voltava. Mas a gente também<br />
tinha disciplina, eu e minha irmã.<br />
Tatiana Merlino: Então eram quantas horas de trabalho por dia?<br />
Cortando a <strong>se</strong>ringa, a gente começava geralmente às cinco da manhã, meu<br />
pai saía mais cedo, por volta de quatro, quatro e meia. Nós saíamos por volta<br />
de cinco horas, porque a gente tinha medo de onça. E fechávamos o corte por<br />
volta de uma hora da tarde. Aí, geralmente, ficávamos liberados para ir no igarapé,<br />
tomar banho, lavar roupa, trazer água para casa.<br />
Tatiana Merlino: Foram cinco, <strong>se</strong>is anos nes<strong>se</strong> trabalho? Foi aos 16 anos<br />
que a <strong>se</strong>nhora foi para Rio Branco?<br />
Até os 16 anos, mas durante as férias, eu voltava e trabalhava igualmente<br />
com minhas irmãs, no roçado e na extração da borracha. O povo era muito rigoroso,<br />
queria ver <strong>se</strong> eu não estava metida a besta. Então, não podia nem reclamar<br />
que tinha feito calo na mão (Risos).<br />
Tatiana Merlino: Mas como é que foi a ida para a capital?<br />
A ida para a capital foi um processo de muita maturação.<br />
Marcos Zibordi: Traumático?<br />
Não, não foi traumático. Mas antecedendo tudo isso, teve muita dor. Com<br />
certeza uma dor muito traumática que depois precisou <strong>se</strong>r muito bem elaborada<br />
e transformada em passado, porque durante muito tempo ela ficou pre<strong>se</strong>nte<br />
em minha vida. Teve um surto de malária muito grande naquela região, não só<br />
no nosso <strong>se</strong>ringal. Também teve um surto de sarampo. Morreram minhas duas<br />
irmãs mais novas, uma de <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s e uma com um ano e <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s, quinze<br />
dias de uma para outra. Morreu a minha mãe, <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s depois, não de malária<br />
e sarampo, mas de aneurisma. Morreu meu tio, de malária e sarampo também,<br />
e meu primo e minha avó materna. Então, foi uma coisa muito, muito difícil.<br />
Quando minha mãe morreu, eu estava com quatorze anos. Minha irmã já<br />
estava adulta, a mais velha, e um ano depois ela <strong>se</strong> casou e eu fiquei à frente<br />
da casa. Só que eu peguei uma hepatite, fiquei muito doente, não con<strong>se</strong>guia<br />
mais me alimentar direito, perdi muito peso, aí não con<strong>se</strong>gui mais trabalhar. E<br />
fui ficando muito triste. A gente dizia que era tristeza, mas na verdade eu estava<br />
deprimida, porque como eu não tinha saúde, não con<strong>se</strong>guia mais fazer as<br />
coisas. Eu era uma adolescente muito ativa e, digamos assim, eu tinha muito<br />
orgulho das coisas que eu fazia, eu sabia cortar, sabia cuidar do roçado. Comecei<br />
a pensar: “acho que agora é o momento para eu ir para a cidade cuidar da<br />
minha a saúde e estudar para <strong>se</strong>r freira”.<br />
Marcos Zibordi: Essa vontade de estudar era uma opção intelectual sua<br />
somente, ou era uma coisa de estudar para a igreja, estudar para <strong>se</strong>r freira?<br />
Eu tinha uma vontade de conhecimento e era uma criança considerada estranha.<br />
Havia perguntas que a maioria das crianças faz, mas eu fazia com mais<br />
persistência, tipo “o que é que está depois do azul do céu?” Isso deixava a minha<br />
avó impaciente, minha mãe já dava um corte. Então, havia essas perguntas<br />
todas, mas com certeza eu tinha um objetivo, freira não podia <strong>se</strong>r analfabeta,<br />
então tinha que vencer uma etapa, estudar para vencer. É claro que eu estou<br />
elaborando isso hoje, mas era como eu <strong>se</strong>ntia. Eu sabia que as pessoas que não<br />
tinham conhecimento tinham uma desvantagem, porque o meu pai sabia ler e<br />
escrever e ele era muito bom de matemática.<br />
Marcos Zibordi: Não passavam ele para trás na hora de acertar?<br />
É, não passavam. Então, as pessoas, os <strong>se</strong>ringueiros, que 99% eram analfabetos,<br />
geralmente aos sábados iam lá até a casa do meu pai, que fazia as contas para<br />
ver <strong>se</strong> eles iam tirar saldo. E eu <strong>se</strong>ntia que como aquelas pessoas não sabiam ler<br />
e fazer contas, elas eram enganadas. E eu aprendi matemática muito cedo para<br />
poder vender a borracha quando meu pai não estava, para não <strong>se</strong>r enganada no<br />
preço da borracha. Mas não sabia ler, escrever e não sabia a hora de relógio.<br />
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Tatiana Merlino: A <strong>se</strong>nhora <strong>se</strong> alfabetizou aos dezes<strong>se</strong>is anos mesmo?<br />
Na verdade, aos dezes<strong>se</strong>is anos e meio. Fui para Rio Branco estudar em <strong>se</strong>tembro<br />
de 1975. A primeira coisa que eu procurei foi onde tinha uma igreja e<br />
uma escola. A igreja para ver <strong>se</strong> eu fazia algum contato com alguma freira para<br />
já me encaminhar para os meus objetivos estratégicos de <strong>se</strong>r freira, e a escola<br />
porque era a barreira que teria que <strong>se</strong>r vencida para poder <strong>se</strong>r freira. E eu fui<br />
nessa escola chamada Natalino da Silveira Brito, que foi onde fiz o Mobral. O<br />
curso tinha começado em fevereiro e isso era em <strong>se</strong>tembro. Quando cheguei na<br />
sala de aula, a professora já estava ensinando os sons das letras, os fonemas, os<br />
dígrafos. Então eu fiz um cálculo matemático na minha cabeça, que b mais a<br />
é “ba”. Foi uma conta de somar mesmo, n mais a, “na”, então, banana. Isso eu<br />
con<strong>se</strong>gui como <strong>se</strong> fos<strong>se</strong> uma coisa mágica. Eu pen<strong>se</strong>i “É só você aprender as letras,<br />
o som das letras e somar o som das letras”. Aí eu fui para casa determinada<br />
a aprender as letras e o som das letras, e somar era comigo mesma. Em quinze<br />
dias, eu já con<strong>se</strong>guia ler as coisas que estives<strong>se</strong>m em letra de forma. Como<br />
eu sabia muito bem as quatro operações, a professora achou que eu deveria <strong>se</strong>r<br />
transferida para uma outra sala, que era de educação integral, equivalente aos<br />
quatro anos do primário. Na primeira vez que eu entrei na sala de aula, tinha<br />
uma folha de papel, que era a chamada, mas a professora botou meu nome em<br />
cima do cabeçalho, e chamou: “Marina Osmarina”. Eu levantei e fui até a mesa<br />
dela, porque na minha turma anterior nem tinha chamada, e ela perguntou: “o<br />
que você está fazendo aqui, menina? Quando a gente chama, responda pre<strong>se</strong>nte,<br />
você é abestada?” E todo mundo deu boas risadas, eu fiquei muito envergonhada<br />
e sai dali pensando: “<strong>se</strong>rá que eu volto para estudar de novo?” No outro<br />
dia, decidi que sim, porque <strong>se</strong> eu não voltas<strong>se</strong> iam me chamar de abestada<br />
para o resto da vida. E eu trinquei os dentes, entrei na sala de aula, fui lá para a<br />
última carteira, e ela chamou “Marina Osmarina”, e eu falei “pre<strong>se</strong>nte”. E todo<br />
mundo falou “Ah, agora já aprendeu, e deram nova risada”. Então, no final do<br />
ano, eu fiz um provão e, dos 46 alunos, passaram três, e eu era uma das três.<br />
Com isso, eu conclui o primário e me matriculei na quinta série já morando na<br />
casa da Madre Eliza, no Instituto Imaculada Conceição.<br />
Tatiana Merlino: Senadora, e a militância política, quando começou? Foi<br />
nessa época?<br />
Foi. Na verdade, a militância política começou quando eu conheci o Chico<br />
Mendes e o Clodovis Boff.<br />
Tatiana Merlino: Como foi?<br />
Eu morava, como eu dis<strong>se</strong> na casa da Madre Eliza, que era uma casa onde <strong>se</strong><br />
fazia um pré-noviciado. Lá, tinha uma divisão. As irmãs madres con<strong>se</strong>rvadoras,<br />
que eram pessoas muito boas, dedicadas, mas não de <strong>se</strong> envolver com política,<br />
nem com movimentos sociais, e as progressistas, entre essas, a irmã Beatriz,<br />
e as outras às vezes falavam: “poxa, a Beatriz fica <strong>se</strong> envolvendo com es<strong>se</strong><br />
pessoal aí, com es<strong>se</strong> bispo comunista”. Era o Moacir Greck, que dava suporte e<br />
amparo ao trabalho que era feito pela Contag, pelo Chico Mendes, pelos movimentos<br />
que lutavam defendendo os direitos dos <strong>se</strong>ringueiros e dos índios contra<br />
a invasão dos fazendeiros. E aquilo era um dilema na minha cabeça, porque<br />
eu sabia que o Dom Moacir defendia os <strong>se</strong>ringueiros que estavam <strong>se</strong>ndo expulsos,<br />
mas ele era chamado de bispo comunista de uma forma pejorativa. E eu<br />
pensava: “meu Deus, por que ele defender a gente é <strong>se</strong>r uma coisa ruim, é <strong>se</strong>r<br />
comunista? Por que <strong>se</strong>r comunista é uma coisa ruim <strong>se</strong> o que ele está fazendo<br />
é bom?”. Aí, um dia, tinha um cartaz bem tímido numa cartolina azul escrito<br />
de vermelho na porta da sacristia, “Curso de Liderança Sindical Rural”, alguma<br />
coisa assim, com a participação de Clodovis Boff e Chico Mendes. Eu olhei<br />
para aquilo e pen<strong>se</strong>i: “agora é que eu vou entender es<strong>se</strong> negócio de curso comunista”.<br />
Aí, me inscrevi.<br />
Tatiana Merlino: A <strong>se</strong>nhora já sabia quem eles eram?<br />
Eu sabia quem eles eram, mas não tinha proximidade. Na época tinha 17<br />
para 18 anos. Aí, quando eu vi o cartaz, pen<strong>se</strong>i: “agora eu vou entender isso”.<br />
E me inscrevi. Quando chegamos em casa, eu falei para a madre que eu queria<br />
o sábado e parte do domingo para fazer o curso. E ela perguntou que curso<br />
era es<strong>se</strong>. Respondi que era um que o padre queria que a gente fizes<strong>se</strong>. Obviamente,<br />
ele não dis<strong>se</strong> que queria que eu fizes<strong>se</strong>, mas imaginei que, como ele botou<br />
a cartolina ali, ele queria que a gente fizes<strong>se</strong> (Risos). Então, ela dis<strong>se</strong>: “Então<br />
está bom, você faz as suas coisas na <strong>se</strong>xta-feira, adianta o trabalho que tem<br />
junho 2009 caros amigos<br />
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28<br />
para fazer e pode fazer o curso”. E foi assim que eu conheci o Chico<br />
Mendes e o Clodovis. E aí me apaixonei pela Teologia da Libertação.<br />
Comecei a receber o jornal que o Chico Mendes mandava para mim,<br />
e me interessar pela literatura que a irmã Beatriz tinha. Então, entrei<br />
em conflito, <strong>se</strong>m saber <strong>se</strong> eu queria mesmo ir para o Rio de Janeiro<br />
<strong>se</strong>r freira, uma proposta mais con<strong>se</strong>rvadora, recolhida, ou <strong>se</strong> queria<br />
me envolver mesmo com o movimento das comunidades de ba<strong>se</strong>.<br />
Porque ai eu já conhecia o trabalho que tinham os leigos, as pessoas<br />
que não necessariamente precisavam <strong>se</strong>r freiras ou padres, e comecei<br />
a me encantar com aquilo tudo. Quando a irmã me chamou e dis<strong>se</strong> que eu<br />
iria para o Rio de Janeiro, depois de um período pedi para sair. E fui trabalhar<br />
como empregada doméstica.<br />
Tatiana Merlino: Isso simultâneo à militância?<br />
Isso, aí eu já estava completamente envolvida, aí eu fui para a Estação Experimental<br />
e comecei a trabalhar nos grupos de comunidade de ba<strong>se</strong>. Em menos<br />
de um ano eu já tinha sido eleita coordenadora da paróquia do Cristo Ressuscitado,<br />
e em 79 eu ia fazer o vestibular, só que fiquei com hepatite de novo<br />
e perdi. A essas alturas já tinha conhecido uma pessoa no trabalho da igreja,<br />
que foi meu primeiro marido, pai dos meus dois filhos mais velhos. No final de<br />
80 fiz o vestibular e pas<strong>se</strong>i. Terminei a faculdade em 84.<br />
Tatiana Merlino: A <strong>se</strong>nhora poderia falar um pouquinho sobre o período<br />
da militância junto ao Chico Mendes, fundação da CUT...?<br />
Era uma militância muito intensa, porque eu fazia o movimento estudantil,<br />
e ainda tinha alguma relação com a comunidade de ba<strong>se</strong>. Já conhecia o Chico<br />
Mendes, já estava envolvida com a luta dos <strong>se</strong>ringueiros e, ao mesmo tempo,<br />
era professora na escola que estudei. Ai me envolvi com o movimento dos professores,<br />
porque nós éramos do movimento pró-CUT, mas o PC do B, que era a<br />
direção do sindicato, era contra a criação da CUT. Então eu era da oposição sindical,<br />
e me dividia entre isso e ir acompanhar parte das coisas que aconteciam<br />
na organização que fazia parte já, um partido clandestino, chamado PRC, que<br />
atuava um pedaço dentro do PT e um pedaço dentro do PMDB. Quando veio<br />
o processo de criação da CUT e teve o congresso da CUT estadual, foi eleito o<br />
Chico Mendes coordenador e eu a vice-coordenadora.<br />
Tatiana Merlino: E a iniciação na vida política, no PT?<br />
A ligação com o PT começou desde cedo, em 80, porque estava ligado a essa<br />
coisa do Chico Mendes e das comunidades de ba<strong>se</strong>. Desde o início nós nos considerávamos<br />
fundadores do PT, mas eu só fui me filiar ao PT em 85, por causa<br />
do Chico Mendes. Ele ia sair candidato, e articulamos que eu sairia candidata a<br />
deputada federal para ajudar o Chico na zona urbana, puxar voto para ele <strong>se</strong>r<br />
deputado estadual, e fazer o debate da Constituinte em 88.<br />
Tatiana Merlino: Vamos dar um salto aí. Como foi a chegada ao<br />
Ministério do Meio Ambiente?<br />
A chegada ao Ministério do Meio ambiente é parte e fruto dessa trajetória<br />
de qua<strong>se</strong> trinta anos de luta social, sócio-ambiental, em que eu sai de uma atuação<br />
local, quando fui eleita em 95 para o Senado, e comecei a ter uma atuação<br />
nacional. Mas um nacional que não perdia essa raiz com as causas com as<br />
quais eu havia militado a vida toda, dos direitos humanos das populações tradicionais<br />
das florestas, da pre<strong>se</strong>rvação da Amazônia e como isso podia transitar<br />
da minha realidade no Acre para a realidade de uma Amazônia mais ampla.<br />
Teve um acolhimento muito grande por parte dos <strong>se</strong>nadores. Nunca sofri<br />
aqui nenhum tipo de preconceito, fui recebida com muito respeito, e eu também<br />
não gosto des<strong>se</strong> negócio de me vitimizar. Acho que muitas vezes os embates<br />
são por causa das minhas ideias, por aquilo que eu faço, por aquilo que eu<br />
digo, por aquilo que eu sou, por minha visão de mundo.<br />
Marcos Zibordi:E não foi es<strong>se</strong> o problema justamente da sua atuação no<br />
Ministério, o peso institucional que isso tomou?<br />
Ah sim. No Ministério, essa bagagem toda enfrentou três problemas. Um deles:<br />
nós éramos um partido que no plano nacional não tinha a experiência de integrar<br />
as visões e as propostas do que a gente pensava para o Brasil. Então, alguns<br />
elaboravam a educação do PT. Outros elaboravam o que <strong>se</strong>ria a saúde, a<br />
caros amigos julho 2009<br />
“As pessoas querem mudanças. E aí eles<br />
me tomam como símbolo e me colocam como<br />
candidata a presidente da República para dizer<br />
‘es<strong>se</strong> tema é importante’”<br />
política econômica. E para a política ambiental, era um grupo bem menor, porque<br />
tanto o PT quanto os demais partidos não têm um acúmulo na questão sócio-ambiental.<br />
Então era mais um grupo de pessoas que tinha muita dificuldade<br />
de transitar dentro do partido. Então, na questão ambiental, não nos eram dadas<br />
muitas escolhas. Porque boa parte das questões ligadas a um marco regulatório<br />
já haviam sido feitas, porque temos avanços significativos em todos os governos.<br />
E qual era o passo de qualidade a <strong>se</strong>r dado pelo governo do presidente Lula<br />
com o respaldo social que vinha das urnas e de uma proposta com uma ba<strong>se</strong> popular<br />
muito forte? No meu entendimento, a implementação da legislação. E isso<br />
não era fácil. Então, a gente <strong>se</strong> perguntou: o que pode unir o mundo, o que pode<br />
unir a sociedade, os empresários? Ninguém vai <strong>se</strong>r contra que <strong>se</strong> tenha controle<br />
e participação social, ninguém vai <strong>se</strong>r contra o de<strong>se</strong>nvolvimento sustentável,<br />
ninguém vai <strong>se</strong>r contra o fortalecimento do sistema nacional de meio Ambiente<br />
e ninguém vai <strong>se</strong>r contra que a política ambiental perpas<strong>se</strong> os diferentes <strong>se</strong>tores<br />
das políticas públicas. Isso <strong>se</strong> configurou de uma forma mais delineada no plano<br />
de combate ao desmatamento da Amazônia. Tivemos todo um esforço de políticas<br />
públicas estruturantes, políticas públicas que não são apenas anúncios, coisas<br />
que efetivamente você pode medir, verificar, que fazem a diferença. Criar 24<br />
milhões de hectares de unidades de con<strong>se</strong>rvação na frente da expansão predatória<br />
é algo que fez a diferença para a diminuição do desmatamento. Aprovar no<br />
Congresso Nacional uma lei que estabeleceu que qualquer área que esteja <strong>se</strong>ndo<br />
degradada poderia <strong>se</strong>r interditada por um ato do governo por <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s, prorrogado<br />
por mais <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s até que <strong>se</strong> fizes<strong>se</strong> os estudos para <strong>se</strong> decidir o que <strong>se</strong> faria<br />
com aquela área, isso é algo muito objetivo. Aprovar uma lei de florestas públicas<br />
num país que há 400 anos explora as florestas e que nunca teve uma lei<br />
para dizer como é que <strong>se</strong> explora essas florestas, isso dá muito trabalho. Criar o<br />
Instituto Florestal Brasileiro, criar o Instituto Chico Mendes, fazer licenciamentos<br />
complexos, como foi o caso do Madeira, do São Francisco. Estabelecer um programa<br />
junto com o Ministério da Defesa e o Ministério da Justiça para enfrentar<br />
as quadrilhas organizadas e, com isso, con<strong>se</strong>guir botar 750 pessoas na cadeia,<br />
apreender 1 milhão de metros cúbicos de madeira, aplicar 4 bilhões em multas,<br />
desconstituir mil e quinhentas empresas criminosas. Isso são coisas estruturais e<br />
isso mexe com o interes<strong>se</strong>. Seria praticamente impossível fazer isso <strong>se</strong> você não<br />
tives<strong>se</strong> o suporte do próprio governo. Não foi uma pessoa que fez isso tudo, o<br />
presidente Lula chancelou e fez tudo isso juntamente comigo e minha equipe. O<br />
problema é que chegou o momento em que os tensionamentos que iam <strong>se</strong>ndo gerados,<br />
no meu entendimento, chegaram a uma situação limite.<br />
Tatiana Merlino: Com quem foram os principais embates?<br />
O principal embate foi, em primeiro lugar, com a visão de de<strong>se</strong>nvolvimento<br />
que <strong>se</strong> tem para o mundo e para o Brasil. Existe o paradigma de de<strong>se</strong>nvolvimento<br />
que está estabelecido até hoje e não foi quebrado. É a ideia da infinitude,<br />
do não-limite dos recursos naturais, como <strong>se</strong> fos<strong>se</strong>m ilimitados e como <strong>se</strong> nós<br />
pudés<strong>se</strong>mos extrair o quanto qui<strong>se</strong>rmos, do jeito que qui<strong>se</strong>rmos, para nos de<strong>se</strong>nvolvermos<br />
numa perspectiva linear. Isso talvez <strong>se</strong>ja o maior inimigo dessas<br />
políticas públicas que nós estamos falando, e isso <strong>se</strong> materializa nos nossos fazeres,<br />
dentro da visão empresarial de alguns <strong>se</strong>tores, dentro da visão de gestão<br />
pública de um e de outro e até mesmo da de formadores de opinião, que advogam<br />
também es<strong>se</strong>s modelos. Então, do ponto de vista prático e objetivo, isso <strong>se</strong><br />
confrontava muito com a visão de como fazer a infraestrutura logística no Brasil,<br />
na área de transportes. Sobretudo, <strong>se</strong> confrontava com como suprir o país<br />
com a necessária produção de energia. O Brasil precisa de energia, precisa crescer,<br />
precisa gerar emprego. Mas como suprir o Brasil de energia, <strong>se</strong>m que isso<br />
signifique continuar o modelo insustentável de fazer hidrelétricas, ou a forma<br />
in<strong>se</strong>gura de ficar apostando em produção de energia nuclear? Do ponto de vista<br />
de outras ações, como o Ministério da Agricultura, os tensionamentos que<br />
existiam com es<strong>se</strong>s <strong>se</strong>tores não são diferentes dos que nós temos na sociedade.
Podemos sim fazer uma transição do modelo predatório para o sustentável. Da<br />
visão de<strong>se</strong>nvolvimentista para uma visão sustentabilista de de<strong>se</strong>nvolvimento.<br />
Tatiana Merlino: Essa visão de<strong>se</strong>nvolvimentista prevaleceu, então?<br />
Eu não digo que ela prevaleceu, infelizmente ela está prevalecendo no mundo<br />
inteiro. Se você verificar o que está acontecendo na Europa, Índia, Estados<br />
Unidos, China, Japão, não vai <strong>se</strong>r diferente.<br />
Tatiana Merlino: Mas eu digo dentro do governo Lula. Houve uma opção<br />
ao <strong>se</strong> dar o Ministério do Meio Ambiente e o do De<strong>se</strong>nvolvimento Agrário<br />
para a esquerda e a agricultura para a direita...<br />
Mas vamos pegar a coisa de uma maneira menos simples. Isso é algo que<br />
está colocado no mundo. Seria muito idealismo achar que o governo Lula <strong>se</strong>ria<br />
algo puro como eu estou dizendo. Inclusive porque, como eu dis<strong>se</strong>, es<strong>se</strong> acúmulo<br />
não estava dentro de nenhum partido, nem do PT. Para aquele desafio, con<strong>se</strong>guimos<br />
colocar estacas muito poderosas. Sabemos que essas estacas foram<br />
fincadas e que es<strong>se</strong> é o desafio deste século. Será que vamos ter a capacidade,<br />
não só como governo, mas como sociedade, de fazer es<strong>se</strong> transito? Foi es<strong>se</strong> o<br />
esforço que eu e minha equipe fizemos durante es<strong>se</strong> tempo. É paradoxal: tem<br />
que crescer, tem que ter energia, agricultura, mas tem que pre<strong>se</strong>rvar.<br />
Marcos Zibordi: É evidente que es<strong>se</strong> modelo que o PT adotou é diferente<br />
do modelo que você pensaria em muitos pontos, e isso me faz perguntar o<br />
<strong>se</strong>guinte: <strong>se</strong> a <strong>se</strong>nadora Marina Silva qui<strong>se</strong>r continuar na sua luta, ela vai<br />
ter que <strong>se</strong>r candidata à presidência fora do PT?<br />
A mudança que precisamos fazer tem que considerar três coisas: a visão, o<br />
processo e a estrutura. Uma visão que <strong>se</strong>ja capaz de perceber uma solução para<br />
algo que está comprometendo em 30% a capacidade de regeneração do planeta,<br />
que <strong>se</strong>ja generosa sobretudo com aqueles que ainda não nasceram. Em <strong>se</strong>gundo<br />
lugar, um processo que <strong>se</strong>ja acolhedor dos diferentes olhares, que tenha<br />
capacidade de escuta apurada para ver de onde vem os sussurros da mudança.<br />
Hoje, o de<strong>se</strong>nvolvimentismo berra nos nossos ouvidos. Mas a mudança para<br />
a sustentabilidade são apenas sussurros. Como transformar es<strong>se</strong>s sussurros em<br />
palavras? É preciso uma escuta muito apurada. É um processo horizontal e tem<br />
que <strong>se</strong>r generoso, capaz de acolher a visão dos empresários, dos militantes dos<br />
movimentos sociais, da academia, das ONGs, da juventude...<br />
Marcos Zibordi: Mas a <strong>se</strong>nhora vai <strong>se</strong>r candidata ou não?<br />
Isso não está colocado para mim. Existe um movimento de alguns jovens na<br />
internet que eu entendo muito mais como simbólico, e que tem a ver com o que<br />
eu estou dizendo. As pessoas querem mudanças, querem ver que isso é importante<br />
dentro dos processos decisórios. E aí eles me tomam como símbolo e me<br />
colocam como candidata a presidente da República para dizer “es<strong>se</strong> tema é importante”<br />
para <strong>se</strong>r tratado na mais alta esfera de decisão. Mas quero continuar<br />
o meu raciocínio. A estrutura deve contar também com o apoio de todo mundo,<br />
mas ela deve ter também uma certa plasticidade para poder <strong>se</strong>r capaz de fazer<br />
as adaptações necessárias, corrigir os rumos. O leito que está aí do de<strong>se</strong>nvolvimentismo<br />
predatório nós não queremos. Temos que corrigir es<strong>se</strong> desvio da<br />
sustentabilidade econômica, social, cultural, ambiental. E no Brasil nós temos<br />
a benção de ter um conjunto de forças sociais que querem isso. A pesquisa do<br />
datafolha diz que 94% das pessoas preferem pagar mais pelo grão e pela carne<br />
do que ver a Amazônia <strong>se</strong>ndo destruída. No Brasil, está <strong>se</strong> desperdiçando essa<br />
força e energia para ficar refém de uma mentalidade que com certeza não <strong>se</strong>rá<br />
boa para o Brasil e muito pior para o planeta.<br />
Tatiana Merlino: Senadora, caso o presidente Lula não vete os três<br />
artigos da MP 458 que a <strong>se</strong>nhora e muitos outras pessoas da sociedade<br />
civil querem, a <strong>se</strong>nhora cogita sair do PT e ir para o PV?<br />
Eu estou muito apreensiva com essa medida 458. Eu dis<strong>se</strong> que ela é a terceira<br />
pior coisa que aconteceu na minha vida. Es<strong>se</strong> processo de privatização de 67 milhões<br />
de hectares de floresta na Amazônia, o equivalente a um patrimônio do povo<br />
brasileiro de 70 bilhões de reais, <strong>se</strong> não forem tomados todos os cuidados, é como<br />
<strong>se</strong> fos<strong>se</strong> uma bomba de efeito retardado. Quando o país voltar a crescer, talvez não<br />
haja como controlar o peso de tudo isso. Ela [MP 458] já veio com problemas na<br />
sua origem. Está <strong>se</strong> pedindo que <strong>se</strong> faça três vetos, inclusive o que possibilite a vistoria<br />
para <strong>se</strong>parar o joio do trigo. E eu estou na expectativa de que o presidente Lula<br />
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possa vetar, até porque conhece como ninguém o que acontece na Amazônia. Ninguém<br />
pode dizer que es<strong>se</strong>s 67 milhões de hectares são apenas para aqueles que foram<br />
estimulados por políticas publicas no passado. Existe um processo de ocupação<br />
ilegal e criminosa nos últimos 15, 20 anos, desde que o Brasil tem uma legislação<br />
que proíbe essa forma de ocupação. Estou na expectativa que <strong>se</strong>ja vetado, embora<br />
não resolva a natureza dos problemas que já havia na origem. Mas vai <strong>se</strong>r um atenuante.<br />
Para as pessoas <strong>se</strong>ntirem que não <strong>se</strong> está simplesmente anistiando aqueles<br />
que desrespeitaram a lei, usaram de violência e que até <strong>se</strong>ifaram vidas.<br />
Marcos Zibordi: Queria que a <strong>se</strong>nhora descreves<strong>se</strong> es<strong>se</strong> desmonte dessas<br />
leis, quais são os principais problemas que estão acontecendo, quais são<br />
os principais ataques à Amazônia.<br />
Tatiana Merlino: Uma avaliação da ofensiva ruralista, a flexibilização<br />
das leis ambientais, tanto a MP 458, como mudanças no código florestal,<br />
licenciamento de obras em rodovias federais, como a BR 319...<br />
Essa operação desmonte da legislação ambiental é, no meu entendimento, fruto<br />
de uma visão equivocada com a qual o teste de implementar a legislação <strong>se</strong> deparou.<br />
Em vez das pessoas fazerem um esforço para passar no teste, elas o estão alterando.<br />
Em relação à regularização fundiária. Em relação à questão da proteção das cavernas.<br />
Na regulamentação da proteção das florestas de crimes ambientais. E, agora,<br />
vem a tentativa máxima de criar um código ambiental para o país, mexendo na<br />
lei de crimes ambientais, no sistema nacional de unidades de con<strong>se</strong>rvação, na política<br />
nacional de meio ambiente, nas competências do Conama, tornando-o apenas<br />
um con<strong>se</strong>lho consultivo. É um conjunto de mudanças que repre<strong>se</strong>nta um retrocesso.<br />
Está <strong>se</strong> armando uma bomba de efeito retardado que não poderá <strong>se</strong>r contida na<br />
hora que o país voltar a crescer. Está <strong>se</strong> transferindo 60 milhões de hectares de unidades<br />
de con<strong>se</strong>rvação. Se isso prosperar, <strong>se</strong>rá avassalador para os próximos anos da<br />
junho 2009 caros amigos<br />
29
C<br />
M<br />
Y<br />
CM<br />
MY<br />
CY<br />
CMY<br />
K<br />
30<br />
política ambiental do país. Isso é assustador, particularmente<br />
essa mudança no código ambiental, porque existe um <strong>se</strong>tor<br />
que agora <strong>se</strong> <strong>se</strong>nte tão à vontade que não bastava ter con<strong>se</strong>guido<br />
algo que eles vem tentando nos últimos 20 anos, que<br />
é a transferência dessa quantidade de áreas de terra. Agora<br />
eles querem mudar toda a legislação ambiental.<br />
Tatiana Merlino: Que <strong>se</strong>tor é es<strong>se</strong>, <strong>se</strong>nadora?<br />
O <strong>se</strong>tor mais atrasado, ligado ao agronegócio. Eu nunca gosto de generalizar<br />
como <strong>se</strong>ndo o agronegócio inteiro. Mas existe uma parte que tem uma visão<br />
atrasada e que não con<strong>se</strong>gue perceber que o melhor para a agricultura é transitar<br />
do modelo insustentável para o modelo sustentável, o que pressupõe o respeito<br />
à re<strong>se</strong>rva legal, à área de pre<strong>se</strong>rvação permanente, o uso de forma intensiva<br />
das áreas que foram abertas, uso de novas tecnologias. Existe um custo,<br />
mas ele está <strong>se</strong>ndo depositado na conta da natureza. Daqui um tempo, ele <strong>se</strong>rá<br />
devolvido com menos chuva, menos possibilidade de polinização, e uma série<br />
de prejuízos. E, daqui a pouco, talvez <strong>se</strong>ja tarde demais.<br />
Tatiana Merlino: E como fica o presidente Lula diante des<strong>se</strong> cenário?<br />
Recentemente ele declarou que as ONGs estavam mentindo, não estavam<br />
dizendo a verdade que a MP 458 ia abrir as portas da grilagem da<br />
Amazônia. Como ele fica diante des<strong>se</strong> cenário, dessa investida?<br />
As ONGs e eu mesma dizemos que essa medida provisória, <strong>se</strong> não tiverem os<br />
cuidados necessários, vai favorecer a grilagem. Ela favorece a grilagem quando<br />
não as<strong>se</strong>gura a questão da vistoria acima de 100 hectares, até os 4 módulos<br />
fiscais. Porque existem também os laranjas para os 400 hectares. Ela favoreceu<br />
a grilagem quando não fez o recorte para regularizar as pos<strong>se</strong>s até 4 módulos<br />
fiscais. Se tives<strong>se</strong> feito es<strong>se</strong> recorte, beneficiaria 81,1% das pos<strong>se</strong>s e utilizaria<br />
uma área de terra de cerca de 7 milhões de hectares. Por ter ido até os médios<br />
e grandes é que ela vai para 67 milhões de hectares.<br />
Marcos Zibordi: Es<strong>se</strong>s 20% fizeram crescer em 10 vezes o tamanho...<br />
Exatamente. Em nome dos pequenos, <strong>se</strong> favorece os grandes. Quando o relator<br />
coloca lá as emendas que dizem que os que têm ocupação indireta e o que são<br />
pessoa jurídica também podem regularizar, ela descumpre o preceito constitucional<br />
que diz que terras públicas só podem <strong>se</strong>r alienadas por relevante interes<strong>se</strong> social.<br />
E quando foi estabelecido que os grandes poderão vender essas terras, a maior<br />
parte depois de três anos, isso é para dar liquidez rápida a es<strong>se</strong>s que <strong>se</strong> apropriaram<br />
de terras publicas. Com a MP, é possível regularizar como pessoa física e em nome<br />
de quantas empresas precisar. Primeiro é só um frigorífico, depois tem uma madeireira,<br />
uma agropecuária, vai pegando 1500 em nome de cada um des<strong>se</strong>s entes jurí-<br />
dicos e de <strong>se</strong>u nome próprio. Então, quando <strong>se</strong> diz que favorece a grilagem é algo<br />
Anuncio Raul_caros amigos.pdf 25/6/2009 18:26:34<br />
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objetivo. E, para desconstruir isso, é preciso que <strong>se</strong> <strong>se</strong>ja objetivo, que haja veto nes<strong>se</strong>s<br />
artigos que foram propostos, que <strong>se</strong> faça vistoria. Até porque existem pessoas<br />
caros amigos julho 2009<br />
“[Na gestão Minc] temos um tensionamento político em<br />
palavras, mas na prática temos uma situação dramática,<br />
de muitas perdas para a questão ambiental”<br />
que estão dentro dessas áreas aí há 20, 30, 40, 50 anos. Como elas vão fazer para<br />
ganhar uma disputa com quem pode advogar na perspectiva de que essa terra vai<br />
<strong>se</strong>r dele, e que daqui a três anos ele vai poder vendê-la?<br />
Tatiana Merlino: Os movimentos levantaram a possibilidade de, caso a<br />
MP <strong>se</strong>ja sancionada, entrarem com uma Ação de Inconstitucionalidade. O<br />
que a <strong>se</strong>nhora acha disso?<br />
É um dos caminhos, buscar uma regulamentação correta apelando inclusive<br />
para o centro de justiça e comprometimento que o presidente Lula tem com essa<br />
agenda de combate à violência e à grilagem. É em nome disso que <strong>se</strong> espera que<br />
haja o veto e um processo de regulamentação que corrija es<strong>se</strong>s problemas.<br />
Marcos Zibordi: A <strong>se</strong>nsação é que sua saída ocorreu porque não havia<br />
mais condição, e que o Minc <strong>se</strong>ria mais flexível. Mas ele também esta<br />
entrando em embates corriqueiros.<br />
Essa MP [458], assim que foi aprovada na Câmara dos Deputados, o ministro<br />
Carlos Minc deu uma declaração dizendo que tinha sido uma vitória dos<br />
ambientalistas. Deu um trabalho danado pra que <strong>se</strong> pudes<strong>se</strong> dizer que não<br />
foi vitória nenhuma e que tínhamos uma coisa grave. Depois ele percebeu<br />
e passou a trabalhar também pelos vetos. [Na gestão Minc] temos um<br />
tensionamento político em termos de palavras, mas na prática temos uma<br />
situação muito dramática, de muitas perdas para a questão ambiental.<br />
Marcos Zibordi: Em que mundo que <strong>se</strong>us netos vão viver?<br />
Eu quero muito que o mundo <strong>se</strong>ja melhor do que ele é hoje, que a Amazônia<br />
continue a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica, que não haja um derretimento<br />
do gelo no ártico tão violento. Mas meu compromisso não é apenas com o meu<br />
neto, tem que <strong>se</strong>r com todos aqueles que ainda não nasceram, os filhos dos filhos<br />
dos filhos. Se ficarmos pensando apenas no nosso filho e no nosso neto, isso foi o<br />
que nossos pais pensaram e deu no que deu. Temos que pensar além deles e a contribuição<br />
tem que <strong>se</strong>r dada agora, por cada um de nós, porque estamos diante de<br />
uma esquina civilizatória, que é também uma esquina ética.<br />
Alguns dias após a entrevista, o presidente Lula decidiu vetar apenas uma<br />
parte do artigo 7º da medida provisória 458, que permitiria a transferência de<br />
terras da União para empresas<br />
Vem Vem aí aí um um lançamento que que<br />
você você vai vai achar achar maluco e também e também<br />
uma uma beleza! beleza!<br />
Especial<br />
Raul Seixas<br />
Em Em agosto, agosto, nas nas bancas. bancas.<br />
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u<strong>se</strong>acuca.com<br />
u<strong>se</strong>acuca.com
Plínio Teodoro<br />
Desmatamento aceleraDo<br />
nas fazendas de Daniel Dantas<br />
A Agropecuária Santa Bárbara, do Grupo Opportunity anunciou em 2008<br />
a venda de mais de 100 cabeças de gado.<br />
antes de começar a ler este artigo, respire<br />
profundamente. Considerada o pulmão do<br />
mundo, a região amazônica passa por mais<br />
um sufocamento iminente: o de ver cerca de 12%<br />
de <strong>se</strong>u território cair, agora oficialmente, nas mãos<br />
dos latifundiários de rapina da pecuária de corte.<br />
O fato não é novo. Três me<strong>se</strong>s antes de <strong>se</strong>u suspiro<br />
final, o <strong>se</strong>ringueiro Chico Mendes já alertara, em<br />
entrevista durante o terceiro congresso nacional da<br />
Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 9 de <strong>se</strong>tembro<br />
de 1988: “Essa força nova (dos defensores<br />
da floresta) que cresceu, <strong>se</strong>rviu pra deixar os grandes<br />
latifundiários cada vez mais preocupados. Hoje,<br />
a UDR (União Democrática Ruralista) <strong>se</strong> preocupa<br />
muito em tentar <strong>se</strong> estruturar na Amazônia”.<br />
A aprovação da Medida Provisória 458 – que trata<br />
da “regulamentação” fundiária na Amazônia – pela<br />
Câmara dos Deputados e a entrega da MP para a relatoria<br />
da <strong>se</strong>nadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente<br />
da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), estrangularam<br />
as ações de ambientalistas e dos povos<br />
que lutam pela sobrevida – por meio do extrativismo<br />
– da maior floresta tropical do mundo.<br />
Um levantamento minucioso da organização não<br />
governamental Greenpeace – que é mantida interinamente<br />
com recursos de pessoas físicas – estima<br />
que entre 80 e 120 bilhões de toneladas de carbono<br />
estejam estocados na Amazônia. Se destruída, a floresta<br />
liberaria o equivalente a 50 vezes as emissões<br />
anuais de ga<strong>se</strong>s do efeito-estufa produzidas pelos<br />
Estados Unidos, sufocando, de vez, o planeta.<br />
De<strong>se</strong>nvolvido ao longo de três anos, o estudo<br />
mostra que, <strong>se</strong>gundo dados do próprio governo<br />
brasileiro, “a pecuária é responsável por cerca de<br />
80% de todo o desmatamento” na região. Isto significa<br />
que a cada 18 <strong>se</strong>gundos, um hectare de floresta<br />
Amazônica, em média, é convertido em pasto.<br />
O relatório revela ainda que os tentáculos de<br />
uma conturbada figura, que firmou <strong>se</strong>u império<br />
durante o – no mínimo - duvidoso processo de<br />
privatização conduzido durante o governo Fernando<br />
Henrique Cardoso, é o principal ponto de<br />
estrangulamento do planeta.<br />
Segundo dados obtidos pelo Greenpeace em<br />
fontes oficiais do poder público, nada menos que<br />
as cinco maiores áreas devastadas na Amazônia estão<br />
em fazendas que pertencem à empresa Agropecuária<br />
Santa Bárbara, do grupo Opportunity. Sim,<br />
dele, Daniel Dantas, preso durante a Operação Satiagraha,<br />
da Polícia Federal, acusado de lavagem de<br />
vultosas quantias de recursos de origem duvidosa<br />
em paraísos fiscais - entre outros crimes – e condenado<br />
a 10 anos de cadeia por tentar corromper um<br />
delegado federal durante a fa<strong>se</strong> investigatória.<br />
Das teles às terras<br />
Claramente beneficiado no processo de de<strong>se</strong>statização<br />
das teles pelo então ministro das Comunicações,<br />
Luiz Carlos Mendonça de Barros, e pelo próprio<br />
presidente Fernando Henrique Cardoso – que<br />
chegou a declarar em escuta telefônica que iria interferir<br />
junto ao Banco do Brasil para que a Previ,<br />
o fundo de pensão dos funcionários da instituição,<br />
associa-<strong>se</strong> ao grupo Opportunity – o controverso<br />
banqueiro baiano é acusado pela Polícia Federal de<br />
remeter a paraísos fiscais até 2 bilhões de reais. Há<br />
suspeitas de que parte destes recursos <strong>se</strong>ja oriundo<br />
do processo de privatização do sistema Telebrás, lavados<br />
por meio do Opportunity Fund, o fundo de<br />
investimentos criado por Dantas.<br />
Enquanto o banqueiro <strong>se</strong> digladiava com exsócios<br />
para assumir o controle do sistema de telecomunicações<br />
do país, a trupe “de<strong>se</strong>nvolvimentista”<br />
de FHC agia, em outra frente, para anular<br />
os crimes cometidos pelos latifundiários na derrubada<br />
da Floresta Amazônica.<br />
Menos de um mês após a privatização do sistema<br />
Telebrás, em 10 de agosto de 1998, Fernando<br />
Henrique sancionou a Medida Provisória<br />
1.710, que entraria para a história da legislação<br />
brasileira como um dos atos do Executivo mais<br />
incon<strong>se</strong>quentes na área ambiental. A MP deu a<br />
possibilidade aos devastadores da floresta firmarem<br />
“termos de compromisso” com os órgãos do<br />
Sisnama (<strong>se</strong>cretarias e órgãos ambientais municipais,<br />
estaduais e federal) nos quais <strong>se</strong> comprometiam<br />
a recuperar a área degradada em até 10<br />
anos, ficando impunes por todo o período.<br />
A decisão acirrou a corrida ao novo “Eldorado”<br />
da pecuária brasileira, levando grandes empresários<br />
do <strong>se</strong>tor a investirem na grilagem de terras<br />
devolutas, que pertencem à União, mesmo estando<br />
ocupadas. Estas áreas são adquiridas por meio<br />
de campone<strong>se</strong>s usados como laranjas, que assinam<br />
procurações e documentos falsos que possibilitam<br />
aos “patrões” a compra de várias propriedades vizinhas,<br />
como <strong>se</strong> fos<strong>se</strong> um grande loteamento. Porém,<br />
na verdade, estas várias propriedades unidas<br />
formam um grande latifúndio.<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
Durante o prazo de anuência concedido aos<br />
devastadores da floresta, grandes grupos adquiriram<br />
as terras griladas da região para expandir<br />
a pecuária. Coincidência ou não, esta também<br />
foi a decisão do grupo Opportunity, que fundou<br />
a Agropecuária Santa Bárbara, atualmente dona<br />
de uma área de 510 mil hectares na região amazônica,<br />
o que corresponde a três vezes o tamanho<br />
do município de São Paulo.<br />
Os negócios de Daniel Dantas na região vão<br />
bem. E quem diz o obrigado é o ex-cunhado e sócio<br />
– inclusive de cela durante a Operação Satiagraha<br />
- do banqueiro, Carlos Rodenburg. Em reportagem<br />
na edição de 15 de janeiro de 2008 do<br />
jornal Valor Econômico – que pertence ao grupo<br />
Folha e à Rede Globo – Rodenburg orgulha-<strong>se</strong> de<br />
dizer que ele e o sócio pretendiam faturar R$ 110<br />
milhões com a venda de mais de 100 mil cabeças<br />
de gado no ano.<br />
Quanto às irregularidades, comuns na região,<br />
o sócio de Dantas brada à mídia gorda: “Invasões<br />
e conflitos estão ligados à grilagem. Não <strong>se</strong>ntamos<br />
nem para conversar <strong>se</strong> tiver alguma ilegalidade<br />
com a propriedade pretendida. Já a questão<br />
do trabalho escravo é uma realidade, mas temos<br />
rigor absoluto com as normas que regulamentam<br />
as leis trabalhistas do <strong>se</strong>tor”.<br />
Na visão do Ministério Público Federal, no entanto,<br />
a ética do império da pecuária de Daniel Dantas<br />
<strong>se</strong>gue à risca o que o banqueiro já havia demonstrado<br />
em outros ramos de negócios, como o<br />
financeiro e de telecomunicações.<br />
No dia 01 de junho de 2009, promotores federais<br />
pediram o indiciamento de dez fazendas pertencentes<br />
à Agropecuária Santa Bárbara por desmatamento<br />
ilegal. Uma das indiciadas, a Fazenda<br />
Rio Tigre, também é conhecida por figurar na lista<br />
suja do trabalho escravo. Em julho de 2004, a<br />
propriedade, localizada em Santana do Araguaia,<br />
no sul do Pará, recebeu a visita do grupo móvel<br />
de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego,<br />
que libertou 78 trabalhadores que viviam<br />
em condições análogas à da escravidão.<br />
Além da restauração dos danos ambientais, o<br />
Ministério Público solicitou a emissão de multas<br />
que ultrapassam o valor de R$ 680 milhões pelas irregularidades<br />
causadas pelo braço pecuário do império<br />
de Daniel Dantas.<br />
Plínio Teodoro é jornalista.<br />
junho 2009 caros amigos<br />
31
32<br />
caros amigos julho 2009<br />
Frei Betto<br />
DEMOCRACIA<br />
CULTURAL<br />
O homem e a mulher são os únicos <strong>se</strong>res vivos que <strong>se</strong><br />
contrapõem à natureza. Os demais são todos determinados pela natureza.<br />
Es<strong>se</strong> distanciamento humano frente ao mundo natural faz a realidade<br />
revestir-<strong>se</strong> de simbolismo e produz a emergência transcendental<br />
do imaginário.<br />
Voltada sobre si mesma, a consciência humana sabe que<br />
sabe, enquanto os animais sabem, mas ignoram a reflexão. Através do símbolo<br />
e do significado, o <strong>se</strong>r humano <strong>se</strong> relaciona com a natureza, consigo<br />
mesmo, com os <strong>se</strong>melhantes e com Deus.<br />
Nasce a cultura. A vida social ganha contornos definidos e explicações<br />
categóricas. Do domínio das forças arbitrárias da natureza chega<strong>se</strong><br />
às armas que permitem a imposição de um grupo cultural sobre o outro.<br />
Porém, cultura é identidade e, portanto, resistência. Mesmo assim, a absolutização<br />
de sistemas ideológicos oferece o paraíso, induzindo o dominado<br />
a <strong>se</strong>ntir-<strong>se</strong> excluído por não pensar pela cabeça alheia.<br />
No Brasil colônia, os métodos de cateque<strong>se</strong> cristã introduziam<br />
entre os indígenas o vírus da desagregação e, hoje, os donos dos garimpos,<br />
das madeireiras e o governo perguntam perplexos por que os povos indígenas<br />
necessitam de tanta terra <strong>se</strong> nada produzem. Os pentecostais atacam<br />
os umbandistas e certos <strong>se</strong>tores da Igreja cristã olham com solene desprezo<br />
o candomblé.<br />
A queda dos governos dos paí<strong>se</strong>s socialistas do<br />
Leste Europeu assinala, não o fim do socialismo, como propaga a mídia capitalista,<br />
mas sim da absolutização de sistemas ideológicos. Desabam, com<br />
a herança estalinista, todas as estratégias de hegemonização da cultura, e<br />
a própria idéia de “evolução cultural”. Não há culturas superiores, há culturas<br />
distintas. Agonizam as versões totalizadoras em todos os terrenos da<br />
produção de <strong>se</strong>ntido - político, econômico e religioso.<br />
Quem pretender ignorar os sinais dos tempos terá<br />
de apelar ao autoritarismo para infundir temor. A mais de 500 anos da<br />
chegada de Colombo às Américas - uma invasão genocida que alguns chamam<br />
de “encontro de culturas” - convém relembrar es<strong>se</strong>s conceitos antropológicos.<br />
E agora a democracia impregna também a cultura. Cada homem<br />
e mulher, grupo étnico ou racial, descobre que pode <strong>se</strong>r produtor do<br />
próprio <strong>se</strong>ntido de sua vida. O difícil é respeitar isso como valor, sobretudo<br />
nós, cristãos, que ainda não sabemos distinguir Jesus Cristo do arcabouço<br />
judaico e greco-romano que o reveste e tanto favorece o eurocentrismo<br />
eclesiástico.<br />
Felizmente, o próprio Jesus nos ensina a diferença entre<br />
imposição e revelação. Impõe-<strong>se</strong> pervertendo a natureza do poder (Mateus<br />
23, 1-12). Mas revelação significa “tirar o véu”: <strong>se</strong>r capaz de captar<br />
os fragmentos culturais de cada povo e reconhecer as primícias evangélicas<br />
aí contidas, como afirmou o Concílio Vaticano II.<br />
Aliás, Deus não fala latim. Prefere a linguagem do amor e da<br />
justiça. E es<strong>se</strong> dialeto toda cultura incorpora e entende.<br />
Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura<br />
militar brasileira (Rocco), entre outros livros.<br />
Fidel Castro<br />
Resposta ridícula<br />
A UmA deRRoTA<br />
Chegaram notícias das agências com a estranha informação<br />
de que duas pessoas apo<strong>se</strong>ntadas, com mais de 70 anos, foram presas<br />
acusadas de ter espionado durante 30 anos para o governo de Cuba.<br />
São Walter Kendall Myers e sua esposa, Gwendolyn Steingraber<br />
Myers. Acrescenta-<strong>se</strong> que o primeiro trabalhou como especialista<br />
de assuntos europeus e que em 1995, vieram a Cuba e foram recebidos por<br />
mim. Durante es<strong>se</strong> tempo, reuni-me com milhares de norte-americanos,<br />
individualmente ou em grupos, às vezes de várias centenas, como os estudantes<br />
do Projeto Semestre no Mar. Assim, mal poderia lembrar de uma<br />
reunião com duas pessoas. A acusação especifica que o casal recebeu condecorações,<br />
mas que nunca procurou dinheiro ou benefícios.<br />
Posso as<strong>se</strong>gurar que, por uma questão de princípios, jamais<br />
torturamos nem pagamos a ninguém para obter informação alguma. Aqueles<br />
que, de alguma maneira, contribuíram para a proteção da vida de cubanos,<br />
diante dos planos terroristas de governos dos Estados Unidos, o fizeram<br />
por imperativos de suas próprias consciências.<br />
O que mais chama a atenção é que essa notícia foi divulgada<br />
24 horas depois da derrota sofrida pela diplomacia dos Estados Unidos<br />
na As<strong>se</strong>mbleia Geral da OEA. Se essas pessoas estavam sob controle,<br />
pois agentes do FBI as enganaram fingindo <strong>se</strong>r espiões cubanos, por que<br />
não foram presas antes?<br />
Agora começará o jogo da pretensa justiça contra duas pessoas<br />
trituradas moralmente de antemão com acusações que predeterminam<br />
a conduta do júri, que deverá decidir <strong>se</strong> são culpadas ou inocentes. Com<br />
certeza, não receberão o tratamento amável dado aos terroristas recrutados<br />
pelo governo dos EUA para destruírem o avião da Cubana com todos<br />
os que viajavam nele e cometerem horrendos crimes contra o nosso povo,<br />
os quais, inclusive, violaram as leis dos Estados Unidos cometendo no <strong>se</strong>u<br />
próprio território numerosos atos terroristas execráveis.<br />
Já lançaram a campanha contra o casal. Foram apre<strong>se</strong>ntados<br />
como traidores que podem <strong>se</strong>r condenados a 35 anos de prisão, e permanecerão<br />
no cárcere até terem mais de 100 anos. Os promotores poderão<br />
fazer suas habituais manobras com fins políticos.<br />
Armaram toda esta tramoia depois que Obama tomou<br />
pos<strong>se</strong> da presidência dos Estados Unidos. Talvez tenham influído na detenção<br />
não apenas o tremendo fracasso sofrido em San Pedro Sula, mas também<br />
as notícias de contatos entre os governos dos Estados Unidos e Cuba<br />
sobre assuntos importantes de interes<strong>se</strong> comum.<br />
Uma notícia da ANSA já informou que Walter Kendall Myers<br />
declarou que tentou <strong>se</strong>r “muito prudente” na hora de obter e transmitir<br />
<strong>se</strong>gredos para Cuba.<br />
Outras publicações <strong>se</strong> referem a um diário confiscado de<br />
Gwendolyn. Se tudo isso for verdade, não deixarei de admirar sua conduta<br />
desinteressada e valente em relação a Cuba.<br />
Não acham bem ridícula essa história da espionagem<br />
cubana?<br />
Fidel Castro Ruz
Desde 1983, o conflito entre os rebeldes<br />
do sul do Sudão com as forças regulares<br />
do país matou aproximadamente<br />
1,5 milhão de pessoas até 2005, data da assinatura<br />
de um precário acordo de paz. A partir<br />
de 2003 entra em cena uma nova guerrilha na<br />
parte ocidental do território, Darfur, onde também<br />
o controle dos benefícios econômicos advindos<br />
do petróleo está na ba<strong>se</strong> das reivindicações<br />
autonomistas. Esta última etapa provocou<br />
mais de dois milhões de refugiados e 300 mil<br />
mortes, causados pela fome, doenças e pelos<br />
constantes ataques de milícias como os janjaweed,<br />
grupo supostamente apoiado pelo governo<br />
central do Sudão.<br />
O Ocidente alega que há um genocídio <strong>se</strong>ndo<br />
perpetrado por árabes brancos e muçulmanos<br />
alinhados ao poder em Cartum contra comunidades<br />
negras, cristãs e animistas em Darfur.<br />
Mas outros interes<strong>se</strong>s, que não propriamente<br />
humanitários, podem estar em jogo por trás<br />
dessas manifestações de repúdio e indignação e<br />
das resoluções que vem <strong>se</strong>ndo tomadas.<br />
O maior país da África é rico em petróleo,<br />
tem um governo de predomínio muçulmano e<br />
encontra-<strong>se</strong> em um cenário de rivalidades entre<br />
potências e compromissos neocoloniais da<br />
França, do Reino Unido e dos EUA.<br />
O que diferencia a política deste governo da<br />
de <strong>se</strong>us vizinhos, que também utilizam a violência<br />
contra civis para deter forças de<strong>se</strong>stabilizadoras,<br />
é que este tenta manter-<strong>se</strong> numa posição<br />
mais independente nas negociações pela exploração<br />
de <strong>se</strong>us recursos naturais e ambiciona <strong>se</strong>r<br />
uma potência petroleira. Aspiração que hoje só é<br />
possível pela diversificação dos investimentos no<br />
país e em particular pela incursão da China.<br />
A crescente influência do gigante asiático é<br />
provavelmente a principal razão para que a União<br />
Européia e os EUA trabalhem juntos na África.<br />
Se por um lado o imperialismo francês perdeu<br />
qua<strong>se</strong> todas as batalhas contra os EUA e<br />
viu-<strong>se</strong> obrigado a capitular, por outro a Total<br />
Fina ELF (grupo petrolífero francês) é praticamente<br />
o único concorrente dos chine<strong>se</strong>s no Sudão.<br />
As companhias norte-americanas não podem<br />
participar dos novos contratos petrolíferos<br />
Daniela Baudouin<br />
Ingerência da França no<br />
conflito do Sudão<br />
Vários programas europeus mantêm mais de <strong>se</strong>is mil soldados<br />
naquela região, que é rica em petróleo e vive clima de guerra civil<br />
devido ao embargo imposto, em 1996, ao país.<br />
Assim, Paris mantém a ilusão de participar<br />
das grandes disputas mundiais no único continente<br />
onde ainda tem certa influência.<br />
O Ocidente empreende então uma ação composta<br />
na região, que não exclui rivalidades,<br />
como o caso da França e EUA, destinada a restringir<br />
o poder da China, favorecendo a <strong>se</strong>cessão<br />
das distintas províncias, a destruição do Estado<br />
e a instalação de um caos onde o poder<br />
<strong>se</strong>ria ditado por bandos armados que <strong>se</strong> beneficiariam<br />
das exportações, como acontece com o<br />
ópio no Afeganistão.<br />
O conflito <strong>se</strong> expande aos paí<strong>se</strong>s vizinhos do<br />
Sudão, 200 mil pessoas <strong>se</strong> refugiam no Chade<br />
e as fronteiras porosas permitem incursões armadas<br />
de um lado ao outro. O presidente des<strong>se</strong><br />
país, Idriss Débry, no poder desde o golpe militar<br />
de 1990, patrocina os rebeldes de Darfur,<br />
principalmente o JEM, e enfrenta no <strong>se</strong>u território<br />
um grupo apoiado por Cartum.<br />
A França (ex-potência colonial do Chade) que<br />
dá apoio logístico ao exército do ditador chadiano<br />
como parte de um acordo de cooperação militar<br />
com o país (acordos que remontam a 1976) é<br />
acusada pelo Sudão de enviar armas aos rebeldes<br />
de Darfur através des<strong>se</strong> país fronteiriço.<br />
O regime do Chade também recebe financiamentos<br />
da União Europeia. Um dos empréstimos,<br />
obtido junto ao BEI (Banco Europeu de Investimentos)<br />
que <strong>se</strong>ria utilizado para financiar<br />
projetos de infraestrutura e de proteção ao meio<br />
ambiente, foi destinado pelo presidente ao orçamento<br />
militar.<br />
Há diversas forças de paz da União Europeia<br />
com grande contingente de soldados france<strong>se</strong>s<br />
atuando ali. O corpo expedicionário europeu,<br />
Eufor, instaurado em 2008, com 3,7 mil<br />
soldados (dos quais 1.650 france<strong>se</strong>s), foi enviado<br />
ao Chade para proteger os refugiados vindos<br />
do Sudão e responde tanto a considerações<br />
humanitárias como à preocupação dos ocidentais<br />
de criar uma fortaleza estratégica no centro<br />
da África.<br />
As tropas não são consideradas i<strong>se</strong>ntas no<br />
conflito com o Sudão já que a França tinha um<br />
contingente de dois mil homens e de aparelhos<br />
novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
de caça e helicópteros no quadro de um outro<br />
dispositivo militar, a força Epervier.<br />
Outro programa criado pela França que opera<br />
na África há aproximadamente dez anos é o<br />
Recamp (Reforço das Capacidades Africanas de<br />
Manutenção da Paz), dirigido com o propósito de<br />
associar terceiros (África, Europa, ONU) às suas<br />
incursões militares e de dividir custos e responsabilidades<br />
con<strong>se</strong>rvando o controle das operações.<br />
O governo francês não con<strong>se</strong>guiu, ainda, com<br />
que <strong>se</strong>u projeto de corredor humanitário, que<br />
partiria do Chade e adentraria o território sudanês<br />
em direção a Darfur, triunfe. Uma vez que<br />
<strong>se</strong>ria necessária uma força armada para proteger<br />
as agências humanitárias, tal ajuda <strong>se</strong>ria tão<br />
somente uma desculpa enganosa para uma verdadeira<br />
invasão militar.<br />
Mas, na verdade, desde que Colin Powell, em<br />
2004, lançou a campanha política contra o Sudão<br />
acusando-o de genocídio e incluindo-o na<br />
lista dos “paí<strong>se</strong>s perigosos”, o projeto de intervenção<br />
militar-humanitária estava instaurado<br />
de modo inquestionável e oficial.<br />
O novo humanitarismo <strong>se</strong>letivo (“humanismo<br />
armado“ nas palavras de Noam Chomsky)<br />
das potências mundiais, que fustigam o Sudão,<br />
mas recompensam regimes autoritários como o<br />
do chadiano Idriss Débry, <strong>se</strong> mostra pouco consistente<br />
perante o peso da China, que proporciona<br />
investimentos abundantes <strong>se</strong>m uma contrapartida<br />
política.<br />
O denominado “direito de ingerência“, que<br />
já gozou de prestígio entre políticos e intelectuais,<br />
é atualmente muito criticado por diversos<br />
governos, e as ONGs que operam em regiões de<br />
conflito estão <strong>se</strong>ndo consideradas como a vanguarda<br />
de uma nova era de recolonização.<br />
Por isso não surpreende que perante a decisão<br />
inédita do Tribunal Penal Internacional de emitir<br />
um mandado de captura contra o presidente<br />
do Sudão, Omar Al-Bashir, por crimes de guerra<br />
e crimes contra a humanidade, o chefe de estado<br />
sudanês tenha decidido dar ordem de expulsão a<br />
diversas agências de ajuda humanitária.<br />
Daniela Baudouin é editora da Casa das Áfricas.<br />
www.casadasafricas.org.br<br />
junho 2009 caros amigos<br />
33
34<br />
oficializada por decreto presidencial em 16<br />
de abril, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação<br />
tornou-<strong>se</strong> realidade, principalmente<br />
a partir da pressão de movimentos e organizações<br />
sociais ligadas à pauta da democratização da<br />
comunicação. Mas, apesar de simbolizar uma conquista,<br />
a Confecom nasce marcada por particularidades<br />
que podem comprometer avanços reais em<br />
um campo que ainda carece de regulamentação e<br />
de políticas democratizantes.<br />
As diferenças em relação a <strong>se</strong>tores que realizam<br />
conferências há mais tempo são significativas,<br />
como a grande pre<strong>se</strong>nça de empresários na comissão<br />
organizadora, a demora do governo em compor<br />
suas instâncias organizativas e colocá-las para<br />
funcionar, e mais recentemente, um corte drástico<br />
em <strong>se</strong>u orçamento.<br />
Outro desafio é mobilizar a sociedade para a discussão<br />
de uma pauta que parece naturalizada, em<br />
um <strong>se</strong>tor que não possui organização popular consolidada<br />
como as áreas de saúde e educação. As<br />
Conferências de Saúde, por exemplo, que têm peso<br />
político maior que o próprio Ministério. Em 1986,<br />
sua 8ª edição construiu um conjunto de políticas<br />
que de<strong>se</strong>mbocou na criação do Sistema Único de<br />
Saúde, o SUS, referência mundial. Realizadas de<br />
quatro em quatro anos, têm caráter vinculativo, ou<br />
<strong>se</strong>ja, suas deliberações guiam a implantação de políticas<br />
públicas, além de contar com uma porcentagem<br />
muito menor de empresários em suas instâncias<br />
organizativas, cerca de 25%. Nos anos em que<br />
não ocorrem, os con<strong>se</strong>lhos não deixam de atuar.<br />
Incertezas<br />
Ainda há muita incerteza cercando a 1ª Confecom.<br />
Qua<strong>se</strong> três me<strong>se</strong>s após o decreto que a institu,<br />
a Comissão Organizadora <strong>se</strong> reuniu poucas vezes e<br />
somente em junho o calendário foi definido. Questões<br />
como regimento interno, temário e eleição de<br />
delegados ainda estão pendentes.<br />
De concreto, está definido que a Conferência<br />
Nacional, cujo tema é Comunicação: meios para a<br />
caros amigos julho 2009<br />
Ana Maria Straube<br />
O que esperar<br />
da Conferência Nacional de Comunicação<br />
A primeira conferência do <strong>se</strong>tor começa a sair do papel enfrentando<br />
problemas como a pre<strong>se</strong>nça maciça de empresários na organização<br />
e desinteres<strong>se</strong> do governo federal<br />
construção de direitos e de cidadania na era digital,<br />
<strong>se</strong>rá realizada no período de 01 a 03 de dezembro<br />
de 2009, em Brasília. As etapas preparatórias,<br />
chamadas de conferências livres, têm caráter mobilizador<br />
e devem acontecer até 31 de agosto. Já as<br />
municipais e estaduais, são eletivas e devem <strong>se</strong>r realizadas<br />
até 31 de outubro.<br />
“A Conferência de Comunicação vai <strong>se</strong>r a única<br />
construída em <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s. Como a sociedade já<br />
está fazendo debate, achamos que vamos con<strong>se</strong>guir<br />
participar de forma tranqüila, mas todas as outras<br />
questões de infra-estrutura, material e recursos<br />
podem atrasar es<strong>se</strong> processo”, diz Carolina Ribeiro,<br />
do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação<br />
Social.<br />
A Comissão Organizadora, definida em 20 de<br />
abril pelo Ministério das Comunicações, é composta<br />
por 28 membros, <strong>se</strong>ndo 12 do poder público, com<br />
oito indicados pelo Executivo e quatro pelo Congresso<br />
Nacional, e 16 da sociedade.<br />
O Executivo está repre<strong>se</strong>ntado pela Casa Civil e<br />
ministérios das Comunicações, Ciência e Tecnologia,<br />
Cultura, Educação e Justiça, pela Secretaria de<br />
Comunicação Social e pela Secretaria-Geral da Presidência<br />
da República. Enquanto cada órgão do governo<br />
indicará um membro, Câmara e Senado poderão<br />
indicar dois cada um.<br />
Das 16 vagas de repre<strong>se</strong>ntantes da sociedade,<br />
oito foram ocupadas por entidades repre<strong>se</strong>ntativas<br />
do empresariado: Associação Brasileira de Emissoras<br />
de Rádio e Televisão (ABERT), Associação Brasileira<br />
de Radiodifusores (ABRA), Associação Brasileira<br />
de Provedores Internet (ABRANET), Associação<br />
Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), Associação<br />
dos Jornais e Revistas do Interior do Brasil (ADJORI<br />
BRASIL), Associação Nacional de Editores de Revistas<br />
(ANER), Associação Nacional de Jornais (ANJ)<br />
e Associação Brasileira de Telecomunicações (TE-<br />
LEBRASIL).<br />
As outras oito cadeiras <strong>se</strong>rão preenchidas por<br />
uma entidade ligada às emissoras públicas educativas<br />
estatais, Associação Brasileira das Emis-<br />
soras Públicas, Educativas e Culturais (ABEPEC),<br />
pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), pelo<br />
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social,<br />
pelo Fórum Nacional pela Democratização da<br />
Comunicação (FNDC), Associação Brasileira de Canais<br />
Comunitários (ABCCOM), Associação Brasileira<br />
de Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO), Federação<br />
Nacional dos Jornalistas (FENAJ) e Federação<br />
Interestadual dos Trabalhadores de Empresas de Radiodifusão<br />
e Televisão (FITERT).<br />
A composição da Comissão Organizadora Nacional<br />
causou polêmicas entre os movimentos e organizações<br />
da sociedade civil envolvidos no debate,<br />
pois além da repre<strong>se</strong>ntação empresarial exagerada<br />
– o <strong>se</strong>tor tem peso <strong>se</strong>melhante, ou maior, do que a<br />
repre<strong>se</strong>ntação social (considerando que as entidades<br />
como ABEPEC e ABCCOM não são exatamente<br />
sociedade civil organizada), falta em sua composição<br />
entidades que não tenham a comunicação como<br />
pauta prioritária (somente a CUT não trabalha diretamente<br />
com o tema), entidades ligadas à academia<br />
ou mesmo repre<strong>se</strong>ntação estudantil.<br />
Além disso, o Ministério ignorou a proposta de<br />
composição apre<strong>se</strong>ntada ao governo pela Comissão<br />
Nacional Pró-Conferência (CNPC), espaço construído<br />
por 30 entidades da sociedade civil em 2008,<br />
para debater e pressionar pela realização da atividade.<br />
Em janeiro, durante o Fórum Social Mundial<br />
de Belém, o presidente Lula declarou que a Confecom<br />
<strong>se</strong>ria realizada ainda em 2009. A partir disso, a<br />
Comissão Nacional Pró-Conferência debateu internamente<br />
uma proposta de composição da Comissão<br />
Organizadora, também referendada pelas comissões<br />
que <strong>se</strong> formaram nos estados. Um processo de interlocução<br />
com a CNPC foi criado pelo governo, mas<br />
não chegou a <strong>se</strong>r concluído.<br />
Para Carolina, do Intervozes, há uma super repre<strong>se</strong>ntação<br />
do <strong>se</strong>tor empresarial enquanto a sociedade<br />
civil não está bem repre<strong>se</strong>ntada, não há<br />
mulheres ou negros, por exemplo. “O Intervozes<br />
saudou o decreto, mas criticou a composição e a<br />
forma de definição dos nomes. Nossa proposta era
de 33% para o poder público, 16%, para o <strong>se</strong>tor empresarial,<br />
6,5% para mídia pública, 3% para academia<br />
e sociedade civil com o resto, cerca de 40%. A<br />
proposta final excluiu a academia e empresários ficaram<br />
em maioria”, afirma.<br />
Houve problemas também com as escolhas dos<br />
repre<strong>se</strong>ntantes do Legislativo. A Câmara indicou<br />
apenas um titular, o deputado Paulo Bornhau<strong>se</strong>n<br />
(DEM-SC), quando podia ter indicado dois, fazendo<br />
com que a deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que<br />
fez parte das articulações ao lado dos movimentos<br />
sociais e da CNPC desde <strong>se</strong>u início, fos<strong>se</strong> preterida<br />
e colocada como suplente junto com Milton Monti<br />
(PR-SP), Cida Diogo (PT-RJ) e Eduardo Valverde<br />
(PT-RO). O Senado é repre<strong>se</strong>ntado por Wellington<br />
Salgado (PMDB-MG) e Flexa Ribeiro (PSDB-PA) titulares,<br />
e Lobão Filho (PMDB-MA) e ACM Júnior<br />
(DEM-BA) como suplentes.<br />
Outra surpresa foi a questão do orçamento. O<br />
Governo Federal decretou, em 11 de maio, um corte<br />
de 82% no orçamento previsto para a realização<br />
da Confecom. A verba prevista era de R$ 8,2 milhões<br />
e caiu para R$ 1,6 milhão. Segundo a deputada<br />
Luiza Erundina, em entrevista ao Ob<strong>se</strong>rvatório<br />
do Direito à Comunicação, “o valor definido na Lei<br />
Orçamentária de 2009 já era resultado de uma redução<br />
em relação à emenda proposta pela Comissão<br />
de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática<br />
da Câmara (CCTCI). Inicialmente eram R$ 10<br />
milhões. Nas discussões, reduziram para R$ 8,2 milhões,<br />
com uma verba complementar aí de R$ 300<br />
mil, totalizando R$ 8,5 milhões”. Marcelo Bechara,<br />
consultor jurídico do Ministério das Comunicações,<br />
afirma, na mesma matéria do Ob<strong>se</strong>rvatório, que há<br />
possibilidade de recomposição do orçamento. “Não<br />
acredito que este corte vá <strong>se</strong> manter. É uma decisão<br />
do presidente Lula realizar a Conferência, que<br />
só ocorrerá <strong>se</strong> as<strong>se</strong>gurado o montante suficiente de<br />
recursos por parte do governo federal”, afirma.<br />
Interes<strong>se</strong>s cOnflItantes<br />
Como era de <strong>se</strong> esperar, muitos interes<strong>se</strong>s e visões<br />
conflitantes estão colocados para a realização da 1ª<br />
Confecom, principalmente no que tange à disputa de<br />
posições entre empresários e sociedade civil.<br />
Para Carolina, do Intervozes, <strong>se</strong>ria importante<br />
que a Conferência <strong>se</strong> debruças<strong>se</strong> sobre os meios (TV,<br />
rádio, internet, jornal, cinema) e suas questões especificas<br />
que precisam <strong>se</strong>r regulamentadas e sobre<br />
questões transversais, não específicas dos meios,<br />
mas que precisam <strong>se</strong>r contempladas como concessões,<br />
espectro, agência reguladoras, propriedade<br />
intelectual, direito autoral, propriedade dos meios,<br />
universalização, políticas de fomento e acesso. “Há<br />
também a necessidade de discutir a cadeia produtiva,<br />
que aponta para o debate de convergência. No<br />
futuro, não vai existir TV como é hoje, vai haver<br />
conteúdo, produção, recepção e isso necessita de regulamentação”,<br />
coloca.<br />
Celso Schröder, coordenador-geral do Fórum<br />
Nacional pela Democratização da Comunicação<br />
(FNDC) e repre<strong>se</strong>ntante da Federação Nacional dos<br />
Jornalistas (FENAJ) na Comissão Organizadora,<br />
considera importante que os debates não fiquem<br />
restritos a fazer um diagnóstico do <strong>se</strong>tor das comu-<br />
nicações. Para isso, considera positiva a inclusão<br />
de empresários na construção da Conferência. Para<br />
ele, é necessário atualizar a legislação voltada para<br />
o tema, que é antiga e não contempla as novas tecnologias.<br />
“Apesar de isso ter sido feito por meio de<br />
políticas públicas em outros <strong>se</strong>tores, na comunicação<br />
o país não con<strong>se</strong>guiu implementar políticas democratizadoras,<br />
como aconteceu em outros lugares”,<br />
diz. Schröder cita o caso dos Estados Unidos,<br />
onde a propriedade cruzada dos meios e a criação<br />
das cadeias é controlada. “Para o FNDC é importante<br />
superar os diagnósticos e elencar os dis<strong>se</strong>nsos entre<br />
sociedade civil e empresariado”.<br />
Tanto Carolina como Schröeder concordam que<br />
a questão da convergência tecnológica impõe desafios<br />
para os empresários do <strong>se</strong>tor e apontam para<br />
uma necessidade de regulamentação. O termo convergência<br />
diz respeito às novas tecnologias que fazem<br />
com que a produção e distribuição de conteúdo<br />
não <strong>se</strong>ja mais monopólio da radiodifusão. Com<br />
a implantação da interatividade proporcionada pela<br />
TV digital e com a possibilidade de difusão de informação<br />
por telefones celulares, os meios tradicionais<br />
tendem a <strong>se</strong> transformar.<br />
Eduardo Parajo, presidente da Associação Brasileira<br />
de Provedores de Internet (ABRANET), não vê<br />
necessidade de mudança na legislação atual, mas<br />
considera importante que o <strong>se</strong>tor que repre<strong>se</strong>nta<br />
participe da Conferência e acompanhe o processo.<br />
“Precisamos ter voz para ver <strong>se</strong> as mudanças propostas<br />
<strong>se</strong>rão favoráveis. Já há legislação e contratos<br />
estabelecidos, temos de <strong>se</strong>r cautelosos”, afirma.<br />
Decidido, afirma que a entidade pretende verificar<br />
como o processo vai <strong>se</strong> comportar, para defender os<br />
interes<strong>se</strong>s do <strong>se</strong>tor. “Precisamos pre<strong>se</strong>rvar o mercado<br />
de internet, que foi construído por anos”.<br />
Já Frederico Nogueira, vice-presidente da Associação<br />
Brasileira de Radiodifusores (ABRA), que reúne<br />
a TV Bandeirantes e Rede TV, diz estar aberto<br />
à todas as possibilidades. “Damos total apoio à realização<br />
da Conferência e ao diálogo com a sociedade<br />
civil. Espero que <strong>se</strong>ja um grande debate e não<br />
um bate-boca”, afirma. Segundo ele, o objetivo da<br />
ABRA é a defesa dos interes<strong>se</strong>s nacionais e a discussão<br />
à restrição ao conteúdo estrangeiro: “Só brasileiros<br />
podem produzir conteúdo”, coloca.<br />
A restrição ao conteúdo estrangeiro é um dos pontos<br />
de atrito entre teles e radiodifusores, assim como o<br />
financiamento e participação de capital internacional.<br />
Flávio Cavalcanti Júnior, diretor de relações com associados<br />
e entidades da Associação Brasileira de Rádio<br />
e Televisão (ABERT), vai no mesmo <strong>se</strong>ntido. Para ele,<br />
é necessário que a Conferência discuta alguma forma<br />
de proteção ao conteúdo nacional. “Gostaria que fos<strong>se</strong><br />
discutido igualdade de direitos e deveres, isonomia<br />
para produção e distribuição de conteúdo. A TV aberta<br />
tem restrições, a TV a cabo não vai ter? Qual é a<br />
diferença do conteúdo gerado em telefone e TV aberta?<br />
Nós somos submetidos à classificação indicativa.<br />
E o conteúdo distribuído por celular? Essas coisas estão<br />
iguais e o quadro precisa <strong>se</strong>r rediscutido”, aponta.<br />
Segundo Cavalcanti, a ABERT defende que haja<br />
somente capital nacional na radiodifusão. Para ele, a<br />
concorrência com o capital estrangeiro nas teles pode<br />
ameaçar a produção nacional.<br />
novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
MObIlIzaçãO<br />
A partir de uma correlação de forças desfavorável,<br />
resta à sociedade civil organizada tentar mobilizar<br />
<strong>se</strong>us pares para interferir nas etapas municipais<br />
e estaduais da Conferência. Schröder acredita que o<br />
peso dos empresários não deve <strong>se</strong>r tão <strong>se</strong>ntido nas<br />
etapas eletivas, que <strong>se</strong>rão marcadas por diversidade<br />
e pluralidade de vozes e participação. Além disso, ele<br />
defende que os principais debates não devem <strong>se</strong>r feitos<br />
dentro da CO, mas nas Conferências em si. “Não<br />
podemos transformar a CO na Conferência sob o risco<br />
de empobrecer o debate, a comissão <strong>se</strong>rve apenas<br />
para viabilizar o evento”, coloca. Com uma visão não<br />
tão otimista, João Brant, do Intervozes, coloca que<br />
é necessário ampliar o número de atores para tentar<br />
diminuir o espaço do mercado, mas pondera que é<br />
inocência achar que existe a possibilidade de construir<br />
acordos com os empresários, pois “há conflito<br />
no modelo”.<br />
Em relação ao governo, os movimentos enxergam<br />
resistência e ambigüidade. Não <strong>se</strong> sabe ainda qual posição<br />
<strong>se</strong>rá tomada em relação às divisões entre os empresários,<br />
mas essa dúvida sobre como fazer a mediação<br />
torna o momento interessante para a realização da<br />
Conferência. Para a deputada Luiza Erundina “há uma<br />
enorme má vontade e uma indisposição para a realização<br />
da Conferência. O atraso na convocação e a falta<br />
de esforços para agilizar o processo nos estados já é<br />
um fator muito negativo, agora es<strong>se</strong> corte pode comprometer<br />
as expectativas da sociedade civil.”<br />
Para Brant “é preciso mapear o quanto con<strong>se</strong>guiremos<br />
intervir, mas fica claro que não devemos concentrar<br />
essa discussão apenas entre especialistas. Es<strong>se</strong><br />
é exatamente o intuito da Comissão Nacional Pró-<br />
Conferência, <strong>se</strong> consolidar como o espaço da sociedade<br />
civil para interferir no processo e aglutinar a maior<br />
quantidade de movimentos e organizações.”<br />
Outro papel da CNPC é centralizar e estimular o<br />
diálogo com os estados que realizarão Conferências.<br />
Até agora, há comissões organizadas em 23 estados<br />
e propostas como a da Comissão Paulista, que pretende<br />
montar uma caravana de formação sobre o<br />
tema para percorrer o interior do estado estimulando<br />
a construção das atividades municipais.<br />
Para Schröder, está claro que a 1ª edição da Confecom<br />
não con<strong>se</strong>guirá discutir todos os temas e atingir<br />
todos os objetivos do movimento de comunicação,<br />
mas <strong>se</strong>rá um passo interessante ao significar a<br />
construção de uma agenda que aponte para debates<br />
futuros. “A pauta não <strong>se</strong> esgota com essa Conferência.<br />
Trata-<strong>se</strong> da primeira edição e deve <strong>se</strong>r vista<br />
como tal. O processo <strong>se</strong>rá enriquecedor em si mesmo.<br />
Vamos ter agendas legais e regulamentação no que<br />
for possível e debates futuros para próximas agendas”.<br />
Para Brant, não é o caso de deslegitimar o espaço<br />
ao constatar que a correlação de forças não é favorável<br />
aos <strong>se</strong>tores mais progressistas. Segundo ele,<br />
“o caminho oficial é um ponto do processo, a construção<br />
de uma plataforma comum não é só para a<br />
Conferência”, diz, apontando um caminho que pode<br />
significar o tão necessário fortalecimento do movimento<br />
nacional pela democratização e pelo direito à<br />
comunicação.<br />
Ana Maria Straube é jornalista.<br />
junho 2009 caros amigos<br />
35
36<br />
Unidade misteriosa esconde<br />
jovens infratores<br />
Criada em 2006, a prisão-hospício é um depósito do Judiciário onde<br />
estão internados os casos considerados perigosos devido ao diagnóstico<br />
de “transtorno antissocial”. Foto Jesus Carlos/Imagemlatina<br />
<strong>se</strong> Roberto Aparecido Alves Cardoso não<br />
fos<strong>se</strong> interno da Unidade Experimental de<br />
Saúde (UES), no Belém, em São Paulo, qua<strong>se</strong><br />
nada <strong>se</strong> saberia do lugar. Digitando o nome da<br />
instituição no Google, 1.022 ocorrências aparecem,<br />
a maioria sobre o dia em que o jovem foi encaminhado<br />
para lá.<br />
Roberto Alves Aparecido Cardoso, mais conhecido<br />
como Champinha, foi um dos acusados pelo assassinato<br />
do casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé,<br />
na cidade de Embu Guaçu, em São Paulo, no ano de<br />
2003. Os jovens, que eram estudantes do São Luiz,<br />
colégio da burguesia paulistana, namoravam e foram<br />
acampar durante o feriado <strong>se</strong>m que suas famílias<br />
soubes<strong>se</strong>m.<br />
Em um primeiro momento foram dados como desaparecidos,<br />
mas dias depois o mistério <strong>se</strong> revelou: o<br />
casal foi <strong>se</strong>questrado por moradores da região. Felipe<br />
foi morto com um tiro de espingarda disparado por<br />
Paulo César da Silva Marques, o Pernambuco. Liana<br />
foi mantida em cárcere privado <strong>se</strong>ndo estuprada<br />
e torturada, até <strong>se</strong>r morta a facadas por Champinha.<br />
Todos que fizeram parte do crime foram conde-<br />
caros amigos julho 2009<br />
Camila Martins<br />
nados - além dos já citados participaram do estupro<br />
Antônio Caetano, Antônio Matias e Agnaldo Pires.<br />
Champinha, na época com 16 anos, foi levado para<br />
a Febem, hoje Fundação Casa, para cumprir os três<br />
anos previsto pelo ECA, Estatuto da Criança e do<br />
Adolescente, em medida socioeducativa.<br />
Um dos poucos links que aparecem no Google,<br />
e não ligam Champinha à UES, é do próprio site da<br />
Fundação Casa. O conteúdo, do ano de 2006, informa<br />
sobre a construção da Unidade. A proposta era<br />
criar na cidade de São Paulo um sistema de referência<br />
no tratamento de jovens que cumprem medida<br />
socioeducativa e apre<strong>se</strong>ntam distúrbios psicológicos,<br />
através da parceria entre Fundação Casa (na<br />
época FEBEM), a ONG Santa Fé e a Universidade<br />
Federal de São Paulo, que <strong>se</strong> responsabilizaria pelo<br />
tratamento psiquiátrico. Era um terreno com cinco<br />
casas, abrigando até oito jovens cada.<br />
“O que a gente escuta nos bastidores é que o Dr.<br />
Raul Gorayebe, professor de psiquiatria da Unifesp<br />
e idealizador do projeto, queria escolher tanto os<br />
profissionais quanto os jovens que iriam <strong>se</strong>r encaminhados<br />
para a Unidade, e a Fundação Casa não<br />
concordou. Com isso a parceria foi quebrada”, conta<br />
Fernanda Lavarello, con<strong>se</strong>lheira do Con<strong>se</strong>lho Regional<br />
de Psicologia de São Paulo.<br />
Com a parceria desfeita, e a obra concluída, a<br />
UES ficou <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s vazia.<br />
Champinha e a UeS<br />
Pouco antes de Champinha completar três anos<br />
da medida socioeducativa, e <strong>se</strong>r colocado em liberdade,<br />
o Ministério Público entrou com o processo<br />
para converter a medida socioeducativa em medida<br />
protetiva de tratamento psiquiátrico com contenção,<br />
o que garantiria sua permanecia na Fundação<br />
Casa até os 21 anos.<br />
Na iminência da <strong>se</strong>gunda medida <strong>se</strong> extinguir, o<br />
Estado entrou com pedido de interdição civil cumulada<br />
com internação hospitalar compulsória no Fórum<br />
de Embu Guaçu. A juíza expede uma liminar<br />
favorável ao Estado, pedindo a transferência de<br />
Champinha para a Casa de Custódia de Taubaté.<br />
A internação hospitalar compulsória, modalidade<br />
mais grave prevista pela lei 10.216/2001 da Reforma<br />
Psiquiátrica, não deriva de um crime, mas de
um laudo médico que constate a necessidade do internamento,<br />
independe da vontade da própria pessoa,<br />
ou de sua família.<br />
“Para es<strong>se</strong> tipo de internação, o artigo <strong>se</strong>xto da<br />
lei diz que é necessário fazer um laudo médico circunstanciado<br />
(naquela oportunidade), e isso não<br />
aconteceu, eles usaram os laudos feitos na ocasião<br />
da medida socioeducativa”, diz Daniel Adolpho Assis,<br />
do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e<br />
do Adolescente (CEDACA Interlagos), e advogado<br />
do jovem. Outra inconsistência que Daniel aponta<br />
na liminar, é que Champinha não poderia <strong>se</strong>r encaminhado<br />
para a Casa de Custódia de Taubaté por<br />
ele ainda estar sob respaldo do ECA, além de que a<br />
Casa de Custódia só recebe adultos que cometeram<br />
crimes e apre<strong>se</strong>ntam transtorno mental.<br />
Nes<strong>se</strong> meio tempo, Champinha foge da Fundação<br />
Casa, logo é pego e levado para a UES.<br />
a refUndação da UeS<br />
Depois de <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s vazia, a UES recebe <strong>se</strong>u interno<br />
mais famoso em maio de 2007. Em novembro<br />
des<strong>se</strong> mesmo ano o governador de São Paulo, José<br />
Serra, expede o decreto 52.419/2007, transferindo o<br />
imóvel da UES para a Secretaria de Saúde. Um Termo<br />
de Cooperação Técnica entre Saúde, Administração<br />
Penitenciária, e Fundação Casa firmava que a<br />
UES abrigaria adolescentes e jovens, autores de atos<br />
infracionais que cumpriram medida socioeducativa,<br />
e tiveram sua medida revertida em protetiva, já que<br />
apre<strong>se</strong>ntam diagnóstico de transtorno de personalidade<br />
antissocial, e/ou alta periculosidade.<br />
Segundo a juíza corregedora do DEIJ, Departamento<br />
das Execuções da Infância e da Juventude,<br />
Mônica Paukoaski, a saúde mental é um dos fatores<br />
importantes que fazem parte da trajetória de recuperação<br />
dos adolescentes autores de atos infracionais,<br />
já que es<strong>se</strong>s problemas interferem diretamente<br />
no resultado do processo sócio-educativo. “Os laudos<br />
do Imesc, Instituto de Medicina Social e Criminologia,<br />
apre<strong>se</strong>ntaram ao Judiciário a necessidade<br />
do jovem portador de transtorno mental (os mais<br />
comuns eram deficiência mental, esquizofrenia, e<br />
transtorno de personalidade) <strong>se</strong>r acompanhado em<br />
local adequado sob contenção”, completa.<br />
“Essa nova Unidade vai na contramão de todas<br />
as conquistas da luta antimanicomial e do ECA. O<br />
que eles fizeram foi um manicômio judicial para jovens”,<br />
diz Fernanda Lavarello, que também faz parte<br />
do Grupo Interinstitucional, que debate questões<br />
sobre criança, adolescente, justiça, e saúde mental.<br />
A luta antimanicomial é travada no Brasil desde<br />
a década de 1980, e sua principal conquista foi a<br />
aprovação da lei 10.216/2001, que garante ao portador<br />
de transtorno mental que a internação só <strong>se</strong>rá<br />
indicada depois que todos os recursos extra-hospitalares<br />
de tratamento <strong>se</strong> esgotarem.<br />
Segundo Maria Cristina Vicentin, professora do<br />
programa de pós-graduação em Psicologia Social da<br />
PUC-SP, a cidade de São Paulo colocou diversos impas<strong>se</strong>s<br />
durante o processo de construção da reforma<br />
de saúde mental, como o lobby dos hospitais psiquiátricos<br />
que visam interes<strong>se</strong>s mercadológicos na saúde.<br />
Para ela, a relação entre periculosidade e loucura<br />
é construída no começo do século 19, por psiquiatras<br />
que entendiam a sua ciência como aquela capaz de<br />
identificar a dimensão mais íntima do sujeito capaz<br />
de emergir a qualquer momento. “Depois da Segunda<br />
Guerra Mundial profissionais dos diversos campos <strong>se</strong><br />
juntaram para fazer a desconstrução dessa ideia, respaldados<br />
por estudos epidemiológicos e estatísticos<br />
que mostram que não existe proporcionalmente um<br />
número maior de pessoas com transtorno mental que<br />
cometem atos infracionais, assim os loucos cometem<br />
tantos crimes como os ditos normais.”<br />
Em uma pesquisa feita entre os anos de 2005 e<br />
2006, antes da inauguração da UES, a professora<br />
apontava para o fenômeno de psiquiatrização do jovem<br />
autor de ato infracional, um modo de gestão que<br />
usa o transtorno mental para provocar mecanismos<br />
de <strong>se</strong>gregação e ampliação do tempo de internação.<br />
Outro fator identificado é a volta do diagnóstico de<br />
transtorno de personalidade antissocial. “Foi o caso do<br />
Roberto (Champinha) que trouxe isso, pois a mídia e a<br />
opinião pública fizeram uma pressão tão grande que,<br />
ou <strong>se</strong> revia a maioridade penal, ou aumentaria o tempo<br />
de internação, que é um projeto em andamento.<br />
Mas, como nada saiu do papel, utilizar os mecanismos<br />
de internação psiquiátrica, foi o jeitinho que eles deram<br />
para driblar a lei”, explica Maria Cristina.<br />
TranSTorno anTiSSoCial<br />
Entre os transtornos de personalidade identificados<br />
pelo Imesc está a personalidade antissocial, “na<br />
maioria dos casos não havia diagnóstico fechado,<br />
mas que o jovem apre<strong>se</strong>ntava traços de tal personalidade”,<br />
conta a juíza Mônica Paukoaski.<br />
O diagnóstico de transtorno de personalidade<br />
antissocial é questionado por algumas áreas da psicologia,<br />
apesar de constar na Classificação Internacional<br />
de Doenças Mentais.<br />
Segundo Fernanda Lavarello, é a análi<strong>se</strong> de um<br />
comportamento que foi externalizado a partir de<br />
um ato de transgressão, negando toda a historicidade<br />
do sujeito e o fato de o crime <strong>se</strong>r produto de<br />
vulnerabilidade social. “O cometimento de um ato<br />
infracional não implica no cometimento de transgressões<br />
futuras, ninguém tem bola de cristal para<br />
prever o que vai acontecer.”<br />
Depois do Termo de Cooperação Técnica assinado,<br />
mais cinco jovens foram encaminhados para a<br />
Unidade Experimental de Saúde, todos com o mesmo<br />
diagnóstico: transtorno de personalidade antissocial<br />
e alto grau de periculosidade.<br />
E a juíza Mônica Paukoaski alerta: “Apesar de <strong>se</strong><br />
tratar de questão polêmica, não foi o Judiciário que<br />
preconizou a necessidade de atendimento sob contenção,<br />
mas sim os médicos de órgão oficial do Estado.<br />
Além disso os jovens que <strong>se</strong> encontram hoje<br />
na UES não estão internados por determinação do<br />
DEIJ, mas foram interditados pela justiça comum.”<br />
No caso específico de Champinha, “ele foi pego<br />
como bode expiatório para inaugurar essa instância<br />
arbitrária e de exceção que a Justiça está utilizando.<br />
Todos os jovens que estão lá cometeram crimes contra<br />
pessoas da clas<strong>se</strong> média e alta em suas cidades<br />
de origem, que ganharam grande repercussão na mídia”,<br />
diz Daniel Adolpho. Este completa sua denúncia:<br />
“ninguém tem coragem de cumprir a lei e assinar<br />
pela libertação do Roberto porque ninguém quer<br />
enfrentar a opinião pública e o pai da Liana, que tem<br />
bastante influência financeira e política..”<br />
novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
A juíza Paukoaski rebate a crítica, “Se existe uma<br />
anomalia psíquica, e a área médica aponta isso, não<br />
podemos devolvê-los à sociedade <strong>se</strong>m o acompanhamento<br />
de uma equipe multidisciplinar.”<br />
Mas há outras irregularidades. Daniel Adolpho<br />
conta que não existe um regimento interno da Unidade,<br />
pois quem é internado não tem previsão do<br />
tempo de pena que irá cumprir, e que nenhum tratamento<br />
psíquico acontece no local. “O que o Roberto<br />
me conta é que mais ou menos a cada 15 dias vai<br />
um psicólogo lá, conversa um pouco com ele, pergunta<br />
<strong>se</strong> precisa de algum remédio, e só. Nem o jovem,<br />
nem o <strong>se</strong>u defensor público, podem ter acesso<br />
ao prontuário médico, violando mais uma vez a<br />
lei 10.216.”<br />
“Mesmo quem <strong>se</strong> diz defensor dos direitos humanos<br />
torce o nariz quando <strong>se</strong> fala sobre o caso do<br />
Roberto, mas é importante saber que quando ele<br />
fos<strong>se</strong> liberado não ia simplesmente sair da Fundação<br />
Casa. As psicólogas que acompanharam todo o<br />
processo dele já estavam articulando uma rede em<br />
outro Estado pro qual ele e toda a sua família mudariam.<br />
Eles entrariam no <strong>se</strong>rviço de proteção a testemunha,<br />
<strong>se</strong> necessário até mudariam de nome, com<br />
isso ele continuaria tendo um acompanhamento judicial”,<br />
explica Fernanda Lavarello.<br />
ningUém Sabe, ningUém viU.<br />
A as<strong>se</strong>ssoria de imprensa da Secretaria da Saúde<br />
foi procurada pela reportagem para falar sobre o<br />
assunto. A resposta: “O que temos a informar é que<br />
a decisão sobre a internação das pessoas atendidas<br />
na Unidade Experimental de Saúde é feita pela Justiça.<br />
A Secretaria de Estado da Saúde mantêm esta<br />
estrutura para atender pacientes encaminhados por<br />
decisão judicial.”<br />
Tanto os laudos periciais que encaminharam os<br />
<strong>se</strong>is jovens para a UES, quanto o tratamento psiquiátrico<br />
daqueles que cumprem medida socioeducativa<br />
na Fundação Casa são feitos pelo Nufor, Núcleo de<br />
Psiquiatria Foren<strong>se</strong> do Hospital das Clínicas. O coordenador<br />
do núcleo, Daniel Martins de Barros, respondeu<br />
por email:<br />
“O Nufor vem prestando assistência psiquiátrica<br />
apenas aos internos da Fundação Casa em unidades<br />
regulares da capital. A Unidade Experimental de Saúde<br />
não está sob responsabilidade da Fundação Casa,<br />
não fazendo parte do nosso escopo de assistência.”<br />
Também procuramos Vitor Manuel da Silva Monteiro,<br />
diretor da UES, mas um funcionário da administração<br />
informou que ele estava de férias fora do Brasil<br />
e não havia ninguém ocupando <strong>se</strong>u cargo nes<strong>se</strong> período,<br />
além de que nenhum funcionário estaria capacitado<br />
nem autorizado para falar com a imprensa.<br />
“A Unidade Experimental de Saúde desvirtuou-<strong>se</strong><br />
do <strong>se</strong>u caminho e não está funcionando da forma proposta<br />
pelo Judiciário, jamais uma unidade de saúde<br />
mental deve assumir feições de manicômio judiciário.<br />
O transtorno de personalidade antissocial é um diagnóstico<br />
sério que precisa <strong>se</strong>r enfrentado com responsabilidade.<br />
Jovens que contam com es<strong>se</strong> diagnóstico<br />
precisam de uma atenção especial, a idéia não é <strong>se</strong>gregar,<br />
mas acompanhar o jovem até que <strong>se</strong> obtenha algum<br />
avanço”, finaliza a juíza Mônica Paukoaski.<br />
Camila Martins é repórter.<br />
junho 2009 caros amigos<br />
37
38<br />
Em defesa dos interes<strong>se</strong>s privados e de olho nos lucros do pré-sal,<br />
parlamentares con<strong>se</strong>rvadores e a mídia neoliberal fustigam a estatal.<br />
Ilustração Latuff<br />
a<br />
maior empresa do país em valor de mercado<br />
resiste a mais um ataque das forças con<strong>se</strong>rvadoras.<br />
No centro de uma investigação, de<strong>se</strong>ncadeada<br />
por <strong>se</strong>nadores do PSDB e Democratas, a Petrobras<br />
parece não <strong>se</strong> preocupar com os resultados dos<br />
desdobramentos da CPI proposta pelo <strong>se</strong>nador tucano<br />
Álvaro Dias, e mantém o ritmo de trabalho.<br />
Os investimentos projetados para os próximos<br />
quatro anos atingem a casa dos US$ 174,4 bilhões.<br />
Só o pré-sal (petróleo extraído abaixo da lâmina de<br />
água e do sal do fundo do mar), receberá um aporte<br />
de US$ 111,4 bilhões nes<strong>se</strong> período. A produção em<br />
escala comercial do carro-chefe da companhia entra-<br />
caros amigos julho 2009<br />
Lúcia Rodrigues<br />
Petrobras resiste<br />
ao ataque da direita<br />
rá em velocidade de cruzeiro no final de 2010.<br />
“Até 2020 vamos aumentar a produção do pré-sal<br />
em 1,8 bilhão de barris”, revela, em entrevista exclusiva<br />
à Caros Amigos, o presidente da Petrobras, José<br />
Sérgio Gabrielli de Azevedo. Para ele, as áreas do<br />
pré-sal são “qua<strong>se</strong> bilhetes premiados”. E, por isso,<br />
devem continuar a <strong>se</strong>r exploradas pela estatal.<br />
“Estaremos, com certeza, entre as maiores empresas<br />
de petróleo do mundo.Vamos sair da produção de<br />
2,4 bilhões de barris/dia e chegar em 2020 produzindo<br />
5,7 bilhões de barris/dia”, frisa.<br />
A potencialidade gerada pela descoberta das re<strong>se</strong>rvas<br />
de petróleo da camada pré-sal na costa brasi-<br />
leira tem despertado a cobiça dos Estados Unidos e<br />
do cartel das <strong>se</strong>te irmãs (principais companhias petrolíferas<br />
mundiais) sobre o ouro negro nacional.<br />
As re<strong>se</strong>rvas norte-americanas estão <strong>se</strong>cando. Os<br />
re<strong>se</strong>rvatórios estaduniden<strong>se</strong>s possuem apenas 29 bilhões<br />
de barris para <strong>se</strong>r prospectados. Se mantido o<br />
atual ritmo no padrão de consumo, em torno de 10<br />
bilhões de barris ao ano, as re<strong>se</strong>rvas estarão extintas<br />
em menos de três anos. “Os norte-americanos estão<br />
em apuros, de<strong>se</strong>sperados atrás de petróleo. Por isso,<br />
invadiram o Iraque, o Afeganistão”, ressalta o presidente<br />
da Aepet (Associação dos Engenheiros da Petrobras),<br />
Fernando Siqueira.
A situação das <strong>se</strong>te irmãs também é delicadíssima.<br />
Da cômoda posição de detentora de aproximadamente<br />
90% das re<strong>se</strong>rvas mundiais, despencou a<br />
um patamar de 3%. Por isso, os lobbies que repre<strong>se</strong>ntam<br />
es<strong>se</strong>s interes<strong>se</strong>s atuam de maneira voraz,<br />
em Brasília, para tentar reverter a situação extremamente<br />
desfavorável que atravessam. O pré-sal é<br />
encarado como a tábua de salvação de que necessitam<br />
para <strong>se</strong> livrar de <strong>se</strong>us infortúnios.<br />
Os prognósticos geológicos mais con<strong>se</strong>rvadores<br />
para o petróleo extraído da camada pré-sal apontam<br />
re<strong>se</strong>rvas da ordem de 90 bilhões de barris, qua<strong>se</strong> <strong>se</strong>te<br />
vezes superior à atual re<strong>se</strong>rva brasileira, confirmada<br />
em 14 bilhões de barris de óleo equivalente. Mantido o<br />
padrão de consumo nacional, de um bilhão de barris/<br />
dia, teríamos as<strong>se</strong>gurado 90 anos de tranqüilidade.<br />
Para Siqueira, a Petrobras descobriu um “Iraque na<br />
América Latina”. Os números projetam o país, como<br />
a quarta re<strong>se</strong>rva mundial de petróleo, atrás apenas da<br />
Arábia Saudita, que possui 260 bilhões de barris em<br />
re<strong>se</strong>rvas, do Irã, com 140 e Iraque, com 115.<br />
O banco de investimento Goldman Sachs também<br />
aponta a Petrobras entre as dez empresas mais viáveis<br />
do mundo. Ainda de acordo com o Goldman, a<br />
viabilidade da estatal brasileira a coloca na vanguarda<br />
das demais petroleiras mundiais.<br />
Em <strong>se</strong>tembro do ano passado, a companhia estava<br />
avaliada em R$ 344 bilhões, <strong>se</strong>gundo valor de mercado.<br />
Em 2008, a Petrobras de<strong>se</strong>mbolsou sozinha, R$ 60<br />
bilhões para o pagamento de impostos, taxas e contribuições<br />
sociais ao governo. O valor é superior ao orçamento<br />
de vários Estados brasileiros. O pagamento<br />
de royalties e participações governamentais por parte<br />
da companhia atingiram os R$ 23 bilhões.<br />
Os números indicam uma empresa sólida e robustecida.<br />
Mas <strong>se</strong>gundo o presidente Gabrielli, a imagem<br />
O <strong>se</strong>nador José Nery (Psol-PA) não assinou o<br />
requerimento do tucano Álvaro Dias (PSDB-PR),<br />
para a instalação da CPI da Petrobras. Ele considera<br />
que as denúncias que pesam contra a companhia<br />
já estão sob a investigação do Ministério<br />
Público Federal, Tribunal de Contas da União e da<br />
Polícia Federal. “As três instituições podem adotar<br />
as providências legais caso <strong>se</strong>ja detectado algum<br />
problema”, afirma.<br />
Para Nery, a instalação da Comissão Parlamentar<br />
de Inquérito pode estar associada à disputa<br />
eleitoral do ano que vem. Além disso, o <strong>se</strong>nador<br />
também quer evitar que as empresas privadas,<br />
que têm interes<strong>se</strong> nas áreas do pré-sal, capitalizem<br />
em cima do desgaste imposto à imagem da<br />
companhia estatal.<br />
“Neste momento a Petrobras tem o desafio de<br />
explorar a camada pré-sal. É preciso garantir credibilidade<br />
e respeitabilidade, para que continue <strong>se</strong>ndo<br />
a empresa mais importante do país”, afirma.<br />
O <strong>se</strong>nador do Psol lembra que foi o governo de<br />
Fernando Henrique Cardoso quem derrubou o monopólio<br />
estatal do petróleo, em 1995.<br />
Nery defende a ideia de que as parcelas da<br />
companhia que passaram para as mãos de particulares<br />
<strong>se</strong>jam reestatizadas.<br />
da empresa pode sofrer desgastes em função de “ilações<br />
e de uma onda de denuncismo” contra a estatal<br />
motivada pela CPI. “Acaba minando a reputação da<br />
companhia. Isso é muito ruim”, lamenta.<br />
O repre<strong>se</strong>ntante dos engenheiros da Petrobras<br />
considera que ao propor uma CPI para investigar a<br />
empresa, o principal objetivo do PSDB é quebrar o<br />
prestígio da companhia. “Querem enfraquecê-la para<br />
justificar a vinda de empresas estrangeiras”, afirma,<br />
ao <strong>se</strong> referir aos parlamentares e ao lobby que atua<br />
em defesa dos interes<strong>se</strong>s capital estrangeiro.<br />
De acordo com ele, entre os lobbistas que atuam<br />
na defesa des<strong>se</strong>s interes<strong>se</strong>s, está o diretor-geral<br />
da ANP (Agência Nacional de Petróleo), deputado<br />
Haroldo Lima (PC do B - BA). Lima nega qualquer<br />
envolvimento com lobbistas. “É uma afirmação<br />
irresponsável.”<br />
A ANP é o órgão responsável pela realização dos<br />
leilões de blocos petrolíferos, abertos à participação da<br />
iniciativa privada. Com a quebra do monopólio estatal<br />
do petróleo em 1995 e com a lei 9.478/97, sancionada<br />
pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,<br />
foi concedido à iniciativa privada, inclusive, ao capital<br />
internacional, o direito de operar na prospecção de petróleo<br />
em território nacional. Até o momento, a ANP<br />
já realizou 10 rodadas de licitação. Todas as etapas foram<br />
abertas à participação da iniciativa privada.<br />
Lima critica aqueles que defendem o retorno do<br />
monopólio estatal do petróleo. “Os leilões estão dando<br />
certo. Não existe monopólio estatal do petróleo em nenhum<br />
país. É uma miopia política insistir nisso.”<br />
DNA privAtistA<br />
Para o coordenador da FUP (Federação Única<br />
dos Petroleiros), João Antônio de Moraes, o objetivo<br />
da CPI “não é fazer uma investigação séria”.<br />
“Vão construir um palco político, para a disputa<br />
eleitoral de 2010”, afirma.<br />
O sindicalista teme que a empresa também volte<br />
a <strong>se</strong>r objeto de ataques privatistas, apesar de o <strong>se</strong>nador<br />
Álvaro Dias, autor do requerimento que permitiu<br />
a instalação da CPI garantir que es<strong>se</strong> não é o objetivo<br />
da proposição. “Es<strong>se</strong> pessoal (tucanos e democratas)<br />
têm a privatização no sangue, está no DNA”,<br />
ressalta Moraes.<br />
O temor do dirigente sindical também é compartilhado<br />
pelo repre<strong>se</strong>ntante da Aepet. “O PSDB fez de<br />
tudo para desnacionalizar a Petrobras. Chegou até a<br />
mudar o nome da empresa para Petrobrax”, relembra<br />
Fernando Siqueira. “Queriam dividi-la em unidades<br />
de negócios, transformando-as em subsidiárias, para<br />
preparar a privatização”, acrescenta.<br />
As duas entidades (FUP e Aepet) estão envolvidas<br />
na organização da sociedade civil com vistas à construção<br />
de um novo marco regulatório para o <strong>se</strong>tor. A<br />
FUP também pretende apre<strong>se</strong>ntar ao Congresso Nacional<br />
um projeto de lei de iniciativa popular. “Estamos<br />
recolhendo um milhão de assinaturas. O projeto<br />
do governo (Lula) não contempla nossas reivindicações”,<br />
comenta Moraes.<br />
Inúmeras manifestações de rua estão <strong>se</strong>ndo realizadas<br />
no país, em defesa da Companhia, como as<br />
que ocorreram em São Paulo e no Rio de Janeiro. No<br />
Rio, os manifestantes deram, inclusive, um abraço ao<br />
edifício-<strong>se</strong>de da estatal.<br />
Neste mês é a vez de Brasília receber os manifestantes.<br />
Os sindicalistas aproveitam a realização do<br />
51º Congresso da UNE, que acontece na capital federal,<br />
e organizam um ato em defesa de uma Petrobras<br />
pública e por uma nova lei de petróleo. Segundo<br />
o dirigente petroleiro, 10 mil estudantes devem<br />
comparecer à manifestação.<br />
Oposição de esquerda ao governo Lula não assina CPI<br />
requerimeNto Do psDB<br />
Segundo o <strong>se</strong>nador Álvaro Dias, o objetivo da CPI<br />
que investigará a Petrobras <strong>se</strong>rá o de “responsabilizar<br />
civil e criminalmente os envolvidos em desmandos<br />
na administração da empresa”. O requerimento para<br />
a instalação da CPI con<strong>se</strong>guiu a adesão de 30 parlamentares,<br />
eram necessárias 27 assinaturas para que a<br />
Comissão fos<strong>se</strong> aprovada. Os <strong>se</strong>nadores têm um prazo<br />
de 180 dias para concluírem os trabalhos.<br />
Pela proposta do tucano, as investigações que os<br />
<strong>se</strong>nadores irão realizar vão <strong>se</strong> concentrar na administração<br />
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.<br />
“Não há nenhuma denúncia em relação aos governos<br />
anteriores. Mas como no Brasil um escândalo sucede<br />
ao outro, e como são tantos os escândalos da administração<br />
da Petrobras, <strong>se</strong>ria impossível buscar escândalos<br />
antigos”, conclui.<br />
Para propor a CPI, Dias pautou-<strong>se</strong> em denúncias<br />
publicadas na imprensa. “Soubemos das denúncias,<br />
como o povo brasileiro, que tem a oportunidade de<br />
ler os grandes jornais e revistas”, conta.<br />
As denúncias que <strong>se</strong>rão investigadas, <strong>se</strong>gundo<br />
Dias, vão <strong>se</strong> concentrar em três operações da Polícia<br />
Federal: Castelo de Areia, Águas Profunda e<br />
Royalties, além de auditorias do Tribunal de Contas<br />
da União, que <strong>se</strong>gundo ele, comprovam superfa-<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
turamento de obras, aditivos irregulares. Existem<br />
ainda, de acordo com o <strong>se</strong>nador, questionamentos<br />
do Ministério Público referentes ao pagamento<br />
de usineiros e à transferência de recursos para<br />
ONGs.<br />
“São escândalos gigantescos. Nós não estamos<br />
nos referindo a migalhas. Trata-<strong>se</strong> de bilhões de<br />
reais que supostamente foram desviados em função<br />
do loteamento político da empresa”, critica.<br />
petroBrAs<br />
O presidente da Petrobras, José Sérgio Grabrielli<br />
de Azevedo, conta que procurou os <strong>se</strong>nadores<br />
do PSDB Arthur Virgílio (AM), Sérgio<br />
Guerra (PE) e Tasso Jereissati (CE) antes da instalação<br />
da Comissão Parlamentar de Inquérito,<br />
para afirmar que a Petrobras está à disposição,<br />
para prestar os esclarecimentos que o Senado<br />
considerar necessários.<br />
Para ele, a CPI é um instrumento legítimo do<br />
Congresso Nacional. Gabrielli considera que as<br />
investigações têm de <strong>se</strong>r focadas. “Nes<strong>se</strong> período<br />
há milhares de contratos”, ressalta.<br />
Ele também conta que a companhia está colaborando<br />
com as investigações da Polícia Federal<br />
e com o Tribunal de Contas da União.<br />
junho 2009 caros amigos<br />
39
40<br />
Diversificação da matriz energética<br />
A Petrobras também aposta na diversifi cação da matriz<br />
energética. Além do pré-sal, a estatal investe em outras<br />
fontes de energia, como o biodie<strong>se</strong>l. Trinta e <strong>se</strong>te mil famílias<br />
ligadas à agricultura familiar vendem sua produção para a<br />
companhia, que processa as oleaginosas em três refi narias,<br />
para a obtenção do combustível ecológico. Para a área de<br />
biocombustíveis e etanol, os planos, até 2013, projetam um<br />
investimento de U$ 2,8 bilhões.<br />
A companhia também pretende construir cinco refi narias até<br />
2017. Hoje, a empresa possui 16 plantas para o refi no, 11<br />
no Brasil e cinco no exterior. As novas refi narias vão ampliar<br />
a capacidade de refi no instalada em 1,3 bilhão de barris/dia.<br />
As unidades <strong>se</strong>rão voltadas para a produção de die<strong>se</strong>l<br />
e quero<strong>se</strong>ne de aviação. O Brasil é exportador de gasolina.<br />
Segundo o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli<br />
de Azevedo, a geração de empregos diretos e indiretos<br />
motivados pelos novos investimentos deve girar em torno<br />
de 900 mil a um milhão de postos de trabalho. A exploração<br />
e produção do petróleo da camada pré-sal irá absorver a<br />
maioria des<strong>se</strong>s trabalhadores. Hoje a Petrobras possui 74.240<br />
empregados diretos.<br />
Para Gabrielli, o petróleo produzido na camada pré-sal<br />
é viável mesmo com o preço do barril abaixo de US$ 45.<br />
O custo de extração de um barril de petróleo fora do<br />
ambiente pré-sal era, em <strong>se</strong>tembro do ano passado, U$ 9,6.<br />
Lúcia Rodrigues é jornalista.<br />
caros amigos julho 2009<br />
os NÚmeros DA GiGANte<br />
Plataformas - 113<br />
Poços - 14 mil<br />
Refi narias -16<br />
Capacidade instalada de refi no - 2,2 milhões de barris/dia<br />
Terminais - 66<br />
Malha dutoviária - 25 mil quilometros<br />
Sondas de perfuração (terra e mar) - 63<br />
Navios petroleiros próprios - 54<br />
Navios petroleiros afretados -135<br />
Termelétricas -15<br />
Produção média diária de óleo e gás* - 2,5 milhões<br />
Produção diária de gás natural** - 67 milhões<br />
Valor de mercado*** - R$ 344 bilhões<br />
Receita operacional bruta - R$ 285 bilhões<br />
Receita operacional líquida - R$ 232 bilhões<br />
Lucro líquido - 33 bilhões<br />
Investimento total – R$ 53 bilhões<br />
Investimento total **** – R$ 174,4 bilhões<br />
Custo de extração por barril - US$ 9,6<br />
Pagamento de royalties e participações governamentais - R$ 23 bilhões<br />
Pagamento de impostos, taxas e contribuições sociais – R$ 60 bilhões<br />
Número de empregados – 74.240<br />
* em barris de óleo equivalente<br />
** em metros cúbicos<br />
*** em <strong>se</strong>tembro de 2008<br />
**** de 2009 a 2013<br />
Os dados referem-<strong>se</strong><br />
às atividades da companhia<br />
no Brasil e exterior,<br />
em 2008<br />
Fonte: Petrobras<br />
Livros da Editora Casa Amarela<br />
Direto das bancas para a sua cabeceira.<br />
Livros com a qualidade<br />
Caros Amigos.<br />
Peça para <strong>se</strong>u jornaleiro.<br />
BIBLIOTECA<br />
Apenas<br />
R$ 19,90
no ano do centenário de <strong>se</strong>u nascimento, o<br />
poeta Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa<br />
do Assaré, foi homenageado em livro,<br />
filme e também no Senado, onde o <strong>se</strong>nador Inácio<br />
Arruda (PCdoB-CE) lançou oficialmente o Ano Cultural<br />
Patativa do Assaré, agora em junho. Autodidata,<br />
Patativa freqüentou a escola por pouco tempo<br />
e, nas palavras de Ro<strong>se</strong>mberg Cariry, amigo e diretor<br />
do filme Patativa do Assaré – Ave Poesia, “venceu<br />
o analfabetismo, o preconceito e <strong>se</strong> fez o grande<br />
poeta e a grande consciência social deste país”.<br />
Nascido no dia 5 de março de 1909, em Serra de<br />
Santana, no interior do Ceará, região do Cariri, a 18<br />
quilômetros da cidade de Assaré, Patativa era o <strong>se</strong>gundo<br />
dos cinco filhos dos agricultores Pedro Gonçalves<br />
da Silva e Maria Pereira da Silva. Aos nove<br />
anos, perdeu o pai e, ao lado de sua família, precisou<br />
enfrentar a vida de agricultor pobre no diminuto<br />
terreno deixado como herança paterna.<br />
Aos 12 anos, Patativa frequentou uma escola no<br />
mesmo campo onde <strong>se</strong>mpre viveu, em Serra de Santana.<br />
Ali passou <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s e aprendeu apenas a ler:<br />
“<strong>se</strong>m vírgula, <strong>se</strong>m ponto, <strong>se</strong>m nada”, como conta no<br />
filme. Suas maiores distrações eram a poesia e a leitura.<br />
“Quando eu tinha tempo, chegava da roça, ao<br />
meio-dia ou à noite, e minha distração era ler, ler e<br />
ouvir outro ler para mim, o meu irmão mais velho,<br />
José. Ele lia <strong>se</strong>mpre os folhetos de cordel e foi daí de<br />
onde surgiu a minha inspiração para fazer poesia. Eu<br />
comecei a fazer verso com 12 anos de idade.”, conta<br />
o poeta no filme de Ro<strong>se</strong>mberg Cariry.<br />
E continua: “Já com 20 anos começaram a me<br />
chamar Patativa [que é uma ave típica da região].<br />
Posso dizer que foi José Carvalho de Brito que pôs<br />
es<strong>se</strong> apelido que o povo hoje conhece, esta alcunha.<br />
Patativa do Assaré.”<br />
Es<strong>se</strong>s relatos foram contados pelo poeta ao amigo<br />
Cariry, em entrevista concedida em 1979. Os 84<br />
minutos da película contêm ainda outras histórias<br />
da vida em Assaré: a infância, as primeiras letras,<br />
o começo na poesia e as lutas durante o período da<br />
ditadura militar. O filme <strong>se</strong> constrói tendo esta entrevista<br />
como ba<strong>se</strong> e acrescenta imagens de pesquisadores,<br />
depoimentos de parentes e cenas gravadas<br />
do poeta cuidando de sua plantação de algodão,<br />
quando ainda não era famoso.<br />
Admirador do trabalho de Patativa, Cariry não<br />
filmou o amigo tendo em mente um projeto para<br />
transformar as imagens colhidas de 1979 a 2006<br />
Bruna Buzzo<br />
pAtAtivA é do povo<br />
O poeta popular Patativa do Assaré foi<br />
agricultor durante toda sua vida. Homem<br />
muito querido, difundiu poesia e cultura ao<br />
povo pobre do Nordeste. Foto Emerson Monteiro<br />
em documentário. “O que existia era a<br />
vida, Patativa era meu compadre e participei<br />
junto com ele de muitas atividades<br />
culturais e políticas. Simplesmente<br />
documentei es<strong>se</strong>s momentos importantes.<br />
Depois da sua morte, em 8 de<br />
julho de 2002, resolvi prestar uma homenagem<br />
ao grande mestre, fazendo o<br />
filme”, conta o diretor.<br />
Patativa do Assaré – Ave Poesia é<br />
fruto de um de<strong>se</strong>jo do diretor de devolver<br />
Patativa ao povo. “Eu quis fazer este filme porque<br />
a nação brasileira precisava saber de forma mais<br />
profunda quem foi Patativa do Assaré.” Cariry começou<br />
a edição das 100 horas de material fazendo um<br />
filme de cinco horas, relatando a vida do poeta e os<br />
principais acontecimentos do Brasil, que eram revistos<br />
a partir da poesia e da vida de Patativa.<br />
O filme destaca o lado político. “Um homem e<br />
poeta de muitas facetas”, afirma Cariry, que diz ter<br />
sido sua vivência com Patativa o que o levou a optar<br />
pelo retrato deste lado específico. “Pas<strong>se</strong>i mais<br />
tempo ao <strong>se</strong>u lado no final da década de 70 e em<br />
toda a década de 80. Testemunhei e cheguei a participar<br />
ao <strong>se</strong>u lado de todas as lutas por justiça e pela<br />
redemocratização do país.”<br />
Cariry conheceu o poeta na década de 60, quando<br />
o cineasta ainda era menino. Seu pai era dono<br />
de uma bodega e <strong>se</strong>u avô do Bar Tupy. “Es<strong>se</strong>s locais<br />
eram pontos de encontro de muitos artistas populares<br />
que vinham para a feira do Crato, também de<br />
operários e boêmios, que ficavam à noite discutindo<br />
política e as notícias que ouviam no rádio de ondas<br />
tropicais que meu avô mantinha no <strong>se</strong>u estabelecimento.<br />
Ali conheci grandes artistas do Cariri. Entre<br />
eles, Patativa do Assaré.”<br />
Ave poesiA<br />
Ainda em vida, Patativa do Assaré con<strong>se</strong>guiu “o<br />
reconhecimento, o carinho e o amor do <strong>se</strong>u povo”,<br />
conta Cariry. Ele fazia poesia social, era um poeta<br />
do povo, sua luta era mais do que contra a ditadura,<br />
era contra a opressão que aflige o povo nordestino<br />
até hoje. “Não só o intelectual, mas também o artista<br />
capaz de transformar aquele mal-estar em matéria<br />
poética”, lembra o professor e escritor Gilmar de<br />
Carvalho, no filme de Ro<strong>se</strong>mberg Cariry.<br />
Ao todo, Patativa publicou dez livros. O primeiro,<br />
Inspiração Nordestina, publicado em 1956, com<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
incentivo do filósofo José Arraes de Alencar. Livro<br />
pronto e viola nas costas, Patativa andou por todo<br />
o Ceará fazendo suas cantorias e vendendo <strong>se</strong>u livro,<br />
para pagar a dívida que contraíra com o editor.<br />
Depois vieram Inspiração Nordestina: Cantos do<br />
Patativa (1967), edição ampliada do primeiro livro,<br />
Cante Lá que Eu Canto Cá (1978), que lhe rendeu<br />
reconhecimento do meio acadêmico e da imprensa,<br />
Ispinho e Fulô (1988), Balceiro. Patativa e Outros<br />
Poetas de Assaré (1991), Cordéis (1993), Aqui Tem<br />
Coisa (1994), Biblioteca de Cordel: Patativa do Assaré<br />
(2000), Balceiro 2. Patativa e Outros Poetas de<br />
Assaré (2001) e Ao pé da mesa (2001).<br />
Considerado comunista por <strong>se</strong>us atos em defesa<br />
do povo pobre, o poeta <strong>se</strong> declarava “comunista<br />
de coração” e em poemas como “Eu Quero”, “Triste<br />
Partida” (que mais tarde <strong>se</strong>ria musicada por Luiz<br />
Gonzaga) e “O Brasil de baixo e o Brasil de cima”,<br />
dentre outros, defende os direitos e cobra melhorias<br />
para a vida do povo nordestino, debatendo assuntos<br />
como <strong>se</strong>ca, fome e reforma agrária.<br />
Nas palavras do amigo cineasta, “Patativa do Assaré<br />
figura entre os grandes nomes da poesia do Brasil<br />
por ter con<strong>se</strong>guido, com arte e beleza, unir denúncia<br />
social com lirismo, consciência política com<br />
profunda percepção humana. Quem lê a poesia de<br />
Patativa pensa, <strong>se</strong> emociona e <strong>se</strong> transforma, porque<br />
nela estão todas as lutas e esperanças do homem, estão<br />
as palavras que <strong>se</strong> erguem contra todas as formas<br />
de obscurantismo e opressão.”<br />
Para Cariry, “Patativa é uma re<strong>se</strong>rva ética e estética<br />
do povo brasileiro. Se o Brasil não tem ainda o<br />
<strong>se</strong>u poeta-nacional, que simbolize e expres<strong>se</strong> o <strong>se</strong>ntimento<br />
de nação, como Pablo Neruda no Chile ou<br />
Camões em Portugal, o Nordeste brasileiro, popular<br />
e rebelado, tem o <strong>se</strong>u: Patativa do Assaré.”<br />
Bruna Buzzo é estudante de Jornalismo.<br />
junho 2009 caros amigos<br />
41
42<br />
um ano após a lei estadual 5.265, que dificulta a realização de bailes funk,<br />
profissionais denunciam a repressão policial a cantores, compositores e<br />
até a quem simplesmente gosta de ouvir o ritmo popularizado nas favelas<br />
do Rio de Janeiro. Na outra ponta, surge a Associação dos Profissionais e Amigos<br />
do Funk, cujo objetivo é unificar e politizar a categoria que leva para as pistas<br />
centenas de milhares de jovens todos os fins de <strong>se</strong>mana.<br />
Cidade de Deus, domingo, 14 de junho. Chego à rua GG, que na verdade é um<br />
espaço vazio, de terra batida, entre cinco ou <strong>se</strong>is edifícios. Circundado por bares<br />
e mercearias, o lugar deve ter o tamanho de uma quadra poliesportiva, talvez<br />
um pouco maior. São três da tarde, faz sol e as crianças <strong>se</strong> divertem. Brincam<br />
de pula-pula e de bola. Não resisto e acabo jogando altinha com eles. De repente,<br />
a bola cai na lama, suja pouco, qua<strong>se</strong> nada. Mesmo assim um pequeno a toma<br />
pela mão e diz: “peraí, tio”. O menino, magrinho, uns 12 anos, esfrega a bola no<br />
meio-fio e completa: “pra não sujar sua calça”.<br />
Olho pra trás e vejo um policial militar <strong>se</strong> aproximando. Daí a dez minutos<br />
aparece uma blazer da PM, que promove um escândalo inominável: com fuzis –<br />
que são armas de guerra - apontados para fora, o carro faz uma ronda passando<br />
por vezes muito perto das crianças que ali brincavam.<br />
Enquanto isso a turma montava a aparelhagem de som no final da rua. Ainda<br />
era dia quando o sargento Alcântara foi até o DJ e afirmou: “dez horas tem que<br />
acabar”. Com um fuzil <strong>se</strong>miautomático a tira-colo, ele fazia cumprir a ordem do<br />
comando da polícia, que <strong>se</strong> ba<strong>se</strong>ia numa lei (ver quadro) que na prática inviabiliza<br />
a realização de bailes funk – a autoria é do ex-chefe de Polícia Civil e ex-deputado<br />
estadual Álvaro Lins (PMDB-RJ), cassado e preso sob acusações de formação<br />
de quadrilha, facilitação de contrabando e lavagem de dinheiro.<br />
Na verdade, o DJ nem ficou tão aborrecido com o policial. Este era o primeiro<br />
evento de funk realizado na CDD, berço des<strong>se</strong> ritmo no Brasil, desde a ocupação<br />
policial, em novembro do ano passado. Aqui nasceram letras como “O povo<br />
caros amigos julho 2009<br />
Marcelo Salles<br />
Funk carioca<br />
O batidão entre a per<strong>se</strong>guição e a resistência Foto Fernanda Chaves<br />
tem a força, só precisa descobrir / <strong>se</strong> eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui”<br />
– verdadeiro hino da clas<strong>se</strong> trabalhadora –, escrita por Kátia e Julinho Rasta<br />
e popularizada pelos MCs Cidinho e Doca. Neste domingo, por insistência da<br />
Associação de Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), o comando da PM autorizou<br />
a realização de uma roda de funk, prestigiada por gente de todas as idades,<br />
incluindo meu parceiro de altinha.<br />
A Lei 5.265, de junho de 2008, encerrou – direta ou indiretamente – bailes em<br />
pelo menos 60 casas no Estado, <strong>se</strong>gundo Tojão, dono da equipe de som Espião<br />
Shock de Monstro. Isso dificulta muito a vida de quem vive do funk – cerca de 10<br />
mil pessoas no Rio de Janeiro, <strong>se</strong>gundo as contas da Apafunk. São DJs, MCs, dançarinos,<br />
compositores e empresários, mas também técnicos de som, motoristas, auxiliares<br />
e toda uma gama de trabalhadores que, na década de 80, <strong>se</strong>gundo o antropólogo<br />
Hermano Vianna em <strong>se</strong>u livro O mundo funk carioca, mobilizavam mais de<br />
um milhão de jovens (cerca de 20% da população da capital fluminen<strong>se</strong>) em 700<br />
bailes todos os finais de <strong>se</strong>mana em torno dessa mistura de soul (música negra estaduniden<strong>se</strong>,<br />
cujo maior repre<strong>se</strong>ntante foi James Brown), miami bass (batida eletrônica)<br />
e percussão africana. O resultado é o batidão que hoje está entranhado na<br />
cultura do Rio de Janeiro, sobretudo nos espaços populares.<br />
A professora Adriana Facina, do Departamento de História da UFF, acompanhou<br />
de perto o funk carioca durante um ano e meio para sua pesquisa de<br />
pós-doutorado. Entrevistou mais de cem pessoas, esteve em duas dezenas de<br />
favelas e foi a bailes da zona sul à zona norte. Após todo es<strong>se</strong> trabalho de<br />
campo, ela acredita que o que existe é uma per<strong>se</strong>guição à população afrodescendente.<br />
“Os que hoje querem proibir o funk são herdeiros históricos daqueles<br />
que, no passado, qui<strong>se</strong>ram calar os batuques que vinham das <strong>se</strong>nzalas”. A<br />
propósito, o brasão da Polícia Militar do RJ ainda ostenta os ramos de cana<br />
e café, produtos que sustentaram a economia brasileira – movida a trabalho<br />
escravo – num passado não muito distante.
“Como é comum acontecer numa sociedade de herança de três séculos de<br />
escravidão, a música diaspórica, elemento fundamental de identidade negra,<br />
forma comunicacional principal dos modos de vida, dos valores e de denúncia<br />
da população afrodescendente é vista com grande desconfiança pelas elites”,<br />
complementa Adriana.<br />
Além da dificuldade para a realização de bailes, o que termina por concentrar<br />
os eventos nas grandes casas de show ou por marginalizar os pequenos<br />
produtores, a per<strong>se</strong>guição ao funk extrapolou para a violência contra o cidadão<br />
favelado. Naquele domingo, na Cidade de Deus, ouvi denúncias como a proibição<br />
de jovens pintarem o cabelo de determinada cor ou de ouvirem funk dentro<br />
de suas próprias casas.<br />
Um cantor e compositor com quem estive, e que prefere não <strong>se</strong> identificar<br />
por medo de represália, contou que um dia estava reunido com amigos numa<br />
esquina da favela, chegou uma guarnição da polícia e perguntou o que estavam<br />
fazendo. “Compondo”, respondeu. “Então eles mandaram a gente dispersar<br />
e tomaram o CD com a batida de fundo”, dis<strong>se</strong>, entre irritado e envergonhado<br />
pela humilhação sofrida.<br />
O tenente-coronel Luigi Gatto, comandante do 18º Batalhão de Polícia Militar,<br />
afirma que desconhece a proibição sobre a tinta no cabelo. Em relação<br />
à música dentro das casas, diz que a polícia atua ba<strong>se</strong>ada na lei do silêncio e<br />
quando algum vizinho reclama. Quanto à proibição dos bailes, declara: “não<br />
conheço baile funk em comunidade que não tenha tráfico de drogas, porte ilegal<br />
de armas, corrupção de menores e apologia ao crime”, mas afirma que <strong>se</strong> o<br />
evento for realizado dentro da lei 5.265, ele não <strong>se</strong> opõe.<br />
O comandante da PM faz uma avaliação positiva da ocupação da favela:<br />
“hoje a Cidade de Deus já está in<strong>se</strong>rida no bairro de Jacarepaguá, os <strong>se</strong>rviços<br />
públicos (luz, dragagem, coleta de lixo) estão funcionando, o espaço público foi<br />
devolvido para as pessoas que moram ali. Isso tudo era domínio do tráfico. Hoje<br />
em dia não há mais estado de exceção, a ordem pública foi restaurada”.<br />
OrgaNizaçãO dO mOvimeNtO fuNkeirO<br />
Foi com o objetivo de enfrentar as dificuldades que MC Leonardo decidiu fundar<br />
a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk. O compositor, nascido e<br />
criado na Rocinha, ganhou projeção nacional ao lado de <strong>se</strong>u irmão, MC Júnior,<br />
com letras como Rap das Armas e Endereço dos Bailes. “O funk é uma das poucas<br />
diversões com preços acessíveis, criada dentro da favela, pelos favelados. O funk<br />
está <strong>se</strong>ndo proibido de tocar no Rio de Janeiro!”, denuncia Leonardo.<br />
Além de criticar muito a lei 5.265, o cantor relata outras formas de per<strong>se</strong>guição<br />
a quem gosta de ouvir o ritmo. “No interior do Rio a polícia está pegando<br />
e quebrando CDs de quem escuta funk”. Leonardo também rebate as<br />
acusações de que o ritmo é pornográfico. “O mercado pornográfico é o que<br />
mais cresce no mundo, dizer que o funk é o responsável por isso é no mínimo<br />
estranho. Uma parte do funk é o reflexo disso, não o espelho”. Mr. Catra,<br />
que tem feito até cinco shows por dia no Rio de Janeiro mas <strong>se</strong>gue invisível<br />
aos olhos das corporações de mídia, também respondeu a estas acusações con-<br />
tra o funk no documentário Sou feia, mas tô na<br />
moda. “Sacanagem é o coroa comendo a criancinha<br />
na novela das oito.”<br />
O MC da Rocinha defende a unificação do<br />
movimento em torno da conscientização política.<br />
“Eu cobro dos artistas que eles u<strong>se</strong>m a sua<br />
arte como ferramenta de mudança contra as injustiças<br />
que eles sofrem. O funk é preto, favelado,<br />
discriminado e, por isso, deveria ter um discurso<br />
mais engajado que todas as outras artes”,<br />
afirma. Muitas vezes as pessoas julgam o funk por<br />
aquilo que ouvem na mídia comercial, <strong>se</strong>m saber<br />
que ali prevalece o funk comercial, despolitizado,<br />
do jeito que o sistema capitalista gosta. Leonardo<br />
tem corrido os gabinetes da As<strong>se</strong>mbleia Legislativa<br />
em busca de apoio para revogar a Lei 5.265<br />
e aprovar um novo texto que reconheça e valorize<br />
o caráter cultural do funk.<br />
Outro nó apontado por Leonardo é o duopólio<br />
exercido pelos empresários Rômulo Costa e DJ<br />
A lei estadual 5.265, de junho de 2008,<br />
determina que festas rave e bailes funk devem <strong>se</strong>r<br />
informadas com 30 dias de antecedência<br />
à Secretaria de Segurança Pública mediante<br />
a apre<strong>se</strong>ntação dos <strong>se</strong>guintes documentos:<br />
contrato social; CNPJ; comprovante de tratamento<br />
acústico; anotação de responsabilidade técnica<br />
das instalações de infraestrutura do evento,<br />
expedida por autoridade municipal; contrato da<br />
empresa de <strong>se</strong>gurança autorizada pela Polícia<br />
Federal; comprovante de instalação de detectores<br />
de metal e câmeras; comprovante de previsão de<br />
atendimento médico e nada a opor da Delegacia<br />
Policial, do Batalhão de Polícia Militar, do Corpo<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
Marlboro, que <strong>se</strong>gundo as contas da Apafunk controlam mais de 90% do mercado.<br />
Os dois possuem as maiores produtoras, editoras e equipes de som. E mais: mantêm<br />
programas em rádios (FM O Dia e 98 FM, respectivamente) onde, <strong>se</strong>gundo Leonardo,<br />
só divulgam <strong>se</strong>us próprios artistas. “Usam concessão pública em benefício<br />
próprio”, acusa. O MC também critica o modelo de contrato feito com os artistas.<br />
“Pagam 150 reais ao garoto e mais nada”. E pra aumentar o volume do batidão,<br />
dispara: “estão <strong>se</strong>mpre ao lado dos governos, fazem campanha, fizeram campanha<br />
para o [governador] Sérgio Cabral (PMDB)”.<br />
Rômulo Costa não respondeu ao recado deixado em <strong>se</strong>u telefone celular. DJ<br />
Marlboro <strong>se</strong> defende: “meu contrato artístico é igual ao de todas as editoras no<br />
mundo. O autoral é 75% do autor e 25% da editora. O artístico, que não exige<br />
obrigatoriedade, varia de 4% a 10%. Na produção, eu pego o garoto que recebe<br />
R$ 50 na favela pra fazer a montagem com um computador e levo para o estúdio,<br />
dou oportunidade a ele de aprender com equipamento profissional, coloco o<br />
nome dele no direito conexo e ainda pago R$ 150, três vezes mais do que ele recebe<br />
na favela. Agora, tem produtores que são mais caros, a gente vive no capitalismo,<br />
cada um recebe de acordo com o retorno que dá. A música é um negócio”,<br />
diz. Marlboro também discorda da existência de um duopólio. “Ninguém é<br />
obrigado a assinar contrato comigo ou com o Rômulo. Tem vários meios, o cara<br />
pode ir pro meio da praça, para a internet... Agora, eu não vou colocar no meu<br />
programa de rádio artista de outras gravadoras, ninguém faz isso. Monopólio é<br />
quando não tem escolha. A gente não proíbe ninguém de ter iniciativa”. Sobre as<br />
idéias dos MCs Júnior e Leonardo, ele declara: “eles acham que tem que <strong>se</strong>r comunismo,<br />
que todo mundo tem que ganhar igual. Querem o funk socialista”.<br />
Talvez isso explique por que o Rap da Igualdade tenha sido declinado por<br />
Marlboro, que, <strong>se</strong>gundo Leonardo, não quis divulgá-lo com o <strong>se</strong>guinte argumento:<br />
“Não é a hora de malhar a elite”.<br />
Burocracia do preconceito<br />
Eu só imploro a igualdade pra viver, doutor<br />
No meu Brasil (que o negro construiu)<br />
Eu só imploro a igualdade pra viver, doutor<br />
No meu Brasil<br />
A injustiça vem do asfalto pra favela<br />
Há discriminação à vera<br />
Chegam em cartão postal<br />
Em outdoor a burguesia nos revela<br />
Que o pobre da favela tem instinto marginal<br />
E o meu povo quando desce pro trabalho<br />
Pede a Deus que o proteja<br />
Dessa gente ilegal, doutor<br />
Que nos maltrata e que finge não saber<br />
Que a guerra na favela é um problema social<br />
(Trecho do Rap da Igualdade, MC Dolores)<br />
de Bombeiros e do Juizado de Menores.<br />
Além disso, o pedido de autorização deve informar<br />
a expectativa de público, o número de ingressos<br />
postos à venda, o nome do responsável pelo<br />
evento, a capacidade da área de estacionamento<br />
e previsão de horário de início e término do<br />
evento, que não poderá exceder 12 horas.<br />
Banheiros deverão <strong>se</strong>r disponibilizados na<br />
proporção de dois (um masculino e um feminino)<br />
para cada grupo de cinqüenta pessoas.<br />
São exigências que tornam alto demais<br />
o custo de realização de um baile e impõem<br />
uma burocracia que inviabiliza o trabalho dos<br />
pequenos produtores.<br />
junho 2009 caros amigos<br />
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44<br />
IDÉIAS DE BOTEQUIM<br />
Renato Pompeu<br />
TEMAS DO POVÃO:<br />
grafi tos, Igreja Universal, hinduísmo,<br />
credibilidade dos jornais, fome...<br />
O livro mais bonito do mês é “Comunicação popular escrita”,<br />
do professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São<br />
Paulo, Américo Pellegrino Filho, publicado pela Edusp. Do cordel brasileiro<br />
a um cartaz antifi ado manuscrito num bar italiano, passando por um “sinal<br />
de trânsito” que avisa que “não há cangurus na Áustria”, o livro, em grande<br />
formato e de capa dura, com qua<strong>se</strong> 700 páginas, apre<strong>se</strong>nta e discute<br />
mais de 14 mil grafi tos, de 107 paí<strong>se</strong>s. Acompanha um CD. Está dividido<br />
em 22 clas<strong>se</strong>s (avulsos, brochuras populares, cartas a Papai Noel e à Velha<br />
Befana, epitáfi os populares, fórmulas de fi ado, etc.) e 40 temas e subtemas.<br />
Adverte o autor: “É de <strong>se</strong> esperar que a leitura das análi<strong>se</strong>s, neste livro,<br />
não <strong>se</strong>ja leve, descontraída, relaxada. Requer atenção, interes<strong>se</strong>, caneta<br />
para anotações (críticas?) e disposição para curtir as maravilhosas mensagens<br />
que os povos escrevem”.<br />
Ainda de temática popular, e também de interes<strong>se</strong> geral, é<br />
“A Igreja Universal e <strong>se</strong>us demônios – um estudo etnográfi co”, do professor<br />
da Universidade de Campinas Ronaldo de Almeida, lançado pela Editora<br />
Terceiro Nome. Diz na apre<strong>se</strong>ntação a famosa antropóloga Alba Zaluar: “A<br />
reconstituição histórica do crescimento espetacular das igrejas neopentecostais<br />
no Brasil é acompanhada por uma cuidadosa etnografi a ba<strong>se</strong>ada na<br />
ob<strong>se</strong>rvação feita por ele em cultos realizados dentro dos templos da Igreja<br />
Universal do Reino de Deus. A centralidade do exorcismo e a associação<br />
entre o diabo e as divindades cultuadas pelos adeptos das religiões afrobrasileiras<br />
adquirem uma visão ao mesmo tempo religiosa e política”. Uma<br />
leitura imprescindível para quem quer conhecer a mentalidade de amplos<br />
<strong>se</strong>tores das camadas urbanas da sociedade brasileira.<br />
Igualmente sobre religião, no caso o hinduísmo popularizado<br />
pela telenovela “Caminho das Índias”, temos, em tradução do sânscrito<br />
pelo professor de Letras da USP, Carlos Alberto Fon<strong>se</strong>ca, a “Canção do<br />
Venerável”, publicada pela Editora Globo, ou <strong>se</strong>ja, o famoso “Bhagavadgita”,<br />
hino composto na Índia a partir do século 10 a.C., há três mil anos, e<br />
que constitui uma espécie de catecismo introdutório à religião hindu. Um<br />
deus explica a um soldado que é preciso combater<br />
o egoísmo, o individualismo e a ganância,<br />
mas que é também necessário agir para cumprir<br />
o dever, no caso do soldado o dever de combater<br />
os inimigos e mesmo matá-los, ainda que <strong>se</strong>jam<br />
parentes próximos. Afi nal, os mortos terão<br />
a oportunidade de voltarem mais puros e mais<br />
felizes numa próxima reencarnação.<br />
Outro tema popular: há os que acreditam<br />
em tudo que lêem nos jornalões e há os que<br />
não acreditam em nada que neles é publicado.<br />
Para todos es<strong>se</strong>s é importante a leitura do livro<br />
“Escritos sobre jornal e educação – olhares<br />
de de longe longe e e de de perto”, perto” editado pela Global e ALB.<br />
Com prefácio do cientista político e jornalista<br />
caros amigos julho 2009<br />
Emir Sader, colaborador de “Caros<br />
Amigos”, a educadora Carmen<br />
Lozzo, que foi durante 20<br />
anos coordenadora pedagógica<br />
da Infoglobo, discute a utilização<br />
dos jornais como fontes de<br />
trabalhos escolares e de discussões<br />
durante as aulas. Diz Emir<br />
Sader: “um livro para professores,<br />
para alunos, para cidadãos, para gente comum, que <strong>se</strong> espanta diante da<br />
imprensa ou desconfi a profundamente dela”. Ele conclui: “Sem uma leitura<br />
crítica que anali<strong>se</strong>, <strong>se</strong>lecione, relacione e complemente o <strong>se</strong>ntido do volume<br />
de informações da mídia escrita, a escola, como instrumento educativo<br />
e transformador, deixa de existir”.<br />
O mais famoso livro de ficção sobre a fome, o romance literalmente<br />
chamado “Fome”, do escritor norueguês Knut Hamsun (1859-<br />
1952), Prêmio Nobel de 1920, foi relançado, na também famosa tradução do<br />
grande poeta Carlos Drummond de Andrade, pela Geração Editorial. Passado<br />
na <strong>se</strong>gunda metade do século 19, Hamsun <strong>se</strong> ba<strong>se</strong>ou em sua própria experiência<br />
de vida, de escritor nascido em família pobre, que passava fome quando<br />
não con<strong>se</strong>guia realizar pequenos <strong>se</strong>rviços, <strong>se</strong>ja como trabalhador braçal,<br />
<strong>se</strong>ja como articulista ocasional da imprensa de Cristiânia, nome que tinha<br />
na época a capital da Noruega, depois rebatizada como Oslo.<br />
Es<strong>se</strong> lançamento, além de sua pungência clássica e da descrição<br />
comovente e chocante de o que é passar fome, experiência de tantos<br />
brasileiros e de tantas pessoas no mundo ainda hoje, é tanto mais oportuno<br />
na atual situação de renascimento do fascismo em meio a uma nova<br />
cri<strong>se</strong> econômica estrutural do capitalismo internacional. Pois a vida de Hamsun,<br />
com toda a sua visão de verdadeiro proletário, é uma advertência:<br />
sua solidariedade aos pobres e aos de<strong>se</strong>mpregados dos anos 1930 o levou<br />
a aderir ao nazismo e a saudar a ocupação de <strong>se</strong>u país pela Alemanha de<br />
Hitler. Ele morreu em 1952, <strong>se</strong>m <strong>se</strong> ter arrependido,<br />
mesmo depois de ter sido preso<br />
e dado como louco no pós-guerra. Afi nal o<br />
fascismo está renascendo hoje na Europa,<br />
em especial nos paí<strong>se</strong>s ex-comunistas – e é<br />
preciso levar muito a sério o <strong>se</strong>u apelo popular,<br />
como solução bárbara para situações<br />
de barbarismo.<br />
Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor<br />
do romance-ensaio O Mundo como Obra de<br />
Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela,<br />
e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros<br />
para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-<br />
040, São Paulo-SP.
As novas regras de publicidade impedem que pessoas consideradas celebridades<br />
façam propaganda de remédios vendidos <strong>se</strong>m receita. É o mínimo de defesa<br />
dos cidadãos que <strong>se</strong> pode estabelecer. Se coloca em questão, pela primeira vez, uma<br />
das expressões mais instrumentalizadoras de personagens tornados famosos pela mídia,<br />
para vender qualquer tipo de produto.<br />
Me lembro perfeitamente das publicidades milionárias do governo FHC<br />
para privatizar a Vale do Rio Doce, feitas por Raul Cortez. Um artista que conquistou<br />
fama por <strong>se</strong>u meritório trabalho no teatro e por um muito menos em telenovelas<br />
da Globo, <strong>se</strong> valia da empatia com sua imagem, para vender a privatização da maior<br />
empresa do <strong>se</strong>u ramo no mundo, com argumentos que <strong>se</strong> revelaram totalmente falazes<br />
com o passar do tempo.<br />
Da mesma forma outros artistas ou esportistas vendem, a preço de<br />
ouro, suas imagens, para promover a comercialização de mortadelas, apartamentos,<br />
carros, bancos, cervejas, entre tantas outras mercadorias. O que tem a ver a imagem<br />
de cada um deles com os produtos que anunciam? Não são nem <strong>se</strong>quer suas preferências<br />
pessoais. Veja-<strong>se</strong> como Zeca Pagodinho anunciou uma cerveja que <strong>se</strong> conhecia<br />
não <strong>se</strong>r da sua preferência, mas que lhe pagou mais. Depois voltou àquela que prefere,<br />
não por ter mudado de marca, mas por uma oferta publicitária maior.<br />
Em vários paí<strong>se</strong>s escandinavos é proibida qualquer publicidade nos<br />
horários prioritários das crianças verem televisão, por <strong>se</strong> considerar que elas são excessivamente<br />
frágeis, indefesas, diante da agressividade das ofertas das mercadorias<br />
que lhes são oferecidas pela televisão. Enquanto que o mercado deita e rola em cima<br />
das crianças, um nicho de mercado bombardeado com comidas, roupas, celulares, entre<br />
tantas outras coisas.<br />
A mercantilização da vida <strong>se</strong> propaga através da publicidade, veiculada<br />
de forma privilegiada pela televisão. Vale tudo para vender. Um conhecido publicitário<br />
brasileiro dis<strong>se</strong>, com toda sinceridade, que a publicidade não tem ética. Dêem-me<br />
um produto e eu encontrarei a fórmula de dizer que é bom para as pessoas,<br />
que vale a pena comprá-lo. O sucesso de vendas de um produto não está na aceitação<br />
das pessoas, no reconhecimento das suas qualidades, mas no mérito das campanhas<br />
que o promovem. Da mesma forma que <strong>se</strong> diz que um processo na Justiça não<br />
é ganho por quem é inocente, mas por quem dispõe do melhor advogado. Isso <strong>se</strong> estende<br />
às eleições, em que os marqueteiros passaram a <strong>se</strong>r mais importantes do que<br />
as plataformas que os candidatos defendem.<br />
O marketing, a publicidade, são expressões da concepção de mundo que<br />
buscar mercantilizar a tudo, que trata de que tudo tenha preço, tudo <strong>se</strong> venda, tudo<br />
<strong>se</strong> compre, da visão da sociedade como uma espécie de shopping-center, da vitória<br />
do mercado contra o direito. Democratizar é desmercantilizar, é afirmar direitos e esfera<br />
pública contra o reino do mercado e do marketing.<br />
Emir Sader é cientista político.<br />
Emir Sader<br />
ÉTICA CONTRA A<br />
PuBliCidade<br />
sugestões de leitura<br />
FORÇA DE TRABALHO E TECNOLOGIA NO BRASIL<br />
Marcio Pochmann<br />
Editora Revan<br />
O VOO DE MINERVA<br />
Antonio Carlos Mazzeo<br />
Boitempo Editorial<br />
OS DESAFIOS DAS EMANCIPAÇÕES EM<br />
UM CONTEXTO MILITARIZADO<br />
Ana Esther Ceceña (org.)<br />
Editora Expressão Popular<br />
C<br />
M<br />
Y<br />
CM<br />
MY<br />
CY<br />
CMY<br />
K<br />
junho 2009 caros amigos<br />
45
SAC CAIXA<br />
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Chegou a hora de inscrever o <strong>se</strong>u projeto cultural para receber o patrocínio da CAIXA em<br />
2010. Os editais com todas as informações para elaboração e inscrição de projetos já estão<br />
no site da CAIXA. Aces<strong>se</strong> e inscreva-<strong>se</strong> já. A CAIXA quer que você faça parte des<strong>se</strong> show.<br />
Editais – Festivais de Teatro e Dança | Programa de Apoio ao Artesanato Brasileiro |<br />
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