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AGRONEGÓCIO<br />

QUER ACABAR COM A<br />

AMAZÔNIA AMAZÔNIA AMAZÔNIA<br />

ENTREVISTA EXCLUSIVA COM<br />

MARINA SILVA<br />

PRISÃO-HOSPÍCIO<br />

ESCONDE JOVENS INFRATORES<br />

GUTO LACAZ MARILENE FELINTO GLAUCO MATTOSO ANA MIRANDA JOSÉ ARBEX JR. GILBERTO VASCONCELLOS<br />

MARCOS BAGNO JOÃO PEDRO STEDILE RENATO POMPEU TATIANA MERLINO EDUARDO SUPLICY HAMILTON<br />

OCTAVIO DE SOUZA CESAR CARDOSO JOEL RUFINO DOS SANTOS CAMILA MARTINS BRUNA BUZZO FREI BETTO<br />

GERSHON KNISPEL DANIELA BAUDOUIN ANA MARIA STRAUBE FIDEL CASTRO EMIR SADER MARCELO SALLES<br />

PLINIO TEODORO MARCOS ZIBORDI MC LEONARDO GUILHERME SCALZILLI LUCIA RODRIGUES LATUFF CLAUDIUS<br />

ano XIII número 148 julho 2009<br />

R$ 9,90<br />

FUNK CARIOCA, O PERSEGUIDO<br />

DÍVIDA<br />

PÚBLICA<br />

A FARRA DOS<br />

ESPECULADORES<br />

POR QUE A DIREITA ATACA A<br />

PETROBRAS<br />

LUIZ MOTT:<br />

“AQUI É ONDE SE MATA<br />

MAIS HOMOSSEXUAIS”<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br


CAROS AMIGOS ANO XIII 148 julhO 2009<br />

Foto de capa<br />

ROBERtO JAYME<br />

EDITORA CASA AMARELA<br />

­Revistas­•­LivRos­•­<strong>se</strong>Rviços­editoRiais<br />

fundadoR:­séRgio­de­souza­(1934-2008)<br />

diRetoR­geRaL:­WagneR­nabuco­de­aRaújo<br />

A defesa do Brasil<br />

Reunimos nesta edição da Caros Amigos algumas matérias que têm<br />

o mesmo denominador comum: a defesa dos recursos e do patrimônio<br />

do povo brasileiro.<br />

Reconhecida internacionalmente por sua luta em defesa da Amazônia,<br />

a <strong>se</strong>nadora Marina Silva (PT-AC), ex-ministra do Meio Ambiente,<br />

analisa o atual processo de desmonte dos instrumentos de proteção<br />

ambiental e os ataques mais recentes dos predadores de <strong>se</strong>mpre,<br />

que ela denomina de <strong>se</strong>tores do agronegócio.<br />

O crescimento econômico a qualquer preço, a realização de obras<br />

e atividades voltadas para a exportação (usinas hidrelétricas para<br />

empresas de extração mineral, extração da madeira, criação de gado<br />

e expansão de monoculturas da soja e da cana), estão acelerando<br />

a destruição da Amazônia, ao mesmo tempo em que proporcionam<br />

maior concentração da riqueza nas mãos de grupos empresariais nacionais<br />

e estrangeiros.<br />

A auditora federal Maria Lúcia Fattorelli – repre<strong>se</strong>ntante brasileira<br />

na auditoria da dívida pública do Equador - desvenda os vários mecanismos<br />

de transferência de recursos públicos para o <strong>se</strong>tor privado,<br />

os esquemas de especulação financeira que elevaram a dívida pública<br />

a cifras astronômicas, não apenas no Brasil, mas também em outros<br />

paí<strong>se</strong>s da América Latina.<br />

A denúncia da auditora é <strong>se</strong>ríssima. Ela deixa claro como o assalto<br />

aos cofres públicos tem sido praticado com a conivência das autoridades<br />

brasileiras e de grupos econômicos que manipulam os poderes da<br />

República em benefício próprio. A evasão provocada pela dívida pública<br />

está diretamente relacionada com o baixo investimento em educação,<br />

saúde e nas demais áreas sociais.<br />

Outra matéria da maior relevância procura esclarecer o que está<br />

por trás e quais são os reais interes<strong>se</strong>s dos grupos de direita que promovem<br />

novos ataques a Petrobras. De olho nos lucros que a exploração<br />

do petróleo do pré-sal deverá proporcionar, o capital privado<br />

nacional e internacional procura fustigar a maior empresa estatal<br />

brasileira, certamente com a ajuda de parlamentares e da grande<br />

mídia neoliberal.<br />

A revista oferece também aos leitores e leitoras reportagens sobre<br />

o assassinato de homos<strong>se</strong>xuais no Brasil, a per<strong>se</strong>guição ao movimento<br />

funk do Rio de Janeiro, a mobilização para a Conferência Nacional de<br />

Comunicação, a prisão-hospício que São Paulo construiu para jovens<br />

infratores e o conjunto de artigos e colunas do nosso time de colaboradores.<br />

Enfim, um conteúdo diferenciado, instigante, o contraponto<br />

necessário ao discurso da mídia grande neoliberal. Não deixe de ler.<br />

EDITOR: hamilton Octavio de souza EDITORa aDjunTa: Tatiana Merlino EDITOREs EsPECIaIs: josé arbex jr e Renato Pompeu EDITORa DE aRTE: Lucia Tavares assIsTEnTE DE aRTE: henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRaFIa: Walter<br />

Firmo REPÓRTER EsPECIaL: Marcos Zibordi REPÓRTEREs: Camila Martins, Felipe Lar<strong>se</strong>n, Fernando Lavieri, Luana schabib EsTaGIÁRIOs: Bruna Buzzo e Carolina Ros<strong>se</strong>tti CORREsPOnDEnTEs: Marcelo salles (Rio de janeiro), Bosco Martins<br />

(Mato Grosso do sul), Maurício Macedo (Rio Grande do sul) e aneli<strong>se</strong> sanchez (Roma) REvIsORa: Lucia Rodrigues sECRETÁRIa Da REDaÇÃO: simone alves DIRETOR DE MaRKETInG: andré herrmann PuBLICIDaDE: Melissa Rigo CIRCuLaÇÃO:<br />

Pedro nabuco de araújo RELaÇõEs InsTITuCIOnaIs: Cecília Figueira de Mello aDMInIsTRaTIvO E FInanCEIRO: Ingrid hentschel, Elisângela santana COnTROLE E PROCEssOs: Wanderley alves, Elys Regina LIvROs Casa aMaRELa: Clarice<br />

alvon síTIO: Paula Paschoalick aPOIO: Maura Carvalho, Douglas jerônimo e neidivaldo dos anjos aTEnDIMEnTO aO LEITOR: Lília Martins alves, Zélia Coelho assEssORIa juRíDICa: Marco Túlio Bottino, aton Fon Filho, juvelino strozake, Luis<br />

F. X. soares de Mello, Eduardo Gutierrez e susana Paim Figueiredo REPREsEnTanTE DE PuBLICIDaDE: BRasíLIa: joaquim Barroncas (61) 9972-0741.<br />

jORnaLIsTa REsPOnsÁvEL: haMILTOn OCTavIO DE sOuZa (MTB 11.242)<br />

DIRETOR GERaL: WaGnER naBuCO DE aRaújO<br />

CaROs aMIGOs, ano XIII, nº 148, é uma publicação mensal da Editora Casa amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de são Paulo, de acordo com a Lei de maio Imprensa. 2009 caros amigos<br />

Distribuída com exclusividade no Brasil pela DInaP s/a - Distribuidora nacional de Publicações, são Paulo. IMPREssÃO: Bangraf<br />

REDaÇÃO E aDMInIsTRaÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, são Paulo, sP<br />

sumário<br />

07 Marilene Felinto comemora o golpe de mestre da comunicação da Petrobras.<br />

08 Glauco Mattoso Porca Miséria.<br />

Gilberto Vasconcellos desvenda Silva Mello, o Karl Marx da medicina.<br />

09 José Arbex Jr. mostra como os brasileiros pagam pela falência da General Motors.<br />

10 Marcos Bagno Falar Brasileiro.<br />

Mc Leonardo fala da expansão das favelas e do Brasil politicamente incorreto.<br />

12 Entrevista Maria Lucia Fattorelli Dívida Pública faz a farra dos especuladores.<br />

16 Ivan Valente defende a instalação imediata da CPI da Dívida na Câmara Federal.<br />

17 Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo.<br />

Ana Miranda conta a história de um menino piloto que distribui cestas básicas.<br />

18 João Pedro Stedile fala sobre a cri<strong>se</strong> e a ofensiva do capital internacional.<br />

Eduardo Suplicy comenta os filmes Garapa e Ave Poesia do Patativa do Assaré.<br />

19 Hamilton Octavio de Souza Entrelinhas – A mídia como ela é.<br />

Cesar Cardoso lembra que a mente temporária apaga a memória a cada momento.<br />

20 Entrevista Luiz Mott O Brasil é o país onde mais <strong>se</strong> mata homos<strong>se</strong>xuais.<br />

22 Joel Rufino dos Santos critica o poder da televisão para eliminar o contraditório.<br />

Guilherme Scalzilli analisa a guinada da política internacional dos Estados Unidos.<br />

23 Gershon Knispel prevê um Estado de Israel binacional com mais apartheid.<br />

24 Ensaio Fotográfico Latuff Visita aos campos de palestinos na Jordânia e Líbano.<br />

26 Entrevista Marina Silva Crítica ao agronegócio pela destruição da Amazônia.<br />

31 Plínio Teodoro Desmatamento acelerado nas fazendas de Daniel Dantas no Pará.<br />

32 Frei Betto chama a atenção para a absolutização dos sistemas ideológicos.<br />

Fidel Castro comenta o caso do casal de apo<strong>se</strong>ntados acusados de espionagem.<br />

33 Daniela Baudouin analisa a ingerência da França no conflito do Sudão.<br />

34 Ana Maria Straube O que está na pauta da Conferência Nacional de Comunicação.<br />

36 Camila Martins A polêmica internação de menores infratores em unidade especial.<br />

38 Lucia Rodrigues A direita parlamentar e a mídia neoliberal atacam a Petrobras.<br />

41 Bruna Buzzo Documentário mostra a trajetória poética de Patativa do Assaré.<br />

42 Marcelo Salles Movimento funk do Rio de Janeiro: per<strong>se</strong>guição e resistência.<br />

44 Renato Pompeu Idéias de Botequim.<br />

45 Emir Sader critica a falta de ética e a mercantilização da publicidade.<br />

46 Claudius<br />

5


6<br />

Mulheres<br />

Aproveito para parabenizá-los pela edição de<br />

junho e pelas matérias impressionantes sobre o<br />

tráfico e a violência contra as mulheres. Também<br />

gostei muito de ver o trabalho do pessoal do NPC<br />

em destaque. Tive o prazer de assistir uma palestra<br />

de Vito Giannotti em 2007, e entendo que os<br />

jovens do Arraial do Cabo tenham <strong>se</strong> apaixonado<br />

pelo curso, pois os projetos que o Núcleo de<strong>se</strong>nvolve<br />

são, de fato, fascinantes.<br />

Francine de Almeida, São José do Rio Preto/ SP<br />

Brizola Neto<br />

Parabéns pela excelente entrevista do Deputado<br />

Federal Brizola Neto. É bom saber que ainda<br />

existe deputado com postura ética e leitura de um<br />

Brasil soberano, no meio de um Congresso com<br />

“alguns pilantras”, como no passado, afirmou o<br />

presidente Lula.<br />

Bruno Calderaro, Nova Friburgo/ RJ<br />

Maria rita Kehl<br />

Realmente excelente a entrevista de Maria<br />

Rita Kehl no número de maio de 2009. Algumas<br />

pequenas ob<strong>se</strong>rvações. Com o crescente compromisso<br />

da Organização Mundial da Saúde com a<br />

indústria farmacêutica, a expectativa que esta<br />

organização faz de que a depressão <strong>se</strong>rá a <strong>se</strong>gunda<br />

maior causa de comorbidade não é exatamente<br />

um exercício de previsão, mas sim uma<br />

estratégia para que isto <strong>se</strong> torne realidade. Sendo<br />

mais claro, a OMS está trabalhando para que<br />

esta meta <strong>se</strong>ja alcançada, o que repre<strong>se</strong>ntará um<br />

aumento fabuloso no consumo de antidepressivos.<br />

E como isto pode acontecer? A própria Maria<br />

Rita responde, ao demonstrar que as pessoas<br />

tendem a <strong>se</strong> identificar com as enfermidades<br />

mentais, isto é, que elas podem <strong>se</strong>r produzidas<br />

socialmente e incrementadas.<br />

Paulo Amarante, Doutor em Ciências da Saúde<br />

Marcos BagNo<br />

Na edição de maio da Caros Amigos, o lingüista<br />

Marcos Bagno mencionou, de maneira admirável,<br />

a tristeza de <strong>se</strong> viver num país emergente<br />

com uma educação submersa. Eu não pude<br />

deixar de escrever com a intenção de acrescentar<br />

uma grande indignação no que diz respeito<br />

aos cursos de licenciatura que vem forman-<br />

fale conosco<br />

assinatUras<br />

assine a revista<br />

sítio: www.carosamigos.com.br<br />

tel.: (11) 2594-0376<br />

(de <strong>se</strong>gunda a <strong>se</strong>xta-Feira,<br />

das 9 às 18h)<br />

caros amigos julho 2009<br />

Caros leitores<br />

do milhares de pessoas <strong>se</strong>m habilitações mínimas<br />

para exercer a profissão docente: inicia-<strong>se</strong> ainda<br />

em 2009 a Universidade Virtual do Estado de<br />

São Paulo – UNIVESP – que pretende formar 35<br />

mil professores através de cursos de licenciatura<br />

ministrados pela Internet! Es<strong>se</strong> programa trata-<strong>se</strong><br />

de um grande exemplo de como as clas<strong>se</strong>s<br />

dirigentes brasileiras tiram o máximo proveito<br />

do abismo social de nosso país, valendo-<strong>se</strong> des<strong>se</strong><br />

contexto por elas sustentado, para atingir o completo<br />

sucateamento da educação brasileira.<br />

Daniela Perre<br />

MarileNe FeliNto<br />

Gostaria de ressaltar que o <strong>se</strong>u artigo sobre a<br />

situação dos professores no Estado de São Paulo<br />

retratou muito bem a perversidade do tucanato<br />

no Brasil. Sou professora de história na cidade<br />

de Contagem (Grande BH) em Minas Gerais. Neste<br />

Estado a situação é a mesma, pois desde 2001<br />

trabalho como contratada. Com o governo de Aécio<br />

Neves [a situação] tornou-<strong>se</strong> pior, pois foram<br />

criadas várias resoluções em que os professores<br />

são qua<strong>se</strong> que obrigados a passar alunos que não<br />

con<strong>se</strong>guem aprender ou que possuem muita dificuldade<br />

no aprendizado. O governador <strong>se</strong> recusa<br />

a fornecer o novo piso salarial e ainda cobra demasiadamente<br />

de todos os professores<br />

Monica Valeska<br />

José arBex<br />

Só gostaria de saber <strong>se</strong> o sr. José Arbex Jr. tem<br />

alguma justificativa decente para tachar a justificativa<br />

canhestra da justiça eleitoral para caçar<br />

Jackson Lago de “ishhperrrta” (assim, nessa<br />

grafia de fonética carioca)? Sei, <strong>se</strong>i... ele quis dizer<br />

que foi uma atitude marota, metida a malandra,<br />

mas bastante vagabunda, né? Imagino que<br />

ao imitar nosso sotaque, <strong>se</strong>ja exatamente essa a<br />

mensagem que passou no texto... Não quero bancar<br />

o babaca politicamente correto, mas acredito<br />

que não sairia de <strong>se</strong>u texto nenhuma referência<br />

a alguma atitude ridiculamente pilantra e<br />

arrogante, tipicamente “paulizta”, tá me “enteindeindo”,<br />

meu? Tá “enteindeindo” porque eu não<br />

achei graça na citação? Dá próxima vez que qui<strong>se</strong>r<br />

soltar os cachorros em outro (justificadíssimo)<br />

ataque de fúria contra a injustiça do mundo,<br />

vê <strong>se</strong> toma mais cuidado pra não deixar <strong>se</strong>us pre-<br />

<strong>se</strong>rviço de atendimento<br />

ao assinante<br />

Para registrar mudança de endereço; esClareCer dúvidas<br />

sobre os Prazos de reCebimento da revista; reClamações;<br />

venCimento e renovações da assinatura<br />

emeio: atendimento@Carosamigos.Com.br<br />

novo tel.: (11) 2594-0376<br />

conceitos babacas escaparem juntos, falô merrrmão?<br />

Senão você acaba perdendo a razão.<br />

Fernando Miller<br />

caros aMigos<br />

Ao contrário do que pensa Ismael Santos Teixeira<br />

(carta publicada na edição 146) sobre a revista<br />

Caros Amigos, sou fã da maneira juvenil<br />

que a revista trata as questões, das bandeiras e<br />

camisas juvenis que apóia. Considero uma revista<br />

que <strong>se</strong> propõe de esquerda <strong>se</strong>m cair no autismo<br />

intelectual das academias, <strong>se</strong>m cair no intelectualismo<br />

excessivo. Continua e <strong>se</strong>mpre continuará<br />

apoiando <strong>se</strong>us ídolos Che, Fidel, Marighela, Lamarca<br />

e outros mais. É a única que <strong>se</strong> mantém<br />

firme naquele sonho adolescente de mudança do<br />

mundo, que mantém vivo os verdadeiros ídolos<br />

da esquerda. A única que não deixa es<strong>se</strong> sonho<br />

cair na armadilha de uma análi<strong>se</strong> mais “madura”<br />

dos fatos, de <strong>se</strong> adaptar aos novos tempos. Que<br />

novos tempos? Os tempos continuam os mesmos,<br />

guerras, fome, injustiças, capitalismo <strong>se</strong>lvagem,<br />

mundo da mercadoria, tudo isso em qualquer<br />

canto do mundo. Se mudou, mudou apenas<br />

na aparência, adquiriu um formato diferente do<br />

mesmo conteúdo. Ser juvenil é tudo. Se amadurecer<br />

significar a perda do caráter juvenil, então<br />

por favor, não amadureçam nunca.<br />

Felipe Telles<br />

errata<br />

Em atendimento ao Ofício GABPR46-ASFM/<br />

SP – 011629/2009, da procuradora da República<br />

Adriana Scordamaglia, referente à reportagem<br />

A Protogêne<strong>se</strong> da Operação Satiagraha, publicada<br />

na edição 138, de <strong>se</strong>tembro de 2008, informamos<br />

que ocorreu um equívoco no fechamento da matéria<br />

e que, em momento algum, obtivemos qualquer<br />

informação de que o juiz Alexandre Cas<strong>se</strong>tari<br />

estives<strong>se</strong> implicado com o vazamento da chamada<br />

Operação Satiagraha. Por isso, pedimos desculpas<br />

ao magistrado, ao advogado Nélio Machado,<br />

também referido na reportagem, e aos nossos<br />

leitores.<br />

A entrevista com o ator Wagner Moura (edição<br />

147) foi realizada na FR Produções, no bairro da<br />

Gávea, Rio de Janeiro e não na produtora do ator,<br />

como foi publicado.<br />

redação<br />

Comentários sobre<br />

o Conteúdo editorial, sugestões<br />

e CrítiCas a matérias.<br />

emeio: redaCao@carosamigos.com.br<br />

Fax: (11) 2594-0351<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br


Pela primeira vez os procedimentos do Estado<br />

foram mais rápidos do que o ingresso da mídia no<br />

acontecimento ou no fato. A inversão é histórica, até<br />

porque aconteceu no âmbito do esclarecimento público,<br />

da chamada transparência na divulgação da informação,<br />

no oposto mesmo da censura.<br />

Foi o que ocorreu quando do lançamento<br />

de um blog criado pela Petrobras (http://petrobrasfato<strong>se</strong>dados.wordpress.com/)<br />

em junho para divulgar<br />

em tempo real, o tempo da verdade (e não no tempo<br />

da manipulação e da mentira dos jornalões, das revistonas<br />

e dos telejornais), e na íntegra, tudo o que era<br />

perguntado à empresa pelos jornalistas entrevistadores<br />

e tudo o que era respondido a eles. Golpe de mestre da<br />

comunicação da Petrobras: a divulgação das perguntas<br />

e respostas saía antes da publicação ou veiculação<br />

nos órgãos de imprensa. A imprensa de<strong>se</strong>sperada ganiu,<br />

ferida de morte. Soltou editoriais coléricos. Tudo<br />

inútil. A lição estava dada. Ainda que a Petrobras tenha<br />

desistido depois de sair na frente da imprensa golpista.<br />

Viva o Estado (não por acaso petista), viva a Petrobras<br />

e a democracia na internet.<br />

Os comentários de apoio à ação da Petrobras<br />

explodiram em numerosos sítios, blogs e listas<br />

de esquerda: “Também são publicadas no blog as<br />

cartas enviadas aos jornais pela Petrobras, corrigindo<br />

informações erradas, interpretações equivocadas<br />

e acusações <strong>se</strong>m fundamento. Utilizando-<strong>se</strong> de toda<br />

a potencialidade da Internet, o blog esfarelou qua<strong>se</strong><br />

instantaneamente uma parte do poder de manipulação<br />

e falsificação de informações, prática comum aos<br />

jornais, revistas e redes de TV, especialmente nos últimos<br />

anos e contra o governo Lula e o PT”.<br />

A imprensa que <strong>se</strong> enxovalha a si<br />

mesma cada dia mais, toda ela sinônimo de imprensa<br />

Marilene Felinto<br />

Ferida de morte,<br />

imprensa golpista ganiu<br />

de escândalos, toda ela imprensa de <strong>se</strong>nsacionalismo<br />

e distorção, há tempos já não é de interes<strong>se</strong> público,<br />

não informa ao cidadão e nem, muito menos, substitui<br />

o debate público.<br />

A imprensa desacreditada, dos jornalões,<br />

por exemplo, que hoje em dia não escrevem <strong>se</strong>não<br />

para si próprios, amarga ainda a queda vertiginosa<br />

nas vendas. O jornalão que mais vende não atinge nem<br />

mesmo 1% da população do país. A análi<strong>se</strong> abaixo destrincha<br />

bem os números da derrocada: “Os últimos dados<br />

sobre a circulação média de jornais divulgados pelo<br />

Instituto Verificador de Circulação (IVC) para o mês de<br />

abril revelam que a Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado<br />

de S. Paulo perderam, respectivamente, 10,84%,<br />

7,75% e 16,93% de circulação média diária em abril de<br />

2009, <strong>se</strong> comparada aos números de abril de 2008. Nenhum<br />

deles atinge a circulação de 300 mil exemplares<br />

diários. Os números arredondados são, respectivamente,<br />

289 mil, 259 mil e 214 mil exemplares. Se supu<strong>se</strong>rmos<br />

que cada exemplar é lido, em média, por quatro (?) pessoas,<br />

o maior jornalão brasileiro teria hoje cerca de um<br />

milhão, 156 mil leitores/dia. Isto significa atingir potencialmente<br />

cerca de 0,604% do total estimado da população<br />

brasileira, que é de 191.231.246 habitantes (...).”<br />

(Venício de Lima, Ob<strong>se</strong>rvatório da Imprensa). O comentarista<br />

lembra ainda que, no ano 2000, a Folha tinha<br />

uma circulação média de 429.476 exemplares/dia.<br />

A imprensa da avacalhação, que, por<br />

nostalgia, ainda chama a si mesma de “grande imprensa”,<br />

amofinou-<strong>se</strong> também diante do corajoso ato do<br />

governo Lula de desconcentrar as verbas publicitárias,<br />

as quais, em governos anteriores, só <strong>se</strong> destinavam às<br />

grandes corporações de mídia. A resposta de Franklin<br />

Martins, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação<br />

Social da Presidência da República, a um jornalão de São<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

Paulo que questionava a redistribuição da verba, é lapidar:<br />

“(...) os anúncios da Secretaria de Comunicação<br />

Social da Presidência da República (Secom), até 2003<br />

concentrados em apenas 499 veículos e 182 municípios,<br />

em 2008 alcançaram 5.297 órgãos de comunicação em<br />

1.149 municípios – um aumento da ordem de 961%. As<br />

verbas publicitárias de todos os órgãos ligados ao governo<br />

federal permaneceram no mesmo patamar do governo<br />

anterior, em torno de R$ 1 bilhão ao ano. Não houve<br />

aumento de verbas. O que mudou foi a política. Em<br />

vez de concentrar anúncios num punhado de jornais, rádios<br />

e televisões, a publicidade do governo federal alcança<br />

agora o maior número possível de veículos. Pelo<br />

mesmo custo, está falando melhor e mais diretamente<br />

com mais brasileiros. Acompanhando a diversificação<br />

que está ocorrendo nos meios de comunicação.”<br />

Pela primeira vez, em duas décadas, vi jornalistas<br />

exaltarem, enfim, a ocupação corriqueiramente<br />

patética de ficar escrevendo o que (e como) o dono<br />

do jornalão manda. Eis o que dis<strong>se</strong> um deles: “Obrigado.<br />

Poucas vezes em 32 anos de profissão pude <strong>se</strong>ntir<br />

o orgulho que estou <strong>se</strong>ntindo hoje por <strong>se</strong>r jornalista,<br />

graças à iluminada idéia e a coragem de realizar o<br />

blog da Petrobras. Es<strong>se</strong> é um pequeno grande exemplo<br />

da força do caminho da democracia, da transparência,<br />

da liberdade da informação, do compromisso com os<br />

fatos e as informações corretas. O duro é que isso ainda<br />

hoje no Brasil é profundamente subversivo. É duro<br />

mas é bom: bastou um simples blog para esfarelar uma<br />

parte do poder dos oligopólios da mídia. Agora é esperar<br />

a reação, porque eles são brutos e não sabem perder.<br />

Parabéns.” (Sérgio Alli)<br />

Marilene Felinto é escritora.<br />

marilenefelinto@carosamigos.com.br<br />

junho 2009 caros amigos<br />

Ilustração: GIl BrIto<br />

7


Ilustração: Gustavo aoyaGI<br />

8<br />

Si até o Obama <strong>se</strong> rendeu ao charisma<br />

do Lula, não <strong>se</strong>rei eu, que não tenho olho<br />

azul nem visão, quem irá fazer cu doce: acho<br />

que, cri<strong>se</strong>s à parte, melhor um terceiro mandato<br />

delle que qualquer outra hypothe<strong>se</strong>.<br />

Mas Obama fez o que eu faria: ao invés de considerar<br />

a cor da pelle ou dos olhos, apertou-lhe<br />

a mão e a barriguinha para chegar a tal ob<strong>se</strong>rvação.<br />

Reconheçamos, pois, aquillo que ninguem<br />

mais nega: barriga faz parte da boa pinta,<br />

e não apenas num presidente charismatico.<br />

Emquanto enxerguei e tive alguma attracção<br />

pelas mulheres, eram as gordinhas que me<br />

captivavam. Antes de me assumir como gay,<br />

só con<strong>se</strong>gui namorar uma hipponga magra<br />

que nem a Joni Mitchell, mas meu sonho era<br />

namorar uma gorda que nem a Mama Cass.<br />

Sempre tive tesão pelas doceiras e quituteiras<br />

rechonchudas, tanto quanto tenho appetite<br />

pelas gulo<strong>se</strong>imas que ellas preparam. Minha<br />

melhor amiga na cegueira, aquella que me<br />

caros amigos julho 2009<br />

porca miséria!<br />

Glauco Mattoso<br />

Soneto para um<br />

regimen dictatorial<br />

(1781)<br />

“Balança mentirosa!”, a gorda exclama.<br />

“Só pode estar desregulada, a joça!”<br />

Amigas, condoidas de <strong>se</strong>u drama,<br />

lhe dão, para comer, o que inda possa...<br />

Cortado o sal, ja quasi nada adoça.<br />

Temperos reduziu e, a cada gramma<br />

a mais no prato, alguem <strong>se</strong> espanta: “Nossa!”<br />

Patrulham a coitada até na cama...<br />

Se queixa o namorado, outro gordão,<br />

que ja nem sobra espaço no colchão<br />

e que ella ronca feito uma leitoa...<br />

“Assim não dá! Me chamam de baleia<br />

e, emquanto não estão de pança cheia,<br />

mais alto é o ronco que, la dentro, echoa...”<br />

frictava os bolinhos de chuva, é a Bia, uma gorduchesima<br />

judia de olhos azues. Para as gorduchas<br />

fiz todo um cyclo de sonetos, coisa que não<br />

faria para as esqueleticas estrellas das passarellas.<br />

Concluo que, na politica como no cardapio, quanto<br />

menos dictatorial o regimen, mais tem a nossa<br />

cara. E só não sou tão gorducho nem tão sympathico<br />

quanto o Lula ou a Bia por causa do sangue<br />

ruim, pois, alem de cego, soffro duma prisão de<br />

ventre que prejudica minha capacidade de desfructar<br />

plenamente dessas liberdades democraticas<br />

e gastronomicas. O que não me impede de<br />

applaudir os bolinhos de chuva, nem de concordar<br />

que o Lula, como diz o Obama, é mesmo o<br />

cara... Nossa lingua é muito expressiva: a palavra<br />

“enfezado” allude a alguem que não caga direito.<br />

Emfim, não basta poder, nem saber comer,<br />

nem gostar da comida: quem não caga livremente<br />

só pode <strong>se</strong> soltar mesmo no verso.<br />

Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.<br />

Gilberto Felisberto Vasconcellos<br />

Se você comes<strong>se</strong> bosta<br />

<strong>se</strong>ria melhor<br />

De Rolim, tarimbado inteligente da editora Insular,<br />

SC, me vem a notícia de que o meu livro sobre o médico-filósofo<br />

Silva Mello está vindo a lume. O titulo é<br />

montagem da poesia de Oswald de Andrade com o samba<br />

de Nelson Cavaquinho. Eis o título do livro que escrevi<br />

durante quinze anos: Nossa Vida De Cada Dia Entre O<br />

Supermercado e a Drogaria.<br />

Você come uma comida envenenada do supermercado<br />

e vai <strong>se</strong> curar na drogaria com o remédio que<br />

não cura. Silva Mello ( 1886-1973) é o Karl Marx da medicina,<br />

embora não fos<strong>se</strong> marxista nem comunista. É que<br />

fez (e denunciou na prática médica) a anatomia da mercadoria<br />

na medicina. A formação do médico manipulado<br />

pelo monopólio do fármaco. É a saúde publicitária, na<br />

qual <strong>se</strong> coisifica a pessoa e personifica a coisa. É o que<br />

Marx chamava de fetichismo da mercadoria. Silva Mello<br />

dirigiu durante 40 anos a Revista Brasileira de Medicina<br />

e não permitiu que nela houves<strong>se</strong> anúncio.<br />

Quem produz a comida é a mesma multinacional<br />

que produz o remédio. A comida é desnaturalizada,<br />

transgênica, produzida com agrotóxico, ba<strong>se</strong>ada no petróleo.<br />

O mais louco é que as empresas alimentárias e<br />

farmacológicas são as que fabricam armas para o imperialismo,<br />

como a Monsanto que fabricava Napalm para<br />

despejar nos vietcongues. São as mesmas que financiaram<br />

a derrubada de governos progressistas na América<br />

Latina como João Goulart e Salvador Allende.<br />

Silva Mello mostrou, no corpo humano, os efeitos<br />

deletérios da aliança entre a drogaria e o supermercado,<br />

incluindo igreja e faculdade de medicina. É difícil achar<br />

um professor de medicina que tenha ouvido falar do sistemão.<br />

Trata-<strong>se</strong> de um marginal específico no Brasil. Oswald<br />

de Andrade teve uma vida conturbada, ficou pobre. Glauber<br />

Rocha, nasceu pobre, na periferia de Vitória da Conquista.<br />

Silva Mello era médico, formado em Berlim, clinicou<br />

na Suíça, onde um de <strong>se</strong>us pacientes foi Rockefeller.<br />

Fez a maior clinica de gente rica do Rio. Seu automóvel<br />

era um Buick de oito mil quilos. Passava os fins de <strong>se</strong>mana<br />

em uma datcha luxuosíssima em Petrópolis, onde escreveu<br />

<strong>se</strong>us livros. Alguns foram traduzidos em alemão e inglês.<br />

Em 1960 entrou para a Academia Brasileira de Letras.<br />

Antes foi procurado por Einstein em sua casa em Laranjeiras,<br />

onde mais tarde morou Roberto Marinho. Na feijoada,<br />

Einstein encheu a cara de caipirinha, depois quis <strong>se</strong>ntar a<br />

uma rede boliviana de dormir, qua<strong>se</strong> caiu. Silva Mello reparou:<br />

o cientista da relatividade não con<strong>se</strong>guiu <strong>se</strong> equilibrar<br />

na mecânica primitiva da rede.<br />

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo,<br />

jornalista e escritor.


José Arbex Jr.<br />

Nem a morte de Golias<br />

acorda o Brasil<br />

Entre tantas e intermináveis cri<strong>se</strong>s,<br />

o 1º de junho <strong>se</strong>rá para <strong>se</strong>mpre marcado como o fim de<br />

uma era do capitalismo: nes<strong>se</strong> dia, a General Motors declarou-<strong>se</strong><br />

quebrada. É um fato de imensa amplitude histórica,<br />

absolutamente subestimada pelos meios de comunicação<br />

brasileiros. Por ignorância, má-fé ou – o que<br />

é mais provável – uma mistura de ambos, a mídia dos<br />

patrões preferiu abordar a nova queda de Golias como<br />

um mero desdobramento, na esfera industrial, da cri<strong>se</strong><br />

econômica mundial, ou como algo anedótico, inspirador<br />

de nostalgia. Foi muito mais do que isso: a falência da<br />

GM assinala, simbolicamente, a ruína um modelo inteiro,<br />

sobre o qual estava ancorado o “american dream”, o<br />

fantástico motor que estruturou o mercado consumidor<br />

estaduniden<strong>se</strong> e que estava na ba<strong>se</strong> do de<strong>se</strong>nvolvimento<br />

do capitalismo em escala planetária.<br />

Como contrapartida ao desastre da GM,<br />

os meios de comunicação também tentaram criar uma<br />

imagem “salvacionista” do presidente Barack Obama:<br />

ele <strong>se</strong>ria uma reedição de Franklin Delano Roo<strong>se</strong>velt,<br />

um estadista capaz de apontar a saída da cri<strong>se</strong> mediante<br />

a valorização do mundo do trabalho, em oposição ao<br />

capital financeiro. Assim, a estatização da GM (60% de<br />

suas ações passaram ao controle do Estado) assinalaria<br />

um novo período na história mundial do capitalismo,<br />

cujo <strong>se</strong>ntido <strong>se</strong>ria definido por uma estratégia supostamente<br />

neokeynesiana, de investimentos na produção,<br />

controle do mercado especulativo e benefícios as<strong>se</strong>gurados<br />

aos trabalhadores. Nada mais falso, irreal.<br />

Ao longo do século 20, a indústria automobilística<br />

moveu a economia mundial. Basta pensar<br />

no circuito do petróleo (combustíveis, pavimentação<br />

de vias, a vasta indústria de material plástico). Ou<br />

na siderurgia, com todos os <strong>se</strong>tores associados (autopeças,<br />

funilaria). Ou, ainda, no <strong>se</strong>tor da informática, com<br />

motores cada vez mais regulados por chips e microcomputadores<br />

(os bilhões gastos nas disputas de Fórmula 1<br />

têm pelo menos uma utilidade concreta: <strong>se</strong>rvem para<br />

projetar e testar equipamentos cada vez mais sofisticados,<br />

com futuro emprego na fabricação de automóveis<br />

comerciais). A indústria automobilística também mobiliza<br />

as mais avançadas tecnologias empregadas nas linhas<br />

de montagem, em total sintonia com a robótica e<br />

a indústria bélica. Em 1941, logo após a entrada dos Estados<br />

Unidos da Segunda Guerra, a GM mobilizou toda<br />

a sua linha de produção para a fabricação de tanques<br />

de guerra, blindados e peças para aviões.<br />

Para além de <strong>se</strong>u lugar na produção propriamente<br />

dita, a indústria automobilística também é associada<br />

aos sistemas de crédito que financiam e subsidiam<br />

o comércio do automóvel. Os maiores bancos do mundo<br />

– associados a fundos de pensão, a empreiteiras, aos<br />

“fundos de derivativos” (os hedge funds, responsáveis<br />

pela orgia especulativa que levou o sistema ao desastre)<br />

– empataram <strong>se</strong>us capitais nes<strong>se</strong> comércio. Estimulados<br />

por campanhas publicitárias multibilionárias, que<br />

prometem a felicidade aos compradores de determinada<br />

marca ou modelo, clientes assumem dívidas a <strong>se</strong>rem<br />

pagas em 70, 80 ou 90 me<strong>se</strong>s, a taxas de juros que, no<br />

Brasil, ultrapassam os limites da mais desavergonhada<br />

agiotagem. Os modelos são, deliberadamente, fabricados<br />

para rapidamente ficarem “velhos”, assim estimulando<br />

novas compras e o empilhamento de sucata.<br />

Pois bem, foi es<strong>se</strong> modelo, em <strong>se</strong>u conjunto,<br />

envolvendo todos os circuitos industriais e econômicos<br />

mencionados (petróleo, siderurgia, informática,<br />

publicidade, especulação e agiotagem institucionalizada)<br />

que deu sinal de esgotamento, com a falência da<br />

GM. Há, em todo o planeta, uma cri<strong>se</strong> imensa de superprodução<br />

de automóveis, num quadro em que as famílias<br />

de clas<strong>se</strong> média e de trabalhadores, em todo o mundo,<br />

já atingiram um teto de endividamento que não lhes<br />

permite mais participar da orgia do consumo.<br />

“Tomemos o exemplo do automóvel na<br />

Alemanha, país que com a Suécia é o mais dependente<br />

de <strong>se</strong>u uso. O retrocesso no <strong>se</strong>tor de produção do automóvel<br />

na Alemanha participou com 0,8% da contração<br />

do PIB alemão no quarto trimestre de 2008. Deve-<strong>se</strong> somar<br />

0,1%, com a inclusão da compressão dos <strong>se</strong>rviços<br />

ligados à venda: as concessionárias. O cálculo é simples:<br />

isso equivale a 33% da queda do PIB no último trimestre<br />

na Alemanha”, nota o economista Charles-André Udry.<br />

O tamanho da encrenca pode <strong>se</strong>r entendido quando <strong>se</strong><br />

considera que a Alemanha enfrenta hoje sua pior recessão<br />

desde o final dos anos 40, e que a indústria do automóvel<br />

emprega cerca de 860 mil trabalhadores (2,6<br />

milhões, considerando também os empregos indiretos).<br />

Nos Estados Unidos são 710 mil empregos diretos e<br />

256 mil na França. Quando <strong>se</strong> leva em consideração a<br />

proliferação das montadoras na “periferia” do capitalismo<br />

e o impacto da economia do automóvel nes<strong>se</strong>s<br />

paí<strong>se</strong>s (entre os quais, Brasil, México e Argentina, para<br />

ficar só na América Latina), a coisa toda adquire proporções<br />

ainda mais catastróficas, nem de longe ana-<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

lisadas pelos “especialistas” da mídia brasileira.<br />

Já Obama não é o novo Roo<strong>se</strong>velt. Nem poderia<br />

<strong>se</strong>r. Em primeiro lugar, Roo<strong>se</strong>velt foi “estimulado” a<br />

promover o New Deal, nos anos 30, pela vitória da Revolução<br />

de 1917 e pelo grande prestígio do socialismo<br />

entre os trabalhadores dos Estados Unidos. Havia<br />

o risco concreto de construção de um importante movimento<br />

revolucionário nas terras de Tio Sam. Hoje, o<br />

movimento sindical estaduniden<strong>se</strong> ainda é controlado<br />

por máfias associadas ao Partido Democrata, que aceitam<br />

a diminuição de garantias e de direitos trabalhistas<br />

(impostos pelo “pacote de salvação” de Obama), em<br />

nome da pre<strong>se</strong>rvação do emprego. Além disso, à época<br />

do New Deal, o capital financeiro não tinha adquirido<br />

a absoluta predominância que tem hoje: a indústria<br />

era o <strong>se</strong>tor de maior importância e poder político. O<br />

dólar não era a moeda de troca universal (passou a sêlo<br />

em 1944), o que atribui a Obama muito maior poder<br />

de jogar com a economia mundial. Nem os Estados<br />

Unidos eram a potência com a incontrastável hegemonia<br />

militar que é hoje.<br />

Os analistas da mídia ignoram estas pequenas<br />

particularidades históricas. Fingem que informam,<br />

quando desinformam. Pouco ou nenhum destaque<br />

foi dado, por exemplo, ao curioso fato de que o<br />

BNDES (entre outros bancos estatais) é um dos principais<br />

financiadores da GM do Brasil (sob condições bem<br />

mais “amenas” do que as praticadas nos Estados Unidos,<br />

<strong>se</strong>gundo os próprios dirigentes da GM brasileira). Ora,<br />

na medida em que a GM torna-<strong>se</strong> propriedade dos Estados<br />

Unidos, isso significa que nós, contribuintes, passamos<br />

a financiar, via bancos estatais, ninguém menos<br />

que o governo dos Estados Unidos. É mole? E os “especialistas”<br />

tampouco informam que a sobrevida da GM e<br />

de outras montadoras no Brasil deve-<strong>se</strong> à renúncia fiscal,<br />

que significa subtrair fundos para obras públicas,<br />

educação e saúde, além de o governo permitir a orgia<br />

de endividamento descontrolado de uma clas<strong>se</strong> média<br />

que <strong>se</strong>ntirá o baque nos próximos me<strong>se</strong>s.<br />

Em resumo, a falência da GM anuncia a falência do<br />

“american dream” e do modelo a ele associado. Enquanto<br />

isso, embalado pelo canto de <strong>se</strong>reia de uma mídia<br />

mentirosa, incompetente e comprometida até o pescoço<br />

com o capital internacional, o Brasil permanece deitado<br />

em berço esplêndido.<br />

José Arbex Jr. é jornalista.<br />

junho 2009 caros amigos<br />

9


10<br />

É mesmo uma pena que nossos melhores dicionários<br />

de referência, o Aurélio e o Houaiss, oscilem<br />

entre a tentativa de pre<strong>se</strong>rvação das prescrições<br />

tradicionais e a vontade de incorporar e<br />

abonar as formas inovadoras já consagradas no<br />

uso do português brasileiro. Digo isso porque,<br />

ao tratar do substantivo óculo(s), ambos os dicionários<br />

assumem o tom mais prescritivista e<br />

autoritário possível, em franca contradição com<br />

as análi<strong>se</strong>s mais bem feitas que encontramos em<br />

outros verbetes:<br />

Aurélio Século XXI: “No Brasil, pelo menos,<br />

diz-<strong>se</strong>, erroneamente, o óculos, este óculos, meu<br />

óculos” (verbete óculos).<br />

Houaiss: “A palavra óculos é pluralia tantum*<br />

... <strong>se</strong>ndo, portanto, erro a discordância de<br />

número (um óculos) que <strong>se</strong> tem vulgarizado no<br />

português coloquial do Brasil (formas corretas:<br />

uns óculos, meus óculos, um par de óculos)”<br />

(verbete óculo).<br />

*Pluralia tantum são as palavras que só são usadas<br />

no plural como bodas, anais, costas, férias.<br />

Como diria nosso herói Macunaíma: “Ai, que<br />

preguiça!” Por que essa insistência em achar que<br />

es<strong>se</strong> importante dispositivo para melhorar a visão<br />

(que eu uso há quarenta anos!) tem que <strong>se</strong>r<br />

considerado como um par? Por que não chamálo<br />

então de binóculo, já que também existe o<br />

monóculo?<br />

O que aconteceu com óculos foi o mesmo que<br />

aconteceu com tesouras, cuecas, calças, ceroulas,<br />

tenazes, listados pelo dicionário Houaiss no<br />

verbete pluralia tantum. Nes<strong>se</strong> verbete, a análi<strong>se</strong>,<br />

felizmente, não recorre à imposição do que<br />

é “correto” e à condenação do “erro”, <strong>se</strong>ndo,<br />

ao contrário, i<strong>se</strong>nta des<strong>se</strong>s preconceitos: pluralia<br />

tantum.<br />

Rubrica: gramática. Expressão latina com que<br />

são referidos os substantivos de uma língua cuja<br />

forma é um plural morfológico, mas que <strong>se</strong>manticamente<br />

podem denotar uma única unidade;<br />

trata-<strong>se</strong> <strong>se</strong>mpre de referentes formados de partes<br />

simetricamente duplicadas (p.ex.: tesouras, cuecas,<br />

calças, óculos, ceroulas, tenazes).<br />

Uso. Embora o emprego do pl[ural] para indicar<br />

uma só parelha <strong>se</strong>ja normal no português,<br />

registra-<strong>se</strong> uma dicotomia de tendência:<br />

de um lado, para obviar possíveis ambiguidades<br />

e explicitar a unidade, o locutor refere<strong>se</strong><br />

a um par de tesouras, de alicates, de pinças<br />

etc.; de outro, esp[ecialmente] no port[uguês]<br />

do Brasil, consuma-<strong>se</strong> o qua<strong>se</strong> geral emprego<br />

caros amigos julho 2009<br />

falar brasileiro<br />

Marcos Bagno<br />

Deixem o meu<br />

óculos em paz!<br />

do sing[ular] nos mesmos casos: uma tesoura,<br />

uma tenaz, a minha calça, a cueca.<br />

É uma pena que não <strong>se</strong> tenha mencionado<br />

também o “qua<strong>se</strong> geral emprego do singular” no<br />

caso de óculos. A razão do nosso uso de óculos<br />

no singular está nessas palavras do verbete:<br />

“substantivos cuja forma é um plural morfológico,<br />

mas que <strong>se</strong>manticamente podem denotar<br />

uma única unidade”.<br />

Pronto, gente, é só isso: é <strong>se</strong>mântica! A <strong>se</strong>mântica<br />

estuda a relação entre as palavras e as<br />

coisas do mundo que elas designam. Se nós concebemos<br />

o óculos como uma coisa só, nossa lógica<br />

linguística vai querer corresponder à nossa<br />

lógica de percepção da realidade: <strong>se</strong> o objeto<br />

é considerado como uma unidade, a palavra que<br />

o designa só pode estar no singular!<br />

Vamos parar com essa insistência boboca,<br />

deixar todo mundo usar <strong>se</strong>u óculos em paz e cuidar<br />

de coisas mais importantes? Por exemplo: somente<br />

8% das escolas com as melhores médias<br />

do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) em<br />

2009 eram públicas. Não é perdendo tempo tentando<br />

convencer os alunos de que a palavra óculos<br />

só pode <strong>se</strong>r usada no plural que nosso ensino<br />

público vai sair do fundo do poço!<br />

Marcos Bagno é linguista e escritor.<br />

www.marcosbagno.com.br<br />

Mc Leonardo<br />

Brasil,<br />

politicamente<br />

incorreto - Parte I<br />

No final dos anos 60, já assassinavam<br />

muita gente nas favelas. Existiam os assaltantes,<br />

os jogadores de ronda, e os ladrões de varal, e a<br />

maioria dos comerciantes tinha uma garrucha pra<br />

<strong>se</strong> defender. As favelas estavam crescendo e os poderes<br />

eram disputados a bala ou a facada, todo dia<br />

tinha gente morrendo. Crimes passionais, vingança,<br />

ou disputa de terra, levaram a vida de muita<br />

gente. Comparando com os dias de hoje em que a<br />

população favelada é bem maior, posso dizer que<br />

proporcionalmente morria o mesmo número que<br />

morre hoje.<br />

A imprensa estava censurada,<br />

os que morriam, muitas vezes nem documento tinham,<br />

a polícia estava atrás dos comunistas, escondiam<br />

tudo, e ninguém que vivia fora da favela<br />

sabia o que <strong>se</strong> passava ali. Além do governo norteamericano,<br />

quem financiava a polícia para capturar<br />

e torturar os tais comunistas eram os empresários,<br />

uns porque queriam aquele regime de total loucura<br />

dos militares, e outros diziam não ter escolha,<br />

pois <strong>se</strong>riam per<strong>se</strong>guidos e chamados de subversivos,<br />

mas a maioria pagava por interes<strong>se</strong>s pessoais,<br />

licitações, contratos etc... Tudo estava em jogo, era<br />

melhor financiar aquela loucura ou teriam diversos<br />

problemas em suas empresas.<br />

Até então nas favelas <strong>se</strong> comentava<br />

que “Fulano” fumava uma droga, que “Sicrano”<br />

tinha um revólver e vendia a tal droga, era<br />

o mercado de venda varejista de drogas que estava<br />

chegando com um poder que ninguém tinha ali<br />

dentro: o poder financeiro.<br />

Para os comerciantes foi um grande<br />

negócio: ninguém mata ninguém, ninguém rouba<br />

ninguém, ninguém estupra ninguém, enfim, quem<br />

decidia era o comércio da droga. “Temos nossas regras<br />

e quem não qui<strong>se</strong>r cumprir pode ir embora ou<br />

vai morrer”, diziam os vendedores de drogas.<br />

Alguns demoraram pra entender,<br />

tentaram resistir, e acabaram morrendo.<br />

(Continua)<br />

MC Leonardo é compositor, autor, com <strong>se</strong>u irmão<br />

MC Junior, de funks de protesto, como o Rap das<br />

Armas. mcleonardo@carosamigos.com.br - http://<br />

mcjunioreleonardo.wordpress.com<br />

Ilustração: Debora borba/deboraborba@gmail.com


12<br />

em entrevista exclusiva, a auditora da Receita<br />

Federal e coordenadora da Auditoria Cidadã<br />

da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, conta como<br />

foi sua participação, a convite do presidente Rafael<br />

Correa, na comissão oficial de auditoria da dívida<br />

do Equador, em 2008. Presidentes de outros paí<strong>se</strong>s,<br />

como Bolívia, Venezuela e Paraguai, demonstram a<br />

intenção de <strong>se</strong>guir o exemplo equatoriano. Para Maria<br />

Lucia, é preciso que o Brasil cumpra a Constituição<br />

Federal, que prevê a auditoria, para que a sociedade<br />

pare de pagar a conta à custa da privação de<br />

direitos sociais elementares, conta esta que a atual<br />

cri<strong>se</strong> tende a tornar ainda mais cara.<br />

Caros Amigos: Como <strong>se</strong> <strong>se</strong>ntiu ao participar<br />

da auditoria da dívida do Equador, enquanto o<br />

Brasil continua a pagar, todos os anos, milhões<br />

de reais como juros de sua dívida?<br />

caros amigos julho 2009<br />

entrevista MARIA LUCIA FATTORELLI<br />

DÍVIDA PÚBLICA<br />

faz a farra dos especuladores<br />

A auditora da Receita Federal mostra como funcionam os<br />

mecanismos que colocaram o Brasil e outros paí<strong>se</strong>s da América<br />

Latina reféns do capital financeiro Max Gimenes | Fotos Roberto Jayme<br />

Maria Lucia Fattorelli: A realização da auditoria<br />

oficial da dívida pública equatoriana foi um dos<br />

principais fatos políticos da história da América Latina,<br />

pois significa um importante passo no <strong>se</strong>ntido<br />

de nossa verdadeira independência e retomada de<br />

nossa soberania. Sem dúvida foi uma imensa honra<br />

ter sido designada pelo presidente Rafael Correa Delgado<br />

para a comissão da auditoria da dívida equatoriana,<br />

CAIC, para realizar a auditoria integral de<br />

sua dívida pública interna e externa, visando à busca<br />

da verdade sobre o endividamento público. Es<strong>se</strong><br />

trabalho repre<strong>se</strong>ntou um desafio imenso, pois o decreto<br />

presidencial determinou a realização de uma<br />

auditoria dos últimos 30 anos do processo de endividamento,<br />

envolvendo a investigação de aspectos financeiros,<br />

contábeis, jurídicos e também <strong>se</strong>us impactos<br />

sociais e ambientais. Considerando que teríamos<br />

apenas um ano para realizar essa tarefa, a comissão<br />

foi subdividida em subcomissões que <strong>se</strong> dedicaram<br />

especificamente a cada tipo de endividamento: multilateral<br />

(dívida externa contratada com FMI, Banco<br />

Mundial, Corporación Andina de Fomento e outros<br />

organismos multilaterais); bilateral (dívida entre<br />

o Equador e outros paí<strong>se</strong>s ou bancos públicos de outros<br />

paí<strong>se</strong>s); comercial (dívida contratada com bancos<br />

privados internacionais) e interna.<br />

O que foi apontado pela auditoria?<br />

O resultado de todas as subcomissões apontou<br />

impressionantes ilegalidades e ilegitimidades verificadas<br />

em processos que <strong>se</strong>mpre beneficiaram o<br />

<strong>se</strong>tor financeiro privado, as grandes corporações e<br />

empresas privadas, em detrimento do Estado equatoriano<br />

e de <strong>se</strong>u povo, carente de tantos <strong>se</strong>rviços<br />

públicos e de condições de vida digna, apesar das<br />

riquezas nacionais, como o petróleo. A sangria pro-


vocada pela dívida não permitiu que es<strong>se</strong>s recursos<br />

<strong>se</strong>rvis<strong>se</strong>m ao povo equatoriano. Uma das constatações<br />

mais importantes da comissão foi a incrível<br />

<strong>se</strong>melhança do processo de endividamento equatoriano<br />

com o brasileiro e o dos demais paí<strong>se</strong>s latino-americanos.<br />

No caso da dívida externa comercial<br />

- com bancos privados internacionais de cuja<br />

investigação participei, a dívida atual repre<strong>se</strong>ntada<br />

por títulos Bonos Global é resultado do endividamento<br />

agressivo iniciado no final da década de 70,<br />

durante a ditadura militar, majorado pela influência<br />

da elevação unilateral das taxas de juros pelo Federal<br />

Re<strong>se</strong>rve a partir de 1979, por onerosas renegociações<br />

ocorridas na década de 80, quando o Estado<br />

equatoriano assumiu inclusive dívidas privadas;<br />

<strong>se</strong>guido de renúncia à prescrição dessa dívida em<br />

1992 e sua transformação em títulos negociáveis,<br />

denominados Bonos Brady em 1995, emissões de<br />

Eurobonos e nova transformação em Bonos Global<br />

em 2000. A dívida externa comercial equatoriana<br />

atual é fruto de sucessivas conversões equivocadas<br />

de uma mesma dívida que foi crescendo em função<br />

da alta de juros internacionais, assunção de dívidas<br />

pelo Estado, por <strong>se</strong>u valor nominal integral, inclusive,<br />

dívidas privadas, processo que no Equador <strong>se</strong><br />

denominou “Sucretización”.<br />

Qual a relação com a dívida brasileira?<br />

O endividamento externo comercial do Brasil <strong>se</strong>guiu<br />

passos idênticos, verificando-<strong>se</strong> a coincidência<br />

de datas, nomes dos convênios e dos títulos da dívida,<br />

termos e condições estabelecidas nos diversos<br />

contratos, além de interferência expressa do FMI;<br />

enfim, quando analisava os documentos do endividamento<br />

equatoriano parecia que estava lendo os<br />

mesmos documentos aos quais já tivemos acesso no<br />

Brasil durante os trabalhos da Auditoria Cidadã da<br />

Dívida. Diante de tantas <strong>se</strong>melhanças, o ideal é que<br />

os demais paí<strong>se</strong>s também realizem auditoria de suas<br />

dívidas públicas, pois o endividamento tem sido um<br />

mecanismo contínuo, utilizado para sugar nossas<br />

riquezas e travar o de<strong>se</strong>nvolvimento do nosso continente.<br />

Várias iniciativas estão <strong>se</strong> conformando a<br />

partir do primeiro passo dado pelo presidente Rafael<br />

Correa: o Paraguai já está realizando uma investigação<br />

oficial sobre sua dívida externa, e na última<br />

reunião da ALBA (Alternativa Bolivariana para<br />

os Povos de Nossa América), em novembro de 2008,<br />

Venezuela e Bolívia também anunciaram a intenção<br />

de fazer a auditoria integral de suas dívidas.<br />

O Brasil poderia estar em outro patamar de justiça<br />

social e de<strong>se</strong>nvolvimento econômico <strong>se</strong> a auditoria<br />

da dívida prevista na Constituição Federal de 1988<br />

tives<strong>se</strong> sido realizada. É uma lástima que nenhum<br />

dos governos, nes<strong>se</strong>s 20 anos, tenha respeitado es<strong>se</strong><br />

preceito fundamental.<br />

O que é e como funciona na prática a auditoria<br />

de uma dívida?<br />

Auditoria da dívida, em resumo, significa a investigação<br />

de todos os processos de contratação, renegociação,<br />

troca e rolagem de dívida pública – interna<br />

ou externa. A auditoria <strong>se</strong> dá com ba<strong>se</strong> na análi<strong>se</strong><br />

de documentos oficiais (contratos, títulos e correspondências<br />

oficiais, por exemplo) e registros existentes<br />

em livros de escrituração contábil, além de dados<br />

estatísticos e outras publicações existentes. A auditoria<br />

da dívida envolve também a análi<strong>se</strong> de cifras<br />

(valores contratados/pagos; comparações entre o valor<br />

renegociado e o valor de mercado, comissões diversas,<br />

taxas de juros), estudo e análi<strong>se</strong> da legislação<br />

de regência e outras questões jurídicas aplicáveis e,<br />

adicionalmente, visa à identificação dos participantes<br />

nos diversos processos relevantes.<br />

Quais são os objetivos de uma auditoria?<br />

A auditoria deve abranger um período estabelecido<br />

e ter objetivos claros. No caso equatoriano,<br />

o prazo estabelecido foi de trinta anos – 1976 a<br />

2006 – e os principais objetivos foram os <strong>se</strong>guintes:<br />

1) Efetuar uma auditoria integral dirigida a examinar<br />

e avaliar o processo de endividamento público<br />

com a finalidade de determinar sua legitimidade, legalidade,<br />

transparência, qualidade, eficácia e eficiência,<br />

além dos impactos econômicos e sociais. 2)<br />

Efetuar periodicamente relatórios nos quais constem<br />

os avanços obtidos, com as recomendações e<br />

sugestões que considerem pertinentes, e um relatório<br />

final com conclusões, determinando as respectivas<br />

responsabilidades. 3) Propor normas e políticas<br />

públicas orientadas a fortalecer a auditoria<br />

sobre os créditos públicos como função permanente<br />

do Estado.<br />

Como foi feita a apuração da dívida<br />

do Equador?<br />

Com a finalidade de cumprir a delegação encomendada<br />

pelo presidente do Equador, a CAIC realizou<br />

exames de livros e documentos contábeis no<br />

Ministério de Finanças, Banco Central do Equador<br />

e outros registros e documentos disponíveis na Procuradoria<br />

Geral do Estado, Controladoria Geral da<br />

Nação e Congresso Nacional. Ante as graves deficiências<br />

de controle interno, a CAIC investigou também<br />

outros registros históricos existentes em livros,<br />

publicações e páginas da web, com o objetivo de<br />

buscar evidências de vinculações, conjunturas, situação<br />

de firmas e entidades financeiras envolvidas<br />

nas negociações da dívida externa equatoriana.<br />

O resumo executivo do relatório da CAIC e outros<br />

documentos sobre o processo histórico de<strong>se</strong>nvolvido<br />

no Equador estão disponíveis na página da Auditoria<br />

Cidadã da Dívida no endereço www.divida-<br />

“O acúmulo de re<strong>se</strong>rvas cambiais não significou o “fim”<br />

da dívida externa, mas a troca de dívida externa por<br />

dívida interna a juros altíssimos e prazos muito curtos”.<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

auditoriacidada.org.br. Essa experiência histórica<br />

pode <strong>se</strong>r considerada vitoriosa, pois além de já estar<br />

inspirando outras nações, está permitindo atitudes<br />

soberanas por parte do governo equatoriano,<br />

como a suspensão do pagamento dos juros dos bônos<br />

Global, repre<strong>se</strong>ntação atual da dívida externa<br />

com bancos privados internacionais, fruto de contínuas<br />

ilegalidades e até indícios veementes de práticas<br />

fraudulentas.<br />

Como a auditoria pode auxiliar na reversão da<br />

dolarização do Equador?<br />

De fato, a política econômica do Equador ficou<br />

muito restrita a partir da dolarização e da perda de<br />

sua própria moeda, o que afetou muito a soberania<br />

do país, embora ainda cumpra importante papel<br />

na execução de políticas e instrumentos econômico-financeiros.<br />

A realização da auditoria da dívida<br />

equatoriana foi um importante passo no <strong>se</strong>ntido<br />

de retomar a soberania financeira, mas para reaver<br />

sua moeda o país ainda terá que dar muitos outros<br />

passos. Historicamente o Equador teve uma clas<strong>se</strong><br />

dirigente que governou o país para interes<strong>se</strong>s externos<br />

e não para povo equatoriano, por isso chegaram<br />

a comprometer gravemente a soberania do<br />

país, como <strong>se</strong> verifica no caso da moeda, do endividamento<br />

ilegítimo e das negociações do petróleo,<br />

sua principal matéria-prima. Creio que a questão<br />

da moeda deverá <strong>se</strong>r enfrentada, até por conta da<br />

atual cri<strong>se</strong> financeira mundial e <strong>se</strong>u impacto sobre<br />

o dólar. A sociedade deverá participar des<strong>se</strong> debate,<br />

pois grande parte da população guarda recordações<br />

traumáticas do período em que o sucre (moeda<br />

equatoriana) passou por forte desvalorização,<br />

em virtude de inflação galopante, e por isso acredita<br />

que estaria mais <strong>se</strong>gura com o dólar, o que não<br />

é bem verdade.<br />

O jornal O Globo a acusou de ter participado de<br />

uma comissão que estava ajudando “a preparar<br />

a te<strong>se</strong> do calote” contra o Brasil. Depois houve<br />

um de<strong>se</strong>ntendimento entre Equador e Brasil<br />

sobre uma obra da construtora Odebrecht.<br />

Afinal, quem devia ao BNDES: o governo do<br />

Equador ou a Odebrecht?<br />

Com relação a es<strong>se</strong> fato, é interessante resgatar<br />

trecho de matéria publicada pelo jornal Folha<br />

de S.Paulo na qual a ministra Dilma Rous<strong>se</strong>ff repete<br />

afirmação do presidente Lula de que o BN-<br />

DES não fez empréstimo ao Equador: “O presidente<br />

Luiz Inácio Lula da Silva já dis<strong>se</strong> que o BNDES<br />

não tem relação com o Equador, o banco não emprestou<br />

o dinheiro para o Equador, mas para a empresa.<br />

Não vamos complicar mais a situação”. Essa<br />

mesma afirmação da ministra foi publicada também<br />

no site da BBC Brasil. Conforme amplamente divulgado<br />

pela imprensa equatoriana, a obra questionada<br />

custou mais que o dobro do previsto, e a usina<br />

hidrelétrica funcionou poucos me<strong>se</strong>s e parou, tendo<br />

apre<strong>se</strong>ntado sérios problemas técnicos e ambientais.<br />

Matéria irresponsável veiculada pelo jornal O<br />

Globo dá uma versão totalmente distorcida dos fatos,<br />

vinculando a realização da auditoria à preparação<br />

de um calote contra o Brasil que nunca existiu,<br />

pois, embora não tenha recebido os recursos e este-<br />

junho 2009 caros amigos<br />

13


14<br />

ja efetivamente enfrentando uma disputa comercial<br />

em corte de arbitragem internacional, o governo do<br />

Equador efetuou o pagamento da parcela vencida<br />

em dezembro de 2008, de US$ 28,1 milhões ao BN-<br />

DES. Além disso, a matéria distorce totalmente o<br />

trabalho que realizei no Equador, restrito à subcomissão<br />

de dívida comercial e relacionado com a investigação<br />

de dívida externa com bancos privados<br />

internacionais. A investigação relacionada ao caso<br />

Odebrecht foi objeto da subcomissão de dívida bilateral,<br />

da qual não participei.<br />

O presidente do Paraguai, Fernando Lugo, já<br />

anunciou que pretende auditar a dívida do <strong>se</strong>u<br />

país. A alegação do novo governo é a de que<br />

a dívida contraída com a construção de Itaipu<br />

é ilegítima. O que é uma dívida ilegítima?<br />

Existem várias definições sobre ilegitimidade<br />

da dívida, porém os diferentes enfoques coincidem<br />

quanto à determinação da ilegitimidade das dívidas<br />

odiosas (contraídas por ditaduras militares). Em resumo,<br />

a jurisprudência existente sobre o tema considera<br />

ilegítimas as dívidas marcadas por fraude e<br />

corrupção na origem da dívida; termos e cláusulas<br />

abusivas nos contratos de empréstimos; contratação<br />

por governos ilegítimos ou por meio de procedimentos<br />

irregulares; ausência de benefícios ou<br />

contrapartida positiva para a população. Segundo o<br />

cientista social inglês Jo<strong>se</strong>ph Hanlon, por exemplo,<br />

quatro condições caracterizam uma dívida como<br />

ilegítima: um empréstimo concedido para reforçar<br />

um regime ditatorial (empréstimo inaceitável), um<br />

empréstimo contraído com juros elevados que podem<br />

<strong>se</strong>r caracterizados como usura (condições inaceitáveis),<br />

um empréstimo concedido a um país de<br />

que <strong>se</strong> conhece a escassa capacidade de reembolso<br />

(empréstimo inadequado) e, por último, um empréstimo<br />

repleto de condições impostas pelo FMI, que<br />

geram uma situação econômica que aumente as dificuldades<br />

de reembolso (condições inadequadas).<br />

Com relação ao Paraguai, de fato, recentemente o<br />

governo anunciou sua intenção de também realizar<br />

auditoria de sua dívida externa, composta principalmente<br />

do endividamento com o Brasil, referente<br />

à construção da usina hidrelétrica de Itaipu. O mais<br />

importante com relação a es<strong>se</strong> fato é que essa auditoria<br />

deverá beneficiar também o Brasil, pois os<br />

dois paí<strong>se</strong>s estão <strong>se</strong>ndo sacrificados por um mecanismo<br />

que favorece somente os rentistas.<br />

Qual é a situação da usina de Itaipu?<br />

Itaipu é uma empresa binacional composta de<br />

50% de participação da empresa ANDE (do Paraguai)<br />

e 50% da Eletrobrás (Brasil), e tinha uma dívida<br />

de US$ 19,5 bilhões, ao final de 2007. Destes US$<br />

19,5 bilhões, 57,3% são devidos ao Tesouro Brasileiro,<br />

42,5% à Eletrobrás e 0,2% a outros emprestadores.<br />

Portanto, na prática, o Paraguai – por meio de<br />

sua participação de 50% da empresa Itaipu – possui<br />

uma dívida com o Brasil. Esta dívida tem sido paga,<br />

em última instância, pela sociedade paraguaia e brasileira,<br />

quando quita a conta de luz, cujos recursos<br />

são destinados a cobrir o custo de geração de energia<br />

de Itaipu. E o principal componente des<strong>se</strong> custo<br />

é o pagamento da dívida junto ao Brasil, refe-<br />

caros amigos julho 2009<br />

rente à construção da usina. Essa dívida de Itaipu<br />

possui muitas ilegitimidades, que devem <strong>se</strong>r investigadas<br />

pela auditoria. A primeira delas refere-<strong>se</strong> ao<br />

imenso sobrepreço da obra, inicialmente orçada em<br />

US$ 2 bilhões e que acabou custando US$ 20 bilhões,<br />

ou <strong>se</strong>ja, 10 vezes mais. Outra ilegitimidade é a alta<br />

taxa de juros e a atualização monetária que incidiu<br />

por décadas sobre o estoque dessa dívida: 7,5% ao<br />

ano mais a inflação norte-americana. Como resultado<br />

disso, até hoje Itaipu pagou de <strong>se</strong>rviço desta dívida<br />

US$ 25 bilhões, ou <strong>se</strong>ja, 12 vezes <strong>se</strong>u custo orçado<br />

inicial, e ainda assim a dívida hoje está em qua<strong>se</strong><br />

US$ 20 bilhões! Caso não <strong>se</strong> altere esta situação, Itaipu<br />

pagará ao todo US$ 63 bilhões por uma obra que<br />

deveria ter custado US$ 2 bilhões!<br />

O que deve <strong>se</strong>r feito sobre a dívida de Itaipu?<br />

A grande parte da imprensa brasileira que defende<br />

interes<strong>se</strong>s financeiros diz que no caso de uma<br />

eventual anulação da dívida de Itaipu com a Eletrobrás<br />

e o Tesouro brasileiro, “o povo brasileiro<br />

vai pagar pela dívida do Paraguai”. Es<strong>se</strong> argumento<br />

é equivocado, pois os recursos pagos por Itaipu<br />

ao Brasil são destinados, principalmente, para o pagamento<br />

da dívida interna e externa do Brasil, até<br />

hoje não auditada, como determina a Constituição<br />

Federal de 1988. Portanto, a dívida de Itaipu tem<br />

sido um mecanismo que alimenta o endividamento<br />

e que em nada beneficia o povo, mas os rentistas<br />

nacionais e internacionais. Em 2008, mais de 30%<br />

do orçamento federal brasileiro foi destinado ao pagamento<br />

da dívida, enquanto os gastos com saúde<br />

foram de 4,81%, com educação, 2,57%, e com reforma<br />

agrária, 0,27%.<br />

É correto afirmar que a questão da dívida é<br />

uma luta política em vez de econômica?<br />

Além de política e econômica, é também uma<br />

luta jurídica. De acordo com o artigo 62 da Convenção<br />

de Viena sobre o Direito dos Tratados, é<br />

permitido a qualquer país questionar um contrato,<br />

caso as condições vigentes quando de sua assinatura<br />

sofram alterações significativas. Mais ainda<br />

quando essa alteração nas condições parte de<br />

uma iniciativa dos próprios credores, que elevaram<br />

as taxas de juros de 5% ao ano (em meados<br />

dos anos 70) para até 20,5% ao ano, no início dos<br />

anos 80. Essa alta unilateral das taxas de juros<br />

provocou a multiplicação da dívida por ela mesma,<br />

provocando aumento absurdo no volume do<br />

<strong>se</strong>rviço da dívida externa de todos os paí<strong>se</strong>s que<br />

caíram na armadilha do endividamento “barato”<br />

dos anos 70, denominado “endividamento agressivo”<br />

dado o volume de empréstimos registrados no<br />

período. Portanto, é perfeitamente legítimo e legal<br />

o questionamento dessa dívida. Caso o Federal<br />

Re<strong>se</strong>rve dos EUA (cuja administração é composta<br />

dos principais bancos privados norte-americanos)<br />

não tives<strong>se</strong> promovido essa multiplicação dos juros,<br />

tanto a dívida brasileira como a equatoriana


já estariam pagas, e o que pagamos a mais nos daria<br />

um crédito maior que a dívida atual, reclamada<br />

pelos bancos privados internacionais.<br />

O governo Lula anunciou o fim do<br />

endividamento externo do Brasil, mas ocorreu<br />

um brutal crescimento do endividamento<br />

público. Como <strong>se</strong> deu es<strong>se</strong> processo de<br />

“internalização” da dívida e o que significa<br />

de fato o Brasil ter <strong>se</strong> tornado “credor<br />

internacional”?<br />

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que os dados<br />

divulgados pelo governo e pela grande mídia<br />

costumam <strong>se</strong>r manipulados, excluindo parcelas importantes<br />

das dívidas externa e interna. Ao final<br />

de 2008, a dívida interna atingiu a cifra de R$ 1,6<br />

trilhão, enquanto a dívida externa alcançou US$<br />

267 bilhões, números bem maiores que os divulgados<br />

pelo governo. O governo recentemente alegou<br />

que o país <strong>se</strong> tornou “credor externo” pelo fato de<br />

o volume das re<strong>se</strong>rvas cambiais ter superado o estoque<br />

da dívida externa pública. O que o governo<br />

não divulga é que tais re<strong>se</strong>rvas foram acumuladas<br />

ao mesmo tempo em que a dívida interna cresceu<br />

aceleradamente. Isso ocorreu porque durante o período<br />

em que o dólar <strong>se</strong> desvalorizava fortemente<br />

frente ao real, o governo brasileiro permitiu a entrada<br />

indiscriminada de dólares no país para a compra<br />

de títulos da dívida interna. Os especuladores<br />

buscavam, além da proteção contra a desvalorização<br />

do dólar, a maior remuneração por meio das<br />

taxas de juros mais elevadas do mundo, com i<strong>se</strong>nção<br />

de impostos para estrangeiros e total liberdade<br />

de movimentação. Essa combinação de fatores extremamente<br />

danosos à economia do Brasil, mas altamente<br />

rentáveis para os especuladores, provocou<br />

uma avalanche de dólares ao Brasil. Rapidamente<br />

acumulamos US$ 200 bilhões de re<strong>se</strong>rvas internacionais<br />

e a dívida interna explodiu, tendo crescido<br />

50% nos últimos três anos!<br />

Qual o custo dessa política para o Brasil?<br />

Es<strong>se</strong> acúmulo de re<strong>se</strong>rvas internacionais repre<strong>se</strong>ntou<br />

um custo altíssimo para o país, que ficou<br />

com grande quantidade de dólares (em queda!), que<br />

foram direcionados pelo Banco Central para as re<strong>se</strong>rvas<br />

internacionais, que são, em sua maioria, revertidas<br />

na compra de títulos do tesouro norte-americano,<br />

que não remuneram qua<strong>se</strong> nada. Por outro<br />

lado, só em 2007 os especuladores ganharam 30%<br />

livre de impostos em suas aplicações em títulos da<br />

dívida interna brasileira! Desta forma, o acúmulo de<br />

re<strong>se</strong>rvas cambiais não significou o “fim” da dívida<br />

externa, mas a troca de dívida externa por dívida<br />

interna a juros altíssimos e prazos muito curtos,<br />

além de um forte endividamento externo dos bancos<br />

e empresas nacionais, que especularam com o dólar<br />

e compraram títulos da dívida interna. Longe de ter<br />

virado “credor”, o país está, na realidade, proporcionando<br />

um negócio altamente rentável para os especuladores,<br />

ao mesmo tempo em que sacrifica a sociedade<br />

brasileira com a subtração da maior parte dos<br />

recursos orçamentários que têm sido destinados a financiar<br />

essa verdadeira “farra”!<br />

A atual cri<strong>se</strong> econômica escancara a<br />

precariedade do sistema monetário<br />

internacional. Poderiam <strong>se</strong>r identificadas<br />

relações diretas entre a cri<strong>se</strong> financeira e o<br />

processo de endividamento? Como a auditoria<br />

pode ajudar neste momento de cri<strong>se</strong>?<br />

A primeira relação direta que pode <strong>se</strong>r feita entre<br />

a cri<strong>se</strong> financeira e o processo de endividamento<br />

é que ambos tiveram como principais protagonistas<br />

os mesmos grandes bancos privados internacionais.<br />

A investigação que realizei no Equador, na subcomissão<br />

de auditoria da dívida externa com bancos<br />

privados internacionais, comprovou que nos 30<br />

anos analisados os bancos privados responsáveis<br />

pelas sucessivas renegociações eivadas de ilegitimidades<br />

e ilegalidades <strong>se</strong> concentraram em <strong>se</strong>is grandes<br />

instituições norte-americanas e inglesas que,<br />

com o tempo, devido a fusões entre elas, hoje <strong>se</strong> resumem<br />

a apenas três! Além disso, o ponto de partida<br />

do endividamento com es<strong>se</strong>s bancos <strong>se</strong> originou<br />

ainda na década de 70, durante a ditadura militar,<br />

quando <strong>se</strong> emitiram grandes quantidades de papéis<br />

<strong>se</strong>m lastro e extremamente desvalorizados no mercado<br />

<strong>se</strong>cundário (“pagares”). Em 1983 es<strong>se</strong>s papéis<br />

foram assumidos pelo Banco Central equatoriano<br />

por <strong>se</strong>u valor de face integral, criando uma amarra<br />

que impediu o de<strong>se</strong>nvolvimento do país desde<br />

então. A principal causa da atual cri<strong>se</strong> financeira<br />

é também a emissão de grandes quantidades de<br />

C<br />

papéis <strong>se</strong>m lastro, carinhosamente chamados pela<br />

grande imprensa de “ativos tóxicos”, que uma vez M<br />

mais estão <strong>se</strong>ndo assumidos pelo Estado para “salY<br />

var” as instituições financeiras des<strong>se</strong> prejuízo.<br />

MY<br />

E como <strong>se</strong> dá essa relação no Brasil?<br />

CY<br />

No Brasil, essa prática pode <strong>se</strong>r evidenciada por<br />

meio da recente Medida Provisória nº. 442, que perCMY<br />

mitiu que os bancos privados passas<strong>se</strong>m a depositar K<br />

garantias podres em troca de empréstimos concedidos<br />

pelo Banco Central, o que na verdade significa<br />

a transferência de prejuízos privados ao <strong>se</strong>tor público,<br />

que ao final <strong>se</strong>rão arcadas por todos nós. Isso repre<strong>se</strong>nta<br />

uma infâmia, pois nos últimos anos os lucros<br />

do <strong>se</strong>tor financeiro privado, no Brasil, atingiram<br />

níveis espantosos, e tais lucros nunca foram socializados.<br />

Por um lado, o governo salva bancos e grandes<br />

construtoras (MPs 443 e 445, além da 442 e 450),<br />

beneficia os rentistas estrangeiros (com i<strong>se</strong>nção de IR<br />

desde 2006) e os grandes aplicadores nacionais (redução<br />

de IR sobre aplicações de renda fixa) e declara<br />

que “é chique emprestar ao FMI”. Por outro lado, o<br />

governo anunciou que passará a tributar rendimentos<br />

de poupança acima de R$ 50 mil; tem reduzido os repas<strong>se</strong>s<br />

a Estados e municípios, provocando o sucateamento<br />

ainda maior dos <strong>se</strong>rviços de saúde e educação,<br />

entre outros; e sua ba<strong>se</strong> aliada no Congresso tem adiado<br />

continuamente a análi<strong>se</strong> do veto presidencial ao<br />

reajuste dos apo<strong>se</strong>ntados. Enfim, declarou que “não é<br />

hora de trabalhador pedir aumento”. Verifica-<strong>se</strong>, portanto,<br />

que os trabalhadores estão pagando a conta da<br />

cri<strong>se</strong> e os bancos protagonistas dela estão <strong>se</strong>ndo salvos<br />

e ainda levando vantagem, devido à estreita relação<br />

entre a atuação dos bancos e a contínua rolagem<br />

da dívida interna brasileira. A auditoria da dívida poderia<br />

prestar um grande <strong>se</strong>rviço neste momento, revelando<br />

toda a verdade sobre es<strong>se</strong> questionável proces-<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

CM<br />

junho 2009 caros amigos<br />

15<br />

u<strong>se</strong>acuca.com.br


16<br />

so de endividamento que tem <strong>se</strong>rvido de justificativa<br />

para medidas oficiais que beneficiam unicamente os<br />

bancos e as grandes corporações, em detrimento do<br />

conjunto da sociedade brasileira, que tem pago alto<br />

preço por essa política econômica equivocada, traduzida<br />

em de<strong>se</strong>mprego, violência, sucateamento de <strong>se</strong>rviços<br />

públicos e elevada carga tributária.<br />

Recentemente o Ministério da Fazenda<br />

anunciou a redução da meta de superávit<br />

primário, para 2009, a fim de conter os<br />

efeitos da cri<strong>se</strong>. Isso pode significar alguma<br />

possibilidade de aumento dos gastos sociais?<br />

O governo anunciou a redução da meta de superávit<br />

primário para 2009, de 3,8% para 2,5% do<br />

Produto Interno Bruto, sugerindo que haveria R$ 40<br />

bilhões a mais para gastar neste ano. Porém, na prática,<br />

tal mudança não significa que o gasto social<br />

<strong>se</strong>rá aumentado, muito menos que os gastos com a<br />

dívida <strong>se</strong>rão reduzidos. O que ocorrerá, na prática,<br />

é que o governo utilizará outras fontes de recursos<br />

para pagar a dívida, tais como a emissão de mais títulos<br />

ou o lucro do Banco Central de 2008. Ou <strong>se</strong>ja:<br />

quando o Banco Central tem prejuízo, este é coberto<br />

pelo Tesouro. E quando tem lucro, o dinheiro vai<br />

para o pagamento da dívida. Na realidade haverá a<br />

manutenção dos gastos sociais programados, já reduzidos<br />

pelos cortes orçamentários de R$ 21 bilhões<br />

feitos anteriormente. Por outro lado, os gastos com a<br />

dívida continuarão intocáveis, mesmo já tendo consumido,<br />

em 2009 mais de R$ 207 bilhões somente<br />

até 4 de abril (incluindo a chamada “rolagem”), o<br />

que repre<strong>se</strong>nta cinco vezes os gastos com <strong>se</strong>rvidores,<br />

18 vezes o gasto com a saúde, 40 vezes os gastos<br />

com a educação ou 1.210 vezes o gasto com reforma<br />

agrária. O próprio Banco Central admite que<br />

o governo con<strong>se</strong>guirá cumprir a meta de superávit<br />

primário anterior, de 3,8% do PIB, no primeiro quadrimestre<br />

de 2009.<br />

Em dezembro do ano passado foi criada a<br />

CPI da Dívida, por iniciativa do deputado<br />

federal Ivan Valente, do PSOL-SP. A CPI pode<br />

esclarecer a situação da dívida?<br />

A criação da CPI ainda não significa o cumprimento<br />

da Constituição, mas repre<strong>se</strong>nta um importante<br />

passo na investigação do processo de endividamento.<br />

Por isso, iniciamos a mobilização pela<br />

efetiva instalação da CPI da Dívida desde o Fórum<br />

Social Mundial de 2009, em Belém, num <strong>se</strong>minário<br />

que contou com a participação de mais de 500 pessoas.<br />

Para que essa CPI tenha êxito, <strong>se</strong>rá necessário<br />

que a sociedade exija dos parlamentares de cada<br />

partido a imediata indicação dos membros para sua<br />

efetiva instalação. Em <strong>se</strong>guida, que acompanhem de<br />

perto este processo, participando das reuniões da CPI<br />

e cobrando dos parlamentares a utilização de todas<br />

as suas prerrogativas de acesso a qualquer informação<br />

acerca do endividamento e de envio à Justiça<br />

das denúncias referentes às ilegalidades encontradas.<br />

O povo brasileiro, que está pagando muito caro<br />

por essa dívida, tem o direito à verdade sobre es<strong>se</strong><br />

processo e, para isso, terá que <strong>se</strong> mobilizar.<br />

Max Gimenes é estudante de Ciências Sociais.<br />

caros amigos julho 2009<br />

O gargalO<br />

Em fevereiro de 2008, apre<strong>se</strong>ntamos<br />

à Câmara Federal o pedido de Comissão Parlamentar<br />

de Inquérito (CPI) para investigar a dívida pública<br />

da União, Estados e municípios. Em dezembro<br />

do ano passado, finalmente ela foi autorizada,<br />

e só agora líderes partidários começam a indicar os<br />

nomes de parlamentares para <strong>se</strong>u funcionamento,<br />

num processo lento, que parece desconhecer a urgência<br />

e relevância da iniciativa ou tem a intenção<br />

de boicotá-la. A centralidade política desta questão,<br />

que já era clara, agora ficou superevidenciada<br />

com a impactante cri<strong>se</strong> econômica que vivemos.<br />

A dependência financeira de crédito num sistema<br />

interconectado tem como pedra angular a dívida<br />

pública. É por ela que o Brasil sofre uma hemorragia<br />

brutal nas suas finanças públicas, com o<br />

pagamento de juros, amortizações e rolagem da dívida<br />

com recursos orçamentários e a emissão de títulos<br />

públicos. Trata-<strong>se</strong> de um sistema que <strong>se</strong> retroalimenta<br />

e inviabiliza qualquer de<strong>se</strong>nvolvimento<br />

soberano, sustentável e com justiça social.<br />

Tomando como referência apenas os governos<br />

dos dois últimos presidentes brasileiros, a dívida<br />

interna aumentou 17 vezes. No começo do governo<br />

FHC (janeiro de 95), a dívida interna era de R$ 61,8<br />

bilhões. Em dezembro de 2002, estava em R$ 687,3<br />

bilhões. Em janeiro deste ano, no governo Lula, ela<br />

atingiu a cifra de R$ 1 trilhão <strong>se</strong>iscentos e oitenta<br />

e dois bilhões de reais. No tocante à dívida externa<br />

acumulada ao longo dos anos, irregularidades<br />

e uma postura submissa tornam grande parte dessa<br />

dívida ilegal. Em janeiro de 2009, <strong>se</strong>u total era<br />

de US$ 262,93 bilhões, incluindo a dívida privada<br />

(uma vez que a oferta de dólares para o <strong>se</strong>u pagamento<br />

é de responsabilidade do governo).<br />

Estes são os números brutos da dívida. Mas neste<br />

mesmo período o governo federal gastou R$ 906 bilhões<br />

com juros e R$ 879 bilhões com amortizações.<br />

Nes<strong>se</strong>s monumentais montantes não estão incluídos<br />

R$ 3,77 trilhões de refinanciamento ou rolagem da<br />

dívida através da emissão de títulos públicos. Mesmo<br />

com todos estes pagamentos e apesar do mascaramento<br />

da dívida externa pelo aumento das re<strong>se</strong>rvas<br />

internacionais do país, a dívida interna explodiu<br />

e a dívida externa continua crescendo. Somente em<br />

2008, o país de<strong>se</strong>mbolsou 30,57% de <strong>se</strong>u orçamento<br />

com juros e amortizações.<br />

Ivan Valente<br />

do de<strong>se</strong>nvolvimento no Brasil<br />

Es<strong>se</strong> quadro é esclarecedor para <strong>se</strong> entender o<br />

impacto dessa lógica na política econômica que <strong>se</strong>guiu<br />

o receituário do FMI. Para atender às exigências<br />

crescentes dos compromissos com o pagamento<br />

da dívida, o superávit já chegou a atingir 6%<br />

do PIB em um ano. Dentro dessa lógica, o país vive<br />

comprando credibilidade junto ao <strong>se</strong>tor financeiro,<br />

acenando com mais privatizações, i<strong>se</strong>nções esdrúxulas<br />

e nenhum controle sobre o fluxo de capitais.<br />

Ao mesmo tempo, os governos incorporam a<br />

lógica do encolhimento de recursos para a área social,<br />

sucateamento dos <strong>se</strong>rviços públicos e enxugamento<br />

da máquina pública. Pagar a dívida, mesmo<br />

que ilegal, ilegítima e imoral, tornou-<strong>se</strong> algo religioso,<br />

<strong>se</strong>m questionamentos.<br />

Agora, com a cri<strong>se</strong>, os lobbies econômicos partiram<br />

para um ataque aos recursos públicos. São pedidos<br />

de refinanciamento de dívidas, empréstimos<br />

subsidiados, financiamento de exportação, i<strong>se</strong>nções<br />

fiscais etc. Para fazer frente à demanda por recursos,<br />

o governo ao invés de aplicar mecanismos que<br />

estanquem o sangramento do pagamento da dívida,<br />

edita medidas provisórias liberando a emissão<br />

de títulos públicos.<br />

A instalação imediata da CPI da Dívida Pública<br />

<strong>se</strong>rá, portanto, um poderoso instrumento de esclarecimento,<br />

denúncia e propostas para superar es<strong>se</strong><br />

modelo perverso. Permitirá desmistificar tabus como<br />

a necessidade de uma auditoria da dívida, como prevê<br />

a Constituição Federal. Por outro lado, vai mostrar<br />

a ilegalidade cometida e os responsáveis por tamanha<br />

iniqüidade contra o povo brasileiro.<br />

A CPI vem no trilho do plebiscito feito nas ruas<br />

no ano 2000, pelos movimentos sociais, igreja,<br />

MST e partidos de esquerda, em que qua<strong>se</strong> <strong>se</strong>is milhões<br />

de brasileiros <strong>se</strong> pronunciaram e mais de 90%<br />

apoiaram a suspensão do pagamento da dívida. Esperamos<br />

que o funcionamento CPI <strong>se</strong>ja um gancho<br />

para mobilizações que transformem em conquista<br />

dos trabalhadores e do povo brasileiro o enfrentamento<br />

desta questão. A auditoria da dívida<br />

externa do Equador é um exemplo de como um<br />

país pode exercer sua soberania, com total apoio<br />

dos movimentos populares. É hora de o Brasil fazer<br />

o mesmo.<br />

Ivan Valente é deputado federal do PSOL-SP.


MeMórias De uM jornalista<br />

não-investigativo<br />

Renato Pompeu<br />

“Eu sou do tempo que<br />

a escritora e jornalista<br />

Patrícia Galvão (Pagu)<br />

ditava suas matérias<br />

a um datilógrafo, na<br />

Agência France-Pres<strong>se</strong>,<br />

porque naquela época<br />

não era obrigatório que<br />

o jornalista soubes<strong>se</strong><br />

escrever a máquina.”<br />

Suriname: visita<br />

ou intervenção?<br />

Em 1982-1983 trabalhei na Agência United<br />

Press International, a falecida UPI. A certa<br />

altura, a mídia em geral no Brasil publicou<br />

que uma missão militar do comando brasileiro<br />

da Amazônia estava visitando o Suriname.<br />

No entanto, a UPI distribuía no Brasil, para o<br />

Diário Popular de São Paulo (hoje Diário de<br />

São Paulo) e para um jornal de Curitiba, a coluna<br />

do jornalista americano Jack Anderson,<br />

Washington Merry Go-Round (“O Carros<strong>se</strong>l de<br />

Washington”), publicada numa cadeia de jornais,<br />

o principal deles o The Washington Post.<br />

Certo dia, numa curta nota, Anderson comunicou<br />

que tropas brasileiras tinham intervindo<br />

no Suriname e cercado a capital, Paramaribo.<br />

Não trazia mais detalhes, mas, além de enviar<br />

a coluna aos dois jornais que eram <strong>se</strong>us clientes,<br />

também comuniquei o fato a colegas dos<br />

grandes jornais de São Paulo e do Rio, para<br />

que buscas<strong>se</strong>m apurar o assunto. Não tive nenhum<br />

retorno.<br />

Pouco depois, um correspondente da Rádio<br />

da Holanda (o Suriname é a antiga Guiana Holandesa),<br />

visitou várias redações em São Paulo<br />

para saber <strong>se</strong> havia informações sobre a intervenção<br />

de tropas brasileiras no Suriname.<br />

Quando ele foi à UPI, eu o informei a respeito<br />

da nota de Jack Anderson. A coisa, que eu saiba,<br />

ficou por aí. Voltei a falar com vários colegas,<br />

já que eu mesmo, como jornalista não-investigativo,<br />

não saberia como fazer a apuração<br />

de um caso des<strong>se</strong>s.<br />

Por coincidência, alguns anos depois, fui<br />

fazer ginástica numa academia em São Paulo,<br />

e o instrutor, ao saber que eu era jornalista,<br />

me procurou e me contou que tinha <strong>se</strong>rvido<br />

o Exército na Amazônia e que participara<br />

de uma intervenção de tropas brasileiras no<br />

Suriname, <strong>se</strong>gundo ele a pedido do governo<br />

do país, para combater guerrilheiros suriname<strong>se</strong>s<br />

antigovernamentais. Contou ainda mais<br />

que tinham morrido uns 30 brasileiros nes<strong>se</strong>s<br />

combates, e como a operação era <strong>se</strong>creta, os<br />

caixões foram enviados às famílias com a informação<br />

de que cada militar tinha morrido em<br />

acidentes em manobras em diferentes regiões<br />

da Amazônia.<br />

O dono da academia, entretanto, não queria<br />

aparecer em público e eu fiquei desconfiado de<br />

que ele era um provocador. Comuniquei tudo à<br />

minha chefia na Folha de São Paulo, onde então<br />

eu trabalhava, de 1983 a 1985. Como um<br />

jornalista da cúpula da Folha ia para Washington,<br />

ficou de verificar com o Washington Post.<br />

Voltou dizendo que não encontrara nada, nem<br />

a nota do Jack Anderson.<br />

O que <strong>se</strong>rá que aconteceu?<br />

Renato Pompeu é jornalista e escritor.<br />

rrpompeu@uol.com.br<br />

novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

Ana Miranda<br />

O pequeno<br />

piloto<br />

Um menino de dez anos, a coisa mais<br />

linda, olhar meigo e inteligente, cabelinhos espetados,<br />

roupa de piloto de carro e capacete ao lado,<br />

aparece numa foto do jornal daqui, no meio de<br />

caixotes de papelão da CBA Alimentos. São cestas<br />

básicas. Ele é Anderson Lima, piloto de kart<br />

competitivo, atual líder do circuito local. No ano<br />

passado foi o vice-campeão, mesmo tendo a idade<br />

mínima da sua categoria, que é de dez a 14 anos.<br />

Sabendo que a maioria das crianças não tem as<br />

mesmas oportunidades, sonhou abrir o autódromo<br />

para que todas pudes<strong>se</strong>m acompanhar as corridas,<br />

ou <strong>se</strong>ja, queria dividir com as crianças aquilo<br />

de que ele mais gosta. As crianças iriam adorar.<br />

Mas não deu certo. Porém Anderson não desistiu,<br />

e talvez orientado por <strong>se</strong>us maravilhosos educadores,<br />

talvez movido por algum exemplo familiar,<br />

talvez por simplesmente ter nascido com essa<br />

alma generosa e boa, comovido pelas cenas de<br />

crianças de rua, crianças com fome, Anderson teve<br />

a ideia de ajudar com alimentos. E cada ponto que<br />

ele ganha em campeonato <strong>se</strong> converte numa cesta<br />

básica. Numa das etapas ganhou onze pontos,<br />

e mandou onze cestas para os refugiados das enchentes.<br />

Antes, foram nove pontos e nove cestas<br />

para crianças em um hospital. Mais onze cestas<br />

para um lar de idosos. Vencedor nato, dotado<br />

de um raro espírito público, ele declarou: “quero<br />

vencer mais para ajudar mais. Vou <strong>se</strong>mpre fazer<br />

as doações. Queria que as outras pessoas também<br />

ajudas<strong>se</strong>m.”<br />

Em meio a toda essa meninada<br />

valente do esporte, Anderson já viajou<br />

pelo Brasil disputando campeonatos, já enviou reportagem<br />

sobre o circuito de Caruaru, muito bem<br />

escrita, nem parece que foi ele. E já protagonizou<br />

um brilhante duelo na pista. Meu Deus, imagino o<br />

meu netinho de nove anos, pilotando, uma criança!<br />

Mas, pensando bem, es<strong>se</strong>s meninos devem dirigir<br />

muito melhor do que eu....<br />

Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno,<br />

Desmundo, Dias & Dias, e outros romances, editados<br />

pela Companhia das Letras. Suas crônicas estão reunidas<br />

no volume Deus-dará, da Editora Casa Amarela.<br />

amliteratura@hotmail.com<br />

junho 2009 caros amigos<br />

Ilustração: Debora borba/deboraborba@gmail.com<br />

17


18<br />

caros amigos julho 2009<br />

João Pedro Stedile<br />

A cri<strong>se</strong>, a agricultura<br />

e a ofensiva do<br />

capital internacional<br />

O mundo está vivendo mais uma cri<strong>se</strong> sistêmica do<br />

capitalismo. É a terceira, desde o surgimento do capitalismo industrial.<br />

Houve uma grande cri<strong>se</strong> nas décadas de 1870-1890 que atingiu apenas<br />

a Europa capitalista. Depois, a <strong>se</strong>gunda em 1929-45, que atingiu<br />

todo o hemisfério norte. E agora, estamos diante da terceira, que recém<br />

<strong>se</strong> inicia e atinge a todos os paí<strong>se</strong>s do mundo, na fa<strong>se</strong> do capitalismo<br />

globalizado.<br />

As cri<strong>se</strong>s sistêmicas, que abrangem todo sistema são mais<br />

prolongadas e profundas do que as cri<strong>se</strong>s cíclicas, que afetam <strong>se</strong>paradamente<br />

as economias nacionais ou determinado ramo da produção. O<br />

Brasil viveu várias cri<strong>se</strong>s cíclicas ao longo do século XX, a ultima foi no<br />

<strong>se</strong>gundo mandato do Governo FHC. Todas foram curtas e atingiam com<br />

mais força alguns <strong>se</strong>tores da economia. E faz parte da lógica das cri<strong>se</strong>s<br />

prolongadas que elas afetem de maneira diferenciada cada economia.<br />

Alguns pai<strong>se</strong>s enfrentam depressão, que é a queda brusca dos níveis de<br />

produção. Outros enfrentam a recessão, que é a queda paulatina durante<br />

anos, dos níveis de produção. E há outros que enfrentam a estagnação.<br />

Que é um movimento ondular de pequenas quedas, retomadas de<br />

crescimento e novas quedas. Parece <strong>se</strong>r o caso da economia brasileira, e<br />

também das outras grandes economias da Rússia, Índia, e China.<br />

É nos períodos de cri<strong>se</strong>, que os capitalistas voltam a defender<br />

o papel do estado. Sempre usam o estado como poder para reunir<br />

os recursos de toda população e repassar a eles. Por isso, os períodos<br />

de cri<strong>se</strong> são também de grande reconcentração da riqueza.<br />

No caso brasileiro, a produção do agronegócio subordinado<br />

às transnacionais, a taxa de lucro no campo, as vendas e os preços no<br />

mercado externo, o preço das terras agrícolas - tudo caiu. Os agrocapitalistas<br />

intensificaram as pressões para que o estado brasileiro liberas<strong>se</strong><br />

recursos. A produção pro mercado externo é totalmente dependente<br />

de crédito, do capital financeiro. Para produzir um PIB agrícola ao redor<br />

de 120 bilhões de reais, pediram e levaram ao redor de 97 bilhões<br />

de reais do governo, em financiamento. A agricultura familiar produz<br />

qua<strong>se</strong> 80 bilhões, mas vai levar apenas 9 bilhões de crédito.<br />

As transnacionais, mais agressivas, conhecem a teoria de<br />

Rosa Luxemburg, de que, com pouco trabalho humano, os recursos naturais,<br />

mercadorias de alto preço, rendem altas taxas de lucro na retomada<br />

do ciclo. Aumentaram a pressão para controlar as <strong>se</strong>mentes transgênicas<br />

e as fontes de água, a energia e os rios nas hidrelétricas, as re<strong>se</strong>rvas<br />

do pré-sal (e a CPI da Petrobras é um teatrinho para isso). As fazendas<br />

compradas pelo Banco Opportunity, do testa-de-ferro estaduniden<strong>se</strong><br />

Daniel Dantas, com <strong>se</strong>us 600 mil hectares, estão todas em cima de re<strong>se</strong>rvas<br />

minerais. Aumentaram a pressão sobre a propriedade das terras da<br />

Amazônia, com a MP 458, e o controle sobre usinas de álcool e exportação<br />

do etanol.<br />

Oxalá o povo brasileiro desperte.<br />

João Pedro Stedile, membro da coordenação nacional do MST e da via<br />

campesina Brasil.<br />

Eduardo Matarazzo Suplicy<br />

a ave poesia<br />

do Patativa do Assaré<br />

e Garapa<br />

Os filmes A Ave Poesia do Patativa do Assaré, de Ro<strong>se</strong>mberg Ariry,<br />

e Garapa, de José Padilha, são duas produções que levam o espectador a<br />

uma reflexão mais profunda sobre a pobreza e a liberdade de expressão.<br />

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aos <strong>se</strong>te anos, deixou Garanhuns com<br />

destino ao Guarujá em São Paulo, numa típica situação ob<strong>se</strong>rvada por um poeta<br />

que tão bem captou a sina dos nordestinos. Um dia, o <strong>se</strong>rtanejo Luiz Gonzaga<br />

ouviu no rádio, no interior da Paraíba, uma canção que achou muito bonita.<br />

Resolveu ir até Assaré, no Ceará, conversar com <strong>se</strong>u autor, Patativa:<br />

- “Você quer me vender essa música?”<br />

- “Meu mundo é a minha poesia, minha família e eu não vendo direito<br />

autoral por preço nenhum. Mas <strong>se</strong> você qui<strong>se</strong>r cantá-la vou ficar muito<br />

honrado”.<br />

A partir, daí Luiz Gonzaga passou a cantar Triste Partida:<br />

“Eu vendo meu burro<br />

Meu jegue, meu cavalo.<br />

Nós vamos a São Paulo<br />

Viver ou morrer<br />

Pois logo aparece<br />

Feliz fazendeiro<br />

Por pouco dinheiro<br />

Lhe compra o que tem<br />

Meu Deus, meu Deus.<br />

Faz pena o nortista,<br />

Tão forte e tão bravo,<br />

Viver como escravo,<br />

No norte ou no sul”.<br />

As músicas cantadas pelos jovens das grandes metrópoles<br />

brasileiras, a exemplo do rap O Homem na Estrada, de Mano Brown<br />

e dos Racionais, indicam que, mesmo meio século depois, o grau de liberdade<br />

dos <strong>se</strong>res humanos, para muitos, é ainda limitado.<br />

O filme Garapa, de José Padilha, mostra uma realidade que infelizmente<br />

ainda perdura em nosso país: o quotidiano de três famílias pobres<br />

no Ceará. Todas lutam, em sua batalha diária, para con<strong>se</strong>guir como <strong>se</strong><br />

alimentar diante de extrema escas<strong>se</strong>z.<br />

“A fome é um ronco no estômago, uma correria para<br />

esquentar o leite que resta para três crianças que choram, uma casa <strong>se</strong>m<br />

móveis, é uma roupa puída, um chinelo gasto, uma parede para pintar, são<br />

crianças <strong>se</strong>m escola”, como diz Padilha que, em 2005, por um mês filmou<br />

a vida destas famílias. Quando a criança acorda na rede, a mãe lhe traz a<br />

mamadeira que, em vez de leite, tem garapa quente (água com açúcar).<br />

Depois de assistir ao filme, temos que concordar com Josué<br />

de Castro, o autor de Geografia da Fome e de Geopolítica da Fome, dos<br />

anos 40 e 50. Erradicar a fome e a pobreza absoluta está inteiramente em<br />

nossas mãos. Precisamos nos empenhar muito mais para con<strong>se</strong>guir.<br />

Eduardo Matarazzo Suplicy é <strong>se</strong>nador.


entrelinhas<br />

a mídia como ela é<br />

Hamilton Octavio de Souza<br />

Cesar Cardoso<br />

Lição da Petrobras Eu sabia por que <strong>se</strong> chama ca-<br />

Constantemente atacada pela direita, em especial<br />

pela grande imprensa neoliberal, a Petrobras<br />

reagiu com inteligência: construiu um blog e<br />

passou a veicular na Internet o conteúdo integral<br />

– perguntas e respostas – das entrevistas feitas<br />

com <strong>se</strong>us diretores e funcionários. Em princípio<br />

uma medida de transparência e <strong>se</strong>ntido público,<br />

que ao mesmo tempo <strong>se</strong>rve para desmascarar as<br />

manipulações sorrateiras dos principais jornais e<br />

revistas. Claro, as empresas jornalísticas caíram<br />

de pau na Petrobras com os argumentos mais estapafúrdios<br />

do mundo. A estatal recuou, mas deixou<br />

sinalizado o que mais assusta o oligopólio<br />

da distorção.<br />

LUTA PELA TERRA<br />

Os jornalistas do Coletivo Catar<strong>se</strong>, de Porto<br />

Alegre, produziram uma excelente reportagem<br />

cinematográfica sobre os 25 anos do Movimento<br />

dos Trabalhadores Rurais Sem Terra<br />

(MST), comemorados em Sarandi, no Rio Grande<br />

do Sul, onde os as<strong>se</strong>ntamentos da Fazenda<br />

Anoni <strong>se</strong> transformaram em modelos produtivos<br />

da reforma agrária. Quem tiver interes<strong>se</strong> no documentário<br />

é só entrar em contato com catar<strong>se</strong>@coletivocatar<strong>se</strong>.com.br<br />

ou pelo telefone (51)<br />

3012-5509. Vale a pena ver.<br />

FLAGRANTE DELITO<br />

O jornal Campus, da Universidade de Brasília,<br />

deu manchete de capa: o presidente do Supremo<br />

Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, costuma<br />

estacionar <strong>se</strong>u carro na vaga destinada a<br />

deficientes físicos – nos dias em que leciona Direito<br />

Constitucional naquela instituição. Os estudantes<br />

de jornalismo Sacha Brasil e Maria Scodeler,<br />

que flagraram a delinquência, procuraram<br />

a as<strong>se</strong>ssoria do STF e foram informados que o<br />

ministro abriu sindicância administrativa contra<br />

<strong>se</strong>u motorista.<br />

“LA COSA BERLUSCONI”<br />

O primeiro parágrafo do artigo de José Saramago,<br />

no jornal El País, diz tudo: “não vejo que<br />

outro nome lhe poderia dar. Uma coisa perigosamente<br />

parecida a um <strong>se</strong>r humano, uma coisa<br />

que dá festas, organiza orgias e manda em<br />

um país chamado Itália. Esta coisa, esta enfermidade,<br />

este vírus ameaça <strong>se</strong>r a causa da morte<br />

moral do país de Verdi <strong>se</strong> um vômito profundo<br />

não con<strong>se</strong>gue arrancá-lo da consciência dos<br />

italianos antes que o veneno acabe corroendo as<br />

veias e destroçando o coração de uma das mais<br />

ricas culturas européias”.<br />

INVERSÃO DOS FATOS<br />

A Polícia Militar foi chamada pela reitoria da<br />

USP, invadiu o campus da Cidade Universitária e<br />

reprimiu com violência uma manifestação legítima<br />

e democrática de estudantes, professores e<br />

funcionários da universidade. Os principais jornais,<br />

revistas e emissoras de rádio e TV deram<br />

os fatos como <strong>se</strong>ndo um “conflito” ou um “confronto”<br />

entre manifestantes e PM. Poucos jornalistas<br />

<strong>se</strong> deram ao trabalho de perguntar por que<br />

não existe diálogo dentro da instituição, todas as<br />

reivindicações da comunidade são tratadas com<br />

violência. A mídia não deveria questionar o despreparo<br />

da gestão pública?<br />

A VELHA GLOBO NO AR<br />

Uma equipe de reportagem da TV Globo reviveu,<br />

nos episódios da USP, os tempos em que<br />

a emissora apoiava a Ditadura Militar: foi expulsa<br />

de uma as<strong>se</strong>mbléia dentro da universidade.<br />

Coincidentemente voltou a circular na<br />

Internet a gravação do direito de resposta do<br />

governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola,<br />

levado ao ar no dia 15 de março de 1994.<br />

É <strong>se</strong>mpre um prazer ver o Cid Moreira fazendo<br />

críticas ao concessionário Roberto Marinho. O<br />

povo não é bobo...<br />

Hamilton Octavio de Souza é jornalista.<br />

hamilton@uol.com.br<br />

novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

Temporariamentes<br />

rioca da gema quem nasce no Rio, sabia a escalação<br />

de Fluminen<strong>se</strong> e Bangu na final de 64,<br />

sabia o que quer dizer blue moon. Mas pela manhã<br />

ao acordar fui acertar o relógio, os ponteiros<br />

me acertaram primeiro e esqueci tudo isso.<br />

Do que ainda lembro? Da emoção do primeiro<br />

caderno encapado com papel de <strong>se</strong>da azul. Ah,<br />

sim! Me lembro que o homem aprendeu a voar<br />

com Santos Dumont e a mulher com Fred Astaire.<br />

Ou terá sido ao contrário? O muro de Berlim,<br />

o império romano, as torres gêmeas, Teresinha<br />

de Jesus. Quem des<strong>se</strong>s reconheceu a queda<br />

e não desanimou? Quem levantou, sacudiu a poeira<br />

e deu a volta por cima? Que praga destruiu<br />

a primavera de Praga?<br />

Tudo tão difícil. A memória vem do latim,<br />

sim, mas vai para onde? Quantas vezes por<br />

dia é preciso morrer pra continuar vivo? Quantas<br />

memórias precisamos perder? Em que tempo?<br />

Um ano, por exemplo. O intervalo de tempo<br />

correspondente a uma revolução da terra em<br />

torno do sol. Ou bis<strong>se</strong>xto ou letivo ou lunar. Talvez<br />

o tempo de gestação das girafas, de <strong>se</strong> fechar<br />

balancetes, de <strong>se</strong> parir e embalar Mateus.<br />

Mas em alguma dobra da memória,<br />

que é o nosso tempo, existe um certo<br />

ano-luz <strong>se</strong>m nenhuma ciência que lhe dê conta.<br />

Uma revolução - não da terra – marítima, com<br />

<strong>se</strong>u ritmo que nenhum piano alcança, incabível -<br />

e como dança! E lá talvez esteja tudo que precisamos<br />

de preciso e impreciso: ligar o rádio, buscar<br />

a sintonia, o que vai ficando nos álbuns do<br />

olhar, tatuagens que não <strong>se</strong> vê, lã de vidro na<br />

ampulheta <strong>se</strong>m tampo nem fundo, escorre nos<br />

corpos - tão macia...<br />

Quanto tempo terá levado até<br />

que o primeiro homem fizes<strong>se</strong> o primeiro armário<br />

e deixas<strong>se</strong> aberta a primeira gaveta à esquerda<br />

onde <strong>se</strong> encontra - quem sabe? - um bilhete<br />

esquecido dizendo bom dia?<br />

Ventar e inventar folhinhas, memórias. O calendário<br />

vai pras calendas. Os relógios partem e<br />

<strong>se</strong> partem. Estamos com a corda toda, despertamos<br />

a madrugada e anunciamos aos galos: o<br />

ano domini!<br />

E o tempo <strong>se</strong>gue nos dominando.<br />

Cesar Cardoso perde tempo escrevendo. Ilustração: Debora borba/deboraborba@gmail.com<br />

junho 2009 caros amigos<br />

19


20<br />

o Brasil<br />

caros amigos julho 2009<br />

entrevista lUIZ MOTT<br />

Entre o cor de<br />

rosa e o vermelho<br />

sangue<br />

Fundador do Grupo Gay da<br />

Bahia, Luiz Mott denuncia os<br />

crimes de homofobia no país<br />

da maior parada gay do mundo<br />

Tatiana Merlino | Fotos Marcelo Cerqueira<br />

é o país onde mais <strong>se</strong> mata homos<strong>se</strong>xuais. Em 2008, foram registrados<br />

190 assassinatos, um a cada dois dias. Os números superam as<br />

estatísticas de 2007, quando houve 122 homicídios dessa natureza. Os<br />

dados, apre<strong>se</strong>ntados pela pesquisa do Grupo Gay da Bahia, indicam que o Brasil<br />

é o campeão mundial em crimes de homofobia, <strong>se</strong>guido pelo México – que<br />

apre<strong>se</strong>nta média de 35 crimes por ano – e Estados Unidos – com 25.<br />

As estatísticas são no mínimo estranhas para um país que <strong>se</strong>dia a maior parada<br />

gay do mundo. Em sua ultima edição, a manifestação realizada anualmente<br />

em São Paulo reuniu cerca de três milhões de pessoas.<br />

Para o antropólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, entidade<br />

mais antiga de defesa dos direitos dos homos<strong>se</strong>xuais no país, “apesar do Brasil<br />

proclamar através de suas lideranças que teve a primeira conferencia GLBT<br />

do globo e o primeiro presidente a apre<strong>se</strong>ntar um programa nacional para os<br />

gays, estamos na rabeira de outros paí<strong>se</strong>s que possuem menos organização em<br />

termos de parada”.<br />

Ou <strong>se</strong>ja, apesar da grandiosidade da parada gay brasileira, os números de assassinatos<br />

de homos<strong>se</strong>xuais vêm crescendo ano a ano. Para Mott, um dos motivos<br />

é o fato de ainda não termos uma legislação que garanta o reconhecimento<br />

da homofobia como crime.<br />

A despeito de iniciativas positivas apre<strong>se</strong>ntadas pelo governo Lula, como o programa<br />

Brasil Sem Homofobia, de 2004, e o recente Plano Nacional da Cidadania dos<br />

Direitos Humanos LGBT, de maio deste ano, “infelizmente, é muita palavra e pouca<br />

ação efetiva”. Para combater a violência, o antropólogo defende a aprovação do<br />

projeto de lei que equipara a homofobia ao racismo [PLC 122/2006].<br />

O levantamento anual dos assassinatos de homos<strong>se</strong>xuais teve inicio em<br />

1980, quando o Grupo Gay da Bahia foi criado. Desde então, até 2008, foram<br />

documentados 2.998 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no Brasil, concentrando-<strong>se</strong><br />

18% deles na década de 80, 45% nos anos 90 e 35% (1.168 casos)<br />

a partir de 2000. Quando divulgou os dados de 2008, Mott classificou o conjunto<br />

de crimes como um verdadeiro “homocausto”.<br />

Caros Amigos - Como você avalia o governo Lula no combate<br />

à homofobia. Houve avanços?<br />

Luiz Mott - O primeiro presidente da República a falar a palavra homos<strong>se</strong>xual<br />

foi o Fernando Henrique Cardoso, em 2002, e a primeira vez que um documento<br />

oficial do governo federal citou os homos<strong>se</strong>xuais foi o Programa Nacional<br />

de Direitos Humanos, em 1996. O Lula tem sido o presidente que mais tem fa-<br />

lado do assunto: participou da Conferência Nacional LGBT em Brasília, publicou<br />

o programa Brasil Sem Homofobia, propôs ações para a comunidade homos<strong>se</strong>xual,<br />

mas, infelizmente, é muita palavra e pouca ação efetiva. Das ações<br />

afirmativas propostas pelo Brasil Sem Homofobia, nem 5% saiu do papel. O que<br />

a gente espera é o que presidente Lula pressione mais essa ba<strong>se</strong> aliada em favor<br />

dos dez projetos que estão no Congresso Nacional sobre direitos humanos<br />

LGBT, para que o país deixe essa infeliz condição de campeão mundial de assassinatos<br />

de homos<strong>se</strong>xuais.<br />

Recentemente, o governo federal lançou o Plano Nacional da Cidadania<br />

dos Direitos Humanos LGBT, primeira vez que um governo <strong>se</strong> compromete<br />

com políticas específicas para combater a homofobia. Quais são<br />

suas expectativas em relação ao Plano? É possível que ele resulte em<br />

ações concretas?<br />

Pode <strong>se</strong>r que <strong>se</strong>ja o primeiro, como foi o primeiro país no planeta a convocar<br />

uma Conferência Nacional, mas o que vale são ações efetivas. Depende muito da<br />

boa vontade do próprio Lula, da sua ba<strong>se</strong> aliada e da pressão dos homos<strong>se</strong>xuais<br />

e dos simpatizantes aliados para que tantas boas intenções saiam do papel.<br />

Para que essas medidas <strong>se</strong>jam colocadas em prática não é preciso esperar<br />

a aprovação de leis no Congresso?<br />

No Brasil, o poder mais simpatizante e aliado dos direitos humanos dos homos<strong>se</strong>xuais<br />

é o Judiciário, concedendo diversas garantias, <strong>se</strong>ja no nível da família,<br />

<strong>se</strong>ja na mudança de nome para tran<strong>se</strong>xuais, na adoção, no reconhecimento<br />

de viúvos à herança. O Executivo tem manifestado boas intenções através do<br />

Programa Nacional de Direitos Humanos, o Brasil <strong>se</strong>m Homofobia etc. O Legislativo<br />

é que tem sido o mais con<strong>se</strong>rvador e o mais inerte, empurrando as nossas<br />

demandas com a barriga. Isso reflete o medo que os deputados e <strong>se</strong>nadores<br />

têm de <strong>se</strong> envolver com uma causa tão tabu.<br />

O plano pode ajudar na aprovação do projeto de união civil da Marta<br />

Suplicy, que é de 1995?<br />

Es<strong>se</strong> projeto foi considerado por ela própria [Marta Suplicy] como caduco.<br />

Ele está muito aquém das conquistas já efetivadas pelo Judiciário, como o reconhecimento<br />

da família e o direito à adoção. Na verdade, embora há mais de<br />

dez anos o movimento homos<strong>se</strong>xual brasileiro lute pela aprovação des<strong>se</strong> projeto,<br />

eu considero que o mais importante é a aprovação do projeto de lei que


equipara a homofobia ao racismo para assim diminuir o sofrimento e a morte<br />

de tantos gays como resultado da ideologia machista e homofóbica que ainda<br />

vê o homos<strong>se</strong>xual como pecador, marginal, que merece pena de morte.<br />

Como está a relação do movimento gay com as religiões? A bancada<br />

dos católicos é o maior entrave para a aprovação das reivindicações<br />

do movimento gay, não é?<br />

Infelizmente. As igrejas cristãs – católicas e protestantes, sobretudo as neopentecostais<br />

– têm as mãos sujas de sangue. Através da pregação homofóbica,<br />

intolerante, preconceituosa que pastores e padres fazem nos cultos, eles fornecem<br />

argumentos para homofóbicos que matam os homos<strong>se</strong>xuais. Há a exceção<br />

do candomblé e de uma ala do espiritismo, que têm sido mais simpatizantes<br />

aos direitos humanos. As igrejas têm que <strong>se</strong> modernizar e acompanhar o que<br />

acontece na Europa e nos Estados Unidos, onde bispos são assumidamente gays,<br />

onde há até casamentos abençoados por denominações religiosas. Essas igrejas<br />

fundamentalistas cristãs do Brasil agem como <strong>se</strong> fos<strong>se</strong>m muçulmanas, que são<br />

as mais intolerantes com os homos<strong>se</strong>xuais no mundo inteiro.<br />

Como pode <strong>se</strong> explicar a contradição do Brasil ter a maior parada gay do<br />

mundo e <strong>se</strong>r campeão em crimes de homofobia?<br />

Es<strong>se</strong> é um grande dilema que o movimento homos<strong>se</strong>xual brasileiro tem de<br />

enfrentar com apoio dos cientistas sociais e experts em cultura brasileira. O<br />

Brasil tem es<strong>se</strong> lado cor-de-rosa, a maior parada gay do mundo, a maior associação<br />

de gays, lésbicas e transgêneros da América do Sul. E tem o lado vermelho-sangue:<br />

a cada dois dias, um gay é assassinado. No Brasil, a legislação<br />

ainda não garante o reconhecimento da homofobia como crime. Essa contradição<br />

tem que <strong>se</strong>r superada a partir de quatro medidas fundamentais: a aprovação<br />

de leis que garantam a sobrevivência dos homos<strong>se</strong>xuais do mesmo modo<br />

como o racismo é penalizado como crime inafiançável; que a polícia e a Justiça<br />

<strong>se</strong>jam ágeis e <strong>se</strong>veras para punir e investigar criminosos que discriminam e<br />

violentam homos<strong>se</strong>xuais; educação <strong>se</strong>xual obrigatória em todos os níveis escolares,<br />

desde o pré-primário até os níveis de pós-graduação, para que as pessoas<br />

entendam mais sobre a diversidade <strong>se</strong>xual; e um apelo à própria comunidade<br />

homos<strong>se</strong>xual LGBT para que <strong>se</strong> assumam, que saiam do armário.<br />

“O Brasil tem es<strong>se</strong> lado cor-de-rosa, a maior parada<br />

gay do mundo, a maior associação de gays, lésbicas e<br />

transgêneros da América do Sul. E tem o lado vermelhosangue:<br />

a cada dois dias, um gay é assassinado.”<br />

A única pesquisa existente no país sobre crimes de homofobia é a do<br />

Grupo Gay da Bahia, que mostra que somos campeões mundiais em<br />

crimes homofóbicos. Es<strong>se</strong>s números vêm aumentando ano a ano. A<br />

ausência de políticas públicas é um estímulo para que isso aconteça?<br />

A pesquisa de assassinatos de homos<strong>se</strong>xuais no Brasil, coletados pelo Grupo<br />

Gay da Bahia, teve início em 1980, e é o maior acervo sobre assassinatos de<br />

gays, travestis e lésbicas do mundo, de modo que nenhum outro grupo dispõe de<br />

informações tão preciosas. Es<strong>se</strong> cadastro está <strong>se</strong>ndo digitalizado por meio de um<br />

financiamento do Ministério da Saúde e estará disponível ainda este ano para<br />

que <strong>se</strong>ja consultado. Essas informações deveriam <strong>se</strong>r divulgadas, consultadas e<br />

interpretadas pelo governo para propor políticas que erradiquem es<strong>se</strong>s crimes.<br />

Temos consciência que somos os primeiros, apesar da limitação e incompletude<br />

des<strong>se</strong>s dados. Mesmo tendo uma rede importante de informantes por todo o<br />

Brasil, muitos crimes ou são escondidos pela família, ou não <strong>se</strong> chega a revelar<br />

a verdadeira identidade da vitima. Portanto, essa avaliação de que há um assassinato<br />

a cada dois dias certamente é inferior aos números reais. No mínimo,<br />

deve haver um assassinato por dia no Brasil tendo o homos<strong>se</strong>xual como vitima<br />

da homofobia, do machismo.<br />

Por que o movimento brasileiro luta por união civil <strong>se</strong> em muitos<br />

outros paí<strong>se</strong>s <strong>se</strong> pede o direito ao casamento? Por exemplo, recentemente<br />

a Suécia, que já tinha união civil, aprovou o casamento.<br />

novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

Infelizmente, o fundamentalismo religioso no Brasil ofusca e limita as próprias<br />

aspirações dos militantes homos<strong>se</strong>xuais. A Espanha é um bom exemplo de<br />

país com tradição católica extremamente forte, mas que abandonou o projeto<br />

de parceria civil ou de pacto de solidariedade, como existe na França, para partir<br />

diretamente para o casamento, que foi aprovado <strong>se</strong>m nenhuma restrição em<br />

comparação aos casamentos heteros<strong>se</strong>xuais. Na época em que a Marta Suplicy<br />

elaborou o projeto de parceria civil, ela e o movimento gay que a ajudou acreditaram<br />

que haveria uma resistência total por parte dos deputados caso fos<strong>se</strong><br />

imediatamente proposto o casamento. Por isso, foi apre<strong>se</strong>ntado um projeto que<br />

são migalhas aos homos<strong>se</strong>xuais. A união não é um casamento, não <strong>se</strong> constitui<br />

família, não <strong>se</strong> pode adotar. E acho que temos que partir para o confronto<br />

total. Queremos que o Brasil <strong>se</strong> equipare ao que acontece de mais moderno em<br />

termos de legislação de direitos humanos na Holanda, na Bélgica, em Portugal,<br />

na Espanha. A parceria civil é um arremedo de casamento.<br />

Estamos atrasados em relação aos paí<strong>se</strong>s da América Latina?<br />

O Uruguai já tem união civil e agora o governo quer o casamento.<br />

O Equador já tem união civil.<br />

Apesar do Brasil proclamar e arrotar através de suas lideranças que teve a<br />

primeira conferencia GLBT do globo e que teve o primeiro presidente a apre<strong>se</strong>ntar<br />

um programa nacional, o Brasil está na rabeira de outros paí<strong>se</strong>s que<br />

possuem menos organização em termos de parada. A parada de Buenos Aires,<br />

por exemplo, não chega a ter 20 mil pessoas. Es<strong>se</strong>s paí<strong>se</strong>s con<strong>se</strong>guiram vitórias<br />

mais importantes, como a Colômbia e o Equador, que tinha uma Constituição<br />

que criminalizava a sodomia e a substituiu pela <strong>se</strong>gunda Constituição do mundo,<br />

depois da África do Sul, a incluir a proibição de discriminar por orientação<br />

<strong>se</strong>xual. Embora a Argentina tenha uma Igreja Católica mais con<strong>se</strong>rvadora que<br />

a do Brasil, tendo uma participação durante a ditadura militar, lá houve conquistas<br />

que os católicos espernearam mas tiveram que engolir.<br />

Pesquisa recente realizada pela Fundação Per<strong>se</strong>u Abramo revela que há<br />

altos índices de homofobia no país. Isso também influencia na dificuldade<br />

de aprovar leis?<br />

Na verdade, as estatísticas quanto ao nível de homofobia no Brasil<br />

são extremamente variáveis e contraditórias. Ainda <strong>se</strong> ouve<br />

coisas como “viado tem mais é que morrer”, ou “prefiro ter um<br />

filho ladrão do que um filho gay”, e também “prefiro ter uma filha<br />

puta do que sapatão”. Seria mais prático e econômico atingir<br />

19 milhões de homos<strong>se</strong>xuais [estima-<strong>se</strong> que pelo menos 10% da<br />

população brasileira <strong>se</strong>ja homos<strong>se</strong>xual] com campanhas voltadas<br />

para a população vitima de espancamento, por meio de outdoors<br />

com mensagens diretas, do que mudar a cabeça de 189 milhões<br />

de brasileiros potencialmente homofóbicos, As estatísticas de nú-<br />

meros de crimes de homofobia desconcertam qualquer tipo de previsão sociológica,<br />

porque variam enormemente de ano para ano no mesmo Estado. A única<br />

regularidade é que todo ano, mais de 100 homos<strong>se</strong>xuais são assassinados:<br />

mais gays que travestis, uma média de 70% de gays, 25% a 27% de travestis, e<br />

3% de lésbicas. Mas há Estados que em um ano <strong>se</strong> mata mais travesti e no outro<br />

<strong>se</strong> mata mais gay. O Nordeste continua <strong>se</strong>ndo a região mais afetada, e Pernambuco<br />

continua <strong>se</strong>ndo um dos Estados mais violentos.<br />

E o perfil das vítimas, qual é?<br />

São travestis assassinadas nas ruas, com armas de fogo. Os gays são assassinados<br />

dentro de suas casas, com armas de fogo, faca de cozinha, enforcados em<br />

fios de telefone. Isso inclui todas as clas<strong>se</strong>s sociais, predominando profissionais<br />

do <strong>se</strong>xo e cabeleireiros, que são as categorias mais vulneráveis, e muitos profissionais<br />

liberais, professores, médicos, incluindo padres e pais-de-santo.<br />

Quais são os direitos dos homos<strong>se</strong>xuais que são negados?<br />

Uma pesquisa realizada nacionalmente listou 37 direitos dos homos<strong>se</strong>xuais<br />

que são negados, como o direito a <strong>se</strong> casar, adotar crianças, declarar imposto<br />

de renda juntos, restrições de acesso à igreja, ao exército, discriminação nos<br />

planos de saúde...<br />

Tatiana Merlino é jornalista.<br />

junho 2009 caros amigos<br />

21


Ilustração: HKE>>>/subis.blogspot.com<br />

22<br />

Realidade<br />

brasileira<br />

Há alguns anos, resolvi juntar numa estante<br />

livros sobre a realidade brasileira, uma idéia<strong>se</strong>ntimento<br />

de grande circulação entre 1930 e<br />

1960, mais ou menos. Idéia por <strong>se</strong>r uma repre<strong>se</strong>ntação<br />

ideológica dos problemas do país<br />

(o atraso, a pobreza, a exploração estrangeira<br />

etc.), <strong>se</strong>ntimento por <strong>se</strong>r um modo social de<br />

sofrer aqueles problemas. Além de valer por si<br />

mesma, RB inspirou sucessivas estratégias de<br />

luta pelo poder, desde a Revolução de Trinta<br />

até o petismo dos anos 80.<br />

RB foi uma poderosa invenção ideológica<br />

que deu aos <strong>se</strong>us inventores a ilusão de verdade<br />

única. Parte insignificante da população,<br />

capaz de publicar livros, escrever em jornais e<br />

revistas, compor músicas, fazer filmes e peças<br />

de teatro apre<strong>se</strong>ntou a sua idéia-<strong>se</strong>ntimento do<br />

país como verdadeira; e es<strong>se</strong> fato – es<strong>se</strong> truque<br />

– <strong>se</strong> tornou, ele próprio, um fato histórico,<br />

capaz de gerar e guiar, até hoje, outros fatos.<br />

Realidade brasileira era parcial, embora verdadeira;<br />

ou verdadeira, embora parcial. Toda<br />

verdade é histórica e, mesmo enquanto dura,<br />

disputa e/ou convive com outras idéias-<strong>se</strong>ntimentos<br />

da realidade social. RB foi apenas “a<br />

melhor fórmula da Revolução de 1930” (Graciliano<br />

Ramos).<br />

Até que ponto uma ideologia, um método<br />

sociológico ou uma simples proposição sobre<br />

a realidade revela ou esconde a realidade? Que<br />

<strong>se</strong>ria da economia <strong>se</strong> os economistas <strong>se</strong> perguntas<strong>se</strong>m<br />

a cada análi<strong>se</strong> de mercado pelo significado<br />

universal do dinheiro? Como escrever<br />

história <strong>se</strong>m perguntar, a cada passo, pelo grau<br />

de verdade da ideologia que estamos narrando?<br />

Tomando o subjetivo, o imaginário, o fantasiado,<br />

o suposto, como fato objetivo.<br />

Sendo realidade brasileira uma fórmula para<br />

explicar o Brasil e orientar a luta organizada<br />

contra <strong>se</strong>us males históricos (o atraso, a pobreza,<br />

o latifúndio, a exploração estrangeira), foi ela<br />

própria um fato histórico: nasceu, viveu e morreu.<br />

Ao falar “Brasil” o que dizemos é diferente<br />

em cada período histórico, embora algo permaneça<br />

sob a passagem do tempo: o de Brandônio<br />

não é o dos conjurados baianos de 1798, o de<br />

Castro Alves, o de Jorge Amado, o do Chacrinha<br />

ou o do Jornal Nacional.<br />

Nenhuma idéia-<strong>se</strong>ntimento con<strong>se</strong>guira <strong>se</strong><br />

tornar totalitária, até hoje. Todas – o aliancismo,<br />

o integralismo, o populismo, o de<strong>se</strong>nvolvimentismo,<br />

o terceiro-mundismo, o ame-o<br />

caros amigos julho 2009<br />

amigos de papel<br />

Joel Rufino dos Santos<br />

ou deixe-o e tantas outras – tiveram contraditórios,<br />

mesmo quando <strong>se</strong> esconderam sob lugares<br />

comuns como “nossa história”, “minha<br />

geração”, “meu tempo”, “minha época” e tantos<br />

outros. O poder atual da publicidade-televisão<br />

parece eliminar es<strong>se</strong>s contraditórios, substituindo<br />

a história pelo pre<strong>se</strong>nte contínuo e a<br />

experiência de pensar e <strong>se</strong>ntir pelo gozo supremo<br />

de ver <strong>se</strong>m <strong>se</strong>r visto. Nes<strong>se</strong> êxta<strong>se</strong> bigbródico<br />

<strong>se</strong> entretém o telespectador – <strong>se</strong>m gosto<br />

próprio, idéia própria, desígnio próprio. O de<strong>se</strong>jo<br />

de repre<strong>se</strong>ntar toda a sociedade para toda<br />

a sociedade através de uma realidade audiovisual,<br />

parece agora saciado. Está?<br />

Joel Rufino é historiador e escritor.<br />

Guilherme Scalzilli<br />

O império<br />

derrotado<br />

Parece con<strong>se</strong>nsual que a política<br />

externa de Barack Obama repre<strong>se</strong>nta uma guinada<br />

positiva em relação ao espírito intervencionista<br />

dos governos Bush. Mesmo a frustração<br />

parcial das enormes expectativas iniciais é creditada<br />

ao gradualismo exigido por algumas radicais<br />

promessas da campanha democrata.<br />

Mas a benevolência da opinião<br />

pública internacional omite a natureza<br />

pragmática da festejada mudança de rumo.<br />

O próprio Obama admitiu que os interes<strong>se</strong>s dos<br />

EUA no restante do planeta são ameaçados pelo<br />

fracasso de sua própria diplomacia agressiva e<br />

intransigente. Considerando que o presidente<br />

questionava (e atualmente modifica) os pilares<br />

históricos do predomínio norte-americano, trata-<strong>se</strong><br />

de uma pungente confissão de derrota.<br />

E o cenário internacional demonstra<br />

que ele está certo: a potência chinesa, o predomínio<br />

regional russo (sob os desmandos de um grupo<br />

oriundo da KGB), o Irã dos aiatolás, a resistência<br />

cubana, a Líbia do eterno Kadafi, a desafiadora Coréia<br />

do Norte. As regiões dominadas militarmente<br />

pelos EUA sofrem com marionetes ditatoriais ou<br />

viraram palco de massacres injustificáveis, destruição<br />

generalizada e revolta popular.<br />

O antiamericanismo prolifera<br />

também nas populações sob regimes democráticos<br />

e liberais, como em boa parte da Europa e<br />

da América Latina – vitrines das pretensões estaduniden<strong>se</strong>s<br />

desde o início do século passado.<br />

Ademais, qua<strong>se</strong> todos os governantes em exercício<br />

no continente americano já foram combatidos<br />

pela Casa Branca, individual ou coletivamente,<br />

durante algum processo eleitoral ou<br />

revolucionário.<br />

São reve<strong>se</strong>s sérios demais para<br />

tratarmos a moderação apaziguadora dos EUA<br />

como uma novidade inofensiva. Porém, ainda<br />

que a estratégia reformulada apenas esconda a<br />

essência intocada do paradigma geopolítico, ela<br />

demonstra uma ruptura em relação às suas pretensões<br />

hegemônicas originais.<br />

Guilherme Scalzilli, historiador e escritor. Autor do<br />

romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com


Gershon Knispel<br />

Acabar com as<br />

fronteiras geográficas?<br />

“Definitivamente é preciso acabar<br />

com as fronteiras geográficas. Elas somente elas sobrevivem<br />

a <strong>se</strong>parar a humanidade”.<br />

“Creio que o melhor para palestinos<br />

e israelen<strong>se</strong>s <strong>se</strong>ria a existência de um Estado<br />

único laico e democrático, onde todos possam continuar<br />

harmoniosamente” (Georges Bourdoukan),<br />

Caros Amigos 145 e 146.<br />

No início do século 20, ou <strong>se</strong>ja, com a<br />

Revolução de Outubro, começou a <strong>se</strong> realizar não só<br />

o <strong>se</strong>u sonho, Georges, mas também o meu sonho, e de<br />

muitos outros <strong>se</strong>res humanos, de acabar com as fronteiras<br />

entre os povos, sob a palavra de ordem “Proletários<br />

de todo o mundo, uni-vos”. E que destino teve<br />

es<strong>se</strong> projeto tão grandioso? A queda da maior das<br />

revoluções, a União Soviética, que provocou também<br />

a queda dos “paí<strong>se</strong>s socialistas” da Europa Oriental<br />

em pedaços quebrados; a própria União Soviética foi<br />

quebrada em partes como a Ucrânia, Estônia, Letônia,<br />

Lituânia, Geórgia, Azerbaijão...<br />

A Tchecoslováquia foi dividida na<br />

República Tcheca e Eslováquia. A Iugoslávia <strong>se</strong> dividiu<br />

em <strong>se</strong>is: Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia, Macedônia<br />

e Montenegro. Romênia, Bulgária, Polônia,<br />

Hungria, Albânia concorrem entre si sobre quem vai<br />

<strong>se</strong>r recebido primeiro com todos os direitos na União<br />

Européia. Receberão, em <strong>se</strong>us territórios não mais<br />

soberanos, os mís<strong>se</strong>is de longo alcance.<br />

Em vez de acabar com as fronteiras, elas<br />

dobram e triplicam. E não foi o Hamas que ergueu<br />

uma fronteira entre Gaza e a Cisjordânia? Em 31 de<br />

maio de 2009, o jornal O Estado de S. Paulo publicou<br />

a notícia: “Direita deverá crescer no Parlamento<br />

Europeu. A maior cri<strong>se</strong> econômica desde a Segunda<br />

Guerra favorece discurso nacionalista e favorece a<br />

divisão entre os paí<strong>se</strong>s europeus de novo”.<br />

Depois das eleições do Parlamento Europeu,<br />

a realidade é pior: em todos os paí<strong>se</strong>s europeus<br />

a extrema direita nacionalista <strong>se</strong> fortaleceu. Isso<br />

vai com certeza tornar a União Européia um episódio<br />

fugaz. E a fala de Marx, de que “a religião é o ópio<br />

do povo”, que foi realmente a grande esperança que<br />

deu asas para a imaginação humana de libertação das<br />

religiões, qual foi o <strong>se</strong>u resultado?<br />

No início do século 21, estamos enfrentando<br />

uma situação bem contrária. O fundamentalismo<br />

muçulmano extremista pegou a idéia<br />

marxista do mundo <strong>se</strong>m fronteiras para transformá-la<br />

na revolução islâmica mundial, bem além do<br />

mundo hoje muçulmano. Em Israel, a idéia dos fundamentalistas<br />

messiânicos <strong>se</strong> tornou um con<strong>se</strong>nso<br />

nacional, com a tendência de expandir o país bem<br />

além das fronteiras de 1967, por meio do roubo das<br />

terras palestinas da Cisjordânia, que estavam destinadas<br />

a cumprir os direitos dos palestinos a um<br />

país próprio deles, em resultado das resoluções da<br />

ONU de 1947. Os cristãos fundamentalistas não ficaram<br />

atrás.<br />

Os milhares de colonos judeus <strong>se</strong><br />

instalaram para derrubar a idéia de um Estado palestino<br />

legítimo, ao lado de Israel. A provocação do<br />

11 de <strong>se</strong>tembro pela Al Qaida deu legitimação a George<br />

W. Bush e a <strong>se</strong>u governo que sofria de fundamentalismo<br />

evangélico para abrir uma cruzada<br />

contra o mundo muçulmano. Os resultados catastróficos<br />

dessa cruzada não foram só deixar o Iraque<br />

em ruínas, mas renovaram o pacto entre os xiitas<br />

que hoje dominam o Iraque e os xiitas do Irã, dando<br />

ajuda financeira e moral para o Hamas, que con<strong>se</strong>guiu<br />

expulsar o aparelho de governo da OLP em<br />

Gaza, em meio ao processo de paz com os entendimentos<br />

de Oslo em 1993 e o acordo de Camp David<br />

de 1994, dois anátemas para o Hamas e para a<br />

Frente da Negação de Israel. Os primeiros querem<br />

importar a revolução islâmica total para a Palestina<br />

e os últimos querem a Israel total, por enquanto<br />

entre o Mar Mediterrâneo e o rio Jordão.<br />

Quero lembrar que, ainda em junho de<br />

2002, foi apoiado pela direção da Caros Amigos o<br />

primeiro Projeto Portas Abertas – Dois Estados para<br />

Dois Povos, e vários eventos, como a grande exposição<br />

de 35 artistas plásticos judeus israelen<strong>se</strong>s contra<br />

a ocupação e 35 artistas plásticos brasileiros dos<br />

mais renomados, foram realizados, como o álbum<br />

feito por Oscar Niemeyer e por mim contra a ocupação.<br />

Es<strong>se</strong> princípio de dois Estados para dois povos<br />

já foi adotado como um con<strong>se</strong>nso internacional<br />

e foi o tema principal do histórico discurso recente<br />

novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

do presidente Obama na Universidade do Cairo.<br />

Pela primeira vez, um presidente americano<br />

usava as mesmas palavras nossas para descrever<br />

o caráter terrível da ocupação por Israel dos<br />

territórios palestinos. Contra ele <strong>se</strong> juntaram os<br />

fundamentalistas nacionalistas israelen<strong>se</strong>s liderados<br />

pelo primeiro-ministro Bibi Netanyahu e por<br />

Avigdor Lieberman e a liderança do Hamas, os dois<br />

lados querendo tirar da mesa o projeto de dois Estados<br />

para dois povos.<br />

Essa tendência perigosa do atual<br />

governo de Israel e a divisão provocada pelo Hamas<br />

na liderança palestina deram uma grande margem<br />

de manobra para a utilização da escalada em manter<br />

vivo o círculo vicioso. No encontro que tive no<br />

fim de abril último em Ramallah, com a liderança<br />

da OLP, o sr. Nidal, que substituiu o sr. Ja<strong>se</strong>d Abed<br />

Rabo como chefe do Comitê Palestino pela Paz, me<br />

dis<strong>se</strong> que a tendência é por na geladeira os dirigentes<br />

que estiveram à frente dos entendimentos de<br />

Oslo e trocá-los por outros.<br />

O sr. Nidal deixou claro que, apesar dos líderes<br />

europeus e da OLP que ainda aderem aos dois<br />

Estados para dois povos, o entorpecimento das negociações<br />

que chegou ao auge com a subida ao governo<br />

de Bibi Netanyahu vai resultar, enfim, num<br />

Estado binacional, em que uma nação vai pregar o<br />

apartheid contra a outra.<br />

Num artigo passado, citei o pensador<br />

Meiron Benbenischti, que num debate em Tel Aviv,<br />

uma <strong>se</strong>mana antes do início da guerra de Gaza, dis<strong>se</strong><br />

que já estamos de fato num Estado binacional,<br />

que enfim vai <strong>se</strong> tornar um Estado em que os judeus<br />

<strong>se</strong>rão uma minoria, em 10 ou 15 anos. Várias<br />

vezes me perguntaram: o que vai acontecer quando<br />

os judeus ficarem em minoria? Respondi: “O relacionamento<br />

de uma maioria árabe com a minoria<br />

judaica vai <strong>se</strong>r o mesmo que a maioria judaica tem<br />

com a minoria árabe em Israel”.<br />

À pergunta de Bourdoukan: “<strong>se</strong>rá tão difícil”<br />

um Estado binacional laico e democrático, respondo:<br />

“é muito difícil, qua<strong>se</strong> impossível”.<br />

Gershon Knispel é artista plástico.<br />

junho 2009 caros amigos<br />

23


ensaio carlos latuff<br />

A imposição de um estado judeu na Palestina em<br />

1948 produziu um contingente colossal de refugiados (a ONU estima<br />

atualmente em mais de 4 milhões e meio). As famílias palestinas que<br />

não foram simplesmente assassinadas pelo terrorismo sionista de grupos<br />

como Irgun e Haganah tiveram de fugir para paí<strong>se</strong>s limítrofes como<br />

Jordânia, Síria e Líbano, onde vivem até hoje em campos de refugiados.<br />

No ano do 61º aniversário do que os palestinos acertadamente chamam<br />

de A Catástrofe, estive no Oriente Médio, a convite da al-Hanouneh<br />

Society for Popular Culture, e visitei três destes campos: Marka/<br />

Shnillar e al-Baq’a na Jordânia, e al-Badawi no Líbano. Neles encontrei<br />

um povo marginalizado, sobrevivendo em condições muitas vezes precárias,<br />

<strong>se</strong>melhantes às favelas brasileiras, esquecido pelo Ocidente e por<br />

vezes, como no Líbano, correndo o risco de <strong>se</strong>r massacrado por milicias<br />

hostis ou mesmo pelo governo, como aconteceu no campo de Nahr al-<br />

Bared em 2007. Esta população <strong>se</strong>quer pode regressar a sua terra natal,<br />

já que <strong>se</strong>u direito de retorno é sistematicamente negado por Israel.<br />

Este ensaio é um tributo aos palestinos da diáspora.


26<br />

mulher, negra, pobre. Alfabetizada aos 16 anos. Do interior do<br />

Acre ao planalto central. De <strong>se</strong>ringueira a ministra do Meio<br />

Ambiente. As muitas lutas de Marina Silva ao longo de sua vida<br />

parecem <strong>se</strong>r pequenas <strong>se</strong> comparadas à que trava atualmente: impedir que<br />

a mentalidade predatória de de<strong>se</strong>nvolvimento que dita as regras no Brasil e<br />

no mundo não termine por destruir de vez o planeta Terra. A hoje <strong>se</strong>nadora<br />

pelo PT define a recente investida ruralista para flexibilizar a legislação ambiental<br />

do Brasil como um “conjunto de mudanças que repre<strong>se</strong>ntam um retrocesso.<br />

Está <strong>se</strong> armando uma bomba de efeito retardado que não poderá <strong>se</strong>r<br />

contida na hora em que o país voltar a crescer”. Como principal exemplo, a<br />

Medida Provisória 458, que pretende regularizar áreas de até 1500 hectares<br />

na Amazônia. Segundo Marina, a medida premiará a grilagem. “É um processo<br />

de privatização de 67 milhões de hectares de floresta”.<br />

Marcos Zibordi: Sempre começamos as nossas entrevistas pedindo ao<br />

entrevistado que conte suas lembranças mais remotas de infância.<br />

Marina Silva: Tenho muitas lembranças, guardei muitas coisas de uma idade<br />

muito tenra. Uma lembrança muito boa é da minha coleção de bonecas de<br />

pano, que a minha avó fazia. Eu tinha doze bonecas de pano, lembro o nome<br />

de algumas delas: tinha a Estefânia, que era uma boneca mais ousada, usava<br />

umas roupas menos tímidas. Tinha a Hilda, que era a matriarca do conjunto<br />

das bonecas, porque eu sou de uma família de matriarcas, do lado da minha<br />

mãe e do lado do meu pai. E a minha avó, quando fez as bonecas, já dis<strong>se</strong><br />

que a Hilda era quem comandava o clã. Tinha o Jacinto, que era um menino<br />

bem levado, e o Catifum, que era um bonequinho aleijado, e tinha todos<br />

os cuidados especiais. Fui uma criança amplamente estimulada desde a mais<br />

tenra idade até a adolescência.<br />

caros amigos julho 2009<br />

entrevista Marina Silva<br />

"o <strong>se</strong>tor<br />

mais atrasado<br />

do agronegócio<br />

quer mudar a<br />

legislação ambiental"<br />

A <strong>se</strong>nadora Marina Silva conta<br />

porque que vive um dos piores<br />

momentos de sua vida, período em<br />

que o país enfrenta uma “operação<br />

desmonte da legislação ambiental”,<br />

encabeçada pelos ruralistas<br />

Marcos Zibordi e Tatiana Merlino | Fotos Roberto Jayme<br />

Marcos Zibordi: Fora essas lembranças mais tenras, por volta de dez,<br />

doze anos, o que você já estava fazendo? O primeiro namorado?<br />

Na verdade, essa ideia de namorado veio surgir muito depois, pois desde cedo<br />

eu queria <strong>se</strong>r freira. Aprendi sobre o cristianismo com a minha avó Júlia, que era<br />

analfabeta. Foi ela quem me ensinou rudimentos do cristianismo. Ela tinha um<br />

catecismo para analfabetos, com ilustrações da Capela Sistina. Desde aquela época<br />

eu dizia à minha avó que eu queria <strong>se</strong>r freira, e ela dizia: “minha filha, freira<br />

não pode <strong>se</strong>r analfabeta”. Então, para <strong>se</strong>r freira, eu tinha que estudar.<br />

Tatiana Merlino: A família toda morava junto?<br />

Eu morava na casa da minha avó. Minha irmã morava com os meus pais.<br />

Tatiana Merlino: Por que a <strong>se</strong>nhora morava com a sua avó e não<br />

com os <strong>se</strong>us pais?<br />

Minha avó fez meu parto, em 1958, e <strong>se</strong> apegou muito a mim. Foi <strong>se</strong> criando<br />

um vínculo muito forte entre eu, minha avó e a minha tia que morava com ela.<br />

Eu passava o dia com ela, e às quatro, cinco horas da tarde, ela me trazia para<br />

dormir em casa com a minha mãe. Depois eu comecei a querer ficar dormindo<br />

lá e a insistir para a minha avó pedir para que eu fos<strong>se</strong> morar com ela. Até que<br />

um dia ela tomou coragem e foi falar com a minha mãe. E a minha mãe falou<br />

que iria falar com meu pai, e é lógico que ela queria um período para tentar me<br />

persuadir. Mas uma hora eu dis<strong>se</strong>: “quero morar com a minha avó”. Só nos <strong>se</strong>paramos<br />

quando eu fui morar na cidade, aos 16 anos.<br />

Tatiana Merlino: E como era o trabalho no <strong>se</strong>ringal?<br />

Era pesado, difícil, tinha que andar 14 quilômetros por dia, de <strong>se</strong>gunda a<br />

<strong>se</strong>xta. Meu pai trabalhava nessa atividade, e nós começamos, eu e minha irmã


mais velha, quando eu tinha dez ou onze anos, a ajudá-lo a cortar <strong>se</strong>ringa. No<br />

nosso caso, era uma mistura de trabalho, mas também com muita diversão, porque<br />

nossos pais eram muito cuidadosos. A gente não trabalhava além daquilo<br />

que agüentava. E <strong>se</strong> enquanto a gente roçava, o sol começava a ficar quente, e<br />

as abelhas e os mosquitos começavam a apavorar, a gente tinha toda liberdade<br />

de ir para debaixo de uma moita, buscar uma água fresquinha. Então, a gente<br />

nadava no igarapé, ficava lá tomando banho e voltava. Mas a gente também<br />

tinha disciplina, eu e minha irmã.<br />

Tatiana Merlino: Então eram quantas horas de trabalho por dia?<br />

Cortando a <strong>se</strong>ringa, a gente começava geralmente às cinco da manhã, meu<br />

pai saía mais cedo, por volta de quatro, quatro e meia. Nós saíamos por volta<br />

de cinco horas, porque a gente tinha medo de onça. E fechávamos o corte por<br />

volta de uma hora da tarde. Aí, geralmente, ficávamos liberados para ir no igarapé,<br />

tomar banho, lavar roupa, trazer água para casa.<br />

Tatiana Merlino: Foram cinco, <strong>se</strong>is anos nes<strong>se</strong> trabalho? Foi aos 16 anos<br />

que a <strong>se</strong>nhora foi para Rio Branco?<br />

Até os 16 anos, mas durante as férias, eu voltava e trabalhava igualmente<br />

com minhas irmãs, no roçado e na extração da borracha. O povo era muito rigoroso,<br />

queria ver <strong>se</strong> eu não estava metida a besta. Então, não podia nem reclamar<br />

que tinha feito calo na mão (Risos).<br />

Tatiana Merlino: Mas como é que foi a ida para a capital?<br />

A ida para a capital foi um processo de muita maturação.<br />

Marcos Zibordi: Traumático?<br />

Não, não foi traumático. Mas antecedendo tudo isso, teve muita dor. Com<br />

certeza uma dor muito traumática que depois precisou <strong>se</strong>r muito bem elaborada<br />

e transformada em passado, porque durante muito tempo ela ficou pre<strong>se</strong>nte<br />

em minha vida. Teve um surto de malária muito grande naquela região, não só<br />

no nosso <strong>se</strong>ringal. Também teve um surto de sarampo. Morreram minhas duas<br />

irmãs mais novas, uma de <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s e uma com um ano e <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s, quinze<br />

dias de uma para outra. Morreu a minha mãe, <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s depois, não de malária<br />

e sarampo, mas de aneurisma. Morreu meu tio, de malária e sarampo também,<br />

e meu primo e minha avó materna. Então, foi uma coisa muito, muito difícil.<br />

Quando minha mãe morreu, eu estava com quatorze anos. Minha irmã já<br />

estava adulta, a mais velha, e um ano depois ela <strong>se</strong> casou e eu fiquei à frente<br />

da casa. Só que eu peguei uma hepatite, fiquei muito doente, não con<strong>se</strong>guia<br />

mais me alimentar direito, perdi muito peso, aí não con<strong>se</strong>gui mais trabalhar. E<br />

fui ficando muito triste. A gente dizia que era tristeza, mas na verdade eu estava<br />

deprimida, porque como eu não tinha saúde, não con<strong>se</strong>guia mais fazer as<br />

coisas. Eu era uma adolescente muito ativa e, digamos assim, eu tinha muito<br />

orgulho das coisas que eu fazia, eu sabia cortar, sabia cuidar do roçado. Comecei<br />

a pensar: “acho que agora é o momento para eu ir para a cidade cuidar da<br />

minha a saúde e estudar para <strong>se</strong>r freira”.<br />

Marcos Zibordi: Essa vontade de estudar era uma opção intelectual sua<br />

somente, ou era uma coisa de estudar para a igreja, estudar para <strong>se</strong>r freira?<br />

Eu tinha uma vontade de conhecimento e era uma criança considerada estranha.<br />

Havia perguntas que a maioria das crianças faz, mas eu fazia com mais<br />

persistência, tipo “o que é que está depois do azul do céu?” Isso deixava a minha<br />

avó impaciente, minha mãe já dava um corte. Então, havia essas perguntas<br />

todas, mas com certeza eu tinha um objetivo, freira não podia <strong>se</strong>r analfabeta,<br />

então tinha que vencer uma etapa, estudar para vencer. É claro que eu estou<br />

elaborando isso hoje, mas era como eu <strong>se</strong>ntia. Eu sabia que as pessoas que não<br />

tinham conhecimento tinham uma desvantagem, porque o meu pai sabia ler e<br />

escrever e ele era muito bom de matemática.<br />

Marcos Zibordi: Não passavam ele para trás na hora de acertar?<br />

É, não passavam. Então, as pessoas, os <strong>se</strong>ringueiros, que 99% eram analfabetos,<br />

geralmente aos sábados iam lá até a casa do meu pai, que fazia as contas para<br />

ver <strong>se</strong> eles iam tirar saldo. E eu <strong>se</strong>ntia que como aquelas pessoas não sabiam ler<br />

e fazer contas, elas eram enganadas. E eu aprendi matemática muito cedo para<br />

poder vender a borracha quando meu pai não estava, para não <strong>se</strong>r enganada no<br />

preço da borracha. Mas não sabia ler, escrever e não sabia a hora de relógio.<br />

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Tatiana Merlino: A <strong>se</strong>nhora <strong>se</strong> alfabetizou aos dezes<strong>se</strong>is anos mesmo?<br />

Na verdade, aos dezes<strong>se</strong>is anos e meio. Fui para Rio Branco estudar em <strong>se</strong>tembro<br />

de 1975. A primeira coisa que eu procurei foi onde tinha uma igreja e<br />

uma escola. A igreja para ver <strong>se</strong> eu fazia algum contato com alguma freira para<br />

já me encaminhar para os meus objetivos estratégicos de <strong>se</strong>r freira, e a escola<br />

porque era a barreira que teria que <strong>se</strong>r vencida para poder <strong>se</strong>r freira. E eu fui<br />

nessa escola chamada Natalino da Silveira Brito, que foi onde fiz o Mobral. O<br />

curso tinha começado em fevereiro e isso era em <strong>se</strong>tembro. Quando cheguei na<br />

sala de aula, a professora já estava ensinando os sons das letras, os fonemas, os<br />

dígrafos. Então eu fiz um cálculo matemático na minha cabeça, que b mais a<br />

é “ba”. Foi uma conta de somar mesmo, n mais a, “na”, então, banana. Isso eu<br />

con<strong>se</strong>gui como <strong>se</strong> fos<strong>se</strong> uma coisa mágica. Eu pen<strong>se</strong>i “É só você aprender as letras,<br />

o som das letras e somar o som das letras”. Aí eu fui para casa determinada<br />

a aprender as letras e o som das letras, e somar era comigo mesma. Em quinze<br />

dias, eu já con<strong>se</strong>guia ler as coisas que estives<strong>se</strong>m em letra de forma. Como<br />

eu sabia muito bem as quatro operações, a professora achou que eu deveria <strong>se</strong>r<br />

transferida para uma outra sala, que era de educação integral, equivalente aos<br />

quatro anos do primário. Na primeira vez que eu entrei na sala de aula, tinha<br />

uma folha de papel, que era a chamada, mas a professora botou meu nome em<br />

cima do cabeçalho, e chamou: “Marina Osmarina”. Eu levantei e fui até a mesa<br />

dela, porque na minha turma anterior nem tinha chamada, e ela perguntou: “o<br />

que você está fazendo aqui, menina? Quando a gente chama, responda pre<strong>se</strong>nte,<br />

você é abestada?” E todo mundo deu boas risadas, eu fiquei muito envergonhada<br />

e sai dali pensando: “<strong>se</strong>rá que eu volto para estudar de novo?” No outro<br />

dia, decidi que sim, porque <strong>se</strong> eu não voltas<strong>se</strong> iam me chamar de abestada<br />

para o resto da vida. E eu trinquei os dentes, entrei na sala de aula, fui lá para a<br />

última carteira, e ela chamou “Marina Osmarina”, e eu falei “pre<strong>se</strong>nte”. E todo<br />

mundo falou “Ah, agora já aprendeu, e deram nova risada”. Então, no final do<br />

ano, eu fiz um provão e, dos 46 alunos, passaram três, e eu era uma das três.<br />

Com isso, eu conclui o primário e me matriculei na quinta série já morando na<br />

casa da Madre Eliza, no Instituto Imaculada Conceição.<br />

Tatiana Merlino: Senadora, e a militância política, quando começou? Foi<br />

nessa época?<br />

Foi. Na verdade, a militância política começou quando eu conheci o Chico<br />

Mendes e o Clodovis Boff.<br />

Tatiana Merlino: Como foi?<br />

Eu morava, como eu dis<strong>se</strong> na casa da Madre Eliza, que era uma casa onde <strong>se</strong><br />

fazia um pré-noviciado. Lá, tinha uma divisão. As irmãs madres con<strong>se</strong>rvadoras,<br />

que eram pessoas muito boas, dedicadas, mas não de <strong>se</strong> envolver com política,<br />

nem com movimentos sociais, e as progressistas, entre essas, a irmã Beatriz,<br />

e as outras às vezes falavam: “poxa, a Beatriz fica <strong>se</strong> envolvendo com es<strong>se</strong><br />

pessoal aí, com es<strong>se</strong> bispo comunista”. Era o Moacir Greck, que dava suporte e<br />

amparo ao trabalho que era feito pela Contag, pelo Chico Mendes, pelos movimentos<br />

que lutavam defendendo os direitos dos <strong>se</strong>ringueiros e dos índios contra<br />

a invasão dos fazendeiros. E aquilo era um dilema na minha cabeça, porque<br />

eu sabia que o Dom Moacir defendia os <strong>se</strong>ringueiros que estavam <strong>se</strong>ndo expulsos,<br />

mas ele era chamado de bispo comunista de uma forma pejorativa. E eu<br />

pensava: “meu Deus, por que ele defender a gente é <strong>se</strong>r uma coisa ruim, é <strong>se</strong>r<br />

comunista? Por que <strong>se</strong>r comunista é uma coisa ruim <strong>se</strong> o que ele está fazendo<br />

é bom?”. Aí, um dia, tinha um cartaz bem tímido numa cartolina azul escrito<br />

de vermelho na porta da sacristia, “Curso de Liderança Sindical Rural”, alguma<br />

coisa assim, com a participação de Clodovis Boff e Chico Mendes. Eu olhei<br />

para aquilo e pen<strong>se</strong>i: “agora é que eu vou entender es<strong>se</strong> negócio de curso comunista”.<br />

Aí, me inscrevi.<br />

Tatiana Merlino: A <strong>se</strong>nhora já sabia quem eles eram?<br />

Eu sabia quem eles eram, mas não tinha proximidade. Na época tinha 17<br />

para 18 anos. Aí, quando eu vi o cartaz, pen<strong>se</strong>i: “agora eu vou entender isso”.<br />

E me inscrevi. Quando chegamos em casa, eu falei para a madre que eu queria<br />

o sábado e parte do domingo para fazer o curso. E ela perguntou que curso<br />

era es<strong>se</strong>. Respondi que era um que o padre queria que a gente fizes<strong>se</strong>. Obviamente,<br />

ele não dis<strong>se</strong> que queria que eu fizes<strong>se</strong>, mas imaginei que, como ele botou<br />

a cartolina ali, ele queria que a gente fizes<strong>se</strong> (Risos). Então, ela dis<strong>se</strong>: “Então<br />

está bom, você faz as suas coisas na <strong>se</strong>xta-feira, adianta o trabalho que tem<br />

junho 2009 caros amigos<br />

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28<br />

para fazer e pode fazer o curso”. E foi assim que eu conheci o Chico<br />

Mendes e o Clodovis. E aí me apaixonei pela Teologia da Libertação.<br />

Comecei a receber o jornal que o Chico Mendes mandava para mim,<br />

e me interessar pela literatura que a irmã Beatriz tinha. Então, entrei<br />

em conflito, <strong>se</strong>m saber <strong>se</strong> eu queria mesmo ir para o Rio de Janeiro<br />

<strong>se</strong>r freira, uma proposta mais con<strong>se</strong>rvadora, recolhida, ou <strong>se</strong> queria<br />

me envolver mesmo com o movimento das comunidades de ba<strong>se</strong>.<br />

Porque ai eu já conhecia o trabalho que tinham os leigos, as pessoas<br />

que não necessariamente precisavam <strong>se</strong>r freiras ou padres, e comecei<br />

a me encantar com aquilo tudo. Quando a irmã me chamou e dis<strong>se</strong> que eu<br />

iria para o Rio de Janeiro, depois de um período pedi para sair. E fui trabalhar<br />

como empregada doméstica.<br />

Tatiana Merlino: Isso simultâneo à militância?<br />

Isso, aí eu já estava completamente envolvida, aí eu fui para a Estação Experimental<br />

e comecei a trabalhar nos grupos de comunidade de ba<strong>se</strong>. Em menos<br />

de um ano eu já tinha sido eleita coordenadora da paróquia do Cristo Ressuscitado,<br />

e em 79 eu ia fazer o vestibular, só que fiquei com hepatite de novo<br />

e perdi. A essas alturas já tinha conhecido uma pessoa no trabalho da igreja,<br />

que foi meu primeiro marido, pai dos meus dois filhos mais velhos. No final de<br />

80 fiz o vestibular e pas<strong>se</strong>i. Terminei a faculdade em 84.<br />

Tatiana Merlino: A <strong>se</strong>nhora poderia falar um pouquinho sobre o período<br />

da militância junto ao Chico Mendes, fundação da CUT...?<br />

Era uma militância muito intensa, porque eu fazia o movimento estudantil,<br />

e ainda tinha alguma relação com a comunidade de ba<strong>se</strong>. Já conhecia o Chico<br />

Mendes, já estava envolvida com a luta dos <strong>se</strong>ringueiros e, ao mesmo tempo,<br />

era professora na escola que estudei. Ai me envolvi com o movimento dos professores,<br />

porque nós éramos do movimento pró-CUT, mas o PC do B, que era a<br />

direção do sindicato, era contra a criação da CUT. Então eu era da oposição sindical,<br />

e me dividia entre isso e ir acompanhar parte das coisas que aconteciam<br />

na organização que fazia parte já, um partido clandestino, chamado PRC, que<br />

atuava um pedaço dentro do PT e um pedaço dentro do PMDB. Quando veio<br />

o processo de criação da CUT e teve o congresso da CUT estadual, foi eleito o<br />

Chico Mendes coordenador e eu a vice-coordenadora.<br />

Tatiana Merlino: E a iniciação na vida política, no PT?<br />

A ligação com o PT começou desde cedo, em 80, porque estava ligado a essa<br />

coisa do Chico Mendes e das comunidades de ba<strong>se</strong>. Desde o início nós nos considerávamos<br />

fundadores do PT, mas eu só fui me filiar ao PT em 85, por causa<br />

do Chico Mendes. Ele ia sair candidato, e articulamos que eu sairia candidata a<br />

deputada federal para ajudar o Chico na zona urbana, puxar voto para ele <strong>se</strong>r<br />

deputado estadual, e fazer o debate da Constituinte em 88.<br />

Tatiana Merlino: Vamos dar um salto aí. Como foi a chegada ao<br />

Ministério do Meio Ambiente?<br />

A chegada ao Ministério do Meio ambiente é parte e fruto dessa trajetória<br />

de qua<strong>se</strong> trinta anos de luta social, sócio-ambiental, em que eu sai de uma atuação<br />

local, quando fui eleita em 95 para o Senado, e comecei a ter uma atuação<br />

nacional. Mas um nacional que não perdia essa raiz com as causas com as<br />

quais eu havia militado a vida toda, dos direitos humanos das populações tradicionais<br />

das florestas, da pre<strong>se</strong>rvação da Amazônia e como isso podia transitar<br />

da minha realidade no Acre para a realidade de uma Amazônia mais ampla.<br />

Teve um acolhimento muito grande por parte dos <strong>se</strong>nadores. Nunca sofri<br />

aqui nenhum tipo de preconceito, fui recebida com muito respeito, e eu também<br />

não gosto des<strong>se</strong> negócio de me vitimizar. Acho que muitas vezes os embates<br />

são por causa das minhas ideias, por aquilo que eu faço, por aquilo que eu<br />

digo, por aquilo que eu sou, por minha visão de mundo.<br />

Marcos Zibordi:E não foi es<strong>se</strong> o problema justamente da sua atuação no<br />

Ministério, o peso institucional que isso tomou?<br />

Ah sim. No Ministério, essa bagagem toda enfrentou três problemas. Um deles:<br />

nós éramos um partido que no plano nacional não tinha a experiência de integrar<br />

as visões e as propostas do que a gente pensava para o Brasil. Então, alguns<br />

elaboravam a educação do PT. Outros elaboravam o que <strong>se</strong>ria a saúde, a<br />

caros amigos julho 2009<br />

“As pessoas querem mudanças. E aí eles<br />

me tomam como símbolo e me colocam como<br />

candidata a presidente da República para dizer<br />

‘es<strong>se</strong> tema é importante’”<br />

política econômica. E para a política ambiental, era um grupo bem menor, porque<br />

tanto o PT quanto os demais partidos não têm um acúmulo na questão sócio-ambiental.<br />

Então era mais um grupo de pessoas que tinha muita dificuldade<br />

de transitar dentro do partido. Então, na questão ambiental, não nos eram dadas<br />

muitas escolhas. Porque boa parte das questões ligadas a um marco regulatório<br />

já haviam sido feitas, porque temos avanços significativos em todos os governos.<br />

E qual era o passo de qualidade a <strong>se</strong>r dado pelo governo do presidente Lula<br />

com o respaldo social que vinha das urnas e de uma proposta com uma ba<strong>se</strong> popular<br />

muito forte? No meu entendimento, a implementação da legislação. E isso<br />

não era fácil. Então, a gente <strong>se</strong> perguntou: o que pode unir o mundo, o que pode<br />

unir a sociedade, os empresários? Ninguém vai <strong>se</strong>r contra que <strong>se</strong> tenha controle<br />

e participação social, ninguém vai <strong>se</strong>r contra o de<strong>se</strong>nvolvimento sustentável,<br />

ninguém vai <strong>se</strong>r contra o fortalecimento do sistema nacional de meio Ambiente<br />

e ninguém vai <strong>se</strong>r contra que a política ambiental perpas<strong>se</strong> os diferentes <strong>se</strong>tores<br />

das políticas públicas. Isso <strong>se</strong> configurou de uma forma mais delineada no plano<br />

de combate ao desmatamento da Amazônia. Tivemos todo um esforço de políticas<br />

públicas estruturantes, políticas públicas que não são apenas anúncios, coisas<br />

que efetivamente você pode medir, verificar, que fazem a diferença. Criar 24<br />

milhões de hectares de unidades de con<strong>se</strong>rvação na frente da expansão predatória<br />

é algo que fez a diferença para a diminuição do desmatamento. Aprovar no<br />

Congresso Nacional uma lei que estabeleceu que qualquer área que esteja <strong>se</strong>ndo<br />

degradada poderia <strong>se</strong>r interditada por um ato do governo por <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s, prorrogado<br />

por mais <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s até que <strong>se</strong> fizes<strong>se</strong> os estudos para <strong>se</strong> decidir o que <strong>se</strong> faria<br />

com aquela área, isso é algo muito objetivo. Aprovar uma lei de florestas públicas<br />

num país que há 400 anos explora as florestas e que nunca teve uma lei<br />

para dizer como é que <strong>se</strong> explora essas florestas, isso dá muito trabalho. Criar o<br />

Instituto Florestal Brasileiro, criar o Instituto Chico Mendes, fazer licenciamentos<br />

complexos, como foi o caso do Madeira, do São Francisco. Estabelecer um programa<br />

junto com o Ministério da Defesa e o Ministério da Justiça para enfrentar<br />

as quadrilhas organizadas e, com isso, con<strong>se</strong>guir botar 750 pessoas na cadeia,<br />

apreender 1 milhão de metros cúbicos de madeira, aplicar 4 bilhões em multas,<br />

desconstituir mil e quinhentas empresas criminosas. Isso são coisas estruturais e<br />

isso mexe com o interes<strong>se</strong>. Seria praticamente impossível fazer isso <strong>se</strong> você não<br />

tives<strong>se</strong> o suporte do próprio governo. Não foi uma pessoa que fez isso tudo, o<br />

presidente Lula chancelou e fez tudo isso juntamente comigo e minha equipe. O<br />

problema é que chegou o momento em que os tensionamentos que iam <strong>se</strong>ndo gerados,<br />

no meu entendimento, chegaram a uma situação limite.<br />

Tatiana Merlino: Com quem foram os principais embates?<br />

O principal embate foi, em primeiro lugar, com a visão de de<strong>se</strong>nvolvimento<br />

que <strong>se</strong> tem para o mundo e para o Brasil. Existe o paradigma de de<strong>se</strong>nvolvimento<br />

que está estabelecido até hoje e não foi quebrado. É a ideia da infinitude,<br />

do não-limite dos recursos naturais, como <strong>se</strong> fos<strong>se</strong>m ilimitados e como <strong>se</strong> nós<br />

pudés<strong>se</strong>mos extrair o quanto qui<strong>se</strong>rmos, do jeito que qui<strong>se</strong>rmos, para nos de<strong>se</strong>nvolvermos<br />

numa perspectiva linear. Isso talvez <strong>se</strong>ja o maior inimigo dessas<br />

políticas públicas que nós estamos falando, e isso <strong>se</strong> materializa nos nossos fazeres,<br />

dentro da visão empresarial de alguns <strong>se</strong>tores, dentro da visão de gestão<br />

pública de um e de outro e até mesmo da de formadores de opinião, que advogam<br />

também es<strong>se</strong>s modelos. Então, do ponto de vista prático e objetivo, isso <strong>se</strong><br />

confrontava muito com a visão de como fazer a infraestrutura logística no Brasil,<br />

na área de transportes. Sobretudo, <strong>se</strong> confrontava com como suprir o país<br />

com a necessária produção de energia. O Brasil precisa de energia, precisa crescer,<br />

precisa gerar emprego. Mas como suprir o Brasil de energia, <strong>se</strong>m que isso<br />

signifique continuar o modelo insustentável de fazer hidrelétricas, ou a forma<br />

in<strong>se</strong>gura de ficar apostando em produção de energia nuclear? Do ponto de vista<br />

de outras ações, como o Ministério da Agricultura, os tensionamentos que<br />

existiam com es<strong>se</strong>s <strong>se</strong>tores não são diferentes dos que nós temos na sociedade.


Podemos sim fazer uma transição do modelo predatório para o sustentável. Da<br />

visão de<strong>se</strong>nvolvimentista para uma visão sustentabilista de de<strong>se</strong>nvolvimento.<br />

Tatiana Merlino: Essa visão de<strong>se</strong>nvolvimentista prevaleceu, então?<br />

Eu não digo que ela prevaleceu, infelizmente ela está prevalecendo no mundo<br />

inteiro. Se você verificar o que está acontecendo na Europa, Índia, Estados<br />

Unidos, China, Japão, não vai <strong>se</strong>r diferente.<br />

Tatiana Merlino: Mas eu digo dentro do governo Lula. Houve uma opção<br />

ao <strong>se</strong> dar o Ministério do Meio Ambiente e o do De<strong>se</strong>nvolvimento Agrário<br />

para a esquerda e a agricultura para a direita...<br />

Mas vamos pegar a coisa de uma maneira menos simples. Isso é algo que<br />

está colocado no mundo. Seria muito idealismo achar que o governo Lula <strong>se</strong>ria<br />

algo puro como eu estou dizendo. Inclusive porque, como eu dis<strong>se</strong>, es<strong>se</strong> acúmulo<br />

não estava dentro de nenhum partido, nem do PT. Para aquele desafio, con<strong>se</strong>guimos<br />

colocar estacas muito poderosas. Sabemos que essas estacas foram<br />

fincadas e que es<strong>se</strong> é o desafio deste século. Será que vamos ter a capacidade,<br />

não só como governo, mas como sociedade, de fazer es<strong>se</strong> transito? Foi es<strong>se</strong> o<br />

esforço que eu e minha equipe fizemos durante es<strong>se</strong> tempo. É paradoxal: tem<br />

que crescer, tem que ter energia, agricultura, mas tem que pre<strong>se</strong>rvar.<br />

Marcos Zibordi: É evidente que es<strong>se</strong> modelo que o PT adotou é diferente<br />

do modelo que você pensaria em muitos pontos, e isso me faz perguntar o<br />

<strong>se</strong>guinte: <strong>se</strong> a <strong>se</strong>nadora Marina Silva qui<strong>se</strong>r continuar na sua luta, ela vai<br />

ter que <strong>se</strong>r candidata à presidência fora do PT?<br />

A mudança que precisamos fazer tem que considerar três coisas: a visão, o<br />

processo e a estrutura. Uma visão que <strong>se</strong>ja capaz de perceber uma solução para<br />

algo que está comprometendo em 30% a capacidade de regeneração do planeta,<br />

que <strong>se</strong>ja generosa sobretudo com aqueles que ainda não nasceram. Em <strong>se</strong>gundo<br />

lugar, um processo que <strong>se</strong>ja acolhedor dos diferentes olhares, que tenha<br />

capacidade de escuta apurada para ver de onde vem os sussurros da mudança.<br />

Hoje, o de<strong>se</strong>nvolvimentismo berra nos nossos ouvidos. Mas a mudança para<br />

a sustentabilidade são apenas sussurros. Como transformar es<strong>se</strong>s sussurros em<br />

palavras? É preciso uma escuta muito apurada. É um processo horizontal e tem<br />

que <strong>se</strong>r generoso, capaz de acolher a visão dos empresários, dos militantes dos<br />

movimentos sociais, da academia, das ONGs, da juventude...<br />

Marcos Zibordi: Mas a <strong>se</strong>nhora vai <strong>se</strong>r candidata ou não?<br />

Isso não está colocado para mim. Existe um movimento de alguns jovens na<br />

internet que eu entendo muito mais como simbólico, e que tem a ver com o que<br />

eu estou dizendo. As pessoas querem mudanças, querem ver que isso é importante<br />

dentro dos processos decisórios. E aí eles me tomam como símbolo e me<br />

colocam como candidata a presidente da República para dizer “es<strong>se</strong> tema é importante”<br />

para <strong>se</strong>r tratado na mais alta esfera de decisão. Mas quero continuar<br />

o meu raciocínio. A estrutura deve contar também com o apoio de todo mundo,<br />

mas ela deve ter também uma certa plasticidade para poder <strong>se</strong>r capaz de fazer<br />

as adaptações necessárias, corrigir os rumos. O leito que está aí do de<strong>se</strong>nvolvimentismo<br />

predatório nós não queremos. Temos que corrigir es<strong>se</strong> desvio da<br />

sustentabilidade econômica, social, cultural, ambiental. E no Brasil nós temos<br />

a benção de ter um conjunto de forças sociais que querem isso. A pesquisa do<br />

datafolha diz que 94% das pessoas preferem pagar mais pelo grão e pela carne<br />

do que ver a Amazônia <strong>se</strong>ndo destruída. No Brasil, está <strong>se</strong> desperdiçando essa<br />

força e energia para ficar refém de uma mentalidade que com certeza não <strong>se</strong>rá<br />

boa para o Brasil e muito pior para o planeta.<br />

Tatiana Merlino: Senadora, caso o presidente Lula não vete os três<br />

artigos da MP 458 que a <strong>se</strong>nhora e muitos outras pessoas da sociedade<br />

civil querem, a <strong>se</strong>nhora cogita sair do PT e ir para o PV?<br />

Eu estou muito apreensiva com essa medida 458. Eu dis<strong>se</strong> que ela é a terceira<br />

pior coisa que aconteceu na minha vida. Es<strong>se</strong> processo de privatização de 67 milhões<br />

de hectares de floresta na Amazônia, o equivalente a um patrimônio do povo<br />

brasileiro de 70 bilhões de reais, <strong>se</strong> não forem tomados todos os cuidados, é como<br />

<strong>se</strong> fos<strong>se</strong> uma bomba de efeito retardado. Quando o país voltar a crescer, talvez não<br />

haja como controlar o peso de tudo isso. Ela [MP 458] já veio com problemas na<br />

sua origem. Está <strong>se</strong> pedindo que <strong>se</strong> faça três vetos, inclusive o que possibilite a vistoria<br />

para <strong>se</strong>parar o joio do trigo. E eu estou na expectativa de que o presidente Lula<br />

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possa vetar, até porque conhece como ninguém o que acontece na Amazônia. Ninguém<br />

pode dizer que es<strong>se</strong>s 67 milhões de hectares são apenas para aqueles que foram<br />

estimulados por políticas publicas no passado. Existe um processo de ocupação<br />

ilegal e criminosa nos últimos 15, 20 anos, desde que o Brasil tem uma legislação<br />

que proíbe essa forma de ocupação. Estou na expectativa que <strong>se</strong>ja vetado, embora<br />

não resolva a natureza dos problemas que já havia na origem. Mas vai <strong>se</strong>r um atenuante.<br />

Para as pessoas <strong>se</strong>ntirem que não <strong>se</strong> está simplesmente anistiando aqueles<br />

que desrespeitaram a lei, usaram de violência e que até <strong>se</strong>ifaram vidas.<br />

Marcos Zibordi: Queria que a <strong>se</strong>nhora descreves<strong>se</strong> es<strong>se</strong> desmonte dessas<br />

leis, quais são os principais problemas que estão acontecendo, quais são<br />

os principais ataques à Amazônia.<br />

Tatiana Merlino: Uma avaliação da ofensiva ruralista, a flexibilização<br />

das leis ambientais, tanto a MP 458, como mudanças no código florestal,<br />

licenciamento de obras em rodovias federais, como a BR 319...<br />

Essa operação desmonte da legislação ambiental é, no meu entendimento, fruto<br />

de uma visão equivocada com a qual o teste de implementar a legislação <strong>se</strong> deparou.<br />

Em vez das pessoas fazerem um esforço para passar no teste, elas o estão alterando.<br />

Em relação à regularização fundiária. Em relação à questão da proteção das cavernas.<br />

Na regulamentação da proteção das florestas de crimes ambientais. E, agora,<br />

vem a tentativa máxima de criar um código ambiental para o país, mexendo na<br />

lei de crimes ambientais, no sistema nacional de unidades de con<strong>se</strong>rvação, na política<br />

nacional de meio ambiente, nas competências do Conama, tornando-o apenas<br />

um con<strong>se</strong>lho consultivo. É um conjunto de mudanças que repre<strong>se</strong>nta um retrocesso.<br />

Está <strong>se</strong> armando uma bomba de efeito retardado que não poderá <strong>se</strong>r contida na<br />

hora que o país voltar a crescer. Está <strong>se</strong> transferindo 60 milhões de hectares de unidades<br />

de con<strong>se</strong>rvação. Se isso prosperar, <strong>se</strong>rá avassalador para os próximos anos da<br />

junho 2009 caros amigos<br />

29


C<br />

M<br />

Y<br />

CM<br />

MY<br />

CY<br />

CMY<br />

K<br />

30<br />

política ambiental do país. Isso é assustador, particularmente<br />

essa mudança no código ambiental, porque existe um <strong>se</strong>tor<br />

que agora <strong>se</strong> <strong>se</strong>nte tão à vontade que não bastava ter con<strong>se</strong>guido<br />

algo que eles vem tentando nos últimos 20 anos, que<br />

é a transferência dessa quantidade de áreas de terra. Agora<br />

eles querem mudar toda a legislação ambiental.<br />

Tatiana Merlino: Que <strong>se</strong>tor é es<strong>se</strong>, <strong>se</strong>nadora?<br />

O <strong>se</strong>tor mais atrasado, ligado ao agronegócio. Eu nunca gosto de generalizar<br />

como <strong>se</strong>ndo o agronegócio inteiro. Mas existe uma parte que tem uma visão<br />

atrasada e que não con<strong>se</strong>gue perceber que o melhor para a agricultura é transitar<br />

do modelo insustentável para o modelo sustentável, o que pressupõe o respeito<br />

à re<strong>se</strong>rva legal, à área de pre<strong>se</strong>rvação permanente, o uso de forma intensiva<br />

das áreas que foram abertas, uso de novas tecnologias. Existe um custo,<br />

mas ele está <strong>se</strong>ndo depositado na conta da natureza. Daqui um tempo, ele <strong>se</strong>rá<br />

devolvido com menos chuva, menos possibilidade de polinização, e uma série<br />

de prejuízos. E, daqui a pouco, talvez <strong>se</strong>ja tarde demais.<br />

Tatiana Merlino: E como fica o presidente Lula diante des<strong>se</strong> cenário?<br />

Recentemente ele declarou que as ONGs estavam mentindo, não estavam<br />

dizendo a verdade que a MP 458 ia abrir as portas da grilagem da<br />

Amazônia. Como ele fica diante des<strong>se</strong> cenário, dessa investida?<br />

As ONGs e eu mesma dizemos que essa medida provisória, <strong>se</strong> não tiverem os<br />

cuidados necessários, vai favorecer a grilagem. Ela favorece a grilagem quando<br />

não as<strong>se</strong>gura a questão da vistoria acima de 100 hectares, até os 4 módulos<br />

fiscais. Porque existem também os laranjas para os 400 hectares. Ela favoreceu<br />

a grilagem quando não fez o recorte para regularizar as pos<strong>se</strong>s até 4 módulos<br />

fiscais. Se tives<strong>se</strong> feito es<strong>se</strong> recorte, beneficiaria 81,1% das pos<strong>se</strong>s e utilizaria<br />

uma área de terra de cerca de 7 milhões de hectares. Por ter ido até os médios<br />

e grandes é que ela vai para 67 milhões de hectares.<br />

Marcos Zibordi: Es<strong>se</strong>s 20% fizeram crescer em 10 vezes o tamanho...<br />

Exatamente. Em nome dos pequenos, <strong>se</strong> favorece os grandes. Quando o relator<br />

coloca lá as emendas que dizem que os que têm ocupação indireta e o que são<br />

pessoa jurídica também podem regularizar, ela descumpre o preceito constitucional<br />

que diz que terras públicas só podem <strong>se</strong>r alienadas por relevante interes<strong>se</strong> social.<br />

E quando foi estabelecido que os grandes poderão vender essas terras, a maior<br />

parte depois de três anos, isso é para dar liquidez rápida a es<strong>se</strong>s que <strong>se</strong> apropriaram<br />

de terras publicas. Com a MP, é possível regularizar como pessoa física e em nome<br />

de quantas empresas precisar. Primeiro é só um frigorífico, depois tem uma madeireira,<br />

uma agropecuária, vai pegando 1500 em nome de cada um des<strong>se</strong>s entes jurí-<br />

dicos e de <strong>se</strong>u nome próprio. Então, quando <strong>se</strong> diz que favorece a grilagem é algo<br />

Anuncio Raul_caros amigos.pdf 25/6/2009 18:26:34<br />

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objetivo. E, para desconstruir isso, é preciso que <strong>se</strong> <strong>se</strong>ja objetivo, que haja veto nes<strong>se</strong>s<br />

artigos que foram propostos, que <strong>se</strong> faça vistoria. Até porque existem pessoas<br />

caros amigos julho 2009<br />

“[Na gestão Minc] temos um tensionamento político em<br />

palavras, mas na prática temos uma situação dramática,<br />

de muitas perdas para a questão ambiental”<br />

que estão dentro dessas áreas aí há 20, 30, 40, 50 anos. Como elas vão fazer para<br />

ganhar uma disputa com quem pode advogar na perspectiva de que essa terra vai<br />

<strong>se</strong>r dele, e que daqui a três anos ele vai poder vendê-la?<br />

Tatiana Merlino: Os movimentos levantaram a possibilidade de, caso a<br />

MP <strong>se</strong>ja sancionada, entrarem com uma Ação de Inconstitucionalidade. O<br />

que a <strong>se</strong>nhora acha disso?<br />

É um dos caminhos, buscar uma regulamentação correta apelando inclusive<br />

para o centro de justiça e comprometimento que o presidente Lula tem com essa<br />

agenda de combate à violência e à grilagem. É em nome disso que <strong>se</strong> espera que<br />

haja o veto e um processo de regulamentação que corrija es<strong>se</strong>s problemas.<br />

Marcos Zibordi: A <strong>se</strong>nsação é que sua saída ocorreu porque não havia<br />

mais condição, e que o Minc <strong>se</strong>ria mais flexível. Mas ele também esta<br />

entrando em embates corriqueiros.<br />

Essa MP [458], assim que foi aprovada na Câmara dos Deputados, o ministro<br />

Carlos Minc deu uma declaração dizendo que tinha sido uma vitória dos<br />

ambientalistas. Deu um trabalho danado pra que <strong>se</strong> pudes<strong>se</strong> dizer que não<br />

foi vitória nenhuma e que tínhamos uma coisa grave. Depois ele percebeu<br />

e passou a trabalhar também pelos vetos. [Na gestão Minc] temos um<br />

tensionamento político em termos de palavras, mas na prática temos uma<br />

situação muito dramática, de muitas perdas para a questão ambiental.<br />

Marcos Zibordi: Em que mundo que <strong>se</strong>us netos vão viver?<br />

Eu quero muito que o mundo <strong>se</strong>ja melhor do que ele é hoje, que a Amazônia<br />

continue a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica, que não haja um derretimento<br />

do gelo no ártico tão violento. Mas meu compromisso não é apenas com o meu<br />

neto, tem que <strong>se</strong>r com todos aqueles que ainda não nasceram, os filhos dos filhos<br />

dos filhos. Se ficarmos pensando apenas no nosso filho e no nosso neto, isso foi o<br />

que nossos pais pensaram e deu no que deu. Temos que pensar além deles e a contribuição<br />

tem que <strong>se</strong>r dada agora, por cada um de nós, porque estamos diante de<br />

uma esquina civilizatória, que é também uma esquina ética.<br />

Alguns dias após a entrevista, o presidente Lula decidiu vetar apenas uma<br />

parte do artigo 7º da medida provisória 458, que permitiria a transferência de<br />

terras da União para empresas<br />

Vem Vem aí aí um um lançamento que que<br />

você você vai vai achar achar maluco e também e também<br />

uma uma beleza! beleza!<br />

Especial<br />

Raul Seixas<br />

Em Em agosto, agosto, nas nas bancas. bancas.<br />

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u<strong>se</strong>acuca.com<br />

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Plínio Teodoro<br />

Desmatamento aceleraDo<br />

nas fazendas de Daniel Dantas<br />

A Agropecuária Santa Bárbara, do Grupo Opportunity anunciou em 2008<br />

a venda de mais de 100 cabeças de gado.<br />

antes de começar a ler este artigo, respire<br />

profundamente. Considerada o pulmão do<br />

mundo, a região amazônica passa por mais<br />

um sufocamento iminente: o de ver cerca de 12%<br />

de <strong>se</strong>u território cair, agora oficialmente, nas mãos<br />

dos latifundiários de rapina da pecuária de corte.<br />

O fato não é novo. Três me<strong>se</strong>s antes de <strong>se</strong>u suspiro<br />

final, o <strong>se</strong>ringueiro Chico Mendes já alertara, em<br />

entrevista durante o terceiro congresso nacional da<br />

Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 9 de <strong>se</strong>tembro<br />

de 1988: “Essa força nova (dos defensores<br />

da floresta) que cresceu, <strong>se</strong>rviu pra deixar os grandes<br />

latifundiários cada vez mais preocupados. Hoje,<br />

a UDR (União Democrática Ruralista) <strong>se</strong> preocupa<br />

muito em tentar <strong>se</strong> estruturar na Amazônia”.<br />

A aprovação da Medida Provisória 458 – que trata<br />

da “regulamentação” fundiária na Amazônia – pela<br />

Câmara dos Deputados e a entrega da MP para a relatoria<br />

da <strong>se</strong>nadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente<br />

da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), estrangularam<br />

as ações de ambientalistas e dos povos<br />

que lutam pela sobrevida – por meio do extrativismo<br />

– da maior floresta tropical do mundo.<br />

Um levantamento minucioso da organização não<br />

governamental Greenpeace – que é mantida interinamente<br />

com recursos de pessoas físicas – estima<br />

que entre 80 e 120 bilhões de toneladas de carbono<br />

estejam estocados na Amazônia. Se destruída, a floresta<br />

liberaria o equivalente a 50 vezes as emissões<br />

anuais de ga<strong>se</strong>s do efeito-estufa produzidas pelos<br />

Estados Unidos, sufocando, de vez, o planeta.<br />

De<strong>se</strong>nvolvido ao longo de três anos, o estudo<br />

mostra que, <strong>se</strong>gundo dados do próprio governo<br />

brasileiro, “a pecuária é responsável por cerca de<br />

80% de todo o desmatamento” na região. Isto significa<br />

que a cada 18 <strong>se</strong>gundos, um hectare de floresta<br />

Amazônica, em média, é convertido em pasto.<br />

O relatório revela ainda que os tentáculos de<br />

uma conturbada figura, que firmou <strong>se</strong>u império<br />

durante o – no mínimo - duvidoso processo de<br />

privatização conduzido durante o governo Fernando<br />

Henrique Cardoso, é o principal ponto de<br />

estrangulamento do planeta.<br />

Segundo dados obtidos pelo Greenpeace em<br />

fontes oficiais do poder público, nada menos que<br />

as cinco maiores áreas devastadas na Amazônia estão<br />

em fazendas que pertencem à empresa Agropecuária<br />

Santa Bárbara, do grupo Opportunity. Sim,<br />

dele, Daniel Dantas, preso durante a Operação Satiagraha,<br />

da Polícia Federal, acusado de lavagem de<br />

vultosas quantias de recursos de origem duvidosa<br />

em paraísos fiscais - entre outros crimes – e condenado<br />

a 10 anos de cadeia por tentar corromper um<br />

delegado federal durante a fa<strong>se</strong> investigatória.<br />

Das teles às terras<br />

Claramente beneficiado no processo de de<strong>se</strong>statização<br />

das teles pelo então ministro das Comunicações,<br />

Luiz Carlos Mendonça de Barros, e pelo próprio<br />

presidente Fernando Henrique Cardoso – que<br />

chegou a declarar em escuta telefônica que iria interferir<br />

junto ao Banco do Brasil para que a Previ,<br />

o fundo de pensão dos funcionários da instituição,<br />

associa-<strong>se</strong> ao grupo Opportunity – o controverso<br />

banqueiro baiano é acusado pela Polícia Federal de<br />

remeter a paraísos fiscais até 2 bilhões de reais. Há<br />

suspeitas de que parte destes recursos <strong>se</strong>ja oriundo<br />

do processo de privatização do sistema Telebrás, lavados<br />

por meio do Opportunity Fund, o fundo de<br />

investimentos criado por Dantas.<br />

Enquanto o banqueiro <strong>se</strong> digladiava com exsócios<br />

para assumir o controle do sistema de telecomunicações<br />

do país, a trupe “de<strong>se</strong>nvolvimentista”<br />

de FHC agia, em outra frente, para anular<br />

os crimes cometidos pelos latifundiários na derrubada<br />

da Floresta Amazônica.<br />

Menos de um mês após a privatização do sistema<br />

Telebrás, em 10 de agosto de 1998, Fernando<br />

Henrique sancionou a Medida Provisória<br />

1.710, que entraria para a história da legislação<br />

brasileira como um dos atos do Executivo mais<br />

incon<strong>se</strong>quentes na área ambiental. A MP deu a<br />

possibilidade aos devastadores da floresta firmarem<br />

“termos de compromisso” com os órgãos do<br />

Sisnama (<strong>se</strong>cretarias e órgãos ambientais municipais,<br />

estaduais e federal) nos quais <strong>se</strong> comprometiam<br />

a recuperar a área degradada em até 10<br />

anos, ficando impunes por todo o período.<br />

A decisão acirrou a corrida ao novo “Eldorado”<br />

da pecuária brasileira, levando grandes empresários<br />

do <strong>se</strong>tor a investirem na grilagem de terras<br />

devolutas, que pertencem à União, mesmo estando<br />

ocupadas. Estas áreas são adquiridas por meio<br />

de campone<strong>se</strong>s usados como laranjas, que assinam<br />

procurações e documentos falsos que possibilitam<br />

aos “patrões” a compra de várias propriedades vizinhas,<br />

como <strong>se</strong> fos<strong>se</strong> um grande loteamento. Porém,<br />

na verdade, estas várias propriedades unidas<br />

formam um grande latifúndio.<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

Durante o prazo de anuência concedido aos<br />

devastadores da floresta, grandes grupos adquiriram<br />

as terras griladas da região para expandir<br />

a pecuária. Coincidência ou não, esta também<br />

foi a decisão do grupo Opportunity, que fundou<br />

a Agropecuária Santa Bárbara, atualmente dona<br />

de uma área de 510 mil hectares na região amazônica,<br />

o que corresponde a três vezes o tamanho<br />

do município de São Paulo.<br />

Os negócios de Daniel Dantas na região vão<br />

bem. E quem diz o obrigado é o ex-cunhado e sócio<br />

– inclusive de cela durante a Operação Satiagraha<br />

- do banqueiro, Carlos Rodenburg. Em reportagem<br />

na edição de 15 de janeiro de 2008 do<br />

jornal Valor Econômico – que pertence ao grupo<br />

Folha e à Rede Globo – Rodenburg orgulha-<strong>se</strong> de<br />

dizer que ele e o sócio pretendiam faturar R$ 110<br />

milhões com a venda de mais de 100 mil cabeças<br />

de gado no ano.<br />

Quanto às irregularidades, comuns na região,<br />

o sócio de Dantas brada à mídia gorda: “Invasões<br />

e conflitos estão ligados à grilagem. Não <strong>se</strong>ntamos<br />

nem para conversar <strong>se</strong> tiver alguma ilegalidade<br />

com a propriedade pretendida. Já a questão<br />

do trabalho escravo é uma realidade, mas temos<br />

rigor absoluto com as normas que regulamentam<br />

as leis trabalhistas do <strong>se</strong>tor”.<br />

Na visão do Ministério Público Federal, no entanto,<br />

a ética do império da pecuária de Daniel Dantas<br />

<strong>se</strong>gue à risca o que o banqueiro já havia demonstrado<br />

em outros ramos de negócios, como o<br />

financeiro e de telecomunicações.<br />

No dia 01 de junho de 2009, promotores federais<br />

pediram o indiciamento de dez fazendas pertencentes<br />

à Agropecuária Santa Bárbara por desmatamento<br />

ilegal. Uma das indiciadas, a Fazenda<br />

Rio Tigre, também é conhecida por figurar na lista<br />

suja do trabalho escravo. Em julho de 2004, a<br />

propriedade, localizada em Santana do Araguaia,<br />

no sul do Pará, recebeu a visita do grupo móvel<br />

de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego,<br />

que libertou 78 trabalhadores que viviam<br />

em condições análogas à da escravidão.<br />

Além da restauração dos danos ambientais, o<br />

Ministério Público solicitou a emissão de multas<br />

que ultrapassam o valor de R$ 680 milhões pelas irregularidades<br />

causadas pelo braço pecuário do império<br />

de Daniel Dantas.<br />

Plínio Teodoro é jornalista.<br />

junho 2009 caros amigos<br />

31


32<br />

caros amigos julho 2009<br />

Frei Betto<br />

DEMOCRACIA<br />

CULTURAL<br />

O homem e a mulher são os únicos <strong>se</strong>res vivos que <strong>se</strong><br />

contrapõem à natureza. Os demais são todos determinados pela natureza.<br />

Es<strong>se</strong> distanciamento humano frente ao mundo natural faz a realidade<br />

revestir-<strong>se</strong> de simbolismo e produz a emergência transcendental<br />

do imaginário.<br />

Voltada sobre si mesma, a consciência humana sabe que<br />

sabe, enquanto os animais sabem, mas ignoram a reflexão. Através do símbolo<br />

e do significado, o <strong>se</strong>r humano <strong>se</strong> relaciona com a natureza, consigo<br />

mesmo, com os <strong>se</strong>melhantes e com Deus.<br />

Nasce a cultura. A vida social ganha contornos definidos e explicações<br />

categóricas. Do domínio das forças arbitrárias da natureza chega<strong>se</strong><br />

às armas que permitem a imposição de um grupo cultural sobre o outro.<br />

Porém, cultura é identidade e, portanto, resistência. Mesmo assim, a absolutização<br />

de sistemas ideológicos oferece o paraíso, induzindo o dominado<br />

a <strong>se</strong>ntir-<strong>se</strong> excluído por não pensar pela cabeça alheia.<br />

No Brasil colônia, os métodos de cateque<strong>se</strong> cristã introduziam<br />

entre os indígenas o vírus da desagregação e, hoje, os donos dos garimpos,<br />

das madeireiras e o governo perguntam perplexos por que os povos indígenas<br />

necessitam de tanta terra <strong>se</strong> nada produzem. Os pentecostais atacam<br />

os umbandistas e certos <strong>se</strong>tores da Igreja cristã olham com solene desprezo<br />

o candomblé.<br />

A queda dos governos dos paí<strong>se</strong>s socialistas do<br />

Leste Europeu assinala, não o fim do socialismo, como propaga a mídia capitalista,<br />

mas sim da absolutização de sistemas ideológicos. Desabam, com<br />

a herança estalinista, todas as estratégias de hegemonização da cultura, e<br />

a própria idéia de “evolução cultural”. Não há culturas superiores, há culturas<br />

distintas. Agonizam as versões totalizadoras em todos os terrenos da<br />

produção de <strong>se</strong>ntido - político, econômico e religioso.<br />

Quem pretender ignorar os sinais dos tempos terá<br />

de apelar ao autoritarismo para infundir temor. A mais de 500 anos da<br />

chegada de Colombo às Américas - uma invasão genocida que alguns chamam<br />

de “encontro de culturas” - convém relembrar es<strong>se</strong>s conceitos antropológicos.<br />

E agora a democracia impregna também a cultura. Cada homem<br />

e mulher, grupo étnico ou racial, descobre que pode <strong>se</strong>r produtor do<br />

próprio <strong>se</strong>ntido de sua vida. O difícil é respeitar isso como valor, sobretudo<br />

nós, cristãos, que ainda não sabemos distinguir Jesus Cristo do arcabouço<br />

judaico e greco-romano que o reveste e tanto favorece o eurocentrismo<br />

eclesiástico.<br />

Felizmente, o próprio Jesus nos ensina a diferença entre<br />

imposição e revelação. Impõe-<strong>se</strong> pervertendo a natureza do poder (Mateus<br />

23, 1-12). Mas revelação significa “tirar o véu”: <strong>se</strong>r capaz de captar<br />

os fragmentos culturais de cada povo e reconhecer as primícias evangélicas<br />

aí contidas, como afirmou o Concílio Vaticano II.<br />

Aliás, Deus não fala latim. Prefere a linguagem do amor e da<br />

justiça. E es<strong>se</strong> dialeto toda cultura incorpora e entende.<br />

Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura<br />

militar brasileira (Rocco), entre outros livros.<br />

Fidel Castro<br />

Resposta ridícula<br />

A UmA deRRoTA<br />

Chegaram notícias das agências com a estranha informação<br />

de que duas pessoas apo<strong>se</strong>ntadas, com mais de 70 anos, foram presas<br />

acusadas de ter espionado durante 30 anos para o governo de Cuba.<br />

São Walter Kendall Myers e sua esposa, Gwendolyn Steingraber<br />

Myers. Acrescenta-<strong>se</strong> que o primeiro trabalhou como especialista<br />

de assuntos europeus e que em 1995, vieram a Cuba e foram recebidos por<br />

mim. Durante es<strong>se</strong> tempo, reuni-me com milhares de norte-americanos,<br />

individualmente ou em grupos, às vezes de várias centenas, como os estudantes<br />

do Projeto Semestre no Mar. Assim, mal poderia lembrar de uma<br />

reunião com duas pessoas. A acusação especifica que o casal recebeu condecorações,<br />

mas que nunca procurou dinheiro ou benefícios.<br />

Posso as<strong>se</strong>gurar que, por uma questão de princípios, jamais<br />

torturamos nem pagamos a ninguém para obter informação alguma. Aqueles<br />

que, de alguma maneira, contribuíram para a proteção da vida de cubanos,<br />

diante dos planos terroristas de governos dos Estados Unidos, o fizeram<br />

por imperativos de suas próprias consciências.<br />

O que mais chama a atenção é que essa notícia foi divulgada<br />

24 horas depois da derrota sofrida pela diplomacia dos Estados Unidos<br />

na As<strong>se</strong>mbleia Geral da OEA. Se essas pessoas estavam sob controle,<br />

pois agentes do FBI as enganaram fingindo <strong>se</strong>r espiões cubanos, por que<br />

não foram presas antes?<br />

Agora começará o jogo da pretensa justiça contra duas pessoas<br />

trituradas moralmente de antemão com acusações que predeterminam<br />

a conduta do júri, que deverá decidir <strong>se</strong> são culpadas ou inocentes. Com<br />

certeza, não receberão o tratamento amável dado aos terroristas recrutados<br />

pelo governo dos EUA para destruírem o avião da Cubana com todos<br />

os que viajavam nele e cometerem horrendos crimes contra o nosso povo,<br />

os quais, inclusive, violaram as leis dos Estados Unidos cometendo no <strong>se</strong>u<br />

próprio território numerosos atos terroristas execráveis.<br />

Já lançaram a campanha contra o casal. Foram apre<strong>se</strong>ntados<br />

como traidores que podem <strong>se</strong>r condenados a 35 anos de prisão, e permanecerão<br />

no cárcere até terem mais de 100 anos. Os promotores poderão<br />

fazer suas habituais manobras com fins políticos.<br />

Armaram toda esta tramoia depois que Obama tomou<br />

pos<strong>se</strong> da presidência dos Estados Unidos. Talvez tenham influído na detenção<br />

não apenas o tremendo fracasso sofrido em San Pedro Sula, mas também<br />

as notícias de contatos entre os governos dos Estados Unidos e Cuba<br />

sobre assuntos importantes de interes<strong>se</strong> comum.<br />

Uma notícia da ANSA já informou que Walter Kendall Myers<br />

declarou que tentou <strong>se</strong>r “muito prudente” na hora de obter e transmitir<br />

<strong>se</strong>gredos para Cuba.<br />

Outras publicações <strong>se</strong> referem a um diário confiscado de<br />

Gwendolyn. Se tudo isso for verdade, não deixarei de admirar sua conduta<br />

desinteressada e valente em relação a Cuba.<br />

Não acham bem ridícula essa história da espionagem<br />

cubana?<br />

Fidel Castro Ruz


Desde 1983, o conflito entre os rebeldes<br />

do sul do Sudão com as forças regulares<br />

do país matou aproximadamente<br />

1,5 milhão de pessoas até 2005, data da assinatura<br />

de um precário acordo de paz. A partir<br />

de 2003 entra em cena uma nova guerrilha na<br />

parte ocidental do território, Darfur, onde também<br />

o controle dos benefícios econômicos advindos<br />

do petróleo está na ba<strong>se</strong> das reivindicações<br />

autonomistas. Esta última etapa provocou<br />

mais de dois milhões de refugiados e 300 mil<br />

mortes, causados pela fome, doenças e pelos<br />

constantes ataques de milícias como os janjaweed,<br />

grupo supostamente apoiado pelo governo<br />

central do Sudão.<br />

O Ocidente alega que há um genocídio <strong>se</strong>ndo<br />

perpetrado por árabes brancos e muçulmanos<br />

alinhados ao poder em Cartum contra comunidades<br />

negras, cristãs e animistas em Darfur.<br />

Mas outros interes<strong>se</strong>s, que não propriamente<br />

humanitários, podem estar em jogo por trás<br />

dessas manifestações de repúdio e indignação e<br />

das resoluções que vem <strong>se</strong>ndo tomadas.<br />

O maior país da África é rico em petróleo,<br />

tem um governo de predomínio muçulmano e<br />

encontra-<strong>se</strong> em um cenário de rivalidades entre<br />

potências e compromissos neocoloniais da<br />

França, do Reino Unido e dos EUA.<br />

O que diferencia a política deste governo da<br />

de <strong>se</strong>us vizinhos, que também utilizam a violência<br />

contra civis para deter forças de<strong>se</strong>stabilizadoras,<br />

é que este tenta manter-<strong>se</strong> numa posição<br />

mais independente nas negociações pela exploração<br />

de <strong>se</strong>us recursos naturais e ambiciona <strong>se</strong>r<br />

uma potência petroleira. Aspiração que hoje só é<br />

possível pela diversificação dos investimentos no<br />

país e em particular pela incursão da China.<br />

A crescente influência do gigante asiático é<br />

provavelmente a principal razão para que a União<br />

Européia e os EUA trabalhem juntos na África.<br />

Se por um lado o imperialismo francês perdeu<br />

qua<strong>se</strong> todas as batalhas contra os EUA e<br />

viu-<strong>se</strong> obrigado a capitular, por outro a Total<br />

Fina ELF (grupo petrolífero francês) é praticamente<br />

o único concorrente dos chine<strong>se</strong>s no Sudão.<br />

As companhias norte-americanas não podem<br />

participar dos novos contratos petrolíferos<br />

Daniela Baudouin<br />

Ingerência da França no<br />

conflito do Sudão<br />

Vários programas europeus mantêm mais de <strong>se</strong>is mil soldados<br />

naquela região, que é rica em petróleo e vive clima de guerra civil<br />

devido ao embargo imposto, em 1996, ao país.<br />

Assim, Paris mantém a ilusão de participar<br />

das grandes disputas mundiais no único continente<br />

onde ainda tem certa influência.<br />

O Ocidente empreende então uma ação composta<br />

na região, que não exclui rivalidades,<br />

como o caso da França e EUA, destinada a restringir<br />

o poder da China, favorecendo a <strong>se</strong>cessão<br />

das distintas províncias, a destruição do Estado<br />

e a instalação de um caos onde o poder<br />

<strong>se</strong>ria ditado por bandos armados que <strong>se</strong> beneficiariam<br />

das exportações, como acontece com o<br />

ópio no Afeganistão.<br />

O conflito <strong>se</strong> expande aos paí<strong>se</strong>s vizinhos do<br />

Sudão, 200 mil pessoas <strong>se</strong> refugiam no Chade<br />

e as fronteiras porosas permitem incursões armadas<br />

de um lado ao outro. O presidente des<strong>se</strong><br />

país, Idriss Débry, no poder desde o golpe militar<br />

de 1990, patrocina os rebeldes de Darfur,<br />

principalmente o JEM, e enfrenta no <strong>se</strong>u território<br />

um grupo apoiado por Cartum.<br />

A França (ex-potência colonial do Chade) que<br />

dá apoio logístico ao exército do ditador chadiano<br />

como parte de um acordo de cooperação militar<br />

com o país (acordos que remontam a 1976) é<br />

acusada pelo Sudão de enviar armas aos rebeldes<br />

de Darfur através des<strong>se</strong> país fronteiriço.<br />

O regime do Chade também recebe financiamentos<br />

da União Europeia. Um dos empréstimos,<br />

obtido junto ao BEI (Banco Europeu de Investimentos)<br />

que <strong>se</strong>ria utilizado para financiar<br />

projetos de infraestrutura e de proteção ao meio<br />

ambiente, foi destinado pelo presidente ao orçamento<br />

militar.<br />

Há diversas forças de paz da União Europeia<br />

com grande contingente de soldados france<strong>se</strong>s<br />

atuando ali. O corpo expedicionário europeu,<br />

Eufor, instaurado em 2008, com 3,7 mil<br />

soldados (dos quais 1.650 france<strong>se</strong>s), foi enviado<br />

ao Chade para proteger os refugiados vindos<br />

do Sudão e responde tanto a considerações<br />

humanitárias como à preocupação dos ocidentais<br />

de criar uma fortaleza estratégica no centro<br />

da África.<br />

As tropas não são consideradas i<strong>se</strong>ntas no<br />

conflito com o Sudão já que a França tinha um<br />

contingente de dois mil homens e de aparelhos<br />

novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

de caça e helicópteros no quadro de um outro<br />

dispositivo militar, a força Epervier.<br />

Outro programa criado pela França que opera<br />

na África há aproximadamente dez anos é o<br />

Recamp (Reforço das Capacidades Africanas de<br />

Manutenção da Paz), dirigido com o propósito de<br />

associar terceiros (África, Europa, ONU) às suas<br />

incursões militares e de dividir custos e responsabilidades<br />

con<strong>se</strong>rvando o controle das operações.<br />

O governo francês não con<strong>se</strong>guiu, ainda, com<br />

que <strong>se</strong>u projeto de corredor humanitário, que<br />

partiria do Chade e adentraria o território sudanês<br />

em direção a Darfur, triunfe. Uma vez que<br />

<strong>se</strong>ria necessária uma força armada para proteger<br />

as agências humanitárias, tal ajuda <strong>se</strong>ria tão<br />

somente uma desculpa enganosa para uma verdadeira<br />

invasão militar.<br />

Mas, na verdade, desde que Colin Powell, em<br />

2004, lançou a campanha política contra o Sudão<br />

acusando-o de genocídio e incluindo-o na<br />

lista dos “paí<strong>se</strong>s perigosos”, o projeto de intervenção<br />

militar-humanitária estava instaurado<br />

de modo inquestionável e oficial.<br />

O novo humanitarismo <strong>se</strong>letivo (“humanismo<br />

armado“ nas palavras de Noam Chomsky)<br />

das potências mundiais, que fustigam o Sudão,<br />

mas recompensam regimes autoritários como o<br />

do chadiano Idriss Débry, <strong>se</strong> mostra pouco consistente<br />

perante o peso da China, que proporciona<br />

investimentos abundantes <strong>se</strong>m uma contrapartida<br />

política.<br />

O denominado “direito de ingerência“, que<br />

já gozou de prestígio entre políticos e intelectuais,<br />

é atualmente muito criticado por diversos<br />

governos, e as ONGs que operam em regiões de<br />

conflito estão <strong>se</strong>ndo consideradas como a vanguarda<br />

de uma nova era de recolonização.<br />

Por isso não surpreende que perante a decisão<br />

inédita do Tribunal Penal Internacional de emitir<br />

um mandado de captura contra o presidente<br />

do Sudão, Omar Al-Bashir, por crimes de guerra<br />

e crimes contra a humanidade, o chefe de estado<br />

sudanês tenha decidido dar ordem de expulsão a<br />

diversas agências de ajuda humanitária.<br />

Daniela Baudouin é editora da Casa das Áfricas.<br />

www.casadasafricas.org.br<br />

junho 2009 caros amigos<br />

33


34<br />

oficializada por decreto presidencial em 16<br />

de abril, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação<br />

tornou-<strong>se</strong> realidade, principalmente<br />

a partir da pressão de movimentos e organizações<br />

sociais ligadas à pauta da democratização da<br />

comunicação. Mas, apesar de simbolizar uma conquista,<br />

a Confecom nasce marcada por particularidades<br />

que podem comprometer avanços reais em<br />

um campo que ainda carece de regulamentação e<br />

de políticas democratizantes.<br />

As diferenças em relação a <strong>se</strong>tores que realizam<br />

conferências há mais tempo são significativas,<br />

como a grande pre<strong>se</strong>nça de empresários na comissão<br />

organizadora, a demora do governo em compor<br />

suas instâncias organizativas e colocá-las para<br />

funcionar, e mais recentemente, um corte drástico<br />

em <strong>se</strong>u orçamento.<br />

Outro desafio é mobilizar a sociedade para a discussão<br />

de uma pauta que parece naturalizada, em<br />

um <strong>se</strong>tor que não possui organização popular consolidada<br />

como as áreas de saúde e educação. As<br />

Conferências de Saúde, por exemplo, que têm peso<br />

político maior que o próprio Ministério. Em 1986,<br />

sua 8ª edição construiu um conjunto de políticas<br />

que de<strong>se</strong>mbocou na criação do Sistema Único de<br />

Saúde, o SUS, referência mundial. Realizadas de<br />

quatro em quatro anos, têm caráter vinculativo, ou<br />

<strong>se</strong>ja, suas deliberações guiam a implantação de políticas<br />

públicas, além de contar com uma porcentagem<br />

muito menor de empresários em suas instâncias<br />

organizativas, cerca de 25%. Nos anos em que<br />

não ocorrem, os con<strong>se</strong>lhos não deixam de atuar.<br />

Incertezas<br />

Ainda há muita incerteza cercando a 1ª Confecom.<br />

Qua<strong>se</strong> três me<strong>se</strong>s após o decreto que a institu,<br />

a Comissão Organizadora <strong>se</strong> reuniu poucas vezes e<br />

somente em junho o calendário foi definido. Questões<br />

como regimento interno, temário e eleição de<br />

delegados ainda estão pendentes.<br />

De concreto, está definido que a Conferência<br />

Nacional, cujo tema é Comunicação: meios para a<br />

caros amigos julho 2009<br />

Ana Maria Straube<br />

O que esperar<br />

da Conferência Nacional de Comunicação<br />

A primeira conferência do <strong>se</strong>tor começa a sair do papel enfrentando<br />

problemas como a pre<strong>se</strong>nça maciça de empresários na organização<br />

e desinteres<strong>se</strong> do governo federal<br />

construção de direitos e de cidadania na era digital,<br />

<strong>se</strong>rá realizada no período de 01 a 03 de dezembro<br />

de 2009, em Brasília. As etapas preparatórias,<br />

chamadas de conferências livres, têm caráter mobilizador<br />

e devem acontecer até 31 de agosto. Já as<br />

municipais e estaduais, são eletivas e devem <strong>se</strong>r realizadas<br />

até 31 de outubro.<br />

“A Conferência de Comunicação vai <strong>se</strong>r a única<br />

construída em <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s. Como a sociedade já<br />

está fazendo debate, achamos que vamos con<strong>se</strong>guir<br />

participar de forma tranqüila, mas todas as outras<br />

questões de infra-estrutura, material e recursos<br />

podem atrasar es<strong>se</strong> processo”, diz Carolina Ribeiro,<br />

do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação<br />

Social.<br />

A Comissão Organizadora, definida em 20 de<br />

abril pelo Ministério das Comunicações, é composta<br />

por 28 membros, <strong>se</strong>ndo 12 do poder público, com<br />

oito indicados pelo Executivo e quatro pelo Congresso<br />

Nacional, e 16 da sociedade.<br />

O Executivo está repre<strong>se</strong>ntado pela Casa Civil e<br />

ministérios das Comunicações, Ciência e Tecnologia,<br />

Cultura, Educação e Justiça, pela Secretaria de<br />

Comunicação Social e pela Secretaria-Geral da Presidência<br />

da República. Enquanto cada órgão do governo<br />

indicará um membro, Câmara e Senado poderão<br />

indicar dois cada um.<br />

Das 16 vagas de repre<strong>se</strong>ntantes da sociedade,<br />

oito foram ocupadas por entidades repre<strong>se</strong>ntativas<br />

do empresariado: Associação Brasileira de Emissoras<br />

de Rádio e Televisão (ABERT), Associação Brasileira<br />

de Radiodifusores (ABRA), Associação Brasileira<br />

de Provedores Internet (ABRANET), Associação<br />

Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), Associação<br />

dos Jornais e Revistas do Interior do Brasil (ADJORI<br />

BRASIL), Associação Nacional de Editores de Revistas<br />

(ANER), Associação Nacional de Jornais (ANJ)<br />

e Associação Brasileira de Telecomunicações (TE-<br />

LEBRASIL).<br />

As outras oito cadeiras <strong>se</strong>rão preenchidas por<br />

uma entidade ligada às emissoras públicas educativas<br />

estatais, Associação Brasileira das Emis-<br />

soras Públicas, Educativas e Culturais (ABEPEC),<br />

pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), pelo<br />

Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social,<br />

pelo Fórum Nacional pela Democratização da<br />

Comunicação (FNDC), Associação Brasileira de Canais<br />

Comunitários (ABCCOM), Associação Brasileira<br />

de Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO), Federação<br />

Nacional dos Jornalistas (FENAJ) e Federação<br />

Interestadual dos Trabalhadores de Empresas de Radiodifusão<br />

e Televisão (FITERT).<br />

A composição da Comissão Organizadora Nacional<br />

causou polêmicas entre os movimentos e organizações<br />

da sociedade civil envolvidos no debate,<br />

pois além da repre<strong>se</strong>ntação empresarial exagerada<br />

– o <strong>se</strong>tor tem peso <strong>se</strong>melhante, ou maior, do que a<br />

repre<strong>se</strong>ntação social (considerando que as entidades<br />

como ABEPEC e ABCCOM não são exatamente<br />

sociedade civil organizada), falta em sua composição<br />

entidades que não tenham a comunicação como<br />

pauta prioritária (somente a CUT não trabalha diretamente<br />

com o tema), entidades ligadas à academia<br />

ou mesmo repre<strong>se</strong>ntação estudantil.<br />

Além disso, o Ministério ignorou a proposta de<br />

composição apre<strong>se</strong>ntada ao governo pela Comissão<br />

Nacional Pró-Conferência (CNPC), espaço construído<br />

por 30 entidades da sociedade civil em 2008,<br />

para debater e pressionar pela realização da atividade.<br />

Em janeiro, durante o Fórum Social Mundial<br />

de Belém, o presidente Lula declarou que a Confecom<br />

<strong>se</strong>ria realizada ainda em 2009. A partir disso, a<br />

Comissão Nacional Pró-Conferência debateu internamente<br />

uma proposta de composição da Comissão<br />

Organizadora, também referendada pelas comissões<br />

que <strong>se</strong> formaram nos estados. Um processo de interlocução<br />

com a CNPC foi criado pelo governo, mas<br />

não chegou a <strong>se</strong>r concluído.<br />

Para Carolina, do Intervozes, há uma super repre<strong>se</strong>ntação<br />

do <strong>se</strong>tor empresarial enquanto a sociedade<br />

civil não está bem repre<strong>se</strong>ntada, não há<br />

mulheres ou negros, por exemplo. “O Intervozes<br />

saudou o decreto, mas criticou a composição e a<br />

forma de definição dos nomes. Nossa proposta era


de 33% para o poder público, 16%, para o <strong>se</strong>tor empresarial,<br />

6,5% para mídia pública, 3% para academia<br />

e sociedade civil com o resto, cerca de 40%. A<br />

proposta final excluiu a academia e empresários ficaram<br />

em maioria”, afirma.<br />

Houve problemas também com as escolhas dos<br />

repre<strong>se</strong>ntantes do Legislativo. A Câmara indicou<br />

apenas um titular, o deputado Paulo Bornhau<strong>se</strong>n<br />

(DEM-SC), quando podia ter indicado dois, fazendo<br />

com que a deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que<br />

fez parte das articulações ao lado dos movimentos<br />

sociais e da CNPC desde <strong>se</strong>u início, fos<strong>se</strong> preterida<br />

e colocada como suplente junto com Milton Monti<br />

(PR-SP), Cida Diogo (PT-RJ) e Eduardo Valverde<br />

(PT-RO). O Senado é repre<strong>se</strong>ntado por Wellington<br />

Salgado (PMDB-MG) e Flexa Ribeiro (PSDB-PA) titulares,<br />

e Lobão Filho (PMDB-MA) e ACM Júnior<br />

(DEM-BA) como suplentes.<br />

Outra surpresa foi a questão do orçamento. O<br />

Governo Federal decretou, em 11 de maio, um corte<br />

de 82% no orçamento previsto para a realização<br />

da Confecom. A verba prevista era de R$ 8,2 milhões<br />

e caiu para R$ 1,6 milhão. Segundo a deputada<br />

Luiza Erundina, em entrevista ao Ob<strong>se</strong>rvatório<br />

do Direito à Comunicação, “o valor definido na Lei<br />

Orçamentária de 2009 já era resultado de uma redução<br />

em relação à emenda proposta pela Comissão<br />

de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática<br />

da Câmara (CCTCI). Inicialmente eram R$ 10<br />

milhões. Nas discussões, reduziram para R$ 8,2 milhões,<br />

com uma verba complementar aí de R$ 300<br />

mil, totalizando R$ 8,5 milhões”. Marcelo Bechara,<br />

consultor jurídico do Ministério das Comunicações,<br />

afirma, na mesma matéria do Ob<strong>se</strong>rvatório, que há<br />

possibilidade de recomposição do orçamento. “Não<br />

acredito que este corte vá <strong>se</strong> manter. É uma decisão<br />

do presidente Lula realizar a Conferência, que<br />

só ocorrerá <strong>se</strong> as<strong>se</strong>gurado o montante suficiente de<br />

recursos por parte do governo federal”, afirma.<br />

Interes<strong>se</strong>s cOnflItantes<br />

Como era de <strong>se</strong> esperar, muitos interes<strong>se</strong>s e visões<br />

conflitantes estão colocados para a realização da 1ª<br />

Confecom, principalmente no que tange à disputa de<br />

posições entre empresários e sociedade civil.<br />

Para Carolina, do Intervozes, <strong>se</strong>ria importante<br />

que a Conferência <strong>se</strong> debruças<strong>se</strong> sobre os meios (TV,<br />

rádio, internet, jornal, cinema) e suas questões especificas<br />

que precisam <strong>se</strong>r regulamentadas e sobre<br />

questões transversais, não específicas dos meios,<br />

mas que precisam <strong>se</strong>r contempladas como concessões,<br />

espectro, agência reguladoras, propriedade<br />

intelectual, direito autoral, propriedade dos meios,<br />

universalização, políticas de fomento e acesso. “Há<br />

também a necessidade de discutir a cadeia produtiva,<br />

que aponta para o debate de convergência. No<br />

futuro, não vai existir TV como é hoje, vai haver<br />

conteúdo, produção, recepção e isso necessita de regulamentação”,<br />

coloca.<br />

Celso Schröder, coordenador-geral do Fórum<br />

Nacional pela Democratização da Comunicação<br />

(FNDC) e repre<strong>se</strong>ntante da Federação Nacional dos<br />

Jornalistas (FENAJ) na Comissão Organizadora,<br />

considera importante que os debates não fiquem<br />

restritos a fazer um diagnóstico do <strong>se</strong>tor das comu-<br />

nicações. Para isso, considera positiva a inclusão<br />

de empresários na construção da Conferência. Para<br />

ele, é necessário atualizar a legislação voltada para<br />

o tema, que é antiga e não contempla as novas tecnologias.<br />

“Apesar de isso ter sido feito por meio de<br />

políticas públicas em outros <strong>se</strong>tores, na comunicação<br />

o país não con<strong>se</strong>guiu implementar políticas democratizadoras,<br />

como aconteceu em outros lugares”,<br />

diz. Schröder cita o caso dos Estados Unidos,<br />

onde a propriedade cruzada dos meios e a criação<br />

das cadeias é controlada. “Para o FNDC é importante<br />

superar os diagnósticos e elencar os dis<strong>se</strong>nsos entre<br />

sociedade civil e empresariado”.<br />

Tanto Carolina como Schröeder concordam que<br />

a questão da convergência tecnológica impõe desafios<br />

para os empresários do <strong>se</strong>tor e apontam para<br />

uma necessidade de regulamentação. O termo convergência<br />

diz respeito às novas tecnologias que fazem<br />

com que a produção e distribuição de conteúdo<br />

não <strong>se</strong>ja mais monopólio da radiodifusão. Com<br />

a implantação da interatividade proporcionada pela<br />

TV digital e com a possibilidade de difusão de informação<br />

por telefones celulares, os meios tradicionais<br />

tendem a <strong>se</strong> transformar.<br />

Eduardo Parajo, presidente da Associação Brasileira<br />

de Provedores de Internet (ABRANET), não vê<br />

necessidade de mudança na legislação atual, mas<br />

considera importante que o <strong>se</strong>tor que repre<strong>se</strong>nta<br />

participe da Conferência e acompanhe o processo.<br />

“Precisamos ter voz para ver <strong>se</strong> as mudanças propostas<br />

<strong>se</strong>rão favoráveis. Já há legislação e contratos<br />

estabelecidos, temos de <strong>se</strong>r cautelosos”, afirma.<br />

Decidido, afirma que a entidade pretende verificar<br />

como o processo vai <strong>se</strong> comportar, para defender os<br />

interes<strong>se</strong>s do <strong>se</strong>tor. “Precisamos pre<strong>se</strong>rvar o mercado<br />

de internet, que foi construído por anos”.<br />

Já Frederico Nogueira, vice-presidente da Associação<br />

Brasileira de Radiodifusores (ABRA), que reúne<br />

a TV Bandeirantes e Rede TV, diz estar aberto<br />

à todas as possibilidades. “Damos total apoio à realização<br />

da Conferência e ao diálogo com a sociedade<br />

civil. Espero que <strong>se</strong>ja um grande debate e não<br />

um bate-boca”, afirma. Segundo ele, o objetivo da<br />

ABRA é a defesa dos interes<strong>se</strong>s nacionais e a discussão<br />

à restrição ao conteúdo estrangeiro: “Só brasileiros<br />

podem produzir conteúdo”, coloca.<br />

A restrição ao conteúdo estrangeiro é um dos pontos<br />

de atrito entre teles e radiodifusores, assim como o<br />

financiamento e participação de capital internacional.<br />

Flávio Cavalcanti Júnior, diretor de relações com associados<br />

e entidades da Associação Brasileira de Rádio<br />

e Televisão (ABERT), vai no mesmo <strong>se</strong>ntido. Para ele,<br />

é necessário que a Conferência discuta alguma forma<br />

de proteção ao conteúdo nacional. “Gostaria que fos<strong>se</strong><br />

discutido igualdade de direitos e deveres, isonomia<br />

para produção e distribuição de conteúdo. A TV aberta<br />

tem restrições, a TV a cabo não vai ter? Qual é a<br />

diferença do conteúdo gerado em telefone e TV aberta?<br />

Nós somos submetidos à classificação indicativa.<br />

E o conteúdo distribuído por celular? Essas coisas estão<br />

iguais e o quadro precisa <strong>se</strong>r rediscutido”, aponta.<br />

Segundo Cavalcanti, a ABERT defende que haja<br />

somente capital nacional na radiodifusão. Para ele, a<br />

concorrência com o capital estrangeiro nas teles pode<br />

ameaçar a produção nacional.<br />

novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

MObIlIzaçãO<br />

A partir de uma correlação de forças desfavorável,<br />

resta à sociedade civil organizada tentar mobilizar<br />

<strong>se</strong>us pares para interferir nas etapas municipais<br />

e estaduais da Conferência. Schröder acredita que o<br />

peso dos empresários não deve <strong>se</strong>r tão <strong>se</strong>ntido nas<br />

etapas eletivas, que <strong>se</strong>rão marcadas por diversidade<br />

e pluralidade de vozes e participação. Além disso, ele<br />

defende que os principais debates não devem <strong>se</strong>r feitos<br />

dentro da CO, mas nas Conferências em si. “Não<br />

podemos transformar a CO na Conferência sob o risco<br />

de empobrecer o debate, a comissão <strong>se</strong>rve apenas<br />

para viabilizar o evento”, coloca. Com uma visão não<br />

tão otimista, João Brant, do Intervozes, coloca que<br />

é necessário ampliar o número de atores para tentar<br />

diminuir o espaço do mercado, mas pondera que é<br />

inocência achar que existe a possibilidade de construir<br />

acordos com os empresários, pois “há conflito<br />

no modelo”.<br />

Em relação ao governo, os movimentos enxergam<br />

resistência e ambigüidade. Não <strong>se</strong> sabe ainda qual posição<br />

<strong>se</strong>rá tomada em relação às divisões entre os empresários,<br />

mas essa dúvida sobre como fazer a mediação<br />

torna o momento interessante para a realização da<br />

Conferência. Para a deputada Luiza Erundina “há uma<br />

enorme má vontade e uma indisposição para a realização<br />

da Conferência. O atraso na convocação e a falta<br />

de esforços para agilizar o processo nos estados já é<br />

um fator muito negativo, agora es<strong>se</strong> corte pode comprometer<br />

as expectativas da sociedade civil.”<br />

Para Brant “é preciso mapear o quanto con<strong>se</strong>guiremos<br />

intervir, mas fica claro que não devemos concentrar<br />

essa discussão apenas entre especialistas. Es<strong>se</strong><br />

é exatamente o intuito da Comissão Nacional Pró-<br />

Conferência, <strong>se</strong> consolidar como o espaço da sociedade<br />

civil para interferir no processo e aglutinar a maior<br />

quantidade de movimentos e organizações.”<br />

Outro papel da CNPC é centralizar e estimular o<br />

diálogo com os estados que realizarão Conferências.<br />

Até agora, há comissões organizadas em 23 estados<br />

e propostas como a da Comissão Paulista, que pretende<br />

montar uma caravana de formação sobre o<br />

tema para percorrer o interior do estado estimulando<br />

a construção das atividades municipais.<br />

Para Schröder, está claro que a 1ª edição da Confecom<br />

não con<strong>se</strong>guirá discutir todos os temas e atingir<br />

todos os objetivos do movimento de comunicação,<br />

mas <strong>se</strong>rá um passo interessante ao significar a<br />

construção de uma agenda que aponte para debates<br />

futuros. “A pauta não <strong>se</strong> esgota com essa Conferência.<br />

Trata-<strong>se</strong> da primeira edição e deve <strong>se</strong>r vista<br />

como tal. O processo <strong>se</strong>rá enriquecedor em si mesmo.<br />

Vamos ter agendas legais e regulamentação no que<br />

for possível e debates futuros para próximas agendas”.<br />

Para Brant, não é o caso de deslegitimar o espaço<br />

ao constatar que a correlação de forças não é favorável<br />

aos <strong>se</strong>tores mais progressistas. Segundo ele,<br />

“o caminho oficial é um ponto do processo, a construção<br />

de uma plataforma comum não é só para a<br />

Conferência”, diz, apontando um caminho que pode<br />

significar o tão necessário fortalecimento do movimento<br />

nacional pela democratização e pelo direito à<br />

comunicação.<br />

Ana Maria Straube é jornalista.<br />

junho 2009 caros amigos<br />

35


36<br />

Unidade misteriosa esconde<br />

jovens infratores<br />

Criada em 2006, a prisão-hospício é um depósito do Judiciário onde<br />

estão internados os casos considerados perigosos devido ao diagnóstico<br />

de “transtorno antissocial”. Foto Jesus Carlos/Imagemlatina<br />

<strong>se</strong> Roberto Aparecido Alves Cardoso não<br />

fos<strong>se</strong> interno da Unidade Experimental de<br />

Saúde (UES), no Belém, em São Paulo, qua<strong>se</strong><br />

nada <strong>se</strong> saberia do lugar. Digitando o nome da<br />

instituição no Google, 1.022 ocorrências aparecem,<br />

a maioria sobre o dia em que o jovem foi encaminhado<br />

para lá.<br />

Roberto Alves Aparecido Cardoso, mais conhecido<br />

como Champinha, foi um dos acusados pelo assassinato<br />

do casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé,<br />

na cidade de Embu Guaçu, em São Paulo, no ano de<br />

2003. Os jovens, que eram estudantes do São Luiz,<br />

colégio da burguesia paulistana, namoravam e foram<br />

acampar durante o feriado <strong>se</strong>m que suas famílias<br />

soubes<strong>se</strong>m.<br />

Em um primeiro momento foram dados como desaparecidos,<br />

mas dias depois o mistério <strong>se</strong> revelou: o<br />

casal foi <strong>se</strong>questrado por moradores da região. Felipe<br />

foi morto com um tiro de espingarda disparado por<br />

Paulo César da Silva Marques, o Pernambuco. Liana<br />

foi mantida em cárcere privado <strong>se</strong>ndo estuprada<br />

e torturada, até <strong>se</strong>r morta a facadas por Champinha.<br />

Todos que fizeram parte do crime foram conde-<br />

caros amigos julho 2009<br />

Camila Martins<br />

nados - além dos já citados participaram do estupro<br />

Antônio Caetano, Antônio Matias e Agnaldo Pires.<br />

Champinha, na época com 16 anos, foi levado para<br />

a Febem, hoje Fundação Casa, para cumprir os três<br />

anos previsto pelo ECA, Estatuto da Criança e do<br />

Adolescente, em medida socioeducativa.<br />

Um dos poucos links que aparecem no Google,<br />

e não ligam Champinha à UES, é do próprio site da<br />

Fundação Casa. O conteúdo, do ano de 2006, informa<br />

sobre a construção da Unidade. A proposta era<br />

criar na cidade de São Paulo um sistema de referência<br />

no tratamento de jovens que cumprem medida<br />

socioeducativa e apre<strong>se</strong>ntam distúrbios psicológicos,<br />

através da parceria entre Fundação Casa (na<br />

época FEBEM), a ONG Santa Fé e a Universidade<br />

Federal de São Paulo, que <strong>se</strong> responsabilizaria pelo<br />

tratamento psiquiátrico. Era um terreno com cinco<br />

casas, abrigando até oito jovens cada.<br />

“O que a gente escuta nos bastidores é que o Dr.<br />

Raul Gorayebe, professor de psiquiatria da Unifesp<br />

e idealizador do projeto, queria escolher tanto os<br />

profissionais quanto os jovens que iriam <strong>se</strong>r encaminhados<br />

para a Unidade, e a Fundação Casa não<br />

concordou. Com isso a parceria foi quebrada”, conta<br />

Fernanda Lavarello, con<strong>se</strong>lheira do Con<strong>se</strong>lho Regional<br />

de Psicologia de São Paulo.<br />

Com a parceria desfeita, e a obra concluída, a<br />

UES ficou <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s vazia.<br />

Champinha e a UeS<br />

Pouco antes de Champinha completar três anos<br />

da medida socioeducativa, e <strong>se</strong>r colocado em liberdade,<br />

o Ministério Público entrou com o processo<br />

para converter a medida socioeducativa em medida<br />

protetiva de tratamento psiquiátrico com contenção,<br />

o que garantiria sua permanecia na Fundação<br />

Casa até os 21 anos.<br />

Na iminência da <strong>se</strong>gunda medida <strong>se</strong> extinguir, o<br />

Estado entrou com pedido de interdição civil cumulada<br />

com internação hospitalar compulsória no Fórum<br />

de Embu Guaçu. A juíza expede uma liminar<br />

favorável ao Estado, pedindo a transferência de<br />

Champinha para a Casa de Custódia de Taubaté.<br />

A internação hospitalar compulsória, modalidade<br />

mais grave prevista pela lei 10.216/2001 da Reforma<br />

Psiquiátrica, não deriva de um crime, mas de


um laudo médico que constate a necessidade do internamento,<br />

independe da vontade da própria pessoa,<br />

ou de sua família.<br />

“Para es<strong>se</strong> tipo de internação, o artigo <strong>se</strong>xto da<br />

lei diz que é necessário fazer um laudo médico circunstanciado<br />

(naquela oportunidade), e isso não<br />

aconteceu, eles usaram os laudos feitos na ocasião<br />

da medida socioeducativa”, diz Daniel Adolpho Assis,<br />

do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e<br />

do Adolescente (CEDACA Interlagos), e advogado<br />

do jovem. Outra inconsistência que Daniel aponta<br />

na liminar, é que Champinha não poderia <strong>se</strong>r encaminhado<br />

para a Casa de Custódia de Taubaté por<br />

ele ainda estar sob respaldo do ECA, além de que a<br />

Casa de Custódia só recebe adultos que cometeram<br />

crimes e apre<strong>se</strong>ntam transtorno mental.<br />

Nes<strong>se</strong> meio tempo, Champinha foge da Fundação<br />

Casa, logo é pego e levado para a UES.<br />

a refUndação da UeS<br />

Depois de <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s vazia, a UES recebe <strong>se</strong>u interno<br />

mais famoso em maio de 2007. Em novembro<br />

des<strong>se</strong> mesmo ano o governador de São Paulo, José<br />

Serra, expede o decreto 52.419/2007, transferindo o<br />

imóvel da UES para a Secretaria de Saúde. Um Termo<br />

de Cooperação Técnica entre Saúde, Administração<br />

Penitenciária, e Fundação Casa firmava que a<br />

UES abrigaria adolescentes e jovens, autores de atos<br />

infracionais que cumpriram medida socioeducativa,<br />

e tiveram sua medida revertida em protetiva, já que<br />

apre<strong>se</strong>ntam diagnóstico de transtorno de personalidade<br />

antissocial, e/ou alta periculosidade.<br />

Segundo a juíza corregedora do DEIJ, Departamento<br />

das Execuções da Infância e da Juventude,<br />

Mônica Paukoaski, a saúde mental é um dos fatores<br />

importantes que fazem parte da trajetória de recuperação<br />

dos adolescentes autores de atos infracionais,<br />

já que es<strong>se</strong>s problemas interferem diretamente<br />

no resultado do processo sócio-educativo. “Os laudos<br />

do Imesc, Instituto de Medicina Social e Criminologia,<br />

apre<strong>se</strong>ntaram ao Judiciário a necessidade<br />

do jovem portador de transtorno mental (os mais<br />

comuns eram deficiência mental, esquizofrenia, e<br />

transtorno de personalidade) <strong>se</strong>r acompanhado em<br />

local adequado sob contenção”, completa.<br />

“Essa nova Unidade vai na contramão de todas<br />

as conquistas da luta antimanicomial e do ECA. O<br />

que eles fizeram foi um manicômio judicial para jovens”,<br />

diz Fernanda Lavarello, que também faz parte<br />

do Grupo Interinstitucional, que debate questões<br />

sobre criança, adolescente, justiça, e saúde mental.<br />

A luta antimanicomial é travada no Brasil desde<br />

a década de 1980, e sua principal conquista foi a<br />

aprovação da lei 10.216/2001, que garante ao portador<br />

de transtorno mental que a internação só <strong>se</strong>rá<br />

indicada depois que todos os recursos extra-hospitalares<br />

de tratamento <strong>se</strong> esgotarem.<br />

Segundo Maria Cristina Vicentin, professora do<br />

programa de pós-graduação em Psicologia Social da<br />

PUC-SP, a cidade de São Paulo colocou diversos impas<strong>se</strong>s<br />

durante o processo de construção da reforma<br />

de saúde mental, como o lobby dos hospitais psiquiátricos<br />

que visam interes<strong>se</strong>s mercadológicos na saúde.<br />

Para ela, a relação entre periculosidade e loucura<br />

é construída no começo do século 19, por psiquiatras<br />

que entendiam a sua ciência como aquela capaz de<br />

identificar a dimensão mais íntima do sujeito capaz<br />

de emergir a qualquer momento. “Depois da Segunda<br />

Guerra Mundial profissionais dos diversos campos <strong>se</strong><br />

juntaram para fazer a desconstrução dessa ideia, respaldados<br />

por estudos epidemiológicos e estatísticos<br />

que mostram que não existe proporcionalmente um<br />

número maior de pessoas com transtorno mental que<br />

cometem atos infracionais, assim os loucos cometem<br />

tantos crimes como os ditos normais.”<br />

Em uma pesquisa feita entre os anos de 2005 e<br />

2006, antes da inauguração da UES, a professora<br />

apontava para o fenômeno de psiquiatrização do jovem<br />

autor de ato infracional, um modo de gestão que<br />

usa o transtorno mental para provocar mecanismos<br />

de <strong>se</strong>gregação e ampliação do tempo de internação.<br />

Outro fator identificado é a volta do diagnóstico de<br />

transtorno de personalidade antissocial. “Foi o caso do<br />

Roberto (Champinha) que trouxe isso, pois a mídia e a<br />

opinião pública fizeram uma pressão tão grande que,<br />

ou <strong>se</strong> revia a maioridade penal, ou aumentaria o tempo<br />

de internação, que é um projeto em andamento.<br />

Mas, como nada saiu do papel, utilizar os mecanismos<br />

de internação psiquiátrica, foi o jeitinho que eles deram<br />

para driblar a lei”, explica Maria Cristina.<br />

TranSTorno anTiSSoCial<br />

Entre os transtornos de personalidade identificados<br />

pelo Imesc está a personalidade antissocial, “na<br />

maioria dos casos não havia diagnóstico fechado,<br />

mas que o jovem apre<strong>se</strong>ntava traços de tal personalidade”,<br />

conta a juíza Mônica Paukoaski.<br />

O diagnóstico de transtorno de personalidade<br />

antissocial é questionado por algumas áreas da psicologia,<br />

apesar de constar na Classificação Internacional<br />

de Doenças Mentais.<br />

Segundo Fernanda Lavarello, é a análi<strong>se</strong> de um<br />

comportamento que foi externalizado a partir de<br />

um ato de transgressão, negando toda a historicidade<br />

do sujeito e o fato de o crime <strong>se</strong>r produto de<br />

vulnerabilidade social. “O cometimento de um ato<br />

infracional não implica no cometimento de transgressões<br />

futuras, ninguém tem bola de cristal para<br />

prever o que vai acontecer.”<br />

Depois do Termo de Cooperação Técnica assinado,<br />

mais cinco jovens foram encaminhados para a<br />

Unidade Experimental de Saúde, todos com o mesmo<br />

diagnóstico: transtorno de personalidade antissocial<br />

e alto grau de periculosidade.<br />

E a juíza Mônica Paukoaski alerta: “Apesar de <strong>se</strong><br />

tratar de questão polêmica, não foi o Judiciário que<br />

preconizou a necessidade de atendimento sob contenção,<br />

mas sim os médicos de órgão oficial do Estado.<br />

Além disso os jovens que <strong>se</strong> encontram hoje<br />

na UES não estão internados por determinação do<br />

DEIJ, mas foram interditados pela justiça comum.”<br />

No caso específico de Champinha, “ele foi pego<br />

como bode expiatório para inaugurar essa instância<br />

arbitrária e de exceção que a Justiça está utilizando.<br />

Todos os jovens que estão lá cometeram crimes contra<br />

pessoas da clas<strong>se</strong> média e alta em suas cidades<br />

de origem, que ganharam grande repercussão na mídia”,<br />

diz Daniel Adolpho. Este completa sua denúncia:<br />

“ninguém tem coragem de cumprir a lei e assinar<br />

pela libertação do Roberto porque ninguém quer<br />

enfrentar a opinião pública e o pai da Liana, que tem<br />

bastante influência financeira e política..”<br />

novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

A juíza Paukoaski rebate a crítica, “Se existe uma<br />

anomalia psíquica, e a área médica aponta isso, não<br />

podemos devolvê-los à sociedade <strong>se</strong>m o acompanhamento<br />

de uma equipe multidisciplinar.”<br />

Mas há outras irregularidades. Daniel Adolpho<br />

conta que não existe um regimento interno da Unidade,<br />

pois quem é internado não tem previsão do<br />

tempo de pena que irá cumprir, e que nenhum tratamento<br />

psíquico acontece no local. “O que o Roberto<br />

me conta é que mais ou menos a cada 15 dias vai<br />

um psicólogo lá, conversa um pouco com ele, pergunta<br />

<strong>se</strong> precisa de algum remédio, e só. Nem o jovem,<br />

nem o <strong>se</strong>u defensor público, podem ter acesso<br />

ao prontuário médico, violando mais uma vez a<br />

lei 10.216.”<br />

“Mesmo quem <strong>se</strong> diz defensor dos direitos humanos<br />

torce o nariz quando <strong>se</strong> fala sobre o caso do<br />

Roberto, mas é importante saber que quando ele<br />

fos<strong>se</strong> liberado não ia simplesmente sair da Fundação<br />

Casa. As psicólogas que acompanharam todo o<br />

processo dele já estavam articulando uma rede em<br />

outro Estado pro qual ele e toda a sua família mudariam.<br />

Eles entrariam no <strong>se</strong>rviço de proteção a testemunha,<br />

<strong>se</strong> necessário até mudariam de nome, com<br />

isso ele continuaria tendo um acompanhamento judicial”,<br />

explica Fernanda Lavarello.<br />

ningUém Sabe, ningUém viU.<br />

A as<strong>se</strong>ssoria de imprensa da Secretaria da Saúde<br />

foi procurada pela reportagem para falar sobre o<br />

assunto. A resposta: “O que temos a informar é que<br />

a decisão sobre a internação das pessoas atendidas<br />

na Unidade Experimental de Saúde é feita pela Justiça.<br />

A Secretaria de Estado da Saúde mantêm esta<br />

estrutura para atender pacientes encaminhados por<br />

decisão judicial.”<br />

Tanto os laudos periciais que encaminharam os<br />

<strong>se</strong>is jovens para a UES, quanto o tratamento psiquiátrico<br />

daqueles que cumprem medida socioeducativa<br />

na Fundação Casa são feitos pelo Nufor, Núcleo de<br />

Psiquiatria Foren<strong>se</strong> do Hospital das Clínicas. O coordenador<br />

do núcleo, Daniel Martins de Barros, respondeu<br />

por email:<br />

“O Nufor vem prestando assistência psiquiátrica<br />

apenas aos internos da Fundação Casa em unidades<br />

regulares da capital. A Unidade Experimental de Saúde<br />

não está sob responsabilidade da Fundação Casa,<br />

não fazendo parte do nosso escopo de assistência.”<br />

Também procuramos Vitor Manuel da Silva Monteiro,<br />

diretor da UES, mas um funcionário da administração<br />

informou que ele estava de férias fora do Brasil<br />

e não havia ninguém ocupando <strong>se</strong>u cargo nes<strong>se</strong> período,<br />

além de que nenhum funcionário estaria capacitado<br />

nem autorizado para falar com a imprensa.<br />

“A Unidade Experimental de Saúde desvirtuou-<strong>se</strong><br />

do <strong>se</strong>u caminho e não está funcionando da forma proposta<br />

pelo Judiciário, jamais uma unidade de saúde<br />

mental deve assumir feições de manicômio judiciário.<br />

O transtorno de personalidade antissocial é um diagnóstico<br />

sério que precisa <strong>se</strong>r enfrentado com responsabilidade.<br />

Jovens que contam com es<strong>se</strong> diagnóstico<br />

precisam de uma atenção especial, a idéia não é <strong>se</strong>gregar,<br />

mas acompanhar o jovem até que <strong>se</strong> obtenha algum<br />

avanço”, finaliza a juíza Mônica Paukoaski.<br />

Camila Martins é repórter.<br />

junho 2009 caros amigos<br />

37


38<br />

Em defesa dos interes<strong>se</strong>s privados e de olho nos lucros do pré-sal,<br />

parlamentares con<strong>se</strong>rvadores e a mídia neoliberal fustigam a estatal.<br />

Ilustração Latuff<br />

a<br />

maior empresa do país em valor de mercado<br />

resiste a mais um ataque das forças con<strong>se</strong>rvadoras.<br />

No centro de uma investigação, de<strong>se</strong>ncadeada<br />

por <strong>se</strong>nadores do PSDB e Democratas, a Petrobras<br />

parece não <strong>se</strong> preocupar com os resultados dos<br />

desdobramentos da CPI proposta pelo <strong>se</strong>nador tucano<br />

Álvaro Dias, e mantém o ritmo de trabalho.<br />

Os investimentos projetados para os próximos<br />

quatro anos atingem a casa dos US$ 174,4 bilhões.<br />

Só o pré-sal (petróleo extraído abaixo da lâmina de<br />

água e do sal do fundo do mar), receberá um aporte<br />

de US$ 111,4 bilhões nes<strong>se</strong> período. A produção em<br />

escala comercial do carro-chefe da companhia entra-<br />

caros amigos julho 2009<br />

Lúcia Rodrigues<br />

Petrobras resiste<br />

ao ataque da direita<br />

rá em velocidade de cruzeiro no final de 2010.<br />

“Até 2020 vamos aumentar a produção do pré-sal<br />

em 1,8 bilhão de barris”, revela, em entrevista exclusiva<br />

à Caros Amigos, o presidente da Petrobras, José<br />

Sérgio Gabrielli de Azevedo. Para ele, as áreas do<br />

pré-sal são “qua<strong>se</strong> bilhetes premiados”. E, por isso,<br />

devem continuar a <strong>se</strong>r exploradas pela estatal.<br />

“Estaremos, com certeza, entre as maiores empresas<br />

de petróleo do mundo.Vamos sair da produção de<br />

2,4 bilhões de barris/dia e chegar em 2020 produzindo<br />

5,7 bilhões de barris/dia”, frisa.<br />

A potencialidade gerada pela descoberta das re<strong>se</strong>rvas<br />

de petróleo da camada pré-sal na costa brasi-<br />

leira tem despertado a cobiça dos Estados Unidos e<br />

do cartel das <strong>se</strong>te irmãs (principais companhias petrolíferas<br />

mundiais) sobre o ouro negro nacional.<br />

As re<strong>se</strong>rvas norte-americanas estão <strong>se</strong>cando. Os<br />

re<strong>se</strong>rvatórios estaduniden<strong>se</strong>s possuem apenas 29 bilhões<br />

de barris para <strong>se</strong>r prospectados. Se mantido o<br />

atual ritmo no padrão de consumo, em torno de 10<br />

bilhões de barris ao ano, as re<strong>se</strong>rvas estarão extintas<br />

em menos de três anos. “Os norte-americanos estão<br />

em apuros, de<strong>se</strong>sperados atrás de petróleo. Por isso,<br />

invadiram o Iraque, o Afeganistão”, ressalta o presidente<br />

da Aepet (Associação dos Engenheiros da Petrobras),<br />

Fernando Siqueira.


A situação das <strong>se</strong>te irmãs também é delicadíssima.<br />

Da cômoda posição de detentora de aproximadamente<br />

90% das re<strong>se</strong>rvas mundiais, despencou a<br />

um patamar de 3%. Por isso, os lobbies que repre<strong>se</strong>ntam<br />

es<strong>se</strong>s interes<strong>se</strong>s atuam de maneira voraz,<br />

em Brasília, para tentar reverter a situação extremamente<br />

desfavorável que atravessam. O pré-sal é<br />

encarado como a tábua de salvação de que necessitam<br />

para <strong>se</strong> livrar de <strong>se</strong>us infortúnios.<br />

Os prognósticos geológicos mais con<strong>se</strong>rvadores<br />

para o petróleo extraído da camada pré-sal apontam<br />

re<strong>se</strong>rvas da ordem de 90 bilhões de barris, qua<strong>se</strong> <strong>se</strong>te<br />

vezes superior à atual re<strong>se</strong>rva brasileira, confirmada<br />

em 14 bilhões de barris de óleo equivalente. Mantido o<br />

padrão de consumo nacional, de um bilhão de barris/<br />

dia, teríamos as<strong>se</strong>gurado 90 anos de tranqüilidade.<br />

Para Siqueira, a Petrobras descobriu um “Iraque na<br />

América Latina”. Os números projetam o país, como<br />

a quarta re<strong>se</strong>rva mundial de petróleo, atrás apenas da<br />

Arábia Saudita, que possui 260 bilhões de barris em<br />

re<strong>se</strong>rvas, do Irã, com 140 e Iraque, com 115.<br />

O banco de investimento Goldman Sachs também<br />

aponta a Petrobras entre as dez empresas mais viáveis<br />

do mundo. Ainda de acordo com o Goldman, a<br />

viabilidade da estatal brasileira a coloca na vanguarda<br />

das demais petroleiras mundiais.<br />

Em <strong>se</strong>tembro do ano passado, a companhia estava<br />

avaliada em R$ 344 bilhões, <strong>se</strong>gundo valor de mercado.<br />

Em 2008, a Petrobras de<strong>se</strong>mbolsou sozinha, R$ 60<br />

bilhões para o pagamento de impostos, taxas e contribuições<br />

sociais ao governo. O valor é superior ao orçamento<br />

de vários Estados brasileiros. O pagamento<br />

de royalties e participações governamentais por parte<br />

da companhia atingiram os R$ 23 bilhões.<br />

Os números indicam uma empresa sólida e robustecida.<br />

Mas <strong>se</strong>gundo o presidente Gabrielli, a imagem<br />

O <strong>se</strong>nador José Nery (Psol-PA) não assinou o<br />

requerimento do tucano Álvaro Dias (PSDB-PR),<br />

para a instalação da CPI da Petrobras. Ele considera<br />

que as denúncias que pesam contra a companhia<br />

já estão sob a investigação do Ministério<br />

Público Federal, Tribunal de Contas da União e da<br />

Polícia Federal. “As três instituições podem adotar<br />

as providências legais caso <strong>se</strong>ja detectado algum<br />

problema”, afirma.<br />

Para Nery, a instalação da Comissão Parlamentar<br />

de Inquérito pode estar associada à disputa<br />

eleitoral do ano que vem. Além disso, o <strong>se</strong>nador<br />

também quer evitar que as empresas privadas,<br />

que têm interes<strong>se</strong> nas áreas do pré-sal, capitalizem<br />

em cima do desgaste imposto à imagem da<br />

companhia estatal.<br />

“Neste momento a Petrobras tem o desafio de<br />

explorar a camada pré-sal. É preciso garantir credibilidade<br />

e respeitabilidade, para que continue <strong>se</strong>ndo<br />

a empresa mais importante do país”, afirma.<br />

O <strong>se</strong>nador do Psol lembra que foi o governo de<br />

Fernando Henrique Cardoso quem derrubou o monopólio<br />

estatal do petróleo, em 1995.<br />

Nery defende a ideia de que as parcelas da<br />

companhia que passaram para as mãos de particulares<br />

<strong>se</strong>jam reestatizadas.<br />

da empresa pode sofrer desgastes em função de “ilações<br />

e de uma onda de denuncismo” contra a estatal<br />

motivada pela CPI. “Acaba minando a reputação da<br />

companhia. Isso é muito ruim”, lamenta.<br />

O repre<strong>se</strong>ntante dos engenheiros da Petrobras<br />

considera que ao propor uma CPI para investigar a<br />

empresa, o principal objetivo do PSDB é quebrar o<br />

prestígio da companhia. “Querem enfraquecê-la para<br />

justificar a vinda de empresas estrangeiras”, afirma,<br />

ao <strong>se</strong> referir aos parlamentares e ao lobby que atua<br />

em defesa dos interes<strong>se</strong>s capital estrangeiro.<br />

De acordo com ele, entre os lobbistas que atuam<br />

na defesa des<strong>se</strong>s interes<strong>se</strong>s, está o diretor-geral<br />

da ANP (Agência Nacional de Petróleo), deputado<br />

Haroldo Lima (PC do B - BA). Lima nega qualquer<br />

envolvimento com lobbistas. “É uma afirmação<br />

irresponsável.”<br />

A ANP é o órgão responsável pela realização dos<br />

leilões de blocos petrolíferos, abertos à participação da<br />

iniciativa privada. Com a quebra do monopólio estatal<br />

do petróleo em 1995 e com a lei 9.478/97, sancionada<br />

pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,<br />

foi concedido à iniciativa privada, inclusive, ao capital<br />

internacional, o direito de operar na prospecção de petróleo<br />

em território nacional. Até o momento, a ANP<br />

já realizou 10 rodadas de licitação. Todas as etapas foram<br />

abertas à participação da iniciativa privada.<br />

Lima critica aqueles que defendem o retorno do<br />

monopólio estatal do petróleo. “Os leilões estão dando<br />

certo. Não existe monopólio estatal do petróleo em nenhum<br />

país. É uma miopia política insistir nisso.”<br />

DNA privAtistA<br />

Para o coordenador da FUP (Federação Única<br />

dos Petroleiros), João Antônio de Moraes, o objetivo<br />

da CPI “não é fazer uma investigação séria”.<br />

“Vão construir um palco político, para a disputa<br />

eleitoral de 2010”, afirma.<br />

O sindicalista teme que a empresa também volte<br />

a <strong>se</strong>r objeto de ataques privatistas, apesar de o <strong>se</strong>nador<br />

Álvaro Dias, autor do requerimento que permitiu<br />

a instalação da CPI garantir que es<strong>se</strong> não é o objetivo<br />

da proposição. “Es<strong>se</strong> pessoal (tucanos e democratas)<br />

têm a privatização no sangue, está no DNA”,<br />

ressalta Moraes.<br />

O temor do dirigente sindical também é compartilhado<br />

pelo repre<strong>se</strong>ntante da Aepet. “O PSDB fez de<br />

tudo para desnacionalizar a Petrobras. Chegou até a<br />

mudar o nome da empresa para Petrobrax”, relembra<br />

Fernando Siqueira. “Queriam dividi-la em unidades<br />

de negócios, transformando-as em subsidiárias, para<br />

preparar a privatização”, acrescenta.<br />

As duas entidades (FUP e Aepet) estão envolvidas<br />

na organização da sociedade civil com vistas à construção<br />

de um novo marco regulatório para o <strong>se</strong>tor. A<br />

FUP também pretende apre<strong>se</strong>ntar ao Congresso Nacional<br />

um projeto de lei de iniciativa popular. “Estamos<br />

recolhendo um milhão de assinaturas. O projeto<br />

do governo (Lula) não contempla nossas reivindicações”,<br />

comenta Moraes.<br />

Inúmeras manifestações de rua estão <strong>se</strong>ndo realizadas<br />

no país, em defesa da Companhia, como as<br />

que ocorreram em São Paulo e no Rio de Janeiro. No<br />

Rio, os manifestantes deram, inclusive, um abraço ao<br />

edifício-<strong>se</strong>de da estatal.<br />

Neste mês é a vez de Brasília receber os manifestantes.<br />

Os sindicalistas aproveitam a realização do<br />

51º Congresso da UNE, que acontece na capital federal,<br />

e organizam um ato em defesa de uma Petrobras<br />

pública e por uma nova lei de petróleo. Segundo<br />

o dirigente petroleiro, 10 mil estudantes devem<br />

comparecer à manifestação.<br />

Oposição de esquerda ao governo Lula não assina CPI<br />

requerimeNto Do psDB<br />

Segundo o <strong>se</strong>nador Álvaro Dias, o objetivo da CPI<br />

que investigará a Petrobras <strong>se</strong>rá o de “responsabilizar<br />

civil e criminalmente os envolvidos em desmandos<br />

na administração da empresa”. O requerimento para<br />

a instalação da CPI con<strong>se</strong>guiu a adesão de 30 parlamentares,<br />

eram necessárias 27 assinaturas para que a<br />

Comissão fos<strong>se</strong> aprovada. Os <strong>se</strong>nadores têm um prazo<br />

de 180 dias para concluírem os trabalhos.<br />

Pela proposta do tucano, as investigações que os<br />

<strong>se</strong>nadores irão realizar vão <strong>se</strong> concentrar na administração<br />

do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.<br />

“Não há nenhuma denúncia em relação aos governos<br />

anteriores. Mas como no Brasil um escândalo sucede<br />

ao outro, e como são tantos os escândalos da administração<br />

da Petrobras, <strong>se</strong>ria impossível buscar escândalos<br />

antigos”, conclui.<br />

Para propor a CPI, Dias pautou-<strong>se</strong> em denúncias<br />

publicadas na imprensa. “Soubemos das denúncias,<br />

como o povo brasileiro, que tem a oportunidade de<br />

ler os grandes jornais e revistas”, conta.<br />

As denúncias que <strong>se</strong>rão investigadas, <strong>se</strong>gundo<br />

Dias, vão <strong>se</strong> concentrar em três operações da Polícia<br />

Federal: Castelo de Areia, Águas Profunda e<br />

Royalties, além de auditorias do Tribunal de Contas<br />

da União, que <strong>se</strong>gundo ele, comprovam superfa-<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

turamento de obras, aditivos irregulares. Existem<br />

ainda, de acordo com o <strong>se</strong>nador, questionamentos<br />

do Ministério Público referentes ao pagamento<br />

de usineiros e à transferência de recursos para<br />

ONGs.<br />

“São escândalos gigantescos. Nós não estamos<br />

nos referindo a migalhas. Trata-<strong>se</strong> de bilhões de<br />

reais que supostamente foram desviados em função<br />

do loteamento político da empresa”, critica.<br />

petroBrAs<br />

O presidente da Petrobras, José Sérgio Grabrielli<br />

de Azevedo, conta que procurou os <strong>se</strong>nadores<br />

do PSDB Arthur Virgílio (AM), Sérgio<br />

Guerra (PE) e Tasso Jereissati (CE) antes da instalação<br />

da Comissão Parlamentar de Inquérito,<br />

para afirmar que a Petrobras está à disposição,<br />

para prestar os esclarecimentos que o Senado<br />

considerar necessários.<br />

Para ele, a CPI é um instrumento legítimo do<br />

Congresso Nacional. Gabrielli considera que as<br />

investigações têm de <strong>se</strong>r focadas. “Nes<strong>se</strong> período<br />

há milhares de contratos”, ressalta.<br />

Ele também conta que a companhia está colaborando<br />

com as investigações da Polícia Federal<br />

e com o Tribunal de Contas da União.<br />

junho 2009 caros amigos<br />

39


40<br />

Diversificação da matriz energética<br />

A Petrobras também aposta na diversifi cação da matriz<br />

energética. Além do pré-sal, a estatal investe em outras<br />

fontes de energia, como o biodie<strong>se</strong>l. Trinta e <strong>se</strong>te mil famílias<br />

ligadas à agricultura familiar vendem sua produção para a<br />

companhia, que processa as oleaginosas em três refi narias,<br />

para a obtenção do combustível ecológico. Para a área de<br />

biocombustíveis e etanol, os planos, até 2013, projetam um<br />

investimento de U$ 2,8 bilhões.<br />

A companhia também pretende construir cinco refi narias até<br />

2017. Hoje, a empresa possui 16 plantas para o refi no, 11<br />

no Brasil e cinco no exterior. As novas refi narias vão ampliar<br />

a capacidade de refi no instalada em 1,3 bilhão de barris/dia.<br />

As unidades <strong>se</strong>rão voltadas para a produção de die<strong>se</strong>l<br />

e quero<strong>se</strong>ne de aviação. O Brasil é exportador de gasolina.<br />

Segundo o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli<br />

de Azevedo, a geração de empregos diretos e indiretos<br />

motivados pelos novos investimentos deve girar em torno<br />

de 900 mil a um milhão de postos de trabalho. A exploração<br />

e produção do petróleo da camada pré-sal irá absorver a<br />

maioria des<strong>se</strong>s trabalhadores. Hoje a Petrobras possui 74.240<br />

empregados diretos.<br />

Para Gabrielli, o petróleo produzido na camada pré-sal<br />

é viável mesmo com o preço do barril abaixo de US$ 45.<br />

O custo de extração de um barril de petróleo fora do<br />

ambiente pré-sal era, em <strong>se</strong>tembro do ano passado, U$ 9,6.<br />

Lúcia Rodrigues é jornalista.<br />

caros amigos julho 2009<br />

os NÚmeros DA GiGANte<br />

Plataformas - 113<br />

Poços - 14 mil<br />

Refi narias -16<br />

Capacidade instalada de refi no - 2,2 milhões de barris/dia<br />

Terminais - 66<br />

Malha dutoviária - 25 mil quilometros<br />

Sondas de perfuração (terra e mar) - 63<br />

Navios petroleiros próprios - 54<br />

Navios petroleiros afretados -135<br />

Termelétricas -15<br />

Produção média diária de óleo e gás* - 2,5 milhões<br />

Produção diária de gás natural** - 67 milhões<br />

Valor de mercado*** - R$ 344 bilhões<br />

Receita operacional bruta - R$ 285 bilhões<br />

Receita operacional líquida - R$ 232 bilhões<br />

Lucro líquido - 33 bilhões<br />

Investimento total – R$ 53 bilhões<br />

Investimento total **** – R$ 174,4 bilhões<br />

Custo de extração por barril - US$ 9,6<br />

Pagamento de royalties e participações governamentais - R$ 23 bilhões<br />

Pagamento de impostos, taxas e contribuições sociais – R$ 60 bilhões<br />

Número de empregados – 74.240<br />

* em barris de óleo equivalente<br />

** em metros cúbicos<br />

*** em <strong>se</strong>tembro de 2008<br />

**** de 2009 a 2013<br />

Os dados referem-<strong>se</strong><br />

às atividades da companhia<br />

no Brasil e exterior,<br />

em 2008<br />

Fonte: Petrobras<br />

Livros da Editora Casa Amarela<br />

Direto das bancas para a sua cabeceira.<br />

Livros com a qualidade<br />

Caros Amigos.<br />

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no ano do centenário de <strong>se</strong>u nascimento, o<br />

poeta Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa<br />

do Assaré, foi homenageado em livro,<br />

filme e também no Senado, onde o <strong>se</strong>nador Inácio<br />

Arruda (PCdoB-CE) lançou oficialmente o Ano Cultural<br />

Patativa do Assaré, agora em junho. Autodidata,<br />

Patativa freqüentou a escola por pouco tempo<br />

e, nas palavras de Ro<strong>se</strong>mberg Cariry, amigo e diretor<br />

do filme Patativa do Assaré – Ave Poesia, “venceu<br />

o analfabetismo, o preconceito e <strong>se</strong> fez o grande<br />

poeta e a grande consciência social deste país”.<br />

Nascido no dia 5 de março de 1909, em Serra de<br />

Santana, no interior do Ceará, região do Cariri, a 18<br />

quilômetros da cidade de Assaré, Patativa era o <strong>se</strong>gundo<br />

dos cinco filhos dos agricultores Pedro Gonçalves<br />

da Silva e Maria Pereira da Silva. Aos nove<br />

anos, perdeu o pai e, ao lado de sua família, precisou<br />

enfrentar a vida de agricultor pobre no diminuto<br />

terreno deixado como herança paterna.<br />

Aos 12 anos, Patativa frequentou uma escola no<br />

mesmo campo onde <strong>se</strong>mpre viveu, em Serra de Santana.<br />

Ali passou <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s e aprendeu apenas a ler:<br />

“<strong>se</strong>m vírgula, <strong>se</strong>m ponto, <strong>se</strong>m nada”, como conta no<br />

filme. Suas maiores distrações eram a poesia e a leitura.<br />

“Quando eu tinha tempo, chegava da roça, ao<br />

meio-dia ou à noite, e minha distração era ler, ler e<br />

ouvir outro ler para mim, o meu irmão mais velho,<br />

José. Ele lia <strong>se</strong>mpre os folhetos de cordel e foi daí de<br />

onde surgiu a minha inspiração para fazer poesia. Eu<br />

comecei a fazer verso com 12 anos de idade.”, conta<br />

o poeta no filme de Ro<strong>se</strong>mberg Cariry.<br />

E continua: “Já com 20 anos começaram a me<br />

chamar Patativa [que é uma ave típica da região].<br />

Posso dizer que foi José Carvalho de Brito que pôs<br />

es<strong>se</strong> apelido que o povo hoje conhece, esta alcunha.<br />

Patativa do Assaré.”<br />

Es<strong>se</strong>s relatos foram contados pelo poeta ao amigo<br />

Cariry, em entrevista concedida em 1979. Os 84<br />

minutos da película contêm ainda outras histórias<br />

da vida em Assaré: a infância, as primeiras letras,<br />

o começo na poesia e as lutas durante o período da<br />

ditadura militar. O filme <strong>se</strong> constrói tendo esta entrevista<br />

como ba<strong>se</strong> e acrescenta imagens de pesquisadores,<br />

depoimentos de parentes e cenas gravadas<br />

do poeta cuidando de sua plantação de algodão,<br />

quando ainda não era famoso.<br />

Admirador do trabalho de Patativa, Cariry não<br />

filmou o amigo tendo em mente um projeto para<br />

transformar as imagens colhidas de 1979 a 2006<br />

Bruna Buzzo<br />

pAtAtivA é do povo<br />

O poeta popular Patativa do Assaré foi<br />

agricultor durante toda sua vida. Homem<br />

muito querido, difundiu poesia e cultura ao<br />

povo pobre do Nordeste. Foto Emerson Monteiro<br />

em documentário. “O que existia era a<br />

vida, Patativa era meu compadre e participei<br />

junto com ele de muitas atividades<br />

culturais e políticas. Simplesmente<br />

documentei es<strong>se</strong>s momentos importantes.<br />

Depois da sua morte, em 8 de<br />

julho de 2002, resolvi prestar uma homenagem<br />

ao grande mestre, fazendo o<br />

filme”, conta o diretor.<br />

Patativa do Assaré – Ave Poesia é<br />

fruto de um de<strong>se</strong>jo do diretor de devolver<br />

Patativa ao povo. “Eu quis fazer este filme porque<br />

a nação brasileira precisava saber de forma mais<br />

profunda quem foi Patativa do Assaré.” Cariry começou<br />

a edição das 100 horas de material fazendo um<br />

filme de cinco horas, relatando a vida do poeta e os<br />

principais acontecimentos do Brasil, que eram revistos<br />

a partir da poesia e da vida de Patativa.<br />

O filme destaca o lado político. “Um homem e<br />

poeta de muitas facetas”, afirma Cariry, que diz ter<br />

sido sua vivência com Patativa o que o levou a optar<br />

pelo retrato deste lado específico. “Pas<strong>se</strong>i mais<br />

tempo ao <strong>se</strong>u lado no final da década de 70 e em<br />

toda a década de 80. Testemunhei e cheguei a participar<br />

ao <strong>se</strong>u lado de todas as lutas por justiça e pela<br />

redemocratização do país.”<br />

Cariry conheceu o poeta na década de 60, quando<br />

o cineasta ainda era menino. Seu pai era dono<br />

de uma bodega e <strong>se</strong>u avô do Bar Tupy. “Es<strong>se</strong>s locais<br />

eram pontos de encontro de muitos artistas populares<br />

que vinham para a feira do Crato, também de<br />

operários e boêmios, que ficavam à noite discutindo<br />

política e as notícias que ouviam no rádio de ondas<br />

tropicais que meu avô mantinha no <strong>se</strong>u estabelecimento.<br />

Ali conheci grandes artistas do Cariri. Entre<br />

eles, Patativa do Assaré.”<br />

Ave poesiA<br />

Ainda em vida, Patativa do Assaré con<strong>se</strong>guiu “o<br />

reconhecimento, o carinho e o amor do <strong>se</strong>u povo”,<br />

conta Cariry. Ele fazia poesia social, era um poeta<br />

do povo, sua luta era mais do que contra a ditadura,<br />

era contra a opressão que aflige o povo nordestino<br />

até hoje. “Não só o intelectual, mas também o artista<br />

capaz de transformar aquele mal-estar em matéria<br />

poética”, lembra o professor e escritor Gilmar de<br />

Carvalho, no filme de Ro<strong>se</strong>mberg Cariry.<br />

Ao todo, Patativa publicou dez livros. O primeiro,<br />

Inspiração Nordestina, publicado em 1956, com<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

incentivo do filósofo José Arraes de Alencar. Livro<br />

pronto e viola nas costas, Patativa andou por todo<br />

o Ceará fazendo suas cantorias e vendendo <strong>se</strong>u livro,<br />

para pagar a dívida que contraíra com o editor.<br />

Depois vieram Inspiração Nordestina: Cantos do<br />

Patativa (1967), edição ampliada do primeiro livro,<br />

Cante Lá que Eu Canto Cá (1978), que lhe rendeu<br />

reconhecimento do meio acadêmico e da imprensa,<br />

Ispinho e Fulô (1988), Balceiro. Patativa e Outros<br />

Poetas de Assaré (1991), Cordéis (1993), Aqui Tem<br />

Coisa (1994), Biblioteca de Cordel: Patativa do Assaré<br />

(2000), Balceiro 2. Patativa e Outros Poetas de<br />

Assaré (2001) e Ao pé da mesa (2001).<br />

Considerado comunista por <strong>se</strong>us atos em defesa<br />

do povo pobre, o poeta <strong>se</strong> declarava “comunista<br />

de coração” e em poemas como “Eu Quero”, “Triste<br />

Partida” (que mais tarde <strong>se</strong>ria musicada por Luiz<br />

Gonzaga) e “O Brasil de baixo e o Brasil de cima”,<br />

dentre outros, defende os direitos e cobra melhorias<br />

para a vida do povo nordestino, debatendo assuntos<br />

como <strong>se</strong>ca, fome e reforma agrária.<br />

Nas palavras do amigo cineasta, “Patativa do Assaré<br />

figura entre os grandes nomes da poesia do Brasil<br />

por ter con<strong>se</strong>guido, com arte e beleza, unir denúncia<br />

social com lirismo, consciência política com<br />

profunda percepção humana. Quem lê a poesia de<br />

Patativa pensa, <strong>se</strong> emociona e <strong>se</strong> transforma, porque<br />

nela estão todas as lutas e esperanças do homem, estão<br />

as palavras que <strong>se</strong> erguem contra todas as formas<br />

de obscurantismo e opressão.”<br />

Para Cariry, “Patativa é uma re<strong>se</strong>rva ética e estética<br />

do povo brasileiro. Se o Brasil não tem ainda o<br />

<strong>se</strong>u poeta-nacional, que simbolize e expres<strong>se</strong> o <strong>se</strong>ntimento<br />

de nação, como Pablo Neruda no Chile ou<br />

Camões em Portugal, o Nordeste brasileiro, popular<br />

e rebelado, tem o <strong>se</strong>u: Patativa do Assaré.”<br />

Bruna Buzzo é estudante de Jornalismo.<br />

junho 2009 caros amigos<br />

41


42<br />

um ano após a lei estadual 5.265, que dificulta a realização de bailes funk,<br />

profissionais denunciam a repressão policial a cantores, compositores e<br />

até a quem simplesmente gosta de ouvir o ritmo popularizado nas favelas<br />

do Rio de Janeiro. Na outra ponta, surge a Associação dos Profissionais e Amigos<br />

do Funk, cujo objetivo é unificar e politizar a categoria que leva para as pistas<br />

centenas de milhares de jovens todos os fins de <strong>se</strong>mana.<br />

Cidade de Deus, domingo, 14 de junho. Chego à rua GG, que na verdade é um<br />

espaço vazio, de terra batida, entre cinco ou <strong>se</strong>is edifícios. Circundado por bares<br />

e mercearias, o lugar deve ter o tamanho de uma quadra poliesportiva, talvez<br />

um pouco maior. São três da tarde, faz sol e as crianças <strong>se</strong> divertem. Brincam<br />

de pula-pula e de bola. Não resisto e acabo jogando altinha com eles. De repente,<br />

a bola cai na lama, suja pouco, qua<strong>se</strong> nada. Mesmo assim um pequeno a toma<br />

pela mão e diz: “peraí, tio”. O menino, magrinho, uns 12 anos, esfrega a bola no<br />

meio-fio e completa: “pra não sujar sua calça”.<br />

Olho pra trás e vejo um policial militar <strong>se</strong> aproximando. Daí a dez minutos<br />

aparece uma blazer da PM, que promove um escândalo inominável: com fuzis –<br />

que são armas de guerra - apontados para fora, o carro faz uma ronda passando<br />

por vezes muito perto das crianças que ali brincavam.<br />

Enquanto isso a turma montava a aparelhagem de som no final da rua. Ainda<br />

era dia quando o sargento Alcântara foi até o DJ e afirmou: “dez horas tem que<br />

acabar”. Com um fuzil <strong>se</strong>miautomático a tira-colo, ele fazia cumprir a ordem do<br />

comando da polícia, que <strong>se</strong> ba<strong>se</strong>ia numa lei (ver quadro) que na prática inviabiliza<br />

a realização de bailes funk – a autoria é do ex-chefe de Polícia Civil e ex-deputado<br />

estadual Álvaro Lins (PMDB-RJ), cassado e preso sob acusações de formação<br />

de quadrilha, facilitação de contrabando e lavagem de dinheiro.<br />

Na verdade, o DJ nem ficou tão aborrecido com o policial. Este era o primeiro<br />

evento de funk realizado na CDD, berço des<strong>se</strong> ritmo no Brasil, desde a ocupação<br />

policial, em novembro do ano passado. Aqui nasceram letras como “O povo<br />

caros amigos julho 2009<br />

Marcelo Salles<br />

Funk carioca<br />

O batidão entre a per<strong>se</strong>guição e a resistência Foto Fernanda Chaves<br />

tem a força, só precisa descobrir / <strong>se</strong> eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui”<br />

– verdadeiro hino da clas<strong>se</strong> trabalhadora –, escrita por Kátia e Julinho Rasta<br />

e popularizada pelos MCs Cidinho e Doca. Neste domingo, por insistência da<br />

Associação de Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), o comando da PM autorizou<br />

a realização de uma roda de funk, prestigiada por gente de todas as idades,<br />

incluindo meu parceiro de altinha.<br />

A Lei 5.265, de junho de 2008, encerrou – direta ou indiretamente – bailes em<br />

pelo menos 60 casas no Estado, <strong>se</strong>gundo Tojão, dono da equipe de som Espião<br />

Shock de Monstro. Isso dificulta muito a vida de quem vive do funk – cerca de 10<br />

mil pessoas no Rio de Janeiro, <strong>se</strong>gundo as contas da Apafunk. São DJs, MCs, dançarinos,<br />

compositores e empresários, mas também técnicos de som, motoristas, auxiliares<br />

e toda uma gama de trabalhadores que, na década de 80, <strong>se</strong>gundo o antropólogo<br />

Hermano Vianna em <strong>se</strong>u livro O mundo funk carioca, mobilizavam mais de<br />

um milhão de jovens (cerca de 20% da população da capital fluminen<strong>se</strong>) em 700<br />

bailes todos os finais de <strong>se</strong>mana em torno dessa mistura de soul (música negra estaduniden<strong>se</strong>,<br />

cujo maior repre<strong>se</strong>ntante foi James Brown), miami bass (batida eletrônica)<br />

e percussão africana. O resultado é o batidão que hoje está entranhado na<br />

cultura do Rio de Janeiro, sobretudo nos espaços populares.<br />

A professora Adriana Facina, do Departamento de História da UFF, acompanhou<br />

de perto o funk carioca durante um ano e meio para sua pesquisa de<br />

pós-doutorado. Entrevistou mais de cem pessoas, esteve em duas dezenas de<br />

favelas e foi a bailes da zona sul à zona norte. Após todo es<strong>se</strong> trabalho de<br />

campo, ela acredita que o que existe é uma per<strong>se</strong>guição à população afrodescendente.<br />

“Os que hoje querem proibir o funk são herdeiros históricos daqueles<br />

que, no passado, qui<strong>se</strong>ram calar os batuques que vinham das <strong>se</strong>nzalas”. A<br />

propósito, o brasão da Polícia Militar do RJ ainda ostenta os ramos de cana<br />

e café, produtos que sustentaram a economia brasileira – movida a trabalho<br />

escravo – num passado não muito distante.


“Como é comum acontecer numa sociedade de herança de três séculos de<br />

escravidão, a música diaspórica, elemento fundamental de identidade negra,<br />

forma comunicacional principal dos modos de vida, dos valores e de denúncia<br />

da população afrodescendente é vista com grande desconfiança pelas elites”,<br />

complementa Adriana.<br />

Além da dificuldade para a realização de bailes, o que termina por concentrar<br />

os eventos nas grandes casas de show ou por marginalizar os pequenos<br />

produtores, a per<strong>se</strong>guição ao funk extrapolou para a violência contra o cidadão<br />

favelado. Naquele domingo, na Cidade de Deus, ouvi denúncias como a proibição<br />

de jovens pintarem o cabelo de determinada cor ou de ouvirem funk dentro<br />

de suas próprias casas.<br />

Um cantor e compositor com quem estive, e que prefere não <strong>se</strong> identificar<br />

por medo de represália, contou que um dia estava reunido com amigos numa<br />

esquina da favela, chegou uma guarnição da polícia e perguntou o que estavam<br />

fazendo. “Compondo”, respondeu. “Então eles mandaram a gente dispersar<br />

e tomaram o CD com a batida de fundo”, dis<strong>se</strong>, entre irritado e envergonhado<br />

pela humilhação sofrida.<br />

O tenente-coronel Luigi Gatto, comandante do 18º Batalhão de Polícia Militar,<br />

afirma que desconhece a proibição sobre a tinta no cabelo. Em relação<br />

à música dentro das casas, diz que a polícia atua ba<strong>se</strong>ada na lei do silêncio e<br />

quando algum vizinho reclama. Quanto à proibição dos bailes, declara: “não<br />

conheço baile funk em comunidade que não tenha tráfico de drogas, porte ilegal<br />

de armas, corrupção de menores e apologia ao crime”, mas afirma que <strong>se</strong> o<br />

evento for realizado dentro da lei 5.265, ele não <strong>se</strong> opõe.<br />

O comandante da PM faz uma avaliação positiva da ocupação da favela:<br />

“hoje a Cidade de Deus já está in<strong>se</strong>rida no bairro de Jacarepaguá, os <strong>se</strong>rviços<br />

públicos (luz, dragagem, coleta de lixo) estão funcionando, o espaço público foi<br />

devolvido para as pessoas que moram ali. Isso tudo era domínio do tráfico. Hoje<br />

em dia não há mais estado de exceção, a ordem pública foi restaurada”.<br />

OrgaNizaçãO dO mOvimeNtO fuNkeirO<br />

Foi com o objetivo de enfrentar as dificuldades que MC Leonardo decidiu fundar<br />

a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk. O compositor, nascido e<br />

criado na Rocinha, ganhou projeção nacional ao lado de <strong>se</strong>u irmão, MC Júnior,<br />

com letras como Rap das Armas e Endereço dos Bailes. “O funk é uma das poucas<br />

diversões com preços acessíveis, criada dentro da favela, pelos favelados. O funk<br />

está <strong>se</strong>ndo proibido de tocar no Rio de Janeiro!”, denuncia Leonardo.<br />

Além de criticar muito a lei 5.265, o cantor relata outras formas de per<strong>se</strong>guição<br />

a quem gosta de ouvir o ritmo. “No interior do Rio a polícia está pegando<br />

e quebrando CDs de quem escuta funk”. Leonardo também rebate as<br />

acusações de que o ritmo é pornográfico. “O mercado pornográfico é o que<br />

mais cresce no mundo, dizer que o funk é o responsável por isso é no mínimo<br />

estranho. Uma parte do funk é o reflexo disso, não o espelho”. Mr. Catra,<br />

que tem feito até cinco shows por dia no Rio de Janeiro mas <strong>se</strong>gue invisível<br />

aos olhos das corporações de mídia, também respondeu a estas acusações con-<br />

tra o funk no documentário Sou feia, mas tô na<br />

moda. “Sacanagem é o coroa comendo a criancinha<br />

na novela das oito.”<br />

O MC da Rocinha defende a unificação do<br />

movimento em torno da conscientização política.<br />

“Eu cobro dos artistas que eles u<strong>se</strong>m a sua<br />

arte como ferramenta de mudança contra as injustiças<br />

que eles sofrem. O funk é preto, favelado,<br />

discriminado e, por isso, deveria ter um discurso<br />

mais engajado que todas as outras artes”,<br />

afirma. Muitas vezes as pessoas julgam o funk por<br />

aquilo que ouvem na mídia comercial, <strong>se</strong>m saber<br />

que ali prevalece o funk comercial, despolitizado,<br />

do jeito que o sistema capitalista gosta. Leonardo<br />

tem corrido os gabinetes da As<strong>se</strong>mbleia Legislativa<br />

em busca de apoio para revogar a Lei 5.265<br />

e aprovar um novo texto que reconheça e valorize<br />

o caráter cultural do funk.<br />

Outro nó apontado por Leonardo é o duopólio<br />

exercido pelos empresários Rômulo Costa e DJ<br />

A lei estadual 5.265, de junho de 2008,<br />

determina que festas rave e bailes funk devem <strong>se</strong>r<br />

informadas com 30 dias de antecedência<br />

à Secretaria de Segurança Pública mediante<br />

a apre<strong>se</strong>ntação dos <strong>se</strong>guintes documentos:<br />

contrato social; CNPJ; comprovante de tratamento<br />

acústico; anotação de responsabilidade técnica<br />

das instalações de infraestrutura do evento,<br />

expedida por autoridade municipal; contrato da<br />

empresa de <strong>se</strong>gurança autorizada pela Polícia<br />

Federal; comprovante de instalação de detectores<br />

de metal e câmeras; comprovante de previsão de<br />

atendimento médico e nada a opor da Delegacia<br />

Policial, do Batalhão de Polícia Militar, do Corpo<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

Marlboro, que <strong>se</strong>gundo as contas da Apafunk controlam mais de 90% do mercado.<br />

Os dois possuem as maiores produtoras, editoras e equipes de som. E mais: mantêm<br />

programas em rádios (FM O Dia e 98 FM, respectivamente) onde, <strong>se</strong>gundo Leonardo,<br />

só divulgam <strong>se</strong>us próprios artistas. “Usam concessão pública em benefício<br />

próprio”, acusa. O MC também critica o modelo de contrato feito com os artistas.<br />

“Pagam 150 reais ao garoto e mais nada”. E pra aumentar o volume do batidão,<br />

dispara: “estão <strong>se</strong>mpre ao lado dos governos, fazem campanha, fizeram campanha<br />

para o [governador] Sérgio Cabral (PMDB)”.<br />

Rômulo Costa não respondeu ao recado deixado em <strong>se</strong>u telefone celular. DJ<br />

Marlboro <strong>se</strong> defende: “meu contrato artístico é igual ao de todas as editoras no<br />

mundo. O autoral é 75% do autor e 25% da editora. O artístico, que não exige<br />

obrigatoriedade, varia de 4% a 10%. Na produção, eu pego o garoto que recebe<br />

R$ 50 na favela pra fazer a montagem com um computador e levo para o estúdio,<br />

dou oportunidade a ele de aprender com equipamento profissional, coloco o<br />

nome dele no direito conexo e ainda pago R$ 150, três vezes mais do que ele recebe<br />

na favela. Agora, tem produtores que são mais caros, a gente vive no capitalismo,<br />

cada um recebe de acordo com o retorno que dá. A música é um negócio”,<br />

diz. Marlboro também discorda da existência de um duopólio. “Ninguém é<br />

obrigado a assinar contrato comigo ou com o Rômulo. Tem vários meios, o cara<br />

pode ir pro meio da praça, para a internet... Agora, eu não vou colocar no meu<br />

programa de rádio artista de outras gravadoras, ninguém faz isso. Monopólio é<br />

quando não tem escolha. A gente não proíbe ninguém de ter iniciativa”. Sobre as<br />

idéias dos MCs Júnior e Leonardo, ele declara: “eles acham que tem que <strong>se</strong>r comunismo,<br />

que todo mundo tem que ganhar igual. Querem o funk socialista”.<br />

Talvez isso explique por que o Rap da Igualdade tenha sido declinado por<br />

Marlboro, que, <strong>se</strong>gundo Leonardo, não quis divulgá-lo com o <strong>se</strong>guinte argumento:<br />

“Não é a hora de malhar a elite”.<br />

Burocracia do preconceito<br />

Eu só imploro a igualdade pra viver, doutor<br />

No meu Brasil (que o negro construiu)<br />

Eu só imploro a igualdade pra viver, doutor<br />

No meu Brasil<br />

A injustiça vem do asfalto pra favela<br />

Há discriminação à vera<br />

Chegam em cartão postal<br />

Em outdoor a burguesia nos revela<br />

Que o pobre da favela tem instinto marginal<br />

E o meu povo quando desce pro trabalho<br />

Pede a Deus que o proteja<br />

Dessa gente ilegal, doutor<br />

Que nos maltrata e que finge não saber<br />

Que a guerra na favela é um problema social<br />

(Trecho do Rap da Igualdade, MC Dolores)<br />

de Bombeiros e do Juizado de Menores.<br />

Além disso, o pedido de autorização deve informar<br />

a expectativa de público, o número de ingressos<br />

postos à venda, o nome do responsável pelo<br />

evento, a capacidade da área de estacionamento<br />

e previsão de horário de início e término do<br />

evento, que não poderá exceder 12 horas.<br />

Banheiros deverão <strong>se</strong>r disponibilizados na<br />

proporção de dois (um masculino e um feminino)<br />

para cada grupo de cinqüenta pessoas.<br />

São exigências que tornam alto demais<br />

o custo de realização de um baile e impõem<br />

uma burocracia que inviabiliza o trabalho dos<br />

pequenos produtores.<br />

junho 2009 caros amigos<br />

43


44<br />

IDÉIAS DE BOTEQUIM<br />

Renato Pompeu<br />

TEMAS DO POVÃO:<br />

grafi tos, Igreja Universal, hinduísmo,<br />

credibilidade dos jornais, fome...<br />

O livro mais bonito do mês é “Comunicação popular escrita”,<br />

do professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São<br />

Paulo, Américo Pellegrino Filho, publicado pela Edusp. Do cordel brasileiro<br />

a um cartaz antifi ado manuscrito num bar italiano, passando por um “sinal<br />

de trânsito” que avisa que “não há cangurus na Áustria”, o livro, em grande<br />

formato e de capa dura, com qua<strong>se</strong> 700 páginas, apre<strong>se</strong>nta e discute<br />

mais de 14 mil grafi tos, de 107 paí<strong>se</strong>s. Acompanha um CD. Está dividido<br />

em 22 clas<strong>se</strong>s (avulsos, brochuras populares, cartas a Papai Noel e à Velha<br />

Befana, epitáfi os populares, fórmulas de fi ado, etc.) e 40 temas e subtemas.<br />

Adverte o autor: “É de <strong>se</strong> esperar que a leitura das análi<strong>se</strong>s, neste livro,<br />

não <strong>se</strong>ja leve, descontraída, relaxada. Requer atenção, interes<strong>se</strong>, caneta<br />

para anotações (críticas?) e disposição para curtir as maravilhosas mensagens<br />

que os povos escrevem”.<br />

Ainda de temática popular, e também de interes<strong>se</strong> geral, é<br />

“A Igreja Universal e <strong>se</strong>us demônios – um estudo etnográfi co”, do professor<br />

da Universidade de Campinas Ronaldo de Almeida, lançado pela Editora<br />

Terceiro Nome. Diz na apre<strong>se</strong>ntação a famosa antropóloga Alba Zaluar: “A<br />

reconstituição histórica do crescimento espetacular das igrejas neopentecostais<br />

no Brasil é acompanhada por uma cuidadosa etnografi a ba<strong>se</strong>ada na<br />

ob<strong>se</strong>rvação feita por ele em cultos realizados dentro dos templos da Igreja<br />

Universal do Reino de Deus. A centralidade do exorcismo e a associação<br />

entre o diabo e as divindades cultuadas pelos adeptos das religiões afrobrasileiras<br />

adquirem uma visão ao mesmo tempo religiosa e política”. Uma<br />

leitura imprescindível para quem quer conhecer a mentalidade de amplos<br />

<strong>se</strong>tores das camadas urbanas da sociedade brasileira.<br />

Igualmente sobre religião, no caso o hinduísmo popularizado<br />

pela telenovela “Caminho das Índias”, temos, em tradução do sânscrito<br />

pelo professor de Letras da USP, Carlos Alberto Fon<strong>se</strong>ca, a “Canção do<br />

Venerável”, publicada pela Editora Globo, ou <strong>se</strong>ja, o famoso “Bhagavadgita”,<br />

hino composto na Índia a partir do século 10 a.C., há três mil anos, e<br />

que constitui uma espécie de catecismo introdutório à religião hindu. Um<br />

deus explica a um soldado que é preciso combater<br />

o egoísmo, o individualismo e a ganância,<br />

mas que é também necessário agir para cumprir<br />

o dever, no caso do soldado o dever de combater<br />

os inimigos e mesmo matá-los, ainda que <strong>se</strong>jam<br />

parentes próximos. Afi nal, os mortos terão<br />

a oportunidade de voltarem mais puros e mais<br />

felizes numa próxima reencarnação.<br />

Outro tema popular: há os que acreditam<br />

em tudo que lêem nos jornalões e há os que<br />

não acreditam em nada que neles é publicado.<br />

Para todos es<strong>se</strong>s é importante a leitura do livro<br />

“Escritos sobre jornal e educação – olhares<br />

de de longe longe e e de de perto”, perto” editado pela Global e ALB.<br />

Com prefácio do cientista político e jornalista<br />

caros amigos julho 2009<br />

Emir Sader, colaborador de “Caros<br />

Amigos”, a educadora Carmen<br />

Lozzo, que foi durante 20<br />

anos coordenadora pedagógica<br />

da Infoglobo, discute a utilização<br />

dos jornais como fontes de<br />

trabalhos escolares e de discussões<br />

durante as aulas. Diz Emir<br />

Sader: “um livro para professores,<br />

para alunos, para cidadãos, para gente comum, que <strong>se</strong> espanta diante da<br />

imprensa ou desconfi a profundamente dela”. Ele conclui: “Sem uma leitura<br />

crítica que anali<strong>se</strong>, <strong>se</strong>lecione, relacione e complemente o <strong>se</strong>ntido do volume<br />

de informações da mídia escrita, a escola, como instrumento educativo<br />

e transformador, deixa de existir”.<br />

O mais famoso livro de ficção sobre a fome, o romance literalmente<br />

chamado “Fome”, do escritor norueguês Knut Hamsun (1859-<br />

1952), Prêmio Nobel de 1920, foi relançado, na também famosa tradução do<br />

grande poeta Carlos Drummond de Andrade, pela Geração Editorial. Passado<br />

na <strong>se</strong>gunda metade do século 19, Hamsun <strong>se</strong> ba<strong>se</strong>ou em sua própria experiência<br />

de vida, de escritor nascido em família pobre, que passava fome quando<br />

não con<strong>se</strong>guia realizar pequenos <strong>se</strong>rviços, <strong>se</strong>ja como trabalhador braçal,<br />

<strong>se</strong>ja como articulista ocasional da imprensa de Cristiânia, nome que tinha<br />

na época a capital da Noruega, depois rebatizada como Oslo.<br />

Es<strong>se</strong> lançamento, além de sua pungência clássica e da descrição<br />

comovente e chocante de o que é passar fome, experiência de tantos<br />

brasileiros e de tantas pessoas no mundo ainda hoje, é tanto mais oportuno<br />

na atual situação de renascimento do fascismo em meio a uma nova<br />

cri<strong>se</strong> econômica estrutural do capitalismo internacional. Pois a vida de Hamsun,<br />

com toda a sua visão de verdadeiro proletário, é uma advertência:<br />

sua solidariedade aos pobres e aos de<strong>se</strong>mpregados dos anos 1930 o levou<br />

a aderir ao nazismo e a saudar a ocupação de <strong>se</strong>u país pela Alemanha de<br />

Hitler. Ele morreu em 1952, <strong>se</strong>m <strong>se</strong> ter arrependido,<br />

mesmo depois de ter sido preso<br />

e dado como louco no pós-guerra. Afi nal o<br />

fascismo está renascendo hoje na Europa,<br />

em especial nos paí<strong>se</strong>s ex-comunistas – e é<br />

preciso levar muito a sério o <strong>se</strong>u apelo popular,<br />

como solução bárbara para situações<br />

de barbarismo.<br />

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor<br />

do romance-ensaio O Mundo como Obra de<br />

Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela,<br />

e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros<br />

para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-<br />

040, São Paulo-SP.


As novas regras de publicidade impedem que pessoas consideradas celebridades<br />

façam propaganda de remédios vendidos <strong>se</strong>m receita. É o mínimo de defesa<br />

dos cidadãos que <strong>se</strong> pode estabelecer. Se coloca em questão, pela primeira vez, uma<br />

das expressões mais instrumentalizadoras de personagens tornados famosos pela mídia,<br />

para vender qualquer tipo de produto.<br />

Me lembro perfeitamente das publicidades milionárias do governo FHC<br />

para privatizar a Vale do Rio Doce, feitas por Raul Cortez. Um artista que conquistou<br />

fama por <strong>se</strong>u meritório trabalho no teatro e por um muito menos em telenovelas<br />

da Globo, <strong>se</strong> valia da empatia com sua imagem, para vender a privatização da maior<br />

empresa do <strong>se</strong>u ramo no mundo, com argumentos que <strong>se</strong> revelaram totalmente falazes<br />

com o passar do tempo.<br />

Da mesma forma outros artistas ou esportistas vendem, a preço de<br />

ouro, suas imagens, para promover a comercialização de mortadelas, apartamentos,<br />

carros, bancos, cervejas, entre tantas outras mercadorias. O que tem a ver a imagem<br />

de cada um deles com os produtos que anunciam? Não são nem <strong>se</strong>quer suas preferências<br />

pessoais. Veja-<strong>se</strong> como Zeca Pagodinho anunciou uma cerveja que <strong>se</strong> conhecia<br />

não <strong>se</strong>r da sua preferência, mas que lhe pagou mais. Depois voltou àquela que prefere,<br />

não por ter mudado de marca, mas por uma oferta publicitária maior.<br />

Em vários paí<strong>se</strong>s escandinavos é proibida qualquer publicidade nos<br />

horários prioritários das crianças verem televisão, por <strong>se</strong> considerar que elas são excessivamente<br />

frágeis, indefesas, diante da agressividade das ofertas das mercadorias<br />

que lhes são oferecidas pela televisão. Enquanto que o mercado deita e rola em cima<br />

das crianças, um nicho de mercado bombardeado com comidas, roupas, celulares, entre<br />

tantas outras coisas.<br />

A mercantilização da vida <strong>se</strong> propaga através da publicidade, veiculada<br />

de forma privilegiada pela televisão. Vale tudo para vender. Um conhecido publicitário<br />

brasileiro dis<strong>se</strong>, com toda sinceridade, que a publicidade não tem ética. Dêem-me<br />

um produto e eu encontrarei a fórmula de dizer que é bom para as pessoas,<br />

que vale a pena comprá-lo. O sucesso de vendas de um produto não está na aceitação<br />

das pessoas, no reconhecimento das suas qualidades, mas no mérito das campanhas<br />

que o promovem. Da mesma forma que <strong>se</strong> diz que um processo na Justiça não<br />

é ganho por quem é inocente, mas por quem dispõe do melhor advogado. Isso <strong>se</strong> estende<br />

às eleições, em que os marqueteiros passaram a <strong>se</strong>r mais importantes do que<br />

as plataformas que os candidatos defendem.<br />

O marketing, a publicidade, são expressões da concepção de mundo que<br />

buscar mercantilizar a tudo, que trata de que tudo tenha preço, tudo <strong>se</strong> venda, tudo<br />

<strong>se</strong> compre, da visão da sociedade como uma espécie de shopping-center, da vitória<br />

do mercado contra o direito. Democratizar é desmercantilizar, é afirmar direitos e esfera<br />

pública contra o reino do mercado e do marketing.<br />

Emir Sader é cientista político.<br />

Emir Sader<br />

ÉTICA CONTRA A<br />

PuBliCidade<br />

sugestões de leitura<br />

FORÇA DE TRABALHO E TECNOLOGIA NO BRASIL<br />

Marcio Pochmann<br />

Editora Revan<br />

O VOO DE MINERVA<br />

Antonio Carlos Mazzeo<br />

Boitempo Editorial<br />

OS DESAFIOS DAS EMANCIPAÇÕES EM<br />

UM CONTEXTO MILITARIZADO<br />

Ana Esther Ceceña (org.)<br />

Editora Expressão Popular<br />

C<br />

M<br />

Y<br />

CM<br />

MY<br />

CY<br />

CMY<br />

K<br />

junho 2009 caros amigos<br />

45


SAC CAIXA<br />

Informações, reclamações, sugestões e elogios<br />

0800 726 0101<br />

Para pessoas com deficiência auditiva<br />

0800 726 2492<br />

Ouvidoria<br />

0800 725 7474<br />

Tudo que acontece aqui<br />

nasce na sua cabeça.<br />

Chegou a hora de inscrever o <strong>se</strong>u projeto cultural para receber o patrocínio da CAIXA em<br />

2010. Os editais com todas as informações para elaboração e inscrição de projetos já estão<br />

no site da CAIXA. Aces<strong>se</strong> e inscreva-<strong>se</strong> já. A CAIXA quer que você faça parte des<strong>se</strong> show.<br />

Editais – Festivais de Teatro e Dança | Programa de Apoio ao Artesanato Brasileiro |<br />

Ocupação dos Espaços - CAIXA Cultural<br />

Período de inscrição – 8 de junho a 7 de agosto de 2009<br />

Aces<strong>se</strong> o site<br />

caixa.gov.br/caixacultural

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