Ficheiro PDF (162 Kb) - Câmara Municipal de Manteigas
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Nem o primeiro dia<br />
<strong>de</strong> caça era senhor <strong>de</strong><br />
conseguir acrescentar ponta<br />
<strong>de</strong> nervo à calma inglesa do<br />
João Pedro Valbom, <strong>de</strong><br />
vonta<strong>de</strong> surda às lamúrias<br />
do perdigueiro viciado,<br />
posto aos uivos lancinantes,<br />
como se houvesse morte <strong>de</strong><br />
gente, noite escuro, mal<br />
escutara na rua o frenesim<br />
<strong>de</strong> cães e gente apressada<br />
por fogachar.<br />
Saiu <strong>de</strong>pois do mata-<br />
-bicho e do orvalho amortecido,<br />
atrás dos novos que<br />
abalaram antes do nascer<br />
do sol. Não vou convosco,<br />
rapazes, era o que faltava. Voais e eu gosto da caça, à minha<br />
maneira… quem já não tem pernas… caça com manha. Lá vos<br />
apanho, não per<strong>de</strong>is pela <strong>de</strong>mora! Se verá quem <strong>de</strong>pendura e<br />
quem chega com a cal<strong>de</strong>ira entre pernas…<br />
Procurou a caça on<strong>de</strong> o espavento dos rapazes a teria<br />
semeado, pacientemente a pisocar sem pressa escusada,<br />
bordinhos <strong>de</strong> monte, socalcos, mura<strong>de</strong>lhas <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>, atento ao<br />
perdigueiro. Deixava buscar o cão à vonta<strong>de</strong> e mais à frente, não<br />
tardou muito, o Tua rabeara, como quem dizia que aqui há coisa.<br />
Focinho no chão, lento, porque o era <strong>de</strong> sangue na função, foi<br />
avançando espera estudada, em leque, volta aqui, torna ali, mais<br />
um cibinho até estacar direito como um fuso. Olhou o dono com<br />
cara estúpida a mor<strong>de</strong>r as beiçarras generosas. Faltou<br />
rosnar…está ali, põe-te fino que agora é contigo! Rompe, Tua. O<br />
cão marrado, à voz do dono, pulou <strong>de</strong> pronto e a perdiz gritou<br />
ReChéChéChé esborralhando cirolhada. Apontada, a dar o flanco<br />
ruivo, pum, caiu <strong>de</strong>samparada como se uma re<strong>de</strong> a apanhasse. E<br />
o Tua antes que o diabo esfregasse um olho, apareceu orgulhoso,<br />
prestar a vassalagem trazendo-lhe à mão o petisco que mais<br />
adorava.<br />
Mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> comprar arma mo<strong>de</strong>rna, o João Pedro só<br />
dava um tiro. Uma questão <strong>de</strong> respeito que poucos enten<strong>de</strong>riam…<br />
se não lhe acertava, estavam quites, tinha sido ela mais esperta,<br />
paciência, ficava para a próxima e quem andava por lá no campo,<br />
ouvindo pum e <strong>de</strong>pois mais à frente pum e mais dali a um bocado<br />
pum, mandava berros selvagens. Carai <strong>de</strong> home, aquilo sim, é<br />
que é um caçador. Por cada sacha<strong>de</strong>la sua minhoca. Brrrrrrrr…<br />
Brrrrr… Fugi perdizes que o Sr. João Pedro é um <strong>de</strong>sinço.<br />
Não nascera quem o batesse na arte <strong>de</strong> atirar, na<br />
complicação entre o olho que vê a caça, a mão que corre a arma a<br />
ultrapassar o vulto e o <strong>de</strong>do que puxa o gatilho a tempo <strong>de</strong> o<br />
chumbo ir buscar longe.<br />
No caminho cruzou-se com os lapouços admirados.<br />
Tinham calcorreado as serranias sem tempo <strong>de</strong> ver as perdizes<br />
levantarem-se para se irem esbarrar com o matador. On<strong>de</strong> as<br />
comprou Sr. João Pedro? Pois, pois dizia-lhes com prosápia,<br />
mostrando o cinto recheado, a fazer nascer inveja, perdigões reais<br />
que botavam um quilo. Foi a uns rapazes como vós, que matam<br />
6.ª EDIÇÃO CONCURSO LITERÁRIO<br />
PRÉMIO DR. JOÃO ISABEL<br />
GALINHA CHOCA<br />
1.º Classificado - José Fernando Lopes Carrapatoso<br />
muita caça com a garganta. Não sabeis que... a arte do caçar<br />
nunca esteve no piso mas sim no repiso. Aprendi-o à minha custa,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito fazer penar as pernas e… só <strong>de</strong>pois… fui caçador.<br />
Para <strong>de</strong>scobrir caça… homem velho e cão manco… para a<br />
apresunhar… nervo <strong>de</strong> aço e olho <strong>de</strong> lince.<br />
Há coisas que só a ida<strong>de</strong> ensina! Rapazes e cães,<br />
<strong>de</strong>ixaram-no a falar para as estevas, tornando a <strong>de</strong>stroçar monte<br />
pelo termo adiante, roça<strong>de</strong>iras, fazendo zunir as perdizes que<br />
atravessavam a al<strong>de</strong>ia até para lá da ribeira à procura do seu<br />
sossego… Eles tornariam para novas admirações… não as teve<br />
ele também no tempo em que tinha asas nos pés? Deixou vaguear<br />
os olhos pelo termo amarelado à volta das casas <strong>de</strong> xisto, sentado<br />
a fumar um cigarro reconciliado, perdido em lembranças.<br />
Vale da Lagoa crescera no alto dum outeiro bravo, nascida<br />
do esforço inumano <strong>de</strong> homens ru<strong>de</strong>s, avessos a mordomias,<br />
<strong>de</strong>sconhecidos das riquezas vetustas, tirando os do Casal Gran<strong>de</strong>,<br />
noutros tempos. O serro quase disfarçava a gran<strong>de</strong>za triste da<br />
casa senhorial, brasão <strong>de</strong>lido e capela <strong>de</strong>stelhada, que fora<br />
durante séculos, única senhora das gentes pobres e baixas <strong>de</strong><br />
terra preta e funda que <strong>de</strong>saguam a beijar a ribeira.<br />
Do Morgadio, <strong>de</strong>sfeito em terças e retalhos, os Senhores <strong>de</strong><br />
Alva dividiram partes <strong>de</strong>siguais e o resto dos dias em tudo <strong>de</strong> bom<br />
que Deus dava, julgando-se, para sempre, com tempo <strong>de</strong><br />
ensolarar, sem outras exigências que não fosse o mando, mãos<br />
finas sem calos, mesa farta, bebida a preceito, a caça <strong>de</strong> Outubro a<br />
Fevereiro, a pesca para o <strong>de</strong>sfastio. Descansar ao Domingo no<br />
cumprimento das obrigações, agra<strong>de</strong>cer a ventura da terra<br />
prometida, não em Israel, chão amaldiçoado por guerras santas,<br />
mas naquele fim <strong>de</strong> mundo puro e virgem, como o paraíso no<br />
tempo <strong>de</strong> Adão e Eva.<br />
Sobraram <strong>de</strong>serdados, <strong>de</strong> ódios imperdoáveis e o <strong>de</strong>speito<br />
por se acharem merecedores do perpétuo rimanso. Ria-se o diabo<br />
se os visse vergados ao sacho, misturados com bestas no trabalho<br />
do campo e alheios ao fado penurento, continuaram <strong>de</strong> costas<br />
direitas, ven<strong>de</strong>ndo, <strong>de</strong>spachando o melhor, o ruim, a palavra, a<br />
honra, tudo…<br />
Endividados, disputaram-lhes os ossos, cães e credores,<br />
surdos a lamúrias <strong>de</strong> cigarras incompreendidas, sacudindo a<br />
<strong>de</strong>scendência para a capital, revisores, jogadores aventureiros, ou<br />
taberneiros, longe da vergonha <strong>de</strong> alguém os saber filhos <strong>de</strong> algo.<br />
Das letras por cumprir e dívidas, fizera sainete o finado Zé<br />
Valbom. Homem duro e avarento, achando-se ren<strong>de</strong>iro da herança<br />
do padre João, aproveitou o coração <strong>de</strong> ferro forjado no tempo<br />
escravo, comprou dado, terra a eito, aos senhores <strong>de</strong>smiolados<br />
que apostaram viver sem labutar, pelo preço do vício, ensinando o<br />
povo que não era mandamento <strong>de</strong> Deus a terra ficar eternamente a<br />
mando dos mesmos.<br />
Com dinheiro escasso, o velho aumentou por largo até<br />
chegar ao miolo do termo. Pena ser no fim da vida, dizia na<br />
farronca, a bater-se quase <strong>de</strong> igual para igual com os restos dos<br />
fidalgos, na colheita do cereal, do vinho e do azeite.<br />
Não lhes chegara ainda nas terras <strong>de</strong> aluvião, hortas e<br />
prados? Só porque era a última coisa que se vendia. Desse-lhe<br />
Deus uma mão <strong>de</strong> anos, haviam <strong>de</strong> o amargar um dos trinta<br />
gran<strong>de</strong>s do concelho, baixar-lhe a cabeça, tirar-lhe o chapéu, trata-
lo por senhor em troca do <strong>de</strong>sprezo…<br />
Mas viver num casebre <strong>de</strong>sgraçado a cair <strong>de</strong> velho, sendo<br />
rico, era vida? Qual era o mal?… Sítio on<strong>de</strong> caibas… terra que não<br />
saibas… nem vejas e no mais fazer como a formiga, poupar,<br />
entesourar… Era ouvi-lo, velhinho <strong>de</strong> cajata em riste para o seu<br />
João Pedro, apontando a labuta na terra, para que um dia a<br />
merecesse. Levantar temperano antes do galo e dos cães e<br />
abalar. Um dia para a folha <strong>de</strong> baixo, no seguinte para a folha <strong>de</strong><br />
cima, sempre com o mesmo propósito: trabalhar no amanho das<br />
terras, na apanha da azeitona, na ceifa, na vindima. Acudir ao<br />
pastor e ao paquete para que não roubassem nem <strong>de</strong>ssem<br />
prejuízos, fiscalizar abusos dos estranhos. Espitrocar o cereal<br />
grado, se as oliveiras carregavam <strong>de</strong> azeitona, sulfatar as<br />
moléstias das vinhas, compor pare<strong>de</strong>s, plantar renovos. Decidir o<br />
que se havia <strong>de</strong> cultivar ou ficar <strong>de</strong> pousio, on<strong>de</strong> se botava o<br />
estrume e o adubo. Apanhar os frutos do trabalho árduo, para que<br />
o pai o ven<strong>de</strong>sse ao melhor preço, do pão, às batatas e graduras,<br />
do vinho, ao azeite, à cortiça, aos vitelos, a lã e o queijo…<br />
A casa da varanda só a arranjou <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> herdar, o João<br />
Pedro, para o nó com a Eulália, gastando meia fortuna. No rés-dochão,<br />
refizera baixos e arrumos das alfaias, pipas, tulhas,<br />
salgueira do porco, e loja da cria. O piso <strong>de</strong> cima <strong>de</strong>scia até à rua<br />
por umas escaleiras po<strong>de</strong>rosas, que <strong>de</strong>sembocavam na cozinha<br />
aberta, à vista dos escanos que cercavam o lar sem chupão, on<strong>de</strong><br />
sempre havia pouso e caldo para um vindouro esfomeado. O que<br />
não diria, pelo <strong>de</strong>svario, o Zé Valbom, ressuscitando...<br />
No centro, a varanda espraiava-se a todo o comprimento,<br />
guardada por uma parreira sornenta, on<strong>de</strong> se acostumou a<br />
resguardar do sol, o resto da gente na mornice da sesta, dando à<br />
língua no sossego da vida que corria a passos <strong>de</strong> boi.<br />
Começara a chamar-lhe o Sítio do Juízo, o Ama<strong>de</strong>u, sem<br />
um, nomeada ganha <strong>de</strong>pois que per<strong>de</strong>ra um tomate com uma<br />
escorna<strong>de</strong>la <strong>de</strong> uma vaca. Fôra nela que o seu compadre João<br />
Pedro, sem levantar a voz mais do que isto - apontava para a<br />
falanginha larga e disforme do seu polegar direito - se fizera ouvir<br />
mais dos que berravam muito, e por isso o escolhido por todos<br />
para louvador das partilhas, procurado para tira teimas nas<br />
zangas… o regedor da povoação. Não fosse aquele homem <strong>de</strong><br />
Deus, muita sacholada e mortinha teria havido…<br />
Fez-se um homem calmo à custa <strong>de</strong> aturar <strong>de</strong> orelha baixa,<br />
o feitio irascível do pai sem lhe levar a mal. Fino e pon<strong>de</strong>rado, que<br />
só há uma vida, ganhou <strong>de</strong>pois, fama, fora <strong>de</strong> portas, chamado a<br />
resolver os problemas entre as gentes das al<strong>de</strong>ias, nas questões<br />
dos marcos, das águas para regar, zangas das partilhas, o homem<br />
certo para tentar fazer chegar às boas os <strong>de</strong>savindos, no tempo<br />
em que se ia à Vila só nas feiras nomeadas, os advogados eram<br />
bichos carraçosos, malqueridos e o tribunal sítio <strong>de</strong> fugir.<br />
Ainda agora, que os tempos eram outros, antes <strong>de</strong> uma<br />
fouçada que fizesse correr o ver<strong>de</strong>, os Borges chamaram-no e não<br />
havia gente mais intiquenta...<br />
Ouviu Hero<strong>de</strong>s, chamou à razão Pilatos e a sua palavra<br />
justa foi a última. Não quiseram…virou costas, a passo contado.<br />
Não vá Sr. João Pedro que ainda há aqui uma <strong>de</strong>sgraça.<br />
Mas o juiz inflexível não se <strong>de</strong>tinha. Agora só falo no que é meu.<br />
Acabado <strong>de</strong> se sentar ao lume… Sr. João Pedro, oh Sr. João<br />
Pedro, não nos <strong>de</strong>ixe. Subi para a varanda, mas <strong>de</strong>vagar.<br />
Resmungavam, cortava rápido a contenda. Alto aí! Nesta casa em<br />
dias <strong>de</strong> nunca se ouviu falar alto, ralhar… quereis falar baixinho?<br />
Sentai-vos! Se não… são horas <strong>de</strong> cear…<br />
Submissos tornaram às boas, bichanavam, a mor<strong>de</strong>r nos<br />
silêncios a raiva das discordâncias:<br />
- Atão se antes do mou pai morrer, que Deus o tenha em bô<br />
<strong>de</strong>scanso me <strong>de</strong>u a horta, como quer este alma do diabo que entre<br />
na partilha…<br />
- Mas alguém o ouviu, home e mesmo que o ouvisse é<br />
porque estava endrominado…<br />
- Rapazes, se só sois dois, será assim tão difícil chegar a<br />
um acordo <strong>de</strong> irmãos? Queres a horta, Jorge, então para o Afonso<br />
tem que ir o lameiro da erva.<br />
Mediava, aconselhava, com uma calma enervante. Melhor,<br />
ainda, fazeis duas sortes sem lhe por os nomes… ao que sair a<br />
palhinha…<br />
Ficou o Jorge com uma sorte e o Afonso com a outra.<br />
Parecendo-lhe acomodados trocou as voltas: Antes <strong>de</strong> escolher,<br />
pensar bem. Nenhum <strong>de</strong> vós está prejudicado com o que lhe saiu?<br />
Já vos aviso que amanhã acordais a dizer que o outro ficou<br />
melhor…<br />
É esse o melhor sinal <strong>de</strong> que as partilhas estão bem feitas…<br />
O seu caso com o Luís tinha que o resolver com manha <strong>de</strong><br />
moleiro para fazer chegar a água a contento das mós, não fosse,<br />
por cima, o moço afilhado, filho do falecido compadre Ama<strong>de</strong>u…<br />
O João Pedro andava para lhe falar, mal tinha arrefecido ao<br />
rapaz, o pai <strong>de</strong>sgraçado. Pela calada da noite, <strong>de</strong>u-lhe ao Luís,<br />
para mudar os marcos duma vida, ganhar afinal pouco mais que as<br />
pazadas <strong>de</strong> terra que o haveriam <strong>de</strong> cobrir rápido, às mãos<br />
nervosas <strong>de</strong> um mais cioso, que com uma cochilada o mandasse<br />
fazer tijolo, junto do pai se não arrepiasse caminho a tempo.<br />
Começou com uns e outros a queixarem-se e por fim chegara a vez<br />
<strong>de</strong> pardalar até com os Valbom.<br />
Azar do João Pedro ter que o saber em dia <strong>de</strong> caça, mal<br />
<strong>de</strong>ra gosto ao <strong>de</strong>do, no meio das montinas, entretido com o Tua à<br />
cata das perdizes, <strong>de</strong>sencantado pelo criado em gran<strong>de</strong> alvoroço,<br />
morto por lhe acabar com o vício.<br />
Àquele danado, vi-o com estes olhos que a terra há-<strong>de</strong><br />
comer, a mexer nos nossos marcos, já roubou para mais <strong>de</strong> duas<br />
escanchas a todo o comprimento da leira <strong>de</strong> trás das eiras. Venha<br />
daí, rápido! Querendo, ainda o apanhamos com a boca na botija.<br />
Dê-lhe um tiro, coza-lhe os fundilhos, que lhe fique <strong>de</strong> emenda… é<br />
o que merece o catancho do diabo. Pobre Ti Ama<strong>de</strong>u, não merecia<br />
tal filho… garantido anda aos tombos lá para cima… a vergonha se<br />
fosse vivo…<br />
Tiago, bico calado que não quero berrarias, <strong>de</strong>spachou-o<br />
com a mão semicerrada apontando com o indicador para a terra,<br />
mas já não lhe soube a nada a caça e <strong>de</strong>cidiu-se a ir a tempo da<br />
missa, por muito que o Tua o chamasse com o frenesim <strong>de</strong> ter já<br />
abocanhado três perdigões como galos.<br />
Depois da missa esperou o Luís no largo, fugia-lhe <strong>de</strong> olhos<br />
baixos, à procura <strong>de</strong> passar longe das boas horas. Luís não vás<br />
com tanta pressa! Quero abrir uma pipa, comer um cibo <strong>de</strong><br />
presunto velho e sem companhia não se me engole. Quisesses<br />
íamos os dois. Não é boa hora? Então porque não há-<strong>de</strong> ser,<br />
homem? Pegou-lhe num braço paternal e levou-o ansioso. Na<br />
a<strong>de</strong>ga esperava-os a mesa comprida com uma toalha branca <strong>de</strong><br />
quadrados vermelhos, em frente <strong>de</strong> um pão centeio, partido a<br />
meta<strong>de</strong>, uma talha pequena com azeitonas e um queijo <strong>de</strong> ovelha<br />
já encertado. Parte presunto sem medo, enquanto tiro o vinho da<br />
pipa para uma caneca. Encontraste osso? Encerta o outro. O Luís<br />
com tragos violentos <strong>de</strong>spejava copos, vendo o João Pedro aos<br />
golinhos em bochechos a saborear. Devagar que as coisas só<br />
sabem bem na boca, enchia-lho outra vez e dava um estalo com a<br />
língua. Rica pinga que nosso senhor nos dá. Não há nada que o<br />
pague… Carrega-lhe ao presunto que o vinho sozinho faz mal…<br />
partiu cô<strong>de</strong>as <strong>de</strong> pão e toras <strong>de</strong> presunto que comeram a<br />
ensimesmar…<br />
Em vida do teu pai nunca houve um momento em que<br />
tivéssemos uma contenda, já eras tu quem lhe fazia a lavoura e<br />
que me lembre nunca o ouvi queixar-se que lhe mexessem nos<br />
marcos, nas terras... E se quando se finou o teu pai, que Deus o<br />
tenha em <strong>de</strong>scanso, foi a mim que chamastes para vos ajudar a<br />
fazer as partilhas <strong>de</strong> certo seria pela amiza<strong>de</strong> porque conhecer<br />
haveria muita gente que sabia das vossas terras. Se sempre fui<br />
unha e carne com o pai não me vou zangar com o filho que lhe<br />
herdou o mesmo sangue, que vi crescer <strong>de</strong> garoto com os<br />
fundilhos das calças arreganhados no cu. Pôs-lhe uma mão em<br />
cima do braço e olhou-o serenamente. Entraste-me na terra <strong>de</strong> trás<br />
das eiras e mudaste os marcos, durante a noite como se o
mafarrico te tivesse enfeitiçado. Quando morreres, chegam três<br />
pazadas <strong>de</strong>la em cima e só te resta o nome para a lembrança dos<br />
que ficam. Como queres que te fiquem a chamar, como ao teu pai<br />
ou como o gabiru? Ofendo-te? Não sou do teu parecer… só<br />
ofen<strong>de</strong> quem mente e eu não minto bem o sabes!<br />
Queres as duas escanchas a mais <strong>de</strong> terra <strong>de</strong> trás das<br />
eiras? Eu dou-tas. Mas tens que mas pedir. Per<strong>de</strong>s a cara? Olha<br />
que só a per<strong>de</strong> quem faz o mal e não quem se engana, porque se<br />
apressou a lavrar o que era seu, <strong>de</strong> noite à luz do luar. Ou a noite<br />
não dará para muitos enganos? Se te perdoo? O perdão está<br />
dado. É só seres um homem direito como o teu pai, toda a vida,<br />
comigo e com os outros. Abraçaram-se, pingotos <strong>de</strong> alegria.<br />
Seria por reconhecimento? O Luís ia-se, voltou atrás,<br />
acabando por arranjar jeito <strong>de</strong> avisar o João Pedro, a medo...<br />
Ouvira chamar ao Henrique, nas costas, o enjeitado, um dia<br />
chamam-lho à cara. Alguns dizem que se o senhor se cala é<br />
porque lhe pesará na consciência por ser seu filho <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e ter<br />
medo à tia Eulália. Se não tivesse ouvido a verda<strong>de</strong> ao meu pai e<br />
não o conhecesse como estas mãos que a terra há-<strong>de</strong> mandicar,<br />
também eu acreditava que fôra o Sr. João Pedro a arranjar o zorro<br />
à Henriqueta, Deus a tenha em bô <strong>de</strong>scanso.<br />
Tento na língua que te levo a mal, não te perdoo essa<br />
ofensa, que repitas um pecado, o maior <strong>de</strong> todos. Criei-a <strong>de</strong> garota<br />
como se fosse minha filha. Só mentes maldosas e almas ruins é<br />
que o po<strong>de</strong>rão dizer…<br />
Tinha passado da hora <strong>de</strong> resolver com a Eulália as contas<br />
antigas, <strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r aos seus <strong>de</strong>smaios! Raios do tempo que mesmo<br />
a passo <strong>de</strong> besta mansa, voara, chegando como um cuco a<br />
agourar o pagamento <strong>de</strong> uma promessa.<br />
Castigo mais imerecido, <strong>de</strong>senterrar o <strong>de</strong>stino<br />
amaldiçoado da Henriqueta, quando lhe <strong>de</strong>scobriram a virginda<strong>de</strong><br />
perdida, nos olhos gulosos, nas saias rasgadas e manchadas <strong>de</strong><br />
terra húmida, seduzida por um vindouro, encantada pela música<br />
que lhe saia da gaita <strong>de</strong> beiços, o sorriso que lhe segredava<br />
mistérios, o brilho dos olhos que a aqueciam e molhavam com<br />
propostas <strong>de</strong> aventuras…<br />
Oferecera-se ao bandido para que a <strong>de</strong>svirgasse, em duas<br />
penadas, no chão frio da a<strong>de</strong>ga entre duas pipas, no mesmo<br />
instante em que o chamou para que matassem a se<strong>de</strong> com vinho e<br />
amor…<br />
Pagou-lhes, o <strong>de</strong>sgraçado do pobre das portas, a casa<br />
aberta e a barriga cheia, esfumando-se tão silencioso como tinha<br />
chegado, <strong>de</strong>ixando-a só e a promessa daquele filho.<br />
O João Pedro, mal mordiscara o almoço, tão pouco contou<br />
à Eulália a conversa com o Luís… ao Henrique as façanhas do Tua<br />
e as <strong>de</strong>sventuras da rapaziada ciumenta…<br />
Olhava-os estranho, resolvido a <strong>de</strong>safiar a teimosia da<br />
mulher. Henrique queres vir comigo, passear a espingarda,<br />
levamos a cria ao lameiro e damos uma ruada às pernas para ver<br />
se matamos uma perdiz? Não, hoje não vai! Quero-o junto <strong>de</strong> mim,<br />
preciso <strong>de</strong>le aqui. A Eulália, a adivinhar tragédias, apertou o<br />
rapazelho com modos resolutos. Deixou-a estar, mas não lhe<br />
aten<strong>de</strong>u a súplica e como ela continuasse arrochada ao garoto,<br />
insistiu ainda mais mansamente, confiando com calma nervosa os<br />
bigo<strong>de</strong>s, aparados <strong>de</strong> fresco, junto com o cabelo ralo, no baixo do<br />
Armindo Barbeiro. Olha que tem que ser… Não queres vir<br />
também? Os três juntos… como a sagrada família.<br />
A Eulália seguira-os no encalce <strong>de</strong>sconfiado, atrás da<br />
boiada, avançando o vagar em passo <strong>de</strong>sconchavado, colada à<br />
Boneca, costumeira <strong>de</strong> ficar-se a mirar sabe Deus o quê, à espera<br />
<strong>de</strong> lhe sentir a verdasca assobiar ao cu, empurrando-lhe a pressa,<br />
para os tanques do meio do povo, em passo <strong>de</strong> procissão, on<strong>de</strong> o<br />
João Pedro esperava em assobios trinados do namoro do melro,<br />
que a cria fartasse o enorme focinho à tona da água do sorvedouro<br />
até encherem o bandulho. Seguiram, pachorrentamente pagando<br />
a fartura com mais bostas e outra mijarrada, na direcção do<br />
lameiro da canelha <strong>de</strong> trás da igreja, à procura da erva ver<strong>de</strong>. O<br />
Henrique mirava-se no feitio do pai, que mandava como se<br />
sentisse obrigação <strong>de</strong> pedir, quando lhe bastava um olhar para<br />
todos voarem a fazer-lhe qualquer vonta<strong>de</strong>. Havia memória <strong>de</strong><br />
alguém que lhe tivesse recusado o que fosse? Até os animais…<br />
Era uma arte que gostava <strong>de</strong> conseguir apren<strong>de</strong>r, ensinar leões<br />
com coração <strong>de</strong> passarinhos, a aceitar o jugo a bem. Sem outro<br />
entendimento e com tanta força se ficavam malinas e a usavam<br />
mal medida, nem <strong>de</strong>z homens para as segurar. Não era obriga-los,<br />
vencidos pelo medo, à força do ferrão aguilhada cravejado nos<br />
quartos dos animais ou das vergastadas da vara a estourarem no<br />
lombo a castigarem a teimosia, que isso qualquer um fazia. Mas<br />
faze-lo com tanto jeito que ficassem mansas como a terra e com<br />
tanta manha como tem um inocente acabado <strong>de</strong> abrir os olhos para<br />
o mundo.<br />
- Para isso não há ninguém melhor que o Senhor, pois não?<br />
- Ainda há gente por essas bandas, mas cada vez menos,<br />
até que chegará o dia em que só vai haver máquinas para a labuta<br />
nos campos e ninguém irá precisar <strong>de</strong> amansar uma junta <strong>de</strong> vacas<br />
ou burras. Mas até lá, no apren<strong>de</strong>r é que está o ganho…<br />
O Henrique agarrava-se, encostando a cara às costas,<br />
junto ao sovaco <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saía o cheiro do homem, mistura <strong>de</strong> suor,<br />
terra e força, símbolo da eterna segurança que o pai lhe transmitia.<br />
Ao chegar à entrada do lameiro, umas boas escanchas à<br />
frente da mãe, esperaram-na cada um com sua forcada feita <strong>de</strong><br />
pau <strong>de</strong> freixo que <strong>de</strong>ixavam guardada atrás da pare<strong>de</strong>, para tirar os<br />
paus <strong>de</strong> escrabunheiro e silvas que serviam <strong>de</strong> taipal, arrastandoas.<br />
Repuseram o taipal improvisado e só então, cria acomodada, a<br />
pastar e trabalho feito, o João Pedro sentou-se na pare<strong>de</strong> dos<br />
freixos, chamando-os a esten<strong>de</strong>r o pé:<br />
- Põe o teu pé aqui em cima do meu para subires.<br />
- Aju<strong>de</strong> antes a mãe que eu não preciso… subo bem<br />
sozinho.<br />
- Não acreditamos.<br />
- Então vejam… E zás <strong>de</strong> uma vez dando um pulo <strong>de</strong> forma<br />
a chegar com as mãos ao cimo da pare<strong>de</strong> e <strong>de</strong>pois, aproveitando o<br />
lanço para se impulsionar para cima, voou.<br />
A Eulália assustou-se quando o João Pedro lhe chamou a<br />
mão, pondo-a entre as suas fortes e calejadas que já tinham<br />
apresunhado muito arado e charrua a fazer força atrás dos bois, a<br />
lavrar, a atravessar e a gradar terras <strong>de</strong> pão, hortas e olivais; mas<br />
que também tinham a finura para premir com precisão certa o<br />
gatilho da caça<strong>de</strong>ira ou para transmitir confiança da palavra dada<br />
num aperto forte ou no amor. Distraia-se em festas <strong>de</strong>sajeitadas <strong>de</strong><br />
arrepia pêlo como se fosse ao cão <strong>de</strong> caça. Falava estranhamente<br />
alto, olhando por cima dos freixos e olmos expectantes, fugindo<br />
aos seus olhos suplicantes com conversas estranhas…<br />
- Sabes <strong>de</strong> quem é filha a Boneca? - apontou para a vitela<br />
distraída da trunfa ruiva. A tua mãe também não, aposto! É da<br />
Marela! Arrebolou com uma joga na direcção certeira da vaca que<br />
ao sentir bater-lhe suavemente no lombo como se fosse uma<br />
carícia, os olhou a subir o imponente e louro focinho enquanto<br />
continuava a torcer as queixadas soberbas, rangendo<br />
sistematicamente os <strong>de</strong>ntes possantes e botando a língua preta <strong>de</strong><br />
fora a misturar a erva na boca. Deitou-lhes olhos doces e mansos,<br />
que só aqueles animais têm, mesmo na labuta das lavras, ou no<br />
fanico com a carga a mais que tinham que arrastar pelos carreiros<br />
acima.<br />
A Boneca não sabia nem lhe interessava. Mandava-lho a<br />
natureza, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> procurar a mãe para ser uma entre as outras da<br />
manada. Porque não chamar-lhe família? Acontecia o mesmo a<br />
todos os bichos, os <strong>de</strong> casa e os do monte, dos cães às<br />
andorinhas, dos lobos às galinhas. Depois do <strong>de</strong>smame, a mãe<br />
impontava as crias à cata <strong>de</strong> secar as tetas do leite, preparar-se<br />
para ser chegada <strong>de</strong> novo ao touro e alcançar novos filhos.<br />
O João Pedro ouvira ao doutor António que, nos tempos <strong>de</strong><br />
Abraão, também com os homens fora assim. Viviam em tribo, a<br />
trabalhar para o mesmo monte, andando <strong>de</strong> um lado para o outro, a<br />
colher o que a terra dava e a caçar para o mesmo saco. Como<br />
fazem agora os caçadores <strong>de</strong> coelho, para que a inveja não<br />
estrague a caçada. Quando as tribos se ren<strong>de</strong>ram a uma terra
certa, tudo mudou, cada um por si. Arranjaram terras tantas<br />
quanto pu<strong>de</strong>ssem. Marcaram os prados para os gados. Da mais<br />
pequena al<strong>de</strong>ia à maior cida<strong>de</strong>, cada família trabalhava para os<br />
filhos, <strong>de</strong> sangue ou <strong>de</strong> criação… Por isso o nosso amor por ti,<br />
Henrique. Haja o que houver serás sempre nosso, aquele a quem<br />
queremos mais do que a vida, o que nos há-<strong>de</strong> enterrar e herdar.<br />
Olhou-o distraído e beijou-o <strong>de</strong> fugida, com pudor, à<br />
procura das palavras que nunca lhe faltaram nos piores<br />
momentos. Porque teria parado um segundo na mulher que<br />
abanava a cabeça nervosa? Hesitou… calou-se e ao resto da<br />
verda<strong>de</strong>, o pedido <strong>de</strong> perdão por ter <strong>de</strong>morado tanto tempo a<br />
revelar, como se fosse um pecado terem-no criado como filho<br />
<strong>de</strong>les. Como consentir que a Eulália o abraçasse, eternamente<br />
grata, se sentia na pele a agrura da dor amordaçada e via na cara<br />
<strong>de</strong>sfigurada da mulher um louvor à sua cobardice?<br />
Deixaram ir o Henrique para brinca<strong>de</strong>iras inocentes,<br />
<strong>de</strong>spedindo-se com voz do cantar <strong>de</strong> uma carriça alegre, a<br />
anunciar o calor suave dos bons dias: Já posso ir agora ou ainda<br />
vamos à caça? Botem-me a sua bênção, correra a beijar-lhes a<br />
mão, sentindo-lhes o sim, levando-os <strong>de</strong> rojo para um pesa<strong>de</strong>lo…<br />
continuar a escon<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>ixando à vista o rabo <strong>de</strong> fora, hã, Eulália,<br />
andar neste <strong>de</strong>satino… que alguém lhe diga, que o saiba por<br />
outros? Avisara o povo que não queria que o rapaz o soubesse por<br />
ninguém… mas seriam <strong>de</strong> fiar tantas noites compridas… sentados<br />
ao ar do lar… alguma coisa teria que se dizer, as mais das vezes,<br />
lero lero a falar dos outros… das <strong>de</strong>sgraças alheias…<br />
Ele não é meu filho, homem <strong>de</strong> Deus? De criação, mas o<br />
Henrique teve um pai que o fez e uma mãe que o pariu. Vai ter que<br />
o saber mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>, antes que a ferida seja tão funda<br />
que nunca <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> sangrar. Por alma <strong>de</strong> quem lá tens, homem...<br />
<strong>de</strong>ixa ao meu cuidado, jurou-lho que daquela vez não tardava a<br />
falar, <strong>de</strong>ixou-a pensar que lhe conseguira escon<strong>de</strong>r a esperança<br />
<strong>de</strong> que o rapaz nunca soubesse…<br />
Esperaram-no à luz, como ao encoberto, mas, passado<br />
meio dia <strong>de</strong>sesperado, o corpo da <strong>de</strong>sinfeliz Henriqueta<br />
entregava-se na luta com o leito amortalhado, às mãos rendidas<br />
da Cassilda parteira, sem saber o que fazer mais… à vista dos<br />
por<strong>de</strong>ntros escoados em sangue, sem remissão nem cura.<br />
Aguenta que o médico vem aí!<br />
Não mo <strong>de</strong>ixe só no mundo, madrinha que o Anjinho não<br />
tem mais ninguém. Cala-te com o agouro… és tu quem o vai criar,<br />
maluquinha. Não mo largue ao esperem que ele não tem culpa da<br />
minha perdição. Não gostaste <strong>de</strong> o fazer? Não sofrem todas o<br />
mesmo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o tempo <strong>de</strong> Adão - mentiu-lhe - Não tarda o doutor<br />
António e já te alivias, vais ver. Estás aqui estás pronta para outra,<br />
como nova. Ai madrinha… morro … rebento, levara-lhe a mão<br />
<strong>de</strong>sesperada às dores manchadas <strong>de</strong> vermelho agoniento,<br />
apertou, apertou, até só restar a força que lhe libertou a alma. Um<br />
ronco e <strong>de</strong>spedira - se <strong>de</strong>ste mundo, que a obrigara a pagar o<br />
gosto efémero, cumprindo todas as penas a tecer no além. A<br />
Eulália ficou certa que a paz repentina daquele olhar, <strong>de</strong>scortinava<br />
já as primeiras colinas douradas do céu, mas quis sossega-la. Vou<br />
tomar conta do teu filho como se fosse meu, nunca será um<br />
enjeitadinho <strong>de</strong> Deus… Não fui sempre uma mãe para ti, filha da<br />
minha vida? Vai ser o filho que Deus não me <strong>de</strong>u…<br />
Chorara <strong>de</strong>svairadamente. Dai-mo cá, o meu Henrique… é<br />
assim que se há-<strong>de</strong> chamar! Criara-o como feito e parido. O Seu<br />
único filho! Como consentir que lho tirassem?<br />
Tanto quis <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o pintainho dos gaviões que o pôs na<br />
boca do primeiro raposeco. À falta <strong>de</strong> outros, também a Cassilda<br />
contara aos filhos esfomeados, num dia <strong>de</strong> míngua, só com fartura<br />
<strong>de</strong> água da bica na bilha <strong>de</strong> barro… lembrou-se da fartura...<br />
- Ainda se vós tivesses a sorte do Henriquinho.<br />
- Porquê minha mãe?<br />
- Atão não é tratado pelo Sr. João Pedro e a Sr.ª Eulália<br />
como se fosse filho <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> que ninguém diferencia.<br />
- Homessa, atão ele não é filho <strong>de</strong>les dos <strong>de</strong> certo?<br />
- Livrai-vos <strong>de</strong> o dizer, levais uma zepelina que só visto.<br />
- Eu arda mudo e ceguinho se da minha boca sair uma<br />
palavrinha...<br />
Quebra <strong>de</strong> juras… mesmo das feitas a pés juntos, não<br />
cegavam nem calavam e se não fora à primeira, nem à segunda,<br />
nem à terceira, o cântaro acabara em cacos, com a força <strong>de</strong> uma<br />
pedrada bem assente na peitaça do seu rebento penugento pardal<br />
dos novos. Nada <strong>de</strong> mais inocente do que um jogo <strong>de</strong> bola, o rou<br />
rou, a apanha… uma rasteira maldosa, pontapés, murros e<br />
<strong>de</strong>ntadas, encontrões, lambadas e a raiva <strong>de</strong> querer acertar on<strong>de</strong><br />
mais po<strong>de</strong>ria doer, mesmo que à custa <strong>de</strong> uma saronda malhada<br />
em palha centeia.<br />
- Desaparece-me da frente enjeitado.<br />
- Enjeitado eu, burro <strong>de</strong> merda? Enjeitado és tu, que és um<br />
piolhoso.<br />
- Piolhos po<strong>de</strong>rei ter com fartura, mas que saiba tenho pai e<br />
mãe… tu não tens ninguém, estás por esmola na casa do Sr. João<br />
Pedro.<br />
- Mentira. Burro… Aldrabão!<br />
- Criaram-te por carida<strong>de</strong>, enjeitado! Pergunta à minha mãe<br />
que te viu parir...<br />
Galgou as escadas mansas do fim da tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> Domingo,<br />
como se trouxesse uma alcateia no alcance, a gaitar - Mãe, minha<br />
mãe - os <strong>de</strong>ntes em danças <strong>de</strong>sencontradas, parecendo canas<br />
frechas fustigadas por ventos inclementes e nascentes grossas <strong>de</strong><br />
moncas a <strong>de</strong>pendurar-se no queixo… O que tens, filho da minha<br />
vida? Apalpou-o à cata <strong>de</strong> osso partido, procurou-lhe feridas, roupa<br />
rasgada, rezando por lhe <strong>de</strong>scobrir sangue em algum lado, um<br />
bolo na cabeça duma jogada que lhe tivessem atirado. Fala-me <strong>de</strong><br />
jeito que te ouça riquinho… - A Eulália tratava-o assim nas horas<br />
aflitas. - Quem te fez mal? Nem sei o que faça ao alma <strong>de</strong> diabo…<br />
Eulália, longe dos conselhos sábios do João Pedro,<br />
engasgou-se em iras, lágrimas silenciosas luziam-lhe no olho<br />
baço, perdida em suores que lhe gelavam a alma pequena,<br />
procurando o calor, confundia-se com o rebento, à procura <strong>de</strong><br />
recuar o tempo, apagar-lhe a mágoa, <strong>de</strong> o proteger <strong>de</strong> todo o mal.<br />
Lançava ao filho olhares caninos que pediam perdão pela<br />
teimosia <strong>de</strong> galinha choca, marrada nos olhos <strong>de</strong> gato do rapaz<br />
que a miravam arregalados. Porque não lho teriam dito naquela<br />
tar<strong>de</strong>? Ouvia-os implorar… diga-me que é tudo mentira...<br />
Sem respostas sábias e prontas, num abismo que berrava<br />
a dizer que não… espetou com força as unhas na carne<br />
<strong>de</strong>stroçada… em segredo envergonhado, cantarolava uma lenga<br />
lenga triste, do tempo dos berços, a confessar a verda<strong>de</strong>.<br />
Um anjo olhos <strong>de</strong> mel<br />
De luz e ouro a brilhar…<br />
Chegou-me trazido do Céu<br />
Para que eu pu<strong>de</strong>sse amar…<br />
Menino não faças beicinho<br />
Que nunca te ouça chorar…<br />
És o meu tesouro divino<br />
Nem Deus mo po<strong>de</strong> tirar…<br />
Menino…<br />
O presente trabalho faz parte integrante da Revista <strong>Manteigas</strong> <strong>Municipal</strong> N.º 30 - Julho 2005