Encontros com a Sifilização Brasileira Durval Muniz de ... - cchla
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<strong>Encontros</strong> <strong>com</strong> a <strong>Sifilização</strong> <strong>Brasileira</strong><br />
<strong>Durval</strong> <strong>Muniz</strong> <strong>de</strong> Albuquerque Júnior<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Norte<br />
O filme Orgia, o homem que <strong>de</strong>u cria, único longa-metragem dirigido por João<br />
Silvério Trevisan, filmado no segundo semestre do ano <strong>de</strong> 1970, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado um<br />
exemplo emblemático do que foi batizado <strong>com</strong>o sendo o Cinema Marginal ou do que<br />
Glauber Rocha chamou, pejorativamente, <strong>de</strong> cinema Udigrudi, visto pelo cineasta baiano<br />
<strong>com</strong>o um filho bastardo ou um aborto do Cinema Novo. Também conhecido <strong>com</strong>o Cinema<br />
<strong>de</strong> Invenção, este conjunto <strong>de</strong> filmes rodados, em sua maioria, entre os anos <strong>de</strong> 1969-1973,<br />
não se constituiu propriamente em um movimento articulado, <strong>com</strong>o foi o Cinema Novo ou<br />
a Tropicália, mas são fruto <strong>de</strong> uma sensibilida<strong>de</strong> estética, artística e política que surge <strong>com</strong>o<br />
resposta a conjuntura <strong>de</strong> endurecimento do regime militar, <strong>com</strong> a edição do AI-5, <strong>com</strong> a<br />
recru<strong>de</strong>scimento da censura, <strong>com</strong> o fim <strong>de</strong> todas as esperanças e utopias que vinham<br />
embalando a juventu<strong>de</strong>, os intelectuais, os artistas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pelo menos o final dos anos<br />
cinqüenta, a partir do governo Juscelino Kubitscheck. A crise da formação discursiva<br />
nacional-popular, que articulara todos os discursos intelectuais e artísticos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pelo<br />
menos o Estado Novo, quando o tema do nacionalismo, articulado <strong>com</strong> o tema do popular,<br />
davam sentido a todas as ações e a todos os discursos, mesmo <strong>de</strong> colorações i<strong>de</strong>ológicas as<br />
mais diversas, dá margem à emergência, notadamente entre a juventu<strong>de</strong> das camadas<br />
médias urbanas, <strong>de</strong> uma sensação <strong>de</strong> vazio, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização, pela perda total dos<br />
sentidos e das verda<strong>de</strong>s que sustentavam até então suas ações, quer seja no plano político,<br />
quer seja no plano artístico ou até mesmo no plano pessoal. Este <strong>de</strong>smoronar das versões da<br />
realida<strong>de</strong>, das verda<strong>de</strong>s, que até então explicavam o mundo e o país, que direcionavam,<br />
legitimavam e davam sentido às suas práticas e às suas vidas, levam à busca <strong>de</strong> novas<br />
linguagens para expressar o que sentiam, para expressar este vazio, este <strong>de</strong>sespero, para<br />
<strong>de</strong>smontar e <strong>de</strong> certa forma punir esta farsa em que haviam acreditado até então. Se haviam<br />
acreditado no mito do Brasil Gran<strong>de</strong>, do Brasil mo<strong>de</strong>rno, do país que ia superar sua miséria<br />
e seus sub<strong>de</strong>senvolvimento, tratam agora <strong>de</strong> levar para tela os es<strong>com</strong>bros que restou <strong>de</strong>ste<br />
mito, as ruínas em que se tornaram estes sonhos. Se haviam acreditado no mito da<br />
revolução, no povo <strong>com</strong>o agente da transformação social, no marxismo <strong>com</strong>o a via <strong>de</strong>
libertação dos povos, se haviam sonhado <strong>com</strong> uma socieda<strong>de</strong> mais livre, igualitária e<br />
<strong>de</strong>mocrática, mesmo alojando suas esperanças em regimes totalitários <strong>com</strong>o o da URSS, da<br />
China ou <strong>de</strong> Cuba, agora <strong>com</strong> a inviabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes sonhos se concretizarem, ao se<br />
revelarem os pés-<strong>de</strong>-barro <strong>de</strong>stas crenças, ao verem o povo apoiar e até reivindicar a<br />
ditadura, agora diante da falta total <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, diante das injustiças sociais, da tortura, da<br />
morte e do exílio <strong>de</strong> muitos <strong>com</strong>panheiros, restava a revolta, individual, micropolítica, a<br />
recusa a se integrar, a dizer sim, restava o ir para a margem.<br />
A condição homossexual <strong>de</strong> Trevisan já o familiazara <strong>com</strong> as margens <strong>de</strong> uma<br />
socieda<strong>de</strong> heteronormativa e homofóbica, patriarcal e machista <strong>com</strong>o a brasileira. Esta<br />
condição o marginalizava, inclusive, no seio da própria esquerda, na qual a presença <strong>de</strong><br />
uma mitologia masculina, marcial e virilizante era inegável. O Cinema Novo, <strong>com</strong> seu<br />
discurso engajado e militante, <strong>com</strong> seu nacionalismo e seu populismo, <strong>com</strong> sua busca <strong>de</strong><br />
representar uma síntese do país, <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar sua verda<strong>de</strong> essencial para po<strong>de</strong>r transformá-<br />
lo, tal <strong>com</strong>o propunha o marxismo, base i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong> sua estética da fome, sempre foi um<br />
cinema masculino, dominado por personagens on<strong>de</strong> a virilida<strong>de</strong> se articulava <strong>com</strong> o<br />
heroísmo e a coragem para transformar o mundo, violentamente. O homoerotismo não tem<br />
lugar nos filmes <strong>de</strong>ste movimento, afinal, para a esquerda da época, a homossexualida<strong>de</strong><br />
era vista <strong>com</strong>o produto da <strong>de</strong>cadência social e moral provocada pelo capitalismo e pela<br />
socieda<strong>de</strong> burguesa, estando fadado a <strong>de</strong>saparecer ou ser corrigido na socieda<strong>de</strong> socialista<br />
futura. As próprias mulheres aparecem, muitas vezes, na filmografia do Cinema Novo,<br />
<strong>com</strong>o representantes <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>cadência moral da burguesia, da classe média, mulheres que<br />
<strong>com</strong> seu caráter sedutor e romântico ameaçam impedir os homens <strong>de</strong> realizarem a sua mais<br />
importante tarefa, a <strong>de</strong> modificar a socieda<strong>de</strong>, arrastando-os para o amor, o sexo ou o<br />
casamento burguês. O sentido homoerótico ou <strong>de</strong>rrisório da masculinida<strong>de</strong> que está<br />
presente no próprio título do filme, um homem que dá cria, que pare, nos permite perceber<br />
<strong>de</strong> que lugar o filme <strong>de</strong> Trevisan emite seu discurso, <strong>de</strong> que margem ele fala. O fato do<br />
personagem que dá cria ser um cangaceiro, que surge no filme <strong>com</strong> um estandarte <strong>com</strong> o<br />
símbolo da Volkswagen na mão e realizando performances que remetem a uma famosa<br />
cena do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, <strong>de</strong> Glauber Rocha, ataca não somente um<br />
dos mitos da esquerda populista no país, um dos ícones da filmografia do Cinema Novo,<br />
on<strong>de</strong> representava ao mesmo tempo a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> revolta do povo e a sua alienação, a
falta <strong>de</strong> um direcionamento i<strong>de</strong>ológico para esta revolta, mas também um dos ícones da<br />
masculinida<strong>de</strong> no país, um dos mitos formadores da idéia do cabra macho nor<strong>de</strong>stino,<br />
elaborado a partir dos anos vinte e tão presente na literatura regionalista, no romance <strong>de</strong><br />
trinta, uma das bases literárias daquele movimento cinematográfico. Também faz parte da<br />
homocultura o uso da ironia, do sarcasmo, do riso <strong>com</strong>o forma <strong>de</strong> por em dúvida os<br />
sentidos hegemônicos, para suspen<strong>de</strong>r as verda<strong>de</strong>s e os códigos i<strong>de</strong>ntitários que sustentam a<br />
or<strong>de</strong>m heteronormativa. Des<strong>de</strong> cedo um homossexual apren<strong>de</strong> na prática cotidiana a<br />
duvidar dos discursos, das verda<strong>de</strong>s e das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que <strong>de</strong>finem cada pessoa,<br />
notadamente no campo das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gênero, apren<strong>de</strong> que nem tudo é o que parece ou<br />
o que diz ser. O riso, o escracho, a fechação que atravessa todo o filme <strong>de</strong> Trevisan é<br />
coerente <strong>com</strong> sua postura política <strong>de</strong> militante da causa homossexual que <strong>de</strong>fendia o<br />
<strong>com</strong>portamento <strong>de</strong> choque, a agressão a or<strong>de</strong>m, o <strong>de</strong>boche, e a auto-ironia <strong>com</strong>o forma dos<br />
homossexuais questionarem a socieda<strong>de</strong> heterocêntrica. Fechar, escrachar, ser pintoso era a<br />
atitu<strong>de</strong> mais radical politicamente para um homossexual..<br />
Enquanto o naturalismo e o realismo mo<strong>de</strong>rnista, presente no romance <strong>de</strong> trinta, era<br />
um dos mo<strong>de</strong>los narrativos <strong>com</strong> que dialogava o Cinema Novo, o chamado Cinema<br />
Marginal ou <strong>de</strong> Invenção, assim <strong>com</strong>o o tropicalismo, foi buscar na antropofagia<br />
oswaldiana sua maior inspiração. Em Orgia, um homem que <strong>de</strong>u cria, a presença <strong>de</strong><br />
Oswald é explícita, através <strong>de</strong> três poemas <strong>de</strong> sua autoria que são recitados em diferentes<br />
momentos do filme pela baiana travesti, um simulacro <strong>de</strong> Carmem Miranda, bem <strong>com</strong>o a<br />
antropofagia não é apenas metafórica, já que numa das últimas cenas os dois índios que<br />
haviam seguido o cortejo que percorre o filme <strong>de</strong>voram a cria parida pelo cangaceiro, após<br />
rastejarem por um cemitério, locação da sequência final da história. A própria idéia <strong>de</strong><br />
orgia, <strong>de</strong> orgiástico, é recorrente na obra oswaldiana. A orgia <strong>com</strong>o um momento <strong>de</strong><br />
confusão dos sentidos, <strong>de</strong> mistura <strong>de</strong> lugares e posições, <strong>de</strong> embaralhamento das coisas e<br />
das falas, dos corpos e dos <strong>de</strong>sejos, <strong>com</strong>o um momento <strong>de</strong> borramento e ultrapassamento<br />
das fronteiras, das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, das classificações, dos códigos que mantêm a or<strong>de</strong>m social.<br />
A orgia é o momento do fim das hierarquias, a anarquia, o momento do excesso, do <strong>de</strong>svio,<br />
da transgressão. Se no <strong>de</strong>sespero da <strong>de</strong>rrota para a ditadura o maior cineasta do Cinema<br />
Novo sentira a terra em transe, paralisada, o Cinema Marginal trata <strong>de</strong> por a terra, o país<br />
novamente em movimento, em trânsito, em transa. Como os beatnicks americanos se trata
<strong>de</strong> ir para a estrada, <strong>de</strong> nomadizar, <strong>de</strong> sair por aí, em busca <strong>de</strong> novos sentidos, <strong>de</strong> novos<br />
territórios para habitar, <strong>de</strong> construir passagens para fora do sufoco, no próprio ato <strong>de</strong> criar,<br />
<strong>de</strong> inventar. Não é coincidência que o filme se estrutura <strong>com</strong>o um cortejo, <strong>com</strong>o uma<br />
viagem, <strong>com</strong>o uma via crucis, em que vão surgindo personagens e cenas, <strong>com</strong>o se fossem<br />
quadros, que se suce<strong>de</strong>m ao longo <strong>de</strong> intermináveis estradas, que se encontram em<br />
passagens e encruzilhadas. Busca-se novos caminhos, precisa-se encontrar novas saídas,<br />
inventar novas linguagens <strong>com</strong>o possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar toda dor e toda a revolta e se<br />
expressando conseguir viver, conseguir existir apesar <strong>de</strong> tudo. A antropofagia oswaldiana<br />
serve <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo para cineastas que vivem em uma socieda<strong>de</strong> que se urbaniza rapidamente,<br />
uma socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> a cultura <strong>de</strong> massas, o produto importado, o cinema estrangeiro, o<br />
consumo do que vem <strong>de</strong> fora, em todos os campos, inclusive no campo artístico e que têm<br />
que se posicionar diante <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>, mas não o querem mais fazer usando o discurso<br />
car<strong>com</strong>ido do velho nacionalismo, agora <strong>de</strong>smoralizado por ser assumido pela própria<br />
ditadura, que no mesmo passo atrela <strong>de</strong>finitivamente o país aos ditames do capitalismo<br />
financeiro internacional. Inspirados também na tradição do próprio cinema brasileiro, <strong>de</strong><br />
tentar copiar o cinema americano e o fazer mal, seja <strong>de</strong> propósito <strong>com</strong>o nas chanchadas ou<br />
seja sem querer, <strong>com</strong>o nas produções gradiloquentes da Vera Cruz, os cineasta da Boca do<br />
Lixo paulistana, da rua Triumpho e imediações, zona <strong>de</strong> prostituição da cida<strong>de</strong>, apostam no<br />
pastiche, no simulacro, na cópia propositadamente mal feita, no jeitinho brasileiro <strong>de</strong> copiar<br />
e <strong>de</strong> fazer mal feito <strong>com</strong>o opção estética, <strong>com</strong>o forma <strong>de</strong> linguagem, <strong>com</strong>o maneira <strong>de</strong> falar<br />
através da própria forma <strong>de</strong> nossa indigência, <strong>de</strong> nossa miséria, <strong>de</strong> nossa pobreza.<br />
Filhos bastardos da estética da fome, da câmara na mão e uma idéia na cabeça,<br />
<strong>com</strong>o afirmou Glauber, os filmes do Cinema Marginal ou <strong>de</strong> Invenção, têm <strong>com</strong>o lema o<br />
"faça você mesmo", dê asas a sua imaginação, crie, invente, sem aceitar a ditadura dos<br />
códigos <strong>de</strong> bom gosto, <strong>de</strong> beleza, <strong>de</strong> coerência política, <strong>de</strong> talento ou <strong>de</strong> mercado. Se Orgia,<br />
um homem que <strong>de</strong>u cria se apóia em procedimentos técnicos e narrativos característicos do<br />
Cinema Novo, <strong>com</strong>o a câmera frenética, balançante, rodopiante, instável manuseada por<br />
Carlos Reichenbach, <strong>com</strong>o o uso <strong>de</strong> seguidos planos sequência, a<strong>com</strong>panhando o <strong>de</strong>sfilar<br />
do cortejo, criando a sensação <strong>de</strong> uma temporalida<strong>de</strong> mais lenta, arrastada, <strong>com</strong>o os<br />
próprios pés dos caminhantes, talvez numa referência irônica às inúmeras cenas <strong>de</strong><br />
procissões e cortejos religiosos, famosos no cinema brasileiro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> O Pagador <strong>de</strong>
Promessas, apresenta procedimentos técnicos e narrativos que vão ser característicos do<br />
Cinema Marginal, <strong>com</strong>o o uso da imagem em preto e branco, a imagem propositadamente<br />
suja, granulada, explicitando a indigência técnica e financeira da própria produção. Os<br />
personagens, ao contrário daqueles dos filmes do Cinema Novo, não representam figuras<br />
arquetípicas <strong>de</strong> classe, não representam as forças polares da luta <strong>de</strong> classes, nem as forças<br />
em luta em torno da transformação revolucionária ou não do país, a estrutura dos filmes não<br />
é atravessada por certo maniqueísmo que caracterizava os roteiros cinemanovistas. Os<br />
personagens <strong>de</strong> Orgia, o homem que <strong>de</strong>u cria, por exemplo, são personagens mais típicos<br />
que arquetípicos, são personagens individualizados, uma horda <strong>com</strong>posta <strong>de</strong> figuras<br />
enjeitadas pelo social, vítimas do preconceito, da exclusão econômica, social e moral: um<br />
caipira parricida, um bandido assassino, um travesti, duas prostitutas, um <strong>de</strong>ficiente físico e<br />
negro, dois índios, um cego, um cangaceiro grávido, um revolucionário louco, entre outros.<br />
Este inventário <strong>de</strong> todos os erros, <strong>com</strong>o diria Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, esta geléia geral, <strong>com</strong>o<br />
diria Gilberto Gil, ao mesmo tempo em que são realida<strong>de</strong>s encontradas no país, não lhes<br />
servem <strong>de</strong> símbolo, não permitem que se encontre um sentido único, que se consiga<br />
estabelecer a partir <strong>de</strong> tal diversida<strong>de</strong> caótica, <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> tão arlequinal, qualquer<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para o país e para nosso povo. Talvez por isso, o intelectual universal, aquele<br />
encarregado <strong>de</strong> encontrar uma explicação, uma verda<strong>de</strong>, um sentido <strong>de</strong> conjunto para esta<br />
realida<strong>de</strong>, apareça nu, logo no início da história, cercado agora <strong>de</strong> livros <strong>com</strong>erciais e <strong>de</strong><br />
gibis, e após enlouquecer <strong>de</strong>vorando as folhas dos próprios livros (nova remissão a<br />
antropofagia), se suici<strong>de</strong>, enforcando-se numa árvore, após por fogo nos livros e revistas.<br />
Não só o rei estava nu, a medida que as explicações do Brasil e <strong>de</strong> nossa formação<br />
histórica pareciam não fazer mais sentido naquela conjuntura, as verda<strong>de</strong>s construídas pelos<br />
intérpretes do Brasil pareciam ter se esgarçado, já que nenhuma <strong>de</strong>las haviam conseguido<br />
incluir estas figuras das margens <strong>com</strong>o sujeitos da brasilida<strong>de</strong>, <strong>com</strong>o representantes <strong>de</strong><br />
nosso povo, <strong>com</strong>o também o intelectual, ironicamente representado por Jean-Clau<strong>de</strong><br />
Berna<strong>de</strong>t, já a época respeitado crítico <strong>de</strong> cinema, estava incapacitado <strong>de</strong>finitivamente <strong>de</strong><br />
formular novas metanarrativas capazes <strong>de</strong> nos explicar <strong>com</strong>o país e <strong>com</strong>o povo, mas<br />
também incapacitado <strong>de</strong> ditar normas e códigos para o cinema, <strong>de</strong> dizer o que <strong>de</strong>veria fazer<br />
em termos <strong>de</strong> produção cinematográfica.<br />
Orgia, um homem que <strong>de</strong>u cria é também uma resposta, uma recusa <strong>de</strong> se aceitar
que alguns críticos <strong>de</strong> cinema ou alguns cineastas, notadamente Glauber Rocha, ditassem<br />
regras e <strong>de</strong>finissem <strong>com</strong>o <strong>de</strong>veria ser feito, <strong>de</strong> que <strong>de</strong>veria tratar o cinema brasileiro. Em<br />
entrevista concedida por Trevisan este revela que a cena <strong>de</strong> parricídio que abre o filme se<br />
refere a Glauber Rocha e sua reação ao Cinema Marginal, consi<strong>de</strong>rando-o filho não<br />
<strong>de</strong>sejado, filho espúrio do Cinema Novo. Diz Trevisan que era preciso matar o pai, o pai<br />
autoritário, o pai arrogante, o pai intolerante, sempre pronto para <strong>de</strong>cidir o que os outros<br />
<strong>de</strong>viam fazer, que era Glauber, para que se pu<strong>de</strong>sse abrir outros caminhos, outras<br />
possibilida<strong>de</strong>s estéticas, temáticas e políticas para o cinema brasileiro. O papel do pai<br />
assassinado é significativamente entregue a Ozualdo Can<strong>de</strong>ias, consi<strong>de</strong>rado o precursor, o<br />
pai do cinema da Boca do Lixo, pai, que segundo Trevisan, era o oposto <strong>de</strong> Glauber:<br />
afetivo, humil<strong>de</strong>, tolerante, um caminhoneiro, um homem do povo que resolvera fazer<br />
cinema, sendo uma <strong>de</strong>monstração daquilo que queria esta nova geração <strong>de</strong> cineastas, estes<br />
filhos enjeitados pelo pai, fazer cinema apesar <strong>de</strong> tudo, fazer cinema contra tudo e contra<br />
todos, fazer cinema afrontando a censura e sem dar importância ao mercado, à distribuição.<br />
Neste sentido o filme <strong>de</strong> Trevisan está salpicado <strong>de</strong> referências irônicas e carnavalizadoras<br />
a cenas do consagrado filme do autor baiano Deus e o Diabo na Terra do Sol <strong>com</strong>o a cena<br />
inicial em que uma mulher amarrada pelo pescoço <strong>de</strong>scasca mandioca, numa referência a<br />
cena em que Rosa faz o mesmo trabalho no filme <strong>de</strong> Glauber, <strong>com</strong>o a já citada cena do<br />
cangaceiro, que remete ao Corisco <strong>de</strong> Deus e o Diabo, ou a cena em que surgem<br />
inesperadamente <strong>de</strong> cada lado da estrada, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do mato, dois homens armados <strong>com</strong>o se<br />
fossem dois Antonio das Mortes, que se fuzilam mutuamente, explicitando o nonsense e o<br />
sem sentido da violência masculina, feita em nome da <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> uma pretensa honra. O<br />
<strong>de</strong>stino do único longa-metragem <strong>de</strong> Trevisan é bem revelador dos resultados <strong>de</strong>sta postura<br />
<strong>de</strong> recusa <strong>de</strong> tudo que caracterizou esta produção dos Marginais: o filme ficou censurado<br />
por <strong>de</strong>z anos, nunca foi exibido <strong>com</strong>ercialmente, sobrevive em cópias <strong>de</strong> péssima<br />
qualida<strong>de</strong>, <strong>com</strong>o a que tive acesso, encerrando praticamente a carreira do cineasta no<br />
nascedouro, embora a radicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua mensagem e <strong>de</strong> sua estética continue a fazer<br />
efeito sempre que exibido nos vários festivais que continuam abrigando esta produção.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista estético se vai radicalizar a idéia, já presente no Cinema Novo, <strong>de</strong><br />
se fazer cinema coerente <strong>com</strong> a nossa pobreza social e tecnológica, um cinema que não<br />
procurava disfarçar a nossa indigência: para Orgia, Walcir Carrasco vai criar uma
cenografia precária, <strong>com</strong>posta <strong>de</strong> vários casebres <strong>de</strong> taipa cobertos <strong>com</strong> palmeiras, quase<br />
sem móveis ou utencílios, a maior parte das locações são externas, em estradas, capoeiras,<br />
pedras, barrancos, árvores, terminando finalmente em um cemitério mal cuidado e pobre. A<br />
maquiagem é feita <strong>de</strong> forma a aparecer explicitamente, dando aos personagens uma<br />
aparência <strong>de</strong> brincantes <strong>de</strong> um carnaval pobre, <strong>de</strong> um cordão <strong>de</strong> sujos, são máscaras que<br />
transformam os personagens em verda<strong>de</strong>iros clowns. As roupas também lembram as <strong>de</strong><br />
uma escola <strong>de</strong> samba da periferia, são precárias, <strong>de</strong> materiais baratos, <strong>com</strong> um brilho tão<br />
artificial <strong>com</strong>o a alegria e o riso dos personagens que vestem. Estes rodopiam, pulam,<br />
gritam, uivam, jogam-se ao chão, requebram, imprecam, se contorcem libidinosamente,<br />
grunhem, cospem, arrotam, cutucam o nariz, remetendo ao corporal, colocando o corpo,<br />
nossa animalida<strong>de</strong>, nossa libido <strong>com</strong>o elementos que <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>srecalcados, lembrando o<br />
teatro orgiástico, o te-ato <strong>de</strong> José Celso Martinez Correia. Numa cena em que se atinge o<br />
ápice do escracho e da avacalhação, a travesti-baiana-Carmem Miranda urina em pé,<br />
mostrando que é um homem, enquanto rebola e faz trejeitos que lembram a "Pequena<br />
Notável". A contracultura, a revolução sexual, o movimento hippie, o feminismo, a leitura<br />
<strong>de</strong> Marcuse, o é proibido proibir <strong>de</strong> Paris <strong>de</strong> 1968, parecem fazer entrada aqui <strong>de</strong> maneira<br />
espalhafatosa. Como explicita uma placa fincada no escon<strong>de</strong>rijo do fabricador <strong>de</strong> bombas e<br />
que passa às a<strong>com</strong>panhar no carrinho em que estas são transportadas no cortejo: "o crime<br />
não existe", se existe lei é para ser burlada, <strong>com</strong>o afirma Paulo Sacramento, um dos<br />
admiradores do movimento. É neste sentido que não há no Cinema Marginal uma separação<br />
entre a estética e a política, a forma e a mensagem, a linguagem e o conteúdo, tendência<br />
que já se manifestava em algumas produções do Cinema Novo, e que é aqui radicalizada. A<br />
maneira <strong>com</strong>o se filma, os temas e personagens que se escolhe, os gestos que os<br />
personagens realizam, a cenografia, a maquiagem, as vestimentas, as falas, os corpos dos<br />
atores, as performances que realizam, <strong>com</strong>põe não apenas a mensagem estética do filme,<br />
<strong>com</strong>o sua mensagem política, uma micropolítica, atenta para as revoltas individuais,<br />
microscópicas, cotidianas, aquela que se passa ao rés dos corpos, aquela que provém do<br />
<strong>de</strong>sejo, aquelas práticas que instauram novas relações, que abrem as pessoas para linhas <strong>de</strong><br />
fuga, para viagens e miragens, filmes <strong>com</strong>o se fossem alucinógenos, que dão acesso a uma<br />
nova forma <strong>de</strong> perceber e viver a realida<strong>de</strong>. Apolo dando lugar a Dionísio, a serieda<strong>de</strong> e a<br />
or<strong>de</strong>m, agora tão bem encarnadas pela ditadura, dando lugar ao riso, mesmo que trágico, ao
<strong>de</strong>boche mesmo que amargo, dando passagem a rebeldia, a afirmação da vida, mesmo que<br />
em tempo <strong>de</strong> morte, pequenas vitórias apesar da <strong>de</strong>rrota.<br />
Ao contrário do movimento anterior que pretendia fazer filmes que seriam uma<br />
representação do Brasil, <strong>de</strong> sua realida<strong>de</strong>, da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu povo, pensando a linguagem<br />
cinematográfica <strong>com</strong>o um meio <strong>de</strong> dar acesso a um referente que estava fora <strong>de</strong>la, pensando<br />
a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se construir um sentido capaz <strong>de</strong> dizer o significante que o havia<br />
motivado, o Cinema Marginal, também por isso mesmo chamado Cinema <strong>de</strong> Invenção,<br />
parte da constatação <strong>de</strong> que há sempre uma <strong>de</strong>fasagem entre linguagem e realida<strong>de</strong>, há<br />
sempre um <strong>de</strong>svio, um <strong>de</strong>slizamento, uma abertura entre o significado e o significante. A<br />
linguagem não diz as coisas, as inventa, as cria <strong>com</strong>o objetos para o conhecimento humano,<br />
as atribui sentido, as dá i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e significado. Libertos da obrigação <strong>de</strong> dizer a verda<strong>de</strong><br />
do país, libertos da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se encontrar um sentido para o seu povo, libertos da<br />
tarefa <strong>de</strong> dizer o caminho para on<strong>de</strong> o mundo <strong>de</strong>via seguir, embora, para muitos, a<br />
contragosto e <strong>com</strong> <strong>de</strong>sespero, a relação <strong>com</strong> a linguagem cinematográfica, <strong>com</strong> a criação<br />
adquire um certo grau <strong>de</strong> gratuida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> leveza, torna-se uma espécie <strong>de</strong> jogo, uma espécie<br />
<strong>de</strong> diversão, on<strong>de</strong> impera o <strong>de</strong>sejo da criação <strong>de</strong> sentidos novos e surpreen<strong>de</strong>ntes. Como<br />
discípulos <strong>de</strong> Antonin Artaud, os Marginais pensam que sentido posto é sentido morto e<br />
tratam <strong>de</strong> fazer aparecer o sentido <strong>de</strong>rrisório, o sentido <strong>de</strong>sviante, o sentido insuspeito. O<br />
filme Orgia, o homem que <strong>de</strong>u cria abdica em sua narrativa <strong>de</strong>sta obrigação <strong>de</strong> encontrar<br />
uma metanarrativa da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, aliás ele a toma <strong>com</strong>o tema para mostrar sua<br />
impossibilida<strong>de</strong>, tal <strong>com</strong>o fizera os tropicalistas. Como se fosse uma narrativa <strong>de</strong> viagem<br />
em que o narrador se per<strong>de</strong> e não sabe mais dizer por on<strong>de</strong> <strong>com</strong>eçou ou on<strong>de</strong> quer chegar, o<br />
filme é <strong>com</strong>posto <strong>de</strong> uma sucessão <strong>de</strong> quadros, que resultam fragmentados, articulando-se<br />
apenas pela passagem do cortejo que vai se formando a partir dos encontros dos<br />
personagens. Iniciando-se <strong>com</strong> a fuga do caipira parricida, um Mazaropi ainda mais<br />
precário, que logo encontra um assaltante assassinando um pervertido sexual, <strong>de</strong> quem<br />
rouba e calça as meias listradas, <strong>com</strong>o se fosse um Carlitos, perdido no mato; o filme segue<br />
<strong>com</strong> o encontro e posterior suicídio do intelectual; <strong>com</strong> o encontro da travesti vestida <strong>de</strong><br />
baiana que é perseguida por três jogadores <strong>de</strong> futebol; <strong>com</strong> o aparecimento <strong>de</strong> um anjo<br />
mestiço preso pendurado numa árvore; <strong>com</strong> a entrada em cena do pai <strong>de</strong> santo paralítico<br />
sentado em sua ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> rodas, <strong>com</strong> uma coroa <strong>de</strong> reisado na cabeça e uma réplica da taça
Julles Rimet nas mãos, <strong>com</strong>o se fosse um cetro; aos quais se somam duas prostitutas que<br />
convidam os homens do cortejo para entrarem em seu casebre, se maquiam, exibem uma<br />
placa on<strong>de</strong> se lê "uvas frescas", uma <strong>de</strong>las se veste <strong>com</strong>o se fosse <strong>de</strong>staque numa escola <strong>de</strong><br />
samba; segue-se o aparecimento do cangaceiro grávido, cujas calças teimam em cair; o<br />
cego <strong>com</strong> coroa <strong>de</strong> louros; três religiosos que celebram a primeira missa, a qual <strong>com</strong>parece<br />
dois índios; o revolucionário fabricante <strong>de</strong> bombas e praticante do esperanto, a língua<br />
universal; uma cena que lembra a crucifixão <strong>de</strong> Cristo, on<strong>de</strong> uma mulher <strong>de</strong> peitos nus<br />
ocupa o lugar central, entre os dois possíveis ladrões; um poeta e um político barrocos,<br />
gongóricos, se estertorando em seus discursos, em busca <strong>de</strong> convencer os passantes das<br />
maravilhas do mundo das fábricas; para tudo acabar <strong>com</strong> a chegada a cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, a um<br />
cemitério, on<strong>de</strong> o homem dá cria e ocorre o gran<strong>de</strong> repasto orgiástico final, <strong>com</strong> os índios<br />
<strong>de</strong>vorando a criança e <strong>com</strong>o numa tragédia clássica, <strong>com</strong>o se fossem um coro grego, mas<br />
também chacretes ou artistas <strong>de</strong> boite <strong>de</strong> frequência homossexual, cantam o que seria a<br />
moral da história:<br />
"Apresentamo-nos ao povo civilizado aqui presente<br />
Somos os representantes das feras <strong>de</strong>sta terra<br />
Mas hoje queremos ser irmãos <strong>de</strong> todos<br />
Juramos pelos nossos <strong>de</strong>uses que acatamos <strong>com</strong> obediência as<br />
regras da Civilização<br />
Abandonaremos os maus costumes da selva<br />
Ganharemos honestamente nosso dinheiro a fim <strong>de</strong> fazer o<br />
tratamento da sífilis que nos espera<br />
Ah! A Civilização é uma <strong>de</strong>lícia<br />
Que venha a sífilis! Estamos prontos para apodrecer<br />
Bem vindos a Civilização da sífilis!!<br />
Viva a Civilização!!!"<br />
Partindo dos versos <strong>de</strong>sta canção e parodiando o título <strong>de</strong> uma famosa publicação<br />
voltada para a intelectualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esquerda, das duas décadas anteriores, po<strong>de</strong>mos dizer que<br />
Orgia, um homem que <strong>de</strong>u cria nos proporciona encontros <strong>com</strong> a sifilização brasileira, <strong>com</strong>
a podridão da nossa civilização, <strong>com</strong> os sifilomas produzidos por nossa formação histórica,<br />
social e cultural. O filme <strong>de</strong> Trevisan, <strong>com</strong>o enuncia através <strong>de</strong> uma faixa segurada pelo<br />
caipira e pelo assassino, logo no início da história, quer <strong>de</strong>ixar sangrar, quer <strong>de</strong>ixar vazar<br />
para fora <strong>de</strong> nossos tumores, todo o pus, toda a sujeira, toda a linfa, toda a putrefação, que o<br />
país <strong>de</strong> aparência mo<strong>de</strong>rna e or<strong>de</strong>ira, do milagre econômico, do ame-o ou <strong>de</strong>ixe-o, do tri-<br />
campeonato mundial <strong>de</strong> futebol, lutava por escon<strong>de</strong>r, através da censura e da repressão. Era<br />
preciso romper esta pele, esta casca, levantar a crosta que impedia que escorresse o mau<br />
cheiro <strong>de</strong> nosso interior. Tratava-se <strong>de</strong> ter coragem (pois <strong>com</strong>o está escrito nas costas do<br />
roupão que veste o caipira, "a vida é dura para quem é mole", frase <strong>de</strong> sentido homoerótico<br />
implícito) <strong>de</strong> encarar <strong>de</strong> frente a pestilência do ambiente nacional, o fedor <strong>de</strong> nossas elites,<br />
a corrupção que ia <strong>de</strong>vorando o organismo nacional e ia gerando estes seres arruinados,<br />
estes restos jogados nas beiras das estradas, nos caminhos, nos casebres, na miséria, na<br />
cegueira, no abandono, na injustiça, na alienação, na ignorância, na marginalida<strong>de</strong>, na<br />
revolta muda que se voltava para a própria <strong>de</strong>struição através do suicídio, das drogas ou da<br />
opção pela luta armada. Nossos primeiros habitantes, agora tendo realizado, <strong>com</strong>o<br />
Macunaímas, a travessia da mata a cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, trajeto que no Cinema Novo tinha o<br />
sentido messiânico <strong>de</strong> promessa <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção através da chegada a uma socieda<strong>de</strong> mais<br />
justa, só o que encontram é o cemitério <strong>de</strong> periferia, é o caos orgiástico, é um coro <strong>de</strong><br />
vozes aflitas e <strong>de</strong>sencontradas, o anjo que se explo<strong>de</strong>, é a cida<strong>de</strong> povoada pelos letreiros das<br />
casas <strong>com</strong>erciais, por on<strong>de</strong> corre aflito e sem rumo um engravatado <strong>com</strong> pasta 007, é a<br />
morte. Fim niilista, visão amarga e <strong>de</strong>sesperada, talvez, mas também uma aposta no riso, no<br />
humor, na alegoria, na fantasia, na criativida<strong>de</strong>, na invenção, na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se indignar,<br />
na necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> passar o bisturi cortante da crítica nos tumores que infestam a vida<br />
nacional. Como ainda permanece atual este filme em época <strong>de</strong> operações <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m e<br />
nome, que vêm trazendo a tona a podridão que nos <strong>de</strong>vora a todos <strong>com</strong>o socieda<strong>de</strong> e <strong>com</strong>o<br />
civilização. O riso triste, o riso amargo, o riso trágico, o riso melancólico <strong>de</strong> Trevisan<br />
continua a ressoar, pois no Brasil continuamos, diante da nossa impotência em fazer <strong>de</strong>sta<br />
socieda<strong>de</strong> algo melhor, precisando avacalhar, escrachar, <strong>com</strong>o forma <strong>de</strong> suportar a barra <strong>de</strong><br />
viver neste país.