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-----------<strong>1.</strong><br />
LUGAR COMUM<br />
Pensemos hoje<br />
não como homens<br />
que se esquecem e matam,<br />
nem como crianças<br />
que se lembram e morrem;<br />
mas como a terra,<br />
de onde todos viemos,<br />
e a erva em breve<br />
nos virá requisitar<br />
para nos adornar<br />
de flores.<br />
1
IMPRESSÃO 1<br />
Um anjo que amo<br />
quando seu perfume se fixa<br />
e protege,<br />
cravando em nós<br />
os fogos olhos de pureza.<br />
Nele tenho a impressão que<br />
é ou estou<br />
na sua sombra fresca.<br />
Que fica<br />
na copa das árvores violentadas<br />
ou<br />
no bizarro<br />
de um homem mau.<br />
2
IMPRESSÃO 2<br />
Não<br />
um mau homem<br />
que não sabe,<br />
por isso fala.<br />
Mas um homem mau<br />
que sabe<br />
e por isso<br />
cala.<br />
3
ALBERGUE<br />
Pássaros lâmpadas<br />
em noite espessa.<br />
anti - rondante<br />
dos pássaros<br />
no ar frio da noite.<br />
É o estalido<br />
o leque abrir<br />
das suas asas,<br />
mas que abrigam<br />
tanta gente.<br />
4
EU ACHO<br />
Sim, não, sim, não,<br />
Será? São. Será? É...<br />
É, é, acho que é...<br />
É! É! É!...- Não?...<br />
5
O BEIJO<br />
O casal se beija,<br />
já quase nada existe.<br />
O casal se beija,<br />
o céu já não existe.<br />
O frio incomodava,<br />
incomodou.<br />
Dois são um,<br />
herméticos,<br />
florindo<br />
primaveras insólitas,<br />
em círculos, em séculos.<br />
Agora<br />
para o casal<br />
tudo nunca existiu.<br />
6
ANTES DE SAIRES DE CASA<br />
Antes de sair de casa<br />
tapei a casa<br />
de ferrolhos:<br />
“Olho por olho<br />
dentro por dentro”.<br />
Por isso entrego<br />
neste cisco alheio<br />
a ti, companheiro.<br />
Na minha casa<br />
única e veraz<br />
de ventos.<br />
7
MARAMOR<br />
O amor e o mar<br />
o mar e o amor,<br />
maramor na praia,<br />
insuspeita praia<br />
no beijo inconfesso<br />
no frio da água<br />
- o calor.<br />
8
VENTO<br />
O vento adentra a janela<br />
aberta para que o vento entre,<br />
para que tudo em movimento<br />
em movimento fique,<br />
até ser chegada a sua hora,<br />
tempo de não haver mais janelas<br />
e o vento estático se petrifique.<br />
9
INVERNO<br />
fora o frio é noite<br />
dentro o frio é gente<br />
10
COLHEITA<br />
Teus olhos<br />
campos que colho<br />
meus silenciosos<br />
vendavais.<br />
11
MEU AVÔ<br />
Meu avô depois cambaleou<br />
e me falou algo indizível.<br />
Sob as estrelas do céu<br />
assim nasceu um novo jardim.<br />
Sobre seu espesso corpo,<br />
sob a noite<br />
e as estrelas,<br />
um novo jardim.<br />
12
ESQUECIMENTO<br />
Sem pássaro nenhum<br />
sonhar este vôo<br />
se esvanece<br />
no ar.<br />
13
ÚLTIMO PEDIDO DO POETA<br />
- Sem flores, amigo,<br />
sobre meu verso reticente e branco<br />
estas flores desbotariam.<br />
14
DESTINOS<br />
N – destino.<br />
S – destino.<br />
15
INSIGHT<br />
A lâmpada<br />
morre sempre<br />
de manhã.<br />
16
REALIDADE<br />
O sono<br />
do sonho<br />
é se<br />
acordar.<br />
17
PERDÃO<br />
O amor fecunda o perdão<br />
como um pássaro num hino<br />
solto na prisão.<br />
18
FLOR<br />
Esta é<br />
o calor<br />
duma estrela<br />
fixa<br />
correnteza<br />
sóbria<br />
na lápide<br />
dos leitos<br />
devastados?<br />
19
MÚSICA<br />
Sou só<br />
por isso solo<br />
uma guitarra - universa<br />
gemida e dispersa<br />
de um disco<br />
sol<br />
20
HORIZONTE<br />
Paisagem que interfere nos meus pensamentos<br />
embora saibas que sou breve, um só momento,<br />
és assim forte como a pedra, a água, a terra o fogo<br />
e tens a consciência de uma eternidade.<br />
Tens amor de uma maternidade, donde<br />
abres as minhas janelas para o Norte,<br />
até se voltarem as feras, nas guerras, onde<br />
coloridas as unhas com o esmalte<br />
vives feliz na tua promessa fértil<br />
de sepultar vidas, e nascerem novas histórias<br />
21
2---------..--<br />
22
SURPRESA<br />
surpresa<br />
diagramada<br />
em viver ou morrer<br />
um detalhe<br />
no cimo<br />
do monte<br />
a sempre<br />
pomba avante<br />
escape<br />
da paz<br />
que se ensina<br />
para o soldado<br />
em que se abomina<br />
a arma<br />
talvez adiante<br />
diagramada<br />
sombra<br />
23
na olheira do coveiro<br />
uma cor<br />
que entendo<br />
uma coisa intérmina<br />
ociosa em diáspora<br />
espero<br />
24
O ROSÁRIO<br />
E A MATRIZ<br />
O Rosário<br />
olha de soslaio<br />
e inventa as cores da Matriz<br />
adornada e pálida.<br />
.Entre um e outra,<br />
nasce raiz e cresce,<br />
deságua, aflita, flagela e venta almas<br />
no canto reprimido de sereias ( mas não há sereias:<br />
há cervejas como em todo o lado.<br />
Estão lá, na lama, ou no bar do Ico...).<br />
Flameja a coroa de flores; Cristos<br />
morrem desorganizados, meninos;<br />
morrem no pôr das chuvas rápidas.<br />
Nós zumbamos e seremos rasos, caso<br />
florestas carecas (estas Pedras Grandes voam pela minha janela!...)<br />
inventem mais Mário que só gostem desse ar dos anos idos...<br />
Volvamos os olhos: o Rosário<br />
enfadado de horas, inventa a Matriz<br />
e seus planos matemáticos. E políticos práticos<br />
ouvimos, cegos... Nus vestidos, em caldas e músicas<br />
dançam em festas nos sábados.<br />
25
Nas outras festas, de morangos, zumbem pires, amargos<br />
camargos, e ônibus que têm sido velhos cansaços...<br />
Enquanto o sol decide se é vero, cede ou sede e rema contra a corrente,<br />
as nuvens do céu recolhem suas outras cheias de redes<br />
pré- congregam no sal amargo o doce<br />
bocado e sangüíneo passo das três cores sobreviventes.<br />
É meia- noite! Martela o sino, e a Matriz<br />
como que, cansada, olha e vê o seu Rosário,<br />
que ao fim dessa noite estilhaça em novos óculos verdes os seus dias<br />
seguintes, quentes, mas sem fabricar mais qualquer orvalho...<br />
26
nuvens<br />
descem<br />
calmas<br />
NUVENS<br />
nuvens<br />
sobem por um cílio<br />
como<br />
um<br />
só voltarem<br />
nuvens<br />
risco<br />
como<br />
cinzas ou alvas<br />
alva<br />
que<br />
os<br />
para<br />
obscurecem<br />
mas não renegam o ciclo<br />
consome<br />
céus<br />
a<br />
27
calva<br />
sem<br />
sido<br />
pela<br />
idos<br />
por<br />
curva<br />
nos pêlos<br />
ter<br />
clareada<br />
tua<br />
sumiu<br />
lua<br />
cheia<br />
uma<br />
que<br />
28
AMOR<br />
AMOR<br />
AMOR<br />
AMOR<br />
MOR<br />
AMOR<br />
CIDO<br />
TECIDO<br />
TECE<br />
TECE<br />
TECE<br />
TECE<br />
TE<br />
TE<br />
AMOR<br />
29
O PÁSSARO DE FOGO<br />
Ramos além de nome, planos,<br />
no horizontal reinado dos ombros.<br />
Acima da cabeça, ele<br />
se apropria<br />
das íntimas escolas de ventos mornos<br />
Absurda é a roupa que se congrega<br />
e carrega a abertura de uma janela<br />
ou uma porta.<br />
Sofrimento do fogo original matador<br />
organizado no granizo da chuva<br />
encanto de um homem alterado.<br />
Atinando acima o volumoso e corredio<br />
pássaro de fogo encontrado,<br />
no filo mais que animal alertado o olho<br />
estável no fogo mais que vazio é sol.<br />
Sutil afago ouro de abril.<br />
30
Ou quando se incendeia o céu se sobressair<br />
nas asas corredias em um outro outono.<br />
31
BATRÁQUIOS DE CIRCUSNTÂNCIAS<br />
os batráquios de circunstâncias<br />
ou cavalos de máquinas em tons<br />
árabes de culturas circulares<br />
evocam em seus vôos cancelados<br />
são ovários nascendo dromedários<br />
parindo ovas de trutas duras<br />
são pássaros de pífaros robustos<br />
obras de poetas em suas securas<br />
são claves de sol de músicas<br />
que se atrofiaram nas batalhas<br />
que se atreveram a ficar sem pais<br />
são os sois que os cabelos encontram<br />
o penar das leis encobertas<br />
o nó da garganta nos fios das folhas<br />
e as cigarras em silêncio na terra<br />
que os mortos vestidos acompanham<br />
32
ASTRONOITE<br />
Como se fossem cavalos alados<br />
nos despenhadeiros caiados,<br />
as formas em Júpiter, à esperança.<br />
Como um sortilégio na febre<br />
no filme passado ao fio do fio.<br />
E a cola no costado das cadeiras.<br />
Os náufragos olhando pela vida<br />
e os sem-fim imortais como que morrendo<br />
de fome, de ar, de flor, de corpo.<br />
Com os exércitos renegados<br />
girando no ventre lunar,<br />
com a sorte de um<br />
são os sobreviventes dos hecatombes<br />
e nós comendo aves assadas<br />
dentro do porão das astronoites.<br />
33
desenho um papel<br />
DESENHO<br />
ora branco<br />
aí estanco com medo e método<br />
um verso<br />
a fome<br />
a solidão<br />
são comuns no<br />
visões próprias e escondidas<br />
as eras<br />
assim como a morte<br />
ora negro<br />
verso em cores e linhas.<br />
os donos ruins de tudo<br />
papel idôneo<br />
impulsiona-me dia- a<br />
dia<br />
34
umo ao risco<br />
alegria<br />
à gravura<br />
e à<br />
arquitetados como selos<br />
em tê - las<br />
minhas<br />
ruas<br />
aos seixos<br />
das<br />
verdadeiras<br />
vazias<br />
35
NOVA CANSEIRA NAS RETINAS ANTIGAS<br />
uma pedra<br />
um caminho<br />
uma pedra<br />
diviso<br />
no meio<br />
um caminho<br />
uma pedra<br />
um caminho<br />
um caminho uma pedra um caminho<br />
(circunstantes)<br />
36
3.<br />
37
GUGLIEMO- O VASTO LIGEIRO<br />
Reles e profundo, boca de sorrisos,<br />
sombra que vasculha o seu interior corporal,<br />
lindo com um brinquinho na terceira orelha,<br />
na linguagem zurra afinado e com amores vazios, iguais.<br />
Os raros dentes do siso com a impostura final<br />
Olho lateral sem brilhos para outros,<br />
ao contrário, contrai a face escavada se lhe confiam.<br />
Cuidado! Por trás da voz outra fala<br />
e absurda quem escuta com outros ouvidos.<br />
No alto da cabeça, supõe que o vazio<br />
de estações orbitais e tecnologias fizeram ninho.<br />
Os pássaros foram embora sem entender<br />
porquê o pensamento falho voa melhor do que asas.<br />
Mas contribui para melhorar o coito, o anticlímax,<br />
desenvolvendo teorias de beijos nos pés e axilas.<br />
Talvez contribuísse se lhe disséssemos que o Amor<br />
pegou seu boné, se vestiu e virou freira.<br />
38
Outro fato patente é que pessoas lhe confirmam<br />
além do que quer ver se lhe apresentam;<br />
verdades e mentiras. “Um pouco de hipocrisia, diz ele,<br />
eu quero para temperar minhas sementes”.<br />
Ele que tenta aprender questões difíceis se nega<br />
a entender com o lobo frontal por pensar escrotalices.<br />
Não tentem ser amigos dele se ele quiser, amigos,<br />
é melhor uma ausência de sol que temporal de excrementos.<br />
39
A SOMBRA<br />
Minha namorada era vazia,<br />
uma mão de vento e pés de nuvem.<br />
Seu olhar de vidro era bonito.<br />
Seu perfume sem flor era sem jeito.<br />
Um dia ao caminharmos ela sorriu<br />
sem sorriso,<br />
e eu não consegui notar<br />
suas alegrias.<br />
Anteontem nos casamos e tivemos<br />
uma filha.<br />
Que nome dar a essa criança? Vazia?<br />
Sombreada? Estranha?...<br />
Eu não sabia, mas sua mãe teve a idéia<br />
no seu colo macio,<br />
feita de espumas e hálito:<br />
“Será a Sombra!<br />
Tão leve como leve é a imagem<br />
40
do Pai,<br />
da Mãe,<br />
do Espírito Santo.<br />
E de um vento e um carinho”<br />
Mas com o mesmo sorriso emblemático<br />
de sua mãe improvável.<br />
Nesta Sombra, sem dúvidas,<br />
minha filha e inteiramente sua<br />
nesta pequena noite do dia<br />
sem rasuras.<br />
41
CRIAÇÃO<br />
E o verbo se fez<br />
música,<br />
a tua música, o teu<br />
sonho.<br />
No dia, na hora<br />
sagrada,<br />
olhaste calmamente<br />
nas luzes,<br />
e admitiste entre rosas:<br />
-Semente,<br />
levanta – te e faze – te<br />
árvore,<br />
que dê os frutos<br />
e alargue<br />
para toda a terra<br />
fartura.<br />
E frente aos riachos<br />
e as palavras<br />
e a morte que nunca<br />
se via,<br />
se fez o homem<br />
da lágrima<br />
misturado ao pó<br />
da terra:<br />
-E Deus sorria<br />
42
ROSAS<br />
Cogito ergo sum, não:<br />
uma rosa não é uma rosa,<br />
não é uma rosa.<br />
Não são idéias.<br />
Uma rosa são várias<br />
e duas rosas são belas.<br />
Na fonte onde habitam<br />
falam como se escapassem<br />
pelas janelas...<br />
Rosa como a de Guimarães,<br />
rosa como a de Maria Rosário,<br />
rosas como a dos ventos,<br />
rosas como a de Hiroshima<br />
e Nagasaki, como dos tempos,<br />
rosas como a das perdidas,<br />
rotas, tragadas, forçadas, derruídas...<br />
Não: uma rosa não é uma rosa,<br />
não é uma rosa.<br />
Não são idéias.<br />
Uma rosa são várias<br />
e duas rosas são belas.<br />
43
O OVO<br />
Perfeito em sua forma<br />
iguala- se à perfeição marmórea:<br />
espaços e simetrias.<br />
Branca<br />
solidão dos tempos ignoram<br />
o custoso ônus de ser branco,<br />
branco e impoluto.<br />
No primeiro silêncio<br />
se ignora<br />
a incorruptibilidade calcária;<br />
no segundo,<br />
tal qual minério escavado<br />
por mãos nunca vistas<br />
sobre a obra.<br />
Proposta<br />
pela cadência das entranhas,<br />
cria o ovo perfeita forma<br />
À memória de João Cabral de Melo Neto<br />
44
nas areias vitrificadas<br />
da memória<br />
no centro<br />
da borrasca que o formou.<br />
45
Suporta o vapor<br />
dos doze homens que te consomem,<br />
que te comandam.<br />
MARCA<br />
Sem reclamares do frio da lâmina,<br />
de engrenagens em dentes afiados,<br />
reduzindo homens ao medo, cheio de corpos<br />
e números que te comandam ao explicá – lo.<br />
Suporta, homem, o vapor<br />
destilado de ferro que aceitas:<br />
este gosto de óxido,<br />
ferro quente e<br />
ácidos cáusticos,<br />
no estômago e nas vestes.<br />
Aceite as mãos cortadas, material básico<br />
das peças construídas. Nas mãos<br />
que um dia foram tuas.<br />
Suporta a mão, respira.<br />
Suporta e reproduza as máquinas<br />
que te conduziriam à liberdade.<br />
Possuída por outros que detém<br />
as diretrizes do sangue<br />
e do suor solúvel, substituível.<br />
Sutura teus desejos aos doze senhores,<br />
armados com armas licitas e que te comandam;<br />
contém tua vida- substância.<br />
Ou achaste termo à vida?<br />
46
Achaste a vida, nesga piscadela, neste<br />
pesadelo, que não convém ter lágrimas.<br />
Suporta- homem-: estas se houvessem<br />
nunca seriam tuas...<br />
47
AUTOBIOGRAFIA<br />
DE UM MENINO<br />
DE RUA<br />
Prometo<br />
ser atento<br />
simultâneo<br />
e contente<br />
por viver<br />
ainda que por<br />
um triz<br />
ou segundos<br />
largos<br />
num mundo acabado<br />
e eu estreito.<br />
Não entendo<br />
mudo<br />
e me cuspiram<br />
no absurdo<br />
que levo<br />
nas palavras<br />
escuras<br />
e das palmas<br />
de minhas mãos<br />
tão claras ...<br />
48
ORAÇÃO<br />
Se eu não visse<br />
acreditaria,<br />
o vento, o próprio vento<br />
ora,<br />
ajoelhando-se nos seus joelhos<br />
de vento.<br />
Sopra e a brisa<br />
do seu corpo passado<br />
no verdor de sua alma em revolta.<br />
Um céu e um beijo de ar,<br />
no centro do coração, um lamento.<br />
A quem ora? A si mesmo e todos.<br />
E a nossa alma vazia no sono em Deus.<br />
O vento beija em seu templo<br />
a oração dos aflitos e recorre<br />
à suposição fundadas<br />
em ar.<br />
E nos tufões recorre às cinzas<br />
dos vulcões seus claros incensos.<br />
49
Tudo para mostrar-nos,<br />
que a vida, leve peso,<br />
é o movimento de um certo tipo de tempo,<br />
gasto pelo beijo das mãos, juntas, e vazias,<br />
em oração.<br />
50
OS CAVALEIROS<br />
Há mais que um forte clamor de transtornos<br />
neste cavalgar dos quatro cavalos.<br />
Seus cascos rebrilham em tons nada claros,<br />
tens já em tua mente as cores e os nomes?<br />
Toda a relva desiste de vida.<br />
Toda vida é silêncio e clausura.<br />
Todos os sons, segredos, sepulcros.<br />
Tudo completo, enfim, tudo escuro.<br />
Quatro bandeiras, quatro promessas,<br />
quatro pensamentos, quatro discursos.<br />
Quatro adeuses, acenos encobertos,<br />
quatro mistérios cavalgam o mundo.<br />
No teu quarto aparente e seguro<br />
só com teus olhos se surpreenderias<br />
se com teus ouvidos avistasses os galopes,<br />
os galopes, os galopes já em teus corredores.<br />
Não mais ao longe, na distante Beirute;<br />
China ou Coréia, Senegal ou Rússia,<br />
mas no meio de ti, na corrente profunda,<br />
no sutil e diário passear do teu sangue.<br />
51
AGENTES SMITH<br />
Eles vieram de longe, a sala recendia<br />
a cinamomo, hortelã e aloés.<br />
Vieram trajados de negro, não do<br />
luto, ou tempestades; vieram como<br />
se quisessem saber o nome de cada um de nós.<br />
Assim, entre baforadas jogadas em nossas caras,<br />
eles se sentaram e pediram café, água.<br />
Demos tranqüilos. Riam muito de tudo,<br />
mas com a polidez que se deve ficamos<br />
calados. Eles viram nossa caras e<br />
não perguntando nada, sentados,<br />
roubaram a luz e o riso de nossa casa.<br />
Depois vieram de luto e sem meio – termos..<br />
Vieram como alguém que não pergunta,<br />
e abrimos a porta estupefatos; aí riam<br />
muito e se levantavam para ver a mobília.<br />
Ficamos quietos quando nos diziam<br />
disparates de quanto custava os cantos da casa.<br />
Quietos permanecemos e eles não mais<br />
diziam nada, a não ser que estavam<br />
52
com vontade de roubar o céu e o mar.<br />
Assim eles levaram nossa voz , para<br />
depois voltarem depois, sós.<br />
Da terceira vez, já não abrimos a porta.<br />
Eles já estavam cá dentro. Quiseram<br />
permanecer quietos dentro de uma imobilidade<br />
circunstancial. Então começaram a dançar com<br />
os sapatos que calçavam e houve uma festa.<br />
Levaram assim a nossa alegria,<br />
para depois levarem nosso pranto e<br />
o nosso amor. Como convém a mais estrita<br />
polidez os aceitamos. Ficamos calados como<br />
convém receber convivas descansados.<br />
Agora eles já não pedem permissão.<br />
Eles não entram mais em nossa casa,<br />
porque cada qual é um de nós<br />
e nós somos, cada qual, um deles...<br />
53
ATIBAIA<br />
Deste-me duas flores,<br />
as que faltavam.<br />
A água que busquei me deste<br />
para banhar-me dela.<br />
Tomei de ti o teu nome, para comigo<br />
bem guardá – la em cofre.<br />
O pôr- do- sol na Pedra Grande<br />
“Perfeita como<br />
as coisas tem que ser”<br />
Mário de Andrade<br />
solucionaram minhas pobres noções de cores.<br />
Tornei-me luz na tua aurora,<br />
e no fulgor que me engasta<br />
vigiando teu povo uma hora.<br />
Onde estás que me respondes<br />
assim de maneira tão clara?<br />
E Clara, que aqui encontrei ontem,<br />
que fere meus olhos de tanto amor?<br />
A tua gente que trabalha<br />
firme, suportando tanta dor?<br />
54
És tu o vento que me enleia,<br />
breve brisa, ou cata-vento?<br />
Bandeira das antigas bandeiras<br />
e hoje talvez a sombra que se herdou?<br />
Tuas marcas ardem em mim,<br />
em minha alma, em meus trajes, há muito.<br />
Verdades não ditas em um paraíso quase possível<br />
num futuro que ainda não chegou...<br />
55
O MOTOR DO MUNDO<br />
O sangue corre em segredo<br />
mal se reconhece o sangue,<br />
rega e floresce a cidade,<br />
vermelho, reflete no céu,<br />
espesso, faz crescer a noite:<br />
- sangue noite: medo.<br />
Fecundam meus olhos o mito<br />
das minhas seguranças baças,<br />
e concordam mesmo que não.<br />
Leio pesadelos nos corpos<br />
que andam, falam, destilam:<br />
- sangue noite: medo.<br />
Ecoam nestes horizontes<br />
ausências cheias de sangue,<br />
e reinam, preenchem tudo.<br />
Nada mais para se fazer<br />
a não ser proclamar a senha:<br />
- sangue noite: medo.<br />
56
SÃO PAULOS<br />
São Paulos concretizadas<br />
no furor de São Paulo.<br />
Há vida por cima dos recém- construídos<br />
ídolos- viadutos.<br />
Carros viajam. Motores e almas uivam.<br />
Com sorrisos cheios de gentes<br />
nos homens e mulheres absolutos.<br />
Em baixo só há dívidas,<br />
não se têm mais indivíduos<br />
só as mãos escuras<br />
que vão às urnas bem enfileiradas<br />
- de 4 em 4 anos<br />
Metodicamente bem enfileiradas,<br />
voto por voto concorrem<br />
os ácaros,<br />
que se elevam até chupar<br />
a ultima gota dos últimos;<br />
falando de músicas, esperanças.<br />
Haja quem acredite em cima em algo,<br />
mas em baixo já não acredito mais em nada.<br />
57
Como os séculos<br />
ADÁGIO<br />
que se sobrecarregam de dias,<br />
um perfume embranquecido<br />
de pétalas e um sentido<br />
seqüencial de tempo.<br />
Como as vidas assombradas<br />
diante de um dilúvio<br />
despedem- se das noites,<br />
entre a água e o alento<br />
suave de anos.<br />
Como a habitação fantasma<br />
destruída, feita casa<br />
desabitada de longa sina<br />
entre portas e janelas<br />
inexistentes.<br />
Como a tarde que se vai<br />
por entre seus cabelos<br />
distribuídos pelo campo<br />
e nas colheitas suas,<br />
58
mulher- semente.<br />
59
DESPERTAR PARA DORMIR<br />
Entre os céus tão limpos<br />
e o sol tão vasto acordei.<br />
Dei comida aos pássaros<br />
e me retribuíram com os sonhos<br />
altos de uma noite que vem depois.<br />
Sentei- me à porta sem trabalho<br />
de minha casa sonambulante.<br />
Vi meus irmãos despertarem,<br />
vi alegre e ouvi o que de fato pedi,<br />
para surgirem meus amigos<br />
das sombras, aniversariantes<br />
novos em folha, reunidos para a festa.<br />
Como lá fora,<br />
o varal de roupas velhas, levantadas,<br />
com os braços cheios de ar e de saudade<br />
acenavam para que o dia as vestissem.<br />
Isso tudo na ânsia que meu dia fosse<br />
completo e claro.<br />
E eu<br />
totalmente cansado,<br />
dormisse.<br />
Em memória<br />
de Manuel Bandeira<br />
60
TRIGAIA<br />
O pão que comemos<br />
nele não vemos<br />
os imensos trigais.<br />
As águas dos rios,<br />
dos lagos, dos mares,<br />
a tempestade e o furor;<br />
a gota de orvalho<br />
que há numa flor,<br />
que faz dos teus olhos<br />
escorrer uma lágrima<br />
- nem isso não vemos.<br />
Os filhos, a terra,<br />
a estupidez de uma guerra;<br />
a doença e a fome,<br />
os desenganos e os sonhos,<br />
e a nossa mão<br />
que não toca no ombro<br />
do nosso irmão<br />
- disso também nos olvidamos.<br />
61
Para esquecer<br />
a tarde que chega,<br />
o tempo que esvai,<br />
o cansaço do dia,<br />
comemos o pão<br />
quietos na mesa,<br />
tendo certeza<br />
que nele não vemos<br />
os imensos trigais.<br />
62
A CONQUISTA DA PALAVRA<br />
Para a palavra ser bem escavada<br />
não se pode apenas esperar o dado<br />
no desígnio aleatório da jogada.<br />
Como touro no trabalho dos dias<br />
ferido de ferro a palavra é faca<br />
que desfaz antigas missões já concluídas.<br />
É falar deste cão irritante que escapa,<br />
no encanto elíptico da palavra,<br />
não nos omitindo mas presentes.<br />
Em cada azul dentro dos céus que chama,<br />
fixa conquista dos significados:- Ata<br />
este labor sobre a terra transparente.<br />
63
ORIDES<br />
Ao meio-dia a vida<br />
prova o contrário:<br />
- dá noites em profusão de esferas,<br />
de um dia em que o menino levanta a mão<br />
a carruagem passa:<br />
- e o fogo<br />
amansa as feras.<br />
Ao meio- dia a vida de cada sobra<br />
rouba a cor dorida, a cor,<br />
carne plena de ossos azuis, metrônomos:<br />
- mais anda permanece construção<br />
construída na mão de pedra<br />
de plantão- é muito dura esta.<br />
Ao meio-dia a vida se encerra<br />
e as dúvidas armam-se das dúvidas,<br />
das entranhas explícitas:<br />
- no sol,<br />
complexo da lua;<br />
e sua sortida lua,<br />
64
enamorando-se de sol.<br />
É ao meio-dia: toda<br />
a vida, ternura, vidro,<br />
óculos debaixo da luz ;<br />
- a maior altura<br />
da figura roubada,<br />
e o menino a procura.<br />
A figura roubada, a figura<br />
e tudo se transfigura, pleno:<br />
- ao meio-dia.<br />
65
TEMPOS PRESENTES<br />
Aos apocalípticos,<br />
meus amigos:<br />
É o fim dos tempos<br />
é o fim das palavras,<br />
é o fim de todos os termos,<br />
a farsa final da máquina<br />
o sobreaviso das fábricas,<br />
nesta era de dunas<br />
em leito de esquecimentos.<br />
(Os homens sobrevoam as cidades,<br />
mas ainda não sabem se comportar na terra,<br />
no andar descalço no liso chão ameno e feminino.)<br />
É o final de toda a obra<br />
a solidão de ser sozinho.<br />
Num raro senso econômico<br />
a flor da poesia nasceu<br />
no cálculo algébrico<br />
após o rastro atônito<br />
floriu minha última utopia.<br />
66
ROUPAGEM<br />
LEVE<br />
Roupa,<br />
sou<br />
sua<br />
alma<br />
nua<br />
sua<br />
cortês<br />
flâmula.<br />
Sua<br />
imprecisão<br />
madura.<br />
Sou<br />
o que<br />
minha<br />
pele<br />
é<br />
para<br />
mim.<br />
E o que<br />
67
você é<br />
para<br />
a<br />
pele:<br />
um outro<br />
adorno.<br />
68
A MORTE É TÃO BONITA<br />
A morte é tão bonita,<br />
quando o outro é a vítima<br />
E quando nós somos ela<br />
entupidos estamos de dor.<br />
Mas o outro não sente a dor<br />
tem vontade de rir:<br />
Mil e trezentos mortos<br />
e tantos outros feridos,<br />
várias facadas nos olhos<br />
uma machadada nas costas<br />
e uma destas armas<br />
verdadeiramente dispara.<br />
É tão belo o grito, o berro<br />
o sangue tão vermelhinho<br />
“ Na enfermaria<br />
todos os doentes cantam<br />
sucessos populares”<br />
Renato Russo<br />
69
no assoalho tão vermelho,<br />
vermelho na televisão.<br />
E o apresentador, por cima<br />
nos diz entre tiros e alvos,<br />
com um sorriso inconfessável<br />
no rosto cândido: “Boa noite”.<br />
É noite, é morte, é anzol,<br />
é a carne lívida, meu amor:<br />
- Boa noite.<br />
70
TENHO RECEIO<br />
Tenho receio que o amor foi embora,<br />
amadoristicamente adolescente na dura sala<br />
em que trabalho com o suor do teu rosto.<br />
Sofremos no presente a flor<br />
da rosa que se martiriza,<br />
instigando esta do campo em ausência.<br />
Debaixo do sol tudo posso, tudo desanima,<br />
se confio em mim próprio, em minha conversa:<br />
“Capacidade tenho e quanto sou bom...”<br />
Dou tudo aos pobres, até minha vida...<br />
Sou tudo a todos, sou até briga.<br />
Abrigo sou eu, eu, que vou contigo.<br />
Porquanto tenho medo nesta casa,<br />
e dentro das casa não há nada- só quatro paredes,<br />
tenho medo dos corredores, das baratas,<br />
das batatas, dos amores, de tudo que é verde.<br />
Imprestável fadiga, meu dilema:<br />
meu dinheiro embora crescente e fértil não me enche.<br />
71
Embora finja com a barriga cheia,<br />
sempre sou vazio como um vento.<br />
E você nota minha fadiga dia- a- dia, sempre.<br />
Embora seja como eu, doente.<br />
Embora sejamos como a flor<br />
um rio sem águas que se evaporou.<br />
72
PRÉ-PROJETO E<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
BÁSICA PARA POESIA<br />
Rosa não murchou;<br />
Homero?<br />
Pessoas mentem?...<br />
Carlos - pedrada;<br />
em Manuel e Mário,<br />
carentes;<br />
só este Cabral canto,<br />
Jesus Cristo, Raul<br />
penso, sabia.<br />
- Na moda pura e física,<br />
procuram diversos tipos,<br />
Borges e Buda, Caminha,<br />
- poderia?<br />
monotonia.<br />
ciprestes,<br />
a formiga,<br />
cem cigarras,<br />
um pé de milho<br />
e umas estrelas.<br />
73
Eu ainda continuo<br />
minha procura<br />
nessas listas<br />
na areia.<br />
74
CHUVA<br />
Óh - chuva... grande é tua calma<br />
de escorreres mais que o orvalho sem respostas,<br />
removendo o pó de todas as casas.<br />
Sofres - e como sei- ao saíres dos céus e caíres em terra.<br />
Como és grande em intenções, porém tão pequeninas<br />
em gotas que uma –a - uma me refrescam<br />
e tiram de minha alma a cicatriz ferida.<br />
Como és tranqüila e amena<br />
em folhas que se satisfazem se nelas ecoam<br />
nos meus ouvidos o canto de dias tristonhos,<br />
mas ricas em lições molhadas e serenas.<br />
É nos dias mais escuros que resolves aparecer...<br />
Dissonante com os barulhos de todas as ruas,<br />
sincera e apreciável água das chuvas,<br />
que lavam meus pés mais do que humildemente.<br />
75
INFÂNCIA<br />
Meu pai<br />
não montava a cavalo.<br />
Navegava navios<br />
e singrava os mares,<br />
os mares mais bravios.<br />
Minha mãe e meus irmãos,<br />
meu irmão mais novo e<br />
minha irmã,<br />
dormiam um sono profundo...<br />
E eu encolhido<br />
à espera do nascer do sol<br />
pintava a palavra mais sonora<br />
que eu deveria pintar o mundo.<br />
E depois de longas horas<br />
meu pai voltava<br />
das suas ramagens de nuvens;<br />
de suas longas histórias navegáveis,<br />
onde homens fortes quebravam sinos<br />
das imensas catedrais.<br />
E minha infância foi passando...<br />
76
- e meus irmãos foram crescendo<br />
para que minha história<br />
se não fosse a mais bonita<br />
fosse a mais importante<br />
de minha única vida.<br />
77
POBRE PAISAGEM COM MULHER POBRE<br />
A anônima no chão: ela pergunta?<br />
Ela dorme? Seus pesadelos em seus olhos são exatos?<br />
O concreto e as pernas armados a dissolvem<br />
estes mesmos que à distância se distanciam condenando.<br />
Pobre e rota, mãos escuras, alquebrada língua,<br />
litros de secura, orgulho nulo, viés e mau agouro.<br />
Aumenta o quadro o riso sardônico alheio<br />
que a faz um quadro mais taciturno, fundo e espesso.<br />
Um gemido... – no chão citadino e sem escolhas<br />
provoca o desdém, além de alguém e o mal de todos.<br />
Miram-na no solo, na vida, que nasceu abandono;<br />
no suspense sujo de uma ninguém que ninguém perdoa.<br />
Estranho pendor de ser além de tudo aquém de nada,<br />
carne com tremores e ciclones no corpo faminto.<br />
Sim, este espaço é desta mulher, que, completa,<br />
tem seu lugar como lápide da cidade com a boca cerrada e aberta.<br />
78
---4.-<br />
79
AMOR<br />
O amor é o perfume<br />
que se compra ou respira?<br />
É amor o ciúme?<br />
Tem amor a mentira?<br />
Em cada flor não nascida,<br />
no silêncio da estrada<br />
o amor é quem fala.<br />
Sem amor o que somos?<br />
Sinto gozo- é amor?<br />
Sinto frio- já sentiste?<br />
Sinto dor, sinto fome,<br />
sinto isto, sinto aquilo.<br />
No sorriso sem dentes<br />
do amigo sem amigos.<br />
Neste mundo que não ouve<br />
este choro baixinho...<br />
Será amor a palavra<br />
ou o amor nada fala<br />
mas dá a comida escondido<br />
sem que ninguém saiba?<br />
É amor esta cama,<br />
o lençol, o corpo quente,<br />
que se vende aos poucos<br />
a todos nós, doentes?<br />
80
Sem amor qualquer casa,<br />
não há casas, não há chão.<br />
Sem amor, sem paredes<br />
tudo é perdido e vão.<br />
De nada adiante a aliança,<br />
nada vale o meu “sim”.<br />
Nada tenho, só fraquezas<br />
ao olhares para mim.<br />
Este ônibus que parte,<br />
o cachorro que se cala.<br />
Sem a pessoa com sede<br />
esta água a quem dou?<br />
Nesta estrada com flores,<br />
cardos e abrolhos,<br />
tem o mistério que esconde<br />
a clareza de alguém.<br />
Nesta vida se esconde<br />
este abraço não dado<br />
para que não faças do ódio<br />
teu alvo errado.<br />
Ódio a divida:<br />
- melhor trocares teus olhos<br />
te esconderes em colírios,<br />
amputar teu coração.<br />
Mas permanece a ciência,<br />
a ilusão que tudo é vasto.<br />
Permanece a morte,<br />
e nesta vida teu cansaço.<br />
81
Em todos nós, o cansaço,<br />
e permanece até o dia.<br />
- Mas sem o amor tudo é morte,<br />
tudo é morte e agonia.<br />
82
A CANÇÃO<br />
Esta canção não é a minha,<br />
surgida das cinzas e das<br />
chuvas<br />
impetuosas na rubra<br />
manhã,<br />
que está na cisma do<br />
escuro,<br />
e na noite mais serena e<br />
fria.<br />
Esta canção não é a minha<br />
ouvida<br />
no laticínio posto à mesa,<br />
no azeite<br />
e na cólera cega,<br />
em assembléias<br />
onde homens procuram<br />
a fome<br />
e se fartam<br />
da solidão da espera.<br />
83
Esta canção não é a minha<br />
absurdo canto<br />
do acalanto<br />
nebuloso<br />
nas patas de um urso<br />
bravio<br />
que quer capturar<br />
os sussurros<br />
impossíveis<br />
da rósea tarde<br />
finda.<br />
Esta canção não é a minha<br />
se estatelada ao chão<br />
em cruzes que bifurcam- se,<br />
transformando- se<br />
em moradas<br />
de insetos<br />
abjetos<br />
em ruelas<br />
ainda projetos<br />
de moradas<br />
não resolvidas.<br />
Nenhum canto<br />
84
se tantos<br />
se encantam:<br />
nenhum povo é temido<br />
nenhum caldo é tomado,<br />
é fervido<br />
nenhum santo é morto.<br />
Todos ouvem o nada<br />
e do nada se fartam,<br />
pois não ouviram<br />
das canções<br />
cantos<br />
nas estradas<br />
polidas<br />
em<br />
que ainda<br />
percorrem<br />
ruas e becos<br />
sem saídas<br />
em rampas<br />
íngremes..<br />
E a canção negada<br />
se transforma<br />
em visão.<br />
85
Esta visão<br />
outra coisa<br />
mais estrela ou vegetal<br />
puro, do mais puro minério.<br />
E esta canção<br />
canta- se alto<br />
afligindo a surdez de um mundo,<br />
que não suporta uma voz trina,<br />
perfeita e única a governar o gorjeio<br />
dos eternos pássaros bravios.<br />
E é esta a canção- nula que ensurdece<br />
e limpa as várzeas e os celestes céus.<br />
Se faz cantoria alada<br />
na suavidade intacta de uma mulher.<br />
Mulher que devolve a canção<br />
desdobrada<br />
para o infinito.<br />
E já não é campo, é nação.<br />
E já não é só, é junto.<br />
E já não é pós, é este<br />
além do que foi e sempre será,<br />
86
e que seria:<br />
- a poesia.<br />
87
A COMPANHIA - A LEI - E O NORTE<br />
A pedra largada, atirada à distância,<br />
acima da estrela de pó e rajadas,<br />
pela luz gritante e branca, dizia<br />
de dois homens, um velho que de si fazia<br />
um esforço incomum e o outro que permanecia<br />
e um jovem com uma cesta sem laranjas.<br />
Este atirava sua pedra para buscar,<br />
andando, com o céu lastimado e pouco azul,<br />
andando, sem estrelas, que o vestissem do manto<br />
de descansos o esforço, o tiro, a mão no rosto.<br />
O homem- ancião fitando o seu jovem o retomava<br />
à pedra caída dos dedos sem força.<br />
Como que não tinham – se visto nunca um ao outro:<br />
“Veja, estou cansado de andar na areia”- o velho dizia,<br />
“Cansado de ordens a naufragar os sonhos<br />
de pedras estas que não atingem nada adiante.”<br />
O jovem falou: “Mas é necessário, imperativo<br />
88
adiante, sempre adiante.” “Sim” disse-lhe ainda<br />
o jovem ao mesmo tempo que com forças renovadas<br />
com as mãos e as pedras, ao mesmo tempo<br />
miravam no seu espelho de sangue novo:<br />
as córneas perfeitas, os pés alados, as asas lisas: “Sim”<br />
disse – lhe algo ao jovem agudo - “Tais somos como Tântalo”<br />
ou sua variação, querendo sempre dizer<br />
que sempre ir adiante para além na volta<br />
ou mesmo até voltar tudo ao mesmo.<br />
“Sim, mas o rio que vemos<br />
aqui sempre ao lado é o rio,<br />
a pedra a pedra, a lei a lei”.<br />
“A lei, velho pai, meu pai, a lei”.<br />
“Sim, a lei que nos encurva, que nos encerra e lacera<br />
é esta a lei do dia mais que dormente”<br />
O jovem tomou a pedra das mãos antigas<br />
e que lhe foi entregue com sangue como guarida.<br />
O moço com uma raiva nova conheceu e<br />
atirou a pedra, não no solo, ou no rio, mas no azul sombrio,<br />
e lá no azul do céu se fixou e o fundo se perturbou<br />
pela primeira vez como um fruto descoletado;<br />
89
e a pedra era de turmalina; valeu – lhe<br />
tanto que pôs – se a perguntar<br />
o que faria com a insolência,<br />
tanto que foi além do céu a sua curva,<br />
além do mar, crivando um buraco no cenário.<br />
E de lá viu a noite chegar como um líquido<br />
tão nova que o velho calou – se para<br />
sempre e por fim desnaufragar –se.<br />
Daí se recolheram para algum lugar<br />
já que a pedra partira o mesmo mito.<br />
Já que a pedra partira o cristal fino<br />
do céu – ar – cristal –, agora a nuvem a cicatrizou.<br />
Tudo para descansar os dois em seus quartos,<br />
a chuparem laranjas sem leis,<br />
cheias do luar, néctar, e de açúcar<br />
mais uma vez calmos, sem conceberem<br />
o mundo ao esquecerem- se de tudo,<br />
o que há para se esquecer...<br />
90
NÃO FOI AQUI QUE NASCI, MAS<br />
FOI AQUI QUE MORRI VÁRIAS VEZES<br />
Não foi aqui que nasci, mas foi aqui que morri várias vezes;<br />
palavra por palavra nenhuma se ouviu,<br />
enquanto vivo escapava do seu mito,<br />
Atibaia, da sua secura feita de águas amargas, mas<br />
tão feita aos seus que se propagam nas aventuras além das torres.<br />
O comando da montanha grande e pedra me envolve no teu<br />
mito dourado, tão intenso à tua mais ampla fartura.<br />
Nada de procurar a fonte dessas águas, tão estranhas que te entranhas<br />
no nihil do teu vasto chão de marfim podada de ferro e sempre;<br />
sempre acolhendo o desavisado sua vida no teu monte calvo; águas imensas<br />
de contraste com teu fundo e espesso convite de bêbado,<br />
águas que nunca suportaram a vida além das quatro portas<br />
e das paredes de suas casas. Além de retornares para além da fresca<br />
ânfora, homens e mulheres absortos em serem iguais mais ao outro outono.<br />
A primavera da vida dos outros é a família de onde se extraem<br />
os teus mitos aquáticos e mais novos:<br />
como os cães que vivem em tuas ruas, ou dos gatos em seu saltos<br />
ou os pássaros em seus ritos maduros.<br />
Ou as baratas que vivem e morrerão no escuro.<br />
Na altura das tuas paredes virtuais o completo enigma,<br />
91
enigma do teu frescor de chão, de água, de pedra;<br />
Drummond falava de sua terra de aço, minha terra é de lama dentro<br />
dos ouvidos que assim percebem a água de barro, antes<br />
de tudo, minha febre absoluta e relativa,<br />
minha terra de neblina antes do Cristo Rei ser rei;<br />
antes dos Pires casarem com os Camargos e serem nome novos de ruas.<br />
Atibaia, terra aonde moro e vivo, absolutamente, dentro de minha casa<br />
casca de ovo segura e intacta, prevejo o meu nome entre<br />
os homens da triste figura. É meu bairro o lugar aonde fico calado.<br />
Pronto para renascer cavado e escavado, no monte e que sustenta a porta<br />
dos meu quarto, pedinte e onde eu estou cansado e faço dos riscos do<br />
meu desenho meu quadro:<br />
“Estou só na cozinha da casa dos meus pais.<br />
São aposentados. Ela, minha mãe, dorme;<br />
Meu pai assiste TV e eu estou só a escrever.<br />
Pupy, a cachorra, desliza com suas patas lá fora.<br />
Dentro estou eu e dentro de mim estou eu.<br />
Na mesa as formigas buscam fronteiras<br />
E o pão e a mesa revestem – se de amanhãs<br />
Talvez café com leite e açúcar; talvez não.<br />
Estou a escrever o poema e ele é preciso<br />
Como a mão é preciosa ao olhar e nada.<br />
Parece contristar –me. Estou só e minha<br />
92
Vida é pesada em algum canto da cidade<br />
Por dois pobres cuidando de suas feridas.<br />
Sou pesado para ver se continuarei vivo,<br />
Ou tudo permanecerá terça- feira para sempre...”<br />
Não foi aqui que escolhi,<br />
mas foi aqui que me perdi<br />
várias vezes. Entre as caminhadas em dias de chuva,<br />
encharcando minha camiseta<br />
com águas amáveis<br />
que caminhavam<br />
nos corredores das ruas paradas.<br />
Estou assim preclaro e dentro<br />
estipulo minhas penas, minhas missas<br />
minhas perdas e baques rápidos.<br />
Estou assim parado e busco reencontrar-me<br />
na fuligem das casa e nas frutas trânsfugas das feiras.<br />
No futebol do sábado. Nas esperanças do domingo.<br />
No irrisório das famílias que inventaram o amor, este,<br />
que se esfalfa entre os bigodes do velho<br />
e o amor da prostituta que se despe, nova.<br />
Esse que se desfigura nas reentrâncias da noite<br />
e que se veste de dia bem devagar.<br />
E que se mata de trabalhar entre as peças das engrenagens<br />
93
e se bifurcam nos dentes que me sorriem.<br />
Palavra por palavra<br />
ouvi o tropel das bandeiras, dentro dos hinos,<br />
dentro das crianças que levavam para suas casas os tiros de um índio<br />
( que já não existe em parte alguma...).<br />
As crianças que se perduram no campo alheio e penso;<br />
na cavalgadura de um passado encoberto<br />
nos olhos íngremes de uma estrela sufragada,<br />
no riso temporão dos informes longos;<br />
até esta criança levantar a sua bandeira quadrada,<br />
na insônia prenhe de uma bola de meia,<br />
que se tenta levar para sempre na criancice<br />
de brincar com os índios, presentes em uma folha de árvore<br />
para se tornarem mais um mito em Atibaia.<br />
Não foi aqui que nasci, mas morri<br />
tamanhas vezes, na intempérie<br />
das tempestades que cabiam na palma da mão.<br />
Até sufocar – me na idéia de me tornar chuva e poeira<br />
na metade dos olhos abertos em esquecer – me<br />
por inteiro no rio Atibaia,<br />
que se tornava chuvisco na consciência.<br />
O que era pleno e inamovível,<br />
uma pedra no meio do caminho.<br />
94
E que foi embora sem sequer ter nascida.<br />
Assim revisto – me do tanto em gotas<br />
e problemas interferindo,<br />
até se mostrar como coisa plástica, reusado de longe,<br />
acontecendo de voar em minha cidade.<br />
Ou naquela que não me aceitou, nunca, rindo. Sempre de luto.<br />
Ao mesmo tempo que denoto,<br />
a influência da cidade em minha vida,<br />
em minha morte, em meus devaneios.<br />
Para além das casas e postes, com suas luzes amarelas<br />
para além de formosura estrela de brancuras mornas.<br />
Na rua suja, dois alpinistas<br />
se ensalmourou.<br />
Não foi aqui que revivi,<br />
mas foi aqui que sonhei uma centena de vezes.<br />
Palavra que não minto de edificar o meu rio<br />
de águas boas. Onde apreciando às vezes, sortido, inaugurei o princípio<br />
da cidade azul. Ao longe de suas casas. Sem saber que o mito<br />
edificava a si mesmo, sem parar, sem nascer- se no infinito das coisas.<br />
95
A AMÉRICA DO SUL<br />
EXTREMAMENTE NORTE DO SUL<br />
O que é a América do Sul?<br />
Um sentimento?<br />
Uma raiz, fome, uma planura<br />
depois das montanhas andinas?<br />
Um excremento?<br />
Um homem fugindo?<br />
O que é a América do Sul?<br />
Uma palavra que caberia entre armas?<br />
Um lavrador sem sandálias?<br />
Uma chama que redobra a pele nos ventos lunares?<br />
Mas afinal o que é a América do Sul senão<br />
uma vala desterrada para guardarem as múmias pré- colombianas?<br />
Desfazendo- se dos olhos do menino que se fez de surdo- mudo,<br />
que se desfez das amarras da terra um ponto de apoio<br />
e sem caveiras?...<br />
Esse faz poeta ou poetisa, se menina?<br />
A América do Sul é um sentido de cobras em que cabem<br />
os milhões de homens virgens que não irão para o céu porque<br />
roubaram uma laranja.<br />
96
E as mulheres que se entregaram na fome extrema dos jantares<br />
de outros donos e não os seus.<br />
Mas para que serve a América do Sul além de divisas de<br />
alguns que a vêem como pronta- entrega,<br />
como face elaborada na televisão?<br />
Como séculos de solidão asseguradas as planuras orientais...<br />
E as ocidentais como a face amarga dos santeiros do nordeste do Brasil.<br />
A América aonde fica sem as coisas comuns de qualquer de suas<br />
casas? Aonde está luz no pátio, a frescura de uma limonada?<br />
Aonde estão os doces da avó?<br />
As fugazes histórias de esconde- esconde, dentro do onde?<br />
E o pai autoritário que se fixa no azul do céu para a coletiva<br />
“Como esta el señor?”<br />
Ande fica a América do Sul. Sei que no Sul, mas aonde fica esse sul tão ao sul do mundo?<br />
Que se tornou o Sul de toda a estância, de todas as plagas, de todas as<br />
serras de todos os Mares? Aonde fica o sol que nos brinda de sementes de épocas remotas e<br />
sem cor, com os plátanos que se dividem nas ruas<br />
De Montevidéu, até os alpes andinos, passando por um Brasil que<br />
não entende o seu espanhol?<br />
Esta América do Sul que é devedor sempre do irmão do Norte,<br />
que a visse como esteios de ombros largos para o tapinha<br />
nas costas e que se tornam mãos escuras<br />
para envolverem através das traças, das coisas enigmáticas<br />
97
e das coisas que nos devem o dever de poucos?<br />
Para que serve a América do Sul as pontes entre a música,<br />
com o tempero de pimentas ou hortênsias que se repetem<br />
e se tornam alvéolos dos lupanares?<br />
Para a festa dos penedos pedregosos para os rios que a cortam nas noites do ontem, para o<br />
orgulho dos amanhãs. A América do Sul dos chilenos com a ditadura.De um Pinochet que se<br />
faz de bobo da corte em que se tornam urgentes<br />
A salvaguarda de alguns que se distraem, “Há... mais um ditadorzinho...”<br />
Os dias amenos que se tornaram os do futebol, com a coroa<br />
de louros ao Pelé negro, se distanciam quando as armas<br />
dos presídios do mundo se tornam na América do Sul algo atroz.<br />
Quando o mundo a vê nos desfiles de moda ou com uma Picasso que não soube da sua<br />
existência. Mas está lá.<br />
No coração espanhol pagando os nomes no sangue das touradas e de Guernicas que eram os<br />
sons dos dia a dias.<br />
Se Espanha está no coração a América do Sul está nas entranhas.<br />
Está na fossa baixa das camas, está na célula dos ovos entre pernas transparentes,<br />
na vida da espiga de milho não cozida; na mortuária<br />
das mulheres de chamas em negras almas. Mas o que a América do Sul o que é?<br />
Senão a música de um José, de um Pedro ou Pedrita Arñida.<br />
98
É certo que é o bagaço da cana no Nordeste da América do Sul.<br />
As fossas do Novo Mundo é a caricatura dos rostos que na Europa<br />
eram vivas antes de serem dinheiro. Eram rostos que o Poeta via transfigurados em rostos<br />
plenos de céus e mares. Eram pedras e água.<br />
Sede e seca nos pés exaustos. Se de olheiras que pedem clemência no último amor escondido<br />
no alvor dos rios que planando entre cabeças cortadas, ou o sangue em prejuízos. Mas para que<br />
serve a América do Sul? Para<br />
Nascerem flores aos mortos, aos feridos, aos que de boca aberta procuram um anjo e que esse<br />
anjo se faça de nome: Orellana, Sarmiento, Contente, outros.<br />
A América do Sul é um mais do que vários, são os vales de um achado especial que o Poeta fez<br />
tão suas. Sua voz ecoa hoje:<br />
“...Período de formigas na terra.,<br />
nos lagos dos pés<br />
acomodados em coroas de sóis.<br />
Na soma de cor azul, tem<br />
sua força em termos frios<br />
nos plurais das galáxias fluorescentes<br />
a atender as rezas obscuras da terra<br />
e a entender a fratura dos pés descalços<br />
99
na fonte baça e amarela das flores<br />
dos livros do bem.<br />
Até a fratura dos pés em novelos,<br />
signo de inteligências esféricas<br />
na cor do primal e seu queluz,<br />
que se formou diamante e rocha etérea,<br />
na figura dela que seduz...”<br />
Está assim presente a forma luz, na terra negra dos cafezais, de Colômbia, do Brasil, que se<br />
vende aos poucos como a prostituta que vai atrás dos lábios eqüilinos dos seus verdes olhos que<br />
se impõem nas cadeias.<br />
Cadelas que se vendem aos poucos nos castanhos que virarão numa nuvem<br />
e descerá da terra leprosa, um inverno de estrelas. E a gota fina<br />
que se demorará em séculos, em invernos.<br />
Em Nerudas.<br />
Em sereias...<br />
100
Nas planuras das terras orientais,<br />
PAISAGEM URUGUAIA<br />
nos céus baixos e nas terras que esperam<br />
a paciência, enfim, de um redemoinho,<br />
nestes homens que em si carregam as marcas do desalento,<br />
que é o caráter dessa tristeza em dor,<br />
olham os lírios sem enganos: nem tecem<br />
nem fiam. Amanhece...<br />
É o mesmo sol azul, tempero do céu- luz<br />
em quadro na planura desta terra imersa no funil do horizonte<br />
que vê o gaúcho agachado na incidental geografia.<br />
Toma seu mate, e calcula uma- a - uma toda a desolação da sua sorte:<br />
a noite quer companhia.<br />
O vento lhe atrai,<br />
num coração por si só duro<br />
que não dilata<br />
e lhe faz mal.<br />
Um rio percorre a passagem banhada<br />
de estrelas,<br />
corta, esse rio, e esconde o destino de toda a terra.<br />
101
De toda a gente que se banhou no rio.<br />
O gaúcho não se levanta, nem de dia , nem de noite.<br />
Seu caminho para casa o leva. Leva-nos se fixarmos as vistas.<br />
Ele é cinza, abrigado com uma manta de algodão pobre,<br />
bigode e barba sempre por se fazer.<br />
Ele é cinzento e miúdos, seus sussurros o acompanham<br />
dos dias mais felizes que viveu.<br />
Ao seu lado na fogueira acesa e intempestiva,<br />
o cachorro nada se atém à balada do mundo.<br />
Cinza, também o cachorro, abana o rabo sem pêlos<br />
Concordando que sim com seu do<br />
mas negando-o ao espantar as moscas e a poeira.<br />
Os músicos dos pastos do pampa antigamente tinham menos sons.<br />
O gado era manso e seu capim alimentava.<br />
este gosto ruim por si só não havia;<br />
havia gosto, sim, mas as patas não concordavam com os ossos.<br />
Se houvesse pastagens mais amplas,<br />
se tudo fosse enterrado mais longe e não recendesse...<br />
Devagarinho com o despertar do primeiro pássaro,<br />
o gaúcho acorda,<br />
porém lerdo como o passo<br />
102
de tartarugas enfileiradas, ou ovos que esperem por si mesmo que os<br />
choquem. .<br />
O gaúcho resvala, vira a cabeça para baixo, chora.<br />
Toda a gravidade de cima.<br />
O peso da terra sob seus pés descalços.<br />
Os troncos das árvores precisam submergir- ele grita.<br />
Uma memória com os frutos inúteis nasce.<br />
Encravam de feiúra a mediocridade em sua carne ante.<br />
Tudo é cinza, e nada escapa.<br />
As paredes da choupana logo atrás onde o gaúcho se senta<br />
também são cinzas, e os seus olhos de buracos sentem o homem<br />
cinzento e quase.<br />
Dura é a travessia de se estar parado.<br />
Navegar é preciso, se ainda os navios percorrem com as armaduras...<br />
Mas o gaúcho não sabe: Veja!<br />
Ele olha com dores para cima, uma nuvem.<br />
Sim, uma nuvem.<br />
O cachorro intuiu a imensidão cinza,<br />
e insiste- veja!<br />
Algo se aproxima, a nuvem se aproxima.<br />
Tão bela se fosse nuvem, mas fábricas<br />
103
Vêem e o que se rebelou sem se insurgir, produzindo<br />
homenzinho cinza e calado.<br />
Uma nuvem pode ser chuva para subtrair a traição<br />
De todo cinza panorama no pampa.<br />
Humildade e calor.<br />
Antônimo de mau.<br />
Antônimo de toda a dor Oriental.<br />
Respingando até no frio das esperas<br />
nos ocidentes<br />
todas as manhãs de esperas acidentais.<br />
104
O MERCADO<br />
O mercado tem tudo.<br />
aprendi que tem de tudo:<br />
tem curdo, tem japoneses<br />
tchecos, eslovacos, tem chineses.<br />
Tem americanos, árabes;<br />
tem gente com gorgeios<br />
migratórios nos planos<br />
aéreos que ninguém vê.<br />
O mercado é isso:<br />
tem rudes endinheirados,<br />
castores com problemas,<br />
investidores insaciáveis.<br />
Tem torneiras de riquezas,<br />
tem dinheiro de compras,<br />
tem direito à nobreza<br />
e gente nos escombros.<br />
Tem direito à indignidade,<br />
e os paletós iracundos;<br />
105
tem gente que se norteia<br />
nos cardeais pontos rotundos.<br />
Tem sangue nas mãos<br />
e o pesar de todas as águas.<br />
Hoje foi só o amanhã<br />
e o amanhã ingente de ontem.<br />
O mercado tem a bomba,<br />
de chocolate e de verdade,<br />
tem a sociedade de morte<br />
e a morte em sociedade.<br />
Tem reis, rainhas, tem<br />
outros que se mofinam,<br />
na terra dos nibelungos,<br />
que se empanturram de geografia.<br />
Tem gente que se motiva:<br />
e o culpado é o petróleo,<br />
e o culpado é a ONU,<br />
e o dinheiro faz sua sombra.<br />
Faz tudo sem querer.<br />
incendeia. Corrige. Destoa.<br />
106
e ascendem em falências,<br />
de bilhões ou mil à – toa.<br />
Então no pregão do mundo<br />
este é vendido ao marciano<br />
em troca para fugir para Marte,<br />
e lá cultivaremos a Humanidade.<br />
107
CANUDOS<br />
Me mataram com a faca na garganta e o peso do peixe nas barbatanas.<br />
O sertão virará mar como o mar virará sertão, no ventre maternal, em ilhargas.<br />
Mesmo que me cozinhem e me entranhem na terra dos descalvados,<br />
mesmo que o sol queime e requeime e vire extrato de comer vermes.<br />
Estou em Canudos imemorial, de balas nada doces e confetes de luz e referências<br />
Quero suportar uma milha de aconchego nas cãs em que me vestem,<br />
sou do Conselheiro que se mira pelos olor do jacinto e verde,<br />
de jatobás de cunho amarelo reconhecido.<br />
Para levar às cercanias a palavra de tudo o que é verbo é inconsciente.<br />
Para matar a fome dos que ficarão entretecidos na baba que me despe,<br />
para falar de honras de honrarias de rifles acordos antes das manhãs( porque<br />
é assim que os galos de um poeta imaginou acordarem sempre).<br />
Para soerguer a calma dos alagados de pleno viva sem razão.<br />
Se se morre de fome, de urze, de urtiga ou de casco de gado sujo e fedor.<br />
Para nascer outro como eu em Juazeiro ou no xiquexique e subir<br />
som do tapa na bunda no começo de toda erupção de nascer.<br />
Culpa dos que vem do litoral e desembucham nos corredores do areial.<br />
108
Para vagar como alma nossa penada, penosa e das guacas do Sul de onde os bigodes de<br />
mais de um general tentou e não conseguiu nada dos nada que poderiam ter.<br />
E assim assoma as balas de vertigem e a República do coisa ruim de se espalhar<br />
nos acentos momentâneos dos políticos, que não aguardam mais do que<br />
água queimada de outros fins do mundo no Nordeste, de fim de todas<br />
as coisas nos profundos desmemoriais do outro mundo<br />
Depois de tantos anos de convalescença de morrer de morte morta e tuia,<br />
nasce dentre um oito um macho que permeia os calçadões dos fortes<br />
porque antes de mais nada o sertanejo antes de tudo são vários fortes.<br />
E Canudos a porção do fim de tudo ou paraíso que atravanca os pés bárbaros<br />
Que altearam, plenos, os calos que os sóis dos desterros enterram os destroços.<br />
Por falta de todo e qualquer amor no coração das entranhas e balas.<br />
109
HUMANA IDADE<br />
O humano, a falta do humano,<br />
há faltas:<br />
no madeiramento justo das casas<br />
na sombra íntima na comoção diária.<br />
Sobram os sonhos e as visões claras<br />
secas numa chuva rápida de verão.<br />
Vemos a terra em transe nas sombras<br />
alcançadas nas alturas dos edifícios.<br />
Em cada rua escura, do sangue cru,<br />
o mesmo que simula vidas erradas.<br />
Meu coração ainda palpita...<br />
Uma gente fala<br />
fala<br />
fala absurdos comuns.<br />
No aço comum das armas abastecem-se<br />
os homens ocos vestido para a batalha.<br />
O amor longa âncora, âmago e cerne<br />
na canção calada do tempo<br />
encontra - se com o estômago faminto<br />
110
e diz em terras alheias: há terras<br />
onde a febre da sua morte não impera.<br />
sobra sob<br />
o divino a ave<br />
sopro mecânica<br />
no voa<br />
humano um - a - um<br />
trato o infinito<br />
Neste mundo sou feliz, sou<br />
importuno por ouvir tudo.<br />
Aos outros que me vestem<br />
com o absurdo<br />
no rumor rápido das coisas nuas.<br />
Há neste legado<br />
os séculos e séculos<br />
obscuros. Mil anos são como<br />
o dia de hoje.<br />
Amanhã será a falta<br />
das manhãs<br />
e dos dias na longa história<br />
111
dos acenos.<br />
Na certa é a voragem dos dias<br />
onde uma noite crua ronda a minha casa.<br />
Uma canção calada nos tempos canta.<br />
Sobram a vida, a obra sem censura<br />
nos luzeiros do céu até a terra.<br />
Estrelas sem fim da memória imperam,<br />
no repensar do amargor dulcíssimo da história,<br />
no ressoar humano do fim dos tempos.<br />
112
LÁ FORA<br />
Sim, eles estão lá fora.<br />
Estão<br />
lá fora.<br />
Eles que compreendem,<br />
que sentem odores,<br />
nos domingos atentos<br />
são esparsos<br />
espessos<br />
são todos<br />
-estão lá fora.<br />
Como relances<br />
de extrema- unção<br />
-estão todos lá.<br />
Vivem todos,<br />
estão<br />
lá fora.<br />
Como urgentes<br />
bichos ausentes,<br />
tubarões sem oceanos.<br />
São temas de livros,<br />
de poesias em bíblias,<br />
vazias,<br />
113
épicos,<br />
decálogos, ciclopes<br />
manifestos.<br />
Sim, estão todos lá,<br />
lá fora.<br />
Cumprindo sua missão:<br />
ao vivo espantam<br />
os seres<br />
sem dimensão.<br />
Estão eles lá fora.<br />
Espessos, cobertos<br />
da tinta<br />
e da noite insone,<br />
toda ela amputada<br />
de dor e limbo.<br />
Eles estão lá fora,<br />
calados,<br />
me vêem antrecalado<br />
com o copo vazio.<br />
na mão.<br />
Estão<br />
esperando,<br />
acordados,<br />
e dando o nome<br />
114
exato<br />
a esta,<br />
a nossas sombras<br />
sem sensação.<br />
-Estão- sim - lá fora,<br />
e, silenciosos, devoram<br />
com dentes<br />
novos<br />
a nossa<br />
entrecortada<br />
respiração.<br />
115
PICASSIANA<br />
Dentro de casa<br />
o copo d’ água<br />
esperava meus lábios.<br />
Vi céus sem estrelas<br />
parados, enquanto<br />
foguetes rápidos<br />
eu os via cruzar e recruzar<br />
pernas e braços<br />
inflamados.<br />
À minha frente a mesa<br />
com migalhas,<br />
talvez algum sinal<br />
do pão comido<br />
sorrisse de alguma fome<br />
que me sorria de<br />
relance da vida.<br />
O sangue desbravava<br />
as figuras, afugentava<br />
pássaros; ruidoso,<br />
comparado aos mísseis<br />
que uma pintora<br />
116
ecatada<br />
escutou certa vez<br />
em minhas paredes.<br />
A voz dos meninos,<br />
e de meninas, os choros,<br />
a quebra dos ossos,<br />
brancos, eram brincos.<br />
(Talvez meu dedo<br />
mínimo<br />
estivesse frio,<br />
como de costume<br />
dormente...)<br />
Irado, o vento,<br />
sorria dos disparates<br />
e a chuva enlameava<br />
o que fora um palco.<br />
Cidade, cidade,<br />
minha casa foi<br />
a última e a primeira<br />
rente à morte<br />
que rondava<br />
arrebanhando os<br />
homens inúteis...<br />
Passou o fogo<br />
117
e o pasto queimou;<br />
no que foi um dia<br />
minha janela,<br />
agora somente<br />
um buraco.<br />
Vi, por fim,<br />
uma vaca parindo<br />
um bezerro queimado,<br />
repetia: Picasso!<br />
Picasso!<br />
Picasso!<br />
O total silêncio<br />
era voz<br />
de um furacão,<br />
a voz do nosso<br />
inteiro e fracassado<br />
coração.<br />
118
Livro-me dos cansaços<br />
LIVRO-ME<br />
desta dura realidade, que dizem, duradoura.<br />
De ondas, duras penas<br />
e pedras engolidas sem que soubesse.<br />
Surjo por fim só<br />
nestas folhas,<br />
às vezes caídas, mas semelhantes<br />
à matéria em sua origem, árvore, raízes.<br />
Semelhante às veias e à seiva<br />
abertas ao diálogo,<br />
surgindo comigo:<br />
sangue vegetal subindo<br />
plasmando-se em tintas, tipos, idéias;<br />
depois alentos e circunstâncias<br />
faces que a vida tem.<br />
Sombras e luz, que importa?<br />
À frente a estante me abre portas<br />
seguras para que eu siga<br />
homens que também surgiram<br />
em portas e mais portas impossíveis.<br />
119
Livro-me dos cansaços.<br />
Recomponho signos<br />
e me encontro contigo<br />
por entre o sutil vento varrendo<br />
infinitamente o tempo<br />
negro em que vivemos.<br />
No despertar de toda a terra<br />
escrevo e leio o eterno,<br />
mesmo sem amor , amando,<br />
ou morrendo sem morrer, morrendo.<br />
Livro-me dos cansaços<br />
somos tantos, aliviados<br />
de braços dados, estendidos.<br />
Livro-me, por fim, estou certo<br />
relendo me navego<br />
dentro de todo o universo<br />
na mágica pluralidade<br />
dos ecos:<br />
- enfim livro<br />
- enfim livre.<br />
120
RESIGNIFICAÇÃO<br />
Ficamos sós entre todos<br />
sós a sós nos olhares<br />
procurando os resultados<br />
do inaudito mundo estranho.<br />
Ficamos calados , mudos,<br />
frente a tudo que presenciamos.<br />
Tão preciosos sons ouvimos<br />
que falam mais ao coração<br />
do que essas músicas fálicas.<br />
Tão preciosos sons marcados<br />
sem cantar, sem saber<br />
que nasceram dos oprimidos<br />
dos presos em solidão.<br />
No amanhecer renascente<br />
no peso desta profecia<br />
e dos alertas que saem<br />
tão cedo de suas casas<br />
para voltar a ter asas<br />
em ventos de inspiração.<br />
Sobra o novo nome do homem<br />
inscrito numa pedra branca.<br />
Nova história de encontros<br />
121
em desertos e desilusões<br />
ao nos despedirmos da pureza<br />
neste céu cinzento e cansado<br />
que aguarda no ressoar humano<br />
seu mais novo significado.<br />
122
CONTATO À MANEIRA DE BRECHT<br />
Para sentar ao seu lado recapitulei uma vida,<br />
porque ela nada divisou a não ser meus<br />
foscos olhos.<br />
Cumprimentei- a como fazia<br />
sem saber a saudação<br />
e eu não falaria sem o Espírito de Deus<br />
ser por mim.<br />
Mais ou menos às 8h, ou 9h ela<br />
continuava<br />
sentada sem entender o amor,<br />
e eu sem língua.<br />
Para me amamentar dessa hora<br />
abriguei- me em seus cabelos<br />
e as cadeiras se partiram em 6.<br />
Tão leve ela era por eu<br />
sem ouvir<br />
as suas dores lunares<br />
e um doce tempero seu.<br />
123
Para mais tarde ter que me dizer:<br />
Minha alma ficou pobre e oca<br />
e disse alto: !!!<br />
Querendo eu forcei para dentro,<br />
de si,<br />
e um rio transbordou<br />
na margem oposta.<br />
Para a noite dela esperar e eu subir<br />
em seus muros.<br />
Resgatando- a e fazendo-a<br />
sentar de novo ao meu lado<br />
em paz,<br />
tão próxima e tão distante<br />
como o calendário na parede.<br />
124
EU MUDO NO CENTRO DO MUNDO<br />
No alto do mundo todos são;<br />
eu me vejo como sou,<br />
vocês não.<br />
Se a inveja que sinto acabou,<br />
então o mundo é louco e eu<br />
maislouco ou menoslouco.<br />
Costumava subir nas roseiras,<br />
não para colher as flores de cores várias.<br />
Não, os punhais.<br />
Parecido sou aos espinhos - fatais, confesso,<br />
a vós, que falais, gente rara.<br />
E, cara, estou no chão. Amei, amou, amaste,<br />
na segunda, ou terceira dos plurais.<br />
Amor definitivo não tenho,<br />
infinitivo, sou.<br />
E coisas e tais.<br />
Casa? Quem poderia dizer que tenho?<br />
Não tenho, mas uma ou duas palavras da minha boca:<br />
- tenho a chuva e o escudo do guerreiro<br />
125
pintado de leopardo e olhos de pavão.<br />
Não minto, tenho<br />
que ser autêntico, não sou.<br />
O caminho asfaltado contenho,<br />
uma parte,<br />
outra terra de chão,<br />
que não tenho, dou.<br />
( Volto ao amor, sábios, sóbrios, descontentes,<br />
e déspotas esclarecidos.<br />
Amanheci assim e não nasci.<br />
Louco tenho sido, não sou,<br />
senão todos os gazes que retenho<br />
sairiam para dar teu perfeito louvor...)<br />
126
NO FOSSO<br />
Um cego segue o outro<br />
e ambos caem dentro do fosso.<br />
Uma criança segue a outra<br />
e em meio aos jogos e folguedos,<br />
ambas tropeçam nos cegos<br />
e acabaram dentro do fosso.<br />
Um velho segue o outro,<br />
ambos curvos olhando para seus pés<br />
e esbarram lá nas crianças.<br />
Uma mulher distraída estava<br />
não viu nem as crianças nem os cegos,<br />
então tropeçando nos velhos caídos<br />
e ficou com as crianças espalhadas.<br />
Outro homem, caminhando,<br />
cantando ao contar os votos da campanha<br />
não viu e tropeçou na mulher<br />
e em seus companheiros,<br />
em suas pernas, em seus joelhos<br />
e no fosso acabou ficando.<br />
127
Vieram por aí então:<br />
os médicos, os maquinistas,<br />
veterinários, economistas,<br />
matemáticos, secretárias,<br />
geólogos, arquitetos,<br />
generais, agrônomos,<br />
empresários, sindicalistas<br />
e todos os outros<br />
tropeçando e caindo dentro do fosso.<br />
E toda a cidade acabou caindo.<br />
E todas as manhãs se despertavam<br />
sujos de lama e de cegueira.<br />
Mas nem tudo estes sabiam<br />
ou pensavam que<br />
estas pessoas superiores<br />
ao compararem-se<br />
com os dois cegos originais:<br />
aqueles deveriam antes saber<br />
que os dois cegos não eram<br />
de forma alguma cegos,<br />
pois se assim não o fossem<br />
nunca estariam num fosso<br />
tão evidente de se ver...<br />
128
ANDARILHO<br />
Pelas cidades machucadas passei<br />
andei pelas ruínas, flancos,<br />
do lado de fora das casas que se estendiam.<br />
Olhei o mundo em sua forma desigual.<br />
Parei um dia ao andar muito, muito,<br />
- para conhecer-me melhor<br />
e comigo aos outros.<br />
E doía, a cidade, em mim, não por valor, machucava-me,<br />
esta lança de aço, esta fera, bestas-feras.<br />
Ardia em quilômetros meu naufrágio,<br />
na fase da lua nova uma esfera,<br />
como um cometa pede auxílio ao sol, revi<br />
muitos anos de minha situação inicial.<br />
Compreendi que não ficar sozinho é calar sem escutar a razão.<br />
Acoplado em meu dedo mínimo me senti<br />
nas circunstâncias e pedi a Deus UM Deus.<br />
Sinceramente acordei naquele quente dia de março<br />
129
e estonteado com a visão conheci que dois e dois nem sempre são 4.<br />
São quatro os pontos cardeais que andei mas nem sempre tive essa visão<br />
menstruada com a fome do calor de um inverno.<br />
Parei com fome numa padaria e sem precisar de palavras comi<br />
o lixo das entranhas da terra em suavidade de línguas<br />
no trigo da massa.<br />
A linguagem é pouca e os companheiros são vários,<br />
iguais em inclusões e explosões de ritmos e liberdade.<br />
Não basta cantar a liberdade neste chão pesado, é preciso<br />
ameaçar sair calado do outro lado!<br />
E na Via Ia em que vão todos os carros<br />
onde o feno aromático de leve<br />
se anuncia,<br />
onde<br />
como a brisa tem valores e subterfúgios mil,<br />
encontrei você descuidada com as flores e os homens.<br />
Mais potente do que a mão cerrada e o punho a sangrar alerta<br />
a vi e não compreendi de início o seu valor naquela escuridão.<br />
O seu valor em ter nas mãos um crisântemo.<br />
Sonhei então meu último porto para ser realidade,<br />
porque com a faca que marquei seu nome em mim<br />
130
feri os olhos em estado neutro.<br />
Com as desgraças dos homens e a virtude se colocando<br />
em dúvida como andarilho que sou.<br />
Arranquei meu coração e o dei a você.<br />
Como prêmio para me aprisionar outra vez.<br />
Eis que outra vez me vesti da malha pesada do discurso<br />
- porque palavras<br />
são meras palavras se não aspiram<br />
ao entendimento de quem foram os heróis em demonstrar o contrário.<br />
Vida que se evade tranqüilamente como<br />
o despertar do gigante de fortes braços a esmagar<br />
um milhão de vozes, ou eu igual<br />
a tantos outros.<br />
No fogo da janela alerta dos mercados<br />
na radiosa claridade de uma infância,<br />
de uma irmã, de um amor,<br />
recém saboreados num dia de sábado...<br />
131
PAULOFREVOL<br />
AREIOLMUNDO<br />
O Paulo<br />
que é da favela,<br />
que é sem- terra<br />
ou das cem<br />
janelas<br />
com a calma,<br />
sobretudo, a calma,<br />
de quem erra os<br />
enes e erres<br />
ou que<br />
traça os enes,<br />
é o desta<br />
face<br />
que se espera.<br />
Que sabe esperar<br />
que sabe nadar<br />
e sobretudo<br />
afirmar<br />
e pensar o mundo<br />
132
sem aqueles dentes.<br />
O Paulo<br />
Frevo - Freire<br />
que encerra<br />
nos videntes,<br />
é o que espera.<br />
De que entre<br />
nos homens e mulheres<br />
a criança,<br />
em nós detemos.<br />
Nos respeitos<br />
sem ter donos<br />
os outros.<br />
Por isso esse<br />
Paulo<br />
Freire<br />
espera ainda<br />
numa foto<br />
todos os<br />
mais,<br />
sobretudo,<br />
o Brasis plurais,<br />
mas com os dentes<br />
que possam<br />
133
assobiar<br />
ou trazer o gosto<br />
na fruta<br />
em sua época...<br />
De que o menino<br />
à sombra da árvore<br />
procure<br />
sua letra<br />
de descanso, de<br />
ser vidente.<br />
De ter maduro e vidente<br />
a fruta que<br />
demorasse<br />
entre os dentes<br />
nas línguas.<br />
No puro afoito<br />
de manejar palavras<br />
no açúcar<br />
de Freire,<br />
de Paulo<br />
Frevo<br />
Freire<br />
reconheço:<br />
134
- pura luta,<br />
esta, das palavras.<br />
135
--------5...,<br />
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AUTO-RETRATO AOS 35 ANOS EM 7 ESPELHOS- LADO SUL<br />
<strong>1.</strong>Tenho quatro olhos, virtudes, duas rimas, um nariz.<br />
Compreendi cedo o valor das cores primárias sem Rimbaud<br />
( ele ainda está aprendendo do modo mais quente...).<br />
Vi isso assimilando a corrida dos homens<br />
e a pegada das mulheres que passavam;<br />
especialmente daquelas, das nascidas virgens.<br />
Hoje estão mais calmas, mas chovem ainda, descalças, em vitrines.<br />
2.Aprendi a configurar máquinas e pesadelos capitalistas,<br />
ousando nos meus cabelos apará-los antes da raiz, quando<br />
o inverno teimaria ser mais escuro, ou frio, ou primavera.<br />
Estou com fome, mais seguro de mim, com tudo, assim; contudo,<br />
mas procurando no futuro os espectros do presente, meus amigos,<br />
meus inimigos, meus meio-inimigos, meus- um- quarto- de- amigos, etc...<br />
3.Sinto dizer mais o “não” que um “sim”, em outras palavras.<br />
Eu preciso sentir a música sem o correção, ou coação.<br />
De forma a me manter fiel à Liberdade aos causos<br />
comuns às rosas dos precipícios voando nas celas dos olhos.<br />
4.( Acendo minha luz própria para me economizar melhor...),<br />
em torno dos sóis que dão sua força às luas de Júpiter,<br />
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para caírem em forma de estaca, no meu coração tranqüilo e terrestre...<br />
5.Môo o trigo descansando dos meus poemas maus.<br />
Sou por isso intrabudista e brasileirônio e nestorquista,<br />
por parte de pai e das ideologias esquecidas por algum judeu interior.<br />
E gosto do dinheiro, que me olha no seu selo e marca sensual de prostituta<br />
verde, e se vende nos mercados e os derruba.<br />
6.Por isso estou atento e o mundo não acabou.<br />
Embora quisesse que minha voz perdurasse na eternidade.<br />
Acaba esta caneta, o papel, você, mas o mundo não<br />
-é inacabavelmente cruel.<br />
7.E por isso socorri-me do mundo para que não me formatizem,<br />
para me deixarem aqui quieto e relutante- mas esperançoso.<br />
Em ter uma vida construída entre tijolos de átomos leves,<br />
em casas quânticas tecidos pelos meus dois braços de borboleta.<br />
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AUTO-RETRATO AOS 36 ANOS EM SETE ESPELHOS- LADO NORTE<br />
<strong>1.</strong>Sou vizinho dos pedintes, sem ter sido Dostoievski, mas<br />
aprendendo com a fome ser mais relutante e cruel, por vezes.<br />
Sou ordenado nas pontas de orvalho e brilhante como<br />
as sete lâmpadas dos castiçais dos templos.<br />
Estou sozinho mas concluo com otimismo a parceira,<br />
que é uma gata de olhares moucos. Mas presentes<br />
são do tipo de talheres, e a madurezas que bate em minha porta.<br />
2.Assim estou permanecendo quieto no meu ano de chuvas e sol.<br />
Você que me veste<br />
em roupas marcianas me envolva com os beijos de sua boca.<br />
Diga-me qual a forma segura de voar.<br />
E transmita isso na casa de sonhos e presentes.<br />
3.Desminta que sou mentiroso. Não nego um gole de café bem escuro.<br />
E a sunamita com quem irei me casar, na sutra de lótus verde.<br />
4.Situo-me entre o frio e o calor. Estou atento<br />
a todos e me comprometo na vida<br />
de andar justo com a justiça.<br />
Esta que faz dela mesma suporte<br />
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de romboedros verticais e assimilativos.<br />
5.O rio ri de si, como rio de mim. Estamos quites<br />
na navegação dos sonos que se impõem.<br />
6.Até chegar o dia de retornar na vida do diamante e das pérolas e<br />
sentir a solidão como passado.<br />
Sem medo de ser feliz<br />
e de fazer outros felizes.<br />
7.Concluo a questão em um velho marinheiro que convivia comigo<br />
falando do grego, sua imaginação. E eu nos corredores da tortura<br />
sem ser tortura,<br />
mas plenamente claros,<br />
na minha estrutura:<br />
- Efharisto parapoli.<br />
- Parakalô.<br />
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AUTO- RETRATO AOS 37 ANOS COM SETE ESPELHOS- LADO OESTE<br />
<strong>1.</strong>As partes do mundo estão aportadas pela insígnia.<br />
Permaneço intacto na fronte ampla.<br />
Estou assim conversando na paz.<br />
De ter uma profissão do amor que vive.<br />
2.Estou completo e presente na solidão ausente.<br />
Os homens do meu povo compreendem a minha presença.<br />
E todos estão maduros no que se vestem.<br />
Para acharem tranqüilos as sombras sentidas e escuras.<br />
3.Não assisto mais, novelas. Estão quietas e caladas.<br />
Esperam o desaparecimento no som de ontem.<br />
Encontrando o sorriso na porta dos sonhos.<br />
4.Desta forma acordei há muito e comprei a liberdade no meu ofício.<br />
Predicando os sonhos nas roupas que visto<br />
e nas casas utópicas que me mantêm.<br />
5.Dessa forma acordado, tomei de si o seu acento pessoal.<br />
Apresentando o nome novo em Apocalipse,<br />
transcrito do avesso.<br />
De ponta cabeça se se visse...<br />
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6.Estou pronto para a viagem,<br />
pronto para singrar ares e velas matinais.<br />
Para sorrir dos antros de pelugens abastadas.<br />
Para sorrir do seu sem - sorriso por mim:<br />
serafins voando...<br />
7.Agora é o tempo, o lugar e a ocasião.<br />
Tomo emprestado de Blake os Céus<br />
e dou a quem me detesta os Infernos.<br />
Encontrando Berenice e outras tantas companheiras,<br />
para singrar mares e viver em terras.<br />
Em amores tão presentes e bravios e breves<br />
como nascendo à Terra.<br />
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AUTO-RETRATO COM 38 ANOS COM SETE ESPELHOS- LADO LESTE<br />
1 Estou evidente no que era a minha casa.<br />
Sou vermelho espero o azul que se transformará em amarelo.<br />
Um roxo do meu irmão que perguntei sobre suas façanhas de aranha.<br />
Sou e estou comprido neste adido ducado de Londres em chamas,<br />
na mesma opinião destacada dos meus cortes de cabelo insípidos.<br />
Estou congruente e faço do imóvel minha parente.<br />
Entre dois dentes de alho, e uma caverna nos caroços de mangas verdes.<br />
2. Estou assim convencido de não ser vencido, convencido de escovar<br />
as tramas dos postos reflexos nas paredes.<br />
Sou assim quando a novidade for embora, eu mesmo,<br />
circunvalando por peças estranhas de Poe, o Corvo,<br />
dizendo que ainda assim, never more.<br />
3.O relógio aponta que está na hora, mas não quero, fujo da hora da morte<br />
como um animal da chuva indesejável,<br />
ou o gamo foge do pássaro.<br />
4. Meus acidentes a quatro horas em termos infinitesimais.<br />
O elemento da cavalgada dos potros brancos,<br />
e o cochilo das marmotas do dia: sou eu à noite.<br />
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5. A mulher de Ossian gosta dos meus perfumes. Ela que vem na penumbra,<br />
claudica a norma pura das gramáticas, e vou adiante,<br />
para fazer crer que os seus e seus sabores de sonho não existirão.<br />
6. Estou ausente de tudo, amanhã estaremos comigo, nós e eu mesmo,<br />
especialmente aqui e não ali.<br />
7. Número cabalístico e cavalístico. O veneno da hora acontece<br />
na sombra que se aventurou na solidão do pintor extasiado.<br />
Para finalizar a queda de um luciferindo para comer<br />
os cabelos de Afrodite. No sonoro das asas<br />
e uma mosca em seu destino indecifrável.<br />
Naquilo que pareceria uma roupa nova.<br />
Para afogar os reis a situar nos montes<br />
novos clowns explosivos de Shakespeare.<br />
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