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Cinco gerações dos Rocha: de escravos a senhores ... - ANPUH-RJ

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Anpuh Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Arquivo Público do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro – APE<strong>RJ</strong><br />

Praia <strong>de</strong> Botafogo, 480 – 2º andar - Rio <strong>de</strong> Janeiro – <strong>RJ</strong><br />

CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380<br />

<strong>Cinco</strong> <strong>gerações</strong> <strong>dos</strong> <strong>Rocha</strong>: <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> a <strong>senhores</strong>. Porto Feliz, São<br />

Paulo, 1798-1893 1<br />

Roberto Gue<strong>de</strong>s<br />

Professor da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Rural do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Com base em fontes paroquiais, inventários post-mortem, testamentos, <strong>de</strong>ntre outras fontes, o<br />

trabalho analisa a trajetória <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> forros e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes na vila <strong>de</strong> Porto Feliz,<br />

capitania/província <strong>de</strong> São Paulo. Trajetória secular <strong>de</strong> cinco <strong>gerações</strong>, que se processa entre finais do<br />

século XVIII e fins do século XIX, a análise <strong>de</strong>monstra um movimento <strong>de</strong> ascensão social, para o qual<br />

contribuíram alianças com elites e coesão familiar. No primeiro aspecto, os vínculos se expressam em<br />

relações <strong>de</strong> compadrio perpetuadas com <strong>de</strong>terminadas famílias ao longo <strong>de</strong> <strong>gerações</strong>. Por sua vez, a<br />

coesão familiar permitiu a sobrevivência e a ascensão social, mas não vedou a primazia <strong>de</strong> um núcleo<br />

familiar sobre os <strong>de</strong>mais. A família privilegiada na re<strong>de</strong> parental a<strong>de</strong>ntrou a condição <strong>de</strong> proprietária <strong>de</strong><br />

<strong>escravos</strong>, do que se conclui que a mobilida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> forros e <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes contribuiu para a<br />

reprodução secular <strong>de</strong> <strong>senhores</strong> e subalternos.<br />

Como tudo isso se processou?<br />

Em 16 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1794, realizou-se o matrimônio <strong>de</strong> Francisco, crioulo nascido em<br />

Araritaguaba (posterior Porto Feliz), e Maria, crioula natural das minas <strong>de</strong> Cuiabá. O noivo era filho <strong>de</strong><br />

pai incógnito e <strong>de</strong> Inácia, e a noiva, filha <strong>de</strong> pai incógnito e <strong>de</strong> Francisca, to<strong>dos</strong> <strong>escravos</strong> do padre<br />

André da <strong>Rocha</strong> Abreu. Serviram <strong>de</strong> testemunhas o futuro capitão-mor da vila <strong>de</strong> Porto Feliz, Francisco<br />

Correa <strong>de</strong> Moraes Leite, casado, e o tenente solteiro Joaquim Pinheiro <strong>de</strong> Almeida.<br />

Quem eram os padrinhos <strong>de</strong> casamento?<br />

Francisco Correa Leite era o capitão-mor da vila, senhor <strong>de</strong> engenho que chegou a ter 69<br />

<strong>escravos</strong> no ano <strong>de</strong> 1829. Para enten<strong>de</strong>r os elos que ligavam o capitão-mor senhor <strong>de</strong> engenho aos<br />

1 Todas as referências para a elaboração <strong>de</strong>ste texto se encontram em Ferreira, Roberto Gue<strong>de</strong>s (2005), “Par<strong>dos</strong>: trabalho,<br />

família, aliança e mobilida<strong>de</strong> social. Porto Feliz, São Paulo, c.1798-c.1850”. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Tese <strong>de</strong> Doutorado. Cf. capítulo V.


‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional <strong>de</strong> História <strong>ANPUH</strong>-<strong>RJ</strong> 2006: 2<br />

nubentes cativos, é preciso analisar parte da trajetória <strong>de</strong> vida <strong>dos</strong> noivos e <strong>de</strong> seus proprietários. Por<br />

quase um século, <strong>gerações</strong> <strong>de</strong> <strong>senhores</strong> e subalternos fizeram e refizeram alianças, incorporando parte<br />

<strong>de</strong> ex-egressos do cativeiro à condição senhorial e ampliando o círculo <strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da elite local,<br />

referendado o status quo, numa intricada re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações pessoais e <strong>de</strong> parentesco, on<strong>de</strong> a<br />

diferenciação se iniciava no cativeiro e se perpetuava na liberda<strong>de</strong>.<br />

Os <strong>Rocha</strong> Abreu estavam liga<strong>dos</strong> à rota das monções. Na primeira meta<strong>de</strong> do século XVIII, o<br />

pai do padre André da <strong>Rocha</strong> Abreu, Domingos da <strong>Rocha</strong> Abreu, se transferiu <strong>de</strong> Portugal para São<br />

Paulo, on<strong>de</strong> se casou com D. Francisca Car<strong>dos</strong>o <strong>de</strong> Siqueira. Posteriormente, estabeleceu-se na<br />

freguesia <strong>de</strong> Araritaguaba (Porto Feliz). Era um <strong>dos</strong> mais ricos do local. De seu casamento nasceram<br />

<strong>de</strong>z filhos, <strong>dos</strong> quais me interessam o padre André da <strong>Rocha</strong> Abreu e Ana Francisca da <strong>Rocha</strong>. Em<br />

1782, Ana se casou com o senhor <strong>de</strong> engenho e futuro coronel Francisco Correia <strong>de</strong> Moraes Leite, que<br />

foi capitão-mor da vila <strong>de</strong> Porto Feliz durante 23 anos, entre 1797 e 1820. Um filho <strong>de</strong>ste casal foi o<br />

briga<strong>de</strong>iro Joaquim José <strong>de</strong> Moraes Abreu, que se tornou vereador da Câmara Municipal <strong>de</strong> São Paulo<br />

e membro do Conselho e vice-presi<strong>de</strong>nte da Província <strong>de</strong> São Paulo. O pai capitão-mor foi o padrinho<br />

<strong>de</strong> casamento e a escrava Maria era natural <strong>de</strong> Cuiabá. Era o capitão-mor que organizava as expedições<br />

que ligavam Porto Feliz à Cuiabá pela rota das monções. Talvez os cunha<strong>dos</strong> do capitão que atuavam<br />

na rota trouxeram a cativa <strong>de</strong> Cuiabá. O noivo <strong>de</strong>via ser nascido entre os <strong>Rocha</strong>, pois era natural <strong>de</strong><br />

Araritaguaba. Entre 1.330 casamentos <strong>de</strong> <strong>escravos</strong>, o capitão-mor testemunhou apenas dois, incluindo o<br />

já referido.<br />

Em suma, o casal Maria e Antonio tinha fortes ligações com a família senhorial.<br />

O outro filho que se estabeleceu em Porto Feliz foi o padre André da <strong>Rocha</strong> Abreu. Vigário <strong>de</strong><br />

Porto Feliz entre 1803 e 1820, sabia música e tocava piano. Introduziu o primeiro piano na vila,<br />

conduzido por braço escravo <strong>de</strong> Santos a São Paulo. Em 1803, o reverendo André passou cartas <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong> ao casal Francisco e Maria, bem como a seus filhos Jesuíno, Celestina, Lucina, Generoso,<br />

Duarte e Benigno. Trata-se <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> ex-<strong>escravos</strong>, que ficou agregada ao padre até sua morte,<br />

sendo a única, <strong>de</strong>ntre as famílias cativas do padre, que teve to<strong>dos</strong> os seus componentes alforria<strong>dos</strong><br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1803. Tornaram-se par<strong>dos</strong> libertos agrega<strong>dos</strong>. Assim, o que se observa é que <strong>escravos</strong> e<br />

agrega<strong>dos</strong> estavam em uma ca<strong>de</strong>ia diferenciada <strong>de</strong> privilégios, ou seja, havia uma política <strong>de</strong> domínio<br />

que distinguia os merecedores e os não merecedores <strong>de</strong> prêmios.


‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional <strong>de</strong> História <strong>ANPUH</strong>-<strong>RJ</strong> 2006: 3<br />

A Morte do Padre e os Destinos <strong>de</strong> Seus Agrega<strong>dos</strong><br />

Em 1820, André da <strong>Rocha</strong> Abreu morreu, aos 63 anos. Os <strong>de</strong>stinos <strong>dos</strong> agrega<strong>dos</strong> forros foram<br />

diferentes. O padre não tinha her<strong>de</strong>iros e instituiu como tais os antigos agrega<strong>dos</strong>, em testamento<br />

redigido em 22 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1819. To<strong>dos</strong> os her<strong>de</strong>iros eram filhos <strong>de</strong> Francisco da <strong>Rocha</strong> e <strong>de</strong> Maria<br />

Francisca da <strong>Rocha</strong> e alguns <strong>escravos</strong> se dispersaram entre os membros <strong>de</strong>sta família. Outros casaram e<br />

constituíram fogos e nenhuma família escrava foi dissolvida. A estabilida<strong>de</strong> familiar foi a tônica entre<br />

os cativos do padre, mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua morte. Com efeito, as pessoas que viviam ao redor <strong>de</strong> André<br />

formavam uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agrega<strong>dos</strong> e <strong>escravos</strong>, <strong>senhores</strong> e subalternos, organizada em núcleos<br />

familiares. Há o núcleo <strong>dos</strong> pais <strong>dos</strong> her<strong>de</strong>iros, Francisco da <strong>Rocha</strong> e Maria Francisca da <strong>Rocha</strong>. Vou<br />

analisar apenas esta família preferida, isto é, os agrega<strong>dos</strong> forros que receberam heranças e legadas<br />

materiais e imateriais.<br />

Imateriais<br />

Como afirmei antes, o patriarca e sua esposa, Francisco da <strong>Rocha</strong> e Maria Francisca da <strong>Rocha</strong>,<br />

receberam carta <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> em 1803 e talvez fossem <strong>escravos</strong> domésticos. Depois da morte <strong>de</strong> André,<br />

Francisco era oficial <strong>de</strong> sapateiro pardo e o casal possuía dois, cinco e dois <strong>escravos</strong>, respectivamente<br />

em 1820, 1824 e 1829, sendo apenas um <strong>de</strong>ixado pelo padre. Em 1836, ambos estavam mortos. Os<br />

filhos <strong>de</strong> Francisco e Maria tinham os nomes completos <strong>de</strong> Jesuíno José da <strong>Rocha</strong>, Benigno Antonio<br />

Boussuet (ou Benigno Antonio da <strong>Rocha</strong>), Generoso José da <strong>Rocha</strong>, Lucinda, Celestina e Esmelinda<br />

Maria da <strong>Rocha</strong>. Compreen<strong>de</strong>r suas reinserções sociais requer analisar os lega<strong>dos</strong> senhoriais: o nome,<br />

as relações sociais, os bens materiais e, ainda, outra herança imaterial, a música. Tudo isto teve <strong>de</strong> ser<br />

reatualizado pelos ex-<strong>escravos</strong> para se diferenciarem <strong>dos</strong> <strong>de</strong>mais egressos do cativeiro.<br />

O nome<br />

Em primeiro lugar, o padre André da <strong>Rocha</strong> lhes <strong>de</strong>ixou um sobrenome, que acompanha o<br />

indivíduo em toda sua vida, como ensina Carlo Ginzburg, mas, no Brasil <strong>de</strong> outrora, acompanhava a<br />

família. Ao incorporar um sobrenome <strong>de</strong> André, a família carregou um pouco <strong>de</strong> seu prestígio, <strong>de</strong> sua<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, lega<strong>dos</strong> imateriais, que foram refeitos. Jesuíno se tornou Jesuíno da <strong>Rocha</strong> Abreu, e virou<br />

senhor <strong>de</strong> engenho após o falecimento <strong>de</strong> André. Beneficiado entre os irmãos, recebendo <strong>escravos</strong><br />

adultos e um piano, batizou seu primeiro filho com o nome <strong>de</strong> André. Assim, as práticas <strong>de</strong> nomeação<br />

se reportam ao sentimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> familiar herdada do senhor. As três irmãs <strong>de</strong> Jesuíno, além <strong>de</strong><br />

Maria, têm o <strong>Rocha</strong>, como a mãe. O José, <strong>de</strong> Generoso e <strong>de</strong> Jesuíno, é <strong>de</strong> origem incerta, mas o <strong>Rocha</strong>,


‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional <strong>de</strong> História <strong>ANPUH</strong>-<strong>RJ</strong> 2006: 4<br />

Jesuíno reproduziu em seus filhos. Generoso perpetuou também este sobrenome em seu filho Pru<strong>de</strong>nte<br />

Marques <strong>Rocha</strong>.<br />

Os sentimentos <strong>de</strong> família também se expressavam na nomeação <strong>dos</strong> filhos <strong>dos</strong> irmãos da<br />

terceira geração. Desconsi<strong>de</strong>rando as Anas, nomes provavelmente escolhi<strong>dos</strong> pelas madrinhas xarás, os<br />

<strong>de</strong>mais nomes <strong>dos</strong> batiza<strong>dos</strong> não tinham nada a ver com os <strong>de</strong> seus padrinhos, mas havia três Carolinas,<br />

três Joaquins, em homenagem aos pais, duas Marias, dois Augustos e uma Augusta, dois Josés e dois<br />

Mâncios e dois Franciscos, tributando o avô. Estes nomes circulam os núcleos familiares <strong>dos</strong> <strong>Rocha</strong>.<br />

Po<strong>de</strong>r-se-ia afirmar que eram escolhas fortuitas, mas eram intencionais. Entre os primos, membros da<br />

quarta geração, mais da meta<strong>de</strong> tinham nomes em comum. Além disto, só havia um Manoel, e não há<br />

Pedro, Paulo, etc., bastante comuns na época. Portanto, usar nomes repeti<strong>dos</strong> seria uma forma <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificá-los como parentes, para além <strong>dos</strong> núcleos familiares.<br />

Benigno foi o único que não teve filhos e também não usava o sobrenome <strong>Rocha</strong>, só aparecendo<br />

com ele em três ocasiões. A primeira, em 1844, ao assinar recibo <strong>de</strong> lega<strong>dos</strong> <strong>de</strong>ixa<strong>dos</strong> por seu irmão<br />

Jesuíno. Até então, Benigno Antonio Boussuet, vivia agregado a seu sogro, ou melhor, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu<br />

casamento, em 1824, até 1829. Só passou a utilizar o nome <strong>Rocha</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1836, quando se divorciou<br />

e retornou ao convívio <strong>de</strong> sua mãe, <strong>de</strong> quem foi inventariante. A terceira vez foi em 1857, quando, aos<br />

40 anos, foi sepultado como Benigno Antonio da <strong>Rocha</strong>.<br />

Relações sociais herdadas: os José <strong>Rocha</strong> e seus compadres<br />

Os laços <strong>de</strong> compadrio <strong>dos</strong> <strong>Rocha</strong> <strong>de</strong>monstram que utilizaram a pia batismal para dar<br />

continuida<strong>de</strong> a relações sociais herdadas do padre, bem como tecer novas alianças. Nenhum irmão<br />

apadrinhou filho <strong>de</strong> outro e, por isto, os elos se realizaram preferencialmente fora <strong>dos</strong> núcleos<br />

familiares da terceira geração. As afeições internas se manifestaram, porém, pela avó Maria Francisca<br />

da <strong>Rocha</strong>, que foi madrinha <strong>de</strong> seis netos, e pelo avô, Francisco da <strong>Rocha</strong>, padrinho <strong>de</strong> dois.<br />

Sobre os laços <strong>de</strong> compadrio externos, também se observa a verticalida<strong>de</strong>. Na maioria das<br />

vezes, os filhos eram apadrinha<strong>dos</strong> por donas, tenentes, capitães, alferes, sargentos, vigários. Quiçá,<br />

prestaram serviços, recebendo em troca auxílios, proteção, benesses, etc. Nenhum <strong>dos</strong> homens <strong>Rocha</strong><br />

foi listado como soldado. Não ser recrutado viabilizava a manutenção do homem no domicílio, força <strong>de</strong><br />

trabalho e segurança. Portanto, no vai-e-vem das trocas, a retribuição <strong>de</strong> prestações era fundamental,<br />

mas as alianças tinham <strong>de</strong> ser constantemente refeitas e, para isto, o batismo prestou. Os elos <strong>de</strong><br />

compadresco chegaram a atar a terceira geração <strong>dos</strong> <strong>Rocha</strong> a diferentes <strong>gerações</strong> <strong>de</strong> padrinhos <strong>de</strong> uma<br />

mesma família. Os vínculos <strong>de</strong> parentesco ritual <strong>dos</strong> irmãos com padrinhos <strong>de</strong> elite duravam anos, ou


‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional <strong>de</strong> História <strong>ANPUH</strong>-<strong>RJ</strong> 2006: 5<br />

seja, as alianças eram reatadas, estáveis no tempo. O compadresco era geracional. Significativa é a<br />

família <strong>de</strong> padrinhos constituída pelo capitão José Manoel Arruda e Dona Ana Manoela Moraes, por<br />

sua filha e seu genro. Os pais apadrinharam uma filha <strong>de</strong> Lucinda, em 1825, e um rebento <strong>de</strong> Celestina,<br />

em 1826. Dez anos <strong>de</strong>pois, em 1836, a filha, Ana Esméria Arruda, ainda solteira, batizou outra filha <strong>de</strong><br />

Celestina. Em 1841 e 1850, a mesma Ana Esméria, então casada com Francisco Correa <strong>de</strong> Toledo,<br />

apadrinha um filho <strong>de</strong> Pru<strong>de</strong>nte. Ou seja, a quarta geração <strong>dos</strong> <strong>Rocha</strong> <strong>de</strong>u continuida<strong>de</strong> a elos<br />

construí<strong>dos</strong> há 25 anos. Permanecerá sem reposta o porquê <strong>de</strong> Ana Esméria se unir aos <strong>Rocha</strong> por<br />

quase 20 anos, mas não será o caso do que atou Francisco Antonio <strong>de</strong> Moraes Abreu, filho do antigo<br />

capitão-mor da vila, nas ocasiões em que foi padrinho <strong>de</strong> dois rebentos <strong>de</strong> Esmelinda. Sendo filho do<br />

capitão-mor, Moraes Abreu é sobrinho do padre André da <strong>Rocha</strong> Abreu. Seu pai, o capitão-mor, foi<br />

padrinho <strong>de</strong> casamento <strong>dos</strong> pais <strong>de</strong> Esmelinda. Isto significa que a primeira geração senhorial<br />

testemunhou o casamento e a segunda, apadrinhou o neto. Ao se tornar comadre <strong>de</strong> Moraes Abreu,<br />

Esmelinda colaborou para que os <strong>Rocha</strong> reconstruíssem relações sociais pretéritas da mesma órbita<br />

familiar.<br />

Aliás, Francisco Antonio <strong>de</strong> Moraes Abreu também era o primeiro testamenteiro da matriarca<br />

<strong>dos</strong> <strong>Rocha</strong>, Maria Francisca, que o chamou <strong>de</strong> Senhor Capitão, reconhecendo e reafirmando a<br />

autorida<strong>de</strong> senhorial, no tempo. Com efeito, tais expressões são comuns em documentos <strong>de</strong> época, mas<br />

é bem diferente <strong>de</strong> outros mo<strong>dos</strong> <strong>de</strong> se referir a outras pessoas, tais como peço a meu mano que seja<br />

meu testamenteiro, à minha mulher, etc. A autorida<strong>de</strong> some. Assim, os forros reatualizaram afinida<strong>de</strong>s<br />

herdadas, mas legitimando a assimetria e a hierarquia social. As alianças <strong>de</strong>monstram que as relações<br />

se pautam conforme o lugar ocupado na hierarquia social.<br />

Materiais<br />

Após a morte do padre, cada um <strong>dos</strong> oito her<strong>de</strong>iros ficou com 121$115 réis na partilha. Não era<br />

muito, mas o padre afirmou no testamento que fez doações em vida. Comparando seus <strong>escravos</strong> <strong>de</strong><br />

1815 com os <strong>de</strong> Jesuíno <strong>de</strong> 1820, percebe-se que este her<strong>de</strong>iro ficou com a maior parte <strong>dos</strong> cativos<br />

produtivos. Os outros irmãos <strong>de</strong> Jesuíno não ficaram com o mesmo número <strong>de</strong> <strong>escravos</strong>. Generoso da<br />

<strong>Rocha</strong> não tinha <strong>escravos</strong> em seu domicílio, nem Benigno, agregado <strong>de</strong> seu sogro. Lucinda possuía<br />

apenas um escravo em 1843, e Esmelinda, dois. A cativa Teófila, ainda criança, ficou com a her<strong>de</strong>ira<br />

Celestina, com quem viveu até 1843, sendo sua única cativa. Celestina empobreceu e, por isto, quando<br />

a matriarca fez seu testamento, em 1836, <strong>de</strong>ixou-lhe parte da terça por causa <strong>de</strong> sua pobreza.


‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional <strong>de</strong> História <strong>ANPUH</strong>-<strong>RJ</strong> 2006: 6<br />

As Mortes <strong>de</strong> Maria Francisca, Jesuíno e Generoso José da <strong>Rocha</strong><br />

Como Maria Francisca disse em testamento, Jesuíno e Generoso eram faleci<strong>dos</strong>. Na verda<strong>de</strong>, os<br />

anos <strong>de</strong> 1835 e 1836 foram <strong>de</strong>cisivos para os <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, pois Jesuíno, Generoso e a matriarca<br />

morreram nestes anos. Jesuíno fez testamento, o que era uma ocasião para distribuir recursos entre os<br />

her<strong>de</strong>iros através da terça, <strong>de</strong>ixar lega<strong>dos</strong>, etc. Às vésperas <strong>de</strong> sua morte, Maria Francisca também se<br />

preocupou com o neto e com a pobreza <strong>de</strong> sua filha, <strong>de</strong>ixando-lhe meta<strong>de</strong> da terça. Na prestação <strong>de</strong><br />

contas pelo testamenteiro, vê-se que Celestrina recebeu 230$050 réis, incluindo animais e parte da<br />

dívida <strong>de</strong> Feliciana Maria <strong>de</strong> Jesus, sua cunhada, esposa <strong>de</strong> Jesuíno.<br />

No processo <strong>de</strong> empobrecimento <strong>de</strong> Celestina e seu marido, o casal foi-se <strong>de</strong>sfazendo <strong>dos</strong> bens<br />

lega<strong>dos</strong> pelo padre, talvez por causa <strong>de</strong> muitos filhos a sustentar, em tenra ida<strong>de</strong>. Ainda em julho <strong>de</strong><br />

1830, ven<strong>de</strong>ram por 120$600 réis uma sorte <strong>de</strong> terras a João Leite <strong>de</strong> Camargo, casado com a irmã <strong>de</strong><br />

Celestrina, isto é, o comprador era cunhado. A venda das terras foi feita com a condição <strong>de</strong> o<br />

comprador não repassá-las a “pessoas estranhas sem ser ofertada aos her<strong>de</strong>iros do falecido padre André<br />

da <strong>Rocha</strong> Abreu, por ser assim feita por ele a doação, e bem assim po<strong>de</strong>rem os ven<strong>de</strong>dores conservar<br />

seus animais nos campos”. É bem provável que a compra da terra por um parente tivesse o objetivo <strong>de</strong><br />

ajudar os ven<strong>de</strong>dores, já que o cunhado comprador permitiu o uso pelos parentes empobreci<strong>dos</strong>. A<br />

preocupação da matriarca e o amparo <strong>dos</strong> parentes mais uma vez <strong>de</strong>monstram que a aliança com as<br />

elites não leva a prescindir da coesão familiar. Ao contrário, a solidarieda<strong>de</strong> familiar é o que garante as<br />

condições materiais <strong>de</strong> sobrevivência.<br />

Aliás, na escritura, fica evi<strong>de</strong>nte que a intenção do padre em doar as terras naquelas condições<br />

(não repassá-las a pessoas estranhas sem ser ofertada aos her<strong>de</strong>iros) seria a <strong>de</strong> manter os irmãos uni<strong>dos</strong><br />

após sua morte, para auxílio mútuo e para a não dispersão <strong>dos</strong> bens, mesmo que beneficiasse um entre<br />

os her<strong>de</strong>iros. Talvez resida aí o privilégio dado a Jesuíno.<br />

Retornando às palavras <strong>de</strong> Maria Francisca, ela também se preocupou com o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> outros<br />

her<strong>de</strong>iros. Para o neto Pru<strong>de</strong>nte, escolheu um tutor. Aliás, a avó elegeu o tutor certo, pois o pardo<br />

Pru<strong>de</strong>nte, batizado em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1825, órfão aos <strong>de</strong>z anos, casou em 1844 e teve 4 filhos.<br />

Também privilegiado com a terça <strong>de</strong> sua mãe, Benigno <strong>de</strong>ve ter retornado ao lar materno após<br />

seu divórcio. No total, ficou com parte da dívida <strong>de</strong> Feliciana Maria <strong>de</strong> Jesus, 23$190 réis, e outras<br />

ativas, mas também com foices, macha<strong>dos</strong>. O argumento <strong>de</strong> sua mãe para lhe <strong>de</strong>ixar este legado não foi<br />

<strong>de</strong> natureza econômica, mas <strong>de</strong> gratidão maternal. Divorciado e sem filhos, Benigno provavelmente<br />

cuidou <strong>de</strong> sua mãe e não era <strong>de</strong>stituído inteiramente <strong>de</strong> posses. Em maio <strong>de</strong> 1836, quando registrou as<br />

condições <strong>de</strong> seu divórcio, <strong>de</strong>via pagar à sua mulher o equivalente em dinheiro à meta<strong>de</strong> do valor <strong>de</strong>


‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional <strong>de</strong> História <strong>ANPUH</strong>-<strong>RJ</strong> 2006: 7<br />

uma casa na Rua <strong>de</strong> Sorocaba, avaliada em 150$000, o que ele fez. Além da casa, tinha uma parte no<br />

engenho <strong>de</strong> seu irmão Jesuíno, como este disse em testamento.<br />

Sobre o <strong>de</strong>stino material <strong>de</strong> Esmelinda, o marido comprou as terras <strong>de</strong> sua irmã e o casal tinha<br />

uma olaria e dois <strong>escravos</strong> em 1836, o que lhes rendia 120$000 anuais. Por sua vez, Lucinda morreu<br />

em março <strong>de</strong> 1851, aos 50 anos; foi conduzida em caixão, o que não era para to<strong>dos</strong>.<br />

Por fim, Jesuíno José da <strong>Rocha</strong> estava longe <strong>de</strong> precisar do amparo material <strong>de</strong> sua mãe.<br />

Recebeu os maiores lega<strong>dos</strong> do padre André, além <strong>de</strong> ser testamenteiro e inventariante. Em 1820,<br />

senhor <strong>de</strong> engenho, pardo, solteiro, produziu 100 arrobas <strong>de</strong> açúcar branco, redondo e mascavo e<br />

plantou mantimento para seu gasto. Consigo residiam quatro ex-<strong>escravos</strong> <strong>de</strong> André. Em 1824, este<br />

senhor <strong>de</strong> engenho pardo, <strong>de</strong> 33 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, produziu 350 arrobas <strong>de</strong> açúcar, com o trabalho <strong>de</strong> 17<br />

<strong>escravos</strong>, ou melhor, 16, pois um <strong>de</strong>les tinha apenas cinco anos. Os quatro agrega<strong>dos</strong> permaneciam.<br />

Sua mulher, Feliciana Maria, era branca, <strong>de</strong> 19 anos, e o casal tinha outro filho <strong>de</strong> dois anos, Antonio,<br />

pardo. Em 1829, aos 39 anos, senhoreava 22 <strong>escravos</strong>, <strong>dos</strong> quais 18 com mais <strong>de</strong> 14 anos. Ainda senhor<br />

<strong>de</strong> engenho pardo, produziu 400 arrobas <strong>de</strong> açúcar, <strong>de</strong>z canadas <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte, 100 alqueires <strong>de</strong> milho,<br />

50 <strong>de</strong> feijão, 20 <strong>de</strong> arroz, e criou três bezerros. Não mais havia agrega<strong>dos</strong>. Sua mulher empar<strong>de</strong>ceu, e<br />

Francisco, pardo, era o novo rebento, com um ano <strong>de</strong> vida.<br />

O senhor <strong>de</strong> engenho Jesuíno e Dona Feliciana Maria <strong>de</strong> Jesus batizaram outro filho, José, em<br />

1828. Logo, Feliciana, que podia ser branca, também era dona. Marido <strong>de</strong> uma dona, era senhor <strong>de</strong><br />

engenho <strong>de</strong> escravaria expressiva, o que o diferenciava da esmagadora maioria <strong>dos</strong> ex-<strong>escravos</strong>. Em<br />

síntese, <strong>de</strong> subalterno se tornou proprietário <strong>de</strong> homens, reatualizando sua condição senhorial. Jamais<br />

foi branco porque nasceu escravo. Talvez o sumiço da cor ocorresse na geração seguinte.<br />

Ao contrário <strong>de</strong> seus irmãos e cunha<strong>dos</strong>, Jesuíno e sua esposa tiveram uma consi<strong>de</strong>rável<br />

ascensão social, diferenciando-se mesmo <strong>de</strong> seus parentes. Em 1822, o filho do casal foi apadrinhado<br />

pelo reverendo Bento Paes <strong>de</strong> Campos, testemunha no testamento <strong>de</strong> André da <strong>Rocha</strong> Abreu. Deu o<br />

outro filho para ser batizado por um alferes. Quando Jesuíno testou, pediu ao coronel Joaquim José <strong>de</strong><br />

Moraes Abreu para cobrar dívidas em São Paulo. Moraes Abreu era filho do antigo capitão-mor e<br />

sobrinho do padre André. Logo, o pardo <strong>de</strong>u continuida<strong>de</strong> a relações sociais empreendidas pelo vigário<br />

falecido.<br />

Jesuíno não testemunhou casamentos <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> e tampouco apadrinhou filhos <strong>de</strong> forros e/ou<br />

pessoas sem título, mas sua mulher, ainda que só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> viúva, teve afilha<strong>dos</strong> nesta situação. Os<br />

testemunhos <strong>de</strong> casamento <strong>de</strong> seus <strong>escravos</strong> foram feitos por pessoas que giravam em sua órbita, como<br />

o irmão Generoso, o cunhado Joaquim Rodrigues Viana, seus próprios <strong>escravos</strong> ou os do padre André,


‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional <strong>de</strong> História <strong>ANPUH</strong>-<strong>RJ</strong> 2006: 8<br />

seus agrega<strong>dos</strong>. Destarte, se a condição senhorial <strong>de</strong> Jesuíno o levou ao afastamento <strong>de</strong> seus <strong>escravos</strong>,<br />

sua família os manteve ata<strong>dos</strong>. O distanciamento em relação a <strong>escravos</strong> e forros não implica, por<br />

<strong>de</strong>rivação, uma ruptura total, um mundo à parte, evi<strong>de</strong>ntemente, em relação a <strong>escravos</strong> ou a pessoas<br />

com antepassado escravo do cativeiro. Por isto, o distanciar-se do cativeiro é diferente <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

acionar i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acordo com as fluidas situações sociais, ainda que se mantenham hierarquias.<br />

Por exemplo, o irmão <strong>de</strong> Jesuíno, Generoso, morreu repentinamente, e foi sepultado sem sacramentos<br />

nos campos da Irmanda<strong>de</strong> da Boa Morte, uma <strong>de</strong>voção <strong>de</strong> negros e par<strong>dos</strong>. Aliás, o próprio Jesuíno foi<br />

enterrado nos campos da irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Benedito, também uma <strong>de</strong>voção <strong>de</strong> negros e par<strong>dos</strong>,<br />

conduzido em caixão e sepultado solenemente. Ambos guardavam, portanto, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com negros e<br />

par<strong>dos</strong>, não com o antepassado escravo. Provavelmente, a cor não importava ou não <strong>de</strong>veria importar,<br />

mas a escravidão, sim.<br />

Outro legado imaterial: a doação musical <strong>de</strong> André para Jesuíno<br />

Des<strong>de</strong> 1813, Jesuíno era <strong>de</strong>scrito no fogo do padre André como organista, o que significa que,<br />

além do nome, <strong>de</strong> bens materiais, o padre ensinou a arte da música para o forro, educando-o no que era<br />

atributo <strong>de</strong> pouquíssimos. Esta herança sonora o diferenciou <strong>de</strong> seus irmãos pelo resto da vida. O<br />

investimento na educação musical <strong>de</strong> Jesuíno foi <strong>de</strong>cisivo, já que parece que o padre instruiu os <strong>de</strong>mais<br />

irmãos, que assinaram com letra boa, ao menos bem legível, uma procuração em 1836. Alias, Jesuíno<br />

assinou seu testamento. Assim, ser alfabetizado e agregado do vigário da vila, que era cunhado do<br />

capitão-mor, já o tornava distinto da gran<strong>de</strong> maioria <strong>dos</strong> ex-<strong>escravos</strong>, mas ser reconhecido como<br />

organista era atributo exclusivo seu. Imagino-o a tocar piano ao lado do padre músico que o criou com<br />

amor. O forro <strong>de</strong>via cumprir as funções eclesiásticas em casamentos e outras ocasiões solenes e, com<br />

certeza, era merecedor <strong>de</strong> todo o acolhimento social..<br />

Jesuíno reconhecia o valor que o domínio <strong>de</strong> uma arte propiciava. Em 22 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1834,<br />

asseverou em seu testamento que recebeu o piano e o órgão lhe foram doa<strong>dos</strong> por André. Jesuíno<br />

reconstruiu a condição <strong>de</strong> proprietário, investindo no engenho, reparando-o e comprando importantes<br />

fatores produtivos que o mantivessem na posição <strong>de</strong> senhor <strong>de</strong> engenho até sua morte: uma cal<strong>de</strong>ira,<br />

um alambique e um moinho, além <strong>de</strong> sua escravaria ter sido ampliada. Devia ter experiência na<br />

administração <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> escravista.<br />

A condição senhorial herdada por Jesuíno o tornou o centro distribuidor <strong>de</strong> recursos em sua<br />

família. Não recebeu nada <strong>de</strong> sua mãe porque não precisava, mas <strong>de</strong>ixou lega<strong>dos</strong> a ela, que passou a<br />

outros her<strong>de</strong>iros. Jesuíno também amparou os irmãos com lega<strong>dos</strong>, sem esquecer <strong>de</strong> seus sobrinhos.


‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional <strong>de</strong> História <strong>ANPUH</strong>-<strong>RJ</strong> 2006: 9<br />

Era distinto <strong>de</strong> seus irmãos no que tange ao grau <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> social, mas se preocupou com o futuro<br />

<strong>de</strong> seus parentes.<br />

Enfim, e por ironia do <strong>de</strong>stino, o piano, símbolo <strong>de</strong> distinção social, levado para São Paulo em<br />

braço escravo, pertenceu a um homem nascido em cativeiro, filho natural 2 . Jesuíno enfaticamente<br />

ressaltou que não <strong>de</strong>veria jamais sair da órbita <strong>de</strong> sua família. Para além do aspecto material, <strong>de</strong>via ter<br />

um valor afetivo inestimável. Foi o primeiro bem ao qual se reportou e não disse que o seu engenho<br />

não seria vendido, mas nunca o piano. Parece que consi<strong>de</strong>rava esta a maior herança do padre, a herança<br />

imaterial, tentando perpetuá-la em seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes. O testamento foi aberto em 17 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong><br />

1835. No inventário se nota que, além <strong>de</strong> crédito externo, Jesuíno era muito bem relacionado com as<br />

elites locais. Os outros credores eram o tenente Manoel Fernan<strong>de</strong>s Teixeira, o seu compadre alferes<br />

Domingos José <strong>de</strong> Faria, o tenente Matias Teixeira da Silva, o capitão José Manoel Arruda, compadre<br />

<strong>de</strong> suas irmãs, o tenente Francisco <strong>de</strong> Oliveira Leite Setúbal, também compadre <strong>de</strong> sua irmã, o capitão-<br />

mor Joaquim Vieira <strong>de</strong> Moraes, o sargento-mor José Custódio <strong>de</strong> Oliveira, o alferes José Luis Custódio<br />

<strong>de</strong> Almeida Lima, o mestre Lourenço, da fábrica <strong>de</strong> ferro <strong>de</strong> São João <strong>de</strong> Ipanema, <strong>de</strong>ntre outros. Ou<br />

seja, Jesuíno <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> ser escravo há muito tempo. Era membro da elite local, morrendo senhor <strong>de</strong><br />

mais <strong>de</strong> 20 <strong>escravos</strong>.<br />

Ostentava sua posição mediante alguns pertences: um relógio <strong>de</strong> algibeira, <strong>de</strong> ouro, botões <strong>de</strong><br />

ouro <strong>de</strong> punho, facas, esporas <strong>de</strong> prata, colherinhas <strong>de</strong> chá e concha para açúcar. Até o sinete <strong>de</strong> prata<br />

que o padre usava na missa ficou com Jesuíno. Era respeitado. O sargento-mor da guarda nacional e<br />

negociante <strong>de</strong> fazenda seca Antonio Vaz <strong>de</strong> Almeida se obrigaria “por sua pessoa e bens” como “fiador<br />

e principal pagador na falta da pessoa e bens da viúva inventariante”. Mas não precisou, já que a viúva<br />

soube administrar os bens.<br />

Feliciana Maria <strong>de</strong> Jesus<br />

Em 1836, a viúva Feliciana Maria ainda tinha <strong>de</strong> 25 anos e era mãe <strong>dos</strong> menores José e Jesuíno,<br />

<strong>de</strong> sete e quatro anos, respectivamente. Voltaram a ser brancos após a morte <strong>de</strong> Jesuíno. Natural <strong>de</strong><br />

Sorocaba, era lavradora e tinha um sítio que ren<strong>de</strong>u 300 mil réis, produzindo 400 arrobas <strong>de</strong> açúcar.<br />

Não foi <strong>de</strong>scrita como engenheira, termo que substitui o antigo senhor <strong>de</strong> engenho. Em 1843, aos 32<br />

anos, vivia <strong>de</strong> suas lavouras e os filhos José e Jesuíno tinham agora mais dois irmãos, Augusto e<br />

Inocência. To<strong>dos</strong> par<strong>dos</strong>. O sítio <strong>de</strong> novo ren<strong>de</strong>u 300 mil réis, produzindo 400 arrobas <strong>de</strong> açúcar. Havia<br />

2 Jesuíno afirmou ser filho natural porque provavelmente nasceu antes do casamento <strong>de</strong> seus pais. Em 1798, tinha seis anos,<br />

e seus pais se casaram em 1794.


‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional <strong>de</strong> História <strong>ANPUH</strong>-<strong>RJ</strong> 2006: 10<br />

uma agregada, Cipriana, negra, solteira, <strong>de</strong> 44 anos. Provavelmente Feliciana se uniu a alguém, embora<br />

ainda fosse consi<strong>de</strong>rada viúva.<br />

Com a morte do marido, acertou as contas com seus cunha<strong>dos</strong>, relativas a lega<strong>dos</strong> <strong>de</strong> Jesuíno.<br />

Ainda em 19 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1836, cerca <strong>de</strong> um ano e meio após o falecimento do marido, Feliciana<br />

constituiu um procurador em São Paulo para cobrar da Tesouraria da província “qualquer quantia que<br />

lhe pertencer <strong>dos</strong> aluguéis <strong>de</strong> umas moradas <strong>de</strong> casas que serviam <strong>de</strong> armazém ao trem nacional”. Num<br />

momento <strong>de</strong> reor<strong>de</strong>nação da unida<strong>de</strong> e com filhos menores, ela lembrou e lançou mão <strong>de</strong> recursos<br />

disponíveis.<br />

Para arcar com o sustento <strong>dos</strong> filhos e da casa, o ajuste <strong>de</strong> contas com os cunha<strong>dos</strong> pesou,<br />

porém, mesmo assim, Feliciana arrumou um jeito <strong>de</strong> administrar os bens, ainda que auxiliada por<br />

alguém <strong>de</strong>sconhecido. Quando seu inventário foi aberto, em 1878, 52 anos após a morte do marido, o<br />

monte-mor era <strong>de</strong> 9:900$000, e as passivas apenas <strong>de</strong> 324$317 (3,3%). Os 14 <strong>escravos</strong> eram 100% <strong>dos</strong><br />

bens, que foram partilha<strong>dos</strong> igualmente entre os seis her<strong>de</strong>iros.<br />

O promotor <strong>dos</strong> Resíduos, que <strong>de</strong>u o parecer para julgar a prestação <strong>de</strong> contas <strong>de</strong> Feliciana<br />

sobre o inventário do seu marido músico, afirmou, em agosto <strong>de</strong> 1850, que a testamenteira <strong>de</strong>via juntar<br />

documentos que faltavam, a saber: o legado da sua sogra, um documento sobre o piano e o órgão,<br />

<strong>de</strong>ixa<strong>dos</strong> aos filhos José e Jesuíno, e outro sobre a décima das rendas nacionais. Respon<strong>de</strong>ndo em<br />

outubro <strong>de</strong> 1852, os lega<strong>dos</strong> foram quita<strong>dos</strong> quando Jesuíno morreu e ela só teve <strong>de</strong> pagar a décima da<br />

fazenda, <strong>de</strong> 374$000. Também apresentou o recibo sobre o piano e o órgão, no qual, em agosto <strong>de</strong><br />

1852, os filhos disseram:<br />

Recebemos <strong>de</strong> nossa mãe Feliciana Maria <strong>de</strong> Jesus como inventariante <strong>de</strong> nosso pai<br />

Jesuíno José da <strong>Rocha</strong> tudo aquilo que o mesmo nos <strong>de</strong>ixou no testamento e por verda<strong>de</strong><br />

passamos este.<br />

José Jacinto da <strong>Rocha</strong> Abreu Jesuíno José da <strong>Rocha</strong>.<br />

Um juiz aprovou as contas em janeiro <strong>de</strong> 1853 e, na Correição <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1862, outro juiz disse<br />

que nada havia “a provar em revisão das contas <strong>de</strong>sta testamentária, visto a sua antigüida<strong>de</strong> maior <strong>de</strong> 25<br />

anos, que <strong>de</strong>sobriga a testamenteira <strong>de</strong> oferecer prova mais regular”. Portanto, não precisava <strong>de</strong> prova<br />

mais regular em 1862. O pai, Jesuíno José da <strong>Rocha</strong>, era neto <strong>de</strong> <strong>escravos</strong>, filho natural <strong>de</strong> pai e mãe<br />

<strong>escravos</strong>. Perpetuou em seus filhos as heranças imateriais do seu senhor, conduzidas, literalmente, pelo<br />

braço escravo, seja o piano, seja o nome senhorial. Jesuíno José da <strong>Rocha</strong> tinha um filho homônimo e<br />

um outro com sobrenome <strong>Rocha</strong> Abreu, o mesmo sobrenome do padre. Era a mobilida<strong>de</strong> social no<br />

tempo, produzindo e reproduzindo a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, e nomeando-a.


‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional <strong>de</strong> História <strong>ANPUH</strong>-<strong>RJ</strong> 2006: 11<br />

Um <strong>dos</strong> filhos do músico, José Jacinto da <strong>Rocha</strong> Abreu ou apenas José da <strong>Rocha</strong> Abreu se<br />

casou e teve dois filhos. O primeiro se chamava André, em homenagem ao padre que ele sequer<br />

conheceu, mas que a família guardava vivo na memória. O outro rebento tinha o nome <strong>de</strong> Maria, uma<br />

homenagem à avó ou à mãe. José da <strong>Rocha</strong> Abreu morreu em 1876 e ficou com o piano e uma casa<br />

térrea perto da Igreja. Seus bens somavam 1:352$102, sem <strong>escravos</strong>, e com um passivo <strong>de</strong> apenas<br />

83$930. Em uma loja da cida<strong>de</strong>, o irmão Jesuíno pagou 47$000 pelas roupas para o enterro, que<br />

incluíam meia e sapato. A família, mesmo morta, continuou se diferenciando, uma vez que calçar<br />

<strong>de</strong>funtos on<strong>de</strong> muitos andavam <strong>de</strong>scalços não era para to<strong>dos</strong>.<br />

Jesuíno José da <strong>Rocha</strong>, o filho homônimo, casou e teve cinco filhos, to<strong>dos</strong> com sobrenome<br />

<strong>Rocha</strong>, exceto Feliciana Maria <strong>de</strong> Jesus, com certeza uma homenagem à sua mãe. Como seus tios,<br />

também tinha filhos <strong>de</strong>nomina<strong>dos</strong> Augusto e Leopoldina, preservando a memória familiar. Quando sua<br />

mãe morreu, Jesuíno Filho continuou senhor <strong>de</strong> <strong>escravos</strong>.<br />

Quando veio a República e Jesuíno <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser senhor <strong>de</strong> <strong>escravos</strong>, quase to<strong>dos</strong> os seus<br />

her<strong>de</strong>iros eram maiores. Do tempo da escravidão, não guardava quase nada. No testamento, disse o<br />

nome <strong>dos</strong> pais, <strong>dos</strong> filhos, sem qualquer menção à cor. Queria ser enterrado no cemitério <strong>de</strong> São<br />

Benedito, o lugar on<strong>de</strong> estava seu pai. São Benedito era uma <strong>de</strong>voção que, na época da escravidão,<br />

congregava <strong>escravos</strong> e ex-<strong>escravos</strong>. Este é o único vestígio <strong>de</strong> antepassado escravo que se percebe em<br />

suas <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iras vonta<strong>de</strong>s.

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