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Edição 138 - Jornal Rascunho

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16<br />

outubro de 2011<br />

Ref lexões sobre as antigas<br />

ref lexões sobre o conto (final)<br />

os especialistas no assunto buscaram uma única teoria e encontraram centenas<br />

Ernest Hemingway (1899-<br />

1961) não concorda com<br />

Poe em nada. Nem quanto<br />

à extensão nem quanto<br />

ao acontecimento extraordinário<br />

nem quanto ao final surpreendente.<br />

Para Hemingway o bom conto<br />

tem de ser como um iceberg: o mais<br />

importante da história não deve ser<br />

contado, deve ficar oculto bem abaixo<br />

da superfície da água. A narrativa<br />

deve ser construída com o não-dito,<br />

o subentendido, a alusão. Tchekhov<br />

teria concordado com isso.<br />

Julio Cortázar (1914-1984)<br />

concorda com Poe em quase tudo.<br />

depois de estudar e traduzir para o<br />

espanhol todos os contos do mestre<br />

estadunidense, Cortázar sintetiza<br />

o conceito de conto de Poe: “Um<br />

conto é uma verdadeira máquina<br />

literária de criar interesse”. de Cortázar,<br />

gosto também da comparação<br />

que ele estabelece entre conto<br />

e romance: o romance está para o<br />

conto assim como o cinema está<br />

para a fotografia. O romance é uma<br />

arte analítica, que trabalha com a<br />

acumulação. O conto é uma arte<br />

sintética, que trabalha com a seleção.<br />

Também gosto da comparação<br />

entre a ficção e o boxe: “O romance<br />

vence sempre por pontos, enquanto<br />

o conto deve vencer por nocaute”.<br />

Ricardo Piglia, escrevendo<br />

sobre Tchekhov, Kafka, Borges e<br />

Hemingway conclui que um conto,<br />

seja ele clássico ou moderno, sempre<br />

conta duas histórias: uma visível<br />

e outra secreta. Mas cada uma<br />

das duas histórias pode ser revelada<br />

de modos diferentes. O talento<br />

individual está na maneira como<br />

cada contista trabalha a tensão entre<br />

as duas histórias, fornecendo<br />

ou suprimindo informação.<br />

Muitos outros escritores tam -<br />

bém refletiram sobra a arte do conto,<br />

propondo suas próprias regras.<br />

Não comentarei aqui as sugestões,<br />

por exemplo, de Kurt Vonnegut e<br />

Mempo Giardinelli, bastante conhecidas,<br />

porque não acrescentam quase<br />

nada ao que já foi proposto pelos<br />

autores citados anteriormente.<br />

É importante notar que a modalidade<br />

do miniconto, tão praticada<br />

hoje em dia no mundo todo,<br />

jamais foi considerada importante<br />

pelos principais teóricos do conto.<br />

Até mesmo excelentes minicontistas<br />

como Kafka, Brecht, Cortázar e<br />

italo Calvino não pareciam interessados<br />

em legitimar, em sua época,<br />

essa modalidade tão desafiadora.<br />

Cortázar é autor de uma das melhores<br />

coletâneas de minicontos do<br />

século 20: Histórias de cronópios<br />

e de famas. Mas qualquer<br />

leitor apaixonado pela obra desse<br />

gigante da ficção moderna logo<br />

percebe que sua definição de conto,<br />

muito influenciada pela de Poe,<br />

não contempla essas saborosas histórias,<br />

todas muito curtas. Tudo indica<br />

que Cortázar não classificava<br />

suas breves ficções sobre cronópios<br />

e famas como contos. E com razão.<br />

O miniconto, apesar do parentesco<br />

com o conto, é outra história, e<br />

ainda aguarda uma teoria particular<br />

que o desvincule do irmão mais<br />

velho e mais extenso.<br />

Hoje uma boa definição de<br />

conto precisa incluir as ficções<br />

menos ortodoxas. Estou pensando<br />

nas narrativas curtas de Valêncio<br />

Xavier, décio Pignatari, Alberto<br />

Pimenta e outros, que incorporam<br />

literariamente material de natureza<br />

não literária: desenhos, fotos,<br />

embalagens, cenas de cinema,<br />

fragmentos de histórias em quadrinhos,<br />

textos de jornal e revista,<br />

anúncios antigos, etc.<br />

Poe, Tchekhov, Quiroga, Hemingway,<br />

Cortázar, Piglia, Vonnegut,<br />

Giardinelli... Existem muitas<br />

definições e decálogos do conto.<br />

Os especialistas no assunto buscaram<br />

uma única teoria e encontraram<br />

dezenas, centenas. Num<br />

mundo matizado, é assim que as<br />

coisas acontecem. Então um bom<br />

conselho ao leitor pode ser: não se<br />

torture procurando uma resposta<br />

definitiva para a pergunta “o que é<br />

um conto?”. Em vez disso, deliciese<br />

lendo contos. Leia dalton Trevisan.<br />

Leia Clarice Lispector. Leia<br />

Lygia Fagundes Telles. Outro bom<br />

conselho, agora ao escritor iniciante<br />

ou veterano, pode ser: não se torture<br />

procurando a receita perfeita<br />

para a escritura do conto perfeito.<br />

Ela pode ser apenas uma utopia<br />

impossível. Em vez disso, deliciese<br />

lendo e escrevendo contos.<br />

Talvez mais importante e<br />

mais fácil do que tentar descobrir<br />

o que um conto é, do que tentar<br />

encontrar a definição absoluta do<br />

conto e suas regras, é tentar descobrir<br />

quantos tipos de conto existem.<br />

A tipologia do conto parece<br />

ser algo bem menos incerto do que<br />

: : ruído branco : : luiz bras<br />

a teoria do conto.<br />

Um bom começo é a classificação<br />

proposta por Carl Henry<br />

Grabo, em The art of short story<br />

(1913). Para Grabo, há cinco tipos<br />

de conto: o conto de ação (centrado<br />

no enredo), o conto de personagem<br />

(centrado no protagonista ou<br />

nos muitos personagens centrais,<br />

se houver mais de um), o conto de<br />

cenário ou atmosfera (na ambientação,<br />

nos objetos, nas sensações),<br />

o conto de idéia (nas doutrinas filosóficas,<br />

artísticas, científicas, religiosas,<br />

políticas, etc.) e o conto de<br />

efeito emocional (terror, tristeza,<br />

compaixão, humor, volúpia, como<br />

na teoria do efeito único, de Poe).<br />

Não é difícil perceber que este último<br />

tipo é bastante problemático,<br />

pois está fundado no suposto efeito<br />

subjetivo, emocional, que o contista<br />

espera que determinado conto provoque<br />

no leitor. Outro problema é<br />

que este tipo pode se confundir com<br />

o anterior, o conto de idéia, causando<br />

ambigüidade e imprecisão.<br />

A tipologia criada por Grabo<br />

no começo do século 20 baseia-se<br />

em três categorias da ficção: personagem,<br />

enredo e espaço. Sugiro<br />

que a gente tente criar uma tipologia<br />

do conto usando as cinco principais<br />

categorias da ficção: linguagem<br />

(considerando também o foco<br />

narrativo), personagem (o protagonista<br />

ou o narrador-protagonista<br />

ou os muitos personagens centrais,<br />

se houver mais de um), enredo, espaço<br />

e tempo. Também sugiro que<br />

a gente esqueça essa história de<br />

efeito único, emocional. Ainda não<br />

existe um método confiável para<br />

avaliar que efeito um conto provocou<br />

em leitores muito diferentes.<br />

Como as cinco categorias estão<br />

sempre misturadas, em diferentes<br />

porcentagens, é preciso bastante<br />

atenção para detectar num conto<br />

qual das cinco sobressai. Um exemplo<br />

de cada: um conto de linguagem<br />

é O importado vermelho de Noé,<br />

de André Sant’Anna; um conto de<br />

personagem é Os filhotes, de Mario<br />

Vargas Llosa; um conto de enredo é<br />

Mestre-de-armas, de Braulio Tavares;<br />

um conto de espaço é Chegarão<br />

chuvas suaves, de Ray Bradbury; e<br />

um conto de tempo é Viagem à semente,<br />

de Alejo Carpentier.<br />

Voltando à questão inicial,<br />

das fronteiras desfocadas, borradas,<br />

como classificaremos os contos-colagem,<br />

em que o material de<br />

outras esferas artísticas — desenhos,<br />

fotos, embalagens, cenas de<br />

cinema, fragmentos de histórias<br />

em quadrinhos, textos de jornal e<br />

revista, anúncios antigos, etc. — é<br />

incorporado à estrutura narrativa?<br />

Em que categoria colocaremos O<br />

mez da grippe e Maciste no inferno,<br />

de Valêncio Xavier? Também<br />

não podemos esquecer os contos<br />

multimídias publicados na web,<br />

que incorporam sons, músicas e<br />

fragmentos de filmes. Há duas possibilidades:<br />

podemos considerá-los<br />

contos de linguagem ou criar uma<br />

nova categoria para eles. Que nome<br />

podemos dar a essa nova categoria?<br />

Finalizo estas reflexões deixando<br />

essa questão em aberto. Sugestões<br />

serão muito bem-vindas.

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