Edição 138 - Jornal Rascunho
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: : a literatura na poltrona : : José castello<br />
Mensagem a<br />
leitores assassinos<br />
pressa, exigência de regularidade e de clareza e pragmatismo<br />
podem ser decisivos para o fim trágico de um livro<br />
Em que medida somos nós,<br />
leitores, que destruímos<br />
a reputação de um livro?<br />
de que maneira leituras<br />
apressadas, indiferentes, superficiais,<br />
acabam por matar grandes livros?<br />
Sempre achei que o leitor não<br />
é só leitor, é co-autor dos livros que<br />
lê. Co-autor, mas pode ser também<br />
o assassino dos mesmos livros. isso<br />
sem importar que sejam grandes livros,<br />
ou pequenos livros.<br />
A propósito desses pensamentos,<br />
recordo o capítulo LXXi das<br />
Memórias póstumas de Brás<br />
Cubas, de Machado de Assis. Chama-se<br />
O senão do livro. É um dos<br />
muitos intervalos abertos por Machado<br />
para que seu narrador dialogue,<br />
francamente, diretamente, sem<br />
disfarces lamentáveis e sem gentilezas<br />
desnecessárias, com seu leitor.<br />
Escreve Brás Cubas: “O maior<br />
defeito deste livro és tu, leitor. Tu<br />
tens pressa de envelhecer, e o livro<br />
anda devagar; tu amas a narração<br />
direita e nutrida, o estilo regular e<br />
fluente, e este livro e o meu estilo são<br />
como os ébrios, guinam à direita e à<br />
esquerda, andam e param, resmungam,<br />
urram, gargalham, ameaçam o<br />
céu, escorregam e caem...”<br />
Publicadas no ano de 1880 —<br />
portanto há 131 anos! —, as Memórias<br />
póstumas de Brás Cubas<br />
carregam uma mensagem que atinge<br />
em cheio o peito engravatado —<br />
ou decotado — do leitor contemporâneo.<br />
Não só a ele, talvez nem<br />
mesmo a ele, mas aos mitos que o<br />
cercam. dizem (os editores, os jornalistas,<br />
os revisores, os especialistas)<br />
que o leitor de hoje tem pressa<br />
e, portanto, não suporta, não pode<br />
agüentar, a lentidão. Repetem os<br />
pensamentos de Brás Cubas.<br />
Repetem a reflexão de Brás<br />
Cubas quando afirmam que o estilo<br />
deve ser direto, “cinematográfico”,<br />
capaz de sincronizar com o cinema,<br />
com a TV, com a internet. Em um<br />
mundo de imagens, as palavras devem<br />
se comportar como flashes. E<br />
mais nada. Nada de textos longos,<br />
nada de divagações, ou meditações,<br />
nenhuma reminiscência. Nenhum<br />
contorno, nenhuma reflexão, ou digressão,<br />
porque o leitor contemporâneo,<br />
sempre apressado, sempre<br />
pragmático, impecável e prático,<br />
interessado apenas em consumir o<br />
sangue das palavras, não dispõe de<br />
tempo, nem de energias, tampouco<br />
de paciência, para coisas assim.<br />
dizem os redatores modernos<br />
que o estilo deve ser reto, evitando-se<br />
assim o vacilar dos ébrios.<br />
Como se a realidade tivesse a retidão<br />
de uma bula de medicamentos,<br />
ou de uma receita de bolo. Como se<br />
a vida se desenrolasse, firme e elegante,<br />
como uma passadeira turca!<br />
O estilo deve ser claro (o leitor<br />
contemporâneo não tem paciência,<br />
nem tempo, para divagações,<br />
e além disso odeia pensar, não suporta<br />
o relativismo que define a<br />
arte). O leitor contemporâneo, dizem<br />
ainda, busca mensagens prontas,<br />
verdades simples e fechadas,<br />
dogmas se possível for. Lê — quando<br />
lê — em busca de um espelho<br />
brilhante e límpido, que reflita sem<br />
complicações a clareza da vida. diz<br />
o leitor de hoje coisas assim e, sem<br />
saber, mas fazendo, repete as meditações<br />
de Brás Cubas.<br />
O leitor contemporâneo, dizse<br />
ainda, deseja regularidade e<br />
equilíbrio. Busca desempenho, preocupa-se,<br />
mais que tudo, com as<br />
performances! Ritmo regular, fluência<br />
inabalável, direção certeira.<br />
Clareza de propósitos, exemplos<br />
simples, passos firmes de executivo,<br />
ou de modelo de passarela. Ele quer<br />
ler, sim. Mas os escritores atrapalham<br />
tudo com seus livros rebuscados,<br />
cheios de pensamentos, de divagações<br />
e de dúvidas. Ele ama os<br />
livros, mas livros que tenham a firmeza<br />
de um manual e que o ajudem<br />
a saber como usá-lo, com que meios<br />
e para quais propósitos. Os escritores,<br />
mais uma vez, atrapalham<br />
tudo! Fazem tudo ao contrário!<br />
Cento e trinta e um anos depois,<br />
ainda prefiro a idéia que Machado<br />
leva à boca de Brás Cubas:<br />
será que o problema não está em<br />
nós, leitores? Não seremos nós, tantas<br />
vezes, com nossa pressa, nossa<br />
exigência de regularidade e de clareza,<br />
nosso pragmatismo, assassinos<br />
de livros? Tantas e tantas vezes,<br />
o problema de livros, grandes livros,<br />
não estará em nós, seus leitores?<br />
Os calendários ainda insistem<br />
em me convencer de que Machado<br />
de Assis foi um escritor do século<br />
19. Que nada! A cada ano que passa,<br />
Machado se torna nosso inseparável<br />
contemporâneo. Ele pode<br />
ser aquele vizinho estranho e solene<br />
que você, olhando-o só de banda,<br />
sem dar grande atenção ao coitado,<br />
considera só um chato! Cuidado: ele<br />
sabe muito mais a seu respeito, inocente<br />
leitor, do que você mesmo.<br />
aPologia<br />
dos defeitos<br />
Ao telefone, em meio a lembranças<br />
de Clarice Lispector, de<br />
quem foi grande amiga, Lygia Fagundes<br />
Telles me passa uma frase<br />
da escritora que nos paralisa. diz<br />
Clarice: “Até cortar os nossos defeitos<br />
pode ser perigoso. Nunca se<br />
sabe quais de nossos defeitos sustentam<br />
o edifício todo”. Levo-a a<br />
uma palestra que faço no Encontro<br />
Brasileiro Winnicott, realizado em<br />
Curitiba. Assim que a rememoro,<br />
o psicanalista Jamil Signorini, surpreso,<br />
me diz: “Mas eu também a<br />
citei em minha fala de ontem!”.<br />
O que diz Clarice nessa frase<br />
de aparência enigmática, que parece<br />
se alastrar entre nós, como uma<br />
condenação? Que os nossos defeitos<br />
também são nossas qualidades.<br />
Somos feitos de coisas boas e<br />
de coisas más. distingui-las depende<br />
sempre da perspectiva em que<br />
as observamos. O que é bom hoje<br />
pode ser péssimo amanhã. O que é<br />
bom para mim pode ser intolerável<br />
para você. O que me serve hoje,<br />
amanhã pode se tornar inútil. Feitos<br />
de coisas boas e más, nada devemos<br />
excluir do que somos.<br />
A literatura é feita justamente<br />
disto: da aceitação do fracasso.<br />
Ainda pensando em Clarice, lembro,<br />
a propósito, de A hora estrela,<br />
seu romance de despedida, e de<br />
uma declaração do narrador, Rodrigo<br />
S. M.: “A verdade é sempre<br />
um contato interior inexplicável. A<br />
verdade é irreconhecível. Portanto<br />
não existe? Não, para os homens<br />
não existe”. Para buscar a verdade,<br />
nada mais temos que as palavras.<br />
Mas as palavras são falhas, insuficientes,<br />
imprestáveis. O real não<br />
cabe nas palavras: ele transborda,<br />
escorre, o principal sempre se perde.<br />
No entanto, com o que mais podemos<br />
contar, nós, seres de linguagem?<br />
Este resto a que chamamos<br />
de realidade é tudo o que temos<br />
para viver.<br />
Sugere Clarice (sempre ela).<br />
Estou diante de uma cadeira. Quero<br />
me apossar da cadeira, quero dizer<br />
o que ela é: então lhe dou um<br />
nome — “cadeira”. Mas, assim que<br />
pronuncio a palavra, “cadeira”, em<br />
vez de capturar o objeto, a palavra<br />
se interpõe entre nós. A palavra,<br />
ela dizia, é, na verdade, um obstáculo.<br />
Enquanto nos dá a impressão<br />
de posse, ela nos afasta das coisas.<br />
Nós a usamos como instrumento<br />
de acesso ao real, mas tudo o que<br />
ela faz é construir uma falsificação<br />
do real, a que chamamos de realidade,<br />
e na qual depositamos nossa<br />
fé. Nossas frágeis esperanças.<br />
Clarice dizia coisas difíceis de<br />
pensar. Para muitos, não passava<br />
de uma louca. Outros a julgavam<br />
uma filósofa. Até uma bruxa. Foi,<br />
isso sim, uma grande escritora. Escrevia<br />
para livrar-se dos automatismos<br />
do pensamento, para pensar o<br />
impensável. O impensável, porém,<br />
não se pensa. Então, ficava perdida<br />
no meio do caminho, enrolada<br />
nas próprias palavras, aranha que<br />
não larga sua teia — que, no fim das<br />
contas, é ela mesma. isso é a literatura:<br />
uma teia. Fios finíssimos que<br />
formam uma espécie de rede com<br />
o qual nos protegemos do mundo<br />
e através do qual nós o observamos.<br />
Fios que vêm não das Musas,<br />
ou dos Espíritos, mas de dentro do<br />
próprio escritor.<br />
Por isso é difícil aceitar a idéia<br />
de que os defeitos são partes essenciais<br />
não só do que somos, mas do<br />
que escrevemos. Os jovens escritores<br />
buscam fórmulas, truques, regras.<br />
Lutam para chegar ao “bem<br />
escrever”. Não sabem viver sem<br />
uma boa coerção. Querem notas,<br />
aprovações, títulos. Nada disso interessa<br />
ao escritor. A literatura é o<br />
terreno da liberdade. Terra de ninguém,<br />
nela as qualidades e os defeitos<br />
têm o mesmo valor. Até porque<br />
é impossível separá-los.<br />
Clarice dizia (está em A paixão<br />
segundo G. H.): “usamos a<br />
palavra como isca”. Ao dizer “cadeira”,<br />
lutamos para capturar uma<br />
cadeira. Mas, lançada a isca, e assim<br />
que ela envolve o objeto, ela o<br />
incorpora — como um predador,<br />
ela o devora. O objeto passa a ser a<br />
Carolina vigna-maru<br />
própria isca. A isca é o nome e ele,<br />
objeto, continua distante e impossível,<br />
continua muito longe de nós.<br />
daí o sentimento de fracasso que<br />
envolve o ato da escrita.<br />
Só entrego meus livros aos<br />
editores por absoluto cansaço. Por<br />
esgotamento. Só entrego quando<br />
não os suporto mais — então, concluo,<br />
chegou a hora! Estou sempre<br />
insatisfeito com o que escrevo.<br />
Agora mesmo estou insatisfeito:<br />
vim escrever sobre uma coisa, e<br />
estou escrevendo sobre outras. As<br />
palavras me arrastam. Elas me carregam<br />
e me submetem. Falei, outro<br />
dia, de Simone de Beauvoir, a<br />
escrava. Percebo que continuo a falar<br />
da mesma coisa: da literatura<br />
como uma forma de escravidão. A<br />
literatura? A vida.<br />
Mas, então, onde está a liberdade<br />
de um escritor? A liberdade<br />
está em aceitar esses limites.<br />
Aceitar os fracassos, as impossibilidades<br />
e os defeitos. incorporálos<br />
(devorá-los). Como dizia Clarice:<br />
incluí-los, fazer algo deles. Sem<br />
eles, sem tudo o que temos de pior e<br />
de insuportável, talvez seja impossível<br />
escrever. Pode-se “escrevinhar”<br />
— mas isso já é outra coisa. daí a literatura<br />
não ser para qualquer um.<br />
isso quer dizer que a literatura se<br />
destina às elites? Não! Quer dizer<br />
que ela exige coragem.<br />
outubro de 2011<br />
17<br />
nota<br />
o texto mensagem a leitores<br />
assassinos foi publicado no blog<br />
a literatura na poltrona, mantido<br />
por José Castello, colunista do<br />
caderno prosa & verso, no site do<br />
jornal o globo: www.oglobo.com.br/<br />
blogs/literatura. A republicação no<br />
rascunho faz parte de um acordo<br />
entre os dois veículos.