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Urdimento: s.m. 1) urdume; 2) parte superior da ... - CEART - Udesc

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<strong>Urdimento</strong>: s.m. 1) <strong>urdume</strong>; 2) <strong>parte</strong><br />

<strong>superior</strong> <strong>da</strong> caixa do palco, onde se<br />

acomo<strong>da</strong>m as rol<strong>da</strong>nas, molinetes, gornos<br />

e ganchos destinados às manobras<br />

cênicas; fig. urdidura, ideação, concepção.<br />

etm. urdir + mento.<br />

ISSN 1414-5731<br />

Revista de Estudos em Artes Cênicas<br />

Número 16<br />

Programa de Pós-Graduação em Teatro do <strong>CEART</strong><br />

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA


URDIMENTO é uma publicação semestral do Programa<br />

de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina. As opiniões<br />

expressas nos artigos são de inteira responsabili<strong>da</strong>de dos<br />

autores. A publicação de artigos, fotos e desenhos foi<br />

autoriza<strong>da</strong> pelos responsáveis ou seus representantes.<br />

A revista está disponível online em<br />

www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento<br />

Ficha técnica<br />

Editores: Stephan Baumgärtel, Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong><br />

e Vera Collaço<br />

Secretaria de Re<strong>da</strong>ção: Éder Sumariva Rodrigues<br />

[eder.sumariva@gmail.com]<br />

Coordenação de Produção: Éder Sumariva Rodrigues<br />

Capa e contracapa: Espetáculo Retrato de Augustine (2010),<br />

de Peta Tait e Matra Robertson, projeto contemplado com o<br />

Prêmio FUNARTE de Teatro, Myriam Muniz, 2008. Concepção e<br />

direção de Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>, professora doutora do Departamento de<br />

Artes Cênicas <strong>da</strong> UDESC<br />

Capa: Juliana Riechel e Vicente Concílio<br />

Foto: Daniel Yencken<br />

Local: Casa <strong>da</strong>s Máquinas, abril de 2010 - Tempora<strong>da</strong> Myriam Muniz<br />

Contracapa: Juliana Riechel e Fátima Lima<br />

Foto: Claudia Mussi<br />

Local: Teatro Álvaro de Carvalho, abril de 2010 -<br />

Tempora<strong>da</strong> Myriam Muniz<br />

Projeto Gráfico: Déborah Salves [salves.deborah@gmail.com]<br />

Editoração eletrônica: Déborah Salves<br />

Esta publicação foi realiza<strong>da</strong> com o apoio <strong>da</strong> CAPES<br />

Catalogação na fonte: Eliane Apareci<strong>da</strong> Junckes Pereira. CRB/SC 528<br />

<strong>Urdimento</strong> - Revista de Estudos em Artes Cênicas /<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina. Programa de<br />

Pós-Graduação em Teatro. - Vol 1, n.16 (Jun 2011) -<br />

Florianópolis: UDESC/<strong>CEART</strong><br />

Semestral<br />

ISSN 1414-5731<br />

I. Teatro - periódicos.<br />

II. Artes Cênicas - periódicos.<br />

III. Programa de Pós-Graduação em Teatro.<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina<br />

Biblioteca Setorial do <strong>CEART</strong>/UDESC


Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina - UDESC<br />

Reitor: Sebastião Iberes Lopes Melo<br />

Vice Reitor: Antonio Heronaldo de Sousa<br />

Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Pereira de<br />

Souza<br />

Diretor do Centro de Artes: Milton de Andrade<br />

Chefe do Departamento de Teatro: Edélcio Mostaço<br />

Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Vera Regina<br />

Martins Collaço<br />

Conselho editorial<br />

Ana Maria Bulhões de Carvalho Edlweiss (UNIRIO)<br />

Cássia Navas Alves de Castro (UNICAMP)<br />

Christine Greiner (PUC/SP)<br />

Felisberto Sabino <strong>da</strong> Costa (ECA/USP)<br />

Jerusa Pires Ferreira (PUC/SP)<br />

João Roberto Faria (FFLCH/USP)<br />

José Dias (UNIRIO)<br />

José Roberto O’Shea (UFSC)<br />

Luiz Fernando Ramos (ECA/USP)<br />

Márcia Pompeo Nogueira (<strong>CEART</strong>/UDESC)<br />

Maria Lucia de Souza Barros Pupo (ECA/USP)<br />

Mario Fernando Bolognesi (UNESP)<br />

Marta Isaacsson de Souza e Silva (DAD/UFRGS)<br />

Neyde Veneziano (UNICAMP)<br />

Rosyane Trotta (UNIRIO)<br />

Sérgio Coelho Farias (UFBA)<br />

Sônia Machado Azevedo (Escola Superior de Artes Célia<br />

Helena)<br />

Soraya Silva (UnB)<br />

Tiago de Melo Gomes (UFRPE)<br />

Walter Lima Torres (UFPR)<br />

Conselho assessor<br />

Beti Rabetti (UNIRIO)<br />

Ciane Fernandes (UFBA)<br />

Eugenia Casini Ropa (Universi<strong>da</strong>de de Bolonha - Ítalia)<br />

Eugenio Barba (Odin Teatret)<br />

Francisco Javier (Universi<strong>da</strong>d de Buenos Aires)<br />

Jacó Guinsburg (ECA/USP)<br />

Juan Villegas (University of California)<br />

Marcelo <strong>da</strong> Veiga (Universi<strong>da</strong>de Alanus – Alemanha)<br />

Óscar Cornago Bernal (Conselho Superior de Pesquisas<br />

Científicas – Espanha)<br />

Osvaldo Pellettieri (Universi<strong>da</strong>d de Buenos Aires)<br />

Peta Tait (La Trobe University)<br />

Roberto Romano (UNICAMP)<br />

Silvana Garcia (EAD/USP)<br />

Silvia Fernandes Telesi (ECA/USP)<br />

Tânia Brandão (UNIRIO)


UDESC - Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina<br />

<strong>CEART</strong> - Centro de Artes<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO<br />

O PPGT oferece formação em nível de Mestrado, implantado<br />

em 2001, e Doutorado, em 2009.<br />

Professores permanentes<br />

André Luiz Antunes Netto Carreira<br />

Beatriz Ângela Vieira Cabral<br />

Edélcio Mostaço<br />

José Ronaldo Faleiro<br />

Márcia Pompeo Nogueira<br />

Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong><br />

Milton de Andrade<br />

Sandra Meyer Nunes<br />

Stephan Arnulf Baumgärtel<br />

Valmor Beltrame<br />

Vera Regina Collaço<br />

Professores colaboradores<br />

Matteo Bonfitto Júnior (UNICAMP)<br />

Timothy Prentki (Tim Prentki) - (Universi<strong>da</strong>de de Winchester,<br />

Reino Unido)<br />

O PPGT abre inscrições anualmente para seleção de candi<strong>da</strong>tos<br />

em nível nacional e internacional. Para acesso ao calendário de<br />

ativi<strong>da</strong>des, linhas e grupos de pesquisa, corpo docente e corpo<br />

discente, dissertações e teses defendi<strong>da</strong>s e outras informações,<br />

consulte o sítio virtual: http://www.ceart.udesc.br/ppgt


Apresentação<br />

El teatro de género chico en buenos aires en los años ’20, una<br />

mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social<br />

Carolina González Velasco<br />

Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias<br />

cariocas de Nelson Rodrigues<br />

Elen de Medeiros<br />

Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de<br />

Denise Stoklos<br />

Elisa Belém<br />

Através dos objetos sobre a cenografia dos espetáculos do<br />

Théâtre Libre<br />

Guilherme Delgado<br />

Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro<br />

Mara Lucia Leal<br />

Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica<br />

Mariane Magno<br />

Marta Abba: a vamp virtuosa de Pirandello<br />

Martha Ribeiro<br />

Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez<br />

Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro eletrônico<br />

Nanci de Freitas<br />

Artaud, Arrabal e nós estudo de processo criação cênica<br />

Narciso Telles<br />

Pina Bausch: para maiores de 65 anos<br />

Solange Caldeira<br />

Olha ô programa <strong>da</strong> peça!<br />

Felipe Matheus Bachmann Ribeiro<br />

Walter Lima<br />

11<br />

17<br />

31<br />

43<br />

55<br />

67<br />

79<br />

97<br />

109<br />

121<br />

129<br />

139<br />

Sumário


Traduções<br />

De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros<br />

Annemarie M. Matzke<br />

Pontos e práticas: manifestos. Nostalgias futuras<br />

Richard Schechner<br />

Resenha<br />

Antônio José e o teatro do setecentos<br />

Iná Camargo Costa<br />

Entrevistas<br />

Entrevista com Josette Féral<br />

Julia Guimarães e Leandro Silva Acácio<br />

Entrevista com Peta Tait<br />

Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong> e Júlia Oliveira<br />

Espetáculo<br />

Retrato de Augustine (2010)<br />

155<br />

165<br />

173<br />

179<br />

189<br />

197


N° 16 | Junho de 2011<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Ensaio. Atores: Augustine [Juliana Riechel].<br />

Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

Apresentação 9


N° 16 | Junho de 2011<br />

Apresentação<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Este número <strong>da</strong> <strong>Urdimento</strong><br />

reúne importantes contribuições<br />

de colaboradores espontâneos<br />

que chegam à re<strong>da</strong>ção via fluxo<br />

contínuo. Com os números<br />

não-temáticos a nossa revista<br />

oferece um espaço para mostrar<br />

a diversi<strong>da</strong>de e abrangência <strong>da</strong><br />

pesquisa acadêmica e artística no<br />

campo <strong>da</strong>s artes cênicas no Brasil;<br />

e busca fortalecer o intercâmbio e<br />

a discussão de ideias e reflexões<br />

sobre as práticas teatrais entre<br />

pesquisadores e artistas.<br />

Dentro <strong>da</strong> ampla diversi<strong>da</strong>de<br />

temática trata<strong>da</strong> neste número,<br />

reunimos três trabalhos que<br />

abor<strong>da</strong>m o teatro brasileiro a partir<br />

de uma perspectiva que podemos<br />

chamar de pós-colonial, a fim de<br />

focar criticamente os mecanismos<br />

de poder que apontam para as<br />

decisões estéticas e pragmáticas<br />

dos artistas e grupos, muitas vezes<br />

articula<strong>da</strong>s como subversivas.<br />

Completam o olhar sobre o teatro<br />

brasileiro um ensaio sobre as<br />

relações entre o expressionismo<br />

alemão e as tragédias cariocas de<br />

Nelson Rodrigues, e, por fim, um<br />

estudo sobre o desdobramento <strong>da</strong><br />

função estética e sócio-cultural<br />

do programa de teatro no Brasil<br />

desde os anos de 1950 à nossa<br />

contemporanei<strong>da</strong>de.<br />

Foto: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011.<br />

Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Atores: Augustine [Juliana Riechel] e<br />

Apresentação Bernadette [Du<strong>da</strong> Schappo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Júlia oliveira.<br />

11


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

12<br />

O possível intercâmbio conceitual e<br />

experiencial entre práticas nacionais e<br />

internacionais aponta para a escolha de<br />

trabalhos de pesquisadores brasileiros<br />

sobre artistas e grupos estrangeiros,<br />

no caso desse número Pina Bausch e<br />

Luigi Pirandello. Mais dois trabalhos<br />

também buscam estas trocas entre<br />

Brasil e o mundo afora, tendo como<br />

foco as experiências de treinamento do<br />

ator para a cena. Um artigo discute o<br />

trabalho de atrizes brasileiras com as<br />

teorias cênicas de Artaud e Arrabal.<br />

E outro trabalho, nesta direção, versa<br />

sobre as possibili<strong>da</strong>des de usar o<br />

conceito taoista <strong>da</strong> não-ação para o<br />

treinamento do ator.<br />

Ao lado dos resultados de pesquisas<br />

nacionais sempre reservamos espaço<br />

para apresentar trabalhos de<br />

pesquisadores não-brasileiros, com o<br />

intuito de estimular reflexões acerca<br />

de possíveis sincronias e assincronias<br />

em relação ao teatro brasileiro. Nesse<br />

contexto, incluímos um texto que<br />

apresenta aspectos do teatro pósdramático<br />

e performativo na Alemanha.<br />

Bem como um texto de Richard Schechner<br />

sobre as vanguar<strong>da</strong>s históricas, as quais<br />

podemos ver como precursores dos<br />

experimentos desse teatro performativo<br />

contemporâneo.<br />

Neste número iniciamos uma nova<br />

proposição para a Revista <strong>Urdimento</strong>,<br />

que é a de publicar entrevistas cedi<strong>da</strong>s<br />

por pessoas relevantes na área <strong>da</strong>s<br />

Artes Cênicas, bem como de artistas/<br />

estudiosos que tenham concedidos<br />

entrevistas que serviram de base para a<br />

elaboração de dissertações ou teses. Com<br />

isso estaremos disponibilizando um<br />

acervo que pode vir a constituir a base<br />

de discussão e estudos de futuros artigos<br />

e trabalhos acadêmicos. Dando início a<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Medico Interno [Vicente Concilio]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Júlia oliveira.<br />

Apresentação


N° 16 | Junho de 2011<br />

este novo encaminhamento publicando,<br />

nesta <strong>Urdimento</strong>, uma entrevista com a<br />

estudiosa Josette Fèral.<br />

Esta <strong>Urdimento</strong> apresenta uma nova<br />

formulação visual. A nossa revista passa<br />

com este número a ser publica<strong>da</strong> em<br />

formato A4. Esta é a terceira modificação<br />

na diagramação de nossa revista. De um<br />

início muito tímido, em 1997, quando<br />

de seu lançamento, a uma readequação<br />

importante em 2004, quando passou<br />

para o formato intermediário, e agora<br />

com a nova dimensão em A4, a nossa<br />

revista foi, gra<strong>da</strong>tivamente, ampliando<br />

a sua envergadura científica e acadêmica<br />

e, consequentemente, sua estatura física.<br />

Buscamos, com estas alterações, uma<br />

melhor visuali<strong>da</strong>de, bem como mais<br />

aproveitamento de espaço interno/<br />

gráfico, de modo a ampliar os espaços<br />

para publicação de materiais de<br />

pesquisa cênicas.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Desejamos que os leitores possam<br />

encontrar nesse número estímulos para<br />

suas próprias in<strong>da</strong>gações, reiterando<br />

nosso chamado à colaboração contínua,<br />

e nosso convite a dialogar diretamente<br />

com os trabalhos apresentados.<br />

Por último, queremos agradecer a<br />

colaboração de estu<strong>da</strong>ntes e técnicos<br />

como membros <strong>da</strong> equipe de produção e<br />

editoração. Seu trabalho é fun<strong>da</strong>mental<br />

para a regulari<strong>da</strong>de e quali<strong>da</strong>de visual<br />

<strong>da</strong> revista.<br />

Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong>,<br />

Stephan Baumgärtel, Vera Collaço<br />

Corpo Editorial<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Atores: Médico Interno [Vicente Concilio];<br />

Atendente [Pedro Coimbra]; Doutor Charcot [José Ronaldo Faleiro]; Augustine [Juliana Riechel] e Enfermeira Bottard [Fátima Lima]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

Apresentação 13


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Médico Interno [Vicente Concílio]; Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Júlia oliveira.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 15


N° 16 | Junho de 2011<br />

EL TEATRo DE GÉNERo CHICo EN<br />

BUENoS AIRES EN LoS AÑoS ’20,<br />

UNA MIRADA DE CoNJUNTo DESDE<br />

LA HISToRIA SoCIAL<br />

Resumen<br />

El trabajo analiza el movimiento teatral porteño de los<br />

años ’20 a partir de una perspectiva de historia social. Se<br />

argumenta en qué sentido este teatro fue una experiencia<br />

social particular pero característica de la vi<strong>da</strong> urbana<br />

porteña de los años ’20, en tanto fue condiciona<strong>da</strong> y<br />

condicionante de las transformaciones que experimentaba<br />

la ciu<strong>da</strong>d. Para esto, se recrean los principales rasgos de<br />

la socie<strong>da</strong>d porteña de esos años para luego presentar y<br />

relacionar diversos rasgos del mundo del teatro con las<br />

transformaciones de la socie<strong>da</strong>d.<br />

Palabras claves: Buenos Aires, teatro, experiencias sociales.<br />

Abstract<br />

This paper analyses the theatrical movement in Buenos<br />

Aires during the 20´s based on a social history perspective.<br />

It discusses in which sense this theatre was a particular<br />

social experience but also typical of the porteña urban<br />

life in the 20's, since it was both conditioned by and a<br />

condition for the transformations suffered by the city<br />

during those <strong>da</strong>ys. In order to do so, this work recreates<br />

the most important characteristics of the society back then,<br />

and then presents and relates the characteristics of the<br />

theatre world with the transformations of the society.<br />

Keywords: Buenos Aires, theatre, social experience.<br />

Carolina González Velasco 1<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 17


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

18<br />

Cuando Augusto Alvarez,<br />

importante empresario<br />

teatral de Buenos Aires, se<br />

enteró de las condiciones<br />

que su emisario en Francia<br />

había aceptado de <strong>parte</strong> del popular<br />

chansonier Maurice Chevalier para viajar al<br />

Río de la Plata, creyó que todo su negocio<br />

se vendría abajo. Además de un oneroso<br />

contrato, el francés pedía actuar sólo en una<br />

función diaria, reclamaba su derecho de<br />

rechazar los espectáculos en los que fuera a<br />

participar si no eran de su agrado y solicitaba<br />

una serie de comodi<strong>da</strong>des para su camarín.<br />

Corría el año 1925: el teatro de revista<br />

corte francés se consoli<strong>da</strong>ba en las principales<br />

capitales del mundo y Alvarez apostaba<br />

a que la contratación de Chevalier, artista<br />

que brillaba en los escenarios franceses,<br />

permitiría que uno de sus teatros, el Porteño,<br />

se afianzara definitivamente en una plaza<br />

que se volvía ca<strong>da</strong> vez más competitiva. Por<br />

eso, pese a las exigencias del artista, Alvarez<br />

decidió seguir adelante con el proyecto.<br />

Chevalier y su compañera Ivonne<br />

Valée llegaron a Buenos Aires a mediados<br />

de mayo de 1925; la frial<strong>da</strong>d con que el<br />

artista saludó a sus anfitriones no hizo sino<br />

confirmar las dificultades ya avizora<strong>da</strong>s en<br />

la negociación del contrato. Luego de<br />

instalarse en el Plaza Hotel –uno de los<br />

más lujosos del momento-, concurrió al<br />

Porteño y presenció el ensayo de la obra<br />

que lo tendría como protagonista. Recorrió<br />

las instalaciones del teatro y observó su<br />

camarín. Su conclusión fue tajante y así lo<br />

recordó el mismo Álvarez en sus memorias:<br />

“querido amigo…. todo esto no va conmigo”<br />

–le dijo- “Mier<strong>da</strong> con vuestro sucio teatro.<br />

1 Doctora en Historia, por la Universi<strong>da</strong>d de Buenos Aires<br />

(UBA). Actualmente, becaria de posdoctorado del Consejo<br />

Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas<br />

(CoNICET), investigadora del Instituto de Investigaciones<br />

en Historia Argentina y Americana Emilio Ravignani, de la<br />

Facultad de Filosofía y Letras de la UBA e investigadora en<br />

el Centro de Estudios en Historia Política de la Universi<strong>da</strong>d<br />

de San Martín. Coordinadora del Programa de Investigación<br />

“Mercado de espectáculos, industrias del entretenimiento<br />

y consumos culturales. Buenos Aires, siglo XX.” Centro de<br />

Estudios de Historia Política. UNSAM: 2010. Docente de la<br />

materia Historia Social General, en la Facultad de Filosofía y<br />

Letras de la UBA y docente de la materia Problemas de Historia<br />

Argentina, en la Universi<strong>da</strong>d Nacional Arturo Jauretche.<br />

No cuenten conmigo. Regreso a París.<br />

Mi contrato me <strong>da</strong> todo el derecho. Hasta<br />

nunca” (MANFREDI, 1989, p. 75).<br />

To<strong>da</strong> la inversión parecía deshacerse,<br />

pero Alvarez y sus colaboradores- Bayón<br />

Herrera, Manuel Romero e Ivo Pelay<br />

-autores y directores teatrales de conoci<strong>da</strong><br />

trayectoria en la escena porteña-, no se<br />

dieron por vencidos. Decidieron que<br />

harían la obra de todos modos: en lugar del<br />

francés, actuaría el actor Marcelo Ruggero,<br />

quien imitaría en tono de parodia al mismo<br />

Chevalier.<br />

Ocurrió entonces que mientras Manuel<br />

Romero dirigía el ensayo de la obra ya<br />

modifica<strong>da</strong>, Chevalier volvió al teatro y<br />

miró las escenas sentado en una platea….<br />

y rió a más no poder con la actuación de<br />

Ruggero. Pocos días después, el gran<br />

chansonier debutó en el escenario del<br />

Porteño, aceptó su pequeño camarín y<br />

trabajó en las cuatro secciones en las que se<br />

ofrecía el espectáculo, inclui<strong>da</strong>s las matinés<br />

de los domingos y feriados. La tempora<strong>da</strong><br />

de 1925 del Porteño fue un éxito.<br />

La visita de Chevalier ha sido resalta<strong>da</strong><br />

en varias oportuni<strong>da</strong>des a fin de mostrar el<br />

atractivo que comenzaba a tener Buenos<br />

Aires como plaza para los espectáculos<br />

de revista (PUJOL, 1994). No obstante, la<br />

anécdota invita a in<strong>da</strong>gar acerca de las<br />

características del mundo teatral porteño<br />

de esos años. Si bien esta cuestión no está<br />

ausente en los estudios sobre historia del<br />

teatro argentino, lo cierto es que en esa<br />

literatura ese interrogante ha sido puesto<br />

en relación a problemas del desarrollo<br />

estético y dramático, a cuestiones<br />

vincula<strong>da</strong>s a la figura de diversos autores<br />

o actores, e incluso a la construcción de<br />

un relato más general sobre la historia del<br />

teatro nacional. 2 Por un lado, en las fuentes<br />

de los años ’20 se hablaba de “teatro de<br />

género chico” para <strong>da</strong>r cuenta de aquellas<br />

obras cortas, desarrolla<strong>da</strong>s en uno, dos o<br />

tres actos, con personajes caricaturizados,<br />

conflictos sencillos, etc que se ofrecían<br />

en los teatros por secciones. El repertorio<br />

incluía tipo de obras tales como comedias,<br />

2 Ver bibliografía cita<strong>da</strong> al final.<br />

Carolina González Velasco


N° 16 | Junho de 2011<br />

pochades, juguetes, vodeviles, sainetes<br />

e incluso revistas. A su vez, se hablaba<br />

de “género chico” en contraposición al<br />

teatro de “género grande”, el cual incluía<br />

a la ópera y al repertorio universal. Por su<br />

<strong>parte</strong>, los estudios del teatro han puesto<br />

en relación <strong>parte</strong> de estas características<br />

con el hecho de que, al ser requeri<strong>da</strong>s<br />

para un circuito comercial, las obritas<br />

del género chico perdieron poco a poco<br />

perdieron su valor estético, tendieron a<br />

repetir temas y personajes y apuntaron<br />

sólo a conseguir la risa y el aplauso del<br />

público como contra<strong>parte</strong> de las ganancias<br />

empresariales. Concluyeron así que los<br />

años ’20 constituyeron una etapa de cierta<br />

decadencia para la dramaturgia nacional.<br />

Partiendo de los aportes realizados por<br />

esos estudios pero tomando distancia de<br />

cualquier valoración estética o vincula<strong>da</strong><br />

a la evolución del teatro nacional, el<br />

siguiente trabajo propone poner foco sobre<br />

el movimiento teatral porteño de los años<br />

’20, en especial en el teatro llamado en las<br />

fuentes como de “género chico” a partir de<br />

una perspectiva de historia social. Se busca<br />

argumentar en qué sentido este teatro<br />

fue una experiencia social particular pero<br />

característica de la vi<strong>da</strong> urbana porteña<br />

de los años ’20, en tanto fue condiciona<strong>da</strong><br />

y condicionante de las transformaciones<br />

que experimentaba la ciu<strong>da</strong>d. Se propone,<br />

en definitiva, explicar de qué se trataba<br />

ese mundo del teatro en relación con las<br />

experiencias de la socie<strong>da</strong>d. En este sentido,<br />

la línea de reflexión propuesta se apoya<br />

y busca dialogar con aquella producción<br />

historiográfica que ha estudiado, tanto para<br />

el caso porteño como para otros contextos,<br />

las experiencias sociales implica<strong>da</strong>s en<br />

la producción, circulación y consumo de<br />

productos culturales. 3<br />

3 GoNZALEZ VELASCo. Carolina. Gente de Teatro: género<br />

chico y socie<strong>da</strong>d. Buenos Aires, en los años ’20. Buenos Aires:<br />

Siglo XXI. (en prensa). Para los años ’20 y ’30 en Buenos Aires<br />

Véase: SARLo, Beatriz. El Imperio de los Sentimientos. Buenos<br />

Aires: Catálogo Editora, 1985 sobre las novelas románticas<br />

semanales; KARUSH, Matthew. The Melodramatic Nation:<br />

Integration and Polarization in the Argentine Cinema of the<br />

1930s en Hispanic American Historical Review, 2007, sobre el<br />

cine y el género del melodrama en relación a la construcción<br />

de imágenes de la nación y la clase; FRYDEMBERG, Julio.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

El texto recrea los principales rasgos<br />

de la socie<strong>da</strong>d porteña de los años ’20<br />

para adentrarse luego en la presentación y<br />

análisis de diversos rasgos del mundo del<br />

teatro en relación con las transformaciones<br />

de la socie<strong>da</strong>d.<br />

Buenos Aires en los años ’20<br />

Los años’20 fueron una época de<br />

transformaciones diversas y decisivas para<br />

Buenos Aires. El espectacular crecimiento<br />

que venía registrándose desde comienzos<br />

del siglo comenzaba a decantar y antes<br />

que ese proceso en sí lo que más llamaba<br />

la atención eran las consecuencias que ese<br />

crecimiento producía.<br />

El desarrollo económico de la ciu<strong>da</strong>d<br />

era sostenido. El puerto, el ferrocarril,<br />

las industrias urbanas – ubica<strong>da</strong>s<br />

principalmente en la zona sur- pero también<br />

un sin fin de talleres, comercios y oficinas<br />

de servicio dotaban a la ciu<strong>da</strong>d de una<br />

incesante activi<strong>da</strong>d productiva. La zona<br />

en la que se concentraban las activi<strong>da</strong>des<br />

comerciales y administrativas extendió<br />

su radio, los edificios se multiplicaron y<br />

embellecieron.<br />

Por otro lado, si bien no hay <strong>da</strong>tos<br />

censales para la déca<strong>da</strong> del ’20, puede<br />

estimarse el fortísimo crecimiento<br />

demográfico experimentado por esos años<br />

al comparar los <strong>da</strong>tos de 1914, con 1 millón<br />

y medio de habitantes aproxima<strong>da</strong>mente<br />

y los de 1936 4 con casi 2 millones y medio<br />

de habitantes. Al aumento de la población<br />

correspondió una extensión de la planta<br />

urbana misma: poco a poco los terrenos<br />

que se encontraban más alejados del casco<br />

tradicional de la ciu<strong>da</strong>d fueron cambiando<br />

su fisonomía, urbanizándose, incorporando<br />

Prácticas y valores en el proceso de popularización del futbol.<br />

Buenos Aires 1900-1910, en revista Entrepasados, Buenos Aires.<br />

Nº12, ppios. 1997, sobre la difusión de la práctica del futbol.<br />

Para otros contextos, GoMES, Tiago de Melo. Um espelho no<br />

palco. Identi<strong>da</strong>des sociais e massificacao <strong>da</strong> cultura no teatro<br />

de revistados anos 1920. São Paulo: Campinas/Unicamp,<br />

2004 y FRITZSCHE, Peter. Berlin 1900. Prensa, lectores y vi<strong>da</strong><br />

moderna. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008.<br />

4 Para ambas fechas, 1914 y 1936 sí se cuenta con <strong>da</strong>tos<br />

censales oficiales.<br />

El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 19


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

20<br />

servicios y <strong>da</strong>ndo lugar a la emergencia<br />

de lo que comenzó a identificarse como<br />

“barrios”.<br />

Una serie de procesos sociales y<br />

culturales incidieron también tanto en<br />

la creación como en las características<br />

que estos barrios asumieron: en ellos<br />

comenzaron a delinearse nuevas<br />

identi<strong>da</strong>des, pertenencias y formas de<br />

sociabili<strong>da</strong>d. En efecto, el crecimiento<br />

cuantitativo iba de la mano de mu<strong>da</strong>nzas<br />

diversas que modelaban nuevos rasgos<br />

en el perfil social de la ciu<strong>da</strong>d. Poco a<br />

poco emergía una socie<strong>da</strong>d dinámica y<br />

marca<strong>da</strong> por una tendencia a la movili<strong>da</strong>d<br />

social. Esto creaba nuevas y diversas<br />

situaciones ocupacionales que ampliaban<br />

hacia arriba y hacia los costados los<br />

lugares de la escala social. Cruzado con<br />

esta diversi<strong>da</strong>d comenzó a <strong>da</strong>rse también<br />

un proceso de “argentinización”, tanto<br />

demográfica, <strong>da</strong><strong>da</strong> por el paso mismo de<br />

una generación inmigrante a otra ya naci<strong>da</strong><br />

en el país, como cultural en la medi<strong>da</strong><br />

en que la alfabetización y la escolari<strong>da</strong>d<br />

seguían extendiéndose entre las familias<br />

extranjeras y criollas (GUTIERREZ;<br />

ROMERO, 1989, p. 5-20).<br />

Por otro lado, barrios y centro se<br />

conectaban a través de las calles y las<br />

aveni<strong>da</strong>s que se iban abriendo; la extensión<br />

de las líneas de tranvías, de subterráneos y<br />

la difusión de nuevas líneas de colectivos<br />

fueron, a su vez, fun<strong>da</strong>mentales para<br />

permitir el transporte de una zona a otra de<br />

la ciu<strong>da</strong>d. Para quienes podían acceder, el<br />

automóvil o el taxi también se convirtieron<br />

en los modos más prácticos de llegar desde<br />

los barrios al centro (GARCIA HERAS, 1994).<br />

Esta ebullición, provoca<strong>da</strong> por los<br />

cambios materiales, sociales y culturales,<br />

implicó, en definitiva, la constitución de una<br />

socie<strong>da</strong>d de mezcla, en la cual se cruzaban<br />

los “mil sutiles hilos de la cultura”, tal<br />

como lo ha señalado el historiador José<br />

Luis Romero (ROMERO, 2000) Y esos mil<br />

sutiles hilos encontraban su materiali<strong>da</strong>d<br />

en los tranvías, las aveni<strong>da</strong>s, los cables<br />

y las nubes de humo que atravesaban<br />

la ciu<strong>da</strong>d y unían reali<strong>da</strong>des sociales y<br />

universos culturales heterogéneos: los<br />

barrios acomo<strong>da</strong>dos de la zona norte con<br />

los obreros de la zona sur, los conventillos<br />

habitados aún por miles de inmigrantes<br />

con los petit hotel de la elite criolla, las luces<br />

de los teatros y cabarets del centro con<br />

los bosques de Palermo, 5 las vanguardias<br />

de los cafés literarios con los mitos del<br />

arrabal y los compadritos. Y también en<br />

los personajes y productos que circulaban<br />

por la ciu<strong>da</strong>d entretejiendo universos<br />

culturales diversos: la “milonguita” que<br />

abandona el suburbio para intentar triunfar<br />

en los cabaret, el político que recorría los<br />

barrios suburbanos para asegurarse los<br />

votos, el niño de la elite que frecuentaba los<br />

prostíbulos de las orillas, el diario Crítica 6<br />

que se vendía tanto en los barrios como en<br />

el centro y la calle Corrientes, la cual parecía<br />

funcionar como un “terreno neutral”-según<br />

Romero- para la integración, la tensión y la<br />

mezcla de los diversos universos culturales<br />

que componían el tejido social porteño. En<br />

efecto, si Buenos Aires logra expresar mejor<br />

que otras urbes latinoamericanas la idea<br />

de una cultura de mezcla, lo cierto es que<br />

esa mezcla fue en <strong>parte</strong> consecuencia de<br />

la labili<strong>da</strong>d de las fronteras que separaban<br />

lo que se presentaba como diverso y que<br />

permitió, a su vez, sostener un proceso de<br />

movili<strong>da</strong>d geográfica, social y cultural.<br />

En conjunto, estas transformaciones<br />

configuraron una experiencia social que se<br />

tradujo en diversos productos, prácticas,<br />

representaciones, sujetos, identi<strong>da</strong>des y<br />

conflictos propios de la vi<strong>da</strong> urbana. En<br />

otras palabras, en varia<strong>da</strong>s experiencias<br />

particulares. Lo que en este trabajo se<br />

sostiene, entonces, es que el teatro de género<br />

chico constituyó una de esas experiencias<br />

particulares: en primer lugar, porque en<br />

una ciu<strong>da</strong>d de 2 millones de habitantes, los<br />

5 Parques en el que solían pasear las clases más acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

de la ciu<strong>da</strong>d.<br />

6 Crítica, iniciado en 1914, significó la llega<strong>da</strong> del periodismo<br />

moderno a la Argentina: por el tipo de tecnología utiliza<strong>da</strong>, el<br />

formato, el modo de enunciar, la importancia que adquieren<br />

los avisos publicitarios, etc. SAITTA, Sylvia. Regueros de<br />

Tinta: el diario Crítica en la déca<strong>da</strong> de 1920. Buenos Aires:<br />

Su<strong>da</strong>mericana, 1998.<br />

Carolina González Velasco


N° 16 | Junho de 2011<br />

aproxima<strong>da</strong>mente 6 millones de entra<strong>da</strong>s<br />

vendi<strong>da</strong>s para los espectáculos teatrales en<br />

el año 1926 7 permiten indicar el grado de<br />

involucramiento –de una u otra manera- de la<br />

socie<strong>da</strong>d con la activi<strong>da</strong>d teatral. En segundo<br />

lugar, porque <strong>da</strong><strong>da</strong>s las características que<br />

exploraremos en el apartado siguiente, el<br />

teatro de género chico dependió y fue <strong>parte</strong><br />

de los procesos de cambio que ocurrían en la<br />

socie<strong>da</strong>d de esos años.<br />

El mundo del teatro en la calle Corrientes<br />

Desde los años del Centenario, y<br />

particularmente, luego de la finalización<br />

de la Primera Guerra Mundial, diversas<br />

activi<strong>da</strong>des y espacios vinculados a la<br />

recreación, los espectáculos y la vi<strong>da</strong> de<br />

la bohemia fueron concentrándose en una<br />

zona particular de Buenos Aires: a lo largo<br />

de las primeras veinte cuadras de la calle<br />

Corrientes –que nacía en la zona sureste<br />

de la ciu<strong>da</strong>d, cerca del río, y corría hacia<br />

el oeste- y en las manzanas ale<strong>da</strong>ñas se<br />

entremezclaban teatros de diverso tipo<br />

y capaci<strong>da</strong>d, con otras salas dedica<strong>da</strong>s<br />

a proyectar las primeras cintas de cine<br />

y con otras que ofrecían espectáculos de<br />

varietés (números musicales, de baile,<br />

de circo, de ilusionismo, etc). Junto<br />

a las salas se multiplicaban los cafés,<br />

confiterías y restaurantes que convocaban<br />

a intelectuales, políticos y artistas. Y<br />

en las manzanas laterales a Corrientes,<br />

comenzaban también a aparecer los<br />

renovados cabarets (CAMPODÓNICO;<br />

LOZANO, 2000). En conjunto, esta zona<br />

con eje en la calle Corrientes pasó a<br />

nombrarse, sin serlo geográficamente,<br />

como el “centro” de la ciu<strong>da</strong>d.<br />

De to<strong>da</strong>s esas posibili<strong>da</strong>des de<br />

entretenimiento que se ofrecían, los<br />

espectáculos de teatro –y en particular los<br />

llamados de género chico- ocupaban un<br />

lugar distintivo. En primer lugar, la activi<strong>da</strong>d<br />

teatral venía experimentando un crecimiento<br />

notable: en 1911 en el centro existían 21 salas,<br />

7 El <strong>da</strong>to está tomado de la Estadística Municipal, de 1926.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

en 1925 llegaban a 32 y en 1928 ya había<br />

más de 40. El Teatro Nacional, el Opera, el<br />

mencionado teatro Porteño –propie<strong>da</strong>d de<br />

Augusto Alvarez- el Maipo, el Flori<strong>da</strong> son<br />

algunos de los tantos nombres de salas que<br />

brillaron en los años ’20. Pero además de<br />

estas salas céntricas, en los barrios también<br />

comenzaron a levantarse teatros y espacios<br />

diversos para las representaciones teatrales.<br />

Las diferencias entre los teatros del centro y<br />

los de los barrios corrían en varios sentidos:<br />

la capaci<strong>da</strong>d, las comodi<strong>da</strong>des ofreci<strong>da</strong>s,<br />

la populari<strong>da</strong>d de los artistas que allí<br />

actuaban, todo lo cual también repercutía<br />

en el precio de las entra<strong>da</strong>s que se cobraba.<br />

No obstante, algunos barrios –sobre todo<br />

los que crecían a ritmo sostenido como<br />

Boedo, Villa Crespo, Belgrano-contaban con<br />

importantes salas en las cuales se realizaban<br />

tempora<strong>da</strong>s a cargo de figuras destaca<strong>da</strong>s.<br />

En promedio, las salas del centro tenían<br />

una capaci<strong>da</strong>d para 700 espectadores<br />

y su espacio se organizaba en distintas<br />

ubicaciones (platea, palcos bajos, y altos,<br />

tertulias y paraíso). Algunos tenían<br />

escenarios amplios para montar varios<br />

decorado y telones y contaban con modernos<br />

sistemas de iluminación y ventilación.<br />

Los camarines, halls de entra<strong>da</strong>s, salas<br />

de estar, tapizados y cortinados, y demás<br />

instalaciones de las salas –pese a las quejas<br />

de Chevalier- se fueron mejorando a<br />

medi<strong>da</strong> que el crecimiento de la activi<strong>da</strong>d<br />

teatral así lo exigía.<br />

Los precios de las entra<strong>da</strong>s variaban,<br />

según el teatro y el tipo de espectáculo<br />

ofrecido e iban desde los $0.30, cobrados<br />

en los teatros más pequeños y en general<br />

para proyecciones de cine, hasta los $2.5<br />

que llegaban a cobrarse en los teatros más<br />

importantes de la calle Corrientes. En sí,<br />

los precios más económicos no significaban<br />

un costo excesivo si se los compara,<br />

por ejemplo, con los precios de algunos<br />

alimentos básicos (0,60 por un kilo de pan,<br />

$0,20 el litro de leche, $0,50 el kilo de fideos<br />

y $0,60 el kilo de carne) 8 o en relación al<br />

8 Datos extraídos del Boletín Mensual de Estadística<br />

Municipal de la Ciu<strong>da</strong>d de Buenos Aires. 1925.<br />

El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 21


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

22<br />

salario ofrecido para una mucama ($70<br />

mensuales) en los avisos clasificados de un<br />

diario de 1926.<br />

Funcionamiento por secciones<br />

Tanto las salas del centro como las<br />

de los barrios abrían sus puertas todos<br />

los días, desde las 18:00 hs y hasta la<br />

medianoche y ofrecían funciones por<br />

secciones. Habitualmente, los teatros<br />

tenían hasta 4 funciones diarias, sucesivas,<br />

que permitía combinar representaciones<br />

teatrales con otras musicales y hasta<br />

circenses. Algunos teatros ponían<br />

restricciones para la admisión del<br />

público y anunciaban sus espectáculos<br />

como “no aptos para señoritas”. Pero<br />

el grueso de la cartelera lo ocupaban<br />

obras cortas, con tramas sencillas, con<br />

personajes y situaciones típicamente<br />

urbanas, a veces presenta<strong>da</strong>s de manera<br />

caricaturesca, preferentemente en tono<br />

de comedias aunque también había<br />

dramas, acompañados de música en<br />

vivo. Esas eran las obras considera<strong>da</strong>s<br />

como de género chico.<br />

El funcionamiento por secciones<br />

permitía que los teatros diversificaran<br />

sus ofertas de entretenimiento para que<br />

el público pudiera adecuar sus<br />

preferencias a su disponibili<strong>da</strong>d<br />

económica y de tiempo. Por un lado<br />

porque las entra<strong>da</strong>s se compraban para<br />

ca<strong>da</strong> función: quien quisiera podía<br />

comprar para una sola función o para<br />

varias. Por otro lado, <strong>da</strong>do que las<br />

obras eran relativamente breves, ca<strong>da</strong><br />

presentación no llevaba mucho más de<br />

una hora: quienes asistían no necesitaban<br />

disponer de to<strong>da</strong> la tarde o to<strong>da</strong> la noche<br />

para pasar un momento de distracción<br />

y ocio. En una calle Corrientes donde<br />

circulaban día a día miles de personas<br />

la flexibili<strong>da</strong>d que ofrecía el sistema<br />

por secciones era una oportuni<strong>da</strong>d para<br />

diversificar ofertas y apuntar a una<br />

mayor canti<strong>da</strong>d de público.<br />

Compañías y actores<br />

A medi<strong>da</strong> que las salas y las funciones se<br />

multiplicaban, también aumentaba el número<br />

de gente vincula<strong>da</strong> a la activi<strong>da</strong>d teatral.<br />

Los artistas se agrupaban en compañías, las<br />

cuales estaban a cargo de un empresario que<br />

podía ser también el actor principal de la<br />

agrupación e incluso el dueño del teatro en<br />

el cual la compañía realizara la tempora<strong>da</strong>.<br />

Internamente, la compañía se organizaba<br />

partir de una jerarquía asocia<strong>da</strong> a roles<br />

prefijados tales como primer actor o primera<br />

figura, galán joven, <strong>da</strong>ma joven, actores<br />

de caracterización, etc. 9 Un relevamiento<br />

organiza<strong>da</strong> por una publicación de la época,<br />

el Anuario Teatral Argentino, indicaba<br />

que para 1925 era posible identificar y<br />

caracterizar a unas 118 compañías (según su<br />

nombre, director, género al que se dedicaba,<br />

canti<strong>da</strong>d de artistas, etc). El número de<br />

integrantes variaba de entre 10 y 40 artistas.<br />

Si se multiplica la canti<strong>da</strong>d de compañías<br />

por un número variable de artistas por<br />

compañía (25 en promedio) el resultado <strong>da</strong><br />

una idea del número de artistas que trabajan<br />

en los escenarios porteños: cerca de 3000.<br />

Además de los actores y actrices, la<br />

compañía podía contar también –aunque<br />

con roles más secun<strong>da</strong>rios- con coristas,<br />

bailarines y músicos en algunos casos.<br />

Y junto a ellos trabajaban técnicos,<br />

maquinistas, iluminadores, acomo<strong>da</strong>dores<br />

y otros tantos oficios indispensables para<br />

que la función pue<strong>da</strong> representarse. La<br />

puesta de las obras y la coordinación de<br />

las tares estaba a cargo de uno o varios<br />

directores, tal el caso de los mencionados<br />

Ivo Pelay y Manuel Romero. Alrededor<br />

de todos ellos se movía el mundo de la<br />

farándula de la época: los autores, los<br />

empresarios, pero principalmente los<br />

actores y las actrices eran personali<strong>da</strong>des<br />

conoci<strong>da</strong>s, queri<strong>da</strong>s y de las cuales se<br />

hablaba en diarios y revistas.<br />

9 De esos roles dependía el sueldo que se cobraba. No<br />

obstante, la compañía en sí misma era un espacio para hacer<br />

carrera. Quienes ingresaban con un papel muy discreto<br />

podían ascender y conseguir un rol más destacado.<br />

Carolina González Velasco


N° 16 | Junho de 2011<br />

Mundo del teatro, mundo del trabajo?:<br />

empresarios y artistas<br />

Visto desde otra perspectiva, el<br />

mundo del teatro funcionaba con una<br />

lógica comercial: los dueños de las salas<br />

eran empresarios que organizaban,<br />

contrataban u ofrecían las instalaciones<br />

para que las compañías realicen la<br />

tempora<strong>da</strong>. Su ganancia provenía<br />

básicamente de la venta de entra<strong>da</strong>s o del<br />

arren<strong>da</strong>miento de la sala. Si bien solían<br />

denunciar -a través de su propia enti<strong>da</strong>d<br />

corporativa, la Socie<strong>da</strong>d de Empresarios<br />

Teatrales- los riesgos del negocio del<br />

espectáculo y los altos impuestos que<br />

pagaban, las estadísticas fiscales de la<br />

Municipali<strong>da</strong>d sobre lo recau<strong>da</strong>do en<br />

los teatros indica que aún con riesgos el<br />

negocio del espectáculo era rentable.<br />

La contra<strong>parte</strong> de esto es el hecho de<br />

que los artistas eran trabajadores en el<br />

sentido de que estaban enrolados en una<br />

compañía, que dependían de un salario<br />

(pautado a través de distintos tipos de<br />

contrato) y que debían cumplir con una<br />

serie de condiciones laborales. En un<br />

contexto particular en el cual la activi<strong>da</strong>d<br />

teatral se extendía pero los empresarios<br />

querían ganar ca<strong>da</strong> vez más y en una<br />

coyuntura de extrema conflictivi<strong>da</strong>d<br />

social emergieron una serie de conflictos<br />

sindicales y políticos que pusieron en<br />

tensión al mundo del teatro.<br />

En efecto, en 1919 y 1921 –años de<br />

intensa movilización y conflictivi<strong>da</strong>d<br />

social en Buenos Aires- las activi<strong>da</strong>des<br />

teatrales que<strong>da</strong>ron paraliza<strong>da</strong>s por<br />

sen<strong>da</strong>s huelgas declara<strong>da</strong>s en el primer<br />

caso por los actores y en el segundo<br />

moviliza<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentalmente por la<br />

enti<strong>da</strong>d gremial de los autores. Más allá<br />

de las reivindicaciones plantea<strong>da</strong>s y los<br />

diversos sucesos acontecidos, ambos<br />

conflictos dieron cuenta de la importancia<br />

que las enti<strong>da</strong>des gremiales de actores<br />

y autores tenían como instancias de<br />

organización y representativi<strong>da</strong>d en el<br />

mundo del teatro y frente a la socie<strong>da</strong>d.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Incluso, desde el gremio de los autores se<br />

promovió la creación de una Federación<br />

de Gentes de Teatros, una enti<strong>da</strong>d que<br />

buscaba nuclear a todos los oficios y<br />

profesiones artísticas (GONZALEZ<br />

VELASCO, 2009).<br />

Los artistas también participaron<br />

del espacio político porteño. En 1926,<br />

pasa<strong>da</strong> la etapa de conflictivi<strong>da</strong>d, se<br />

creó un partido político de alcance local<br />

llamado Gente de Teatro, que consiguió<br />

que su primer candi<strong>da</strong>to, el conocido<br />

actor y empresario Florencio Parravicini,<br />

se consagrara concejal de la ciu<strong>da</strong>d de<br />

Buenos Aires. La experiencia política<br />

de los artistas –por diversas razones-<br />

fue efímera pero alcanza para mostrar<br />

la inserción que el mundo del teatro<br />

tenía en la socie<strong>da</strong>d y en la política<br />

porteña. En las elecciones municipales<br />

solían presentarse muchos pequeños y<br />

ocasionales partidos, pero en general<br />

los resultados siempre favorecían a<br />

las agrupaciones más grandes y con<br />

mayor proyección nacional: radicales<br />

y socialistas. Gente de Teatro, pese a<br />

su precaria y fugaz organización, logró<br />

sumarse momentáneamente a estos<br />

elencos políticos, y en gran medi<strong>da</strong><br />

este resultado positivo remite a la<br />

populari<strong>da</strong>d –gana<strong>da</strong> en los escenarios<br />

de teatro -y no en púlpitos o mitines<br />

político - de quienes integraban la lista.<br />

Como sea, la activi<strong>da</strong>d teatral siempre<br />

fue discuti<strong>da</strong> en el Concejo Deliberante<br />

–la instancia del gobierno municipal- más<br />

allá de la llega<strong>da</strong> de la representación<br />

de los artistas <strong>da</strong><strong>da</strong> la importancia<br />

pública que la misma tenía: la seguri<strong>da</strong>d<br />

de los espectáculos, considerando la<br />

canti<strong>da</strong>d de gente que circulaba por<br />

ellos, y los impuestos a cobrar, <strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

las ganancias de los empresarios eran<br />

los dos principales problemas sobre<br />

los que la municipali<strong>da</strong>d se expedía. Si<br />

bien existía una Comisión encarga<strong>da</strong><br />

de aplicar censura en determinados<br />

casos, prácticamente no se encuentran<br />

acontecimientos de este tipo.<br />

El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 23


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

24<br />

El teatro en el mundo editorial<br />

Durante los años ’20 el mercado editorial<br />

de la ciu<strong>da</strong>d experimentaba también<br />

una etapa de auge: por diversas razones<br />

–entre las cuales se cuenta los elevados<br />

índices de alfabetización de la ciu<strong>da</strong>d-<br />

en los años ’20 se publicaban decenas de<br />

diarios y revistas de todo tipo, además de<br />

colecciones de libros, a bajo costo y con<br />

una amplia difusión (ROMERO, 2000). La<br />

activi<strong>da</strong>d teatral encontró también su nicho<br />

y requirió que los periódicos contaran con<br />

secciones y periodistas especializados en<br />

temas teatrales. Día a día, en la columna<br />

de espectáculos se informaba sobre los<br />

estrenos programas, se publicaban las<br />

críticas a las obras en cartel y se comentaba<br />

la actuali<strong>da</strong>d del mundo artístico.<br />

Además, el interés de la socie<strong>da</strong>d<br />

por el teatro y las favorables condiciones<br />

editoriales también significaron la<br />

circulación de decenas de revistas<br />

especializa<strong>da</strong>s, algunas de las cuales se<br />

dedicaban no sólo a comentar y discutir<br />

cuestiones de la activi<strong>da</strong>d teatral sino<br />

también a publicar semanalmente los<br />

libretos de las obras estrena<strong>da</strong>s. Algunos de<br />

estos proyectos tuvieron una vi<strong>da</strong> efímera,<br />

pero otros fueron más exitosos. Vistos en<br />

conjunto indican que, por ejemplo, entre<br />

1918 y 1923 se editaron simultáneamente al<br />

menos 10 revistas de teatro, repartiéndose<br />

su aparición a lo largo de la semana. Las<br />

revistas Bambalinas y La Escena, ambas de<br />

aparición semanal y sistemática entre 1918<br />

y comienzos de los ‘30, fueron dos de las<br />

más importantes. Juntas, editaron cerca de<br />

1800 obras, to<strong>da</strong>s de autores nacionales y<br />

uruguayos, y casi to<strong>da</strong>s estrena<strong>da</strong>s en los<br />

años ’20. 10<br />

Esa canti<strong>da</strong>d de obras publica<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong> cuenta, en definitiva de la abun<strong>da</strong>nte<br />

producción dramática de los años ’20 y del<br />

importante número de autores que trabajan<br />

10 Bambalinas se publicó entre 1919 y 1934, según el catálogo<br />

editó 921 títulos. La revista La Escena, se publicó entre 1918-1933,<br />

editó 797 títulos. Sobre las revistas teatrales, MAZZIoTTI, Nora..<br />

Bambalinas: el auge de una mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>d teatral periodística, en<br />

ARMUS, Diego (comp) Mundo urbano… (op. CIt).<br />

para dotar a una deman<strong>da</strong>nte cartelera. La<br />

enti<strong>da</strong>d gremial de los autores, hacia 1920,<br />

contaba con más de 200 socios. Algunos<br />

trabajaban a pedido, y escribían sus obras<br />

según expresas indicaciones de actores<br />

o empresarios. Otros, más reconocidos,<br />

ofrecían sus obras a quienes ellos quisieran.<br />

Los contratos entre autores y empresarios<br />

variaban, pero básicamente se esperaba<br />

que el autor cobrara “derechos de autor”,<br />

un porcentaje ya estipulado a partir de la<br />

venta de las entra<strong>da</strong>s de las funciones en<br />

las que se representara la obra en cuestión.<br />

Esta tramitación era controla<strong>da</strong> por la<br />

enti<strong>da</strong>d gremial de los autores.<br />

La ciu<strong>da</strong>d en el género chico<br />

¿De qué se trataban estas obras? La<br />

consideración de los títulos de las obras<br />

edita<strong>da</strong>s en las revistas Bambalinas y La<br />

Escena permite aseverar la centrali<strong>da</strong>d que<br />

la temática urbana tenía en el conjunto de<br />

las obras. La relación con su propio contexto<br />

histórico es otro aspecto definitorio: son<br />

muy pocas las obras de carácter histórico,<br />

prácticamente to<strong>da</strong>s las obras se inician<br />

con la indicación “época actual”.<br />

La ciu<strong>da</strong>d se despliega en las obras a<br />

través de múltiples entra<strong>da</strong> y esto permite<br />

<strong>da</strong>r cuenta de distintas experiencias de<br />

la vi<strong>da</strong> urbana: los espacios de la ciu<strong>da</strong>d,<br />

la política, las relaciones domésticas, de<br />

género, étnicas, o el problema de la vi<strong>da</strong><br />

urbana fueron algunos de los temas a partir<br />

de los cuales el teatro mostró la ciu<strong>da</strong>d y la<br />

vi<strong>da</strong> cotidiana. El teatro además lo mostró<br />

de manera polifónica, <strong>da</strong>ndo cuenta de<br />

las distintas mira<strong>da</strong>s y voces que sobre<br />

tal o cual cuestión circulaban. A su vez,<br />

considerando la diversi<strong>da</strong>d de la platea<br />

que asistía las funciones, probablemente<br />

hayan funcionado de manera polisémica,<br />

facilitando que esas imágenes sean<br />

significa<strong>da</strong>s de distintas maneras.<br />

Así, por ejemplo, muchas de las obras<br />

tomaron como título el nombre de algún<br />

barrio: “Nueva Pompeya”; “Los zorzales<br />

de Pompeya”; “En un rincón de la Boca”;<br />

“Palermo chico”, “Allá cerca e la Floresta”,<br />

Carolina González Velasco


N° 16 | Junho de 2011<br />

“El barrio de Balvanera”. En algunos casos,<br />

el barrio sólo funciona como escenografía<br />

para situar el argumento de la obra. En<br />

otros, las características particulares del<br />

barrio condicionan el desarrollo de la obra.<br />

A su vez, los modos de presentar los barrios<br />

de la ciu<strong>da</strong>d variaban de una obra a otra y<br />

según de qué barrios se hablara: en algunos<br />

casos, los barrios –sobre todo los de la zona<br />

sur- eran asociados a la mala vi<strong>da</strong> aunque<br />

también –<strong>da</strong>do que eran la zona en la que<br />

se ubicaban la mayoría de las fábricas y el<br />

puerto- a la vi<strong>da</strong> de los trabajadores. En otras<br />

obras, se hablaba de los barrios en tono de<br />

nostalgia, aludiendo a situaciones que ya<br />

habían desaparecido y esto mismo cargaba<br />

a los barrios de valores a defender frente al<br />

avance de la vi<strong>da</strong> moderna. Para mediados<br />

de los años ’30, muchas de las características<br />

asigna<strong>da</strong>s a los barrios ya habían decantado<br />

en imágenes más comparti<strong>da</strong>s sobre lo que<br />

los barrios eran. La obra “La canción de los<br />

barrios”, sintetiza ese punto de llega<strong>da</strong>, al<br />

presentar en distintos cuadros las principales<br />

características de ca<strong>da</strong> una de las zonas<br />

porteñas reconoci<strong>da</strong>s como barrios.<br />

El teatro también habló de la ciu<strong>da</strong>d a<br />

través de la mención, en los títulos, de los<br />

nombres de las calles que, por distintas<br />

razones, eran significativas: Boedo y San<br />

Juan, esquina asocia<strong>da</strong> a uno de los clubes<br />

de futbol más importantes de los años ’20 y<br />

’30 (San Lorenzo de Almagro); Corrientes<br />

y Esmeral<strong>da</strong>, Corrientes 3-4-8 (2º), La Calle<br />

Flori<strong>da</strong>, calles éstas asocia<strong>da</strong>s a la diversión,<br />

los teatros y los cabarets. También a<br />

través de los nombres de sus principales<br />

teatros y cabarets: Las chicas del Maipo,<br />

Al Politeama Chofe, La pebeta del Ba-Ta-<br />

Clan, La bailarina del Empire Theatre,<br />

La muchacha<strong>da</strong> del Pigall, Montmartre,<br />

Armenonville. 11<br />

La vi<strong>da</strong> moderna, como aspecto clave<br />

y representativo de la ciu<strong>da</strong>d estuvo<br />

presente, como modo de predicar sobre<br />

la vi<strong>da</strong> urbana: así, en distintas obras se<br />

hablaba –a veces de manera central, a veces<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

de manera accesoria- de la importancia<br />

que determinados productos considerados<br />

“modernos” tenían en la vi<strong>da</strong> cotidiana.<br />

En la obrita “Los hinchas- Triunvirato<br />

Footbal club”´ y en “Hoy transmite<br />

RATTI-CULTURA”, la radio era un<br />

elemento fun<strong>da</strong>mental para el desarrollo<br />

del argumento de la obra. Por su <strong>parte</strong>,<br />

en la obrita “La escuela de los au<strong>da</strong>ces”,<br />

el uso de los teléfonos también era un<br />

elemento de relevancia. Y en “Mi familia<br />

tiene un Ford” el uso del automóvil es, de<br />

hecho, el tema central sobre el cual trata la<br />

obra. También en relación al uso de estos<br />

productos, las obras combinan una mira<strong>da</strong><br />

que critica su difusión (mostrando cómo<br />

los automóviles generan, por ejemplo,<br />

accidentes) pero que al mismo tiempo<br />

ratifica la difusión que los mismos tenían<br />

en la vi<strong>da</strong> cotidiana de los porteños.<br />

Por otro lado, al situar a las obras<br />

en su contexto, es decir, pensa<strong>da</strong>s como<br />

artefactos que describen y construyen<br />

imágenes de la ciu<strong>da</strong>d, que son vistas por<br />

cientos y cientos de personas ca<strong>da</strong> día,<br />

y luego leí<strong>da</strong>s en los ejemplares de las<br />

revistas, la posibili<strong>da</strong>d de que cumplan<br />

alguna otra función además de la divertir<br />

a un amplio público se presenta como<br />

una veta de análisis a explorar. En este<br />

punto, la explicación de Peter Fritzsche<br />

sobre la función que la prensa cumplía<br />

en Berlín para 1900, 12 es por demás<br />

sugerente. También para un contexto de<br />

rápidos y profundos cambios urbanos,<br />

Fritzsche muestra cómo los periódicos<br />

de circulación masiva crearon una<br />

“ciu<strong>da</strong>d textual”, que interactuaba con<br />

la “ciu<strong>da</strong>d de cemento”. En una época de<br />

cambios demográficos que implicaron la<br />

llega<strong>da</strong> de muchos nuevos habitantes<br />

y la reorganización de los espacios<br />

urbanos, los diarios eran la llave para<br />

poder conocer la ciu<strong>da</strong>d, recorrerla,<br />

disfrutarla y sortear sus peligros. De<br />

ahí que el mencionado autor considere<br />

que la prensa funcionaba como una<br />

“enciclopedia urbana”.<br />

11 El Maipo, Politeama, Ba-Ta-Clan y el Empire Theatre eran<br />

algunos de los teatros más importantes de la época; Pigall,<br />

Montmartre, Armenonville eran los cabarets más famosos. 12 FRITZSCHE, Peter. Berlin 1900… op. Cit<br />

El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 25


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

26<br />

Desde esta perspectiva, entonces, es<br />

posible sostener que, si el género chico<br />

era un teatro predominante urbano, se<br />

dirigía a un público masivo y funcionaba<br />

en diálogo permanente con su propio<br />

contexto, estableciendo una relación de i<strong>da</strong><br />

y vuelta entre “la ciu<strong>da</strong>d teatraliza<strong>da</strong>” y “la<br />

ciu<strong>da</strong>d de cemento”, es posible pensarlo<br />

también como una “enciclopedia urbana”.<br />

Puesto en el contexto de una ciu<strong>da</strong>d que<br />

crecía a ritmo sostenido y en una socie<strong>da</strong>d<br />

caracteriza<strong>da</strong> por el cambio y mezcla, estas<br />

obras pudieron funcionar como guías para<br />

habitar y vivir esa ciu<strong>da</strong>d, en la medi<strong>da</strong> en<br />

que la mostraban, la explicaban, la discutían<br />

y la recreaban desde distintos ángulos. En<br />

diálogo con la prensa, la literatura y el<br />

tango, el teatro también construyó sentidos<br />

sobre la ciu<strong>da</strong>d y la vi<strong>da</strong> urbana.<br />

Buenos Aires, Gente de Teatro<br />

Al día siguiente del estreno Chevalier,<br />

la crónica teatral de un importante diario<br />

de la ciu<strong>da</strong>d comentaba: “Un espectáculo<br />

variado y entretenido y en el que<br />

abun<strong>da</strong>n notas de buen gusto. `Chevalier<br />

revista`[título de la revista en la que<br />

actuaba Chevalier] atraerá público muchas<br />

noches. Será una compensación mereci<strong>da</strong><br />

por el esfuerzo realizado por los dirigentes<br />

del Porteño”. 13 Y así fue. Su actuación fue<br />

aplaudi<strong>da</strong> durante to<strong>da</strong> la tempora<strong>da</strong> y<br />

durante varios meses, el Porteño funcionó<br />

prácticamente a pleno en ca<strong>da</strong> una de las<br />

secciones en las que actuaba el francés.<br />

Su paso por la capital permitió, tal como<br />

suponía Álvarez, consoli<strong>da</strong>r la revista de<br />

corte francés en los escenarios porteños. 14<br />

La anécdota de Chevalier y de<br />

Alvarez deja huellas para <strong>da</strong>r cuenta de<br />

la importancia del fenómeno teatral pero<br />

también permite adentrarse en el análisis<br />

13 Maurice Chevalier se presentó anoche en el Porteño. La<br />

Razón, 27 de mayo 1925.<br />

14 El Boletín del Círculo Argentino de Autores, enti<strong>da</strong>d gremial<br />

de los autores de teatro publicaba mensualmente un listado<br />

con los títulos y géneros de las obras estrena<strong>da</strong>s: a partir de<br />

1926 más de la mitad de los estrenos corresponden a revistas.<br />

de la socie<strong>da</strong>d y sus diversas experiencias.<br />

La configuración del centro como paisaje<br />

urbano vinculado a los entretenimientos,<br />

por ejemplo, fue resultado del cruce entre<br />

una cierta disponibili<strong>da</strong>d de recursos y<br />

de tiempo para gastar en ocio por <strong>parte</strong><br />

de los diferentes sectores sociales y el<br />

interés de empresarios de responder y<br />

aprovechar esa disposición. Un mercado<br />

de entretenimientos se configuraba entre<br />

las deman<strong>da</strong>s (y disponibili<strong>da</strong>des) de la<br />

socie<strong>da</strong>d y la oferta de los empresarios:<br />

asistir al teatro era una práctica que<br />

podría vincularse, entre otras cosas, al<br />

consumo. Como hemos indicado en otro<br />

trabajo, 15 la concentración de activi<strong>da</strong>des<br />

recreativas en esta zona combina<strong>da</strong> con<br />

las características de su funcionamiento<br />

explica en <strong>parte</strong> la emergencia de un<br />

mercado de entretenimientos. A su vez, la<br />

configuración de este mercado remite a los<br />

procesos de transformaciones de la ciu<strong>da</strong>d y<br />

la socie<strong>da</strong>d mencionados. Por otro lado, los<br />

años ’20 fueron, en particular, una etapa de<br />

mayor estabili<strong>da</strong>d económica en comparación<br />

con los años inmediatos a la finalización<br />

de la guerra: la relación de los precios y<br />

los salarios favoreció a los consumidores<br />

y las familias, fun<strong>da</strong>mentalmente las de<br />

los sectores medios, dispusieron de ciertos<br />

márgenes económicos y más disponibili<strong>da</strong>d<br />

de tiempo para consumir bienes y prácticas<br />

vincula<strong>da</strong>s al ocio o la recreación. Por otro<br />

lado, el progreso material de la ciu<strong>da</strong>d,<br />

su expansión física, la emergencia de los<br />

barrios y el desarrollo de la infraestructura<br />

y los transportes, al tiempo que reordenó los<br />

espacios urbanos asociados a la residencia, el<br />

trabajo y la recreación, facilitó la circulación y<br />

el aprovechamiento del tiempo. La prensa y<br />

diversas publicaciones, también fenómenos<br />

propios de la vi<strong>da</strong> urbana, informaban a<br />

diario sobre la cartelera de teatros y cines,<br />

sus horarios, direcciones, etc, lo cual también<br />

alentaba y facilitaba el acercamiento al<br />

centro (GUTIÉRREZ; ROMERO, 1989).<br />

15 GoNZÁLEZ VELASCo, Carolina. Una pandilla de truhanes y<br />

un cándido público: el negocio de los espectáculos teatrales,<br />

Buenos Aires, 1920. Revista Nuevos Mundos Mundo Nuevo<br />

(en prensa).<br />

Carolina González Velasco


N° 16 | Junho de 2011<br />

Visto desde otra perspectiva, el<br />

negocio de los espectáculos se apoyaba en<br />

un conjunto de actores, autores, músicos,<br />

maquinistas y otros tantos oficios que eran<br />

en definitiva quienes día a día <strong>da</strong>ban vi<strong>da</strong> a<br />

las funciones. Para todos ellos el mundo del<br />

teatro era, entre otras cosas, su ámbito de<br />

trabajo y en función de él – y de la experiencia<br />

misma del trabajo- configuraron diversas<br />

identi<strong>da</strong>des colectivas. La “compañía” era<br />

la instancia de organización del trabajo<br />

de los artistas: los actores eran actores de<br />

una compañía, por ejemplo. Pero en el<br />

contexto de conflictivi<strong>da</strong>d y movilización<br />

que sacudió a to<strong>da</strong> la socie<strong>da</strong>d porteña<br />

en los años inmediatamente posteriores<br />

a la primera guerra mundial, ese modo<br />

de definir identi<strong>da</strong>des y pertenencias fue<br />

puesto en cuestión y redefinido.<br />

La instancia en donde más claramente<br />

que<strong>da</strong> evidencia<strong>da</strong> la relación entre el<br />

mundo del teatro y la socie<strong>da</strong>d porteña,<br />

el punto de encuentro, son las obras que<br />

llenaban la cartelera de los teatros: escritas<br />

por autores, representa<strong>da</strong>s por actores<br />

con la ayu<strong>da</strong> de otros oficios, elegi<strong>da</strong>s y<br />

modifica<strong>da</strong>s por los empresarios, vistas y<br />

comenta<strong>da</strong>s por el público, promociona<strong>da</strong>s<br />

y critica<strong>da</strong>s por la prensa y finalmente leí<strong>da</strong>s<br />

por un público que, más allá de haber ido o<br />

no al teatro, elegía leer (y tal vez representar<br />

en los cuadros filodramáticos) los libretos.<br />

Todos los integrantes del mundo del<br />

teatro, incluido en este caso el público, de<br />

un modo u otro establecían algún tipo de<br />

relación y de apropiación con las obras.<br />

En este sentido, las obras concentraban ese<br />

encuentro entre los múltiples participantes<br />

del mundo del teatro.<br />

A su vez las obras, <strong>da</strong><strong>da</strong> la diversi<strong>da</strong>d<br />

temática plantea<strong>da</strong> como también la<br />

diversi<strong>da</strong>d de voces que es posible<br />

reconstruir sobre ca<strong>da</strong> uno de esos temas,<br />

expresan claramente a esa socie<strong>da</strong>d<br />

de mezcla, atravesa<strong>da</strong> por procesos de<br />

movili<strong>da</strong>d y transformación.<br />

Si, tal como lo han hecho muchos<br />

estudios del teatro, el foco del análisis se<br />

apoya en los aspectos estéticos y valorativos<br />

en relación a la evolución de la dramaturgia<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

o en aquellos de crítica y denuncia por el<br />

carácter comercial de los espectáculos, el<br />

mundo social del teatro –con sus actores, sus<br />

conflictos, sus prácticas y representaciones,<br />

sus modos de funcionamiento- parece<br />

que<strong>da</strong>r sólo como trasfondo sin preguntas<br />

que lo problematicen. Desde nuestra<br />

perspectiva, es a través de las herramientas<br />

de la historia con las cuales es posible<br />

ampliar la lente para in<strong>da</strong>gar sobre la vi<strong>da</strong><br />

teatral porteña de los años ’20.<br />

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cándido público: el negocio de los espectáculos<br />

teatrales, Buenos Aires, 1920. Revista Nuevos<br />

Mundos Mundo Nuevo (en prensa)<br />

_______. Pierrot ha dejado su traje y<br />

enarbola la bandera roja que tan mal le<br />

sienta. Conflictos gremiales en el mundo<br />

del teatro porteño, 1919-1921 en BERTONI<br />

El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 27


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

28<br />

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Carolina González Velasco


N° 16 | Junho de 2011<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Ensaio. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Atores: Médico Interno [Vicente Concílio]<br />

e Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 29


N° 16 | Junho de 2011<br />

DESFECHoS TRÁGICoS E<br />

REFERÊNCIAS EXPRESSIoNISTAS<br />

NAS TRAGÉDIAS CARIoCAS DE<br />

NELSoN RoDRIGUES<br />

Resumo<br />

O presente artigo propõe uma leitura do ciclo denominado<br />

tragédias cariocas, conjunto de oito peças escritas pelo<br />

dramaturgo Nelson Rodrigues entre 1953 e 1978, com<br />

o objetivo de analisar em que sentido os desfechos de<br />

malogro <strong>da</strong>s personagens rodriguianas se aproximam de<br />

recursos expressionistas empreendidos pelo dramaturgo<br />

em alguns textos.<br />

Palavras-chave: Nelson Rodrigues, tragici<strong>da</strong>de,<br />

expressionismo.<br />

Abstract<br />

This paper's proposal is to study the cycle entitled<br />

"carioca tragedies", a group of eight plays written by<br />

Nelson Rodrigues between 1953 and 1978. The aim is to<br />

analyse how the unsuccessful outcomes of the rodriguian<br />

characters are similar to expressionist elements used by<br />

the playwright in some texts.<br />

Keywords: Nelson Rodrigues, tragic, expressionism.<br />

Elen de Medeiros 1<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 31


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

32<br />

Uma breve introdução<br />

No teatro de Nelson<br />

Rodrigues, pode-se<br />

observar a constante<br />

presença de personagens<br />

que, ao reprimir um<br />

impulso – em sua grande maioria, de<br />

ordem sexual –, entram em conflito com a<br />

instituição que lhes impõe a determina<strong>da</strong>s<br />

regras. Essas instituições sociais podem<br />

ser identifica<strong>da</strong>s como a família, a igreja<br />

ou o trabalho. No desenvolvimento do<br />

enredo, as personagens, impulsiona<strong>da</strong>s<br />

pelo conflito constante, resolvem liberar<br />

seus “estranhamentos” sexuais, o que<br />

causará inevitavelmente um rompimento<br />

de regras e tabus para, em segui<strong>da</strong>, elas<br />

sofrerem as consequências dessa liberação<br />

de seus desejos. A partir <strong>da</strong> revelação do<br />

desejo, o enredo sofre um golpe de teatro e<br />

acompanhamos a derroca<strong>da</strong> sobretudo <strong>da</strong>s<br />

protagonistas. Esses <strong>da</strong>nos – o malogro <strong>da</strong>s<br />

personagens – em geral coincidem com o<br />

desfecho dos acontecimentos; exatamente<br />

no momento em que temos no resultado a<br />

consequência <strong>da</strong> liberação dos desejos <strong>da</strong>s<br />

personagens, é o momento em que a história<br />

se encerra, dentro de uma lineari<strong>da</strong>de de<br />

tempo. Há um grande número de peças deste<br />

dramaturgo cujo enredo é alinear, contado<br />

através de flashbacks. Por isso, muitas vezes,<br />

os momentos mais trágicos antecipam o<br />

final <strong>da</strong> peça e não necessariamente se<br />

coincidem. Esse desfecho trágico ao qual<br />

me refiro não necessariamente é a morte <strong>da</strong><br />

protagonista ou <strong>da</strong>s personagens – e nem<br />

sempre atinge a to<strong>da</strong>s elas.<br />

Acerca do expressionismo<br />

No Brasil, apenas alguns autores<br />

sofreram influências, e limita<strong>da</strong>s, do<br />

expressionismo, até porque não se pode<br />

1 Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP.<br />

Desenvolveu, no mestrado e doutorado, pesquisa sobre a<br />

dramaturgia de Nelson Rodrigues. É membro-fun<strong>da</strong>dor do<br />

Grupo de Estudos em Dramaturgia Letra e Ato, vinculado<br />

Departamento de Artes Cênicas <strong>da</strong> UNICAMP.<br />

afirmar a existência efetiva de um autor<br />

expressionista aqui (LIMA, 2002). 2 Em<br />

Nelson Rodrigues, é perceptível uma<br />

maior influência expressionista nas peças<br />

míticas, com suas deformações, a violência<br />

com que se dirigem ao público, a maneira<br />

agressiva como reagem a situações sociais,<br />

principalmente no que diz respeito<br />

a situações que envolvem a cama<strong>da</strong><br />

burguesa <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Robert Bledsoe<br />

(1971), inclusive, defende a existência do<br />

ciclo expressionista em Nelson Rodrigues,<br />

que compreende cinco peças: Vestido de<br />

noiva, Álbum de família, Anjo negro, Dorotéia<br />

e Senhora dos afogados.<br />

Quando escreveu as tragédias cariocas,<br />

o dramaturgo saiu do campo mítico de<br />

representação e se voltou para um olhar <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de mais colado à reali<strong>da</strong>de. Nessa<br />

transição, ele deixou para trás muitos dos<br />

meios representativos expressionistas. Mas,<br />

por pouco que seja, ain<strong>da</strong> assim restaram<br />

alguns traços dessa estética eminentemente<br />

alemã. Os resquícios expressionistas nas<br />

peças aqui em questão parecem estar<br />

ligados ao desfecho, ain<strong>da</strong> que algumas<br />

delas contenham uma especifici<strong>da</strong>de<br />

expressionista mais evidente em outros<br />

momentos.<br />

Segundo Casals (s.d.), Fraga<br />

(1998), Palmier (1979), dentre outros, o<br />

expressionismo não chegou a se constituir<br />

um movimento propriamente dito,<br />

estruturado e com doutrina defini<strong>da</strong>.<br />

Foi antes uma atmosfera confusa, que se<br />

manifestou principalmente na Alemanha,<br />

uma expressão artística que foi capaz de<br />

transformar a vi<strong>da</strong> cultural alemã em to<strong>da</strong>s<br />

as suas manifestações.<br />

Para Jean-Michel Palmier, o<br />

expressionismo não é original em sua<br />

forma ou em seu estilo, mas sim na maneira<br />

de tratá-los. Isso confirma a ideia de que<br />

tal manifestação não tinha uma formação<br />

clara e objetiva, mas era uma arte subjetiva.<br />

2 o bailado do Deus morto, de Flávio de Carvalho, cuja estreia<br />

ocorreu em 1933, é considera<strong>da</strong> uma peça expressionista.<br />

Ela foi escrita às pressas para a inauguração do Teatro <strong>da</strong><br />

Experiência e, segundo Lima (2002), teve sua importância<br />

bastante relativiza<strong>da</strong>, pois chegou tarde e foi logo esqueci<strong>da</strong>.<br />

Elen de Medeiros


N° 16 | Junho de 2011<br />

O que o expressionismo faz, explica<br />

Eudinyr Fraga, é antepor o feio, o banal,<br />

o escabroso, sobrepondo-os à beleza. Em<br />

uma primeira análise, grosso modo, podese<br />

afirmar que essas características são<br />

facilmente encontra<strong>da</strong>s na dramaturgia<br />

de Nelson, uma vez que o feio e o banal<br />

estão presentes em suas peças, inclusive<br />

nas tragédias cariocas. Por outro lado, há um<br />

distanciamento do expressionismo nestas<br />

peças se outro aspecto dessa estética for<br />

desvelado: na encenação expressionista,<br />

trabalha-se a deformação também <strong>da</strong><br />

interpretação e <strong>da</strong> significação visual e<br />

auditiva (FRAGA, 1998). Daí o palco ser o<br />

espaço interno de uma consciência, onde o<br />

protagonista tem uma real existência, mas<br />

as outras personagens são suas projeções<br />

exaspera<strong>da</strong>s. Bem sabemos que essa é<br />

uma característica de algumas peças, em<br />

especial Vestido de noiva e Valsa nº 6, mas<br />

não se enquadra em qualquer peça do<br />

último ciclo dessa dramaturgia.<br />

Um dos elementos mais salientes na<br />

dramaturgia rodriguiana é a maneira como<br />

são apontados momentos do quotidiano,<br />

que se destacam por se aproximarem do<br />

tom grotesco. Seja uma personagem que<br />

tira um cravo do nariz, um garoto que<br />

permanece o tempo todo com o dedo no<br />

nariz, um casal que disputa o banheiro ou a<br />

filha que aparece na frente do pai em trajes<br />

de lingerie, são to<strong>da</strong>s situações que chamam<br />

a atenção pela forma disforme como são<br />

postas em cena. De certa forma, essa<br />

relação com o grotesco é um traço bastante<br />

característico <strong>da</strong> estética expressionista:<br />

A reali<strong>da</strong>de projeta<strong>da</strong> a partir ou em<br />

função dessas consciências reduzi<strong>da</strong>s às<br />

linhas mais elementares, visto o excesso<br />

emocional, a pressão <strong>da</strong>s condições e o<br />

fervor profético não permitirem requintes e<br />

nuanças, apresenta forçosamente distorções<br />

violentas, traços caricaturais, desproporções<br />

e deformações grotescas. O que importava<br />

aos expressionistas não foi a beleza ou<br />

harmonia <strong>da</strong> obra e sim a força expressiva.<br />

(...) Pelo excesso hiperbólico na descrição do<br />

asqueroso tenta-se exprimir a decomposição<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e o absurdo <strong>da</strong>s condições<br />

reinantes. (ROSENFELD, 1993, p. 285).<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Voltados para a subjetivi<strong>da</strong>de, os<br />

artistas expressionistas retratam um<br />

conflito, levado ao limite em decorrência<br />

do confronto violento entre valores<br />

estabelecidos pelas autori<strong>da</strong>des e as vítimas<br />

<strong>da</strong>s convenções do poder. É desse modo que<br />

o instinto, por muito tempo aprisionado,<br />

tem triunfo momentâneo. Porém, esse<br />

instinto logo depois leva a personagem<br />

(no caso do teatro expressionista) ao<br />

aniquilamento. A dramaturgia rodriguiana<br />

passa por processo semelhante: há uma<br />

tendência à destruição após um aparente<br />

triunfo dos desejos.<br />

Casals explica que Nietzsche foi uma<br />

grande influência para o expressionismo,<br />

pois foi ele quem certificou a morte de Deus,<br />

libertando o homem <strong>da</strong>s sombras que esta<br />

figura projeta sobre ele. Assim, a partir <strong>da</strong><br />

morte de Deus, morre também a moral e<br />

nasce Dioniso; seu reinado restabelece a<br />

relação entre o instinto e a consciência. O<br />

primeiro, força de afirmação e criação, é a<br />

vi<strong>da</strong>. O último, a consciência, é a facul<strong>da</strong>de<br />

de negação, a morte. Na esteira desse<br />

pensamento, pode-se afirmar que esses<br />

dois polos perpassam genericamente a obra<br />

rodriguiana, sem poder, no entanto, dizer<br />

que exista consciência nas personagens<br />

rodriguianas. Assim, os momentos em<br />

que as personagens seguem seus instintos<br />

são as situações de felici<strong>da</strong>de (embora<br />

momentânea) desvela<strong>da</strong>; a partir do<br />

momento em que o torpor causado pela<br />

revelação de seus desejos passa, surge o<br />

fator negativo, em muitos casos, a própria<br />

morte.<br />

Desfechos trágicos<br />

Ironia e sarcasmo, recursos<br />

provocadores do riso, são elementos<br />

recorrentes na dramaturgia de Nelson<br />

Rodrigues. Por trás desse sarcasmo, há um<br />

tom de denúncia <strong>da</strong>s hipocrisias, mentiras,<br />

falcatruas e desejos, responsáveis pelo<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> trama até desencadear<br />

em um desfecho de derroca<strong>da</strong>. Esse<br />

caminho percorrido, <strong>da</strong> relação causa e<br />

Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 33


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

34<br />

efeito, é especialmente apreciado pela obra<br />

de caráter expressionista. De uma forma<br />

ou de outra, se nem to<strong>da</strong>s as peças de<br />

Nelson têm algum caráter expressionista,<br />

elas carregam consigo, ain<strong>da</strong> assim, o uso<br />

deliberado de certo sentido do trágico.<br />

Vejamos como isso acontece efetivamente<br />

nos textos.<br />

Geni, protagonista de To<strong>da</strong> nudez será<br />

castiga<strong>da</strong>, narra os acontecimentos de sua<br />

vi<strong>da</strong> através de uma fita cassete, deixa<strong>da</strong><br />

para Herculano, seu marido. Ao iniciar a<br />

peça, ela está morta e tudo o que se passa<br />

no palco é a representação em flashback dos<br />

fatos narrados. O caminho de destruição<br />

<strong>da</strong> personagem começa muito antes, mas<br />

só acontece o aniquilamento total com o<br />

seu suicídio, já que ele é realizado depois<br />

de Geni atravessar por um processo de<br />

prostração. A morte, aqui, é o resultado<br />

de um longo período de frustrações e<br />

derrotas.<br />

Instiga<strong>da</strong> por Patrício, irmão de<br />

Herculano, Geni se apaixona pelo viúvo<br />

e se utiliza <strong>da</strong> chantagem como artifício<br />

para que ele se case com ela. No entanto,<br />

encontra em Serginho a inviabili<strong>da</strong>de<br />

de seu casamento, já que o filho de<br />

Herculano é contra qualquer união do pai<br />

com outra mulher. Algumas artimanhas,<br />

avanços e recuos que encaminham a ação<br />

acontecem ain<strong>da</strong> nos dois primeiros atos.<br />

Manipula<strong>da</strong> por Patrício, Geni exige o<br />

casamento com Herculano, que, para<br />

conseguir efetivá-lo, tenta convencer seu<br />

filho a ir para a Europa. No entanto, sua<br />

tentativa é barra<strong>da</strong> pelas tias, que não<br />

aceitam a separação do sobrinho. No<br />

final do segundo ato, Serginho se envolve<br />

em uma briga e, na prisão, é violentado.<br />

Com isso, há um golpe de teatro e os fatos<br />

mu<strong>da</strong>m de direção. Posteriormente, Geni<br />

se apaixona por Serginho e, em condição<br />

imposta pelo próprio garoto, aceita se unir<br />

a Herculano para ficar ao lado do enteado.<br />

Após casar-se com Herculano, Geni tornase<br />

amante do próprio enteado e, ao saber<br />

que ele foi embora com o ladrão boliviano,<br />

que o violentou na prisão, ela se mata, mas<br />

antes resolve contar to<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>de para o<br />

marido:<br />

(Voz grava<strong>da</strong> de Geni.)<br />

Ge n i – Teu filho fugiu, sim, com o ladrão<br />

boliviano. Foram no mesmo avião, no<br />

mesmo avião. Estou só, vou morrer só.<br />

(Num rompante de ódio) Não quero meu<br />

nome no túmulo! Não ponham na<strong>da</strong>!<br />

(Exultante e feroz) E você, velho corno!<br />

Maldito você! Maldito o teu filho, e essa<br />

família só de tias. (Num riso de louca)<br />

Lembranças à tia machona! (Num último<br />

grito) Malditos também os meus seios!<br />

(A voz de Geni se quebra num soluço.<br />

Acaba a gravação. Sons de fita inverti<strong>da</strong>.<br />

Ilumina<strong>da</strong> apenas a cama vazia.)<br />

(RODRIGUES, 1990, p. 238)<br />

Herculano, outra personagem que tem<br />

em si o caráter trágico, depara-se com a<br />

destruição de suas ilusões quando ouve, <strong>da</strong><br />

própria esposa, todos os seus infortúnios.<br />

Logo no início, Herculano chega em casa<br />

procurando pela esposa, aparentemente<br />

feliz. Mas, ao ouvir as declarações pela<br />

fita cassete, ele se depara com sua total<br />

ignorância e desdita. Patrício consegue,<br />

por meio de Geni e de Serginho, conduzir<br />

o irmão à sua completa aniquilação, pois<br />

fez com que ele perdesse a esposa e o<br />

filho, destruindo aquilo que Herculano<br />

mais prezava. A personagem é um homem<br />

católico praticante que não aceita o sexo<br />

prazeroso. Ao passar 72 horas com uma<br />

prostituta e apaixonar-se por ela, deparase<br />

com uma transgressão: o desejo se<br />

sobrepõe à crença e ele resolve se casar com<br />

a prostituta. Herculano tenta manter um<br />

equilíbrio entre seu desejo, representado<br />

por Geni, e sua crença, materializa<strong>da</strong> nas<br />

tias e em Serginho. Mas esse equilíbrio<br />

é quebrado por Patrício, seu irmão, que<br />

manipula as situações adversas que lhe<br />

acontecem. Quando, finalmente, há uma<br />

aparente medi<strong>da</strong> certa em sua vi<strong>da</strong>, ele<br />

descobre que tudo não passou de uma<br />

ilusão, pois foi enganado por todos. Sua<br />

derroca<strong>da</strong>, assim, acontece lentamente,<br />

a ca<strong>da</strong> cena que Geni narra; aos poucos<br />

Herculano se depara com a total destruição<br />

de seus ideais.<br />

Há, no entanto, outros fatores que<br />

evidenciam resquícios expressionistas: os<br />

vários momentos do quotidiano retratados<br />

Elen de Medeiros


N° 16 | Junho de 2011<br />

de forma grotesca, estilo estético quase<br />

imperativo nessa dramaturgia. Por exemplo,<br />

em uma discussão de Geni e Herculano,<br />

ele se põe de quatro e começa a gritar. Em<br />

segui<strong>da</strong>, a prostituta comenta as varizes <strong>da</strong><br />

faleci<strong>da</strong> esposa de Herculano. Há aquela<br />

tendência ao hiperbólico e ao feio, aspectos<br />

caros ao expressionismo e recorrentes no<br />

teatro de Nelson Rodrigues. Por outro<br />

lado, nota-se a própria temática, que o liga,<br />

de alguma forma, ao expressionismo: o<br />

sexo. Mas não o sexo puro e simplesmente,<br />

mas enquanto um elemento de explosão<br />

de fatores psíquicos <strong>da</strong>s personagens. Ou<br />

melhor, a sexuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s personagens<br />

é explora<strong>da</strong> pelo dramaturgo a ponto de<br />

transformá-la em um fator de manifestação<br />

súbita <strong>da</strong> problemática individual de ca<strong>da</strong><br />

um – como um fator de ponto de parti<strong>da</strong> e<br />

exploração para o desenrolar <strong>da</strong> trama.<br />

Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas<br />

ordinária, ao contrário <strong>da</strong>s outras peças do<br />

conjunto, não tem um final essencialmente<br />

trágico. Pelo menos no que diz respeito às<br />

protagonistas. Edgard e Ritinha revertem<br />

a situação decadente que os envolve e<br />

conseguem, juntos, fazer com que o amor se<br />

sobressaia ao meio lascivo e ganancioso no<br />

qual estão inseridos. Em vários momentos<br />

<strong>da</strong> literatura rodriguiana, a máxima do amor<br />

<strong>superior</strong> ao sexo e à ganância é ressalta<strong>da</strong>.<br />

Essencialmente, Nelson Rodrigues ressalta<br />

o amor como o sentimento supremo do<br />

ser humano, que é corrompido pelo sexo,<br />

mas, em situações extremas, vence o<br />

sentimento nobre. A diferença nessa peça<br />

está essencialmente nas protagonistas, que<br />

não são leva<strong>da</strong>s a sua derroca<strong>da</strong> moral e<br />

física. Ao contrário, como em um folhetim<br />

romântico, o amor de Edgard e Ritinha<br />

vence todos os obstáculos.<br />

Entretanto, antes de qualquer final<br />

romântico, a peça é rechea<strong>da</strong> de momentos<br />

que poderiam ser encaminhados a um<br />

desfecho pouco feliz. Ritinha é uma irmã<br />

zelosa com a integri<strong>da</strong>de moral <strong>da</strong>s irmãs<br />

mais novas; evidencia em várias cenas<br />

a importância <strong>da</strong><strong>da</strong> ao casamento e à<br />

virgin<strong>da</strong>de delas, sacrificando-se física e<br />

moralmente com a prostituição. Mas eis que<br />

todo seu zelo é enfim dissolvido quando as<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

três irmãs são estupra<strong>da</strong>s em uma curra<br />

organiza<strong>da</strong> pelo empresário Werneck. Por<br />

mais que Werneck ressalte que devolverá<br />

a virgin<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s meninas com uma rápi<strong>da</strong><br />

intervenção cirúrgica, Edgard questiona se<br />

essa “virgin<strong>da</strong>de” interessa:<br />

Ritinha – Eu estive com o médico,<br />

Edgard. Ele disse. Garantiu. Disse que fica<br />

perfeito.<br />

ed G a R d – Escuta, Ritinha.<br />

Ritinha (radiante) – Tirei um peso.<br />

ed G a R d – Você acha. Escuta. Acha que<br />

interessa virgin<strong>da</strong>de assim? Assim,<br />

Ritinha?<br />

Ritinha (sem perceber a abjeção moral) –<br />

Mas o médico, Edgard, disse que o marido<br />

não ia perceber, nem ia desconfiar. (IDEM,<br />

p. 319)<br />

As mortes de Maria Cecília e de Peixoto<br />

surgem de maneira estranha e brusca.<br />

Não há evidências precedentes à cena <strong>da</strong><br />

morte que indiquem qualquer tendência<br />

a um relacionamento entre Peixoto e sua<br />

cunha<strong>da</strong>. O que pode ser percebido de<br />

Maria Cecília é superficial, uma inocência<br />

sem tendência a qualquer tipo de perversão.<br />

Por outro lado, Peixoto é ambicioso e se<br />

auto-denomina canalha, mas não oferece<br />

nenhuma evidência de que seja apaixonado<br />

pela cunha<strong>da</strong>. No entanto, a despeito de sua<br />

canalhice, no terceiro ato ele tenta mostrar<br />

a Edgard como é a família na qual ele está<br />

prestes a entrar, a fim de alertá-lo sobre o<br />

caráter de Maria Cecília, em uma tentativa<br />

de não deixar que Edgard passe a integrar<br />

o rol dos corrompidos.<br />

Na cena em que Peixoto mata Maria<br />

Cecília, há uma recorrência à violência<br />

e uso do kitsch, o que evidencia uma<br />

aproximação com o expressionismo. O<br />

primeiro, no intuito de agredir o público<br />

apontando para a agressão do quotidiano<br />

e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Já o outro, está mais ligado<br />

ao grotesco, como forma de se sobrepor ao<br />

belo, também no intuito de transparecer<br />

um aspecto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Boca de Ouro, personagem <strong>da</strong> peça<br />

homônima, é um herói suburbano (ou seria<br />

um anti-herói?) descrito de três formas<br />

diferentes e pouco se pode afirmar de<br />

Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 35


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

36<br />

um suposto trajeto percorrido por ele até<br />

desembocar no seu final trágico, advindo<br />

com a morte. De forma concreta, apenas<br />

é possível afirmar que ele é um homem<br />

suburbano, banqueiro de jogo do bicho,<br />

cuja obsessão maior é o ouro. Na primeira<br />

cena <strong>da</strong> peça, ele pede ao dentista que lhe<br />

faça uma dentadura de ouro, em outra<br />

recorrência ao kitsh. Da mesma forma, ao<br />

longo <strong>da</strong> ação, ele afirma que está fazendo<br />

um caixão de ouro. Outro fato concreto,<br />

pela repetição em várias cenas, é que<br />

nasceu em uma pia de uma gafieira. Por<br />

pura ironia, Boca de Ouro não tem outro<br />

destino senão voltar ao ponto de onde<br />

partiu: é encontrado morto em uma sarjeta<br />

sem a sua maior marca, a dentadura de<br />

ouro. Quase um ser mitológico suburbano,<br />

como afirmam as rubricas, Boca <strong>parte</strong> do<br />

submundo carioca e permeia a imaginação<br />

popular, até encontrar a morte através de<br />

uma grã-fina. Enquanto isso, percorre um<br />

trajeto do qual a única coisa que se pode<br />

afirmar é que foi recheado de assassinatos<br />

e manipulações do poder. Tais fatos são<br />

conhecidos no decorrer <strong>da</strong> peça pela<br />

narração de D. Guigui, sua ex-amante,<br />

que varia a imagem do bicheiro de acordo<br />

com o impacto psicológico. Por isso, esse<br />

ínterim não pode ser determinado com<br />

exatidão devido ao objetivo <strong>da</strong> peça, que<br />

trabalha justamente com a subjetivi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> constituição do ser.<br />

Beijo no asfalto, assim como A faleci<strong>da</strong>,<br />

segue uma estrutura de drama de estações,<br />

na qual o protagonista passa por to<strong>da</strong>s as<br />

etapas de sua destruição. Stationendrama,<br />

ou drama de estações, é uma estrutura<br />

desenvolvi<strong>da</strong> e aprecia<strong>da</strong> pelo<br />

expressionismo e <strong>da</strong> qual Nelson Rodrigues<br />

se valeu para desenvolver essas duas<br />

tragédias cariocas. Assim, acompanhamos<br />

Arandir e Zulmira em várias etapas de<br />

seu aniquilamento, aproximando os dois<br />

protagonistas em seu destino de desdita, a<br />

despeito de tantas outras diferenças entre<br />

os dois textos. Arandir, o jovem de Beijo<br />

no asfalto, a pedido de um moribundo, o<br />

beija na boca no momento de sua morte.<br />

Tal atitude é o ponto de parti<strong>da</strong> para um<br />

repórter inescrupuloso, Amado Ribeiro,<br />

e um delegado, Cunha, tornarem o caso<br />

sensacionalista o suficiente para vender<br />

jornal. A partir de então, ocorrerá uma série<br />

de acontecimentos que levam Arandir ao seu<br />

total isolamento. Este é um herói aniquilado<br />

pouco a pouco, que sofre a dimensão de sua<br />

bon<strong>da</strong>de e inocência e acaba sendo punido<br />

por todos aqueles que convivem com ele,<br />

fato que realça seu caráter trágico. O ponto<br />

máximo <strong>da</strong> destruição do herói acontece<br />

quando, depois de ter enfrentado tantas<br />

intempéries, Arandir é assassinado por seu<br />

sogro Aprígio.<br />

apRíGio (num berro) – De você!<br />

(Estrangulando a voz) Não de minha<br />

filha. Ciúmes de você. Tenho! Sempre.<br />

Desde o teu namoro, que não digo o teu<br />

nome. Jurei a mim mesmo que só diria<br />

teu nome a teu cadáver. Quero que você<br />

morra sabendo. O meu ódio é amor. Por<br />

que beijaste um homem na boca? Mas eu<br />

direi o teu nome. Direi teu nome a teu<br />

cadáver. (Aprígio atira, a primeira vez.<br />

Arandir cai de joelhos. Na que<strong>da</strong>, puxa<br />

uma folha de jornal, que estava aberta na<br />

cama. Torcendo-se, abre o jornal, como<br />

uma espécie de escudo ou de bandeira.<br />

Aprígio atira, novamente, varando o papel<br />

impresso. Num espasmo de dor, Arandir<br />

rasga a folha. E tomba, enrolando-se no<br />

jornal. Assim morre.)<br />

apRíGio – Arandir! (mais forte) Arandir!<br />

(um último canto) Arandir! (RODRIGUES,<br />

1990, pp. 152-153).<br />

Arandir é o único caso <strong>da</strong>s tragédias<br />

cariocas em que o protagonista não é o<br />

principal responsável pelo seu próprio<br />

aniquilamento, mesmo que, para que isso<br />

ocorra, seja necessário que ele cometa um<br />

erro trágico. No caso, o beijo no asfalto. Ele<br />

e Zulmira estão inseridos em um contexto<br />

de mediocri<strong>da</strong>de generaliza<strong>da</strong>, em que o<br />

senso comum não aceita qualquer desvio<br />

de norma, precisando aniquilar quem<br />

foge à regra. O que incomo<strong>da</strong>, nessas duas<br />

peças, é a individuali<strong>da</strong>de que contesta a<br />

mediocri<strong>da</strong>de presente no senso comum:<br />

“Ele [Arandir] e Zulmira estão anestesiados,<br />

mas a vi<strong>da</strong> espreita e ron<strong>da</strong> em torno.<br />

O conselho <strong>da</strong> cartomante vigarista e o<br />

Elen de Medeiros


N° 16 | Junho de 2011<br />

atropelamento do rapaz <strong>da</strong>rão o sinal para<br />

que se inicie a desci<strong>da</strong> vertiginosa para a<br />

destruição.” (FRAGA, 1998, p. 161)<br />

Nas outras três peças do conjunto, o<br />

caminho que as personagens seguem é<br />

semelhante: elas são absorvi<strong>da</strong>s por uma<br />

reali<strong>da</strong>de cruel, frente à qual devem ter<br />

atitudes que são leva<strong>da</strong>s ao seu limite. Esses<br />

momentos extremados vão encaminhá-las a<br />

sua destruição, a uma morte fria, estúpi<strong>da</strong>.<br />

As personagens se aniquilam a partir <strong>da</strong>s<br />

ações que praticam no decorrer <strong>da</strong> peça,<br />

submetendo-se à tragici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Raul, protagonista de Perdoa-me por<br />

me traíres, surge na peça somente a partir<br />

do segundo ato, mas ain<strong>da</strong> no primeiro<br />

ato ele é assunto corrente para Glorinha,<br />

sua sobrinha. Em meio às suas falas, fica<br />

evidente o medo que ela tem do tio, descrito<br />

como um homem violento. No segundo<br />

ato, Raul surge como o narrador <strong>da</strong> morte<br />

de Judite, mãe de Glorinha e, motivado por<br />

ciúmes, ele conta que ofereceu veneno à<br />

cunha<strong>da</strong> por ela ter traído o marido.<br />

tio Ra u l (batendo no peito) – Eu a matei!<br />

Eu! E olha: ninguém sabe, ninguém!<br />

Inclusive minha mãe, meus irmãos,<br />

pensam, até hoje, que foi suicídio! (baixo,<br />

com um meio riso hediondo) (Cresce) Mas<br />

o assassino está aqui e sou eu, o assassino!<br />

(arquejando) Segurei a alça, fui ao<br />

cemitério e, à beira do túmulo, derramei<br />

uma colher de pétalas em cima do caixão.<br />

Vê tu? (RODRIGUES, 1985, p. 167).<br />

Durante o terceiro ato, ele volta a<br />

ameaçar Glorinha de morte caso ela não<br />

lhe revele to<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de sobre sua vi<strong>da</strong>.<br />

O ato, desenvolvido em uma única cena,<br />

leva à máxima tensão a relação entre tio<br />

e sobrinha, variando os sentimentos deles<br />

entre o amor e o ódio. Em alguns momentos,<br />

Raul afirma que odeia Glorinha e que vê<br />

nela a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s volúpias <strong>da</strong> mãe.<br />

A tensão máxima é alcança<strong>da</strong> quando<br />

Raul revela, momentos antes do desfecho<br />

<strong>da</strong> peça, que amava Judite, e que a matou<br />

porque ela nunca pertenceu a ele, apesar de<br />

ter pertencido a muitos homens. Confessa,<br />

também, que criou Glorinha para si:<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

tio Ra u l – Glorinha, eu te criei para mim.<br />

Dia e noite, eu te criei para mim! Morre<br />

pensando que eu te criei para mim!<br />

(Os dois levam o copo aos lábios, ao<br />

mesmo tempo. Tio Raul bebe de uma vez<br />

só. Glorinha ain<strong>da</strong> não bebeu. Tio Raul cai<br />

de joelhos, soluçando.) (IDEM, p. 179).<br />

Tais revelações acarretarão no<br />

aniquilamento <strong>da</strong> personagem, provocado<br />

por sua morte. Glorinha, que o havia<br />

convi<strong>da</strong>do para morrerem juntos, não bebe<br />

o veneno e deixa-o agonizando sozinho,<br />

apenas com a companhia de Tia Odete, sua<br />

esposa, que perambula pela casa.<br />

Assim como Raul, “Seu” Noronha,<br />

de Os sete gatinhos, é o próprio a traçar o<br />

caminho <strong>da</strong> desgraça que deve percorrer<br />

até sua morte. O seu percurso passa<br />

<strong>da</strong> adoração pela filha caçula até a<br />

descoberta de sua gravidez, com a que<strong>da</strong><br />

do mito de Silene. 3 Depois disso, busca<br />

incessantemente pelo homem que chora<br />

por um olho só, matando Bibelot, o amante<br />

de Silene, equivoca<strong>da</strong>mente. A partir <strong>da</strong><br />

morte de Bibelot, será descoberto que<br />

o homem que chora por um olho só é o<br />

próprio “Seu” Noronha, ele que prostitui<br />

suas próprias filhas, que se revoltam e o<br />

matam a punhala<strong>da</strong>s.<br />

Durante to<strong>da</strong> a peça, Noronha é um<br />

patriarca que se altera facilmente, ameaça<br />

e agride as filhas e a esposa. Ao elevar<br />

Silene ao patamar de mito, ele mantém<br />

na virgin<strong>da</strong>de dela o pilar <strong>da</strong> família,<br />

impedindo o seu desmoronamento moral.<br />

Com a descoberta <strong>da</strong> gravidez <strong>da</strong> caçula,<br />

ocorre pouco a pouco o declínio de todos<br />

os membros <strong>da</strong> família. Sabe-se que ele,<br />

na ânsia de manter a virgin<strong>da</strong>de de Silene,<br />

encaminhou homens, deputados e velhos<br />

para suas outras filhas, induzindo to<strong>da</strong>s<br />

elas à prostituição.<br />

3 o termo “o mito de Silene” é de Marcelo Paulini (1994:<br />

p. 9), que comenta em sua dissertação de mestrado: “É<br />

importante notar que Noronha é um moralista preso aos<br />

valores de sua condição social, e frustrado por não conseguir<br />

atingi-los. Procura então compensar sua miséria existencial<br />

estabelecendo um mito em sua vi<strong>da</strong>, e na dos demais membros<br />

<strong>da</strong> família: o mito de Silene.”<br />

Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 37


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

38<br />

Quando, finalmente, as filhas percebem<br />

que ele é o responsável por to<strong>da</strong>s suas<br />

desgraças, resolvem matá-lo, acabar com<br />

o homem que as arruinou. Arlete, a filha<br />

mais insolente de to<strong>da</strong>s, toma a iniciativa<br />

de matá-lo, assim que ela percebe que saem<br />

lágrimas apenas de um olho do seu pai,<br />

cumprindo-se, então, a previsão do próprio<br />

Noronha. Ele, que perseguiu e procurou<br />

durante to<strong>da</strong> a ação <strong>da</strong> peça por aquele que<br />

arruinou a sua família, acaba por traçar ele<br />

próprio seu destino de malogro.<br />

Tendo a suspeita de que Bibelot é o<br />

homem que procuram, Aurora convi<strong>da</strong>-o<br />

para dormir no quarto, armando uma<br />

embosca<strong>da</strong>. Enquanto o jovem dorme, to<strong>da</strong><br />

a família entra no quarto e Noronha crava<br />

o punhal em seu coração. Ao perceberem<br />

que Bibelot chora normalmente, as filhas<br />

acusam Noronha de cometer assassinato<br />

e o acuam, ameaçando-o. Só então, com<br />

a pressão <strong>da</strong>s filhas, Noronha chora e<br />

percebe-se que suas lágrimas saem por<br />

um olho só, revelando-se o ver<strong>da</strong>deiro<br />

responsável pela destruição <strong>da</strong> família.<br />

(Todos seguem o chefe <strong>da</strong> família. Entram<br />

no quarto. Por um momento, “seu”<br />

Noronha olha o rapaz adormecido. Ergue<br />

o punhal e o crava, até o cabo, no coração<br />

de Bibelot. Este dá um arranco, um uivo<br />

estrangulado. Depois, tomba. Arqueja na<br />

sua agonia. Aurora cai de joelhos.)<br />

au R o R a (num fundo gemido) – Meu amor,<br />

perdoa meu ódio!<br />

(Arlete adianta-se.)<br />

aR l e t e (sôfrega) – Quero ver a lágrima <strong>da</strong><br />

morte!<br />

dé b o R a – Morreu!<br />

(Arlete segura o rosto do rapaz.)<br />

aR l e t e (no seu assombro) – Mas está<br />

chorando pelos dois olhos! (na sua<br />

histeria) São duas lágrimas!<br />

hi l d a (histérica também) – Papai! Não é o<br />

homem que chora por um olho só!<br />

aR l e t e (crescendo para o pai) –<br />

Assassino!<br />

(As filhas avançam para o pai, que recua.)<br />

(IDEM, p. 251).<br />

Por fim, Gui<strong>da</strong>, de A serpente, última<br />

peça escrita por Nelson Rodrigues, também<br />

é a única responsável por sua própria<br />

destruição, além <strong>da</strong> destruição do seu<br />

casamento. Preocupa<strong>da</strong> com a infelici<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> irmã Lígia, ela resolve compartilhar sua<br />

felici<strong>da</strong>de, oferecendo uma noite com o<br />

marido Paulo. Após a consumação do ato,<br />

corroí<strong>da</strong> pelo ciúme, Gui<strong>da</strong> desconfia dos<br />

dois, persegue-os e tenta evitar encontros<br />

entre eles. Sufocado pela perseguição<br />

doentia de Gui<strong>da</strong>, Paulo joga a esposa do<br />

décimo segundo an<strong>da</strong>r do prédio onde<br />

moram.<br />

Para compreender o motivo do ciúme<br />

de Gui<strong>da</strong>, faz-se necessário saber que Lígia,<br />

sua irmã, era casa<strong>da</strong> com Décio. Após um<br />

ano de casamento, eles se separaram porque<br />

ele não conseguiu consumar o casamento.<br />

Desespera<strong>da</strong> com a situação em que se<br />

encontra, Lígia pretende se matar. É neste<br />

momento que surge a proposta de Gui<strong>da</strong>.<br />

O que acontece em segui<strong>da</strong> é que Gui<strong>da</strong><br />

observa entre o marido e a irmã certo<br />

envolvimento e resolve, então, proibirlhes<br />

as saí<strong>da</strong>s em horas comuns e evita que<br />

eles se comuniquem no apartamento onde<br />

moram. São essas atitudes que provocam<br />

seu desfecho de malogro, já que tendo<br />

sufocado a própria relação com o marido,<br />

impede que ele a deseje como mulher e, em<br />

segui<strong>da</strong>, a assassine. Antes de morrer, no<br />

entanto, Gui<strong>da</strong> já havia destruído to<strong>da</strong> a<br />

relação existente com sua irmã, acusando-a<br />

de traição.<br />

líGia – Te direi tudo. Tens um marido que<br />

te faz feliz, e segundo você própria, a mais<br />

feliz <strong>da</strong>s mulheres. Eu tenho um marido<br />

que me destruiu. Não sou mais na<strong>da</strong>. E<br />

põe na tua cabeça, criatura, que eu não fiz<br />

na<strong>da</strong>. Só fiz o que você mandou. Foi você<br />

que disse: – “Vai”. Eu ia morrer e seria tão<br />

fácil morrer. Mas você, você me salvou<br />

e disse: – “Te dou uma noite do meu<br />

marido”. Eu tive esta noite. Só. E queres<br />

me tirar esta noite? Agora é tarde. Tudo<br />

já aconteceu.<br />

Gu i d a – Acabaste?<br />

líGia – Acabei. Não quero ouvir na<strong>da</strong> de<br />

você.<br />

Gu i d a – Pois ouve ain<strong>da</strong>. Você não pode<br />

pensar, ou olhar, ou tocar meu marido.<br />

Ou sorrir. A gente não sorri para todo<br />

mundo. Você não pode sorrir para<br />

meu marido. Escuta, Lígia. Você não<br />

me conhece. Paulo não me conhece, eu<br />

Elen de Medeiros


N° 16 | Junho de 2011<br />

própria não me conhecia. Eu me conheço<br />

agora. Se você quiser mais do que a noite<br />

que já teve, eu mato você. Ou então,<br />

mato o único homem que amei. (Com ar<br />

de louca) Paulo dormindo e morrendo.<br />

(RODRIGUES, 1990, p. 75-76).<br />

Expressionistas?<br />

As tragédias cariocas não são, pois,<br />

peças expressionistas em sua totali<strong>da</strong>de.<br />

Possuem alguns resquícios <strong>da</strong>quilo que<br />

é denominado expressionismo. Não<br />

necessariamente o expressionismo do pósguerra<br />

alemão, mas um expressionismo<br />

como tendência estética, de demonstrar<br />

um fato real <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de pela distorção,<br />

pelo grotesco, pela agressivi<strong>da</strong>de. O<br />

dramaturgo se aproxima dessa estética<br />

pelo uso frequente de elementos<br />

do grotesco, sobretudo aqueles que<br />

ressaltam um quotidiano em decadência<br />

<strong>da</strong>s personagens, o que também aju<strong>da</strong><br />

a rebaixá-las e aproximá-las de um tom<br />

cômico. Mesmo assim, a aproximação com<br />

a vanguar<strong>da</strong> não foi um ponto que tenha<br />

percorrido o teatro de Nelson Rodrigues<br />

em seu último ciclo. Essas peças são,<br />

evidentemente, agressivas. No entanto,<br />

dentro dessa agressivi<strong>da</strong>de camufla<strong>da</strong><br />

pelo farsesco, por vezes leva<strong>da</strong> ao<br />

melodramático pelo exagero, um ponto<br />

que chama a atenção é a tendência do<br />

herói em ser carregado pelas situações ao<br />

seu aniquilamento. Seja qual for a forma<br />

como isso acontece, pelo intermédio de<br />

outras personagens <strong>da</strong> peça ou não, se<br />

conscientemente ou não, o fato é que o<br />

sentido trágico sempre acompanha os<br />

heróis rodriguianos, <strong>da</strong> mesma maneira<br />

como acompanha, também, os heróis<br />

expressionistas.<br />

Referências bibliográficas<br />

BLEDSOE, Robert Lamar. The expressionism<br />

on Nelson Rodrigues: a revolution in<br />

Brazilian drama. Michigan: Microfilmed<br />

by University of Wisconsin, 1971.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

CASALS, Josep. El expresionismo.<br />

Barcelona: Montesinos, s.d.<br />

FRAGA, Eudinyr. Nelson Rodrigues<br />

expressionista. Cotia: Ateliê Cultural,<br />

1998.<br />

LIMA, Mariângela Alves de. Dramaturgia<br />

expressionista. In: GUINSBURG, J. O<br />

expressionismo. São Paulo: Perspectiva,<br />

2002.<br />

MEDEIROS, Elen de. Nelson Rodrigues<br />

e as tragédias cariocas: um estudo <strong>da</strong>s<br />

personagens. 2005. 180 p. Dissertação<br />

(Mestrado em Teoria e História Literária)<br />

– Instituto de Estudos <strong>da</strong> Linguagem,<br />

Unicamp, Campinas.<br />

PALMIER, Jean-Michel. L’expressionnismo<br />

et les arts. Paris: Payot, 1979.<br />

PAULINI, Marcelo M. Peccioli. Alguns<br />

aspectos <strong>da</strong> dramaturgia de Nelson Rodrigues.<br />

1994. 132 p. Dissertação (Mestrado em<br />

Teoria e História Literária) – Instituto<br />

de Estudos <strong>da</strong> Linguagem, Unicamp,<br />

Campinas.<br />

RODRIGUES, Nelson. Teatro completo de<br />

Nelson Rodrigues. vol. 3. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1985.<br />

_______. Teatro completo de Nelson<br />

Rodrigues. vol.4. Rio de Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 1990.<br />

ROSENFELD, Anatol. História <strong>da</strong><br />

literatura e do teatro alemães. São Paulo:<br />

Perspectiva/ Edusp; Campinas: Editora<br />

<strong>da</strong> Unicamp, 1993.<br />

Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 39


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Doutor Jean-Martin Charcot [Marcelo F. de Souza]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Júlia oliveira.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 41


N° 16 | Junho de 2011<br />

PoR UM DESEJo PÓS-CoLoNIAL:<br />

UMA ANÁLISE Do TEATRo<br />

ESSENCIAL, DE DENISE SToKLoS<br />

Resumo<br />

A aplicação <strong>da</strong> teoria pós-colonialista ao teatro e a<br />

literatura dramática brasileira oferece uma gama<br />

considerável de possibili<strong>da</strong>des para pensar sobre a<br />

a<strong>da</strong>ptação e adoção de modelos estrangeiros, bem como<br />

sobre especifici<strong>da</strong>des culturais <strong>da</strong>s performances do Brasil.<br />

O propósito deste artigo é expor a pesquisa que resultou<br />

em minha dissertação de Mestrado em Artes, Performing<br />

Postcolonialism: Denise Stoklos and the Essential Theatre,<br />

escrita na Royal Holloway, University of London.<br />

Palavras-chave: Pós-colonialismo, performance, Teatro<br />

Brasileiro.<br />

Abstract<br />

The application of postcolonial theory to contemporary<br />

Brazilian theatre and drama offers a considerable<br />

range of possibilities to think about the a<strong>da</strong>ptation and<br />

the adoption of foreign models as well as the cultural<br />

specificities of Brazilian performances. The purpose of<br />

this paper is to present the research that resulted in my<br />

Master dissertation in Arts – Performing Postcolonialism:<br />

Denise Stoklos and the Essential Theatre – written at Royal<br />

Holloway, University of London.<br />

Keywords: Postcolonialism, performance,<br />

Brazilian Theatre.<br />

Elisa Belém 1<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 43


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

44<br />

Apresentação<br />

O<br />

presente artigo propõe<br />

discutir o teatro brasileiro<br />

contemporâneo através<br />

de uma análise <strong>da</strong><br />

carreira e <strong>da</strong>s propostas<br />

<strong>da</strong> performer brasileira Denise Stoklos,<br />

além de referências ao trabalho do teórico<br />

e encenador Augusto Boal e do performer<br />

Antônio Nóbrega. Essa discussão <strong>parte</strong><br />

<strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong> teoria pós-colonialista ao<br />

teatro brasileiro.<br />

A teoria pós-colonialista reflete sobre<br />

os “efeitos <strong>da</strong> colonização em culturas e<br />

socie<strong>da</strong>des” 2 (ASHCROFT, GRIFFITHS,<br />

TIFFIN, 1998, p. 186), discutindo<br />

identi<strong>da</strong>de e dominação política nos países<br />

que foram colonizados. Ao aplicar a teoria<br />

pós-colonialista ao teatro e a literatura<br />

dramática, é possível examinar as relações<br />

entre performance e história nesses países,<br />

estabelecendo uma discussão sobre o<br />

assunto do ponto de vista do colonizado.<br />

Este ponto de vista foca em ambigui<strong>da</strong>de,<br />

investigando a constituição <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des<br />

coloniza<strong>da</strong>s como uma imagem-espelho<br />

(reflexo) e como uma imagem distorci<strong>da</strong><br />

do colonizador. Assumindo diferença,<br />

reclama por espaços de negociação entre<br />

países e culturas.<br />

A aplicação <strong>da</strong> teoria pós-colonialista<br />

ao teatro brasileiro contemporâneo e à<br />

literatura dramática oferece um leque<br />

considerável de possibili<strong>da</strong>des para se<br />

pensar sobre a a<strong>da</strong>ptação e a adoção de<br />

modelos estrangeiros, bem como sobre as<br />

especifici<strong>da</strong>des culturais <strong>da</strong>s peformances<br />

do Brasil. O geógrafo Milton Santos referese<br />

ao Brasil como um “país distorcido”<br />

(SANTOS, 2002, p.49). Comparando<br />

essa ideia ao processo colonizatório,<br />

1 Atriz, Doutoran<strong>da</strong> em Artes (Artes Cênicas) no Instituto de<br />

Artes <strong>da</strong> UNICAMP; bolsista <strong>da</strong> FAPESP. Mestre em Teatro<br />

(Estudos <strong>da</strong> Performance) na Royal Holloway, University of<br />

London; título reconhecido e vali<strong>da</strong>do no Brasil pela ECA/USP.<br />

Foi bolsista do Programa ALBAN em 2004 e 2005.<br />

2 To<strong>da</strong>s as citações de autores estrangeiros utiliza<strong>da</strong>s neste<br />

artigo foram traduzi<strong>da</strong>s por mim. os originais encontram -se<br />

em inglês.<br />

reconhecemos um senso de inferiori<strong>da</strong>de no<br />

Brasil resultante <strong>da</strong> dominação e opressão.<br />

Nesse estudo, indicam-se algumas<br />

questões: É possível afirmar que há uma<br />

expressão brasileira “pura”? Como os<br />

praticantes de teatro e teóricos no Brasil<br />

trabalham com os modelos estrangeiros e<br />

suas especifici<strong>da</strong>des culturais? É possível<br />

reconhecer uma prática teatral póscolonialista<br />

no Brasil? O que se conhece<br />

sobre o teatro brasileiro no mundo? É<br />

possível instalar um intercâmbio cultural<br />

com bases e princípios igualitários no<br />

mundo contemporâneo?<br />

A partir de uma análise do teatro<br />

contemporâneo e a verificação <strong>da</strong><br />

história brasileira, este artigo propõe<br />

o desenvolvimento <strong>da</strong> performance<br />

autoral no Brasil, para contribuir para<br />

o fim do senso de inferiori<strong>da</strong>de entre<br />

brasileiros e também, a fim de promover<br />

um intercâmbio intercultural de forma<br />

igualitária no mundo moderno.<br />

Brasil<br />

É sabido que a colonização<br />

portuguesa, a escravatura indígena<br />

e africana, bem como a catequização<br />

católica, deixou traços marcantes na<br />

cultura brasileira. No ano 2000, houve<br />

no país, uma série de comemorações<br />

dos quinhentos anos <strong>da</strong> “descoberta do<br />

Brasil”. O termo “descoberta” já foi muitas<br />

vezes questionado por historiadores<br />

e pensadores <strong>da</strong>s mais diversas áreas.<br />

Naquela ocasião, o jornal Folha de São<br />

Paulo distribuiu um questionário a<br />

dez intelectuais brasileiros para que<br />

indicassem trinta títulos, opinando sobre<br />

as cem melhores obras mundiais de nãoficção<br />

no século XX e sobre as trinta<br />

melhores obras brasileiras de não-ficção<br />

em todos os tempos. A lista produzi<strong>da</strong><br />

com os cem melhores livros de não-ficção<br />

do século XX indicou apenas um título de<br />

escritor brasileiro - Euclides <strong>da</strong> Cunha, e,<br />

contemplou mais um livro de outro escritor<br />

latino-americano - Jorge Luís Borges.<br />

Elisa Belém


N° 16 | Junho de 2011<br />

Milton Santos questionou a vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

lista e a ativi<strong>da</strong>de intelectual no Brasil,<br />

afirmando que a última era basea<strong>da</strong> num<br />

entendimento errôneo do que vem a<br />

ser “universal” e “internacional”: “Que<br />

país é este, o Brasil, nos seus 500 anos?<br />

Podemos, a partir desses fatos, in<strong>da</strong>garnos<br />

sobre esses 500 anos de formação de<br />

uma idéia de Brasil?” (SANTOS, 2002,<br />

p. 49) Santos afirmava pensar que o<br />

termo “internacional” no Brasil, referese<br />

frequentemente a Europa e Estados<br />

Unidos <strong>da</strong> América, excluindo-se assim,<br />

a elaboração do pensamento brasileiro<br />

e latino-americano. Dessa forma, Santos<br />

referia-se a uma “visão distorci<strong>da</strong> do<br />

mundo”, a um “apartheid à brasileira”, um<br />

racismo disfarçado no Brasil chegando-se<br />

a ideia de um “país distorcido”.<br />

Esse olhar para o Brasil de dentro<br />

do país pôde ser confrontado com<br />

minha experiência pessoal no exterior.<br />

Para frequentar o curso MA Theatre<br />

(Performance Studies) na RHUL, no qual<br />

esta pesquisa foi realiza<strong>da</strong>, vivi durante<br />

um ano na Inglaterra. Muitas vezes,<br />

tive a sensação de estar “fora do lugar”<br />

ou desloca<strong>da</strong> de um contexto cultural<br />

de pertencimento, relativa ao fato de<br />

ser estrangeira e também, por perceber<br />

que muitas pessoas possuíam uma ideia<br />

imaginária do Brasil. Experiências mistas<br />

se deram; desde o pedido frequente “fale<br />

brasileiro para gente ouvir”; passando<br />

pelo espanto de alguns por eu ter a pele<br />

branca e ser brasileira; até o pedido de<br />

colegas do curso para que eu mostrasse<br />

estilos de <strong>da</strong>nças brasileiras como salsa<br />

e mambo. Ao mesmo tempo, distante<br />

do meu país natal, pude notar a pouca<br />

valorização <strong>da</strong>s artes, <strong>da</strong>s manifestações<br />

culturais e performativas que aí ocorrem.<br />

Identifiquei aquilo que nomeio como<br />

senso de inferiori<strong>da</strong>de dos brasileiros em<br />

relação ao Outro, talvez pelo processo de<br />

colonização seguido do neo-imperialismo<br />

norte-americano. O Brasil me pareceu,<br />

muitas vezes, duplamente distorcido: pela<br />

ótica de brasileiros que não valorizam<br />

seu próprio lugar de origem, agindo<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

de acordo com o discurso opressor do<br />

colonizador; pela visão de estrangeiros<br />

que desconhecem a cultura brasileira,<br />

repetindo mais uma vez as posturas<br />

colonizatórias diante dessa nação.<br />

Confrontando essas percepções<br />

e experiências ao estudo do teatro,<br />

investiguei trabalhos solos de performers<br />

que discutiam o Brasil. Encontrei<br />

assim, dois pontos: num deles estariam<br />

performers que <strong>parte</strong>m de apropriações e<br />

experiências <strong>da</strong>s manifestações culturais e<br />

performativas brasileiras; no outro ponto,<br />

estariam performers que recebem formações<br />

em teatro basea<strong>da</strong>s nos princípios de<br />

trabalhos de encenadores europeus, mas<br />

que em suas criações discutem a socie<strong>da</strong>de<br />

brasileira. Nesse sentido, o trabalho de<br />

performers como Antônio Nóbrega oferece<br />

elos interessantes com as manifestações<br />

culturais e performativas brasileiras,<br />

baseando-se nelas para produzir sua obra.<br />

Outros performers optam por caminhos<br />

diferenciados e realizam uma exploração <strong>da</strong>s<br />

propostas de praticantes de teatro europeus<br />

como Stanislavski, Grotowski, Brecht, Decroux,<br />

dentre vários. Vale lembrar que geralmente,<br />

nas escolas brasileiras, a formação do ator<br />

é feita através de práticas de atuação cênica<br />

basea<strong>da</strong> nos escritos e trabalhos deixados<br />

por esses encenadores e artistas europeus.<br />

Denise Stoklos pode ser aponta<strong>da</strong> como<br />

uma performer que <strong>parte</strong> de uma formação<br />

na Europa em mímica e utiliza sua técnica<br />

para discutir temáticas como a reali<strong>da</strong>de<br />

política, social e do indivíduo no Brasil.<br />

To<strong>da</strong>s essas diferentes abor<strong>da</strong>gens<br />

<strong>da</strong>s escolas europeias para o ator e <strong>da</strong>s<br />

manifestações performáticas brasileiras,<br />

envolvem “atos de tradução” (TAYLOR,<br />

2000, p. 28). Segundo Helen Gilbert,<br />

“traduzir envolve mais do que simplesmente<br />

substituir um código linguístico por outro”<br />

(GILBERT, 1998, p. 86). Adotando aspectos<br />

universais dessas proposições e a<strong>da</strong>ptando<br />

seus aspectos internacionais, gêneros<br />

híbridos estão sendo criados considerandose<br />

as especifici<strong>da</strong>des culturais inerentes<br />

aos ci<strong>da</strong>dãos brasileiros que perpassam os<br />

“atos de tradução”.<br />

Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 45


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

46<br />

Denise Stoklos<br />

A carreira <strong>da</strong> performer Denise Stoklos<br />

se iniciou em sua juventude, de forma<br />

amadora, em Irati, no Paraná. No final <strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> de setenta, Stoklos mudou-se para<br />

Israel e em segui<strong>da</strong> para Inglaterra. Em<br />

Londres, ela frequentou o curso de mímica<br />

na Desmond Jones School e ao final, criou seu<br />

primeiro solo: Denise Stoklos: One Woman<br />

Show (1980). Seguiram outros solos: Elis<br />

Regina; Um orgasmo adulto escapa do zoológico<br />

(texto de Franca Rame); Habeas Corpus; Mary<br />

Stuart (sob suporte <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Fulbright).<br />

Nesse momento, Stoklos foi convi<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

a estrear to<strong>da</strong>s as suas novas peças no La<br />

Mama Theatre, em Nova York. Criou: Hamlet<br />

em Irati; Casa; 500 anos: um fax de Denise<br />

Stoklos para Cristóvão Colombo; Amanhã<br />

será tarde e depois de amanhã nem existe (Bolsa<br />

Guggheim); Des-Medéia; Elogio; Mais pesado<br />

que o ar - Santos Dumont; Desobediência Civil;<br />

Vozes dissonantes; Louise Borgeouis: faço,<br />

desfaço, re-faço; Calendário <strong>da</strong> Pedra; Olhos<br />

recém-nascidos.<br />

Stoklos estabeleceu para si um modo<br />

de criação através <strong>da</strong> performance solo<br />

na qual acumula as funções de direção,<br />

dramaturgia, atuação, coreografia;<br />

assinando a autoria total de seus trabalhos.<br />

Reúne suas propostas em manifestos<br />

nomeando seu modo de criação como<br />

Teatro Essencial, visando: uma performance<br />

centra<strong>da</strong> no ator; o mínimo de efeitos<br />

de luz, cenários e figurinos possível; a<br />

expressivi<strong>da</strong>de do corpo e <strong>da</strong> voz. Afirma<br />

ain<strong>da</strong> que o texto levado à cena pode ser de<br />

qualquer natureza (dramatúrgica, literária,<br />

jornalística etc), mas deve ser atualizado<br />

pelo performer que apresentará um<br />

testemunho de sua época, de seu tempo.<br />

Num manifesto de 2005, Stoklos questionou<br />

porque a dramaturgia brasileira <strong>da</strong>quele<br />

momento deveria continuar passiva como<br />

estava.<br />

Outro ponto interessante do trabalho<br />

de Stoklos é a apropriação de línguas<br />

estrangeiras que ela realiza. Por muitas<br />

vezes, quando Stoklos se apresentou<br />

no exterior, decorou a pronúncia do<br />

texto na língua do país onde estava<br />

independentemente de ser uma falante<br />

dessa língua. Um exemplo disso seria uma<br />

apresentação de um de seus solos falado em<br />

alemão, na Alemanha. Podemos dizer que<br />

esse modo de apropriação revela esferas<br />

de dominação entre culturas: Stoklos<br />

conservou seu sotaque, seu acento ao<br />

falar uma língua que não lhe era familiar,<br />

em busca de comunicar um determinado<br />

discurso, já que sua língua materna não era<br />

entendi<strong>da</strong>. De acordo com a pesquisadora<br />

Helen Gilbert:<br />

[...] sotaque deve ser usado<br />

subversivamente para produzir<br />

imitação colonial, que, como Bhabha<br />

mostrou: ‘é ao mesmo tempo, um modo<br />

de apropriação e resistência’ que revela<br />

a ambivalência do discurso colonial e<br />

transforma a ´marca´ de sua autori<strong>da</strong>de<br />

(em) uma máscara, uma ridicularização. 3<br />

(GILBERT, 1998, p. 85)<br />

O trabalho de Stoklos se destacou<br />

também no Brasil e em outros países<br />

pelo virtuosismo corporal através <strong>da</strong><br />

mímica. A performer afirma que “defaceta”<br />

os gestos, se apropriando do verbo inglês<br />

“to deface”- desfigurar, deformar. Juntamse<br />

a isso contorções e caretas com o rosto,<br />

entonações e ênfases vocais criando<br />

caricaturas e causando muitas vezes o<br />

riso. Stoklos afirma que o corpo “apaga”<br />

o espaço. Podemos dizer que Stoklos<br />

subverte o caráter “ilusionista” <strong>da</strong> mímica,<br />

convertendo-a em “desilusão” através<br />

<strong>da</strong> tríade “Mime – Mimicry – Mockery” –<br />

“Mímica – Imitação – Ridicularização”.<br />

Resistência: performando a liber<strong>da</strong>de<br />

O início <strong>da</strong> carreira de Stoklos e sua<br />

mu<strong>da</strong>nça para outros países coincidiram<br />

com o período <strong>da</strong> ditadura militar no Brasil.<br />

3 […] accent might be used subversively to produce colonial<br />

mimicry, which, as Bhabha has shown, ‘is at once a mode of<br />

appropriation and resistance’ that reveals the ambivalence<br />

of colonial discourse and turns the ‘insignia of its authority<br />

(into) a mask, a mockery’ (GILBERT, 1998, p. 85).<br />

Elisa Belém


N° 16 | Junho de 2011<br />

Nesse momento, Augusto Boal estava<br />

também desenvolvendo seu trabalho como<br />

criador. Boal foi preso pelo DOPS 4 e solto<br />

após três meses através de uma grande<br />

mobilização de artistas e intelectuais. Após<br />

esse período preso, Boal saiu do Brasil<br />

com a família e permaneceu em “exílio<br />

voluntário” por quinze anos.<br />

Boal baseou-se nos escritos de Paulo<br />

Freire e redigiu a Poética do Oprimido e<br />

também suas propostas do Teatro do Oprimido.<br />

Oferecia ao espectador, chamando-o de<br />

“espec-ator”, a oportuni<strong>da</strong>de de interferir<br />

na ação teatral através do Teatro Fórum.<br />

Boal buscava que o teatro fosse uma<br />

ferramenta, um ensaio para a revolução<br />

social e política e anunciava como meta do<br />

Teatro do Oprimido, conscientizar as pessoas<br />

<strong>da</strong>s dispari<strong>da</strong>des sociais.<br />

Já Stoklos, que afirma realizar um “teatro<br />

político”, deseja também que o espectador<br />

realize transformações em sua vi<strong>da</strong> e na<br />

socie<strong>da</strong>de. A performer afirma, porém, que<br />

atua como um “espelho” para o espectador<br />

e que não quer que ele saia dessa posição<br />

no teatro. Em entrevista de 2005, Stoklos<br />

afirmou que suas peças estavam ca<strong>da</strong> vez<br />

falando menos sobre “instituições” de<br />

poder e mais sobre indivíduos e de como<br />

eles estavam se tornando os “agentes de sua<br />

própria opressão”. Seu trabalho demonstra<br />

também uma luta por revolução, mas num<br />

nível “micro”: ações e atitudes individuais<br />

que reclamem por ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />

É possível reconhecer nos trabalhos<br />

de Boal e Stoklos um “desejo pós-colonial”,<br />

definido pelo teórico Awan Amkpa como<br />

“o ato de imaginar, viver, e negociar uma<br />

reali<strong>da</strong>de social basea<strong>da</strong> na democracia,<br />

pluralismo cultural e justiça social”<br />

(AMKPA, 2004, p. 10). Através de seus<br />

trabalhos, Stoklos e Boal reclamaram por um<br />

estado-nação baseado em igual<strong>da</strong>de social,<br />

racial e de gênero, comprometido em prover<br />

– educação, acesso a eventos culturais,<br />

distribuição de terras e proprie<strong>da</strong>des,<br />

educação, alimentação, assistência de<br />

saúde, segurança e representação política.<br />

4 DoPS – Departamento de ordem Política e Social.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

É preciso pensar que Stoklos desenvolve<br />

seu trabalho como atriz, mas também<br />

como dramaturga ao assinar a autoria de<br />

seus textos. Ora, o número de dramaturgas<br />

com obras publica<strong>da</strong>s no Brasil é bastante<br />

inferior ao de dramaturgos. Esse é um<br />

<strong>da</strong>do que merece ser analisado com mais<br />

aprofun<strong>da</strong>mento em outros ensaios<br />

sobre o assunto. Stoklos não se considera<br />

feminista, mas acha importante discutir<br />

o papel <strong>da</strong> mulher na socie<strong>da</strong>de. Afirma<br />

que seu trabalho <strong>parte</strong> de três condições<br />

relativas ao fato de ser: mulher, mãe e<br />

latino-americana. Ao analisar o texto Des-<br />

Medéia, por exemplo, podemos perceber<br />

claramente a influência dessas condições.<br />

Stoklos se apropria do texto Medéia, de<br />

Eurípedes, mas a personagem principal do<br />

mito é transposta para situações onde há,<br />

de acordo com a autora, uma “tradição <strong>da</strong><br />

matança do Brasil-açougue”. Sendo assim,<br />

na peça de Stoklos, Medéia se recusa a<br />

matar seus filhos, que são suas criações:<br />

Nossa Medéia a brasileira há de encontrar<br />

outro destino. Pois nós brasileiros<br />

queremos uma nova Medéia, uma que<br />

se desfaça do ódio destruidor para uma<br />

reflexão positiva sobre o momento em que<br />

também estamos sem nenhum vínculo:<br />

como ela. Sem vínculo com o sentido<br />

de pátria, sem vínculo com irmãos, com<br />

nossos vizinhos, sem vínculos com nossos<br />

filhos: o nosso futuro, os nossos traços, a<br />

nossa herança. Então, como temos repetido<br />

destruições, nunca é demais abor<strong>da</strong>r o<br />

tema, mas desta vez subvertendo-o. Que<br />

no nosso Brasil não mais se repitam as<br />

Medéias. Não mais assassinemos nossos<br />

filhos diariamente – os nossos sonhos,<br />

nossos frutos (nossa originali<strong>da</strong>de). Nem<br />

nossa pátria – a casa <strong>da</strong> ética (a convivência<br />

dentro de justiça). Nem nossos irmãos<br />

(todo conterrâneo, todo contemporâneo).<br />

Nem nossos rivais (a competição é<br />

sempre base de capitalismo criminoso).<br />

Nem os reis traidores (o acerto há de ser<br />

sem conchavo, mas definitivamente sem<br />

contemporização, mas com mu<strong>da</strong>nça,<br />

para a paz). (STOKLOS, 1995, p. 29-30)<br />

Outra abor<strong>da</strong>gem interessante do<br />

indivíduo no contexto sócio-político<br />

brasileiro encontra-se no texto 500 anos: um<br />

Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 47


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

48<br />

fax de Denise Stoklos para Cristóvão Colombo.<br />

Nessa peça, Colombo é comparado a um<br />

vírus que deve ser eliminado <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

a fim de eliminar também a exploração, a<br />

opressão incorpora<strong>da</strong> pelos brasileiros:<br />

Eliminar o vírus de Colombo do sistema<br />

orgânico em que vivemos. Sim, como nos<br />

anos sessenta, nos anos setenta, como em<br />

qualquer tempo em que não se desistiu de<br />

melhor vi<strong>da</strong> para o corpo para a mente<br />

para a alma. Antiga e futurista aspiração<br />

por não-humilhação, não-colonização.<br />

(STOKLOS, 1992, p. 14)<br />

Esse texto foi escrito como um manifesto,<br />

sem divisão de falas, personagens e<br />

desenvolvimento de ações. Nesta peça há<br />

diversas citações de livros de história do<br />

Brasil realizando-se assim, protestos contra<br />

a dominação norte-americana e a repressão<br />

<strong>da</strong>s revoluções sociais na América Latina.<br />

Hibridismo<br />

A pesquisadora Diana Taylor,<br />

apresentou um artigo 5 na revista The<br />

Drama Review, no verão do ano 2000, sobre<br />

Stoklos a partir <strong>da</strong> apresentação de sua<br />

peça Desobediência Civil, em Nova York.<br />

Após a apresentação, Taylor recolheu<br />

depoimentos de espectadores cujas<br />

impressões foram varia<strong>da</strong>s. Alguns deles<br />

acharam o trabalho “muito europeu” e<br />

outros, “muito latino-americano”. Esses<br />

comentários mostraram uma expectativa<br />

ora por algo exótico, por uma “experiência<br />

fresca e nova” (BROOK, 1993, p. 4), ora<br />

por algo já conhecido. Taylor indica a<br />

necessi<strong>da</strong>de urgente de que teóricos<br />

<strong>da</strong> performance voltem seus interesses<br />

para discutir a recepção intercultural<br />

de espetáculos. Isto porque, segundo<br />

a pesquisadora, há ca<strong>da</strong> vez mais, um<br />

fluxo de apresentações internacionais<br />

de espetáculos nas grandes ci<strong>da</strong>des do<br />

mundo, como <strong>parte</strong> de um contexto de<br />

5 TAYLoR, Diana. The Politics of Decipherability. The Drama<br />

Review. Tisch Scool of the Arts, New York University, vol. 44,<br />

verão, p. 7-29. 2000.<br />

redes econômicas e ideológicas advin<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong> globalização. Para exemplificar, Taylor<br />

cita o exemplo dos grandes musicais como<br />

Cats e Miss Saigon, que ela mesma denomina<br />

como “pré-fabricados”, ocorrendo<br />

simultaneamente em Londres, Nova York,<br />

Ci<strong>da</strong>de do México e podemos incluir<br />

também, São Paulo. Outra categoria de<br />

espetáculos internacionais seriam aqueles<br />

ligados a uma apresentação folclórica,<br />

como estereótipos culturais. Finalmente,<br />

teríamos espetáculos inovadores sendo<br />

apresentados em espaços alternativos,<br />

como seria o caso de Denise Stoklos. Para<br />

Taylor, o trabalho de Stoklos oferece um<br />

modelo de comunicação intercultural: se<br />

apresenta em vários países; tem forma<br />

internacional, já que <strong>parte</strong> de textos<br />

filosóficos e mistura tradições <strong>da</strong> mímica<br />

e outras estéticas ocidentais; encena<br />

um diálogo internacional em tópicos de<br />

significação universal se apropriando de<br />

autores também internacionais ao redigir<br />

o texto, que é pronunciado na língua do<br />

país onde o espetáculo se apresenta; e, não<br />

apresenta um discurso de manipulação e<br />

controle que poderia, equivoca<strong>da</strong>mente,<br />

passar por comunicação. Ao mesmo<br />

tempo, afirma que o trabalho de Stoklos<br />

é um alerta para que se tenha cui<strong>da</strong>do já<br />

que não é fácil atingir a comunicação:<br />

Multiculturalismo, erroneamente a<br />

meu ver, refutou a promessa de<br />

entendimento cultural. Eu proporia<br />

que nós começássemos por assumir que<br />

nós não entendemos, que nós sempre<br />

engajamos em atos de tradução. 6<br />

(TAYLOR, 2000, p. 28)<br />

É notório, conforme mostra essa<br />

pesquisadora que são realizados “atos de<br />

tradução” de uma cultura por outra em um<br />

intercâmbio. Porém, como mostra Bhabha,<br />

“atos de negociação” entre culturas e não<br />

de negação parecem ser mais proveitosos.<br />

Nesse sentido, é preciso ter cui<strong>da</strong>do<br />

6 Multiculturalism, erroneously to my mind, held out the<br />

promise of cultural understanding. I would propose that we<br />

begin with the assumption that we don´t understand, that we<br />

always engage in acts of translation. (TAYLoR, 2000, p. 28)<br />

Elisa Belém


N° 16 | Junho de 2011<br />

também ao tentar analisar identi<strong>da</strong>des<br />

tendo como ponto de parti<strong>da</strong> apenas o fato<br />

de que o latino-americano não é europeu<br />

ou norte-americano.<br />

Taylor analisa o trabalho de Stoklos<br />

levando em consideração a colonização,<br />

características culturais e fatos históricos<br />

relativos ao Brasil, como a ditadura.<br />

Considera que o discurso de Stoklos li<strong>da</strong><br />

com códigos múltiplos apresentando<br />

no palco um jogo de “esconde-esconde”<br />

como uma estratégia latino-americana.<br />

Desde a colonização, os países latinoamericanos<br />

constituíram segundo<br />

Taylor, suas identi<strong>da</strong>des a partir desse<br />

jogo de “esconde-esconde”, na medi<strong>da</strong><br />

em que comportamentos, crenças<br />

e línguas dos colonizadores foram<br />

impostas aos colonizados que, mesmo<br />

assim, procuraram manter seus códigos<br />

culturais. No caso do Brasil, por exemplo,<br />

o sincretismo religioso pode ser analisado<br />

levando-se em consideração esse ponto.<br />

Taylor destaca que essa característica<br />

também esteve presente no período <strong>da</strong><br />

ditadura no Brasil, já que muitos artistas<br />

produziram seus trabalhos apresentando<br />

seus discursos de resistência de maneira<br />

não explícita. Logo, esses artistas<br />

utilizaram estratégias de composição e<br />

criação para que seus discursos não fossem<br />

“decifrados” imediatamente pela censura<br />

ou órgãos repressores. Taylor continua<br />

a desenvolver sua ideia apresentando-a<br />

até mesmo como possível para analisar<br />

questões de gênero e sexuali<strong>da</strong>de no<br />

Brasil. Afirma então, que o aspecto <strong>da</strong><br />

“não-decifração” (indecipherability), é<br />

usado há muito tempo como estratégia<br />

para combater as exigências de que tudo<br />

deve ser transparente para decodificação<br />

imediata. Esse aspecto, segundo Taylor,<br />

permaneceu como uma <strong>da</strong>s características<br />

do trabalho de Stoklos. A meu ver,<br />

Stoklos realiza uma investigação de<br />

particulari<strong>da</strong>des para atingir o universal<br />

ao li<strong>da</strong>r com códigos múltiplos se<br />

apropriando de textos de autores variados<br />

em uma mesma peça, junto a palavras<br />

de sua autoria. Além disso, mistura<br />

humor a reflexões significativas sobre o<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

humano e a vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong>de e não se<br />

fixa na continui<strong>da</strong>de de nenhuma escola<br />

estética. Se essa multiplici<strong>da</strong>de não leva<br />

a uma decodificação imediata, proponho<br />

que o trabalho de Stoklos apresenta uma<br />

estratégia de imersão no ato de decifrar,<br />

ou seja, está dentro <strong>da</strong> decifração (in-<br />

decipherability), ao invés <strong>da</strong> não decifração<br />

(indecipherability).<br />

Destaco que o trabalho de Stoklos<br />

se encontra entre (in-between) o<br />

internacionalismo e o nacionalismo:<br />

Hibridismo trabalha em diferentes<br />

caminhos ao mesmo tempo, de acordo<br />

com deman<strong>da</strong>s culturais, econômicas<br />

e políticas de situações específicas.<br />

Isso envolve um processo de interação<br />

que cria novos espaços sociais para<br />

os quais novos significados são<br />

<strong>da</strong>dos. Essas relações possibilitam<br />

a articulação de experiências de<br />

mu<strong>da</strong>nças em socie<strong>da</strong>des dividi<strong>da</strong>s pela<br />

moderni<strong>da</strong>de e facilitam consequentes<br />

deman<strong>da</strong>s por transformações sociais. 7<br />

(YOUNG, 2003, p. 79)<br />

O hibridismo de aspectos nacionais<br />

e estrangeiros pode ser investigado como<br />

uma tendência no teatro contemporâneo<br />

brasileiro gerando espaços de negociação<br />

entre aspectos internacionais, nacionais<br />

e universais. Hibridismo é uma<br />

marca no trabalho de Stoklos e parece<br />

uma característica a ser explora<strong>da</strong><br />

a fim de instigar mais performers no<br />

desenvolvimento de trabalhos autorais<br />

no Brasil. Stoklos foi considera<strong>da</strong> pela<br />

pesquisadora Leslie Damasceno como uma<br />

“prisioneira <strong>da</strong> esperança”, 8 termo que, a<br />

meu ver, é representativo de seu trabalho.<br />

O estímulo a autoria na criação artística e<br />

performática, como nos mostra o trabalho<br />

7 Hybridity works in different ways at the same time,<br />

according to the cultural, economic, and political demands<br />

of specific situations. It involves process of interaction that<br />

create new social spaces to which new meanings are given.<br />

These relations enable the articulation of experiences<br />

of change in societies splintered by modernity, and they<br />

facilitate consequent demands for social transformation.<br />

(YoUNG, 2003, p. 79)<br />

8 Leslie Damasceno refere ao termo de Cornel West<br />

resultante de um pastiche dirigido a Martin Luther King Jr.<br />

Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 49


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

50<br />

de Stoklos, pode ser um grande caminho<br />

para a produção de obras com caráter de<br />

autentici<strong>da</strong>de e originali<strong>da</strong>de no Brasil. A<br />

autoria e o hibridismo podem contribuir<br />

inclusive, para o discurso latino-americano,<br />

conforme nos mostra Gomez-Peña:<br />

Para articular nossa crise presente como<br />

artistas inter-culturais (cross-cultural<br />

artists), nós precisamos inventar e reinventar<br />

linguagens. Essas linguagens<br />

devem ser sincréticas, diversas<br />

e complexas como as reali<strong>da</strong>des<br />

fragmenta<strong>da</strong>s que estamos tentando<br />

definir. 9 (GOMEZ-PEÑA. In: TAYLOR,<br />

1994, p. 22)<br />

Conclui-se que não há expressão<br />

nem cultura pura. E que, o processo<br />

de descolonização no Brasil precisa<br />

urgentemente mu<strong>da</strong>r as relações<br />

incorpora<strong>da</strong>s de dominação e opressão.<br />

É necessário extinguir os “fantasmas”<br />

<strong>da</strong> escravidão associa<strong>da</strong> facilmente às<br />

condições do negro no Brasil, mas que,<br />

percebemos agora, se encontra nas<br />

mais diversas relações do indivíduo em<br />

socie<strong>da</strong>de. Ao mu<strong>da</strong>r essas relações,<br />

o consumo dos modelos estrangeiros<br />

poderá também ser modificado, criandose<br />

um intercâmbio baseado em igual<strong>da</strong>de<br />

no qual os dois lados – o nacional e o<br />

internacional – possam contribuir para<br />

a experiência um do outro através <strong>da</strong><br />

construção do conhecimento.<br />

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Londres: Routledge, 1998.<br />

BABBAGE, Frances. Augusto Boal. Londres:<br />

Routledge, 2004.<br />

9 In order to articulate our present crisis as cross-cultural<br />

artists, we need to invent and reinvent languages. The<br />

languages have to be a syncretic, diverse and complex as the<br />

fractured realities we are trying to define. (GoMEZ-PEÑA. In:<br />

TAYLoR, 1994, p. 22)<br />

BHABHA, Homi K. The Location of Culture.<br />

Londres: Routledge, 1994.<br />

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Elisa Belém


N° 16 | Junho de 2011<br />

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_______. Entrevista com Marlene Ramirez-<br />

Cancio. mar. 2001. Disponível em: .<br />

Acesso em: 03 jun. 2005.<br />

_______. 500 anos – um fax de Denise Stoklos<br />

para Cristóvão Colombo. São Paulo: Denise<br />

Stoklos Produções, 1993.<br />

_______. Teatro Essencial. São Paulo: Denise<br />

Stoklos Produções, 1993.<br />

TAYLOR, Diana. The Politics of<br />

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Scool of the Arts, New York University,<br />

vol. 44, verão, p. 7-29. 2000.<br />

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Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2005.<br />

YOUNG, Robert J.C.. Postcolonialism – a<br />

Very Short Introduction. Oxford: Oxford<br />

UniversityPress, 2003.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 51


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Enfermeira Bottard [Fátima Lima]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 53


N° 16 | Junho de 2011<br />

ATRAVÉS DoS oBJEToS: SoBRE A<br />

CENoGRAFIA DoS ESPETÁCULoS<br />

Do THÉÂTRE LIBRE<br />

Resumo<br />

O texto trata <strong>da</strong> cenografia do Théâtre Libre. Geralmente<br />

critica<strong>da</strong> pela acumulação em cena de objetos extraídos<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, esta proposta cenográfica consistiria de um<br />

ilusionismo pouco interessante. No entanto, este artigo<br />

tenta demonstrar que havia uma grande deman<strong>da</strong> pela<br />

imaginação do espectador, uma vez que o cenário era<br />

pensado de forma metonímica, em consonância com<br />

várias outras manifestações culturais parisienses do<br />

mesmo período.<br />

Palavras-chave: Théâtre Libre, cenografia, imaginação.<br />

Abstract<br />

This text is about Théâtre Libre's scenography, which was<br />

usually criticized for its accumulation on stage of objects<br />

extracted from the reality. This proposal was considered<br />

characteristic of an uninteresting kind of illusionism.<br />

However, this article shows that there was a great demand<br />

put on the spectator's imagination, since the scenography<br />

was conceived in a metonymic way, directly related with<br />

many others cultural manifestations that happened in<br />

Paris at the time.<br />

Keywords: Théâtre Libre, scenography, imagination.<br />

Guilherme Delgado 1<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 55


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

56<br />

Ao longo do século XX, a<br />

apropriação de objetos<br />

para o campo artístico,<br />

sem construí-los ou<br />

sequer modificá-los,<br />

foi realiza<strong>da</strong> por diversos artistas. Esta<br />

história, em geral, é inaugura<strong>da</strong> com<br />

os ready-mades de Marcel Duchamp, na<br />

déca<strong>da</strong> de 10. No entanto, um pouco mais<br />

de vinte anos antes, a questão dos objetos<br />

apropriados já havia surgido na cenografia<br />

naturalista do Théâtre Libre, sob direção de<br />

André Antoine.<br />

Os cenários naturalistas, por um<br />

lado, foram fun<strong>da</strong>mentais na ruptura<br />

com um modelo antigo de cenografia – o<br />

que utilizava grandes telões pintados em<br />

perspectiva. Ao colocar móveis e outros<br />

objetos, com os atores circulando por to<strong>da</strong><br />

a área, o palco efetivamente se tornou um<br />

espaço tridimensional. Esta ampliação<br />

<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des acabou por permitir<br />

outras explorações, esteticamente muito<br />

diferentes <strong>da</strong>s propostas pelo Théâtre Libre.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, esta transformação é um dos<br />

pilares <strong>da</strong> encenação.<br />

Por outro lado, não se deixou de notar<br />

um exagero, uma extravagância nestes<br />

mesmos cenários. O excesso de objetos<br />

retirados do “mundo real” e acumulados<br />

em cena, muitos sem funcionali<strong>da</strong>de,<br />

são tomados como uma incompreensão,<br />

um mal entendimento <strong>da</strong>s noções de<br />

representação. O fato dos cenários se<br />

proporem a ser realistas, não deman<strong>da</strong>ria<br />

que houvesse, por exemplo, pe<strong>da</strong>ços<br />

de carne pendurados no proscênio de<br />

Les Bouchers, pelo enredo se passar num<br />

açougue. Situações como esta, ou como a<br />

encomen<strong>da</strong> de madeira norueguesa para<br />

o cenário de O Pato Selvagem, tornaramse<br />

anedotas, reforçando uma posição que<br />

parece óbvia.<br />

Esta posição está fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na seguinte<br />

ideia, que pode ser vista neste texto clássico<br />

1 Diretor teatral. Bacharel em Artes Cênicas – Habilitação<br />

em Direção Teatral pela UFRJ. Mestrando do Programa<br />

de Pós-Graduação em Artes Visuais <strong>da</strong> UFRJ (PPGAV/EBA/<br />

UFRJ), sob orientação <strong>da</strong> professora Ângela Leite Lopes.<br />

Bolsista do CNPq.<br />

sobre a semiologia teatral:<br />

No palco não se utilizam apenas trajes<br />

e cenários, (...) são utilizados também<br />

objetos reais. Entretanto, os espectadores<br />

não encaram estas coisas reais como<br />

coisas reais, mas apenas como signos<br />

[…] no palco tanto um vinho autêntico<br />

quanto uma groselha podem representar<br />

um precioso vinho tinto. (BOGATYREV,<br />

2003, p. 73)<br />

Assim, não haveria nenhum ganho<br />

em retirar objetos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e<br />

colocá-los em cena. Seria uma operação<br />

desnecessária e em na<strong>da</strong> justificaria a<br />

insistência do encenador. Este raciocínio<br />

parece muito improvável, assim como<br />

o de que haveria alguma forma de<br />

evolução artística, tornando os cenários<br />

mais “sensatos” no futuro.<br />

Portanto, é necessário encontrar<br />

motivos, justificativas que levassem<br />

Antoine a preferir objetos “reais” a objetos<br />

“artificiais”, em outras palavras, objetos<br />

com existência e utilização fora <strong>da</strong> cena a<br />

objetos construídos ou transformados para<br />

o teatro. Mas para isso, é necessário retomar<br />

e esclarecer algumas questões envolvi<strong>da</strong>s<br />

neste caso.<br />

Théâtre Libre, encenação e<br />

naturalismo<br />

O Théâtre Libre foi fun<strong>da</strong>do em 1887,<br />

em Paris, sob direção de André Antoine, e<br />

existiu até 1893, quando foi anuncia<strong>da</strong> sua<br />

falência. Tratava-se de um grupo teatral<br />

amador, que tinha por missão renovar<br />

a cena francesa através de espetáculos<br />

que rompiam com a maneira como as<br />

peças eram pensa<strong>da</strong>s e imagina<strong>da</strong>s.<br />

Embora to<strong>da</strong>s as rupturas tenham sido<br />

rechea<strong>da</strong>s de polêmicas com opositores,<br />

em especial o crítico Sarcey, e aliados,<br />

principalmente o escritor Zola, em poucos<br />

anos o programa estético <strong>da</strong> companhia<br />

prevaleceu, e hoje está enraizado no<br />

próprio entendimento <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de teatral.<br />

O próprio Antoine representa bem o que<br />

Guilherme Delgado


N° 16 | Junho de 2011<br />

significou esta transição, ao passar de<br />

polemista a organizador de um grupo<br />

teatral profissional, o Théâtre Antoine, e<br />

depois a responsável pelo Théâtre Odéon,<br />

um teatro estatal francês menos influente<br />

apenas que a Comédie Française. Sua carreira<br />

ain<strong>da</strong> prosseguiria como diretor de cinema<br />

e crítico teatral e cinematográfico até 1943,<br />

ano de sua morte.<br />

Estas transformações revolucionárias<br />

para a história do teatro se deram na<br />

escolha e no tratamento aos textos<br />

dramáticos, no trabalho com os atores e<br />

na cenografia, justamente onde a questão<br />

dos objetos surge de forma problemática.<br />

To<strong>da</strong>s estas mu<strong>da</strong>nças em conjunto,<br />

alia<strong>da</strong>s ao combate à “peça bem feita”,<br />

constituem o início <strong>da</strong> encenação. 2<br />

Antes, “como um espelho, o palco tão<br />

somente remetia sua imagem à plateia”<br />

(FOUQUIÈRES apud DORT, 1977, p. 96).<br />

A relação entre público e cena estava prédetermina<strong>da</strong>,<br />

regi<strong>da</strong> por um conjunto de<br />

convenções. O bom cumprimento deste<br />

acordo determinava o sucesso, de crítica<br />

e público. Nas palavras de Fouquières,<br />

“o que [o público] aplaude não é a<br />

reprodução de uma reali<strong>da</strong>de que não lhe<br />

foi <strong>da</strong>do observar diretamente, mas, sim,<br />

o grau de semelhança <strong>da</strong> imagem que lhe<br />

é ofereci<strong>da</strong> com a ideia que se formou do<br />

fato representado” (FOUQUIÈRES apud<br />

DORT, 1977, p. 96).<br />

A ruptura apresenta<strong>da</strong> pela encenação<br />

é a deste acordo tácito. Ruptura esta que<br />

vem acompanha<strong>da</strong> de um deslocamento<br />

do “centro de gravi<strong>da</strong>de” do evento teatral.<br />

Antes, o teatro era<br />

considerado como uma arte, um luxo e<br />

um divertimento, isto é, um rito social<br />

(...) no qual o centro de gravi<strong>da</strong>de está na<br />

sala e não na cena, vide os imensos salões<br />

onde as pessoas se reencontram e se<br />

2 Há uma discussão acerca do pioneirismo <strong>da</strong> encenação, se<br />

caberia aos Meininger, a Antoine ou a Stanislavski. Este debate<br />

parece ser de pouco interesse, não só pela semelhança de<br />

propostas e pela quase contemporanei<strong>da</strong>de dos três grupos,<br />

sendo os Meininger um pouco anteriores. De to<strong>da</strong> forma,<br />

Antoine assistiu espetáculos dos dois e se referiu a ambos de<br />

forma bastante elogiosa.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

pavoneiam. O camarote é a célula social<br />

onde se preparam as intrigas, se discutem<br />

os negócios e se organizam os casamentos.<br />

O espetáculo está sobre o palco, mas na<br />

sala o público dá a si mesmo seu próprio<br />

espetáculo. (BABLET, 1965, p. 7)<br />

Uma <strong>da</strong>s grandes batalhas de Antoine<br />

foi a de reformar a área <strong>da</strong> plateia,<br />

escurecendo-a como havia feito Wagner,<br />

e tornando-a menos semicircular e<br />

mais retangular, para que a atenção dos<br />

espectadores se voltasse exclusivamente<br />

para o que estava em cena.<br />

To<strong>da</strong>s estas transformações foram<br />

sustenta<strong>da</strong>s por um programa de<br />

reformas naturalista. Zola acreditava que<br />

a tarefa do artista era a de se aproximar e<br />

retratar a ver<strong>da</strong>de com uma objetivi<strong>da</strong>de,<br />

com uma neutrali<strong>da</strong>de na linguagem que,<br />

hoje, parece ingênua. É o que se vê em<br />

trechos como:<br />

O Naturalismo é o retorno à natureza; é<br />

essa operação que os cientistas fizeram no<br />

dia que imaginaram partir dos estudos<br />

dos corpos e dos fenômenos, basear-se<br />

na experiência, proceder pela análise.<br />

O Naturalismo, nas letras, é igualmente<br />

o retorno à natureza e ao homem, a<br />

observação direta, a anatomia exata,<br />

a aceitação e a pintura do que existe.<br />

(ZOLA, 1982, p. 92)<br />

Ou seja, tanto Antoine como Zola,<br />

se propunham a serem neutros, meros<br />

veículos de exposição <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, mas<br />

estavam plenamente comprometidos com<br />

um imaginário científico-biológico de sua<br />

época. Como resume Auerbach:<br />

A ativi<strong>da</strong>de do romancista é compara<strong>da</strong><br />

com a ativi<strong>da</strong>de científica, sendo que,<br />

com isto, indubitavelmente se pensa<br />

em métodos biológicos e experimentais.<br />

Encontramo-nos sob a influência dos<br />

primeiros decênios do Positivismo,<br />

durante os quais todos que exerciam<br />

ativi<strong>da</strong>des mentais, na medi<strong>da</strong> em<br />

procuravam métodos novos e conformes<br />

com o seu tempo, tentavam apropriar-se<br />

dos sistemas e processos experimentais.”<br />

(AUERBACH, 2007, p. 446)<br />

Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 57


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

58<br />

Ain<strong>da</strong> assim, é importante ressaltar<br />

que o naturalismo não foi um fechamento,<br />

mas uma abertura de possibili<strong>da</strong>des. Como<br />

diz Dort:<br />

Pretender instalar o real (...) no palco,<br />

não é instituir uma falaciosa e impossível<br />

identi<strong>da</strong>de entre teatro e reali<strong>da</strong>de: é<br />

colocar totalmente em questão to<strong>da</strong> a<br />

ativi<strong>da</strong>de teatral. É romper com teatro<br />

concebido como simples tradução cênica<br />

de uma obra dramática que existiria em si,<br />

segundo regras fixa<strong>da</strong>s uma vez por to<strong>da</strong>s<br />

e independente <strong>da</strong>s condições materiais<br />

de sua representação. É conceber a crítica<br />

não mais como uma expressão antecipa<strong>da</strong><br />

do julgamento do público, mas como<br />

uma reflexão sobre o fato que constitui<br />

a própria representação. É passar <strong>da</strong><br />

imitação ideal <strong>da</strong> natureza, primeiro<br />

man<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de clássica, à criação<br />

de uma nova natureza, através dos<br />

meios específicos <strong>da</strong> expressão teatral.<br />

(DORT, 1977, p. 49)<br />

Duas concepções cenográficas<br />

Coloca<strong>da</strong>s estas questões, é<br />

possível se concentrar especificamente<br />

nas transformações cenográficas que<br />

envolveram o Théâtre Libre. 3<br />

Ao longo do século XIX, não havia<br />

um senso de uni<strong>da</strong>de visual ou conceitual<br />

entre espetáculos e seus cenários. Estes<br />

eram compostos por telões pintados em<br />

perspectiva, fabricados em diversos ateliês.<br />

Em geral, estas oficinas já tinham modelos<br />

de imagem prontos, como o de floresta ou<br />

o de tempestade. Também era comum a<br />

reutilização dos tecidos pintados de uma<br />

peça para outra, com algumas pequenas<br />

modificações (ou até sem estas...). Outra<br />

situação frequente nas produções de<br />

grande porte era que mais de um ateliê<br />

participasse do mesmo cenário, ca<strong>da</strong> um<br />

pintando algumas telas. Certamente, havia<br />

um gosto pelo exagero, e a sofisticação<br />

técnica era bastante aprecia<strong>da</strong>.<br />

3 o Théâtre Libre não possuía um cenógrafo “oficial”, várias<br />

<strong>da</strong>s montagens sequer registravam alguém exercendo esta<br />

função. Por conta disso, a elaboração dos cenários é, em<br />

geral, credita<strong>da</strong> ao próprio Antoine.<br />

Este sistema trazia alguns grandes<br />

problemas, sendo o principal deles a<br />

dificul<strong>da</strong>de de conciliar a perspectiva<br />

<strong>da</strong>s pinturas com os atores. Caso estes<br />

se deslocassem demasia<strong>da</strong>mente,<br />

as proporções entre o corpo deles e<br />

as imagens ficavam ridículas. Isto<br />

dificultava que o espaço cênico fosse<br />

ocupado tridimensionalmente, gerando<br />

uma situação estranha: a profundi<strong>da</strong>de<br />

era sugeri<strong>da</strong> pelo cenário, mas não era<br />

efetua<strong>da</strong> em cena, uma vez que os atores<br />

só ocupavam a frente do palco.<br />

Com o tempo, em peças de temática<br />

contemporânea, começaram a surgir<br />

móveis e outros objetos em cena.<br />

Certamente, isto também foi um problema<br />

para a perspectiva, assim como a estranha<br />

junção entre objetos pintados e objetos<br />

presentes em um mesmo espaço.<br />

Neste momento, poderia se pensar<br />

que os preceitos cenográficos do Théâtre<br />

Libre já teriam surgido, mas não era isto<br />

que estava em questão. O grupo dirigido<br />

por Antoine também acumularia objetos<br />

em cena, mas a partir de um outro<br />

pensamento teatral.<br />

Para Antoine, “... a encenação deveria<br />

tomar no teatro o lugar que as descrições<br />

tomam no romance. A encenação deveria<br />

(...) não somente fornecer à ação sua<br />

justa moldura, mas também determinar<br />

o seu caráter ver<strong>da</strong>deiro e constituir sua<br />

atmosfera.” (ANTOINE, 2001, p. 24-25).<br />

Esta se tornou a função do cenário, que<br />

deixou de ser apenas decorativo. O cenário<br />

é “o meio que determina o movimento<br />

<strong>da</strong>s personagens...” (ANTOINE, 2001, p.<br />

32). E para que pudessem efetivamente se<br />

tornar ambientes era necessário enchê-los<br />

“com todos os objetos familiares com os<br />

quais podem-se servir, mesmo fora <strong>da</strong> ação<br />

projeta<strong>da</strong> (...) os habitantes do lugar. Essa<br />

operação, minuciosamente, amorosamente<br />

conduzi<strong>da</strong>, resultará na vi<strong>da</strong>” (ANTOINE,<br />

2001, p. 35).<br />

“São essas coisas imperceptíveis que<br />

fazem o caráter profundo íntimo do meio<br />

que se quis reconstituir” (ANTOINE,<br />

2001, p. 36). Também neste sentido, a<br />

iluminação e a sonoplastia sofisticaram-<br />

Guilherme Delgado


N° 16 | Junho de 2011<br />

se, tornando ain<strong>da</strong> mais detalha<strong>da</strong> a<br />

atmosfera deseja<strong>da</strong> para a peça.<br />

O importante é notar como a relação<br />

cenografia-espetáculo transformou-se<br />

radicalmente. “Não há mais personagens e<br />

cenários, ou personagens sobre um cenário,<br />

mas uma contínua inter-relação entre<br />

cenário e ator, um perpétuo movimento<br />

dinâmico de um para o outro, uma troca<br />

vital” (BABLET, 1965, p. 113).<br />

Até aqui, a acumulação de objetos em<br />

cena não parece problemática. No entanto,<br />

a questão ain<strong>da</strong> não foi abor<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo<br />

ponto de vista do espectador. Isto é, como<br />

este público olhava para estes espetáculos<br />

e seus cenários. Aqui, há dois caminhos a<br />

serem desenvolvidos: o <strong>da</strong> ilusão e o <strong>da</strong><br />

metonímia.<br />

O espectador e a ilusão<br />

Há um consenso que o naturalismo<br />

foi o ápice de uma determina<strong>da</strong> forma<br />

de relação entre plateia e cena: a do<br />

ilusionismo. O palco italiano, elaborado<br />

arquitetonicamente ao longo de três séculos<br />

é tanto o resultado, quanto o principal<br />

agente desta relação. Como diz Francastel:<br />

Este problema do quadro monumental<br />

apareceu no Renascimento, no momento<br />

do aparecimento de um novo tipo de<br />

imaginação. [...] É neste momento, com<br />

efeito, que se determina uma noção tenaz<br />

de ilusionismo [...] Num certo momento,<br />

o ilusionismo foi portanto uma forma<br />

defini<strong>da</strong> e propriamente teatral. É o<br />

grande papel do teatro na civilização<br />

que morre, o de ter <strong>da</strong>do forma à ilusão.<br />

(FRANCASTEL apud LOPES, 2000, p. 70)<br />

Ao se pensar na escuridão <strong>da</strong> área<br />

dos espectadores, nos ruídos, no trabalho<br />

dos atores, efetivamente nota-se como o<br />

Théâtre Libre empenhou-se em construir<br />

a ilusão mais sofistica<strong>da</strong> e completa para<br />

seu espectador. Mas como li<strong>da</strong>r com os<br />

objetos apropriados? Dizer que uma mesa<br />

ilude como mesa, ou que um pe<strong>da</strong>ço de<br />

carne ilude como pe<strong>da</strong>ço de carne, não faz<br />

muito sentido.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Para abor<strong>da</strong>r este problema, Bablet<br />

<strong>parte</strong> de uma citação de Lessing: “Tudo<br />

que não favorece a ilusão a destrói”<br />

(LESSING apud BABLET, 1965, p. 16).<br />

No entanto, pensar por esta via, leva<br />

inevitavelmente a um paradoxo. O<br />

“excesso de reali<strong>da</strong>de” cenográfica de<br />

Antoine poderia até se tornar justamente<br />

o contrário do pretendido pelo encenador,<br />

isto é, uma estratégia não-ilusionista. A<br />

materiali<strong>da</strong>de, a concretude destes objetos<br />

acabaria por denunciar o que há de artificial<br />

no trabalho dos atores, nos diálogos, nas<br />

situações dramáticas,... Claro que Antoine<br />

queria reduzir esta artificiali<strong>da</strong>de ao<br />

mínimo, mas ain<strong>da</strong> assim seria impossível<br />

extingui-la de todo. O que por fim, leva a<br />

conclusão de que o argumento de Lessing<br />

está condenado à impossibili<strong>da</strong>de. Se só<br />

há o máximo de ilusão, então nunca haverá<br />

ilusão alguma.<br />

Bablet ain<strong>da</strong> propõe uma segun<strong>da</strong><br />

crítica, desta vez contra o ilusionismo,<br />

argumentando que os encenadores<br />

naturalistas “se agarram a uma reprodução<br />

fotográfica, eles impõem ao espectador<br />

uma visão global e definitiva (…)<br />

recusando implicitamente a colaboração<br />

de sua inteligência e imaginação criativa.”<br />

(BABLET, 1975, p. 20)<br />

Este é o ponto central: ao criar uma<br />

analogia entre ilusão e fotografia, afirmando<br />

que o olhar que ambas deman<strong>da</strong>m é passivo,<br />

o crítico francês exclui a imaginação do<br />

Théâtre Libre. 4 Para desfazer esta posição, é<br />

necessário esmiuçar esta relação entre cena,<br />

foto e o realismo deste período.<br />

Outra quali<strong>da</strong>de de olhar: a metonímia<br />

O que fun<strong>da</strong>menta esta analogia<br />

entre cenário e fotografia? A princípio,<br />

há dois caminhos.<br />

4 Esta posição é a mais frequente em Bablet. No entanto, há<br />

um momento em que o autor argumenta em outro sentido: “Há<br />

uma imaginação ilusionista: a partir do cenário real limitado<br />

ao espaço <strong>da</strong> cena, o espectador imagina todo o universo que<br />

o cerca e o lugar definido adquire uma densi<strong>da</strong>de maior de<br />

reali<strong>da</strong>de”. (BABLET, 1965, p. 126) Esta ideia está mais próxima<br />

do que este trabalho defende.<br />

Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 59


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

60<br />

Primeiro, pela forma como ambos<br />

se constroem. A cenografia do Théâtre<br />

Libre acumula objetos em cena, enquanto<br />

a fotografia fixa imagens a partir de um<br />

processo físico-químico. De fato, nos dois<br />

casos, trata-se de uma apropriação, de uma<br />

captura de algo que fazia <strong>parte</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

e agora está destacado, enquadrado.<br />

Ou então, a analogia pode ser pensa<strong>da</strong><br />

pela maneira como o espectador se relaciona,<br />

como percebe e compreende, a visuali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> cena e <strong>da</strong> imagem fotográfica.<br />

Em A Câmera Clara, Barthes afirma<br />

que a foto “sempre traz consigo seu<br />

referente (…) estão colados um ao outro”<br />

(BARTHES, 1984, p. 15). Desta forma,<br />

é impossível não atentar para o que foi<br />

fotografado, a imagem ganha o estatuto<br />

de “um certificado de presença.”<br />

(BARTHES, 1984, p. 129). Algo que a<br />

pintura nunca poderia obter. No entanto,<br />

também está aí o limite <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de: “a<br />

fotografia não rememora o passado (…) O<br />

efeito que ela produz não é o de restituir o<br />

que é abolido (pelo tempo, pela distância),<br />

mas de atestar o que de fato existiu.”<br />

(BARTHES, 1984, p. 123). Tampouco a<br />

fotografia convi<strong>da</strong>ria para a apreciação<br />

estética, e Barthes tem pouco interesse<br />

em qualificá-la como arte. Para o autor,<br />

o fun<strong>da</strong>mental é a possibili<strong>da</strong>de que esse<br />

“atestado” tem de abalar, sensibilizar o<br />

espectador, o que ele chama de punctum.<br />

Por fim, não se pode tomar “de modo<br />

algum a foto como uma 'cópia' do real –<br />

mas como uma emanação do real passado”<br />

(BARTHES, 1984, p. 132).<br />

Assim, a fotografia não é uma metáfora,<br />

mas uma superfície capaz de reter um<br />

momento e, posteriormente, convi<strong>da</strong>r seu<br />

espectador a imaginar, ficcionalizar. O<br />

próprio Barthes especula a partir <strong>da</strong> foto de<br />

uma criança: “é possível que Ernest ain<strong>da</strong><br />

viva hoje em dia (mas onde? Como? Que<br />

romance!)” (BARTHES, 1984, p. 125).<br />

Embora haja no próprio livro uma<br />

analogia entre as fotos e o teatro arcaico,<br />

o possível encontro entre a fotografia e o<br />

Théâtre Libre se dá através dos “efeitos de<br />

real”, outro conceito do mesmo autor.<br />

Em Efeito de Real, Barthes se<br />

dedica a pensar o que ele nomeia como<br />

“pormenores concretos”. Trata-se de<br />

pequenos trechos, presentes nas obras<br />

realistas, aparentemente inúteis para sua<br />

estrutura – seriam descrições. O que se<br />

<strong>da</strong>ria em ca<strong>da</strong> “pormenor concreto” seria<br />

uma “colusão direta entre o significante<br />

e o referente” (BARTHES, 2004, p. 189),<br />

expulsando o significado. Ou seja, a<br />

descrição se aproxima do real a ponto de<br />

não significar, apenas demonstrar. Isto<br />

produziria um “efeito de real”.<br />

Aqui, está o ponto de encontro: Antoine<br />

quer que seus cenários sejam como as<br />

descrições dos romances realistas do século<br />

XIX. Barthes mostra que estas descrições<br />

estão repletas de efeitos de real. E estes são<br />

análogos às fotografias, na sua capaci<strong>da</strong>de<br />

de evocar a reali<strong>da</strong>de.<br />

Dado isto, Shawn Kairschner articula<br />

o trabalho do Théâtre Libre com estas<br />

questões:<br />

Olhar objetos 'fotograficamente' permite<br />

ao espectador ver o 'real' escondido<br />

no interior de uma grande superfície<br />

(fotográfica) ordena<strong>da</strong>. Paisagens<br />

naturalistas convi<strong>da</strong>m o espectador a<br />

desenvolver um olhar clínico, um modo<br />

de percepção 'fotográfico' que desenvolve<br />

a singular habili<strong>da</strong>de de não olhar para<br />

mas através dos corpos atuantes que estão<br />

presentes. (KAIRSCHNER , 2003, p. 15)<br />

É justamente este olhar através que é<br />

exigido pelos cenários naturalistas. Não se<br />

trata de vê-los como cópias <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de,<br />

mas como estímulos para que o espectador<br />

imagine um espaço “real”.<br />

Mais do reproduzir um açougue,<br />

a carne pendura<strong>da</strong> convi<strong>da</strong> o olhar <strong>da</strong><br />

plateia a atravessar a cena e enxergar<br />

um açougue. Os objetos retirados <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de possuem, portanto, este apelo,<br />

esta chama<strong>da</strong> que os telões pintados e os<br />

adereços construídos não possuem, ao<br />

menos não na mesma intensi<strong>da</strong>de.<br />

Por isso, a figura de linguagem que<br />

melhor demonstraria estas escolhas<br />

cenográficas não é a metáfora, mas a<br />

Guilherme Delgado


N° 16 | Junho de 2011<br />

metonímia. A famosa expressão “fatias<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>”, usa<strong>da</strong> pelos naturalistas<br />

para defender suas obras, pode ser<br />

compreendi<strong>da</strong> neste sentido, mais como<br />

um jogo e menos como uma ingenui<strong>da</strong>de<br />

ou um projeto utópico.<br />

Antoine e outras atrações parisienses<br />

É um ponto delicado pensar que<br />

Antoine não utilizou o argumento<br />

desenvolvido acima em nenhuma de suas<br />

diversas considerações sobre sua obra.<br />

Seu pensamento está sempre no sentido<br />

de uma aproximação sem restrições entre<br />

arte e reali<strong>da</strong>de, e a criação de uma ilusão<br />

perfeita. Questões que atualmente soam<br />

ingênuas, como já foi explicitado.<br />

Entretanto, isto não invali<strong>da</strong> a<br />

discussão sobre este outro olhar. A<br />

hipótese em questão é a de que esta relação<br />

metonímica estava presente em diversas<br />

atrações contemporâneas ao Théâtre Libre,<br />

de que fazia <strong>parte</strong> do gosto do público e<br />

dos artistas.<br />

Assim, os cenários naturalistas não<br />

seriam uma “invenção” do encenador<br />

francês, mas uma adequação do espaço<br />

cênico à sensibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> época. As formas<br />

anteriores de cenografia não despertariam<br />

no público a sensação de reali<strong>da</strong>de que<br />

vários outros espetáculos não-teatrais já<br />

produziam. E isso Antoine sabia e reiterava<br />

sempre que tinha a oportuni<strong>da</strong>de. 5<br />

Para reforçar o que foi dito, serão<br />

brevemente abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s duas outras<br />

formas espetaculares que atraíam as<br />

5 Certamente Antoine estava a par <strong>da</strong>s transformações<br />

culturais parisienses. Por exemplo, para a divulgação dos<br />

espetáculos, o Théâtre Libre se valia de um conjunto de<br />

estratégias, incluindo os cartazes, que se hoje parecem óbvias,<br />

na época eram uma forma nova e impactante de publici<strong>da</strong>de.<br />

Como assinala Sally Charnow: “... Antoine conscientemente se<br />

valeu de técnicas de publici<strong>da</strong>de e mercado do mundo burguês<br />

do comércio. Mais do que extinguir o potencial artístico, o<br />

mercado foi uma condição necessária para a emergência <strong>da</strong><br />

moderni<strong>da</strong>de no teatro. Instituições culturais modernistas,<br />

como o Théâtre Libre, estavam aptas para interagir com seu<br />

público através práticas inovadoras de marketing como a<br />

propagan<strong>da</strong>, a subscrição, e a autopromoção na imprensa.”<br />

(CHARNoW, 2000. p. 62)<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

massas parisienses no fim do século<br />

XIX. Em ambas, assim como no Théatre<br />

Libre, está explícito o diagnóstico de<br />

Schwartz: “a reali<strong>da</strong>de era transforma<strong>da</strong><br />

em espetáculo (…) ao mesmo tempo em<br />

que os espetáculos eram obsessivamente<br />

realistas.” (SCHWARTZ, 2004, p. 357)<br />

O necrotério, que contava com uma<br />

sala de exposição, onde os cadáveres<br />

eram mantidos “vestidos e sentados em<br />

cadeiras” (SCHWARTZ, 2004, p. 343), foi<br />

muitas vezes aclamado como um “teatro<br />

público” (SCHWARTZ, 2004, p. 339). A<br />

entra<strong>da</strong> era gratuita e atraía uma multidão<br />

de curiosos. Quanto mais terrível fosse o<br />

estado do corpo exposto, ou mais horrível<br />

a vítima (crianças, por exemplo), maior era<br />

o apelo popular. Os cadáveres poderiam<br />

até sofrer técnicas de conservação para que<br />

o espetáculo fosse mais longevo.<br />

No entanto, “a grande maioria<br />

dos visitantes não ia lá pensando que<br />

poderia de fato reconhecer os cadáveres”<br />

(SCHWARTZ, 2004, p. 340), mas como<br />

uma forma de entretenimento: tratavase<br />

de imaginar em que circunstâncias<br />

o crime poderia ter acontecido, “uma<br />

invisível causa psicológica (uma narrativa<br />

de falência moral) para o efeito somático<br />

totalmente visível inscrito no corpo”<br />

(KAIRSCHNER, 2003, p. 16). Sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

a imprensa era a principal fomentadora<br />

destas narrativas e <strong>da</strong> excitação <strong>da</strong>s massas<br />

pelo crime cometido.<br />

Percebe-se aí, um análogo do romance<br />

policial, onde o detetive desven<strong>da</strong>,<br />

mas para isso necessita construir<br />

imaginariamente primeiro, o crime<br />

através <strong>da</strong>s evidências materiais com as<br />

quais tem contato. E, também, a mesma<br />

quali<strong>da</strong>de de atenção e o mesmo olhar<br />

pedido pela cena do Théâtre Libre. 6<br />

Este 'trabalho fotográfico', este processo<br />

de mover-se <strong>da</strong> superfície para o<br />

subsolo onde a ver<strong>da</strong>de está localiza<strong>da</strong> é<br />

precisamente o trabalho naturalista. (…)<br />

6 Uma ressalva: certamente o olhar para os cadáveres é um<br />

voyeurismo, mas não se discutirá neste artigo em que medi<strong>da</strong><br />

o olhar para a cena naturalista também o era.<br />

Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 61


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

62<br />

narrativas de depravação funcionavam<br />

como ver<strong>da</strong>des somáticas 'interiores'<br />

e 'ocultas' que a percepção fotográfica<br />

tão habilmente revela (KAIRSCHNER,<br />

2003, p. 17)<br />

Outra forma espetacular<br />

contemporânea é o museu de cera.<br />

Presentes em diversas capitais europeias,<br />

estes museus apresentavam manequins<br />

de celebri<strong>da</strong>des, figuras políticas ou<br />

reconstituições de acontecimentos,<br />

criminais ou históricos. Estes bonecos de<br />

cera procuravam ser feitos com o máximo<br />

de verossimilhança possível, mas isto não<br />

bastava:<br />

acessórios, ornamentos e dispositivos<br />

que criavam um efeito de moldura para<br />

os quadros funcionavam em conjunto<br />

para representar o real. O museu<br />

por exemplo utilizava acessórios<br />

autênticos. […] Os quadros criavam<br />

cenários reconhecíveis, taxonômicos<br />

e apropriados para as figuras –<br />

mininarrativas na forma de um olho<br />

mágico dirigido à vi<strong>da</strong> parisiense.<br />

(SCHWARTZ, 2004, p. 345-346)<br />

Naturalmente, nem to<strong>da</strong>s as cenas<br />

possuíam objetos “reais”, mas o importante<br />

é notar que novamente a mesma relação<br />

metonímica está enfatiza<strong>da</strong>. Sandberg, ao<br />

comentar uma variação do museu de cera<br />

– o museu folclórico, que “culminou no<br />

projeto heróico de mover construções reais<br />

e amostras de seus ambientes originais<br />

para os museus ao ar livre” (SANDBERG,<br />

2004, p. 368) – nota a seguinte relação entre<br />

estes adereços e os manequins:<br />

Se o objeto do museu do folclore é<br />

investido de realismo e 'vi<strong>da</strong>' acentuados<br />

pela proximi<strong>da</strong>de de uma figura humana,<br />

também é preciso reconhecer que o corpo<br />

em exibição por sua vez alcança uma<br />

aparência similar à vi<strong>da</strong> por estar cercado<br />

pelos mesmos objetos, aparentemente<br />

dispostos para o seu uso. Sem os acessórios<br />

para ativar a imaginação do espectador, o<br />

manequim permanece um boneco; com<br />

eles a figura simula ação e consciência.<br />

(SANDBERG, 2004, p. 373)<br />

Conclusão<br />

O Théâtre Libre, ao longo de seu breve<br />

período de existência, realizou seu objetivo<br />

de revolucionar a cena francesa. O fim<br />

<strong>da</strong> “peça bem feita”, o deslocamento do<br />

centro de interesse <strong>da</strong> plateia para o palco,<br />

a enxurra<strong>da</strong> de novos autores, a crítica aos<br />

excessos <strong>da</strong> forma anterior de representar...<br />

tudo isto constituiu a base <strong>da</strong> encenação.<br />

Dentre as inúmeras possibili<strong>da</strong>des recémabertas,<br />

o Théâtre Libre sempre optou pelas<br />

naturalistas, mas mesmo os seus críticos mais<br />

ferrenhos se valeram <strong>da</strong>s transformações<br />

provoca<strong>da</strong>s pela companhia.<br />

No que diz respeito aos aspectos visuais,<br />

articularam-se duas relações diferentes entre<br />

o olhar do espectador, o cenário e a cena. A<br />

ilusionista, com seus limites e paradoxos,<br />

dá conta de quase to<strong>da</strong> a proposta cênica de<br />

Antoine, ao mesmo tempo em que era um<br />

aperfeiçoamento do que o teatro já vinha<br />

elaborando nas déca<strong>da</strong>s anteriores (e até<br />

séculos, levando em conta a criação do palco<br />

italiano). E a <strong>da</strong> metonímia, onde a extração<br />

de determinados objetos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de,<br />

propunha ao espectador uma outra<br />

imaginação – “a de testemunha privilegia<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> reconstituição e do renascimento de um<br />

evento passado” (SARRAZAC, 1999, p. 13).<br />

Este segun<strong>da</strong> visão estava profun<strong>da</strong>mente<br />

conecta<strong>da</strong> com outros eventos de grande<br />

interesse <strong>da</strong> época, como a visita ao<br />

necrotério, ao museu de cera, a leitura de<br />

romances policiais e a fotografia.<br />

Não é o interesse deste trabalho<br />

tratar o ilusionismo e o olhar metonímico<br />

como relações antitéticas. A relação entre<br />

espectador e cena é complexa, envolve<br />

vários fatores, e a simplificação de qualquer<br />

proposta estética a um tipo de olhar pode<br />

ser muito reducionista. Por outro lado,<br />

não se pretende afirmar que estas duas<br />

maneiras de ver a cena convivem na mais<br />

perfeita harmonia, se assim fosse, não<br />

haveria tantas críticas à apropriação de<br />

objetos realiza<strong>da</strong> por Antoine.<br />

Ain<strong>da</strong> é necessário ressaltar que<br />

esta apropriação, um procedimento que<br />

será utilizado ao longo do século XX por<br />

Guilherme Delgado


N° 16 | Junho de 2011<br />

artistas diferentes como Duchamp, Kantor<br />

e Beuys, dentre outros, não deman<strong>da</strong><br />

necessariamente este olhar metonímico,<br />

reconstituidor. Seria fun<strong>da</strong>mental estu<strong>da</strong>r<br />

o contexto de ca<strong>da</strong> um deles, e a maneira<br />

como este procedimento se articula com o<br />

conjunto de suas obras, para traçar quais<br />

outras relações seriam possíveis. Como não<br />

levar em conta a provocação ao se pensar<br />

em Duchamp, por exemplo.<br />

De to<strong>da</strong> a forma, como foi mencionado<br />

no início deste trabalho, a primeira vez que<br />

esta apropriação se tornou efetivamente<br />

uma escolha artística, e uma polêmica<br />

entre os críticos, foi com os cenários de<br />

Antoine. Ao mesmo tempo, a compreensão<br />

destas relações visuais e seus apelos para<br />

a imaginação são fun<strong>da</strong>mentais para<br />

um entendimento mais profundo do<br />

projeto artístico do Théâtre Libre.<br />

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Perspectiva, 1982.<br />

Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 63


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Bernadette [Du<strong>da</strong> Schappo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Júlia oliveira.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 65


N° 16 | Junho de 2011<br />

ANJo NEGRo: SEXo E RAçA No<br />

TEATRo BRASILEIRo 1<br />

Resumo<br />

Com este texto proponho uma reflexão sobre o<br />

impedimento de um ator negro interpretar o personagem<br />

principal <strong>da</strong> peça Anjo Negro, de Nelson Rodrigues, por<br />

ocasião de sua estreia no Rio de Janeiro em 1948. Para<br />

tanto, analiso a prática comum dos espetáculos teatrais<br />

<strong>da</strong> época em pintar atores brancos de preto (blackface)<br />

para representar personagens negros e o tabu <strong>da</strong> relação<br />

erótico-amorosa entre um homem negro e uma mulher<br />

branca trata<strong>da</strong> de forma magistral pelo autor.<br />

Palavras-chave: Teatro Brasileiro, Anjo Negro, Blackface.<br />

Abstract<br />

With this text I propose a reflection on the circumstances<br />

of a black actor being barred from interpreting the main<br />

character of Nelson Rodrigues’ play Anjo Negro, on the<br />

occasion of its first performance in Rio de Janeiro in 1948.<br />

To do so, I analyze the theatrical practice common in those<br />

<strong>da</strong>ys that white actors represented colored characters<br />

with a black facial makeup (blackface) and the taboo of<br />

an erotic relationship between a black man and a white<br />

woman treated in a masterly way by author’s playtext..<br />

Keywords: Brazilian Theatre, Anjo Negro, Blackface.<br />

Mara Lucia Leal 2<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 67


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

68<br />

Um homem<br />

Meu Deus do Céu,<br />

tenho medo de preto!<br />

Tenho medo, tenho medo! 3<br />

Abdias do Nascimento,<br />

negro, ator, artista<br />

plástico, militante <strong>da</strong><br />

causa negra e fun<strong>da</strong>dor<br />

do Teatro Experimental<br />

do Negro (TEN) teve a ideia de criar<br />

o grupo depois de assistir, perplexo, a<br />

encenação de O Imperador Jones, de Eugene<br />

O’Neill, em viagem a Lima, Peru, na qual o<br />

personagem título, negro, era representado<br />

por um ator branco pintado.<br />

Era 1941 e, tanto no teatro como na<br />

socie<strong>da</strong>de, tentava-se apagar a existência<br />

física <strong>da</strong> cor negra, ou então, apresentála<br />

na ficção do piche. Por isso, desde o<br />

seu surgimento em 1944, o TEN não era<br />

só um experimento teatral, pois além<br />

<strong>da</strong>s montagens de espetáculos, o TEN<br />

promoveu cursos de alfabetização de<br />

adultos, o 1. Congresso do Negro Brasileiro,<br />

o Conselho Nacional de Mulheres Negras, o<br />

debate sobre a regulamentação do trabalho<br />

doméstico, concursos de beleza negra,<br />

entre outros.<br />

Apesar do espanto de Abdias, pintar<br />

atores brancos de preto era uma prática<br />

comum no teatro ocidental até meados<br />

do século XX. Para a naturalização<br />

dessa atitude <strong>da</strong>va-se muitas respostas,<br />

a principal era a de que não existiriam<br />

atores negros capacitados para o palco.<br />

Assim, infelizmente, se fazia necessário<br />

que um ator capacitado, ou seja, branco,<br />

representasse esses papéis.<br />

1 Uma primeira versão desse texto foi apresenta<strong>da</strong> no<br />

ENECULT (2008) e na ABRALIC (2008).<br />

2 Atriz/Performer forma<strong>da</strong> pelo CAC/ECA/USP. Professora<br />

do Curso de Teatro <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Uberlândia.<br />

Mestre em Artes pela Unicamp com pesquisa sobre o teatro<br />

de George Tabori. Doutoran<strong>da</strong> pelo PPGAC/UFBA com a<br />

pesquisa Memória e(m) Performance: material biográfico na<br />

composição <strong>da</strong> cena.<br />

3 To<strong>da</strong>s as falas <strong>da</strong>s epígrafes pertencem aos personagens <strong>da</strong><br />

peça Anjo Negro, de Nelson Rodrigues (Ver em RoDRIGUES,<br />

1981, p. 121-192).<br />

Entretanto, essa teoria cai por terra<br />

quando há um ator negro capacitado para<br />

o papel e este é impedido de representálo.<br />

Depois de uma luta imensa de Nelson<br />

Rodrigues para passar a peça Anjo Negro pela<br />

censura brasileira, a “comissão cultural” do<br />

Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde a<br />

peça iria estrear, proibiu que o personagem<br />

principal, Ismael, fosse representado por<br />

um ator negro. Ao exigir uma explicação,<br />

Nelson Rodrigues ouviu o seguinte: “Se<br />

fosse um espetáculo folclórico... E há cenas<br />

entre o crioulo e a loura. Olhe – que tal um<br />

negro pintado?” (ver em CASTRO, 2003,<br />

p. 203). Abdias do Nascimento, grande<br />

inspirador do projeto de Nelson Rodrigues<br />

em escrever sobre o problema racial no<br />

Brasil e para quem ele escreveu Ismael, foi<br />

impedido de fazer o papel.<br />

Eu entrei em contato com Anjo Negro e<br />

os desdobramentos racistas de sua estreia<br />

quando tinha recém chegado a Salvador<br />

e buscava me inserir na cena local. Os<br />

estudos que fiz para encarnar o papel de<br />

Virginia, a mulher subjuga<strong>da</strong> pela violência<br />

sexual e pelo desejo reprimido, que mata<br />

os filhos negros como meio de salvação, me<br />

aju<strong>da</strong>ram a refletir sobre as relações raciais<br />

que vivia no dia-a-dia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Ao estu<strong>da</strong>r a peça de Nelson Rodrigues,<br />

classifica<strong>da</strong> como tragédia pelo autor, e<br />

o período em que foi escrita, me chamou<br />

muito a atenção o ato discriminatório do<br />

blackface. Assim, sem me furtar <strong>da</strong>s relações<br />

estreitas entre a arte e os condicionamentos<br />

históricos e sociais que a cercam, no caso em<br />

questão, pretendo focar nos preconceitos<br />

<strong>da</strong> época, construídos historicamente,<br />

que geraram tal procedimento artístico, a<br />

despeito de to<strong>da</strong> uma corrente de artistas,<br />

como o próprio Abdias do Nascimento<br />

e Nelson Rodrigues, que lutava ativa e<br />

artisticamente contra essas práticas. A<br />

chave de minha interpretação vem do<br />

próprio texto: o tabu <strong>da</strong> relação eróticoamorosa<br />

entre um homem negro e uma<br />

mulher branca trata<strong>da</strong> de forma magistral<br />

por Nelson Rodrigues.<br />

Sempre o sonho dele foi violar uma<br />

branca.<br />

Mara Lucia Leal


N° 16 | Junho de 2011<br />

Um personagem<br />

Ismael, negro, médico. Segundo<br />

seu irmão Elias, Ismael sempre quis ser<br />

branco: “Desde menino tem vergonha;<br />

vergonha, não, tem ódio <strong>da</strong> própria cor”.<br />

Ismael nega suas origens para tentar ser<br />

aceito no mundo branco; ao ser rechaçado<br />

subjuga, através do poder sexual, uma<br />

mulher branca – Virgínia – com quem tem<br />

três filhos. A tentativa de branqueamento<br />

de sua prole é duplamente frustra<strong>da</strong>: seus<br />

filhos são negros como ele e, por isso,<br />

assassinados pela mãe que não suporta ver<br />

em sua descendência o reflexo do marido.<br />

Frantz Fanon, no mesmo período em<br />

que estreava Anjo Negro 4 , discorria sobre<br />

o perigo de dois caminhos antagônicos<br />

que o negro tem a sua frente, na tentativa<br />

de resolver esse problema. Ao aceitar<br />

as diferenças impostas pela socie<strong>da</strong>de<br />

branca e colonizadora, há dois caminhos:<br />

ambicionar ser branco, alienando-se,<br />

para ser aceito pela socie<strong>da</strong>de ou exaltar<br />

sua negritude. Em sua opinião, os dois<br />

caminhos estão fa<strong>da</strong>dos ao fracasso.<br />

Sobre o primeiro, não há necessi<strong>da</strong>de de<br />

argumentos; sobre o segundo, a questão<br />

é complexa: a valorização <strong>da</strong> negritude se<br />

dá, muitas vezes, pela exaltação de valores<br />

que a cultura branca impôs sobre ela, como<br />

o excesso sexual e sensual, a brutali<strong>da</strong>de<br />

física, etc. Sobre isso Fanon conclui:<br />

Eis na ver<strong>da</strong>de o que se passa: como<br />

percebo que o preto é o símbolo do<br />

pecado, começo a odiá-lo. Porém constato<br />

que sou negro. Para escapar ao conflito,<br />

duas soluções. Ou peço aos outros que<br />

não prestem atenção à minha cor, ou, ao<br />

contrário, quero que eles a percebam.<br />

Tento, então, valorizar o que é ruim – visto<br />

que, irrefleti<strong>da</strong>mente, admiti que o negro<br />

é a cor do Mal. Para pôr um termo a esta<br />

situação neurótica, na qual sou obrigado a<br />

escolher uma solução insana, conflitante,<br />

alimenta<strong>da</strong> por fantasmagorias,<br />

antagônica, desumana enfim, - só tenho<br />

uma solução: passar por cima deste<br />

4 Fanon lançou Peau Noire, Masques Blancs em 1952, na<br />

França; Nelson Rodrigues estreou com Anjo Negro em 1948,<br />

no Teatro Felix, no Rio de Janeiro com direção de Ziembinski.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

drama absurdo que os outros montaram<br />

ao redor de mim, afastar estes dois termos<br />

que são igualmente inaceitáveis e, através<br />

de uma particulari<strong>da</strong>de humana, tender<br />

ao universal (FANON, 2008, p.166).<br />

Rodrigues afirma que escreveu Anjo<br />

Negro porque achava um absurdo o negro<br />

ser representando no teatro apenas como o<br />

“moleque gaiato” <strong>da</strong>s comédias de costumes<br />

ou por tipos folclorizados. Por isso, cria um<br />

personagem – Ismael – de classe média,<br />

inteligente, mas também com paixões e<br />

ódios, ou seja, “um homem, com digni<strong>da</strong>de<br />

dramática”, enre<strong>da</strong>do em situações<br />

proféticas e míticas (Ver em CASTRO, 2003,<br />

p. 203). Mas Ismael, tragicamente, esta<br />

envolvido na dupla situação neurótica a<br />

qual descreve Fanon: rechaça suas origens<br />

e exerce violência sexual para pertencer ao<br />

mundo dos brancos.<br />

Nelson Rodrigues, em várias ocasiões,<br />

afirma ter escrito o personagem para seu<br />

amigo Abdias representar, pois, segundo<br />

ele, era o “único negro do Brasil”. Em uma<br />

de suas crônicas sobre a vin<strong>da</strong> de Sartre<br />

ao Brasil, nas quais Nelson comenta que o<br />

filósofo sempre perguntava aos presentes<br />

– “Onde estão os Negros?”, numa irônica<br />

cutuca<strong>da</strong> ao fato de a burguesia carioca ser<br />

composta apenas por brancos, o cronista<br />

emen<strong>da</strong>: “Alguém poderia dizer a Sartre,<br />

sem violentar a ver<strong>da</strong>de: – ‘Temos aí<br />

um negro, um único negro, o Abdias do<br />

Nascimento’. E, de fato, que eu saiba, é o<br />

nosso único negro confesso e radiante de o<br />

ser. A cor, em Abdias, é uma perene tensão<br />

dionisíaca” (RODRIGUES, 2003, p. 51).<br />

Mas, a despeito de trazer o personagem<br />

negro para outro patamar <strong>da</strong> dramaturgia<br />

brasileira, Rodrigues talvez não tenha<br />

previsto que estava tratando de um tema<br />

tabu: o amor erótico inter-racial entre um<br />

homem negro e uma mulher branca.<br />

A peça estreou em 1948, com Ismael<br />

pintado de graxa, representado pelo ator<br />

Orlando Guy, Virgínia pela atriz Maria<br />

Della Costa e sob direção de um Ziembinski<br />

que, em 1943, havia revolucionado o teatro<br />

brasileiro com sua encenação de Vestido<br />

de Noiva, mas que não ousou mais essa<br />

Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 69


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

70<br />

revolução teatral, votando também pela<br />

cara pinta<strong>da</strong>. Abdias foi uma <strong>da</strong>s pessoas<br />

que convenceu Nelson de que seria melhor<br />

encená-la assim do que não ir para os<br />

palcos. De fato, parece que Nelson foi o<br />

único a se incomo<strong>da</strong>r, pois nenhum jornal<br />

do período questionou a ausência de um<br />

ator negro no palco.<br />

Depois <strong>da</strong> estreia, entre a crítica<br />

calorosamente dividi<strong>da</strong> havia os<br />

entusiastas como Menotti del Picchia e<br />

os detratores que chegaram a listar todos<br />

os crimes cometidos pelos personagens:<br />

“homicídios com agravantes, indução<br />

a lascívia, três infanticídios, adultério,<br />

corrupção de menor, lesões corporais<br />

graves, estupro e cárcere privado”. Mas<br />

o problema central <strong>da</strong> peça não seria o<br />

relacionamento entre um homem negro<br />

e uma mulher branca, mas outro: “Sexo,<br />

sexo, sexo, é só nisso que ele pensa?”,<br />

escrevera um crítico <strong>da</strong> época (ver em<br />

CASTRO, 2003, p. 202).<br />

Blackface<br />

Já me esqueci dos outros homens,<br />

já sinto como se no mundo só existisse<br />

uma fisionomia<br />

– a sua – todos os homens só tivessem<br />

um rosto – o seu.<br />

A prática de pintar atores brancos de<br />

preto foi muito recorrente nos Estados<br />

Unidos durante mais de um século nos<br />

Minstrel Shows. O auge desses espetáculos<br />

ocorreu entre a déca<strong>da</strong> de vinte do século<br />

XIX e a de trinta do século XX. 5 Tratavase<br />

de shows humorísticos, onde havia<br />

comediantes brancos que se travestiam de<br />

homens negros: pintavam o rosto com graxa,<br />

exageravam os lábios, usavam perucas<br />

de lã, luvas e fraque. Essas performances<br />

desempenharam papel importante em<br />

consoli<strong>da</strong>r e proliferar imagens, atitudes e<br />

percepções racistas no mundo. Era também<br />

5 Há pouco material a respeito publicado em português.<br />

Encontrei um livro sobre a história do Jazz que discorre sobre<br />

os Minstrel Shows. Ver em Calado, 1990.<br />

uma forma de se apropriar, assimilar e<br />

explorar a cultura negra norte-americana.<br />

Tratando especificamente do<br />

“travestismo racial”, 6 no caso do blackface,<br />

quando o homem branco se fantasia de<br />

homem negro, Senelick (2000, p. 300)<br />

considera que assim como no travestismo<br />

de gênero, o de raça também estaria<br />

baseado no desejo sexual. Para ele,<br />

“a psicologia <strong>da</strong>s relações raciais são<br />

muito emaranha<strong>da</strong>s de desejo sexual,<br />

particularmente em manifestações como<br />

de dominação e submissão, de exotismo e<br />

de atração pela oposição”.<br />

Porém, em 1849, surgem comediantes<br />

negros fazendo blackface e em 1860 já havia<br />

vários grupos só com comediantes negros.<br />

Esses grupos fizeram muito sucesso e<br />

incluíram <strong>da</strong>nça e música <strong>da</strong> cultura<br />

afro-americana nos shows, passando<br />

assim a rivalizar com os grupos de<br />

comediantes brancos, autodenominandose<br />

os “autênticos”. Esses performers<br />

faziam auto-paródia bufonescas, mas<br />

também, apesar <strong>da</strong> origem discriminatória<br />

e preconceituosa desses shows, criaram<br />

um espaço de resistência e de trabalho<br />

para artistas que tinham dificul<strong>da</strong>des de se<br />

inserirem em outras ativi<strong>da</strong>des do mundo<br />

artístico norte-americano. Outra novi<strong>da</strong>de<br />

que esses “ver<strong>da</strong>deiros” blackface inseriram<br />

no Minstrel Show foi a participação de<br />

mulheres, o que, segundo Senelick (2000,<br />

p. 299), trouxe uma “erotização” para esses<br />

eventos, principalmente se considerar o<br />

papel que a mulher negra tem no imaginário<br />

masculino norte-americano.<br />

No Brasil não há notícia sobre eventos<br />

dessa natureza, mas os negros e mulatos<br />

já atuavam em autos profanos como a<br />

Conga<strong>da</strong> e <strong>da</strong>nças dramáticas desde a<br />

metade do século XVI. Pode-se ver ain<strong>da</strong><br />

hoje personagens negros no Bumbameu-boi<br />

e no Cavalo Marinho, muitas<br />

vezes com a cara pinta<strong>da</strong>, que poderiam<br />

ser considerados, inclusive, o germe<br />

dos “negrinhos pitorescos <strong>da</strong>s comédias<br />

6 É Michael Rogin quem traz a ideia de que o blackface<br />

seria uma forma de “travestismo racial”. Ver em SENELICK,<br />

2000, p. 300.<br />

Mara Lucia Leal


N° 16 | Junho de 2011<br />

de costumes” (MENDES, 1993, p. 48).<br />

Uma performance que pode-se chamar<br />

de blackface à brasileira é Nego Fugido,<br />

apresenta<strong>da</strong> por negros exagera<strong>da</strong>mente<br />

pintados, realiza<strong>da</strong> em Acupe de Santo<br />

Amaro, na Bahia que, como o próprio nome<br />

sugere, representa a fuga de escravos.<br />

Na segun<strong>da</strong> metade do século XVIII<br />

já havia várias companhias profissionais<br />

de negros e mulatos, tanto escravos como<br />

libertos, que representavam a<strong>da</strong>ptações<br />

de textos europeus com o rosto e as mãos<br />

pintados de branco, realizando uma<br />

inversão do blackface norte-americano.<br />

Entretanto, paradoxalmente, com a<br />

criação de um teatro nacional em 1838,<br />

ou seja, com dramaturgia, elenco e<br />

produtores brasileiros, os atores negros e<br />

mulatos sumiram <strong>da</strong> cena teatral. Apesar<br />

de saírem <strong>da</strong> cena como atores, eles<br />

permanecem como personagens, fato que<br />

definha com a abolição <strong>da</strong> escravatura e<br />

passa por momentos sombrios até meados<br />

do século XX 7 , quando tanto o TEN<br />

como dramaturgos do calibre de Nelson<br />

Rodrigues, Antônio Callado, entre outros,<br />

tentam reverter esse quadro toscamente<br />

pintado (MENDES, 1993).<br />

Ain<strong>da</strong> sobre o período escravagista,<br />

pode-se citar a dramaturgia de José de<br />

Alencar, autor que cria personagens negros<br />

importantes em suas peças: Pedro, <strong>da</strong><br />

comédia O Demônio Familiar (1858) e Joana,<br />

a protagonista do drama A Mãe (1860).<br />

A inclusão de temas como a escravidão<br />

na nascente dramaturgia brasileira faz<br />

<strong>parte</strong>, segundo Flávio Aguiar (1984), de<br />

um movimento de valorização do “eu<br />

nacional” surgido com a independência<br />

do Brasil. Segundo o autor, a comédia, em<br />

seu processo de rebaixamento do “outro”<br />

para atingir seu fim e de afirmação do<br />

“eu nacional” teria se concentrado em<br />

ridicularizar três outros: O primeiro seria<br />

a antiga metrópole; o segundo as nações<br />

7 Em 1926 De Chocolat, influenciado pelas Revistas Negras<br />

parisienses, cria no Rio de Janeiro a Companhia Negra<br />

de Revistas. A iniciativa, apesar de durar apenas um ano,<br />

trouxe à tona, através <strong>da</strong> comici<strong>da</strong>de tão comum ao estilo<br />

<strong>da</strong>s revistas, a discussão sobre os preconceitos raciais no<br />

Brasil. Ver em Barros (2005).<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

civiliza<strong>da</strong>s como a França e o terceiro<br />

outro seria o ridículo do “eu nacional”, ou<br />

seja, o triste legado colonial. Dentro desse<br />

terceiro outro estaria a mediocri<strong>da</strong>de, a<br />

pobreza e em seu centro a escravidão, o<br />

“mal necessário”.<br />

Aguiar não faz nenhuma menção de<br />

como essas peças foram representa<strong>da</strong>s<br />

nesse período e quem foram os atores, pois<br />

seu foco é a dramaturgia e sua recepção <strong>da</strong><br />

época, mas não é difícil imaginar como e<br />

por quem esses personagens negros foram<br />

representados num Brasil escravocrata:<br />

atores e atrizes brancos pintados.<br />

Lilia Schwarcz (1987, p. 244), em estudo<br />

sobre como o homem negro era representado<br />

nos jornais paulistas do final do século<br />

XIX, salienta que a esse “outro” “violento<br />

e degenerado” do período escravagista,<br />

inclui-se o de “estrangeiro indesejável”<br />

com o fim <strong>da</strong> escravidão. Pois, é ao se<br />

“assumir as diferenças”, “ao por em relevo<br />

o lado estrangeiro”, “ou ao se eleger a ‘cor’<br />

ou os caracteres hereditários como critérios<br />

‘dignos’ e eficazes para a delimitação <strong>da</strong><br />

degeneração e <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de entre as<br />

raças que se estabelecem com maior clareza<br />

o contraste e a distinção”.<br />

Entretanto, a partir do início do<br />

século XX essa questão vai sumindo <strong>da</strong><br />

pauta, vai sendo apaga<strong>da</strong> dos jornais que<br />

passam a assumir o discurso <strong>da</strong> “harmonia<br />

racial” e os preconceitos, ao não serem<br />

mais nomeados, passam para o “local<br />

do implícito, do consenso, do silêncio”<br />

(SCHWARCZ, 1987, p. 256). Do mesmo<br />

modo, vemos o apagamento do ator e do<br />

personagem negro dos palcos brasileiros.<br />

E esse apagamento se dá, muitas vezes,<br />

através de uma demão de tinta preta.<br />

Cor e desejo<br />

A branca também desejou o preto.<br />

Há no imaginário brasileiro,<br />

principalmente do homem branco, quando<br />

se trata de relacionamentos heterossexuais<br />

inter-raciais, em se pensar apenas no casal<br />

Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 71


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

72<br />

homem branco/mulher negra, na ver<strong>da</strong>de,<br />

mulata. Há inúmeros trabalhos sociológicos<br />

a respeito e tanto na literatura como nas<br />

artes e nos meios de comunicação temos<br />

personagens mulatas como a Gabriela<br />

de Jorge Amado, povoando o imaginário<br />

masculino. No entanto, quando vamos<br />

para os números, eles nos informam que a<br />

maioria dos relacionamentos inter-raciais<br />

no Brasil é constituí<strong>da</strong> pelo casal homem<br />

negro/mulher branca. 8 Por que esse fato<br />

povoa tão pouco nossas representações?<br />

Segundo Laura Moutinho (2003, p.<br />

167), essa relação é considera<strong>da</strong> tabu<br />

em nossa socie<strong>da</strong>de porque ameaçaria o<br />

domínio masculino branco <strong>da</strong> estrutura de<br />

dominação social e econômica. Por isso,<br />

no “plano <strong>da</strong>s representações, a estrutura<br />

escolhi<strong>da</strong> para a decanta<strong>da</strong> miscigenação<br />

brasileira é composta pelo homem ‘branco’<br />

com sua esposa ‘branca’ e a amante<br />

‘negra’/’mestiça’”.<br />

Se atentarmos para a tese ficcional<br />

do branqueamento, ela funcionaria<br />

apenas dentro do par homem branco/<br />

mulher negra: É o português colonizador<br />

gerando descendentes na barriga negra,<br />

descendentes que a ca<strong>da</strong> geração ficariam<br />

mais claros. Quando se inverte a posição,<br />

é o negro gerando descendência na barriga<br />

branca: os filhos de Ismael com Virgínia<br />

serão sempre negros como o pai. Moutinho<br />

analisa sete obras <strong>da</strong> literatura brasileira,<br />

entre o final do século XIX e meados do<br />

XX, detendo-se sobre as relações afetivosexuais<br />

inter-raciais. 9 Há tanto os pares<br />

homem branco/mulher negra, como o seu<br />

inverso, além de uma relação homossexual<br />

homem branco/homem negro. Em to<strong>da</strong>s<br />

se vê a dificul<strong>da</strong>de enfrenta<strong>da</strong> pelos<br />

amantes: Dos nove casais analisados, só<br />

8 Esses <strong>da</strong>dos foram analisados a partir do senso demográfico<br />

de 1980. os casamentos endogâmicos representam 79% do<br />

total. Dos 21% restantes tem-se 57% de homens com pele mais<br />

escura que as mulheres e 42,5% de mulheres mais escuras<br />

que os homens. Ver em SILVA, 1987. p. 54-84.<br />

9 Trata-se de o Mulato e o Cortiço, de Aluísio Azevedo; o Bom<br />

Crioulo, de Adolfo Caminha, considerado o primeiro romance<br />

homossexual <strong>da</strong> literatura brasileira; Jubiabá e Gabriela,<br />

Cravo e Canela, de Jorge Amado; as peças Sortilégio, de<br />

Abdias do Nascimento e Anjo Negro, de Nelson Rodrigues.<br />

três permanecem juntos no final <strong>da</strong> obra;<br />

os outros seis terminam por assassinato ou<br />

suicídio do parceiro.<br />

Uma <strong>da</strong>s obras em questão é Anjo Negro,<br />

com a qual quero retomar a discussão sobre<br />

aos motivos do impedimento de Abdias do<br />

Nascimento em fazer o papel de Ismael: “o<br />

crioulo com a loura”, segundo os censores.<br />

A peça fala de desejo, do desejo proibido do<br />

negro pela branca: “Oh! Deus mata todos<br />

os desejos! Maldita seja a vi<strong>da</strong>, maldito seja<br />

o amor!” é a imprecação do coro <strong>da</strong>s velhas<br />

negras em volta do caixão do terceiro<br />

“anjo negro”, vítima dessa união funesta.<br />

Virgínia seria uma mulher branca de útero<br />

negro, segundo as carpideiras, remetendose<br />

tanto a cor do filho que carrega no ventre<br />

como a cor <strong>da</strong> morte.<br />

Nelson Rodrigues cria uma dramaturgia<br />

na qual o contraste branco/negro será o<br />

tempo todo colocado em relevo como o<br />

impedimento <strong>da</strong> relação. Não importa<br />

que Ismael seja de classe social igual à de<br />

Virgínia, que tenha bens suficientes para<br />

manter mulher e filhos, pois é a negação<br />

<strong>da</strong> sua cor, tanto por ele como por Virgínia,<br />

que impossibilita a união e a geração de<br />

descendentes; é essa negação que gera a<br />

maldição <strong>da</strong> mãe negra, trazi<strong>da</strong> por Elias,<br />

irmão de criação branco e cego como o<br />

mensageiro dos deuses <strong>da</strong>s tragédias<br />

gregas, Tirésias.<br />

Ismael tenta apagar o mundo dos brancos<br />

de sua relação com Virgínia, que não pode<br />

sair de casa, nem ver ninguém: “Só posso<br />

esperar você. [...] O mundo está reduzido a<br />

nós dois – eu e você”. Mas essa também foi<br />

uma escolha dela, pois não queria ser mais<br />

vista depois do que aconteceu ali, na cama<br />

de solteiro permanentemente presente<br />

como naquele dia passado: o estupro. O<br />

segredo dessa relação está fun<strong>da</strong>do no<br />

abuso sexual sofrido por Virgínia, tanto<br />

na primeira noite como em to<strong>da</strong>s que tem<br />

com o marido: o ato sexual entre o homem<br />

negro e a mulher branca visto como uma<br />

constante violação.<br />

Só no final <strong>da</strong> peça, quando é preteri<strong>da</strong><br />

por Ismael, Virgínia afirma que também<br />

sempre o desejou, um desejo cultivado<br />

Mara Lucia Leal


N° 16 | Junho de 2011<br />

desde a infância, quando viu homens<br />

negros seminus carregando um piano na<br />

rua. Aquele desejo proibido pelo outro,<br />

o negro, foi constantemente mantido em<br />

segredo, até para ela mesma. Somente<br />

quando Ismael a troca pela filha é que ela<br />

consegue trazer a tona o que mantinha na<br />

escuridão: o desejo pelo homem negro.<br />

Entretanto, apesar do desejo, ou até por<br />

causa dele, as carpideiras encerram a peça<br />

vaticinando o impedimento <strong>da</strong> geração<br />

de filhos. Depois do casal se reconciliar<br />

e consumar o ato sexual, elas concluem:<br />

“Futuro anjo negro que morrerá como<br />

os outros”, diz uma e a outra completa:<br />

“Vosso amor, vosso ódio não tem fim neste<br />

mundo. Branca Virgínia. Negro Ismael”.<br />

Fim do último ato.<br />

Nelson Rodrigues, ao nos apresentar<br />

essa relação impossível, expõe de forma<br />

crua e poética dois grandes preconceitos: o<br />

racial contra as pessoas de pele negra, tanto<br />

pelos que a tem (Ismael) como por quem o<br />

gera (Virgínia). O outro é sobre a mulher<br />

branca, cuja função é manter a espécie e<br />

suprimir os desejos.<br />

Ann Pelegrini (2001), ao trazer a<br />

teoria <strong>da</strong> interpelação de Althusser para<br />

a constituição sexual do sujeito: “É uma<br />

menina”, me aju<strong>da</strong> a refletir sobre a<br />

interpelação racial: “Olha, um negro!”,<br />

como descreve Fanon (2008). Tanto<br />

Ismael como Virgínia foram constituídos<br />

por essas interpelações. Por um momento<br />

não ouviram o chamado e se desejaram.<br />

Mas o chamado não pára nunca e ambos<br />

acabam olhando para trás e se identificam<br />

com ele. Segundo Fanon (2008), o homem<br />

negro passa por dois complexos de<br />

inferiori<strong>da</strong>de: o econômico e o epidérmico.<br />

Ismael consegue romper com o primeiro,<br />

mas o segundo lhe persegue sempre, por<br />

isso, vê como única saí<strong>da</strong> a alienação de<br />

sua cor, o desejo de ser branco através de<br />

Virgínia e sua descendência. Virgínia, a<br />

moça branca de classe média, cria<strong>da</strong> para<br />

o “bom casamento” e para a perpetuação<br />

<strong>da</strong> espécie, primeiro deseja o noivo <strong>da</strong><br />

prima, depois deseja o marido negro.<br />

Resultado: Anjos negros. Uma mulher<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

branca, <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de quarenta do século<br />

passado, não poderia ter desejo e ser mãe<br />

ao mesmo tempo, principalmente mãe de<br />

uma prole negra.<br />

Apesar de o autor explicitar ao<br />

longo <strong>da</strong> peça que é o preconceito racial<br />

o gerador de to<strong>da</strong> a tragédia vivi<strong>da</strong><br />

pelos personagens, é curioso – talvez<br />

fosse melhor dizer um curioso sintoma<br />

– observar que tanto a crítica <strong>da</strong> época<br />

silencia sobre essa questão, como também<br />

Sábato Magaldi, em sua introdução a uma<br />

<strong>da</strong>s edições <strong>da</strong> peça, afirma que devido<br />

ao seu caráter “hermético”, Anjo Negro<br />

não “arregimenta motivos racionais para<br />

discutir o problema racial (...)”, pois<br />

Nelson Rodrigues só estaria chamando os<br />

espectadores a se depararem com “seus<br />

mitos ancestrais”. (ver em RODRIGUES,<br />

1981, p. 30) Pode até ser, mas então esse<br />

chamado seria para se depararem com o<br />

mito ancestral <strong>da</strong> diferença racial.<br />

É para tentar desconstruir cenas como<br />

essas que surge o Teatro Experimental do<br />

Negro. Segundo Abdias do Nascimento,<br />

o TEN surgiu como uma iniciativa de<br />

contra-ação ás práticas cita<strong>da</strong>s. Portanto,<br />

o objetivo artístico do TEN era fomentar<br />

uma nova dramaturgia liga<strong>da</strong> aos temas<br />

afro-brasileiros e produzir espetáculos,<br />

nos quais os atores negros tivessem espaço<br />

para atuar. Para alcançar tal objetivo o<br />

grupo também precisava formar atores.<br />

Assim, a partir de um viés artístico, o TEN<br />

promoveu uma revolução social, pois a<br />

maioria de seus integrantes era oriun<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>s classes populares, como emprega<strong>da</strong>s<br />

domésticas e operários, e muitos deles<br />

sem alfabetização.<br />

Ironildes Rodrigues (1998), professor<br />

dos cursos de alfabetização promovidos<br />

pelo TEN que chegaram a ter 600 alunos,<br />

relata que além <strong>da</strong>s aulas de português,<br />

história e matemática, os alunos também<br />

aprendiam história do teatro e folclore<br />

brasileiro. O aprendizado era incentivado<br />

por leituras, ensaios e discussões de peças,<br />

como O Imperador Jones de Eugene O`Neill,<br />

peça de estreia do TEN no Teatro Municipal<br />

do Rio de Janeiro, em 1945.<br />

Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 73


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

74<br />

Onze anos depois, em 1956,<br />

vários atores do grupo participam<br />

<strong>da</strong> montagem de Orfeu <strong>da</strong> Conceição,<br />

de Vinícius de Moraes, primeira<br />

peça de autor brasileiro com elenco<br />

exclusivamente negro a se apresentar<br />

no mesmo teatro, além de ter como<br />

cenário um morro carioca e temas<br />

populares como capoeira e samba:<br />

“Mais que um acontecimento teatral,<br />

o Orfeu foi um excitante momento<br />

cultural na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e, sem<br />

exagero, do país, pois nesta peça<br />

teve início a parceria Vinícius e Tom<br />

[Jobim], que resultou na Bossa Nova”,<br />

declara Haroldo Costa, ex-ator do TEN<br />

que fez o papel de Orfeu na montagem.<br />

(COSTA, 2004, p. 225).<br />

Nesses sessenta anos que nos<br />

separam dessas ativi<strong>da</strong>des pioneiras<br />

no âmbito <strong>da</strong>s artes cênicas para<br />

a inclusão na cena de uma parcela<br />

<strong>da</strong> população brasileira relega<strong>da</strong><br />

à margem dos produtos artísticoculturais<br />

muitas coisas mu<strong>da</strong>ram,<br />

outras nem tanto. Além dos atores<br />

formados no grupo, como Ruth de<br />

Souza, Lea Garcia, Haroldo Costa e<br />

Aguinaldo Camargo, que seguiram<br />

trabalhos individuais ou montaram<br />

seus próprios grupos, criou-se uma<br />

rede de parcerias e influências que<br />

chega até os dias de hoje, apesar do<br />

hiato existente durante o período <strong>da</strong><br />

ditadura brasileira que sufocou as<br />

ativi<strong>da</strong>des do TEN e de tantos outros.<br />

Dentro do que comumente se passou<br />

a chamar de “Teatro Negro” há alguns<br />

grupos considerados “herdeiros” do<br />

TEN. Além de influências diretas como a<br />

criação do TEN de São Paulo, que seguiu<br />

os moldes do grupo do Rio, encenando,<br />

inclusive, os mesmos textos e incluindo<br />

autores como Augusto Boal, destaca-se o<br />

grupo Brasiliana, fun<strong>da</strong>do por Haroldo<br />

Costa a partir de uma dissidência com<br />

o TEN, pois se queria <strong>da</strong>r mais ênfase a<br />

cultura afro-brasileira a partir <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça<br />

e música, realizando trabalhos a partir<br />

<strong>da</strong>s manifestações populares.<br />

Em 1966, Milton Gonçalves junto<br />

com Antônio Pitanga, Zózimo Bubul,<br />

entre outros, forma o Grupo Ação, cujo<br />

foco era o Teatro de Rua, pensando<br />

em atingir seu público alvo: o negro.<br />

Lea Garcia, ex-atriz do TEN também<br />

organiza um grupo dentro do IPCN<br />

(Instituto de Pesquisas <strong>da</strong>s Culturas<br />

Negras), entre 1978 a 1980. Um dos<br />

trabalhos realizados foi a peça Chico Rei,<br />

de Walmir Ayala, que posteriormente<br />

foi a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> para o cinema, com Mário<br />

Gusmão no papel principal.<br />

Atualmente, existem vários grupos<br />

com essas características pelo Brasil,<br />

como destaca o trabalho de Douxami<br />

(2001) e também como pude observar<br />

durante o II Encontro de Performance<br />

Negra, realizado em 2009, no teatro<br />

Vila Velha, em Salvador, onde estavam<br />

representados por volta de cem grupos<br />

de teatro e <strong>da</strong>nça de todo o país.<br />

Uma questão que se coloca a partir<br />

dessa reali<strong>da</strong>de é: Por que ain<strong>da</strong> se faz<br />

necessário no Brasil a criação de grupos<br />

nos moldes do Teatro Experimental do<br />

Negro, onde a ideia de diferença racial<br />

é a geradora desses grupos? Talvez<br />

simplesmente porque no Brasil ain<strong>da</strong> se<br />

acha estranho “Hamlets” e “Prósperos”<br />

negros como Peter Brook já o fez com<br />

sua companhia internacional. Talvez<br />

porque ain<strong>da</strong> ao se escolher um ator para<br />

determinado papel, a cor/raça é critério<br />

de escolha ou veto apesar <strong>da</strong> mídia e do<br />

senso comum alardearem que não existe<br />

racismo no Brasil.<br />

A despeito de muitos desses grupos<br />

receberem críticas de que a militância, o<br />

social ou o político, às vezes, estão à frente<br />

de questões artísticas, não posso deixar<br />

de concor<strong>da</strong>r com Abdias que “a política<br />

é totalmente implica<strong>da</strong> em qualquer<br />

ativi<strong>da</strong>de cultural” (apud DOUXAMI, 2001,<br />

p. 323), por isso, todo ato, inclusive o artístico,<br />

é político. As escolhas estéticas que faço<br />

estão em sintonia com a visão de mundo<br />

que tenho, com questões identitárias e de<br />

alteri<strong>da</strong>de que, no caso brasileiro, se constrói<br />

também a partir desses mitos raciais.<br />

Mara Lucia Leal


N° 16 | Junho de 2011<br />

Referências bibliográficas<br />

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MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e<br />

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<strong>Urdimento</strong><br />

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Peças míticas. Organização e introdução<br />

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Afro-Asiáticos, n. 14, 1987, pp. 54-84.<br />

Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 75


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Doutor Charcot [José Ronaldo Faleiro]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 77


N° 16 | Junho de 2011<br />

Resumo<br />

O texto propõe a aproximação possível entre diferentes<br />

vertentes de pensamento que integram tanto o corpomente<br />

como uni<strong>da</strong>de, quanto a atualização <strong>da</strong> ação. Tais<br />

investigações são propostas a partir de certa compreensão<br />

psicofísica 3 como experiência auto-poética. Tecnicamente,<br />

em corpo-ator, como reorganizações (criações) sensíveis<br />

e eficazes que possibilitam a concretização <strong>da</strong> imaginação<br />

(passagem do efeito e do sutil) no eixo do tempo-espaço<br />

poético.<br />

Palavras-chave: corpo-ator, concentração, presença cênica.<br />

Abstract<br />

The text proposes a possible approximation between<br />

different strands of thoughts that integrate both the<br />

body-mind as unity as well as the accomplishment<br />

of the action. Such investigations are proposals that<br />

depart from a certain psychophysical understanding as<br />

a self-poetic experience. That is to say, technically, in<br />

body-actor, as sensitive and efficient reorganizations<br />

(creations) that enable the implementation of the<br />

imagination (the passage of the effect and the subtle) on<br />

the axis of the poetic time-space.<br />

Keywords: body-actor, concentration, stage presence.<br />

NÃo-AGIR PARA AGIR, UM<br />

PARADoXo E UMA UNIDADE<br />

DINÂMICA 1<br />

Mariane Magno 2<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 79


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

80<br />

Para propor o princípio<br />

<strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de não-agir<br />

para agir como uni<strong>da</strong>de<br />

dinâmica em corpo-ator 4<br />

é preciso iniciar pela sua<br />

gênese no pensame'nto filosófico chinês e<br />

taoísta. Faremos isso a partir do conceito<br />

vivo que François Jullien 5 (1998) apresenta<br />

como não-ação, o qual se distingue <strong>da</strong>quilo<br />

que, ocidentalmente, identificamos<br />

apenas como inação: (...) tendeu-se a<br />

interpretar o seu não-agir como simples<br />

avesso de nosso agir heroico, invertendo<br />

esse, portanto, no sentido <strong>da</strong> renúncia<br />

<strong>da</strong> passivi<strong>da</strong>de 6 (JULLIEN, 1998, p. 108).<br />

Localizar o agir 7 no contexto taoísta<br />

implica em observá-lo simetricamente sob<br />

um duplo pressuposto: figurar a conduta<br />

humana como um fazer específico (ergon,<br />

práxis; e, novamente, o modelo técnico <strong>da</strong><br />

produção serve de referência) e conceber a<br />

ação como uma enti<strong>da</strong>de própria, insolável,<br />

e capaz de servir de uni<strong>da</strong>de e de base de<br />

conduta (JULLIEN, 1998, p. 63).<br />

1 Este artigo está enraizado na pesquisa de doutorado<br />

desenvolvi<strong>da</strong> na Pós-Graduação do Instituto de Artes <strong>da</strong><br />

Unicamp, a qual pesquisa teve o seu foco centrado na<br />

imaginação do ator em processo criativo.<br />

2 Atriz, diretora, pesquisadora. Mestre e doutora em Artes,<br />

IA-UNICAMP. Email: marianemagno@hotmail.com.<br />

3 Fun<strong>da</strong>mentados a partir dos princípios do método<br />

stanislavskiano <strong>da</strong>s ações-físicas e seu desenvolvimento<br />

nas práticas teatrais contemporâneas. Utilizamos como<br />

referência certos desenvolvimentos e desdobramentos em<br />

Barba e Savarese (1995), Dagostini (2007), Grotowski (2007) e<br />

Ruffini (1995).<br />

4 Expressão utiliza<strong>da</strong> por Ribas, M. M. (2009), para distinguir<br />

(pe<strong>da</strong>gogicamente) certo tempo-estado, o do ‘ser ator’ em<br />

estado de trabalho.<br />

5 François Jullien é professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Paris VIII,<br />

filósofo, sinólogo especializado em China e Grécia antiga.<br />

6 "(...) (o ocidente “ativo” sonhando ter no oriente seu<br />

repouso...). ora, bem longe de pregar um desinteresse pelos<br />

assuntos humanos, de propor um afastamento do mundo, o<br />

não-agir do Laozi ensina como se conduzir nele para ser bemsucedido."<br />

(JULLIEN, 1998, p. 108)<br />

7 o que se pode pretender, na ver<strong>da</strong>de, suficientemente<br />

unitário e separado, no seio do comportamento – que seja<br />

autoconsciente e suficientemente independente de todo<br />

contexto, e acima de tudo do antes e do depois - para que se<br />

possa destacá-lo com tal na trama de nossa existência? Existe<br />

uma reali<strong>da</strong>de própria, que tenhamos condições de assinalar<br />

e identificar, e que podemos chamar ação? os pensadores<br />

chineses poderiam duvi<strong>da</strong>r disso, eles que consideram a<br />

conduta humana como qualquer outro curso, em termos de<br />

processo, regulado e contínuo (JULLIEN, 1998, p. 63).<br />

Introduzir este breve estudo sobre o<br />

agir, sob estes dois pressupostos taoístas,<br />

to<strong>da</strong>via, nos afasta, de certo modo, do mito<br />

ocidental <strong>da</strong> ação 8 e aponta o sentido do<br />

pensamento taoísta sobre o culto do agir,<br />

que não evidencia nem o heroico e nem<br />

o trágico. Esta percepção produziu um<br />

pensamento que não escolheu interpretar o<br />

real em termos de ação.<br />

Contextualizamos o não-agir, por<br />

conseguinte, como <strong>parte</strong> intera<strong>da</strong> na<br />

uni<strong>da</strong>de não-agir para agir, sob a luz <strong>da</strong><br />

filosofia chinesa e taoísta, como uma<br />

compreensão em vi<strong>da</strong> que gera certa<br />

visão de mundo que, por sua vez, engloba<br />

vínculos em experiência entre as práticas<br />

corporais, a fluência <strong>da</strong> energia vital, a<br />

medicina, a filosofia, a arte, a mitologia,<br />

a atitude política e as leis <strong>da</strong> natureza.<br />

Vínculos estes que, na condição humana,<br />

integram à percepção e à ação o melhor<br />

aproveitamento <strong>da</strong> fluência <strong>da</strong> energia<br />

vital, em corpo, a qual estabelece relações<br />

dinâmicas entre microcosmo e macrocosmo;<br />

ou seja, o Tao Humano e o Tao do Mundo<br />

entrelaçados ininterruptamente. Esta<br />

adequação dinâmica àquilo que já é<br />

potencial aponta o sentido <strong>da</strong> eficácia.<br />

A dinâmica do pensamento taoísta,<br />

deste modo, propõe um sentido em vi<strong>da</strong><br />

muito distante <strong>da</strong> lógica racional e científica<br />

ocidental que, por sua vez, se organiza e<br />

evolui pela lineari<strong>da</strong>de do pensamento<br />

objetivo e sucessivo. Esta lineari<strong>da</strong>de,<br />

a do pensamento científico ocidental, é<br />

incompatível com o conhecimento vivo<br />

no Tao Te King, um dos clássicos que<br />

fun<strong>da</strong>menta o taoísmo. A sabedoria<br />

milenar viva nesta literatura se faz aberta e,<br />

8 Tanto mais que a ação é, de fato, o objeto próprio ao mythos,<br />

concebido exatamente como relato de ação, pelo qual<br />

teve início a civilização europeia. Repassemos, pois, essas<br />

imagens, elas que estão entre as primeiras <strong>da</strong> história de<br />

nossa razão. Deus, seja o <strong>da</strong> tradição ju<strong>da</strong>ico-cristã ou o do<br />

Timeu, faz o mundo existir por meio de um ato criador; e é<br />

próprio do herói também imprimir sua ação sobre o mundo,<br />

enfrentando-o: com a epopeia, a literatura começou pelo<br />

relato de atos memoriáveis, enaltecidos a título de façanhas,<br />

depois a tragédia os encenou (sendo próprio do teatro,<br />

lembra Aristóteles que ain<strong>da</strong> não possuía termo para o que<br />

chamamos personagem, representar os homens “enquanto<br />

age”, prattontes). Constatação sumariamente banal, mas que<br />

o é menos vista <strong>da</strong> China (JULLIEN, 1998, p.68).<br />

Mariane Magno


N° 16 | Junho de 2011<br />

de certo modo, misteriosa e escorregadia,<br />

pelo seu caráter dinâmico, aforístico e<br />

enigmático. Falar sobre esta vertente de<br />

conhecimento milenar, portanto, significa<br />

apenas a aproximação possível para que se<br />

preserve ‘certo espaço aberto’ porque o Tao<br />

não se esgota, e, o ‘Tao ver<strong>da</strong>deiro’, atinge<br />

o indizível.<br />

Esta obra clássica, o Tao Te King, pode<br />

ser interpreta<strong>da</strong> (ocidentalmente) como<br />

paradoxal, mas é exatamente na(s) lacuna(s)<br />

exegética(s) (sob a perspectiva ocidental)<br />

que é possível identificar o conhecimento<br />

latente, oculto e/ou contraditório; ou seja,<br />

a lacuna é o espaço indispensável para que<br />

se possa preservar o movimento mutante<br />

que é o fun<strong>da</strong>mento do taoísmo. É nela, na<br />

‘lacuna’, que (segundo a filosofia taoísta) é<br />

possível gerar a potência do encontro que<br />

nutre a mutabili<strong>da</strong>de entre as forças que<br />

se atraem, se fundem, se alimentam e se<br />

transformam uma na outra. Por conseguinte,<br />

sob a ordem <strong>da</strong> filosofia taoísta, é no espaço<br />

de fusões dinâmicas (entre o não-agir e o agir)<br />

que se localiza o eixo vivo que atua como<br />

princípio <strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de em constante<br />

atualização. Assim, a percepção (não-agir)<br />

e a integração (agir) do imanente (porvir,<br />

potencial) como uni<strong>da</strong>de possibilitam a<br />

preservação <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de<br />

(virtude), isto é, são os fun<strong>da</strong>mentos vivos<br />

desta uni<strong>da</strong>de igualmente viva que têm<br />

como eixo o ‘vazio’.<br />

Aqui se trata do vazio funcional de<br />

Laozi 9 que se exerce por relação com o pleno<br />

e graças ao qual o pleno pode cumprir seu<br />

pleno efeito 10 (JULLIEN, 1998, p. 135) que<br />

se diferencia do vazio <strong>da</strong> inexistência, que<br />

se inscreve numa perspectiva metafísica<br />

do ser e do não-ser: é o vazio do budismo<br />

(sunya, em sânscrito; cf. king, em chinês)<br />

(JULLIEN, 1998, p.135).<br />

9 Laozi, Lao Tzu, Lao Tsé, Lao Tzi, Lao Tseu ou Lao Tze (1324 a.–<br />

1408 a.C.) - filósofo e alquimista chinês a quem é atribuí<strong>da</strong> a<br />

escrita do Tao Te King.<br />

10 Direcionamos o efeito filosófico taoísta às aproximações<br />

possíveis em corpo-ator, ou seja, em reali<strong>da</strong>de criativa e<br />

poética. Trata-se de certa quali<strong>da</strong>de de atuação encontra<strong>da</strong><br />

em Stanislavski pela quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ação consequente dos<br />

músculos livres (nota nº 12); em Lowen, pela liber<strong>da</strong>de<br />

interior (nota nº 10) e em Grotowski pela passagem do<br />

pesado para o sutil (p. 11).<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Deste modo, para compreender o<br />

duplo pressuposto como uni<strong>da</strong>de mutante,<br />

não-agir para agir, é preciso evidenciar a<br />

existência de outro elemento-chave, o<br />

processamento constante (virtude) que<br />

atua como a força viva indispensável à<br />

mutabili<strong>da</strong>de.<br />

Por conseguinte, o vazio, como eixo,<br />

permite a passagem do efeito, já que,<br />

para a filosofia taoísta, o efeito não pode<br />

ser obtido diretamente, ou seja, ele, o<br />

efeito, não deve ser buscado mas colhido.<br />

Tal afirmação nos leva à não-ação como<br />

estratégia, pois a intenção mata o efeito,<br />

seca-o, esgota-o (JULLIEN, 1998, p.<br />

148). Direcionamos, portanto, o foco<br />

do pensamento no movimento vivo, ou<br />

seja, no processo como uni<strong>da</strong>de que é o<br />

montante, a título de condição, é o único<br />

capaz de conduzir ao pleno efeito (a<br />

título de efeito) (JULLIEN, 1998, p. 149).<br />

Não-agir em processo e em corpo-ator<br />

pode ser o efeito gerado como quali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> atuação que se faz pela atenção, calma<br />

e autodomínio cênico, e que, juntos, não<br />

antecipam mentalmente a ação, e, por<br />

isso, podem gerar uma compreensão a<br />

mais que advém <strong>da</strong> experiência a seu<br />

tempo (potencialização do agir), aquela<br />

que só acontece no momento presente.<br />

Esta compreensão (não-agir), portanto,<br />

não pode ser prevista e tampouco<br />

imposta porque se trata <strong>da</strong> escuta<br />

sensível, no ato, que antecede, alimenta<br />

e se transforma em agir.<br />

Bachelard (1998) em sua expressão<br />

noturna fala brilhantemente sobre a via<br />

negativa como possibili<strong>da</strong>de e como<br />

caminho à ampliação e superação dos<br />

limites <strong>da</strong> consciência, para ele o não-saber<br />

não é uma ignorância, mas um ato difícil de<br />

superação do conhecimento. É a esse preço<br />

que uma obra é a ca<strong>da</strong> instante essa espécie<br />

de começo puro que faz de sua criação<br />

um exercício de liber<strong>da</strong>de (BACHELARD,<br />

1998, p.16).<br />

Deste modo, a partir do princípio<br />

mutante não-agir para agir como processo<br />

e como uni<strong>da</strong>de é possível arriscar uma<br />

aproximação a mais entre o pleno efeito<br />

taoísta e a sinceri<strong>da</strong>de artística na busca<br />

Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 81


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

82<br />

<strong>da</strong> plenitude, em Grotowski (2007). Essa<br />

aproximação com a sinceri<strong>da</strong>de só acontece<br />

sem forçar e sem simular, e, conforme dito<br />

parágrafos acima, por Jullien, a intenção<br />

mata o efeito, seca-o, esgota-o; e, por<br />

Bachelard a via negativa é um ato difícil<br />

de superação do conhecimento. Portanto,<br />

na condição humana, na linguagem teatral<br />

e em corpo-ator 11 a via negativa pode ser<br />

um caminho, um lugar onde não somos<br />

divididos. (...) Se cumprimos o ato com<br />

todo nosso ser, como nos instantes do<br />

ver<strong>da</strong>deiro amor chegará o momento em<br />

que será impossível decidir se agimos<br />

conscientemente, ou inconscientemente.<br />

Em que é difícil dizer se somos nós a fazer<br />

algo ou se isso nos acontece (GROTOWSKI,<br />

2007, p. 211).<br />

A não-ação, portanto, pode ser<br />

interpreta<strong>da</strong> filosoficamente como a ação<br />

que não constrange ou a ação que não<br />

força. Mas, temos de esclarecer um pouco<br />

mais a expressão ‘ação que não constrange’,<br />

ou ‘ação autêntica’, como a limpeza<br />

(transformação) <strong>da</strong>quilo que é excessivo no<br />

agir e que não passa pela retidão moral ou<br />

por julgamentos, e que não<br />

nos levam a cindir o mundo em dois,<br />

a opô-lo a ele mesmo (o bem e o mal)<br />

e, finalmente, a mutilá-lo. Porquanto,<br />

ao suprimirmos um para valorizar o<br />

outro, anulamos sua interdependência,<br />

perdemos de vista sua coerência. Devese,<br />

portanto, entender virtude nesse outro<br />

sentido que, não mais remete ao dever ser,<br />

é <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong> efetivi<strong>da</strong>de: no sentido de<br />

uma quali<strong>da</strong>de que torna próprio para um<br />

certo efeito, ou seja, que possui capaci<strong>da</strong>de<br />

de produzi-lo (JULLIEN, 1998, p. 117).<br />

11 Neste momento direcionamos o estado de atenção e<br />

de concentração em trabalho criativo a percepções mais<br />

profun<strong>da</strong>s e, assim, nos aproximamos do self corporal. Esta<br />

dimensão, self, é possível de ser alcança<strong>da</strong> pela liber<strong>da</strong>de<br />

interior (que tem aspectos biológicos) indispensável para tal<br />

vivência. A liber<strong>da</strong>de interior manifesta-se na graciosi<strong>da</strong>de<br />

do corpo, em sua suavi<strong>da</strong>de e vitali<strong>da</strong>de. Corresponde a estar<br />

livre de culpa, vergonha e constrangimento. É uma quali<strong>da</strong>de<br />

de ser que todos os animais selvagens possuem, mas que está<br />

ausente na maioria dos seres civilizados. É a expressão física<br />

<strong>da</strong> inocência, de um modo de agir espontâneo, sem artifícios<br />

e ver<strong>da</strong>deiro para o self. (LoWEN, 1997, p.23) Cabe, ain<strong>da</strong>,<br />

evidenciar que a liber<strong>da</strong>de interior é condição para atingir<br />

certa quali<strong>da</strong>de psicotécnica e psicofísica em corpo-ator<br />

(liber<strong>da</strong>de), independente de seus conteúdos dramatúrgicos.<br />

No universo literário, por princípio,<br />

na fenomenologia líqui<strong>da</strong> bachelardiana,<br />

encontramos correspondência <strong>da</strong>quilo que<br />

é apresentado como a via negativa <strong>da</strong> ação<br />

ou, ain<strong>da</strong>, como um duplo pressuposto.<br />

Portanto, é preciso que o saber seja<br />

acompanhado de um igual esquecimento<br />

do saber. (...) Em poesia, o não-saber é<br />

uma condição prévia; se há o ofício no<br />

poeta, é na tarefa subalterna de associar<br />

imagens. Mas a vi<strong>da</strong> em uma imagem está<br />

em to<strong>da</strong> sua fulgurância, no fato de que<br />

a imagem é uma superação de todos os<br />

<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de (BACHELARD,<br />

1998, p. 16).<br />

Assim, propomos a uni<strong>da</strong>de, não<br />

estar dividido em corpo-ator, como um<br />

senso de autodomínio e de curiosi<strong>da</strong>de<br />

que se desenvolve pela fusão entre<br />

forma (movimento, aspecto aparente)<br />

e não-forma (motili<strong>da</strong>de, 12 vitali<strong>da</strong>de e<br />

inconsciente). O desenvolvimento deste<br />

estado vivo, em corpo-ator, pode ampliar<br />

o território consciente sobre si mesmo<br />

e sobre sua imaginação que, por sua<br />

vez, pode potencializar a motili<strong>da</strong>de e a<br />

autoexpressivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> presença cênica; ou<br />

seja, a imaginação é viva em corpo, ela tem<br />

aspectos biológicos e energéticos, sejam eles<br />

conscientes ou não. Identificamos nestas<br />

compreensões psicotécnicas a dilatação<br />

corporal apresenta<strong>da</strong> por Barba e Savarese<br />

(1995), a qual, segundo Ruffini (apud<br />

BARBA e SAVARESE, 1995, p.64) está<br />

vincula<strong>da</strong> à presença que nesta definição<br />

está quase livre de qualquer conotação<br />

metafórica. Ela é literal.<br />

12 Aproximaremos a motili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> psicologia formativa<br />

dos processos psicofísicos e psicotécnicos: presença,<br />

dilatação e irradiação. Para Keleman, o movimento descreve<br />

como as criaturas se deslocam de um lugar para outro. Da<br />

perspectiva do processo somático, o movimento é mecânico.<br />

Articulações e ossos flexionam, dobram, giram, deslizam;<br />

músculos levantam, empurram, puxam, apertam, contraem,<br />

alongam. A motili<strong>da</strong>de, por outro lado, brota dos processos<br />

metabólicos <strong>da</strong> existência. A excitabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> célula, sua<br />

expansão e polarização são exemplos de motili<strong>da</strong>de, assim<br />

como os acessos emocionais, tais como, raiva ou medo.<br />

(KELEMAN,1992, p. 32) Esta motili<strong>da</strong>de inerente ao corpo vivo,<br />

que é a base de sua ativi<strong>da</strong>de espontânea, resulta de um<br />

estado de excitação interna que irrompe continuamente na<br />

superfície em movimento. (LoWEN,1985, p. 19)<br />

Mariane Magno


N° 16 | Junho de 2011<br />

A reorganização psicofísica deste<br />

estado de trabalho, presente, vivo e<br />

dilatado, 13 implica no desacelerar <strong>da</strong> mente<br />

e no direcionamento volitivo <strong>da</strong> atenção<br />

(sincronia corpo-mente), que conduz a certa<br />

compreensão psicotécnica em concentração,<br />

ou seja, à percepção sensível <strong>da</strong>quilo que se<br />

faz (consciente e volitivo) com a integração<br />

poética <strong>da</strong>quilo que emerge (involuntário,<br />

inconsciente), em dinâmica constante.<br />

A Concentração é o elemento primeiro<br />

do método <strong>da</strong>s ações-físicas que envolve a<br />

observação, a percepção, a imaginação, a<br />

memória e a vontade (DAGOSTINI, 2007,<br />

p. 62). Este elemento técnico se faz pela<br />

integração dinâmica de diversas facul<strong>da</strong>des<br />

que se alimentam e se provocam entre si,<br />

as quais, em função mutante, permitem a<br />

passagem do efeito como a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

ação - a interação viva que se presentifica<br />

como acontecimento. A concentração é o<br />

primeiro alicerce, é o germe <strong>da</strong> criação. (...)<br />

Este material sensitivo-emocional é valioso<br />

para <strong>da</strong>r forma à ‘vi<strong>da</strong> do espírito humano<br />

do papel’ objetivo principal <strong>da</strong> arte teatral<br />

(DAGOSTINI, 2007, p. 63).<br />

É preciso, entretanto, tomar certo cui<strong>da</strong>do<br />

com as palavras, pois, não-agir para agir em<br />

corpo-ator não é proposto como abandono<br />

de si (desatenção), mas, sim, como certo<br />

desenvolvimento sensível <strong>da</strong> atenção em<br />

intensa concentração, pela qual, se estabelece<br />

uma condição, um estado, que leva a uma<br />

ação interior ativa (...). K. Stanislávski<br />

destaca o caráter ativo <strong>da</strong> atenção cênica,<br />

que se revela através dos círculos de atenção<br />

(DAGOSTINI, 2007, p. 63).<br />

Tal estado de trabalho, deste modo,<br />

está vinculado a outro elemento do<br />

método stanislavskiano liber<strong>da</strong>de muscular<br />

que desvia o trabalho do ator de certos<br />

excessos, entre eles, o de tensão, o de<br />

força (a inútil) e o de vontade (resgatamos<br />

13 Ruffini (apud BARBA e SAVARESE, 1995) para falar <strong>da</strong><br />

equivalência viva como presença entre a dilatação física e<br />

a mental (logo, psicofísica) recorre aos ensinamentos de<br />

K. Stanislávski: o objetivo direto e declarado do trabalho<br />

do ator, de acordo com Stanislávski, é a recriação <strong>da</strong><br />

organici<strong>da</strong>de. Por meio do sistema o ator aprende a estar<br />

presente organicamente no palco, antes e separa<strong>da</strong>mente<br />

dos papéis que ele terá de representar (RUFFINI apud BARBA<br />

e SAVARESE, 1995, p. 64).<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

nesse elemento, vontade, a via negativa<br />

de Jullien e de Bachelard expostos na<br />

página 03). Evidenciamos que dissemos<br />

excessos, já que, certa força, certa tensão<br />

e certa vontade são elementos, em corpoator,<br />

que compõem a atuação cênica. Deste<br />

modo, o conceito satnislavkiano, liber<strong>da</strong>de<br />

muscular, é compreendido e proposto<br />

como consequência (efeito) <strong>da</strong> melhor<br />

fluência <strong>da</strong> energia vital, como liber<strong>da</strong>de<br />

interior e, ain<strong>da</strong>, como compreensões mais<br />

sutis aproveita<strong>da</strong>s, de forma poética, em<br />

corpo-ator e em treinamento dinâmico.<br />

Segundo Dagostini (2007) Stanislávski 14<br />

apresenta a importância <strong>da</strong> atenção, <strong>da</strong><br />

firmeza, <strong>da</strong> flexibili<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> concentração<br />

e <strong>da</strong> destreza como psicotécnica, ou seja,<br />

“considera que a tensão e o esforço físico<br />

em cena são causados pela violação <strong>da</strong>s leis<br />

<strong>da</strong> natureza” (DAGOSTINI, 2007, p.85). Ele<br />

propõe deste modo o treinamento psicofísico<br />

para o desenvolvimento de um corpo<br />

relaxado e atento, pois apenas a natureza em<br />

total medi<strong>da</strong> pode dirigir nossos músculos, ou<br />

seja, relaxá-los e tensioná-los adequa<strong>da</strong>mente.<br />

Assim, para expor a quali<strong>da</strong>de ‘natural 15 ’<br />

em corpo-ator expressa como inteligência<br />

em ação eficaz que se vincula à adequação<br />

do tônus muscular, evocamos um exemplo<br />

clássico stanislavskiano - pela voz do<br />

grande mestre russo: Quem me ensina<br />

melhor do que meu gato? (STANISLÁVSKI,<br />

1954 apud DAGOSTINI, 2007, p. 87).<br />

14 K. Stanislávski, além de ter determinado um treino físico<br />

diário, adotou, nessa primeira etapa prática do estudo do<br />

elemento liber<strong>da</strong>de muscular, um programa pe<strong>da</strong>gógico<br />

que consistia de exercícios de sensibilização, percepção,<br />

equilíbrio, força, resistência, agili<strong>da</strong>de, destreza e consciência<br />

do fluxo <strong>da</strong> energia interna do movimento. Esse processo era<br />

guiado de tal forma que contemplava o desenvolvimento e<br />

o aperfeiçoamento <strong>da</strong> vontade, <strong>da</strong> imaginação, <strong>da</strong> atenção,<br />

<strong>da</strong> memória, de habili<strong>da</strong>des cênicas especiais, e, sobretudo<br />

visando à realização concreta de uma ação orgânica,<br />

plasticamente expressiva, dirigi<strong>da</strong> a um fim (DAGoSTINI, 2007,<br />

p.85). (...) É neste elemento do “sistema”, liber<strong>da</strong>de muscular,<br />

que K. Stanislávski lança as bases dos princípios teóricos e<br />

práticos <strong>da</strong> cultura corporal que vão reger a pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong><br />

área: Fun<strong>da</strong>mentos do movimento cênico, <strong>da</strong> escola soviético/<br />

russa. To<strong>da</strong>s as práticas corporais estão subordina<strong>da</strong>s a esta<br />

área (...) (DAGoSTINI, 2007, p. 88).<br />

15 Natural é utilizado como a ‘segun<strong>da</strong> natureza’ proposta<br />

igualmente por Stanislávski como quali<strong>da</strong>de psicotécnica<br />

(organici<strong>da</strong>de) integra<strong>da</strong> como domínio cuja conquista pode<br />

ser elabora<strong>da</strong> pelos treinamentos sistematizados e utilizados<br />

por certo tempo.<br />

Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 83


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

84<br />

Os movimentos do gato, deste modo,<br />

passam a ser objeto dos estudos corporais<br />

stanislavskianos, tanto <strong>da</strong> fluência<br />

de energia quanto <strong>da</strong> eficácia de seus<br />

movimentos e de suas ações:<br />

(...) tal harmonia dos movimentos e tal<br />

desenvolvimento corporal, como os dos<br />

animais, são inacessíveis para o ser homem.<br />

Não existe técnica que consiga tamanha<br />

perfeição no que tange ao domínio<br />

dos músculos. Somente uma natureza<br />

inconscientemente apta pode alcançar<br />

tal virtuosismo, facili<strong>da</strong>de, precisão,<br />

desenvoltura dos movimentos, poses, e<br />

tal plastici<strong>da</strong>de (STANISLÁVSKI,1954<br />

apud DAGOSTINI, 2007, p. 87).<br />

As quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> atenção, <strong>da</strong> firmeza,<br />

<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de muscular e <strong>da</strong> precisão<br />

observa<strong>da</strong>s nos movimentos do gato, se<br />

aproximam do imaginário animalizante<br />

chinês pelo ‘passo do tigre’. 16 Ambos, a<br />

partir de certa concentração, propõem o<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> leveza, do autodomínio<br />

do movimento (graciosi<strong>da</strong>de e vitali<strong>da</strong>de), <strong>da</strong><br />

atenção, <strong>da</strong> flexibili<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> fluência de<br />

energia vital, e, por fim, a transformação<br />

natural dos movimentos. Quali<strong>da</strong>des<br />

técnicas vincula<strong>da</strong>s à liber<strong>da</strong>de muscular, a<br />

qual, por sua vez, pode ser treina<strong>da</strong> (ain<strong>da</strong><br />

que nos limites humanos) a partir <strong>da</strong> fluidez<br />

<strong>da</strong> energia vital (tch’i) como direcionadora<br />

e formadora <strong>da</strong> forma, enquanto se forma.<br />

Indo adiante nas possibili<strong>da</strong>des de<br />

equivalência entre o princípio não-agir<br />

para agir e os ensinamentos de Grotowski,<br />

16 ‘Passo do tigre’ ou ‘pisar na lama’ são expressões utiliza<strong>da</strong>s<br />

para definir certo modo e quali<strong>da</strong>de (expandir e recolher)<br />

de an<strong>da</strong>r no treino do ‘pakuá’, uma sequência sistematiza<strong>da</strong><br />

de treino marcial chinês que se faz em círculo e tem seus<br />

movimentos fun<strong>da</strong>mentados nos oito trigramas do IChin (Qian,<br />

Zhen, Kan, Gen e Kun, Xun, Li e Dui) e suas mutações. Neste<br />

modo de an<strong>da</strong>r é possível exercitar e trabalhar quali<strong>da</strong>des<br />

de movimento como relaxamento, atenção, firmeza,<br />

concentração, relação, fluência (expansão e recolhimento),<br />

potencializaçao <strong>da</strong> ação e, ain<strong>da</strong>, transformações do<br />

movimento com reorganizações musculares mais adequa<strong>da</strong>s<br />

através <strong>da</strong>s palmas (sequências de ações que configuram a<br />

sequência <strong>da</strong> forma ‘pakuá’), propostas como arranjos do<br />

mundo interior. São elas, as palmas: leão, quimera, serpente,<br />

águia, dragão, urso, fênix e macaco; e que atuam como a<br />

representação do mundo material – respectivamente: céu,<br />

terra, água, fogo, trovão, montanha, vento e lago. o ‘passo do<br />

tigre’ é utilizado no caminhar entre troca de palmas.<br />

evocamos sua própria voz e propomos,<br />

deste modo, uma possibili<strong>da</strong>de para se<br />

pensar a via negativa grotowskiniana sob<br />

a luz deste princípio dinâmico e taoísta, o<br />

agir sem agir:<br />

o próprio processo, mesmo que até um<br />

certo ponto depen<strong>da</strong> <strong>da</strong> concentração, \<br />

<strong>da</strong> confiança, do desvelamento e quase<br />

<strong>da</strong> aniquilação no ofício, não é voluntário.<br />

O estado mental necessário é uma<br />

disponibili<strong>da</strong>de passiva para realizar um<br />

papel ativo, um estado no qual não se<br />

“quer fazer aquilo” mas antes “renuncia-se<br />

a não fazê-lo (GROTOWSKI, 2007, p. 106).<br />

Retornando às diferenças entre as<br />

‘perspectivas’ ocidental e taoísta, ao<br />

observar, por exemplo, a noção do tempo<br />

é possível perceber que os chineses não se<br />

relacionam sob o aspecto <strong>da</strong> duração pela<br />

sucessão e uniformi<strong>da</strong>de como no ocidente<br />

e, sim, pelo conjunto de eras, estações ou<br />

épocas: os chineses conceberam lugares<br />

e ocasiões, e não espaço ou tempo em si<br />

(JULLIEN, 2004, p. 39). A a<strong>da</strong>ptação do<br />

Homem à estação é uma condição que<br />

atualiza a atitude adequa<strong>da</strong> (eficaz) a<br />

qual intera os ciclos <strong>da</strong> Natureza e não<br />

antecipa e não retar<strong>da</strong> as ações e, sim,<br />

age junto. É com esta compreensão ‘em<br />

tempo’ que eles, os chineses taoístas,<br />

‘caminham pelo tempo’ uma estação após<br />

a outra, construindo o seu gênero de vi<strong>da</strong>,<br />

fun<strong>da</strong>mentado na lei <strong>da</strong> eficácia.<br />

Sob a compreensão do pensamento<br />

ocidental podemos nos direcionar a este<br />

conceito de tempo, aproxima<strong>da</strong>mente,<br />

como ocasião; para os chineses taoístas a<br />

experiência tempo é como um momento<br />

sazonal, ou, conforme Jullien (2004), captar<br />

a imanência:<br />

O fato de a ocasião se oferecer como<br />

um momento privilegiado para agir,<br />

até mesmo dela determinar sozinha<br />

o sucesso, como gostam de repetir<br />

os antigos chineses, deve-se ao seu<br />

caráter conjuntural, permitindo<br />

a particulari<strong>da</strong>de qualitativa <strong>da</strong><br />

a<strong>da</strong>ptação; ao mesmo tempo, deve-se<br />

ao seu caráter evolutivo, que promete<br />

Mariane Magno


N° 16 | Junho de 2011<br />

um desenvolvimento que virá do efeito<br />

implicado- tal como a estação (...) A<br />

ocasião corresponde assim à situação<br />

(grifo nosso) (...) Trata-se aqui, não<br />

do ‘tempo’, mas do tempo oportuno<br />

(JULLIEN, 2004, p. 47). 17<br />

Por esta perspectiva ‘inverti<strong>da</strong>’, a<br />

objetivi<strong>da</strong>de prévia, como é identifica<strong>da</strong><br />

ocidentalmente, é considera<strong>da</strong>, sob a<br />

filosofia taoísta, apenas uma <strong>parte</strong> <strong>da</strong><br />

possível uni<strong>da</strong>de, e, por isso, sozinha,<br />

a objetivi<strong>da</strong>de prévia (como imposição)<br />

por ser fecha<strong>da</strong> 18 não levaria à dinâmica<br />

<strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de adiante. O que existe<br />

é a percepção do tempo como ocasião,<br />

cujo processamento acontece pela nãoação,<br />

isto é, a receptivi<strong>da</strong>de do tempo como<br />

uma ação indireta que se desenvolve<br />

pela percepção e maturação <strong>da</strong>quilo<br />

que é favorável no momento, ou seja, a<br />

potencialização <strong>da</strong> ação, já que, a forma<br />

desvincula<strong>da</strong> <strong>da</strong> sua nascente não-forma<br />

é considera<strong>da</strong> ação desconexa, logo<br />

ineficaz.<br />

Por conseguinte, filosoficamente, nãoagir<br />

é um espaço vivo, de absorção e de<br />

compreensões múltiplas, é o momentoespaço<br />

do qual se forma e emerge a<br />

manifestação de uma força ou a operação<br />

de um agente. E, ao direcionar este<br />

conceito filosófico ao estado poético como<br />

imagem corpo-ator, nos aproximamos<br />

<strong>da</strong> topofilia bachelardiana, ou seja, as<br />

imagens do espaço feliz:<br />

Nessa perspectiva, nossas investigações<br />

mereceriam o nome de topofilia.<br />

Visam determinar o valor humano<br />

dos espaços de posse, dos espaços<br />

defendidos contra forças adversas, dos<br />

espaços amados. Por razões não raro<br />

muito diversas e com as diferenças<br />

que as nuanças poéticas comportam,<br />

são os espaços louvados. Ao seu valor<br />

de proteção, que pode ser positivo,<br />

ligam-se também valores imaginados,<br />

e que logo se tornam dominantes<br />

(BACHELARD, 1993, p.18).<br />

17 Ao leitor interessado neste “tempo” ver: JULLIEN, F. (2004).<br />

18 Retomamos a citação <strong>da</strong> página 03 “a intenção mata o<br />

efeito, seca-o, esgotá-o”.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Mas, cabe ain<strong>da</strong> chamar a atenção<br />

igualmente para o agir, pois sem a forma<br />

e sem a estrutura (agir) a não-forma<br />

(potencialização) se dissolve. E, ain<strong>da</strong>,<br />

sem a dinâmica entre forma e não-forma, não<br />

há a mutabili<strong>da</strong>de, não há a experiência<br />

e nem o sentido, ou seja, o processo é o<br />

aproveitamento <strong>da</strong> dinâmica constante - a<br />

uni<strong>da</strong>de em ação.<br />

Esta inversão <strong>da</strong> percepção - cita<strong>da</strong> na<br />

página anterior - que apresenta a ocasião<br />

como determinante, ‘dela determinar<br />

sozinha’, não é uma atitude desconexa e<br />

apenas passiva, e, tampouco, fantasiosa.<br />

É, sim, um estado de recepção que, sob<br />

a percepção ocidental, acaba por propor<br />

inversões, a do sentido <strong>da</strong> atenção e <strong>da</strong><br />

direção do pensamento. Mas, em corpo-ator<br />

e sob a luz <strong>da</strong> imaginação, de fato, ela atua<br />

como certa conexão que pode levar a uma<br />

escuta sensível, como um silêncio vivo, que<br />

possibilita compreensão e adequação ao<br />

oportuno no momento, ou seja, um espaço 19<br />

para se perceber, se pensar e atualizar<br />

a dinâmica <strong>da</strong> ação e a <strong>da</strong> consciência. 20<br />

(...) A consciência, por si só, é um ato,<br />

um ato humano. É um ato vivo, um ato<br />

pleno. Mesmo que a ação que se segue,<br />

que deveria seguir-se, que deveria ter-se<br />

seguido, permaneça em suspenso, o ato<br />

consciencial tem sua plena positivi<strong>da</strong>de<br />

(...) (BACHELARD, 2006, p. 05).<br />

Podemos aproximá-lo, o não-agir, à luz<br />

do arquétipo feminino o qual se intera com<br />

seu complementar masculino e, <strong>da</strong> união<br />

viva entre ambos, é possível preservar<br />

o movimento capaz de gerar mais vi<strong>da</strong>.<br />

Assim, sob a luz taoísta, agir sem agir não<br />

é um paradoxo, é, sim, um conuinctio vivo<br />

em dinâmica mutante.<br />

Para aproximarmos este duplo<br />

pressuposto taoístas de processos criativos<br />

19 É que o espaço percebido pela imaginação não pode ser<br />

o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão<br />

geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positivi<strong>da</strong>de,<br />

mas com to<strong>da</strong>s as parciali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> imaginação. Em especial,<br />

quase sempre ele atrai. Concentra o ser no interior dos<br />

limites que protegem (BACHELARD, 1993, p. 19).<br />

20 Consciência, neste contexto, se direciona a mu<strong>da</strong>nça de<br />

eixo apresenta<strong>da</strong> por Bachelard, ou seja, verticali<strong>da</strong>de do<br />

instante poético.<br />

Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 85


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

86<br />

cênicos e poéticos, ou seja, em corpo-ator,<br />

como uni<strong>da</strong>de não-agir para agir, é preciso<br />

integrar um elemento e um vínculo a mais.<br />

Estes caminhos nos levam novamente a<br />

Jullien (1998), quando expõe a estrutura<br />

<strong>da</strong> ‘ocasião’ que apresenta de um lado ‘o<br />

acaso’ e do outro ‘a arte’. Para ele:<br />

(...) o acaso de um lado e a arte, do outro:<br />

entre tychê e techne, interpõem-se um<br />

terceiro termo para pensar a ação – a<br />

ocasião (kairos). (...), entre aquilo que,<br />

de um lado, depende <strong>da</strong> fortuna (ou <strong>da</strong><br />

“divin<strong>da</strong>de”) e, do outro, aquilo que é<br />

“nosso” (a técnica), a ocasião operaria<br />

a junção de onde provém a eficácia: ela<br />

é o momento favorável que é oferecido<br />

pelo acaso e que a arte permite explorar;<br />

graças a ela, nossa ação é capaz de<br />

inserir-se no curso <strong>da</strong>s coisas, ela já não<br />

faz um arrombamento, mas consegue<br />

enxertar-se nele, aproveitando-se de<br />

sua causali<strong>da</strong>de e sendo auxilia<strong>da</strong> por<br />

ele. Graças a ela, o plano concertado<br />

consegue encarnar-se, esse momento<br />

oportuno nos dá poder, assegura nosso<br />

domínio (JULLIEN, 1998, p. 81).<br />

Deste modo, a ocasião (melhor seria<br />

dizer, a percepção e o aproveitamento <strong>da</strong><br />

ocasião), é aproxima<strong>da</strong> do tempo grego<br />

kairótico (forma qualitativa de tempo,<br />

momento certo ou oportuno) e do conceito<br />

de arte proposto por Stanislávski (apud<br />

DAGOSTINI, 2007) à linguagem teatral,<br />

o qual conceito reside na efemeri<strong>da</strong>de e<br />

na transformação, possíveis apenas na<br />

comunhão do momento presente. Agindo<br />

lógica e coerentemente, você força a sua<br />

natureza orgânica a trabalhar e, dessa<br />

forma, o subconsciente. Em nossa arte<br />

isso é fun<strong>da</strong>mental, através do consciente<br />

alcançar o subconsciente (STANISLÁVSKI<br />

apud VINOGRADSKAIA 2000, in<br />

DAGOSTINI, 2007, p. 127).<br />

Ao direcionar o princípio <strong>da</strong><br />

mutabili<strong>da</strong>de à materiali<strong>da</strong>de criativa em<br />

corpo-ator (imaginação) é possível ampliar,<br />

um pouco mais, a leitura de Grotowski<br />

(2007), ao dizer: consideramos que a<br />

composição artificial não só limite o que<br />

é espiritual que na reali<strong>da</strong>de conduza a<br />

ele. A tensão tropística entre o processo<br />

interior e forma reforça ambos. A forma<br />

é como uma armadilha muni<strong>da</strong> de isca<br />

à qual o processo espiritual responde<br />

espontanemante e contra a qual luta<br />

(GROTOWSKI, 2007, p. 106).<br />

Corporalmente, melhor dizer psicofísica<br />

e psicotécnicamente, estes princípios<br />

vinculam a compreensão em corpo-ator<br />

como experiência integra<strong>da</strong> que cumpre<br />

sua eficácia, como efeito, na vivência poética<br />

do ser. Para Jung (1991) a criação poética<br />

é um acontecimento suprapessoal e, este<br />

mesmo acontecimento, sob a fenomenologia<br />

Bachelardiana, altera a horizontali<strong>da</strong>de<br />

no eixo vertical, o instante poético. A<br />

compreensão sobre o ato poético em Jung<br />

e em Bachelard, nas nossas aproximações<br />

investigativas, nos ‘aterram’, em corpoator,<br />

na verticali<strong>da</strong>de grotowskiniana, que<br />

é a passagem energética para um nível<br />

mais sutil. Tal passagem, por sua vez<br />

engloba a questão do descer trazendo de<br />

novo essa coisa sutil dentro <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

mais comum, liga<strong>da</strong> à densi<strong>da</strong>de do corpo<br />

(GROTOWSKI, 2007, p. 235).<br />

O estado poético em corpo-ator, por<br />

conseguinte, se acontece, é sob a ação <strong>da</strong><br />

imaginação; e, (...) graças ao imaginário,<br />

a imaginação é essencialmente aberta,<br />

evasiva. É ela no psiquismo humano, a<br />

própria experiência <strong>da</strong> abertura, a própria<br />

experiência <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de (...). Como<br />

proclama Blake: A imaginação não é um<br />

estado, é a própria experiência humana<br />

(BACHELARD, 2001, p. 01).<br />

Assim, direcionando a imaginação, a<br />

motili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> presença, a verticali<strong>da</strong>de<br />

e o sutil ao universo investigativo em<br />

corpo-ator,<br />

não se trata de renunciar a uma <strong>parte</strong><br />

de nossa natureza, tudo deve ter o<br />

seu lugar natural: o corpo, o coração,<br />

a cabeça, algo que está “sob os nossos<br />

pés” e algo que está “sobre a cabeça”.<br />

Tudo com uma linha vertical, e esta<br />

verticali<strong>da</strong>de deve ser estica<strong>da</strong> entre<br />

a organici<strong>da</strong>de e the awareness.<br />

Awareness, quer dizer a consciência<br />

que não é liga<strong>da</strong> à linguagem (à<br />

maquina para pensar), mas a presença<br />

(GROTOWSKI, 2007, p. 235).<br />

Mariane Magno


N° 16 | Junho de 2011<br />

Por conseguinte, o ‘revivescer’ de tais<br />

quali<strong>da</strong>des e conceitos psicotécnicos em<br />

corpo-ator implica no trabalho insistente<br />

e detalhado, por certo tempo, até que os<br />

procedimentos e princípios propostos<br />

aos treinamentos corporais sejam<br />

suficientemente integrados, e, por essa<br />

integração dos conceitos técnicos evocamos<br />

outro princípio do método <strong>da</strong>s ações-fisicas, a<br />

a<strong>da</strong>ptação. Assim, a a<strong>da</strong>ptação stanislavskiana<br />

inclui o autodomínio técnico, integrado<br />

em corpo-ator, suficiente, o qual engloba<br />

a dinâmica mutante que o atualiza entre o<br />

não-agir, o agir e o porvir.<br />

Por esta prática insistente e investigativa<br />

(laboratórios) é possível exercitar e<br />

aprofun<strong>da</strong>r a compreensão, em corpo, que<br />

pode fun<strong>da</strong>mentar e <strong>da</strong>r materiali<strong>da</strong>de aos<br />

princípios propostos que, em treinamentos<br />

de energia, atuam como transformadores<br />

<strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de do trabalho corporal nos quais<br />

a embriogênese se vincula à cosmogênese<br />

e microcosmo ao macrocosmo a serviço do<br />

desenvolvimento do corpo-pensamento, <strong>da</strong><br />

percepção, <strong>da</strong> imaginação, <strong>da</strong> memória e <strong>da</strong><br />

consciência, ou seja, na<strong>da</strong> fazer e que na<strong>da</strong><br />

deixe de ser feito (JULIIEN, 1998, p. 107).<br />

Chamamos a atenção tanto para o<br />

espaço de treinamento quanto para o espaço<br />

de criação propostos não como resultado<br />

<strong>da</strong> consciência 21 e, sim, como um meio e<br />

uma dinâmica para se chegar a ela, porque<br />

a criativi<strong>da</strong>de é antes descobrir o que não<br />

se conhece (GROTOWSKI, 2007, p. 227). É<br />

preciso, por conseguinte, aprender como<br />

exercitar-se de maneira sincera, 22 atitude<br />

que implica no como se concentrar, para,<br />

então, descobrir como doar-se. Aquilo que<br />

se faz é preciso fazê-lo até o fim. É preciso se<br />

<strong>da</strong>r inteiramente, superando as fronteiras<br />

<strong>da</strong> cotidiani<strong>da</strong>de, de modo tangível, de<br />

ver<strong>da</strong>de. Então existe a concentração.<br />

Quando existe a doação, existe concentração<br />

(GROTOWSKI, 2007, p. 210).<br />

21 Para uma consciência que se exprime, o primeiro bem é uma<br />

imagem, e os grandes valores dessa imagem estão em sua<br />

própria expressão. Uma consciência que se exprime! Haverá<br />

outras? (BACHELARD, 1971 apud FERREIRA, 2008, p. 46).<br />

22 o problema <strong>da</strong> sinceri<strong>da</strong>de – <strong>da</strong> sinceri<strong>da</strong>de consigo<br />

mesmo - existe aonde há a revelação, não aonde se treina<br />

(GRoToWSKI, 2007, p. 201).<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Queremos com esta aproximação,<br />

experimental, abrir espaços para<br />

investigações sobre a motili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

presença cênica e <strong>da</strong> imaginação, a partir<br />

de certa presença do ator sobre si mesmo,<br />

a qual tem materiali<strong>da</strong>de orgânica, celular,<br />

energética e funcional, em um outro eixo.<br />

A transformação psicossomática <strong>da</strong><br />

ansie<strong>da</strong>de e a desaceleração mental podem<br />

potencializar e ampliar a autopercepção<br />

<strong>da</strong>s sensações em corpo-ator, que são<br />

compreensões em desenvolvimento técnico<br />

simples e indispensáveis, as quais podem<br />

se complexificar na justaposição <strong>da</strong>quilo<br />

que se treina, do como se treina e, ain<strong>da</strong>,<br />

o quanto se treina. Ou seja, ao apresentar<br />

a polari<strong>da</strong>de não-agir (como sensibili<strong>da</strong>de,<br />

como energia, como imaginação e, ain<strong>da</strong>,<br />

como o silêncio que gera o novo e cria o<br />

elo com o invisível) estamos reafirmando<br />

a importância do agir, <strong>da</strong> transpiração, <strong>da</strong><br />

insistência, <strong>da</strong> paciência e de um método<br />

em treinamento como condição para a<br />

exploração de cama<strong>da</strong>s mais profun<strong>da</strong>s e<br />

mais sutis <strong>da</strong> imaginação como materiali<strong>da</strong>de<br />

poética em corpo-ator, em outras palavras, a<br />

forma serve para a expressão <strong>da</strong> energia.<br />

O treinamento vivo, deste modo,<br />

torna-se indispensável à percepção e à<br />

materialização <strong>da</strong>quilo que pode ser o<br />

‘acaso’, já que é <strong>da</strong> interação dinâmica<br />

entre o método e o desconhecido que existe<br />

a lacuna, ou seja, as possibili<strong>da</strong>des de<br />

interações, atualizações e criações.<br />

Tais treinamentos em seus processos<br />

evolutivos podem, pela insistência<br />

sistematiza<strong>da</strong> e investigativa, levar à<br />

ampliação <strong>da</strong> percepção e <strong>da</strong> consciência - a<br />

do ator sobre si mesmo e sobre seu ofício. Ou<br />

seja, propomos a construção de bases técnicas<br />

e criativas que investiguem as origens <strong>da</strong><br />

ação (a ca<strong>da</strong> vez) e suas compreensões mais<br />

sutis em cama<strong>da</strong>s mais internas do corpo<br />

(motili<strong>da</strong>de), as quais, quando em processos<br />

poéticos, só se fazem em conjunto com a<br />

ação <strong>da</strong> imaginação, pela qual é possível<br />

atingir a singulari<strong>da</strong>de e a subjetivi<strong>da</strong>de<br />

como materiali<strong>da</strong>de criativa e autógena em<br />

corpo-ator, ou seja, uma possibili<strong>da</strong>de de<br />

correspondência com a verticali<strong>da</strong>de do<br />

instante poético em Bachelard.<br />

Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 87


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

88<br />

Segundo Grotowski (2007), sob<br />

a luz de suas investigações intensas<br />

em laboratório, o resultado (efeito)<br />

está na passagem do pesado para o sutil.<br />

Reconhecemos como ‘passagem’<br />

as transformações qualitativas<br />

(verticali<strong>da</strong>de), os voos poéticos (os<br />

pequenos e os grandes) que acontecem<br />

no trabalho do ator, os quais estão<br />

vinculados ao trabalho do ator sobre<br />

si mesmo, e que são acontecimentos,<br />

percepções e transformações profun<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong> materiali<strong>da</strong>de corporal (psicofísica,<br />

energética), isto é, em corpo-ator.<br />

Deste modo, o treinamento para o<br />

ator implica no exercício constante <strong>da</strong> sua<br />

imaginação como materiali<strong>da</strong>de corporal<br />

viva, que é apresenta<strong>da</strong> como elemento<br />

vital no método <strong>da</strong>s ações-físicas, elemento<br />

que Stanislávski faz questão de diferenciar<br />

<strong>da</strong> fantasia, devido ao seu caráter<br />

psicossomático; ou seja, a imaginação viva<br />

no ator implica no engajamento celular,<br />

logo ela acontece enraiza<strong>da</strong> no soma, como<br />

matéria poética do ser.<br />

Trata-se, portanto, de reorganizações<br />

psicossomáticas que podem materializar<br />

outros padrões para agir (estados) –<br />

transformação indispensável a qualquer<br />

criação e composição cênica. Deste modo,<br />

a alteração do padrão <strong>da</strong> respiração em<br />

corpo-ator significa a transformação do<br />

tempo-ritmo 23 em ação, que se faz pela<br />

23 Tempo-ritmo é o elemento do método stanislavskiano <strong>da</strong>s<br />

ações-físicas que organiza a materiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ação como<br />

tempo-ritmo em corpo-ator. “É antológica a experiência<br />

que realizou junto aos atores-cantores com uma dezena<br />

de metrônomos, [...],produzindo os mais variados ritmos,<br />

experimentando diferentes atmosferas, estados de ânimo<br />

e situações.[...].Mas foi em seus últimos anos de vi<strong>da</strong>,<br />

trabalhando no Estúdio de Ópera e Artes Dramática com<br />

jovens cantores e atores, que conseguiu realmente verificar<br />

o estreito vínculo do método <strong>da</strong>s ações-físicas com o temporitmo<br />

interno e externo (DAGoSTINI, 2007, p. 90). As pesquisas<br />

de K. Stanislávski nesse campo se dirigiram, sobretudo, ao<br />

estabelecimento de uma psicotécnica que elevasse a arte<br />

do ator a uma precisão absoluta <strong>da</strong> ação psicofísica e <strong>da</strong><br />

linguagem, correspondendo a uma partitura musical. Com<br />

o domínio deste recurso, que se encontra estreitamente<br />

vinculado à respiração e à atenção, todos os outros elementos<br />

<strong>da</strong> arte do ator, [...] seriam desencadeados, pois o temporitmo<br />

constitui-se num meio direto e imediato para estimular<br />

as forças motrizes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica: a mente, a vontade e o<br />

sentimento.(DAGoSTINI,2007, p. 92).<br />

transformação dos estados, os quais,<br />

por sua vez, estão vinculados à imagem<br />

em imaginação. O tempo-ritmo está<br />

presente na imaginação, no pensamento,<br />

na comunicação, nos sentimentos.<br />

(DAGOSTINI,2007, p.92)<br />

Assim, ao direcionar o não-agir<br />

de processos criativos cênicos ele<br />

fun<strong>da</strong>menta a base de experiência na<br />

vivência (investigativa) dos treinamentos<br />

pelos quais o ator pode, a partir <strong>da</strong><br />

auto-observação de si, conhecer seus<br />

padrões, pontos de tensão e pontos de<br />

relaxamento e, a partir destas investigações,<br />

trabalhar para aprender como transformálos,<br />

e, por estes processos internos (de<br />

elaboração) aprender como gerar os espaços<br />

solitários e férteis em si mesmos (lacunas,<br />

conexões) para as atualizações, criações<br />

e recriações. É que a força do ritmo atua<br />

de forma direta e imediata sobre o estado<br />

físico e psíquico que influencia o domínio<br />

dos músculos e se expressa externamente<br />

em todo aparato físico. (DAGOSTINI,<br />

2007, p. 92)<br />

Objetivamente, o que queremos<br />

dizer é que o ator, ao focar sua atenção,<br />

excessivamente, na execução <strong>da</strong> forma<br />

(seja em treinamento seja no personagem)<br />

ele fecha certos espaços, os quais, quando<br />

abertos, podem gerar o estado de<br />

disponibili<strong>da</strong>de (que sabe como retornar<br />

às origens <strong>da</strong> ação para revivescer, nãoagir<br />

para agir) de questionamentos, de<br />

investigações e de atualizações. Ou seja,<br />

sem a curiosi<strong>da</strong>de e a atenção àquilo<br />

que é vivo no momento, a percepção e<br />

atenção podem se enrijecer (fixar) por<br />

estar predominantemente direciona<strong>da</strong>s<br />

ao aspecto mais aparente (consciente),<br />

e, assim, o trabalho perde a dinâmica <strong>da</strong><br />

renovação que refresca, ele não integra<br />

o que emerge do inconsciente e do<br />

momento.<br />

Na atitude-condição incompleta,<br />

portanto, - a do agir excessivo, imposto,<br />

como polari<strong>da</strong>de desconexa do não-agir -<br />

sob a luz taoísta, reside a impossibili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> conexão, <strong>da</strong> evolução e <strong>da</strong> eficácia,<br />

porque esta relação conduziria à cisão entre<br />

Mariane Magno


N° 16 | Junho de 2011<br />

os polos, logo, à imobili<strong>da</strong>de 24 <strong>da</strong> dinâmica.<br />

Enquanto que o agir provocado, alimentado<br />

e interado no não-agir preservaria a<br />

dinâmica <strong>da</strong> presença, na qual somos ativos<br />

e totalmente passivos ao mesmo tempo.<br />

Em que a presença do outro se manifesta<br />

por si só, sem que se procure. Quando é<br />

elimina<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a diferença entre corpo e<br />

alma. Naquele momento podemos dizer<br />

que não estamos divididos (GROTOWSKI,<br />

2007, p. 211).<br />

A ideia <strong>da</strong> repetição, por conseguinte,<br />

como um impulso organizador para agir<br />

(aquele que <strong>parte</strong> apenas dos elementos<br />

conhecidos, forma) não levaria à eficácia,<br />

como organici<strong>da</strong>de, por sugerir um excesso<br />

de saber e de controle, ou seja, certa rigidez.<br />

No lugar <strong>da</strong> palavra ‘controle’, deste modo,<br />

propomos a expressão ‘domínio técnico’,<br />

que interado de certa disponibili<strong>da</strong>de<br />

interna (imaginação, curiosi<strong>da</strong>de,<br />

concentração, atenção e escuta sensível)<br />

se funde ao inédito do momento até em<br />

suas sutilezas, e, juntos, podem possibilitar<br />

um saber retornar às origens <strong>da</strong> ação, em<br />

estado pleno de curiosi<strong>da</strong>de e de atenção,<br />

ou seja, um caminho que une a precisão e a<br />

espontanei<strong>da</strong>de.<br />

Por este caminho, portanto, é que se faz<br />

a dinâmica entre aquilo que é codificado<br />

(ação ou forma ou partitura) e ao mesmo tempo<br />

desconhecido (não-ação, não-forma, nãosaber<br />

- inconsciente). Deste modo, propomos<br />

a motili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> presença pela percepção<br />

que absorve a novi<strong>da</strong>de que emerge do<br />

momento presente e, por ela, motili<strong>da</strong>de, o<br />

corpo-ator pode se refazer, se reconstruir e<br />

se autocriar. Podemos ilustrar esta atitude<br />

em movimento pelo imaginário taoísta,<br />

24 É preciso esclarecer que imobili<strong>da</strong>de, neste contexto,<br />

não tem relação com a “imobili<strong>da</strong>de dinâmica” utiliza<strong>da</strong> pela<br />

antropologia teatral (BARBA e SAVARESE, 1995) para definir<br />

estado em que o corpo aparentemente imóvel, internamente<br />

continua em ação, neste caso a ‘imobili<strong>da</strong>de’ é apenas<br />

externa e não imobili<strong>da</strong>de de ação. Para Stanislávski (apud<br />

DAGoSTINI, 2007) ‘imobili<strong>da</strong>de’ foi utiliza<strong>da</strong> para apresentar<br />

a potencialização interna <strong>da</strong> dramatici<strong>da</strong>de, ou seja, para<br />

os dois a terminologia aponta o mesmo sentido dramático.<br />

Imobili<strong>da</strong>de, aqui, resgata a premissa de imanência e, por<br />

isso, a terminologia está associa<strong>da</strong> com as ações desconexas<br />

<strong>da</strong>quilo que é imanente e, por isso, sem possibili<strong>da</strong>de de<br />

movimento, logo, sem possibili<strong>da</strong>de de evoluir.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

como o corpo do dragão-serpente, ela<br />

reage em todos os sentidos (serpente do<br />

monte Chang proposta como modelo de<br />

estratégia): ‘Quando a atacam na cabeça,<br />

é a cau<strong>da</strong> que se ergue; quando atacam na<br />

cau<strong>da</strong>, é a cabeça que se ergue, quando<br />

atacam no centro, as duas extremi<strong>da</strong>des<br />

se erguem ao mesmo tempo’. Como<br />

esse tratado de diplomacia o resume,<br />

a reação ‘não tem lugar próprio’, ela<br />

pode produzir em qualquer ponto e em<br />

qualquer momento. Em uma palavra,<br />

não é localizável; sendo assim, está de<br />

acordo com a ubiqui<strong>da</strong>de operatória <strong>da</strong><br />

transformação (JULLIEN, 1998, p. 123).<br />

Seguindo adiante com as imagens<br />

que ilustram o princípio <strong>da</strong> eficácia e <strong>da</strong><br />

mutabili<strong>da</strong>de, Jullien (1988) apresenta a<br />

recepção (não-agir) que gera a mobili<strong>da</strong>de<br />

necessária ao espírito, 25 utilizando<br />

mais uma vez o imaginário mitológico<br />

e animalizante chinês para revelar a<br />

dinâmica eficaz do ‘agir’(sob o duplo<br />

pressuposto) como o dragão:<br />

A imagem <strong>da</strong> serpente ou, melhor ain<strong>da</strong>,<br />

do dragão exprime bem essa mobili<strong>da</strong>de<br />

do espírito que permite evoluir à vontade,<br />

sem jamais ser estorvado nem sofrer<br />

(evolução opondo-se a ação): o corpo<br />

maleável do dragão não tem forma<br />

fixa, ele ondula e se curva em todos<br />

os sentidos, contrai-se para distender,<br />

concerta-se para progredir; ele esposa tão<br />

bem as nuvens que, sempre levado por<br />

elas avança sem fazer esforço. Por isso,<br />

quase não se distingue delas. Do mesmo<br />

modo, a intencionali<strong>da</strong>de estratégica não<br />

tem intenção defini<strong>da</strong>, ela não se obstina<br />

em nenhum plano para melhor seguir<br />

todos os contornos <strong>da</strong> situação e pode<br />

aproveitá-los: se o estrategista não age, é<br />

25 Ao espírito resta a tarefa de fazer sistemavs, de agenciar<br />

experiências diversas para tentar compreender o universo.<br />

Ao espírito convém a paciência de instruir-se ao longo do<br />

passado do saber. o passado <strong>da</strong> alma está tão longe! A alma<br />

não vive ao fio do tempo. Ela encontra seu repouso nos<br />

universos imaginados pelo devaneio. Acreditamos, pois,<br />

poder mostrar que as imagens cósmicas pertencem à alma,<br />

à alma solitária, à alma princípio de to<strong>da</strong> solidão. As ideias<br />

se aprimoram e se multiplicam no comércio dos espíritos.<br />

As imagens, em seu resplendor, realizam uma comunhão<br />

muito simples <strong>da</strong>s almas. Dois vocabulários deveriam ser<br />

organizados para estu<strong>da</strong>r, um o saber, outro a poesia (...) Seria<br />

vão constituir dicionários para traduzir de uma língua para<br />

outra (BACHELARD, 2006, p. 15).<br />

Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 89


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

90<br />

porque ele não fragmenta nem depende<br />

sua energia numa ação determina<strong>da</strong>,<br />

mas como o corpo infinitamente solto do<br />

dragão, vale-se <strong>da</strong> renovação <strong>da</strong> situação<br />

para – evoluindo sempre - não cessar de<br />

avançar (JULLIEN, 1998, p.121).<br />

Para os chineses, to<strong>da</strong>via, as imagens<br />

<strong>da</strong> serpente e do dragão são mais que<br />

metáforas, elas são símbolos vivos<br />

enraizados na filosofia e no imaginário<br />

mitológico e corporal, e, por meio deles<br />

um caminho à evolução (saber integrarse<br />

àquilo que já existe e agir junto). Para<br />

isso, é preciso saber como melhor utilizar<br />

a energia e o sentido imanentes e, com uma<br />

atitude ‘quase que invisível’, saber moverse<br />

de forma integra<strong>da</strong>, o que nos leva a<br />

insistir que o não-agir não é um abandono<br />

do agir, ele é vivo e possui critérios.<br />

Compreendemos o agir ‘quase<br />

que invisível’, na condição corpo-ator,<br />

como a apropriação técnica (a<strong>da</strong>ptação<br />

stanislavskiana) e a superação técnica que,<br />

neste nível de autodomínio cênico, causa<br />

o efeito <strong>da</strong> naturali<strong>da</strong>de no agir, ou seja, a<br />

segun<strong>da</strong> natureza stanislavskiana.<br />

Sob a reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imaginação<br />

em corpo-ator não há cisão entre<br />

sujeito e objeto (nuvens e dragão), um<br />

alimenta-se nas provocações do outro<br />

e, pela dinâmica mutante, é possível<br />

materializar a uni<strong>da</strong>de como autocriação<br />

em transformação constante.<br />

Desta perspectiva, pelo duplo<br />

pressuposto taoísta, também não há<br />

cisão entre a vivência em corpo-ator e a<br />

reflexão que se faz, ambas se fundem<br />

como experiência. Ou seja, a respiração<br />

é que relaxa a musculatura para que esta<br />

se alongue um pouco mais pelo fluir <strong>da</strong><br />

energia, e não a força; pulsa no mesmo<br />

corpo que respira o texto para perceber um<br />

sentido a mais no pensamento que se faz.<br />

Na interação dinâmica entre a imaginação e a<br />

atenção, encontramos a ação e a contemplação<br />

(não-ação) e assim identificamos, mais uma<br />

vez, em texto, o princípio não agir para agir.<br />

Nessa contemplação em profundi<strong>da</strong>de,<br />

o sujeito toma também consciência de<br />

sua intimi<strong>da</strong>de. Essa contemplação<br />

não é, pois, uma Einfühlung imediata,<br />

uma fusão desenfrea<strong>da</strong>. É antes uma<br />

perspectiva de aprofun<strong>da</strong>mento para o<br />

mundo e para nós mesmos. Permite-nos<br />

ficar distantes diante do mundo. Diante<br />

<strong>da</strong> água profun<strong>da</strong>, escolhes tua visão;<br />

podes ver a vontade o fundo imóvel ou<br />

a corrente, a margem ou o infinito; tens o<br />

direito ambíguo de ver e de não ver (...)<br />

(BACHELARD, 1947 apud FERREIRA,<br />

2008, p. 47).<br />

Sobre esta perspectiva-experiência,<br />

segundo Jullien (1998): Esposar o curso<br />

espontâneo <strong>da</strong>s coisas, responder-lhe<br />

“como fêmea”, tal como recomen<strong>da</strong> o<br />

LAOZI (...), permite conceber a conduta<br />

não mais em termos de ação e sim de reação<br />

(...); e esse insinuar-se basta para mu<strong>da</strong>r<br />

globalmente as perspectivas (JULLIEN,<br />

1998, p.121).<br />

Esta brevíssima apresentação <strong>da</strong><br />

polari<strong>da</strong>de não-agir (integra<strong>da</strong> ao agir)<br />

tem com objetivo apontar o sentido<br />

do qual emergiu e, por aquilo que<br />

foi ‘despertado’ e ‘atiçado’, abrir a<br />

possibili<strong>da</strong>des para investigações em<br />

laboratório sobre o princípio <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de<br />

dinâmica que também é o princípio <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>.<br />

Algumas relações, do não-agir para agir<br />

em corpo, propostas em práticas corporais<br />

chinesas, podem ser identifica<strong>da</strong>s pelo<br />

como se propõe o conceito de mutação<br />

em movimento, como, por exemplo, no<br />

caminhar <strong>da</strong> forma tai chi chuan pelo qual<br />

para se ir a um lado toma-se impulso no<br />

outro. Este alimento do agir no lado oposto<br />

do corpo, sob a visão <strong>da</strong> lineari<strong>da</strong>de, pode<br />

ser visto como um desvio, o <strong>da</strong> direção<br />

deseja<strong>da</strong>. Porém, sob a lógica chinesa<br />

e taoísta, ir ao lado oposto antes de ir à<br />

frente não é um desvio, é, sim, a formação,<br />

a potencialização e o espaço para a<br />

atualização do movimento seguinte, ou<br />

seja, é uma estratégia, e, ao mesmo tempo,<br />

é um tempo-espaço que possibilita a visão<br />

(percepção do dragão).<br />

Assim, neste ‘como’ caminhar, antes<br />

de se <strong>da</strong>r um passo a frente, há um passo<br />

(desvio) para o lado. A sequência é a<br />

Mariane Magno


N° 16 | Junho de 2011<br />

seguinte: para o lado, para frente, para<br />

trás, para o outro lado, para frente e para<br />

trás, sucessivamente.<br />

Barba (1995), ao falar sobre este elemento<br />

técnico, a <strong>da</strong>nça <strong>da</strong>s oposições, afirma que se<br />

quisermos, de fato, compreender a dialética<br />

no nível material do teatro é indispensável<br />

estu<strong>da</strong>r o princípio <strong>da</strong>s oposições nos atores<br />

orientais, que é a base sobre a qual eles,<br />

atores orientais, constroem e desenvolvem<br />

to<strong>da</strong>s as suas ações. O ator chinês sempre<br />

começa uma ação em seu oposto (...) se<br />

deseja ir para a esquer<strong>da</strong> começa indo para a<br />

direita, se quer agachar primeiro se levanta<br />

na ponta dos pés (BARBA; SAVARESE,<br />

1995, p.176). Deste modo, a centelha <strong>da</strong><br />

forma está na receptivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> base no<br />

lado oposto do corpo; há sempre esta nãoação<br />

que é o espaço-momento que esposa<br />

o tempo, gera e atualiza a ação, ou seja, o<br />

não-agir também tem sua materiali<strong>da</strong>de<br />

mutante. Este acontecimento vivo se faz<br />

tanto nas relações dos espaços interno e<br />

externo em corpo-ator, quanto nas relações<br />

dinâmicas entre o ator e o espaço físico.<br />

Deste modo, o engajamento global do<br />

corpo para agir inclui o espírito e a alma<br />

do próprio agir. Portanto, forma e matéria<br />

neste processo de mutabili<strong>da</strong>de compõem<br />

uma uni<strong>da</strong>de mutante.<br />

Como vivência, em corpo-ator, a forma<br />

(estrutura consciente) não existe sem a nãoforma<br />

(fluência de energia, liber<strong>da</strong>de interior,<br />

variáveis do momento,...), e é assim que<br />

vinculamos o comprometimento espiritual<br />

à expressivi<strong>da</strong>de como materiali<strong>da</strong>de<br />

artística, e, pela provocação de uma à<br />

outra, é possível agir e levar a dinâmica <strong>da</strong><br />

imaginação adiante. O essencial é que uma<br />

imagem seja acerta<strong>da</strong>. Pode-se esperar,<br />

então, que ela tome o caminho <strong>da</strong> alma, que<br />

não se embarace nas objeções do espírito<br />

crítico, que não seja deti<strong>da</strong> pela pesa<strong>da</strong><br />

mecânica dos recalques. (...) O devaneio<br />

nos põe em estado de alma nascente<br />

(BACHELARD, 2006, p.15).<br />

Cabe insistir, por conseguinte, que o<br />

foco <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de proposta (como efeito<br />

<strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de) não está nem no eixo do agir e<br />

nem no eixo do não-agir, mas, sim, naquilo<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

que resulta <strong>da</strong> interação entre ambos no<br />

momento, ou seja, nos vínculos pelos<br />

quais as relações podem ser estabeleci<strong>da</strong>s<br />

e desenvolvi<strong>da</strong>s; nelas, nas relações<br />

vivas (dinâmica) é que se encontram as<br />

possibili<strong>da</strong>des reais de transformação, ou<br />

seja, a sensibili<strong>da</strong>de, o senso <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

imagina<strong>da</strong> e o autodomínio técnico atuam<br />

como uni<strong>da</strong>de, e, assim, a profundi<strong>da</strong>de do<br />

aprimoramento de um elemento se dá em<br />

justaposição com os outros.<br />

Sobre estes efeitos não-agir para agir,<br />

Grotowski apud Barba e Savarese fala<br />

<strong>da</strong> sua existência na vi<strong>da</strong> normal em<br />

técnicas cotidianas, mas que, em corpoator,<br />

em situação de representação há uma<br />

amplificação extrema, que resulta algo que<br />

possui outra quali<strong>da</strong>de (GROTOWSKI apud<br />

BARBA; SAVARESE, 1995, p. 236).<br />

Aprender corretamente a forma dos<br />

exercícios (uma forma de caminhar ou<br />

de se mover), entretanto, não é o objetivo<br />

em si, mas, sim, a possibili<strong>da</strong>de de<br />

transformação corporal, na quali<strong>da</strong>de com<br />

que ela é executa<strong>da</strong> em corpo-ator; ou seja,<br />

quando não-agir e agir atuarem, um sob a<br />

provocação e influencia do outro, como um<br />

processo contínuo sob qual só é possível<br />

identificar apenas a continui<strong>da</strong>de.<br />

Assim, ao utilizarmos o princípio nãoagir<br />

para agir em investigações corporais,<br />

propomos um modo para encontrar um<br />

ponto de conexão, uma abor<strong>da</strong>gem que<br />

inclui a receptivi<strong>da</strong>de como alimento<br />

e, principalmente, um espaço silencioso<br />

e solitário de comunicação e criação em<br />

corpo-ator. O devaneio cósmico (...) é um<br />

fenômeno <strong>da</strong> solidão, (...) que tem sua raiz<br />

na alma do sonhador. Não necessita de<br />

um deserto para estabelecer-se e crescer.<br />

Basta um pretexto – e não uma causa -<br />

para que nos ponhamos em ‘situação de<br />

solidão’, em situação de solidão sonhadora<br />

(BACHELARD, 2006, p.14).<br />

Enlaçamo-nos na eficácia do pretexto<br />

para que na condição corpo-ator ‘nos<br />

ponhamos em situação de solidão’<br />

(bachelardianos), como as compreensões<br />

psicotécnicas (fenomenotécnicas)<br />

e individuais indispensáveis aos<br />

Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 91


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

92<br />

treinamentos e aos processos criativos.<br />

Assim, evidenciamos ain<strong>da</strong> mais o eixo<br />

que move a materiali<strong>da</strong>de cênica corpoator,<br />

no trabalho do ator sobre si mesmo; ou<br />

seja, a disponibili<strong>da</strong>de e a curiosi<strong>da</strong>de<br />

que geram certa atitude em face ao<br />

método, a do eterno retorno às origens<br />

para saber como, a ca<strong>da</strong> vez, se colocar<br />

em situação.<br />

Sobre a potência não-forma Grotowski<br />

utiliza as expressões subleis, antiimpulso<br />

ou anti-movimento. Deste modo,<br />

Grotowski afirma sua materiali<strong>da</strong>de<br />

dinâmica (a não-forma por ele: antiimpulso<br />

ou anti-movimento) isso é muito<br />

concreto, ele existe. Pode ocorrer em<br />

níveis diferentes, como uma espécie<br />

de silêncio antes do movimento, um<br />

silêncio preenchido com o potencial<br />

(GROTOWSKI apud BARBA; SAVARESE<br />

1995, p. 236).<br />

As investigações brevemente<br />

organiza<strong>da</strong>s (aponta<strong>da</strong>s) neste texto<br />

têm o propósito de flexibilizar e abrir<br />

lacunas à metodologia de abor<strong>da</strong>gem do<br />

treinamento, <strong>da</strong> docência e dos processos<br />

criativos e, assim, aproximar o ator um<br />

pouco mais de seus objetivos criativos,<br />

por meio <strong>da</strong>s experimentações em corpoator<br />

a partir <strong>da</strong>s conexões internas de<br />

energia (silêncio, solidão, concentração)<br />

pelas quais ele poderá conectar-se em<br />

‘si mesmo’ e a partir deste espaço aberto<br />

a comunicação possibilitar diálogos<br />

internos (imaginação enraiza<strong>da</strong> no soma)<br />

como que devaneios em expressivi<strong>da</strong>de<br />

corporal ele possa trabalhar sobre si mesmo<br />

e se autocriar poeticamente:<br />

o devaneio poético nos dá o mundo<br />

dos mundos. O devaneio poético<br />

é um devaneio cósmico. É uma<br />

abertura para um mundo belo, para<br />

mundos belos. Dá ao eu um não-eu<br />

que é o bem do eu: o não-eu meu. É<br />

esse não-eu meu que encanta o eu<br />

do sonhador e que os poetas sabem<br />

fazer-nos partilhar. Para o meu eu<br />

sonhador, é esse não-eu meu que<br />

me permite viver minha confiança<br />

de estar no mundo. Em face de<br />

um mundo real, pode-se descobrir<br />

em si mesmo o ser <strong>da</strong> inquietação.<br />

Somos então jogados no mundo,<br />

entregues à imuni<strong>da</strong>de do mundo,<br />

à negativi<strong>da</strong>de do mundo, o<br />

mundo é então o na<strong>da</strong> humano (...)<br />

(BACHELARD, 2006, p.13).<br />

O objetivo <strong>da</strong>s lacunas é, ain<strong>da</strong>, o de<br />

investigar a atitude receptiva, estado,<br />

como um recurso a mais nos estudos <strong>da</strong><br />

concentração, <strong>da</strong> percepção, <strong>da</strong> atenção e <strong>da</strong><br />

ação convergentes sob a imaginação, em<br />

corpo-ator.<br />

Deste modo, as experimentações<br />

insistentes com atenção e calma,<br />

em laboratório, podem investigar,<br />

um pouco mais, a compreensão<br />

psicofísica <strong>da</strong>quilo que, ocidental e<br />

coletivamente, denominamos como<br />

método e procedimentos técnicos;<br />

organizadores que reconhecemos<br />

individualmente como psicotécnica, os<br />

quais, sob o princípio <strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de,<br />

possivelmente poderiam ser<br />

identificados como um caminho.<br />

A palavra Caminho foi utiliza<strong>da</strong><br />

como tradução de Tao, mas também<br />

é sabido que o Tao absoluto não pode<br />

ser dito e que, quando dito, não é<br />

mais o Tao Ver<strong>da</strong>deiro. 26 . Este aforismo,<br />

para os chineses, não é um paradoxo,<br />

é, sim, a abertura que possibilita a<br />

interação e a continui<strong>da</strong>de; ou seja,<br />

é o espaço disponível àquilo que não<br />

pode ser dito e nem antecipado, mas,<br />

sim, experienciado em seu tempo.<br />

26 Watts (1999) nos fala sobre as diferentes terminologias<br />

usa<strong>da</strong>s para traduzir TAo e <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des existentes<br />

(dificul<strong>da</strong>des de quê/para quê?). Para exemplificar, ele diz:<br />

Assim o TAo TE CHING se inicia com as palavras enigmáticas,<br />

em geral traduzi<strong>da</strong>s como “o TAo que pode ser dito não é o<br />

TAo eterno”. Esta tradução oculta o fato de que o ideograma<br />

traduzido como “QUE PoDE SER DITo” é igualmente o TAo,<br />

porque essa palavra também significa ‘falar’ ou ‘dizer’,<br />

conquanto possivelmente não tivesse essa utilização no<br />

século 3. Literalmente, diz a passagem: ‘Tao pode ser Tao não<br />

eterno ou [regular] Tao (WATTS, 1999, p.69). o autor segue<br />

apresentando tantas outras possibili<strong>da</strong>des de traduções e<br />

por consequência de interpretações. Wilhelm (1995) também<br />

diz: A mutação não é desprovi<strong>da</strong> de sentido - se o fosse<br />

não seria possível formular qualquer conhecimento a seu<br />

respeito -, mas está sujeita à lei universal do TAo (WILHELM,<br />

1995, in introdução IChing).<br />

Mariane Magno


N° 16 | Junho de 2011<br />

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Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 93


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Paul [Guilherme Rótulo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

o último Pirandello e sua personagem-atriz 95


N° 16 | Junho de 2011<br />

o úLTIMo PIRANDELLo E SUA<br />

PERSoNAGEM-ATRIZ<br />

Resumo<br />

O decênio 1925-1936 será a fase mais conturba<strong>da</strong> e complexa<br />

na experiência artística e existencial de Pirandello: o<br />

dramaturgo se envolve com os problemas concretos do<br />

fazer teatral, questiona a própria poética que o atormentou<br />

a vi<strong>da</strong> inteira e, principalmente, mantém com a jovem<br />

atriz Marta Abba uma ambígua relação pessoal e artística.<br />

Escassamente discuti<strong>da</strong>, se compara<strong>da</strong> ao número de estudos<br />

<strong>da</strong> fase imediatamente anterior, esta dramaturgia tardia irá<br />

testemunhar uma grande explosão de contribuições críticas,<br />

na Itália, a partir de 1995 (ano de publicação do epistolário<br />

Pirandello-Abba). Mas, no Brasil, sua gênese ain<strong>da</strong><br />

permanece substancialmente desconheci<strong>da</strong>.<br />

Palavras-chave: Luigi Pirandello, Marta Abba, teatro<br />

autobiográfico, Vamp Virtuosa, personagem-atriz.<br />

Abstract<br />

The years between 1925 and 1936 were the most disturbed<br />

and complex ones in Pirandello’s artistic and existential<br />

experience: in that period, the playwright was engaged<br />

with real problems concerning theatrical making,<br />

questioning his own poetics – something that was around<br />

for his whole life – and, above all, kept a very ambiguous<br />

personal and artistic relationship with the young actress<br />

Marta Abba. Scarcely investigated if compared with the<br />

number of studies related to the earlier periods, this late<br />

production by Pirandello would witness an enormous<br />

explosion of critical studies in Italy from 1995 on (the<br />

publication year of the letters Pirandello – Abba). On the<br />

contrary, its genesis remains absolutely unknown in Brazil.<br />

Keywords: Luigi Pirandello, Marta Abba, autobiographical<br />

theatre, Virtuous Vamp, character actress.<br />

Martha Ribeiro 1<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

o último Pirandello e sua personagem-atriz 97


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

98<br />

Muito se falou sobre<br />

o teatro de Luigi<br />

Pirandello (1867-1936)<br />

e pouco se explicou<br />

sobre sua última<br />

estação dramatúrgica, especialmente os<br />

dramas escritos para a atriz Marta Abba<br />

(1900-1988), principal intérprete e musa<br />

inspiradora de sua obra tardia. No Brasil, os<br />

estudos ain<strong>da</strong> se orientam principalmente<br />

em torno <strong>da</strong> assim denomina<strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />

fase de sua dramaturgia – que di<strong>da</strong>ticamente<br />

se abre com Cosi è (si vi pare), em 1917, e<br />

que se fecha em 1924 (antes <strong>da</strong> tessitura de<br />

Diana e la Tu<strong>da</strong> em 1925). Em sua grande<br />

maioria, as leituras giram em torno do<br />

relativismo pirandelliano, reflexo de uma<br />

condição burguesa fratura<strong>da</strong>, identificando<br />

to<strong>da</strong> a sua obra teatral na ideia de oposição<br />

entre um indivíduo isolado e um corpo<br />

social; análise que se impôs ao final dos<br />

anos cinquenta a partir de um longo artigo<br />

de Mario Baratto intitulado Le théâtre di<br />

Pirandello. Uma leitura que de fato serviu<br />

para organizar um primeiro retrato do<br />

autor, mas que, to<strong>da</strong>via, nos oferece um<br />

quadro apenas parcial, já que não chega a<br />

contemplar a obra tardia.<br />

A incompreensão de sua última<br />

produção permanece com Arcangelo Leone<br />

de Castris, no livro Storia di Pirandello de<br />

1962 que chega a liqui<strong>da</strong>r um texto capital<br />

como Questa sera si recita a sogetto, como<br />

exemplo de uma “involução” de uma<br />

desvitalização artística que leva o autor <strong>da</strong><br />

“poesia a técnica”, definindo a peça como<br />

simples postulado de artifícios teatrais<br />

sem valor ideológico. Na medi<strong>da</strong> em<br />

que Pirandello se afasta de sua primitiva<br />

inspiração – de poeta <strong>da</strong> condição trágica<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de burguesa, <strong>da</strong> consciência<br />

dividi<strong>da</strong> - e busca experimentar evasões<br />

surrealistas, fugas ao irracional, na crença<br />

1 Martha Ribeiro é Diretora teatral e Professora Adjunta do<br />

Departamento de Artes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense,<br />

Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS), e do Programa<br />

de Pós-Graduação em Ciência <strong>da</strong> Arte <strong>da</strong> UFF. É Doutora<br />

em Teoria e História Literária (UNICAMP-IEL), com período<br />

sanduíche na Università di Torino. Realizou Pós-Doutorado na<br />

UNICAMP-IAR. Em suas publicações, destaca-se o livro “Luigi<br />

Pirandello: um teatro para Marta Abba”, <strong>da</strong> Editora Perspectiva.<br />

<strong>da</strong> existência de uma reali<strong>da</strong>de <strong>superior</strong>, ou<br />

de um “corpo sem nome”, como desejado<br />

pela Ignota de Come tu mi vuoi (1929), seu<br />

teatro é visto como decadente e indigno de<br />

qualquer exegese crítica. Só no final dos<br />

anos 60, é que se vê uma recuperação dos<br />

três mitos pirandellianos (La nuova colonia,<br />

Lazzaro, I giganti della montagna) a partir do<br />

livro Il teatro mitico di Pirandello de Marziano<br />

Guglielminetti. Mas ain<strong>da</strong> havia todo<br />

um filão dramatúrgico que permanecia<br />

excluído <strong>da</strong>s análises críticas: de Diana e<br />

la Tu<strong>da</strong>, passando pela L’amica delle mogli,<br />

Trovarsi, Quando si è qualcuno e Come tu mi<br />

vuoi é todo um teatro que substancialmente<br />

foi posto de lado pela crítica, sendo<br />

recuperado, mais soli<strong>da</strong>mente, e sem os<br />

preconceitos que insistentemente rebaixava<br />

este teatro em confronto com a produção<br />

anterior, somente a partir dos anos 80, com<br />

as análises pioneiras de Roberto Alonge,<br />

Giovanni Macchia e Massimo Castri.<br />

Esta dramaturgia permaneceu por<br />

longos anos analisa<strong>da</strong> como desviante do<br />

ver<strong>da</strong>deiro núcleo poético do dramaturgo,<br />

pois parecia que o autor retornava a uma<br />

ideia de teatro já supera<strong>da</strong>, recuperando<br />

um tipo de relação impossível (que se<br />

quer invisível) entre personagem e ator.<br />

Aquela nódoa obscura de psicologia e<br />

de interiori<strong>da</strong>de, portador <strong>da</strong> ideologia<br />

e <strong>da</strong> prática naturalista, o personagem<br />

dramático, voltava a estabelecer na<br />

dramaturgia pirandelliana do nosso uma<br />

relação com o ator basea<strong>da</strong> no mito <strong>da</strong><br />

transparência, isto é, na ilusão de que<br />

entre ator e personagem se estabelece uma<br />

relação total de superposição, e até mesmo<br />

de fusão, herança de um teatro naturalista,<br />

e, consequentemente, um dos maiores<br />

obstáculos aos ideais de liber<strong>da</strong>de e de<br />

autonomia plena <strong>da</strong> cena; em sua vertente<br />

formalista. Contemporaneamente aos<br />

reformadores teatrais, Pirandello tinha<br />

consciência <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong> relação<br />

personagem-ator para a cena teatral e<br />

<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de se estabelecer uma<br />

níti<strong>da</strong> separação entre as identi<strong>da</strong>des.<br />

No ensaio Illustratori, attori e traduttori<br />

(1907) é possível verificar o engajamento<br />

Martha Ribeiro


N° 16 | Junho de 2011<br />

na direção de uma separação total entre<br />

as <strong>parte</strong>s, mas a linha de comunicação<br />

pretendi<strong>da</strong> por Pirandello se <strong>da</strong>va entre<br />

o personagem e o espectador, o ator seria<br />

na<strong>da</strong> mais do que um terceiro elemento<br />

incômodo na fruição <strong>da</strong> obra de arte.<br />

Embora a autonomia do personagem<br />

em relação ao ator seja reivindica<strong>da</strong> tanto<br />

teoricamente quanto poeticamente, isto<br />

é, no texto Sei personaggi in cerca d’autore<br />

(1921), nos argumentos <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de<br />

de se representar o drama, se reconhece os<br />

pressupostos do ensaio Illustratori, attori<br />

e traduttori, se verifica em Pirandello uma<br />

nostalgia em relação ao mito <strong>da</strong> transparência.<br />

O uso <strong>da</strong> fórmula “teatro no teatro” estabelece<br />

coincidências entre o mundo ficcional e o<br />

mundo real: o espaço descrito pelo drama<br />

é o mesmo espaço do palco real e os atores<br />

se duplicam em cena, representando eles<br />

mesmos: ou seja, atores. Mas se existe a<br />

consciência de uma distância entre ator<br />

e personagem, na prática se verifica uma<br />

espécie de tentação em atingir com o teatro, a<br />

partir do personagem, aquela autentici<strong>da</strong>de<br />

profun<strong>da</strong> que a experiência cotidiana nos<br />

nega. Na peça Sei personaggi se verifica uma<br />

forte tensão entre a forma dramática e o<br />

conteúdo do texto, pois enquanto o discurso<br />

dos seis personagens desenvolve a ideia<br />

de uma irremediável distância entre a cena<br />

(reali<strong>da</strong>de material) e o texto (reali<strong>da</strong>de<br />

fantástica), através do qual os personagens<br />

rejeitam qualquer tentativa de representação<br />

por <strong>parte</strong> dos atores, na forma dramática se<br />

observa uma tentativa de recuperação <strong>da</strong><br />

transparência perdi<strong>da</strong>.<br />

Com Pirandello, a perspectiva em<br />

relação à interpretação se assemelha<br />

ao modelo naturalista, mas com duas<br />

fun<strong>da</strong>mentais diferenças: uma nova ideia<br />

de personali<strong>da</strong>de humana, elabora<strong>da</strong> no<br />

ensaio L’umorismo (1908), e a visão de<br />

<strong>superior</strong>i<strong>da</strong>de do personagem em relação<br />

ao ser humano. No palco, o ator não deve<br />

se transformar em uma figura humana,<br />

deve evocar um ser diferente, estranho,<br />

que vive em uma outra esfera de reali<strong>da</strong>de.<br />

Não é só o físico do ator que se diferencia<br />

do personagem, sua natureza é que é feita<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

de outra matéria e que por isso arrisca<br />

ocultar o caráter profundo e essencial <strong>da</strong><br />

criatura fantástica. Se é possível falar de<br />

uma teoria atorial pirandelliana diremos<br />

que, ao inverso do naturalismo, mas<br />

de efeito semelhante, sua dramaturgia<br />

propõe a possessão do intérprete pelo<br />

personagem dramático. Não será o ator a<br />

entrar no personagem, mas o personagem<br />

a entrar no ator. O teatro como local<br />

privilegiado do encontro e do desencontro<br />

entre uma reali<strong>da</strong>de <strong>superior</strong> e o mundo<br />

material <strong>da</strong> cena. Palco onde se verifica ao<br />

mesmo tempo uma distância e uma ilusão<br />

de identificação, onde a cena oscila entre<br />

a ficção, a tentativa de representação, e<br />

a instalação do real, na idealização de<br />

possessão do ator pelo personagem. Sem<br />

abandonar a nostalgia utópica do mito <strong>da</strong><br />

transparência, mas mantendo a diferença<br />

entre as identi<strong>da</strong>des, Pirandello faz do<br />

corpo do ator não uma marionete, e sim<br />

um fantasma; mito que permeia não só<br />

Sei personaggi, mas, implicitamente ou<br />

explicitamente, to<strong>da</strong> sua obra posterior.<br />

O sujeito isolado, a consciência dividi<strong>da</strong>,<br />

reflexo de um mundo também em crise, e<br />

<strong>da</strong> própria visão do autor sobre o mundo,<br />

nasce na poética do humorismo: ao valor de<br />

integração social o dramaturgo contrapõe<br />

o homem só; à compostura <strong>da</strong> forma social<br />

o phatos, o irromper <strong>da</strong> paixão, sempre<br />

associado a uma profusão de raciocínios<br />

desagregadores. Mas, na medi<strong>da</strong> em que<br />

o processo de isolamento do personagem<br />

humorístico atinge um grau extremo,<br />

causando a per<strong>da</strong> irremediável de sua<br />

identi<strong>da</strong>de (como exemplo a Sra. Ponza de<br />

Cosi è (si vi pare), de 1917), Pirandello se vê<br />

numa encruzilha<strong>da</strong>: o maneirismo do seu<br />

próprio estilo. E é neste momento de crise<br />

que um outro personagem, mais humano,<br />

menos cerebral, precisa nascer: se trata<br />

de uma tentativa de recuperação <strong>da</strong>quela<br />

força original, mágica, irreal, mística e<br />

mais positiva que pertencia a um teatro de<br />

outrora: <strong>da</strong> nostalgia de uma transparência<br />

perdi<strong>da</strong>, o autor, em sua última fase, faz do<br />

teatro um palco de celebração do poder <strong>da</strong><br />

arte de ser vi<strong>da</strong>, de produzir vi<strong>da</strong>. O que<br />

o último Pirandello e sua personagem-atriz 99


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

100<br />

se pode mensurar no percurso artístico de<br />

Pirandello é uma via que vai <strong>da</strong> negação<br />

do teatro enquanto forma de arte, poética<br />

do humorismo, ao entendimento do teatro<br />

enquanto um ato de vi<strong>da</strong>, de produção de<br />

vi<strong>da</strong>. Claro que não se trata do reflexo <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> cotidiana, pois a vi<strong>da</strong> que se produz no<br />

palco seria de uma natureza mais autêntica,<br />

mais ver<strong>da</strong>deira que a reali<strong>da</strong>de social, esta<br />

sim um espetáculo <strong>da</strong> aparência.<br />

Há pouco mais de uma déca<strong>da</strong>, após<br />

a publicação do epistolário Lettera a Marta<br />

Abba, em 1995, foi possível conhecer<br />

o ver<strong>da</strong>deiro "caderno" de criação <strong>da</strong><br />

dramaturgia pirandelliana do último<br />

período. Além de trazer importantes<br />

informações sobre a situação teatral<br />

italiana <strong>da</strong> época, sua crise estrutural e<br />

os projetos de reforma, obviamente que<br />

sob o ponto de vista do dramaturgo, as<br />

cartas iluminam uma importante fase de<br />

sua vi<strong>da</strong>, o exílio voluntário, durante o<br />

qual Pirandello se aproximou tanto do<br />

cinema quanto <strong>da</strong> cena contemporânea<br />

europeia. Mas, o principal motivo de<br />

sua essenciali<strong>da</strong>de para o estudo de sua<br />

dramaturgia tardia é o fornecimento de<br />

evidências quanto ao fundo autobiográfico<br />

de sua última produção teatral. Fragmentos<br />

do epistolário refluem para as peças e viceversa;<br />

os textos dedicados e escritos para<br />

a atriz são cui<strong>da</strong>dosamente analisados<br />

nas cartas, descritos na sua gênese e<br />

no seu desenvolvimento, sempre com<br />

2 Roberto Alonge (1997, p. 104-105) já destacou a coincidência<br />

literária existente entre a fala do velho poeta ao final do<br />

segundo ato de Quando si è qualcuno, <strong>da</strong>tado de set-out.<br />

de 1932, com um fragmento de carta de Pirandello a Marta<br />

Abba <strong>da</strong>tado de 25 de janeiro de 1931. Trata-se exatamente do<br />

mesmo texto. Abaixo transcrevemos ambos os fragmentos em<br />

língua italiana, sem tradução, para não ferir a impressionante<br />

equivalência <strong>da</strong> trama verbal:<br />

I - Quando si è qualcuno<br />

tu non la sai: uno specchio – scoprircisi d’improvviso – e la<br />

desolazione di vedersi che uccide ogni volta lo stupore di non<br />

ricor<strong>da</strong>rsene più – e la vergogna dentro, [...] il cuore ancora<br />

giovine e caldo. (Luigi Pirandello, Quando si è qualcuno, in<br />

Maschere Nude, vol. IV, Milano, Mon<strong>da</strong>dori, 2007, p. 696).<br />

II - Carta de 25 janeiro de 1931<br />

tu non sai che scoprendomi per caso d’improvviso a uno<br />

specchio, la desolazione di vedermi [...] uccide ogni volta in<br />

me lo stupore di non ricor<strong>da</strong>rmene più. [...] provo un senso di<br />

vergogna del mio cuore ancora giovanissimo e caldo. (Luigi<br />

Pirandello, Lettera a Marta Abba, Milano, Mon<strong>da</strong>dori, 1995, p. 622).<br />

a participação ativa <strong>da</strong> atriz. 2 Seja no<br />

intercâmbio entre fragmentos de carta e<br />

obra dramática, seja na repetição obsessiva<br />

de temas, seja na recorrente descrição física<br />

dos personagens femininos, o que se vê<br />

refletido neste teatro é fun<strong>da</strong>mentalmente<br />

sua relação artística e pessoal com a atriz<br />

Marta Abba.<br />

Na visão do dramaturgo, Marta<br />

era a única intérprete capaz de unir em<br />

espetáculo a invenção fantástica com a<br />

materiali<strong>da</strong>de do palco. No palco, a atriz<br />

conseguia aquele equilíbrio fun<strong>da</strong>mental<br />

entre o épico (distância irremediável que<br />

existe entre o personagem e o ator) e um<br />

estado de identificação total, absoluta,<br />

de autonegação, de auto-esvaziamento,<br />

fun<strong>da</strong>mental para atrair para o palco o<br />

personagem dramático; segundo a poética<br />

de Pirandello. A impostação cênica <strong>da</strong><br />

atriz parece ao dramaturgo singularmente<br />

consoante com os traços de sua própria<br />

dramaturgia. E sobre dois fatos a crítica <strong>da</strong><br />

época, tanto a positiva quanto a negativa,<br />

concor<strong>da</strong>vam: que a interpretação <strong>da</strong> atriz<br />

era intensa, imediata e apaixona<strong>da</strong>. E que<br />

junto a este arrebatamento, se notava um<br />

distanciamento, uma frieza inespera<strong>da</strong> e<br />

inexplicável. Dois estados contraditórios de<br />

atuação que emergia de uma interpretação<br />

fratura<strong>da</strong> entre estados mentais diferentes:<br />

de identificação e de estranhamento,<br />

uma atuação que se equilibrava entre o<br />

metafísico e o realismo. Com uma extrema<br />

mobili<strong>da</strong>de expressiva, a atriz conseguia<br />

mu<strong>da</strong>r de um estado emotivo a outro<br />

bruscamente, sem transição. Seu estilo<br />

traduzia materialmente o comportamento do<br />

personagem pirandelliano, sua consciência<br />

dilacera<strong>da</strong>. As pausas, as rupturas de tom,<br />

a voz arrasta<strong>da</strong>, os movimentos bruscos e<br />

a carga emotiva que Marta emprestava a<br />

dos personagens aproximava sua natureza<br />

ao dos personagens pirandellianos; o que<br />

levou Pirandello a identifica-la, inclusive<br />

fisicamente, com as figuras fantásticas de sua<br />

criação. Marta parecia aos olhos do Maestro<br />

reunir em carne e em espírito a natureza<br />

particularíssima de seus personagens.<br />

Com ritmos contraditórios, entonações<br />

rasga<strong>da</strong>s, gestos fortes, inflexíveis,<br />

Martha Ribeiro


N° 16 | Junho de 2011<br />

somados a uma docili<strong>da</strong>de e a uma<br />

“frieza” desconcertantes, Marta Abba<br />

estabeleceu entre a obra de um dos maiores<br />

escritores teatrais do século XX e sua arte<br />

de intérprete uma relação excepcional, pois<br />

íntima, necessária e efetiva. Com a atriz,<br />

as criaturas pirandellianas, seus contrasensos<br />

físicos e morais, conquistaram uma<br />

ver<strong>da</strong>de tangível. Se Pirandello dramaturgo<br />

encontrou em Marta sua intérprete, como<br />

de fato ocorreu, a atriz, em contato com<br />

o texto pirandelliano, também descobriu<br />

o seu próprio “espaço” artístico, isto é,<br />

sua originali<strong>da</strong>de atorial. Interpretando<br />

os personagens femininos pirandellianos,<br />

Marta termina por inspirar o nascimento<br />

de um outro personagem: no lugar do<br />

personagem humorístico “cerebral” se<br />

impõe nesta dramaturgia tardia uma<br />

figura de mulher complexa e misteriosa,<br />

que embora muito sensual e desejável<br />

não se deixa possuir, permanecendo<br />

assim distante, etérea e sublima<strong>da</strong>. Esta<br />

nova personagem, nasci<strong>da</strong> a partir do<br />

encontro de Pirandello com a atriz, foi<br />

por nós denomina<strong>da</strong> de Vamp Virtuosa:<br />

Tu<strong>da</strong>, Marta, Ignota, Veroccia, Sara,<br />

Donata, imagem física e idealiza<strong>da</strong> <strong>da</strong> atriz<br />

Abba, são mulheres ruivas, jovens, belas,<br />

sensuais, eroticamente fascinantes, mas<br />

sexualmente inacessíveis. 3 Donas de um<br />

caráter contraditório e uma personali<strong>da</strong>de<br />

camaleônica, esta vamp virtuosa é uma<br />

mulher atraente e eroticamente fascinante,<br />

mas que não pode ter o amor, sob pena de<br />

sua catástrofe e ruína.<br />

A vamp virtuosa é um tipo de mulher<br />

que, malgrado seu comportamento de<br />

mulher fatal, não é uma devoradora de<br />

homens. Ain<strong>da</strong> que possua o corpo sensual<br />

<strong>da</strong> vamp, ela possui o coração de uma<br />

virgem (ou o de uma menina). Ou ela se<br />

torna vítima do homem que ela mesma<br />

seduziu, ou deve renunciar à própria<br />

sexuali<strong>da</strong>de, escolhendo a venera<strong>da</strong> virtude.<br />

A duali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fêmea fatal construí<strong>da</strong> por<br />

Marta, se verifica no uso de uma voz rouca,<br />

acentua<strong>da</strong>, sussurrante, que corresponde<br />

3 Respectivamente: Diana e la Tu<strong>da</strong>; L’amica delle mogli; Come<br />

tu mi vuoi; Quando si è qualcuno; La nuova colonia; Trovarsi.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

a um tipo de mulher sensual, indolente<br />

e maliciosa, em contraste com arroubos<br />

infantis nos momentos de felici<strong>da</strong>de e na<br />

nostálgica busca de uma pureza perdi<strong>da</strong>. É<br />

a partir <strong>da</strong> sublimação deste tipo, forjado<br />

por Marta Abba tanto no palco, como na<br />

vi<strong>da</strong> real, que Pirandello irá se inspirar<br />

para criar um novo perfil feminino: uma<br />

mulher jovem, sensual, plena de desejo e<br />

de vi<strong>da</strong>, mas que, no entanto, está proibi<strong>da</strong><br />

de viver sua sexuali<strong>da</strong>de livremente. 4 Essas<br />

personagens, nasci<strong>da</strong>s sob o influxo de<br />

Marta, apesar de to<strong>da</strong> a beleza e fascínio,<br />

escolhem por vontade própria romper com<br />

a vi<strong>da</strong> material, isto é, elas recusam viver a<br />

vi<strong>da</strong> de uma mulher comum, criando para<br />

si mesmas, a partir <strong>da</strong> fantasia, uma nova<br />

reali<strong>da</strong>de, mais onírica e mais destaca<strong>da</strong> de<br />

sua própria condição feminina. Sem estar<br />

completamente pronta para se aventurar<br />

no erotismo sem culpa, medo ou pudor,<br />

a experiência erótica <strong>da</strong> vamp virtuosa<br />

sempre será frustrante. Se ela se entregar a<br />

“viscosi<strong>da</strong>de” <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> material, sua punição<br />

será a per<strong>da</strong> de seu “encantamento” e ela<br />

se verá constrangi<strong>da</strong> a se ver repetindo<br />

o histórico papel de mulher passiva<br />

e dependente ou mesmo viver a sua<br />

desvalorização moral. Por sua natureza<br />

“<strong>superior</strong>”, espiritual e etérea, esta mulher<br />

será capaz de sublimar Eros. Se Pirandello<br />

a deixa viver ou pensar no amor é somente<br />

para tiranizá-la: deixando ela se envolver,<br />

o dramaturgo retira o véu do mistério<br />

que encobria esta mulher divinamente<br />

intocável, faz com que o homem a despreze<br />

4 Basta abrirmos os dois epistolários para verificarmos que<br />

Marta se adequou aos pedidos mudos do Maestro, aceitando<br />

uma vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong> somente em função do teatro. Apesar de<br />

bela, jovem e exuberante, Marta descreve não ter uma vi<strong>da</strong><br />

social ativa, sua vi<strong>da</strong> é só o trabalho e na<strong>da</strong> de divertimento.<br />

Do teatro ela vai para casa dormir cedo. Como um sacerdote,<br />

ou como uma “boa menina”, Marta aceita o jogo tirânico do<br />

dramaturgo, e tanto na vi<strong>da</strong> como na arte, ela corresponde à<br />

imagem que Pirandello construiu a partir de seu desejo. Como<br />

observado por Pietro Frassica, Marta sabia que para o escritor<br />

era um sofrimento não tê-la por perto, o que Pirandello deixa<br />

bem claro nas cartas. A atriz provavelmente era consciente<br />

de que a proibição <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de, dissimula<strong>da</strong> no jogo<br />

ambivalente de renúncia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, era uma manipulação de<br />

Pirandello sobre o seu desejo. Escreve Marta em 16 de agosto<br />

de 1931: “À noite, já na cama. Mas, como me divirto tão pouco<br />

ficando na rua, realmente não me custa na<strong>da</strong> fazer deste<br />

jeito” (Cf Marta Abba, Caro Maestro, op. cit., p. 210).<br />

o último Pirandello e sua personagem-atriz 101


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

102<br />

pelo que ela é, para então, ao final <strong>da</strong> peça,<br />

“levantá-la do chão” mostrando como<br />

único caminho a via sublime <strong>da</strong> arte (ou a<br />

renuncia <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de).<br />

To<strong>da</strong>s as personagens que nascem a<br />

partir <strong>da</strong> imagem idealiza<strong>da</strong> de Marta,<br />

possuem como característica unificadora<br />

um modus espetacular, ou seja, elas são<br />

mulheres que se doam em espetáculo.<br />

Como uma atriz, elas se mostram ao outro,<br />

ao mesmo tempo em que não revelam na<strong>da</strong><br />

sobre elas mesmas. Misteriosas e etéreas,<br />

vivas e ausentes, humanas e divinas,<br />

elas se deixam transformar naquilo que<br />

a imaginação de ca<strong>da</strong> um criou para ela<br />

segundo o seu próprio desejo. Como<br />

elas, Marta Abba era também uma atriz,<br />

e como atriz ela também é reveladora de<br />

um imaginário social. Se a imagem de<br />

uma atriz se perde entre mil reflexos,<br />

sem dúvi<strong>da</strong> nenhuma ela está no centro<br />

de uma reserva convergente de imagens<br />

sociais significativas; o que explica porque<br />

escritores, pintores, filósofos se interessam<br />

apaixona<strong>da</strong>mente por elas. E no imaginário<br />

pirandelliano, será uma única atriz a<br />

incendiar seus sonhos: a camaleônica<br />

Marta Abba, musa inspiradora, mulher<br />

real, existente, tão necessária quanto<br />

absolutamente ausente. E o Maestro não<br />

faltará a sua musa, não deixará de escrever<br />

sobre e para a atriz, fazendo do epistolário<br />

e de sua obra um lugar para as “memórias”<br />

de Marta e Pirandello juntos, luz e sombra<br />

de sua arte: “Se eu ain<strong>da</strong> estou vivo, se<br />

continuo ain<strong>da</strong> a trabalhar, é por sua causa.<br />

Nem uma coisa nem outra seriam possíveis<br />

se não fosse por Você”. 5<br />

Para além deste cenário passional, Marta<br />

Abba representou a possibili<strong>da</strong>de concreta<br />

de fusão entre sua técnica dramatúrgica e<br />

a fisicali<strong>da</strong>de do ator. O diálogo criativo<br />

que se estabeleceu entre o dramaturgo e a<br />

5 Luigi Pirandello, Lettera a Marta Abba, op. cit., p. 245 (carta<br />

de 28 de julho de 1929). No dia seguinte Pirandello escreve<br />

a última carta antes de viajar de Berlim para a Itália e se<br />

encontrar com Marta. Ele volta a escrever para ela somente<br />

em 13 de setembro de 1929; <strong>da</strong>ta de seu retorno à Berlim. Já as<br />

cartas de Marta ao Maestro, referentes ao ano de 1929, foram<br />

quase to<strong>da</strong>s perdi<strong>da</strong>s, sobrevivendo as posteriores à <strong>da</strong>ta de<br />

12 de setembro de 1929.<br />

atriz, iniciado na criação do Teatro de Arte e<br />

finalizado somente com a morte do escritor,<br />

proporcionou uma grande mu<strong>da</strong>nça de<br />

concepção nas ideias do dramaturgo sobre<br />

a relação ator/personagem. Por exemplo,<br />

em Sei personaggi Pirandello coloca em<br />

evidência, já que mostrado explicitamente<br />

na própria estrutura dramática, uma<br />

espécie de antagonismo insuperável entre<br />

estes dois elementos: a companhia de<br />

atores e o mundo dos personagens. Os<br />

atores seriam os responsáveis por degra<strong>da</strong>r<br />

a autentici<strong>da</strong>de e a poesia do personagem,<br />

traindo a obra artística idealiza<strong>da</strong> pelo<br />

poeta. Com Marta Abba, a problemática<br />

relação ator/personagem, sugeri<strong>da</strong> pela<br />

lógica pirandelliana como irremediável,<br />

ganha uma nova visão. O impasse entre<br />

o mundo fantástico e o mundo material<br />

do palco encontra na atriz uma via de<br />

escape. Da condenação inicial se constata<br />

assim uma redenção final: o corpo <strong>da</strong><br />

atriz, a sua dimensão material-corpórea,<br />

se transforma no meio indispensável para<br />

evocar o personagem ao palco, e o êxito<br />

final do processo será a absoluta possessão<br />

do corpo do intérprete. Na visão do último<br />

Pirandello, o teatro encontra sua justificativa<br />

no encontro “mágico” <strong>da</strong> arte do ator com<br />

o mundo abstrato do personagem.<br />

O personagem-atriz, metáfora de Marta<br />

Abba, por sua especifici<strong>da</strong>de, estabelece no<br />

teatro, mais do que qualquer outro, uma<br />

significativa interação entre o mundo real<br />

e o mundo do palco. Com Ilse, de I giganti<br />

della montagna, o personagem-atriz atinge<br />

seu estado puro. Destaca<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a<br />

atriz, que tem como missão levar a palavra<br />

do poeta aos homens, realiza sua projeção<br />

no mundo fantástico <strong>da</strong> arte: sua ascensão<br />

espiritual não advém de uma materni<strong>da</strong>de<br />

fisiológica, como as outras mulheres<br />

pirandellianas, mas de uma materni<strong>da</strong>de<br />

estética; o que para o autor significa um<br />

aperfeiçoamento <strong>da</strong> mulher comum. A<br />

peça, deixa<strong>da</strong> sem conclusão, define o<br />

teatro, fun<strong>da</strong>mentalmente enquanto arte<br />

do ator, como uma arte frágil que pertence<br />

ao seu tempo, ao sistema de produção de<br />

sua época, não havendo assim nenhuma<br />

Martha Ribeiro


N° 16 | Junho de 2011<br />

garantia para a existência do espetacular,<br />

ou melhor, para a existência do teatro de<br />

Pirandello e Marta juntos. Como se pode<br />

ver no último quadro de I giganti, Cotrone,<br />

mais uma <strong>da</strong>s encarnações de Pirandello,<br />

diz a Ilse, imagem fantasmática <strong>da</strong> atriz,<br />

que o seu poder termina ali, no exato<br />

momento em que a obra de arte precisa<br />

ser transforma<strong>da</strong> em vi<strong>da</strong>, no momento<br />

em que ela deixa o espaço de criação do<br />

poeta e se projeta na ação do palco, com<br />

a participação do público. Mas Ilse quer<br />

que a obra do poeta viva lá em meio aos<br />

homens. Sem uma resposta definitiva em<br />

relação ao destino <strong>da</strong> atriz, a última fala<br />

dos atores, ao ouvir o barulho dos cavalos<br />

dos gigantes que descem a montanha, será:<br />

eu tenho medo! Eu tenho medo!<br />

Um pouco antes do barulho dos<br />

cavalos dos gigantes, Cotrone pede para<br />

Ilse representar La favola del figlio cambiato<br />

(um outro texto de Pirandello). Assim que<br />

a atriz começa a interpretar sua <strong>parte</strong>, a<br />

cena se materializa diante dela. Por um<br />

milagre, por um prodígio <strong>da</strong> fantasia,<br />

surgem dois personagens, duas aparições,<br />

que começam a representar junto com<br />

Ilse a Favola, e é o próprio Cotrone quem<br />

explica para Ilse: “Para nós é suficiente<br />

imaginar, e rapi<strong>da</strong>mente as imagens se<br />

fazem vivas, de si mesmas. Basta que<br />

alguma coisa esteja bem viva em nós,<br />

que ela se auto-representa, pela virtude<br />

espontânea de sua própria vi<strong>da</strong>”. Segundo<br />

Vicentini (1993), se a magia de Cotrone,<br />

como a animação de fantoches não tem<br />

uma explicação plausível, é porque seu<br />

poder não se reduz a simples técnica de<br />

um prestidigitador, isto é, ele não se utiliza<br />

de instrumento e corpos materiais para<br />

criar seus fantasmas. Cotrone “projeta<br />

entorno de si os caracteres próprios do<br />

sonho, e trabalha prevalentemente com<br />

a manipulação de imagens”(1993, p.200-<br />

201). Tudo é <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> imagem: a<br />

procissão do Angelo Centuno; as visões<br />

que perseguem os atores <strong>da</strong> vila durante a<br />

noite; as figuras dos atores que se encontram<br />

com os fantoches, após abandonarem seus<br />

corpos durante o sonho; as duas aparições<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

que interpretam junto com a condessa<br />

uma cena <strong>da</strong> peça. Os poderes de Cotrone<br />

são <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> “desmaterialização”.<br />

No mundo mágico <strong>da</strong> vila, entre seus<br />

azarados, os personagens podem aparecer,<br />

como na fantasia do autor, sem que<br />

existam corporalmente. A arte torna-se<br />

assim pura imagem e visão evanescente.<br />

Mas, esta concepção de arte se mostrará<br />

profun<strong>da</strong>mente perigosa para a existência<br />

do teatro: destacado do público e <strong>da</strong>s<br />

formas de organização características de<br />

sua própria época, o teatro anula a sua<br />

capaci<strong>da</strong>de operativa, perde sua vocação<br />

prática.<br />

Evadindo-se do confronto com a<br />

reali<strong>da</strong>de material, o teatro se reduz em<br />

pura imagem, e finalmente deixa de existir:<br />

“Cotrone e o mundo mágico dos azarados<br />

não constituem uma solução real ao<br />

problema do teatro na socie<strong>da</strong>de industrial<br />

<strong>da</strong> máquina e do cinema e nem mesmo uma<br />

alternativa”; dirá Vicentini (1993, p. 2002).<br />

E o Pirandello desta última fase consegue<br />

reconhecer que a principal característica<br />

do teatro, aquilo que de fato se constitui<br />

em um procedimento mágico, é seu<br />

poder de canalizar, introduzir as criações<br />

fantásticas <strong>da</strong> arte no mundo material dos<br />

homens: o teatro é a arte que consegue<br />

unir de modo inseparável as imagens (as<br />

visões e as intuições) com a matéria (o<br />

corpo do intérprete, os mecanismos <strong>da</strong><br />

cena). No entanto, Cotrone pede que Ilse<br />

represente apenas ali, na vila habita<strong>da</strong><br />

pelos fantasmas. Ora, na ver<strong>da</strong>de o que<br />

o mago está pedindo é que ela deixe de<br />

fazer teatro, pois fazer teatro é justamente<br />

enfrentar os problemas, as dificul<strong>da</strong>des, as<br />

circunstâncias concretas e as características<br />

históricas de sua própria época. O teatro<br />

só existe se enfrentar os Gigantes <strong>da</strong><br />

Montanha. Esta é uma necessi<strong>da</strong>de do<br />

teatro, sua vocação material. E Ilse deve<br />

estar prepara<strong>da</strong> para isso. Mas, o próprio<br />

autor ain<strong>da</strong> hesitava diante desta escolha<br />

obrigatória. O terceiro passo, inevitável,<br />

em direção ao conflito final, jamais foi<br />

executado por Pirandello. O que se sabe é<br />

que o encontro final de Ilse com os gigantes<br />

o último Pirandello e sua personagem-atriz 103


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

104<br />

seria, no imaginário pirandelliano, um<br />

evento trágico. A atriz seria assassina<strong>da</strong><br />

em sua tentativa de realizar o teatro, isto<br />

é, de realizar o prodigioso contato entre<br />

a imaginação fantástica do poeta com as<br />

circunstâncias do mundo material; o que,<br />

de qualquer modo, não significa uma<br />

garantia para a sobrevivência do teatro.<br />

Como Ilse, Marta via o teatro como<br />

a única forma de vi<strong>da</strong> possível e, por<br />

isso, como descreve Pietro Frassica,<br />

organizador do epistolário Abba, ela<br />

nunca se dispôs a fazer muitas concessões<br />

ao mundo dos empresários e dos agentes<br />

teatrais. Protestando e denunciando<br />

o sistema de truste que imperava na<br />

Itália, que excluía sistematicamente as<br />

companhias que trabalhavam por conta<br />

própria, Marta Abba termina por ganhar<br />

muitos inimigos. E se a atriz havia<br />

construído um estilo de interpretação<br />

muito distinto <strong>da</strong>s outras atrizes de sua<br />

época, inusitado até, isso facilmente<br />

foi tachado como uma interpretação<br />

fria, cerebral, e excessivamente “livre”,<br />

isto é, sem controle. Rebelde a to<strong>da</strong>s as<br />

convenções, a atriz pode ser considera<strong>da</strong><br />

tão revolucionária quanto Pirandello.<br />

Como o escritor, ela também não se<br />

a<strong>da</strong>ptava ao seu tempo e a estrutura do<br />

ambiente teatral italiano. Mas se a palavra<br />

escrita do poeta pode ultrapassar o tempo,<br />

sua época, e até mesmo o próprio poeta, a<br />

arte de uma atriz está irremediavelmente<br />

presa em um tempo e espaço determinados.<br />

O julgamento de sua arte sempre será feito<br />

pela cultura e pelos homens de sua época,<br />

o que equivale a dizer que a arte <strong>da</strong> atriz<br />

é prisioneira <strong>da</strong>s circunstâncias de seu<br />

próprio tempo: “‘I giganti della montagna’<br />

foi escrito para sublimar o tormento e<br />

o martírio <strong>da</strong> atriz com todo o seu fardo<br />

de poesia, que – neste caso particular – se<br />

chama na vi<strong>da</strong> ‘Marta Abba’”. '''<br />

Se o mundo <strong>da</strong> cena e dos atores fascinou<br />

Pirandello, como realmente foi ver<strong>da</strong>de,<br />

6 Marta Abba em carta inédita a Lucio Ridenti, diretor<br />

<strong>da</strong> revista Il Dramma (carta de 04 de março de 1960). o<br />

documento encontra-se disponível na biblioteca do Centro<br />

Studi del Teatro Stabile di Torino.<br />

a possibili<strong>da</strong>de de realizar plenamente<br />

o contato entre o mundo fantástico de<br />

sua imaginação com as circunstâncias do<br />

mundo do palco, lhe veio com Marta abba.<br />

Isso não significa dizer que não exista mais<br />

nenhuma tensão entre as reali<strong>da</strong>des ou<br />

mesmo que não haja mais a possibili<strong>da</strong>de<br />

do fracasso desta missão. Embora<br />

recuperado em sua força original, como<br />

produtor de reali<strong>da</strong>des, mais “reais” do que<br />

aquelas fabrica<strong>da</strong>s pelo mundo cotidiano,<br />

o teatro, visto enquanto um procedimento<br />

mágico, não possui nenhuma garantia de<br />

sobrevivência. Se ao final de seu percurso<br />

artístico, Pirandello não via mais o teatro<br />

como uma arte impossível, ele a vivencia<br />

como uma arte frágil e demasia<strong>da</strong>mente<br />

suscetível ao seu tempo, isto é, às formas<br />

de produção e de organização práticas de<br />

sua época e às características <strong>da</strong> própria<br />

socie<strong>da</strong>de. Pois o teatro não é só a invenção<br />

<strong>da</strong> cena, ele só existe em confronto com sua<br />

reali<strong>da</strong>de material, ele tanto pode florescer<br />

como sucumbir ou mesmo desaparecer, e<br />

novamente renascer em outro tempo, em<br />

outra lógica de produção. Logo, não existe<br />

para o teatro nenhum plano realmente<br />

seguro de continui<strong>da</strong>de. Em função<br />

deste diagnóstico, nem pessimista e nem<br />

otimista, mas de uma incrível lucidez,<br />

Pirandello não conseguiu concluir I giganti<br />

della montagna, adiando ao máximo sua<br />

solução final. Talvez ain<strong>da</strong> esperasse,<br />

para os últimos anos de sua vi<strong>da</strong>, alguma<br />

mu<strong>da</strong>nça dos tempos que pudesse trazer<br />

uma nova perspectiva, menos hostil, a<br />

existência de seu teatro, um teatro feito<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente para Marta Abba.<br />

Referências bibliográficas<br />

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Pirandello (1926-1936). A cura di Pietro<br />

Frassica. Milano: Mursia, 1994. 406 p.<br />

_______. Un’attrice allo specchio, come<br />

sono nella vita e come vivo nell’arte.<br />

Gazzetta del Popolo, 16 gennaio 1931, p. 03.<br />

ALONGE, Roberto. Madri, baldracche, amanti,<br />

la figura femminile nel teatro di Pirandello.<br />

Martha Ribeiro


N° 16 | Junho de 2011<br />

Milano: Costa & Nolan, 1997. 137 p.<br />

_______. Luigi Pirandello, il teatro del XX<br />

secolo. Bari: Editori Laterza, 1997. 180 p.<br />

BINI, Daniela. Epistolario e teatro, scrittura<br />

dell’assenza e sublimazione dell’erotismo.<br />

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XI, 33, 1998. p. 32-46.<br />

GUINSBURG, Jacó (Org). Pirandello: do<br />

teatro no teatro. São Paulo: Perspectiva,<br />

1999. 405 p.<br />

JOUANNY, Sylvie. L’actrice et ses doubles.<br />

Figures et representations de la femme de<br />

spectacle à la fin du XIX siècle. Genève:<br />

DROZ, 2002. 442 p.<br />

LETIZIA, Annarita. Le ultime figlie di<br />

pirandello. Angelo di Fuoco, anno III, n. 05,<br />

Torino, DAMS, 2004. p. 07-54.<br />

_______. Pirandello; LIETTA, Marta.<br />

Angelo di Fuoco, Ano II, 4, 2003. p. 05-51.<br />

PIRANDELLO, Luigi. Maschere nude. A<br />

cura di Italo Borzi e Maria Argenziano.<br />

Roma: I Mammuti, 2005. 1274 p.<br />

_______. Lettere a Marta Abba. A cura di Benito<br />

Ortolani. Milano: Mon<strong>da</strong>dori, 1995. 1656 p.<br />

_______. Illustratori, attori e traduttori. In:<br />

Saggi, poesie e scritti varii, a cura di Manlio<br />

Lo Vecchio Musti. Vol.6, 2. ed. Milano:<br />

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RIBEIRO, Martha. Luigi Pirandello: um teatro<br />

para Marta Abba. São Paulo: Perspectiva, 2010.<br />

VICENTINI, Claudio. Pirandello. Il disagio del<br />

teatro. Venezia: Marsilio editori, 1993. 217 p.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

o último Pirandello e sua personagem-atriz 105


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Atendente [Pedro Coimbra]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 107


N° 16 | Junho de 2011<br />

PRESENçA oSWALDIANA No<br />

TEATRo ESTÁDIo DE JoSÉ<br />

CELSo MARTINEZ CoRRÊA:<br />

ANTRoPoFAGIA, MESTIçAGEM<br />

CULTURAL, TERREIRo ELETRÔNICo<br />

Resumo<br />

O artigo analisa as formas adota<strong>da</strong>s na construção do Teatro<br />

Oficina, de São Paulo, e a proposta de ampliação do espaço<br />

em um Teatro Estádio, à maneira “greco-tropical”, como<br />

diz José Celso Martinez Corrêa, diretor do Teatro Oficina<br />

Uzyna Uzona. O projeto, inspirado no manifesto de Oswald<br />

de Andrade, Do teatro que é bom..., retoma questões <strong>da</strong><br />

antropofagia para a contemporanei<strong>da</strong>de, propondo a criação<br />

de um “terreiro eletrônico”, espaço de reinvenção do teatro e<br />

de sua recepção, buscando a comunhão com o público.<br />

Palavras-chave: Teatro Oficina, Teatro Estádio, José Celso<br />

Martinez Corrêa, Oswald de Andrade, antropofagia.<br />

Abstract<br />

The article examines the architectural forms adopted in the<br />

construction of the Theatre Workshop, in São Paulo, and the<br />

proposed extension of the space into a Theatre Stadium, in<br />

a “tropical-Greek” way, according to José Celso Martinez<br />

Corrêa, director of the company Teatro Oficina Uzyna Uzona.<br />

The project, inspired by the manifesto of Oswald de Andrade,<br />

About the good theatre…, takes up issues of the antropophagy<br />

movement for the present time, proposing the creation of an<br />

"electronic yard”, a space for the reinvention of theatre as well<br />

as its reception by seeking communion with the public.<br />

Keywords: Theatre Workshop; Stadium Theater, José Celso<br />

Martinez Corrêa, Oswald de Andrade, anthropophagy.<br />

Nanci de Freitas 1<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 109


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

110<br />

Teatro Oficina: uma ágora antropofágica<br />

O<br />

encenador José Celso<br />

Martinez Corrêa, cuja<br />

trajetória artística<br />

receberia influência de<br />

artistas e pensadores<br />

como Sartre, Artaud, Brecht, Nelson<br />

Rodrigues, Beckett e Nietzsche, seria,<br />

sobretudo, em suas próprias palavras, um<br />

oswaldiano, incorporando em seu trabalho<br />

o pensamento antropofágico de Oswald de<br />

Andrade como leitura <strong>da</strong> gênese e do ethos<br />

<strong>da</strong> cultura brasileira. Afirma José Celso:<br />

O primeiro ato global do que chamamos<br />

Brasil foi a primeira missa, teatro<br />

português prá índio ver. Os índios<br />

viram. Trinta e poucos anos depois,<br />

corpos nus dos Caetés, encontraram<br />

carne em baixo <strong>da</strong>s saias dos figurinos<br />

eclesiásticos do hemisfério norte<br />

naufragando nos mares temperamentais<br />

dos recifes. Foi o segundo ato, os Caetés,<br />

literalmente, descobriram o teatro global<br />

do hemisfério sul com a devoração de<br />

Sardinha, bispo português. O deus<br />

Dioniso re-estreou no Brasil, no litoral<br />

de Alagoas, a mesma cena primeira<br />

e última <strong>da</strong> origem e fim <strong>da</strong> tragédia<br />

grega: a devoração de Pentheu pelas<br />

Bacantes. Oswald de Andrade como um<br />

Ésquilo, retomou este ato, como mito<br />

de origem <strong>da</strong> civilização brazyleira.<br />

O teatro Oficina, tataraneto de Gil<br />

Vicente, amante de Martins Pena, neto<br />

do Vestido de Noiva, filho do TBC e do<br />

Arena, teve seu segundo nascimento<br />

com O rei <strong>da</strong> vela. Oswald resignando o<br />

teatro brasileiro. Ao dilema hamletiano<br />

do mundo ocidental cristão “to be or not<br />

to be”, respondeu “yes, tupy”, plugando<br />

tecnizado o retorno do mundo bárbaro<br />

americano asiano africano. O lugar<br />

deste retorno foi o Teatro Oficina. 2<br />

1 Professora adjunta no Instituto de Artes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e doutora em teatro<br />

pela UNIRIo. Atua na área de artes cênicas como diretora<br />

e pesquisadora. Na UERJ, coordena o projeto Mirateatro!<br />

Espaço de estudos e criação cênica.<br />

2 Fragmento do texto de José Celso Martinez Corrêa, Teatro<br />

oficina osso duro de roer. In: Teatro oficina: Lina Bo Bardi/<br />

Edson Elito. São Paulo, Brasil, 1980-1984. Textos: Lina Bo Bardi,<br />

Edson Elito e José Celso Martinez Corrêa. Lisboa: Editorial<br />

Blau; Instituto Lina Bo Bardi e P.M. Bardi, 1999. As páginas <strong>da</strong><br />

publicação não são numera<strong>da</strong>s.<br />

A partir <strong>da</strong> lendária montagem <strong>da</strong><br />

peça O rei <strong>da</strong> vela, de Oswald de Andrade,<br />

realiza<strong>da</strong> pelo Teatro Oficina, em 1967, em<br />

São Paulo, a relação entre o pensamento<br />

artístico oswaldiano e a prática teatral de<br />

José Celso Martinez Corrêa (que chegou a<br />

se dizer “o cavalo oswaldiano <strong>da</strong> cultura<br />

brasileira”) é sempre anuncia<strong>da</strong> em<br />

declarações e entrevistas do encenador.<br />

Em matéria publica<strong>da</strong> no jornal Folha de<br />

São Paulo, por ocasião <strong>da</strong>s celebrações do<br />

cinquentenário de morte de Oswald de<br />

Andrade, em 2004, José Celso afirma que<br />

sua vi<strong>da</strong> se dividiu em a.O, d.O: “A partir<br />

de Oswald, tudo o que fiz foi influenciado<br />

por ele. Oswald foi meu Shakespeare, meu<br />

Goethe, me trouxe a chave para to<strong>da</strong> a<br />

cultura brasileira”. 3 Na mesma <strong>da</strong>ta, em<br />

entrevista concedi<strong>da</strong> ao jornal O Globo,<br />

o diretor do Teatro Oficina enaltece o<br />

mestre modernista e a originali<strong>da</strong>de do<br />

pensamento antropofágico:<br />

Oswald será ain<strong>da</strong> reconhecido pelo<br />

mundo como um dos grandes homens do<br />

século XX. E continua nos devorando. Foi<br />

o primeiro pós-moderno, como ele mesmo<br />

disse nos anos 20. Ele viu que o mundo<br />

acabaria por se tornar um lugar movido<br />

pela antropofagia. Tudo que se chama<br />

de mix, tudo o que se vê de imigração<br />

que contorna ci<strong>da</strong>des e devora a cultura<br />

ocidental, é a própria cultura, que está<br />

comendo e vai comer o mundo. Os povos<br />

devoram e vomitam o moralismo, a noção<br />

do bem e do mal, <strong>da</strong> cultura puritana,<br />

as utopias, as igrejas. A coisa não é mais<br />

ser socialista ou ir para o céu. Não existe<br />

messias, só devoração. 4<br />

O Teatro Oficina, localizado na Rua<br />

Jaceguay, 520, no Bairro do Bexiga, em São<br />

Paulo, abriga uma trajetória de resistência<br />

política/ética/poética ao sistema teatral<br />

burguês e ao mercado do entretenimento,<br />

praticando um teatro que é pura relação<br />

entre arte e vi<strong>da</strong>. Resistência que se sustenta<br />

3 MACHADo, Elek. 50 anos <strong>da</strong> morte de oswald de Andrade.<br />

Folha de São Paulo, 22 de outubro de 2004, Ilustra<strong>da</strong>, página: E4.<br />

4 “o mundo come oswald” é o título <strong>da</strong> entrevista que José<br />

Celso Martinez Corrêa concedeu ao jornalista Arnaldo Bloch.<br />

Ver: “Segundo Caderno”, página 1, o Globo, Rio de Janeiro, 22<br />

de outubro de 2004.<br />

Nanci de Freitas


N° 16 | Junho de 2011<br />

nas ideias e ações do encenador, José<br />

Celso Martinez Corrêa, que vem lutando,<br />

desde os anos 1980, para concretizar o<br />

ambicioso projeto do Teatro Estádio.<br />

Trata-se <strong>da</strong> ampliação do espaço físico do<br />

Teatro Oficina, já prevista nos primeiros<br />

estudos dos arquitetos Lina Bo Bardi (1914-<br />

1992) e Edson Elito, responsáveis pelo<br />

formato atual do teatro. Com a expansão<br />

<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des do Grupo Oficina e de sua<br />

interseção com a comuni<strong>da</strong>de do Bairro<br />

Bexiga, teria surgido, segundo José Celso,<br />

“a necessi<strong>da</strong>de de uma arquitetura virando<br />

teatro, que vira urbanismo que chega na<br />

construção de uma Ágora, de uma praça<br />

pública. Arqueologia urbana, não é Lina?”. 5<br />

A casa de espetáculo ocupa<strong>da</strong><br />

pela trupe do Oficina, a partir de 1958,<br />

passou por um incêndio, em 1966, sendo<br />

reconstruí<strong>da</strong> por Flávio Império e Rodrigo<br />

Lafévre, e chegaria ao tombamento como<br />

patrimônio público estadual, em 1981,<br />

com o apoio massivo <strong>da</strong> classe teatral.<br />

[Ali haviam sido realiza<strong>da</strong>s as históricas<br />

montagens de O rei <strong>da</strong> vela, Ro<strong>da</strong> Viva e<br />

Galileu Galilei.] Nesse momento, Lina Bo<br />

Bardi - que já havia projetado, no espaço,<br />

os cenários para os espetáculos Gracias<br />

Senhor e Na selva <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des - realizou,<br />

ao lado de Marcelo Suzuki, os primeiros<br />

estudos para uma reforma do teatro, que<br />

não chegou a ser concretiza<strong>da</strong>. Em 1984,<br />

Edson Elito se juntaria à arquiteta Lina<br />

Bo Bardi para a realização do projeto do<br />

teatro, configurado em seu formato atual.<br />

“Uma rua chama<strong>da</strong> teatro”, como<br />

Edson Elito definiu a casa de espetáculos,<br />

construí<strong>da</strong> em uma rua sem saí<strong>da</strong>, ganharia<br />

a forma de uma passarela, com o “palco”<br />

ocupando todo o espaço do teatro <strong>da</strong> porta<br />

de entra<strong>da</strong> até o paredão, ao fundo. Neste,<br />

dois arcos, lembrando pórticos romanos,<br />

sugerem o desejo de abertura para além<br />

do espaço delimitado. Para o público, três<br />

arquibanca<strong>da</strong>s desmontáveis, de estrutura<br />

metálica, com altura progressiva do pé<br />

direito chegando a 13 metros, compondo as<br />

galerias laterais <strong>da</strong> passarela e justapostas<br />

5 Fragmento do texto de José Celso Martinez Corrêa,<br />

conforme op. cit. nota nº 01.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

às paredes de grandes tijolos, do início<br />

do século. O chão de terra foi coberto<br />

por pranchas de madeira desmontáveis.<br />

Em sua totali<strong>da</strong>de, o projeto foi realizado<br />

para atender ao desejo de José Celso<br />

de referen<strong>da</strong>r os quatro elementos <strong>da</strong><br />

natureza. O teto foi planejado visando “uma<br />

cobertura em abóba<strong>da</strong> de aço deslizante,<br />

que, platonicamente, contempla o elemento<br />

ar, assim como o jardim existente, a terra”.<br />

Para introduzir a água e o fogo no espaço,<br />

foram elaborados sistemas complexos:<br />

“projetamos uma cachoeira composta por<br />

sete tubos aparentes que deságuam em<br />

um espelho d’água como mecanismo de<br />

re-circulação. (...) Para o fogo foi prevista<br />

uma rede de gás que abastece um ponto<br />

no centro geométrico do teatro”, diz o<br />

arquiteto Edson Elito.<br />

A criação do projeto teria sido marca<strong>da</strong><br />

por confluência (às vezes tensa) entre<br />

a formação modernista dos arquitetos,<br />

com sua preferência pela pureza dos<br />

elementos e pelo racionalismo construtivo,<br />

e a concepção teatral de José Celso, “com<br />

o simbolismo, a iconoclastia, o barroco,<br />

a antropofagia, o sentido, a emoção e o<br />

desejo de contato físico entre atores e<br />

plateia”, aspectos desenvolvidos no seu<br />

“te-ato”, explica Edson Elito. Contudo, o<br />

resultado foi um espaço cênico unificado<br />

e dotado de modernos recursos de som<br />

e iluminação, além de um sistema de<br />

captação e distribuição de imagens de<br />

vídeo para todo o teatro, numa concepção<br />

que permite a simultanei<strong>da</strong>de de ações<br />

em locais distintos. Unindo dispositivos<br />

técnicos contemporâneos ao despojamento<br />

do “terreiro eletrônico”, local de atuação dos<br />

“bárbaros tecnizados”, o teatro apresenta<br />

uma estrutura com flexibili<strong>da</strong>de de uso,<br />

em que “todo o espaço é cênico”, deixando<br />

à vista os equipamentos e objetos de cena,<br />

fazendo interagir atores, técnicos e público,<br />

que “comungam ou se contrapõem e não<br />

há como esconder nenhum deles. Todos<br />

participam <strong>da</strong> cena”. 6 A definição de Lina<br />

Bo Bardi para o espaço é sucinta:<br />

6 Texto de Edson Elito. op. cit. nota 1. Páginas sem<br />

numeração.<br />

Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 111


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

112<br />

Do ponto de vista <strong>da</strong> arquitetura, o<br />

Oficina vai procurar a ver<strong>da</strong>deira<br />

significação do teatro – sua estrutura<br />

física e táctil, sua não-abstração – que<br />

o diferencia profun<strong>da</strong>mente do cinema<br />

e <strong>da</strong> tevê, permitindo ao mesmo<br />

tempo o uso total desses meios. (...)<br />

Na base <strong>da</strong> maior simplici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><br />

maior atenção aos meios científicos <strong>da</strong><br />

comunicação contemporânea. É tudo.<br />

Olhar eletronicamente, sentados numa<br />

cadeira de igreja. 7<br />

Para José Celso Martinez Corrêa, diretor<br />

<strong>da</strong> companhia Teatro Oficina Uzyna Uzona<br />

(como passou a se chamar o Grupo Oficina),<br />

o teatro é “uma metáfora arquitetônica e<br />

urbana de uma postura diante do teatro e<br />

do espetáculo do mundo”, funcionando<br />

como um barracão de escola de samba,<br />

lugar <strong>da</strong>s práticas diárias de construção do<br />

trabalho artístico. A horizontali<strong>da</strong>de de sua<br />

configuração espacial lembra o sambódromo,<br />

onde “reina a monarquia, governo de Momo,<br />

o carnaval permanente que desfila comendo<br />

solto na pista em busca de sua apoteose,<br />

servindo banquetes periódicos seguidos<br />

de grande seca”. Neste lugar, proclama o<br />

encenador: “Muitas noites, cenas são <strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

como carne viva a pequenas multidões<br />

antropófagas, produzindo mirações desta<br />

obra coletiva de arte que às vezes é o Teatro<br />

Oficina. Então lêem-se marcas passa<strong>da</strong>s e<br />

chaves futuras <strong>da</strong> história recente do Brasil lá<br />

tatua<strong>da</strong>s como uma caverna programa<strong>da</strong>”. 8<br />

O Teatro Estádio e as “ideias teatrais”<br />

de Oswald de Andrade<br />

As formas adota<strong>da</strong>s na construção do<br />

Teatro Oficina e a proposta de ampliação<br />

do espaço em um Teatro Estádio, à<br />

maneira “greco-tropical”, segundo José<br />

Celso Martinez Corrêa, foram inspira<strong>da</strong>s<br />

no manifesto de Oswald de Andrade, “Do<br />

teatro que é bom...”. Trata-se de um artigo<br />

7 Texto de Lina Bo Bardi, com o título “Teatro oficina”. Ibid.<br />

páginas sem numeração.<br />

8 Conforme texto de José Celso Martinez Corrêa. Ibid. páginas<br />

sem numeração.<br />

publicado em Ponta de Lança, em 1943, 9<br />

no qual o escritor modernista apresenta<br />

uma síntese de suas “ideias teatrais”,<br />

marcando uma posição estética dentro do<br />

panorama cênico moderno. Na forma de<br />

debate entre dois interlocutores, Oswald<br />

coloca em confronto o “teatro de câmara”<br />

e o “teatro para as massas”, utilizando-se<br />

<strong>da</strong> própria condição dialógica <strong>da</strong> estrutura<br />

dramática para marcar a relação entre<br />

os “personagens”, que se opõem numa<br />

dialética de discurso/resposta.<br />

O diálogo circunscreve as divergências<br />

entre Oswald de Andrade e um porta-voz<br />

do Grupo Universitário de Teatro – GUT,<br />

grupo paulista que atuou nos anos quarenta<br />

sob a direção do crítico Décio de Almei<strong>da</strong><br />

Prado, tendo recusado a proposta do autor<br />

de O rei <strong>da</strong> vela para a montagem de seu<br />

texto. Os integrantes do GUT (Lourival<br />

Gomes Machado, Clóvis Graciano, além<br />

de Décio de Almei<strong>da</strong> Prado) participaram<br />

também <strong>da</strong> revista Clima, redigi<strong>da</strong> entre<br />

1941 e 1944, ao lado de Antonio Candido,<br />

Paulo Emílio Salles Gomes e Rui Coelho,<br />

apeli<strong>da</strong>dos por Oswald de Andrade de<br />

“chato-boys”. O grupo foi alvo preferido<br />

dos ataques do escritor modernista, nesse<br />

período, principalmente depois dos juízos<br />

críticos formulados por Antonio Candido<br />

à obra ficcional de Oswald, no ensaio<br />

“Estouro e Libertação”, 10 no qual fez<br />

restrições ao livro A revolução melancólica,<br />

primeiro volume do ciclo Marco Zero,<br />

publicado em 1943. Oswald respondeu<br />

ferozmente a Antonio Candido em seu<br />

artigo, “Antes do Marco Zero” (publicado<br />

também em Ponta de Lança), rompendo<br />

assim com o grupo de Clima. O embate<br />

refletiria um novo momento na produção<br />

9 ANDRADE, oswald. Do teatro que é bom.... In: Ponta de<br />

Lança. São Paulo: Ed. Globo, 1991. p.102-108. o livro reúne<br />

artigos publicados, em 1943, nos jornais, Estado de São Paulo,<br />

Diário de São Paulo e na Folha <strong>da</strong> Manhã e três conferências<br />

escritas em 1943/44.<br />

10 CANDIDo, Antonio. Estouro e libertação. In: Briga<strong>da</strong><br />

Ligeira. São Paulo: Ed. UNESP, 1992, p.17-32. Segundo o autor, o<br />

texto, publicado em 1945, fora escrito em 1944, ampliando três<br />

artigos de 1943, escritos para o ro<strong>da</strong>pé semanal de crítica<br />

<strong>da</strong> Folha <strong>da</strong> Manhã. Ver comentário no artigo Digressão<br />

sentimental sobre oswald de Andrade. In: Candido, Antonio.<br />

Vários escritos. São Paulo: Ed. Pensamento, 1970.<br />

Nanci de Freitas


N° 16 | Junho de 2011<br />

e no pensamento artístico brasileiro,<br />

marcando as oposições entre a crítica<br />

erudita pratica<strong>da</strong> pelos modernistas e uma<br />

nova crítica especializa<strong>da</strong> que surgia <strong>da</strong><br />

geração emergente dos cursos de ciências<br />

sociais <strong>da</strong> USP, a partir de 1942, tendendo<br />

à especialização. 11<br />

O debate deixa claras as divergências,<br />

no campo ideológico, quanto à função do<br />

teatro. De um lado, as experiências cênicas<br />

camerísticas tendem a um aprimoramento<br />

formal em busca de uma recepção intimista,<br />

enquanto a posição oposta defende uma<br />

reforma do espetáculo, tendo em mente o<br />

teatro como fenômeno social, dirigido às<br />

massas, capaz de agregar elementos do<br />

cinema e dos esportes, como nas montagens<br />

teatrais russas, em particular as encenações<br />

de Meyerhold. 12<br />

O “teatro de câmara”, iniciado pelo<br />

teatro intimista de August Strindberg,<br />

aparece na discussão numa aproximação<br />

com as ideias do encenador francês, Jacques<br />

Copeau, desenvolvi<strong>da</strong>s a partir de sua<br />

atuação no Théâtre du Vieux Colombier,<br />

inicia<strong>da</strong> em 1913, e com o teatro moderno<br />

italiano, divulgado, principalmente, a<br />

partir <strong>da</strong> dramaturgia de Luigi Pirandello<br />

e <strong>da</strong>s experiências cênicas de Anton Giulio<br />

Bragaglia. São tendências do teatro europeu<br />

que exerceram influência sobre o processo<br />

de modernização <strong>da</strong> cena brasileira, em<br />

especial na déca<strong>da</strong> de 1940.<br />

No texto/manifesto de Oswald de<br />

Andrade, “Do teatro que é bom...”, o<br />

defensor do teatro de câmara insiste na<br />

importância de se espelhar no teatro moderno<br />

<strong>da</strong> França, nas encenações de Jacques<br />

Copeau e Louis Jouvet, como também nos<br />

textos de Jules Romains e de Giraudoux:<br />

11 Ver: BERNSTEIN, Ana. A crítica cúmplice: Décio de<br />

Almei<strong>da</strong> Prado e a formação do teatro moderno. São Paulo:<br />

Instituto Moreira Salles, 2005. p. 59-72. Para situar oswald,<br />

nesse debate, ver: SANTIAGo, Silviano. Sobre plataformas e<br />

testamentos. In: Ponta de Lança. 1991, p. 7-22.<br />

12 Uma análise minuciosa do manifesto “Do teatro que é<br />

bom...”, de oswald de Andrade, pode ser conferi<strong>da</strong> em artigo<br />

de minha autoria, intitulado: “A poética teatral de oswald de<br />

Andrade e a polêmica em torno do ‘teatro de câmara’ e do<br />

‘teatro para as massas”. In: Revista Concinnitas: arte, cultura<br />

e pensamento. V.6, p. 96-129. Rio de Janeiro: Instituto de Artes<br />

<strong>da</strong> UERJ, 2004. www.concinnitas.uerj<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Uma reação admirável contra o<br />

abastar<strong>da</strong>mento trazido pelo cinema.<br />

Sentindo-se atacado, o teatro melhorou,<br />

produziu o Vieux Colombier, o Atelier,<br />

alguns minúsculos palcos de escol, onde se<br />

refugiou o espírito nessa fabulosa Paris que<br />

a bota imun<strong>da</strong> do guar<strong>da</strong>-floresta Hitler<br />

tenta inutilmente pisar... Veja como graças<br />

aos Dullin, aos Pitoëff, aos Copeau, o teatro<br />

soube reacender a sua flama que parecia<br />

extinta... (ANDRADE, 1991, p.103). 13<br />

O discurso do segundo interlocutor<br />

reflete a postura ideológica de Oswald de<br />

Andrade, intelectual – temporariamente<br />

- engajado ao Partido Comunista. O tom<br />

idealista enfatiza a utopia de um mundo<br />

novo socialista, no qual as artes e os esportes,<br />

integrados aos meios de comunicação e<br />

aos avanços tecnológicos, cumpririam um<br />

papel decisivo na educação e na luta contra<br />

as forças nazifascistas, imperiosas naquele<br />

momento <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial,<br />

em 1943, quando o escritor publicava seu<br />

manifesto. Diz Oswald, fazendo ressalvas<br />

ao teatro de câmara: “Se amanhã se<br />

unificarem os meios de produção, o que<br />

parece possível, já não haverá dificul<strong>da</strong>des<br />

em reeducar o mundo, através <strong>da</strong> tela e do<br />

rádio, do teatro de choque e do estádio. É<br />

a era <strong>da</strong> máquina que atinge o seu zênite”.<br />

(Ibid.: 102/103).<br />

A configuração do projeto teatral<br />

oswaldiano, enquanto espetáculo de<br />

estádio, parece se pautar nas imagens<br />

<strong>da</strong>s grandes tradições populares (o teatro<br />

grego, os mistérios medievais e o teatro de<br />

Shakespeare), justapostas aos modernos<br />

espetáculos que ele pôde assistir na Paris<br />

dos anos 1920, como as produções cênicas<br />

russas, desencadea<strong>da</strong>s pela cultura <strong>da</strong><br />

Revolução de Outubro (inclusive os balés<br />

de Diaghilev). Conforme reitera seu texto,<br />

as experiências modernas indicam “o<br />

aparelhamento que a era <strong>da</strong> máquina, com o<br />

populismo do Stravinski, as locomotivas de<br />

Poulenc, as metralhadoras de Shostakovich<br />

na música, a arquitetura monumental de<br />

Fernand Léger e a encenação de Meyerhold,<br />

13 Andrade, oswald. Do teatro que é bom.... In: Ponta de Lança.<br />

São Paulo: Ed. Globo, 1991. Pag.:102-108.<br />

Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 113


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

114<br />

propõe aos estádios de nossa época”. No<br />

teatro de estádio, “há de se tornar uma<br />

reali<strong>da</strong>de o teatro de amanhã, como foi o<br />

teatro na Grécia, o teatro para a vontade do<br />

povo e a emoção do povo...” (Ibid.: 107). 14<br />

O nexo dessa discussão está relacionado<br />

ao processo de secularização do teatro e à<br />

sua progressiva profissionalização, que<br />

iriam empobrecer a possibili<strong>da</strong>de de jogo,<br />

com a diluição de seu caráter comunitário e<br />

sua intensa inserção nas ativi<strong>da</strong>des de lazer<br />

<strong>da</strong> burguesia. O abandono dos espaços<br />

teatrais abertos, a partir do século XVI,<br />

iria determinar a convencionalização do<br />

teatro no palco italiano, resultando em sua<br />

consequente per<strong>da</strong> de ludici<strong>da</strong>de. 15 Com a<br />

vitória do individualismo, assim como a<br />

pintura mural abandonaria as paredes <strong>da</strong>s<br />

igrejas para se fixar no cavalete, “o teatro<br />

deixou o seu sentido inicial que era o de<br />

espetáculo popular e educativo, para se<br />

tornar um minarete de paixões pessoais,<br />

uma simples magnésia para as dispepsias<br />

mentais dos burgueses bem jantados”, diz<br />

Oswald de Andrade. (Ibid.: 104).<br />

José Celso Martinez Corrêa acredita que<br />

a estrutura cênica sugeri<strong>da</strong> por algumas<br />

obras dramatúrgicas de Oswald de Andrade<br />

apontam para a ideia do Teatro Estádio,<br />

como a peça O homem e o cavalo, que teve<br />

uma leitura-espetáculo dirigi<strong>da</strong> por ele,<br />

em 1985, no Teatro Sérgio Cardoso, com a<br />

participação de 150 pessoas, e também Os<br />

mistérios gozosos, espetáculo montado em<br />

1982, para a comemoração do tombamento<br />

do Teatro Oficina. Na ver<strong>da</strong>de, diz José<br />

Celso, o projeto artístico do Teatro Oficina<br />

seria um resultado concreto de to<strong>da</strong> a<br />

dramaturgia de Oswald de Andrade, cujo<br />

centenário de nascimento (em 1990) foi<br />

celebrado com a encenação de um Banquete<br />

Antropofágico no canteiro de obras do Teatro<br />

14 Essa noção de “espetáculo de arte total”, originária <strong>da</strong>s<br />

concepções wagnerianas, foi dissemina<strong>da</strong> nos debates<br />

estéticos <strong>da</strong>s primeiras déca<strong>da</strong>s do século XX e nas<br />

experimentações de encenadores como Gordon Craig,<br />

Adolphe Appia, Max Reinhardt, Erwin Piscator, e nas<br />

concepções espaciais de Walter Gropius, na Bauhaus,<br />

guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as diferenças entre essas concepções cênicas.<br />

15 Sobre esse tema <strong>da</strong> progressiva per<strong>da</strong> do elemento lúdico<br />

na arte, ver o livro de Huizinga, Johan. Homo Ludens. Tradução<br />

de João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1999.<br />

Oficina e cujo cinquentenário de morte<br />

(em 22 de outubro de 2004) teve como<br />

homenagem o que se chamou de Devoração<br />

de Oswald Devorado Devorando-nos. 16<br />

A montagem de Mistérios Gozosos teria<br />

sido, afirma o encenador, “uma sessão de<br />

terreiro eletrônico, vídeo transmissão <strong>da</strong><br />

‘sala branca’ <strong>da</strong> orgia de Oswald, com ‘sexo<br />

explícito’, como se diz”. Foi aí que teria<br />

surgido a ideia <strong>da</strong> passarela para os coros<br />

de As Bacantes e do Mangue, onde ocorrem<br />

as ações de Os mistérios Gozosos:<br />

As personagens <strong>da</strong>s putas e dos michês<br />

exigiram a rua do Mangue. Abaixo a<br />

arquibanca<strong>da</strong> de contemplação. Que viesse<br />

o canal do Mangue, passarela de escola de<br />

samba. O homem e o cavalo, de Oswald,<br />

também queria o Teatro de Estádio.<br />

Quebrar paredes, entrar luz natural, sair<br />

<strong>da</strong> caixa preta. Espaço urbano. Cosmos.<br />

Teto aberto pro céu <strong>da</strong> encruzilha<strong>da</strong> do<br />

hemisfério sul. Terra de canteiro, água de<br />

cachoeira. E to<strong>da</strong>s as tecnologias. 17<br />

O projeto monumental do Teatro<br />

Estádio foi retomado, posteriormente, pelos<br />

arquitetos João Batista Martinez Corrêa 18 e<br />

Beatriz Pimenta Corrêa, respectivamente<br />

irmão e sobrinha do diretor. José Celso<br />

Martinez Corrêa, que encenou Os sertões,<br />

uma série de cinco espetáculos a partir de<br />

a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong> obra de Euclides <strong>da</strong> Cunha,<br />

diria em entrevista ao Jornal do Brasil, no<br />

dia 3 de fevereiro de 2006, a propósito <strong>da</strong><br />

última versão do Teatro Estádio: “Fomos<br />

16 Na programação do evento, segundo a divulgação <strong>da</strong> Folha<br />

de São Paulo, teria ocorrido o lançamento <strong>da</strong> “Primeira Versão<br />

do Programa de Arquitetura-Urbanismo e Gestão do Teatro<br />

Estádio” e a leitura de A luta, a<strong>da</strong>ptação de trecho de os<br />

Sertões, de Euclides <strong>da</strong> Cunha. Ver o documento mencionado<br />

no site do Teatro oficina, no site: www.teatrooficina.uol.com.br<br />

17 Corrêa, José Celso Martinez. op. cit. nota 1, sem<br />

numeração de página. Mistérios Gozosos foi uma montagem<br />

teatral a partir do poema dramático de oswald de Andrade,<br />

intitulado o Santeiro do Mangue: Mistério gozoso em forma<br />

de Ópera. Ver outros comentários sobre o espetáculo em<br />

entrevista concedi<strong>da</strong> por José Celso Martinez Corrêa à<br />

revista, Caros Amigos, na edição de aniversário de sete anos.<br />

Figurando como matéria de capa, a entrevista com o título:<br />

“Zé Conselheiro” está nas páginas 31 a 37. A matéria abor<strong>da</strong><br />

também a discussão sobre a construção do Teatro Estádio e a<br />

luta do encenador com Silvio Santos.<br />

18 João Batista Martinez Corrêa é o autor do projeto <strong>da</strong> estação<br />

de metrô Cardeal Arcoverde, em Copacabana, no Rio de Janeiro.<br />

Nanci de Freitas


N° 16 | Junho de 2011<br />

influenciados pela paisagem de Cocorobó<br />

descrita em Os sertões, nos caminhos e<br />

montanhas. E apostamos nas curvas de<br />

nível. Queremos um teatro rebolante,<br />

que pode ser trabalhado por dentro e por<br />

fora. Que deveria ter 15 mil lugares, mas<br />

pode ter 7, 6, 5 mil...”. O conglomerado<br />

teatral, de ambições sócio-culturais, prevê<br />

também a construção do que o encenador<br />

chama Universi<strong>da</strong>de Brazyleira (sic) de<br />

Cultura Antropofágica de Mestiçagem<br />

Multimídia, volta<strong>da</strong> para a formação<br />

de atores, “uma escola com princípios<br />

baseados nas teses de Oswald de Andrade<br />

rejeita<strong>da</strong>s pela USP, uma escola em que a<br />

educação se mescle com saúde, tecnologia<br />

e inclusão”, afirma o encenador. 19<br />

Em matéria especial de capa na revista<br />

Bravo, de março de 2005, José Celso falando<br />

<strong>da</strong> montagem de Os sertões, de Euclides <strong>da</strong><br />

Cunha, explicitaria, assim, o sentido do<br />

Teatro Estádio:<br />

Eu acho que este teatro, <strong>da</strong> multidão,<br />

é o mais forte do mundo em todos<br />

os tempos. Estamos na iminência de<br />

chegar aqui onde chegou o teatro<br />

grego - até mesmo ultrapassá-lo -, onde<br />

chegou Shakespeare. Estamos a ponto<br />

de criar um teatro realmente popular,<br />

carnavalesco, orgiástico, um teatro total<br />

com to<strong>da</strong> essa cultura <strong>da</strong> mestiçagem,<br />

antropofágica, que, num certo sentido,<br />

tende a ser hegemônica no mundo.<br />

Ela tem uma riqueza que a cultura do<br />

capitalismo – puritana do bem e do mal,<br />

do palco italiano, do convencional - não<br />

tem. E essa é uma luta que se confunde<br />

com a luta de quebrar os cânones que<br />

separam a arte do povo. Que o teatro<br />

saia <strong>da</strong> gaiola do pensamento decadente<br />

e que se ligue à multidão, criando uma<br />

coisa tão forte quanto à música popular,<br />

o cinema, o futebol, a arte de viver do<br />

povo brasileiro. Também é uma luta de<br />

transformação do próprio espaço cênico,<br />

que precisa se misturar com vídeo,<br />

música, <strong>da</strong>nça e artes plásticas. 20<br />

19 Entrevista publica<strong>da</strong> no Jornal do Brasil, em 3 de fevereiro<br />

de 2006. Caderno B, páginas: B1 e B2.<br />

20 Revista Bravo, março de 2005. Páginas: 26-35. Além de<br />

entrevista com José Celso Martinez Corrêa, a matéria<br />

apresenta diversos comentários sobre o trabalho do encenador,<br />

feitos por artistas e críticos, tais como: Helio Ponciano,<br />

Renato Borghi, Sérgio Carvalho, Sérgio Augusto de Andrade.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

A terra e a luta: terreiro eletrônico x<br />

baú <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de.<br />

O projeto de construção do Teatro<br />

Estádio inclui a ampliação do espaço<br />

do Teatro Oficina, desembocando<br />

numa apoteose, uma espécie de praça<br />

pública apta a abrigar espetáculos para<br />

grandes plateias e realizar programas<br />

de formação artística e inclusão social. 21<br />

Projeto que esbarra num paredão que<br />

separa o teatro de um estacionamento<br />

que pertence ao Grupo Sílvio Santos, no<br />

qual foi planeja<strong>da</strong> a construção de um<br />

shopping center tradicional. Diz José Celso:<br />

“A palavra mágica do Teatro é MERDA.<br />

A tripa <strong>da</strong> Jaceguay 520 não tem cu. A<br />

saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> matéria do amor feito, estaca<br />

num beco, num estacionamento do Baú <strong>da</strong><br />

Felici<strong>da</strong>de”. 22<br />

As inúmeras tentativas de<br />

intermediação com o Grupo Sílvio Santos,<br />

no sentido de convencimento acerca <strong>da</strong><br />

importância social do Teatro Estádio para<br />

o bairro, acenam com a possibili<strong>da</strong>de<br />

de construção de um trans-shopping de<br />

características culturais, gerando uma<br />

pendenga que se arrastou ao longo <strong>da</strong>s<br />

duas últimas déca<strong>da</strong>s. Esta luta tornouse<br />

paradigmática para o Teatro Oficina,<br />

instaurando-se em seu próprio processo de<br />

construção artística, metáfora materializa<strong>da</strong><br />

no heroísmo e na monumentali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

várias <strong>parte</strong>s que compõem a versão<br />

cênica de Os sertões, de Euclides <strong>da</strong> Cunha,<br />

considera<strong>da</strong> por José Celso como sua obra<br />

mais ambiciosa. A reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> luta pela<br />

terra, expressa nos conflitos de Canudos,<br />

transcontextualizando-se na batalha pela<br />

conquista do espaço para a construção<br />

do Teatro Estádio: “Uma encenação<br />

num terreno dos impasses globais <strong>da</strong><br />

contracenação entre um poder cultural<br />

21 o projeto prevê o desenvolvimento de ativi<strong>da</strong>des sócioculturais,<br />

volta<strong>da</strong>s para a população que circun<strong>da</strong> o teatro,<br />

excluí<strong>da</strong> do exercício amplo de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e de expressão<br />

cultural, quando <strong>da</strong> construção do Minhocão, que cortou<br />

o tradicional bairro italiano, conforme afirma José Celso<br />

Martinez Corrêa.<br />

22 Corrêa, José Celso Martinez. op. cit. nota 1: sem numeração.<br />

23 Ibid.: sem numeração.<br />

Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 115


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

116<br />

direto e o vídeo financeiro que o cerca<br />

por todos os lados, o complexo do Baú <strong>da</strong><br />

Felici<strong>da</strong>de”, diz José Celso. 23 O impasse<br />

político aparece, literalmente, em A terra,<br />

primeira <strong>parte</strong> <strong>da</strong> encenação de Os sertões,<br />

no Teatro Oficina, realiza<strong>da</strong> em 2003,<br />

inclusive com a apresentação no meio do<br />

espetáculo <strong>da</strong> maquete do Teatro Estádio.<br />

No espetáculo, A terra, o caráter épico<br />

<strong>da</strong> primeira <strong>parte</strong> do livro de Euclides <strong>da</strong><br />

Cunha, com a descrição geográfica do sertão<br />

de Canudos (topografia, rios, fauna, flora<br />

e os fenômenos atmosféricos climáticos),<br />

transformou-se numa narrativa cênica<br />

poético-musical operística, reunindo,<br />

além dos atores do grupo de José Celso,<br />

crianças e músicos, num grande coro,<br />

do qual o público também faz <strong>parte</strong>. Os<br />

próprios elementos cenográficos - panos<br />

e mangueiras representando rios, por<br />

exemplo - contribuem para o envolvimento<br />

quase “natural” <strong>da</strong> plateia, que é convi<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

a participar, desde o início, fazendo o<br />

aquecimento vocal com os atores e, ao<br />

longo do espetáculo ritualístico, <strong>da</strong>nça,<br />

canta e reproduz falas.<br />

Nessa atmosfera cênico-vivencial, a terra<br />

do sertão de Canudos é, metaforicamente,<br />

representa<strong>da</strong> por corpos nus e adereços,<br />

mas também pela relação concreta com a<br />

terra mesma do chão do espaço teatral -<br />

escava<strong>da</strong>, pisotea<strong>da</strong>, enlamea<strong>da</strong>, queima<strong>da</strong><br />

e, às vezes projeta<strong>da</strong> em escala maior, com<br />

recursos de vídeo. A configuração <strong>da</strong> terra<br />

do sertão é amplia<strong>da</strong> para fora do espaço<br />

físico representacional, abarcando, além<br />

do “espaço-terreiro” do Teatro Oficina, no<br />

Bexiga/Bela Vista, os morros do Rio de<br />

Janeiro e até a terra de Bagdá. E, desse modo,<br />

há brechas para a encenação do conflito<br />

que envolve a posse do espaço/entorno<br />

do Teatro Oficina e o Grupo Sílvio Santos;<br />

a discussão sobre o poder do narcotráfico<br />

nas favelas cariocas (com o público todo<br />

sendo levado a gritar palavras de ordem<br />

pela legalização <strong>da</strong>s drogas); e a Guerra de<br />

Bush contra o Iraque.<br />

Aos aspectos do espetáculo hapenning<br />

(um espaço de vivência lúdica e coletiva)<br />

que poderíamos chamar “modernistas”,<br />

soma-se a linguagem contemporânea <strong>da</strong><br />

concepção cênica de José Celso, com o uso<br />

de recursos tecnológicos sofisticados de luz<br />

e som, incluindo a projeção de imagens <strong>da</strong><br />

terra e de fragmentos textuais com várias<br />

formas de menção à escrita euclidiana.<br />

A plateia, massivamente muito jovem<br />

(os atores também), se coloca no espaço<br />

completamente disponível, sujeita ao<br />

contato com a terra, a lama, a chuva de<br />

areia e a nudez dos corpos. Regendo o<br />

espetáculo, José Celso, na figura do beato<br />

Antônio Conselheiro, atua como um corifeu<br />

em (lin<strong>da</strong>s) canções solo, a <strong>da</strong>r sentido<br />

político ao todo do espetáculo. Espetáculo<br />

este que age, profun<strong>da</strong>mente, no sentido<br />

do estilhaçamento dos limites espaciais,<br />

temporais e narrativos do teatro, para a fúria<br />

dos que não suportam o caráter interativo de<br />

sua concepção e sua monumental duração<br />

de cinco ou seis ou sete horas. Ou para o<br />

êxtase dos que se deixam contagiar pela<br />

força telúrica <strong>da</strong>s imagens e pela ruptura<br />

com a recepção passiva.<br />

A aventura heróica do encenador<br />

tropicalista/oswaldiano demonstra as<br />

possibili<strong>da</strong>des de materialização do<br />

pensamento artístico antropofágico, no<br />

teatro contemporâneo. A vocação formal<br />

do espaço físico do Teatro Oficina enquanto<br />

uma passarela carnavalesca é explora<strong>da</strong><br />

intensamente e reitera seu potencial para<br />

atravessar o paredão que o separa do<br />

espaço externo, para a concretização <strong>da</strong><br />

ágora, do Teatro Estádio, apoteótico sonho<br />

de Oswald/Zé Celso.<br />

Nesse sentido, mais um capítulo<br />

do conflito que envolve o terreiro<br />

eletrônico e o estacionamento do baú<br />

<strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de parece caminhar para um<br />

provável desfecho. Em 24 de junho de<br />

2010, o Instituto do Patrimônio Histórico<br />

e Artístico Nacional (IPHAN) aprovou<br />

o projeto de tombamento do Teatro<br />

Oficina, que só era protegido em âmbito<br />

estadual. O documento, que tramitava<br />

desde 2003, estabelece parâmetros para<br />

a construção de obra de engenharia no<br />

terreno que circun<strong>da</strong> o prédio, proibindo<br />

a descaracterização <strong>da</strong> paisagem em torno<br />

Nanci de Freitas


N° 16 | Junho de 2011<br />

do Teatro Oficina, o que restringirá as<br />

ambições empresariais do Grupo Silvio<br />

Santos. Ao que tudo indica, o desenlace<br />

dessa curva dramática ain<strong>da</strong> aguar<strong>da</strong><br />

muitas peripécias. Que o deus Dioniso<br />

não descuide de enviar eflúvios. Evoé!<br />

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SANTIAGO, Silviano. Sobre plataformas e<br />

testamentos. In: Ponta de Lança. 1991: p. 7-22.<br />

Teatro Oficina: Lina Bo Bardi/Edson Elito –<br />

São Paulo, Brasil, 1980-1984. Textos: Lina<br />

Bo Bardi, Edson Elito e José Celso Martinez<br />

Corrêa. Lisboa: Editorial Blau; Instituto<br />

Lina Bo Bardi e P.M. Bardi, 1999.<br />

Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 117


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Bernadette [Du<strong>da</strong> Schappo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Artaud, Arrabal e nós: estudo de processo criação cênica 119


N° 16 | Junho de 2011<br />

ARTAUD, ARRABAL E NÓS: ESTUDo<br />

DE PRoCESSo CRIAçÃo CÊNICA<br />

Resumo<br />

O presente artigo apresenta um estudo de criação cênica<br />

a partir do estudo do Pensamento/Prática de Antonin<br />

Artaud e Fernando Arrabal com três atrizes.<br />

Palavras-chave: Antonin Artaud, Fernando Arrabal,<br />

exercício atorial<br />

Abstract<br />

This article presents an analysis of a creative work in<br />

progress with three actresses that took as its point of<br />

departure thoughts and pratices of Antonin Artaud<br />

and Fernando Arrabal, establishing a dialogue between<br />

actresses and these points of reference.<br />

Keywords: Antonin Artaud, Fernando Arrabal,<br />

exercise actorial<br />

Narciso Telles 1<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Artaud, Arrabal e nós: estudo de processo criação cênica 121


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

122<br />

O<br />

presente trabalho busca<br />

apresentar o caminho<br />

percorrido por Nós -<br />

Narciso, Carla, Michelle<br />

e Anamaria - no encontro<br />

com Artaud e Arrabal. Divididos em três<br />

momentos, que para efeito acadêmico<br />

aparecem separa<strong>da</strong>mente são (e foram)<br />

articulados no processo de criação <strong>da</strong><br />

cena. Aqui procuro mostrar os elementos,<br />

conceitos, metáforas que nortearam<br />

nosso processo investigativo, artístico e<br />

pe<strong>da</strong>gógico no trabalho com as atrizes.<br />

Tomo como atitude de criação o conceito<br />

de experiência A explicação <strong>da</strong> experiência<br />

sempre se ancora em práticas experienciais,<br />

na observação de um <strong>da</strong>do fenômeno e na<br />

nossa leitura deste ato, pois a experiência<br />

ocorre no fazer. O que se faz, simplesmente<br />

acontece. Nesta explicação, múltiplos<br />

domínios de reali<strong>da</strong>de são acionados,<br />

construindo um caminho explicativo a partir<br />

<strong>da</strong>s coerências <strong>da</strong>s práticas experenciais do<br />

observador, ou seja, a análise de um processo<br />

no qual estamos inseridos como partícipes<br />

é demarca<strong>da</strong> pelo conjunto de ativi<strong>da</strong>des<br />

vivencia<strong>da</strong>s por nós na experiência. Esta<br />

vivência é única para ca<strong>da</strong> pessoa e possibilita<br />

que ca<strong>da</strong> um possa fazer uma explicação<br />

diferencia<strong>da</strong> sobre uma <strong>da</strong><strong>da</strong> experiência.<br />

Como não poderia deixar de ser,<br />

iniciamos nossa reflexão navegando no<br />

pensamento de Artaud. Em segui<strong>da</strong><br />

apresentamos aspectos <strong>da</strong> dramaturgia de<br />

Fernando Arrabal, especialmente, <strong>da</strong> peça O<br />

Arquiteto e o Imperador <strong>da</strong> Assíria. E por fim,<br />

uma análise do processo de criação <strong>da</strong> cena<br />

(quadro II, ato II) <strong>da</strong> peça acima cita<strong>da</strong>.<br />

Artaud<br />

Antonin Artaud é um homem de<br />

teatro. Com esta afirmação iniciamos nossa<br />

jorna<strong>da</strong> por seu pensamento sobre o teatro,<br />

sua definição de Teatro <strong>da</strong> Cruel<strong>da</strong>de e<br />

1 Ator, performer, diretor e professor do Curso de Teatro e<br />

do Programa de Pós-Graduação em Artes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Coletivo Teatro <strong>da</strong><br />

Margem.(Uberlândia/MG).<br />

seus principais elementos constitutivos.<br />

Aqui apresentaremos nossa leitura sobre<br />

os princípios de Artaud, de forma a propor<br />

um dialogo com nosso processo de criação<br />

do quadro II, ato II <strong>da</strong> peça O Arquiteto e o<br />

Imperador <strong>da</strong> Assíria de Arrabal.<br />

O Teatro <strong>da</strong> Cruel<strong>da</strong>de tem como<br />

princípio norteador a proposta de<br />

recuperar as características primais<br />

perdi<strong>da</strong>s no decorrer <strong>da</strong> história do teatro<br />

ocidental. Artaud defende um teatro que<br />

(re)encontre o ritual, o encantamento, o<br />

mito, a metafísica e a alquimia. Um teatro<br />

que a cena seja o foco principal e o texto<br />

ganhe uma dimensão além dos significados<br />

linguísticos <strong>da</strong>s palavras. Um teatro onde<br />

a magia seja algo visível na cena e promova<br />

o pestiamento de todo o público diante do<br />

apresentado. Diz ele:<br />

(...) se o teatro é como a peste, não é apenas<br />

por atuar sobre importantes coletivi<strong>da</strong>des<br />

e por transtorná-las do mesmo modo<br />

como se faz a peste. Existe no teatro, como<br />

na peste, algo de vitorioso e de vingador<br />

ao mesmo tempo. (ARTAUD, 1987, p. 39)<br />

Assim, o teatro deve revelar o fascínio<br />

que libere o espírito de quem participa<br />

dele como um ritual. Nessa direção nosso<br />

pensador destaca a importância <strong>da</strong> imagem<br />

e a força que esta tem neste processo<br />

de liberação. Por meio <strong>da</strong>s imagens o<br />

imaginário suplanta a reali<strong>da</strong>de cotidiana,<br />

<strong>da</strong>ndo-a um caráter mais transcendente e<br />

alquímico. Um duplo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

O conceito (ou metáfora?) do duplo está<br />

extremamente presente na obra de Artaud,<br />

para ele "(...) o teatro deve ser considerado<br />

como o duplo não desta reali<strong>da</strong>de cotidiana<br />

e direta <strong>da</strong> qual ele aos poucos limitou-se<br />

a ser apenas uma cópia inerte, tão inútil<br />

quanto edulcora<strong>da</strong>, mas de uma outra<br />

reali<strong>da</strong>de perigosa e típica (...)" (ARTAUD,<br />

1987, p. 65)<br />

Brito afirma: "o duplo do teatro<br />

representa para Artaud o encontro do<br />

teatro consigo mesmo, com sua própria<br />

identi<strong>da</strong>de a partir <strong>da</strong> encenação <strong>da</strong><br />

experiência <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de, propicia<strong>da</strong><br />

pela peste, metafísica, cruel<strong>da</strong>de em<br />

Narciso Telles


N° 16 | Junho de 2011<br />

explosão de energias primordiaid e<br />

míticas.” (2001/2002, p. 85).<br />

O duplo retoma o caráter mítico, onde<br />

o homem é possuidor de uma natureza<br />

humana dupla - masculina e feminina.<br />

Através do mito o homem recuperaria<br />

sua identi<strong>da</strong>de e a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

transformação alquímica. Neste sentido,<br />

a encenação seria, não o duplo <strong>da</strong> obra<br />

dramática, mas duplo de si no engajamento<br />

do homem na descoberta de si.<br />

Com este espírito iniciamos nossas<br />

leituras <strong>da</strong> dramaturgia de Arrabal para a<br />

posterior montagem <strong>da</strong> cena.<br />

Arrabal<br />

Fernando Arrabal, ci<strong>da</strong>dão espanhol,<br />

nascido em Melilla em 1932, vive na França<br />

desde 1955. Contrário ao regime do general<br />

Franco, partiu para um exílio voluntário<br />

em terras francesas. Com a morte de<br />

Franco em 1975, muitos artistas retornaram<br />

à Espanha, menos Arrabal, "persona non<br />

grata" no país desde 1967 quando foi preso e<br />

enviado a penitenciária de Madrid acusado<br />

de ter escrito uma dedicatória sacrílega<br />

e antipatriótica em um livro. Os dramas<br />

familiares vividos por Arrabal - prisão e<br />

desaparecimento do pai, e rompimento<br />

com a mãe - permeiam suas obras.<br />

Seu conjunto dramatúrgico figuram<br />

textos como: Os Dois Carrascos, Piquenique<br />

no Front, O Triciclo, Fando e Lis,<br />

Cerimônia para um Negro Assassinado,<br />

Oração, Jardim <strong>da</strong>s Delícias, Cemitério de<br />

Automóveis, O Arquiteto e o Imperador<br />

<strong>da</strong> Assíria, Orquestração Teatral, Concerto<br />

dentro de um ovo, Guernica, a Bicicleta do<br />

Condenado, entre outros.<br />

A dramaturgia de Arrabal<br />

espetaculariza a figura humana em seu<br />

aspecto mais selvagem, sem características<br />

cotidianas defini<strong>da</strong>s e utilizando-se de uma<br />

linguagem que não faz <strong>parte</strong> do mundo real,<br />

seus personagens se repetem em diversas<br />

peças e giram em torno dos mesmos temas<br />

e situações. “São freqüentes os jogos de<br />

palavras, o nonsense, a violência instintiva,<br />

as imagens colhi<strong>da</strong>s no inconsciente.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Arrabal diz que escreve tudo o que lhe<br />

passa pela cabeça, que não revê o que cria,<br />

nem se detém numa palavra ou frase para<br />

refazê-la.” (ARRABAL, 1976, p. XII).<br />

Uma ponte entre a poética de Artaud e a<br />

dramaturgia de Arrabal pode ser construí<strong>da</strong><br />

a partir do conceito de Teatro Pânico. O<br />

conceito de pânico foi elaborado nos meios<br />

intelectuais franceses com a participação<br />

de entre outros; Arrabal, Rolan<strong>da</strong> Topor,<br />

Alexandro Jodorowski e não se constituía<br />

num movimento estético. "Arrabal dizia<br />

que pânico não era um grupo nem um<br />

movimento, mas uma maneira de ser de<br />

acordo com uma ideologia que tinha por<br />

fun<strong>da</strong>mento a exaltação <strong>da</strong> moral múltipla."<br />

Em seu texto Homem Pânico de 1963, o<br />

autor discorre uma anti-definição para<br />

o termo. "O pânico é uma maneira de ser<br />

regi<strong>da</strong> pela confusão, pelo humor, o terror,<br />

o acaso e a euforia."(ARRABAL,1973, p. 52).<br />

Trabalhando com duas palavras: memória<br />

e acaso, Arrabal constrói uma proposta<br />

poética e estética que caracterizariam as<br />

criações artísticas na visão pânico.<br />

Do elenco de características do homem<br />

pânico aponta<strong>da</strong>s, gostaria para esta<br />

nossa reflexão de assinalar: talento louco,<br />

entusiasmo lúdico, solidão, a anti-pureza.<br />

E dos fantasmas que o perseguem destaco:<br />

paranóia, inveja, mitologia, desespero,<br />

susceptibili<strong>da</strong>de. O herói na dramaturgia<br />

de Arrabal é apresentado em to<strong>da</strong> a sua<br />

ambigui<strong>da</strong>de: “tirano e escravo, bom e cruel,<br />

inocente e culpado, vítima e carrasco, vive<br />

sempre à margem de um mundo ordenado<br />

que ele não compreende. Seu espaço, a<br />

terra de ninguém; sua condição, a miséria.<br />

A maior ameaça que paira sobre ele vem<br />

do mundo exterior, expressa através <strong>da</strong><br />

repressão brutal e anônima que surpreende<br />

seus valores anti-sociais sua liber<strong>da</strong>de,<br />

acabando por imobilizá-lo."(ARRABAL,<br />

1976, p. XII)<br />

No caso <strong>da</strong>s personagens femininas,<br />

estas aparecem sempre sob a tríade mãecriança-prostituta<br />

plena de instintos e<br />

intuição, escravas ou tiranas, elas sempre<br />

apresentam uma outra perspectiva de ação<br />

em relação aos personagens masculinos. O<br />

outro em to<strong>da</strong> a sua presença.<br />

Artaud, Arrabal e nós: estudo de processo criação cênica 123


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

124<br />

Estes aspectos pontuados acima,<br />

perpassam a produção dramatúrgica de<br />

Arrabal e a conectam com as ideias de<br />

cruel<strong>da</strong>de, metafísica, alquimia e duplo<br />

desenvolvi<strong>da</strong>s por Artaud, comenta<strong>da</strong>s<br />

anteriormente. Isto posto, escolhemos para<br />

a montagem <strong>da</strong> cena a peça O Arquiteto e o<br />

Imperador <strong>da</strong> Assíria.<br />

O ambiente onde se passa a história de<br />

O Arquiteto e o Imperador <strong>da</strong> Assíria é uma<br />

ilha deserta. A trama é construí<strong>da</strong> a partir<br />

de dois personagens: um, civilizado, único<br />

sobrevivente de um desastre aéreo. O<br />

outro, um primitivo. A peça inicia-se com<br />

precisamente com o encontro do civilizado<br />

com o assustado homem primitivo. Dois<br />

anos decorreram. Agora, eles são o arquiteto<br />

e o imperador <strong>da</strong> Assíria.<br />

O sobrevivente, herdeiro do mundo<br />

civilizado, ressuscita como um hipotético<br />

Império, fez-se imperador e nomeia<br />

como seu absurdo arquiteto o homem<br />

primitivo. Nos dois anos que se seguiram<br />

ao acidente, o imperador ensinou o<br />

selvagem a falar e incansavelmente tenta<br />

ain<strong>da</strong> fazer com que seu aluno assimile<br />

os valores de sua cultura.<br />

O arquiteto deseja tornar-se civilizado;<br />

o imperador aspira à barbárie, à inocência,<br />

à ignorância e ao poder sobre a natureza de<br />

que o arquiteto desfruta.<br />

Mas o arquiteto é capaz controlar os<br />

elementos <strong>da</strong> natureza. Eles se temem e se<br />

odeiam e se necessitam e se amam - e estão<br />

condenados a viver juntos. O imperador no<br />

decorrer <strong>da</strong> história vai se transfigurando<br />

em seus duplos: a esposa, o irmão, um<br />

cego, as várias testemunhas de acusação.<br />

Já o arquiteto tem dois papéis dominantes:<br />

o de presidente do tribunal e o <strong>da</strong> vítima<br />

(a mãe). Após desfilar seus motivos Só que<br />

desta vez o sobrevivente é o arquiteto. E o<br />

jogo pode recomeçar.<br />

Arrabal considera, O Arquiteto e o<br />

Imperador <strong>da</strong> Assíria uma obra com “grande<br />

felici<strong>da</strong>de mistura<strong>da</strong> com sofrimento e<br />

muita alegria”. Para o exercício cênico em<br />

questão, a obra é uma demonstração do<br />

conceito de teatro pânico que proporciona<br />

já na escrita uma ‘nova’ possibili<strong>da</strong>de de<br />

relação entre atores e espectadores “A<br />

cerimônia é devi<strong>da</strong>mente orquestra<strong>da</strong>:<br />

todos os movimentos cênicos são<br />

indicados pelo autor e não há improvisos.<br />

Como to<strong>da</strong>s as peças de Arrabal tocam o<br />

espectador pelo fascínio - e não pela razão<br />

-,seu objetivo é a purgação <strong>da</strong>s paixões. "<br />

(ARRABAL, 1976, p. XXII)<br />

Para o exercício de cena o Quadro II, do<br />

Ato II, no qual o imperador exige que seja<br />

executado pelo arquiteto numa cerimônia<br />

de antropofagia. E, como num ritual<br />

de comunhão solene, o arquiteto come<br />

seu corpo, suga seu cérebro e descobre<br />

subitamente o inferno <strong>da</strong> consciência<br />

culpa<strong>da</strong> e solitária que tanto atormentara<br />

o imperador.<br />

Nós<br />

O processo de trabalho com vistas<br />

à montagem do quadro II, Ato II <strong>da</strong><br />

peça O Arquiteto e o Imperador <strong>da</strong> Assíria<br />

foi conduzido fun<strong>da</strong>mentalmente<br />

pela questão do duplo. No primeiro<br />

momento nossa intenção era verificar a<br />

possibili<strong>da</strong>de de duas atrizes fazerem<br />

papéis masculinos – seus duplos que<br />

no decorrer <strong>da</strong> cena transfiguramse<br />

em mulheres. Esta alternância de<br />

duplici<strong>da</strong>de, ao nosso ver, tornava<br />

o exercício atorial extremamente<br />

interessante. Com as leituras e<br />

discussões sobre a cena, fun<strong>da</strong>mentados<br />

no pensamento artaudiano, fomos<br />

percebendo outros caminhos possíveis.<br />

Após a definição do elenco - as alunas<br />

de graduação Carla Martins e Michelle<br />

Cabral e de pós-graduação Anamaria<br />

Sobral - iniciamos nossos encontros<br />

para o preparo <strong>da</strong> cena. Nos primeiros<br />

encontros conversamos sobre a poética<br />

de Artaud, aspectos <strong>da</strong> dramaturgia de<br />

Arrabal e <strong>da</strong> peça escolhi<strong>da</strong>. Solicitei que<br />

as atrizes lessem todo o texto, enquanto<br />

definia o trecho que seria apresentado.<br />

Realizamos três encontros de trabalho<br />

prático onde propus exercícios de<br />

sensibilização. Nestes dias, desenvolvemos<br />

Narciso Telles


N° 16 | Junho de 2011<br />

a partir <strong>da</strong> ideia de duplo e do instinto<br />

fêmea, uma sequência de improvisações<br />

com movimentos livres. A partir de<br />

estímulos sonoros as atrizes improvisavam<br />

movimentos na busca <strong>da</strong> expressão primal,<br />

um possível caminho metafísico para a<br />

libertação do espírito, que fugisse dos<br />

estereótipos, <strong>da</strong> superficiali<strong>da</strong>de. Comenta<br />

a atriz Michelle Cabral:<br />

Em nosso primeiro encontro para ensaio,<br />

foi solicitado pelo diretor (Narciso Telles)<br />

que buscássemos através do corpo a<br />

representação do feminino. Este ser<br />

mulher- fêmea , como ela an<strong>da</strong>, age, sente,<br />

etc... Pareceu-me estranho o pedido,<br />

tendo em vista que o elenco era composto<br />

por mulheres. Durante o exercício percebi<br />

que há o ser feminino que é originário<br />

e a "mulher cultural", o mito construído<br />

em socie<strong>da</strong>de, do que seja a representação<br />

do feminino, e o quanto nós mulheres<br />

estamos inexoravelmente inseri<strong>da</strong>s<br />

neste contexto. A partir <strong>da</strong>í, mostrou-se<br />

para mim o tamanho do nosso desafio<br />

como atores, mulheres que interpretam<br />

homens, que interpretam mulheres. O<br />

homem/ feminino, a mulher/feminina ,<br />

o ator e seu duplo... o homem/mulher e<br />

suas máscaras... estava formado o quebracabeça.<br />

Iniciou-se então uma busca pelo<br />

primitivo, pela origem primeira, o instinto<br />

e a emoção. A fome.<br />

Esta palavra permeou a minha busca,<br />

comecei a pensar que a origem do homem<br />

está na fome, desde o seu primeiro choro<br />

ao nascer, sempre a fome nas mais amplas<br />

fronteiras que a palavra alcançar. A fome<br />

de comer, de saber de sentir, a fome que<br />

nunca se aplaca, como um monstro que<br />

devora a todos e por fim a si mesmo.<br />

Como resposta as atrizes ampliavam<br />

sua expressão corporal e com a respiração<br />

emitiam pequenos sons, sempre<br />

relacionados ao movimento. A integração<br />

entre a respiração e a gestuali<strong>da</strong>de teve<br />

como fun<strong>da</strong>mento a noção de atleta<br />

afetivo.<br />

Artaud compreende que o ator deve<br />

voltar sua atenção para a respiração, pois<br />

esta é a base sobre a qual o movimento<br />

deverá ser construído. Para Quilice,<br />

"pesquisar a respiração significa investir o<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

nascimento dos impulsos e as transformações<br />

sutis de estados interiores." (2002, p. 98)<br />

O ator tem seus sentimentos<br />

localizados na musculatura e é ela que<br />

libera os afetos. Neste sentido o conceito<br />

de duplo aparece também no trabalho do<br />

ator na medi<strong>da</strong> em que duas dimensões<br />

são trabalha<strong>da</strong>s: uma de dentro ( suas<br />

emoções) e outra de fora (como um<br />

catalisador <strong>da</strong>s forças <strong>da</strong> natureza).<br />

Em nosso processo, estes aspectos<br />

apareceram nos exercícios de respiração<br />

conduzimos a liberação do instinto,<br />

principalmente nos duplos arquitetos.<br />

Em segui<strong>da</strong> desenvolvemos<br />

improvisações tendo como guia a<br />

circunstância do trecho escolhido até<br />

chegarmos aos diálogos propriamente<br />

ditos. Deixo a palavra com as atrizes:<br />

"A proposta, ao relacionarmos com a<br />

questão do duplo, era buscar o lado<br />

feminino (anima) dos personagens;<br />

pensando em fertili<strong>da</strong>de, fonte geradora.<br />

Entrar em contato com o feminino<br />

que pressupõe leveza, sensuali<strong>da</strong>de,<br />

sensibili<strong>da</strong>de me fez recair na forma. A<br />

desconstrução tornou-se, então, necessária<br />

para que algo "novo" se materializasse, e<br />

duas dinâmicas me aju<strong>da</strong>ram a caminhar<br />

nesta direção: o exercício <strong>da</strong> fruta e<br />

as improvisações referentes a própria<br />

cena. A dinâmica <strong>da</strong> fruta abriu novas<br />

possibili<strong>da</strong>des de exploração de espaço e<br />

de relação. Um ponto interessante foi o de<br />

ultrapassar o mundo do humano para o<br />

puramente instintivo - quando o "animal"<br />

acaba vindo à tona - visto que a ideia seria<br />

comer a fruta "com todo o corpo", devorála<br />

mesmo. Isso fez com que os sentidos<br />

fossem ativados acarretando numa<br />

mu<strong>da</strong>nça corporal. O segundo exercício<br />

- o de improvisar a partir <strong>da</strong> cena em<br />

que o Arquiteto devora o Imperador -<br />

veio apenas para acentuar o primeiro,<br />

pois dentro <strong>da</strong> mecânica do improviso,<br />

acabamos levando à cena a "desconstrução"<br />

consegui<strong>da</strong> com o "devorar <strong>da</strong> fruta",<br />

criando uma situação análoga com o<br />

Imperador. Outro ponto fun<strong>da</strong>mental<br />

do processo foram as conversas sobre o<br />

universo artaudiano: esclarecedoras para<br />

entendermos a necessi<strong>da</strong>de em ritualizar<br />

a refeição, por exemplo." (Carla Martins)<br />

"Em segui<strong>da</strong>, eles me mostraram o<br />

que estavam construindo: uma espécie<br />

Artaud, Arrabal e nós: estudo de processo criação cênica 125


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

126<br />

de ritual que mostrava dois seres<br />

<strong>da</strong>nçando e cheirando-se mutuamente;<br />

um, prestes a devorar o outro. Falei<br />

para Narciso que eu temia que a minha<br />

inserção quebrasse uma organici<strong>da</strong>de<br />

já trabalha<strong>da</strong>. Ele disse que estava<br />

pensando em mim para ser o Imperador<br />

que, no momento <strong>da</strong> cena escolhi<strong>da</strong>, já<br />

era um cadáver. Nesse momento, as<br />

coisas começaram a fazer mais sentido,<br />

pois a própria condição <strong>da</strong> cena pedia<br />

que eu estivesse dentro e fora ao mesmo<br />

tempo. Imaginei que essa dubie<strong>da</strong>de<br />

poderia ser usa<strong>da</strong> a nosso favor.<br />

Improvisamos. Comecei a fazer símbolos<br />

com referências ao sagrado: os mudras<br />

que Jesus faz com as mãos (ao menos<br />

na iconografia conheci<strong>da</strong>), os braços do<br />

crucificado; e com referências sexuais: um<br />

abrir e fechar de pernas, olhares maliciosos<br />

etc. Narciso pediu que isso fosse mantido,<br />

pois o texto fazia referência às religiões<br />

que proíbem a masturbação, entre outras<br />

coisas. Carla fazia uma respiração ruidosa<br />

que também entrou para a ‘coreografia’."<br />

(Anamaria Sobral)<br />

As improvisações possibilitaram<br />

a procriação de imagens e expressões<br />

gestuais que proporcionaram à cena<br />

ganhar uma estrutura ritualística. Muitas<br />

imagens e expressões produzi<strong>da</strong>s vinham<br />

do caráter mítico presente na dramaturgia<br />

de Arrabal e incorpora<strong>da</strong> pelos atores neste<br />

processo. Havia uma preocupação em<br />

comungar com a plateia, de forma que esta<br />

pudesse ser contamina<strong>da</strong> pela encenação.<br />

Tal como preconizava Artaud, tínhamos<br />

como meta <strong>da</strong>r a cena um caráter pestilento<br />

e metafísico, que contaminasse o público e<br />

criasse uma ebulição em seu espírito.<br />

Cabe registrar que a condução <strong>da</strong>s<br />

improvisações, com base no fragmento<br />

escolhido, foram também guia<strong>da</strong>s<br />

prioritariamente através do corpo e <strong>da</strong><br />

respiração. O trabalho com o texto foi<br />

inserido a partir <strong>da</strong> ideia de uma palavra<br />

com encantamento, ou seja, a palavra<br />

deveria ultrapassar seu caráter meramente<br />

linguístico e adentrar, em conexão com o<br />

corpo, na via do ritual, como dizia Artaud:<br />

"(...) as palavras serão considera<strong>da</strong>s num sentido<br />

encantatório, ver<strong>da</strong>deiramente mágico - por suas<br />

formas, suas emanações sensíveis e não apenas<br />

por seus sentidos.” (ARTAUD, 1987, p. 157)<br />

Este sentido encantatório, também<br />

aparece no figurino do Imperador. A escolha<br />

do manto com figurino único do Imperador<br />

proporcionou ao elenco perceber novas<br />

possibili<strong>da</strong>des de criação de imagens,<br />

por exemplo: no final <strong>da</strong> cena quando os<br />

arquitetos são "devorados" pelo manto<br />

do Imperador, como algo cíclico, presente<br />

no mito do eterno retorno. É importante<br />

comentar que o manto já era elaborado com<br />

miçangas, colares, símbolos, o que também<br />

facilitava a instauração de um universo<br />

ritualístico. Buscamos com este exercício<br />

cênico o poder de encantação presente na<br />

linguagem do teatro <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de.<br />

Dos inúmeros conceitos e metáforas<br />

que nos trazem o pensamento de Antonin<br />

Artaud e seu Teatro <strong>da</strong> Cruel<strong>da</strong>de, e a<br />

partir destes trabalhados nos encontros e<br />

na cena. acredito ser o momento de um<br />

(re)pensar o lugar <strong>da</strong> poética artaudiana<br />

nas Escolas de teatro.<br />

Referências bibliográficas<br />

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São<br />

Paulo: Max Limonad, 1987.<br />

ARRABAL, Fernando. O Arquiteto e o<br />

Imperador <strong>da</strong> Assíria. São Paulo: Abril<br />

Cultural, 1976. Coleção Teatro Vivo.<br />

_______. Le Panique. Paris: Union Generale<br />

d'Editions, 1973.<br />

BRITO, Maria Cristina. O Diálogo de Nelson<br />

Rodrigues com Antonin Artaud na escritura do<br />

Teatro Desagradável. O Percevejo, UNIRIO,<br />

n. 10/11. pp. 74-93, 2001/2002.<br />

BRUNEL, Pierre. Dicionário de Mitos<br />

Literários. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1997.<br />

QUILICE, Cassiano Sydow. Antonin Artaud:<br />

o ator e a física dos afetos. Sala Preta, USP,<br />

n. 02. pp. 96-101, 2002.<br />

Narciso Telles


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Médico Interno [Vicente Concilio]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Pina Bausch: para maiores de 65 Anos 127


N° 16 | Junho de 2011<br />

PINA BAUSCH: PARA MAIoRES DE 65<br />

ANoS<br />

Resumo<br />

Um lugar para fazer contatos - é este o título sugestivo de<br />

uma <strong>da</strong>s obras mais atraentes de Pina Bausch, e também<br />

a mais elástica: Kontakthof, cria<strong>da</strong> e encena<strong>da</strong> por sua<br />

companhia em 1978. Em 2000, Bausch resolveu remontar a<br />

obra para pessoas com mais de 65 anos e para menores de<br />

19 anos. Apesar dos 32 anos e <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de de elencos,<br />

Kontakthof continua simultaneamente atemporal e atual.<br />

Palavras-chave: Pina Bausch, Dança teatro, <strong>da</strong>nça na<br />

maturi<strong>da</strong>de.<br />

Abstract<br />

A place to make contacts - this is the evocative title of<br />

one of the most attractive works of Pina Bausch, and<br />

also the most elastic: Kontakthof, created and staged by<br />

his company in 1978. In 2000, Bausch decided to restage<br />

the work with people over 65 years and younger than 19<br />

years. Despite its 32 years of age and the diversity of its<br />

casts, Kontakthof continues simultaneously timeless and<br />

actual.<br />

Keywords: Pina Bausch, <strong>da</strong>nce theater, <strong>da</strong>nce at maturity.<br />

Solange Caldeira 1<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Pina Bausch: para maiores de 65 Anos 129


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

130<br />

A Montagem<br />

Bailarinos de todo o mundo<br />

faziam peregrinação<br />

à ci<strong>da</strong>de industrial de<br />

Wuppertal, na Alemanha,<br />

para uma audição na<br />

companhia de Pina Bausch. Portanto, não<br />

foi surpreendente que quando Bausch<br />

anunciou, em 1998, audição de um novo<br />

elenco para remontar Kontakthof, 120<br />

homens e mulheres tenham aparecido.<br />

A diferença era que todos os candi<strong>da</strong>tos<br />

tinham mais de 60 anos e ninguém jamais<br />

subira no palco como profissional antes.<br />

Bausch foi específica, procurava<br />

idosos inexperientes, a maioria dos<br />

participantes do teste tinha pequena<br />

esperança de sucesso. Edith Rudorff,<br />

uma <strong>da</strong>s 26 pessoas seleciona<strong>da</strong>s, tinha<br />

ido, porque sempre estivera interessa<strong>da</strong><br />

no trabalho de Bausch. Por muito tempo<br />

tinha sido o seu desejo pôr o pé na sala<br />

de ensaio, para ver onde as peças tinham<br />

início, mas não sonhava fazer <strong>parte</strong><br />

de Kontakthof. Werner Klammer, um<br />

homem que simplesmente gostava de se<br />

levantar e <strong>da</strong>nçar, veio quando ocorreu a<br />

oportuni<strong>da</strong>de, também "sem esperanças,<br />

medos e expectativas"(MACKRELL,<br />

2002, p.15).<br />

Jo Anne Endicott, bailarina <strong>da</strong> companhia<br />

de Bausch desde 1973, que <strong>da</strong>nçou o<br />

Kontakthof original, em 1978, foi encarrega<strong>da</strong><br />

de ensaiar o elenco escolhido. "Eles todos<br />

tinham algum tipo de brilho em seus olhos.<br />

Eles viram isso como a chance de uma nova<br />

experiência de vi<strong>da</strong> fabulosa, uma nova<br />

aventura” (MACKRELL, 2002, p.15).<br />

A ideia de Bausch de montar com<br />

um elenco de idosos não era tão estranha<br />

quanto parece. Kontakthof é uma <strong>da</strong>s<br />

suas obras de cunho mais confessional<br />

e íntimo, explorando loucamente a<br />

1 Professora adjunta <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Viçosa<br />

(UFV). Chefe do Departamento de Artes e Humani<strong>da</strong>des<br />

(DAH). Bailarina, atriz, coreógrafa e pesquisadora na área de<br />

<strong>da</strong>nça e teatro. Doutora em Teatro (UNIRIo). Líder do Grupo<br />

de Pesquisa CNPQ Estudos Integrados em Dança, Teatro e<br />

Dança-Teatro.'<br />

irritação e os desejos que conduzem os<br />

relacionamentos adultos. A peça é muito<br />

mais sobre a personali<strong>da</strong>de dos artistas<br />

do que sobre suas técnicas de <strong>da</strong>nça. E,<br />

conforme comenta Endicott: “Pina sempre<br />

teve um fantástico senso do que é 'in'. No<br />

momento, ser velho era ‘in’. Esta peça é<br />

sobre ternura e agressivi<strong>da</strong>de, e essas<br />

pessoas tiveram essas emoções a vi<strong>da</strong><br />

inteira" (MACKRELL, 2002, p.15).<br />

Para realizar o trabalho, no entanto, esses<br />

homens e mulheres comuns, tiveram que<br />

aprender a se despirem metaforicamente -<br />

e às vezes literalmente. Durante o trabalho,<br />

o elenco em pares, <strong>da</strong>nça junto e compete<br />

em algumas <strong>parte</strong>s de solo. Um homem e<br />

uma mulher exibem uma ternura ambígua<br />

entre si, tirando lentamente a maioria de<br />

suas roupas, outro casal apresenta uma<br />

cena de hostili<strong>da</strong>de, picando um ao outro<br />

na virilha, narinas e peito. Os artistas têm<br />

de revelar detalhes perturbadores de suas<br />

vi<strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s. Eles têm que correr e gritar<br />

como crianças hiperativas. Tudo isso é<br />

bastante difícil para os artistas jovens, com<br />

corpos perfeitamente afinados, mas para<br />

alguém comum, com complexo de ser<br />

impróprio, excesso de peso ou timidez, a<br />

exposição pode ser angustiante.<br />

Endicott diz que muitos do elenco<br />

ficaram profun<strong>da</strong>mente constrangidos<br />

ao tentarem fazer o que era solicitado:<br />

"Demorou muito para se obter o estado de<br />

espírito certo" (MACKRELL, 2002, p.16). Para<br />

Jutta Geike (54 anos, a mais nova intérprete),<br />

a coisa mais estranha foi o contato ca<strong>da</strong> vez<br />

maior com os outros artistas, enquanto que<br />

para Klammer, 71 anos, o momento mais<br />

difícil foi a sequência em que ele tinha que<br />

entrar numa fila com os outros artistas e<br />

narrar uma história de amor de si mesmo.<br />

Para Rudorff, que assumiu o papel original<br />

de Endicott, o início de ca<strong>da</strong> apresentação<br />

era sempre o pior. “Eu sou o primeiro a ir<br />

para frente do palco. A primeira vez que fiz<br />

isso pensei que ia ter um colapso no meio <strong>da</strong><br />

cena" (MACKRELL, 2002, p.16).<br />

Às vezes, os idosos sentiam que o<br />

material que estavam produzindo estava em<br />

contradição com o próprio temperamento,<br />

Solange Caldeira


N° 16 | Junho de 2011<br />

pois a maior <strong>parte</strong> do espetáculo é <strong>da</strong>nçado<br />

e falado exatamente como ele foi criado, em<br />

torno do elenco original. Mas há passagens,<br />

como a seção de história de amor e as<br />

fofocas, dueto realizado por Rudorff e<br />

Geike, para o qual contribuíram com suas<br />

próprias memórias e sentimentos. "Esta é a<br />

cena mais emocionante. Nós pudemos <strong>da</strong>r<br />

forma à nossa imaginação" (MACKRELL,<br />

2002, p.16), diz Geike.<br />

O elenco sênior teve de ser induzido<br />

a abrir mão de suas inibições, e também<br />

tiveram seus sentimentos dissecados<br />

sem pie<strong>da</strong>de. Em termos de <strong>da</strong>nça pura,<br />

Kontakthof é uma <strong>da</strong>s peças mais simples<br />

de Bausch e nenhum dos seus passos<br />

pede demais do elenco. Mas mesmo sem<br />

a exigência do virtuosismo, era necessário<br />

que os idosos adquirissem os níveis<br />

profissionais de precisão e coordenação.<br />

Endicott não encobre os problemas<br />

que teve na montagem: a marcação do<br />

ritmo, ficar em formação, aprender a<br />

não incomo<strong>da</strong>r e lembrar os passos. “O<br />

processo de aprendizagem começa a ficar<br />

mais lento à medi<strong>da</strong> que envelhecemos<br />

e precisamos de muita paciência. Não<br />

foram poucas as vezes que fiquei furiosa.<br />

Eu acho que todos nós ficamos um pouco<br />

frustrados"(MACKRELL, 2002, p.16).<br />

Mas ninguém desistiu, e Endicott tem<br />

muito orgulho de dizer o quanto o elenco<br />

melhorou desde sua estreia em 2000. Mesmo<br />

assim, assistindo a performance em vídeo,<br />

é evidente que a emoção dos <strong>da</strong>nçarinos<br />

toca as reservas instintivas, que momentos<br />

de vulnerabili<strong>da</strong>de são intensificados pelo<br />

envelhecimento de seus órgãos, que faíscas<br />

de lascívia e erotismo parecem imprudentes<br />

porque são inespera<strong>da</strong>s. Endicott acredita<br />

que o elenco atual se aproxima mais do<br />

espírito <strong>da</strong> produção original do que<br />

muitos dos jovens bailarinos que também<br />

<strong>da</strong>nçaram a obra.<br />

Apesar <strong>da</strong> intenção de dissolver o elenco<br />

sênior depois de uma curta tempora<strong>da</strong><br />

em Wuppertal, vários teatros em to<strong>da</strong> a<br />

Europa foram pedindo apresentação do<br />

espetáculo. Eles aceitaram e continuam<br />

aceitando alguns convites por ano.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Endicott diz que além de perder dois<br />

ou três do elenco original por doenças, os<br />

<strong>da</strong>nçarinos parecem ter conseguido ficar<br />

mais jovens ao invés de mais velhos. Para<br />

todos os artistas, a peça tem sido uma<br />

inespera<strong>da</strong> vitória, uma reviravolta radical<br />

em suas expectativas de envelhecer. Como<br />

as palavras de Jutta: “Eu realmente gosto de<br />

estar no palco na frente <strong>da</strong> plateia. Eu não<br />

sabia disso antes” (MACKRELL, 2002, p.16).<br />

O espetáculo<br />

O que faz uma bailarina? No universo<br />

de Pina Bausch trabalha a experiência<br />

<strong>da</strong>s relações humanas - o sofrimento e<br />

a alegria - o que dignifica um corpo em<br />

movimento. E os homens e mulheres<br />

de Kontakthof, têm muita experiência. O<br />

que eles trazem para Kontakthof é uma<br />

vi<strong>da</strong> de aventura emocional. O que eles<br />

oferecem é um corpo de baile majestoso<br />

em to<strong>da</strong> a sua força e fraqueza. Ao som<br />

<strong>da</strong>s músicas populares dos anos 1930 (a<br />

mais memorável é a música de cítara de<br />

Anton Karas), cadeiras alinha<strong>da</strong>s em três<br />

paredes formam o deslumbrante cenário<br />

utilitário de Rolf Borzik. Homens contra<br />

as mulheres, atração e agressão, criam<br />

tentativas engraça<strong>da</strong>s de conexão. Eles<br />

perseguem uns aos outros com sarcasmo,<br />

flertam e brigam descara<strong>da</strong>mente.<br />

Relacionamentos adultos são revelados<br />

através dos cruéis jogos <strong>da</strong> infância. Às<br />

vezes é difícil dizer se o que se vê é uma<br />

festa social, uma louca festa do pijama ou<br />

brincadeiras no pátio <strong>da</strong> escola. A plateia<br />

ri <strong>da</strong>s bobagens e ain<strong>da</strong> é convi<strong>da</strong><strong>da</strong> a<br />

<strong>da</strong>r-lhes moe<strong>da</strong>s para montarem em um<br />

cavalo mecânico de balanço. No estoque<br />

a emoção sem restrições: a raiva, a dor,<br />

a vulnerabili<strong>da</strong>de, humilhação e desejo,<br />

todos juntos uma e outra vez.<br />

Um grupo de pessoas coloca suas<br />

cadeiras na frente do palco, onde se sentam<br />

conversando com a plateia. Um homem<br />

passa ao longo <strong>da</strong> linha com um microfone.<br />

Eles estão todos descrevendo encontros<br />

românticos: o horror de um momento em<br />

Pina Bausch: para maiores de 65 Anos 131


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

132<br />

que não se percebeu estar com espinafre nos<br />

dentes, a excitação de um novo parceiro, um<br />

nome constrangedor. Muitas <strong>da</strong>s histórias<br />

são engraça<strong>da</strong>s. A maioria é corta<strong>da</strong> no<br />

meio, a experiência individual se torna um<br />

participante <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des humanas.<br />

Um por um, os bailarinos vêm para<br />

frente, onde se colocam, mostram os dentes<br />

ou mantêm as mãos para fora, como se para<br />

uma inspeção. Uma <strong>da</strong>s mulheres se queixa<br />

sobre os dentes ruins, o exame pode ser<br />

necessário. Em pares, eles apresentam um<br />

ao outro, gesticulando como assistentes do<br />

mágico, em segui<strong>da</strong>, batem um no outro.<br />

Ca<strong>da</strong> pequena cruel<strong>da</strong>de é aplaudi<strong>da</strong> pelo<br />

resto do elenco, à espera em suas cadeiras.<br />

Uma sequência lembra o comportamento<br />

infantil: um homem persegue uma<br />

mulher gritando com um rato de<br />

brinquedo, reclamando sobre outros<br />

membros do elenco. Ao usar artistas mais<br />

velhos, parece que os comportamentos<br />

indignos se destacam mais. Mesmo<br />

quando eles fazem birras, a i<strong>da</strong>de faz<br />

com que pareçam mais vulneráveis.<br />

Porém Kontakthof é extraordinariamente<br />

engraçado. Uma bailarina pede moe<strong>da</strong>s ao<br />

público, porque ela quer montar um cavalo<br />

mecânico. Comentários são bruscamente<br />

interrompidos. Existem cenas de <strong>da</strong>nça<br />

muito fortes em conjunto e outras em que<br />

param e discutem sobre a execução.<br />

São três horas de espetáculo. E<br />

conforme é comum nas peças de Bausch, a<br />

repetição dos movimentos evidencia seus<br />

personagens presos a padrões. Porém os<br />

personagens de Kontakthof são mais livres<br />

- tem um bom tempo entre as explosões<br />

de cruel<strong>da</strong>de e dor - mas o ritmo é pesado.<br />

Ain<strong>da</strong> assim é um trabalho realizado com<br />

absoluto empenho e digno de aplausos,<br />

principalmente a versão do elenco sênior,<br />

absolutamente bela, precisa, técnica e<br />

profissional.<br />

As três horas de espetáculo voam<br />

como uma trilha sonora de memórias. Os<br />

personagens parecem estar num teste para<br />

(talvez) uma performance enlouqueci<strong>da</strong><br />

de Alice no País <strong>da</strong>s Maravilhas. Eles<br />

contam trechos de histórias em alemão<br />

ou inglês, sobem cui<strong>da</strong>dosamente sobre<br />

as cadeiras e riem de uma forma que<br />

é algo entre hilari<strong>da</strong>de e histeria. Os<br />

pares demonstram diferentes relações<br />

através <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> mesma série de<br />

carícias, em grau crescente de violência,<br />

de modo que o que está acontecendo<br />

com o primeiro casal, no quarto já se<br />

transformou em uma guerra mutuamente<br />

sádica, com o macho batendo na fêmea.<br />

Como Bausch disse em uma entrevista<br />

“para algumas pessoas a vi<strong>da</strong> seria<br />

chata sem violência em suas relações”<br />

(DOUGILL, 2009, p.23).<br />

Depois, há os tons de bordel,<br />

de mercado de carnes, que vêm<br />

espontaneamente à mente vendo as<br />

mulheres exagerando o batom vermelho<br />

como prostitutas. Como de costume, esta<br />

é uma <strong>da</strong>nça-teatro em vez de uma <strong>da</strong>nça<br />

contemporânea, e como de costume,<br />

é um hino à mulher, sua aparência,<br />

seus ritos de acasalamento, seus jogos<br />

sexuais. As sequências de movimento<br />

são meticulosamente forma<strong>da</strong>s a partir<br />

<strong>da</strong> linguagem corporal observa<strong>da</strong>: tiques<br />

de desconforto e de a<strong>da</strong>ptação, que as<br />

mulheres automaticamente adotam ao<br />

ajeitar uma alça de sutiã, arrumar subrepticiamente<br />

suas calças quando se<br />

levantam ou tentando alisar um vestido<br />

amassado.<br />

As diferenças de força física, que<br />

são marcantes e interessantes nos<br />

artistas mais velhos - a poderosa <strong>da</strong>ma<br />

antiga, o velho enrugado -, tornamse<br />

diferenças pequenas no elenco em<br />

que a quali<strong>da</strong>de crucial é o aplomb. No<br />

palco as personali<strong>da</strong>des são evidentes<br />

e Kontakthof detém a promessa de que a<br />

vi<strong>da</strong> é um ver<strong>da</strong>deiro absurdo. Livre de<br />

constrangimentos narrativos, Kontakthof<br />

revela a essência explora<strong>da</strong> por Bausch ao<br />

longo de sua vi<strong>da</strong>: a identi<strong>da</strong>de humana<br />

e a busca interminável pela felici<strong>da</strong>de.<br />

Como uma peça de <strong>da</strong>nça-teatro,<br />

Kontakthof mal tem registros de <strong>da</strong>nça. Mas<br />

quando o elenco se move em uníssono, a<br />

formação, o acréscimo de simples frases<br />

repeti<strong>da</strong>s funciona brilhantemente como<br />

declarações potentes. E é isso que é tão<br />

extraordinário.<br />

Solange Caldeira


N° 16 | Junho de 2011<br />

Kontakthof sem i<strong>da</strong>de<br />

Essa ideia de remontar Kontakthof para<br />

três elencos diferentes sintetiza o gênio de<br />

Pina Bausch como grande inovadora, uma<br />

simples faísca que se desdobrou em uma<br />

chama duradoura.<br />

Não foi a ideia mais fácil de traduzir, o<br />

projeto deveria durar três meses, mas levou<br />

um ano para ficar pronto. Os ci<strong>da</strong>dãos<br />

seniores ficaram chocados ao descobrir que<br />

a companhia de profissionais do Tanztheater<br />

Wuppertal <strong>da</strong>nçaria Kontakthof uma semana<br />

antes <strong>da</strong> estreia deles.<br />

Pensavam que seu amadorismo ficaria<br />

exposto e que pareceriam tolos quando<br />

comparados com os profissionais. Porém, o<br />

que aconteceu foi completamente diferente,<br />

e muitos membros <strong>da</strong> companhia oficial de<br />

Bausch souberam, a partir <strong>da</strong> apresentação<br />

dos seniores, que os papéis já não eram deles.<br />

Bausch raramente deu quaisquer<br />

explicações sobre o seu trabalho, mas ela<br />

escreveu brevíssimo preâmbulo de um<br />

livro sobre a sua obra, que começa com as<br />

palavras: “Kontakthof é um lugar onde as<br />

pessoas se encontram, pessoas que estão à<br />

procura de contacto" (SERVOS , 2003, p.8).<br />

A cenografia simples de Rolf Borzik,<br />

cenógrafo de Bausch até sua morte<br />

prematura em 1980, evoca uma espécie<br />

de clube, na sua recriação de um salão de<br />

baile, um palco com cortinas, um piano e 30<br />

resistentes cadeiras de madeira dispostas<br />

ao redor <strong>da</strong>s paredes.<br />

A eficácia visual deste ponto de<br />

encontro é maravilhosamente aumenta<strong>da</strong><br />

pela mais suntuosa <strong>da</strong>s compilações<br />

musicais, construí<strong>da</strong> em torno de um núcleo<br />

de tangos do período depois <strong>da</strong> República<br />

de Weimar e <strong>da</strong> época brutal do Terceiro<br />

Reich: especialmente corajoso, pois muitos<br />

dos cantores e líderes de ban<strong>da</strong> incluídos<br />

nestas canções eram judeus.<br />

São diversas as canções de Juan Llossas,<br />

German Tango King, incluindo Oh Fräulein<br />

Grete e Blonde Claire, schenk mir heht die eure,<br />

dois tangos maravilhosamente sedutores,<br />

cantados pelo incomparável Leo Monosson,<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

que fugiu dos campos de concentração para<br />

morrer sem um tostão nos E.U.A., fama há<br />

muito esqueci<strong>da</strong>; o foxtrot swing, Abends in<br />

Der Kleinen Bar, cantado por Rudi Schuricke;<br />

mais o quase esquecido Gnädige Frau, de<br />

Otto Stransky, e o fascinante instrumental<br />

Einmal ist Kleinmal, composto por Ralph<br />

Benatsky para um filme de 1937, tocado<br />

pela orquestra de Georges Boulanger.<br />

Há várias músicas gloriosas, mas vale<br />

a pena mencionar estes extraordinários<br />

exemplos de uma era de ouro <strong>da</strong> <strong>da</strong>nce music<br />

europeia orquestral - sempre obscureci<strong>da</strong><br />

pela grande guerra que se seguiu – como o<br />

icônico Harry Lime Theme, de Anton Karas,<br />

do melhor filme noir de todos os tempos,<br />

de Carol Reed, O Terceiro Homem (1949).<br />

Juntamente com a elegância musical, há o<br />

charme adicional do film night em Kontakthof<br />

e um extrato de um lindo filme feito para<br />

o Bremen Radio Broadcasting Station por<br />

Theo Kubiak, intitulado Lebensraum em<br />

Gefahr (En<strong>da</strong>ngered Environments), que<br />

mostra em closes preto e branco, um lago<br />

com patos e marrecos e patos, descritas<br />

na matéria com voz alemã traduzi<strong>da</strong> (com<br />

entonações hilariante) por um fã devoto de<br />

Bausch, Richard Wilson.<br />

É impressionante o brilho, simples e<br />

eficaz de coreografia de Bausch. Não há a<br />

menor referência à codificação <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça<br />

clássica, mas sim uma concentração no<br />

roteiro, muitas repeti<strong>da</strong>s sequências de<br />

movimentos pequenos, simples e gestos,<br />

que se estendem para fora dos corpos,<br />

em movimentos sincronizados de tal<br />

complexi<strong>da</strong>de, que é possível entender<br />

porque foram necessários quinze meses<br />

para que os seniores o apresentassem<br />

direito. Os corpos <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça, através dos<br />

vínculos de ca<strong>da</strong> movimento isolado,<br />

apresentam a beleza individual de pérolas<br />

enfia<strong>da</strong>s em um longo colar.<br />

Através de cenas episódicas, os 27<br />

personagens ganham vi<strong>da</strong> vibrante. Esta<br />

riqueza de personali<strong>da</strong>de é muito mais<br />

evidente no elenco sênior, que traz para o<br />

desempenho sua experiência de vi<strong>da</strong> como<br />

Bausch tinha pretendido. O papel feminino<br />

principal, de Edith Rudorff, foi retomado,<br />

Pina Bausch: para maiores de 65 Anos 133


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

134<br />

alguns anos atrás, por Krista Lange, cujo<br />

desempenho também é excelente, mas<br />

muitos outros permanecem, como Werner<br />

Klammer e o muito distinto Pedro Kemp.<br />

O agudo olhar de Bausch usou as<br />

formas e diferenças de i<strong>da</strong>de, para acentuar<br />

preocupações universais. Os mesmos<br />

figurinos impecáveis que parecem <strong>da</strong>r ao<br />

elenco sênior um ar desamparado, aos<br />

jovens dão ideia de sensuali<strong>da</strong>de. Vê-se as<br />

belas formas dos corpos jovens e as formas<br />

que faltam nos mais velhos. Os jovens<br />

riem dos próprios riscos e erros, nos mais<br />

velhos vê-se o temor. Mas o elenco sênior,<br />

embora não tão bom executante, é capaz de<br />

impregnar de significado seus gestos.<br />

Kontakthof é um exemplo do que hoje<br />

se considera como a assinatura de Bausch.<br />

A <strong>da</strong>nça não é muito mais do que alguns<br />

passos, com gestos naturalistas, sequências<br />

dramáticas e ameaçadoras. As repetições e<br />

sincronizações reforçam esta dramaturgia<br />

corporal, assim como a música antiga, mas<br />

ain<strong>da</strong> familiar, e as expressões de quase<br />

transe do elenco.<br />

Apesar de ter um pouco de humor,<br />

Kontakthof retrata gente comum e seus<br />

relacionamentos. No entanto, as opções<br />

não são entre um relacionamento bom e um<br />

mau, mas entre um ruim e na<strong>da</strong>. Bausch<br />

parece nos lembrar que os seres humanos<br />

entre um mau relacionamento ou nenhum,<br />

escolhem o primeiro.<br />

Vívido e desconcertante, Kontakthof é<br />

uma <strong>da</strong>s produções mais minimalista de Pina<br />

Bausch. O cenário mostra um salão de <strong>da</strong>nça<br />

e a coreografia é limita<strong>da</strong> a alguns passos<br />

de <strong>da</strong>nça e de pequenos gestos. Mas, como<br />

sempre, a nuance vem <strong>da</strong>queles que executam<br />

o trabalho - seus corpos, rostos, personali<strong>da</strong>des<br />

e manias. E neste elenco especial, de maiores<br />

de 65 anos, há uma profusão incrível de<br />

interesse humano no palco.<br />

Em contraste com a suave beleza<br />

<strong>da</strong> juventude, estes homens e mulheres<br />

maduros imprimem à peça um novo e<br />

extravagante sabor. Durante os minutos<br />

de abertura do espetáculo, quando ca<strong>da</strong><br />

bailarino passa e se olha em frente a um<br />

espelho invisível, todos nós também somos<br />

levados a olhar - fascinados pelo nariz<br />

adunco de um homem, pela barba muito<br />

bem feita de outro, pelos tornozelos finos<br />

que nos apresenta orgulhosamente uma<br />

mulher ou pelo olhar irônico de outra. E o<br />

mais importante, esses artistas mais velhos<br />

trazem nova e muitas vezes desconcertante<br />

química às partituras corporais cria<strong>da</strong>s por<br />

Bausch. Kontakthof, que pode ser traduzido<br />

como "pátio de contatos", é um termo mais<br />

aplicável a bordéis - e, de certa forma, o<br />

espetáculo é estruturado como um jogo<br />

amoroso de três horas. Acompanhados por<br />

canções de amor, esses homens e mulheres<br />

flertam avi<strong>da</strong>mente, como adolescentes.<br />

Para encontrar um parceiro usam a<br />

bajulação, humilhação, exibicionismo. E<br />

não é só sexo que eles querem, mas um<br />

simples momento de comunhão.<br />

O fato de não esperarmos ver pessoas<br />

mais velhas envolvi<strong>da</strong>s em busca de<br />

tal intimi<strong>da</strong>de, faz as cenas parecerem<br />

duplamente chocantes. Quando uma<br />

mulher arruma seus cabelos brancos com<br />

um glamour especial e passa pelos homens<br />

mostrando a carne exposta em seus ombros,<br />

a carência de seu desejo é ao mesmo tempo<br />

cômica e assustadora. Do mesmo modo,<br />

quando as mulheres, em uníssono, ajustam<br />

as tiras do sutiã, sugam seus estômagos,<br />

puxam os vestidos com vai<strong>da</strong>de e incerteza,<br />

parecem mais vulneráveis.<br />

Mas a i<strong>da</strong>de também traz o poder.<br />

Uma cena é coreografa<strong>da</strong> inteiramente a<br />

partir de pequenos atos de mal<strong>da</strong>de, como<br />

um puxão de orelha, uma tapa no rosto, e<br />

é terrível ver estas punições entre velhos<br />

casais. Outro momento tem os dois sexos,<br />

alterna<strong>da</strong>mente, <strong>da</strong>ndo ordens um para o<br />

outro - mais uma vez, com a experiência de<br />

uma vi<strong>da</strong>.<br />

O elenco sênior, não é apenas movido<br />

pela disciplina e coragem, mas também<br />

pelas histórias de vi<strong>da</strong> que trazem com<br />

eles. O gênio de Bausch sempre revelou<br />

a individuali<strong>da</strong>de de seus artistas, mas<br />

nessa encenação, ela criou uma dimensão<br />

fantástica ain<strong>da</strong> não visita<strong>da</strong>, cruel e terna.<br />

Kontakthof é um triunfo <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de sobre<br />

a experiência.<br />

Solange Caldeira


N° 16 | Junho de 2011<br />

Sem surpresa, os bailarinos<br />

adolescentes habitam um universo físico<br />

diferente, com seus cabelos brilhantes, pele<br />

suave e avelu<strong>da</strong><strong>da</strong>, articulações flexíveis.<br />

E surpreendentemente, o efeito na<br />

coreografia Bausch é galvânica - as formas<br />

dos movimentos e os ritmos acelerados<br />

parecem mais nítidos sobre estes corpos<br />

mais jovens. Mas o sentido do tempo e<br />

do lugar é menos concentrado do que no<br />

desempenho dos idosos. Seriam esses<br />

adolescentes, vestidos em traje de noite<br />

formal e <strong>da</strong>nçando músicas de 1930, netos<br />

do elenco sênior, ou aqueles os fantasmas<br />

de si mesmos jovens?<br />

Essas diferenças são intrigantes e<br />

comoventes, mas o desempenho dos<br />

adolescentes fica muito aquém <strong>da</strong>quele<br />

dos idosos, muito mais rico na comédia<br />

surreal e de interesse humano. Kontakthof<br />

é sobre relacionamento de pessoas,<br />

sobre o complicado jogo <strong>da</strong> sedução, <strong>da</strong><br />

comunicação, o elenco mais velho é capaz<br />

de trazer maior sutileza e veraci<strong>da</strong>de às<br />

situações encena<strong>da</strong>s, maior conhecimento<br />

<strong>da</strong>s propostas, maior vivência.<br />

A disciplina complexa do trabalho<br />

envolve um pesadelo de logística - centenas<br />

de mu<strong>da</strong>nças de roupa, ain<strong>da</strong> mais entra<strong>da</strong>s<br />

e saí<strong>da</strong>s, as questões de quem segue, quem<br />

se senta na cadeira e assim por diante - e esta<br />

evoluí<strong>da</strong> estrutura permanece a mesma.<br />

Mas, com poucas exceções, os artistas<br />

mais jovens não conseguem captar a<br />

mesma riqueza de caracterização que os<br />

idosos atingiram. O diálogo - tão crucial<br />

para o humor e personali<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um<br />

- é muitas vezes indistinto e os adolescentes<br />

são mais inibidos que os mais velhos.<br />

Como coreógrafa, Bausch não tinha<br />

na<strong>da</strong> a ver com o politicamente correto, mas<br />

neste ato inventivo, com este brilhante elenco,<br />

ela expôs a pobreza de nosso preconceito<br />

cultural em relação à i<strong>da</strong>de - especialmente<br />

quando aplicado à <strong>da</strong>nça. O elenco sênior<br />

que realizou Kontakthof mostrou o quanto<br />

podemos ser vitais e operantes independente<br />

<strong>da</strong> faixa etária, assim como o quanto a<br />

maturi<strong>da</strong>de pode enriquecer teatralmente o<br />

movimento corporal.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Realiza<strong>da</strong> pelos idosos, Kontakthof é<br />

uma encantadora afirmação de experiência<br />

de vi<strong>da</strong>. As emoções que Bausch destina<br />

ao trabalho - desejo, desilusão, desespero,<br />

ternura, vulnerabili<strong>da</strong>de, superação - são<br />

mais enfáticas quando enre<strong>da</strong><strong>da</strong>s na rica<br />

experiência de interpretação dos idosos.<br />

Mas, acima de tudo, esta é outra chance na<br />

vi<strong>da</strong> para os atores-bailarinos. Depois dos<br />

65 anos, ter a oportuni<strong>da</strong>de de experimentar<br />

a excitante carreira de artista é algo notável:<br />

ain<strong>da</strong> mais, <strong>da</strong>do que esta nova vi<strong>da</strong> para<br />

alguns já duram alguns anos.<br />

Diz-se que a vi<strong>da</strong> começa aos 40, em<br />

Wuppertal, começa aos 65 anos.<br />

Referências bibliográficas<br />

DOUGILL, David. Bausch’s Kontakthof .<br />

In: The Arts. London: March 2009, p. 23-24.<br />

MACKRELL, Judith. Growing old<br />

disgracefully. In: The Guardian. London:<br />

November 2002, p 15-17.<br />

SERVOS, Norbert. About Bausch. Pina<br />

Bausch explores the existential through<br />

movement. In: Dance International, Vol.<br />

XXXI, n. 2, Summer 2003. p. 8-12.<br />

TANZTHEATER WUPPERTAL PINA<br />

BAUSCH (org.) Rolf Borzik und <strong>da</strong>s<br />

Tanztheater. Text in english and french<br />

translated by Anne Surbant and Michel<br />

Adler. Wuppertal 2000.<br />

WEISS, Ulli. Applausfotos. Pina Bausch -<br />

Tanztheater Wuppertal. Mit einem Text in<br />

english by Raimund Hoghe. Hrsg. von den<br />

Wuppertaler Bühnen, Generalinten<strong>da</strong>nt<br />

Jürgen Fabritius und die "Freunde der<br />

Wuppertaler Bühnen". Wuppertal 1984.<br />

WEISS, Ulli & CHAMIER, Ille. Setz dich<br />

hin und lächle - Tanztheater von Pina Bausch.<br />

Text english and french by Anne Surbant &<br />

Michel Adler. Prometh Verlag, Köln 1979.<br />

Pina Bausch: para maiores de 65 Anos 135


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Médico Interno [Vicente Concílio]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 137


N° 16 | Junho de 2011<br />

— oLHA Ô PRoGRAMA DA PEçA!<br />

Resumo<br />

O programa de teatro moderno, tal como o conhecemos<br />

hoje, <strong>da</strong>ta de meados do século XIX. Seu provável<br />

predecessor foi o cartaz, que tinha por objetivo anunciar um<br />

determinado espetáculo. Na contemporanei<strong>da</strong>de, verificase<br />

uma varie<strong>da</strong>de gráfica e conteudística nos programas de<br />

teatro. Uma análise de programas brasileiros a partir do ano<br />

de 1953 fun<strong>da</strong>menta uma pequena definição <strong>da</strong> natureza do<br />

programa de teatro, identificando suas diferentes ênfases<br />

que configuram uma tipologia de programas e exprimem<br />

um novo pacto estético-cultural entre o público e os agentes<br />

criativos <strong>da</strong> cena teatral brasileira contemporânea.<br />

Palavras-chave: Programa de teatro, Paratexto, Teatro<br />

brasileiro.<br />

Abstract<br />

The modern theatre programme comes from the middle of<br />

the nineteenth century. Its probable predecessor was the<br />

theatre poster, whose aim was to announce a performance.<br />

In the contemporaneity, one observes a variety in<br />

both typography and content features of the theatre<br />

programmes. An analysis of Brazilian theatre programmes<br />

since 1953 lays the foun<strong>da</strong>tions for a brief definition of<br />

the nature of the theatre programme. It also provides the<br />

basis for identifying the different emphases that form the<br />

typolgy of programmes and for expressing a new culturalaesthetic<br />

pact between the audience and the creative<br />

agents of the contemporary Brazilian theatrical context.<br />

Keywords: Theatre programme, Paratext, Brazilian<br />

theatre.<br />

Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e<br />

Walter Lima Torres Neto 1<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 139


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

140<br />

Introdução<br />

Transcrevo o programa dessa récita,<br />

não só para marcar a importância<br />

<strong>da</strong> sua categoria, mas também para<br />

salientar os nomes dos artistas ilustres<br />

que nela intervieram, programa que<br />

foi valorizado com um espirituoso<br />

desenho devido ao lápis inconfundível<br />

de Bor<strong>da</strong>lo Pinheiro.<br />

Carlos Santos.<br />

Cinqüenta anos de teatro, memórias<br />

dum ator, p. 101<br />

Este artigo é a exposição<br />

provisória de algumas<br />

conclusões acerca de<br />

nossa pesquisa, cuja etapa<br />

de trabalho atual se dedica<br />

ao paratexto teatral com ênfase nos<br />

programas de teatro. 2 Nosso objetivo vem<br />

sendo o de estu<strong>da</strong>r o discurso dos agentes<br />

criativos <strong>da</strong> cena teatral onde possam<br />

se expressar para além do espetáculo.<br />

Numa primeira etapa de nossa pesquisa,<br />

iniciamos uma discussão, que ain<strong>da</strong><br />

está em curso, sobre o discurso dos<br />

autores teatrais acerca de seus próprios<br />

textos dramáticos e sua produção em<br />

geral, através dos prefácios, posfácios,<br />

comentários, advertências, notas e outras<br />

manifestações do discurso autoral. Já<br />

numa segun<strong>da</strong> etapa de nossas pesquisas,<br />

nos dedicamos, especificamente, ao<br />

discurso de outros agentes criativos <strong>da</strong><br />

cena teatral, cujas ideias são veicula<strong>da</strong>s<br />

nos programas dos espetáculos, projetos<br />

1 Felipe Matheus Bachmann Ribeiro é aluno do Curso de<br />

Graduação em Letras <strong>da</strong> UFPR e foi bolsista de IC (2009/2010).<br />

Walter Lima Torres Neto é professor de Estudos Teatrais no<br />

Curso de Letras e no Programa de Pós Graduação em Letras<br />

<strong>da</strong> UFPR.<br />

2 Esta pesquisa é desenvolvi<strong>da</strong> no âmbito dos estudos sobre a<br />

Cultura e Prática teatral: prefácio “modo de usar”, idealiza<strong>da</strong><br />

por Walter Lima Torres Neto. E este artigo é fortemente<br />

subsidiado pelas pesquisas do aluno Felipe Matheus<br />

Bachmann Ribeiro que, no âmbito <strong>da</strong>s suas investigações<br />

de Iniciação Cientifica, desenvolveu a pesquisa intitula<strong>da</strong>:<br />

Uma análise dos conteúdos estéticos e mercadológicos dos<br />

Programas de Teatro.<br />

de montagem, material publicitário entre<br />

outros suportes periféricos. 3<br />

Neste artigo, em especial, procuramos<br />

enfatizar o programa de teatro,<br />

contextualizando sua condição como objeto<br />

de estudo. Assim, procuramos traçar uma<br />

breve perspectiva <strong>da</strong> situação do próprio<br />

programa no contexto de nossa cultura e<br />

prática teatral no ocidente. Num segundo<br />

tempo, esboçamos algumas interpretações<br />

parciais, sem a total precisão que gostaríamos<br />

de demonstrar, acerca de um pequeno acervo<br />

de programas de espetáculos nacionais. 4<br />

Dessa forma, estimamos colaborar com<br />

este estudo para uma melhor percepção <strong>da</strong><br />

função do programa de teatro dentro <strong>da</strong><br />

dinâmica que envolve os agentes criativos<br />

e a coletivi<strong>da</strong>de que se beneficia com a<br />

produção simbólica gera<strong>da</strong> pelo teatro.<br />

Breve histórico do programa<br />

Não se pretende tecer aqui uma<br />

genealogia exaustiva do discurso teatral<br />

veiculado no programa de espetáculos,<br />

uma espécie de arquitexto à maneira de<br />

Gérard Genette. 5 Apesar de nosso intuito<br />

ser mais modesto, não podemos avançar<br />

em nossas considerações e hipóteses sem<br />

3 Estes suportes ditos periféricos são constituídos, na<br />

maioria dos casos, de material publicitário e divulgacional<br />

como filipetas, volantes, realeses, flyers dirigidos à imprensa<br />

e, sobretudo programas dirigidos ao leitor-espectador.<br />

4 Majoritariamente, o leitor observará que por força <strong>da</strong>s<br />

nossas circunstâncias como espectador, a maioria dos 200<br />

programas que possuímos é procedente de MG; SP; RJ; PR<br />

e RS. Estimamos, entretanto, que este conjunto, mesmo<br />

sem uma representativi<strong>da</strong>de nacional, possa expressar<br />

tendências presentes na cena brasileira de forma mais ampla.<br />

Nosso objetivo é o de problematizar o objeto programa<br />

e secun<strong>da</strong>riamente pensar uma tipologia de programas<br />

teatrais nacionais.<br />

5 Gérard Genette, no seu Palimpsestes, Paris, Éditions du Seuil,<br />

1982, pp-7-16, esclarece que o termo arquitexto foi proposto,<br />

inicialmente, por Louis Marin, “Pour une théorie du texte<br />

parabolique” in: Récit Evangélique, Bibliothèque des Sciences<br />

Religieuses, 1974. Nesse sentido, arquitexto designaria um<br />

texto de origem de todo discurso possível. o arquitexto seria<br />

uma espécie de lugar de origem que designaria o meio desde<br />

onde se instauraria o próprio discurso. Segundo Genette, esta<br />

arquitextuali<strong>da</strong>de englobaria o conjunto de categorias gerais<br />

ou transcendentes, tipos de discursos, modos de enunciação,<br />

gêneros literários, etc, que advém <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de própria<br />

de ca<strong>da</strong> texto “lido” como uma literatura ao segundo grau.<br />

Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto


N° 16 | Junho de 2011<br />

sinalizar ao leitor que, do ponto de vista de<br />

sua concepção e sua origem, o programa<br />

surge <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de uma comunicação<br />

mais eficiente entre aqueles que praticam o<br />

teatro, os agentes criativos, e o seu público.<br />

Ele é veículo, ele é meio. O programa surge<br />

como uma resposta (dos agentes criativos e<br />

produtores públicos ou privados <strong>da</strong> cena,<br />

aqueles que detêm os meios de produção)<br />

a uma necessi<strong>da</strong>de de aperfeiçoamento<br />

do processo de difusão e divulgação de<br />

uma apresentação artística que se quer<br />

oferecer a uma determina<strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de. 6<br />

O programa teatral surgiria assim <strong>da</strong><br />

evolução - hipótese mais em voga -, numa<br />

primeira fase, emancipando-se do cartaz do<br />

espetáculo, seu predecessor. A finali<strong>da</strong>de<br />

do cartaz de teatro na sua origem era o de<br />

anunciar à socie<strong>da</strong>de, em espaços públicos<br />

e privados, uma programação que possuía<br />

dia, horário e local precisos para acontecer.<br />

Tratava-se de uma sistematização do<br />

lazer.<br />

Diversas parecem ser as fontes com as<br />

quais dialogam ou dialogaram os coletivos<br />

teatrais brasileiros ao longo do tempo e na<br />

atuali<strong>da</strong>de para pensarem a composição do<br />

programa de teatro impresso entre nós.<br />

Influencia<strong>da</strong>s pela cultura e prática<br />

teatral de orientação europeia e norte<br />

americana, e graças aos diversos ciclos de<br />

turnês estrangeiras que nos visitaram no<br />

passado, a iniciativa priva<strong>da</strong> e a iniciativa<br />

estatal experimentaram, e experimentam<br />

ain<strong>da</strong>, diversos formatos que acabaram<br />

por estabelecer certos parâmetros para<br />

composição de uma tipologia dos<br />

programas de teatro. Dessa forma, é<br />

significativo passar em revista ao menos<br />

três dessas definições acerca do programa<br />

de teatro que nos parecem se relacionar<br />

com a sua concepção, sua forma e sua<br />

finali<strong>da</strong>de atualmente.<br />

O programa inglês, por exemplo,<br />

teve sua origem certamente no cartaz<br />

6 Nesse sentido, apesar de nos determos aqui mais<br />

diretamente sobre os programas de teatro, também se pode<br />

constatar uma similari<strong>da</strong>de tanto em termos de conteúdo<br />

quanto em termos de formato e aspectos gráficos relativo<br />

aos espetáculos de <strong>da</strong>nça, ópera, circo, música, artes cênicas<br />

em geral. 7 Tradução nossa.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

que era fixado nas portas dos teatros<br />

anunciando os espetáculos <strong>da</strong> casa. O<br />

Oxford Companion to The Theatre traz no<br />

mesmo verbete a definição de programa<br />

e de cartaz e conjetura a possibili<strong>da</strong>de de<br />

o cartaz ter sido usado como programa,<br />

ou seja, distribuído aos espectadores<br />

do espetáculo, desde o século XVII: “o<br />

primeiro cartaz inglês de que temos<br />

conhecimento, e que provavelmente serviu<br />

como um programa para ser distribuído<br />

em mãos, é do Public Record Office e <strong>da</strong>ta de<br />

1672”. 7 Esse programa mais primitivo era o<br />

próprio cartaz do espetáculo, dobrado para<br />

facilitar o manuseio e então distribuído e/<br />

ou vendido à plateia. No século XIX cartaz<br />

e programa se distanciaram e adquiriram<br />

configurações próprias. Quando o<br />

cartaz aumentou consideravelmente de<br />

tamanho, sua dimensão impediu que ele<br />

fosse dobrado para servir de programa.<br />

Ain<strong>da</strong> segundo Oxford, “nos anos de 1850,<br />

o Olympic Theatre voltou aos programas<br />

pequenos para uso dentro do teatro,<br />

distribuindo-os, gratuitamente, para os<br />

espectadores dos lugares mais caros”. Em<br />

pouco tempo, o programa popularizouse<br />

e passou a ser usado em outros teatros<br />

ingleses. A partir desse momento foi<br />

selado o divórcio entre o programa e o<br />

cartaz, ao menos na Inglaterra, e ambos<br />

passaram a trilhar caminhos próprios.<br />

Enquanto o cartaz sofria grande influência<br />

<strong>da</strong>s escolas de artes gráficas francesas e<br />

alemãs e valorizava o aspecto tipográfico,<br />

o programa se estabelecia, exclusivamente,<br />

como veículo de informações do<br />

espetáculo e de publici<strong>da</strong>de em geral,<br />

que apareciam pela primeira vez no ano<br />

de 1860, estabilizando-se em 1869 num<br />

formato do tipo revista, que perduraria<br />

por muitas déca<strong>da</strong>s.<br />

Percebemos as reminiscências dessa<br />

distribuição de programas aos espectadores<br />

privilegiados em alguns teatros do Brasil<br />

durante a déca<strong>da</strong> de 1950. Nesses mesmos<br />

programas brasileiros observam-se os<br />

nomes dos assinantes do teatro. Isso aponta<br />

para uma condição do programa que, além<br />

— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 141


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

142<br />

de informativa — e, como veremos adiante,<br />

estética — é também social, um rito de<br />

distinção, como ensina Bourdieu. 8<br />

Obedecia à mesma finali<strong>da</strong>de e natureza<br />

o programa teatral na França. Arthur<br />

Pougin no seu Dictionnaire du Théâtre de<br />

1885 é bastante econômico em seu verbete<br />

sobre o assunto, enfatizando, entretanto, a<br />

ordem <strong>da</strong> sequência dos números a serem<br />

executados pelos artistas, à maneira do<br />

que reafirmaria, em 1908, o empresário<br />

português Sousa Bastos. Pougin, sem se<br />

deter sobre a origem do programa, também<br />

chama a atenção para a permanência dos<br />

nomes dos artistas relacionados aos nomes<br />

<strong>da</strong>s <strong>parte</strong>s, fragmentos, peças e outros<br />

títulos desempenhados pelos artistas e que<br />

compunham o espetáculo. 9<br />

Segundo essas duas definições, podese<br />

afirmar que a ênfase, a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />

metade do séc. XIX, tanto na França<br />

quanto na Inglaterra, esteve no aspecto<br />

publicitário, assim como confirmará,<br />

em 1908, a definição portuguesa mais<br />

abaixo. Se o programa teria evoluído do<br />

8 Acerca <strong>da</strong> disposição estética do sujeito em relação com<br />

o mundo, Pierre Bourdieu afirma que, “no entanto, ela [a<br />

disposição estética] é, também, a expressão distintiva de uma<br />

posição privilegia<strong>da</strong> no espaço social, cujo valor distintivo<br />

determina-se objetivamente na relação com expressões<br />

engendra<strong>da</strong>s a partir de condições diferentes. Como to<strong>da</strong><br />

espécie de gosto, ela une e separa: sendo o produto dos<br />

condicionamentos associados a uma classe particular de<br />

condições de existência, ela une todos aqueles que são o<br />

produto de condições semelhantes, mas distinguindo-os de<br />

todos os outros e a partir <strong>da</strong>quilo que têm de mais essencial,<br />

já que o gosto é o principio de tudo o que se tem, pessoas<br />

e coisas, e de tudo o que se é para os outros, <strong>da</strong>quilo que<br />

serve de base para se classificar a si mesmo e pelo qual se é<br />

classificado”. A distinção, p.56. Nesse sentido, consideramos<br />

as listas que constam em certos programas de espetáculos<br />

ou placas honoríficas, contendo os nomes dos ci<strong>da</strong>dãosespectadores,<br />

assinantes, ou mantenedores <strong>da</strong> instituição<br />

teatral, como este rito de distinção social que atesta a<br />

disposição estética de um determinado segmento social.<br />

Consequentemente, prestígio e distinção advêm <strong>da</strong>s relações<br />

entre o modo como o sujeito classifica a si próprio e como ele<br />

se deixa classificar socialmente.<br />

9 No filme Les enfants du paradis de Marcel Carné, de<br />

1945, pode-se observar que no trabalho de reconstituição<br />

do ambiente do Boulevard du Temple, ou como ficou mais<br />

conhecido o Boulevard du Crime, os “affiches” dos teatros<br />

destacam o título dos espetáculos seguidos do nome do<br />

artista de destaque associado à encenação. Neste ambiente<br />

popular e ruidoso, característico <strong>da</strong>s salas de espetáculos<br />

deste local como é descrito no filme, nota-se a ausência do<br />

“programa <strong>da</strong> peça”.<br />

cartaz de rua, de grandes dimensões,<br />

pintado ou mais tarde impresso e colado<br />

em locais específicos na ci<strong>da</strong>de, de forma<br />

concomitante em to<strong>da</strong>s as principais<br />

capitais culturais <strong>da</strong> Europa, isso não<br />

podemos responder no momento. Porém,<br />

talvez não seja inexato afirmar que o<br />

programa de teatro era distribuído nas<br />

salas de espetáculo, sistematicamente,<br />

desde a segun<strong>da</strong> metade do século XIX<br />

tanto na França quanto na Inglaterra<br />

e possivelmente <strong>da</strong> mesma forma em<br />

grande <strong>parte</strong> <strong>da</strong> Europa. Nesse caso, o<br />

programa seria uma espécie de versão<br />

reduzi<strong>da</strong> <strong>da</strong> arte gráfica aplica<strong>da</strong> ao cartaz<br />

contendo as especificações do espetáculo<br />

e enfatizando o nome dos autores <strong>da</strong>s<br />

peças, ensaiadores e diretores bem como<br />

dos artistas intérpretes.<br />

No século XX, o programa de<br />

teatro, nos seus diferentes formatos,<br />

independentemente <strong>da</strong> arte gráfica e<br />

do conteúdo do cartaz, era vendido<br />

nos espetáculos. Os programas dos<br />

ditos Teatros Nacionais, que tendiam<br />

a ser ao mesmo tempo “formativos”<br />

e informativos, eram distribuídos<br />

gratuitamente ou vendidos a preços<br />

módicos. Para custear a publicação de seus<br />

programas, o dito teatro comercial vendia<br />

espaços de publici<strong>da</strong>de a anunciantes<br />

e posteriormente comercializava o<br />

programa ao próprio espectador.<br />

Se do ponto de vista do aperfeiçoamento<br />

<strong>da</strong> difusão e comunicação do espetáculo, o<br />

programa evoluiu como veículo do formato<br />

do cartaz de rua, na vira<strong>da</strong> do século XIX<br />

para o XX, do ponto de vista do conteúdo,<br />

poderíamos pensar na hipótese de que<br />

o programa se manteve fiel à sua matriz<br />

principal, isto é, o menu des plaisirs ou dos<br />

entretenimentos, oferecidos aos soberanos<br />

reais e às suas cortes desde o século XVI.<br />

Adviria <strong>da</strong>í uma <strong>da</strong>s similari<strong>da</strong>des entre<br />

o “menu” teatral com o próprio “menu”<br />

gastronômico, como lista detalha<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

iguarias que compõem uma refeição. O<br />

programa de um espetáculo ofereceria o<br />

detalhamento de um objeto de consumo,<br />

de fruição, o “alimento do espírito”, dos<br />

Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto


N° 16 | Junho de 2011<br />

sentidos; <strong>da</strong> mesma maneira que o menu<br />

gastronômico apresenta a lista e a ordem<br />

em que se sucedem os pratos a serem<br />

oferecidos num banquete. 10<br />

Finalmente, nesta última reflexão, agora de<br />

origem portuguesa, propõe-se uma definição<br />

bastante singular. De autoria de Sousa Bastos,<br />

empresário teatral lusitano de confirmados<br />

sucessos comerciais e que tantas vezes visitou<br />

o Brasil, o Dicionário do Teatro Português,<br />

de 1908, conceituava: “o delineamento de<br />

qualquer espetáculo, designando as <strong>parte</strong>s<br />

de que se compõe, os artistas que nele<br />

tomam <strong>parte</strong> e a ordem por que é executado,<br />

chama programa do espetáculo”. Sem nos<br />

determos na singulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s observações<br />

do ensaiador e empresário lusitano, pode-se<br />

ressaltar duas principais condições. A de que<br />

o programa nesse momento era antes de tudo<br />

informação, seja sobre o autor e seu repertório<br />

a ser apresentado ao espectador, seja sobre o<br />

nome dos artistas encarregados <strong>da</strong> concepção<br />

e sua execução. Alia-se ain<strong>da</strong> a condição de<br />

que o programa era ordem ou ordenação <strong>da</strong><br />

exibição do entretenimento, e como tal deveria<br />

ser executado diante do espectador. Como um<br />

pequeno contrato, celebrado na compra do<br />

ingresso na bilheteria, o programa deveria ser<br />

cumprido no decorrer espetáculo. De maneira<br />

complementar, Sousa Bastos redigiu ain<strong>da</strong><br />

um segundo verbete que difere do primeiro,<br />

unicamente por estar no plural, “programas”,<br />

em cuja re<strong>da</strong>ção continuava a enfatizar o teor<br />

comercial do empreendedorismo teatral,<br />

apesar de sua crítica:<br />

A forma de anunciar os espetáculos por<br />

meio de programas é talvez a menos útil,<br />

porque geralmente são mal distribuídos. Na<br />

rua são entregues a torto e a direito, sendo<br />

os garotos os mais contemplados. A muitos<br />

não chegam, e noutros ou embrulham nele<br />

os gêneros ou os rasgam. Não é fácil fazer<br />

um bom programa, que pren<strong>da</strong> a atenção do<br />

10 As relações entre o teatro e cerimônias sociais envolvendo<br />

a gastronomia são um campo bastante vasto onde se<br />

destacam, sobremaneira, as ativi<strong>da</strong>des teatrais dentro <strong>da</strong>s<br />

casas reais europeias. observe-se que, ao longo <strong>da</strong> passagem<br />

de uma arte de corte para uma arte burguesa, a ativi<strong>da</strong>de<br />

teatral, o entretenimento, continua a ser apresentado entre<br />

refeições. Somente com o advento <strong>da</strong> autonomização <strong>da</strong> arte<br />

é que se observa uma separação entre ambos.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

transeunte e o obrigue a ir ver o espetáculo<br />

anunciado; mas quando é bem feito, a peça<br />

tem tudo a ganhar com ele. Procurar uma<br />

forma nova de fazer programas tem to<strong>da</strong> a<br />

vantagem, porque atrai as atenções”.<br />

O programa era, então, uma peça<br />

publicitária. O curto verbete encerra muito<br />

mais uma opinião que, naturalmente,<br />

aponta as preocupações do empresárioautor,<br />

do que uma definição. Revela-se,<br />

portanto uma mentali<strong>da</strong>de que enfatiza o<br />

aspecto comercial do fenômeno teatral nesse<br />

início de século XX, e que não difere muito<br />

do pensamento existente na atuali<strong>da</strong>de<br />

disseminado pela concepção de “produto<br />

cultural”. Sousa Bastos preocupava-se em<br />

fazer uma análise crítica do emprego do<br />

programa como material para divulgação<br />

e comercialização <strong>da</strong> programação teatral.<br />

Está implícita uma noção, absolutamente<br />

moderna, de “público-alvo”, que parece<br />

nunca ter saído de mo<strong>da</strong>. Como ele nos<br />

informa, por um lado, o programa era<br />

uma espécie de volante/filipeta, pequeno<br />

prospecto entregue fora do teatro aos<br />

passantes, na rua, para atraí-los a assistir à<br />

peça; por outro lado, haveria a expectativa<br />

de que o pequeno impresso chegasse aos<br />

estabelecimentos comerciais para serem<br />

exibidos, eventualmente fixados nas<br />

paredes, e ao serem assim publicizados<br />

encontrarem o seu público-alvo, o futuro<br />

espectador. O vaticínio de Sousa Bastos é<br />

exato quando sugere a aposta em novas<br />

formas de fazer programas, isto é, de<br />

divulgar sua mercadoria cultural. O que<br />

diria hoje o bem sucedido autor-ensaiador<br />

e empresário teatral dos nossos flyers que<br />

circulam pela Internet?<br />

De 1952 até 2010: algumas<br />

considerações sobre a tipologia do<br />

programa de teatro no Brasil<br />

Contando com um pequeno e<br />

heterogêneo corpus de aproxima<strong>da</strong>mente<br />

200 programas, editados entre o ano de 1952 e<br />

2010 de nosso acervo particular, tentaremos<br />

lançar as bases para uma reflexão sobre a<br />

— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 143


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

144<br />

condição do programa de teatro entre nós.<br />

As mu<strong>da</strong>nças na forma e no conteúdo em<br />

geral ocorrem simultaneamente, e para<br />

facilitar o entendimento, dividiremos nossa<br />

abor<strong>da</strong>gem em duas <strong>parte</strong>s: uma primeira<br />

consagra<strong>da</strong> aos aspectos formais e outra<br />

atinente aos aspectos conteudísticos do<br />

programa. 11<br />

O formato do programa-revista até os anos 1980<br />

Os aspectos tipográficos do programa<br />

de teatro permanecem razoavelmente<br />

estáveis num período que vai <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de<br />

1950 até o fim dos anos 1980. Percebemos<br />

uma constante em todos os programas<br />

desse período a que tivemos acesso: o<br />

formato característico de uma revista,<br />

com um número considerável de páginas<br />

e a capa diferindo do miolo, seja no tipo<br />

de papel ou na gramatura. Nesse padrão<br />

formal a que chamaremos programa do<br />

tipo revista 12 percebemos uma modificação<br />

em suas dimensões a partir dos anos 1970.<br />

O programa passa de 16 cm x 22 cm nos<br />

anos 1950 e 1960 para 21 cm x 27 cm a partir<br />

do início dos anos 1970.<br />

Outros aspectos formais do programa<br />

não apresentam essa rigidez e são alvos<br />

de mu<strong>da</strong>nças mais frequentes. O papel<br />

passa gra<strong>da</strong>tivamente do offset ou papel<br />

jornal ao couché. Inicialmente, o couché<br />

aparece apenas na capa, em segui<strong>da</strong> passa<br />

a ser usado com mais frequência no miolo;<br />

e a partir dos anos 1970 constata-se que a<br />

grande maioria dos programas do tipo<br />

revista profissionais são impressos em<br />

11 Adotamos este procedimento inspirado no estudo de Gilbert<br />

David (2002) sobre os programas de teatro de expressão<br />

francesa no Quebéc. Até o momento há poucas pesquisas<br />

neste campo, ressaltando-se o estudo de Clóvis Massa: “o<br />

paratexto teatral”. In: Cena, ano 4, n. 4, UFRGS/Instituto de<br />

Artes/Departamento de Arte Dramática, pp. 15-26, ago. 2005.<br />

Esse texto foi uma importante colaboração para discussão<br />

que estamos encaminhando.<br />

12 o termo é utilizado no oxford Companion to The Theatre:<br />

“Em 1869 o St. James’s Theatre em Londres começou<br />

a distribuir um programa revista num estilo que, com<br />

modificações, se mantém popular desde então.” (tradução<br />

nossa) Não há nenhuma definição de como seria esse estilo,<br />

mas o caráter popular do programa-revista inglês também<br />

ocorre no Brasil.<br />

couché, sendo as páginas <strong>da</strong>s capas em<br />

gramatura mais alta.<br />

As impressões colori<strong>da</strong>s vão<br />

aparecendo esparsamente. Já nos anos<br />

1950 alguns programas apresentam a<br />

capa e, por vezes a 4º capa, colori<strong>da</strong>s.<br />

Verificamos uma alternância entre capa<br />

colori<strong>da</strong> e capa preta e branca até o início<br />

dos anos 1970, quando as capas passam a<br />

ser, majoritariamente, colori<strong>da</strong>s. Porém, só<br />

encontramos o miolo em cores em alguns<br />

programas <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980.<br />

A diagramação é um ponto de pouca<br />

rigidez durante todo esse período. Não<br />

há uma ordem comum na disposição <strong>da</strong>s<br />

informações, exceto quanto à ficha técnica<br />

do espetáculo que é sempre posiciona<strong>da</strong><br />

nas páginas centrais. Fotos dos artistas<br />

e do produtor do espetáculo são muito<br />

frequentes, mas não há uma regulari<strong>da</strong>de<br />

na forma de sua apresentação. Por vezes,<br />

uma imagem ocupa a página inteira,<br />

em outras divide o espaço com outros<br />

artistas ou com material publicitário. Não<br />

obstante, percebemos um fato importante<br />

na diagramação dos programas até a<br />

déca<strong>da</strong> de 1960: o espaço privilegiado que<br />

é <strong>da</strong>do ao produtor e aos atores principais<br />

do espetáculo.<br />

A partir do final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de<br />

1980, alguns experimentos na forma do<br />

programa apontam para o novo caminho<br />

que seria implementado durante a déca<strong>da</strong><br />

seguinte: <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de formal em<br />

oposição ao padrão revista. O programa<br />

do espetáculo 13 Antígone (1986), 14 apesar<br />

de ain<strong>da</strong> apresentar um formato similar ao<br />

<strong>da</strong> revista, não tem as mesmas dimensões<br />

(15 cm x 30,5 cm ao invés de 21 cm x 27<br />

cm) e, com exceção <strong>da</strong> capa, não apresenta<br />

nenhuma imagem, apenas texto.<br />

Após esse período há uma redução<br />

significativa no número de páginas, com<br />

13 As referências dos programas citados no texto serão<br />

apresenta<strong>da</strong>s em notas de ro<strong>da</strong>pé <strong>da</strong> seguinte forma: título,<br />

autor e/ou direção, grupo, estado, ano. No corpo do texto<br />

será apresentado apenas o título e o ano do espetáculo entre<br />

parênteses.<br />

14 Antígone. Sófocles. Antônio Guedes e Helena Varvaki. o<br />

Studio. RJ. 1986.<br />

Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto


N° 16 | Junho de 2011<br />

exceção dos espetáculos subsidiados<br />

pelo poder público, que ain<strong>da</strong> utilizam<br />

programas similares aos <strong>da</strong> déca<strong>da</strong><br />

de 1980. A redução de páginas e, por<br />

conseguinte, <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de de informação<br />

veicula<strong>da</strong>, torna ca<strong>da</strong> vez menos frequentes<br />

programas do tipo revista, e abre espaço<br />

às experimentações gráficas. Aos poucos<br />

a padronização vai desaparecendo e<br />

podemos dizer que a regulari<strong>da</strong>de formal<br />

dos programas é justamente a diversi<strong>da</strong>de<br />

de formatos.<br />

Para além <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980, observase<br />

que com o tradicional formato revista<br />

convivem programas de tipologias muito<br />

diversifica<strong>da</strong>s, desde uma simples folha<br />

A4 dobra<strong>da</strong> em duas ou três <strong>parte</strong>s, o que<br />

expressa a economia nos meios de produção,<br />

até outros exemplares mais sofisticados,<br />

como no espetáculo Casa de Laura (2009), 15<br />

cujo programa é uma pequena bolsa com<br />

alguns cartões contendo fotografias e a<br />

ficha técnica do espetáculo. Em meio a essa<br />

diversi<strong>da</strong>de tipológica, há até mesmo o<br />

cartaz, que dobrado serve como programa<br />

para o espetáculo Amores Surdos (2006), 16<br />

exatamente como outrora na Inglaterra até<br />

meados do século XIX.<br />

O Conteúdo do programa<br />

Um fator mercadológico é<br />

determinante na mu<strong>da</strong>nça de perspectiva<br />

pela qual passa o programa ao longo <strong>da</strong><br />

segun<strong>da</strong> metade do século XX. Trata-se<br />

<strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de e do tipo de publici<strong>da</strong>de<br />

que é veiculado pelo programa. A<br />

ocupação do seu espaço com material<br />

publicitário já ocorria na Europa desde<br />

meados do século XIX, concomitante com<br />

o surgimento do próprio programa como<br />

objeto independente do cartaz e com<br />

15 Casa de Laura. Anamaria Nunes. RJ. 2009. Neste mesmo<br />

sentido, vale lembrar o programa em formato de cartas de<br />

baralho para Um Molière imaginário do Grupo Galpão. MG.<br />

1997. Neste sentido vale lembrar que certas encenações legam<br />

junto com o programa um pequeno objeto que literalmente<br />

materializa uma metáfora associa<strong>da</strong> ao universo <strong>da</strong> obra.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

objetivos específicos de informar mais<br />

detalha<strong>da</strong>mente o espectador acerca do<br />

espetáculo.<br />

Do ponto de vista do discurso<br />

elaborado pelos agentes criativos e<br />

produtivos <strong>da</strong> cena contemporânea,<br />

verifica-se uma autonomia. Das poucas<br />

páginas de um prospecto, de um programa,<br />

se passa para uma publicação “livresca”<br />

mais volumosa e densa, como nos sinaliza<br />

Patrice Pavis no seu dicionário acerca<br />

dos Teatros Públicos nacionais europeus.<br />

Esse princípio está na base de uma ênfase<br />

formativa desempenha<strong>da</strong>, sobretudo<br />

pelos programas publicados pelos célebres<br />

conjuntos artísticos públicos (TNP, Piccolo<br />

Teatro de Milão, Berliner Ensemble,<br />

Shauspiller, Bochum, Royal Shakespeare<br />

Company, etc.). Esses programas visam<br />

para além <strong>da</strong> informação, a formação do<br />

ci<strong>da</strong>dão-espectador, no caso europeu,<br />

esclarecendo-o sobre o autor, sobre o<br />

conjunto <strong>da</strong> obra de um determinado<br />

autor, sobre o contexto <strong>da</strong> trama, sobre<br />

análises críticas e reflexivas, sobre as<br />

razões <strong>da</strong> encenação e os pressupostos<br />

conceituais do diretor, a trajetória <strong>da</strong><br />

companhia e de seus intérpretes, etc.<br />

O programa de teatro no Brasil, <strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> de 1950, é muito similar àqueles<br />

que já circulavam pelos teatros londrinos<br />

na segun<strong>da</strong> metade do século XIX, em<br />

formato de revista, com muitas páginas<br />

e recheado de propagan<strong>da</strong>. Apesar do<br />

elevado número de páginas, informações<br />

relaciona<strong>da</strong>s diretamente com o espetáculo<br />

se resumem à ficha técnica e às fotografias<br />

do produtor e dos atores principais.<br />

O principal responsável pelo elevado<br />

número de páginas nos programas nos<br />

anos 1950 é a publici<strong>da</strong>de e, em menor<br />

grau, a lista de assinantes do teatro, que<br />

é credita<strong>da</strong> no programa. Vejamos como<br />

exemplo o programa de Fidélio (1952): 17<br />

<strong>da</strong>s 44 páginas do programa, 6 creditam os<br />

assinantes, 18 são inteiramente ocupa<strong>da</strong>s<br />

com material publicitário e to<strong>da</strong>s as outras,<br />

excetuando-se apenas a capa, apresentam<br />

16 Amores Surdos. Grace Passô. Rita Clemente. Espanca!. MG. 2006. 17 Fidélio. Bouilly. Carlos Marchese. RJ. 1952.<br />

— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 145


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

146<br />

algum tipo de publici<strong>da</strong>de. É de amor que se<br />

trata (1957) 18 traz em seu grosso programa<br />

de 76 páginas, 22 ocupa<strong>da</strong>s apenas com<br />

publici<strong>da</strong>de e 74 nas quais a publici<strong>da</strong>de<br />

divide espaço com informações teatrais que<br />

não têm relação direta com o espetáculo.<br />

Há uma sessão de 8 páginas distribuí<strong>da</strong>s ao<br />

longo do programa intitula<strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong>des<br />

teatrais, em que o leitor/espectador se<br />

depara com informações não pertinentes<br />

ao espetáculo, como uma breve biografia<br />

de Sarah Bernhardt e de Shakespeare e<br />

a história do teatro de revista no Brasil.<br />

Ao que parece, são realmente apenas<br />

“curiosi<strong>da</strong>des”. 19<br />

Durante a déca<strong>da</strong> de 1960, a publici<strong>da</strong>de<br />

continua ocupando boa <strong>parte</strong> do programa<br />

e as fotografias do produtor, do diretor e do<br />

elenco — que já apareciam anteriormente,<br />

mas de maneira mais discreta — ocupam<br />

espaços maiores, às vezes de uma página<br />

inteira por fotografia. Em geral, a ordem<br />

em que aparecem é: produtor, diretor,<br />

atores principais, atores secundários<br />

(coadjuvantes), outros profissionais. É<br />

também na déca<strong>da</strong> de 1960 que começam<br />

a surgir os primeiros textos a respeito <strong>da</strong><br />

peça ou <strong>da</strong> companhia. Algumas vezes<br />

18 É de amor que se trata. Jean Anouilh. Cayetano Luca de<br />

Tena. os Artistas Unidos. RJ. 1957.<br />

19 observa-se nesse tipo de curiosi<strong>da</strong>des uma forte<br />

reminiscência de publicações do tipo “Almanaque”, que<br />

abor<strong>da</strong>vam matéria recreativa, humorística, científica,<br />

literária e informativa. Vejam-se alguns exemplos no campo<br />

teatral: Almanaque do Theatro para o ano de 1907, (organizado<br />

por Adhemar Barbosa Romeo, com a colaboração de Arthur<br />

Azevedo, olavo Bilac, Coelho Neto, entre outros). Rio de<br />

Janeiro, Typographia <strong>da</strong> Papelaria Portella, 1906. ou ain<strong>da</strong> o<br />

célebre Almanaque Guimarães, para o ano de 1885 (organizado<br />

sob a direção de Arthur Azevedo), 38o. Ano. Rio de Janeiro, A.<br />

Guimarães Editores, 1884. Podendo abranger diversas áreas de<br />

interesse, o Almanaque estritamente teatral, de periodici<strong>da</strong>de<br />

varia<strong>da</strong>, trazia informações sobre a atuali<strong>da</strong>de teatral de<br />

maneira geral. Em particular, trazia a biografia resumi<strong>da</strong> dos<br />

grandes atores e autores, preferencialmente acompanha<strong>da</strong><br />

de alguma imagem (caricaturas ou clichês); apresentava a<br />

tempora<strong>da</strong> dos principais teatros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de com suas estreias;<br />

anunciava as casas de espetáculos mostrando os preços<br />

relativos à distribuição dos lugares na sala de espetáculo;<br />

publicava curiosi<strong>da</strong>des teatrais e científicas ou <strong>da</strong> mo<strong>da</strong><br />

incluindo ain<strong>da</strong> poesias, ditos populares, pequenas historias,<br />

contos, anedotas, entre outras manifestações literárias<br />

pontuais. Todo esse conteúdo que estabelecia uma espécie de<br />

calendário artístico do entretenimento e do lazer local estava<br />

sempre, em alguma medi<strong>da</strong>, associado ao calendário cívico e<br />

religioso, não deixando de contemplar as estações do ano.<br />

há também uma brevíssima biografia do<br />

produtor, do diretor e dos atores principais.<br />

Neste período, faz-se apelo à História como<br />

disciplina que colabora no processo de<br />

legitimação do discurso criativo sugerindo<br />

uma pereni<strong>da</strong>de, uma continui<strong>da</strong>de e a<br />

afirmação de um “valor cultural”, inerente<br />

à montagem teatral, que procura distinguir<br />

o dito Teatro de Arte do Teatro Comercial<br />

ou de Diversão. 20<br />

Ain<strong>da</strong> nessa mesma déca<strong>da</strong> podemos<br />

constatar uma outra diferença entre o<br />

teatro dito de produtor ou independente e<br />

o teatro subvencionado pelo poder público.<br />

Enquanto o programa de A Megera doma<strong>da</strong><br />

(1964), 21 encena<strong>da</strong> pelo Teatro de Comédia<br />

do Paraná — grupo teatral do Teatro<br />

Guairá, naquela ocasião mantido pelo<br />

governo do estado do Paraná — ocupa<br />

21,05% de suas páginas com publici<strong>da</strong>de,<br />

a taxa ultrapassa 50% em programas de<br />

outras peças do mesmo período como A<br />

Vi<strong>da</strong> impressa em dólar (1965), 22 Liber<strong>da</strong>de<br />

Liber<strong>da</strong>de (1965), 23 Antígona (1964) 24 e<br />

Mirandolina (1964). 25 Também se observa<br />

uma diferença referente aos tipos de<br />

empresas que utilizam o espaço publicitário.<br />

No programa de A Megera doma<strong>da</strong> há<br />

apenas anúncios de órgãos do Governo do<br />

Estado do Paraná ou de empresas estatais,<br />

ao passo que no programa <strong>da</strong>s outras peças<br />

cita<strong>da</strong>s encontramos, majoritariamente,<br />

propagan<strong>da</strong> de empresas aéreas, de mo<strong>da</strong><br />

masculina e feminina, móveis, jóias, bancos<br />

20 Essa duali<strong>da</strong>de entre Teatro de Arte e Teatro Comercial<br />

foi fortemente influencia<strong>da</strong> pelas iniciativas de Constantin<br />

Stanislavski na Rússia e André Antoine na França, na vira<strong>da</strong> do<br />

séc. XIX para o XX. Com o naturalismo no teatro, inaugurouse,<br />

então, um período de modernização <strong>da</strong>s relações<br />

produtivas e, sobretudo, <strong>da</strong> experiência criativa frente à cena<br />

teatral, à ética do ator e consequentemente à relação com<br />

o espectador que passa a distinguir um teatro com novas<br />

características de linguagem, diverso <strong>da</strong> produção em série<br />

em modelos pré-codificados.<br />

21 A Megera Doma<strong>da</strong>. Shakespeare. Cláudio Correa e Castro.<br />

Teatro de Comédia do Paraná. PR. 1964.<br />

22 A Vi<strong>da</strong> impressa em dólar. Clifford odets. Paulo Afonso<br />

Grisolli. RJ. 1965.<br />

23 Liber<strong>da</strong>de Liber<strong>da</strong>de. Flávio Rangel e Millôr Fernandes.<br />

Flávio Rangel. Grupo opinião. RJ. 1965.<br />

24 Antígona. Jean Anouilh. Antonio do Cabo. RJ. 1964.<br />

25 Mirandolina. Goldoni. Gianni Rato. Teatro dos sete. RJ. 1964.<br />

Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto


N° 16 | Junho de 2011<br />

e restaurantes.<br />

No aspecto propriamente artístico,<br />

também salta aos olhos a diferença<br />

entre esses programas. Com exceção de<br />

Mirandolina, os outros três programas,<br />

que representam o teatro independente,<br />

trazem um pequeno texto sobre a peça<br />

e sobre o autor, e no caso de Liber<strong>da</strong>de<br />

Liber<strong>da</strong>de, também um texto sobre o grupo.<br />

No programa de A Megera doma<strong>da</strong> há um<br />

estudo um pouco mais detalhado <strong>da</strong> peça<br />

a ser exibi<strong>da</strong>. O texto que abre o programa<br />

é de autoria de Bárbara Heliodora, uma<br />

autori<strong>da</strong>de nos estudos shakespearianos.<br />

Seguem-se textos de Philomena Gebran<br />

Velloso, professora, Millôr Fernandes,<br />

tradutor <strong>da</strong> peça, e Octavio Ferreira do<br />

Amaral Neto, superintendente do Teatro<br />

Guaíra. Ain<strong>da</strong> há informações e fotografias<br />

<strong>da</strong> equipe técnica do espetáculo responsável<br />

pela cenografia, figurino, música, expressão<br />

corporal, ginástica e dicção. A figura do<br />

produtor independente está ausente visto<br />

que a produção é subvenciona<strong>da</strong> pelo<br />

Governo do Estado do Paraná.<br />

Esse tipo de programa característico<br />

de espetáculos subsidiados pelo poder<br />

público permanece até os dias de hoje.<br />

Do mesmo Teatro Guaíra, podemos citar<br />

os programas <strong>da</strong>s peças Os Incendiários<br />

(2000) 26 e Esperando Godot (2008), 27 como<br />

programas robustos que se apresentam<br />

no formato de revista e se constituem<br />

como estudos pormenorizados acerca<br />

do espetáculo. Eles denotam, com seus<br />

textos assinados por profissionais <strong>da</strong><br />

área cultural ou por agentes criativos<br />

envolvidos na montagem, uma vontade de<br />

excelência artística e de se destacar como<br />

um Teatro de Arte. Percebe-se que advém<br />

<strong>da</strong>í uma preocupação com a formação<br />

cultural do espectador, em oposição ao<br />

teatro de puro entretenimento.<br />

Programas que se assemelham aos<br />

descritos acima começaram a aparecer<br />

em meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970. Entre os<br />

aspectos que os aproximam citamos mais<br />

26 os incendiários. Max Frisch. Felipe Hirsch. PR. 2000.<br />

27 Esperando Godot. Samuel Beckett. Flávio Stein. o Círculo<br />

Núcleo Teatral. PR. 2008.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

uma vez o formato revista e a preocupação<br />

em oferecer ao espectador informações<br />

detalha<strong>da</strong>s sobre a montagem do<br />

espetáculo — concepção <strong>da</strong> encenação,<br />

trajetória do autor, currículo dos agentes<br />

criativos envolvidos etc. — que tenham o<br />

aval de autori<strong>da</strong>des em assuntos teatrais<br />

e/ou culturais. Com a veiculação dessa<br />

massa de informações, verifica-se que a<br />

publici<strong>da</strong>de perdeu seu espaço central<br />

no programa, assim como a figura do<br />

empresário teatral, que passou a ter menor<br />

presença nas páginas do programa. Esse<br />

fato aponta para a co-habitação entre o<br />

teatro dito ain<strong>da</strong> de empresário, na busca<br />

incessante pelo lucro; o teatro de produtor<br />

independente, que se arrisca com<br />

montagens ditas de “Arte”; o teatro de<br />

grupo, em regime de cooperativa, ambos<br />

buscando patrocínio privado ou estatal na<br />

tentativa de realizarem suas montagens.<br />

Ao invés de páginas com publici<strong>da</strong>des<br />

de todos os tipos, a Lei Sarney, 28 permite<br />

que uma grande empresa patrocine o<br />

espetáculo e coloque sua logomarca na<br />

capa do programa liberando o miolo para<br />

veicular informações exclusivas sobre o<br />

espetáculo.<br />

Embora as fotografias do diretor e do<br />

elenco continuem figurando no programa, é<br />

a palavra que adquire maior importância. Os<br />

textos se tornam mais elaborados, e a partir<br />

dos anos 1980 encontramos programas que<br />

configuram ver<strong>da</strong>deiros estudos a respeito<br />

do espetáculo, <strong>da</strong> mesma forma que os<br />

programas de Os Incendiários e Esperando<br />

Godot citados anteriormente. O programa de<br />

Fedra (1986), 29 por exemplo, traz em suas 76<br />

páginas: uma cronologia de Racine; um texto<br />

do tradutor; um segundo texto do diretor;<br />

notas de ensaio elabora<strong>da</strong>s pelos atores; além<br />

de textos de Helio Pellegrino, psicanalista;<br />

28 Em 1986, foi instituí<strong>da</strong> a primeira lei federal de<br />

financiamento às ativi<strong>da</strong>des artísticas no país, a Lei Sarney. A<br />

Lei nº 8.313/91, mais conheci<strong>da</strong> como Lei Rouanet, consolidou<br />

a renúncia fiscal como forma de apoio a projetos culturais<br />

e criou o Fundo Nacional <strong>da</strong> Cultura. Em 1990, o governo<br />

Collor suspendeu os benefícios <strong>da</strong> Lei Sarney, assim como<br />

outros incentivos fiscais em vigor. o mecanismo de apoio às<br />

ativi<strong>da</strong>des culturais foi restabelecido com a Lei Rouanet, que<br />

instituiu o Programa Nacional de Apoio a Cultura (Pronac)”.<br />

29 Fedra. Racine. Augusto Boal. RJ. 1986.<br />

— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 147


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

148<br />

Junito Brandão, especialista em estudos<br />

helênicos; Yan Michalski, crítico teatral —<br />

figuras que por serem expoentes em suas<br />

respectivas áreas legitimam a excelência<br />

artística do espetáculo ao exprimirem suas<br />

opiniões no programa, numa operação de<br />

forte distinção cultural.<br />

Com o aparecimento <strong>da</strong> Lei Sarney,<br />

verifica-se uma guina<strong>da</strong> do ponto vista<br />

mercadológico que se reflete na mu<strong>da</strong>nça<br />

do agente responsável pela produção —<br />

aqui no sentido estritamente financeiro —<br />

que atinge o teatro brasileiro. A figura do<br />

empresário teatral, detentor do capital, a<br />

exemplo de A<strong>da</strong>ury Dantas, Victor Berbara,<br />

Walter Pinto, que dependiam dos valores<br />

recolhidos à bilheteria para gerar o lucro, dá<br />

lugar ao produtor cultural, proponente de<br />

um projeto na área cultural. O pensamento<br />

empresarial vai sendo substituído por<br />

um processo de produção ca<strong>da</strong> vez mais<br />

dependente <strong>da</strong>s leis de incentivo, onde<br />

uma empresa ou mais investem <strong>parte</strong> dos<br />

impostos devidos na produção do espetáculo<br />

em troca de visibili<strong>da</strong>de e publici<strong>da</strong>de de<br />

sua imagem institucional. Nesse sentido,<br />

trata-se de um novo tipo de produção que<br />

não precisa mais se preocupar tanto com<br />

o retorno financeiro advindo <strong>da</strong> bilheteria<br />

para pagar a produção, visto que essa deve<br />

ser contempla<strong>da</strong> pelo subsídio fiscal. Dessa<br />

maneira, há uma mu<strong>da</strong>nça na forma <strong>da</strong><br />

propagan<strong>da</strong> veicula<strong>da</strong> no programa.<br />

Se antes havia um modelo mais<br />

tradicional de publici<strong>da</strong>de em que o<br />

leitor-espectador era levado a relacionar<br />

a publici<strong>da</strong>de dos produtos às vedetes<br />

do espetáculo, a partir do surgimento<br />

<strong>da</strong>s leis de incentivo à cultura, a empresa<br />

patrocinadora do espetáculo busca nesse<br />

momento se afirmar como agente-parceiro<br />

do desenvolvimento cultural do país. Isso<br />

se dá a partir de um texto que em geral abre<br />

o programa, como podemos constatar no<br />

programa de Assim é se lhe parece (1980), 30 com<br />

patrocínio <strong>da</strong> Shell, onde se lê que a Shell “se<br />

identifica com uma <strong>da</strong>s mais emocionantes<br />

formas de expressão artística: o teatro”.<br />

30 Assim é se lhe parece. Luigi Pirandello. Paulo Beti. Teatro<br />

dos 4. RJ. 1980.<br />

Há uma mu<strong>da</strong>nça no formato do<br />

programa que se intensifica gra<strong>da</strong>tivamente,<br />

estabelecendo uma tipologia que,<br />

paradoxalmente, se caracteriza pela<br />

diversificação. Isso trouxe consequências<br />

ao conteúdo do discurso escrito, sendo a<br />

principal delas a diminuição de informação<br />

que o programa passou a veicular, uma<br />

vez que o espaço do programa tornou-se<br />

restrito. A imagem supera a palavra escrita<br />

como elemento de comunicação.<br />

Um ótimo exemplo é o programa <strong>da</strong> peça<br />

As três irmãs (1998) 31 que além de apresentar<br />

um formato fora do padrão revista tradicional<br />

— trata-se de um pe<strong>da</strong>ço de papel, nem<br />

A4 nem A3, mas sim um formato vizinho<br />

a um prospecto que, estando dobrado em<br />

três <strong>parte</strong>s, adquire um formato de postal<br />

medindo 15cm x 21cm — se comunica com<br />

o leitor-espectador sem utilizar nenhuma<br />

palavra, com exceção, é claro, <strong>da</strong> ficha<br />

técnica, elemento sempre presente nos<br />

programas. O que “lemos” neste programa<br />

são imagens dos atores-personagens em<br />

fotografias que, provavelmente, foram feitas<br />

para divulgação <strong>da</strong> peça, com a sugestão de<br />

que o ambiente, as atitudes e os figurinos<br />

nos remetam ao universo <strong>da</strong> encenação<br />

de Bia Lessa. Percebemos nessa concepção<br />

de programa que ressalta o conceitual <strong>da</strong><br />

direção, o desejo de veicular, excessivamente,<br />

a linguagem do próprio espetáculo no objeto<br />

programa. Nesse sentido, o programa deixa<br />

de ser um veículo apenas de informação<br />

ou peça publicitária <strong>da</strong> montagem. Ele é<br />

alçado ao estado de objeto de arte, graças<br />

ao seu formato e à sua própria arte gráfica.<br />

E minimizando assim sua condição de,<br />

unicamente, rastro <strong>da</strong> concepção do próprio<br />

espetáculo, ele reforça o discurso do qual<br />

é suporte. O programa passa a dizer tanto<br />

sobre a concepção <strong>da</strong> cena que acaba por<br />

direcionar a própria recepção do espectador.<br />

Sob esse aspecto, Patrice Pavis alerta para o<br />

perigo de tornar o discurso do programa<br />

“similar ao discurso <strong>da</strong> encenação tal como<br />

o próprio espectador o recebe e produz”. 32<br />

31 As três irmãs. Anton Tchekhov. Bia Lessa. RJ. 1998.<br />

32 Patrice Pavis. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva,<br />

2005. p. 308.<br />

Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto


N° 16 | Junho de 2011<br />

Outro exemplo é o programa <strong>da</strong> peça<br />

Suíte 1 (2009), 33 que mostra um fac-símile de<br />

anotações <strong>da</strong>s primeiras impressões que os<br />

atores tiveram do texto e outro do desenho<br />

do cenário com algumas anotações para a<br />

cena de número quatro. Essas informações<br />

revelam ao leitor-espectador <strong>parte</strong> <strong>da</strong><br />

concepção <strong>da</strong> cena e <strong>da</strong> construção <strong>da</strong><br />

personagem por <strong>parte</strong> dos atores. Nesse<br />

mesmo programa há uma descrição <strong>da</strong><br />

trajetória <strong>da</strong> montagem e uma seleção<br />

de críticas sobre o espetáculo, elementos<br />

que têm a mesma função consagradora<br />

<strong>da</strong>queles textos de Helio Pellegrino, Junito<br />

Brandão e Yan Michalski no programa<br />

de Fedra. Neste caso, além <strong>da</strong> ação de<br />

legitimar, historicizando, a trajetória<br />

do espetáculo, o programa propõe uma<br />

intimi<strong>da</strong>de entre o leitor-espectador e<br />

os agentes criativos que expõem seus<br />

esboços para as cenas. Pode-se intuir que<br />

revelando os “bastidores” <strong>da</strong> experiência<br />

criativa, o laço de adesão entre agentes<br />

criativos e espectadores se torna mais forte,<br />

possibilitando uma cumplici<strong>da</strong>de mais<br />

efetiva, sobretudo diante de experiências<br />

de linguagem mais radicais.<br />

Ain<strong>da</strong> nessa mesma linha encontramos<br />

programas que trazem uma bibliografia,<br />

fruto <strong>da</strong> pesquisa de campo para a escrita<br />

do espetáculo. Mais um elemento que<br />

também revela a concepção <strong>da</strong> peça<br />

e direciona o leitor-espectador para<br />

buscar maiores subsídios sobre o assunto<br />

abor<strong>da</strong>do pelo espetáculo. Como exemplos<br />

dessa tipologia de programa temos Febre –<br />

um sintoma cênico (2008) 34 e O Amargo Santo<br />

<strong>da</strong> Purificação (2009). 35<br />

Em meio à diversi<strong>da</strong>de tipológica de<br />

programas, percebemos certa regulari<strong>da</strong>de<br />

em relação ao tipo de informação que<br />

alguns programas pretendem <strong>da</strong>r ao leitorespectador.<br />

São programas de companhias<br />

consagra<strong>da</strong>s que variam muito as<br />

33 Suíte 1. Philippe Minyana. Márcio Abreu. Companhia<br />

Brasileira de Teatro. PR. 2009.<br />

34 Febre – um sintoma cênico. Fernando Kinas. Fernando<br />

Kinas. Pausa Companhia de Teatro. PR. 2008.<br />

35 o amargo santo <strong>da</strong> purificação. Criação Coletiva. Tribo de<br />

Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz. RS. 2009.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

informações veicula<strong>da</strong>s, mas convergem<br />

num discurso de afirmação do próprio<br />

grupo, geralmente apresentando a história<br />

<strong>da</strong> companhia, seus princípios artísticos,<br />

expondo sua ideologia e revelando<br />

sua mentali<strong>da</strong>de diante <strong>da</strong> experiência<br />

criativa. Esse discurso está presente tanto<br />

em grupos mais consoli<strong>da</strong>dos como A<br />

Companhia dos Atores no programa de<br />

Autopeças (2008) 36 e a Tribo de Atuadores<br />

Oi Nóis Aqui Traveiz em O Amargo Santo<br />

<strong>da</strong> purificação, quanto em companhias e/ou<br />

grupos mais novos, mas já reconhecidos,<br />

caso do Grupo Espanca!, que inclui um<br />

texto afirmando a identi<strong>da</strong>de do grupo<br />

e sua trajetória no programa de sua<br />

primeira peça, Por Elise (2006), 37 quando<br />

<strong>da</strong> tempora<strong>da</strong> de 2006 em Curitiba, um<br />

ano após sua estreia.<br />

Entretanto, sobrevivem ain<strong>da</strong> em<br />

pleno século XXI programas nos moldes<br />

do século XX. Com a pulga atrás <strong>da</strong> orelha<br />

(2002) 38 apresenta, além <strong>da</strong> ficha técnica,<br />

apenas fotos do elenco, do diretor e do<br />

produtor, de maneira muito similar aos<br />

programas dos anos 1950, em formato<br />

de revista com destaque para os atores<br />

principais, que nesse caso são também<br />

atores bastante reconhecidos na televisão<br />

brasileira — Herson Capri, Maitê Proença,<br />

Edwin Luisi, Rogério Fróes e Françoise<br />

Forton — e foto do produtor, que apesar<br />

de ser o último a aparecer no programa é<br />

a figura com maior destaque.<br />

Como se pode constatar, há uma<br />

coexistência de atitudes criativas<br />

diversifica<strong>da</strong>s diante de uma mesma<br />

dinâmica, isto é, nos procedimentos que<br />

consistem na concepção, na apresentação<br />

e na divulgação de um espetáculo<br />

teatral. Verifica-se uma convivência de<br />

experiências criativas diante <strong>da</strong> prática<br />

teatral atual. Neste caso, a tipologia<br />

dos programas reflete mentali<strong>da</strong>des<br />

específicas que nos fazem ver de<br />

que local social, ideológico, artístico,<br />

36 Autopeças. Companhia dos Atores. RJ. 2008.<br />

37 Por Elise. Grace Passô. Grace Passô. Espanca!. MG. 2006.<br />

38 Com a pulga atrás <strong>da</strong> orelha. George Feydeau. Gracindo<br />

Jr. RJ. 2002.<br />

— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 149


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

150<br />

empresarial estão se pronunciando<br />

esses agentes criativos <strong>da</strong> cena. Esse<br />

conjunto de mentali<strong>da</strong>des expressa<br />

a diversifica<strong>da</strong> e complexa cultura e<br />

prática teatral brasileira do ponto de<br />

vista <strong>da</strong> comunicação de um objeto<br />

que em certa medi<strong>da</strong> se quer único,<br />

artístico, de arte.<br />

O programa de teatro: suas funções e<br />

suas ênfases<br />

Como vimos, o programa de teatro<br />

é destinado ao espectador-leitor.<br />

Portanto, estamos considerando um<br />

grupo alfabetizado com capaci<strong>da</strong>de<br />

de efetuar uma leitura consciente do<br />

conteúdo veiculado estabelecendo<br />

relações com a encenação assisti<strong>da</strong>.<br />

Assim sendo, qual seria a função do<br />

programa teatral?<br />

Ao concluirmos esse breve artigo,<br />

poderíamos idealizar duas funções<br />

complementares para uma leitura<br />

sistematiza<strong>da</strong> dos programas de teatro.<br />

Uma primeira seria a função primária.<br />

Essa função seria condicionante e<br />

adviria <strong>da</strong> própria natureza do objeto<br />

programa, visto que se o programa não<br />

a cumprir não poderemos caracterizálo<br />

como tal. Nesse sentido, todos<br />

os programas apresentariam um<br />

compromisso com um conjunto de<br />

informações. Sejam essas informações<br />

gráfico-visuais ou escritas, elas são<br />

referentes aos créditos artísticos<br />

e técnicos atribuídos aos agentes<br />

criativos e produtivos mobilizados para<br />

a realização <strong>da</strong> apresentação pública<br />

anuncia<strong>da</strong>. Complementam essas<br />

informações o enunciado <strong>da</strong> obra a ser<br />

difundi<strong>da</strong> e exibi<strong>da</strong>, isto é, seu título,<br />

juntamente com sua periodici<strong>da</strong>de,<br />

horário e local específico <strong>da</strong> exibição.<br />

A principal característica do<br />

programa, considerando sua gênese<br />

a partir do cartaz de rua, seria o seu<br />

compromisso com a seleção e exibição<br />

do conjunto de informações diversas<br />

sobre a concepção e a apresentação<br />

artística ou o universo por onde essa<br />

criação transita. Trata-se, portanto de<br />

uma ênfase informativa.<br />

Para além desta função primária<br />

esclarecendo ao espectador sobre a<br />

ficha técnica, estampando, por vezes,<br />

o resumo <strong>da</strong> ação, a ênfase informativa<br />

está calca<strong>da</strong> numa mediação entre palco<br />

e plateia. É natural que percebamos<br />

outras ênfases junto aos programas<br />

de teatro que variam de acordo com a<br />

época, os coletivos teatrais, o sistema<br />

de produção, entre outros fatores<br />

comunicacionais e de mercado cultural.<br />

Podemos tentar entender melhor a<br />

natureza <strong>da</strong> prática teatral segundo os<br />

programas teatrais se nos perguntarmos<br />

acerca <strong>da</strong> ênfase que eles estimam <strong>da</strong>r<br />

ao se dirigirem ao espectador.<br />

Complementando essa primeira função,<br />

poderíamos adicionar uma segun<strong>da</strong>,<br />

função secundária, que se caracterizaria<br />

pelo conjunto de informações passíveis<br />

de serem veicula<strong>da</strong>s promovendo uma<br />

diversificação que acabaria por revelar os<br />

objetivos específicos e as ênfases dos mais<br />

diversos tipos de experiências criativas<br />

promovi<strong>da</strong>s pelos artistas. Essa atitude gera<br />

uma inumerável tipologia de programas.<br />

O programa via de regra afirma<br />

uma identi<strong>da</strong>de do coletivo teatral que<br />

o origina, ou do próprio espetáculo a ser<br />

exibido, no caso de uma apresentação<br />

esporádica com um elenco ocasional.<br />

Traduzindo as relações de uma política<br />

cultural entre as instituições e a socie<strong>da</strong>de,<br />

seja no âmbito <strong>da</strong> iniciativa priva<strong>da</strong> ou<br />

<strong>da</strong> iniciativa pública, o programa revela<br />

uma identi<strong>da</strong>de. Essa identi<strong>da</strong>de sendo<br />

individual, coletiva ou de classe, revelaria<br />

tanto os princípios do coletivo criativo<br />

e do espetáculo, quanto reafirmaria a<br />

trajetória dos agentes criativos inscrita<br />

no âmbito <strong>da</strong> sua ci<strong>da</strong>de, do seu estado<br />

ou do seu país.<br />

O programa regula e revela uma<br />

experiência criativa que se quer<br />

compartilha<strong>da</strong>, e expõe uma mentali<strong>da</strong>de<br />

sobre a dinâmica de trabalho construindo<br />

Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto


N° 16 | Junho de 2011<br />

uma cultura e prática teatral que espera<br />

ganhar a adesão do público. Como<br />

na atuali<strong>da</strong>de há espetáculos que não<br />

nos contam, necessariamente, uma<br />

história, mas apresentam uma sucessão<br />

de ações por meio de partituras vocais<br />

e corporais, experimentos cênicos que<br />

negam a representação, convocando a<br />

cumplici<strong>da</strong>de do espectador por outros<br />

sentidos, o programa — em sua função<br />

secundária — é um importante mediador<br />

<strong>da</strong> proposta estético-cultural adota<strong>da</strong><br />

por esses agentes criativos <strong>da</strong> cena.<br />

Não mais condicionado por<br />

uma função primária, cuja ênfase é<br />

informativa, o programa de teatro<br />

se revela como relato de trabalho ou<br />

como exposição teórica <strong>da</strong> proposta do<br />

coletivo teatral. O programa também se<br />

apresenta como um memorial descritivo<br />

e analítico <strong>da</strong>s etapas de trabalho que<br />

originaram a cena. Desta maneira, o<br />

programa busca a adesão do espectador<br />

com a finali<strong>da</strong>de de estabelecer laços<br />

de fidelização.<br />

As transformações pelas quais<br />

passou o programa de teatro durante<br />

esse meio século estabelecem um pacto<br />

estético-cultural, permanentemente<br />

dinâmico, entre o público e o espetáculo.<br />

O programa, por vezes, é alçado ao<br />

patamar de obra de arte, por conta <strong>da</strong><br />

sua autonomia e sofisticação em termos<br />

de linguagem gráfica e visual, passando<br />

a possuir um valor autônomo em<br />

detrimento do espetáculo que ele deveria<br />

divulgar. Essa publicação, contudo, não<br />

deixa de ser a fiel depositária, a fonte, o<br />

documento sujeito à reflexão a posteriori,<br />

por ser um vestígio do instantâneo<br />

que constitui a própria história do<br />

espetáculo. A re<strong>da</strong>ção do programa<br />

investe na formação, no aperfeiçoamento<br />

e, por conseguinte, no estreitamento <strong>da</strong>s<br />

relações com seu leitor-espectador. Ao<br />

pretender ser suporte para uma difusão<br />

e fidelização de uma produção cultural<br />

imaterial, simbólica, o programa<br />

continua sendo um vestígio, um traço<br />

memorialístico do espetáculo teatral.<br />

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<strong>Urdimento</strong><br />

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PAVIS, Patrice. Dictionnaire du Théatre.<br />

Paris: Dunod, 1996.<br />

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de 1885). Paris: Editions d’Aujourd’hui,<br />

1985.<br />

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do Teatro Português (1ª edição fac-simila<strong>da</strong><br />

conforme a edição de 1908). Lisboa:<br />

Arquimedes Livros, 2006.<br />

— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 151


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Paul [Guilherme Rótulo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros 153


N° 16 | Junho de 2011<br />

DE SERES HUMANoS REAIS E<br />

PERFoRMERS VERDADEIRoS 1<br />

Resumo<br />

Este artigo discute noções como autentici<strong>da</strong>de e<br />

veraci<strong>da</strong>de no trabalho cênico frente ao crescente interesse<br />

em usar depoimentos biográficos de atuantes nãoprofissionais.<br />

O artigo se questiona sobre as fontes desse<br />

interesse bem como as diferenças dessas práticas teatrais<br />

em relação a formatos televisivos que trabalham com<br />

depoimentos biográficos e reflete sobre diferentes efeitos<br />

de autentici<strong>da</strong>de que se pode produzir com um teatro<br />

documentário que oscila entre ficção e reali<strong>da</strong>de empírica..<br />

Palavras-chave: teatro documentário, teatro pósdramático,<br />

prática de atuação teatral, teatrali<strong>da</strong>de.<br />

Abstract<br />

This article discusses the notions of authenticity and<br />

veracity in contemporary theatrical productions within the<br />

context of a growing interest to make use of biographic<br />

confessions of non-professional actors on stage. The<br />

article asks itself about the causes of this interest as well<br />

as the differences that separate these theatrical practices<br />

from TV programs that work with biographic statements<br />

and confessions. It also reflects on the different effects<br />

of authenticity that may be produced by a documentary<br />

theatre that oscillates between fiction and empirical<br />

reality.<br />

Keywords: documentary theatre, post-dramatic theatre,<br />

theatrical acting, theatricality.<br />

Annemarie M. Matzke 2<br />

Tradução de Stephan Baumgärtel 3<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros 155


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

156<br />

Uma mulher entra no<br />

palco. Na mão, ela<br />

carrega uma lâmpa<strong>da</strong><br />

de pé, um modelo de<br />

IKEA. Ela procura um<br />

lugar, põe a lâmpa<strong>da</strong> no chão e começa a<br />

contar: fala do seguro de desemprego, <strong>da</strong><br />

redução <strong>da</strong> assistência social do governo<br />

e <strong>da</strong>s injustiças; <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong><br />

um se engajar e, ain<strong>da</strong>, do fato que ela está<br />

farta; como é preciso que alguém faça algo,<br />

ca<strong>da</strong> um de nos. Durante a fala, ela perde a<br />

fluência, chega a parar momentaneamente.<br />

Cria-se a impressão como se ela estivesse<br />

falando o seu texto de modo livre, como se<br />

ela decidisse espontaneamente o que dizer.<br />

Ouve-se o tic-tac de um relógio. A luz se<br />

apaga lentamente – um minuto se passou:<br />

um minuto na luz do palco.<br />

Essa cena curta provém <strong>da</strong> encenação<br />

Tableau com existências marginais (Standbild<br />

mit Randexistenzen) de Björn Auftrag e<br />

Stefanie Lorey de 2004. 4 O conceito <strong>da</strong><br />

encenação é buscar, via anúncios nos jornais,<br />

pessoas que gostariam dizer algo no palco,<br />

é colocar a sua disposição um minuto de<br />

tempo cênico. Este minuto pode ser usado<br />

de modo arbitrário. O pressuposto é que<br />

ca<strong>da</strong> um traz consigo a sua própria lâmpa<strong>da</strong><br />

de pé. Aos poucos configura-se no palco<br />

uma ‘imagem de grupo’ composta pelos<br />

trinta e cinco ‘atuantes’: alguém conta uma<br />

pia<strong>da</strong> sobre Bush, uma outra pessoa conta<br />

do seu cunhado que morreu de câncer;<br />

uma fica em silêncio por um minuto. Do<br />

lado-a-lado dos diferentes discursos surge<br />

um caleidoscópio de confissões, histórias, e<br />

1 In: Fischer-Lichte, Erika et. al. (eds.). Wege der Wahrnehmung.<br />

Authentizität, Reflexivität und Aufmerksamkeit im zeitgenössischen<br />

Theater. Berlin: Theater der Zeit, 2006. pp. 39 – 47.<br />

2 Prof. Dr. Anneliese Matzke é pesquisadora, atriz e performer,<br />

membro do coletivo SheShePop, cujos projetos teatrais são<br />

situados na fronteira entre performance e teatro, in<strong>da</strong>gando<br />

os limites entre representação e performance, entre práticas<br />

públicas e priva<strong>da</strong>s. Ela é professora do Departamento de<br />

Ciências Teatrais <strong>da</strong> Universität Hildesheim/Alemanha,<br />

pesquisando e lecionando sobre formas experimentais do<br />

teatro contemporâneo.<br />

3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Teatro do<br />

Centro de Artes <strong>da</strong> UDESC.<br />

4 Apresentações, entre outras, no Mousonturm em Frankfurt/<br />

Main, no teatro Hebbel am Ufer em Berlin, no Diskurs-Festival<br />

Gießen, e no teatro Die Kammerspiele em München.<br />

anedotas pessoais, ou discursos engajados,<br />

que realça a individuali<strong>da</strong>de dos diferentes<br />

representadores (de si mesmo). A previsão<br />

de Andy Warhol que no futuro ca<strong>da</strong> um<br />

de nos poderia ganhar fama por quinze<br />

minutos, é realizado aqui no palco pelo<br />

menos por um minuto.<br />

A organização <strong>da</strong> encenação é simples<br />

e transparente para o espectador. O palco,<br />

a luz <strong>da</strong> lâmpa<strong>da</strong> de pé e o limite de tempo<br />

atribuem a ca<strong>da</strong> apresentação uma moldura.<br />

As apresentações são organiza<strong>da</strong>s segundo<br />

um regulamento reconhecível. A pesar<br />

dessa delimitação formal <strong>da</strong> encenação,<br />

cria-se um impacto especial de vivencia<br />

imediata. Tudo parece ‘real’, como se a<br />

atuante 5 o trouxesse diretamente <strong>da</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong> cotidiana para o palco. No caso <strong>da</strong><br />

lâmpa<strong>da</strong> de pé, trata-se de uma lâmpa<strong>da</strong> de<br />

IKEA que pode ser encontra<strong>da</strong> em muitos<br />

lares, e a roupa tampouco é reconhecível<br />

como figurino. A forma <strong>da</strong> apresentação<br />

também subverte certas convenções de<br />

uma apresentação teatral. Durante a sua<br />

fala, a ‘atuante’ é nervosa, comete erros<br />

de pronuncia, mas exatamente por causa<br />

deste modo faltoso de falar o seu discurso<br />

aparenta ser não-encenado. Será que tudo<br />

que se opõe à construção do acontecimento<br />

teatral, e por tanto ao seu caráter encenado,<br />

produz um efeito de autentici<strong>da</strong>de? Com<br />

isso, autentici<strong>da</strong>de no palco seria aquilo<br />

que parece ser não-encenado, mesmo que a<br />

apresentação organiza um visível contexto<br />

de encenação.<br />

Talvez a impressão de autentici<strong>da</strong>de<br />

seja produzi<strong>da</strong> por uma especial<br />

confiabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ‘atuante’ que convence a<br />

mim, a espectadora, que ela realmente quer<br />

dizer o que ela fala. À diferença de um ‘ator’<br />

que fala em nome de um personagem, ela<br />

formula um assunto pessoal. Ela responde<br />

por aquilo que diz. Pode-se imaginar que<br />

repetiria as suas reivindicações na rua<br />

5 “Darsteller/in” em alemão, uma palavra cujo significado<br />

oscila entre a representação e a apresentação. No Brasil,<br />

usa-se termos como ‘ator-<strong>da</strong>nçarino’, ‘ator-compositor’,<br />

‘atuador’ ou ‘atuante’ para referir-se a esta instância cênica<br />

que engloba e transbor<strong>da</strong> o ator tradicional enquanto alguém<br />

que representa um papel configura<strong>da</strong> anteriormente através<br />

de um texto. Devido ao contexto não-profissional, optei pela<br />

palavra ‘atuante’. [N. T.]<br />

Annemarie M. Matzke


N° 16 | Junho de 2011<br />

durante uma manifestação: autentici<strong>da</strong>de<br />

como uma forma de street credibility.<br />

Será que a impressão de imediatez se<br />

cria exatamente pela contradição entre a<br />

proximi<strong>da</strong>de cotidiana <strong>da</strong> ‘atuante’ e a<br />

delimitação exposta <strong>da</strong> encenação?<br />

A formulação do ‘ser humano<br />

real’ com que intitulei o meu ensaio é<br />

propositalmente polêmica: no palco e no<br />

dia-a-dia, todo ser humano é naturalmente<br />

‘real’, independentemente se é um ator ou<br />

uma funcionária de um banco. Mas perante<br />

a crescente prática no teatro contemporâneo<br />

de colocar atuantes não-profissionais no<br />

palco, parece necessário realizar algumas<br />

diferenciações. Da onde vem o interesse na<br />

encenação de atuantes não-profissionais?<br />

Onde se encontra a diferença em relação a<br />

formatos <strong>da</strong> mídia como o Talkshow ou os<br />

Reality Soaps? Quais efeitos de autentici<strong>da</strong>de<br />

são produzidos, quando se aposta não em<br />

atuantes profissionais, mas na apresentação<br />

de pessoas comuns?<br />

Comparando as encenações que surgem<br />

neste contexto, chama a atenção que os<br />

‘atuantes’ apresentam a sua história, a sua<br />

situação empírica, e por tanto, apresentam<br />

eles mesmos. Na maioria <strong>da</strong>s vezes,<br />

eles não representam mais personagens<br />

literários ou figuras dramáticas – e caso<br />

que o façam, é para refletir sobre a própria<br />

situação de vi<strong>da</strong>. 6 Eles são postos em<br />

cena como expertos <strong>da</strong> própria causa:<br />

como ‘especialistas do cotidiano’. 7 Eles se<br />

apresentam a própria pessoa ou um assunto<br />

pessoal, como na encenação descrita no<br />

início. É um teatro biográfico com uma<br />

abor<strong>da</strong>gem documentária.<br />

No entanto, essa definição é pertinente<br />

também para muitas apresentações no<br />

âmbito do teatro-performance. Elas também<br />

mostram, a partir de questionamentos<br />

pessoais, encenações de um Eu além <strong>da</strong><br />

representação de uma figura. Nenhum<br />

6 Na encenação Wallenstein (2005), do grupo Rimini-Protokoll,<br />

os ‘atuantes’ não representam as figuras <strong>da</strong> peça. Ao contrário<br />

disso, é in<strong>da</strong>gado até que ponto pode se reconhecer nos<br />

conflitos a biografia dos ‘atuantes’ os conflitos do drama.<br />

7 Behrend, Eva. “Die Alltagsspezialisten”, in Jahrbuch Theater<br />

heute (2003), p.52-63. Exemplos para esta forma de teatro são<br />

Rimini Protokoll, Theater Lubricat, Gudrun Herbold, Hofmann<br />

e Lindholm, para mencionar só alguns.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

texto literário é ponto de parti<strong>da</strong> para a<br />

montagem, mas os ‘atuantes’ tornam a si<br />

mesmo, sua biografia ou corporei<strong>da</strong>de, o<br />

assunto <strong>da</strong> apresentação. O que se mostra<br />

não é um teatro auto-biográfico. Estas<br />

“encenações do Eu” são discussões de<br />

formas de encenação sociais e midiáticas,<br />

que são reconhecíveis nos trabalhos. Como<br />

exemplos, pode-se mencionar o Quizshow<br />

<strong>da</strong> produção QUIZOOLA! do grupo<br />

Forced Entertainment, o Setting Ballsaal na<br />

encenação Wa r u m t a n z t i h r n i c h t? [Porque<br />

vocês não estão <strong>da</strong>nçando?] do grupo<br />

SheShePop, ou o mundo do trabalho como<br />

lugar de um auto-marketing na performance<br />

Wo r k do grupo Gob Squad. As encenações<br />

revelam in<strong>da</strong>gações nos modos sociais de<br />

encenação. São citados formatos <strong>da</strong> mídia<br />

ou cultural performances, que precisam uma<br />

forma especifica <strong>da</strong> auto-apresentação.<br />

Este procedimento se mostra<br />

também nas encenações de atuantes nãoprofissionais,<br />

que muitas vezes, sem<br />

qualquer tipo de formação de ‘ator’, são<br />

profissionais na auto-apresentação. Na<br />

sua encenação de Wallenstein, ao por na<br />

pessoa de Sven-Joachim Otto um político<br />

profissional no palco, o grupo Rimini-<br />

Protokoll não só tematiza modos de autoapresentação<br />

profissionais – durante a<br />

encenação, Otto revela, por exemplo, as<br />

estratégias <strong>da</strong> sua campanha publicitária –,<br />

mas os expõe no próprio ato de apresentar e<br />

jogar cenicamente. Uma discussão pareci<strong>da</strong><br />

com a autopromoção mostra a trilogia<br />

Pe r f o r m Pe r f o r m i n g do bailarino e performer<br />

Jochen Roller, que in<strong>da</strong>ga no seu trabalho<br />

“o sentido e o absurdo de compreender a<br />

<strong>da</strong>nça como trabalho”. Agui, o negocio com<br />

a auto-revelação se transforma no show<br />

propriamente dito. Portanto, as transições<br />

entre o performer, que torna a própria<br />

pessoa assunto <strong>da</strong> sua apresentação, e o<br />

atuante não-profissional, que recorre a<br />

suas estratégias pessoais de representar o<br />

próprio Eu, não são claramente delimita<strong>da</strong>s.<br />

Ambos fazem <strong>da</strong> sua competência na autoencenação<br />

o tema <strong>da</strong> sua apresentação e<br />

com isso aludem a um fenômeno social:<br />

a necessi<strong>da</strong>de de saber como se autopromover,<br />

e, portanto, a obrigação de<br />

De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros 157


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

158<br />

apresentar uma imagem autêntica de si<br />

mesmo. Por isso, eles não tratam do ser<br />

humano ‘real’, cuja proximi<strong>da</strong>de com o<br />

cotidiano deveria lhe confiar autentici<strong>da</strong>de,<br />

nem de uma apresentação ‘ver<strong>da</strong>deiro’ de<br />

um suposto Eu por <strong>parte</strong> dos performers,<br />

mas tratam de um jogo com estratégias de<br />

(auto-)apresentação.<br />

Um desdobramento parecido pode ser<br />

observado também nas mídias de massa.<br />

Nos formatos <strong>da</strong> televisão encontra-se um<br />

crescente número de ‘representadores’ que<br />

não são mais introduzidos como atores ou<br />

apresentadores profissionais – começando<br />

de Big Br o t h e r (2000), passando pelos<br />

Reality Soaps até De u t s c h l a n D s u c h t<br />

D e n su P e r s t a r [A Alemanha procura o<br />

superstar; um show de talentos musicais,<br />

N.d.T.] (2003). Enquanto, no início, um dos<br />

objetivos desses formatos era, através <strong>da</strong><br />

criação de configurações de teste extremas<br />

– seja de uma isolação do mundo afora, ou<br />

através de provocações e desafios – fazer<br />

com que os candi<strong>da</strong>tos se apresentem<br />

de modo autêntico, agora esta busca por<br />

autentici<strong>da</strong>de aparece em segundo plano.<br />

Os formatos mais novos observam os<br />

candi<strong>da</strong>tos no processo de se tornar autoapresentadores<br />

mais e mais aperfeiçoados,<br />

por exemplo, quando eles aperfeiçoam<br />

a sua auto-encenação enquanto popstars.<br />

O espectador não mais pontua como os<br />

candi<strong>da</strong>tos são além <strong>da</strong> câmara, mas como<br />

eles constroem uma imagem em frente<br />

e para a câmara que parece autêntica. O<br />

objetivo não parece ser a confecção de<br />

autentici<strong>da</strong>de para além <strong>da</strong> encenação, mas<br />

a autentici<strong>da</strong>de no ato <strong>da</strong> encenação.<br />

Na descrição <strong>da</strong>s formas teatrais de<br />

representação – tanto no contexto dos<br />

atuantes não-profissionais quanto no<br />

teatro-performance – chama a atenção<br />

também que se recorre com tanta<br />

frequência ao conceito de autentici<strong>da</strong>de, e<br />

simultaneamente o questiona. 8 Mesmo que<br />

se questione a autentici<strong>da</strong>de do apresentado<br />

8 Ver, por exemplo, Diez, Georg. “Das Drama des wirklichen<br />

Lebens“ [o drama <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> real], in Frankfurter Allgemeine<br />

Zeitung, 5.Juni 2005; Bauer, Detlev. “Echt gespielt“ [representado<br />

de ver<strong>da</strong>de], in: Deutsche Bühne 8 (2004), p.36-39.<br />

e que o conceito seja definido de modo<br />

problemático, ele continua sendo o ponto<br />

de referência <strong>da</strong> descrição. Deste modo, o<br />

conceito sempre marca também a dúvi<strong>da</strong><br />

acerca do autêntico e se define em última<br />

análise através do seu oposto: o fingimento<br />

ou a falsificação. 9<br />

Esta atitude cética acerca do conceito<br />

de autentici<strong>da</strong>de encontra-se em discursos<br />

de diversas ciências. A sociologia aponta<br />

a impossibili<strong>da</strong>de de uma comunicação<br />

não-mediata e direta. As teorias do<br />

gênero in<strong>da</strong>gam com concepções como<br />

performativi<strong>da</strong>de e máscara a autentici<strong>da</strong>de<br />

do gênero. A teoria literária se despede <strong>da</strong><br />

instância do autor recorrendo a conceitos<br />

como a intertextuali<strong>da</strong>de. E a etnologia<br />

problematiza qualquer forma de uma<br />

documentação autêntica. Frente a este<br />

contexto, Helmut Lethen questiona a<br />

autentici<strong>da</strong>de como critério de avaliação:<br />

“Quando não é mais possível denominar<br />

interfaces claras entre natureza e<br />

construção social, parece que se usa a<br />

autentici<strong>da</strong>de no máximo de forma irônica,<br />

como critério para diferenciar entre vários<br />

graus de artificiali<strong>da</strong>de.” 10<br />

Esta interface entre vários graus<br />

de artificiali<strong>da</strong>de, no entanto, é típica<br />

para a discussão contemporânea sobre<br />

autentici<strong>da</strong>de e encenação no palco. 11<br />

Investigar e buscar a imediatez com os<br />

meios do palco é uma tentativa um tanto<br />

paradoxal: O contexto ‘palco’ aponta<br />

exatamente para o caráter mediado do<br />

apresentado. Autentici<strong>da</strong>de no palco<br />

é sempre efeito de uma construção.<br />

Gabriele Brandstetter vê neste fato um<br />

novo paradoxo do ator, na sucessão de<br />

9 Römer, Stefan: Künstlerische Strategien des Fake. Kritik von<br />

original und Fälschung, Köln: DuMont, 2001.<br />

10 Lethen, Helmut. “Versionen des Authentischen. Sechs<br />

Gemeinplätze“ [Versões do autêntico: seis chavões], in:<br />

Böhme, Hartmut e Scherpe, Klaus (eds.) Literatur und<br />

Kulturwissenschaften: Positionen, Theorien, Modelle. Reinbek<br />

bei Hamburg: Rowohl, 1996., p.205-230, aqui p.209.<br />

11 Ver Fischer-Lichte, Erika e Pflug, Isabel (eds). Inszenierung<br />

von Authentizität [Encenações de Autentici<strong>da</strong>de]. Tübingen e<br />

Basel: Francke, 2000. E também Berg, Jan; Hügel, Hans-otto;<br />

e Kurzenberger, Hajo. (eds.) Authentizität als Darstellung<br />

[Autentici<strong>da</strong>de enquanto representação]. Hildesheim:<br />

Universität Hildesheim, 1997.<br />

Annemarie M. Matzke


N° 16 | Junho de 2011<br />

Diderot, um “estar presente sem atuar”. 12<br />

O paradoxo não se articula mais entre<br />

sentimento e representação, mas entre o<br />

desejo por uma representação autêntica e o<br />

saber simultâneo <strong>da</strong> sua impossibili<strong>da</strong>de.<br />

Com isso, a autentici<strong>da</strong>de se transforma,<br />

de um problema <strong>da</strong> representação – como<br />

posso conseguir uma representação<br />

autêntica? – em um problema <strong>da</strong> retórica:<br />

como posso comunicar ao espectador<br />

a impressão de imediatez no palco, se<br />

qualquer impressão de autentici<strong>da</strong>de é<br />

resultado de uma construção?<br />

Uma breve excursão pela história <strong>da</strong><br />

atuação documenta o deslocamento do<br />

conceito de autentici<strong>da</strong>de em relação a<br />

esta pergunta. Nas teorias de atuação do<br />

século 18, buscou-se autentici<strong>da</strong>de tanto na<br />

expressão do ator quanto na representação<br />

do personagem. Esta exigência focou<br />

uma determina<strong>da</strong> concepção de uma<br />

representação ‘natural’, em oposição a<br />

uma representação artificial e exagera<strong>da</strong>. 13<br />

A partir <strong>da</strong> metade do século XIX, as<br />

exigências ao ator mu<strong>da</strong>m: ele deve<br />

sempre, na representação <strong>da</strong> figura,<br />

também representar ele mesmo. 14 Nas<br />

teorias do teatro no início do século XX, a<br />

relação entre palco e reali<strong>da</strong>de é inverti<strong>da</strong>:<br />

não o teatro, mas a reali<strong>da</strong>de social é<br />

marca<strong>da</strong> pelo fingimento. Stanislavski,<br />

por exemplo, compreende a sua técnica<br />

de atuação como uma tentativa “de<br />

como podemos apreender de eliminar do<br />

teatro [...] o ‘teatral’.” 15 Principalmente<br />

a concepção de Grotowski para o seu<br />

12 Brandstetter, Gabriele. “Geschichten erzählen im<br />

Performance-Theater der neunziger Jahre. In: Fischer-Lichte,<br />

Erika et. al. (eds). Transformationen: Theater der 90ger Jahre<br />

[Transformações: teatro dos anos 90]. Berlin: Theater der<br />

Zeit, 1999. p. 27-42, aqui p.36.<br />

13 Fischer-Lichte, Erika. “Entwicklung einer neuen<br />

Schauspielkunst“ [o desenvolvimento de uma nova arte de<br />

atuação], in: Bender, Wolfgang F. (ed). Schauspielkunst im 18.<br />

Jahrhundert. Stuttgart: Steiner, 1998, p.51-70.<br />

14 Emblemático para este fenômeno é o debate sobre a diferença<br />

na atuação <strong>da</strong> Duse e Sarah Bernhardt. Ver Balk, Claudia.<br />

Theatergöttinnen. Inszenierte Weiblichkeit. Clara Ziegler, Sarah<br />

Bernhardt, Eleonore Duse. Frankfurt/Main: Stroemfeld, 1994.<br />

15 Stanislavski, Konstantin. Die Arbeit des Schauspielers na<br />

sich selbst: Tagebuch eines Schülers. [o trabalho do ator:<br />

diário de um aluno]. Vol.1, Berlin: Henschel, 1983.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Teatro Pobre define o ato de atuação como<br />

instrumento para atingir uma veraci<strong>da</strong>de.<br />

O ator, através do trabalho sobre si mesmo<br />

e sobre o personagem, deve alcançar uma<br />

veraci<strong>da</strong>de impossível na vi<strong>da</strong> cotidiana. O<br />

palco é declarado como o lugar em que esta<br />

forma de autentici<strong>da</strong>de parece possível.<br />

Os trabalhos contemporâneos, ao<br />

contrário, revelam auto-encenações que<br />

conscientemente expõem o seu caráter de<br />

serem um jogo construído. As apresentações<br />

investigam as encenações do cotidiano e suas<br />

estratégias de atribuir-lhes autentici<strong>da</strong>de.<br />

A auto-representação se apresenta como<br />

um jogo com identi<strong>da</strong>des, como um modo<br />

de representação, na sua multiplicação<br />

em imagens mais diversas de si mesmo.<br />

Neste contexto, a questão do ver<strong>da</strong>deiro,<br />

<strong>da</strong> veraci<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> credibili<strong>da</strong>de se torna<br />

inane. Isto faz com que a percepção do<br />

espectador vira o elemento central: não se<br />

coloca mais a questão se algo é imediato ou<br />

encenado, mas que impressão de imediatez<br />

é produzi<strong>da</strong>. O que se expõe é a construção<br />

de efeitos do autêntico. Neste processo,<br />

podem-se diferenciar várias estratégias.<br />

Um procedimento consiste em<br />

desven<strong>da</strong>r a construção do acontecimento<br />

teatral propriamente dito. Podemos<br />

mostrar isso de forma exemplar na<br />

encenação St a n d b i l d m i t Ra n d e x i S t e n z e n,<br />

descrita no início deste artigo. Ao permitir<br />

um conhecimento sobre a seleção dos<br />

‘atuantes’ e sobre os parâmetros expostos<br />

na encenação, a apresentação revela a<br />

sua estrutura. Esta exposição e revelação<br />

funcionam, no entanto, somente perante<br />

o contexto ‘teatro’ e <strong>da</strong>s suas convenções<br />

inscritas neste. O que se percebe como<br />

autêntico é o gesto do desven<strong>da</strong>mento.<br />

O modo <strong>da</strong> ‘encenação’ é afirmado como<br />

a reali<strong>da</strong>de comum entre espectadores e<br />

‘atuantes’. Esta concepção de reali<strong>da</strong>de<br />

não refere a algo extrateatral, mas a um<br />

determinado clima de comunicação: o que<br />

importa é uma definição compartilha<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> situação como sendo encena<strong>da</strong>. Este<br />

procedimento se diferencia do conceito<br />

Brechtiano do distanciamento na medi<strong>da</strong><br />

em que não há uma ilusão teatral na<br />

De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros 159


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

160<br />

situação <strong>da</strong> apresentação que poderia ser<br />

quebra<strong>da</strong>, do mesmo modo como não há<br />

figuras fictícias ou uma fábula. Aquilo que<br />

se expõe enquanto encenação é meramente<br />

a situação teatral de representar e observar.<br />

Jogando com estas cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> encenação,<br />

cria-se a impressão de autentici<strong>da</strong>de<br />

só a partir <strong>da</strong> diferença. Quanto menos<br />

encenado, mais autêntico o efeito em<br />

comparação com algo mais encenado.<br />

Um outro procedimento é recorrer a<br />

conhecidos formatos <strong>da</strong> mídia, ou cultural<br />

performances, nos quais são inscritos<br />

específicas estratégias de encenação,<br />

reconhecíveis pelos espectadores. O grupo<br />

Rimini Protokoll, por exemplo, faz uso,<br />

uma e outra vez, de formas de encenação<br />

sociais para as suas produções, seja isso<br />

o parlamento alemão em de u t S c h l a n d<br />

2, ou a sala de um tribunal em zeuGen<br />

[testemunhas]. Se examina a produção e<br />

recepção de procedimentos e estratégias de<br />

encenação na política e no sistema jurídico,<br />

respectivamente. Neste contexto, levantase<br />

a questão como se produz ‘a ver<strong>da</strong>de’<br />

nessas formas sociais de encenação, e quais<br />

‘papeis’ são assumidos. Procedimentos de<br />

encenação teatrais se misturam com aqueles<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de social. Os atuantes nãoprofissionais<br />

legitimam o seu aparecimento<br />

no palco com o fato de serem expertos para<br />

uma forma específica de encenar reali<strong>da</strong>de<br />

empírica – seja por causa de uma predileção<br />

pessoal, <strong>da</strong> sua profissão ou de uma<br />

determina<strong>da</strong> experiência biográfica. Eles<br />

causam uma impressão de autentici<strong>da</strong>de<br />

enquanto expertos, não enquanto ‘atores’<br />

teatrais. Mas a sua competência, por sua<br />

vez, é exposta como uma forma específica de<br />

(auto-) encenação. Na oposição <strong>da</strong>s diferentes<br />

estratégias de encenação surge a impressão<br />

de autentici<strong>da</strong>de como efeito de diferenças.<br />

Isso aponta para um terceiro efeito<br />

de autentici<strong>da</strong>de no palco: o fracasso <strong>da</strong><br />

(auto-) encenação bem fabrica<strong>da</strong>. No teatro<br />

tradicional, relaciona-se um momento de<br />

autentici<strong>da</strong>de com o fracasso do an<strong>da</strong>mento<br />

fluído <strong>da</strong> apresentação: um ator ‘sai do<br />

personagem’, a técnica não funciona ou<br />

alguém se machuca.<br />

Referências bibliográficas<br />

BALK, Claudia. Theatergöttinnen.<br />

Inszenierte Weiblichkeit: Clara Ziegler, Sarah<br />

Bernhardt, Eleonore Duse. Frankfurt/Main:<br />

Stroemfeld, 1994.<br />

BAUER, Detlev. Echt gespielt [representado<br />

de ver<strong>da</strong>de]. In: Deutsche Bühne 8 (2004),<br />

p.36-39.<br />

BEHREND, Eva. Die Alltagsspezialisten.<br />

In: Jahrbuch Theater heute (2003), p.52-63.<br />

BERG, Jan; HÜGEL, Hans-Otto;<br />

KURZENBERGER, Hajo. (eds.) Authentizität<br />

als Darstellung [Autentici<strong>da</strong>de enquanto<br />

representação]. Hildesheim: Universität<br />

Hildesheim, 1997.<br />

BRANDSTETTER, Gabriele. Geschichten<br />

erzählen im Performance-Theater der<br />

neunziger Jahre. In: FISCHER-LICHTE, Erika<br />

et. al. (eds). Transformationen: Theater der 90ger<br />

Jahre [Transformações: teatro dos anos 90].<br />

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DIEZ, Georg. Das Drama des wirklichen<br />

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Allgemeine Zeitung, 5.Jun, 2005.<br />

FISCHER-LICHTE, Erika; PFLUG, Isabel<br />

(eds). Inszenierung von Authentizität<br />

[Encenações de Autentici<strong>da</strong>de]. Tübingen<br />

e Basel: Francke, 2000.<br />

FISCHER-LICHTE, Erika et. al. (eds.).<br />

Wege der Wahrnehmung. Authentizität,<br />

Reflexivität und Aufmerksamkeit im<br />

zeitgenössischen Theater. Berlin: Theater<br />

der Zeit, 2006, p. 39 - 47.<br />

FISCHER-LICHTE, Erika. Entwicklung<br />

einer neuen Schauspielkunst [O<br />

desenvolvimento de uma nova arte de<br />

atuação]. In: BENDER, Wolfgang F.<br />

(ed). Schauspielkunst im 18. Jahrhundert.<br />

Stuttgart: Steiner, 1998, p.51-70.<br />

LETHEN, Helmut. Versionen des<br />

Authentischen. Sechs Gemeinplätze<br />

[Versões do autêntico: seis chavões]. In:<br />

BÖHME, Hartmut; SCHERPE, Klaus<br />

(eds.) Literatur und Kulturwissenschaften:<br />

Positionen, Theorien, Modelle. Reinbek bei<br />

Hamburg: Rowohl, 1996, p.205-230.<br />

RÖMER, Stefan: Künstlerische Strategien<br />

Annemarie M. Matzke


N° 16 | Junho de 2011<br />

des Fake. Kritik von Original und Fälschung.<br />

Köln: DuMont, 2001.<br />

STANISLAVSKI, Konstantin. Die Arbeit des<br />

Schauspielers na sich selbst: Tagebuch eines<br />

Schülers. [O trabalho do ator: diário de um<br />

aluno]. Vol.1, Berlin: Henschel, 1983.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros 161


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Médico Interno [Vicente Concílio] e Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Pontos e práticas: manifestos. Nostalgias futuras 163


N° 16 | Junho de 2011<br />

PoNToS E PRÁTICAS: MANIFESToS.<br />

NoSTALGIAS FUTURAS 1<br />

Resumo<br />

Os manifestos foram escritos tradicionalmente com a intenção<br />

de <strong>da</strong>r forma às ideias a ações políticas. Sua origem remonta ao<br />

Manifesto Comunista (1848) de Marx e Engles, um tratado e um<br />

chamado às armas. Meio século após, os direitos ‘universais’<br />

<strong>da</strong>s revoluções americana e francesa retomaram, embora de<br />

forma destorci<strong>da</strong>, alguns de seus princípios. Estes três foram os<br />

modelos para a maior <strong>parte</strong> dos manifestos escritos por artistas.<br />

O grande gesto dos manifestos, e seu sentido de utopia e justiça<br />

universal, tem sido realocado, na contemporanei<strong>da</strong>de, para<br />

ações mais locais e pontuais de inclusão artístico-cultural. A<br />

morte dos manifestos é ‘o fim <strong>da</strong> esperança como um gênero’,<br />

e hoje é substituído por intervenções performativas que<br />

ultrapassam o momento de suas declarações.<br />

Palavras-chave: Manifestos como speech acts, ideias e ação<br />

política, intervenções performativas.<br />

Abstract<br />

Traditionally, manifestos are writing intended to shape political<br />

ideas and to provoke actions. Their origin goes back to The<br />

Communist Manifesto (1848) of Marx and Engles, a treatise as<br />

well as a call to arms. In less than a half century, the ‘universal’<br />

rights of the American and French Revolutions – however<br />

distorted in practice – worked on some of its principles. The three<br />

of them were the model for most of the manifestos written by<br />

artists. The grand gesture of manifestos, and their sense of utopia<br />

and universal rights, has been relocated, in contemporaneity, to<br />

more local and punctual actions of artistic and cultural inclusion.<br />

The death of manifestos ‘is the end of hope as a genre’, and<br />

nowa<strong>da</strong>ys is replaced by performative interventions that works<br />

beyond the moment of declaration.<br />

Keywords: Manifestyos as speech acts, ideas and political action,<br />

performative interventions.<br />

Richard Schechner 2<br />

Tradução de Beatriz Angela Viera Cabral (Biange Cabral) 3<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Pontos e práticas: manifestos. Nostalgias futuras 165


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

166<br />

Os manifestos são otimistas<br />

e agressivos; edificantes<br />

e raivosos. Eles ressoam<br />

com ver<strong>da</strong>de, como o<br />

sino de igreja; ou com<br />

alarme, perigo e catástrofe como sirenes<br />

estridentes de carros de bombeiro, de<br />

polícia e ambulâncias. Pessoas ou se atraem<br />

pelos manifestos, ou os repelem: raramente<br />

são neutras. Manifestos não são sutis; lhes<br />

falta nuance e usualmente não usam ironia<br />

ou paródia. Eles são muito religiosos, no<br />

sentido de que seus autores acreditam que<br />

estão entregando a Palavra do Alto (eles<br />

próprios, suas causas, Deus, história, o<br />

futuro ...). E, hoje, nas déca<strong>da</strong>s de abertura<br />

do século XXI, manifestos soam e são lidos...<br />

como nostalgia, mas de uma espécie muito<br />

especial. Mais no último caso.<br />

Tradicionalmente, manifestos são<br />

escritos com a intenção de provocar ações.<br />

São performativos em negrito. Por exemplo,<br />

a Declaração de Independência Americana<br />

(1776), um documento que inventou o<br />

“Nós” sobre o qual foram instalados os<br />

poderes de um Estado emergente: ‘Nós (...),<br />

os Congressistas dos Estados Unidos <strong>da</strong><br />

América, reunidos em Assembléia Geral’.<br />

Quem seriam estes presumíveis ‘We’? Uma<br />

comuni<strong>da</strong>de imaginária não de nobres or<br />

(posteriormente) de trabalhadores, mas de<br />

‘todos’. Este ‘we’ logo após se tornaram<br />

‘les citoyens’ (os ci<strong>da</strong>dãos) <strong>da</strong> Revolução<br />

Francesa cujo brilhante manifesto foi a<br />

Déclaration des droits de l’Homme et Du<br />

citoyen (1789, Declaração dos Direitos do<br />

Homem e do Ci<strong>da</strong>dão). Este ci<strong>da</strong>dão era<br />

mais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de do que <strong>da</strong> zona rural, mais<br />

um proletário do que um camponês ou<br />

1 Artigo publicado na sessão “points and practice”, com o subtítulo<br />

“Manifestos”. Revista Research in Drama Education –<br />

The Journal of Applied Theatre and Performance. Vol. 15 No<br />

3.New Yorl and London: Routledge, 2010.<br />

2 Richard Schechner é Professor de Performance Studies na<br />

Tisch School of Arts, New York University, e Editor do TDR:<br />

The Journal of Performance Studies. Ele é autor de muitos<br />

livros, entre eles Between Theater and Anthropology (1985),<br />

Performance Theory (1988), The Future of Ritual (1993),<br />

Performance Studies: An Introduction (edição revista, 2006).<br />

3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Teatro<br />

<strong>da</strong> UDESC.<br />

servo. A Declaração Americana se dirigiu<br />

ao fazendeiro livre, enquanto a Declaração<br />

Francesa falou para a turba urbana.<br />

Ambos foram considerados como<br />

homens livres (não ain<strong>da</strong> as mulheres;<br />

e não ain<strong>da</strong> os não-brancos). Homens<br />

livres e ci<strong>da</strong>dãos pertenciam ao início <strong>da</strong><br />

existência de uma construção utópica.<br />

Os manifestos estavam em <strong>parte</strong> criando<br />

o que eles pleiteavam. Mas logo em<br />

segui<strong>da</strong> a Revolução Francesa, media<strong>da</strong><br />

pela Assembleia Nacional Constituinte.<br />

Sustentou o Terror. A Revolução<br />

Americana levou mais tempo antes <strong>da</strong><br />

emergência <strong>da</strong> Superpotência.<br />

Os ci<strong>da</strong>dãos e os fazendeiros foram<br />

transformados em trabalhadores e<br />

camponeses destinatários de Marx e Engles<br />

em O Manifesto Comunista (1848). Este<br />

manifesto – mais longo do que qualquer outro<br />

que eu conheça, foi um tratado tanto quanto<br />

uma chama<strong>da</strong> às armas. Diferentemente<br />

dos manifestos americano e francês, Marx<br />

e Engles falaram apenas e para algumas<br />

pessoas, as ‘classes oprimi<strong>da</strong>s’, instando-as a<br />

derrubar as classes dominantes. Em menos<br />

de meio século, os direitos universais <strong>da</strong>s<br />

Revoluções Americana e Francesa – embora<br />

distorcidos na prática – estavam previstos<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente e diferentemente através<br />

de um mundo já sacudido e estremecido<br />

pela guerra de classes descrita no manifesto<br />

comunista.<br />

Há muitos manifestos de autoria de<br />

artistas. Geralmente são retóricos, não<br />

para serem levados a sério. Explo<strong>da</strong><br />

isto, derrube aquilo, destrua os museus,<br />

libere to<strong>da</strong>s as obras de arte... na<strong>da</strong> disso<br />

realmente acontece. Ou se o fazem, as ações<br />

acontecem não porque um Artaud faz uma<br />

chama<strong>da</strong> para um teatro <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de,<br />

mas, infelizmente, porque Hitler ordena<br />

a queima de livros. Há uma longa lista de<br />

manifestos por artistas desde pelo menos a<br />

época dos Futuristas em diante; tantos que<br />

eles estão reunidos em um gênero – mas<br />

que tipo de gênero? Documentos raivosos<br />

evidenciam o sentido de exclusão de seus<br />

autores e frequentemente invejam as<br />

socie<strong>da</strong>des que querem destruir. A prova<br />

Richard Schechner


N° 16 | Junho de 2011<br />

disto é o fato de que algum tempo mais<br />

tarde na vi<strong>da</strong>, os escritores do destemido<br />

manifesto se unem às fileiras <strong>da</strong>s próprias<br />

bobagens que haviam execrado em sua<br />

juventude.<br />

Leiam o que alguns dos grandes<br />

artistas e teóricos proclamaram nos<br />

últimos 100 anos:<br />

1909, o Manifesto Futurista de<br />

F.T. Marinetti:<br />

Nós queremos exaltar movimentos<br />

agressivos, a insônia febril, a veloci<strong>da</strong>de e<br />

o salto mortal, a bofeta<strong>da</strong> e o murro (...) Já<br />

não há beleza senão na luta. Nenhuma obra<br />

que não tenha um caráter agressivo pode<br />

ser uma obra prima. A poesia deve ser<br />

celebra<strong>da</strong> como um violento assalto contra<br />

as forças ignóbeis para obrigá-las a prostrarse<br />

ante o homem (...) Queremos destruir<br />

os museus, as bibliotecas,, as academias<br />

de todo o tipo, e combater o moralismo,<br />

o feminismo, e to<strong>da</strong> vileza oportunista e<br />

utilitária. Bem-vindos os bons incendiários<br />

com os seus dedos carbonizados! Ei-los!<br />

... Aqui! ... Ponham fogo nas estantes <strong>da</strong>s<br />

bibliotecas! ... Desviem o curso dos canais<br />

para inun<strong>da</strong>r os museus! ... Deixem as<br />

gloriosas telas flutuar á deriva! Empunhem<br />

as picaretas, os machados, os martelos<br />

e destruam sem pie<strong>da</strong>de as ci<strong>da</strong>des<br />

venera<strong>da</strong>s! (...) A arte, de fato, não pode ser<br />

senão violência, cruel<strong>da</strong>de e injustiça.<br />

1918, O Manifesto DADA de<br />

Tristan Tzara:<br />

Eu lhes garanto: não há começo,<br />

e nós não estamos com medo; nós não<br />

somos sentimentais. Nós somos como<br />

um vendo irado que arranca as roupas<br />

de multidões e orações, nós estamos<br />

preparando o grande espetáculo do<br />

desastre, conflagração e decomposição.<br />

Preparando para por um fim no luto,<br />

e para substituir lágrimas por sirenes<br />

espalhando-se de um continente ao outro<br />

(...) Eu destruo as gavetas do cérebro,<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

e aquelas <strong>da</strong> organização social: para<br />

semear desmoralização em todo lugar,<br />

e atirar a mão do céu no inferno, os<br />

olhos do inferno no céu, para reinstalar<br />

a ro<strong>da</strong> fértil de um circo universal nos<br />

Poderes <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, e a fantasia de<br />

ca<strong>da</strong> indivíduo.<br />

1933, Antonin Artaud, em Teatro e<br />

Cruel<strong>da</strong>de:<br />

O teatro <strong>da</strong> Cruel<strong>da</strong>de propõe <strong>da</strong>r<br />

espaço a um espetáculo de massa;<br />

buscar na agitação de tremen<strong>da</strong>s massas,<br />

convulsiona<strong>da</strong>s e arremessa<strong>da</strong>s entre si,<br />

um pouco <strong>da</strong>quela poesia de festivais e<br />

multidões quando, to<strong>da</strong>s tão raras hoje<br />

em dia, o povo espalhava-se nas ruas.<br />

O teatro deve nos <strong>da</strong>r tudo que está no<br />

crime, amor, guerra, ou loucura, se ele<br />

quer recuperar sua necessi<strong>da</strong>de (...). Da<br />

mesma maneira que nossos sonhos tem<br />

um efeito sobre nós e a reali<strong>da</strong>de tem<br />

um efeito sobre nossos sonhos, também<br />

nós acreditamos que as imagens do<br />

pensamento podem ser identifica<strong>da</strong>s<br />

com um sonho, o qual será eficaz na<br />

medi<strong>da</strong> em que poderá ser projetado<br />

com a necessária violência. (...) Daí este<br />

apelo para a cruel<strong>da</strong>de e o terror (...) em<br />

uma vasta escala.<br />

1938, do Manifesto de Leon Trotsky e<br />

Andre Breton: Para uma Arte Livre e<br />

Revolucionária<br />

A ver<strong>da</strong>deira arte não se contenta<br />

em representar variações sobre modelos<br />

prontos, mas sim insiste na expressão<br />

de necessi<strong>da</strong>des internas do homem<br />

e <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de de seu tempo – a<br />

ver<strong>da</strong>deira arte é incapaz de não ser<br />

revolucionária, de não aspirar a uma<br />

completa e radical reconstrução <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de. (...) Nós acreditamos que a<br />

tarefa suprema <strong>da</strong> arte na nossa época<br />

é tomar <strong>parte</strong> ativa e consciente na<br />

preparação <strong>da</strong> revolução.<br />

Pontos e práticas: manifestos. Nostalgias futuras 167


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

168<br />

1948, <strong>da</strong> Recusa Global dos Artistas<br />

de Quebec<br />

A religião de Cristo dominou a mundo.<br />

Vejam no que se transformou: fés irmãs<br />

já começaram a explorar o outro. (...) a<br />

civilização cristã está chegando ao fim. (...)<br />

O declínio <strong>da</strong> Cristan<strong>da</strong>de vai botar abaixo<br />

toas as pessoas e to<strong>da</strong>s as classes que ela<br />

influenciou, <strong>da</strong> primeira à última, <strong>da</strong> mais<br />

alta à mais baixa. (...) Os ratos já estão fugindo<br />

de uma Europa que afun<strong>da</strong>, cruzando<br />

o Atlântico. Entretanto, eventos irão<br />

eventualmente ultrapassar os gananciosos,<br />

os glutões, os sibaritas, os imperturbáveis,<br />

os cegos e os surdos. Eles irão ser engulidos<br />

sem dó. (...) Nós precisamos abandonar os<br />

caminhos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de uma vez por<br />

to<strong>da</strong>s e nos libertarmos de seu espírito<br />

utilitarista. Não devemos neglicenciar<br />

voluntariamente nosso lado espiritual. (...)<br />

Nós assumimos inteira responsabili<strong>da</strong>de<br />

pelas consequências de nossa recusa.<br />

1960, do Manifesto Situacionista<br />

O quadro existente não poderá<br />

dominar a nova força humana<br />

que está aumentando junto com<br />

o desenvolvimento irresistível <strong>da</strong><br />

tecnologia e a insatisfação de seus<br />

possíveis usos em nossa vi<strong>da</strong> social<br />

sem sentido. (...) A alienação e a<br />

opressão nesta socie<strong>da</strong>de não podem<br />

de distribuí<strong>da</strong>s entre uma série de<br />

variantes, mas somente rejeita<strong>da</strong>s em<br />

bloc por esta mesma socie<strong>da</strong>de. Todo<br />

progresso real foi claramente suspenso<br />

até a solução revolucionária <strong>da</strong> presente<br />

crise multiforme.<br />

1968, de Julian Beck, do Living Theatre<br />

Se nós vamos derrubar a estrutura,<br />

nós vamos ter que atacá-la por todos os<br />

lados, todos os 10 mil. (...) Como evitar<br />

o banho de sangue quando as forças<br />

<strong>da</strong> reação chegam com suas armas, sua<br />

polícia? A bonita revolução não violenta?<br />

Como? (...) Quando a revolução chega<br />

alguns liberais vão cair de uma maneira,<br />

alguns de outras. Desenho a linha do<br />

tempo. O show acaba. Fazer teatro para<br />

eles tem sua utili<strong>da</strong>de mas não irá fazer<br />

a revolução sem a qual to<strong>da</strong> a arte, e<br />

mágica e filosofia e religião e to<strong>da</strong>s as<br />

ciências e todos os avanços tecnológicos<br />

teriam sido na<strong>da</strong> mais do que espasmos<br />

de impulsos finais de um extinto<br />

monstruoso planeta.<br />

2006, do Manifesto Art Guerrilla<br />

Art Guerrilla é um projeto de arte<br />

aberto a todos os artistas ao redor do<br />

mundo que estão prontos para uma guerra<br />

de guerrilha de forma multidimensional.<br />

Esta guerra adquiriu um único objetivo:<br />

recriar a alma <strong>da</strong>s artes. Nós sabemos que<br />

este objetivo é indefinido; entretanto, se<br />

nós vivemos em uma época indefini<strong>da</strong>, se<br />

nossos inimigos usam armas indefini<strong>da</strong>s<br />

contra nós, é também nosso direito<br />

nos movermos em mares indefinidos e<br />

incertos. (...) Você é um membro cínico<br />

<strong>da</strong> academia? As pessoas criticam seus<br />

trabalhos de uma maneira estranha? Você<br />

vive na periferia do mundo (Ásia, Balcans,<br />

Leste Europeu, África, América do Sul);<br />

ou você vive nas periferias do centro<br />

(seja onde for)? Você é economicamente<br />

pobre, e, rico em imaginação? Você pensa<br />

ou imagina um tipo de liberação para<br />

a socie<strong>da</strong>de contemporânea? Você teve<br />

alguns problemas com as autori<strong>da</strong>des?<br />

(...) VIDA LONGA AO MOVIMENTO<br />

ART GUERRILLA! VIDA LONGA<br />

AOS ARTISTAS-GUERREIROS DO<br />

MOVIMENTO! NÓS VENCEREMOS!<br />

Juntos, estes manifestos, e outros<br />

similares, emitidos por artistas-chave e<br />

influentes teóricos, reiterados por mais<br />

de um século, clamam pela destruição <strong>da</strong><br />

ordem corrente e criação de uma nova<br />

ordem. Se eu fosse uma mente psicanalítica,<br />

eu poderia concluir que enrustido no<br />

coração de muito manifestos artísticos<br />

Richard Schechner


N° 16 | Junho de 2011<br />

está o desejo <strong>da</strong> morte. Politicamente, os<br />

manifestos são fantasias fláci<strong>da</strong>s de artistas<br />

impotentes? Ou eles definem o tom que leva<br />

<strong>da</strong> arte de vanguar<strong>da</strong> aos entretenimentos<br />

populares e ataques terroristas? Ou, ao<br />

contrário, alguns artistas admiram os atos<br />

assassinos-suici<strong>da</strong>s dos terroristas, a chama<br />

<strong>da</strong> raiva pura? Reconhecido que Artaud<br />

estipulou que ‘a imagem de um crime<br />

apresentado como requisito de condição<br />

teatral é algo infinitamente mais terrível<br />

para o espírito do que o mesmo crime<br />

cometido na reali<strong>da</strong>de’; e reconhecido<br />

também que a maioria dos artistas que<br />

escrevem manifestos não cometem a<br />

violência que eles advogam, nós precisamos<br />

reconhecer que as fronteiras entre o ‘real’ e<br />

o ‘virtual’ estão se dissolvendo, o teatral e<br />

o real se fundem: o performativo está a ser<br />

atualizado. Eu argumentei em outro lugar<br />

que o ataque de 11/09 no World Trade Center<br />

de New York foi uma performance, uma<br />

atualização Artaudiana de um espetáculo<br />

de cruel<strong>da</strong>de. Em sua própria forma<br />

horripilante, 11/09 – e outros ataques<br />

terroristas – são manifestos-em-ação: eles<br />

transmitem mensagens dinamicamente;<br />

eles assimilam intenção-e-ação.<br />

A chama<strong>da</strong> arte eleva<strong>da</strong> e a pop art<br />

se misturaram assim como as ‘notícias’<br />

se fundiram como entretenimento.<br />

Adicionalmente, pelo menos desde que<br />

Chris Burden pediu a um amigo que atirasse<br />

em seu braço (SHOOT, 1971), muitos artistas<br />

performáticos tem ferido a si próprios,<br />

aberto suas veias-como-arte, suspenso a si<br />

próprios em ganchos, esquartejado animais,<br />

e através de várias maneiras usaram<br />

violência real em artes. Rituais – relação<br />

próxima <strong>da</strong>s artes – incluem flagelação,<br />

cicatrizes, circuncisão, subincisão, e assim<br />

por diante. A cultura popular mostra seus<br />

tattoes, piercings, e cirurgias plásticas as<br />

quais, sejam quais forem seus significados<br />

psicológicos e sociológicos, decretam o<br />

desejo de ser belo e, paradoxalmente, ambos<br />

individualmente distinguem e sinalizam<br />

um pertencimento a uma comuni<strong>da</strong>de.<br />

Estetizando e ritualizando a violência,<br />

não como representação (como nas artes<br />

visuais, teatro ou outra mídia), mas como<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

ver<strong>da</strong>des reais apresenta<strong>da</strong>s no aqui e<br />

agora são tudo menos universais.<br />

Tudo isto sinaliza que escrever<br />

manifestos é supérfluo porque as ações,<br />

imediatamente mediatiza<strong>da</strong>s, são sua<br />

própria mensagem. O dictum de Marshall<br />

McLuhan, “o meio é a mensagem’,<br />

atingiu o topo. A mensagem é o ato; o<br />

manifesto não é escrito, é performado. O<br />

gênero de escrever manifestos está fora<br />

de mo<strong>da</strong>. E onde há escrita na tradição<br />

do manifesto, ela se revela como blogs,<br />

twitters, e semelhantes expressões digitais<br />

de ativi<strong>da</strong>des distribuí<strong>da</strong>s globalmente na<br />

rapidez e no pressionar de uma tecla de<br />

computador. Sim, este tipo de broadside<br />

digital é som e fúria, significando na<strong>da</strong> se<br />

não for, então, pelo menos a facili<strong>da</strong>de do<br />

e-scream e e-screed.<br />

Acompanhando a morte do manifesto,<br />

está o fim <strong>da</strong> esperança como gênero. Nas<br />

assim chama<strong>da</strong>s democracias um crescente<br />

número de pessoas está se voltando para<br />

o governo não simplesmente por falhar no<br />

cumprimento de suas promessas, mas como<br />

um sistema. Um declínio do percentual de<br />

pessoas vota; eleições são compra<strong>da</strong>s e<br />

vendi<strong>da</strong>s; o governo é ineficiente, venal,<br />

corrupto, aborrecido – ain<strong>da</strong> necessários,<br />

como roupa íntima. Deixando de lado as<br />

democracias, onde os déspotas subjugam,<br />

a confiança no governo é (exceto entre a<br />

elite no poder) está abaixo <strong>da</strong> negação: o<br />

governo é temido, evitado, uma criatura <strong>da</strong><br />

polícia/ou <strong>da</strong>s forças arma<strong>da</strong>s.<br />

To<strong>da</strong> esta negativi<strong>da</strong>de levou ao<br />

crescimento de uma chama<strong>da</strong> geral para<br />

a revolução? Realmente não. Em vez disso<br />

levou a um neo-liberalismo ascendente,<br />

um conjunto complexo de relacionamentos<br />

onde pessoas dependem ca<strong>da</strong> vez mais de<br />

corporações, grupos identitários, e outros<br />

‘guil<strong>da</strong>s’ (sob uma denominação ou outra)<br />

para prover comuni<strong>da</strong>de, serviços e um<br />

sentimento de pertencimento. Embora<br />

existam nação-estados ain<strong>da</strong> investidos de<br />

grande poder militar, suas bases econômica<br />

e sociais estão erodindo. O ‘poder real’<br />

está desviando para outro lugar, com os<br />

lobistas e corporações que compram e<br />

vendem governos, as juntas e Comitês<br />

Pontos e práticas: manifestos. Nostalgias futuras 169


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

170<br />

Centrais que falam por e através do Estado,<br />

que literalmente possuem o Estado. Um<br />

governo, no mundo, democrático ou<br />

representativo (ain<strong>da</strong>) não emergiu. Em<br />

artes, a avant garde foi desloca<strong>da</strong> pela nicheguard:<br />

ca<strong>da</strong> subconjunto de estilo associado<br />

com seus próprios desejos, nenhum<br />

realmente um avanço a partir de outros.<br />

Quem pode escrever um manifesto<br />

eficaz hoje? Não é tal empreendimento<br />

a sau<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quilo que uma vez foi uma<br />

nostalgia futura? A época de Thomas<br />

Jefferson, os Direitos do Homem, e Karl<br />

Marx passaram. Os manifestos eficazes<br />

de hoje não são screeds, mas ações. Alguns<br />

destes são positivos (<strong>da</strong> minha perspectiva)<br />

– o trabalho de teatros de ação social, o<br />

trabalho em prisões, as performances<br />

entre, com e para os despossuídos. Na<br />

reali<strong>da</strong>de, nestas arenas as ações – ações<br />

teatrais incluí<strong>da</strong>s – falam mais alto e mais<br />

afirmativamente do que manifestos.<br />

Mas podem, devem, novos manifestos<br />

ser escritos? Para quem, sobre o quê? O<br />

ímpeto subjacente por trás dos manifestos<br />

– por trás <strong>da</strong> época dos manifestos desde<br />

a Declaração pelo Manifesto Comunista<br />

até os screeds dos artistas que eu citei -<br />

é que um novo mundo está disponível<br />

somente se as injustiças do velho puderem<br />

ser suplanta<strong>da</strong>s. Talvez hoje isto esteja<br />

acontecendo, passo a passo. Mas, se for<br />

assim, não pelo meio <strong>da</strong> revolução, mas<br />

através de intrépidos pequenos passos. Os<br />

manifestos clássicos clamam por saltos,<br />

não passos. Eles são de autoria de pessoas<br />

que possuem uma clara visão do panorama<br />

geral – utópico ou apocalíptico. Eu não<br />

tenho tal visão. Você tem? Eu acredito que<br />

nós estamos num interregnum. O que era,<br />

não é mais; o que será, ain<strong>da</strong> não chegou.<br />

Richard Schechner


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Enffermeira Bottard [Fátima Lima]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Julia oliveira.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Resenha - Antônio José e o teatro do setecentos 171


N° 16 | Junho de 2011<br />

ANTÔNIo JoSÉ E o TEATRo Do<br />

SETECENToS<br />

Resenha<br />

JUNQUEIRA, Renata Soares; MAZZI, Maria Gloria<br />

Cusumano (Orgs.). O Teatro no Século XVIII: Presença de<br />

Antônio José <strong>da</strong> Silva, o Judeu. São Paulo: Editora Perspectiva,<br />

2008. (Coleção Estudos, 256).<br />

Nas lembranças aniversárias brasileiras de Antônio<br />

José <strong>da</strong> Silva, o ano de 2005 marca uma auspiciosa<br />

peripécia. O centenário de sua prisão e execução foi<br />

rememorado com a estreia <strong>da</strong> primeira tragédia do<br />

teatro brasileiro, Antônio José ou O Poeta e a Inquisição<br />

em 1838, segui<strong>da</strong> <strong>da</strong> publicação do texto de Gonçalves<br />

de Magalhães em 1839. Em 1940, a biografia de<br />

Cândido Jucá Filho, Antônio José, o Judeu, não deixou o<br />

bicentenário passar em branco. Registre-se, ain<strong>da</strong>, que<br />

em 1944 também o bicentenário <strong>da</strong> publicação de sua<br />

obra foi discretamente comemorado entre nós por uma<br />

reedição dos dois volumes de suas Óperas. Mas parece<br />

ter sido no ano de 2005 que, finalmente e trezentos<br />

anos depois, teve início a celebração, não mais <strong>da</strong><br />

morte, mas do nascimento do nosso comediógrafo.<br />

Merecem destaque pelo menos dois eventos: nesse<br />

ano foi realiza<strong>da</strong> a IV Semana de Estudos Teatrais <strong>da</strong><br />

UNESP em sua homenagem, e reedita<strong>da</strong> a tragédia de<br />

Gonçalves de Magalhães em volume preparado por<br />

Mariângela Alves de Lima. A publicação em 2008, pela<br />

editora Perspectiva, do livro O teatro no século XVIII:<br />

presença de Antônio José <strong>da</strong> Silva, o Judeu, organizado<br />

por Renata Soares Junqueira e Maria Gloria Cusumano<br />

Mazzi, traz a público o material apresentado na<br />

Semana de 2005.<br />

Iná Camargo Costa 1<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Resenha - Antônio José e o teatro do setecentos 173


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

174<br />

Sem desprezar o vil garrote mental<br />

a que estivemos submetidos nos três<br />

primeiros séculos de colonização pela<br />

censura a cargo <strong>da</strong> Igreja Católica Romana<br />

e seu “Santo Ofício”, é de se pensar se o<br />

peso <strong>da</strong> formação católica força<strong>da</strong>, que<br />

combina culpa e contrição diante <strong>da</strong> morte,<br />

também não terá impedido o nosso mundo<br />

acadêmico e teatral de se voltar há mais<br />

tempo para o que realmente interessa<br />

quando o assunto é comédia: a vi<strong>da</strong>, a<br />

obra, o humor e o espírito crítico. Mas<br />

deixemos o inventário dos necrológios para<br />

os especialistas e tratemos <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de<br />

representa<strong>da</strong> pelo livro em tela.<br />

Dividido em duas <strong>parte</strong>s, a primeira é<br />

uma espécie de prólogo com quatro ensaios<br />

que armam um amplo panorama <strong>da</strong>s nossas<br />

práticas teatrais nos tempos <strong>da</strong> colônia e<br />

<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças experimenta<strong>da</strong>s pelo teatro<br />

europeu dos séculos XVI a XIX, enquanto a<br />

segun<strong>da</strong> tem sete ensaios dedicados à vi<strong>da</strong><br />

e obra de Antônio José.<br />

As notícias de Ana Portich sobre os<br />

esforços <strong>da</strong> igreja contrarreformista para<br />

conter os avanços do teatro em diversos<br />

países europeus, a começar pela própria<br />

Itália, aju<strong>da</strong>m a entender pelo menos um<br />

aspecto <strong>da</strong> perseguição a Antonio José, mas<br />

contêm um alerta adicional sobre esta luta<br />

que atravessou o século XVIII, que não se<br />

restringia aos padres e que ain<strong>da</strong> não está<br />

encerra<strong>da</strong>: tratava-se, então como agora,<br />

de preservar e cultivar a dependência e<br />

a tutela mental. Exemplo aterrador de tal<br />

disposição encontra-se em texto do conde<br />

veneziano, Carlo Gozzi, concorrente de<br />

Goldoni na segun<strong>da</strong> metade do século: “não<br />

é tirania, mas caridosa e madura prudência<br />

acostumar os povos, tanto quanto possível,<br />

a essa simplici<strong>da</strong>de que de forma alguma<br />

denomino ignorância; ao contrário, tirano<br />

furioso é aquele que, tentando infundirlhe<br />

sofismas e uma perigosa soberba,<br />

os inquieta e os expõe aos funestos e<br />

necessários castigos de quem governa.”<br />

1 Professora aposenta<strong>da</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo,<br />

na Facul<strong>da</strong>de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas;<br />

Departamento de Teoria Literária e Literatura Compara<strong>da</strong>.<br />

Por “perigosa soberba” enten<strong>da</strong>-se aquilo<br />

que os iluministas chamavam “pensar por<br />

conta própria”, crime inafiançável para a<br />

Inquisição, pelo qual Antonio José pagou<br />

com a vi<strong>da</strong>. Quanto a “acostumar os povos<br />

à simplici<strong>da</strong>de”, é só examinar o papel que<br />

vem desempenhando a indústria cultural,<br />

esta legítima herdeira de Gozzi nos séculos<br />

XX e XXI.<br />

Roberta Barni mostra que, sem paradoxo<br />

especial, Gozzi defendia o programa de<br />

cultivar a humil<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas ovelhas,<br />

através do teatro, exumando aspectos do<br />

que tinha sido a experiência <strong>da</strong> commedia<br />

dell’arte, numa situação em que esta já não<br />

era ameaça para mais ninguém. Na altura,<br />

seus herdeiros em sentido próprio (e não<br />

meramente formal, nem usurpadores) já<br />

estavam combatendo, principalmente na<br />

França, para assegurar a vigência de suas<br />

bandeiras, que culminaram na Revolução<br />

de 1789, com Diderot à frente.<br />

Em direção oposta vem o balanço<br />

<strong>da</strong>s marchas e contramarchas do teatro<br />

setecentista francês, apresentado por<br />

Guacira Marcondes Machado. Inteiramente<br />

sintonizado com os balanços franceses de<br />

fins do século XIX, demonstra que o século<br />

XVIII pouco acrescentou às conquistas<br />

literárias de Racine e Molière, ambos do<br />

XVII. E, do naufrágio setecentista, junto<br />

com Beaumarchais, salva-se apenas<br />

Marivaux, o inimigo dos philosophes, que<br />

foi contemporâneo do nosso Antônio<br />

José. Para esta autora, o teatro francês só<br />

haveria de recuperar-se por ocasião do<br />

romantismo.<br />

O ensaio que abre o livro, de Antônio<br />

Donizeti Pires, também adota o romantismo<br />

como régua e compasso. Passando até mesmo<br />

pelo resgate <strong>da</strong>s encenações brasileiras<br />

<strong>da</strong> obra de Antônio José (por exemplo: no<br />

teatrinho de Chica <strong>da</strong> Silva, no Arraial do<br />

Tijuco), apresenta uma releitura <strong>da</strong>s teorias<br />

brasileiras sobre a situação do teatro (e <strong>da</strong><br />

literatura) por estas plagas nos tempos<br />

coloniais. Duas conclusões entrelaça<strong>da</strong>s se<br />

apresentam como proposta para debate.<br />

A principal é que na segun<strong>da</strong> metade<br />

do século XVIII já estava configurado o<br />

Iná Camargo Costa


N° 16 | Junho de 2011<br />

sistema teatral brasileiro e, apesar de serem<br />

poucos os registros, segue-se que a nossa<br />

diferença em relação ao sistema europeu<br />

também já estava posta: trata-se <strong>da</strong> maneira<br />

especial de misturar tudo, resultante <strong>da</strong><br />

devoração antropofágica que no século XX<br />

foi transforma<strong>da</strong> em escola, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />

nosso modernista Oswald de Andrade.<br />

Os ensaios de J.Guinsburg e Alberto<br />

Dines desenvolvem a mesma ideia em<br />

abor<strong>da</strong>gens diferentes, a saber: a sentença<br />

de heresia e apostasia aplica<strong>da</strong> ao nosso<br />

comediógrafo esconde uma covardia<br />

adicional <strong>da</strong> Inquisição. Evidentemente<br />

tratou-se de calar uma voz de peralta e<br />

gozador que obstina<strong>da</strong>mente expunha,<br />

carregando nas tintas cômicas, a uma esfera<br />

pública (burguesa) – mesmo que reduzi<strong>da</strong><br />

e confina<strong>da</strong> pela censura – informações que<br />

a “boa socie<strong>da</strong>de” (aristocrática) estava<br />

cansa<strong>da</strong> de conhecer: a violência dos<br />

cárceres do Santo Ofício, a parciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

“justiça”, a incontinência sexual do rei e de<br />

suas favoritas, a parlapatice de nobres e<br />

intelectuais e assim por diante.<br />

Todos os demais ensaios são dedicados<br />

a diferentes aspectos <strong>da</strong>s comédias do<br />

nosso peralta: Francisco Maciel Silveira, ele<br />

mesmo parodiando o recurso à “questão<br />

bizantina”, trata <strong>da</strong>s condições materiais de<br />

produção do teatrinho de bonifrates para<br />

o qual Antônio José escrevia, assim como<br />

do interesse pela publicação de suas peças;<br />

Patrícia <strong>da</strong> Silva Cardoso, sem esquecer<br />

<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de vigia<strong>da</strong> de que desfrutou o<br />

comediógrafo, joga luz sobre os horrores<br />

que as comédias encobrem; Flávia Maria<br />

Corradin, centrando-se no exame do<br />

Anfitrião, traça a genealogia do tema desde<br />

a mitologia grega e seu possível primeiro<br />

tratamento por Plauto para chegar à<br />

originali<strong>da</strong>de (muito lusitana e lisboeta)<br />

de Antônio José; Maria João Brilhante dá<br />

preciosas notícias de duas encenações em<br />

2004 de comédias deste autor, que em<br />

Portugal é considerado um clássico: uma<br />

com atores e outra com atores, bonecos e<br />

atores-bonecos.<br />

Encerrando os trabalhos, Paulo Roberto<br />

Pereira traz uma notícia importante para<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

dimensionar o quanto ain<strong>da</strong> temos que<br />

esperar <strong>da</strong>s pesquisas para chegarmos a<br />

uma ideia mais aproxima<strong>da</strong> do que foi<br />

a experiência teatral de Antônio José.<br />

Embora designa<strong>da</strong>s como óperas, só muito<br />

recentemente (anos 40 do século XX) os<br />

especialistas descobriram as partituras <strong>da</strong>s<br />

suas comédias. Isto significa que, salvo<br />

pelas apresentações do século XVIII, sempre<br />

foram considerados apenas os textos para<br />

avaliar a importância de Antônio José.<br />

Agora que já estão disponíveis algumas<br />

<strong>da</strong>s partituras, e que já se conhece a sua<br />

autoria (padre Antônio Teixeira), Paulo<br />

Roberto Pereira tem material para afirmar<br />

que, com Antônio José, o teatro português<br />

explorava o mesmo terreno que John Gay<br />

vinha explorando desde 1728 na Inglaterra,<br />

com sua Ópera do mendigo, e que Mozart,<br />

no império austríaco, viria a explorar com<br />

obras como A flauta mágica (1791). Diante<br />

de tais informações e <strong>da</strong>s que Maria João<br />

Brilhante já nos traz sobre os experimentos<br />

portugueses (um dos espetáculos por ela<br />

comentados usou até uma gravação de Only<br />

you para <strong>da</strong>r conta do espectro musical,<br />

evidentemente radicalizando a pândega),<br />

na<strong>da</strong> nos impede de esperar que, mais<br />

dia, menos dia, apareça uma dupla como<br />

Brecht e Weill para fazer com qualquer<br />

<strong>da</strong>s óperas de Antônio José o mesmo que<br />

os alemães fizeram com a ópera de John<br />

Gay. Meu voto vai para Guerras do alecrim<br />

e manjerona, para homenagear o fino olfato<br />

de Semicúpio, que reage mal ao cheiro <strong>da</strong><br />

procissão de ramos.<br />

Resenha - Antônio José e o teatro do setecentos 175


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Paul [Guilherme Rótulo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Entrevista - Josette Féral 177


N° 16 | Junho de 2011<br />

Foto: Nathalie St Pierre<br />

Na conferência, a autora questionou<br />

os limites éticos e estéticos dessa<br />

exploração, além de discutir seus efeitos<br />

sobre o público. Como exemplo, utilizou<br />

três trabalhos: Rwan<strong>da</strong> 94 (2000), do Le<br />

Groupov;3 La Batalla de Chile (1979),<br />

dirigido por Patricio Guzmán4 e Theatre of<br />

the World (1993), de Huang Yong Ping. 5<br />

Enquanto o primeiro é um espetáculo<br />

teatral que explora, no vídeo, uma cena de<br />

morte durante o genocídio ocorrido em<br />

Entrevista<br />

Josette Féral - Professora e pesquisadora teatral<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Julia Guimarães 1 e<br />

Leandro Silva Acácio 2<br />

Conheci<strong>da</strong> por seus estudos sobre<br />

os conceitos de teatrali<strong>da</strong>de e<br />

performativi<strong>da</strong>de, a pesquisadora<br />

franco-canadense Josette<br />

Féral, esteve em São Paulo em<br />

novembro do ano passado (2010),<br />

durante o VI Congresso <strong>da</strong><br />

ABRACE (Associação Brasileira<br />

de Pesquisa e Pós-Graduação<br />

em Artes Cênicas), para realizar<br />

a conferência O Real na Arte: a<br />

Estética do Choque. Professora<br />

do Departamento de Teatro <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de Québec, em<br />

Montreal, autora e organizadora<br />

de diversos livros e artigos, Féral<br />

discutiu a presença do real na<br />

arte contemporânea, com recorte<br />

em obras artísticas que exploram<br />

especificamente o instante<br />

<strong>da</strong> morte no interior <strong>da</strong>s<br />

próprias criações.<br />

Ruan<strong>da</strong>, na África, La Batalla de Chile é<br />

um documentário sobre o golpe contra o<br />

presidente Salvador Allende, que resultou<br />

na ascensão de Pinochet. Nele, o cameraman<br />

argentino Leonardo Henrichsen filma sua<br />

própria morte, ao levar um tiro enquanto<br />

registrava cenas do golpe. Já o trabalho<br />

de Ping exibe um grande viveiro onde<br />

escorpiões, centopeias, lagartixas e pequenas<br />

cobras são coloca<strong>da</strong>s num mesmo espaço e<br />

ali iniciam um duelo com mortes.<br />

Entrevista - Josette Féral 179


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

180<br />

A entrevista com Josette Féral<br />

ocorreu em São Paulo, no dia seguinte<br />

ao de sua conferência, em dois espaços<br />

distintos: no restaurante do hotel onde<br />

estava hospe<strong>da</strong><strong>da</strong> e na cantina <strong>da</strong> UNESP<br />

(Universi<strong>da</strong>de Estadual Paulista), onde<br />

ocorreu o congresso. Entre um café e outro,<br />

a pesquisadora partilhou suas inquietações<br />

atuais sobre o teatro contemporâneo ao<br />

aprofun<strong>da</strong>r os tópicos levantados na<br />

conferência, em entrevista traduzi<strong>da</strong> do<br />

francês ao português pelos pesquisadores<br />

teatrais Alexandre Pieroni Calado e<br />

Alice. Sua primeira obra traduzi<strong>da</strong> para<br />

o português acaba de ser publica<strong>da</strong>: o<br />

livro Encontros com Ariane Mnouchkine<br />

– Erguendo um Monumento ao Efêmero<br />

(Ed. SENAC São Paulo).<br />

O que te levou a querer estu<strong>da</strong>r o<br />

conceito <strong>da</strong> estética do choque?<br />

O que me interessava, inicialmente,<br />

era analisar a emergência do real no teatro.<br />

E, como falei na conferência, isso é algo<br />

bem frequente no teatro atual. Existem<br />

diferentes manifestações do real em<br />

cena, mas penso que há uma forma dessa<br />

aparição que traz um problema, que é<br />

quando se mata alguém, quando se trata <strong>da</strong><br />

questão <strong>da</strong> morte. Recebi um pedido para<br />

trabalhar sobre o espetacular com relação<br />

aos atentados de 11 de Setembro e o que<br />

me interessava era o discurso que acabou<br />

sendo criado em volta dos atentados. Na<br />

última vez que vim a São Paulo, tive uma<br />

conversa com Richard Schechner 6 por<br />

skype e ele havia descoberto que a arte<br />

1 Julia Guimarães é jornalista e mestran<strong>da</strong> em Artes Cênicas<br />

pela Escola de Belas Artes <strong>da</strong> UFMG.<br />

2 Leandro <strong>da</strong> Silva Acácio é ator e mestrando em Artes<br />

Cênicas pela Escola de Belas Artes <strong>da</strong> UFMG<br />

3 Le Groupov: coletivo de artistas de diferentes áreas – teatro,<br />

vídeo, música etc – e nacionali<strong>da</strong>des fun<strong>da</strong>do em 1980 pelo<br />

francês Jacques Delcuvellerie.<br />

4 Patricio Guzman: documentarista chileno.<br />

5 Huang Yong Ping (1954): artista visual francês de origem<br />

chinesa. o trabalho de Yong Ping combina várias linguagens<br />

oriun<strong>da</strong>s de diferentes culturas. Dentre suas várias<br />

influências, é possível destacar o Movimento Da<strong>da</strong>ísta e a<br />

numerologia chinesa.<br />

poderia ter um lado negativo, poderia ser<br />

má. Para mim, era interessante, mas bem<br />

surpreendente essa frase. E eu também<br />

conhecia o trabalho do Huang Yong Ping e<br />

ele me incomo<strong>da</strong>va. Então, decidi trabalhar<br />

nos limites do que eu, como espectadora,<br />

podia aceitar. E me perguntava como o<br />

espectador podia legitimar essas formas<br />

‘más’ de arte. Perguntava-me se to<strong>da</strong>s<br />

as artes, por serem artes, se tornavam<br />

legítimas, e não estava certa disso. E penso<br />

que hoje existem questões de ética que se<br />

colocam nessa discussão <strong>da</strong> arte.<br />

Na palestra, você falou dessa dimensão<br />

obscena que existe na exploração <strong>da</strong><br />

violência real na arte e que coloca em<br />

xeque justamente questões morais e éticas.<br />

No entanto, existem artistas que exploram<br />

a violência real em cena até mesmo como<br />

um ato político. Como você percebe essa<br />

contradição?<br />

Eu não pensei ain<strong>da</strong> na violência em si,<br />

não fiz um trabalho sobre a violência, mas<br />

sobre a transformação do evento violento<br />

real colocado na cena. Eu me pergunto: em<br />

que momento temos o direito de utilizar<br />

as catástrofes humanas de forma artística,<br />

esquecendo as mortes? A afirmação de<br />

Stockhausen '' de que o 11 de Setembro<br />

seria “a mais bela obra de arte” causou esse<br />

problema. A questão não é a violência em<br />

si, porque ela existe tanto na cena quanto<br />

na vi<strong>da</strong>. Mas quando temos o direito de<br />

usar a violência real para transformá-la em<br />

obra de arte? Esse é o problema. Porque<br />

os artistas sempre utilizaram a violência<br />

em cena. Na própria performance, a<br />

violência já apareceu tanto em relação aos<br />

próprios performers quanto em relação a<br />

outras coisas. Trabalhos de muitos artistas<br />

têm bastante sangue. E quando falo de<br />

violência na cena, me refiro a eventos reais,<br />

de quando alguém morre na sua frente.<br />

6 Richard Schechner é pesquisador, professor <strong>da</strong> New York<br />

University e diretor de teatro. Fun<strong>da</strong>dor e editor <strong>da</strong> revista<br />

The Drama Review, publica<strong>da</strong> pela NYU.<br />

7 Karlheinz Stockhausen (1929–2007). Compositor alemão de<br />

música contemporânea. Foi colega de Pierre Boulez e ambos<br />

estu<strong>da</strong>ram com o compositor e organista olivier Messiaen.<br />

Julia Guimarães e Leandro Silva Acácio


N° 16 | Junho de 2011<br />

Mas nos exemplos que mostrei na palestra,<br />

existem diferenças entre os dois primeiros<br />

e o terceiro. Os dois primeiros não colocam<br />

para mim problemas éticos e estéticos. Eles<br />

são trazidos de forma respeitosa. Já o terceiro<br />

(de Ping), que não tem especificamente<br />

a ver com o ser humano, me causa uma<br />

repulsa. Ele coloca questões éticas para<br />

mim, mesmo sendo um trabalho com<br />

animais, porque parece completamente<br />

gratuito. Eu entendo qual foi o argumento<br />

do artista, mas acho bem extremo ter que<br />

passar pelo viveiro (onde ficam os bichos<br />

na obra de Ping) para concretizar esse<br />

pensamento. Mas não<br />

é sobre a violência que<br />

eu trabalho, eu trabalho<br />

sobre a estética. Sobre o<br />

que entra ou não nesse<br />

terreno e como reagimos<br />

quanto a isso.<br />

Alguns autores<br />

brasileiros relacionam<br />

a presença do real na<br />

cena contemporânea<br />

a uma incapaci<strong>da</strong>de<br />

de simbolizar eventos<br />

que seriam por demais<br />

traumáticos. Por isso<br />

deslocam fragmentos<br />

desse real em estado<br />

bruto para a cena. Você<br />

percebe essa relação em seu estudo sobre<br />

a estética do choque?<br />

Eu não estou certa se seria por uma<br />

incapaci<strong>da</strong>de de simbolizar. Acho que<br />

trazer elementos brutos na cena causa<br />

sempre um impacto muito grande para o<br />

espectador. Porque estamos tão habituados<br />

à violência que talvez a violência simbólica<br />

não faça mais efeito sobre nós, em alguns<br />

casos. Mas também acho que a violência<br />

real traz uma sensação diferente porque<br />

a sentimos no próprio corpo. Talvez seja<br />

a manifestação do nosso individualismo<br />

engrandecido. Porque ela nos faz reagir<br />

por intermédio do nosso corpo e não do<br />

nosso intelecto. E o corpo é o que a gente<br />

tem de mais individual, de mais pessoal.<br />

A questão não é<br />

a violência em si,<br />

porque ela existe<br />

tanto na cena<br />

quanto na vi<strong>da</strong>.<br />

Mas quando temos<br />

o direito de usar a<br />

violência real para<br />

transformá-la em<br />

obra de arte?<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

A violência simbólica cria uma ligação<br />

coletiva, mas a violência real manifesta<strong>da</strong><br />

na cena entra na gente. Ela não se divide,<br />

nós a recebemos individualmente. Pode<br />

ser uma possível interpretação, não sei.<br />

Na palestra, você fala de uma leitura<br />

dos diferentes pontos <strong>da</strong> natureza do<br />

olhar sobre eventos extremos, que<br />

estão no livro do Paul Ardenne. 8 Na sua<br />

opinião, o que eles sinalizam em relação a<br />

essa recepção <strong>da</strong> estética do choque pelos<br />

espectadores?<br />

O interessante<br />

é perceber porque<br />

olhamos essas coisas. E<br />

o que a gente sente ao<br />

olhar, o que nos acor<strong>da</strong><br />

em si. Vou voltar aos<br />

princípios do Paul<br />

Ardenne. Um deles é<br />

que a gente gosta de<br />

olhar aquilo a que não<br />

estamos acostumados.<br />

O segundo está ligado<br />

à exteriori<strong>da</strong>de. É<br />

muito importante que<br />

a gente sempre fique<br />

fora do evento. Nos<br />

dois exemplos que uso<br />

na conferência, não<br />

estamos no Chile, nem<br />

em outro lugar. O impacto desse evento<br />

é ain<strong>da</strong> mais forte, porque estamos<br />

na segurança, num lugar tranquilo,<br />

enquanto os outros estão na insegurança.<br />

A gente não precisa salvar nossa pele. Se<br />

estivéssemos com os militares, estaríamos<br />

pensando em fugir, em nos salvar, e não<br />

na morte do cameraman. O terceiro é<br />

o desejo de ver eventos extremos, um<br />

pouco como no circo romano, eu penso.<br />

O impactante nos exemplos que dei é que<br />

eles tocam a morte. É a diferença que faz<br />

Ardenne sobre os eventos extremos e os<br />

8 Paul Ardenne (1956) é professor de história na Universi<strong>da</strong>de<br />

de Amiens, e é também crítico de arte e curador no campo<br />

<strong>da</strong> arte contemporânea. Autor de vários ensaios, tais como<br />

Extrême: esthétiques de la limite dépassée, Flammarion, 2006.<br />

Entrevista - Josette Féral 181


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

182<br />

superlativos. Os últimos seriam eventos<br />

impressionantes, eles nos tocam, mas não<br />

<strong>da</strong> mesma forma que os eventos extremos,<br />

como no espetáculo “Inferno” de<br />

Castelucci, 9 que mostrei na palestra. Você<br />

olha o alpinista e acha que ele vai parar de<br />

subir com 5m de altura, mas ele continua.<br />

Isso é superlativo, porque está fora do<br />

nosso habitual e nos deixa impressionado.<br />

Também existe o superlativo de rejeição,<br />

como em um espetáculo que o Castelucci<br />

coloca um contorcionista cujo corpo se<br />

desarticula em cena.<br />

Na palestra, você diferencia a<br />

presença do real nas performances dos<br />

anos 1960 com a de agora, que estaria<br />

mais liga<strong>da</strong> à interrupção <strong>da</strong> ficção, de<br />

quebra com o contrato inicial estabelecido<br />

com o público. O que mu<strong>da</strong> entre uma<br />

experiência e outra no que se refere aos<br />

efeitos dessa presença?<br />

O caminho <strong>da</strong><br />

performance era pela<br />

estética e pela política,<br />

mas bem mais pela<br />

estética. Ela procurava<br />

tirar a arte dos lugares<br />

habituais de consumo, dos<br />

circuitos institucionais.<br />

Ela modificava<br />

profun<strong>da</strong>mente a<br />

natureza do produto<br />

artístico, insistia no<br />

aspecto processual e não<br />

no aspecto produto. O<br />

que os artistas mostravam<br />

não era o produto final<br />

e, sim, o processo. E ela<br />

procurava reinstituir a<br />

presença. Era importante essa procura <strong>da</strong><br />

presença porque a performance buscava<br />

lutar contra a representação. E fazer do<br />

espetáculo uma presentação. É nesse sentido<br />

que ela era política. As formas teatrais de<br />

hoje não têm o mesmo propósito de lutar<br />

contra as representações. Já estamos dentro<br />

9 Romeo Castelucci, Diretor italiano de teatro experimental.<br />

Dirigiu Hey Girl! (2006) e Inferno (2009), dentre outros.<br />

As formas teatrais<br />

de hoje não têm o<br />

mesmo propósito<br />

de lutar contra as<br />

representações.<br />

Já estamos dentro<br />

disso, não é mais<br />

uma luta, faz<br />

<strong>parte</strong>.<br />

disso, não é mais uma luta, faz <strong>parte</strong>. Porque<br />

já adotamos a ideia de que podemos ter uma<br />

presença e não uma representação cênica.<br />

Então, o fato de colocar hoje o real em cena<br />

surge para provocar o espectador, suscitálo<br />

a ver o espetáculo de outro jeito, a reagir<br />

de outra forma. Para resumir, diria que se a<br />

performance estava centra<strong>da</strong> no performer,<br />

o teatro hoje está voltado para o espectador.<br />

Em descobrir como acor<strong>da</strong>r um espectador<br />

que está dormindo to<strong>da</strong> hora. Não é apenas<br />

o intuito de fazê-lo reagir só pelo prazer,<br />

mas fazê-lo reagir de forma inteligente, não<br />

só pela provocação. Claro que ain<strong>da</strong> existem<br />

espetáculos que trabalham somente com<br />

essa vontade de provocação. Vi em Nova<br />

York o Força Bruta 10 [Fuerza Bruta], que é<br />

um espetáculo corporal meio Broadway,<br />

ele passa pelo corporal o tempo todo,<br />

pelo sensorial, mas não é contextualizado,<br />

enquadrado, não é interessante. Já em<br />

outros casos, existe uma contextualização,<br />

uma simbolização do<br />

que está colocado em<br />

cena. Porque se o real é<br />

mostrado de qualquer<br />

jeito, ele deixa de ser<br />

interessante.<br />

E o que seria esse<br />

enquadramento?<br />

Tem que haver<br />

uma dramaturgia, um<br />

contexto para que traga<br />

esse senso de estética.<br />

Por exemplo, a diferença<br />

entre o que vemos na<br />

Internet e num espetáculo<br />

é que na Internet não há<br />

o enquadramento. A<br />

violência, para ter algum sentido, precisa<br />

desse enquadramento, porque se for<br />

simplesmente coloca<strong>da</strong> de forma bruta,<br />

se torna apenas soma, não faz diferença.<br />

Teve um caso que me impressionou de<br />

dois jovens adolescentes <strong>da</strong> Inglaterra que<br />

martirizaram um menino de cinco anos.<br />

10 Fuerza Bruta/Nova York. Ver http://www.fuerzabrutanyc.<br />

com/about.html<br />

Julia Guimarães e Leandro Silva Acácio


N° 16 | Junho de 2011<br />

Mas o que posso fazer com isso do ponto<br />

de vista simbólico? Essa é a violência<br />

bruta, existem vários exemplos disso. Para<br />

resumir, voltando ao domínio <strong>da</strong> estética,<br />

a violência tem que ser enquadra<strong>da</strong> de<br />

algum jeito para ter um sentido ou para nós<br />

conseguirmos <strong>da</strong>r algum sentido a ela. Para<br />

ela poder ser gerencia<strong>da</strong> intelectualmente,<br />

senão estamos paralisados, não podemos<br />

gerar na<strong>da</strong> com isso.<br />

Você diz que o real hoje aparece<br />

na arte como uma tentativa de acor<strong>da</strong>r<br />

o espectador, mas que a presença <strong>da</strong><br />

violência em cena tem que ser enquadra<strong>da</strong><br />

simbolicamente para fazer sentido. Ela<br />

seria então uma forma atualiza<strong>da</strong> de<br />

despertar o senso crítico diante do que o<br />

público vê?<br />

Sim, com certeza, mas talvez não seja<br />

isso o que aconteça. Porque é uma violência<br />

tautológica. A gente invoca a violência<br />

pela violência, um pouco como acontece<br />

na vi<strong>da</strong>. Ela não provoca o espírito crítico<br />

do espectador. Só provoca uma reação<br />

sensorial. De rejeição ou de desgosto,<br />

mas não provoca uma reação crítica no<br />

espectador.<br />

Mesmo se estiver enquadra<strong>da</strong>?<br />

Para você despertar esse senso crítico,<br />

você precisa ter outro pensamento por cima<br />

disso e não somente evocar a violência<br />

pela violência na cena. Porque a violência<br />

corporal está limita<strong>da</strong> pela imagem que<br />

a gente projeta. Sendo que a violência<br />

evoca<strong>da</strong> pela dramaturgia permite mais<br />

espaço de reflexão, traz vantagens a essa<br />

reflexão. Porque quando mostramos<br />

pessoas sangrando, a violência bruta, o<br />

que você está expressando além do ato<br />

por ele mesmo? Nesse caso, tudo o que<br />

o espetáculo fala é que existe violência.<br />

Então é bem limitado. A coisa mais<br />

importante no teatro é a função metafórica.<br />

E aí que o espectador intervém. É aí que<br />

a inteligência do espectador é solicita<strong>da</strong>.<br />

E, nos espetáculos de violência bruta, ela<br />

não é solicita<strong>da</strong>. Não estamos no domínio<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

metafórico, estamos na reali<strong>da</strong>de. Mas a<br />

reali<strong>da</strong>de só é interessante quando está<br />

enquadra<strong>da</strong> e explica<strong>da</strong>. É por isso que os<br />

espetáculos de violência neles mesmos não<br />

me interessam. O que é interessante, como<br />

nos dois primeiros exemplos que dei, é o<br />

que envolve a cena, como isso é fechado.<br />

Voltando ao 11 de Setembro, o que me<br />

impressiona na fala do Stockhausen é<br />

o desaparecimento <strong>da</strong>s mortes que os<br />

atentados causaram.<br />

No final <strong>da</strong> palestra, você relaciona<br />

a fruição traumática com a catarse grega,<br />

a partir do livro de Paul Ardenne. Qual<br />

seria o elo entre uma coisa e outra e até<br />

que ponto ela cria certa alienação, como<br />

Brecht falava?<br />

Acho que deve haver esse<br />

distanciamento, é o que falo do performer,<br />

se você está num espetáculo que é só o real,<br />

você está lá e tem que ter essa visão de fora<br />

para ficar interessante. Você tem que ter<br />

momentos de real e de ficção, esse vai-evem<br />

é que faz o espetáculo ser bom, abrir o<br />

pensamento. A teatrali<strong>da</strong>de vem <strong>da</strong> divisão<br />

entre o espaço cotidiano e o espaço <strong>da</strong> cena.<br />

Dentro do espaço cênico também tem uma<br />

divisão, sobre o que é real material e o que<br />

é criado na cena. E o olhar do espectador<br />

sempre faz i<strong>da</strong> e volta – como uma agulha –<br />

entre o real e a ficção. Ou o espaço cotidiano<br />

e o espaço cênico. O olhar é sempre duplo.<br />

E na violência de repente tudo fica chapado.<br />

Então você tem que sair dessa violência para<br />

entendê-la. E é muito importante esse vai-evem,<br />

ele está na base <strong>da</strong> experiência estética<br />

e <strong>da</strong> experiência teatral também. Porque se<br />

não tem isso, ou você está no real ou está no<br />

delírio. Como nos hospitais psiquiátricos,<br />

onde pessoas pensam ser o personagem o<br />

tempo inteiro. A experiência teatral é você<br />

ver no ator tanto a experiência do real quanto<br />

a <strong>da</strong> criação, ao mesmo tempo. Quando<br />

você olha um ator, você vê, ao mesmo<br />

tempo, que ele é de carne e osso e que está<br />

numa ficção. Por exemplo, se decido subir<br />

em cima <strong>da</strong> mesa e fazer um personagem,<br />

você, como espectador, tem duas opções:<br />

ou pensa que estou fazendo teatro – mas se<br />

Entrevista - Josette Féral 183


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

184<br />

pensar vai saber que pode detectar tanto o<br />

lado real quanto o jogo – ou você não faz<br />

essa distinção e vai para hospital e você está<br />

no delírio. Então, o olhar do espectador tem<br />

que ter essa duali<strong>da</strong>de e frente à violência<br />

é a mesma coisa. Mas, de repente, um dos<br />

aspectos é mais importante: o real. É o<br />

que chamo também de performativi<strong>da</strong>de.<br />

Isso esmaga minha reação porque sou<br />

absorvi<strong>da</strong> na coisa. Mas, para poder pensar<br />

sobre ela, tenho que sair, por isso falo de<br />

enquadramento sempre.<br />

E é essa absorção que você relaciona<br />

com a catarse?<br />

Sim, mas a catarse não é só pela<br />

absorção, pode ser também pelo caminho <strong>da</strong><br />

reflexão. Ela permite gerar e compreender a<br />

violência, mas, ao mesmo tempo, expressar<br />

suas angústias.<br />

Ao falar sobre a espetacularização dos<br />

atentados de 11 de Setembro, você remete<br />

à ideia de socie<strong>da</strong>de do espetáculo, de Guy<br />

Debord. Alguns grupos de teatro buscam<br />

explorar o real na ficção justamente para<br />

contrapor essa ideia, realizar um caminho<br />

inverso. Que tipo de relação você vê entre<br />

o real na cena contemporânea e essa<br />

espetacularização <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de?<br />

Para começar, o real tem a sua lógica<br />

e o espetáculo tem outra. Quando se leva<br />

um para dentro do outro, há que se ter<br />

alguma atenção. Há duas formas de criar<br />

o espetáculo no real. Um exemplo para<br />

clarificar essa distinção: quando o grupo<br />

Royal de Luxe 11 faz espetáculos em um<br />

espaço público, ele importa o espetáculo<br />

para o real. A companhia teatraliza o<br />

real. Mas há uma enti<strong>da</strong>de teatral e<br />

uma enti<strong>da</strong>de social que são distintas.<br />

A companhia estabelece pontes entre<br />

essas duas. E é <strong>da</strong>í que nasce o prazer do<br />

espetáculo. Quando Guy Debord fala <strong>da</strong><br />

espetacularização do real, não é disso que<br />

11 Royal de Luxe é uma Companhia francesa de teatro de<br />

bonecos de rua. Eles foram fun<strong>da</strong>dos em 1979 por Jean<br />

Luc Courcoult.<br />

se trata e não é disso que quero dizer. O<br />

que eu disse é que temos um contato com o<br />

real por meio do espetáculo e <strong>da</strong> imagem.<br />

Tudo o que foi dito sobre o 11 de Setembro<br />

dá razão ao Guy Debord. Porque o fato<br />

foi tantas vezes foi interpretado como<br />

espetáculo que nos esquecemos que foi um<br />

evento real com pessoas, com morte, com<br />

drama. Apenas se falou <strong>da</strong> imagem e <strong>da</strong><br />

fotogenia do acontecimento. Baudrillard, 12<br />

que também foi citado na conferência, diz<br />

o mesmo que Stockhausen. Mas o tópico<br />

que me interessa nesse momento é falar<br />

<strong>da</strong> importação do real na cena.<br />

Por que?<br />

Eu acredito que esta é uma <strong>da</strong>s<br />

marcas do teatro performativo atual. E<br />

é uma questão de dosagem entre o real<br />

e o espetáculo. Podemos nos interessar<br />

sobre diferentes aspectos do real que<br />

foram por opção importados para a cena,<br />

mas, agora, me interesso principalmente<br />

por alguns aspectos particulares que têm<br />

sido usados para a cena, ligados à morte.<br />

Não sobre a morte de alguém, senão pelo<br />

contrario, o momento mesmo <strong>da</strong> morte,<br />

dessa passagem para a morte. Acredito<br />

que esse é um momento espetacular,<br />

realmente. Mas a questão talvez seja como<br />

tornar esse momento espetacular de um<br />

modo digno, para que não seja espetacular<br />

stritcto sensu. Para que não seja apenas o<br />

efeito espetacular aquilo que se procura.<br />

Para que não busque o “voyerismo” do<br />

espectador. Para que possamos ir além <strong>da</strong><br />

imagem. Talvez, contradizendo Debord,<br />

podemos dizer que o real espetacularizado<br />

importado para a cena é menos espetacular<br />

do que na vi<strong>da</strong>. Talvez seja a forma de<br />

reencontrar a intensi<strong>da</strong>de do evento.<br />

Porque, muitas vezes, nós vemos mortes<br />

e cenas de violência em documentários,<br />

mas quando esses materiais são colocados<br />

no espetáculo, eles reconquistam uma<br />

intensi<strong>da</strong>de real.<br />

12 Jean Baudrillard (1929 – 2007) foi um sociólogo e filósofo<br />

francês. Autor de Da Sedução (1979) e A troca impossível<br />

(1999), dentre outros.<br />

Julia Guimarães e Leandro Silva Acácio


N° 16 | Junho de 2011<br />

E como se dá esse processo de<br />

reconquistar uma intensi<strong>da</strong>de real?<br />

Alain Robbe-Grillet, um escritor do<br />

Novo Romance Francês e também crítico<br />

de arte, dizia que para redescobrirmos uma<br />

pintura, não podemos estar em um estado<br />

de inocência diante dessa obra, porque já<br />

nos habituamos a ver muitas reproduções.<br />

E, para descobrirmos uma autentici<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> pintura, é preciso retirar cama<strong>da</strong>s. Para<br />

isso, é preciso escrever muito sobre a obra<br />

para reencontrarmos esse primeiro contato.<br />

Isso é uma inversão de Guy Debord. É uma<br />

inversão de um certo pensamento comum,<br />

vamos dizer, essa expectativa de que<br />

podemos ter esse encontro primeiro com<br />

a Giocon<strong>da</strong> 13 quando<br />

finalmente formos ver o<br />

quadro no museu, apesar<br />

de termos tido inúmeros<br />

encontros anteriores<br />

em reproduções. E eu<br />

acredito, com afirma<br />

Debord, que a vi<strong>da</strong> tem<br />

sido espetaculariza<strong>da</strong><br />

mesmo. E que é preciso<br />

despir as cama<strong>da</strong>s<br />

do espetáculo para<br />

reencontrar a urgência<br />

do momento. E aquilo<br />

que faz o artista é<br />

precisamente procurar<br />

o coração do real, dessa<br />

urgência do momento.<br />

Alguns autores colocam a<br />

performativi<strong>da</strong>de como um elemento de<br />

aproximação entre arte e vi<strong>da</strong>, enquanto<br />

a teatrali<strong>da</strong>de teria função distanciadora.<br />

Você também percebe essa dicotomia?<br />

Completamente. A teatrali<strong>da</strong>de é um<br />

jogo de vai-e-vem entre o real e a ficção.<br />

Na performativi<strong>da</strong>de, nós aderimos à<br />

ação, estamos dentro dela. É semelhante<br />

a quando vemos um jogo esportivo, em<br />

A teatrali<strong>da</strong>de é<br />

um jogo de vaie-vem<br />

entre o<br />

real e a ficção. Na<br />

performativi<strong>da</strong>de,<br />

nós aderimos à<br />

ação, estamos<br />

dentro dela.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

que estamos no movimento, na ação,<br />

no acontecimento. Mas para conhecer<br />

a teatrali<strong>da</strong>de, é importante estarmos<br />

fora, pois é essa distância que permite o<br />

movimento de ir e vir. Winnicott 14 escreveu<br />

sobre o jogo. Ele explicou que, para a<br />

criança jogar, é necessário que ela crie um<br />

espaço diferente do real, do cotidiano,<br />

que ele chamou de espaço transicional.<br />

Quando a criança está dentro desse<br />

espaço, ela pode brincar. Quando está fora<br />

dele, está no real. Quando um ator leva o<br />

real para o jogo, ele não pode jogar. Ele<br />

tem que ver os dois espaços. Pois de forma<br />

contrária, ele está ou como ator no espaço<br />

transicional, ou só no exterior, no real. Mas,<br />

para manter sua posição de espectador,<br />

ele deve ser capaz de<br />

ficar nas duas posições.<br />

É por isso que quando<br />

há um acontecimento<br />

real no teatro, um<br />

acidente, ninguém faz<br />

na<strong>da</strong>. Se o ator cai, por<br />

exemplo, ou passa mal,<br />

ninguém faz na<strong>da</strong>,<br />

pois sabe que é ficção.<br />

Porque o espectador<br />

vê os dois: o real e o<br />

jogo. Se o espectador<br />

estivesse unicamente<br />

no real, quando visse<br />

o ator passar mal, ele<br />

interviria. Isso quer<br />

dizer que, para enxergar<br />

a teatrali<strong>da</strong>de, é preciso<br />

haver uma distância. E é por essa<br />

distância ficcional que não se intervêm.<br />

Mas, na performativi<strong>da</strong>de, o espectador<br />

está dentro. O espectador cola, adere<br />

ao acontecimento. E eu acredito que se<br />

existem muitos artistas hoje que utilizam<br />

o real em cena é para forçar o espectador a<br />

aderir ao espetáculo.<br />

13 La Giocon<strong>da</strong> ou, em francês, La Joconde, ou ain<strong>da</strong> Mona<br />

Lisa del Giocondo, é a mais notável e conheci<strong>da</strong> obra do pintor<br />

italiano Leonardo <strong>da</strong> Vinci. 14 Winnicott (1979/1983). Psicólogo inglês.<br />

Entrevista - Josette Féral 185


N° 16 | Junho de 2011<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Entrevista - Peta Tait 187


N° 16 | Junho de 2011<br />

Foto: La Trobe University Services<br />

de Anton Chekhov. As pesquisas de<br />

Tait têm sido publica<strong>da</strong>s por várias<br />

editoras de renome internacional, 3 como<br />

a Routledge, que lançou seu último livro<br />

Circus Bodies: Cultural Identity in Aerial<br />

Performance 4 (2005).<br />

Em 2002, Tait convidou-me para<br />

assistir a leitura dramática de Mesmerized<br />

(1990) peça teatral escrita em colaboração<br />

com outra autora, a australiana Matra<br />

Robertson. A leitura feita com habili<strong>da</strong>de<br />

por atores profissionais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />

Entrevista<br />

Peta Tait - Dramaturga<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong> 1<br />

(entrevista e tradução) e Júlia<br />

Oliveira 2 (tradução)<br />

Peta Tait é uma reconheci<strong>da</strong><br />

dramaturga australiana cujas<br />

peças teatrais são permea<strong>da</strong>s<br />

pelas teorias feministas e de<br />

gênero. Doutora em Teatro pela<br />

University of Technology, Sydney,<br />

Tait exerce atualmente o cargo<br />

de 'Professor', coordenando o<br />

Programa de Teatro e Drama<br />

<strong>da</strong> La Trobe University em<br />

Melbourne, Austrália. Professor<br />

Tait é internacionalmente<br />

respeita<strong>da</strong> por suas pesquisas<br />

nas áreas de teatro físico;<br />

performance; história do trapézio<br />

e em campos <strong>da</strong> filosofia e<br />

teoria social onde ela escreve<br />

sobre teorias <strong>da</strong>s emoções e<br />

representações teatrais e sociais;<br />

e sobre as teorias de atuação<br />

realista em relação a dramaturgia<br />

Melbourne, durou cerca de duas horas<br />

e já apontava alguns elementos de uma<br />

encenação como um figurino elaborado e<br />

algumas ações dos personagens. Os nove<br />

personagens dessa peça episódica giram<br />

em torno <strong>da</strong> protagonista Augustine,<br />

uma jovem interna<strong>da</strong> no hospital<br />

parisiense La Salpêtrière entre os anos de<br />

1875 e 1880, espaço e tempo em que o<br />

neurologista Doutor Jean-Martin Charcot<br />

realizava experimentos com hipnose<br />

para catalogar os ciclos e sintomas <strong>da</strong><br />

Entrevista - Peta Tait 189


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

190<br />

histeria. Assim, em Mesmerized, duas<br />

personali<strong>da</strong>des históricas são coloca<strong>da</strong>s<br />

como personagens no centro <strong>da</strong> trama,<br />

e isso nos instiga a refletir criticamente<br />

sobre a história <strong>da</strong> ciência e os discursos<br />

científicos sobre a mulher e o feminino.<br />

Mesmerized corresponde ao termo em<br />

português mesmerizar, cujos sinônimos<br />

são encantar, fascinar, hipnotizar. O<br />

termo surgiu a partir do nome do médico<br />

alemão Franz Anton Mesmer (1734-1815),<br />

que tornou-se polêmico nas socie<strong>da</strong>des<br />

médicas <strong>da</strong> Europa ao desenvolver as<br />

teorias do “magnetismo animal” e por<br />

utilizar a hipnose para curar pacientes<br />

histéricas. Assim, as autoras já no título<br />

fazem referências a história <strong>da</strong> histeria<br />

para retratar o contexto desta patologia na<br />

França no fim século XIX. Nessa entrevista,<br />

Tait explica como ela e Matra trabalharam<br />

a partir de documentação histórica para<br />

construir os personagens de suas peças,<br />

e reflete sobre teatro feminista e teorias<br />

de gênero. Somando-se a esse conteúdo<br />

mais informativo sobre o processo de<br />

construção do texto dramatúrgico, essa<br />

entrevista abre um espaço mais subjetivo e<br />

de diálogo entre Peta e eu. De um lado, a<br />

autora de Mesmerized, do outro eu como a<br />

1 Professora adjunta do Departamento de Artes Cênicas<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina. Diretora<br />

do espetáculo Retrato de Augustine [Mesmerized],<br />

contemplado com o prêmio Myriam Muniz (2008) FUNARTE/<br />

Petrobrás, que estreou no Teatro Álvaro de Carvalho, em<br />

Florianópolis em 2010.<br />

2 Graduan<strong>da</strong> do curso de Licenciatura e Bacharelado em<br />

Artes Cênicas (UDESC). Bolsista de Iniciação Científica do<br />

projeto de pesquisa “Poéticas Feministas: A re-invenção <strong>da</strong><br />

histeria no teatro feminista <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1990”, coordenado<br />

pela profa. Dra. Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong>.<br />

3 Alguns títulos <strong>da</strong> autora: Performing Emotions: Gender,<br />

Bodies, Spaces, in Chekhov’s Drama and Stanislavski’s<br />

Theatre. Aldershot: Ashgate (2002), Body Show/s: Australian<br />

Viewings of Live Performances. Amster<strong>da</strong>m: Rodopi (2000),<br />

Tait, P. & Schafer, E. (eds). Australian Women's Drama: Texts<br />

and Feminisms. Sydney: Currency Press, (1997), Converging<br />

Realities: Feminism in Australian Theatre. Sydney: Currency<br />

Press, 1994; Artigos: Performative Acts of Gendered Emotions<br />

and Bodies in Chekhov's The Cherry orchard. In: Modern<br />

Drama Vol XLIII (no. 1. 2000), Circus oz Larrikinism, Good<br />

Gender Sport? In: Contemporary Theatre Review 14/3, 2004.<br />

4 Circus Bodies: Cultural Identity in Aerial Performance.<br />

London: Routledge, 2005.<br />

tradutora <strong>da</strong> peça para o português e como<br />

a responsável pela concepção e direção<br />

de Mesmerized, intitula<strong>da</strong> no Brasil como<br />

Retrato de Augustine.<br />

Peta, o que levou você e Matra<br />

Robertson a escreverem uma peça teatral<br />

retratando um fato histórico?<br />

Nós escrevemos colaborativamente<br />

duas peças teatrais e eu gostaria de falar<br />

de nossas abor<strong>da</strong>gens em relação aos<br />

dois textos [Mesmerized, traduzi<strong>da</strong> como<br />

Retrato de Augustine e Breath by Breath,<br />

ain<strong>da</strong> sem traducão para o português].<br />

Nossas duas peças são tanto uma crítica<br />

`a própria história do teatro quanto <strong>da</strong><br />

história per se. Os personagens dessas<br />

peças foram figuras históricas, porém,<br />

nós apenas fizemos um esboço de suas<br />

vi<strong>da</strong>s. Não se trata simplesmente de<br />

reconfigurar biografias históricas para o<br />

palco. Nós temos consciência de como a<br />

forma teatral cria significados e como ela<br />

tem a sua própria trajetória. Nossa outra<br />

peça, Breath by Breath, produzi<strong>da</strong> em 2003,<br />

apresenta [Anton] Chekhov em eventos<br />

históricos, mas também o apresenta no<br />

esforço imaginativo <strong>da</strong> escrita. A figura<br />

do escritor torna-se emblemática de como<br />

escritores precisam li<strong>da</strong>r com eventos<br />

políticos catastróficos – ou não, no caso<br />

do Chekhov, ele enfrentou a censura e<br />

não tinha liber<strong>da</strong>de de expressão ou nao,<br />

se estivesse enfretando censura, ja que<br />

ele nao tinha liber<strong>da</strong>de de expressao ou<br />

nao, se estivesse enfretando censura, ja<br />

que ele nao tinha liber<strong>da</strong>de de expressao.<br />

Chekhov escreveu sobre as emoções e<br />

nós decidimos destacar as perseguições<br />

políticas de um grupo minoritário, por<br />

ser mais provocante emocionalmente<br />

do que seria uma questão intelectual<br />

dependente de raciocínio. É assim que o<br />

teatro e a dramaturgia podem contribuir<br />

para a compreensão dos problemas<br />

sociais. O teatro pode personificar<br />

questões para que estas tenham um<br />

impacto emocional.<br />

Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong> e Júlia oliveira


N° 16 | Junho de 2011<br />

Por que foi importante discutir o tema<br />

<strong>da</strong> histeria no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980?<br />

Mesmerized (Retrato de Augustine) infere<br />

uma relação entre o performer e o corpo<br />

histérico, e o teatro e os processos de<br />

vigilância e controle social. Explorávamos<br />

os binarismos corpo/mente; razão/<br />

emoção e como estes impõem ordens<br />

sociais e de gênero. As teorias sobre<br />

a construção social <strong>da</strong>s emoções<br />

permanecem controversas especialmente<br />

para o teatro político do século XX.<br />

No entanto, o teatro e o drama estão<br />

envolvidos na construção de linguagens<br />

de emoção e ao mesmo tempo em que<br />

eles reafirmam eles tamém transgridem<br />

os limites sociais do que é aceitável como<br />

expressão emocional e/ou loucura. Na<br />

época em que nós pesquisávamos sobre a<br />

histeria a maior <strong>parte</strong> do material estava<br />

disponível apenas em<br />

francês. E esse material<br />

nos <strong>da</strong>va um estudo<br />

de caso maravilhoso<br />

de como a expressão<br />

emocional individual é<br />

patologiza<strong>da</strong> dentro <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de para manter<br />

a ordem social.<br />

Mesmerized [Retrato<br />

de Augustine] é uma<br />

peça feminista? Quais<br />

são os principais pontos<br />

que a definem assim?<br />

Esta é uma pergunta que pode<br />

ser respondi<strong>da</strong> por outros a partir <strong>da</strong><br />

perspectiva <strong>da</strong> recepção teatral <strong>da</strong> plateia.<br />

Seria uma peça que tem a personagem<br />

central do sexo feminino, e cuja a trama<br />

retrata a vi<strong>da</strong> difícil dessa mulher,<br />

necessariamente feminista? Isso pareceme<br />

muito simplista como definição de<br />

abor<strong>da</strong>gem feminista. A peça tem seu<br />

aporte na teoria feminista, ao invés de<br />

ter o discurso apresentando as bandeiras<br />

ou as causas feministas – o texto apoiase<br />

nos desafios intelectuais às cisões<br />

As teorias sobre a<br />

construção social<br />

<strong>da</strong>s emoções<br />

permanecem<br />

controversas<br />

especialmente para<br />

o teatro político do<br />

século XX.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

corpo/mente, emoção/razão, masculino/<br />

feminino no pensamento ocidental. Nós<br />

duas já estávamos familiariza<strong>da</strong>s com o<br />

discurso feminista sobre a loucura, mas<br />

os discursos sobre o tema se tornaram<br />

uma reali<strong>da</strong>de retumbante, quando vistos<br />

em um cenário histórico. Gostaríamos de<br />

salientar que a preocupação dessa peça<br />

é com as políticas de controle sobre os<br />

indivíduos sem poder, e neste caso tratase<br />

<strong>da</strong> conivência de um modelo médico<br />

institucional.<br />

Talvez a peça Breath by Breath não<br />

aparente ser feminista por tratar de um<br />

autor já falecido e de seus relacionamentos.<br />

Porém, um desses relacionamentos é<br />

com uma musa e este personagem não é<br />

identificado como masculino ou feminino<br />

-- a desconstrução do gênero nos parece<br />

um ato feminista.<br />

Que estratégias vocês<br />

usaram para escreverem<br />

colaborativamente?<br />

Nós co-escrevemos<br />

(Mesmerized) Retrato<br />

de Augustine (1991)<br />

[sic] sobre a paciente<br />

de Charcot, a histérica<br />

Augustine, que<br />

apresentava-se em suas<br />

palestras; e Breath by<br />

Breath (2003) sobre a<br />

relação de Chekhov<br />

e Olga Knipper e um<br />

massacre de Judeus<br />

ocorrido no século XIX, na Rússia. Foi<br />

bem circunstancial que eu começasse a<br />

co-escrever com a Matra. Nós estávamos<br />

interessa<strong>da</strong>s intelectualmente em um<br />

teatro/cultura de ideias na Austrália.<br />

Ambas peças <strong>da</strong> nossa co-autoria<br />

envolvem a pesquisa acadêmica. A Matra<br />

estava escrevendo um livro, em meados<br />

<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980 (Starving in the Silences,<br />

Sydney: Allen & Unwin, 1991) uma<br />

análise Foucaultiana <strong>da</strong> categorização<br />

social <strong>da</strong> anorexia nervosa. Sua pesquisa<br />

abrangeu as informações históricas sobre<br />

Entrevista - Peta Tait 191


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

192<br />

Charcot e Augustine. Ela fez um grande<br />

levantamento sobre a história dos discursos<br />

médicos sobre o corpo feminino. Matra<br />

me contou dessa pesquisa sobre Charcot<br />

e Augustine e eu pensei que esse material<br />

poderia transformar-se em uma peça teatral<br />

interessante. Matra nunca havia escrito para<br />

o teatro, então eu me tornei sua co-escritora.<br />

Teria sido muito difícil ter ganho qualquer<br />

profundi<strong>da</strong>de de entendimento sobre esses<br />

campos de pesquisa que abrangem desde<br />

material histórico a uma série de discursos<br />

intelectuais, sem uma pesquisadora<br />

acadêmica, como co-roteirista. E seria ideal<br />

[esse material como peça teatral] desde que<br />

Augustine apresentasse seus sintomas para<br />

a câmera, para os médicos e para o público.<br />

Na performance corporal, Augustine,<br />

lutava para manter um sentido para a sua<br />

vi<strong>da</strong> interior, a qual nós sugerimos que<br />

viesse como memórias fragmenta<strong>da</strong>s e<br />

aterrorizantes.<br />

Quando começamos a pensar em<br />

escrever Breath By Breath estávamos ambas<br />

profun<strong>da</strong>mente perturba<strong>da</strong>s com o que<br />

estava e ain<strong>da</strong> está acontecendo em algumas<br />

<strong>parte</strong>s do mundo: a<br />

limpeza étnica, e nós<br />

conversávamos sobre<br />

isso constantemente.<br />

Mas sentimos que não<br />

poderíamos escrever<br />

sobre este horror em seu<br />

contexto contemporâneo.<br />

Poderíamos, no entanto,<br />

em uma abor<strong>da</strong>gem<br />

Brechtiana, trazer o<br />

presente por meio do<br />

passado, utilizando<br />

linguagens teatrais.<br />

Fomos motiva<strong>da</strong>s a<br />

escrever Breath By<br />

Breath pela angústia a<br />

respeito do que estava<br />

acontecendo e do nosso<br />

próprio senso de impotência sobre um<br />

padrão de genocídio, que voltou há alguns<br />

séculos. Enquanto a escrita pode aju<strong>da</strong>r os/<br />

as escritores/as, eu tenho dúvi<strong>da</strong>s se um<br />

dos pontos centrais de Breath By Breath é<br />

o texto apoiase<br />

nos desafios<br />

intelectuais `as<br />

cisões corpo/<br />

mente, emoção/<br />

razão, masculino/<br />

feminino no<br />

pensamento<br />

ocidental.<br />

com a eficácia política do teatro, e com esta<br />

preocupação de que a escrita de uma peça<br />

tem qualquer impacto nas circunstâncias<br />

socias.<br />

Depois de assistirem em DVD ao<br />

espetáculo teatral Retrato de Augustine<br />

que produzimos no Brasil em 2010, qual<br />

foi a sua sensação em relação a peça<br />

Mesmerized?<br />

É maravilhoso ver a peça ganhar vi<strong>da</strong><br />

e com um padrão tão alto de direção e<br />

atuação. Ficamos muito satisfeitas com a<br />

polidez e realização artística em todos os<br />

aspectos e detalhes <strong>da</strong> produção. To<strong>da</strong>s<br />

as interpretações foram de alto nível e a<br />

Augustine [Juliana Riechel] foi excepcional<br />

e o maduro Charcot [José Ronaldo<br />

Faleiro] sutil e equilibrado. A produção<br />

com os corpos [dos atores] no espaço,<br />

criado pela diretora, foi totalmente bela e<br />

comovente. Nós duas ficamos encanta<strong>da</strong>s<br />

com o significado de to<strong>da</strong>s as partituras<br />

de movimentos e gestos, as mu<strong>da</strong>nças de<br />

tom e as nuances emocionais. Nós criamos<br />

o roteiro de trabalho<br />

e a forma escrita do<br />

texto, mas é só quando<br />

o diretor coloca alguns<br />

ingredientes mágicos<br />

dentro do texto que<br />

ele ganha vi<strong>da</strong>. Nós<br />

pensamos que esta<br />

produção de Retrato<br />

de Augustine (2010)<br />

foi extraordinária<br />

e considere que no<br />

passado nós tivemos<br />

um grupo de atores bem<br />

estabelecidos, incluindo<br />

a atriz Cate Blanchett,<br />

apesar de nunca ter tido<br />

uma produção completa.<br />

As imagens visuais<br />

são uma <strong>parte</strong> crucial do teatro, mas para<br />

esta peça, elas possuem uma importância<br />

ain<strong>da</strong> maior para o sentido. Os gestos de<br />

Augustine são visualmente expressos<br />

e devem ser completamente críveis e<br />

Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong> e Júlia oliveira


N° 16 | Junho de 2011<br />

ao mesmo tempo, os médicos revelam<br />

simpatia mesmo dentro <strong>da</strong>s limitações de<br />

sua compreensão. O texto visual precisa<br />

capturar os momentos de devaneio de<br />

Augustine, por isso esses momentos têm de<br />

parecem gloriosos. A tela foi uma excelente<br />

decisão e solução <strong>da</strong> direção para alguns<br />

dos problemas de encenação considerando<br />

que é uma peça episódica e com uma<br />

varie<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>nças na atmosfera do<br />

cenário e tudo isso fluiu muito suavemente.<br />

O imaginário sonoro e visual satisfez tudo<br />

o que poderíamos esperar. Ficamos muito<br />

emociona<strong>da</strong>s com esta produção.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Entrevista - Peta Tait 193


N° 16 | Junho de 2011<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Atores: Augustine [Juliana Riechel];<br />

Médico Interno [Vicente Concílio]; Doutor Charcot [José Ronaldo Faleiro] e Paul [Guilherme Rótulo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

Retrato de Augustine 195


N° 16 | Junho de 2011<br />

Retrato de Augustine<br />

Dramaturgas: Peta Tait e Matra Robertson<br />

Concepção de espetáculo, Tradução e Direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong><br />

Produção: Paula Cruz<br />

Produtora: Escultural Produções de Arte<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Este projeto foi contemplado com<br />

o Prêmio – FUNART de Teatro,<br />

Myriam Muniz (2008). Retrato de<br />

Augustine estreou em abril de 2010<br />

no Teatro Alvaro de Carvalho em<br />

Florianópolis. Nos meses seguintes<br />

apresentou-se a convite dos<br />

seguintes festivais “Segundo Vértice<br />

Brasil: Encontro de Teatro feito por<br />

Mulheres”; “3ª Semana Ousa<strong>da</strong><br />

de Artes”; “VII Festival Palco<br />

Giratório – SESC Santa Catarina”.<br />

Contemplado com o Primeiro Edital<br />

de Cultura <strong>da</strong> PROEX, Universi<strong>da</strong>de<br />

do Estado de Santa Catarina,<br />

Retrato de Augustine encerrou sua<br />

tempora<strong>da</strong> de 2010 apresentando-se<br />

nos teatros do SESC de Lages e<br />

de Joinville, SC.<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

Retrato de Augustine 197


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

198<br />

Retrato de Augustine


N° 16 | Junho de 2011<br />

UM PANo DE FUNDo PARA o<br />

RETRATo DE AUGUSTINE<br />

Em 1990 as dramaturgas australianas<br />

Peta Tait e Matra Robertson escreveram<br />

Mesmerized, título original <strong>da</strong> peça que<br />

traduzi como Retrato de Augustine. O texto<br />

foi baseado em uma pesquisa documental<br />

sobre a relação entre dois personagens<br />

históricos: o neurologista francês Jean-<br />

Martin Charcot (1825-1893), com quem<br />

Freud estu<strong>da</strong>ria alguns anos depois, e<br />

Augustine (1860-?) – jovem diagnostica<strong>da</strong><br />

como histérica. Em 2002, época em que<br />

realizava meu doutorado na ci<strong>da</strong>de de<br />

Melbourne, Austrália, assisti a convite<br />

Peta Tait a uma leitura dramática de<br />

Mesmerized. Enquanto o elenco <strong>da</strong>va voz<br />

aos personagens fui fascina<strong>da</strong> pela história<br />

de Augustine. Desta experiência surgiu<br />

o desejo de encenar a obra no Brasil. Ao<br />

desenvolver o projeto percebi as sutilezas<br />

<strong>da</strong> trama em seu entrelaçamento entre<br />

<strong>da</strong>dos históricos e ficcionais. Como diretora<br />

compartilho <strong>da</strong> visão <strong>da</strong>s autoras e de sua<br />

proposta de levar o espectador a refletir,<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

dentre outras coisas, sobre as relações entre<br />

mulher e loucura, histeria e teatro, ciência e<br />

arte, fotografia e representação, construção<br />

de imagem e memória, na perspectiva dos<br />

estudos de gênero.<br />

o CENÁRIo<br />

Hospital parisience La Salpêtrière,<br />

entre os anos de 1876 e 1880. Neste palco<br />

de importantes inovações científicas, Dr.<br />

Charcot e sua equipe realizam experimentos<br />

em um grupo de pacientes para catalogar 'a<br />

forma' e os 'ciclos' <strong>da</strong> histeria. Neste contexto<br />

de ciência experimental a fotografia, uma<br />

tecnologia então recente, torna-se o recurso<br />

de “registro fiel <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de”. Uma jovem<br />

<strong>da</strong>s províncias interna<strong>da</strong> aos quinze anos<br />

com paralisia no braço direito e fortes dores<br />

abdominais logo atrai a atenção de Charcot<br />

e sua equipe. Neste palco onde a ciência<br />

foi também espetaculariza<strong>da</strong>, Augustine<br />

transforma-se de jovem paciente à diva <strong>da</strong><br />

histeria, e neste papel inicia uma jorna<strong>da</strong><br />

em que representação e ação se mesclam, e<br />

sua identi<strong>da</strong>de se fragmenta.<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong>s Fotos: Daniel Yencken.<br />

Retrato de Augustine 199


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

200<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010).<br />

Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010.<br />

Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

SINoPSE<br />

Retrato de Augustine, tradução inédita<br />

do texto teatral Mesmerized (1990) escrito<br />

pelas dramaturgas australianas Peta Tait<br />

e Matra Robertson, tem como cenário o<br />

Hospital La Salpêtrière, em Paris. Neste<br />

palco de importantes transformações<br />

que marcaram a história <strong>da</strong> medicina e<br />

<strong>da</strong> fotografia na França do século XIX, o<br />

famoso neurologista Jean-Martin Charcot,<br />

futuro orientador de Freud, realizou um<br />

intenso estudo sobre a histeria. As autoras<br />

realizaram uma pesquisa documental para<br />

retratar a relação entre Charcot e Augustine,<br />

uma jovem paciente exibi<strong>da</strong> em palestras<br />

públicas e sessões de fotografia por ser<br />

uma “perfeita ilustração <strong>da</strong> histeria”.<br />

Retrato de Augustine


N° 16 | Junho de 2011<br />

Augustine<br />

Paul<br />

Interno<br />

Doutor Charcot<br />

Mãe/Enfermeira<br />

Bernardette<br />

Atendente<br />

Em Video<br />

Homem<br />

Santa Teresa<br />

Elenco<br />

JULIANA RIECHEL<br />

GUILHERME ROSARIO<br />

ROTULO<br />

VICENTE CONCILIO<br />

JOSÉ RONALDO<br />

FALEIRO E<br />

MARCELO F. DE SOUZA<br />

FATIMA COSTA DE LIMA<br />

DUDA SCHAPPO<br />

PEDRO COIMBRA<br />

FERNANDO MARES<br />

JANAINA MARTINS<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel].<br />

Crédito <strong>da</strong>s Fotos: Daniel Yencken.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Retrato de Augustine 201


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

202<br />

FÁTIMA COSTA DE LIMA<br />

ANA LUCIA VILELA<br />

BRIGIDA MIRANDA<br />

ANA LUCIA VILELA<br />

FÁTIMA COSTA DE LIMA<br />

ANA LUCIA VILELA<br />

EMANUELA VIEIRA<br />

KERRIE SINCLAIR<br />

PEDRO COIMBRA<br />

JANAÍNA MARTINS<br />

CLAUDIA AGUIYRRE<br />

DANIEL YENCKEN<br />

IVAN SOARES<br />

ROB OLIVER<br />

ANA JÚLIA GUIZ<br />

Cenografia<br />

Confecção dos Objetos<br />

Figurino<br />

Confecção de Figurino<br />

Coreografias<br />

Preparação Corporal<br />

Preparação Vocal<br />

Direção de Imagens<br />

Direção de Fotografia(projeções)<br />

Maquiagem e Cabelo<br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />

Atores: Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong>s Fotos: Daniel Yencken.<br />

Retrato de Augustine


N° 16 | Junho de 2011<br />

MORGANA MARTINS<br />

MORGANA MARTINS<br />

RENATA SWOBODA<br />

DANIEL OLIVETTO<br />

ANDRÉ SARTURI<br />

DANIEL YENCKEN<br />

CLAUDIA MUSSI<br />

DANIEL YENCKEN<br />

CLAUDIA MUSSI<br />

JULIA OLIVEIRA<br />

AGNES RATH<br />

CLAUDIA MUSSI<br />

ESCULTURAL PRODUÇÕES DE ARTE<br />

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE<br />

SANTA CATARINA<br />

Repertório Sonoro<br />

Assistência de Repertório Sonoro<br />

Desenho de Luz<br />

Operação de Luz<br />

Edição de Projeções<br />

Operação de Projeções<br />

Fotos<br />

Marketing e Design Gráfico<br />

Produção<br />

Apoio Institucional<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Atores: Augustine [Juliana Riechel],<br />

Enfermeira Bottard [Fátima Lima]; Doutor Jean-Martin Charcot [José Ronaldo Faleiro], Médico Interno [Vicente Concílio]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />

Retrato de Augustine 203


N° 16 | Junho de 2011<br />

Normas para publicação de artigos<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

A Revista <strong>Urdimento</strong> é uma publicação do Programa de Pós-Graduação em Teatro<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina e reúne artigos que contribuiem para a<br />

pesquisa na área <strong>da</strong>s artes cênicas.<br />

A <strong>Urdimento</strong> recebe as colaborações em fluxo contínuo que são analisa<strong>da</strong>s pelo<br />

Conselho Editorial. As seguintes normas técnicas devem ser observa<strong>da</strong>s para a publicação<br />

<strong>da</strong>s contribuições.<br />

1) Os artigos devem ter no mínimo 8 e máximo 12 lau<strong>da</strong>s. Resenhas<br />

de livros entre 3 e 4 lau<strong>da</strong>s. Os textos deverão ser digitados com letra<br />

Times New Roman, tamanho 12, com espaçamento 1,5 cm em Word para<br />

Windows (ou compatível).<br />

2) Os colaboradores devem incluir <strong>da</strong>dos especificando as ativi<strong>da</strong>des que<br />

exercem, a instituição (se for o caso) em que trabalham e <strong>da</strong>dos básicos<br />

dos respectivos currículos.<br />

3) Solicita-se clareza e objetivi<strong>da</strong>de nos títulos.<br />

4) Os artigos devem vir acompanhados de resumo com no máximo de 6<br />

linhas e 3 palavras-chaves, ambos com as respectivas traduções para o<br />

inglês.<br />

5) O envio do artigo original implica na autorização para publicação,<br />

tanto na forma imprensa como digital <strong>da</strong> revista.<br />

6) Notas explicativas serão aceitas desde que sejam imprescindíveis e<br />

breves. As citações no' corpo do texto que sejam <strong>superior</strong>es a 5 linhas<br />

devem ser digita<strong>da</strong>s em espaço simples com tamanho 10 em itálico. As<br />

citações no corpo do texto devem seguir a formatação (AUTOR, 2008, p.1).<br />

7) To<strong>da</strong>s as palavras em língua estrangeira devem estar em itálico.<br />

8) As notas de ro<strong>da</strong>pé devem ser apresenta<strong>da</strong>s no fim de ca<strong>da</strong> página e<br />

numera<strong>da</strong>s em algarismos arábicos.<br />

9) Caso os artigos incluam fotos, desenhos ou materiais gráficos <strong>da</strong> autoria<br />

de terceiros, é indispensável carta de autorização. O material deverá vir<br />

acompanho de legen<strong>da</strong>s de identificação. O material gráfico deve ser<br />

reduzido ao mínimo indispensável, em formato JPG e com resolução<br />

de 300 dpi, envia<strong>da</strong>s em arquivos separados do texto. Somente serão<br />

publica<strong>da</strong>s imagens em preto e branco.<br />

10) O material para a publicação deverá ser encaminhado em duas vias<br />

impressas e uma em formato digital (programa word) para o e-mail<br />

urdimento@udesc.br aos cui<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> revista.<br />

Convocatória para artigos 205


<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />

206<br />

Endereço para correspondência e envio de colaborações:<br />

Revista <strong>Urdimento</strong><br />

Programa de Pós-Graduação em Teatro – UDESC<br />

Av. Madre Benvenuta, 1.907 – Itacorubi<br />

88.035-001 – Florianópolis – SC<br />

E-mail: urdimento@udesc.br<br />

Normas para citação de referência bibliográfica:<br />

Livros<br />

SOBRENOME, Prenomes do autor. Título: subtítulo. edição. Local: editor, ano de<br />

publicação.<br />

Teses/ Dissertações/Monografias<br />

SOBRENOME, Prenomes do autor. Título: subtítulo. ano. nº total de páginas.Tese,<br />

Dissertação ou Monografia (grau e área) - Uni<strong>da</strong>de de Ensino, Instituição, Local e ano.<br />

Artigos de periódicos na internet<br />

SOBRENOME, Prenomes do autor. Título do artigo. Título<br />

<strong>da</strong> Revista, local, volume, número, páginas do artigo, mês e ano de publicação. Notas.<br />

Disponível em: Acesso em: dia mês (abreviado) ano, hora: minutos.<br />

Artigos<br />

SOBRENOME, Prenomes do autor do artigo. Título do artigo. Título <strong>da</strong> Revista,<br />

local, volume, número, páginas do artigo (inicial e final), mês e ano <strong>da</strong> publicação do<br />

artigo.<br />

Convocatória para artigos


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utilizando o software Adobe InDesign CS3.<br />

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