Urdimento: s.m. 1) urdume; 2) parte superior da ... - CEART - Udesc
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<strong>Urdimento</strong>: s.m. 1) <strong>urdume</strong>; 2) <strong>parte</strong><br />
<strong>superior</strong> <strong>da</strong> caixa do palco, onde se<br />
acomo<strong>da</strong>m as rol<strong>da</strong>nas, molinetes, gornos<br />
e ganchos destinados às manobras<br />
cênicas; fig. urdidura, ideação, concepção.<br />
etm. urdir + mento.<br />
ISSN 1414-5731<br />
Revista de Estudos em Artes Cênicas<br />
Número 16<br />
Programa de Pós-Graduação em Teatro do <strong>CEART</strong><br />
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
URDIMENTO é uma publicação semestral do Programa<br />
de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes <strong>da</strong><br />
Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina. As opiniões<br />
expressas nos artigos são de inteira responsabili<strong>da</strong>de dos<br />
autores. A publicação de artigos, fotos e desenhos foi<br />
autoriza<strong>da</strong> pelos responsáveis ou seus representantes.<br />
A revista está disponível online em<br />
www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento<br />
Ficha técnica<br />
Editores: Stephan Baumgärtel, Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong><br />
e Vera Collaço<br />
Secretaria de Re<strong>da</strong>ção: Éder Sumariva Rodrigues<br />
[eder.sumariva@gmail.com]<br />
Coordenação de Produção: Éder Sumariva Rodrigues<br />
Capa e contracapa: Espetáculo Retrato de Augustine (2010),<br />
de Peta Tait e Matra Robertson, projeto contemplado com o<br />
Prêmio FUNARTE de Teatro, Myriam Muniz, 2008. Concepção e<br />
direção de Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>, professora doutora do Departamento de<br />
Artes Cênicas <strong>da</strong> UDESC<br />
Capa: Juliana Riechel e Vicente Concílio<br />
Foto: Daniel Yencken<br />
Local: Casa <strong>da</strong>s Máquinas, abril de 2010 - Tempora<strong>da</strong> Myriam Muniz<br />
Contracapa: Juliana Riechel e Fátima Lima<br />
Foto: Claudia Mussi<br />
Local: Teatro Álvaro de Carvalho, abril de 2010 -<br />
Tempora<strong>da</strong> Myriam Muniz<br />
Projeto Gráfico: Déborah Salves [salves.deborah@gmail.com]<br />
Editoração eletrônica: Déborah Salves<br />
Esta publicação foi realiza<strong>da</strong> com o apoio <strong>da</strong> CAPES<br />
Catalogação na fonte: Eliane Apareci<strong>da</strong> Junckes Pereira. CRB/SC 528<br />
<strong>Urdimento</strong> - Revista de Estudos em Artes Cênicas /<br />
Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina. Programa de<br />
Pós-Graduação em Teatro. - Vol 1, n.16 (Jun 2011) -<br />
Florianópolis: UDESC/<strong>CEART</strong><br />
Semestral<br />
ISSN 1414-5731<br />
I. Teatro - periódicos.<br />
II. Artes Cênicas - periódicos.<br />
III. Programa de Pós-Graduação em Teatro.<br />
Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina<br />
Biblioteca Setorial do <strong>CEART</strong>/UDESC
Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina - UDESC<br />
Reitor: Sebastião Iberes Lopes Melo<br />
Vice Reitor: Antonio Heronaldo de Sousa<br />
Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Pereira de<br />
Souza<br />
Diretor do Centro de Artes: Milton de Andrade<br />
Chefe do Departamento de Teatro: Edélcio Mostaço<br />
Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Vera Regina<br />
Martins Collaço<br />
Conselho editorial<br />
Ana Maria Bulhões de Carvalho Edlweiss (UNIRIO)<br />
Cássia Navas Alves de Castro (UNICAMP)<br />
Christine Greiner (PUC/SP)<br />
Felisberto Sabino <strong>da</strong> Costa (ECA/USP)<br />
Jerusa Pires Ferreira (PUC/SP)<br />
João Roberto Faria (FFLCH/USP)<br />
José Dias (UNIRIO)<br />
José Roberto O’Shea (UFSC)<br />
Luiz Fernando Ramos (ECA/USP)<br />
Márcia Pompeo Nogueira (<strong>CEART</strong>/UDESC)<br />
Maria Lucia de Souza Barros Pupo (ECA/USP)<br />
Mario Fernando Bolognesi (UNESP)<br />
Marta Isaacsson de Souza e Silva (DAD/UFRGS)<br />
Neyde Veneziano (UNICAMP)<br />
Rosyane Trotta (UNIRIO)<br />
Sérgio Coelho Farias (UFBA)<br />
Sônia Machado Azevedo (Escola Superior de Artes Célia<br />
Helena)<br />
Soraya Silva (UnB)<br />
Tiago de Melo Gomes (UFRPE)<br />
Walter Lima Torres (UFPR)<br />
Conselho assessor<br />
Beti Rabetti (UNIRIO)<br />
Ciane Fernandes (UFBA)<br />
Eugenia Casini Ropa (Universi<strong>da</strong>de de Bolonha - Ítalia)<br />
Eugenio Barba (Odin Teatret)<br />
Francisco Javier (Universi<strong>da</strong>d de Buenos Aires)<br />
Jacó Guinsburg (ECA/USP)<br />
Juan Villegas (University of California)<br />
Marcelo <strong>da</strong> Veiga (Universi<strong>da</strong>de Alanus – Alemanha)<br />
Óscar Cornago Bernal (Conselho Superior de Pesquisas<br />
Científicas – Espanha)<br />
Osvaldo Pellettieri (Universi<strong>da</strong>d de Buenos Aires)<br />
Peta Tait (La Trobe University)<br />
Roberto Romano (UNICAMP)<br />
Silvana Garcia (EAD/USP)<br />
Silvia Fernandes Telesi (ECA/USP)<br />
Tânia Brandão (UNIRIO)
UDESC - Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina<br />
<strong>CEART</strong> - Centro de Artes<br />
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO<br />
O PPGT oferece formação em nível de Mestrado, implantado<br />
em 2001, e Doutorado, em 2009.<br />
Professores permanentes<br />
André Luiz Antunes Netto Carreira<br />
Beatriz Ângela Vieira Cabral<br />
Edélcio Mostaço<br />
José Ronaldo Faleiro<br />
Márcia Pompeo Nogueira<br />
Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong><br />
Milton de Andrade<br />
Sandra Meyer Nunes<br />
Stephan Arnulf Baumgärtel<br />
Valmor Beltrame<br />
Vera Regina Collaço<br />
Professores colaboradores<br />
Matteo Bonfitto Júnior (UNICAMP)<br />
Timothy Prentki (Tim Prentki) - (Universi<strong>da</strong>de de Winchester,<br />
Reino Unido)<br />
O PPGT abre inscrições anualmente para seleção de candi<strong>da</strong>tos<br />
em nível nacional e internacional. Para acesso ao calendário de<br />
ativi<strong>da</strong>des, linhas e grupos de pesquisa, corpo docente e corpo<br />
discente, dissertações e teses defendi<strong>da</strong>s e outras informações,<br />
consulte o sítio virtual: http://www.ceart.udesc.br/ppgt
Apresentação<br />
El teatro de género chico en buenos aires en los años ’20, una<br />
mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social<br />
Carolina González Velasco<br />
Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias<br />
cariocas de Nelson Rodrigues<br />
Elen de Medeiros<br />
Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de<br />
Denise Stoklos<br />
Elisa Belém<br />
Através dos objetos sobre a cenografia dos espetáculos do<br />
Théâtre Libre<br />
Guilherme Delgado<br />
Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro<br />
Mara Lucia Leal<br />
Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica<br />
Mariane Magno<br />
Marta Abba: a vamp virtuosa de Pirandello<br />
Martha Ribeiro<br />
Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez<br />
Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro eletrônico<br />
Nanci de Freitas<br />
Artaud, Arrabal e nós estudo de processo criação cênica<br />
Narciso Telles<br />
Pina Bausch: para maiores de 65 anos<br />
Solange Caldeira<br />
Olha ô programa <strong>da</strong> peça!<br />
Felipe Matheus Bachmann Ribeiro<br />
Walter Lima<br />
11<br />
17<br />
31<br />
43<br />
55<br />
67<br />
79<br />
97<br />
109<br />
121<br />
129<br />
139<br />
Sumário
Traduções<br />
De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros<br />
Annemarie M. Matzke<br />
Pontos e práticas: manifestos. Nostalgias futuras<br />
Richard Schechner<br />
Resenha<br />
Antônio José e o teatro do setecentos<br />
Iná Camargo Costa<br />
Entrevistas<br />
Entrevista com Josette Féral<br />
Julia Guimarães e Leandro Silva Acácio<br />
Entrevista com Peta Tait<br />
Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong> e Júlia Oliveira<br />
Espetáculo<br />
Retrato de Augustine (2010)<br />
155<br />
165<br />
173<br />
179<br />
189<br />
197
N° 16 | Junho de 2011<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Ensaio. Atores: Augustine [Juliana Riechel].<br />
Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
Apresentação 9
N° 16 | Junho de 2011<br />
Apresentação<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Este número <strong>da</strong> <strong>Urdimento</strong><br />
reúne importantes contribuições<br />
de colaboradores espontâneos<br />
que chegam à re<strong>da</strong>ção via fluxo<br />
contínuo. Com os números<br />
não-temáticos a nossa revista<br />
oferece um espaço para mostrar<br />
a diversi<strong>da</strong>de e abrangência <strong>da</strong><br />
pesquisa acadêmica e artística no<br />
campo <strong>da</strong>s artes cênicas no Brasil;<br />
e busca fortalecer o intercâmbio e<br />
a discussão de ideias e reflexões<br />
sobre as práticas teatrais entre<br />
pesquisadores e artistas.<br />
Dentro <strong>da</strong> ampla diversi<strong>da</strong>de<br />
temática trata<strong>da</strong> neste número,<br />
reunimos três trabalhos que<br />
abor<strong>da</strong>m o teatro brasileiro a partir<br />
de uma perspectiva que podemos<br />
chamar de pós-colonial, a fim de<br />
focar criticamente os mecanismos<br />
de poder que apontam para as<br />
decisões estéticas e pragmáticas<br />
dos artistas e grupos, muitas vezes<br />
articula<strong>da</strong>s como subversivas.<br />
Completam o olhar sobre o teatro<br />
brasileiro um ensaio sobre as<br />
relações entre o expressionismo<br />
alemão e as tragédias cariocas de<br />
Nelson Rodrigues, e, por fim, um<br />
estudo sobre o desdobramento <strong>da</strong><br />
função estética e sócio-cultural<br />
do programa de teatro no Brasil<br />
desde os anos de 1950 à nossa<br />
contemporanei<strong>da</strong>de.<br />
Foto: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011.<br />
Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Atores: Augustine [Juliana Riechel] e<br />
Apresentação Bernadette [Du<strong>da</strong> Schappo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Júlia oliveira.<br />
11
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
12<br />
O possível intercâmbio conceitual e<br />
experiencial entre práticas nacionais e<br />
internacionais aponta para a escolha de<br />
trabalhos de pesquisadores brasileiros<br />
sobre artistas e grupos estrangeiros,<br />
no caso desse número Pina Bausch e<br />
Luigi Pirandello. Mais dois trabalhos<br />
também buscam estas trocas entre<br />
Brasil e o mundo afora, tendo como<br />
foco as experiências de treinamento do<br />
ator para a cena. Um artigo discute o<br />
trabalho de atrizes brasileiras com as<br />
teorias cênicas de Artaud e Arrabal.<br />
E outro trabalho, nesta direção, versa<br />
sobre as possibili<strong>da</strong>des de usar o<br />
conceito taoista <strong>da</strong> não-ação para o<br />
treinamento do ator.<br />
Ao lado dos resultados de pesquisas<br />
nacionais sempre reservamos espaço<br />
para apresentar trabalhos de<br />
pesquisadores não-brasileiros, com o<br />
intuito de estimular reflexões acerca<br />
de possíveis sincronias e assincronias<br />
em relação ao teatro brasileiro. Nesse<br />
contexto, incluímos um texto que<br />
apresenta aspectos do teatro pósdramático<br />
e performativo na Alemanha.<br />
Bem como um texto de Richard Schechner<br />
sobre as vanguar<strong>da</strong>s históricas, as quais<br />
podemos ver como precursores dos<br />
experimentos desse teatro performativo<br />
contemporâneo.<br />
Neste número iniciamos uma nova<br />
proposição para a Revista <strong>Urdimento</strong>,<br />
que é a de publicar entrevistas cedi<strong>da</strong>s<br />
por pessoas relevantes na área <strong>da</strong>s<br />
Artes Cênicas, bem como de artistas/<br />
estudiosos que tenham concedidos<br />
entrevistas que serviram de base para a<br />
elaboração de dissertações ou teses. Com<br />
isso estaremos disponibilizando um<br />
acervo que pode vir a constituir a base<br />
de discussão e estudos de futuros artigos<br />
e trabalhos acadêmicos. Dando início a<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Medico Interno [Vicente Concilio]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Júlia oliveira.<br />
Apresentação
N° 16 | Junho de 2011<br />
este novo encaminhamento publicando,<br />
nesta <strong>Urdimento</strong>, uma entrevista com a<br />
estudiosa Josette Fèral.<br />
Esta <strong>Urdimento</strong> apresenta uma nova<br />
formulação visual. A nossa revista passa<br />
com este número a ser publica<strong>da</strong> em<br />
formato A4. Esta é a terceira modificação<br />
na diagramação de nossa revista. De um<br />
início muito tímido, em 1997, quando<br />
de seu lançamento, a uma readequação<br />
importante em 2004, quando passou<br />
para o formato intermediário, e agora<br />
com a nova dimensão em A4, a nossa<br />
revista foi, gra<strong>da</strong>tivamente, ampliando<br />
a sua envergadura científica e acadêmica<br />
e, consequentemente, sua estatura física.<br />
Buscamos, com estas alterações, uma<br />
melhor visuali<strong>da</strong>de, bem como mais<br />
aproveitamento de espaço interno/<br />
gráfico, de modo a ampliar os espaços<br />
para publicação de materiais de<br />
pesquisa cênicas.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Desejamos que os leitores possam<br />
encontrar nesse número estímulos para<br />
suas próprias in<strong>da</strong>gações, reiterando<br />
nosso chamado à colaboração contínua,<br />
e nosso convite a dialogar diretamente<br />
com os trabalhos apresentados.<br />
Por último, queremos agradecer a<br />
colaboração de estu<strong>da</strong>ntes e técnicos<br />
como membros <strong>da</strong> equipe de produção e<br />
editoração. Seu trabalho é fun<strong>da</strong>mental<br />
para a regulari<strong>da</strong>de e quali<strong>da</strong>de visual<br />
<strong>da</strong> revista.<br />
Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong>,<br />
Stephan Baumgärtel, Vera Collaço<br />
Corpo Editorial<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Atores: Médico Interno [Vicente Concilio];<br />
Atendente [Pedro Coimbra]; Doutor Charcot [José Ronaldo Faleiro]; Augustine [Juliana Riechel] e Enfermeira Bottard [Fátima Lima]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
Apresentação 13
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Médico Interno [Vicente Concílio]; Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Júlia oliveira.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 15
N° 16 | Junho de 2011<br />
EL TEATRo DE GÉNERo CHICo EN<br />
BUENoS AIRES EN LoS AÑoS ’20,<br />
UNA MIRADA DE CoNJUNTo DESDE<br />
LA HISToRIA SoCIAL<br />
Resumen<br />
El trabajo analiza el movimiento teatral porteño de los<br />
años ’20 a partir de una perspectiva de historia social. Se<br />
argumenta en qué sentido este teatro fue una experiencia<br />
social particular pero característica de la vi<strong>da</strong> urbana<br />
porteña de los años ’20, en tanto fue condiciona<strong>da</strong> y<br />
condicionante de las transformaciones que experimentaba<br />
la ciu<strong>da</strong>d. Para esto, se recrean los principales rasgos de<br />
la socie<strong>da</strong>d porteña de esos años para luego presentar y<br />
relacionar diversos rasgos del mundo del teatro con las<br />
transformaciones de la socie<strong>da</strong>d.<br />
Palabras claves: Buenos Aires, teatro, experiencias sociales.<br />
Abstract<br />
This paper analyses the theatrical movement in Buenos<br />
Aires during the 20´s based on a social history perspective.<br />
It discusses in which sense this theatre was a particular<br />
social experience but also typical of the porteña urban<br />
life in the 20's, since it was both conditioned by and a<br />
condition for the transformations suffered by the city<br />
during those <strong>da</strong>ys. In order to do so, this work recreates<br />
the most important characteristics of the society back then,<br />
and then presents and relates the characteristics of the<br />
theatre world with the transformations of the society.<br />
Keywords: Buenos Aires, theatre, social experience.<br />
Carolina González Velasco 1<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 17
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
18<br />
Cuando Augusto Alvarez,<br />
importante empresario<br />
teatral de Buenos Aires, se<br />
enteró de las condiciones<br />
que su emisario en Francia<br />
había aceptado de <strong>parte</strong> del popular<br />
chansonier Maurice Chevalier para viajar al<br />
Río de la Plata, creyó que todo su negocio<br />
se vendría abajo. Además de un oneroso<br />
contrato, el francés pedía actuar sólo en una<br />
función diaria, reclamaba su derecho de<br />
rechazar los espectáculos en los que fuera a<br />
participar si no eran de su agrado y solicitaba<br />
una serie de comodi<strong>da</strong>des para su camarín.<br />
Corría el año 1925: el teatro de revista<br />
corte francés se consoli<strong>da</strong>ba en las principales<br />
capitales del mundo y Alvarez apostaba<br />
a que la contratación de Chevalier, artista<br />
que brillaba en los escenarios franceses,<br />
permitiría que uno de sus teatros, el Porteño,<br />
se afianzara definitivamente en una plaza<br />
que se volvía ca<strong>da</strong> vez más competitiva. Por<br />
eso, pese a las exigencias del artista, Alvarez<br />
decidió seguir adelante con el proyecto.<br />
Chevalier y su compañera Ivonne<br />
Valée llegaron a Buenos Aires a mediados<br />
de mayo de 1925; la frial<strong>da</strong>d con que el<br />
artista saludó a sus anfitriones no hizo sino<br />
confirmar las dificultades ya avizora<strong>da</strong>s en<br />
la negociación del contrato. Luego de<br />
instalarse en el Plaza Hotel –uno de los<br />
más lujosos del momento-, concurrió al<br />
Porteño y presenció el ensayo de la obra<br />
que lo tendría como protagonista. Recorrió<br />
las instalaciones del teatro y observó su<br />
camarín. Su conclusión fue tajante y así lo<br />
recordó el mismo Álvarez en sus memorias:<br />
“querido amigo…. todo esto no va conmigo”<br />
–le dijo- “Mier<strong>da</strong> con vuestro sucio teatro.<br />
1 Doctora en Historia, por la Universi<strong>da</strong>d de Buenos Aires<br />
(UBA). Actualmente, becaria de posdoctorado del Consejo<br />
Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas<br />
(CoNICET), investigadora del Instituto de Investigaciones<br />
en Historia Argentina y Americana Emilio Ravignani, de la<br />
Facultad de Filosofía y Letras de la UBA e investigadora en<br />
el Centro de Estudios en Historia Política de la Universi<strong>da</strong>d<br />
de San Martín. Coordinadora del Programa de Investigación<br />
“Mercado de espectáculos, industrias del entretenimiento<br />
y consumos culturales. Buenos Aires, siglo XX.” Centro de<br />
Estudios de Historia Política. UNSAM: 2010. Docente de la<br />
materia Historia Social General, en la Facultad de Filosofía y<br />
Letras de la UBA y docente de la materia Problemas de Historia<br />
Argentina, en la Universi<strong>da</strong>d Nacional Arturo Jauretche.<br />
No cuenten conmigo. Regreso a París.<br />
Mi contrato me <strong>da</strong> todo el derecho. Hasta<br />
nunca” (MANFREDI, 1989, p. 75).<br />
To<strong>da</strong> la inversión parecía deshacerse,<br />
pero Alvarez y sus colaboradores- Bayón<br />
Herrera, Manuel Romero e Ivo Pelay<br />
-autores y directores teatrales de conoci<strong>da</strong><br />
trayectoria en la escena porteña-, no se<br />
dieron por vencidos. Decidieron que<br />
harían la obra de todos modos: en lugar del<br />
francés, actuaría el actor Marcelo Ruggero,<br />
quien imitaría en tono de parodia al mismo<br />
Chevalier.<br />
Ocurrió entonces que mientras Manuel<br />
Romero dirigía el ensayo de la obra ya<br />
modifica<strong>da</strong>, Chevalier volvió al teatro y<br />
miró las escenas sentado en una platea….<br />
y rió a más no poder con la actuación de<br />
Ruggero. Pocos días después, el gran<br />
chansonier debutó en el escenario del<br />
Porteño, aceptó su pequeño camarín y<br />
trabajó en las cuatro secciones en las que se<br />
ofrecía el espectáculo, inclui<strong>da</strong>s las matinés<br />
de los domingos y feriados. La tempora<strong>da</strong><br />
de 1925 del Porteño fue un éxito.<br />
La visita de Chevalier ha sido resalta<strong>da</strong><br />
en varias oportuni<strong>da</strong>des a fin de mostrar el<br />
atractivo que comenzaba a tener Buenos<br />
Aires como plaza para los espectáculos<br />
de revista (PUJOL, 1994). No obstante, la<br />
anécdota invita a in<strong>da</strong>gar acerca de las<br />
características del mundo teatral porteño<br />
de esos años. Si bien esta cuestión no está<br />
ausente en los estudios sobre historia del<br />
teatro argentino, lo cierto es que en esa<br />
literatura ese interrogante ha sido puesto<br />
en relación a problemas del desarrollo<br />
estético y dramático, a cuestiones<br />
vincula<strong>da</strong>s a la figura de diversos autores<br />
o actores, e incluso a la construcción de<br />
un relato más general sobre la historia del<br />
teatro nacional. 2 Por un lado, en las fuentes<br />
de los años ’20 se hablaba de “teatro de<br />
género chico” para <strong>da</strong>r cuenta de aquellas<br />
obras cortas, desarrolla<strong>da</strong>s en uno, dos o<br />
tres actos, con personajes caricaturizados,<br />
conflictos sencillos, etc que se ofrecían<br />
en los teatros por secciones. El repertorio<br />
incluía tipo de obras tales como comedias,<br />
2 Ver bibliografía cita<strong>da</strong> al final.<br />
Carolina González Velasco
N° 16 | Junho de 2011<br />
pochades, juguetes, vodeviles, sainetes<br />
e incluso revistas. A su vez, se hablaba<br />
de “género chico” en contraposición al<br />
teatro de “género grande”, el cual incluía<br />
a la ópera y al repertorio universal. Por su<br />
<strong>parte</strong>, los estudios del teatro han puesto<br />
en relación <strong>parte</strong> de estas características<br />
con el hecho de que, al ser requeri<strong>da</strong>s<br />
para un circuito comercial, las obritas<br />
del género chico perdieron poco a poco<br />
perdieron su valor estético, tendieron a<br />
repetir temas y personajes y apuntaron<br />
sólo a conseguir la risa y el aplauso del<br />
público como contra<strong>parte</strong> de las ganancias<br />
empresariales. Concluyeron así que los<br />
años ’20 constituyeron una etapa de cierta<br />
decadencia para la dramaturgia nacional.<br />
Partiendo de los aportes realizados por<br />
esos estudios pero tomando distancia de<br />
cualquier valoración estética o vincula<strong>da</strong><br />
a la evolución del teatro nacional, el<br />
siguiente trabajo propone poner foco sobre<br />
el movimiento teatral porteño de los años<br />
’20, en especial en el teatro llamado en las<br />
fuentes como de “género chico” a partir de<br />
una perspectiva de historia social. Se busca<br />
argumentar en qué sentido este teatro<br />
fue una experiencia social particular pero<br />
característica de la vi<strong>da</strong> urbana porteña<br />
de los años ’20, en tanto fue condiciona<strong>da</strong><br />
y condicionante de las transformaciones<br />
que experimentaba la ciu<strong>da</strong>d. Se propone,<br />
en definitiva, explicar de qué se trataba<br />
ese mundo del teatro en relación con las<br />
experiencias de la socie<strong>da</strong>d. En este sentido,<br />
la línea de reflexión propuesta se apoya<br />
y busca dialogar con aquella producción<br />
historiográfica que ha estudiado, tanto para<br />
el caso porteño como para otros contextos,<br />
las experiencias sociales implica<strong>da</strong>s en<br />
la producción, circulación y consumo de<br />
productos culturales. 3<br />
3 GoNZALEZ VELASCo. Carolina. Gente de Teatro: género<br />
chico y socie<strong>da</strong>d. Buenos Aires, en los años ’20. Buenos Aires:<br />
Siglo XXI. (en prensa). Para los años ’20 y ’30 en Buenos Aires<br />
Véase: SARLo, Beatriz. El Imperio de los Sentimientos. Buenos<br />
Aires: Catálogo Editora, 1985 sobre las novelas románticas<br />
semanales; KARUSH, Matthew. The Melodramatic Nation:<br />
Integration and Polarization in the Argentine Cinema of the<br />
1930s en Hispanic American Historical Review, 2007, sobre el<br />
cine y el género del melodrama en relación a la construcción<br />
de imágenes de la nación y la clase; FRYDEMBERG, Julio.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
El texto recrea los principales rasgos<br />
de la socie<strong>da</strong>d porteña de los años ’20<br />
para adentrarse luego en la presentación y<br />
análisis de diversos rasgos del mundo del<br />
teatro en relación con las transformaciones<br />
de la socie<strong>da</strong>d.<br />
Buenos Aires en los años ’20<br />
Los años’20 fueron una época de<br />
transformaciones diversas y decisivas para<br />
Buenos Aires. El espectacular crecimiento<br />
que venía registrándose desde comienzos<br />
del siglo comenzaba a decantar y antes<br />
que ese proceso en sí lo que más llamaba<br />
la atención eran las consecuencias que ese<br />
crecimiento producía.<br />
El desarrollo económico de la ciu<strong>da</strong>d<br />
era sostenido. El puerto, el ferrocarril,<br />
las industrias urbanas – ubica<strong>da</strong>s<br />
principalmente en la zona sur- pero también<br />
un sin fin de talleres, comercios y oficinas<br />
de servicio dotaban a la ciu<strong>da</strong>d de una<br />
incesante activi<strong>da</strong>d productiva. La zona<br />
en la que se concentraban las activi<strong>da</strong>des<br />
comerciales y administrativas extendió<br />
su radio, los edificios se multiplicaron y<br />
embellecieron.<br />
Por otro lado, si bien no hay <strong>da</strong>tos<br />
censales para la déca<strong>da</strong> del ’20, puede<br />
estimarse el fortísimo crecimiento<br />
demográfico experimentado por esos años<br />
al comparar los <strong>da</strong>tos de 1914, con 1 millón<br />
y medio de habitantes aproxima<strong>da</strong>mente<br />
y los de 1936 4 con casi 2 millones y medio<br />
de habitantes. Al aumento de la población<br />
correspondió una extensión de la planta<br />
urbana misma: poco a poco los terrenos<br />
que se encontraban más alejados del casco<br />
tradicional de la ciu<strong>da</strong>d fueron cambiando<br />
su fisonomía, urbanizándose, incorporando<br />
Prácticas y valores en el proceso de popularización del futbol.<br />
Buenos Aires 1900-1910, en revista Entrepasados, Buenos Aires.<br />
Nº12, ppios. 1997, sobre la difusión de la práctica del futbol.<br />
Para otros contextos, GoMES, Tiago de Melo. Um espelho no<br />
palco. Identi<strong>da</strong>des sociais e massificacao <strong>da</strong> cultura no teatro<br />
de revistados anos 1920. São Paulo: Campinas/Unicamp,<br />
2004 y FRITZSCHE, Peter. Berlin 1900. Prensa, lectores y vi<strong>da</strong><br />
moderna. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008.<br />
4 Para ambas fechas, 1914 y 1936 sí se cuenta con <strong>da</strong>tos<br />
censales oficiales.<br />
El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 19
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
20<br />
servicios y <strong>da</strong>ndo lugar a la emergencia<br />
de lo que comenzó a identificarse como<br />
“barrios”.<br />
Una serie de procesos sociales y<br />
culturales incidieron también tanto en<br />
la creación como en las características<br />
que estos barrios asumieron: en ellos<br />
comenzaron a delinearse nuevas<br />
identi<strong>da</strong>des, pertenencias y formas de<br />
sociabili<strong>da</strong>d. En efecto, el crecimiento<br />
cuantitativo iba de la mano de mu<strong>da</strong>nzas<br />
diversas que modelaban nuevos rasgos<br />
en el perfil social de la ciu<strong>da</strong>d. Poco a<br />
poco emergía una socie<strong>da</strong>d dinámica y<br />
marca<strong>da</strong> por una tendencia a la movili<strong>da</strong>d<br />
social. Esto creaba nuevas y diversas<br />
situaciones ocupacionales que ampliaban<br />
hacia arriba y hacia los costados los<br />
lugares de la escala social. Cruzado con<br />
esta diversi<strong>da</strong>d comenzó a <strong>da</strong>rse también<br />
un proceso de “argentinización”, tanto<br />
demográfica, <strong>da</strong><strong>da</strong> por el paso mismo de<br />
una generación inmigrante a otra ya naci<strong>da</strong><br />
en el país, como cultural en la medi<strong>da</strong><br />
en que la alfabetización y la escolari<strong>da</strong>d<br />
seguían extendiéndose entre las familias<br />
extranjeras y criollas (GUTIERREZ;<br />
ROMERO, 1989, p. 5-20).<br />
Por otro lado, barrios y centro se<br />
conectaban a través de las calles y las<br />
aveni<strong>da</strong>s que se iban abriendo; la extensión<br />
de las líneas de tranvías, de subterráneos y<br />
la difusión de nuevas líneas de colectivos<br />
fueron, a su vez, fun<strong>da</strong>mentales para<br />
permitir el transporte de una zona a otra de<br />
la ciu<strong>da</strong>d. Para quienes podían acceder, el<br />
automóvil o el taxi también se convirtieron<br />
en los modos más prácticos de llegar desde<br />
los barrios al centro (GARCIA HERAS, 1994).<br />
Esta ebullición, provoca<strong>da</strong> por los<br />
cambios materiales, sociales y culturales,<br />
implicó, en definitiva, la constitución de una<br />
socie<strong>da</strong>d de mezcla, en la cual se cruzaban<br />
los “mil sutiles hilos de la cultura”, tal<br />
como lo ha señalado el historiador José<br />
Luis Romero (ROMERO, 2000) Y esos mil<br />
sutiles hilos encontraban su materiali<strong>da</strong>d<br />
en los tranvías, las aveni<strong>da</strong>s, los cables<br />
y las nubes de humo que atravesaban<br />
la ciu<strong>da</strong>d y unían reali<strong>da</strong>des sociales y<br />
universos culturales heterogéneos: los<br />
barrios acomo<strong>da</strong>dos de la zona norte con<br />
los obreros de la zona sur, los conventillos<br />
habitados aún por miles de inmigrantes<br />
con los petit hotel de la elite criolla, las luces<br />
de los teatros y cabarets del centro con<br />
los bosques de Palermo, 5 las vanguardias<br />
de los cafés literarios con los mitos del<br />
arrabal y los compadritos. Y también en<br />
los personajes y productos que circulaban<br />
por la ciu<strong>da</strong>d entretejiendo universos<br />
culturales diversos: la “milonguita” que<br />
abandona el suburbio para intentar triunfar<br />
en los cabaret, el político que recorría los<br />
barrios suburbanos para asegurarse los<br />
votos, el niño de la elite que frecuentaba los<br />
prostíbulos de las orillas, el diario Crítica 6<br />
que se vendía tanto en los barrios como en<br />
el centro y la calle Corrientes, la cual parecía<br />
funcionar como un “terreno neutral”-según<br />
Romero- para la integración, la tensión y la<br />
mezcla de los diversos universos culturales<br />
que componían el tejido social porteño. En<br />
efecto, si Buenos Aires logra expresar mejor<br />
que otras urbes latinoamericanas la idea<br />
de una cultura de mezcla, lo cierto es que<br />
esa mezcla fue en <strong>parte</strong> consecuencia de<br />
la labili<strong>da</strong>d de las fronteras que separaban<br />
lo que se presentaba como diverso y que<br />
permitió, a su vez, sostener un proceso de<br />
movili<strong>da</strong>d geográfica, social y cultural.<br />
En conjunto, estas transformaciones<br />
configuraron una experiencia social que se<br />
tradujo en diversos productos, prácticas,<br />
representaciones, sujetos, identi<strong>da</strong>des y<br />
conflictos propios de la vi<strong>da</strong> urbana. En<br />
otras palabras, en varia<strong>da</strong>s experiencias<br />
particulares. Lo que en este trabajo se<br />
sostiene, entonces, es que el teatro de género<br />
chico constituyó una de esas experiencias<br />
particulares: en primer lugar, porque en<br />
una ciu<strong>da</strong>d de 2 millones de habitantes, los<br />
5 Parques en el que solían pasear las clases más acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />
de la ciu<strong>da</strong>d.<br />
6 Crítica, iniciado en 1914, significó la llega<strong>da</strong> del periodismo<br />
moderno a la Argentina: por el tipo de tecnología utiliza<strong>da</strong>, el<br />
formato, el modo de enunciar, la importancia que adquieren<br />
los avisos publicitarios, etc. SAITTA, Sylvia. Regueros de<br />
Tinta: el diario Crítica en la déca<strong>da</strong> de 1920. Buenos Aires:<br />
Su<strong>da</strong>mericana, 1998.<br />
Carolina González Velasco
N° 16 | Junho de 2011<br />
aproxima<strong>da</strong>mente 6 millones de entra<strong>da</strong>s<br />
vendi<strong>da</strong>s para los espectáculos teatrales en<br />
el año 1926 7 permiten indicar el grado de<br />
involucramiento –de una u otra manera- de la<br />
socie<strong>da</strong>d con la activi<strong>da</strong>d teatral. En segundo<br />
lugar, porque <strong>da</strong><strong>da</strong>s las características que<br />
exploraremos en el apartado siguiente, el<br />
teatro de género chico dependió y fue <strong>parte</strong><br />
de los procesos de cambio que ocurrían en la<br />
socie<strong>da</strong>d de esos años.<br />
El mundo del teatro en la calle Corrientes<br />
Desde los años del Centenario, y<br />
particularmente, luego de la finalización<br />
de la Primera Guerra Mundial, diversas<br />
activi<strong>da</strong>des y espacios vinculados a la<br />
recreación, los espectáculos y la vi<strong>da</strong> de<br />
la bohemia fueron concentrándose en una<br />
zona particular de Buenos Aires: a lo largo<br />
de las primeras veinte cuadras de la calle<br />
Corrientes –que nacía en la zona sureste<br />
de la ciu<strong>da</strong>d, cerca del río, y corría hacia<br />
el oeste- y en las manzanas ale<strong>da</strong>ñas se<br />
entremezclaban teatros de diverso tipo<br />
y capaci<strong>da</strong>d, con otras salas dedica<strong>da</strong>s<br />
a proyectar las primeras cintas de cine<br />
y con otras que ofrecían espectáculos de<br />
varietés (números musicales, de baile,<br />
de circo, de ilusionismo, etc). Junto<br />
a las salas se multiplicaban los cafés,<br />
confiterías y restaurantes que convocaban<br />
a intelectuales, políticos y artistas. Y<br />
en las manzanas laterales a Corrientes,<br />
comenzaban también a aparecer los<br />
renovados cabarets (CAMPODÓNICO;<br />
LOZANO, 2000). En conjunto, esta zona<br />
con eje en la calle Corrientes pasó a<br />
nombrarse, sin serlo geográficamente,<br />
como el “centro” de la ciu<strong>da</strong>d.<br />
De to<strong>da</strong>s esas posibili<strong>da</strong>des de<br />
entretenimiento que se ofrecían, los<br />
espectáculos de teatro –y en particular los<br />
llamados de género chico- ocupaban un<br />
lugar distintivo. En primer lugar, la activi<strong>da</strong>d<br />
teatral venía experimentando un crecimiento<br />
notable: en 1911 en el centro existían 21 salas,<br />
7 El <strong>da</strong>to está tomado de la Estadística Municipal, de 1926.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
en 1925 llegaban a 32 y en 1928 ya había<br />
más de 40. El Teatro Nacional, el Opera, el<br />
mencionado teatro Porteño –propie<strong>da</strong>d de<br />
Augusto Alvarez- el Maipo, el Flori<strong>da</strong> son<br />
algunos de los tantos nombres de salas que<br />
brillaron en los años ’20. Pero además de<br />
estas salas céntricas, en los barrios también<br />
comenzaron a levantarse teatros y espacios<br />
diversos para las representaciones teatrales.<br />
Las diferencias entre los teatros del centro y<br />
los de los barrios corrían en varios sentidos:<br />
la capaci<strong>da</strong>d, las comodi<strong>da</strong>des ofreci<strong>da</strong>s,<br />
la populari<strong>da</strong>d de los artistas que allí<br />
actuaban, todo lo cual también repercutía<br />
en el precio de las entra<strong>da</strong>s que se cobraba.<br />
No obstante, algunos barrios –sobre todo<br />
los que crecían a ritmo sostenido como<br />
Boedo, Villa Crespo, Belgrano-contaban con<br />
importantes salas en las cuales se realizaban<br />
tempora<strong>da</strong>s a cargo de figuras destaca<strong>da</strong>s.<br />
En promedio, las salas del centro tenían<br />
una capaci<strong>da</strong>d para 700 espectadores<br />
y su espacio se organizaba en distintas<br />
ubicaciones (platea, palcos bajos, y altos,<br />
tertulias y paraíso). Algunos tenían<br />
escenarios amplios para montar varios<br />
decorado y telones y contaban con modernos<br />
sistemas de iluminación y ventilación.<br />
Los camarines, halls de entra<strong>da</strong>s, salas<br />
de estar, tapizados y cortinados, y demás<br />
instalaciones de las salas –pese a las quejas<br />
de Chevalier- se fueron mejorando a<br />
medi<strong>da</strong> que el crecimiento de la activi<strong>da</strong>d<br />
teatral así lo exigía.<br />
Los precios de las entra<strong>da</strong>s variaban,<br />
según el teatro y el tipo de espectáculo<br />
ofrecido e iban desde los $0.30, cobrados<br />
en los teatros más pequeños y en general<br />
para proyecciones de cine, hasta los $2.5<br />
que llegaban a cobrarse en los teatros más<br />
importantes de la calle Corrientes. En sí,<br />
los precios más económicos no significaban<br />
un costo excesivo si se los compara,<br />
por ejemplo, con los precios de algunos<br />
alimentos básicos (0,60 por un kilo de pan,<br />
$0,20 el litro de leche, $0,50 el kilo de fideos<br />
y $0,60 el kilo de carne) 8 o en relación al<br />
8 Datos extraídos del Boletín Mensual de Estadística<br />
Municipal de la Ciu<strong>da</strong>d de Buenos Aires. 1925.<br />
El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 21
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
22<br />
salario ofrecido para una mucama ($70<br />
mensuales) en los avisos clasificados de un<br />
diario de 1926.<br />
Funcionamiento por secciones<br />
Tanto las salas del centro como las<br />
de los barrios abrían sus puertas todos<br />
los días, desde las 18:00 hs y hasta la<br />
medianoche y ofrecían funciones por<br />
secciones. Habitualmente, los teatros<br />
tenían hasta 4 funciones diarias, sucesivas,<br />
que permitía combinar representaciones<br />
teatrales con otras musicales y hasta<br />
circenses. Algunos teatros ponían<br />
restricciones para la admisión del<br />
público y anunciaban sus espectáculos<br />
como “no aptos para señoritas”. Pero<br />
el grueso de la cartelera lo ocupaban<br />
obras cortas, con tramas sencillas, con<br />
personajes y situaciones típicamente<br />
urbanas, a veces presenta<strong>da</strong>s de manera<br />
caricaturesca, preferentemente en tono<br />
de comedias aunque también había<br />
dramas, acompañados de música en<br />
vivo. Esas eran las obras considera<strong>da</strong>s<br />
como de género chico.<br />
El funcionamiento por secciones<br />
permitía que los teatros diversificaran<br />
sus ofertas de entretenimiento para que<br />
el público pudiera adecuar sus<br />
preferencias a su disponibili<strong>da</strong>d<br />
económica y de tiempo. Por un lado<br />
porque las entra<strong>da</strong>s se compraban para<br />
ca<strong>da</strong> función: quien quisiera podía<br />
comprar para una sola función o para<br />
varias. Por otro lado, <strong>da</strong>do que las<br />
obras eran relativamente breves, ca<strong>da</strong><br />
presentación no llevaba mucho más de<br />
una hora: quienes asistían no necesitaban<br />
disponer de to<strong>da</strong> la tarde o to<strong>da</strong> la noche<br />
para pasar un momento de distracción<br />
y ocio. En una calle Corrientes donde<br />
circulaban día a día miles de personas<br />
la flexibili<strong>da</strong>d que ofrecía el sistema<br />
por secciones era una oportuni<strong>da</strong>d para<br />
diversificar ofertas y apuntar a una<br />
mayor canti<strong>da</strong>d de público.<br />
Compañías y actores<br />
A medi<strong>da</strong> que las salas y las funciones se<br />
multiplicaban, también aumentaba el número<br />
de gente vincula<strong>da</strong> a la activi<strong>da</strong>d teatral.<br />
Los artistas se agrupaban en compañías, las<br />
cuales estaban a cargo de un empresario que<br />
podía ser también el actor principal de la<br />
agrupación e incluso el dueño del teatro en<br />
el cual la compañía realizara la tempora<strong>da</strong>.<br />
Internamente, la compañía se organizaba<br />
partir de una jerarquía asocia<strong>da</strong> a roles<br />
prefijados tales como primer actor o primera<br />
figura, galán joven, <strong>da</strong>ma joven, actores<br />
de caracterización, etc. 9 Un relevamiento<br />
organiza<strong>da</strong> por una publicación de la época,<br />
el Anuario Teatral Argentino, indicaba<br />
que para 1925 era posible identificar y<br />
caracterizar a unas 118 compañías (según su<br />
nombre, director, género al que se dedicaba,<br />
canti<strong>da</strong>d de artistas, etc). El número de<br />
integrantes variaba de entre 10 y 40 artistas.<br />
Si se multiplica la canti<strong>da</strong>d de compañías<br />
por un número variable de artistas por<br />
compañía (25 en promedio) el resultado <strong>da</strong><br />
una idea del número de artistas que trabajan<br />
en los escenarios porteños: cerca de 3000.<br />
Además de los actores y actrices, la<br />
compañía podía contar también –aunque<br />
con roles más secun<strong>da</strong>rios- con coristas,<br />
bailarines y músicos en algunos casos.<br />
Y junto a ellos trabajaban técnicos,<br />
maquinistas, iluminadores, acomo<strong>da</strong>dores<br />
y otros tantos oficios indispensables para<br />
que la función pue<strong>da</strong> representarse. La<br />
puesta de las obras y la coordinación de<br />
las tares estaba a cargo de uno o varios<br />
directores, tal el caso de los mencionados<br />
Ivo Pelay y Manuel Romero. Alrededor<br />
de todos ellos se movía el mundo de la<br />
farándula de la época: los autores, los<br />
empresarios, pero principalmente los<br />
actores y las actrices eran personali<strong>da</strong>des<br />
conoci<strong>da</strong>s, queri<strong>da</strong>s y de las cuales se<br />
hablaba en diarios y revistas.<br />
9 De esos roles dependía el sueldo que se cobraba. No<br />
obstante, la compañía en sí misma era un espacio para hacer<br />
carrera. Quienes ingresaban con un papel muy discreto<br />
podían ascender y conseguir un rol más destacado.<br />
Carolina González Velasco
N° 16 | Junho de 2011<br />
Mundo del teatro, mundo del trabajo?:<br />
empresarios y artistas<br />
Visto desde otra perspectiva, el<br />
mundo del teatro funcionaba con una<br />
lógica comercial: los dueños de las salas<br />
eran empresarios que organizaban,<br />
contrataban u ofrecían las instalaciones<br />
para que las compañías realicen la<br />
tempora<strong>da</strong>. Su ganancia provenía<br />
básicamente de la venta de entra<strong>da</strong>s o del<br />
arren<strong>da</strong>miento de la sala. Si bien solían<br />
denunciar -a través de su propia enti<strong>da</strong>d<br />
corporativa, la Socie<strong>da</strong>d de Empresarios<br />
Teatrales- los riesgos del negocio del<br />
espectáculo y los altos impuestos que<br />
pagaban, las estadísticas fiscales de la<br />
Municipali<strong>da</strong>d sobre lo recau<strong>da</strong>do en<br />
los teatros indica que aún con riesgos el<br />
negocio del espectáculo era rentable.<br />
La contra<strong>parte</strong> de esto es el hecho de<br />
que los artistas eran trabajadores en el<br />
sentido de que estaban enrolados en una<br />
compañía, que dependían de un salario<br />
(pautado a través de distintos tipos de<br />
contrato) y que debían cumplir con una<br />
serie de condiciones laborales. En un<br />
contexto particular en el cual la activi<strong>da</strong>d<br />
teatral se extendía pero los empresarios<br />
querían ganar ca<strong>da</strong> vez más y en una<br />
coyuntura de extrema conflictivi<strong>da</strong>d<br />
social emergieron una serie de conflictos<br />
sindicales y políticos que pusieron en<br />
tensión al mundo del teatro.<br />
En efecto, en 1919 y 1921 –años de<br />
intensa movilización y conflictivi<strong>da</strong>d<br />
social en Buenos Aires- las activi<strong>da</strong>des<br />
teatrales que<strong>da</strong>ron paraliza<strong>da</strong>s por<br />
sen<strong>da</strong>s huelgas declara<strong>da</strong>s en el primer<br />
caso por los actores y en el segundo<br />
moviliza<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentalmente por la<br />
enti<strong>da</strong>d gremial de los autores. Más allá<br />
de las reivindicaciones plantea<strong>da</strong>s y los<br />
diversos sucesos acontecidos, ambos<br />
conflictos dieron cuenta de la importancia<br />
que las enti<strong>da</strong>des gremiales de actores<br />
y autores tenían como instancias de<br />
organización y representativi<strong>da</strong>d en el<br />
mundo del teatro y frente a la socie<strong>da</strong>d.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Incluso, desde el gremio de los autores se<br />
promovió la creación de una Federación<br />
de Gentes de Teatros, una enti<strong>da</strong>d que<br />
buscaba nuclear a todos los oficios y<br />
profesiones artísticas (GONZALEZ<br />
VELASCO, 2009).<br />
Los artistas también participaron<br />
del espacio político porteño. En 1926,<br />
pasa<strong>da</strong> la etapa de conflictivi<strong>da</strong>d, se<br />
creó un partido político de alcance local<br />
llamado Gente de Teatro, que consiguió<br />
que su primer candi<strong>da</strong>to, el conocido<br />
actor y empresario Florencio Parravicini,<br />
se consagrara concejal de la ciu<strong>da</strong>d de<br />
Buenos Aires. La experiencia política<br />
de los artistas –por diversas razones-<br />
fue efímera pero alcanza para mostrar<br />
la inserción que el mundo del teatro<br />
tenía en la socie<strong>da</strong>d y en la política<br />
porteña. En las elecciones municipales<br />
solían presentarse muchos pequeños y<br />
ocasionales partidos, pero en general<br />
los resultados siempre favorecían a<br />
las agrupaciones más grandes y con<br />
mayor proyección nacional: radicales<br />
y socialistas. Gente de Teatro, pese a<br />
su precaria y fugaz organización, logró<br />
sumarse momentáneamente a estos<br />
elencos políticos, y en gran medi<strong>da</strong><br />
este resultado positivo remite a la<br />
populari<strong>da</strong>d –gana<strong>da</strong> en los escenarios<br />
de teatro -y no en púlpitos o mitines<br />
político - de quienes integraban la lista.<br />
Como sea, la activi<strong>da</strong>d teatral siempre<br />
fue discuti<strong>da</strong> en el Concejo Deliberante<br />
–la instancia del gobierno municipal- más<br />
allá de la llega<strong>da</strong> de la representación<br />
de los artistas <strong>da</strong><strong>da</strong> la importancia<br />
pública que la misma tenía: la seguri<strong>da</strong>d<br />
de los espectáculos, considerando la<br />
canti<strong>da</strong>d de gente que circulaba por<br />
ellos, y los impuestos a cobrar, <strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />
las ganancias de los empresarios eran<br />
los dos principales problemas sobre<br />
los que la municipali<strong>da</strong>d se expedía. Si<br />
bien existía una Comisión encarga<strong>da</strong><br />
de aplicar censura en determinados<br />
casos, prácticamente no se encuentran<br />
acontecimientos de este tipo.<br />
El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 23
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
24<br />
El teatro en el mundo editorial<br />
Durante los años ’20 el mercado editorial<br />
de la ciu<strong>da</strong>d experimentaba también<br />
una etapa de auge: por diversas razones<br />
–entre las cuales se cuenta los elevados<br />
índices de alfabetización de la ciu<strong>da</strong>d-<br />
en los años ’20 se publicaban decenas de<br />
diarios y revistas de todo tipo, además de<br />
colecciones de libros, a bajo costo y con<br />
una amplia difusión (ROMERO, 2000). La<br />
activi<strong>da</strong>d teatral encontró también su nicho<br />
y requirió que los periódicos contaran con<br />
secciones y periodistas especializados en<br />
temas teatrales. Día a día, en la columna<br />
de espectáculos se informaba sobre los<br />
estrenos programas, se publicaban las<br />
críticas a las obras en cartel y se comentaba<br />
la actuali<strong>da</strong>d del mundo artístico.<br />
Además, el interés de la socie<strong>da</strong>d<br />
por el teatro y las favorables condiciones<br />
editoriales también significaron la<br />
circulación de decenas de revistas<br />
especializa<strong>da</strong>s, algunas de las cuales se<br />
dedicaban no sólo a comentar y discutir<br />
cuestiones de la activi<strong>da</strong>d teatral sino<br />
también a publicar semanalmente los<br />
libretos de las obras estrena<strong>da</strong>s. Algunos de<br />
estos proyectos tuvieron una vi<strong>da</strong> efímera,<br />
pero otros fueron más exitosos. Vistos en<br />
conjunto indican que, por ejemplo, entre<br />
1918 y 1923 se editaron simultáneamente al<br />
menos 10 revistas de teatro, repartiéndose<br />
su aparición a lo largo de la semana. Las<br />
revistas Bambalinas y La Escena, ambas de<br />
aparición semanal y sistemática entre 1918<br />
y comienzos de los ‘30, fueron dos de las<br />
más importantes. Juntas, editaron cerca de<br />
1800 obras, to<strong>da</strong>s de autores nacionales y<br />
uruguayos, y casi to<strong>da</strong>s estrena<strong>da</strong>s en los<br />
años ’20. 10<br />
Esa canti<strong>da</strong>d de obras publica<strong>da</strong>s<br />
<strong>da</strong> cuenta, en definitiva de la abun<strong>da</strong>nte<br />
producción dramática de los años ’20 y del<br />
importante número de autores que trabajan<br />
10 Bambalinas se publicó entre 1919 y 1934, según el catálogo<br />
editó 921 títulos. La revista La Escena, se publicó entre 1918-1933,<br />
editó 797 títulos. Sobre las revistas teatrales, MAZZIoTTI, Nora..<br />
Bambalinas: el auge de una mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>d teatral periodística, en<br />
ARMUS, Diego (comp) Mundo urbano… (op. CIt).<br />
para dotar a una deman<strong>da</strong>nte cartelera. La<br />
enti<strong>da</strong>d gremial de los autores, hacia 1920,<br />
contaba con más de 200 socios. Algunos<br />
trabajaban a pedido, y escribían sus obras<br />
según expresas indicaciones de actores<br />
o empresarios. Otros, más reconocidos,<br />
ofrecían sus obras a quienes ellos quisieran.<br />
Los contratos entre autores y empresarios<br />
variaban, pero básicamente se esperaba<br />
que el autor cobrara “derechos de autor”,<br />
un porcentaje ya estipulado a partir de la<br />
venta de las entra<strong>da</strong>s de las funciones en<br />
las que se representara la obra en cuestión.<br />
Esta tramitación era controla<strong>da</strong> por la<br />
enti<strong>da</strong>d gremial de los autores.<br />
La ciu<strong>da</strong>d en el género chico<br />
¿De qué se trataban estas obras? La<br />
consideración de los títulos de las obras<br />
edita<strong>da</strong>s en las revistas Bambalinas y La<br />
Escena permite aseverar la centrali<strong>da</strong>d que<br />
la temática urbana tenía en el conjunto de<br />
las obras. La relación con su propio contexto<br />
histórico es otro aspecto definitorio: son<br />
muy pocas las obras de carácter histórico,<br />
prácticamente to<strong>da</strong>s las obras se inician<br />
con la indicación “época actual”.<br />
La ciu<strong>da</strong>d se despliega en las obras a<br />
través de múltiples entra<strong>da</strong> y esto permite<br />
<strong>da</strong>r cuenta de distintas experiencias de<br />
la vi<strong>da</strong> urbana: los espacios de la ciu<strong>da</strong>d,<br />
la política, las relaciones domésticas, de<br />
género, étnicas, o el problema de la vi<strong>da</strong><br />
urbana fueron algunos de los temas a partir<br />
de los cuales el teatro mostró la ciu<strong>da</strong>d y la<br />
vi<strong>da</strong> cotidiana. El teatro además lo mostró<br />
de manera polifónica, <strong>da</strong>ndo cuenta de<br />
las distintas mira<strong>da</strong>s y voces que sobre<br />
tal o cual cuestión circulaban. A su vez,<br />
considerando la diversi<strong>da</strong>d de la platea<br />
que asistía las funciones, probablemente<br />
hayan funcionado de manera polisémica,<br />
facilitando que esas imágenes sean<br />
significa<strong>da</strong>s de distintas maneras.<br />
Así, por ejemplo, muchas de las obras<br />
tomaron como título el nombre de algún<br />
barrio: “Nueva Pompeya”; “Los zorzales<br />
de Pompeya”; “En un rincón de la Boca”;<br />
“Palermo chico”, “Allá cerca e la Floresta”,<br />
Carolina González Velasco
N° 16 | Junho de 2011<br />
“El barrio de Balvanera”. En algunos casos,<br />
el barrio sólo funciona como escenografía<br />
para situar el argumento de la obra. En<br />
otros, las características particulares del<br />
barrio condicionan el desarrollo de la obra.<br />
A su vez, los modos de presentar los barrios<br />
de la ciu<strong>da</strong>d variaban de una obra a otra y<br />
según de qué barrios se hablara: en algunos<br />
casos, los barrios –sobre todo los de la zona<br />
sur- eran asociados a la mala vi<strong>da</strong> aunque<br />
también –<strong>da</strong>do que eran la zona en la que<br />
se ubicaban la mayoría de las fábricas y el<br />
puerto- a la vi<strong>da</strong> de los trabajadores. En otras<br />
obras, se hablaba de los barrios en tono de<br />
nostalgia, aludiendo a situaciones que ya<br />
habían desaparecido y esto mismo cargaba<br />
a los barrios de valores a defender frente al<br />
avance de la vi<strong>da</strong> moderna. Para mediados<br />
de los años ’30, muchas de las características<br />
asigna<strong>da</strong>s a los barrios ya habían decantado<br />
en imágenes más comparti<strong>da</strong>s sobre lo que<br />
los barrios eran. La obra “La canción de los<br />
barrios”, sintetiza ese punto de llega<strong>da</strong>, al<br />
presentar en distintos cuadros las principales<br />
características de ca<strong>da</strong> una de las zonas<br />
porteñas reconoci<strong>da</strong>s como barrios.<br />
El teatro también habló de la ciu<strong>da</strong>d a<br />
través de la mención, en los títulos, de los<br />
nombres de las calles que, por distintas<br />
razones, eran significativas: Boedo y San<br />
Juan, esquina asocia<strong>da</strong> a uno de los clubes<br />
de futbol más importantes de los años ’20 y<br />
’30 (San Lorenzo de Almagro); Corrientes<br />
y Esmeral<strong>da</strong>, Corrientes 3-4-8 (2º), La Calle<br />
Flori<strong>da</strong>, calles éstas asocia<strong>da</strong>s a la diversión,<br />
los teatros y los cabarets. También a<br />
través de los nombres de sus principales<br />
teatros y cabarets: Las chicas del Maipo,<br />
Al Politeama Chofe, La pebeta del Ba-Ta-<br />
Clan, La bailarina del Empire Theatre,<br />
La muchacha<strong>da</strong> del Pigall, Montmartre,<br />
Armenonville. 11<br />
La vi<strong>da</strong> moderna, como aspecto clave<br />
y representativo de la ciu<strong>da</strong>d estuvo<br />
presente, como modo de predicar sobre<br />
la vi<strong>da</strong> urbana: así, en distintas obras se<br />
hablaba –a veces de manera central, a veces<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
de manera accesoria- de la importancia<br />
que determinados productos considerados<br />
“modernos” tenían en la vi<strong>da</strong> cotidiana.<br />
En la obrita “Los hinchas- Triunvirato<br />
Footbal club”´ y en “Hoy transmite<br />
RATTI-CULTURA”, la radio era un<br />
elemento fun<strong>da</strong>mental para el desarrollo<br />
del argumento de la obra. Por su <strong>parte</strong>,<br />
en la obrita “La escuela de los au<strong>da</strong>ces”,<br />
el uso de los teléfonos también era un<br />
elemento de relevancia. Y en “Mi familia<br />
tiene un Ford” el uso del automóvil es, de<br />
hecho, el tema central sobre el cual trata la<br />
obra. También en relación al uso de estos<br />
productos, las obras combinan una mira<strong>da</strong><br />
que critica su difusión (mostrando cómo<br />
los automóviles generan, por ejemplo,<br />
accidentes) pero que al mismo tiempo<br />
ratifica la difusión que los mismos tenían<br />
en la vi<strong>da</strong> cotidiana de los porteños.<br />
Por otro lado, al situar a las obras<br />
en su contexto, es decir, pensa<strong>da</strong>s como<br />
artefactos que describen y construyen<br />
imágenes de la ciu<strong>da</strong>d, que son vistas por<br />
cientos y cientos de personas ca<strong>da</strong> día,<br />
y luego leí<strong>da</strong>s en los ejemplares de las<br />
revistas, la posibili<strong>da</strong>d de que cumplan<br />
alguna otra función además de la divertir<br />
a un amplio público se presenta como<br />
una veta de análisis a explorar. En este<br />
punto, la explicación de Peter Fritzsche<br />
sobre la función que la prensa cumplía<br />
en Berlín para 1900, 12 es por demás<br />
sugerente. También para un contexto de<br />
rápidos y profundos cambios urbanos,<br />
Fritzsche muestra cómo los periódicos<br />
de circulación masiva crearon una<br />
“ciu<strong>da</strong>d textual”, que interactuaba con<br />
la “ciu<strong>da</strong>d de cemento”. En una época de<br />
cambios demográficos que implicaron la<br />
llega<strong>da</strong> de muchos nuevos habitantes<br />
y la reorganización de los espacios<br />
urbanos, los diarios eran la llave para<br />
poder conocer la ciu<strong>da</strong>d, recorrerla,<br />
disfrutarla y sortear sus peligros. De<br />
ahí que el mencionado autor considere<br />
que la prensa funcionaba como una<br />
“enciclopedia urbana”.<br />
11 El Maipo, Politeama, Ba-Ta-Clan y el Empire Theatre eran<br />
algunos de los teatros más importantes de la época; Pigall,<br />
Montmartre, Armenonville eran los cabarets más famosos. 12 FRITZSCHE, Peter. Berlin 1900… op. Cit<br />
El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 25
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
26<br />
Desde esta perspectiva, entonces, es<br />
posible sostener que, si el género chico<br />
era un teatro predominante urbano, se<br />
dirigía a un público masivo y funcionaba<br />
en diálogo permanente con su propio<br />
contexto, estableciendo una relación de i<strong>da</strong><br />
y vuelta entre “la ciu<strong>da</strong>d teatraliza<strong>da</strong>” y “la<br />
ciu<strong>da</strong>d de cemento”, es posible pensarlo<br />
también como una “enciclopedia urbana”.<br />
Puesto en el contexto de una ciu<strong>da</strong>d que<br />
crecía a ritmo sostenido y en una socie<strong>da</strong>d<br />
caracteriza<strong>da</strong> por el cambio y mezcla, estas<br />
obras pudieron funcionar como guías para<br />
habitar y vivir esa ciu<strong>da</strong>d, en la medi<strong>da</strong> en<br />
que la mostraban, la explicaban, la discutían<br />
y la recreaban desde distintos ángulos. En<br />
diálogo con la prensa, la literatura y el<br />
tango, el teatro también construyó sentidos<br />
sobre la ciu<strong>da</strong>d y la vi<strong>da</strong> urbana.<br />
Buenos Aires, Gente de Teatro<br />
Al día siguiente del estreno Chevalier,<br />
la crónica teatral de un importante diario<br />
de la ciu<strong>da</strong>d comentaba: “Un espectáculo<br />
variado y entretenido y en el que<br />
abun<strong>da</strong>n notas de buen gusto. `Chevalier<br />
revista`[título de la revista en la que<br />
actuaba Chevalier] atraerá público muchas<br />
noches. Será una compensación mereci<strong>da</strong><br />
por el esfuerzo realizado por los dirigentes<br />
del Porteño”. 13 Y así fue. Su actuación fue<br />
aplaudi<strong>da</strong> durante to<strong>da</strong> la tempora<strong>da</strong> y<br />
durante varios meses, el Porteño funcionó<br />
prácticamente a pleno en ca<strong>da</strong> una de las<br />
secciones en las que actuaba el francés.<br />
Su paso por la capital permitió, tal como<br />
suponía Álvarez, consoli<strong>da</strong>r la revista de<br />
corte francés en los escenarios porteños. 14<br />
La anécdota de Chevalier y de<br />
Alvarez deja huellas para <strong>da</strong>r cuenta de<br />
la importancia del fenómeno teatral pero<br />
también permite adentrarse en el análisis<br />
13 Maurice Chevalier se presentó anoche en el Porteño. La<br />
Razón, 27 de mayo 1925.<br />
14 El Boletín del Círculo Argentino de Autores, enti<strong>da</strong>d gremial<br />
de los autores de teatro publicaba mensualmente un listado<br />
con los títulos y géneros de las obras estrena<strong>da</strong>s: a partir de<br />
1926 más de la mitad de los estrenos corresponden a revistas.<br />
de la socie<strong>da</strong>d y sus diversas experiencias.<br />
La configuración del centro como paisaje<br />
urbano vinculado a los entretenimientos,<br />
por ejemplo, fue resultado del cruce entre<br />
una cierta disponibili<strong>da</strong>d de recursos y<br />
de tiempo para gastar en ocio por <strong>parte</strong><br />
de los diferentes sectores sociales y el<br />
interés de empresarios de responder y<br />
aprovechar esa disposición. Un mercado<br />
de entretenimientos se configuraba entre<br />
las deman<strong>da</strong>s (y disponibili<strong>da</strong>des) de la<br />
socie<strong>da</strong>d y la oferta de los empresarios:<br />
asistir al teatro era una práctica que<br />
podría vincularse, entre otras cosas, al<br />
consumo. Como hemos indicado en otro<br />
trabajo, 15 la concentración de activi<strong>da</strong>des<br />
recreativas en esta zona combina<strong>da</strong> con<br />
las características de su funcionamiento<br />
explica en <strong>parte</strong> la emergencia de un<br />
mercado de entretenimientos. A su vez, la<br />
configuración de este mercado remite a los<br />
procesos de transformaciones de la ciu<strong>da</strong>d y<br />
la socie<strong>da</strong>d mencionados. Por otro lado, los<br />
años ’20 fueron, en particular, una etapa de<br />
mayor estabili<strong>da</strong>d económica en comparación<br />
con los años inmediatos a la finalización<br />
de la guerra: la relación de los precios y<br />
los salarios favoreció a los consumidores<br />
y las familias, fun<strong>da</strong>mentalmente las de<br />
los sectores medios, dispusieron de ciertos<br />
márgenes económicos y más disponibili<strong>da</strong>d<br />
de tiempo para consumir bienes y prácticas<br />
vincula<strong>da</strong>s al ocio o la recreación. Por otro<br />
lado, el progreso material de la ciu<strong>da</strong>d,<br />
su expansión física, la emergencia de los<br />
barrios y el desarrollo de la infraestructura<br />
y los transportes, al tiempo que reordenó los<br />
espacios urbanos asociados a la residencia, el<br />
trabajo y la recreación, facilitó la circulación y<br />
el aprovechamiento del tiempo. La prensa y<br />
diversas publicaciones, también fenómenos<br />
propios de la vi<strong>da</strong> urbana, informaban a<br />
diario sobre la cartelera de teatros y cines,<br />
sus horarios, direcciones, etc, lo cual también<br />
alentaba y facilitaba el acercamiento al<br />
centro (GUTIÉRREZ; ROMERO, 1989).<br />
15 GoNZÁLEZ VELASCo, Carolina. Una pandilla de truhanes y<br />
un cándido público: el negocio de los espectáculos teatrales,<br />
Buenos Aires, 1920. Revista Nuevos Mundos Mundo Nuevo<br />
(en prensa).<br />
Carolina González Velasco
N° 16 | Junho de 2011<br />
Visto desde otra perspectiva, el<br />
negocio de los espectáculos se apoyaba en<br />
un conjunto de actores, autores, músicos,<br />
maquinistas y otros tantos oficios que eran<br />
en definitiva quienes día a día <strong>da</strong>ban vi<strong>da</strong> a<br />
las funciones. Para todos ellos el mundo del<br />
teatro era, entre otras cosas, su ámbito de<br />
trabajo y en función de él – y de la experiencia<br />
misma del trabajo- configuraron diversas<br />
identi<strong>da</strong>des colectivas. La “compañía” era<br />
la instancia de organización del trabajo<br />
de los artistas: los actores eran actores de<br />
una compañía, por ejemplo. Pero en el<br />
contexto de conflictivi<strong>da</strong>d y movilización<br />
que sacudió a to<strong>da</strong> la socie<strong>da</strong>d porteña<br />
en los años inmediatamente posteriores<br />
a la primera guerra mundial, ese modo<br />
de definir identi<strong>da</strong>des y pertenencias fue<br />
puesto en cuestión y redefinido.<br />
La instancia en donde más claramente<br />
que<strong>da</strong> evidencia<strong>da</strong> la relación entre el<br />
mundo del teatro y la socie<strong>da</strong>d porteña,<br />
el punto de encuentro, son las obras que<br />
llenaban la cartelera de los teatros: escritas<br />
por autores, representa<strong>da</strong>s por actores<br />
con la ayu<strong>da</strong> de otros oficios, elegi<strong>da</strong>s y<br />
modifica<strong>da</strong>s por los empresarios, vistas y<br />
comenta<strong>da</strong>s por el público, promociona<strong>da</strong>s<br />
y critica<strong>da</strong>s por la prensa y finalmente leí<strong>da</strong>s<br />
por un público que, más allá de haber ido o<br />
no al teatro, elegía leer (y tal vez representar<br />
en los cuadros filodramáticos) los libretos.<br />
Todos los integrantes del mundo del<br />
teatro, incluido en este caso el público, de<br />
un modo u otro establecían algún tipo de<br />
relación y de apropiación con las obras.<br />
En este sentido, las obras concentraban ese<br />
encuentro entre los múltiples participantes<br />
del mundo del teatro.<br />
A su vez las obras, <strong>da</strong><strong>da</strong> la diversi<strong>da</strong>d<br />
temática plantea<strong>da</strong> como también la<br />
diversi<strong>da</strong>d de voces que es posible<br />
reconstruir sobre ca<strong>da</strong> uno de esos temas,<br />
expresan claramente a esa socie<strong>da</strong>d<br />
de mezcla, atravesa<strong>da</strong> por procesos de<br />
movili<strong>da</strong>d y transformación.<br />
Si, tal como lo han hecho muchos<br />
estudios del teatro, el foco del análisis se<br />
apoya en los aspectos estéticos y valorativos<br />
en relación a la evolución de la dramaturgia<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
o en aquellos de crítica y denuncia por el<br />
carácter comercial de los espectáculos, el<br />
mundo social del teatro –con sus actores, sus<br />
conflictos, sus prácticas y representaciones,<br />
sus modos de funcionamiento- parece<br />
que<strong>da</strong>r sólo como trasfondo sin preguntas<br />
que lo problematicen. Desde nuestra<br />
perspectiva, es a través de las herramientas<br />
de la historia con las cuales es posible<br />
ampliar la lente para in<strong>da</strong>gar sobre la vi<strong>da</strong><br />
teatral porteña de los años ’20.<br />
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del teatro porteño, 1919-1921 en BERTONI<br />
El teatro de género chico en Buenos Aires en los años '20, una mira<strong>da</strong> de conjunto desde la historia social 27
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
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Carolina González Velasco
N° 16 | Junho de 2011<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Ensaio. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Atores: Médico Interno [Vicente Concílio]<br />
e Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 29
N° 16 | Junho de 2011<br />
DESFECHoS TRÁGICoS E<br />
REFERÊNCIAS EXPRESSIoNISTAS<br />
NAS TRAGÉDIAS CARIoCAS DE<br />
NELSoN RoDRIGUES<br />
Resumo<br />
O presente artigo propõe uma leitura do ciclo denominado<br />
tragédias cariocas, conjunto de oito peças escritas pelo<br />
dramaturgo Nelson Rodrigues entre 1953 e 1978, com<br />
o objetivo de analisar em que sentido os desfechos de<br />
malogro <strong>da</strong>s personagens rodriguianas se aproximam de<br />
recursos expressionistas empreendidos pelo dramaturgo<br />
em alguns textos.<br />
Palavras-chave: Nelson Rodrigues, tragici<strong>da</strong>de,<br />
expressionismo.<br />
Abstract<br />
This paper's proposal is to study the cycle entitled<br />
"carioca tragedies", a group of eight plays written by<br />
Nelson Rodrigues between 1953 and 1978. The aim is to<br />
analyse how the unsuccessful outcomes of the rodriguian<br />
characters are similar to expressionist elements used by<br />
the playwright in some texts.<br />
Keywords: Nelson Rodrigues, tragic, expressionism.<br />
Elen de Medeiros 1<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 31
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
32<br />
Uma breve introdução<br />
No teatro de Nelson<br />
Rodrigues, pode-se<br />
observar a constante<br />
presença de personagens<br />
que, ao reprimir um<br />
impulso – em sua grande maioria, de<br />
ordem sexual –, entram em conflito com a<br />
instituição que lhes impõe a determina<strong>da</strong>s<br />
regras. Essas instituições sociais podem<br />
ser identifica<strong>da</strong>s como a família, a igreja<br />
ou o trabalho. No desenvolvimento do<br />
enredo, as personagens, impulsiona<strong>da</strong>s<br />
pelo conflito constante, resolvem liberar<br />
seus “estranhamentos” sexuais, o que<br />
causará inevitavelmente um rompimento<br />
de regras e tabus para, em segui<strong>da</strong>, elas<br />
sofrerem as consequências dessa liberação<br />
de seus desejos. A partir <strong>da</strong> revelação do<br />
desejo, o enredo sofre um golpe de teatro e<br />
acompanhamos a derroca<strong>da</strong> sobretudo <strong>da</strong>s<br />
protagonistas. Esses <strong>da</strong>nos – o malogro <strong>da</strong>s<br />
personagens – em geral coincidem com o<br />
desfecho dos acontecimentos; exatamente<br />
no momento em que temos no resultado a<br />
consequência <strong>da</strong> liberação dos desejos <strong>da</strong>s<br />
personagens, é o momento em que a história<br />
se encerra, dentro de uma lineari<strong>da</strong>de de<br />
tempo. Há um grande número de peças deste<br />
dramaturgo cujo enredo é alinear, contado<br />
através de flashbacks. Por isso, muitas vezes,<br />
os momentos mais trágicos antecipam o<br />
final <strong>da</strong> peça e não necessariamente se<br />
coincidem. Esse desfecho trágico ao qual<br />
me refiro não necessariamente é a morte <strong>da</strong><br />
protagonista ou <strong>da</strong>s personagens – e nem<br />
sempre atinge a to<strong>da</strong>s elas.<br />
Acerca do expressionismo<br />
No Brasil, apenas alguns autores<br />
sofreram influências, e limita<strong>da</strong>s, do<br />
expressionismo, até porque não se pode<br />
1 Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP.<br />
Desenvolveu, no mestrado e doutorado, pesquisa sobre a<br />
dramaturgia de Nelson Rodrigues. É membro-fun<strong>da</strong>dor do<br />
Grupo de Estudos em Dramaturgia Letra e Ato, vinculado<br />
Departamento de Artes Cênicas <strong>da</strong> UNICAMP.<br />
afirmar a existência efetiva de um autor<br />
expressionista aqui (LIMA, 2002). 2 Em<br />
Nelson Rodrigues, é perceptível uma<br />
maior influência expressionista nas peças<br />
míticas, com suas deformações, a violência<br />
com que se dirigem ao público, a maneira<br />
agressiva como reagem a situações sociais,<br />
principalmente no que diz respeito<br />
a situações que envolvem a cama<strong>da</strong><br />
burguesa <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Robert Bledsoe<br />
(1971), inclusive, defende a existência do<br />
ciclo expressionista em Nelson Rodrigues,<br />
que compreende cinco peças: Vestido de<br />
noiva, Álbum de família, Anjo negro, Dorotéia<br />
e Senhora dos afogados.<br />
Quando escreveu as tragédias cariocas,<br />
o dramaturgo saiu do campo mítico de<br />
representação e se voltou para um olhar <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de mais colado à reali<strong>da</strong>de. Nessa<br />
transição, ele deixou para trás muitos dos<br />
meios representativos expressionistas. Mas,<br />
por pouco que seja, ain<strong>da</strong> assim restaram<br />
alguns traços dessa estética eminentemente<br />
alemã. Os resquícios expressionistas nas<br />
peças aqui em questão parecem estar<br />
ligados ao desfecho, ain<strong>da</strong> que algumas<br />
delas contenham uma especifici<strong>da</strong>de<br />
expressionista mais evidente em outros<br />
momentos.<br />
Segundo Casals (s.d.), Fraga<br />
(1998), Palmier (1979), dentre outros, o<br />
expressionismo não chegou a se constituir<br />
um movimento propriamente dito,<br />
estruturado e com doutrina defini<strong>da</strong>.<br />
Foi antes uma atmosfera confusa, que se<br />
manifestou principalmente na Alemanha,<br />
uma expressão artística que foi capaz de<br />
transformar a vi<strong>da</strong> cultural alemã em to<strong>da</strong>s<br />
as suas manifestações.<br />
Para Jean-Michel Palmier, o<br />
expressionismo não é original em sua<br />
forma ou em seu estilo, mas sim na maneira<br />
de tratá-los. Isso confirma a ideia de que<br />
tal manifestação não tinha uma formação<br />
clara e objetiva, mas era uma arte subjetiva.<br />
2 o bailado do Deus morto, de Flávio de Carvalho, cuja estreia<br />
ocorreu em 1933, é considera<strong>da</strong> uma peça expressionista.<br />
Ela foi escrita às pressas para a inauguração do Teatro <strong>da</strong><br />
Experiência e, segundo Lima (2002), teve sua importância<br />
bastante relativiza<strong>da</strong>, pois chegou tarde e foi logo esqueci<strong>da</strong>.<br />
Elen de Medeiros
N° 16 | Junho de 2011<br />
O que o expressionismo faz, explica<br />
Eudinyr Fraga, é antepor o feio, o banal,<br />
o escabroso, sobrepondo-os à beleza. Em<br />
uma primeira análise, grosso modo, podese<br />
afirmar que essas características são<br />
facilmente encontra<strong>da</strong>s na dramaturgia<br />
de Nelson, uma vez que o feio e o banal<br />
estão presentes em suas peças, inclusive<br />
nas tragédias cariocas. Por outro lado, há um<br />
distanciamento do expressionismo nestas<br />
peças se outro aspecto dessa estética for<br />
desvelado: na encenação expressionista,<br />
trabalha-se a deformação também <strong>da</strong><br />
interpretação e <strong>da</strong> significação visual e<br />
auditiva (FRAGA, 1998). Daí o palco ser o<br />
espaço interno de uma consciência, onde o<br />
protagonista tem uma real existência, mas<br />
as outras personagens são suas projeções<br />
exaspera<strong>da</strong>s. Bem sabemos que essa é<br />
uma característica de algumas peças, em<br />
especial Vestido de noiva e Valsa nº 6, mas<br />
não se enquadra em qualquer peça do<br />
último ciclo dessa dramaturgia.<br />
Um dos elementos mais salientes na<br />
dramaturgia rodriguiana é a maneira como<br />
são apontados momentos do quotidiano,<br />
que se destacam por se aproximarem do<br />
tom grotesco. Seja uma personagem que<br />
tira um cravo do nariz, um garoto que<br />
permanece o tempo todo com o dedo no<br />
nariz, um casal que disputa o banheiro ou a<br />
filha que aparece na frente do pai em trajes<br />
de lingerie, são to<strong>da</strong>s situações que chamam<br />
a atenção pela forma disforme como são<br />
postas em cena. De certa forma, essa<br />
relação com o grotesco é um traço bastante<br />
característico <strong>da</strong> estética expressionista:<br />
A reali<strong>da</strong>de projeta<strong>da</strong> a partir ou em<br />
função dessas consciências reduzi<strong>da</strong>s às<br />
linhas mais elementares, visto o excesso<br />
emocional, a pressão <strong>da</strong>s condições e o<br />
fervor profético não permitirem requintes e<br />
nuanças, apresenta forçosamente distorções<br />
violentas, traços caricaturais, desproporções<br />
e deformações grotescas. O que importava<br />
aos expressionistas não foi a beleza ou<br />
harmonia <strong>da</strong> obra e sim a força expressiva.<br />
(...) Pelo excesso hiperbólico na descrição do<br />
asqueroso tenta-se exprimir a decomposição<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e o absurdo <strong>da</strong>s condições<br />
reinantes. (ROSENFELD, 1993, p. 285).<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Voltados para a subjetivi<strong>da</strong>de, os<br />
artistas expressionistas retratam um<br />
conflito, levado ao limite em decorrência<br />
do confronto violento entre valores<br />
estabelecidos pelas autori<strong>da</strong>des e as vítimas<br />
<strong>da</strong>s convenções do poder. É desse modo que<br />
o instinto, por muito tempo aprisionado,<br />
tem triunfo momentâneo. Porém, esse<br />
instinto logo depois leva a personagem<br />
(no caso do teatro expressionista) ao<br />
aniquilamento. A dramaturgia rodriguiana<br />
passa por processo semelhante: há uma<br />
tendência à destruição após um aparente<br />
triunfo dos desejos.<br />
Casals explica que Nietzsche foi uma<br />
grande influência para o expressionismo,<br />
pois foi ele quem certificou a morte de Deus,<br />
libertando o homem <strong>da</strong>s sombras que esta<br />
figura projeta sobre ele. Assim, a partir <strong>da</strong><br />
morte de Deus, morre também a moral e<br />
nasce Dioniso; seu reinado restabelece a<br />
relação entre o instinto e a consciência. O<br />
primeiro, força de afirmação e criação, é a<br />
vi<strong>da</strong>. O último, a consciência, é a facul<strong>da</strong>de<br />
de negação, a morte. Na esteira desse<br />
pensamento, pode-se afirmar que esses<br />
dois polos perpassam genericamente a obra<br />
rodriguiana, sem poder, no entanto, dizer<br />
que exista consciência nas personagens<br />
rodriguianas. Assim, os momentos em<br />
que as personagens seguem seus instintos<br />
são as situações de felici<strong>da</strong>de (embora<br />
momentânea) desvela<strong>da</strong>; a partir do<br />
momento em que o torpor causado pela<br />
revelação de seus desejos passa, surge o<br />
fator negativo, em muitos casos, a própria<br />
morte.<br />
Desfechos trágicos<br />
Ironia e sarcasmo, recursos<br />
provocadores do riso, são elementos<br />
recorrentes na dramaturgia de Nelson<br />
Rodrigues. Por trás desse sarcasmo, há um<br />
tom de denúncia <strong>da</strong>s hipocrisias, mentiras,<br />
falcatruas e desejos, responsáveis pelo<br />
desenvolvimento <strong>da</strong> trama até desencadear<br />
em um desfecho de derroca<strong>da</strong>. Esse<br />
caminho percorrido, <strong>da</strong> relação causa e<br />
Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 33
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
34<br />
efeito, é especialmente apreciado pela obra<br />
de caráter expressionista. De uma forma<br />
ou de outra, se nem to<strong>da</strong>s as peças de<br />
Nelson têm algum caráter expressionista,<br />
elas carregam consigo, ain<strong>da</strong> assim, o uso<br />
deliberado de certo sentido do trágico.<br />
Vejamos como isso acontece efetivamente<br />
nos textos.<br />
Geni, protagonista de To<strong>da</strong> nudez será<br />
castiga<strong>da</strong>, narra os acontecimentos de sua<br />
vi<strong>da</strong> através de uma fita cassete, deixa<strong>da</strong><br />
para Herculano, seu marido. Ao iniciar a<br />
peça, ela está morta e tudo o que se passa<br />
no palco é a representação em flashback dos<br />
fatos narrados. O caminho de destruição<br />
<strong>da</strong> personagem começa muito antes, mas<br />
só acontece o aniquilamento total com o<br />
seu suicídio, já que ele é realizado depois<br />
de Geni atravessar por um processo de<br />
prostração. A morte, aqui, é o resultado<br />
de um longo período de frustrações e<br />
derrotas.<br />
Instiga<strong>da</strong> por Patrício, irmão de<br />
Herculano, Geni se apaixona pelo viúvo<br />
e se utiliza <strong>da</strong> chantagem como artifício<br />
para que ele se case com ela. No entanto,<br />
encontra em Serginho a inviabili<strong>da</strong>de<br />
de seu casamento, já que o filho de<br />
Herculano é contra qualquer união do pai<br />
com outra mulher. Algumas artimanhas,<br />
avanços e recuos que encaminham a ação<br />
acontecem ain<strong>da</strong> nos dois primeiros atos.<br />
Manipula<strong>da</strong> por Patrício, Geni exige o<br />
casamento com Herculano, que, para<br />
conseguir efetivá-lo, tenta convencer seu<br />
filho a ir para a Europa. No entanto, sua<br />
tentativa é barra<strong>da</strong> pelas tias, que não<br />
aceitam a separação do sobrinho. No<br />
final do segundo ato, Serginho se envolve<br />
em uma briga e, na prisão, é violentado.<br />
Com isso, há um golpe de teatro e os fatos<br />
mu<strong>da</strong>m de direção. Posteriormente, Geni<br />
se apaixona por Serginho e, em condição<br />
imposta pelo próprio garoto, aceita se unir<br />
a Herculano para ficar ao lado do enteado.<br />
Após casar-se com Herculano, Geni tornase<br />
amante do próprio enteado e, ao saber<br />
que ele foi embora com o ladrão boliviano,<br />
que o violentou na prisão, ela se mata, mas<br />
antes resolve contar to<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>de para o<br />
marido:<br />
(Voz grava<strong>da</strong> de Geni.)<br />
Ge n i – Teu filho fugiu, sim, com o ladrão<br />
boliviano. Foram no mesmo avião, no<br />
mesmo avião. Estou só, vou morrer só.<br />
(Num rompante de ódio) Não quero meu<br />
nome no túmulo! Não ponham na<strong>da</strong>!<br />
(Exultante e feroz) E você, velho corno!<br />
Maldito você! Maldito o teu filho, e essa<br />
família só de tias. (Num riso de louca)<br />
Lembranças à tia machona! (Num último<br />
grito) Malditos também os meus seios!<br />
(A voz de Geni se quebra num soluço.<br />
Acaba a gravação. Sons de fita inverti<strong>da</strong>.<br />
Ilumina<strong>da</strong> apenas a cama vazia.)<br />
(RODRIGUES, 1990, p. 238)<br />
Herculano, outra personagem que tem<br />
em si o caráter trágico, depara-se com a<br />
destruição de suas ilusões quando ouve, <strong>da</strong><br />
própria esposa, todos os seus infortúnios.<br />
Logo no início, Herculano chega em casa<br />
procurando pela esposa, aparentemente<br />
feliz. Mas, ao ouvir as declarações pela<br />
fita cassete, ele se depara com sua total<br />
ignorância e desdita. Patrício consegue,<br />
por meio de Geni e de Serginho, conduzir<br />
o irmão à sua completa aniquilação, pois<br />
fez com que ele perdesse a esposa e o<br />
filho, destruindo aquilo que Herculano<br />
mais prezava. A personagem é um homem<br />
católico praticante que não aceita o sexo<br />
prazeroso. Ao passar 72 horas com uma<br />
prostituta e apaixonar-se por ela, deparase<br />
com uma transgressão: o desejo se<br />
sobrepõe à crença e ele resolve se casar com<br />
a prostituta. Herculano tenta manter um<br />
equilíbrio entre seu desejo, representado<br />
por Geni, e sua crença, materializa<strong>da</strong> nas<br />
tias e em Serginho. Mas esse equilíbrio<br />
é quebrado por Patrício, seu irmão, que<br />
manipula as situações adversas que lhe<br />
acontecem. Quando, finalmente, há uma<br />
aparente medi<strong>da</strong> certa em sua vi<strong>da</strong>, ele<br />
descobre que tudo não passou de uma<br />
ilusão, pois foi enganado por todos. Sua<br />
derroca<strong>da</strong>, assim, acontece lentamente,<br />
a ca<strong>da</strong> cena que Geni narra; aos poucos<br />
Herculano se depara com a total destruição<br />
de seus ideais.<br />
Há, no entanto, outros fatores que<br />
evidenciam resquícios expressionistas: os<br />
vários momentos do quotidiano retratados<br />
Elen de Medeiros
N° 16 | Junho de 2011<br />
de forma grotesca, estilo estético quase<br />
imperativo nessa dramaturgia. Por exemplo,<br />
em uma discussão de Geni e Herculano,<br />
ele se põe de quatro e começa a gritar. Em<br />
segui<strong>da</strong>, a prostituta comenta as varizes <strong>da</strong><br />
faleci<strong>da</strong> esposa de Herculano. Há aquela<br />
tendência ao hiperbólico e ao feio, aspectos<br />
caros ao expressionismo e recorrentes no<br />
teatro de Nelson Rodrigues. Por outro<br />
lado, nota-se a própria temática, que o liga,<br />
de alguma forma, ao expressionismo: o<br />
sexo. Mas não o sexo puro e simplesmente,<br />
mas enquanto um elemento de explosão<br />
de fatores psíquicos <strong>da</strong>s personagens. Ou<br />
melhor, a sexuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s personagens<br />
é explora<strong>da</strong> pelo dramaturgo a ponto de<br />
transformá-la em um fator de manifestação<br />
súbita <strong>da</strong> problemática individual de ca<strong>da</strong><br />
um – como um fator de ponto de parti<strong>da</strong> e<br />
exploração para o desenrolar <strong>da</strong> trama.<br />
Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas<br />
ordinária, ao contrário <strong>da</strong>s outras peças do<br />
conjunto, não tem um final essencialmente<br />
trágico. Pelo menos no que diz respeito às<br />
protagonistas. Edgard e Ritinha revertem<br />
a situação decadente que os envolve e<br />
conseguem, juntos, fazer com que o amor se<br />
sobressaia ao meio lascivo e ganancioso no<br />
qual estão inseridos. Em vários momentos<br />
<strong>da</strong> literatura rodriguiana, a máxima do amor<br />
<strong>superior</strong> ao sexo e à ganância é ressalta<strong>da</strong>.<br />
Essencialmente, Nelson Rodrigues ressalta<br />
o amor como o sentimento supremo do<br />
ser humano, que é corrompido pelo sexo,<br />
mas, em situações extremas, vence o<br />
sentimento nobre. A diferença nessa peça<br />
está essencialmente nas protagonistas, que<br />
não são leva<strong>da</strong>s a sua derroca<strong>da</strong> moral e<br />
física. Ao contrário, como em um folhetim<br />
romântico, o amor de Edgard e Ritinha<br />
vence todos os obstáculos.<br />
Entretanto, antes de qualquer final<br />
romântico, a peça é rechea<strong>da</strong> de momentos<br />
que poderiam ser encaminhados a um<br />
desfecho pouco feliz. Ritinha é uma irmã<br />
zelosa com a integri<strong>da</strong>de moral <strong>da</strong>s irmãs<br />
mais novas; evidencia em várias cenas<br />
a importância <strong>da</strong><strong>da</strong> ao casamento e à<br />
virgin<strong>da</strong>de delas, sacrificando-se física e<br />
moralmente com a prostituição. Mas eis que<br />
todo seu zelo é enfim dissolvido quando as<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
três irmãs são estupra<strong>da</strong>s em uma curra<br />
organiza<strong>da</strong> pelo empresário Werneck. Por<br />
mais que Werneck ressalte que devolverá<br />
a virgin<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s meninas com uma rápi<strong>da</strong><br />
intervenção cirúrgica, Edgard questiona se<br />
essa “virgin<strong>da</strong>de” interessa:<br />
Ritinha – Eu estive com o médico,<br />
Edgard. Ele disse. Garantiu. Disse que fica<br />
perfeito.<br />
ed G a R d – Escuta, Ritinha.<br />
Ritinha (radiante) – Tirei um peso.<br />
ed G a R d – Você acha. Escuta. Acha que<br />
interessa virgin<strong>da</strong>de assim? Assim,<br />
Ritinha?<br />
Ritinha (sem perceber a abjeção moral) –<br />
Mas o médico, Edgard, disse que o marido<br />
não ia perceber, nem ia desconfiar. (IDEM,<br />
p. 319)<br />
As mortes de Maria Cecília e de Peixoto<br />
surgem de maneira estranha e brusca.<br />
Não há evidências precedentes à cena <strong>da</strong><br />
morte que indiquem qualquer tendência<br />
a um relacionamento entre Peixoto e sua<br />
cunha<strong>da</strong>. O que pode ser percebido de<br />
Maria Cecília é superficial, uma inocência<br />
sem tendência a qualquer tipo de perversão.<br />
Por outro lado, Peixoto é ambicioso e se<br />
auto-denomina canalha, mas não oferece<br />
nenhuma evidência de que seja apaixonado<br />
pela cunha<strong>da</strong>. No entanto, a despeito de sua<br />
canalhice, no terceiro ato ele tenta mostrar<br />
a Edgard como é a família na qual ele está<br />
prestes a entrar, a fim de alertá-lo sobre o<br />
caráter de Maria Cecília, em uma tentativa<br />
de não deixar que Edgard passe a integrar<br />
o rol dos corrompidos.<br />
Na cena em que Peixoto mata Maria<br />
Cecília, há uma recorrência à violência<br />
e uso do kitsch, o que evidencia uma<br />
aproximação com o expressionismo. O<br />
primeiro, no intuito de agredir o público<br />
apontando para a agressão do quotidiano<br />
e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Já o outro, está mais ligado<br />
ao grotesco, como forma de se sobrepor ao<br />
belo, também no intuito de transparecer<br />
um aspecto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />
Boca de Ouro, personagem <strong>da</strong> peça<br />
homônima, é um herói suburbano (ou seria<br />
um anti-herói?) descrito de três formas<br />
diferentes e pouco se pode afirmar de<br />
Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 35
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
36<br />
um suposto trajeto percorrido por ele até<br />
desembocar no seu final trágico, advindo<br />
com a morte. De forma concreta, apenas<br />
é possível afirmar que ele é um homem<br />
suburbano, banqueiro de jogo do bicho,<br />
cuja obsessão maior é o ouro. Na primeira<br />
cena <strong>da</strong> peça, ele pede ao dentista que lhe<br />
faça uma dentadura de ouro, em outra<br />
recorrência ao kitsh. Da mesma forma, ao<br />
longo <strong>da</strong> ação, ele afirma que está fazendo<br />
um caixão de ouro. Outro fato concreto,<br />
pela repetição em várias cenas, é que<br />
nasceu em uma pia de uma gafieira. Por<br />
pura ironia, Boca de Ouro não tem outro<br />
destino senão voltar ao ponto de onde<br />
partiu: é encontrado morto em uma sarjeta<br />
sem a sua maior marca, a dentadura de<br />
ouro. Quase um ser mitológico suburbano,<br />
como afirmam as rubricas, Boca <strong>parte</strong> do<br />
submundo carioca e permeia a imaginação<br />
popular, até encontrar a morte através de<br />
uma grã-fina. Enquanto isso, percorre um<br />
trajeto do qual a única coisa que se pode<br />
afirmar é que foi recheado de assassinatos<br />
e manipulações do poder. Tais fatos são<br />
conhecidos no decorrer <strong>da</strong> peça pela<br />
narração de D. Guigui, sua ex-amante,<br />
que varia a imagem do bicheiro de acordo<br />
com o impacto psicológico. Por isso, esse<br />
ínterim não pode ser determinado com<br />
exatidão devido ao objetivo <strong>da</strong> peça, que<br />
trabalha justamente com a subjetivi<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> constituição do ser.<br />
Beijo no asfalto, assim como A faleci<strong>da</strong>,<br />
segue uma estrutura de drama de estações,<br />
na qual o protagonista passa por to<strong>da</strong>s as<br />
etapas de sua destruição. Stationendrama,<br />
ou drama de estações, é uma estrutura<br />
desenvolvi<strong>da</strong> e aprecia<strong>da</strong> pelo<br />
expressionismo e <strong>da</strong> qual Nelson Rodrigues<br />
se valeu para desenvolver essas duas<br />
tragédias cariocas. Assim, acompanhamos<br />
Arandir e Zulmira em várias etapas de<br />
seu aniquilamento, aproximando os dois<br />
protagonistas em seu destino de desdita, a<br />
despeito de tantas outras diferenças entre<br />
os dois textos. Arandir, o jovem de Beijo<br />
no asfalto, a pedido de um moribundo, o<br />
beija na boca no momento de sua morte.<br />
Tal atitude é o ponto de parti<strong>da</strong> para um<br />
repórter inescrupuloso, Amado Ribeiro,<br />
e um delegado, Cunha, tornarem o caso<br />
sensacionalista o suficiente para vender<br />
jornal. A partir de então, ocorrerá uma série<br />
de acontecimentos que levam Arandir ao seu<br />
total isolamento. Este é um herói aniquilado<br />
pouco a pouco, que sofre a dimensão de sua<br />
bon<strong>da</strong>de e inocência e acaba sendo punido<br />
por todos aqueles que convivem com ele,<br />
fato que realça seu caráter trágico. O ponto<br />
máximo <strong>da</strong> destruição do herói acontece<br />
quando, depois de ter enfrentado tantas<br />
intempéries, Arandir é assassinado por seu<br />
sogro Aprígio.<br />
apRíGio (num berro) – De você!<br />
(Estrangulando a voz) Não de minha<br />
filha. Ciúmes de você. Tenho! Sempre.<br />
Desde o teu namoro, que não digo o teu<br />
nome. Jurei a mim mesmo que só diria<br />
teu nome a teu cadáver. Quero que você<br />
morra sabendo. O meu ódio é amor. Por<br />
que beijaste um homem na boca? Mas eu<br />
direi o teu nome. Direi teu nome a teu<br />
cadáver. (Aprígio atira, a primeira vez.<br />
Arandir cai de joelhos. Na que<strong>da</strong>, puxa<br />
uma folha de jornal, que estava aberta na<br />
cama. Torcendo-se, abre o jornal, como<br />
uma espécie de escudo ou de bandeira.<br />
Aprígio atira, novamente, varando o papel<br />
impresso. Num espasmo de dor, Arandir<br />
rasga a folha. E tomba, enrolando-se no<br />
jornal. Assim morre.)<br />
apRíGio – Arandir! (mais forte) Arandir!<br />
(um último canto) Arandir! (RODRIGUES,<br />
1990, pp. 152-153).<br />
Arandir é o único caso <strong>da</strong>s tragédias<br />
cariocas em que o protagonista não é o<br />
principal responsável pelo seu próprio<br />
aniquilamento, mesmo que, para que isso<br />
ocorra, seja necessário que ele cometa um<br />
erro trágico. No caso, o beijo no asfalto. Ele<br />
e Zulmira estão inseridos em um contexto<br />
de mediocri<strong>da</strong>de generaliza<strong>da</strong>, em que o<br />
senso comum não aceita qualquer desvio<br />
de norma, precisando aniquilar quem<br />
foge à regra. O que incomo<strong>da</strong>, nessas duas<br />
peças, é a individuali<strong>da</strong>de que contesta a<br />
mediocri<strong>da</strong>de presente no senso comum:<br />
“Ele [Arandir] e Zulmira estão anestesiados,<br />
mas a vi<strong>da</strong> espreita e ron<strong>da</strong> em torno.<br />
O conselho <strong>da</strong> cartomante vigarista e o<br />
Elen de Medeiros
N° 16 | Junho de 2011<br />
atropelamento do rapaz <strong>da</strong>rão o sinal para<br />
que se inicie a desci<strong>da</strong> vertiginosa para a<br />
destruição.” (FRAGA, 1998, p. 161)<br />
Nas outras três peças do conjunto, o<br />
caminho que as personagens seguem é<br />
semelhante: elas são absorvi<strong>da</strong>s por uma<br />
reali<strong>da</strong>de cruel, frente à qual devem ter<br />
atitudes que são leva<strong>da</strong>s ao seu limite. Esses<br />
momentos extremados vão encaminhá-las a<br />
sua destruição, a uma morte fria, estúpi<strong>da</strong>.<br />
As personagens se aniquilam a partir <strong>da</strong>s<br />
ações que praticam no decorrer <strong>da</strong> peça,<br />
submetendo-se à tragici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Raul, protagonista de Perdoa-me por<br />
me traíres, surge na peça somente a partir<br />
do segundo ato, mas ain<strong>da</strong> no primeiro<br />
ato ele é assunto corrente para Glorinha,<br />
sua sobrinha. Em meio às suas falas, fica<br />
evidente o medo que ela tem do tio, descrito<br />
como um homem violento. No segundo<br />
ato, Raul surge como o narrador <strong>da</strong> morte<br />
de Judite, mãe de Glorinha e, motivado por<br />
ciúmes, ele conta que ofereceu veneno à<br />
cunha<strong>da</strong> por ela ter traído o marido.<br />
tio Ra u l (batendo no peito) – Eu a matei!<br />
Eu! E olha: ninguém sabe, ninguém!<br />
Inclusive minha mãe, meus irmãos,<br />
pensam, até hoje, que foi suicídio! (baixo,<br />
com um meio riso hediondo) (Cresce) Mas<br />
o assassino está aqui e sou eu, o assassino!<br />
(arquejando) Segurei a alça, fui ao<br />
cemitério e, à beira do túmulo, derramei<br />
uma colher de pétalas em cima do caixão.<br />
Vê tu? (RODRIGUES, 1985, p. 167).<br />
Durante o terceiro ato, ele volta a<br />
ameaçar Glorinha de morte caso ela não<br />
lhe revele to<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de sobre sua vi<strong>da</strong>.<br />
O ato, desenvolvido em uma única cena,<br />
leva à máxima tensão a relação entre tio<br />
e sobrinha, variando os sentimentos deles<br />
entre o amor e o ódio. Em alguns momentos,<br />
Raul afirma que odeia Glorinha e que vê<br />
nela a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s volúpias <strong>da</strong> mãe.<br />
A tensão máxima é alcança<strong>da</strong> quando<br />
Raul revela, momentos antes do desfecho<br />
<strong>da</strong> peça, que amava Judite, e que a matou<br />
porque ela nunca pertenceu a ele, apesar de<br />
ter pertencido a muitos homens. Confessa,<br />
também, que criou Glorinha para si:<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
tio Ra u l – Glorinha, eu te criei para mim.<br />
Dia e noite, eu te criei para mim! Morre<br />
pensando que eu te criei para mim!<br />
(Os dois levam o copo aos lábios, ao<br />
mesmo tempo. Tio Raul bebe de uma vez<br />
só. Glorinha ain<strong>da</strong> não bebeu. Tio Raul cai<br />
de joelhos, soluçando.) (IDEM, p. 179).<br />
Tais revelações acarretarão no<br />
aniquilamento <strong>da</strong> personagem, provocado<br />
por sua morte. Glorinha, que o havia<br />
convi<strong>da</strong>do para morrerem juntos, não bebe<br />
o veneno e deixa-o agonizando sozinho,<br />
apenas com a companhia de Tia Odete, sua<br />
esposa, que perambula pela casa.<br />
Assim como Raul, “Seu” Noronha,<br />
de Os sete gatinhos, é o próprio a traçar o<br />
caminho <strong>da</strong> desgraça que deve percorrer<br />
até sua morte. O seu percurso passa<br />
<strong>da</strong> adoração pela filha caçula até a<br />
descoberta de sua gravidez, com a que<strong>da</strong><br />
do mito de Silene. 3 Depois disso, busca<br />
incessantemente pelo homem que chora<br />
por um olho só, matando Bibelot, o amante<br />
de Silene, equivoca<strong>da</strong>mente. A partir <strong>da</strong><br />
morte de Bibelot, será descoberto que<br />
o homem que chora por um olho só é o<br />
próprio “Seu” Noronha, ele que prostitui<br />
suas próprias filhas, que se revoltam e o<br />
matam a punhala<strong>da</strong>s.<br />
Durante to<strong>da</strong> a peça, Noronha é um<br />
patriarca que se altera facilmente, ameaça<br />
e agride as filhas e a esposa. Ao elevar<br />
Silene ao patamar de mito, ele mantém<br />
na virgin<strong>da</strong>de dela o pilar <strong>da</strong> família,<br />
impedindo o seu desmoronamento moral.<br />
Com a descoberta <strong>da</strong> gravidez <strong>da</strong> caçula,<br />
ocorre pouco a pouco o declínio de todos<br />
os membros <strong>da</strong> família. Sabe-se que ele,<br />
na ânsia de manter a virgin<strong>da</strong>de de Silene,<br />
encaminhou homens, deputados e velhos<br />
para suas outras filhas, induzindo to<strong>da</strong>s<br />
elas à prostituição.<br />
3 o termo “o mito de Silene” é de Marcelo Paulini (1994:<br />
p. 9), que comenta em sua dissertação de mestrado: “É<br />
importante notar que Noronha é um moralista preso aos<br />
valores de sua condição social, e frustrado por não conseguir<br />
atingi-los. Procura então compensar sua miséria existencial<br />
estabelecendo um mito em sua vi<strong>da</strong>, e na dos demais membros<br />
<strong>da</strong> família: o mito de Silene.”<br />
Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 37
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
38<br />
Quando, finalmente, as filhas percebem<br />
que ele é o responsável por to<strong>da</strong>s suas<br />
desgraças, resolvem matá-lo, acabar com<br />
o homem que as arruinou. Arlete, a filha<br />
mais insolente de to<strong>da</strong>s, toma a iniciativa<br />
de matá-lo, assim que ela percebe que saem<br />
lágrimas apenas de um olho do seu pai,<br />
cumprindo-se, então, a previsão do próprio<br />
Noronha. Ele, que perseguiu e procurou<br />
durante to<strong>da</strong> a ação <strong>da</strong> peça por aquele que<br />
arruinou a sua família, acaba por traçar ele<br />
próprio seu destino de malogro.<br />
Tendo a suspeita de que Bibelot é o<br />
homem que procuram, Aurora convi<strong>da</strong>-o<br />
para dormir no quarto, armando uma<br />
embosca<strong>da</strong>. Enquanto o jovem dorme, to<strong>da</strong><br />
a família entra no quarto e Noronha crava<br />
o punhal em seu coração. Ao perceberem<br />
que Bibelot chora normalmente, as filhas<br />
acusam Noronha de cometer assassinato<br />
e o acuam, ameaçando-o. Só então, com<br />
a pressão <strong>da</strong>s filhas, Noronha chora e<br />
percebe-se que suas lágrimas saem por<br />
um olho só, revelando-se o ver<strong>da</strong>deiro<br />
responsável pela destruição <strong>da</strong> família.<br />
(Todos seguem o chefe <strong>da</strong> família. Entram<br />
no quarto. Por um momento, “seu”<br />
Noronha olha o rapaz adormecido. Ergue<br />
o punhal e o crava, até o cabo, no coração<br />
de Bibelot. Este dá um arranco, um uivo<br />
estrangulado. Depois, tomba. Arqueja na<br />
sua agonia. Aurora cai de joelhos.)<br />
au R o R a (num fundo gemido) – Meu amor,<br />
perdoa meu ódio!<br />
(Arlete adianta-se.)<br />
aR l e t e (sôfrega) – Quero ver a lágrima <strong>da</strong><br />
morte!<br />
dé b o R a – Morreu!<br />
(Arlete segura o rosto do rapaz.)<br />
aR l e t e (no seu assombro) – Mas está<br />
chorando pelos dois olhos! (na sua<br />
histeria) São duas lágrimas!<br />
hi l d a (histérica também) – Papai! Não é o<br />
homem que chora por um olho só!<br />
aR l e t e (crescendo para o pai) –<br />
Assassino!<br />
(As filhas avançam para o pai, que recua.)<br />
(IDEM, p. 251).<br />
Por fim, Gui<strong>da</strong>, de A serpente, última<br />
peça escrita por Nelson Rodrigues, também<br />
é a única responsável por sua própria<br />
destruição, além <strong>da</strong> destruição do seu<br />
casamento. Preocupa<strong>da</strong> com a infelici<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> irmã Lígia, ela resolve compartilhar sua<br />
felici<strong>da</strong>de, oferecendo uma noite com o<br />
marido Paulo. Após a consumação do ato,<br />
corroí<strong>da</strong> pelo ciúme, Gui<strong>da</strong> desconfia dos<br />
dois, persegue-os e tenta evitar encontros<br />
entre eles. Sufocado pela perseguição<br />
doentia de Gui<strong>da</strong>, Paulo joga a esposa do<br />
décimo segundo an<strong>da</strong>r do prédio onde<br />
moram.<br />
Para compreender o motivo do ciúme<br />
de Gui<strong>da</strong>, faz-se necessário saber que Lígia,<br />
sua irmã, era casa<strong>da</strong> com Décio. Após um<br />
ano de casamento, eles se separaram porque<br />
ele não conseguiu consumar o casamento.<br />
Desespera<strong>da</strong> com a situação em que se<br />
encontra, Lígia pretende se matar. É neste<br />
momento que surge a proposta de Gui<strong>da</strong>.<br />
O que acontece em segui<strong>da</strong> é que Gui<strong>da</strong><br />
observa entre o marido e a irmã certo<br />
envolvimento e resolve, então, proibirlhes<br />
as saí<strong>da</strong>s em horas comuns e evita que<br />
eles se comuniquem no apartamento onde<br />
moram. São essas atitudes que provocam<br />
seu desfecho de malogro, já que tendo<br />
sufocado a própria relação com o marido,<br />
impede que ele a deseje como mulher e, em<br />
segui<strong>da</strong>, a assassine. Antes de morrer, no<br />
entanto, Gui<strong>da</strong> já havia destruído to<strong>da</strong> a<br />
relação existente com sua irmã, acusando-a<br />
de traição.<br />
líGia – Te direi tudo. Tens um marido que<br />
te faz feliz, e segundo você própria, a mais<br />
feliz <strong>da</strong>s mulheres. Eu tenho um marido<br />
que me destruiu. Não sou mais na<strong>da</strong>. E<br />
põe na tua cabeça, criatura, que eu não fiz<br />
na<strong>da</strong>. Só fiz o que você mandou. Foi você<br />
que disse: – “Vai”. Eu ia morrer e seria tão<br />
fácil morrer. Mas você, você me salvou<br />
e disse: – “Te dou uma noite do meu<br />
marido”. Eu tive esta noite. Só. E queres<br />
me tirar esta noite? Agora é tarde. Tudo<br />
já aconteceu.<br />
Gu i d a – Acabaste?<br />
líGia – Acabei. Não quero ouvir na<strong>da</strong> de<br />
você.<br />
Gu i d a – Pois ouve ain<strong>da</strong>. Você não pode<br />
pensar, ou olhar, ou tocar meu marido.<br />
Ou sorrir. A gente não sorri para todo<br />
mundo. Você não pode sorrir para<br />
meu marido. Escuta, Lígia. Você não<br />
me conhece. Paulo não me conhece, eu<br />
Elen de Medeiros
N° 16 | Junho de 2011<br />
própria não me conhecia. Eu me conheço<br />
agora. Se você quiser mais do que a noite<br />
que já teve, eu mato você. Ou então,<br />
mato o único homem que amei. (Com ar<br />
de louca) Paulo dormindo e morrendo.<br />
(RODRIGUES, 1990, p. 75-76).<br />
Expressionistas?<br />
As tragédias cariocas não são, pois,<br />
peças expressionistas em sua totali<strong>da</strong>de.<br />
Possuem alguns resquícios <strong>da</strong>quilo que<br />
é denominado expressionismo. Não<br />
necessariamente o expressionismo do pósguerra<br />
alemão, mas um expressionismo<br />
como tendência estética, de demonstrar<br />
um fato real <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de pela distorção,<br />
pelo grotesco, pela agressivi<strong>da</strong>de. O<br />
dramaturgo se aproxima dessa estética<br />
pelo uso frequente de elementos<br />
do grotesco, sobretudo aqueles que<br />
ressaltam um quotidiano em decadência<br />
<strong>da</strong>s personagens, o que também aju<strong>da</strong><br />
a rebaixá-las e aproximá-las de um tom<br />
cômico. Mesmo assim, a aproximação com<br />
a vanguar<strong>da</strong> não foi um ponto que tenha<br />
percorrido o teatro de Nelson Rodrigues<br />
em seu último ciclo. Essas peças são,<br />
evidentemente, agressivas. No entanto,<br />
dentro dessa agressivi<strong>da</strong>de camufla<strong>da</strong><br />
pelo farsesco, por vezes leva<strong>da</strong> ao<br />
melodramático pelo exagero, um ponto<br />
que chama a atenção é a tendência do<br />
herói em ser carregado pelas situações ao<br />
seu aniquilamento. Seja qual for a forma<br />
como isso acontece, pelo intermédio de<br />
outras personagens <strong>da</strong> peça ou não, se<br />
conscientemente ou não, o fato é que o<br />
sentido trágico sempre acompanha os<br />
heróis rodriguianos, <strong>da</strong> mesma maneira<br />
como acompanha, também, os heróis<br />
expressionistas.<br />
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Desfechos trágicos e referências expressionistas nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues 39
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Doutor Jean-Martin Charcot [Marcelo F. de Souza]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Júlia oliveira.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 41
N° 16 | Junho de 2011<br />
PoR UM DESEJo PÓS-CoLoNIAL:<br />
UMA ANÁLISE Do TEATRo<br />
ESSENCIAL, DE DENISE SToKLoS<br />
Resumo<br />
A aplicação <strong>da</strong> teoria pós-colonialista ao teatro e a<br />
literatura dramática brasileira oferece uma gama<br />
considerável de possibili<strong>da</strong>des para pensar sobre a<br />
a<strong>da</strong>ptação e adoção de modelos estrangeiros, bem como<br />
sobre especifici<strong>da</strong>des culturais <strong>da</strong>s performances do Brasil.<br />
O propósito deste artigo é expor a pesquisa que resultou<br />
em minha dissertação de Mestrado em Artes, Performing<br />
Postcolonialism: Denise Stoklos and the Essential Theatre,<br />
escrita na Royal Holloway, University of London.<br />
Palavras-chave: Pós-colonialismo, performance, Teatro<br />
Brasileiro.<br />
Abstract<br />
The application of postcolonial theory to contemporary<br />
Brazilian theatre and drama offers a considerable<br />
range of possibilities to think about the a<strong>da</strong>ptation and<br />
the adoption of foreign models as well as the cultural<br />
specificities of Brazilian performances. The purpose of<br />
this paper is to present the research that resulted in my<br />
Master dissertation in Arts – Performing Postcolonialism:<br />
Denise Stoklos and the Essential Theatre – written at Royal<br />
Holloway, University of London.<br />
Keywords: Postcolonialism, performance,<br />
Brazilian Theatre.<br />
Elisa Belém 1<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 43
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
44<br />
Apresentação<br />
O<br />
presente artigo propõe<br />
discutir o teatro brasileiro<br />
contemporâneo através<br />
de uma análise <strong>da</strong><br />
carreira e <strong>da</strong>s propostas<br />
<strong>da</strong> performer brasileira Denise Stoklos,<br />
além de referências ao trabalho do teórico<br />
e encenador Augusto Boal e do performer<br />
Antônio Nóbrega. Essa discussão <strong>parte</strong><br />
<strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong> teoria pós-colonialista ao<br />
teatro brasileiro.<br />
A teoria pós-colonialista reflete sobre<br />
os “efeitos <strong>da</strong> colonização em culturas e<br />
socie<strong>da</strong>des” 2 (ASHCROFT, GRIFFITHS,<br />
TIFFIN, 1998, p. 186), discutindo<br />
identi<strong>da</strong>de e dominação política nos países<br />
que foram colonizados. Ao aplicar a teoria<br />
pós-colonialista ao teatro e a literatura<br />
dramática, é possível examinar as relações<br />
entre performance e história nesses países,<br />
estabelecendo uma discussão sobre o<br />
assunto do ponto de vista do colonizado.<br />
Este ponto de vista foca em ambigui<strong>da</strong>de,<br />
investigando a constituição <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des<br />
coloniza<strong>da</strong>s como uma imagem-espelho<br />
(reflexo) e como uma imagem distorci<strong>da</strong><br />
do colonizador. Assumindo diferença,<br />
reclama por espaços de negociação entre<br />
países e culturas.<br />
A aplicação <strong>da</strong> teoria pós-colonialista<br />
ao teatro brasileiro contemporâneo e à<br />
literatura dramática oferece um leque<br />
considerável de possibili<strong>da</strong>des para se<br />
pensar sobre a a<strong>da</strong>ptação e a adoção de<br />
modelos estrangeiros, bem como sobre as<br />
especifici<strong>da</strong>des culturais <strong>da</strong>s peformances<br />
do Brasil. O geógrafo Milton Santos referese<br />
ao Brasil como um “país distorcido”<br />
(SANTOS, 2002, p.49). Comparando<br />
essa ideia ao processo colonizatório,<br />
1 Atriz, Doutoran<strong>da</strong> em Artes (Artes Cênicas) no Instituto de<br />
Artes <strong>da</strong> UNICAMP; bolsista <strong>da</strong> FAPESP. Mestre em Teatro<br />
(Estudos <strong>da</strong> Performance) na Royal Holloway, University of<br />
London; título reconhecido e vali<strong>da</strong>do no Brasil pela ECA/USP.<br />
Foi bolsista do Programa ALBAN em 2004 e 2005.<br />
2 To<strong>da</strong>s as citações de autores estrangeiros utiliza<strong>da</strong>s neste<br />
artigo foram traduzi<strong>da</strong>s por mim. os originais encontram -se<br />
em inglês.<br />
reconhecemos um senso de inferiori<strong>da</strong>de no<br />
Brasil resultante <strong>da</strong> dominação e opressão.<br />
Nesse estudo, indicam-se algumas<br />
questões: É possível afirmar que há uma<br />
expressão brasileira “pura”? Como os<br />
praticantes de teatro e teóricos no Brasil<br />
trabalham com os modelos estrangeiros e<br />
suas especifici<strong>da</strong>des culturais? É possível<br />
reconhecer uma prática teatral póscolonialista<br />
no Brasil? O que se conhece<br />
sobre o teatro brasileiro no mundo? É<br />
possível instalar um intercâmbio cultural<br />
com bases e princípios igualitários no<br />
mundo contemporâneo?<br />
A partir de uma análise do teatro<br />
contemporâneo e a verificação <strong>da</strong><br />
história brasileira, este artigo propõe<br />
o desenvolvimento <strong>da</strong> performance<br />
autoral no Brasil, para contribuir para<br />
o fim do senso de inferiori<strong>da</strong>de entre<br />
brasileiros e também, a fim de promover<br />
um intercâmbio intercultural de forma<br />
igualitária no mundo moderno.<br />
Brasil<br />
É sabido que a colonização<br />
portuguesa, a escravatura indígena<br />
e africana, bem como a catequização<br />
católica, deixou traços marcantes na<br />
cultura brasileira. No ano 2000, houve<br />
no país, uma série de comemorações<br />
dos quinhentos anos <strong>da</strong> “descoberta do<br />
Brasil”. O termo “descoberta” já foi muitas<br />
vezes questionado por historiadores<br />
e pensadores <strong>da</strong>s mais diversas áreas.<br />
Naquela ocasião, o jornal Folha de São<br />
Paulo distribuiu um questionário a<br />
dez intelectuais brasileiros para que<br />
indicassem trinta títulos, opinando sobre<br />
as cem melhores obras mundiais de nãoficção<br />
no século XX e sobre as trinta<br />
melhores obras brasileiras de não-ficção<br />
em todos os tempos. A lista produzi<strong>da</strong><br />
com os cem melhores livros de não-ficção<br />
do século XX indicou apenas um título de<br />
escritor brasileiro - Euclides <strong>da</strong> Cunha, e,<br />
contemplou mais um livro de outro escritor<br />
latino-americano - Jorge Luís Borges.<br />
Elisa Belém
N° 16 | Junho de 2011<br />
Milton Santos questionou a vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
lista e a ativi<strong>da</strong>de intelectual no Brasil,<br />
afirmando que a última era basea<strong>da</strong> num<br />
entendimento errôneo do que vem a<br />
ser “universal” e “internacional”: “Que<br />
país é este, o Brasil, nos seus 500 anos?<br />
Podemos, a partir desses fatos, in<strong>da</strong>garnos<br />
sobre esses 500 anos de formação de<br />
uma idéia de Brasil?” (SANTOS, 2002,<br />
p. 49) Santos afirmava pensar que o<br />
termo “internacional” no Brasil, referese<br />
frequentemente a Europa e Estados<br />
Unidos <strong>da</strong> América, excluindo-se assim,<br />
a elaboração do pensamento brasileiro<br />
e latino-americano. Dessa forma, Santos<br />
referia-se a uma “visão distorci<strong>da</strong> do<br />
mundo”, a um “apartheid à brasileira”, um<br />
racismo disfarçado no Brasil chegando-se<br />
a ideia de um “país distorcido”.<br />
Esse olhar para o Brasil de dentro<br />
do país pôde ser confrontado com<br />
minha experiência pessoal no exterior.<br />
Para frequentar o curso MA Theatre<br />
(Performance Studies) na RHUL, no qual<br />
esta pesquisa foi realiza<strong>da</strong>, vivi durante<br />
um ano na Inglaterra. Muitas vezes,<br />
tive a sensação de estar “fora do lugar”<br />
ou desloca<strong>da</strong> de um contexto cultural<br />
de pertencimento, relativa ao fato de<br />
ser estrangeira e também, por perceber<br />
que muitas pessoas possuíam uma ideia<br />
imaginária do Brasil. Experiências mistas<br />
se deram; desde o pedido frequente “fale<br />
brasileiro para gente ouvir”; passando<br />
pelo espanto de alguns por eu ter a pele<br />
branca e ser brasileira; até o pedido de<br />
colegas do curso para que eu mostrasse<br />
estilos de <strong>da</strong>nças brasileiras como salsa<br />
e mambo. Ao mesmo tempo, distante<br />
do meu país natal, pude notar a pouca<br />
valorização <strong>da</strong>s artes, <strong>da</strong>s manifestações<br />
culturais e performativas que aí ocorrem.<br />
Identifiquei aquilo que nomeio como<br />
senso de inferiori<strong>da</strong>de dos brasileiros em<br />
relação ao Outro, talvez pelo processo de<br />
colonização seguido do neo-imperialismo<br />
norte-americano. O Brasil me pareceu,<br />
muitas vezes, duplamente distorcido: pela<br />
ótica de brasileiros que não valorizam<br />
seu próprio lugar de origem, agindo<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
de acordo com o discurso opressor do<br />
colonizador; pela visão de estrangeiros<br />
que desconhecem a cultura brasileira,<br />
repetindo mais uma vez as posturas<br />
colonizatórias diante dessa nação.<br />
Confrontando essas percepções<br />
e experiências ao estudo do teatro,<br />
investiguei trabalhos solos de performers<br />
que discutiam o Brasil. Encontrei<br />
assim, dois pontos: num deles estariam<br />
performers que <strong>parte</strong>m de apropriações e<br />
experiências <strong>da</strong>s manifestações culturais e<br />
performativas brasileiras; no outro ponto,<br />
estariam performers que recebem formações<br />
em teatro basea<strong>da</strong>s nos princípios de<br />
trabalhos de encenadores europeus, mas<br />
que em suas criações discutem a socie<strong>da</strong>de<br />
brasileira. Nesse sentido, o trabalho de<br />
performers como Antônio Nóbrega oferece<br />
elos interessantes com as manifestações<br />
culturais e performativas brasileiras,<br />
baseando-se nelas para produzir sua obra.<br />
Outros performers optam por caminhos<br />
diferenciados e realizam uma exploração <strong>da</strong>s<br />
propostas de praticantes de teatro europeus<br />
como Stanislavski, Grotowski, Brecht, Decroux,<br />
dentre vários. Vale lembrar que geralmente,<br />
nas escolas brasileiras, a formação do ator<br />
é feita através de práticas de atuação cênica<br />
basea<strong>da</strong> nos escritos e trabalhos deixados<br />
por esses encenadores e artistas europeus.<br />
Denise Stoklos pode ser aponta<strong>da</strong> como<br />
uma performer que <strong>parte</strong> de uma formação<br />
na Europa em mímica e utiliza sua técnica<br />
para discutir temáticas como a reali<strong>da</strong>de<br />
política, social e do indivíduo no Brasil.<br />
To<strong>da</strong>s essas diferentes abor<strong>da</strong>gens<br />
<strong>da</strong>s escolas europeias para o ator e <strong>da</strong>s<br />
manifestações performáticas brasileiras,<br />
envolvem “atos de tradução” (TAYLOR,<br />
2000, p. 28). Segundo Helen Gilbert,<br />
“traduzir envolve mais do que simplesmente<br />
substituir um código linguístico por outro”<br />
(GILBERT, 1998, p. 86). Adotando aspectos<br />
universais dessas proposições e a<strong>da</strong>ptando<br />
seus aspectos internacionais, gêneros<br />
híbridos estão sendo criados considerandose<br />
as especifici<strong>da</strong>des culturais inerentes<br />
aos ci<strong>da</strong>dãos brasileiros que perpassam os<br />
“atos de tradução”.<br />
Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 45
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
46<br />
Denise Stoklos<br />
A carreira <strong>da</strong> performer Denise Stoklos<br />
se iniciou em sua juventude, de forma<br />
amadora, em Irati, no Paraná. No final <strong>da</strong><br />
déca<strong>da</strong> de setenta, Stoklos mudou-se para<br />
Israel e em segui<strong>da</strong> para Inglaterra. Em<br />
Londres, ela frequentou o curso de mímica<br />
na Desmond Jones School e ao final, criou seu<br />
primeiro solo: Denise Stoklos: One Woman<br />
Show (1980). Seguiram outros solos: Elis<br />
Regina; Um orgasmo adulto escapa do zoológico<br />
(texto de Franca Rame); Habeas Corpus; Mary<br />
Stuart (sob suporte <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Fulbright).<br />
Nesse momento, Stoklos foi convi<strong>da</strong><strong>da</strong><br />
a estrear to<strong>da</strong>s as suas novas peças no La<br />
Mama Theatre, em Nova York. Criou: Hamlet<br />
em Irati; Casa; 500 anos: um fax de Denise<br />
Stoklos para Cristóvão Colombo; Amanhã<br />
será tarde e depois de amanhã nem existe (Bolsa<br />
Guggheim); Des-Medéia; Elogio; Mais pesado<br />
que o ar - Santos Dumont; Desobediência Civil;<br />
Vozes dissonantes; Louise Borgeouis: faço,<br />
desfaço, re-faço; Calendário <strong>da</strong> Pedra; Olhos<br />
recém-nascidos.<br />
Stoklos estabeleceu para si um modo<br />
de criação através <strong>da</strong> performance solo<br />
na qual acumula as funções de direção,<br />
dramaturgia, atuação, coreografia;<br />
assinando a autoria total de seus trabalhos.<br />
Reúne suas propostas em manifestos<br />
nomeando seu modo de criação como<br />
Teatro Essencial, visando: uma performance<br />
centra<strong>da</strong> no ator; o mínimo de efeitos<br />
de luz, cenários e figurinos possível; a<br />
expressivi<strong>da</strong>de do corpo e <strong>da</strong> voz. Afirma<br />
ain<strong>da</strong> que o texto levado à cena pode ser de<br />
qualquer natureza (dramatúrgica, literária,<br />
jornalística etc), mas deve ser atualizado<br />
pelo performer que apresentará um<br />
testemunho de sua época, de seu tempo.<br />
Num manifesto de 2005, Stoklos questionou<br />
porque a dramaturgia brasileira <strong>da</strong>quele<br />
momento deveria continuar passiva como<br />
estava.<br />
Outro ponto interessante do trabalho<br />
de Stoklos é a apropriação de línguas<br />
estrangeiras que ela realiza. Por muitas<br />
vezes, quando Stoklos se apresentou<br />
no exterior, decorou a pronúncia do<br />
texto na língua do país onde estava<br />
independentemente de ser uma falante<br />
dessa língua. Um exemplo disso seria uma<br />
apresentação de um de seus solos falado em<br />
alemão, na Alemanha. Podemos dizer que<br />
esse modo de apropriação revela esferas<br />
de dominação entre culturas: Stoklos<br />
conservou seu sotaque, seu acento ao<br />
falar uma língua que não lhe era familiar,<br />
em busca de comunicar um determinado<br />
discurso, já que sua língua materna não era<br />
entendi<strong>da</strong>. De acordo com a pesquisadora<br />
Helen Gilbert:<br />
[...] sotaque deve ser usado<br />
subversivamente para produzir<br />
imitação colonial, que, como Bhabha<br />
mostrou: ‘é ao mesmo tempo, um modo<br />
de apropriação e resistência’ que revela<br />
a ambivalência do discurso colonial e<br />
transforma a ´marca´ de sua autori<strong>da</strong>de<br />
(em) uma máscara, uma ridicularização. 3<br />
(GILBERT, 1998, p. 85)<br />
O trabalho de Stoklos se destacou<br />
também no Brasil e em outros países<br />
pelo virtuosismo corporal através <strong>da</strong><br />
mímica. A performer afirma que “defaceta”<br />
os gestos, se apropriando do verbo inglês<br />
“to deface”- desfigurar, deformar. Juntamse<br />
a isso contorções e caretas com o rosto,<br />
entonações e ênfases vocais criando<br />
caricaturas e causando muitas vezes o<br />
riso. Stoklos afirma que o corpo “apaga”<br />
o espaço. Podemos dizer que Stoklos<br />
subverte o caráter “ilusionista” <strong>da</strong> mímica,<br />
convertendo-a em “desilusão” através<br />
<strong>da</strong> tríade “Mime – Mimicry – Mockery” –<br />
“Mímica – Imitação – Ridicularização”.<br />
Resistência: performando a liber<strong>da</strong>de<br />
O início <strong>da</strong> carreira de Stoklos e sua<br />
mu<strong>da</strong>nça para outros países coincidiram<br />
com o período <strong>da</strong> ditadura militar no Brasil.<br />
3 […] accent might be used subversively to produce colonial<br />
mimicry, which, as Bhabha has shown, ‘is at once a mode of<br />
appropriation and resistance’ that reveals the ambivalence<br />
of colonial discourse and turns the ‘insignia of its authority<br />
(into) a mask, a mockery’ (GILBERT, 1998, p. 85).<br />
Elisa Belém
N° 16 | Junho de 2011<br />
Nesse momento, Augusto Boal estava<br />
também desenvolvendo seu trabalho como<br />
criador. Boal foi preso pelo DOPS 4 e solto<br />
após três meses através de uma grande<br />
mobilização de artistas e intelectuais. Após<br />
esse período preso, Boal saiu do Brasil<br />
com a família e permaneceu em “exílio<br />
voluntário” por quinze anos.<br />
Boal baseou-se nos escritos de Paulo<br />
Freire e redigiu a Poética do Oprimido e<br />
também suas propostas do Teatro do Oprimido.<br />
Oferecia ao espectador, chamando-o de<br />
“espec-ator”, a oportuni<strong>da</strong>de de interferir<br />
na ação teatral através do Teatro Fórum.<br />
Boal buscava que o teatro fosse uma<br />
ferramenta, um ensaio para a revolução<br />
social e política e anunciava como meta do<br />
Teatro do Oprimido, conscientizar as pessoas<br />
<strong>da</strong>s dispari<strong>da</strong>des sociais.<br />
Já Stoklos, que afirma realizar um “teatro<br />
político”, deseja também que o espectador<br />
realize transformações em sua vi<strong>da</strong> e na<br />
socie<strong>da</strong>de. A performer afirma, porém, que<br />
atua como um “espelho” para o espectador<br />
e que não quer que ele saia dessa posição<br />
no teatro. Em entrevista de 2005, Stoklos<br />
afirmou que suas peças estavam ca<strong>da</strong> vez<br />
falando menos sobre “instituições” de<br />
poder e mais sobre indivíduos e de como<br />
eles estavam se tornando os “agentes de sua<br />
própria opressão”. Seu trabalho demonstra<br />
também uma luta por revolução, mas num<br />
nível “micro”: ações e atitudes individuais<br />
que reclamem por ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />
É possível reconhecer nos trabalhos<br />
de Boal e Stoklos um “desejo pós-colonial”,<br />
definido pelo teórico Awan Amkpa como<br />
“o ato de imaginar, viver, e negociar uma<br />
reali<strong>da</strong>de social basea<strong>da</strong> na democracia,<br />
pluralismo cultural e justiça social”<br />
(AMKPA, 2004, p. 10). Através de seus<br />
trabalhos, Stoklos e Boal reclamaram por um<br />
estado-nação baseado em igual<strong>da</strong>de social,<br />
racial e de gênero, comprometido em prover<br />
– educação, acesso a eventos culturais,<br />
distribuição de terras e proprie<strong>da</strong>des,<br />
educação, alimentação, assistência de<br />
saúde, segurança e representação política.<br />
4 DoPS – Departamento de ordem Política e Social.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
É preciso pensar que Stoklos desenvolve<br />
seu trabalho como atriz, mas também<br />
como dramaturga ao assinar a autoria de<br />
seus textos. Ora, o número de dramaturgas<br />
com obras publica<strong>da</strong>s no Brasil é bastante<br />
inferior ao de dramaturgos. Esse é um<br />
<strong>da</strong>do que merece ser analisado com mais<br />
aprofun<strong>da</strong>mento em outros ensaios<br />
sobre o assunto. Stoklos não se considera<br />
feminista, mas acha importante discutir<br />
o papel <strong>da</strong> mulher na socie<strong>da</strong>de. Afirma<br />
que seu trabalho <strong>parte</strong> de três condições<br />
relativas ao fato de ser: mulher, mãe e<br />
latino-americana. Ao analisar o texto Des-<br />
Medéia, por exemplo, podemos perceber<br />
claramente a influência dessas condições.<br />
Stoklos se apropria do texto Medéia, de<br />
Eurípedes, mas a personagem principal do<br />
mito é transposta para situações onde há,<br />
de acordo com a autora, uma “tradição <strong>da</strong><br />
matança do Brasil-açougue”. Sendo assim,<br />
na peça de Stoklos, Medéia se recusa a<br />
matar seus filhos, que são suas criações:<br />
Nossa Medéia a brasileira há de encontrar<br />
outro destino. Pois nós brasileiros<br />
queremos uma nova Medéia, uma que<br />
se desfaça do ódio destruidor para uma<br />
reflexão positiva sobre o momento em que<br />
também estamos sem nenhum vínculo:<br />
como ela. Sem vínculo com o sentido<br />
de pátria, sem vínculo com irmãos, com<br />
nossos vizinhos, sem vínculos com nossos<br />
filhos: o nosso futuro, os nossos traços, a<br />
nossa herança. Então, como temos repetido<br />
destruições, nunca é demais abor<strong>da</strong>r o<br />
tema, mas desta vez subvertendo-o. Que<br />
no nosso Brasil não mais se repitam as<br />
Medéias. Não mais assassinemos nossos<br />
filhos diariamente – os nossos sonhos,<br />
nossos frutos (nossa originali<strong>da</strong>de). Nem<br />
nossa pátria – a casa <strong>da</strong> ética (a convivência<br />
dentro de justiça). Nem nossos irmãos<br />
(todo conterrâneo, todo contemporâneo).<br />
Nem nossos rivais (a competição é<br />
sempre base de capitalismo criminoso).<br />
Nem os reis traidores (o acerto há de ser<br />
sem conchavo, mas definitivamente sem<br />
contemporização, mas com mu<strong>da</strong>nça,<br />
para a paz). (STOKLOS, 1995, p. 29-30)<br />
Outra abor<strong>da</strong>gem interessante do<br />
indivíduo no contexto sócio-político<br />
brasileiro encontra-se no texto 500 anos: um<br />
Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 47
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
48<br />
fax de Denise Stoklos para Cristóvão Colombo.<br />
Nessa peça, Colombo é comparado a um<br />
vírus que deve ser eliminado <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />
a fim de eliminar também a exploração, a<br />
opressão incorpora<strong>da</strong> pelos brasileiros:<br />
Eliminar o vírus de Colombo do sistema<br />
orgânico em que vivemos. Sim, como nos<br />
anos sessenta, nos anos setenta, como em<br />
qualquer tempo em que não se desistiu de<br />
melhor vi<strong>da</strong> para o corpo para a mente<br />
para a alma. Antiga e futurista aspiração<br />
por não-humilhação, não-colonização.<br />
(STOKLOS, 1992, p. 14)<br />
Esse texto foi escrito como um manifesto,<br />
sem divisão de falas, personagens e<br />
desenvolvimento de ações. Nesta peça há<br />
diversas citações de livros de história do<br />
Brasil realizando-se assim, protestos contra<br />
a dominação norte-americana e a repressão<br />
<strong>da</strong>s revoluções sociais na América Latina.<br />
Hibridismo<br />
A pesquisadora Diana Taylor,<br />
apresentou um artigo 5 na revista The<br />
Drama Review, no verão do ano 2000, sobre<br />
Stoklos a partir <strong>da</strong> apresentação de sua<br />
peça Desobediência Civil, em Nova York.<br />
Após a apresentação, Taylor recolheu<br />
depoimentos de espectadores cujas<br />
impressões foram varia<strong>da</strong>s. Alguns deles<br />
acharam o trabalho “muito europeu” e<br />
outros, “muito latino-americano”. Esses<br />
comentários mostraram uma expectativa<br />
ora por algo exótico, por uma “experiência<br />
fresca e nova” (BROOK, 1993, p. 4), ora<br />
por algo já conhecido. Taylor indica a<br />
necessi<strong>da</strong>de urgente de que teóricos<br />
<strong>da</strong> performance voltem seus interesses<br />
para discutir a recepção intercultural<br />
de espetáculos. Isto porque, segundo<br />
a pesquisadora, há ca<strong>da</strong> vez mais, um<br />
fluxo de apresentações internacionais<br />
de espetáculos nas grandes ci<strong>da</strong>des do<br />
mundo, como <strong>parte</strong> de um contexto de<br />
5 TAYLoR, Diana. The Politics of Decipherability. The Drama<br />
Review. Tisch Scool of the Arts, New York University, vol. 44,<br />
verão, p. 7-29. 2000.<br />
redes econômicas e ideológicas advin<strong>da</strong>s<br />
<strong>da</strong> globalização. Para exemplificar, Taylor<br />
cita o exemplo dos grandes musicais como<br />
Cats e Miss Saigon, que ela mesma denomina<br />
como “pré-fabricados”, ocorrendo<br />
simultaneamente em Londres, Nova York,<br />
Ci<strong>da</strong>de do México e podemos incluir<br />
também, São Paulo. Outra categoria de<br />
espetáculos internacionais seriam aqueles<br />
ligados a uma apresentação folclórica,<br />
como estereótipos culturais. Finalmente,<br />
teríamos espetáculos inovadores sendo<br />
apresentados em espaços alternativos,<br />
como seria o caso de Denise Stoklos. Para<br />
Taylor, o trabalho de Stoklos oferece um<br />
modelo de comunicação intercultural: se<br />
apresenta em vários países; tem forma<br />
internacional, já que <strong>parte</strong> de textos<br />
filosóficos e mistura tradições <strong>da</strong> mímica<br />
e outras estéticas ocidentais; encena<br />
um diálogo internacional em tópicos de<br />
significação universal se apropriando de<br />
autores também internacionais ao redigir<br />
o texto, que é pronunciado na língua do<br />
país onde o espetáculo se apresenta; e, não<br />
apresenta um discurso de manipulação e<br />
controle que poderia, equivoca<strong>da</strong>mente,<br />
passar por comunicação. Ao mesmo<br />
tempo, afirma que o trabalho de Stoklos<br />
é um alerta para que se tenha cui<strong>da</strong>do já<br />
que não é fácil atingir a comunicação:<br />
Multiculturalismo, erroneamente a<br />
meu ver, refutou a promessa de<br />
entendimento cultural. Eu proporia<br />
que nós começássemos por assumir que<br />
nós não entendemos, que nós sempre<br />
engajamos em atos de tradução. 6<br />
(TAYLOR, 2000, p. 28)<br />
É notório, conforme mostra essa<br />
pesquisadora que são realizados “atos de<br />
tradução” de uma cultura por outra em um<br />
intercâmbio. Porém, como mostra Bhabha,<br />
“atos de negociação” entre culturas e não<br />
de negação parecem ser mais proveitosos.<br />
Nesse sentido, é preciso ter cui<strong>da</strong>do<br />
6 Multiculturalism, erroneously to my mind, held out the<br />
promise of cultural understanding. I would propose that we<br />
begin with the assumption that we don´t understand, that we<br />
always engage in acts of translation. (TAYLoR, 2000, p. 28)<br />
Elisa Belém
N° 16 | Junho de 2011<br />
também ao tentar analisar identi<strong>da</strong>des<br />
tendo como ponto de parti<strong>da</strong> apenas o fato<br />
de que o latino-americano não é europeu<br />
ou norte-americano.<br />
Taylor analisa o trabalho de Stoklos<br />
levando em consideração a colonização,<br />
características culturais e fatos históricos<br />
relativos ao Brasil, como a ditadura.<br />
Considera que o discurso de Stoklos li<strong>da</strong><br />
com códigos múltiplos apresentando<br />
no palco um jogo de “esconde-esconde”<br />
como uma estratégia latino-americana.<br />
Desde a colonização, os países latinoamericanos<br />
constituíram segundo<br />
Taylor, suas identi<strong>da</strong>des a partir desse<br />
jogo de “esconde-esconde”, na medi<strong>da</strong><br />
em que comportamentos, crenças<br />
e línguas dos colonizadores foram<br />
impostas aos colonizados que, mesmo<br />
assim, procuraram manter seus códigos<br />
culturais. No caso do Brasil, por exemplo,<br />
o sincretismo religioso pode ser analisado<br />
levando-se em consideração esse ponto.<br />
Taylor destaca que essa característica<br />
também esteve presente no período <strong>da</strong><br />
ditadura no Brasil, já que muitos artistas<br />
produziram seus trabalhos apresentando<br />
seus discursos de resistência de maneira<br />
não explícita. Logo, esses artistas<br />
utilizaram estratégias de composição e<br />
criação para que seus discursos não fossem<br />
“decifrados” imediatamente pela censura<br />
ou órgãos repressores. Taylor continua<br />
a desenvolver sua ideia apresentando-a<br />
até mesmo como possível para analisar<br />
questões de gênero e sexuali<strong>da</strong>de no<br />
Brasil. Afirma então, que o aspecto <strong>da</strong><br />
“não-decifração” (indecipherability), é<br />
usado há muito tempo como estratégia<br />
para combater as exigências de que tudo<br />
deve ser transparente para decodificação<br />
imediata. Esse aspecto, segundo Taylor,<br />
permaneceu como uma <strong>da</strong>s características<br />
do trabalho de Stoklos. A meu ver,<br />
Stoklos realiza uma investigação de<br />
particulari<strong>da</strong>des para atingir o universal<br />
ao li<strong>da</strong>r com códigos múltiplos se<br />
apropriando de textos de autores variados<br />
em uma mesma peça, junto a palavras<br />
de sua autoria. Além disso, mistura<br />
humor a reflexões significativas sobre o<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
humano e a vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong>de e não se<br />
fixa na continui<strong>da</strong>de de nenhuma escola<br />
estética. Se essa multiplici<strong>da</strong>de não leva<br />
a uma decodificação imediata, proponho<br />
que o trabalho de Stoklos apresenta uma<br />
estratégia de imersão no ato de decifrar,<br />
ou seja, está dentro <strong>da</strong> decifração (in-<br />
decipherability), ao invés <strong>da</strong> não decifração<br />
(indecipherability).<br />
Destaco que o trabalho de Stoklos<br />
se encontra entre (in-between) o<br />
internacionalismo e o nacionalismo:<br />
Hibridismo trabalha em diferentes<br />
caminhos ao mesmo tempo, de acordo<br />
com deman<strong>da</strong>s culturais, econômicas<br />
e políticas de situações específicas.<br />
Isso envolve um processo de interação<br />
que cria novos espaços sociais para<br />
os quais novos significados são<br />
<strong>da</strong>dos. Essas relações possibilitam<br />
a articulação de experiências de<br />
mu<strong>da</strong>nças em socie<strong>da</strong>des dividi<strong>da</strong>s pela<br />
moderni<strong>da</strong>de e facilitam consequentes<br />
deman<strong>da</strong>s por transformações sociais. 7<br />
(YOUNG, 2003, p. 79)<br />
O hibridismo de aspectos nacionais<br />
e estrangeiros pode ser investigado como<br />
uma tendência no teatro contemporâneo<br />
brasileiro gerando espaços de negociação<br />
entre aspectos internacionais, nacionais<br />
e universais. Hibridismo é uma<br />
marca no trabalho de Stoklos e parece<br />
uma característica a ser explora<strong>da</strong><br />
a fim de instigar mais performers no<br />
desenvolvimento de trabalhos autorais<br />
no Brasil. Stoklos foi considera<strong>da</strong> pela<br />
pesquisadora Leslie Damasceno como uma<br />
“prisioneira <strong>da</strong> esperança”, 8 termo que, a<br />
meu ver, é representativo de seu trabalho.<br />
O estímulo a autoria na criação artística e<br />
performática, como nos mostra o trabalho<br />
7 Hybridity works in different ways at the same time,<br />
according to the cultural, economic, and political demands<br />
of specific situations. It involves process of interaction that<br />
create new social spaces to which new meanings are given.<br />
These relations enable the articulation of experiences<br />
of change in societies splintered by modernity, and they<br />
facilitate consequent demands for social transformation.<br />
(YoUNG, 2003, p. 79)<br />
8 Leslie Damasceno refere ao termo de Cornel West<br />
resultante de um pastiche dirigido a Martin Luther King Jr.<br />
Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 49
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
50<br />
de Stoklos, pode ser um grande caminho<br />
para a produção de obras com caráter de<br />
autentici<strong>da</strong>de e originali<strong>da</strong>de no Brasil. A<br />
autoria e o hibridismo podem contribuir<br />
inclusive, para o discurso latino-americano,<br />
conforme nos mostra Gomez-Peña:<br />
Para articular nossa crise presente como<br />
artistas inter-culturais (cross-cultural<br />
artists), nós precisamos inventar e reinventar<br />
linguagens. Essas linguagens<br />
devem ser sincréticas, diversas<br />
e complexas como as reali<strong>da</strong>des<br />
fragmenta<strong>da</strong>s que estamos tentando<br />
definir. 9 (GOMEZ-PEÑA. In: TAYLOR,<br />
1994, p. 22)<br />
Conclui-se que não há expressão<br />
nem cultura pura. E que, o processo<br />
de descolonização no Brasil precisa<br />
urgentemente mu<strong>da</strong>r as relações<br />
incorpora<strong>da</strong>s de dominação e opressão.<br />
É necessário extinguir os “fantasmas”<br />
<strong>da</strong> escravidão associa<strong>da</strong> facilmente às<br />
condições do negro no Brasil, mas que,<br />
percebemos agora, se encontra nas<br />
mais diversas relações do indivíduo em<br />
socie<strong>da</strong>de. Ao mu<strong>da</strong>r essas relações,<br />
o consumo dos modelos estrangeiros<br />
poderá também ser modificado, criandose<br />
um intercâmbio baseado em igual<strong>da</strong>de<br />
no qual os dois lados – o nacional e o<br />
internacional – possam contribuir para<br />
a experiência um do outro através <strong>da</strong><br />
construção do conhecimento.<br />
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9 In order to articulate our present crisis as cross-cultural<br />
artists, we need to invent and reinvent languages. The<br />
languages have to be a syncretic, diverse and complex as the<br />
fractured realities we are trying to define. (GoMEZ-PEÑA. In:<br />
TAYLoR, 1994, p. 22)<br />
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<strong>Urdimento</strong><br />
Por um desejo pós-colonial: uma análise do teatro essencial, de Denise Stoklos 51
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Enfermeira Bottard [Fátima Lima]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 53
N° 16 | Junho de 2011<br />
ATRAVÉS DoS oBJEToS: SoBRE A<br />
CENoGRAFIA DoS ESPETÁCULoS<br />
Do THÉÂTRE LIBRE<br />
Resumo<br />
O texto trata <strong>da</strong> cenografia do Théâtre Libre. Geralmente<br />
critica<strong>da</strong> pela acumulação em cena de objetos extraídos<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, esta proposta cenográfica consistiria de um<br />
ilusionismo pouco interessante. No entanto, este artigo<br />
tenta demonstrar que havia uma grande deman<strong>da</strong> pela<br />
imaginação do espectador, uma vez que o cenário era<br />
pensado de forma metonímica, em consonância com<br />
várias outras manifestações culturais parisienses do<br />
mesmo período.<br />
Palavras-chave: Théâtre Libre, cenografia, imaginação.<br />
Abstract<br />
This text is about Théâtre Libre's scenography, which was<br />
usually criticized for its accumulation on stage of objects<br />
extracted from the reality. This proposal was considered<br />
characteristic of an uninteresting kind of illusionism.<br />
However, this article shows that there was a great demand<br />
put on the spectator's imagination, since the scenography<br />
was conceived in a metonymic way, directly related with<br />
many others cultural manifestations that happened in<br />
Paris at the time.<br />
Keywords: Théâtre Libre, scenography, imagination.<br />
Guilherme Delgado 1<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 55
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
56<br />
Ao longo do século XX, a<br />
apropriação de objetos<br />
para o campo artístico,<br />
sem construí-los ou<br />
sequer modificá-los,<br />
foi realiza<strong>da</strong> por diversos artistas. Esta<br />
história, em geral, é inaugura<strong>da</strong> com<br />
os ready-mades de Marcel Duchamp, na<br />
déca<strong>da</strong> de 10. No entanto, um pouco mais<br />
de vinte anos antes, a questão dos objetos<br />
apropriados já havia surgido na cenografia<br />
naturalista do Théâtre Libre, sob direção de<br />
André Antoine.<br />
Os cenários naturalistas, por um<br />
lado, foram fun<strong>da</strong>mentais na ruptura<br />
com um modelo antigo de cenografia – o<br />
que utilizava grandes telões pintados em<br />
perspectiva. Ao colocar móveis e outros<br />
objetos, com os atores circulando por to<strong>da</strong><br />
a área, o palco efetivamente se tornou um<br />
espaço tridimensional. Esta ampliação<br />
<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des acabou por permitir<br />
outras explorações, esteticamente muito<br />
diferentes <strong>da</strong>s propostas pelo Théâtre Libre.<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, esta transformação é um dos<br />
pilares <strong>da</strong> encenação.<br />
Por outro lado, não se deixou de notar<br />
um exagero, uma extravagância nestes<br />
mesmos cenários. O excesso de objetos<br />
retirados do “mundo real” e acumulados<br />
em cena, muitos sem funcionali<strong>da</strong>de,<br />
são tomados como uma incompreensão,<br />
um mal entendimento <strong>da</strong>s noções de<br />
representação. O fato dos cenários se<br />
proporem a ser realistas, não deman<strong>da</strong>ria<br />
que houvesse, por exemplo, pe<strong>da</strong>ços<br />
de carne pendurados no proscênio de<br />
Les Bouchers, pelo enredo se passar num<br />
açougue. Situações como esta, ou como a<br />
encomen<strong>da</strong> de madeira norueguesa para<br />
o cenário de O Pato Selvagem, tornaramse<br />
anedotas, reforçando uma posição que<br />
parece óbvia.<br />
Esta posição está fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na seguinte<br />
ideia, que pode ser vista neste texto clássico<br />
1 Diretor teatral. Bacharel em Artes Cênicas – Habilitação<br />
em Direção Teatral pela UFRJ. Mestrando do Programa<br />
de Pós-Graduação em Artes Visuais <strong>da</strong> UFRJ (PPGAV/EBA/<br />
UFRJ), sob orientação <strong>da</strong> professora Ângela Leite Lopes.<br />
Bolsista do CNPq.<br />
sobre a semiologia teatral:<br />
No palco não se utilizam apenas trajes<br />
e cenários, (...) são utilizados também<br />
objetos reais. Entretanto, os espectadores<br />
não encaram estas coisas reais como<br />
coisas reais, mas apenas como signos<br />
[…] no palco tanto um vinho autêntico<br />
quanto uma groselha podem representar<br />
um precioso vinho tinto. (BOGATYREV,<br />
2003, p. 73)<br />
Assim, não haveria nenhum ganho<br />
em retirar objetos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e<br />
colocá-los em cena. Seria uma operação<br />
desnecessária e em na<strong>da</strong> justificaria a<br />
insistência do encenador. Este raciocínio<br />
parece muito improvável, assim como<br />
o de que haveria alguma forma de<br />
evolução artística, tornando os cenários<br />
mais “sensatos” no futuro.<br />
Portanto, é necessário encontrar<br />
motivos, justificativas que levassem<br />
Antoine a preferir objetos “reais” a objetos<br />
“artificiais”, em outras palavras, objetos<br />
com existência e utilização fora <strong>da</strong> cena a<br />
objetos construídos ou transformados para<br />
o teatro. Mas para isso, é necessário retomar<br />
e esclarecer algumas questões envolvi<strong>da</strong>s<br />
neste caso.<br />
Théâtre Libre, encenação e<br />
naturalismo<br />
O Théâtre Libre foi fun<strong>da</strong>do em 1887,<br />
em Paris, sob direção de André Antoine, e<br />
existiu até 1893, quando foi anuncia<strong>da</strong> sua<br />
falência. Tratava-se de um grupo teatral<br />
amador, que tinha por missão renovar<br />
a cena francesa através de espetáculos<br />
que rompiam com a maneira como as<br />
peças eram pensa<strong>da</strong>s e imagina<strong>da</strong>s.<br />
Embora to<strong>da</strong>s as rupturas tenham sido<br />
rechea<strong>da</strong>s de polêmicas com opositores,<br />
em especial o crítico Sarcey, e aliados,<br />
principalmente o escritor Zola, em poucos<br />
anos o programa estético <strong>da</strong> companhia<br />
prevaleceu, e hoje está enraizado no<br />
próprio entendimento <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de teatral.<br />
O próprio Antoine representa bem o que<br />
Guilherme Delgado
N° 16 | Junho de 2011<br />
significou esta transição, ao passar de<br />
polemista a organizador de um grupo<br />
teatral profissional, o Théâtre Antoine, e<br />
depois a responsável pelo Théâtre Odéon,<br />
um teatro estatal francês menos influente<br />
apenas que a Comédie Française. Sua carreira<br />
ain<strong>da</strong> prosseguiria como diretor de cinema<br />
e crítico teatral e cinematográfico até 1943,<br />
ano de sua morte.<br />
Estas transformações revolucionárias<br />
para a história do teatro se deram na<br />
escolha e no tratamento aos textos<br />
dramáticos, no trabalho com os atores e<br />
na cenografia, justamente onde a questão<br />
dos objetos surge de forma problemática.<br />
To<strong>da</strong>s estas mu<strong>da</strong>nças em conjunto,<br />
alia<strong>da</strong>s ao combate à “peça bem feita”,<br />
constituem o início <strong>da</strong> encenação. 2<br />
Antes, “como um espelho, o palco tão<br />
somente remetia sua imagem à plateia”<br />
(FOUQUIÈRES apud DORT, 1977, p. 96).<br />
A relação entre público e cena estava prédetermina<strong>da</strong>,<br />
regi<strong>da</strong> por um conjunto de<br />
convenções. O bom cumprimento deste<br />
acordo determinava o sucesso, de crítica<br />
e público. Nas palavras de Fouquières,<br />
“o que [o público] aplaude não é a<br />
reprodução de uma reali<strong>da</strong>de que não lhe<br />
foi <strong>da</strong>do observar diretamente, mas, sim,<br />
o grau de semelhança <strong>da</strong> imagem que lhe<br />
é ofereci<strong>da</strong> com a ideia que se formou do<br />
fato representado” (FOUQUIÈRES apud<br />
DORT, 1977, p. 96).<br />
A ruptura apresenta<strong>da</strong> pela encenação<br />
é a deste acordo tácito. Ruptura esta que<br />
vem acompanha<strong>da</strong> de um deslocamento<br />
do “centro de gravi<strong>da</strong>de” do evento teatral.<br />
Antes, o teatro era<br />
considerado como uma arte, um luxo e<br />
um divertimento, isto é, um rito social<br />
(...) no qual o centro de gravi<strong>da</strong>de está na<br />
sala e não na cena, vide os imensos salões<br />
onde as pessoas se reencontram e se<br />
2 Há uma discussão acerca do pioneirismo <strong>da</strong> encenação, se<br />
caberia aos Meininger, a Antoine ou a Stanislavski. Este debate<br />
parece ser de pouco interesse, não só pela semelhança de<br />
propostas e pela quase contemporanei<strong>da</strong>de dos três grupos,<br />
sendo os Meininger um pouco anteriores. De to<strong>da</strong> forma,<br />
Antoine assistiu espetáculos dos dois e se referiu a ambos de<br />
forma bastante elogiosa.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
pavoneiam. O camarote é a célula social<br />
onde se preparam as intrigas, se discutem<br />
os negócios e se organizam os casamentos.<br />
O espetáculo está sobre o palco, mas na<br />
sala o público dá a si mesmo seu próprio<br />
espetáculo. (BABLET, 1965, p. 7)<br />
Uma <strong>da</strong>s grandes batalhas de Antoine<br />
foi a de reformar a área <strong>da</strong> plateia,<br />
escurecendo-a como havia feito Wagner,<br />
e tornando-a menos semicircular e<br />
mais retangular, para que a atenção dos<br />
espectadores se voltasse exclusivamente<br />
para o que estava em cena.<br />
To<strong>da</strong>s estas transformações foram<br />
sustenta<strong>da</strong>s por um programa de<br />
reformas naturalista. Zola acreditava que<br />
a tarefa do artista era a de se aproximar e<br />
retratar a ver<strong>da</strong>de com uma objetivi<strong>da</strong>de,<br />
com uma neutrali<strong>da</strong>de na linguagem que,<br />
hoje, parece ingênua. É o que se vê em<br />
trechos como:<br />
O Naturalismo é o retorno à natureza; é<br />
essa operação que os cientistas fizeram no<br />
dia que imaginaram partir dos estudos<br />
dos corpos e dos fenômenos, basear-se<br />
na experiência, proceder pela análise.<br />
O Naturalismo, nas letras, é igualmente<br />
o retorno à natureza e ao homem, a<br />
observação direta, a anatomia exata,<br />
a aceitação e a pintura do que existe.<br />
(ZOLA, 1982, p. 92)<br />
Ou seja, tanto Antoine como Zola,<br />
se propunham a serem neutros, meros<br />
veículos de exposição <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, mas<br />
estavam plenamente comprometidos com<br />
um imaginário científico-biológico de sua<br />
época. Como resume Auerbach:<br />
A ativi<strong>da</strong>de do romancista é compara<strong>da</strong><br />
com a ativi<strong>da</strong>de científica, sendo que,<br />
com isto, indubitavelmente se pensa<br />
em métodos biológicos e experimentais.<br />
Encontramo-nos sob a influência dos<br />
primeiros decênios do Positivismo,<br />
durante os quais todos que exerciam<br />
ativi<strong>da</strong>des mentais, na medi<strong>da</strong> em<br />
procuravam métodos novos e conformes<br />
com o seu tempo, tentavam apropriar-se<br />
dos sistemas e processos experimentais.”<br />
(AUERBACH, 2007, p. 446)<br />
Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 57
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
58<br />
Ain<strong>da</strong> assim, é importante ressaltar<br />
que o naturalismo não foi um fechamento,<br />
mas uma abertura de possibili<strong>da</strong>des. Como<br />
diz Dort:<br />
Pretender instalar o real (...) no palco,<br />
não é instituir uma falaciosa e impossível<br />
identi<strong>da</strong>de entre teatro e reali<strong>da</strong>de: é<br />
colocar totalmente em questão to<strong>da</strong> a<br />
ativi<strong>da</strong>de teatral. É romper com teatro<br />
concebido como simples tradução cênica<br />
de uma obra dramática que existiria em si,<br />
segundo regras fixa<strong>da</strong>s uma vez por to<strong>da</strong>s<br />
e independente <strong>da</strong>s condições materiais<br />
de sua representação. É conceber a crítica<br />
não mais como uma expressão antecipa<strong>da</strong><br />
do julgamento do público, mas como<br />
uma reflexão sobre o fato que constitui<br />
a própria representação. É passar <strong>da</strong><br />
imitação ideal <strong>da</strong> natureza, primeiro<br />
man<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de clássica, à criação<br />
de uma nova natureza, através dos<br />
meios específicos <strong>da</strong> expressão teatral.<br />
(DORT, 1977, p. 49)<br />
Duas concepções cenográficas<br />
Coloca<strong>da</strong>s estas questões, é<br />
possível se concentrar especificamente<br />
nas transformações cenográficas que<br />
envolveram o Théâtre Libre. 3<br />
Ao longo do século XIX, não havia<br />
um senso de uni<strong>da</strong>de visual ou conceitual<br />
entre espetáculos e seus cenários. Estes<br />
eram compostos por telões pintados em<br />
perspectiva, fabricados em diversos ateliês.<br />
Em geral, estas oficinas já tinham modelos<br />
de imagem prontos, como o de floresta ou<br />
o de tempestade. Também era comum a<br />
reutilização dos tecidos pintados de uma<br />
peça para outra, com algumas pequenas<br />
modificações (ou até sem estas...). Outra<br />
situação frequente nas produções de<br />
grande porte era que mais de um ateliê<br />
participasse do mesmo cenário, ca<strong>da</strong> um<br />
pintando algumas telas. Certamente, havia<br />
um gosto pelo exagero, e a sofisticação<br />
técnica era bastante aprecia<strong>da</strong>.<br />
3 o Théâtre Libre não possuía um cenógrafo “oficial”, várias<br />
<strong>da</strong>s montagens sequer registravam alguém exercendo esta<br />
função. Por conta disso, a elaboração dos cenários é, em<br />
geral, credita<strong>da</strong> ao próprio Antoine.<br />
Este sistema trazia alguns grandes<br />
problemas, sendo o principal deles a<br />
dificul<strong>da</strong>de de conciliar a perspectiva<br />
<strong>da</strong>s pinturas com os atores. Caso estes<br />
se deslocassem demasia<strong>da</strong>mente,<br />
as proporções entre o corpo deles e<br />
as imagens ficavam ridículas. Isto<br />
dificultava que o espaço cênico fosse<br />
ocupado tridimensionalmente, gerando<br />
uma situação estranha: a profundi<strong>da</strong>de<br />
era sugeri<strong>da</strong> pelo cenário, mas não era<br />
efetua<strong>da</strong> em cena, uma vez que os atores<br />
só ocupavam a frente do palco.<br />
Com o tempo, em peças de temática<br />
contemporânea, começaram a surgir<br />
móveis e outros objetos em cena.<br />
Certamente, isto também foi um problema<br />
para a perspectiva, assim como a estranha<br />
junção entre objetos pintados e objetos<br />
presentes em um mesmo espaço.<br />
Neste momento, poderia se pensar<br />
que os preceitos cenográficos do Théâtre<br />
Libre já teriam surgido, mas não era isto<br />
que estava em questão. O grupo dirigido<br />
por Antoine também acumularia objetos<br />
em cena, mas a partir de um outro<br />
pensamento teatral.<br />
Para Antoine, “... a encenação deveria<br />
tomar no teatro o lugar que as descrições<br />
tomam no romance. A encenação deveria<br />
(...) não somente fornecer à ação sua<br />
justa moldura, mas também determinar<br />
o seu caráter ver<strong>da</strong>deiro e constituir sua<br />
atmosfera.” (ANTOINE, 2001, p. 24-25).<br />
Esta se tornou a função do cenário, que<br />
deixou de ser apenas decorativo. O cenário<br />
é “o meio que determina o movimento<br />
<strong>da</strong>s personagens...” (ANTOINE, 2001, p.<br />
32). E para que pudessem efetivamente se<br />
tornar ambientes era necessário enchê-los<br />
“com todos os objetos familiares com os<br />
quais podem-se servir, mesmo fora <strong>da</strong> ação<br />
projeta<strong>da</strong> (...) os habitantes do lugar. Essa<br />
operação, minuciosamente, amorosamente<br />
conduzi<strong>da</strong>, resultará na vi<strong>da</strong>” (ANTOINE,<br />
2001, p. 35).<br />
“São essas coisas imperceptíveis que<br />
fazem o caráter profundo íntimo do meio<br />
que se quis reconstituir” (ANTOINE,<br />
2001, p. 36). Também neste sentido, a<br />
iluminação e a sonoplastia sofisticaram-<br />
Guilherme Delgado
N° 16 | Junho de 2011<br />
se, tornando ain<strong>da</strong> mais detalha<strong>da</strong> a<br />
atmosfera deseja<strong>da</strong> para a peça.<br />
O importante é notar como a relação<br />
cenografia-espetáculo transformou-se<br />
radicalmente. “Não há mais personagens e<br />
cenários, ou personagens sobre um cenário,<br />
mas uma contínua inter-relação entre<br />
cenário e ator, um perpétuo movimento<br />
dinâmico de um para o outro, uma troca<br />
vital” (BABLET, 1965, p. 113).<br />
Até aqui, a acumulação de objetos em<br />
cena não parece problemática. No entanto,<br />
a questão ain<strong>da</strong> não foi abor<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo<br />
ponto de vista do espectador. Isto é, como<br />
este público olhava para estes espetáculos<br />
e seus cenários. Aqui, há dois caminhos a<br />
serem desenvolvidos: o <strong>da</strong> ilusão e o <strong>da</strong><br />
metonímia.<br />
O espectador e a ilusão<br />
Há um consenso que o naturalismo<br />
foi o ápice de uma determina<strong>da</strong> forma<br />
de relação entre plateia e cena: a do<br />
ilusionismo. O palco italiano, elaborado<br />
arquitetonicamente ao longo de três séculos<br />
é tanto o resultado, quanto o principal<br />
agente desta relação. Como diz Francastel:<br />
Este problema do quadro monumental<br />
apareceu no Renascimento, no momento<br />
do aparecimento de um novo tipo de<br />
imaginação. [...] É neste momento, com<br />
efeito, que se determina uma noção tenaz<br />
de ilusionismo [...] Num certo momento,<br />
o ilusionismo foi portanto uma forma<br />
defini<strong>da</strong> e propriamente teatral. É o<br />
grande papel do teatro na civilização<br />
que morre, o de ter <strong>da</strong>do forma à ilusão.<br />
(FRANCASTEL apud LOPES, 2000, p. 70)<br />
Ao se pensar na escuridão <strong>da</strong> área<br />
dos espectadores, nos ruídos, no trabalho<br />
dos atores, efetivamente nota-se como o<br />
Théâtre Libre empenhou-se em construir<br />
a ilusão mais sofistica<strong>da</strong> e completa para<br />
seu espectador. Mas como li<strong>da</strong>r com os<br />
objetos apropriados? Dizer que uma mesa<br />
ilude como mesa, ou que um pe<strong>da</strong>ço de<br />
carne ilude como pe<strong>da</strong>ço de carne, não faz<br />
muito sentido.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Para abor<strong>da</strong>r este problema, Bablet<br />
<strong>parte</strong> de uma citação de Lessing: “Tudo<br />
que não favorece a ilusão a destrói”<br />
(LESSING apud BABLET, 1965, p. 16).<br />
No entanto, pensar por esta via, leva<br />
inevitavelmente a um paradoxo. O<br />
“excesso de reali<strong>da</strong>de” cenográfica de<br />
Antoine poderia até se tornar justamente<br />
o contrário do pretendido pelo encenador,<br />
isto é, uma estratégia não-ilusionista. A<br />
materiali<strong>da</strong>de, a concretude destes objetos<br />
acabaria por denunciar o que há de artificial<br />
no trabalho dos atores, nos diálogos, nas<br />
situações dramáticas,... Claro que Antoine<br />
queria reduzir esta artificiali<strong>da</strong>de ao<br />
mínimo, mas ain<strong>da</strong> assim seria impossível<br />
extingui-la de todo. O que por fim, leva a<br />
conclusão de que o argumento de Lessing<br />
está condenado à impossibili<strong>da</strong>de. Se só<br />
há o máximo de ilusão, então nunca haverá<br />
ilusão alguma.<br />
Bablet ain<strong>da</strong> propõe uma segun<strong>da</strong><br />
crítica, desta vez contra o ilusionismo,<br />
argumentando que os encenadores<br />
naturalistas “se agarram a uma reprodução<br />
fotográfica, eles impõem ao espectador<br />
uma visão global e definitiva (…)<br />
recusando implicitamente a colaboração<br />
de sua inteligência e imaginação criativa.”<br />
(BABLET, 1975, p. 20)<br />
Este é o ponto central: ao criar uma<br />
analogia entre ilusão e fotografia, afirmando<br />
que o olhar que ambas deman<strong>da</strong>m é passivo,<br />
o crítico francês exclui a imaginação do<br />
Théâtre Libre. 4 Para desfazer esta posição, é<br />
necessário esmiuçar esta relação entre cena,<br />
foto e o realismo deste período.<br />
Outra quali<strong>da</strong>de de olhar: a metonímia<br />
O que fun<strong>da</strong>menta esta analogia<br />
entre cenário e fotografia? A princípio,<br />
há dois caminhos.<br />
4 Esta posição é a mais frequente em Bablet. No entanto, há<br />
um momento em que o autor argumenta em outro sentido: “Há<br />
uma imaginação ilusionista: a partir do cenário real limitado<br />
ao espaço <strong>da</strong> cena, o espectador imagina todo o universo que<br />
o cerca e o lugar definido adquire uma densi<strong>da</strong>de maior de<br />
reali<strong>da</strong>de”. (BABLET, 1965, p. 126) Esta ideia está mais próxima<br />
do que este trabalho defende.<br />
Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 59
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
60<br />
Primeiro, pela forma como ambos<br />
se constroem. A cenografia do Théâtre<br />
Libre acumula objetos em cena, enquanto<br />
a fotografia fixa imagens a partir de um<br />
processo físico-químico. De fato, nos dois<br />
casos, trata-se de uma apropriação, de uma<br />
captura de algo que fazia <strong>parte</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />
e agora está destacado, enquadrado.<br />
Ou então, a analogia pode ser pensa<strong>da</strong><br />
pela maneira como o espectador se relaciona,<br />
como percebe e compreende, a visuali<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> cena e <strong>da</strong> imagem fotográfica.<br />
Em A Câmera Clara, Barthes afirma<br />
que a foto “sempre traz consigo seu<br />
referente (…) estão colados um ao outro”<br />
(BARTHES, 1984, p. 15). Desta forma,<br />
é impossível não atentar para o que foi<br />
fotografado, a imagem ganha o estatuto<br />
de “um certificado de presença.”<br />
(BARTHES, 1984, p. 129). Algo que a<br />
pintura nunca poderia obter. No entanto,<br />
também está aí o limite <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de: “a<br />
fotografia não rememora o passado (…) O<br />
efeito que ela produz não é o de restituir o<br />
que é abolido (pelo tempo, pela distância),<br />
mas de atestar o que de fato existiu.”<br />
(BARTHES, 1984, p. 123). Tampouco a<br />
fotografia convi<strong>da</strong>ria para a apreciação<br />
estética, e Barthes tem pouco interesse<br />
em qualificá-la como arte. Para o autor,<br />
o fun<strong>da</strong>mental é a possibili<strong>da</strong>de que esse<br />
“atestado” tem de abalar, sensibilizar o<br />
espectador, o que ele chama de punctum.<br />
Por fim, não se pode tomar “de modo<br />
algum a foto como uma 'cópia' do real –<br />
mas como uma emanação do real passado”<br />
(BARTHES, 1984, p. 132).<br />
Assim, a fotografia não é uma metáfora,<br />
mas uma superfície capaz de reter um<br />
momento e, posteriormente, convi<strong>da</strong>r seu<br />
espectador a imaginar, ficcionalizar. O<br />
próprio Barthes especula a partir <strong>da</strong> foto de<br />
uma criança: “é possível que Ernest ain<strong>da</strong><br />
viva hoje em dia (mas onde? Como? Que<br />
romance!)” (BARTHES, 1984, p. 125).<br />
Embora haja no próprio livro uma<br />
analogia entre as fotos e o teatro arcaico,<br />
o possível encontro entre a fotografia e o<br />
Théâtre Libre se dá através dos “efeitos de<br />
real”, outro conceito do mesmo autor.<br />
Em Efeito de Real, Barthes se<br />
dedica a pensar o que ele nomeia como<br />
“pormenores concretos”. Trata-se de<br />
pequenos trechos, presentes nas obras<br />
realistas, aparentemente inúteis para sua<br />
estrutura – seriam descrições. O que se<br />
<strong>da</strong>ria em ca<strong>da</strong> “pormenor concreto” seria<br />
uma “colusão direta entre o significante<br />
e o referente” (BARTHES, 2004, p. 189),<br />
expulsando o significado. Ou seja, a<br />
descrição se aproxima do real a ponto de<br />
não significar, apenas demonstrar. Isto<br />
produziria um “efeito de real”.<br />
Aqui, está o ponto de encontro: Antoine<br />
quer que seus cenários sejam como as<br />
descrições dos romances realistas do século<br />
XIX. Barthes mostra que estas descrições<br />
estão repletas de efeitos de real. E estes são<br />
análogos às fotografias, na sua capaci<strong>da</strong>de<br />
de evocar a reali<strong>da</strong>de.<br />
Dado isto, Shawn Kairschner articula<br />
o trabalho do Théâtre Libre com estas<br />
questões:<br />
Olhar objetos 'fotograficamente' permite<br />
ao espectador ver o 'real' escondido<br />
no interior de uma grande superfície<br />
(fotográfica) ordena<strong>da</strong>. Paisagens<br />
naturalistas convi<strong>da</strong>m o espectador a<br />
desenvolver um olhar clínico, um modo<br />
de percepção 'fotográfico' que desenvolve<br />
a singular habili<strong>da</strong>de de não olhar para<br />
mas através dos corpos atuantes que estão<br />
presentes. (KAIRSCHNER , 2003, p. 15)<br />
É justamente este olhar através que é<br />
exigido pelos cenários naturalistas. Não se<br />
trata de vê-los como cópias <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de,<br />
mas como estímulos para que o espectador<br />
imagine um espaço “real”.<br />
Mais do reproduzir um açougue,<br />
a carne pendura<strong>da</strong> convi<strong>da</strong> o olhar <strong>da</strong><br />
plateia a atravessar a cena e enxergar<br />
um açougue. Os objetos retirados <strong>da</strong><br />
reali<strong>da</strong>de possuem, portanto, este apelo,<br />
esta chama<strong>da</strong> que os telões pintados e os<br />
adereços construídos não possuem, ao<br />
menos não na mesma intensi<strong>da</strong>de.<br />
Por isso, a figura de linguagem que<br />
melhor demonstraria estas escolhas<br />
cenográficas não é a metáfora, mas a<br />
Guilherme Delgado
N° 16 | Junho de 2011<br />
metonímia. A famosa expressão “fatias<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>”, usa<strong>da</strong> pelos naturalistas<br />
para defender suas obras, pode ser<br />
compreendi<strong>da</strong> neste sentido, mais como<br />
um jogo e menos como uma ingenui<strong>da</strong>de<br />
ou um projeto utópico.<br />
Antoine e outras atrações parisienses<br />
É um ponto delicado pensar que<br />
Antoine não utilizou o argumento<br />
desenvolvido acima em nenhuma de suas<br />
diversas considerações sobre sua obra.<br />
Seu pensamento está sempre no sentido<br />
de uma aproximação sem restrições entre<br />
arte e reali<strong>da</strong>de, e a criação de uma ilusão<br />
perfeita. Questões que atualmente soam<br />
ingênuas, como já foi explicitado.<br />
Entretanto, isto não invali<strong>da</strong> a<br />
discussão sobre este outro olhar. A<br />
hipótese em questão é a de que esta relação<br />
metonímica estava presente em diversas<br />
atrações contemporâneas ao Théâtre Libre,<br />
de que fazia <strong>parte</strong> do gosto do público e<br />
dos artistas.<br />
Assim, os cenários naturalistas não<br />
seriam uma “invenção” do encenador<br />
francês, mas uma adequação do espaço<br />
cênico à sensibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> época. As formas<br />
anteriores de cenografia não despertariam<br />
no público a sensação de reali<strong>da</strong>de que<br />
vários outros espetáculos não-teatrais já<br />
produziam. E isso Antoine sabia e reiterava<br />
sempre que tinha a oportuni<strong>da</strong>de. 5<br />
Para reforçar o que foi dito, serão<br />
brevemente abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s duas outras<br />
formas espetaculares que atraíam as<br />
5 Certamente Antoine estava a par <strong>da</strong>s transformações<br />
culturais parisienses. Por exemplo, para a divulgação dos<br />
espetáculos, o Théâtre Libre se valia de um conjunto de<br />
estratégias, incluindo os cartazes, que se hoje parecem óbvias,<br />
na época eram uma forma nova e impactante de publici<strong>da</strong>de.<br />
Como assinala Sally Charnow: “... Antoine conscientemente se<br />
valeu de técnicas de publici<strong>da</strong>de e mercado do mundo burguês<br />
do comércio. Mais do que extinguir o potencial artístico, o<br />
mercado foi uma condição necessária para a emergência <strong>da</strong><br />
moderni<strong>da</strong>de no teatro. Instituições culturais modernistas,<br />
como o Théâtre Libre, estavam aptas para interagir com seu<br />
público através práticas inovadoras de marketing como a<br />
propagan<strong>da</strong>, a subscrição, e a autopromoção na imprensa.”<br />
(CHARNoW, 2000. p. 62)<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
massas parisienses no fim do século<br />
XIX. Em ambas, assim como no Théatre<br />
Libre, está explícito o diagnóstico de<br />
Schwartz: “a reali<strong>da</strong>de era transforma<strong>da</strong><br />
em espetáculo (…) ao mesmo tempo em<br />
que os espetáculos eram obsessivamente<br />
realistas.” (SCHWARTZ, 2004, p. 357)<br />
O necrotério, que contava com uma<br />
sala de exposição, onde os cadáveres<br />
eram mantidos “vestidos e sentados em<br />
cadeiras” (SCHWARTZ, 2004, p. 343), foi<br />
muitas vezes aclamado como um “teatro<br />
público” (SCHWARTZ, 2004, p. 339). A<br />
entra<strong>da</strong> era gratuita e atraía uma multidão<br />
de curiosos. Quanto mais terrível fosse o<br />
estado do corpo exposto, ou mais horrível<br />
a vítima (crianças, por exemplo), maior era<br />
o apelo popular. Os cadáveres poderiam<br />
até sofrer técnicas de conservação para que<br />
o espetáculo fosse mais longevo.<br />
No entanto, “a grande maioria<br />
dos visitantes não ia lá pensando que<br />
poderia de fato reconhecer os cadáveres”<br />
(SCHWARTZ, 2004, p. 340), mas como<br />
uma forma de entretenimento: tratavase<br />
de imaginar em que circunstâncias<br />
o crime poderia ter acontecido, “uma<br />
invisível causa psicológica (uma narrativa<br />
de falência moral) para o efeito somático<br />
totalmente visível inscrito no corpo”<br />
(KAIRSCHNER, 2003, p. 16). Sem dúvi<strong>da</strong>,<br />
a imprensa era a principal fomentadora<br />
destas narrativas e <strong>da</strong> excitação <strong>da</strong>s massas<br />
pelo crime cometido.<br />
Percebe-se aí, um análogo do romance<br />
policial, onde o detetive desven<strong>da</strong>,<br />
mas para isso necessita construir<br />
imaginariamente primeiro, o crime<br />
através <strong>da</strong>s evidências materiais com as<br />
quais tem contato. E, também, a mesma<br />
quali<strong>da</strong>de de atenção e o mesmo olhar<br />
pedido pela cena do Théâtre Libre. 6<br />
Este 'trabalho fotográfico', este processo<br />
de mover-se <strong>da</strong> superfície para o<br />
subsolo onde a ver<strong>da</strong>de está localiza<strong>da</strong> é<br />
precisamente o trabalho naturalista. (…)<br />
6 Uma ressalva: certamente o olhar para os cadáveres é um<br />
voyeurismo, mas não se discutirá neste artigo em que medi<strong>da</strong><br />
o olhar para a cena naturalista também o era.<br />
Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 61
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
62<br />
narrativas de depravação funcionavam<br />
como ver<strong>da</strong>des somáticas 'interiores'<br />
e 'ocultas' que a percepção fotográfica<br />
tão habilmente revela (KAIRSCHNER,<br />
2003, p. 17)<br />
Outra forma espetacular<br />
contemporânea é o museu de cera.<br />
Presentes em diversas capitais europeias,<br />
estes museus apresentavam manequins<br />
de celebri<strong>da</strong>des, figuras políticas ou<br />
reconstituições de acontecimentos,<br />
criminais ou históricos. Estes bonecos de<br />
cera procuravam ser feitos com o máximo<br />
de verossimilhança possível, mas isto não<br />
bastava:<br />
acessórios, ornamentos e dispositivos<br />
que criavam um efeito de moldura para<br />
os quadros funcionavam em conjunto<br />
para representar o real. O museu<br />
por exemplo utilizava acessórios<br />
autênticos. […] Os quadros criavam<br />
cenários reconhecíveis, taxonômicos<br />
e apropriados para as figuras –<br />
mininarrativas na forma de um olho<br />
mágico dirigido à vi<strong>da</strong> parisiense.<br />
(SCHWARTZ, 2004, p. 345-346)<br />
Naturalmente, nem to<strong>da</strong>s as cenas<br />
possuíam objetos “reais”, mas o importante<br />
é notar que novamente a mesma relação<br />
metonímica está enfatiza<strong>da</strong>. Sandberg, ao<br />
comentar uma variação do museu de cera<br />
– o museu folclórico, que “culminou no<br />
projeto heróico de mover construções reais<br />
e amostras de seus ambientes originais<br />
para os museus ao ar livre” (SANDBERG,<br />
2004, p. 368) – nota a seguinte relação entre<br />
estes adereços e os manequins:<br />
Se o objeto do museu do folclore é<br />
investido de realismo e 'vi<strong>da</strong>' acentuados<br />
pela proximi<strong>da</strong>de de uma figura humana,<br />
também é preciso reconhecer que o corpo<br />
em exibição por sua vez alcança uma<br />
aparência similar à vi<strong>da</strong> por estar cercado<br />
pelos mesmos objetos, aparentemente<br />
dispostos para o seu uso. Sem os acessórios<br />
para ativar a imaginação do espectador, o<br />
manequim permanece um boneco; com<br />
eles a figura simula ação e consciência.<br />
(SANDBERG, 2004, p. 373)<br />
Conclusão<br />
O Théâtre Libre, ao longo de seu breve<br />
período de existência, realizou seu objetivo<br />
de revolucionar a cena francesa. O fim<br />
<strong>da</strong> “peça bem feita”, o deslocamento do<br />
centro de interesse <strong>da</strong> plateia para o palco,<br />
a enxurra<strong>da</strong> de novos autores, a crítica aos<br />
excessos <strong>da</strong> forma anterior de representar...<br />
tudo isto constituiu a base <strong>da</strong> encenação.<br />
Dentre as inúmeras possibili<strong>da</strong>des recémabertas,<br />
o Théâtre Libre sempre optou pelas<br />
naturalistas, mas mesmo os seus críticos mais<br />
ferrenhos se valeram <strong>da</strong>s transformações<br />
provoca<strong>da</strong>s pela companhia.<br />
No que diz respeito aos aspectos visuais,<br />
articularam-se duas relações diferentes entre<br />
o olhar do espectador, o cenário e a cena. A<br />
ilusionista, com seus limites e paradoxos,<br />
dá conta de quase to<strong>da</strong> a proposta cênica de<br />
Antoine, ao mesmo tempo em que era um<br />
aperfeiçoamento do que o teatro já vinha<br />
elaborando nas déca<strong>da</strong>s anteriores (e até<br />
séculos, levando em conta a criação do palco<br />
italiano). E a <strong>da</strong> metonímia, onde a extração<br />
de determinados objetos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de,<br />
propunha ao espectador uma outra<br />
imaginação – “a de testemunha privilegia<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> reconstituição e do renascimento de um<br />
evento passado” (SARRAZAC, 1999, p. 13).<br />
Este segun<strong>da</strong> visão estava profun<strong>da</strong>mente<br />
conecta<strong>da</strong> com outros eventos de grande<br />
interesse <strong>da</strong> época, como a visita ao<br />
necrotério, ao museu de cera, a leitura de<br />
romances policiais e a fotografia.<br />
Não é o interesse deste trabalho<br />
tratar o ilusionismo e o olhar metonímico<br />
como relações antitéticas. A relação entre<br />
espectador e cena é complexa, envolve<br />
vários fatores, e a simplificação de qualquer<br />
proposta estética a um tipo de olhar pode<br />
ser muito reducionista. Por outro lado,<br />
não se pretende afirmar que estas duas<br />
maneiras de ver a cena convivem na mais<br />
perfeita harmonia, se assim fosse, não<br />
haveria tantas críticas à apropriação de<br />
objetos realiza<strong>da</strong> por Antoine.<br />
Ain<strong>da</strong> é necessário ressaltar que<br />
esta apropriação, um procedimento que<br />
será utilizado ao longo do século XX por<br />
Guilherme Delgado
N° 16 | Junho de 2011<br />
artistas diferentes como Duchamp, Kantor<br />
e Beuys, dentre outros, não deman<strong>da</strong><br />
necessariamente este olhar metonímico,<br />
reconstituidor. Seria fun<strong>da</strong>mental estu<strong>da</strong>r<br />
o contexto de ca<strong>da</strong> um deles, e a maneira<br />
como este procedimento se articula com o<br />
conjunto de suas obras, para traçar quais<br />
outras relações seriam possíveis. Como não<br />
levar em conta a provocação ao se pensar<br />
em Duchamp, por exemplo.<br />
De to<strong>da</strong> a forma, como foi mencionado<br />
no início deste trabalho, a primeira vez que<br />
esta apropriação se tornou efetivamente<br />
uma escolha artística, e uma polêmica<br />
entre os críticos, foi com os cenários de<br />
Antoine. Ao mesmo tempo, a compreensão<br />
destas relações visuais e seus apelos para<br />
a imaginação são fun<strong>da</strong>mentais para<br />
um entendimento mais profundo do<br />
projeto artístico do Théâtre Libre.<br />
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Através dos objetos: sobre a cenografia dos espetáculos do Théâtre Libre 63
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Bernadette [Du<strong>da</strong> Schappo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Júlia oliveira.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 65
N° 16 | Junho de 2011<br />
ANJo NEGRo: SEXo E RAçA No<br />
TEATRo BRASILEIRo 1<br />
Resumo<br />
Com este texto proponho uma reflexão sobre o<br />
impedimento de um ator negro interpretar o personagem<br />
principal <strong>da</strong> peça Anjo Negro, de Nelson Rodrigues, por<br />
ocasião de sua estreia no Rio de Janeiro em 1948. Para<br />
tanto, analiso a prática comum dos espetáculos teatrais<br />
<strong>da</strong> época em pintar atores brancos de preto (blackface)<br />
para representar personagens negros e o tabu <strong>da</strong> relação<br />
erótico-amorosa entre um homem negro e uma mulher<br />
branca trata<strong>da</strong> de forma magistral pelo autor.<br />
Palavras-chave: Teatro Brasileiro, Anjo Negro, Blackface.<br />
Abstract<br />
With this text I propose a reflection on the circumstances<br />
of a black actor being barred from interpreting the main<br />
character of Nelson Rodrigues’ play Anjo Negro, on the<br />
occasion of its first performance in Rio de Janeiro in 1948.<br />
To do so, I analyze the theatrical practice common in those<br />
<strong>da</strong>ys that white actors represented colored characters<br />
with a black facial makeup (blackface) and the taboo of<br />
an erotic relationship between a black man and a white<br />
woman treated in a masterly way by author’s playtext..<br />
Keywords: Brazilian Theatre, Anjo Negro, Blackface.<br />
Mara Lucia Leal 2<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 67
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
68<br />
Um homem<br />
Meu Deus do Céu,<br />
tenho medo de preto!<br />
Tenho medo, tenho medo! 3<br />
Abdias do Nascimento,<br />
negro, ator, artista<br />
plástico, militante <strong>da</strong><br />
causa negra e fun<strong>da</strong>dor<br />
do Teatro Experimental<br />
do Negro (TEN) teve a ideia de criar<br />
o grupo depois de assistir, perplexo, a<br />
encenação de O Imperador Jones, de Eugene<br />
O’Neill, em viagem a Lima, Peru, na qual o<br />
personagem título, negro, era representado<br />
por um ator branco pintado.<br />
Era 1941 e, tanto no teatro como na<br />
socie<strong>da</strong>de, tentava-se apagar a existência<br />
física <strong>da</strong> cor negra, ou então, apresentála<br />
na ficção do piche. Por isso, desde o<br />
seu surgimento em 1944, o TEN não era<br />
só um experimento teatral, pois além<br />
<strong>da</strong>s montagens de espetáculos, o TEN<br />
promoveu cursos de alfabetização de<br />
adultos, o 1. Congresso do Negro Brasileiro,<br />
o Conselho Nacional de Mulheres Negras, o<br />
debate sobre a regulamentação do trabalho<br />
doméstico, concursos de beleza negra,<br />
entre outros.<br />
Apesar do espanto de Abdias, pintar<br />
atores brancos de preto era uma prática<br />
comum no teatro ocidental até meados<br />
do século XX. Para a naturalização<br />
dessa atitude <strong>da</strong>va-se muitas respostas,<br />
a principal era a de que não existiriam<br />
atores negros capacitados para o palco.<br />
Assim, infelizmente, se fazia necessário<br />
que um ator capacitado, ou seja, branco,<br />
representasse esses papéis.<br />
1 Uma primeira versão desse texto foi apresenta<strong>da</strong> no<br />
ENECULT (2008) e na ABRALIC (2008).<br />
2 Atriz/Performer forma<strong>da</strong> pelo CAC/ECA/USP. Professora<br />
do Curso de Teatro <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Uberlândia.<br />
Mestre em Artes pela Unicamp com pesquisa sobre o teatro<br />
de George Tabori. Doutoran<strong>da</strong> pelo PPGAC/UFBA com a<br />
pesquisa Memória e(m) Performance: material biográfico na<br />
composição <strong>da</strong> cena.<br />
3 To<strong>da</strong>s as falas <strong>da</strong>s epígrafes pertencem aos personagens <strong>da</strong><br />
peça Anjo Negro, de Nelson Rodrigues (Ver em RoDRIGUES,<br />
1981, p. 121-192).<br />
Entretanto, essa teoria cai por terra<br />
quando há um ator negro capacitado para<br />
o papel e este é impedido de representálo.<br />
Depois de uma luta imensa de Nelson<br />
Rodrigues para passar a peça Anjo Negro pela<br />
censura brasileira, a “comissão cultural” do<br />
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde a<br />
peça iria estrear, proibiu que o personagem<br />
principal, Ismael, fosse representado por<br />
um ator negro. Ao exigir uma explicação,<br />
Nelson Rodrigues ouviu o seguinte: “Se<br />
fosse um espetáculo folclórico... E há cenas<br />
entre o crioulo e a loura. Olhe – que tal um<br />
negro pintado?” (ver em CASTRO, 2003,<br />
p. 203). Abdias do Nascimento, grande<br />
inspirador do projeto de Nelson Rodrigues<br />
em escrever sobre o problema racial no<br />
Brasil e para quem ele escreveu Ismael, foi<br />
impedido de fazer o papel.<br />
Eu entrei em contato com Anjo Negro e<br />
os desdobramentos racistas de sua estreia<br />
quando tinha recém chegado a Salvador<br />
e buscava me inserir na cena local. Os<br />
estudos que fiz para encarnar o papel de<br />
Virginia, a mulher subjuga<strong>da</strong> pela violência<br />
sexual e pelo desejo reprimido, que mata<br />
os filhos negros como meio de salvação, me<br />
aju<strong>da</strong>ram a refletir sobre as relações raciais<br />
que vivia no dia-a-dia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
Ao estu<strong>da</strong>r a peça de Nelson Rodrigues,<br />
classifica<strong>da</strong> como tragédia pelo autor, e<br />
o período em que foi escrita, me chamou<br />
muito a atenção o ato discriminatório do<br />
blackface. Assim, sem me furtar <strong>da</strong>s relações<br />
estreitas entre a arte e os condicionamentos<br />
históricos e sociais que a cercam, no caso em<br />
questão, pretendo focar nos preconceitos<br />
<strong>da</strong> época, construídos historicamente,<br />
que geraram tal procedimento artístico, a<br />
despeito de to<strong>da</strong> uma corrente de artistas,<br />
como o próprio Abdias do Nascimento<br />
e Nelson Rodrigues, que lutava ativa e<br />
artisticamente contra essas práticas. A<br />
chave de minha interpretação vem do<br />
próprio texto: o tabu <strong>da</strong> relação eróticoamorosa<br />
entre um homem negro e uma<br />
mulher branca trata<strong>da</strong> de forma magistral<br />
por Nelson Rodrigues.<br />
Sempre o sonho dele foi violar uma<br />
branca.<br />
Mara Lucia Leal
N° 16 | Junho de 2011<br />
Um personagem<br />
Ismael, negro, médico. Segundo<br />
seu irmão Elias, Ismael sempre quis ser<br />
branco: “Desde menino tem vergonha;<br />
vergonha, não, tem ódio <strong>da</strong> própria cor”.<br />
Ismael nega suas origens para tentar ser<br />
aceito no mundo branco; ao ser rechaçado<br />
subjuga, através do poder sexual, uma<br />
mulher branca – Virgínia – com quem tem<br />
três filhos. A tentativa de branqueamento<br />
de sua prole é duplamente frustra<strong>da</strong>: seus<br />
filhos são negros como ele e, por isso,<br />
assassinados pela mãe que não suporta ver<br />
em sua descendência o reflexo do marido.<br />
Frantz Fanon, no mesmo período em<br />
que estreava Anjo Negro 4 , discorria sobre<br />
o perigo de dois caminhos antagônicos<br />
que o negro tem a sua frente, na tentativa<br />
de resolver esse problema. Ao aceitar<br />
as diferenças impostas pela socie<strong>da</strong>de<br />
branca e colonizadora, há dois caminhos:<br />
ambicionar ser branco, alienando-se,<br />
para ser aceito pela socie<strong>da</strong>de ou exaltar<br />
sua negritude. Em sua opinião, os dois<br />
caminhos estão fa<strong>da</strong>dos ao fracasso.<br />
Sobre o primeiro, não há necessi<strong>da</strong>de de<br />
argumentos; sobre o segundo, a questão<br />
é complexa: a valorização <strong>da</strong> negritude se<br />
dá, muitas vezes, pela exaltação de valores<br />
que a cultura branca impôs sobre ela, como<br />
o excesso sexual e sensual, a brutali<strong>da</strong>de<br />
física, etc. Sobre isso Fanon conclui:<br />
Eis na ver<strong>da</strong>de o que se passa: como<br />
percebo que o preto é o símbolo do<br />
pecado, começo a odiá-lo. Porém constato<br />
que sou negro. Para escapar ao conflito,<br />
duas soluções. Ou peço aos outros que<br />
não prestem atenção à minha cor, ou, ao<br />
contrário, quero que eles a percebam.<br />
Tento, então, valorizar o que é ruim – visto<br />
que, irrefleti<strong>da</strong>mente, admiti que o negro<br />
é a cor do Mal. Para pôr um termo a esta<br />
situação neurótica, na qual sou obrigado a<br />
escolher uma solução insana, conflitante,<br />
alimenta<strong>da</strong> por fantasmagorias,<br />
antagônica, desumana enfim, - só tenho<br />
uma solução: passar por cima deste<br />
4 Fanon lançou Peau Noire, Masques Blancs em 1952, na<br />
França; Nelson Rodrigues estreou com Anjo Negro em 1948,<br />
no Teatro Felix, no Rio de Janeiro com direção de Ziembinski.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
drama absurdo que os outros montaram<br />
ao redor de mim, afastar estes dois termos<br />
que são igualmente inaceitáveis e, através<br />
de uma particulari<strong>da</strong>de humana, tender<br />
ao universal (FANON, 2008, p.166).<br />
Rodrigues afirma que escreveu Anjo<br />
Negro porque achava um absurdo o negro<br />
ser representando no teatro apenas como o<br />
“moleque gaiato” <strong>da</strong>s comédias de costumes<br />
ou por tipos folclorizados. Por isso, cria um<br />
personagem – Ismael – de classe média,<br />
inteligente, mas também com paixões e<br />
ódios, ou seja, “um homem, com digni<strong>da</strong>de<br />
dramática”, enre<strong>da</strong>do em situações<br />
proféticas e míticas (Ver em CASTRO, 2003,<br />
p. 203). Mas Ismael, tragicamente, esta<br />
envolvido na dupla situação neurótica a<br />
qual descreve Fanon: rechaça suas origens<br />
e exerce violência sexual para pertencer ao<br />
mundo dos brancos.<br />
Nelson Rodrigues, em várias ocasiões,<br />
afirma ter escrito o personagem para seu<br />
amigo Abdias representar, pois, segundo<br />
ele, era o “único negro do Brasil”. Em uma<br />
de suas crônicas sobre a vin<strong>da</strong> de Sartre<br />
ao Brasil, nas quais Nelson comenta que o<br />
filósofo sempre perguntava aos presentes<br />
– “Onde estão os Negros?”, numa irônica<br />
cutuca<strong>da</strong> ao fato de a burguesia carioca ser<br />
composta apenas por brancos, o cronista<br />
emen<strong>da</strong>: “Alguém poderia dizer a Sartre,<br />
sem violentar a ver<strong>da</strong>de: – ‘Temos aí<br />
um negro, um único negro, o Abdias do<br />
Nascimento’. E, de fato, que eu saiba, é o<br />
nosso único negro confesso e radiante de o<br />
ser. A cor, em Abdias, é uma perene tensão<br />
dionisíaca” (RODRIGUES, 2003, p. 51).<br />
Mas, a despeito de trazer o personagem<br />
negro para outro patamar <strong>da</strong> dramaturgia<br />
brasileira, Rodrigues talvez não tenha<br />
previsto que estava tratando de um tema<br />
tabu: o amor erótico inter-racial entre um<br />
homem negro e uma mulher branca.<br />
A peça estreou em 1948, com Ismael<br />
pintado de graxa, representado pelo ator<br />
Orlando Guy, Virgínia pela atriz Maria<br />
Della Costa e sob direção de um Ziembinski<br />
que, em 1943, havia revolucionado o teatro<br />
brasileiro com sua encenação de Vestido<br />
de Noiva, mas que não ousou mais essa<br />
Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 69
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
70<br />
revolução teatral, votando também pela<br />
cara pinta<strong>da</strong>. Abdias foi uma <strong>da</strong>s pessoas<br />
que convenceu Nelson de que seria melhor<br />
encená-la assim do que não ir para os<br />
palcos. De fato, parece que Nelson foi o<br />
único a se incomo<strong>da</strong>r, pois nenhum jornal<br />
do período questionou a ausência de um<br />
ator negro no palco.<br />
Depois <strong>da</strong> estreia, entre a crítica<br />
calorosamente dividi<strong>da</strong> havia os<br />
entusiastas como Menotti del Picchia e<br />
os detratores que chegaram a listar todos<br />
os crimes cometidos pelos personagens:<br />
“homicídios com agravantes, indução<br />
a lascívia, três infanticídios, adultério,<br />
corrupção de menor, lesões corporais<br />
graves, estupro e cárcere privado”. Mas<br />
o problema central <strong>da</strong> peça não seria o<br />
relacionamento entre um homem negro<br />
e uma mulher branca, mas outro: “Sexo,<br />
sexo, sexo, é só nisso que ele pensa?”,<br />
escrevera um crítico <strong>da</strong> época (ver em<br />
CASTRO, 2003, p. 202).<br />
Blackface<br />
Já me esqueci dos outros homens,<br />
já sinto como se no mundo só existisse<br />
uma fisionomia<br />
– a sua – todos os homens só tivessem<br />
um rosto – o seu.<br />
A prática de pintar atores brancos de<br />
preto foi muito recorrente nos Estados<br />
Unidos durante mais de um século nos<br />
Minstrel Shows. O auge desses espetáculos<br />
ocorreu entre a déca<strong>da</strong> de vinte do século<br />
XIX e a de trinta do século XX. 5 Tratavase<br />
de shows humorísticos, onde havia<br />
comediantes brancos que se travestiam de<br />
homens negros: pintavam o rosto com graxa,<br />
exageravam os lábios, usavam perucas<br />
de lã, luvas e fraque. Essas performances<br />
desempenharam papel importante em<br />
consoli<strong>da</strong>r e proliferar imagens, atitudes e<br />
percepções racistas no mundo. Era também<br />
5 Há pouco material a respeito publicado em português.<br />
Encontrei um livro sobre a história do Jazz que discorre sobre<br />
os Minstrel Shows. Ver em Calado, 1990.<br />
uma forma de se apropriar, assimilar e<br />
explorar a cultura negra norte-americana.<br />
Tratando especificamente do<br />
“travestismo racial”, 6 no caso do blackface,<br />
quando o homem branco se fantasia de<br />
homem negro, Senelick (2000, p. 300)<br />
considera que assim como no travestismo<br />
de gênero, o de raça também estaria<br />
baseado no desejo sexual. Para ele,<br />
“a psicologia <strong>da</strong>s relações raciais são<br />
muito emaranha<strong>da</strong>s de desejo sexual,<br />
particularmente em manifestações como<br />
de dominação e submissão, de exotismo e<br />
de atração pela oposição”.<br />
Porém, em 1849, surgem comediantes<br />
negros fazendo blackface e em 1860 já havia<br />
vários grupos só com comediantes negros.<br />
Esses grupos fizeram muito sucesso e<br />
incluíram <strong>da</strong>nça e música <strong>da</strong> cultura<br />
afro-americana nos shows, passando<br />
assim a rivalizar com os grupos de<br />
comediantes brancos, autodenominandose<br />
os “autênticos”. Esses performers<br />
faziam auto-paródia bufonescas, mas<br />
também, apesar <strong>da</strong> origem discriminatória<br />
e preconceituosa desses shows, criaram<br />
um espaço de resistência e de trabalho<br />
para artistas que tinham dificul<strong>da</strong>des de se<br />
inserirem em outras ativi<strong>da</strong>des do mundo<br />
artístico norte-americano. Outra novi<strong>da</strong>de<br />
que esses “ver<strong>da</strong>deiros” blackface inseriram<br />
no Minstrel Show foi a participação de<br />
mulheres, o que, segundo Senelick (2000,<br />
p. 299), trouxe uma “erotização” para esses<br />
eventos, principalmente se considerar o<br />
papel que a mulher negra tem no imaginário<br />
masculino norte-americano.<br />
No Brasil não há notícia sobre eventos<br />
dessa natureza, mas os negros e mulatos<br />
já atuavam em autos profanos como a<br />
Conga<strong>da</strong> e <strong>da</strong>nças dramáticas desde a<br />
metade do século XVI. Pode-se ver ain<strong>da</strong><br />
hoje personagens negros no Bumbameu-boi<br />
e no Cavalo Marinho, muitas<br />
vezes com a cara pinta<strong>da</strong>, que poderiam<br />
ser considerados, inclusive, o germe<br />
dos “negrinhos pitorescos <strong>da</strong>s comédias<br />
6 É Michael Rogin quem traz a ideia de que o blackface<br />
seria uma forma de “travestismo racial”. Ver em SENELICK,<br />
2000, p. 300.<br />
Mara Lucia Leal
N° 16 | Junho de 2011<br />
de costumes” (MENDES, 1993, p. 48).<br />
Uma performance que pode-se chamar<br />
de blackface à brasileira é Nego Fugido,<br />
apresenta<strong>da</strong> por negros exagera<strong>da</strong>mente<br />
pintados, realiza<strong>da</strong> em Acupe de Santo<br />
Amaro, na Bahia que, como o próprio nome<br />
sugere, representa a fuga de escravos.<br />
Na segun<strong>da</strong> metade do século XVIII<br />
já havia várias companhias profissionais<br />
de negros e mulatos, tanto escravos como<br />
libertos, que representavam a<strong>da</strong>ptações<br />
de textos europeus com o rosto e as mãos<br />
pintados de branco, realizando uma<br />
inversão do blackface norte-americano.<br />
Entretanto, paradoxalmente, com a<br />
criação de um teatro nacional em 1838,<br />
ou seja, com dramaturgia, elenco e<br />
produtores brasileiros, os atores negros e<br />
mulatos sumiram <strong>da</strong> cena teatral. Apesar<br />
de saírem <strong>da</strong> cena como atores, eles<br />
permanecem como personagens, fato que<br />
definha com a abolição <strong>da</strong> escravatura e<br />
passa por momentos sombrios até meados<br />
do século XX 7 , quando tanto o TEN<br />
como dramaturgos do calibre de Nelson<br />
Rodrigues, Antônio Callado, entre outros,<br />
tentam reverter esse quadro toscamente<br />
pintado (MENDES, 1993).<br />
Ain<strong>da</strong> sobre o período escravagista,<br />
pode-se citar a dramaturgia de José de<br />
Alencar, autor que cria personagens negros<br />
importantes em suas peças: Pedro, <strong>da</strong><br />
comédia O Demônio Familiar (1858) e Joana,<br />
a protagonista do drama A Mãe (1860).<br />
A inclusão de temas como a escravidão<br />
na nascente dramaturgia brasileira faz<br />
<strong>parte</strong>, segundo Flávio Aguiar (1984), de<br />
um movimento de valorização do “eu<br />
nacional” surgido com a independência<br />
do Brasil. Segundo o autor, a comédia, em<br />
seu processo de rebaixamento do “outro”<br />
para atingir seu fim e de afirmação do<br />
“eu nacional” teria se concentrado em<br />
ridicularizar três outros: O primeiro seria<br />
a antiga metrópole; o segundo as nações<br />
7 Em 1926 De Chocolat, influenciado pelas Revistas Negras<br />
parisienses, cria no Rio de Janeiro a Companhia Negra<br />
de Revistas. A iniciativa, apesar de durar apenas um ano,<br />
trouxe à tona, através <strong>da</strong> comici<strong>da</strong>de tão comum ao estilo<br />
<strong>da</strong>s revistas, a discussão sobre os preconceitos raciais no<br />
Brasil. Ver em Barros (2005).<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
civiliza<strong>da</strong>s como a França e o terceiro<br />
outro seria o ridículo do “eu nacional”, ou<br />
seja, o triste legado colonial. Dentro desse<br />
terceiro outro estaria a mediocri<strong>da</strong>de, a<br />
pobreza e em seu centro a escravidão, o<br />
“mal necessário”.<br />
Aguiar não faz nenhuma menção de<br />
como essas peças foram representa<strong>da</strong>s<br />
nesse período e quem foram os atores, pois<br />
seu foco é a dramaturgia e sua recepção <strong>da</strong><br />
época, mas não é difícil imaginar como e<br />
por quem esses personagens negros foram<br />
representados num Brasil escravocrata:<br />
atores e atrizes brancos pintados.<br />
Lilia Schwarcz (1987, p. 244), em estudo<br />
sobre como o homem negro era representado<br />
nos jornais paulistas do final do século<br />
XIX, salienta que a esse “outro” “violento<br />
e degenerado” do período escravagista,<br />
inclui-se o de “estrangeiro indesejável”<br />
com o fim <strong>da</strong> escravidão. Pois, é ao se<br />
“assumir as diferenças”, “ao por em relevo<br />
o lado estrangeiro”, “ou ao se eleger a ‘cor’<br />
ou os caracteres hereditários como critérios<br />
‘dignos’ e eficazes para a delimitação <strong>da</strong><br />
degeneração e <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de entre as<br />
raças que se estabelecem com maior clareza<br />
o contraste e a distinção”.<br />
Entretanto, a partir do início do<br />
século XX essa questão vai sumindo <strong>da</strong><br />
pauta, vai sendo apaga<strong>da</strong> dos jornais que<br />
passam a assumir o discurso <strong>da</strong> “harmonia<br />
racial” e os preconceitos, ao não serem<br />
mais nomeados, passam para o “local<br />
do implícito, do consenso, do silêncio”<br />
(SCHWARCZ, 1987, p. 256). Do mesmo<br />
modo, vemos o apagamento do ator e do<br />
personagem negro dos palcos brasileiros.<br />
E esse apagamento se dá, muitas vezes,<br />
através de uma demão de tinta preta.<br />
Cor e desejo<br />
A branca também desejou o preto.<br />
Há no imaginário brasileiro,<br />
principalmente do homem branco, quando<br />
se trata de relacionamentos heterossexuais<br />
inter-raciais, em se pensar apenas no casal<br />
Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 71
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
72<br />
homem branco/mulher negra, na ver<strong>da</strong>de,<br />
mulata. Há inúmeros trabalhos sociológicos<br />
a respeito e tanto na literatura como nas<br />
artes e nos meios de comunicação temos<br />
personagens mulatas como a Gabriela<br />
de Jorge Amado, povoando o imaginário<br />
masculino. No entanto, quando vamos<br />
para os números, eles nos informam que a<br />
maioria dos relacionamentos inter-raciais<br />
no Brasil é constituí<strong>da</strong> pelo casal homem<br />
negro/mulher branca. 8 Por que esse fato<br />
povoa tão pouco nossas representações?<br />
Segundo Laura Moutinho (2003, p.<br />
167), essa relação é considera<strong>da</strong> tabu<br />
em nossa socie<strong>da</strong>de porque ameaçaria o<br />
domínio masculino branco <strong>da</strong> estrutura de<br />
dominação social e econômica. Por isso,<br />
no “plano <strong>da</strong>s representações, a estrutura<br />
escolhi<strong>da</strong> para a decanta<strong>da</strong> miscigenação<br />
brasileira é composta pelo homem ‘branco’<br />
com sua esposa ‘branca’ e a amante<br />
‘negra’/’mestiça’”.<br />
Se atentarmos para a tese ficcional<br />
do branqueamento, ela funcionaria<br />
apenas dentro do par homem branco/<br />
mulher negra: É o português colonizador<br />
gerando descendentes na barriga negra,<br />
descendentes que a ca<strong>da</strong> geração ficariam<br />
mais claros. Quando se inverte a posição,<br />
é o negro gerando descendência na barriga<br />
branca: os filhos de Ismael com Virgínia<br />
serão sempre negros como o pai. Moutinho<br />
analisa sete obras <strong>da</strong> literatura brasileira,<br />
entre o final do século XIX e meados do<br />
XX, detendo-se sobre as relações afetivosexuais<br />
inter-raciais. 9 Há tanto os pares<br />
homem branco/mulher negra, como o seu<br />
inverso, além de uma relação homossexual<br />
homem branco/homem negro. Em to<strong>da</strong>s<br />
se vê a dificul<strong>da</strong>de enfrenta<strong>da</strong> pelos<br />
amantes: Dos nove casais analisados, só<br />
8 Esses <strong>da</strong>dos foram analisados a partir do senso demográfico<br />
de 1980. os casamentos endogâmicos representam 79% do<br />
total. Dos 21% restantes tem-se 57% de homens com pele mais<br />
escura que as mulheres e 42,5% de mulheres mais escuras<br />
que os homens. Ver em SILVA, 1987. p. 54-84.<br />
9 Trata-se de o Mulato e o Cortiço, de Aluísio Azevedo; o Bom<br />
Crioulo, de Adolfo Caminha, considerado o primeiro romance<br />
homossexual <strong>da</strong> literatura brasileira; Jubiabá e Gabriela,<br />
Cravo e Canela, de Jorge Amado; as peças Sortilégio, de<br />
Abdias do Nascimento e Anjo Negro, de Nelson Rodrigues.<br />
três permanecem juntos no final <strong>da</strong> obra;<br />
os outros seis terminam por assassinato ou<br />
suicídio do parceiro.<br />
Uma <strong>da</strong>s obras em questão é Anjo Negro,<br />
com a qual quero retomar a discussão sobre<br />
aos motivos do impedimento de Abdias do<br />
Nascimento em fazer o papel de Ismael: “o<br />
crioulo com a loura”, segundo os censores.<br />
A peça fala de desejo, do desejo proibido do<br />
negro pela branca: “Oh! Deus mata todos<br />
os desejos! Maldita seja a vi<strong>da</strong>, maldito seja<br />
o amor!” é a imprecação do coro <strong>da</strong>s velhas<br />
negras em volta do caixão do terceiro<br />
“anjo negro”, vítima dessa união funesta.<br />
Virgínia seria uma mulher branca de útero<br />
negro, segundo as carpideiras, remetendose<br />
tanto a cor do filho que carrega no ventre<br />
como a cor <strong>da</strong> morte.<br />
Nelson Rodrigues cria uma dramaturgia<br />
na qual o contraste branco/negro será o<br />
tempo todo colocado em relevo como o<br />
impedimento <strong>da</strong> relação. Não importa<br />
que Ismael seja de classe social igual à de<br />
Virgínia, que tenha bens suficientes para<br />
manter mulher e filhos, pois é a negação<br />
<strong>da</strong> sua cor, tanto por ele como por Virgínia,<br />
que impossibilita a união e a geração de<br />
descendentes; é essa negação que gera a<br />
maldição <strong>da</strong> mãe negra, trazi<strong>da</strong> por Elias,<br />
irmão de criação branco e cego como o<br />
mensageiro dos deuses <strong>da</strong>s tragédias<br />
gregas, Tirésias.<br />
Ismael tenta apagar o mundo dos brancos<br />
de sua relação com Virgínia, que não pode<br />
sair de casa, nem ver ninguém: “Só posso<br />
esperar você. [...] O mundo está reduzido a<br />
nós dois – eu e você”. Mas essa também foi<br />
uma escolha dela, pois não queria ser mais<br />
vista depois do que aconteceu ali, na cama<br />
de solteiro permanentemente presente<br />
como naquele dia passado: o estupro. O<br />
segredo dessa relação está fun<strong>da</strong>do no<br />
abuso sexual sofrido por Virgínia, tanto<br />
na primeira noite como em to<strong>da</strong>s que tem<br />
com o marido: o ato sexual entre o homem<br />
negro e a mulher branca visto como uma<br />
constante violação.<br />
Só no final <strong>da</strong> peça, quando é preteri<strong>da</strong><br />
por Ismael, Virgínia afirma que também<br />
sempre o desejou, um desejo cultivado<br />
Mara Lucia Leal
N° 16 | Junho de 2011<br />
desde a infância, quando viu homens<br />
negros seminus carregando um piano na<br />
rua. Aquele desejo proibido pelo outro,<br />
o negro, foi constantemente mantido em<br />
segredo, até para ela mesma. Somente<br />
quando Ismael a troca pela filha é que ela<br />
consegue trazer a tona o que mantinha na<br />
escuridão: o desejo pelo homem negro.<br />
Entretanto, apesar do desejo, ou até por<br />
causa dele, as carpideiras encerram a peça<br />
vaticinando o impedimento <strong>da</strong> geração<br />
de filhos. Depois do casal se reconciliar<br />
e consumar o ato sexual, elas concluem:<br />
“Futuro anjo negro que morrerá como<br />
os outros”, diz uma e a outra completa:<br />
“Vosso amor, vosso ódio não tem fim neste<br />
mundo. Branca Virgínia. Negro Ismael”.<br />
Fim do último ato.<br />
Nelson Rodrigues, ao nos apresentar<br />
essa relação impossível, expõe de forma<br />
crua e poética dois grandes preconceitos: o<br />
racial contra as pessoas de pele negra, tanto<br />
pelos que a tem (Ismael) como por quem o<br />
gera (Virgínia). O outro é sobre a mulher<br />
branca, cuja função é manter a espécie e<br />
suprimir os desejos.<br />
Ann Pelegrini (2001), ao trazer a<br />
teoria <strong>da</strong> interpelação de Althusser para<br />
a constituição sexual do sujeito: “É uma<br />
menina”, me aju<strong>da</strong> a refletir sobre a<br />
interpelação racial: “Olha, um negro!”,<br />
como descreve Fanon (2008). Tanto<br />
Ismael como Virgínia foram constituídos<br />
por essas interpelações. Por um momento<br />
não ouviram o chamado e se desejaram.<br />
Mas o chamado não pára nunca e ambos<br />
acabam olhando para trás e se identificam<br />
com ele. Segundo Fanon (2008), o homem<br />
negro passa por dois complexos de<br />
inferiori<strong>da</strong>de: o econômico e o epidérmico.<br />
Ismael consegue romper com o primeiro,<br />
mas o segundo lhe persegue sempre, por<br />
isso, vê como única saí<strong>da</strong> a alienação de<br />
sua cor, o desejo de ser branco através de<br />
Virgínia e sua descendência. Virgínia, a<br />
moça branca de classe média, cria<strong>da</strong> para<br />
o “bom casamento” e para a perpetuação<br />
<strong>da</strong> espécie, primeiro deseja o noivo <strong>da</strong><br />
prima, depois deseja o marido negro.<br />
Resultado: Anjos negros. Uma mulher<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
branca, <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de quarenta do século<br />
passado, não poderia ter desejo e ser mãe<br />
ao mesmo tempo, principalmente mãe de<br />
uma prole negra.<br />
Apesar de o autor explicitar ao<br />
longo <strong>da</strong> peça que é o preconceito racial<br />
o gerador de to<strong>da</strong> a tragédia vivi<strong>da</strong><br />
pelos personagens, é curioso – talvez<br />
fosse melhor dizer um curioso sintoma<br />
– observar que tanto a crítica <strong>da</strong> época<br />
silencia sobre essa questão, como também<br />
Sábato Magaldi, em sua introdução a uma<br />
<strong>da</strong>s edições <strong>da</strong> peça, afirma que devido<br />
ao seu caráter “hermético”, Anjo Negro<br />
não “arregimenta motivos racionais para<br />
discutir o problema racial (...)”, pois<br />
Nelson Rodrigues só estaria chamando os<br />
espectadores a se depararem com “seus<br />
mitos ancestrais”. (ver em RODRIGUES,<br />
1981, p. 30) Pode até ser, mas então esse<br />
chamado seria para se depararem com o<br />
mito ancestral <strong>da</strong> diferença racial.<br />
É para tentar desconstruir cenas como<br />
essas que surge o Teatro Experimental do<br />
Negro. Segundo Abdias do Nascimento,<br />
o TEN surgiu como uma iniciativa de<br />
contra-ação ás práticas cita<strong>da</strong>s. Portanto,<br />
o objetivo artístico do TEN era fomentar<br />
uma nova dramaturgia liga<strong>da</strong> aos temas<br />
afro-brasileiros e produzir espetáculos,<br />
nos quais os atores negros tivessem espaço<br />
para atuar. Para alcançar tal objetivo o<br />
grupo também precisava formar atores.<br />
Assim, a partir de um viés artístico, o TEN<br />
promoveu uma revolução social, pois a<br />
maioria de seus integrantes era oriun<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong>s classes populares, como emprega<strong>da</strong>s<br />
domésticas e operários, e muitos deles<br />
sem alfabetização.<br />
Ironildes Rodrigues (1998), professor<br />
dos cursos de alfabetização promovidos<br />
pelo TEN que chegaram a ter 600 alunos,<br />
relata que além <strong>da</strong>s aulas de português,<br />
história e matemática, os alunos também<br />
aprendiam história do teatro e folclore<br />
brasileiro. O aprendizado era incentivado<br />
por leituras, ensaios e discussões de peças,<br />
como O Imperador Jones de Eugene O`Neill,<br />
peça de estreia do TEN no Teatro Municipal<br />
do Rio de Janeiro, em 1945.<br />
Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 73
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
74<br />
Onze anos depois, em 1956,<br />
vários atores do grupo participam<br />
<strong>da</strong> montagem de Orfeu <strong>da</strong> Conceição,<br />
de Vinícius de Moraes, primeira<br />
peça de autor brasileiro com elenco<br />
exclusivamente negro a se apresentar<br />
no mesmo teatro, além de ter como<br />
cenário um morro carioca e temas<br />
populares como capoeira e samba:<br />
“Mais que um acontecimento teatral,<br />
o Orfeu foi um excitante momento<br />
cultural na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e, sem<br />
exagero, do país, pois nesta peça<br />
teve início a parceria Vinícius e Tom<br />
[Jobim], que resultou na Bossa Nova”,<br />
declara Haroldo Costa, ex-ator do TEN<br />
que fez o papel de Orfeu na montagem.<br />
(COSTA, 2004, p. 225).<br />
Nesses sessenta anos que nos<br />
separam dessas ativi<strong>da</strong>des pioneiras<br />
no âmbito <strong>da</strong>s artes cênicas para<br />
a inclusão na cena de uma parcela<br />
<strong>da</strong> população brasileira relega<strong>da</strong><br />
à margem dos produtos artísticoculturais<br />
muitas coisas mu<strong>da</strong>ram,<br />
outras nem tanto. Além dos atores<br />
formados no grupo, como Ruth de<br />
Souza, Lea Garcia, Haroldo Costa e<br />
Aguinaldo Camargo, que seguiram<br />
trabalhos individuais ou montaram<br />
seus próprios grupos, criou-se uma<br />
rede de parcerias e influências que<br />
chega até os dias de hoje, apesar do<br />
hiato existente durante o período <strong>da</strong><br />
ditadura brasileira que sufocou as<br />
ativi<strong>da</strong>des do TEN e de tantos outros.<br />
Dentro do que comumente se passou<br />
a chamar de “Teatro Negro” há alguns<br />
grupos considerados “herdeiros” do<br />
TEN. Além de influências diretas como a<br />
criação do TEN de São Paulo, que seguiu<br />
os moldes do grupo do Rio, encenando,<br />
inclusive, os mesmos textos e incluindo<br />
autores como Augusto Boal, destaca-se o<br />
grupo Brasiliana, fun<strong>da</strong>do por Haroldo<br />
Costa a partir de uma dissidência com<br />
o TEN, pois se queria <strong>da</strong>r mais ênfase a<br />
cultura afro-brasileira a partir <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça<br />
e música, realizando trabalhos a partir<br />
<strong>da</strong>s manifestações populares.<br />
Em 1966, Milton Gonçalves junto<br />
com Antônio Pitanga, Zózimo Bubul,<br />
entre outros, forma o Grupo Ação, cujo<br />
foco era o Teatro de Rua, pensando<br />
em atingir seu público alvo: o negro.<br />
Lea Garcia, ex-atriz do TEN também<br />
organiza um grupo dentro do IPCN<br />
(Instituto de Pesquisas <strong>da</strong>s Culturas<br />
Negras), entre 1978 a 1980. Um dos<br />
trabalhos realizados foi a peça Chico Rei,<br />
de Walmir Ayala, que posteriormente<br />
foi a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> para o cinema, com Mário<br />
Gusmão no papel principal.<br />
Atualmente, existem vários grupos<br />
com essas características pelo Brasil,<br />
como destaca o trabalho de Douxami<br />
(2001) e também como pude observar<br />
durante o II Encontro de Performance<br />
Negra, realizado em 2009, no teatro<br />
Vila Velha, em Salvador, onde estavam<br />
representados por volta de cem grupos<br />
de teatro e <strong>da</strong>nça de todo o país.<br />
Uma questão que se coloca a partir<br />
dessa reali<strong>da</strong>de é: Por que ain<strong>da</strong> se faz<br />
necessário no Brasil a criação de grupos<br />
nos moldes do Teatro Experimental do<br />
Negro, onde a ideia de diferença racial<br />
é a geradora desses grupos? Talvez<br />
simplesmente porque no Brasil ain<strong>da</strong> se<br />
acha estranho “Hamlets” e “Prósperos”<br />
negros como Peter Brook já o fez com<br />
sua companhia internacional. Talvez<br />
porque ain<strong>da</strong> ao se escolher um ator para<br />
determinado papel, a cor/raça é critério<br />
de escolha ou veto apesar <strong>da</strong> mídia e do<br />
senso comum alardearem que não existe<br />
racismo no Brasil.<br />
A despeito de muitos desses grupos<br />
receberem críticas de que a militância, o<br />
social ou o político, às vezes, estão à frente<br />
de questões artísticas, não posso deixar<br />
de concor<strong>da</strong>r com Abdias que “a política<br />
é totalmente implica<strong>da</strong> em qualquer<br />
ativi<strong>da</strong>de cultural” (apud DOUXAMI, 2001,<br />
p. 323), por isso, todo ato, inclusive o artístico,<br />
é político. As escolhas estéticas que faço<br />
estão em sintonia com a visão de mundo<br />
que tenho, com questões identitárias e de<br />
alteri<strong>da</strong>de que, no caso brasileiro, se constrói<br />
também a partir desses mitos raciais.<br />
Mara Lucia Leal
N° 16 | Junho de 2011<br />
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Anjo negro: sexo e raça no teatro brasileiro 75
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Doutor Charcot [José Ronaldo Faleiro]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 77
N° 16 | Junho de 2011<br />
Resumo<br />
O texto propõe a aproximação possível entre diferentes<br />
vertentes de pensamento que integram tanto o corpomente<br />
como uni<strong>da</strong>de, quanto a atualização <strong>da</strong> ação. Tais<br />
investigações são propostas a partir de certa compreensão<br />
psicofísica 3 como experiência auto-poética. Tecnicamente,<br />
em corpo-ator, como reorganizações (criações) sensíveis<br />
e eficazes que possibilitam a concretização <strong>da</strong> imaginação<br />
(passagem do efeito e do sutil) no eixo do tempo-espaço<br />
poético.<br />
Palavras-chave: corpo-ator, concentração, presença cênica.<br />
Abstract<br />
The text proposes a possible approximation between<br />
different strands of thoughts that integrate both the<br />
body-mind as unity as well as the accomplishment<br />
of the action. Such investigations are proposals that<br />
depart from a certain psychophysical understanding as<br />
a self-poetic experience. That is to say, technically, in<br />
body-actor, as sensitive and efficient reorganizations<br />
(creations) that enable the implementation of the<br />
imagination (the passage of the effect and the subtle) on<br />
the axis of the poetic time-space.<br />
Keywords: body-actor, concentration, stage presence.<br />
NÃo-AGIR PARA AGIR, UM<br />
PARADoXo E UMA UNIDADE<br />
DINÂMICA 1<br />
Mariane Magno 2<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 79
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
80<br />
Para propor o princípio<br />
<strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de não-agir<br />
para agir como uni<strong>da</strong>de<br />
dinâmica em corpo-ator 4<br />
é preciso iniciar pela sua<br />
gênese no pensame'nto filosófico chinês e<br />
taoísta. Faremos isso a partir do conceito<br />
vivo que François Jullien 5 (1998) apresenta<br />
como não-ação, o qual se distingue <strong>da</strong>quilo<br />
que, ocidentalmente, identificamos<br />
apenas como inação: (...) tendeu-se a<br />
interpretar o seu não-agir como simples<br />
avesso de nosso agir heroico, invertendo<br />
esse, portanto, no sentido <strong>da</strong> renúncia<br />
<strong>da</strong> passivi<strong>da</strong>de 6 (JULLIEN, 1998, p. 108).<br />
Localizar o agir 7 no contexto taoísta<br />
implica em observá-lo simetricamente sob<br />
um duplo pressuposto: figurar a conduta<br />
humana como um fazer específico (ergon,<br />
práxis; e, novamente, o modelo técnico <strong>da</strong><br />
produção serve de referência) e conceber a<br />
ação como uma enti<strong>da</strong>de própria, insolável,<br />
e capaz de servir de uni<strong>da</strong>de e de base de<br />
conduta (JULLIEN, 1998, p. 63).<br />
1 Este artigo está enraizado na pesquisa de doutorado<br />
desenvolvi<strong>da</strong> na Pós-Graduação do Instituto de Artes <strong>da</strong><br />
Unicamp, a qual pesquisa teve o seu foco centrado na<br />
imaginação do ator em processo criativo.<br />
2 Atriz, diretora, pesquisadora. Mestre e doutora em Artes,<br />
IA-UNICAMP. Email: marianemagno@hotmail.com.<br />
3 Fun<strong>da</strong>mentados a partir dos princípios do método<br />
stanislavskiano <strong>da</strong>s ações-físicas e seu desenvolvimento<br />
nas práticas teatrais contemporâneas. Utilizamos como<br />
referência certos desenvolvimentos e desdobramentos em<br />
Barba e Savarese (1995), Dagostini (2007), Grotowski (2007) e<br />
Ruffini (1995).<br />
4 Expressão utiliza<strong>da</strong> por Ribas, M. M. (2009), para distinguir<br />
(pe<strong>da</strong>gogicamente) certo tempo-estado, o do ‘ser ator’ em<br />
estado de trabalho.<br />
5 François Jullien é professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Paris VIII,<br />
filósofo, sinólogo especializado em China e Grécia antiga.<br />
6 "(...) (o ocidente “ativo” sonhando ter no oriente seu<br />
repouso...). ora, bem longe de pregar um desinteresse pelos<br />
assuntos humanos, de propor um afastamento do mundo, o<br />
não-agir do Laozi ensina como se conduzir nele para ser bemsucedido."<br />
(JULLIEN, 1998, p. 108)<br />
7 o que se pode pretender, na ver<strong>da</strong>de, suficientemente<br />
unitário e separado, no seio do comportamento – que seja<br />
autoconsciente e suficientemente independente de todo<br />
contexto, e acima de tudo do antes e do depois - para que se<br />
possa destacá-lo com tal na trama de nossa existência? Existe<br />
uma reali<strong>da</strong>de própria, que tenhamos condições de assinalar<br />
e identificar, e que podemos chamar ação? os pensadores<br />
chineses poderiam duvi<strong>da</strong>r disso, eles que consideram a<br />
conduta humana como qualquer outro curso, em termos de<br />
processo, regulado e contínuo (JULLIEN, 1998, p. 63).<br />
Introduzir este breve estudo sobre o<br />
agir, sob estes dois pressupostos taoístas,<br />
to<strong>da</strong>via, nos afasta, de certo modo, do mito<br />
ocidental <strong>da</strong> ação 8 e aponta o sentido do<br />
pensamento taoísta sobre o culto do agir,<br />
que não evidencia nem o heroico e nem<br />
o trágico. Esta percepção produziu um<br />
pensamento que não escolheu interpretar o<br />
real em termos de ação.<br />
Contextualizamos o não-agir, por<br />
conseguinte, como <strong>parte</strong> intera<strong>da</strong> na<br />
uni<strong>da</strong>de não-agir para agir, sob a luz <strong>da</strong><br />
filosofia chinesa e taoísta, como uma<br />
compreensão em vi<strong>da</strong> que gera certa<br />
visão de mundo que, por sua vez, engloba<br />
vínculos em experiência entre as práticas<br />
corporais, a fluência <strong>da</strong> energia vital, a<br />
medicina, a filosofia, a arte, a mitologia,<br />
a atitude política e as leis <strong>da</strong> natureza.<br />
Vínculos estes que, na condição humana,<br />
integram à percepção e à ação o melhor<br />
aproveitamento <strong>da</strong> fluência <strong>da</strong> energia<br />
vital, em corpo, a qual estabelece relações<br />
dinâmicas entre microcosmo e macrocosmo;<br />
ou seja, o Tao Humano e o Tao do Mundo<br />
entrelaçados ininterruptamente. Esta<br />
adequação dinâmica àquilo que já é<br />
potencial aponta o sentido <strong>da</strong> eficácia.<br />
A dinâmica do pensamento taoísta,<br />
deste modo, propõe um sentido em vi<strong>da</strong><br />
muito distante <strong>da</strong> lógica racional e científica<br />
ocidental que, por sua vez, se organiza e<br />
evolui pela lineari<strong>da</strong>de do pensamento<br />
objetivo e sucessivo. Esta lineari<strong>da</strong>de,<br />
a do pensamento científico ocidental, é<br />
incompatível com o conhecimento vivo<br />
no Tao Te King, um dos clássicos que<br />
fun<strong>da</strong>menta o taoísmo. A sabedoria<br />
milenar viva nesta literatura se faz aberta e,<br />
8 Tanto mais que a ação é, de fato, o objeto próprio ao mythos,<br />
concebido exatamente como relato de ação, pelo qual<br />
teve início a civilização europeia. Repassemos, pois, essas<br />
imagens, elas que estão entre as primeiras <strong>da</strong> história de<br />
nossa razão. Deus, seja o <strong>da</strong> tradição ju<strong>da</strong>ico-cristã ou o do<br />
Timeu, faz o mundo existir por meio de um ato criador; e é<br />
próprio do herói também imprimir sua ação sobre o mundo,<br />
enfrentando-o: com a epopeia, a literatura começou pelo<br />
relato de atos memoriáveis, enaltecidos a título de façanhas,<br />
depois a tragédia os encenou (sendo próprio do teatro,<br />
lembra Aristóteles que ain<strong>da</strong> não possuía termo para o que<br />
chamamos personagem, representar os homens “enquanto<br />
age”, prattontes). Constatação sumariamente banal, mas que<br />
o é menos vista <strong>da</strong> China (JULLIEN, 1998, p.68).<br />
Mariane Magno
N° 16 | Junho de 2011<br />
de certo modo, misteriosa e escorregadia,<br />
pelo seu caráter dinâmico, aforístico e<br />
enigmático. Falar sobre esta vertente de<br />
conhecimento milenar, portanto, significa<br />
apenas a aproximação possível para que se<br />
preserve ‘certo espaço aberto’ porque o Tao<br />
não se esgota, e, o ‘Tao ver<strong>da</strong>deiro’, atinge<br />
o indizível.<br />
Esta obra clássica, o Tao Te King, pode<br />
ser interpreta<strong>da</strong> (ocidentalmente) como<br />
paradoxal, mas é exatamente na(s) lacuna(s)<br />
exegética(s) (sob a perspectiva ocidental)<br />
que é possível identificar o conhecimento<br />
latente, oculto e/ou contraditório; ou seja,<br />
a lacuna é o espaço indispensável para que<br />
se possa preservar o movimento mutante<br />
que é o fun<strong>da</strong>mento do taoísmo. É nela, na<br />
‘lacuna’, que (segundo a filosofia taoísta) é<br />
possível gerar a potência do encontro que<br />
nutre a mutabili<strong>da</strong>de entre as forças que<br />
se atraem, se fundem, se alimentam e se<br />
transformam uma na outra. Por conseguinte,<br />
sob a ordem <strong>da</strong> filosofia taoísta, é no espaço<br />
de fusões dinâmicas (entre o não-agir e o agir)<br />
que se localiza o eixo vivo que atua como<br />
princípio <strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de em constante<br />
atualização. Assim, a percepção (não-agir)<br />
e a integração (agir) do imanente (porvir,<br />
potencial) como uni<strong>da</strong>de possibilitam a<br />
preservação <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de<br />
(virtude), isto é, são os fun<strong>da</strong>mentos vivos<br />
desta uni<strong>da</strong>de igualmente viva que têm<br />
como eixo o ‘vazio’.<br />
Aqui se trata do vazio funcional de<br />
Laozi 9 que se exerce por relação com o pleno<br />
e graças ao qual o pleno pode cumprir seu<br />
pleno efeito 10 (JULLIEN, 1998, p. 135) que<br />
se diferencia do vazio <strong>da</strong> inexistência, que<br />
se inscreve numa perspectiva metafísica<br />
do ser e do não-ser: é o vazio do budismo<br />
(sunya, em sânscrito; cf. king, em chinês)<br />
(JULLIEN, 1998, p.135).<br />
9 Laozi, Lao Tzu, Lao Tsé, Lao Tzi, Lao Tseu ou Lao Tze (1324 a.–<br />
1408 a.C.) - filósofo e alquimista chinês a quem é atribuí<strong>da</strong> a<br />
escrita do Tao Te King.<br />
10 Direcionamos o efeito filosófico taoísta às aproximações<br />
possíveis em corpo-ator, ou seja, em reali<strong>da</strong>de criativa e<br />
poética. Trata-se de certa quali<strong>da</strong>de de atuação encontra<strong>da</strong><br />
em Stanislavski pela quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ação consequente dos<br />
músculos livres (nota nº 12); em Lowen, pela liber<strong>da</strong>de<br />
interior (nota nº 10) e em Grotowski pela passagem do<br />
pesado para o sutil (p. 11).<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Deste modo, para compreender o<br />
duplo pressuposto como uni<strong>da</strong>de mutante,<br />
não-agir para agir, é preciso evidenciar a<br />
existência de outro elemento-chave, o<br />
processamento constante (virtude) que<br />
atua como a força viva indispensável à<br />
mutabili<strong>da</strong>de.<br />
Por conseguinte, o vazio, como eixo,<br />
permite a passagem do efeito, já que,<br />
para a filosofia taoísta, o efeito não pode<br />
ser obtido diretamente, ou seja, ele, o<br />
efeito, não deve ser buscado mas colhido.<br />
Tal afirmação nos leva à não-ação como<br />
estratégia, pois a intenção mata o efeito,<br />
seca-o, esgota-o (JULLIEN, 1998, p.<br />
148). Direcionamos, portanto, o foco<br />
do pensamento no movimento vivo, ou<br />
seja, no processo como uni<strong>da</strong>de que é o<br />
montante, a título de condição, é o único<br />
capaz de conduzir ao pleno efeito (a<br />
título de efeito) (JULLIEN, 1998, p. 149).<br />
Não-agir em processo e em corpo-ator<br />
pode ser o efeito gerado como quali<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> atuação que se faz pela atenção, calma<br />
e autodomínio cênico, e que, juntos, não<br />
antecipam mentalmente a ação, e, por<br />
isso, podem gerar uma compreensão a<br />
mais que advém <strong>da</strong> experiência a seu<br />
tempo (potencialização do agir), aquela<br />
que só acontece no momento presente.<br />
Esta compreensão (não-agir), portanto,<br />
não pode ser prevista e tampouco<br />
imposta porque se trata <strong>da</strong> escuta<br />
sensível, no ato, que antecede, alimenta<br />
e se transforma em agir.<br />
Bachelard (1998) em sua expressão<br />
noturna fala brilhantemente sobre a via<br />
negativa como possibili<strong>da</strong>de e como<br />
caminho à ampliação e superação dos<br />
limites <strong>da</strong> consciência, para ele o não-saber<br />
não é uma ignorância, mas um ato difícil de<br />
superação do conhecimento. É a esse preço<br />
que uma obra é a ca<strong>da</strong> instante essa espécie<br />
de começo puro que faz de sua criação<br />
um exercício de liber<strong>da</strong>de (BACHELARD,<br />
1998, p.16).<br />
Deste modo, a partir do princípio<br />
mutante não-agir para agir como processo<br />
e como uni<strong>da</strong>de é possível arriscar uma<br />
aproximação a mais entre o pleno efeito<br />
taoísta e a sinceri<strong>da</strong>de artística na busca<br />
Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 81
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
82<br />
<strong>da</strong> plenitude, em Grotowski (2007). Essa<br />
aproximação com a sinceri<strong>da</strong>de só acontece<br />
sem forçar e sem simular, e, conforme dito<br />
parágrafos acima, por Jullien, a intenção<br />
mata o efeito, seca-o, esgota-o; e, por<br />
Bachelard a via negativa é um ato difícil<br />
de superação do conhecimento. Portanto,<br />
na condição humana, na linguagem teatral<br />
e em corpo-ator 11 a via negativa pode ser<br />
um caminho, um lugar onde não somos<br />
divididos. (...) Se cumprimos o ato com<br />
todo nosso ser, como nos instantes do<br />
ver<strong>da</strong>deiro amor chegará o momento em<br />
que será impossível decidir se agimos<br />
conscientemente, ou inconscientemente.<br />
Em que é difícil dizer se somos nós a fazer<br />
algo ou se isso nos acontece (GROTOWSKI,<br />
2007, p. 211).<br />
A não-ação, portanto, pode ser<br />
interpreta<strong>da</strong> filosoficamente como a ação<br />
que não constrange ou a ação que não<br />
força. Mas, temos de esclarecer um pouco<br />
mais a expressão ‘ação que não constrange’,<br />
ou ‘ação autêntica’, como a limpeza<br />
(transformação) <strong>da</strong>quilo que é excessivo no<br />
agir e que não passa pela retidão moral ou<br />
por julgamentos, e que não<br />
nos levam a cindir o mundo em dois,<br />
a opô-lo a ele mesmo (o bem e o mal)<br />
e, finalmente, a mutilá-lo. Porquanto,<br />
ao suprimirmos um para valorizar o<br />
outro, anulamos sua interdependência,<br />
perdemos de vista sua coerência. Devese,<br />
portanto, entender virtude nesse outro<br />
sentido que, não mais remete ao dever ser,<br />
é <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong> efetivi<strong>da</strong>de: no sentido de<br />
uma quali<strong>da</strong>de que torna próprio para um<br />
certo efeito, ou seja, que possui capaci<strong>da</strong>de<br />
de produzi-lo (JULLIEN, 1998, p. 117).<br />
11 Neste momento direcionamos o estado de atenção e<br />
de concentração em trabalho criativo a percepções mais<br />
profun<strong>da</strong>s e, assim, nos aproximamos do self corporal. Esta<br />
dimensão, self, é possível de ser alcança<strong>da</strong> pela liber<strong>da</strong>de<br />
interior (que tem aspectos biológicos) indispensável para tal<br />
vivência. A liber<strong>da</strong>de interior manifesta-se na graciosi<strong>da</strong>de<br />
do corpo, em sua suavi<strong>da</strong>de e vitali<strong>da</strong>de. Corresponde a estar<br />
livre de culpa, vergonha e constrangimento. É uma quali<strong>da</strong>de<br />
de ser que todos os animais selvagens possuem, mas que está<br />
ausente na maioria dos seres civilizados. É a expressão física<br />
<strong>da</strong> inocência, de um modo de agir espontâneo, sem artifícios<br />
e ver<strong>da</strong>deiro para o self. (LoWEN, 1997, p.23) Cabe, ain<strong>da</strong>,<br />
evidenciar que a liber<strong>da</strong>de interior é condição para atingir<br />
certa quali<strong>da</strong>de psicotécnica e psicofísica em corpo-ator<br />
(liber<strong>da</strong>de), independente de seus conteúdos dramatúrgicos.<br />
No universo literário, por princípio,<br />
na fenomenologia líqui<strong>da</strong> bachelardiana,<br />
encontramos correspondência <strong>da</strong>quilo que<br />
é apresentado como a via negativa <strong>da</strong> ação<br />
ou, ain<strong>da</strong>, como um duplo pressuposto.<br />
Portanto, é preciso que o saber seja<br />
acompanhado de um igual esquecimento<br />
do saber. (...) Em poesia, o não-saber é<br />
uma condição prévia; se há o ofício no<br />
poeta, é na tarefa subalterna de associar<br />
imagens. Mas a vi<strong>da</strong> em uma imagem está<br />
em to<strong>da</strong> sua fulgurância, no fato de que<br />
a imagem é uma superação de todos os<br />
<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de (BACHELARD,<br />
1998, p. 16).<br />
Assim, propomos a uni<strong>da</strong>de, não<br />
estar dividido em corpo-ator, como um<br />
senso de autodomínio e de curiosi<strong>da</strong>de<br />
que se desenvolve pela fusão entre<br />
forma (movimento, aspecto aparente)<br />
e não-forma (motili<strong>da</strong>de, 12 vitali<strong>da</strong>de e<br />
inconsciente). O desenvolvimento deste<br />
estado vivo, em corpo-ator, pode ampliar<br />
o território consciente sobre si mesmo<br />
e sobre sua imaginação que, por sua<br />
vez, pode potencializar a motili<strong>da</strong>de e a<br />
autoexpressivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> presença cênica; ou<br />
seja, a imaginação é viva em corpo, ela tem<br />
aspectos biológicos e energéticos, sejam eles<br />
conscientes ou não. Identificamos nestas<br />
compreensões psicotécnicas a dilatação<br />
corporal apresenta<strong>da</strong> por Barba e Savarese<br />
(1995), a qual, segundo Ruffini (apud<br />
BARBA e SAVARESE, 1995, p.64) está<br />
vincula<strong>da</strong> à presença que nesta definição<br />
está quase livre de qualquer conotação<br />
metafórica. Ela é literal.<br />
12 Aproximaremos a motili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> psicologia formativa<br />
dos processos psicofísicos e psicotécnicos: presença,<br />
dilatação e irradiação. Para Keleman, o movimento descreve<br />
como as criaturas se deslocam de um lugar para outro. Da<br />
perspectiva do processo somático, o movimento é mecânico.<br />
Articulações e ossos flexionam, dobram, giram, deslizam;<br />
músculos levantam, empurram, puxam, apertam, contraem,<br />
alongam. A motili<strong>da</strong>de, por outro lado, brota dos processos<br />
metabólicos <strong>da</strong> existência. A excitabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> célula, sua<br />
expansão e polarização são exemplos de motili<strong>da</strong>de, assim<br />
como os acessos emocionais, tais como, raiva ou medo.<br />
(KELEMAN,1992, p. 32) Esta motili<strong>da</strong>de inerente ao corpo vivo,<br />
que é a base de sua ativi<strong>da</strong>de espontânea, resulta de um<br />
estado de excitação interna que irrompe continuamente na<br />
superfície em movimento. (LoWEN,1985, p. 19)<br />
Mariane Magno
N° 16 | Junho de 2011<br />
A reorganização psicofísica deste<br />
estado de trabalho, presente, vivo e<br />
dilatado, 13 implica no desacelerar <strong>da</strong> mente<br />
e no direcionamento volitivo <strong>da</strong> atenção<br />
(sincronia corpo-mente), que conduz a certa<br />
compreensão psicotécnica em concentração,<br />
ou seja, à percepção sensível <strong>da</strong>quilo que se<br />
faz (consciente e volitivo) com a integração<br />
poética <strong>da</strong>quilo que emerge (involuntário,<br />
inconsciente), em dinâmica constante.<br />
A Concentração é o elemento primeiro<br />
do método <strong>da</strong>s ações-físicas que envolve a<br />
observação, a percepção, a imaginação, a<br />
memória e a vontade (DAGOSTINI, 2007,<br />
p. 62). Este elemento técnico se faz pela<br />
integração dinâmica de diversas facul<strong>da</strong>des<br />
que se alimentam e se provocam entre si,<br />
as quais, em função mutante, permitem a<br />
passagem do efeito como a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
ação - a interação viva que se presentifica<br />
como acontecimento. A concentração é o<br />
primeiro alicerce, é o germe <strong>da</strong> criação. (...)<br />
Este material sensitivo-emocional é valioso<br />
para <strong>da</strong>r forma à ‘vi<strong>da</strong> do espírito humano<br />
do papel’ objetivo principal <strong>da</strong> arte teatral<br />
(DAGOSTINI, 2007, p. 63).<br />
É preciso, entretanto, tomar certo cui<strong>da</strong>do<br />
com as palavras, pois, não-agir para agir em<br />
corpo-ator não é proposto como abandono<br />
de si (desatenção), mas, sim, como certo<br />
desenvolvimento sensível <strong>da</strong> atenção em<br />
intensa concentração, pela qual, se estabelece<br />
uma condição, um estado, que leva a uma<br />
ação interior ativa (...). K. Stanislávski<br />
destaca o caráter ativo <strong>da</strong> atenção cênica,<br />
que se revela através dos círculos de atenção<br />
(DAGOSTINI, 2007, p. 63).<br />
Tal estado de trabalho, deste modo,<br />
está vinculado a outro elemento do<br />
método stanislavskiano liber<strong>da</strong>de muscular<br />
que desvia o trabalho do ator de certos<br />
excessos, entre eles, o de tensão, o de<br />
força (a inútil) e o de vontade (resgatamos<br />
13 Ruffini (apud BARBA e SAVARESE, 1995) para falar <strong>da</strong><br />
equivalência viva como presença entre a dilatação física e<br />
a mental (logo, psicofísica) recorre aos ensinamentos de<br />
K. Stanislávski: o objetivo direto e declarado do trabalho<br />
do ator, de acordo com Stanislávski, é a recriação <strong>da</strong><br />
organici<strong>da</strong>de. Por meio do sistema o ator aprende a estar<br />
presente organicamente no palco, antes e separa<strong>da</strong>mente<br />
dos papéis que ele terá de representar (RUFFINI apud BARBA<br />
e SAVARESE, 1995, p. 64).<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
nesse elemento, vontade, a via negativa<br />
de Jullien e de Bachelard expostos na<br />
página 03). Evidenciamos que dissemos<br />
excessos, já que, certa força, certa tensão<br />
e certa vontade são elementos, em corpoator,<br />
que compõem a atuação cênica. Deste<br />
modo, o conceito satnislavkiano, liber<strong>da</strong>de<br />
muscular, é compreendido e proposto<br />
como consequência (efeito) <strong>da</strong> melhor<br />
fluência <strong>da</strong> energia vital, como liber<strong>da</strong>de<br />
interior e, ain<strong>da</strong>, como compreensões mais<br />
sutis aproveita<strong>da</strong>s, de forma poética, em<br />
corpo-ator e em treinamento dinâmico.<br />
Segundo Dagostini (2007) Stanislávski 14<br />
apresenta a importância <strong>da</strong> atenção, <strong>da</strong><br />
firmeza, <strong>da</strong> flexibili<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> concentração<br />
e <strong>da</strong> destreza como psicotécnica, ou seja,<br />
“considera que a tensão e o esforço físico<br />
em cena são causados pela violação <strong>da</strong>s leis<br />
<strong>da</strong> natureza” (DAGOSTINI, 2007, p.85). Ele<br />
propõe deste modo o treinamento psicofísico<br />
para o desenvolvimento de um corpo<br />
relaxado e atento, pois apenas a natureza em<br />
total medi<strong>da</strong> pode dirigir nossos músculos, ou<br />
seja, relaxá-los e tensioná-los adequa<strong>da</strong>mente.<br />
Assim, para expor a quali<strong>da</strong>de ‘natural 15 ’<br />
em corpo-ator expressa como inteligência<br />
em ação eficaz que se vincula à adequação<br />
do tônus muscular, evocamos um exemplo<br />
clássico stanislavskiano - pela voz do<br />
grande mestre russo: Quem me ensina<br />
melhor do que meu gato? (STANISLÁVSKI,<br />
1954 apud DAGOSTINI, 2007, p. 87).<br />
14 K. Stanislávski, além de ter determinado um treino físico<br />
diário, adotou, nessa primeira etapa prática do estudo do<br />
elemento liber<strong>da</strong>de muscular, um programa pe<strong>da</strong>gógico<br />
que consistia de exercícios de sensibilização, percepção,<br />
equilíbrio, força, resistência, agili<strong>da</strong>de, destreza e consciência<br />
do fluxo <strong>da</strong> energia interna do movimento. Esse processo era<br />
guiado de tal forma que contemplava o desenvolvimento e<br />
o aperfeiçoamento <strong>da</strong> vontade, <strong>da</strong> imaginação, <strong>da</strong> atenção,<br />
<strong>da</strong> memória, de habili<strong>da</strong>des cênicas especiais, e, sobretudo<br />
visando à realização concreta de uma ação orgânica,<br />
plasticamente expressiva, dirigi<strong>da</strong> a um fim (DAGoSTINI, 2007,<br />
p.85). (...) É neste elemento do “sistema”, liber<strong>da</strong>de muscular,<br />
que K. Stanislávski lança as bases dos princípios teóricos e<br />
práticos <strong>da</strong> cultura corporal que vão reger a pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong><br />
área: Fun<strong>da</strong>mentos do movimento cênico, <strong>da</strong> escola soviético/<br />
russa. To<strong>da</strong>s as práticas corporais estão subordina<strong>da</strong>s a esta<br />
área (...) (DAGoSTINI, 2007, p. 88).<br />
15 Natural é utilizado como a ‘segun<strong>da</strong> natureza’ proposta<br />
igualmente por Stanislávski como quali<strong>da</strong>de psicotécnica<br />
(organici<strong>da</strong>de) integra<strong>da</strong> como domínio cuja conquista pode<br />
ser elabora<strong>da</strong> pelos treinamentos sistematizados e utilizados<br />
por certo tempo.<br />
Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 83
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
84<br />
Os movimentos do gato, deste modo,<br />
passam a ser objeto dos estudos corporais<br />
stanislavskianos, tanto <strong>da</strong> fluência<br />
de energia quanto <strong>da</strong> eficácia de seus<br />
movimentos e de suas ações:<br />
(...) tal harmonia dos movimentos e tal<br />
desenvolvimento corporal, como os dos<br />
animais, são inacessíveis para o ser homem.<br />
Não existe técnica que consiga tamanha<br />
perfeição no que tange ao domínio<br />
dos músculos. Somente uma natureza<br />
inconscientemente apta pode alcançar<br />
tal virtuosismo, facili<strong>da</strong>de, precisão,<br />
desenvoltura dos movimentos, poses, e<br />
tal plastici<strong>da</strong>de (STANISLÁVSKI,1954<br />
apud DAGOSTINI, 2007, p. 87).<br />
As quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> atenção, <strong>da</strong> firmeza,<br />
<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de muscular e <strong>da</strong> precisão<br />
observa<strong>da</strong>s nos movimentos do gato, se<br />
aproximam do imaginário animalizante<br />
chinês pelo ‘passo do tigre’. 16 Ambos, a<br />
partir de certa concentração, propõem o<br />
desenvolvimento <strong>da</strong> leveza, do autodomínio<br />
do movimento (graciosi<strong>da</strong>de e vitali<strong>da</strong>de), <strong>da</strong><br />
atenção, <strong>da</strong> flexibili<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> fluência de<br />
energia vital, e, por fim, a transformação<br />
natural dos movimentos. Quali<strong>da</strong>des<br />
técnicas vincula<strong>da</strong>s à liber<strong>da</strong>de muscular, a<br />
qual, por sua vez, pode ser treina<strong>da</strong> (ain<strong>da</strong><br />
que nos limites humanos) a partir <strong>da</strong> fluidez<br />
<strong>da</strong> energia vital (tch’i) como direcionadora<br />
e formadora <strong>da</strong> forma, enquanto se forma.<br />
Indo adiante nas possibili<strong>da</strong>des de<br />
equivalência entre o princípio não-agir<br />
para agir e os ensinamentos de Grotowski,<br />
16 ‘Passo do tigre’ ou ‘pisar na lama’ são expressões utiliza<strong>da</strong>s<br />
para definir certo modo e quali<strong>da</strong>de (expandir e recolher)<br />
de an<strong>da</strong>r no treino do ‘pakuá’, uma sequência sistematiza<strong>da</strong><br />
de treino marcial chinês que se faz em círculo e tem seus<br />
movimentos fun<strong>da</strong>mentados nos oito trigramas do IChin (Qian,<br />
Zhen, Kan, Gen e Kun, Xun, Li e Dui) e suas mutações. Neste<br />
modo de an<strong>da</strong>r é possível exercitar e trabalhar quali<strong>da</strong>des<br />
de movimento como relaxamento, atenção, firmeza,<br />
concentração, relação, fluência (expansão e recolhimento),<br />
potencializaçao <strong>da</strong> ação e, ain<strong>da</strong>, transformações do<br />
movimento com reorganizações musculares mais adequa<strong>da</strong>s<br />
através <strong>da</strong>s palmas (sequências de ações que configuram a<br />
sequência <strong>da</strong> forma ‘pakuá’), propostas como arranjos do<br />
mundo interior. São elas, as palmas: leão, quimera, serpente,<br />
águia, dragão, urso, fênix e macaco; e que atuam como a<br />
representação do mundo material – respectivamente: céu,<br />
terra, água, fogo, trovão, montanha, vento e lago. o ‘passo do<br />
tigre’ é utilizado no caminhar entre troca de palmas.<br />
evocamos sua própria voz e propomos,<br />
deste modo, uma possibili<strong>da</strong>de para se<br />
pensar a via negativa grotowskiniana sob<br />
a luz deste princípio dinâmico e taoísta, o<br />
agir sem agir:<br />
o próprio processo, mesmo que até um<br />
certo ponto depen<strong>da</strong> <strong>da</strong> concentração, \<br />
<strong>da</strong> confiança, do desvelamento e quase<br />
<strong>da</strong> aniquilação no ofício, não é voluntário.<br />
O estado mental necessário é uma<br />
disponibili<strong>da</strong>de passiva para realizar um<br />
papel ativo, um estado no qual não se<br />
“quer fazer aquilo” mas antes “renuncia-se<br />
a não fazê-lo (GROTOWSKI, 2007, p. 106).<br />
Retornando às diferenças entre as<br />
‘perspectivas’ ocidental e taoísta, ao<br />
observar, por exemplo, a noção do tempo<br />
é possível perceber que os chineses não se<br />
relacionam sob o aspecto <strong>da</strong> duração pela<br />
sucessão e uniformi<strong>da</strong>de como no ocidente<br />
e, sim, pelo conjunto de eras, estações ou<br />
épocas: os chineses conceberam lugares<br />
e ocasiões, e não espaço ou tempo em si<br />
(JULLIEN, 2004, p. 39). A a<strong>da</strong>ptação do<br />
Homem à estação é uma condição que<br />
atualiza a atitude adequa<strong>da</strong> (eficaz) a<br />
qual intera os ciclos <strong>da</strong> Natureza e não<br />
antecipa e não retar<strong>da</strong> as ações e, sim,<br />
age junto. É com esta compreensão ‘em<br />
tempo’ que eles, os chineses taoístas,<br />
‘caminham pelo tempo’ uma estação após<br />
a outra, construindo o seu gênero de vi<strong>da</strong>,<br />
fun<strong>da</strong>mentado na lei <strong>da</strong> eficácia.<br />
Sob a compreensão do pensamento<br />
ocidental podemos nos direcionar a este<br />
conceito de tempo, aproxima<strong>da</strong>mente,<br />
como ocasião; para os chineses taoístas a<br />
experiência tempo é como um momento<br />
sazonal, ou, conforme Jullien (2004), captar<br />
a imanência:<br />
O fato de a ocasião se oferecer como<br />
um momento privilegiado para agir,<br />
até mesmo dela determinar sozinha<br />
o sucesso, como gostam de repetir<br />
os antigos chineses, deve-se ao seu<br />
caráter conjuntural, permitindo<br />
a particulari<strong>da</strong>de qualitativa <strong>da</strong><br />
a<strong>da</strong>ptação; ao mesmo tempo, deve-se<br />
ao seu caráter evolutivo, que promete<br />
Mariane Magno
N° 16 | Junho de 2011<br />
um desenvolvimento que virá do efeito<br />
implicado- tal como a estação (...) A<br />
ocasião corresponde assim à situação<br />
(grifo nosso) (...) Trata-se aqui, não<br />
do ‘tempo’, mas do tempo oportuno<br />
(JULLIEN, 2004, p. 47). 17<br />
Por esta perspectiva ‘inverti<strong>da</strong>’, a<br />
objetivi<strong>da</strong>de prévia, como é identifica<strong>da</strong><br />
ocidentalmente, é considera<strong>da</strong>, sob a<br />
filosofia taoísta, apenas uma <strong>parte</strong> <strong>da</strong><br />
possível uni<strong>da</strong>de, e, por isso, sozinha,<br />
a objetivi<strong>da</strong>de prévia (como imposição)<br />
por ser fecha<strong>da</strong> 18 não levaria à dinâmica<br />
<strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de adiante. O que existe<br />
é a percepção do tempo como ocasião,<br />
cujo processamento acontece pela nãoação,<br />
isto é, a receptivi<strong>da</strong>de do tempo como<br />
uma ação indireta que se desenvolve<br />
pela percepção e maturação <strong>da</strong>quilo<br />
que é favorável no momento, ou seja, a<br />
potencialização <strong>da</strong> ação, já que, a forma<br />
desvincula<strong>da</strong> <strong>da</strong> sua nascente não-forma<br />
é considera<strong>da</strong> ação desconexa, logo<br />
ineficaz.<br />
Por conseguinte, filosoficamente, nãoagir<br />
é um espaço vivo, de absorção e de<br />
compreensões múltiplas, é o momentoespaço<br />
do qual se forma e emerge a<br />
manifestação de uma força ou a operação<br />
de um agente. E, ao direcionar este<br />
conceito filosófico ao estado poético como<br />
imagem corpo-ator, nos aproximamos<br />
<strong>da</strong> topofilia bachelardiana, ou seja, as<br />
imagens do espaço feliz:<br />
Nessa perspectiva, nossas investigações<br />
mereceriam o nome de topofilia.<br />
Visam determinar o valor humano<br />
dos espaços de posse, dos espaços<br />
defendidos contra forças adversas, dos<br />
espaços amados. Por razões não raro<br />
muito diversas e com as diferenças<br />
que as nuanças poéticas comportam,<br />
são os espaços louvados. Ao seu valor<br />
de proteção, que pode ser positivo,<br />
ligam-se também valores imaginados,<br />
e que logo se tornam dominantes<br />
(BACHELARD, 1993, p.18).<br />
17 Ao leitor interessado neste “tempo” ver: JULLIEN, F. (2004).<br />
18 Retomamos a citação <strong>da</strong> página 03 “a intenção mata o<br />
efeito, seca-o, esgotá-o”.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Mas, cabe ain<strong>da</strong> chamar a atenção<br />
igualmente para o agir, pois sem a forma<br />
e sem a estrutura (agir) a não-forma<br />
(potencialização) se dissolve. E, ain<strong>da</strong>,<br />
sem a dinâmica entre forma e não-forma, não<br />
há a mutabili<strong>da</strong>de, não há a experiência<br />
e nem o sentido, ou seja, o processo é o<br />
aproveitamento <strong>da</strong> dinâmica constante - a<br />
uni<strong>da</strong>de em ação.<br />
Esta inversão <strong>da</strong> percepção - cita<strong>da</strong> na<br />
página anterior - que apresenta a ocasião<br />
como determinante, ‘dela determinar<br />
sozinha’, não é uma atitude desconexa e<br />
apenas passiva, e, tampouco, fantasiosa.<br />
É, sim, um estado de recepção que, sob<br />
a percepção ocidental, acaba por propor<br />
inversões, a do sentido <strong>da</strong> atenção e <strong>da</strong><br />
direção do pensamento. Mas, em corpo-ator<br />
e sob a luz <strong>da</strong> imaginação, de fato, ela atua<br />
como certa conexão que pode levar a uma<br />
escuta sensível, como um silêncio vivo, que<br />
possibilita compreensão e adequação ao<br />
oportuno no momento, ou seja, um espaço 19<br />
para se perceber, se pensar e atualizar<br />
a dinâmica <strong>da</strong> ação e a <strong>da</strong> consciência. 20<br />
(...) A consciência, por si só, é um ato,<br />
um ato humano. É um ato vivo, um ato<br />
pleno. Mesmo que a ação que se segue,<br />
que deveria seguir-se, que deveria ter-se<br />
seguido, permaneça em suspenso, o ato<br />
consciencial tem sua plena positivi<strong>da</strong>de<br />
(...) (BACHELARD, 2006, p. 05).<br />
Podemos aproximá-lo, o não-agir, à luz<br />
do arquétipo feminino o qual se intera com<br />
seu complementar masculino e, <strong>da</strong> união<br />
viva entre ambos, é possível preservar<br />
o movimento capaz de gerar mais vi<strong>da</strong>.<br />
Assim, sob a luz taoísta, agir sem agir não<br />
é um paradoxo, é, sim, um conuinctio vivo<br />
em dinâmica mutante.<br />
Para aproximarmos este duplo<br />
pressuposto taoístas de processos criativos<br />
19 É que o espaço percebido pela imaginação não pode ser<br />
o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão<br />
geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positivi<strong>da</strong>de,<br />
mas com to<strong>da</strong>s as parciali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> imaginação. Em especial,<br />
quase sempre ele atrai. Concentra o ser no interior dos<br />
limites que protegem (BACHELARD, 1993, p. 19).<br />
20 Consciência, neste contexto, se direciona a mu<strong>da</strong>nça de<br />
eixo apresenta<strong>da</strong> por Bachelard, ou seja, verticali<strong>da</strong>de do<br />
instante poético.<br />
Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 85
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
86<br />
cênicos e poéticos, ou seja, em corpo-ator,<br />
como uni<strong>da</strong>de não-agir para agir, é preciso<br />
integrar um elemento e um vínculo a mais.<br />
Estes caminhos nos levam novamente a<br />
Jullien (1998), quando expõe a estrutura<br />
<strong>da</strong> ‘ocasião’ que apresenta de um lado ‘o<br />
acaso’ e do outro ‘a arte’. Para ele:<br />
(...) o acaso de um lado e a arte, do outro:<br />
entre tychê e techne, interpõem-se um<br />
terceiro termo para pensar a ação – a<br />
ocasião (kairos). (...), entre aquilo que,<br />
de um lado, depende <strong>da</strong> fortuna (ou <strong>da</strong><br />
“divin<strong>da</strong>de”) e, do outro, aquilo que é<br />
“nosso” (a técnica), a ocasião operaria<br />
a junção de onde provém a eficácia: ela<br />
é o momento favorável que é oferecido<br />
pelo acaso e que a arte permite explorar;<br />
graças a ela, nossa ação é capaz de<br />
inserir-se no curso <strong>da</strong>s coisas, ela já não<br />
faz um arrombamento, mas consegue<br />
enxertar-se nele, aproveitando-se de<br />
sua causali<strong>da</strong>de e sendo auxilia<strong>da</strong> por<br />
ele. Graças a ela, o plano concertado<br />
consegue encarnar-se, esse momento<br />
oportuno nos dá poder, assegura nosso<br />
domínio (JULLIEN, 1998, p. 81).<br />
Deste modo, a ocasião (melhor seria<br />
dizer, a percepção e o aproveitamento <strong>da</strong><br />
ocasião), é aproxima<strong>da</strong> do tempo grego<br />
kairótico (forma qualitativa de tempo,<br />
momento certo ou oportuno) e do conceito<br />
de arte proposto por Stanislávski (apud<br />
DAGOSTINI, 2007) à linguagem teatral,<br />
o qual conceito reside na efemeri<strong>da</strong>de e<br />
na transformação, possíveis apenas na<br />
comunhão do momento presente. Agindo<br />
lógica e coerentemente, você força a sua<br />
natureza orgânica a trabalhar e, dessa<br />
forma, o subconsciente. Em nossa arte<br />
isso é fun<strong>da</strong>mental, através do consciente<br />
alcançar o subconsciente (STANISLÁVSKI<br />
apud VINOGRADSKAIA 2000, in<br />
DAGOSTINI, 2007, p. 127).<br />
Ao direcionar o princípio <strong>da</strong><br />
mutabili<strong>da</strong>de à materiali<strong>da</strong>de criativa em<br />
corpo-ator (imaginação) é possível ampliar,<br />
um pouco mais, a leitura de Grotowski<br />
(2007), ao dizer: consideramos que a<br />
composição artificial não só limite o que<br />
é espiritual que na reali<strong>da</strong>de conduza a<br />
ele. A tensão tropística entre o processo<br />
interior e forma reforça ambos. A forma<br />
é como uma armadilha muni<strong>da</strong> de isca<br />
à qual o processo espiritual responde<br />
espontanemante e contra a qual luta<br />
(GROTOWSKI, 2007, p. 106).<br />
Corporalmente, melhor dizer psicofísica<br />
e psicotécnicamente, estes princípios<br />
vinculam a compreensão em corpo-ator<br />
como experiência integra<strong>da</strong> que cumpre<br />
sua eficácia, como efeito, na vivência poética<br />
do ser. Para Jung (1991) a criação poética<br />
é um acontecimento suprapessoal e, este<br />
mesmo acontecimento, sob a fenomenologia<br />
Bachelardiana, altera a horizontali<strong>da</strong>de<br />
no eixo vertical, o instante poético. A<br />
compreensão sobre o ato poético em Jung<br />
e em Bachelard, nas nossas aproximações<br />
investigativas, nos ‘aterram’, em corpoator,<br />
na verticali<strong>da</strong>de grotowskiniana, que<br />
é a passagem energética para um nível<br />
mais sutil. Tal passagem, por sua vez<br />
engloba a questão do descer trazendo de<br />
novo essa coisa sutil dentro <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />
mais comum, liga<strong>da</strong> à densi<strong>da</strong>de do corpo<br />
(GROTOWSKI, 2007, p. 235).<br />
O estado poético em corpo-ator, por<br />
conseguinte, se acontece, é sob a ação <strong>da</strong><br />
imaginação; e, (...) graças ao imaginário,<br />
a imaginação é essencialmente aberta,<br />
evasiva. É ela no psiquismo humano, a<br />
própria experiência <strong>da</strong> abertura, a própria<br />
experiência <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de (...). Como<br />
proclama Blake: A imaginação não é um<br />
estado, é a própria experiência humana<br />
(BACHELARD, 2001, p. 01).<br />
Assim, direcionando a imaginação, a<br />
motili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> presença, a verticali<strong>da</strong>de<br />
e o sutil ao universo investigativo em<br />
corpo-ator,<br />
não se trata de renunciar a uma <strong>parte</strong><br />
de nossa natureza, tudo deve ter o<br />
seu lugar natural: o corpo, o coração,<br />
a cabeça, algo que está “sob os nossos<br />
pés” e algo que está “sobre a cabeça”.<br />
Tudo com uma linha vertical, e esta<br />
verticali<strong>da</strong>de deve ser estica<strong>da</strong> entre<br />
a organici<strong>da</strong>de e the awareness.<br />
Awareness, quer dizer a consciência<br />
que não é liga<strong>da</strong> à linguagem (à<br />
maquina para pensar), mas a presença<br />
(GROTOWSKI, 2007, p. 235).<br />
Mariane Magno
N° 16 | Junho de 2011<br />
Por conseguinte, o ‘revivescer’ de tais<br />
quali<strong>da</strong>des e conceitos psicotécnicos em<br />
corpo-ator implica no trabalho insistente<br />
e detalhado, por certo tempo, até que os<br />
procedimentos e princípios propostos<br />
aos treinamentos corporais sejam<br />
suficientemente integrados, e, por essa<br />
integração dos conceitos técnicos evocamos<br />
outro princípio do método <strong>da</strong>s ações-fisicas, a<br />
a<strong>da</strong>ptação. Assim, a a<strong>da</strong>ptação stanislavskiana<br />
inclui o autodomínio técnico, integrado<br />
em corpo-ator, suficiente, o qual engloba<br />
a dinâmica mutante que o atualiza entre o<br />
não-agir, o agir e o porvir.<br />
Por esta prática insistente e investigativa<br />
(laboratórios) é possível exercitar e<br />
aprofun<strong>da</strong>r a compreensão, em corpo, que<br />
pode fun<strong>da</strong>mentar e <strong>da</strong>r materiali<strong>da</strong>de aos<br />
princípios propostos que, em treinamentos<br />
de energia, atuam como transformadores<br />
<strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de do trabalho corporal nos quais<br />
a embriogênese se vincula à cosmogênese<br />
e microcosmo ao macrocosmo a serviço do<br />
desenvolvimento do corpo-pensamento, <strong>da</strong><br />
percepção, <strong>da</strong> imaginação, <strong>da</strong> memória e <strong>da</strong><br />
consciência, ou seja, na<strong>da</strong> fazer e que na<strong>da</strong><br />
deixe de ser feito (JULIIEN, 1998, p. 107).<br />
Chamamos a atenção tanto para o<br />
espaço de treinamento quanto para o espaço<br />
de criação propostos não como resultado<br />
<strong>da</strong> consciência 21 e, sim, como um meio e<br />
uma dinâmica para se chegar a ela, porque<br />
a criativi<strong>da</strong>de é antes descobrir o que não<br />
se conhece (GROTOWSKI, 2007, p. 227). É<br />
preciso, por conseguinte, aprender como<br />
exercitar-se de maneira sincera, 22 atitude<br />
que implica no como se concentrar, para,<br />
então, descobrir como doar-se. Aquilo que<br />
se faz é preciso fazê-lo até o fim. É preciso se<br />
<strong>da</strong>r inteiramente, superando as fronteiras<br />
<strong>da</strong> cotidiani<strong>da</strong>de, de modo tangível, de<br />
ver<strong>da</strong>de. Então existe a concentração.<br />
Quando existe a doação, existe concentração<br />
(GROTOWSKI, 2007, p. 210).<br />
21 Para uma consciência que se exprime, o primeiro bem é uma<br />
imagem, e os grandes valores dessa imagem estão em sua<br />
própria expressão. Uma consciência que se exprime! Haverá<br />
outras? (BACHELARD, 1971 apud FERREIRA, 2008, p. 46).<br />
22 o problema <strong>da</strong> sinceri<strong>da</strong>de – <strong>da</strong> sinceri<strong>da</strong>de consigo<br />
mesmo - existe aonde há a revelação, não aonde se treina<br />
(GRoToWSKI, 2007, p. 201).<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Queremos com esta aproximação,<br />
experimental, abrir espaços para<br />
investigações sobre a motili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
presença cênica e <strong>da</strong> imaginação, a partir<br />
de certa presença do ator sobre si mesmo,<br />
a qual tem materiali<strong>da</strong>de orgânica, celular,<br />
energética e funcional, em um outro eixo.<br />
A transformação psicossomática <strong>da</strong><br />
ansie<strong>da</strong>de e a desaceleração mental podem<br />
potencializar e ampliar a autopercepção<br />
<strong>da</strong>s sensações em corpo-ator, que são<br />
compreensões em desenvolvimento técnico<br />
simples e indispensáveis, as quais podem<br />
se complexificar na justaposição <strong>da</strong>quilo<br />
que se treina, do como se treina e, ain<strong>da</strong>,<br />
o quanto se treina. Ou seja, ao apresentar<br />
a polari<strong>da</strong>de não-agir (como sensibili<strong>da</strong>de,<br />
como energia, como imaginação e, ain<strong>da</strong>,<br />
como o silêncio que gera o novo e cria o<br />
elo com o invisível) estamos reafirmando<br />
a importância do agir, <strong>da</strong> transpiração, <strong>da</strong><br />
insistência, <strong>da</strong> paciência e de um método<br />
em treinamento como condição para a<br />
exploração de cama<strong>da</strong>s mais profun<strong>da</strong>s e<br />
mais sutis <strong>da</strong> imaginação como materiali<strong>da</strong>de<br />
poética em corpo-ator, em outras palavras, a<br />
forma serve para a expressão <strong>da</strong> energia.<br />
O treinamento vivo, deste modo,<br />
torna-se indispensável à percepção e à<br />
materialização <strong>da</strong>quilo que pode ser o<br />
‘acaso’, já que é <strong>da</strong> interação dinâmica<br />
entre o método e o desconhecido que existe<br />
a lacuna, ou seja, as possibili<strong>da</strong>des de<br />
interações, atualizações e criações.<br />
Tais treinamentos em seus processos<br />
evolutivos podem, pela insistência<br />
sistematiza<strong>da</strong> e investigativa, levar à<br />
ampliação <strong>da</strong> percepção e <strong>da</strong> consciência - a<br />
do ator sobre si mesmo e sobre seu ofício. Ou<br />
seja, propomos a construção de bases técnicas<br />
e criativas que investiguem as origens <strong>da</strong><br />
ação (a ca<strong>da</strong> vez) e suas compreensões mais<br />
sutis em cama<strong>da</strong>s mais internas do corpo<br />
(motili<strong>da</strong>de), as quais, quando em processos<br />
poéticos, só se fazem em conjunto com a<br />
ação <strong>da</strong> imaginação, pela qual é possível<br />
atingir a singulari<strong>da</strong>de e a subjetivi<strong>da</strong>de<br />
como materiali<strong>da</strong>de criativa e autógena em<br />
corpo-ator, ou seja, uma possibili<strong>da</strong>de de<br />
correspondência com a verticali<strong>da</strong>de do<br />
instante poético em Bachelard.<br />
Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 87
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
88<br />
Segundo Grotowski (2007), sob<br />
a luz de suas investigações intensas<br />
em laboratório, o resultado (efeito)<br />
está na passagem do pesado para o sutil.<br />
Reconhecemos como ‘passagem’<br />
as transformações qualitativas<br />
(verticali<strong>da</strong>de), os voos poéticos (os<br />
pequenos e os grandes) que acontecem<br />
no trabalho do ator, os quais estão<br />
vinculados ao trabalho do ator sobre<br />
si mesmo, e que são acontecimentos,<br />
percepções e transformações profun<strong>da</strong>s<br />
<strong>da</strong> materiali<strong>da</strong>de corporal (psicofísica,<br />
energética), isto é, em corpo-ator.<br />
Deste modo, o treinamento para o<br />
ator implica no exercício constante <strong>da</strong> sua<br />
imaginação como materiali<strong>da</strong>de corporal<br />
viva, que é apresenta<strong>da</strong> como elemento<br />
vital no método <strong>da</strong>s ações-físicas, elemento<br />
que Stanislávski faz questão de diferenciar<br />
<strong>da</strong> fantasia, devido ao seu caráter<br />
psicossomático; ou seja, a imaginação viva<br />
no ator implica no engajamento celular,<br />
logo ela acontece enraiza<strong>da</strong> no soma, como<br />
matéria poética do ser.<br />
Trata-se, portanto, de reorganizações<br />
psicossomáticas que podem materializar<br />
outros padrões para agir (estados) –<br />
transformação indispensável a qualquer<br />
criação e composição cênica. Deste modo,<br />
a alteração do padrão <strong>da</strong> respiração em<br />
corpo-ator significa a transformação do<br />
tempo-ritmo 23 em ação, que se faz pela<br />
23 Tempo-ritmo é o elemento do método stanislavskiano <strong>da</strong>s<br />
ações-físicas que organiza a materiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ação como<br />
tempo-ritmo em corpo-ator. “É antológica a experiência<br />
que realizou junto aos atores-cantores com uma dezena<br />
de metrônomos, [...],produzindo os mais variados ritmos,<br />
experimentando diferentes atmosferas, estados de ânimo<br />
e situações.[...].Mas foi em seus últimos anos de vi<strong>da</strong>,<br />
trabalhando no Estúdio de Ópera e Artes Dramática com<br />
jovens cantores e atores, que conseguiu realmente verificar<br />
o estreito vínculo do método <strong>da</strong>s ações-físicas com o temporitmo<br />
interno e externo (DAGoSTINI, 2007, p. 90). As pesquisas<br />
de K. Stanislávski nesse campo se dirigiram, sobretudo, ao<br />
estabelecimento de uma psicotécnica que elevasse a arte<br />
do ator a uma precisão absoluta <strong>da</strong> ação psicofísica e <strong>da</strong><br />
linguagem, correspondendo a uma partitura musical. Com<br />
o domínio deste recurso, que se encontra estreitamente<br />
vinculado à respiração e à atenção, todos os outros elementos<br />
<strong>da</strong> arte do ator, [...] seriam desencadeados, pois o temporitmo<br />
constitui-se num meio direto e imediato para estimular<br />
as forças motrizes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica: a mente, a vontade e o<br />
sentimento.(DAGoSTINI,2007, p. 92).<br />
transformação dos estados, os quais,<br />
por sua vez, estão vinculados à imagem<br />
em imaginação. O tempo-ritmo está<br />
presente na imaginação, no pensamento,<br />
na comunicação, nos sentimentos.<br />
(DAGOSTINI,2007, p.92)<br />
Assim, ao direcionar o não-agir<br />
de processos criativos cênicos ele<br />
fun<strong>da</strong>menta a base de experiência na<br />
vivência (investigativa) dos treinamentos<br />
pelos quais o ator pode, a partir <strong>da</strong><br />
auto-observação de si, conhecer seus<br />
padrões, pontos de tensão e pontos de<br />
relaxamento e, a partir destas investigações,<br />
trabalhar para aprender como transformálos,<br />
e, por estes processos internos (de<br />
elaboração) aprender como gerar os espaços<br />
solitários e férteis em si mesmos (lacunas,<br />
conexões) para as atualizações, criações<br />
e recriações. É que a força do ritmo atua<br />
de forma direta e imediata sobre o estado<br />
físico e psíquico que influencia o domínio<br />
dos músculos e se expressa externamente<br />
em todo aparato físico. (DAGOSTINI,<br />
2007, p. 92)<br />
Objetivamente, o que queremos<br />
dizer é que o ator, ao focar sua atenção,<br />
excessivamente, na execução <strong>da</strong> forma<br />
(seja em treinamento seja no personagem)<br />
ele fecha certos espaços, os quais, quando<br />
abertos, podem gerar o estado de<br />
disponibili<strong>da</strong>de (que sabe como retornar<br />
às origens <strong>da</strong> ação para revivescer, nãoagir<br />
para agir) de questionamentos, de<br />
investigações e de atualizações. Ou seja,<br />
sem a curiosi<strong>da</strong>de e a atenção àquilo<br />
que é vivo no momento, a percepção e<br />
atenção podem se enrijecer (fixar) por<br />
estar predominantemente direciona<strong>da</strong>s<br />
ao aspecto mais aparente (consciente),<br />
e, assim, o trabalho perde a dinâmica <strong>da</strong><br />
renovação que refresca, ele não integra<br />
o que emerge do inconsciente e do<br />
momento.<br />
Na atitude-condição incompleta,<br />
portanto, - a do agir excessivo, imposto,<br />
como polari<strong>da</strong>de desconexa do não-agir -<br />
sob a luz taoísta, reside a impossibili<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> conexão, <strong>da</strong> evolução e <strong>da</strong> eficácia,<br />
porque esta relação conduziria à cisão entre<br />
Mariane Magno
N° 16 | Junho de 2011<br />
os polos, logo, à imobili<strong>da</strong>de 24 <strong>da</strong> dinâmica.<br />
Enquanto que o agir provocado, alimentado<br />
e interado no não-agir preservaria a<br />
dinâmica <strong>da</strong> presença, na qual somos ativos<br />
e totalmente passivos ao mesmo tempo.<br />
Em que a presença do outro se manifesta<br />
por si só, sem que se procure. Quando é<br />
elimina<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a diferença entre corpo e<br />
alma. Naquele momento podemos dizer<br />
que não estamos divididos (GROTOWSKI,<br />
2007, p. 211).<br />
A ideia <strong>da</strong> repetição, por conseguinte,<br />
como um impulso organizador para agir<br />
(aquele que <strong>parte</strong> apenas dos elementos<br />
conhecidos, forma) não levaria à eficácia,<br />
como organici<strong>da</strong>de, por sugerir um excesso<br />
de saber e de controle, ou seja, certa rigidez.<br />
No lugar <strong>da</strong> palavra ‘controle’, deste modo,<br />
propomos a expressão ‘domínio técnico’,<br />
que interado de certa disponibili<strong>da</strong>de<br />
interna (imaginação, curiosi<strong>da</strong>de,<br />
concentração, atenção e escuta sensível)<br />
se funde ao inédito do momento até em<br />
suas sutilezas, e, juntos, podem possibilitar<br />
um saber retornar às origens <strong>da</strong> ação, em<br />
estado pleno de curiosi<strong>da</strong>de e de atenção,<br />
ou seja, um caminho que une a precisão e a<br />
espontanei<strong>da</strong>de.<br />
Por este caminho, portanto, é que se faz<br />
a dinâmica entre aquilo que é codificado<br />
(ação ou forma ou partitura) e ao mesmo tempo<br />
desconhecido (não-ação, não-forma, nãosaber<br />
- inconsciente). Deste modo, propomos<br />
a motili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> presença pela percepção<br />
que absorve a novi<strong>da</strong>de que emerge do<br />
momento presente e, por ela, motili<strong>da</strong>de, o<br />
corpo-ator pode se refazer, se reconstruir e<br />
se autocriar. Podemos ilustrar esta atitude<br />
em movimento pelo imaginário taoísta,<br />
24 É preciso esclarecer que imobili<strong>da</strong>de, neste contexto,<br />
não tem relação com a “imobili<strong>da</strong>de dinâmica” utiliza<strong>da</strong> pela<br />
antropologia teatral (BARBA e SAVARESE, 1995) para definir<br />
estado em que o corpo aparentemente imóvel, internamente<br />
continua em ação, neste caso a ‘imobili<strong>da</strong>de’ é apenas<br />
externa e não imobili<strong>da</strong>de de ação. Para Stanislávski (apud<br />
DAGoSTINI, 2007) ‘imobili<strong>da</strong>de’ foi utiliza<strong>da</strong> para apresentar<br />
a potencialização interna <strong>da</strong> dramatici<strong>da</strong>de, ou seja, para<br />
os dois a terminologia aponta o mesmo sentido dramático.<br />
Imobili<strong>da</strong>de, aqui, resgata a premissa de imanência e, por<br />
isso, a terminologia está associa<strong>da</strong> com as ações desconexas<br />
<strong>da</strong>quilo que é imanente e, por isso, sem possibili<strong>da</strong>de de<br />
movimento, logo, sem possibili<strong>da</strong>de de evoluir.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
como o corpo do dragão-serpente, ela<br />
reage em todos os sentidos (serpente do<br />
monte Chang proposta como modelo de<br />
estratégia): ‘Quando a atacam na cabeça,<br />
é a cau<strong>da</strong> que se ergue; quando atacam na<br />
cau<strong>da</strong>, é a cabeça que se ergue, quando<br />
atacam no centro, as duas extremi<strong>da</strong>des<br />
se erguem ao mesmo tempo’. Como<br />
esse tratado de diplomacia o resume,<br />
a reação ‘não tem lugar próprio’, ela<br />
pode produzir em qualquer ponto e em<br />
qualquer momento. Em uma palavra,<br />
não é localizável; sendo assim, está de<br />
acordo com a ubiqui<strong>da</strong>de operatória <strong>da</strong><br />
transformação (JULLIEN, 1998, p. 123).<br />
Seguindo adiante com as imagens<br />
que ilustram o princípio <strong>da</strong> eficácia e <strong>da</strong><br />
mutabili<strong>da</strong>de, Jullien (1988) apresenta a<br />
recepção (não-agir) que gera a mobili<strong>da</strong>de<br />
necessária ao espírito, 25 utilizando<br />
mais uma vez o imaginário mitológico<br />
e animalizante chinês para revelar a<br />
dinâmica eficaz do ‘agir’(sob o duplo<br />
pressuposto) como o dragão:<br />
A imagem <strong>da</strong> serpente ou, melhor ain<strong>da</strong>,<br />
do dragão exprime bem essa mobili<strong>da</strong>de<br />
do espírito que permite evoluir à vontade,<br />
sem jamais ser estorvado nem sofrer<br />
(evolução opondo-se a ação): o corpo<br />
maleável do dragão não tem forma<br />
fixa, ele ondula e se curva em todos<br />
os sentidos, contrai-se para distender,<br />
concerta-se para progredir; ele esposa tão<br />
bem as nuvens que, sempre levado por<br />
elas avança sem fazer esforço. Por isso,<br />
quase não se distingue delas. Do mesmo<br />
modo, a intencionali<strong>da</strong>de estratégica não<br />
tem intenção defini<strong>da</strong>, ela não se obstina<br />
em nenhum plano para melhor seguir<br />
todos os contornos <strong>da</strong> situação e pode<br />
aproveitá-los: se o estrategista não age, é<br />
25 Ao espírito resta a tarefa de fazer sistemavs, de agenciar<br />
experiências diversas para tentar compreender o universo.<br />
Ao espírito convém a paciência de instruir-se ao longo do<br />
passado do saber. o passado <strong>da</strong> alma está tão longe! A alma<br />
não vive ao fio do tempo. Ela encontra seu repouso nos<br />
universos imaginados pelo devaneio. Acreditamos, pois,<br />
poder mostrar que as imagens cósmicas pertencem à alma,<br />
à alma solitária, à alma princípio de to<strong>da</strong> solidão. As ideias<br />
se aprimoram e se multiplicam no comércio dos espíritos.<br />
As imagens, em seu resplendor, realizam uma comunhão<br />
muito simples <strong>da</strong>s almas. Dois vocabulários deveriam ser<br />
organizados para estu<strong>da</strong>r, um o saber, outro a poesia (...) Seria<br />
vão constituir dicionários para traduzir de uma língua para<br />
outra (BACHELARD, 2006, p. 15).<br />
Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 89
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
90<br />
porque ele não fragmenta nem depende<br />
sua energia numa ação determina<strong>da</strong>,<br />
mas como o corpo infinitamente solto do<br />
dragão, vale-se <strong>da</strong> renovação <strong>da</strong> situação<br />
para – evoluindo sempre - não cessar de<br />
avançar (JULLIEN, 1998, p.121).<br />
Para os chineses, to<strong>da</strong>via, as imagens<br />
<strong>da</strong> serpente e do dragão são mais que<br />
metáforas, elas são símbolos vivos<br />
enraizados na filosofia e no imaginário<br />
mitológico e corporal, e, por meio deles<br />
um caminho à evolução (saber integrarse<br />
àquilo que já existe e agir junto). Para<br />
isso, é preciso saber como melhor utilizar<br />
a energia e o sentido imanentes e, com uma<br />
atitude ‘quase que invisível’, saber moverse<br />
de forma integra<strong>da</strong>, o que nos leva a<br />
insistir que o não-agir não é um abandono<br />
do agir, ele é vivo e possui critérios.<br />
Compreendemos o agir ‘quase<br />
que invisível’, na condição corpo-ator,<br />
como a apropriação técnica (a<strong>da</strong>ptação<br />
stanislavskiana) e a superação técnica que,<br />
neste nível de autodomínio cênico, causa<br />
o efeito <strong>da</strong> naturali<strong>da</strong>de no agir, ou seja, a<br />
segun<strong>da</strong> natureza stanislavskiana.<br />
Sob a reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imaginação<br />
em corpo-ator não há cisão entre<br />
sujeito e objeto (nuvens e dragão), um<br />
alimenta-se nas provocações do outro<br />
e, pela dinâmica mutante, é possível<br />
materializar a uni<strong>da</strong>de como autocriação<br />
em transformação constante.<br />
Desta perspectiva, pelo duplo<br />
pressuposto taoísta, também não há<br />
cisão entre a vivência em corpo-ator e a<br />
reflexão que se faz, ambas se fundem<br />
como experiência. Ou seja, a respiração<br />
é que relaxa a musculatura para que esta<br />
se alongue um pouco mais pelo fluir <strong>da</strong><br />
energia, e não a força; pulsa no mesmo<br />
corpo que respira o texto para perceber um<br />
sentido a mais no pensamento que se faz.<br />
Na interação dinâmica entre a imaginação e a<br />
atenção, encontramos a ação e a contemplação<br />
(não-ação) e assim identificamos, mais uma<br />
vez, em texto, o princípio não agir para agir.<br />
Nessa contemplação em profundi<strong>da</strong>de,<br />
o sujeito toma também consciência de<br />
sua intimi<strong>da</strong>de. Essa contemplação<br />
não é, pois, uma Einfühlung imediata,<br />
uma fusão desenfrea<strong>da</strong>. É antes uma<br />
perspectiva de aprofun<strong>da</strong>mento para o<br />
mundo e para nós mesmos. Permite-nos<br />
ficar distantes diante do mundo. Diante<br />
<strong>da</strong> água profun<strong>da</strong>, escolhes tua visão;<br />
podes ver a vontade o fundo imóvel ou<br />
a corrente, a margem ou o infinito; tens o<br />
direito ambíguo de ver e de não ver (...)<br />
(BACHELARD, 1947 apud FERREIRA,<br />
2008, p. 47).<br />
Sobre esta perspectiva-experiência,<br />
segundo Jullien (1998): Esposar o curso<br />
espontâneo <strong>da</strong>s coisas, responder-lhe<br />
“como fêmea”, tal como recomen<strong>da</strong> o<br />
LAOZI (...), permite conceber a conduta<br />
não mais em termos de ação e sim de reação<br />
(...); e esse insinuar-se basta para mu<strong>da</strong>r<br />
globalmente as perspectivas (JULLIEN,<br />
1998, p.121).<br />
Esta brevíssima apresentação <strong>da</strong><br />
polari<strong>da</strong>de não-agir (integra<strong>da</strong> ao agir)<br />
tem com objetivo apontar o sentido<br />
do qual emergiu e, por aquilo que<br />
foi ‘despertado’ e ‘atiçado’, abrir a<br />
possibili<strong>da</strong>des para investigações em<br />
laboratório sobre o princípio <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de<br />
dinâmica que também é o princípio <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>.<br />
Algumas relações, do não-agir para agir<br />
em corpo, propostas em práticas corporais<br />
chinesas, podem ser identifica<strong>da</strong>s pelo<br />
como se propõe o conceito de mutação<br />
em movimento, como, por exemplo, no<br />
caminhar <strong>da</strong> forma tai chi chuan pelo qual<br />
para se ir a um lado toma-se impulso no<br />
outro. Este alimento do agir no lado oposto<br />
do corpo, sob a visão <strong>da</strong> lineari<strong>da</strong>de, pode<br />
ser visto como um desvio, o <strong>da</strong> direção<br />
deseja<strong>da</strong>. Porém, sob a lógica chinesa<br />
e taoísta, ir ao lado oposto antes de ir à<br />
frente não é um desvio, é, sim, a formação,<br />
a potencialização e o espaço para a<br />
atualização do movimento seguinte, ou<br />
seja, é uma estratégia, e, ao mesmo tempo,<br />
é um tempo-espaço que possibilita a visão<br />
(percepção do dragão).<br />
Assim, neste ‘como’ caminhar, antes<br />
de se <strong>da</strong>r um passo a frente, há um passo<br />
(desvio) para o lado. A sequência é a<br />
Mariane Magno
N° 16 | Junho de 2011<br />
seguinte: para o lado, para frente, para<br />
trás, para o outro lado, para frente e para<br />
trás, sucessivamente.<br />
Barba (1995), ao falar sobre este elemento<br />
técnico, a <strong>da</strong>nça <strong>da</strong>s oposições, afirma que se<br />
quisermos, de fato, compreender a dialética<br />
no nível material do teatro é indispensável<br />
estu<strong>da</strong>r o princípio <strong>da</strong>s oposições nos atores<br />
orientais, que é a base sobre a qual eles,<br />
atores orientais, constroem e desenvolvem<br />
to<strong>da</strong>s as suas ações. O ator chinês sempre<br />
começa uma ação em seu oposto (...) se<br />
deseja ir para a esquer<strong>da</strong> começa indo para a<br />
direita, se quer agachar primeiro se levanta<br />
na ponta dos pés (BARBA; SAVARESE,<br />
1995, p.176). Deste modo, a centelha <strong>da</strong><br />
forma está na receptivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> base no<br />
lado oposto do corpo; há sempre esta nãoação<br />
que é o espaço-momento que esposa<br />
o tempo, gera e atualiza a ação, ou seja, o<br />
não-agir também tem sua materiali<strong>da</strong>de<br />
mutante. Este acontecimento vivo se faz<br />
tanto nas relações dos espaços interno e<br />
externo em corpo-ator, quanto nas relações<br />
dinâmicas entre o ator e o espaço físico.<br />
Deste modo, o engajamento global do<br />
corpo para agir inclui o espírito e a alma<br />
do próprio agir. Portanto, forma e matéria<br />
neste processo de mutabili<strong>da</strong>de compõem<br />
uma uni<strong>da</strong>de mutante.<br />
Como vivência, em corpo-ator, a forma<br />
(estrutura consciente) não existe sem a nãoforma<br />
(fluência de energia, liber<strong>da</strong>de interior,<br />
variáveis do momento,...), e é assim que<br />
vinculamos o comprometimento espiritual<br />
à expressivi<strong>da</strong>de como materiali<strong>da</strong>de<br />
artística, e, pela provocação de uma à<br />
outra, é possível agir e levar a dinâmica <strong>da</strong><br />
imaginação adiante. O essencial é que uma<br />
imagem seja acerta<strong>da</strong>. Pode-se esperar,<br />
então, que ela tome o caminho <strong>da</strong> alma, que<br />
não se embarace nas objeções do espírito<br />
crítico, que não seja deti<strong>da</strong> pela pesa<strong>da</strong><br />
mecânica dos recalques. (...) O devaneio<br />
nos põe em estado de alma nascente<br />
(BACHELARD, 2006, p.15).<br />
Cabe insistir, por conseguinte, que o<br />
foco <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de proposta (como efeito<br />
<strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de) não está nem no eixo do agir e<br />
nem no eixo do não-agir, mas, sim, naquilo<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
que resulta <strong>da</strong> interação entre ambos no<br />
momento, ou seja, nos vínculos pelos<br />
quais as relações podem ser estabeleci<strong>da</strong>s<br />
e desenvolvi<strong>da</strong>s; nelas, nas relações<br />
vivas (dinâmica) é que se encontram as<br />
possibili<strong>da</strong>des reais de transformação, ou<br />
seja, a sensibili<strong>da</strong>de, o senso <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />
imagina<strong>da</strong> e o autodomínio técnico atuam<br />
como uni<strong>da</strong>de, e, assim, a profundi<strong>da</strong>de do<br />
aprimoramento de um elemento se dá em<br />
justaposição com os outros.<br />
Sobre estes efeitos não-agir para agir,<br />
Grotowski apud Barba e Savarese fala<br />
<strong>da</strong> sua existência na vi<strong>da</strong> normal em<br />
técnicas cotidianas, mas que, em corpoator,<br />
em situação de representação há uma<br />
amplificação extrema, que resulta algo que<br />
possui outra quali<strong>da</strong>de (GROTOWSKI apud<br />
BARBA; SAVARESE, 1995, p. 236).<br />
Aprender corretamente a forma dos<br />
exercícios (uma forma de caminhar ou<br />
de se mover), entretanto, não é o objetivo<br />
em si, mas, sim, a possibili<strong>da</strong>de de<br />
transformação corporal, na quali<strong>da</strong>de com<br />
que ela é executa<strong>da</strong> em corpo-ator; ou seja,<br />
quando não-agir e agir atuarem, um sob a<br />
provocação e influencia do outro, como um<br />
processo contínuo sob qual só é possível<br />
identificar apenas a continui<strong>da</strong>de.<br />
Assim, ao utilizarmos o princípio nãoagir<br />
para agir em investigações corporais,<br />
propomos um modo para encontrar um<br />
ponto de conexão, uma abor<strong>da</strong>gem que<br />
inclui a receptivi<strong>da</strong>de como alimento<br />
e, principalmente, um espaço silencioso<br />
e solitário de comunicação e criação em<br />
corpo-ator. O devaneio cósmico (...) é um<br />
fenômeno <strong>da</strong> solidão, (...) que tem sua raiz<br />
na alma do sonhador. Não necessita de<br />
um deserto para estabelecer-se e crescer.<br />
Basta um pretexto – e não uma causa -<br />
para que nos ponhamos em ‘situação de<br />
solidão’, em situação de solidão sonhadora<br />
(BACHELARD, 2006, p.14).<br />
Enlaçamo-nos na eficácia do pretexto<br />
para que na condição corpo-ator ‘nos<br />
ponhamos em situação de solidão’<br />
(bachelardianos), como as compreensões<br />
psicotécnicas (fenomenotécnicas)<br />
e individuais indispensáveis aos<br />
Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 91
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
92<br />
treinamentos e aos processos criativos.<br />
Assim, evidenciamos ain<strong>da</strong> mais o eixo<br />
que move a materiali<strong>da</strong>de cênica corpoator,<br />
no trabalho do ator sobre si mesmo; ou<br />
seja, a disponibili<strong>da</strong>de e a curiosi<strong>da</strong>de<br />
que geram certa atitude em face ao<br />
método, a do eterno retorno às origens<br />
para saber como, a ca<strong>da</strong> vez, se colocar<br />
em situação.<br />
Sobre a potência não-forma Grotowski<br />
utiliza as expressões subleis, antiimpulso<br />
ou anti-movimento. Deste modo,<br />
Grotowski afirma sua materiali<strong>da</strong>de<br />
dinâmica (a não-forma por ele: antiimpulso<br />
ou anti-movimento) isso é muito<br />
concreto, ele existe. Pode ocorrer em<br />
níveis diferentes, como uma espécie<br />
de silêncio antes do movimento, um<br />
silêncio preenchido com o potencial<br />
(GROTOWSKI apud BARBA; SAVARESE<br />
1995, p. 236).<br />
As investigações brevemente<br />
organiza<strong>da</strong>s (aponta<strong>da</strong>s) neste texto<br />
têm o propósito de flexibilizar e abrir<br />
lacunas à metodologia de abor<strong>da</strong>gem do<br />
treinamento, <strong>da</strong> docência e dos processos<br />
criativos e, assim, aproximar o ator um<br />
pouco mais de seus objetivos criativos,<br />
por meio <strong>da</strong>s experimentações em corpoator<br />
a partir <strong>da</strong>s conexões internas de<br />
energia (silêncio, solidão, concentração)<br />
pelas quais ele poderá conectar-se em<br />
‘si mesmo’ e a partir deste espaço aberto<br />
a comunicação possibilitar diálogos<br />
internos (imaginação enraiza<strong>da</strong> no soma)<br />
como que devaneios em expressivi<strong>da</strong>de<br />
corporal ele possa trabalhar sobre si mesmo<br />
e se autocriar poeticamente:<br />
o devaneio poético nos dá o mundo<br />
dos mundos. O devaneio poético<br />
é um devaneio cósmico. É uma<br />
abertura para um mundo belo, para<br />
mundos belos. Dá ao eu um não-eu<br />
que é o bem do eu: o não-eu meu. É<br />
esse não-eu meu que encanta o eu<br />
do sonhador e que os poetas sabem<br />
fazer-nos partilhar. Para o meu eu<br />
sonhador, é esse não-eu meu que<br />
me permite viver minha confiança<br />
de estar no mundo. Em face de<br />
um mundo real, pode-se descobrir<br />
em si mesmo o ser <strong>da</strong> inquietação.<br />
Somos então jogados no mundo,<br />
entregues à imuni<strong>da</strong>de do mundo,<br />
à negativi<strong>da</strong>de do mundo, o<br />
mundo é então o na<strong>da</strong> humano (...)<br />
(BACHELARD, 2006, p.13).<br />
O objetivo <strong>da</strong>s lacunas é, ain<strong>da</strong>, o de<br />
investigar a atitude receptiva, estado,<br />
como um recurso a mais nos estudos <strong>da</strong><br />
concentração, <strong>da</strong> percepção, <strong>da</strong> atenção e <strong>da</strong><br />
ação convergentes sob a imaginação, em<br />
corpo-ator.<br />
Deste modo, as experimentações<br />
insistentes com atenção e calma,<br />
em laboratório, podem investigar,<br />
um pouco mais, a compreensão<br />
psicofísica <strong>da</strong>quilo que, ocidental e<br />
coletivamente, denominamos como<br />
método e procedimentos técnicos;<br />
organizadores que reconhecemos<br />
individualmente como psicotécnica, os<br />
quais, sob o princípio <strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de,<br />
possivelmente poderiam ser<br />
identificados como um caminho.<br />
A palavra Caminho foi utiliza<strong>da</strong><br />
como tradução de Tao, mas também<br />
é sabido que o Tao absoluto não pode<br />
ser dito e que, quando dito, não é<br />
mais o Tao Ver<strong>da</strong>deiro. 26 . Este aforismo,<br />
para os chineses, não é um paradoxo,<br />
é, sim, a abertura que possibilita a<br />
interação e a continui<strong>da</strong>de; ou seja,<br />
é o espaço disponível àquilo que não<br />
pode ser dito e nem antecipado, mas,<br />
sim, experienciado em seu tempo.<br />
26 Watts (1999) nos fala sobre as diferentes terminologias<br />
usa<strong>da</strong>s para traduzir TAo e <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des existentes<br />
(dificul<strong>da</strong>des de quê/para quê?). Para exemplificar, ele diz:<br />
Assim o TAo TE CHING se inicia com as palavras enigmáticas,<br />
em geral traduzi<strong>da</strong>s como “o TAo que pode ser dito não é o<br />
TAo eterno”. Esta tradução oculta o fato de que o ideograma<br />
traduzido como “QUE PoDE SER DITo” é igualmente o TAo,<br />
porque essa palavra também significa ‘falar’ ou ‘dizer’,<br />
conquanto possivelmente não tivesse essa utilização no<br />
século 3. Literalmente, diz a passagem: ‘Tao pode ser Tao não<br />
eterno ou [regular] Tao (WATTS, 1999, p.69). o autor segue<br />
apresentando tantas outras possibili<strong>da</strong>des de traduções e<br />
por consequência de interpretações. Wilhelm (1995) também<br />
diz: A mutação não é desprovi<strong>da</strong> de sentido - se o fosse<br />
não seria possível formular qualquer conhecimento a seu<br />
respeito -, mas está sujeita à lei universal do TAo (WILHELM,<br />
1995, in introdução IChing).<br />
Mariane Magno
N° 16 | Junho de 2011<br />
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Não-agir para agir, um paradoxo e uma uni<strong>da</strong>de dinâmica 93
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Paul [Guilherme Rótulo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
o último Pirandello e sua personagem-atriz 95
N° 16 | Junho de 2011<br />
o úLTIMo PIRANDELLo E SUA<br />
PERSoNAGEM-ATRIZ<br />
Resumo<br />
O decênio 1925-1936 será a fase mais conturba<strong>da</strong> e complexa<br />
na experiência artística e existencial de Pirandello: o<br />
dramaturgo se envolve com os problemas concretos do<br />
fazer teatral, questiona a própria poética que o atormentou<br />
a vi<strong>da</strong> inteira e, principalmente, mantém com a jovem<br />
atriz Marta Abba uma ambígua relação pessoal e artística.<br />
Escassamente discuti<strong>da</strong>, se compara<strong>da</strong> ao número de estudos<br />
<strong>da</strong> fase imediatamente anterior, esta dramaturgia tardia irá<br />
testemunhar uma grande explosão de contribuições críticas,<br />
na Itália, a partir de 1995 (ano de publicação do epistolário<br />
Pirandello-Abba). Mas, no Brasil, sua gênese ain<strong>da</strong><br />
permanece substancialmente desconheci<strong>da</strong>.<br />
Palavras-chave: Luigi Pirandello, Marta Abba, teatro<br />
autobiográfico, Vamp Virtuosa, personagem-atriz.<br />
Abstract<br />
The years between 1925 and 1936 were the most disturbed<br />
and complex ones in Pirandello’s artistic and existential<br />
experience: in that period, the playwright was engaged<br />
with real problems concerning theatrical making,<br />
questioning his own poetics – something that was around<br />
for his whole life – and, above all, kept a very ambiguous<br />
personal and artistic relationship with the young actress<br />
Marta Abba. Scarcely investigated if compared with the<br />
number of studies related to the earlier periods, this late<br />
production by Pirandello would witness an enormous<br />
explosion of critical studies in Italy from 1995 on (the<br />
publication year of the letters Pirandello – Abba). On the<br />
contrary, its genesis remains absolutely unknown in Brazil.<br />
Keywords: Luigi Pirandello, Marta Abba, autobiographical<br />
theatre, Virtuous Vamp, character actress.<br />
Martha Ribeiro 1<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
o último Pirandello e sua personagem-atriz 97
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
98<br />
Muito se falou sobre<br />
o teatro de Luigi<br />
Pirandello (1867-1936)<br />
e pouco se explicou<br />
sobre sua última<br />
estação dramatúrgica, especialmente os<br />
dramas escritos para a atriz Marta Abba<br />
(1900-1988), principal intérprete e musa<br />
inspiradora de sua obra tardia. No Brasil, os<br />
estudos ain<strong>da</strong> se orientam principalmente<br />
em torno <strong>da</strong> assim denomina<strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />
fase de sua dramaturgia – que di<strong>da</strong>ticamente<br />
se abre com Cosi è (si vi pare), em 1917, e<br />
que se fecha em 1924 (antes <strong>da</strong> tessitura de<br />
Diana e la Tu<strong>da</strong> em 1925). Em sua grande<br />
maioria, as leituras giram em torno do<br />
relativismo pirandelliano, reflexo de uma<br />
condição burguesa fratura<strong>da</strong>, identificando<br />
to<strong>da</strong> a sua obra teatral na ideia de oposição<br />
entre um indivíduo isolado e um corpo<br />
social; análise que se impôs ao final dos<br />
anos cinquenta a partir de um longo artigo<br />
de Mario Baratto intitulado Le théâtre di<br />
Pirandello. Uma leitura que de fato serviu<br />
para organizar um primeiro retrato do<br />
autor, mas que, to<strong>da</strong>via, nos oferece um<br />
quadro apenas parcial, já que não chega a<br />
contemplar a obra tardia.<br />
A incompreensão de sua última<br />
produção permanece com Arcangelo Leone<br />
de Castris, no livro Storia di Pirandello de<br />
1962 que chega a liqui<strong>da</strong>r um texto capital<br />
como Questa sera si recita a sogetto, como<br />
exemplo de uma “involução” de uma<br />
desvitalização artística que leva o autor <strong>da</strong><br />
“poesia a técnica”, definindo a peça como<br />
simples postulado de artifícios teatrais<br />
sem valor ideológico. Na medi<strong>da</strong> em<br />
que Pirandello se afasta de sua primitiva<br />
inspiração – de poeta <strong>da</strong> condição trágica<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de burguesa, <strong>da</strong> consciência<br />
dividi<strong>da</strong> - e busca experimentar evasões<br />
surrealistas, fugas ao irracional, na crença<br />
1 Martha Ribeiro é Diretora teatral e Professora Adjunta do<br />
Departamento de Artes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense,<br />
Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS), e do Programa<br />
de Pós-Graduação em Ciência <strong>da</strong> Arte <strong>da</strong> UFF. É Doutora<br />
em Teoria e História Literária (UNICAMP-IEL), com período<br />
sanduíche na Università di Torino. Realizou Pós-Doutorado na<br />
UNICAMP-IAR. Em suas publicações, destaca-se o livro “Luigi<br />
Pirandello: um teatro para Marta Abba”, <strong>da</strong> Editora Perspectiva.<br />
<strong>da</strong> existência de uma reali<strong>da</strong>de <strong>superior</strong>, ou<br />
de um “corpo sem nome”, como desejado<br />
pela Ignota de Come tu mi vuoi (1929), seu<br />
teatro é visto como decadente e indigno de<br />
qualquer exegese crítica. Só no final dos<br />
anos 60, é que se vê uma recuperação dos<br />
três mitos pirandellianos (La nuova colonia,<br />
Lazzaro, I giganti della montagna) a partir do<br />
livro Il teatro mitico di Pirandello de Marziano<br />
Guglielminetti. Mas ain<strong>da</strong> havia todo<br />
um filão dramatúrgico que permanecia<br />
excluído <strong>da</strong>s análises críticas: de Diana e<br />
la Tu<strong>da</strong>, passando pela L’amica delle mogli,<br />
Trovarsi, Quando si è qualcuno e Come tu mi<br />
vuoi é todo um teatro que substancialmente<br />
foi posto de lado pela crítica, sendo<br />
recuperado, mais soli<strong>da</strong>mente, e sem os<br />
preconceitos que insistentemente rebaixava<br />
este teatro em confronto com a produção<br />
anterior, somente a partir dos anos 80, com<br />
as análises pioneiras de Roberto Alonge,<br />
Giovanni Macchia e Massimo Castri.<br />
Esta dramaturgia permaneceu por<br />
longos anos analisa<strong>da</strong> como desviante do<br />
ver<strong>da</strong>deiro núcleo poético do dramaturgo,<br />
pois parecia que o autor retornava a uma<br />
ideia de teatro já supera<strong>da</strong>, recuperando<br />
um tipo de relação impossível (que se<br />
quer invisível) entre personagem e ator.<br />
Aquela nódoa obscura de psicologia e<br />
de interiori<strong>da</strong>de, portador <strong>da</strong> ideologia<br />
e <strong>da</strong> prática naturalista, o personagem<br />
dramático, voltava a estabelecer na<br />
dramaturgia pirandelliana do nosso uma<br />
relação com o ator basea<strong>da</strong> no mito <strong>da</strong><br />
transparência, isto é, na ilusão de que<br />
entre ator e personagem se estabelece uma<br />
relação total de superposição, e até mesmo<br />
de fusão, herança de um teatro naturalista,<br />
e, consequentemente, um dos maiores<br />
obstáculos aos ideais de liber<strong>da</strong>de e de<br />
autonomia plena <strong>da</strong> cena; em sua vertente<br />
formalista. Contemporaneamente aos<br />
reformadores teatrais, Pirandello tinha<br />
consciência <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong> relação<br />
personagem-ator para a cena teatral e<br />
<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de se estabelecer uma<br />
níti<strong>da</strong> separação entre as identi<strong>da</strong>des.<br />
No ensaio Illustratori, attori e traduttori<br />
(1907) é possível verificar o engajamento<br />
Martha Ribeiro
N° 16 | Junho de 2011<br />
na direção de uma separação total entre<br />
as <strong>parte</strong>s, mas a linha de comunicação<br />
pretendi<strong>da</strong> por Pirandello se <strong>da</strong>va entre<br />
o personagem e o espectador, o ator seria<br />
na<strong>da</strong> mais do que um terceiro elemento<br />
incômodo na fruição <strong>da</strong> obra de arte.<br />
Embora a autonomia do personagem<br />
em relação ao ator seja reivindica<strong>da</strong> tanto<br />
teoricamente quanto poeticamente, isto<br />
é, no texto Sei personaggi in cerca d’autore<br />
(1921), nos argumentos <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de<br />
de se representar o drama, se reconhece os<br />
pressupostos do ensaio Illustratori, attori<br />
e traduttori, se verifica em Pirandello uma<br />
nostalgia em relação ao mito <strong>da</strong> transparência.<br />
O uso <strong>da</strong> fórmula “teatro no teatro” estabelece<br />
coincidências entre o mundo ficcional e o<br />
mundo real: o espaço descrito pelo drama<br />
é o mesmo espaço do palco real e os atores<br />
se duplicam em cena, representando eles<br />
mesmos: ou seja, atores. Mas se existe a<br />
consciência de uma distância entre ator<br />
e personagem, na prática se verifica uma<br />
espécie de tentação em atingir com o teatro, a<br />
partir do personagem, aquela autentici<strong>da</strong>de<br />
profun<strong>da</strong> que a experiência cotidiana nos<br />
nega. Na peça Sei personaggi se verifica uma<br />
forte tensão entre a forma dramática e o<br />
conteúdo do texto, pois enquanto o discurso<br />
dos seis personagens desenvolve a ideia<br />
de uma irremediável distância entre a cena<br />
(reali<strong>da</strong>de material) e o texto (reali<strong>da</strong>de<br />
fantástica), através do qual os personagens<br />
rejeitam qualquer tentativa de representação<br />
por <strong>parte</strong> dos atores, na forma dramática se<br />
observa uma tentativa de recuperação <strong>da</strong><br />
transparência perdi<strong>da</strong>.<br />
Com Pirandello, a perspectiva em<br />
relação à interpretação se assemelha<br />
ao modelo naturalista, mas com duas<br />
fun<strong>da</strong>mentais diferenças: uma nova ideia<br />
de personali<strong>da</strong>de humana, elabora<strong>da</strong> no<br />
ensaio L’umorismo (1908), e a visão de<br />
<strong>superior</strong>i<strong>da</strong>de do personagem em relação<br />
ao ser humano. No palco, o ator não deve<br />
se transformar em uma figura humana,<br />
deve evocar um ser diferente, estranho,<br />
que vive em uma outra esfera de reali<strong>da</strong>de.<br />
Não é só o físico do ator que se diferencia<br />
do personagem, sua natureza é que é feita<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
de outra matéria e que por isso arrisca<br />
ocultar o caráter profundo e essencial <strong>da</strong><br />
criatura fantástica. Se é possível falar de<br />
uma teoria atorial pirandelliana diremos<br />
que, ao inverso do naturalismo, mas<br />
de efeito semelhante, sua dramaturgia<br />
propõe a possessão do intérprete pelo<br />
personagem dramático. Não será o ator a<br />
entrar no personagem, mas o personagem<br />
a entrar no ator. O teatro como local<br />
privilegiado do encontro e do desencontro<br />
entre uma reali<strong>da</strong>de <strong>superior</strong> e o mundo<br />
material <strong>da</strong> cena. Palco onde se verifica ao<br />
mesmo tempo uma distância e uma ilusão<br />
de identificação, onde a cena oscila entre<br />
a ficção, a tentativa de representação, e<br />
a instalação do real, na idealização de<br />
possessão do ator pelo personagem. Sem<br />
abandonar a nostalgia utópica do mito <strong>da</strong><br />
transparência, mas mantendo a diferença<br />
entre as identi<strong>da</strong>des, Pirandello faz do<br />
corpo do ator não uma marionete, e sim<br />
um fantasma; mito que permeia não só<br />
Sei personaggi, mas, implicitamente ou<br />
explicitamente, to<strong>da</strong> sua obra posterior.<br />
O sujeito isolado, a consciência dividi<strong>da</strong>,<br />
reflexo de um mundo também em crise, e<br />
<strong>da</strong> própria visão do autor sobre o mundo,<br />
nasce na poética do humorismo: ao valor de<br />
integração social o dramaturgo contrapõe<br />
o homem só; à compostura <strong>da</strong> forma social<br />
o phatos, o irromper <strong>da</strong> paixão, sempre<br />
associado a uma profusão de raciocínios<br />
desagregadores. Mas, na medi<strong>da</strong> em que<br />
o processo de isolamento do personagem<br />
humorístico atinge um grau extremo,<br />
causando a per<strong>da</strong> irremediável de sua<br />
identi<strong>da</strong>de (como exemplo a Sra. Ponza de<br />
Cosi è (si vi pare), de 1917), Pirandello se vê<br />
numa encruzilha<strong>da</strong>: o maneirismo do seu<br />
próprio estilo. E é neste momento de crise<br />
que um outro personagem, mais humano,<br />
menos cerebral, precisa nascer: se trata<br />
de uma tentativa de recuperação <strong>da</strong>quela<br />
força original, mágica, irreal, mística e<br />
mais positiva que pertencia a um teatro de<br />
outrora: <strong>da</strong> nostalgia de uma transparência<br />
perdi<strong>da</strong>, o autor, em sua última fase, faz do<br />
teatro um palco de celebração do poder <strong>da</strong><br />
arte de ser vi<strong>da</strong>, de produzir vi<strong>da</strong>. O que<br />
o último Pirandello e sua personagem-atriz 99
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
100<br />
se pode mensurar no percurso artístico de<br />
Pirandello é uma via que vai <strong>da</strong> negação<br />
do teatro enquanto forma de arte, poética<br />
do humorismo, ao entendimento do teatro<br />
enquanto um ato de vi<strong>da</strong>, de produção de<br />
vi<strong>da</strong>. Claro que não se trata do reflexo <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> cotidiana, pois a vi<strong>da</strong> que se produz no<br />
palco seria de uma natureza mais autêntica,<br />
mais ver<strong>da</strong>deira que a reali<strong>da</strong>de social, esta<br />
sim um espetáculo <strong>da</strong> aparência.<br />
Há pouco mais de uma déca<strong>da</strong>, após<br />
a publicação do epistolário Lettera a Marta<br />
Abba, em 1995, foi possível conhecer<br />
o ver<strong>da</strong>deiro "caderno" de criação <strong>da</strong><br />
dramaturgia pirandelliana do último<br />
período. Além de trazer importantes<br />
informações sobre a situação teatral<br />
italiana <strong>da</strong> época, sua crise estrutural e<br />
os projetos de reforma, obviamente que<br />
sob o ponto de vista do dramaturgo, as<br />
cartas iluminam uma importante fase de<br />
sua vi<strong>da</strong>, o exílio voluntário, durante o<br />
qual Pirandello se aproximou tanto do<br />
cinema quanto <strong>da</strong> cena contemporânea<br />
europeia. Mas, o principal motivo de<br />
sua essenciali<strong>da</strong>de para o estudo de sua<br />
dramaturgia tardia é o fornecimento de<br />
evidências quanto ao fundo autobiográfico<br />
de sua última produção teatral. Fragmentos<br />
do epistolário refluem para as peças e viceversa;<br />
os textos dedicados e escritos para<br />
a atriz são cui<strong>da</strong>dosamente analisados<br />
nas cartas, descritos na sua gênese e<br />
no seu desenvolvimento, sempre com<br />
2 Roberto Alonge (1997, p. 104-105) já destacou a coincidência<br />
literária existente entre a fala do velho poeta ao final do<br />
segundo ato de Quando si è qualcuno, <strong>da</strong>tado de set-out.<br />
de 1932, com um fragmento de carta de Pirandello a Marta<br />
Abba <strong>da</strong>tado de 25 de janeiro de 1931. Trata-se exatamente do<br />
mesmo texto. Abaixo transcrevemos ambos os fragmentos em<br />
língua italiana, sem tradução, para não ferir a impressionante<br />
equivalência <strong>da</strong> trama verbal:<br />
I - Quando si è qualcuno<br />
tu non la sai: uno specchio – scoprircisi d’improvviso – e la<br />
desolazione di vedersi che uccide ogni volta lo stupore di non<br />
ricor<strong>da</strong>rsene più – e la vergogna dentro, [...] il cuore ancora<br />
giovine e caldo. (Luigi Pirandello, Quando si è qualcuno, in<br />
Maschere Nude, vol. IV, Milano, Mon<strong>da</strong>dori, 2007, p. 696).<br />
II - Carta de 25 janeiro de 1931<br />
tu non sai che scoprendomi per caso d’improvviso a uno<br />
specchio, la desolazione di vedermi [...] uccide ogni volta in<br />
me lo stupore di non ricor<strong>da</strong>rmene più. [...] provo un senso di<br />
vergogna del mio cuore ancora giovanissimo e caldo. (Luigi<br />
Pirandello, Lettera a Marta Abba, Milano, Mon<strong>da</strong>dori, 1995, p. 622).<br />
a participação ativa <strong>da</strong> atriz. 2 Seja no<br />
intercâmbio entre fragmentos de carta e<br />
obra dramática, seja na repetição obsessiva<br />
de temas, seja na recorrente descrição física<br />
dos personagens femininos, o que se vê<br />
refletido neste teatro é fun<strong>da</strong>mentalmente<br />
sua relação artística e pessoal com a atriz<br />
Marta Abba.<br />
Na visão do dramaturgo, Marta<br />
era a única intérprete capaz de unir em<br />
espetáculo a invenção fantástica com a<br />
materiali<strong>da</strong>de do palco. No palco, a atriz<br />
conseguia aquele equilíbrio fun<strong>da</strong>mental<br />
entre o épico (distância irremediável que<br />
existe entre o personagem e o ator) e um<br />
estado de identificação total, absoluta,<br />
de autonegação, de auto-esvaziamento,<br />
fun<strong>da</strong>mental para atrair para o palco o<br />
personagem dramático; segundo a poética<br />
de Pirandello. A impostação cênica <strong>da</strong><br />
atriz parece ao dramaturgo singularmente<br />
consoante com os traços de sua própria<br />
dramaturgia. E sobre dois fatos a crítica <strong>da</strong><br />
época, tanto a positiva quanto a negativa,<br />
concor<strong>da</strong>vam: que a interpretação <strong>da</strong> atriz<br />
era intensa, imediata e apaixona<strong>da</strong>. E que<br />
junto a este arrebatamento, se notava um<br />
distanciamento, uma frieza inespera<strong>da</strong> e<br />
inexplicável. Dois estados contraditórios de<br />
atuação que emergia de uma interpretação<br />
fratura<strong>da</strong> entre estados mentais diferentes:<br />
de identificação e de estranhamento,<br />
uma atuação que se equilibrava entre o<br />
metafísico e o realismo. Com uma extrema<br />
mobili<strong>da</strong>de expressiva, a atriz conseguia<br />
mu<strong>da</strong>r de um estado emotivo a outro<br />
bruscamente, sem transição. Seu estilo<br />
traduzia materialmente o comportamento do<br />
personagem pirandelliano, sua consciência<br />
dilacera<strong>da</strong>. As pausas, as rupturas de tom,<br />
a voz arrasta<strong>da</strong>, os movimentos bruscos e<br />
a carga emotiva que Marta emprestava a<br />
dos personagens aproximava sua natureza<br />
ao dos personagens pirandellianos; o que<br />
levou Pirandello a identifica-la, inclusive<br />
fisicamente, com as figuras fantásticas de sua<br />
criação. Marta parecia aos olhos do Maestro<br />
reunir em carne e em espírito a natureza<br />
particularíssima de seus personagens.<br />
Com ritmos contraditórios, entonações<br />
rasga<strong>da</strong>s, gestos fortes, inflexíveis,<br />
Martha Ribeiro
N° 16 | Junho de 2011<br />
somados a uma docili<strong>da</strong>de e a uma<br />
“frieza” desconcertantes, Marta Abba<br />
estabeleceu entre a obra de um dos maiores<br />
escritores teatrais do século XX e sua arte<br />
de intérprete uma relação excepcional, pois<br />
íntima, necessária e efetiva. Com a atriz,<br />
as criaturas pirandellianas, seus contrasensos<br />
físicos e morais, conquistaram uma<br />
ver<strong>da</strong>de tangível. Se Pirandello dramaturgo<br />
encontrou em Marta sua intérprete, como<br />
de fato ocorreu, a atriz, em contato com<br />
o texto pirandelliano, também descobriu<br />
o seu próprio “espaço” artístico, isto é,<br />
sua originali<strong>da</strong>de atorial. Interpretando<br />
os personagens femininos pirandellianos,<br />
Marta termina por inspirar o nascimento<br />
de um outro personagem: no lugar do<br />
personagem humorístico “cerebral” se<br />
impõe nesta dramaturgia tardia uma<br />
figura de mulher complexa e misteriosa,<br />
que embora muito sensual e desejável<br />
não se deixa possuir, permanecendo<br />
assim distante, etérea e sublima<strong>da</strong>. Esta<br />
nova personagem, nasci<strong>da</strong> a partir do<br />
encontro de Pirandello com a atriz, foi<br />
por nós denomina<strong>da</strong> de Vamp Virtuosa:<br />
Tu<strong>da</strong>, Marta, Ignota, Veroccia, Sara,<br />
Donata, imagem física e idealiza<strong>da</strong> <strong>da</strong> atriz<br />
Abba, são mulheres ruivas, jovens, belas,<br />
sensuais, eroticamente fascinantes, mas<br />
sexualmente inacessíveis. 3 Donas de um<br />
caráter contraditório e uma personali<strong>da</strong>de<br />
camaleônica, esta vamp virtuosa é uma<br />
mulher atraente e eroticamente fascinante,<br />
mas que não pode ter o amor, sob pena de<br />
sua catástrofe e ruína.<br />
A vamp virtuosa é um tipo de mulher<br />
que, malgrado seu comportamento de<br />
mulher fatal, não é uma devoradora de<br />
homens. Ain<strong>da</strong> que possua o corpo sensual<br />
<strong>da</strong> vamp, ela possui o coração de uma<br />
virgem (ou o de uma menina). Ou ela se<br />
torna vítima do homem que ela mesma<br />
seduziu, ou deve renunciar à própria<br />
sexuali<strong>da</strong>de, escolhendo a venera<strong>da</strong> virtude.<br />
A duali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fêmea fatal construí<strong>da</strong> por<br />
Marta, se verifica no uso de uma voz rouca,<br />
acentua<strong>da</strong>, sussurrante, que corresponde<br />
3 Respectivamente: Diana e la Tu<strong>da</strong>; L’amica delle mogli; Come<br />
tu mi vuoi; Quando si è qualcuno; La nuova colonia; Trovarsi.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
a um tipo de mulher sensual, indolente<br />
e maliciosa, em contraste com arroubos<br />
infantis nos momentos de felici<strong>da</strong>de e na<br />
nostálgica busca de uma pureza perdi<strong>da</strong>. É<br />
a partir <strong>da</strong> sublimação deste tipo, forjado<br />
por Marta Abba tanto no palco, como na<br />
vi<strong>da</strong> real, que Pirandello irá se inspirar<br />
para criar um novo perfil feminino: uma<br />
mulher jovem, sensual, plena de desejo e<br />
de vi<strong>da</strong>, mas que, no entanto, está proibi<strong>da</strong><br />
de viver sua sexuali<strong>da</strong>de livremente. 4 Essas<br />
personagens, nasci<strong>da</strong>s sob o influxo de<br />
Marta, apesar de to<strong>da</strong> a beleza e fascínio,<br />
escolhem por vontade própria romper com<br />
a vi<strong>da</strong> material, isto é, elas recusam viver a<br />
vi<strong>da</strong> de uma mulher comum, criando para<br />
si mesmas, a partir <strong>da</strong> fantasia, uma nova<br />
reali<strong>da</strong>de, mais onírica e mais destaca<strong>da</strong> de<br />
sua própria condição feminina. Sem estar<br />
completamente pronta para se aventurar<br />
no erotismo sem culpa, medo ou pudor,<br />
a experiência erótica <strong>da</strong> vamp virtuosa<br />
sempre será frustrante. Se ela se entregar a<br />
“viscosi<strong>da</strong>de” <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> material, sua punição<br />
será a per<strong>da</strong> de seu “encantamento” e ela<br />
se verá constrangi<strong>da</strong> a se ver repetindo<br />
o histórico papel de mulher passiva<br />
e dependente ou mesmo viver a sua<br />
desvalorização moral. Por sua natureza<br />
“<strong>superior</strong>”, espiritual e etérea, esta mulher<br />
será capaz de sublimar Eros. Se Pirandello<br />
a deixa viver ou pensar no amor é somente<br />
para tiranizá-la: deixando ela se envolver,<br />
o dramaturgo retira o véu do mistério<br />
que encobria esta mulher divinamente<br />
intocável, faz com que o homem a despreze<br />
4 Basta abrirmos os dois epistolários para verificarmos que<br />
Marta se adequou aos pedidos mudos do Maestro, aceitando<br />
uma vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong> somente em função do teatro. Apesar de<br />
bela, jovem e exuberante, Marta descreve não ter uma vi<strong>da</strong><br />
social ativa, sua vi<strong>da</strong> é só o trabalho e na<strong>da</strong> de divertimento.<br />
Do teatro ela vai para casa dormir cedo. Como um sacerdote,<br />
ou como uma “boa menina”, Marta aceita o jogo tirânico do<br />
dramaturgo, e tanto na vi<strong>da</strong> como na arte, ela corresponde à<br />
imagem que Pirandello construiu a partir de seu desejo. Como<br />
observado por Pietro Frassica, Marta sabia que para o escritor<br />
era um sofrimento não tê-la por perto, o que Pirandello deixa<br />
bem claro nas cartas. A atriz provavelmente era consciente<br />
de que a proibição <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de, dissimula<strong>da</strong> no jogo<br />
ambivalente de renúncia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, era uma manipulação de<br />
Pirandello sobre o seu desejo. Escreve Marta em 16 de agosto<br />
de 1931: “À noite, já na cama. Mas, como me divirto tão pouco<br />
ficando na rua, realmente não me custa na<strong>da</strong> fazer deste<br />
jeito” (Cf Marta Abba, Caro Maestro, op. cit., p. 210).<br />
o último Pirandello e sua personagem-atriz 101
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
102<br />
pelo que ela é, para então, ao final <strong>da</strong> peça,<br />
“levantá-la do chão” mostrando como<br />
único caminho a via sublime <strong>da</strong> arte (ou a<br />
renuncia <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de).<br />
To<strong>da</strong>s as personagens que nascem a<br />
partir <strong>da</strong> imagem idealiza<strong>da</strong> de Marta,<br />
possuem como característica unificadora<br />
um modus espetacular, ou seja, elas são<br />
mulheres que se doam em espetáculo.<br />
Como uma atriz, elas se mostram ao outro,<br />
ao mesmo tempo em que não revelam na<strong>da</strong><br />
sobre elas mesmas. Misteriosas e etéreas,<br />
vivas e ausentes, humanas e divinas,<br />
elas se deixam transformar naquilo que<br />
a imaginação de ca<strong>da</strong> um criou para ela<br />
segundo o seu próprio desejo. Como<br />
elas, Marta Abba era também uma atriz,<br />
e como atriz ela também é reveladora de<br />
um imaginário social. Se a imagem de<br />
uma atriz se perde entre mil reflexos,<br />
sem dúvi<strong>da</strong> nenhuma ela está no centro<br />
de uma reserva convergente de imagens<br />
sociais significativas; o que explica porque<br />
escritores, pintores, filósofos se interessam<br />
apaixona<strong>da</strong>mente por elas. E no imaginário<br />
pirandelliano, será uma única atriz a<br />
incendiar seus sonhos: a camaleônica<br />
Marta Abba, musa inspiradora, mulher<br />
real, existente, tão necessária quanto<br />
absolutamente ausente. E o Maestro não<br />
faltará a sua musa, não deixará de escrever<br />
sobre e para a atriz, fazendo do epistolário<br />
e de sua obra um lugar para as “memórias”<br />
de Marta e Pirandello juntos, luz e sombra<br />
de sua arte: “Se eu ain<strong>da</strong> estou vivo, se<br />
continuo ain<strong>da</strong> a trabalhar, é por sua causa.<br />
Nem uma coisa nem outra seriam possíveis<br />
se não fosse por Você”. 5<br />
Para além deste cenário passional, Marta<br />
Abba representou a possibili<strong>da</strong>de concreta<br />
de fusão entre sua técnica dramatúrgica e<br />
a fisicali<strong>da</strong>de do ator. O diálogo criativo<br />
que se estabeleceu entre o dramaturgo e a<br />
5 Luigi Pirandello, Lettera a Marta Abba, op. cit., p. 245 (carta<br />
de 28 de julho de 1929). No dia seguinte Pirandello escreve<br />
a última carta antes de viajar de Berlim para a Itália e se<br />
encontrar com Marta. Ele volta a escrever para ela somente<br />
em 13 de setembro de 1929; <strong>da</strong>ta de seu retorno à Berlim. Já as<br />
cartas de Marta ao Maestro, referentes ao ano de 1929, foram<br />
quase to<strong>da</strong>s perdi<strong>da</strong>s, sobrevivendo as posteriores à <strong>da</strong>ta de<br />
12 de setembro de 1929.<br />
atriz, iniciado na criação do Teatro de Arte e<br />
finalizado somente com a morte do escritor,<br />
proporcionou uma grande mu<strong>da</strong>nça de<br />
concepção nas ideias do dramaturgo sobre<br />
a relação ator/personagem. Por exemplo,<br />
em Sei personaggi Pirandello coloca em<br />
evidência, já que mostrado explicitamente<br />
na própria estrutura dramática, uma<br />
espécie de antagonismo insuperável entre<br />
estes dois elementos: a companhia de<br />
atores e o mundo dos personagens. Os<br />
atores seriam os responsáveis por degra<strong>da</strong>r<br />
a autentici<strong>da</strong>de e a poesia do personagem,<br />
traindo a obra artística idealiza<strong>da</strong> pelo<br />
poeta. Com Marta Abba, a problemática<br />
relação ator/personagem, sugeri<strong>da</strong> pela<br />
lógica pirandelliana como irremediável,<br />
ganha uma nova visão. O impasse entre<br />
o mundo fantástico e o mundo material<br />
do palco encontra na atriz uma via de<br />
escape. Da condenação inicial se constata<br />
assim uma redenção final: o corpo <strong>da</strong><br />
atriz, a sua dimensão material-corpórea,<br />
se transforma no meio indispensável para<br />
evocar o personagem ao palco, e o êxito<br />
final do processo será a absoluta possessão<br />
do corpo do intérprete. Na visão do último<br />
Pirandello, o teatro encontra sua justificativa<br />
no encontro “mágico” <strong>da</strong> arte do ator com<br />
o mundo abstrato do personagem.<br />
O personagem-atriz, metáfora de Marta<br />
Abba, por sua especifici<strong>da</strong>de, estabelece no<br />
teatro, mais do que qualquer outro, uma<br />
significativa interação entre o mundo real<br />
e o mundo do palco. Com Ilse, de I giganti<br />
della montagna, o personagem-atriz atinge<br />
seu estado puro. Destaca<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a<br />
atriz, que tem como missão levar a palavra<br />
do poeta aos homens, realiza sua projeção<br />
no mundo fantástico <strong>da</strong> arte: sua ascensão<br />
espiritual não advém de uma materni<strong>da</strong>de<br />
fisiológica, como as outras mulheres<br />
pirandellianas, mas de uma materni<strong>da</strong>de<br />
estética; o que para o autor significa um<br />
aperfeiçoamento <strong>da</strong> mulher comum. A<br />
peça, deixa<strong>da</strong> sem conclusão, define o<br />
teatro, fun<strong>da</strong>mentalmente enquanto arte<br />
do ator, como uma arte frágil que pertence<br />
ao seu tempo, ao sistema de produção de<br />
sua época, não havendo assim nenhuma<br />
Martha Ribeiro
N° 16 | Junho de 2011<br />
garantia para a existência do espetacular,<br />
ou melhor, para a existência do teatro de<br />
Pirandello e Marta juntos. Como se pode<br />
ver no último quadro de I giganti, Cotrone,<br />
mais uma <strong>da</strong>s encarnações de Pirandello,<br />
diz a Ilse, imagem fantasmática <strong>da</strong> atriz,<br />
que o seu poder termina ali, no exato<br />
momento em que a obra de arte precisa<br />
ser transforma<strong>da</strong> em vi<strong>da</strong>, no momento<br />
em que ela deixa o espaço de criação do<br />
poeta e se projeta na ação do palco, com<br />
a participação do público. Mas Ilse quer<br />
que a obra do poeta viva lá em meio aos<br />
homens. Sem uma resposta definitiva em<br />
relação ao destino <strong>da</strong> atriz, a última fala<br />
dos atores, ao ouvir o barulho dos cavalos<br />
dos gigantes que descem a montanha, será:<br />
eu tenho medo! Eu tenho medo!<br />
Um pouco antes do barulho dos<br />
cavalos dos gigantes, Cotrone pede para<br />
Ilse representar La favola del figlio cambiato<br />
(um outro texto de Pirandello). Assim que<br />
a atriz começa a interpretar sua <strong>parte</strong>, a<br />
cena se materializa diante dela. Por um<br />
milagre, por um prodígio <strong>da</strong> fantasia,<br />
surgem dois personagens, duas aparições,<br />
que começam a representar junto com<br />
Ilse a Favola, e é o próprio Cotrone quem<br />
explica para Ilse: “Para nós é suficiente<br />
imaginar, e rapi<strong>da</strong>mente as imagens se<br />
fazem vivas, de si mesmas. Basta que<br />
alguma coisa esteja bem viva em nós,<br />
que ela se auto-representa, pela virtude<br />
espontânea de sua própria vi<strong>da</strong>”. Segundo<br />
Vicentini (1993), se a magia de Cotrone,<br />
como a animação de fantoches não tem<br />
uma explicação plausível, é porque seu<br />
poder não se reduz a simples técnica de<br />
um prestidigitador, isto é, ele não se utiliza<br />
de instrumento e corpos materiais para<br />
criar seus fantasmas. Cotrone “projeta<br />
entorno de si os caracteres próprios do<br />
sonho, e trabalha prevalentemente com<br />
a manipulação de imagens”(1993, p.200-<br />
201). Tudo é <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> imagem: a<br />
procissão do Angelo Centuno; as visões<br />
que perseguem os atores <strong>da</strong> vila durante a<br />
noite; as figuras dos atores que se encontram<br />
com os fantoches, após abandonarem seus<br />
corpos durante o sonho; as duas aparições<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
que interpretam junto com a condessa<br />
uma cena <strong>da</strong> peça. Os poderes de Cotrone<br />
são <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> “desmaterialização”.<br />
No mundo mágico <strong>da</strong> vila, entre seus<br />
azarados, os personagens podem aparecer,<br />
como na fantasia do autor, sem que<br />
existam corporalmente. A arte torna-se<br />
assim pura imagem e visão evanescente.<br />
Mas, esta concepção de arte se mostrará<br />
profun<strong>da</strong>mente perigosa para a existência<br />
do teatro: destacado do público e <strong>da</strong>s<br />
formas de organização características de<br />
sua própria época, o teatro anula a sua<br />
capaci<strong>da</strong>de operativa, perde sua vocação<br />
prática.<br />
Evadindo-se do confronto com a<br />
reali<strong>da</strong>de material, o teatro se reduz em<br />
pura imagem, e finalmente deixa de existir:<br />
“Cotrone e o mundo mágico dos azarados<br />
não constituem uma solução real ao<br />
problema do teatro na socie<strong>da</strong>de industrial<br />
<strong>da</strong> máquina e do cinema e nem mesmo uma<br />
alternativa”; dirá Vicentini (1993, p. 2002).<br />
E o Pirandello desta última fase consegue<br />
reconhecer que a principal característica<br />
do teatro, aquilo que de fato se constitui<br />
em um procedimento mágico, é seu<br />
poder de canalizar, introduzir as criações<br />
fantásticas <strong>da</strong> arte no mundo material dos<br />
homens: o teatro é a arte que consegue<br />
unir de modo inseparável as imagens (as<br />
visões e as intuições) com a matéria (o<br />
corpo do intérprete, os mecanismos <strong>da</strong><br />
cena). No entanto, Cotrone pede que Ilse<br />
represente apenas ali, na vila habita<strong>da</strong><br />
pelos fantasmas. Ora, na ver<strong>da</strong>de o que<br />
o mago está pedindo é que ela deixe de<br />
fazer teatro, pois fazer teatro é justamente<br />
enfrentar os problemas, as dificul<strong>da</strong>des, as<br />
circunstâncias concretas e as características<br />
históricas de sua própria época. O teatro<br />
só existe se enfrentar os Gigantes <strong>da</strong><br />
Montanha. Esta é uma necessi<strong>da</strong>de do<br />
teatro, sua vocação material. E Ilse deve<br />
estar prepara<strong>da</strong> para isso. Mas, o próprio<br />
autor ain<strong>da</strong> hesitava diante desta escolha<br />
obrigatória. O terceiro passo, inevitável,<br />
em direção ao conflito final, jamais foi<br />
executado por Pirandello. O que se sabe é<br />
que o encontro final de Ilse com os gigantes<br />
o último Pirandello e sua personagem-atriz 103
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
104<br />
seria, no imaginário pirandelliano, um<br />
evento trágico. A atriz seria assassina<strong>da</strong><br />
em sua tentativa de realizar o teatro, isto<br />
é, de realizar o prodigioso contato entre<br />
a imaginação fantástica do poeta com as<br />
circunstâncias do mundo material; o que,<br />
de qualquer modo, não significa uma<br />
garantia para a sobrevivência do teatro.<br />
Como Ilse, Marta via o teatro como<br />
a única forma de vi<strong>da</strong> possível e, por<br />
isso, como descreve Pietro Frassica,<br />
organizador do epistolário Abba, ela<br />
nunca se dispôs a fazer muitas concessões<br />
ao mundo dos empresários e dos agentes<br />
teatrais. Protestando e denunciando<br />
o sistema de truste que imperava na<br />
Itália, que excluía sistematicamente as<br />
companhias que trabalhavam por conta<br />
própria, Marta Abba termina por ganhar<br />
muitos inimigos. E se a atriz havia<br />
construído um estilo de interpretação<br />
muito distinto <strong>da</strong>s outras atrizes de sua<br />
época, inusitado até, isso facilmente<br />
foi tachado como uma interpretação<br />
fria, cerebral, e excessivamente “livre”,<br />
isto é, sem controle. Rebelde a to<strong>da</strong>s as<br />
convenções, a atriz pode ser considera<strong>da</strong><br />
tão revolucionária quanto Pirandello.<br />
Como o escritor, ela também não se<br />
a<strong>da</strong>ptava ao seu tempo e a estrutura do<br />
ambiente teatral italiano. Mas se a palavra<br />
escrita do poeta pode ultrapassar o tempo,<br />
sua época, e até mesmo o próprio poeta, a<br />
arte de uma atriz está irremediavelmente<br />
presa em um tempo e espaço determinados.<br />
O julgamento de sua arte sempre será feito<br />
pela cultura e pelos homens de sua época,<br />
o que equivale a dizer que a arte <strong>da</strong> atriz<br />
é prisioneira <strong>da</strong>s circunstâncias de seu<br />
próprio tempo: “‘I giganti della montagna’<br />
foi escrito para sublimar o tormento e<br />
o martírio <strong>da</strong> atriz com todo o seu fardo<br />
de poesia, que – neste caso particular – se<br />
chama na vi<strong>da</strong> ‘Marta Abba’”. '''<br />
Se o mundo <strong>da</strong> cena e dos atores fascinou<br />
Pirandello, como realmente foi ver<strong>da</strong>de,<br />
6 Marta Abba em carta inédita a Lucio Ridenti, diretor<br />
<strong>da</strong> revista Il Dramma (carta de 04 de março de 1960). o<br />
documento encontra-se disponível na biblioteca do Centro<br />
Studi del Teatro Stabile di Torino.<br />
a possibili<strong>da</strong>de de realizar plenamente<br />
o contato entre o mundo fantástico de<br />
sua imaginação com as circunstâncias do<br />
mundo do palco, lhe veio com Marta abba.<br />
Isso não significa dizer que não exista mais<br />
nenhuma tensão entre as reali<strong>da</strong>des ou<br />
mesmo que não haja mais a possibili<strong>da</strong>de<br />
do fracasso desta missão. Embora<br />
recuperado em sua força original, como<br />
produtor de reali<strong>da</strong>des, mais “reais” do que<br />
aquelas fabrica<strong>da</strong>s pelo mundo cotidiano,<br />
o teatro, visto enquanto um procedimento<br />
mágico, não possui nenhuma garantia de<br />
sobrevivência. Se ao final de seu percurso<br />
artístico, Pirandello não via mais o teatro<br />
como uma arte impossível, ele a vivencia<br />
como uma arte frágil e demasia<strong>da</strong>mente<br />
suscetível ao seu tempo, isto é, às formas<br />
de produção e de organização práticas de<br />
sua época e às características <strong>da</strong> própria<br />
socie<strong>da</strong>de. Pois o teatro não é só a invenção<br />
<strong>da</strong> cena, ele só existe em confronto com sua<br />
reali<strong>da</strong>de material, ele tanto pode florescer<br />
como sucumbir ou mesmo desaparecer, e<br />
novamente renascer em outro tempo, em<br />
outra lógica de produção. Logo, não existe<br />
para o teatro nenhum plano realmente<br />
seguro de continui<strong>da</strong>de. Em função<br />
deste diagnóstico, nem pessimista e nem<br />
otimista, mas de uma incrível lucidez,<br />
Pirandello não conseguiu concluir I giganti<br />
della montagna, adiando ao máximo sua<br />
solução final. Talvez ain<strong>da</strong> esperasse,<br />
para os últimos anos de sua vi<strong>da</strong>, alguma<br />
mu<strong>da</strong>nça dos tempos que pudesse trazer<br />
uma nova perspectiva, menos hostil, a<br />
existência de seu teatro, um teatro feito<br />
fun<strong>da</strong>mentalmente para Marta Abba.<br />
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sono nella vita e come vivo nell’arte.<br />
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<strong>Urdimento</strong><br />
o último Pirandello e sua personagem-atriz 105
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Atendente [Pedro Coimbra]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 107
N° 16 | Junho de 2011<br />
PRESENçA oSWALDIANA No<br />
TEATRo ESTÁDIo DE JoSÉ<br />
CELSo MARTINEZ CoRRÊA:<br />
ANTRoPoFAGIA, MESTIçAGEM<br />
CULTURAL, TERREIRo ELETRÔNICo<br />
Resumo<br />
O artigo analisa as formas adota<strong>da</strong>s na construção do Teatro<br />
Oficina, de São Paulo, e a proposta de ampliação do espaço<br />
em um Teatro Estádio, à maneira “greco-tropical”, como<br />
diz José Celso Martinez Corrêa, diretor do Teatro Oficina<br />
Uzyna Uzona. O projeto, inspirado no manifesto de Oswald<br />
de Andrade, Do teatro que é bom..., retoma questões <strong>da</strong><br />
antropofagia para a contemporanei<strong>da</strong>de, propondo a criação<br />
de um “terreiro eletrônico”, espaço de reinvenção do teatro e<br />
de sua recepção, buscando a comunhão com o público.<br />
Palavras-chave: Teatro Oficina, Teatro Estádio, José Celso<br />
Martinez Corrêa, Oswald de Andrade, antropofagia.<br />
Abstract<br />
The article examines the architectural forms adopted in the<br />
construction of the Theatre Workshop, in São Paulo, and the<br />
proposed extension of the space into a Theatre Stadium, in<br />
a “tropical-Greek” way, according to José Celso Martinez<br />
Corrêa, director of the company Teatro Oficina Uzyna Uzona.<br />
The project, inspired by the manifesto of Oswald de Andrade,<br />
About the good theatre…, takes up issues of the antropophagy<br />
movement for the present time, proposing the creation of an<br />
"electronic yard”, a space for the reinvention of theatre as well<br />
as its reception by seeking communion with the public.<br />
Keywords: Theatre Workshop; Stadium Theater, José Celso<br />
Martinez Corrêa, Oswald de Andrade, anthropophagy.<br />
Nanci de Freitas 1<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 109
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
110<br />
Teatro Oficina: uma ágora antropofágica<br />
O<br />
encenador José Celso<br />
Martinez Corrêa, cuja<br />
trajetória artística<br />
receberia influência de<br />
artistas e pensadores<br />
como Sartre, Artaud, Brecht, Nelson<br />
Rodrigues, Beckett e Nietzsche, seria,<br />
sobretudo, em suas próprias palavras, um<br />
oswaldiano, incorporando em seu trabalho<br />
o pensamento antropofágico de Oswald de<br />
Andrade como leitura <strong>da</strong> gênese e do ethos<br />
<strong>da</strong> cultura brasileira. Afirma José Celso:<br />
O primeiro ato global do que chamamos<br />
Brasil foi a primeira missa, teatro<br />
português prá índio ver. Os índios<br />
viram. Trinta e poucos anos depois,<br />
corpos nus dos Caetés, encontraram<br />
carne em baixo <strong>da</strong>s saias dos figurinos<br />
eclesiásticos do hemisfério norte<br />
naufragando nos mares temperamentais<br />
dos recifes. Foi o segundo ato, os Caetés,<br />
literalmente, descobriram o teatro global<br />
do hemisfério sul com a devoração de<br />
Sardinha, bispo português. O deus<br />
Dioniso re-estreou no Brasil, no litoral<br />
de Alagoas, a mesma cena primeira<br />
e última <strong>da</strong> origem e fim <strong>da</strong> tragédia<br />
grega: a devoração de Pentheu pelas<br />
Bacantes. Oswald de Andrade como um<br />
Ésquilo, retomou este ato, como mito<br />
de origem <strong>da</strong> civilização brazyleira.<br />
O teatro Oficina, tataraneto de Gil<br />
Vicente, amante de Martins Pena, neto<br />
do Vestido de Noiva, filho do TBC e do<br />
Arena, teve seu segundo nascimento<br />
com O rei <strong>da</strong> vela. Oswald resignando o<br />
teatro brasileiro. Ao dilema hamletiano<br />
do mundo ocidental cristão “to be or not<br />
to be”, respondeu “yes, tupy”, plugando<br />
tecnizado o retorno do mundo bárbaro<br />
americano asiano africano. O lugar<br />
deste retorno foi o Teatro Oficina. 2<br />
1 Professora adjunta no Instituto de Artes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />
do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e doutora em teatro<br />
pela UNIRIo. Atua na área de artes cênicas como diretora<br />
e pesquisadora. Na UERJ, coordena o projeto Mirateatro!<br />
Espaço de estudos e criação cênica.<br />
2 Fragmento do texto de José Celso Martinez Corrêa, Teatro<br />
oficina osso duro de roer. In: Teatro oficina: Lina Bo Bardi/<br />
Edson Elito. São Paulo, Brasil, 1980-1984. Textos: Lina Bo Bardi,<br />
Edson Elito e José Celso Martinez Corrêa. Lisboa: Editorial<br />
Blau; Instituto Lina Bo Bardi e P.M. Bardi, 1999. As páginas <strong>da</strong><br />
publicação não são numera<strong>da</strong>s.<br />
A partir <strong>da</strong> lendária montagem <strong>da</strong><br />
peça O rei <strong>da</strong> vela, de Oswald de Andrade,<br />
realiza<strong>da</strong> pelo Teatro Oficina, em 1967, em<br />
São Paulo, a relação entre o pensamento<br />
artístico oswaldiano e a prática teatral de<br />
José Celso Martinez Corrêa (que chegou a<br />
se dizer “o cavalo oswaldiano <strong>da</strong> cultura<br />
brasileira”) é sempre anuncia<strong>da</strong> em<br />
declarações e entrevistas do encenador.<br />
Em matéria publica<strong>da</strong> no jornal Folha de<br />
São Paulo, por ocasião <strong>da</strong>s celebrações do<br />
cinquentenário de morte de Oswald de<br />
Andrade, em 2004, José Celso afirma que<br />
sua vi<strong>da</strong> se dividiu em a.O, d.O: “A partir<br />
de Oswald, tudo o que fiz foi influenciado<br />
por ele. Oswald foi meu Shakespeare, meu<br />
Goethe, me trouxe a chave para to<strong>da</strong> a<br />
cultura brasileira”. 3 Na mesma <strong>da</strong>ta, em<br />
entrevista concedi<strong>da</strong> ao jornal O Globo,<br />
o diretor do Teatro Oficina enaltece o<br />
mestre modernista e a originali<strong>da</strong>de do<br />
pensamento antropofágico:<br />
Oswald será ain<strong>da</strong> reconhecido pelo<br />
mundo como um dos grandes homens do<br />
século XX. E continua nos devorando. Foi<br />
o primeiro pós-moderno, como ele mesmo<br />
disse nos anos 20. Ele viu que o mundo<br />
acabaria por se tornar um lugar movido<br />
pela antropofagia. Tudo que se chama<br />
de mix, tudo o que se vê de imigração<br />
que contorna ci<strong>da</strong>des e devora a cultura<br />
ocidental, é a própria cultura, que está<br />
comendo e vai comer o mundo. Os povos<br />
devoram e vomitam o moralismo, a noção<br />
do bem e do mal, <strong>da</strong> cultura puritana,<br />
as utopias, as igrejas. A coisa não é mais<br />
ser socialista ou ir para o céu. Não existe<br />
messias, só devoração. 4<br />
O Teatro Oficina, localizado na Rua<br />
Jaceguay, 520, no Bairro do Bexiga, em São<br />
Paulo, abriga uma trajetória de resistência<br />
política/ética/poética ao sistema teatral<br />
burguês e ao mercado do entretenimento,<br />
praticando um teatro que é pura relação<br />
entre arte e vi<strong>da</strong>. Resistência que se sustenta<br />
3 MACHADo, Elek. 50 anos <strong>da</strong> morte de oswald de Andrade.<br />
Folha de São Paulo, 22 de outubro de 2004, Ilustra<strong>da</strong>, página: E4.<br />
4 “o mundo come oswald” é o título <strong>da</strong> entrevista que José<br />
Celso Martinez Corrêa concedeu ao jornalista Arnaldo Bloch.<br />
Ver: “Segundo Caderno”, página 1, o Globo, Rio de Janeiro, 22<br />
de outubro de 2004.<br />
Nanci de Freitas
N° 16 | Junho de 2011<br />
nas ideias e ações do encenador, José<br />
Celso Martinez Corrêa, que vem lutando,<br />
desde os anos 1980, para concretizar o<br />
ambicioso projeto do Teatro Estádio.<br />
Trata-se <strong>da</strong> ampliação do espaço físico do<br />
Teatro Oficina, já prevista nos primeiros<br />
estudos dos arquitetos Lina Bo Bardi (1914-<br />
1992) e Edson Elito, responsáveis pelo<br />
formato atual do teatro. Com a expansão<br />
<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des do Grupo Oficina e de sua<br />
interseção com a comuni<strong>da</strong>de do Bairro<br />
Bexiga, teria surgido, segundo José Celso,<br />
“a necessi<strong>da</strong>de de uma arquitetura virando<br />
teatro, que vira urbanismo que chega na<br />
construção de uma Ágora, de uma praça<br />
pública. Arqueologia urbana, não é Lina?”. 5<br />
A casa de espetáculo ocupa<strong>da</strong><br />
pela trupe do Oficina, a partir de 1958,<br />
passou por um incêndio, em 1966, sendo<br />
reconstruí<strong>da</strong> por Flávio Império e Rodrigo<br />
Lafévre, e chegaria ao tombamento como<br />
patrimônio público estadual, em 1981,<br />
com o apoio massivo <strong>da</strong> classe teatral.<br />
[Ali haviam sido realiza<strong>da</strong>s as históricas<br />
montagens de O rei <strong>da</strong> vela, Ro<strong>da</strong> Viva e<br />
Galileu Galilei.] Nesse momento, Lina Bo<br />
Bardi - que já havia projetado, no espaço,<br />
os cenários para os espetáculos Gracias<br />
Senhor e Na selva <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des - realizou,<br />
ao lado de Marcelo Suzuki, os primeiros<br />
estudos para uma reforma do teatro, que<br />
não chegou a ser concretiza<strong>da</strong>. Em 1984,<br />
Edson Elito se juntaria à arquiteta Lina<br />
Bo Bardi para a realização do projeto do<br />
teatro, configurado em seu formato atual.<br />
“Uma rua chama<strong>da</strong> teatro”, como<br />
Edson Elito definiu a casa de espetáculos,<br />
construí<strong>da</strong> em uma rua sem saí<strong>da</strong>, ganharia<br />
a forma de uma passarela, com o “palco”<br />
ocupando todo o espaço do teatro <strong>da</strong> porta<br />
de entra<strong>da</strong> até o paredão, ao fundo. Neste,<br />
dois arcos, lembrando pórticos romanos,<br />
sugerem o desejo de abertura para além<br />
do espaço delimitado. Para o público, três<br />
arquibanca<strong>da</strong>s desmontáveis, de estrutura<br />
metálica, com altura progressiva do pé<br />
direito chegando a 13 metros, compondo as<br />
galerias laterais <strong>da</strong> passarela e justapostas<br />
5 Fragmento do texto de José Celso Martinez Corrêa,<br />
conforme op. cit. nota nº 01.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
às paredes de grandes tijolos, do início<br />
do século. O chão de terra foi coberto<br />
por pranchas de madeira desmontáveis.<br />
Em sua totali<strong>da</strong>de, o projeto foi realizado<br />
para atender ao desejo de José Celso<br />
de referen<strong>da</strong>r os quatro elementos <strong>da</strong><br />
natureza. O teto foi planejado visando “uma<br />
cobertura em abóba<strong>da</strong> de aço deslizante,<br />
que, platonicamente, contempla o elemento<br />
ar, assim como o jardim existente, a terra”.<br />
Para introduzir a água e o fogo no espaço,<br />
foram elaborados sistemas complexos:<br />
“projetamos uma cachoeira composta por<br />
sete tubos aparentes que deságuam em<br />
um espelho d’água como mecanismo de<br />
re-circulação. (...) Para o fogo foi prevista<br />
uma rede de gás que abastece um ponto<br />
no centro geométrico do teatro”, diz o<br />
arquiteto Edson Elito.<br />
A criação do projeto teria sido marca<strong>da</strong><br />
por confluência (às vezes tensa) entre<br />
a formação modernista dos arquitetos,<br />
com sua preferência pela pureza dos<br />
elementos e pelo racionalismo construtivo,<br />
e a concepção teatral de José Celso, “com<br />
o simbolismo, a iconoclastia, o barroco,<br />
a antropofagia, o sentido, a emoção e o<br />
desejo de contato físico entre atores e<br />
plateia”, aspectos desenvolvidos no seu<br />
“te-ato”, explica Edson Elito. Contudo, o<br />
resultado foi um espaço cênico unificado<br />
e dotado de modernos recursos de som<br />
e iluminação, além de um sistema de<br />
captação e distribuição de imagens de<br />
vídeo para todo o teatro, numa concepção<br />
que permite a simultanei<strong>da</strong>de de ações<br />
em locais distintos. Unindo dispositivos<br />
técnicos contemporâneos ao despojamento<br />
do “terreiro eletrônico”, local de atuação dos<br />
“bárbaros tecnizados”, o teatro apresenta<br />
uma estrutura com flexibili<strong>da</strong>de de uso,<br />
em que “todo o espaço é cênico”, deixando<br />
à vista os equipamentos e objetos de cena,<br />
fazendo interagir atores, técnicos e público,<br />
que “comungam ou se contrapõem e não<br />
há como esconder nenhum deles. Todos<br />
participam <strong>da</strong> cena”. 6 A definição de Lina<br />
Bo Bardi para o espaço é sucinta:<br />
6 Texto de Edson Elito. op. cit. nota 1. Páginas sem<br />
numeração.<br />
Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 111
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
112<br />
Do ponto de vista <strong>da</strong> arquitetura, o<br />
Oficina vai procurar a ver<strong>da</strong>deira<br />
significação do teatro – sua estrutura<br />
física e táctil, sua não-abstração – que<br />
o diferencia profun<strong>da</strong>mente do cinema<br />
e <strong>da</strong> tevê, permitindo ao mesmo<br />
tempo o uso total desses meios. (...)<br />
Na base <strong>da</strong> maior simplici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><br />
maior atenção aos meios científicos <strong>da</strong><br />
comunicação contemporânea. É tudo.<br />
Olhar eletronicamente, sentados numa<br />
cadeira de igreja. 7<br />
Para José Celso Martinez Corrêa, diretor<br />
<strong>da</strong> companhia Teatro Oficina Uzyna Uzona<br />
(como passou a se chamar o Grupo Oficina),<br />
o teatro é “uma metáfora arquitetônica e<br />
urbana de uma postura diante do teatro e<br />
do espetáculo do mundo”, funcionando<br />
como um barracão de escola de samba,<br />
lugar <strong>da</strong>s práticas diárias de construção do<br />
trabalho artístico. A horizontali<strong>da</strong>de de sua<br />
configuração espacial lembra o sambódromo,<br />
onde “reina a monarquia, governo de Momo,<br />
o carnaval permanente que desfila comendo<br />
solto na pista em busca de sua apoteose,<br />
servindo banquetes periódicos seguidos<br />
de grande seca”. Neste lugar, proclama o<br />
encenador: “Muitas noites, cenas são <strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />
como carne viva a pequenas multidões<br />
antropófagas, produzindo mirações desta<br />
obra coletiva de arte que às vezes é o Teatro<br />
Oficina. Então lêem-se marcas passa<strong>da</strong>s e<br />
chaves futuras <strong>da</strong> história recente do Brasil lá<br />
tatua<strong>da</strong>s como uma caverna programa<strong>da</strong>”. 8<br />
O Teatro Estádio e as “ideias teatrais”<br />
de Oswald de Andrade<br />
As formas adota<strong>da</strong>s na construção do<br />
Teatro Oficina e a proposta de ampliação<br />
do espaço em um Teatro Estádio, à<br />
maneira “greco-tropical”, segundo José<br />
Celso Martinez Corrêa, foram inspira<strong>da</strong>s<br />
no manifesto de Oswald de Andrade, “Do<br />
teatro que é bom...”. Trata-se de um artigo<br />
7 Texto de Lina Bo Bardi, com o título “Teatro oficina”. Ibid.<br />
páginas sem numeração.<br />
8 Conforme texto de José Celso Martinez Corrêa. Ibid. páginas<br />
sem numeração.<br />
publicado em Ponta de Lança, em 1943, 9<br />
no qual o escritor modernista apresenta<br />
uma síntese de suas “ideias teatrais”,<br />
marcando uma posição estética dentro do<br />
panorama cênico moderno. Na forma de<br />
debate entre dois interlocutores, Oswald<br />
coloca em confronto o “teatro de câmara”<br />
e o “teatro para as massas”, utilizando-se<br />
<strong>da</strong> própria condição dialógica <strong>da</strong> estrutura<br />
dramática para marcar a relação entre<br />
os “personagens”, que se opõem numa<br />
dialética de discurso/resposta.<br />
O diálogo circunscreve as divergências<br />
entre Oswald de Andrade e um porta-voz<br />
do Grupo Universitário de Teatro – GUT,<br />
grupo paulista que atuou nos anos quarenta<br />
sob a direção do crítico Décio de Almei<strong>da</strong><br />
Prado, tendo recusado a proposta do autor<br />
de O rei <strong>da</strong> vela para a montagem de seu<br />
texto. Os integrantes do GUT (Lourival<br />
Gomes Machado, Clóvis Graciano, além<br />
de Décio de Almei<strong>da</strong> Prado) participaram<br />
também <strong>da</strong> revista Clima, redigi<strong>da</strong> entre<br />
1941 e 1944, ao lado de Antonio Candido,<br />
Paulo Emílio Salles Gomes e Rui Coelho,<br />
apeli<strong>da</strong>dos por Oswald de Andrade de<br />
“chato-boys”. O grupo foi alvo preferido<br />
dos ataques do escritor modernista, nesse<br />
período, principalmente depois dos juízos<br />
críticos formulados por Antonio Candido<br />
à obra ficcional de Oswald, no ensaio<br />
“Estouro e Libertação”, 10 no qual fez<br />
restrições ao livro A revolução melancólica,<br />
primeiro volume do ciclo Marco Zero,<br />
publicado em 1943. Oswald respondeu<br />
ferozmente a Antonio Candido em seu<br />
artigo, “Antes do Marco Zero” (publicado<br />
também em Ponta de Lança), rompendo<br />
assim com o grupo de Clima. O embate<br />
refletiria um novo momento na produção<br />
9 ANDRADE, oswald. Do teatro que é bom.... In: Ponta de<br />
Lança. São Paulo: Ed. Globo, 1991. p.102-108. o livro reúne<br />
artigos publicados, em 1943, nos jornais, Estado de São Paulo,<br />
Diário de São Paulo e na Folha <strong>da</strong> Manhã e três conferências<br />
escritas em 1943/44.<br />
10 CANDIDo, Antonio. Estouro e libertação. In: Briga<strong>da</strong><br />
Ligeira. São Paulo: Ed. UNESP, 1992, p.17-32. Segundo o autor, o<br />
texto, publicado em 1945, fora escrito em 1944, ampliando três<br />
artigos de 1943, escritos para o ro<strong>da</strong>pé semanal de crítica<br />
<strong>da</strong> Folha <strong>da</strong> Manhã. Ver comentário no artigo Digressão<br />
sentimental sobre oswald de Andrade. In: Candido, Antonio.<br />
Vários escritos. São Paulo: Ed. Pensamento, 1970.<br />
Nanci de Freitas
N° 16 | Junho de 2011<br />
e no pensamento artístico brasileiro,<br />
marcando as oposições entre a crítica<br />
erudita pratica<strong>da</strong> pelos modernistas e uma<br />
nova crítica especializa<strong>da</strong> que surgia <strong>da</strong><br />
geração emergente dos cursos de ciências<br />
sociais <strong>da</strong> USP, a partir de 1942, tendendo<br />
à especialização. 11<br />
O debate deixa claras as divergências,<br />
no campo ideológico, quanto à função do<br />
teatro. De um lado, as experiências cênicas<br />
camerísticas tendem a um aprimoramento<br />
formal em busca de uma recepção intimista,<br />
enquanto a posição oposta defende uma<br />
reforma do espetáculo, tendo em mente o<br />
teatro como fenômeno social, dirigido às<br />
massas, capaz de agregar elementos do<br />
cinema e dos esportes, como nas montagens<br />
teatrais russas, em particular as encenações<br />
de Meyerhold. 12<br />
O “teatro de câmara”, iniciado pelo<br />
teatro intimista de August Strindberg,<br />
aparece na discussão numa aproximação<br />
com as ideias do encenador francês, Jacques<br />
Copeau, desenvolvi<strong>da</strong>s a partir de sua<br />
atuação no Théâtre du Vieux Colombier,<br />
inicia<strong>da</strong> em 1913, e com o teatro moderno<br />
italiano, divulgado, principalmente, a<br />
partir <strong>da</strong> dramaturgia de Luigi Pirandello<br />
e <strong>da</strong>s experiências cênicas de Anton Giulio<br />
Bragaglia. São tendências do teatro europeu<br />
que exerceram influência sobre o processo<br />
de modernização <strong>da</strong> cena brasileira, em<br />
especial na déca<strong>da</strong> de 1940.<br />
No texto/manifesto de Oswald de<br />
Andrade, “Do teatro que é bom...”, o<br />
defensor do teatro de câmara insiste na<br />
importância de se espelhar no teatro moderno<br />
<strong>da</strong> França, nas encenações de Jacques<br />
Copeau e Louis Jouvet, como também nos<br />
textos de Jules Romains e de Giraudoux:<br />
11 Ver: BERNSTEIN, Ana. A crítica cúmplice: Décio de<br />
Almei<strong>da</strong> Prado e a formação do teatro moderno. São Paulo:<br />
Instituto Moreira Salles, 2005. p. 59-72. Para situar oswald,<br />
nesse debate, ver: SANTIAGo, Silviano. Sobre plataformas e<br />
testamentos. In: Ponta de Lança. 1991, p. 7-22.<br />
12 Uma análise minuciosa do manifesto “Do teatro que é<br />
bom...”, de oswald de Andrade, pode ser conferi<strong>da</strong> em artigo<br />
de minha autoria, intitulado: “A poética teatral de oswald de<br />
Andrade e a polêmica em torno do ‘teatro de câmara’ e do<br />
‘teatro para as massas”. In: Revista Concinnitas: arte, cultura<br />
e pensamento. V.6, p. 96-129. Rio de Janeiro: Instituto de Artes<br />
<strong>da</strong> UERJ, 2004. www.concinnitas.uerj<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Uma reação admirável contra o<br />
abastar<strong>da</strong>mento trazido pelo cinema.<br />
Sentindo-se atacado, o teatro melhorou,<br />
produziu o Vieux Colombier, o Atelier,<br />
alguns minúsculos palcos de escol, onde se<br />
refugiou o espírito nessa fabulosa Paris que<br />
a bota imun<strong>da</strong> do guar<strong>da</strong>-floresta Hitler<br />
tenta inutilmente pisar... Veja como graças<br />
aos Dullin, aos Pitoëff, aos Copeau, o teatro<br />
soube reacender a sua flama que parecia<br />
extinta... (ANDRADE, 1991, p.103). 13<br />
O discurso do segundo interlocutor<br />
reflete a postura ideológica de Oswald de<br />
Andrade, intelectual – temporariamente<br />
- engajado ao Partido Comunista. O tom<br />
idealista enfatiza a utopia de um mundo<br />
novo socialista, no qual as artes e os esportes,<br />
integrados aos meios de comunicação e<br />
aos avanços tecnológicos, cumpririam um<br />
papel decisivo na educação e na luta contra<br />
as forças nazifascistas, imperiosas naquele<br />
momento <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial,<br />
em 1943, quando o escritor publicava seu<br />
manifesto. Diz Oswald, fazendo ressalvas<br />
ao teatro de câmara: “Se amanhã se<br />
unificarem os meios de produção, o que<br />
parece possível, já não haverá dificul<strong>da</strong>des<br />
em reeducar o mundo, através <strong>da</strong> tela e do<br />
rádio, do teatro de choque e do estádio. É<br />
a era <strong>da</strong> máquina que atinge o seu zênite”.<br />
(Ibid.: 102/103).<br />
A configuração do projeto teatral<br />
oswaldiano, enquanto espetáculo de<br />
estádio, parece se pautar nas imagens<br />
<strong>da</strong>s grandes tradições populares (o teatro<br />
grego, os mistérios medievais e o teatro de<br />
Shakespeare), justapostas aos modernos<br />
espetáculos que ele pôde assistir na Paris<br />
dos anos 1920, como as produções cênicas<br />
russas, desencadea<strong>da</strong>s pela cultura <strong>da</strong><br />
Revolução de Outubro (inclusive os balés<br />
de Diaghilev). Conforme reitera seu texto,<br />
as experiências modernas indicam “o<br />
aparelhamento que a era <strong>da</strong> máquina, com o<br />
populismo do Stravinski, as locomotivas de<br />
Poulenc, as metralhadoras de Shostakovich<br />
na música, a arquitetura monumental de<br />
Fernand Léger e a encenação de Meyerhold,<br />
13 Andrade, oswald. Do teatro que é bom.... In: Ponta de Lança.<br />
São Paulo: Ed. Globo, 1991. Pag.:102-108.<br />
Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 113
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
114<br />
propõe aos estádios de nossa época”. No<br />
teatro de estádio, “há de se tornar uma<br />
reali<strong>da</strong>de o teatro de amanhã, como foi o<br />
teatro na Grécia, o teatro para a vontade do<br />
povo e a emoção do povo...” (Ibid.: 107). 14<br />
O nexo dessa discussão está relacionado<br />
ao processo de secularização do teatro e à<br />
sua progressiva profissionalização, que<br />
iriam empobrecer a possibili<strong>da</strong>de de jogo,<br />
com a diluição de seu caráter comunitário e<br />
sua intensa inserção nas ativi<strong>da</strong>des de lazer<br />
<strong>da</strong> burguesia. O abandono dos espaços<br />
teatrais abertos, a partir do século XVI,<br />
iria determinar a convencionalização do<br />
teatro no palco italiano, resultando em sua<br />
consequente per<strong>da</strong> de ludici<strong>da</strong>de. 15 Com a<br />
vitória do individualismo, assim como a<br />
pintura mural abandonaria as paredes <strong>da</strong>s<br />
igrejas para se fixar no cavalete, “o teatro<br />
deixou o seu sentido inicial que era o de<br />
espetáculo popular e educativo, para se<br />
tornar um minarete de paixões pessoais,<br />
uma simples magnésia para as dispepsias<br />
mentais dos burgueses bem jantados”, diz<br />
Oswald de Andrade. (Ibid.: 104).<br />
José Celso Martinez Corrêa acredita que<br />
a estrutura cênica sugeri<strong>da</strong> por algumas<br />
obras dramatúrgicas de Oswald de Andrade<br />
apontam para a ideia do Teatro Estádio,<br />
como a peça O homem e o cavalo, que teve<br />
uma leitura-espetáculo dirigi<strong>da</strong> por ele,<br />
em 1985, no Teatro Sérgio Cardoso, com a<br />
participação de 150 pessoas, e também Os<br />
mistérios gozosos, espetáculo montado em<br />
1982, para a comemoração do tombamento<br />
do Teatro Oficina. Na ver<strong>da</strong>de, diz José<br />
Celso, o projeto artístico do Teatro Oficina<br />
seria um resultado concreto de to<strong>da</strong> a<br />
dramaturgia de Oswald de Andrade, cujo<br />
centenário de nascimento (em 1990) foi<br />
celebrado com a encenação de um Banquete<br />
Antropofágico no canteiro de obras do Teatro<br />
14 Essa noção de “espetáculo de arte total”, originária <strong>da</strong>s<br />
concepções wagnerianas, foi dissemina<strong>da</strong> nos debates<br />
estéticos <strong>da</strong>s primeiras déca<strong>da</strong>s do século XX e nas<br />
experimentações de encenadores como Gordon Craig,<br />
Adolphe Appia, Max Reinhardt, Erwin Piscator, e nas<br />
concepções espaciais de Walter Gropius, na Bauhaus,<br />
guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as diferenças entre essas concepções cênicas.<br />
15 Sobre esse tema <strong>da</strong> progressiva per<strong>da</strong> do elemento lúdico<br />
na arte, ver o livro de Huizinga, Johan. Homo Ludens. Tradução<br />
de João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1999.<br />
Oficina e cujo cinquentenário de morte<br />
(em 22 de outubro de 2004) teve como<br />
homenagem o que se chamou de Devoração<br />
de Oswald Devorado Devorando-nos. 16<br />
A montagem de Mistérios Gozosos teria<br />
sido, afirma o encenador, “uma sessão de<br />
terreiro eletrônico, vídeo transmissão <strong>da</strong><br />
‘sala branca’ <strong>da</strong> orgia de Oswald, com ‘sexo<br />
explícito’, como se diz”. Foi aí que teria<br />
surgido a ideia <strong>da</strong> passarela para os coros<br />
de As Bacantes e do Mangue, onde ocorrem<br />
as ações de Os mistérios Gozosos:<br />
As personagens <strong>da</strong>s putas e dos michês<br />
exigiram a rua do Mangue. Abaixo a<br />
arquibanca<strong>da</strong> de contemplação. Que viesse<br />
o canal do Mangue, passarela de escola de<br />
samba. O homem e o cavalo, de Oswald,<br />
também queria o Teatro de Estádio.<br />
Quebrar paredes, entrar luz natural, sair<br />
<strong>da</strong> caixa preta. Espaço urbano. Cosmos.<br />
Teto aberto pro céu <strong>da</strong> encruzilha<strong>da</strong> do<br />
hemisfério sul. Terra de canteiro, água de<br />
cachoeira. E to<strong>da</strong>s as tecnologias. 17<br />
O projeto monumental do Teatro<br />
Estádio foi retomado, posteriormente, pelos<br />
arquitetos João Batista Martinez Corrêa 18 e<br />
Beatriz Pimenta Corrêa, respectivamente<br />
irmão e sobrinha do diretor. José Celso<br />
Martinez Corrêa, que encenou Os sertões,<br />
uma série de cinco espetáculos a partir de<br />
a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong> obra de Euclides <strong>da</strong> Cunha,<br />
diria em entrevista ao Jornal do Brasil, no<br />
dia 3 de fevereiro de 2006, a propósito <strong>da</strong><br />
última versão do Teatro Estádio: “Fomos<br />
16 Na programação do evento, segundo a divulgação <strong>da</strong> Folha<br />
de São Paulo, teria ocorrido o lançamento <strong>da</strong> “Primeira Versão<br />
do Programa de Arquitetura-Urbanismo e Gestão do Teatro<br />
Estádio” e a leitura de A luta, a<strong>da</strong>ptação de trecho de os<br />
Sertões, de Euclides <strong>da</strong> Cunha. Ver o documento mencionado<br />
no site do Teatro oficina, no site: www.teatrooficina.uol.com.br<br />
17 Corrêa, José Celso Martinez. op. cit. nota 1, sem<br />
numeração de página. Mistérios Gozosos foi uma montagem<br />
teatral a partir do poema dramático de oswald de Andrade,<br />
intitulado o Santeiro do Mangue: Mistério gozoso em forma<br />
de Ópera. Ver outros comentários sobre o espetáculo em<br />
entrevista concedi<strong>da</strong> por José Celso Martinez Corrêa à<br />
revista, Caros Amigos, na edição de aniversário de sete anos.<br />
Figurando como matéria de capa, a entrevista com o título:<br />
“Zé Conselheiro” está nas páginas 31 a 37. A matéria abor<strong>da</strong><br />
também a discussão sobre a construção do Teatro Estádio e a<br />
luta do encenador com Silvio Santos.<br />
18 João Batista Martinez Corrêa é o autor do projeto <strong>da</strong> estação<br />
de metrô Cardeal Arcoverde, em Copacabana, no Rio de Janeiro.<br />
Nanci de Freitas
N° 16 | Junho de 2011<br />
influenciados pela paisagem de Cocorobó<br />
descrita em Os sertões, nos caminhos e<br />
montanhas. E apostamos nas curvas de<br />
nível. Queremos um teatro rebolante,<br />
que pode ser trabalhado por dentro e por<br />
fora. Que deveria ter 15 mil lugares, mas<br />
pode ter 7, 6, 5 mil...”. O conglomerado<br />
teatral, de ambições sócio-culturais, prevê<br />
também a construção do que o encenador<br />
chama Universi<strong>da</strong>de Brazyleira (sic) de<br />
Cultura Antropofágica de Mestiçagem<br />
Multimídia, volta<strong>da</strong> para a formação<br />
de atores, “uma escola com princípios<br />
baseados nas teses de Oswald de Andrade<br />
rejeita<strong>da</strong>s pela USP, uma escola em que a<br />
educação se mescle com saúde, tecnologia<br />
e inclusão”, afirma o encenador. 19<br />
Em matéria especial de capa na revista<br />
Bravo, de março de 2005, José Celso falando<br />
<strong>da</strong> montagem de Os sertões, de Euclides <strong>da</strong><br />
Cunha, explicitaria, assim, o sentido do<br />
Teatro Estádio:<br />
Eu acho que este teatro, <strong>da</strong> multidão,<br />
é o mais forte do mundo em todos<br />
os tempos. Estamos na iminência de<br />
chegar aqui onde chegou o teatro<br />
grego - até mesmo ultrapassá-lo -, onde<br />
chegou Shakespeare. Estamos a ponto<br />
de criar um teatro realmente popular,<br />
carnavalesco, orgiástico, um teatro total<br />
com to<strong>da</strong> essa cultura <strong>da</strong> mestiçagem,<br />
antropofágica, que, num certo sentido,<br />
tende a ser hegemônica no mundo.<br />
Ela tem uma riqueza que a cultura do<br />
capitalismo – puritana do bem e do mal,<br />
do palco italiano, do convencional - não<br />
tem. E essa é uma luta que se confunde<br />
com a luta de quebrar os cânones que<br />
separam a arte do povo. Que o teatro<br />
saia <strong>da</strong> gaiola do pensamento decadente<br />
e que se ligue à multidão, criando uma<br />
coisa tão forte quanto à música popular,<br />
o cinema, o futebol, a arte de viver do<br />
povo brasileiro. Também é uma luta de<br />
transformação do próprio espaço cênico,<br />
que precisa se misturar com vídeo,<br />
música, <strong>da</strong>nça e artes plásticas. 20<br />
19 Entrevista publica<strong>da</strong> no Jornal do Brasil, em 3 de fevereiro<br />
de 2006. Caderno B, páginas: B1 e B2.<br />
20 Revista Bravo, março de 2005. Páginas: 26-35. Além de<br />
entrevista com José Celso Martinez Corrêa, a matéria<br />
apresenta diversos comentários sobre o trabalho do encenador,<br />
feitos por artistas e críticos, tais como: Helio Ponciano,<br />
Renato Borghi, Sérgio Carvalho, Sérgio Augusto de Andrade.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
A terra e a luta: terreiro eletrônico x<br />
baú <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de.<br />
O projeto de construção do Teatro<br />
Estádio inclui a ampliação do espaço<br />
do Teatro Oficina, desembocando<br />
numa apoteose, uma espécie de praça<br />
pública apta a abrigar espetáculos para<br />
grandes plateias e realizar programas<br />
de formação artística e inclusão social. 21<br />
Projeto que esbarra num paredão que<br />
separa o teatro de um estacionamento<br />
que pertence ao Grupo Sílvio Santos, no<br />
qual foi planeja<strong>da</strong> a construção de um<br />
shopping center tradicional. Diz José Celso:<br />
“A palavra mágica do Teatro é MERDA.<br />
A tripa <strong>da</strong> Jaceguay 520 não tem cu. A<br />
saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> matéria do amor feito, estaca<br />
num beco, num estacionamento do Baú <strong>da</strong><br />
Felici<strong>da</strong>de”. 22<br />
As inúmeras tentativas de<br />
intermediação com o Grupo Sílvio Santos,<br />
no sentido de convencimento acerca <strong>da</strong><br />
importância social do Teatro Estádio para<br />
o bairro, acenam com a possibili<strong>da</strong>de<br />
de construção de um trans-shopping de<br />
características culturais, gerando uma<br />
pendenga que se arrastou ao longo <strong>da</strong>s<br />
duas últimas déca<strong>da</strong>s. Esta luta tornouse<br />
paradigmática para o Teatro Oficina,<br />
instaurando-se em seu próprio processo de<br />
construção artística, metáfora materializa<strong>da</strong><br />
no heroísmo e na monumentali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
várias <strong>parte</strong>s que compõem a versão<br />
cênica de Os sertões, de Euclides <strong>da</strong> Cunha,<br />
considera<strong>da</strong> por José Celso como sua obra<br />
mais ambiciosa. A reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> luta pela<br />
terra, expressa nos conflitos de Canudos,<br />
transcontextualizando-se na batalha pela<br />
conquista do espaço para a construção<br />
do Teatro Estádio: “Uma encenação<br />
num terreno dos impasses globais <strong>da</strong><br />
contracenação entre um poder cultural<br />
21 o projeto prevê o desenvolvimento de ativi<strong>da</strong>des sócioculturais,<br />
volta<strong>da</strong>s para a população que circun<strong>da</strong> o teatro,<br />
excluí<strong>da</strong> do exercício amplo de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e de expressão<br />
cultural, quando <strong>da</strong> construção do Minhocão, que cortou<br />
o tradicional bairro italiano, conforme afirma José Celso<br />
Martinez Corrêa.<br />
22 Corrêa, José Celso Martinez. op. cit. nota 1: sem numeração.<br />
23 Ibid.: sem numeração.<br />
Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 115
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
116<br />
direto e o vídeo financeiro que o cerca<br />
por todos os lados, o complexo do Baú <strong>da</strong><br />
Felici<strong>da</strong>de”, diz José Celso. 23 O impasse<br />
político aparece, literalmente, em A terra,<br />
primeira <strong>parte</strong> <strong>da</strong> encenação de Os sertões,<br />
no Teatro Oficina, realiza<strong>da</strong> em 2003,<br />
inclusive com a apresentação no meio do<br />
espetáculo <strong>da</strong> maquete do Teatro Estádio.<br />
No espetáculo, A terra, o caráter épico<br />
<strong>da</strong> primeira <strong>parte</strong> do livro de Euclides <strong>da</strong><br />
Cunha, com a descrição geográfica do sertão<br />
de Canudos (topografia, rios, fauna, flora<br />
e os fenômenos atmosféricos climáticos),<br />
transformou-se numa narrativa cênica<br />
poético-musical operística, reunindo,<br />
além dos atores do grupo de José Celso,<br />
crianças e músicos, num grande coro,<br />
do qual o público também faz <strong>parte</strong>. Os<br />
próprios elementos cenográficos - panos<br />
e mangueiras representando rios, por<br />
exemplo - contribuem para o envolvimento<br />
quase “natural” <strong>da</strong> plateia, que é convi<strong>da</strong><strong>da</strong><br />
a participar, desde o início, fazendo o<br />
aquecimento vocal com os atores e, ao<br />
longo do espetáculo ritualístico, <strong>da</strong>nça,<br />
canta e reproduz falas.<br />
Nessa atmosfera cênico-vivencial, a terra<br />
do sertão de Canudos é, metaforicamente,<br />
representa<strong>da</strong> por corpos nus e adereços,<br />
mas também pela relação concreta com a<br />
terra mesma do chão do espaço teatral -<br />
escava<strong>da</strong>, pisotea<strong>da</strong>, enlamea<strong>da</strong>, queima<strong>da</strong><br />
e, às vezes projeta<strong>da</strong> em escala maior, com<br />
recursos de vídeo. A configuração <strong>da</strong> terra<br />
do sertão é amplia<strong>da</strong> para fora do espaço<br />
físico representacional, abarcando, além<br />
do “espaço-terreiro” do Teatro Oficina, no<br />
Bexiga/Bela Vista, os morros do Rio de<br />
Janeiro e até a terra de Bagdá. E, desse modo,<br />
há brechas para a encenação do conflito<br />
que envolve a posse do espaço/entorno<br />
do Teatro Oficina e o Grupo Sílvio Santos;<br />
a discussão sobre o poder do narcotráfico<br />
nas favelas cariocas (com o público todo<br />
sendo levado a gritar palavras de ordem<br />
pela legalização <strong>da</strong>s drogas); e a Guerra de<br />
Bush contra o Iraque.<br />
Aos aspectos do espetáculo hapenning<br />
(um espaço de vivência lúdica e coletiva)<br />
que poderíamos chamar “modernistas”,<br />
soma-se a linguagem contemporânea <strong>da</strong><br />
concepção cênica de José Celso, com o uso<br />
de recursos tecnológicos sofisticados de luz<br />
e som, incluindo a projeção de imagens <strong>da</strong><br />
terra e de fragmentos textuais com várias<br />
formas de menção à escrita euclidiana.<br />
A plateia, massivamente muito jovem<br />
(os atores também), se coloca no espaço<br />
completamente disponível, sujeita ao<br />
contato com a terra, a lama, a chuva de<br />
areia e a nudez dos corpos. Regendo o<br />
espetáculo, José Celso, na figura do beato<br />
Antônio Conselheiro, atua como um corifeu<br />
em (lin<strong>da</strong>s) canções solo, a <strong>da</strong>r sentido<br />
político ao todo do espetáculo. Espetáculo<br />
este que age, profun<strong>da</strong>mente, no sentido<br />
do estilhaçamento dos limites espaciais,<br />
temporais e narrativos do teatro, para a fúria<br />
dos que não suportam o caráter interativo de<br />
sua concepção e sua monumental duração<br />
de cinco ou seis ou sete horas. Ou para o<br />
êxtase dos que se deixam contagiar pela<br />
força telúrica <strong>da</strong>s imagens e pela ruptura<br />
com a recepção passiva.<br />
A aventura heróica do encenador<br />
tropicalista/oswaldiano demonstra as<br />
possibili<strong>da</strong>des de materialização do<br />
pensamento artístico antropofágico, no<br />
teatro contemporâneo. A vocação formal<br />
do espaço físico do Teatro Oficina enquanto<br />
uma passarela carnavalesca é explora<strong>da</strong><br />
intensamente e reitera seu potencial para<br />
atravessar o paredão que o separa do<br />
espaço externo, para a concretização <strong>da</strong><br />
ágora, do Teatro Estádio, apoteótico sonho<br />
de Oswald/Zé Celso.<br />
Nesse sentido, mais um capítulo<br />
do conflito que envolve o terreiro<br />
eletrônico e o estacionamento do baú<br />
<strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de parece caminhar para um<br />
provável desfecho. Em 24 de junho de<br />
2010, o Instituto do Patrimônio Histórico<br />
e Artístico Nacional (IPHAN) aprovou<br />
o projeto de tombamento do Teatro<br />
Oficina, que só era protegido em âmbito<br />
estadual. O documento, que tramitava<br />
desde 2003, estabelece parâmetros para<br />
a construção de obra de engenharia no<br />
terreno que circun<strong>da</strong> o prédio, proibindo<br />
a descaracterização <strong>da</strong> paisagem em torno<br />
Nanci de Freitas
N° 16 | Junho de 2011<br />
do Teatro Oficina, o que restringirá as<br />
ambições empresariais do Grupo Silvio<br />
Santos. Ao que tudo indica, o desenlace<br />
dessa curva dramática ain<strong>da</strong> aguar<strong>da</strong><br />
muitas peripécias. Que o deus Dioniso<br />
não descuide de enviar eflúvios. Evoé!<br />
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SANTIAGO, Silviano. Sobre plataformas e<br />
testamentos. In: Ponta de Lança. 1991: p. 7-22.<br />
Teatro Oficina: Lina Bo Bardi/Edson Elito –<br />
São Paulo, Brasil, 1980-1984. Textos: Lina<br />
Bo Bardi, Edson Elito e José Celso Martinez<br />
Corrêa. Lisboa: Editorial Blau; Instituto<br />
Lina Bo Bardi e P.M. Bardi, 1999.<br />
Presença oswaldiana no teatro estádio de José Celso Martinez Corrêa: antropofagia, mestiçagem cultural, terreiro... 117
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Bernadette [Du<strong>da</strong> Schappo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Artaud, Arrabal e nós: estudo de processo criação cênica 119
N° 16 | Junho de 2011<br />
ARTAUD, ARRABAL E NÓS: ESTUDo<br />
DE PRoCESSo CRIAçÃo CÊNICA<br />
Resumo<br />
O presente artigo apresenta um estudo de criação cênica<br />
a partir do estudo do Pensamento/Prática de Antonin<br />
Artaud e Fernando Arrabal com três atrizes.<br />
Palavras-chave: Antonin Artaud, Fernando Arrabal,<br />
exercício atorial<br />
Abstract<br />
This article presents an analysis of a creative work in<br />
progress with three actresses that took as its point of<br />
departure thoughts and pratices of Antonin Artaud<br />
and Fernando Arrabal, establishing a dialogue between<br />
actresses and these points of reference.<br />
Keywords: Antonin Artaud, Fernando Arrabal,<br />
exercise actorial<br />
Narciso Telles 1<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Artaud, Arrabal e nós: estudo de processo criação cênica 121
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
122<br />
O<br />
presente trabalho busca<br />
apresentar o caminho<br />
percorrido por Nós -<br />
Narciso, Carla, Michelle<br />
e Anamaria - no encontro<br />
com Artaud e Arrabal. Divididos em três<br />
momentos, que para efeito acadêmico<br />
aparecem separa<strong>da</strong>mente são (e foram)<br />
articulados no processo de criação <strong>da</strong><br />
cena. Aqui procuro mostrar os elementos,<br />
conceitos, metáforas que nortearam<br />
nosso processo investigativo, artístico e<br />
pe<strong>da</strong>gógico no trabalho com as atrizes.<br />
Tomo como atitude de criação o conceito<br />
de experiência A explicação <strong>da</strong> experiência<br />
sempre se ancora em práticas experienciais,<br />
na observação de um <strong>da</strong>do fenômeno e na<br />
nossa leitura deste ato, pois a experiência<br />
ocorre no fazer. O que se faz, simplesmente<br />
acontece. Nesta explicação, múltiplos<br />
domínios de reali<strong>da</strong>de são acionados,<br />
construindo um caminho explicativo a partir<br />
<strong>da</strong>s coerências <strong>da</strong>s práticas experenciais do<br />
observador, ou seja, a análise de um processo<br />
no qual estamos inseridos como partícipes<br />
é demarca<strong>da</strong> pelo conjunto de ativi<strong>da</strong>des<br />
vivencia<strong>da</strong>s por nós na experiência. Esta<br />
vivência é única para ca<strong>da</strong> pessoa e possibilita<br />
que ca<strong>da</strong> um possa fazer uma explicação<br />
diferencia<strong>da</strong> sobre uma <strong>da</strong><strong>da</strong> experiência.<br />
Como não poderia deixar de ser,<br />
iniciamos nossa reflexão navegando no<br />
pensamento de Artaud. Em segui<strong>da</strong><br />
apresentamos aspectos <strong>da</strong> dramaturgia de<br />
Fernando Arrabal, especialmente, <strong>da</strong> peça O<br />
Arquiteto e o Imperador <strong>da</strong> Assíria. E por fim,<br />
uma análise do processo de criação <strong>da</strong> cena<br />
(quadro II, ato II) <strong>da</strong> peça acima cita<strong>da</strong>.<br />
Artaud<br />
Antonin Artaud é um homem de<br />
teatro. Com esta afirmação iniciamos nossa<br />
jorna<strong>da</strong> por seu pensamento sobre o teatro,<br />
sua definição de Teatro <strong>da</strong> Cruel<strong>da</strong>de e<br />
1 Ator, performer, diretor e professor do Curso de Teatro e<br />
do Programa de Pós-Graduação em Artes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />
Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Coletivo Teatro <strong>da</strong><br />
Margem.(Uberlândia/MG).<br />
seus principais elementos constitutivos.<br />
Aqui apresentaremos nossa leitura sobre<br />
os princípios de Artaud, de forma a propor<br />
um dialogo com nosso processo de criação<br />
do quadro II, ato II <strong>da</strong> peça O Arquiteto e o<br />
Imperador <strong>da</strong> Assíria de Arrabal.<br />
O Teatro <strong>da</strong> Cruel<strong>da</strong>de tem como<br />
princípio norteador a proposta de<br />
recuperar as características primais<br />
perdi<strong>da</strong>s no decorrer <strong>da</strong> história do teatro<br />
ocidental. Artaud defende um teatro que<br />
(re)encontre o ritual, o encantamento, o<br />
mito, a metafísica e a alquimia. Um teatro<br />
que a cena seja o foco principal e o texto<br />
ganhe uma dimensão além dos significados<br />
linguísticos <strong>da</strong>s palavras. Um teatro onde<br />
a magia seja algo visível na cena e promova<br />
o pestiamento de todo o público diante do<br />
apresentado. Diz ele:<br />
(...) se o teatro é como a peste, não é apenas<br />
por atuar sobre importantes coletivi<strong>da</strong>des<br />
e por transtorná-las do mesmo modo<br />
como se faz a peste. Existe no teatro, como<br />
na peste, algo de vitorioso e de vingador<br />
ao mesmo tempo. (ARTAUD, 1987, p. 39)<br />
Assim, o teatro deve revelar o fascínio<br />
que libere o espírito de quem participa<br />
dele como um ritual. Nessa direção nosso<br />
pensador destaca a importância <strong>da</strong> imagem<br />
e a força que esta tem neste processo<br />
de liberação. Por meio <strong>da</strong>s imagens o<br />
imaginário suplanta a reali<strong>da</strong>de cotidiana,<br />
<strong>da</strong>ndo-a um caráter mais transcendente e<br />
alquímico. Um duplo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />
O conceito (ou metáfora?) do duplo está<br />
extremamente presente na obra de Artaud,<br />
para ele "(...) o teatro deve ser considerado<br />
como o duplo não desta reali<strong>da</strong>de cotidiana<br />
e direta <strong>da</strong> qual ele aos poucos limitou-se<br />
a ser apenas uma cópia inerte, tão inútil<br />
quanto edulcora<strong>da</strong>, mas de uma outra<br />
reali<strong>da</strong>de perigosa e típica (...)" (ARTAUD,<br />
1987, p. 65)<br />
Brito afirma: "o duplo do teatro<br />
representa para Artaud o encontro do<br />
teatro consigo mesmo, com sua própria<br />
identi<strong>da</strong>de a partir <strong>da</strong> encenação <strong>da</strong><br />
experiência <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de, propicia<strong>da</strong><br />
pela peste, metafísica, cruel<strong>da</strong>de em<br />
Narciso Telles
N° 16 | Junho de 2011<br />
explosão de energias primordiaid e<br />
míticas.” (2001/2002, p. 85).<br />
O duplo retoma o caráter mítico, onde<br />
o homem é possuidor de uma natureza<br />
humana dupla - masculina e feminina.<br />
Através do mito o homem recuperaria<br />
sua identi<strong>da</strong>de e a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
transformação alquímica. Neste sentido,<br />
a encenação seria, não o duplo <strong>da</strong> obra<br />
dramática, mas duplo de si no engajamento<br />
do homem na descoberta de si.<br />
Com este espírito iniciamos nossas<br />
leituras <strong>da</strong> dramaturgia de Arrabal para a<br />
posterior montagem <strong>da</strong> cena.<br />
Arrabal<br />
Fernando Arrabal, ci<strong>da</strong>dão espanhol,<br />
nascido em Melilla em 1932, vive na França<br />
desde 1955. Contrário ao regime do general<br />
Franco, partiu para um exílio voluntário<br />
em terras francesas. Com a morte de<br />
Franco em 1975, muitos artistas retornaram<br />
à Espanha, menos Arrabal, "persona non<br />
grata" no país desde 1967 quando foi preso e<br />
enviado a penitenciária de Madrid acusado<br />
de ter escrito uma dedicatória sacrílega<br />
e antipatriótica em um livro. Os dramas<br />
familiares vividos por Arrabal - prisão e<br />
desaparecimento do pai, e rompimento<br />
com a mãe - permeiam suas obras.<br />
Seu conjunto dramatúrgico figuram<br />
textos como: Os Dois Carrascos, Piquenique<br />
no Front, O Triciclo, Fando e Lis,<br />
Cerimônia para um Negro Assassinado,<br />
Oração, Jardim <strong>da</strong>s Delícias, Cemitério de<br />
Automóveis, O Arquiteto e o Imperador<br />
<strong>da</strong> Assíria, Orquestração Teatral, Concerto<br />
dentro de um ovo, Guernica, a Bicicleta do<br />
Condenado, entre outros.<br />
A dramaturgia de Arrabal<br />
espetaculariza a figura humana em seu<br />
aspecto mais selvagem, sem características<br />
cotidianas defini<strong>da</strong>s e utilizando-se de uma<br />
linguagem que não faz <strong>parte</strong> do mundo real,<br />
seus personagens se repetem em diversas<br />
peças e giram em torno dos mesmos temas<br />
e situações. “São freqüentes os jogos de<br />
palavras, o nonsense, a violência instintiva,<br />
as imagens colhi<strong>da</strong>s no inconsciente.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Arrabal diz que escreve tudo o que lhe<br />
passa pela cabeça, que não revê o que cria,<br />
nem se detém numa palavra ou frase para<br />
refazê-la.” (ARRABAL, 1976, p. XII).<br />
Uma ponte entre a poética de Artaud e a<br />
dramaturgia de Arrabal pode ser construí<strong>da</strong><br />
a partir do conceito de Teatro Pânico. O<br />
conceito de pânico foi elaborado nos meios<br />
intelectuais franceses com a participação<br />
de entre outros; Arrabal, Rolan<strong>da</strong> Topor,<br />
Alexandro Jodorowski e não se constituía<br />
num movimento estético. "Arrabal dizia<br />
que pânico não era um grupo nem um<br />
movimento, mas uma maneira de ser de<br />
acordo com uma ideologia que tinha por<br />
fun<strong>da</strong>mento a exaltação <strong>da</strong> moral múltipla."<br />
Em seu texto Homem Pânico de 1963, o<br />
autor discorre uma anti-definição para<br />
o termo. "O pânico é uma maneira de ser<br />
regi<strong>da</strong> pela confusão, pelo humor, o terror,<br />
o acaso e a euforia."(ARRABAL,1973, p. 52).<br />
Trabalhando com duas palavras: memória<br />
e acaso, Arrabal constrói uma proposta<br />
poética e estética que caracterizariam as<br />
criações artísticas na visão pânico.<br />
Do elenco de características do homem<br />
pânico aponta<strong>da</strong>s, gostaria para esta<br />
nossa reflexão de assinalar: talento louco,<br />
entusiasmo lúdico, solidão, a anti-pureza.<br />
E dos fantasmas que o perseguem destaco:<br />
paranóia, inveja, mitologia, desespero,<br />
susceptibili<strong>da</strong>de. O herói na dramaturgia<br />
de Arrabal é apresentado em to<strong>da</strong> a sua<br />
ambigui<strong>da</strong>de: “tirano e escravo, bom e cruel,<br />
inocente e culpado, vítima e carrasco, vive<br />
sempre à margem de um mundo ordenado<br />
que ele não compreende. Seu espaço, a<br />
terra de ninguém; sua condição, a miséria.<br />
A maior ameaça que paira sobre ele vem<br />
do mundo exterior, expressa através <strong>da</strong><br />
repressão brutal e anônima que surpreende<br />
seus valores anti-sociais sua liber<strong>da</strong>de,<br />
acabando por imobilizá-lo."(ARRABAL,<br />
1976, p. XII)<br />
No caso <strong>da</strong>s personagens femininas,<br />
estas aparecem sempre sob a tríade mãecriança-prostituta<br />
plena de instintos e<br />
intuição, escravas ou tiranas, elas sempre<br />
apresentam uma outra perspectiva de ação<br />
em relação aos personagens masculinos. O<br />
outro em to<strong>da</strong> a sua presença.<br />
Artaud, Arrabal e nós: estudo de processo criação cênica 123
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
124<br />
Estes aspectos pontuados acima,<br />
perpassam a produção dramatúrgica de<br />
Arrabal e a conectam com as ideias de<br />
cruel<strong>da</strong>de, metafísica, alquimia e duplo<br />
desenvolvi<strong>da</strong>s por Artaud, comenta<strong>da</strong>s<br />
anteriormente. Isto posto, escolhemos para<br />
a montagem <strong>da</strong> cena a peça O Arquiteto e o<br />
Imperador <strong>da</strong> Assíria.<br />
O ambiente onde se passa a história de<br />
O Arquiteto e o Imperador <strong>da</strong> Assíria é uma<br />
ilha deserta. A trama é construí<strong>da</strong> a partir<br />
de dois personagens: um, civilizado, único<br />
sobrevivente de um desastre aéreo. O<br />
outro, um primitivo. A peça inicia-se com<br />
precisamente com o encontro do civilizado<br />
com o assustado homem primitivo. Dois<br />
anos decorreram. Agora, eles são o arquiteto<br />
e o imperador <strong>da</strong> Assíria.<br />
O sobrevivente, herdeiro do mundo<br />
civilizado, ressuscita como um hipotético<br />
Império, fez-se imperador e nomeia<br />
como seu absurdo arquiteto o homem<br />
primitivo. Nos dois anos que se seguiram<br />
ao acidente, o imperador ensinou o<br />
selvagem a falar e incansavelmente tenta<br />
ain<strong>da</strong> fazer com que seu aluno assimile<br />
os valores de sua cultura.<br />
O arquiteto deseja tornar-se civilizado;<br />
o imperador aspira à barbárie, à inocência,<br />
à ignorância e ao poder sobre a natureza de<br />
que o arquiteto desfruta.<br />
Mas o arquiteto é capaz controlar os<br />
elementos <strong>da</strong> natureza. Eles se temem e se<br />
odeiam e se necessitam e se amam - e estão<br />
condenados a viver juntos. O imperador no<br />
decorrer <strong>da</strong> história vai se transfigurando<br />
em seus duplos: a esposa, o irmão, um<br />
cego, as várias testemunhas de acusação.<br />
Já o arquiteto tem dois papéis dominantes:<br />
o de presidente do tribunal e o <strong>da</strong> vítima<br />
(a mãe). Após desfilar seus motivos Só que<br />
desta vez o sobrevivente é o arquiteto. E o<br />
jogo pode recomeçar.<br />
Arrabal considera, O Arquiteto e o<br />
Imperador <strong>da</strong> Assíria uma obra com “grande<br />
felici<strong>da</strong>de mistura<strong>da</strong> com sofrimento e<br />
muita alegria”. Para o exercício cênico em<br />
questão, a obra é uma demonstração do<br />
conceito de teatro pânico que proporciona<br />
já na escrita uma ‘nova’ possibili<strong>da</strong>de de<br />
relação entre atores e espectadores “A<br />
cerimônia é devi<strong>da</strong>mente orquestra<strong>da</strong>:<br />
todos os movimentos cênicos são<br />
indicados pelo autor e não há improvisos.<br />
Como to<strong>da</strong>s as peças de Arrabal tocam o<br />
espectador pelo fascínio - e não pela razão<br />
-,seu objetivo é a purgação <strong>da</strong>s paixões. "<br />
(ARRABAL, 1976, p. XXII)<br />
Para o exercício de cena o Quadro II, do<br />
Ato II, no qual o imperador exige que seja<br />
executado pelo arquiteto numa cerimônia<br />
de antropofagia. E, como num ritual<br />
de comunhão solene, o arquiteto come<br />
seu corpo, suga seu cérebro e descobre<br />
subitamente o inferno <strong>da</strong> consciência<br />
culpa<strong>da</strong> e solitária que tanto atormentara<br />
o imperador.<br />
Nós<br />
O processo de trabalho com vistas<br />
à montagem do quadro II, Ato II <strong>da</strong><br />
peça O Arquiteto e o Imperador <strong>da</strong> Assíria<br />
foi conduzido fun<strong>da</strong>mentalmente<br />
pela questão do duplo. No primeiro<br />
momento nossa intenção era verificar a<br />
possibili<strong>da</strong>de de duas atrizes fazerem<br />
papéis masculinos – seus duplos que<br />
no decorrer <strong>da</strong> cena transfiguramse<br />
em mulheres. Esta alternância de<br />
duplici<strong>da</strong>de, ao nosso ver, tornava<br />
o exercício atorial extremamente<br />
interessante. Com as leituras e<br />
discussões sobre a cena, fun<strong>da</strong>mentados<br />
no pensamento artaudiano, fomos<br />
percebendo outros caminhos possíveis.<br />
Após a definição do elenco - as alunas<br />
de graduação Carla Martins e Michelle<br />
Cabral e de pós-graduação Anamaria<br />
Sobral - iniciamos nossos encontros<br />
para o preparo <strong>da</strong> cena. Nos primeiros<br />
encontros conversamos sobre a poética<br />
de Artaud, aspectos <strong>da</strong> dramaturgia de<br />
Arrabal e <strong>da</strong> peça escolhi<strong>da</strong>. Solicitei que<br />
as atrizes lessem todo o texto, enquanto<br />
definia o trecho que seria apresentado.<br />
Realizamos três encontros de trabalho<br />
prático onde propus exercícios de<br />
sensibilização. Nestes dias, desenvolvemos<br />
Narciso Telles
N° 16 | Junho de 2011<br />
a partir <strong>da</strong> ideia de duplo e do instinto<br />
fêmea, uma sequência de improvisações<br />
com movimentos livres. A partir de<br />
estímulos sonoros as atrizes improvisavam<br />
movimentos na busca <strong>da</strong> expressão primal,<br />
um possível caminho metafísico para a<br />
libertação do espírito, que fugisse dos<br />
estereótipos, <strong>da</strong> superficiali<strong>da</strong>de. Comenta<br />
a atriz Michelle Cabral:<br />
Em nosso primeiro encontro para ensaio,<br />
foi solicitado pelo diretor (Narciso Telles)<br />
que buscássemos através do corpo a<br />
representação do feminino. Este ser<br />
mulher- fêmea , como ela an<strong>da</strong>, age, sente,<br />
etc... Pareceu-me estranho o pedido,<br />
tendo em vista que o elenco era composto<br />
por mulheres. Durante o exercício percebi<br />
que há o ser feminino que é originário<br />
e a "mulher cultural", o mito construído<br />
em socie<strong>da</strong>de, do que seja a representação<br />
do feminino, e o quanto nós mulheres<br />
estamos inexoravelmente inseri<strong>da</strong>s<br />
neste contexto. A partir <strong>da</strong>í, mostrou-se<br />
para mim o tamanho do nosso desafio<br />
como atores, mulheres que interpretam<br />
homens, que interpretam mulheres. O<br />
homem/ feminino, a mulher/feminina ,<br />
o ator e seu duplo... o homem/mulher e<br />
suas máscaras... estava formado o quebracabeça.<br />
Iniciou-se então uma busca pelo<br />
primitivo, pela origem primeira, o instinto<br />
e a emoção. A fome.<br />
Esta palavra permeou a minha busca,<br />
comecei a pensar que a origem do homem<br />
está na fome, desde o seu primeiro choro<br />
ao nascer, sempre a fome nas mais amplas<br />
fronteiras que a palavra alcançar. A fome<br />
de comer, de saber de sentir, a fome que<br />
nunca se aplaca, como um monstro que<br />
devora a todos e por fim a si mesmo.<br />
Como resposta as atrizes ampliavam<br />
sua expressão corporal e com a respiração<br />
emitiam pequenos sons, sempre<br />
relacionados ao movimento. A integração<br />
entre a respiração e a gestuali<strong>da</strong>de teve<br />
como fun<strong>da</strong>mento a noção de atleta<br />
afetivo.<br />
Artaud compreende que o ator deve<br />
voltar sua atenção para a respiração, pois<br />
esta é a base sobre a qual o movimento<br />
deverá ser construído. Para Quilice,<br />
"pesquisar a respiração significa investir o<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
nascimento dos impulsos e as transformações<br />
sutis de estados interiores." (2002, p. 98)<br />
O ator tem seus sentimentos<br />
localizados na musculatura e é ela que<br />
libera os afetos. Neste sentido o conceito<br />
de duplo aparece também no trabalho do<br />
ator na medi<strong>da</strong> em que duas dimensões<br />
são trabalha<strong>da</strong>s: uma de dentro ( suas<br />
emoções) e outra de fora (como um<br />
catalisador <strong>da</strong>s forças <strong>da</strong> natureza).<br />
Em nosso processo, estes aspectos<br />
apareceram nos exercícios de respiração<br />
conduzimos a liberação do instinto,<br />
principalmente nos duplos arquitetos.<br />
Em segui<strong>da</strong> desenvolvemos<br />
improvisações tendo como guia a<br />
circunstância do trecho escolhido até<br />
chegarmos aos diálogos propriamente<br />
ditos. Deixo a palavra com as atrizes:<br />
"A proposta, ao relacionarmos com a<br />
questão do duplo, era buscar o lado<br />
feminino (anima) dos personagens;<br />
pensando em fertili<strong>da</strong>de, fonte geradora.<br />
Entrar em contato com o feminino<br />
que pressupõe leveza, sensuali<strong>da</strong>de,<br />
sensibili<strong>da</strong>de me fez recair na forma. A<br />
desconstrução tornou-se, então, necessária<br />
para que algo "novo" se materializasse, e<br />
duas dinâmicas me aju<strong>da</strong>ram a caminhar<br />
nesta direção: o exercício <strong>da</strong> fruta e<br />
as improvisações referentes a própria<br />
cena. A dinâmica <strong>da</strong> fruta abriu novas<br />
possibili<strong>da</strong>des de exploração de espaço e<br />
de relação. Um ponto interessante foi o de<br />
ultrapassar o mundo do humano para o<br />
puramente instintivo - quando o "animal"<br />
acaba vindo à tona - visto que a ideia seria<br />
comer a fruta "com todo o corpo", devorála<br />
mesmo. Isso fez com que os sentidos<br />
fossem ativados acarretando numa<br />
mu<strong>da</strong>nça corporal. O segundo exercício<br />
- o de improvisar a partir <strong>da</strong> cena em<br />
que o Arquiteto devora o Imperador -<br />
veio apenas para acentuar o primeiro,<br />
pois dentro <strong>da</strong> mecânica do improviso,<br />
acabamos levando à cena a "desconstrução"<br />
consegui<strong>da</strong> com o "devorar <strong>da</strong> fruta",<br />
criando uma situação análoga com o<br />
Imperador. Outro ponto fun<strong>da</strong>mental<br />
do processo foram as conversas sobre o<br />
universo artaudiano: esclarecedoras para<br />
entendermos a necessi<strong>da</strong>de em ritualizar<br />
a refeição, por exemplo." (Carla Martins)<br />
"Em segui<strong>da</strong>, eles me mostraram o<br />
que estavam construindo: uma espécie<br />
Artaud, Arrabal e nós: estudo de processo criação cênica 125
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
126<br />
de ritual que mostrava dois seres<br />
<strong>da</strong>nçando e cheirando-se mutuamente;<br />
um, prestes a devorar o outro. Falei<br />
para Narciso que eu temia que a minha<br />
inserção quebrasse uma organici<strong>da</strong>de<br />
já trabalha<strong>da</strong>. Ele disse que estava<br />
pensando em mim para ser o Imperador<br />
que, no momento <strong>da</strong> cena escolhi<strong>da</strong>, já<br />
era um cadáver. Nesse momento, as<br />
coisas começaram a fazer mais sentido,<br />
pois a própria condição <strong>da</strong> cena pedia<br />
que eu estivesse dentro e fora ao mesmo<br />
tempo. Imaginei que essa dubie<strong>da</strong>de<br />
poderia ser usa<strong>da</strong> a nosso favor.<br />
Improvisamos. Comecei a fazer símbolos<br />
com referências ao sagrado: os mudras<br />
que Jesus faz com as mãos (ao menos<br />
na iconografia conheci<strong>da</strong>), os braços do<br />
crucificado; e com referências sexuais: um<br />
abrir e fechar de pernas, olhares maliciosos<br />
etc. Narciso pediu que isso fosse mantido,<br />
pois o texto fazia referência às religiões<br />
que proíbem a masturbação, entre outras<br />
coisas. Carla fazia uma respiração ruidosa<br />
que também entrou para a ‘coreografia’."<br />
(Anamaria Sobral)<br />
As improvisações possibilitaram<br />
a procriação de imagens e expressões<br />
gestuais que proporcionaram à cena<br />
ganhar uma estrutura ritualística. Muitas<br />
imagens e expressões produzi<strong>da</strong>s vinham<br />
do caráter mítico presente na dramaturgia<br />
de Arrabal e incorpora<strong>da</strong> pelos atores neste<br />
processo. Havia uma preocupação em<br />
comungar com a plateia, de forma que esta<br />
pudesse ser contamina<strong>da</strong> pela encenação.<br />
Tal como preconizava Artaud, tínhamos<br />
como meta <strong>da</strong>r a cena um caráter pestilento<br />
e metafísico, que contaminasse o público e<br />
criasse uma ebulição em seu espírito.<br />
Cabe registrar que a condução <strong>da</strong>s<br />
improvisações, com base no fragmento<br />
escolhido, foram também guia<strong>da</strong>s<br />
prioritariamente através do corpo e <strong>da</strong><br />
respiração. O trabalho com o texto foi<br />
inserido a partir <strong>da</strong> ideia de uma palavra<br />
com encantamento, ou seja, a palavra<br />
deveria ultrapassar seu caráter meramente<br />
linguístico e adentrar, em conexão com o<br />
corpo, na via do ritual, como dizia Artaud:<br />
"(...) as palavras serão considera<strong>da</strong>s num sentido<br />
encantatório, ver<strong>da</strong>deiramente mágico - por suas<br />
formas, suas emanações sensíveis e não apenas<br />
por seus sentidos.” (ARTAUD, 1987, p. 157)<br />
Este sentido encantatório, também<br />
aparece no figurino do Imperador. A escolha<br />
do manto com figurino único do Imperador<br />
proporcionou ao elenco perceber novas<br />
possibili<strong>da</strong>des de criação de imagens,<br />
por exemplo: no final <strong>da</strong> cena quando os<br />
arquitetos são "devorados" pelo manto<br />
do Imperador, como algo cíclico, presente<br />
no mito do eterno retorno. É importante<br />
comentar que o manto já era elaborado com<br />
miçangas, colares, símbolos, o que também<br />
facilitava a instauração de um universo<br />
ritualístico. Buscamos com este exercício<br />
cênico o poder de encantação presente na<br />
linguagem do teatro <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de.<br />
Dos inúmeros conceitos e metáforas<br />
que nos trazem o pensamento de Antonin<br />
Artaud e seu Teatro <strong>da</strong> Cruel<strong>da</strong>de, e a<br />
partir destes trabalhados nos encontros e<br />
na cena. acredito ser o momento de um<br />
(re)pensar o lugar <strong>da</strong> poética artaudiana<br />
nas Escolas de teatro.<br />
Referências bibliográficas<br />
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Paulo: Max Limonad, 1987.<br />
ARRABAL, Fernando. O Arquiteto e o<br />
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Cultural, 1976. Coleção Teatro Vivo.<br />
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BRITO, Maria Cristina. O Diálogo de Nelson<br />
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Teatro Desagradável. O Percevejo, UNIRIO,<br />
n. 10/11. pp. 74-93, 2001/2002.<br />
BRUNEL, Pierre. Dicionário de Mitos<br />
Literários. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1997.<br />
QUILICE, Cassiano Sydow. Antonin Artaud:<br />
o ator e a física dos afetos. Sala Preta, USP,<br />
n. 02. pp. 96-101, 2002.<br />
Narciso Telles
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Médico Interno [Vicente Concilio]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Pina Bausch: para maiores de 65 Anos 127
N° 16 | Junho de 2011<br />
PINA BAUSCH: PARA MAIoRES DE 65<br />
ANoS<br />
Resumo<br />
Um lugar para fazer contatos - é este o título sugestivo de<br />
uma <strong>da</strong>s obras mais atraentes de Pina Bausch, e também<br />
a mais elástica: Kontakthof, cria<strong>da</strong> e encena<strong>da</strong> por sua<br />
companhia em 1978. Em 2000, Bausch resolveu remontar a<br />
obra para pessoas com mais de 65 anos e para menores de<br />
19 anos. Apesar dos 32 anos e <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de de elencos,<br />
Kontakthof continua simultaneamente atemporal e atual.<br />
Palavras-chave: Pina Bausch, Dança teatro, <strong>da</strong>nça na<br />
maturi<strong>da</strong>de.<br />
Abstract<br />
A place to make contacts - this is the evocative title of<br />
one of the most attractive works of Pina Bausch, and<br />
also the most elastic: Kontakthof, created and staged by<br />
his company in 1978. In 2000, Bausch decided to restage<br />
the work with people over 65 years and younger than 19<br />
years. Despite its 32 years of age and the diversity of its<br />
casts, Kontakthof continues simultaneously timeless and<br />
actual.<br />
Keywords: Pina Bausch, <strong>da</strong>nce theater, <strong>da</strong>nce at maturity.<br />
Solange Caldeira 1<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Pina Bausch: para maiores de 65 Anos 129
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
130<br />
A Montagem<br />
Bailarinos de todo o mundo<br />
faziam peregrinação<br />
à ci<strong>da</strong>de industrial de<br />
Wuppertal, na Alemanha,<br />
para uma audição na<br />
companhia de Pina Bausch. Portanto, não<br />
foi surpreendente que quando Bausch<br />
anunciou, em 1998, audição de um novo<br />
elenco para remontar Kontakthof, 120<br />
homens e mulheres tenham aparecido.<br />
A diferença era que todos os candi<strong>da</strong>tos<br />
tinham mais de 60 anos e ninguém jamais<br />
subira no palco como profissional antes.<br />
Bausch foi específica, procurava<br />
idosos inexperientes, a maioria dos<br />
participantes do teste tinha pequena<br />
esperança de sucesso. Edith Rudorff,<br />
uma <strong>da</strong>s 26 pessoas seleciona<strong>da</strong>s, tinha<br />
ido, porque sempre estivera interessa<strong>da</strong><br />
no trabalho de Bausch. Por muito tempo<br />
tinha sido o seu desejo pôr o pé na sala<br />
de ensaio, para ver onde as peças tinham<br />
início, mas não sonhava fazer <strong>parte</strong><br />
de Kontakthof. Werner Klammer, um<br />
homem que simplesmente gostava de se<br />
levantar e <strong>da</strong>nçar, veio quando ocorreu a<br />
oportuni<strong>da</strong>de, também "sem esperanças,<br />
medos e expectativas"(MACKRELL,<br />
2002, p.15).<br />
Jo Anne Endicott, bailarina <strong>da</strong> companhia<br />
de Bausch desde 1973, que <strong>da</strong>nçou o<br />
Kontakthof original, em 1978, foi encarrega<strong>da</strong><br />
de ensaiar o elenco escolhido. "Eles todos<br />
tinham algum tipo de brilho em seus olhos.<br />
Eles viram isso como a chance de uma nova<br />
experiência de vi<strong>da</strong> fabulosa, uma nova<br />
aventura” (MACKRELL, 2002, p.15).<br />
A ideia de Bausch de montar com<br />
um elenco de idosos não era tão estranha<br />
quanto parece. Kontakthof é uma <strong>da</strong>s<br />
suas obras de cunho mais confessional<br />
e íntimo, explorando loucamente a<br />
1 Professora adjunta <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Viçosa<br />
(UFV). Chefe do Departamento de Artes e Humani<strong>da</strong>des<br />
(DAH). Bailarina, atriz, coreógrafa e pesquisadora na área de<br />
<strong>da</strong>nça e teatro. Doutora em Teatro (UNIRIo). Líder do Grupo<br />
de Pesquisa CNPQ Estudos Integrados em Dança, Teatro e<br />
Dança-Teatro.'<br />
irritação e os desejos que conduzem os<br />
relacionamentos adultos. A peça é muito<br />
mais sobre a personali<strong>da</strong>de dos artistas<br />
do que sobre suas técnicas de <strong>da</strong>nça. E,<br />
conforme comenta Endicott: “Pina sempre<br />
teve um fantástico senso do que é 'in'. No<br />
momento, ser velho era ‘in’. Esta peça é<br />
sobre ternura e agressivi<strong>da</strong>de, e essas<br />
pessoas tiveram essas emoções a vi<strong>da</strong><br />
inteira" (MACKRELL, 2002, p.15).<br />
Para realizar o trabalho, no entanto, esses<br />
homens e mulheres comuns, tiveram que<br />
aprender a se despirem metaforicamente -<br />
e às vezes literalmente. Durante o trabalho,<br />
o elenco em pares, <strong>da</strong>nça junto e compete<br />
em algumas <strong>parte</strong>s de solo. Um homem e<br />
uma mulher exibem uma ternura ambígua<br />
entre si, tirando lentamente a maioria de<br />
suas roupas, outro casal apresenta uma<br />
cena de hostili<strong>da</strong>de, picando um ao outro<br />
na virilha, narinas e peito. Os artistas têm<br />
de revelar detalhes perturbadores de suas<br />
vi<strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s. Eles têm que correr e gritar<br />
como crianças hiperativas. Tudo isso é<br />
bastante difícil para os artistas jovens, com<br />
corpos perfeitamente afinados, mas para<br />
alguém comum, com complexo de ser<br />
impróprio, excesso de peso ou timidez, a<br />
exposição pode ser angustiante.<br />
Endicott diz que muitos do elenco<br />
ficaram profun<strong>da</strong>mente constrangidos<br />
ao tentarem fazer o que era solicitado:<br />
"Demorou muito para se obter o estado de<br />
espírito certo" (MACKRELL, 2002, p.16). Para<br />
Jutta Geike (54 anos, a mais nova intérprete),<br />
a coisa mais estranha foi o contato ca<strong>da</strong> vez<br />
maior com os outros artistas, enquanto que<br />
para Klammer, 71 anos, o momento mais<br />
difícil foi a sequência em que ele tinha que<br />
entrar numa fila com os outros artistas e<br />
narrar uma história de amor de si mesmo.<br />
Para Rudorff, que assumiu o papel original<br />
de Endicott, o início de ca<strong>da</strong> apresentação<br />
era sempre o pior. “Eu sou o primeiro a ir<br />
para frente do palco. A primeira vez que fiz<br />
isso pensei que ia ter um colapso no meio <strong>da</strong><br />
cena" (MACKRELL, 2002, p.16).<br />
Às vezes, os idosos sentiam que o<br />
material que estavam produzindo estava em<br />
contradição com o próprio temperamento,<br />
Solange Caldeira
N° 16 | Junho de 2011<br />
pois a maior <strong>parte</strong> do espetáculo é <strong>da</strong>nçado<br />
e falado exatamente como ele foi criado, em<br />
torno do elenco original. Mas há passagens,<br />
como a seção de história de amor e as<br />
fofocas, dueto realizado por Rudorff e<br />
Geike, para o qual contribuíram com suas<br />
próprias memórias e sentimentos. "Esta é a<br />
cena mais emocionante. Nós pudemos <strong>da</strong>r<br />
forma à nossa imaginação" (MACKRELL,<br />
2002, p.16), diz Geike.<br />
O elenco sênior teve de ser induzido<br />
a abrir mão de suas inibições, e também<br />
tiveram seus sentimentos dissecados<br />
sem pie<strong>da</strong>de. Em termos de <strong>da</strong>nça pura,<br />
Kontakthof é uma <strong>da</strong>s peças mais simples<br />
de Bausch e nenhum dos seus passos<br />
pede demais do elenco. Mas mesmo sem<br />
a exigência do virtuosismo, era necessário<br />
que os idosos adquirissem os níveis<br />
profissionais de precisão e coordenação.<br />
Endicott não encobre os problemas<br />
que teve na montagem: a marcação do<br />
ritmo, ficar em formação, aprender a<br />
não incomo<strong>da</strong>r e lembrar os passos. “O<br />
processo de aprendizagem começa a ficar<br />
mais lento à medi<strong>da</strong> que envelhecemos<br />
e precisamos de muita paciência. Não<br />
foram poucas as vezes que fiquei furiosa.<br />
Eu acho que todos nós ficamos um pouco<br />
frustrados"(MACKRELL, 2002, p.16).<br />
Mas ninguém desistiu, e Endicott tem<br />
muito orgulho de dizer o quanto o elenco<br />
melhorou desde sua estreia em 2000. Mesmo<br />
assim, assistindo a performance em vídeo,<br />
é evidente que a emoção dos <strong>da</strong>nçarinos<br />
toca as reservas instintivas, que momentos<br />
de vulnerabili<strong>da</strong>de são intensificados pelo<br />
envelhecimento de seus órgãos, que faíscas<br />
de lascívia e erotismo parecem imprudentes<br />
porque são inespera<strong>da</strong>s. Endicott acredita<br />
que o elenco atual se aproxima mais do<br />
espírito <strong>da</strong> produção original do que<br />
muitos dos jovens bailarinos que também<br />
<strong>da</strong>nçaram a obra.<br />
Apesar <strong>da</strong> intenção de dissolver o elenco<br />
sênior depois de uma curta tempora<strong>da</strong><br />
em Wuppertal, vários teatros em to<strong>da</strong> a<br />
Europa foram pedindo apresentação do<br />
espetáculo. Eles aceitaram e continuam<br />
aceitando alguns convites por ano.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Endicott diz que além de perder dois<br />
ou três do elenco original por doenças, os<br />
<strong>da</strong>nçarinos parecem ter conseguido ficar<br />
mais jovens ao invés de mais velhos. Para<br />
todos os artistas, a peça tem sido uma<br />
inespera<strong>da</strong> vitória, uma reviravolta radical<br />
em suas expectativas de envelhecer. Como<br />
as palavras de Jutta: “Eu realmente gosto de<br />
estar no palco na frente <strong>da</strong> plateia. Eu não<br />
sabia disso antes” (MACKRELL, 2002, p.16).<br />
O espetáculo<br />
O que faz uma bailarina? No universo<br />
de Pina Bausch trabalha a experiência<br />
<strong>da</strong>s relações humanas - o sofrimento e<br />
a alegria - o que dignifica um corpo em<br />
movimento. E os homens e mulheres<br />
de Kontakthof, têm muita experiência. O<br />
que eles trazem para Kontakthof é uma<br />
vi<strong>da</strong> de aventura emocional. O que eles<br />
oferecem é um corpo de baile majestoso<br />
em to<strong>da</strong> a sua força e fraqueza. Ao som<br />
<strong>da</strong>s músicas populares dos anos 1930 (a<br />
mais memorável é a música de cítara de<br />
Anton Karas), cadeiras alinha<strong>da</strong>s em três<br />
paredes formam o deslumbrante cenário<br />
utilitário de Rolf Borzik. Homens contra<br />
as mulheres, atração e agressão, criam<br />
tentativas engraça<strong>da</strong>s de conexão. Eles<br />
perseguem uns aos outros com sarcasmo,<br />
flertam e brigam descara<strong>da</strong>mente.<br />
Relacionamentos adultos são revelados<br />
através dos cruéis jogos <strong>da</strong> infância. Às<br />
vezes é difícil dizer se o que se vê é uma<br />
festa social, uma louca festa do pijama ou<br />
brincadeiras no pátio <strong>da</strong> escola. A plateia<br />
ri <strong>da</strong>s bobagens e ain<strong>da</strong> é convi<strong>da</strong><strong>da</strong> a<br />
<strong>da</strong>r-lhes moe<strong>da</strong>s para montarem em um<br />
cavalo mecânico de balanço. No estoque<br />
a emoção sem restrições: a raiva, a dor,<br />
a vulnerabili<strong>da</strong>de, humilhação e desejo,<br />
todos juntos uma e outra vez.<br />
Um grupo de pessoas coloca suas<br />
cadeiras na frente do palco, onde se sentam<br />
conversando com a plateia. Um homem<br />
passa ao longo <strong>da</strong> linha com um microfone.<br />
Eles estão todos descrevendo encontros<br />
românticos: o horror de um momento em<br />
Pina Bausch: para maiores de 65 Anos 131
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
132<br />
que não se percebeu estar com espinafre nos<br />
dentes, a excitação de um novo parceiro, um<br />
nome constrangedor. Muitas <strong>da</strong>s histórias<br />
são engraça<strong>da</strong>s. A maioria é corta<strong>da</strong> no<br />
meio, a experiência individual se torna um<br />
participante <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des humanas.<br />
Um por um, os bailarinos vêm para<br />
frente, onde se colocam, mostram os dentes<br />
ou mantêm as mãos para fora, como se para<br />
uma inspeção. Uma <strong>da</strong>s mulheres se queixa<br />
sobre os dentes ruins, o exame pode ser<br />
necessário. Em pares, eles apresentam um<br />
ao outro, gesticulando como assistentes do<br />
mágico, em segui<strong>da</strong>, batem um no outro.<br />
Ca<strong>da</strong> pequena cruel<strong>da</strong>de é aplaudi<strong>da</strong> pelo<br />
resto do elenco, à espera em suas cadeiras.<br />
Uma sequência lembra o comportamento<br />
infantil: um homem persegue uma<br />
mulher gritando com um rato de<br />
brinquedo, reclamando sobre outros<br />
membros do elenco. Ao usar artistas mais<br />
velhos, parece que os comportamentos<br />
indignos se destacam mais. Mesmo<br />
quando eles fazem birras, a i<strong>da</strong>de faz<br />
com que pareçam mais vulneráveis.<br />
Porém Kontakthof é extraordinariamente<br />
engraçado. Uma bailarina pede moe<strong>da</strong>s ao<br />
público, porque ela quer montar um cavalo<br />
mecânico. Comentários são bruscamente<br />
interrompidos. Existem cenas de <strong>da</strong>nça<br />
muito fortes em conjunto e outras em que<br />
param e discutem sobre a execução.<br />
São três horas de espetáculo. E<br />
conforme é comum nas peças de Bausch, a<br />
repetição dos movimentos evidencia seus<br />
personagens presos a padrões. Porém os<br />
personagens de Kontakthof são mais livres<br />
- tem um bom tempo entre as explosões<br />
de cruel<strong>da</strong>de e dor - mas o ritmo é pesado.<br />
Ain<strong>da</strong> assim é um trabalho realizado com<br />
absoluto empenho e digno de aplausos,<br />
principalmente a versão do elenco sênior,<br />
absolutamente bela, precisa, técnica e<br />
profissional.<br />
As três horas de espetáculo voam<br />
como uma trilha sonora de memórias. Os<br />
personagens parecem estar num teste para<br />
(talvez) uma performance enlouqueci<strong>da</strong><br />
de Alice no País <strong>da</strong>s Maravilhas. Eles<br />
contam trechos de histórias em alemão<br />
ou inglês, sobem cui<strong>da</strong>dosamente sobre<br />
as cadeiras e riem de uma forma que<br />
é algo entre hilari<strong>da</strong>de e histeria. Os<br />
pares demonstram diferentes relações<br />
através <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> mesma série de<br />
carícias, em grau crescente de violência,<br />
de modo que o que está acontecendo<br />
com o primeiro casal, no quarto já se<br />
transformou em uma guerra mutuamente<br />
sádica, com o macho batendo na fêmea.<br />
Como Bausch disse em uma entrevista<br />
“para algumas pessoas a vi<strong>da</strong> seria<br />
chata sem violência em suas relações”<br />
(DOUGILL, 2009, p.23).<br />
Depois, há os tons de bordel,<br />
de mercado de carnes, que vêm<br />
espontaneamente à mente vendo as<br />
mulheres exagerando o batom vermelho<br />
como prostitutas. Como de costume, esta<br />
é uma <strong>da</strong>nça-teatro em vez de uma <strong>da</strong>nça<br />
contemporânea, e como de costume,<br />
é um hino à mulher, sua aparência,<br />
seus ritos de acasalamento, seus jogos<br />
sexuais. As sequências de movimento<br />
são meticulosamente forma<strong>da</strong>s a partir<br />
<strong>da</strong> linguagem corporal observa<strong>da</strong>: tiques<br />
de desconforto e de a<strong>da</strong>ptação, que as<br />
mulheres automaticamente adotam ao<br />
ajeitar uma alça de sutiã, arrumar subrepticiamente<br />
suas calças quando se<br />
levantam ou tentando alisar um vestido<br />
amassado.<br />
As diferenças de força física, que<br />
são marcantes e interessantes nos<br />
artistas mais velhos - a poderosa <strong>da</strong>ma<br />
antiga, o velho enrugado -, tornamse<br />
diferenças pequenas no elenco em<br />
que a quali<strong>da</strong>de crucial é o aplomb. No<br />
palco as personali<strong>da</strong>des são evidentes<br />
e Kontakthof detém a promessa de que a<br />
vi<strong>da</strong> é um ver<strong>da</strong>deiro absurdo. Livre de<br />
constrangimentos narrativos, Kontakthof<br />
revela a essência explora<strong>da</strong> por Bausch ao<br />
longo de sua vi<strong>da</strong>: a identi<strong>da</strong>de humana<br />
e a busca interminável pela felici<strong>da</strong>de.<br />
Como uma peça de <strong>da</strong>nça-teatro,<br />
Kontakthof mal tem registros de <strong>da</strong>nça. Mas<br />
quando o elenco se move em uníssono, a<br />
formação, o acréscimo de simples frases<br />
repeti<strong>da</strong>s funciona brilhantemente como<br />
declarações potentes. E é isso que é tão<br />
extraordinário.<br />
Solange Caldeira
N° 16 | Junho de 2011<br />
Kontakthof sem i<strong>da</strong>de<br />
Essa ideia de remontar Kontakthof para<br />
três elencos diferentes sintetiza o gênio de<br />
Pina Bausch como grande inovadora, uma<br />
simples faísca que se desdobrou em uma<br />
chama duradoura.<br />
Não foi a ideia mais fácil de traduzir, o<br />
projeto deveria durar três meses, mas levou<br />
um ano para ficar pronto. Os ci<strong>da</strong>dãos<br />
seniores ficaram chocados ao descobrir que<br />
a companhia de profissionais do Tanztheater<br />
Wuppertal <strong>da</strong>nçaria Kontakthof uma semana<br />
antes <strong>da</strong> estreia deles.<br />
Pensavam que seu amadorismo ficaria<br />
exposto e que pareceriam tolos quando<br />
comparados com os profissionais. Porém, o<br />
que aconteceu foi completamente diferente,<br />
e muitos membros <strong>da</strong> companhia oficial de<br />
Bausch souberam, a partir <strong>da</strong> apresentação<br />
dos seniores, que os papéis já não eram deles.<br />
Bausch raramente deu quaisquer<br />
explicações sobre o seu trabalho, mas ela<br />
escreveu brevíssimo preâmbulo de um<br />
livro sobre a sua obra, que começa com as<br />
palavras: “Kontakthof é um lugar onde as<br />
pessoas se encontram, pessoas que estão à<br />
procura de contacto" (SERVOS , 2003, p.8).<br />
A cenografia simples de Rolf Borzik,<br />
cenógrafo de Bausch até sua morte<br />
prematura em 1980, evoca uma espécie<br />
de clube, na sua recriação de um salão de<br />
baile, um palco com cortinas, um piano e 30<br />
resistentes cadeiras de madeira dispostas<br />
ao redor <strong>da</strong>s paredes.<br />
A eficácia visual deste ponto de<br />
encontro é maravilhosamente aumenta<strong>da</strong><br />
pela mais suntuosa <strong>da</strong>s compilações<br />
musicais, construí<strong>da</strong> em torno de um núcleo<br />
de tangos do período depois <strong>da</strong> República<br />
de Weimar e <strong>da</strong> época brutal do Terceiro<br />
Reich: especialmente corajoso, pois muitos<br />
dos cantores e líderes de ban<strong>da</strong> incluídos<br />
nestas canções eram judeus.<br />
São diversas as canções de Juan Llossas,<br />
German Tango King, incluindo Oh Fräulein<br />
Grete e Blonde Claire, schenk mir heht die eure,<br />
dois tangos maravilhosamente sedutores,<br />
cantados pelo incomparável Leo Monosson,<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
que fugiu dos campos de concentração para<br />
morrer sem um tostão nos E.U.A., fama há<br />
muito esqueci<strong>da</strong>; o foxtrot swing, Abends in<br />
Der Kleinen Bar, cantado por Rudi Schuricke;<br />
mais o quase esquecido Gnädige Frau, de<br />
Otto Stransky, e o fascinante instrumental<br />
Einmal ist Kleinmal, composto por Ralph<br />
Benatsky para um filme de 1937, tocado<br />
pela orquestra de Georges Boulanger.<br />
Há várias músicas gloriosas, mas vale<br />
a pena mencionar estes extraordinários<br />
exemplos de uma era de ouro <strong>da</strong> <strong>da</strong>nce music<br />
europeia orquestral - sempre obscureci<strong>da</strong><br />
pela grande guerra que se seguiu – como o<br />
icônico Harry Lime Theme, de Anton Karas,<br />
do melhor filme noir de todos os tempos,<br />
de Carol Reed, O Terceiro Homem (1949).<br />
Juntamente com a elegância musical, há o<br />
charme adicional do film night em Kontakthof<br />
e um extrato de um lindo filme feito para<br />
o Bremen Radio Broadcasting Station por<br />
Theo Kubiak, intitulado Lebensraum em<br />
Gefahr (En<strong>da</strong>ngered Environments), que<br />
mostra em closes preto e branco, um lago<br />
com patos e marrecos e patos, descritas<br />
na matéria com voz alemã traduzi<strong>da</strong> (com<br />
entonações hilariante) por um fã devoto de<br />
Bausch, Richard Wilson.<br />
É impressionante o brilho, simples e<br />
eficaz de coreografia de Bausch. Não há a<br />
menor referência à codificação <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça<br />
clássica, mas sim uma concentração no<br />
roteiro, muitas repeti<strong>da</strong>s sequências de<br />
movimentos pequenos, simples e gestos,<br />
que se estendem para fora dos corpos,<br />
em movimentos sincronizados de tal<br />
complexi<strong>da</strong>de, que é possível entender<br />
porque foram necessários quinze meses<br />
para que os seniores o apresentassem<br />
direito. Os corpos <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça, através dos<br />
vínculos de ca<strong>da</strong> movimento isolado,<br />
apresentam a beleza individual de pérolas<br />
enfia<strong>da</strong>s em um longo colar.<br />
Através de cenas episódicas, os 27<br />
personagens ganham vi<strong>da</strong> vibrante. Esta<br />
riqueza de personali<strong>da</strong>de é muito mais<br />
evidente no elenco sênior, que traz para o<br />
desempenho sua experiência de vi<strong>da</strong> como<br />
Bausch tinha pretendido. O papel feminino<br />
principal, de Edith Rudorff, foi retomado,<br />
Pina Bausch: para maiores de 65 Anos 133
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
134<br />
alguns anos atrás, por Krista Lange, cujo<br />
desempenho também é excelente, mas<br />
muitos outros permanecem, como Werner<br />
Klammer e o muito distinto Pedro Kemp.<br />
O agudo olhar de Bausch usou as<br />
formas e diferenças de i<strong>da</strong>de, para acentuar<br />
preocupações universais. Os mesmos<br />
figurinos impecáveis que parecem <strong>da</strong>r ao<br />
elenco sênior um ar desamparado, aos<br />
jovens dão ideia de sensuali<strong>da</strong>de. Vê-se as<br />
belas formas dos corpos jovens e as formas<br />
que faltam nos mais velhos. Os jovens<br />
riem dos próprios riscos e erros, nos mais<br />
velhos vê-se o temor. Mas o elenco sênior,<br />
embora não tão bom executante, é capaz de<br />
impregnar de significado seus gestos.<br />
Kontakthof é um exemplo do que hoje<br />
se considera como a assinatura de Bausch.<br />
A <strong>da</strong>nça não é muito mais do que alguns<br />
passos, com gestos naturalistas, sequências<br />
dramáticas e ameaçadoras. As repetições e<br />
sincronizações reforçam esta dramaturgia<br />
corporal, assim como a música antiga, mas<br />
ain<strong>da</strong> familiar, e as expressões de quase<br />
transe do elenco.<br />
Apesar de ter um pouco de humor,<br />
Kontakthof retrata gente comum e seus<br />
relacionamentos. No entanto, as opções<br />
não são entre um relacionamento bom e um<br />
mau, mas entre um ruim e na<strong>da</strong>. Bausch<br />
parece nos lembrar que os seres humanos<br />
entre um mau relacionamento ou nenhum,<br />
escolhem o primeiro.<br />
Vívido e desconcertante, Kontakthof é<br />
uma <strong>da</strong>s produções mais minimalista de Pina<br />
Bausch. O cenário mostra um salão de <strong>da</strong>nça<br />
e a coreografia é limita<strong>da</strong> a alguns passos<br />
de <strong>da</strong>nça e de pequenos gestos. Mas, como<br />
sempre, a nuance vem <strong>da</strong>queles que executam<br />
o trabalho - seus corpos, rostos, personali<strong>da</strong>des<br />
e manias. E neste elenco especial, de maiores<br />
de 65 anos, há uma profusão incrível de<br />
interesse humano no palco.<br />
Em contraste com a suave beleza<br />
<strong>da</strong> juventude, estes homens e mulheres<br />
maduros imprimem à peça um novo e<br />
extravagante sabor. Durante os minutos<br />
de abertura do espetáculo, quando ca<strong>da</strong><br />
bailarino passa e se olha em frente a um<br />
espelho invisível, todos nós também somos<br />
levados a olhar - fascinados pelo nariz<br />
adunco de um homem, pela barba muito<br />
bem feita de outro, pelos tornozelos finos<br />
que nos apresenta orgulhosamente uma<br />
mulher ou pelo olhar irônico de outra. E o<br />
mais importante, esses artistas mais velhos<br />
trazem nova e muitas vezes desconcertante<br />
química às partituras corporais cria<strong>da</strong>s por<br />
Bausch. Kontakthof, que pode ser traduzido<br />
como "pátio de contatos", é um termo mais<br />
aplicável a bordéis - e, de certa forma, o<br />
espetáculo é estruturado como um jogo<br />
amoroso de três horas. Acompanhados por<br />
canções de amor, esses homens e mulheres<br />
flertam avi<strong>da</strong>mente, como adolescentes.<br />
Para encontrar um parceiro usam a<br />
bajulação, humilhação, exibicionismo. E<br />
não é só sexo que eles querem, mas um<br />
simples momento de comunhão.<br />
O fato de não esperarmos ver pessoas<br />
mais velhas envolvi<strong>da</strong>s em busca de<br />
tal intimi<strong>da</strong>de, faz as cenas parecerem<br />
duplamente chocantes. Quando uma<br />
mulher arruma seus cabelos brancos com<br />
um glamour especial e passa pelos homens<br />
mostrando a carne exposta em seus ombros,<br />
a carência de seu desejo é ao mesmo tempo<br />
cômica e assustadora. Do mesmo modo,<br />
quando as mulheres, em uníssono, ajustam<br />
as tiras do sutiã, sugam seus estômagos,<br />
puxam os vestidos com vai<strong>da</strong>de e incerteza,<br />
parecem mais vulneráveis.<br />
Mas a i<strong>da</strong>de também traz o poder.<br />
Uma cena é coreografa<strong>da</strong> inteiramente a<br />
partir de pequenos atos de mal<strong>da</strong>de, como<br />
um puxão de orelha, uma tapa no rosto, e<br />
é terrível ver estas punições entre velhos<br />
casais. Outro momento tem os dois sexos,<br />
alterna<strong>da</strong>mente, <strong>da</strong>ndo ordens um para o<br />
outro - mais uma vez, com a experiência de<br />
uma vi<strong>da</strong>.<br />
O elenco sênior, não é apenas movido<br />
pela disciplina e coragem, mas também<br />
pelas histórias de vi<strong>da</strong> que trazem com<br />
eles. O gênio de Bausch sempre revelou<br />
a individuali<strong>da</strong>de de seus artistas, mas<br />
nessa encenação, ela criou uma dimensão<br />
fantástica ain<strong>da</strong> não visita<strong>da</strong>, cruel e terna.<br />
Kontakthof é um triunfo <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de sobre<br />
a experiência.<br />
Solange Caldeira
N° 16 | Junho de 2011<br />
Sem surpresa, os bailarinos<br />
adolescentes habitam um universo físico<br />
diferente, com seus cabelos brilhantes, pele<br />
suave e avelu<strong>da</strong><strong>da</strong>, articulações flexíveis.<br />
E surpreendentemente, o efeito na<br />
coreografia Bausch é galvânica - as formas<br />
dos movimentos e os ritmos acelerados<br />
parecem mais nítidos sobre estes corpos<br />
mais jovens. Mas o sentido do tempo e<br />
do lugar é menos concentrado do que no<br />
desempenho dos idosos. Seriam esses<br />
adolescentes, vestidos em traje de noite<br />
formal e <strong>da</strong>nçando músicas de 1930, netos<br />
do elenco sênior, ou aqueles os fantasmas<br />
de si mesmos jovens?<br />
Essas diferenças são intrigantes e<br />
comoventes, mas o desempenho dos<br />
adolescentes fica muito aquém <strong>da</strong>quele<br />
dos idosos, muito mais rico na comédia<br />
surreal e de interesse humano. Kontakthof<br />
é sobre relacionamento de pessoas,<br />
sobre o complicado jogo <strong>da</strong> sedução, <strong>da</strong><br />
comunicação, o elenco mais velho é capaz<br />
de trazer maior sutileza e veraci<strong>da</strong>de às<br />
situações encena<strong>da</strong>s, maior conhecimento<br />
<strong>da</strong>s propostas, maior vivência.<br />
A disciplina complexa do trabalho<br />
envolve um pesadelo de logística - centenas<br />
de mu<strong>da</strong>nças de roupa, ain<strong>da</strong> mais entra<strong>da</strong>s<br />
e saí<strong>da</strong>s, as questões de quem segue, quem<br />
se senta na cadeira e assim por diante - e esta<br />
evoluí<strong>da</strong> estrutura permanece a mesma.<br />
Mas, com poucas exceções, os artistas<br />
mais jovens não conseguem captar a<br />
mesma riqueza de caracterização que os<br />
idosos atingiram. O diálogo - tão crucial<br />
para o humor e personali<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um<br />
- é muitas vezes indistinto e os adolescentes<br />
são mais inibidos que os mais velhos.<br />
Como coreógrafa, Bausch não tinha<br />
na<strong>da</strong> a ver com o politicamente correto, mas<br />
neste ato inventivo, com este brilhante elenco,<br />
ela expôs a pobreza de nosso preconceito<br />
cultural em relação à i<strong>da</strong>de - especialmente<br />
quando aplicado à <strong>da</strong>nça. O elenco sênior<br />
que realizou Kontakthof mostrou o quanto<br />
podemos ser vitais e operantes independente<br />
<strong>da</strong> faixa etária, assim como o quanto a<br />
maturi<strong>da</strong>de pode enriquecer teatralmente o<br />
movimento corporal.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Realiza<strong>da</strong> pelos idosos, Kontakthof é<br />
uma encantadora afirmação de experiência<br />
de vi<strong>da</strong>. As emoções que Bausch destina<br />
ao trabalho - desejo, desilusão, desespero,<br />
ternura, vulnerabili<strong>da</strong>de, superação - são<br />
mais enfáticas quando enre<strong>da</strong><strong>da</strong>s na rica<br />
experiência de interpretação dos idosos.<br />
Mas, acima de tudo, esta é outra chance na<br />
vi<strong>da</strong> para os atores-bailarinos. Depois dos<br />
65 anos, ter a oportuni<strong>da</strong>de de experimentar<br />
a excitante carreira de artista é algo notável:<br />
ain<strong>da</strong> mais, <strong>da</strong>do que esta nova vi<strong>da</strong> para<br />
alguns já duram alguns anos.<br />
Diz-se que a vi<strong>da</strong> começa aos 40, em<br />
Wuppertal, começa aos 65 anos.<br />
Referências bibliográficas<br />
DOUGILL, David. Bausch’s Kontakthof .<br />
In: The Arts. London: March 2009, p. 23-24.<br />
MACKRELL, Judith. Growing old<br />
disgracefully. In: The Guardian. London:<br />
November 2002, p 15-17.<br />
SERVOS, Norbert. About Bausch. Pina<br />
Bausch explores the existential through<br />
movement. In: Dance International, Vol.<br />
XXXI, n. 2, Summer 2003. p. 8-12.<br />
TANZTHEATER WUPPERTAL PINA<br />
BAUSCH (org.) Rolf Borzik und <strong>da</strong>s<br />
Tanztheater. Text in english and french<br />
translated by Anne Surbant and Michel<br />
Adler. Wuppertal 2000.<br />
WEISS, Ulli. Applausfotos. Pina Bausch -<br />
Tanztheater Wuppertal. Mit einem Text in<br />
english by Raimund Hoghe. Hrsg. von den<br />
Wuppertaler Bühnen, Generalinten<strong>da</strong>nt<br />
Jürgen Fabritius und die "Freunde der<br />
Wuppertaler Bühnen". Wuppertal 1984.<br />
WEISS, Ulli & CHAMIER, Ille. Setz dich<br />
hin und lächle - Tanztheater von Pina Bausch.<br />
Text english and french by Anne Surbant &<br />
Michel Adler. Prometh Verlag, Köln 1979.<br />
Pina Bausch: para maiores de 65 Anos 135
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Médico Interno [Vicente Concílio]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 137
N° 16 | Junho de 2011<br />
— oLHA Ô PRoGRAMA DA PEçA!<br />
Resumo<br />
O programa de teatro moderno, tal como o conhecemos<br />
hoje, <strong>da</strong>ta de meados do século XIX. Seu provável<br />
predecessor foi o cartaz, que tinha por objetivo anunciar um<br />
determinado espetáculo. Na contemporanei<strong>da</strong>de, verificase<br />
uma varie<strong>da</strong>de gráfica e conteudística nos programas de<br />
teatro. Uma análise de programas brasileiros a partir do ano<br />
de 1953 fun<strong>da</strong>menta uma pequena definição <strong>da</strong> natureza do<br />
programa de teatro, identificando suas diferentes ênfases<br />
que configuram uma tipologia de programas e exprimem<br />
um novo pacto estético-cultural entre o público e os agentes<br />
criativos <strong>da</strong> cena teatral brasileira contemporânea.<br />
Palavras-chave: Programa de teatro, Paratexto, Teatro<br />
brasileiro.<br />
Abstract<br />
The modern theatre programme comes from the middle of<br />
the nineteenth century. Its probable predecessor was the<br />
theatre poster, whose aim was to announce a performance.<br />
In the contemporaneity, one observes a variety in<br />
both typography and content features of the theatre<br />
programmes. An analysis of Brazilian theatre programmes<br />
since 1953 lays the foun<strong>da</strong>tions for a brief definition of<br />
the nature of the theatre programme. It also provides the<br />
basis for identifying the different emphases that form the<br />
typolgy of programmes and for expressing a new culturalaesthetic<br />
pact between the audience and the creative<br />
agents of the contemporary Brazilian theatrical context.<br />
Keywords: Theatre programme, Paratext, Brazilian<br />
theatre.<br />
Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e<br />
Walter Lima Torres Neto 1<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 139
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
140<br />
Introdução<br />
Transcrevo o programa dessa récita,<br />
não só para marcar a importância<br />
<strong>da</strong> sua categoria, mas também para<br />
salientar os nomes dos artistas ilustres<br />
que nela intervieram, programa que<br />
foi valorizado com um espirituoso<br />
desenho devido ao lápis inconfundível<br />
de Bor<strong>da</strong>lo Pinheiro.<br />
Carlos Santos.<br />
Cinqüenta anos de teatro, memórias<br />
dum ator, p. 101<br />
Este artigo é a exposição<br />
provisória de algumas<br />
conclusões acerca de<br />
nossa pesquisa, cuja etapa<br />
de trabalho atual se dedica<br />
ao paratexto teatral com ênfase nos<br />
programas de teatro. 2 Nosso objetivo vem<br />
sendo o de estu<strong>da</strong>r o discurso dos agentes<br />
criativos <strong>da</strong> cena teatral onde possam<br />
se expressar para além do espetáculo.<br />
Numa primeira etapa de nossa pesquisa,<br />
iniciamos uma discussão, que ain<strong>da</strong><br />
está em curso, sobre o discurso dos<br />
autores teatrais acerca de seus próprios<br />
textos dramáticos e sua produção em<br />
geral, através dos prefácios, posfácios,<br />
comentários, advertências, notas e outras<br />
manifestações do discurso autoral. Já<br />
numa segun<strong>da</strong> etapa de nossas pesquisas,<br />
nos dedicamos, especificamente, ao<br />
discurso de outros agentes criativos <strong>da</strong><br />
cena teatral, cujas ideias são veicula<strong>da</strong>s<br />
nos programas dos espetáculos, projetos<br />
1 Felipe Matheus Bachmann Ribeiro é aluno do Curso de<br />
Graduação em Letras <strong>da</strong> UFPR e foi bolsista de IC (2009/2010).<br />
Walter Lima Torres Neto é professor de Estudos Teatrais no<br />
Curso de Letras e no Programa de Pós Graduação em Letras<br />
<strong>da</strong> UFPR.<br />
2 Esta pesquisa é desenvolvi<strong>da</strong> no âmbito dos estudos sobre a<br />
Cultura e Prática teatral: prefácio “modo de usar”, idealiza<strong>da</strong><br />
por Walter Lima Torres Neto. E este artigo é fortemente<br />
subsidiado pelas pesquisas do aluno Felipe Matheus<br />
Bachmann Ribeiro que, no âmbito <strong>da</strong>s suas investigações<br />
de Iniciação Cientifica, desenvolveu a pesquisa intitula<strong>da</strong>:<br />
Uma análise dos conteúdos estéticos e mercadológicos dos<br />
Programas de Teatro.<br />
de montagem, material publicitário entre<br />
outros suportes periféricos. 3<br />
Neste artigo, em especial, procuramos<br />
enfatizar o programa de teatro,<br />
contextualizando sua condição como objeto<br />
de estudo. Assim, procuramos traçar uma<br />
breve perspectiva <strong>da</strong> situação do próprio<br />
programa no contexto de nossa cultura e<br />
prática teatral no ocidente. Num segundo<br />
tempo, esboçamos algumas interpretações<br />
parciais, sem a total precisão que gostaríamos<br />
de demonstrar, acerca de um pequeno acervo<br />
de programas de espetáculos nacionais. 4<br />
Dessa forma, estimamos colaborar com<br />
este estudo para uma melhor percepção <strong>da</strong><br />
função do programa de teatro dentro <strong>da</strong><br />
dinâmica que envolve os agentes criativos<br />
e a coletivi<strong>da</strong>de que se beneficia com a<br />
produção simbólica gera<strong>da</strong> pelo teatro.<br />
Breve histórico do programa<br />
Não se pretende tecer aqui uma<br />
genealogia exaustiva do discurso teatral<br />
veiculado no programa de espetáculos,<br />
uma espécie de arquitexto à maneira de<br />
Gérard Genette. 5 Apesar de nosso intuito<br />
ser mais modesto, não podemos avançar<br />
em nossas considerações e hipóteses sem<br />
3 Estes suportes ditos periféricos são constituídos, na<br />
maioria dos casos, de material publicitário e divulgacional<br />
como filipetas, volantes, realeses, flyers dirigidos à imprensa<br />
e, sobretudo programas dirigidos ao leitor-espectador.<br />
4 Majoritariamente, o leitor observará que por força <strong>da</strong>s<br />
nossas circunstâncias como espectador, a maioria dos 200<br />
programas que possuímos é procedente de MG; SP; RJ; PR<br />
e RS. Estimamos, entretanto, que este conjunto, mesmo<br />
sem uma representativi<strong>da</strong>de nacional, possa expressar<br />
tendências presentes na cena brasileira de forma mais ampla.<br />
Nosso objetivo é o de problematizar o objeto programa<br />
e secun<strong>da</strong>riamente pensar uma tipologia de programas<br />
teatrais nacionais.<br />
5 Gérard Genette, no seu Palimpsestes, Paris, Éditions du Seuil,<br />
1982, pp-7-16, esclarece que o termo arquitexto foi proposto,<br />
inicialmente, por Louis Marin, “Pour une théorie du texte<br />
parabolique” in: Récit Evangélique, Bibliothèque des Sciences<br />
Religieuses, 1974. Nesse sentido, arquitexto designaria um<br />
texto de origem de todo discurso possível. o arquitexto seria<br />
uma espécie de lugar de origem que designaria o meio desde<br />
onde se instauraria o próprio discurso. Segundo Genette, esta<br />
arquitextuali<strong>da</strong>de englobaria o conjunto de categorias gerais<br />
ou transcendentes, tipos de discursos, modos de enunciação,<br />
gêneros literários, etc, que advém <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de própria<br />
de ca<strong>da</strong> texto “lido” como uma literatura ao segundo grau.<br />
Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto
N° 16 | Junho de 2011<br />
sinalizar ao leitor que, do ponto de vista de<br />
sua concepção e sua origem, o programa<br />
surge <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de uma comunicação<br />
mais eficiente entre aqueles que praticam o<br />
teatro, os agentes criativos, e o seu público.<br />
Ele é veículo, ele é meio. O programa surge<br />
como uma resposta (dos agentes criativos e<br />
produtores públicos ou privados <strong>da</strong> cena,<br />
aqueles que detêm os meios de produção)<br />
a uma necessi<strong>da</strong>de de aperfeiçoamento<br />
do processo de difusão e divulgação de<br />
uma apresentação artística que se quer<br />
oferecer a uma determina<strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de. 6<br />
O programa teatral surgiria assim <strong>da</strong><br />
evolução - hipótese mais em voga -, numa<br />
primeira fase, emancipando-se do cartaz do<br />
espetáculo, seu predecessor. A finali<strong>da</strong>de<br />
do cartaz de teatro na sua origem era o de<br />
anunciar à socie<strong>da</strong>de, em espaços públicos<br />
e privados, uma programação que possuía<br />
dia, horário e local precisos para acontecer.<br />
Tratava-se de uma sistematização do<br />
lazer.<br />
Diversas parecem ser as fontes com as<br />
quais dialogam ou dialogaram os coletivos<br />
teatrais brasileiros ao longo do tempo e na<br />
atuali<strong>da</strong>de para pensarem a composição do<br />
programa de teatro impresso entre nós.<br />
Influencia<strong>da</strong>s pela cultura e prática<br />
teatral de orientação europeia e norte<br />
americana, e graças aos diversos ciclos de<br />
turnês estrangeiras que nos visitaram no<br />
passado, a iniciativa priva<strong>da</strong> e a iniciativa<br />
estatal experimentaram, e experimentam<br />
ain<strong>da</strong>, diversos formatos que acabaram<br />
por estabelecer certos parâmetros para<br />
composição de uma tipologia dos<br />
programas de teatro. Dessa forma, é<br />
significativo passar em revista ao menos<br />
três dessas definições acerca do programa<br />
de teatro que nos parecem se relacionar<br />
com a sua concepção, sua forma e sua<br />
finali<strong>da</strong>de atualmente.<br />
O programa inglês, por exemplo,<br />
teve sua origem certamente no cartaz<br />
6 Nesse sentido, apesar de nos determos aqui mais<br />
diretamente sobre os programas de teatro, também se pode<br />
constatar uma similari<strong>da</strong>de tanto em termos de conteúdo<br />
quanto em termos de formato e aspectos gráficos relativo<br />
aos espetáculos de <strong>da</strong>nça, ópera, circo, música, artes cênicas<br />
em geral. 7 Tradução nossa.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
que era fixado nas portas dos teatros<br />
anunciando os espetáculos <strong>da</strong> casa. O<br />
Oxford Companion to The Theatre traz no<br />
mesmo verbete a definição de programa<br />
e de cartaz e conjetura a possibili<strong>da</strong>de de<br />
o cartaz ter sido usado como programa,<br />
ou seja, distribuído aos espectadores<br />
do espetáculo, desde o século XVII: “o<br />
primeiro cartaz inglês de que temos<br />
conhecimento, e que provavelmente serviu<br />
como um programa para ser distribuído<br />
em mãos, é do Public Record Office e <strong>da</strong>ta de<br />
1672”. 7 Esse programa mais primitivo era o<br />
próprio cartaz do espetáculo, dobrado para<br />
facilitar o manuseio e então distribuído e/<br />
ou vendido à plateia. No século XIX cartaz<br />
e programa se distanciaram e adquiriram<br />
configurações próprias. Quando o<br />
cartaz aumentou consideravelmente de<br />
tamanho, sua dimensão impediu que ele<br />
fosse dobrado para servir de programa.<br />
Ain<strong>da</strong> segundo Oxford, “nos anos de 1850,<br />
o Olympic Theatre voltou aos programas<br />
pequenos para uso dentro do teatro,<br />
distribuindo-os, gratuitamente, para os<br />
espectadores dos lugares mais caros”. Em<br />
pouco tempo, o programa popularizouse<br />
e passou a ser usado em outros teatros<br />
ingleses. A partir desse momento foi<br />
selado o divórcio entre o programa e o<br />
cartaz, ao menos na Inglaterra, e ambos<br />
passaram a trilhar caminhos próprios.<br />
Enquanto o cartaz sofria grande influência<br />
<strong>da</strong>s escolas de artes gráficas francesas e<br />
alemãs e valorizava o aspecto tipográfico,<br />
o programa se estabelecia, exclusivamente,<br />
como veículo de informações do<br />
espetáculo e de publici<strong>da</strong>de em geral,<br />
que apareciam pela primeira vez no ano<br />
de 1860, estabilizando-se em 1869 num<br />
formato do tipo revista, que perduraria<br />
por muitas déca<strong>da</strong>s.<br />
Percebemos as reminiscências dessa<br />
distribuição de programas aos espectadores<br />
privilegiados em alguns teatros do Brasil<br />
durante a déca<strong>da</strong> de 1950. Nesses mesmos<br />
programas brasileiros observam-se os<br />
nomes dos assinantes do teatro. Isso aponta<br />
para uma condição do programa que, além<br />
— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 141
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
142<br />
de informativa — e, como veremos adiante,<br />
estética — é também social, um rito de<br />
distinção, como ensina Bourdieu. 8<br />
Obedecia à mesma finali<strong>da</strong>de e natureza<br />
o programa teatral na França. Arthur<br />
Pougin no seu Dictionnaire du Théâtre de<br />
1885 é bastante econômico em seu verbete<br />
sobre o assunto, enfatizando, entretanto, a<br />
ordem <strong>da</strong> sequência dos números a serem<br />
executados pelos artistas, à maneira do<br />
que reafirmaria, em 1908, o empresário<br />
português Sousa Bastos. Pougin, sem se<br />
deter sobre a origem do programa, também<br />
chama a atenção para a permanência dos<br />
nomes dos artistas relacionados aos nomes<br />
<strong>da</strong>s <strong>parte</strong>s, fragmentos, peças e outros<br />
títulos desempenhados pelos artistas e que<br />
compunham o espetáculo. 9<br />
Segundo essas duas definições, podese<br />
afirmar que a ênfase, a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />
metade do séc. XIX, tanto na França<br />
quanto na Inglaterra, esteve no aspecto<br />
publicitário, assim como confirmará,<br />
em 1908, a definição portuguesa mais<br />
abaixo. Se o programa teria evoluído do<br />
8 Acerca <strong>da</strong> disposição estética do sujeito em relação com<br />
o mundo, Pierre Bourdieu afirma que, “no entanto, ela [a<br />
disposição estética] é, também, a expressão distintiva de uma<br />
posição privilegia<strong>da</strong> no espaço social, cujo valor distintivo<br />
determina-se objetivamente na relação com expressões<br />
engendra<strong>da</strong>s a partir de condições diferentes. Como to<strong>da</strong><br />
espécie de gosto, ela une e separa: sendo o produto dos<br />
condicionamentos associados a uma classe particular de<br />
condições de existência, ela une todos aqueles que são o<br />
produto de condições semelhantes, mas distinguindo-os de<br />
todos os outros e a partir <strong>da</strong>quilo que têm de mais essencial,<br />
já que o gosto é o principio de tudo o que se tem, pessoas<br />
e coisas, e de tudo o que se é para os outros, <strong>da</strong>quilo que<br />
serve de base para se classificar a si mesmo e pelo qual se é<br />
classificado”. A distinção, p.56. Nesse sentido, consideramos<br />
as listas que constam em certos programas de espetáculos<br />
ou placas honoríficas, contendo os nomes dos ci<strong>da</strong>dãosespectadores,<br />
assinantes, ou mantenedores <strong>da</strong> instituição<br />
teatral, como este rito de distinção social que atesta a<br />
disposição estética de um determinado segmento social.<br />
Consequentemente, prestígio e distinção advêm <strong>da</strong>s relações<br />
entre o modo como o sujeito classifica a si próprio e como ele<br />
se deixa classificar socialmente.<br />
9 No filme Les enfants du paradis de Marcel Carné, de<br />
1945, pode-se observar que no trabalho de reconstituição<br />
do ambiente do Boulevard du Temple, ou como ficou mais<br />
conhecido o Boulevard du Crime, os “affiches” dos teatros<br />
destacam o título dos espetáculos seguidos do nome do<br />
artista de destaque associado à encenação. Neste ambiente<br />
popular e ruidoso, característico <strong>da</strong>s salas de espetáculos<br />
deste local como é descrito no filme, nota-se a ausência do<br />
“programa <strong>da</strong> peça”.<br />
cartaz de rua, de grandes dimensões,<br />
pintado ou mais tarde impresso e colado<br />
em locais específicos na ci<strong>da</strong>de, de forma<br />
concomitante em to<strong>da</strong>s as principais<br />
capitais culturais <strong>da</strong> Europa, isso não<br />
podemos responder no momento. Porém,<br />
talvez não seja inexato afirmar que o<br />
programa de teatro era distribuído nas<br />
salas de espetáculo, sistematicamente,<br />
desde a segun<strong>da</strong> metade do século XIX<br />
tanto na França quanto na Inglaterra<br />
e possivelmente <strong>da</strong> mesma forma em<br />
grande <strong>parte</strong> <strong>da</strong> Europa. Nesse caso, o<br />
programa seria uma espécie de versão<br />
reduzi<strong>da</strong> <strong>da</strong> arte gráfica aplica<strong>da</strong> ao cartaz<br />
contendo as especificações do espetáculo<br />
e enfatizando o nome dos autores <strong>da</strong>s<br />
peças, ensaiadores e diretores bem como<br />
dos artistas intérpretes.<br />
No século XX, o programa de<br />
teatro, nos seus diferentes formatos,<br />
independentemente <strong>da</strong> arte gráfica e<br />
do conteúdo do cartaz, era vendido<br />
nos espetáculos. Os programas dos<br />
ditos Teatros Nacionais, que tendiam<br />
a ser ao mesmo tempo “formativos”<br />
e informativos, eram distribuídos<br />
gratuitamente ou vendidos a preços<br />
módicos. Para custear a publicação de seus<br />
programas, o dito teatro comercial vendia<br />
espaços de publici<strong>da</strong>de a anunciantes<br />
e posteriormente comercializava o<br />
programa ao próprio espectador.<br />
Se do ponto de vista do aperfeiçoamento<br />
<strong>da</strong> difusão e comunicação do espetáculo, o<br />
programa evoluiu como veículo do formato<br />
do cartaz de rua, na vira<strong>da</strong> do século XIX<br />
para o XX, do ponto de vista do conteúdo,<br />
poderíamos pensar na hipótese de que<br />
o programa se manteve fiel à sua matriz<br />
principal, isto é, o menu des plaisirs ou dos<br />
entretenimentos, oferecidos aos soberanos<br />
reais e às suas cortes desde o século XVI.<br />
Adviria <strong>da</strong>í uma <strong>da</strong>s similari<strong>da</strong>des entre<br />
o “menu” teatral com o próprio “menu”<br />
gastronômico, como lista detalha<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />
iguarias que compõem uma refeição. O<br />
programa de um espetáculo ofereceria o<br />
detalhamento de um objeto de consumo,<br />
de fruição, o “alimento do espírito”, dos<br />
Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto
N° 16 | Junho de 2011<br />
sentidos; <strong>da</strong> mesma maneira que o menu<br />
gastronômico apresenta a lista e a ordem<br />
em que se sucedem os pratos a serem<br />
oferecidos num banquete. 10<br />
Finalmente, nesta última reflexão, agora de<br />
origem portuguesa, propõe-se uma definição<br />
bastante singular. De autoria de Sousa Bastos,<br />
empresário teatral lusitano de confirmados<br />
sucessos comerciais e que tantas vezes visitou<br />
o Brasil, o Dicionário do Teatro Português,<br />
de 1908, conceituava: “o delineamento de<br />
qualquer espetáculo, designando as <strong>parte</strong>s<br />
de que se compõe, os artistas que nele<br />
tomam <strong>parte</strong> e a ordem por que é executado,<br />
chama programa do espetáculo”. Sem nos<br />
determos na singulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s observações<br />
do ensaiador e empresário lusitano, pode-se<br />
ressaltar duas principais condições. A de que<br />
o programa nesse momento era antes de tudo<br />
informação, seja sobre o autor e seu repertório<br />
a ser apresentado ao espectador, seja sobre o<br />
nome dos artistas encarregados <strong>da</strong> concepção<br />
e sua execução. Alia-se ain<strong>da</strong> a condição de<br />
que o programa era ordem ou ordenação <strong>da</strong><br />
exibição do entretenimento, e como tal deveria<br />
ser executado diante do espectador. Como um<br />
pequeno contrato, celebrado na compra do<br />
ingresso na bilheteria, o programa deveria ser<br />
cumprido no decorrer espetáculo. De maneira<br />
complementar, Sousa Bastos redigiu ain<strong>da</strong><br />
um segundo verbete que difere do primeiro,<br />
unicamente por estar no plural, “programas”,<br />
em cuja re<strong>da</strong>ção continuava a enfatizar o teor<br />
comercial do empreendedorismo teatral,<br />
apesar de sua crítica:<br />
A forma de anunciar os espetáculos por<br />
meio de programas é talvez a menos útil,<br />
porque geralmente são mal distribuídos. Na<br />
rua são entregues a torto e a direito, sendo<br />
os garotos os mais contemplados. A muitos<br />
não chegam, e noutros ou embrulham nele<br />
os gêneros ou os rasgam. Não é fácil fazer<br />
um bom programa, que pren<strong>da</strong> a atenção do<br />
10 As relações entre o teatro e cerimônias sociais envolvendo<br />
a gastronomia são um campo bastante vasto onde se<br />
destacam, sobremaneira, as ativi<strong>da</strong>des teatrais dentro <strong>da</strong>s<br />
casas reais europeias. observe-se que, ao longo <strong>da</strong> passagem<br />
de uma arte de corte para uma arte burguesa, a ativi<strong>da</strong>de<br />
teatral, o entretenimento, continua a ser apresentado entre<br />
refeições. Somente com o advento <strong>da</strong> autonomização <strong>da</strong> arte<br />
é que se observa uma separação entre ambos.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
transeunte e o obrigue a ir ver o espetáculo<br />
anunciado; mas quando é bem feito, a peça<br />
tem tudo a ganhar com ele. Procurar uma<br />
forma nova de fazer programas tem to<strong>da</strong> a<br />
vantagem, porque atrai as atenções”.<br />
O programa era, então, uma peça<br />
publicitária. O curto verbete encerra muito<br />
mais uma opinião que, naturalmente,<br />
aponta as preocupações do empresárioautor,<br />
do que uma definição. Revela-se,<br />
portanto uma mentali<strong>da</strong>de que enfatiza o<br />
aspecto comercial do fenômeno teatral nesse<br />
início de século XX, e que não difere muito<br />
do pensamento existente na atuali<strong>da</strong>de<br />
disseminado pela concepção de “produto<br />
cultural”. Sousa Bastos preocupava-se em<br />
fazer uma análise crítica do emprego do<br />
programa como material para divulgação<br />
e comercialização <strong>da</strong> programação teatral.<br />
Está implícita uma noção, absolutamente<br />
moderna, de “público-alvo”, que parece<br />
nunca ter saído de mo<strong>da</strong>. Como ele nos<br />
informa, por um lado, o programa era<br />
uma espécie de volante/filipeta, pequeno<br />
prospecto entregue fora do teatro aos<br />
passantes, na rua, para atraí-los a assistir à<br />
peça; por outro lado, haveria a expectativa<br />
de que o pequeno impresso chegasse aos<br />
estabelecimentos comerciais para serem<br />
exibidos, eventualmente fixados nas<br />
paredes, e ao serem assim publicizados<br />
encontrarem o seu público-alvo, o futuro<br />
espectador. O vaticínio de Sousa Bastos é<br />
exato quando sugere a aposta em novas<br />
formas de fazer programas, isto é, de<br />
divulgar sua mercadoria cultural. O que<br />
diria hoje o bem sucedido autor-ensaiador<br />
e empresário teatral dos nossos flyers que<br />
circulam pela Internet?<br />
De 1952 até 2010: algumas<br />
considerações sobre a tipologia do<br />
programa de teatro no Brasil<br />
Contando com um pequeno e<br />
heterogêneo corpus de aproxima<strong>da</strong>mente<br />
200 programas, editados entre o ano de 1952 e<br />
2010 de nosso acervo particular, tentaremos<br />
lançar as bases para uma reflexão sobre a<br />
— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 143
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
144<br />
condição do programa de teatro entre nós.<br />
As mu<strong>da</strong>nças na forma e no conteúdo em<br />
geral ocorrem simultaneamente, e para<br />
facilitar o entendimento, dividiremos nossa<br />
abor<strong>da</strong>gem em duas <strong>parte</strong>s: uma primeira<br />
consagra<strong>da</strong> aos aspectos formais e outra<br />
atinente aos aspectos conteudísticos do<br />
programa. 11<br />
O formato do programa-revista até os anos 1980<br />
Os aspectos tipográficos do programa<br />
de teatro permanecem razoavelmente<br />
estáveis num período que vai <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de<br />
1950 até o fim dos anos 1980. Percebemos<br />
uma constante em todos os programas<br />
desse período a que tivemos acesso: o<br />
formato característico de uma revista,<br />
com um número considerável de páginas<br />
e a capa diferindo do miolo, seja no tipo<br />
de papel ou na gramatura. Nesse padrão<br />
formal a que chamaremos programa do<br />
tipo revista 12 percebemos uma modificação<br />
em suas dimensões a partir dos anos 1970.<br />
O programa passa de 16 cm x 22 cm nos<br />
anos 1950 e 1960 para 21 cm x 27 cm a partir<br />
do início dos anos 1970.<br />
Outros aspectos formais do programa<br />
não apresentam essa rigidez e são alvos<br />
de mu<strong>da</strong>nças mais frequentes. O papel<br />
passa gra<strong>da</strong>tivamente do offset ou papel<br />
jornal ao couché. Inicialmente, o couché<br />
aparece apenas na capa, em segui<strong>da</strong> passa<br />
a ser usado com mais frequência no miolo;<br />
e a partir dos anos 1970 constata-se que a<br />
grande maioria dos programas do tipo<br />
revista profissionais são impressos em<br />
11 Adotamos este procedimento inspirado no estudo de Gilbert<br />
David (2002) sobre os programas de teatro de expressão<br />
francesa no Quebéc. Até o momento há poucas pesquisas<br />
neste campo, ressaltando-se o estudo de Clóvis Massa: “o<br />
paratexto teatral”. In: Cena, ano 4, n. 4, UFRGS/Instituto de<br />
Artes/Departamento de Arte Dramática, pp. 15-26, ago. 2005.<br />
Esse texto foi uma importante colaboração para discussão<br />
que estamos encaminhando.<br />
12 o termo é utilizado no oxford Companion to The Theatre:<br />
“Em 1869 o St. James’s Theatre em Londres começou<br />
a distribuir um programa revista num estilo que, com<br />
modificações, se mantém popular desde então.” (tradução<br />
nossa) Não há nenhuma definição de como seria esse estilo,<br />
mas o caráter popular do programa-revista inglês também<br />
ocorre no Brasil.<br />
couché, sendo as páginas <strong>da</strong>s capas em<br />
gramatura mais alta.<br />
As impressões colori<strong>da</strong>s vão<br />
aparecendo esparsamente. Já nos anos<br />
1950 alguns programas apresentam a<br />
capa e, por vezes a 4º capa, colori<strong>da</strong>s.<br />
Verificamos uma alternância entre capa<br />
colori<strong>da</strong> e capa preta e branca até o início<br />
dos anos 1970, quando as capas passam a<br />
ser, majoritariamente, colori<strong>da</strong>s. Porém, só<br />
encontramos o miolo em cores em alguns<br />
programas <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980.<br />
A diagramação é um ponto de pouca<br />
rigidez durante todo esse período. Não<br />
há uma ordem comum na disposição <strong>da</strong>s<br />
informações, exceto quanto à ficha técnica<br />
do espetáculo que é sempre posiciona<strong>da</strong><br />
nas páginas centrais. Fotos dos artistas<br />
e do produtor do espetáculo são muito<br />
frequentes, mas não há uma regulari<strong>da</strong>de<br />
na forma de sua apresentação. Por vezes,<br />
uma imagem ocupa a página inteira,<br />
em outras divide o espaço com outros<br />
artistas ou com material publicitário. Não<br />
obstante, percebemos um fato importante<br />
na diagramação dos programas até a<br />
déca<strong>da</strong> de 1960: o espaço privilegiado que<br />
é <strong>da</strong>do ao produtor e aos atores principais<br />
do espetáculo.<br />
A partir do final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de<br />
1980, alguns experimentos na forma do<br />
programa apontam para o novo caminho<br />
que seria implementado durante a déca<strong>da</strong><br />
seguinte: <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de formal em<br />
oposição ao padrão revista. O programa<br />
do espetáculo 13 Antígone (1986), 14 apesar<br />
de ain<strong>da</strong> apresentar um formato similar ao<br />
<strong>da</strong> revista, não tem as mesmas dimensões<br />
(15 cm x 30,5 cm ao invés de 21 cm x 27<br />
cm) e, com exceção <strong>da</strong> capa, não apresenta<br />
nenhuma imagem, apenas texto.<br />
Após esse período há uma redução<br />
significativa no número de páginas, com<br />
13 As referências dos programas citados no texto serão<br />
apresenta<strong>da</strong>s em notas de ro<strong>da</strong>pé <strong>da</strong> seguinte forma: título,<br />
autor e/ou direção, grupo, estado, ano. No corpo do texto<br />
será apresentado apenas o título e o ano do espetáculo entre<br />
parênteses.<br />
14 Antígone. Sófocles. Antônio Guedes e Helena Varvaki. o<br />
Studio. RJ. 1986.<br />
Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto
N° 16 | Junho de 2011<br />
exceção dos espetáculos subsidiados<br />
pelo poder público, que ain<strong>da</strong> utilizam<br />
programas similares aos <strong>da</strong> déca<strong>da</strong><br />
de 1980. A redução de páginas e, por<br />
conseguinte, <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de de informação<br />
veicula<strong>da</strong>, torna ca<strong>da</strong> vez menos frequentes<br />
programas do tipo revista, e abre espaço<br />
às experimentações gráficas. Aos poucos<br />
a padronização vai desaparecendo e<br />
podemos dizer que a regulari<strong>da</strong>de formal<br />
dos programas é justamente a diversi<strong>da</strong>de<br />
de formatos.<br />
Para além <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980, observase<br />
que com o tradicional formato revista<br />
convivem programas de tipologias muito<br />
diversifica<strong>da</strong>s, desde uma simples folha<br />
A4 dobra<strong>da</strong> em duas ou três <strong>parte</strong>s, o que<br />
expressa a economia nos meios de produção,<br />
até outros exemplares mais sofisticados,<br />
como no espetáculo Casa de Laura (2009), 15<br />
cujo programa é uma pequena bolsa com<br />
alguns cartões contendo fotografias e a<br />
ficha técnica do espetáculo. Em meio a essa<br />
diversi<strong>da</strong>de tipológica, há até mesmo o<br />
cartaz, que dobrado serve como programa<br />
para o espetáculo Amores Surdos (2006), 16<br />
exatamente como outrora na Inglaterra até<br />
meados do século XIX.<br />
O Conteúdo do programa<br />
Um fator mercadológico é<br />
determinante na mu<strong>da</strong>nça de perspectiva<br />
pela qual passa o programa ao longo <strong>da</strong><br />
segun<strong>da</strong> metade do século XX. Trata-se<br />
<strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de e do tipo de publici<strong>da</strong>de<br />
que é veiculado pelo programa. A<br />
ocupação do seu espaço com material<br />
publicitário já ocorria na Europa desde<br />
meados do século XIX, concomitante com<br />
o surgimento do próprio programa como<br />
objeto independente do cartaz e com<br />
15 Casa de Laura. Anamaria Nunes. RJ. 2009. Neste mesmo<br />
sentido, vale lembrar o programa em formato de cartas de<br />
baralho para Um Molière imaginário do Grupo Galpão. MG.<br />
1997. Neste sentido vale lembrar que certas encenações legam<br />
junto com o programa um pequeno objeto que literalmente<br />
materializa uma metáfora associa<strong>da</strong> ao universo <strong>da</strong> obra.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
objetivos específicos de informar mais<br />
detalha<strong>da</strong>mente o espectador acerca do<br />
espetáculo.<br />
Do ponto de vista do discurso<br />
elaborado pelos agentes criativos e<br />
produtivos <strong>da</strong> cena contemporânea,<br />
verifica-se uma autonomia. Das poucas<br />
páginas de um prospecto, de um programa,<br />
se passa para uma publicação “livresca”<br />
mais volumosa e densa, como nos sinaliza<br />
Patrice Pavis no seu dicionário acerca<br />
dos Teatros Públicos nacionais europeus.<br />
Esse princípio está na base de uma ênfase<br />
formativa desempenha<strong>da</strong>, sobretudo<br />
pelos programas publicados pelos célebres<br />
conjuntos artísticos públicos (TNP, Piccolo<br />
Teatro de Milão, Berliner Ensemble,<br />
Shauspiller, Bochum, Royal Shakespeare<br />
Company, etc.). Esses programas visam<br />
para além <strong>da</strong> informação, a formação do<br />
ci<strong>da</strong>dão-espectador, no caso europeu,<br />
esclarecendo-o sobre o autor, sobre o<br />
conjunto <strong>da</strong> obra de um determinado<br />
autor, sobre o contexto <strong>da</strong> trama, sobre<br />
análises críticas e reflexivas, sobre as<br />
razões <strong>da</strong> encenação e os pressupostos<br />
conceituais do diretor, a trajetória <strong>da</strong><br />
companhia e de seus intérpretes, etc.<br />
O programa de teatro no Brasil, <strong>da</strong><br />
déca<strong>da</strong> de 1950, é muito similar àqueles<br />
que já circulavam pelos teatros londrinos<br />
na segun<strong>da</strong> metade do século XIX, em<br />
formato de revista, com muitas páginas<br />
e recheado de propagan<strong>da</strong>. Apesar do<br />
elevado número de páginas, informações<br />
relaciona<strong>da</strong>s diretamente com o espetáculo<br />
se resumem à ficha técnica e às fotografias<br />
do produtor e dos atores principais.<br />
O principal responsável pelo elevado<br />
número de páginas nos programas nos<br />
anos 1950 é a publici<strong>da</strong>de e, em menor<br />
grau, a lista de assinantes do teatro, que<br />
é credita<strong>da</strong> no programa. Vejamos como<br />
exemplo o programa de Fidélio (1952): 17<br />
<strong>da</strong>s 44 páginas do programa, 6 creditam os<br />
assinantes, 18 são inteiramente ocupa<strong>da</strong>s<br />
com material publicitário e to<strong>da</strong>s as outras,<br />
excetuando-se apenas a capa, apresentam<br />
16 Amores Surdos. Grace Passô. Rita Clemente. Espanca!. MG. 2006. 17 Fidélio. Bouilly. Carlos Marchese. RJ. 1952.<br />
— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 145
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
146<br />
algum tipo de publici<strong>da</strong>de. É de amor que se<br />
trata (1957) 18 traz em seu grosso programa<br />
de 76 páginas, 22 ocupa<strong>da</strong>s apenas com<br />
publici<strong>da</strong>de e 74 nas quais a publici<strong>da</strong>de<br />
divide espaço com informações teatrais que<br />
não têm relação direta com o espetáculo.<br />
Há uma sessão de 8 páginas distribuí<strong>da</strong>s ao<br />
longo do programa intitula<strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong>des<br />
teatrais, em que o leitor/espectador se<br />
depara com informações não pertinentes<br />
ao espetáculo, como uma breve biografia<br />
de Sarah Bernhardt e de Shakespeare e<br />
a história do teatro de revista no Brasil.<br />
Ao que parece, são realmente apenas<br />
“curiosi<strong>da</strong>des”. 19<br />
Durante a déca<strong>da</strong> de 1960, a publici<strong>da</strong>de<br />
continua ocupando boa <strong>parte</strong> do programa<br />
e as fotografias do produtor, do diretor e do<br />
elenco — que já apareciam anteriormente,<br />
mas de maneira mais discreta — ocupam<br />
espaços maiores, às vezes de uma página<br />
inteira por fotografia. Em geral, a ordem<br />
em que aparecem é: produtor, diretor,<br />
atores principais, atores secundários<br />
(coadjuvantes), outros profissionais. É<br />
também na déca<strong>da</strong> de 1960 que começam<br />
a surgir os primeiros textos a respeito <strong>da</strong><br />
peça ou <strong>da</strong> companhia. Algumas vezes<br />
18 É de amor que se trata. Jean Anouilh. Cayetano Luca de<br />
Tena. os Artistas Unidos. RJ. 1957.<br />
19 observa-se nesse tipo de curiosi<strong>da</strong>des uma forte<br />
reminiscência de publicações do tipo “Almanaque”, que<br />
abor<strong>da</strong>vam matéria recreativa, humorística, científica,<br />
literária e informativa. Vejam-se alguns exemplos no campo<br />
teatral: Almanaque do Theatro para o ano de 1907, (organizado<br />
por Adhemar Barbosa Romeo, com a colaboração de Arthur<br />
Azevedo, olavo Bilac, Coelho Neto, entre outros). Rio de<br />
Janeiro, Typographia <strong>da</strong> Papelaria Portella, 1906. ou ain<strong>da</strong> o<br />
célebre Almanaque Guimarães, para o ano de 1885 (organizado<br />
sob a direção de Arthur Azevedo), 38o. Ano. Rio de Janeiro, A.<br />
Guimarães Editores, 1884. Podendo abranger diversas áreas de<br />
interesse, o Almanaque estritamente teatral, de periodici<strong>da</strong>de<br />
varia<strong>da</strong>, trazia informações sobre a atuali<strong>da</strong>de teatral de<br />
maneira geral. Em particular, trazia a biografia resumi<strong>da</strong> dos<br />
grandes atores e autores, preferencialmente acompanha<strong>da</strong><br />
de alguma imagem (caricaturas ou clichês); apresentava a<br />
tempora<strong>da</strong> dos principais teatros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de com suas estreias;<br />
anunciava as casas de espetáculos mostrando os preços<br />
relativos à distribuição dos lugares na sala de espetáculo;<br />
publicava curiosi<strong>da</strong>des teatrais e científicas ou <strong>da</strong> mo<strong>da</strong><br />
incluindo ain<strong>da</strong> poesias, ditos populares, pequenas historias,<br />
contos, anedotas, entre outras manifestações literárias<br />
pontuais. Todo esse conteúdo que estabelecia uma espécie de<br />
calendário artístico do entretenimento e do lazer local estava<br />
sempre, em alguma medi<strong>da</strong>, associado ao calendário cívico e<br />
religioso, não deixando de contemplar as estações do ano.<br />
há também uma brevíssima biografia do<br />
produtor, do diretor e dos atores principais.<br />
Neste período, faz-se apelo à História como<br />
disciplina que colabora no processo de<br />
legitimação do discurso criativo sugerindo<br />
uma pereni<strong>da</strong>de, uma continui<strong>da</strong>de e a<br />
afirmação de um “valor cultural”, inerente<br />
à montagem teatral, que procura distinguir<br />
o dito Teatro de Arte do Teatro Comercial<br />
ou de Diversão. 20<br />
Ain<strong>da</strong> nessa mesma déca<strong>da</strong> podemos<br />
constatar uma outra diferença entre o<br />
teatro dito de produtor ou independente e<br />
o teatro subvencionado pelo poder público.<br />
Enquanto o programa de A Megera doma<strong>da</strong><br />
(1964), 21 encena<strong>da</strong> pelo Teatro de Comédia<br />
do Paraná — grupo teatral do Teatro<br />
Guairá, naquela ocasião mantido pelo<br />
governo do estado do Paraná — ocupa<br />
21,05% de suas páginas com publici<strong>da</strong>de,<br />
a taxa ultrapassa 50% em programas de<br />
outras peças do mesmo período como A<br />
Vi<strong>da</strong> impressa em dólar (1965), 22 Liber<strong>da</strong>de<br />
Liber<strong>da</strong>de (1965), 23 Antígona (1964) 24 e<br />
Mirandolina (1964). 25 Também se observa<br />
uma diferença referente aos tipos de<br />
empresas que utilizam o espaço publicitário.<br />
No programa de A Megera doma<strong>da</strong> há<br />
apenas anúncios de órgãos do Governo do<br />
Estado do Paraná ou de empresas estatais,<br />
ao passo que no programa <strong>da</strong>s outras peças<br />
cita<strong>da</strong>s encontramos, majoritariamente,<br />
propagan<strong>da</strong> de empresas aéreas, de mo<strong>da</strong><br />
masculina e feminina, móveis, jóias, bancos<br />
20 Essa duali<strong>da</strong>de entre Teatro de Arte e Teatro Comercial<br />
foi fortemente influencia<strong>da</strong> pelas iniciativas de Constantin<br />
Stanislavski na Rússia e André Antoine na França, na vira<strong>da</strong> do<br />
séc. XIX para o XX. Com o naturalismo no teatro, inaugurouse,<br />
então, um período de modernização <strong>da</strong>s relações<br />
produtivas e, sobretudo, <strong>da</strong> experiência criativa frente à cena<br />
teatral, à ética do ator e consequentemente à relação com<br />
o espectador que passa a distinguir um teatro com novas<br />
características de linguagem, diverso <strong>da</strong> produção em série<br />
em modelos pré-codificados.<br />
21 A Megera Doma<strong>da</strong>. Shakespeare. Cláudio Correa e Castro.<br />
Teatro de Comédia do Paraná. PR. 1964.<br />
22 A Vi<strong>da</strong> impressa em dólar. Clifford odets. Paulo Afonso<br />
Grisolli. RJ. 1965.<br />
23 Liber<strong>da</strong>de Liber<strong>da</strong>de. Flávio Rangel e Millôr Fernandes.<br />
Flávio Rangel. Grupo opinião. RJ. 1965.<br />
24 Antígona. Jean Anouilh. Antonio do Cabo. RJ. 1964.<br />
25 Mirandolina. Goldoni. Gianni Rato. Teatro dos sete. RJ. 1964.<br />
Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto
N° 16 | Junho de 2011<br />
e restaurantes.<br />
No aspecto propriamente artístico,<br />
também salta aos olhos a diferença<br />
entre esses programas. Com exceção de<br />
Mirandolina, os outros três programas,<br />
que representam o teatro independente,<br />
trazem um pequeno texto sobre a peça<br />
e sobre o autor, e no caso de Liber<strong>da</strong>de<br />
Liber<strong>da</strong>de, também um texto sobre o grupo.<br />
No programa de A Megera doma<strong>da</strong> há um<br />
estudo um pouco mais detalhado <strong>da</strong> peça<br />
a ser exibi<strong>da</strong>. O texto que abre o programa<br />
é de autoria de Bárbara Heliodora, uma<br />
autori<strong>da</strong>de nos estudos shakespearianos.<br />
Seguem-se textos de Philomena Gebran<br />
Velloso, professora, Millôr Fernandes,<br />
tradutor <strong>da</strong> peça, e Octavio Ferreira do<br />
Amaral Neto, superintendente do Teatro<br />
Guaíra. Ain<strong>da</strong> há informações e fotografias<br />
<strong>da</strong> equipe técnica do espetáculo responsável<br />
pela cenografia, figurino, música, expressão<br />
corporal, ginástica e dicção. A figura do<br />
produtor independente está ausente visto<br />
que a produção é subvenciona<strong>da</strong> pelo<br />
Governo do Estado do Paraná.<br />
Esse tipo de programa característico<br />
de espetáculos subsidiados pelo poder<br />
público permanece até os dias de hoje.<br />
Do mesmo Teatro Guaíra, podemos citar<br />
os programas <strong>da</strong>s peças Os Incendiários<br />
(2000) 26 e Esperando Godot (2008), 27 como<br />
programas robustos que se apresentam<br />
no formato de revista e se constituem<br />
como estudos pormenorizados acerca<br />
do espetáculo. Eles denotam, com seus<br />
textos assinados por profissionais <strong>da</strong><br />
área cultural ou por agentes criativos<br />
envolvidos na montagem, uma vontade de<br />
excelência artística e de se destacar como<br />
um Teatro de Arte. Percebe-se que advém<br />
<strong>da</strong>í uma preocupação com a formação<br />
cultural do espectador, em oposição ao<br />
teatro de puro entretenimento.<br />
Programas que se assemelham aos<br />
descritos acima começaram a aparecer<br />
em meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970. Entre os<br />
aspectos que os aproximam citamos mais<br />
26 os incendiários. Max Frisch. Felipe Hirsch. PR. 2000.<br />
27 Esperando Godot. Samuel Beckett. Flávio Stein. o Círculo<br />
Núcleo Teatral. PR. 2008.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
uma vez o formato revista e a preocupação<br />
em oferecer ao espectador informações<br />
detalha<strong>da</strong>s sobre a montagem do<br />
espetáculo — concepção <strong>da</strong> encenação,<br />
trajetória do autor, currículo dos agentes<br />
criativos envolvidos etc. — que tenham o<br />
aval de autori<strong>da</strong>des em assuntos teatrais<br />
e/ou culturais. Com a veiculação dessa<br />
massa de informações, verifica-se que a<br />
publici<strong>da</strong>de perdeu seu espaço central<br />
no programa, assim como a figura do<br />
empresário teatral, que passou a ter menor<br />
presença nas páginas do programa. Esse<br />
fato aponta para a co-habitação entre o<br />
teatro dito ain<strong>da</strong> de empresário, na busca<br />
incessante pelo lucro; o teatro de produtor<br />
independente, que se arrisca com<br />
montagens ditas de “Arte”; o teatro de<br />
grupo, em regime de cooperativa, ambos<br />
buscando patrocínio privado ou estatal na<br />
tentativa de realizarem suas montagens.<br />
Ao invés de páginas com publici<strong>da</strong>des<br />
de todos os tipos, a Lei Sarney, 28 permite<br />
que uma grande empresa patrocine o<br />
espetáculo e coloque sua logomarca na<br />
capa do programa liberando o miolo para<br />
veicular informações exclusivas sobre o<br />
espetáculo.<br />
Embora as fotografias do diretor e do<br />
elenco continuem figurando no programa, é<br />
a palavra que adquire maior importância. Os<br />
textos se tornam mais elaborados, e a partir<br />
dos anos 1980 encontramos programas que<br />
configuram ver<strong>da</strong>deiros estudos a respeito<br />
do espetáculo, <strong>da</strong> mesma forma que os<br />
programas de Os Incendiários e Esperando<br />
Godot citados anteriormente. O programa de<br />
Fedra (1986), 29 por exemplo, traz em suas 76<br />
páginas: uma cronologia de Racine; um texto<br />
do tradutor; um segundo texto do diretor;<br />
notas de ensaio elabora<strong>da</strong>s pelos atores; além<br />
de textos de Helio Pellegrino, psicanalista;<br />
28 Em 1986, foi instituí<strong>da</strong> a primeira lei federal de<br />
financiamento às ativi<strong>da</strong>des artísticas no país, a Lei Sarney. A<br />
Lei nº 8.313/91, mais conheci<strong>da</strong> como Lei Rouanet, consolidou<br />
a renúncia fiscal como forma de apoio a projetos culturais<br />
e criou o Fundo Nacional <strong>da</strong> Cultura. Em 1990, o governo<br />
Collor suspendeu os benefícios <strong>da</strong> Lei Sarney, assim como<br />
outros incentivos fiscais em vigor. o mecanismo de apoio às<br />
ativi<strong>da</strong>des culturais foi restabelecido com a Lei Rouanet, que<br />
instituiu o Programa Nacional de Apoio a Cultura (Pronac)”.<br />
29 Fedra. Racine. Augusto Boal. RJ. 1986.<br />
— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 147
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
148<br />
Junito Brandão, especialista em estudos<br />
helênicos; Yan Michalski, crítico teatral —<br />
figuras que por serem expoentes em suas<br />
respectivas áreas legitimam a excelência<br />
artística do espetáculo ao exprimirem suas<br />
opiniões no programa, numa operação de<br />
forte distinção cultural.<br />
Com o aparecimento <strong>da</strong> Lei Sarney,<br />
verifica-se uma guina<strong>da</strong> do ponto vista<br />
mercadológico que se reflete na mu<strong>da</strong>nça<br />
do agente responsável pela produção —<br />
aqui no sentido estritamente financeiro —<br />
que atinge o teatro brasileiro. A figura do<br />
empresário teatral, detentor do capital, a<br />
exemplo de A<strong>da</strong>ury Dantas, Victor Berbara,<br />
Walter Pinto, que dependiam dos valores<br />
recolhidos à bilheteria para gerar o lucro, dá<br />
lugar ao produtor cultural, proponente de<br />
um projeto na área cultural. O pensamento<br />
empresarial vai sendo substituído por<br />
um processo de produção ca<strong>da</strong> vez mais<br />
dependente <strong>da</strong>s leis de incentivo, onde<br />
uma empresa ou mais investem <strong>parte</strong> dos<br />
impostos devidos na produção do espetáculo<br />
em troca de visibili<strong>da</strong>de e publici<strong>da</strong>de de<br />
sua imagem institucional. Nesse sentido,<br />
trata-se de um novo tipo de produção que<br />
não precisa mais se preocupar tanto com<br />
o retorno financeiro advindo <strong>da</strong> bilheteria<br />
para pagar a produção, visto que essa deve<br />
ser contempla<strong>da</strong> pelo subsídio fiscal. Dessa<br />
maneira, há uma mu<strong>da</strong>nça na forma <strong>da</strong><br />
propagan<strong>da</strong> veicula<strong>da</strong> no programa.<br />
Se antes havia um modelo mais<br />
tradicional de publici<strong>da</strong>de em que o<br />
leitor-espectador era levado a relacionar<br />
a publici<strong>da</strong>de dos produtos às vedetes<br />
do espetáculo, a partir do surgimento<br />
<strong>da</strong>s leis de incentivo à cultura, a empresa<br />
patrocinadora do espetáculo busca nesse<br />
momento se afirmar como agente-parceiro<br />
do desenvolvimento cultural do país. Isso<br />
se dá a partir de um texto que em geral abre<br />
o programa, como podemos constatar no<br />
programa de Assim é se lhe parece (1980), 30 com<br />
patrocínio <strong>da</strong> Shell, onde se lê que a Shell “se<br />
identifica com uma <strong>da</strong>s mais emocionantes<br />
formas de expressão artística: o teatro”.<br />
30 Assim é se lhe parece. Luigi Pirandello. Paulo Beti. Teatro<br />
dos 4. RJ. 1980.<br />
Há uma mu<strong>da</strong>nça no formato do<br />
programa que se intensifica gra<strong>da</strong>tivamente,<br />
estabelecendo uma tipologia que,<br />
paradoxalmente, se caracteriza pela<br />
diversificação. Isso trouxe consequências<br />
ao conteúdo do discurso escrito, sendo a<br />
principal delas a diminuição de informação<br />
que o programa passou a veicular, uma<br />
vez que o espaço do programa tornou-se<br />
restrito. A imagem supera a palavra escrita<br />
como elemento de comunicação.<br />
Um ótimo exemplo é o programa <strong>da</strong> peça<br />
As três irmãs (1998) 31 que além de apresentar<br />
um formato fora do padrão revista tradicional<br />
— trata-se de um pe<strong>da</strong>ço de papel, nem<br />
A4 nem A3, mas sim um formato vizinho<br />
a um prospecto que, estando dobrado em<br />
três <strong>parte</strong>s, adquire um formato de postal<br />
medindo 15cm x 21cm — se comunica com<br />
o leitor-espectador sem utilizar nenhuma<br />
palavra, com exceção, é claro, <strong>da</strong> ficha<br />
técnica, elemento sempre presente nos<br />
programas. O que “lemos” neste programa<br />
são imagens dos atores-personagens em<br />
fotografias que, provavelmente, foram feitas<br />
para divulgação <strong>da</strong> peça, com a sugestão de<br />
que o ambiente, as atitudes e os figurinos<br />
nos remetam ao universo <strong>da</strong> encenação<br />
de Bia Lessa. Percebemos nessa concepção<br />
de programa que ressalta o conceitual <strong>da</strong><br />
direção, o desejo de veicular, excessivamente,<br />
a linguagem do próprio espetáculo no objeto<br />
programa. Nesse sentido, o programa deixa<br />
de ser um veículo apenas de informação<br />
ou peça publicitária <strong>da</strong> montagem. Ele é<br />
alçado ao estado de objeto de arte, graças<br />
ao seu formato e à sua própria arte gráfica.<br />
E minimizando assim sua condição de,<br />
unicamente, rastro <strong>da</strong> concepção do próprio<br />
espetáculo, ele reforça o discurso do qual<br />
é suporte. O programa passa a dizer tanto<br />
sobre a concepção <strong>da</strong> cena que acaba por<br />
direcionar a própria recepção do espectador.<br />
Sob esse aspecto, Patrice Pavis alerta para o<br />
perigo de tornar o discurso do programa<br />
“similar ao discurso <strong>da</strong> encenação tal como<br />
o próprio espectador o recebe e produz”. 32<br />
31 As três irmãs. Anton Tchekhov. Bia Lessa. RJ. 1998.<br />
32 Patrice Pavis. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva,<br />
2005. p. 308.<br />
Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto
N° 16 | Junho de 2011<br />
Outro exemplo é o programa <strong>da</strong> peça<br />
Suíte 1 (2009), 33 que mostra um fac-símile de<br />
anotações <strong>da</strong>s primeiras impressões que os<br />
atores tiveram do texto e outro do desenho<br />
do cenário com algumas anotações para a<br />
cena de número quatro. Essas informações<br />
revelam ao leitor-espectador <strong>parte</strong> <strong>da</strong><br />
concepção <strong>da</strong> cena e <strong>da</strong> construção <strong>da</strong><br />
personagem por <strong>parte</strong> dos atores. Nesse<br />
mesmo programa há uma descrição <strong>da</strong><br />
trajetória <strong>da</strong> montagem e uma seleção<br />
de críticas sobre o espetáculo, elementos<br />
que têm a mesma função consagradora<br />
<strong>da</strong>queles textos de Helio Pellegrino, Junito<br />
Brandão e Yan Michalski no programa<br />
de Fedra. Neste caso, além <strong>da</strong> ação de<br />
legitimar, historicizando, a trajetória<br />
do espetáculo, o programa propõe uma<br />
intimi<strong>da</strong>de entre o leitor-espectador e<br />
os agentes criativos que expõem seus<br />
esboços para as cenas. Pode-se intuir que<br />
revelando os “bastidores” <strong>da</strong> experiência<br />
criativa, o laço de adesão entre agentes<br />
criativos e espectadores se torna mais forte,<br />
possibilitando uma cumplici<strong>da</strong>de mais<br />
efetiva, sobretudo diante de experiências<br />
de linguagem mais radicais.<br />
Ain<strong>da</strong> nessa mesma linha encontramos<br />
programas que trazem uma bibliografia,<br />
fruto <strong>da</strong> pesquisa de campo para a escrita<br />
do espetáculo. Mais um elemento que<br />
também revela a concepção <strong>da</strong> peça<br />
e direciona o leitor-espectador para<br />
buscar maiores subsídios sobre o assunto<br />
abor<strong>da</strong>do pelo espetáculo. Como exemplos<br />
dessa tipologia de programa temos Febre –<br />
um sintoma cênico (2008) 34 e O Amargo Santo<br />
<strong>da</strong> Purificação (2009). 35<br />
Em meio à diversi<strong>da</strong>de tipológica de<br />
programas, percebemos certa regulari<strong>da</strong>de<br />
em relação ao tipo de informação que<br />
alguns programas pretendem <strong>da</strong>r ao leitorespectador.<br />
São programas de companhias<br />
consagra<strong>da</strong>s que variam muito as<br />
33 Suíte 1. Philippe Minyana. Márcio Abreu. Companhia<br />
Brasileira de Teatro. PR. 2009.<br />
34 Febre – um sintoma cênico. Fernando Kinas. Fernando<br />
Kinas. Pausa Companhia de Teatro. PR. 2008.<br />
35 o amargo santo <strong>da</strong> purificação. Criação Coletiva. Tribo de<br />
Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz. RS. 2009.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
informações veicula<strong>da</strong>s, mas convergem<br />
num discurso de afirmação do próprio<br />
grupo, geralmente apresentando a história<br />
<strong>da</strong> companhia, seus princípios artísticos,<br />
expondo sua ideologia e revelando<br />
sua mentali<strong>da</strong>de diante <strong>da</strong> experiência<br />
criativa. Esse discurso está presente tanto<br />
em grupos mais consoli<strong>da</strong>dos como A<br />
Companhia dos Atores no programa de<br />
Autopeças (2008) 36 e a Tribo de Atuadores<br />
Oi Nóis Aqui Traveiz em O Amargo Santo<br />
<strong>da</strong> purificação, quanto em companhias e/ou<br />
grupos mais novos, mas já reconhecidos,<br />
caso do Grupo Espanca!, que inclui um<br />
texto afirmando a identi<strong>da</strong>de do grupo<br />
e sua trajetória no programa de sua<br />
primeira peça, Por Elise (2006), 37 quando<br />
<strong>da</strong> tempora<strong>da</strong> de 2006 em Curitiba, um<br />
ano após sua estreia.<br />
Entretanto, sobrevivem ain<strong>da</strong> em<br />
pleno século XXI programas nos moldes<br />
do século XX. Com a pulga atrás <strong>da</strong> orelha<br />
(2002) 38 apresenta, além <strong>da</strong> ficha técnica,<br />
apenas fotos do elenco, do diretor e do<br />
produtor, de maneira muito similar aos<br />
programas dos anos 1950, em formato<br />
de revista com destaque para os atores<br />
principais, que nesse caso são também<br />
atores bastante reconhecidos na televisão<br />
brasileira — Herson Capri, Maitê Proença,<br />
Edwin Luisi, Rogério Fróes e Françoise<br />
Forton — e foto do produtor, que apesar<br />
de ser o último a aparecer no programa é<br />
a figura com maior destaque.<br />
Como se pode constatar, há uma<br />
coexistência de atitudes criativas<br />
diversifica<strong>da</strong>s diante de uma mesma<br />
dinâmica, isto é, nos procedimentos que<br />
consistem na concepção, na apresentação<br />
e na divulgação de um espetáculo<br />
teatral. Verifica-se uma convivência de<br />
experiências criativas diante <strong>da</strong> prática<br />
teatral atual. Neste caso, a tipologia<br />
dos programas reflete mentali<strong>da</strong>des<br />
específicas que nos fazem ver de<br />
que local social, ideológico, artístico,<br />
36 Autopeças. Companhia dos Atores. RJ. 2008.<br />
37 Por Elise. Grace Passô. Grace Passô. Espanca!. MG. 2006.<br />
38 Com a pulga atrás <strong>da</strong> orelha. George Feydeau. Gracindo<br />
Jr. RJ. 2002.<br />
— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 149
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
150<br />
empresarial estão se pronunciando<br />
esses agentes criativos <strong>da</strong> cena. Esse<br />
conjunto de mentali<strong>da</strong>des expressa<br />
a diversifica<strong>da</strong> e complexa cultura e<br />
prática teatral brasileira do ponto de<br />
vista <strong>da</strong> comunicação de um objeto<br />
que em certa medi<strong>da</strong> se quer único,<br />
artístico, de arte.<br />
O programa de teatro: suas funções e<br />
suas ênfases<br />
Como vimos, o programa de teatro<br />
é destinado ao espectador-leitor.<br />
Portanto, estamos considerando um<br />
grupo alfabetizado com capaci<strong>da</strong>de<br />
de efetuar uma leitura consciente do<br />
conteúdo veiculado estabelecendo<br />
relações com a encenação assisti<strong>da</strong>.<br />
Assim sendo, qual seria a função do<br />
programa teatral?<br />
Ao concluirmos esse breve artigo,<br />
poderíamos idealizar duas funções<br />
complementares para uma leitura<br />
sistematiza<strong>da</strong> dos programas de teatro.<br />
Uma primeira seria a função primária.<br />
Essa função seria condicionante e<br />
adviria <strong>da</strong> própria natureza do objeto<br />
programa, visto que se o programa não<br />
a cumprir não poderemos caracterizálo<br />
como tal. Nesse sentido, todos<br />
os programas apresentariam um<br />
compromisso com um conjunto de<br />
informações. Sejam essas informações<br />
gráfico-visuais ou escritas, elas são<br />
referentes aos créditos artísticos<br />
e técnicos atribuídos aos agentes<br />
criativos e produtivos mobilizados para<br />
a realização <strong>da</strong> apresentação pública<br />
anuncia<strong>da</strong>. Complementam essas<br />
informações o enunciado <strong>da</strong> obra a ser<br />
difundi<strong>da</strong> e exibi<strong>da</strong>, isto é, seu título,<br />
juntamente com sua periodici<strong>da</strong>de,<br />
horário e local específico <strong>da</strong> exibição.<br />
A principal característica do<br />
programa, considerando sua gênese<br />
a partir do cartaz de rua, seria o seu<br />
compromisso com a seleção e exibição<br />
do conjunto de informações diversas<br />
sobre a concepção e a apresentação<br />
artística ou o universo por onde essa<br />
criação transita. Trata-se, portanto de<br />
uma ênfase informativa.<br />
Para além desta função primária<br />
esclarecendo ao espectador sobre a<br />
ficha técnica, estampando, por vezes,<br />
o resumo <strong>da</strong> ação, a ênfase informativa<br />
está calca<strong>da</strong> numa mediação entre palco<br />
e plateia. É natural que percebamos<br />
outras ênfases junto aos programas<br />
de teatro que variam de acordo com a<br />
época, os coletivos teatrais, o sistema<br />
de produção, entre outros fatores<br />
comunicacionais e de mercado cultural.<br />
Podemos tentar entender melhor a<br />
natureza <strong>da</strong> prática teatral segundo os<br />
programas teatrais se nos perguntarmos<br />
acerca <strong>da</strong> ênfase que eles estimam <strong>da</strong>r<br />
ao se dirigirem ao espectador.<br />
Complementando essa primeira função,<br />
poderíamos adicionar uma segun<strong>da</strong>,<br />
função secundária, que se caracterizaria<br />
pelo conjunto de informações passíveis<br />
de serem veicula<strong>da</strong>s promovendo uma<br />
diversificação que acabaria por revelar os<br />
objetivos específicos e as ênfases dos mais<br />
diversos tipos de experiências criativas<br />
promovi<strong>da</strong>s pelos artistas. Essa atitude gera<br />
uma inumerável tipologia de programas.<br />
O programa via de regra afirma<br />
uma identi<strong>da</strong>de do coletivo teatral que<br />
o origina, ou do próprio espetáculo a ser<br />
exibido, no caso de uma apresentação<br />
esporádica com um elenco ocasional.<br />
Traduzindo as relações de uma política<br />
cultural entre as instituições e a socie<strong>da</strong>de,<br />
seja no âmbito <strong>da</strong> iniciativa priva<strong>da</strong> ou<br />
<strong>da</strong> iniciativa pública, o programa revela<br />
uma identi<strong>da</strong>de. Essa identi<strong>da</strong>de sendo<br />
individual, coletiva ou de classe, revelaria<br />
tanto os princípios do coletivo criativo<br />
e do espetáculo, quanto reafirmaria a<br />
trajetória dos agentes criativos inscrita<br />
no âmbito <strong>da</strong> sua ci<strong>da</strong>de, do seu estado<br />
ou do seu país.<br />
O programa regula e revela uma<br />
experiência criativa que se quer<br />
compartilha<strong>da</strong>, e expõe uma mentali<strong>da</strong>de<br />
sobre a dinâmica de trabalho construindo<br />
Felipe Matheus Bachmann Ribeiro e Walter Lima Torres Neto
N° 16 | Junho de 2011<br />
uma cultura e prática teatral que espera<br />
ganhar a adesão do público. Como<br />
na atuali<strong>da</strong>de há espetáculos que não<br />
nos contam, necessariamente, uma<br />
história, mas apresentam uma sucessão<br />
de ações por meio de partituras vocais<br />
e corporais, experimentos cênicos que<br />
negam a representação, convocando a<br />
cumplici<strong>da</strong>de do espectador por outros<br />
sentidos, o programa — em sua função<br />
secundária — é um importante mediador<br />
<strong>da</strong> proposta estético-cultural adota<strong>da</strong><br />
por esses agentes criativos <strong>da</strong> cena.<br />
Não mais condicionado por<br />
uma função primária, cuja ênfase é<br />
informativa, o programa de teatro<br />
se revela como relato de trabalho ou<br />
como exposição teórica <strong>da</strong> proposta do<br />
coletivo teatral. O programa também se<br />
apresenta como um memorial descritivo<br />
e analítico <strong>da</strong>s etapas de trabalho que<br />
originaram a cena. Desta maneira, o<br />
programa busca a adesão do espectador<br />
com a finali<strong>da</strong>de de estabelecer laços<br />
de fidelização.<br />
As transformações pelas quais<br />
passou o programa de teatro durante<br />
esse meio século estabelecem um pacto<br />
estético-cultural, permanentemente<br />
dinâmico, entre o público e o espetáculo.<br />
O programa, por vezes, é alçado ao<br />
patamar de obra de arte, por conta <strong>da</strong><br />
sua autonomia e sofisticação em termos<br />
de linguagem gráfica e visual, passando<br />
a possuir um valor autônomo em<br />
detrimento do espetáculo que ele deveria<br />
divulgar. Essa publicação, contudo, não<br />
deixa de ser a fiel depositária, a fonte, o<br />
documento sujeito à reflexão a posteriori,<br />
por ser um vestígio do instantâneo<br />
que constitui a própria história do<br />
espetáculo. A re<strong>da</strong>ção do programa<br />
investe na formação, no aperfeiçoamento<br />
e, por conseguinte, no estreitamento <strong>da</strong>s<br />
relações com seu leitor-espectador. Ao<br />
pretender ser suporte para uma difusão<br />
e fidelização de uma produção cultural<br />
imaterial, simbólica, o programa<br />
continua sendo um vestígio, um traço<br />
memorialístico do espetáculo teatral.<br />
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<strong>Urdimento</strong><br />
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Arquimedes Livros, 2006.<br />
— olha ô programa <strong>da</strong> peça! 151
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Paul [Guilherme Rótulo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros 153
N° 16 | Junho de 2011<br />
DE SERES HUMANoS REAIS E<br />
PERFoRMERS VERDADEIRoS 1<br />
Resumo<br />
Este artigo discute noções como autentici<strong>da</strong>de e<br />
veraci<strong>da</strong>de no trabalho cênico frente ao crescente interesse<br />
em usar depoimentos biográficos de atuantes nãoprofissionais.<br />
O artigo se questiona sobre as fontes desse<br />
interesse bem como as diferenças dessas práticas teatrais<br />
em relação a formatos televisivos que trabalham com<br />
depoimentos biográficos e reflete sobre diferentes efeitos<br />
de autentici<strong>da</strong>de que se pode produzir com um teatro<br />
documentário que oscila entre ficção e reali<strong>da</strong>de empírica..<br />
Palavras-chave: teatro documentário, teatro pósdramático,<br />
prática de atuação teatral, teatrali<strong>da</strong>de.<br />
Abstract<br />
This article discusses the notions of authenticity and<br />
veracity in contemporary theatrical productions within the<br />
context of a growing interest to make use of biographic<br />
confessions of non-professional actors on stage. The<br />
article asks itself about the causes of this interest as well<br />
as the differences that separate these theatrical practices<br />
from TV programs that work with biographic statements<br />
and confessions. It also reflects on the different effects<br />
of authenticity that may be produced by a documentary<br />
theatre that oscillates between fiction and empirical<br />
reality.<br />
Keywords: documentary theatre, post-dramatic theatre,<br />
theatrical acting, theatricality.<br />
Annemarie M. Matzke 2<br />
Tradução de Stephan Baumgärtel 3<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros 155
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
156<br />
Uma mulher entra no<br />
palco. Na mão, ela<br />
carrega uma lâmpa<strong>da</strong><br />
de pé, um modelo de<br />
IKEA. Ela procura um<br />
lugar, põe a lâmpa<strong>da</strong> no chão e começa a<br />
contar: fala do seguro de desemprego, <strong>da</strong><br />
redução <strong>da</strong> assistência social do governo<br />
e <strong>da</strong>s injustiças; <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong><br />
um se engajar e, ain<strong>da</strong>, do fato que ela está<br />
farta; como é preciso que alguém faça algo,<br />
ca<strong>da</strong> um de nos. Durante a fala, ela perde a<br />
fluência, chega a parar momentaneamente.<br />
Cria-se a impressão como se ela estivesse<br />
falando o seu texto de modo livre, como se<br />
ela decidisse espontaneamente o que dizer.<br />
Ouve-se o tic-tac de um relógio. A luz se<br />
apaga lentamente – um minuto se passou:<br />
um minuto na luz do palco.<br />
Essa cena curta provém <strong>da</strong> encenação<br />
Tableau com existências marginais (Standbild<br />
mit Randexistenzen) de Björn Auftrag e<br />
Stefanie Lorey de 2004. 4 O conceito <strong>da</strong><br />
encenação é buscar, via anúncios nos jornais,<br />
pessoas que gostariam dizer algo no palco,<br />
é colocar a sua disposição um minuto de<br />
tempo cênico. Este minuto pode ser usado<br />
de modo arbitrário. O pressuposto é que<br />
ca<strong>da</strong> um traz consigo a sua própria lâmpa<strong>da</strong><br />
de pé. Aos poucos configura-se no palco<br />
uma ‘imagem de grupo’ composta pelos<br />
trinta e cinco ‘atuantes’: alguém conta uma<br />
pia<strong>da</strong> sobre Bush, uma outra pessoa conta<br />
do seu cunhado que morreu de câncer;<br />
uma fica em silêncio por um minuto. Do<br />
lado-a-lado dos diferentes discursos surge<br />
um caleidoscópio de confissões, histórias, e<br />
1 In: Fischer-Lichte, Erika et. al. (eds.). Wege der Wahrnehmung.<br />
Authentizität, Reflexivität und Aufmerksamkeit im zeitgenössischen<br />
Theater. Berlin: Theater der Zeit, 2006. pp. 39 – 47.<br />
2 Prof. Dr. Anneliese Matzke é pesquisadora, atriz e performer,<br />
membro do coletivo SheShePop, cujos projetos teatrais são<br />
situados na fronteira entre performance e teatro, in<strong>da</strong>gando<br />
os limites entre representação e performance, entre práticas<br />
públicas e priva<strong>da</strong>s. Ela é professora do Departamento de<br />
Ciências Teatrais <strong>da</strong> Universität Hildesheim/Alemanha,<br />
pesquisando e lecionando sobre formas experimentais do<br />
teatro contemporâneo.<br />
3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Teatro do<br />
Centro de Artes <strong>da</strong> UDESC.<br />
4 Apresentações, entre outras, no Mousonturm em Frankfurt/<br />
Main, no teatro Hebbel am Ufer em Berlin, no Diskurs-Festival<br />
Gießen, e no teatro Die Kammerspiele em München.<br />
anedotas pessoais, ou discursos engajados,<br />
que realça a individuali<strong>da</strong>de dos diferentes<br />
representadores (de si mesmo). A previsão<br />
de Andy Warhol que no futuro ca<strong>da</strong> um<br />
de nos poderia ganhar fama por quinze<br />
minutos, é realizado aqui no palco pelo<br />
menos por um minuto.<br />
A organização <strong>da</strong> encenação é simples<br />
e transparente para o espectador. O palco,<br />
a luz <strong>da</strong> lâmpa<strong>da</strong> de pé e o limite de tempo<br />
atribuem a ca<strong>da</strong> apresentação uma moldura.<br />
As apresentações são organiza<strong>da</strong>s segundo<br />
um regulamento reconhecível. A pesar<br />
dessa delimitação formal <strong>da</strong> encenação,<br />
cria-se um impacto especial de vivencia<br />
imediata. Tudo parece ‘real’, como se a<br />
atuante 5 o trouxesse diretamente <strong>da</strong> sua<br />
vi<strong>da</strong> cotidiana para o palco. No caso <strong>da</strong><br />
lâmpa<strong>da</strong> de pé, trata-se de uma lâmpa<strong>da</strong> de<br />
IKEA que pode ser encontra<strong>da</strong> em muitos<br />
lares, e a roupa tampouco é reconhecível<br />
como figurino. A forma <strong>da</strong> apresentação<br />
também subverte certas convenções de<br />
uma apresentação teatral. Durante a sua<br />
fala, a ‘atuante’ é nervosa, comete erros<br />
de pronuncia, mas exatamente por causa<br />
deste modo faltoso de falar o seu discurso<br />
aparenta ser não-encenado. Será que tudo<br />
que se opõe à construção do acontecimento<br />
teatral, e por tanto ao seu caráter encenado,<br />
produz um efeito de autentici<strong>da</strong>de? Com<br />
isso, autentici<strong>da</strong>de no palco seria aquilo<br />
que parece ser não-encenado, mesmo que a<br />
apresentação organiza um visível contexto<br />
de encenação.<br />
Talvez a impressão de autentici<strong>da</strong>de<br />
seja produzi<strong>da</strong> por uma especial<br />
confiabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ‘atuante’ que convence a<br />
mim, a espectadora, que ela realmente quer<br />
dizer o que ela fala. À diferença de um ‘ator’<br />
que fala em nome de um personagem, ela<br />
formula um assunto pessoal. Ela responde<br />
por aquilo que diz. Pode-se imaginar que<br />
repetiria as suas reivindicações na rua<br />
5 “Darsteller/in” em alemão, uma palavra cujo significado<br />
oscila entre a representação e a apresentação. No Brasil,<br />
usa-se termos como ‘ator-<strong>da</strong>nçarino’, ‘ator-compositor’,<br />
‘atuador’ ou ‘atuante’ para referir-se a esta instância cênica<br />
que engloba e transbor<strong>da</strong> o ator tradicional enquanto alguém<br />
que representa um papel configura<strong>da</strong> anteriormente através<br />
de um texto. Devido ao contexto não-profissional, optei pela<br />
palavra ‘atuante’. [N. T.]<br />
Annemarie M. Matzke
N° 16 | Junho de 2011<br />
durante uma manifestação: autentici<strong>da</strong>de<br />
como uma forma de street credibility.<br />
Será que a impressão de imediatez se<br />
cria exatamente pela contradição entre a<br />
proximi<strong>da</strong>de cotidiana <strong>da</strong> ‘atuante’ e a<br />
delimitação exposta <strong>da</strong> encenação?<br />
A formulação do ‘ser humano<br />
real’ com que intitulei o meu ensaio é<br />
propositalmente polêmica: no palco e no<br />
dia-a-dia, todo ser humano é naturalmente<br />
‘real’, independentemente se é um ator ou<br />
uma funcionária de um banco. Mas perante<br />
a crescente prática no teatro contemporâneo<br />
de colocar atuantes não-profissionais no<br />
palco, parece necessário realizar algumas<br />
diferenciações. Da onde vem o interesse na<br />
encenação de atuantes não-profissionais?<br />
Onde se encontra a diferença em relação a<br />
formatos <strong>da</strong> mídia como o Talkshow ou os<br />
Reality Soaps? Quais efeitos de autentici<strong>da</strong>de<br />
são produzidos, quando se aposta não em<br />
atuantes profissionais, mas na apresentação<br />
de pessoas comuns?<br />
Comparando as encenações que surgem<br />
neste contexto, chama a atenção que os<br />
‘atuantes’ apresentam a sua história, a sua<br />
situação empírica, e por tanto, apresentam<br />
eles mesmos. Na maioria <strong>da</strong>s vezes,<br />
eles não representam mais personagens<br />
literários ou figuras dramáticas – e caso<br />
que o façam, é para refletir sobre a própria<br />
situação de vi<strong>da</strong>. 6 Eles são postos em<br />
cena como expertos <strong>da</strong> própria causa:<br />
como ‘especialistas do cotidiano’. 7 Eles se<br />
apresentam a própria pessoa ou um assunto<br />
pessoal, como na encenação descrita no<br />
início. É um teatro biográfico com uma<br />
abor<strong>da</strong>gem documentária.<br />
No entanto, essa definição é pertinente<br />
também para muitas apresentações no<br />
âmbito do teatro-performance. Elas também<br />
mostram, a partir de questionamentos<br />
pessoais, encenações de um Eu além <strong>da</strong><br />
representação de uma figura. Nenhum<br />
6 Na encenação Wallenstein (2005), do grupo Rimini-Protokoll,<br />
os ‘atuantes’ não representam as figuras <strong>da</strong> peça. Ao contrário<br />
disso, é in<strong>da</strong>gado até que ponto pode se reconhecer nos<br />
conflitos a biografia dos ‘atuantes’ os conflitos do drama.<br />
7 Behrend, Eva. “Die Alltagsspezialisten”, in Jahrbuch Theater<br />
heute (2003), p.52-63. Exemplos para esta forma de teatro são<br />
Rimini Protokoll, Theater Lubricat, Gudrun Herbold, Hofmann<br />
e Lindholm, para mencionar só alguns.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
texto literário é ponto de parti<strong>da</strong> para a<br />
montagem, mas os ‘atuantes’ tornam a si<br />
mesmo, sua biografia ou corporei<strong>da</strong>de, o<br />
assunto <strong>da</strong> apresentação. O que se mostra<br />
não é um teatro auto-biográfico. Estas<br />
“encenações do Eu” são discussões de<br />
formas de encenação sociais e midiáticas,<br />
que são reconhecíveis nos trabalhos. Como<br />
exemplos, pode-se mencionar o Quizshow<br />
<strong>da</strong> produção QUIZOOLA! do grupo<br />
Forced Entertainment, o Setting Ballsaal na<br />
encenação Wa r u m t a n z t i h r n i c h t? [Porque<br />
vocês não estão <strong>da</strong>nçando?] do grupo<br />
SheShePop, ou o mundo do trabalho como<br />
lugar de um auto-marketing na performance<br />
Wo r k do grupo Gob Squad. As encenações<br />
revelam in<strong>da</strong>gações nos modos sociais de<br />
encenação. São citados formatos <strong>da</strong> mídia<br />
ou cultural performances, que precisam uma<br />
forma especifica <strong>da</strong> auto-apresentação.<br />
Este procedimento se mostra<br />
também nas encenações de atuantes nãoprofissionais,<br />
que muitas vezes, sem<br />
qualquer tipo de formação de ‘ator’, são<br />
profissionais na auto-apresentação. Na<br />
sua encenação de Wallenstein, ao por na<br />
pessoa de Sven-Joachim Otto um político<br />
profissional no palco, o grupo Rimini-<br />
Protokoll não só tematiza modos de autoapresentação<br />
profissionais – durante a<br />
encenação, Otto revela, por exemplo, as<br />
estratégias <strong>da</strong> sua campanha publicitária –,<br />
mas os expõe no próprio ato de apresentar e<br />
jogar cenicamente. Uma discussão pareci<strong>da</strong><br />
com a autopromoção mostra a trilogia<br />
Pe r f o r m Pe r f o r m i n g do bailarino e performer<br />
Jochen Roller, que in<strong>da</strong>ga no seu trabalho<br />
“o sentido e o absurdo de compreender a<br />
<strong>da</strong>nça como trabalho”. Agui, o negocio com<br />
a auto-revelação se transforma no show<br />
propriamente dito. Portanto, as transições<br />
entre o performer, que torna a própria<br />
pessoa assunto <strong>da</strong> sua apresentação, e o<br />
atuante não-profissional, que recorre a<br />
suas estratégias pessoais de representar o<br />
próprio Eu, não são claramente delimita<strong>da</strong>s.<br />
Ambos fazem <strong>da</strong> sua competência na autoencenação<br />
o tema <strong>da</strong> sua apresentação e<br />
com isso aludem a um fenômeno social:<br />
a necessi<strong>da</strong>de de saber como se autopromover,<br />
e, portanto, a obrigação de<br />
De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros 157
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
158<br />
apresentar uma imagem autêntica de si<br />
mesmo. Por isso, eles não tratam do ser<br />
humano ‘real’, cuja proximi<strong>da</strong>de com o<br />
cotidiano deveria lhe confiar autentici<strong>da</strong>de,<br />
nem de uma apresentação ‘ver<strong>da</strong>deiro’ de<br />
um suposto Eu por <strong>parte</strong> dos performers,<br />
mas tratam de um jogo com estratégias de<br />
(auto-)apresentação.<br />
Um desdobramento parecido pode ser<br />
observado também nas mídias de massa.<br />
Nos formatos <strong>da</strong> televisão encontra-se um<br />
crescente número de ‘representadores’ que<br />
não são mais introduzidos como atores ou<br />
apresentadores profissionais – começando<br />
de Big Br o t h e r (2000), passando pelos<br />
Reality Soaps até De u t s c h l a n D s u c h t<br />
D e n su P e r s t a r [A Alemanha procura o<br />
superstar; um show de talentos musicais,<br />
N.d.T.] (2003). Enquanto, no início, um dos<br />
objetivos desses formatos era, através <strong>da</strong><br />
criação de configurações de teste extremas<br />
– seja de uma isolação do mundo afora, ou<br />
através de provocações e desafios – fazer<br />
com que os candi<strong>da</strong>tos se apresentem<br />
de modo autêntico, agora esta busca por<br />
autentici<strong>da</strong>de aparece em segundo plano.<br />
Os formatos mais novos observam os<br />
candi<strong>da</strong>tos no processo de se tornar autoapresentadores<br />
mais e mais aperfeiçoados,<br />
por exemplo, quando eles aperfeiçoam<br />
a sua auto-encenação enquanto popstars.<br />
O espectador não mais pontua como os<br />
candi<strong>da</strong>tos são além <strong>da</strong> câmara, mas como<br />
eles constroem uma imagem em frente<br />
e para a câmara que parece autêntica. O<br />
objetivo não parece ser a confecção de<br />
autentici<strong>da</strong>de para além <strong>da</strong> encenação, mas<br />
a autentici<strong>da</strong>de no ato <strong>da</strong> encenação.<br />
Na descrição <strong>da</strong>s formas teatrais de<br />
representação – tanto no contexto dos<br />
atuantes não-profissionais quanto no<br />
teatro-performance – chama a atenção<br />
também que se recorre com tanta<br />
frequência ao conceito de autentici<strong>da</strong>de, e<br />
simultaneamente o questiona. 8 Mesmo que<br />
se questione a autentici<strong>da</strong>de do apresentado<br />
8 Ver, por exemplo, Diez, Georg. “Das Drama des wirklichen<br />
Lebens“ [o drama <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> real], in Frankfurter Allgemeine<br />
Zeitung, 5.Juni 2005; Bauer, Detlev. “Echt gespielt“ [representado<br />
de ver<strong>da</strong>de], in: Deutsche Bühne 8 (2004), p.36-39.<br />
e que o conceito seja definido de modo<br />
problemático, ele continua sendo o ponto<br />
de referência <strong>da</strong> descrição. Deste modo, o<br />
conceito sempre marca também a dúvi<strong>da</strong><br />
acerca do autêntico e se define em última<br />
análise através do seu oposto: o fingimento<br />
ou a falsificação. 9<br />
Esta atitude cética acerca do conceito<br />
de autentici<strong>da</strong>de encontra-se em discursos<br />
de diversas ciências. A sociologia aponta<br />
a impossibili<strong>da</strong>de de uma comunicação<br />
não-mediata e direta. As teorias do<br />
gênero in<strong>da</strong>gam com concepções como<br />
performativi<strong>da</strong>de e máscara a autentici<strong>da</strong>de<br />
do gênero. A teoria literária se despede <strong>da</strong><br />
instância do autor recorrendo a conceitos<br />
como a intertextuali<strong>da</strong>de. E a etnologia<br />
problematiza qualquer forma de uma<br />
documentação autêntica. Frente a este<br />
contexto, Helmut Lethen questiona a<br />
autentici<strong>da</strong>de como critério de avaliação:<br />
“Quando não é mais possível denominar<br />
interfaces claras entre natureza e<br />
construção social, parece que se usa a<br />
autentici<strong>da</strong>de no máximo de forma irônica,<br />
como critério para diferenciar entre vários<br />
graus de artificiali<strong>da</strong>de.” 10<br />
Esta interface entre vários graus<br />
de artificiali<strong>da</strong>de, no entanto, é típica<br />
para a discussão contemporânea sobre<br />
autentici<strong>da</strong>de e encenação no palco. 11<br />
Investigar e buscar a imediatez com os<br />
meios do palco é uma tentativa um tanto<br />
paradoxal: O contexto ‘palco’ aponta<br />
exatamente para o caráter mediado do<br />
apresentado. Autentici<strong>da</strong>de no palco<br />
é sempre efeito de uma construção.<br />
Gabriele Brandstetter vê neste fato um<br />
novo paradoxo do ator, na sucessão de<br />
9 Römer, Stefan: Künstlerische Strategien des Fake. Kritik von<br />
original und Fälschung, Köln: DuMont, 2001.<br />
10 Lethen, Helmut. “Versionen des Authentischen. Sechs<br />
Gemeinplätze“ [Versões do autêntico: seis chavões], in:<br />
Böhme, Hartmut e Scherpe, Klaus (eds.) Literatur und<br />
Kulturwissenschaften: Positionen, Theorien, Modelle. Reinbek<br />
bei Hamburg: Rowohl, 1996., p.205-230, aqui p.209.<br />
11 Ver Fischer-Lichte, Erika e Pflug, Isabel (eds). Inszenierung<br />
von Authentizität [Encenações de Autentici<strong>da</strong>de]. Tübingen e<br />
Basel: Francke, 2000. E também Berg, Jan; Hügel, Hans-otto;<br />
e Kurzenberger, Hajo. (eds.) Authentizität als Darstellung<br />
[Autentici<strong>da</strong>de enquanto representação]. Hildesheim:<br />
Universität Hildesheim, 1997.<br />
Annemarie M. Matzke
N° 16 | Junho de 2011<br />
Diderot, um “estar presente sem atuar”. 12<br />
O paradoxo não se articula mais entre<br />
sentimento e representação, mas entre o<br />
desejo por uma representação autêntica e o<br />
saber simultâneo <strong>da</strong> sua impossibili<strong>da</strong>de.<br />
Com isso, a autentici<strong>da</strong>de se transforma,<br />
de um problema <strong>da</strong> representação – como<br />
posso conseguir uma representação<br />
autêntica? – em um problema <strong>da</strong> retórica:<br />
como posso comunicar ao espectador<br />
a impressão de imediatez no palco, se<br />
qualquer impressão de autentici<strong>da</strong>de é<br />
resultado de uma construção?<br />
Uma breve excursão pela história <strong>da</strong><br />
atuação documenta o deslocamento do<br />
conceito de autentici<strong>da</strong>de em relação a<br />
esta pergunta. Nas teorias de atuação do<br />
século 18, buscou-se autentici<strong>da</strong>de tanto na<br />
expressão do ator quanto na representação<br />
do personagem. Esta exigência focou<br />
uma determina<strong>da</strong> concepção de uma<br />
representação ‘natural’, em oposição a<br />
uma representação artificial e exagera<strong>da</strong>. 13<br />
A partir <strong>da</strong> metade do século XIX, as<br />
exigências ao ator mu<strong>da</strong>m: ele deve<br />
sempre, na representação <strong>da</strong> figura,<br />
também representar ele mesmo. 14 Nas<br />
teorias do teatro no início do século XX, a<br />
relação entre palco e reali<strong>da</strong>de é inverti<strong>da</strong>:<br />
não o teatro, mas a reali<strong>da</strong>de social é<br />
marca<strong>da</strong> pelo fingimento. Stanislavski,<br />
por exemplo, compreende a sua técnica<br />
de atuação como uma tentativa “de<br />
como podemos apreender de eliminar do<br />
teatro [...] o ‘teatral’.” 15 Principalmente<br />
a concepção de Grotowski para o seu<br />
12 Brandstetter, Gabriele. “Geschichten erzählen im<br />
Performance-Theater der neunziger Jahre. In: Fischer-Lichte,<br />
Erika et. al. (eds). Transformationen: Theater der 90ger Jahre<br />
[Transformações: teatro dos anos 90]. Berlin: Theater der<br />
Zeit, 1999. p. 27-42, aqui p.36.<br />
13 Fischer-Lichte, Erika. “Entwicklung einer neuen<br />
Schauspielkunst“ [o desenvolvimento de uma nova arte de<br />
atuação], in: Bender, Wolfgang F. (ed). Schauspielkunst im 18.<br />
Jahrhundert. Stuttgart: Steiner, 1998, p.51-70.<br />
14 Emblemático para este fenômeno é o debate sobre a diferença<br />
na atuação <strong>da</strong> Duse e Sarah Bernhardt. Ver Balk, Claudia.<br />
Theatergöttinnen. Inszenierte Weiblichkeit. Clara Ziegler, Sarah<br />
Bernhardt, Eleonore Duse. Frankfurt/Main: Stroemfeld, 1994.<br />
15 Stanislavski, Konstantin. Die Arbeit des Schauspielers na<br />
sich selbst: Tagebuch eines Schülers. [o trabalho do ator:<br />
diário de um aluno]. Vol.1, Berlin: Henschel, 1983.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Teatro Pobre define o ato de atuação como<br />
instrumento para atingir uma veraci<strong>da</strong>de.<br />
O ator, através do trabalho sobre si mesmo<br />
e sobre o personagem, deve alcançar uma<br />
veraci<strong>da</strong>de impossível na vi<strong>da</strong> cotidiana. O<br />
palco é declarado como o lugar em que esta<br />
forma de autentici<strong>da</strong>de parece possível.<br />
Os trabalhos contemporâneos, ao<br />
contrário, revelam auto-encenações que<br />
conscientemente expõem o seu caráter de<br />
serem um jogo construído. As apresentações<br />
investigam as encenações do cotidiano e suas<br />
estratégias de atribuir-lhes autentici<strong>da</strong>de.<br />
A auto-representação se apresenta como<br />
um jogo com identi<strong>da</strong>des, como um modo<br />
de representação, na sua multiplicação<br />
em imagens mais diversas de si mesmo.<br />
Neste contexto, a questão do ver<strong>da</strong>deiro,<br />
<strong>da</strong> veraci<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> credibili<strong>da</strong>de se torna<br />
inane. Isto faz com que a percepção do<br />
espectador vira o elemento central: não se<br />
coloca mais a questão se algo é imediato ou<br />
encenado, mas que impressão de imediatez<br />
é produzi<strong>da</strong>. O que se expõe é a construção<br />
de efeitos do autêntico. Neste processo,<br />
podem-se diferenciar várias estratégias.<br />
Um procedimento consiste em<br />
desven<strong>da</strong>r a construção do acontecimento<br />
teatral propriamente dito. Podemos<br />
mostrar isso de forma exemplar na<br />
encenação St a n d b i l d m i t Ra n d e x i S t e n z e n,<br />
descrita no início deste artigo. Ao permitir<br />
um conhecimento sobre a seleção dos<br />
‘atuantes’ e sobre os parâmetros expostos<br />
na encenação, a apresentação revela a<br />
sua estrutura. Esta exposição e revelação<br />
funcionam, no entanto, somente perante<br />
o contexto ‘teatro’ e <strong>da</strong>s suas convenções<br />
inscritas neste. O que se percebe como<br />
autêntico é o gesto do desven<strong>da</strong>mento.<br />
O modo <strong>da</strong> ‘encenação’ é afirmado como<br />
a reali<strong>da</strong>de comum entre espectadores e<br />
‘atuantes’. Esta concepção de reali<strong>da</strong>de<br />
não refere a algo extrateatral, mas a um<br />
determinado clima de comunicação: o que<br />
importa é uma definição compartilha<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> situação como sendo encena<strong>da</strong>. Este<br />
procedimento se diferencia do conceito<br />
Brechtiano do distanciamento na medi<strong>da</strong><br />
em que não há uma ilusão teatral na<br />
De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros 159
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
160<br />
situação <strong>da</strong> apresentação que poderia ser<br />
quebra<strong>da</strong>, do mesmo modo como não há<br />
figuras fictícias ou uma fábula. Aquilo que<br />
se expõe enquanto encenação é meramente<br />
a situação teatral de representar e observar.<br />
Jogando com estas cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> encenação,<br />
cria-se a impressão de autentici<strong>da</strong>de<br />
só a partir <strong>da</strong> diferença. Quanto menos<br />
encenado, mais autêntico o efeito em<br />
comparação com algo mais encenado.<br />
Um outro procedimento é recorrer a<br />
conhecidos formatos <strong>da</strong> mídia, ou cultural<br />
performances, nos quais são inscritos<br />
específicas estratégias de encenação,<br />
reconhecíveis pelos espectadores. O grupo<br />
Rimini Protokoll, por exemplo, faz uso,<br />
uma e outra vez, de formas de encenação<br />
sociais para as suas produções, seja isso<br />
o parlamento alemão em de u t S c h l a n d<br />
2, ou a sala de um tribunal em zeuGen<br />
[testemunhas]. Se examina a produção e<br />
recepção de procedimentos e estratégias de<br />
encenação na política e no sistema jurídico,<br />
respectivamente. Neste contexto, levantase<br />
a questão como se produz ‘a ver<strong>da</strong>de’<br />
nessas formas sociais de encenação, e quais<br />
‘papeis’ são assumidos. Procedimentos de<br />
encenação teatrais se misturam com aqueles<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de social. Os atuantes nãoprofissionais<br />
legitimam o seu aparecimento<br />
no palco com o fato de serem expertos para<br />
uma forma específica de encenar reali<strong>da</strong>de<br />
empírica – seja por causa de uma predileção<br />
pessoal, <strong>da</strong> sua profissão ou de uma<br />
determina<strong>da</strong> experiência biográfica. Eles<br />
causam uma impressão de autentici<strong>da</strong>de<br />
enquanto expertos, não enquanto ‘atores’<br />
teatrais. Mas a sua competência, por sua<br />
vez, é exposta como uma forma específica de<br />
(auto-) encenação. Na oposição <strong>da</strong>s diferentes<br />
estratégias de encenação surge a impressão<br />
de autentici<strong>da</strong>de como efeito de diferenças.<br />
Isso aponta para um terceiro efeito<br />
de autentici<strong>da</strong>de no palco: o fracasso <strong>da</strong><br />
(auto-) encenação bem fabrica<strong>da</strong>. No teatro<br />
tradicional, relaciona-se um momento de<br />
autentici<strong>da</strong>de com o fracasso do an<strong>da</strong>mento<br />
fluído <strong>da</strong> apresentação: um ator ‘sai do<br />
personagem’, a técnica não funciona ou<br />
alguém se machuca.<br />
Referências bibliográficas<br />
BALK, Claudia. Theatergöttinnen.<br />
Inszenierte Weiblichkeit: Clara Ziegler, Sarah<br />
Bernhardt, Eleonore Duse. Frankfurt/Main:<br />
Stroemfeld, 1994.<br />
BAUER, Detlev. Echt gespielt [representado<br />
de ver<strong>da</strong>de]. In: Deutsche Bühne 8 (2004),<br />
p.36-39.<br />
BEHREND, Eva. Die Alltagsspezialisten.<br />
In: Jahrbuch Theater heute (2003), p.52-63.<br />
BERG, Jan; HÜGEL, Hans-Otto;<br />
KURZENBERGER, Hajo. (eds.) Authentizität<br />
als Darstellung [Autentici<strong>da</strong>de enquanto<br />
representação]. Hildesheim: Universität<br />
Hildesheim, 1997.<br />
BRANDSTETTER, Gabriele. Geschichten<br />
erzählen im Performance-Theater der<br />
neunziger Jahre. In: FISCHER-LICHTE, Erika<br />
et. al. (eds). Transformationen: Theater der 90ger<br />
Jahre [Transformações: teatro dos anos 90].<br />
Berlin: Theater der Zeit, 1999. p. 27-42.<br />
DIEZ, Georg. Das Drama des wirklichen<br />
Lebens [o drama <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> real]. In: Frankfurter<br />
Allgemeine Zeitung, 5.Jun, 2005.<br />
FISCHER-LICHTE, Erika; PFLUG, Isabel<br />
(eds). Inszenierung von Authentizität<br />
[Encenações de Autentici<strong>da</strong>de]. Tübingen<br />
e Basel: Francke, 2000.<br />
FISCHER-LICHTE, Erika et. al. (eds.).<br />
Wege der Wahrnehmung. Authentizität,<br />
Reflexivität und Aufmerksamkeit im<br />
zeitgenössischen Theater. Berlin: Theater<br />
der Zeit, 2006, p. 39 - 47.<br />
FISCHER-LICHTE, Erika. Entwicklung<br />
einer neuen Schauspielkunst [O<br />
desenvolvimento de uma nova arte de<br />
atuação]. In: BENDER, Wolfgang F.<br />
(ed). Schauspielkunst im 18. Jahrhundert.<br />
Stuttgart: Steiner, 1998, p.51-70.<br />
LETHEN, Helmut. Versionen des<br />
Authentischen. Sechs Gemeinplätze<br />
[Versões do autêntico: seis chavões]. In:<br />
BÖHME, Hartmut; SCHERPE, Klaus<br />
(eds.) Literatur und Kulturwissenschaften:<br />
Positionen, Theorien, Modelle. Reinbek bei<br />
Hamburg: Rowohl, 1996, p.205-230.<br />
RÖMER, Stefan: Künstlerische Strategien<br />
Annemarie M. Matzke
N° 16 | Junho de 2011<br />
des Fake. Kritik von Original und Fälschung.<br />
Köln: DuMont, 2001.<br />
STANISLAVSKI, Konstantin. Die Arbeit des<br />
Schauspielers na sich selbst: Tagebuch eines<br />
Schülers. [O trabalho do ator: diário de um<br />
aluno]. Vol.1, Berlin: Henschel, 1983.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
De seres humanos reais e performers ver<strong>da</strong>deiros 161
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Médico Interno [Vicente Concílio] e Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Pontos e práticas: manifestos. Nostalgias futuras 163
N° 16 | Junho de 2011<br />
PoNToS E PRÁTICAS: MANIFESToS.<br />
NoSTALGIAS FUTURAS 1<br />
Resumo<br />
Os manifestos foram escritos tradicionalmente com a intenção<br />
de <strong>da</strong>r forma às ideias a ações políticas. Sua origem remonta ao<br />
Manifesto Comunista (1848) de Marx e Engles, um tratado e um<br />
chamado às armas. Meio século após, os direitos ‘universais’<br />
<strong>da</strong>s revoluções americana e francesa retomaram, embora de<br />
forma destorci<strong>da</strong>, alguns de seus princípios. Estes três foram os<br />
modelos para a maior <strong>parte</strong> dos manifestos escritos por artistas.<br />
O grande gesto dos manifestos, e seu sentido de utopia e justiça<br />
universal, tem sido realocado, na contemporanei<strong>da</strong>de, para<br />
ações mais locais e pontuais de inclusão artístico-cultural. A<br />
morte dos manifestos é ‘o fim <strong>da</strong> esperança como um gênero’,<br />
e hoje é substituído por intervenções performativas que<br />
ultrapassam o momento de suas declarações.<br />
Palavras-chave: Manifestos como speech acts, ideias e ação<br />
política, intervenções performativas.<br />
Abstract<br />
Traditionally, manifestos are writing intended to shape political<br />
ideas and to provoke actions. Their origin goes back to The<br />
Communist Manifesto (1848) of Marx and Engles, a treatise as<br />
well as a call to arms. In less than a half century, the ‘universal’<br />
rights of the American and French Revolutions – however<br />
distorted in practice – worked on some of its principles. The three<br />
of them were the model for most of the manifestos written by<br />
artists. The grand gesture of manifestos, and their sense of utopia<br />
and universal rights, has been relocated, in contemporaneity, to<br />
more local and punctual actions of artistic and cultural inclusion.<br />
The death of manifestos ‘is the end of hope as a genre’, and<br />
nowa<strong>da</strong>ys is replaced by performative interventions that works<br />
beyond the moment of declaration.<br />
Keywords: Manifestyos as speech acts, ideas and political action,<br />
performative interventions.<br />
Richard Schechner 2<br />
Tradução de Beatriz Angela Viera Cabral (Biange Cabral) 3<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Pontos e práticas: manifestos. Nostalgias futuras 165
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
166<br />
Os manifestos são otimistas<br />
e agressivos; edificantes<br />
e raivosos. Eles ressoam<br />
com ver<strong>da</strong>de, como o<br />
sino de igreja; ou com<br />
alarme, perigo e catástrofe como sirenes<br />
estridentes de carros de bombeiro, de<br />
polícia e ambulâncias. Pessoas ou se atraem<br />
pelos manifestos, ou os repelem: raramente<br />
são neutras. Manifestos não são sutis; lhes<br />
falta nuance e usualmente não usam ironia<br />
ou paródia. Eles são muito religiosos, no<br />
sentido de que seus autores acreditam que<br />
estão entregando a Palavra do Alto (eles<br />
próprios, suas causas, Deus, história, o<br />
futuro ...). E, hoje, nas déca<strong>da</strong>s de abertura<br />
do século XXI, manifestos soam e são lidos...<br />
como nostalgia, mas de uma espécie muito<br />
especial. Mais no último caso.<br />
Tradicionalmente, manifestos são<br />
escritos com a intenção de provocar ações.<br />
São performativos em negrito. Por exemplo,<br />
a Declaração de Independência Americana<br />
(1776), um documento que inventou o<br />
“Nós” sobre o qual foram instalados os<br />
poderes de um Estado emergente: ‘Nós (...),<br />
os Congressistas dos Estados Unidos <strong>da</strong><br />
América, reunidos em Assembléia Geral’.<br />
Quem seriam estes presumíveis ‘We’? Uma<br />
comuni<strong>da</strong>de imaginária não de nobres or<br />
(posteriormente) de trabalhadores, mas de<br />
‘todos’. Este ‘we’ logo após se tornaram<br />
‘les citoyens’ (os ci<strong>da</strong>dãos) <strong>da</strong> Revolução<br />
Francesa cujo brilhante manifesto foi a<br />
Déclaration des droits de l’Homme et Du<br />
citoyen (1789, Declaração dos Direitos do<br />
Homem e do Ci<strong>da</strong>dão). Este ci<strong>da</strong>dão era<br />
mais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de do que <strong>da</strong> zona rural, mais<br />
um proletário do que um camponês ou<br />
1 Artigo publicado na sessão “points and practice”, com o subtítulo<br />
“Manifestos”. Revista Research in Drama Education –<br />
The Journal of Applied Theatre and Performance. Vol. 15 No<br />
3.New Yorl and London: Routledge, 2010.<br />
2 Richard Schechner é Professor de Performance Studies na<br />
Tisch School of Arts, New York University, e Editor do TDR:<br />
The Journal of Performance Studies. Ele é autor de muitos<br />
livros, entre eles Between Theater and Anthropology (1985),<br />
Performance Theory (1988), The Future of Ritual (1993),<br />
Performance Studies: An Introduction (edição revista, 2006).<br />
3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Teatro<br />
<strong>da</strong> UDESC.<br />
servo. A Declaração Americana se dirigiu<br />
ao fazendeiro livre, enquanto a Declaração<br />
Francesa falou para a turba urbana.<br />
Ambos foram considerados como<br />
homens livres (não ain<strong>da</strong> as mulheres;<br />
e não ain<strong>da</strong> os não-brancos). Homens<br />
livres e ci<strong>da</strong>dãos pertenciam ao início <strong>da</strong><br />
existência de uma construção utópica.<br />
Os manifestos estavam em <strong>parte</strong> criando<br />
o que eles pleiteavam. Mas logo em<br />
segui<strong>da</strong> a Revolução Francesa, media<strong>da</strong><br />
pela Assembleia Nacional Constituinte.<br />
Sustentou o Terror. A Revolução<br />
Americana levou mais tempo antes <strong>da</strong><br />
emergência <strong>da</strong> Superpotência.<br />
Os ci<strong>da</strong>dãos e os fazendeiros foram<br />
transformados em trabalhadores e<br />
camponeses destinatários de Marx e Engles<br />
em O Manifesto Comunista (1848). Este<br />
manifesto – mais longo do que qualquer outro<br />
que eu conheça, foi um tratado tanto quanto<br />
uma chama<strong>da</strong> às armas. Diferentemente<br />
dos manifestos americano e francês, Marx<br />
e Engles falaram apenas e para algumas<br />
pessoas, as ‘classes oprimi<strong>da</strong>s’, instando-as a<br />
derrubar as classes dominantes. Em menos<br />
de meio século, os direitos universais <strong>da</strong>s<br />
Revoluções Americana e Francesa – embora<br />
distorcidos na prática – estavam previstos<br />
fun<strong>da</strong>mentalmente e diferentemente através<br />
de um mundo já sacudido e estremecido<br />
pela guerra de classes descrita no manifesto<br />
comunista.<br />
Há muitos manifestos de autoria de<br />
artistas. Geralmente são retóricos, não<br />
para serem levados a sério. Explo<strong>da</strong><br />
isto, derrube aquilo, destrua os museus,<br />
libere to<strong>da</strong>s as obras de arte... na<strong>da</strong> disso<br />
realmente acontece. Ou se o fazem, as ações<br />
acontecem não porque um Artaud faz uma<br />
chama<strong>da</strong> para um teatro <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de,<br />
mas, infelizmente, porque Hitler ordena<br />
a queima de livros. Há uma longa lista de<br />
manifestos por artistas desde pelo menos a<br />
época dos Futuristas em diante; tantos que<br />
eles estão reunidos em um gênero – mas<br />
que tipo de gênero? Documentos raivosos<br />
evidenciam o sentido de exclusão de seus<br />
autores e frequentemente invejam as<br />
socie<strong>da</strong>des que querem destruir. A prova<br />
Richard Schechner
N° 16 | Junho de 2011<br />
disto é o fato de que algum tempo mais<br />
tarde na vi<strong>da</strong>, os escritores do destemido<br />
manifesto se unem às fileiras <strong>da</strong>s próprias<br />
bobagens que haviam execrado em sua<br />
juventude.<br />
Leiam o que alguns dos grandes<br />
artistas e teóricos proclamaram nos<br />
últimos 100 anos:<br />
1909, o Manifesto Futurista de<br />
F.T. Marinetti:<br />
Nós queremos exaltar movimentos<br />
agressivos, a insônia febril, a veloci<strong>da</strong>de e<br />
o salto mortal, a bofeta<strong>da</strong> e o murro (...) Já<br />
não há beleza senão na luta. Nenhuma obra<br />
que não tenha um caráter agressivo pode<br />
ser uma obra prima. A poesia deve ser<br />
celebra<strong>da</strong> como um violento assalto contra<br />
as forças ignóbeis para obrigá-las a prostrarse<br />
ante o homem (...) Queremos destruir<br />
os museus, as bibliotecas,, as academias<br />
de todo o tipo, e combater o moralismo,<br />
o feminismo, e to<strong>da</strong> vileza oportunista e<br />
utilitária. Bem-vindos os bons incendiários<br />
com os seus dedos carbonizados! Ei-los!<br />
... Aqui! ... Ponham fogo nas estantes <strong>da</strong>s<br />
bibliotecas! ... Desviem o curso dos canais<br />
para inun<strong>da</strong>r os museus! ... Deixem as<br />
gloriosas telas flutuar á deriva! Empunhem<br />
as picaretas, os machados, os martelos<br />
e destruam sem pie<strong>da</strong>de as ci<strong>da</strong>des<br />
venera<strong>da</strong>s! (...) A arte, de fato, não pode ser<br />
senão violência, cruel<strong>da</strong>de e injustiça.<br />
1918, O Manifesto DADA de<br />
Tristan Tzara:<br />
Eu lhes garanto: não há começo,<br />
e nós não estamos com medo; nós não<br />
somos sentimentais. Nós somos como<br />
um vendo irado que arranca as roupas<br />
de multidões e orações, nós estamos<br />
preparando o grande espetáculo do<br />
desastre, conflagração e decomposição.<br />
Preparando para por um fim no luto,<br />
e para substituir lágrimas por sirenes<br />
espalhando-se de um continente ao outro<br />
(...) Eu destruo as gavetas do cérebro,<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
e aquelas <strong>da</strong> organização social: para<br />
semear desmoralização em todo lugar,<br />
e atirar a mão do céu no inferno, os<br />
olhos do inferno no céu, para reinstalar<br />
a ro<strong>da</strong> fértil de um circo universal nos<br />
Poderes <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, e a fantasia de<br />
ca<strong>da</strong> indivíduo.<br />
1933, Antonin Artaud, em Teatro e<br />
Cruel<strong>da</strong>de:<br />
O teatro <strong>da</strong> Cruel<strong>da</strong>de propõe <strong>da</strong>r<br />
espaço a um espetáculo de massa;<br />
buscar na agitação de tremen<strong>da</strong>s massas,<br />
convulsiona<strong>da</strong>s e arremessa<strong>da</strong>s entre si,<br />
um pouco <strong>da</strong>quela poesia de festivais e<br />
multidões quando, to<strong>da</strong>s tão raras hoje<br />
em dia, o povo espalhava-se nas ruas.<br />
O teatro deve nos <strong>da</strong>r tudo que está no<br />
crime, amor, guerra, ou loucura, se ele<br />
quer recuperar sua necessi<strong>da</strong>de (...). Da<br />
mesma maneira que nossos sonhos tem<br />
um efeito sobre nós e a reali<strong>da</strong>de tem<br />
um efeito sobre nossos sonhos, também<br />
nós acreditamos que as imagens do<br />
pensamento podem ser identifica<strong>da</strong>s<br />
com um sonho, o qual será eficaz na<br />
medi<strong>da</strong> em que poderá ser projetado<br />
com a necessária violência. (...) Daí este<br />
apelo para a cruel<strong>da</strong>de e o terror (...) em<br />
uma vasta escala.<br />
1938, do Manifesto de Leon Trotsky e<br />
Andre Breton: Para uma Arte Livre e<br />
Revolucionária<br />
A ver<strong>da</strong>deira arte não se contenta<br />
em representar variações sobre modelos<br />
prontos, mas sim insiste na expressão<br />
de necessi<strong>da</strong>des internas do homem<br />
e <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de de seu tempo – a<br />
ver<strong>da</strong>deira arte é incapaz de não ser<br />
revolucionária, de não aspirar a uma<br />
completa e radical reconstrução <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de. (...) Nós acreditamos que a<br />
tarefa suprema <strong>da</strong> arte na nossa época<br />
é tomar <strong>parte</strong> ativa e consciente na<br />
preparação <strong>da</strong> revolução.<br />
Pontos e práticas: manifestos. Nostalgias futuras 167
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
168<br />
1948, <strong>da</strong> Recusa Global dos Artistas<br />
de Quebec<br />
A religião de Cristo dominou a mundo.<br />
Vejam no que se transformou: fés irmãs<br />
já começaram a explorar o outro. (...) a<br />
civilização cristã está chegando ao fim. (...)<br />
O declínio <strong>da</strong> Cristan<strong>da</strong>de vai botar abaixo<br />
toas as pessoas e to<strong>da</strong>s as classes que ela<br />
influenciou, <strong>da</strong> primeira à última, <strong>da</strong> mais<br />
alta à mais baixa. (...) Os ratos já estão fugindo<br />
de uma Europa que afun<strong>da</strong>, cruzando<br />
o Atlântico. Entretanto, eventos irão<br />
eventualmente ultrapassar os gananciosos,<br />
os glutões, os sibaritas, os imperturbáveis,<br />
os cegos e os surdos. Eles irão ser engulidos<br />
sem dó. (...) Nós precisamos abandonar os<br />
caminhos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de uma vez por<br />
to<strong>da</strong>s e nos libertarmos de seu espírito<br />
utilitarista. Não devemos neglicenciar<br />
voluntariamente nosso lado espiritual. (...)<br />
Nós assumimos inteira responsabili<strong>da</strong>de<br />
pelas consequências de nossa recusa.<br />
1960, do Manifesto Situacionista<br />
O quadro existente não poderá<br />
dominar a nova força humana<br />
que está aumentando junto com<br />
o desenvolvimento irresistível <strong>da</strong><br />
tecnologia e a insatisfação de seus<br />
possíveis usos em nossa vi<strong>da</strong> social<br />
sem sentido. (...) A alienação e a<br />
opressão nesta socie<strong>da</strong>de não podem<br />
de distribuí<strong>da</strong>s entre uma série de<br />
variantes, mas somente rejeita<strong>da</strong>s em<br />
bloc por esta mesma socie<strong>da</strong>de. Todo<br />
progresso real foi claramente suspenso<br />
até a solução revolucionária <strong>da</strong> presente<br />
crise multiforme.<br />
1968, de Julian Beck, do Living Theatre<br />
Se nós vamos derrubar a estrutura,<br />
nós vamos ter que atacá-la por todos os<br />
lados, todos os 10 mil. (...) Como evitar<br />
o banho de sangue quando as forças<br />
<strong>da</strong> reação chegam com suas armas, sua<br />
polícia? A bonita revolução não violenta?<br />
Como? (...) Quando a revolução chega<br />
alguns liberais vão cair de uma maneira,<br />
alguns de outras. Desenho a linha do<br />
tempo. O show acaba. Fazer teatro para<br />
eles tem sua utili<strong>da</strong>de mas não irá fazer<br />
a revolução sem a qual to<strong>da</strong> a arte, e<br />
mágica e filosofia e religião e to<strong>da</strong>s as<br />
ciências e todos os avanços tecnológicos<br />
teriam sido na<strong>da</strong> mais do que espasmos<br />
de impulsos finais de um extinto<br />
monstruoso planeta.<br />
2006, do Manifesto Art Guerrilla<br />
Art Guerrilla é um projeto de arte<br />
aberto a todos os artistas ao redor do<br />
mundo que estão prontos para uma guerra<br />
de guerrilha de forma multidimensional.<br />
Esta guerra adquiriu um único objetivo:<br />
recriar a alma <strong>da</strong>s artes. Nós sabemos que<br />
este objetivo é indefinido; entretanto, se<br />
nós vivemos em uma época indefini<strong>da</strong>, se<br />
nossos inimigos usam armas indefini<strong>da</strong>s<br />
contra nós, é também nosso direito<br />
nos movermos em mares indefinidos e<br />
incertos. (...) Você é um membro cínico<br />
<strong>da</strong> academia? As pessoas criticam seus<br />
trabalhos de uma maneira estranha? Você<br />
vive na periferia do mundo (Ásia, Balcans,<br />
Leste Europeu, África, América do Sul);<br />
ou você vive nas periferias do centro<br />
(seja onde for)? Você é economicamente<br />
pobre, e, rico em imaginação? Você pensa<br />
ou imagina um tipo de liberação para<br />
a socie<strong>da</strong>de contemporânea? Você teve<br />
alguns problemas com as autori<strong>da</strong>des?<br />
(...) VIDA LONGA AO MOVIMENTO<br />
ART GUERRILLA! VIDA LONGA<br />
AOS ARTISTAS-GUERREIROS DO<br />
MOVIMENTO! NÓS VENCEREMOS!<br />
Juntos, estes manifestos, e outros<br />
similares, emitidos por artistas-chave e<br />
influentes teóricos, reiterados por mais<br />
de um século, clamam pela destruição <strong>da</strong><br />
ordem corrente e criação de uma nova<br />
ordem. Se eu fosse uma mente psicanalítica,<br />
eu poderia concluir que enrustido no<br />
coração de muito manifestos artísticos<br />
Richard Schechner
N° 16 | Junho de 2011<br />
está o desejo <strong>da</strong> morte. Politicamente, os<br />
manifestos são fantasias fláci<strong>da</strong>s de artistas<br />
impotentes? Ou eles definem o tom que leva<br />
<strong>da</strong> arte de vanguar<strong>da</strong> aos entretenimentos<br />
populares e ataques terroristas? Ou, ao<br />
contrário, alguns artistas admiram os atos<br />
assassinos-suici<strong>da</strong>s dos terroristas, a chama<br />
<strong>da</strong> raiva pura? Reconhecido que Artaud<br />
estipulou que ‘a imagem de um crime<br />
apresentado como requisito de condição<br />
teatral é algo infinitamente mais terrível<br />
para o espírito do que o mesmo crime<br />
cometido na reali<strong>da</strong>de’; e reconhecido<br />
também que a maioria dos artistas que<br />
escrevem manifestos não cometem a<br />
violência que eles advogam, nós precisamos<br />
reconhecer que as fronteiras entre o ‘real’ e<br />
o ‘virtual’ estão se dissolvendo, o teatral e<br />
o real se fundem: o performativo está a ser<br />
atualizado. Eu argumentei em outro lugar<br />
que o ataque de 11/09 no World Trade Center<br />
de New York foi uma performance, uma<br />
atualização Artaudiana de um espetáculo<br />
de cruel<strong>da</strong>de. Em sua própria forma<br />
horripilante, 11/09 – e outros ataques<br />
terroristas – são manifestos-em-ação: eles<br />
transmitem mensagens dinamicamente;<br />
eles assimilam intenção-e-ação.<br />
A chama<strong>da</strong> arte eleva<strong>da</strong> e a pop art<br />
se misturaram assim como as ‘notícias’<br />
se fundiram como entretenimento.<br />
Adicionalmente, pelo menos desde que<br />
Chris Burden pediu a um amigo que atirasse<br />
em seu braço (SHOOT, 1971), muitos artistas<br />
performáticos tem ferido a si próprios,<br />
aberto suas veias-como-arte, suspenso a si<br />
próprios em ganchos, esquartejado animais,<br />
e através de várias maneiras usaram<br />
violência real em artes. Rituais – relação<br />
próxima <strong>da</strong>s artes – incluem flagelação,<br />
cicatrizes, circuncisão, subincisão, e assim<br />
por diante. A cultura popular mostra seus<br />
tattoes, piercings, e cirurgias plásticas as<br />
quais, sejam quais forem seus significados<br />
psicológicos e sociológicos, decretam o<br />
desejo de ser belo e, paradoxalmente, ambos<br />
individualmente distinguem e sinalizam<br />
um pertencimento a uma comuni<strong>da</strong>de.<br />
Estetizando e ritualizando a violência,<br />
não como representação (como nas artes<br />
visuais, teatro ou outra mídia), mas como<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
ver<strong>da</strong>des reais apresenta<strong>da</strong>s no aqui e<br />
agora são tudo menos universais.<br />
Tudo isto sinaliza que escrever<br />
manifestos é supérfluo porque as ações,<br />
imediatamente mediatiza<strong>da</strong>s, são sua<br />
própria mensagem. O dictum de Marshall<br />
McLuhan, “o meio é a mensagem’,<br />
atingiu o topo. A mensagem é o ato; o<br />
manifesto não é escrito, é performado. O<br />
gênero de escrever manifestos está fora<br />
de mo<strong>da</strong>. E onde há escrita na tradição<br />
do manifesto, ela se revela como blogs,<br />
twitters, e semelhantes expressões digitais<br />
de ativi<strong>da</strong>des distribuí<strong>da</strong>s globalmente na<br />
rapidez e no pressionar de uma tecla de<br />
computador. Sim, este tipo de broadside<br />
digital é som e fúria, significando na<strong>da</strong> se<br />
não for, então, pelo menos a facili<strong>da</strong>de do<br />
e-scream e e-screed.<br />
Acompanhando a morte do manifesto,<br />
está o fim <strong>da</strong> esperança como gênero. Nas<br />
assim chama<strong>da</strong>s democracias um crescente<br />
número de pessoas está se voltando para<br />
o governo não simplesmente por falhar no<br />
cumprimento de suas promessas, mas como<br />
um sistema. Um declínio do percentual de<br />
pessoas vota; eleições são compra<strong>da</strong>s e<br />
vendi<strong>da</strong>s; o governo é ineficiente, venal,<br />
corrupto, aborrecido – ain<strong>da</strong> necessários,<br />
como roupa íntima. Deixando de lado as<br />
democracias, onde os déspotas subjugam,<br />
a confiança no governo é (exceto entre a<br />
elite no poder) está abaixo <strong>da</strong> negação: o<br />
governo é temido, evitado, uma criatura <strong>da</strong><br />
polícia/ou <strong>da</strong>s forças arma<strong>da</strong>s.<br />
To<strong>da</strong> esta negativi<strong>da</strong>de levou ao<br />
crescimento de uma chama<strong>da</strong> geral para<br />
a revolução? Realmente não. Em vez disso<br />
levou a um neo-liberalismo ascendente,<br />
um conjunto complexo de relacionamentos<br />
onde pessoas dependem ca<strong>da</strong> vez mais de<br />
corporações, grupos identitários, e outros<br />
‘guil<strong>da</strong>s’ (sob uma denominação ou outra)<br />
para prover comuni<strong>da</strong>de, serviços e um<br />
sentimento de pertencimento. Embora<br />
existam nação-estados ain<strong>da</strong> investidos de<br />
grande poder militar, suas bases econômica<br />
e sociais estão erodindo. O ‘poder real’<br />
está desviando para outro lugar, com os<br />
lobistas e corporações que compram e<br />
vendem governos, as juntas e Comitês<br />
Pontos e práticas: manifestos. Nostalgias futuras 169
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
170<br />
Centrais que falam por e através do Estado,<br />
que literalmente possuem o Estado. Um<br />
governo, no mundo, democrático ou<br />
representativo (ain<strong>da</strong>) não emergiu. Em<br />
artes, a avant garde foi desloca<strong>da</strong> pela nicheguard:<br />
ca<strong>da</strong> subconjunto de estilo associado<br />
com seus próprios desejos, nenhum<br />
realmente um avanço a partir de outros.<br />
Quem pode escrever um manifesto<br />
eficaz hoje? Não é tal empreendimento<br />
a sau<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quilo que uma vez foi uma<br />
nostalgia futura? A época de Thomas<br />
Jefferson, os Direitos do Homem, e Karl<br />
Marx passaram. Os manifestos eficazes<br />
de hoje não são screeds, mas ações. Alguns<br />
destes são positivos (<strong>da</strong> minha perspectiva)<br />
– o trabalho de teatros de ação social, o<br />
trabalho em prisões, as performances<br />
entre, com e para os despossuídos. Na<br />
reali<strong>da</strong>de, nestas arenas as ações – ações<br />
teatrais incluí<strong>da</strong>s – falam mais alto e mais<br />
afirmativamente do que manifestos.<br />
Mas podem, devem, novos manifestos<br />
ser escritos? Para quem, sobre o quê? O<br />
ímpeto subjacente por trás dos manifestos<br />
– por trás <strong>da</strong> época dos manifestos desde<br />
a Declaração pelo Manifesto Comunista<br />
até os screeds dos artistas que eu citei -<br />
é que um novo mundo está disponível<br />
somente se as injustiças do velho puderem<br />
ser suplanta<strong>da</strong>s. Talvez hoje isto esteja<br />
acontecendo, passo a passo. Mas, se for<br />
assim, não pelo meio <strong>da</strong> revolução, mas<br />
através de intrépidos pequenos passos. Os<br />
manifestos clássicos clamam por saltos,<br />
não passos. Eles são de autoria de pessoas<br />
que possuem uma clara visão do panorama<br />
geral – utópico ou apocalíptico. Eu não<br />
tenho tal visão. Você tem? Eu acredito que<br />
nós estamos num interregnum. O que era,<br />
não é mais; o que será, ain<strong>da</strong> não chegou.<br />
Richard Schechner
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Festival de Teatro de Chapecó 2011. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Enffermeira Bottard [Fátima Lima]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Julia oliveira.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Resenha - Antônio José e o teatro do setecentos 171
N° 16 | Junho de 2011<br />
ANTÔNIo JoSÉ E o TEATRo Do<br />
SETECENToS<br />
Resenha<br />
JUNQUEIRA, Renata Soares; MAZZI, Maria Gloria<br />
Cusumano (Orgs.). O Teatro no Século XVIII: Presença de<br />
Antônio José <strong>da</strong> Silva, o Judeu. São Paulo: Editora Perspectiva,<br />
2008. (Coleção Estudos, 256).<br />
Nas lembranças aniversárias brasileiras de Antônio<br />
José <strong>da</strong> Silva, o ano de 2005 marca uma auspiciosa<br />
peripécia. O centenário de sua prisão e execução foi<br />
rememorado com a estreia <strong>da</strong> primeira tragédia do<br />
teatro brasileiro, Antônio José ou O Poeta e a Inquisição<br />
em 1838, segui<strong>da</strong> <strong>da</strong> publicação do texto de Gonçalves<br />
de Magalhães em 1839. Em 1940, a biografia de<br />
Cândido Jucá Filho, Antônio José, o Judeu, não deixou o<br />
bicentenário passar em branco. Registre-se, ain<strong>da</strong>, que<br />
em 1944 também o bicentenário <strong>da</strong> publicação de sua<br />
obra foi discretamente comemorado entre nós por uma<br />
reedição dos dois volumes de suas Óperas. Mas parece<br />
ter sido no ano de 2005 que, finalmente e trezentos<br />
anos depois, teve início a celebração, não mais <strong>da</strong><br />
morte, mas do nascimento do nosso comediógrafo.<br />
Merecem destaque pelo menos dois eventos: nesse<br />
ano foi realiza<strong>da</strong> a IV Semana de Estudos Teatrais <strong>da</strong><br />
UNESP em sua homenagem, e reedita<strong>da</strong> a tragédia de<br />
Gonçalves de Magalhães em volume preparado por<br />
Mariângela Alves de Lima. A publicação em 2008, pela<br />
editora Perspectiva, do livro O teatro no século XVIII:<br />
presença de Antônio José <strong>da</strong> Silva, o Judeu, organizado<br />
por Renata Soares Junqueira e Maria Gloria Cusumano<br />
Mazzi, traz a público o material apresentado na<br />
Semana de 2005.<br />
Iná Camargo Costa 1<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Resenha - Antônio José e o teatro do setecentos 173
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
174<br />
Sem desprezar o vil garrote mental<br />
a que estivemos submetidos nos três<br />
primeiros séculos de colonização pela<br />
censura a cargo <strong>da</strong> Igreja Católica Romana<br />
e seu “Santo Ofício”, é de se pensar se o<br />
peso <strong>da</strong> formação católica força<strong>da</strong>, que<br />
combina culpa e contrição diante <strong>da</strong> morte,<br />
também não terá impedido o nosso mundo<br />
acadêmico e teatral de se voltar há mais<br />
tempo para o que realmente interessa<br />
quando o assunto é comédia: a vi<strong>da</strong>, a<br />
obra, o humor e o espírito crítico. Mas<br />
deixemos o inventário dos necrológios para<br />
os especialistas e tratemos <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de<br />
representa<strong>da</strong> pelo livro em tela.<br />
Dividido em duas <strong>parte</strong>s, a primeira é<br />
uma espécie de prólogo com quatro ensaios<br />
que armam um amplo panorama <strong>da</strong>s nossas<br />
práticas teatrais nos tempos <strong>da</strong> colônia e<br />
<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças experimenta<strong>da</strong>s pelo teatro<br />
europeu dos séculos XVI a XIX, enquanto a<br />
segun<strong>da</strong> tem sete ensaios dedicados à vi<strong>da</strong><br />
e obra de Antônio José.<br />
As notícias de Ana Portich sobre os<br />
esforços <strong>da</strong> igreja contrarreformista para<br />
conter os avanços do teatro em diversos<br />
países europeus, a começar pela própria<br />
Itália, aju<strong>da</strong>m a entender pelo menos um<br />
aspecto <strong>da</strong> perseguição a Antonio José, mas<br />
contêm um alerta adicional sobre esta luta<br />
que atravessou o século XVIII, que não se<br />
restringia aos padres e que ain<strong>da</strong> não está<br />
encerra<strong>da</strong>: tratava-se, então como agora,<br />
de preservar e cultivar a dependência e<br />
a tutela mental. Exemplo aterrador de tal<br />
disposição encontra-se em texto do conde<br />
veneziano, Carlo Gozzi, concorrente de<br />
Goldoni na segun<strong>da</strong> metade do século: “não<br />
é tirania, mas caridosa e madura prudência<br />
acostumar os povos, tanto quanto possível,<br />
a essa simplici<strong>da</strong>de que de forma alguma<br />
denomino ignorância; ao contrário, tirano<br />
furioso é aquele que, tentando infundirlhe<br />
sofismas e uma perigosa soberba,<br />
os inquieta e os expõe aos funestos e<br />
necessários castigos de quem governa.”<br />
1 Professora aposenta<strong>da</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo,<br />
na Facul<strong>da</strong>de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas;<br />
Departamento de Teoria Literária e Literatura Compara<strong>da</strong>.<br />
Por “perigosa soberba” enten<strong>da</strong>-se aquilo<br />
que os iluministas chamavam “pensar por<br />
conta própria”, crime inafiançável para a<br />
Inquisição, pelo qual Antonio José pagou<br />
com a vi<strong>da</strong>. Quanto a “acostumar os povos<br />
à simplici<strong>da</strong>de”, é só examinar o papel que<br />
vem desempenhando a indústria cultural,<br />
esta legítima herdeira de Gozzi nos séculos<br />
XX e XXI.<br />
Roberta Barni mostra que, sem paradoxo<br />
especial, Gozzi defendia o programa de<br />
cultivar a humil<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas ovelhas,<br />
através do teatro, exumando aspectos do<br />
que tinha sido a experiência <strong>da</strong> commedia<br />
dell’arte, numa situação em que esta já não<br />
era ameaça para mais ninguém. Na altura,<br />
seus herdeiros em sentido próprio (e não<br />
meramente formal, nem usurpadores) já<br />
estavam combatendo, principalmente na<br />
França, para assegurar a vigência de suas<br />
bandeiras, que culminaram na Revolução<br />
de 1789, com Diderot à frente.<br />
Em direção oposta vem o balanço<br />
<strong>da</strong>s marchas e contramarchas do teatro<br />
setecentista francês, apresentado por<br />
Guacira Marcondes Machado. Inteiramente<br />
sintonizado com os balanços franceses de<br />
fins do século XIX, demonstra que o século<br />
XVIII pouco acrescentou às conquistas<br />
literárias de Racine e Molière, ambos do<br />
XVII. E, do naufrágio setecentista, junto<br />
com Beaumarchais, salva-se apenas<br />
Marivaux, o inimigo dos philosophes, que<br />
foi contemporâneo do nosso Antônio<br />
José. Para esta autora, o teatro francês só<br />
haveria de recuperar-se por ocasião do<br />
romantismo.<br />
O ensaio que abre o livro, de Antônio<br />
Donizeti Pires, também adota o romantismo<br />
como régua e compasso. Passando até mesmo<br />
pelo resgate <strong>da</strong>s encenações brasileiras<br />
<strong>da</strong> obra de Antônio José (por exemplo: no<br />
teatrinho de Chica <strong>da</strong> Silva, no Arraial do<br />
Tijuco), apresenta uma releitura <strong>da</strong>s teorias<br />
brasileiras sobre a situação do teatro (e <strong>da</strong><br />
literatura) por estas plagas nos tempos<br />
coloniais. Duas conclusões entrelaça<strong>da</strong>s se<br />
apresentam como proposta para debate.<br />
A principal é que na segun<strong>da</strong> metade<br />
do século XVIII já estava configurado o<br />
Iná Camargo Costa
N° 16 | Junho de 2011<br />
sistema teatral brasileiro e, apesar de serem<br />
poucos os registros, segue-se que a nossa<br />
diferença em relação ao sistema europeu<br />
também já estava posta: trata-se <strong>da</strong> maneira<br />
especial de misturar tudo, resultante <strong>da</strong><br />
devoração antropofágica que no século XX<br />
foi transforma<strong>da</strong> em escola, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />
nosso modernista Oswald de Andrade.<br />
Os ensaios de J.Guinsburg e Alberto<br />
Dines desenvolvem a mesma ideia em<br />
abor<strong>da</strong>gens diferentes, a saber: a sentença<br />
de heresia e apostasia aplica<strong>da</strong> ao nosso<br />
comediógrafo esconde uma covardia<br />
adicional <strong>da</strong> Inquisição. Evidentemente<br />
tratou-se de calar uma voz de peralta e<br />
gozador que obstina<strong>da</strong>mente expunha,<br />
carregando nas tintas cômicas, a uma esfera<br />
pública (burguesa) – mesmo que reduzi<strong>da</strong><br />
e confina<strong>da</strong> pela censura – informações que<br />
a “boa socie<strong>da</strong>de” (aristocrática) estava<br />
cansa<strong>da</strong> de conhecer: a violência dos<br />
cárceres do Santo Ofício, a parciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
“justiça”, a incontinência sexual do rei e de<br />
suas favoritas, a parlapatice de nobres e<br />
intelectuais e assim por diante.<br />
Todos os demais ensaios são dedicados<br />
a diferentes aspectos <strong>da</strong>s comédias do<br />
nosso peralta: Francisco Maciel Silveira, ele<br />
mesmo parodiando o recurso à “questão<br />
bizantina”, trata <strong>da</strong>s condições materiais de<br />
produção do teatrinho de bonifrates para<br />
o qual Antônio José escrevia, assim como<br />
do interesse pela publicação de suas peças;<br />
Patrícia <strong>da</strong> Silva Cardoso, sem esquecer<br />
<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de vigia<strong>da</strong> de que desfrutou o<br />
comediógrafo, joga luz sobre os horrores<br />
que as comédias encobrem; Flávia Maria<br />
Corradin, centrando-se no exame do<br />
Anfitrião, traça a genealogia do tema desde<br />
a mitologia grega e seu possível primeiro<br />
tratamento por Plauto para chegar à<br />
originali<strong>da</strong>de (muito lusitana e lisboeta)<br />
de Antônio José; Maria João Brilhante dá<br />
preciosas notícias de duas encenações em<br />
2004 de comédias deste autor, que em<br />
Portugal é considerado um clássico: uma<br />
com atores e outra com atores, bonecos e<br />
atores-bonecos.<br />
Encerrando os trabalhos, Paulo Roberto<br />
Pereira traz uma notícia importante para<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
dimensionar o quanto ain<strong>da</strong> temos que<br />
esperar <strong>da</strong>s pesquisas para chegarmos a<br />
uma ideia mais aproxima<strong>da</strong> do que foi<br />
a experiência teatral de Antônio José.<br />
Embora designa<strong>da</strong>s como óperas, só muito<br />
recentemente (anos 40 do século XX) os<br />
especialistas descobriram as partituras <strong>da</strong>s<br />
suas comédias. Isto significa que, salvo<br />
pelas apresentações do século XVIII, sempre<br />
foram considerados apenas os textos para<br />
avaliar a importância de Antônio José.<br />
Agora que já estão disponíveis algumas<br />
<strong>da</strong>s partituras, e que já se conhece a sua<br />
autoria (padre Antônio Teixeira), Paulo<br />
Roberto Pereira tem material para afirmar<br />
que, com Antônio José, o teatro português<br />
explorava o mesmo terreno que John Gay<br />
vinha explorando desde 1728 na Inglaterra,<br />
com sua Ópera do mendigo, e que Mozart,<br />
no império austríaco, viria a explorar com<br />
obras como A flauta mágica (1791). Diante<br />
de tais informações e <strong>da</strong>s que Maria João<br />
Brilhante já nos traz sobre os experimentos<br />
portugueses (um dos espetáculos por ela<br />
comentados usou até uma gravação de Only<br />
you para <strong>da</strong>r conta do espectro musical,<br />
evidentemente radicalizando a pândega),<br />
na<strong>da</strong> nos impede de esperar que, mais<br />
dia, menos dia, apareça uma dupla como<br />
Brecht e Weill para fazer com qualquer<br />
<strong>da</strong>s óperas de Antônio José o mesmo que<br />
os alemães fizeram com a ópera de John<br />
Gay. Meu voto vai para Guerras do alecrim<br />
e manjerona, para homenagear o fino olfato<br />
de Semicúpio, que reage mal ao cheiro <strong>da</strong><br />
procissão de ramos.<br />
Resenha - Antônio José e o teatro do setecentos 175
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel] e Paul [Guilherme Rótulo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Entrevista - Josette Féral 177
N° 16 | Junho de 2011<br />
Foto: Nathalie St Pierre<br />
Na conferência, a autora questionou<br />
os limites éticos e estéticos dessa<br />
exploração, além de discutir seus efeitos<br />
sobre o público. Como exemplo, utilizou<br />
três trabalhos: Rwan<strong>da</strong> 94 (2000), do Le<br />
Groupov;3 La Batalla de Chile (1979),<br />
dirigido por Patricio Guzmán4 e Theatre of<br />
the World (1993), de Huang Yong Ping. 5<br />
Enquanto o primeiro é um espetáculo<br />
teatral que explora, no vídeo, uma cena de<br />
morte durante o genocídio ocorrido em<br />
Entrevista<br />
Josette Féral - Professora e pesquisadora teatral<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Julia Guimarães 1 e<br />
Leandro Silva Acácio 2<br />
Conheci<strong>da</strong> por seus estudos sobre<br />
os conceitos de teatrali<strong>da</strong>de e<br />
performativi<strong>da</strong>de, a pesquisadora<br />
franco-canadense Josette<br />
Féral, esteve em São Paulo em<br />
novembro do ano passado (2010),<br />
durante o VI Congresso <strong>da</strong><br />
ABRACE (Associação Brasileira<br />
de Pesquisa e Pós-Graduação<br />
em Artes Cênicas), para realizar<br />
a conferência O Real na Arte: a<br />
Estética do Choque. Professora<br />
do Departamento de Teatro <strong>da</strong><br />
Universi<strong>da</strong>de de Québec, em<br />
Montreal, autora e organizadora<br />
de diversos livros e artigos, Féral<br />
discutiu a presença do real na<br />
arte contemporânea, com recorte<br />
em obras artísticas que exploram<br />
especificamente o instante<br />
<strong>da</strong> morte no interior <strong>da</strong>s<br />
próprias criações.<br />
Ruan<strong>da</strong>, na África, La Batalla de Chile é<br />
um documentário sobre o golpe contra o<br />
presidente Salvador Allende, que resultou<br />
na ascensão de Pinochet. Nele, o cameraman<br />
argentino Leonardo Henrichsen filma sua<br />
própria morte, ao levar um tiro enquanto<br />
registrava cenas do golpe. Já o trabalho<br />
de Ping exibe um grande viveiro onde<br />
escorpiões, centopeias, lagartixas e pequenas<br />
cobras são coloca<strong>da</strong>s num mesmo espaço e<br />
ali iniciam um duelo com mortes.<br />
Entrevista - Josette Féral 179
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
180<br />
A entrevista com Josette Féral<br />
ocorreu em São Paulo, no dia seguinte<br />
ao de sua conferência, em dois espaços<br />
distintos: no restaurante do hotel onde<br />
estava hospe<strong>da</strong><strong>da</strong> e na cantina <strong>da</strong> UNESP<br />
(Universi<strong>da</strong>de Estadual Paulista), onde<br />
ocorreu o congresso. Entre um café e outro,<br />
a pesquisadora partilhou suas inquietações<br />
atuais sobre o teatro contemporâneo ao<br />
aprofun<strong>da</strong>r os tópicos levantados na<br />
conferência, em entrevista traduzi<strong>da</strong> do<br />
francês ao português pelos pesquisadores<br />
teatrais Alexandre Pieroni Calado e<br />
Alice. Sua primeira obra traduzi<strong>da</strong> para<br />
o português acaba de ser publica<strong>da</strong>: o<br />
livro Encontros com Ariane Mnouchkine<br />
– Erguendo um Monumento ao Efêmero<br />
(Ed. SENAC São Paulo).<br />
O que te levou a querer estu<strong>da</strong>r o<br />
conceito <strong>da</strong> estética do choque?<br />
O que me interessava, inicialmente,<br />
era analisar a emergência do real no teatro.<br />
E, como falei na conferência, isso é algo<br />
bem frequente no teatro atual. Existem<br />
diferentes manifestações do real em<br />
cena, mas penso que há uma forma dessa<br />
aparição que traz um problema, que é<br />
quando se mata alguém, quando se trata <strong>da</strong><br />
questão <strong>da</strong> morte. Recebi um pedido para<br />
trabalhar sobre o espetacular com relação<br />
aos atentados de 11 de Setembro e o que<br />
me interessava era o discurso que acabou<br />
sendo criado em volta dos atentados. Na<br />
última vez que vim a São Paulo, tive uma<br />
conversa com Richard Schechner 6 por<br />
skype e ele havia descoberto que a arte<br />
1 Julia Guimarães é jornalista e mestran<strong>da</strong> em Artes Cênicas<br />
pela Escola de Belas Artes <strong>da</strong> UFMG.<br />
2 Leandro <strong>da</strong> Silva Acácio é ator e mestrando em Artes<br />
Cênicas pela Escola de Belas Artes <strong>da</strong> UFMG<br />
3 Le Groupov: coletivo de artistas de diferentes áreas – teatro,<br />
vídeo, música etc – e nacionali<strong>da</strong>des fun<strong>da</strong>do em 1980 pelo<br />
francês Jacques Delcuvellerie.<br />
4 Patricio Guzman: documentarista chileno.<br />
5 Huang Yong Ping (1954): artista visual francês de origem<br />
chinesa. o trabalho de Yong Ping combina várias linguagens<br />
oriun<strong>da</strong>s de diferentes culturas. Dentre suas várias<br />
influências, é possível destacar o Movimento Da<strong>da</strong>ísta e a<br />
numerologia chinesa.<br />
poderia ter um lado negativo, poderia ser<br />
má. Para mim, era interessante, mas bem<br />
surpreendente essa frase. E eu também<br />
conhecia o trabalho do Huang Yong Ping e<br />
ele me incomo<strong>da</strong>va. Então, decidi trabalhar<br />
nos limites do que eu, como espectadora,<br />
podia aceitar. E me perguntava como o<br />
espectador podia legitimar essas formas<br />
‘más’ de arte. Perguntava-me se to<strong>da</strong>s<br />
as artes, por serem artes, se tornavam<br />
legítimas, e não estava certa disso. E penso<br />
que hoje existem questões de ética que se<br />
colocam nessa discussão <strong>da</strong> arte.<br />
Na palestra, você falou dessa dimensão<br />
obscena que existe na exploração <strong>da</strong><br />
violência real na arte e que coloca em<br />
xeque justamente questões morais e éticas.<br />
No entanto, existem artistas que exploram<br />
a violência real em cena até mesmo como<br />
um ato político. Como você percebe essa<br />
contradição?<br />
Eu não pensei ain<strong>da</strong> na violência em si,<br />
não fiz um trabalho sobre a violência, mas<br />
sobre a transformação do evento violento<br />
real colocado na cena. Eu me pergunto: em<br />
que momento temos o direito de utilizar<br />
as catástrofes humanas de forma artística,<br />
esquecendo as mortes? A afirmação de<br />
Stockhausen '' de que o 11 de Setembro<br />
seria “a mais bela obra de arte” causou esse<br />
problema. A questão não é a violência em<br />
si, porque ela existe tanto na cena quanto<br />
na vi<strong>da</strong>. Mas quando temos o direito de<br />
usar a violência real para transformá-la em<br />
obra de arte? Esse é o problema. Porque<br />
os artistas sempre utilizaram a violência<br />
em cena. Na própria performance, a<br />
violência já apareceu tanto em relação aos<br />
próprios performers quanto em relação a<br />
outras coisas. Trabalhos de muitos artistas<br />
têm bastante sangue. E quando falo de<br />
violência na cena, me refiro a eventos reais,<br />
de quando alguém morre na sua frente.<br />
6 Richard Schechner é pesquisador, professor <strong>da</strong> New York<br />
University e diretor de teatro. Fun<strong>da</strong>dor e editor <strong>da</strong> revista<br />
The Drama Review, publica<strong>da</strong> pela NYU.<br />
7 Karlheinz Stockhausen (1929–2007). Compositor alemão de<br />
música contemporânea. Foi colega de Pierre Boulez e ambos<br />
estu<strong>da</strong>ram com o compositor e organista olivier Messiaen.<br />
Julia Guimarães e Leandro Silva Acácio
N° 16 | Junho de 2011<br />
Mas nos exemplos que mostrei na palestra,<br />
existem diferenças entre os dois primeiros<br />
e o terceiro. Os dois primeiros não colocam<br />
para mim problemas éticos e estéticos. Eles<br />
são trazidos de forma respeitosa. Já o terceiro<br />
(de Ping), que não tem especificamente<br />
a ver com o ser humano, me causa uma<br />
repulsa. Ele coloca questões éticas para<br />
mim, mesmo sendo um trabalho com<br />
animais, porque parece completamente<br />
gratuito. Eu entendo qual foi o argumento<br />
do artista, mas acho bem extremo ter que<br />
passar pelo viveiro (onde ficam os bichos<br />
na obra de Ping) para concretizar esse<br />
pensamento. Mas não<br />
é sobre a violência que<br />
eu trabalho, eu trabalho<br />
sobre a estética. Sobre o<br />
que entra ou não nesse<br />
terreno e como reagimos<br />
quanto a isso.<br />
Alguns autores<br />
brasileiros relacionam<br />
a presença do real na<br />
cena contemporânea<br />
a uma incapaci<strong>da</strong>de<br />
de simbolizar eventos<br />
que seriam por demais<br />
traumáticos. Por isso<br />
deslocam fragmentos<br />
desse real em estado<br />
bruto para a cena. Você<br />
percebe essa relação em seu estudo sobre<br />
a estética do choque?<br />
Eu não estou certa se seria por uma<br />
incapaci<strong>da</strong>de de simbolizar. Acho que<br />
trazer elementos brutos na cena causa<br />
sempre um impacto muito grande para o<br />
espectador. Porque estamos tão habituados<br />
à violência que talvez a violência simbólica<br />
não faça mais efeito sobre nós, em alguns<br />
casos. Mas também acho que a violência<br />
real traz uma sensação diferente porque<br />
a sentimos no próprio corpo. Talvez seja<br />
a manifestação do nosso individualismo<br />
engrandecido. Porque ela nos faz reagir<br />
por intermédio do nosso corpo e não do<br />
nosso intelecto. E o corpo é o que a gente<br />
tem de mais individual, de mais pessoal.<br />
A questão não é<br />
a violência em si,<br />
porque ela existe<br />
tanto na cena<br />
quanto na vi<strong>da</strong>.<br />
Mas quando temos<br />
o direito de usar a<br />
violência real para<br />
transformá-la em<br />
obra de arte?<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
A violência simbólica cria uma ligação<br />
coletiva, mas a violência real manifesta<strong>da</strong><br />
na cena entra na gente. Ela não se divide,<br />
nós a recebemos individualmente. Pode<br />
ser uma possível interpretação, não sei.<br />
Na palestra, você fala de uma leitura<br />
dos diferentes pontos <strong>da</strong> natureza do<br />
olhar sobre eventos extremos, que<br />
estão no livro do Paul Ardenne. 8 Na sua<br />
opinião, o que eles sinalizam em relação a<br />
essa recepção <strong>da</strong> estética do choque pelos<br />
espectadores?<br />
O interessante<br />
é perceber porque<br />
olhamos essas coisas. E<br />
o que a gente sente ao<br />
olhar, o que nos acor<strong>da</strong><br />
em si. Vou voltar aos<br />
princípios do Paul<br />
Ardenne. Um deles é<br />
que a gente gosta de<br />
olhar aquilo a que não<br />
estamos acostumados.<br />
O segundo está ligado<br />
à exteriori<strong>da</strong>de. É<br />
muito importante que<br />
a gente sempre fique<br />
fora do evento. Nos<br />
dois exemplos que uso<br />
na conferência, não<br />
estamos no Chile, nem<br />
em outro lugar. O impacto desse evento<br />
é ain<strong>da</strong> mais forte, porque estamos<br />
na segurança, num lugar tranquilo,<br />
enquanto os outros estão na insegurança.<br />
A gente não precisa salvar nossa pele. Se<br />
estivéssemos com os militares, estaríamos<br />
pensando em fugir, em nos salvar, e não<br />
na morte do cameraman. O terceiro é<br />
o desejo de ver eventos extremos, um<br />
pouco como no circo romano, eu penso.<br />
O impactante nos exemplos que dei é que<br />
eles tocam a morte. É a diferença que faz<br />
Ardenne sobre os eventos extremos e os<br />
8 Paul Ardenne (1956) é professor de história na Universi<strong>da</strong>de<br />
de Amiens, e é também crítico de arte e curador no campo<br />
<strong>da</strong> arte contemporânea. Autor de vários ensaios, tais como<br />
Extrême: esthétiques de la limite dépassée, Flammarion, 2006.<br />
Entrevista - Josette Féral 181
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
182<br />
superlativos. Os últimos seriam eventos<br />
impressionantes, eles nos tocam, mas não<br />
<strong>da</strong> mesma forma que os eventos extremos,<br />
como no espetáculo “Inferno” de<br />
Castelucci, 9 que mostrei na palestra. Você<br />
olha o alpinista e acha que ele vai parar de<br />
subir com 5m de altura, mas ele continua.<br />
Isso é superlativo, porque está fora do<br />
nosso habitual e nos deixa impressionado.<br />
Também existe o superlativo de rejeição,<br />
como em um espetáculo que o Castelucci<br />
coloca um contorcionista cujo corpo se<br />
desarticula em cena.<br />
Na palestra, você diferencia a<br />
presença do real nas performances dos<br />
anos 1960 com a de agora, que estaria<br />
mais liga<strong>da</strong> à interrupção <strong>da</strong> ficção, de<br />
quebra com o contrato inicial estabelecido<br />
com o público. O que mu<strong>da</strong> entre uma<br />
experiência e outra no que se refere aos<br />
efeitos dessa presença?<br />
O caminho <strong>da</strong><br />
performance era pela<br />
estética e pela política,<br />
mas bem mais pela<br />
estética. Ela procurava<br />
tirar a arte dos lugares<br />
habituais de consumo, dos<br />
circuitos institucionais.<br />
Ela modificava<br />
profun<strong>da</strong>mente a<br />
natureza do produto<br />
artístico, insistia no<br />
aspecto processual e não<br />
no aspecto produto. O<br />
que os artistas mostravam<br />
não era o produto final<br />
e, sim, o processo. E ela<br />
procurava reinstituir a<br />
presença. Era importante essa procura <strong>da</strong><br />
presença porque a performance buscava<br />
lutar contra a representação. E fazer do<br />
espetáculo uma presentação. É nesse sentido<br />
que ela era política. As formas teatrais de<br />
hoje não têm o mesmo propósito de lutar<br />
contra as representações. Já estamos dentro<br />
9 Romeo Castelucci, Diretor italiano de teatro experimental.<br />
Dirigiu Hey Girl! (2006) e Inferno (2009), dentre outros.<br />
As formas teatrais<br />
de hoje não têm o<br />
mesmo propósito<br />
de lutar contra as<br />
representações.<br />
Já estamos dentro<br />
disso, não é mais<br />
uma luta, faz<br />
<strong>parte</strong>.<br />
disso, não é mais uma luta, faz <strong>parte</strong>. Porque<br />
já adotamos a ideia de que podemos ter uma<br />
presença e não uma representação cênica.<br />
Então, o fato de colocar hoje o real em cena<br />
surge para provocar o espectador, suscitálo<br />
a ver o espetáculo de outro jeito, a reagir<br />
de outra forma. Para resumir, diria que se a<br />
performance estava centra<strong>da</strong> no performer,<br />
o teatro hoje está voltado para o espectador.<br />
Em descobrir como acor<strong>da</strong>r um espectador<br />
que está dormindo to<strong>da</strong> hora. Não é apenas<br />
o intuito de fazê-lo reagir só pelo prazer,<br />
mas fazê-lo reagir de forma inteligente, não<br />
só pela provocação. Claro que ain<strong>da</strong> existem<br />
espetáculos que trabalham somente com<br />
essa vontade de provocação. Vi em Nova<br />
York o Força Bruta 10 [Fuerza Bruta], que é<br />
um espetáculo corporal meio Broadway,<br />
ele passa pelo corporal o tempo todo,<br />
pelo sensorial, mas não é contextualizado,<br />
enquadrado, não é interessante. Já em<br />
outros casos, existe uma contextualização,<br />
uma simbolização do<br />
que está colocado em<br />
cena. Porque se o real é<br />
mostrado de qualquer<br />
jeito, ele deixa de ser<br />
interessante.<br />
E o que seria esse<br />
enquadramento?<br />
Tem que haver<br />
uma dramaturgia, um<br />
contexto para que traga<br />
esse senso de estética.<br />
Por exemplo, a diferença<br />
entre o que vemos na<br />
Internet e num espetáculo<br />
é que na Internet não há<br />
o enquadramento. A<br />
violência, para ter algum sentido, precisa<br />
desse enquadramento, porque se for<br />
simplesmente coloca<strong>da</strong> de forma bruta,<br />
se torna apenas soma, não faz diferença.<br />
Teve um caso que me impressionou de<br />
dois jovens adolescentes <strong>da</strong> Inglaterra que<br />
martirizaram um menino de cinco anos.<br />
10 Fuerza Bruta/Nova York. Ver http://www.fuerzabrutanyc.<br />
com/about.html<br />
Julia Guimarães e Leandro Silva Acácio
N° 16 | Junho de 2011<br />
Mas o que posso fazer com isso do ponto<br />
de vista simbólico? Essa é a violência<br />
bruta, existem vários exemplos disso. Para<br />
resumir, voltando ao domínio <strong>da</strong> estética,<br />
a violência tem que ser enquadra<strong>da</strong> de<br />
algum jeito para ter um sentido ou para nós<br />
conseguirmos <strong>da</strong>r algum sentido a ela. Para<br />
ela poder ser gerencia<strong>da</strong> intelectualmente,<br />
senão estamos paralisados, não podemos<br />
gerar na<strong>da</strong> com isso.<br />
Você diz que o real hoje aparece<br />
na arte como uma tentativa de acor<strong>da</strong>r<br />
o espectador, mas que a presença <strong>da</strong><br />
violência em cena tem que ser enquadra<strong>da</strong><br />
simbolicamente para fazer sentido. Ela<br />
seria então uma forma atualiza<strong>da</strong> de<br />
despertar o senso crítico diante do que o<br />
público vê?<br />
Sim, com certeza, mas talvez não seja<br />
isso o que aconteça. Porque é uma violência<br />
tautológica. A gente invoca a violência<br />
pela violência, um pouco como acontece<br />
na vi<strong>da</strong>. Ela não provoca o espírito crítico<br />
do espectador. Só provoca uma reação<br />
sensorial. De rejeição ou de desgosto,<br />
mas não provoca uma reação crítica no<br />
espectador.<br />
Mesmo se estiver enquadra<strong>da</strong>?<br />
Para você despertar esse senso crítico,<br />
você precisa ter outro pensamento por cima<br />
disso e não somente evocar a violência<br />
pela violência na cena. Porque a violência<br />
corporal está limita<strong>da</strong> pela imagem que<br />
a gente projeta. Sendo que a violência<br />
evoca<strong>da</strong> pela dramaturgia permite mais<br />
espaço de reflexão, traz vantagens a essa<br />
reflexão. Porque quando mostramos<br />
pessoas sangrando, a violência bruta, o<br />
que você está expressando além do ato<br />
por ele mesmo? Nesse caso, tudo o que<br />
o espetáculo fala é que existe violência.<br />
Então é bem limitado. A coisa mais<br />
importante no teatro é a função metafórica.<br />
E aí que o espectador intervém. É aí que<br />
a inteligência do espectador é solicita<strong>da</strong>.<br />
E, nos espetáculos de violência bruta, ela<br />
não é solicita<strong>da</strong>. Não estamos no domínio<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
metafórico, estamos na reali<strong>da</strong>de. Mas a<br />
reali<strong>da</strong>de só é interessante quando está<br />
enquadra<strong>da</strong> e explica<strong>da</strong>. É por isso que os<br />
espetáculos de violência neles mesmos não<br />
me interessam. O que é interessante, como<br />
nos dois primeiros exemplos que dei, é o<br />
que envolve a cena, como isso é fechado.<br />
Voltando ao 11 de Setembro, o que me<br />
impressiona na fala do Stockhausen é<br />
o desaparecimento <strong>da</strong>s mortes que os<br />
atentados causaram.<br />
No final <strong>da</strong> palestra, você relaciona<br />
a fruição traumática com a catarse grega,<br />
a partir do livro de Paul Ardenne. Qual<br />
seria o elo entre uma coisa e outra e até<br />
que ponto ela cria certa alienação, como<br />
Brecht falava?<br />
Acho que deve haver esse<br />
distanciamento, é o que falo do performer,<br />
se você está num espetáculo que é só o real,<br />
você está lá e tem que ter essa visão de fora<br />
para ficar interessante. Você tem que ter<br />
momentos de real e de ficção, esse vai-evem<br />
é que faz o espetáculo ser bom, abrir o<br />
pensamento. A teatrali<strong>da</strong>de vem <strong>da</strong> divisão<br />
entre o espaço cotidiano e o espaço <strong>da</strong> cena.<br />
Dentro do espaço cênico também tem uma<br />
divisão, sobre o que é real material e o que<br />
é criado na cena. E o olhar do espectador<br />
sempre faz i<strong>da</strong> e volta – como uma agulha –<br />
entre o real e a ficção. Ou o espaço cotidiano<br />
e o espaço cênico. O olhar é sempre duplo.<br />
E na violência de repente tudo fica chapado.<br />
Então você tem que sair dessa violência para<br />
entendê-la. E é muito importante esse vai-evem,<br />
ele está na base <strong>da</strong> experiência estética<br />
e <strong>da</strong> experiência teatral também. Porque se<br />
não tem isso, ou você está no real ou está no<br />
delírio. Como nos hospitais psiquiátricos,<br />
onde pessoas pensam ser o personagem o<br />
tempo inteiro. A experiência teatral é você<br />
ver no ator tanto a experiência do real quanto<br />
a <strong>da</strong> criação, ao mesmo tempo. Quando<br />
você olha um ator, você vê, ao mesmo<br />
tempo, que ele é de carne e osso e que está<br />
numa ficção. Por exemplo, se decido subir<br />
em cima <strong>da</strong> mesa e fazer um personagem,<br />
você, como espectador, tem duas opções:<br />
ou pensa que estou fazendo teatro – mas se<br />
Entrevista - Josette Féral 183
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
184<br />
pensar vai saber que pode detectar tanto o<br />
lado real quanto o jogo – ou você não faz<br />
essa distinção e vai para hospital e você está<br />
no delírio. Então, o olhar do espectador tem<br />
que ter essa duali<strong>da</strong>de e frente à violência<br />
é a mesma coisa. Mas, de repente, um dos<br />
aspectos é mais importante: o real. É o<br />
que chamo também de performativi<strong>da</strong>de.<br />
Isso esmaga minha reação porque sou<br />
absorvi<strong>da</strong> na coisa. Mas, para poder pensar<br />
sobre ela, tenho que sair, por isso falo de<br />
enquadramento sempre.<br />
E é essa absorção que você relaciona<br />
com a catarse?<br />
Sim, mas a catarse não é só pela<br />
absorção, pode ser também pelo caminho <strong>da</strong><br />
reflexão. Ela permite gerar e compreender a<br />
violência, mas, ao mesmo tempo, expressar<br />
suas angústias.<br />
Ao falar sobre a espetacularização dos<br />
atentados de 11 de Setembro, você remete<br />
à ideia de socie<strong>da</strong>de do espetáculo, de Guy<br />
Debord. Alguns grupos de teatro buscam<br />
explorar o real na ficção justamente para<br />
contrapor essa ideia, realizar um caminho<br />
inverso. Que tipo de relação você vê entre<br />
o real na cena contemporânea e essa<br />
espetacularização <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de?<br />
Para começar, o real tem a sua lógica<br />
e o espetáculo tem outra. Quando se leva<br />
um para dentro do outro, há que se ter<br />
alguma atenção. Há duas formas de criar<br />
o espetáculo no real. Um exemplo para<br />
clarificar essa distinção: quando o grupo<br />
Royal de Luxe 11 faz espetáculos em um<br />
espaço público, ele importa o espetáculo<br />
para o real. A companhia teatraliza o<br />
real. Mas há uma enti<strong>da</strong>de teatral e<br />
uma enti<strong>da</strong>de social que são distintas.<br />
A companhia estabelece pontes entre<br />
essas duas. E é <strong>da</strong>í que nasce o prazer do<br />
espetáculo. Quando Guy Debord fala <strong>da</strong><br />
espetacularização do real, não é disso que<br />
11 Royal de Luxe é uma Companhia francesa de teatro de<br />
bonecos de rua. Eles foram fun<strong>da</strong>dos em 1979 por Jean<br />
Luc Courcoult.<br />
se trata e não é disso que quero dizer. O<br />
que eu disse é que temos um contato com o<br />
real por meio do espetáculo e <strong>da</strong> imagem.<br />
Tudo o que foi dito sobre o 11 de Setembro<br />
dá razão ao Guy Debord. Porque o fato<br />
foi tantas vezes foi interpretado como<br />
espetáculo que nos esquecemos que foi um<br />
evento real com pessoas, com morte, com<br />
drama. Apenas se falou <strong>da</strong> imagem e <strong>da</strong><br />
fotogenia do acontecimento. Baudrillard, 12<br />
que também foi citado na conferência, diz<br />
o mesmo que Stockhausen. Mas o tópico<br />
que me interessa nesse momento é falar<br />
<strong>da</strong> importação do real na cena.<br />
Por que?<br />
Eu acredito que esta é uma <strong>da</strong>s<br />
marcas do teatro performativo atual. E<br />
é uma questão de dosagem entre o real<br />
e o espetáculo. Podemos nos interessar<br />
sobre diferentes aspectos do real que<br />
foram por opção importados para a cena,<br />
mas, agora, me interesso principalmente<br />
por alguns aspectos particulares que têm<br />
sido usados para a cena, ligados à morte.<br />
Não sobre a morte de alguém, senão pelo<br />
contrario, o momento mesmo <strong>da</strong> morte,<br />
dessa passagem para a morte. Acredito<br />
que esse é um momento espetacular,<br />
realmente. Mas a questão talvez seja como<br />
tornar esse momento espetacular de um<br />
modo digno, para que não seja espetacular<br />
stritcto sensu. Para que não seja apenas o<br />
efeito espetacular aquilo que se procura.<br />
Para que não busque o “voyerismo” do<br />
espectador. Para que possamos ir além <strong>da</strong><br />
imagem. Talvez, contradizendo Debord,<br />
podemos dizer que o real espetacularizado<br />
importado para a cena é menos espetacular<br />
do que na vi<strong>da</strong>. Talvez seja a forma de<br />
reencontrar a intensi<strong>da</strong>de do evento.<br />
Porque, muitas vezes, nós vemos mortes<br />
e cenas de violência em documentários,<br />
mas quando esses materiais são colocados<br />
no espetáculo, eles reconquistam uma<br />
intensi<strong>da</strong>de real.<br />
12 Jean Baudrillard (1929 – 2007) foi um sociólogo e filósofo<br />
francês. Autor de Da Sedução (1979) e A troca impossível<br />
(1999), dentre outros.<br />
Julia Guimarães e Leandro Silva Acácio
N° 16 | Junho de 2011<br />
E como se dá esse processo de<br />
reconquistar uma intensi<strong>da</strong>de real?<br />
Alain Robbe-Grillet, um escritor do<br />
Novo Romance Francês e também crítico<br />
de arte, dizia que para redescobrirmos uma<br />
pintura, não podemos estar em um estado<br />
de inocência diante dessa obra, porque já<br />
nos habituamos a ver muitas reproduções.<br />
E, para descobrirmos uma autentici<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> pintura, é preciso retirar cama<strong>da</strong>s. Para<br />
isso, é preciso escrever muito sobre a obra<br />
para reencontrarmos esse primeiro contato.<br />
Isso é uma inversão de Guy Debord. É uma<br />
inversão de um certo pensamento comum,<br />
vamos dizer, essa expectativa de que<br />
podemos ter esse encontro primeiro com<br />
a Giocon<strong>da</strong> 13 quando<br />
finalmente formos ver o<br />
quadro no museu, apesar<br />
de termos tido inúmeros<br />
encontros anteriores<br />
em reproduções. E eu<br />
acredito, com afirma<br />
Debord, que a vi<strong>da</strong> tem<br />
sido espetaculariza<strong>da</strong><br />
mesmo. E que é preciso<br />
despir as cama<strong>da</strong>s<br />
do espetáculo para<br />
reencontrar a urgência<br />
do momento. E aquilo<br />
que faz o artista é<br />
precisamente procurar<br />
o coração do real, dessa<br />
urgência do momento.<br />
Alguns autores colocam a<br />
performativi<strong>da</strong>de como um elemento de<br />
aproximação entre arte e vi<strong>da</strong>, enquanto<br />
a teatrali<strong>da</strong>de teria função distanciadora.<br />
Você também percebe essa dicotomia?<br />
Completamente. A teatrali<strong>da</strong>de é um<br />
jogo de vai-e-vem entre o real e a ficção.<br />
Na performativi<strong>da</strong>de, nós aderimos à<br />
ação, estamos dentro dela. É semelhante<br />
a quando vemos um jogo esportivo, em<br />
A teatrali<strong>da</strong>de é<br />
um jogo de vaie-vem<br />
entre o<br />
real e a ficção. Na<br />
performativi<strong>da</strong>de,<br />
nós aderimos à<br />
ação, estamos<br />
dentro dela.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
que estamos no movimento, na ação,<br />
no acontecimento. Mas para conhecer<br />
a teatrali<strong>da</strong>de, é importante estarmos<br />
fora, pois é essa distância que permite o<br />
movimento de ir e vir. Winnicott 14 escreveu<br />
sobre o jogo. Ele explicou que, para a<br />
criança jogar, é necessário que ela crie um<br />
espaço diferente do real, do cotidiano,<br />
que ele chamou de espaço transicional.<br />
Quando a criança está dentro desse<br />
espaço, ela pode brincar. Quando está fora<br />
dele, está no real. Quando um ator leva o<br />
real para o jogo, ele não pode jogar. Ele<br />
tem que ver os dois espaços. Pois de forma<br />
contrária, ele está ou como ator no espaço<br />
transicional, ou só no exterior, no real. Mas,<br />
para manter sua posição de espectador,<br />
ele deve ser capaz de<br />
ficar nas duas posições.<br />
É por isso que quando<br />
há um acontecimento<br />
real no teatro, um<br />
acidente, ninguém faz<br />
na<strong>da</strong>. Se o ator cai, por<br />
exemplo, ou passa mal,<br />
ninguém faz na<strong>da</strong>,<br />
pois sabe que é ficção.<br />
Porque o espectador<br />
vê os dois: o real e o<br />
jogo. Se o espectador<br />
estivesse unicamente<br />
no real, quando visse<br />
o ator passar mal, ele<br />
interviria. Isso quer<br />
dizer que, para enxergar<br />
a teatrali<strong>da</strong>de, é preciso<br />
haver uma distância. E é por essa<br />
distância ficcional que não se intervêm.<br />
Mas, na performativi<strong>da</strong>de, o espectador<br />
está dentro. O espectador cola, adere<br />
ao acontecimento. E eu acredito que se<br />
existem muitos artistas hoje que utilizam<br />
o real em cena é para forçar o espectador a<br />
aderir ao espetáculo.<br />
13 La Giocon<strong>da</strong> ou, em francês, La Joconde, ou ain<strong>da</strong> Mona<br />
Lisa del Giocondo, é a mais notável e conheci<strong>da</strong> obra do pintor<br />
italiano Leonardo <strong>da</strong> Vinci. 14 Winnicott (1979/1983). Psicólogo inglês.<br />
Entrevista - Josette Féral 185
N° 16 | Junho de 2011<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Entrevista - Peta Tait 187
N° 16 | Junho de 2011<br />
Foto: La Trobe University Services<br />
de Anton Chekhov. As pesquisas de<br />
Tait têm sido publica<strong>da</strong>s por várias<br />
editoras de renome internacional, 3 como<br />
a Routledge, que lançou seu último livro<br />
Circus Bodies: Cultural Identity in Aerial<br />
Performance 4 (2005).<br />
Em 2002, Tait convidou-me para<br />
assistir a leitura dramática de Mesmerized<br />
(1990) peça teatral escrita em colaboração<br />
com outra autora, a australiana Matra<br />
Robertson. A leitura feita com habili<strong>da</strong>de<br />
por atores profissionais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />
Entrevista<br />
Peta Tait - Dramaturga<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong> 1<br />
(entrevista e tradução) e Júlia<br />
Oliveira 2 (tradução)<br />
Peta Tait é uma reconheci<strong>da</strong><br />
dramaturga australiana cujas<br />
peças teatrais são permea<strong>da</strong>s<br />
pelas teorias feministas e de<br />
gênero. Doutora em Teatro pela<br />
University of Technology, Sydney,<br />
Tait exerce atualmente o cargo<br />
de 'Professor', coordenando o<br />
Programa de Teatro e Drama<br />
<strong>da</strong> La Trobe University em<br />
Melbourne, Austrália. Professor<br />
Tait é internacionalmente<br />
respeita<strong>da</strong> por suas pesquisas<br />
nas áreas de teatro físico;<br />
performance; história do trapézio<br />
e em campos <strong>da</strong> filosofia e<br />
teoria social onde ela escreve<br />
sobre teorias <strong>da</strong>s emoções e<br />
representações teatrais e sociais;<br />
e sobre as teorias de atuação<br />
realista em relação a dramaturgia<br />
Melbourne, durou cerca de duas horas<br />
e já apontava alguns elementos de uma<br />
encenação como um figurino elaborado e<br />
algumas ações dos personagens. Os nove<br />
personagens dessa peça episódica giram<br />
em torno <strong>da</strong> protagonista Augustine,<br />
uma jovem interna<strong>da</strong> no hospital<br />
parisiense La Salpêtrière entre os anos de<br />
1875 e 1880, espaço e tempo em que o<br />
neurologista Doutor Jean-Martin Charcot<br />
realizava experimentos com hipnose<br />
para catalogar os ciclos e sintomas <strong>da</strong><br />
Entrevista - Peta Tait 189
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
190<br />
histeria. Assim, em Mesmerized, duas<br />
personali<strong>da</strong>des históricas são coloca<strong>da</strong>s<br />
como personagens no centro <strong>da</strong> trama,<br />
e isso nos instiga a refletir criticamente<br />
sobre a história <strong>da</strong> ciência e os discursos<br />
científicos sobre a mulher e o feminino.<br />
Mesmerized corresponde ao termo em<br />
português mesmerizar, cujos sinônimos<br />
são encantar, fascinar, hipnotizar. O<br />
termo surgiu a partir do nome do médico<br />
alemão Franz Anton Mesmer (1734-1815),<br />
que tornou-se polêmico nas socie<strong>da</strong>des<br />
médicas <strong>da</strong> Europa ao desenvolver as<br />
teorias do “magnetismo animal” e por<br />
utilizar a hipnose para curar pacientes<br />
histéricas. Assim, as autoras já no título<br />
fazem referências a história <strong>da</strong> histeria<br />
para retratar o contexto desta patologia na<br />
França no fim século XIX. Nessa entrevista,<br />
Tait explica como ela e Matra trabalharam<br />
a partir de documentação histórica para<br />
construir os personagens de suas peças,<br />
e reflete sobre teatro feminista e teorias<br />
de gênero. Somando-se a esse conteúdo<br />
mais informativo sobre o processo de<br />
construção do texto dramatúrgico, essa<br />
entrevista abre um espaço mais subjetivo e<br />
de diálogo entre Peta e eu. De um lado, a<br />
autora de Mesmerized, do outro eu como a<br />
1 Professora adjunta do Departamento de Artes Cênicas<br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina. Diretora<br />
do espetáculo Retrato de Augustine [Mesmerized],<br />
contemplado com o prêmio Myriam Muniz (2008) FUNARTE/<br />
Petrobrás, que estreou no Teatro Álvaro de Carvalho, em<br />
Florianópolis em 2010.<br />
2 Graduan<strong>da</strong> do curso de Licenciatura e Bacharelado em<br />
Artes Cênicas (UDESC). Bolsista de Iniciação Científica do<br />
projeto de pesquisa “Poéticas Feministas: A re-invenção <strong>da</strong><br />
histeria no teatro feminista <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1990”, coordenado<br />
pela profa. Dra. Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong>.<br />
3 Alguns títulos <strong>da</strong> autora: Performing Emotions: Gender,<br />
Bodies, Spaces, in Chekhov’s Drama and Stanislavski’s<br />
Theatre. Aldershot: Ashgate (2002), Body Show/s: Australian<br />
Viewings of Live Performances. Amster<strong>da</strong>m: Rodopi (2000),<br />
Tait, P. & Schafer, E. (eds). Australian Women's Drama: Texts<br />
and Feminisms. Sydney: Currency Press, (1997), Converging<br />
Realities: Feminism in Australian Theatre. Sydney: Currency<br />
Press, 1994; Artigos: Performative Acts of Gendered Emotions<br />
and Bodies in Chekhov's The Cherry orchard. In: Modern<br />
Drama Vol XLIII (no. 1. 2000), Circus oz Larrikinism, Good<br />
Gender Sport? In: Contemporary Theatre Review 14/3, 2004.<br />
4 Circus Bodies: Cultural Identity in Aerial Performance.<br />
London: Routledge, 2005.<br />
tradutora <strong>da</strong> peça para o português e como<br />
a responsável pela concepção e direção<br />
de Mesmerized, intitula<strong>da</strong> no Brasil como<br />
Retrato de Augustine.<br />
Peta, o que levou você e Matra<br />
Robertson a escreverem uma peça teatral<br />
retratando um fato histórico?<br />
Nós escrevemos colaborativamente<br />
duas peças teatrais e eu gostaria de falar<br />
de nossas abor<strong>da</strong>gens em relação aos<br />
dois textos [Mesmerized, traduzi<strong>da</strong> como<br />
Retrato de Augustine e Breath by Breath,<br />
ain<strong>da</strong> sem traducão para o português].<br />
Nossas duas peças são tanto uma crítica<br />
`a própria história do teatro quanto <strong>da</strong><br />
história per se. Os personagens dessas<br />
peças foram figuras históricas, porém,<br />
nós apenas fizemos um esboço de suas<br />
vi<strong>da</strong>s. Não se trata simplesmente de<br />
reconfigurar biografias históricas para o<br />
palco. Nós temos consciência de como a<br />
forma teatral cria significados e como ela<br />
tem a sua própria trajetória. Nossa outra<br />
peça, Breath by Breath, produzi<strong>da</strong> em 2003,<br />
apresenta [Anton] Chekhov em eventos<br />
históricos, mas também o apresenta no<br />
esforço imaginativo <strong>da</strong> escrita. A figura<br />
do escritor torna-se emblemática de como<br />
escritores precisam li<strong>da</strong>r com eventos<br />
políticos catastróficos – ou não, no caso<br />
do Chekhov, ele enfrentou a censura e<br />
não tinha liber<strong>da</strong>de de expressão ou nao,<br />
se estivesse enfretando censura, ja que<br />
ele nao tinha liber<strong>da</strong>de de expressao ou<br />
nao, se estivesse enfretando censura, ja<br />
que ele nao tinha liber<strong>da</strong>de de expressao.<br />
Chekhov escreveu sobre as emoções e<br />
nós decidimos destacar as perseguições<br />
políticas de um grupo minoritário, por<br />
ser mais provocante emocionalmente<br />
do que seria uma questão intelectual<br />
dependente de raciocínio. É assim que o<br />
teatro e a dramaturgia podem contribuir<br />
para a compreensão dos problemas<br />
sociais. O teatro pode personificar<br />
questões para que estas tenham um<br />
impacto emocional.<br />
Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong> e Júlia oliveira
N° 16 | Junho de 2011<br />
Por que foi importante discutir o tema<br />
<strong>da</strong> histeria no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980?<br />
Mesmerized (Retrato de Augustine) infere<br />
uma relação entre o performer e o corpo<br />
histérico, e o teatro e os processos de<br />
vigilância e controle social. Explorávamos<br />
os binarismos corpo/mente; razão/<br />
emoção e como estes impõem ordens<br />
sociais e de gênero. As teorias sobre<br />
a construção social <strong>da</strong>s emoções<br />
permanecem controversas especialmente<br />
para o teatro político do século XX.<br />
No entanto, o teatro e o drama estão<br />
envolvidos na construção de linguagens<br />
de emoção e ao mesmo tempo em que<br />
eles reafirmam eles tamém transgridem<br />
os limites sociais do que é aceitável como<br />
expressão emocional e/ou loucura. Na<br />
época em que nós pesquisávamos sobre a<br />
histeria a maior <strong>parte</strong> do material estava<br />
disponível apenas em<br />
francês. E esse material<br />
nos <strong>da</strong>va um estudo<br />
de caso maravilhoso<br />
de como a expressão<br />
emocional individual é<br />
patologiza<strong>da</strong> dentro <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de para manter<br />
a ordem social.<br />
Mesmerized [Retrato<br />
de Augustine] é uma<br />
peça feminista? Quais<br />
são os principais pontos<br />
que a definem assim?<br />
Esta é uma pergunta que pode<br />
ser respondi<strong>da</strong> por outros a partir <strong>da</strong><br />
perspectiva <strong>da</strong> recepção teatral <strong>da</strong> plateia.<br />
Seria uma peça que tem a personagem<br />
central do sexo feminino, e cuja a trama<br />
retrata a vi<strong>da</strong> difícil dessa mulher,<br />
necessariamente feminista? Isso pareceme<br />
muito simplista como definição de<br />
abor<strong>da</strong>gem feminista. A peça tem seu<br />
aporte na teoria feminista, ao invés de<br />
ter o discurso apresentando as bandeiras<br />
ou as causas feministas – o texto apoiase<br />
nos desafios intelectuais às cisões<br />
As teorias sobre a<br />
construção social<br />
<strong>da</strong>s emoções<br />
permanecem<br />
controversas<br />
especialmente para<br />
o teatro político do<br />
século XX.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
corpo/mente, emoção/razão, masculino/<br />
feminino no pensamento ocidental. Nós<br />
duas já estávamos familiariza<strong>da</strong>s com o<br />
discurso feminista sobre a loucura, mas<br />
os discursos sobre o tema se tornaram<br />
uma reali<strong>da</strong>de retumbante, quando vistos<br />
em um cenário histórico. Gostaríamos de<br />
salientar que a preocupação dessa peça<br />
é com as políticas de controle sobre os<br />
indivíduos sem poder, e neste caso tratase<br />
<strong>da</strong> conivência de um modelo médico<br />
institucional.<br />
Talvez a peça Breath by Breath não<br />
aparente ser feminista por tratar de um<br />
autor já falecido e de seus relacionamentos.<br />
Porém, um desses relacionamentos é<br />
com uma musa e este personagem não é<br />
identificado como masculino ou feminino<br />
-- a desconstrução do gênero nos parece<br />
um ato feminista.<br />
Que estratégias vocês<br />
usaram para escreverem<br />
colaborativamente?<br />
Nós co-escrevemos<br />
(Mesmerized) Retrato<br />
de Augustine (1991)<br />
[sic] sobre a paciente<br />
de Charcot, a histérica<br />
Augustine, que<br />
apresentava-se em suas<br />
palestras; e Breath by<br />
Breath (2003) sobre a<br />
relação de Chekhov<br />
e Olga Knipper e um<br />
massacre de Judeus<br />
ocorrido no século XIX, na Rússia. Foi<br />
bem circunstancial que eu começasse a<br />
co-escrever com a Matra. Nós estávamos<br />
interessa<strong>da</strong>s intelectualmente em um<br />
teatro/cultura de ideias na Austrália.<br />
Ambas peças <strong>da</strong> nossa co-autoria<br />
envolvem a pesquisa acadêmica. A Matra<br />
estava escrevendo um livro, em meados<br />
<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980 (Starving in the Silences,<br />
Sydney: Allen & Unwin, 1991) uma<br />
análise Foucaultiana <strong>da</strong> categorização<br />
social <strong>da</strong> anorexia nervosa. Sua pesquisa<br />
abrangeu as informações históricas sobre<br />
Entrevista - Peta Tait 191
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
192<br />
Charcot e Augustine. Ela fez um grande<br />
levantamento sobre a história dos discursos<br />
médicos sobre o corpo feminino. Matra<br />
me contou dessa pesquisa sobre Charcot<br />
e Augustine e eu pensei que esse material<br />
poderia transformar-se em uma peça teatral<br />
interessante. Matra nunca havia escrito para<br />
o teatro, então eu me tornei sua co-escritora.<br />
Teria sido muito difícil ter ganho qualquer<br />
profundi<strong>da</strong>de de entendimento sobre esses<br />
campos de pesquisa que abrangem desde<br />
material histórico a uma série de discursos<br />
intelectuais, sem uma pesquisadora<br />
acadêmica, como co-roteirista. E seria ideal<br />
[esse material como peça teatral] desde que<br />
Augustine apresentasse seus sintomas para<br />
a câmera, para os médicos e para o público.<br />
Na performance corporal, Augustine,<br />
lutava para manter um sentido para a sua<br />
vi<strong>da</strong> interior, a qual nós sugerimos que<br />
viesse como memórias fragmenta<strong>da</strong>s e<br />
aterrorizantes.<br />
Quando começamos a pensar em<br />
escrever Breath By Breath estávamos ambas<br />
profun<strong>da</strong>mente perturba<strong>da</strong>s com o que<br />
estava e ain<strong>da</strong> está acontecendo em algumas<br />
<strong>parte</strong>s do mundo: a<br />
limpeza étnica, e nós<br />
conversávamos sobre<br />
isso constantemente.<br />
Mas sentimos que não<br />
poderíamos escrever<br />
sobre este horror em seu<br />
contexto contemporâneo.<br />
Poderíamos, no entanto,<br />
em uma abor<strong>da</strong>gem<br />
Brechtiana, trazer o<br />
presente por meio do<br />
passado, utilizando<br />
linguagens teatrais.<br />
Fomos motiva<strong>da</strong>s a<br />
escrever Breath By<br />
Breath pela angústia a<br />
respeito do que estava<br />
acontecendo e do nosso<br />
próprio senso de impotência sobre um<br />
padrão de genocídio, que voltou há alguns<br />
séculos. Enquanto a escrita pode aju<strong>da</strong>r os/<br />
as escritores/as, eu tenho dúvi<strong>da</strong>s se um<br />
dos pontos centrais de Breath By Breath é<br />
o texto apoiase<br />
nos desafios<br />
intelectuais `as<br />
cisões corpo/<br />
mente, emoção/<br />
razão, masculino/<br />
feminino no<br />
pensamento<br />
ocidental.<br />
com a eficácia política do teatro, e com esta<br />
preocupação de que a escrita de uma peça<br />
tem qualquer impacto nas circunstâncias<br />
socias.<br />
Depois de assistirem em DVD ao<br />
espetáculo teatral Retrato de Augustine<br />
que produzimos no Brasil em 2010, qual<br />
foi a sua sensação em relação a peça<br />
Mesmerized?<br />
É maravilhoso ver a peça ganhar vi<strong>da</strong><br />
e com um padrão tão alto de direção e<br />
atuação. Ficamos muito satisfeitas com a<br />
polidez e realização artística em todos os<br />
aspectos e detalhes <strong>da</strong> produção. To<strong>da</strong>s<br />
as interpretações foram de alto nível e a<br />
Augustine [Juliana Riechel] foi excepcional<br />
e o maduro Charcot [José Ronaldo<br />
Faleiro] sutil e equilibrado. A produção<br />
com os corpos [dos atores] no espaço,<br />
criado pela diretora, foi totalmente bela e<br />
comovente. Nós duas ficamos encanta<strong>da</strong>s<br />
com o significado de to<strong>da</strong>s as partituras<br />
de movimentos e gestos, as mu<strong>da</strong>nças de<br />
tom e as nuances emocionais. Nós criamos<br />
o roteiro de trabalho<br />
e a forma escrita do<br />
texto, mas é só quando<br />
o diretor coloca alguns<br />
ingredientes mágicos<br />
dentro do texto que<br />
ele ganha vi<strong>da</strong>. Nós<br />
pensamos que esta<br />
produção de Retrato<br />
de Augustine (2010)<br />
foi extraordinária<br />
e considere que no<br />
passado nós tivemos<br />
um grupo de atores bem<br />
estabelecidos, incluindo<br />
a atriz Cate Blanchett,<br />
apesar de nunca ter tido<br />
uma produção completa.<br />
As imagens visuais<br />
são uma <strong>parte</strong> crucial do teatro, mas para<br />
esta peça, elas possuem uma importância<br />
ain<strong>da</strong> maior para o sentido. Os gestos de<br />
Augustine são visualmente expressos<br />
e devem ser completamente críveis e<br />
Maria Brígi<strong>da</strong> de Miran<strong>da</strong> e Júlia oliveira
N° 16 | Junho de 2011<br />
ao mesmo tempo, os médicos revelam<br />
simpatia mesmo dentro <strong>da</strong>s limitações de<br />
sua compreensão. O texto visual precisa<br />
capturar os momentos de devaneio de<br />
Augustine, por isso esses momentos têm de<br />
parecem gloriosos. A tela foi uma excelente<br />
decisão e solução <strong>da</strong> direção para alguns<br />
dos problemas de encenação considerando<br />
que é uma peça episódica e com uma<br />
varie<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>nças na atmosfera do<br />
cenário e tudo isso fluiu muito suavemente.<br />
O imaginário sonoro e visual satisfez tudo<br />
o que poderíamos esperar. Ficamos muito<br />
emociona<strong>da</strong>s com esta produção.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Entrevista - Peta Tait 193
N° 16 | Junho de 2011<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Atores: Augustine [Juliana Riechel];<br />
Médico Interno [Vicente Concílio]; Doutor Charcot [José Ronaldo Faleiro] e Paul [Guilherme Rótulo]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
Retrato de Augustine 195
N° 16 | Junho de 2011<br />
Retrato de Augustine<br />
Dramaturgas: Peta Tait e Matra Robertson<br />
Concepção de espetáculo, Tradução e Direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong><br />
Produção: Paula Cruz<br />
Produtora: Escultural Produções de Arte<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Este projeto foi contemplado com<br />
o Prêmio – FUNART de Teatro,<br />
Myriam Muniz (2008). Retrato de<br />
Augustine estreou em abril de 2010<br />
no Teatro Alvaro de Carvalho em<br />
Florianópolis. Nos meses seguintes<br />
apresentou-se a convite dos<br />
seguintes festivais “Segundo Vértice<br />
Brasil: Encontro de Teatro feito por<br />
Mulheres”; “3ª Semana Ousa<strong>da</strong><br />
de Artes”; “VII Festival Palco<br />
Giratório – SESC Santa Catarina”.<br />
Contemplado com o Primeiro Edital<br />
de Cultura <strong>da</strong> PROEX, Universi<strong>da</strong>de<br />
do Estado de Santa Catarina,<br />
Retrato de Augustine encerrou sua<br />
tempora<strong>da</strong> de 2010 apresentando-se<br />
nos teatros do SESC de Lages e<br />
de Joinville, SC.<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
Retrato de Augustine 197
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
198<br />
Retrato de Augustine
N° 16 | Junho de 2011<br />
UM PANo DE FUNDo PARA o<br />
RETRATo DE AUGUSTINE<br />
Em 1990 as dramaturgas australianas<br />
Peta Tait e Matra Robertson escreveram<br />
Mesmerized, título original <strong>da</strong> peça que<br />
traduzi como Retrato de Augustine. O texto<br />
foi baseado em uma pesquisa documental<br />
sobre a relação entre dois personagens<br />
históricos: o neurologista francês Jean-<br />
Martin Charcot (1825-1893), com quem<br />
Freud estu<strong>da</strong>ria alguns anos depois, e<br />
Augustine (1860-?) – jovem diagnostica<strong>da</strong><br />
como histérica. Em 2002, época em que<br />
realizava meu doutorado na ci<strong>da</strong>de de<br />
Melbourne, Austrália, assisti a convite<br />
Peta Tait a uma leitura dramática de<br />
Mesmerized. Enquanto o elenco <strong>da</strong>va voz<br />
aos personagens fui fascina<strong>da</strong> pela história<br />
de Augustine. Desta experiência surgiu<br />
o desejo de encenar a obra no Brasil. Ao<br />
desenvolver o projeto percebi as sutilezas<br />
<strong>da</strong> trama em seu entrelaçamento entre<br />
<strong>da</strong>dos históricos e ficcionais. Como diretora<br />
compartilho <strong>da</strong> visão <strong>da</strong>s autoras e de sua<br />
proposta de levar o espectador a refletir,<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
dentre outras coisas, sobre as relações entre<br />
mulher e loucura, histeria e teatro, ciência e<br />
arte, fotografia e representação, construção<br />
de imagem e memória, na perspectiva dos<br />
estudos de gênero.<br />
o CENÁRIo<br />
Hospital parisience La Salpêtrière,<br />
entre os anos de 1876 e 1880. Neste palco<br />
de importantes inovações científicas, Dr.<br />
Charcot e sua equipe realizam experimentos<br />
em um grupo de pacientes para catalogar 'a<br />
forma' e os 'ciclos' <strong>da</strong> histeria. Neste contexto<br />
de ciência experimental a fotografia, uma<br />
tecnologia então recente, torna-se o recurso<br />
de “registro fiel <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de”. Uma jovem<br />
<strong>da</strong>s províncias interna<strong>da</strong> aos quinze anos<br />
com paralisia no braço direito e fortes dores<br />
abdominais logo atrai a atenção de Charcot<br />
e sua equipe. Neste palco onde a ciência<br />
foi também espetaculariza<strong>da</strong>, Augustine<br />
transforma-se de jovem paciente à diva <strong>da</strong><br />
histeria, e neste papel inicia uma jorna<strong>da</strong><br />
em que representação e ação se mesclam, e<br />
sua identi<strong>da</strong>de se fragmenta.<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong>s Fotos: Daniel Yencken.<br />
Retrato de Augustine 199
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
200<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010).<br />
Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010.<br />
Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
SINoPSE<br />
Retrato de Augustine, tradução inédita<br />
do texto teatral Mesmerized (1990) escrito<br />
pelas dramaturgas australianas Peta Tait<br />
e Matra Robertson, tem como cenário o<br />
Hospital La Salpêtrière, em Paris. Neste<br />
palco de importantes transformações<br />
que marcaram a história <strong>da</strong> medicina e<br />
<strong>da</strong> fotografia na França do século XIX, o<br />
famoso neurologista Jean-Martin Charcot,<br />
futuro orientador de Freud, realizou um<br />
intenso estudo sobre a histeria. As autoras<br />
realizaram uma pesquisa documental para<br />
retratar a relação entre Charcot e Augustine,<br />
uma jovem paciente exibi<strong>da</strong> em palestras<br />
públicas e sessões de fotografia por ser<br />
uma “perfeita ilustração <strong>da</strong> histeria”.<br />
Retrato de Augustine
N° 16 | Junho de 2011<br />
Augustine<br />
Paul<br />
Interno<br />
Doutor Charcot<br />
Mãe/Enfermeira<br />
Bernardette<br />
Atendente<br />
Em Video<br />
Homem<br />
Santa Teresa<br />
Elenco<br />
JULIANA RIECHEL<br />
GUILHERME ROSARIO<br />
ROTULO<br />
VICENTE CONCILIO<br />
JOSÉ RONALDO<br />
FALEIRO E<br />
MARCELO F. DE SOUZA<br />
FATIMA COSTA DE LIMA<br />
DUDA SCHAPPO<br />
PEDRO COIMBRA<br />
FERNANDO MARES<br />
JANAINA MARTINS<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel].<br />
Crédito <strong>da</strong>s Fotos: Daniel Yencken.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Retrato de Augustine 201
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
202<br />
FÁTIMA COSTA DE LIMA<br />
ANA LUCIA VILELA<br />
BRIGIDA MIRANDA<br />
ANA LUCIA VILELA<br />
FÁTIMA COSTA DE LIMA<br />
ANA LUCIA VILELA<br />
EMANUELA VIEIRA<br />
KERRIE SINCLAIR<br />
PEDRO COIMBRA<br />
JANAÍNA MARTINS<br />
CLAUDIA AGUIYRRE<br />
DANIEL YENCKEN<br />
IVAN SOARES<br />
ROB OLIVER<br />
ANA JÚLIA GUIZ<br />
Cenografia<br />
Confecção dos Objetos<br />
Figurino<br />
Confecção de Figurino<br />
Coreografias<br />
Preparação Corporal<br />
Preparação Vocal<br />
Direção de Imagens<br />
Direção de Fotografia(projeções)<br />
Maquiagem e Cabelo<br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>.<br />
Atores: Augustine [Juliana Riechel]. Crédito <strong>da</strong>s Fotos: Daniel Yencken.<br />
Retrato de Augustine
N° 16 | Junho de 2011<br />
MORGANA MARTINS<br />
MORGANA MARTINS<br />
RENATA SWOBODA<br />
DANIEL OLIVETTO<br />
ANDRÉ SARTURI<br />
DANIEL YENCKEN<br />
CLAUDIA MUSSI<br />
DANIEL YENCKEN<br />
CLAUDIA MUSSI<br />
JULIA OLIVEIRA<br />
AGNES RATH<br />
CLAUDIA MUSSI<br />
ESCULTURAL PRODUÇÕES DE ARTE<br />
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE<br />
SANTA CATARINA<br />
Repertório Sonoro<br />
Assistência de Repertório Sonoro<br />
Desenho de Luz<br />
Operação de Luz<br />
Edição de Projeções<br />
Operação de Projeções<br />
Fotos<br />
Marketing e Design Gráfico<br />
Produção<br />
Apoio Institucional<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
FoTo: Espetáculo Retrato de Augustine (2010). Teatro Casa <strong>da</strong>s Máquinas 2010. Concepção e direção: Brígi<strong>da</strong> Miran<strong>da</strong>. Atores: Augustine [Juliana Riechel],<br />
Enfermeira Bottard [Fátima Lima]; Doutor Jean-Martin Charcot [José Ronaldo Faleiro], Médico Interno [Vicente Concílio]. Crédito <strong>da</strong> Foto: Daniel Yencken.<br />
Retrato de Augustine 203
N° 16 | Junho de 2011<br />
Normas para publicação de artigos<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
A Revista <strong>Urdimento</strong> é uma publicação do Programa de Pós-Graduação em Teatro<br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Estado de Santa Catarina e reúne artigos que contribuiem para a<br />
pesquisa na área <strong>da</strong>s artes cênicas.<br />
A <strong>Urdimento</strong> recebe as colaborações em fluxo contínuo que são analisa<strong>da</strong>s pelo<br />
Conselho Editorial. As seguintes normas técnicas devem ser observa<strong>da</strong>s para a publicação<br />
<strong>da</strong>s contribuições.<br />
1) Os artigos devem ter no mínimo 8 e máximo 12 lau<strong>da</strong>s. Resenhas<br />
de livros entre 3 e 4 lau<strong>da</strong>s. Os textos deverão ser digitados com letra<br />
Times New Roman, tamanho 12, com espaçamento 1,5 cm em Word para<br />
Windows (ou compatível).<br />
2) Os colaboradores devem incluir <strong>da</strong>dos especificando as ativi<strong>da</strong>des que<br />
exercem, a instituição (se for o caso) em que trabalham e <strong>da</strong>dos básicos<br />
dos respectivos currículos.<br />
3) Solicita-se clareza e objetivi<strong>da</strong>de nos títulos.<br />
4) Os artigos devem vir acompanhados de resumo com no máximo de 6<br />
linhas e 3 palavras-chaves, ambos com as respectivas traduções para o<br />
inglês.<br />
5) O envio do artigo original implica na autorização para publicação,<br />
tanto na forma imprensa como digital <strong>da</strong> revista.<br />
6) Notas explicativas serão aceitas desde que sejam imprescindíveis e<br />
breves. As citações no' corpo do texto que sejam <strong>superior</strong>es a 5 linhas<br />
devem ser digita<strong>da</strong>s em espaço simples com tamanho 10 em itálico. As<br />
citações no corpo do texto devem seguir a formatação (AUTOR, 2008, p.1).<br />
7) To<strong>da</strong>s as palavras em língua estrangeira devem estar em itálico.<br />
8) As notas de ro<strong>da</strong>pé devem ser apresenta<strong>da</strong>s no fim de ca<strong>da</strong> página e<br />
numera<strong>da</strong>s em algarismos arábicos.<br />
9) Caso os artigos incluam fotos, desenhos ou materiais gráficos <strong>da</strong> autoria<br />
de terceiros, é indispensável carta de autorização. O material deverá vir<br />
acompanho de legen<strong>da</strong>s de identificação. O material gráfico deve ser<br />
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de 300 dpi, envia<strong>da</strong>s em arquivos separados do texto. Somente serão<br />
publica<strong>da</strong>s imagens em preto e branco.<br />
10) O material para a publicação deverá ser encaminhado em duas vias<br />
impressas e uma em formato digital (programa word) para o e-mail<br />
urdimento@udesc.br aos cui<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> revista.<br />
Convocatória para artigos 205
<strong>Urdimento</strong> N° 16 | Junho de 2011<br />
206<br />
Endereço para correspondência e envio de colaborações:<br />
Revista <strong>Urdimento</strong><br />
Programa de Pós-Graduação em Teatro – UDESC<br />
Av. Madre Benvenuta, 1.907 – Itacorubi<br />
88.035-001 – Florianópolis – SC<br />
E-mail: urdimento@udesc.br<br />
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Livros<br />
SOBRENOME, Prenomes do autor. Título: subtítulo. edição. Local: editor, ano de<br />
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Teses/ Dissertações/Monografias<br />
SOBRENOME, Prenomes do autor. Título: subtítulo. ano. nº total de páginas.Tese,<br />
Dissertação ou Monografia (grau e área) - Uni<strong>da</strong>de de Ensino, Instituição, Local e ano.<br />
Artigos de periódicos na internet<br />
SOBRENOME, Prenomes do autor. Título do artigo. Título<br />
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Artigos<br />
SOBRENOME, Prenomes do autor do artigo. Título do artigo. Título <strong>da</strong> Revista,<br />
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