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refração e iluminação em bernardo carvalho - Revista Novos Estudos

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REFRAÇÃO E ILUMINAÇÃO<br />

EM BERNARDO CARVALHO<br />

YARA FRATESCHI VIEIRA<br />

RESUMO<br />

A leitura dos livros de Bernardo Carvalho, especialmente os dois<br />

últimos romances, Nove noites (2002) e Mongólia (2003), reconhece t<strong>em</strong>as comuns à literatura cont<strong>em</strong>porânea: a desconfiança quanto<br />

ao lugar da ficção, as suas relações com outros tipos de discurso, a questão da identidade e da busca de um sentido que organize,<br />

resgatando-os da sua dispersão e gratuidade, os eventos, as ações e os afetos. Há porém um duplo movimento que é característico da sua<br />

escrita: por um lado, constrói uma intriga folhetinesca que capta a atenção do leitor; por outro, configura-se como uma casa de espelhos<br />

que deixa entrever, através de <strong>iluminação</strong> enviesada, um ponto simultaneamente central e cego: a homossexualidade refratada.<br />

PALAVRAS-CHAVE: literatura brasileira; literatura cont<strong>em</strong>porânea; Bernardo Carvalho.<br />

SUMMARY<br />

Bernardo Carvalho's books, particularly the latter two novels, Nove<br />

noites (2002) and Mongólia (2003), deal with recurrent th<strong>em</strong>es of cont<strong>em</strong>porary literature: the distrust towards fiction's place, its<br />

relations to other types of discourse, the identity issue and the search for a meaning that organizes events, actions and affections,<br />

<strong>em</strong>ancipating th<strong>em</strong> from their dispersion and groundlessness. Nevertheless, one can identify a double trend that is characteristic of his<br />

writings: on the one hand, a feuilleton-style intrigue that captures the reader's attention, and on the other a mirror house that reveals,<br />

through an slanting light, a point that is both central and blind: the refracted homosexuality.<br />

[1] Veja-se, por ex<strong>em</strong>plo, como se<br />

iniciam os dois primeiros contos de<br />

Aberração (1993): "Tudo o que æ<br />

[sic] fez, disse ou sentiu na vida é<br />

falso" ("A valorização"): "Eu não podia<br />

ter entendido mesmo" ("A al<strong>em</strong>ã");<br />

e os romances Nove noites<br />

(2002) e Mongólia (2003): "Isto é<br />

para quando você vier. É preciso es-<br />

KEYWORDS: Brazilian literature; cont<strong>em</strong>porary literature; Bernardo Carvalho.<br />

... as linhas que atravessam a profundidade do quadro são incompletas; falta-lhes<br />

a todas uma parte do seu trajeto. Essa lacuna é devida à ausência do rei — ausência<br />

que é um artifício do pintor.<br />

[Michel Foucault, As palavras c as coisas]<br />

Bernardo Carvalho é, s<strong>em</strong> dúvida, um escritor com fisionomia<br />

própria, facilmente reconhecível no seu estilo e nos interesses<br />

que mov<strong>em</strong> os seus livros. Aliás, se não soubéss<strong>em</strong>os que um<br />

determinado livro era seu, poderíamos identificá-lo como autor já<br />

a partir do incipit 1 . Além do estilo enxuto, de frases curtas, parcimoniosas<br />

<strong>em</strong> adjetivos e advérbios — muitas vezes elidindo o verbo<br />

ou transformando <strong>em</strong> frases independentes o que se esperaria como<br />

uma coordenação ou subordinação —, reconhec<strong>em</strong>os a preocupação<br />

com a questão da verdade e da mentira, da compreensão de um sentido<br />

que é s<strong>em</strong>pre elusivo, quer no plano dos fatos que suportam narrativamente<br />

o texto, quer na própria constituição do discurso ficcional,


disperso e refratado através de filtros múltiplos; <strong>em</strong> ambos os casos, a<br />

busca de um sentido é o fio condutor da efabulação e da própria escrita.<br />

Deveríamos relacionar o projeto de dar sentido ao mundo e o seu<br />

recursivo fracasso à prática profissional do autor como jornalista?<br />

Falando com a voz de Thomas Pynchon, numa entrevista "exclusiva e<br />

fictícia", assim define Bernardo Carvalho o trabalho literário: "Não<br />

existe literatura n<strong>em</strong> arte s<strong>em</strong> paranóia. Provavelmente não haveria n<strong>em</strong><br />

civilização. A paranóia é a tentativa de dar sentido ao que não t<strong>em</strong>, ao<br />

desconhecido. E não é isso que o hom<strong>em</strong> tenta fazer desde o início dos<br />

t<strong>em</strong>pos?" 2 .<br />

Num momento <strong>em</strong> que o documentário invade o campo do<br />

ficcional e se assiste a uma série de êxitos de bilheteria que<br />

aparent<strong>em</strong>ente dev<strong>em</strong> seu sucesso a uma necessidade crescente de<br />

"verdade factual", de acesso à informação fidedigna (e quando os<br />

próprios noticiários ao vivo, cuja co-presença e imediatez os<br />

qualificaria à representação fiel dos fatos, têm a sua manipulação<br />

paradoxalmente desnudada), os livros de Bernardo Carvalho<br />

lexicalizam essa desconfiança, <strong>em</strong>bora o façam de forma tortuosamente<br />

irônica ao apropriar-se, na ficção, de discursos migrantes de outros<br />

registros supostamente comprometidos com o real: a reportag<strong>em</strong><br />

jornalística, a investigação acadêmica, a psicanálise, o diário de viag<strong>em</strong>,<br />

o relato confessional autobiográfico, a descrição do guia turístico. Por<br />

um lado, a escrita ficcional desqualifica esses discursos como<br />

produtores de verdade, criticando-os explicitamente pela voz do<br />

narrador ou mediante justaposição de vozes conflitantes; por outro,<br />

porém, ao reproduzir no texto ficcional esses recursos, que se<br />

desautorizam apenas obliquamente e se dilu<strong>em</strong> numa efabulação<br />

propositadamente complicada e até folhetinesca, cria uma espécie de<br />

armadilha para um público medianamente letrado, que procura cada<br />

vez mais se informar por meio de revistas de opinião, turismo ecológico<br />

e cultural, reportagens diretas, buscas na internet. O resultado é que o<br />

leitor sai de um livro desses com a sensação de ter lido algo "inteligente",<br />

"lúcido" e "moderno" (ou "pós"), mas também com a incômoda<br />

sensação de ter perdido algo, que a escrita elusiva e o acúmulo de<br />

informação e de intriga novelesca deformaram ou ocultaram.<br />

Essa tendência parece-me cristalizar-se nos dois últimos romances<br />

do escritor, Nove noites e Mongólia 3 , nos quais me detenho, portanto, para<br />

um exame mais minucioso. Os dois textos se espelham, <strong>em</strong> mais de um<br />

sentido. Num e noutro as respectivas posições dos protagonistas se<br />

invert<strong>em</strong>, <strong>em</strong> aparente compl<strong>em</strong>entaridade: <strong>em</strong> Nove noites um antropólogo<br />

norte-americano v<strong>em</strong> ao Brasil para estudar os indígenas<br />

brasileiros "na tentativa de explicar o comportamento pela inserção<br />

social e assim relativizar os conceitos de normalidade e anormalidade<br />

no que diz respeito aos indivíduos" (p. 17); <strong>em</strong> Mongólia acompanhamos<br />

os trajetos de dois brasileiros que percorr<strong>em</strong> as estepes e os<br />

desertos mongóis — um fotógrafo profissional, contratado por uma<br />

tar preparado. Alguém terá de preveni-lo.<br />

Vai entrar numa terra <strong>em</strong> que a<br />

verdade e a mentira não têm mais os<br />

sentidos que o trouxeram até aqui";<br />

"Foi chamado de Ocidental por nômades<br />

que não conseguiam dizer o<br />

seu nome quando viajou pelos confins<br />

da Mongólia. [...] Sua volta int<strong>em</strong>pestiva<br />

coincidiu com a eclosão<br />

da pneumonia atípica na Ásia, o que<br />

pode ter servido de explicação para<br />

alguns, mas não para mim".<br />

[2] "E tudo mentira!". Folha de São<br />

Paulo, "Mais!", 25/04/2004, pp. 4-5.<br />

[3] Carvalho, Bernardo. Nove Noites.<br />

São Paulo: Companhia das Letras,<br />

2002; Mongólia. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 2003.


[4] Cf. Cercas, Javier. Soldados de<br />

Salamina. São Paulo: Globo, 2002.<br />

revista de turismo para atravessar a Mongólia de norte a sul, e um<br />

diplomata que sai <strong>em</strong> busca do primeiro, dado como desaparecido.<br />

Nos dois casos os olhares de visitante e visitado cruzam-se enviesados<br />

("civilizado" e "primitivo" num caso e "ocidental" e "oriental" no outro),<br />

desconhecendo-se mutuamente. Assim, poderíamos dizer à primeira<br />

vista que esses romances focalizam, com consciência crítica, a<br />

sobrevivência da identidade irredutível de certas culturas numa época<br />

<strong>em</strong> que a globalização é vendida como fator de progresso material e<br />

tecnológico e de acesso ao b<strong>em</strong>-estar social. Mas isso seria tomar os<br />

textos apenas na sua camada mais visível. Já ver<strong>em</strong>os que há mais ali do<br />

que se pode perceber a olho nu ou a uma primeira leitura descompromissada.<br />

Nove noites incorpora certas tendências narrativas que parec<strong>em</strong><br />

encontrar favor hoje <strong>em</strong> dia: um jov<strong>em</strong> escritor ou jornalista procura<br />

esclarecer um incidente pontual perdido na "grande história" — por<br />

ex<strong>em</strong>plo, a trajetória de um humilde "herói" da Guerra Civil Espanhola 4<br />

ou, no caso desse romance, a morte misteriosa de um antropólogo<br />

americano entre os índios krahôs no fim da década de 1930. O modelo<br />

permite contar duas histórias ao mesmo t<strong>em</strong>po: a que transcorreu no<br />

passado e a do seu investigador no presente da narrativa, coincidente<br />

com o nosso. O processo de recuperação da pequena história passada<br />

acaba por deixar marcas ou provocar uma transformação na<br />

personag<strong>em</strong> atual, podendo ainda levar a uma revisitação da "grande<br />

história" do ponto de vista de hoje. De qualquer forma, se há uma<br />

recuperação do romance "histórico" como forma narrativa não se elide<br />

o ponto de vista do historiador; pelo contrário, é totalmente assumida<br />

a sua existência de indivíduo inserido no t<strong>em</strong>po e movido por razões<br />

que muitas vezes permanec<strong>em</strong> submersas <strong>em</strong> camadas da subjetividade<br />

não imediatamente acessíveis ou explicitáveis.<br />

Contam-se duas histórias <strong>em</strong> Nove noites: a de Buell Quain, o<br />

antropólogo que se suicidou, de forma particularmente violenta, entre<br />

os krahôs <strong>em</strong> 1939, s<strong>em</strong> que se tenha elucidado o motivo da sua morte,<br />

e a do jornalista que, <strong>em</strong> 2001, resolve esclarecer o mistério. Entre as<br />

duas se estabelece um enlace que diz respeito à vida pessoal do narrador:<br />

ao velar o pai moribundo no hospital, ele assistira à morte do seu<br />

companheiro de quarto, um fotógrafo americano de 80 anos que, antes<br />

de morrer, toma equivocadamente o narrador por um certo "Bill<br />

Cohen", que se supunha morto mas cuja visita ele vinha esperando há<br />

anos. Mais tarde, ao ler num artigo de jornal a referência ao suicídio de<br />

Buell Quain, o narrador se dá conta da s<strong>em</strong>elhança entre os dois nomes<br />

e é tomado pela obsessão de investigar os motivos que teriam levado o<br />

antropólogo a se matar.<br />

Essas histórias são relatadas por três narrativas intercaladas e<br />

entretecidas: a da "investigação" levada a cabo pelo jornalista, a da<br />

infância do narrador e da morte do pai e uma terceira, que se destaca<br />

das outras por vir <strong>em</strong> caracteres itálicos, do engenheiro Manoel Perna,


que convivera com Buell Quain e que escreve uma longa carta com a sua<br />

compreensão dos acontecimentos; essa carta, porém, nunca chegará ao<br />

destinatário (o americano do hospital), pois Perna morre afogado no<br />

rio Tocantins, segundo nos informa o narrador, s<strong>em</strong> deixar<br />

"testamento". O leitor, portanto, lê uma versão dos acontecimentos a<br />

que nenhuma outra personag<strong>em</strong> do livro t<strong>em</strong> acesso. A narrativa que<br />

permite a existência do livro é a investigação realizada pelo jornalista<br />

(que a <strong>em</strong>preende por motivos pessoais e s<strong>em</strong> finalidade profissional),<br />

cujos métodos são s<strong>em</strong>elhantes aos da investigação acadêmica, <strong>em</strong><br />

sentido amplo. No entanto, há uma diferença: enquanto esta última<br />

resulta num texto interpretativo liso, do qual se elid<strong>em</strong> as etapas<br />

investigativas, as hipóteses equivocadas, os becos s<strong>em</strong> saída, a que<br />

l<strong>em</strong>os <strong>em</strong> Nove noites, ao contrário, explicita tudo isso. O que acompanhamos<br />

é o roteiro da derrota do conhecimento.<br />

A investigação também aparenta formalmente a narrativa ao gênero<br />

dos romances de mistério (ou "romances policiais") canônicos.<br />

Contudo, ao estilizar o percurso de uma investigação policial (ou<br />

acadêmica) o romance contesta alguns pressupostos do discurso<br />

"racional" 5 . O detetive canônico encarna uma figuração de Deus, não<br />

no sentido antigo, isto é, <strong>em</strong> virtude de sua perfeição ou seu poder<br />

inexplicável, mas porque decifra as figuras s<strong>em</strong> as ter compreendido e<br />

delas deduz, intelectualmente, todas as características essenciais 6 .<br />

"Decifrar" e "intelectualmente" parec<strong>em</strong>-me aqui palavras-chave, pois<br />

confer<strong>em</strong> às personagens estatuto de signos desconhecidos cujo código<br />

está à espera do seu Champollion. O narrador-jornalista de Nove noites,<br />

rejeitando a acessibilidade ou a própria existência de tal código, prefere<br />

deixar a decifração final <strong>em</strong> aberto. A sua investigação não se resolve <strong>em</strong><br />

elucidação, não leva à confissão de praxe dos romances de mistério, <strong>em</strong><br />

que todas as incógnitas se esclarec<strong>em</strong> 7 .<br />

É no relato paralelo de Manoel Perna que se levantam algumas pistas<br />

sobre o suposto "mistério" envolvendo o suicídio de Quain:<br />

... ele me disse que estava <strong>em</strong> busca de um ponto de vista. Eu lhe perguntei:<br />

"Para olhar o quê?". Ele respondeu: "Um ponto de vista <strong>em</strong> que eu já não esteja<br />

no campo de visão ". [...] Às vezes me dava a impressão de que, a despeito de ter<br />

visto muitas coisas, não via o óbvio, e por isso acreditava que os outros também<br />

não o viss<strong>em</strong>, que pudesse se esconder. O que eu vi, nunca falei. [...] De certo<br />

modo, ele se matou para sumir do seu campo de visão, para deixar de se ver<br />

(pp. 111-12).<br />

O leitor pergunta-se, intrigado, por que o etnólogo preferiria se<br />

matar a ver a "sua imag<strong>em</strong> mais verdadeira" (p. 117). Mais adiante<br />

Manoel Perna rel<strong>em</strong>bra um episódio que Quain lhe contara: numa noite<br />

de Carnaval no Rio, levara para o seu quarto uma mulher negra "alta e<br />

vistosa", e ao acordar no dia seguinte encontrara ao seu lado na cama<br />

um negro forte e nu; e logo <strong>em</strong> seguida uma história que lhe fora<br />

[5] Kracauer chama ratio à racionalidade<br />

de categoria inferior que rege<br />

o universo dos romances policiais<br />

(cf. Kracauer, Siegfried. Le roman<br />

policier: un traité philosophique. Paris:<br />

Payot, 1981, pp. 45ss).<br />

[6] Cf. ibid<strong>em</strong>, p. 81.<br />

[7] Veja-se a propósito o pastiche do<br />

procedimento nos romances simpaticamente<br />

paródicos de Lawrence<br />

Block, a ex<strong>em</strong>plo de The burglar in<br />

the library, que têm como protagonista-detetive<br />

um ladrão. Cf. também<br />

Kracauer (ibid<strong>em</strong>, p. 82):<br />

"Padre secularizado, confessa os criminosos<br />

e ninguém mais conhecerá<br />

essa confissão (a não ser o biógrafo<br />

dos seus altos feitos); ele se torna o<br />

cúmplice de segredos que sabe guardar<br />

e que, no entanto, não se encontram<br />

a salvo na sua posse".


contada por um dos nativos da ilha do Pacífico onde estivera, de óbvio<br />

teor homossexual. E Manoel Perna observa: "Ele se exprimia por<br />

denegações" (p. 128). Tendo compreendido o que o etnólogo queria lhe<br />

revelar, ele escreve ao amigo de Quain:<br />

Não sei se você se dá conta das conseqüências do que ele me contou, do que<br />

aquilo podia provocar se chegasse aos ouvidos das autoridades. Imaginariam<br />

o pior, tudo seria pretexto para concluir que ele teria cometido atos na aldeia<br />

que, contrários à natureza humana, justificariam que os índios o matass<strong>em</strong><br />

(pp. 130-31).<br />

Por meio de outra voz, numa carta da diretora do Museu Nacional ao<br />

próprio Quain, as alusões oblíquas às "misérias humanas" se<br />

esclarec<strong>em</strong> quando colacionadas à "bisbilhotice" de um colega,<br />

referindo-se ao antropólogo: "Obriga-se à homossexualidade com<br />

negros, dos quais ele t<strong>em</strong> horror", <strong>em</strong>bora a versão seja logo<br />

desacreditada por outra voz, que observa: "Como caluniador, não há<br />

ninguém melhor do que Mishkin" (p. 130).<br />

O mistério finalmente se elucida mediante uma operação de leitura,<br />

rejuntando-se os indícios espalhados ao longo do texto de forma<br />

dispersa, indireta e torturada: o jov<strong>em</strong> etnólogo americano, cuja<br />

homossexualidade n<strong>em</strong> ele n<strong>em</strong> os d<strong>em</strong>ais aceitam ou entend<strong>em</strong> ("Não<br />

podia admitir que aquela fosse a sua imag<strong>em</strong> mais verdadeira: o<br />

espanto diante do desconhecido", p. 117), é levado por isso a excessos<br />

que resultam no seu próprio suicídio. A essa história, já subliminar e<br />

tortuosa, está acoplada uma narrativa folhetinesca com todos os<br />

ingredientes do gênero: equívoco de pessoa, reconhecimento final (mas<br />

não completo e indubitável) de paternidade etc. Se o sofrimento<br />

psicológico e físico de Quain com a homossexualidade, a necessidade<br />

de ocultá-la e ao mesmo t<strong>em</strong>po a sua inevitabilidade parec<strong>em</strong><br />

convincentes quando situados no contexto dos anos 1930, já não o são<br />

n<strong>em</strong> a sua dispersão numa narrativa folhetinesca de gosto oitocentista<br />

n<strong>em</strong> o excesso de peripécias que envolv<strong>em</strong> tanto as personagens ligadas<br />

diretamente à história passada como o narrador no presente. T<strong>em</strong>os de<br />

examinar mais de perto o papel deste último.<br />

Ao contrário do acadêmico, que precisa encontrar um aval objetivo<br />

e científico para a sua investigação e é s<strong>em</strong>pre cobrado a esse respeito, o<br />

narrador faz questão de repetir que nunca foi interrogado quanto à<br />

razão do seu interesse por Buell Quain. Mas no decorrer do discurso o<br />

leitor acaba por conhecê-la: está ligada às circunstâncias que rodearam<br />

a morte do pai, ao fato de o fotógrafo americano o ter tomado pelo<br />

outro, naquela ocasião (ah, os equívocos, os espelhos, as refrações...), a<br />

certas preferências de leitura compartilhadas e a coincidências nas vidas<br />

de ambos — na sua infância o narrador tivera contato íntimo com o<br />

Xingu, onde Quain viria a morrer (e de que o narrador, na sua persona<br />

histórica, nos oferece um test<strong>em</strong>unho fotográfico na orelha do livro).


Nesse ponto a investigação do narrador tinge-se das cores de uma<br />

d<strong>em</strong>anda pessoal, que se ilumina por referências intertextuais. A narrativa<br />

de Conrad O parceiro secreto, por ex<strong>em</strong>plo, referida como uma das<br />

preferidas pelo narrador na adolescência (p. 143) e que relata um ritual<br />

de iniciação por meio da experiência do "duplo" 8 , incide sobre t<strong>em</strong>a<br />

também caro a Bernardo Carvalho e que já se encontra nos seus livros<br />

anteriores, sob diversas faces: a questão da identidade, do peso do<br />

nome e da correspondente ameaça da indiferenciação ou do caos. Outro<br />

intertexto mencionado no discurso narrativo, o capítulo sobre a brancura<br />

<strong>em</strong> Moby Dick, traz à tona o terror da indiferenciação, contraponto<br />

do encapsulamento da identidade 9 . Aliás, t<strong>em</strong> certo interesse notar que<br />

a obra de Melville foi sentida por alguns de seus cont<strong>em</strong>porâneos como<br />

produto de um autor esquizofrênico, que oscilava entre a descrição<br />

b<strong>em</strong>-comportada e o súbito paroxismo 10 . O discurso de Bernardo<br />

Carvalho, no entanto, é curiosamente homogêneo, pois conceitualmente<br />

cindido entre a derrota da racionalidade e a apreensão<br />

íntima, ainda que só pressentida, do duplo movimento das fronteiras<br />

da identidade. Ao transformar a sua investigação <strong>em</strong> d<strong>em</strong>anda pessoal,<br />

o narrador simultaneamente glosa o trabalho antropológico de Quain,<br />

deixando-o porém de lado para focalizar os aspectos existenciais da<br />

passio do americano entre os indígenas brasileiros. Estes são revisitados<br />

anti-romanticamente, não como objeto de estudo antropológico n<strong>em</strong>,<br />

com finalidade político-humanitária, como grupos marginais à<br />

sociedade branca, mas por uma identificação pessoal complexa, de<br />

segundo e terceiro graus.<br />

É do relato de Manoel Perna, contudo, que sai o título para o livro:<br />

são as nove noites <strong>em</strong> que conviveu com Buell Quain e nas quais este<br />

lhe teria feito confidências sentidas como confissões, mas reveladas por<br />

denegações. Esse amigo, que se diz "sertanejo" mas não tolo, teria intuído,<br />

a despeito da barreira lingüística — pela identificação, de forma<br />

instintiva e a partir das ambíguas confidências do americano —, o<br />

grande segredo: "O que ele queria me dizer é que era capaz de fazer e que<br />

já não podia se controlar" (p. 132). É, além disso, a voz que proclama a<br />

relatividade da verdade. O seu discurso, que t<strong>em</strong> como único destinatário<br />

efetivo o leitor e cujo estatuto próprio marca-se graficamente<br />

pelos itálicos, é a parte totalmente ficcional do romance. O estranho é<br />

que a apreensão e a consciência desse segredo mais intuído do que<br />

revelado se express<strong>em</strong> mediante linguag<strong>em</strong> límpida, argumentativa,<br />

obediente às articulações lógicas e sintáticas, mesmo quando se procura<br />

pôr <strong>em</strong> xeque a incontestabilidade dos fatos ou quando um discurso<br />

procura anular o outro.<br />

Quando passamos do discurso do narrador-jornalista para o do<br />

narrador-test<strong>em</strong>unha não perceb<strong>em</strong>os uma mudança de registro sensível,<br />

<strong>em</strong>bora haja modulações que os distingu<strong>em</strong>: enquanto o discurso<br />

do jornalista por vezes parece reproduzir diretamente as fontes consultadas,<br />

o de Manoel Perna permite-se escapar para zonas marginais e<br />

[8] Na sua primeira viag<strong>em</strong> ao comando<br />

de um navio, um jov<strong>em</strong> capitão<br />

acolhe a bordo, às escondidas,<br />

um foragido acusado de homicídio,<br />

que ele percebe imediatamente como<br />

"meu duplo". Diante do dil<strong>em</strong>a da<br />

legalidade estrita e da sua certeza<br />

íntima e intuitiva da não-culpabilidade<br />

de seu "duplo", o capitão decide<br />

acobertá-lo e possibilitar-lhe a<br />

fuga.<br />

[9] Depois de discorrer acerca das<br />

conotações positivas e negativas da<br />

brancura, Melville resume: "e quando<br />

[...] consideramos que o místico<br />

cosmético que produz todas as cores<br />

[da Natureza], o grande princípio da<br />

luz, permanece para s<strong>em</strong>pre branco<br />

ou incolor <strong>em</strong> si mesmo, e se operasse<br />

s<strong>em</strong> mediação sobre a matéria<br />

tocaria todos os objetos, mesmo as<br />

tulipas e as rosas, com o seu próprio<br />

matiz descolorido — ponderando tudo<br />

isso, o universo paralisado jaz<br />

diante de nós como um leproso".<br />

[10] Cf. Ainsworth, William H.<br />

"Maniacal style and furibund story".<br />

In: Melville, Herman. Moby-Dick,<br />

Nova York/Londres: Norton, 1967,<br />

pp. 619-21.


[11] "O homossexual, por outro lado,<br />

cresceu sozinho; não existe uma<br />

história. [...] Como na frase de<br />

Adrienne Rich, é como se 'você<br />

olhasse num espelho e nada<br />

enxergasse'" (Tóibín, Colm. Amor<br />

<strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos sombrios. São Paulo:<br />

Arx, 2004, p. 22).<br />

nebulosas. Mas também pode haver certa contaminação entre ambos, e<br />

assim ouvimos Manoel Perna dizer algo ("os objetos que passaram a<br />

assombrar a mãe depois da sua morte", p. 42) que transmigra do discurso<br />

do jornalista ("[a mãe] procurou ficar longe de casa para não ter<br />

de conviver com o silêncio eloqüente desses objetos", p. 20) ou viceversa.<br />

As atitudes de Quain diante dos nativos, relatadas por Perna, são<br />

por sua vez reencenadas pelo jornalista. O testamento de Perna é o<br />

único relato que revela a capacidade de intuir, por <strong>em</strong>patia, o mistério<br />

cuja solução a investigação jornalística persegue s<strong>em</strong> sucesso, apresentando-se<br />

assim, com as suas indefinições e limitações, como o seu<br />

legítimo substituto: "a realidade é o que se compartilha", diz o jornalista<br />

ao decidir voltar para casa, desiludido com a história dos vivos.<br />

As fases finais da investigação, atropelando-se nas últimas páginas,<br />

rebaixam o tom obsessivo da d<strong>em</strong>anda e nos provocam uma<br />

sensação de esvaziamento à medida que a narração se encaminha<br />

para o fim. A permeabilidade entre os discursos, as sugestões reverberadas<br />

pelas alusões intertextuais (Conrad, Melville, Salinger...), as<br />

sobreposições de imagens (um Buell Quain que faz l<strong>em</strong>brar Bruce<br />

Chatwin, ao mesmo t<strong>em</strong>po que nele se reflete o jornalista; o narrador<br />

que posa de autor, oferecendo-nos o seu retrato enquanto jov<strong>em</strong> ao<br />

lado de um façanhudo índio no Xingu); a importância das fotografias<br />

(não só documentais, mas também artísticas), dos desenhos e<br />

das pinturas corporais e uma certa displicência nas últimas páginas,<br />

como se o narrador (ou o autor, no caso) tivesse se cansado e já não<br />

encontrasse energia para encarar as reações do jornalista a certos aspectos<br />

sórdidos da história que conseguira resgatar —, tudo isso,<br />

sendo maquinaria destinada a desqualificar fronteiras entre identidades<br />

e discursos, dá simultaneamente ao leitor a sensação de estar<br />

numa casa de espelhos, cuja montag<strong>em</strong> inteligente permite criar um<br />

ponto simultaneamente central e cego — como se Narciso, afinal, se<br />

cont<strong>em</strong>plasse num espelho que não reflete nada 11 .<br />

Mongólia, por sua vez, apropria-se de outras formas narrativas e<br />

outros tipos discursivos. A história principal, muito complicada por<br />

seus múltiplos eventos e personagens, resume-se contudo às seguintes<br />

linhas: um diplomata brasileiro na China é encarregado de procurar um<br />

rapaz brasileiro, fotógrafo, filho de um importante <strong>em</strong>presário, que<br />

está desaparecido há alguns meses na Mongólia; o diplomata nega-se a<br />

<strong>em</strong>preender a busca (s<strong>em</strong> revelar por quê), mas é obrigado a aceitar a<br />

missão. Ele parte para a Mongólia e enceta ali, com o guia que acompanhara<br />

o rapaz na última parte da viag<strong>em</strong>, uma longa peregrinação<br />

pelas estepes e desertos mongóis, <strong>em</strong> contato com as populações nômades<br />

locais. Quando já abandonara a esperança de encontrá-lo, o guia,<br />

<strong>em</strong>briagado, revela-lhe que deixara o rapaz partir sozinho no duro<br />

inverno mongol, por não querer ser identificado como seu parceiro<br />

homossexual. Finalmente, contra a sua expectativa, o diplomata encontra-o<br />

numa cabana, recolhido por uma família nômade, e revela-se ao


leitor o que o diplomata já sabia: o rapaz é seu meio-irmão, que ele vira<br />

pela primeira e última vez quando tinha cinco anos.<br />

As peripécias são muitas e b<strong>em</strong> mais complicadas do que o resumo<br />

pode fazer supor. Trata-se de um modelo narrativo dos mais<br />

tradicionais e folhetinescos: o "reconhecimento" de dois familiares que,<br />

por circunstâncias quaisquer, foram separados durante muitos anos.<br />

Na verdade, o reconhecimento propriamente dito não ocorre no plano<br />

da história, uma vez que o diplomata (o "Ocidental", no texto) já sabia<br />

desde o início que o rapaz desaparecido era filho do seu pai; o rapaz,<br />

por sua vez, não o reconhece como irmão, porque não sabia da sua<br />

existência n<strong>em</strong> que ele estava à sua procura. O texto, posto na boca do<br />

"Ocidental" para maior verossimilhança, "simula" uma surpresa de reconhecimento:<br />

Não era o que eu esperava. Não era o que tinha imaginado. Não era assim que<br />

eu o via. Estou há dias s<strong>em</strong> me ver, há dias s<strong>em</strong> me olhar no espelho, e, de<br />

repente, é como se me visse sujo, magro, barbado, com o cabelo comprido,<br />

esfarrapado. Sou eu na porta, fora de mim. É o meu rosto <strong>em</strong> outro corpo, que<br />

se assusta ao nos ver (p. 176).<br />

Portanto, é como se o reconhecimento se fizesse primeiro "por<br />

meios naturais", isto é, pelo reconhecimento da s<strong>em</strong>elhança física, e<br />

depois pelo "processo de raciocínio": "se este se parece comigo, mas não<br />

sou eu, então é alguém que compartilha a minha herança genética, ou<br />

seja, o meu meio-irmão" 12 . Mas o reconhecimento verdadeiro só ocorre<br />

no plano da leitura, e para dois leitores: primeiro, o diplomata aposentado,<br />

que alguns anos mais tarde lê o diário que o Ocidental deixara<br />

<strong>em</strong> suas mãos e, depois de obter algumas outras informações quanto ao<br />

passado do seu antigo subordinado, entende finalmente o principal da<br />

sua história; e <strong>em</strong> segundo lugar, obviamente como destinatário último<br />

do discurso ficcional, o leitor do livro. Trata-se da ironia grega às<br />

avessas: aqui a personag<strong>em</strong> sabe de algo que os leitores desconhec<strong>em</strong>.<br />

O romance constrói, desde o princípio, a atmosfera de um "mistério".<br />

O personag<strong>em</strong> central da busca, o Ocidental, é apresentado pelo<br />

narrador (o diplomata aposentado) como enigmático, difícil; a missão<br />

de resgate do rapaz desaparecido também é envolta <strong>em</strong> mistério — "Por<br />

razões que não estavam explícitas e que a nós não cabia discutir"; "Não<br />

sei do que podiam desconfiar n<strong>em</strong> do que estavam se precavendo"<br />

(p. 14) —; sobre o caráter e os motivos do próprio rapaz desaparecido<br />

levantam-se suspeitas: "Por alguma razão, seguindo as recomendações<br />

do próprio pai, desconfiavam do rapaz e de suas intenções" (p. 35).<br />

A coincidência — que poderíamos chamar "sinistra" (usando um<br />

adjetivo favorito do autor) — de os dois meios-irmãos estar<strong>em</strong> quase<br />

simultaneamente do outro lado do mundo, por motivos diferentes, não<br />

é t<strong>em</strong>atizada pelo romance. Penso que t<strong>em</strong>os de contar aqui com um<br />

el<strong>em</strong>ento referencial: o livro foi escrito depois de uma permanência de<br />

[12] Pela maneira como se faz o reconhecimento<br />

de um irmão pelo outro,<br />

seríamos tentados a supor que o<br />

autor está fazendo um pastiche da<br />

recomendação aristotélica quanto à<br />

melhor forma de "reconhecimento":<br />

"De todos os reconhecimentos [...],<br />

o melhor é aquele que decorre dos<br />

próprios incidentes, quando a descoberta<br />

espantosa é feita por meios<br />

naturais. [...] Esses reconhecimentos<br />

são os únicos que dispensam o auxílio<br />

artificial de sinais ou amuletos.<br />

Em seguida vêm os reconhecimentos<br />

por processo de raciocínio" (Aristóteles.<br />

Theory of poetry and fine art.<br />

Trad. e notas de S. H. Butcher. Nova<br />

York: Dover, 1951, p. 61).


dois meses do autor na Mongólia, com bolsa de criação literária da<br />

Fundação Oriente, de Lisboa. Da sua perspectiva, era natural, e mesmo<br />

necessário, que a ação se passasse na Mongólia, assim como nos parece<br />

natural que um fotógrafo seja encarregado por uma revista de turismo<br />

brasileira (considerando-se a moda das viagens "exóticas" e "alternativas"<br />

num certo setor da classe média ilustrada e adepta de atividades<br />

recreativas de certo risco) de preparar uma matéria sobre o país e que<br />

um diplomata brasileiro se encontre exercendo as suas funções no Extr<strong>em</strong>o<br />

Oriente.<br />

Digamos, portanto, que o autor tinha de inventar (no sentido<br />

retórico do termo) uma história que servisse de fio ao seu relato sobre<br />

"um certo Oriente". Em vez de fazê-lo como reportag<strong>em</strong> jornalística, no<br />

seu próprio nome, preferiu ficcionalizá-lo numa forma narrativa <strong>em</strong><br />

que já se tinha exercitado — e com sucesso — antes. Aqui também se<br />

lê<strong>em</strong> vários discursos: o do diplomata aposentado (ouviríamos aqui<br />

uns pálidos ecos machadianos, de um Casmurro que tenta entender o<br />

passado?); o do Ocidental, que narra a sua d<strong>em</strong>anda <strong>em</strong> busca do rapaz<br />

perdido; o do próprio rapaz (aliás, não se entende por que o Ocidental,<br />

depois de ter resgatado o meio-irmão, não lhe tenha devolvido os<br />

cadernos, deixando-os para o seu ex-superior hierárquico); e como se<br />

não bastasse ainda nos v<strong>em</strong>os às voltas com a narrativa de uma monja<br />

budista e com um manuscrito perdido — afinal, somos esclarecidos, o<br />

móvel da fatal viag<strong>em</strong> do rapaz desaparecido. Em meio a tudo isso, à<br />

medida que os dois visitantes se <strong>em</strong>brenham pelas estepes e regiões<br />

desérticas, acompanhamos as suas reações ao contato cultural com as<br />

populações locais e vamos sendo informados de como estas reagiam<br />

aos forasteiros. Pelo relato do primeiro narrador, isto é, do diplomata<br />

aposentado, ambos os viajantes são caracterizados como<br />

"preconceituosos", "afoitos", dispostos a projetar sobre a China e a<br />

Mongólia o que traziam das suas respectivas experiências brasileiras;<br />

no entanto, o seu discurso é por sua vez desacreditado pela constatação<br />

de que afinal ele é que não entendera nada do que afligia o seu<br />

subordinado e o autor do outro diário. Cria-se aqui também um jogo<br />

de espelhos <strong>em</strong> que os objetos se deformam sucessivamente e deixam o<br />

leitor s<strong>em</strong>pre à espera da grande revelação, quando finalmente serão<br />

vistos face a face e não mais através de um véu (a metáfora é destituída<br />

de qualquer matiz religioso).<br />

Até certo ponto, o olhar do Ocidental e o do rapaz desaparecido<br />

desmistificam a aura pacifista e naturalista de que cada vez mais vêm<br />

gozando no Ocidente as práticas de autocontrole e mesmo de <strong>iluminação</strong><br />

espiritualista oriental: há páginas de informação histórica sobre<br />

o papel opressor dos monges budistas na sociedade mongol pré-comunista,<br />

e a própria narrativa envolvendo um monge budista que viola<br />

uma jov<strong>em</strong> (ou um jov<strong>em</strong>) como processo de iniciação serve como<br />

contraponto para a tendência a considerar tais práticas intrinsecamente<br />

não violentas e integradoras do hom<strong>em</strong> na harmonia cósmica. Da


mesma forma, a suposta "liberdade" que a cultura urbana altamente<br />

regulamentada atribui às sociedades nômades é desmascarada: o discurso<br />

"etnográfico", identificando a repetição e o tradicionalismo como<br />

necessárias condições de sobrevivência desses grupos, revela ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po a violência latente, <strong>em</strong> várias das suas atividades e formas<br />

de comportamento. Há portanto um olhar lúcido e inteligente que<br />

não cede ao fascínio um pouco fácil das vias alternativas "exóticas". O<br />

efabulador, no entanto, cede mais facilmente ao encanto da sugestão<br />

do mistério, mesmo quando o disfarça por trás de uma máscara<br />

racional 13 . Um dos segredos do agrado que o livro provoca talvez resida<br />

nessa curiosa combinação de lucidez ilustrada com uma narrativa novelesca,<br />

cheia de peripécias, que envolve o leitor quase que inadvertidamente<br />

14 .<br />

Mas afinal qual é o grande mistério do livro? Na verdade, o discurso<br />

narrativo, por meio das suas refrações e peripécias, disfarça-o com<br />

surpreendente eficiência. E preciso um leitor atento, que vá recolhendo<br />

as pequenas alusões e sugestões e resista ao ritmo um pouco frenético<br />

das peripécias e andanças, dos nomes "estranhos" (para os nossos<br />

ouvidos) das muitas personagens (que tend<strong>em</strong> a se confundir umas<br />

com as outras), para reconstruí-lo ao término da leitura. A primeira<br />

vista, parece que o maior mistério é o da identidade do rapaz desaparecido,<br />

finalmente reconhecido como o meio-irmão do diplomata morto:<br />

a história folhetinesca da mãe seduzida e abandonada, do filho não<br />

reconhecido pelo pai que ao fim e ao cabo se torna o resgatador do<br />

meio-irmão visto uma única vez na vida, quando fora à procura do pai<br />

(que não o recebe) para comunicar-lhe a morte da mãe.<br />

Há porém outro mistério cuja solução não é tão óbvia e que passa<br />

por uma série de indagações: por que as reticências do pai e do<br />

Itamaraty na busca do rapaz?; por que a brusca decisão deste de pôr-se<br />

<strong>em</strong> situação de risco no inverno mongol, numa d<strong>em</strong>anda cujo móvel se<br />

desconhece e que só é percebido por um dos guias de maneira muito<br />

vaga 15 ?; por que o rapaz é apelidado pelos que o acompanham na<br />

segunda parte da viag<strong>em</strong> de "Buruu nomton" ("desajustado")?; qual é<br />

a importância da história da divindade f<strong>em</strong>inina do budismo tântrico,<br />

que se torna o fio condutor da sua d<strong>em</strong>anda? O texto diss<strong>em</strong>ina<br />

insidiosamente algumas pistas que o leitor terá de colacionar se quiser<br />

entender qual a natureza do probl<strong>em</strong>a ou do "mistério".<br />

Assim, quando o Ocidental narra o seu primeiro encontro com<br />

Purevbaatar, o guia que acompanhara o rapaz na última parte da<br />

viag<strong>em</strong>, descreve-o como "um hom<strong>em</strong> bonito e, ao que tudo indicava,<br />

um sedutor" (p. 50). O interesse do rapaz pela divindade f<strong>em</strong>inina<br />

Narkhajid explica-se progressivamente, por meio das informações<br />

coligidas na internet pelo Ocidental e relatadas ao leitor <strong>em</strong> tom<br />

igualmente neutro pelo diplomata aposentado, as quais associam essa<br />

divindade ao budismo tântrico, que <strong>em</strong>prega as mais variadas energias,<br />

inclusive as sexuais, como formas de <strong>iluminação</strong>. Na última versão da<br />

[13] Por ex<strong>em</strong>plo, na seguinte passag<strong>em</strong>:<br />

"E desapareceu como um fantasma<br />

— na verdade, ela era<br />

Vajrayogini, mas Naropa só conseguira<br />

vê-la como uma velha horrenda,<br />

porque ainda não estava purificado<br />

para enxergá-la <strong>em</strong> sua forma real (e<br />

aqui o Ocidental resistiu a fazer<br />

qualquer tipo de associação com a<br />

monja careca de Narkhajid Süm, que<br />

desapareceu como tinha aparecido)"<br />

(p. 98). Obviamente, dizer que o Ocidental<br />

"resistiu a fazer" é apenas uma<br />

maneira de sugerir que a associação<br />

poderia ser feita e lhe teria ocorrido.<br />

[14] A respeito de Nove noites a<br />

crítica destacou a capacidade de captar<br />

a atenção do leitor e satisfazer<br />

essa exigência de refinamento, como<br />

nas seguintes apreciações reproduzidas<br />

na contracapa de Mongólia: "O<br />

leitor agarra, não larga e continua com<br />

ele na cabeça depois da última<br />

página" (Jorge Coli, Folha de S. Paulo);<br />

"... dispens<strong>em</strong> a cautela, abandon<strong>em</strong><br />

suas certezas e se entregu<strong>em</strong><br />

ao refinado e compensador prazer de<br />

ler" (José Castello, O Globo).<br />

[15] Conforme as palavras do primeiro<br />

guia, Ganbold, acerca do efeito da<br />

narrativa da monja careca sobre o<br />

rapaz: "O que ela disse tocou <strong>em</strong><br />

alguma coisa dentro dele, alguma coisa<br />

que ele também tinha visto, e o<br />

levou a reconhecer el<strong>em</strong>entos da história<br />

como se foss<strong>em</strong> parte da sua<br />

própria vida" (p. 90).


[16] "Há uma dimensão inconsciente<br />

entre os mongóis que é desconcertante,<br />

pela evidência com que se<br />

revela aos olhos do estrangeiro. Sobretudo<br />

no que diz respeito às manifestações<br />

sexuais" (p. 172). A recente<br />

conscientização de certas culturas<br />

quanto à homossexualidade foi objeto<br />

de estudo da jornalista e pesquisadora<br />

britânica Vanessa Baird (Sex,<br />

love & homophobia: lesbian, gay,<br />

bisexual and transgendered lives.<br />

Londres: Amnesty International,<br />

2004): "Em muitos países da África,<br />

há dez anos muitas pessoas<br />

acreditavam que o homossexualismo<br />

não existisse, que não fosse parte de<br />

sua cultura. Agora há grupos ativistas<br />

provando que existe. Na medida <strong>em</strong><br />

que o t<strong>em</strong>a é mais discutido, atrai<br />

hostilidade". A autora relaciona o<br />

aparent<strong>em</strong>ente paradoxal aumento<br />

da homofobia no mundo ao maior<br />

ativismo dos grupos gays. Indagada<br />

se não seria melhor então que a<br />

comunidade homossexual permanecesse<br />

"no armário", Baird responde:<br />

"Os gays de ont<strong>em</strong> sofriam<br />

com o silêncio. Os de hoje sofr<strong>em</strong><br />

com a violência. Então a situação<br />

piorou? Não. O silêncio é provavelmente<br />

pior" (Folha de S. Paulo, 18/<br />

07/2004, A-17).<br />

história do velho lama que viola uma jov<strong>em</strong> monja e é depois salvo da<br />

morte por ela, substitui-se a monja por um rapaz. Ainda, a visão que o<br />

velho lama tivera afinal se revela como provocada pela tatuag<strong>em</strong> da<br />

figura de Narkhajid no sexo do rapaz que lhe servira de guia na fuga. A<br />

descrição do monge que encontrara o manuscrito deixado pelo lama,<br />

Ayush, sugere que se tratava de um homossexual. O motivo pelo qual<br />

Purevbaatar deixara de acompanhar o rapaz brasileiro na sua derradeira<br />

etapa, desvenda-o o próprio guia ao Ocidental: ao ouvir a versão<br />

revista da história do lama, entendeu que o hom<strong>em</strong> que a narrava fazia<br />

alusões ao tipo de relação que mantinha com o brasileiro. E quando<br />

Purevbaatar declara ao Ocidental que não exist<strong>em</strong> homossexuais na<br />

Mongólia (p. 167) ilumina-se retroativamente para o leitor o significado<br />

do nome atribuído ao rapaz, "Buruu nomton": "aquele que não<br />

segue os costumes e não cumpre as regras" (p. 61), ou seja, aquele que se<br />

desvia da normalidade sexual — no caso, um homossexual.<br />

Depois que Purevbaatar lhe revela sua aversão e seu preconceito<br />

(sobre os quais a sua descrição anterior como sedutor lança alguma<br />

suspeita) o Ocidental lê no diário do rapaz as anotações sobre a inexistência<br />

de homossexualidade na Mongólia, ou a inconsciência que os<br />

mongóis revelam das pulsões homossexuais reconhecíveis <strong>em</strong> algumas<br />

das suas práticas 16 . Todas essas pistas levam afinal o leitor a ver o rapaz<br />

brasileiro como um (possível) homossexual que é estigmatizado pelo<br />

preconceito no país de orig<strong>em</strong> e depois no outro extr<strong>em</strong>o do mundo.<br />

Mas isso tudo é uma reconstrução de leitura, de nenhuma maneira<br />

evidente ou facilmente acessível. O excesso de peripécias, as histórias<br />

que se sobrepõ<strong>em</strong> parec<strong>em</strong> procurar distrair o leitor, de tal forma que o<br />

"entendimento" final v<strong>em</strong> quase como uma "<strong>iluminação</strong>" (discreta),<br />

obtida à custa de concentração, esforço e perseverança.<br />

Se o texto se propunha a denunciar um preconceito universal contra<br />

a homossexualidade, tanto mais de admirar porque o figura <strong>em</strong> culturas<br />

que se situam <strong>em</strong> aparentes extr<strong>em</strong>os do espectro cultura-natureza,<br />

mas deixa-o perder-se como um t<strong>em</strong>a até secundário dentre os d<strong>em</strong>ais:<br />

a intolerância, a mútua incompreensão cultural, a desmistificação das<br />

práticas religiosas orientais, a reflexão sobre a arte ocidental e a oriental,<br />

os equívocos sobre o nomadismo etc. O rapaz desaparecido só é<br />

apresentado ao leitor através do filtro de relatos vários (inclusive o seu<br />

próprio, na forma de anotações supostamente destinadas a constituir<br />

matéria para a revista de turismo), e quando ele finalmente aparece, <strong>em</strong><br />

estado de depauperação e choque, não fala, não se explica: é uma sombra<br />

que passa diante dos olhos do leitor (é interessante observar a<br />

similaridade entre as cenas finais dos dois romances, ambas passadas<br />

num avião que leva o(s) protagonista(s) de volta, uma vez acabada a<br />

d<strong>em</strong>anda).<br />

Quando l<strong>em</strong>os nos agradecimentos do autor que um dos seus<br />

motoristas na Mongólia se chamava I. Batnasan (p. 187), l<strong>em</strong>bramonos<br />

de que o motorista do rapaz desaparecido, na primeira parte da


sua viag<strong>em</strong>, tinha esse mesmo nome. Considerando que, por<br />

princípio, um escritor tão imaginativo como Bernardo Carvalho não<br />

teria escolhido o nome do personag<strong>em</strong> simplesmente porque se havia<br />

esgotado o seu estoque de nomes próprios mongóis, poderíamos ver<br />

nisso uma espécie de signature enviesada, de sobreposição autobiográfica?<br />

Nesse caso novamente nos encontramos numa casa de espelhos,<br />

engenhosamente dispostos para ocultar precisamente uma<br />

figura cuja importância central se encontra deslocada num reflexo<br />

lateral, quase imperceptível.<br />

O móvel último dos dois romances é, portanto, a homossexualidade<br />

de uma das personagens, significativamente aquela que é objeto<br />

de d<strong>em</strong>anda real ou de busca de apreensão, de entendimento. Em ambos<br />

os casos há uma história familiar complicada: um pai ausente (por<br />

equívoco ou decisão própria), uma mãe que desaparece cedo do retrato,<br />

irmãos que não se conhec<strong>em</strong>. Espelham-se também as estruturas de<br />

encaixe, vozes que se sobrepõ<strong>em</strong> ou contrapõ<strong>em</strong>, focos de luz que<br />

incid<strong>em</strong> apenas lateralmente sobre os objetos, deixando zonas totalmente<br />

escuras e iluminando excessivamente outras. Um desses focos,<br />

aliás, v<strong>em</strong> de fora dos limites do quadro, a partir de uma projeção<br />

enviesada do autor (colocada ou logo depois do finis ficcional, nos<br />

agradecimentos, ou numa região nitidamente autoral, como a orelha da<br />

contracapa) sobre o personag<strong>em</strong> (talvez) homossexual (mediante o<br />

equívoco de pessoa <strong>em</strong> Nove noites e a coincidência triangular de nomes<br />

<strong>em</strong> Mongólia).<br />

O jogo de espelhos e reflexos, as distorções, as identidades diluídas<br />

ou esgarçadas, os painéis folhetinescos, tudo isso parece constituir<br />

o esconderijo possível para o autor situar "um mundo secreto<br />

cheio de sinais e momentos, de medos e preconceitos", na esteira de<br />

um passado literário que "não é puro [...]; é dúbio e escorregadio, e<br />

requer uma enorme dose de solidariedade e de compreensão", conforme<br />

reflete Colm Tóibín ao referir-se ao passado homossexual<br />

expresso na literatura 17 . Nesse sentido, então, já não nos espanta mais<br />

o fascínio do autor pelos gêneros oitocentistas, pois no que se refere<br />

ao cerne da sua intimidade, àquilo que parece considerar "a sua<br />

imag<strong>em</strong> mais verdadeira", é como se ele ali se encontrasse ainda. O<br />

que o ancora nos t<strong>em</strong>pos atuais é s<strong>em</strong> dúvida a sua escrita substantiva,<br />

nítida e enxuta, que entra <strong>em</strong> conflito com as tramas e os<br />

disfarces de cenário de sua preferência. É o seu olhar lúcido sobre o<br />

mundo, seus objetos e seres, que talvez algum dia descubra o caminho<br />

direto para uma dicção ficcional do mesmo calibre.<br />

YARA FRATESCHI VIEIRA é professora titular aposentada do Departamento de Teoria<br />

Literária da Unicamp.<br />

[17] Tóibín, op. cit, pp. 18 e 26.


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